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Haruki Murakami
Civilização Editora
Digitalização e Arranjo
Agostinho Costa
PUBLISHERS WEEKLY
Newsday
"A escrita de Murakami é tão requintada e delicada que o que quer que ele decida
descrever vibra de possibilidades simbólicas..."
The Guardian
Norwegian Wood
Haruki Murakami
Civilização Editora
Eu tinha trinta e sete anos e viajava, de cinto posto, no meu lugar enquanto
o enorme 747 mergulhava através de uma densa cobertura de nuvens a aproximar-se
do aeroporto de Hamburgo. As frias chuvas de Novembro encharcavam o solo,
conferindo a tudo o aspecto sombrio de uma paisagem flamenga: a tripulação
em terra envergando impermeáveis, uma bandeira no topo de um atarracado edifício
do aeroporto, um placard da BMW. Portanto... eis-me de novo na Alemanha.
Assim que o avião aterrou, começou a fluir uma música suave dos altifalantes
no tecto: uma adocicada versão orquestral de Norwegian Wood dos Beatles. Esta
melodia provocava-me sempre um calafrio, mas desta vez perturbou-me com mais
força do que nunca.
Inclinei-me para a frente, com o rosto entre as mãos para evitar que o meu
cérebro se estilhaçasse. Pouco depois, uma das hospedeiras alemãs aproximou-se
e perguntou em inglês se me sentia agoniado.
- Não - respondi -, apenas uma ligeira tontura.
- Tem a certeza?
- Sim. Obrigado.
Ela sorriu e afastou-se, e a música foi substituída por uma melodia de Billy
Joel. Recostei-me e olhei pela janela, para as nuvens negras que pairavam sobre
o Mar do Norte, enquanto pensava em tudo aquilo que perdera no decurso da minha
vida: tempos perdidos para sempre, amigos que tinham morrido ou desaparecido,
sentimentos que não voltaria a viver.
O avião chegou ao terminal. Os passageiros começaram a desapertar os cintos
e a retirarem as bagagens dos cacifos, e durante todo esse tempo eu encontrava-me
no prado. Sentia o cheiro da erva, sentia o vento no rosto, ouvia os gritos
das aves. Outono de 1969, e em breve teria vinte anos.
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escolhendo as palavras com cuidado. Por vezes falava assim, demorando-se até
encontrar a palavra exacta que procurava. - Mas ninguém sabe onde fica - continuou
ela. - A única coisa que sei com certeza, é que fica algures por aqui.
Tinha as mãos enfiadas nos bolsos do casaco de fazenda e sorriu-me como se
dissesse «É verdade!».
- Então deve ser incrivelmente perigoso - disse eu. - Um poço profundo, embora
ninguém saiba onde fica. Se alguém caísse lá dentro, seria o seu fim.
- O fim. Aaaaaaaah! Zás! Arrumado de vez.
- Essas coisas acontecem certamente.
- Sim, acontecem, de vez em quando. Talvez uma vez em cada dois ou três anos.
Alguém desaparece de repente e ninguém consegue encontrá-lo. Portanto, as pessoas
destes arredores acabam por dizer: «Oh, caiu no poço do campo».
- Não é uma maneira agradável de se morrer - comentei eu.
- Pois não, é uma maneira terrível de se morrer - corroborou a Naoko, sacudindo
do casaco um emaranhado de sementes das ervas. - O melhor seria quebrar o pescoço,
mas o mais provável era quebrar a perna e então já não se podia fazer nada.
A pessoa punha-se a gritar até ficar sem fôlego, mas ninguém a ouviria, e não
havia esperança de alguém a encontrar, e haveria centopeias e aranhas a rastejarem
por ela acima, e os ossos daqueles que tinham morrido antes estão espalhados
por todo o lado, e está escuro e húmido, e lá no alto há um minúsculo, minúsculo
círculo de luz como uma lua de Inverno. E morre-se aí nesse lugar, pouco a
pouco, completamente sozinho.
- Ui, só de pensar nisso fico com a pele arrepiada - disse eu.
- Deviam localizar o poço e construir um muro à volta.
- Mas ninguém consegue encontrá-lo. Portanto, tem cuidado para não te desviares
do caminho.
- Não te preocupes, não me desviarei.
Tirou a mão esquerda do bolso e apertou-me a minha.
- Não te preocupes - disse-me. - Vai correr tudo bem. Tu podias pôr-te a correr
aqui à volta a meio da noite que nunca caírias dentro do poço. E, enquanto
me mantiver ao teu lado, também eu não caírei.
- Nunca?
- Nunca!
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andavas a fazer da tua vida, por que razão passavas todo o teu tempo a tomar
conta desta mulher. Não conseguiria suportar isso. Isso não solucionaria nenhum
dos meus problemas.
- Mas os teus problemas não existirão durante toda a tua vida - disse-lhe,
tocando-lhe nas costas. - Um dia terminarão. E quando isso acontecer, pararemos
para pensar como iremos prosseguir a partir daí. Talvez tu própria tenhas que
me ajudar a mim. As nossas vidas não se regem por nenhum livro de contabilidade.
Se precisas de mim, usa-me. Não compreendes? Por que razão tens de ser tão
rígida? Relaxa, baixa a guarda. Relaxa o corpo e verás como acabas por te animar.
- Como podes dizer uma coisa dessas? - perguntou com uma voz isenta de sentimento.
A voz dela alertou-me para a possibilidade de eu ter dito algo que não deveria.
- Diz-me como pudeste dizer uma coisa dessas - repetiu, olhando fixamente para
o chão. - Não estás a dizer-me nada que eu não soubesse já. «Relaxa o corpo
e verás como acabas por te animar». Que importância tem dizeres-me isso? Se
relaxasse o corpo agora, desmoronar-me-ia. Vivi sempre assim, e é a única maneira
que conheço de continuar a viver. Se relaxar por um segundo que seja, nunca
mais conseguiria encontrar o caminho de regresso. Ficaria desfeita em pedaços,
e esses pedaços seriam levados pelo vento. Por que não consegues compreender
isso? Como podes dizer que vais cuidar de mim se não consegues compreender
isso?
Mantive-me em silêncio.
- Estou confusa. Verdadeiramente confusa. E é muito mais profundo do que pensas.
Mais profundo... mais escuro... mais frio. Mas diz-me uma coisa. Como pudeste
tu dormir comigo dessa vez? Como pudeste fazer uma coisa dessas? Por que razão
não me deixaste em paz?
Caminhávamos agora através do aterrador silêncio de um pinhal. A superfície
da vereda estava juncada dos corpos mirrados das cigarras que haviam morrido
no final do Verão e rangiam quando os pisávamos. Continuámos a avançar lentamente
ao longo do trilho, como se procurássemos algo que perdêramos.
- Desculpa - disse ela, agarrando-me o braço e abanando a cabeça. - Não pretendia
magoar-te. Não fiques perturbado
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com aquilo que te disse. Lamento, de verdade. Estava apenas zangada comigo
mesma.
- Suponho que ainda não te compreendo realmente - retorqui. - Não sou assim
tão inteligente. Demoro algum tempo a compreender as coisas. Mas, se tiver
realmente tempo, acabarei por te compreender: melhor do que qualquer outra
pessoa no mundo.
Detivemo-nos, envoltos no silêncio da floresta enquanto escutávamos. Comecei
a revirar pinhas e corpos de cigarras com a ponta do sapato e depois observei
os remendos de céu visíveis através das ramagens dos pinheiros. A Naoko, de
mãos nos bolsos, continuava especada a pensar, com os olhos fixos em nada em
particular.
- Diz-me uma coisa, Toru. Amas-me? - perguntou-me.
- Tu sabes bem que sim.
- Fazes-me dois favores?
- Tem três desejos, madame.
Ela sorriu e abanou a cabeça. - Não, dois são suficientes. Um é para que compreendas
como estou grata por teres vindo visitar-me aqui. Espero que compreendas como
isso me fez feliz. Se há algo que possa salvar-me, será isso. Posso não o demonstrar,
mas é a verdade.
- Voltarei a visitar-te - disse-lhe. - E qual é o outro desejo?
- Quero que te lembres sempre de mim. Lembrar-te-ás de que existi e estive
aqui ao teu lado?
- Para sempre - afirmei. - Lembrar-me-ei para sempre. Retomou a caminhada em
silêncio. A luz outonal que se
infiltrava através das ramagens dançava-lhe nos ombros do casaco. Um cão latiu
de novo, desta vez mais próximo. A Naoko trepou para cima de uma pequena elevação,
saiu da floresta e correu por uma suave encosta abaixo. Segui-a cerca de dois
ou três passos atrás.
- Vem cá! - chamei-a. - O poço pode ser algures por aqui.
- Ela deteve-se, sorriu e deu-me a mão. Caminhámos lado a lado durante o resto
do percurso.
- Prometes de verdade que nunca te esquecerás de mim?
- perguntou quase num sussurro.
- Nunca te esquecerei - disse-lhe. - Nunca conseguiria
esquecer-te.
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Mesmo assim, a minha memória tem-se tornado cada vez mais ténue e já esqueci
muitas coisas. Quando escrevo assim de memória, sinto frequentemente uma pontada
de pavor. E se esqueci já a coisa mais importante? E, se algures dentro de
mim, há um escuro limbo onde todas as memórias verdadeiramente importantes
estão amontoadas e começam lentamente a transformar-se em lama?
Seja como for, é tudo aquilo de que disponho para trabalhar. Agarro contra
o peito estas memórias desvanecidas, evanescentes e imperfeitas e continuo
a escrever este livro com toda a desesperada intensidade de um homem esfomeado
a ; sugar ossos. É a única maneira que conheço de manter a minha promessa à
Naoko.
Há muito, muito tempo, quando ainda era jovem, quando as memórias eram bastante
mais nítidas do que agora, muitas vezes tentava escrever sobre ela. Mas não
conseguia redigir uma única linha. Sabia que, se essa primeira linha surgisse,
o resto verter-se-ia por si próprio para a página, mas nunca consegui isso.
Era tudo demasiado nítido e claro e nunca sabia por onde começar: à semelhança
de um mapa que, por mostrar demasiadas coisas, se torna por vezes inútil. Agora,
porém, apercebo-me de que tudo aquilo que consigo introduzir no imperfeito
recipiente da escrita são memórias imperfeitas e pensamentos imperfeitos. Quanto
mais as memórias da Naoko se desvanecem dentro de mim, mais profundamente consigo
compreendê-la. Sei também por que razão ela me pediu para não a esquecer. Ela
própria sabia também, obviamente. Ela sabia que as memórias que eu tinha dela
acabariam por esmorecer. E é precisamente por essa razão que me pediu que nunca
a esquecesse, que me lembrasse que ela existira.
Este pensamento enche-me de uma mágoa quase insuportável. Porque a Naoko nunca
me amou.
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e Nakano um casaco curto e calças de treino brancas. O Uniforme segurava numa
caixa cerimonial de madeira de paulóvnia não-tratada, enquanto Nakano levava
a tiracolo um leitor de cassetes Sony. Colocava-o junto à base do mastro, o
Uniforme abria a caixa e retirava uma bandeira impecavelmente dobrada. Estendia-a
reverentemente para Nakano, o qual a afixava à corda do mastro, expondo o
cintilante círculo vermelho do Sol Nascente num campo de puro branco. Depois
o Uniforme carregava no botão para tocar o hino. «Que o Reino do Nosso Senhor...»
E a bandeira começava então a ser hasteada.
«Até que os seixos se transformem em rochedos...» Alcançava o meio do mastro.
«E se cubram de musgo».
Agora esvoaçava no topo. Ambos se mantinham hirtamente especados e concentrados
a olharem para a bandeira, a qual constituía uma impressionante visão nos dias
claros em que o
vento soprava.
O arriar da bandeira ao crepúsculo era executado com a mesma reverência cerimonial,
embora de modo inverso: era descida e guardada na caixa. A bandeira nacional
não esvoaçava à noite.
Desconhecia por que razão tinha que ser arriada à noite. A nação continuava
a existir enquanto a escuridão imperava e muitas pessoas trabalhavam à noite-,
equipas de construção da via-férrea, taxistas, empregadas de bar, bombeiros
e guardas-nocturnos - parecia-me injusto que negassem a protecção da bandeira
a essas pessoas. Ou talvez esse facto não importasse demasiado e ninguém se
preocupava realmente - para além de mim. Não que eu próprio me importasse realmente
também. Era apenas algo que me passava pela mente.
O regulamento da atribuição dos quartos colocava os estudantes do primeiro
e segundo anos em quartos duplos, ao passo que os estudantes do terceiro ano
e os finalistas dispunham de quartos individuais. Os quartos duplos eram
estreitos e pouco maiores do que nove por doze, com uma janela de moldura de
alumínio na parede oposta à porta e duas secretárias junto da janela, dispostas
de modo a que os habitantes do quarto pudessem estudar de costas um para o
outro.
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uma vez por mês. O meu companheiro de quarto era um fanático da limpeza. Nenhum
dos outros estudantes do dormitório acreditava em mim quando lhes falava das
cortinas. Desconheciam que as cortinas podiam ser lavadas. Acreditavam, com
efeito, que as cortinas eram partes semi-permanentes da janela. «Há algo de
errado com esse sujeito», diziam, rotulando-o de nazi ou sargento da tropa.
Nem sequer tínhamos pin-ups nas paredes. Não, tínhamos apenas a foto de um
canal em Amesterdão. Eu afixara a fotografia de um nu, mas o meu companheiro
de quarto retirara-a. - Ei, "Watanabe - dissera ele -, e-eu não aprecio muito
este tipo de coisas - e afixou então a foto do canal. Não protestei, não sentia
qualquer apreço especial pela imagem do nu.
«Mas que raios é aquilo», era a reacção universal à foto de Amesterdão sempre
que os outros estudantes vinham ao meu quarto.
- Oh, o Sargento gosta de se masturbar a olhar para isso -respondia eu.
Era supostamente uma piada, mas todos levavam estas palavras a sério - tão
a sério que eu próprio comecei a acreditar.
Todos se compadeciam de mim por ter o Sargento como companheiro de quarto,
mas esse facto não me incomodava verdadeiramente. Ele deixava-me em paz desde
que eu mantivesse a minha área limpa e, de facto, tê-lo como companheiro de
quarto facilitava-me a vida em muitos aspectos. Era ele quem efectuava todas
as limpezas, quem se ocupava de arejar os colchões, de despejar o lixo. Costumava
cheirar-me e sugeria-me um banho quando eu andava demasiado atarefado para
me preocupar com o banho. Indicava-me inclusivamente quando estava na altura
de eu ir ao barbeiro ou de aparar os pêlos do nariz. A única coisa que me importunava
era o modo como aplicava nuvens de insecticida quando detectava uma única mosca
dentro do quarto, porque nessas ocasiões eu era obrigado a procurar refúgio
num dos buracos imundos vizinhos.
O Sargento estudava Geografia numa universidade nacional.
Tal como ele me disse quando nos conhecemos: - Estudo m-m-mapas.
- Gostas de mapas? - perguntei.
- Sim. Quando acabar o curso, vou trabalhar para o Instituto de Investigação
Geográfica e elaborar m-m-mapas.
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- Presumo que sim - respondeu ela com aceno de cabeça. Parecia debater-se com
algo na mente. Depois olhou-me directamente nos olhos, como se examinasse um
objecto inusitado. Apercebi-me então de que os olhos dela eram assombrosamente
profundos e claros e senti o coração começar a latejar. Nunca tivera a oportunidade
de a olhar assim nos olhos. Era a primeira vez que caminhávamos juntos ou falávamos
durante tanto tempo.
- Estás a pensar em ir viver para um dormitório ou algo do género? - perguntei.
- Hã-hã - retorquiu. - Interrogava-me apenas sobre como seria a vida em comunidade.
E... - Parecia procurar a palavra ou a expressão certas, mas acabava por fracassar.
Depois suspirou e olhou para o chão. - Oh, não sei. Deixa lá.
Foi o fim da conversa. Continuou a caminhar para leste e segui-a a um passo
atrás.
Passara-se quase um ano desde a última vez em que estivera com a Naoko e durante
esse tempo ela perdera tanto peso ao ponto de parecer uma pessoa diferente.
As faces rechonchudas, que eram um traço especial nela, haviam desaparecido
e o pescoço tornara-se delgado e esguio. Não era magra nem aparentava um aspecto
doentio: havia algo de natural e sereno no modo como emagrecera, como se tivesse
estado escondida num espaço comprido e estreito até ela própria se ter tornado
esguia e estreita. E bastante mais bela do que me lembrava. Queria dizer-lhe
isso, mas não conseguia encontrar a maneira adequada de o expressar.
Não tínhamos planeado encontrar-nos, acabáramos por nos depararmos um com o
outro na linha-férrea regional de Shuo. Decidira ir ao cinema sozinha e eu
dirigia-me para as livrarias de Kanda: nada de urgente para os dois. Ela sugerira
apearmo-nos e acabámos por o fazer em Yotsuya, onde a margem verdejante
proporcionava um agradável passeio junto ao fosso do velho castelo. Estávamos
sozinhos, não dispúnhamos de nenhum assunto em particular para conversar e
eu não tinha bem a certeza por que razão a Naoko sugerira que nos apeássemos
do comboio. Nunca tivéramos de facto muito que dizer um ao outro.
Começou a caminhar assim que alcançámos a rua e apressei-me atrás dela,
mantendo-me alguns passos atrás.
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Poderia ter encurtado a distância entre ambos, mas algo me reteve. Caminhava
de olhos fixos nos ombros dela e no seu cabelo escuro e liso. Usava um enorme
gancho acastanhado no cabelo e, quando se virou, captei o vislumbre de uma
orelha pequena e branca. De vez em quando virava-se para trás e dizia algo.
Por vezes era um comentário ao qual eu poderia ter respondido e outras vezes
era algo ao qual não sabia como reagir sequer. Outras vezes, simplesmente não
conseguia ouvir o que ela dizia. De qualquer modo, ela não parecia importar-se.
Assim que terminava de dizer o que queria, virava-se de novo para a frente
e continuava a caminhar. Oh, bem, disse a mim próprio, o dia estava agradável
para se passear.
No entanto, a julgar pela própria caminhada, não se tratava de um mero passeio
para a Naoko. Enveredou pela direita em Iidabashi, saiu junto do fosso do castelo,
atravessou a intersecção em Jinbocho, subiu a colina em Ochanomizu e saiu em
Hongo. A partir daqui, acompanhou a via do eléctrico até Komagone. Foi um percurso
extenuante. Quando chegámos a Komagone, o sol afundava-se já e o dia tornara-se
num suave entardecer primaveril.
- Onde estamos? - perguntou, como se reparasse pela primeira vez nas redondezas.
- Em Komagone - respondi. - Não sabias? Efectuámos um círculo enorme.
- Por que razão viemos para aqui?
- Foste tu que nos trouxeste para aqui. Limitei-me a seguir-te. Entrámos numa
loja junto à estação para comermos massa.
Estava sedento e bebi uma cerveja. Não proferimos uma única palavra desde que
encomendámos a massa até acabarmos de comer. Sentia-me exausto devido à caminhada
e ela limitava-se a permanecer sentada, com as mãos pousadas sobre a mesa,
a matutar novamente em algo. O noticiário na TV anunciava que todos os locais
de lazer estavam apinhados neste quente domingo. E nós limitámo-nos a caminhar
de Yotsuya até Komagone, disse a mim próprio.
- Bem, estás em boa forma - afirmei quando acabei de comer.
- Estás surpreendido?
- Sim.
- Fui corredora de longa distância na escola, se queres saber.
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Costumava correr os 10.000 metros. E, desde que me lembro, aos domingos o meu
pai levava-me sempre em caminhadas pela montanha. Já conheces a nossa casa,
mesmo junto à montanha. Sempre tive pernas robustas.
- Não se nota.
- Eu sei - respondeu. - Todos pensam que sou uma rapariguinha delicada. Mas
não se pode avAliar um livro pela capa.
- E acrescentou um breve sorriso.
- Pode dizer-se o mesmo de mim - afirmei. - Estou exausto.
- Oh, desculpa, tenho estado a arrastar-te durante o dia inteiro atrás de mim.
- No entanto, estou feliz por termos tido a oportunidade de conversarmos. Nunca
falámos assim, somente nós os dois - disse, tentando recordar-me, em vão, sobre
que assuntos tínhamos falado.
Ela entretinha-se a brincar com o cinzeiro em cima da mesa.
- Pergunto-me... - começou por dizer - ... se não te importarias... quer dizer,
se não seria de facto um incómodo para ti... Achas que poderíamos encontrar-nos
de novo? Eu sei que não tenho o direito de te pedir isto.
- O direito? Que queres dizer com isso?
Corou. A minha reacção ao seu pedido talvez tenha sido excessiva.
- Não sei... não consigo explicar bem - disse, puxando as mangas da camisola
acima dos cotovelos e depois baixando-as de novo. Os pêlos macios dos seus
braços cintilavam com uma encantadora coloração dourada sob a iluminação da
loja. - Não era minha intenção dizer exactamente a palavra «direito». Tentava
encontrar as palavras para dizer isso de outra maneira.
Apoiara os cotovelos sobre a mesa e olhava fixamente para o calendário pendurado
na parede, quase como se esperasse encontrar aí a expressão apropriada. Não
conseguindo, suspirou e fechou os olhos enquanto se distraía com o gancho do
cabelo.
- Não te preocupes - disse-lhe. - Creio que sei o que queres dizer. Mas também
não sei, de facto, como o expressar.
- Nunca consigo expressar o que pretendo dizer - continuou a Naoko. - Há já
bastante tempo que tem sido assim. Tento dizer algo, mas só me saem as palavras
erradas:
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Eu não passava de um rapaz normal que gostava de ler livros e ouvir música
e não me destacava em nada de especial ao ponto de despertar a atenção de alguém
como o Kizuki. No entanto, simpatizámos um com o outro desde o primeiro momento.
O pai dele era dentista, famoso pelo seu profissionalismo e preços elevados.
- Queres sair em grupo no domingo? - perguntou-me logo depois de nos conhecermos.
- A minha namorada frequenta uma escola de raparigas e vai trazer uma bonita
para ti.
- Combinado - disse-lhe, e foi assim que conheci a Naoko. Passávamos muito
tempo juntos, mas sempre que o Kizuki
saía da divisão, eu e a Naoko tínhamos dificuldade em conversar. Nunca sabíamos
sobre o que deveríamos conversar. E, de facto, não partilhávamos nenhum tópico
comum de conversa. Em vez de conversarmos, bebíamos água ou entretínhamo-nos
com algo que estivesse sobre a mesa e esperávamos que o Kizuki regressasse
e recomeçasse a conversa. A Naoko não era particularmente faladora e eu era
sobretudo mais um ouvinte do que um conversador e, por conseguinte, sentia-me
incomodado quando ficava sozinho com ela. Não éramos incompatíveis, simplesmente
não tínhamos nenhum assunto para conversar.
Eu e a Naoko vimo-nos apenas uma vez depois do funeral do Kizuki. Duas semanas
depois, encontrámo-nos num café para tratar de um assunto menor e, quando
terminámos, já não dispúnhamos de nenhum assunto para falar. Tentei abordar
vários tópicos, mas nenhum deles conduzia a lado algum. E quando a Naoko proferia
algo, a sua voz denunciava uma ponta de irritação. Parecia zangada comigo,
mas eu não fazia ideia porquê. Nunca mais nos vimos, até àquele dia, um ano
depois, quando nos encontrámos por acaso na Linha de Chuo em Tóquio.
A Naoko talvez estivesse zangada comigo por ter sido eu, e não ela, a última
pessoa que esteve com o Kizuki. Talvez não seja esta a melhor maneira de o
expressar, mas creio que compreendia como ela se sentia. E teria trocado de
lugar com ela se pudesse; mas, no fim de contas, o que aconteceu, aconteceu,
e não havia nada que eu pudesse fazer.
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o género de lugar com exame de admissão para o qual não teria que me aplicar
muito, e passei sem grande entusiasmo. A rapariga pediu-me para não ir estudar
para Tóquio - «Fica a 750 quilómetros daqui!», suplicou ela -, mas eu tinha
que sair de Kobe a qualquer custo. Era minha intenção iniciar uma nova vida
onde não conhecesse ninguém.
- Agora que já dormiste comigo, já não te preocupas minimamente comigo - declarou
ela enquanto chorava.
- Isso não é verdade - insisti. - Preciso apenas de me afastar desta cidade.
- Mas ela não estava preparada para me compreender. Por conseguinte, separámo-nos.
Quando me encontrava sentado no comboio expresso em direcção a Tóquio e pensava
em todas as coisas que faziam dela uma rapariga muito mais encantadora do que
as outras que eu conhecia, comecei a sentir-me agoniado com o que fizera, mas
não havia maneira de voltar atrás. Tentaria esquecê-la.
Havia apenas uma única coisa que poderia fazer quando iniciasse a minha nova
vida na residência universitária: deixar de encarar tudo tão seriamente e
interpor uma distância adequada entre mim e tudo o resto. Esquecer as mesas
de bilhar de feltro verde e N-360s vermelhos e flores brancas sobre as carteiras;
esquecer o fumo a elevar-se das enormes chaminés de crematórios e os pesados
pisa-papéis nas salas de interrogatório da polícia. De início pareceu resultar.
Esforcei-me arduamente por esquecer, mas dentro de mim permanecia um vago nó
de ar. E, à medida que o tempo decorria, esse nó começou a assumir uma forma
nítida e simples, uma forma que consigo formular em palavras, deste modo:
A morte existe, não como o oposto da vida mas como parte dela.
É um cliché transposto em palavras, embora nessa altura não o sentisse como
palavras mas como um nó de ar dentro de mim. A morte existe - num pisa-papéis,
em quatro bolas vermelhas e brancas numa mesa de bilhar - e continuamos a viver
e a respirá-la para dentro dos pulmões como uma poeira fina.
Até então, sempre entendera a morte como algo completamente separado e
independente da vida. A mão da morte estava destinada a arrebatar-nos, eu sentia
isso, mas, até se apoderar de nós, deixar-nos-ia em paz. Isto parecera-me a
verdade simples e lógica. A vida está aqui e a morte ali. Eu estou aqui e não
ali.
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Era uma divisão pequena e asseada e tão desprovida de adornos que as meias
a secarem no canto junto à janela eram o único sinal de que uma rapariga vivia
ali. Levava uma vida simples e frugal, quase sem amizades. Quem a tivesse conhecido
na escola, nunca a teria imaginado a viver deste modo. Nessa altura, vestia-se
com verdadeiro garbo e rodeava-se de imensos amigos. Quando vi o quarto dela,
apercebi-me de que também ela pretendera ingressar na faculdade e iniciar uma
nova vida longe de todos aqueles que conhecia. - Sabes por que razão escolhi
este lugar? - perguntou com um sorriso. - Porque ninguém conhecido viria estudar
para aqui. Todos esperavam que optássemos por um lugar mais requintado. Percebes
o que quero dizer?
No entanto, o meu relacionamento com ela não estava isento de um progresso
próprio. Começámos paulatinamente a acostumar-nos um ao outro. Quando as férias
do Verão terminaram e o novo semestre se iniciou, a Naoko começou a caminhar
ao meu lado como se fosse a atitude mais natural do mundo. Concluí que agora
me encarava como um amigo e caminhar ao lado de uma rapariga tão encantadora
não era de modo algum doloroso para mim. Continuámos a percorrer Tóquio do
mesmo modo tortuoso, escalando colinas, atravessando rios e linhas-férreas
e limitando-nos a caminhar sem um destino certo em mente. Lançávamo-nos
directamente em frente, como se as nossas caminhadas fossem um ritual religioso,
destinado a curar os nossos espíritos feridos. Quando chovia, abríamos os
guarda-chuvas, mas, de qualquer modo, caminhávamos sempre.
Chegou o Outono e as imediações da residência académica ficaram soterradas
debaixo das folhas da zelkova. A fragrância da nova estação sobreveio quando
enverguei a minha primeira camisola. Como rompera já um par de sapatos, comprei
uns novos de camurça.
Não consigo recordar-me sobre o que conversávamos nessa altura. Nada de especial,
suponho. Continuávamos a evitar qualquer menção ao passado e raramente referíamos
o Kizuki. Conseguíamos olhar um para o outro por cima da borda das chávenas
de café, em total silêncio.
A Naoko apreciava ouvir-me contar histórias acerca do Sargento.
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Certa vez, o Sargento saíra com uma estudante (uma rapariga de Geografia,
obviamente), mas, quando regressou ao início da noite, parecia taciturno. -
Diz-me, W-w-watanabe, quando estás com uma r-r-rapariga falas de quê? - Não
me recordo da resposta que dei, mas ele escolhera a pessoa errada para perguntar.
Em Julho, alguém do dormitório substituíra o cenário do canal de Amesterdão
do Sargento por uma foto da Ponte de Golden Gate. Essa pessoa disse-me que
era sua intenção descobrir se o Sargento conseguiria masturbar-se a olhar para
a ponte. - Ele adorava essa foto - relatei posteriormente, o que instigou
prontamente alguém a pendurar a imagem de um icebergue. Sempre que a foto era
substituída durante a sua ausência, o Sargento mostrava-se perturbado.
- Q-q-quem raios anda a fazer isto? - perguntava.
- Sei lá - respondi. - Mas que diferença faz? São todas fotos agradáveis. Deverias
estar grato.
- Sim, creio que sim, mas é estranho.
As minhas histórias acerca do Sargento provocavam sempre gargalhadas na Naoko.
Poucas coisas conseguiam o seu riso e, por conseguinte, eu falava frequentemente
do Sargento, embora não me sentisse exactamente orgulhoso por o usar desse
modo. O Sargento era o filho mais novo de uma família não muito abastada e
crescera um pouco demasiado sério para o seu próprio bem. Elaborar mapas era
o único pequeno sonho da sua única e pequena vida. Quem teria, pois, o direito
de escarnecer dele por esse facto?
Nessa altura, porém, as piadas acerca do Sargento haviam-se tornado numa
indispensável fonte das conversas no dormitório. E não havia maneira de eu
próprio alterar essa situação. Além do mais, a visão do rosto sorridente da
Naoko tornara-se na minha própria fonte particular de prazer. Continuei, pois,
a fornecer novas histórias a toda a gente.
Certa vez - e foi a única vez -, a Naoko perguntou-me se havia alguma rapariga
de quem eu gostava. Falei-lhe da rapariga que deixara em Kobe. - Era simpática,
gostava de dormir com ela e ocasionalmente sinto saudades dela, mas o facto
é que ela não me entusiasmava. Não sei, por vezes creio que tenho um nó duro
no coração e pouca coisa consegue penetrá-lo. Duvido se conseguirei amar
realmente alguém.
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- Não consigo lembrar-me de todas, mas tenho a certeza de que foram pelo menos
setenta. - Quando lhe disse que eu próprio dormira apenas com uma, retorquiu:
- Oh, isso resolve-se facilmente. Da próxima vez vens comigo. Arranjo-te uma
com bastante facilidade. Não acreditei nele, mas a sua afirmação revelou-se
verdadeira. Era fácil, quase demasiado fácil, com toda a excitação da cerveja
morta. Fomos a uma espécie de bar em Shibuya ou em Shinjuku (onde se situavam
os seus bares preferidos), descobrimos um par de raparigas (o mundo estava
repleto de pares de raparigas), falámos com elas, bebemos, fomos para um hotel
e tivemos relações com elas. Ele era um excelente conversador. Não porque proferia
coisas grandiosas, mas as raparigas sentiam-se enlevadas enquanto o ouviam,
bebiam demasiado e acabavam por dormir com ele. Suponho que apreciavam estar
na companhia de alguém tão agradável, encantador e inteligente. E o facto mais
surpreendente era que eu próprio parecia ter-me tornado igualmente fascinante
para elas pelo mero facto de o acompanhar. O Nagasawa incitava-me a falar e
as raparigas respondiam-me com os mesmos sorrisos de admiração que lhe ofereciam
a ele. Ele fazia uso da sua magia, um verdadeiro talento que não deixava de
me surpreender. Comparado com o Nagasawa, os talentos coloquiais do Kizuki
não passavam de uma brincadeira de criança. Isto era um nível completamente
diferente de triunfo. No entanto, por mais que me encontrasse submetido ao
poder do Nagasawa, continuava a sentir saudades do Kizuki e sentia uma nova
admiração pela sua sinceridade, pois, independentemente dos talentos que possuía,
partilhava-os somente comigo e com a Naoko, ao passo que o Nagasawa tinha a
propensão para disseminar os seus consideráveis dons ao seu redor. Não se tratava
de um desesperado anseio por dormir com as raparigas com que se deparava: para
ele não passava de um jogo.
Eu não era tão entusiasta acerca da ideia de dormir com raparigas desconhecidas.
Era, obviamente, uma maneira fácil de saciar o meu impulso sexual e apreciava,
de facto, todo aquele agarrar e tocar, mas detestava a manhã seguinte. Acordava
e descobria uma rapariga desconhecida a dormir ao meu lado, o quarto tresandava
a álcool, a cama, as luzes e as cortinas ostentavam aquela especial vulgaridade
de «hotel do amor»
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- Não sei, nunca estive numa situação assim - respondi com um sorriso. - Não
consigo imaginar como seria.
- Considera-te abençoado - disse o Nagasawa.
A procura do sexo era a razão pela qual Nagasawa vivia num dormitório apesar
das suas abastadas posses. O seu pai, preocupado com a possibilidade de o Nagasawa
se tornar indolente se vivesse sozinho em Tóquio, compelira-o a residir no
dormitório durante os quatro anos da licenciatura. Este facto pouco incomodava
o Nagasawa, que nunca permitiria que um pequeno conjunto de regras o perturbasse.
Sempre que sentia o ímpeto, obtinha permissão para passar a noite fora e procurava
raparigas ou passava a noite no apartamento da namorada. Não era fácil obter
estas permissões, mas para ele eram como livres-trânsitos - e para mim também,
desde que fosse ele a solicitá-lo.
O Nagasawa tinha uma namorada que o acompanhava desde o primeiro ano. Chamava-se
Hatsumi e tinha a mesma idade que ele. Eu convivera já algumas vezes com ela
e achava-a muito simpática. A sua aparência não atraía imediatamente a atenção
e, de facto, era um tipo de beleza tão comum que, quando a conheci, me interroguei
por que razão o Nagasawa não optara por melhor, mas quem conversasse com ela
apreciava-a prontamente. Era serena, inteligente, divertida, atenciosa e
vestia-se sempre com um admirável bom gosto. Simpatizei imenso com ela e sabia
que, se algum dia conseguisse uma namorada como a Hatsumi, não andaria a dormir
com uma data de raparigas fáceis. Ela também simpatizava comigo e esforçava-se
arduamente por me emparelhar com uma amiga sua do primeiro ano a fim de sairmos
em grupo, mas eu inventava desculpas para evitar repetir erros do passado.
A Hatsumi frequentava a faculdade feminina mais refinada do país e eu não tinha
qualquer hipótese de conseguir falar com uma dessas princesas super-ricas.
A Hatsumi tinha perfeita consciência de que o Nagasawa dormia com outras raparigas,
mas nunca se queixava. Estava seriamente apaixonada e nunca fazia exigências.
- Não mereço uma rapariga como a Hatsumi - disse-me ele certa vez. Vi-me forçado
a concordar com ele.
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havia algo de errado no modo como contava estas histórias: algo de estranho,
ou mesmo distorcido. Cada história possuía a sua própria lógica interna, mas
o elo entre uma e outra era estranho. Sem que me apercebesse, a história A
tornava-se na história B, a qual estivera contida na A, e depois a C surgia
de algo contido na B, sem qualquer fim à vista. Nos momentos iniciais conseguia
fornecer-lhe uma resposta, mas pouco depois desisti de tentar. Pus a tocar
um disco e, quando acabou, levantei a agulha e coloquei outro. Quando o segundo
disco terminou, voltei a colocar o primeiro. Ela tinha apenas seis discos.
O ciclo começava com o Sgt. Peppers Lonely Hearts Club Band e terminava com
o Waltz for Debbie de Bill Evans. Chovia no exterior. O tempo decorria lentamente.
A Naoko continuava a falar sozinha.
Acabei por verificar o que estava errado: a Naoko estava a falar com excessivo
cuidado de modo a não aflorar certas coisas. Uma dessas coisas era obviamente
o Kizuki, mas havia algo mais do que o Kizuki. E embora houvesse certos tópicos
que tentava evitar com determinação, prosseguia incessantemente e com incríveis
pormenores acerca dos assuntos mais triviais e inanes. Nunca a ouvira falar
com tal intensidade e não a interrompi.
No entanto, quando o relógio anunciou as onze horas, comecei a sentir-me nervoso.
Ela falava sem uma única interrupção há mais de quatro horas. Eu estava preocupado
com o último comboio e o recolher obrigatório à meia-noite. Quando tive a
oportunidade, interrompi-a.
- Está na hora de as tropas voltarem para casa - afirmei enquanto olhava para
o relógio. - Está na hora do último comboio.
As minhas palavras não a alcançaram aparentemente. Ou, se o fizeram, ela foi
incapaz de apreender o seu significado. Manteve-se calada durante um ínfimo
momento e depois prosseguiu com a sua história. Desisti, coloquei-me numa posição
mais confortável e bebi o que restava da segunda garrafa de vinho. Achei que
seria melhor deixá-la dizer tudo o que tinha a dizer. O recolher obrigatório
e o último comboio já não me preocupavam.
Todavia, ela não se alongou durante muito mais tempo. De súbito, apercebi-me
de que ela parara de falar. A ponta esfarrapada da última palavra que proferira
parecia flutuar esmorecida no ar. Não terminara de facto aquilo que estava
a dizer.
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Ela tocou-me no pénis erecto. O sexo dela era quente e húmido e ansiava por
mim.
Todavia, quando a penetrei, a Naoko retesou-se com dor. Era a primeira vez?,
perguntei-lhe, e ela anuiu com a cabeça. Agora era eu quem se sentia confuso.
Presumira que ela dormira já com o Kizuki. Penetrei-a até onde me era possível
e permaneci assim durante bastante tempo, agarrado a ela sem me mover. Depois,
quando ela pareceu acalmar, permiti-me mover-me dentro dela e demorei bastante
tempo até atingir o clímax por via de movimentos lentos e delicados. Os seus
braços retesaram-se em redor de mim quando ela rompeu por fim o silêncio. O
seu grito foi o mais triste som de orgasmo que alguma vez ouvi.
Quando tudo terminou, perguntei-lhe por que razão nunca dormira com o Kizuki.
Cometi um erro: assim que proferi a questão, afastou os braços e recomeçou
a chorar sem emitir qualquer som. Peguei em cobertores do armário, estendi-os
sobre a carpete e agasalhei-a. Fumei um cigarro enquanto observava a infindável
chuva de Abril no exterior da janela.
A chuva cessou quando a manhã rompeu. A Naoko dormia de costas voltadas para
mim. Ou talvez não tivesse dormido sequer. Quer estivesse desperta ou a dormir,
os seus lábios já não proferiam palavras e o seu corpo parecia agora retesado
e quase petrificado. Tentei várias vezes falar com ela, mas não respondia nem
se movia. Olhei fixamente para o seu ombro nu durante bastante tempo, mas acabei
por perder qualquer esperança de obter uma reacção e decidi levantar-me.
O soalho encontrava-se ainda juncado de capas de discos, copos, garrafas de
vinho e o cinzeiro que eu usara. Metade do bolo de aniversário, agora sem
consistência, continuava sobre a mesa. Era como se o tempo se tivesse detido.
Arrumei as coisas do chão e bebi dois copos de água junto da banca. Na secretária
da Naoko havia um dicionário e uma tabela de verbos franceses. Na parede por
cima estava pendurado um calendário, desprovido de qualquer ilustração ou imagem,
somente com os dias do mês. Nenhuma das datas fora assinalada com memorandos
ou sinais.
Recolhi a minha roupa e vesti-me. O peito da minha camisa continuava húmido
e gélido. Exalava o aroma da Naoko.
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Algo esmorecera dentro de mim e nada viera preencher a caverna vazia. Havia
uma leveza anormal no meu corpo e os sons apresentavam um eco abafado. Comecei
a assistir às aulas com mais assiduidade do que anteriormente. Eram aulas
entediantes e nunca falava com os meus colegas, mas não dispunha de nenhum
outro modo de ocupar o tempo. Sentava-me sozinho na primeira fila do anfiteatro,
não falava com ninguém e comia sozinho. Parei de fumar.
A greve estudantil teve início no final de Maio. «Abaixo a Universidade!»,
gritavam todos eles. Avancem, destruam-na, pensava eu. Arrasem-na. Desfaçam-na.
Reduzam-na a escombros. Estou-me nas tintas. Seria uma lufada de ar fresco.
Estou preparado para tudo. E ajudarei se for necessário. Avancem e destruam-na.
O campus foi barricado, as aulas foram suspensas e comecei a trabalhar numa
empresa de entregas. Acompanhava os motoristas e carregava e descarregava os
camiões, esse género de coisas. Era mais extenuante do que imaginara. De início,
quase não conseguia sair da cama de manhã devido às dores. No entanto, era
um salário bom e, desde que obrigasse o corpo a mover-se, conseguia esquecer-me
do vazio que sentia interiormente. Trabalhava nos camiões cinco dias por semana
e durante três noites por semana continuava a trabalhar na loja de discos.
Nas outras noites bebia whisky e lia. O Sargento detestava whisky e não tolerava
o cheiro a álcool; quando me deitava na cama a emborcar directamente da garrafa,
queixava-se de que o cheiro o impedia de estudar e pedia-me para colocar a
garrafa fora do quarto.
- Vai tu lá para fora, raios! - grunhia eu.
- Mas tu sabes que beber álcool no dormitório é c-c-contra o regulamento.
- Não quero saber. Vai tu lá para fora.
Ele parava de se queixar, mas depois era eu quem se sentia irritado. Optava
então por ir beber sozinho para o telhado. Em Junho escrevi à Naoko outra extensa
carta e enderecei-a de novo para a sua morada em Kobe. Dizia praticamente as
mesmas coisas que escrevera na primeira, mas no fim acrescentei: Esperar por
uma resposta tua é uma das coisas mais dolorosas por que já passei. Diz-me
pelo menos se te magoei ou não.
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Perdoa-me, por favor, por não ter respondido mais cedo. Mas tenta compreender.
Precisei de bastante tempo até estar em condições de responder e comecei a
redigir esta carta pelo menos dez vezes. Escrever épara mim um processo doloroso.
Deixa-me começar com a minha conclusão. Decidi suspender os estudos durante
um ano. Oficialmente, trata-se de uma licença de ausência, mas desconfio que
nunca mais regressarei. Isto será sem dúvida uma surpresa para ti, mas, de
facto, há muito tempo que andava a pensar fazer isto. Tentei falar-te nisto
várias vezes, mas nunca fui capaz de o abordar. Receava pronunciar essas palavras.
Não deixes as coisas afectarem-te tanto. Independentemente do que aconteceu,
ou não aconteceu, o resultado final teria sido o mesmo. Talvez não seja a melhor
forma de o expressar e lamento se te magoo. Estou a tentar dizer-te que não
quero que te censures por aquilo que me aconteceu. É algo que somente eu saberei
solucionar. Há mais de um ano que andava a adiá-lo e acabei por tornar as coisas
bastante difíceis para ti. Não existe provavelmente maneira de continuar a
adiá-lo ainda mais.
Depois de desistir do apartamento, regressei a casa dos meus pais em Kobe e
durante uns tempos fui acompanhada por um médico. Informou-me que existe um
local nas colinas no exterior de Quioto que seria perfeito para mim e penso
passar lá algum tempo. Não é exactamente um hospital é uma espécie de sanatório
com um género de tratamento muito mais livre. Deixarei os pormenores para uma
outra carta. Agora preciso de descansar num local calmo, isolada do mundo.
De certo modo, sinto-me grata pelo ano de camaradagem que me proporcionaste.
Por favor, acredita que sim, mesmo se não acreditares em mais nada. Não foste
tu quem me magoou. Fui eu própria quem o fez. É isto, verdadeiramente, o que
sinto.
No entanto, não me sinto preparada para te ver. Não se trata de não querer
ver-te: simplesmente, não estou preparada. Quando me sentir preparada,
escrever-te-ei. Talvez consigamos então conhecer-nos melhor um ao outro. Tal
como tu dizes, provavelmente é isso que devemos fazer: conhecer-nos melhor
um ao outro. Adeus.
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Reli a carta uma e outra vez e cada leitura me inundava com a mesma tristeza
insuportável que costumava sentir quando a Naoko me olhava fixamente nos olhos.
Não conseguia lidar com isto, não havia nenhum lugar para onde pudesse ir e
ocultar essa tristeza. Tal como o vento que soprava contra o meu corpo, essa
tristeza não tinha forma nem peso e não conseguia envolver-me nela. Os objectos
pairavam à minha volta, mas as palavras que proferiam nunca alcançavam os meus
ouvidos. Continuei a passar as noites de sábado sentado no átrio. Não esperava
receber um telefonema, mas não sabia como ocupar o tempo de outra maneira.
Ligava a televisão durante um jogo de beisebol e simulava ver enquanto dividia
em dois o espaço entre mim e o televisor e depois o dividia de novo em dois,
uma e outra vez, até formar um espaço suficientemente pequeno para o agarrar
com a mão.
Desligava o televisor às dez horas, voltava para o quarto e dormia.
No final do mês, o Sargento ofereceu-me um pirilampo. Estava dentro de um boião
de café, com buracos de respiração na tampa, provido de folhas de erva e um
pouco de água. Na claridade do quarto, o pirilampo parecia um vulgar insecto
negro que se encontraria algures junto a um tanque, mas o sargento insistiu
que era um verdadeiro pirilampo. - Sei bem o que é um pirilampo - disse, e
não havia qualquer motivo para não acreditar nas suas palavras.
- Pois bem - redargui. - É um pirilampo. - O insecto parecia sonolento e tentava
trepar pelo vidro escorregadio do boião, mas tombava continuamente para trás.
- Encontrei-o no pátio - explicou.
- Aqui? Junto ao dormitório?
- Sim. Conheces o hotel no fundo da rua? No Verão costumam soltar pirilampos
no jardim para agrado dos hóspedes. Este conseguiu fugir até aqui.
O Sargento estava atarefado a arrumar roupas e cadernos na mochila escura enquanto
falava.
Haviam decorrido já várias semanas das férias de Verão e éramos praticamente
os únicos residentes que continuavam no dormitório. Eu preferira continuar
com os meus dois empregos
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em vez de voltar para Kobe e ele permanecera para uma sessão de treino prático.
Agora que o treino terminara, regressaria às montanhas de Yamanashi.
- Podias oferecê-lo à tua namorada - sugeriu. - Tenho a certeza de que ela
adoraria.
- Obrigado.
Depois do crepúsculo, abatia-se sobre o dormitório um silêncio de ruínas. A
bandeira fora arriada e as luzes cintilavam nas janelas da cantina. Como restavam
poucos estudantes, acendiam apenas metade das luzes da divisão: a metade direita
permanecia na obscuridade e a esquerda iluminada. Sentia o cheiro do jantar,
uma espécie de estufado cremoso.
Levei o boião com o pirilampo para o telhado deserto. Um casaco branco, que
alguém se esquecera de recolher, pendia de uma corda e agitava-se na brisa
do anoitecer como o invólucro abandonado por um enorme insecto. Subi a escada
de aço no canto do telhado para o topo do depósito de água do dormitório. O
depósito encontrava-se ainda quente devido ao calor do sol que absorvera durante
o dia. Sentei-me no exíguo espaço, encostado ao corrimão e virado para uma
lua cheia e branca. As luzes de Shinjuku cintilavam à direita e as de Ikebukuro
à esquerda. Os faróis dos carros fluíam em brilhantes feixes de poças de luz.
Pairava sobre a cidade um abafado rugido de sons diversos.
O pirilampo emitia uma ténue luminosidade no fundo do boião, mas era um brilho
demasiado esbatido e pálido. Há anos que não via um pirilampo, mas os pirilampos
que guardava na minha memória emitiam um brilho bastante mais intenso na escuridão
do Verão e fora essa imagem resplandecente e luzidia que permanecera comigo
durante todo esse tempo.
Talvez este pirilampo estivesse prestes a morrer. Agitei o boião. O insecto
embateu contra o vidro e tentou voar, mas o seu brilho continuava esmorecido.
Tentei recordar-me da última vez e do lugar onde vira pirilampos. Conseguia
ver essa imagem na mente, mas era incapaz de me lembrar do local e da altura.
Conseguia ouvir o som da água na escuridão e via uma antiga comporta de tijolos,
provida de um manípulo para a abrir e fechar. A torrente que controlava era
bastante fraca e ficava oculta pelas ervas das margens.
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Estava uma noite escura, tão escura que não conseguia ver os pés quando desligava
a lanterna. Centenas de pirilampos esvoaçavam sobre a poça de água retida pela
comporta e o seu brilho intenso reflectia-se na água como uma chuva de centelhas.
Fechei os olhos e embrenhei-me nessa escuridão do passado. Ouvia o vento com
uma nitidez inusitada. Senti uma leve brisa que deixava rastos estranhamente
brilhantes na obscuridade. Abri os olhos e descobri que a escuridão da noite
de Verão se aprofundara.
Desarrolhei o boião, retirei o pirilampo e coloquei-o na pequena borda do depósito
de água. O insecto parecia incapaz de se orientar, saltitava em redor da cabeça
de um parafuso de aço e emaranhava as patas na tinta descamada. Avançou para
a direita até ficar com a saída bloqueada e depois recuou em círculos para
a esquerda. Por fim, subiu com algum esforço para a cabeça do parafuso e aí
ficou anichado e imóvel durante alguns segundos, como se tivesse exaurido o
seu último fôlego.
Eu continuava encostado ao corrimão a observá-lo. Não nos movemos durante muito
tempo. O vento continuava a soprar enquanto as inúmeras folhas da zelkova se
agitavam na escuridão. Esperei uma eternidade.
O pirilampo esvoaçou para o ar bastante tempo depois, como se lhe tivesse ocorrido
algo de repente. Abriu as asas e voou rapidamente por cima do corrimão até
flutuar na palidez da escuridão. Delineou um célere arco ao lado do depósito
de água, como se tentasse recuperar um intervalo de tempo perdido. Por fim,
após pairar durante uns escassos segundos como se observasse a linhacurvada
da sua própria luz a fundir-se com o vento, esvoaçou para leste.
O rasto da sua luz permaneceu dentro de mim bastante tempo depois de o pirilampo
ter desaparecido e essa sua pálida e ténue luminosidade continuava a pairar
como uma alma perdida na espessa escuridão por trás das minhas pálpebras. Tentei
várias vezes estender a mão na escuridão, mas os meus dedos não tocavam em
nada. O ténue brilho perdurava, mas estava para além do meu alcance.
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- Tens razão - redarguiu. - Fiz uma permanente este Verão, mas ficou absolutamente
horrível. Até tive vontade de me suicidar. Parecia um cadáver na praia, com
algas marinhas coladas à cabeça. Portanto, decidi-me: já que sentia vontade
de me suicidar, mais me valia rapá-lo por completo. Pelo menos sentir-me-ia
mais fresca durante o Verão. - Passou a mão pelo cabelo curto e ofereceu-me
um sorriso.
- Mas fica-te bem - disse-lhe, continuando a mastigar a omeleta. - Deixa-me
ver-te de perfil.
Virou-se e manteve essa pose durante alguns segundos.
- Sim, era o que eu pensava. Fica-te mesmo bem. Tens uma cabeça bem modelada.
E orelhas bonitas também, assim expostas.
- Então não sou louca, afinal de contas! Eu própria achei que me ficava bem
quando o rapei. Mas nenhum dos rapazes apreciou. Todos me dizem que pareço
uma sobrevivente de um campo de concentração. Que fetiche é esse de os rapazes
só gostarem de raparigas de cabelo comprido? São uns fascistas, toda essa corja!
Por que razão todos os rapazes pensam que as raparigas de cabelo comprido são
as mais requintadas, as mais doces e as mais femininas? Quer dizer, eu própria
conheço pelo menos duzentas e cinquenta raparigas de cabelo comprido sem qualquer
requinte. Realmente.
- Eu acho que estás mais bonita agora - disse-lhe. E estava a ser sincero.
Segundo me lembrava, quando ela tinha o cabelo comprido não passava de mais
uma estudante gira. Uma força vital, fresca e física emanava agora da rapariga
sentada diante de mim. Parecia um pequeno animal que assomara ao mundo com
a vinda da Primavera. Os seus olhos moviam-se como um organismo independente,
com alegria, riso, fúria, espanto e desespero. Há muito tempo que não via um
rosto tão vívido e expressivo e apreciei observá-lo na sua vividez e movimento.
- Estás a falar a sério? - perguntou.
Anuí com a cabeça, continuando a comer a salada. Voltou a pôr os óculos de
sol e olhou para mim.
- Não estás a mentir, pois não?
- Gosto de me considerar uma pessoa honesta.
- Não me digas.
- Diz-me, por que razão usas óculos tão escuros?
- Senti-me desprotegida quando fiquei com o cabelo tão curto de repente.
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Como se alguém me tivesse lançado completamente nua para o meio de uma multidão.
- Faz sentido - comentei, terminando de comer a omeleta. Ela observava-me com
um interesse intenso.
- Não tens que voltar para junto deles? - perguntei, indicando os seus três
companheiros.
- Não. Volto para a mesa quando servirem a comida. Estou a interromper a tua
refeição?
- Não estás a interromper nada, já terminei - respondi; decidi encomendar o
café, pois ela não revelava qualquer sinal de querer ausentar-se. A proprietária
levantou a mesa e trouxe leite e açúcar.
- Agora és tu quem vai responder-me - anunciou. - Por que razão não respondeste
hoje quando efectuaram a chamada? És o Watanabe, não és? O Toru Watanabe?
- Sim, sou.
- Então, por que razão não respondeste?
- Hoje não me apeteceu.
Retirou os óculos, colocou-os sobre a mesa e olhou para mim como se estivesse
num jardim zoológico a mirar a gaiola de algum animal raro. - «Hoje não me
apeteceu». Pareces o Humphrey Bogart a falar. Que desprendido. Que mauzão.
- Não sejas tonta. Não passo de um tipo normal como todos os outros.
A proprietária trouxe-me o café. Tomei um sorvo sem acrescentar açúcar nem
leite.
- Olha só para ti. A beber o café assim simples.
- Isto não tem nada a ver com o Humphrey Bogart - expliquei pacientemente.
- Acontece que não aprecio coisas doces. Acho que tens uma ideia completamente
errada de mim.
- Por que razão estás tão bronzeado?
- Durante as últimas semanas tenho feito caminhadas. De mochila e de saco-cama
às costas.
- Para onde foste?
- Kanazawa. Península de Noto. Até Niigata.
- Sozinho?
- Sozinho. Encontrei companhia ocasionalmente.
- Companhia romântica? Mulheres desconhecidas em locais distantes.
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- Romântica? Agora já sei por que razão tens uma ideia errada de mim. Como
é que um tipo de saco-cama às costas e de rosto por barbear consegue arranjar
uma companhia romântica?
- Viajas sempre sozinho?
- Hã-hã.
- Aprecias a solidão? - inquiriu, apoiando o rosto na mão.
- A viajar sozinho, a comer sozinho, sempre sentado sozinho nas aulas...
- Ninguém aprecia estar sempre assim sozinho. O facto é que não me esforço
por fazer amizades, é tudo. Acabam por redundar em desilusões.
- «Ninguém aprecia estar sempre assim sozinho. O facto é que detesto ficar
desiludido». Podes usar essa expressão se alguma vez pretenderes escrever a
tua autobiografia - murmurou ela, com os óculos baloiçando-lhe por uma das
hastes que enfiara entre os lábios.
- Obrigado.
- Gostas da cor verde?
- Por que razão perguntas?
- Estás a usar um pólo verde.
- Não em particular. Uso qualquer coisa.
- «Não em particular. Uso qualquer coisa». Adoro a maneira como te expressas.
Como se estivesses a aplicar gesso, com suavidade e leveza. Nunca te disseram
isso?
- Nunca.
- Chamo-me Midori, significa «verde». Mas o verde não me favorece em absoluto.
É estranho, hã? Como se estivesse amaldiçoada, não achas? A minha irmã chama-se
Momoko: «a rapariga-pêssego».
- O cor-de-rosa fica-lhe bem?
- O rosa favorece-á absolutamente. Ela nasceu para usar o rosa. É uma grande
injustiça.
A comida começou a ser servida na mesa da Midori e um dos rapazes, que envergava
um casaco de algodão fino, chamou-a: - Ei, Midori, anda comer! - Ela esboçou
um gesto como se dissesse «Já vou».
- Diz-me uma coisa. Costumas tirar apontamentos nas aulas? Nas aulas de Artes
Dramáticas? - perguntou.
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- Sim.
- Detesto pedir, mas importas-te de me emprestar os teus apontamentos? Faltei
a duas aulas e não conheço mais ninguém a quem possa pedir.
- Está bem - respondi e tirei o meu caderno do saco. Certifiquei-me de que
não continha nada de pessoal e entreguei-lho.
- Obrigada. Vais às aulas depois de amanhã? -Vou.
- Encontra-te aqui comigo ao meio-dia. Devolvo-te o caderno e pago-te o almoço.
Quer dizer... não vais ficar com dores de estômago ou algo do género se não
almoçares sozinho dessa vez, certo?
- Pois não. Mas não precisas de me pagar o almoço somente porque te emprestei
o caderno.
- Não te preocupes - respondeu. - Gosto de convidar as pessoas para almoçar.
De qualquer modo, não seria melhor apontares? Não vais esquecer-te?
- Não me esquecerei. Depois de amanhã. Ao meio-dia. Midori. Verde.
Alguém chamou da outra mesa: - Despacha-te, Midori, a tua comida está a arrefecer!
Ela ignorou o companheiro e perguntou-me: - Tu expressas-te sempre desse modo?
- Creio que sim. Nunca me tinha apercebido. - Com efeito, nunca me tinham dito
que havia algo de invulgar no modo como me expressava.
Ela pareceu matutar em algo durante alguns segundos. Depois levantou-se com
um sorriso e regressou à sua mesa. Fez-me um aceno quando passei pela mesa
deles à saída, mas os seus três companheiros quase não me prestaram atenção.
Na quarta-feira ao meio-dia não encontrei a Midori no restaurante. Pensei esperar
por ela enquanto bebia uma cerveja, mas o restaurante começou a encher assim
que me trouxeram a bebida e decidi encomendar o almoço e comer sozinho. Terminei
às 12:35, e a Midori continuava sem aparecer. Paguei a conta, saí para o exterior
e atravessei a rua em direcção a um pequeno templo, onde aguardei sobre os
degraus de pedra enquanto a minha mente se desanuviava e esperava que a Midori
chegasse.
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Desisti à uma hora e fui ler para a biblioteca. Às duas horas fui à aula de
Alemão.
Quando a aula terminou, dirigi-me ao gabinete da Associação Académica e procurei
o nome da Midori na lista dos alunos da cadeira de Artes Dramáticas. A única
Midori na lista era uma Midori Kobayashi. Depois verifiquei os dossiers dos
alunos e descobri o endereço e o número de telefone de uma Midori Kobayashi
que ingressara na universidade em 1969. Residia com a família em Toshima, um
subúrbio a noroeste. Telefonei-lhe de uma cabina.
Respondeu-me um homem: - Livraria Kobayashi. Livraria Kobayabi?! - Desculpe
incomodá-lo - dísse-lhe -, mas é possível falar com a Midori?
- Não, ela não está - respondeu.
- Acha que ela está na universidade?
- Hmm, não, deve estar no hospital. Quem está a telefonar, por favor?
Em vez de responder, agradeci-lhe e desliguei. No hospital? Terá tido algum
acidente ou adoecera? Mas o homem falara sem qualquer preocupação na voz. «Deve
estar no hospital», dissera ele, tão naturalmente como se dissesse.- «Está
na loja dos animais». Ponderei noutras possibilidades, até que o próprio acto
de pensar se tornou demasiado problemático; regressei ao dormitório e estendi-me
na cama a ler Lorde Jim, que pedira emprestado ao Nagasawa. Quando terminei,
fui ao quarto dele devolver-lho.
O Nagasawa preparava-se para ir jantar à cantina e decidi acompanhá-lo.
- Como correram os exames? - perguntei-lhe. A segunda fase dos exames do nível
avançado para o Ministério dos Negócios Estrangeiros decorrera em Agosto.
- Como de costume -"respondeu, como se tivesse sido algo fácil. - Fazes os
exames e passas. Discussões em grupo, entrevistas... tal qual como foder uma
miúda.
- Por outras palavras, foi fácil - comentei. - Quando saem os resultados?
- Na primeira semana de Outubro. Se passar, pago-te um grande jantar.
- Diz-me uma coisa, que tipo de alunos conseguem chegar à segunda fase? Somente
as super-estrelas como tu?
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não, mesmo que não nos tivéssemos encontrado nesse dia, a minha vida não teria
sido diferente. Estávamos destinados a encontrar-nos. Se não nessa altura,
então numa outra. Não havia qualquer fundamento neste pensamento: não passava
de um pressentimento.
Sentámo-nos num banco no parque, a observar a sua antiga escola. As paredes
tinham trepadeiras e havia pombos agrupados debaixo das empenas a descansarem
dos seus voos. Era um edifício velho e acolhedor, com personalidade. Um enorme
carvalho elevava-se no recreio e ao seu lado pairava uma coluna de fumo branco.
A claridade estival que esmorecia conferia ao fumo um aspecto suave e nebulado.
- Sabes o que é aquele fumo? - perguntou-me a Midori de repente.
- Não faço ideia.
- Estão a queimar os pensos higiénicos dos balneários.
- De verdade? - Não me ocorreu dizer mais nada.
- Pensos dos balneários, tampões, coisas desse género - proferiu com um sorriso.
- É uma escola de raparigas. O velho porteiro recolhe essas coisas de todos
os recipientes e queima-as no incinerador. O fumo provém disso.
- Uau.
- Sim, era o que eu costumava dizer a mim própria quando estava nas aulas e
via o fumo pela janela. «Uau». Pensa bem: a escola tinha quase mil raparigas.
Portanto, digamos que novecentas raparigas começavam a ter a menstruação e
que talvez diariamente um quinto delas estava com o período: cento e oitenta
raparigas. O que dá um total de cento e oitenta pensos nos recipientes todos
os dias.
- Deves ter razão... mas não sei se essa aritmética está correcta.
- De qualquer modo, é um número considerável. Cento e oitenta raparigas. O
que achas que se sente quando se recolhe e se queima todas essas coisas?
- Não consigo imaginar - retorqui. Como poderia eu imaginar aquilo por que
o velho estaria a passar? Continuámos a observar o fumo.
- Na verdade, eu não queria frequentar esta escola - disse ela, abanando
ligeiramente a cabeça. - Queria frequentar uma escola estatal absolutamente
normal, com pessoas normais,
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onde pudesse descontrair-me e divertir-me como uma adolescente normal. Mas
os meus pais achavam que seria bom eu frequentar este lugar requintado. Foram
eles quem me enfiaram aqui. Sabes, é o que acontece quando progredimos bem
durante o ensino primário. O professor diz aos nossos pais: «Com notas assim,
ela deveria ir para ali». Por conseguinte, acabei por frequentar esta escola.
Durante seis anos, e nunca gostei. Só pensava em sair dali. E, sabes, obtive
certificados de mérito por nunca ter chegado atrasada nem ter faltado uma única
vez às aulas. É só para teres uma ideia de como eu odiava tanto este lugar.
Percebes?
- Não, não percebo.
- Eu odiava este lugar. E não ia deixar-me subjugar. Se permitisse que me derrotasse
uma única vez, estaria condenada. A ideia de fraquejar aterrorizava-me.
Arrastava-me para a escola com trinta e oito graus de febre. O professor
perguntava-me se estava doente, mas eu negava sempre. Quando terminei o liceu,
obtive certificados de assiduidade e pontualidade perfeitas e presentearam-me
com um dicionário de francês. É por essa razão que agora optei pelo Alemão.
Não queria dever nada a esta escola. Estou a falar a sério.
- Por que razão odiavas tanto isto?
- Tu gostavas da tua escola?
- Bem, não, mas também não a odiava. Frequentei uma escola estatal normal,
mas nunca me ocorreu reflectir particularmente sobre isso.
- Bem, esta escola - disse a Midori, esfregando o canto do olho com o dedo
mindinho - era exclusivamente frequentada por raparigas das classes altas:
quase um milhar de raparigas de boas famílias e que obtinham bons resultados
nos exames. Raparigas abastadas. Tinham que ser ricas para conseguirem sobreviver.
Propinas elevadas, infindáveis contribuições, dispendiosas excursões escolares.
Por exemplo, se fôssemos a Quioto, alojavam-nos numa albergaria de primeira
classe, serviam-nos os cerimoniais doces do chá em mesas lacadas e permanecíamos
uma vez por ano no mais dispendioso hotel de Tóquio para estudarmos as boas
maneiras à mesa. Quer dizer, não era uma escola normal. Das cento e sessenta
raparigas da minha turma,
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eu era a única que provinha de um meio da classe média como Toshima. Certa
vez verifiquei o registo escolar para saber onde moravam as outras alunas e
todas elas provinham de zonas abastadas. Bem, não, havia uma rapariga oriunda
de um meio rural em Chiba e, por conseguinte, estabelecemos uma espécie de
amizade. E ela era realmente simpática. Convidou-me a ir a casa dela, embora
se desculpasse pela distância que eu teria de viajar. Acabei por ir e foi incrível,
aquele gigantesco pedaço de terra que requeria uma caminhada de quinze minutos
só para o percorrermos. Tinha um jardim assombroso e dois cães enormes e compactos
como carros que eram alimentados com bifes. Mesmo assim, esta rapariga sentia
vergonha de viver em Chiba. Esta rapariga ia para a escola num Mercedes Benz
para não chegar atrasada! Com um motorista! Igualzinho aos do Green Hornet:
o chapéu, as luvas brancas, tudo isso. E, mesmo assim, ela sentia um complexo
de inferioridade. Dá para acreditar? Abanei a cabeça.
- Eu era a única rapariga em toda a escola que vivia num lugar como Kita-Otsuka
Toshima. E abaixo da alínea «profissão do pai» dizia «Livreiro». Toda a gente
da minha turma considerava isso algo de admirável: «Oh, és uma felizarda, podes
ler qualquer livro que quiseres» e comentários do género. Obviamente, pensavam
que era alguma livraria gigantesca como Kinokuniya. Nunca teriam imaginado
que era a pobre e pequena Livraria Kobayashi. A porta abria-se com um rangido
e só se viam revistas. As mais procuradas eram as revistas de papel lustroso,
com fotos de mulheres e suplementos ilustrados sobre as últimas técnicas sexuais.
As donas de casa da zona compravam-nas e sentavam-se à mesa da cozinha a lê-las
de uma ponta à outra e depois experimentavam essas técnicas quando os maridos
regressavam a casa. E essas revistas apresentavam as posições mais incríveis!
É nisso que as donas de casa pensam durante todo o dia? Os livros de banda
desenhada também se vendem bem: Magazine, Sunday, Jump, E, evidentemente, os
semanários. Portanto, esta «livraria» é quase toda ela revistas. Oh, continha
alguns livros: edições de bolso, livros de mistério, de faca-e-alguidar e
romances. Era tudo o que vendia. E livros de «Faça Você Mesmo».- como ganhar
no Go, como cultivar bonsais, como proferir discursos de casamento,
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como fazer sexo, como deixar de fumar e tudo o que possas imaginar. Vendíamos
inclusive material de escrita: pilhas de canetas, lápis e blocos de apontamentos
ao lado da caixa registadora. Limitava-se a isso. Nada de Guerra e Paz, nada
de Kenzaburo Oe, nada de Uma Agulha no Palheiro. Era assim a Livraria Kobayashi.
Ser uma «felizarda» reduzia-se a isso. Achas que sou uma felizarda?
- Consigo imaginar a livraria.
- Tu percebes o que quero dizer. Todas as pessoas da vizinhança a frequentavam,
algumas durante anos, e nós limitávamo-nos a satisfazer os seus pedidos. É
um bom negócio, mais do que o suficiente para suportar um agregado familiar
de quatro pessoas; sem dívidas, duas filhas no colégio, mas pouco mais. Não
havia dinheiro disponível para extras. Nunca deveriam ter-me matriculado numa
escola assim. Era a receita certa para provocar dor de coração. Era obrigada
a ouvi-los a resmungarem comigo sempre que a escola solicitava alguma
contribuição e sentia sempre um terror absoluto de ficar sem dinheiro se saísse
com as minhas amigas da escola e elas pretendessem comer algo dispendioso.
Era uma vida triste. A tua família é rica?
- A minha família? Não, os meus pais são trabalhadores absolutamente normais,
nem ricos, nem pobres. Sei que não é fácil para eles custearem os meus estudos
numa universidade privada em Tóquio, mas, como sou filho único, não é assim
tão complicado. Enviam-me o dinheiro necessário e tenho que trabalhar em
part-time. Vivemos numa casa típica, com um pequeno jardim, e temos um Toyota
Corolla.
- Que tal é o teu trabalho?
- Trabalho três noites por semana numa loja de discos em Shinjuku. É fácil.
Limito-me a ficar sentado e a tomar conta da loja.
- Estás a falar a sério? - perguntou a Midori. - Não sei, mas, a julgar pelo
teu aspecto, nunca pensei que sofresses privações.
- E é verdade. Nunca sofri privações. Mas também não tenho toneladas de dinheiro.
Sou como a maioria das pessoas.
- Bem, a «maioria das pessoas» na minha escola eram ricas - retorquiu ela,
com as mãos pousadas no regaço. - O problema residia nisso.
- Então agora desfrutarás de várias oportunidades para veres
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mas as três velhas, sentadas muito juntas e viradas umas para as outras,
continuavam a conversar entusiasticamente acerca de algo.
Apeei-me perto da Estação de Otsuka e, de acordo com o mapa da Midori, segui
ao longo de uma ampla rua que pouco oferecia para ver. Nenhuma das lojas parecia
desfrutar de um negócio próspero, até porque se situavam em velhos edifícios,
de interiores de aspecto sombrio, e as palavras em alguns dos letreiros estavam
já desbotadas. A julgar pela idade e estilo dos edifícios, esta área fora poupada
aos ataques aéreos durante a guerra e quarteirões inteiros haviam permanecido
intactos. Algumas das zonas foram completamente reconstruídas, mas as restantes
haviam sido praticamente ampliadas ou reparadas, e eram estes restauros que
lhes conferiam um aspecto mais andrajoso do que os próprios edifícios antigos.
A atmosfera deste lugar indicava que a maior parte dos residentes originais
se haviam agastado com o trânsito, o ar poluído, o barulho e as rendas altas.
Optaram por mudar para os subúrbios, deixando para trás apartamentos baratos,
bem como escritórios, lojas que dificilmente encontrariam um comprador
interessado e algumas pessoas obstinadas que se agarravam às velhas propriedades
de família. Tudo parecia manchado e sujo, como se envolto numa névoa de gases
de exaustão.
Após dez minutos de caminhada ao longo desta rua, desemboquei numa bomba de
gasolina numa esquina; depois enveredei pela direita, em direcção a um pequeno
bloco de lojas no meio das quais avistei o letreiro da Livraria Kobayashi.
Não era, de facto, uma loja grande, mas também não era tão pequena quanto a
descrição da Midori me fizera crer. Não passava de uma típica livraria de bairro,
do mesmo género daquelas a que eu acorria quando publicavam a banda desenhada
para rapazes. Apoderou-se de mim um sentimento de nostalgia enquanto me mantinha
especado diante da livraria.
A fachada fora completamente vedada com uma enorme portada de metal com o anúncio
de uma revista: ADQUIRA AQUI A SUA REVISTA SEMANAL BUNSHUN. Faltavam ainda
quinze minutos para o meio-dia, mas não sentia qualquer desejo de passar o
tempo a deambular através daquele bloco com um ramalhete de narcisos; por
conseguinte, toquei à campainha ao lado da portada
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e recuei dois passos enquanto aguardava. Passaram-se quinze segundos sem aparecer
ninguém e, enquanto ponderava se deveria tocar de novo, ouvi o ruído de uma
janela a abrir-se no piso superior. Olhei para cima e vi a Midori debruçada
a acenar-me.
- Entra! - bradou ela. - Levanta a portada.
- Não faz mal ter vindo mais cedo?
- Não faz mal, sobe. Estou atarefada na cozinha. - Fechou a janela.
A portada emitiu um horrível rangido enquanto a erguia cerca de um metro; enfiei-me
debaixo e baixei-a. O interior da loja apresentava-se escuro como breu. Consegui
chegar às apalpadelas até à escadaria nas traseiras e tropecei em pilhas de
revistas amarradas. Desapertei os cordões dos sapatos e subi para a sala de
estar. O interior da casa era escuro e lúgubre. A escadaria conduzia a um simples
vestíbulo com um sofá e cadeirões. Era uma divisão exígua, provida de uma diminuta
claridade proveniente da janela e lembrava os antigos filmes polacos. Havia
uma espécie de área de armazenagem à esquerda e o que parecia ser a porta de
um quarto de banho. Tive que subir com cuidado a escadaria íngreme até ao segundo
piso, mas, uma vez aí, senti-me profundamente aliviado pois era muito mais
luminoso do que o piso inferior.
- Estou aqui - ouvi a voz da Midori. À direita, no topo da escadaria, parecia
situar-se a sala de jantar e, mais além, a cozinha. A casa era antiga, mas
a cozinha fora aparentemente recém-equipada com novos armários, uma banca e
torneiras brilhantes e reluzentes. A Midori estava ocupada a confeccionar a
refeição. Havia uma panela a ferver e o ar estava repleto do aroma a peixe
grelhado. - Há cerveja no frigorífico - anunciou ela, olhando na minha direcção.
- Senta-te enquanto acabo isto. -Peguei numa lata de cerveja e sentei-me à
mesa. A bebida estava tão gelada que provavelmente permanecera no frigorífico
durante quase um ano. Havia sobre a mesa um pequeno cinzeiro branco, um jornal
e um frasco de molho de soja. E também um bloco de apontamentos e uma caneta,
com um número de telefone e contas que pareciam ser cálculos relacionados com
a loja. - Dentro de dez minutos está pronto - anunciou. -Consegues esperar?
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Para quê? Para servir os convidados! Portanto, não te refreies: bebe toda a
cerveja que te apetecer.
- Obrigado.
Lembrei-me de repente de que deixara os narcisos no piso de baixo. Pousara-os
para tirar os sapatos. Desci ao piso de baixo e deparei-me com os dez brilhantes
rebentos jazendo na obscuridade. A Midori dispôs as flores num copo alto e
estreito que tirou do armário.
- Adoro narcisos - declarou. - Costumava cantar «Sete Narcisos» no concurso
de talentos na escola. Conheces?
- Evidentemente.
- Tínhamos um grupo de música popular. Eu tocava guitarra. Entoou «Sete Narcisos»
enquanto servia a comida.
Os cozinhados da Midori revelaram-se bem melhores do que eu esperara: um
surpreendente sortido de fritos, picles, cozidos e assados, usando ovos, cavala,
legumes frescos, beringelas, cogumelos, rabanetes e sementes de sésamo, tudo
confeccionado segundo o delicado estilo de Quioto.
- Isto está maravilhoso - elogiei, de boca cheia.
- Está bem, mas agora diz-me a verdade - retorquiu. - Não esperavas que eu
cozinhasse tão bem, pois não... a julgar pelo meu aspecto, hã?
- De facto - respondi com toda a franqueza.
- Provéns da região de Kansai e, por conseguinte, aprecias este género de temperos
delicados, certo?
- Não me digas que mudaste o tipo de cozinhados especialmente para mim?
- Não sejas ridículo! Não me daria a tanto trabalho. Não, a nossa comida é
sempre assim.
- Então, a tua mãe, ou o teu pai, é de Kansai?
- Não. O meu pai nasceu em Tóquio e a minha mãe é de Fukushima. Não há uma
única pessoa de Kansai na minha família. Todos provimos de Tóquio ou de Kanto,
no norte.
- Não percebo - disse-lhe. - Como consegues preparar este tipo de comida Kansai
cem por cento autêntica? Alguém te ensinou?
- Bem, é uma longa história - respondeu enquanto comia uma tira de ovo estrelado.
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- A minha mãe odiava qualquer tipo de trabalho doméstico e quase nunca cozinhava.
E havia ainda que cuidar do negócio; portanto, dizia sempre: «Hoje estamos
demasiado atarefados, vamos encomendar a comida», ou «Compremos uns croquetes
no talho», e coisas do género. Eu detestava isso já quando era miúda, quer
dizer, preparar uma grande panela de caril e comer a mesma coisa durante três
dias seguidos. Um dia, frequentava eu o nono ano de escolaridade, decidi cozinhar
para a família e fazê-lo bem. Fui ao enorme Kinokuniya em Shinjuku e comprei
o maior e o mais atraente livro de culinária que encontrei e estudei-o cabalmente:
como seleccionar a tábua de cozinha, como amolar as facas, como desossar peixe,
como cortar postas de atum fresco, tudo. Descobri que o autor do livro era
oriundo de Kansai, e é por essa razão que todos os meus cozinhados são ao estilo
Kansai.
- Estás a dizer que aprendeste a preparar todas estas coisas a partir de um
livro?!
- Poupei dinheiro e fui provar os verdadeiros cozinhados. Foi assim que aprendi
os temperos. Tenho uma intuição bastante boa. No entanto, sou uma nulidade
no pensamento lógico.
- É surpreendente teres aprendido sozinha a cozinhar tão bem, sem ninguém te
ter ensinado.
- Não foi fácil crescer numa casa onde ninguém se preocupava minimamente com
a comida - redarguiu com um suspiro. - Quando eu dizia que queria comprar facas
e panelas decentes, não me davam o dinheiro. «O que temos serve muito bem»,
diziam-me, mas eu respondia que isso era uma tolice, pois não se conseguia
desossar um peixe com o tipo de facas embotadas que tínhamos em casa, mas diziam
de imediato: «Para que raios é preciso desossar o peixe?». Era inútil tentar
comunicar com eles. Poupei a minha mesada e adquiri facas, panelas, passadores
e utensílios do género, à verdadeiro profissional. Dá para acreditar? Uma
rapariga de quinze anos a poupar os tostões para comprar passadores, pedras
de amolar e panelas para a confecção da tempura, quando todas as outras raparigas
da escola recebiam enormes mesadas para comprarem belos vestidos e sapatos.
Não tens pena de mim?
Anuí com a cabeça enquanto engolia uma colherada de uma sopa fina com legumes
junsai frescos.
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- Quando estava no décimo ano, tive que arranjar uma frigideira para fritar
ovos: uma comprida e estreita frigideira para confeccionar este estilo de ovos
estrelados dashimaki que estamos a comer agora. Comprei-a com o dinheiro que
deveria ter usado para um novo soutien. Tive que usar o mesmo soutien durante
três meses. Dá para acreditar? Lavava o soutien à noite, quase enlouquecia
para tentar secá-lo e usava-o no dia seguinte. E se não secasse bem, ficava
a braços com uma tragédia. A coisa mais triste do mundo é usar um soutien húmido.
Deambulava de um lado para o outro com as lágrimas a escorrerem-me dos olhos.
Só de pensar que andava a sofrer por causa de uma frigideira!
- Compreendo o que queres dizer - respondi com uma gargalhada.
- Eu sei que não deveria dizer isto, mas foi de facto uma espécie de alívio
para mim quando a minha mãe morreu, pois já podia dirigir o orçamento familiar
à minha maneira. Podia comprar o que eu quisesse. Por conseguinte, agora disponho
de um conjunto relativamente completo de utensílios de cozinha. O meu pai
desconhece por completo o orçamento familiar.
- Quando morreu a tua mãe?
- Há dois anos, de cancro. Um tumor cerebral. Encontrava-se já internada há
um ano e meio. Foi terrível. Sofreu do início ao fim. Acabou por enlouquecer;
tinha que estar constantemente anestesiada e mesmo assim não conseguia morrer;
mas, quando acabou por ocorrer, foi praticamente uma morte misericordiosa.
É o pior tipo de morte: a pessoa sofre e a família passa por um inferno. Gastámos
todos os ienes que possuíamos, quer dizer, davam-lhe injecções: zás, zás, zás,
vinte mil ienes de cada vez, e era preciso prestar assistência a toda a hora.
Ela ocupava-me de tal modo o tempo que não conseguia estudar, tive que adiar
a universidade durante um ano. E, como se isso não fosse já suficientemente
mau... - Calou-se a meio da frase, pousou os pauzinhos e suspirou. - Como é
que esta conversa se tornou tão sombria de repente?
- Começou com o assunto do soutien - respondi.
- De qualquer modo, acaba os teus ovos e pensa no que acabei de te contar -
disse ela com uma expressão solene.
Fiquei saciado com a porção que me servira, mas a Midori comeu bastante menos.
- Cozinhar estraga-me o apetite - declarou.
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- Talvez seja. Talvez seja por essa razão que as pessoas não gostam de mim.
Nunca gostaram de mim.
- Deve-se ao facto de tu o mostrares - disse ela. - Tornas óbvio que não te
preocupas se as pessoas gostam ou não de ti. Isso irrita algumas pessoas. -
Falava quase num balbuceio, com o queixo apoiado na mão. - Mas eu gosto de
conversar contigo. Falas de um modo tão invulgar. «Detesto ter algo a controlar-me
desse modo».
Ajudei-a a lavar a loiça. Ela lavava enquanto eu limpava e empilhava a loiça
sobre a banca.
- A tua família saiu hoje? - perguntei.
- A minha mãe continua na sua campa. Faleceu há dois anos.
- Pois, já tinhas referido isso.
- A minha irmã saiu com o noivo. Provavelmente foram dar um passeio de carro.
O noivo dela trabalha numa empresa de automóveis. E adora carros. E eu não
aprecio nada carros.
Parou de falar e continuou a lavar a loiça. Parei de falar também e continuei
a limpar.
- E depois há o meu pai - mencionou algum tempo depois.
- Claro - disse eu.
- Partiu para o Uruguai em Junho do ano passado e tem permanecido lá desde
então.
- Uruguai?! Porquê o Uruguai?
- Ele andava a considerar instalar-se lá, acredites ou não. Um velho amigo
da tropa possui uma quinta lá. E de repente o meu pai anuncia que vai partir
também, que não há limites para o que pode fazer no Uruguai; portanto, meteu-se
no avião e lá foi ele. Tentámos tudo para o demover, dizendo coisas do género:
«Para que queres ir para um lugar desses? Não sabes falar a língua, quase nunca
saíste de Tóquio». Mas não conseguimos convencê-lo. A perda da minha mãe foi
um verdadeiro choque para ele. Com efeito, deixou-o um pouco desorientado.
Ele adorava-a. Adorava-a verdadeiramente.
Havia poucas palavras que eu pudesse proferir como resposta. Limitei-me a olhar
fixamente e boquiaberto para a Midori.
- Sabes o que ele me disse a mim e à minha irmã quando a minha mãe faleceu?
«Preferia ter-vos perdido a vós as duas do que a ela». Fiquei sem palavras.
Não consegui dizer nada.
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Percebes o que quero dizer? Ninguém deveria dizer uma coisa assim. Sim, eu
sei que ele perdeu a mulher que amava, a sua companheira de vida. Compreendo
a dor, a tristeza, a dilaceração. Tenho pena dele. Mas um pai nunca diria às
filhas: «Deveriam ter morrido vocês em vez dela». Quer dizer, é demasiado terrível.
Não concordas?
- Sim, percebo o que queres dizer.
- É uma ferida que nunca desaparecerá - declarou, abanando a cabeça. - De qualquer
modo, todas as pessoas da minha família são um pouco diferentes. Todos nós
temos uma faceta um pouco estranha.
- Assim parece - retorqui.
- Mesmo assim, é maravilhoso duas pessoas amarem-se, não achas? Quer dizer,
um homem amar a esposa ao ponto de dizer às filhas que deveriam ter morrido
elas no lugar da mãe...?
- Talvez assim seja, agora que o enuncias desse modo.
- E depois, abandona-nos às duas e foge para o Uruguai. Continuei a limpar
a loiça sem responder. Quando terminámos, a Midori guardou a loiça nos armários.
- E tens tido notícias do teu pai? - inquiri.
- Um postal. Em Março. Mas imagina o que ele escreveu: «Está calor aqui», ou
«A fruta não é tão boa como eu esperava». Coisas desse género. Quer dizer,
por favor! Um postal com a estúpida imagem de um burro! O homem perdeu o tino!
Nem sequer mencionou se encontrara o tal tipo, o tal amigo dele. Quase no final
do postal, acrescentou que, assim que se instalasse, nos chamaria às duas,
mas desde então não nos mandou notícias. E nunca responde às nossas cartas.
- Que farias se o teu pai dissesse «Venham para o Uruguai»?
- Eu iria, pelo menos para ter uma ideia daquilo. Talvez fosse divertido. A
minha irmã diz que recusaria absolutamente. Não suporta coisas sujas e lugares
sujos.
- O Uruguai é um local sujo?
- Sei lá! Ela pensa que sim. Por exemplo, diz que as estradas estão cheias
de excrementos de burros e infestadas de moscas, que os quartos de banho não
funcionam e que há lagartos e escorpiões a rastejarem por toda a parte. Talvez
ela tenha visto um filme desse género. E também não suporta moscas. Tudo o
que ela deseja, é passear em carros luxuosos através de locais paisagísticos.
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- A sério?
,. - Quer dizer, que mal tem o Uruguai? Eu iria.
- E quem ficaria a dirigir a livraria?
- A minha irmã, mas ela odeia isto. Há um tio nosso que reside neste bairro,
ajuda-nos e encarrega-se das entregas. Também ajudo quando tenho tempo. Uma
livraria não implica propriamente trabalho árduo e conseguimos
desenvencilhar-nos. Se se revelar demasiado trabalhoso, vendemos a livraria.
- Gostas do teu pai?
A Midori abanou a cabeça. - Não especialmente.
- Então como serias capaz de ir ao encontro dele no Uruguai?
- Acredito nele.
- Acreditas nele?
- Sim, não sinto um carinho especial, mas acredito no meu pai. Como poderia
não acreditar num homem que abandona a casa que tem, as filhas, o trabalho
e foge para o Uruguai devido ao choque de perder a esposa? Percebes o que quero
dizer?
Suspirei. - Mais ou menos, mas não completamente. A Midori riu-se e deu-me
uma palmadinha nas costas. - Deixa lá - disse. - Não tem grande importância.
Nesse domingo à tarde sucederam-se várias coisas bizarras.
Deflagrou um incêndio perto da casa da Midori e, quando
subimos para o terraço do terceiro piso, demos uma espécie
de beijo. Soa estúpido dizê-lo deste modo, mas foi assim que
as coisas se passaram.
Bebíamos café depois da refeição e conversávamos acerca da universidade quando
ouvimos as sirenes. O som aumentava cada vez mais e parecia que havia cada
vez mais carros dos bombeiros. Várias pessoas passavam a correr em frente da
loja e algumas gritavam. Â Midori abriu a janela numa divisão que dava para
a rua e observou o que se passava. - Aguarda um momento - disse e ausentou-se;
pouco depois, ouvi passos apressados na escadaria.
Continuei sentado a beber o café sozinho enquanto tentava recordar-me onde
ficava o Uruguai. Vejamos, o Brasil ficava ali e a Venezuela ali, e a Colômbia
algures por ali, mas não conseguia lembrar-me onde ficava o Uruguai. Momentos
depois, a Midori persuadiu-me a segui-la apressadamente.
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Segui-a até ao fim do corredor e subimos uma escadaria estreita e íngreme que
desembocava num terraço de madeira provido de estacas de bambu para estender
a roupa a secar. O terraço era mais elevado do que a maioria dos telhados vizinhos
e proporcionava um bom ponto de observação das redondezas. Enormes nuvens de
fumo negro irrompiam de uma zona à distância de três ou quatro casas e fluíam
em direcção à rua principal impelidas pela brisa. Pairava no ar o cheiro a
queimado.
- É a casa do Sakamoto - disse a Midori, debruçando-se sobre a balaustrada.
- Costumavam confeccionar os tradicionais apliques para portas e coisas do
género. Mas o negócio faliu há algum tempo.
Debrucei-me também sobre a balaustrada e esforcei-me por observar o que se
passava. Um edifício de três andares bloqueava-nos a visão do incêndio, mas
havia aparentemente três ou quatro carros dos bombeiros que tentavam debelar
as chamas. Apenas dois dos veículos conseguiram introduzir-se na estreita viela
onde a casa ardia e os outros veículos aguardavam na rua principal. A habitual
multidão de basbaques ocupava a zona.
- Ei, talvez fosse melhor reunires os teus pertences de valor e preparares-te
para evacuares daqui - alertei a Midori. - O vento sopra agora na direcção
contrária, mas pode mudar a qualquer momento e há uma bomba de gasolina
precisamente ao lado. Eu ajudo-te a recolheres as coisas.
- Que pertences de valor? - perguntou ela.
- Bem, deve haver algo que queiras salvar: cadernetas de cheques, títulos,
documentos legais, coisas do género. Dinheiro para emergências.
- Esquece, não vou fugir daqui.
- Nem que isto comece a arder?
- Tu ouviste-me bem. Não me importo de morrer. Olhei-a nos olhos e ela não
afastou o olhar. Não sabia se ela
estava a falar a sério ou a brincar. Mantivemo-nos assim durante alguns momentos
e pouco depois deixei de me preocupar.
- Está bem - disse-lhe. - Já percebi. Fico aqui contigo.
- Não te importas de morrer ao meu lado? - perguntou, com os olhos a brilhar.
- Nem pensar - respondi. - Fujo daqui se começar a tornar-se perigoso. Se queres
morrer, morre sozinha.
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Não conseguia avistar chamas e a área do incêndio não parecia estar a expandir-se.
Havia apenas aquela coluna de fumo elevando-se para o céu. O que estaria a
alimentar as chamas durante tanto tempo?
- Mas a culpa não é minha apenas - prosseguiu a Midori.
- É verdade que possuo uma natureza fria. Reconheço que sim. Mas se o meu pai
e a minha mãe me tivessem amado um pouco mais, teria sido capaz de sentir mais,
de sentir uma verdadeira tristeza, por exemplo.
- Achas que não te deram o amor suficiente? Abanou a cabeça e olhou para mim.
Depois anuiu levemente com a cabeça. - Algures entre o «não suficiente» e o
«absolutamente nada». Sempre ansiei pelo amor. Queria saber, nem que fosse
apenas uma vez, como me sentiria ao receber o amor, como me sentira ao ser
alimentada com tanto amor ao ponto de já não conseguir absorver mais. Nem que
fosse apenas uma vez. Mas eles nunca me deram isso. Nunca, nem uma única vez.
Quando me mostrava carente e suplicava por algo, limitavam-se a afastar-me
para o lado e a gritarem comigo. «Não! Isso é demasiado dispendioso!», era
o que me diziam sempre. Por conseguinte, decidi que iria encontrar alguém que
me amasse incondicionalmente durante os trezentos e sessenta e cinco dias do
ano. Nessa altura frequentava a escola primária e decidi uma vez por todas.
- Uau! - disse eu. - E a tua busca deu frutos?
- Essa é a parte mais difícil - redarguiu a Midori. Enquanto reflectia, observou
momentaneamente o fumo que se elevava. - Creio que tenho esperado tanto ao
ponto de procurar a perfeição. Isso torna as coisas difíceis.
- Procuras o amor perfeito?
- Não, eu própria sei que isso não é possível. Procuro o egoísmo. O perfeito
egoísmo. Por exemplo, dizer-te que tenho vontade de comer pão não-levedado
com sabor a morango. E tu paras de imediato de fazer o que estás a fazer e
sais porta fora a correr para mo ir comprar. E regressas sem fôlego e ajoelhas-te
e estendes-me o pão com sabor a morango. E eu digo que já não me apetece e
lanço-o pela janela fora. É isso o que eu procuro.
- Não tenho a certeza se isso terá alguma coisa a ver com o amor - declarei
com algum espanto.
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provinha o som de uma voz de barítono a praticar escalas. Aqui e ali, grupos
de quatro ou cinco estudantes expressavam opiniões sobre algo e riam e gritavam
uns com os outros. Avistei skateboarders no parque de estacionamento. Um
professor com uma pasta de couro atravessou o parque tentando evitá-los. Uma
estudante com um capacete na cabeça estava ajoelhada no chão do pátio a pintar
enormes letras num letreiro, algo acerca do imperialismo americano que invadia
a Ásia. Era o habitual cenário na universidade ao meio-dia, mas, enquanto
observava com uma atenção renovada, apercebi-me de algo: à sua própria maneira,
cada uma das pessoas que eu via pareciam felizes. Não tinha a certeza se estavam
realmente felizes ou se apenas o pareciam. No entanto, pareciam de facto felizes
neste agradável início de tarde de finais de Setembro e esse facto provocou-me
uma espécie de solidão que me era desconhecida, como se eu fosse a única pessoa
ali que não fazia verdadeiramente parte do cenário.
Agora que pensava nisso, de que cenários fizera eu realmente parte nos anos
mais recentes? O último de que conseguia recordar-me, era uma sala de bilhares
perto do porto, onde eu e o Kizuki jogávamos bilhar num espírito de total
camaradagem. O Kizuki morrera nessa noite e, desde então, um vento frio e crispado
interpusera-se entre mim e o mundo. Este rapaz, o Kizuki: o que significara
a sua existência para mim? Não encontrava qualquer resposta para esta pergunta.
Tudo o que eu sabia - com uma certeza absoluta -, era que a morte do Kizuki
me privara para sempre de uma parte da minha adolescência. Mas o significado
disso, e as suas consequências, estava para além da minha compreensão.
Continuei ali sentado durante bastante tempo, a observar o campus e as pessoas
que passavam, na esperança de avistar também a Midori. Mas ela não surgiu e,
no final do intervalo para o almoço, dirigi-me para a biblioteca para preparar
a minha aula de Alemão.
O Nagasawa foi ao meu quarto nesse sábado à tarde e sugeriu-me acompanhá-lo
numa das habituais saídas nocturnas pela cidade; ele próprio trataria de me
conseguir a autorização para passar a noite fora. Aceitei. Durante a última
semana
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Tinha o hábito de tirar os óculos e coçar os olhos com a ponta dos dedos.
Ambas pediram café com leite e um bolo e demoraram algum tempo a consumi-los,
pois pareciam envolvidas numa discussão séria em tom abafado. A rapariga anafada
anuía várias vezes com a cabeça e a amiga abanava a cabeça igual número de
vezes. Não consegui aperceber-me do que estavam a dizer devido ao volume da
aparelhagem que tocava Marvin Gaye, ou os Bee Gees, ou algo do género, mas
a rapariga mais baixa parecia estar zangada ou perturbada e a amiga tentava
reconfortá-la. Comecei a alternar a leitura de trechos do livro com olhares
de soslaio na direcção delas.
A rapariga baixa foi à casa de banho, agarrando a carteira contra o peito.
A amiga endereçou-me a palavra.
- Desculpa incomodar-te, mas por acaso conheces algum bar nas redondezas que
ainda sirva bebidas?
Apanhado de surpresa, pousei o livro e perguntei: - Depois das cinco da manhã?
- Sim...
- Na minha opinião, às 5:20 da manhã a maioria das pessoas estão já de regresso
a casa para tentarem recuperar a sobriedade e deitarem-se.
- Sim, eu sei que sim - disse, um pouco embaraçada -, mas a minha amiga diz
que precisa de tomar uma bebida. Por uma razão importante.
- Provavelmente não há grande alternativa, a não ser regressar e tomar essa
bebida em casa.
- Mas às 7:30 tenho de apanhar o comboio para Nagano.
- Então, descubram uma máquina automática de bebidas e um lugar agradável onde
possam sentar-se. Não vos restam mais hipóteses.
- Eu sei que isto é pedir muito, mas importavas-te de nos acompanhar? Não é
de facto um comportamento aconselhável para duas raparigas sozinhas.
Eu já passara por várias experiências inusitadas em Shinjuku, mas nunca fora
convidado para tomar uma bebida com duas raparigas desconhecidas às 5:20 da
manhã. Uma recusa provocaria problemas desnecessários e, como dispunha de tempo,
adquiri saque e aperitivos numa máquina próxima;
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Não sentíamos nenhum desejo especial por dormirmos um com o outro, mas pareceu
ser necessário conferir uma conclusão àquela noite.
Fui o primeiro a despir-me e sentei-me dentro da banheira a beber cerveja com
sofreguidão. Ela enfiou-se na banheira comigo e ambos nos estiraçámos a emborcar
cerveja em silêncio. Todavia, aparentemente, não conseguíamos embebedar-nos
e não sentíamos sono. A pele dela era bastante pálida e macia e tinha umas
pernas maravilhosas. Elogiei-lhe as pernas, mas o «Obrigada» soou quase como
um grunhido.
No entanto, assim que nos deitámos na cama, tornou-se numa pessoa diferente.
Reagia ao mais ínfimo toque das minhas mãos, contorcia-se e gemia. Quando a
penetrei, enterrou as unhas nas minhas costas e, à medida que se aproximava
do orgasmo, gritou o nome de outro homem, exactamente dezasseis vezes.
Concentrei-me em contar as vezes de maneira a retardar o meu próprio orgasmo.
Depois, ambos adormecemos.
Quando despertei às 12:30, ela já tinha partido. Não deixara qualquer bilhete.
Sentia a cabeça estranhamente pesada por ter bebido a uma hora tão inusitada.
Tomei um banho para despertar, barbeei-me e sentei-me nu numa cadeira a beber
uma garrafa de sumo disponível no mini-bar enquanto revia a ordem dos
acontecimentos da noite passada. Cada um dos acontecimentos parecia irreal
e estranhamente distante, como se os revisse através de duas ou três camadas
de vidro, mas esses eventos haviam ocorrido indubitavelmente. Os copos da cerveja
continuavam ainda sobre a mesa e uma das escovas de dentes no lavatório fora
usada.
Almocei uma refeição leve em Shinjuku e dirigi-me a uma cabina telefónica para
telefonar à Midori Kobayashi na ténue esperança de que estivesse sozinha em
casa a aguardar novamente uma chamada. Deixei tocar quinze vezes, mas ninguém
atendeu. Tentei de novo vinte minutos depois, com o mesmo resultado. Depois
apanhei o autocarro de volta à residência académica. Na caixa da correspondência
junto à entrada aguardava-me uma carta que fora entregue por correio expresso.
Era da Naoko.
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5.
Obrigada pela tua carta, escrevia a Naoko. A sua família reenviara-lhe a carta
para aqui, dizia ela. A carta, longe de a perturbar, trouxera-lhe uma grande
felicidade e, com efeito, ela própria se preparava para me escrever.
Após a leitura destas primeiras linhas, abri a janela, tirei o casaco e sentei-me
na cama. Ouvia pombos a arrulharem num pombal próximo. A brisa agitava as cortinas.
Continuava a segurar as sete páginas da carta da Naoko e abandonei-me a uma
infindável torrente de emoções. Era como se as cores do mundo real em meu redor
começassem a esmorecer assim que lera aquelas poucas linhas. Fechei os olhos
e passei bastante tempo a ordenar os pensamentos. Após uma profunda inspiração,
prossegui a leitura.
Passaram-se quase quatro meses desde que aqui estou, continuava ela.
Pensei muito em ti durante todo este tempo. Quanto mais pensava, mais sentia
que estava a ser injusta contigo. Talvez devesse ter-me mostrado uma pessoa
melhor e mais justa no modo como te tratei.
Mas esta não será a maneira mais normal de encarar as coisas. As raparigas
da minha idade nunca usam a palavra «justo». As raparigas normais da minha
idade são basicamente indiferentes ao facto de as coisas serem justas ou não.
A questão central para elas não reside no facto de algo ser justo, mas se é
ou não belo ou se as fará felizes, «justo» é, sem dúvida, uma palavra que os
homens usam, mas sinto que é também a palavra que agora se aplica exactamente
a mim. E como, segundo creio, as questões de beleza e felicidade se tornaram
agora em asserções tão difíceis e retorcidas,
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dou por mim a reger-me por outros padrões: por exemplo, se algo é ou não justo
ou honesto, ou universalmente verdadeiro.
De qualquer modo, creio que não tenho sido justa contigo e, em resultado disso,
talvez te tenha confundido e magoado profundamente. Ao fazê-lo, porém, também
me confundi a mim própria e magoei-me profundamente. Não digo isto como desculpa
ou como forma de justificação, mas porque é a verdade. Se te causei alguma
mágoa interior, não se trata apenas da tua mágoa mas também da minha. Portanto,
não me odeies, por favor. Sou um ser humano com defeitos- um ser humano com
mais defeitos do que tu pensas. Éprecisamente por essa razão que não quero
que me odeies. Porque, se o fizeres, ficaria completamente despedaçada. Não
consigo proceder como tu: não consigo recolher-me dentro da minha concha e
esperar que as coisas passem. Não tenho a certeza se és realmente assim, mas
ás vezes dás-me essa impressão. Muitas vezes invejo-te por isso, e talvez tenha
sido por essa razão que eu te tenha confundido tanto.
Será talvez uma maneira demasiado analítica de ver as coisas. Não achas? A
terapia que facultam aqui não é certamente demasiado analítica, mas, quando
te submetes a tratamento durante vários meses como eu aqui, quer gostes ou
não, tornas-te mais ou menos analítico. «Isto foi causado por tal e isto significa
isto, e, por causa disso, tal e tal». Exactamente assim. Não sei se este tipo
de análise tenta simplificar o mundo ou complicá-lo.
De qualquer modo, sinto-me mais perto da recuperação do que outrora e as pessoas
aqui confirmaram-me esse facto. Há já muito tempo que não conseguia sentar-me
a redigir calmamente uma carta. A carta que te escrevi em Julho era algo que
tinha que arrancar de mim (mas, na verdade, já não me lembro do que escrevi:
foi uma carta horrível?), mas desta vez estou muito, muito calma. Ar puro,
um mundo sereno e desligado do exterior, uma vida de rotina diária, exercício
regular, era disto que eu precisava, segundo parece. É maravilhoso conseguir
escrever uma carta a alguém. Sentir o desejo de transmitir os pensamentos a
alguém,
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estava correcto, que estávamos ali não para corrigir a deformação mas para
nos acostumarmos a ela: que um dos nossos problemas era a incapacidade para
reconhecermos e aceitarmos as nossas próprias deformidades. Tal como cada pessoa
possui certas idiossincrasias no modo de andar, também revelam idiossincrasias
no modo de pensar, sentir e ver as coisas e, embora pretendamos corrigir esses
aspectos, isso não acontece da noite para o dia, e se tentarmos forçar esse
aspecto, pode ocorrer algo bizarro. Forneceu-me uma explicação bastante
simplificada, claro, e trata-se apenas de uma pequena parte dos nossos problemas,
mas creio que compreendo o que ele estava a tentar dizer. Talvez nunca consigamos
adaptar-nos completamente às nossas próprias deformidades. Quando somos
incapazes de encontrar um lugar dentro de nós devido à dor e ao sofrimento
bem reais que estas deformidades nos causam, vimos para aqui para nos afastarmos
dessas coisas. Enquanto aqui permanecermos, conseguimos prosseguir sem magoar
os outros ou sermos magoados por eles, porque sabemos que estamos «deformados».
É isso que nos distingue do mundo exterior: a maior parte das pessoas continuam
com as suas vidas, inconscientes das suas deformidades, ao passo que neste
nosso pequeno mundo as próprias deformidades são um pré-requisito. Assim como
os índios usam penas na cabeça para indicarem a que tribo pertencem, nós aqui
expomos as nossas deformidades. E levamos uma vida calma para não nos magoarmos
uns aos outros.
Além de praticarmos desporto, todos nos ocupamos a cultivar legumes e frutos:
tomates, beringelas, pepinos, melancias, morangos, cebolas, couves, rabanetes
brancos, e assim por diante. Cultivamos praticamente tudo. Também temos estufas.
Aqui as pessoas têm bastantes conhecimentos sobre o cultivo dos legumes e
empenham-se com energia. Lêem livros sobre este assunto, convidam especialistas
e conversam de manhã até à noite sobre que fertilizante usar. o estado do solo
e coisas do género. Aprendi a gostar de cultivar legumes.
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A única coisa que não pretendo é ser um fardo para alguém. Estou ciente dos
teus bons sentimentos por mim. Isso torna-me muito feliz. A intenção desta
carta é tentar transmitir-te essa felicidade: Esses teus bons sentimentos são
provavelmente aquilo de que necessito nesta altura da minha vida. Perdoa-me,
por favor, se algo do que escrevi aqui te perturbar. Tal como disse acima,
sou um ser humano com mais defeitos do que pensas.
Às vezes interrogo-me: SE tu e eu nos tivéssemos conhecido em circunstâncias
absolutamente normais e SE tivéssemos gostado um do outro, o que teria acontecido?
Se eu fosse normal e tu fosses normal (coisa que tu és, de facto) e o Kizuki
não tivesse existido, o que teria acontecido? Este "SE" é obviamente demasiado
vago. Pelo menos, estou a esforçar-me por ser justa e honesta. É tudo o que
consigo fazer neste momento. Espero conseguir transmitir-te assim uma pequena
parte dos meus sentimentos.
Ao contrário de um hospital normal, as horas de visita neste lugar são livres.
Desde que telefones no dia anterior, podes vir em qualquer altura. Podes até
acompanhar-me às refeições e há um local para pernoitares. Vem visitar-me,
por favor, quando tiveres disponibilidade. Estou ansiosa por te ver. Segue
junto o mapa. Desculpa se a carta se tornou demasiado extensa.
Li a carta da Naoko até ao fim e decidi relê-la. Depois, fui ao piso de baixo
buscar uma Coca-Cola à máquina e bebi-a enquanto lia a carta uma terceira vez.
Enfiei as sete páginas dentro do envelope e deixei-o sobre a secretária. O
meu nome e o endereço no envelope cor-de-rosa haviam sido redigidos em caracteres
perfeitos e minúsculos que se revelavam talvez demasiado precisos para a
caligrafia de uma rapariga. Sentei-me à secretária para examinar o envelope.
O endereço do remetente nas costas dizia Casa de Repouso Ami. Que nome estranho.
Ponderei durante alguns segundos e cheguei à conclusão de que «ami» talvez
se referisse à palavra francesa para «amigo».
Guardei a carta na gaveta da secretária, mudei de roupa e saí. Receava permanecer
perto da carta e acabar por a reler dez,
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vinte ou mais vezes, quem sabe? Percorri as ruas de Tóquio nesse domingo sem
qualquer destino em mente, tal como sempre fizera com a Naoko. Vagueei de uma
rua para outra, relembrando a sua carta linha a linha e esforçando-me por ponderar
em cada uma das frases. Quando o sol se pôs, regressei ao dormitório e efectuei
uma chamada de longa distância para a Casa de Repouso Ami. Atendeu-me uma
recepcionista que me perguntou o que desejava. Perguntei-lhe se poderia visitar
a Naoko no dia seguinte à tarde. Perguntou-me o nome e disse-me para voltar
a telefonar meia hora depois. Atendeu-me de novo quando voltei a telefonar
depois do jantar. Informou-me que podia de facto visitar a Naoko. Agradeci-lhe,
desliguei e enfiei uma muda de roupa e objectos de higiene pessoal na mochila.
Peguei em A Montanha Mágica e li e beberriquei brandy à espera de sentir sono.
Mesmo assim, só consegui adormecer depois da uma da manhã.
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6.
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Além de mim, restavam apenas três passageiros. Saímos para esticar as pernas,
fumar ou observar o panorama de Quioto no fundo do vale. O motorista afastou-se
para urinar. Um homem bronzeado, no início dos cinquenta e que entrara no autocarro
com uma enorme caixa de cartão atada com uma corda, perguntou-me se tinha vindo
para caminhar pelas montanhas. Anuí, de modo a não alongar a conversa.
Surgiu uma camioneta do outro lado da garganta e parou junto de nós. O condutor
apeou-se, conversou por instantes com o nosso motorista e ambos voltaram para
os seus postos. Sentámo-nos de novo e os veículos partiram em direcções opostas.
Não compreendera de imediato por que razão o nosso veículo tivera que esperar
pelo outro mas, após um curto percurso enquanto descíamos a encosta da montanha,
a estrada estreitava de súbito. As duas enormes camionetas não conseguiriam
passar uma pela outra na estrada; de facto, a passagem de carros vindos da
direcção oposta exigia bastantes manobras e um dos veículos era forçado a recuar
e a comprimir-se no exíguo espaço de alguma curva.
As aldeias ao longo da estrada eram agora mais diminutas e as áreas de cultivo
ainda mais pequenas. A montanha era mais íngreme, as ravinas comprimiam-se
cada vez mais perto das janelas da camioneta. No entanto, os cães eram
aparentemente em igual número e a chegada do autocarro certamente desencadearia
uma competição de uivos.
Não havia nada na paragem onde me apeei: nenhuma casa, nenhum campo, apenas
a tabuleta de paragem da camioneta, um pequeno ribeiro e o início de um trilho.
Lancei a mochila sobre o ombro e empreendi a caminhada. O ribeiro corria ao
longo da margem esquerda do trilho e uma floresta de árvores de folha caduca
ladeava a margem direita. Após cerca de quinze minutos ao longo da suave encosta,
deparei-me com uma estrada que penetrava num bosque à direita e cuja abertura
dificilmente permitiria a passagem de um carro. O letreiro ao lado da estrada
indicava.- CASA DE REPOUSO AMI. PRIVADO. INTERDITA A ENTRADA A ESTRANHOS.
A estrada apresentava profundas marcas de pneus através das árvores. Ouvia-se
ocasionalmente o esvoaçar de asas no bosque, um som que ecoava com uma estranha
nitidez,
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mas esta característica não a envelhecia. Pelo contrário, enfatizavam uma certa
jovialidade que transcendia a idade. As rugas pertenciam àquele rosto, como
se fizessem parte dele desde o nascimento. Quando sorria ou franzia o rosto,
as rugas sorriam ou franziam-se também. E quando não estava a sorrir nem a
franzir o rosto, as rugas dispersavam-se de um modo estranho, caloroso e irónico.
Rondaria os trinta e muitos e a sua cordialidade era atraente. Simpatizei de
imediato com ela.
O cabelo, selvaticamente desbastado, eriçava-se em madeixas e a franja repousava
desordenada contra a testa, mas esse penteado favorecia-a perfeitamente. Vestia
uma camisa azul por cima de uma T-shirt branca, calças de algodão largas e
de cor creme e sapatilhas. Era alta e esguia e quase não tinha seios. Os seus
lábios moviam-se constantemente numa espécie de franzir irónico e as rugas
nos cantos dos olhos agitavam-se em ínfimas palpitações. Parecia a mulher de
um operário: bondosa, hábil e um pouco cansada da vida.
Tinha queixo achatado e lábios franzidos e durante alguns segundos examinou-me
da cabeça aos pés. Imaginei que a qualquer momento sacaria da fita métrica
para começar a medir-me de alto a baixo.
- Sabes tocar algum instrumento? - perguntou.
- Lamento, mas não.
- Que pena. Teria sido divertido.
- Suponho que sim - respondi. Qual seria a razão de toda esta conversa sobre
instrumentos musicais?
Retirou um maço de Seven Stars do bolsinho do peito, enfiou um cigarro entre
os lábios, acendeu-o e começou a fumar com nítido prazer.
- Ocorreu-me informar-te acerca deste lugar... Watanabe, não é?... antes de
veres a Naoko. Foi por essa razão que decidi ter esta pequena conversa contigo.
A Casa de Repouso Ami é um pouco invulgar, talvez te sintas um pouco perdido
sem um prévio conhecimento. Estou certa, não estou, ao presumir que desconheces
este local por completo?
- Não conheço quase nada.
- Bem, então, antes do mais... - começou por dizer, e estalou os dedos. - Lembrei-me
agora, já almoçaste? Aposto que estás esfomeado.
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- Sabes - disse-me-, este sanatório não é uma empresa que almeja o lucro e
consegue subsistir sem cobrar tanto como cobraria se os objectivos fossem esses.
O terreno foi doado e fundaram uma corporação para esse efeito. Há vinte anos
atrás, o terreno inteiro era a moradia de Verão do benfeitor. Viste a velha
casa, não viste? Confirmei.
- Era o único edifício na propriedade e era aí que efectuavam a terapia de
grupo. Foi assim que tudo começou. O filho do benfeitor revelava indícios de
distúrbios mentais e o especialista recomendou-lhe terapia de grupo. Segundo
a teoria desse médico, se se conseguisse pôr um grupo de pacientes a viver
no campo, a ajudarem-se uns aos outros por via do trabalho físico e dispondo
de um médico para aconselhamento e exames de rotina, conseguir-se-ia curar
certo tipo de doenças. Por conseguinte, procederam a essa tentativa, a iniciativa
cresceu e tornou-se numa corporação, acabando por dispor de mais terreno para
cultivo e a construção do edifício principal há cinco anos.
- O que significa que a terapia funcionava.
- Bem, não em todos os aspectos. Muitas pessoas não melhoram. Mas há também
muitas pessoas que não conseguiram obter ajuda em mais nenhum lado e que aqui
alcançaram uma recuperação completa. O que este lugar tem de melhor, é o modo
como todos se entreajudam. Infelizmente, nem todas as instituições funcionam
assim. Os médicos são médicos e os pacientes são pacientes: o paciente solicita
a ajuda ao médico e o médico fornece essa ajuda ao paciente. Contudo, aqui
ajudamo-nos todos uns aos outros. Somos o espelho uns dos outros e os médicos
fazem parte desse processo. Observam-nos sem interferirem e prestam subtilmente
a sua assistência quando vêem que precisamos de algo, embora por vezes sejamos
nós quem os ajuda a eles. Por vezes, somos mais capazes do que eles em determinadas
questões. Por exemplo, estou a ensinar um médico a tocar piano e há outro paciente
a ensinar francês a uma enfermeira. Esse género de coisas. Os pacientes com
problemas semelhantes aos nossos são frequentemente abençoados com capacidades
especiais. Por conseguinte, aqui somos todos iguais: pacientes, funcionários...
e até tu.
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A família dela deveria ter tratado disso e ela própria deveria ter-se apercebido
de que havia algo de errado. Obviamente, as coisas em casa também não corriam
bem...
- Não corriam bem? - inquiri com espanto.
- Não sabias? - A própria Reiko parecia mais surpreendida do que eu.
Abanei a cabeça.
- É preferível que seja a própria Naoko a contar-te. Está preparada para uma
conversa franca contigo. - Remexeu o café e deu um sorvo. - Há mais uma coisa
que precisas de saber. Segundo o regulamento, tu e a Naoko não têm permissão
para estarem sozinhos. As visitas não podem estar sozinhas com os pacientes.
Deve estar sempre presente um observador, que neste caso sou eu. Lamento, mas
terão que me aturar. Está bem?
- Está bem - respondi com um sorriso.
- No entanto, podem conversar acerca do que quiserem -informou. - Esqueçam
a minha presença. Encontro-me já a par de tudo o que há para saber entre ti
e a Naoko.
- De tudo?
- Quase tudo. Sabes, temos sessões de gaipo e ficámos a conhecer-nos bastante
bem uns aos outros. Além do mais, eu e a Naoko conversamos acerca de tudo.
Aqui não há muitos segredos.
Observei-a enquanto beberricava o meu café. - Se queres que te diga a verdade,
sinto-me confuso. Ainda não sei se aquilo que fiz à Naoko em Tóquio foi a atitude
correcta ou não. Tenho pensado nisso durante todo este tempo, mas ainda não
cheguei a nenhuma conclusão.
- Eu também não - afirmou a Reiko. - E a Naoko também não. Trata-se de algo
que vocês os dois terão que decidir. Percebes o que quero dizer? Independentemente
do que aconteceu, ambos podereis enveredar pelo rumo certo, se conseguirem
alcançar uma espécie de compreensão mútua. Quando tiverem conseguido isso,
talvez possam recuar no tempo e reflectir sobre aquilo que aconteceu, se foi
correcto ou errado. O que te parece?
Assenti com a cabeça.
- Creio que podemos ajudar-nos uns aos outros, tu, a Naoko e eu, se realmente
estivermos dispostos a isso, e se formos realmente sinceros. Quando três pessoas
se empenham em algo assim,
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há pessoas que conseguem abrir o coração e outras não. Tu és uma das que consegue.
Ou, mais precisamente, consegues se o desejares. - O que acontece quando as
pessoas abrem o coração? Enclavinhou as mãos sobre a mesa, com o cigarro pendurado
dos lábios. Ela estava a apreciar a conversa. - Melhoram - respondeu. Tombou
cinza sobre a mesa, mas aparentemente não se apercebeu.
Saímos do edifício principal, atravessámos uma colina e passámos por um tanque,
campos de ténis e um campo de basquetebol. Estavam dois homens num dos campos
de ténis: um era magro e de meia-idade e o outro era jovem e gordo. Ambos sabiam
manejar bem as raquetes mas, na minha opinião, certamente não estavam a jogar
ténis. Era como se ambos revelassem um interesse especial pelos ressaltos das
bolas de ténis e estivessem a efectuar alguma pesquisa nessa área. Lançavam
a bola de um lado para o outro com uma espécie de estranha concentração. Estavam
ambos encharcados de suor. O jovem, próximo de nós, apercebeu-se da presença
da Reiko e acercou-se. Trocaram algumas palavras e sorriram. Próximo do campo,
um homem de rosto inexpressivo operava um enorme cortador de relva.
Continuámos a avançar e deparámo-nos com um pequeno bosque, com quinze ou vinte
chalés pequenos e elegantes a pouca distância uns dos outros. Na entrada de
quase todas as moradias havia o mesmo tipo de bicicleta amarela que o porteiro
usava. - Os funcionários e as respectivas famílias vivem aqui - informou-me
a Reiko. - Dispomos praticamente de tudo aquilo de que necessitamos e não
precisamos de ir à cidade - declarou enquanto prosseguíamos. - Tal como disse
antes, somos praticamente auto-suficientes em relação à comida. Temos o nosso
próprio galinheiro para a produção de ovos. Dispomos de livros, discos,
instalações desportivas, o nosso próprio mercado e todas as semanas recebemos
a visita de cabeleireiros e esteticistas. Temos inclusivamente cinema ao fim
de semana. Se precisarmos de algo especial, podemos Pedir a um dos funcionários
que nos comprem isso na cidade. Encomendamos a roupa por catálogo. Viver aqui
não constitui nenhum problema.
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no quarto de banho a escova de dentes que ela usava e no quarto a cama em que
ela dormia. Enquanto dormia profundamente neste local habitado pela presença
dela, expulsei, gota a gota, a fadiga de cada célula do meu corpo. Sonhei com
uma borboleta a esvoaçar na meia-luz.
Quando despertei, os ponteiros do meu relógio indicavam as 16:35. A luz
alterara-se, o vento esmorecera e as formas das nuvens eram diferentes. Suara
durante o sono; limpei o rosto com uma pequena toalha que trouxera na mochila
e vesti uma camisola interior lavada. Bebi água na cozinha e olhei através
da janela por cima da banca. Avistei em frente a janela do edifício oposto,
no interior da qual pendiam vários recortes de papel: uma ave, uma nuvem, uma
vaca, um gato, todos em hábeis silhuetas reunidas em conjunto. Tal como
anteriormente, não vi ninguém no exterior e não havia quaisquer ruídos. Era
como se estivesse a viver isolado numas ruínas extremamente bem cuidadas.
Um pouco depois das cinco horas, as pessoas começaram a regressar à Área C.
Olhei através da janela da cozinha e vi três mulheres passarem em baixo. Usavam
chapéus e esse facto impediu-me de verificar as suas idades, mas, a julgar
pelas suas vozes, não seriam muito jovens. Pouco depois de desaparecerem numa
esquina, surgiram mais mulheres vindas da mesma direcção e, à semelhança do
primeiro grupo, também desapareceram ao dobrarem a mesma esquina. A atmosfera
do entardecer pairava sobre tudo. Da janela da sala de estar via árvores e
uma linha de colinas sobre cujo cume flutuava uma linha de pálida luminosidade.
A Naoko e a Reiko regressaram juntas às 17:30. Eu e a Naoko cumprimentámo-nos
apropriadamente, como se acabássemos de nos encontrar. Ela parecia
verdadeiramente embaraçada. A Reiko reparou no livro que eu estivera a ler
e perguntou-me de que livro se tratava. Disse-lhe que era A Montanha Mágica,
de Thomas Mann.
- Como foste capaz de trazer esse livro para um local destes? - perguntou.
Tinha razão, claro.
A Reiko preparou o café para os três. Contei à Naoko acerca do súbito
desaparecimento do Sargento e sobre a última vez que o vira, quando ele me
dera o pirilampo.
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- Lamento muito que ele tenha desaparecido - disse ela. - Teria gostado de
ouvir mais histórias acerca dele.
A Reiko perguntou-me quem era o Sargento e contei-lhe acerca das suas
idiossincrasias, ao ponto de lhe arrancar uma enorme gargalhada. O mundo estava
em paz e repleto de riso desde que as histórias sobre o Sargento continuassem
a ser contadas.
Às dezoito horas, dirigimo-nos para a cantina no edifício principal para o
jantar. Eu e Naoko comemos peixe frito e salada de alface, legumes cozidos,
arroz e sopa de soja. A Reiko limitou-se a salada de massa e a café, acompanhados
de mais um cigarro.
-Já não é preciso comer tanto à medida que se envelhece - comentou em jeito
de explicação.
Estavam na cantina cerca de vinte pessoas. Chegavam e saíam mais pessoas enquanto
jantávamos. Exceptuando a variedade de idades, o cenário assemelhava-se bastante
ao da cantina na minha residência académica. A diferença consistia no volume
uniforme das vozes. Não havia vozes ruidosas nem sussurros, ninguém ria alto
ou chorava desconsoladamente, ninguém gritava com gestos exagerados, tudo se
reduzia a conversas serenas e num nível uniforme. Jantavam em grupos de três
a cinco pessoas, cada um dispondo de um único orador que os outros escutavam
com acenos de cabeça e interjeições de interesse; quando essa pessoa terminava,
uma outra retomava a conversa. Não conseguia aperceber-me do teor das conversas,
mas o modo como falavam lembrou-me o estranho jogo de ténis a que assistira
ao meio-dia. Perguntei-me se a própria Naoko falaria deste modo quando estava
no meio deles e, estranhamente, senti uma pontada de solidão misturada com
ciúmes.
Na mesa atrás de mim, um homem quase calvo, vestido de branco e com o autêntico
ar de um médico, discorria para um jovem de óculos e de aspecto nervoso e para
uma mulher de meia-idade, de rosto semelhante ao de um esquilo, sobre os efeitos
da imponderabilidade na secreção dos sucos gástricos. Ambos o ouviam e proferiam
um ocasional «Meu Deus!» ou "De verdade?»; mas quanto mais eu escutava o estilo
oratório do homem, mais duvidava de que ele fosse realmente um médico, apesar
da sua bata branca.
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- É uma bela canção. Gosto realmente desse tema - disse ela, fechando
ocasionalmente os olhos e abanando a cabeça enquanto tocava. Quando acabou,
continuou a beberricar o vinho e a fumar.
- Toca a Norwegian Wood - pediu a Naoko.
A Reiko trouxe da cozinha um gato de porcelana com uma das patas levantada
num aceno. Era um mealheiro e a Naoko enfiou uma moeda de cem ienes pela ranhura.
- Para que foi isso? - inquiri.
- É uma das regras - declarou a Naoko. - Sempre que requisito o tema Norwegian
Wood, tenho que colocar cem ienes no mealheiro. É a minha canção preferida
e faço questão em pagar por isso. Requisito que a toquem sempre que me apetece
ouvi-la.
- E assim, consigo dinheiro para comprar cigarros! - anunciou a Reiko.
Flectiu os dedos e tocou Norwegian Wood. Tocou novamente com verdadeira emoção,
sem nunca permitir que a execução se tornasse sentimental. Tirei uma moeda
de cem ienes do bolso e enfiei-a no mealheiro.
- Obrigada - agradeceu a Reiko com um sorriso doce.
- Essa canção consegue pôr-me tão triste - disse a Naoko. - Não sei bem, mas
acho que me imagino a vaguear num bosque denso. Encontro-me sozinha, está frio
e escuro e ninguém vem salvar-me. É por essa razão que a Reiko só executa esta
canção se eu lhe pedir.
- Até parece uma cena do Casablanca] - exclamou a Reiko com uma gargalhada.
Depois de Norwegian Wood, seguiram-se algumas bossas novas enquanto me mantinha
de olhos fixos na Naoko. Tal como ela dissera na carta, parecia mais saudável,
com a pele bronzeada e o corpo firme devido ao exercício e às actividades ao
ar livre. Os olhos eram ainda aquelas profundas e límpidas poças que sempre
foram e os seus pequenos lábios continuavam a tremular com timidez, mas a sua
beleza começara a adquirir os traços de uma mulher madura. Quase desaparecera
aquela acutilância - o gélido gume de uma fina lâmina que se vislumbrava nas
sombras da sua beleza e em seu lugar assomava agora unicamente uma serenidade
apaziguadora e tranquilizante.
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Senti-me comovido com esta nova e delicada beleza dela e assombrado com a ideia
de que uma mulher pudesse mudar tanto no decurso de meio ano. Continuava a
sentir-me atraído por ela, talvez mais do que anteriormente, mas o pensamento
daquilo que ela perdera entretanto também me causava remorsos. Ela nunca mais
recuperaria aquela beleza autocentrada que parece seguir um rumo próprio e
independente, aparentemente exclusivo das raparigas adolescentes.
A Naoko disse que gostaria de se inteirar do meu dia-a-dia. Contei-lhe acerca
da greve dos estudantes e do Nagasawa.. Era a primeira vez que lhe falava dele.
Tive alguma dificuldade em lhe fornecer um relato exacto da estranha humanidade
dele, da sua filosofia única e da sua moralidade altruísta, mas a Naoko pareceu
compreender por fim aquilo que eu lhe relatava. Omiti o facto de que saía à
procura de raparigas com ele e revelei somente que este rapaz invulgar era
a única pessoa do dormitório com quem eu passava mais tempo. A Reiko começara
entretanto a praticar a fuga de Bach que tocara anteriormente e efectuava
ocasionais intervalos para beberricar vinho e fumar.
- Parece uma pessoa estranha - disse a Naoko.
- Ele é estranho - afirmei.
- Mas gostas dele?
- Não tenho a certeza. Acho que não posso afirmar que gosto dele. Com o Nagasawa,
não se trata de gostar ou não gostar. Ele não se esforça para que gostem dele.
Nesse sentido, é uma pessoa muito honesta e inclusive estóica. Não tenta enganar
ninguém.
- «Estóico», quando dorme com todas essas raparigas?! Pois bem, isso é que
é estranho - comentou a Naoko, rindo. - Com quantas raparigas já dormiu?
- Provavelmente já vai em oitenta. Mas, no caso dele, quanto mais elevados
são os números, menos significado parece ter cada acto individual. Acho que
é isso o que ele tenta alcançar.
- E chamas a isso «estóico»?
- No caso dele, sim.
A Naoko ponderou nas minhas palavras durante alguns instantes. - Acho que ele
é mais perturbado do que eu.
- Concordo. Mas ele consegue integrar todas as suas qualidades distorcidas
num sistema lógico. É brilhante. Se o trouxesse aqui, dar-lhe-iam alta em dois
dias. «Oh, com certeza,
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estou a par disso tudo», diria ele. «Compreendo perfeitamente tudo aquilo que
fazeis aqui». Ele é desse género, o género de indivíduo que as pessoas respeitam.
- Creio que sou o oposto de uma pessoa brilhante - disse a Naoko. - Não compreendo
nada do que se passa aqui, tal como não me compreendo a mim própria.
- Não se trata de não seres inteligente - disse-lhe. - És uma pessoa normal.
Há imensas coisas que eu próprio não compreendo acerca de mim. Ambos somos
normais: pessoas comuns.
A Naoko apoiou os pés em cima da borda do sofá e repousou o queixo sobre os
joelhos. - Quero saber mais coisas sobre ti.
- Não passo de uma pessoa normal: família normal, educação normal, rosto normal,
resultados dos exames normais, pensamentos normais a ocuparem-me a mente.
- És um grande fã do Scott Fitzgerald... não foi ele que afirmou que não se
deveria confiar em quem se autoproclamasse uma pessoa normal? Tu emprestaste-me
o livro! - proferiu ela com um sorriso malévolo.
- Com efeito - respondi. - Mas não se trata de afectação. Acredito verdadeira
e sinceramente, bem no fundo de mim, que sou uma pessoa normal. Consegues detectar
em mim algo que não seja normal?
- Claro que consigo! - exclamou com uma certa impaciência. - Não percebes?
Por que razão pensas que dormi contigo? Porque estava tão bêbada que teria
dormido com qualquer um?
- Não, obviamente que não penso isso.
Permaneceu em silêncio durante bastante tempo, a olhar fixamente para os dedos
dos pés. Não me ocorria nada para dizer e continuei a beberricar vinho.
- Com quantas raparigas já dormiste, Toru? - perguntou-me numa voz quase inaudível,
como se esse pensamento acabasse de lhe ocorrer.
- Oito ou nove - respondi com sinceridade.
A Reiko colocou ruidosamente a guitarra sobre o regaço. - Nem sequer tens vinte
anos! - disse. - Que tipo de vida tens levado?
A Naoko manteve-se em silêncio e observava-me com os seus olhos claros. Contei
à Reiko acerca da primeira rapariga com quem dormira e as razões de termos
rompido o relacionamento. Expliquei-lhe que descobrira que me era impossível
amá-la,
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e prossegui o relato sobre as várias raparigas com quem dormira sob a tutela
do Nagasawa.
- Não estou a tentar desculpar-me, mas eu estava a sofrer
- expliquei à Naoko. - Ali estava eu, via-te quase todas as semanas e falava
contigo sabendo que a única pessoa no teu coração era o Kizuki. Isso doía.
Doía verdadeiramente. E creio que foi por essa razão que dormi com raparigas
que desconhecia.
A Naoko abanou a cabeça por instantes e depois olhou-me nos olhos. - Perguntaste-me
daquela vez por que razão nunca dormi com o Kizuki, não foi? Ainda queres saber?
- Creio que é algo que eu deveria saber de facto.
- Também creio que sim - disse a Naoko. - Os mortos continuarão mortos para
sempre, mas nós temos de continuar a viver.
Assenti com a cabeça. A Reiko executou uma e outra vez o mesmo trecho difícil
para tentar aperfeiçoar a sua execução.
- Estava preparada para dormir com ele - anunciou a Naoko, retirando o gancho
e soltando o cabelo. Entreteve-se a remexer nas mãos o objecto em forma de
borboleta. - E ele queria dormir comigo, evidentemente. E tentámo-lo. Tentámo-lo
várias vezes. Mas nunca conseguíamos. Não conseguíamos fazê-lo. Nessa altura
eu não compreendia a razão, e ainda não compreendo. Amava-o e não me preocupava
perder a virgindade. De bom grado faria tudo o que ele desejasse. Mas nunca
conseguimos.
Puxou de novo o cabelo para trás e recolocou o gancho.
- Eu não conseguia ficar húmida - disse em voz abafada. -Nunca conseguia abrir-me
a ele. E doía sempre. O meu sexo não lubrificava e doía-me demasiado. Tentámos
tudo o que era possível, cremes e coisas do género, mas continuava a doer-me.
Optei por o excitar com as mãos ou com a boca. Era o que eu lhe fazia sempre.
Tu percebes o que quero dizer.
Anuí em silêncio.
Olhou através da janela para a lua, que parecia maior e mais brilhante. - Nunca
quis falar acerca disto - disse.
- Era minha intenção encerrar isto no meu coração. Quem me dera consegui-lo.
Mas tenho que falar acerca disso. Não sei a resposta. Quer dizer, eu estava
bastante húmida daquela vez que dormi contigo, não estava?
- Hã-hã - respondi.
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- Fiquei húmida desde que entraste no meu apartamento na noite do meu vigésimo
aniversário. Desejava que me abraçasses. Desejava que me despisses, que me
percorresses o corpo e me penetrasses. Nunca me sentira assim. Como era possível?
Por que razão as coisas são assim? Quer dizer, eu amava-o de verdade.
- Mas não a mim - disse eu. - Queres saber por que razão sentias isso comigo,
mesmo não me amando?
- Desculpa - proferiu ela. - Não é minha intenção magoar-te, mas precisas de
compreender isto: eu e o Kizuki tínhamos um relacionamento verdadeiramente
especial. Estávamos juntos desde os três anos. Foi assim que crescemos: sempre
juntos, sempre a conversar, compreendíamo-nos perfeitamente um ao outro.
Beijámo-nos pela primeira vez na primeira classe, foi realmente maravilhoso.
Quando tive o período pela primeira vez, corri para junto dele a chorar como
um bebé. Éramos verdadeiramente íntimos. Quando ele morreu, não consegui
relacionar-me com as outras pessoas. Não sabia o que significava amar outra
pessoa.
Estendeu a mão para o copo de vinho sobre a mesa, mas derrubou-o inadvertidamente
e entornou vinho sobre a carpete. Baixei-me para apanhar o copo e coloquei-o
sobre a mesa. Perguntei-lhe se queria beber mais. Manteve-se em silêncio durante
alguns momentos e de repente rompeu em lágrimas enquanto todo o seu corpo
estremecia. Curvou-se para a frente, com o rosto enterrado nas mãos, e chorou
com a mesma violência sufocante com que chorara naquela noite comigo. A Reiko
pousou a guitarra e sentou-se ao lado dela para a confortar. Quando lhe colocou
o braço sobre o ombro, a Naoko comprimiu o rosto contra o peito da Reiko como
se fosse um bebé.
- Sabes - disse-me a Reiko -, talvez seja boa ideia dares um pequeno passeio.
Talvez uns vinte minutos. Desculpa, mas creio que isso ajudaria.
Anuí com a cabeça, levantei-me e vesti uma camisola. - Obrigado pela tua ajuda
- disse à Reiko.
- Não precisas de agradecer - disse ela com uma piscadela de olho. - A culpa
não é tua. Não te preocupes, quando regressares, ela já estará bem.
Os meus pés levaram-me ao longo da estrada iluminada pelo estranho e irreal
luar, em direcção ao bosque. Sob o luar,
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todos os sons emitiam uma estranha reverberação. O som abafado das minhas passadas
parecia provir de outra direcção, como se ouvisse alguém a caminhar no fundo
do mar. Ocasionalmente, ouvia atrás de mim um estalido ou um roçagar. Uma pesada
mortalha pendia sobre a floresta, como se os animais nocturnos retivessem a
respiração à espera que eu passasse.
Sentei-me na zona onde a estrada se elevava para além das árvores e contemplei
o edifício onde a Naoko vivia. Era fácil identificar o seu quarto, bastava-me
descobrir a única janela nas traseiras onde tremulava uma ténue luminosidade.
Concentrei-me nesse pontinho de luz durante muito, muito tempo. Lembrava-me
algo semelhante ao pulsar final das cinzas de uma alma moribunda. Senti o desejo
de cobrir essa luz com as mãos a fim de a manter viva. Continuei a observar,
do mesmo modo como Jay Gatsby observava a minúscula luz na margem oposta noite
após noite.
Meia hora depois, quando regressei à entrada da casa, ouvi a Reiko a tocar
guitarra. Subi silenciosamente as escadas e bati à porta. A Naoko ausentara-se.
A Reiko estava sentada no tapete, a tocar guitarra. Apontou em direcção à porta
do quarto, indicando-me que a Naoko se encontrava lá dentro. Pousou a guitarra
no chão, sentou-se no sofá e fez-me sinal para me sentar ao seu lado enquanto
servia o resto do vinho em dois copos.
- A Naoko encontra-se bem - disse tocando-me no joelho. - Não te preocupes,
só precisa de descansar um pouco. Acabará por acalmar. Sentia-se apenas um
pouco perturbada. E se entretanto déssemos um passeio?
- Está bem.
Percorremos a estrada iluminada pelos lampiões. Quando alcançámos a área junto
dos campos de ténis e de basquetebol, sentámo-nos num banco. A Reiko retirou
uma bola de basquete de debaixo do banco e fê-la girar nas mãos. Perguntou-me
se eu jogava ténis. Disse-lhe que sabia jogar mas que era um péssimo jogador.
- E basquetebol?
- Não é o meu forte - respondi.
- Qual é o teu forte? - perguntou, franzindo os cantos dos olhos enquanto sorria.
- Além de dormir com raparigas.
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- Também não sou grande coisa nisso - disse, ferido com as palavras dela.
- Estava a brincar. Não te zangues. Mas, falando a sério, és bom em quê?
- Em nada de especial. Há coisas que gosto de fazer.
- Por exemplo?
- Caminhadas. Natação. Ler.
- Então gostas de fazer coisas sozinho?
- Creio que sim. As actividades em grupo nunca me entusiasmaram. Não consigo
sentir qualquer entusiasmo. Perco o interesse de imediato.
- Então, tens de vir aqui durante o Inverno. Praticamos esqui. Tenho a certeza
de que gostarias de esquiar na neve durante todo o dia, a suar do esforço.
- Começou a olhar fixamente para a mão direita, sob a luz do lampião, como
se inspeccionasse um instrumento musical antigo.
- A Naoko costuma exibir aquele comportamento? - inquiri.
- Ocasionalmente - declarou, examinando agora a mão esquerda. - De vez em quando
fica perturbada e chora assim. Mas não faz mal, está apenas a extravasar a
emoção. Seria assustador se não conseguisse fazê-lo. Quando a emoção se acumula
e endurecemos e morremos por dentro, então estamos realmente perante um grave
problema.
- Terei dito algo que não deveria?
- Não. Não te preocupes. Sê sempre sincero. É o melhor. Pode magoar um pouco
por vezes, e alguém pode ficar perturbado, como aconteceu à Naoko, mas é a
melhor atitude a adoptar. É o que deves fazer se pretendes verdadeiramente
que a Naoko se sinta bem de novo. Tal como te disse inicialmente, não deverias
preocupar-te tanto em querer ajudá-la, mas sim tentares tu próprio recuperar
enquanto a ajudas a convalescer. Aqui fazemos as coisas assim. Por conseguinte,
tens que ser franco e dizer tudo o que te vem à mente, pelo menos enquanto
aqui permaneceres. Ninguém faz isso no mundo lá fora, pois não?
- Creio que não.
- Já vi todo o tipo de pessoas entrarem e saírem daqui - continuou -, talvez
demasiadas pessoas. Geralmente, basta-me olhar para a pessoa para saber se
irá melhorar ou não,
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quase por instinto. No entanto, no caso da Naoko, não tenho tanta certeza.
Não faço a mínima ideia do que irá acontecer-lhe. Tanto quanto sei, poderá
recuperar a cem por cento já no próximo mês, como poderá continuar assim durante
anos. Não sei de facto dizer-te o que fazer, além do género de conselhos mais
genéricos: sermos honestos e entreajudarmo-nos.
- O que torna a Naoko num caso tão complicado para ti?
- Talvez porque gosto muito dela. Creio que as minhas emoções se intrometem
e não consigo olhá-la com clareza. Quer dizer, gosto realmente dela. Mas, para
além desse facto, ela carrega um fardo de problemas diferentes, tão emaranhados
uns nos outros que se torna difícil desvendar um único deles. Talvez demore
bastante tempo a desemaranhá-los, ou talvez algo consiga desencadear o desvendar
simultâneo de todos eles. Algo de género. É por essa razão que não tenho certezas
acerca dela.
Pegou novamente na bola de basquete, rodou-a nas mãos e fê-la ressaltar no
chão.
- A coisa mais importante consiste em não te impacientares
- continuou a Reiko. - É mais um conselho que te dou: não sejas impaciente.
Mesmo que as coisas estejam confusas ao ponto de não conseguires fazer nada,
não desesperes, não queimes os fusíveis nem comeces a puxar nenhum fio em
particular antes da ocasião apropriada. Tens que compreender que se trata de
um processo demorado e que deves progredir lentamente, um passo de cada vez.
Achas que és capaz disso?
- Posso tentar - respondi.
- Sabes, pode demorar muito tempo e mesmo assim ela pode não recuperar
completamente. Já pensaste nisso?
Assenti com a cabeça.
- Custa esperar - disse, fazendo a bola ressaltar de novo.
- Sobretudo para alguém da tua idade. À espera que ela melhore. Sem prazos
ou garantias. Achas que consegues fazer isso? Amas a Naoko a esse ponto?
- Não tenho a certeza - declarei com sinceridade. - Tal como a Naoko, não sei
realmente o que significa amar outra pessoa, embora ela tenha atribuído a isso
um significado um pouco diferente. Mas desejo esforçar-me ao máximo. Terei
que o fazer, caso contrário, não saberei que rumo seguir.
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Tal como disseste antes, eu e a Naoko temos que nos salvar um ao outro. É a
única maneira de sermos salvos.
- E vais continuar a seduzir e a dormir com raparigas?
- Também não sei como reagir em relação a isso - disse.
- O que achas? Devo continuar a aguardar e a masturbar-me? Também não tenho
controlo total sobre isso.
A Reiko pousou a bola no chão e deu-me uma palmadinha no joelho. - Olha, não
estou a dizer-te para deixares de dormir com raparigas. Se te sentes bem com
isso, então não há problema. Afinal de contas, trata-se da tua vida, é algo
que só tu podes decidir. O que estou a dizer-te, é que não deverias desgastar-te
de um modo não natural. Percebes aonde pretendo chegar? Seria um grande
desperdício. O período entre os dezanove e os vinte anos é uma etapa crucial
na maturação do carácter e, se te tornares pervertido nessa idade, isso
causar-te-á dor quando fores mais velho. É a verdade. Portanto, pondera nisso
com cuidado. Se pretendes cuidar da Naoko, cuida de ti também. Disse-lhe que
iria ponderar nessa questão.
- Eu própria já tive vinte anos. Há muito tempo atrás. Dá para acreditar?
- Acredito. Obviamente.
- Bem lá no fundo?
- Bem lá no fundo - anuí com um sorriso.
- E também era bonita. Não tão bonita como a Naoko, mas bastante gira. Ainda
não tinha todas estas rugas.
Disse-lhe que gostava bastante das suas rugas e ela agradeceu-me.
- Mas nunca digas a nenhuma mulher que achas as rugas dela atraentes - acrescentou.
- Eu gosto de ouvir isso, mas sou uma excepção.
- Serei cuidadoso.
Retirou uma carteira do bolso das calças e mostrou-me uma foto. Era um instantâneo
a cores de uma menina encantadora com cerca de dez anos, com esquis nos pés
e fato de esqui de cor brilhante, especada na neve e a sorrir docemente para
a objectiva.
- Não é bonita? É a minha filha - disse a Reiko. - Enviou-ma em Janeiro. Tem
agora... quantos?... nove anos.
- Tem o teu sorriso - comentei, devolvendo-lhe a foto.
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Guardou a carteira, deu uma fungadela e acendeu o cigarro que enfiara na boca.
- Eu queria ser pianista. Tinha talento, as pessoas reconheciam isso e
apaparicavam-me enquanto crescia. Ganhei concursos, obtive as classificações
mais altas no conservatório e estava preparada para estudar na Alemanha após
me formar. Não havia uma única nuvem no horizonte. Tudo progredia perfeitamente
e, quando isso não acontecia, havia sempre alguém que resolvia as coisas por
mim. Mas um dia aconteceu algo e tudo se desfez. Encontrava-me no último ano
do conservatório e aproximava-se um concurso importante. Pratiquei com
constância, mas o dedo mindinho da mão esquerda ficou paralisado de repente.
Desconheço porquê, mas foi o que aconteceu. Tentei massajá-lo ou embebê-lo
em água quente e deixei de praticar durante alguns dias: nada resultou. Senti-me
aterrorizada e consultei um médico. Tentaram todo o tipo de exames, mas não
conseguiram descobrir a causa. Não havia nada de errado com o próprio dedo,
os nervos funcionavam perfeitamente e diziam-me que não havia razão para ter
ficado paralisado. O problema deveria ser psicológico. Consultei então um
psiquiatra, mas também ele não descobriu a causa. Talvez se tratasse do stresse
que antecede uma competição, disse-me ele, e aconselhou-me a manter-me afastada
do piano durante algum tempo.
Inalou profundamente e exalou o fumo. Depois dobrou o pescoço um par de vezes.
- Decidi tentar recuperar em casa da minha avó, na costa de Izu. Resolvi esquecer
o concurso e relaxar enquanto passava um par de semanas longe do piano, a fazer
o que me apetecesse. Mas foi em vão. Só conseguia pensar no piano. Talvez nunca
mais conseguisse mexer o dedo. Como conseguiria viver se isso acontecesse?
Estes pensamentos preenchiam-me continuamente a mente. Começara a tocar aos
quatro anos e crescera a pensar somente no piano. Nunca ajudava em casa, de
modo a proteger as mãos. As pessoas prestavam-me atenção apenas por essa razão:
o meu talento a tocar piano. E quando se tira o piano a uma rapariga que cresceu
desse modo, o que resta? Foi o que aconteceu, zás, A minha mente tornou-se
num caos completo. Escuridão total.
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Se casares comigo, assumirás todos os meus problemas, e são bem piores do que
imaginas». Ele disse que não se importava, que não desejava apenas dormir comigo;
queria casar comigo, partilhar tudo o que havia dentro de mim. E estava a ser
sincero. Era o tipo de pessoa que falava sempre com franqueza e cumpria tudo
o que prometia. Por conseguinte, aceitei casar com ele. Não me restava outra
escolha. Casámo-nos, vejamos, quatro meses depois, acho que foi. Teve de
enfrentar os pais por minha causa e eles deserdaram-no. Provinha de uma antiga
família que vivia numa zona rural de Shikoku. Investigaram o meu passado e
descobriram que eu fora internada duas vezes. Não era de admirar que se opusessem
ao casamento. Por conseguinte não tivemos festa. Limitámo-nos a comparecer
no registo civil para oficializar o casamento e fizemos uma viagem de dois
dias a Hakone. Era o suficiente: estávamos felizes. Permaneci virgem até ao
dia em que me casei. Tinha vinte e cinco anos! Dá para acreditar? Suspirou
e pegou de novo na bola de basquete. - Enquanto permanecesse ao lado dele,
achava que tudo correria bem - prosseguiu. - Enquanto permanecesse ao lado
dele, os meus problemas manter-se-iam longe. Isso é a coisa mais importante
quando se tem uma doença como a minha: a sensação de confiança. Se me entregar
às mãos desta pessoa, estarei bem. Se o meu estado começar a piorar, por pouco
que seja, ou se algum parafuso se soltar, ele aperceber-se-á de imediato e,
com um tremendo cuidado e paciência, conseguirá endireitar as coisas, conseguirá
apertar de novo o parafuso e colocar todas as pontas emaranhadas no seu devido
lugar. Quando possuímos essa sensação de confiança, a doença mantém-se ao longe,
acabam-se os zás! Sentia-me tão feliz! , A vida era maravilhosa! Era como se
alguém me tivesse arrancado ao mar frio e enfurecido e depois me agasalhasse
num cobertor e me deitasse numa cama quente. Dei à luz dois anos após casarmos
e desde então não tive mãos a medir! Esqueci-me praticamente da minha doença.
Levantava-me de manhã, fazia a lida da casa, cuidava da bebé e preparava as
refeições para o meu marido quando ele regressava do trabalho. Esta rotina
repetia-se dia após dia, mas estava feliz. Foi provavelmente o período mais
feliz da minha vida. Pergunto-me, quantos anos durou isso?
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Pelo menos até aos meus trinta e um anos. E então, de repente, zás, Aconteceu
de novo. Sucumbi.
Acendeu um cigarro. O vento esmorecera. O fumo elevou-se directamente no ar
e desapareceu na escuridão da noite. Somente nesse momento me apercebi de que
o céu estava repleto de estrelas.
- Tinha acontecido algo? - perguntei.
- Sim - disse -, algo muito estranho, como se me tivessem montado uma armadilha.
Ainda hoje sinto um calafrio só de pensar nisso. - Esfregou a têmpora com a
mão. - Desculpa estar a obrigar-te a ouvir toda esta conversa sobre mim. Vieste
cá para ver a Naoko e não para ouvir a minha história.
- Gostava realmente de a ouvir. Gostava de ouvir o resto, se não te importares.
- Bem - prosseguiu -, quando a nossa filha entrou para o jardim de infância,
recomecei gradualmente a tocar. Apenas para mim própria e para mais ninguém.
Comecei com curtas peças de Bach, Mozart, Scarlatti. Obviamente, após um período
tão prolongado e vazio, não consegui recuperar de imediato a sensibilidade
musical. E os meus dedos já não eram tão ágeis como antigamente. Mas sentia-me
entusiasmada por estar a tocar piano de novo. Quando colocava as mãos sobre
as teclas, tinha consciência de como amava a música, de como ansiava pela música.
Ter conseguido tocar música para mim foi maravilhoso. Tal como disse antes,
tocava já desde os quatro anos e só então me apercebi de que nunca tocara uma
única vez para mim própria. Estivera sempre empenhada em tentar passar nalgum
teste, em praticar um exercício ou tentar impressionar alguém. Tudo coisas
importantes, de facto, quando se pretende dominar um instrumento. Todavia,
após uma certa idade, temos que começar a tocar para nós mesmos. A música é
isso. Foi preciso abandonar aquele curso de elite e chegar aos trinta e um
anos para finalmente ter consciência desse facto. Deixava a criança no jardim
de infância e procedia apressadamente à lida da casa a fim de passar uma ou
duas horas a tocar a música de que gostava. Até aqui tudo bem, certo?
Anuí com a cabeça.
- Certo dia recebi a visita de uma das vizinhas,
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perdia os meus poderes normais de julgamento. Ela era tão jovem e bela que
me sentia avassalada ao ponto de me ver a mim própria como um espécime inferior,
uma desajeitada amostra de ser humano, capaz apenas de pensamentos negativos
acerca dela devido à minha própria mente pervertida e imunda. Abanou a cabeça
várias vezes.
- Se tivesse sido tão bonita e inteligente como ela era, teria sido um ser
humano normal. Que mais poderia desejar se fosse assim tão inteligente e bela?
Para que precisaria de atormentar e espezinhar as pessoas mais fracas e inferiores
quando toda a gente me adorava tanto? Que razão poderia haver para agir assim?
- Ela fez-te alguma coisa terrível?
- Bem, direi apenas que a rapariga era uma mentirosa compulsiva. Ela era pura
e simplesmente doentia. Inventava tudo. E enquanto inventava as suas histórias,
começava a acreditar nelas. E depois alterava as coisas de modo a encaixarem
na sua história. Tinha uma mente tão ágil que conseguia manter-se sempre um
passo à nossa frente a fim de modelar as coisas que normalmente nos pareceriam
estranhas; portanto, nunca nos ocorreria que ela estivesse a mentir. Antes
do mais, ninguém suspeitaria alguma vez que uma menina tão bonita pudesse mentir
acerca das coisas mais comuns. E eu muito menos. Contou-me uma data de mentiras
durante seis meses, até me aperceber do mais ínfimo indício de que algo estava
errado. Ela mentia acerca de tudo. E eu nunca suspeitei. Sei que isso parece
uma loucura.
- Que mentiras engendrou ela?
- Quando digo tudo, significa realmente tudo. - Emitiu uma gargalhada sarcástica.
- Quando as pessoas mentem acerca de algo, têm de inventar um conjunto de mentiras
que corroborem a primeira. Chama-se a isso «mitomania». Quando um mitómano
comum conta mentiras, trata-se geralmente de mentiras inocentes e a maior parte
das pessoas apercebem-se desse facto. Mas não era isso o que acontecia com
aquela rapariga. Para se proteger, contava mentiras maldosas sem pestanejar
sequer. Servia-se de tudo a que pudesse deitar as mãos. E mentiria ainda mais,
ou menos, dependendo da pessoa com quem estivesse a falar. Quase nunca mentia
à mãe ou a amigos chegados,
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Escusado será dizer que o mundo está cheio de crianças que conseguem executar
Bach bem melhor do que ela. Vinte vezes melhor. Mas a maioria dessas execuções
não patenteariam nada de especial. Seriam ocas, vazias. A técnica desta rapariga
era má, mas dispunha daquele pequeno detalhe que atraía as pessoas, ou que
me atraía a mim, pelo menos. Por conseguinte, achei que talvez valesse a pena
ensiná-la. Naturalmente, estava fora de questão exercitá-la ao ponto de se
tornar numa profissional. Mas sentia que talvez fosse possível torná-la no
tipo de pianista feliz como eu era então e que ainda sou, alguém que apreciava
tocar para si próprio. Isto revelou-se uma vã esperança, porém. Ela não era
o tipo de pessoa que calmamente se dedica a fazer coisas sozinha. Tratava-se
de uma criança que procedia a cálculos detalhados de modo a usar todos os meios
ao seu dispor para impressionar as outras pessoas. Ela sabia exactamente o
que fazer para que as pessoas a admirassem e a elogiassem. E sabia exactamente
o tipo de execução necessária para me aliciar. Tenho a certeza de que premeditara
tudo e que se empenhara ao máximo a praticar uma e outra vez as passagens mais
importantes a fim de me impressionar. Ainda consigo visualizá-la. Todavia,
ainda hoje, depois de tudo isso se ter tornado claro para mim, acredito que
foi uma execução brilhante e, se a ouvisse de novo, sentiria os mesmos calafrios
na espinha. Mesmo conhecendo todos os defeitos dela, todas as suas astúcias
e mentiras, continuaria a sentir isso. Digo-te, há coisas espantosas no mundo.
Pigarreou com um som seco e áspero e silenciou-se.
- E então, aceitaste-a como aluna? - perguntei.
- Sim. Uma aula por semana, aos sábados de manhã, quando não tinha aulas. Nunca
faltou a uma única aula, nunca se atrasava, era a aluna ideal. Praticava sempre
para as aulas. Depois de cada lição, comíamos bolo e conversávamos.
Olhou nesse momento para o relógio, como se se lembrasse subitamente de algo.
- Não achas que deveríamos regressar? Estou um pouco preocupada com a Naoko.
Certamente ainda não te esqueceste dela, pois não?
- Claro que não - ri-me. - Estava apenas absorvido pela tua história.
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- É por essa razão que eu adorava a vossa companhia. Eu própria via também
apenas o seu lado melhor. Conseguia relaxar e deixava de me preocupar quando
estávamos os três juntos. Foram os tempos mais felizes da minha vida. Não sei
se tu sentias o mesmo.
- A minha preocupação era aquilo que tu pensavas - disse-lhe, abanando a cabeça.
- O problema era que essa situação não poderia continuar para sempre - contrapôs
a Naoko. - É impossível manter um grupo pequeno e perfeito. O Kizuki sabia-o,
eu sabia-o e tu também. Não tenho razão?
Assenti com a cabeça.
- No entanto, se queres que te diga a verdade - prosseguiu -, também adorava
o seu lado fraco. Adorava-o tanto quanto o seu lado bom. Não havia absolutamente
nada de malvado ou dissimulado nele. Ele era fraco, é tudo. Tentei dizer-lhe
isso, mas ele não acreditava em mim. Respondia-me sempre que isso se devia
ao facto de estarmos juntos desde os três anos. Dizia que eu o conhecia demasiado
bem, que não sabia distinguir entre os seus pontos fortes e as suas fraquezas,
que eram a mesma coisa para mim. No entanto, não conseguiu fazer-me mudar de
opinião a respeito dele. Continuei a adorá-lo do mesmo modo e nunca consegui
interessar-me por mais ninguém.
Olhou para mim com um sorriso melancólico.
- O nosso relacionamento era também deveras inusitado, como se, de algum modo,
estivéssemos fisicamente unidos. Quando nos separávamos, uma força
gravitacional especial voltava a unir-nos. Quando nos tornámos namorados,
parecia ser a coisa mais natural do mundo. Não precisávamos de pensar nisso
nem de fazer opções. Começámos a beijar-nos aos doze anos e a acariciarmo-nos
aos treze. Ia para o quarto dele, ou ele para o meu, e excitava-o com as mãos.
Nunca me ocorreu que éramos precoces. Acontecia naturalmente. Não me importava
quando ele queria afagar-me os seios ou o sexo; ou, se a vontade dele era vir-se,
não me importava de o ajudar a excitar-se. Tenho a certeza de que teria sido
um choque para ambos se alguém nos tivesse acusado de estarmos a agir erradamente.
Pois não estávamos a agir mal, fazíamos apenas aquilo que deveríamos estar
a fazer. Sempre expuséramos um ao outro qualquer parte dos nossos corpos.
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os acontecimentos desde essa manhã até à noite. Parecia ter sido um dia
tremendamente longo. A divisão continuava iluminada pelo luar. Exceptuando
o ocasional e ténue rangido da cama, quase nenhum som provinha do quarto onde
a Naoko e a Reiko dormiam. Minúsculas formas diagramáticas pareciam flutuar
na escuridão quando fechava os olhos e nos meus ouvidos persistiam ainda as
reverberações remanescentes da guitarra da Reiko, mas nenhum desses sons perdurou
por muito tempo. O sono abateu-se sobre mim e mergulhei numa massa de lama
tépida. Sonhei com salgueiros, com ambas as margens de uma estrada de montanha
ladeada de salgueiros. Um número assombroso de salgueiros. Soprava uma brisa
levemente agreste, mas os ramos dos salgueiros nunca baloiçavam. Por que razão
seria, interroguei-me, e apercebi-me então de que em cada ramo de cada árvore
havia minúsculas aves empoleiradas. Era o seu peso que impedia a ramagem de
se agitar. Agarrei num pau e bati num dos ramos, na esperança de afugentar
as aves e permitir que a ramagem baloiçasse. Mas as aves mantinham-se no seu
lugar e, em vez de fugirem, transformaram-se em pedaços de metal em forma de
ave que se esmagaram contra o solo.
Quando abri os olhos, parecia estar a assistir à continuação desse sonho. O
luar preenchia a divisão com o mesmo brilho suave e branco. Soergui-me na cama
quase instintivamente e comecei a procurar as aves de metal que, obviamente,
não estavam lá. Deparei então com a Naoko, sentada imóvel aos pés da cama enquanto
olhava fixamente através da janela. Repousara o queixo sobre os joelhos e parecia
uma órfã esfomeada. Procurei o relógio que deixara junto da almofada, mas não
o encontrei. Supus, pelo ângulo do luar, que deveriam ser duas ou três horas
da manhã. Senti uma sede intensa mas mantive-me imóvel enquanto continuava
a observar a Naoko. Envergava a mesma camisa de noite azul e prendera o cabelo
de lado com o gancho em forma de borboleta, expondo ao luar a beleza do seu
rosto. Que estranho, pensei, pois ela retirara o gancho antes de se deitar.
A Naoko mantinha-se petrificada, como um pequeno animal nocturno atraído pelo
luar para fora do seu esconderijo. O ângulo do luar realçava os contornos dos
seus lábios.
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Apanhei o relógio do chão e virei-o contra o luar. Eram 3:40. Fui à cozinha
beber água antes de me deitar de novo. Mas o sono sobreveio somente quando
a claridade da manhã começou a infiltrar-se em cada recanto da divisão,
dissolvendo todos os traços do pálido brilho do luar. Encontrava-me no limiar
do sono quando a Reiko me tocou no rosto e gritou: - Acorda! Acorda!
Enquanto a Reiko fechava o sofá, a Naoko foi para a cozinha preparar o
pequeno-almoço. Sorriu-me e disse: - Bom dia.
- Bom dia - respondi. Mantive-me junto dela a observá-la a pôr água a ferver
e a cortar o pão, sempre a cantarolar, mas o seu comportamento não revelava
quaisquer sinais de me ter desvendado o seu corpo desnudo na noite anterior.
- Tens os olhos vermelhos - disse-me enquanto servia o café. - Sentes-te bem?
- Acordei a meio da noite e não consegui adormecer de novo.
- Aposto que estavas a ressonar - comentou a Reiko.
- De modo algum - retorqui.
- Ainda bem - disse a Naoko.
- Ele está apenas a ser educado - comentou a Reiko enquanto bocejava.
De início, pensei que a Naoko se sentisse embaraçada ou estivesse a simular
inocência junto da Reiko; mas quando a Reiko saiu da cozinha, o seu comportamento
não se alterou e os seus olhos evidenciavam o habitual olhar transparente.
- Dormiste bem? - perguntei à Naoko.
- Dormi profundamente - retorquiu com à-vontade. Usava no cabelo um gancho
simples, desprovido de qualquer adorno.
Não conseguia compreender a atitude dela e continuei a sentir-me assim durante
o pequeno-almoço. Enquanto barrava manteiga no pão ou descascava um ovo, olhava
constante-mente para a Naoko, à procura de algum sinal.
- Por que razão me olhas assim? - inquiriu com um sorriso.
- Creio que ele está apaixonado por alguém - declarou a Reiko.
- Estás apaixonado por alguém? - perguntou-me a Naoko.
- Talvez esteja - respondi, devolvendo-lhe o sorriso. Quando ambas começaram
a rir-se às minhas custas, desisti de pensar no que acontecera na noite anterior
e concentrei-me na refeição.
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Descansámos para recuperar o fôlego, limpar o suor e beber dos cantis. A Reiko
apanhou uma folha e transformou-a num apito.
O trilho embrenhava-se numa suave encosta que descia por entre enormes e
oscilantes tufos de erva. Caminhámos durante mais quinze minutos até
atravessarmos uma aldeia. Não havia sinais da presença humana e a dúzia de
casas encontravam-se em vários estados de decadência. Entre as habitações
vicejava erva à altura da cinta e pequenas manchas secas e brancas de excrementos
de pombo agarravam-se aos buracos nas paredes. Num dos edifícios em ruínas,
somente os pilares resistiam, ao passo que outros edifícios pareciam prestes
a ser habitados assim que as robustas portadas fossem abertas. Estas casas
mortas e silenciosas comprimiam-se contra ambas as margens da estrada enquanto
prosseguíamos.
- Esta aldeia era habitada até há cerca de sete ou oito anos - informou-me
a Reiko. - Em volta havia terra arável. Mas todos se mudaram, a vida era demasiado
árdua. Ficavam encurralados quando a neve se acumulava durante o Inverno e
o solo não é particularmente fértil. Optaram por uma vida melhor na cidade.
- Que desperdício - disse eu. - Algumas das casas parecem perfeitamente
habitáveis.
- Alguns hippies tentaram residir aqui a certa altura, mas desistiram. Não
conseguiam suportar os Invernos.
Um pouco além da aldeia deparámo-nos com uma enorme área vedada que parecia
ser uma pastagem. Mais além, do lado oposto, vislumbrei cavalos a pastarem.
Seguimos a linha da cerca e um enorme cão aproximou-se de nós a correr, com
a cauda a abanar. Roçou-se na Reiko, farejou-lhe o rosto e lançou-se na brincadeira
contra a Naoko. Assobiei e o animal aproximou-se de mim para me lamber a mão
com a comprida língua.
A Naoko afagou-lhe a cabeça e explicou-me que o cão pertencia ao pasto. - Aposto
que tem quase vinte anos - disse. - Tem os dentes em tão mau estado que não
consegue comer nada que seja rijo. Dorme todo o dia à porta da loja e aproxima-se
a correr sempre que ouve passos.
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A Reiko parecia radiante. - Era mesmo isto que procurávamos! Não temos rádio
no quarto e, se não vier aqui de vez em quando, perco a noção do que anda a
ouvir-se.
- Dormes aqui? - perguntei à rapariga.
- Nem pensar! - riu-se. - Morreria de solidão se passasse uma noite aqui. O
sujeito da pastagem dá-me boleia para a cidade e regresso de manhã. - Apontou
para uma carrinha 4x4 estacionada diante de um escritório ali próximo.
- Também entras em férias em breve, não é? - perguntou a Reiko.
- Sim, fechamos em breve - respondeu ela. A Reiko ofereceu-lhe um cigarro e
ambas fumaram.
- Vou ter saudades tuas - declarou a Reiko.
- Estarei de volta em Maio - redarguiu a rapariga com uma gargalhada.
A rádio emitia agora White Room dos Cream. Após um anúncio publicitário, foi
a vez de Scarborough Fair de Simon e Garfunkel.
- Dessa gosto - disse a Reiko quando a canção terminou.
- Vi o filme - anunciei.
- Quem era o protagonista?
- O Dustin Hoffman.
- Nunca ouvi falar dele - retorquiu ela com um triste abanar da cabeça. - O
mundo muda vertiginosamente e deixo de estar a par dos acontecimentos.
Solicitou uma guitarra à rapariga. - Com certeza - disse ela; desligou o rádio
e trouxe uma velha guitarra. O cão ergueu a cabeça e farejou o instrumento.
- Isto não é para comeres - disse a Reiko com uma severidade trocista. O alpendre
foi varrido por uma brisa fragrante a erva. As montanhas estendiam-se diante
de nós e a linha da cordilheira recortava-se contra o céu.
- Parece uma cena de Música no Coração - disse eu à Reiko enquanto ela afinava
a guitarra.
- O que é isso? - perguntou.
Tamborilou na guitarra à procura do acorde inicial de Scarborough Fair.
Tratava-se, aparentemente, da sua primeira tentativa de execução dessa canção,
mas, após alguns falsos começos, conseguiu tocá-la até ao fim sem hesitar.
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mas éramos muito chegadas. Nunca discutíamos, nem uma única vez. A sério.
Naturalmente, tendo em conta a enorme diferença de idades, não havia grandes
motivos para discutirmos.
A sua irmã era uma daquelas raparigas que tinham êxito em tudo: uma super-estudante,
uma super-atleta, era popular, uma líder, generosa, franca, os rapazes gostavam
dela, os professores gostavam dela, tinha as paredes do quarto cobertas de
certificados de mérito. Havia sempre uma rapariga assim em todas as escolas.
- Não estou a dizer isto por ser minha irmã, mas ela nunca deixou que estas
coisas a influenciassem ou a tornassem minimamente arrogante ou convencida.
O facto é que, independentemente da tarefa de que a incumbissem, efectuava-a
melhor do que qualquer outra pessoa. Quando eu era criança, decidi ser uma
rapariguinha adorável. - Torcia nas mãos uma haste de erva enquanto falava.
- Como deves compreender, cresci a ouvir toda a gente a dizer como ela era
inteligente, como ela se evidenciava nas actividades desportivas e como era
popular. Não vou, obviamente, assumir que havia qualquer possibilidade de eu
competir com ela. Mas o meu rosto era pelo menos mais encantador do que o dela
e creio que as pessoas resolveram tornar-me numa menina adorável. Puseram-me
desde o início numa escola daquelas. Vestiam-me com vestidos de veludo, blusas
de folhos e sapatos de cabedal autêntico, tinha aulas de piano e de ballet.
Isto fazia com que a minha irmã me adorasse ainda mais, tu percebes: eu era
a sua adorável irmãzinha. Dava-me pequenas e adoráveis prendas, levava-me com
ela para todo o lado e ajudava-me com os trabalhos escolares. Chegava
inclusivamente a levar-me com ela quando saía com o namorado. Era a melhor
irmã mais velha que se podia ter. Ninguém soube por que razão se suicidou.
Tal como aconteceu com o Kizuki. Exactamente o mesmo. Também tinha dezassete
anos e nunca revelou o mais ínfimo indício de que iria suicidar-se. Também
não deixou nenhum bilhete. Foi, de facto, exactamente o mesmo, não achas?
- Parece que sim.
- Todos diziam que ela era demasiado inteligente ou que lia demasiados livros.
E lia imenso, de facto. Tinha imensos livros. Li vários deles depois da morte
dela e foi muito triste,
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pois os livros continham comentários dela nas margens, flores comprimidas entre
as páginas e cartas dos namorados, e chorava sempre que me deparava com alguma
dessas coisas. Chorava imenso.
Manteve-se calada durante alguns segundos enquanto contorcia de novo a haste
de erva.
- Ela tratava sempre das coisas sozinha. Nunca pedia conselhos ou ajuda a ninguém.
Creio que não se tratava de uma questão de orgulho. Limitava-se a fazer o que
lhe parecia natural. Os meus pais estavam acostumados a esse comportamento
e achavam que ela se desenvencilharia bem sozinha. Ajudava-me sempre que lhe
pedia algum conselho, mas ela própria nunca recorria a ninguém. Fazia o que
tinha a fazer, sempre de modo independente. Nunca se zangava nem se mostrava
temperamental. Tudo isto é verdade, a sério, não estou a exagerar. A maioria
das raparigas, quando têm o período ou lhes acontece algo, tornam-se irritadiças
e descarregam nos outros, mas ela nunca agia assim. Em vez de ficar de mau
humor, mostrava-se bastante dócil. Acontecia-lhe apenas isto no espaço de dois
ou três meses: fechava-se no quarto e ficava na cama, faltava às aulas, quase
não comia, permanecia no escuro e parecia alienada. Mas não revelava qualquer
mau humor. Quando eu chegava da escola, chamava-me ao quarto, pedia-me que
me sentasse ao lado dela na cama e perguntava-me sobre o meu dia. Eu contava-lhe
tudo: os jogos com que me entretinha com os amigos, o que o professor dissera
ou os resultados de algum teste, coisas desse género. Ela absorvia cada um
dos pormenores e tecia comentários e sugestões; mas, assim que eu saía do quarto,
por exemplo, para ir brincar com alguma amiga ou para ir a uma aula de ballet,
ela alienava-se de novo. Dois dias depois, surgia de repente novamente animada
e retomava as aulas. Esta situação prolongou-se durante... não sei, talvez
durante quatro anos. Inicialmente, os meus pais preocupavam-se e creio que
chegaram a consultar um médico, mas o facto é que passados dois dias ela ficava
perfeitamente bem e eles achavam que tudo se resolveria se a deixassem em paz,
pois ela era muito inteligente e disciplinada. Contudo, depois da morte dela
ouvi os meus pais referirem um irmão mais novo do meu pai que falecera há vários
anos.
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Era também muito inteligente, mas permanecera fechado em casa durante quatro
anos: desde os dezassete até fazer vinte e um anos. E de repente, um dia sai
de casa e lança-se debaixo de um comboio. O meu pai disse: «Talvez esteja no
sangue, da minha parte».
Enquanto falava, os seus dedos torturavam inconscientemente a haste de erva,
cujas fibras se dispersavam ao vento. Quando a haste ficou reduzida, entrelaçou-a
em redor dos dedos.
- Fui eu que encontrei a minha irmã morta - prosseguiu. - No Outono, quando
eu andava no sétimo ano. Em Novembro, num dia escuro e chuvoso. A minha irmã
frequentava o primeiro ano do secundário. Eu chegara a casa às 18:30 depois
da aula de piano, a minha mãe estava a cozinhar e disse-me para ir avisar a
minha irmã que o jantar estava pronto. Subi ao piso de cima, bati à porta e
gritei: «O jantar está na mesa», mas não houve qualquer resposta. O quarto
estava mergulhado num silêncio total. Achei estranho e bati de novo; abri a
porta e espreitei para dentro. Pensei que ela estivesse provavelmente a dormir.
Mas não estava na cama. Estava junto da janela, a olhar fixamente para o exterior,
com o pescoço curvado num ângulo estranho, como se estivesse a pensar. O quarto
estava escuro, as luzes estavam apagadas e era difícil ver o que quer que fosse.
«Que estás a fazer?», perguntei-lhe. «O jantar está pronto». Foi então que
reparei que ela parecia mais alta. Que estaria a acontecer?, perguntei-me,
aquilo era tão estranho!. Ela teria calçado saltos altos? Ter-se-ia colocado
em cima de algo? Aproximei-me e estava prestes a dizer algo quando vi que havia
uma corda por cima da cabeça dela. Uma corda pendurada de uma viga do tecto,
assombrosamente direita, como se alguém tivesse desenhado uma linha no espaço
com uma régua. Vestia apenas uma blusa branca, sim, uma simples blusa como
esta, e uma saia preta, e os dedos dos pés apontavam para baixo como os de
uma bailarina, só que entre a ponta dos dedos e o soalho haveria talvez um
espaço de: dezassete centímetros. Apercebi-me de cada pormenor. Do rosto dela
também. Observei-lhe o rosto, não consegui evitar. Pensei: tenho que ir lá
abaixo imediatamente e contar à minha mãe, tenho que gritar. Mas o meu corpo
ignorou-me. Movia-se por vontade própria, separado da minha consciência.
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O meu corpo tentava baixá-la da corda enquanto a minha mente me dizia para
correr pelas escadas abaixo. Mas uma rapariguinha como eu não tinha obviamente
a força necessária para conseguir tal coisa e, portanto, limitei-me a permanecer
ali, alienada, durante cerca de cinco ou seis minutos, num vazio total, como
se algo tivesse morrido dentro de mim. Fiquei assim com a minha irmã naquele
quarto frio e escuro até a minha mãe vir ver o que estava a passar-se. Abanou
a cabeça.
- Não consegui falar durante três dias. Permaneci deitada na cama como uma
morta, de olhos desmesuradamente abertos e fixos no vácuo. Não sabia o que
estava a acontecer. - Apoiou-se contra o meu braço. - Eu contei-te na minha
carta que sou um ser humano com mais defeitos do que imaginas, não contei?
A minha doença é pior do que julgas, as suas raízes são mais profundas. E é
por essa razão que desejo que avances sem mim se puderes. Não esperes por mim.
Dorme com outras raparigas se for esse o teu desejo. Não permitas que eu te
retenha. Faz o que queres fazer. Caso contrário, posso acabar por te arrastar
comigo e isso é a coisa que mais quero evitar. Não quero interferir com a tua
vida. Não quero interferir com a vida de ninguém. Tal como disse antes, gostava
que me visitasses de vez em quando e que te lembrasses sempre de mim. É tudo
o que desejo.
- Mas isso não é tudo o que eu desejo - disse-lhe.
- Estás a desperdiçar a tua vida envolvendo-te comigo.
- Não estou a desperdiçar nada.
Mas eu posso nunca recuperar. Esperarás eternamente por mim? Consegues esperar
dez, vinte anos?
- Estás a deixar-te assustar com demasiadas coisas - disse-lhe. -A escuridão,
os pesadelos, o poder dos mortos. Tens que esquecer isso. Tenho a certeza de
que recuperarás se esqueceres isso.
- Se eu conseguir - proferiu a Naoko, abanando a cabeça.
- Se conseguires sair daqui, vens viver comigo? - perguntei-lhe. - Assim poderei
proteger-te da escuridão e dos pesadelos. E assim ter-me-ias a mim em vez da
Reiko para te abraçar quando as coisas se tornassem difíceis.
Apoiou-se com mais firmeza contra mim. - Seria maravilhoso - disse.
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Voltámos ao café alguns minutos antes das três. A Reiko lia um livro enquanto
ouvia na rádio o Segundo Concerto para pianos de Brahms. Havia algo de maravilhoso
no facto de Brahms estar a tocar na margem de um prado verdejante sem vivalma.
A Reiko assobiava o acompanhamento do trecho de violoncelo que inicia o terceiro
andamento.
- Backhaus é Bõhm - disse ela. - Há muito tempo atrás, ouvia tanto este disco
que o rompi. Literalmente. Rompi os sulcos enquanto ouvia cada uma das notas.
Sorvia a música directamente do disco.
Eu e a Naoko pedimos café.
- Conversaram muito? - perguntou a Reiko.
- Imenso - respondeu a Naoko.
- Mais tarde contas-me acerca daquilo... há, tu sabes.
- Não fizemos nada disso - disse a Naoko, corando.
- De verdade? Nada mesmo? - perguntou-me a Reiko.
- Nada - declarei.
- Que aborreci-i-i-do! - exclamou ela com uma expressão de enfado no rosto.
- Pois é - disse eu, continuando a beberricar o café.
O cenário na cantina era o mesmo do dia anterior: o ambiente, as vozes, os
rostos. Apenas o menu se alterara. O homem calvo e vestido de branco, que no
dia anterior dissertara sobre a secreção dos sucos gástricos em condições de
imponderabilidade, sentou-se à nossa mesa e discorreu durante algum tempo sobre
a correlação entre o tamanho do cérebro e a inteligência. Enquanto comíamos
os hambúrgueres de rebentos de soja, discorreu acerca do volume do cérebro
de Bismarck e de Napoleão. Depois afastou o prato e, servindo-se de uma caneta
e de um bloco de apontamentos, desenhou esboços de cérebros. Começava a desenhar,
declarava «Não, não é bem assim» e recomeçava a desenhar. Isto repetiu-se várias
vezes. Quando terminou, guardou o bloco de apontamentos num dos bolsos do casaco
branco e enfiou a caneta no bolsinho do peito, o qual continha já três canetas,
lápis e uma régua. Quando terminou a refeição, repetiu o que me dissera no
dia anterior: - Aqui os Invernos são realmente encantadores. Experimente vir
cá durante o Inverno - e saiu da cantina.
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- Muito bem. Mas primeiro quero abrigar-me nalgum local. Esta noite está um
pouco frio.
Enveredou pela esquerda quando nos acercámos dos campos de ténis. Descemos
uma escadaria estreita e deparámo-nos com um local onde se erguiam vários armazéns
como se fossem um bloco de habitações. Abriu a porta do mais próximo, entrou
e acendeu as luzes. - Entra. Embora não haja muito para ver.
O armazém continha perfeitas fileiras de esquis, botas e restantes adereços
e no chão estava empilhado equipamento de remoção da neve e sacos de sal-gema.
- Costumava vir aqui frequentemente para praticar guitarra... quando desejava
estar sozinha. É agradável e confortável, não é?
Sentou-se em cima dos sacos de sal-gema e fez-me sinal para me sentar ao seu
lado. Obedeci-lhe.
- Aqui não há muita ventilação, mas importas-te que eu fume?
- Estás à vontade.
- É um vício que não consigo abandonar - disse, franzindo a testa, mas acendeu
o cigarro com evidente prazer. Não eram muitas as pessoas que apreciavam o
tabaco como a Reiko. Continuei a comer uvas, descascando-as uma a uma
cuidadosamente e lançando as peles e as grainhas para dentro de uma lata que
servia de caixote de lixo.
- Ora bem, vejamos, em que ponto ficámos ontem à noite? - perguntou-me.
- Estava uma noite escura e tempestuosa e tu trepavas por um íngreme penhasco
para deitar a mão a um ninho de andorinha.
- És fantástico, a maneira como consegues gracejar com o rosto tão sério. Vejamos,
creio que estava no ponto em que dava aulas de piano à rapariguinha aos sábados
de manhã.
- Isso mesmo.
- Partindo do princípio de que se pode dividir todas as pessoas do mundo em
dois grupos, aqueles que são bons a ensinar coisas aos outros e aqueles que
não o são, devo dizer que me incluo perfeitamente no primeiro grupo. Nunca
reflecti sobre isso quando era mais nova e creio que não desejava encarar-me
desse modo, mas, assim que alcancei uma certa idade e um certo grau de
autoconhecimento,
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apercebi-me de que era verdade afinal de contas: tenho jeito para ensinar as
pessoas. Bastante jeito.
- Acredito que sim.
- Tenho mais paciência para os outros do que para mim própria e tenho o dom
de despertar o melhor nos outros, mas não em mim própria. Tem a ver com a minha
personalidade. Sou a parte áspera de uma caixa de fósforos. Mas, por mim, tudo
bem. Não me importo de modo algum. É melhor ser uma caixa de fósforos de qualidade
do que um fósforo de segunda classe. Creio que isto se tornou claro na minha
mente quando comecei a ensinar esta rapariga. Ensinara já mais crianças quando
era mais nova, estritamente como uma actividade paralela, sem nunca tomar
consciência desta minha faceta. Somente quando comecei a ensiná-la é que comecei
a encarar-me desse modo. Ei, tenho jeito para ensinar as pessoas. E as aulas
corriam bem. Tal como te disse ontem, a rapariga não revelava nada de especial
no respeitante à técnica e estava fora de questão tornar-se numa executante
profissional; por conseguinte, ensiná-la não se revelaria uma grande
responsabilidade. Além do facto de que ela frequentava o tipo de escola para
raparigas onde qualquer aluna com classificações medianamente decentes
ingressaria automaticamente na universidade; isso significava que não precisava
de matar-se a estudar e a sua mãe também era da opinião de que as aulas de
piano não deveriam ser muito exigentes. Consequentemente, nunca a forcei a
nada. Assim que a conheci, soube de imediato que era o tipo de rapariga que
nunca poderia ser forçada, era o tipo de criança que se mostraria sempre
completamente doce e que diria «Sim, sim» e se recusaria absolutamente a fazer
tudo aquilo que não fosse de encontro aos seus desejos. A primeira coisa que
fiz, foi deixá-la executar uma peça à sua maneira: cem por cento à maneira
dela. Depois, eu própria executava para ela essa mesma peça, de várias maneiras
diferentes, e ambas discutíamos qual fora a melhor execução ou aquela que ela
apreciara mais. Depois dava-lhe a mesma peça e a execução dela revelava-se
então dez vezes melhor do que a primeira. Ela própria verificava assim o que
resultava melhor e inseria essas modulações na sua execução.
Calou-se por instantes enquanto observava a ponta cintilante do cigarro. Eu
continuava a saborear uvas sem proferir palavra.
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- Tenho consciência de que possuo bom ouvido para a música, mas ela era melhor
do que eu. Eu pensava que era um grande desperdício! Pensava: «Se ela tivesse
pelo menos começado com um bom professor e tivesse recebido o treino adequado,
estaria agora muito mais desenvolta!». Mas estava errada. Ela não era o tipo
de criança que toleraria um treino apropriado. Acontece que há pessoas assim.
São abençoadas com um talento maravilhoso, mas não são capazes do esforço para
o sistematizarem. Acabam por o desperdiçar em pequenos nadas. Eu própria conheci
pessoas que agiam assim. De início, pensamos que elas são assombrosas. Conseguem
decifrar uma peça incrivelmente difícil e executam-na de um modo quase perfeito,
do início ao fim. Vemo-las a executar a peça e sentimo-nos avassalados. E pensamos:
«Eu nunca conseguiria fazer o mesmo, nem num milhão de anos». Mas não são capazes
de mais. Não conseguem ultrapassar esse limiar. E por que razão não conseguem?
Porque são incapazes do esforço. Ninguém conseguiu incutir-lhes a disciplina
necessária. Foram mimados. Possuem apenas o talento necessário para executarem
bem sem qualquer esforço especial e conseguiram que as pessoas as elogiassem
desde cedo; por conseguinte, qualquer empenho lhes parece estúpido. Limitam-se
a pegar numa peça que qualquer outra criança teria que aperfeiçoar durante
três semanas e conseguem tocá-la com esmero em metade do tempo; o professor
presume que se esforçaram o necessário e permite-lhes avançar para a etapa
seguinte. Essas crianças conseguem isso em metade do tempo e avançam então
para a próxima peça. Nunca chegam a conhecer o que significa ser repreendido
pelo professor e ficam assim desprovidas de um elemento crucial e necessário
para o desenvolvimento da sua personalidade. É uma tragédia. Eu própria revelara
essas tendências, mas, felizmente, tive um professor bastante rigoroso e consegui
controlar-me. Em todo o caso, ensiná-la era uma alegria. Era como conduzir
ao longo da auto-estrada num potente carro desportivo que reage ao mais ínfimo
toque e que por vezes reage demasiado rapidamente. O truque em ensinar tais
crianças consiste em não as elogiar em excesso. Estão tão acostumadas ao elogio
que isso deixa de ter sentido para elas. Temos que os dosear com sensatez.
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Não se pode forçar essas crianças a nada. Temos que as deixar escolher por
si próprias. E não devemos deixá-las precipitarem-se de uma coisa para a seguinte:
temos que as fazer parar e pensar. E resume-se a isso. Se fizermos essas coisas,
obtemos bons resultados.
Lançou a ponta do cigarro ao chão e calcou-a. Depois inspirou profundamente
como se tentasse acalmar-se.
- Quando as lições terminavam, tomávamos chá e conversávamos. Por vezes
demonstrava-lhe certos estilos de piano jazzístico: por exemplo, isto é Bud
Powell ou Thelonious Monk. Mas conversávamos sobretudo. E que conversadora
ela era! Conseguia encantar-me de imediato. Tal como te disse ontem, creio
que quase tudo o que ela dizia era inventado, mas era interessante. Era uma
observadora astuta, usava a linguagem com precisão, tinha uma língua afiada
e era divertida. Conseguia despertar-me emoções. Sim, ela era de facto exímia
em despertar emoções nas pessoas, em nos comover. E ela sabia que possuía esse
poder. Tentava usá-lo o mais hábil e eficazmente possível. Era capaz de nos
fazer sentir o que desejasse: fúria, tristeza, compaixão, desilusão ou felicidade.
Manipulava as emoções das pessoas somente para testar os seus próprios poderes.
Naturalmente, só me apercebi disto mais tarde. Nessa altura, não me apercebia
do que ela estava a fazer-me.
Abanou a cabeça e comeu algumas uvas.
- Era uma doença - prosseguiu. - A rapariga era doentia. Era como a maçã podre
que estraga todas as outras maçãs. E ninguém conseguia curá-la. Continuaria
a sofrer dessa doença até morrer. Nesse sentido, era uma pequena criatura triste.
Eu própria ter-me-ia compadecido dela se não tivesse sido uma das suas vítimas.
E eu própria a teria visto a ela como uma vítima.
Comeu mais algumas uvas. Parecia pensar na melhor maneira de continuar com
o seu relato.
- Bem, em todo o caso, gostei de a ensinar durante seis meses. Por vezes,
surpreendia-me um pouco ou ficava perplexa com o que ela dizia. Outras vezes,
enquanto ela falava, sentia uma onda de horror ao aperceber-me de que a intensidade
do seu ódio por alguém era completamente irracional,
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quase o dobro do tamanho dos meus. E não usava um soutien de menina mas um
modelo para mulheres adultas, um modelo caro. Evidentemente, na altura não
prestei grande atenção a esses pormenores e, como uma idiota, continuei a
massajar-lhe as costas. Ela continuava a desculpar-se numa vozinha esmorecida
como se lamentasse aquela situação e eu continuava a tranquilizá-la.
Varreu com a mão a cinza do cigarro para o chão. Eu parara de comer uvas e
estava completamente concentrado na história dela.
- Pouco depois, começou a chorar. «Que se passa?», perguntei-lhe. «Nada»,
respondeu. «Alguma coisa deve passar-se», disse-lhe. «Diz-me a verdade. O que
te preocupa?». Respondeu-me então: «Às vezes sinto-me assim e não sei o que
fazer. Sinto-me tão sozinha e triste e não consigo falar com ninguém, e ninguém
se preocupa comigo. E isso magoa-me tanto que fico assim. Não consigo dormir
à noite, não me apetece comer, e vir aqui às aulas é a única coisa por que
anseio». Disse-lhe: «Podes falar comigo. Conta-me por que razão isso te acontece».
Contou-me que as coisas não corriam bem em casa, que não conseguia amar os
pais e que estes não a amavam. Que o pai tinha outra mulher e quase nunca estava
presente, e que isso quase enlouquecia a mãe, que depois se vingava na filha:
batia-lhe quase todos os dias e era por isso que odiava voltar para casa. Nesse
momento começou a lamentar-se de verdade e os seus olhos, aqueles seus olhos
encantadores, estavam cheios de lágrimas. Uma visão suficiente para fazer um
deus chorar. Disse-lhe então que, se era assim tão terrível voltar para casa,
poderia vir a minha casa sempre que o desejasse. Ao ouvir isso, lançou os braços
ao meu pescoço e disse: «Oh, lamento tanto, mas se eu não te tivesse a ti,
não saberia o que fazer. Por favor, não me abandones. Se o fizeres, não tenho
para onde ir». Não sei como, deixo-a encostar a cabeça ao meu peito, começo
a afagá-la e a dizer «Pronto, pronto», ela abraça-se a mim e acaricia-me as
costas, começo a sentir-me muito estranha, a sentir um calor por todo o corpo.
Imagine-se, ali estava aquela rapariga, bela como uma estampa, e ambas em cima
da cama, a abraçarmo-nos, e as mãos dela acariciam-me as costas de um modo
tão incrivelmente sensual que nem o meu próprio marido alguma vez conseguira
igualar;
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sinto todo o meu corpo a libertar-se quando ela me toca e de repente despe-me
a blusa e o soutien para me afagar os seios. É então que me apercebo de que
ela é uma absoluta e irremissível lésbica. Essa situação já me acontecera
anteriormente, na escola, com uma das raparigas no primeiro ano do secundário.
Digo-lhe então para parar. «Oh, por favor», diz ela, «só mais um pouco. Sinto-me
tão sozinha, tão sozinha, por favor, acredita em mim, és a única pessoa que
me resta, oh, por favor, não me abandones». Pega na minha mão e coloca-a sobre
o seu seio, o seu seio tão encantadoramente torneado e, apesar de eu ser mulher,
sinto algo eléctrico a percorrer-me quando a minha mão a toca. Não sei o que
fazer. Continuo a repetir não, não, não, não, não, como uma idiota. Não consigo
mover-me, era como se estivesse paralisada. Conseguira afastar a outra rapariga
na escola, mas agora não conseguia reagir. O meu corpo não obedecia às minhas
ordens. Ela continua a agarrar na minha mão direita contra o seio esquerdo,
beija-me e lambe-me os mamilos enquanto a sua mão direita me acaricia as costas,
o flanco, as nádegas. E ali estava eu, no quarto, com as cortinas fechadas,
com uma rapariga de treze anos que praticamente me despiu e me percorria o
corpo e eu contorcia-me de prazer. Agora que recordo isso, parece-me incrível.
Quer dizer, é insano, não achas? Mas, nessa altura, era como se ela me tivesse
lançado um feitiço.
Calou-se para fumar um pouco mais.
- Sabes, é a primeira vez que conto isto a um homem - declarou, olhando para
mim. - Conto-te isto porque achei que deveria fazê-lo, mas sinto-me
verdadeiramente envergonhada.
- Lamento - disse-lhe, porque não sabia que mais poderia dizer.
- Isto prolongou-se durante alguns instantes, depois começou a descer a mão
direita, afagou-me através das cuecas. Eu estava já absolutamente húmida. Tenho
vergonha de o dizer, mas nunca me senti tão húmida, nem antes nem depois dessa
ocasião. Sempre me encarara como alguém indiferente ao sexo e, portanto, estava
assombrada por me sentir tão excitada. Depois enfiou os dedos esguios e suaves
dentro das minhas cuecas e... bem, tu sabes, não me sinto capaz de o expressar
por palavras. Quer dizer, era completamente diferente de quando um homem coloca
desajeitadamente as mãos nessa nossa zona íntima.
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Será o nosso pequeno segredo». Todavia, saí da cama, vesti a camisa de noite
e disse-lhe para nunca mais voltar. Ela limitou-se a olhar para mim. Com um
olhar absolutamente neutro. Nunca vira essa expressão nos olhos dela. Era como
se os seus olhos tivessem sido pintados em cartolina. Não tinham qualquer
profundidade. Continuou a olhar-me assim durante momentos, depois começou a
recolher a roupa em silêncio e vestiu uma a uma as peças de roupa, o mais lentamente
possível, como se aquilo fosse um espectáculo. Depois foi à sala buscar uma
escova que trazia no saco, escovou o cabelo, limpou o sangue dos lábios com
o lenço, calçou os sapatos e partiu. Quando saía, disse-me: «És lésbica, sabes.
É a verdade. Podes tentar escondê-lo, mas serás lésbica até ao fim da tua vida».
- Isso é verdade? - perguntei.
A Reiko franziu os lábios e reflectiu por momentos. - Bem, é e não é. Com efeito,
senti-me de facto melhor com ela do que com o meu marido. É um facto. Mas essa
questão atormentava-me. Talvez fosse realmente lésbica e nunca me tivesse
apercebido até então. Mas hoje já não penso assim. O que não significa que
não tenha tendências. Provavelmente tenho-as, de facto. No entanto, não sou
uma lésbica no sentido próprio da palavra. Nunca sinto desejo quando olho para
uma mulher. Percebes o que quero dizer? Anuí com a cabeça.
- Todavia, algumas raparigas reagem à minha pessoa e sinto algo quando isso
acontece. São as únicas vezes em que me apercebo dessas minhas tendências.
Mas quando abraço a Naoko, não sinto nada de especial. Andamos praticamente
nuas em casa quando o tempo está quente, tomamos banho juntas e por vezes até
dormimos na mesma cama, mas não acontece nada. Não sinto absolutamente nada.
Sei que ela tem um corpo encantador, mas não passa disso. Na verdade, eu e
a Naoko chegámos a fazer uma brincadeira, fingimos que éramos lésbicas. Queres
que te conte?
- Claro. Conta-me.
- Como sabes, contamos tudo uma à outra e, quando lhe contei a história que
acabei de te contar, a Naoko quis fazer uma experiência. Ambas nos despimos
e tentou acariciar-me, mas não resultou. Sentíamos apenas cócegas. Pensei que
ia morrer de riso.
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Só de me lembrar, até parece que ainda sinto as cócegas. Ela era tão desajeitada!
Aposto que estás feliz por saber isto.
- Sim, para dizer a verdade, estou feliz.
- Bem, em todo o caso, não passou disso - concluiu a Reiko, coçando a pele
junto da sobrancelha com a ponta do dedo mindinho. - Depois de a rapariga sair
de minha casa, sentei-me numa cadeira enquanto me esvaziava por completo e
pensava no que fazer. Sentia o abafado latejar do coração no meu corpo. Os
meus membros pareciam pesar uma tonelada e sentia a boca como se tivesse engolido
uma traça ou algo do género. Sentia-a tão seca. Consegui arrastar-me para o
quarto de banho, pois a minha filha em breve regressaria a casa. Queria lavar-me
nas zonas em que a rapariga me tocara e lambera. Esfreguei-me com sabão, uma
e outra vez, mas parecia que não conseguia libertar-me da imunda sensação que
ela deixara em mim. Eu sei que provavelmente era imaginação minha, mas isso
não me confortava. Nessa noite, pedi ao meu marido que fizesse amor comigo,
quase como um modo de me libertar daquela mácula. Não lhe contei nada, obviamente...
não fui capaz. Disse-lhe somente que queria que ele o fizesse lentamente, que
se demorasse mais do que o habitual. E ele assim o fez. Concentrou-se em cada
pequeno pormenor e demorou imenso tempo; quando me vim nessa noite, oh, sim,
não se assemelhava a nada que sentira antes em toda a nossa vida de casados.
E por que razão achas tu que assim era? Porque o toque dos dedos daquela rapariga
continuava dentro do meu corpo. Era essa a razão. Oh, que embaraçoso isto é!
Vê só, estou a suar! Nem acredito que estou a contar estas coisas: que ele
«fez amor comigo», que eu «me vim»! - Sorriu e os seus lábios franziram-se
de novo. - Mas nem isto ajudou. Passaram-se dois dias, três dias, e o toque
dela continuava em mim. E as suas últimas palavras ecoavam continuamente na
minha cabeça. Não veio a minha casa no sábado seguinte. Senti o coração a latejar
com força durante todo o dia enquanto esperava e me interrogava como reagiria
se ela comparecesse. Não conseguia concentrar-me em nada. No entanto, ela não
veio. Obviamente. Ela era orgulhosa e sabia que me desiludira. Também não
compareceu na semana seguinte, nem na outra, e assim se passou um mês. Achei
que, com o decorrer do tempo, esqueceria o que acontecera,
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mas não conseguia esquecer. Quando ficava sozinha em casa, sentia a presença
dela e ficava com os nervos em franja. Não conseguia tocar piano, não conseguia
pensar nem fazer nada durante aquele primeiro mês. Até que um dia me apercebi
de que havia algo de errado sempre que saía de casa. Os vizinhos olhavam-me
de um modo estranho, havia uma nova distância nos seus olhares. Os seus
cumprimentos eram educados como sempre, mas havia algo de diferente no seu
tom de voz e comportamento para comigo. A vizinha do lado, que costumava visitar-me
ocasionalmente, parecia evitar-me. Tentei que estas coisas não me incomodassem.
Mas quando comecei a aperceber-me dessas coisas, os primeiros sinais da doença
regressaram. Um dia recebi a visita de uma amiga, filha de uma amiga da minha
mãe. Éramos da mesma idade e a sua filha andava no mesmo jardim de infância
da minha filha; éramos, portanto, íntimas. Visitou-me naquele dia e perguntou-me
se estava a par de um horrível rumor que circulava a meu respeito. «Que tipo
de rumor?», perguntei-lhe. «Quase nem consigo dizer-te, é tão horrível», disse
ela. «Bem, agora que começaste, tens que contar o resto». Ela mostrava-se
relutante em me contar, mas acedeu por fim. A única razão da sua visita fora
para me contar o que ouvira e, obviamente, iria acabar por me contar. Segundo
ela, as pessoas diziam que eu era uma lésbica inveterada e que fora internada
em hospícios por essa razão. Diziam que eu arrancara a roupa à minha aluna
de piano, que tentara fazer-lhe coisas e que ela me resistira ao ponto de eu
a esbofetear com força e lhe deixar o rosto marcado. Tinham, naturalmente,
virado a história ao contrário, e esse facto era já por si bastante grave,
mas o que realmente me chocava era que as pessoas soubessem que eu estivera
hospitalizada. A minha amiga disse que contava a toda a gente que já me conhecia
há muito tempo e que eu não era desse género, mas os pais da rapariga acreditavam
na versão da filha e andavam a espalhar a história pela vizinhança. Além do
mais, tinham investigado o meu passado e descobriram que eu possuía já um historial
de distúrbios mentais. Segundo o que a minha amiga ouvira, a rapariga regressara
a casa nesse dia depois da aula de piano, nesse mesmo dia, obviamente, com
o rosto completamente inchado, os lábios rachados e ensanguentados,
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com botões arrancados da blusa e até com a roupa interior rasgada. Dá para
acreditar? Ela fizera tudo aquilo para corroborar a sua versão, evidentemente,
uma versão que a sua mãe teve que lhe arrancar. Consigo imaginá-la perfeitamente
a fazer isso: a manchar a blusa de sangue, a arrancar botões, a arrancar a
renda do soutien, a obrigar-se a chorar até ficar com os olhos vermelhos, a
desgrenhar o cabelo, a contar à mãe uma data de mentiras. Não estou a censurar
as pessoas por acreditarem nela. Eu própria teria acreditado também nessa
bonequinha encantadora e de língua afiada. Chega a casa a chorar, recusa-se
a falar porque é demasiado embaraçoso, mas depois conta tudo. Claro que as
pessoas vão acreditar nela. E o pior é que é verdade, pois eu possuía realmente
um historial de internamento por distúrbios mentais e esbofeteara-a realmente
com toda a minha força. Quem iria, pois, acreditar em mim?. Provavelmente,
apenas o meu marido. Decorreram mais alguns dias enquanto me debatia com a
questão de contar ou não ao meu marido, mas, quando acabei por o fazer, ele
acreditou em mim. Naturalmente. Contei-lhe tudo o que acontecera naquele dia:
o tipo de coisas lésbicas que ela me fizera, o facto de a ter esbofeteado.
Claro que não lhe contei aquilo que sentira. Não podia contar-lhe isso. De
qualquer modo, ele ficou furioso e insistia em falar de imediato com a família
da rapariga. Disse-me: «És uma mulher casada, afinal de contas. Estás casada
comigo. E és mãe. É impossível seres uma lésbica. Só pode ser uma piada!».
Mas não o deixei intervir, pois só agravaria as coisas. Eu sabia que ela era
doentia. Vira já centenas de pessoas doentes e sabia. Aquela rapariga estava
podre por dentro. Bastava retirar-lhe uma das camadas daquela pele encantadora
e descobrir-se-ia apenas carne podre. Eu sei que é terrível dizer isto, mas
era a verdade. E tinha consciência de que as pessoas normais nunca saberiam
a verdade acerca dela, que não havia maneira de vencermos. Ela era exímia em
manipular as emoções dos adultos e não dispúnhamos de nada para provar o nosso
caso. Antes do mais, quem iria acreditar que uma rapariga de treze anos montara
uma cilada a uma mulher de trinta e um anos? Por mais que disséssemos, as pessoas
acreditariam somente no que as suas mentes lhes ditassem. Quanto mais lutássemos,
mais vulneráveis ficaríamos.
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Havia apenas uma opção possível, disse eu ao meu marido: tínhamos que ir morar
para outro local. Se eu continuasse naquele bairro, o stresse aniquilar-me-ia
e a minha mente ruiria de novo. Já estava a acontecer, aliás. Tínhamos que
sair dali e ir para longe, onde ninguém me conhecesse. Mas o meu marido não
estava preparado para se mudar. Ainda não se apercebera da gravidade do meu
estado. E a ocasião era verdadeiramente inoportuna, pois ele adorava o seu
emprego, conseguira finalmente instalar-nos numa casa própria (vivíamos numa
pequena casa pré-fabricada) e a nossa filha acostumara-se ao jardim de infância.
«Calma», disse-me ele, «não podemos simplesmente pegar nas coisas e partir.
Não consigo arranjar outro emprego tão facilmente. Teríamos que vender a casa
e matricular a menina noutro jardim de infância. Tudo isso demoraria pelo menos
dois meses». Disse-lhe: «Não consigo esperar dois meses. Isto vai acabar por
me aniquilar de uma vez por todas. Estou a falar a sério. Acredita em mim,
sei do que estou a falar». Os sintomas começavam já a manifestar-se: sentia
um zumbido nos ouvidos, ouvia coisas e não conseguia dormir. Ele sugeriu então
que eu partisse primeiro sozinha e que depois se juntaria a mim após ter tratado
de tudo. «Não», disse-lhe», «não quero ir sozinha. Sucumbiria sem ti ao meu
lado. Preciso de ti. Por favor, não me deixes sozinha». Abraçou-me e suplicou-me
que esperasse um pouco mais, apenas um mês, dizia-me, que iria tratar de tudo:
abandonar o emprego, vender a casa, tratar da questão do jardim de infância,
arranjar outro emprego. Havia um posto que poderia ocupar na Austrália, disse-me,
pretendia apenas que eu aguardasse um mês e que tudo se resolveria. Que poderia
eu responder-lhe? Se tentasse objectar, isso isolar-me-ia ainda mais. Suspirou
e olhou para a luz no tecto. - Mas eu não conseguiria aguentar mais um mês.
E certo dia aconteceu de novo.- zás! E dessa vez foi realmente grave. Tomei
comprimidos e liguei o gás. Acordei num hospital e tudo se desmoronara. Decorreram
meses até acalmar o suficiente para conseguir pensar. Pedi o divórcio ao meu
marido, disse-lhe que era o melhor para ele e para a nossa filha. Respondeu
que não pretendia divorciar-se de mim. «Podemos recomeçar tudo», dizia ele.
«Podemos ir para outro local,
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Chovia ainda na manhã seguinte - uma delicada e quase invisível chuva outonal,
diferente do aguaceiro da noite anterior. Apercebia-me de que chovia somente
por causa das ondulações nas poças de água e do som nas goteiras. Ao despertar,
uma neblina branca e leitosa pairava no exterior da janela, mas, assim que
o sol se levantou, a brisa dispersou-a e os bosques e colinas circundantes
começaram a surgir.
À semelhança do que fizéramos no dia anterior, tomámos o pequeno-almoço e depois
ocupámo-nos com o galinheiro. A Naoko e a Reiko envergavam capas de chuva de
plástico amarelo com capuzes. Eu vesti uma camisola e um impermeável. O ar
estava húmido e frio. As próprias aves evitavam a chuva e amontoavam-se no
fundo do galinheiro.
- Aqui fica frio quando chove, não fica? - perguntei à Reiko.
- Agora, sempre que chover, ficará um pouco mais frio, até a neve começar a
cair. As nuvens oriundas do Mar do Japão libertam toneladas de neve quando
passam aqui.
- O que fazem às aves durante o Inverno?
- Abrigamo-las, obviamente. Que outra coisa poderíamos fazer: desenterrá-las
todas congeladas da neve com a chegada da primavera? Descongelávamo-las,
trazíamo-las de volta à vida e gritávamos: Muito bem, está na hora da ração!
Abanei a rede de metal e o papagaio agitou as asas e palrou «Desmiolado!»,
«Obrigado!», «Louco!».
- Ora bem, esse bicho não me importava eu de congelar -anunciou a Naoko com
uma expressão melancólica. - Vou acabar por enlouquecer se tiver que ouvir
isto todas as manhãs. Depois de limparem o galinheiro, regressámos a casa.
Enquanto arrumava as minhas coisas na mochila, ambas vestiram as roupas de
trabalho. Saímos juntos e despedimo-nos junto ao campo de ténis. Enveredaram
pela direita e eu prossegui directamente em frente. Bradámos adeus uns aos
outros e prometi-lhes que viria visitá-las de novo. A Naoko ofereceu-me um
ténue sorriso e desapareceu ao contornar uma esquina. Enquanto me dirigia para
o portão, passei por várias pessoas, todas elas envergando as mesmas capas
de chuva amarelas que a Naoko e a Reiko usavam, e todas elas haviam baixado
os capuzes. As cores cintilavam com uma excepcional claridade sob a chuva:
o solo era de um negro carregado, a ramagem dos pinheiros de um verde brilhante,
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Tomei conta da loja desde as 18:00 até às 22:30 e vendi alguns discos, mas
limitava-me sobretudo a permanecer sentado e um pouco estonteado, a observar
uma incrível variedade de pessoas a passarem vertiginosamente no exterior:
famílias, casais, bêbados, mafiosos, raparigas de aspecto jovial e de saias
curtas, hippies barbudos, empregadas de bar e alguns tipos indefiníveis. Sempre
que punha a tocar um disco de hard rock, os hippies e os miúdos da rua agrupavam-se
no exterior a dançar e a snifar diluente, ou sentavam-se no chão a passarem
o tempo; quando pus a tocar um disco de Tony Benett, desapareceram. A loja
do lado pertencia a um homem de meia-idade e de olhos sonolentos que vendia
«brinquedos para adultos». Não conseguia imaginar como poderia alguém
interessar-se pelo género de parafernália sexual que ele vendia, mas parecia
ser um negócio bastante próspero. Vi um estudante embriagado a vomitar na viela
em frente. No salão de jogos do outro lado da rua, o cozinheiro de um restaurante
local ocupava a sua pausa com um jogo de bingo que envolvia apostas em dinheiro.
Um sem-abrigo de pele trigueira acocorava-se imóvel por baixo das goteiras
de uma loja que fechara já. Uma rapariga com os lábios pintados de rosa-pálido
e que não teria mais de doze ou treze anos, entrou na loja e pediu-me para
pôr a tocar o tema Jumpin Jack Flash dos Rolling Stones. Quando encontrei o
disco e o pus a tocar, começou a estalar os dedos a acompanhar o ritmo e a
abanar as ancas enquanto dançava dentro da loja Depois pediu-me um cigarro.
Ofereci-lhe um dos cigarros do gerente da loja; fumou com óbvio prazer e, quando
o disco acabou de tocar, saiu da loja sem sequer proferir um «obrigado».
Sensivelmente de quinze em quinze minutos, ouvia a sirene de uma ambulância
ou de um carro da polícia. Três executivos embriagados, envergando fato e gravata,
passaram pela loja e riam estrondosamente sempre que bradavam «Belo rabo!»
na direcção de uma bonita rapariga de cabelo comprido que telefonava de uma
cabina.
Quanto mais observava, mais confuso me sentia. Mas que raios era aquilo tudo?,
interroguei-me. Que significado teria aquilo tudo?
O gerente da loja regressou após o jantar e disse-me: - Ei, Watanabe, sabes
uma coisa? Anteontem à noite fui para a cama
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- Bebeu um pouco mais de água, inspirou e examinou o meu rosto durante alguns
momentos. - Ei, que se passa contigo? Tens um olhar alienado. Os teus olhos
estão desatentos.
- Estou bem. Regressei há pouco de uma viagem e sinto-me cansado.
- Parece que viste um fantasma.
- Estou a ver.
- Ei, tens aulas hoje à tarde?
- Alemão e Educação Religiosa.
- Podes faltar?
- A Alemão não. Tenho hoje uma frequência.
- A que horas acaba?
- Às duas.
- Está bem. Queres vir comigo depois à cidade beber uns copos?
- Às duas da tarde?!
- Para variar, por que não? Pareces tão alienado. Vá lá, anda beber uns copos
comigo para ver se animas um pouco. É exactamente o que me apetece fazer: beber
uns copos contigo e animar-me um pouco. Que dizes?
- Está bem - acedi com um suspiro. - Encontro-me contigo às duas no átrio do
departamento de Literatura.
Depois da frequência de Alemão, apanhámos o autocarro para Shinjuku e fomos
a um bar numa cave chamado DUG, situado atrás da Livraria Kinokunyia. Começámos
com duas vodcas tónicas.
- Venho aqui ocasionalmente - declarou ela. - Não nos fazem sentir embaraçados
por estarmos a beber à tarde.
- Costumas beber à tarde?
- Por vezes - respondeu, agitando o gelo no copo. - Às vezes, quando a vida
é demasiado dura, venho aqui tomar uma vodca tónica.
- A vida torna-se demasiado dura?
- Por vezes. Eu própria tenho os meus problemazinhos especiais.
- Por exemplo?
- Por exemplo, família, namorados, menstruação irregular. Coisas desse género.
- Então pede outra bebida.
- É o que vou fazer.
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- Que esperavas tu, ao entrar num dormitório masculino com uma saia tão curta?
Claro que vão olhar.
- Oh, não faz mal. Hoje vesti umas cuecas realmente bonitas, cor-de-rosa, cheias
de rendas e laços.
- Isso piora ainda mais a situação - comentei com um suspiro. Regressei ao
quarto, lavei-me, barbeei-me o mais rapidamente possível, vesti uma camisa
azul com botões no colarinho e calças desportivas cinzentas, de algodão; desci
ao encontro da Midori e apressei-a em direcção ao portão da saída. Sentia um
suor frio no corpo.
- Diz-me, Watanabe - perguntou ela, olhando para os edifícios da residência
académica -, todos estes rapazes se masturbam enquanto o sono não chega?
- Provavelmente.
- E pensam em raparigas quando fazem isso?
- Acho que sim. Duvido que alguém se entretenha a pensar na Bolsa de Valores,
nas conjugações verbais ou no Canal de Suez enquanto se masturba. Não, tenho
a certeza de que quase todos pensam em raparigas.
- No Canal de Suez?
- Por exemplo.
- Então, suponho que pensam em certas raparigas em particular, não é?
- Não achas que deverias perguntar isso ao teu namorado? Por que razão tenho
que ser eu a explicar-te essas coisas num domingo de manhã?
- Era apenas curiosidade - retorquiu. - Além do mais, ele zangar-se-ia se lhe
perguntasse estas coisas. Diria prontamente que as raparigas não deveriam fazer
perguntas dessas.
- Eu diria que é um ponto de vista perfeitamente normal.
- Mas eu quero saber. Trata-se de pura curiosidade. Os rapazes pensam em certas
raparigas em particular quando se masturbam?
Desisti da tentativa de evitar a pergunta. - Bem, eu pelo menos faço-o. Mas
desconheço o que os outros fazem.
- Alguma vez pensaste em mim enquanto o fazias? Diz-me a verdade, não me zangarei
contigo.
- Não, nunca pensei, para te dizer a verdade - respondi com sinceridade.
- Por que não? Não sou suficientemente atraente?
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- Hã-hã.
- Tu detestas que te façam mamadas?
- Não, não detesto.
- Dirias que gostas então?
- Sim, diria que sim. Mas não poderíamos falar disto da próxima vez? Está uma
agradável manhã de domingo e não é minha intenção estragá-la a falar sobre
masturbação e sexo oral. Falemos de outra coisa. O teu namorado estuda na nossa
universidade?
- Não, estuda noutra, evidentemente. Conhecemo-nos na escola durante uma
actividade de um dos clubes. Eu frequentava a escola para raparigas e ele a
dos rapazes, e tu sabes que programavam actividades dessas, concertos mistos
e coisas do género. Começámos a relacionar-nos mais seriamente depois dos exames.
Ei, Watanabe.
- Sim?
- Só tens que o fazer uma vez. Pensa em mim, está bem?
- Está bem, vou tentar, da próxima vez - acedi.
Apanhámos o comboio para Ochanomizu. Quando fizemos o transbordo em Shinjuku,
comprei uma sanduíche na estação para compensar o pequeno-almoço que não tomara.
O café que bebi a acompanhar tinha um sabor a tinta. Os comboios do domingo
de manhã estavam apinhados de casais e famílias em excursão. Um grupo de rapazes
com tacos de beisebol e demais equipamento moviam-se ruidosamente dentro da
carruagem. Várias das raparigas a bordo vestiam saias curtas, mas nenhuma tão
curta quanto a da Midori, que ocasionalmente a puxava para baixo. Alguns homens
olhavam para as suas coxas e esse facto incomodava-me, embora ela não parecesse
importar-se.
- Sabes o que me apetecia fazer agora? - murmurou quando o comboio estava já
em andamento.
- Não faço ideia - respondi. - Mas, por favor, não fales dessas coisas aqui.
Alguém poderia ouvir.
- Que pena. O que eu ia dizer é um pouco selvagem -declarou, com óbvio
desapontamento.
- De qualquer modo, por que razão vamos para Ochanomizu?
- Não faças perguntas, depois verás.
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mas não compreendi absolutamente nada. Aquilo era pior do que o modo conjuntivo.
Desisti após ler três páginas. Compareci à reunião seguinte como uma boa escuteira
e disse que lera o livro, mas que não conseguira compreendê-lo. Começaram a
tratar-me como uma idiota desde essa ocorrência. Afirmavam que eu estava
desprovida de qualquer consciência crítica em relação à luta de classes, que
eu era um aleijão social. Estou a falar a sério. E tudo porque disse que não
conseguia compreender um trecho de um livro. Não achas que foram terríveis?
- Hã-hã.
- E as suas supostas discussões também eram terríveis. Todos usavam palavras
rebuscadas e fingiam estar a par dos acontecimentos. Mas eu colocava-lhes
questões sempre que não compreendia algo. «O que é isso da exploração imperialista
de que estais a falar? Estará porventura relacionado com a Companhia da índia
Oriental?», «Arrasar o complexo educacional-industrial implica que não devemos
trabalhar para nenhuma empresa após a licenciatura?». Perguntas desse teor.
Mas ninguém se dignava explicar-me o que quer que fosse. Pelo contrário,
mostravam-se verdadeiramente furiosos. Dá para acreditar?
- Sim, acredito - retorqui.
- Um deles gritou-me: «Sua cabra estúpida, como consegues viver sem nada no
cérebro?». Bem, foi a gota de água. Não iria tolerar mais aquilo. Está bem,
eu sei que não sou muito inteligente. Provenho da classe trabalhadora. Mas
é a classe trabalhadora que faz o mundo avançar, e são as classes trabalhadoras
que acabam por ser exploradas. Que tipo de revolução se limita a vociferar
palavras rebuscadas que as classes trabalhadoras não entendem? Que raio de
revolução social merdosa é essa? Quer dizer, também eu gostaria de tornar o
mundo num lugar melhor. Se alguém está a ser realmente explorado, há que pôr
cobro a isso. É nisso que acredito e era por esse motivo que fazia perguntas.
Tenho razão ou não?
- Tens razão.
- Foi então que me apercebi de que aqueles tipos eram uma fraude. Tudo o que
lhes interessava era impressionar as raparigas novas, com as palavras rebuscadas
de que tanto se orgulhavam enquanto lhes enfiavam as mãos pelas saias acima.
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E quando concluem o curso, cortam o cabelo curto e vão a passo de marcha trabalhar
para a Mitsubishi, para a IBM ou para o Banco Fuji. Desposam mulheres bonitas
que nunca leram Marx e têm filhos aos quais dão nomes modernos e catitas que
até nos provocam vómitos. Qual quê arrasar o complexo educacional-industrial?!
Não me façam rir! E os novos membros eram igualmente péssimos. Também não
compreendiam absolutamente nada, mas fingiam que sim e riam-se de mim. No fim
da reunião, diziam: «Não sejas idiota! Que interessa se não compreendes?
Limita-te a concordar com tudo o que eles dizem». Ei, Watanabe, há outras coisas
que me enfureceram ainda mais do que isto. Queres ouvir?
- Sim, por que não?
- Bem, certa vez convocaram uma reunião política que iria prolongar-se pela
noite dentro e pediram a cada uma das raparigas que preparasse vinte bolos
de arroz para uma leve ceia à meia-noite. E eles que tanto condenavam a
discriminação sexual! Dessa vez mantive-me calma, porém, e compareci com os
meus vinte bolos de arroz como uma menina bem-comportada, bolos com recheio
de ameixas salgadas, enroladas em algas. E o que achas que recebi em troca
dos meus esforços? Queixaram-se de que os meus bolos de arroz continham somente
recheio de ameixas e que não trouxera mais nada para acompanhamento! As outras
raparigas haviam recheado os seus bolos com ovas de bacalhau e salmão e tinham
incluído espessas e deliciosas tiras de ovo frito. Senti-me tão furiosa que
não consegui falar! Quem raios pensavam aqueles apregoadores de revoluções
que eram para reclamarem por causa de bolos de arroz? Deveriam ter-se mostrado
agradecidos pelos bolos. Só de pensar que há crianças a morrer à fome na índia!
Ri-me. - Que aconteceu depois?
- Desisti em Junho, estava tão furiosa - afirmou a Midori. - A maior parte
daqueles estudantes eram uma fraude absoluta. Têm um medo de morte que alguém
descubra que são uns ignorantes. Todos lêem os mesmos livros, todos vociferam
os mesmos slogans, adoram ouvir John Coltrane e ver filmes de Pasolini. Chamas
a isso uma «revolução»?
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teria compreendido que os pepinos não eram uma escolha acertada. Quer dizer,
que vai um doente fazer com os pepinos? Soerguer-se na cama a mastigar os pepinos
crus? Ei, papá, queres um pepino?
- Não - respondeu o pai.
A Midori sentou-se à cabeceira da cama enquanto contava ao pai pequenos
acontecimentos do dia-a-dia: a televisão ficara com a imagem distorcida e tivera
que a levar para reparar; a tia de Takaido viria visitá-lo dentro de dias;
o senhor Miyawaki, o farmacêutico, caíra da bicicleta, e coisas do género.
O pai respondia com breves grunhidos.
- De certeza que não te apetece comer nada?
- Não - retorquiu o pai.
- E tu, Watanabe? Apetece-te ananás? -Não.
Minutos depois, a Midori levou-me para a sala de convívio e fumou um cigarro
sentada no sofá. Três pacientes de pijama fumavam também enquanto viam na
televisão um programa de debate político.
- Ei - sussurrou ela com um piscar de olho. - Aquele velho de muletas tem estado
a olhar para as minhas pernas desde que entrei aqui. Aquele de óculos e de
pijama azul.
- Que esperavas tu ao usar uma saia tão curta?
- Não me importo. Aposto que se sentem completamente entediados. Talvez isto
lhes faça bem. Talvez a excitação os ajude a melhorar mais rapidamente.
- Desde que não surta o efeito contrário.
Olhou fixamente para o fumo que se evolava do cigarro.
- Sabes, o meu pai não é má pessoa. Às vezes zango-me com ele porque diz coisas
terríveis, mas, no fundo, é honesto e amava realmente a minha mãe. À sua própria
maneira, viveu a vida com toda a intensidade de que era capaz. Talvez seja
um pouco fraco, não tem de facto cabeça para o negócio e as pessoas não simpatizam
muito com ele, mas, raios, ele é bem melhor do que os intrujões e os mentirosos
que tentam sempre atenuar as coisas porque são tão manhosos. Tenho o mesmo
defeito do meu pai em nunca ceder em relação às minhas convicções e discutimos
frequentemente, mas ele não é de facto má pessoa.
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Tomou-me a mão como se estivesse a pegar em algo que alguém deixara cair ao
chão e colocou-a sobre o regaço. A minha mão tocava simultaneamente na saia
e na coxa. Olhou-me nos olhos durante alguns segundos.
- Lamento ter-te trazido para este lugar - disse -, mas não te importas de
continuar a fazer-me companhia?
- Faço-te companhia durante todo o dia se assim o desejares
- redargui. - Até às cinco horas. Gosto de passar o tempo contigo e não tenho
nada para fazer.
- Como costumas passar os domingos?
- A lavar a roupa. E a passar a ferro.
- Presumo que não queiras conversar acerca dela... da tua namorada.
- Não, acho melhor não. É complicado e acho que não conseguiria explicar bem.
- Está bem. Não precisas de explicar nada. Mas importavas-te se te dissesse
o que imagino que está a acontecer?
- Não me importo, podes dizer. Tudo o que possas imaginar só poderá ser
interessante.
- Suponho que ela é uma mulher casada.
- De verdade?
- Sim, tem trinta e dois ou trinta e três anos, é rica, bela, usa casacos de
pele, sapatos Charles Jourdan, roupa interior de seda, é ávida de sexo e gosta
de fazer coisas verdadeiramente repugnantes. Encontram-se todas as tardes e
devoram-se um ao outro. Mas o marido fica em casa aos domingos e ela não pode
estar contigo. Estou certa?
- Muito, muito interessante.
- Pede-te para a amarrares, para lhe vendares os olhos e que lhe lambas cada
centímetro do corpo. Depois obriga-te a enfiares coisas esquisitas dentro dela,
coloca-se em incríveis posições como uma contorcionista e tu tiras-lhe
fotografias com uma Polaroid.
- Parece divertido.
- Ela morre de desejos por fazer isso e recorre a tudo ao seu alcance para
o conseguir. E pensa nisso todos os dias. Dispõe sempre de tempo livre e está
sempre a planear: Hmm, da próxima vez em que me encontrar com o Watanabe, faremos
isto e aquilo. Deitas-te na cama, ela enlouquece,
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tenta todas aquelas posições e atinge três vezes o orgasmo em cada uma delas.
E diz-te: «Não achas o meu corpo maravilhoso? As raparigas jovens já não te
satisfazem. As raparigas jovens não te fazem estas coisas, pois não? Ou isto?
É bom, não é? Mas não te venhas já!».
- Andas a ver demasiados filmes pornográficos - comentei com uma gargalhada.
- Achas? De facto, começava a preocupar-me. Mas adoro filmes pornográficos.
Leva-me a ver um da próxima vez, está bem?
- Está bem. Da próxima vez que tiveres disponibilidade.
- A sério? Mal consigo esperar. Gostava de ver um filme verdadeiramente
sadomasoquista, com chicotes, do género em que obrigam a rapariga a urinar
diante de toda a gente. São esses os meus preferidos.
- Está combinado.
- Sabes do que gosto mais nos cinemas que exibem filmes pornográficos?
- Nem me atrevo a adivinhar.
- Sempre que começa uma cena de sexo, ouve-se uma espécie de Gulp! quando toda
a gente engole em seco ao mesmo tempo. Adoro esse Gulp. É realmente delicioso!
Voltámos para o quarto e a Midori tentou entabular de novo conversa com o pai,
que se limitava a emitir um grunhido em resposta ou se mantinha em silêncio.
Cerca das onze horas, a esposa do outro paciente veio mudar-lhe o pijama,
descascar-lhe fruta e prestar-lhe outras amabilidades. Tinha um rosto
arredondado, parecia uma pessoa simpática e começou a conversar com a Midori.
Apareceu uma enfermeira com uma garrafa de soro e conversou um pouco com a
Midori e com a outra mulher. Observei distraidamente o quarto e os cabos de
electricidade no exterior. Pardais empoleiravam-se ocasionalmente nos cabos.
A Midori continuava a falar com ambas as mulheres e dirigia algumas palavras
ao pai enquanto lhe limpava o suor da testa e o ajudava a expectorar para um
lenço. De vez em quando endereçava-me um comentário e verificava o tubo do
soro.
O médico efectuava a ronda às 11:30 e eu e a Midori saímos do quarto para aguardarmos
no corredor. Quando o médico saiu do quarto, a Midori perguntou-lhe sobre o
estado do pai.
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Quem pensam eles que eu sou, um burro a puxar uma carroça? Já têm idade suficiente
para saberem como o mundo realmente funciona. Mas por que razão se mostram
tão estúpidos? É fácil falar da boca para fora, e o que importa é saber se
consegues ou não limpar a merda. Também eu posso sentir-me magoada, sabes.
Posso ficar tão exausta como qualquer outra pessoa. Também posso sentir-me
desalentada ao ponto de sentir vontade de chorar. Experimenta passar pela
situação de ver um bando de médicos a abrirem a cabeça de alguém quando não
há esperança de salvação, a mexerem constantemente dentro da cabeça do paciente,
e de cada vez que o fazem a pessoa piora e enlouquece um pouco mais. Diz-me
se gostavas! E, como se já não bastasse, as tuas poupanças começam a desaparecer.
Não sei se vou conseguir manter-me na universidade durante mais três anos e
meio e, dada a situação, a minha irmã não pode, de modo algum, dar-se ao luxo
de uma cerimónia de casamento.
- Quantas vezes vens cá por semana? - perguntei.
- Geralmente quatro. O hospital clama que oferece cuidados médicos totais e
que as enfermeiras são excelentes, mas estão sempre demasiado atarefadas. É
necessária a presença de um membro da família para assegurar certos cuidados.
A minha irmã encarrega-se da loja e eu tenho os meus estudos. Mesmo assim,
ela consegue vir cá três vezes por semana e eu quatro vezes. Vimos cá sempre
que podemos. Acredita, é um horário completamente preenchido!
- Então, como podes passar tempo comigo se estás tão ocupada?
- Gosto de estar contigo - respondeu enquanto brincava com uma chávena de plástico.
- Sai daqui durante un par de horas e dá um passeio. Eu tomo conta do teu pai
entretanto.
- Porquê?
- Precisas de te afastar disto e descontrair, sem falar com ninguém, somente
para desanuviares a mente.
Ponderou durante alguns segundos e anuiu com a cabeça. - Hmm, talvez tenhas
razão. Mas sabes que cuidados prestar? Sabes cuidar dele?
- Tenho estado a observar. Já percebi o que é preciso fazer. Verificar o tubo
do soro, dar-lhe água,
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como se não bastasse, também é bonita. Tem que a tratar bem. Nunca a abandone.
Nunca encontrará mais ninguém como ela.
- Tratá-la-ei bem - retorqui sem me alongar mais.
- Tenho um filho e uma filha que ainda vivem comigo. Ele tem dezassete, ela
vinte e um, e nenhum dos dois alguma vez pensaria em vir ao hospital. Assim
que as aulas terminam, vão praticar surf, namorar ou o que quer que seja. São
terríveis. Estão sempre a pedir-me dinheiro e depois desaparecem.
Às 13:30, a mulher saiu do hospital para ir fazer compras. Ambos os doentes
dormiam profundamente. A suave claridade da tarde inundava o quarto e sentia
que a qualquer momento poderia dormitar sentado no banco. Um vaso de crisântemos
amarelos e brancos, colocado sobre a mesinha ao lado da janela, relembrava
às pessoas que era Outono. Pairava no ar o aroma adocicado do peixe cozido
que sobrara do almoço. As enfermeiras continuavam a percorrer o corredor de
um lado para o outro e conversavam com vozes claras e agudas. Espreitavam
ocasionalmente para dentro do quarto e ofereciam-me um sorriso ao verificarem
que ambos os pacientes dormiam. Desejei ter algo para ler, mas não vi livros,
revistas ou jornais no quarto, apenas um calendário na parede.
Pensei na Naoko. Pensei nela nua, somente com o gancho no cabelo. Pensei na
curva da sua cintura e na sombra escura da púbis. Por que razão se desnudara
assim para mim? Estaria sonâmbula? Ou não passaria de uma fantasia minha? À
medida que o tempo passava e esse pequeno mundo se dissipava na distância,
começara a sentir uma incerteza crescente sobre os acontecimentos daquela noite.
Quando dizia a mim próprio que eram reais, acreditava niçso; e quando me dizia
que não passavam de uma fantasia, pareciam-me uma fantasia. O corpo da Naoko
e o luar eram demasiado nítidos e pormenorizados para terem sido uma fantasia
e demasiado perfeitos e maravilhosos para terem sido reais.
O pai da Midori despertou repentinamente e começou a tossir, pondo assim fim
aos meus devaneios. Ajudei-o a expectorar para um lenço e limpei-lhe o suor
da testa com uma toalha.
- Quer água? - perguntei-lhe; acenou tenuemente com a cabeça. Segurei na pequena
garrafa de água para ele poder beber aos poucos,
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Hoje não pude fazê-lo, obviamente. Que pena, desperdicei um excelente dia para
lavar a roupa. Mas não faz mal. Amanhã levanto-me cedo e trato disso. Não se
preocupe. Aos domingos não tenho mais nada para fazer. Amanhã de manhã, depois
de lavar a roupa e a pendurar a secar, tenho uma aula às dez horas, a aula
de Artes Dramáticas, que a Midori também frequenta. Estou a fazer um trabalho
sobre Eurípedes. Já ouviu falar de Eurípedes? Era um grego da Antiguidade,
um dos «Três Grandes» da tragédia grega, ao lado de Esquilo e de Sófocles.
Morreu, alegadamente, quando um cão o mordeu na Macedónía, mas ninguém acredita
nessa versão. Esse era o Eurípedes. Aprecio mais o Sófocles, mas creio que
se trata de uma questão de gosto. Não sei, de facto, qual deles é melhor. O
que distingue as suas peças é o modo como as peripécias se complicam ao ponto
de os personagens ficarem encurralados. Percebe o que quero dizer? Aparecem
imensos personagens diferentes, todos possuem as suas próprias razões e desculpas
inseridos em situações específicas e perseguem a sua própria ideia de justiça
ou felicidade. Quer dizer, é basicamente impossível que prevaleça a justiça
de cada um ou que triunfe a felicidade de cada um, e o caos começa então a
imperar. E que acha que acontece a seguir? É simples.- surge um deus no final
e começa a direccionar o trânsito. «Tu vais para ali e tu para aqui, tu juntas-te
a ela e tu manténs-te quieto no teu lugar por enquanto». Tal e qual. Ele é
uma espécie de solucionador e no final tudo se resolve na perfeição. Chamam
a isto deus ex machina. Há quase sempre um deus ex machina em Eurípedes e é
nesse aspecto que a opinião dos críticos se divide. Mas pense só: e se houvesse
um deus ex machina na vida real? Tudo seria bem mais fácil! Se nos sentíssemos
perdidos ou encurralados, um deus descenderia do seu trono e resolveria todos
os nossos problemas. Haverá coisa mais fácil do que isso? De qualquer modo,
as Artes Dramáticas resumem-se a isto. É mais ou menos isto o que estudamos
na universidade.
O pai da Midori mantinha-se calado, mas os seus olhos vazios continuavam fixos
em mim enquanto falei. O seu olhar não me revelava, evidentemente, se compreendia
as minhas palavras.
- Acho melhor calar-me - proferi.
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Sentia-me esfomeado depois de toda aquela conversa. Quase não tomara nada ao
pequeno-almoço e deixara metade da comida no prato ao almoço. Agora lamentava
não ter comido mais ao almoço, mas lamentar-me não iria adiantar nada. Procurei
no armário algo para comer, mas encontrei apenas uma embalagem de algas secas,
rebuçados Vicks para a tosse e molho de soja. O saco de papel continuava ali
com os pepinos e os ananases.
- Vou comer alguns dos pepinos, se não se importar - disse ao pai da Midori,
que não proferiu qualquer resposta. Lavei três pepinos no lavatório e deitei
um pouco de molho de soja num prato. Envolvi um dos pepinos em algas, embebi-o
no molho e engoli-o.
- Mmm, delicioso! - disse ao pai da Midori. - Fresco, simples, com o verdadeiro
aroma da vida. Uns pepinos realmente deliciosos. Um alimento bem mais salutar
do que os quivis.
Após devorar o primeiro pepino, ataquei o seguinte. O quarto ecoava com o ruído
da minha mastigação. Só consegui fazer uma pausa depois de comer o segundo
pepino. Fervi água no bico de gás existente no corredor e preparei chá.
- Quer beber alguma coisa? Água? Sumo? - perguntei ao pai da Midori.
- Pepino - proferiu ele.
- Óptimo - respondi com um sorriso. - Com algas? Anuiu tenuemente com a cabeça.
Elevei a cama de novo.
Depois cortei um pequeno pedaço de pepino, envolvi-o numa tira de algas, fixei
tudo com um palito, embebi-o em molho de soja e depositei-o na sua boca expectante.
Mastigou demoradamente, quase sem alterar a expressão do rosto até engolir
por fim.
- Que tal? Bom, hâ?
- Bom - respondeu.
- É bom quando a comida sabe bem. É quase como uma espécie de prova de que
você continua vivo.
Acabou por comer o pepino inteiro. Quando terminou, quis beber água e dei-lhe
de beber da garrafa. Instantes depois, disse que precisava de urinar; peguei
no urinol que havia debaixo da cama e aproximei-o da ponta do seu pénis. Depois
despejei o urinol e lavei-o. Regressei ao quarto e acabei de beber o meu chá.
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Algo lhes comprime certa parte do cérebro e fá-las dizer todo o tipo de coisas
terríveis. Eu sei que isso deriva da doença, mas, mesmo assim, é doloroso.
Nunca esperaria uma coisa dessas. Ali estava eu, a esfalfar-me ao extremo por
eles, e dizem-me todas aquelas coisas horríveis.
- Eu percebo o que queres dizer. - Recordei-me de repente dos estranhos fragmentos
que o pai dela balbuciara.
- Bilhete? Estação de Ueno? - interrogou-se a Midori. - Estaria a referir-se
a quê?
- E depois disse Porfavor e Midori.
- «Por favor, cuida da Midori»?
- Ou talvez pretenda que adquiras algum bilhete em Ueno. A ordem das quatro
palavras é tão confusa que não se percebe o que ele pretende. A referência
à Estação de Ueno tem algum significado especial para ti?
- Hmm, Estação de Ueno. - Ponderou durante alguns segundos. - A única coisa
que me ocorre foram as duas vezes que fugi de casa: a primeira vez quando tinha
oito anos e a segunda aos dez anos. Em ambas as vezes apanhei um comboio de
Ueno até Fukushima. Comprei os bilhetes com dinheiro que tirei da caixa
registadora. Alguém lá em casa exasperara-me profundamente e agi assim para
me vingar. Uma tia minha morava em Fukushima e, como simpatizava com ela, fui
para casa dela. Foi o meu pai quem me foi buscar. Fez todo aquele percurso
até Fukushima para me ir buscar: cerca de cento e cinquenta quilómetros! Almoçámos
comida pré-embalada durante a viagem de comboio para Ueno e contou-me imensas
coisas enquanto viajávamos, pequenos fragmentos com enormes lacunas entre si.
Por exemplo, acerca do enorme terramoto de 1923, sobre a guerra, ou sobre a
época em que nasci, coisas que ele geralmente nunca referia. Agora que penso
nisso, foram as únicas ocasiões em que eu e o meu pai tivemos algo parecido
a uma boa e prolongada conversa, somente nós os dois. O meu pai encontrava-se
no centro de Tóquio durante um dos maiores terramotos de que há memória e nem
sequer se apercebeu, dá para acreditar?!
- A sério?!
- É verdade! Pedalava ao longo de Koishikawa, com um pequeno atrelado preso
à bicicleta, e não se apercebeu de nada.
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Quando regressou a casa, todas as telhas haviam tombado dos telhados do bairro,
todos nós continuávamos agarrados a suportes sólidos e o solo ainda tremia
sob os nossos pés. Nem assim se apercebeu e, segundo a sua versão da história,
perguntou então: «Mas que raios se passa aqui?». É essa a «recordação mais
grata» que o meu pai tem do Grande Terramoto de Kanto! - concluiu com uma gargalhada.
- Todas as suas histórias dos velhos tempos são assim. Desprovidas de qualquer
drama. Todas um pouco excêntricas. Quando ele me contava essas histórias, ficava
com a sensação de que não acontecera nada de importante no Japão durante os
últimos cinquenta ou sessenta anos. Para ele, a sublevação dos jovens oficiais
de 1936 ou a Guerra do Pacífico não passaram de um «Oh, sim, agora que falas
nisso, creio que aconteceu algo do género». É tão engraçado! Bem, como estava
a dizer, o meu pai contou-me fragmentos dessas histórias enquanto viajávamos
de comboio de Fukushima para Ueno. E no fim ele dizia sempre: «É para tu veres,
Midori, que as coisas são iguais para onde quer que vás». Eu era jovem ainda
e aquelas histórias impressionaram-me.
- Presumo então que a Estação de Ueno seja a tua «recordação mais grata»? -
perguntei-lhe.
- Sim - retorquiu. - Alguma vez fugiste de casa, Watanabe?
- Nunca.
- Por que não?
- Falta de imaginação. Nunca me ocorreu fugir de casa.
- És tão estranho. - exclamou, empertigando a cabeça como se estivesse
verdadeiramente impressionada.
- Provavelmente - redargui.
- Bem, em todo o caso, creio que o meu pai estava a tentar dizer-te que queria
que tomasses conta de mim.
- De verdade?
- De verdade! Tenho percepção para essas coisas. Intuitivamente. E que resposta
lhe deste?
- Bem, não compreendi o que ele estava a dizer e limitei-me a responder está
bem, que não se preocupasse, que eu cuidaria de ti e trataria do bilhete.
- Fizeste essa promessa ao meu pai? Disseste-lhe que irias tomar conta de mim?
- Olhou-me nos olhos com uma expressão absolutamente séria.
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tentei manter a minha promessa de pensar nela enquanto me masturbava, mas não
resultou. Tentei concentrar-me na Naoko, mas nem sequer a imagem da Naoko foi
suficiente dessa vez. Senti-me tão ridículo que desisti. Sorvi uma golada de
whisky, lavei os dentes e deitei-me.
No domingo de manhã escrevi uma carta à Naoko. Contei-lhe sobre o pai da Midori.
Fui visitar ao hospital o pai de uma rapariga que tem uma aula em comum comigo
e comi pepinos. Ele ouviu-me a mastigar, também quis e acabou por comer
ruidosamente um pepino. Contudo, faleceu cinco dias depois. Ainda tenho uma
memória vívida do ruído que ele fazia enquanto mastigava o pepino. As pessoas
deixam atrás de si pequenas e estranhas recordações quando morrem. A carta
continuava:
Penso em ti, na Reiko e na capoeira quando acordo de manhã. Recordo-me dofaisão,
dos pombos, dos papagaios, dos perus e dos coelhos. Recordo-me das capas de
chuva amarelas que tu e a Reiko usavam com os capuzes postos naquela manhã
chuvosa. É bom pensar em ti quando estou aconchegado na cama. É como se estivesses
enroscada ao meu lado, a dormir profundamente. E imagino como seria maravilhoso
se fosse verdade.
Às vezes sinto umas saudades terríveis de ti, mas, no geral, prossigo a vida
com toda a energia de que sou capaz. Tal como tu cuidas todas as manhãs das
aves de capoeira e dos cultivos, também eu alento a minha própria Primavera.
Quando me levanto, faço uma boas trinta e seis flexões, escovo os dentes,
barbeio-me, tomo o pequeno-almoço, visto-me, saio do dormitório e vou para
a universidade, digo a mim próprio: «Pois bem, tenta fazer com que este dia
valha a pena». Nunca me apercebi, mas as pessoas dizem-me que ultimamente falo
bastante com os meus próprios botões. Provavelmente balbucio baixinho enquanto
alento a minha própria Primavera.
É doloroso não poder visitar-te, mas a minha vida em Tóquio seria bem pior
se tu não existisses. O facto de pensar em ti quando acordo de manhã confere-me
a força necessária
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para alentar a minha Primavera e dizer a mim próprio que tenho de fazer com
que o dia valha a pena. Sei que tenho que me esforçar ao máximo aqui, tal como
tu o fazes aí.
No entanto, hoje é domingo, um dia em que deixo de alentar a minha Primavera,
já lavei a roupa e agora estou no meu quarto a escrever-te. Quando terminar
a carta, colo o selo, deito-a na caixa de correio e depois não tenho mais nada
para fazer até o sol se pôr. Também não estudo ao domingo. Durante a semana
aplico-me a estudar na biblioteca durante os intervalos entre as aulas e, por
conseguinte, não tenho nada para fazer ao domingo. As tardes de domingo são
calmas, pacíficas e também solitárias para mim. Leio e ouço música. Às vezes
relembro os vários percursos que empreendíamos durante as nossas caminhadas
de domingo pelos arredores de Tóquio. Consigo visualizar uma imagem bastante
nítida das roupas que vestias em cada uma dessas caminhadas. Lembro-me de todos
os pormenores dessas tardes de domingo.
Diz «Olá"por mim à Reiko. Na verdade, sinto saudades de a ouvir a tocar guitarra
à noite.
Quando terminei a carta, percorri um par de ruas para deitar a carta ao correio
e comprei uma sanduíche de ovo e uma Coca-Cola numa padaria da vizinhança.
Foi esse o meu almoço enquanto permanecia sentado num banco a observar um grupo
de rapazes a jogar beisebol no campo de jogos local. O avanço do Outono conferia
ao céu uma profundidade e um azul mais intenso. Olhei para o céu e avistei
dois rastos de vapor em direcção a oeste, numa perfeita linha paralela como
se fossem dois carris do eléctrico. Uma bola mal batida rolou na minha direcção
e, quando a devolvi, os jovens jogadores agradeceram-me com uma pequena vénia
dos bonés e um bem-educado «Obrigado, senhor». Como era habitual em qualquer
jogo de beisebol para juniores, ocorriam imensos avanços para a primeira base
e para a seguinte sem ocorrer nova batida de bola.
Depois do meio-dia, voltei para o quarto para ler, mas não consegui concentrar-me.
Em vez disso,
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dei por mim a olhar fixamente para o tecto e a pensar na Midori. Perguntei-me
se o pai dela tentara de facto pedir-me que cuidasse dela quando ele morresse,
mas não havia maneira de saber o que pretendera de facto. Provavelmente
confundira-me com alguém. De qualquer modo, falecera numa manhã chuvosa de
sexta-feira e agora era impossível saber a verdade. Na minha imaginação, a
morte encolhera-o e tornara-o mais pequeno ainda; e depois queimaram-no num
forno até ficar reduzido a cinzas. O que deixara ele ao mundo? Uma modesta
livraria num modesto bairro e duas filhas, sendo uma delas bastante estranha.
Que vida vivera ele, afinal? Deitado na cama do hospital, com a cabeça aberta
e o cérebro confuso, em que pensaria quando olhava para mim?
Estes pensamentos sobre o pai da Midori deixaram-me num estado de espírito
lastimoso, de tal modo que recolhi a roupa pendurada no telhado antes de estar
completamente seca. Depois deambulei pelas ruas de Shinjuku para passar o tempo.
As multidões domingueiras proporcionavam-me algum alívio. A Livraria Kinokunyia
encontrava-se tão apinhada quanto um comboio à hora de ponta. Comprei um exemplar
de Luz em Agosto de Faulkner e dirigi-me para o café-jazz mais barulhento que
conhecia para começar a ler o meu novo livro enquanto ouvia Ornette Coleman
e Bud Powell e bebia café quente, espesso e amargo. Às 17:30, fechei o livro,
saí para o exterior e comi uma refeição leve. Quantos domingos - quantas centenas
de domingos semelhantes a este - me esperavam ainda? «Calmos, pacíficos e
solitários», disse a mim próprio em voz alta. Aos domingos, deixo de alentar
a minha Primavera.
241
8.
A meio dessa semana feri inadvertidamente a palma da mão num estilhaço de vidro,
pois não me apercebera de que uma das divisórias de uma das prateleiras dos
discos estava rachada. Nem queria acreditar na quantidade de sangue que jorrou
e tornou o chão completamente vermelho. O gerente da loja pegou em toalhas
e atou-as firmemente em redor do ferimento. Depois telefonou para as urgências.
Era uma pessoa bastante inútil durante a maior parte do tempo, mas dessa vez
actuou com uma eficiência surpreendente. Afortunadamente, o hospital era
próximo; porém, quando lá cheguei, as toalhas estavam empapadas de vermelho
e o sangue que não conseguiam absorver começara as gotejar sobre o alcatrão.
As pessoas afastavam-se denodadamente do meu caminho, como se pensassem que
me tinha ferido numa luta. Não sentia qualquer dor, mas o sangue não parava
de jorrar.
O médico removeu calmamente as toalhas empapadas de sangue, estancou a hemorragia
aplicando-me um torniquete no pulso, desinfectou a ferida e, enquanto a suturava,
disse-me para voltar no dia seguinte. Quando regressei à loja de discos, o
gerente disse-me para ir para casa e informou-me de que não me descontaria
essas horas de trabalho. Apanhei o autocarro para a residência académica e
dirigi-me directamente para o quarto do Nagasawa. Sentia os nervos em franja
devido ao ferimento e desejava falar com alguém, além de que já não estava
com ele há muito tempo.
Encontrei-o no quarto, a beber uma lata de cerveja e a assistir a uma aula
de Espanhol na televisão. - Que raios te aconteceu? - perguntou quando viu
a ligadura. Disse-lhe que me cortara e que não passara de um pequeno incidente.
Ofereceu-me uma cerveja mas recusei.
- Espera um pouco. Isto vai acabar dentro de um minuto -,
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quando achar que já não aguenta mais. Disse-lhe isto desde o início.
Acabou de beber a cerveja e acendeu um cigarro.
- Não há nada na vida que te assuste? - inquiri.
- Ei, não sou um idiota chapado - disse. - Claro que a vida me assusta por
vezes. Mas também não encaro essa premissa como o ponto de partida para tudo
o resto. Vou esforçar-me ao máximo e chegar o mais longe possível. Assumirei
o que quiser e renunciarei ao que não quiser. É assim que pretendo viver a
minha vida e, se as coisas correrem mal, paro e reconsidero as opções. Se pensares
bem, uma sociedade injusta é uma sociedade que nos permite explorar as nossas
capacidades ao máximo.
- A mim soa-me a um modo de vida bastante egocêntrico.
- Talvez, mas não vou limitar-me a olhar para o céu e esperar que a fruta me
caia no regaço. À minha própria maneira, tenho-me esforçado arduamente. Tenho-me
esforçado dez vezes mais do que tu.
- Provavelmente é verdade - concordei.
- Às vezes olho à minha volta e fico agoniado. Por que raios estes cabrões
não fazem nada? Não fazem absolutamente nada, raios, e ainda se queixam!
Olhei fixamente para ele, surpreendido com a aspereza do seu tom. - Na minha
opinião, as pessoas estão a esforçar-se arduamente. Estão a aplicar-se duramente.
Ou estarei a ver as coisas mal?
- Não se trata de trabalho árduo. Não passa de trabalho braçal - proferiu ele
com determinação. - O «trabalho árduo» a que me refiro é mais autodireccionado
e resoluto.
- Por exemplo, estudar espanhol enquanto toda a gente vive uma vida fácil?
- Isso mesmo. Na próxima Primavera já dominarei o espanhol. Já domino
perfeitamente o inglês, o alemão e o francês e estou quase a conseguir o mesmo
com o italiano. Achas que essas coisas se alcançam sem trabalho árduo?
Continuou a fumar enquanto eu pensava no pai da Midori, um homem que provavelmente
nunca pensara em aprender espanhol através da televisão. Possivelmente, também
nunca ponderara na diferença entre trabalho árduo e trabalho braçal.
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Estava talvez demasiado ocupado para pensar nessas coisas: ocupado com o trabalho
e preocupado com trazer de volta para casa a filha que fugira para Fukushíma.
- Bem, em relação ao jantar - disse o Nagasawa. - Este sábado estás livre?
- Pode ser - respondi.
O Nagasawa escolheu um elegante restaurante francês numa rua secundária e calma
de Azabu. Disse o nome à entrada e ambos fomos conduzidos para uma sala privada.
Cerca de quinze gravuras estavam penduradas nas paredes da pequena divisão.
Enquanto aguardávamos a Hatsumi, beberricámos um vinho delicioso e conversámos
acerca dos romances de Joseph Conrad. Ele envergava um fato cinzento de aspecto
dispendioso e eu um vulgar blazer azul.
A Hatsumi chegou quinze minutos depois. Maquilhara-se cuidadosamente e usava
brincos de ouro, um elegante vestido azul-escuro e sapatos vermelhos de salto
alto. Quando a elogiei pela cor do vestido, disse-me que essa cor se chamava
azul meia-noite.
- Que restaurante elegante! - exclamou ela.
- O meu velho come sempre aqui quando vem a Tóquio - declarou o Nagasawa. -
Vim aqui com ele uma vez. Não sou grande apreciador de lugares assim pretensiosos.
- Não custa nada comer num lugar destes uma vez por outra - disse a Hatsumi.
Virou-se para mim e perguntou: -Não concordas?
- Acho que sim. Desde que não seja eu a pagar.
- O meu velho costuma trazer aqui a amante - continuou o Nagasawa. - Tem umaamante
em Tóquio.
- De verdade? - perguntou a Hatsumi.
Bebi um gole de vinho, como se não tivesse ouvido nada.
Um empregado trouxe-nos o menu. Escolhemos os hors doeuvres e a sopa; o Nagasawa
pediu pato e eu e a Hatsumi pedimos perca. A comida ia chegando a um ritmo
pausado, o que nos permitia apreciar o vinho e a conversação. O Nagasawa começou
por falar do exame de admissão ao Ministério dos Negócios Estrangeiros e disse
que a maioria dos examinandos não passavam de pessoas reles que mais valia
serem lançadas num poço sem fundo,
247
embora concordasse que havia pessoas decentes no meio dessa corja. Perguntei-lhe
se a proporção de pessoas decentes em relação às pessoas reles seria maior
ou menor do que na sociedade em geral.
- É a mesma, obviamente - respondeu. Era o mesmo por toda a parte, acrescentou:
era uma lei imutável.
Pediu uma segunda garrafa de vinho e um whisky duplo para si próprio.
A Hatsumi começou a falar de uma rapariga com quem pretendia emparelhar-me.
Tornara-se num tópico habitual entre nós. Estava sempre a falar-me de alguma
«rapariga gira do meu clube» e eu fugia sempre ao assunto.
- Ela é realmente simpática e realmente gira. Trago-a da próxima vez. Deverias
conversar com ela. Tenho a certeza de que simpatizarias com ela.
- Não desperdices o teu tempo, Hatsumi - redargui. - Sou demasiado pobre para
sair com raparigas da tua universidade. Não consigo falar com elas.
- Não sejas tonto - disse. - Esta rapariga é simples, natural e sem afectações.
- Vá lá, Watanabe - disse o Nagasawa. - Aceita encontrar-te com ela. Não é
preciso ires para a cama com ela.
- Nem pensar! - exclamou a Hatsumi. - Ela ainda é virgem.
- Tal como tu eras - disse o Nagasawa.
- Exactamente - retorquiu a Hatsumi com um sorriso radioso. - Tal como eu era.
Mas, de facto - disse-me ela -, não me venhas com essa história de seres «demasiado
pobre». Uma coisa não tem nada a ver com a outra. Obviamente que em cada ano
há algumas raparigas super-empertigadas, mas as outras são raparigas normais.
Todas almoçamos no refeitório da escola por 250 ienes...
- Bem, não é bem assim, Hatsumi - interrompi-a. - Na minha escola há três tipos
de refeições: A, B e C. O Almoço A é a 120 ienes, o Almoço B a 100 e o Almoço
C a 80. Toda a gente me olha de soslaio quando peço o Almoço A, e quem não
pode dar-se ao luxo de um Almoço C, come sopa de massa por 60 ienes. Costumo
ir a um lugar desses. Achas que ainda estou à altura de conversar com raparigas
da tua universidade?
248
A Hatsumi quase não conseguia parar de rir. - É tão barato - disse. - Talvez
eu própria devesse ir almoçar aí! Mas, realmente, Toru, és um tipo formidável,
tenho a certeza de que te darias bem com esta rapariga. E ela talvez aprecie
um almoço de 120 ienes.
- Nem pensar - respondi com uma gargalhada. - Ninguém come comida dessa porque
gosta; comem-na porque não podem dar-se ao luxo de mais nada.
- Em todo o caso, não se deve julgar um livro pela capa. É verdade que frequentamos
um estabelecimento exclusivo, mas muitas de nós somos pessoas sérias, com
pensamentos sérios sobre a vida. Nem toda a gente procura um namorado com um
carro desportivo.
- Eu sei que não - respondi.
- O Watanabe já tem namorada. Está apaixonado - declarou o Nagasawa. - Mas
nunca fala acerca dela. É fechado como um túmulo. Um enigma total.
- De verdade? - perguntou-me a Hatsumi.
- É um facto - retorqui. - Mas não há nenhum enigma envolvido nisto. - É apenas
complicado e de difícil abordagem.
- Um namoro ilícito? Ooh! Podes falar comigo! Beberriquei um pouco mais de
vinho para fugir à pergunta.
- Percebes o que quero dizer? - disse o Nagasawa enquanto bebia o seu terceiro
whisky. - Fechado como um túmulo. Quando este tipo decide que não quer falar
sobre algo, ninguém consegue arrancar-lhe nada.
- Que pena - afirmou a Hatsumi enquanto se servia de um pouco de pâté. - Se
simpatizasses com ela, poderíamos sair todos juntos.
- Sim, podíamos embebedar-nos e trocar de parceira -disse o Nagasawa.
- Já chega desse tipo de conversa - anunciou a Hatsumi.
- O que queres dizer com «esse tipo de conversa»? O Watanabe anda de olho em
ti - proferiu o Nagasawa.
- Isso não tem nada a ver com o que eu estava a dizer -murmurou a Hatsumi.
- Ele não é desse género de pessoas. É sincero e carinhoso. Eu sei. É por essa
razão que tenho tentado arranjar-lhe uma namorada.
- Oh, sim, ele é sincero.
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Como daquela vez em que ambos trocámos de parceiras, há uns tempos atrás.
Lembras-te, Watanabe?
- perguntou ele com uma expressão despreocupada no rosto; depois emborcou o
resto do whisky e pediu outro.
A Hatsumi pousou os talheres e limpou a boca com o guardanapo. Depois olhou
para mim e perguntou: - Toru, fizeram isso de verdade?
Não soube como lhe responder e mantive-me em silêncio.
- Conta-lhe - disse o Nagasawa. - Raios, que importa?
- O ambiente estava a tornar-se crispado. O Nagasawa conseguia ser perverso
quando estava embriagado, mas nessa noite a sua vileza era dirigida à Hatsumi
e não a mim. Ter consciência deste facto dificultava ainda mais a minha permanência
ali.
- Gostava que me falassem disso - disse ela. - Parece muito interessante!
- Estávamos bêbados - comecei por dizer.
- Não faz mal, Toru. Não estou a censurar-te. Quero apenas que me contes o
que aconteceu.
- Estávamos a beber num bar em Shibuya e travámos amizade com duas raparigas.
Frequentavam uma faculdade qualquer e também estavam bastante embriagadas.
De qualquer modo, nós, hâ, fomos para um hotel e dormimos com elas. Os quartos
eram contíguos. O Nagasawa bateu à minha porta a meio da noite e disse que
deveríamos trocar de parceira; por conseguinte, fui para o quarto dele e ele
para o meu.
- Elas não se importaram?
- Não, também estavam bêbadas.
- De qualquer modo, eu tinha uma boa razão para o fazer
- anunciou o Nagasawa.
- Uma boa razão?
- Bem, as raparigas eram bastante diferentes uma da outra. Uma era verdadeiramente
bem-parecida, mas a outra era feia. Achei que era injusto. Eu ficara com a
rapariga bonita e ele teve que se contentar com a outra. Foi por essa razão
que trocámos de parceira. Certo, Watanabe?
- Sim, suponho que sim - retorqui. No entanto, eu simpatizara realmente com
a rapariga feia. Era divertida e afável. Depois de termos relações, conversávamos
animadamente na cama quando o Nagasawa surgiu e sugeriu que trocássemos de
parceira. Perguntei à rapariga se se importava e ela disse que não havia problema
se era isso o que desejávamos.
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mas, por certas razões complicadas, não podem ter sexo. E, sendo assim, ele
diz a si mesmo que «sexo não passa de sexo» e sacia essa necessidade com outra
pessoa. Há algum mal nisso? Faz todo o sentido. Ele não pode ficar fechado
no quarto a masturbar-se a toda a hora, pois não?
- Mas se tu amas realmente, Toru, não achas que conseguirias controlar-te?
- Talvez - respondi enquanto aproximava da boca um bocado de perca envolta
em molho cremoso.
- Tu não compreendes as necessidades sexuais de um homem
- disse o Nagasawa à Hatsumi. - Olha o meu caso, por exemplo. Namoro contigo
há três anos e já dormi com imensas mulheres durante todo este tempo. Mas não
me lembro de um único pormenor acerca delas. Não me lembro dos nomes, não me
lembro dos rostos. Dormi com cada uma delas somente uma única vez. Conheci-as,
fizemo-lo e adeusinho. Não passou disso. O que há de errado nisso?
- Não suporto essa tua arrogância - proferiu ela em voz baixa. - O facto de
dormires ou não com outras mulheres é uma questão secundária. Eu nunca me zanguei
de verdade por andares a dormir com outras, pois não?
- Nem sequer podes chamar a isso dormir com outras. Não passa de um jogo. Ninguém
sai magoado - disse o Nagasawa.
- Eu fico magoada - disse a Hatsumi. - Não sou suficiente para ti?
O Nagasawa manteve-se silente durante alguns momentos enquanto agitava o whisky
no copo. - A questão não é essa. Trata-se de uma outra fase, de uma outra questão.
Trata-se de uma necessidade que sinto dentro de mim. Lamento se te magoei.
Mas não se trata de uma questão de seres ou não suficiente para mim. Resta-me
saber viver com essa necessidade. Sou assim. É isso que faz de mim a pessoa
que eu sou. Não posso fazer nada acerca disso, compreendes-me?
A Hatsumi pegou por fim nos talheres e começou a comer.
- Então, não deverias arrastar o Toru para os teus «jogos».
- Mas eu e o Watanabe somos bastante parecidos - replicou ele. - Nenhum de
nós está essencialmente interessado em mais nada a não ser em nós próprios.
Está bem, concordo que sou arrogante e ele não, mas nenhum de nós consegue
interessar-se pelo que quer que seja
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a não ser por aquilo em que pensamos, sentimos ou fazemos. É por essa razão
que conseguimos pensar nas coisas de um modo completamente distinto das outras
pessoas. É isso que aprecio nele. A única diferença é que ele ainda não se
apercebeu deste facto acerca de si mesmo, hesita e sente-se magoado.
- Haverá algum ser humano que não hesite e não se sinta magoado? - exigiu a
Hatsumi saber. - Estás a tentar dizer que tu próprio nunca sentiste isso?
- Obviamente que sim, mas disciplinei-me ao ponto de conseguir minimizar isso.
Até um rato escolherá a via menos dolorosa se lhe administrarmos choques
eléctricos suficientes.
- Mas os ratos não se apaixonam.
- «Os ratos não se apaixonam». - O Nagasawa olhou para mim. - Que maravilha.
Deveria haver música de fundo neste momento... uma orquestra inteira, com duas
harpas e...
- Não sejas irónico. Estou a falar a sério.
- Estamos a comer - declarou o Nagasawa. - E está aqui o Watanabe. Seria mais
civilizado guardarmos a conversa «séria» para outra ocasião.
- Posso ausentar-me - proferi.
- Não - disse a Hatsumi. - Fica, por favor. É mais agradável com a tua companhia.
- Pelo menos fica até à sobremesa - sugeriu o Nagasawa.
- Posso ausentar-me, de verdade.
Continuámos a comer em silêncio durante algum tempo. Comi o que tinha no prato,
mas a Hatsumi deixara metade. O Nagasawa tragara há muito o pato e estava agora
concentrado no seu whisky.
- A perca estava deliciosa - comentei, mas nenhum deles reagiu. Teria obtido
a mesma reacção se tivesse lançado uma pedra para dentro de um poço profundo.
Os empregados levantaram a mesa e trouxeram gelado de limão e café expresso.
O Nagasawa quase não tocou na sobremesa nem no café, optando de imediato por
fumar um cigarro. A Hatsumi ignorou o gelado. «Que situação», pensei com os
meus botões enquanto acabava de comer o gelado e bebia café. A Hatsumi olhava
fixamente para as mãos apoiadas sobre a mesa. Tal como tudo nela, as mãos tinham
um aspecto elegante e refinado.
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*1. Deanna Durbin: famosa actriz e cantora canadiana do período áureo de Hollywood,
a mais bem remunerada estrela feminina da época até se retirar com a idade
de vinte e oito anos para se dedicar à família e ao marido, o realizador francês
Charles Henri David. (N. do T.)
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- De certo modo - respondi com sinceridade, embora com um sorriso. Ela sorriu
também. Ficava encantadora quando sorria.
- Diz-me outra coisa, Toru. O que pensas do Nagasawa e de mim?
- Como assim? Acerca do quê?
- Acerca do que eu deveria fazer. A partir de hoje.
- O que eu penso não importa - redargui, bebendo um gole de cerveja fresca.
- Não há problema. Diz-me exactamente o que pensas.
- Bem, se estivesse no teu lugar, deixava-o. Tentava encontrar alguém com uma
visão mais normal das coisas e viveria feliz para todo o sempre. Não há, de
modo algum, hipótese de seres feliz com ele. Do modo como ele vive, nunca lhe
ocorre tentar tornar-se feliz ou fazer os outros felizes. Continuar com ele
só servirá para abalar o teu sistema nervoso. Para mim, é um milagre continuares
a relacionar-te com ele há já três anos. Evidentemente que gosto muito dele,
à minha maneira. É divertido e possui muitas e excelentes qualidades. Possui
forças e capacidades que eu nunca conseguiria igualar. No entanto, a sua visão
das coisas e o modo como leva a vida não são normais. Por vezes, quando falo
com ele, sinto como se estivesse a andar em círculos. O mesmo processo que
o leva a ele para níveis cada vez mais altos, deixa-me a mim a dar voltas e
mais voltas. Isso faz-me sentir tão vazio! E, por fim, os nossos próprios sistemas
são completamente diferentes. Percebes o que estou a dizer?
- Percebo - retorquiu enquanto me trazia outra cerveja do frigorífico.
- Além do mais, ele partirá para o estrangeiro depois de ser admitido no Ministério
dos Negócios Estrangeiros e concluir o ano de estágio. Que vais tu fazer durante
todo esse tempo? Esperar por ele? Ele não tem intenção de casar com ninguém.
- Eu também sei disso.
- Não tenho mais nada a dizer.
- Compreendo - disse ela. Enchi lentamente o copo.
- Sabes, ocorreu-me algo quando estávamos a jogar bilhar - afirmei. - Sou filho
único, mas, enquanto crescia, nunca me senti isolado ou desejei ter irmãos
ou irmãs.
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Sentia-me feliz por ser filho único. Todavia, de repente, enquanto jogava bilhar
contigo, senti o desejo de ter tido uma irmã mais velha como tu, verdadeiramente
elegante e uma brasa, de vestido azul meia-noite, brincos de ouro e hábil a
jogar bilhar.
Ofereceu-me um sorriso radiante. - É a coisa mais simpática que já me disseram
este ano. De verdade.
- Tudo o que te desejo - continuei, corando -, é que sejas feliz. Mas é uma
loucura. Pareces alguém que poderia ser feliz com quase qualquer pessoa e,
no entanto, como acabaste por escolher o Nagasawa entre todas as pessoas?
- São coisas que acontecem. E provavelmente pouco podemos fazer para alterar
isso. Será essa certamente a verdade no meu caso. Claro, o Nagasawa diria que
a responsabilidade é minha e não dele.
- Tenho a certeza de que o diria.
- Em todo o caso, Toru, não sou a rapariga mais inteligente do mundo. Sou,
de facto, um pouco idiota e antiquada. Não estou minimamente preocupada com
«sistemas» e «responsabilidades». Tudo o que desejo é casar, ter um homem que
goste de me abraçar todas as noites e ter filhos. Isso é o suficiente para
mim. É tudo o que desejo da vida.
- E o que o Nagasawa deseja da vida não tem nada a ver com isso.
- Contudo, as pessoas mudam, não achas? - perguntou ela.
- Referes-te, por exemplo, à circunstância de se começar a viver em sociedade
e levar um pontapé no traseiro para crescermos?
- Sim. E se ele se mantiver muito tempo longe de mim, os seus sentimentos por
mim poderão mudar, não achas?
- Talvez, se ele fosse uma pessoa normal. Mas ele é diferente. Possui uma vontade
incrivelmente forte, mais forte do que possamos imaginar. E, a cada dia que
passa, torna-se mais forte ainda. Se algo se abater sobre ele, isso só servirá
para o tornar ainda mais determinado. Preferiria engolir lesmas a ter que ceder
perante quem quer que fosse. Que se pode esperar de uma pessoa assim?
- Não posso fazer mais nada a não ser esperar por ele - afirmou, com o queixo
apoiado na mão.
- Ama-lo assim tanto?
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e deixava os olhos vaguear pelo pátio molhado quando a palma da mão direita
começava a latejar do esforço de segurar na caneta. Comecei por contar à Naoko
como acontecera aquele ferimento inesperado na mão direita enquanto trabalhava
na loja de discos e depois escrevi que eu, o Nagasawa e a Hatsumii efectuáramos
uma espécie de celebração na noite anterior pelo facto de o Nagasawa ter passado
no exame de admissão ao Ministério dos Negócios Estrangeiros. Descrevi o
restaurante e a comida, disse que fora um jantar esplêndido, mas que o ambiente
acabara por se tornar tenso.
Interroguei-me se deveria referir que me lembrara do Kizuki enquanto jogava
bilhar com a Hatsumi. Decidi que sim, sentia que era algo que deveria referir.
Ainda me recordo da última tacada do Kizuki nesse dia - no dia em que ele morreu.
Era uma difícil jogada de tabela e nunca esperei que ele conseguisse, Mas a
sorte parecia acompanhá-lo: foi uma tacada absolutamente perfeita e as bolas
branca e vermelha quase não emitiram qualquer som ao roçarem uma pela outra
nessa última jogada que encerraria a partida. Foi uma tacada magnífica, ainda
hoje tenho uma memória vívida disso. Nunca mais toquei num taco durante quase
dois anos e meio depois disso.
Contudo, na noite em que joguei bilhar com a Hatsumi, só me lembrei do Kizuki
quando a primeira partida terminou, e foi um verdadeiro choque para mim. Supusera
sempre que me recordaria do Kizuki de todas as vezes que jogasse bilhar. Mas
só me lembrei dele quando a primeira partida terminou e comecei a beber uma
Pepsi que fora buscar a uma máquina automática. Foi a máquina automática que
me despoletou esse pensamento: também havia uma no salão de bilhares onde
costumávamos jogar e era frequente apostarmos que pagaria as bebidas quem
perdesse.
Senti-me culpado por não me ter lembrado imediatamente do Kizuki; era como
se, de algum modo,
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além de que não conseguia lembrar-me que dia era. Olhei para fora da janela
e reparei que a bandeira não fora hasteada. Provavelmente era de tarde. Por
conseguinte, hastear a bandeira servia de facto para alguma coisa.
- Ei, Watanabe, estás livre agora? - perguntou-me a Midori.
- Não sei, que dia é hoje?
- Sexta-feira.
- De manhã ou de tarde?
- De tarde, obviamente! És tão estranho! Vejamos, são, hã, 18:18. Já era de
tarde, afinal de contas! De facto, deitara-me na
cama a ler e acabara por adormecer. Era sexta-feira. A minha cabeça começou
a desanuviar-se. À sexta-feira à noite não trabalhava na loja de discos. -
Sim, estou livre. Onde estás?
- Na Estação de Ueno. E se nos encontrássemos em Shinjuku? Vou partir agora.
Combinámos a hora e o local e desligámos.
Quando cheguei ao Bar Dug, encontrei a Midori sentada na extremidade do balcão
com uma bebida. Vestia um casaco de homem branco e engelhado, uma fina camisola
amarela, calças de ganga e usava duas pulseiras num dos pulsos.
- O que estás a beber? - perguntei-lhe.
- Um Tom Collins.
Pedi um whisky com soda e reparei então numa enorme mala junto aos pés dela.
- Estive fora. Acabo de regressar - informou-me.
- Onde estiveste?
- Em Nara no sul e em Aomori no norte.
- Durante a mesma viagem?!
- Não sejas idiota. Posso ser uma pessoa estranha, mas não consigo viajar para
norte e para sul em simultâneo. Fui a Nara com o meu namorado e depois viajei
sozinha para Aomori.
Beberriquei o meu whisky com soda e acendi o cigarro à Midori. - Deve ter sido
um período difícil para ti, com o funeral e tudo isso.
- Não, os funerais são situações simples. Já estou acostumada. Visto um quimono
preto, fico ali sentada como uma senhora e as outras pessoas tratam de tudo:
um tio, um vizinho, há sempre alguém. Trazem o saque, encomendam o sushi, dizem
palavras de conforto,
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choram, continuam com as suas vidas e fazem as partilhas. É como uma brisa.
Um piquenique. Comparado com tomar conta de alguém dia após dia, é um verdadeiro
piquenique. Eu e a minha irmã estávamos esgotadas. Nem conseguíamos chorar.
Já não nos restavam lágrimas. De verdade. No entanto, quando alguém age assim,
começam a sussurrar sobre nós: «Aquelas raparigas são verdadeiramente frias».
Mas nós as duas somos assim, nunca choramos. Eu sei que podíamos ter fingido,
mas nunca faríamos uma coisa dessas. Que cabrões! Quanto mais queriam ver-nos
a chorar, mais determinadas estávamos em não lhes dar essa satisfação. Eu e
a minha irmã somos completamente diferentes, mas, numa situação como esta,
estamos em sintonia absoluta. As pulseiras tilintaram no seu pulso enquanto
fazia sinal ao empregado para pedir outro Tom Collins e pistácios.
- Quando o funeral acabou e todos partiram, nós as duas bebemos saque até ao
pôr-do-sol. Emborcámos uma daquelas enormes garrafas de quase dois litros e
ainda metade de uma outra. E durante todo esse tempo dizíamos mal de toda a
gente: aquele era um idiota, aquele outro um asno, um parecia um cão esfomeado
e outro um porco, outro um hipócrita, outro um charlatão. Nem fazes ideia de
como isso nos fez sentir bem!
- Imagino, sim.
- Ficámos completamente embriagadas e fomos dormir, ambas apagámos por completo.
Dormimos durante horas e, se o telefone tocava, limitávamo-nos a deixá-lo tocar.
Estávamos mortas para o mundo. Quando finalmente acordámos, encomendámos sushi
e discutimos acerca do que fazer daí em diante. Decidimos fechar a loja durante
algum tempo e divertirmo-nos. Há meses que andávamos a matar-nos e merecíamos
um descanso. A minha irmã pretendia apenas passear com o namorado durante algum
tempo e eu resolvi empreender uma viagem durante um par de dias e foder como
uma maluca. - Fechou a boca de repente e coçou as orelhas. - Ups, desculpa.
- Não faz mal. Foste então para Nara.
- Sim, sempre gostei desse lugar. Dos templos, do parque dos veados.
- E fodeste como uma maluca?
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- Não, de modo algum. Nem uma única vez - afirmou com um suspiro. - Assim que
entrámos no quarto de hotel e pousámos a bagagem, chegou-me o período. Um
verdadeiro jorro.
Não consegui impedir-me de rir.
- Ei, não tem piada. Veio com uma semana de antecedência! Não consegui refrear
as lágrimas quando isso aconteceu. Creio que todo aquele stresse me abalou.
O meu namorado ficou tão zangado! Ele é assim, fica logo zangado. Mas a culpa
não era minha. Não fui eu que escolhi ter o período naquele momento. Além do
mais, os meus períodos são de facto penosos, porque durante um dia ou dois
não me apetece fazer nada. Tenta manter-te longe de mim nessas ocasiões.
- Assim o farei, mas como vou saber se estás com o período?
- perguntei.
- Bem, usarei um chapéu enquanto estiver com o período. Um chapéu vermelho.
Assim já sabes - sugeriu com uma gargalhada. - Se me vires na rua com um chapéu
vermelho, não fales comigo e foge de imediato.
- Óptimo. Quem me dera que todas as raparigas fizessem o mesmo. Bem, e o que
fizeram em Nara?
- Que mais poderíamos nós fazer? Demos de comer aos veados e passeámos por
toda a parte. Foi realmente entediante! Tivemos uma enorme discussão e não
estamos juntos desde que regressámos. Permaneci cá um par de dias e depois
decidi viajar sozinha. Fui para Aomori. Fiquei em casa de um amigo em Hirosaki
durante as duas primeiras noites e depois comecei a viajar pelas redondezas:
Shimokita, Tappi, por terras dessa zona. São locais agradáveis. Cheguei outrora
a elaborar uma brochura com um mapa dessa área. Alguma vez foste lá?
- Não, nunca.
- De qualquer modo - prosseguiu, beberricando o Tom Collins e comendo pistácios
-, pensei em ti durante todo esse tempo que viajei sozinha. Pensava como teria
sido agradável se me tivesses feito companhia.
- Como assim?
- «Como assim»?! - Olhou para mim com perplexidade.
- O que queres dizer com «Como assim»?!
- Apenas isso. Perguntava apenas por que razão te lembraste de mim.
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- Provavelmente porque gosto de ti, é essa a razão! Por que outra razão pensaria
em ti? Quem se lembraria de querer estar com alguém de quem não gostasse?
- Mas tu tens namorado. Não precisas de pensar em mim. - Beberriquei lentamente
o meu whisky com soda.
- Isso significa que não posso pensar em ti porque já tenho namorado?
- Não, não é isso, eu simplesmente...
- Vê se entendes isto, Watanabe - disse ela, apontando-me o dedo. - Estou a
avisar-te, tenho um mês inteiro de infelicidade acumulada dentro de mim e estou
prestes a explodir. Portanto, tem cuidado com o que me dizes. Dizes-me mais
coisas desse género e ponho-me a chorar como uma madalena. Basta começar a
chorar para se prolongar pela noite inteira. Estás preparado para isso? Sou
como um verdadeiro animal quando começo a chorar, esteja onde estiver! Estou
a falar a sério.
Assenti com a cabeça e mantive-me em silêncio. Pedi uma segunda bebida e comi
mais pistácios. Algures, subjacente ao ruído abafado do shaker eléctrico, do
tilintar dos copos e da máquina do gelo, Sarah Vaughan cantava uma velha canção
de amor fora de moda.
- As coisas entre mim e o meu namorado não têm corrido bem desde o incidente
do tampão.
- O incidente do tampão?
- Sim, há cerca de um mês saímos para tomar uma bebida com alguns amigos dele
e contei-lhes a história de uma mulher do meu bairro cujo tampão saltou quando
espirrou. Divertido, não é?
- Isso é mesmo divertido - comentei com uma gargalhada.
- Sim, todos eles acharam o mesmo. Mas o meu namorado enfureceu-se e disse
que eu não deveria falar de coisas tão repugnantes. Foi um balde de água fria.
- Uau.
- Ele é um tipo magnífico, mas consegue ser verdadeiramente preconceituoso
em relação a esses assuntos - continuou ela. - Por exemplo, zanga-se se eu
usar roupa interior que não seja branca. Não achas isto um verdadeiro preconceito?
- Talvez, mas trata-se de uma questão de gosto. - Achava incrível que um tipo
como ele quisesse a Midori como namorada, mas não dei voz a este pensamento.
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colegial que haviam sido raptadas por um bando de homens e sujeitadas a torturas
sádicas. Os homens obrigavam a mais velha a fazer todo o tipo de coisas horríveis
mediante a ameaça de violarem a colegial, mas a secretária transformara-se
em breve numa virulenta masoquista e a mais nova começou a ficar verdadeiramente
perturbada ao assistir a todas aquelas contorções que obrigam a irmã a fazer.
Era um filme tão sombrio e repetitivo que depressa me entediei.
- Se eu fosse a irmã mais nova, não ficava tão facilmente perturbada - comentou
a Midori. - Continuaria a observar.
- Tenho a certeza de que o farias.
- E, de qualquer modo, não achas que os mamilos dela são demasiado escuros
para uma colegial, uma virgem?
- Absolutamente.
A Midori continuava de olhos presos ao ecrã. Estava impressionada: quem assistia
assim a um filme, com uma intensidade tão feroz, certamente daria o seu dinheiro
por bem empregue. Não parava de me confidenciar os seus pensamentos: «Oh, meu
Deus, olha só para aquilo!», ou «Três tipos ao mesmo tempo! Vão acabar por
a rasgar toda!», ou «Gostava de experimentar aquilo com alguém, Watanabe».
Estava a divertir-me muito mais com as reacções da Midori do que com o filme.
Quando as luzes se acenderam durante o intervalo, reparei que não havia nenhuma
outra mulher ali. Um jovem sentado perto de nós - provavelmente um estudante
- lançou um olhar à Midori e mudou-se para um lugar mais afastado.
- Diz-me, Watanabe, ficas excitado quando vês este tipo de coisas?
- Bem, sim, às vezes. É por essa razão que fazem filmes destes.
- Portanto, estás a dizer que sempre que começa uma daquelas cenas, cada homem
no cinema está com o coiso em sentido? Trinta ou quarenta homens entesoados
ao mesmo tempo? É tão estranho se uma pessoa se puser a pensar nisso, não achas?
- Sim, acho que sim, agora que falas nisso.
O segundo filme era um filme pornográfico vulgar, o que
significava que era ainda mais entediante do que o primeiro.
Tinha imensas cenas de sexo oral e sempre que havia algum
fellatio, cunnilingus ou um 69,
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Mas ela nunca mais surgia. Quinze minutos depois, comecei a ficar preocupado
e estava prestes a verificar o que lhe teria acontecido quando saiu por fim
com um aspecto pálido.
- Desculpa - disse. - Adormeci.
- Estás bem? - perguntei, colocando o meu casaco sobre os seus ombros.
- Nem por isso.
- Vou levar-te a casa. Basta ires para casa, tomar um bom e demorado banho
e deitares-te. Estás exausta.
- Não quero ir para casa. Para quê? Não está ninguém lá. Não quero dormir sozinha
naquela casa.
- Que maravilha. Então vais fazer o quê?
- Vou para um hotel do amor desta zona e dormir abraçada a ti a noite inteira.
E vou dormir como uma pedra. Amanhã de manhã tomamos o pequeno-almoço e vamos
juntos para as aulas.
- Já andavas a planear isto há muito, não andavas? Foi por isso que me telefonaste.
- Obviamente.
- Deverias ter telefonado ao teu namorado e não a mim. Seria a coisa mais sensata
a fazer. É para isso que servem os namorados.
- Mas eu quero estar contigo.
- Não podes estar comigo - disse-lhe. - Em primeiro lugar, tenho que voltar
para a residência académica antes da meia-noite. Caso contrário, estarei a
infringir o recolher obrigatório. Da única vez que fiz isso, foi um inferno
para pagar a multa. E, em segundo lugar, se dormir com alguma rapariga, vou
querer ter sexo com ela, e a última coisa que me apetece fazer é estar ali
deitado a tentar refrear-me. Estou a falar a sério, ainda acabo por te forçar.
- Estás a dizer que me Baterias e me amarrarias para depois me violares por
trás?
- Ei, olha que estou a falar a sério.
- Mas eu sinto-me tão só! Quero estar com alguém! Eu sei que te tenho feito
coisas horríveis, sempre a exigir sem te dar nada em troca, a dizer o que me
vem à mente, a arrastar-te para fora do dormitório e a obrigar-te a levares-me
para todo o lado, mas tu és a única pessoa com quem posso fazer essas coisas!
Nunca consegui fazer com ninguém as coisas que queria,
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nem uma única vez durante os meus vinte anos de vida. O meu pai e a minha mãe
nunca me prestaram qualquer atenção e o meu namorado, bem, não é desse género.
Zanga-se sempre que tento ser eu mesma. E acabamos sempre por discutir. Tu
és a única pessoa a quem posso dizer estas coisas. E agora sinto-me mesmo muito,
muito cansada e só me apetece adormecer a ouvir alguém dizer-me como gosta
de mim e como sou bonita e essas coisas. É tudo o que desejo. E, quando acordar,
estarei cheia de energia e nunca mais farei este tipo de exigências egoístas.
Juro. Serei uma rapariga bem comportada.
- Eu sei, mas, acredita, não há nada que eu possa fazer.
- Oh, por favor! Senão, sento-me já aqui no chão a chorar desalmadamente durante
toda a noite. E durmo com o primeiro tipo que falar comigo.
Tomei uma decisão. Telefonei para a residência académica e pedi que chamassem
o Nagasawa. Quando me atendeu, perguntei-lhe se poderia ajudar-me e dispor
as coisas de modo a parecer que eu regressara à noite. Expliquei-lhe que estava
com uma rapariga.
- Está bem. É por uma causa justa, ajudo-te de bom grado. Pego na tua ficha
e dou entrada do teu nome. Não te preocupes. Demora o tempo que for necessário.
De manhã podes entrar pela minha janela.
- Obrigado. Fico a dever-te este favor - agradeci e desliguei.
- Tudo pronto? - perguntou a Midori.
- Creio que sim - respondi com um suspiro.
- Óptimo, vamos a uma discoteca, ainda é tão cedo.
- Espera aí, pensei que estavas cansada.
- Para isso sinto-me logo bem.
- Oh, meu Deus.
Ela tinha razão. Fomos a uma discoteca e recuperou gradualmente a energia enquanto
dançávamos. Bebeu dois whiskys com Coca-Cola e mantivemo-nos na pista até ficar
com a testa encharcada de suor.
- Isto é tão divertido. - exclamou quando fizemos uma pausa e nos sentámos
a uma mesa. -Já não dançava assim há anos. Sabes, quando se mexe o corpo, é
como se o espírito se libertasse.
- Eu diria que o teu espírito está sempre liberto.
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Segui-a até à divisão com o altar budista, acendi um pauzinho de incenso diante
da foto do pai dela e uni as mãos em prece.
- Sabes o que fiz no outro dia? - perguntou-me. - Pus-me nua diante da foto
do meu pai. Tirei cada peça de roupa para ele poder contemplar-me bem. Como
se estivesse numa daquelas posições do yoga. Do estilo, «Olha, papá, as minhas
mamas, a minha vagina».
- Por que raios fizeste uma coisa dessas? - inquiri.
- Não sei, queria apenas mostrar-lhe. Quer dizer, metade do meu ser provém
do esperma dele, certo? Por que razão não deveria mostrar-lhe? «Aqui está a
filha que fizeste». Nessa altura estava um pouco bêbada. Suponho que deve ter
sido por essa razão.
- Também suponho que sim.
- A minha irmã entrou e quase desmaiou. Ali estava eu, diante do retrato memorial
do meu pai, toda nua e de pernas abertas. Suponho que qualquer pessoa ficaria
surpreendida.
- Também suponho que sim.
- Expliquei-lhe por que razão estava a fazer aquilo e disse-lhe: «Tira também
a tua roupa, Momo (chama-se Momo), senta-te aqui ao meu lado e mostra-lhe»,
mas ela recusou-se. Saiu dali em choque. Ela tem uma visão conservadora, de
facto.
- Por outras palavras, ela é relativamente normal, queres tu dizer.
- Diz-me uma coisa, Watanabe, o que achavas do meu pai?
- Sinto-me embaraçado com as pessoas que acabo de conhecer, mas não me incomodou
ficar sozinho com ele. Senti-me bastante à vontade. Falámos acerca de muitas
coisas.
- Que coisas?
- Eurípedes - respondi.
A Midori riu às gargalhadas. - És tão estranho tu! Ninguém se põe a falar acerca
de Eurípedes com uma pessoa moribunda que se acaba de conhecer!
- Bem, também ninguém se senta diante do retrato memorial do pai com as pernas
abertas!
Riu-se e fez soar a sineta do altar. - Nana bem, papá. Agora vamos divertir-nos,
não te preocupes e vê se descansas. Já não sofres mais, pois não? Estás morto,
certo? Tenho a certeza de que já não sofres mais. Se estiveres a sofrer ainda,
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deverias queixar-te aos deuses. Diz-lhes que são muito cruéis. Espero que
encontres a mamã e que façam aquilo juntos. Vi o teu pirilau quando te ajudei
a fazer chichi. Fiquei bastante impressionada! Portanto, dá-lhe com toda a
força. Boa noite.
Tomámos banho à vez e vesti um pijama quase novo do pai dela. Ficava-me um
pouco curto, mas sempre era melhor do que nada. A Midori estendeu um colchão
no chão diante do altar.
- Não vais ter medo por dormir diante do altar? - perguntou-me.
- De modo algum. Não fiz nada de mal - redargui com um sorriso.
- Mas vais ficar comigo e abraçar-me até eu adormecer, certo?
- Certo.
Abracei-a, praticamente a cair sobre a borda da pequena cama dela. Encostou
o nariz ao meu peito e colocou as mãos sobre as minhas coxas. Abracei-lhe as
costas com o braço direito e agarrei-me com a mão esquerda à cama para evitar
cair. Não era exactamente uma situação susceptível de excitação sexual. Tinha
o nariz encostado à cabeça dela e de vez em quando o seu cabelo curto fazia-me
comichão.
- Vá, diz-me algo - proferiu ela, com o rosto enterrado no meu peito.
- O que queres que diga?
- Qualquer coisa. Algo que me faça sentir bem.
- És realmente bonita.
- ... Midori - acrescentou. - Diz o meu nome.
- És realmente bonita, Midori - corrigi-me.
- O que queres dizer com realmente bonita?
- Tão bonita que as montanhas se desmoronam e os oceanos secam.
A Midori levantou a cabeça e olhou para mim. - Tens um dom com as palavras.
- Sinto o coração a estremecer quando dizes isso - continuei, sorrindo.
- Diz algo ainda mais bonito.
- Gosto realmente de ti, Midori. Gosto muito.
- Esse muito é quanto?
- Tanto como um urso primaveril - acrescentei.
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- Um urso primaveril? - Olhou novamente para mim. - Que estás para aí a dizer?
Um urso primaveril?!
- Caminhas sozinha ao longo de um campo num dia de Primavera e vês aparecer
um adorável ursinho com pelagem de veludo e olhinhos cintilantes. E ele diz-te:
«Olá, senhorita. Queres dar cambalhotas comigo?». E passais o dia inteiro nos
braços um do outro, a dar cambalhotas pela encosta da colina recoberta de trevos.
Lindo, hã?
- Sim. Realmente lindo.
- É para veres como gosto muito de ti.
- Foi a coisa mais bonita que alguma vez me disseram - disse, enroscando-se
contra o meu peito. - Se gostas assim tanto de mim, farás tudo o que eu te
disser, certo? Não ficarás zangado, certo?
- Não, claro que não.
- E cuidarás de mim para todo o sempre.
- Claro que sim - respondi, afagando-lhe o cabelo curto, macio e arrapazado.
- Não te preocupes, tudo se resolverá.
- Mas tenho medo.
Abracei-a delicadamente e em breve os seus ombros ascendiam e descendiam enquanto
a ouvia respirar regularmente durante o sono. Esgueirei-me da cama e fui à
cozinha beber uma cerveja. Não sentia sono e pensei em ler um livro, mas não
consegui encontrar nenhum que valesse a pena. Pensei em voltar ao quarto dela
para procurar um, mas não queria acordá-la enquanto vasculhava o quarto.
Mantive-me sentado a olhar fixamente para o vazio durante algum tempo enquanto
beberricava a cerveja e de repente lembrei-me de que estava numa livraria.
Fui ao rés-do-chão, liguei a luz e comecei a procurar nas prateleiras dos livros
de bolso. Havia poucos livros que me apelavam e também já tinha lido a maioria
deles, mas tinha que encontrar alguma coisa para ler. Optei por um exemplar
desbotado de Debaixo das Rodas de Hermann Hesse, que certamente se encontraria
há muito tempo por vender na livraria, e deixei o dinheiro na caixa registadora.
Era uma pequena contribuição para reduzir as dívidas da Livraria Kobayashi.
Sentei-me à mesa da cozinha a beber cerveja e a ler o livro. Lera já a primeira
parte do romance quando frequentava o sétimo ano de escolaridade.
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E agora, ali estava eu, oito anos depois, a ler o mesmo livro, na cozinha de
uma rapariga, vestido com o pijama demasiado curto do seu falecido pai. Que
estranho. Se não fossem aquelas estranhas circunstâncias, provavelmente nunca
teria relido Debaixo das Rodas.
O livro era antiquado, mas não era um mau romance. Li-o pausadamente, apreciando
cada linha no silêncio da livraria a meio da noite. Havia uma empoeirada garrafa
de brandy numa das prateleiras da cozinha. Deitei um pouco numa chávena de
café e bebi. Aqueceu-me, mas não me ajudou a adormecer.
Um pouco antes das três horas fui ver a Midori; dormia profundamente. Certamente
estaria exausta. As luzes do bloco de lojas no exterior da janela lançavam
sobre o quarto um brilho branco parecido com o luar. A Midori dormia de costas
voltadas para a luz. Jazia tão perfeitamente imóvel que se diria estar petrificada.
Debrucei-me para ouvir a sua respiração. Dormia do mesmo modo que o pai.
A mala das suas recentes viagens fora deixada ao lado da cama e o casaco branco
pendia das costas de uma cadeira. O tampo da secretária estava perfeitamente
arrumado e na parede por cima estava pendurado um calendário com uma imagem
do Snoopy. Afastei levemente a cortina para o lado e olhei para as lojas desertas
no exterior. Estavam todas fechadas, com as portadas de metal corridas, e as
máquinas de venda automática, aglomeradas diante do aviso de FECHADO, eram
o único sinal de que algo aguardava o alvorecer. O distante gemido dos pneus
dos camiões provocava ocasionalmente um profundo estremecimento no ar. Voltei
para a cozinha, servi-me mais uma golada de brandy e continuei a ler Debaixo
das Rodas.
O céu começava a empalidecer quando terminei de ler. Preparei café instantâneo,
peguei numa caneta e escrevi um bilhete à Midori num bloco de notas. Bebi um
pouco do teu brandy. Comprei um exemplar de Debaixo das Rodas. Já está a ficar
dia e vou para casa. Adeus. Após alguma hesitação, acrescentei: Ficas realmente
bonita a dormir. Lavei a chávena do café, apaguei a luz da cozinha, desci para
o rés-do-chão, levantei suavemente as portadas e saí.
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ao passo que com os dedos dos pés era exactamente o oposto. Omura, o guarda
do portão, falou-me novamente do delicioso porco de Tóquio. A Reiko gostou
dos discos que lhe trouxe como prenda. Transcreveu algumas melodias e praticou-as
na guitarra.
A Naoko mostrava-se ainda menos conversadora do que durante o Outono. Quando
estávamos os três juntos, sentava-se no sofá a sorrir e quase não falava. A
Reiko parecia tagarelar para compensar o silêncio dela. - Não te preocupes
- disse-me a Naoko. - É uma situação passageira. Entretenho-me mais a ouvir-vos
do que estar eu própria a falar.
A Reiko decidiu ocupar-se com algumas tarefas e saiu de casa para eu e a Naoko
podermos dormir juntos. Beijei-a no pescoço, nos ombros, nos seios e ela serviu-se
das mãos para me provocar o orgasmo como da vez anterior. Depois abracei-a
com força e disse-lhe que o toque dela me acompanhara durante aqueles dois
meses, que pensara nela enquanto me masturbava.
- Não dormiste com mais ninguém? - perguntou-me.
- Nem uma única vez.
- Está bem. Então, vou dar-te algo que nunca mais esquecerás. - Deslizou para
baixo e beijou-me o pénis; depois envolveu-o com a boca quente e passou a língua,
com o cabelo comprido e liso a baloiçar sobre a minha barriga a cada movimento
dos seus lábios, até me vir pela segunda vez.
- Achas que nunca mais te esquecerás disto? - perguntou.
- Claro que não. Lembrar-me-ei sempre.
Abracei-a fortemente, enfiei a mão dentro das suas cuecas e toquei-lhe na vagina
ainda húmida. A Naoko abanou a cabeça e afastou-me a mão. Mantivemo-nos abraçados
em silêncio durante algum tempo.
- Estou a pensar em sair da residência académica no final do semestre e procurar
um apartamento - disse-lhe. - Estou farto da vida no dormitório. Se continuar
a trabalhar em part-time, conseguirei cobrir bem todas as minhas despesas.
Queres viver comigo em Tóquio, tal como te sugeri antes?
- Oh, Toru, obrigada. Estou tão feliz por me propores uma coisa dessas!
- Não é por pensar que este lugar tem algo de errado - continuei. - É calmo,
o ambiente circundante é perfeito e a Reiko é uma pessoa maravilhosa.
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Mas não é um local onde se deva permanecer durante muito tempo. É demasiado
especializado para uma permanência prolongada. Quanto mais tempo permaneceres
aqui, mais dificuldades terás em partires.
Em vez de responder, a Naoko olhou para o exterior da janela, para lá da qual
se avistava apenas neve. No céu pairavam baixas e pesadas nuvens e o espaço
entre elas e a terra coberta de neve era ínfimo.
- Demora o tempo de que precisares e pondera - disse-lhe.
- Independentemente do que acontecer, mudarei de alojamento no final de Março.
E podes juntar-te a mim quando assim o decidires.
Anuiu com a cabeça. Abracei-a cuidadosamente, como se estivesse a abraçar uma
obra de arte delicadamente modelada em vidro. Envolveu-me o pescoço com os
braços. Estava nu e ela envergava apenas a mais reduzida roupa interior branca.
O corpo dela era tão belo que de bom grado a contemplaria durante todo o dia.
- Por que razão não fico húmida? - murmurou a Naoko.
- Aquela vez contigo foi a única vez em que aconteceu. No dia do meu vigésimo
aniversário, em Abril. Na noite em que me abraçaste. O que há de errado comigo?
- Tenho a certeza de que é estritamente psicológico - disse-lhe.
- Deixa passar algum tempo. Não há pressas.
- Todos os meus problemas são estritamente psicológicos
- retorquiu. - E se eu nunca melhorar? Se nunca mais puder ter relações durante
o resto da minha vida? Continuarás a amar-me do mesmo modo? Contentar-te-ás
sempre apenas com as minhas mãos e os lábios? Ou resolverás o problema do sexo
dormindo com outras raparigas?
- Sou um optimista nato.
Soergueu-se na cama, vestiu uma T-shirt, pôs uma camisa de flanela por cima
e vestiu as calças. Comecei a vestir-me também.
- Dá-me tempo para pensar nisso - afirmou. - E pensa também sobre isso.
- Está bem. E, por falar de lábios, o que acabas de me fazer com os lábios
foi maravilhoso.
Corou ligeiramente e esboçou um ténue sorriso. - O Kizuki também costumava
dizer isso.
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- Os meus gostos e opiniões eram muito parecidos com os dele - retorqui com
um sorriso.
Sentámo-nos diante um do outro à mesa da cozinha, a beber café e a conversar
acerca dos velhos tempos. Ela referia agora o Kizuki mais frequentemente, embora
hesitasse e escolhesse as palavras com cuidado. A neve tombava intermitentemente.
O céu não clareou uma única vez durante os três dias da minha visita. - Acho
que poderei visitar-te de novo em Março - disse-lhe quando me despedia. Abracei-a
uma última vez, pesadamente agasalhado com o meu casaco de Inverno, e beijei-a
nos lábios. - Adeus - disse-lhe.
1970, um ano com uma ressonância inteiramente nova, assinalou o fim da minha
adolescência. Agora poderia deslocar-me para um pântano inteiramente diferente.
Chegou a época dos exames e passei com relativa facilidade. Quando não se tem
mais nada para fazer e se passa todo o tempo nas aulas, não é necessária qualquer
capacidade especial para passar nos exames finais.
No entanto, ocorreram alguns problemas na residência académica. Alguns dos
estudantes activos numa das facções políticas esconderam capacetes e barras
de ferro nos seus quartos. Tiveram um confronto com alguns jogadores de beisebol,
com o aval do responsável do dormitório, e dois deles haviam ficado feridos
e outros seis foram expulsos. As consequências deste incidente prolongaram-se
durante muito tempo, dando origem a rixas menores quase diariamente. A atmosfera
que imperava no dormitório era opressiva e todos os estudantes andavam com
os nervos em franja. Eu próprio corri o risco de ser espancado pelos jogadores
de beisebol, mas o Nagasawa interveio e conseguiu acalmar a situação. De qualquer
modo, chegara a altura de eu sair dali.
Assim que concluí a maioria dos exames, comecei a procurar seriamente um
apartamento. Uma semana depois, encontrei um local adequado e bastante afastado,
nos subúrbios de Kichijoji. Não era um local exactamente conveniente, mas
tratava-se de uma casa: uma verdadeira moradia, um autêntico achado. Fora
originalmente o casinhoto de um jardineiro ou uma espécie de chalé e erguia-se
numa das extremidades de um pedaço de terreno de considerável extensão,
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Se achares que é melhor no Verão, por mim não há problema também. Diz-me só
o que pensas, está bem?
Faço tenções de dedicar mais tempo a um emprego por enquanto, para cobrir as
despesas da mudança. Vou precisar de uma quantia considerável de dinheiro para
algumas coisas assim que começar a viver sozinho: tachos e panelas, pratos,
coisas desse género. Todavia, em Março já estarei livre e desejo sinceramente
visitar-te de novo. Que datas te conviriam mais, para eu poder planear a minha
viagem a Quioto? Estou desejoso de te ver e ansioso pela tua resposta.
Ocupei os dias seguintes a comprar as coisas de que necessitava num bairro
comercial próximo, em Kichijoji, e comecei a preparar refeições simples em
casa. Comprei pranchas de madeira numa carpintaria local e pedi que as cortassem
no tamanho adequado para improvisar um móvel que serviria de secretária e também
como mesa para as refeições. Fiz umas prateleiras e adquiri uma boa colecção
de especiarias. Uma gata branca, com cerca de seis meses de idade, decidiu
que gostava de mim e começou a comer em minha casa. Dei-lhe o nome de Gaivota.
Assim que consegui tornar o meu espaço minimamente habitável, fui à cidade
e arranjei um emprego temporário como assistente de pintura. Consegui ocupar
assim duas semanas inteiras. Recebi um salário considerável, mas era um trabalho
extremamente penoso e as exalações das tintas provocavam-me tonturas. No final
de cada dia de trabalho, jantava num restaurante barato e engolfava a comida
acompanhada de cerveja, ia para casa, brincava com a gata e depois dormia
profundamente. Não recebi qualquer resposta da Naoko durante essas duas semanas.
Encontrava-me embrenhado a pintar quando me lembrei inesperadamente da Midori.
Apercebi-me de que já não contactava com ela há quase três semanas e nem sequer
a informara de que me mudara. Havia-lhe mencionado que estava a pensar em me
mudar, ela dissera «Oh, de verdade!» e foi a última vez que falámos.
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Dirigi-me a uma cabina para lhe telefonar. A mulher que me atendeu era
provavelmente a irmã dela. Quando lhe disse o meu nome, respondeu «Só um minuto»,
mas a Midori não veio ao telefone.
Depois, a irmã, ou quem quer que fosse, voltou a falar comigo. - A Midori diz
que está demasiado furiosa para falar contigo. Mudaste-te e nem chegaste a
dizer-lhe nada, certo? Limitaste-te a desaparecer e nunca lhe disseste para
onde ias, certo? Bem, deixaste-a verdadeiramente furiosa. E, quando ela se
enfurece, fica assim durante bastante tempo. Como se fosse um animal.
- Podes chamá-la ao telefone? Eu posso explicar.
- Ela diz que não quer ouvir nenhuma explicação.
- Posso explicar-te a ti, então? Detesto colocar-te nesta situação, mas podias
ouvir-me e contar-lhe o que te vou dizer?
- A mim não! Fala tu com ela. Que homem és tu? A responsabilidade é tua. Portanto,
explica-lhe tu e explica-lhe bem.
Era inútil. Agradeci-lhe e desliguei. Não podia, de facto, censurar a Midori
por estar enfurecida. Com toda aquela situação da mudança, de tratar das coisas
e de ganhar um dinheiro extra, esquecera-me dela. Nem sequer me lembrara da
Naoko durante todo esse tempo. Isto não era novidade para mim: sempre que me
embrenhava em algo, esquecia-me de tudo o resto.
Mas depois comecei a pensar como me teria sentido se os papéis se invertessem
e a Midori se tivesse mudado sem me dizer para onde ia e não me contactasse
durante três semanas. Eu próprio teria ficado magoado: profundamente magoado,
sem dúvida. Não, não éramos amantes, mas, de certo modo, abríramo-nos um ao
outro mais profundamente do que se fôssemos amantes. Este pensamento causou-me
bastante sofrimento. É terrível magoar alguém de quem realmente gostamos -
e, ainda por cima, de modo inconsciente.
Assim que regressei a casa do trabalho, sentei-me à secretária e escrevi à
Midori. Disse-lhe como me sentia, tão honestamente quanto possível. Pedi-lhe
desculpa, sem entrar em explicações, por ter sido tão insensível e negligente.
Tenho saudades tuas, escrevi. Gostava de te ver assim que for possível. Gostava
que visses a minha nova casa. Escreve-me, por favor, disse-lhe. Enviei a carta
por correio expresso.
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Ofereci-me para te responder em vez dela; mas sempre que lhe dizia que era
indelicado fazer-te esperar tanto tempo, ela insistia que se tratava de um
assunto demasiado pessoal e que ela própria te escreveria; aliás, foi por esse
motivo que não te escrevi mais cedo. Lamento, sinceramente. Espero que me perdoes.
Eu sei que deve ter sido um mês difícil, sempre à espera de uma resposta, mas,
acredita em mim, esse mês foi igualmente difícil para a Naoko. Por favor, tenta
compreender aquilo por que ela está a passar. Devo dizer, com toda a honestidade,
que o seu estado é preocupante. Esforçou-se ao máximo por se aguentar firme,
mas os resultados não têm sido os melhores.
Em retrospectiva, verifico agora que o primeiro sintoma do problema dela foi
a perda da capacidade de escrever cartas, que ocorreu por volta do final de
Novembro ou início de Dezembro. Depois começou a ouvir coisas. Sempre que tentava
escrever uma carta, ouvia pessoas a falarem com ela, e isso impedia-a de escrever.
Essas vozes interferiam nas suas tentativas de escolha das palavras. Como o
problema não se agravou até ao período da tua segunda visita, não vi razões
para alarme. Para todos nós, que nos encontramos aqui, este tipo de sintomas
ocorrem mais ou menos ciclicamente. No caso dela, agravou-se quando partiste.
Agora tem dificuldades em manter inclusivamente uma conversa normal. Não consegue
encontrar as palavras adequadas para se expressar e isso provoca-lhe um estado
de extrema perturbação - perturbação e medo. Entretanto, as «coisas» que ela
ouve têm-se agravado.
Todos os dias temos uma sessão com um dos especialistas. Eu, a Naoko e o médico
conversamos para tentar descobrir exactamente que parte dela se quebrou.
Ocorreu-me que talvez fosse boa ideia incluir-te numa das nossas sessões, se
possível,
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e o médico concordou, mas a Naoko recusou. Posso dizer-te qual foi o exacto
motivo dela-. «Quero que
o meu corpo esteja completamente limpo quando
me encontrar com ele». Eu disse-lhe que o problema
não residia nisso, que o problema consistia em a
fazer recuperar o mais rapidamente possível, e
esforcei-me por a persuadir, mas ela não mudava
de ideias.
:, Creio que cheguei a explicar-te que isto aqui não se trata de um hospital
especializado. Dispomos
de médicos especialistas, obviamente, e providenciam-nos tratamentos eficazes,
mas uma outra questão é um tratamento intensivo. O objectivo deste lugar é
criar um ambiente eficaz no qual o paciente possa tratar-se a si mesmo, e isso
não implica um tratamento médico propriamente dito. É por essa razão que
provavelmente transferirão a Naoko para outro hospital, clínica, ou para onde
quer que seja, se o estado dela se agravar. Pessoalmente, acho esta hipótese
demasiado dolorosa, mas fá-lo-emos se necessário. Isso não significa que ela
não possa vir aqui para tratamento, numa espécie de «licença de ausência»
temporária. Ou, melhor ainda, poderá acabar por recuperar e esquecer os hospitais
por completo. De qualquer modo, estamos a fazer tudo o que podemos e a Naoko
também. O melhor que tens afazer, é esperar que ela recupere e continuar a
enviar-lhe cartas.
A carta datava de 31 de Março. Mantive-me no alpendre depois de a ler e deixei
os olhos vaguearem pelo jardim, agora preenchido pela frescura da Primavera.
Havia uma velha cerejeira cujos rebentos estavam prestes a alcançar o esplendor
de toda a sua glória. Soprava uma brisa suave e a luz do dia emprestava a tudo
as suas cores esbatidas e esfumadas. A Gaivota surgiu vinda de algures e, depois
de se coçar por instantes nas tábuas da varanda, estendeu-se ao meu lado e
adormeceu.
Sabia que deveria reflectir seriamente, mas não fazia ideia de como começar.
E, para dizer a verdade,
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reflectir era a última coisa que desejava fazer. Em breve o tempo se encarregaria
de me deixar sem escolha nessa matéria e nessa altura iria precisar de muito
tempo para ponderar novamente em tudo. Mas agora não. Agora não.
Passei o dia a contemplar o jardim, apoiado contra uma coluna enquanto afagava
a Gaivota. Sentia-me completamente extenuado. O entardecer começava a ceder
lugar ao crepúsculo que se abatia e sombras azuladas envolviam o jardim. A
gata desapareceu, mas continuei a contemplar os rebentos da cerejeira. Sob
a obscuridade da Primavera, pareciam carne que irrompera através da pele que
recobria ferimentos purulentos. O jardim exalava o cheiro adocicado e pesado
de carne putrefacta. E foi então que me lembrei do corpo da Naoko. O belo corpo
da Naoko jazia diante de mim na escuridão, com inúmeros rebentos irrompendo
através da sua pele, todos eles esverdeados e tremulando na brisa quase
imperceptível. Por que razão um corpo tão belo estava tão doente? Por que razão
não deixavam a Naoko em paz?
Fui para dentro de casa e fechei as cortinas, mas dentro de casa também não
conseguia escapar ao aroma da Primavera que preenchia tudo desde o solo até
ao alto. A única coisa que a fragrância da Primavera me trazia era esse fedor
de putrefacção. Encerrado atrás das cortinas, senti um violento ódio pela
Primavera. Odiava aquilo que a Primavera me reservava; odiava a dor baça e
latejante que despertava dentro de mim. Nunca odiei nada com tanta intensidade
na minha vida.
Passei três dias muito deprimido. Quase não ouvia o que me diziam e as pessoas
tinham igualmente dificuldades em compreender o que eu dizia. Sentia o corpo
completamente envolto numa espécie de membrana que impedia qualquer contacto
directo entre mim e o mundo exterior. Não conseguia tocar «neles» e «eles»
não conseguiam tocar-me. Encontrava-me absolutamente indefeso e, enquanto
permanecesse nesse estado, «eles» não conseguiriam alcançar-me.
Sentava-me encostado à parede, a olhar fixamente para o tecto. Quando sentia
fome, mordiscava o que encontrava ao alcance e bebia água; quando a tristeza
se apoderava de mim, aturdia-me com whisky. Não tomava banho, não me barbeava.
Foi assim que passei esses três dias.
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Recebi uma carta da Midori no dia seis de Abril, a convidar-me para me encontrar
com ela no campus e almoçarmos juntos no dia dez quando fôssemos inscrever-nos
para as aulas. Decidi escrever-te o mais tardiamente possível e assim já estamos
quites; portanto, façamos as pazes. Tenho que admitir que sinto saudades de
ti. Reli a carta quatro vezes e continuava sem compreender o que estava a tentar-me
dizer. O que pretenderia ela dizer-me? Sentia o cérebro tão obnubilado que
não conseguia encontrar a ligação entre as frases. Como é que o facto de nos
encontrarmos no dia da inscrição nos tornaria quites? Por que razão queria
almoçar comigo? Não compreendia realmente. A minha mente cedera como as raízes
encharcadas de uma planta subterrânea. No entanto, tinha consciência de que
teria de me revitalizar de algum modo. Lembrei-me então das palavras do Nagasawa:
«Não sintas pena de ti próprio. Somente os idiotas fazem isso».
«Está bem, Nagasawa. Em frente», pensei. Suspirei e levantei-me. Lavei a roupa
pela primeira vez em semanas, barbeei-me, arrumei a casa, comprei comida e
preparei uma refeição decente; dei de comer à esfomeada Gaivota, bebi cerveja
e pratiquei trinta minutos de exercício. Quando me barbeava, o espelho revelou-me
que me tornara emaciado. Tinha também os olhos esbugalhados. Quase não me
reconhecia a mim próprio. Na manhã seguinte, dei um longo passeio de bicicleta
e, depois de almoçar em casa, li novamente a carta da Reiko. De seguida, ponderei
seriamente como deveria proceder. A carta da Reiko afectara-me profundamente
porque perturbara a minha crença optimista de que a Naoko estava a recuperar.
A própria Naoko me dissera: «A minha doença é bem mais grave do que pensas:
as suas raízes são bem mais profundas». E a Reiko alertara-me para a possível
imprevisibilidade dos acontecimentos. Mesmo assim, visitei a Naoko duas vezes
e ficara com a impressão de que ela estava a recuperar. Pensara que o único
problema dela consistia em saber se conseguiria recuperar a coragem de regressar
ao mundo real e, caso o conseguisse, poderíamos depois juntar forças para tentar
construir algo.
A carta da Reiko esmagou o castelo ilusório que eu construíra sobre essa frágil
hipótese e agora restava apenas uma superfície achatada,
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desprovida de emoção. Sentia que deveria fazer algo para recuperar o equilíbrio.
A Naoko provavelmente demoraria muito tempo a recuperar. E, mesmo que melhorasse,
estaria indubitavelmente mais debilitada e mais desprovida de autoconfiança
do que antes. Eu próprio teria que me adaptar a essa nova situação. Todavia,
e independentemente da minha força, isso não iria resolver todos os problemas.
Tinha consciência desse facto. Mas não podia fazer mais nada, a não ser manter-me
animado e esperar que ela recuperasse.
Ei, Kizuki, pensei. Ao contrário de ti, escolhi viver - e viver do melhor modo
possível. Eu sei que foi duro para ti. Que raios, também é duro para mim. Realmente
duro. E tudo porque te suicidaste e deixaste a Naoko sozinha. Mas eu nunca
farei uma coisa dessas. Nunca, mas nunca, lhe virarei as costas. Antes do mais,
porque a amo e porque sou mais forte do que ela. E vou ser ainda mais forte.
Vou tornar-me mais maduro. Vou ser um adulto. Porque é isso que devo fazer.
Pensei que gostaria de ter sempre dezassete ou dezoito anos se pudesse. Mas
agora não. Já não sou um adolescente. Agora tenho um sentido de responsabilidade.
Não sou a mesma pessoa que era quando costumávamos sair juntos. Agora tenho
vinte anos. E devo pagar o preço de continuar a viver.
- Raios, Watanabe, que te aconteceu? - perguntou-me a Midori. - Estás pele
e osso!
- Estou assim tão mal, hã?
- Aposto que exageraste naquilo com aquela tua amante casada. Sorri e abanei
a cabeça. - Não dormi com nenhuma rapariga
desde o início de Outubro.
- Caramba! Não pode ser verdade. Estamos a falar de um período de seis meses!
- É a verdade.
- Então, como perdeste tanto peso?
- Fui obrigado a crescer - respondi.
Colocou as mãos sobre os meus ombros e olhou-me nos olhos com uma expressão
dura que depressa se transformou num sorriso doce. - De facto - disse ela.
- Há algo de diferente. Tu mudaste.
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Quando anunciou que tinha sede, corri em direcção a um quiosque para comprar
duas Coca-Colas, quando regressei para junto dela, encontrei-a a escrevinhar
numa folha de papel pautado.
- O que estás a escrever? - perguntei-lhe.
- Nada.
Às 15:30, anunciou: - Tenho que ir. Vou encontrar-me com a minha irmã em Ginza.
Dirigimo-nos para a estação do metro e partimos em direcções diferentes. Ao
despedir-se, a Midori enfiou a folha de papel, agora dobrado em quatro, no
meu bolso. - Lê isto quando chegares a casa.
Comecei a ler no comboio.
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nem sequer me convidaste uma única vez para ir ver a tua casa. Pois bem, que
se dane, obviamente pretendes estar sozinho e, por conseguinte, vou deixar-te
em paz. Prossegue em frente e continua a divagar para grande contentamento
do teu coração!
Mas não me interpretes mal. Não estou completamente furiosa contigo. Apenas
triste. Foste sempre tão simpático comigo quando eu tinha problemas, mas agora
que te encontras imerso nos teus próprios problemas, parece que não posso fazer
nada por ti. Encontras-te encarcerado no teu pequeno mundo e, quando tento
bater à tua porta, limitas-te a levantar a cabeça por um segundo e voltas
imediatamente para dentro.
Já vens aí com as bebidas - e continuas a pensar enquanto caminhas. Tinha a
esperança de que tropeçasses, mas não. Agora estás sentado ao meu lado a beber
uma Coca-Cola. Acalentava ainda uma última esperança de que reparasses e
dissesses «Ei, mudaste de penteado!", mas não. Se tivesses reparado, teria
rasgado esta carta e dir-te-ia: «Vamos para tua casa. Vou preparar-te um
esplêndido jantar. E depois podemos deitar-nos na cama e trocar carícias".
Mas tu és insensível como uma pedra. Adeus.
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Após o jantar, tentei escrever à Midori, mas desisti após vários começos em
falso; em vez disso, escrevi uma carta à Naoko.
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perguntou-me se fazia alguma ideia onde ela pudesse estar. Tudo o que eu sabia,
era que a Midori levara um pijama e uma escova de dentes na bolsa.
Vi a Midori na aula de quarta-feira. Envergava uma camisola verde-escura e
usava os mesmos óculos de sol escuros que tantas vezes usara no Verão anterior.
Estava sentada na última fila, a conversar com uma rapariga magra e de óculos
que eu desconhecia. Acerquei-me e disse-lhe que gostaria de falar com ela no
final da aula. A rapariga de óculos olhou para mim e somente depois a Midori
se dignou olhar-me também. O seu penteado era, de facto, um pouco mais feminino
do que habitualmente: um estilo mais adulto.
- Vou encontrar-me com uma pessoa - afirmou, empertigando ligeiramente a cabeça.
- Não te demorarei - disse-lhe. - Cinco minutos.
A Midori tirou os óculos e semicerrou os olhos. Parecia estar a olhar para
uma casa abandonada e em ruínas, a centenas de metros de distância.
- Não quero falar contigo. Lamento - anunciou.
A rapariga de óculos olhou para mim com um olhar que dizia: Ela está a dizer
que não quer falar contigo. Lamento.
Sentei-me na extremidade direita da fila da frente durante a aula (uma abordagem
genérica sobre a obra de Tennessee Williams e a sua importância na Literatura
Americana) e no final contei demoradamente até três e virei-me para trás. A
Midori saíra já.
Abril era um mês demasiado solitário para se estar só. Em Abril, toda a gente
à minha volta parecia feliz. As pessoas tiravam os casacos e apreciavam a companhia
umas das outras ao sol: conversavam, jogavam ao apanha, davam as mãos. Mas
eu andava sempre sozinho. A Naoko, a Midori, o Nagasawa: todos eles tinham
desaparecido da minha vida. Agora não tinha ninguém a quem dizer «Olá» ou
«Desejo-te um bom dia». Sentia saudades do próprio Sargento. Passei o mês inteiro
imbuído desta desesperada sensação de isolamento. Tentei falar algumas vezes
com a Midori, mas obtinha sempre a mesma resposta: «Não quero falar contigo
agora», e sabia, pelo tom dela, que estava a falar a sério. Estava sempre
acompanhada pela rapariga de óculos ou então por um rapaz alto, de cabelo curto,
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Obrigada por escreveres com tanta frequência. A Naoko gosta de receber as tuas
cartas. E eu também. Não te importas que eu as leia também, pois não?
Desculpa não te ter respondido mais cedo. Na verdade,
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tenho-me sentido um pouco exausta e não tem havido boas notícias para dar.
A Naoko não tem passado bem. A mãe dela veio um destes dias de Kobe para a
visitar. Nós os quatro - a Naoko, a mãe dela, eu e o médico -tivemos uma conversa
demorada e chegámos à conclusão de que a Naoko deveria mudar-se temporariamente
para um hospital a sério a fim de receber um tratamento intensivo; depois,
dependendo dos resultados, talvez possa voltar para aqui. A Naoko diz que gostaria
de permanecer aqui se possível, até conseguir recuperar. Eu sei que vou sentir
a falta dela e que vou preocupar-me com ela, mas a verdade é que se tem tornado
cada vez mais difícil mantê-la aqui sob controlo. Ela esta bem durante a maior
parte do tempo, mas por vezes as suas ilusões tornam-se extremamente instáveis
e, quando isso acontece, temos que a manter sob vigilância. Não se sabe o que
ela poderia fazer. Quando padece daqueles intensos episódios em que ouve vozes,
apaga-se por completo e fecha-se dentro de si própria.
É por essa razão que concordo que o melhor seria a Naoko submeter-se
temporariamente a uma terapia numa instituição mais apropriada. Detesto ter
que o dizer, mas é tudo o que podemos fazer. Tal como te disse anteriormente,
ter paciência é o mais importante agora. Devemos continuar a desemaranhar os
fios um a um, sem perder a esperança. Por mais desesperado que o estado dela
possa parecer, mais tarde ou mais cedo acabaremos por descobrir a ponta solta.
Quando uma pessoa se sente envolta naescuridão total, tudo o que pode fazer
é aguentar firme até os olhos se habituarem à escuridão.
Quando receberes esta carta, a Naoko já terá sido transferida para outra
instituição. Desculpa estar a contar-te somente depois de as decisões terem
sido tomadas, mas aconteceu tudo muito rapidamente. O novo hospital é realmente
bom e dispõe de bons médicos. Indico-te a morada mais abaixo-, por favor, escreve
as cartas à Naoko para este endereço. Também me manterão informada dos progressos
dela e dar-te-ei conhecimento a par e passo. Espero que sejam boas notícias.
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Sei que vai ser difícil para ti, mas não percas as esperanças. E mesmo que
a Naoko já não esteja aqui, por favor, escreve-me de vez em quando. Adeus.
Escrevi inúmeras cartas durante essa Primavera: uma por semana para a Naoko,
várias para a Reiko e muitas mais para a Midori. Redigia as cartas nas salas
de aulas; em casa, sentado à secretária, com a Gaivota no meu regaço; sentado
a uma mesa vazia durante as pausas do emprego no restaurante italiano. Era
como se escrevesse cartas para manter unidos os alicerces da minha vida a
desmoronar-se.
Escrevi à Midori: Abril e Maio foram meses solitários e penosos para mim porque
não podia falar contigo. Nunca pensei que a Primavera pudesse ser tão penosa
e solitária. Preferia três Fevereiros a uma Primavera assim. Eu sei que é demasiado
tarde para dizer isto, mas o teu novo penteado fica-te mesmo bem. Mesmo giro.
Agora trabalho num restaurante italiano e o cozinheiro ensinou-me uma receita
fantástica para preparar esparguete. Gostava de te convidar em breve para
provares esta receita.
Frequentava as aulas todos os dias, trabalhava no restaurante duas ou três
vezes por semana, conversava com o Itoh sobre livros e música, lia alguns romances
de Boris Vian que ele me emprestava, escrevia cartas, brincava com a Gaivota,
preparava esparguete, trabalhava no jardim, masturbava-me a pensar na Naoko
e via muitos filmes.
A Midori recomeçou a falar comigo quase em meados de Junho. Não trocáramos
palavra durante dois meses. No final de uma das aulas, sentou-se ao meu lado,
apoiou o queixo na mão e não proferiu palavra. A chuva tombava no exterior
da janela: uma verdadeira monção que caía directamente, pois não havia vento,
e encharcava tudo. Os outros alunos haviam saído há bastante tempo e a Midori
continuava sentada ao meu lado em silêncio. Depois tirou um cigarro do bolso
do casaco de ganga, colocou-o entre os lábios e entregou-me uma carteira de
fósforos. Acendi-lhe o cigarro. A Midori esticou os lábios e soprou uma suave
nuvem de fumo contra o meu rosto.
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- Que estás para aí a dizer? Não tenho grande apreço por centros comerciais.
- Não, estou a dizer que foste sortudo por se preocuparem suficientemente contigo
ao ponto de te levarem para certos lugares.
- Bem, eu era filho único - afirmei.
- Quando eu era criança, costumava sonhar que quando crescesse poderia ir sozinha
a um restaurante num centro comercial e comer tudo o que quisesse. Mas que
sonho mais vazio! Que gozo pode haver em encher a boca de arroz sozinha num
lugar destes? A comida não é assim tão especial e é um sítio enorme, apinhado,
abafado e barulhento. Mesmo assim, de vez em quando agrada-me vir a um sítio
destes.
- Senti-me verdadeiramente sozinho durante estes dois últimos meses.
- Sim, eu sei. Disseste-mo nas cartas - retorquiu ela num tom neutro. - Bem,
vamos comer. Por agora só consigo pensar em comer.
Comemos todos os pequenos itens fritos, grelhados e salgados dispostos nos
diferentes compartimentos das nossas elegantes caixas de almoço de papel lustroso
em forma de meia-lua, bebemos a sopa simples das tigelas laçadas e o chá verde
das chávenas brancas. Depois a Midori fumou um cigarro. Quando acabou de fumar,
levantou-se sem dizer palavra e pegou no guarda-chuva. Segui-a.
- Aonde queres ir agora? - perguntei-lhe.
- Para o terraço, obviamente. É a paragem seguinte depois de se almoçar num
centro comercial.
Não havia ninguém no terraço à chuva, nenhum empregado na loja de animais de
estimação, os quiosques e a cabina de venda de bilhetes para as diversões das
crianças estavam fechados. Abrimos os guarda-chuvas e deambulámos por entre
cavalos de madeira, cadeiras de jardim e bancas completamente encharcados.
Parecia inacreditável que pudesse haver um local tão desprovido de pessoas
no centro de Tóquio. A Midori disse que queria olhar pelo telescópio; inseri
uma moeda e segurei no guarda-chuva para ela poder espreitar através do óculo.
Numa das extremidades do terraço havia uma área recreativa coberta, com várias
diversões para as crianças.
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Disse-me para parar de te ver. Disse que, se continuasse a ver-te, teria que
romper com ele primeiro.
- E o que fizeste?
- Rompi com ele. Sem tirar nem pôr. - Enfiou outro cigarro entre os lábios,
escudou-o com a mão para o acender e começou a inalar.
- Porquê?
- «Porquê?»! - gritou. - Estás louco? Sabes o modo conjuntivo em inglês, percebes
de trigonometria, consegues ler Marx e não sabes a resposta a uma coisa assim
tão simples? E ainda perguntas? Por que razão obrigas uma rapariga a dizer
uma coisa destas? Gosto mais de ti do que dele, é tudo. Quem me dera ter-me
apaixonado por alguém mais bonito, é claro. Mas não aconteceu. Apaixonei-me
por tti.
Tentei dizer algo, mas sentia as palavras presas na garganta.
A Midori atirou o cigarro para uma poça de água. - Queres fazer o favor de
não fazeres essa cara? Vais-me pôr a chorar. Não te preocupes, eu sei que estás
apaixonado por outra pessoa. Não espero nada de ti. Mas o mínimo que podes
fazer é dar-me um abraço. Foram dois meses difíceis para mim.
Fomos para trás da área recreativa e abraçámo-nos com força. Comprimimos os
corpos um contra o outro e beijámo-nos. O cheiro da chuva prendia-se ao seu
cabelo e ao casaco de ganga. As raparigas tinham um corpo tão suave e quente!
Sentia os seus seios comprimidos através da roupa contra o meu peito. Há quanto
tempo fora o meu último contacto físico com outro ser humano?
- Da última vez que estive contigo, falei com ele nessa mesma noite e acabámos
tudo - disse a Midori.
- Amo-te - disse-lhe. - Do fundo do coração. Nunca mais te quero perder. Mas
não há nada que eu possa fazer. Não consigo decidir-me.
- Por causa dela? Anuí com a cabeça.
- Diz-me, já dormiste com ela?
- Uma vez. Há um ano.
- E nunca mais estiveste com ela?
- Sim, estive: duas vezes. Mas não fizemos nada.
- Por que não? Ela não te ama?
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- Não vejo em que aspectos poderias mudar. Portanto, a tua maneira de ser agrada-me
tal como é.
- Gostas muito de mim? - perguntou.
- O suficiente para amansar todos os tigres do mundo.
- Que rebuscado - comentou com laivos de satisfação. - Abraças-me outra vez?
Fomos para a cama e abraçámo-nos e beijámo-nos enquanto o som da chuva envolvia
tudo. Depois conversámos sobre imensos assuntos, desde a criação do universo
até às nossas preferências pessoais relativamente à consistência dos ovos
cozidos.
- O que farão as formigas nos dias de chuva? - perguntou.
- Não faço ideia. São trabalhadoras árduas e provavelmente passam o dia a limpar
a casa ou a recolher mantimentos.
- Se trabalham tão arduamente, por que razão não evoluem? Têm-se mantido iguais
desde sempre.
- Não sei. Talvez a sua estrutura corporal não seja adequada à evolução, em
comparação com os macacos, por assim dizer.
- Ei, Watanabe, há muitas coisas que desconheces. Pensei que sabias tudo.
- O mundo lá fora é imenso - retorqui.
- Montanhas altas, oceanos profundos - disse ela. Enfiou a mão dentro do meu
roupão e agarrou na minha erecção. Depois, engoliu em seco e disse: - Ei, Watanabe,
agora falando a sério, isto não vai resultar. Nunca vou conseguir enfiar esta
coisa enorme e dura dentro de mim. Nem pensar.
- Estás a brincar - respondi com um suspiro.
- Yup - disse ela, soltando uma risadinha nervosa. - Não te preocupes. Tudo
correrá bem. Tenho a certeza de que encaixará. Hã, importas-te que dê uma olhada?
- À vontade.
Enfiou-se debaixo dos cobertores e tacteou-me o corpo até ao baixo-ventre;
depois esticou a pele do pénis e sopesou os testículos na palma da mão. Enfiou
a cabeça de fora e suspirou. - Estou a adorar! Não estou a dizer por dizer!
Adoro realmente!
- Obrigada - retorqui simplesmente.
- Mas, de facto, Watanabe, não queres fazer aquilo comigo, pois não, até resolveres
definitivamente aquele assunto?
- Quero absolutamente fazê-lo contigo. Quase enlouqueço por o desejar tanto.
Mas não seria correcto.
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À noite, a Midori foi fazer compras para o jantar. Comemos tempura e arroz
de ervilhas, acompanhando com cerveja.
- Come muito para teres muito sémen - disse-me. - E depois serei simpática
contigo e ajudo-te a livrares-te dele.
- Muito obrigado.
- Conheço várias maneiras de o fazer. Aprendi nas revistas femininas que tínhamos
na livraria. Certa vez publicaram um número especial inteiramente dedicado
ao modo de tratar o marido para que ele não enganasse a esposa quando esta
estivesse grávida e não pudesse ter sexo. Há imensas maneiras. Queres tentar
algumas?
- Mal posso esperar.
Depois de nos despedirmos, comprei um jornal na estação; todavia, quando o
abri no comboio, apercebi-me de que não sentia qualquer desejo de ler e, de
facto, não compreendia o que dizia. Conseguia apenas olhar fixamente para a
incompreensível página impressa enquanto me interrogava sobre o que iria
acontecer-me doravante e como as coisas à minha volta iriam mudar. Tinha a
sensação de que o mundo pulsava intermitentemente. Soltei um profundo suspiro
e fechei os olhos. Não sentia o mínimo arrependimento em relação aos
acontecimentos desse dia; tinha a certeza de que viveria este dia exactamente
do mesmo modo se tivesse que o fazer de novo. Abraçaria firmemente a Midori
no terraço à chuva; ficaria encharcado ao lado dela; e deixaria que os seus
dedos me provocassem um orgasmo deitado na cama dela. Não tinha dúvidas sobre
estas coisas. Amava a Midori e estava feliz por ela ter voltado para mim. Ambos
poderíamos construir uma relação, era uma certeza. Tal como ela própria dissera,
era uma rapariga real e verdadeira, com sangue nas veias, e entregava o seu
corpo nos meus braços. Tentara suprimir o intenso desejo que sentia de a despir,
de expor o seu corpo e mergulhar no seu calor. Foi-me impossível deter-me assim
que agarrou no meu pénis e começou a acariciar-mo. Queria que ela o fizesse,
ela queria fazê-lo e estávamos apaixonados. Quem conseguiria deter um tal ímpeto?
Era verdade.- eu amava a Midori. E provavelmente já o sabia há algum tempo.
Simplesmente, esquivara-me a essa conclusão durante muito tempo.
O problema era que nunca iria conseguir explicar esta situação à Naoko.
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Teria sido difícil em qualquer altura, mas, dado o presente estado dela, nunca
poderia dizer-lhe que me apaixonara por outra rapariga. Além do mais, ainda
amava a Naoko. Amava-a, por mais retorcido que esse amor pudesse ser. Algures
dentro de mim existia ainda um espaço amplo, aberto e intocado para a Naoko
e para mais ninguém.
Havia uma coisa que eu podia fazer: escrever uma carta à Reiko a confessar-lhe
tudo com total honestidade. Já em casa, sentei-me na varanda a contemplar a
chuva a cair no jardim à noite enquanto ordenava frases na minha cabeça. Depois
sentei-me à secretária e redigi a carta. É quase insuportável para mim ter
que escrever-te agora uma carta assim, comecei por escrever. Resumi-lhe o meu
relacionamento com a Midori e expliquei-lhe o que acontecera nesse dia.
Sempre amei a Naoko e ainda a amo. Mas há uma finalidade decisiva no que nasceu
entre mim e a Midori. Criou-se um irresistível poder que irá levar-me em direcção
ao futuro. O que sinto pela Naoko é um amor tremendamente calmo, delicado e
transparente, mas o que sinto pela Midori é uma emoção completamente diferente.
É um sentimento com vida própria, vívido, pulsante, vigoroso e abala-me até
à raiz do meu ser. Não sei o que fazer. Estou confuso. Não estou a tentar
desculpar-me, mas acredito que tenho vivido do modo mais sincero que me é possível.
Nunca menti a ninguém e durante todos estes anos tive o cuidado de nunca magoar
as outras pessoas. E, no entanto, dou por mim perdido dentro de um labirinto.
Como pode isto ser? Não consigo explicar. Não sei o que deva fazer. Podes ajudar-me,
Reiko? És a única pessoa a quem posso recorrer.
Enviei a carta nessa mesma noite, por correio expresso. Recebi a resposta da
Reiko cinco dias depois, datada de 17 de Junho.
Começo com as boas notícias. A Naoko tem recuperado mais rapidamente do que
alguém poderia esperar.
322
Conversei com ela ao telefone e falou com uma verdadeira lucidez. Talvez possa
regressar para aqui em breve. E agora, quanto a ti.
Acho que encaras tudo com demasiada seriedade. Amar outra pessoa é uma coisa
maravilhosa e, se esse amor é sincero, ninguém acaba perdido num labirinto.
Deverias ter mais fé em ti mesmo.
O conselho que te dou, é muito simples. Em primeiro lugar, se te sentes tão
atraído por essa Midori, o mais natural é apaixonares-te por ela. Pode correr
bem ou não. Mas o amor é assim. Quando nos apaixonamos, a coisa mais natural
afazer é entregarmo-nos a esse sentimento. É o que eu penso. É apenas uma forma
de sinceridade.
Em segundo lugar, quanto a teres ou não sexo com a Midori: é uma questão que
tu próprio deves resolver. Não posso dizer nada. Conversa com ela e decide
por ti mesmo, uma decisão que faça sentido para ti.
Em terceiro lugar, não contes nada disto à Naoko. Se se chegar ao ponto em
que tiveres absolutamente que lhe contar, então elaboraremos juntos um bom
plano. Mantém isso em segredo, por enquanto. Deixa isso comigo. Em quarto lugar,
devo dizer-te que tens sido uma tal força para a Naoko e, mesmo que já não
sintas amor por ela, há ainda muita coisa que podes fazer por ela. Portanto,
não matutes nas coisas dessa maneira super-séria. Todos nós (e refiro-me mesmo
a todos nós, pessoas normais e não tão normais) somos seres humanos imperfeitos
vivendo num mundo imperfeito. Não vivemos com a precisão mecânica de um
contabilista ou sempre a medirmos todas as nossas linhas e ângulos com réguas
e transferidores. Não tenho razão? Sinto que a Midori é uma rapariga maravilhosa.
Ao ler a tua carta, compreendo por que razão te sentes atraído por ela. E também
compreendo por que razão te sentes igualmente atraído pela Naoko. Não há nada
de pecaminoso nisso. Essas coisas acontecem a todo o momento neste nosso mundo
enorme e maravilhoso. É como dar um passeio de barco num belo lago
323
num dia encantador e pensar que o céu e o lago são igualmente belos. Portanto,
pára de te consumires. As coisas acabarão por fazer sentido se as deixares
seguir o seu curso natural. Por mais que te esforces, há pessoas que acabarão
por ficar magoadas. A vida é assim. As minhas palavras talvez soem como se
estivesse a pregar de um púlpito, mas já está na altura de aprenderes a viver
assim. Esforças-te demasiado para fazer a vida encaixar no teu modo de fazer
as coisas. Se não queres ser internado num asilo para loucos, tens que te abrir
um pouco mais e abandonares-te ao fluxo natural da vida. Eu própria sou impotente
e imperfeita, mas, mesmo assim, há alturas em que penso que a vida pode ser
maravilhosa! Acredita em mim, é a verdade! Portanto, pára e mostra-te feliz.
Esforça-te para seres feliz!
Escuso de dizer que lamento que tu e a Naoko não tivessem levado as coisas
até a um final feliz. Mas quem sabe o que é melhor? É por isso que deves agarrar
todas as oportunidades de felicidade com que te depares e não deves preocupar-te
demasiado com as outras pessoas. A minha experiência diz-me que durante a vida
não temos mais de duas ou três oportunidades assim e, se as deixarmos escapar,
arrepender-nos-emos para o resto das nossas vidas.
Tenho tocado guitarra todos os dias, para ninguém em particular. Parece-me
um pouco inútil. Também não gosto das noites escuras e chuvosas. Espero ter
outra oportunidade para tocar guitarra e comer uvas na tua companhia e da Naoko
aqui comigo. Ah, bem, até lá... Reiko Ishida.
324
11.
A Reiko escreveu-me várias vezes depois da morte da Naoko. A culpa não foi
minha, dizia ela. A culpa não fora de ninguém. Tal como não se pode culpar
ninguém por chover. Mas eu nunca respondi às suas cartas. O que poderia eu
dizer-lhe? Teria modificado alguma coisa? A Naoko já não existia neste mundo,
tornara-se num punhado de cinzas.
Realizou-se uma discreta cerimónia fúnebre pela Naoko em Kobe, no final de
Agosto, e depois regressei a Tóquio. Informei o meu senhorio e o meu patrão
no restaurante italiano de que estaria ausente durante algum tempo. Escrevi
um bilhete curto à Midori: por enquanto não poderia dizer-lhe nada, mas esperava
que ela aguardasse por mim um pouco mais. Passei os três dias seguintes no
cinema e, depois de ter visto todos os filmes estreados em Tóquio, preparei
a mochila, levantei todas as minhas poupanças do banco, dirigi-me para a Estação
de Shinjuku e apanhei o primeiro comboio expresso que saía da cidade.
É-me impossível recordar todos os locais por onde viajei. Lembro-me perfeitamente
das paisagens, dos sons e dos cheiros, mas os nomes das cidades desvaneceram-se,
bem como qualquer noção de ordenação geográfica. Viajava de cidade para cidade,
de comboio, de camioneta ou à boleia nalgum camião, estendia o saco-cama em
parques de estacionamento vazios, estações, parques, nas margens de rios ou
na praia. Certa vez cheguei a persuadir os polícias a deixarem-me dormir num
canto do posto da polícia local e outras vezes dormi ao lado de um cemitério.
Não me importava onde dormia, desde que permanecesse longe das pessoas e pudesse
dormir o tempo que me apetecesse. Exaurido pelas caminhadas, enfiava-me dentro
do saco-cama, emborcava whisky baratucho e adormecia rapidamente.
325
Passei por cidades encantadoras onde as pessoas me davam comida e incenso para
afastar os mosquitos, e por cidades não tão encantadoras onde as pessoas chamavam
a polícia para me expulsarem dos parques. Era-me totalmente indiferente. Tudo
o que desejava era dormir em cidades desconhecidas.
Quando o dinheiro começava a escassear, trabalhava temporariamente durante
alguns dias até conseguir o dinheiro necessário. Havia sempre algum trabalho
para eu fazer. Limitava-me a avançar de cidade em cidade, sem qualquer destino
em mente. O mundo era enorme, cheio de coisas bizarras e pessoas estranhas.
Certa vez telefonei à Midori porque precisava de ouvir a sua voz.
- O semestre já começou há muito tempo, sabes - declarou. - Alguns docentes
começam já a pedir os trabalhos. Que vais fazer! Tens consciência de que estás
incontactável há três semanas já? Onde estás? O que andas a fazer?
- Desculpa, mas ainda não posso regressar a Tóquio. Ainda não.
- E é tudo o que tens para me dizer?
- Não tenho realmente mais nada que possa dizer-te neste momento. Talvez em
Outubro...
Desligou sem me dizer mais nada.
Continuei a viajar. Permanecia ocasionalmente num abrigo nocturno para tomar
um banho e barbear-me. A minha imagem no espelho era horrível. O sol secara-me
a pele, tinha os olhos encovados e estranhas manchas e cortes nas faces. Parecia
que acabara de rastejar para fora de uma caverna, mas continuava a ser eu,
afinal de contas. Era eu.
Comecei a percorrer a costa, o mais afastado possível de Tóquio: talvez estivesse
em Tottori ou na baía interior de Hyogo. Caminhar ao longo do litoral era fácil.
Encontrava sempre um local confortável para dormir na areia. Improvisava uma
fogueira com madeira trazida pela maré e grelhava algum peixe seco que comprava
a um pescador local. Depois emborcava whisky e escutava as ondas enquanto pensava
na Naoko. Era demasiado estranho pensar que ela estava morta e já não fazia
parte deste mundo. Não conseguia interiorizar esta verdade. Não conseguia
acreditar. Eu próprio ouvira os pregos a serem martelados na tampa do caixão,
mas ainda não conseguia habituar-me ao facto de que ela voltara para o nada.
326
Não, a imagem dela era ainda demasiado vívida na minha memória. Ainda conseguia
vê-la a enfiar o meu pénis na boca, com o cabelo tombando sobre a minha barriga.
Sentia ainda o seu calor e a sua respiração contra a minha pele, e aquele momento
indefeso em que não podia fazer mais nada a não ser vir-me. Conseguia recordar-me
nitidamente de tudo isto como se tivesse acontecido apenas há cinco minutos
atrás e sentia claramente que a Naoko continuava ao meu lado, que me bastaria
estender a mão para lhe tocar. Mas não, ela não estava ali, o seu corpo abandonara
já este mundo.
Nas noites em que me era impossível adormecer, era assolado por imagens da
Naoko e não conseguia afastá-las da mente. Havia demasiadas memórias dela
acumuladas dentro de mim e sempre que alguma delas encontrava a mais ínfima
abertura, as restantes escapavam-se forçosamente num fluxo infindável, numa
maré imparável: a Naoko de capa de chuva amarela a limpar o galinheiro e a
carregar o saco da ração naquela manhã chuvosa; o bolo de aniversário sem
consistência e a sensação das lágrimas da Naoko a empaparem-me a camisa (sim,
também nesse dia chovera); a Naoko caminhando ao meu lado no Inverno e envergando
o casaco de chamalote; a Naoko tocando no gancho que usava sempre; a Naoko
a perscrutar-me com aqueles seus olhos incrivelmente límpidos; a Naoko sentada
no sofá, de pernas levantadas debaixo da camisa de noite azul e com o queixo
apoiado nos joelhos.
Estas memórias abatiam-se contra mim como as ondas de uma maré impetuosa e
arrastavam-me para um lugar estranho e desconhecido - um lugar onde convivia
com os mortos. Era aí que a Naoko vivia e podia falar com ela e abraçá-la.
Nesse lugar, a morte não era um elemento decisivo que punha fim à vida. Nesse
lugar a morte não passava de mais um dos inúmeros elementos que constituíam
a vida. Era aí que a Naoko vivia dentro dela própria, e disse-me: «Não te preocupes,
trata-se simplesmente da morte. Não deixes que isso te perturbe».
Eu não sentia qualquer tristeza nesse local estranho. A morte era a morte e
a Naoko era a Naoko. «O que te preocupa?», perguntou-me com um sorriso tímido,
«Estou aqui, não estou?». Os seus pequenos gestos familiares apaziguavam-me
o coração como um bálsamo. «Se a morte é isto», pensei, «então a morte não
é assim tão má».
327
«É verdade», disse a Naoko, «a morte é uma coisa simples. Não passa de morte.
Aqui as coisas são mais fáceis para mim». A Naoko falava comigo nos intervalos
entre a rebentação das ondas escuras.
Todavia, a maré acabaria por refluir e eu ficaria sozinho na praia. Sentia-me
impotente, não havia destino para onde pudesse ir, a própria tristeza envolvia-me
naquela profunda escuridão até as lágrimas jorrarem. Sentia que não era tanto
um choro, mas que as lágrimas simplesmente exsudavam de mim como uma transpiração.
Aprendera algo com a morte do Kizuki e acreditara que transformara esse facto
numa parte de mim sob a forma de uma filosofia: «A morte existe, não como o
contrário da vida mas como parte dela».
Nutrimos a morte enquanto vivemos as nossas vidas. Por mais verdadeiro que
isto fosse, era apenas uma das verdades que tínhamos de aprender. Foi isto
o que aprendi com a morte da Naoko: nenhuma verdade consegue curar a tristeza
que sentimos com a perda de um ente amado. Nenhuma verdade, nenhuma sinceridade,
nenhuma força, nenhuma generosidade consegue curar essa mágoa. Tudo o que podemos
fazer, é suportar essa tristeza até ao fim e aprender algo com isso, mas o
que aprendemos não nos ajudará a enfrentar a próxima tristeza que se abater
sobre nós sem prévio aviso. Concentrava-me nestes pensamentos dia após dia,
ouvindo as ondas à noite e escutando o som do vento. De mochila às costas e
areia no cabelo, avançava cada vez mais para oeste, sobrevivendo à base de
uma dieta de whisky, pão e água.
Numa noite ventosa, enquanto jazia agasalhado no saco-cama e chorava lágrimas
ao lado do casco de um navio abandonado, um jovem pescador passou por perto
e ofereceu-me um cigarro. Aceitei e fumei o meu primeiro cigarro há mais de
um ano. Perguntou-me por que razão chorava e, quase instintivamente, disse-lhe
que a minha mãe morrera. Contei-lhe que, incapaz de suportar a tristeza, me
fizera à estrada. Expressou-me a sua profunda compaixão e foi a casa buscar
uma enorme garrafa de saque e dois copos.
O vento varria a praia enquanto bebíamos sentados na areia.
328
Disse-me que também perdera a mãe, aos dezasseis anos: uma mulher sempre adoentada
que se extenuara a trabalhar de manhã à noite. Ouvia-o um pouco distraidamente
enquanto beberricava o saque e de vez em quando respondia-lhe com um grunhido.
Tinha a sensação de estar a ouvir uma história oriunda de um mundo longínquo.
De que raios estava ele a falar?, perguntei-me, e senti de repente uma fúria
intensa: apetecia-me estrangulá-lo. Mas que raios me importava a mãe dele?!
Eu perdera a Naoko! O seu belo corpo desaparecera deste belo mundo! Por que
raios estava ele a falar-me da maldita da mãe?!
Mas a minha fúria dissipou-se tão rapidamente quanto deflagrara. Fechei os
olhos e continuei a ouvir distraidamente a sua infindável história. A certa
altura, perguntou-me se já tinha comido. Respondi-lhe que não, mas que tinha
pão, queijo, um tomate e uma barra de chocolate na mochila. Que comera eu ao
almoço?, perguntou-me. Pão, queijo, um tomate e chocolate, respondi-lhe. -
Espera aqui - disse-me, e afastou-se. Tentei detê-lo, mas desapareceu na
escuridão sem olhar para trás.
Continuei a beberricar o saque. A praia estava juncada de cinzas de papel do
fogo de artifício que haviam lançado no local e as vagas rebentavam com um
rugido enlouquecedor. Surgiu um cão escanzelado a abanar a cauda e começou
a farejar em redor da minha pequena fogueira à procura de algo para comer,
mas acabou por desistir e afastar-se.
O jovem pescador regressou meia hora depois com duas caixas de sushi e uma
nova garrafa de saque. Aconselhou-me a comer imediatamente o conteúdo da caixa
de cima porque continha peixe; a caixa de baixo continha apenas bolos de algas
e tiras de tofu bem crestadas que durariam até ao dia seguinte. Encheu novamente
os copos. Agradeci-lhe e devorei sozinho todo o conteúdo da primeira caixa,
embora fosse o suficiente para duas pessoas. Depois de bebermos todo o saque
que conseguimos emborcar, ofereceu-se para me alojar durante a noite; contudo,
quando lhe disse que preferia dormir sozinho na praia, não insistiu. Quando
se preparava para partir, tirou do bolso uma nota de cinco mil ienes dobrada
e enfiou-a no bolso da minha camisa. - Toma - disse-me -, compra comida saudável.
Estás com um aspecto horrível.
329
- Disse-lhe que fizera mais do que o suficiente por mim e que não poderia aceitar
o dinheiro, mas recusou-se a aceitá-lo de volta. -Não se trata do dinheiro
- disse-me -, mas dos meus sentimentos. Aceita simplesmente o dinheiro. - Aceitei
e agradeci-lhe.
Quando partiu, lembrei-me subitamente da minha antiga namorada, a rapariga
com quem dormira pela primeira vez no início do liceu. Senti calafrios ao
aperceber-me de como a tratara mal. Ignorara quase por completo as suas ideias,
os sentimentos e a dor que lhe causara. Era tão doce e gentil, mas nessa época
eu aceitara essa doçura como garantida e posteriormente quase nem pensara nela.
Que estaria ela a fazer agora? Ter-me-ia perdoado?
Fui abalado por uma onda de náusea e vomitei junto da velha embarcação. Doía-me
a cabeça devido à quantidade de saque e estava arrependido por ter mentido
ao pescador e aceitado o seu dinheiro. Decidi que estava na altura de regressar
a Tóquio, não conseguiria prolongar isto para sempre. Enfiei o saco-cama na
mochila, coloquei-a às costas e dirigi-me para a estação ferroviária local.
Disse ao homem da bilheteira que pretendia partir para Tóquio o mais rápido
possível. Verificou os horários e disse-me que poderia estar em Osaka pela
manhã se fizesse o transbordo de um comboio nocturno para outro, podendo depois
apanhar o comboio rápido a partir de Osaka. Agradeci-lhe e comprei o bilhete
para Tóquio com a nota de cinco mil ienes que o pescador me dera. Enquanto
esperava pelo comboio, comprei um jornal e verifiquei a data: dois de Outubro
de 1970. Por conseguinte, viajara durante um mês inteiro; sabia agora que tinha
de voltar para o mundo real.
Aquele mês de viagem não me animara nem atenuara a dor pela morte da Naoko.
Regressei a Tóquio praticamente com o mesmo estado de espírito com que partira.
Nem sequer sentia ânimo para telefonar à Midori. Que iria dizer-lhe? Como iria
começar? «Tudo terminou já, tu e eu podemos ser felizes agora»? Não, isso estava
fora de questão. Por mais que o refraseasse, os factos mantinham-se: a Naoko
estava morta e a Midori continuava neste mundo. A Naoko era agora um montículo
de cinzas brancas e a Midori era um ser humano vivo.
Sentia-me avassalado pelo sentimento da minha própria degradação. Embora tivesse
regressado a Tóquio,
330
não fiz nada durante dias e mantive-me fechado em casa. A minha memória continuava
fixa nos mortos e não nos vivos. As divisões que iriam supostamente ser ocupadas
pela Naoko encontravam-se cerradas, a mobília coberta com lençóis brancos e
os parapeitos das janelas recobertos de poeira. Passava a maior parte dos dias
nessas divisões. E pensava no Kizuki. «Finalmente conseguiste que a Naoko fosse
tua», disse-lhe em pensamento. «Pois bem, ela foi tua desde o início. Agora
talvez se encontre no local a que pertence. Mas neste mundo, neste imperfeito
mundo dos vivos, fiz tudo ao meu alcance pela Naoko. Tentei estabelecer uma
nova vida para os dois. Mas não faz mal, Kizuki. Ofereço-ta. Foste tu quem
ela escolheu, afinal de contas. Ela enforcou-se num bosque tão escuro quanto
as profundezas do seu coração. Houve uma altura em que tu próprio arrastaste
parte de mim para o mundo dos mortos e agora a Naoko arrastou a outra parte
de mim para esse mundo. Às vezes sinto-me como o vigilante de um museu: um
museu enorme e vazio que ninguém vem visitar e onde me limito a vigiar-me apenas
a mim próprio».
Recebi uma carta da Reiko por correio expresso quatro dias após o meu regresso
a Tóquio. Tratava-se de um simples bilhete: Não consigo entrar em contacto
contigo há semanas e estou preocupada. Por favor, telefona-me. Aguardarei junto
do telefone desde as nove da manhã até às nove da noite.
Telefonei-lhe às nove horas dessa mesma noite. Atendeu-me imediatamente.
- Encontras-te bem? - perguntou-me.
- Mais ou menos.
- Posso visitar-te depois de amanhã?
- Visitares-me? Aqi» em Tóquio?
- Foi exactamente isso o que eu disse. Gostaria de ter uma longa conversa contigo.
- Vais sair do sanatório?
- É a única maneira de poder visitar-te, não é? De qualquer modo, já está na
altura de sair daqui. Já estou aqui há oito anos. Se me mantiverem aqui durante
mais tempo, acabarei por apodrecer.
Era-me difícil falar. Após um breve silêncio, a Reiko prosseguiu: - Chegarei
depois de amanhã no comboio rápido das 15:20.
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- Não existe nenhum caminho meu que possas atravessar. Olhou para mim e curvou
os cantos da boca num sorriso, mas manteve-se em silêncio.
Quase não falámos durante o resto do percurso até à Estação de Kichijoji, nem
no autocarro até minha casa. Trocámos alguns comentários aleatórios acerca
das mudanças na cidade de Tóquio, sobre a época em que ela estudara no Conservatório
de Música e sobre a minha viagem a Asahikawa, mas não referimos a Naoko. Haviam-se
passado dez meses desde a última vez que vira a Reiko, mas, enquanto caminhava
ao seu lado, sentia-me estranhamente calmo e reconfortado. Era uma sensação
familiar e ocorreu-me então que costumava sentir-me assim quando percorria
as ruas de Tóquio com a Naoko. E, tal como eu e a Naoko partilháramos o falecido
Kizuki, agora eu e a Reiko partilhávamos a falecida Naoko. Este pensamento
remeteu-me ao silêncio. A Reiko continuou a falar durante algum tempo, mas
também se calou assim que se apercebeu de que eu me mantinha em silêncio. Não
trocámos mais palavras durante a viagem de autocarro.
Era uma dessas extemporâneas tardes outonais em que a luz é clara e intensa,
exactamente como há um ano atrás quando fui visitar a Naoko a Quioto. As nuvens
brancas eram delgadas e o céu apresentava-se límpido. A fragrância da brisa,
a tonalidade da luz, as minúsculas flores por entre a relva, as subtis
reverberações que acompanhavam os sons: tudo isto me revelava que o Outono
se instalara uma vez mais, aumentando a distância entre mim e os mortos a cada
novo ciclo das estações. O Kizuki continuava com dezassete anos e a Naoko com
vinte e um: para sempre.
- Oh, que alívio vir para um lugar destes! - exclamou a Reiko, olhando em seu
redor quando saímos do autocarro.
- Deve ser porque aqui não há nada - comentei.
A Reiko estava impressionada com tudo o que via enquanto a conduzia pelo portão
das traseiras e através do jardim para dentro de casa.
- Isto é maravilhoso! - afirmou. - Foste tu que fizeste estas prateleiras e
a secretária?
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durante mais tempo para poderem prosseguir com uma terapia intensa que daria
os seus frutos a longo prazo. Contei-te isso na minha carta, na carta que te
enviei por volta do dia dez de Agosto.
- Sim, eu li a carta.
- Bem, no dia vinte e quatro de Agosto recebi um telefonema da mãe da Naoko
a perguntar-me se a Naoko poderia visitar-me no sanatório, pois queria embalar
as coisas que deixara à minha guarda e, como não iria ver-me durante algum
tempo, desejava ter uma demorada conversa comigo e talvez passar a noite comigo.
Disse-lhe que seria formidável. Sentia de facto um desejo enorme de voltar
a vê-la e conversar com ela. A Naoko e a mãe chegaram de táxi no dia seguinte,
no dia vinte e cinco. Ocupámo-nos as três a embalar as coisas da Naoko enquanto
conversávamos. Ao final da tarde, a Naoko disse que a mãe poderia voltar para
casa, que ela própria ficaria bem; portanto, chamou um táxi e a mãe partiu.
Nem a mãe nem eu estávamos minimamente preocupadas, pois a Naoko parecia animada.
Na verdade, sentira-me bastante preocupada. Esperava vê-la deprimida, exausta
e emaciada. Quer dizer, eu sei bem como os exames, a terapia e os hospitais
exigem de nós e sentia verdadeiras dúvidas em relação a esta visita. Mas bastou-me
olhar para ela para me convencer de que se encontrava bem. Parecia bastante
mais saudável do que eu esperava, sempre a sorrir, a brincar e a falar mais
do que quando a vira pela última vez. Tinha ido ao cabeleireiro e estava orgulhosa
do seu novo penteado. Portanto, pensei que não havia motivos para me preocupar
na ausência da mãe. A Naoko disse-me que dessa vez estava disposta a deixar
os médicos do hospital curarem-na de uma vez por todas e que isso era provavelmente
o melhor a fazer. Saímos para dar um passeio e conversámos durante todo esse
tempo, sobretudo acerca do futuro. Disse-me que o seu maior desejo era que
ambas saíssemos do sanatório para vivermos juntas.
- Viverem juntas? Tu e a Naoko?
- Isso mesmo - confirmou a Reiko com um leve encolher de ombros. - Disse-lhe
que me parecia boa ideia, mas perguntei-lhe: «E o Watanabe?». Respondeu: «Não
te preocupes, vou esclarecer tudo com ele». Foi isso o que ela disse. Começou
a falar então do lugar onde viveríamos e do que faríamos. Essas coisas. Depois
fomos brincar com as aves na capoeira.
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Tirei uma cerveja do frigorífico e a Reiko acendeu outro cigarro, com a gata
dormindo profundamente no seu colo.
- Ela tinha planeado tudo já. Tenho a certeza de que era por essa razão que
se mostrava tão enérgica, sorridente e de aspecto saudável. Deve ter sentido
que lhe saíra um peso da mente quando soube exactamente o que iria fazer. Acabámos
de arrumar as suas coisas, deitámos dentro de um contentor de metal aquilo
de que já não precisava e queimámos tudo no jardim: o bloco de apontamentos
que ela usava como diário e todas as cartas que recebera. Inclusivamente as
tuas cartas. A mim pareceu-me um pouco estranho e perguntei-lhe por que razão
estava a queimar essas coisas. Disse-me: «Estou a livrar-me de tudo o que diz
respeito ao passado para poder renascer no futuro». Creio que acreditei
literalmente nas suas palavras. Havia uma espécie de lógica própria. Lembro-me
de ter pensado de como desejava que ela recuperasse e fosse feliz. Ela estava
tão doce e encantadora nesse dia, quem dera que a tivesses visto! Quando terminámos,
fomos jantar à cantina como costumávamos fazer outrora. Depois tomámos um banho,
abri uma garrafa de bom vinho que guardara para uma ocasião especial como aquela
e bebemos enquanto eu tocava guitarra: os Beatles, como sempre, Norwegian Wood,
Michelle, os seus temas favoritos. Ambas nos sentíamos bastante animadas.
Apagámos as luzes, despimo-nos e deitámo-nos nas nossas camas. Estava uma noite
abrasadora. Mantivéramos as janelas abertas, mas quase não soprava a mínima
aragem. Lá fora estava escuro como breu, as cigarras zumbiam e a fragrância
das ervas do Verão era tão intensa dentro do quarto que quase nem conseguíamos
respirar. A Naoko começou a falar inesperadamente acerca da noite em que tivera
sexo contigo. Com incríveis pormenores. Como a despiste, como lhe tocaste,
como ela começara a sentir-se húmida, como a penetraste, como tinha sido
maravilhoso: contou-me tudo isto com vívidos detalhes. Perguntei-lhe por que
razão estava a contar-me aquilo assim de repente. Quer dizer, nunca falara
abertamente de sexo comigo. Evidentemente que tivéramos já conversas francas
acerca do sexo como uma espécie de terapia, mas mostrara-se sempre demasiado
embaraçada para entrar em pormenores. E eu não conseguia pará-la. Sentia-me
chocada.
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Diz-me ela: «Sabes, apetece-me falar contigo sobre este assunto. E, se não
quiseres ouvir, eu paro». «Não», disse-lhe, «Não faz mal. Se sentes necessidade
de falar sobre isso, o melhor é falares então. Ouvirei tudo o que me tenhas
para dizer». A Naoko prosseguiu então com a sua história: «Quando ele me penetrou,
nem queria acreditar como me doía. Afinal de contas, era a minha primeira vez.
Sentia-me tão húmida e ele penetrou-me de imediato, mas continuava com a mente
obnubilada e doía-me tanto. Penetrou-me o mais profundamente possível, pensava
eu, mas depois ele levantou-me as pernas e penetrou-me ainda mais. Sentia
calafrios por todo o corpo, como se tivesse mergulhado em água gelada. Senti
os braços e as pernas dormentes enquanto uma onda de frio me percorria o corpo.
Não sabia o que estava a acontecer. Pensei que ia morrer naquele momento, e
não estava minimamente preocupada. Mas ele apercebeu-se de que eu estava a
sentir dores e parou de se mexer; continuava profundamente dentro de mim e
começou a cobrir-me de beijos: no cabelo, no pescoço, nos seios, durante muito,
muito tempo. O calor regressou gradualmente ao meu corpo e ele recomeçou a
mover-se muito lentamente. Oh, Reiko, foi tão maravilhoso! Sentia que o meu
cérebro estava prestes a desligar-se. Queria ficar assim para sempre, ficar
assim nos seus braços durante o resto da minha vida. Foi tão maravilhoso».
Respondi-lhe: «Se foi assim tão maravilhoso, por que razão não continuaste
com o Watanabe para o fazerem todos os dias?». Mas ela disse-me: «Não, Reiko,
eu sabia que aquilo nunca mais se repetiria. Eu sabia que era algo que só
experimentaria uma vez na vida, algo que depois perderia e nunca mais recuperaria.
Era algo que aconteceria apenas uma única vez durante a minha vida. Nunca sentira
nada assim e, na verdade, nunca mais senti isso. Nunca senti o desejo de o
fazer de novo e nunca mais fiquei assim tão húmida». Evidentemente, expliquei-lhe
que se tratava de algo que acontecia com frequência às mulheres jovens e que,
na maioria dos casos, a cura sobrevinha com a idade. Afinal de contas, aquilo
resultara já uma vez e não deveria preocupar-se com a possibilidade de isso
não voltar a acontecer. Eu própria tivera imensos problemas durante o meu
casamento. No entanto, ela contrapôs-me: «Não, não se trata disso, Reiko.
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Não estou minimamente preocupada com isso. Simplesmente, não quero que alguém
volte a penetrar-me. Não quero ser violada novamente desse modo, por quem quer
que seja».
Continuei a beberricar a minha cerveja e a Reiko acabou de fumar o cigarro.
A gata espreguiçou-se no colo dela, remexeu-se para mudar de posição e adormeceu
de novo. A Reiko parecia não saber como prosseguir e acabou por acender um
terceiro cigarro.
- Depois a Naoko começou a chorar. Sentei-me na borda da cama dela e afaguei-lhe
o cabelo. «Não te preocupes», disse-lhe, «tudo se resolverá. Uma rapariga jovem
e bela como tu tem que ter um homem que a abrace e a faça feliz». A Naoko transpirava
abundantemente e chorava. Peguei numa toalha de banho e limpei-lhe o rosto
e o corpo. Até as suas cuecas estavam molhadas e ajudei-a a tirá-las. Espera
aí, não metas ideias na cabeça, não estava a passar-se nada de estranho. Sempre
tomámos banho juntas. Ela era como uma irmã mais nova para mim.
- Eu sei, eu sei - tranquilizei-a.
- Pois bem, a Naoko pediu-me para a abraçar. Respondi-lhe que estava demasiado
calor para a abraçar, mas ela disse que era a última vez que estaríamos juntas
e, portanto, abracei-a. Apenas durante alguns segundos. A toalha de banho
interposta entre as duas impedia que os nossos corpos suados se tocassem. Quando
acalmou, limpei-a de novo, vesti-lhe a camisa de noite e enfiei-a na cama.
Adormeceu profundamente, quase de imediato. Ou talvez fingisse que dormia.
De qualquer modo, parecia tão doce e encantadora nessa noite, tinha o rosto
de uma menina de treze ou catorze anos que nunca sofrera qualquer mal desde
que nascera. Era essa a expressão que via no seu rosto e sabia que não havia
razões para eu própria não dormir tranquila. Quando acordei na manhã seguinte,
às seis horas, ela desaparecera. A camisa de noite continuava no local onde
ela a deixara, mas as suas roupas, as sapatilhas e a lanterna que mantenho
sempre junto da minha cama tinham desaparecido. Soube imediatamente que havia
algo de errado. Quer dizer, o facto de ela ter levado a lanterna significava
que saíra de noite. Inspeccionei a sua secretária e encontrei o bilhete: Por
favor, dêem todas as minhas roupas à Reiko.
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mas o facto é que estou realmente feliz por usares as roupas da Naoko.
Sorriu e acendeu o cigarro. - Para alguém tão jovem, sabes fazer uma mulher
feliz.
Senti-me enrubescer. - Estou a dizer apenas aquilo que realmente penso.
- Sim, eu sei - disse ela, sorrindo.
Pouco depois, quando o arroz ficou pronto, deitei óleo na panela e preparei
os ingredientes para o sukiyaki.
- Diz-me que isto não é um sonho - comentou a Reiko, cheirando o ar.
- Não, é autêntico sukiyaki. Empiricamente falando, claro. - Em vez de
continuarmos a falar, atacámos o sukiyaki com os pauzinhos, bebemos imensa
cerveja e devorámos o arroz. A Gaivota apareceu, atraída pelo cheiro, e
partilhámos a refeição com ela. Quando nos sentimos saciados, sentámo-nos
encostados às colunas do alpendre enquanto contemplávamos a lua.
- Satisfeita? - inquiri.
- Absolutamente - murmurou. - Nunca comi tanto na minha vida.
- O que te apetece fazer agora?
- Fumar um cigarro e ir a um banho público. O meu cabelo está uma lástima.
Preciso de o lavar.
- Tudo bem. Há um ao fundo da rua.
- Diz-me uma coisa, Watanabe, se não te importas. Dormiste com a tal Midori?
- Se tivemos sexo? Ainda não. Decidimos não o fazer até as coisas se resolverem.
- Bem, agora as coisas já estão resolvidas, não achas? Abanei a cabeça. -Agora
que a Naoko morreu, queres tu dizer?
- Não, não é isso. Tomaste uma decisão muito antes de a Naoko morrer: que nunca
abandonarias a Midori. Quer a Naoko esteja viva ou morta, isso não interfere
na tua decisão. Escolheste a Midori. A Naoko escolheu morrer. És adulto e deves
assumir a responsabilidade das tuas escolhas. Caso contrário, deitarás tudo
a perder.
- Mas não consigo esquecê-la - afirmei. - Eu disse à Naoko que continuaria
a esperar por ela, mas não fui capaz de o fazer. Virei-lhe as costas no fim.
Não estou a dizer que alguém tem culpa:
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Depois sentou-se de novo na varanda, encostada contra uma das colunas, com
a guitarra nos braços enquanto fumava.
- Trazes-me uma caixa de fósforos? A maior que encontrares. Trouxe uma enorme
caixa de fósforos e coloquei-a ao lado dela.
- Ora bem, a minha intenção é pousar um fósforo no chão a cada canção que tocar,
colocá-los numa fileira. Vou tocar todas as canções de que me lembrar.
Começou por tocar uma delicada e encantadora versão de Dear Heart de Henry
Mancini.
- Deste este disco à Naoko, não deste? - perguntou-me.
- Sim, há dois anos, pelo Natal. Ela gostava muito dessa canção.
- Eu também gosto - declarou a Reiko. - É tão doce e bela... - e executou mais
algumas notas da melodia antes de continuar a beberricar o vinho. - Pergunto-me
quantas canções conseguirei tocar antes de ficar completamente embriagada.
Vai ser uma bela cerimónia fúnebre... não tão triste, não achas?
Começou a tocar temas dos Beatles: Norwegian Wood, Yesterday, Michelle e
Something. Cantou e executou Here Comes the Sun e depois The Fool on the Hill.
Coloquei sete fósforos no chão.
- Sete canções - anunciou a Reiko, beberricando mais vinho e fumando outro
cigarro.
- Estes tipos conheciam de facto o que era a tristeza e a delicadeza da vida.
Por «estes tipos», referia-se, evidentemente, a John Lennon, Paul McCartney
e George Harrison. Depois de uma pequena pausa, esmagou o cigarro e pegou de
novo na guitarra. Tocou Penny Lane, Black Bird, Julia, When I'm 64, Nowhere
Man, And I Love Here Heyjude.
- Quantas canções foram?
- Catorze - disse-lhe.
Soltou um suspiro e perguntou-me: - E tu, sabes tocar alguma coisa, alguma
canção?
- Nem pensar. Sou terrível.
- Toca na mesma.
Fui buscar a minha guitarra e arranhei o tema Up on the Roof. A Reiko aproveitou
para fazer uma pausa enquanto fumava e bebia. Quando terminei, aplaudiu-me.
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- Não sejas tonto - disse, dando-me uma pequena sapatada nas nádegas. - Não
te preocupes com isso. Tens sempre essa preocupação quando dormes com raparigas?
- Sim, quase sempre.
- Bem, comigo não precisas de te preocupar com isso. Esquece isso. Abandona-te
a teu bel-prazer. Foi bom?
- Foi fantástico. Foi por isso que não consegui controlar-me.
- Não precisas de te controlar. Foi bom. Também foi maravilhoso para mim.
- Sabes uma coisa, Reiko?
- O quê?
- Devias arranjar um amante. És fantástica. É um desperdício.
- Bem, vou pensar nisso. Mas pergunto-me se as pessoas em Asahikawa terão amantes
e essas coisas.
Minutos depois, fiquei novamente excitado e penetrei-a outra vez. A Reiko reteve
a respiração e contorceu-se debaixo de mim. Movimentava-me lenta e calmamente
enquanto a abraçava e falávamos. Era maravilhoso conversarmos assim. Quando
eu dizia algo divertido e a fazia rir, os seus tremores percorriam-me o pénis.
Continuámos assim abraçados durante muito tempo.
- Oh, isto é maravilhoso! - disse ela.
- Também é bom se me movimentar.
- Fá-lo então. Experimenta.
Levantei-lhe as ancas e penetrei-a profundamente, saboreando depois aquela
sensação de me mover num padrão circular até atingir o clímax e ejacular de
novo.
Unimo-nos quatro vezes nessa noite. De cada uma das vezes, a Reiko ficava abraçada
a mim tremendo levemente e de olhos fechados enquanto soltava um prolongado
suspiro.
- Não vou precisar de fazer isto para o resto da minha vida - declarou. - Oh,
por favor, Watanabe, diz-me que é verdade. Diz-me que agora posso descansar
porque já o fiz as vezes suficientes para uma vida inteira.
- Ninguém te pode dizer isso. Não há maneira de saber.
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Tentei convencê-la que seria mais fácil e mais rápido ir de avião, mas insistiu
em viajar de comboio para Asahikawa.
- Gosto de viajar no ferry para Hokkaido. Não sinto qualquer desejo de viajar
de avião - afirmou. Acompanhei-a até à Estação de Ueno. Ela levava a guitarra
e eu a sua mala. Sentámo-nos num dos bancos da plataforma à espera do comboio.
A Reiko envergava o mesmo casaco de tweed e as mesmas calças brancas que usava
quando chegara a Tóquio.
- Achas realmente que Asahikawa não é um lugar assim tão mau? - perguntou-me.
- É uma cidade agradável. Visitar-te-ei em breve.
- De verdade?
Anuí com a cabeça. - E também te escreverei.
- Adoro receber cartas. A Naoko queimou todas as que lhe enviaste. E eram cartas
magníficas!
- Não passam de pedaços de papel. Se as queimarmos, os sentimentos continuam
dentro do nosso coração. Se as guardarmos, os sentimentos desaparecem.
- Sabes, Watanabe, a verdade é que estou assustada por ir sozinha para Asahikawa.
Portanto, não te esqueças de me escrever. Sempre que ler as tuas cartas,
sentir-te-ei ao meu lado.
- Se é isso que desejas, escrever-te-ei sempre. E não te preocupes. Eu conheço-te
e sei que te desenvencilharás bem para onde quer que vás.
- Só mais uma coisa. Sinto que há algo preso dentro de mim. Será imaginação
minha?
- Não passa de uma memória que perdura - disse-lhe e sorri-lhe. Devolveu-me
o sorriso.
- Não me esqueças - pediu-me.
- Não te esquecerei. Nunca te esquecerei.
- Talvez não nos encontremos de novo, mas, para onde quer que eu vá, lembrar-me-ei
sempre de ti e da Naoko.
Começou a chorar. Beijei-a quase instintivamente.
As pessoas na plataforma começaram a olhar para nós, mas essas coisas já não
me preocupavam. Eu e ela estávamos vivos. E só precisávamos de pensar em continuar
a viver.
- Sê feliz - disse-me a Reiko quando entrava no comboio. - Dei-te já todos
os conselhos que poderia dar-te.
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Não tenho mais nada a dizer-te. Simplesmente, sê feliz. Pega no meu quinhão
e no da Naoko e ajusta-os à tua maneira. Continuámos de mãos dadas por mais
uns momentos e despedimo-nos por fim.
Telefonei à Midori.
- Preciso de falar contigo - disse-lhe. - Há imensas coisas que quero contar-te.
Imensas coisas sobre as quais precisamos de conversar. Tu és tudo aquilo que
eu quero deste mundo. Quero estar contigo e falar contigo. Quero que nós os
dois comecemos tudo de novo.
Respondeu-me com um silêncio prolongado: o silêncio de toda a chuva nebulosa
do mundo a tombar sobre todos os recém-cortados relvados do mundo. Continuei
com a testa encostada contra o vidro enquanto aguardava de olhos fechados.
A voz serena da Midori rompeu por fim o silêncio: - Onde estás agora?
Onde estava eu agora?
Afastei o auscultador, levantei a cabeça e virei-me para ver o que havia para
lá da cabina telefónica. Onde estava eu agora? Não fazia ideia. Não fazia a
mínima ideia. Que lugar era este? Tudo o que perpassava pelos meus olhos eram
os inúmeros vultos de pessoas caminhando para algures. Eu chamava uma e outra
vez pela Midori do centro morto deste lugar que não era lugar nenhum.
Data da Digitalização