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MODERNISMO NO BRASIL

EU SOU TREZENTOS

Mário de Andrade

Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta,


As sensações renascem de si mesmas sem repouso,
Ôh espelhos, ôh! Pireneus! ôh caiçaras!
si um deus morrer, irei no Piauí buscar outro!

Abraço no meu leito as milhores palavras,


E os suspiros que dou são violinos alheios;
Eu piso a terra como quem descobre a furto
Nas esquinas, nos taxis, nas camarinhas seus próprios beijos!

Eu sou trezentos, sou trezentos e cinquenta,


mas um dia afinal eu toparei comigo…
Tenhamos paciência, andorinhas curtas,
Só o esquecimento é que condensa,
E então minha alma servirá de abrigo.
FAVELA
Raul Bopp

Meio-dia.

O morro coxo cochila.


O sol resvala devagarzinho pela rua
torcida como uma costela.

Aquela casa de janelas com dor-de-dente


amarrou um coqueiro do lado.

Um pé de meia faz exercícios no arame.

Vizinha da frente grita no quintal:


— João! Ó João!

Bananeira botou as tetas do lado de fora.


Mamoeiros estão de papo inchado.

Negra acocorou-se a um canto do terreiro.


Pôs as galinhas em escândalo.

Lá embaixo
passa um trem de subúrbio riscando fumaça.

À porta da venda
negro bocejou como um túnel.
Pneumotórax

Febre, hemoptise, dispneia e suores noturnos.


A vida inteira que podia ter sido e que não foi.
Tosse, tosse, tosse.
Mandou chamar o médico:
— Diga trinta e três.
— Trinta e três… trinta e três… trinta e três…
— Respire.
— O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo e o pulmão
direito infiltrado.
— Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?
— Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.

(Manuel Bandeira)
O Bicho

Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão,


Não era um gato,
Não era um rato.

O bicho, meu Deus, era um homem.


Rio, 27 de dezembro de 1947
Andorinha

Andorinha lá fora está dizendo:


— “Passei o dia à toa, à toa!”
Andorinha, andorinha, minha cantiga é mais triste!
Passei a vida à toa, à toa…
Consoada

Quando a Indesejada das gentes chegar


(Não sei se dura ou caroável),
talvez eu tenha medo.
Talvez sorria, ou diga:
— Alô, iniludível!
O meu dia foi bom, pode a noite descer.
(A noite com os seus sortilégios.)
Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,
A mesa posta,
Com cada coisa em seu lugar.
O Cacto

Aquele cacto lembrava os gestos desesperados da


estatuária:
Laocoonte constrangido pelas serpentes,
Ugolino e os filhos esfaimados.
Evocava também o nosso seco Nordeste, carnaubais,
caatingas…
Era enorme, mesmo para esta terra de feracidades
excepcionais.

Um dia um tufão furibundo abateu-o pela raiz.


O cacto tombou atravessado na rua,
Quebrou os beirais do casario fronteiro,
Impediu o trânsito de bondes, automóveis, carroças,
Arrebentou os cabos elétricos e durante vinte e quatro
horas privou a cidade de iluminação e energia:

– Era belo, áspero, intratável.

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