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A metáfora do labirinto

O Ano da Morte de Ricardo Reis


José Saramago
O labirinto
«O mundo tal qual surge aos personagens de O Ano da Morte de Ricardo Reis poderia ser metaforizado pelo
labirinto, por sugestão mesma do discurso. Nesse caos de perdição, viver é partir em busca do fio de Ariadne,
embora nem a todos seja dado o destino de Teseu. Para muitos a presença esmagadora do Minotauro anula a
possibilidade da busca e deixam-se, então, devorar por terem sido incapazes de solucionar o grande enigma.
Essa busca é, finalmente, mais uma imagem da luta contra a morte, o absurdo, a dor existencial. Sucumbir é
morrer, é abdicar da saída, é submeter-se definitivamente ao desconhecido, é nunca decifrar o mistério. Essa
caminhada é fundamentalmente solitária, a sua experiência, sempre individual»

Teresa Cristina Cerdeira da Silva, José Saramago – entre a história e a ficção: uma saga de portugueses,
Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1989, p. 146.
The god of the labyrinth, Herbert Quain

• Livro que acompanha Ricardo Reis ao longo de toda a obra:


«A estas horas, se o bibliotecário irlandês deu pela falta, grossas e gravosas acusações hão de ter sido
feitas à lusitana pátria, terra de escravos e ladrões, como disse Byron e dirá O’Brien, destas mínimas
causas, locais, é que costumam gerar-se grandes e mundiais efeitos, mas eu estou inocente, juro-o, foi
deslembrança, só, e nada mais. Pôs o livro na mesa de cabeceira para um destes dias o acabar de ler,
apetecendo, é seu título The god of the labyrinth, seu autor Herbert Quain, irlandês também, por não
singular coincidência, […]»
José Saramago, O Ano da Morte de Ricardo Reis, 21ª ed., Alfragide, Editorial Caminho, 2013, p. 26.

➢ é trazido por esquecimento (?) da biblioteca do Highland Brigade.

• O narrador informa-nos sobre o género do livro – policial:


«salvo se se trata duma vera investigação criminal, como lateralmente nos vem ensinando The god of
the labyrinth.» (José Saramago, op. cit., p. 162)
The god of the labyrinth, Herbert Quain

Ricardo Reis e o labirinto


«Ricardo Reis é obcecado pelo labirinto, encontra-se nele, e não lhe busca efetivamente a saída. O Livro, The
god of the labyrinth, por si só labirinto textual das Ficções de Borges, trazido do mar para a sua aventura de
vida na terra, está sempre a seu lado. Trouxe-o por engano, por esquecimento (?), abre-o inúmeras vezes,
predispõe-se a lê-lo e logo o abandona1: não consegue ir além, está sempre a recomeçar da primeira página, a
procurar incansavelmente a ponta do fio que logo lhe escapa2. Não vai além. Sonha ainda em abdicar da
procura, e em retornar ao Highland Brigade, e recolocar o livro na sua prateleira de onde nunca deveria ter
saído3.»
Teresa Cristina Cerdeira da Silva, op. cit., p. 146.

1 «Acendeua luz, abriu The god of the labyrinth, leu página e meia, percebeu que se falava de dois jogadores de xadrez, mas não chegou a concluir se eles jogavam ou
conversavam, as letras confundiram-se-lhe diante dos olhos, largou o livro […].» (José Saramago, op. cit., p. 226).
2 «[…] abriu uma vez mais The god of the labyrinth, ia ler a partir da marca que deixara, mas não havia sentido para ligar com as palavras, então percebeu que não se
lembrava do que o livro contara até ali, voltou ao princípio, recomeçou, O corpo, que foi encontrado pelo primeiro jogador de xadrez, ocupava, de braços abertos, as
casas dos peões do rei e da rainha e as duas seguintes, na direção do campo adversário, e chegado a este ponto tornou a desligar-se da leitura […]» (José Saramago,
op. cit., p. 551).
3«Ricardo Reis não irá procurar trabalho, o melhor que tem a fazer é voltar ao Brasil, tomar o Highland Brigade na sua próxima viagem, discretamente restituirá The
god of the labyrinth ao seu legítimo proprietário, nunca O’Brien saberá como este livro desaparecido tornou a aparecer.» (José Saramago, op. cit., p. 455)
The god of the labyrinth, Herbert Quain

Afinal, que livro e que autor são estes? Pesquisemos…

O autor e a obra:

Herbert Quain – escritor fictício, cujos livros surgem referidos em Ficções, antologia de contos de Jorge Luís
Borges, numa nota intitulada «Análise da obra de Herbert Quain».

Nas palavras de Jorge Luís Borges…


«Desvario laborioso e empobrecedor o de compor vastos livros; o de explanar em quinhentas páginas uma
ideia cuja exposição oral cabe em poucos minutos. Melhor procedimento é simular que estes livros já existem
e apresentar um resumo, um comentário. […] Mais razoável, inepto, ocioso, preferi a escrita de notas sobre
livros imaginários. Estas são Tlön, Uqbar, Orbis Tertius e o Exame da obra de Herbert Quain.»
Jorge Luís Borges, «Prólogo», in Ficções, Lisboa, Livros do Brasil, 1969, pp. 7-8.
The god of the labyrinth, Herbert Quain

Nas palavras de Jorge Luís Borges…

«[…] Lamento ter emprestado a uma dama, irreversivelmente, o primeiro que publicou. Declarei que se trata
de um romance policial The god of the labyrinth; posso acrescentar que o editor o pôs à venda nos últimos dias
de novembro de 1933. […] Ao cabo de sete anos, torna-se impossível para mim recuperar os pormenores da
ação; está aqui o seu plano; tal como agora o empobrece (tal como agora o purifica) meu esquecimento. Há
um indecifrável assassinato nas páginas iniciais, uma lenta discussão nas intermédias, uma solução nas últimas.
Já esclareci o enigma, há um parágrafo longo e retrospetivo que contém esta frase: Todos acreditaram que o
encontro dos jogadores de xadrez fora casual. Essa frase deixa entender que a solução é errónea. O leitor,
inquieto, revê os capítulos concernentes e descobre outra solução, que é a verdadeira. O leitor desse livro
singular é mais perspicaz que o detetive.»
Jorge Luís Borges, «Análise da obra de Herbert Quain», in Ficções, Lisboa, Livros do Brasil, 1969, pp. 75-81.
The god of the labyrinth, Herbert Quain

Nas palavras de Saramago…

Objetareis agora: «Muito bem, aceitemos, à vista das provas


apresentadas, que Herbert Quain realmente existiu. Mas falta
ainda a prova final. Sabe o senhor José Saramago onde está o
livro que ele escreveu?» Tenho resposta para esta interpelação.
Em primeiro lugar, recordo que só temos notícia da existência de
dois exemplares de The god of the labyrinth, aquele que Borges
leu e aquele que Ricardo Reis levou da biblioteca do Highland
Brigade. Do primeiro não se me podem pedir contas. Tanto
quanto se sabe, não foi encontrado na biblioteca de Jorge Luís
Borges. Quanto ao segundo exemplar, esse sim, estou em
condições de poder dizer-vos o que lhe sucedeu:»
José Saramago, Algumas provas da existência real de Herbert Quain,
http://www.josesaramago.org
• «Análise da obra de Herbert Quain»: trata-se de um breve estudo necrológico dedicado a um autor irlandês
(talvez emigrado para os Estados Unidos) que nunca existiu, resumindo e valorizando a sua obra literária.
• O Ano da Morte de Ricardo Reis: obra, cujo protagonista, Ricardo Reis, é um poeta português, emigrado no
Brasil, que nunca existiu, sendo a sua poesia citada e comentada pelo narrador.

«Provasque
Se me dissessem deé existência»
absurdo falar irónicas: diálogo
assim de quem nuncacom a epígrafe
existiu, respondo de
queFernando
também nãoPessoa.
tenho provas de
queColocação
Lisboa tenhada hipótese
alguma da não-existência
vez existido, de tudo,
ou eu que escrevo, inclusive
ou qualquer coisado próprio
onde Eu.
quer que seja.
Fernando Pessoa

EpígrafeIrrelevância
de O Ano dada questão
Morte de fingimento
de Ricardo Reis: não é ou existência
absurdo falar deperante a dicotomia
quem nunca existiu, talentre
como refere
contemplação
Pessoa a propósito e participação
dos seus heterónimos como
e Saramago critério de estar morto ou vivo.
comprova.
«Ora, por mais incrível que vos pareça, aquele rapaz de treze anos que desceu do comboio na estação de
Mato de Miranda em 1936, era eu. É verdade que, hoje, passados tantos anos, me será impossível recordar
se um senhor com cara de médico e de poeta esteve a olhar para mim quando eu abraçava a minha avó, mas
se Ricardo Reis afirma que me viu da janela do comboio, quem sou eu para atrever-me a dizer o contrário?
Se eu estava onde Ricardo Reis diz que me viu, isso só pode significar que Ricardo Reis existiu de facto, uma
vez que eu, de facto, estava ali naquele dia.»
José Saramago, Algumas provas da existência real de Herbert Quain,
http://www.josesaramago.org
Ricardo Reis e o labirinto

• A cidade de Lisboa é apresentada, desde o início, como um labirinto [«Estas frontarias são a muralha que
oculta a cidade, e o táxi segue ao longo delas, sem pressa, como se andasse à procura duma brecha, dum
postigo, duma porta da traição, a entrada para o labirinto.» (José Saramago, op. cit., p. 19)], por onde a
personagem passará o tempo de que dispõe à procura do fio de Ariadne, o fio para sair do mundo da
inexistência e tornar-se numa personagem real.

• A deambulação de Ricardo Reis por Lisboa é, assim, uma alegoria da sua busca, um símbolo exterior do seu
labirinto interior.

«The god of the labyrinth, seu autor Herbert Quain, irlandês também, por não singular coincidência, mas o
nome, esse sim, é singularíssimo, pois sem máximo erro de pronúncia se poderia ler, Quem, repare-se, Quain,
Quem, escritor que só não é desconhecido porque alguém o achou no Highland Brigade, agora, se lá estava em
único exemplar, nem isso, razão maior para perguntarmos nós, Quem.» (José Saramago, op. cit., p. 26)
Ricardo Reis e o labirinto

• Ricardo Reis, no universo pessoano, sente-se «inúmeros», tentando, assim, encontrar-se a si, à sua
identidade.

«Vivem em nós inúmeros, se penso ou sinto, ignoro quem é que pensa ou sente, sou somente o lugar onde se
pensa e sente, […]. Se somente isto sou, […] de quantos inúmeros que em mim vivem, eu sou qual, quem,
Quain, que pensamentos e sensações serão os que não partilho por só me pertencerem, quem sou eu que
outros não sejam ou tenham sido ou venham a ser.» (José Saramago, op. cit., pp. 27-28)
Ricardo Reis e o labirinto
• Verifica-se o redimensionamento, pelo narrador, do questionamento de Ricardo Reis, passando-se do
individual para o coletivo: a personagem é lançada num emaranhado social, político e ideológico e a sua
inquietação alargada para “Quem sou eu aqui?”.

«[É] com Lídia e através dela, único fio a uni-lo ao mundo, que o caminho se abre para Ricardo Reis. Com ela,
tal como Teseu pelas mãos de Ariadne, poderia passar da alienação à participação, de heterónimo a
personagem, de persona a pessoa, da ode ao romance, da morte à vida.»
Teresa Cristina Cerdeira da Silva, op. cit., p. 186.

• Ricardo Reis, no final da narrativa, desiste da busca e acompanha definitivamente Pessoa aos Prazeres,
levando consigo o livro que não soube ler e que não lerá.

«Foi à mesa de cabeceira buscar The god of the labyrinth, meteu-o debaixo do braço, Então vamos, disse, Para
onde é que você vai, Vou consigo […], Ricardo Reis abriu o livro, viu uns sinais incompreensíveis, uns riscos
pretos, uma página suja, Já me custa ler, disse, mas mesmo assim vou levá-lo, Para quê, Deixo o mundo
aliviado de um enigma.» (José Saramago, op. cit., p. 582)
Simbolismo da obra The god of the labyrinth
• acompanha Ricardo Reis na sua viagem geográfica e literária

Labirinto: metáfora para esse itinerário


▪ percurso solitário pela cidade e pela literatura portuguesa, com o objetivo
de encontrar uma “saída”
que poderá bem ser a eterna questão
pessoana “Quem sou eu?”, expressa logo no início da
obra de Saramago.
A decisão de Ricardo Reis de acompanhar Fernando Pessoa…
• A personagem escolhe o percurso mais fácil da saída do “labirinto”/ou nem chega a sair dele,
terminando encerrado no labirinto das pessoas de Pessoa?

Desaparece Pessoa e com ele Reis, porque não tem a coragem


de viver a sua própria vida, de criar um projeto de vida pessoal.

«Aqui, onde o mar se acabou e a terra espera.»


«[Ricardo Reis] perde a vida e só na morte de quem falhou a própria vida encontra as respostas, mesmo que
já então inúteis, pois é viagem sem retorno, conhecimento tardio.
Também Daniel naufraga. Mas nesse naufrágio do barco fica uma espera da terra. Uma espera de Lídias que
permanecem vivas numa terra que, como ela, está grávida de frutos, um dia não abortados nem vencidos.»
Teresa Cristina Cerdeira da Silva, op. cit., p. 190.

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