Você está na página 1de 7

Amanda Lousada Fernandes

Introdução

O presente trabalho tem como objeto de estudo a obrigatoriedade do


fornecimento de material genético por parte do condenado e, por conseguinte, a
discussão da constitucionalidade dessa medida. A justificativa dessa escolha temática
foi a preocupação com a suma importância dada à eficácia do sistema criminal e às
novas tecnologias em detrimento das garantias individuais.

Diante disso, esse estudo analisa o recolhimento do material genético, sua


obrigatoriedade e sua constitucionalidade, visto que, a partir da redação dada pelo
pacote Anticrime, a recusa do preso em fornecer seu DNA passou a configurar falta
grave com consequências severas ao condenado. A partir disso, surge um
questionamento: Quais sãos os limites para os avanços tecnológicos que almejam a
eficiência do sistema penal?

A metodologia utilizada nesse estudo foi a revisão teórico-bibliográfica. Para


isso foram feitas leituras e compilações de conceitos, pesquisas e teorias publicadas em
livros e artigos acadêmicos disponíveis nas bases de dados nacionais, em especial o
Google Acadêmico.

Inicialmente é desenvolvida uma breve análise da identificação do perfil


genético do condenado, apresentando o histórico de leis que tratam do tema,
principalmente no que tange à lei nº 13.964 de 2019 (Pacote Anticrime) e de como essa
alterou a redação da Lei de Execução Penal (LEP). Além disso, o presente estudo busca
esclarecer o que é a coleta de perfil genético para identificação criminal, quais são seus
requisitos e como se dá tal procedimento, para posteriormente alcançar a discussão da
constitucionalidade dessa medida, tendo em vista alguns princípios fundamentais, e da
aplicação da falta grave nos casos de recusa do fornecimento por parte dos condenados.

Ademais, a fim de enriquecer o debate acerca da obrigatoriedade do


fornecimento do material genético, são apresentados os entendimentos do Supremo
Tribunal Federal e da Corte Europeia sobre o tema. Por fim, busca-se desenvolver os
questionamentos em relação à constitucionalidade da medida e à necessidade de
moderação entre a eficácia do sistema criminal e a proteção dos direito fundamentais.
4- Da aplicação da falta grave nos casos de não fornecimento de material genético.

A lei de execução penal (Lei nº 7.210/1984) sofreu mudanças significativas


com o advento do pacote anticrime sancionado em 2019.

A nova redação dada pela Lei nº 13.964/2019 ao artigo 9-A da LEP incluiu
também o oitavo parágrafo, cujo texto prevê como falta grave a recusa do condenado
em submeter-se ao procedimento de identificação do perfil genético, o que por
consequência alterou também o artigo 50 da mesma Lei, que elenca as faltas graves, e a
partir do pacote anticrime, apresentou em seu inciso oitavo tal recusa.

Obrigar alguém a um comportamento ativo que implica em uma intervenção


corporal, uma vez que a identificação genética é realizada por meio da extração da
saliva do réu, e reconhecer como falta grave a recusa do condenado a tal procedimento
é a materialização do ultra positivismo penal e sua insistência na ampliação das formas
de controle.

A inclusão como hipótese de falta grave da recusa do réu a submeter-se ao


procedimento de identificação de perfil genético, além de ferir direitos fundamentais
como o direito à intimidade (artigo 5º, X, CF/88), direito de não obrigação de produção
de provas contra si mesmo (artigo 5º, LXIII, CF/88), princípio da presunção de
inocência (artigo 5º, LVII, CF/1988), todos relacionados com o príncipio da dignidade
da pessoa humana, presente na Constituição Federal em seu artigo 1º, inciso III,
também entra em conflito com disposições da Convenção Americana de Direitos
Humanos e do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, reforçando
mecanismos de repressão do poder Estatal.

Nesse sentido, discorre o Professor Aury Lopes Jr. (2014, p. 642) que
“submeter o sujeito passivo a uma intervenção corporal sem seu consentimento é o
mesmo que autorizar a tortura para obter a confissão no interrogatório quando o
imputado cala, ou seja, um inequívoco retrocesso”.

Segundo Lopes Jr. (2014, p. 675), toda responsabilidade da prova é do


acusador, não sendo possível impor ao acusado que forneça elementos probatórios.
Consequentemente, o suspeito deve ter o direito de se recusar a ceder material, sem que
isso ocasione consequências legais para si mesmo.
A nova redação da LEP transformou a lei em um meio abusivo de identificação
cirminal e produção de provas, uma vez que, ou o réu integra o banco de dados
genéticos, submetendo-se à extração de seu DNA, ou é punido com alguma sanção
disciplinar prevista na legislação.

Como a recusa ao fornecimento de material genético foi acrescida ao rol de


faltas graves, ela pode gerar ao condenado a aplicação das sanções de suspensão ou
restrição de direito, isolamento em cela própria ou em local adequado e/ou inclusão no
regime disciplinar diferenciado, disposições com previsão no artigo 57, parágrafo único
da Lei de Execução Penal. Além disso, o pacote anticrime acrescentou que o
cometimento de falta grave acarreta na interrupção do prazo para a obtenção da
progressão no regime de cumprimento da pena, caso em que o reinício da contagem do
requisito objetivo terá como base a pena remanescente, como previsto no artigo 112,
parágrafo sexto da LEP.

Nesse sentido, Marco Paulo Dutra Santos estabelece que:

De todo modo, ainda que firmada a constitucionalidade da coleta


de material biológico para definição do perfil genético, alçar a
negativa do sentenciado ao status de falta grave é inconstitucional
por atentar contra a proporcionalidade, sob o ângulo da
necessidade, sendo manifesto o excesso legislativo, ainda mais
diante da jurisprudência do STJ e dos pronunciamentos
monocráticos que vêm sendo tomados no âmbito do STF. (DUTRA
SANTOS. 2020, p.524)

Considerar a recusa do condenado em submeter-se ao procedimento de extração


de seu DNA como uma falta grave é sim desproporcional: ao usufruir de seus direitos à
intimidade e à não produção de prova contra si mesmo, o condenado sofre graves
consequências que irão refletir no cumprimento de sua pena.

Além disso, as sanções excessivamente severas, como inclusão em regime


disciplinar diferenciado e interrupção do prazo para a obtenção da progressão no
regime de cumprimento da pena, violam a finalidade penal ressocializadora, pois
retardam a reintegração social do condenado, evidenciando apenas o caráter retributivo,
de reação punitiva, e retrocedendo à visão equivocada da pena apenas como forma de
“castigo”.

Nesse sentido, as autoras Ana Maria Martínez e Soraia da Rosa Mendes,


protestando pela inconstitucionalidade do dispositivo que elenca como falta grave a
recusa à extração genética, manifestam que:

Isto posto, entendemos que a criação de uma falta grave para punir
quem, a partir do exercício – protegido por normas internacionais
de direitos humanos –, faz uso do direito de não produzir provas
contra si mesmo, configura cristalina afronta ao Estado
Democrático de Direito. (MARTÍNEZ E MENDES. 2020, p.175)

4.1- Entendimento do Supremo Tribunal Federal e entendimento da Corte


Europeia de Direitos Humanos.

A questão do recolhimento de material genético teve caráter de repercussão


geral reconhecido pelo pleno do Supremo Tribunal Federal (STF), através do Recurso
Extraordinário n° 97.3837. Contudo, tal recurso não tem sequer data para julgamento.

Estudando o tema em escala internacional, percebe-se que o parecer é distinto


nos diversos ordenamentos jurídicos, o que torna o assunto ainda mais controvertido.
Atentando para a acentuada discussão do Tribunal Europeu de Direitos Humanos
(TEDH) no julgamento de questões acerca das garantias previstas na Convenção
Europeia de Direitos Humanos, é válido traçar uma comparação com a maneira do
continente europeu de encarar a temática.

Vale ressaltar que a utilização de material genético no sistema judiciário


criminal já é uma realidade nos países europeus, mesmo que cada país siga sua própria
legislação para execução da medida. Entretanto, é perceptível que a discussão do tema
já avançou e se aprofundou no Continente Europeu.

Pautando um breve panorama histórico: Em 2005, países como a Áustria,


Bélgica, França, Alemanha, Luxemburgo, Espanha e Países Baixos instituíram o
chamado Tratado de Prum, cujo principal objetivo era outorgar o intercâmbio de dados
genéticos, com a premissa de combater ações terroristas e crimes transnacionais.
Todavia, já em 2008, os países integrantes da União Europeia foram obrigados a
conceber cada um sua base de dados nacional particular.
A cooperação de informações entre países só é possível se repeitados os
procedimentos legais estabelecidos comuns aos países envolvidos, sobretudo levando
em consideração a proporcionalidade da medida e a proteção dos direitos
fundamentais.

Nessa conjuntura, o entendimento dado pelo Tribunal Europeu de Direitos


Humanos em alguns casos que avaliam o uso do material genético em processos
criminais ganha relevância. Por exemplo, no Caso S. e Marper vs. Reino Unido, caso
conhecido como um dos mais emblemáticos sobre o assunto, ocorreu que, após o
encerramento dos processos criminais, a polícia britânica se recusou a excluir os perfis
genéticos, o que deu causa a reclamação à Corte Internacional, com alegação de
violação ao direito à vida privada.

A Corte considerou, então, que a manutenção “ilimitada e indiscriminada” de


dados genéticos de indivíduos corresponde a uma interferência desproporcional na vida
privada desses. Além disso, o julgado salientou o fato de que o DNA extraído foi
mantido “indefinidamente”, sem que fosse levada em consideração a natureza ou da
gravidade do delito imputado aos réus.

Ainda que tenha sido destacada na decisão da Corte Europeia a relevância do


uso de meios tecnológicos avançados para o combate à criminalidade, como a
conferência de perfil genético, foi limitada a análise do caso quanto à justificativa para
manutenção do perfil genético dos acusados.

A corte decidiu, por fim, que os Estados que possuem amostras de DNA de
indivíduos que foram absolvidos ou tiveram suas ações retiradas, devem destruir tais
informações e não mantê-las. Além disso, foi definido o prazo prescricional do delito
como limite temporal para os dados serem mantidos no banco de perfis genéticos.

Com isso, foi afirmada a necessidade de equilíbrio entre os interesses


judiciários e os interesses privados, uma moderação primordial entre eficiência e
proteção das garantias.

Do mesmo modo, no Caso Gaughran vs. Reino Unido, a Corte Europeia


reconheceu o desrespeito ao direito à privacidade, posto que o Estado britânico
pretendia manter os dados genéticos de um cidadão detido por dirigir alcoolizado.
Tendo em vista a gravidade da ofensa praticada e a já mencionada moderação entre
eficiência do sistema criminal e proteção das garantias, é notória a violação de direitos,
não sendo possível afirmar a medida como necessária.

É de fato necessária a regulamentação da medida de forma racional,


proporcional e eficiente, com o objetivo de encontrar um equilíbrio entre sua finalidade
e os direitos fundamentais, assim como a Corte Europeia vem reafirmando em seus
julgados.

Lamentavelmente, não foi isso que se demonstrou com a alteração promovida


pela Lei n.º 13.964/2019 nas Leis de Execução Penal (Lei n.º 7.210/1984) e de
Identificação Criminal (Lei n.º 12.037/2009). Não é possível admitir que finalidade da
medida justifique sua implementação inconstitucional.

É indispensável se atentar para os tratados e convenções internacionais que


discorrem sobre o assunto, que asseguram o cumprimento do princípio da vedação da
autoincriminação, nesse sentido escrevem as juristas Soraia da Rosa Mendes e Ana
Maria Martínez:

O Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos da ONU, em


seu artigo 14, 3, g, e o Pacto de San Jose da Costa Rica, no artigo 8
°, 2, g, tutelam o princípio da não autoincriminação, portanto,
recordando que as pessoas presas também são titulares de
garantias, de modo que a identificação forçada viola o direito de
não produzir provas contra si mesmo. Segundo o Defensor Público,
Rodrigo Roig, o artigo 9°-A da LEP também atenta ao direito à
intimidade e caminha na contramão da Convenção Americana de
Direitos Humanos (artigo 11, n ° 2), a qual dispõe que ninguém
poderá ser submetido a ingerências arbitrárias ou abusivas em sua
vida privada e ninguém será sujeito à interferência em sua vida
privada, que de acordo com a Declaração Universal dos Direitos
Humanos (artigo 12), a Lei deve proteger todo ser humano de
interferências ou ataques. Entretanto, neste caso, a Lei é a própria
responsável por violar normas internacionais de proteção aos
direitos humanos. (MARTÍNEZ E MENDES. 2020, p.174)

REFERÊNCIAS
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da
República, 1988. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm

Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984. Institui a Lei de Execução Penal. Brasília, DF:
Presidência da República. Acesso em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l7210.htm.

Lei nº 12.654, de 28 de maio de 2012. Altera as leis nº 12.037, de 1º de outubro de 2009 e


7.210 de 11 de julho de 1984 – Lei de Execução Penal, para prever a coleta de perfil 41
genético como forma de identificação criminal, e dá outras providências. Brasília, DF:
Presidência da República. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-
2014/2012/lei/l12654.htm

Corte Europeia de Direitos Humanos. Caso S. and Marper vs. Reino Unido (n. 30562/04 e
n. 30566/04). Sentença de 4 de dezembro de 2008.

LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2014.

MARTÍNEZ, Ana Maria; MENDES, Soraia da Rosa. Pacote anticrime: comentários


críticos à Lei 13.964/2019. 1. ed. Barueri: Editora Atlas, 2020.

Você também pode gostar