Bibliotheca S. J.

Les Fontaines
CHANTILLY

V 1867

10
t

.
2
TV 18617

書
 AGIOLOGIO

DOMINICO .

CO N S T A

DAS VIDAS DOS SANTOS , BEATOS ,

Martyres , e outras Peſſoas Veneraveis da Ordem

dos Prégadores, por todos os dias do anno.

TOMO SETIMO ,

QUE CONTE’M JULHO , AGOSTO , E SETEMBRO ,

QUE ESCREVE ,

E AO

SENHOR D. JOAO

DEDICA , E CONSAGRA

Fr. JOSEPH DA NATIVIDADE

Pregador Geral da meſma Ordem dos Prégadores , na Pro

vincia de Portugal, Sºc .

LISBOA :

Na Officina de FRANCISCO DA SILVA.

Anno de MDCCLIII.

Com todas as licenças neceſarias.

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DOM JOAO . SA E
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ACTANCIOSO , e deſvanecido de tanta , e tað in .

comparavel honra , como preſentemente me permite

te a fortuna em chegar aos pés de V. Excellencia , a pór á refulgente Soma

bra da ſua Sagrada Protecçað, o JetimoTomo do Agiologio Dominîco ;

t 2 ainda
 ainda aſſim , naõ polo deixar de proftraróme a elles com aqu: lle profun.

do reſpeito , tað inſeparavel de quem chega á preſença de tanta Mage

fiade", e Soberania. Uſo tem ſido immemorial dos Eſcritores de todos os

Teculos, dedicar aos Varoens mais Claros os eſcritos , com que fahía a

publico; nenhum porèm teve ja mais a gloria , de que eu fummamente me

prezo , de eſcolher , e achar hum tað Soberano Patrocinio. Limitada vi .

Etima offereço , lë ſe attenle ao pouco mérito do Eſcritor ; mas he immen

sa , ponderada a ſua materia . Impoſſivel fora querer achar igualdade

entre extremos tao apartados, entre merecimentos tað ſublimes, e entre os
tao curtos voos de hía penna , tað rafteira como a minha ; mas fora kuma
-

V.
eſpecie de ſacrilegio , ainda a imaginaçao, de que a bondade com que

Excelencia ſe digna de admittir a offerta , ſeria menos generoſa em def

culpar com benigna indulgencia as minhas imperfeiçoens. Ob , e ſe eu

aquî emprendêra , como be tað vulgar nas Dedicatorias , engolfar-me no

pélago das excellencias, e virtudes de V. Excellencia , comoverdadeiras

mente nao me acharia do meſmo modo impoſſibilitado!

A materia deſte livro, SENHOR D. JOAM , he a dos Faftos Domi,

nicanos
, hita das porçoens mais diſtinctas, e mais illuſtres da Hiſtoria Eccle
fiaftica. Nao ſerá, SENHOR , pequenagloria de V. Excellencia permittir,
que a vida mais precioſa da fama , que eu ſolicito aos mais eſclarecidos

fillos , e filhasde meu Santiffimo Patriarca , ſeja protegida , e afilhad

da de V. Excelencia . Tambem
naõ deixa de haver bữa grande correlaçaã

entre o facrificio que faço , e o Numen a quem o dedico , por ſer V. Ex

cellencia , nao menos illuftre na paleſtra das virtudes, do que pelo efplen

dor do ſeu altiffimo Naſcimento ; e ſer conſequentemente muito natural,

que quem como V. Excellencia , he taõ inſignemente virtuoso , ſe declare a

favor dus virtuofus ; e em boa Filoſofia , be a ſemelhança cauſa de amor ,

e benevolencia . O nobiliſſimo ſangue da Caſa de Guſmao, tað clara por
men Patriarca S. Domingos , maispreclaro do que as eftrellas , que con

ftituem o ſagrado eflêma da Sagrada Religiaõ dos Prégadores , e que

tao condignamente pulja , SENHOR D. JOAM , nas ſuas véias, be

outra razao nao menos inflante , para o empenhar a proteger eſta Obra.

Nað ſe dedigne,pois, V.Excellencia de permittir, que aquelles Sagra

dos Heróes, e Heroinas , que ainda que mediante as deſalinhadas expref

foens da minha penna , implorað o favor de V. Excellencia , logrem á

Jua generoſa , eſagrada ſombra a vida immortal, que lhe ſolicito , á imio
taçaõ do Rey dos Reys , que ja lhes conferio a eterna , e gloriofa lá na Sion

. Igualmente pode empenhar a V. Excellencia a circunflancia de

Celeſtial

comprehender efte Volume as heroicas, e lantas acçoens , eſpecialmente da

quelles tres primeiros mezes , que V. Excellencia inteiramente illuftrou ,

depois do ſeu fauftiffimo,e ſoberano Naſcimento . O trimeſtre,digo,deJulho,

Agoſto , e Setembro, que V. Excellencia , SENHOR D. JOAM ,enchen

de mais luz , e mais gloria , do que o Sol o circulo do Zodiaco pelo decurſo
do anno.

Será,
 Será pois por eſta razao, Julbo o primeiro deſte terno de mézes,
1

que Agoſto , e ja na roda do anno , nað ſerá o ſetimo ,

mas o primeiro; porque a tanto póde ſublimallo o primeiro dos Heroes

Aelle jó deverá mais creditos , e mais eſplendores, do que a tantos ſemi

deoſes, e Heróes, de quem elle deduz o nome. Nem o Troyano Julo, que

em Alba fez , como reſuſcitar dasſuascinzas , o patrio Jlio, nem o Roma

no Ceſar debaixo de cujas bandeiras parece , que militáraõ obedientes a

fortuna , e a vittoria ; digo aquelle Julio Ceſar, que por haver naſcido
naquelle mez , lbe impôs o ſeu nome : nem eſies, nem ainda todos os nove

Capitaens célebres da fama , e que efta , ja por amor de V. Excellencia

deixa ſepultados no Lethes do ſeu eſquecimento , lhe dariao aſſim igual
lufire , evaidade.

Concede fim a Junho a preferencia , que lhe enveja de compreben ?

der o ſempre tað bem augurudo dia do Natalicio de V. Excellencia ; ea

poder , retrocedería , como ſuccedeo ao Sol, chegando aoſigno de Cancer ,

que nelle tem o ſeu maior preduminio. He lhe porèm ſatisfação de algum
modo , que ſe lhe falta eſte decoro de comprehender o primeiro dia , em

que V. Excellencia fabio á luz , para mais o illuftrar ; tambem be innega

vel , que elle foi o primeiro que V. Excellencia inteiramente encheo de

luz ; parecendo que entað ſe invertia a ordem dos tempos ; porque ainda
que o Sol coſtuma fazer em Julbo os dias mais pequenos , por 1. Excel
lencia , SENHOR D.JOAM , recebeotanto mais luz , que parece que
obrigava ao meſmo Principe dos Atros ,a que retrocedeſſe a buſcar a proge

nie de Jupiter , e Leda.

Éſta meſmagloria tem depois de Julho os dous ſeguintes mezes

quem illuftráraó com as ſuas fantas mortes os ſagrados Heróes, e Heroinas,

cujas virtudes, ainda que tað bumilde , e deſigualmente , narra eſte livro.

Zelos poderia V. Excellencia motivar a hum Ceſar Auguſto , de quem

Agoſto deriva o nome, e aos Hercules , Tácitos , Germânicos, Tibérios, e

Antoninos , de quem o tomou Setembro , a ſer contemporâneo deftes Mag

nates; porque a gloria que V. Excellencia participou a eſte biméftre , the

he mais grata , do que todas aquellas , ou quaeſquer outras, que elle de nin
guem tanto , como deV. Excellencia pudéra receber.

Participárað pois de V. Excellencia tantas exaltaçoens os tres refe.

ridos mezes de Julho, Agoſto , e Setembro , que reconhecidos a tanta hone
ra , ja de nenhumas outras querem lembrar.ſe. O mez de Junho lhe de

vệo bữa diſtinçað tað alta , como a de haver naſcido dentro do ſeu gy

90 ; mas os tres que immediatamente ſe lhe ſeguiraõ , nað ficárað por

V. Excellencia menos glorioſos. Receberaõ , torno a dizer , nao menos

immenſos dons , do que Junho , que tanto ſe honrou com a protecçao , nað
ſó de Junio Bruto , mas da conforte do maior Deos do Olympo , a Deofa
Juno ; mas nao lhe he tað eftimavel efla grandeza , como a de haver ſido

Prónuba do egregio Naſcimento de V. Excellencia. Competir- lhe-ba ja

por eſte principio , com mais propriedade, o meſmo mez de Junho , que
tambem
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tambem antigamente foi dedicado á mocidade , havendo V. Excellencia

reftituido , como reſtituío , a domundo , fazendo reflorecer a ameniffima

idade de ouro , e reſtituindo a paz , a eſtimaçaõ, é o patrocinio ás virtis

des , e ás ciencias . Ese Junho tambem for protegido por Mercurio, naã

lhe deixa iſto tanto deſvanecimento , como haver V. Excellencia , que he

tanto infinitamente mais ſábio , naſcido dentro dos ſeus limites.

Tanta foi a luz , com que V. Excellencia logo appareceo no mundo,

que parece que o Sol mais ſe detinha a aprender , e admirar maiores lue

zimentos em V. Excellencia , do que pela razaz do Solfticio , que en

tao fazia . Naõ tem Junho dia , que nað ſeja glorioſo; masaquelleanteri
ormente proximo aos ſeusIdos, ficou, e ſerá SENHOR D. JOAM pelo ſeu

Naſcimento o mais claro , e o mais illuftre em toda a poſteridade. Antes de

V. Excellencia naſcer , foi ſempre hum dos de maisglorioſo nome : parece

que afim ſe diſpunha para iaõ alta preeminencia que o eſperava no

ſeu Natalicio; eſplendor incomparavel a todos, e a todos osmais ſuperior .
Em comparaçað deſta altiſſima fortuna , ja a fama , deſde o dia do Nata ,

licio de V.Excellencia, celou de mais o funeſtar com as memorias dos Man

crinos , e Rutilios.

Que glorias nað acharemos , que obteve o dia duodécimo de fue

nho , ſe conſultar-mos os ſagrados Faflos; e ob quanto nao as farao mais
creſcidas as taõ eſtupendas , e Chriſtaās virtudes de V. Excellencia . Nela

le expedio o Precurſor por Legados , ſeus Diſcipulos ao Filho de Deos .

Tambem be fama , que entao beque efte chamou a Si, para lhes dar alia
vio , os onerados do trabalho , e da afflicçao. Semelhantemente ſe eſcreve ,
que entað ſe cumprio, e verificou a predicção com que Elle, nað ſem la.

grimas,
ameaçou os muros Jerofolymitanos, concluindo- le oſitio que lhes

puzéra Tito , que aſſim , naõ deixando pedra ſobre pedra , vingou o Deici
dio do Calvario.

E que glorias de tanto dia naõ lémos nos Annaes da Igreja ? Que nu

mero tao admiravel nað foi o dos ſagrados Heróes , que nelle paſſarað a

coroar - ſe de gloria no Empyreo? Oito delles , e hũa Joanna , que entai en .

trou tambem a fazer numero em tað ſagrada Cohórte , todos do nome de

V. Excellencia. Hum S. Joað Soldado , nao menos triunfante noCeo ,

do que no Egypcia terra : hum S. Joao de S. Facundo , Patrono Salman .

tino , e que tambem o pudéra ſer de Lisboa , pela reliquia do ſeu braço ,

que ella venéra no Convento dos Eremitas do Grande Agoſtinho : hum Joao
Guarino , credito , nað ſó de Portugal, aonde nafceo , mas de Principado

de Catalunha , aonde acabou : hum JoaõConſobrino , Carmelitano , e que

em Portugal pela cauſa da Fé, obteve a lagrada lauréola do martyrio:

hum Joao de Luſia ; hum JoaoGividrio ; hum Joao Eſcoto : e hum Joao

Láico ; os primeiros dous tambem inclytos Martyres de Chriſto , e todos

quatro condignos filhos de rieu Serafico Padre S. Franciſco : finalmente

húa Joanna do Bautiſmo, tambem filha Jua .

Naõ ſomente eftes grandes ſervos do Senhor , à quem V. Excellencia
mais
 mais imita em virtudes, do queem nome , fað ſeus effectivos,e ardentes
Oradores no Confpecto do Altiſimo, ſenaõ todos os mais , que nomeſmo

dia paſſarað a lograr -ſe , á viſta de Deos , da eterna felicidade. Mas

naõ ſó todos os que neſte dia entráraõ de poſſe do Summo Bem , ſenaõ que
todos quantos o eſtao logrando , eſtaõ lá fazendo o officio de Oradores de

V. Excellencia , ja pela razaõ de terem hum tam acerrimo imitudor das

fuas virtudes, ja porque nao havendo , como nað ha , dia em que deixe de

as praticar no ſeu mais also gráo , e naſcendo conſequentemente deſte mo

do em todos elles para Deos ; por eſta razaõ le póde dizer mui pro
priamente , que nenhum há , que nað ſeja Natalicio de V. Excellencia .

Bem ſemelhantemente admiramos naſcido todas as manhaās no Oriente

o maior dos Aſtros , o mais benéfico dos Planetas. Parece que ja forað
augúrio da perpetuidade de búa vida tao benemerita as feſtasCrónias,

que no dia do Natalicio de V. Excellencia dedicava Athenas á diuturni

dade .

E de que diuturna , e dilatada vida nað era merecedor hum tam con

digno filhode hum Sereniſſimo Senhor Infante D. Franciſco , perpetua , e

immortal ſaudade da patria : de hum Sereniſſimo Senhor Infante D.

Franciſco , conſtituído em primeiro lugar na Caſa doInfantado , e taõ diga

no de o fer nella , como em todos os sentidos o poderia ſer, em quaeſquer ou

tras das mais eſplendidas , e auguſtas : de hum Sereniſſimo Senhor Infante

D. Franciſco , Duque de Béja , Gram Prior do Crato , e da Ordem do

Hoſpital deS. Joao, que taõ glorioſamente vemns transferida de Jeruſa

lema Malta : de hia Ordem , a quem a Chriſtandade reconhece tað niten

meroſas, etaõ grandes obrigaçoens, como ſao aquellas, que reconhece no

valor de ſeus Bailios , e no deſtroço , e ruinas , a que elles tem reduzido a

perfidia dos turbantes Mahometanos. E eſta Ordem tað inclyta , e tað ſana
ta , com que reconhecimento nao conſidera os tað pródigos donativos , com

que o meſmo SereniſimoSenhor Infante contribuîo para a debellaçaõ de ſeus

inimigos. Mas quem , SENHOR D.JOAM , quem , ſenað o tempo poderia

diſtinguir tanto Pay, de tanto Filho ? O tempo , torno a dizer , he que ſó

poderia fazer büatal diflinçað ; porque a natureza , parece que ſe em

penhou em a querer apagar , até dando a V. Excellencia , como sobreſcrie

10 de tanto predicado , tað iguaes as feiçoens , e lineamentos exteriores.

Veryo aquelle Senhor ao mundo quaſi por milagre ,que o Altiſſimo quiz

obrar pela interceſſaõ do Santo Xavier;enað revive com menos prodigio nas
virtudes, e perfeiçoens de V. Excellencia. Se foſſem admiffiveis os dogmas

de Pythágoras , univerſalmente ſe diria que tanto Pay , havia tranſmi

grado em tanto Filho. Em V. Excellencia eſtá reverberando a ſua in .

nata generoſidade, uſada com . Quem naõ dirá que

grandes, e pequenos
Je eſtá retratando o valor , e a deftreza com que elle le avantajava no ma .

nejo das armas , no braço de V. Excellencia, e que efle lhe be menos pare .
cido , do que identico ! Quem haverá que oviſe ſuperar com tanta altia
vez os brutos , que Neptuno fez inſurgir em Athenas, evê , como a V.
Excel.
Excellencia lhes obedecem no meſmo exercicio, que nað diga que os mel
mos generoſos, e bellicos animaes saõ regidos de búa propria mao ! No

exercicio da caça , expreſo retrato da guerra , em que elle foi tao períto,
nos deixa V. Excellencia , quando o exérce ,fummamenteperplexos , se he
vivo , ou morto feu Sereniſimo, e Real Progenitor. Aquelle feu tað ſin
gular juizo , admirado de taõ grandes Miniftros , eſtranhos, e nacionáes,

oh como eſtá reſplandecendo no juizo

de V. Excellencia ! Ifto se vè'naquel
la tað ſingular eſtimaçað , que V.Excellencia eſtá fazendo dis eruditos:
mais parece ponderado hum Pay tað amante das Muſas, indiſtincto , do

que uniforme. Mas no que V. Excellencia ſobre tudo ſe conforma com o

Sereniſſimo Senhor Infante D. Franci/co, be no zelo , com que attende ao

Culto , e Religiaó. Finalmente he tala identidade entre Pay , e Filho, que

se naõ occorreſſe para a diftinguir o curſo do tempo , ninguem poderia dif
cernir hum de outro .

Mas ſe V. Excellencia, SENHOR D. JOAM , merece hüa tað lara

ga vida , por ter hum tað grandePay , naõ a merece menos prolongada
por ſer , como he , Neto , Sobrinho , e Primo dos Monarcas da noſſa Lua

Jitania. He V. Excellencia Neto de hum Pedro Segundo; ſegundo ſó no

nome , nað ja nos ſoberanos , e Régios diſtinctivos da Mageftade , no que

elle foi o Primeiro : de hum Pedro Segundo, qual Hercules, o ſubſtituto do

Athlante da Monarquia Portugueza : de hum Pedro Segundo, que hora

pedou na fua Corte , com mais que Alexandrino eſplendor , tanto excelſo

Principe , que o venerou extremo do poder , e da virtude. Digaö -nn afim

hum Terceiro Carlos, que achou nelle o mellor da ſua parcialidade, e

que depois ſuccedeo em Nome , e Imperio a hum Carlos V .: hum Jorge

de Saxonia , que depois aſcendeo ao Throno da Polonia : hum Coſme, que

veio a ler o Terceiro Gram Duque de Toſcana, doſeu nome : hum Princi

pe de Darmſtad , digniſſimo Irmao deſuaſegunda Eſpoſa , a Sereniſſima

Senhora Rainha D. Maria Sofia : hum Principe de Biſáu , ſeu afilhado de

Bautiſmo.

De todos eſtes Heróes foiadmirado; todos participáraõ delle bonras,

e favores ; e de todos foi acclamado por hum impoſſível do applauſo , e

louvor da fama. Foi o ſeu valor taõ monftruofo , que no aureo ſeculo do

ſeu Reynado , ſe teve nao ló por igual, mas ſuperior ao meſmo Hercules.
A ſua memoria foi taõ prodigioſa , como ha de ſerimmortal a do leu augu .

Ato nome. Com quanto mais razao , do que Tito, ſe podia chamar amores,
e delicias do ſeu povo . A toda a hora o achavao prompto, ja para a juſtiça ,

ja para a protecçao. Mas o que mais que tudo o diſtinguîo , ainda nafés
rié de huns Soberanos , que ſempre tað eſpecialmente a praticáraã ,foi a

ſua taõ ſingular devoçao , por cujas pizadas V. Excellencia naõ caminha

menos ſingularmente. Diga -o Viena de Auſtria diſcercada ; acçao , em que

tiveraõtanto lugar os ſeus Reaes fubfidios : digaw-no as conſequencias de

fta taõ alta acçaõ , Muſtafa rendido , Sobieski, e Lorena triunfantes, e

a torrente de Conquiſtas, que ſe ſeguio a tað importante, e inſigne viétoria,

Diga - n
 $
Diga -o a promptidao , com que elle foccorreo os dous ſitios de Orað ; e Cette

ta : diga -o a piedade, com quemandou viſitar por ſeu Embaixador, D.

Amando Joao , ornamento da Ciftercienſe Congregaçao da Trápa ; é dei,
xando outros infinitos monumentos da ſua Religiaõ, os precioſos donativos,

com que elle enriquecéo o ſanto Sepulcro, e a larga mao , com que favore
> que de tantas Reges
cêo os Santos Lugares da Paleſtina .E quem naõ dira,

qualidades, e virtudes ſenaõ diſtingue V. Excellencia , e que apenas neſta

parte ſe pode diſtinguir o Neto do Avô ?
Pois de que vida immortalſenao faz V. Excellencia , SENHOR D.

JOAM , crédor , por ſer como he, Sobrinho de bum Inclyto, de hum Sábio,
de bum Real Salamaõ da Lufitania , de hum Rey D. Joað V? De bum
Rey D. Joað V., cuja Real bondade ſe eſtava inferindo daquelle ar , quafi

Divino , da ſua Auguftiffima preſença ? Daquelle Rery, nao menos claro

pelas letras, que pelas armas ? Daquelle Rey , cujas bandeiras , tantas

vezes ficáraõ vencedorasnas quatro partes do Orbe conhecido, A Europa

alim o acclamou em Villa -Viçoja em 10, de Dezembro de 1710. Que via

čorias não conſeguio no Oriente , renovando asmemorias, e os trofeos do

feliciſimo Reynado do Primeiro Dominante Portuguez daquelles Eftaa

dos , o Senhor Rey D. Manoel. No Téjo retumbáraõ com tanto applauſa

os eccos da victoria , quanto foi o reſpeito , e pavor , com que ellesſoárað

no Indo. Na Africa foi igualmerite victorioſo ,ja recuperando a Jlha de

Fernando de Noronha , ja derrotando os Hollandezes na Coſta de Guinéa
Na América naõ ficáraõ menos authoriſadas as ſuas armas , na Colónia do
Sacramento. Por huns leves ciumes de guerra , levantou em pouco tempo

hum tað numeroſo , e luzido exercito , que deixou a perder de viſta as

Tropas dos Xerxes , e Darios.

Que dia , que hora hoxve da ſua tað precioſa vida , que elle naõ em

pregaſſe em ſer uril , e benéfico ao ſeu povo ? A eſte fim , que fabricas , e

com que grandeza naõ introduzio no ſeu Reyno; de ſeda , polvora , fola ,
marroquins, e vidros. Que monumento naõ beda ſua grandeza , e provia

dencia o magnifico arſenal da Ribeira dasnáos., para a confirucçao dos

navíos os mais opulentos, e mageſtofos , que ſurcaõ os campos de Anfitrite.

Que lhe naõ deve a naçaõ Portugueza por hover , para obviar naufraa
gios , melhorado o Tejo , que naquella parte , menos se devia chamar

Novo , que Joannino. Nem lhe he menos devedôra , pela grandinfa , é

utiliſima obra doſoberbo , e magnifico aqueducto, com que,nem a meſma

Roma póde emparelhar, por onde elle fez paſſar as aguas de Bellas para
Lisboa , com mais profuzaõ de bondade , e grandeza ; nam ſó do que as

meſmas aguas , mas ainda que entrale a comparaçaõ com as domeſmo

Oceano. Em quanto Sábio , de que elogios ſenao faz benemérito. Elle nos,
moſtrou , como tanto appetecem os Sábios ,hum Filoſofo no Throno , e o ma

jor patrono dos Filosofos. Pelas ſábias , prudentes, e juftasLeys, que elle
promulgou ſe vio , que em nenhuma outra parte do mundo , tinha Aſtréia

a ſua balança tanto em equilibrio. Na Real Academia da Hiftoria , que

ttt inftig
 inſtituio , e em que ſe virað tað patentes os arquivo sda verdade, e do tema
po , fundou bum remplo da memoria , de que elle be o mais condigno Sie
mulacro.

Naõ ſó lhe deveo tanto a Hiftoria , lenaõ todas as ciencias , e muia

to em particular as diſciplinas Mathematicas , nað havendo nos globos, fu

perior , e inferior couſa reſervada , ou incognita á jua aliſima compre

benfað. Os Šábios , que viviab, e ainda os que nao viviaõ dentro dos limi

tes do feu Reyno , todos achávað nelle bum Mecenas Sábio , e hum pródigo
bem feitor. Diga -9 a Romana Arcadia , de que elle foiRegio Protector ,
e debaixo do nime de Albano ſábio Colléga. Quantos, e quantos engenhos
o nao elegêraò por Patrono dos ſeus eſcritos , achando nelle outro mais le .

vantado merecimento, e outra mais pródiga liberalidade do que os Virgie

tios , e os Horacios nos Auguftos. Mas quando o meſmo Clemente XI. , e a

Santidade Reynante de Benedicto XIV . se convertérað em ſeusPanegyri

Pas , a que mais pódem ſubir os ſeusencómios ? Que muito ſe elle era tað

crédir da gratidão, e obſequio da Santa Sé Romana , havendo-lhe prote

flado ſempre a maior ſubmiſſaã, e feito os mais importantes ſerviços, epre

zando- ſe , ainda que tanto o foi, menos de poderoſo ,do que de obedientiſſimo
á Santa Igreja Romana . O primeiro dosreferidosSupremos Paftores Clea

mente Xl. póde ler teſtemunha , ſoccorrido contra as barbaras Luas , de

que foi defaffombrado , e leguro o mar Adriatico , Corfü deſcercado, e o po

der do Otomâno poſto por terra . Tantas victorias conſeguidas no Oriente

menosforaõ obtidas pelo braço , e valor de ſeusvaſſallos, do que dadas pelo

Deos de Sabaoth , em premio do ſeu zelo , e piedade.
2 ‫ث‬ expref
A ſua caridade , como ſem limite , nao tem proporçað com

Soens algumas. A vivos , e a mortos , a todos abrangia . Era maior o ſeu

fogo , do que o que elle apagava no tormento das almas do Purgatorio , a

quem ja mais ceſſava deſoccorrer.Foi por muitos principios Payda patria ;

mas em nada o parecêo tanto , como nas groſſas eſmólas que diſtribuia pe
las Religioens, peles Orfaốs , doentes, dinzellas , viuvas, e pobres . Que

calamidade publica naõ houve, que elle nað remediale com larga , e nuna
ca fechada mao ? Diga.o Lisboa em bum contagio ; Béja em bia efferia
lidade ; entre as ſuas ruinas Campo Mayor ; e digaõ -no outras ſemelhan .

tes fatalidades , que fora prolixidade referir. Que lingua poderia fallar

dignamente da ſúa Religiao ? Saõigualmente innumeraveis, que opulen .

tos os Templos que elle conſagrou ao Culto Divino, que foi nelle o affecto

mäis predominante. Aquelle queem Mafra conſagrou aonoſſo illuftre San .

to Antonio , Jendo entre todos elles tao raro como a Fénis, apenas foi hum

. Os dons , com que enriquecéo a Cala

breve indicio daſua magnanimidade
Santa , aonde reve jazigo o meſmo Rey dos Reys , ſó ficaram cedendo em

precioſidade á do ſeu zelo.

Com que eſplendor , e grandeza naõ celebrou a exaltaçao , ao culto

do Altar , de hum S. Luiz Gonzaga , de hum Santo Eſtanislao Koſtka,

de hum S. Joağ Franciſco Regis , de bum S. Toribio , de bum S. Peregria

no
 no , de hum S. Vicente de Paulo, e de bum S. Camillo de Lellis ? Quanio 1

acerrimamente naõ propugnou a devoçaõ do Patriarca Serafim , fazendo

ſecum eſte culto , que dava ao Menor , tanto maior do que era !Quanto

Senaõ miftrou devoto do Pay putativo do Filho de Deos, e Espolo da Ef

pofa do Efpirito Santo ! Por ſua conſideraçao impós a ſeu Auguſto frikó o

nome deJOSEPH, e dilatou ardentemente a devoçaõ, e as glorias daquel.

le tað grande Santo por toda a immenſa vaftidaõ dos ſeus dominios. Com
que ancia , com que ardor,Jenaõ elmerou em zelar o maior decoro da mais

perfeita , e Immaculada Creatura , que ſabio das Maos do. Altiſſimo !

Que veneração , e que affetto nao proteſtou á fua , em todo o inſtante lim .

pidiſima Conceiçao! O que nao trabalhou , porque ſena) definille, no

ſeu tempo , de Fé bum Myfterio taõ Soberano , e tao eſpecial dos cora .

foens Portuguezes ,que demais de ſerem tað devotos da Mãy de Deos na

Jua Conceiçaõ puriſſima, a venéraõ Tutelar da ſua patria ; e igualmente

a dêo aquelle grande Rey por Patrona da Academia Real da Hiftoria,

mandando , que como a tal a juraſſem osſeus Collégas! A quem naobe

alfombro , e palmo quanto elle adiantou o Culto Divino na ſua Real Ca.
pella , que com tania magnificencia reduzio a Sé Patriarcal! Mas, SE

NHOR D. JOAM , quemecanſo em proſeguir com taó humilde , e rude

eftylo o elogio daquelle incomparavel Monarca , fallando com bum ſeu tað
benemérito Sobrinho,que nað o iguala menos em virtudes, do que em nome.

Finalmente de que vida interminavel, naõ ke digno V. Excellencia ;

repito ainda , e mais nað tornarei a repetir , pois que mais ficaria reftana
do que dizer , que dizendo a maior grandeza de V. Excellencia que eu

hia a proferir ; evem a ſer a gloria , que lbe reſulta de ſer , como ke ,

PRIMO do mais excello Rey do mundo , o Fideliſſimo D. JOSEPH

Nao mais do que por eſta razao , ó Soberano Principe , por eſta unica
era digno V. Excellencia de lograr bữa vida izenta da juriſdiçao.de A’tro

pos. He V. Excellencia Primo de mais Auguſte Monarca , que ja mais

cingio, nem ha de cingir Coroa Primo de hum JOSEPH Primeiro,a quem

nunca ſuccederá igual, Segundo. Primò de hum Rey , a quem naó ſó o

ſeu Reyno, mas o Orbe.todo , que elle he tað digno de mandar , tribúra
adoraçoens; e a Cabeça, do meſmo mundo , a Roma Chriftaã , o decanta

Fideliſlimo, Fideliſſimo.
' Ob titulo o mais gloriofo,do que todos os maisque

ja mais conferio o Viſo Deos na terra a algía teſta Coroada ! JOSEPH,

vale augmento , e augmento da té oba de fazer hūa taõ gloriofa anthonos
mazia , nao digo ja

para do a Deos dar parte grande ;

digo fim , que para lhe dar , rendido á Fë Orthodoxa , todo o mundo. He

V. Excellencia , torno a dizer , Primo de hum Rey , a quem o Rey , por

cujo poder reynað os Reys , diſtinguîo com bum venufto , é plauſivel af

pecto, que ſó huin tal vulto podiaſer digno de inculcar hüa taõ grande ale

ma . Dehum Rey; porquem a famaſe ha de eſquecer

de Aflyrios , Perlas, Gregos , e Romanos.
De
 De hum Rey , que ſerá extinção do barbaro tyranno Mahometa ,
que agora tem do mundo o Seohorîo .

De hum Rey , que eſperamos ver o inftrumento mais effectivo como

JOSEPH , e como augmento , nað ſó

do augmeato da pequena Chriſtandade ;

mas do ultimo implemento , e perfeiçaõ da ſua grandeza , e que ella re

conhecerá , e adorará ſagrado Imperador do Quinto Imperio

. De hum AM
1
Rey , por quem a Santa Cidade de Jeruſalem eſpera ſer revendicada dos
ludibrios , é inſultos , que ainda com tanta dor do Chriftianiſmo eſtá
{
recebendo
do Turco Oriental , e do Gentio ,

que inda bebe o licor do ſanto rio.

Em tanto que nao chega o ſuſpirado, e feliz termo deftes vaticinios taõ

gloriofos á Lufitania , talvez buſca

os incentivos de búa guerra tað
fanta

na arte de Diana, o mais expreſo retrato da guerra . Elle a exercita 6

com os mais altos brios : ja mais houve caçador inſigne , que melhor fou

belſe unir o brio , e a gala, a deſtreza , e o valor. Ob ! e como elle aſſim me

Sæbe triunfar das mais ardilojas,e mais feras , féras ! Mas que esforços ha

veria nellas , que pudeſſem fazer oppoſiçaõ a hum Hercules tao Real , Р
tað valeroſo , e taõ deſemido ! Nem elle parece outra couſa , quando dó .

ma o bruto mais generoſo, e bellico, que entað ſe mofira mais deſvaneci. die
do, e orgulholo , quando mais obediente ſe fomėte aos ſeuspreceitos. Como de
elle tem tanto de Celeſte , que honras lhe nao tem devido a Muſica : fos
húa ciencia fimpre applaudida , ſempre eſtimada; masja agora, fup .
еe
poſla būa tað alta elevaçao, ja lhe vem a ficar limitados os mais altos
louvores.
! a
Mas ſerá ella ſó a ciencia , que lhe tem devido tantas atiençoens ?

Ah ! naó. Todas ellas faõ fuas afilhadas , e afilhadas mui mimoſas ; e

nem podia deixar de ſer , ſendo elle , como he , o ſeu mais eximio cultor .

Ellas ſao as ſuasdelicias, e a couſa que elle mais ama , e tað bom Padri.
nho tem nelle os Sabios , que até defuntos tem obtido a honra das ſuasla .

grimas. Com que admiraçoens, com quepaſmos , com que aſſombros nað
idolátra o mundo na ſua taõ Salomónica intelligencia ! Quando faz a

penna interprete dos ſeus conceitos , figura tao primoroſamente os cara

Etéres, que nenhuns outros podiao ſer tað condignos, e adequados de tað
altas , é divinas expreffoens. Elle entende , elle eſcreve , e elle falla gen

tiliſimamente osmais polidos, e mais ſábios ideomas ; mas ainda ſendo

elles taõ cultos , ficariaó incultos se houveſſem de expreſſar os ſeus elogios.
Nao ha ciencia algõa de que elle nað ſeja inſigne Meftre ; mas a exacçao

das diſciplinas Mathematicas, lhe tem devido mais do que a nenhum ou .

tro de ſeus inſignes Cultores. Aſſim o teſtemunhaõ a Arithmética , a Geo

grafia , a Aſtronomia , a Náutica , a O'prica , a Gnomónica , a Geome.

iria , a Arteiharía , a Efática , a Algebra , a Mecânica , a Fortificação,

a Chronología , a Arquitectura: mas que neceſario he individuar as ou
tras
tras faculdades Mathematicas, quando se falla de quem a todas pódepreja
crever di tames.

A ſumma deſtreza , habilidade , e circunſpeçaõ com que elle ma

neja os inſtrumentos de eſtudos taõ amenos , e floridos, aſfaz ſe vê expreſa

jo nos eſtupendos riſcos do ſeu deſenho. Merecendo porém pelo ſeu tao ra
‫ را‬e prodigioſo entendimento
ro, inceſſanteselogios , quaes ſerað baftantes,
conſiderando como eſta Mageftade Fideliſſima o ſabe cativar em obſequio

da Fé ? Parece que tanta piedade lhe efiá fluindolá do Ceo, por interven

çaõ do Santo Xavier , debaixo de cujos aufpicios , Jabio como luz maior

a fuperar a do mundo
. As ſuas tað altas , e incomparaveis prendas, as
juas taõ Reaes , e Catholicas virtudes , fao, em quanto a Luſitania naõ vé.

o complemento dos vaticinios, da ſua maior exaltação , reduzida a Impe

rio univerſal, que ja para Si fundou Chrifto Senhor noffo no campo de Ou .

rique , no Santo, e em todos os ſentidosprimeiro Rey de Portugal

, D.Affona
so Henriques , reduzidos ao nada os inimigos do Nome domeſmoSenhor
eja triunfante , e dominante ſem a menor oppoſição, a Santa Igreja Ros
mana , Oh ! chegue , chegue ja hum tað ſuſpirado termo , abra ja a porta

a būa tað glorioſa execução ; pois ella be dirigida á ſua maior gloria , a
Providencia do Motor Supremo!

E Viſa Excellencia , cuja indole tao preclara nað parece verda

ſenaõ bum reflexo de ſeu Auguſto Primo, tendo , ſem cair no
deiramente

dezar de o competir , a fortuna de tað felizmente o imitar: V. Excellen .

cia , digo , que de tað altos fins ba de ſer hum dos primeiros mais effectivos ,
e mais gloriofos inftrumentos , e o eſpera hứa ſoberana participaçaõ da

nunca extincta gloria do noſſo adoravel Cyro da Luſitania , ſerá reconhe

cido della por hum dos ſeus mais inclytos crédores. Todo o mais reſto do Chrią

Aianiſmo, toda a Igreja , SENHOR D. JOAM , lhe deverá tantos ob .

Jequios , e triunfos , que excedað os numeros da meſma Arithmetica. Pa

Franciſco, Pay de V. Excellen

rece que o Sereniſſimo Senhor Infante D.

, e osnoſſos Auguftiſimos Reys,

cia, que eſtá no Ceo' Tio , e Primode V.
Excellencia , todos anteviaõ tanta grandeza em bum tal Filho, Sobrie

nho , e Primo nas honras , e diſtinçoens que V. Excellencia apenas naſci

do , de todos começou logo a obter. E com que diſtinguens , com que honras

nao prendaria a V. Excellencia feu Sereniſimo Avô , ſe entaõ folle ain ..

da vivo? Ob como elle ſeapuraría em amar hum Filho de tal Filbo; e tal
vez , SENHOR D. JOAM , ſe amaò ainda mais do que os filhos , os ne

tos. Que expreſſoens ſeriaõ baſtantes para declarar o incendio de amor

com que V. Excellencia foiquerido deſeu Sereniſſimo Pary ! No feu aſpe.

& o tað grave , e tað genih , parece que ja o emprendeo a natureza defi.

nir , e infinuar que o ſeu gratiſimo ſemblante , he búa fideliſima cópia do

ſeu pulquerrimo eſpirito . Heaſſerfað Divina , que o Sábio até no exterior

ſe dá a conbecer :para ſe inferir, SENHOR D. JOAM , 0.ſen Real

animo, naõbe neceſſario mais que refle £tir na ſua venesavel, e plauſivel

preſença. Ella exprime a V. Excellencia , Sábio , e Forte ; Heroico , e

titt Augufio,
 Augupo; Benigno , e Liberal; Magnanimo , eGeneroſo ; Timorato, e
Pio; Virtuoſo , e Chriſtað. Não ſó detodos eſtes, mas de todos os outros

mais infignespredicados ,dá, SENHOR D. JOAM , o ſeu taõ decoroſo ,

e affavel aſpecto bữa idéa tað clara , que parece que a todos os eſtá

figurando. Com que agilidade , V. Excellencia, ſenão porta na caça ?

Se ſe viſſem os mais fortes Leoens da Africa ou os meſmos Tigres

da Hircania , perſeguidos do ſeu invenſivel , e ſempre triunfante bra .

ço ; de Tigres , e Levens de converteriaõ em timidos Veados. Aſua for

ça , a ſua aflucia , a ſua velocidade , ja mais pudéraõ ſer baſtantes,

2
para que foſſem os ſeus taõ heroicos , e acertados tiros , azarófos , ou des
perdiçados.

A meſma Diana , a quem ſe attribue eſta taõ ardua , e taõ nobre

diverſaõ , vendo - a tao honrada por V. Excellencia , jale eſquece do ſeu

Endymion , por quem tanto a honra. Que galan , e que brioſo , naõ oc
cipá V. Excellencia a Sella , ou dando enſino , ou dominando o mais ge .

nerofo bruto , fe be que eſte nomelhe póde quadrar, quando com a obedi fa
encia que proteſta ao magifterio dos ſeuspreceitos , parece que melhora de
inflincto. Ama , e ainda exérce V. Excellencia a muſica : ella para cor ,

reſponder a tanta gloria ſe apura em ſubir os ſeus primores mais deponto ;

mas canſa ſe em vaõ , por ſer infinito o premio que recebe, em V. Excel.

lencia a ouvir. Na dança, nað he V.Excellencia , SENHOR D. JOAM ,

menos exercitado , e menos airoſo : entao parece , que como ſe ella parale 1

a contemplar aquelle ar , que V. Excellencia executa , que arrebata , de

e faz ſuſpender na esfera ſuperior o ſeu tað rápido movimento. As le
ciencias , e os Sábios , naõ lhe devem menos ; e be neceſſario que os mesa

mos Sábios ſe appliquem aos efludos com o mais laborioſo excello , ou

por cauréla , ou por gratidao , pois V. Excellencia ha de ler , e niſſólbes

ha de dar tað inexplicavel premio, os ſeus eſcritos. Como do materno

tem V. Excellencia perfeita intelligencia , detodos os mais idiomas ; da 1

quelles maiormente mais cultos, e applaudidos ; e ao meſmo tempo que

V. Excellencia os poſſue todos taï peregrinamente , em nenhum delles be

peregrino.
Neſta grande honra , que V. Excellencia lhes concede , fað cinco dela

les com muito maior eſpecialidade, os ſeusmimoſos. Efima V : Excellencia 10

a lingua Latina pela ſuaMageftade ; ella porèm entre creditos taõ nume

roſos, comologrou , e ha de lograr em quanto exiſtir o mundo, repúta aquels dhe

le que de V. Excellencia recebe, pelo maior de todos. A Toſcana , igualmen
te facunda , que mavioſa , e que em ambas as oraçoens , Solta , e ligada ,
conſerva tað inſignes monumentos da erudiçaõ , e da eloquencia , ſó ſe
quereria haver empregado nos taõjuftos , e merecidos applauſos de V. Exa
lu
cellencia . A Franceza , que tač dignamente ſe vê hoje pelo mundo iguala

mente applaudida, que prolongada , procurará correſponder de algum

modo á immenſa honra, que V. Excellencia lhe faz , divulgando, e ac .
elamando por todas as partes por onde he fallada , onome, e os louvores
de
 de V. Excellencia. ACaſtelhana , que tanto ſe tem apurado , tanto ſe desa

vanece , de fe ver taő eſtimada de V. Excellencia , que ja para os ſeus ena

cómios buſca muito mais flammante , e levantado e lylo . Mas, SENHOR

1
D. JOAM , a ultima das cinco que V.Excellencia mais eflimo , tem na
ſua eſtimaçaõ o primeiro lugar. Atodas antepoem V. Excellencia , nað
1
menos judiciofa , que rectamente a ſua lingua materna ; e ſó eſta razao
de ſer a ſua propria , era baſtante para a lingua Portugueza ſer a Rai
nha de todas ellas. Oh, quanto ella ſe preza defla gloria , quanto !

Mas ainda que eſte nobiliffimo idioma ſeja ſem igual no expreſſivo

no energético , e na fecundidade de floridiſimas locucoens , emprenderia eu ,

SENHOR D : JOAM , bum impoſſivel, ſe intentaſe proromper nos ſeus

encómios. Como V. Excellencia he taõ doutamente eſtimador das ciencias,

bonra a flor de todas ellas , a Poezia , com hum affetto muito particular.

Digaõ-no os ſeus mais celebres profeſſores deſta idade , a quem V. Excel

lencia tanto hanra , eſtima , e favorece. Por eſta razao tem o primeiro lu .
gar no ſeu agrado os melhores Poemas das expreſſadas mais felizes cinco

linguas. Digo mais felizes , pois nað podem deixar de o ſer , porque de V.

Excellencia mais eſtimadas. Oh , e quando imagináraõ ſeus Authores, que

haviaõ de ter hum tað infinito premio ! Huns favorecidos , outros desfa:

,
vorecidos ; todos á viſta de tantagloria , ſe eſquecerigo das ſuas próſperas

e adverſas fortunas: os afortunados , por ſer impoſivel que qualquer ou

tra , por muito grande que foſſe , pudeſſe ſer comparavel com tanta felici

dade : os deſafortunados; porque agora ſe converteriaõ em ditas , todos os

ſeus azares , que elles ja dariaõ por bem empregados , conſiderado bum

premio taõ tranſcendente a todos os premios. Só com hum pezar ficariaā

todos, e feria de naõ terem bum SENHOR D. JOAM , por digno He.

róe da ſua mais altiloca Epopéia , poſto que todos ficaria . indignos de tan
to aſſumpto, que a Providencia tem ſó reſervado para a tuba de ouro , que

o filho por mais douto, mais querido , do que o meſmo Orfeo recebeo de ſua
condigna Māy , a heroica , e mageftoſiſſima Caliope.
Virgilio vendo tam penhoiada a lingua Latina , recufaria celebrar

na ſua Enéida ao filho de Anquiſes : Taſſo , agradecendo a eterna honra

que V. Excellencia faz á Toſcana , até deixaria de decretar na Liberás

ta o ſeu Gofrèdo: Voltaire em reconhecimento do muito que V. Excellena

cia tem individado a Franceza , nem lhe entraria no penſamento applau

dir na Henriáde ao ſeu quarto Henrique de França : Zárate reconhe

cendo quanto he V. Excellencia affeicoado á Caftelhana , eſquecerſe -hia

no ſeu Poema E'pico da Invençaõ da Cruz , do ſeu Conſtantino. Masſo

bre tudo o que faria hum Camoens, amante tao acerrimo das glorias da
ſua patria , e tað affeiçoado á ſúa lingua materna , que elle

com pouca corrupçaõ crê que he Latina ;

o que aſſim cant :u com tanta elevaçaõ , como humildade ; com tanta elea
vaçao d
, igº , do ſeu inimitavel enthuſiaſmo, como com tanta humildade

do ſeu virtuoſo , e Catholico efpirito ; que ſe elle nað eflivera taò radicado
neſta
 neſta baſe das virtudes, bem podería reconhecer , que havendo - a elle
fallado , como incomparavelmente fallou ,com
hum ſom alto , e ſublimado

hum eſtylo grandîlozo , e correpte ,

ja ella ficava carecendo da corrupçaõ de que haveria podido ſer ta

I
chada ; porque elle naõ ſó a ennobrecéo com o ſeu tam divino Poema dos

Lufiadas , jenaõ que com o abalfamo, que lhe difillor da ſua penna ,
lhe farou osdefeitos , que ella poderia ter de corrupta.

Era gloria , SENHOR D. JOAM , efta gloria lhenaõ negaria

elle ſe ouville , como V. Excellencia , taõ alta , taõ inſigne , e tað ſingular
mente a falla , eſcreve , e acredita . Ao meſmo tempo , como tao apaixona
do que elle era pela virtude , e gloria da ſua naçað, a honraria com mais

alto Poema , Jenaõ pelo eſtylo , pela materia ; porque conſiderundo os

inacceſſiveis predicados de 1?. Excellencia , tað ſuperiores aosdo ſeu Gama,

naõ ſeria aquelle Jaſao Portuguez ; Jó fim ,hum SENHOR D. JOAM ,

ſeria oſeu Heroes 16

Mas naõ jó eſtes mais doutos filhos das Muſas , que com os mais ca
ef
nóros , mais doutos , e mais incomparaveis inftrumentos de ouro cantárgā ,
e honráraõ as linguas que V. Excellencia mais honra ; ainda os mais cea

lebrados que fallárað outras differentes das meſmas cinco, que V. Excel }

lencia mais ama. Por eſte principio Homéro naõ daria a gloria da ſua

Jliada a Aquilles, nem a Ulylles a da ſua Odyſea , nem tambem eſco GE

Thería para affumpto dos feus dous Poemas aquelles dous Campioens da
Grecia , o Theſſalo , e o Ithaco , a quem os ſeus preciofiffimos verſos, fize
raõ osmaiores de toda ella ; porque em V. Excellencia acharia , o que

nao poderia achar , ' nao digo eu ja naquelles dous Heroes, mas nem ain
da em todo o heroiſmo: acharia , digo , o Heróe dos Heroes, hum SE .
NHOR D. JOAM . E ſe Milton ; deixando todos os outros Epopeos , ſup

pofto que os que ficao referidos , ſağ aquelles, a quem Apollo concedếo as

primeiras Coroas de louro do Parnafo: ſe Milton , torno a dizer ; Milton ,

que levantando a ſua voz , deſde lá de hüa regiao apartada do mundo ,

em todo elle fez hum ecco tað gloriofo ; nao houveſſe eſcolhido , como era

colheo , no ſeu Paraiſo perdido , hum aſſumpto ſagrado , e conſagrado

com as inſpiraçoens, e expreſoens do Eſpirito Santo , e emprendeſſe can

tar algum aſſumpto heróico , ſería o ſeu unico aſſumpto , hum SENHOR
2
D. JOAM . Efla feria , SENHOR , a ſua gratidao pela immenſa hon ,
ra , que elles de V. Excellencia tem obtido , ainda nao havendo lido os

ſeus verſos , mais, que nas ſuasmais fieis , e mais eloquentes , mais judicio
ſas, e mais perfeitas traducçoens, feitas nas linguas que a eſtimação que
V. Excellencia lhe dá , faz as mais gloriofas.

E que materia naõ achariam eſtes primeiros Magnates da Poeſia nas

Juas taõ relevantes , e altiſſimas virtudes , SENHOR D. JOAM ; nas

virtudes de hum Heróe , que deſde menino , como hum novo , e maior Hero

cules , logo começou a ſer grande ? Já forað augûrio de tanto merecimento,

as
 as Reaes magnificencias , que V. Excellencia apenas naſcido , logo come
çou a lograr. Com que ofientoſo eſplendor ſenaõ celebrou a ceremonia do

feu Bautiſmo. O Arao de Lisboa , o Eminentiſſimo Cardeal Patriarca ,

em todos os ſentidos primeiro de Lisboa , libe conferio aquella ſagrada

ahluçaõ na meſma Pia , em que a recebem os meſmos filhos de noſſos Reys,
e Senhores. Fez - ſe o aſſento deſte taõ luzido , e ſagrado atto no meſmo li .
vro deſtinado para os da meſma Regia Próle, que toda entao allí aſiſtio.
Nao teve V. Excellencia menor Padrinho, do que aquelle grande Rey, de

quem V. Excellencia he taõ digno Sobrinho : motivo; porque ſe lhe impoz

o nomede JOAM ,por nome Jeu , e nome de V. Excellencia , ja o mais con
que 0
digno; nem outro podia ſer tam conforme a Heróe tað grande , do

nome de hum Santo , que foi tað grande , que por teſtemunho nao menos
que do meſmo Chrifto , entre os naſcidos de mulheres, nenhum foi maior
do que elle.

Eftas as diſtinçoens, que V. Excellencia , SENHOR , começou a ob

ter delRey D. Joao , apenas acabou de naſcer ; ſuppoſto que o ſeu merecie

mento be infinitamente ſuperior a tantas , e tao Regiashonras. Eile poz

em eſquecimento toda a gloria

da liberalidade Alexandrina :

V. Excellencia he o Heróe das virtudes : nefes termos o ſangue , o amor ,

é a ſympathia , tudo entrou a concorrer a favor do ſeu merecimento. A26 .

de Mayo de 1749. ſe vio aquelle mez muito mais florîdo, menos pelas gra

ças com que a Eſpoſa do Zéfiro o afermofeou , do que pelas honras , que

V. Excellencia naquelle dia participou daquella tao grande Teſta Coroas

da , por quem foi entaõ declarado filho do Sereniſſimo Senhor Infante D.

Franciſco, e habilitado para as honras de que tanto caracter o faz be “

nemérito. Fingrandecendo-ſe V. Excellencia a 21. de Fevereiro , do anno

que mediou o ſeculo decimo oitavo , deixou tambem mais engrandecido

aquelle mez , que he o mais limitado. Então foi V. Excellencia decla

rado por aquelle tað infigne Rey , por ſeu Sobrinho, conferindo- lhe ao
îmeſmo tempo o tratamento de SENHORD . JOAM . Os Rey's fað

retrato de Deos na terra : Deos , élos Reys ; hum , e outros ſe chamaā.

SENHOR : deſte modo parece , que aquelle tað incomparavel Principe ,

quiz partir a regalia com 1. Excellencia. A 19. de Mayo daquelle anno

preferio a V. Excellencia por Jeu Real

Decreto aos Titulos, declarando -a
por SEU MUITO AMADO, E PRESADO SOBRINHO. Eſta foi a

ultima honra , que V. Excellencia abreve de ſeu Auguſtiſſimo Tio : nai a

fora , ſe a Parca naõ cortaſſe tað intempeſtivamente o fio de ouro de búa

1að precioſa vida.

Mas ſe a morte nos: levou taổ cruelmenté aquelle Reny , tað digno de

ſer immortal , que eſperanças ngõ concebemos ,6 SENHOR , de que V.

Excellencia conſeguirá as mais elevadas condecoraçoens de ElRey noſſo Sem

nhor. Ja começámos a ver ifto na ſua tam glorioſa exaltaçao, nao ſó pre

ferindo V. Excellencia , como eſtava decretado, aos Titulos, mas ainda

ditt
aos meſmos Heróes da Santa Igreja Romana. Todos aquelles que nellas
mais intereſſados foinos, inceſſantemente ao Ceo pedimos as maiores rega

lias , e grandezas de V. Excellencia , e ja nos compromettemos eſta fatis

façað , attento o muito que he taõ proprio dos Joſephs, ſerem juſtos ; e ſer

infinito o merecimento de V. Excellencia. Aqui be , que eu , SENHOR

D. JOAM , quizera e praiar-meno pélago dosſeus elogios ; mas naõ pó

de dar taõ alto voo kūa penna tao toſca , e tað rafieira. Nao ſomente a

minha , taó deſigual, e humilde, mas qual outra , por mais bem apara
da que foſſe , ſe podia dar tað condigna , e adequada para tanto Pane

gyrico ! Emprendéra em tentallo , hum dos maiores impofiveis ; e Jeria ,

o meſmo querer meter.ſe ao vaſto Oceano dos ſeus encomsos , do que abbre .

viar toda a immenſidade do mar, na breviſſima concavidade de hûa con.

cha. Pois se iſto ſuccedéra aos engenhos mais alcantilados ; le ſuccedera

aos mais raros Cyfnes , & quem ſerve a Caftália de Caiftro , o que ſuccede
ria a quem ; como eu , he taồ deſconhecido, e tampouco cultivado na Re
publica das letras

Fique a outros engenhos bữa empreza tað glorioſa ;fique , que eu na

falta de hum condigno entendimento , para deſempenhar tanto aſſumpto,
faço hum ſacrificio , ſenaõ tao eſplendido , nað menos atlendivel, porque

da vontade. Hum ſacrificio expreſo que faço no rendimento, com que che

go a pôr aos pés de V. Excellencia a tenue offerta deſte livro, em quepelo

que elle , como meu , tem de informe , nao ſo triunfa do artificio a mate

ria pela ſua inacceſſivel ſublimidade , mas ainda quando eſta nao fora in .

fupperavel ás mais aquilinas pennas , ſempre neſte livro ingenuamente o

confeſo; nem ſe póde negar triunfaria tambem a materia do artificios
bem ao revez do que obſervou Faetonte na Caſa do Sol.

Naõ tem , nem contem , SENHOR D. JOAM , efle volumeoutro

acerto mais, que aquelle de o pôr á fombra do glorioſo patrocinio de V.

Excellencia ; mas eſte, ainda que unico , he de taõ alta esfera , que ſó elle
be baſtante para me deixar deſvanecido.Por iſſo fico eſperando , que por

mais que elle deſmereça pelo efiylo , não deixe de merecer , naõ menos do

que pelo ſeu aſſumpto , do que pelo Mecenas que o protége , a indulgencia,
e ainda a attenção dos Leitores mais judiciofos. Por hum Mecenas ſobre

quem cabio do Ceo prodigaliſimamente achuva de curo de todas as virtu

des; e pelo aſſumpto , que he todo maravilhas da larga Maõ , com que o
Altiſſimofez taðgrandes no Ceo , e na terra os filhos , e as filhas Do

mingos , meu Santiſſimo Patriarca . Neſte livro , por mais que o desfigu .

salle a minha toſca penna , a beneficio cdo ſeu grande merecimento , eſtá
brilhando, erecendendo alternamente a luz , e a fragrancia de hum hor

to , e Firmamento Dominicano. Aqui revivem , SENHOR , mil Santos

Confeffores: Aqui mil invenciveis, triunfantes , e heroicas Martyres de

Chrifto , coroados de immarceſiveis , glorioſas , e eternus palmas lá no

Capitolio da Bemaventurança : Aqui mil zelofos Cultores da doutrina

Evangelica : Aqui mil intactas açucenas de pureza . Mas que profigo , fe

fora
fora imprender o quaſi impoffivel, que Deos la propunha antigamena

te a Abraham , querer tentar reduzir a numero as eſtrellas do mnflico

Ceo da Religiaõ do Abraham da Ley da graça , meu Santiſimo Patri

arca Domingos.

Ellas , SENHOR D. JOAM , deſde lá donde eſtao, tanto mais

acima do Firmamento , quanto eſte be fuperior aos ały/mos, em que ca.

bio precipitado como hum rayo , o Jerarca dos Anjos apopatas , que pre

tendia ſubir acima dos aftros , e fixar o ſeu throno no monte do Teftamen,

to : deſde lá , repito , ejiao implorando o auxilio da ſua protecção , pa

ra a nova vida , que lhes pretendo dar no prélo, e offerecendo ao meſmo

tempo o V. Excellencia o ſeu valimento , e o ſeu mais benigno influxo na

eterna Corte do Rey dos Reys. Mas ſe os filhos mais Jantos de Domingos;

pódem fazer grande no Ceo , a quem he tað grande na terra ; ainda na

terra le póde V. Excellencia fazer maior , patrocinando , ainda que elle

reja de tað pouco merecimento , o Eſcritor das acçoens dos meſmos fa

grados Heróes, por ſer mui proprio dos grandes amparar os pequenos ; e

ſe os meſmos grandes ſao quem melhor repreſenta no mundo a ſua grana

deza , ainda V. Excellencia aſſim o ficará imitando com muito maior
propriedade , fuppofito que a Omnipotente Mao do meſmo Arbitro Divia

no creou de nada , tudo quantoſe admira em bum , e outro globo, no Sublu

nar , e no Celeſte. O meſmo Author de todo o bem guarde a V.Excellencia

por hứa vida igualmente dilatada , e feliz , que eſplendida , e gloriofà.

Alim o pedimos inceſſante , e ardentemente a Deos , todos os ſeus cria

dos , e entre elles, naõ tanto por mais obrigado , quanto por mais affeEluo

so , com as mais inceſſantes , e ardentes deprecaçoens.

Seu menor Capellaó , e Orador.

Fr. Joſeph da Natividade .

 ‫‪': ° .‬‬
‫ܪܐ‬
‫ܙ‬
‫[‬
‫‪n‬‬
 LICENCA S.
5

DA RELIGIA O.

APPROVAC , AỒ DO M.R.P. M.DOVTOR Fr. JOAV DE SANTA

Rofa , e do M. R.P. Preſentado Fr. Franciſco Xavier de Lemos , Lente
de Prima de Theologia da Univerſidade de S. Domingos de Lisboa ;
Conſultores do Santo Officio , &c.

REVERENDISSIMO P. M. PROVINCIAL .

IMOS por ordem de V. Reverendiſſima o ſetimo Tomo do Agiológio

Dominico , que conſta das vidas dos Santos , Beatos , Martyres , e ou .
tras Peiloas Veneraveis da noſſa O dem dos Prégadores ; e na verdade
delejáramos, que foſſe agora ettranha a noſſa penna para demorar hum
pouco o voo nos elogios do ſeu Author. He eſte o R. P. Fr. Joſeph
da Natividade , Pregador Geral , filho deſta nolla Provincia de Portu .
V
gal ; e ſe a mina donde trazem a origem acredita os metáes , eſcuzava
mais exame o ouro que contem eſte livro , que o reconhecimento de ſer extrahido da
fecunda mina de taố conhecido , e inſigne Eicritor da nolla Ordem , neſta Provincia .
Deſta tem ja ſahido ' á luz publica tantas preciolidades , quantas as obras , que
correm impreſſas deſte meſmo Author ; e le por todas ellas ſe tem feito o ſeu nome
acredor dos applauſos da Fama ; por eſta merece , que a noſa Religiao Sagrada lhe le
vante hũa eſtatua entre os Varoens mais egregios della , a que ſirva de letra aquelle
antigo axioma , com que os Sabios, no ſentir de Pierio Valeriano , elogiava ) as obras
dignas da immortalidade : Et credo digna locutus : Pois que em credito da meſma Re
ligiao , faz com que no Templo da memoria appareçað os fimulacros de tantos He
roes, e Heroinas , que em letras , e virtudes tem florecido nella , para que por meio
do bronze da eſtampa que pretende , permanêçaó a pezar do tempo , que tudo con ,
ſome , por toda a poſteridade.
Perſuado me , que noilo Santiſſimo Patriarca encherá de mil hençaðs a eſte bene.
mérito filho ; porque cada vida deſtas , que nos offerece neſte Agiologio, he hũa Ima .
gem do meſmo Santo Patriarca , que nos propoem aos olhos para a imitaçaõ , e exem
plo ; conſagrando deſte modo aquelle frenezî , ou dilírio de Alcancio , que namorado
da ſua defunta Priſcila , fez eſculpir em muitos corpos o leu ſemblante , e figura, para
que viſſem todos o objecto da ſua cegueira. Nao de outra forte o Author dette livro ,
lagradamente enamorado da fermoſura , e virtudes , de ſeu , e noſſo gloriofiflimo Pa .
triarca , pretende eſtampar em cada vida deſtas , com mais finas cores da eloquencia ,
húa imagem lua , para que nós todos, os que temos a gloria de filhos de Domingos, na
!
immentidade de copias , nos nao eſqueçamos do Original. E para que o noſſo voto nos
nað retarde tanto bem , dizemos : que neſte volume nao deo o ſeu Author raſgo , que
nað tivelle por medida a firme regra da noſſa fanta Fé Catholica , nem eſcreveo letra ,
a que nao lerville de norma a inviolavel ley da noſſa Religiao Dominicana; e aſſim jula
gamos ſe pode , e deve imprimir. V. Reverendiſſima determinará o que for lervido.
Convento de S. Domingos de Lisboa 10. de Fevereiro de 1752 .
Fr. Joað da Roſa.
Fr. Franciſco Xavier de Leinos.
Attttt Fr,
 R. SILVESTRE DE SANTO THOMAS , MESTRE EM SANTA
Theologia, Conſultor do Santo Officio , e da Bulla , Examinador das Tres Ordens
Militares , Prior Provincial da Ordem dos Pregadores neſtes Reinos de Portugal,
F
& c. Pelas preſentes letras, e authoridade do noſſo Officio , concedemos licença
ao R. P. Pregador Geral Fr. Joseph da Natividade, para que poſla dar ao prelo o ſetimo
Tomo do Agiologio Dominicano, que foi viſto, e approvado por peſſoas doutas da noſ
la Religiao , deputadas por Nós , para o ſeu exame. Servatis aliis de jure Jervandis,
Dadas no noſo Convento de S. Domingos de Lisboa lob pollo final , e iello aos 11. de
Fevereiro de 1752 .

Fr. Silveſtre de Santo Thomás.

Prior Provincial.

Lugar do Sello

Reg fol. I55 . ý .

Fr. Tbedoro de S. Joſeph.

Lente de Veſpera , Secretario , e Companheiro .

DO SANTO OFFICIO .

APPROV AC , AM DO M. R. P. M. Fr : MANOEL FERREIRADA

Provincia dos Obſervantes de N.P.S. Franciſco, Conſultor do Santo
Officio, Examinador das tres Ordens Militares , Definidor que
foi ao Capitulo Geral de Roma, e Procurador Geral da ſua
Provincia neſte Reyno , & c.

ILLUSTRISSIMOS, E REVERENDISSIMOS SENHORES.

Andað -me Voſſas Illuſtriſſimas qualificar o ſetimo Tomo do Agiologio Dos

minicano , que conſta das vidas dos Santos , Beatos , Martyres , e outras Per
loas Veneraveis da Ordem dos Prégadores, ſeu Author o M.R.P.Fr. Joſeph da
M
Natividade , Prégador Geral , filho da Provincia Dominicana de Portugal; e
principiando a examinar elta Obra com aquella reverente attenção , que ſe merecem
tað ſantos preceitos , e tað excellente manufactura; expreflo o meu dictame com bem
merecido elogio do Author , pois ſe elevou mais o meu juizo da doçura deſta Obra , e
dos precioſos frucios que della ſe podem tirar , que nao do officio de Cenſor.
Admiro os ſeus remontados voos de tað peregrinas memorias , nao averiguadas
até o prezente , pelo dilatado curſo de tantos ſeculos ; mas agora illuſtradas tao acerta
damente , que parecem todos os ſeus fundamentos belliſſimos reſplandores de hum Al
tro , que luzio no Dominicano Hemisferio , para diſſipar as confuziſſimas ſombras do
deſcuido , ignorancia , e antiguidade. Neſte fetimo Tomo deſcreve eſte erudito Au .
thor com Aquilo juizo as vidas dos Santos, Beatos , Martyres , e de outras peſſoas Ve.
neraveis , que florecêraó nos tres mezes de Julho , Agoſto, e Setembro , e diſcorre hi
ftoricamente com humas vozes tað heroicas , com huns tað engenhozos períodos , que
ſendo para os entendimentos , que as virem , vivamente eſpeculativos, faó para as von
tades affectuoſamente praticos , cumprindo com as obrigaçoens de hum perfeito Hifto .
riador , ſendo breve na narraçað , ſem ſuperfluidade nas palavras , muito claro ; porque
guarda a ordem dos tempos ſem confuzaõ de peſſoas: muito verdadeiro ; porque em ſi ,
e no ſeu eſtylo he digno de toda a fé ; alheio de toda a paixao , obſervando tau bem os
ápices da Relaçıð verilica , que os meſmos de quem elcreve publi.að ler verdade tu .
do o que ſe enarra neſte Agiologio , do qual pollo affirmar o que o Principe da Elo .
quencia
quencia Romana celebra da verdadeira Hiſtoria: Hiſtoria teftis ef temporum , lusve.
ritatis , vita memoriæ , magiſtra vitæ , nuncia vetuftatis ; pois todos eltes preclaros
attributos de húa verdadeira hiſtoria reſplandecem no maravilhoſo artificio deſta Obra ,
que ſerá na poſteridade fiel teſtemunha das heroicas virtudes , com que illuſtráraó a
Igreja os filhos do grande Padre S. Domingos , ſendo cada hum farol da ſua verdade
o que até o prelente de alguns era nevoa da antiguidade,fixando no ſer de vida de Ve
neraveis memorias , que ha ſeculos eſtavað ſepultadas ; todas illuſtrað efte Agiologio,
e feu Author.

Com rigoroſo exame liefte Agiolog io , e nelle encontrei muitas glorias da Re

ligiao Dominicana , em todas as partes do mundo , e muitas eſtavaó elquecidas ; pois
dellas nao tratárað os Eſcritores ; mas agora as vemos ſaír a luz , e expoſtas no templo
da honra , e veneraçao , ſupprindo eſte Author o defeito de tantos Hiſtoriadores que
as deixáraó em cilencio ; e me parece com razao julgo , que ſe pode gloriar a Provin .
cia de Portugal deſte eſclarecido filho , contribuindo tanto para os ſeus applaulos , ve
rificando- ſe nelle a promeſſa do Sabio , que diffe : Qui docet filium ſuum , laudabitur
in illo , do in medio domeſticorum in illo glorificabitur. Ecclefiaft. 30. 2. pois da eduçao
deſte grande filho reſulta á Provincia de Portugal , o applauſo de ter ſua Máy , e pó .
de.ſe gloriar nelle de lhe expôr á memoria , e lembrança as virtudes de tantos He ,
róes da Santidade , adquerida no meio dos ſeus domeſticos,
Muitos Chroniſtas tem tido a Religiao de S. Domingos : muitos eſcrevêrað as
vidas de ſeus Irmaos eſpecializados em ſantidade; mas agora com eſte novo méthodo,
a todos excede o Author deſte livro ; e ſer o ultimo depois de todos, e de paſlados tan
tos teculos , a reſpeito de muitos , que finalizáraõ a ſua vida ; regulo eu maior gloria
para a Religiao, alcançada por eſte Author , do que de todos os demais, que lhe prece
dêrað no meſmo aſſumpto ; porque coſtumao fazer - le incriveis as façanhas muito he .
roicas , antes que as acredite a vagaroſa voz dos ſeculos ; e eſte credito conſeguírað
agora as glorias da Religiaõ Dominicana com os modernos Agiologios , eſplendores
deſte inſigne ſilho.
Eſquecida eſtava grande parte das virtudes , e excellencias de alguns Heroes
deſta fanta Familia , e ſepultada pelo ſilencio dos mais Chroniſtas ; dava ſuſpiros toda
a Ordem , e muito mais le lamentava ) aquelles , que tanto a acreditáraó em vida ; mas
agora neſte ſeculo , ſe mudáraó em jubilos eſtes ſuſpiros , as lamentaçoens em vivas ,
reſuſcitada de todo a ſua gloria , e inmortalizada em tantos clarins , quantas fað as
letras , que daráó a conhecer á poſteridade a fama , com que conſumárað a ſua vida
mortal; pois de todos , com eſpecial cuidado , trata eſte inclyto filho , de que ſe pó
de jactar entre os ſeus domeſticos : Qui docet filium fuum, laudabitur in illo, do in mee
dio domeſticorum in illo glorificabitur. Eccleſiaſt. 30. 2 .
Confirma eſta Obra , a grande opiniaõ , que ja tem adquirido o ſeu Author nos
ſeis primeiros Agiologios antecedentes a eſte ſetimo , recebidos todos com applauſo
de todos os doutos , ajuntando na ſua peſſoa todos os attributos que conſtituem hum
Varað Douto , e Prudente ; raza ) porque nað encontrei em eſta Obra couſa alguma
que ofrenda a pureza da noſſa ſanta Fe , ou bons coſtumes ; antes me parece digniſſi
ma de le expôr nos olhos da Republica literaria , para credito immortal da Religiao
Dominicana , especializada na Provincia de Portugal. Eſte he o meu parecer ; Voſlas
Illuſtriſſimas mandaráð o mais acertado . Lisboa. Hoipicio do Duque de Cadaval 22. de
Fevereiro de 1752.

1
Fr. Manoel Ferreira.

Appro.
 APPROVAC, AM DO M. R. P. M. Fr. THOMAS DE S. JOSEPH,
da Jagrada Ordem da Santiſſima Trindade, Preſentado em Santa
Theologia , Conſultor do Santo Officio, e actualVifitador
da jua Provincia neſte Reyno , & c.

ILLUSTRISSIMOS SENHORES .

Ste livro que Voſſas Illuſtriſſimas me mandað ver he o ſetimo Tomo do Agiolo
gio Dominicano, que compoz , e intenta imprimir o M.R.P.Fr.Joseph da Nativi.
dade , Pregador Geral, e Religioſo da ſempre illuſtre , ſagrada , e fiorentillima
E
Ordem dos Pregadores: e lendo eſte livro, Obra de hum tal Author, bem podia ,
ſem o ler , approvar logo eſte livro ; porque nao podia deixar de 1er bom , e sem nota
hum livro , que he genuino parto do entendimento de hum Author, que tantos , e tað
bons livros tem compoſto , e por todos tað bem aceitos , e louvados ; porém , por obe
decer , como fou obrigado , aos preceitos de Voſſas Illuſtriſſimas , confeſlo ingenua
mente que o lî todo com grande goſto , e edificaçao.
Pois quem ſenaõ hade edificar , e interiormente comover com a liçaõ de hum
livro , que lo trata das illuſtres , e virtuoſas acçoeos de alguns dos innumeraveis filhos
de Domingos , que com as fuas virtudes , nobreza , ſantidade , ſabedoria , e exemplo
tem nao ló illuſtrado a ſua Religiao lagrada , mas tambem admirado todo o mundo ?
Quem ſe nað ha de confundir , e paimar de ver a Religia ) Dominicana adornada , e
enriquecida com tantos Martyres , Confeflores , Virgens , Pontifices , Cardeaes , Patri
arcas, Arcebiſpos , Bispos , Lugados , e Eſcritores , que como odoriferas flores da ſan
tidade , e virtud : forniao huin agradavel , e delicioso jardim no dilatado campo da
Religiao Dominicana , onde se divilað as fuaviffimas plantas de tantos Conventos Re
ligioios , as diverlas flores de tantos Heróes illuſtriſſimos , e os varios matizes de ſeus
inlignes merecimentos , cujas cores nað ſe pódem numerar , nem cabalmente diſcernir ,
podendo eu agora affirmar , o que em outro ſentido cantou Ovidio , aquella luz cega
da gentilidade , quando ( 5.Faſt.) diſſe :
Sepe ego digcſos volui numerare colores ,
Nec potili , numero copia maior erat.
Porém ſendo tudo paímo , e admiração tudo , nað me admira tambem pouco a
facundia , e larga vaftidao do Sábio Eſcritor deſtas memorias ; porque no ſe conten
tando em diffundir , e communicar as coirentes da ſua erudiçao em ſete Tomos , que
tantos 1a) os que ja tem compoito do ſeu Agiologio Dominicano , como faz , o cele
bre , e caudaloſo Nilo , que reparte as ſuas aguas por fete copioſiſſimas bocas ; com tu.
do he tal a affluencia du leu engenho , e tað incanſavel o ſeu eſtudo , e diſvélo , que
naõ deſcançando neſte ſetimo , ainda eſperamos que nos participe as aguas da ſua dou .
trina por mais bocas ; porque ainda nos promette outros copiofos Tomos. Mas aſſim
havia de ſer ; porque quem eſcreve com eitylo taõ claro , tao profundo , e com tað va
ſta erudiçao , bem he que a ſua doutrina nað ſeja ló lemelhante ás correntes do Nilo ,
ainda que caudaloſo , mas ſim mui parecida ás aguas de hum mar , ſempre invadeavel,
e profundo.
Muito deve certamente a Religia ) Dominicana a eſte ſeu zelolo , e amante fi
lho ; porque a pezar do tempo , deixa neltes eſcritos immortal a memoria de alguns de
ſeus eſclarecidos Irmaos , que talvez tem a ſua diligencia ſe hiria ſepultando nas cinzas
do eſquecimento ; mas niſto adquire eſte fapientiflimo Eſcritor hũa grande felicidade;
porque ao meſmo tempo que deixa eternizada a memoria dos ſeus illuſtres Religioa
los , fica tambem immortal o ſeu nome , e perpetuada a ſua fama; porque ao meſmo
pallo que eſcreve com clareza as virtudes alheas , vai inſenſivelmente deſcrevendo os
louvores proprios , e dando niſto hum novo credito á fua Religiað ſagrada , e ao noſſo
Reyno hum nao pequeno eſplendor .
E á viſta diſto , me parece , que eſte livro nao tem couſa , que offenda á noſla
fanta Fé , nem aos bons coſtumes ; antes toda a ſua materia he dirigida a que os coſtu
mes ſe reformem , e a Fé le estabeleça nos coraçoens de todos os que attentamente o
lerem , e meditarem ; eallim o julgo digniſſimo de le imprimir. Vofias Illuflriffimas or
denaráð o que fór lervido . Lisboa. Convento da Santiſſima Trindade, 22. de Março de
1752 .
Fr. Thomas de S. Jofeph.

Viſtas
 póde-fe imprimir o livro de que ſe trata , e depois volta
V for para ſe dár licença que corra , ſem a qual nao correrá. Lisboa 23.de
rá conferido
Março de 1752 .
1
Fr. Rodr. de Lancaſtro. Silva. Abreu . ' Trigoſo.

DOOR D I N A R I O.

APPROV AC , AM DO M. R. P. M. Fr. FRANCISCO AVGVSTO ,

da Sagrada Ordem de N. S. do Monte do Carmo, Meſtre Jubilado na
'agrada Theologia , Examinador das Tres Ordens Militares,
Synodal, Conſultor da Bulla da Cruzada , & c.

EXCELLENTISSIMO , E REVERENDISSIMO SENHOR .

Eſte livro , que he o Tomo ſetimo do Agiologio Domivico le contem as via

das dos Santos , Beatos , e outros Sujeitos veneraveis em virtudes , que co
mo eſtrellas brilhao no Ceo Dominicano , e illuſtrað toda a Igreja Catholica ,
N
como Aſtros da maior grandeza , obra do M.R.P. Pregador Geral Fr. Joſeph
da Natividade, benemérito filho da Illuſtriſſima Familia , e ſagrada Ordem dos Préga
dores deſta Provincia de Portugal. Neſta Obra manifeſta o feu Author o zelo , com
que procura os devidos creditos á ſua Religiaõ ſagrada , propondo aos Leitores deſte
livro tantos exemplares de virtudes , quantos os Heróes da Santidade , que ſe educá
raó nos Clauſtros do grande Patriarca S. Domingos , e com o ſeu ſanto habito partici
páraõ do teu eſpirito , para pôrem em praxe aquellas fantas doutrinas , que elle prati
cou na vida , e lhes deixou eſcritas , a fim de que nellas , como filhos , o imitaſfem .
A Obra he de immenſo trabalho , por iſlo meſmo que o ſeu Author extrahio todas ef
tas noticias dos Authores antigos , e modernos , que com maior diffuta ) nas Chroni
cas da ſua Ordem as tratáraõ ; e ſendo extrahidas de Authores taó puros na Fé, e tao
morigerados nos coſtumes , é eſcritas pela penna de hum filho deſta ſagrada Familia ,
que nas quatro partes do mundo tem eſpecial cuidado , e vigilancia na exaltaçaõ da
Fé , e na reforma das vidas , nað póde conter couſa que ſe opponha á meſma Fé, nem
encontre a pureza dos coſtumes. Carmo de Lisboa , ir . de Abril de 1752 .

Fr. Franciſco Auguſto.

Iſta a informaçao , pode-ſe imprimir o livro de que a petiçaõ trata , e depois de

V impreſſo torne conferido , para ſe lhe dar licença para correr. Lisboa 13. de Abril
de 1752 .

Sylva.

DO
tttttt
 DO PAC , O.

APPROV AC,AM DO M. R. P. M. MANOEL MONTEIRO ; DA

Congregaçaõ do Oratorio, Academico do numero da Academia Real

da Hiſtoria Portugueza , Examinador das Tres
Ordens Militares , 8c,

SENHOR .

Anda -me V. Mageftade que veja o livro intitulado Agiologio Dominico, com :
poſto pelo P. Meſtre Fr. Joſeph da Natividade da Ordem dos Prégadores , e
M que interponha o meu parecer. Em obſervancia deſte preceito o lî , ja prome.
ditando , que ſe havia parecer com as outras Obras do ſeu Author' ; e aſſim
he na verdade ; porque em tudo fe lhe parece : na boa digeſtao , eordem que ſegue : na
eloquencia , com que falla : na erudiçao , com que o exorna ; e na picdade , com que
em tudo ſe conforma com as regras da noſa lanta Fé Catbolica, c bons coſtumes. ( )
certo he , que defta Hiſtoria ſe pode ſeguir muita utilidade á Igreja , muita gloria para
a Religiaõ Dominicana , c nao menor para o ſeu Author ; razao porque me parece ,
.
que he benemerito da licença que pede para o poder imprimir. V. Mageftade mandará
!
o que fór ſervido.Lisboa, e Congregaçao do Oratorio , 8. de Mayo de 1782.

Manoel Monteiro.

Ue le poffa imprimir , viſtas as licenças do Santo Officio , e Ordinario ; e depois

de impreſſo tornará á Meſa , para ſe conferir , e taxar , e dar licença para que cors
Q
' ra , e lem iffo nao correrá . Lisboa , 1o. de Mayo de 1752.

Marquez P. Daz de Carvalbo. Carvall. Mour.

LICEN
L I CE N C A S.

DO SANTO OFFICIO .

Stá conforme com o ſeu original. S. Domingos de Lisboa 22 .

E de Mayo de 17530

Fr. Franciſco Xavier de Lemos.

O’de correr . Lisboa 22. de Mayo de 1753 .

Pº
Fr. Rodr. de Lancaſtre. Silva . Abreu . Páes. Trigozo,

SylveiraLobo. Caftro.

DO ORDINARIO .

O’de correr . Lisboa 23. de Mayo de 1753 .

P.

D. J. A. de Lacedemonia .

D O P A C; O.

Ue poſſa correr , e taxaõ em mil e duzentos reis. Lisboa 29

de Mayo de 1753 .
Q

Marquez P. Attayde. Mourað. Emmaús,

PRO
 PROTESTAÇAO .

Bedecendo ao Decreto do SS. Padre , e Senhor Urbano VIII.

de Santa recordaçao , confirmado em s . de Julho de 1634 .

O
porque ſe prohibe a impreſſao dos livros de vidas , milagres,
revelaçoens , e outros ſemelhantes favores , que conſeguiráõ do Ceo
peſſoas Veoeraveis , que morrêraó com opiniao de virtude , ſantida ,

de , e martyrio , ſem reconhecimento , e approvaçao dos Senbores

Ordinarios , quando as meſmas graças caem ſobre a peſſoa , deven ,
do ellas alias ſer relativas não mais que aos coſtomes das meſmas

peſſoas, e á boa opiniao com que ellas paffáraó deſta vida , pelo que
faó obrigados os Authores de ſemelhantes obras a fazer no princi .

pio dellas búa proteſtaçao , em conformidade das meſmas diſpoſi

çoens : Proteſto conformar -me em tudo com as determioaçoeas da
ſanta Sé de Roma. Por iſſo todas as vezes , que neſte volume, ou ſe

referirem ſemelhantes beaeficios celeſtiaes , ou ſe attribuírem ás per

ſoas , cajas memorias eſcrevo , os titulos de Beatos , e Santos , que

a meſma Igreja ainda lhes pao conferio , de nenhum modo hé o

meu intento dar -lhes maior crédito , ou authoridade, do que aquel .

la que pode caber aa fé humana. Aſſim o proteſto ;e que , em quan :

to eu diſſer , e obrar por nenhum principio quero apartar-me da

doutrina da Santa Igreja Romana, Orthodoxa , e Univerſal, re

gra infallibiliſſima da verdade, e da ſalvaçao .

Fr. Joſeph da Natividade.

PRI
1
1
 PRIMEIRO DE JULHO .

VIDA DA PRODIGIOS A

S.ZEMEDEMARE’A

DE ETHIOPIA ,

Reconhecida , e acclamada por Santa no Reyno dos Abexins ;

Extrabida de Razzi , Vrreta , Pio , Fr. Joaõ de Santa Maria , Soueges.

FJA humaSan . belladas , e deſtruidas pela força de

ta Princeza, fiel outras razoens mais nervoſas ; porque
Eſpoſa do Prin de mais de fer atteſtado muitas vezes,
cipe da P.2 , e o que diremos agora da pofia Santa

do Santo dos Zemedem aréa por dous Religiclos

Santos , a Bem . Dominicos daquellas partes , que vie
$ aventuradaZe . rao a Roma , e forao exa ininados

medemaréa , a neſte ponto com toda a circunſpecçao,

que nos dê fau !to principio ás Virtuo .
ſi llimas , e gloriolas Vidas dosHeróes,
e Heroinas da Dofia ſagrada Ordem ,
que com o favor Divino vamos con-
tinuando neste ſetimo Tomo do Agio.
logio Dominico. Porém antes de paſo
ſarmos adiante , ſerá neceſſario ad-
ficando ſempre igualmente inconcuſ
fa , que vitoriola a ſua verdade , de
modo , que ſe deo por tao ſatisfeita a
Santidade de Leao X que fez elegera
Fr. Thomaz , que era hum deſtes dous,
por Prior da Igreja de Santo Efievao
dos Gregos ; e demais outro fim , de

vertir aos noſſos Leitores de algumas
preciſas prevençoens concernentes a
efta memoria . Nao fallaremos aquidas
cootradiçoens de alguns modernos
Historiadores , que querem contro-
verter , e impugnar os progreſlos da
Religiao Dominicana na Ethiopia,que
como bem notou o noſſo Sapientiffi-
mo Diaritta Francez , Fr. Thomaz
Soveges , nao ſao tao invenciveis, e · fa para o dia
concludentes, que nao poſlao ſer de .
Tom . VII
ſer ſeguida , e : braçada a nсticia de nos
ſo elabelecimento pelo Illuftriffimo,
e Eruditiflimo Con pilador do Car •
deal Baronio , Heniique Eſpondano ,
que fazmençao de muitos noflos San
tus Ethiopes no anno do Senhor de
1340. debaixo do numero 12 : reſolve
mos , por Dao entrar logo com contro
verfias , deixar reſervada eſta defen .
30 de Dezembro no 8
tomo defte Agiologio , quando eſcre
A vermos
 SANTA ZEMEDEMARE’A
vermos ásvidas de oito Veneraveis Re-
ligioſos noſſos , Fr. Argai , Grima ,
Luanos, e ſeus Companheiros. Baftará
por ora acudir ao que he mais neceſ.
fario , juſtificando - nos ſobre tres pon-
tos , que podem mover mayor duvida
neſta materia ; e vem a ſer : o dia , e
o nome , que aſlinamos à noſſa Santa ,
e a repetiçaõ que fazemos neſte lugar
das ſuas noticias , quando aliàsandao
ja incorporadas no 3.como deſte Agio-
logio a 13 de Julho .
2 Quanto á primeira parte, variaō
os Hiſtoriadores ſobre qual foſſe o dia
do obito da Santa : o noſio V. P. Fr.
Thomaz Soueges , diz ,que poſto que
elles nao concordem ſobre o anno def
te feliciſſimo tranſito , porque huns
fentem , que foi em 1222. outros em
1316 , e finalmente outros em 1366.
le ajuſtam comtudo , em que ella mor-
sêo a 2. de Julho : efta allerçaõ porém ,
nao confere com o que ſe lê em muie
tas hiſtorias ; porque Razzi , citado
pelo meſmo Soueges , nao lhe aſſina
dia certo , e ſó diz que na India fe faz
ſolemnemente a ſua feſta no dia im.
mediatamente ſeguinte ao da Viſita-
çao da Virgem noſſa Senhora ; e at
tento a eſta circunſtancia o meſmo
Soueges , eſcreveo , com effeito , da
Santa no ſeu Diario Francez a 3. de
Julho , poſto que lhe determina , e mais ,
diga que outros lhe determinao ( co-
mo deixamos dito ) a morte a 2. do
melmo mez. O noſſo Fr.Joao dos San-
tos na ſua Ethiopia Oriental, diz que
Santa Zemedem aréa morreo a 13. de
Julho ; e he opiniao abraçada de ou
tros Eſcritores. Agora ao noſſo inten-
to . Se eu achaffe os Authores concor
des neſte calo, he certo que menaõ
feria permitido apartar.me ( nem eu
tal quizera ) dos ſeus veftigios inno
vando huma materia uniformemente
aſſentada por Varoens tao doutos , e
inſignes; achando porém , como acho ,
os ſeus pareceres tao diverſos, tomei
a licença, que entendo que me he muizo a eite doutiſlimo Padre, que diz,
licita , de felicitar o principio deſte
livro , e deſte mez , que os Authores
I de JULHO .
aflevérað ſem diſcrepancia , fer aquela
le , em que a illuſtre Eſpoſa do Se
nhor foi chamada para a Bemaventu
rança , com a recordaçao das ſuasin
clytas , e tao maravilhoſas acçoens.Se
o Padre Soueges , diz , que a Santa
deixou de viver a 2. de Julho , e ainda
aſſim nao faz memoria della ſenaõa 3 .
por ſer eſte dedicado no Oriente á
iua feſtividade ; porque ſe me nao ha
de logo conceder, que aſſim como el
le andou hum dia para diante em ma
yor obſequio de Santa Zemedemaréa,
deſande eu outro para traz tambem
em lua mayor veneraçao , fazendo .
lhe a ella , e a eſte fetimo como a hon .
ra de collocalla no primeiro lugar del.
le ? Vamos a ſegunda parte .
3 A verdade he que a mayor par:
te dos que eſcrevêraó as memorias da
Santa , todos lhe dérað o nome de San
ta Clara ; porém o noſſo V. P. Soue .
ges , nao foi deſle voto ; e ao que pa
rece com melhor fundamento . Extra
hio a noticia que dá da Santa , de Raz
zi, a quem elle cita ; e poſto que o
Padre Razzi , foſſe tambem com a
mayor torrente , chamando - lhe Cla
ra , nao quiz elle dar -lhe outro nome ,
ſenaõ aquelle , que lhe fora impoſto
na ſagrada ablução bautiſmal. Omen
cionado Razzi , e com elle todos os
convem , em que o nome da
pia , da Santa , foi o de Zemedemarea ,
logo que neceſſidade ha , de alterar
eſte nome ? Diz Razzi, e dizem ou
tros , que o nome de Zemedemarea
nos idiomas vulgares do Chriſtianiſ
mo da Europa correſponde ao de Cla
ra ; e Soueges diz o meſmo, dizendo
que Zemedemaréa , he o meſmo que
Clara na lingua dos Abexins : ellá pe
la ſignificaçað , e nao pela mudança ,
e ſegundo parece , funda-ſe bem ; por
que com fe advertir eſta particulari.
dade , ſe pode eſcuſar aquella deine.
ceflaria muraçao . A conſervaçao do
nome proprio da Santa , feztantope.
que poſto que ella foſſe chamada Ze
medemaréa , elle por afrancezar me
lhor
 SANTA ZEMEDEMARE'A
lhor eſte nome , e ficar ſempre con-
ſervando -o , lhe chamaria no ſeu dil
curlo Zedméra . Note se eſte dizer ,
que o queria conſervar, porque ſe atº
tendêra unicamente a ſuavizallo , e fa-
zello mais fonoro , quem duvîda , que
Ibe ficava mais a geito , chamarölhe
tambem Clara , á imitaçao de tantos
outros Authores , que lhe precedêraó ,
nome que nao he menos commum na
França , do que na Italia ? Se eſta bem-
aveniurada Eſpoſa de Chriſto , aſſim
como eſtá Canonizada pela devoçao
commūa dos Fieis , que todoslhe dao
o titulo de Santa , aflim como tam .
bem os que eſcrevéraó della , em al .
gum tempo ochegar a ſer , como Deos
permitta , pela Santa Sé Apoftolica ,
nað he certo que redundará em ſua
mayor gloria accidental , ter ſeu nome
diſtincto , ja que o tem , e poder este
fer ainda impofto ao diante nos bauriſ.
mos em ſeu mayor culto ? Se para dif-
ferença dos Santos , quando o ſeu no-
me he commum com os de outros, até
ſe lhes conſervaô para diſtinçaõ os ſo-
brenomes , como ſe vê nos Santos
Franciſco Xavier , e de Borja , e em
taptos outros Bemaventurados de hū ,
e outro ſexo , nao ſerá mais conveni-
ente , que a noſſa Santa tenha eſta
diſtinçaõ no ſeu nome do Bauti'mo ,
do que em outros appellidos , e co-
gnomentos ?
4 O noso memoravel Padre Agio.
logista ( eitamos no 3. e ulimo ponto )
em tudo o primeiro, eſcreve da noſſa
Santa a 13 de Julho , ſeguindo a opi .
niaõ de Fr. Joao dos Santos ; e poſto
que tambem declare, que o ſeu no-
me proprio foi Zemedemaréa , com
tudo , divulga a ſua vida , por vida
de Santa Clara Abexim ; nós porém
tendo por melhor a parte contraria ,
nao ſomente fazemos aqui mençao da
Santa por eſte motivo , ſenao , o que
he mais, por ir eſte noſſo trabalho
mais enriquecido , e ornado de mui
particulares noticias ; e como de ne .
ceſlidade naó podiamos omittir , o
que ja fica referidoda Santa 003.como
Tom . VII ,
1 de Julho. 3
deſta obra , o repetimos , tendo por
menor inconvenience a repetiçao , do
que a difformidade. Perdoe-noso Lei
tor elta digretlao , pois bem ſe vê , que
tem mais de neceffaria , que de im
porcuna , e entremos ja na Vida da
nofla Santa .
5 A bemaventurada Santa Zeme
demaréa foifilha legitima de Sejoaſa
flan , Rey dos Abexins ; mas á nobreza
das virtudes, com que ella ſe fez mais
Clara, do que depota o ſeu nome, que
iſſo meſmo he o que quer dizer na lin
gua do ſeu paiz , ſobrepujarao gran.
demente as qualidades do ſeu Real
Sangue. Era Corte de leu pay a Cida.
de de Sabbá , cujos naturaes fao mui
vanglorioſos de ſerem compatriotas da
quella Rainha tao celebrada naEfcri.
tura, por ir peregrinando das extremi.
dades da terra a ouvir a aſſombroſa ſa
bedoria do grande Salamao. Foi do
tada a noſſa Santa de huma tao rara
formoſura , que parecia ſer eſta huma
belliſſima tranſparencia do ſeu eſpiri
to , que logo a principio começou a
moſtrar voos de Aguia , e ſingularida;
des de Feniz . Apenas chegou a ter
uſo de razao , e achando - ſe já bem in
ſtruida nos myſterios, e verdades de
noffa Santa Fé , teve noticia do mui.
to que Deos ſe agrada da pureza vir
ginal , e reſolveo -ſe a ſer huma de ſuas
Eſpoſas. Quiz o meſmo Senhor , que
eſta fineza , que Zemedemaréa fazia
em ſeu obſequio , tiveſle mais relevan
te coroa de merecimento pelas con
tradiçoens que permittio ſe ſuſcital
fem contra o voto de pureza , que ella
fizera ; porque noticioſo hum Princi
pe circunvizinho da ſua extraordina
ria belleza , a mandou pedir a Sejoa
ſaflan para a deſpozar com hum feufic
lho unico ; e iſto com tanta efficacia ,
que conſiderando o progenitor da noſ
fa Z : medemaréa asmuitas ventagens,
que ſe lhe podiao ſeguir deſta alliança ,
nenhuma duvida teve em condeſcen
der com huma pertenção , que elle
achava, e aſſim era , que lhe eſtava
cao bem,
Aii 6 De :
& SANTA ZEMEDE
MAREA
6 Depois de haver dado a ſua pa
lavra , entrou mui gozozo a dar eſta
noticia a ſua filha ; e quando entendia ,
que ella havia de aceitalla com muito
alvoroço , e regozijo , teve muito que
admirar , e muito mais que ſentir na
frieza , e fecura com que Zemedema-
réa lhe reſpondêo : Que Eſpoſo , ex
ceptuado o Espoſo das VirgensChrif
to Senhor nolo , nao queria , nem o ha
via defer aigum vutro. Enfiou o bom
Senhor , ouvindo huma propoſiçaõ tao
inſperada : e como eſtava tao empe-
nhado em na o perder aquella tað boa
occaſiao dos ſeus augmentos , e havia
promettido nao faltar da ſua parte pa .
ra a execuçao deſtes de ſpolorios ,
apertou com a Rainha ſua mulher pa-
ra que fizelle toda a boa diligencia
fara perſuadir Zemedemaré a coope.
iar com os ſeus intentos . Inftou , e
tornou a inflar tanto nito , que ven •
do - ſe a Santa Princeſa caõ importuna.
da , deliberou -ſe , e nao ſem inſpira-
çaõ do Ceo , ao que parece , e depois
ſe experimentou , a fabir furtivamen-
te do Palacio no mayor filencio da
noite . Alim comoo emprendêo , aſ.
ſim o executou , depois de haver im .
plorado o favor Divino , mediante
huma devota , e inſtantiſſima oraçao .
7. Chegando no outro dia às ábas
de hum rio, que por mui caudaloſo
nao podia atraveſſar , ſe achou igual .
mente afflicta,que embaraçada , e mui.
to mais quando vio , que vinha che-
gando a gente , que ſeu pay logo ex .
pedio por todas as partes em ſua buſ.
ca. No meyo della confternaçao poz
os olhos, e muito mais o penſamento
no Ceo , pedindo humildemente al-
gum recurſo em tao grande aperto .
Oh poder admiravel do Creador dos
Ceos, e terra ! Ettando aſſim a noſa
Zemedemarca , eisque le partem , co
mo lá no mar Vermelho , asaguas da-
quelle rio , em duas ſerras de cryſtal,
ficando pelo meyo hum paſſo livre pa-
sa a Santa Eſpoſa de Chriſto poder
paſlar , como paſlou ,fazendo primeiro
o final da Santa Cruz , a pé enxuto ;
1 de Julho.
é apenas ſe vê a ſalvo da outra parte,
tornao logo a fechar , e a proſeguir
naturalmente o ſeu curſo como antes,
ficando allim fruftrado, e impedido o
projecto daquelles miniftros ; que re
fledindo prudentemente ſobre hum
ſucceßo ta prodigioſo , e entenden
do bem que a noſſa Princeza era aſlil.
tida , e patrocinada muito eſpecial
mente da mao do Todo Poderoſo , e
que inſiſtir em buſcalla , teria irritar ,
e chamar ſobre ſia ſua tao formidavel
indignaçao , dallimeſmo tornáraó pa
ra traz , tem le empenharem em mais
diligencias . Informado Sejoaſaflando
prodigio , tambem defillio pela meſa
ma cauſa de mandar mais ſeguir , e
perleguir a ſua filha ; e eſcutou -ſe o
melhor que pode com aquelle Poten
tado , a quem a tinha prometido.
8 Continuava entretanto a ſua
jornada a Santa peregrina ; e como o
Altiſſimo jámais deixou os ſeus justos
ao deſamparo , como aſſim o cantou
o Pſalmiita , apparecéo por eſterem
po hum Anjo do Senhora s . Tacleai
manoth , Prior do celebre Convento
de Blurimanos , que o noſſo citado
Padre Soveges ſuprõem ſer de S. Do
mingos ; e inteirando - o do que de
proximo acabava de ſucceder , o pre
occupou para receber a Zemedema. 1
réa no gremio daOrdem , no Moſtei.
ro de Bedenalhi , tambem da noſſa
Religiao , que ella vinha buicar . De .
fappareceo o Anjo , e ficou o Santo
Prior eſperando a verificaçao do que
The fora revelado , e naõiardrumui.
to , que ella ſe nað ville cumprida ,
chegando Zemedemarea , conduzida
tambem por hum bom Anjo aquella
Caſa . Deſceo Tacleaimanoth á Igreja ,
e ouvindo da boca da Santa o meſmo,
de ý já era ſabedor ,encaminhou- a pa.
ra Bedenalhi, aonde ella rece beoo ha.
bito da maõ de Santaiméa , ou Imata ,
de quem daremos alguma noticia a 30 .
deDezebro no 8 tomo delle Agiologio .
9 Entrou a noſa Zemedemarea
com tao boa eſtrella neſta Cafa, e
foi tao grande o fruto , que fez com
ofeu
2
 SANTA ZEMEDEMARE’A
o ſeu exemplo , que a ella ſe deveo a
dilatadi tlima propagaçao do noſſo In-
Itituto da quelle rao remoto ,como pro-
longado Imperio ; porque nao haven
do recebido a Beata Iméa antes da ſua
morte , mais que cincoenta Religio-
fas, fuccedendo -lhe a noſſa Ethiope
ſeis annos depois no governo , e con .
tando quatorze de idade , calculou ,
e multiplicou o numero daquellas cin-
coenta Eſpoſas do Filho de Deos pelo
centuplo do Evangelho; porá ajudada,
abaixo de Deos,de S. Tacleaimanoth ,
e de ſeu ſucceſlor no Priorado do Con-
venco deBlurimanoss.Filippe Virgem ,
e Mariyr , chegoua ter a noſſa bemdita
Santa cinco mil ſubditas; e deitas forao
muitas, asā ſabiraõ a fundar outras mui
tas Caſas , todas da titulaçao de Santa
Zemedewaréa. Obfervavao todas eſ-
tas Servas , e Espoſas do Senhor hum
grandiſſimo recolhimento , e abitrac-
çao , nao fallando jámais fenao ao feu
Confeſſor: 16mente as de Bedenalhi ,
tinhao a licença de ſabir tres vezes no
anno a viſitar o noſſo expreſſado Con-
vento de Blurimanos , affattado coula
demeya legoa daquella fundaçao ; e dios de amor , que ſe ſuſpendia no ar
iſto faziaõ no dia de Natal , na Paſo
coa de flores , e no dia de S. Tacleai-
mancih , cuja memoria he mui grata ,
e veperavel nas terras de Ethiopia.
Hiao todos os dias prégar, e adminiſ-
trar os Sacramentos naquelle Moſtei-
ro quarenta Religioſosdos mais vete .
ranos, e myfticos;e tao auſtéros , e peni-
tenies, gattādo neſta ſanta occupaçao
todo o dia , voltavað á noite para a ſua
Comunidade fem comer , nem beber.
10 Os admiraveis progreſſos def
ca Caſa , e de todas as outras de que
ella foi glorioſo tronco , forao huma
Prova muito manifefta da Santidade
da noſſa Zemedemaréa , cuja vida nao
foi menos prodigioſa , do que aquel .
Jas fuas notaveis acçoens, que acima
expendemos, o que he tanco mais pa-
sa admirar , quanto a regiao , em que
a Santa vivèo era tað remota , caffaf
tada daquellas , aonde a piedade , cre
ligia o ſao mais praticaveis , e progreſ:
1 de Julho, 3
ſivas. Erað tao activas as penitencias
da nofla fideliffima Elpola do Senhor ,
que della le refere , que em cincoen
ta annos , que vivêo na Religiao , nun .
ca ſe alimentou de outra couſa , mais
que de alguma pequena quantidade de
hervas , que ella pizava , e comia ſem
fal, ou azeitc : a ſua bebida , era hu .
ma pouca de agua . Ella mortificaçao
que a enfraquecia de modo que era
neceſſario , que as outras Religioſas a
ſuſtiveſſem , e ajudaflem nos actos de
Comunidade,em Glēpre foi infallivel,
dava mayores forças , e alentos ao ſeu
abrazado , e fupremo eſpirito. Pagava o
Divino Amanie eſtas ſuas tao extremo:
fas finezas , regalando- a todos os Do
mingos com bum pao alvillimo , e com
hum deliciofillimolicor,que ella bebia ,
a que muitas vezes le ajuntava tambem
huma porçao de Manná celestial, em
que ſe cifravao mayores ſuavidades ,
e doçuras , do que todas as que podem
jer imaginaveis , com o que tudo nað
ſómenie le reſtabelecia de forças , e
eſpiritos , ſenao que ſe ſentia tanto
mais vivamente abrazada em incen .
levantada hum covado ſobre a terra ,
Nao dormia em cama , nem conhecia
outra mais que a terra dura , ou algu .
ma taboa eitreita , que punha ſobre
huma pouca de cinza ; e jámais per
mittio ao ſeu corpo tao macerado , e
penitente mais de duas horas , e quan
do muito tres de de canço .
II Vio o Divino Amante quanto
eſta ſua dilectiſſima Eſpola imitava nos
exceffos do amor , e da auſteridade á
Santa Magdalena , e aſſim como eſco
Thera em outro tempo efla grande San
ta por ſua Prégadora , do meſmomo
do elegêo tambem para efle miniſterio
a noſla Sania Zemedemaséa , e dando
lho aflim a entender , tanto por inſi
ruaçao que lhe fez , como por meyo
de ieu digniſſimo Director S. Ta
cleaimanoch . Obediente a Santa a ef
tes aviſos , entrou a dar - ſe aos estudos
da lingua Caldaica , em que teve por
Meſtre ao meſmo Santo , e entre aquel
A jij las
8 SANTA ZEMEDEMARE'A
las naçoens eſtá tida em tanta reputa-
çao , como entre nós a Latina . Teve
a Bemaventurada Santa a conſolação
de ver bem logrado eſte ſeu trabalho,
attrahindo , e ganhando hum numero
prodigiofo de Virgens veneraveis ,
que deſprezando as falſas, e vaidoſas
grandezas do mundo , renunciáraño
ſeculo , confagrando-le unicamente ao
amor de ſeu Eſpoſo JESU Chriſto .
12 Pertendia embaraçalla o de
monio , com quem andou ſempre em
viva guerra ; mas como Zemedema-
réa eſtava tao patrocinada, e aſſiſtida
dos auxilios da graça , ſabia converter
todas as induſtrias , e cavilaçoens do
inimigo em Jouros, e palmas de vilo-
ria . Apparecia - lhe elle debaixo de fi-
guras horriveis , pertendendo dette
modo deſvialla ; mas ella deitando
mao principalmente das duas armas
tao fortes , e tao diametralmente en-
contradas com a ſua ſoberba , como
ſaõ a paciencia , e humildade, e fazen .
do outro ſim com grande fé o ſanto
final da Cruz , o punha ſempre em
huma vergonhoſa, e precipitada fugi.
da ; e nao ſomente ficava com a gloria
de o deixar tao confuſo , vencido , e
deſairoſo , ſenao que ſempre à propor.
çao dos combates eſtava recebendo
novos favores daquelle Senhor , por
cuja cauſa guerreava, e contendia.
Tinha ſummos dezejos de viſitar os
Santos Lugares, em que o Author da
vida padecêo por nós huma tao atroz ,
e violenta norte ; e o meſmoSenhor
The fatisfez ella ſua vontade tranſpor-
tando- a quotidianamente por tempo
de tres annos aquella tao feliz , como
ingrata regiao . Em tres deſtes Teus
rapcos foi iaó eſpecialmente favore-
cida , que nao tómente ouvia Miſſa
celebrada pelo Pontifice dos Pontifi-
ces Chrifto Senhor noſſo , entre a me;
lodia dos Eſpiritos Angelicos , e dos
Santos Innocentes , ſenaõ que tambem
recebia a Sagrada Communhao da
Mao do meſmo Divipo Celebrante.
13 Foi tambem muito mimoſa
de outros extaſis , ſendo todos os dias
i de Julbo .
arrebatada à Corte ſuprema do Rey
dos Reys, aonde ſe hia ſaciar do eter
1
no Paó , de que ſempre ſe moſtrava
tao ancioſamente faminta, Pergun
tou·lhe em certa occaſiao o ſeu Con
feffor , eſtando preſentes tresReligio
fos , a cauſa porque ella ſempre que
tinha Oraçao ficava com os olhos fixos,
e póftos no Ceo ? Porque ( reſpon
deo ella nao menos confula , do que
humilde ) todos os dias me levao, e
elevaõ alli ſetenta Anjos, trinta de
cada parte ,e mais dez de que vou ro
deada : e logo que chega á Preſença
Auguſtiſſima de Chriſto, e de ſua So
berana Māy , fou recebida de ambos
com fumma affabilidade, e dignaçao
vefiindo-ſe -me huma tunica mui pom ;
pola , e roçagante ornada de precio
Siſima , e finiſſimapedraria . E dizei .
me , filha , ( diſle o Copfeſſor ) nao
poderemos nós ter a fortuna de vos
ver trajada com efla galla ,que dizeis?
Sim ( lhe tornou a Santa ) vós, e el.
tes tres Religioſos, todos aſiino ve.
reis : e logo instantaneamente foi cum.
prida eſta promeſſa, apparecendo a
Dofla Zemedemaréa do meſmo modo
que ella fe acabava de deſcrever a fi
meſma, bem aſſim como aquella ma.
geftora Rainha deſcrita pelo Real
Profeta , que veſtida com todaa pom :
pa , e alinho de ouro , aſſiſtia em pé
à mao direita da quelle Rey queda, e
tira como he mais ſervido as Coroas ,
e os Imperios .
14 A eſtes favores accumulava mui .
tos outros o Senhor , moſtrando-ſe
lhe viſivelmente figurado em hum gra
cioſo Menino , quando ſeu Confeſſor
levantava na Miſſa a Sagrada Hostia .
Dotou - a tambem com agraça de fazer
milagres , e com outrasmuitas daquel.
las , que íao rezervadas para honrar ,
e condecorar os ſeus ſervos mais dig .
nos , e mais fieis. Revocou pormeyo
de duas milagroſas reſurreiçoēs dous
defuntos , tirando-os já das gar
ras da morte , e fazendo - os reſpirar
outra vez auras de vida . Deſcobria ,
e deſcortinava com huma penetraçao
mais
 SANTA ZEMEDEMARE'A
mais que aquilîna o mais eſcondido
dos interiores ; e com eſta virtude foi
de muita utilidade aos proximos, avi,
fando - os de muitos peccados que ha
via cometido , e nao confeſſavao
por vergonha . Com eſta meſma luz
aviſava particularmente ao Prior do
noſſo Convento dos defeitos , ecmil-
ſoens de alguns Religioſos ſeus fubdi-
tos . Do meſmo modo conhecia as fal.
- tas das ſuas Co -Religioſas , applican
do - lhes prudentemente os corredivos
mais ſuaves, e opportunos ,
15 Seu Pay Sejoaſaflan andava em
guerra com outro Rey , que era infiel,
e por eſta caula convocava gente com
todo o empenho para lhe apreſentar
batalha . Eſtando as couſas neſtes ter-
mos , revelou o Senhor por meyo de
hum Anjo á ſua Serva , que ſe ſeu pro-
genitor ſahiſſe a campo contra aquelle
Poteptado , ſeria vencido , e priſio .
neiro . Aviſou logo a ſeu pay , do que
havia entendido ; e elle que por tani
tos finaes precedentes eſtava muicer:
to , e credulo pa ſantidade de ſua fi.
Iba , dando o devido afſenſo ás ſuas
palavras, ſe abſteve do ſeu projecto ,
fugindo ao meſmo tempo ao ſeu def-
troço. Dalli a pouco tempo teve Ze-
medemaréa outra revelaçao totalmen .
mente contraria , chegando a alcan-
çar , que agora podia Sejoafaflan fahir
a campo contra aquelle Principe infiel,
por ſer occaſiao de obter delle hum
ventajolo , e honorifico vencimento :
aſſim informou a ſeu progenitor ; e
determinado eſte a ſeguir hum tao
bom annuncio , e nao deixar perder
a favoravel occaſiao , que lheentrava
pelas portas dentro , fabio apelejar
com ſeus inimigos com lao bom fuc-
ceſſo , que pao ſomente lhe correrao
grandes proſperidades no temporal ,
que destroçou , e poz em huma deſ.
Tuzida retirada a ſeu inimigo , ſenao
que muitos vaſſallos deſte , que tam-
bem ellavaö ſubmerſos nos erros da
idolatria , vendo- ſe agora ſubjugados
das armas Chriltaás , deteſtarao o cul-
to dos idolos , convertendo-ſe á veri
i de Julho .
dadeira Fé , e amando , e reveren
ciando unicamente aquelle Senhor ,
que ſó he digao do amor , e adoraçao
de todas as luas creaturas .
16 Nao lómente moſtrou o Aman:
te das almas os primores da ſua dileca
çao com a nolla Zemedemaréa , ſenao
iambem com ſeu progenitor , nao fó.
mente pelo que tocava a temporalida .
des , evitando-lhe aquellas conjunturas,
que lhe podia o ſer finiftras ; e no ſó .
Dente annunciando- lhe aquellas que
lhe podiaõ fer favoraveis com o acaba
mosde referir , ſenaó o que he mais ,
concedendo -lhe a palma de Martyr
ſuſpirada , e nao conſeguida de tan
tos , e tao grandes Santos da ſua Igre
ja . Andava elle em guerra com outro
Principe , que aſſim como tambem o
outro ieu contedor era idólatra ; een
trando com elle em hum conflicto Mar.
cial , negou - lhe o Ceo a coroa do tri
unfo para commutar - lha no martyrio ,
preparando -lhe aflim no ſeu Reyno
hum triunfo tað avguſto , e mageſtos
ſo , que em ſua comparaçaõ nem aina
da pode parecer jogo de meninos
aquelloutros taó ſoberbos, e decan
tados dos antigos Ceſares Romanos.
Prizioneiro pois de ſeu contrario El
Rey Sejoaſaflan , foi perſuadido com
toda a vehemencia para abandonar as
maximas do Evangelho poſpondo-as á
ſuperſtiçao do gentiliſmo , porque
abraçando eſte partido (lhe diziao os
que ſolicitavao mais fervidamente a
ſua prevaricaçao ] ſelhe reftituiriaoto
das as ſuas honras , e Elados . Conce
beo o Catholico Principe hum tal hor
ror a eſta propoſiçao ,que proteſtou eſ:
tar antes pronto para perder mil vidas,
fe as tiveſſe,ao rigor , e violencia dos
tormentos mais exquiſitos, do que al
lentir a huma apoftafia tao fea ,e abo
* minavel . Eſta generoſiſſima reſpoſta ,
que nao era eſperada neftes termos,
deſcontentou ſummamente aquelles
perfidos , e entrarað logo a projectar
penas, e caſtigos contra Sejoalaflan ,
quando ao contrario deviao eſtimar
e admirar huma conſtancia cao herci.
A iiij ca ,
 SANTA ZEMEDEMARE'A
ca , e nãõ vulgar ; e condemnando - o
a perder a cabeça,ao meſmo tempo lhe
alleguraraó a melhor coroa. Por in .
excrutaveis juizos do Altiſlimo nao
ſoubera couſa alguma do ſucedido a
notla Zemedemaréa , mas ao tempo ' havia merido debaixo dos pés as en
daquella barbara execuçao foi tranſ- ganolas vaidades , e grandezas do mun .
portada em eſpirito ao meſmo lugar
em que ella ſe havia de fazer , e alli
teve a ſumma conſolaçao de ver ſubir
ſeu pay laureado , como verdadeiro ,
e forte ſoldado de Chriſto , entre hũa
luſtroſa companhia de Anjos a tomar
poſſe da cadeira da Gloria , que tao
esforçada , e gloriolamente acabava
de conſeguir : aflim odiſle ella imme.
diatamente ao ſeu Confeflor , e allim
o confirmou pouco depois a fama , el
palhando - ſe por aquellas partes a no
ticia da morte daquelle bemaventura.
do Principe.
17 Diſtinguio -ſe muito a noſſa San .
ta em todos os exercicios da Carida-
de fraternal, ajudando aos ſeus pro-
ximos , ja com ſoccorro , ja com o con-
ſelho , e ja com huma e outra couſa.
Olhar para ella , era o meſmo que
olhar para o retrato mais expreſſo da
pobreza : ſendo tao humildes teus ha-
biros externos , quanto opulenta , e
mageftoſa nos internos. Era taó caſta,
que apenas ſe atrevia a olhar para as
meſmas fuas mãos. Manifeſtou o Se-
quanto lhe era grata , e aceita a
egregia ſantidadede lua ſerva nos mui-
tos , e grandes prodigios com que
tanto a acreditou , e ennobrecêo em
vida , e depois de morta . Contaria el-
la com pouca differença 58 annos de
idade , quando foi acomettida da ſua
ultima doença ; e quanto mais ſe lhe
debilitava o corpo , tanto mais forte
ſe moftrava o ſeu eſpirito ; abbrevi-
ando -lhe mais os ſeus dias os exceflos
do amor , do que os effeitos da molel-
tia . Quando esta Virgem prudente ef-
tava eſperando mais deſvelada a vinda
do amabiliſlimo Eſpoſo , lhe appare-
ceo elle com ſemblante mui placido ,
. e gracioſo , dizendo-lhe que todos os
ſeus peccados lhe eſtavaõ perdoados,
Y de Julho.
e que todas as 'graças que atélli obti ,
vera , todas haviao ſido huma fombra
mui eſcaſſa do eterno premio , que a
eſtava eſperando , em recompenia da
quelle Evangelico deſprezo , com que
do. He impoſſivel poder -ſe explicar
o ſummo gozo de que foi incendido o
coraçao de Zemede maréa, acabando
de ouvir hum annuncio taó fauſto , e
precioſo . Dêo , e rendeo as devidas
graças ao ſeu , e nofo JESUS; edel.
pedindo -le para ella lunima felicida
de , recebendo devotiſſimamente os
Sacramentos , entrou a poſſuilla , cor
rendo omez de Julho . Ja diſſemos que
era incerto o anno da ſua morte , e
as varias opinioens , que ha ſobre el ,
le.
18 Morta Zemedemaréa ſe ouvio
huma voz mui canora , melliflua , e
celeſtial, que proferia eſtas palavras :
Vem Elpoja de JESU Chrifio, vem
para aquelle thalamo nupcial, que ab
æterno eſtá prevenido , e preparado
para o tett alto merecimento : e para
que fufle mais ampla a gloria deſta caſa
tiſſima, e fiel Eſpola do Senhor , foi
ella viſta ſubir antes ao Ceo eſcoltada
de muitos Santos Anjos , que cantan
do a acompanhavao neste ſeo mayor
triunfo . Sendo conduzido o teu Ve
neravel cadaver á Igreja para dar- ſe a
terra , apparecêo alli o Divino Expo
ſo entre huma grande multidaõ de Ér
piritos Angelicos , e elle meſmo por
fua mao a veſtio de roupas muito er.
plendidas , e ſemeadas de huma gran .
de cópia de pedras preciofilimas , ore
nando- lhe os dedos com muitos anneis
de valor ineſtimavel, nao a premian
do menos ao meſmo tempo com eſtas
palavras : Eisaqui a remuneraçao , que
dévem eſperar de mim todasas minhas
verdadeiras Eſpoſas , que por meu
reſpeito deſprezarem os goſtos, e fal.
fas oſtentaçoens do feculo. Sentio.ſe
tambem que os meſmos Santos Anjos
embalſamavao o ſeu puriſſimo, epe
nitente corpo , ſendo cao ſuaves , e ef
piris
 RECOPILAC, AM
pirituoſos os perfumes com que exe.
cutayao efta diligencia , que a ſua fra-
grancia ſe diftundia por partes muito
diftantes ; nem faltou o Ceo com illu.
Itrar a ſua memoria com muicas , e minios . Eis -aqui o motivo della Lega
grandes maravilhas , o que tudo dei-
xou igualmente ſaudoſo que recom-
mendavel o ſeu nome naquelles tao
dilatados, e remotos paizes.
RECOPILAC, AM
do i de Julho.
M Alatria no territorio de
' E Roma , o Illuftriffimo , e Ve-
neravel Padre Fr. Creſcencio de Ca-
va , Biſpo da meſma Cathedral. Su-
bio a ella eſte grande Padre pelos de-
gráos de humaconſummada Religiao ,
e virtude , ſendo propoſto para o can
delabro da ſua Igreja pelo Eminentiſ-
fimo Cardeal de S.Jorge. Era tað no-
torio o merecimento , e piedade de
Fr. Creſcencio , que nao le oftereceo
difficuldade na ſua promoçao , decu .
jo acerto forao taptas as demonſtra-
çoens , quantos forao aquelles com
que o Veneravel Biſpo deſempenhou
a ſua Paſtoral obrigaçao no eſpaço de
27. annos ; e deixando entao o gover-
no com a vida correndo o de 1290
paflou alograr ſe eternamente do fru-
io do ſeu laborioſo , e lagrado empre .
gro . Fontana in Theatro pag. 117.
2 Em Roma o V. P. Fr. Dizide
rio . Foi eſte grande Religioſo de tan
ta eminencia em virtudes , e letras , e
tao zeloſo do augmento , e progreſſos
da Fé, que foi escolhido por Innocen.
cio IV . para. Penitenciario , que , ſe . ' mente na Sé de Girona huma Milla
gundo o eftylo daquelles tempos, ſó
ſe commettia aos Religioſos de noſſo
Serafico Padre S. Franciſco , e da noſi
ſa Ordem Dominicana , de cujo me .
recimento havia mais notoriedade , e
comprovaçao. Da ſua prudencia , e
Sabedoria confiou tambem o melino
Pontifice o bom expediente , que ſe
delejava ſobre a reconciliaçao de D.
Jaime, Rey de Aragao , e todo este
Tom . VII.
do 1 de Julho.
Reyno entao interdi&to , com a Igreja
Catholica, para o que foieffectivamen
te expedido o V. P. como Legado
com o Bispo de Camerin aquelles Do- !
cia . Depois de haver - ſe deſporado
aquelle Monarca ocultamente com
Thereza Vidaura nobiliſſima Catha .
laā , e tendo ja dous filhos della , vio .
lou enormemente as leys ſantas do
Matrimonio , caſando - ſe com Jolen,
ta , filha de ElRey de Hungria ; e nao
parando aqui a ſua culpa , fez cortar
a linguaao Biſpo de Girona, por lhe
conitar que havia delatado codo eſte
procedimento ao Papa . Reconhecen
do depois a fealdade dos ſeus abfurdos,
ſe humilhou , e ſujeitou aquella peni
tencia, que a Santa Sé Apoftolica lhe
quizeſle impôr : Para ſe haver de to .
mar eſta determinaçao , ſe fizerao Cor
tes em Lérida, aonde álèm dos prin
cipaes do Reyno concorreraõ tambem
os Biſpos de Tarragona, C ,aragoça,
Urgel , e Elna : Ajoelhando ElRey
entao diante dosLegados,confeflou pu
blicamente os ſeus crimes , e pedio
abſolviçaõ delles com muita humilda
de ; e elles , depois que lhe derao hữa
conveniente reprehenſaô , lhe impu
zeraõ por penitencia , que acabaſſe de
edificar , e doar huma Caſa da invo
caçao de N. Senhora da Ordem de
Ciſter , que havia 20. annos ſe come .
çara a fundar nas montanhas de Tor
iofa ; e que outro fim accreſcántaria
as rendas do Hoſpical de S. Vicepte
de Valença , aſſim para eſmolas de po
bres , como para ſuſtentação dos ſeus
Sacerdotes ; e que eſtabeleceria final.
quotidiana perpetua por ſua intençaõ,
e de ſeus deſcendentes. Nao foi esta
a unica vez que ſua Santidade ſe ſer .
vio para eſtas couſas do noflo V. P.
Fr. Diziderio , ſendo deputado para
examinar , e compôr ceitas diſſen
Çoens, que houve entre as Coroas de
Portugal, e Caftella . Florecia eſte
bom Religioſo pelo anno do Senhor
de 1246. = Spondan . & Bzov . ad
B illum
fo Fr. DOMINGOS DRAPEYRON 27
illum ann, 9. 10.
3 Em Bohemia o V. P. Fr. Alei-
xo , eoutro Religioſo ſeu companhei.
so . Forao eſcolhidos eſtes dous Va-
roens Apoftolicos por Legados de In-
nocencio IV . a Coloman , Rey
Ruſſia, que por ter hum bom conhe .
cimento das ſuas virtudes , os pedia
com muita inſtancia para que traba
Ihaſſem em trazer á uniao da Igreja os
Ciſmaticos daquelles Efados e os po-
vos da Cumania, e Tartaria . Para ef-
ta Miflað lhes facultou aquelle Pon-
tifice o meſmo poder , e privilegios ,
que em outro tempo haviaõ ſido con-
cedidos a outros dos goſſos mais ze
lozos Miſſionarios. Viviao eſtes Ser-
vos do Senhor pelo anno de 1246.
Bzovius ed eund . an . N. II .
4. Em Zara , Cidade de Dalmacia,
o Illuftriffimo , e Veneravel Padre Fr.
Nicolao de Sevia , Pastor daquella Me-
tropolitana Dioceſi. Foi promovido
a eſta fuperior dignidade por Clemen-
te V. e ſingularizou -ſe grandemente
efte V. Prelado por huma religioſiſſi-
ma piedade,inſtruindo as ſuas ovelhas
em hum tanto exemplo , e com a fan-
ta doutrina do Evangelho , que lhes
annunciava . Depois de haver regido,
e dirigido pelo caminho do Ceo o ſeu
rebanho , entrou pelas ſuas portas ,
correndo o anno do Senhor de 1320 .
em que paſſou de mortal a immortal .
Ex Fontana in Theatr . pag. 79.
aliis.
2, de Julho.
Vida do V. Padre
Fr. D O M IN GOS
DRAPEYRON ,
Extrabida do Anno Dominicano.
Atisfez o V. P. Fr. Domin .
' S gos Drapeyron tao aliamen-
te ao duplicado empenho do ſeu
nome , e do ſeu habi : o , que a am .
bos ſoube deixar mais condecora-
dos , e ennobrecidos . Apenas en
trou no Sacerdocio , quando requin-
cou a hum tao alto ponto de perfeiçao
de Julho.
a ſua vida, que apenas o conheciam og
ſeus Co-Religioſos. Buicou para ſe
guro nivel de todas as ſuas obras as
ſantas Leys a que ſe atara , e abraza
va -ſe nas chámas de hum vivo zelopa
da 1a que esta integridade do Inštituto
fofle univerſalmente praticada. Atten
ta a Communidade á circunſpecçao ,
e regularidade do ſeu procedimento
promoveo - o a Meſtre de Noviços ,
nao obftante ſer ainda o Servo de Deos
muito moço. Entrando a exercer em
ſatisfaçao da obediencia este empre.
go , que ſervio optimamente em Bur
deos , Avinhao , e Limoges , lá fe more
trava a principio maisrigido o V. Re :
ligioſo, quereodo levar a cultura da
quellas plantas pelo modo , com que
em outro tempo aſſim o intentara o
noſſo S. Luiz Belirao ; porém o tem .
po, que te hum grande Meſtre , lhe
foi enſinando , que podia fazer me .
lhor fruto com as ſuasdiligencias , en
caminhando - as por differente rumo.
Por etta conſideraçað aflentou comſi
go , que hum dos meyos que podiao
coadjuvar mais ao ſeu intento ſeria
apoyar ſuavemente as ſuas inſtroccoēs
com hum inculpavel exemplo da lua
vida : aſſim o projedou , e aſſim o deo
á execuçaõ com feliciſſimo fuccello,
porque nao podia haver correcçao ;
ou invetiva mais util , e mais pene.
trante , do que o modelo que em ſi
1
& meſmo propunha o bom Meitre a ſeu's
ſubditos. Olhar para Fr. Domingos
era olhar para hum modélo do filen
cio , para o amor daoraçao , para hū
eſpelho da paciencia , para o recolhi
mento , para a obſervancia , eem húa
palavra , para hum exemplar das vir
tudes Religioſas. Castigava , e doma
va muito a miudadamente o ſeu vene
ravel corpo com extraordinarios rigo
ses , e penitencias, tomando muitas,
e mui rigoroſas diciplinas , e cingin
do - ſe com cadêas de ferro , e com ex
quiſitos generos de cilicios .
2 Foi hum tað confūmado Reli
giolo o V. Padre Fr. Domingos , que
muitos dos noſſos mais graves, e ac
tentos
 SOROR IZABEL DE SANTA ROSA 2 de Julho:
. IT

tentos ao auge da Ordem , ſe laftima; paz , etranquilidade interior. Viaõ .

yao muito , de que elle nao tiveſſe al- no eſtar fazendo continuamente mui .
gum cargo , em que tiveſſe mais cam tos actos de humildade , Fé , e amor

po para exercer o grande talento , de Deos : guardava , e fazia guardar

com que fora dotado para a bõa ecc hum inteiro , e profundo filencio ,nao
nomia do governo . Muitas peſoas da fallando ſenao com o Confeflor , e
primeira graduaçao buſcáraó ao Ser- enfermeiros ; e ifto quando aſſim ope
vo de Deos para Director do ſeu eſ . dia huma eſtreitiſſima preciſao . De
pirito ; e bem que elle pela ſua gran- pois de Sacramentado ſobrevivêo ain
de humildade fugifle com todo o em da 13.dias , ſendo a ſua extenuaçao ex
penho de adminiſtrar hum tao alto tremamente debil , e vivendo quaſi
minifterio , já nao era tao forte a ſua ſem ſuſtento ; o que tudo fez paimar
contradiçaõ quando lhe vinhao dil- toda a Communidade, e os Medicos ,
tribuidas eſtas occaſioens pela Provi- que lhe aſliftiao : porèm iſto nao foi
dencia . Igualmente ſe portava com mais do que dar - ſe a conhecer hum
as correſpondencias epiſtolares; por- vislumbre datemperança , e parcimó .
que ſó chegava a eſcrever quandohūa pia do Servo de Deos. Finalmente de
neceſſidade extrema o podia obrigar . pois de levar hum purgatorio tao con .
Foi o Servo de Deos mui debil de forme, e pacientemente, deixou
compleiçao ; iſto porém nað obftante , vida caduca pela eterna no dia da Vi.
jamais faltava ao cumprimento exa- fitaçao daVirgem Senhora nolla no
étodas regras da Conſtituiçao , nao as anno Chriſtao de 1669 .
tranſgredindo jámais, nem ao rigor
das collacoens a pao ſecco , nem na 2. de Julbo.
alliſtencia ás Matinas da noite. A? Vida da Veneravel
meya hora , que coſtuma haver de SOROR I Z A B E L'
oraçao depois dellas , juntava Fr. Do
DE SANTA ROSA ,
mingos outra meya , e pelo diſcurſo
do dia fazia cambem o meſmo , quan da noſſa Terceira Ordem ',

to mais lhe era poſſivel, nað tendo
outra mayor recreaçao do que tratar,
e communicar com Deos . ' Nas con
verfaçoens nao abria boca para notar
defeitos de alguem , menospara quei-
xar -ſe de qualquer aggravo, que le lhe
fizeſſe ; e muito menos para laſtimar.
ſe das ordens dos ſeus Superiores ,
ainda que ellas aliàs foſlem contrarias
algumas vezes aos ſeus louyaveis , e
piedoſos projectos.
3 Era já muito velho , e eſtava ad .
miniſtrando actualmente o ſeu cargo
de Meſtre dos Noviços no ſeu refe-
rido Convento de Limoges , quando
foi accomettido da ſua ultima doença
na ſemana Santa de 1669. Foi-ſe -lhe
Segundo a noticia dos ſeus Confeſores
I Orria o anno do Senhor de
C 1680.,quando
quand. a1:25.
25 . de Julho
naſceo na Freguezia das Abitureiras
termo de Santarem Soror Izabel de
Santa Roſa da noſla Terceira Ordem ,
que antes de abraçar eſte fanto Inſtitu
co ſe chamou Izabel Cordeira , appel
lido que participou de ſeu pay Anto
nio Cordeiro , e que reflectindo mui
tas vezes nos ſuaves coſtumes de ſua
filha , dizia que ella em tudo era a ſua
Cordeira .Foi a noſſa Izabel caſada duas
vezes , de que tevemuitos filhos , que
todos muito doutrinava na ſanta Ley ,
e temor de Deos . Reſolvendo - ſe a

prolongando aqueixa , além de outras paſſar para aquella Villa , os repartio

complicaçoens , que a faziao mais gra : por ſeus parentes , poſto que depois
ve : era acompanhada de huma debi: veio a puxar para fi huma filha que ii
lidadede peito muito doloroſa; porém nha : leijadinha, com quem ſempre
nada era bastante a alterar -lhe a ſua depois viveo. Foi tal a pureza da ſua
Tom . VII, Bij con
 SOROR IZABEL DE SANTA
conſciencia , que jamais lhe achou o
deu Confeflor , de cujos apontamen-
tos extrahimos eſa memoria , culpa
mais grave , do que huma raiva , e
menos boa vontade,que em huma oc
caziao tivéra. Jamais utou de gallas ,
ou enfeites , nem ainda quando a ſua
pouca idade a pudéra inclinar ao feu
uſo . Foi de muita honeſtidade , nao
pondo nunca os olhos nos homens ,
ſem ainda exceptuar ao meſmo ſeu
marido , o que era cauſa de elle ſe
enfadar muito a miudo com ella , por
ſer de condiçaõ mui alpera . Guarda .
va hum tal recolhimento , que ainda
podia ſervir de exemplo a huma Clau «
jura mui reformada . Portou - ſe com
buma admiravel paciencia em gran
des trabalhos , e moleſtias, mayor.
mente ſendo muitas deitas quaſi quo-
tidianas; porque foi atormentadiſima
de dores de dentes, e foi-lhe necefla-
rio abrir tres fontes , a que ella dava
o nome de tres cravos.
2
Na criaçao dos filhos padecia
muito dos peitos , e muitas vezes Ibe
foi neceflario experimentar nelles acer-
bas operaçoens Cirurgicas , no que tu .
do , nao ló nao perdia huma heroica
tolerancia , mas nem a cor , ou a ale-
gria do aſpecto. Do meſmo modo era
inflexivel no muito que a exercitava
o genio arrebatado de ſeu marido , e
a cruz que levava com os filhos, que
ainda quando fao muito bons , nao
falta que lhes foffrer. Nað lhe faltá .
rao outros grandes incômodos , que
The lavráraõ huma mayor coroa de
merecimento . Sendo o ſeu corpo , por
eſpaço de oito annos , antecedentes
áquelle , em que veſtio o habito de
hum ſe-
Terceira de S. Domingos,
minario de moleftiſlimos inſectos, que
nella ſe creavao em caö excelſiva quan-
tidade , que jamais a deixavao aquie.
tar , ou dormir ; deitando - ſe ſempre
veſtida , ſem que jamais fizeſſe diligen-
cia alguma pelos extinguir. Vindo a
incorporar -ſe depois na Sagrada Mili-
cia de noflo Santiſlimo Patriarca Do.
mingos , lhe rogou , que a aliviaſſe
ROSA 2 de Julho,
daquella mortificaçao ; ſe eſta foſſe
tambem a vontade do Altiſſimo , com
que ella mui rendida , e unicamente
ſe queria conformar . Detpachou - lhe
o Senhor a petiçaõ de modo , que po
dendo aquella importuna bicharia var .
sez
rer - ſe atélli á vaſſoura , nunca mais a
tornou a ver , quanto menos a aturar .
Do meſmo modo ſe vio livre de outra
perſeguiçaõ de infinitos perſovejos,que
a comerao viva ; porque foffrendo T
1
eſte incommodo por tempo de hum
anno , paſſado que elle foi, para ſem
Pre a deixáraó . po
3 Como ſe lhe prohibiſſe o uſo da aut
ma
diciplina , e do cilicio , inftando com
Sua Divina Mageftade a fim de que ſe TEZ
The otorgaffe elle ſegundo , com que, zer
antes de te lhe vedar, ſempre ſe affli leju
gira , jamais o pôde conſeguir, poſlo ар
que nao lhe faltou por outro modo ali.
extraordinario , por tempo de hum COC
anno. Foi o caſo : femella ſaber como tro
lhe entravao em caſa, porque de dia mer
jamais o pôde inquirir ; acudiaõ alli
diluvios de huns formigoens , princi que
palmente de noite ao tempo em que VEZ
queria tomar algum breve deſcanſo , e lent
cercando- a pela cintura a atanazavao,
e lha deixavao em carne viva . Se lu Cor
cedia tomar algum delles á mao , The lin
to
dava logo liberdade.Mettia pedrinhas
miudas no calçado , quando , ou nao
for
podia ,ou ſe lhe denegavapermiſſao de
lei
andar, como era ſeu coſtume,deſcal
ça . Tambem ſe mortificava grande eer
mente , o que muito lhe cuſtava , naõ .
bebendo mais que huma vez no dia ;
por muito que a ſede apertaſſe com el
la . Fugia de feſtîns , e de todas as fun
çoens publicas, em que nunca appare d
cia . Praticava tambem grandes morti . tie
Por
ficaçoens no entendimento , naõ dan
do pelo ſeu juizo , ſenao pelo alheio CE
em muitas couſas , que bem entendia , R
ouvindo , e aceitando o parecer de to .
dos com ſumma humildade . Dormia
caboalmente , e , como ja diſſemos,vel
tida. Em quanto lhe nao forao prohi
bidas as diciplinas , tomava todos os
dias huma , e na Quareſma , duas, e
tres
 SOROR IZABEL DE SANTA
tres vezes. Depois dava de joelhos al .
gumas voltas pela caſa , em comme
moraçao da Cruz , que o Senhor levou
ás Costas : no fim de cada huma deí .
tas voltas beijava a terra , e fazia hum
acto de contriçao , ao melmo tempo
rezava a Coroa do Senhor de trinta e
tres Ave Marias, contemplando jun-
tamente na Paixao , e Crucifixaố do
Filho de Deos , devoçao com que as
vezes cumpria com os braços estendi-
dos em Cruz .
4 Nas feſtas feiras deſte ſanto tem :
po ſe apurava em exercitar maiores
autteridades , e rigores . No tempo
mais rigoroſo do inverno coſtumava
rezar a Coroa , que acabamos de di-
zer , qua da cintura para cima. Osſeus
jejuns eraõ afperrimos , quaſi ſempre
а раб e agua , que era o leu unico
alimento das Quarelmas , em que ſó
comia de vinte e quatro em vinte e qua
tro horas : fóra dellas jejuava com o
melm o rigor quatro dias na ſemana ,
aſſim como nos mais dias que jejuava,
que eraõ quaſi ſem interpolaçao . Tal .
vez coſtumava tambem comer de qua.
renta e oito em quarenta e oito ho-
ras , o que era commum nos dias de
Communhoens , ou ſó duas vezes na
ſemana . Praticava todas eſtas peni .
tencias , e mortificaçoens com huma
tal cautéla , que , excepto feu Confef-
for , ninguem jamais o vio , ou o
ſoube. Nos Adventos , Quareſmas ,
e em outros tempos mais da lua de-
voçao , eraõ as ſuas rezas, peniten
cias , é mais exercicios eſpirituaes ,
mais e forçados.
5 Jamais queria cuvir fallar ſenaõ
de Deos. Foi de muita caridade : nao
era pouca aque lhe deviao as almas do
Purgatorio . A's ſuas devoçoens ac
creſcentou mais hum Terço , e hum
Roſario , que offerecia a Deos porin-
tençao daquellas tao afflictas , e fan .
tas pobrezinhas . Applicava- lhes mais
outros muitos fuffragios, até que fi-
fialmente por conſelho do ſeu Confeſa
for cedêo no anno de 1710. todas as
ſuas obras meritorias a favor dellas .
ROSA 2 de Julho. 13
Diſpunha- ſe com a major limpeza de
conſciencia para as Communhoens
que quazi eraõ quotidianas ; e nos dias
em que nao ſe alimentava deſta Celef
tial , e Immenía Delicia, ſempre con
mungava eſpiritualmente. Deide pe
quenina a começou a chamar huma in
clinaçao muito forte para a Terceira
Ordem de noſſo grande Padre S. Fran
ciſco , e com effeito chegou este ſuf
pirado termo no ano de 1714. , em
que ſe aſſociou no gremio daquella
Veneravel Ordem . Deſde entao ſe
empenhou em enriquecer- ſe de mais
virtudes, parecendo- lhe hum mero
nada tudo o que atélli fizera. Ouvin
do prégar os noſſos Religioſos , das
excellencias do Roſario , poſtoque
ella ja o rezava com muita devoção ,
ſe alliſtou com ſeus filhos na ſua Ćon.
fraria. Dalli em diante ao Roſario da
fua devoçaô , que rezava todosos dias,
addio o outro da obrigaçao de Con
frade , que rezava todas asſemanas de
joelhos , meditando com grande re
flexao , e devcçao os ſeus Sagrados
Myſterios.Finalmente chamou- a Deos
Senhor nofio para a Terceira Ordem
de noſſo Padre S. Domingos, que el
la profeſſou no dia de Santa Roſa ,pe
loque She ficou com huma grande de.
vocao , tomando , por mayor obſe:
quio da Santa , o nome deſta por ſeu
appellido , deixando o de Cordeira ,
que como ja diſlemos tomára de feu
pay.
& Teve tambem grande devoçaõ
com as onze mil Virgens deſde a ida
de de dez para onze annos , rezando
lhes quotidianamente trinta Ave Ma .
rias .Diſtinguia- ſe tambem muito em
ter devota de noſo Santiſſimo Patri,
arca . Com o ſeu Anjo Cuftodio tinha
tambem muita fé , e muito le lhe en
commendava para que a acordaffe a
horas competentes que tiveſſe lugar
de acudir as ſuas desocoens . Mas de
ſejando meiter a todos no coraçao , ſe
pegou com todoscs Santos tomando
os por ſeus interceſſores , e fazendo
thes-os mayores obſequios de que era
в iiij capaz
14 SOROR IZABEL DE SANTA ROSA 2 de Julhos

capaz a ſua poſſibilidade. Aos Santos Eu morro pela Fé de JESU Chrifto.

dos Santos, Chriſto Senhor noflo , e A lua morte foi canto de predestina DE

e fua Máy Maria Santiſſima, profef- da , que a nimguem cauſou triſteza ;

fou ſempre o maior affe &to. Tomou a
Senhora por ſua Advogada, e muito
a enternecia a memoria das ſuas penas
ao pé da Cruz . Rezava todos os dias
o Roſario deſta Soberana Princeza
dos Anjos com huma extraordinaria
attençao . A meſma Senhora lhe retri .
buîo tanto affedo com a mais ſuperior
correſpondencia. Ganhou com oleu
favor muitas batalhas , que lhe preſen ;
tou o demonio . A meima Rainha dos
Anjos aflim lho legurou em certa oc
porque quantas peſſoas , que muito a
amavaó, tiveraõ noticia de ier fallecida ,
todas ſe alegráraö muito , como ſe ef
tiveſlem vendo o ſeu triunto . Depois
de defunta , ſe lhe tornáraó a abrir os
olhos , e com elles abertos foi depoſi.
tada na fepultura . Como ſempre os
fechou para o mundo , ſem duvida
quiz Deos , que ella os abriſſe entao
para ir gozar da eterna Gloria . A ul
tima doença de que morreo , bem mof
trava que era a puras , e ſuaviſſimas 1

caſiao , dizendo-lhe que jamais dalli violencias de ancor ; por iſſo diziao
em diante ſe havia de atrever o de os Medicos , que nao elles, lenao os da

monio a inquietalla . Foi devotiſſima Cic

Confeſſores he que deviao curalla.Af:
Fr
da Paixao , e Morte de Chriſto , e ja fim parecia ; porque em dezoito dias ,
Br
tocamos a commemoraçao que fazia nem ainda hım gólo de agua podia le
da
nas ſuas deveçoeps , e rezas defte Sa- var , perſiſtindo com admiraçao , e
fa
cratiſſimo Obje &to . Depois accref- aſſombro de todos os profeflores da
centava mais hum Rotario , que re- Medicina . Comeſta maravilha perma POE
zava de joelhos em cruz , querendo neceo até o COC
dia da Viſitaçao da Se
tim
aſlim acompanhar com eſta mortifica- nhora ,querendo Deosconſervalla deſ .
Vio
çaõ os tormentos de Jesus Crucifica- te modo até eſte tao grande dia , que
tai
do . Seu Confeſſor depõem de muitos foi quando expirou .
extaſis , viſoens , fallas, e outros fa 8 Depois de morta appareceo a les
der
vores do Ceo mui repetidos , dizen. ſua filha em huma madrugada, acor
do que bem viſivelmente ſe inferia a es
dando- a , e chamando por ella : eſta
ſua infallibilidade no acerto , ordem , a vio mui luzida , e brilhante com hū
e diſcriçaõ com que ella, ainda que habito branco , tecido como com fios
CA
aliàs ruſtica como criada no campo , de ouro entre a laā da eſtamenha , e
peftas couſas fallava , e diſcorria ; o o manto cheio de ramos , como de
que ſe naó fazincrivel, ſuppoſto aquele tulipas . Depois de a animar a padecer lo

le Senhor aquem ella ſervia, foi , he , as muitas cruzes que a eſperavao , ex Pa

e ſer á ſempre admiravel nos ſeus fieis hortando a á obediencia do leu Di. 0

Serv os , e tem de coſtumerevelar aos rector , que fora o meſmo de Soror

ſeus pequenos os ſeus ſegredos,que eſ- Izabel , deitando -lhe a ſua bençað ,
conde aos grandes , e ſabios do mundo . deſappareceo. Neſta meſma occaſiao 34

7 Depois de ter vivido com boa declarou a ſua filha , que o ſuſtentar: 0

opiniao a noſſa Veneravel Terceira ſe tantos dias tem comer , nem beber,
Soror Izabel de Santa Roſa, com ella e eſtar eſperando pela morte até dia
acabou finalmente em 2. de Julho de da Viſitaçao da Senhora , fora pela
1726. Nao teve , como outros mui- grande devoçaõ que tivera ſempre
tos Servos de Deos , revelaçao do àquelle grande Myſterio , querendo
tempo da ſua morte ; parece que fim o Senhor que ſubiſſe a contemplallo
a quiz conlervar nos affectos de ſemº melhor na Bemaventurança, paraon
pre padecer pelo ſeu amor , ao que de logo ſubira , e aonde 'eſtava entre
ella correlpondeo tað fielmente , que as filhas de N. Padre S. Domingos ,
expirou com eſtas palavras na boca ; da ſua Terceira Ordem . Ficou o ſeu
Cada
 SOROR ANTONIA DA
Cadaver flexivel , e era extraordi-
Dario o concurſo , que acudio a tocar
nelle Roſarios, e dar- lhe as piedoſas
veneraçoens.
2. de Julho.
Vida da Veneravel
SOROR ANTONIA
DA CONCEIC ,AM ,
Extrahida das memorias , que ſe cone
ſerva7 no Moſteiro do Sacramen
to de Lisboa.
I Oi eſta V. Madre bautizada
F
na Freguezia de Santa Brigi .
da do lugar do Lumiar do termo da
Cidade de Lisboa: torao ſeus pays
Franciſco Gonçalves , e tua mulher
Brites da Costa , por quem foi'inttrui
da Chriſtaámente nos dogmas danoſa
ſa Santa Fé , a cuja educaçao correla
ponden a Serva de Deos com tað bõa .
condeſcendencia, que até os ſeus ul:
timos dias , que forað largos , nao le
vio nella acção , que nao foffe de muie
ta edificaçao , e exemplo . O que lhe
levava as mayores attençoens , era a
devoçaõ a Maria Santiſlima, ſempre
benefica , e favoravel aos adiantamen ;
tos da Ordem Dominicana. Dignou .
fe efta Soberana Senhora de ennobre-
cer , e illuftrar a noſla Sagda Fami•
lia com huma ſua Serva cao innocen-
te , e virtuoſa ,facilitando -lhe osmeyos
para ella veſtir, como veftio , o habi-
to de Converſa no Molteiro exempla-
riflimo do Santillimo Sacramento em
huma quinta feira 28. de Abril de
1662. aonde fez a ſua profiſſao em 2 .
de Julho .
2 Reconhecia a bõa Religiofa ef-
te elpecial favor da Mãy de Deos,
porque era fraze tua mui trilhada di
zer : A minha Senhora , a minha Rai.
uha me trouxe a ſer Freira . Omui
to uſo que ella cinha de trazer eſtas
palavras na bocca , nao deixou dedeſ.
pertar a curiozidade em alguma de ſuas
companheiras , que tendo para ſi , co
mo be muy viriſimil, que havia algu
CONCEIC ,AM 2 de Julho. 15
ma couſa de mais notavel neſta repe
tiçao , quiz examinar o que podia ſer;
mas como a humildade dos Servos
de Deos he taó contraria a estas er
peculaçoens, reſpondia Soror Anto
nia com muita graça a eſtas inſtancias,
que nao eſtava por entao para ſe con
feflar; e com effeito poderia ſer que
feu Confeſſor tiveſſe , como ſe preſu
me , mais ioteira noticia do ſucceſſo ;
porèm a morte , que o levou muito
antes do obito da Serva de Dios , nos
deixou defraudados de alguma cou .
fa , que aqui podia haver mais edifi
cante e maravilhoſa .
3 Foi etta ditofaConverſa mui ob.
ſervante dos preceitos da Ordem
e
tao diligente no ſerviço da Caſa , que
nao havia trabalho , ainda que fofeo
mais penolo , que ella nao tiveſſe por
múi leve , e ſuave , e iſto em tanto ex
tremo , que ſe alguem ſe admirava de
a ver ſervir em couſas de que eſtava
deſobrigada, reſpondia ſempre com
abocca cheya de riſo : Eſte he o meu
demais para eu metter no Jacco para a
Eternidade. Deo - lhe o Senhor neſta
vida o premio de buma vida larga ;
porque paſlava de noventa annos ao
tempo da ſua feliz morte , ſem que em
Cao prolongado curſo desfalleceſſe ja
maišo ſeu fervorofo Eſpirito daquel
le vehementiſſimo ardor , com que
havia principiado a ſua carreira , que
para que em tudo tiveſſe as condiçoēs
de perfeira, foi ao modo de hum cir
culo , vindo a morrer facramentada
em outro cal dia como o de ſua pro.
fiflao em hum Sabbado 2.de Julhocom
61. annos de Religiao , depois de ha :
ver padecido muito em huma dilata .
da, e moletta doença de 1729. dia fer
liciſlimo , e bem augurado para huma
boa morte,por ſer dia duasvezes Ma:
riano , huma por ſer Sabbado , e ou
tra por ſer dedicado á Solemnidade
da ſua Viſitaçao a Santa Izabel .
B iij RES
-
C
LA
O PI
16 R EC ,AM
RECOPILAC ,AM
de 2 , de Julho.
M Tauris , Cidade Perſiana , o
E Illuftriffimo, . V. P. Fr. Gui-
lherme de Cigiis . Qual foſſe o zelo , e
amor de Deos deite Veneravel Prela.
do ſe deixa bem conhecer da eſcolha
que fez delle a Santidade de Joao XXII,
para exaltallo á Prelazia daquella re
motiſlima terra , para onde partio o
Servo de Deos com recomendaçoens
mui honorificas do Pontifice com mais
outros Biſpos , aſlim da noſſa Ordem ,
como da de nolio Serafico Padre S.
Franciſco. Florecia o Servo de Deos
no ano de 1328. Anno Domini,
can .
2 Em Piſa o V. P. Fr. Bartholoo
meu , que tomou o nome da meſma
Cidade por ſeu renome . Antes de en .
trar na Religiao , havia ſido hum dos
mais doutos profeflores em Direito
Canonico ;
mas ainda que eraõ tantas
as ſuas letras , nao lhe ſerviao , como
fuccede a outros muitos ,para inflaçao ,
e deſvanecimento , ſenso para melhor
conhecer -ſe , e melhorar - ſe. Depois
de veſtir o noſſo ſapto habito , fize.
sao - lhe os Religioſos grandes inſtan-
cias , com que o perſuadiaõ a fazer bữa
Summa de caſos de conſciencia : ef-
cuſava -ſe elle ( como aſſim o confeſia
no principio da ſua obra ) com haver
ja outras Summulas , principalmente a
de S. Raymundo , que foi a primeira
que apparecêo em publico ; mas eſta
eſcula le lhe atalhava , reſpondendo-
ſe -lhe que a meſma liberdade de que
outros ſe haviao ſervido a eſte fim ,
nao era menos commũa para elle , do
que o fora primeiro para os meſmos :
que aquelle tempo havia muitasExtra-
vagantes , iſto ne , varios Decretos , e
Bullas dos ſucceflores de S. Pedro , a
que ſe dá eſte nome por nao andarem
incorporadas no Corpo de Direito , e
que algumas deſtas ja nao tinhaõ vali .
dade ; e que ultimamente as innova.
de 2 de Julh
o
.
çoēs de Bonifacio VIII.pao ſerviriaõ de
menos pretexto , e juſtificaçao para o
livro. Rendido finalmente a estas ra
zoens , e pezando bem o que diz S.
Gregorio fobre o Profeta Ezequiel
que nao ha ſacrificio que ſeja mais do
agrado de Deos , do que o zelo da fal
vacao das almas, começou a compor
o leu laborioſo Tratado , que conti.
nuou , e concluío , ao queſe crê , com
eſpecial auxilio do Ceo .Teve no mun
do a gloria de ver bem aceito o feu tra .
balho, e he muito crivel , que lhe nao
faltaria com o mayor premio aquelle
Senhor, a cujo mayor ſerviço tanto ſe
havia applicado , que o chamou para ſi
em 2. de Julho de 1347. = Soueges.
3. de Julho.
Vida do Illuſtriſſimo ,e V. P. 1
Fr.GASPAR DECHINCHILHA
Biſpo de Bibli ,
Extrabida de Lopes 3. part. Livr. i
1 O noflo Illuftriffimo D. Fr.
N Gaſpar de Chinchilha ſe vio
bem quanto Deosnoflo Senhor ſeagra .
da de eſcolher para inſtrumento das
ſuas maravilhas aquelles ſujeitos mais
contempriveis, e em que a chamada
prudencia do mundo põem menos as
ſuas eſperanças. Entrou ette Servo de
Deos para a Ordem para ſervilla como
Irmao Leigo , que para iſſo he que foi
aceito nella ; mas a poderoſa Maõ do
Altiſſimo o levantou deſte lugar hu
milde para o conſtituir Principe da ſua
Igreja . Note -ſe que taes ſeriao osme
recimentos de hum homem , que, abai:
no de Deos , elle foi o Author, efar
tifice da ſua fortuna. Sendo Frade Con
verſo deo tantos indicios das altiffi
mas virtudes que entheſovrava , que
reflectindo nos ſeus bons procedimen
tos o noſſo Illuftriffimo D.Fr. Affonſo
de Burgos, Confeſſor das Magetta
des Catholicas, D. Fernando , e Dona
Izabel , fundador do Collegio de S.
Gregorio de Valladolid , e Biſpo de
o
Cordova , e depois de Palencia ,
eſco
 SOROR MARÍA DA ASSUMPC ,AM
eſcolheo , ſendo ainda Paſtor da pri-
meira deitas ſantas Igrejas , para o ter
em ſeu palacio : ecomo por cauſa del
ta mayor familiaridade , teve mayor
opportunidade de vir no conhecimen-
to das virtuoſiſſimas qualidades deſte
Servo de Deos , entendêo , e nao ſe
enganou , que ſe elle ſe cultivaſſe po-
deria ſer de hum grande preſtimo para
o mayor augmento da gloria de Deos,
e luftre da ſua Religiao ; e levado del
te penſamento o fez inſtruir naquelles
eſtudos mais neceſſarios a eſte fim , a
que Fr. Gaſpar ſe applicou com prom .
pia obediencia , e nao menos bom ſuc.
ceſſo; porque em breviſſimo tempo
moſtrou o bom engenho , e capacida :
de, que tinha para'as letras .
2 Diſpoſto em fim para receber to
das as Ordens Sacras , le lhe conferie
rao eſtas com o habito branco ; mas
era tal a humildade do Servo de Deos,
que eſta mudança nao lhe influîo ( co-
mo em qualquer outro poderia ſer bem
ordinario ) deſvanecimento algum , e
ſe fez nelle alguma mudança , foi fa-
zello mais humilde , augmentando -ſe
mais , e mais a ſua confuſao , e dizen-
do como David dizia , quando cote .
java o abatimento dos ſeus principios
com as ſuas futuras exaltaçoens : E
quem ſou eu Senhor , é Deos meu ?
Quem ſou eu ; ou qual be a minha ca-
ſa , para que Vós me façais tantas hon .
gre , e beneficios ? Nem deſiſtio defte
feu conhecimento proprio ſendo pro •
mosido a Biſpo de Bibli na Paleſtina ,
dignidade , que lhe folicitou ſeu Illus .
ftrislimo bemfeitor D. Fr. Affonſo ,
que reconhecendo de dia em dia os
fublimes dotes da grande almado Ser
vo de Deos , o elegêo por leu Coadju
tor , achando nelle a robuſteza com
petente para o ajudar a levar maisſua .
vemente o pezo daquella ſua Prela
zia : e tornando Fr. Gaſpar a atten
der para o que antes havia ſido , e era
agora , continuava dizendo com aquel
Je Real , e Santo Profeta : E comose
iſto foſepouco , quizeſtes , bom Deos,
e Serbor , diftinguir -me, e fazer-me a
Tom, VII,
3 de Julho 17
honra de me antepor aos outros hoe
mens ? Em fim lað ajuſtada, e perfei
ta foi a ſua vida , que pudera ſer con
tado entre aquelles celeberrimos Bil
pos da primitiva Igreja.
3 Morto finalmente Fr. Affonſo
no ſeu Biſpado de Palencia , retirou
ſe o noflo Illustriſſimo Fr. Gaſpar ao
ſeu Convento de S. Paulo de Cordo
va , aonde fora admitido ao habito ,
e alli vivia tao Religioſa , e Santamen
te , que lervia de igual aflombro , que
edificaçao a toda aquella Cidade . Em
attençao ao amor , e filiaçao deſta Ca
ſa , lhe dêo , e cedêo iodos os ſeus
bens , e aqui eſtabelecêo huma lo .
lemniſſima celebraçao do Oficio Di
vino para cinco , ou ſeis Feſtas do an;
no ; e allim meimo hum Curſo de Fin
loſofia , e outro de Theologia : por
que polto que os houveſle , ilto era ſó
mente por diſpoſiçao dos Superiores;
e neſtes termos quiz o Servo de Deos
fazellos mais validos , fixando os aſlim
com rendas certas , e ſabidas . Qual
foi a ſua vida , telfoi a ſua morte ,que
preciofiffima aos olhos daquelle Se
nhor , que , de tao pequeno que era no
mundo , o fez nelle tao grande , e
nað o engradeceria menos no Ceo, co
mo piamente le póde entender, ao fe
char -ſe o decimoquinto Seculo . Foi
ſepultado no Presbyterio do expreſſa .
do Convento , e dálli le trasladárað
os ſeus oſſos alguns annos depois , re .
pondo -ſe em outro ſepulcro mais de .
cente .
3. de Julho.
Vida da V. Madre
SOR OR MARIA
DA ASSUMPC, AM ,
Conforme as memorias , que ſe con
Serva7 no Moftegro de N. Senho
ra da Graça da Villa de
Abrantes.
I Oi a V. M. Soror Maria da Ari
Foſumpçaõ
i muito pobre por pal
cimento ; mas a pezar da diuturnida:
с de
18 SOROR MARIA DA ASSUMPC , AM 3 de Julho.

de dos tempos, madrugáraõ para ella penitencias . Compadecia- le de ver o

med
muito cedo os dezenganos do mundo . odio , e auſteridade com que Suror
Conheceo ella os inſublittentes alicer, Maria ſe tratava a ſi meſma ; porém
CE
ces da vaidade do ſeculo , e eſtiman- ella andava ja tao artificioſa , e reſen .
do menos as ſuas pompas do que as tida ,que não perdia occaſiao de me
C
virtudes , a cuja eminencia alpirou recer , e mortificar-ſe. Eſcondia -lhe a
ſempre com o mais incendido deſvelo , 'outra os cilicios , compadecida de de

trocou pela vangloria , a que podia in a ver ſummamente atormentada de

&
clinalla o ſeu langue , e nao menosas grandes moleſtias : iſto porém nað era
D
fuas prendas , a humildade Chriſtaa , e baſtante para que ella deixa ſſe de pro
Religioſa dos verdadeiros fervos do mover o ſeu adiantamento , lubftituin TE

Senhor , em que , como em báſe mais do a falta daquelle rigoroſo inſtru :

lor
fixa, e bem ailentada da perfeiçao , mento com bocados de páo aſperos , e
procurou , e conſeguio fazer -ſe inais nodoſos , que mettia enire a carne, e POE
diftinca , e obſervante . Via - ſe o ſeu a tunica . Era admiravel o ſeu ſilencio ,

profundo abatimento no ſeu trato : parecendo mais eſtatua ſem ſentidos,

jamais veftio o habito que lhe davao do que corpo animado . Jamais lhe en
ſeus pays , ou a roupa do ſeu uſo ; por- trárao na cella, que nað a viſſem pro
que tudo trocava pelo mais inferior , ſtrada de joelhos,donde comum mente elle

e mais pobre , goltando muito de ap. ſe inferia , que gaitava todo o ſeu tem do
ter
parecer desluzida , e deſauthorizada; po em oraçao . Nao carecia de proba
e eraõ em cudo iguaes os effeitos que bilidade elta preſumpçao ; porque por
fe viao na ſua cella de pobreza , e ab- testemunho de outra Religioſa lua ella
negaçao . amiga , ſe ſoube, que nem deixava de gue
2 Era indiſpenſavel no coro a ſua a ter por eſtar acompanhada , tendo . € al
aſſiſtencia , e dava -ſe tao bem neſte ſe reparado muitas vezes que aquel do
CONE
fanto lugar , que ordinariamente naő las em que chegava ao locutorio a fal
havia buſcalla fóra delle . Concluidos lar a ſeus irmaos , era mui pouco o que de

osOfficiosalli ſe deixavaficar de dia, e de dizia , levantando frequentiſſimamen Lia

noite, ou em pé, ou de joelhos , em- te ao Ceo os olhos , e as mãos debai

bebida em altillimas contemplacoens . xo do eſcapulario.
Era iſto de modo, que ( como nao
pou . 4 Goſtava muito da liçaõ das obras ci

cas vezes admirarao as ſuas Co - Reli- do noſſo V. P. Fr. Luiz de Granada ,

gioſas ) na mayor intenſao do Ettio regulando pelos documentos delte
com a cara cuberta de moſcas , nao virtuoſiſſimo Padre os ſeus fantos cola eld

dava o mais leve ſinalde pena, ou ſeni
ſibilidade. Nos dias de Communbao
ainda era mais tenaz netla aſſiſtencia ;
e entao , ou não acudia a tomar ſuſ.
tento , exceptoſe a obrigavao os acha-
ques , mas ainda aſſim era ja muito tar
tumes . Pedio com grandes inſtancias
o dom de lagrimas ; e nao ficou fem D
deſpacho a lua fupplica, concedendo
lhe o Pay das Miſericordias eſta ben 10
çaõ em larguiſſima affluencia . Pare DE
ce que nao tinha deſejo mais vivo, ou

de, como ſe nada tiveſſe ja de corpo , mais ardente do que recorrerás fontes
e fora toda eſpiritual. Sacramepraes . A este propoſitolhe dil

3 Eſperava mettida na ſua cella as ſe huma Religiofa , que lhe eſtranha

horas mais focegadas para tomar a ſua
diciplina ; e antes de dar ſe a eſta mor
tificaçao acautelava - le muito de huma
fua irmaá , cambem Religioſa do Mo.
fteyro de Abrantes , aonde florecêo a
Serva do Senhor , que andava ſempre
va huma continuaçao tao amiudada ,
que tinha para ſi ,
, que ſe a deixaffem
estar ſempre no Confeſionario , nunca Dit
fahiria delle . Pois Madre ( lhe tornou
Soror Maria ) Se me acho ſempre com
defeitos, que quer que eu faça lengo

á eſpreita para ir - lhe a mao nas ſuas buſcar -lhes a mezinha ?

so
 RECOPILAC ,AM de 3 de Julho .

5 O grande amor , que tinha ao crevia , e pedindo a ambos alguns ſuf

recolhimento , e ſolidao , e nao me .
nos o grande empenho com que pro ,
curou ſempre abater-ſe , eanniquilar-
fe , tudo foi cauſa de que pao nos fi-
caſſem algumas memorias deſta gran .
de Serva de Deos , que poderiaõ ter
mui inſtructivas para os que ſeguem
a vida eſpiritual. Ao menos pudera-
mos nao carecer de huma deſtas, que ,
pelo que parece, havia de ſer de ſum-
ma importancia : mas a falta deadver-
tencia nos defraudou defte beneficio ;
porque havendo dito a outra Religio
ia de boa opinia que em caſo de achar .
fe preſente a ſua morte lhe pergun
tára o que lhe acontecera no antecoro
junto á caldeirinha , ſe deixou perder
efta noticia por deſcuido , nao haven
do quem a executaſſe pela palavra ao
tempo da ſua ditola morte .
6' Naõ era eſperado o aſfalto , qué
eſta Ine dêo , por fer precedida de hûa
queixa ao parecer de pouco cuidado ;
e ainda que ſe lhe aggravou fobrevin-
do- lhe huma inflammaçao aos olhos ,
com tudo , como ſempre ficou livre
de ſymptomas de febre , ainda que pe :
dia os Sacramentos , e ſe julgava que
o calo nao era de perigo , foi neceſ.
ſario condeſcender com os teus rogos ,
e ha boas apparencias , de que nao dei
xou de ſer previſta pela Serva de Deos
a ſua ultima hora ; porque havendo
eſcrito alguns dias antesduas cartas pa-
ra dous irmãos que tinha , hum Reli-
giolo , e outro Goverpador da Peder .
neira , acçao nella muito rara , pedio
a ſua irmaa ,quefizeſſe expedillas quan-
to antes : nao ſe pôs iſto em effeito
com tanta brevidade como ella que
ria , e pouco tempo antes que Soror
Maria da Aſſumpçaõ expiraſſe , tor
nou a inſtar , fazendo a meſma reco-
mendaçao . Tranſportada finalmente
a ſua alma feliciffima ao thalamo do
fragios, e em eſpecial ao Religioſo
hum certo numero de Miflas de al
guns Santos, que'apoutava, e reque .
ria que foſſem logo dicas. A viſta deſ
te incidente , parece logo muy veriſi
mil , que , como diflemos, aquelle bom
Deos ,que jamais falcou aos ſeus eſco
lhidos , revelou á noſſa eſclarecida
Religioſa o dia em que havia de cha
malla do Libano do mundo para a com
roa do Empyreo ,
RECOPIL AC, AM
de 3. de Julho.
M Caftres , no Languadoc,
E OV.P. Fr. Raimundo Sycres.
Foi eſte inſigne Religioſo o ſegundo
Prior donoſio magnificentiſſimoCon
vento de Pamiez , para cuja eſtructura
contribuîo grandemente o povo da
quella terra perſuadido do exemplo
da nobreza delle , e muito principal
mente do Conde de Foix, Senhor
poderoſiflimo naquelles tempos . Nao
devêo pouco o adiantamento deſta
Cafa ao cuidado do noſſo Fr. Raimun
do ; porque elle a adiantou em edifi
cios , e muito mais fem comparaçao
nos eſpirituaes, pelo que foi ella hūa
das mais acreditadas , e ſumptuoſas :
fumptuoſa digo , naquellesbons tem .
pos , que nos futuros mudárað mui
to as couſas de ſemblante, porque
deixando - ſe cegar miſerabiliflimamēm
te aquelles povos do Calviniſmo , ar
ruináraó facrilegamente aquellestem
plos, que ſeus antepaſados haviao
erigido com tanta Chriftandade , e
devoçao . Foi tambem eleito o Servo
de Deos , Vificador da ſua Provincia ,
emprego que entao ſenaõ çonfiava , ſe
naõ de num procedimento ſúmamen
te recto , e inculpavel . Duas vezes foi

Divino Eſpoio em 3.de Julho de 1686. , eleito no Priorado do noſlo Conven

teve a irmaá a curioſidade de abrir as to de Caſtres ; e renunciando - o a pri
meſmas cartas , e em ambas ellas ſe meira vez , lembrados os Religioſos
deſpedia de ſeus irmaos , dizendo- lhes da ſuavidade , prudencia , e acerto
fer aquella a ultima vez que lhes eſo com que elle regia , e dirigia a Com
Tom . VII Cii munidade
20 RECOPILAC, AM
munidade , o reelegêrao ſegunda vez ,
tendo ſempre correspondida fielmen-
te do Servo de Deos a ſua expecta-
çao . Finalmente , depois de haver go :
vernado , e vivido jantamente , paf:
ſou para o Senhor no anno de 1280.
Ex Bern . Guid . in M, S.
2 Em Metz , o V. P. Fr. Nicolao
Pedro . Foi eite V. P. hum dos mais
acerrimos Prégadores contra as vaj .
dades caducas do feculo ; e tanto era
mayor o fruto que fazia com os ſeus
Sermoens , quanto mais era notorio
o bom exemplo que elle havia dado ,
renunciando, como aſſim o promet .
tera na Sagrada abluçao do Bautiſmo,
as pompas do demonio pela pobreza ,
e auſteridade Evangelica ; porque ven-
cido da luz do deſengano havia dei .
xado generoſamente todos os bens , e
commodidades temporaes , que ſe pu .
dera prometter , ſuppotto que tinha
parentes mui abaſtados, e opulentif-
ſimos. Vivia eſte bom Padre nos an-
nos de 1349. e 1351. tao apontados ,
e celebrados nas hiſtorias , por cauſa
daquella calamitoſiſſima pefte, em que
parecia acabar -ſe o mundo ; porque,
ao modo de hū voraz incendio ,chegou
a abrazar todo o Univerſo : e em húa
conjuntura tað funefta, e deſconſola-
da, ſervio o V.P.de grande alivio aos
ſeus Cidadaos , e particularmente aos
feus Co - Religioſos, dirigindo as ſuas
acçoens, e palavras a ſuavizar carita.
tivamente aquelle taó terrivel flagello
da jufta Ira do Senhor , diſpondo a
todos para que , já que nao pudeflem
evitar a morte temporal , fugiflem da
eterna , mediante huma conformere .
ſignaçao na vontade do Author da vi .
da. Era aquella Communidade nume-
rofillima ; ifto porèm nao obſtante ,
forao tantos os Religiofos , que mor-
serao naquelles fataliſſimos tempos ,
ý nao cabendo já os corpos no cemite
rio commum , foi neceſſario que ſe
lhes abriſſem ſepulturas na Igreja. Fii
nalmente , depois de haver governa
do o noſo V.P.digniſſimamente aquel.
la Caſa 19. annos , correndo o do Se
de z de Julho:
obor de 1358. foi chamado para a ſua
companhia , aquem fizera tantos ſervia
ços , e obſequios. Ann . Dominican .
3 Em Rimino o Illuftriflimo , e
Veneravel Padre Fr. Bartholomeu
Domingos de Sena ; Bilpo Coronen
ſe , ſuffraganeo á Metropolide Corin .
tho . Diſtinguio.le eſte grande Servo
de Deos com huma ſincéra , e inde ,
fedivel fantidade com que elle coroa
va a vaftiflima , e prodigioſa literatu .
ra com que illuftrou , e aſſombrou a
Univerſidade de Bolonha , aonde be
nemeritamente ſe Doutorou.Foi Con.
feffor , e hum dos principaes devotos
da noſſa Sāta Catharina de Sena , ſendo
muitas vezes teſtemunha ocular aſſim
das acçcēs, e virtudes deſta fiel, e caftif
fima Eſpoſa , como das delicias, e fa
vores , com que a regalava o ſeu Ama
do . De tratar com a Santa , chegou
tambem a ſer Santo . Zelou muito o
reſtabelecimento das couſas da Reli .
giaõ , confederando-le a eſte fim com
0 Reverendiſſimo Geral Fr. Raimun
do de Capua , com os noſſos dous
Thomazes , de Sena , e de Piſa , e com
os Veneraveis Padres , Fr. Roberto
de Napoles, Fr. Marcolino de Forli
vio , e Fr. Joao Domingos de Floren
ça , que depois foi exaltado á digni.
dade Cardinalicia. Em attençao a eſ.
te feu ardentiſlimo zelo , foi promo
vido o Servo de Deos ao governo da
Provincia Romana , que elle deſem
pephou com tanto acerto , que omel
mo Reverendiſſimo Geral Fr. Rai :
mundo o preferio a todos os mais
Religioſos, commettendo -lhe o cargo
de Vigario Geralda Ordem , em quan
to elle le applicava a trabalhar em húa
Legacia do Pontifice em Sicilia . Teve
tambem o Illuſtriſſimo D. Fr. Bartho
lomeu a procuradoria geral da Ordem,
e creſcendo de dia em dia em novos,
e mayo , es merecimentos , ſe lhe con
ferio a Mitra de Corona , a que elle
com effeito correſpondeo com todas
as bellas qualidades de hum perfeito
paftor. Finalmente, achando -ſe na Ci
dade de Rimino, na Italia ,correndo
O an
 D. FR. BARTHOLOMEU
o anno do Senhor de 1417. nelle foi
chamado para o eterno premio a 3 : de
Julho . = Fontana in Theat .
4. de Julho.
Vida do B. c Illuftriffimo
D. Fr. BARTHOLOMEU
DE TI VOLI ,
Biſpo de Dangala na Nubia , entre o
Egypto , e Ethiopia ,
Extrabida deVrreta.Hiftor. Æthiop.
6.4 .
I Noſſo Beato , e Illuſtriſſimo
O Dom Fr. Bartholomeu de
Tivoli , era Italiano de naçao : foiva-
rao de huma condūmada literatura ;
fez- ſe porêm mais celebre pela ſuare .
ligioſa piedade. Concluida em Roma
a ſua Sagraçao,partiopo annode 13 30.,
em que Joao XXII . gover nava a Igreja
de S. Pedro , para a ſua Igreja de Dan.
gala na Nubia , entre o Egypto , e a
Ethiopia , a procurar naquellas partes o
reftabelecimento da Fé , de cujas ver.
dades eſcaſſamente le contervavaô
nellas alguns poucos veftigios. Acom .
panharao.no outros dous Religioſos
da Ordem , e antes de outra couſa pale
lárað todos elles á Paleſtina a viſitar
os ſantos Lugares ; e concluida eſta
piedoſa peregrinaçao , forao ſeguindo
o ſeu caminho , em que chegáraó a pa .
decer as mais extremas , e rigoroſas
neceſſidades , te bem , que todas ſe
lhes faziaõ uaves com o bom ſucceflo
que muitas vezes tiveraõ de ganhar
algumas almas para Chriſto , e perſuà-
dindo a cutros , que ainda conſerva .
vao o nome de Chriftaos, posto que
viveſſem como Gentios, a que, refor.
mando -ſe , e deixando - ſe entrar , e pe-
netrar de hum verdadeiro , e fanto
temor de Deos , conformaſſem a lua
vida com a ſua Religiaõ , os ſeus pro-
cedimentos com as luas obrigaçoens.
2 Conferio lambem as Sagradas
Ordens a algumas peſſoas mais idoneas
para o Sagrado miniſterio do Altar .
Cuidou muito em fazer reparar algías
DE TIVOLI, 4 de Julho : 21
Igrejas, ģ pelo curſo do tēpo, e muito
mais pela negligencia , e menos piedade
daquellas gentes, tinhao vindo a terra ;
e tambem levantou muitas outras de
novo , e com eſpecialidade hum gran .
de Convento , em cuja fundaçao ſe
ouvirao muitas vezes os anjos cantar
Alleluia ; por cuja conſideraçaõ lhe
foi impoſto o meſmo titulo . Por or.
dem do B. Bartholomeu de Tivoli ,
foraõ traduzidos muitos livros Lati .
Dos na lingua dos Arabes, de queeile
tinba huma grande intelligencia , por
ſer eſta a que alli andava mais em pra.
tica para a celebraçao dos Officios
Divinos . Os noflos adverſarios , que
impugnao as Miſloens dos polos Pa ,
dres na Ethiopia , cujos fundamentos
deixamos reſpondidos no dia primei
ro deſte mez de Julho , em que va
mos,
mos , talvez controvertem eſta promo
çao do Beato Bartholomeu á dignida
de Epiſcopal de Dangala , objectan
do - lhe nao ſe achar memoria , ou do
cumento , que conſtantemente demcf .
tre este fa & o . Ifto be o que ſe deixa
entender do que eſcreve o noſſo Dia :
ritta Francez , Fr. Thomaz Soueges ;
mas a iſto reſpondemos com eſte Pae
dre , que ſe confta , ou nao conſta
da inſtituiçao do Biſpo de Dangala ,
iſto nao entramos nos a diſcutir : que
o certo he que nem todas as diſpozi
foens Pontificias ſe conlervaó por eſ
crito , o que fem ſahirmos de noſſa
caſa podemos comprovar com o noſſo
Beato Fr. Bartholomeu de Bolonha ;
porque paſſando eſte Miſſionario ze
loziſſimo á Armenia , aonde teve de.
pois tantos outros fucceflores da Or
dem , e eſte ſeja hum ponto , que nin
guem atégora controvertêo , ou diſ
putou , por ſer hum fado conſtantiſſi
mo , e innegavel ; tudo iſto naõ obf
tante, nao ſe achao Bullas , ou Letras
Apoftolicas, que aſſim o confirmem .
33. Tambem faz muito ao cafr a au
thoridade de Volaterrado no livro 12 .
da ſua Geografia, debaixo do artigo
Etbiopia, dos Embaixadores Abexins,
enviados ao Pontifice Sixto IV . , que
aquelle
 RECOPILAC, A M de 4 de Julho - 1

aquelle Author diz que vio , e de que ſó a poderiaõ ter da ſua pureza;
que nao ficou memoria ; porque De 15. annos era já tað eminente na
á encontrar- ſe , nao te deſcuidaria Grammatica que
, se empenhou muita
o noſſo Bzovio , ſendo , como era , hum grande Principe em tello no ſeu
tao inveſtigador , e diligente , e que Palacio para lhe confiar o enſino , e
eſcrevia por aquelle meimo tempo , educação de ſeus filhos : mas como a
de a deixar inferta nos ſeus Annaes. ſua humildade menos pertendia aquel
Tornando finalmente ao propoſito em le magiſterio , do que ler diſcipulo na
que vamos ; o noſio Beato Fr.Bartho- Eſcola das virtudes dentro dos nof
lomeu , depois de haver cultivado tao ſos Clauftros, dêo de maó ás vaido
cuidadoſamente na ſeara do Senhor , zas auras dos applauſos , e eſtimaçoēs
em que gaitou a prolongada vida , de do ſeculo . Teve a gloria de que The
que Elle lhe fez mercê,paſſou ,me dian- vefiſle o noſſo ſanto habito , e opro
te huma feliz morte , a lograr eterna- feſſaſſe o V. P. Fr. Marcos Martiniſa
mente da ſua vita , ao que parece , no no Convento da Saude . Vendo - ſe fó .
anno do Parto da Virgem de 1350. ra do mar tempeftuoſo do mundo no
aos 4. do mez de Julho. tranquillo , e leguro porto da Reli.
giao , fez huma vida digna dos Padres
primitivos da Ordem , ainda que por
RECOPILAC, AM
ſer de compleiçaõ debil , naõ o aju
de 4 de Julho. daffem as forças a alcançar o rapido
curſo do ſeu eſpirito . A ſua modeſ.
I M Meliapôr, nas Indias Orientia , e gravidade era como hum encan:

Piftoya. Eſte grande Servo do Senhor
teve a gloria de ſer fideliſlimo, e be-
nemerito companheiro do V. e Illuſ-
triſſimo P. Fr. Joao de Monte Corvi-
no , da Ordem de noſſo eſclarecido
Patriarca S. Franciſco , Biſpo
Cambalieck . Seguio - o
o noflo bom
Religioſo deſde a Cidade Taurinenſe
da Perſia até Meliapôr , aonde elles
ſe encaminhavao para trabalhar na cul .
tura daquella ſeara , a que em outro
tempo dera principioo Sagrado Apof.
tolo S.Thomé . Neſtas ſantas diligen-
cias , colhêo a morte ao noſlo Fr.Ni
colao , que parlou do mundo para o
Ceo no an no de Chriſto de 1291. Jáz
ſepultado na Igreja do meſmo glorio .
ſo Santo . Ex Annal. Min . ad an .
1315. 11. T.
2 Emo Napoles , do Convento do
Etpirico Santo , o virtuoſo Fr. Joao
Jeronymo , Diacono . Unio eſte verda
deiro filho , de S. Domingos huma aſ-
fomb roza ſabedoria com huma colum-
bina inno cencia . Tað puro , e candi-
do em toda a ſua vida , que ſe foraó
os Anjos capazes de inveja , parece
to de
blante parecia o da meſma alegria ,
ſempre igual , ſempre alegre , ſempre
riſonho. Em fim , todas as ſuasacçoeos
exteriores eraõ hum ſobreeſcrito mui
conforme da Santidade , e pureza da
de ſua grande alma ; tao pura , é tao ſan
ta , que os meſmos ſeculares, que lhe
nao labiao o nome , lhe chamavao orº
dinariamente Fr. Adjo . Muitos pro :
curavao as ſuas oraçoens , e outros fa
ziao grandes diligencias por contra
hirem amizade com elle . Era maxi
ma do Servo de Deos imitar a todos
os Religioſos, e de todos o melhor.
Era mui dado á Oraçao , enas veſpe
ras dos dias , em que havia de Com •
mungar , ſe diſpunha com tantas la
grimas, e com tao abrazados affectos ,
como ſe aquella fofle a ultima vez que
havia de participar aquelle Celeſtial,
e ſuaviſſimo Pao dos Anjos. Chegava
aos 23. annos de ſua idade , e tinha
já ſete de caô piedoſos, eſantos exer
cicios , quando ſe vio accommertido da
ſua ultima enfermidade ; e eſtando já
proximo a morrer, pedio que ſe lhe
cantafle o Pfalmo : Beatus vir , qui
timet
 RECOPILAC, A
timet Dominum , e alguns verſiculos
alluſivos á Paixao do Senhor , cujos
tormentos , nao obſtante a ſua exire-
ma debilidade , elle agora bem quize-
ra padecer pedindo ſinceramente aos
Religioſos, que já que nao morria com
esta conſolaçao , ao menos lhe conce-
deflem aquella de o deſpirem , e pô .
rem ſobre a terra ao ponto, em que
lleettivelle para expirar, paraquele-
quer imitafle neſta circunſtancia a dere
nudez do Salvador. Como vio que ſe
lhe nao deferia , conformando -ſe , co
mo verdadeiro filho da obediencia ,
com a vontade do Senhor , pedio ul-
timamente que ſe lhe cantaſe o Pral-
00 : Quam dile &ta tabernacula tua
Domine virtutum ! E chegando ao
fim delle , chegou tambem ao ſeu ul-
timo, e feliz termo eſte virtuoſo Le
vita do Senhor no annode 1604. -Lo .
pes 5.p.1.3.6.36 .
3 Em Boveso V.P.Fr. Pedro Vi.
lhete , que vivia pelo anno de 1622.
De tal modo fe fez diſtincto , e ſingu.
lar a merecimento deſte bom Religio .
fo , que nao ſomente ſe eſpecializava
como altro de ſuperior grandeza en
tre os ſeus , lenao que por muitas ve
zes o fizerao Prior do ſeu Convento ,
c Vigario nacional de Picardia . Elle
foi intrepido Aquilles , que ſe !oppôs
aos contrarios, que impugnavaõ a lou-
yavel reſoluçao em que haviao entra-
do as Religioſas do notlo Moſteiro de
Abevilha, de fazer clauſura, e ſeguir
outra vida mais regular ; porque en
Carregando - ſe da ſua defenſa , e pro
tecçao , teve a gloria de ver proſtra.
das ,e rendidas todasas contradiçoēs ,
e concluida finalmente , como tanto
de dezejava , efta dependencia . Em
tudo o que obrou o Varao de Deos ,
ſe vio bem que nao fazia outra couſa
mais que pôr em pratica os deſenhos
do Altiſſimo, caô empenhado niſto ,
como bem ſe deixa conhecer daquel :
la maravilhoſa appariçao , attribuida
ao Senhor S. Jozé , eſcolhido daquel
las Religioſas por ſeu eſpecial Prote
dor , e defcripta elegantemente no 23
M de 4 de Julho. 23
tomo deſte Agiologio tambem a 4.de
Julho , na vida da V. M. Soror Sebaſ
tiana do Sepulcro . Asſuas meritorias ,
e fantas acçoens lhe adquirirao nao
pequenos creditos na Cidade de Bo
ves. Zelou com ſeveriſſima exacçać ,
e pimiedade o ponto da Religiao Ca
tholica . Foi hum dos mais apaixona.
dos amantes do explendor da Ordem ;
e entre a ſeriedade deflas virtudes,
' goſtava muito das delicias da Poetica,
favorecendo , e honrando grandemen
te os ſeus cultores . Nao lhes deſagra,
decêraõ elles eſte favor , e attençao,
confeſſando- ſe - lhe devedores até de
pois da ſua bemaventurada morte ; e
perpetuando -ſe eſta ſua confiſſao no
engenhoſiſſimo Epithafio que lhe fi
zerao , como ſe pode ver melhor em
Soueges, de quem tiramos eſta noticia .
Ann . Domin . pag. 193.
4 Em Ruao o V. P. Fr. Romao
Mauldint . Florecêo eſte inſigne Re
ligioſo em grande piedade ,e Religiao,
o que o fez muito mais attendido, do
que a ſua conlūmada erudiçað , e li
teratura , ainda ſendo eſta de modo,
que mais parecia Oraculo , que pro
fefior das ſciencias , ſendo hum dos
Doutores mais eſtudioſos , e Litera .
tos do ſeu tempo . Attento ás obriga
coens do ſeu Inſtituto , ſe applicou ao
ſagrado , e tao importante miniſterio
do pulpito ; e foi ſempre ouvido co
mo hum dos primeiros Oradores : e
verdadeiramente merecia elle eſta fa
ma pela deſtreza com que loube unir
a eloquencia com a força, e a doçu
ra com a utilidade . O ſeu merecimen
to lhe metteo , lem elle a querer , a
Prelazia nas maos , e elle ſe dezempe
nhou tað alta , e nobremente , que deia
tou a barra muito além das bem funda
das eſperanças , que delle ſe haviao
concebido . Aſſim como viveo , aſlim
morrêo como juſto no Senhor, no anno
de 1643. = Memor. de Rugo.
5 do
 24 FR: JOAM DE S. DOMINGOS
5. de Julho.
Vida do V. Padre
Fr. JOAM DE S. DOMINGOS,
Extrabida de Lopes 3. p.1. 1.6 . 37.
I Nofio V. P. Fr. Joao de S.
O Domingos , foi mui celebre
pela ſua monſtruoliſlima ſciencia ; po-
rèm fez - ſe muito mais digno da im
mortalidade pelas ſuas excellentes vir-
tudes . Eitas o diflinguìraó de modo ,
que merecêo elle ſer o ultimo que toi
aviſado por aquelle pequeno fino, que
havia no notio Convento de Zamora ,
aonde o Servo de Deos paſou delta
vida .O melmo fino, ou garrida , pe-
lo decurſo de muitos annos tocava
> por fi milagroſamente , fazendo final
quando algum Religioſo noflo ettava
para morrer , e ainda le guarda naquele
la Caſa'com huma inſcripcai, que jun-
to a elle ſe abrio em huma taboa , em
que ſe faz mençao deſte prodigio . Com
a occaſiao que nos dá ette fino ,
fallaremos em outras particularidades
nui celebres daquella Caſa . Ha nella
dous milagroſosCrucifixos , e que amº
bos fallára ő em diverſos tempos , e
com diverſas occaſions . Hum deftes
venera -ſe no Capitulo ; e como alli
foffe mandado hum Viſirador natural
de Paredes no Biſpado de Palencia , do
appellido de Beroguete , em ordem a
solicitar a reforma do Convento , que
por entao le achava cadente algum tan
to do ſeu primeiro fervor , e obiervan .
cia , eſtando na duvida ieprocederia
com rigor , ou com brandura , 30 tem-
po em que implorava o auxilio , e luz
do Eſpirito Santo para lahir da ſua
perplexidade , lahirao da bocca do Se-
nhor ellas tremendiſſimas palavras :
Has de governallos com vara de ferro.
Etias palavras atterráraó de tal modo
aos pobres Frades , que ſe prof?rárað
por terra ſujeitando -ſe ás diſpoſiçoens
do Viſitador, que era Varao de vida
mui ſanta , e mui temente a Deos ; e
fritala mudança , que veyoa ſer aquel .
le hum dos mais reformados Conven,
tos da Provincia :
si de Julho.
2 O Segundo Crucifixo he de
muitos milagres; e huma pouca de
agua, com que te lhe hajao banhado os
pés , tem feito milhares de maravilhas
iftupendas . Eſtando os Padresem ora
çao na Igreja a tempo em que eſtava
cahindo a abobada porinttan :es, fal
lou a Santa Imagem , dizendo : Fu
gi . Ouvirao iſto os Religioſos, e nao
entendendo , nem o ſentido defte avi .
fonem oimminēte perigo que osamea :
çava , repetio novamente o Senhor a
meſma advertēcia ,explicando-ſe mais
dette modo: Fugî, porque eſta caſa
ſe eſtá vindo abaixo. Puzerao- le to
dos fóra , e apenas eſtiverao em ſalvo ,
quando a quelle edificio déologocom
ligo em terra . Sabido ette prodigio
pelos Fieis, collocáraó aquelle vene
rando fimulacro em humaCapella mui
afleada, e deſde entao começáraó a
venerallo com mais eſtrondolos cul.
tos . Fez ſe tambem muito celebre
aquella Caſa por outra circunſtancia
nao menos notavel , e teve ella ette
principio .
3 Era o Irmao Refeitoreiro hum
homem de muita virtude , e tinha
grande amizade com outro Religio
ſo tambem Converſo da Ordem de N.
Padre S. Franciſco. Convencionarao .
fe , que permittindo -o aſſim fua Divi
na Magellade , aquelle que primeiro
morrelle appareceria ao outro , infor
mando - o do ſeu eſtado. Succedêo fer
chamado em primeiro lugar o limao
Minorîta , e eitando o noſſo trabalhan
do em couſa pertencente á ſua occu
paçao do Refeitorio , junto ao rema
te da Meza , que conferia com a'er
cada dopulpito , apparecêo - lhe o ami.
go : quillo abraçar ; mas o defuntolho
prohibio , laſtimando -ſe muito das
grandes penas que padecia no Purga
iorio , e,ſegundo difle , por cauſas bem
leves , e momentaneas ; e paraque o
vejas melhor ( continuou o morto ) re
para bem ; e allentando a palma da
maõ na taboa da meza , todo o cam
po que ella apanhou ficou queimado ,
como ſe alli ſe houvelle poſto hū ferro
em

RECOPILAC ,AM
em braża. Finalmente,depois de haver
pedido alguns ſufiragios, deſappare-
ceo a quella vilao ; e para que ficaſſe
perpetua efta memoria , te mandou
pintar o ſucceßo , e cobrir o ſinalda
quella mao com huma pequenina gra :
de de ferro ,
4 Tornando ao noſſo Veneravel
Fr. Joao de S. Domingos, bem ſe dei.
xa inferir a ſantidade da ſua vida de
hum favor taô extraordinario , com
que nao ſomente o quiz privilegiar o
Ceo , ſenao que elle fofle o ultimo em
em huma diſtinçaõ tað eftimavel. Mor .
seo pois como verdadeiro filho da .
quelle Santo , que lhe dera o habito,
e o cognome , aos 5. de Julho de 1550.com aquelle Religioſo , quetinha viſ
que foi o meſmo, em que ceflou o mi- to , e ouvido o Santo Crucifixo , que
lagre daquelle ſino do referido Con-
vento de Zamora .
RECOPILAC, AM
de 5 de Julho.
M Armenia o V. P. Fr. Re-
7 ' E ginaldo Eſteva7 . Efte Vene,
ravel Religioſo era da Provincia de
Toloſa , a que a ſua eminente lantida-
de adquirio grandes , e eſpecialiſſimos
creditos. Foy admiravel no rigor de
vida , e no zelo da mayor gloria de
Deos ;e cal foi a lua virtude , que o
meſmo Ceo a confirmou com eviden-
tes milagres . Jejuava duas vezes na ſe:
mana a paā , e agua ; e impellido , e
dominado dos influxos do Eſpirito Sā
to , paſſou a Perſia , e ás Indias em
ordem a propagar ,e dilatarneſtaspar.
tes a noſſa Santa Fé . Reſtituido á Fu .
ropa , teve a gloria de ſer huma das
teſtemunhas, que ſe ouvirao pa ra pro-
ceder á Canonizaçao do noſſo Ange-
lico Doutor Santo Thomaz . A boa
conta , que dera da ſua primeira Miſiao,
o deixou tao bem opinado com o Sū .
mo Pontifice , que o fez.entrar em ou .
fra ſemelhante expediçað á Armenia ;
e he mui natural perſuadirmo - nos , que
aquelle Senhor , aquem tanto fervio ,
lhe conferio o premio , gtem deftinado
Tom . VII,
7
de Ŝ de Julho.
para os ſeus bons Servos . Vivia no
anno de 1330. = Ex Act. Santorum,
in vita Sandi Thomæ Aquinatis cap .
7. in Notis Litera H.
2 Na Provincia de Heſpanha , o
V.P. Fr. Martinho Eſcola . Nao ſó teve
eſte inſigne Religioſo a conſolaçaõ de
Servir tambem de teſtemunha no pro
ceſſo da Canonizaçao do noflo Santo
Thomaz de Aquino , ſeraõde encon
trar lę no Convento de S. Maximino
ao tempo em que caminhava para Avi
nhaô , entao Corte Pontificia , e aon;
de aquelle tempo ſe cuidava com gran
de calor em adnumerar o meſmo Dou :
tor Angelico no Catalogo dos Santos ,
fallou ao Santo , dizendo- lhe : Bem
eſcreveſte de Mim , Thomaz , o que
efte bem affortunado Religioſo aſlim
atteſtou debaixo de juramento . Foi o
noſlo V. Fr. Martinho de muita pie.
dade , e Religiao ; e piamente enten :
demos que pelas ſuas grandes virtus
des eſta gozando ', e gozará de Deos
por toda a eternidade. Vivia pelo an
no de 1330. = Aita Sanctor. ibid.cap .
9.1.13.
3 Na Provincia de S. Joao Bau
tifla , no grande Reyno do Perù , o V.
P. Fr. Franciſco Urtiz . Foi ette Va
raõ de Deos infigne em virtudes,e
morreo da morte precioſa dos Eſco
Jhidos no anno do Senhor de 1581 .
Melend, t. 1. pag . 534 .
4 Na meſma Provincia o V. P. Fr.
Franciſco . Coronel . Forao tao diſtin :
ctos os merecimentos deſte bom Re
ligioſo , que com geral fatisfaçaõ foi
eleito , e conftituido Vigario nacio
nal do diſtricto de Cuſco . Encheo ef
te lugar com tao bellas qualidades,
que ſe moſtrou crédor de outros ma
iores ; e ſendotao benemerito , a ſua
humildade o fazia ter- ſe em conta do
mais indigno . Paſſou a lograr.ſe do
eterno premio das ſuas virsudes no
anno do Senhor de 1588. - Melend..
tom . I. pag.534 .
D 6.de
 AVEIS PADRE
S
26 VIDA DOS VENER 6 de Julho.

$ 6. de Julho. tanto as denigravaõ , e opprimiaõ .

Vida dos VV . Padres 3 Attenta nao menos a Santa Sé
Fr. F R A N CISCO Apoftolica aos muitos , e bons ſervi
ços dos noſos dous grandes Servos de
DE CAMERINO,
E Deos , premiou a Fr. Franciſco Came
Fr. RICARDO rino , cieando-o primeiro Biſpo da Ca

DE INGLATERRA , thedral de Veſpre , povoaçao muice ;

Extrahida de Vadingus ad annum lebrada , e opulenta na Tartarîa , eri

1333. n . 6. gida de baixo do nome , e tutela do

Principe das Jerarchias Angelicas S.
I Orao eſtes dous Religioſos fi- Miguel ; e a Fr. Ricardo de Inglater.

F lhos muito illuſtres do eſpiri- ra , fello tambem primeiro Biipo de

to de nello Santiſlimo Patriarca Do-
mingos , cujo habito ennobrecêraõ ,
e acreditára o com huma vida muito
fanta , e muito digna de ſervir de
exemplar aos amantes da ſua maior
perfeiçao. Como fieis operarios davi-
nha do Senhor trabalhárað muito em
aggregar ao gremio da Igreja muitos
Ciſmaticos , e Gentios Orientaes ;
vendo a muita neceſſidade que tinha
a cultura daquella Teara de maior ny-
mero de Obreiros Evangelicos, paf-
darao a Roma a informar o Vigario de
Certona , Igreja que ſe conſagrou ao
nome, e recordaçao de S. Clemente .
Correſpondêrao inteiramente os dous
bons Religioſos ao projeto, e mente
do Pontifice , vigiando attenta , ein
ceſſantemente pelo rebanbo que lhes
fora conſignado ; e cheios de apnos ,
trabalhos , e merecimentos pallarað
e do mundo para o Ceo , recebendo
aquella Coroa , que lhes tecerao as
flores das ſuas virtudes lempre fra
grantes, e immarceſciveis.Entende.ſe
que viviaõ no anno do Senhor de 13 33 .

Chriſto , que era naquelle tempo Joað

XXII. RECOPIL A C , A M
2. Inteira do eſte grande Pons
de 6. Julho
tifice do grande fruto , que eſteshons
Religioſos haviaõ feito naquellas par
informe de Metz
E M Tul.,A ocaV.P. Conon
, nao menos que peloſeu
tes, :, Fr.co
ridade m que
pelo teſtemunho de outras peſloas mui
authorizadas , e attendiveis , eſcrevéo eſte eminente Religioſo attendia a
huma attenciofiffima carta ao nofloconſolaçao dos pobres , enfermos , e
Reverendiſſimo Géral Fr. Hugo de affigidos, foi verdadeiramente admi
Vanſſeman , e ao Definitorio do Ca- ravel ; e como tal he recõmendado por
.
pitulo , que entao ſe celebrava em Bor- ella o Servo de Deos em hum elegan
gonha na Cidade de Dijon , honran te diſtico Latino , que ſe abrio por
do aos meſnios Capic ulares com o epi. epitafio na ſua ſepultura. Foi tað recta
teto de cochas , ou luminares , que da- mente verdadeiro , que havendo hūas
vað luz ao mundo , incluindo em ſi a differenças entre os Parocos daquella
doutrina , e as palavras davida , e per. Cidade , e os noſſos Religioſos ſobre
ſuadindo - os a eleger hum numero ar a partilha dos rendimentos funeraes ,
rezoado , e competente de Religio- ainda
por ſer iſto a tempo , em que
ſos doutos , férvidos, ebem morige . nao eſtava decidido eſte ponto , co
rados , que , á imitaçao dos noflos Ve. mo hoje eſtá Canonicamente , ostbel
peraveis Padres Fr. Franciſco , e Fr. mos Curas de almas elegeraó por af.
Ricardo,paſſaflem quanto antes aquels bitro deſtas contendas ao V. P. , pro
las diſtantiſſimas regioens a dar a co mettendo que eſtaria o ſem a menor
nhecer o Nome de Chriſto ; e extir. replica pela ſua reſoluçao. Sendo taó
par dellas os Ciſmas , eidolatrias , quę fiel aos homens, nao o foi menos :
Deos ;
 VIDA DOS BEMAVENTURADOS MARTYRES 7 de Julho 27

Deos ; e paſſou a receber a coroa deſuas

virtudes no anno de 1314. = An. Dom .
7. de Julho.
2
Em Poilly , o V. P. Fr. Andre
Vida dos VV.MM. do Senhor
Piconis . Servio vinte e cinco annos

de Sacriſtao da Caſa , em que morreo. Fr. JOAM MALDONADO

Empregou -ſe com lūma utilidade do DE S. PEDRO MARTYR ,
teu proximo no Confeſſionario ; e foi Fr. PEDRO DE LA BASTIDE
hum dos mais excellentes Organiſtas
DE JESUS,
que houve no teu tempo : Porém , o
que mais era, a ninguem cedia nas Fr. JORGE DA MOTA ,
bellas qualidades de que deve ſer or PORTUGUEZ ,
nado hum perfeito Religioſo . Do mo
do que a ſua vida foi exemplar, e juf- Extrabida da Hiſtoria das Filippia
tificada , foi fanta , e precioſa a ſua nas, livr. 1. l. 52. e de Fr. Luiz
morte diante de Deos , e dos homēs, de Souza 3.p.1.5.6.7 .
conſumando tao felizmente a ſua care

reira no anno do Senhor de 1476. Pe I Veneravel Padre Fr. Joao

la particular devoçao que ſe tinha com Maldonado de S. Pedro

elle ſe lhe dêo hum ſepulchro mais dif.
tincto , em que eſtá figurado depedra
o ſeu corpo , aſſim como de alguma
forte o ſeu animo em huma doutiſſi-
ma inſcripcao , em que ſe expendem
algumas das ſuas fingulares virtudes
Memor.de Poiſy.
Martyr naſcêo em Alcalá , e foi filho
de progenitores muito honrados , e
bem viſtos da fortuna. Mandarao.no
eſtes para a Univerſidade de Salaman
ca a fim , de que ſe applicafle aos eſtu .
dos do Direito Canonico ; mas como
a ſua propenfaó era mais inclinada ás

3 Em Alifo , Cidade Napolitana, Theologias, determinou entrar aon .

o Veneravel , e Illuſtriſſimo D. Fr.
Antonio Marreſi, digniſſimo Biſpo
da Cathedral daquella povoaçao . Foi
promovido e Servo de Deos a eſta
dignidade Paſtoral pelo Sūmo Ponti.
fice Calixto Ill . , e moſtrou -fetao dig-
no aſſim deſta , como de outras
maiores Prelazias , 4 jamais ſe lhe no-
tou acçao , ou procedimento, que nao
fofle medido , e comedido com igual
fantidade , que prudencia . Fez mui .
tas obras , em que deixou indelevel , e
perduravel o ſeu nome , e reparou a lua
Cathedral , queja de muito velha amea.
de nao ſomente ſe delle á ſua eſpecu
laçao , mas juntamente a acompanhaſ
fe com a pratica das virtudes ; e re
folvido a pôr em execuçao eſte feu
penſamento , logo eſcolhếo a noſſa Or
dem para deſempenho dos ſeus bons
propoſitos. Partio para Valhadolid , e
alli vertio o noſſo habito no Conven
to de S. Paulo . Fez o ſeu Noviciado
com as maiores demonſtraçoens de
fervor , exemplo , e mortificaçao ;
e preparou -ſe para ſer profeſſo ornado
de tantas virtudes , quantos haviaõ ſi:
do os ardentiſſimos deſejos , com que

çava vir ao chao . No anno de 1475.)he
concedêo o noſſo Reverendiſſimo Gé-
ral , Fr . Conrado Aftenſis , que pudeſle
eſcolher muito á ſua ſatisfaçao dousRe.
ligioſos da 'Ordem para ſeus Confeſſo:
res, eCoadjutores : finalmente depois
de haver governado fantamente a ſua
Igreja , foi chamado para o deſcanço
de huma glorioſa eternidade no apno
do Senhor de 1483. Sen o Fontan. in
Theatr. pag. 122 .
TOM. YII.
ſempre ſuſpirára por eſte dia. Era in
ceffante na Oraçao ; abſtinentiſſimo
nos jejuns , e nas vigilias inimitavel.
Eftas , e outras muitas aſſombroſas
auſteridades o reduziraõ a eſtado, ſen
do ainda muito moço , que em atten
çaõ de taõ rigorolos effeitos, e ſymp
tomas , foi diſpenſado o Servo de Deos
aſſim do Coro ,comoda abſtinēcia ordi
naria .
2 O grande eſpirito de penitencia
D ii do
28 VIDA DOS BEMAVENTURADOS MARTYRES7de Julho .
do V. P. nað ſe acomodou com iſto ;
e envergonhando -ſe muito deſte in-
dulto em huma idade tao florente ,
reſolveo -ſe a ſeguir o ſeu primeirorie
gor , deixando o mais á Providencia
de Deos , e confiando neſte Senhor ,
que lhe podia dar forças, e boa diſpo-
ſiçaõ para nao declinar do genero de
vida que abraçára por ſeu amor. Im-
plorou para iſto o patrocinio de MARIA
Santiſſima, e de noſſo Santo Patriar-
ca ; e fahindo da enfermaria , tornou
logo ás ſuas coſtumadas mortificaçoēs,
o que foi tanto do agrado Divino , que
dentro de poucos tempos le achou ref.
tituido de vigor , e alentos para ſe
guir , e proſeguir com paſſos de gigan-
te a carreira que principiára com tan
tos brios . Com eſte favor ſe achou
mais empenhado o Servo de Deos pa-
ta continuar mais férvido , e infatiga-
vel nos ſeus progreſſos , moſtrando ſe
mais eſcrupuloſo , e rigido nos ſeus
fantos exercicios. No meyo delles ,
nao perdia de viſta o ſeu eſtudo , que
foi tao abençoado do Pay das luzes , a
em attençaõ das ſuas grandes letras ,
e muito mais dos ſeus exemplariſſimos
costumes , o fizerað paſſar primeira .
mente para Collegial do Collegio de
S. Gregorio , e conſequentemente foi
promovido a Meſtre em Artes do ſeu
Convento de S. Paulo .
3. Todas as eſperanças ,que ſe con
ceberaõ do noſſo Fr. Joað , ſe virao
correſpondidas muito mais altamente
do que forao imaginadas; mas eſtava
elle tao longe de entrar por iſto em
vangloria , ou deſvanecimento , que
pedio a outro Religioſo , tambem de
pouca idade mas de grande virtude ,
que quizeſſe ſer como ſeu Meſtre , e
Prelado; porque elle em tudo ſe lhe
queria ſujeitar, ſem lahir em ccuſa
alguma do ſeu magiſterio , e precei-
tos: e feita eſta convençao deſte mo
do , aſſim como o dille , o executou
fideliſſimamente. Amava a Deos com
huma intenſao tao forte , que nao ſe
chegava a outra converſaçao mais do
que á das peſſoas , que mais ſe deixa-
vaõ inflámar deſte celeſtial amor , e
que mais depreſſa lhe podiao atear el
te Divino incendio. Em tal ſituaçao
eſtava o noſſo V. P.quando o noffo V.
Fr.Joao Chryfoftomo chegou ao Con
vento de S. Paulo de Valhadolid a buf
car alguns Operarios Evangelicos , que
eſpontaneamente quizeflem paſſar a
trabalhar na nova ſeara do Senhor das
Filippinas . Hum dos primeiros deſtes
cultores, que mais generoſamente ſe
offereceraõ, foi onoſſo Fr. Joao Mal :
donado , e niſto ſe moſtrou elle tao
cuidadoſo , que logo começou a cui
dar em prevenir - ſe .
4 Ao tempo , em que hia paſſan
do por huma rua daquella povoaçao
com outro Religioſo , que aſſim co .
mo elle havia de tambem embarcar
naquella meſma expediçao , lucedêo
encontrar-le com hum Eccleſiaſtico ,
Doutor , e Conego daquella Sé , por
ſobrenome Bobadilha , ſujeito bem
opinado , e tido por homem de muita
virtude; e olhando eſte para o noſſo
Fr. Joao , lhe diſſe : Tenho huma grá
de confiança em poſſo Senhor , de que
V. P. , e ſeu companheiro , amboshaõ
de morrer Martyres . Eſta predicçao,
quanto á parte que nao dizia reſpeito
ao noſſo Servo de Deos , naõ cahia ſo .
bre aquelle companheiro , que elle en
tao levava comfigo , ainda que aliàs
eſtiveſſe , como já diſſemos, para em
barcar tambem para as Filippinas ; cad
hia ſim ſobre o V. Martyr do Senhor
o noflo Fr. Pedro de la Baſtide de
Jesus , que depois ſe aggregou com Fr.
Joao , e foi conſocio , e participante
do Caliz do ſeu glorioſo martyrio ,co
mo logo diremos; e eſta eſpecificaçao
fez o meſmo Bobadilha a Fr. Joao de
Ormaça , que entao hia cambem com
eſtes Padres. Comoannuncio daquel .
la dignidade, concordou tambem o
varicinio de outra Religioſa , que eſ
tava igualmente na boa opiniaõ de
grande Serva de Deos ; porque ſendo
ſabedora do projecto do noſſo Fr.Joao,
lhe mandou dizer , que viſle como ſe
aparelhava ; porque nao fahia para fó .
ra
 VIDA DOS BEMAVENTURADOS MARTYRES7de Julho.
1a de Heſpanha a menos fim , do que
a ler martyrizado em teſtemunho, e
confirmaçao das verdades celeſtiaes ,
com que hia illuſtrar aquellas remotiſ.
fimas regioens . Eftes ditos conteſtados
por duas peſſoasdifferentes , e tað ve
neradas , forao artendidos pelo noſſo
V. Fr. Joao com tanto reſpeito , ere
figoaçao , que aflentou comſigo tro .
car , como trocou , dalli em dianteo
appellido de Maldonado pelo deS. Pe-
dro Martyr , tomando por ſeu prore-
ctor , e exemplar a eſte eſclarecido
ſoldado de Chriſto .
5 Eſa foi tambem a cauſa , porque
em todas as occaſioens, em que ſe tra .
tava de expedir alguma Miſlao para as
terras dos infieis , era Fr. Joao de S.
Pedro Martyr oprimeiro , que ſe apre-
ſentava aos Superiores para ſer hum
dos eleitos : e ao meſmo tempo , em
que outros esfriavao na conſideraçao
de quaeſquer inconvenientes , que ſe
oppunhao , entaðaccendia , e affervo .
rava elle muito mais , foſſem quaes fof- ' palpitavao naquelle tao Apoſtolico , e
ſem as difficuldades , e os perigos dos
caminhos . Era humildiſſimo o Servo
de Deos ; e naõ havia trabalho na Cõ .
munidade , que foſe tao baixo , ou
importuno , em que elle ſe naõ empre-
gaile com tanto goſto , como diligen-
cia , ſabendo bem que tanto melhor
ſe diſpunha para a exaltaçao da Coroa
do martyrio , quanto mais ſe exerci-
tava nos actos de huma ſincéra , eaba-
ridiflima humildade . Na obediencia
foi tað notavel , que o noſlo V.P. Fr.
Joao de Castro , Fundador daProvin-
cia do Santo Roſario das Filippinas, e
que nella foiVigario Géral , e Prior ,
ſervindo por tres vezes diverſas de
Provincial , tendo tantos ſubditos de
eminentes qualidades , affirmava que
jamais havia encontrado Religioſo tao
obediente como Fr. Joao ; porque
obedecia ( dizia elle ) como ſejámui :
to antes houveſſeaddivinhado a vonta-
de dos Prelados. Era tað mortificado
no comer , que parecia haver perdido
inteiramente o goſto ; e era tað reca.
tado ao meſmo tempo , que ninguem
29
atribuîa iſto la mortificaçao , ſenao a
principio natural , ou ordinario . Dan
qui naſcia o abfter - ſe inteiramente de
guizados , e até do meſmo ſal, por
muito inſulſos , e deſengraçados , que
foſſem os comeres.
6 Chegado a Manilha , alli ſe de
teve por tempo de hum anno , e no
ſeguinte foi expedido por Vigario Gé
ral de hum povo de Pangaſinau , aon
de eraõ mui preciſos os Miniſtros
Evangelicos , e aonde outroſim nao
podiao deixar de incorrer em grande
perigo de vida pelas revoluçoens , e
motins,que a cada palloinfurgiaõ con
tra os Operarios do Senhor , que en
travao naquellas terras , conhecendo
bem os Indios quanto etteingreflo era
oppoſto aos ſeus vicios , e brutalida
des . Emprendeo o demonio metter
medo ao Servo de Deos , repreſentan .
do -lhe os atrociſſimos exceſſos deſtes
barbaros ; mas nada foi baſtante para
esfriar os incendidiflimos ardores, que
invencivel peito . Depois de haver alli
trabalhado com o zelo , que promettiað
as bem fundadas eſperanças que nelle
fe puzeraõ , foi chamado pela obedien :
cia para ir a Batan ; para o que apren
deo a lingua da terra com igual bre 1
vidade , que aptidao . Do meſmo mo
do ſe inſtruîo ' tambem do idioma ,
que lhe era neceſſario faber para en
tender-ſe com os Chinas Catholicos ,
de cujo governo eſpiritual foi encar .
regado o Servo de Deos , com a occa
fiao de paſſar Fr. Joao Cobo , da Ma .
milha ao Japao com titulo de Embai
xador . Efte dialecto he difficultofiffi
mo ; porém aquelle intenſiflimo fer
vor com que o Servo de Deos tanto
attendia á maior gloria de Deos , e ao
aproveitamento dos ſeus proximos ,
tudo lhe facilitou ſummamente , de
modo que apenas havia quem ſe lhe
pudelle comparar quanto á copia das
frazes, termos , e expreſſoens, com
que ſe applicava .
7 O amor com que tratava a eſtes
ſeus Neophycos , g lhe foraõ conſigna
dos
30 VIDA DOS BEMAVENTURADOS MARTYRES 7 de Julho,
dos , era de tal modo , que elles meſ
mos o eſcolherao por seu advogado ,
officio que o Servo de Deos nao recu .
fou , aſſim por condeſcender com os
impulſos da ſua grande caridade , co
mo porque , tendo aſſim mais ſujeitos
aquelles teus dirigidos , pudeſſe guial.
los mais efficaz , e imperiolamente pe-
lo caminho da Salvação .
O Provincial
Fr. Affonſo Ximenes , havendo de ir
de Miðað a Camboia , em condeſcen-
dencia das inſtancias do Rey da quel
las partes , que aſſim lho pedia , nao
achou companheiro tanto a propoſito
para eſta expediçao como o noſlo V.
Padre ; e a eſte fim o conſtiruio ſeu
Vigario Geral . Masagrande humilda
de do Servo de Deos foi tao induſtrio-
ſa , que achou meio de fugir com os
hombros a eſte lugar , e de transferil.
lo em Fr. Joao de Ormaça , ou de San-
to Thomaz , ſeu antigo Collega. O
Capitulo Provincial, attento aos ſeus
illuſtres merecimentos , o promoveo a
Leitor de Theologia ; e nao menos
attento o Tribunal do Santo Officio
de Mexico , o inſtituio por Commiſ.
ſario Géral daquella Inquiſiçao , care
go a que o bom Padre correſpondeo
fideliſſimamente á imitaçao do Santo
Inquiſidor , com cujo nome ſe enno-
brecia , e de que tao digno ſemoftra-
ya . Mas reputando - ſe muito ao con .
trario pelo mais indigno , nao foce.
gou em quanto nao conſeguio que eſ-
te officio foſſe dado a Fr. Bernardó
de Santa Catharina . Do meſmo mo-
do eſcapou quando ſe fallava muito na
fua promoção ao Priorado de Mani-
lha , ao tempo em que foi neceflario
que o Prior actual Fr. Diogo de Soria
paſſaſſe a Heſpanha como Procurador
da ſua Provincia.
8 D. Luiz Peres de Mariohas con
cfbeo huma tal opiniao do Servo de
Deos , que o eſcolheo para ſeu Con-
feſſor ; e eſtava tao crente na ſua bõa ,
que nenhuma couſa ſe atrevia a exe-
cutar ſem oleu conſelho , e direcçao ;
e iſto em tanto extremo , que ſendo
The commettido hum grande governo,
jamais quiz aceitallo , em quanto nað
vio que o V. P. era do meſmo acor.
do. ' Eftando já governando , nao foi
pouco o que teve Fr. Joao que tentir;
porque como le ſabia a obediencia , e
ſujeiçao com que D. Luiz ſe lhe havia
ſubordinado,todos os pretēdentes, que
nað ſabiao bem das ſuas dependencias ,
ſe queixavao do Varað de Deos , en
tendendo ſer elle o que os deſviava do
favor ; mas elle , fazendo - ſe ſurdo a ef
cas yozes , nao attendia a outra couza
ſenao ao maior bem do ſeu eſpirito , e
de ſeu confeflado. Pudera haver ſu
bido a muitas outras honras o Servo
de Deos , que elle atalhou , e ſupprimio
com igual prudencia , que cautéla ; 1
mas ifto meſmo era o que redundava
em ſua maior gloria , fugir das digni
dades aquelle meſmo que tað bene
rita , e altamente as merecia. Nao
comprovou menos a ſua humildade , I
como tambem a ſua grande caridade d
o que lhe ſucedêo com Fr. Joao de S.
Thomaz . Achando -ſe indiſpoſto eſte
Religioſo , e indo de jornada com o
noflo V. P. chegarao ahum rio , que
preciſamente ſe havia de vadear : en
tao ſe deſcalçou o Varao do Ceo , e
tomando o companheiro ás ſuas coſ.
tas , o pôs a ſalvo , e a pé enxuto da ou
tra banda .
9 Exercendo o Servo de Deos na
Manilha osReligioſosempregos a que
a obediencia o deſtinara , pedio o Go.
vernador da terra , D. Franciſco Tel .
lo , aos noſſos Padres que lhe config
naſlem dous para ſe expedirem a Cam
bóia a prégar o Evangelho, porque o
Rei daquelles dominios lhe pedia ef
tes Miſſionarios; e com muita eſpe
cialidade da noſa Ordem . Haviao fi:
do mandados poucos tempos antes
dous Religioſos ; mas correndo nau .
fragio as embarcaçoens em que elles
paſſarað , e nao havendo ainda noticia
do ſucceſſo dos navegantes , tornava
agora o Governador a repetir aquella
meſma diligencia. Cahio ao prezente
a ſorte no noſſo Fr. Joao ; e poſto que
houve quem quizeſle embaraçar a re
folu
 VIDA DOS BEMAVENTURADOS MARTYRES 7 de Julho. 31
foluçao em ordem a que elle paſſaſſe
rá China, porſaber , comoja diſlemos,
perfeitiflimamente a lingua do paíz ,
em huma occaſiao em que fe diſcorria
Sobre isto , diſſe o Servo de Deos , to-
do banhado em huma fanca alegria:
Mande -me a fanta obediencia para
qualquer parte que ſeja , que o que
eu tenbo por certo he , que vou morrer
a efia Miſao.Tambem naõfaltou quem
emprendeſſe difluadillo , argumentan-
do-lhe com a pequenhez da embarca,
çao , e com o tragico exemplo das
que ſahiraõ aptecedentemëte.ifo ( ref
pondeo elle reſolutiſſimamēre ) nao me
toca , lá ſe avenhaõ as peſoas que de-
vem ter cuidado neſsas couzas , que
quanto a mim eſtou promptopara meto
ter, me em huma canoa -fe alim me for
mandado.
10 Foi agora o ditoſo companhei-
ro do noſſo Fr. Joao , o V. P. Fr. Pe
dro de la Baſtide de Jesus , e digno
pela fua muita virtude , e piedade de
ser empregado em huma tao illuſtre , e
cao glorioſa Miſſao. Tocava eftein
ligne Religioſo a Provincia de Ara-
gao; e dentro de hum anno , que ſó
teve de aſſistencia nas Filippinas, e
em que tambem paſſou a Millionar em
Batan , dêo grandes moſtras da inten
ſao , e actividade do ſeu Zelo . Sendo
preſentemente deſtinado para viajar a
Camboia , abraçou eſta eleiçao com
fumma alegria, diſpondo-ſe para ſa .
hirem da Manilha , com muita Ora .
çaõ , e com muitas outras obras me-
ritorias. Chegada a occaſiao , embar-
carao ambos, e aportarao dentro de
mui pouco tempo na grande ribeira de
Camboja. Logo que osnoſſos Padres
fahirao para terra , quizeraõ cuidar em
correſponder aos dous fins principaes ,
que alli os haviaõ trazido ; e vinhaõ a
ſer , a prégaçao do Evangelho , e o bem
temporal das Filippinas , de que vi-
nhaò tambem encarregados . Éra já
morto a eſte tempo o Rey , que pedi-
ra os noſos Miſſionarios ; e ſeu filho,
e fucceffor , que entao empunhava o
Ceptro , nao 'ettava de acordo em fe .
guir peſta parte os intentos deſeu pay;
o que bem le vio , quando o noilo V.
Fr. Joao de S..Pedro Martyr lhe fåla
lou no quarto dia pofterior á ſua che
gada ; porque pofto que foi recebido
com muitas moftras apparentes de be
nevolencia , iſto nao obſtante, o pre
ſente com que correſpondeo an que
le lhe mandara da Manilha , era tað
deſigual, por nao dizer táõ ridicu
lo , que ficava ſendo bem notoria a
deſettimaçao que aquelle Principe
fazia daquella Enviarura .
II Quando os noſſos Religioſos
virao as couſas tao malparadas, e que
as eſperanças de ſe poderem alli oc
cupar utilmente , eraõ tao poucas , ou
nenhumas , pediraõ licença para ſe tor
narem á ſua embarcaçao ; mas nem eſa
ta lha quizeraõ dar , coroando eſta re .
pulſa com alguns pretextos politicos.
Nao ſe dando por leguros os Venera
veis Padres , paſſaraó para o porto ,
ſuppondo que lempre alli ficariao em
melhor eſtado de defenſa , no caſo de
haver alguma ſublevaçao de que ſe te
miao , e nao ſem fundamento , que
comobem diſſe o noſſo Poeta : O co
raçaõprejago nunca mente. Chegan .
do á praça , metteram -ſe em humabar
ca , e já todos os Caftelhanos eſtavað
timidos , e receoſos de alguma trai :
çao por algumas conje uras que ha
viao obfervado, e em que agora ſe
confirmarao , vendo que vinhaõ con
tra elles com maðarmada alguns Ma:
hometanos , que eſteserao os que buſ.
cavaõ a ſua deſtruiçaõ , mais certamen
te do que os Portuguezes, aquem ſem
fundamento provavel attribue certo
Eſcritor a rejeiçao que fez aquelle
Principe dos Embajxadores da Mani:
lha , por ſerem os meſmos Agarenosos
mais empenhados na expulſaõ dos Car
telhanos , e que , fem embargo de nað
ferem naturaes , por ſerem mais deſtros
que elles nas evoluçoensda guerra , le
offerecerao agora a combateraquellas
embarcaçoens .
I2 Cabio algum fogo ,do que dei .
tayaó aquelles perfidos, na barca dos
noſios
32 VIDA DOS BEMAVENTURADOS MARTYRES 7 de Julho.
noſſos Padres ; e como eſta começou
a arder , toda a genre ſe deitou a na
do , menos o V. P. Fr. Pedro , que,
por nao ſaber nadar , ſahio pela poppa ,
e alli ſe deixou eſtar apegado ao leme;
porèm ſendo viſto daquella canalha de
Mafoma, nao tardou ella muito em
vir ſobre elle ; e tantos forao os gol-
pes, com que o atraveſſaraó , que logo
cahio morto na agua , ſubindo o ſeu
eſpirito a receber no Capi olio da Bē .
aventurança a laurea do ſeu glo- ' tratarao delle particular
rioſo martyrio. O noſſo V. Fr. Joao
de S. Pedro Martyr foi nadando a ga-
nhar huma pequena fragata Caſtelha.
na , que estava perto , e eſtava apon-
to de partir para Siao . Chegou a ella
o Padre ; mas nao tanto a leu ſalvo ,
que nao foſſe offendido ( ainda que nao
mortalmente, porque ainda nao era
chegada a ſua hora ) pelas guélas com
huma bala, que lhe paflou de eſguelha .
Sahirao daquelle infando , e barbaro
porto ; e poſto que tiverao huma via .
gem muito favoravel, tambem tive-
raó o deſconto de ſe metter emperigo
mais formidavel; porque era, como a
Fr. Joao contou Fr. Jorge da Motra ,
Religiofo Portuguez da noſla Ordem ,
que alli ſe achava o Rey de Siao tao
truculento , e deshumano, que por
qualquer leve cauſa nenhum re
paro fazia em deitar cem homens , e
mais aos Elefantes , tendo por grande
divertimento vellos deſpedaçados dos
dentes daquellas féras ; e nao bavia
muitos dias, que , por hum bem venial
motivo , havia mandado frigir em azei-
te quatro Portuguezes , e ao meſmo
tempo a tanazallos de modo , que ſe
lhe arrancaffem grandes pedaços de
carne , que elle mandava chegar á bo
ca dos meſmos pobres atormentados,
como tendo muito gosto de que , ao
meſmo tempo, que erao pacientes,
ſe moftraſſem impacientiſſimos, mor:
dendo com o exceſlo das dores aquel .
Jes fragmentos dos ſeus meſmos cor
pos . Deſta execranda barbaridade uſa:
va 'elle até com os meſmos innocentes ,
quando nao bavia quem , ſequer appa-
rentemente, eſtiveſſe culpado.
13. Eſtas foraõ as boas vindas , com
que Fr. Joao foi recebido ; masantes
que paflemos adiante , daremos aqui
huma ſummaria noticia deſte noſſo
Religioſo Portuguez , em que iremos
ſeguindo ao noſſo doutiſlimo Chro
niſta deſta Provincia Fr. Luiz de Sou .
zá , menos em alguns incidentes . em
que aſſentiremos com outros Hiſto:
riadores noſſos, que , ao que parece,
com melho
res fundamentos . O V.P. Fr. Jorge da
Motta foi mandado ao Reino de Cam
bóia a prégar a FédeJesus Chrifloem
companhia de Fr. Luiz da Fonſeca, de
quem ja fica feita mençaõ a 20. de
Março,no primeiro Tomo deſte Agio
logio , e ambos forao tratados do Rey
daquelle paîz com muita benevolen
cia , e generoſidade. Por eſte tempo
ſe armou contra elle o de Siao como
chimérico pretexto de que ſe deſe E
fatisfaçaõ a algumas oftenfas, de que C
teus Vaſſallos le davao por queixofos:
iſo dizia elle por dar alguma cor aos
ſeus damnados intentos ,que nað eraõ
outros mais que uſurpar , e tyrannizar
as terras daquelle Principe , o que tu
do depois aſſim ſe vio clariſſimamen
te ; porque havendo -ſe levantado com
a Cidade de Angor, capital daquelles
Eftados, ſe fez acclamar Rey de Cam
bóia . Entre os Camboianos cativos ;
foraõ tambem contados Fr. Luiz da
Fonſeca , e Fr. Jorge daMotta , e tra
zidos como taes a Siao . Nao ha para
que gaſtar tempo em referir as cruel.
dades, e máos tratamentos, com que
eſtes bons Religioſos forao opprimi
dos daquelles barbaros, ſabendomui
to bem a liſonja que faziaõ niſto a ſeu
impio Soberano .
14 Era o V. P. Fr. Jorge dota
do de huma prelença mui reſpeitofa ,
e de huma facundia muito perſuaſiva;
e ainda ſem efta ſe podia reſolver ao
que le reſolveo , a fallar a EIRey , e
eſtranhar - lhe , e affear -lhe os duriffi
mos exceſſos, com que fazia tað vio
lentas injurias á natureza , e ao meſa
mo
 VIDA DOS BEMAVENTURADOS MARTYRES 7 de Julho.
mo Ceo , fundado na promeſa, que
fez Chrifto Senhor noſto a ſeus Mi-
niftros , quando os animou a fallar
diante dos Potentados da terra ſem
fazer algum eſtudo para iſſo , aſſegu-
raodo -lhes que ſeria com elles , e lhes
inspiraria taes razoens , que ninguem
as pudelle replicar , ou contravir. Pol-
to em fim o noſſo Fr. Jorge na pre .
ſença daquella furentiſſimo Principe,
lhe repreſentou com huma conſtancia,
digna verdadeiramente de hum Va-
rao Apoſtolico , qual elle era : Quea
meſma Divina Mageftade, que o con-
Nituira ſenhor de tancos estados, cinha
tambem poder para tornar-lhos a tirar,
e dallos a ſeus inimigos , por ſer mui
proprio da tua grandeza abater os
foberbos , e exaltar os humildes ; por
tanto , que nao abuzaſſe mais do ſoffri-
mento Divino, le aſſim como experi-
mentava os favores temporaes do Se
ahor , nao queria tambem conhecer
quanto eraõ ſevéros os ſeus caſtigos :
Que nao podia deixar o Ceo de offen-
der -ſe á viſta da tyrannica deshuma-
nidade , com que elle maltratava os
ſeus ſub litos , e, o que era unais feio ,
e abominavel , os Miniftros do verda .
deiro culto , elle , e ſeu companhej.
ro : Que ſë queria que Deos o confer.
valle nas exaltaçnens, a qué oſublima-' Gentios , começáraó a uſar exterior
ra , e ainda tambem d'elevafle a ou . mente deſta inſignia . Começou com
tras maitas, mudaſſe de condiçao , e
de eltylo , deixando de fer odiofa fé-
ta , e ſendo, como devia , benefico pay,
e bemfeitor de todos aquelles que vi-
viao debaixo da ſua obediencia .
15 Difle ifto o bom Padre com
huma iniimativa tað efficaz , que ain :
da ſendo aquelle máo Rey o que era ,
nao rompeo agora em algum dos ſeus
coſtumados exceflos ; antes, como os
coraçoens dosReys eltaõ na Maó do
Senhor , de tal ſorte fe conteve o delo
te inexoravel Monarca , que moſtrou
goſtar grandemente deſta reſoluçao de
Fr.Jorge , de modo que nao fomen .
te quiz que elle , e Fr. Luiz , ambos
fe gozaſiem da fua liberdade , ſenao
tambem alguns Portuguezes, que alliſos,ja começava a dar grandes moſ
Tom . VJI
33
ſe achavaõ ; e creſcêo a tanto a eſtima,
que fez eſte barbaro de Fr. Jorge, que
o mandou por ſeu Embaixador a Ma
láca em ordem ao reigate de alguns
prizioneiros, que ſe achava o naquella
noſſa Praça . Vendo Fr. Jorge que as
couzas hiao tomando tao bom ſem .
blante , aftoutou -ſe a pedir permillao
a ette Rey para levantar alli huma Igre
ja , e poder prégar nos ſeus dominios
a doutrina do Santo Evangelho . Tu .
do lhe otorgou mui francamente ; e
em quanto Fr. Jorge partio para Ma.
láca, ficou Fr. Luiz promovendo a
cultura da Fé , procurando inftruir nos
ſeus principios, e myſterios aquella
vaſtiſſima Gentilidade .
16 Voltou Fr. Jorge da Motta , e
dêq tao: boa conta da ſua commiflao ,
que , dando -ſe ElRey por muito fatis
feito , The conferio novas regallas , e
entre ellas huma ſó permittida a peſ
foas Reaes , que he trazer hum cha
peo mui alto. Ainda que eſta diftin .
çao foſſe de tao pouco , ou nenhum
momento para os noſſos Religioſos,
com cudo, aſſim por nao parecer que
deſagradeciaõ , e deſprezavao a gray
ça , é boa vontade de ElRey , como
tambem por authorizar melhor a dou
trina Orthodoxa que annunciavao aos
eſte motivo o eſpirito de inveja , e
fediçaõ a inquietar os animos dos Sia
nezés , particularmente dos de maior
esfera , e graduaçao , que ſe davao por
mui ſentidos , e queixoſos de ver tað
preferidos , e avantajados em honras
huns homens eſtranhos, e deſconhe
cidos naquelle Reyno. Todas eftas ſuas
queixas forao tomando mais pé em ra
zao de alguns incidentes , que entao
aconteceraõ ; e juntando -fé cudo iſto
á natural inconſtancia de ElRey ,ſe foi
daqui levantando o grande incendio ,
que depois veio a reſultar em grande
damno eſpiritual, e temporalda plan
ta daquella nova Chriftandade, que
com o favor , que El Rey dava aos nor
tras
34 VIDA DOS BEMAVENTURADOS MARTYRES7 de Julho
tras de adiantamento , e fertilidade.
17 Succedeo travar - ſe huma bri-
ga na Cidade , e fahir della mal feri
do hum Soldado da Guarda Real , e
nao perdêrao occaſia ) os noſſos emu-
los deitando toda a culpa aos Portu-
guezes , e dizendo que iſto , e muito
mais podiao eſperar que a cada paſſo
lhes ſuccedefle ; porque, ſuppoito o
grande favor que ÉIRey fazia aos noſ-
los Religioſos, eſtava a noſſa gente
habilitada para fazer milhares de inſo-
lencias com o ſeguro de que no valle
mento dos noſſos Padres tinhao o
melhor ſeguro para nao ſerem puni-
dos , ou calligados. Tambem aconte
cêo que havendo bautizado o P. Fr.
Luiz da Fonſeca huma mulher de dif-
tinçao Japoneza , a tempo , em que
Seu marido eſtava auſente , quando el
te voltou , e ſoube o que pafiava; ſe
enfurecêo no maior extremo , e indo
logo em buſca do noſſo V. Fr. Luiz
acompanhado de outros da ſua facçao,
entrarao em huma Igreja, aonde o bom
Padre eſtava celebrando o Sacrolanto
Sacrificio da Mißa , e alli meſmo no
Altar o ferirao mortaliſſimamente. El .
tavao preſentes alguos Portuguezes ,
que ( ſegundo eſcreve Fr. Luiz de Sou-
za ) eſtavaõ aſſiſtindo á Paixao em ſex-
ta feira fanla , que foi o dia deſte fuc-
ceſſo , e relentidos da injuria, que le
acabava de fazer a ſua Divina Magef-
tade em ſeu Miniſtro , e nao menos á
naçao Portugueza , deraõ ſobre o ho-
micida , e alli deixarað muito bem
vingado o martyrio do V.P. Fr. Luiz
da Fonſeca , cozendo aquelle Gentio
ás eſtocadas. Daqui ſe ſuſcitáraõ infi-
nitas queixas contra os Portuguezes,
e muito eſpecialmente contra os noſ-
ſos Religioſos, clamando todos por
juſtiça , e vingança .
18. Quanto a eſtas couſas eſtava Fr.
Jorge innocentiſfimo ; e ſem embar.
go diſſo, e da bõa graça que tivera
com ElRey , bao quiz ette vêllo mais
diante de ſi , e era muito de temer ,
que quizeſſe quebrar nelle as ſuas,fu
rias , mandando-o frigir, como dille :
mos que coſtumava , e aſſim o fizera
ſe a Providencia nao deparaſſe agora
no porto de Siao aquella fragata da
Manilha. Referio miudamente o ca
ſo ao V. P. Fr. Joao de S. Pedro Mare
tyr , dizendo - lhe que fóra ſuſpenſo
por ordem de ElRey , que dem lhe
queria conſentir que Miffionafle ,nem
que fahiſſe dos teus dominios : Queel
ta meſma ſuſpenſao abrangia juntamē.
te aos mais Portuguezes , que alli ſe
achavao , que todos eſtavao te meroſos
de alguma cruentiffima carnificina, a
que a furia daquelle nequiſſimotyran
no os quizeſſe 1acrificar. Que ja fe ha
via tentado fugir a ella crueliſima fé
ra , ou demonio incarnado , mas que
eſta fugida ſe nao podia effeituar com
o bom ſucceflo que ſe deſejava ; alim
pelo perigo dos mares, que era ne . 1
ceſſario cortar , que alli ſao mais ind
dómitos , e ſujeitos a naufragios, co
mo pelas difficuldades, que havia pa .
ra ir por terra , que eraõ tantas, que fa
cilmente podiaõ ſer outra vez havidos
á mao ; o que ſeria accreſcentar novos
furores aquelle implacavel , e indig ,
piſlimo Reynante .
19 Tudo iſto referio Fr. Jorge , em
ordem a que o noſſo Fr. Joao interce .
deſſe com o Meſtre da fragata Caſte
Ihana paraque , compadecido do gran
de riſco em que elle , e os mais por
tuguezes eſtavaõ mertidos, os admittiſ.
ſe nella. Com effeito o Servo de Deos
aſſim o fez , e ſoube fazer tað bem as
noſſas partes, que negociou com Joao
de Mendonça , que aſſim ſe chamava
o Meſtre da embarcaçao , tudo quan :
to ſe pertendia , com tanto que tudo
iſto ſe effeituaſſe com todo o ſegredo .
O ajuſte foi, que depois que o Mel.
tre da fragata obtiveſle permiſo para
ſahir daquelle porto facal, ſe retiraria
com a ſua embarcaçað , e ficaria def:
pera de Fr. Jorge , e dos mais Portu .
guezesem certa paragem , aonde elles
o iriao buſcar. Eftes com o grande
deſejo que tinhaõ de fever quanto an :
tes affaftados daquelle infame, e cruen
tiſlimo palz , e parecendo -lhes as ho .
TAS
2
 VIDA DOS BEMAVENTURADOS MARTYRES , de Julho.
ras , como he tao ordinario em quem
eſpera , muito mais prolongadas , ſe
apreſſarað o mais que puderað , e fo .
raó apanhar a fragata dalli a dez le-
goas de Siao .
20 Quando pela manhaā conſtou
defta fugida, bramava aquelle taofan-
guinolento Monarca ; e mandou ſahir,
ſem a menor demora , tres embarca.
çoens armadas para lhe trazerem a ou
ira Castelhana. Nao tardou muito ,
que eſta fofle accommettida dos
Sianezes ; mas a noſſa gente ſe defen-
deo com tanto esforço , que poſto era
em numero deſigual, e com poucas
provizoens de guerra , com tudo fez
huma tal oppoſiçaõ aos inimigos , que
The fizerao experimentar, e bem á
ſua culta , os effeitos do ſeu ferro . Os
infieis faziao os ultimos extremos ,e mui
to mais conſiderádo as grádes ventagēs
q nos levavao do maior numero de em
barcaçoens, de armas , e de gente ;
e temendo outro ſim , que ſe nað en-
travao com eſta preza em Siao , ſecon-
verteriao contra elles as desbocadas
tyrannias do ſeu taó inſolenteMonar-
ca. Como porém os Caſtelhanos , e ſanta obediencia , e nao menos em ob
Portuguezes nao o temiao menos , pe-
lejavao nao como homens , ſenao
como deſeſperados. Paſſaraõ tres dias ,
e nem huns nem outros deſiſtiao do
combate : verdade ſeja , que eſtavao
ja taõ quebrantados os noſos , que mui
pouco lhes faltou para ſerem abalroa-
dos . Com tudo ,aſſiſtindo -lhes o favor
Divino , eſcaparaõ deſte grande pe
rigo , depois de haver feito huma no
tavel morfandade noscontrarios, que
morriao como moſquitos. Da noſſa
parte morreo hum Piloto ; o Capitao
recebeo algumas feridas mortaes , e
com effeito morreo dellas em chegan-
do a Malaca . O meſmo, e pelos mel.
mos termos, ſuccedeo tambem a Fr.
Jorge da Motta , de quem logo fallare
mos .
21 O noſlo V. Fr. Joao de S. Pe
dro Martyr ficou ſem hum braço , de-
pois de haver padecido muito , por
aao poder fer curado com a commo;
39
didade conveniente ; porque era tan
ta a noſſa penuria , que até faltavao
mantimentos ; porque na occaſiao do
combate foi precjio que ſe alijalle
tudo ao mar ; le preparou para mor
rer , chegando quaſi à viſta deCochin
china , confeſſando -ſe com Fr. Jorge
que tambem , como ja diſlemos, eita
va mal ferido , e pedindo - lhe que ef
creveſſe a Manilha , mencionando tu .
do o que havia paſſado. Advertia o
Servo de Deosaos Religioſos, que af
fim como as armas de Saulnao convi .
nhao ' a todos , aflım nem todos eraõ
adequados para o trabalho da conver
fao daquellas gentes; porõ quê houveſ.
ſe de colher , e recolher mais copioſo
fruto daquella ſeara, era neceſſario (di
zia elle ) que foſle muito fanto : pro
teſtava aceitar eſta morte naõ ſó com
reſignaçao nas altiſſimas diſpoſiçoens
de fua Divina Mageftade , ſenaố com
muito jubilo , e conſolaçao eſpiritual,
pela fazerem tao bella , o animo , e
diſpoſiçao , em que o achava de prégar
a doutrina da noſſa Santa Fé aos in
fieis ; e ler padecida em virtude da
ſequio da Caridade com que procura
va livrar das maos daquelle barbaro a
Fr. Jorge , e a ſeus ſócios, que por ſua
intervençaõ nao ſomente aſſegurarað
as vidas , ſenao ainda a ſalvaçao , que
muito poderia perigar , ſupporta a bru .
taliſfima ferocidade daquelle Rey Sia
nez .
22 Expirando finalmente entre
muitos actos de amor , e conformida
de , paſſou a coroar - ſe das palmas do
Paraižo no anno de 1599. A ſuamor
te foi muito fentida ,echorada de ſeus
companheiros , que, por obviarem que
o ſeu veneravel cadaver foſſe pal
to de peixes , o ſepultarao ao pé de hūa
arvore em hum Ilhéo chamado Pulo
catovan . Tambem foi cauſa de gran
des ſentimentos na Manilha , quando
lá chegáraõeſtas novas , e eſpecialmen
te entre os noſſos Padres , comoaquel
les que melhor ſabiao avaliar as ſuas
excellentes virtudes , e avivava - ſe - lhes
E ii mais
 L AC
PI
CO ho
36 RE , A M de de Jul .

mais eſta ſaudade ponderando o exe- Convento de Milho, e ; ou por humil

cutivo cumprimento das prediccoens
do Servo de Deos , e de outras Vene-
raveis peſoas , que tapto antes haviao
varicinado o ſeu martyrio .
23 O noſſo Veneravel Fr. Jorge ,
que ficou ſobrevivendo a Fr. Joao , te-
ve muitas occaſioens de merecer por
dade , ou por attender ao ſeu maior
focego, renunciára eſte governo : co •
mo porém ſeja bem ſabido , que os
mais dignos de ſervir os cargos, fao
aquelles que mais lhes fogem , foi pro:
movido ao Priorado da Cala, que te
mos em Caftres , e foi o Servo de Deos

eſte tempo, pela pouca opportunidade,
que alli havia para tratar da ſua cura
pela neceſlidade de viveres, que era
extrema, e mais que tudo pela falta
de companhia de hum Religioſo tao
benemerito ; poftoque era golpe a que
eſtava já mui costumado depois da
glorioſa morte do V. Fr. Luiz da Fon-
ieca. Chegando finalmente a Malaca,
alli no meimo anno acabou de conſil .
mar illuſtremente a lua vida , paſſan
do de mortal a glorioſo , eindo a acom
o quinto, que alli occupou aquella Pre
lazia . Frequentava muito a ſanta Ora.
çaõ , e nella foi ouvido muitas vezes
dar grandes , e abrazados ſuſpiros aco
panhados de groſſas, e copioſiſſimas
lagrimas . Foi abſtinentiſſimo , e de vi
da mui penitente ; e viveo ſempre de
modo , que morreo em grande opiniao
de faptidade no anno do Senhor de
1312. = Guido , in Prior. Caftr.
3. Em Metz , o V. P. Fr. Diogo
Curferri. Governou eſte grande Re

panhar no premio aquelles , de quem ligioſo muitos tempos a Caſa , que te

fóra ſocio no martyrio . mos naquella Cidade , com igual lan
tidade que prudencia.Foihum grande
RECOPIL A C , AM Theologo , e Prégador muito celebre ;
, que he mais ,
porém o vivêo ſempre
de 7. de Julho. tao virtuoſa , e ajuſtadamente, que
merecêo morrer da morte dos Santos.
M Limoges , o V.P.Fr. Flias A boa opiniao , que delle ſe tinha , deo
" E de Manhac. Florecêo muito cauſa e aſſumpto a hum diſticho La
dignamente eſte inſigne Religioſo no tino , que está gravado na ſua fepultu .
primeiro ſeculo de ouro da Ordem , ra , e vulgarmente ſôa deſte modo :
em que ella foi tað fecunda de ho

mens grandes ; e na verdade foi o Floreça , e refloreça Fr. Diogo

bom Padre hum dos ſeus mais eſpe- Com applauſos, e encomios inceſantes ,
cioſos ornamentos . Era natural de E aosnosos climas,ea's regioës diftātes
Nontron ; e foi muitos tempos Leitor Brilhe a ſua luz , e do ſeu Zelo o fogo.
do ſeu Convento . Ettava ſervindoac An . Domin .
tualmente de Sub - Prior , quando a
morte oaccommerceo , e fez grandes 4 Em Sezza , CidadeNapolitana,
inſtancias para ſer abſolvido deſte car o V. P. Fr. Vicente Nifo . Dotou a
go , nao querendo apparecer diante Mao liberaliſſima do Senhor a eſte feu
de Deos , ſenao como hum Fradera- grande Servo de huma eſpecioſiſſima
zo . Concedeo -ſe-lheifto ;e pelos bem preſença, e de huma eſtatura, e ſym
allombrados finaes da ſua morte , e metria de corporaõ elegante , que da .
nao menos pela regularidade da ſua va aconhecer quaſi expreſſamente no
vida , ſe crê piamente , que paſſoualo exterior qual fofle agraça, e formofu
grar - ſe da eterna poſle dos frutos dos ra do ſeu levantado eſpirito . Eſte na o
ſeus grandes meritos , pelos annos de fe diviſava menos na ſua valtiſſima, e
1286. Guido, monſtruoſa erudiçaõ , em que era tað
2 Em Caftres , o V. P. Fr. Rai- irmao do celebre , e tað allegado Fi
mundo Bletgeri. Fora elle Prior do loſofo , e Medico, Agoſtinho Nifo , co
mo
 FR . SILVESTRE DE
mo realmente o era por ſangue . Nao
ſó foi ſabio para com o mundo, ſenaô ,
o que he mais , com o meſmo Deos , vi
vendo tao ajuſtado com a ſua Ley , e
com as diſpoſiçoens da Regra de S.
Domingos , que em premio dos ſeus
alios merecimentos paſſou para a Pa
tria Celestial no fim do decimoquinto
ſeculo . = Vall.pag. 143 .
5 Na melma Cidade de Sezza do
Reino de Napoles , o Beato Fr. Dio
go . Foi eſte bemaventurado Religio-
1o nobiliſſimo por ſangue , por ſer da
preclariſſima familia dos Paulis ; po-
rèm foi fem comparaçao muito mais
illuſtre pelas ſuas excellentes virtudes.
No miniſterio do pulpito ſe diftinguia
com muita eminencia , e nao menos
na paciencia inalteravel , com que ſop-
portou grandes trabalhos , moleftias,
e contradiçoens, procurando o maior
eſplendor, e utilidade eſpiritual , e
temporal da Igreja Catholica, e o par-
ticular de notta Sagrada Religiao. Fi-
nalmente , depois de fazer huma vida
de Adjo , foi chamado para a compa-
nhia dos juftos no anno de 1362., e nao
faltou o Senhor em illuſtrar a memo-
ria deſte ſeu bom Servo com muitos,
e grandes prodigios , que ſe ſeguirao
á ſuamorte . = Vall. pag . 139 .
8. de Julho.
Vida do Religiofiffimo , e Cele .
berrimo Padre
Fr. SILVESTRE DE PRIERIO ,
Extrabida de Pio , 2. p.1.4.col. 140.
& 141. e de Fontana in Theatr .
pag. 443. & 510 .
Um dos mais preclaros or
' H namentos , nao fó da Ordem
Dominicana , mas de toda a Igreja Unió
verfal , foi ſem alguma duvida o noſſo
doutillimo , e virtuoſiſſimo Fr. Sil-
veſtre de Prierio . Era elle natural do
Piamontez ; e ſendo mui verſado em
todo o genero de ſciencias, ſe diſtin
guio com grandes avanços no eſtudo
de ambos os Direitos , Pontificio , e Im;
1
PRIERIO 8 de Julho. 37
perial ; porém eſtimando em menos o
eſplendor das letras , do que a prati
ca das virtudes , entrou na poſla Sa.
grada Ordem , para como em Acade
mia em que havia de merecer outras
coroas mais eternas , e glorioſas do que
as de louro , e palma deſtinadas para
os mais benemeritos cultores dasicien
cias . Servio muitos lugares da Ordem
na Lombardia , e ſempre ſe moſtrou
digno crédor de outros mui : o maio
res. Foi Vigario Géral daquella Pro
vincia , que procurou levar , ' e elevar
á ſua maior perfeiçao ,medianteas dou
tiſlimas Cartas, que fez expedir por
todos os diſtrictos da ſua obediencia .
Regeptou por mui largos tempos os
eſtudos do Convento de Bolonha ; e
alli fez imprimir huma grande parte
das ſuas obras , porque adquirio hũa
tao eſtimavelreputaçao, que , attenta
a lua utilidade , foi chamado pelo Se
nado de Veneza, para que á ſua cuſta
paſlaſſe a adminiſtrar a meſma Eſcolaſ
tica Regencia na florentiſſima Cida .
de de Padua.
Com o meſmo intûito foi tam
bem convocado a Roma , correndo
igualmente eſtes gaſtos por conta da
Republica daquella tao lanta , e cele
bre Cidade . Ou preſidiſle nas cadei .
ras , ou prégafle nos pulpitos , jamais
ſe achou deſtituido de hum luzido , e
muinumeroſo auditorio . O Papa Leað
X. foi- lhe muito affeiçoado , e goſta
va grandemente de ouvillo. A bella in
tegridade dos ſeuscoſtumes , e aquel
le viviſſimo zelo , com que propugnava
as materias de Religiao , foraõ os de
gráos por onde le fez digno de aſcen .
der ao cargo de Inquiſidor Apoftoli .
co , officio que exercitou digniſſim a
mente em Breſſa , e Milao . Nao ſe
moſtrou menos vigilante , e applicado
ao bem commum da Igreja , quandoo
Pontifice lhe conferio o emprego de
Meſtre do Sacro Palacio ; porque en
tao moſtrou elle huma vaftiflima lis
teratura , conjunta com huma folida ,
e verdadeira piedade . Eſta ſua tao pre.
viſta intelligencia teve para o ſeu
exer :
 L
OPI
"38 REC A C, A M de 8 de Julho :

exercicio huma opportuna , e optima e calumnias rebatêo , e concluîo com

conjuntura ; porque como entao co- douciſſimos, e nervofiflimos Eſcritos.
meçava Luthero a introduzir tanta Com effeito a morte o achou neſte
prevaricacao , e cizania na Igreja do Se- tao louvavel , e preſtantiſſimo exer

nhor , foi o noſſo Fr. Silveſtre o pri-
meiro que ſabio a
o
campo contr
a camp
a
contra eſte
eſte
infernal contendor , tendo elle o que
teve a gloria de capitanear
Athletas Orthodoxos que pelo tempo
adiante lhe forao ſeguindo aspizadas .
3 Tanto ſe diſtinguio Fr. Silvef-
tre em confucar os erros daquelle peſ.
tilentiſſimo hereſiarca , que quando
o Poncitice . o fez citar para apparecer
em Roma, ordenou ao meſmo tem
cicio ; porque ao tempo em que aca
bou a ſúa Apologia da Conveniencia
das Regras da Igreja com a liberdade
a outros do Evangelho , Obra contra aquelle
monſtro taô infame, e deteſtavel, e
das mais dignas de ficar eternizada em
laminas de Cedro , acabou avida com
grandes finaesda ſua predeſtinaçadaos
8.de Julho ,correndo o anno deChriſ
to de 1522. Deixou eſte literatifli
mo, e virtuoſiſſimo Padres muitos mo

po que ſe apreſentaſie ao Meſtre 'do numentos da ſua notavel erudiçao ;

Sacro Palacio ; e com effeito elle , e porém o que o fez mais celebre , foi
o noilo Fr. Nicolao de Schomberg , a ſua Sūma de Theologia Moral, tan
forao os Ceníores , e Juizes demuitos tas vezes reimpreſſa , e admirada , e
artigos , e propofiçõens do meſmo nunca baſtantemente applaudida .
Luthero , e pelo seu voto forao con .
denados em 15. de Junho de 1520. , RECOPILAC , AM
e em 12. do outro Junho do annoſe
de 8 de Julho . to
guinte forao queimados com effeito os
livros, e a eſtatua daquelle profano ,
e impiiſſimo herege ; e foi elta ſenten I M Limoges o V. P. Fr. Bere
ça proferida por Fr. Cypriano , Reli : E nardo de Auvern hat. Foi o

gioſo noflo , primeiro profeſſor de ditolo companheiro do V. Fr. Joao

Theologia naSapienciaRomana.Forao
expedidos alguns Legados pela Santa
Sé Apoftolica ás Cortes dos Princi-
pes , em ordem a atalhar a gangrena
deſta formidavel hereſia , que taõlaſ-
timoſa , e fatalmente começava a la-
vrar na Chriftandade ; e foi tambem
encarregado deſtas commiſſoenso nof-
ſo Fr. Silveftre , de que deo tað boa
conta , como aſſim le esperava dolū-
mo ardor com que principiara a fazer
roſto aos contrarios .
4 Depois i de haver trabalhado
Baletrier , Varoens ambos de tanta vir
tude , que forað ſymbolizados ambos
em dous flamantes, e luzidiſſimos Sóes,
que deſte modo ſe repreſentáraó a hū
Veneravel Religiofo da Cartuxa ; e
verdadeiramente para fignificar hum
tao alto merecimento nao fora a pro
pofito ou tra menor rigura. No tercei
ro tomo deſte noflo Agiologio ſe acha
já feita mençaõ do V. P.Balerrier de
baixo deſte meimo dia ; e alli ſe acha
expendida a viſaõ ,que teve aquelle Ser
vo de Deos que o vio , e a Fr. Bernar

com deſvéloinfatigavel neſtas Miſfoēs,
eſcolheo , com approvação , e boa paz
de Sua Santidade, por ſeu Subſtituto a
Fr. Thomaz de Pradia , que proce-
deo ſempre com a fidelidade, com que
ſe eſperava que correſpondeſſe a ef
do , cada hum delles com tantas luzes ,
e rayos , como deſpede de fi o maior
de todos os Planetas. Quanto ao que
diz reſpeito ao V. P. Fr. Bernardo ,
floreceo eſte inſigne Religioſo noCon
vento daquella famoſa Cidade de Frá

ta nomeaçao. Mas poſtoque o noſſo ça, como aſſim o convence o nolo V.

V. Fr. Silveſtre deixou eſtasLegacîas, Þ . Soueges , que muito ſe laſtima da
nao foi iſto para deixar de trabalhar omiſſao de algunsEſcritores , que fup
contra os Lutheranos , cujas opinioēsę primiraõ ella memoria ; e como a ſua
vida
 FR,
. NICOLAO DE ABBEVILHA
vida foi de juſto , e como juſto luzio
como Sol , piamente ſecrê , que quem
aſlim brilhou na terra , naò resplan-
decerá menos na regiao das eternas
luzes. Anno de 1263. = Ex Stepban ,
Salan . M. S.
2
Em Florença , no Convento de
Santa Maria a nova , o V. P. Fr. Pe.
dro Efrozzi . Foi eſte bom Religioſo
peſſoa muito nobre daquella Cidade;
mas eſtimando em menos gloria a vai
dade da terra , do que huma verda .
deira abnegaçao Evangelica, paſlou
para a noſa Ordem , aonde ſempre
continuou em huma fiel correſponden.
cia da ſua vocaçao , morrendo ultima-
mente com opiniao de muita ſantida,
de no anno do Senhor de 1362. Pius
2. p . b. 2. col. 192 .
3 Em Cracovia o Veneravel, e
Illuftriſſimo D. Fr. Diogo de Bidgoft-
za , condigniſſimo Biſpo da Cidade
de Laodicéa . Teve eſte grande Paſ-
9
tor hum naſcimento muito elclareci,
do ; mas naſcendo , ou renaſcendo
para Deos na Religiao , incompara-
yelmente ſe fez mais illuſtre. Foihum
dos mais celebres Doutores na Facul,
dade da Sagrada Theologia que hou-
ve no ſeu tempo ; e havendo ſidoem
pregado no cargo de Provincial de
Polonia , de tal modo recendêo a fra-
grancia das ſuas virtudes, que a in-
Itancia do Biſpo Cracovienſe , Joao
Conarskio, que o elegêo por ſeu Coad-
ſuffraganeo , foi addido ao
jutor , e
numero dos Principes Eccleſiaſticos.
Depois de haver acompanbado eſta
ſua dignidade com todos aquelles pre-
dicados, dignos do ſeu officio pafto-
ral , foi chamado para o Ceo no anno
de 1477. Severin.Cracov. & Bzov.
9 de Julho: 39
9. de Julho.
Vida do V. Padre
Fr. N I C O L A O
DE ABBEVILHA ,
Extrabida de Bernardo Guido.
Oi efte Veneravel Religioſo
' F hum dos Varoens verdadeia
ramente Apoſtolicos , que mais ſe es
forçaraó em fazer roſto á deſcarada
hereſia dos Albigenſes , que depois
de proſtrada muitas vezes pelos Alci
des da Santa Fé Catholica , ainda tor
navao a recobrar , como novos An
cheos, forças, e alentos para inſiſtir na
batalba. Para contender pois com eſ
tes impios filhos da perdiçao , foi ti
rado o Servo de Deos, á ordem do noſ
ſo Reverendiſlimo Géral Fr. Nicolao
Boccaſino de Tarviſio , do ſeu Con
vento , e Provincia , em que elle reſ
plandecia como aſtro de ſuperior grā.
deza. Verdade ſeja que havia na Pro
vincia de Toloſa , para onde agora o
fizeram paſſar , Inquiſidoresmuito ze
lozos , vigilantes , e previſtos ; mas
eraõ tantas, e caes as prendas do V.
P. Abbevilha , que nellas ſe pôs gran
de parte da eſperança do remedio , e
nao menos pela boa aceitaçao quefa
zia delle o Rey de França Filippe , o
formoſo.
2 Foi conſtituido Inquiſidor de
Carcaſſona, corrente o annode1296 .;
e bem que cuidou o V. P. que pode.
ria abrandar os animos daquella gente
levando -a com brandura , e docilida
de , era ella tað feroz , e lindomita
que ao tempo em que eſtava fazendo
hum Sermaõ no clauſtro do noſſo Con
vento , preſente hum numeroſiſſimo
auditorio , e toda a Corte Real , ſe
amotinou de modo contra os pollos
Religioſos, que corrêraõ contra elles,
rompendo pelo meyo de concurſo tað
authorizado , com as eſpadas nuas na
mað , e com inſolentes gritarîas , di
zendo buns : Mata , mata ; e outros:
Ponhafe -lhe fogo , fogo ; e muitos del
les abaixando - le a pedras , (armas que
vinha
 FR . NICOLAO DE ALBEVILHA, 9. de Julho.

vinhaõ propriiſlimas á ſua grande conformidade da commiſlao que ſe

loucura , tanto moleſtaraó com ellas lhe dera. Executou.fe etta funçao no
áo noflo Veneravel Inquiſidor , que anno de 1299. na preſença do Illul.
o conſtrangeraõ a deſcer do pulpito , triſſimo Biſpo de Alby D. Bernardo
e ir fugindo com os mais Religio- de Caſtaner , e de D. Berengerio
ſos a refugiar-ſe no interior do Con- Fredeli , Biſpo deBeziers , e de ou .
vento . Nao ceſſáraó os infames de tros Sephores Eccleſiaſticos, que fo
os ſeguir , e perſeguir , até que ven raõ rogados para honrar , e qualificar
do que nao os podiao achar , deſafo eſte ačto. Alli forao condenados a

fogarao as ſuas furias , deſpedindo prizao perpetua Guilherme Bruneti ,

contra elles huma tempeſtuoſiſſima Guilherme Barrici , Legisperitos ,
torrente de pedradas ; e nao deixou Raimundo o mais velho , e quatro
de attribuir-le a milagre o nao fuce . pefloas mais , que ſuſcitavao eſte ciſ
der com eſta occaſiao alguma mor ma com mais empenho , e obftina
te . ção : e como eſtas penas forao exe

3 Vendo bem o V.Fr. Nicolao a curadas neſtes cabeças á riſca , ſem

que houvelle mais appellaçao ,
ſituaçao das couſas , e que toda a
tardança , que bouveſſe em applicar a ou recurſo , começou o mais po
medicina competente a hum mal tao vo a decahir das ſuas paſſadas fu
creſcido , o faria mais pernicioſo , e rias ; é pouco e pouco ſe biao to .
rebelde , partio logo á Corte de Ro- dos congraçando com os noſſos Pa.
ma : e poito que alli negociou como dres , e muitos dos que tað inadver
elle muito queria , impetrando qué tidamente ſe haviað deixado allu
o Tribunal da Inquiſiçao pudeſſe co cinar da falſa doutrina dos hereges ,
nhecer inteiramente
de todos , é procurârað ágora delmentir a ſua li
quaeſquer procedimentos , e diſtur: viandade , e cegueira , tornando a
bios dos contrarios, com tudo , co- buſcar o gremio da Igreja Catholi ,
mo eſtes nao ſe deſcuidárao de acu. ca.
dir á Corte de Pariz , e alli ſe empe 5 Recebia- os o noſlo V. Fr, Ni

nhárao quanto mais puderao , procu-
Tando corromper , e ſobornar as pef:
ſoas , que lhes podiao dar algum
vor , com fommas immenſas que dif-
tribuirao , nao deixou tudo isto de
colao com muito agrado ; e vendo
as coulas tao bem diſpoftas , e me .
fa . lhoradas, determinou que para que
o acto defta abjuraçao ſe fizeſſe mais
folemnémente , ſe fizeſſe em preſença

dar hum grandiſſimo trabalho ao de

de toda
toda aa Corte
Corte , ſendo chamados

noſſo ſervo de Deos. Nao ſe deo po- os novos convertidos ao ſom de cai.
rèm a ſua conſtancia por vencida , á xas , e clarins , que a eſte effeito ſe
viſta deftes grandes obſtaculos , que mandarao tocar publicamente pelas
pareciao ſuffocar a juſtiça da cauſa da ruas , é praças da Cidade . Fez-le o
Igreja , antes ſe moſtrou tað intre Acto com muita decencia , e luſtre
pido , e invencivel , que pode ulti- no mez de Outubro , prégando o
mamente cantar a ultima vittoria dos noſſo vigilantiſſimo, é doutiſlimo Ina
adverſarios. quiſidor, que depois do Sermaó ad
4 Aſſentando -ſe em que ficaſſe mittio os novos reduzidos a abjura
pelos Inquiſidores a juriſdiçao , e re sem os ſeus erros , o que elles aſſim

galia de conhecer daquelle inciden- fizeraő , pondo , e impondo as mãos

te, partio logo Fr. Nicolao para Car no livro dos Santos Evangelhos , e
caffona a adminiſtrar o ſeu offició promettendo cumprir a penitencia ,

Apoftolico , procurando reconciliar que ſe lhes conferio , de contribuirem

os rebellados com a Igreja , e proce com o eſtipendio preciſo para que ſe

dendo contra os mais culpados em edificafle huma Capella no noſſo Con

vento
 FR . NICOLAO DE ABBEVILHA 9 de Julho . 4

tento em obſequio de Sao Luiz Rey Therme de Moreres, a 4. de Julho ,

de França , canonizado de pouco por chamado Fr. Bernardo Delicioſi
Booifacio Vlil.; e com effeitologo no nome que lhe vinha , e convinha
anno ſeguinte de 1300. le deicarre- com grandiſſima propriedade , como
garað dette onus , tendo edificada á a hum homem , de quem diz o
cutta da Cidade de Carcaſlona , que noſlo V. P. Fr. Bernardo Guido , a
para iſto offereceo , prompta , egene. quem eſpecialmente devemos todas
roſamente , a quantia neceſſaria . eſtas memorias , que em delicias ſu
6 Para que ficaſſe com mais efta- perava ao meſmo Salamaõ ; que eftes

bilidade o ponto da Religiao , e da he que ſao osReformadores, eſtesos

paz entre ella gente , encendeo o nof- que ſe querem alçar com a vara de
1o Inquiſidor em que de tudo ſe fin juizes de vivos , e mortos .
zeile , como fez , huma convençao 8 Começou eſte pſeudo -profeta
legal , que elle aſſinou com o Preſi. a verter a cizania das ſuas fallas , e
dente da Cidade , e outros Miniſ , pernicioſas opinioens na ſeara de
tros do Governo . Feitas sodas eſtas Chriſto em Igor ; e tal foi a levare .
diligencias , e accomodando le os mo- da , que levantou , que nao ſe extin
radores da terra com as fantas in- guio ſenao dahi a muitos annos , cor
Atrucçoens , e arbitrios do noſſo V. rendo o de 1307. Para inſpirar o
Inquilidor , logo aquella povoaçao odio, e deſattençao dos povos ao Suc
tornou a reflorecer em muita virtu- ceflor de S. Pedro , fazia invétivas ,

de , e Chriítandade , mudando - ſe de igualmente deſcaradas , que calum

retrato de inferno , em que a hereſia a ' nioſas ; e tanto mais ſe deſafiorava

deformara , em hum tao ameno ; e
aprazivel jardim , que pudéra parecer
más
hum ſegundo Paraizo terreal , mas
já ſem ſerpente que o perdeſſe , ou
funeftaſſe . Ja ſe frequentavao os lu-
gares ſagrados com culto, e reſpeito ;
ja ſe ouvia a palavra de Deos com
attençao , e utilidade ; e ja naore re
pelliao , antes ſe veneravao , os Miniſ-
tros do Senhor .
Mas quem vio jamais que o
7
mundo perſiſtiſſe conſtante em huma
ſituaçao , e muito principalmente ſe
ella he tendente ao ſerviço de Deos ,
com quem , por miſeria , e calamidade
nellas , quanto tinha mais da lua par
te Joao de Pincon, hum dos procu .
radores dos Sectarios, que moſtrava
trabalhar com fortiſſimo deſvélo em
deſtruir o que o noſlo V. Fr. Nicolao ,
ſeu compatriota , tao fantamente
edificara. Por ſua cauſa forao trata
dos os noflos Religioſos com outras
vexaçoens mais inſolitas, do que nun .
ca antes o haviao lido ; de modo
que ſe naõ pódeler ſem lagrimas hua
ma carta, em que o Prior do Conven ,
to de Toloſa , Fr. Lopo de Bacóna ,
ſe queixava ao noſſo Eminentiſſimo
Cardeal Fr. Nicolao do Prado , das

dos tempos , andao ſempre inſepara . affrontoſasdeſattençoens , e offenſas,

veis as replicas , e contradiçoens dos que os noflos Religioſos conſtante , e
reſpeitos humanos ? Quando a bõa pacientiſſimamente padecerao , du
diligencia do nojlo V. Fr. Nicolao rante eſte furentiſlimo tropel de els

havia produzido eff : itos taõ oppor- candalos , e lediçoens .

1unos; além daquelle Chriſtianiſmo, ſe 9 ' Cooſta pois deste referido mo .
infurgio outra nova , e nao menos numento , que aquelles noſſos im .

terribiliſſima perſeguiçaõ , ſuſcitada placaveis inimigos entravaõ de af

por hum perverfillimo Frade , de ſuada nos noſſos jardins , e hortas,
quem ainda fallaremos no decimo deſtruindo as , e arrazando - as : que

como deſte noflo Agiologio, quando punhaó por terra grande parte dos
eſcrevermos a vida ( re Deos nos em- noſios edificios : que levavao os pou .
preltar a noſta ) do V. P. Fr , Gui cos , e fracos móveis , que podia o
E fur,
Tom . VII,
42 FR . NICOLAO DE ABBEVILHA
furtar aos noſſos Religioſos : que da
vaô em muitos delles com as eſpadas
de prancha , e a outros lhes faziaõ
tiro com hediondas chapadas de la . '
ma : que impedia , e deſviavao os
Medicos de entrar nas noflas enfer .
marjas : que trabalhavao por odiar-
nos com todos aquelles povos dos
lugares circunviſinhos ; e que quan-
do lahiamos a prégar a elles , hiao em
noſſo ſeguimento, para que nao foſſem
ouvidos os noſſos Sermoens com os
tumultos, egritarias, que levantavao ,
chegando a tirar - nos do pulpito com
atrociflimas injurias , e deshonras
que nos enforcáraó em eftatua nos
lugares dos patibulos , e ſupplicios ,
em que erao punidos os criminoſos, e
malfeitores: que ideáraó , e cantarað
contra nós letrilhas, e motêtes ca.
lum nioſiſſimos : que nos quizeraõ
perſuadir incurſos em feiſſimos cri
mes , e exceſlos : que nos fizeraõ no .
tificar em ordem a que nos juſtificafo
femos ſobre qual era a nofla Reli-
giað , ao meſmo tempo em que publi-
Caraó grandes manifeſtos, porque
pertendiaõ fanear a lua : que inten .
tarao ver anniquilado , e poſto por
terra o noſſo Convento : que pinta .
rao hum demonio veſtido bo noſſo
fanto habiro fallando aos ouvidos de
ElRey de França , pintura que ten
dia em deiabono do poſſo Fr. Tho .
maz de Gorran , a quem ella alludia,
Varao mui celebre , e conſpicuo ,
aſſim por ſer hum dos primeiros
Theologos do ſeu tempo , e hum dos
mais eruditos , e decantados Expofi .
tores da Eſcritura Sagrada , como , o
que he mais , pela ſuavidade , e re . plicar o cauterio a hum mal cao con
didaõ dos ſeus irreprehenſiveis , e .iagioſo , e pellilente , começando
exemplares procedimentos: que muie
tas vezes de dia , e de noite nos ha-
viao dado fortiſlimas deſcargas de
feixadas , que deſpedia o para a parte
do Coro, ao tempo, em que eſtava.
mos aos Officios Divinos ; com o que
ños haviao feito damnos mui fenfi.
veis , e notaveis : que pao poucas ve
zes haviao commertido o inſolentiſſim
9. de Julho.
mo attentado de entrar- nos em cala ,
quebrando-nos , e arrombando nos
com machados as portas dos Orato
rios , dormitorios, e officinas da Comu
nidade : que fora tal a ſua impudencia ,
Ø violando as ceremonias mais venera
veis , e tremendas da Igreja , 11os fi
zeraõ declarar por publicos Excom
mungados por huma peffoa leiga ,
em virtude das ordens de Joao de
Pincon ; e para mais eſcarnecerem
as ſempre formidaveis , e venerandas
cenſuras E.cclefiafticas, apagáraó as
tochas na lama da rua ; e que reno
: vando , e ainda excedendo as furias
dos antigos Iconoclaſtas, converte
rao os ſeus deſatinados furores con
tra as Sagradas Imagens de Chriſto
ſua Máy Sapijffima, e outros Santos ,
como taes declarados , e Canodiza
dos pela Santa Sé Apoftolica , fazen :
do-as em pedaços, e tratando-as com
inauditos ultrajes, e vilipendios ,
10 Eſta carta , que era baſtante
para mover a commiſeraçao ainda
aos animos nað fó indifferentes ; fe
nao menos compadecidos , já ſe dei.
xa ver os bons effeitos , que havia
de produzir em hum 'filho , e aſum
no da Ordem tað benemerito , como
o noſſo Eminentiffimo Fr. Nicolao do
Prado ; porém a morte do Pontifice,
que ſucedeo pouco depois , foi re
tardando algum tempo mais o reme
dio de tantas deſordens, que, com
igual neceſſidade que deſejo, impaci
entiſſimamente ſe eſperava. Mas aſ
ſentando -ſe Clemenie V. na Cadei .
ra de S. Pedro no anno de 1305 . A
logo eſte Pontifice cuidou em ap
pela ſuſpenſao do já mencionado Fr.
Bernardo Delicioſi, que era o que
ma.s mexía , e atiçava eſte incendio.
.Foi expedida eſta ordem an Vigario
Provincial da Provincia de Aquita
nia , da Ordem daquelle indigniſſimo
Religioſo , ſegundo aſſim conſta do
huma carta daquelle melmo Prelado
ao noſſo Fr. Bertrando de Clara .
monte ,
 RECÔPILAC, AM
monte , que foi digniſſimo Provin-
cial de Toloſa , e aquelle tempo era
Prior do Convento de Carcaſſona.
Durou ainda hum apno , ou pouco
mais ,a perleguiçao daquelles impios ,
até que a bondade de Deos ſe dignou
de fazer rayar as luzes da ſua graça
naquellas terras , que arrependidas, e
penitentes por cantos eſcandalos , e
abominaçoeps , ſe congraçou ulcima.
mente com a Santa Sé Apoftolica em
1307. Depois de ver completada tao
felizmente huma dependencia , em
ý tanto trabalhára o noſſo V.fr. Nico
lao , ſe logrou ainda de huma larga, e
benemerita vida , que elle fez mais
gloriofa com os muitos ſerviços , que
fez á Igreja , e a Ordem , até que por
todos pallou a ſer eternamente pre-
miado a 9. de Julho no anno Chriſta o
de 1330.
RECOPILAC, AM
de 9. de Julho.
M Bolonha o Illuſtriſſimo
E Biſpo da meſma Cidade , o
Veneravel D. Fr. Joao Jordao. Para
ſer em tudo grande eſte famoſo
Prelado, teve por patria a auguſtil-
fima Cidade de Roma , aonde
aonde naf
nafn
ceo como ramo verde da preclariſ.
fima familia dos Sabellis , aquem elle
vinha accumular novos luſtres , com
os ſeus virtuofiflimos predicados.
Logo começou a moſtrar na flor dos
ſeus primeiros annos a genial pro-
penſao que tinha para as letras ; e
entrando na noſſa Ordem , muito me
Jhor moitrou aſſim as bellas qualida-
des do ſeu grande juizo , procurando
unir á virtude á erudição , a fanti-
dade ás letras. Foi chamado para re-
gentar em Pariz ; e deſta grande Corzio muitas Meditaçoens
te paſſou novamente a ſua patria , e
com tanto avanço de merecimentos ,
que Bonifacio VIII . o promoveo pri .
meiro ao Biſpado de Padua , e con-
fequentemente ao de Bolonha ; dig.
nidades, que elle deſempenhou com
Tom. VII.
de 9. de Julho. { 43
grande facisfaçao dos feus Parochia .
nos , e credito do noſſo ſanto habito:
A eſte conſervou ſempre hum amor tað
grande, que honrou com a ſua pre
lença o noſſo Capitulo Bolonhez , ce
lebrado em 1302. , e no anno ſeguinte,
em que depois de celebrar devotifli .
mamente a Feſta do Eſpirito Santo ,
paſſou a ver a Deos por toda a eterni .
dade . Foi ſepultado entre os poſlos
Padres , como elle aſſim muito o de
zejara , e diſruzera . Guido , Pio , &
Fontan . in Theat.
2 Em York , em Inglaterra , o V.
P. Fr. Thomaz Stubs . Foi eſte filho
de S. Domingos tao virtuoſo , e tao
ſabio , que parece que aſſim quiz dar
a conhecer , quequem deſejar ſer gran
de no progreſſo das letras, nao ha de
eſtudar tanto ſobre os livros , como
na eſcola da Oraçao , fonte donde be .
beraõ tantasluzes , tantos , e tao fami
gerados Doutores , quantos ennobre
cem , e defendem a Igreja com os ſeus
inconcuflos eſcritos. Toda a vida de
Fr. Thomaz foi orar , prégar , e eſ
crever ; e da ſua penna ſahirao , mui
to melhor que a fingida Minerva da
cabeça de Jupiter , muitas obras dou
tiſlimas , é todas encaminhadas ao
maior bem , e aproveitamento das Al
mas . Compôs huma grande quantida
de de Sermoens, huns Temporarios,
outros Santoraes. Fez huma Chronica
dos Arcebiſpos de York , hum Comi
mento ſobre os Cantares , dous Offi
cios mui elegantes , e devotos ; hum
do Santiſſimo Nome de Jesus , e ou
1
troda gloriofiffima Avó delte Sen hor .
Outras muitas materias graviſſimas
deraõ tambem aflumpto a muitas das
fuas compoſiçoens, diſcorrendo ſo :
bre a Milericordia Divina , e ſobre
outros pontos aſceticos, de que dedu
piiſfimas , e
folidiſſimas. Adnotou judiciofiflima
mente as Revelaçoens de Santa Bri.
gida . Elogiou a perfeiçao da vida ſo
Ticaria.
licaria Lavrou com
. Lavrou os ſeus argumen
com os
tos , e razoens hum eſcudo impene
travel para defender o partido da Igren
F ii ja
44 FR . RICARD. DE FRIZ ., E FR.ROB. BACUN 10 de Julho.
ja contra as hervadas frechas daquel .
les feus impios adverſarios, que im
pugoao os ſeus ritos, e ceremonias .
Tratou em hum diſcurſo dos traba.
lhos , e penas deſta vida ; e preſcre.
veo em hum livro alguns utiliſſimos
preceitos , emaximas para acertar com
húa bõa , e ſanta morte : e como era
tao Mettre na materia , que nao ſó .
mente a enſipava nas obras, que elcre
via , ſenao em todas as acçoens , que
tao juſtamente obrava , foi coroar a
victoria , que alcançou no ſeu ultimo
conflicto , correndo oanno de Chriſ-
to de 1373. = Ptif.de Scriptorib. An-
glia .
3 Em Veneza o Illuftriffimo ; e
Veneravel P. Fr. Rafael Riva , Biſpo de
Quióſa no diſtricto daquella clariſſima
Cidade,condigna eſpoſa do mar Adria.
tico . Na Filoſofia , e Theologia foi
eſte Servo de Deosmuito grande ; po-
rèm muito mais o foiſem comparaçao
nas perfeitas qualidades, que teve de
bom Religioſo , e infigne Prelado . Era .
lhe tao afeiçoado o noſſo Eminentiſ.
ſimo Cardeal , Fr. Jeronymo Bernier,
que deſejou ſummamente tello ao ſeu
Jado a titulo de ſeu Theologo , e Con
feſſor ; e com effeitotal foio informe,
que teve por ſua intervençao , de Fr.
Rafael, a Santidade de Paulo V. , que
o creou meritiſſimo Eſpoſo da Igreja
de Quióſa no anno de 1605.:e he mui:
to de notar , que eſtava em tao alca
opiniao , que nao lhe ſervio de impe-
dimento o pao paſſar de ter , como
ainda entao nao tinha, mais de 35. an-
nos . Eſcreveo alguns doutiſlimos Co.
mentario ſobre Santo Thomaz ; e quan-
do ſe eſperava que continuaſſe humfutar os erros de Viclef , hereſiarca,
traballio tao util , e tao laborioſo , lhe que cem annos depois começou a con
tirou a morte a penoa das maos para
paffallo á gloria no anno do Senhor de
1611. = Pius , 6 Fontan. in Theatr .
10. de Julho.
Vida dos Veneraveis. Padres
Fr. RICARDO DE FRIZACRE,
E
Fr. ROBERTO BACUN ,
,
Extrabida do Anno Dominicaao.
1 Famoſa Univerſidade de Ox
A fort , em Inglaterra , foi aon
de com tanto eſplendor do noſlo ha
bito brilharao eſtes dous illuſtres Re
ligioſos . Forao elles dous luminares ,
que muito empobrecerao a Ordem , e
nao menos aquella inſigne Academia .
O primeiro Doutor que tivemos nella
foi o noſſo V. P. Fr. Ricardo de Fri
Zacre , a cujo merecimento , e inftan
cia , devemos os progreſſos, e a pro , fc
pagaçao , com que o noſſo Sagrado Iof lu
tituto começou a augmentar-ſe , e a de
dilatar - ſe naquelle, como em outro
tempo tao pio , quanto nos noſos tao
deſgraçado Reino. Aqui fomos obri
gados a dizer que ha opiniao de haver
tambem alli florecido cem annos de
pois do noſo Fr. Ricardo de Frizacre
outro Doutor noflo , que tinha o meſ.
mo nome ; e ſe diz nao haver ſido me
nos celebre em letras , e virtudes :
como porém ainda alguns dos noſos
Hiſtoriadores, elcrupulizaraõmuito fo
bre eſte popto , receando cahir em
alguma equivocaçao , por eſta cauſa
nao tratamos ſeparadamente deſte Re
ligioſo : e tornando ao noſilo Doutor $
primaz Oxonienſe, compôs eſte mui .
tas obras igualmente doutas , que re
ligioſas; e de tanta efficacia ,que gran
demente ſervirao de rebater, e con .
taminar , e empeſtar aquella Monare
quia .
2 Foi Coetaneo de Fr. Ricardo ,
o noſſo V. P.Fr. Roberto Bacun , que
igualmente era Doutor daquelle dou
tiſſimo Liceo , e ambos muito ami .
gos. Teve Fr, Roberto a fortuna de
haver fido diſcipulo de Santo Edmun .
do , Arcebiſpo de Cantorbery , decu
ja
 RECOPILAC, A
ja vida foi eloquentiſſimo, e piiſſimo
Chroniſta ; attençao , com que pagou
a muita eftima , que ſempre fizera
delle o meſmo ſeu ſanto Mettre. Di-
zem que era ja Sacerdote fecular , e
Doutor , quando veſtio o noſſo ſagra-
do habito , e ſempre cuidou em co
mo melhor havia de zelar os ſeus cre,
dicos, e eſplendores , para o que con-
tribuio com muitos eſcritos cheyos de
igual erudiçao , que piedade ; e me-
Thor que tudo com humaexemplariſ.
fima, e ſantiſſima vida . Eftes Varoēs
de Deos forao ambos excellentes na
prédica , em que gloriofiflimamente
fe exercitáraó , e até dos Authores
eſtranhos faó reputados por incompa .
saveis em Theologias , e em outras
ſciencias ; e havendo participado tanta . timento univerſal de ſeus Dieceſanos,
luz do Pay das luzes , le foraõ lograr
das eternas correndo o ango do Sea
nhor de 1248 .
RECOPILAC, A M
de 1o. Julho:
M Metz o V.P.Fr. Antonio
' E de Try . Havia o Servo de
Deos governado em outro tempo co.
mo Prior o ſeu Convento com muita
fatisfação , de dentro , e de fora delle .
Foi hum homem ſantiſſimo , e de mui
ta ora çao . Prégou a palavra de Deos
como verdadeiro Miniſtro Evangeli-
co , deſorte , que foi tido , e havi:
do pelo Apoftolo Metenſe da ſua ida-
de . Morreo de huma morte tao bem
aſſombrada , qual ſe podia eſperar da
ſua vida , no anno de 1372. Sepulta-
rao-no á entrada do Capitulo , recom
mendando a ſua memoria com hum
elegante epitafio , elogiſtico Latino .
Ex M. SS. Metz .
2 Em Benevento , o Illuſtriſſimo
Arcebiſpo deſta cidade , o V. P. Fr.
Hugo de Bruzéo . Reſplandecia elta
luz no candelabro da Igreja com ma
ravilhoſos , e beneficos reſplandores ;
porque foi ornado eſte eximio Paltor
de todas as virtudes , e condiçoens,
M de 1o de Julho. 45
que conſtituem hum perfeito Prelado.
o menos que havia nelle era huma val.
tiſſima, e bem cultivada literatura.
Fez muitas obras dignas da ſua piedas
de ; mas o mais honorifico monumen
to , que deixou , foi o bom nome que
mereceo de Pay dos pobres , Prote
4
Aor dos benemeritos, Columna da juf
tiça , e Retrato da ſantidade . Diſpôs ,
á imitaçao do que ſe pratica na Or
dem , que os Conegos da ſua Igreja ,
derde as velperas de todos os Santos
até o tempo em que ſe canta no ſabba:
do de Alleluia Gloria in excelfis, tra .
riao huma capa negra com hum capel .
lo , ou barrete , ſobre hum habito , ou
Paramento branco. Finalmente com
tanta alegria de ſua alma , como ſen
que o perdiao , paſſou delta vida caa
duca para a eterna, correndo o anno
de Chriſto de 1383. Vallus, & Fon ,
tana in Theatr. pag. 60.
3 Em Seſtri, ollluſtriſſimo, e Vea
neravel D. Fr. Antonio de Jaques , na
tural daquella povoaçao , e Biſpo'de
Brunha na Liguria , da nobiliſſima fa
milia dos Condes de Lucurri . Foi ela
te grapde Servo de Deos, Religioſo,
Theologo, Prégador , e Prelado ce
leberrimo ; porém nem as ſuasmuitas
letras , nem o ſeu eſclarecido ſangue
contribuîo tanto para ſublimallo á Ca
deira Paſtoral, quanto a ſua ſolidifſi
ma virtude, e bem notorio mereci .
mento . Foi acerrimo em fuftentar a
juriſdiçao , e regalias da ſua Igreja ;
e a eſte reſpeito lhe ſucederaõ couſas
mui notaveis ; mas em todos eſtes a
contecimentos moſtrou ſempre o Ser- ,
vo de Deos , que tinha o ſeu coraçao
unicamente fixo no leu Senhor , enao
em outros alguns reſpeitos. Elle foi
hū dos gloriolos Athletas ý concorre
rao, e ao ſagrado Concilio de Trento, e
foi daquelles que mais dignamente ſe
diſtinguirao naquelle preclariſſimo
certame da Igreja com a hereſia , do
Ceo com o inferno. O Illuſtriſſimo Ara
cebiſpo de Genova o eſcolheo por
feu Vigario Géral, emprego de que
deo
46. VIDA DA SEREN.IMP.DA ETHIOP . HELENA 11 de Julho.
deo tað bõa ſatisfaçaõ , quanta mere-
cia o bom conceito , em que o tinha ,
e avaliava aquelle Prelado. Governou
a ſua Dieceſe fantamente , ſendo mui
previſto em atalhar , e diſſipar os ef-
candalos , e culpas das ſuas ovelhas ,
ora com o conſelho , mediante osmui
tos , e utiliſſimos Sermoens, que ſem-
1 pre fazia , e ora com a força , deſem
bainhando , quando nao podia ſer me
nos , a eſpada da ſua juriſdiçao. Era
tao amante da pobreza , que nao def-
cançou em quanto nao eſtabeleceo hūa
eſmóla perpetuamente annual para os
pobres neceſſitados. Finalmente , de
pois de haver trabalhado na ſeara do
Senhor por eſpaço de 17 , annos, pôs
a ultima coroa ás ſuas glorioſiſſimas
acçoens , renunciando a ſua Mitra aos
pés da Santidade de Pio IV.; e re
colhido a huma cella em Seſtri, que,
como diſſemos', era a ſua patria , 'allicados que conftituem os Principesver ;
acabou fanta , e glorioſamente a ſua
vida entre os ſeus Religioſos , entre
quem quiz ſer enterrado no anno de
1579. = Pius, & Fontan.pag. 147 .
4 Em Palermo , o V. P. Fr. Dé .
cio Carrega . A gloria de Deos , que
conſiſte grandemente na regularidade
de humaboa vida , à imitaçao de Chriſ.
to Senhor noſlo , que dizia , que nao
deixaria de cumprir a Ley até o ſeu
ultimo apice , e o deſejo de adiantar-
ſe a ſi, e aos ſeus Co -Religioſos, cum-
prindo ioreiramente as ſuas obrigaçoễs
e nao parando até nao chegar ao faf.
tigio da perfeiçao , o que , ſegundo a
bõa Filoſofia , naõ póde fer em quan
to falta algumacouſa : eftes tres incen-
tivos , pois , forao os que moverao ao
noſſo V. P. Fr. Décio a huma muito
eſcrupuloſa , e nimia obſervancia do
rigor mais eſtreito das Conſtituiçoens.
Liao -ſe eſtas com mais edificaçao na
pobreza do Servo de Deos ,no ſeu de
ſapego , na ſua auſteridade , na ſua pe-
nitencia , e na ſua oraçao . Teve o
dom do conſelho , pelo que era con
fultado muito frequentemente ,naoſó
dos particulares , ſenaõ aindados mel.
mos Principes , o que o fazia repucar
por hum piedoſo pay eſpiritual de to
dos . Com etta bộa opiniao morreo ,
ficando o ſeu Sepulcro em grande ve
neraçao entre aquellasgentes. Alt .
Capit. Romæ 1644.
11. de Julho.
Vida da Sereniſſima Imperatriz
da Ethiopia ,
Η Ε L Ε Ν Α,
Mulher do Imperador Alexandre II.
da Terceira Ordem de noſſo Pa ,
dre S. Domingos ;
Extrahida de Vrreta , na Hiſtoria
da Ordem de Ethiopia.
I Sereniſſima Imperatriz He :
' A lena , foi huma Senhora orna Po
da de todos aquelles dotes, e predi 1a
e
dadeiramente Regios ; porém ſobre
ſahio muito mais incomparavelmente 20
nas excellencias , e graças , com que 201
o Eſpirito Santo muito eſpecialmen
te enriquece aos ſeus eſcolhidos. Mor;
to feu Eſpoſo o Imperador da Ethio
pia Alexandre II . , abraçou ella o ſagra
do Inſtituto da noſſa Terceira Ordem ,
e foi tao fiel a Deos em correſponder
a eſta ſua vocaçao , que , depois que ſe
The obrigou com os tres votos Reli
giofos, foi hum exemplar de fidelida
de , e obſervancia. Era tað mortifi
cada , que ſó comia tres dias na ſema.
na , Domingos, Terças , e Quintas ;
e ainda entao muito pouco . Teve eſ
ta grande Princeza em lummo gráo o
dom da prudencia , tao eſſencial , eim
portante a todos os que dominao ; e
foi iſto em hum talextremo , ý depois
de morrer ſeufilho o ImperadorNaum ,
deixando por fucceflor hum feu uni .
co filho de oito annos , chamado Da
vid , e tendo a nobreza daquelle paiz
a regalia de eleger por Imperador al .
gum dos Principes que tem a eſte fim
como recluſos, e prezos na montanha
de Amara , e que , legundo dizem to
dos ,faó deſcendentes de Salamaõ pela
Rainha
 VIDA DA SEREN.IMPER.DA ETIOP.HELENA 11 de Julho,
Rainha Sabá ; toda conveio agora em
que foſſe eleito o pequeno David , com
o intuito de que não ſó viria a fer
hum'excellente Reinante , lendo in-
ſtruido , e educado pela noſſa Impera-
triz Helena , lua avó , tao amada de
todos aquelles povos pela ſua muita
bondade , rectidaó , e ſabedoria ; fe-
nao que teriaõ tambem a felicidade
de fer ainda regidos , e governados
por eſta auguſtiſſima Heroîna.
2 A eſte amor , e reſpeito dos val-
fallos loube ella correſponder da ſua
parte com huma tal equidade, e be.
neficencia, que ainda depois de pafla-
dos dous feculos ſe repete o ſeu nome,
fazendo hum ecco naquelles Estados ,
igualmente veneravel, que faudoſo .
Affombrava por aquelles tempos a Aſia
Portugueza aquelle noſſo tao decan-
tado Heróe Portuguez , o intrepido,
e victoriofiffimo Afonſo de Albu .
querque ; e quando andava continuan :
do as ſuas victorias ,e conquittas , deſo
cobrio no Ceo huma Cruz mui formo.
ja , e reſplandecente , ( ſipal que em ou
tros tempos foi tað fauſto, no tempo
de outra Helena , e tambem Impera-
triz ) e cahia direitamente a meſma
luzidiflima, e ſagrada diviſa ſobre a
Ethiopia , no Imperio da noſſa incly .
ta reinante. Foi o celeberrimo Capi .
pitao demandando aquella parte para
que o melmo Ceo o guiava , e tomou
porto com effeito em terras da obe
diencia da Imperatriz , com quem eſti-
pulou huma amigavel, e perpetua al-
liança , em nome do Cezar da noſſa
Lufitania.
3 Inteirou - a o famigerado Albu-
querque da Cruz que vira no Ceo ; e
pezando ella bem eite grande favor de
Deos , ordenou que foffe delineado
nas ſuas bandeiras o meſmo Sagrado
Eftemma da noſa Redempçao , e que os
ſeus guardas le condecoraſlem com
elle , trazendo - o nas ſuas librés ; e nao
parando ainda neftas demonſtraçoēs ,
nem nasdemandar erigir muitas Igre .
jas , a que aſſignou por Padroeira a
meſma Soberana Iolignia de noſſo
47
maior bem , foi a meſma Cruz dalli
em diante o ſeu ceptro , em venera
çaõ de haver dado nella por ſeu amor
o Sangue , e a Vida o Author della , Rey
dos Reys, e Senhor dos Senhores , e
em juftiffima gratidao de ver coroa
dos os ſeus dominios com hum brazaõ
tað glorioſo , ineffavel, e triunfante.
4 Eſta confederaçao da noſla He.
lena com o noſſo Rey foi tao ſincéra,
e tao bem eſtabelecida , que a Chriſ
tianiſſima Imperatriz eſcreveo huma
carta ao Senhor Rey D.Manoel acom
panhada do eſpecioſiſſimo preſente de
húgrande pedaço do Santo Lenho ,ro
gando -lhe muito
quizelle dignar -ſe de
que ſe perpetuafle efta paz , e boa har
monia entre Portugal, e Ethiopia , e
exhortando aquelle grande Principe,
faudade , e delicias da patria, á guerra
contra os Agarenos ; porque ella ( di .
zia ) eſtava prompta a incorporar para
eſte effeito as ſuas com as noſſas for.
ças , em ordem a que , delembaraçada
a Paleſtina, e os caminhos dos Luga
res Santos , dos barbaros , que os oppri
miao , e tyrannizavao , tiveſſe ella a
conſolaçaó de poder conſagrar á meſ
ma glorioſiſſima tepultura aquelles tri
butos , com que muito deſejava que o
ſeu culto foſſe promovido , e deſemº
penhado .
5 Diſcorria pelos ſeus Eſtados , via
firando - os peſſoalmente , bem aſſim
como o Sol , que examina todooglo .
bo da terra, e ainda mais como Sol ,
repartindo fuzes , e beneficios por
todos os ſeus vaſſallos. E como teria
bem regida huma tao bem affortuna .
da Monarchia, que era governada por
huma Princeza tao religioſa , e ſanta !
Sendo bem certo que os Reys, e os
Soberanos faõ a alma , e o primeiro
mobil das terras da ſua ſubordinação,
e que o ſeu bom , ou máo exemplo he
o que influe mais poderoſamente na
na bondade , ou menos bondade dos
ſubditos. Procurava quanto mais po.
dia , quando fahia a eſtas viſitas , re
colher -ſe nos Moſteiros de Religio :
{as , que ſe lhe offereciao , paraque , ne
gando ,
 L AC
PI
CO
8 RE ,A
gando -ſe por algum pouco tempo aos
negocios publicos , ſe pudeſſe empre
gar mais livremente na contemplaçao
das couſas do Ceo . Tambem fe diz
que , por ſermui e applica
das Pintaçao das antigas Eudoxicas;
eſcrevera hum piiſſimo , e doutiſſimo
Tratado dasExcellencias de noſla San-
ta Fé .
6 Depois que David ſeu neto
chegou aquella idade competente pa-
ra ſe lhe poder confiar o governo do
Imperio , retirou -ſe a V. Imperatriz
para o Reyno de Goiamé , para alli
empregar o reſto dos ſeus annos , vi .
vendo ſó para Deos , e com Deos ;
mas bem depreſſa lhe fizeraõ inter-
romper eſta lanta reſoluçao os Ethio-
pes , offerecendo -lhe novamente o
Throno, mui deſcontentes do novo Im-
perador , que,ſem embargo de huma
educaçao cao ſanta , havia procedido
ſem bom conſelho em algumas couſas
mais fogoſamente do que devera : 0
e ainda le fazia mais intoleravel aquel.
lasgentes,acabando de ſahir de hujugo
tao placido , e ſuave. Deixou -lę ella
enternecer, e obrigar deſta bõa von
tade dos povos , e preferindo o bem
publico ao privativo , tornou a occu-
par o lugar de que ſempre ſe havia fei.
to tao benemerita : e de tal modo ſe
ſoube agora portar , que , ſem ſe odiar
com o novo Principe ,o modificou , e
abrandou de modo , que ao diante fez
ſe fez hum dos Im .
acçoens , porque ſe
peradores mais memoraveis daquelle . 1305. = Guido.
tao remoto , e dilatado ſenhorio . De 3. Em Leao de França o Illuftriſ
pois de haver reduzido as couſas a tao
bons termos , cuidou em aparelhar -ſe
para huma boa morte , que com effei.
to conſeguio do Senhor , no Pontific
cado de Clemente VII . aos . de Ju-
lho de 1529. Foi ſepultada em huma
Igreja , que ella fizera edificar em hon-
ra da Santiſſiina Trindade , que vul
garmente ſe chama da Rainha Helena .
M lh
o
de 1r de Ju .
RECOPILAC , AM
de 11 de Julho.
M Palencia , na Italia V.P
E.Pellenciade kuzoro
. Hiz
?
vendo ſido hum excellente Legiſpe
rito , que havia aflombrado com a lua
ſciencia aquella terra , largou a ſua Ca
deira , ou a trocou pelo pulpito , fazen
do- ſe Religioſo noſlo. Teve a fortu
na de ſer admittido , e veſtido donos
ſo habito por no lo eſclarecido , e San
to Patriarcha ; depois dehaver deſem
penhado , tað fiel, como altamente , a fe
ſua vocaçao , paſlou a unir- ſe para ſem :
pre com Deosno anno de 1250. Pius
i.p.l. 1.col.58 .
2 Em Limoges , o V.P.Fr.Helias
Arnaldo de Chaluz. Efte V.P. foi hū
dos primeiros daquella Caſa, e mui
digno de ſer tambem hum dos primei
ros da Ordem . Exerceo dignamente fa
os cargos de Prior dos Conventos de be
Milhan , e Montobaõ ; e depois que ça
Deos lhe deo a conſolaçao de ver com D
pleta a Igreja , que osmoradores deſ do
ta ultima Cidade nos fizerao levantar,
nh
fez nella cantar com muita devoçaõ a
primeira Miſſa . Era Prior do Conven
to de Morlas, quando lhe foi neceſia
rio pôr -ſe a caminho para Limoges ,
para ſe achar no Capitulo Provincial,
que alli ſe celebrava ; e concluida eſta
jornada, acabou tambem religioſa, e
ſantamente a de ſua vida no anno de
R
ſimo Arcebiſpo deſta cidade, o V.
P. Fr. Carlos de Alençon . Foi filho
primogenito eſte grande Religiofo do CE
Conde Carlos de Alençon , e Irma
do Cardeal Arcebiſpo de Ruao , Fi
lippe de Alençon , e era do ſangue Real
de França ; dias ainda teve outra filia
çao mais illuſtre , e bem viſta aos olhos
de Deos , e doshomens , que foi a das
ſuas exemplariſſimas obras . Seguirao
fe á morte do Conde ſeu pay algumas
violentiſſimas ſediçoens , que forað
cauſa de graviſſimas deſordens naquel .
la
 D. FR . ANTONIO DE MORAES
la Monarchia ; e daqui tomou occa-
[18Ô o noſſo Carlos para detenganar -ſe,
edelgoltar- ſe do mundo,fugindo para
oporto ,e abrigo daReligiao . Eſcolheo
Tomente a honrou com a
a noffa , e nao
eleiçaõ , ſenao com os ſeus admiraveis
procedimētos, Nao eſtavamuito bēco
eſta ſanta reſoluçao a Condeſſa , Máy
do Servo de Deos; e depois que ten-
tou diſſuadillo da ſua vocaçao , medi-
ante alguns artificios, que nao tiverao
effeito , ſe queixou ao Pontifice com
.
o pretexto do perigo que podia haver
de perder -le o Condado por falta de
ſucceſſor. Deputou o Papa o Mar:
1
quez de Monferrat paraque averiguaf-
febem o animodeFr. Carlos , recom-
mendando -lhe que em caſo de achar
o bom Religioſo legitima , e conſtan
!
temente determinado para nað tornar
atraz no caminho , a emprendera,o dei-
xaffe em paz : nem achou outra cou-
ſa o Marquez , depois de haver muito
bem apurado as couſas, Deſembara.
çado de contradiçoens o Servo de
Dens , fez a ſua profiſſao , e entregan-
do - ſe ao eſtudo das letras , fe fezco .
1 nhecer por hum dos ſujeitos mais eru •
ditos do ſeu tempo : mas como as le-
tras faõ nada ſem virtudes , ſe appli-
cou o V.P. á pratica deſtas com huma
fede tao inſaciavel, que ſó a
a ' morte lha
pode apagar . Amava tanto a pobre .
2.a , que tinha por muita gloria entrar
pedindo eſmola pelas caſas dosGran
des com hum ſacco aos hombros.Con-
ftituîo - o Urbano V. , à inſtancia de El .
. Rey Carlos , ſeu parente , Arcebiſpo
de Leao ; e governou fantamente el.
ta Igreja por dez annos . Foi padrinho
de Bautilmo de Joao , Conde deNe.
vers , que depois foi Duque de Bor-
gonha ; e paſſou por meio
de huma
lanta morte a lograr-ſe de melhor vi .
da no anno de 1395. = Gall. Chri.
Stian. & Font. in Theatr .
4 , , Il:
Juftriſlimo , e V. Fr. Gaſpar deOr-
gueil , Biſpo daquella Cidade . Cle-
mente VI ., que o enviou de Roma com
o Illuſtriſſimo D. Fr. Guilherme , Mi:
Tom , VII,
12 de Julho.
, 49
norîca , por Nuncios da Santa Sé ao Im.
perador Contantinopolitano , Joao
Cantacuzeno , em ordem a effeituar.fe
a uniao das duas Igrejas , Gre
ga , e Latina , honrava eſtes dous feus
Legados com os titulos , que lhes da
va nas letras Apoftolicas, que remete
tia ao Imperador , de Varoens de hũa
virtude folida , de huma fciencia ra
ra , e de hum verdadeiro , e profun
do temor de Deos . Aceitou aquelle
Principe com muita ſatisfaçaõ eſta En
viatura , e expedio tambem feus Em .
baixadores a Roma, lendo hum del
les hum Religioſo noſſo , chamado Fr.
Joao de Galata . Nao foi ella a unica
occaſiao , em que o noſlo V. Prelado
ſe empregou em lolicitar o augmento ,
e mayor proſperidade da Igreja . Al
tento aos intereiles da ſua Dieceſe, ſe
colliguu , contra os Venezianos, que o
defraudavao delles,com o Patriarca de
Aquileia , e com ElRey Luiz de Hun
gria. Teve algumas dependencias com
o Imperador Carlos IV . e loube con
duzir as couſas tao bem , que nao fó
mente confirmou aquelle Principe to :
dos os privilegios , e indultos da lua
Cathedral , ſenao que lhe ficou ſem
pre mui affecto , 'e bem inclinado . Fis
nalmente depois de haver guardado
27. annos, com igualprovidencia , que
vigilancia , o teu rebanho , foi receber
o ſeu copioſo premio no Ceo , no an;
no de 1377. = Vadingus ad annum
1349.1 . 1. 6 Fontan . in Tbeatr .
12. de Julho.
Vida do Illuſtriſſimo , e V. Dom
Fr. ANTONIO DE MORAES,
Biſpo da Cidade da Conceiçao no Rei
no de Chile ;
Extrahida de Melendes. tom . 3.p.7933
Illuſtriſſimo
de da ImmaculadaCôceiçao ,
D. Fr. Antonio de Moraes , era pro
feſſo do noflo Convento do Santiſſię
mo Rozario da Cidade de Lima ; e
bavendo ſido hum dos mais inſignes
G Mers
50 · D. FR . ANTONI DE MORAES
O
Meſtres da Filolofia , e Theologia ,
Sciencias que elle enſinou admiravel-
mente nas Cadeiras , ſe diſtinguio ,
muito melhor do que pelas luzes com
que brilhou deſta ſua profunda ſabe,
doria , pelo viviſſimo incendio do amor
de Deos , e do zelo da ſalvaçao dos
proximos , que inceſſantemente lhe
devorava o coraçao . Eſtava bem o graos das maiores virtudes , ao mef.
Servo de Deos com a bella maxima
de S. Bernardo , que luzir muito , he
huma pouca de vaidade ; arder , e
naõlụzir , couſa de pouco momento :
mas que juntar , e concordar huma ,
e outra couſa , o ardor , e o luzimen
to , como nos manda o Evangelho , e
já foi decantada empreza do noſſo
Santo Arcebiſpo de Braga D Fr.Bar.
tholomeu dos Martyres : ahi he que
eſtá a eſencia da maior perfeiçao .
Empregado pela obediencia em
huma Vigairaria da ſua Provincia , no
Valle de Moquegua, entrou no pro-
jecto de promover , e adiantar quanto
mais pudeſſe no eſpiritual, e temporal
aquelle Convento ; e aſſim elle , comó
os Religioſos, que alli eſtavao Conven-
tuaes , todos faziao huma vida pro-
priamente de Anjos . Occupava- ſe o
Servo de Deos utiliffimamente em
catequizar , prépar , e enſinar com
huma tal intenſao , que nao havia pa.
ra elle mais delicias , nem tempo mais
bem aproveitado . Era muito digno
pelas ſuas grandes letras de encher,
e deſempenhar os primeiros lugares
das Academîas da Europa ; e ainda af
ſim era tal a ſua humildade , que nao
fe dedignava de enſinar os primeiros
rudimentos de ler , e eſcrever aos
meninos que ſe criavaó por aquellas
viſinhanças. Como porém ſeja dito
infallivel do Divino Oraculo que a .
quelle que mais ſe humilha , tanto
mais ſe exalta ; nao obſtante o ſeu
deſprezo proprio , foi reconhecido
por muito digno de ſer chamado a
Lima , para le lhe conferir , como con-
ferio , o Priorado do ſeu Convento .
A bõa ſatisfaçao, com que elle proce .
deo , lhe tornou a confiar outra vez
12. de Julho.
eſte melmo governo ; enao ſo moftrou
ter digno delle muitas mais , ſenao de
outros mais avantajados. Fizerao.no
tambem Vigario Provincial dos Con.
ventos daquelle Arcebiſpado , e dos
outros dos Biſpados de Guamanga ,
Truguilho , e Panamá , e ultimamen
te Provincial ; e encao ſe elevava aos
mo pallo em que ſubia por eles des
gráos de maiores dignidades . :
3. Nao ſe occultou hum tao raro
merito a ElRey Catholico , que intei
rado das ſuas religiofiflimas , e vir
tuoſas qualidades , o acreditou com a
promoçao do Biſpado da Cidade da
ImmaculadaConceição do Reyno de
Chile nas meſmas Indias Occidentaes.
Obediepte ao leu Principe, e muito
mais à Providencia do Senhor , pal
ſava eſte Illuſtriſſimo Prelado a def
poſar-ſe com a fua Igreja ; e navegan
do pelo mar, a que os Geografos dao
o nome de Pacifico , nao o achou cao C
pacifico , que nao perdeffe a vida nas
Suas ondas , havendo padecido nau
fragio a ſua embarcação , combatida
de huma horribiliflima tormenta :
mas dalli melmo foi deſcançar paci
ficamente no Reino do Principe da
paz , aos 12. de Julho de 168 4. , ou 85 .
Foi achado o ſeu corpo em huma
praia daquella coſta , aonde o arrojou
o impeto da marezia , apertado pela
cintura com huma groſſa cadêa de fer
10 , em queſe dibem a conhecer qua .
to era penitente , e mortificado.
RECOPILAC , AM
de 12. de Julho.
I M Toloſa , o V.P. Fr. Joao
E de S. Bento . Foi efte V.P.
condigniſlimo companheiro de Frey
Guilherme Bernardo de Acos , no Of
ficio de Inquiſidor Apoſtolico ; e cor
relpondêo como ſe eſperava ás obri.
encargos deſte emprego ,
gaçoens , ee encargos
gaçoens,
fazendo - ſe benemerito de acompa
nhar na gloria aquelle , de quem fora
ſocio
 FR . DOMINGOS DE
locio no trabalho . Anno de 1268 .
Catalogus Inquiſitorum Tolofa ..
2 Nas Ilhas de Solôr , o V. P. Fr.
Paulo Tavares . Trabalhou eſte zelo
fiſſimo Padre nas Miſioens das Indias
Portuguezas com hum zelo verdadei
ramente Apoftolico . Aprizionáraó.
do os Hollandezes , que ficiáraó a Ci
dade de Maláca ; e para lahir deſta
penoſa ſervidaô , padecêo primeiro
grandes trabalhos, e contradiçoens .
Paſſou ultimamente a Solôr com ani.
mo de proſeguir os teus Evangelicos
trabalhos ; mas dalli foi chamado pa . ſobre qual delles teve a honra de que
ra entrar, comotao bom ſervo que ha- ' nelle tomaſle o Habito de S. Domin .
via ſido , na gloria de feu Senhor , pe-
lo anno de 1640. Relat, India 0.
rientalis.
3 Em Cereta , na Valaquia menor ,
o Illuftriſſimo , e Veneravel Dom Fr.
Joao , Biſpo da meſma cidade . Foi
eſte infigne Prelado Vigario de Jeru .
falem , e do Valle de Jolafat , Peniten-
ciario do Pontifice , e Confeſior dos
Reys de
Polonia . Impetrou quarenta .
dias de Indulgencia para os Fieis , de
hum , e outro ſexo , que viſitaſſem , e
veneraſſem huns lantos , e milagro-
fos Corporaes do noſſo Convento de
foraő mui celebres na .
quelles tempos , por haverem appare .
cido ſobre elles algumas gottasdefan-
gue , que obráraó effeitos maravilho.
jos , livrando de morte , e de outras
grandes moleftias , e perigos , o que
tudo folemnemente le authenticou
para ſer conflanie a todo o tempo .
Houve tambem naquelle noſſo Con-
vento huma fonte notavel : fervîa to
dos os annos em algum dia do Oita-
vario do Corpo de Deos , e acudindo
a beber , ou a lavar - ſe nella alguns
doentes , recobravao todos inteira ,
e perfeita laude. Ficou do noſo V.
Fr. Joao huma ſaudola , e reſpeitavel
memoria pela ſua obſervancia , zelo ,
pie Jade , e religiao . Vivia no fim do
decimoquarto ſeculo. = Soueges.
Tom . VII.
CORDOVA 13 de Julho. 501
13. de Julho.
Vida do V. Martyr
Fr. ' DOMINGOS
DE CORDOVA ,
Provincial da Provincia
de Aragao ,
Extrabida de Diago. l. 1.6.52 .
I Om muito maior razao pu
С dergo contender os noſſos
Conventos da Provincia de Caſtella
gos ſeu benemerito filho o V. Martyr
do Senhor Fr. Domingos de Cordo
va , do que antigamente ſe competi
raó rette Cidades da Grecia , perten .
dendo cada huma dellas haver ſido
patria do grande Homéro . Nao ſe ſa .
be pois a Caſa, que foi tao dito ?a, que
ganhi u para a Ordem hum filho tao
Santo , e taó illustre. Foi eſte grande
Religioſo hum dos mais acerrimos
propugnadores da Reforma Domini
capa , que elle tanto eſtimeu mais que
)
a ſua vida , que effectivamente che .
gou a dalla , generoſa , e Chriſtáamen
te, em obſequio da ſua ob ! ervancia ,
Muito antes de chegar á coroa Iha
prenunciou o Ceo ; porque dizendo .
The hum Religioſo da Cidade de C ,a
regoça , a tempo em que elle hia cele
brar , ſe guardaſſe,e reguardaſſe el
le de alguns menos contentes de feus
projectos : Por iſſo meſmo ( reſpon
deo o Varao de Deos ) he que eu di
go Miſa todos os dias; porque ſei
que elles ſao os que me haõ de procu
rar a morte . Paili u ido a ſer taono
torio , que chegando a ouvidos de D.
Fernando de Aragao , Duque de Ca
Jabria , e Vice- Rey do Reino de Va
lença , o obrigou a andar com ſua
guarda , naõ obſtante a muita refi.
ſtencia do Servo de Deos , que lhe
parecia que aſſim faltava ao bom ex .
emplo ; e por iſſo ainda que nað ſe
pode , como muito quizera , eſcuzar
deſte offerecimento , nunca ſe quiz
Gii ler
 FR . DOMIMGOS DE
fervir della , ſenaõ para quando anda
va por fóra da Cidade, poſto que nel
la , como veremos depois , he quelhe
derao ſeus aflaſſinos atrozmente
morte.
2 Teve a graça de ſer hum dos
Pregadores mais Apoſtolicos do ſeu
tempo; e por eſta conſideraçao o man-
dárað osſeus Superiores com Fr. Mar-
tinho dos Santos Miſlionar a Biſcaia.
Fello aflim o Servo de Deos ; eádou .
trina , com que pertendia apartar os
homens dos vicios , e affeiçoallos ás
virtudes , juntava tambem a devoçaõ
do SantiſlimoRoſario , entranbando - a
ſuaviſſimamente , nos coraçoens dos
Fieis ; e abençoando Deos o teu tra
balho , e diligencia , nao deixava
fazer hum copioſiſſimo fruto. Fize-
ram - no Superior de hum Convento de
diverſo Inſtituto ; e foi tað efficaz , e
perſuaſivo o bom exemplo do noſſo
V. Padre , que uniformemente ſe de
liberarao aquelles Religioſos a deixar
asſuas , pelas noſſas, Conſtituiçoens;
e com effeito , intervindo a confirma-
çao da Santa Sé de Roma , affim o
executarað : como porèm fofle menos
perſeverante o ſeu fervor, foi pro-
movido o noſio V. Padre a Prior do
magnifico , e celebre Convento de
Salamanca : durante o ſeu Priorado,
caſtigou Deos aquella Cidade com o
terrivel flagello de huma extrema fo-
me . Cortava iſto o coraçao do Servo
de Deos , todo cheio do fogo da ca
ridade , e deo- lhe o Pay das miſeri-
cordias a conſolaçaõ de que nao ſó naõ
i carecefle , como nao careceo, a ſua Cô-
munidade do preciſo , mas de poderſoc.
correr mais deoitocentas peſſoas de fó-
ra , gloriando-ſe muito os ſeus bonsfub-
ditos para eſta bõa obra ,coarctado,quá-
to elles mais podizo , o ſeu ſustento.Sa ..
hja o noflo Prelado peſſoalmente pelas
ruas,fazendo de porta em porta aquella
repartiçao ; e aſſim continuou até que
noſſo Senhor foj ſervidoretirar aqueli
le tremendiſlimo açoute da ſua Juſtiça .
3 Hum dos maiores cuidados dc
Summo Pontifice Clemente VII. era
CORDOVA 13 de Julho.
o de reformar as Ordens Religioſas ;
e commettendo , pelo que tocava à '
noſſa , eſta incumbencia ao noſſo Re .
a verendiſſimo Geral , Fr. Franciſco de
Ferrara , tao conhecido no mundo
Chriſtao pelos ſeus tao excellentesCo.
mentarios ſobre a Summa de S. Tho
maz contra os erros , e ſuperitiçoens
do Gentiliſmo , e muito mais pelos
dotes , e perfeiçoens do ſeu levanta .
do eſpirito , eſcolheo eſte Preladopa
ra Provincial , e columnada obſervan
ciaem Aragao ao noſſo V.Fr.Domingos
de Cordova . Chegou á ſua Provincia
o Varao de Deos , e alli achou fazen :
do as vezes de Vigario Géral de al
guns Conventos reformados o V. P.
de Fr. Rafael Caſtello , amigo muieftrei;
to de S. Luiz Beltrao . Era illo pelo
anno do Senhor de 1530, em que ſe la
celebrava Capitulo Provincial na Ci: C
dade de Girona; e propondo - ſe nelle la
a chegada do V.P. Fr. Domingos , ſe alt
tomou o acordo de que fofle recebi DE
do com aquelle reſpeito , e decoro de:
vido a hum homem de tanta religiao ,
merecimento , e authoridade : 03ő te .
mendo porèm pouco a circunſpecçao
do Servo de Chriſto , elegeraõ allipor
ſeu ProvincialFr . Rafael Moner , hum
dosmaioresPrégadores daquelles tē
pos, e conventual do Convento de Bar:
celona . Deſgoſtou -ſe muito difto o
Reverendiffimo Géral , labendo, bem
quanto era inſtrumento mais a propo
ſito o noſſo V. Padre ; e instruindo
muito a Sua Santidade , foi eſte ſervis
do confirmar ao noſſo Fr. Domingos
no ſeu Provincialado , extinguindo a
Congregaçao dos reformados, e ſob
mettendo -a igualmente ao ſeu domi
nio . Por eſte meſmo meyo tempo
fez ella hum Capitulo do Convento
de S. Mattheus do Reyno de Valença ,
elegendo por ſeu Vigario Géral a Fr.
Amador Eſpî, Varaõ de coſtumes ir
reprehenſiveis, e de quem quderaõ ef.
perar os mais illuſtres, e vantajoſos
progreſſos. Chegando porèm depois
a Bulla Pontificia , entrou o noflo V.
Provincial inteiramente na poſle do
feu
 FR . DOMINGOS DE
Jeu Officio , e do melmo modo que
aquella Congregaçao ſe lhe unio , ſe
vieraô , como depois melhor veremos,
a unir eltes dous grandes Servos do
Senhor para ſerem , como foraó ,lay-
reados ambos juntamente com a coroa
do martyrio .
4 Naoobſtante ſer naturalmente
mui compaſlivo o noſſo V. Prelado ,
e proceder nas ſuasViſitascom amaior
ſuavidade, e prudencia ,que lhe era
po !livel, caftigando com brandura,per:
doando com begninidade , e exhortan-
do cao ſó com o exemplo , e doutri-
na ,
ſenañ com eſtranhas , e amor de
pay ; e nao obſtante, outroſim , ſer
dotado de huma agradavel preſença,
de huma voz mui doce , e de outras
muitas prendas naturaes , com que ſe
fazia ſenhor dos coraçoens ; aſſim
como a luz do dia , poſto que tað belo
la , he odioſa a muitas aves, easigua-
rias mais mimolas , e bem guizadas,
Dao o parecem a muitos enfermos; aſ-
ſim bavia muitos , que parecendo-lhes
o caminho , por onde o Provincialfan-
tamente os queria conduzir , muito
eſcabrozo , e cófta acima , como feo
Evangelho nos nao difera expreſſa-
mente que he mui apertado o cami-
nhodo Ceo , nao ſe conformavaõmui.
to bem com as diſpoſiçoens do noſſo
V. Reformador. Celebrou no anno
de 1532. dous Capitulos , hum por
Fevereiro em Valença , e outro por
Novembro em Gotor,no Convento de
N. Senhora da Conſolaçað ,em ordem
aconferir com os Padres da Provincia
os meios com que melhor ſe poderia
introduir mais fixa , e duravelmente
a perten da 'reforma.
5 Ozelo , com que elle trabalhava
nasfuas Viſitas, mereceo hum extraor.
dinario favor do Ceo , e nao duvida .
mos que foſſe confirmado com muitos
rutros . Caminhava o Servo de Deos
hum dia , veſperado grande Precurſor
de Chriſto , por hum deſcampado , e
levava por ſeu companheiro aFr.Anto-
nio de Zebreros ; e depois de have.
rem tomado , ás ſuas horas, humamo-
CORDOVA 13 de Julho. 53
derada refeiçao , ſinalou o Servo ; é
Martyr do Senhor hum lugar , que
dalli ſe via , a Fr. Antonio , dizendo
lhe que foile lá buſcar'agoa para be
berem . Foio Padre ; mas differao -lhe
no caminho que aquellas terras , q ett - a
vaõ muradas , e com huma porta fe
chada com hum fortiſſimo cadeado,
eraõ de certos Religioſos, e que ha
veria tres , ou quatro mezes , que nin
guem havia por alli chegado . Tornou
o Padre com eſta reſpoſta; mas Fr.
Domingos ,ſem embargo de tudo, diſſe
que elle tinha huma firmiſſima confian
ça no Senhor , de que alli havia de
achar agoa . Replicou o companheiro ,
que bem poderia havella dentro , mas
que aporta eſtava fechada com hum
cadeado . Reprehendeo - o o Venera
vel Provincial da ſua pouca fé , e en
caminhando -ſe ambos aquella parte ,
o meſmo foi tocar o V. Reformador
naquella fechadura , que abrir -ſe a
porta de par em par : Tao grande co:
mo iſto era a ſua virtude ! Entrarað
dentro , e a poucos paſſos andados ,
acharaó hum pote deagoàtao cryſtal
lina , etao freſca , comole eſtiveſſe cor
rendo na ſua fonte . Vamos agora ao
ſeu glorioſo martyrio.
6 Vinha o V. Prelado entrando
para a Cidade de Valença com o Prior
do Convento , que alli temos , o V.
Padre Fr. Amador Eſpî, em 1o . de
Julho de 1534. e deſpedindo -ſe á en
irada da quella grande povoaçaõ a ſua
guarda , ſe forað a recolher : feguirao
nos disfarçadamente dous Apoftatas,
e chegando a huma paragem mais el
cufa , inveſtirao com os noſſos dous
Veneraveis Religioſos deſcarregando
hum grandiſſimo, e mortal golpe na
cabeça de Fr. Domingos , e paſſando
The as coſtas com outro : Foi a acu .
dir - lhe Fr. Amador , e concitando por
eſta acçao os matadores contra fi, o
ferirao tambem mortaliſſimamente.
Commertida eſta abominavel acçao ,
fugirao ſeus authores, e os noſſos bons
Padres, levantando- ſe o melhor que
puderao , foraõ andando para o Con
ventos
 54 FR . DOMINGOS DE CORDOVA
vento , que eſtava perto , e chegando
á porta da ſua Igreja , offereceo onor.
ſo V. Fr. Domingos a ſua morte em
oblequio , e honra da de Chriſto Se-
nbor noſſo , perdoando a ſeus homi-
cidas : eſtas foraõ as ultimas palavras ,
que o Martyr do Senhor pode articu.
lar , bem que ainda viveo alguns pou-
cos dias : e nao deixáraõ , como logo
veremos, de ſer ouvidas daquelle amo .
roſiſlimo Senhor , que no Calvario fi .
zera primeiro eſte tao generoſo , e
Chriſtianiſſimo exemplo,
7 Inštáraó com elle , por muitas
vezes , que declaraſſe por ſinaes , visto
que nao podia de outra ſorte , ſe co.
nhecia aquelles criminoſos : mas po-
do que o bom Soldado de Christo nao
o ignorava , nao ſomente nao quiz fa .
zer alguma declaraçao , ſenaó que o
meſmo prohibio a Fr. Amador . Nao
há termos , com que ſe poſſa exprimir
a grande pena , que tomava o Servo
de Deos , quando ſe lhe dizia que
havia de convaleſcer da ſua moleltja ,
achando que nao podia morrer mais
glorioſamente que por huma cauſa
tað piedoſa , e tao ſanta. Sendo agora
viſitado de hum Padre Minorira , e
vindo - ſe a tratar do martyrio deS. Pe-
dro Martyr , moſtrou Frey Domingos
que eſta práctica o conſolava muito ſua
vemente ; e como os ſucceſſos foraó
tao parecidos , aſſim o forao os pre
mios , paſſando o noſſo Veneravel Pro-
vincial para a companhia do Rey dos
Martyres . Sobreviveo - lhe Fr. Ama-
dor quatro dias , e ouvindo a noticia
della morte , recommendou aos Relic
1
gioſos , que notafler bem aonde de
pofitavaó o cadaver de Fr.Domingos;
porque eſperava em N. Senhor , que
he tað fiel a ſeus Servos , que nao dei .
xaffe de decorar com muitos milagres ,
e prodigios ara hum teftimunho de
tanto credito , e vaJor ; e a ſantidade,
e a religiao de hum Prelado tað irre.
prehenſivel como o noſſo ſanto Pro-
vincial.Nað deixando de fazer impreſ-
ſaõ nos animos dos Religioſos , lhe de-
rað honrada , e diſtinta ſepultura jun
13 de Julho:
to ao Alcar mór , aonde igualmente foi
tambem metuido o corpo de Fr. Ama
dor . Depois de eſtarem alli alguns tem
pos , forao paſladas as ſuas Reliquias
para a Sacriltia , aonde eſperao a re
jurreiçao univerſal , em hum ſepul.
chro levantado , e embutido na pare
de , com huma inſcripçao , em que ele
gante , e ſummariamente ſe refere o
que deixamos expendido.
8 Sabindo do Reyno de Valença
os matadores dos nolios Veneraveis
Martyres , por fugir da pena , que ſe
lhes podia impôr , le retuliaiſem con
tra elles algumas preſumpço : ns , hum
deſtes foi coinado pelos Mouros , e fen
do poſto em huma en barcaçao de re
mo , The ganhou o Cómitre huma tal
averſao , que o perſeguia de morte ; e
fazendo reflexao aquelle barbaro in
fiel nefte odio , a que aquelle malfei
for lhe nao tinha dado motivo eſpe
cial , lhe chegou a dizer humavez de DO
lte modo : Dize-me, Chriſiaõ infame,
e deſventurado , que crime tað grama
de foi o que commetteſte , que ,pormais
que eu queira refrear a minha paixao ,
nao polo conter-me de te eſpancar.
Cabio em ſi o miſeravel ; e reconhe
cendo que a ſua eſcravidao , e máo
trato era hum juſtiſſimo caſtigo da ſua
culpa , entrou a procurar que o mal,
que agora padecia , ſerviſle de deſcon
to ao ſeu enormiſlimo peccado : e tan
to fedeixoua penetrar deſta lua refolu .
çaó , que querendo reſgatá- lobum ſeu
parente , elle lhe eſcreveo diſſuadin
dindn-o , e accreſcentando, que a ma
yor lilonja , que podia fazer-lhe , era
deixá -lo no ſeu cativeiro ; porque eſta
va perſuadido que a cruz , que levava
nelle , era muito por eſpecialdetermi
naçaõ da Providencia . Finalmente ti
nhatal fé o noſſo S.Luiz Beltrao com
o Veneravel Provincial Fr. Domin
gos , que nao eſcrupulizava em invo
cá -lo com a meſma confidencia , com
que ſe implora o ſoccorro dos Santos.
Com o meſmo S. Luiz , e S. Vicente
Ferrer , e outros Servos de Deos da
Ordem , appareceo o noſſo Seryo do
Se
 RECOPILAC, AM
Senhor , e ſeu companheiro o Vene-
ravel Fr. Amador , a hum piiffimo Ca-
talaõ , chamado Raymundo , que de
precava o ſeu favor, e allittencia ao
tempo , em que eſtava felizmente ago-
pizando .
RECOPIL A C , A M
de 13 de Julho,
M Metz , o V.P. Fr.Gal.de'
Tul. Eſpecializou -ſe muito . las occupaçoens. Subia muitas vezes
eſte Servo de Deos na Oratoria ſagra- ao pulpito a dar o paſto da palavra Di.
da , e muito mais em que condiflellem
as ſuas obras com as ſuas palavras. Na
modeſtia , e na innocencia , foi verda-
deiramente admiravel.Finalmente ha-
vendo cumprido mui exacta , e fiel-
mente com asobrigaçoens da vida Re-
ligioſa morreo de huma morte muiade
miravel no confpecto de Deos , e dos
bomens, no annoda noſla Redempçao.
de 1308. An. Domin .
2 Em Raguza , na Dalmacia , oll-
luſtriſſimo Biſpo daquella Cidade D.
Fr. André de Durazzo . Promoveo -o
a esta Igreja o Santiſſimo Padre Boni.
facio IX . correndo o apno de Chriſto
de 1389. , e havendo -a governado com
hum perfeitiſſimo exemplo , e vigilan .
cia de verdadeiro Paſtor por eſpaço
de quatro annos , aſſim morreo , co
mo vivera fantamente no apno de
1393. , e foi ſepultado na noſſa Igre .
ja. Fontan. in Theatr.pag.95.
3 Em Juftipopoli o Illuſtriſſimo
Biſpo detta Cidade o V.D.Fr.Franciſ .
co Servandi. Tevea gloria de ſer digno
companheiro daquelle Eminentiffi.
mo Cardeal , e grande reparador da
diſciplina Religioſa, o Beato Fr. Joaõ
Domingos ; e era hum Religioſo tao
inſigne , que o Vigario de Chrifto o
exaliou primeiro a Paſtor da Igreja de
Arbe , e ultimamente á de Jultinopo-
lj . Em ambas eſtas dignidades , deo
grandes 'moſtras o Servo de Deos da
lua piedade , zelo , e Religiao ; e go .
vernou eſta ultima por eſpaço de vin .
te annos com buma economia taõpru .
de 13 de Julho.
dente , que , ſem faltar á bõa admini
ftraçao da juſtiça , parecia fer a mef
ma benignidade. Achou a ſua Dieceſe
pouco menos que deſtruida ; masſou
be -ſe haver de tal modo , que dentro
depouco tempo a fezreflorecer, tor
pando - a ao ſeu primitivo eſplendor.
Nenhuma outra couſa buſcava com
mais empenho , do que a maior dila
taçao do Reino dos Ceos . Era de mui
ta oraçao , e nella gaſtava todo o tem
po que podia poupar dasſuas laborio
vina as ſuas ovelhas , e era cao eſmo .
ler , e caritativo , que quando Deos o
chamou no anno de 1448. nao houve
caſa , em que nao foſſe muito chora
da a ſua fanta morte. = Fontan . in
Tbeatr.pag.208.
4 Em Badajoz o Illuſtriſſimo Bif
po deſta Cidade D.Fr.Pedro daSilva .
Dotou o Ceo a eſte Religioſiſſimo Pre
lado de buma notavel providencia , e
a elle deveo Caſtella a ſua quietaçaõ ,
e paz, quando ſe via ameaçada de huma
violenta , e inteſtina guerra ; porque
eſtando dividido o Reino em facçoēs,
e ſeguindo huns o partido de El Rey
D. Joao o II . , e outros o do Principe
D. Henrique , feu filho , por quem
eſtava a Cidade de Toledo , o noſſo
D. Fr. Pedro teve tal induſtria , que
nað ſómente pode introduzir nella &
ElRey , lenaõ reduzi-la , como redu .
zio , å ſua obediencia , com o que ſe
começáraó a ſerenar os diſturbios ,
que fatalmente ſe hiao urdindo . Mor
reo com grandes finaes de predeſtina
do do anno de 1455. , e mandou - ſe fe
pultar no coro da noſſa Igreja , que
elle muito cuidára em ampliar gran
demente , eſtabelecendo nella jazigo
para os deſcendentes do Marquez de
Monte mór , ſeu irmao , e para os
Condes de Portalegre ſeus parentes.
= Lopes.
5 Em Salamanca , no nollo taoce.
lebre Convento de Santo Elevao , o
V.P. Fr.Affonſo de Luna.Foihum dos
mais preclaros Alumnos daquella nn .
bilir
56 FR . PEDRO DE SANTO
biliſſima Univerſidade , occupando,
com tanto applauſo , como latisfaçao,
as duas Cadeiras de Eſcoro , e Duran
do .A ſua vida foi mui fanta , e a ſua
morte foi bum ecco da ſua vida . Ale .
grou - ſe muito quando o aviſáraó de
eſtar chegado ao ſeu ultimo cermo,
porque ſempre eſtivera aparelhado
para eſte ultimo golpe , de que can
tas vezes havia feito a Deos hum vo
luntario ſacrificio . Quando lhe trou-
xérað o Santiſſimo Viacico , nao ſe
pode contêr na ſua pobre cama , e le-
vantando ſe della com o ſeu habito
poſto , muito deceniemente recebeo
aquelle manná dos Anjos com tantas
lagrimas , que nao houve quem pudef- nao deſmayaya , nem ſe dava por ven
le ſupprimir as ſuas : morrendo dallicida de tantas contradiçoens , e nao
a pouco , foi ver face a face ao meſ- querendo outroſim defraudar a Reli
mo Senhor , à quem tao altamente
ſervîra , no anno de 1596. Lopes.
Remez p.460 .
14. de Julho.
Vida do Illuſtriſſimo , e Ve
1
neravel Padre
F R. P E D R O Horal , condeſcendeo com os bons de
DE SANTO ASTE RIO
Biſpo de Perigêo ,
Extrahida de Bernardo Guido , e da
Gallia Chriſtiana .
I Oi o Veneravel Padre Fr.
FP C
Pedro de Santo Aſtério def.
cendence da nobiliſſima Familia aſlim
chamada, e de grande reſpeito no Pe.
rigordo , Provincia mui conſideravel
da França . Menos pelo ſeu preclariſ-
ſimo ſangue , que pelo ſeu abalizado
merecimento foi exaltado á Cadeira
Epiſcopal da Cidade de Perigêo , que
elle adminiſtrou fantiſſimamente por
tempo de trinta e tres annos . Mas ao
tempo ,que exercirava tző digoamen .
teoſeu Officio Paſtoral,fazendo huma
ſéria, e madura reflexao na vida , e dou .
trina celeſtial dos Doflos Religioſos de
Limoges, entrou na determinaçao de
largar o Biſpado ; e aſſociar -ſe á ſua
companhia . Propôs o ſeu intento a
ASTERIO 14 de Julho .
Gregorio IX .;mas comoaboa famado
ſeu governo era tað notoria por toda
a parte , nao quiz o Pontifice dar- lhe
ouvidos , nem Thosdérao tambem ſeus
Succeſſores Innocencio IV. e Alexana
dre IV . Subo Clemente tambem IV .
ao Sólio do Viaticano , e repetio , e re
forçou onoflo Fr.Pedro as ſuas inftan
cias com tanto vigor , e actividade co
mo ſe foſſem aquellas as primeiras que
fazia.
2 Amava Clemente IV . affe & úo
fiffimamente a Ordem , e guardava el
le meſmo ,quanto mais lhe era poſſivel,
as fuas Constituiçoens , e attento á vo
caçao do Illuſtriſſimo Fr. Pedro , que
giao de S. Domingos , de que era tað
amante , que logo entrava honrando-a
com huma tal demonftraçao , como
era demittir por ella huma Igreja tao
celebre , e tao.rendoſa , fem embargo
de haver quem diga , com menos fun
damento , que elle ſahio dos noſſos
Clauſtros para empunhar o Bago Pa
ſejos do Veneravel Prelado. Havia
nos elle feito muitos, e grandes bene
ficios na ſuaCorte Epiſcopal; porque
no ſeu tempo , correndo o anno de
Chrillo de II., he que alli fomos in
troduzidos , e alli he que diffundio ,
como em esfera que lhe vinha mui pro
porcionada , os rayos da ſua heroica
virtude o Veneravel Padre Fr. Joao
Baletrier . Elle , e o ſeu Cabido nos
concedêrao fóra da Cidade hum pe
daço de chao muito a propoſito , com
huma Igreja da invocaçaõ dę s.Mar
tinho , que era Priorado , e Priorado
tað honorifico , que havia ſido em ou
tros tempos Convento de Religioſos,
fundado por Santo Eparco da clarif
ſima Caſa dos Condes de Perigêo , e
conſervou -ſe até o anno de 840. em
que aquella Cidade foi deſtruida.
3 Com ette ſagrado edificio nos
deo mais todas as ſuas pertenças , me
diante huma juſta , e racionavel com
pen
 RECOPIL A C,
penſação , que le fez com os donos do
Priorado . ` Coniribuîo mais o bom
Prelado com huma competente ſom-
ma de dinheiro para a obra do Con
vento . Mandou fazer nelle magnifi
camente as quadras da enfermaria , e
da Bibliotheca , e huma galaria mui
viſtoſa , e bem traçada , que ſe cha
ma de Balaleu. Nao ſe adiantou me
nos o outro noſſo Convento de Bra
gerac á ſombra do ſeu favor, e ref-
peito ; e como a Provincia de Tolo-
la eſtava aquelle tempo unida com a
de Provença, foi aceita eſta Caſa no
Capitulo Avenoniente de 1264.affig-
nando -ſe -lhe por ſeu primeiro Prior
Fr. Guilherme de Santo Aſtério , pa-
rente mui chegado do noſſo Venera-
vel Biſpo. Cooperou muito para o
adiantamento deſta obra , Margarida ,
mulher de Raymundo , Senhor de
Pons, que deo o terreno para a fun-
daçao , caridade que o Ceo lhe gra
tificoumui largamente , dando- lhe
aconlolaçao de ver florecer naquella
Caſa de Deos Religioſos mui bene
meritos , exemplares , e Santos .
4 Querendo pois o Illustriſſimo
Fr. Pedro diſpor-ſe mais condignamē-
te para a ſua renuncia, fahio de Pe-
rigeo para o noſſo Convento de Li-
moges, aonde entrou noprimeiro de
Março de 1266. , e alli conſervou até
o anno ſeguinte os ſeus indumentos
Epiſcopaes, deixando -os entao pelo
noſſo lanto habito , que lhe lançou o
Veneravel Prior daquella Caſa , Fr.
Eftevao de Salanhac . Quanto mais hia
decabindo da idade o Servo de Deos,
tanto mais parecia que ſe reftituîa de
de forças , ſegundo a exacçao ,e rigor ,
com que ſe ajuttava as diſpoſiçoensda
Regra. Algumas vezes exercia o Of-
ficio Pastoral, conferindo as Ordens
Sacerdotaes ; e o noſſo Fr. Bernardo
Guido ſe gloria muito de baver re-
cebido a conſura Clerical das ſuas
maos . Chegado finalmente a humave
neravel , e dicoſa velhice , e havendo
vivido depois da rejeiçao da lua Mitra
oito annos, e quatro mezes e meyo
Tom . VII,
A M de 14 de Julho : $7
na Rellgiaó , paflou em 14. de Julho
de 1275.a lograr-ſe no Ceo doineitavel
premio dos ſeus trabalhos .
RECOPILAC , AM
de 14. de Julho.
M Limoges os VV . Padres
' E Fr. Humberto Chalar , e Fr.
Gerardo de Marivier . Eftes dous Vea
neraveis Religioſos forao mui unidos
pelo triplicado vinculo da caridade,
da profillao do Inſtituto , e da prat i
ca das virtudes : e como , ſegundo o
dito do Eſpirito Santo ,a triplicidade
dos vinculos difficulta grandemente
que elles ſe poſſao romper , eſte foi
tao difficil de quebrar , que nem ain
da o pode conſeguir a fouceda morte ,
porque ambos expiráraó no ineſmo
dia , e anno , em quetambem morreo
o Illuſtriſſimo Biſpo de Perigêo , de
quē acima fazemos mençao . Bern.
Guid .
2 Em Poiſli , o V.P.Fr. Reginald
do de Aubinhi , do Convento de Char
tes . Foi Varao deinſigne merecimen
to , e Confeflor de Filippe, o fermo
ſo , de França , de quem impetrou a gra
ça da fundaçao daquelle magnifico , e
Real Convento , levantado naquelle
meſmo lugar em que nafceo S. Luiz
Rey de França , ſendo eſte o primei
ro Templo, que ſe conſagrou á me
moria , e obſequio daquelle ſanto Mo
narcha. Foi digniſſimamente o noſſo
V. P. o ſeu priđeiro Prior , e haveni +
do trabalhado grandemente por con
duzir aquellas Eſpoſas do Cordeiro
Immaculado ao thalamo da eterna glo
}
ria , foi tambem chamado para ella no
anno do Senhor de 1304. Soueges.
3 No Moſteiro de Santa Cathari .
pa de Dinan , em Bretanha , a muito
Religioſa , e virtuoſillima Soror Ca.
riſa de S. Domingos . Quizera a Ser
va de Deos veſtir logo o noſſo ſanto
habito apenas ſe acabou de edificar
aquella Religioſa Cala ; conſiderando
porém mais prudentemente que eſte
H ſeu
 C
I LA
OP
C ho
58 RE , AM de 14 de Jul .

feu delejo a poderia allucinar, viodo a deixafem morrer em huma pobre ,

Ć
Ibe a faltar depois as forças neceflarias e humilde cama ao tempo em que ſe
para futter huma vida mais auſtéra , e lhe fazia a encomendaçaõ da alma, cu
apertada , nao ſe quiz aventurar logo jos verſiculos alternava a Serva de
a abraçar o noso ſagrado Inſtituto , Deos com igual advertencia , que de .
deixando.ſe ficar no feculo por mais voçao , entregou a alma a ſeu Divi
algum tempo , como enfajando- ſeme .no Amante no apno de 1648. An
lhor para o que intentava . Era a Ve . no Dominic.

Deravel Cariſa livre , porque nao ti 4 No Real Moſteiro de Poiſſy a

nha pay , ou máy , e era mui opulen V. Madre Soror Anna Catalaa . Era 1

ta , e prendada, pelo que podia diſpor de 16. apnos quando renunciou gene
de fi, como fofle mais ſeu goito : po- roſamente o mundo , virando as col
rèm correſpondendo fideliflimamen tas as ſuas liſonjas , e vaidades , e ef dan
te á ſua vocacao , todas as ſuasacçoes colhendo para ſeu Eſpoſo aquell Ses bcu
eraô exemplares, e edificantes. A ſua nhor , que he ſomente o que he ; e gre
devoçao era laoſincéra , como entra- deſempenhou -ſe com tanta fidelidade de
nhavel , a ſua modeftia mais parecia a ſua reſoluçao , quet m 68.annos, que
de hum Anjo , que de huma mulher , teve de Clauſura , jamais deo hum
o leu recolhimento era de modo , que paſſo , que nao foſſe para buſcar a eter
V
mais parecia viver no dezerto , que na uniao do meſmo Senhor . Era a Se
no povoado , e era finalmente a lua ca. va de Deos a primeira que entrava no F
ridade igualmente profuła , que infa- Coro , e a ultima que ſahia delle . Ma
ciavel . Havendo chegado aos 34. an tava -ſe porque nem venialiſſimamente F

nos da ſua idade , confiando no Divi- ſe faltalle å inteira obſervancia das

no Espoſo , quanto deſconfiava de fi, Constituiçoens . Era tao dada á Ora

entrou naquella Communidade, fa-
zendo - ſe vidima ſua a impulſos do ſeu
tao inflamado amor . Viveo entre as
Religioſas como altro de ſuperior grā .
deza , exercitando - ſe em todo o ge-
nero de virtudes , e muito eſpecial-
mente na da pobreza , padecendo a
falta das couſas mais precilasſem pro-
curallas , ou pedillas , recebendo -as
como por eſmóla. Mas poftoque a V.
Madre ſe diſtinguioraõ altamente , em
çaó , que ſe a experiencia a nao mo
itrára aſſiſtida de outras muitas virtu
des , poderia parecer que era aquel
la a unica em que ſe eſmerava. ' Era
obedientiſſima, ou , para melhor o di
zer , a obediencia era aquella alma por
quem ella ſe animaya , e movia . Mo
Itrava- le tað ſingularmente humilde ,
que le cinha por indigna deexercer os
menores cargos ; e posto que podia
honrar os maiores , e os Superiores af

quanto nañ foi accommettida de mo- fim o reconheciao , e muitas vezes em

leftias , (ubio muito mais incomparavel-
mente de ponto , depois que adoeceo
dos bofes ; porque nao faltava ás fun .
çoens da Communidade , ou ſe falia .
beneficio commum a quizerañ promo
30
ver a elles , valendo-le para iſlo do ſeu
imperio , conſiderando por outra par
te a grande pena , que com iſto The

vi era por chegar o mal ao ſeu extre. podiao occalionar , ſe abſtiverao do

mo , e ſempre com hum ſemblante tao
riſonho , e com huma tal reſignaçao
na vontade Divina , que mais parecia
eſtar já na gloria , doque padecer hum
purgatorio tao penoſo. Nao conſen-
ria em diſpenſas, e ſingularidades; ou
fe conſentia era mais obrigada pela
ſeu intento , aindaque nao tanto , que
bao a obrigaſſem a aceitar o cargo de
Meſtra de Noviças , em que ſe vio bem
qual fofle a ſua vigilancia , a ſua pru
dencia , e a ſua piedade. Quizerað de
pois elevalla a Sub -Prioreza; mas dei
xarao -ſe dette progreſlo, por naõ lhe

obediencia , do que pela neceſſidade. darem tanta mortificaçao . Nos ulci

Finalmente havendo conſeguido que mos cinco annos da vida deita Serva
de
 FR . ROBERTO KILVARBIO . 15
de Deos ,padeceo aquella Caſa alguns
contratempos, e contra todos recei
tava a Serva de Deos o verdadeiro cū-
primento da Regra ; porque quanto
mais formos fieis á Deos , ( dizia ella )
tanto mais certamente o teremos da
noſſa parte . Accommertida finalmente
da ſua ultima queixa , paſſou os derra-
deiros treze dias antecedentemente
immediatos á ſua morte impedida da
falla ; e explicando-ſe melhor , e mais
carinhoſamēre com o ſeu Divino Ama-
do com os affectos do coraçao , paf-
ſou , depois de Sacramentada , a lo
grar eternamente a ſua viſta no anno
de 1666. = Soueges. :
15. de Julho.
Vida do Eminentiſſimo Cardeal
Fr. ROBERTO KILVARBIO ,
Provincial de Inglaterra , Legado da
Santa Sé Apoftolica , Arcebiſpo
de Cantuária , e Biſpo do Por
to ,humadas Dieceres ſuffraa
ganeas á Igreja ;
Extrahida de Triveto , Ptifeo , Fon
tana , e outros.
I Noſſo Eminentiſſimo, e V.
O Cardeal Fr , Roberto Kil-
varbio nao acreditou menos a noſſa
Sagrada Ordem com a ſua ſanta vida ,
que com a ſua egregia Purpura ; com
as ſuas altiſſimasdignidades , que com
as ſuas tao eminentes virtudes . Sen-
do ainda muito moço , deixou as ter
ras do ſen natural , para vir , como veio ,
á florentiſlima Univerſidade de Pariz
a fim de fazer mais avantajados pro-
greflos na applicaçao dos eſtudos , a que ſendo ,
que mais o chamava a viveza do ſeu
genio . Aqui ſe entregou , pois , o vir-
fuoſo mancebo ao placido exercicio
das letras , com hum tal amor , eap
plicaçao , que pouco tempo lhe foi
neceffario para ſe diſtinguir , e dar a
conhecer por hum dos mais aprovei-
tados , e bem inftruidos. Havendo
chegado á idade competente , orde-
Tom . VII.
de Julho.
59
nou -ſe de Sacerdote , conformando
em tudo a ſua vida com as obrigaçoens
do ſeu eſtado , e pondo em huma bel
la pratica todas aquellas liçoens , que
havia colhido nos livros. Prégava por
eſtes tempos o noſſo B. Fr. Jordaõ com
hum zelo , em que estavao ſciotillan
do as chámas daquella tocha , em que
ſe ſymboliza noſſo grande Padre S.
Domingos , cujo eſpirito , aquelle ſeu
taõ condigno fucceflor, tanto , e tao
proximamente, havia participado, qual
outro Elizeo . Ouvio - o o noſſo Ro
berto , e penetrado de hum heroico
deſengano das couſas da terra , ſe de .
liberou a dar coſtas ao mundo , toman
do o habito Dominicano . Aflim como
o emprendeo , aſſim o executou , e
veſtindo -o no noſſo Convēto de Sant
lago de Pariz , voltou a Inglaterra ,
onde o illuſtrou , e honrou grande
mente com a ſua doutrina , e muito
mais com as ſuas preclariſſimas acçoēs ;
e elle foi hum dos noſſos primeiros
Doutores , que, com igual gloria , que
juſtiça, florecerao na Univerſidade de
Oxford .
2 Sendo determinada , no Capi
tulo de Barcelona , celebrado em 126 1 .
debaixo do governo do B. Humber
to , a depoſiçaõ do Provincial de In
glaterra , em pena de haver faltado ao
cumprimento de certas diſpoſiçoens ,
que ſe haviaõ dado no Capitulo , que
ſe effeituara no anno precedente de
1260. em Eſtrasburg ; foi elegido em
ſeu lugar no Convento Oxfordienſe
em Clauſtro pleno o noſſo Fr. Rober
to ; e correſpondeo tao altamente a
eſta nomeaçao , que naðſó teve aquel.
le Provincialado onze annos , ſenaõ
ſegundo oeſtylo daquelles
tempos , apeado defte cargo no Capi.
tulo géral Florentino de 1272. , foi en
tao de novo reelegido para mandar a
ſua Provincia , o que nao he pequeno
final do ſeu merito , attenta a mais fe .
véra circunfpecçao , com que naquelles
tempos ſe olhava para eſtas couſas. Tal
era a opiniao em que Santo Thomaz ,
Biſpo de Hesforel, tinha ao noilo V.
H ii P.
60 FR . ROBERTO KILVARBIO
P. que o elegeo para ſeu Confeflor ; e
havendo de farer hubs Actos Douto .
raes na Univerſidade deOxford , pao
quiz ter , como teve , oui ro Preſiden-
te ſenao ao pofjo V. P. : como porém
o Summo Pontifice Gregorio X. an
nullou por eſte tempo a eleiçao de Pre-
lado, y para o Cabido Cátuarienſe havia
feito , promovendo naquella primacial
dignidade a Fr. Roberto , foi neceſſa-
rio retardarem -fe eſtas concluſoens até
a ſua Sagraçao . Deixou o Papa no ar,
bitrio do noſlo Servo de Deos o poder
eſcolher o Biſpo , que o havia de Sa-
grar , e fez elle eleiçao de Guilherme,
Biſpo Bothonienſe , que entao pafla-
va aquelle Reino com opiniao de hia
confūmadiſſima virtude , eſperando af.
ſim receber mais algum augmento de
graça , mediante a impoſiçaõ de maos
ta 'veneraveis. Execuiou - ſe eſta acçao
folemniſſimamente pa prezença de do .
ze Biſpos Suffraganeos de Cantuaria.
A outra , em que elle coroou, por ore
dem do meſmo Vigario de Chrifto , a
Eduardo para o que o eſcolhera por ſeu
Confeſſor napreſença do Rey de Ef.
cocia , e do Duque de Bretanba , pof.
toque menos fanta , foi muito mais eſ.
trondoſa .
3 Entre a magnificencia paſtoral,
nao affectava o V. Religiolo as profa .
nas fumpiuoſidades do leculo , viven-
do dentro dos limites de huma mode.
rada , e prudentiffima economía da po-
breza religioſa ; e morto aquelle Su-
premo Paſtor, foi logo propoſto pelo
Rey o poſſo bom Arcebiſpo a ſeu
immediato fucceffor Nicolao IIJ.para
ſer adnumerado ao Sagrado Collegio
Cardinalicio . O Pontifice, que eſtava
muito bem informado das excellentes
virtudes do Primaz de Inglaterra , eſo
timou grandemente eſta rogativa , fa.
zendo -o noapno de 1278. Cardeal Bif-
po do Porto, debaixo do titulo de San:
ia Rufina. Viole preciſado por eſta
occafiao a paſſar logo a Roma , e bem
moſtrou que eſtas como as ſuas primei .
ras exaltaçoens , nao puderaõ imprimir
no ſeu animo , nem a mais leve muy
15 de Julho :
dança nos coſtumes , podendo -ſe -lhe
bem applicar a ette Feniz da literatu
ra , eſantidade a letra que hum diſcre
to pôs á figura do outro Feniz , tað
decantado , como fabulozo : Sempre o
meſmo. Nao fez eſta dilatadiſſimajor
nada com a pompa , e magnificencia ,
que pedia o ſeu eſtado , ſenaő a pé ,
arrimado a hum bordao , e ſem mais
comitiva , que a companhia de hum
Religiofo feucopanheiro .Logo che
gou aquella ſanta , e facerdotal Cidade,
cuidou em renunciar oſeu Arcebiſpa
do nas maos Pontificias ; e nao he di
zivel o agrado , e acolhimento com
que foi recebido pelo Succeſſor de S.
Pedro , que attento à ſua monſtruoſa
erudiçaõ ſe fervio delleem muitasoc
caſioens para que eſcreveſle algumas 1
cartas de negocios importantiſlimos ;
e entre ellas ſe conta as que elle man .
dou ao Imperador dos Tartasos .
4 Nunca largou o habito de S.Do
mingos , e obſervou ſempre com ef
crupoliſlima pontualidadeaté as maio
res miudezas da ſua Regra , diſtinguin
do - ſe muito no ponto da abſtinencia,
em nada differente daquellas , que em
outro tempo exercera dentro do clauf
tro , parecendo -lhe queaſublimidade
do ſeu Officio nao era baftante a de
fobrigallo deſte rigor , que elle havia
promettido nao violar até morrer :
Toda a ſua numeroſa familia ſe com
ponha unicamente de quatro domeſ
ricos , dous Religioſos , e dous fecu .
lares . Foi fummamente applicado á li
çao da Eſcritura , e dos Padres , el
pecialmente Santo Agoſtinho, que
elle havia reſumido com igual enge
nho , que magiſterio . Teve fama de
ſer hum dos mais inſignes Theologos
que o Senhor dêo á ſua Igreja . Com
pôs muitas , e excellentes obras, e o
ieu catalogo ſe pode ver nos que tra
tarao ex profeffu dos Eſcritores da Or.
dem . Priſeo , Author mui celebre , e
que tratou dos que florecerao em In
glaterra, fallando dó noflo Servo de
Deos , diz que a ſua feliz morte , que
fuccedeoem Viterbo no anno de 1280
que
 FRANCISCA BALHIONA
que era o ſegundo poſterior ao ſeu
Cardinalato , nao carecia de algumas
conjecturas de haver ſido por vene
no . Se aſſim foſſe , ſuppotto o tao alto
merecimento deſte grande Principe
da Igreja , nao podia haver quem ſe
aftoutaiſe a cometter huma acçao tao
abominavel , fenaô em odio da ſua ju-
ftica , ou de qualquer outro dos ſeus
virtuoſiſſimos predicados ; e peſta ſup-
poſiçao o poderemos contar entre o
numero dos inclytos Martyres Do
minicanos .
15. de Julho.
Vida da Veneravel
F R A N CISC A occaſiaõ de grande aperto hum ſeme
BALHIONA ,
Preclariſſima Fundadora do nofo
Moſteiro da Humildade da Ci
dade de Roma ,
Extrabida do AnnoDominicano.
I Nobiliſſima Fundadora do
Moſteiro da Humildade ,
fito na Cidade de Roma , teve por
ſeus illuſtres , e condignos pays Pe-
dro Balhioni , e Catharina de Medi-
cis , e com a nobreza dasſuas acçoens
fez hum conhecido exceſſo ao eſplen-
dor do ſeu ſangue . Começou a ſer in-'
fruida deſde mui pequena nos exer-
cicios da piedade , e Religiao ; e cor-
refpondeo com igual propenſao , que
celeridade a eſta boa cultura . Chega-
da a huma idade competente , deſpo-
zou -le com Franciſco Urſino ; mas
em trinta annos , que viveo neſte con-
ſorcio , nao lhe quiz conceder o Ceo
deſcendencia, havendo deſtinadodar-
lhe outra mais fecunda , e mais ſanta .
Quiz o Grao Duque de Toſcana hon-
sar a ſua Corte com a aſſiſtencia pef-
ſoal de duas peſſoas tao benemeritas ,
e condeſcendeo Franciſca , e ſeu ma
rido com eſte bom deſejo de ſuas Al-
tezas : paſiarable a Florença,aondevi-
verző quinze annos. Por eſte tempo
foi expedida a noſla Fundadora a Mar-
15 de Julho. 61
ſelha para receber , e acompanhar a
Duqueza Criſtina de Lorena quando
eſta paſſava a celebrar os ſeus delpo
ſorios com o Grao Duque Fernando ,
e outra vez tornou a Provença para
cumprimentar , e fazer companhia á
Rainha Maria de Medicis , quando
eſta vinha para França. Em quanto a
nofla Franciſca ſe dilatou na Corte
dos Duques , nao deixava de empre
gar -ſe em muitas obras pias', e meri
torias , perſuadindo a Suas Alcezas a
que fizeſiem , como faziao , tambem
o meſmo ; porque em huma das fun
çoens , que aillemos , impetrou huma
grande eſmola , que ſe applicou para
cativos ; e havendo promettido em
lhante loccorro , ella puxou pela exe
cuçao deſta palavra , que ſe cumprio
muito liberal , e grandioſamente.
2 Morto ſeu eſpoſo , deliberou-le
a partir para Roma , para pôr em ef
feito hum projeto , com que eſtava ha
via muitos annos , e que até entao ti
Moſteiro de Religioſas, e applican
do- lhe todas as ſuas riquezas , que eraõ
muitas , e mui precioſas. Começou a
fundar- ſe em 7. de Março de 1601.:
fez grandes eſmolas a peiſoas neceſſi
tadas , e para poder alargar mais a
mao , vendeo alguns dos ſeusmoveis,
coarctando -os quanto mais podia. Ain
da nao eſtava relolvidano Inſtituto
que ſe havia de aſlinar aquella nova ह
Caſa ; e examinando, a eſte fim , o que
havia de mais ſanto , e mais exemplar
naquella tao inclyta Cidade , ſe agra
dou mais da obſervancia do noflo Mo
ſteiro em obſequio de Santa Maria
Magdalena , eſtabelecido em Monte
Cavallo , pela Madre Soror Maria de
Urſins , que alli vivia em grande opi
pia ) ccm hum copiofo numerode Re
ligioſas. Levada deſte penſamento , al
cançou hum Breve de Paulo V. para
dalli fahirem a fundas quatro Reli
gioias, de quem faremos diſtincta men
çao neſte meſmo dia . Eraõ ellas Soror
Angela Mareri , Soror Maria Angela ,
Sos
62 CATHARINA THERESA DE S. AGOSTINHO 15 de Julho.
Soror Catharina , e Soror Jaqueta , da
Cala dos Condes de Penia .
Sabirao eftas Fundadoras de
3
Monte Cavallo em dia do Archanjo
S. Miguel no anno de 1613 .; e depois
de haverem viſitado as Igrejas de San-
ta Maria Mayor , aonde os noſſos Re
ligioios tem a Penitenciaria , e a de S.
Joao de Latrað , que he a mais antiga
de Roma , pafſárao para o novo Mo
ſteiro , a que logo ſeimpôs com a clau
ſura a Invocação de Santa Maria da
Humildade . Foi eſtabelecida , e dota
da ella Caſa para trinta moças nobres,
Romanas , e filhas legitimas de pays
pouco favorecidos da fortuna , e para
feis Irmías Converſas. Attenta aquel
la bella ſentença de S. Bernardo , que
diz que todos os beneficios, que o Se
nhor nos faz , ſe nos participao pelas
Maós da Senhora , e deſejoſa de gra
tificar tanta obrigaçao de algum mo
do , todos os bens que conſagrou ao Di.
vino Eſpoſo das almas , lhos conlagrou
por intervençaõ da Rainha dos Anjos.
A noſa Franciſca , grande veneradora
da Humildade , e que a eſtimava mui
grandemente na Virgem Santiſſima ,
o que a movêra a dar a denominaçao,
que difTemos , ao ſeu Moſteiro , obfer-
vou praticamente eſta virtude , repu-
tando -ſe por indigna de aggregar -ſe
ao numero daquellas Eſpoſas de Chri-
Ito , depois de o haver ſido de hum
homem mortal , ou de que ellas a ſer-
viſſem em alguma couſa , o que cer.
tamente nao poderia evitar , ſe veftiſ-
ſe o noſſo habito ; ſe bem que vivia
tao Religioſa , e fantamente , que pa-
rece que nao o veltia exterior , fepao
interiormente.
4 Naquelle Moſteiro acabou de
gaſtar o reſto dos ſeus annos , reſer-
vando huma ſó criada , que antes ſe
podia chamar companheira , e ſeguin-
do á riſca as funçoens da Communi-
dade tao attencioſa , e tao devota , co .
mo ſe por profilTað le viſſe obrigada a
dar o melhor exemplo aquella Caſa .
Finalmente , depois de aſlim a haver
edificado no temporal, e no eſpiritual,
foi chamada para o premio , median :
te huma penoſa enfermidade, que a
atormentou quarenta dias , em que
nao ló le lhe nað ouvio queixa, mas
nem ainda huma palavra ſuperflua : e
trocando eſtas penas momentaneas
em glorias ineffaveis , paſſou para a
companhia dos Santos em 15. de Ju
lho de 1626 .
15 de Julho.
Vida da Veneravel Madre
SOROR CATHARINA
THERESA DE S.AGOSTINHO ,
Extrahida dasmemorias, que ſe con
ſervaõ no Moſteiro do Santiſſimo
Sacramento da Cidade
de Lisboa,
I Afceo a Veneravel Madre
N Soror Catharina Thereſa
de Santo Agostinho fia Freguezia de
Santo André de Eſgueira , e foi filha le
de Joao de Brito Caflað , e de ſuamu
lher Paula da Fonſeca , e irmãa da Ve
neravel Madre SororPaula do Eſpiri
rito Santo , cujas exemplariſlimas ac
çoēs andao já eſtampadas no tegundo
Tomo deſte Agiologio a 5. do mez de
Junho.A boa indole da Serva de Deos ,
cultivada , e ajudada da virtuoſa edu
caçao que lhe dérað ſeus pays , tudo
lhe ſervia de pungente eſtimulo para
dar -ſe a Deos em huma Clauſura ; va
cillava porém na eſcolha da Caſa, a que
ſe devia acolher.Andando em luta com
eſtas perplexidades, lhe appareceo em
ſonhos Maria Santiſſima com toalha,
e veſtida de azul ferrete , como ſe co
ſtuma repreſentar a Senhora do En
contro ; e ou foſſe neſta occaſiao , ou
em outra , lhe ordenou a meſma Rai.
nha dos Anjos que ſe recolheſſe ao
Moſteiro obſervantiſlimo do Santif
fimo Sacramento deſta Corte . Dere
java Soror Catharina muito vivamen
te encontrar em alguma Igreja a San
ta Imagem , que lhe fallou ; mas de
pois de fazer diligencias mui repeti
das , todas lhe fahirao deſaproveita,
dasa
 CATHARINA THERESA DE S.AGOSTINHO 15 de Julho.
das ; e parecendo- lhe que perdia todo
o tempo , que deixava de exercitar a
ordem que lhe fora impoſta , cuidou “ paflo , que nað foſſe a muito cuíto , ja
muito em cortar pelos embaraços mais ſe lhe pode notar a menor qué
que ſe podiaõ metter de permeyo : naõ
era o mais pequeno o haver de ſepa.
rar - ſe da eitreitiſſima familiaridade ,
que ella tinha com as Condeſſas de
Penaguiao , e Figueiró , que a ama-
yaõ terniſſimamente ; e aſlim por ob
viar - lhes o ſentimento que havia de
cauſar -lhes a ſua deſpedida , como
tambem por fugir a alguma perſua-
fao menos conforme com os ſeus ſan-
tos propofitos , tomou o expediente
de eſcrever -lhes , como eſcreveo , būs
carta , em que lhes dava o aviſo de paf-
far , á imitaçao de ſua irmãa , a abra .
çar o melmo religioſo , e lantiffimo
Inſtituto. Vencidos finalmente todos
os obitaculos , veſtio a Serva de Deos
o no lo habito em 5. de Janeiro , e
concluido o teu Noviciado , tez ſo-
lemnemente a ſua profillaó em dia dos
Saptos Reys .
2 Succedeo acompanhar em hum
dia em acto de Communidade huma
Prociſlao dos Defuntos , e entrando
com eſta occaſiao na caſa do Capitu-
lo , em cujo Altar eſtá o Senhor dos
Paſſos com a Virgem Senhora noſſa
do Encontro , conheceo logo que
aquella era a Soberana Effigie , que
primeiro lhe havia aconſelhado que
dando coſtas ao mundo ſe acoutaſie
ao porto ſeguro da Religiao , e aſlim
o difTe logo á ſua Meſtra. Nao ſe mo
ftrou deſagradecida a noſſa boa Re-
ligioſa á lua Soberana Bemfeitora ;
dalli por diante ficou corren-
porque
do por ſua conta o alumialla , e ſer-
villa , o que continuou até morrer .
Foi Soror Catharina indiſpenſavel na
guarda das Conſtituiçoens , naõuſan-
do jamais de outra camiſa que nao foſ.
de de eſtamenha , cumprindo á riſca os
preceitos dos jejuns, e jejuando , além
dos da obrigaçao , outrasmuitas vezes
a paā , e agua ' , e nao faltando jamais
ás Matinas da meia noite . Neſtas con-
diçoens , e em todas as mais foi tao
63
fiel, e tao exa &ta , que ſendo ja tað
entrada em apnos , que nao dava hum
bra nas leys da Ordem .
3 Depois da Oraçao , que ha de
pois de Matinas , ainda ſe deixava fi .
car no Coro rezando o Roſario da Se
phora . A oraçao , que tinha, era igual
mente fervoroſa , que dilatada ; por
que era tao contemplativa , que nao
havia para ella objecto , que lhe nao
elevafle a mente no Creador . Nao fo
rao poucas as vezes que foi viſta nas
varandas com os olhos fixos no Ceo ,
eſpecialmente nas noites mais ſerenas,
e eſtrelladas, conſiderando na formo
lura da Lua ,e das Ettrella a infinita for.
moſura de quem as creoud nada.Te.
ve a Serva de Deos hum affluentiffi .
mo dom de lagrimas ; e nao faltavao
Religioſas , que , para ſe edificarem ,
vendo - a com os olhos arrazados , acu .
diao a ella , levando - lhe flores , ou
quaeſquer outras galantarias , e nao as
enganava o deſejo ; porque prorom .
pendo logo nos louvores do Altiſſi .
mo , tudo o que começava dizendo ,
continuava , e acabava chorando; por
que a vehemencia dos affectos The
cortava , e interrompia a textura das
palavras. Quem tinha hum amor de
Deos ſublimado a hum tao alto pon .
to , já ſe vê que nao lhe havia de fala
tar o outro do proximo , que lhe he
tað inſeparavel. Era pois a Serva de
Deos mui compadecida das neceſi
dades alhêas, e deſejára remediallas
todas ſe lhe foſſe poſſivel ; e como a
eſta caridade accreſcia mais o ſer por
genio mui liberal , e generola , traba
Thava por loccorrer , .e aliviar todas
as afflicçoēs temporaes de que tinha
noticia ; e nao ſe lhe podia fazer ma
yor violencia , do que negar - lhe li
cença para poder alargar a mao com
as peſsoas miſeraveis.
4 Foi devotiffima em todo o ex
tremo da Santiſſima Trindade ; por
que tudo quanto dizia , e obrava era
em ſeu obſequio , e decoro : por elle
mon
64 REC , A M
OPI
LAC
motivo goſtava muito do numero ter-
nario , tanto que cabindo de cama , e
carecendo a fua cura de algumas lan-
grias , ſe levantou logo á terceira , tor-
nando logo de novo aos ſeus antigos ri:
gores.O meſmo fez na ſua ultima doen-
ça , que foi huma tiricia , que ſervio
de acriſolar grandemente o ouro das
ſuas virtudes, de que paſſou a rece
ber o premio , depois de quarenta e
ſete annos de habito , em 15 de Julho
de 1713. dia do Santo AnjoCuitodio
deſte Reino , aquem tambem profef-
ſava humaeſpecialiſſima devoçao , e
de cujo nome naó era indigna , aſſim
pela pureza da lua vida , como pela
innocencia dos ſeus coſtumes.
RECOPILAC, AM
15. de Julho.
O Moſteiro de Monte Ca-
NOvallo , em Roma , a Vene-
ravel Madre Soror Angela Mareri.
Eſta foi huma das quatro Religioſas ,
que , comoja dei xamos dito na Vida
da Veneravel Franciſca Balbiona , fa-
hîrao da quella Caſa a fundar a outra
da Humildade . Foi a VeneravelMa-
dre Soror Angela a ſua primeira , ę
digniffima Prioreza, e depois de ha-
ver exercido perfeitamente o ſeu Of-
ficio por dezaleis annos , que foram
como dezaſeis feculos , que padeceo
de violencia a ſua humildade , procu-
rou largar este governo , de que effe .
Aivamente foi abſoluta, bem que pa ..
ra le encarregar do outro da Com-
munidade de Monte Cavallo . Foi do-
tada de muitas virtudes , e era de mui-
ta Oraçao , aqueducto por onde par .
ticipou em vida altiſſimos favores do
Ceo , que todosſe coroáraõ felizmen .
te com huma fanta morte no anno
de 1632. = Soueg
2 noffa Terceira Ordem . Ao ſeu zelole
Em Roma , no Moſteiro de San.
ta Maria da Humildade , a Veneravel
Madre Soror Maria Angela , huma das
quatro Fundadoras deita Cafa . Ref-
plandeceo em altiſſimas virtudes , e
de 15 de Julho ,
teve o dom de huma bella prudencia , e
economia para reger eſpiritual , e tem
poralmente. Servio doze annos de Me
ftra de Noviças , quatro annos Procu
radora , e foi a legunda Prioreza da
quella Caſa , que a ſombra do ſeu ex
emplo , e vigilancia era reſpeitada por
hum dos mais notaveis Santuarios Ro
manos . Finalmente depois de haver al
li adquirido hum tao elevado cumulo
de perfeiçoens , e virtudes , morreo
no anno de 1633. entre a ſua fragran
cia abrazada em amor de Deos , bem
como dizem que acaba o Feniz entre
lenhos aromaticos , e accezos com os
raios do Sol . = Soueg.
3 Em Roma , as Veneraveis Ma
dres Soror Catharina , e Soror Jaque
ta , Fundadoras , como ja diſlemos,
do Moſteiro de Santa Maria da Hu
mildade . Eraó irmáas , e parecérað
no muito mais nos dotes do eſpirito
do que na igualdade do naſcimento,
porque filhas do Conde de Penia .
Erao ambas zeloſiſſimas da obſervan
cia das Conſtituiçoens; e como ſe iſto
foſle pouco , accreſcentavao mais ri .
gor ao ſeu rigor ; porque nao havendo
ſahido ainda do Moſteiro de Monte
Cavallo , e querendo a ſua Fundado
ra moderar alguns pontos , em que ſe
nao violava o Inſtituto , como lao , por
exemplo , trazer habitos mui groſſei
ros , quando as leys da Religiaõió dif
põem que ſejao mediocres , e outras
couſas a eſte modo, jamais quizerað
as Servas de Deos modificar as ſuas
voluntarias aſperezas.Tranſplantando,
fe depois ao Moſteiro da Humildade ,
cujos principaes cargos exercêrao , e
deſempenhára ) com todo o acerto ,
foi huma bem aflombrada morte o
termo , e coroa de tao ſanta vida .
Soueg .
4 Em Napoles a virtuoſillima So
ror Catharina Bucco de Aragao , da
deve a honorifica mudança, que fe fez
do corpo do noſſo Veneravel Padre
Fr. Joao Bautiſta de Sao Pedro , cujas
virtuoſillimas acçoes vao ja eſcritas
no

FR HUGO DE MARSAC
no 3. como deſte Agiologio a 13. de
Julho . Revelou Deos á noſſa Catha .
rima a gloria deste feu grande Servo ,
que tinha ſido ſeu Padre eſpiritual,
a quem depois appareceo glorioſo , e
affirmou que, premiando-ſe no Ceo
nao ſó os effeitos, mas os affe & os,
elle gozava a coroa de Virgem , e a
auréola de Martyr ; e que aquelle ſeu
grande zelo , com que diligenciára a
mudança do ſeu corpo para outro lu
gar mais decente , era honra , que o
Ceo , como taõ generoſo , lhe pagaria
na vida com grandes benções, e na
morte com a eterna felicidade. Aflim
o experimentou a Serva de Deos ; por .
que abrazando - ſe em ardentiſlimos
deſejos de morrer em Chrifto , para
ſe unir eternamente a elle , paſſou de
Viadora a Bemaventurada , como pia-
mente ſe crê,no anno de 1663. = Dia-
rio Dominic. in vita P. Joan.Bapt.
à S. Petro.pag . 110 .
16. de Julho.
Vida do V. Padre
Fr. HUGO DE MARSAC,
Provincial de Tolola ,
Extrabida de Guido .
I Veneravel Padre Fr. Hu
go de Maríac , tambem de-
nominado , por alguns Eſcritores ,de
Marciac ; mas,ſegundo o parecer do
Padre Fr. Thomaz Soueges, com me-
nos fundamento : porque Marciac (diz
efte noſſo grande Annaliſta ) he hũa
povoaçao de Gaſcunha , aonde a Or-
dem nao teve alguma caſa até o anno
de 1320. a tempo , em que ja era Pro .
vincial o noflo Veneravel P. Fr. Hu-
go , e que foi aceita por elle meſmo
' no Capitulo de Caltres . Marſac po-
rèm he huma pequena povoaçao do
Arcebiſpadode Alba,naqualoRio Tarn
le miſtura com Garona, aonde hum
barqueiro, que havia paſlado a noſſo
Santiffimo Patriarca Domingos , le
quiz pagar na ſua capa , por elle nao
Tom . VII
1
16 de Julho. 65 ,
ter com que ſatisfazer aquella peque
na contribuiçað , e o Ceo entao The
deparou milagroſamente com que ſe
pudelle livrar daquelle a perto .
2 Foi hum infigne Religioſo o
noſſo Veneravel P. Fr. Hugo , canto ,
que havendo deſempenhado meritiſ
fimamente os primeiros lugares da
Provincia , foi promovido ao ſeu go ::
verno no Capitulo Provincial de Bri.
ve de 1318. Durou quatro annos efte
Provincialado ; e nelle fez o Servo
de Deos algumas diſpoſiçoens 'mui no
taveis , e que bem moftrao ofeu zelo
no tocante á inteireza da obiervancia
Religioſa. Em huma dellas prohibia
o uſo dosbanhosnaturaes, menos que
precedeſſe huma exactiſſima con
iulta de Medicos; e outrofim o con
lenſodos Religioſos mais graves,a quê
elle commercia a ultima deciſao . Ac
creſcentava que, ainda no caſo de ſe
conceder eſta licença , nem por iſſo
comeriao carne os doentes , lenaole
a iſſo os preciſaſſe huma neceſſidade
urgentiſlima, e fóra de toda a duvi .
da . Mas que ainda , otorgada eſta diſ.
pēfaçao,nao uſariaõ della os diſpēſados ;
ſenao diante dos Frades da Ordem ,
e quando muito dos criados , que os
ſerviſlem .
3. Governando a Religiaõ o Re
verendiſſimo e V. Padre Fr. Hugo
de Vanfleman , cuja vida eſcrevemos
neſte como a 8. de Agoſto , recebeo
o Capitulo Géral em Cahors , e con
cluido que elle foi, ſe celebrou , ſe .
gundo o eftylo , outro Provincial, e
nelle reformou o V. Prelado humade
terminaçaõ , que ja fe havia tomado,
em ordem a ſerem conſtituidos alguns
Zeladores , que vigiaſlem ſobre algu
mas couſas , que debaixo de pretex
tos mui eſpeciofos le hiad iatroduzin .
do na Ordem , alterando o ſeu cre
dito , e bom exemplo , como 'o uſar
de facas de cabos feitos com muita
primor , e artificio , e de outras cu
rioſidades a eſte modo. Celebrou no
anno de 1320. o ſeu terceiro Capitu .
lo de Caftres , em que , como ja dis
I ſemos,
66 RECOPILAC,AM
ſemos , le addio a Ordem o Conven-
to de Marciac, e igualmente o de
Belvez . Aqui ſe reſolveo prohibir aos
Priores o alargarem -ſe nas permiſſoēs
de deixar comer carne aos doentes de
enfermidades de pouco momento , e
que nao os extenuavao em grande
extremo . Tambem ſe tomou o acor
do de vedar o panno de linho , de que
alguns ſe ſerviao , ordenando que fol-
ſem punidos os tranſgreſſores, demo
do , que o exemplo do ſeu caſtigore-
freafle os effeitos , que podiaõ inſur .
gir do seu máo exemplo . Finalmen
te era tað rigidamente obſervante , e
tao zeloſo de que todos o foflem , o
noſſo V. Fr. Hugo , que porhumale-
ve cauſa impós niefta occaſiao aos Sub .
Priores de Agen , e Montoban a pe-
Da de dez dias dejejum a pao , e agua,
dez diciplinas , e outras tantas Miffas.
Finalmente foi abſoluto do Provin-
cialado no Capitulo Géral Florenti-
no de 1321.para accumular novos cre-
ditos á Ordem na Univerſidade de Pa.
rîz , entre cujos Doutores mais conf-
picuos ſe acha lançado o ſeu nome : e
he mui crivel que eſteja tambem ef.
crito no livro da vida , attenta a inte-
gridade , e pureza da ſua.
RECOPILAC, AM
de 16. Julho.
I
M Roma , no Convento de
E Santa Sabina, o Illuftriffi-
mo e V. Biſpo de Belcaſtro Fr. Je-
ronymo Furnier. Floreceo eſte V.P.
çomo hum dos mais eminentes na Sa-
grada Theologia, como bem ſe dei-
xa ver do aurco Livro , que compôs
da Immortalidade da almaracional ;
porém mais o foi na virtude . Teve o
cargo de Vigario , e exerceo-o com
todas aquellas qualidades , com que af-
ſim o eſperava a commūa expectaçao.
Reſpeitando as ſuas taõ grandes letras,
foi aggregado ao Collegio Doutoral
da Univerſidade de Bolonha , aonde
foi tambem Regente dos noflos Eſtu-
de 16 de Julho.
dos , e Prior daquella Caſa . Attento
Clemente VII . ao merecimento , e au
thoridade de hum Varao tao bene
merito , o conſtituio Bispo de Belcaſtro
no Reyno de Napoles . Governou ſao
tamente a ſua Igreja nove annos; e
havendo paſſado no de 1942. á - fanta
Cidade de Roma a viſitar a ſepultura
dos Principes dos Apoſtolos, allicon
lūmou , glorioſa , e felizmente , o ſeu
curio , e foi dado a terra no mencio
nadoConventode Santa Sabina. Pius
2.p.b.4. cel. 142 .
2 Em Roma o V. P. Fr. Pedro
Paulo Aretino . Naõ era elte Padre de
grande eftatura ; mas nao haverá quê
B
laiba medir a do ſeu merecimento .
Governou muitos Conventos, efem
2
pre com igual ſatisfaçao que apro
veitamento das Communidades: teve di
BH
depois o Provincialado , nao ſe lhe
notando outra differença, ſenao ir
сс
ſempre a mais no caminho da virtu
de . Por conſideraçao das ſuas mui
tas letras , lhe foi commettida a Re
gencia dos Eſtudosde Peruſe ; e foi pu
tao nobre , e tao alto o deſempenho , of
GE
que foi elegido para ſerhum dos Theo :
logos do Sagrado Concilio de Tren
to ; e do ſeu zelo , e applicação da
teftimunho a Chronica Summaria da
Ordem , que anda addieta no fim do
corpo das noſſas Conſtituiçoens.Exer
ceo digniſſimamēte o lugar de Meſtre
do Sacro -Palacio por tēpo de onze an
nos , e foi ſempre tao inculpavel na
vida , que o V. P. Fr. Bernardino de
Luca nao duvidou chamar-lhe San
to em hum ſeu Tratado. Aſſim mor
reo tao bem opinado no Senhor no
anno de 1564. = Ann . Domin. pag .
932 .
3 No Convento de Fieſolio Illuſ
triſſimo e V. Biſpo Biſſiniano D.Fr.
Bernardo del Nero . Naſceo em Flo
rença , e era ſobrinho pela parte ma 4
terna da Santidade de Leao XI .; mas
a nobreza do ſeu eſpirito era incom
paravelmente muito maisilluſtre. Vef
tio o habito de S. Domingos , e occu.
pou na ſua Religia o alguns empregos,
ecom

FR . JOAM DE SANTO
è com hum tal deſempenho, que ſem .
pre ſe fez crédor dos maiores. Re-
conhecendo bem o Papa Clemente
VII. as bellas qualidades do ſeu me-
recimento , o ſublimou ao Principado
da Igreja , dando - lhe a Cadeira de Bif-
cinhano , aonde o Servo de Deos ref
plandeceo com todas aquellas virtu-
des Paſtoraes , que fizerao tao famo-
fos os tantos Prelados da Igreja pri-
mitiva . Exaltado ſeu tio ao Sólio do
Supremo Pontificado ,emprendeo que
onoflo D.Fr. Bernardo deixafTe aquel-
la Mitra pela Viterbienſe; mas a lua
intempeſtiva morte annullou eſta tað
juſta diſpoſiçaõ , le bem que o noſlo
Biſpo eitava tað longe de aſpirar a
melhoramento de dignidade, que dalli
a pouco tempo renunciou nas maos
de Paulo V. o ſeu Biſpado ; e reco .
lhendo -ſe á Caſa que temos em Fie-
foli , ( deque elle foi inſigne bemfeitor,
como ella aſlim o confeſſou no Epi-
tafio que inſcreveo na lapida do ſeu
monumento ) alli eſperou a morte fe-
pultado humildemēte em huma pobre
cella , donde paſſou para o Palacio da
Gloria no anno de 1619. = Fontan .
in Theat. p . 142 .
4 Em Parîz, no Moſteiro de San-
to Thomaz de Aquino, a Veneravel
M. Soror Maria de S.Franciſco . En-
trou para esta Caſa de onze annos ;
inas dotada de huma tal modeſtia , e
piedade, que parecia que antes vinha
do Ceo , que do mundo , a viver en
tre os Clauſtros da Ordem . Vendo-ſe ' Fr.
ja nella , foraõ tao grandes os ſeus pro
greſſos no caminho da perfeiçao ,co-
mo ſe quizeſſe aſſim augmentar os
poucos annos que lhe reltavao para
viver. Teve por ſeu Meſtreeſpiritual
o Padre Joao Bautiſta de S. Jure , Va
sao eſpiritualiſſimo, e mui celebre ;
da Sagrada Companhia de Jesus, que
nao deixou de cooperar grandemen .
te com as ſuas boas direcçoēs para ele-
var efta fiel Eſpoſa de Chriſto a hum
tao alto faftigio demerecimento . Te
ve muito que padecer , ja mental , e
ja corporalmente , nas ſuas penoſas, e
Tom . VII .
67
THOMAZ 14 de Julho.
dilatadas moleſtias , mas ſempre com
huma tal alegria , e conformidade ,
que , exceptuando algumas vezes , em
que a vehemencia dos ſeus pezareslhe
fazia correr o ſuor em bica por todo
ocorpo , ſe pudera entender que igno
rava o exterior , o que havia no inte
rior . Foi mui dada ' á ſanta Oraçao ;
ea materia , em que contemplava mais
de ordinario , era a terribilidade do
Juizo , que ſempre a trazia pavoroſa,
e atemorizada , parecendo - lhe a cada
paffo,que dava,que era chamada dian
ie do Juiz Supremo . Como porém
eftes fuitos mais eraõ naſcidos dos ex- .
cellos da ſua humildade , que dos re
morſos da coniciencia , a foi o Ceo
aliviando pouco a pouco delles , an
tes da ſua morte ; porque ſobrevindo
lhe huma prolongada doença , erece
bendo frequentemente o Santiſſimo
Sacramento , hiaſentindo que , de ca
da'vez , que ſe lhe adminiſtrava eſte
Pao do Ceo , ſe lhe hiao diminuindo
os ſeus temores ; até que vendo ſatis
feitos os ardentiſſimos deſejos que ti
nha de morrer em Chrifto ,para ſe unir
eternamente a elle , paſſou , como
piamente ſe preſume, de Viadora a
Bemaventurada , idora de perto de
23. apnos, correndo o do Senhor de
1640. Soueges.
17 de Julho.
Vida do V. Padre
JOAM DE SANTO
Τ Η Ο Μ Α Ζ,
Conſultor do Santo Officio , e Con
feffor de Filippe IV. de Caſtella ;
Extrabida de Ramires, Quetif, Soue
ges , e outros .
1 Aſceo o V. P. Fr. Joao de
N Santo Thomaz , noſſo piiſ
fimo , e scientiſſimo Religioſo , neſta
nobiliſima Corte dos Senhores Reys
de Portugal , na Freguezia de N. Se
nhora dos Martyres , bem celebre nas
hiſtorias da Ordem , por tambem ha
I ji ver
68 FR . JOAM DE SANTO
ver ſido berço do noſſo grande Arce-
biſpo de Braga D. Fr. Bartholomeu ,
cognominado,poriſlo meſmo,dosMar-
tyres. Mandárao - no ſeus pays a Coim .
bra, aonde deo tantas mostras 'de ha-
ver obiido do Ceo hum maravilhoſo
talento , que allirecebeo , ſendo ain-
da muito mancebo , o gráo de Mei-
tre em Artes , e tomara igualmente o
de Doutor , ſe ſe nað viſle obrigado a
pafiar a Flandes em companhia do
Eminentiflimo Archi -Duque Alberto
de Auſtria , dequem era Camareiro
ſeu pay , que havendo conhecido hūas
bem fundadas eſperanças da capaci-
dade dette ſeu bom filho , nao quiz
deixar de cooperar com ellas , fazen-
do -o continuar os progreſſos da ſua
literatura na celebre Univerſidade de
Lovaina . Aqui, talvez nað ſem eſpe-
cial diſpoſiçaõ do Ceo , ſe encontrou
o judiciofifſimo eſtudante com o nof-
fo Fr. Thomaz de Torres , que alli
havia paſſado , porordem do noſſo Re-
verendiſſimo Geral Fr. Jeronymo Xa .
vier ; para enſinar a Sagrada Theolo-
gia , com o caracter de primeiro Re.
gente .
2 Juntas eſtas duas grandes almas,
tanto ſe prenderaõ mutuamente das
ſuas reciprocas virtudes , que inteira .
mente ſe deliberou Joao a abraçar o
Inſtituto de ſeu Meſtre, a tempo que
elava em vefperas de doutorar- ſe . A
eſte fim paſiou a Madrid , recomen-
dado do Padre Torres , aonde foi no
noflo Convento de Atocha admittido
á Ordem , deixando o appellido de
Peixoto , que era o da ſua familia,
pelo de Santo Thomaz , que igual-
mente tomou por prototypo das ſuas
letras , que das ſuas virtudes. Vio -ſe
logo no ſeu Noviciado a força , com
que a graça ſe apoderou detta ditoſi-
ma creatura , parecendo haver che-
gado ao termo da carreira logo no
principio della . Aqui ſe vio , nao fem
admiraçao, que dos excellentes do .
tes que reſplandeciaõ tao altamente
no leu eſpirito , tinba elle huma pra,
tica ja mui antiga , levando muitas . nao pouco ſangue.
THOMAZ 17 de Julho,
vaptajens aos outros Noviços na
modeſtia , pobreza,humildade , abiti
nencia, e nos maisrequiſitos,que pea
de a ſantidade religioſa . Dava mui
poucas horas de deſcanço ao corpo ,
buſcando com alta idea forrar todo o
tempo , que podia , para empregallo
na Oraçao, donde tirava grandiſſi
mos frutos para o ſeu aproveitamen
to . Com eltas bellas antecedencias ,
foi recebido a fazer a ſua profiſlao ,
paſlando conſequentemente para a
Univerſidade de Alcalá para o nota
vel Collegio de Santo Thomaz , aon
de ſe tem feito famoſiſſimos na Re
publica das letras muitos eminentes
iujeitos das Heſpanhas.
3. Fez os ſeus Ados com hum dige
no deſempenho da juſta expectaçao
com que todos eſtavaõ : eachando -ſe
habilitado já para entrar a enſinar nas
Cadeiras ; a primeira que ſe lhe com
metteo foi a de Veſpera, logo a de
Prima , em cujo minifterio gaſtou o
Servo de Deosquinze annos com igual
11
felicidade que merecimento . Últi
mamente foi eleito Reytor daquelle
meſmo Real Collegio . Entao foi quá
do elle tomou o projecto de eſcrever
ſobre as Theologias do noſſo Doutor
Angelico , obra verdadeiramente de
fumma relevancia , e que moſtra bem ,
que de todos os Expoſitores da dou
trina do noſſo Principe da Theologia
Eſcolaſtica, nenhum como o V. P.
Fr. Joao eſtava tað bem inſtruido na
muliidao das maximas , e reſoluçoens
do meſmo Santo , o que facilmente ſe
alcança , obſervando a frequencia, e
opportunidade ,com que elle allega .
Daquelle Anjo das Eſcolas aprendeo
tambem o methodor com que devia
proceder nas difficuldades que ſe lhe
offereciao, recorrendo, mais depreſſa
que aos Authores , a buſcar melhores
illuſtraçoens. na contemplaçaó , cili
cio , jejum , que nas Quareſmas era
a pao , e agoa , e na diciplina, que to
mava com tanto rigor, que le viao
depois ſalpicadas as ſuas paredes de
4 Era
 FR . JOAM DE SANTO
4 Era amantiſlimo dapobreza , e diſputas Eſcolaſticas ,
dos pobres: da pobreza , ſendo a ſua
cella , e a ſua peſſoa hum vivo retra .
to detta ſanta virtude , nao ſe aprovei-
tando jamais , debaixo de algum pre
texto , para o que lhe nao faltaria
exemplo , das conſideraveis ſowmas ,
procedidas das reiteradas impreſſoēs
dos ſeus livros , ou ao menos de 'al-
guma parte ; mas diſpendendo todo
ette lucro com o ſeu Convento de
Madrid , que duas vezes o buſcou pa .
ra ſeu Prelado , e com o Collegio de
Alcalá e dos pobres, fazendo -os
participes da raçao que ſe lhe dava no
Refeitorio ; e com igual caridade fa .
hia a viſitar os prezos , a quem acudià
com o duplicado alivio das razoens
com que os animava , e das eſmólas
com que os ſoccorria. Nao eraõ baf-
tantes eſtes piedoſos exercicios para
defraudar - lhe os leus eſtudos, pagã .
do - lhe a Divina Bondade com extra
ordinarias luzes aquelle tempo , que
elle conſumia em couſas tanto do ſeu
agrado , de modo que os ſeus parece .
res , e deciſoens erao attendidos , e
aceitos , como aſſerçoensdehum Ora-
culo .
5 Dilatando -ſe por toda a parte a
fama do ſeu bom nome ,foi eleito Con
fultor , ou Qualificador do Santo Of.
ficio ; e com tanto credito , que a el-
le mui eſpecialmente he que foi co
meriida a ultimareviſao do Expurga-
torio dos livros prohibidos , occupa
çao que lhe levou muira diligencia ,e
cuidado , ſem por iſſo cahir na minima
fallencia das luas devoçoens , no que
era inflexivel, dizendo Miſſa todos
os dias , e fazendo quaſi quotidiana-
mente huma Confiſlao géralcom tan-
tos extremos de dor , e contriçao , obrigado a dar conta ; e que por tan
como ſe evidentemente ſoubefle , que , to com a ſua bençao lhe pedia hum
ja lhe nao reitava tempo para fazer
outra . Se alguem ,'movido da grande
za do ſeu talento , lhe dava algūlouvor ,
nem por iſlo ficava perigando a ſua
modeſtia ; antes entao ſe dava mais
a conhecer a ſua humildade . Como
melmo comedimento ſe portava nas
THOMAZ 14 de Julho, 69
por mais que
foſſe provocado da imprudencia dos
argumentantes , que muitas vezespui
derao fazer, quando aliàs he taõjuſ
tamente deſculpavel qualquer exceſ
ſo neſta parte . Eſtava tao delengana
do do que fað , ou,paramelhor dizer ,
nao ſao as grandezas da terra , que re
geitou por vezes com hum generoſo
deſapego as Micras , que ſe lhe quize
raó dar ; e he fem duvida , que ufa
ria da meſma dimiſjao , quando foi
eſcolhido para Confeſſor de Filippe
IV ., ſe quizera eſte Principe dar algum
aſlenſo ás ſuas humildiflimas eſcuras.
Quando lhe chegou a ordem de El
Rey , e elle a léo , eſteve tao longe
de deixar - ſe preoccupar de deſvanecie
mento , que bem puderao notar os
exteriores ſinaes dolenumento , que
lhe cauſava efta noticia, alguns Rea
ligioſos, que alli ſe achavao , a quem
elle diſſe com voz perqurbada , e lang
guida , depois de haver lido aquelle
papel : Em fim , Padres meus, que
iſto me ſuccede, eu me dou ja por more
to , peço- thes gue roguem por mim.
Diſſe , e logo ſe retirou , deixando
os companheiros nao pouco maravi.
lhados , aſſim do ſeudelintereſſe , co
mo das palavras , que ouvirao , cuja
intelligencia por entao nao puderao
alcançar.
6 Partio logo para Madrid o Ser :
vo de Deos , e eſcrevendo huma car
ta mui ſubmiſla ao Provincial , nella
lhe dizia : Que nao tendo ja nomun
do outro S. Domingos, aquem tefti.
munhar a ſua obediencia , lhe proteſ
tava , que em qualquer eſtado , ou
fortuna, havia de ſempre ſer ſua ove
lha , de que o meſmo Prelado ſeria
extracto do modo com que elle devia
portar -ſe. Depois de haver cumprido
com cita louvavel attençao , entrou
na Corte de ElRey Catholico, com
quem empenhou os maicres esforços
por excluir -ſe daquella dignidade ,
valendo-ſe até de fretexto da patria ;
porque
70 FR . JOAM DE SANTO
porque ſendo, como era , Portuguez ,
( dizia o bom Religioſo ) poderia ſer
de algum modo ſuſpeito àquella Co.
roa , ao meſmo tempo , em que Caf-
tella abundava em Sujeitos taõ excel
lentes , que , por naturaes , e mais a
propoſito , feriaõ muitas vezes mais
dignos de exercer aquelle importan-
te Officio. A nada diſtocedêo Filippe,
antes com eſtas demonſtraçoens de
abatimento , e deſprezo proprio , ain :
da mais ſe confirmou no acerto da ſua
eleiçao : e vendo o Servo de Deos
quea Providencia deſteSenhor o deſti:
nava aquella occupaçaõ , rendeo os
hombros a ette jugo ; convencionan-
do -ſe porèm primeiro com ElRey ;
que ſempre o conſervaria naquelle car:
go, ſem pertenderelevallo em tempo
alguma outra qualquer Prelazia Eccle-
fiaftica.
7 Era couſa certamente admira-
vei obſervar a ſanta vida , que agora
fazia o Veneravel Religioſo, tao ob-
jecta , e deſenganada, como te eſti-
veſle em qualquer Convento de me
nos nome , e fofle elle o ſeu mais in.
ferior habitante . Inſtavaõ com elle
que veftiſle outro habito melhor , por
maior decencia do ſeu encargo ; mas
iſto nunca o pôde alguem acabar com
elle . Injuriava -ſe muito de andar em
carruagem , bem que a Mageftade lhe
houvelle deſtinado huma para ſeu uſo .
Entao ſe enchia de alvoroços quando
acudia ao ſeu Real Confeſſado com
os memoriaes dos pobres , patrocinan-
do fervoroſiſſimamente os ſeus peri-
torios , deſattendendo ao que diziao
aquelles que nao goſtavao de vello in-
tereſſado neſta miſecordioſiſſima ac
çaõ . Da ſua mao recebiaô mui groſſas
eſmólas os Religioſos , e Sacerdotes
feculares, homens de bem , mas de-
faffiftidos da fortuna , ſoldados , viu-
vas , prezos , romeiros, mendigos , e mos , Pregador de ElRey Catholico ,
em fim todos os neceſſitados , que to .
dos tinhao nelle antes hum pay , do
que hum interceſſor. A ſua porta ja .
mais eſteve fechada para quem tinha
com elle alguma dependencia ; e ſe
THOMAZ 17 de Julho .
a caſo lhe eſcrevias , lavrava elle mer.
mo a reſpoſta de ſeu punho , ſem que
The ſerviſſem de embaraço para eſtas
cortezanîas os graviſſimos , e arduos
negocios , que a cada paſſo o eſtavao
chamando , para o que tinha huma
penetraçao , igualmente viva que 1
opportuna , determinando com huma 1
curial capacidade as dependencias que
ſe propunha ) , ora tocaſſem ao eſtado,
ou à politica ; á guerra, ou á paz , ou
a quaeſquer outros ſemelhantes capi
tulos, tem para iflo depender dos va 1
gares do tempo , ainda que os pontos, 19
que ſe ventilayao , tivellem apparencia
de carecer de hum iério , e dilatado
exame . Talvez havia alguns Miniſtros AE
menos inclinados ás deliberaçoensdo de
Servo de Deos ; porque eſtas ſe en pa
contravao com os ſeusintereſſes pare le
ticulares : mas eſtava EIRey Filippe de
tao perſuadido da boodade , re & idao , P
e ſingeleza de ſeu Confeſſor , que á е
vilta deſtas queixas creſcia mais o CO
apreço com que o eſtimava. fre
8 ° Tudo iſto lhe nao ſervia jamais ei
de obſtaculo ás ſuas compoſiçoens, em
que nunca deixava de tratardiligentif
fimamente. O ſeu curſo de Filolofia
foi tao aceito do publico , que dentro 1
de nao muito tempo le fizeraõ cinco
ediçoens na Heſpanha, e tres em ou
tras partes, que forao a de Colonia ,
Roma, e Leao. Eſcreveo oito tomos
deTheologia , ſegundo a mente do
Doutor Angelico , de que elle foi fi
deliſſimo Interprete , e formidavelDe
fenſor. Eftes Eſcritos lhe fizerao lugar
entre os primeiros Theologos Eccle
fiafticos , de quem derao mui abona
dos teftimunhos ainda os ſeus meſmos
contemporaneos , de que baite por *
exemplo o que diz do noſſo Venera.
vel Padre o Reverendiffimo Fr. Joao
Ponce de Leao da Ordem dos Mini
Conſultor da Santa Inquiſição , e Viſi
tador das Bibliothecas de Helpanha :
Se eu ( diz eſte Padre ) ſe eu nao che
gaſe a lograr , como realmente logrei,
huma grande familiaridade com o ſa
piensa
 FR . JOAM DE SANTO
pientiſimo Fr. Joaõ de Santo Thomaz,
eſcutando tantas vezes a fua erudie
çao , ou no ſagrado Tribunal do Santo
Officio , ou em outras conferencias par-
ticulares , mne nao ſeria mui difficilcuie
dar que os ſeus Eſcritos haviaõ ſabido
daspennas dos Athanaſios , dos Baſia
lios , dos Hilarios, dos Agoſtinbos, ou
dos Thomazes. Tanta be a ſua energia ,
e gravidade ! Compoz tambem hum
pequenino Tratado da Doutrina Chri-
Itaa na lingua Heſpanhola , e com hum
methodo tao claro , e accommodado ,
que além de ſe haver repetido muitas
vezes a ſua impreſlao , foi vertido nas
linguas , Latina ,Italiana , Franceza , Ir-
landeza , e Polaca . Fez mais á inſtancia
dò ſeu Real Confeffado huma praxe
para direcçao daquelles , que quizeſ.
ſem geralmente confeſſar -ſe ; e além
de todos eſtes monumentos da ſua
piedade , e juizo , foi mui univerſal,
e teve grande voto nas Artes que ſe
comprehendem na Filologia. Mas ja
era tempo de fazer tranſito para o Ceo
eſta dicoſa alma a lograr-ſe da compa-
nhia dos Anjos , de que era tao digna ' cia , e conſciencia ) o mais conforme
a lua pureza de vida , e nao menos a ao bem da Chriftandade, e dos Eſta
elevaçao dos ſeus diſcurſos. dos do meſmo Soberano ; e que igual
9 Achava - ſe em Fraga , no Reyno
de Aragao , quando teve o correyo
da ſua morte , por huma violentiſſi-
ma , e grande febre , que dentro de
hum breve termo lhe começou amo
ftrar o ultimo deſengano. Nenhum
ſobreſalto lhe cauſou , como a quem
eſperava eſte golpe , mais como triun-
fo , que comoruina.O Padre Soueges ,
fundado em dous lugares de dous Ef
critores , que fizerao memoria das
acçoens deite verdadeiro Religioſo ,
conje & ura que houve algum , ou al .
guos deſcontentes da circunſpecçao
com que o Servo de Deos votava nos
conſelhos, que lhe maquináraó a mor
te com peçonha . Mas como as pala.
yras , que elle tranſcreve dos meimos
Authores , nað ſejao terminantes , e ſó
dem alguns longes da poſſibilidade
deſte facto ; nós , deixando por ora
eſta queſtao , ſó refledimos em que
1 gos ,
THOMAZ 17 de Julho. 71
com eſta morte do Servo de Deos ,
fuccedida hum anno poſterior aquel
le ſeu cargo , ſe veyo a verificar a ſua
predicçao , de que já ſe dava por mor
to , e que he mui crivel , fuppofta a
ſua piedade, que antevio o tempo ,
em que havia de partir deſte mundo.
10 Diſpoz -ſe em fim eſte illuſtre
Filho de S. Domingos para o derra
deiro certame com a ſua coſtumada
valentia de eſpirito ; e preſentindo que
lhe traziao o Santiſſimo Viatico , pe
dio aos Religioſos, que lhe faziaõ af
liſtencia , que, pois era tapta a debili
dade das ſúas forças, lhe ajudaſſem a
veſtir os ſeus habitos ; e vendo- ſe ja
compoſto , paſſou a obrar o extremo
de levantar-le, e poſto de joelhos dian
te do ſeu amoroſoſiſlimo , e Sacramen
tado Senhor , alli proteſtou na preſen
ca de alguns Grandes do Reyno , que
alli ſe achavao , que por aquelle mef
mo Divino Hoſpede, que eſtáva a pon
to de receber , attettava, que tudo o q
havia aconſelhado, e ſuggerido ao ſeu
Principe , era ( ſegundo a ſua fcien
mente declarava , que nada havia eſ
crito nas tuas Obras, que nao enten .
defle ſer mui ajuſtado com o ſentimē
toda SantaIgreja Romana,e com as opi!
nioēs do N.Angelico Doutor S. Tho
maz . Naõ deixára o eſtas clauſulas de
tirar muitas lagrimas de compunçao
dos olhos de todos os aſiſtentes , no
que advertindo o Servo de Deos , lhes
deo huma branda reprehenfañ , adver
tindo - lhes que lhe nað tiveſſem com
Paixao , podendo antes chorar a me
lhor fim , offerecendo aquelle leu pran
to a Deos em ſatisfaçao dasſuas (dizia
elle ) enormes culpas , poſto que era
tao grande o aperto a que ellas o ef
tavaõ agora reduzindo . Pedio pois a
Santa Unçao , que recebeo com ter
piſlimos affectos; e compondo -ſe com
a melhor gravidade que foi poſſivel,
expirou felizmente com os Nomes de
Jesus , e deMaria , e os de S. Domin
72 SOROR MARIA DE
gos , e Santo Thomaz na boca a 17. de
Julho de 1644. annos , lendo idolo de
cincoenta e quatro . Foi a lua falta mui
ſentida de todo o genero de peſſoas ,
devendo todas á ſua benificencia eſtes
extremoſos pelares : mas quem te mo-
Atrou mais empenhada nos lentimen-
tos foi a Univerſidade de Alcalá , de
cujos intereſles havia ſido o Venera-
vel Padre hum efficaz , e poderoſo
medianeiro .
17. de Julho .
Vida da Veneravel Madre
SOROR MARIA
DE S. JOSEPH ,
Conforme as memorias , que ſe conſer-
vao 110 Moſteiro do Santiſſimo Sa
cramento de Lisboa .
I S Excellentiſſimos Condes
O de S. Lourenço ,Martim Af-
fonſo de Mello , e Dona Magdalena
da Silva , forao os ditoſos , e digniſ-
fimos pays de duas inſignes Religio-
ſas , que fizerao mais illuſtre o ſeu ef
clarecido ſangue com o eſplendor das
altiſſimas virtudes , que ambas ellas
praticárao no Moſteiro ſempre floren-
tiflimo do Santiſſimo Sacramento de-
ſta Corte . Já deixamos feita mençaõ
no Sexto Tomo deſte Agiologio de
huma deſtas , que foi Soror Franciſca
do Roſario : agora fallaremos de ſua
condigna irmãa , nao canto pelo naſci.
mento , quanto pela perfeiçaõ das vir-
tudes , Soror Maria de S.Jofeph.
2 Entrou eſta nobiliſſima Serva
de Deos na referida Caſa , deixandoa
de ſeus preclariffimos progenitores ,
nao contando mais que nove annos de
idade ; mas eraõ tað ajuſtados os ſeus
procedimentos , e tao medidas , e co-
medidas todas as ſuas acçoens , que na
entrada da primavera dos ſeus annos,
parecia já chegado o outono da ſua
idade, por tantos , etað fazonadosfru-
tos dediſcriçao ,modeftia , e Chriſtan-
dade . A delicadeza da ſua infancia , e
o mimo da ſua criaçao nao lhe ſer
S. JOSEPH 17 de Julho .
viaõ de impedimento para que ſe dað
avançaſle, hydropica demortificaçoēs,
a tudo , o que era mais trabalholo , e
moleſto; como ſe lhe vaticinaſleo co
raçao o pouco tempo , que havia de
lograr -ſe na terra : porque o Ceo , pa
rece que invejoſo de ver no mundo
tanta graça , e perfeiçao junta , a arre
batou de diante de tantos olhos quan
tos a viaõ com huma expectaçao , po
Ito que grande , ainda aſſim ſempre
inferior aos ſeus taõ illuſtres mereci .
tos . Nao ſe accommodava o ſeu ad
miravel eſpirito com as tardanças , com
que pertendia o retardar - lhe no Mo
iteiro osſeus progreflos ; porque, fen
do pupilla , fervia já de exemploás No
viças. Nao a deixavaõ ir a Matinas ;
mas fazia ella tað vivas inſtancias , que
pode vencer que ao menos ſe lhe deſſe
permiſlao para ir a ellas algumas vezes ,
eter Oraçao , a que ſempre ſe deo com
muita eſpecialidade. Nao forao pou
cas aquellas , em que a Meſtra lhe ti
rou a diciplina da mao , querendo dar
tempo ao tempo , e eſperando que So
ror Maria ganhaſſe forças competen
tes , com que melhor pudelle aſſentir
aos inftantes fervores da ſua vocaçao.
Era incomparavel na modeſtia , e com
poſtura , e ſabia unir com eſtas pren
das hum agrado , e alegria tað inno
cente , que igualmente admirava que
prendia os animos .
3. Chegando a idade de quinze an
nos tomou o habito ; e o fervor, com
que o procurou , lhe fez dar hum tað
alco voo , que nao havia aſpereza, ou
auſteridade , que nao foſſe deſafiada
pela louvavel ambiçaõ com que pro
curava enriquecer- ſe de cruzes , e pe
nalidades . Initruia ſe das grandes pe
nitencias , que haviaõ feito as primei
ras Noviças da Caſa ; e já que nao po
dia deixar de ceder- lhe na primazia ,
nao podia acabar com ſigo de ceder
lhe na actividade. Erað notaveis os
meyos que excogitava de offender - ſe ,
e maltratar -ſe; e porque o delicado
da ſua compleiçao ſe hia attenuando
com o excello de tantos incommodos ,
eſcon .
 RECOPIL A C , A M
eſcondia a Serva de Deos alguns dos
inventos que buſcára paramacerar.ſe,
e affligir -le ; tal era hum aſpero , e hor.
roroſo cilicio de ferro , que trazia com
mummente apertado , e já era do ſeu
uſo , ainda quando era Pupilla .
4. Chegou -ſe o dia da ſua profiſſað ,
para o que ella ſe diſpôs como Eſpo-
1a cao fiel, e tao amante : mas aquelle
Senhor , que ſe dignoude acondecorar
com buns tao altos deſpoſorios , nao
quiz que ella padeceſle por muito tem .
po as faudades da ſua viita: porque paf-
ſados dous mezes lhe ſobreveyo huma
febre, que foi annuncio de haver de
paſſar a melhor vida . Quando lhe diſo
ferao que eſtava deſconfiada dos
Medicos , bem longe de entriſtecer.de
com a noticia , reſpondeo com ſem-
blante alegre , e ſocegado , que ella
meſma conhecia muito bem o deſen
gano. Depois de Sacramentada defpe-
dio -ſe com grande ternura , e affecto
das ſuas Religioſas com razoens tao
Chriſtaás , prudentes , e bem aſſenta-
das , que ſe ouvio com igual aſſombro,
que edificaçao. Foi-lhe faltando a fal-
la , e dahi a pouco a vida , ſe ſe póde
chamar falta de vida hum tranſito,
que lhe ſervio como de ponte para
paſar a lograr- ſe das fruiçoēs da eter-
na , para onde, comopiamente ſe crê, . eſta eleiçao com hum procedimento
a chamou o Senhor em 17. de Julho
de 1666 .
RECOPILAC , AM
de 17. de Julho.
M Limoges , o Veneravel
E Padre Fer Pedro deLaRe
cha de Rezes . Foi de pequena eſtatu
ra ; e parecendo - ſe niſto com o Apo
ſtolo das Gentes , pareceo -ſe muito
mais com elle na elevaçao do eſpiri
to ,e no talento de que o dotou a Maó
de Deos para intimar aos homens a ſua
Divina Palavra : e depois de haver fei.
to grande fruto com ella ; porque ,
igualmente que com a voz , prégava
tambem com a vida , morreo de huma
Tom. VII
de 17 de Julho. 73
morte mui ſanta aos 17. de Julho de
1287. = Guido.
2 Em Argo , Cidade da Romanía ,
o Illuſtriſlimo , e Veneravel Padre Fr.
Diogo Pedro de Pigalordis , ſeu me
ricifſimo Paſtor . Era Francez , e fora
hum dos Doutores mais celebres da
Univerſidade Pariſienſe ; porém eraõ
fingularmente excedidas as ſuas letras
da lua Religiao , e da ſua virtude. At
tento a predicados taõ grandes o Pon
tifice Urbano V. o promovên aquella
dignidade ; e depois de haver traba
lhado como fiel operario do Senhor
naquella ſua Igreja , deſempenhando
com exacçao , e fidelidade as ſuas tao
eſtreitas obrigaçoens, paſſou a colher
o fruto dos ſeus glorioſos trabalhos
em 1390. = Fontana in Theat. pag:
130 .
3 Em Aſtorga, Capital das Aſtu
rias, o Illuftriffimo, e Veneravel Bif
po deſta Cidade, Dom Fr. Antonio de
Caceres. Era profeflo da magnificen
tiſſima Caſa de Santo Eſtevaõ de Sa
lamanca ; e tal foi o ſeu merecimento ,
que a Mageftade de Filippe o III . de
Caftella o eſcolheo por ſeu Confeſſor,
a tempo , em que ainda era Principe
das Aſturias, Sendo elevado depois a
Biſpo de Aſtorga , deſempenhou elle
mui integerrimo, e fanto , governan
do aquelle Dieceſe por vinte annos
com muita prudencia , juſtiça , e cari
dade . Em fim , depois de haver tra
balhado tao laboriofa , e vigilantemen
te , paſſou como bom Servo para a glo
ria de ſeu Senhor no anno de 1616 .
Thom . Soueg.
K 18 de
74 FR . JOAM DE ORMAC , A
18. de Julho.
Vida do Veneravel Padre
F R. IO A M
DE O R M A C, A ,
aliàs
DE S. THOMAZ ,
Confundador , e Provincial da Pro
vincia do Santiſſimo Roſario nas
Filippinas ;
Extrahida da Hiſtoria das Filippia
nas , e das Altas do Capitulo ge
ral de Roma , celebrado no an
no de 1644 .
I Ual fofle o Eſpirito , e o
merecimento do Venera .
Q ?
vel Padre Fr. Joao de Or-
maça , ou de Santo Thomaz , reco-
nhéceo bem o Veneravel Padre Fr.
Joao de Caſtro , quando lhe deftinou
o diſtricto de Batan , povoado dos In-
dios anais indómitos ; e brutaes . Ha
via ) rentado eſta empreza por muitas
vezes alguns Eccleſiaſticos, e muitos
Religioſos de Santo Agoſtinho , e S.
Franciſco ; mas ſem tirar mais fruto
da ſua reſoluçao, que hum repetido,
e invariavel retroceſſo. Guardava a
Providencia eſta conquiſta para os fi-
lhos de S. Domingos , e muito em par-
ticular para o noilo Fr. Joao ; e por iſ-
ſo lhe enchia o coraçao de hum fogo
tao ardente , e inextinguivel para ani
mar a ſeus companheiros a que eſpe-
raſlem contra toda a eſperança , e, o
que he mais , a pezar de tantas expe-
riencias, o bom fucceſſo das ſuas di .
ligencias , e mereceo a ſua eſperança
ver trocados em filhos da luz aquel .
les meſmos , que tantas vezes haviao
reſiſtido á ſuaviflima viſita dos ſeus
rayos . Era o nosſo Veneravel Padre
o que ſe adiantava a todos os feus com-
panheiros , correndo , e diſcorrendo a
pé por todos aquelles lugares, ſendo-
The neceſſario vadear , por nao haver
ponte , ribeiras mui rápidas, e cauda-
loſas , o que pelo tempo adiante lhe
veyo a ſer cauſa de queixas mui ſen-
fiveis, e importunas , que preciſang
18 de Julho.
do - o a retrahir - ſe no ſeu pequeno hof
picio , lhe impedirao o poder apren
der tao deprefla , como elle tanto de
ſejava , as barbaras linguas daquellas
terras ; e quando finalmente ſe fez ſe
nhor dellas , começou logo a comba
ter o vicio predominante daquelles
paizes , que era o da temulencia.
2 Para a extirpaçao deſte abomi
navel peccado , ſe diſpôs que aquel
les mileraveis , que ſe achaftem incur .
fos nelle , nao foſſem admitidos em
caſa de peſſoa alguma ; e prohibio le
tambem aos mais o terem trato com
elles , ordenando - ſe tambem , que ſe
riao declarados,ao tempo da Miſia,
por inimigos de Deos , e contrarios
á ſalutifera doutrina , que lhes era an
nunciada pelos noflosMillionarios.Et
te meyo parece que lhes foi ſuggerido
por illuſtração ſuperior ; porque ſe
envergonhárað tanto aquellas gentes
de humas penas , que os faziao ( ao
odioſos , e os excluiañ do trato dos
ſeus naturaes , que inteiramente ſe ab
ſtiverao douſo do vinho ; e ſe por ven
tura o chegavao abeber , era dettem
perado com huma tao grande copia
de agna , que era impoſlivel poderem
receber algum damno . Efa reforma
foi tao bem abraçada , que eſcreve o
P. Soueges , que ainda no ſeu tempo
ſe cbservava com inviolavelinteireza .
3. Extincto eſte vicio , cuidou logo
o V. Padre em eſquadrinhar outros
mais , a que erao mais proclives , ou
propenſos aquelles povos , ainda que
foflem mui inveterados , e difficéis,
nao fe poupando atrabalho , que foſle
conducente áquelle fim , que naodei
xava de ſer ajudado mui ſuperiormē.
te por aquelle Senhor , de cuja cauſa
ſe havia encarregado ; porque muitos
dos Neophytos, ou novos convertidos,
vinhao a elle informando - o muito por
miudo, aſſim dos delinquentes , co .
mo dos lugares , em que comettiaõ as
ſuas abominaçoens, e deſordens ; e
outros ſe lhe offereciao para eſta bõa
obra , deſempenhando fielmente a ſua
palavra , como lhe ſucedeo com hum
DOVO
 FR. JOAM DE ORMAC, A
novo convertido chamado D. Paulo
Taclanwadoc , que encontrando em
certo dia o noſſo Miſſionario, e pere
guntando - lhe aonde hja ? Como o Pa-
dre reſpondefle que a confefTar , ſe
offereceoa indagar elle meſmo as cul-
Pas daquelles povos; e dando - lhe por
eſcrito todas as noticias , que alcança-
sa , The ſervirao depois de muita uti-
lidade para os interrogatorios do con-
feſſionario. Com eſtas boas diligen-
cias pôs o noſſo bom cultor aquella
vinha em hum eſtado mui florecente ,
como ouvir Miſſa , chegar amiudadas
vezes aos Sacramentos , viver em
muita paz , e caridade , abominar a
vaidade , e a diſſoluçao , vicios taõ
proprios daquelles climas ; reſpeitar
os Sacerdotes , e Miſſionarios , efa .
zer outras muitas obras mui louva-
veis , e meritorias.
4. O acontecimento , que agora
pafiamos a referir , moſtrará muito
bem parte do fruto que ſe tirava de
tao exemplares, e catholicos proce.
dimentos. Chegou em certa occaſiao
hum Indio infiel ao noſſo Servo de
Deos , pedindo lhe encarecidamente
que o bautizaile. E donde vos vem ,
meu filho , ( tornou o Padre ) elegrā .
de deſejo ? Padre ( reſpondeo o Gen-
tio ) najce-me de eſtar caſadocom būa
mulher Chriſtaa , e vejo nella acçoēs
tað bõas, tað fóra do commum , ve
jo - a ir , e aliſir na Igrejacõ tanta de
voçao , e commungar com tanto fero
vor , e vejo • a finalmente andar tað
previſta em fugir de tudo aquilloque
he deſordem , e maldade, que ja ne-
nhuma duvida me fica , de que a ley
que ella abraçou he toda do Ceo. E-
dificou -ſe muito della pertençàð do
bom Indio , e da ſapra vida de luamu-
lher o noſſo Veneravel Padre : diſpôs
aquella alma , e depois lhe otorgou
a primeira graça dos filhos de Deos.
Finalmente , havendo ſido os Batane .
zes a principio tað ferozes , incultos,
e ſelvaticos, vieraõ a mudar tanto de
natural , e de condiçao , que quando
em outroslogares ſe tratava da emen-
Tom . VII
18 de Julho . 75
1
da , e correcçao dos coſtumes ; anda
vaõ elles ja em proverbio para ſerem
propoſtos por modélos de huma per
feita Chrittandade.
5 Nao podia deixar o Pay dasmi.
ſericordias , como tao fiel àquelles ;
que ſe fiao da ſua Bondade, e traba .
Thao pela maior gloria de ſeu Santif
fimoNome , de favorecer , e abençoar
o trabalho de ſeus Servos ; o que evi
dentiſſimamente ſe vio na Providen
cia , com que o meſmo Senhor atten.
dia á converſao daquella Gentilidade ,
Encontrou - ſe em huma occaſiaõo Ve
neravel Padre Ormaça com huma vé .
lhinha Indiatica , e ja tao desfallecida,
que apenas podia ter-ſe em pé : fallou
lhe o Veneravel Padre na neceſſidade
que tinha para ſalvar- ſe de receber o
Bautiſmo ; e vendo a docilidade com
que ella aflentia a eſta vocaçao do Ceo ,
deixou - lhe por eſcrito o leu nome ,
para que foſſe procurallo á Igreja para
ſer catequizada com outros mais, e
diſpor-ſe aſſim para ſe incorporar por
membro myſtico da Igreja : foi aquel
la Neophyca algumas vezes, outras pot
rèm faltava , ſem que talvez o preſen «
tiſle o Veneravel Padre Fr. Joao. Mas
como eſte em hum certo dia leſſe o
rol dos Catecûmenos diante dos que
eſtavao presentes , e ella nao ſeachai .
ſe alli , mandou elle buſcalla : acha
rao-pa ja lutando com a ultima ago
nia ; e ſabendo iſto o Veneravel Padre
foi a toda a preffa , e miniſtrando - lhe
o Santo Bautiſmo , o meſmo foi aca
bar deo receber , do que voar o ſeu di
toſo eſpirito a ver face a face o Summo
Bem . Foi mui ſemelhante a eſte , ou
tro calo.
6 Catequizava o Veneravel Pa .
dre Frey Joao huma India : adoeceo
eſta , e como a queixa dao parecia
muito grave , differio elle o bautizalla
mais para o diante , em ordem a dil
polla melhor para a recepçaõ daquel
la graça . Mas ſobrevindo neſte rem.
po hum temporal mui rijo , foi tal o
impeto , e força do venio , que , de
mais de caular outrosſemelhantes de
K ii ſtroços,
76 FR . JOAM DE ORMAC, A
ſtroços, arrancou huma robuſtiſſima
palmeira , que impellida daviolencia,
e furia da tempeflade , veio cahir jutta-
mente ſobre a caſa da pobre , edoen-
le Catecûmena ; e nao ſomente ar
rombou , e destruio o ruftico edifi-
cio da ſua vivenda , ſepao que maltra
tou grandemente a habitante , redu-
zindo a ás portas da morte . Deo - fe
logo parte ao noſſo Miſſionario , e par.
tio eile immediatamente a ganhar
aquella alma para Deos ; mas como
áquelle tempo andava com moleftia ,
nao podia caminhar com toda aquel-
la agilidade, que queria ; e temendo
que foſſe neite caſo prejudicialiſſimo
qualquer vagar , para ſegurar -ſe me.
Thor , diſſe a hum moço Heſpanhol
muito dado a Deos, que entao o acom-
panhava , quefoſle elle diante corren
do, e que logo que chegaſſe deſſe
o Bautiſmo aquella mulher: fello o
outro aſſim , execut ando ao pé da
letra tudo o que o V , P. The differa.
Chegou eſte depois , mas a tempo ,
em que ja aquella ditola Chriſtaá eita-
va gozando da ſua eterna felicidade ,
e deo , e rendeo muitas graças'a Deos
pelo cuidado tao eſpecial com que eſ-
te Senhor tanto ſe deſvéla por fazer
felices, e bemaventuradas as ſuas crea-
turas ,
7 Hum Iodio Chriſtao ,depois de
haver commertido buto peccado , que
carecia de ſer expiado com alguma
publicidade , antesde laver recorrido
ao Santo Sacramento da Penitencia ,
foi accommertido de huma grande fe-
bre maligna , que foi creſcendo gra .
dativamente com frenezîs , e ' outros
ſymptomas deſta natureza . Affligia-
le muito com iſto o Venetavel P. e
fez hum voto a S. Jacinto de dizer húa
Miſſa em ſeu louvor, paraque lhe im-
petralle de Deos tempo para aquella
alma poder , por meyo da Confifſað,
congraçar le com o meſmo Senhor :
e indo no outro dia dizer eſta Milla
promettida , ao melmo tempo lhe vie .
fao dizer que o doente eſtava em ſeu
acordo , e com capacidade de fepo ,
18 de Julho,
der confeflar. He eſcufadoencarecer
aqui qual ſeria o ſeu alvoroço . Cha
mcu Padre, que fofle a toda a preſſa
confeſſar aquelle homem , e entretan ,
to foi elle deſobrigar -ſe da ſua pro
meſla. Confeſſou-ſe o doente com mui
tas demonſtraçoens de piedade , e ſen
timento das luas culpas , e morreo
dalli a poucos dias com grandes indi
cios de predeſtînado. Trouxerao - lhe
em outra occafiaõhuma India Gentia,
edementáda ; e compadecido o Vene
ravel Padre da ſua miſeria ,initou com
o Senhor que lhe deſſe aquella capa
cidade, que lhe era neceſaria para
ella abraçar a Santa Fé , e que depois
a reduzitie áquelle ellado , que mais
foſſe fervido . Ouvio o Boniflimo Deos
benignamente a oraçao de ſeu Servo ,
e allumiando aquella pibrezinha , te C
ve lugar de ouvir ao VeneravelPadre,e t
abraçar a ſua doutrina ; e diſpondo
te para receber o fanio Bautiſmo, e
fazer-ſe participante dos merecimen
tos da Paixao de Jesu Chrifto , apenas be
acabou de obter eſta graça , quando
immediatamente tornou a cahir na ſua
antiga loucura , que nað deixou ſe ,
nao por morte.
8 Outro lucceflo ,mui parecido ,
lhe aconteceo com hum Religioſoda
Ordem . Havia eſte enlouquecido pe I
!
lo nimio excello dos ſeus jejuns, ede
outras auſteridades como eſtas ; e ven
do - ſe em certa occaſião com o juizo
deſembaraçado , tocou -lhe o Senhor
no coraçao para que ſe confeffaſſe ged
ralmente com o noſlo Veneravel Fr.
1
Joao. Ouvio -o eſte com muita brano
dura , e exhortou - o finalmente a con
formar -ſe de todo o ſeu coraçao com
a vontade Divina , offerecendo -lhe'os
incommodos , que lhe reſultavao da
quelle mal que padecia. Aſlim o fez
ooutro , e depois de haver feito mui
tos , e cordialiffimos actos de reſigna
çao , tornou em menos de tres Cre
dos á ſua coſtumada demencia . Fora
hum nunca acabar , ſe ſe houveſem
de referir por extenſo outras muitas
couſas tocantes a eſta materia . Reſen .
tido
 FR . JOAM DE ORMAC , A
tido o demonio de ver taõ dilacerado . vores do Ceo neſta conſternaçao eſpi
o ſeu imperio em humas regioens , que
elle tyrannicamente dominava por tā .
tos leculos , e confundindo aquellas
miſeraveis gentes com os erros , e
abſurdos da idolatria , emprendeo fa-
zer guerra aos noſſos Soldados de
Chriito; e para iſtoſe valeo de algumas
daquellas das ſuas mulherinbas , que
tanto enredað , e prejudicao aomun :
do com os ſeus embuftes, e malda.
des. Eraó ellas tanto mais de temer ,
quanto melhor ſe fabiao fingir , eaf-
fectar Catholicas . Foraõ delatadas ao
Veneravel Padre , e ſouberaõ ettas im-
pias diſſimular taó deltramente a lua
malicia , que até chegáraó a alluci-
nar o Servo de Deos , que deixando-
ſe perſuadir que as Réseltavaðinno-
centes dos crimes , que ſe lhe inpu ..
tavao , ordenou que ao diante ſe nao
fallalle mais em ſemelhante materia .
Com iſto ſe deſaforarao tanto mais ,
que tomando o demonio a figura de
huma deſtas ſuas coadjutoras, e ap-
parecendo , e fallando a hum Indio
principal , que elle a ameaçou , dizen
do que ſe nað o deixava ſe queixaria
ao Veneravel P. Porque ? (Replicou
aquella maldica , e fantastica fombra)
Alim he que ſe obedece ao que elle
manda ? Ou eſquece- vos jaquéellenaõ
quer que deis credito a outra couſa
mais , que aquillo que vires com os
vosos proprios olhos ? Como porém
Deos noſlo Senhor , como Pay que he
das luzes , e que quer ſer conhecido
por Verdade eterna,poſtoque permite
te por ſeus altos, e inexcrutaveis jui.
zosalgumas ſombras de enganos ,ſem-
pre isto vem a redundar de ordinario
em maior credito , e triunfo dareci
daõ , e juſtiça ;lendo deſcubertas aquel.
las infelizes pelo noſlo vigilantiſſimo
Vigario , que aquelle tempo o eratam
bem do Biſpo daquella Dieceſe: foraõ
finalmente caſtigadas , e extermina-
das daquelles diſtrictos com a commi-
O
naçaõ de nunca mais tornarem a appa-
recer nelles .
9 Nao faltara ) os prodigios , e fa-
18 de Julho. 77
ritual ; porque chegando algumas pef.
foas, a quem aquellas mulheres eraõ
mais deſattectas , a fer poſſuidas doseſ
piritos immundos , fundavao eſtes mi
feraveis affligidos o ſeu maior alivio ,
e conſolaçao nao iómente nas ora
coens , e exorcilmós dos noſos Reli
gioſos , ſenaõ ainda ſimplesmente na
ſua preſença : peloque , mandando- os
chamar a ſuas caſas, naõ havia para el
les maior deſconſolação do queauſen
tarem - ſe os Padres ; e por iſlo ſe abra
çavao comelles, e lhes pegavao do ha
bito para aſſim osreter , e dilacar.Tam
bem luccediao outros caſos mui nota
veis em confirmaçao da noſſa Santa
Fé ; porqueadoecendo alguns , o mel ,
mo era recorrer ao ſagrado antîdrto
dos Sacramentos do Bautiſmo, ou Pe
nitencia , do que alcançarem a repen
tina , e inteira melhora das ſuas mole
ftias , o que hiao logo agradecer aos
noſſos Millionarios, como aos ductos,
por onde ſe lhes communicavaõ tantas
graças , e beneficios.
10 Havendo ſido tað eminentes ,
e abalizadas asmoftras, que deo de
ſantidade o noſſo Veneravel Fr. Joað
de Ormaça , foi promovido a Pro
vincial daquella Provincia no anno
de 1600. ſendo digniſſimo fucceffor
neſta Caſa do Veneravel Padre Frey
Bernardo de Santa Catharina , cuja Vi
da vay eſcrita no IV.Tomodeſte Agio .
logio a 8. de Novembro , que attenta
a nìmia bondade do ſeu coraçaõ ſe po
dia chamaro David dos ſeus tempos.
Tal era a virtude do noſſo Veneravel
Padre Ormaça , que findando eſte
Servo de Deos , tao glorioſa , e ſanta
tamente , o ſeu Provincialado , nao ſe
achou quem ſuppriſſe tao bem como
elle o lugar que entao deſoccupava
hum Varað tað benemerito , erecom
mendavel ! Hum ſó obftaculo ſe offe
recia contra eſta eleiçao , e era ſer o
noflo Servo de Deosmui doentio , e
fer aquelle officio tao moleſto , e tra
balhoſo , que para haver debem o ſer
vir ſeria necellario que elle uſalle de
ale
2
78 FR . JOAM DE ORMAC , A
algumas diſpenſas , o que , poſto que
poſſa ter alguma cor , ou deſculpa a
reſpeito de algum particular , nao ſe
póde deſculpar tað facilmente quan-
to aos Superiores ; porque como po
deraõ elfesexcitar , e promover o ma
ior rigor da diſciplina , ſe quanto ten
tar , e intentar a ſua precauçao eſtá
1
deſtruindo o ſeu proprio exemplo ?
Conſiderado eſte ponto com aquella
ſéria reflexao que era neceſſario , con
vieraõ os Eleitores , e Vogaes em que
ſe deixalle o exito , ou a ſuſpenſao de
fta eſcolha no juizo do Medico ; e foi
efte de voto , que por nenhum caſoſe
deixafie ella de fazer nao mais que por
aquelle inconveniente.Eleito Fr.Joao,
allegou muitas eſcuſas , que lhe ſugge-
ria a ſua verdadeira humildade , e fa-
zia -ſe muito eſpecialmente forte na
tenuidade da ſưa conſtituiçao : como
porèm eſte reſpeito eſtava ja tað le
galmente liquidado , de nada lhe va-
leo a lua repugnancia , e foi-lhe pre-
cilo ſometter os hombros aquella di-
gnidade ; e deſempenhou -a elle tað al-
tamente que tranſcendeo em muita
parte a expedaçao dos Religioſos.
Nað eraõ baſtantes os frios mais
inaturaveis, nem os calores mais ex
ceſſivos para que elle deixaſſe de fa-
· zer por ſeu pé as viſitas da terra ; e
nao havia no mar riſcos , ou tempefta-
des , que pude em extinguir o adi-
viſſimo incendio da ſua caridade : e
como ſe tudo iſto foſſe pouco , ou na
da , emprendeo fazer outras novas
conquiſtas do Ceo , medindo- as mais
pela proporçao do ſeu invencivel eſpi-
rito , do que pela capacidade , ou in
capacidade das ſuas poucas forças ; e
pagou-ſe Deos tanto dos illuſtres pro-
je &tos deſte ſeu jornaleiro , que nao
obſtante o rigor da ſua obſervancia,
os trabalhos das ſuas peregrinaçoens ,
e os incômodos dos ſeus importunos
achaques , lhe deo quaſi hum ſeculo
de vida , e ainda chegou a ver dez Pro.
vincialados poſteriormente ao ſeu . No
Capitulo , em que elle foi eleito , fe
eſtabelecerað muitas,emuiadequadas
18 de Julho,
leys, e ordenaçoēs em ordem a aper
,
feiçoar a vida Religioſa e a dilatar a
doutrina do Evangelho . Determinou .
ſe : que os Religioſos ſe conſervariao,
como era tao proprio do seu Inſtituto ,
e obrigaçao, com o maior deſintereſſe ,
e independencia de temporalidades :
que ſe fugiria da pedra de eſcandalo
da concupiſcencia , como fogem os
navegantes dos baixos domar, em que
temem inevitavel o naufragio ; e que
ſe guardariao inviolavelmente todos
os mais eſtatutos , que antecedente
mente ſe haviao tomado em ordem a
regular fantamente os ſeus coſtumes:
e mais ſe confirmáraõ nelle ultimo
ponto attentos a eſtranho ,e proximo
acontecimento ſucedido á imitacao
da primitiva idade da Ordem , em que all
alguns dos noſſos forao caſtigados ,nao he
menos que pela Mao Divina, por ſe
haverem atrevido a commetter algia CI
tranſgreſſað , ainda que leve , das nof do
las Conſtituiçoens, vindo a ſer eſtou
tro infeliz punîdo da ſua ipobſervan bu
cia , que conſiſtio em comer á noite ,
ſem licença , humas poucas de alcapar
ras , pelo rigor do demonio , que ſe
apoffou delle .
12. Mas ſe eſte infernal tyranno
dominou de algum modo aquelle in .
cauto Religioſo , nao foraõ pequenas
as ruinas , com que os filhos de Domin
gos forao deftruindo o ſeu imperio , $
avallallando mais, e mais almas para
o gremio da Igreja , muito eſpecial 1
mente nas Provincias de Pangaſinan ,
e da nova Segovia ; de modo , que ven
do -ſe laõ creſcida a méſle , foi necef
fario que nos foſſemos propagando
por maior numero de Fundaçoens,que
com effeito forao aceicas, e adnume
radas á Ordem no meſmo Capitulo da
promoçaõ do noſlo Veneravel Provin
cial.Cahio pois o pobre frade em huma
grande fraqueza; mas creſcendo por
gráos ette accidente , e applicando
The alguns Religioſos , que ainda nao
fabiao o ſeu miferavel eſtado , algūas
Sagradas Reliquias , ſe enfureceo de
modo , que elle ſó atropellava todos
os
 FR: JOAM ORMAC,A
os mais : conhecido aſſim o leu mal ,
o exorciſou o noſſo Fr. Franciſco de
Morales , Prior enrao daquella Caſa ,
e depois inclyto , e Veneravel Martyr
de Chrifto no Japao : 20 rezar-ſe a La-
dainha , nao ceſſava o maldito de fazer
: os ſeus coſtumados momos , e eſcar-
céos ; mas chegando -ſe a invocar San-
ta Cecilia , de quem o pobre energu
meno era tao devoro , que eſcolheo o
nome daquella heroîna Chriſtaá por
$
ſeu ſobrenome, e havia compoſto em
fua honra hum Officio proprio , que
2 elle lhe rezava todos os dias em par
$ ticular , foi tal o exceflo da ſua tranſ.
20 portaçao , que cahio por terra todo
paſmado , e amortecido . Vendo iſto
os alliftentes , e entendendo bem que
C alli nao deixava de haver algum my
ſterio , implorava) mais amiudada .
mente o auxilio daquella tao eſclare-
cida Martyr do Senhor , prometten-
do todos jejuar-lhe hum dia a pao , e
agua ; e votando -lhe de mais o Prior
huma Feita privativa , para o que man-
dou preparar, o mais aceada , e decen-
temente que ſe pode , a noſſa Igreja ,
e levantando -ſe hum Alcar , em que el-
le meſmo cantou a ſua Miſſa. Chega-
1 da a occaſiao da folemnidade, foi o
pobre endemoninhado com os mais
para o Coro , e ao tempo , em que le
principiáraó a cantar os Kyrios , ſe ex-
candeſceo mais o ſeu furor : foi maior
o ruido , e bravu ras, que fez á primei-
ra Oraçao , ſendo de tal modo , que
quaſi embaraçava , e perturbava os
Milla- cantantes:muito mais ſe embra-
veceo quando ſe chegou aquellas pa .
3 lavras do Credo : EX MARIA VIR-
GINE , ET HOMO FACTUSEST ;
mas ſobre tudo começou a gritar , e
a ſoluçar tað alto á elevaçao da Sagra
da Hoftia , que , porque ou nao ſe eſ-
candalizalle , ou le eſcandalizaſſe me-
nos a gente , que havia concorrido á
Igreja , foi neceſſario , para ſe enco .
brirem melhor eſtes exceflos , tocar al-
guns inſtrumentos .
13 Concluida eſta celebridade ,
foi conduzido o triſte paciente a hum
18 de Julho 79
Oratorio particular , aonde ſe acuſou
com muita humildade , e contriçao ,
rogando a todos os que alli eſtavao ,
que lhe ajudallem a pedir perdao a
Sua Divina Mageftade , aindaque pa
ra haver de alcançallo lhe fofle preci
ſo ſometter - de , como de muito boa
vontade protettava que ſe fometria ,
a padecer todas as penas do inferno.
Pedio depois o beneplacito do Prela
do para beijar os pés aos aſliſtentes.
Elle o conſolou muito paternalmen
te ; e como por entao moſtrava ter
mais algum focego , mandou a hum
Padre que lhe fizeſle os exorciſmos:
nellesreſpondeo o diabo muito a pon
to a todas as perguntas , que ſe lhe fi.
zerao , e beijou reſpeituoſiſſimamen
te a Cruz , que para iſſo ſe lhe apre
ſentou . Finalmente como eſtava tao
canſado do muito que havia padeci
do , deixarao - no em paz , para poder
deſcançar hum pouco . Ficando aſſim ,
repreſentou -ſe- lhe, ou em 1onhos , ou
de qualquer outro modo , que elle nao
ſoube dizer, que o inimigo trabalha
va por ſuffocailo ; mas que via hum
Religioſo , que o exorcizava, e com
elle vinha tambem em ſeu favor a glo
riola Santa Cecilia . No dia seguinte
ſe deſobrigárað todos os Religioſos
da promeſſa, que , como ja dillemos ,
lhe haviao feito de jejuar-lhe a pao ,
e agua ; e indo novamente a exorciſ .
mallo , ſe conheceo que inteiramente
estava liberto daquella tao dura , e ty .
rannica oppreſſað , e que aquelle mảo
Anjo , que atelli o havia maltratado
tao cruelmente , era do numero,da
quelles , de quem diſſe o Salvador ,
que nao ſe expelliao menos que com
as armas da Oração , e do jejum .
Como Deos noſſo Senhor he
14
tao bom , e tað miſericordioſo , que
até quando nos caſtiga he para noſo
maior bem , ao modo com que na vi.
bora anda junia a peçonha com a the
siaga , o que'reſultou deſte caſo foi o
avivar mais nos coraçoens dos noſſos
Religiolos a devoça o da quella gran
de Santa , que agora nos deixava mais
con
-t
80
FR . JOAM ORMAC , A
confiados no bom fundamento , com
que os noſſos anteceſſores a haviað ef-
colhido por huma das ſoberapas Tu-
telares , e Protectoras da Ordem , e
juntamente ficar mais acauteladospa-
ra nao preterir , e violar , nem ainda
venialmente,as terminaçoës , a que, tao
previſta , e prudentemente, nos qui-
zerao obrigar noflos anteceliores . Mas
antes que paſſemos a diante , notare-
mos aqui algumas couſas notaveis ,
que diſle odemonio pela boca'daquel-
le feu vexado . Fizerao-1 he ler a Epiſ-
tola da Miſla da Cruz , aonde diz o
Apoftolo dasgenies : Que Chriſto Se-
nhor nofjo le fez por nós obediente até
o fim da (1:a Sagrada Vida ; porém o
eſpirito de ſoberba invertia neſte lu-
gar o pro nobis de S. Paulo , dizen-
do : pro vobis, como excluindo -le a
ſi , e aos mais Anjos Apóſtatas dos
merecimentos do Sangue do Filho de
Deos ; e dizendo entao hum Religio-
fo : Que aſſimera , que Senhor nao mor-
rera pelo demonio ; reſpondeo elle com
a ſua conmūa altiveza : Que ainda elle ,
e leus companheiros faziao muito me-
nos calo diſlo , do que ſe ao contra-
rio tajnbem houveſſe padecido por to
dos elles . Quando chegou aquellas
palavras do Doutor das Gentes : Que
ouvindo o Santiſſimo Nome de JESUS,
se dobrað todos os joelhos no Ceo , na
terra , e nos infernos ; nao podiaõ aca-
bar com elle, em que leſle a dicçao :ina
fernorum , dando por eſcura , que a
falta deftas palavras de ſuppria muito
bem com as outras , em que contin ûa
o Santo , dizendo : Que nao ha lingua,
gue nao confeße que nofo Senhor E para devaftar, e deſtruir os erros, e
SUS Cbriſto eſtá reinando na gloria
de feu Eterno Pay ; trabalhando delte
modo por fugir da ſua propria humi-
liaçao , e verificando aſſim a ſenten
ça do Profeta Rey , que diz : A ro-
berba daquelles, que aborrecem ao Se-
nbor , Jempre ſequer levantar.
15 Mas ſe o diabo véxou por als
gum pouco tempo a eſte pobre Reli -
gioſo , nao foi pequena a guerra , que
outros muitos lhe fizeraó , devaſtans
18 de Julho .
do as ſombras da idolatria , é geneili
dade , eſpecializando-ſe muito mais
ettes esforçados Athletas de Chritto
Das Provincias de Pangaſinan , e da
nova Segovia , aonde 1e viaó preciſa
dos a trabalhar em novas fundaçoens
.
Taõ crelcido era o numero daquelles
bem affortunados Neophytos ! É mui
tas dellas de facto , forao aceitas no
meſmo Capitulo da eleiçao do noſſo
Veneravel Provincial, que infiaman
do mais , e mais os coraçoens de leus
ſubditos, os excitava a outros novos,
e glorioſiſſimos progreſſos, que naõ
cediao em menos luftre da Ordem ,
que da Igreja Univerſal, alimpando
die
aquelles paízes dos cardos , e tójos da
ter
infidelidade, e fazendo alli florecer
20
optimamente a vinha do Eterno Pay
ar
defamilias, a quem ſerviaõ tao fielme.
za
te ettes ſeus Obreiros Evangelicos.Ao
m
modo com que o Sol allumia , e pe .
netra com os ſeus rayos os lugares do
tal
mais occultos , e reconditos , aſſim
nao havia parte taö remota , ou del gur
conhecida, aonde estes bons filhos de que
Domingos nao levaſſem , e nao accen
deſſem as luzes da Fé . Nao havia na mor
nova Segovia montanhas tao ermas ,
ou intrataveis, que eſcapaſlem de ſer
regiſtadas pelo ſeu zelo. Ufavao mui
tos daquelles idolatras de huns ruſti
cos edificios, feitos ao modo de ca
pellas , aonde rendiao cultos ao de
monio , e aonde faziaõſuasromagēs,
e ſacrificios, offerecendo - lhe dons
mui precioſos, einvocando - o nas ſuas
neceſſidades ; enaõperdoavao os nof
ſos Miſſionarios a diligencia alguma
as cegueiras daquella pobre gente .
16 Muitos dos ricos donativos , 0
que ella , como diſſemos, offerecia
ao pay da malicia , ficavao depoſita
dos em alguns troncos de arvores ; e
poſtoque eſtavaő patentes , ninguem
ſe atrevia achegar- lhe ; porque ode 1
monio os illudia , pondo grandesme
dos a quem ſe atreveſle a tocar , ou
violar aquellas couſas, que ſe lhe ha
viaõ votado ; e eſta ſuperſliçao era
hum

FR . JOAM DE ORMACA
hom ponto tam religioſo , e ſagrado
para os mileraveis Indios , que antes
quereriao pallar por mil mortes , do
que chegar a cortar qualquer cana ,
ou qualquer outra planta , ou arbusto
dos que alli creſciaó naturalmente .
Derao os noflos Religioſos com muie
tos deſtes pagodes , em que acharaó
alguns idolos pequenos , como boni .
frates , e de forma muito ridicula ; e
faziaó nos dar ao fogo com todas
aquellas oblacoens de grande eſtima ,
que a cegueira daquelles barbaros lhes
havia conſagrado nos troncos das ar.
vores , que tambem fizerao queimar
á ſua viita , nao fem grande horror
daquelles mileros , que temia o incor :
rer na execuçao dos grandes males ,
com que o demonio os havia tao falo
ſamente ameaçado . Reduzidos a cin
za todos estes fomentos do paganiſ-
mo , derao ordem os noſſos Explora .
dores Evangelicos a que elles le dei .
taflem no mar , temendo deixar al-
guns reſquicios aquelles homens,em
que elles tornaſſem a idolatrar. To.
mando depois occaſiao os bons Mif-
fionarios do grande terror , em que
os via ) , lhes formavao muitos argu-
mentos , mui claros , e fortes , com
que lhes mostravaô , e demonftravao
a falſidade dos ſeus ritos , a iverdade
dos dogmas da notla Santa Religiao ,
e a inſtante neceſſidade, queagora ti .
nhao de abraçá - la , para ſegurar o im-
porcanuiſlimo negocio da ſua ſalvaçao
eterna . Com effeito nao deixaraó de
fazer huma grande impreſſao neſtes
Gentios as razoens dos Veneraveis . vertendo , ja catequizando, ja bauti.
Padres , a que dava mais força a falta
da prometida vingança do inimigo ,
ao meſmo tempo , em que ſe lhe fa
ziao cantos vilipendios , e ſobre tudo
os auxilios do Ceo , que fluiao agora
tao proſperamente ſobre aquellasNa•
çoens .
17 Corriaõpois eſtas gētes como cér-
vos , feridos da palavra , e luz Divina,
a banhare -ſe na ſagrada fonte do Bau
tilmo ; e de vaſſallos , que atélli ha.
viao lido do demonio , le torpaya
Tom . VII
81
18 de Julho.
agora ſeus contrarios , tratando com
de prezo , e irrilao aquelles fracos , e
tenues vinculos , com que em outro
tempo os prendera , e ſujeitara. Hou
ve tambem outro incidente , que nao
' contribuîo menos para a converſao
dos Indios ; e foi húa contagioſa doen
ça de bexigas , de que apenas eſcapou
peſſoa, e metteo muitas na ſepultura,
principalmente meninos , como mais
ſujeitos a eſta importuna enfermida
de. Mas que aptidoto , ou que reme
dio daria aquelle Senhor , que he tað
diligente em acudir - nos nas noſlasen
fermidades, que , como le vieſle voan
do a ſarar - nos, dille delle o Profeta :
Que nos traza ſaudenas ſuas pennas.
A Medicina foi, como fua , Celeſtial ;
porque nao havia outra melhor con
tra aquelle achaque , do que as ſagra
das aguas bautiſmaes. No ponto , em
que le purificavao nellas os Convere
tidos , deſſe meſmo experimentavao
conhecida melhora : e talvez ſeriaõ
ainda mais admiraveis os effeitos de.
Ita fanta abluçao , ſe nao os delmere .
cefle a pouca fé dos Indios, que co
mo tao nova , nao tinha ainda aquel
la firmeza neceſſaria ; e ſe recorriao
elles , e ſeus filhos aquelle Sacramen
to , mais era com intençao de confe
guirem a melhora , que experimentaa
vao nos corpos , do que por crer , e
buſcar a mais importante , que he, das
almas . Nao perdjao tempo os noſſos
Miſſionarios em promover o maior a
diantamento deita Chriftandade , diſ
correndo de caſa , em caſa , ja con
zando ,ja confeſſando , eadminiſtran
do os outros Sacramentos , e ja final.
mente exercendo outras muitas obras
de religiao , e caridade . Nao he di .
zivel o alvoroço , com que os bons
Padres trabalhavao neſta ſeara do Se
phor ; influindo - lhes eſtes jubilos o
grande numero de almas , a quem fran
queavao as portas do Ceo , crendo ,
com bom fundamento , que diante de
Deos , aonde nao podia haver ingra
tidao , nao deixariaõ de rogar por qué
L traba ;
821
FR . JO DE OR
AM
trabalhava tao cuſtoſamente pelas fa-
zer participantes de tað ſumma feli-
cidade .
18 Abençoou aquelle Senhor o
zelo do noſſo Veneravel Provincial ,
enviando - lhe no tempo do ſeu gover
no muitos Operarios , que coincidiſ-
ſem com as luas ſantas intençoens. Por
huma vez aportárao naquellas partes
quatorze Religioſos , que ſahirao de
diverſos Conventos das Provincias de
Roma , Caftella , e Aragao . Capita ,
neava-os Fr. Diogo de Soria , que os
havia congregado em Helpanha no
prin ipio do ſeculo decimolettimo.
Chegarao a Manilha no uliimo de
Abril de 1662., e tinhao todos tanto
fervor para Millionar que nem ſequer
houve bum , que quizeſfe alli deſcan-
çar , como talvez he mui ordinario ,
de huma navegaçao tao dilatada , an-
tes de emprender a outra das Filippi-
nas nao menos moleſta , e oppoita á
conſervaçao ainda da ſaude. Vio -ſe
quanto a Maó do Senhor começou a
defender eſtes bons Padres , deſde
que elles ſe embarcáraó. Ardia Sevi .
Tha , que era o porto de donde haviaõ
de fahir , em huma furioſa epidemia ;
mas o esforço, e generoſidade deſtes
CampeoensdeChrifto era de tal mo-
do invencivel , que nao fómente nao
houve hum dos que eſtavao juſtos pa-
ra partir , que recuſaſſe entrarnaquel-
la terra , ſenao , o que he mais , que
movidos outros muitos Religioſos do
feu exemplo , os queriao acompanhar,
e fa -lo -biao aſſim com efteiro , em ca.
fo de conceder-ſe -lhes eſta graça . Quē
os via caminhar tað alegremente pa •
Ta aquella Cidade , perguntava -lhes
aonde hiao ; e reſpondendo que a Se-
vilha . A Sevilha,Padres ! ( exclama-
vaõeſtas pefloas admiradiflimas da ſua
reſpoſta ) Nós que fomos de lá , vie
mos fugindo da morte , e Vosas Par
ternidades , que nao ſao , vaõ lá de.
ſafialla ? Eſtas más noticias , que fa .
rian deſcorçoar aos mais animoſos,
nao faziao outro effeito no animo def.
tes Padres , mais que confirmallos me :
,A 18 de Jul :
MA ho
C
lhor no ſeu propoſito , começandoja
cada hum delles 'a fazer ſacrificio a
Deos da ſua vida , ſe tiveſſe a fortuna
de morrer em ſeguimento do ſeu pro
jecto.
19 Paſſando pela Corte de Hef
panha , em companhia de outros dous
Religioſos, Fr. Thomaz Fernandes ,
que depois veio a ler enviado pelo
noſſo Veneravel Provincial ao Japao ,
feito Superior dos noſſos primeiros
Miſſionarios, que lá paſſarao , encon
trou -ſe com Fr. Andre Caro , Provin
cial de Caſtella , e que era grandemen
te amigo do Preſidente das Indias
Occidentaes; e inteirado ette Padre
da reloluçao de Fr. Thomaz , e ſeus
companheiros , lhe diſle : que elle fa
bia , de parte do Preſidente , que nao
havia por entao Navio , que partiſſe
para aquelles Eſtados. Dizia verdade
Fr. Andre; porque houve certamen .
te eſta ordem por caula da peſte : m0,
vidos porém os coraçoens dos noſſos ©
Religioſos de virtude ſuperior , con
tinuarao o ſeu caminho ; e revogan €
do-ſe entretanto aquella diſpoſiçao, 21
que ſe dera , nao lhes faltou embarca. Q
çaõ mui commoda para fazerem via
gem . Cufou lhes muito antes de che
1
garem a Sevilha , e paſſaraó com gran
de penuria ; porá polto ý traziao teſti
munhos mui legaes do caminho que
haviao tomado , era com tudo tao grā:
de o receio , que havia em todas as 0
partes do contagio , que nao achavao 20
quem quizeſſe recolhellos, e hoſpe
dallos . Chegados aquella povoaçao ,
foraõ téſtimunhas oculares do deitro
ço , que fez nella o Anjo extermina :
1
dor , deſcarregando hum tao terrivel
flagello da vingança Divina . Virao
pois os empeſtados ſer conduzidos
meios mortosaosHoſpitaes , eoutros
ſemelhantes objectos de laſtima , e deſ.
conſolaçao . Era hum deſtes Padres o 1
Veneravel Fr. Joao de Solîs ; e
ſendo ferido do mal, comoreferire .
mos no tomodecimo defte Agiologio ,
fe Deos o permircir como Author da
11
vida , nao foi iſto baſtante para deſa
.
lentar
 FR . JOAM DE ORMAC, A
lentar os noflos brioſiſſimos Soldados
Evangelicos .
20 Animavao - ſe mutuamentehūs
aos outros , conſiderando que , em
hum tempo tao calamitolo , le acha-
vao com ſaude perfeita , nao obſtante
os trabalhos , e incommodos da jorna,
da , que haviaõ feito a pé, mendigan-
do , e nao com pouca neceſſidade, con-
tra o ſeu coſtume, hum bocado de pao
para comer . Era- lhes neceſſario elpe-
tar pelos mais companheiros , que
ainda faltayao ; e no bom termo, com
que Fr. Diogo deSoria , que tambem
eſtava em Sevilha , bia recebendo os
que vinhao chegando, ſuavizavam os
trabalhos padecidos, e ainda os eſpe-
rados . Deſapropriou -ſe ette Padre de
quanto tinha de feu , fazendo com .
muns os ſeus livros , habitos , e outras
couſas do ſeu uſo . Aſſim ſe conſer .
varaô em Communidade , durante a
fua navegaçao , orando , rezando ;
e comendo juntos , e guardando em
tudo o mais a melhor obſervancia que
era poſſivel. Prégavaõ algumas vezes ,
aflim para ſe inflamarem melhor ao
deſempenho da ſua vocacao , comopa-
radoutrinar com a palavra, como dou-
trinavao com as obras , a gente do Na-
vio . Aquelle que os conduzia era ja
taó velho , que, ſem encarecimento ,
ſe podia dizer que nao fómente os
havia tranſportado por milagre , ſenaõ,
o que he mais, haver ſahido a ſalvo
de huma furiofiflima tormenta , de
que fora accommertido ; e iſto ao meſo
mo tempo , que lhe nao eſcapou a
melhor Náo que hia naquella frora ,
nem houve alguma , que nao experi .
mentaſſe alguma parte dos seus maos
effeitos. Os meſmos Pilotos mais pe-
ritos , dando - ſe por perdidos , ſe diſ-
punhao ja para bem morrer ; diligen-
cia eſta , de que elles fogem ( umma-
mente , por pao intimidar aos Dave .
gantes .
21 Vendo os noſſos Religioſos o
tao imminente perigo ,em que eſtavaõ ,
recórrerao á melhor Eſtrella do Mar,
a Virgem Senhora, fazendo -lhe vo-
Tom . VII
18 de Julho. 83
to de ſe congregar todaa gente da em
barcaçao , para lhe rezarem todos , co
mum , e devotamente , o leu Roſario ;
e apenas acabarao de fazer eſta pro
meſla, quando logo ſeſerenou o Ceo ,
calmarao os ventos, e tornou -ſe o mar ,
como dizem , de leite , ſendo tað ca
bal em tudo eſta graça, que foraőren .
der as graças a Deos em terra , que
logo tomarað feliciſſimamēte . Adoes
cêraõ alguns em Mexico ; mas nao
obftante as ſuas queixas , nem hou :
ve hum fó , que ſe nao achaſſe na pri,
meira occaſião no porto de Acapul
co , nao ſem grande admiraçao dos
Religioſos Mexicanos , por nao ſer
efta promptidaõ mui corrente , como
aſfim ja o deixamos indicado acima.
Forao eſtes Religioſos os primeiros,
que eſtreáraó o Hoſpicio de S Jacin
to , no tempo que ſe detiverað -na
quella Capital das Indias de Caſtella ,
que foifundado poſitivamente para os
noſſos Religioſos, que hao de ir Miſ
fionar ás Filippinas. Aqui viverao
com a maior regularidade Religioſa;
levantando- ſe ás Marinas da meia noi
te , dando -le á Oraçao , e nao cum
prindo ( ómente os ultimos ápices da
Regra , fenaó ainda praticando outros
muitos exercicios voluntarios de pe
nitencia , e devoçao. Hiao muitas ve .
zes deſcalços viſitar a Capella de Noſla
Senhora dos Remedios , entoando ou
a Ladainha da Senbora , ou algumas
outras oraçoens. Nao ſe eſqueciao
tambem dos ſeuseſtudos, deſtinando ,
lhes hum tempo certo , e prefixo , e
coſtumavaõ ter ſuas conferencias de
pois da meza . Vinhao muitas vezes
aſſiſtir a ellas osReligioſos do Côvento
de Noſſo Padre S.Domingos de Méxi
co , e ſempre leretiravao igualmente
admirados das muitas letras deſtes
Servos do Senhor , que edificados da
bõa ordem , e muita virtude, que ref
piraya7 todas as ſuas acçoens. Zela.
vao tanto a pontualexecuçaõ das Con .
fituiçoens , que jamais houve algum
delles, que ſahiſle meramente por cu
rioſidade para ver alguma couſa mais
L ii rara ,
84 FR . JOAM DE ORMAC , A
rara , ou mais extraordinaria da terra ;
fugindo alim de todas as cccalioens
de diſtracçao , como tao 'contrarias
ao fim do teu Apoftolico projecto .
22 Muitos dettes férvidos Miſſio-
narios foraõ caminhando a pé , quan-
do partirao para Acapulco , ſendo a
diſtancia nað 16 muito prolongada , fe-
nað mui trabalhoſa : acçao foietta ,que
igualmente edificou , que admirou
aquellas feſloas , que os viaõ ir defte
modo. Nao havia mais que huma em-
barcaçao , que eſtava a partir para as
Filippinas: mas què ; ainda nao balta-
va para ſe accomodarem nella o Go-
vernador Dom Pedro da Cunha , é
a fua foldadeſca . Virac - le anguſtia
diffimos os bons Religioſos com eſta
repulſa ; mas recorrendo aquella Se-
nhora , que he Conſoladora de affli-
étos, e invocando- a na ſua devotiſſi-
ma Imagem dos Remedios , de que
ja fallámos , lhe fizeraõ voto de fazer
huma Novena muito ſolemne de Miſe
fas ; e aquella Soberana Rainha dos
Anjos , a quem chamou o Serafico
Doutor S. Boaventura , depois de
Deos , Unica eſperança noſſa , e que
he tao fiel a feus bons fervos, e mui
to mais em pontos, em que tanto ſe
intereſſava a maior gloria de feu San-
tiſſimo Filho , nao quiz agora deixar
tao ſenſivelmente de conſolados'a ef-
tes Obreiros Evangelicos , e muito
brevemente lhes deparou outras em-
barcaçoens , em que puderao fazer ,
como fizeraõ ,felizmente a tua viagem .
23 Neſte ſegundo embarque nao
fizerao menos fruto do que no pri•
meiro com o ſeu exemplo , e doutri-
na . Repartirao toda a gente do Na-
vio , deide o primeiro até o ultimo, en-
tre ſi , e á noite , ja quando o trafego
do ſeu crabalho permittia mais al .
gum deſcanço , avocava cada bum dos
Padres a fi ás peſſoas da ſua juriſdi-
çao , e alli os doutrinavaõ nosMyſte
rios da Fé , que neceſſariamente de-
viaõ faber : alli lhes diziaõ com tanta
docilidade , e geito o que lhes era
mais preciſo para rectificarem , e deſ.
18 de Julho,
onerarem as conſciencias , e alli lhe
pintavao tao fea , e penetrante a feal
dade da culpa , eaeternidade das pe.
nas do inferno , a gloria do Paraiſo ,
e a ſumma , e immutavel Formoſura
de Deos , que nao poucos daquelles
mareantes , que em muitos annos naõ
haviao feito huma boa confiſſao , pe
zando mais ſeriamente oimportantil
fimo, e , ſegundo a leptença de Chri
fto , unico negocio da falvaçao , fe diſ
punhao a mudar de vida , e a retroce
der , como outros Pródigos , doabyf
mo da ſua miſeria aos Braços do Pay
das miſericordias. Hum deftes bem
affortunados, que vivera com maior
diſſoluçao , depois de convertido , e
bem confeſſado, vio -leem grande éx .
tremo perſeguido de ſuggeitoens , e
ameaços do demonio : neites termos D
recorreo ao ſeu Confeflor , é tal foi 0
a medicina , que elle lhe receitou , que 9
ficou dalliem diante em huma icon pa
tinua , e perfeita paz . Para ſerem tu . 22
do feliz eſta viagem , o foi até o fim , bre
pela circunſtancia do tempo , em que ge
chegarao a Manilha , que foi nos fins D.
de Abril de 1602. a tempo , em que
o noſſo Veneravel Provincial Fr. Joao
de Ormaça eſtava celebrando Capitu
lo . Nao ha encarecimentos tam bem
imaginados, que poſlao deſcrever fem
liſonja, ou artificio ,a realidade do ju
bilo dos Padres Capitulares , vendo
chegar eſte ſoccorro em occafiao tao
opportuna , e em que erao neceſſa
rios eſtes jornaleiros do Senhor para +
ſerem expedidos ao Japao , e ao Rey
de Satzuma , que inceſſantemente os
eſtava pedindo por cartas fuas. Fo
rao pois alguns deſtes novos Miffio .
Darios empregados em hum tað ſanto
miniſterio , e com tanta fortuna , que
chegara ô a fazer voluntario , e aman
te diſpendio das ſuas vidas em devido
oblequio, e honra de Jesu Chriſto .
24. Havia ja Miſſionado gloriofa: *
mente por aquellas partes o Bemavē .
turado S. Franciſco Xavier , eterno
decoro da ſempre eſclarecida Reli.
giao da Companhia de Jesus , eacha
va -ſe
 RECOPIL A C,
va - fe moi fertil a ſeara daquella mo
derna Chriſtandade : faltavao porèm
os ſeus Cultores . Attento a eſta necef-
ſidade o M.R.P. Gaſpar Coelho , Vi:
ce-Provincial da meſma Sagrada Re-
ligiao Jeſuitica , á imitaçao do Principe
dos Apoftolos , que apanhando nasſuas
Tedes grande copia de peixe , e vendo
que a lua multidao , e pezo lhas hia
rompendo , e ainda ameaçando nau
fragio á ſua barca , pedio ajuda aos
que eſtavao em outra , e deſte modo ,
nem perdeo a péſca , nem a embarca-
çao ; eſcreveo ao Reitor da ' Compa-
nhia , aos Reverendos Padres della de
mais authoridade no Japao , ao Go-
vernador daquellas Ilhas, ao Cuſtodio
dos Religioſos de noſſo grande Padre
S. Franciſco, e ao Illuſtriſſimo Biſpo
D. Fr. Domingos de Salazar , da noſſa
Ordem , como conſta de duas cartas ,
que lhe enviou o Padre Meſtre Gaf.
par Coelho , huma expedida de Nana
gazaqui , com data de 11 de Setcem
brode.1584. , e outra do Reyno de Fi-
gen , feita a 14. de Janeiro de 1585.
Deprecava , pois , aquelle Reverendo
Vice - Provincial a todos inftantiflima.
mente por Operarios para a cultura
daquella vinha tao copiola , e flore .
cente ; e para que ſe facilitaſſe , como
era tao conveniente para o espiritual ,
como para o temporal, o comercio en-
tre os Japoens , e os Heſpanhoes das
Filippinas. Só nao eſcreveo aos noflos ;
mas com juſta cauſa , porque ainda al
li nao tinhamos fundaçoens. Condeſ-
cendeo com tao pios rogos o noſſo
Biſpo D. Fr. Domingos , mandando
alguns Miſſionarios; mas naő foi o Ceo
por entao ſervido de aceitar mais que
a prompridað , e boa vontade daquel-
le Sagrado Paftor; porque todos elles
morrêraó no mar.Eftes , e outros mui-
tos glorioſos ſucceſſos, que foralargo,
os que illu-
e prolixo referir , foraõ
ftráraó o tempo do noſſo Veneravel
Provincial Fr. Joao de Ormaça , que
no anno de 1638. aos 18. de Julho co
roou taõlaborioſos , e ſantos cuidados
com huma morte precioſiſſima, depois
A M de 18 de Julho. 85
de ter vivido mais de cem annos , ſem
haver ( como aſſim o rezaõ as Actas do
Capitulo Geral de Roma , que fazem
honorifica meoçaõ delle ) perdido a
graça bautiſmal.
RECOPILAC, AM
de 18. de Julho.
I M Limoges o V.P.Fr.Den
dro Coppelli. Illuſtrou eſte
Servo de Deos oantigo Convento da
quella Cidade como hum dos ſeus pri
meiros , e mais brilhances luminares.
Docou- o a natureza de ſingulariſſimas
prendas , que nao eraõ outra couſa mais
que hum ſobreſcrito da maior multi
dao de outras , com que o ennobreceo
a graça . A ſua converſaçao era muien
graçada, e florida ; 'Tuas ſempre mais
cendente a edificaçao , que ao diver
timento . Foi hum dos maiores Theo
logos do ſeu ſeculo , e teve huma na .
tural , e affluente elegancia , que elle
empregava , tao digna , como oppor
tunamente , para intimar a palavra de
Deos . Servio muitos cargos , e todos
com igual acerto , que aceitaçao . Era
ella tað univerſal , que ſendo elle ain
da muito moço , e eſtando repleta a.
quella Caſa de ſujeitos muito idoſos ,
e benemeritos , duas vezes foi eleito
Prior ; aindaq ! le era tað humilde o
Veneravel Padre , que de ambas as ve
zes fez todos os esforços por furtar
os hombros a eſta Prelazia , e quando
ſe lia no Capitulo a ordem , em cuja
virtude foi exaltado a eſte cargo , eſ
teve proftrado profundiſſimamente
por terra . Era amantiſſimo da obſer
vancia , e de muita Oraçao ; eeſtando
airda da primavera dos ſeus annos ,
paflou a lograr -ſe daquella , que eter
namente he immarceffivel, no anno de
1298. = Guidus in Catal. Prior.
Conv. Limog .
2 Em Flandes , o V.P. Fr. Tho.
maz Heskin . Era Inglez de paçao , e
Conego,e Theſoureiro da Igreja de Sa
risbury, e alcançou os calamitoſos tem
pos
86 RECOPILAC ,AM
pos da apoſtaſia de Henrique VIII . , e
do Reinado de qua filha ballarda , Ifa-
bel , ou , por melhor dizer , Jeſabel da
quella deſgraçada Coroa , como argu ;
tamente lhe chama o noſſo P. Fr.Tho.
maz Soueges ; e como nao quiz ſeguir
as partes daquelle mal aconſelhado
Principe , bao teve duvida em demit.
tir a ſua dignidade , beneficio , e bens,
eſahir prófugo , e voluntariamente de-
gradado , posto que nao fó , porque
acompanhado de muitos outros bons
Catholicos da infeliz , e mais arruinas
da Troia daquelle paiz. Veſtindo o
noſſo ſanco habito , ſe fez protector
das noſſas Religioſas , que , para con
ſervarem a ſua Fé , e pureza , ſahiao
como timidas pombas fugindo aos
falcoens da hereſia , e com effeito ſe
forað refugiar aos Eſtados de Flandes.
Era o Servo de Deos muito amante
dos eſtudos ; porém no que mais eltu-
dava era na pratica de huma ſólida , e
Chriſtianiſſima virtude.Eſcreveo con-
tra hum impio conclave do Parlamen-
to de Inglaterra huma Obra intitulada :
Parlamentum ex antiquorum Conci-
liorum , & Doctorum ſententiâ ; aon .
de concludentemente moſtrava qual
devia fer a Fé , qual a doutrina , e qual
a fidelidade, com que adiante deviaõ
proceder os Parlamentarios ; e para
corroborar melhor os ſeusaſſertos , os
fez confirmar por doze Doutores Ca-
tholicos Romanos , que todos á huma
eſtiveraõ concordes em condenar os
attentados dos hereges . Picados eſtes
do que ſe lhes demonſtrava, mais que
com evidencia Mathematica , quize-
sao recalcitrar , appellando de tudo
iſto ; mas antevendo - o a vigilancia de
Fr. Thomaz , fez ratificar o que eſta-
va obrado , por outros doze Doutores
Catholicos , o que , ainda ſegundo os
meſmos principios hereticos, ficava,
como ficou , ſendo irrefragavel : e de
ſte modo ficou em pé aquella conde
naçað , ſem terem os contrarios mais
que replicar . Florecia o Servo de Deos
pelo anno de 1566. , e he crivel que eſtá
florecendo na patria das luzes em ju
de 18 de Jūlho.
fto premio do ſeu grande zelo , e Reli
giao . = Ptiſeus de Scriptor. Angl.
3 Na Cidade de S. Marcos, na Ca
labria , ſeu Illuſtriſſimo Biſpo D. Fr.Ja
cinto Ceuli . Era naturalde Piſa , e fez
lua profiljao na Minerva Romana .
Honrou grandemente o noſſo ſanto
habito com huma eſpecialiſſima, e
muito ardente piedade . A ſua voca
çao para o Biſpado lá teve huns taes,
ou quaes arremedos com a de David
para outro; porque foi eleito ſendo o
mais pequeno de todosos ſeus irmaos,
Jor
parecendo muitos delles muito mais
do
aptos para exercer aquella Prelazia.Tu
do iſto nao obſtante , o Senhor o elco
theo para hum tað altiſſimo emprego,
ire
ſendo feu Vigario na terra Innocen
cio X. o Samuel de que ſe ſervio para cia
intimar- lhe eſta ordem , que lhe che. fii
gou a tempo , em que elle eftava ex
ercendo o lugar de Sub-Prior do ſeu ta
Convento . Bem moſtrou eſta eſcolha pe
ſer do Ceo ; porque o tempo que go 18
vernou ſua Eſpoſa, governou -a tao
ſaptamente , que renovou muito mais
vivamente a memoria dos Agoſtinhos,
Ambroſios, e Exuperios . Fez belliſſi,
mas diſpoſiçoens com lumma adver
tencia , que forao de grandiſſima uti
lidade para a ſua Dieceſe ; e naõ deſat
tendendo tambem ao temporal das
fuas ovelhas , era tao compaſſivo , e
amante da pobreza , que ſendo os an
nos de 1649. , e 1650. eſteriliſfimos na
Italia , nað fó largou inteiramente aos
pobres os rendimentos da ſua Mitra ,
ſenao que tambem lhes facrificou to
dos os precilos moveis da ſua caſa : e
havendo aſſim remediado aquelles ,
em quem o meſmo Chriſto quer ſer
repreſentado no mundo , foi a gozar
ſe do premio , de que tao altamente ſe
fez crédor, no anno ſeguinte de1651 .
Ann . Dominican.
19. de
 D. FR , THOMAZ DE
· 19. de Julho.
Vida do Veneravel, e Illuſtriſ
fimo
DOM FREY THOMAZ
DE CARDENAS ,
Biſpo de Vérapaz , nas Indias de
Catella ;
Extrahida de Remezal , e outros .
Noſſo Veneravel Dom Fr.
O ,
feſſo do Convento de S. Paulo de Cor-
dova , foi hum Religioſo tað prenda-
do da graça , e natureza , que muito
antes de pallar ás Indias Occidentaes,
ja fe havia diftinguido como a Lua en
Ire as menores Eîtrellas na ſua Provin.
cia da Andaluzia , aonde ſe lhe con-
fiåra o governo de muitas Caſas , co-
miſlaó , de que elle ſe deſempenhou
tanto , ou mais altamente do que ſe eſ-
peraya da lua grande prudencia , ere .
ligiao. A ſuaviſſima fragrancia , que
exhalava a ſantidade da ſua vida detal
modo ſe diffundio , quemuitas peſloas,
e nao poucas das principaes, o tomá-
raõ por norte , para que foſſe elle ofá .
bio , e mais experto Palinuro , que en
caminhaſſe o ſeu eſpirito pela eſtrada
real da perfeiçao. Mas para fugir de-
ftas acclamações lhe luggerio a ſua hu
mildade tao profunda o arbitrio de
renunciar ( posto que jı mui veterano
na Religiao ) a Europa , e paſſar a ex
perimentar os trabalhos do Novo mun-
do ( dá-ſe eſte nome vulgarmente á
América , aſſim por ſer a parte do
mundo , Gmais proximamente ſe def .
cobrio , como pela ſua prodigioſa , e
pouco menos que immenſa extenſao )
applicando-ſe a tratar do bem eſpiri.
tual dos pobres Indios .
Concluida a navegaçao , apor-
tou naquellas partes no anno de 1553.
em companhia de Frey Franciſco da
Cruz , Frey Affonſo Velho , Fr. Seba-
Atjande Oviedo , Fr. Pedro de A’vila ,
e Fr.Fernando Serrao , todos elles tao
férvidos, e animofiffimos ſoldadosde
Chriſto , que , ſendo tao poucos , pu ,
CARDENAS 19 Julho . 87
déraõ lupprir baſtantemente a falta de
outros muitos Miſſionarios, que erao
preciſos. Aſſignou - le a cada hum ſua
porçao : como porém o noſſo Vene .
ravel Fr. Thomaz foſſe hum Religioſo
de tal modo tranſcendente em méri.
tos o
, quiz ter comſigo o Provincial
Fr. Thomaz de la Torre , hum dos
primeiros Miniſtros Apoftolicos da
quelle remotiffimo , e tao dilatado
Gentiliſmo , para ſervir - ſe delle najor
a
la , em ordem a impedir as crueliſſi
mas inſolencias, e atrocidades, com
que, contra todos os direitos , os pobres
Indios eraõ tyrannizados , e deftrui.
dos dos Caſtelhanos.
3 Ora ainda que o eſpirito do Ve
neravel Padre Cardenas foſe tao re
montado , era a eſtreiteza , e rigor de
vida , que os noſſos Padres guardavao
naquellas regioens, tað ſummamente
auſtéro , que ſe lhe fazia cuftofiſlimo
haver de accomodar-ſe aos ſeus efly
los . Era o Servo de Deos chegado de
mui pouco ; e converſando com ou
tro Religioſo , lhe diſſe eſte que lhe
havia de ſer neceſario lavar os pés
muitas vezes a miudo : Nao me lem .
bra ( replicou Fr. Thomaz ) havellos
molhado jamais em minha vida. Mas
o decurio do tempo o fez ſentir eſta
differença , nao fó molhando os pés ,
ſenaõ todo o corpo , recolhendo - ſe al .
gumas vezes a Caſa com a tunica tao
enſopada do ſuor , e da chuva , que
parecia haver - ſe cirado de hum rio.
Mortificava -o grandemente a abfti
nencia do vinho , porque o ulo da agua
lhe era cauía de violentiffimas dores
de eſtomago. O grande canſaço , que
ſentia no leu Evangelico minifterio,
nao ſe podia dar bem com a dureza
da ſua pobrecama : o larguiſlimotem
po, que lhe era neceſario eſtar de joe
Thos em oraçao , o affligia com grande
extremo ; e as longas , e aſperiſſimas
jornadas , que lhe era neceſſario fazer
a pé com o calçado de humas alpar
' cas, lhes faziao talvez cuidar que el
le nað era a propofito para aturar em
huma
88 D, FR . THOMAZ DE CARDENAS
huma vida tao dura , e tao penoſa.
Olhando por cutra parte para o ex
emplo de Chriſto Senhor noſſo , para
o fervor de ſeus companheiros , e pa-
sa o dulciſſimo, e glorioſo fruto que
ſe eſperava colher de tao amargos def-
cômodos , esta consideraçao de talmo.
do o foi diipondo , e pouco , e pouco
ſuavizando a acrimónia de huma vie
da tao ardua , que calejando -o , ( per.
mitta -ſe -nos , que nos expliquemos
com huma fraſe tað vulgar ) para con .
tinuar no progretſo da ſua vocaçao ,
ficou tao bem coſtumadoás alperezas
de hum trato taõ inſopportavel, que
em breve tempo le fez exemplar de
ſeus confocios.
4 Aonde ſe começou a admirar
eſte prodigio , foi no Convento de Za
capula ,aonde o Veneravel Padre Car •
denas foi primeiramente enviado;por .
que ſendo aquelle clima nas Indias Oc-' como fez , grandes converſoens na
cidentaes o menos cômodo ao gene.
ro humano , o mais inſociavel, emon-
fuolo , e nao deixando de chover 10
da a roda do anno em hum proximo
diſtricto chamado la Tierra , parecia
o Servo de Deos impenetravel, e in ,
ſenſivel aos aguaceiros , e ſuperava
com tanta agilidade as montanhas
mais ingremes , e eſcabroſas, que nao
The pudera fazer vantajem neſta par
te qualquer dosbrutos , e animaes pro-
creados naquella eſpeſſura. Mas para
que he comparallo tao baix mente ,
quando , por ſer de Anjo o ministerio
que o levava a elles deſertos, e reti .
ros, nos eſtá offerecendo melhor oc
caſiao de dizer , que como hum Anjo
hja voando a elles ? Nao havia povoa-
çao , nao havia caſa , que nao excogi-
jaſle , e deſcobrifle o ſeu incendidif-
fimo zelo para prégar aquellas mile-
ras genres o Nome, e a Fé de Jesu
Chriſto ,
5 A parcimonia , com que ſe porn
tava na meſa , álèm de ſervir de gran-
de edificaçao aos ſeus Cn -Religioſos,
parece que hia moſtrando que nelle
até o melmo corpo ſe hja transforman-
do em espirito . Dentro do eſpaço de
19 de Julho,
ſeis annos apenas bebia hum pouco
chinho de vinho , e ainda tuzo mui
to mais que obrigado da appetencia ,
dacaridade, per naõ deſprazar ao bom
coraçao de quem lho offerecia. Era de
mui poucas palavras ; mas dotou- o o
Senhor de huma tal gracioſidade, que
o pouco que dizia era ouvido com
igual fede de deſejos, que decoro de
attençoens. A ſua cama era a terra en .
ſofla : ſomente ſe eſtava mui humida
deitava por baixo huma taboa , ou hūz
etteira . Os cilicios do ſeu uſo pareciao
inventados , e feitos pela meſma afpe
reza ; e nas diciplinas era taô excel
fivo , que de temor que eſta peniten
cia o nao prejudicafie notavelmente ,
chegou a moderar- lha , e a taxar.lha
a obediencia. Huma vida tao morti .
ficada ,' e penitente , tao juftificada, e
religioſa nao podia deixar de fazer,
quella nova Chriftandade : o melmo
era prégar , que reduzir ; o meſmo le
mear , que colher. Era tað copioſo o
fruto , que colhia o Servo de Deos na
quellas montanha , e com que enchia
o celleiro de ſeu Senhor , que dizem
as noſſas Hiſtorias , que nao ſe pode
referir , quanto mais exaggerar. Sir
va de dar alguma idéa detta verdade
o ſeguinte fucceſſo. Fingiao -fe Chri
ftaos mais de dous mil Indios , foſſe
por le livrarem com eſta avenida das
inſtancias dos noſſos Miſſionarios , ou
por qualquer outro principio . Ouvi
rao eſtes o Padre Cardenas, e de tal
modo lhes entrou pelas almas a pala
vra Divina , deſpedida como pene
trantiſſima frecha da maó de hum
deftriſſimo ſagitrário , que , deteſtan .
do todos os ſeus antigos erros , decla
ráraó a falſidade de animo com que
até enraó haviao procedido . Purifi
carað -ſe de todas as ſuas culpas na ſa
grada Fonte do Bautiſmo , e entregá
rao ao bom Padre huma grande quan
tidade de Idolos , queelles atélli occul
tavao , para ſe darem , como logo ſe
derao , ao fogo.
6 Pode acabar tambem com aquel
la
 : . D.
D . FR . THOMA DE
Z NAS
la gente , que vivia ſeparada huma de
outra , que viveſſe mais republicamen-
te em povoaçoens , para que aſſim fi-
caſſe menos cuitoſo aos nollos Miſſio-
narios a cultura da leára de Chriſto , e
para queſe edificaſſe Igreja ,aonde aco-
diſlem os Neophytos a cumprir com
as obrigaçoens do Chriſtianiſmo. Fez
outras muitas couſas o Servo de Deos,
tocantes á inftrucçao eſpiritual dos In-
dios , e á ſua melhor policia : e poſto
que era niſto ajudado do Padre Frey
Domingos de Vico , e de outros Relj.
o certo he que todos eſtes eraõ
gioſos,
capitaneados por elle , aquem maior-
mente ſe devia o bom ſucceſio deſtes
particulares , que ſempre foraõ flore-
cendo proſperamente em quanto nao
foi promovido o noſſo Veneravel Pa-
dre Fr. Thomaz ao Priorado de Gua-
timála . Encheo elle eſte lugar tanto
a goſto dos Religioſos, e ſeculares,
que buns, e outros todos o amavao ,
e reſpeitavao como ſe foſſe ſeu pay ;
aindaque nao achavaõ nelle eſta bran .
dura certos Caſtelhanos, que , porter
poder , e juriſdiçaõ paraišlo , o Servo
de Deos os caſtigou mui rigida , e fe-
veramente , ſegundo aſſim o meracia
a fealdade dos ſeus crimes , e exceſ.
los. Foi mandado pela obediencia a
Heſpanha a prover-ſe de novos Mif. " que
fionarios , e parcio em companhia de
hum Irmao Leigo de muita virtude ,
chamado Fr.Vicente Lopes ; e partio
outra vez para a America , ſeguidode
alguns Religiofos , e de dous perten-
dentes do noſſo ſanto habito , que lá
o veſtirao , e alli meſmo fizeraõ a ſua
profiſſao . De vinda, e de volta pade .
ceo o noſo Veneravel Padre Carde-
nas grandes adverſidades, com que o
Senhor quiz provar a ſua fidelidade,
e augmentar o ſeu merecimento ; e efpiritual , e temporal de todas as fuas
tudo iſto pela ſua grande reſignaçao
forao novos florsens,e diamantes.com
que elle foi aperfeiçoando a coroa da
ſua gloria .
7 Morto o Provincial Fr. Thomaz
de la Torre , correndo o apno do Se-
ahor de 1567. foi eleito em ſeu lugar
Tom . VII,
CARDE 19 de Julho . 89
o Padre Cardenas , que ſuſtentou , e
corroborou firmemente os grandes
alicerces , que atelli ſe tinhao aberto
para o eſtabelecimento das Miſloens,
innovando muitas couſas , que lhe ра
recêrao neceſſarias, e entre ellas hũa
inſtrucçao , que havia miſter obſervar
ſe naquella Provincia , o que nao he
menos prova da ſua vigilancia , que da
ſua piedade . Nao podia o demonio ,
como leað , que allim lhe chama o
Principe dos Apoſtolos , pois nao cel
ſa de procurar a quem devore , dei
xar de refentir - ſe de tantas perdas : e
por ver ſe podia de algum mododef
goſtar aos jornaleiros do Evangelho ;
procurou introduzir a diſlenſao entre
elles , e quem tinha a maior obriga
çaõ de cooperar para o bem daquel
les povos. Foi elte hum novo Biſpo de
Guatimála , que , ſem attençaõ aomui
to que ſe devia aos Padres Minoritas ,
e aos noſſos na converſao de tantasal
mas , e ſem conſiderar , outro ſim , na
obrigação que lhe incumbîa de con
formar -ſe com as ſupremas ordens
Pontificias , que todasconcediaõmui
tas graças , e indultos aos Miſſiona
rios , a trabalhaõ em vinhas taö incul
tas , elle pelo contrario perſeguio de
modo aos Padres daquella Provincia,
tirou inteiramente aos Religio
ſos de noſſo Padre S. Franciſco o go
verno , e adminiſtraçao eſpiritual de
muitas povoaçoens de Indios , e a ou
tras lhes prohibio , debaixo de graviſ
fimas comminaçoens , o entrar a ouvir
Miſſa nas noſlas Igrejas , o que tanto
era mais ſenſivel a todos , quanto eſta
dura novidade differia dos fancos pro
cedimentos de ſeu immediato fuccef
for , que havia governado a quella Igre
ja , como verdadeiro Paſtor , e Pay ,no
ovelhas.
8 Por naõ romperem a bõa paz ,
e caridade Chriſtaa , o que àlem de
ſervir de muita confuſao aquellas gen
tes , lhes daria hum eſcandaloſo exem
plo , deixárað os noſſos Religiofos o
Convento de Guatimála , o legundo
M dag
90 D. " FR . THOMAZ DE
daquella Provincia : como porém a
juſtiça da noſſa cauſa era tao eviden .
te , levarao isto muito a mal os mo
radores daquella Cidade , e tanto fi.
zerao com osPadres , que foi neceſ-
lario fazer - lhes o goſto. Voltárað pa
ra o Convento , è litigando-ſe ,aſſim
em Guatimála , como em Madrid , eſte
ponto , em ambas as partes ſe ſenten-
ciou a favor dos Miſſionarios. A de-
ciſao do Rey Catholico , expedida
aquelle Eſtado por ſua Real Ordem ,
foi etła : Que elle mandava, em confor-
midade do Breve , que receberá do
nofo S. Pio V., que os Padres Miſ.
fionarios dirigiſem livremente os In
dios com aquellas regalias, que ſem
pre haviao coſtumado. Divulgou - ſe
este dip ôma Regio por toda a India
Occidental do dominio de ElRey de
Caſtella ; e bem que os intereſſados
quizeraõ ainda recalcitrar com ſuas
du idas , o noflo Fr. Affonſo de No-
ronha asliquidou ,e diſlolveo tao con-
cludentemēte , q nao tiveraõ mais re-
medio que eſtar pelas ſuas razoens.
Obſervado pois o decreto Real ſem
impedimento , ou oppoſiçaõ alguma ,
refloreçeo novamente o ministerio
das Miſloenscom tantas bençoens do
Ceo , como utilidade daquellas remo .
tiſſimas Naçoens .
9 Ao meſmo tempo , em que af-
fim triunfavaő os propagadores da-
quella Miflað , ſe vio por outra parte
mui diſſaboreado o Biſpo de Guati-
mála. Cada hum levou a ſua juſta re
muneraçao . Teve elle algumas diflen-
çoens com o Governador da Cidade ;
e por ſer eſte Sujeito de prendas , cao
pacidade , e procedimento , levou após
ſi o mais , e o melhor da terra . An
tes de fahir a primeira vez á viſita ,
mandou adianie aviſo aos ſeus Dieces
fanos , em ordem a ferrecebido del .
les com mui opulentos donativos ; e lutamente .
chegarao os eccos daqueixa detta in-
jufta extorſaô aos ouvidos do Rey ,
de cujo deſagrado ſe fez tao crédor ,
que expreſſamente o invectivou de ha :
ver começado a viſitar, naõ tanto pa- é muito bem difpofto , no outro dia
CARDENAS 19 de Julho?
ra buſcar , como devera , o maior
bem eſpiritual das ſuas ovelhas, quans
to para esfolallas , e opprimillas. Ha
muica apparencia de ſer eſte o Prela
do , de quem falla o noſſo Remezal
no numero 3. do 3. Capitulo do Li
vro undecimo da ſua Hiftoria , refe .
rindo a ſua tragica morte : mas ou o
allegado Eſcritor trate , ou nao trate
daquelle , que ſe oppôs aos noflos Mil
1
(ionarios, fepretranſcreveremos o ſuc
ceſſo ; porque, ſendo proprio daquelle
Prelado , he mui proprio deſte lugar:
enaooledo ,ſempre,ſervirá muito para
avivar o temor de Deos .
10 Diz , pois , que o noſſo Fr.
Thomaz de Vidoria admoeitoumui le
tas vezes hum certo Prelado , que nao ‫ܠ‬
vivia com o devido exemplo ; e poſto 10
o máo
que o
que máo que elle dava foſſe publi TE
co , eraõ particulares todas eſtas ad
e
moeſtaçoens. Nao dava por isto o ad .
moettado , e vendo o bom Padre o S
pouco fruto que faziaõ com elle as ſuas 0
diligencias , entrou a fallar - lhe hum No
dia no leu Oratorio , e diante de hum Set
devoto Crucifixo, que alli eitava ,oci. Bi
tou para comparecer no Tribunal Di doo
.
vino , e ſaber ſe erao , ou nao erað
verdadeiros os aviſos , com que tað
frequentemenie o combatera . Zom
bou de tudo iſto aquelle coraçao ob . A
ftinado , e deixou -ſe ficar como de
antes empedernido , eimmovtlna lua Q
culpa . Dalli a dous , ou tres mezes
morreo pia , e religioſamente com
todos os Sacramentos Fr. Thomaz no
ſeu Convento de Guatimála . Eſtava
entao fóra defta Cidade o Prelado , $
( note -ſe eſta congruencia , donde po G
rece ſe póde inferir que nað falla de 0
outra peſſoa , tenao da do Biſpo da
quella Dieceſe ) e tabendo da morte
do Religioſo , ao tempo em que eſtava
ceando , reſpoodeo prompra , e relo.
E que importa que mor.
relle , e muito mais ſendo inimigo, é
perſeguidor ? Iſo quer dizer nada.
Aflim dille , mas nao lhe fahio aflim ;
porque deitando -ſe aquella noite ſao,
foi
 D. FR . THOMAZ DE
foi achado morto na ſua cama.
Il Que differente ſe ' moltrou ' o
Ceo com aquelles bons ſervos, que
haviao ſuſtentado a melhor parte de-
fta contenda ! Morto o pollo Illu-
ſtriſſimo e Veneravel Bispo de Chia-
pa D. Fr. Thomaz Cafilhas, foi no-
meado para elle Fr. Domingos de Ara ;
mas era elle tao oppoſto ás chama-
das honras do feculo , que pedio
inftantemente a noſſo Senhor , que fof-
ſe ſervido tirar - lhe a vida antes , do
que fofle elevado aquella Paſtoral dig-
nidade ; e na conformidade da ſua pe-
tiçao , foi ouvido, e deſpachado an .
tes que lhe chegaflem as Bullas , que,
ſegundo le difle , havia ) ja chegado
ás Indias. Foi com acllido eniretan-
to por Sua Mageftade Catholica o go-
verno delte Biſpado ao noſſo Venera-
vel Padre Fr. Thomaz de Cardenas ;
e ſendo eſte promovido pelo meſmo
Soberano a Biipo de Vérapaz , ficou
o governo de Chiapa a Fr. Affoníode
Noronha , que o teve por tempo de
ſette annos , e depois delles foiainda
Biſpo da meſma Igreja o noflo Fr. Pe-
dro de Faria , profeffo do poſto mag
nificentiflimo Conventa de Sãto Ette-
vao Salmantino .
12 Perdendo - ſe no mar as letras
Apoftolicas , que era neceſarias pa-
ra a Sagraçao do noſſo Illuftriffimo
Cardenas, em quanto nao te impetra-
sao outras , pallarað fette appos : den-
tro de todo este tempo , ſe occupou
ſempre o Servo de Deos nos meſmos
exercicios de Religioſo obſervante ,
e zeloſo Millionario . Em todos os
Capitulos da Provincia , teve algum
dos primeiros lugares , ſendoja Diffi-
nidor , ja Examinador dos Religio-
ſos. Chegadas as Bullas , nem ainda
depois de Sagrado , quiz que houvef-
ſe no ſeu tratamento a menor diftin
çao , antes ſe portava elle com huma '
ial circunspecçao , como ſe foſſe qual-
quer Frade ražo. Habitava em huma
pequena cella do Convento de Co-
ban : 00 quiz atroar aquella Caſa com
comitiva de criados : aflittia pontual-
Tom . VII
CARDENAS 19 de Julho 91
mente no Coro com os mais Religio
los : com elles comia juntamente no
Refeitorio : aſſentava-ſe em terra nas
Sextas feiras pelas tranſgrellons da
Regra competidas; e accuſava -ſe pu
blicamente das ſuas faltas no Capitu
lu . Depois deencarregar-ſe do gover
no do Biſpado , nao houve nelle ou
tra mudança , mais que a accidental , e
preciſa do lugar : attendia ao maior
bem des ſubditos, vigiando ſobre el
les com tanto deſvélo , que bem ſe
via que eraõ elles o thefouro , em
que parecia haver depoſitado nao ſó
hum , ſenaö mil coraçoens . Como os
amava tapto , era para elle mais amar
ga , e leolivel do que a morte , a ty
rannia , que uſavao com os ſeus pobres
Indios os ministros Castelhanos , de
cuja ferocidade nao dao menos tefti.
mundo as alheas , doque as ſuas mef
mas hiſtorias. Era tað dócil aquella
pobre gente , quefacil , evoluntaria
mente le ſomette o á obediencia do
Rey Catholico ; e bem que eſte ,atten
to a huma ſubmiſlao tao rendida , e
fiel, le contentava deque os Ameri
canos em reconhecimento da lua vaf
fallagem nao pagaſſem mais que hum
mediano tributo ; iſto nao obſtante ,
era tal a exhorbitante cobiça dos Exe
cutores , que os obrigavao a pagar
fommas exceſſivas : viao -ſe impoſſi
bilitados para iſto aquelles miſeros
povos , e a maior parte delles bia fu .
gitivo da ſua patria , deixando aode
lamparo os pays , as mulheres , e os
filhos, e morrendo conſequentemen
te huns , e outros á pura miſeria.
13 Talfoi a barbaridade daquelles
cfficiaes,que, morrendo hum grande
numero de Indios , obrigarao aos vi
vos a que pao ſomente pagaſſem por
fi, ſenaõ por aquelles defuntos. Pó .
de haver mais barbara , mais deshu.
mana , ou mais infolita crueldade !
Aqui he que ſe virao aquelles miſera
veis na ultima deſolaçañ , tal,que á fua
viſta já fica ſendo mais pequena , e
mais iuave aquelloutra , com que os
filhos de Iſrael foraõ tyrannizados no
міі Egypto .
92 SOROR BRITES DE LIMA
Egypto . No meyo de huma ' tao fu-
neita fituaçao , foi a caridade do nof-
ſo Veneravel Biſpo Fr. Thomaz a que
adoçou huma de conſolaçao tao ex-
trema , offerecendo ſe elle meſmo a
pagar , como pagou , aquelle inſolen-
tiilimo, e tyrannico tributo , em que
ſe ceváraó aquellas eſponjas do ſangue
humano , porque o dinheiro tambem
o he . Informado Filippe II . de Castel-
Ja de bum tao abominavel deſaforo ,
mandou reſtituir ao noflo Biſpo agroſ-
ſa quantia , que elle diſpendera netta
bõa obra , prohibindo ao diante ,de.
bajxo de graviſſimas penas, o abuſo de
femelhantes gabellas , por nao dizer
rapivas. Aceitou o Veneravel Bilpo
aquella importancia ; mas fearecebeo
com huma mao , foi para logo diſpen-
della com a outra , entregando-a aos
pobres Indios , paraque no outro anno
iiveſſem com que pagar o ſeu tributo .
Quizeraõ tambem os meſmos cobra-
dores delle obrigar os moradores de
Vérapaz ao inſopportavelónus de
irem ao trabalho , chamado do Mar
doce ; mas Sua Mageflade Catholica
os deo por izentos delle por expreſſa
ordem ſua. Finalmente nao ceſſando
o noſlo Veneravel Fr. Thomaz de
exercitar -ſe em todos aquelles mini-
fterios proprios de verdadeiro Pattor ,
e de Religioſo obſervante , foi cha
mado do Convento de Cobar para o
merecido premio dos ſeus inculpa-
veis , e ſantos procedimentos aos 19.
de Julho de 1580;
19. de Julho.
Vida da Veneravel Madre
SOROR BRITES
DE LIMA ,
Extrahida da Chronica do Padre Fr.
Lucas de Santa Catharina.
I Veneravel Madre Soror
A Brires de Lima foi tiado
Biſconde de Ponte de Lima , ' e de
Soror Brites da Incarnaçaô , cuja re.
19 de Julbo.
ligioſiſſima vida deixamos eſcrita no
V. Tomo deſte Agiologio em ſeulu
gar a 3. de Fevereiro. Sendo eſta in
figne Religioſa muito pobre aos olhos
do mundo, ante os de Deos o foi
muito mais , tanto mais quanto foi
maior o deſprezo que fazia das hon
ras , e eſtimaçoens do ſecolo . Como
ſe foſſe nella culpa o haver naſcido
tao illuſtremente , procurava renun
ciar as elevaçoens da ſua esfera com
huma humildade tao profunda, e ver
dadeira , que podia ser digna dos pri
meiros tempos de ouro da noſſa Sa
grada Ordem . Nao ha palavras , que
!!
expliquem
o alvoroço com que esta
Serva de Deos veitio o habito de S.
Domingos no famoſo Moſteiro da Ro.
fa de Lisboa : bem moftráraõ os effeig exc
tos quam exceſſivo foi o goſto com VIT
que ella ſe adnumerou na Jerarchia alg
Dominicana , nso querendo jamais fo
cummetter nem huma leve falta na ta
tranſgrefTao dos Inſtitutos, no que Atas
procedeo com huma tal circunfpece alg
çao , que nem ainda forao baſtantes len
os teus grandes achaques para delvial
la da ſua indefectivel obſervancia , pa
recendo que os meſmos achaques The
ſerviaó de eſtimulo para le crucificar
com mais goſto nas muitas cruzes das
ſuas extraordinarias mortificaçoens.
2 Faltarao - lhe em fim as forças,
e vieraõ em fim a fazer o ſeu eſpera .
do eficito as ſuas grandes moleſtias, e
nao menos as ſuas grandes peniten
cias. Accommertida da ultima enfer .
midade , foi a ſua pobre cama outro
novo theatro de rigores , e auſterida
des : porque ainda qomallhe hia con
fumindo , e diſſipando os ſeus ultimos
dias; era iſto porèm a paſſos tað len
tos , que mais depreſſa ſe podia cha
mar ao eſtado da doença huma morte
mais cruel, do que húma vida mais
penola , e atormentada. Aqui brilhou
grandemente a paciencia heroica de
Soror Brites , ſujeitando - ſe com huma
tal reſignaçao aos progreſlos do ſeu
achaque , que a naõ ſer conhecido pes
los ſeus eff : itos, jamais o poderia ſer
nem
 SOROR ANNA MARIA DE
nem por hum ſó fufpiro da Serva de
Deos. Em quanto a queixahia lavran-
do com tanta vehemencia , o ſeu ali
vio mais ſuſpirado era , aſſim como
ſempre otinha ſido , a recepçao do
Corpo do ſeu, e notlo Deos Sacramen
tado. Como eſte Pao Celeſtial eraõ
as maiores delicias da ſua alma , co
mo ella ſempre aſſim o proteſtava com
a ſumma veneraçao que lhe tinha , al
fim como tambem á Máy de ſeu Ef-
polo , recebia-o ella com tantas mo
Itras de amor , e devoçao , que nao
podia ſer viſta no Commungatorio
ſem tirar vivas lagrimas de edificaçao,
e ternura .
3 Dous dias antes da ſua morte
creſceo a ſua indiſpoſiçaõ com tanto
exceflo , que bem foi neceſſario ſua ,
vizar -lhe o Ceo tantas amarguras com
alguns mimos muito especiaes . Se nao
fofle , como ja diſlemos , tao avaren
ta a ſua profundiſſima humildade de.
ſtas noticias , poder - nos-hiao ficar mais
alguns dos ſeus veftigios: hum fó , que
le nao pode occultar , porella maisnao
poder , foi obſervado, nað ſem a de .
vida admiraçao , por algumas Religio-
ſas que aſliftiad á Serva deDeos, e ain .
da por outras que eſtavaõ dallimui def-
viadas, ouvindo todas ellas dar huma
muſica ſuaviflima no Coro , que mais
attrahia do que recreava os animos.
Como eſta dulciſſima harmonia ſe re-
perifle algumas vezes , nao faltou quem
foſſe eſpecular o Coro , aonde ella ſoa-
va , de donde precedia : mas ſempre
com intento fruſtrado ; porque aquel-
la harmonica ſuavidade nao tinha in
terrupçao , e ao meſmo tempo nenhū
vulto le diviſava . Entre eſtes favores,
e ſinaes tao eſpecioſos entregou a boa
Religioſa felizmente a ſua alma nas
Maos do Creador aos 19. de Julho
de 1622 ,
MIRANDA 19 de Julho. 93
de 19. Julho:
SOROR ANNA MARIA
DE MIRAN DA ,
Conforme as memorias , que se con
ſervaõ no Moſteiro do Santiſimo
Sacramento de Lisboa .
1 Noſſa grāde Lisboa , fem
A pre fecundiflima em pro
duzir espiritos admiraveis, foi a incly
ta patria da Veneravel Soror Anna
Maria de Miranda ,chamada depois
na Ordem Soror Aona Maria do Ro
zario. Naſceo na freguezia de Santa
Maria Magdalena , e foifilha de Duar
te Luiz , e de Maria Franciſca de Mi.
randa , que por ſerem peſſoas de can .
didos coſtumes a educárað taô chri
ftamente como ſe deixou ver por to
do o decurſo da ſua vida . Correndo
o apno do Senhor de 1660. entrou no
Moſteiro do Santiſſimo Sacramento
deſta Corte , aonde veftio , com igual
devoçao , que alvoroço , o habito de
Converſa. Eſmerou - ſe grandemente
na devoçao do Santiſſimo Sacramento ,
e nao menos na da Máy , que na do
Filho. Era tambem devota de muitos
Santos , e tao pontual nas luas rezas ,
que cumpridas as ſuas obrigaçoens , a
que jamais faltou , em quanto pode
fervir , e ſempre com admiravel ca
ridade , e de ordinario nað eraõ pou
cas ; e exceptuado outroſim o limita
do tempo , que lhe era neceſſario para
restabelecer as ſuas forças, e tomar
algum deſcanſo , que ella coar & ava
quanto podia , todo o mais que po
dia poupar , empregava unicamente
nas ſuas oraçoens .
2 Era muito mortificada a Serva
de Deos ; e como talcumprio ſempre
com a maior exacçao as penitencias
da Ordem . Forao- na em fim a per
tando as doenças : e o que lhe dava
mais pena , era o ſerem estas mui op
poſtas entre fi; porque os medica
mentos , que lhe podiaŌ ſer de alivio
para huma , faziao -lhe mais acerbos
os incommodos de outra. Vendo - ſe
impoflis
94 RECOPILAC, A
impoffibilitada por eſte principio pa .
ra continuar no trabalho da cozinba ,
como havia ſempre abominado o ócio,
como raiz , que he , tao pernicioza,
deitou mao de outro emprego ajudan-
do acozer , e a outras couias menos
pezadas , no que ſe diſinguia muito ,
por ler mui alleada , e curioſa . Da-
va a algumas Religioſas os brincos , e
galantarias, que la viava no tempo das
la viava
recreaçõens, com condiçao de felhe
mandarem dizer algumas Miflas. Me
receo muito pela inviAiſlina pacien
cia com que ſopportou huma doença
de muitos annos na caſa mais retira
da , que tem o Mosteiro , aonde nao
podia ler tað alliitida , e viſitada co
mo ella merecia , e as Religioſas mui :
to deſejavað , tendo cada huma nas
ſuas occupaçoens o obftaculo deſtes modelo
cumprimectos. Verdade deja , que piedade , emodeftia , e de outras mui
tinha huma dellas o encargo deir tartas virtudes , porque ſe feztao reſpei
della : com tudo , ſem embargo delta
precauçao , nao forao poucas as oc
currencias , que ſe lhe offereceraõde
exercer a grande conformidade que
tinha com a vontade do Senhor.
3 Foi accommetiida em certa oc-
caſiao de hum tað formidavelacciden-
te convulſivo , que ja toda a Commu.
nidade a julgava por morta . Depois
que tornou a cobrar algum alt nto ,
virao -na com os olhos poſtos da Ima.
gem de hum Senhor prezo á Coluo na,
que ella tinha ; mas com o ſemblante
tao formoſo , ereſplandecente , que
nao condizia com ſymptomas tao fu-
neſtos como aquelles que tao pouco
antes ſe lhe haviao uhler vado. Diſle .
raó itto ao ſeu Confeßor , ereſpondeo
elle , que talvez ſeria aquelle final ef.
feito de algum favor do Ceo , aſſim
como parecia que a Serva de Deos
eſtivera padecendo hum inferno em
vida nos rigores de hum tao deshu-
mano accidente . Foi ette hum cor-
reyo daſua morte ; porque, depois que
Ihé deo , foi pouco o tempo que lhe
durou a vida . Armou - ſe para amorte
com o preſidio fortiſſimo dos Santos
Sacramentos ; e ſem reſquicio , ou
M de r9 de Julho ,'
ſombra de delirios eſperou amorte até
o leu extremo artigo, com tanta ſe
renidade, que parecia ter o leguro
de ir a gozar daquella ineffavel glo
ria , de que ſe havia feito tao bene
merita com as ſuas exemplares , e fan
tas acçoens , de que piamente ſe pó
de crer que ella paſſou a receber o
premio , em 19. de Julho de 1711.com
51. annos de Religiao .
RECOPILAC, AM
de 19. de Julho.
I M Frācfort, na Alemanha ,
E o VeneravelPadre Fr.Joao
Nochér. Pôs Deos a eſte bom Padre
na lua Provincia como bum perfeito ME
da Religiao , obſervancia , di ?
g
tado , como bem quiſto , ſendo a iua 20
ditoſa , e lanta morte tað feptida , coi OC
mo invejad .. Florecia pelo anno do fas
Senhor de 1620. = Ann. Dominican .
2 Em Fieſoli, o Veneravel Padre
Fr. Vicente Pagani. Era Profeſſo do
Convento de Peruía ; e havendo li .
do fiel companheiro do Veneravel
Padre Fr. Miguel Maleſpine , ſervin .
do os feridos de hum infeftiflimo con
+
tagio ; depois da morte daquelle Re
ligiofo, ficou perſeverando ſempre
em fazer os meimos bons offi ios aos
empeſtados até morrer neste piedoſo
emprego no anno de 1631., em que
piamente cremos que foi chamado pa
ra o premio de huma caridade tao ge •
neroſa. = Soueges .
3 Em Napoles , no Moſteiro da
Sapientia , a Veneravel Madre Soror
Maria Conſtança Piccolomini . Fita
Serva de Deos foi Duqueza de Amal .
fi no meſmo Reyno ; e dando coſtas
( schiméricas grandezas do mundo , ſe
conſagrou ao Senhor , tao de veras ,
na Religiao , que ainda ſe fez mais re .
commendavel pelas fuas virtudes , do
que o era pelo ſeu nalcimenco. Ain .
da ella vivia no ieculo , quando ja era
tida
 SOROR IGNEZ DO
tida por huma peſioa mui ſanta , e de
vida exemplariſlima , ja pela ſuamui
ta piedade , ja pela commiſeraçao , e
Jargueza com que ſoccorria os pobres,
e muito mais os Religioſos , confef-
ſando os Theatinos na Hiſtoria , que
eſcrevêrao da ſua Ordem , que a ſua
liberalidade eraõ devedores de mui
conſideraveis fubſidios. Finalmente
naõ degenerando , antes indo de mais
a mais dentro nos noſſos Clauſtros ,
ſe diſpôs a huma ſanta morte , com
que o Pay das miſericordias quiz pôr
a coroa as ſuas
belliſſimas , e inculpa-
veis acçoens. = Hiftor.Theatin . 1.4.
ad n . 1529.9.28 .
4. No Moſteiro doSanto Eſpirito
de Alcaraz , em Caſtella , a Veneravel
MadreSororlgnez Sanches.Fez - ſe mui
diſtincta eſta inſigne Religioſa pela lua
muita humildade , abstinencia , e ri
gor de vida . Dormia ſobre a terra ,e
jamais comia vutro pað ſenao o que
ficava dos ſobejos das outras Religio.
fas. Teve hum profundiſlimo dom de
lagrimas, com que parece que queria
fubmergir , e affogar os ſeus dereitos .
Era devotiſſima da Paixao do Senhor ,
e em ſua commemoraçao fazia todas
as noites , depois de recolhidas as mais
Religioſas, humapenoſa prociſſaõpe-
los Clauſtros do Molteiro, andando de
joelhos , e com eſtes em carne , por
terra. Chegada ao termo da ſua vida,
recebeo terne , e devotiffimamente
os Santos Sacramentos, e paſſou a def-
canſar de mortificaçoens tað merito
rias na companhia de ſeu Divino Er.
polo . = Lopes.5.p.k. 2.6.54.
PRESEPIO , 20. de Julho.
95
1
20. de Julho.
Vida da Veneravel Madre
SOROR IGNE Z
DO PRESEPIO ,
Extrabida do Padre Fr. Lucas de
Santa Catharina , e das memorias ,
que ſe conſervao no Moſteiro do
Sacramento de Lisboa. 1
1 Grande Serva de Deos a
A Madre Soror Ignez do Pre
fepio , fui filha de Rui de Mendonça
de Vaſconcellos , e de Dona Jerony
ma de Mendonça ; e correſpondeo
tam bem á exemplar creaçao , que lhe
derao teus pays , que parece que def
de
que começáraõ a rajar nella as pri
meiras luzes da razao , começou logo a
fazer aquella vida com que affombrou
depois tanto dentro na Clauſura ; por
que erao tao grandes , e vehementes
os deſejos que logo teve de entrar nel
la, que nao pudera ter alguma cardan
ça , que houve de permeio, outro refri
gerio ſenaô no prompriſlimo enf- yo,
que anticipadamente começou a fazer
da virtude. Logo que chegou áidade
competente de vestir o habito , forao
taes as initancias que fez , por conſe
guir eſta licença de teuspays , que ain
da que houveilem de fazer niito hum
ſacrificio tað violento de huma pren
da que tanto amavao , convierað final
mente em condeſcender com a voca.
çaõ de Ignez,que,obtido o beneplacito
de ſeus progenitores , naotardou em
correr ao Moſteiro do Santiſſimo Sa
ciamento deſta Corte de Lisboa , co
moo Cervo ferido á fonte das aguas,
de que atélli tinha vivido tað ſequio
ja . Lançou -le. The finalmente o habi
to , e hem foi moſtrando a boa Novi.
ça em todas as ſuas bellas acçoēs quan
to era legitima , e bem fundamentada
a ſua deliberaçao .
2 A boa opiniao , que ſe tinha do
feu procedimento , lhe facilitou o aſcē :
so ao Cargo de Prioreza, que ella fer
vio
96 SOROR IGNEZ DO
vio com a melhor ſatisfaçaõ de toda
à Caſa , a quem edificava muito com
a averſao que moſtrava ás diſtin-
çoens e decoros da Prelazia , de-
que ella nao queria mais que o pe-
2o , renunciando totalmente as hon-
ras . Occupou -ſe muitos annos na Sa.
criſtia , e neſte emprego nao reſplan-
deceo menos a lua devoçao , do que
a fua habilidade.Pagou - lhe o Senhor,
como quem ſe moſtra ſempre tað fiel
com ſeus Servos , eſta pontualidade
com alguns caſos maravilhoſos. Pre-
ciſava muito a boa Religioſa de dez
mil reis para huma neceſlidade mui
urgente , que eſtava a leu cargo , enao
achava recurſo de que ſe valetle : af
fligia - ſe , e amofinava-ſe; porque cor
ria o tempo , e nao lhe occorria meio
com que ſe remediaffe. Andando a
braços com eſta afflicçao , foi abrir
caſualmente hum armario , eiſque acha
a quantia que deſejava muito aojuſto :
achava- ſe alli outra Religioſa com a
Veneravel Soror Ign z do Preſepio , e
como por eſta ſe pôr immediatamen-
te de joelhos erguendo as maos , e os
olhos ao Ceo para render -lhe as gra.
ças com hum Te Deum , a foi ajudan
do a alternar efte Hymno Sagrado ;
The difle depois a noſſa Soror Ignez ,
que foſſe para ſempre o Senhor ben .
dito por pao ſer aquella a unica vez
que The acudia com favor : e aſſim ſe
pode entender do que lhe paflou em
outra occaſiao , em que notando ou-
tra Freira huma pintura , que estava
na Sacriſtia , de noſſo Padre S.Domin-
gos , menos engraçada ; lhe cornou a
Serva de Deos com hum certo ar de
galantaria , que fim ſeria o Santo me .
nos bem pintado , mas que dava o di-
nheiro .
3 Era indiſpenſavel nos jejuns,
diciplinas , e em outros muitos rigo-
res ; mas cumpria eſtas penitencias
com tanto recato , como ſe a áufteri .
dade foffe tað vergonhoſa como a di
ſtracçao. Orava por muite largas ho-
ras , e com tanto fervor , que parecia
que neſte exercicio be que tinhao ſeu
PRESEPIO 10 de Julho .
unico centro . Deſte celeſtial commer
cio participava luzes inexplicaveis , e
até foi viſta alguma vez indicada por
ellas ; porque eitando huma noite em
bebida em humatao ſuave correſpon
dencia , vio outra Religioſa huma bel.
liſſima levareda ſobre o tecto do Co
ro , aonde orava Soror Ignez ,e indo a
examinar o que ſeria , achou que a chā
ma cahia direitamente a.perpendicu
lo ſobre a nofla boa Religioſa. Deſte
meſmo thelouro da Oraçao alcançou
alguns futuros , que , do modo que fo
raõ por ella annunciados, ſe virao de
pois cumpridos. Quandoja pelos ſeus
muitos annos, e nao menos achaques ,
a derao por diſpenſada de ir a Mati .
nas , de nada, ou de mui pouco lhe
fervio eſta licença , porque ainda vi
nha achar outras Religiolas no Coro ,
na Oraçao que ſe faz depois dellas ,
quando ja madrugava para vir fazer
fala ao Santiſſimo Sacramento do Al
tar. Punha- ſe em contemplaçao por
tres horas , e aquellas que lhe parecia
a propoſito paſſava ella meſma a def
pertar as mais Religioſas para virem a
Prima.
4 Trazia tanto na conſideraçao a
lembrança da morte , que era muico
Itumada a dizer que jamais ſe recó
Thera noite alguma com eſperança de
levantar -ſe ao outro dia ; ou ſe levan
tára em algum , confiando que havia de
acaballo com vida . Foi tao inſigneetta
illuſtre Religioſa na conformidade
com as diſpoſiçoēs Divinas , que a peſ
foa , que depois fez publicas aquellas
noticias , que damos a ler neſtamemo
ria , lhe ouvio dizer muitas vezes que
até eſtava prompra para ſoffrer aspe
nas eternas
nas eternas ,, em
em caſo
caſo que foſſe eſta a
vontade do ſeu Senhor . Teve muito
que ſoffrer com huma graviſſima
doença, que importunamente a mo
Deſtou por eſpaço de ſeis para ſette an
nos , antes que Deos a levaſſe para ſi:
mas tudo iſto nao foi mais que acri
ſolar , e dar maiores quilates ao ouro,
de que ſe lhe hia lavrando a coroa dos
ſeus merecimentos ; porque na maior
in
 SOROR JOANNA DO SS .
intenſao das ſuas penas'tinha a Vene
ravel Madre huma preſença de Deos
tað viva, e conftante , que muitasve-
zes quando mais atormentada pro
sompia a bõaReligioſa neſtes termos :
Folgo muito , Senhor , de que eſtejais
aqui vendo tao cabalmente , o que eu
eſtou ſentindo : Je aſſim nao
fora , o que
Jeria de mim ! Quem ſenaõ Vós havia
de me dar tanta paciencia ? Outras ve
zes coſtumava tambem dizer ás ſuas
aſſiſtentes, que tanto lhe nao mettiao
horror as mais duras agonias da mor
te , que antes deſejava quanto antes
padecellas , viſto ler efte hum tað ine-
vitavel eſtatuto , que nem fequer lhe
ſervio de excepçao o meſmo Deos ,
antes morreo entre deſconſolaçoens,
tao defuſadas , e acerbas diante dos
Olhos de Maria Santiſſima fua Máy .
5 Chegou finalmente aos ſettenta
da ſua idade quando recebeo o ſuſpic
rado annuncio da ſua feliz morte em
huma cruel queixa de terçaās mali-
gnas ; como porém eſperava com tan-
to alvoroço pela ultima hora , que ha-
via de cortar os vinculos , que lhe ſer-
viaõ de obſtaculo para unir -ſe eterna-
mente com ſeu Divino Eſpoſo ; quan-
to eraõ mais intenſos , e penoſos ostra-
balhos da moleftia, tanto eraõ mais ex
ceſſivos , e extremoſos os jubilos da
ſua elperança . Amanheceo - lhe em fim
hum dia taó faolto , e appetecido em
20. de Julho de 1668. , e entað recref-
ceraõ tanto os ſeusaffectos, que che-
gou a dizer a algumas Religioſas, que
em nenhum outro dia havia tido taö
vehementes ſaudades de ver a Deos :
e eſte Senhor , que fomentava tað al-
tamente eſtes puriſſimos incendios de
ſua grande Serva , lhe nao quiz retar
dar mais o premio , chamando.a fem
mais tardança para a Coroa .
Tom . VII.
SACRAMENTO 20 de Julho. 97
20. de Julho.
Vida da Veneravel Madre
SOROR JOANNA
DO SS . SACRAMENTO ,
Extrahida de Fr. Lucas de Santa Cam
tharina , e das memorias , que ſe
conſervaõ no Moſteiro do Sa.
cramento de Lisboa .
I A perfeita guarda do In
N ſtituto , a muitas Religios
las pudera tervir de norma a Vida da
Veneravel Madre Soror Joanna do
Santiſſimo Sacramento ; porque da
pouca noticia ,que nos ficou da ſua vir
tude , ſe eftá vendo qual havia de ſer
o todo de hum eſpirito tao redo , e
dado a Deos. Nao goſtava ſua Serya
de outras practicas , que nao follem
aquellas , que dirigiſſem , ejnclinaſlem
ao aproveitamento eſpiritual : Efte
era o ſeu ponto , e havia de ſer tam
bem o aſſumpto do que ouvia ; e ſe
acaſo lhe chegava aos ouvidos alguma
palavra , ou menos decente ao decoro
do proximo , ou menos conforme ao
theor da verdade , no deſagrado, com
que a recebia , achava huma muda re
prehenſao quem a articulava ; e ſendo
de mais confiança lhe affeava a Ser
va de Deos aquella imperfeiça o com
maior acrimonia , e ſeveridade.
2 Era mui penitente ; mas as ſuas
queixas ,embaraçando- lhe o goſto que
lhe podia cauſar a continuaçao delte
progreſſo , nao deixáraõ de o ſubſti:
cuir , fe nað o chegáraõ a exceder , vio
lentando- a com os incômodos , emui
to mais com a interpolaçao.Era de mui
larga oraçao , e nunca a tinha fem la
grimas , que ſe lhe viaõ cahir frequen
temente dos olhos , e com muita eſpe
cialidade no tempo em que eſtava no
Coro . Seriaô ellas talvez effeito da
continua meditaçao que tinha da Pai
xao do Filho de Deos; porque jamais
ouvio dar horas o Relogio , que nað
acudiffe logo : Aefta hora padeceo o
meu Senhor efle , ou aquelle tormen
to ; eſta , ou aquella afronta.O meſmo
Eſporodas almas , aquem ella acompa
N Qhow

L AC
PI
CO
98 RE
nhou tað bein pelo caminho da Cruz
a chamou á participaçao da ſua gloria
aos 20. de Julho de 1705 .
RECOPILA C, A M
de 20. de Julho.
M Barcelona hum Vene-
| E ravel Religioſo da
Ordem , de cujo nome nao temos no-
ticia ; mas que ſegundo a traducçao nao
deixa de eitar eſcrito com letras mais
precioſas que de ouro do livro da Vi-
da . Aflim o entendeo EJRey D. Pe
dro de Aragao , e aſſim o teftimunhou
no Commentario , que á imitaçao de
Julio Cezar eſcreveo da ſua vida , afo
leverando fer devedor della ás ora
çoens deſte Servo de Deos.
paſou aſlim : Correndo o anno do
Senhor de 1342. armou huma traiçaõ
aquelle Principe , em ordem a matallo ,
EIRey de Malhorca Jacome II.: para
deitar melhor as ſuas linhas impetrou
hum ſalvo conducto Pontificio para
mandar , como mandou , vir ſuamu
lher a Barcelona , e abrindo o ſeu pei .
to aquella Senhora , lhe difle que in-
tentava deitar fama de que ella eſta .
ya doente , paraque acudindo , me .
diante eſte rumor , EiRey de Aragao
a vilitalla , tiveſſe elle opportunidade
de lograr melhor a aleivofia do ſeu
projecto. Era a Rainha de Malhorca
de hum animo ſuperior muitas vezes
ao ſeu ſexo , e abominando
acçao tao deteſtavel, e ſabendo bem
a muita entrada que tinha o noſo Ve-
peravel Religioſo
com o Rey Ara .
gonez , o chamou para lhe confiar eſte
ſegredo , para evitar hum facto taő
feio , e tað indigno de qualquer par .
ticular , quanto mais de hum Princi-
pe . Nitto andou tað prudente , e pro-
vidente o bom filho de S. Domingos ,
que mediante a ſua bõa diligencia se
evitou aquella deſgraça. Nao menos
fiel ao Principe do Ceo , que ao da
terra , fez huma vida tao louvavel,
que mereceo fechalla com huma mor-
AM
o
de 20 de Julh ,.
te mais preciola que todas as vidas =
Diag. l. 1. c . 19 .
2 Na Cidade de Valençao Vene
ravel Padre Fr. Marcos Serre . Ser
vio eſte bom Religioſo de Prior do
noſſo Convento Valentino , e de Vic
gario Géral da lua Provincia , em que
mostrou bem a ſua valliſſima capaci
dade para os governos . Era de hum
noſſa animotao igual, e ſereno , quejamais
houve quem o viſſe impacienter, ou
cabir na mais leve amocao de colera ,
diſputando , reprehendendo, ou caſti
gando . Com eita meſma grandeza de
eſpirito , ſe venceo em todas as ou
tras paixoens de homem , nao o pare .
cendo mais que nas preciſas, e incul
paveis penſoens que pagað os mais fan
ios á natureza. Foi ſujeito de grandes
O caſo letras , e mui viſto , e univerſal em
todas as materias . Ve-ſe muito partia
cularmente o ſeu juizo claro , e ſcien ,
tifico no douto Commentario q , ue
elle eſcreveo ſobre a Summa do Dog .
1
cor Angelico , aonde debaixo de būa
ordem maravilhoſa reconcentrou em
poucas palavras o mais felecto , e o
mais rubítancial , que ſe acha diſper
fo por grandes volumes. A ſuas vida ,
que em tudo era conforme áfuafcien
cia , teve por fim o ditoſo premiodos
ſeus trabalhos' no anno de 1648.5
A & t. Cap. an . 1650,
3 Em Napoles , no Moſteiro do
Preſepio, a Veneravel Soror Maria
Thomaiza do Santiſſimo Sacramento .
buma Era de nove annos de idade quando
ſe conſagrou ao Menino Jesus , e pa
gou- lhe eſte Senhor o ſeu bom afte
cto enriquecendo o ſeu eſpirito de
candida , e ſuaviflima innocencia . Era
tao humilde , que cuidando - ſe em fa
zer outro Moſteiro , e augurando.ſe
lhe que delle ſeria Superiora perpetua
por authoridade Pontificia , com as
lagrimas nos olhos deprecavafer izen
ta della Prelazia . Reconh - cia - ſe a ſua
pobreza no heroico delapego a todas
as couſas da terra . A ſua obediencia
era ſem alguma replica , e mais arre
batada que prompta. A ſua pureza era
de
 FR , PEDRO GARNIER
de Anjo ; e o ſeu trato tao affavel,
que antes attrahia , que ganhava as
vontades . Finalmedte a ſua paciencia
reſplandeceo optimamente na ſua ul-
tima enfermidade, que a levou para
Deos po anno de 1684. idofa de 27. =
Ann , Dornin .
21. de Julbo.
Vida do Veneravel Padre
FR . PEDRO GARNIER ,
Primeiro Prior do Convento de
Burdeos ,
Extrabida de Guido, e da Gallia
Chriſtiana.
I Veneravel Padre Fr. Pe-
O dro Garnier illuſtrou a
principio tao altamente a Cidade de
Burdeos , Capital da Gucena , que
logo moſtrou bem quanto haviao de
ſer excellentes , e admiraveis os futu-
ros progreſlos da ſua ſantidade. Efta, Religioſos, q embaraçáraó eſta fump:
muito melhor que a ſua eloquencia ,. tuoſidade, porque ella naõ deſdiflelle
que foi huma das mais fuaſivas, e bem da pobreza da noſſa profiſſao. Deve
cultivadas , moreo os coraçoeos dos
moradores daquella terra para a extru-
& ura de huma dasmelhores Caſas, nað
fómente de França , mas de toda a
Ordem , ſendo baitante prova da ſua
grandeza haver -ſe conſervado ſempre
no ſeu maior eſplendor até eſtes ul-
timos tempos . Verdade ſeja , quepor
cauſa da Fortificaçao daquella terra
foi neceſſario demolir -ſe em parte ;
mas tao longe elleve eſte incidente de
deformar a ſua magnificencia , que
antes foi incentivo para o ſeu augmen-
to : podendo-ſe dizer deſta ſegunda
obra , o que diz a Elcritura do ſegun-
do Templo de Salamaô , cuja gloria
canoniza por maior , que a do primei-
ro . Os Religioſos , em quem come-
çou aquella fūdaçao ,foraõ alli chama-
dos pelo Arcebiſpo Gerardo de Ma .
lemort : perſuadio -ſe a convocallosao
ſeu diftri &to movidodo muito que ou-
via dizer da noſſa Ordem , edosſer .
viços grandes que faziao a Deos em
Tom . VII
21. de Julho . 99
qualquer parte , aonde , ou prégavao ,
ou ſe eſtabeleciaõ os noſſos Religioſos.
2 Nao ſe nos moſtrou menos affei
çoado hum Cidadao de Burdeos , mui
to rico , e bem intencionado , cha
mado Amanieu Colomb , e bem que
ria ter jazigono noflo Convenio ; mas
como nao teve a conſolaçaõ de o ver
acabado em ſeus dias , deo- se- lhe fe
pultura na Cathedral de Santo Andre .
Antes de morrer declarou as ſuas in
tençoensao Arcebiſpo,commettendo
lhe o governo da ſua alma, e todos
os ſeusbenstemporaes,para que elle os
diftribuiſſe com aquella economía ,que
julgaſle opportuna ao bem da ſua al
ma . Fello aſſim o Illuftriflimo Paftor,
applicando aquella ſomma, com gran
de parte das ſuas riquezas,á nofla fun
daçao. A liberalidade pois deſte bom
Principe da Igreja ſe deve a magnifi
ca Igreja do Convento com tres na
ves, e abobada, ſómente a metade del
la , e nao toda , á infancia dos noſſos
lhe tambem aquella Caſa o Refeitorio
da Enfermaria , e outros muitos be
neficios, com que a ſua benéfica , e
pródiga mao nos obrigava . Nao ſe
moſtravaõ ingratos a tantas demonſtra
çoēs de beneficēcia os noſſos Religio
fos,trabalhando fummamente em diri
gir os Dioceſanos de feu bemfeitor
para o Reino dos Ceos ,
3 Morto fantamente o Veperavel
Biſpo , fuccedeo nefta digoidade hum
Capellao do Rey de Navarra , chama
do Pedro de Ronceſvalhes, e ſeguio
em tụdo as pizadas de ſeu Veneravel
predeceſſor, affim em governar ſan
iamente a ſua Igreja , como em con
ſervar -ſe ſempre com a Ordemem hũa
boa harmonia ,ſendo tal o ſeu affecto ,
que por ſuamortequizter, como tem ,
o ſeu fepulchro no noſſo Convento.
Do meſmo modo nosmoſtrou tambem
huma cordialiflima devoçaõ o filho de
Amanieu Colomb ,continuando asfan
tas diſpoſicoens de feu virtuofo pay ,
Nii dans
100 SOROR ANNA
dando.nos muitas moſtras da ſua di .
lecçao , emagnanimidade . Todo eſte
augmento no temporal impetravao
os noſſos Religioſos , obſervando à A ſua vida foi de talmodo, quemais
riſca aquella maxima Evangelica: Pro-
Curaiprimeiramente o Reyno de Deos,
etudo o mais vos ſerá adjudicado.En-
tre elles brilhava , comohum eſtupen-
do , e diſtincto luminar , o noſſo Vene-
ravel Fr. Pedro Garnier , que pela
ſua muita virtude foi conſervado lar-
gos tempos no Priorado daquella Ca-
ſa , em que ſe nao fez mençao de ha
ha-
ver outro Prior até o anno de 1250. ,
em que o era o Beato Juliao . O noſſo
Fr. Thomaz Soueges conjectura que
o noſſo Venerave!PadreGarnier exer-
ceo o Officio de Inquiſidor no Arce-
bilpado de Burdeos , fundado em húa
Bulla de Gregorio IX . expedida no
anno ſettimo do ſeu Pontificado mui
celebre na Ordem pela Trasladaçao de
noſſo Santiſſimo Patriarcha , em que
ſe notou aquelle grande prodigio de
avivar- ſe em todos os ſeus filhos hum
extraordinario , e celeſtial fervor de
eſpirito , dom , para que o noflo Servo
de Deos eſtaria tam bem diſposto , co-
mo ſe pode inferir dasſuas muitas vire
tudes , de que a noſſa piedade o confi.
dera premiado na Bemaventurança .
21. de Julho.
Vida da Veneravel Madre
SOROR ANNA DE JESUS
Extrahida da quarta parte da Hifto-
ria de Nofo Padre S , Demin.
gos do Reyno de Portngal.
I Veneravel Madre Soror
A Anna de Jesus foi huma
das mais inſignes Religioſas , que acre-
ditasao o noflo Moſteiro de Corpus
Chriſti , fronteiro á Cidade do Porto ,
aonde ella floreceo em todo o gene-
ro de viruudes. Foi, como verdadei-
ra filha de noſlo grande Patriarcha
S. Domingos , devotiſſima do Roſa-
rio da Mãy de Deos , o que aſſim te-
DE JESUS 21 de Julho.
ſtimunhava , nað o largando jamais
da maó , excepto para nao faltar a al
liſtencia do Officio Divino no Coro .
parecia terem - ſe feito por ella as Con
Itituiçoens, do que haverem eſtas de
fervir para a ſua economía, e gover
no . Era porém tao acautelada em oc
cultar a ſua obſervancia , que eraõne
ceffarios os maiores quilates de virtu
de para ſe haver de diſcernir tanta ex
acçao , e regularidade , bem aſſim co
mo ſao preciſos olhos de aguias para
examinar , e penetrar os rayos do Sol.
2 Em attençao aos ſeus caó diflin
cos merecimentos tres vezes a quize
rao eleger por Prelada , e lempre ſa
birao fruſtrados eſtes intentos , que
nao deixavaõ de trazer comſigo alguns
diſturbios , e diſſençoens. Andou lem
prevexada , e affligida de grandes con
tratempos , e trabalhos; mas iſto nao
obſtante chegou a lograr- ſe a Serva de
Deos de muitos mais annos , que
ſe podiao prometter de tantos incom
modos , e pezares. Seguio -ſe a buma
tao ſanta vida outra nao menos ſan
ta ' morte , de que foi accommettida
eſtando em seu perfeito juizo . Foi o
Ceo o primeiro empenhado nos teus
ſuffragios; porque apenas fechou os
olhos a Serva de Deos , quando ſe ou
vio hum tumultuofo numero de vozes
entoando todas , mas ſem te ver quem
as proferia , varias preces funeraes.
Quizeraõ examinar algumas Religio
fas donde procediaõ eſtas vozes, e lo
go fe perſuadirao que ja chegariao fó
ra de horas , por entenderem que o
corpo naquelles termos iria ja cami .
nhando para a ſua ſepultura ; porém
todas preſenciáraó que elle ſe eſta
va ainda amortalhando , e deſpedin .
do huma fragrancia por todo o dor.
mitorio mui conforme áfragranciada
quellas eminentes virtudes, com que
fora conſiderado em vida ; e ainda
ha tradiçaõ , que ouvindo kuma Re
ligioſa entoar o Libera me Domine ,
acudindo muito depreſſa , por cuidar
que a levavaõ ja para o Coro debaixo,
preſens

RECOPIL A C, A M
preſenciou ella meſma que aindaen-
tao lhe estavao veſtindo a mortalha .
Notou -ſe que ao tempo em que pallou
deſta para a melhor vida , ettava can
tando a Communidade o Canticodo
Santo Simeo :Nunc dimittis. Foi fi
nalmente o dia do ſeu feliz obito em
21. de Julho de 1687. depois de Veſe ' mente a ſua Dieceſe , morreo no Se
peras .
RECOPILAC , AM
de 21. de Julho.
I M Avinhañ o Illuftriffimo
E e Sagrado Paſtor da Igre-
ja de Cita nuova na Italia , o Venera
vel D. Fr. Pedro Fabri. Era natural
de Beziers , e profeſſo do Convento,
que alli tem a Ordem ; e de tal mo.
do le diftinguio em literatura , e fan-
tidade, que foi tirado da ſua Provin
cia para ſer poſto em lugar donde lu
zife , e aproveitaffe melhor com o ſeu
exemplo , e doutrina, pela Santida-
de de Clemente V. a 26. de Mayo de
1311. Na ſua dignidade Paſtoral nao
fé moſtrou menos exemplar , ou me .
nos digno das acclamaçoens com que
ja era celebrada , ou por melhor di-
zer canonizada a ſua virtude ; mas
quando ſe concebiao altiſſimas elpe-
ranças de hum governo muiſemelhan-
te ao daquelles clariſſimos Prelados
da Igreja primitiva, o levou o Senhor
para ſi no ſeguinte anno de 1312. na
Cidade de Avinhao , que entao era
Corte Pontifica , aonde o Servo de
Deos havia paſſado a tratar de algúas
importancias. Soueges.
2 Em Ari , povoaçaõ da Ilha de
Candia, antigamente chamada Cre-
ta , o Illuſtriſſimo e Veneravel Pa.
for eſpiritual daquella Igreja D. Fr.
Antonio Guido. Foi hum dos Theo-
logos mais eminentes da ſua idade , e
que juntando felizmente a ſciencia
com a virtude , encheo de huma fra .
grancia admiravel a Caſa de Deos. O
conceito que fazia delle a Santidade
de Martinho V.era tal , que logo que
/
101
de 21 de Julho.
ſe aſſentou na Cadeira de S. Pedro ,
o exaltou aquelle Biſpado , que elle
encheo tao dignamente , como feel
perava de tantas demonſtraçoens , que
elle ſempre dera de merecimento , e
fantidade. Finalmente , depois de ha
ver regido diuturna , e benemerita
nhor , no ano de 1430. Ex Fon
tan , in Theat. pag. 130.
į Em Burdeos o Religiofiffimo
Padre Fr. Arnaldo Badet . Teve hūa
notavel propenſao para o pulpito , e
era tao obferváte ,que no anno de1536 .
foi feito Prior do Convento reforma
do que alli temos. Era iſto a tempo ,
em que a hereſia do Calviniſmo hia
gangrenando contagioſamente aChri
itandade de França , e entao ſe vio o
fervor, e a reſoluçaõ do Servo de Deos
na oppoſiçaõ com que ſe combatia com
os impios fautores daquelles erros , ja
com a voz , do pulpito abaixo , eja fa
zendo-a permanente nos ſeus doutos,
e irrefragaveis Eſcritos. Com eſta oc
caſiao compôs hum douto Livro La
tino intitulado : Perola da Sagrada
Eſcritura ; nome , que lhe quadra
muicôvenientemēte ,por ſejūtarē nel
le mui plauſivelmente com a importan
cia das razoensa formofura de huma
eloquencia nað vulgar. Neſta obra ex
horta os Catholicos orthodoxos a fa
zer o devido apreço da Fé , laſtimag
do -ſe da cegueira daquelles, que dei .
tavao aos porcos , e ás beftas féras a
maior riqueza, com que os havia do
tado ſua máy amoroſiſſima a fanta
Igreja . Finalmente depois de haver
pelejado ,como hum combatente ambi
dextro , contra os miniſtros da perdi
çao, foi chamado para a coroa do triun
fo , que tao legitimamente havia con
quiſtado com o ſeu zelo , e trabalhos
Apoſtolicos, pelo anno de 1536 .
Ferr . in Conc. præd. p . 329 .
22. de
 102 SOROR CATHARINA
22. de Julho.
Vida da Veneravel Madre
SOROR CATHARINA
DE SENA ,
Conforme as noticias , que ſe confer-
vao no Moſteiro da Annuncia
da de Lisboa .
1 I e
A dante em precioſidades, e
de tao delicioſo, e ameno clima , que
nao tem faltado Authores , que ficuem
naquella maior de todas as partes do
mundo , atégora conhecido , o Paraiſo
terreal, foi a digna patria da noſſa Ve .
neravel Madre Soror Catharina de
Sena. Naſceo ella na Cidade da Bahia
de Todos os Santos , de pays de mui
grofla fazenda , e de humalingulariſ-
lima piedade , como ſe eſtava vendo
da virtuoſa , e ſanta criaçao , que de-
raó a duas filhas ſuas , que elles, de tres
que tinhao , fizerao paſſar á Europa,
e florecêraó ambas com muita ſanti-
dade de vida no muito Religioſo Mo-
Neiro da Annunciada , aonde ellas ti
nhao algumas parentas , e aonde en-
tráraõ no anno de 1688. Chamava - ſe
a outra irmaā Soror Anna da Madre
de Deos , que foi tambem Religioſa
mui exemplar ; mas vamos agora par-
ticularmente ás memorias da noſſa
Veneravel Madre Soror Catharina .
2 Nao tinha ainda Catharina ida
de competente ao tempo da ſua entra-
da, e foi - lhe neceſſario ſer Educanda
por alguns annos . Neſtes deo tao boas
elperanças do que havia de vir a ſer ,
que igualmente ſe fez amada, quebem-
quitta dasReligioſas , muito mais da-
quellasmaisaproveitadas no caminho
da perfeiça ő . Profeſſa ja Soror Catha-
rina, achou q era nada , o que até entao
tinha feito , e de tal modo ſe applicou
ao maior ſerviço de Deos,como aquel .
la que eternamentelhenao queria def-
merecer os agrados de Eſpoſa. Teve
muitos Meſtres de eſpirito , todos mui
doutos , e virtuoſos , e ultimamente o
foi o noſſo Illuſtriſſimo Biſpo de Pa-
DE SENA 22 de Julho.
tara , D. Fr. Joſeph de JESUS MARIA
Sempre eſtava promptiſſima para 10
das , e quaeſquer couſas de devoçao ,
para o que o ſeu bom animo propendia
com huma talſympathia , como aquel
la , com que a fior gigante ſegue o gi
gante das luzes , a pedra de cevar a
Eltrella do Norte . Foi devotiſlima da
nofla Santa Princeza de Portugal ; e
Imagem , fez - ſe huma mui perfeita á
ſua cuſta , e por ſua conta heque tam
bem corria a deſpeza , e o alinho da G다
ſua Capella , e o ſeu feſtejo. Pedio por
ſua morte a outra Religioſa quizeſſe
encarregar - ſe defte culto : deo - lhe a loi
outra elta palavra , e tem- na ſempre 100
deſempenhado com igual fervor , que 1:00
grandeza . Foi tambem mui apaixona 60
da pelas prerogativas da ſua Santa Ca xa
tharina de Sena , de quem tomára , de
com o nome , e appellido , a imitacao,
e todos os annos ſe eſmerava em fa do
zer - lhe a ſua Feita com Sermaó , e le ,
com os mais oblequios , a que podiao C!
chegar as ſuas pofles. cer
3 Venerava com particular atten
çaõ a milagroſiſlima Imagem do Se
nhor do Capitulo ; e em certa occa
ſiaõ recebeo delle hum notavel favor.
Foi o calo : que, nao ſendo ainda de
muitos annos , lhe ſobrevieraõ alguns
achaques, e eſteve a ponto de ſe lhe
cortar hum braço , que ſe lhe gangre
nou . Já eſtava dada eſta ſentença , e
aſſignado dia pelos Cirurgioens ; mas
acudindo as Religioſas ao meſmo Se
nhor , foi couſa admiravel , que quan
do chegáraó os operantes, mudárað
de parecer , aſſentando em que nao
havia huma neceſſidade mui inſtante
para fazer-ſe aquella diſlecacao. Al
ſim eſcapou do maior perigo ; porém
as melhoras forao tao eſcaſas", que
ſempre lhe ficou o braço tolbido , e
leſo, ſem ſe poder ajudar delle , de
modo que quando lia no Coro as li
çoens, era preciſo voltarem -lhe as fo
lhas do livro . As ſuas penitencias ,
majormente em quanto as forças a
ajudárað , forao ſempre cortadas á me
dida
 RECOPIL A C,
dida do ſeu taö remontado eſpirito ;
e na paciencia foi pouco menos que
inimitavel . Deos Senhor noſſo , que
reparte os ſeus dons com huma bo
pillima Providencia , e como quem
ſabe o que mais nos convem , nao a
fez muito agradavel, e nao ja por-
que ella delmerecefle , antes muito
merecia toda a bõa condeſcendencia :
deſte disfavor , que ella experimenta-
va nas creaturas , tomava ella mais mo-
tivo para ſe incender nos amores do
Creador , dando - lhe por tudo inceſ
ſantes graças.
4 Ficando - lhe , comoja diſlemos,
o braço paralytico , levou tao pacien-
temente os incommodos , a que elte
accidente a reduzia , que jamais teve
boca para formar nem huma leve quei
xa , antes andava ſempre com ella chêa
de rizo . O meſmo inſuperavel toffri
mento mostrou em tolerar a ultima
doença , que a poz ás portas da mor
te , que foi huma formidavel hydro -
peſia , em que teve muito que pade .
cer : a principio foi occultando eſta
queixa ; e continuára eſte disfarce, ſe
a grande inchaçao , que lhe ſobreveio
do eſtomago até a cabeça , naõ deſco- . tres vezes , ainda que ſempre muito a
briffe ette grande mal: o vella cauſa .
va igual horror que laſtima. Delcar-
narao -ſe - lhe os dentes ; e em tal ella .
do le foi pondo , que mais parecia hum
eſqueleto com vida . Finalmente foi a
Serva do Senhor na obfervancia huma
per feitiſſima Religioſa. O ſeu primei-
10 , e principal cuidado era o ſermui
addicta a tudo o que preſcrevem as
leys do Inſtiruio Dominicano . Sem
pre uſou de camiza de eſtamenha , e
jamais deixou de jejuar os ſette me
zes , que he eſtylo da Ordem .
5 Era eſcrupulofiflima na reza do
Officio Divino ; e póde - ſe crer , que
pelas muilas repetiçoens que fazia , o
rezava muitas vezes quotidianamente ,
pelo muito que neſta parte a inquie
iavao as ſuas duvidas , e deſconfianças.
Nunca faltou no Coro , goſtando mui
to de ſe deter nelle , e ainda depois da
lua parlyſia , nunca deixou de ſeguir
A M de 22 de Julho,
103
as Matinas da meya noite . Deſenga;
nada eſta bõa Religioſa pelos Medi
cos da certeza , e preſta com que a
morte a procurava , fortaleceo - ſe com
os Santos , e ultimos Sacramentos ,
que recebeo com tanta devoçao , que
igualmente a inſpirou, e nao ſem mui
tas lagrimas , em toda aquella Religio
fillima Communidade , e em dia de
Santa Maria Magdalena 22. de Julho ,
dia muifaufto na noſſa Ordem , como
de huma ſua Protectora tao ſingular
entregou placidamente a ſua tao di
tofa alma nas mãos do Creador no an .
no de 1730. Sendo de idade de quaa
renta e oito.
RECOPILAC, A M
de 22 de Julho.
I M Metz , o Veneravel Pa:
EX
dre Fr. Simao Tilquin . Foi
hum Religiolo de muitas prendas , e
virtudes , e com grande habilidade
para o ſagrado miniſterio do pulpito.
As ſuas letras , e muito mais as luasir
reprehenſiveis acçoens lhe facilitárað
ſeu pezar , o addito para o Priorado
do ſeu Convento ; e morrendo com
buma boa opinia o no apno de 1439.,
mereceo que ficaſſe recomendado á
pofteridade o ſeu relevante mérito
com hum elegante, e honorifico Epi
tafio Latino , que ſe lhe gravou na pe
dra da ſua ſepultura , que foa na noſſa
lingua vulgar deſte modo :
Tudo quanto hanas virtudes
Demais bello , e mais louvavel,
Ornou mui egregiamente
Eſte digniſimo Padre.
· Chryfoftomo do ſeu tempo
Com aureas ſublimes fraſes
Interpretou da Eſcritura
Os mais profundos lugares.
Ann.Dominic.
2 Em Vienna de Auſtria o Venes
ravel Padre Fr. Pedro Martyr Croat,
Tes
104 D.FR.BERNARDO DE ALBUQUERQUE 23 de Julho.
Teve particular talento para as con-
troverſias da Fé , pelo que convenceo ,
e reduzio muitos hereges. Conceben
do - ſe grandes eſperanças, e progrel .
fos do ſeu ardentiſiimo zelo , cuida
va - ſe muito em exaltallo á dignidade
Epiſcopal na Moſcovia;mas Deosoof-
ſo Senhor o chamou ao meſmo tempo
para o maior premio do logro da ſua
viſta no anno da noſſa reparaçaõ de
1625. Soueges.
23. de Julho.
Vida do Illuſtriſſimo e Vene ,
ravel Padre
D. FR . BERNARDO
DE ALBUQUERQUE ,
Biſpo de Oaxac ,
Extrahida de Avila , na Hiſtoria de
México , e de Remezal na Hiſto,
ria de S.Vicente .
I Odia dizer de ſi o noſſo Illu-
.
Fr. Bernardo de Albuquerque , cujas
memorias começamos agora a eſcre-
ver , o meſmo que o Real Pſalmiſta :
Antes quero ſer deſprezivel na Caſa
de meu Deos, do queoccupar ostaber-
naculos, ou exaltaçoēs dos peccadores;
porque ſendo , como era , naſcido il.
luftremente , tendo Filolofo , e Theo-
logo doutiſſimo , e tendo outras mui-
tas qualidades nao vulgares , entrou
na Religiao de S. Domingos , nao para
Sacerdote, Meſtre, e Prelado , lenao
para ſervir , e obedecer como Leigo ,
e idiota , que por iſſo quiz veſtir , eve
ftio , o habito de Irmaõ Converſo . Mas
Deos noſlo Senhor , que ſe paga tanto
da humildade , lhe premiou , aindaem
vida , huroa acçao tao generola : por•
qne de Leigo o exaltou ao Sacerdo ..
cio ; e poſto que eſta era a maior eleva ,
çao , a que o podia conduzir , nao pará-
raó aqui as generoſidades do Senhor
para com ſeu tielServo , ſenaõ que tam
bem o ſublimou a Prior do Convento
deOaxac , a Provincial de México , e
ultimamente a Biſpo da meſma Cida
de de Oaxac.
2 Naiceo o Veneravel D. Fr.Ber
pardo em Caftella no lugar de Albu
querque , de que elle tomou o appel
lido. Notáraõ ſeus pays , que como
acima tocamos eraõ nobres, as ſuas
fantas inclinaçoens, e mandarað -no
eſtudar á Univerſidade de Alcalá : foi,
e aproveitou muito dentro de pouco
tempo , ſendo huma aguianapenetra
çaõ dos eſtudos da Filoſofia, e Theo
logia . Tivera o Servo de Deos deſde
mui pequeno grandiflimos deſejos de
dar -ſe a Sua Divina Mageftade na Re
ligiao ; mas pelo eſpirito de humilda
de , que era nelle predominante , que
ria ſer tido nella por hum homem bai
xo , e inculto : e como ſe pediſſe o ha .
bito em Alcalá , aonde era tao conhe.
cido pelo eſplendor do ſangue , e pe
la eminencia do engenho , nao podia
conſeguir o fim , e logro de ſeus bons
intentos ; neltes teimos reſolveo- ſe a
ir aſſegurar eſta ſua vocaçaõ no noflo
to Eftevao de Salamanca, aonde ſenao
fabia quem elle foſſe. Chegado aquel
la grande Caſa , fez a ſua deprecaçað
ao Prior , occultando os nomes de ſeus
pays , e deſcobrindo ſómente o da lua
patria . Nao quiz o Prelado aceitallo
lem tentar primeiro a ſua virtude , e
o ſeu preftimo ; e mandou - lhe que
eſtiveſſe por alguns dias lervindo a
Caſa em trage de ſecular, debaixo da
direcçao do Irmao Leigo da cozinha.
Jamais hum criado , que ſerve , com
emulaçao de outros a hum Senhor de
quem eſpera grandes conveniencias ,
affectou moſtrar -ſe tað fiel, lerviçal ,
e diligente . Barria o refeitorio , lava
va a louça , esfregava os caldeiroens ,
e ſervia nao ſomente os muitos Reli
gioſos , que alli ha , ſenao a todos os
que trabalhavao na cozinha com mui
ia paciencia , aſſeio , e alegria , Final
mente forao tao favoraveis os infor
mes que do noſſo Bernardo deo o Ir
mao cofinheiro , que foi com effeico
proporto , e admittido ao habito de
Lei,
 D.FR.BERNARDO DE ALBUQUERQUE 23 de Julho.
Leigo , que havia fupplicado.
3 Tres mezes o trouxe veſtido ,,
até que Deos poſſo Senhor , querendo
ſervir -ſe delle para couſas maiores ,
ſe dignou manifeſtar a grande alma ,
que andava encuberta debaixodo veo
de tanta humildade . Reparárað os Re
ligioſos , que ſe havia o edificado gran-
demente dos louvaveis procedimen-
tos do Irmao Fr.Bernardo,na ſua com-
1 ceſſi dade que tinhaò aquelles povos
poſtura, no commedimento , e acerto
das ſuas palavras , na ſua boa diligen-
cia , e na grande devoçaõ com que ſe
dava ás couſas de Deos , e pareceo-
lhes ( como aſſim era ) que em tudo iſto
havia muito mais do queparecia.Cha-
mou- oo Prior , e perguntou -lhe ſe ha.
via ſido eſtudante . Bem quizera elle
aqui negar por ſe abater ; mas por nao
faltar á verdade , o que nunca ſoubera
fazer, e muito mais gora , em que naoo
havia menos que com o ſeu Prelado ,
aquem venerava como ſubſtituto do
meſmo Deos , reſpondeo ſinceramen-
te , que elle havia eſtudado Grammatic
ca , Filoſofia , e Theologia. Argumen-
tou - lhe o Prior , e reſpondeo - lhe Fr.
Bernardo como hum ſujeito muito
douto , e verſado naquellas Faculda-
des. Admirado o Prior do que via ,
fez -lbe deſpir aquelle habito , e tomar
o de Frade do Coro . Depois de prc-
feffo fizerao -lherepizar de povo os
feus eſtudos ; para ſe inftruir melhor
nos principios da doutrina de Santo
Thomaz . O que cuſtou muito a aca-
bar com elle , foio obrigallo a tomar
as Ordens Sacras , quando por naõdi.
zer Miſſa havia eſcolhido o eſtado de
Converſo ; mas inftando os Superio-
ses , como verdadeiro obediente , e
bom Religioſo , le fometreo ás ſuas dif-
poſiçoens.
4 Diſſe a ſua Miſſa , e tanto mais
dignamente , quanto ſe luppunha mais
indigno de bum tað tremendo , e la-
croſanto miniſterio . Era mui ſocia-
vel , e benigno , indiſpenſavel no Co-
ro , férvido, e continuo da Oraçao ,
lhano , e humildiſſimo no ſeu irato ,
fiel,
e promptiflimo a qualquer ace-
Tom . VII
105
no dos Superiores , e'amantiſlimo da
perfeiçao , e da penitencia. Abomina
va qualquer genero de murmuraçao,
favorecia em tudo o que podia a po
breza , e era ella tanto da ſua eſtima.
çao , que nenhuma outra couſa ſe via
na ſua cella , e em todas as couſas do
ſeu ulo . Por eſte tempo ouvio fallar
no novo deſcobrimento , que ſe tinha
feito das Indias Occidentaes , e na ne
ceſſidade
de quem lhes prégaſſe as verdades da
nolla Santa Fé . Nao eſperou mais : 10
go ſe oftereceo a ir trabalhar na cul
tura daquella vinha , e foi logo aceito
com muito gotio . Chegado aquellere
notiſſimo paiz , e vendo a lantidade
da vida alli obſervada pelos noſſos Re
ligiofos , pareceo-lhe que tinha deſcu
berro hum preciofiflimo theſouro .
Deo - ſe logo a aprender a lingua Za.
poréca , huma dasmais dilatadas , e co
nhecidas naquellas partes ; e em mui
to pouco tempo ſe fez Senhor della
com tanta perfeiçao , que nao fomen
te pode prégar , e confeſſar nella com
extraordinario fruto daquellas gen
tes , ſenao que fez hum Catheciſmo ,
que , alem de ſer tido por mui util , le
julgou por muito mais neceflario .
5 Amava os pobres lodicscom en.
tranhas verdadeiramente paternas :
enſinava - os com grande paciencia ,
fallava- lhes com muito carinho , e
brandura, e defendia -os das violena
cias , que le lhes faziao , com o maior
empenho. Aflim lhes ganhava , ourou
bava os coraçoens , e até nao puderað
reſiſtir á ſuaviflima força do ſeu bom
modo os Indios chamados Mixes, que
faõ ferociſſimos, e ſó á força he que ſe
dómao , nao valendo nada com elles a
urbanidade , a bõa condeſcendencia ,
e nem ainda os meſmos beneficios ;
porque em tudo deitað peçonba , at
iribuindo a civilidade , e bom termo
a pretextos abominaveis : tudo iſto ро
rèm nao obitante , foi tal a virtude ,
com que o noſſo Servo de Deos os
dominou , que de feros, e brutos que
eraõ , os reduzio á luz da razao , e da
o ſocies
106 D. FR . BERNARDO DE ALBUQUERQUE 23 de Julho.
ſociedade. Erað os caminhos deſtes
diſtrictos os mais alperos , e trabalho
ſos de todas as lodias , e iſto nao ob
ftante , jamais caminhou por elles o
noſlo Miſſionario , lena a pé , e o que
he mais faltando -lhe a cada pallo o
fuftento , nem tendo outro ſena o buns
pequeninos paens de milho , e pouco
mais que lhe davao os Indios ; e len-
do iſto comer de ordinario mui par-
co , e muito groſſeiro , o amor que o
noſſo Veneravel Fr.Bernardo tinha á
fanta pobreza , e o baixiſlimo concei
to , que fazia de ſi, que, á imitaçao de
noſlo Santo Patriarcha,quepedindoef-
móla , com huma fáccola aos hombros,
ſe punha de joelhos para receber o que
ſe lhe dava , lhe fazia reputar eſtes ſub-
ſidios por iguarias mui regaladas , e
dignas das mezas mais eſplendidas dos
Principes.
6. O primeiro lugar , que o noflo
Miſſionario fervio na Provincia de
Mexico foi o de Vigario da Cidade
de Santo Ildefonſo , lugar de muitas
conſequencias , e que para ſuſter o
grande pezo do trabalho daquella Vi-
gaisaria pedia huns hombros tao ro.
buftos , como verdadeiramente eraõ os
ſeus. Aqui ſe viobem o ſeu preftimo,
o ſeu zelo , e a ſua virtude . Attentos a
hum raó diftincto merito os noſſosRe-
ligioſos do Convento de Oaxac , aon .
de poucos annos depois ſe eſtabele-
ceo a Cabeça das Caſas da Provincia
de Santo Hypolito , o elegeraõ unifor-
memente por Prior daquella Comu..
nidade . Neſte Priorado continuou o
Servo de Deos em dar as meſmas mo-
ftras que atélli da ſua integridade , e'lomeu de las Caſas.
virtude , ſendo elle o primeiro em fa 8 Eſtava eſte grande Prelado na
zer o exemplo a todas as perfeiçoeps,
a que pertendia reduzir os ſeus bem-
affortunados ſubditos. Servindo eſte
officio com tanta capacidade ,e apro-
veitamento , foi eleito e confirmado
Provincial na Provincia de México
no anno de 1533. e por muito que re-
culou , e por muitasrazoens que alle-
gou , que lhe ſuggerio o ſeu verdadei-
ro eſpirito de humildade para fugir a
eſta Prelazia , nada foi baſtante para
eſcuſallo .
7 Era o noſſo Veneravel Prelado
mui deſconfiado de ſi proprio , naoſe
promettendo fruto de couſa alguma
que intentava ; mas ſegurava asanco
1
ras da ſua eſperança naquelle Senhor ,
em quem , como diz o Apoitolo , tudo
podemos ; e como agora ſe via mais
neceſſitado das luzes do Ceo , ago
ra he que por meio de huma frequen
te , e devotiſlima Oraçao as buſca
va , e pedia mais inſtantemente . Fazia E
as viſitas daquella dilatada , e fragola
F
Provincia a pé com hum trabalho, e
conſtancia , a que ſó o ſeu zelofiffimo
fervor podia dar , como dava , huma
‫ܐ‬
completa execuçao . Chegando aos
Conventos , recreava ſuavillimamen . TO
ta
te , e utilmente o eſpirito dos Reli
gioſos com as palavras de vida , e de le
perfeiçao , com que os exhortava 20
mais alto da virtude. Jamais conlen ça
tio ſer tratado com alguma diſtinçaõ , bri
aſſim por ſe nao fazer oneroſo , e mo །
lefto aos Convenios ,como por ver nela go
le meſmo o tratamento daCommuni
dade . Queria que os Miſſionariostra .
taſſem os Indios com muita brandura ,
1
e docilidade , nao os tratando acre
mente por cauſa da tua rudeza , ein.
habilidade ; e conſtando - lhe que al .
guem contravinha eſta ſua diſpoſiçao ,
logo o penitenciava. Eſta grandemia
lericordia , de que elle uſava, e queria
que ſe uſaſſe com aquelles povos, o
fez ſubir á Cadeira Epiſcopal de
Oaxac , ás inſtancias do noſſo Vene
ravel Biſpo de Chiapa D.Fr. Bartho
Corte de Caſtella , aonde paſfára apa
trocinar os pobres Indios , a quem os
Caſtelhanos entao tyrannizavao com
extorloens, e violencias mais que bar.
baras ; e ouvindo fallar nos louvaveis,
e fantos procedimentos do noſſo Ve.
neravel Provincial , o propoz a Filip
pe II . de Caſtella para ſucceder na Ca
deira de Oaxac ao ſeu primeiro Biſpo
D.Joao de Zarate , g era ja morto.Nao
de
 D.FR. BERNARDO DE ALBUQUERQUE 23 de Julho.
deſattendeoo Rey a eſta inftancia, elo-
go fez expedir-lhe o Breve.Chegou ette
ao tēpo , em q acabava de expirar o ſeu
Provincialado , depois de haver, ſido
terceira vez Prior de Oaxac ; aflim ſe
imaginava ja no porto livre da tor
menta , e delimpedido para poder
continuar ( que era o mais que que .
ria ) as ſuas Miſioens. Vendo -ſe agora
empenhado de novo em maior gover.
no , nao ſe pode dizer a confuſað , e
horror , que lhe cauſou eſta novidade.
Emfim ,deliberou - ſe a recuſar eſtaMi-
tra com toda a conſtancia . Pôs- lhe o
Provincial Fr. Pedro de la Penha ,
que depois foi Biſpo de Quito , pre
ceito de aceitaçao ; mas nem ainda
ifto foi baſtante , porque como o Ser-
vo de Deos era mui 'douro , e eſtava
tao bem inſtruido das cbrigaçoens do
ſeu eſtado r
, eplicou reſpectuofiflima-
mente ao Provincial, que ajuriſdi-
çað , e authoridade , que eſte tinha ſo-
breelle , dao ſe podia eſtender a mais, q
áquellas couſas da Religiao ,que erano
que ſomente ſe lhe devia ſujeitar, e
nao em outras , que o deſobrigavao da
obediencia da Ordem , qual era a da
aceitaçao de hum Biſpado. Reconhe-
cida a força deſta razao , nem por iſſo
deſiſtio o Provincial, e outros muitos
Religioſos graves de o poderem per-
ſuadir , poitoque elle ſe eſcuſava com
huma repulſa , que elles viaó que nao
tinha contra ; e verdadeiramente que
nao ſe allucináraó no ſeu projecto.
Repreſentaraó - lhe pois : Que poſto
que elle nao podia ſer obrigado por
preceito a aceitar aquelle Biſpado , a
caridade , que he maior virtude , prin-
fim de todas, o podia
conſtranger muito mais fortemente a
eſta admiſlao : Que elle , por ſaber com
tanta pericia a lingua do paîz , e ſeriaria , e antes ſervir na cozinha , por
nelle tao eſtimado , e bemquiſto , era nao perder a companhia de Religioſos
mais a propoſito do que outro algum
para governar aquella Igreja ; porque
qualquer outro nao poderia fazer tan-
to fruto como elle : e que a Ordem
ſeria mais bem ſervida , e honrada , fa-
zendo elle aceitaçao daquella Igreja :
Tom . VII
107
e que ſe'elle lhe tinha tanto amor ,
agora era o tempo de ſever , quando
elle tinha huma tao opportuna occa
ſiaõ de a favorecer , patrocinar , e hon
rar .
9 Ainda não baſtariaő todas eſtas
razoens a movello , lenaõ accreſcen
taſlem outra, que foi a que efficazmen
te tirou a clava das maós a eſte Her .
cules da humildade ; e vinha a fer :
Que nao lhe .conftando , como nað
conſtava , qual fofle a vontade de Deos
em admittir, ou rejeitar aquella dig
nidade ; neſta duvida nao podia fazer
couſa mais do agrado do meſmo Se
nhor , do que obedecer aos preceitos,
e inſinuaçoens dos ſeus Superiores .
Aqui cruzou , e deo as maos o bom
Religioſo cedendo de todo da ſuare .
pugnancia : mas para que ſe veja o
quanto elle fubio violentado á Cadei
ra , refiriremos aqui hum caſo , que
lhe ſuccedeo por eſte tempo. Man
dáraõ pedir hum Confeffor ao noſſo
Convento para hum doente : nomeou
logo Fr. Bernardo quem havia de ir ,
e lendo preciſo ir o Porteiro por com
panheiro, tomou o noſſo Servo de
Deos as chaves da Portaria , e ficou
alli fazendo as ſuas vezes . A eſte tem
po veyo huma peſſoa das mais diſtin
Aas da terra ao noſlo Convento , e
tocando , acudio logo Fr. Bernardo a
ver quem era : aquelle Cavalheiro, que
ja tinha noticia da ſua promocao ao
Biſpado, nao pode deixar de admirar
ſe muito de ver hum Prior da Caſa ,
hum Provincial que havia ſido , e hú
Biſpo que eſtava para ſer , feito Por
teiro do Convento. Nao ſe admire
V.m .; ( acudio o bom Religioſo ) por
que lhe digo com toda a verdade,
que antes quizera as chaves deſta Por :
tað ſantos , e por nao me arriſcar så
perder , entre as grandezas de Prela
do , a virtude da ſapta humildade , do
que nao lómente a Mitra ,
e Bago de
Oaxac , ſenao a meſma Tiara de S.
Pedro. Aquelle homem tinha forma
оіі do
 108 D.FR.BERNARDO DE ALBUQUERQUE 23 de Julho
do hum bom conceito do noſſo Reli.
gioſo ; mas agora ſe ficou confirman-
do nelle muito mais , á viſta de huma
acçao tao exemplar , e religioſa .
10 Nað podendo pois fugir á Sa :
graçaõ , reſolveo - fe, a praticar no ſeu
pattoral minifterio aquellas meſmas
virtudes , cuja pratica viera buſcar á
Ordem . Nasmeſmas viſitas, que fazia
da ſua Dieceſe , obſervava o Servo do
Senhor de tal modo a meſma eſtreite .
za , e regularidade da Ordem , como
ſe nao houvera ſahido dos ſeus Clag .
ftros : obfervava rigoroſa , e pon-
cualiflimamente os jejuns, e vigilias
da Cooſtituiçao. Nunca deixou de
uſar de eftamenha, aſſiminterior , co-
moexteriormente ; e pormaisincom-
modas que foſſem as caſas , levanca-
va - ſe ſempre a meya noite , e procu-
Tava luz para rezar as tuas Marinas .
Pedio agora aos Superioreshum Con-
feflor, e companheiro , que lhe af-
fiftiſle com conſelhos, e inſtrucçoen's
para que aſſim ficaſſe ( dizia elle ) lup-
prida a fuaincuria . Cahio ella ſorte
em Fr. Pedro deCaſtilho , que recebe-
sa o habito das maos do Veneravel
Padre Fr. Domingos de Betanços,
Fundador da Provincia de Mexico ,
e hum dos mais celebres Operariosdo
Evangelho , que pallarao aquellaspar-
tes . Prometteo pois a eſte ſeu Dire
Stor o noſſo Fr. Bernardo dar -lhe
obediencia em tudo, excepto ſó na-
1 quelles particulares, que de algumzia acabeça cuberta com o capello do
modo ſe encontraſlem com as obriga-
çoens da ſua Prelazia . Fr. Pedro , que
conhecia muito bem que o Venera .
vel Bilpo nao fazia ette cumprimen-
to ceremonioſa , e apparentofamen :
te , lançou mao da palavra , aceitan-
do - a , e nao deo pouco exercicio ao
merecimento do Santo Biſpo , tratan-
do -o com huma tal circunſpeçað , e
ſeveridade , como o pudera tazer o
mais'rigido Mettre de Noviços com
deus ſubditos.
II Era Fr. Pedro hum homem
muito habil , e de tal modo ſe houve
na adminiftraçao do temporal , que
o noſſo Veneravel Paſtor nao ceffava
de dar graças ao Ceo de ſe ver mais
deſimpedido de negocios , e cuida
dados, para ter mais tempo que dar a
Deos , e ás couſas mais importantes
do bem eſpiritual dos ſeus Dieceſanos.
Sempre foi mui parca a ſua meza :
muitas vezes até nao havia nella o pao
neceſſario ; e ſe o Biſpo dizia , que
de boa vontade comeria mais hum pe
dacinho delle , Fr. Pedro lho daya ,
mas com muito máo modo , dizendo :
que hum homem tao velho, como elle
era , ja nao tinha neceſſidade de co
mer tanto, e que fazer o contrario ,
ſeria pôr em muito riſco a ſaude. Se
fe deicozia o habito a D. Fr. Bernar
do , obrigava -o a que o cozelle elle (
meſmo : agora ſe era neceſſarioremen ko
dallo , encarregava-fe diffo Fr. Pedro ; C
mas os pedaços que lhe deitava eraõ F
todos de couſa ja velha . Quanto era t
mais austéra eſta pobreza , tanto , era
major a profuſao com que le acudia he
aos neceſſitados, e as obras perten q
centes ao Culto Divino . Corriao as
eſmólas pelas maos do noſſo Illuftril
fimo Biſpo : elle era o que peſoalmen
te hia viſitar , e remediar os pobres ,
e os doentes a ſuas caſas , e com tað
pequena comitiva , que ordinariamen :
te nao paſſava da de ſeu companhei
ro ; e quando muito hia mais humln.
dio menino , que lhe levava o chapeo
Epiſcopal, porque de ordinario tra
habito da Ordem .
I2 O ſeu Clero , vendo tanta bon :
dade , o importunava para acompa
nhallo ; mas elle agradecendo muito
a attençaó , lhe tornava , que para o
que elle tinha que fazer aquelle ſó
companheiro ihe baſtava ; mas que
podiao empregar o tempo , que haviao
de diſpender naquelle cortejo , em al .
guma boa obra . Mas bem que a vida ,
e fantos procedimentos do Servo de
Deos foſſem taö irreprehenſiveis, e
louvaveis , nem por iſſo faltavao , co
mo nunca faltao , outros que ſe me.
ciao a cenſores, e juizes das ſuas ac .
çoens,
 D.FR.BERNARDO DE ALBUQUERQUE 23 de Julbo.
çoens , dizendo que D. Fr. Bernardo
de Albuquerque tinha mais geito pa .
ra ſer fanto , que para ter Biſpo . Quem
dizia iſto , erao alguns ſujeitos de le .
tras : mas que maior ignorancia , que
querer deſcobrilla na Santidade, ſen-
do ella a ſciencia das ſciencias? Co-
mo poderia o noſſo Illuſtriſſimo Paſtor
ſaber ſer ſanto , ſe nao ſoubeſle fer ,
como foi , perfeito Biſpo ? Mas ja
Chriſto Senhor noſſo deixou pui ſua-
vizada a aſpereza do caminho, que á e floreceo ſempre eſta Caſa em tanta
ſua imitaçao haviaõ de pizar ſeusbons
fervos, nos dietérios , eimpoſturasque
foffreo aos Letrados da Synagoga .
A moderaçao do teu trato nas viſitas,
por nad gravar , eonerar os Parochos,
era mais paſmofa , que imitavel : eem
todas as funçoens pertencentes ao ſeu
caracter, emparelhava com os ſantos
Prelados primitivos, podendo ſer pro-
totypo dos vindouros .
13 Intentou fundar , e fundou ,
hum Moſteiro de Religioſas noſſas,
que, aſſim como nem de outras Reli.
gioeos,nao havia até entao em Oaxac,
e eſta era a cauſa , porque ſe condena-
va a huma tao rigoroſa parcimónia da
meza , que lhe foi precizo, nao pou-
cas vezes, pedir de jantar aos noſſos
Religioſos. Alcançou finalmente de
Roma a licença que deſejava , expe-
dida por Gregorio XIII . a 15.de Ou-
tubro de 1572., e deo principio á fun-
daçao nas ſuas caſas , que eitavao fi.
tas no melhor da Cidade : dotou -o
magnificamente , ornando a Sacriſtia ,
e Igreja , ( a que elle deo por invoca-
çao Madre de Deos , e Santa Catha-
rina de Sena , ) de tudo o neceſſario ;
e alcançou humaBulla do meſmo Pon-
tifice , dada no primeiro de Março de
1577. para ficar debaixo da tutéla , e
juriſdiçao da Ordem . As primeiras pe-
dras fundamentaes , e precioſas deſta
Caſa , forao nove illuſtres donzellas ;
duas primas direitas do noſſo D. Fr.
Bernardo , debaixo da direcçao , ja
que ja viviao ſubordinadas de algum
tempo , de huma virtuoſa , e venera.
vel viuva , a Madre Joanna de S. Do
109
mingos , de quem ſe fez ja mençað em
ſeu lugar. Erao os nomes deſtas: So
ror Luiza do Eſpirito Santo , Soror
Franciſca da Conceiçao , Soror Leo .
nor dos Anjos, Soror Maria de S. Ga
briel , Soror Franciſca de Santo Ago .
ſtinho , Soror Marianna de S.Bernar ,
do , Soror Bernardina de S. Domin .
gos , Soror Joanna de Santa Cathari
na , e Soror Catharina de Sena. Deo
lhes o Biſpo o habito , e profeſſou -as;
virtude , que os noſſos Eſcritores dos
progreſſos da Ordem naquellas partes
a dao por huma das mais obſervantes,
e regulares.
14 Foi aggregada á Ordem pelo
Provincial Fr Domingos de Aguinha
ga eem demonſtraçaodo ſeu reconhe
cimento , e alegria cantáraó aquellas
bõas Religioſas ſolemniſſimamente o
Te Deum . Encarregou o noſio Vene
ravel Biſpo o cuidado deſta Cafaa Fr.
Pedro, que as inſtruío grandemente
no eſpirito de Religiao , e nas Cere
monias , e Rituaes particulares da Ore
dem , ſempre obſervados dentro da
quella Clauſura com a maior exacçao ,
e pontualidade . Diffundindo - ſe a fra
grancia do bom nome deſtas Eſpoſas
de Chriſto por aquellas partes , nað
Cardou muito que ellas chegaflem ao
numero de letrenta ; e ſendo ſuccele
for donoſio Veneravel D. Fr. Bernar
do , D. Fr. Bartholomeu de ' Ledeſ
ma , tambem Dominicano , continuou
eſte Prelado em dar todo o favor , e
protecçao aquella Caſa, do modo que
ella verdadeiramente bem a merecia.
Vendo - a tao adiantada em graças , e
bençoés o noſo Veneravel Biſpo , ſe
ſatisfazia muito de lhe haver dado
principio ; e tudo o que tinha feito
The parecia nada em comparaçao do
que obrava neſte particular . Final
mente cheio de annos , de peniten
cias , e de virtudes Chriſtaás, Religio .
ſas,epaſtoraespaſſoualograr.ſe do eter
no deſcanço em 23. de Julho de 1579 .
Foi ſepulado a principio entre os polo
fos Religiolos ; mas quando eſtes para
farag
IIO RECOPIL
farað para o novo Convento , e levá-
rao para elle os oſſos dos ſeus Co-Re-
ligiofos fallecidos , os do noflo Vem
neravel Biſpo forao tranſportados pa-
sa o Moſteiro , que elle fundára ,
aonde em decente jazigo eſperao a
reſurreiçao univeriál .
RECOPILAC, A M
de 23. de Julho
I M Limoges o Veneravel
E Padre Helias . Ette illuſtre
Relig.010 na ſua vida, e converſaçao
parecia hum Anjo . Pelo ſeu nimio ,
e ar dentiflimo zelo podia ſer chama-
do o Helias da noſia Ordem . A ſua
man ſidao era mui proporcionada
áquella , que quer de nós o Evangelho.
Com eftas , e outras muitas virtudes
ſe habilitou para morrer da morte dos
Santos no anno do Senhor de 1294. a
tempo que eſtava ſervindo a Cadeira
de Lente de Theologia. Guido.
2 Em Elle , na Provença , o Ve-
neravel e Illuſtriſſimo Padre D. Fr.
Pedro de Alamannon Biſpo de Ciſte.
ron . Naſceo eſte bom Religiolo de
pays muito illuſtres ; mas quanto ,era
maior a ſua nobreza , tanto era mais
a fua humildade . Acompanhou Fr.
Pedro como Acates mais fiel a Carlos
II. de Sicilia na duriſſima prizao ,em
que foi retido por ElRey de Aragao .
Depois de liberto aquelle devoto Prin-
cipe , lembrado da fidelidade, ebons
ferviços de que era devedor ao nollo
Veneravel Fr. Pedro , opropôs a Bo
nifacio VIII . para elevallo , como ele-
vou , a dignidade Epiſcopal. O mef-
mo Pontifice havendo , á inſtancia do
mencionado Rey de Sicilia , de met .
ter-nos de poſle do Convento de S.
Maximino , e da Cova da Santa Mag .
dalena , lhe deo a commiſſao de no
mear , e pôr naquella Caſa hum Sub-
Prior , e eleger os primeiros Religio-
ſos daquelle Real , e celeberrimo Con
vento . Finalmente forað taes os pro
cedimentos , e as virtudes do noſſo Ve-
A C, A M de 23 de Julho .
neravel Biſpo , que delle diz o noſſo
Fr. Bernardo Guido ,no Catalogo dos
Prelados da Ordem , que elle honra
va ao noflo ſanto habito pela excel
lencia da ſua vida . Allifio no Capi
tulo Provincial deEfle , celebrado em
o anno de 1304., e terceiro do ſeu Bif
pado , em que elle morreo feliz , e fanta
mente . Guido , in Prel.Ord .
3 Memoria do Veneravel e Illu
friflimo Padre D. Fr. Argelo de Na
poles . Exercitou ette Veneravel Re
ligioſo muito dignamente o miniſterio
de Confeſſor de Carlos II . Rey de Si
cilia , que em altençao ao ſeu diftin
cto merito lhe impetrou o Bispado de
Aſculano na Apulha , fuffraganeo á 1
Metropoli Beneventana . Viveo eſte
bom Prelado no primeiro ſeculo da
Ordem , e foi hum dos que a elle , e
a ella derao mais eſplendido luſtre .
е
Elevado á dignidade Paſtoral, pôsto
do o empenho na reforma de ſeu Cle
á
ro , e nao foi pouco o que padeceo
por eſta cauſa ; mas como Varao con
ſtante , e pacientiflimo naõ deſiſtio da
cauſa de Deos . Vendo finalmente o
pouco que valia com ſeus fubditos a
ſua bõa diligencia , recorreo áquelle
Monarcha , que , como era muito de
eſperar da ſua Chriftianiſſima pieda
de , lhe deo todo o favor que le im
plorava. Finalmente depois de haver
trabalhado comobenemerito , evigi
lante Paſtor , paflou , como piamen
te fe entende , do deſterro do mun
do para o Ceo , no anno de 1:08 . =
Fontan. in I beat.pag . 132 .
4 Em Polonia o Veneravel Padre
Fr. Nicolao de Berzezic . Exerceo
com grande utilidade do Chriſtianiſ
mo daquelle Reyno o Officio de In
quiſidor da Fé : amou , e honrou ex
tremoliſſimamente a Ordem , e foi
hum dos mais diſtinctos Prégadores
1
do ſeu tempo . Correſpondeo a huma
vida cao juſtificada huma morte ſan
tiſſima no anno de 1490. = Ex Serap.
Cracov . in Catal. Præd. Prov. Pol.
5 Em Polinbano o Veneravel e
Illuſtriſſimo Biſpo defta Cidade D.
Fr.
 FR . JOAM DE S.
Fr. Joao Maria Ganzelli . Veftio oha-
bito Dominicano em Faenza , e de
tal modo aproveitou pas letras ,
muito mais nas virtudes , que foi hum
dos mais doutos , e mais exemplares
Prégadores da Italia no ſeu tempo .
Era de huma cao profunda humilda
de, que depois de elevado ao Thro-
no dos Principes da Igreja , mandan
do fazer a ſua ſepultura em vida, na
fua inſcripca7 poz de parte os titulos,
com que foi decorado , chamando -ſe
fimplezmente , Fr. Joao Maria ; e o
diſtinctivo que ſó quiz que ficafle em
perpetua recordaçao , foi o de miſe
sabiliſſimo peccador , como aſſim alli
ſe inticula . Por eſtas , e outras ſuas
illuſtres qualidades , foi gratiſlimo ao
Eminentiſſimo Aldobrandini , fobri-
nho da Santidade de Clemente VIII . ,
e havendo de partir a Ferrara para
reduzir eſta Cidade , e o ſeu diſtrido
á obediencia da Igreja , levou comfi-
go o noſlo Veneravel Padre Ganzelli
Jervindo -ſe mui opportunamente dos
ſeus conſelhos, e direcçoens . Omeſ
mo Pontifice , que ouvido
o tinha
muitas vezes prégar , conſiderando bē
o fundo , e o pezo da ſua vaſtiſſima
erudiçao , o promoveo a Meſtre do Sa-
cro -Palacio . Satisfez , como delle ſe
eſperava, ao implemento das obriga .
çoens deſte importantiſſimo Officio
por muitos annos , que o fervio ; e á
ſua diligencia ſe deve a correcçao da
Bibliotheca dos Padres, para o que
cooperou muito o noſlo eruditiffimo
Padre Maluenda . Succedendo Paulo
V. a Clemente VIII., exaliou o noſſo
Veneravel Fr. Joao ao Biſpado de Po-
linhano na Apulha , fuffraganeo á Igre-
ja Metropolitana de Bari , e em 12 .
annos , que governou dignamente eſta
Diecele , deixou com eternos monu
mentos da ſua piedade hum ſanto
exemplo de paſtorear as ovelhas de
Chriſto com vigilancia , juſtiça , e cari .
dade . Mandou jnntar os ollos de mui-
tos dos ſeus predeceſſores, e depo .
firá-los nojazigo , que, como diſſemos,
mandou erigir para ſi, aonde , depois
VÍCENTE, 24. de Julho , III
de morrer da morte dos juſtos, foi
collocado no anno de 1619. = Pius
e 86 Fontan . in Theatr.
24. de Julho:
Vida do Veneravel Padre
FR . JOAM DE S.
VICENTE .
Extrabida de Remezal , pag. 576 .
6 ultra .
I E maxima de nao menos
H Author , que
que da meſma
Sabedoria Divina , Chriito Senhor noſo
10 , que nunca arvore bõa produz fru
to mảo : por iſlo da virtude de pays
tao religioſos , e nobres , como teve
o Veneravel Padre Fr. Joaõ de S. Vic
cente, nao ha que admirar na ſua fan .
tidade . Erabelles peiloas muiopulen
tas ; e podendo o Servo de Deos pro .
metter -ſe grandes fortunas no feculo ,
a todas deo de maó , voltando -lhesas
coſtas; e colhendo ja na flor da ſua mo.
cidade o fruto dosdeſenganos , q mui
tos nað ſó nao alcançao , mas nem ain
da conhecem depois de annos muito
largos, ſe he que o podem ſer os que
nað ſe empregao no ſerviço , e gloria
de Sua Divina Mageftade. Entrou pois
o noſio Joao no magoificentiſſimo Co
vento Salmantino , dedicado ao Prin
cipe dos Heroes de Chriſto , os Incly ,
tos Martyres, Santo Eſtevao ; eveftina
do alli o noſſo habito , deſde logo co
meçou a dar grande calor as boas eſ
peranças , que logo ſe começáraó a
conceber á viſta dos ſeus ajuſtadiffi
mos procedimentos.
Fez a ſua Profiſſao depois de
huma grandiſſima diſpoſiçaõ de actos
de Religiao , e piedade ; e vendo - ſe
agora mais obrigado , punha tanta dia
ligencia em ſe moſtrar agradecido ao
Summo Bem , que parece queria com :
petir com elle em primores.Pouco de.
pois de profeſſo , mandou - lhe ſea pay
huma groſſa quantia dedinheiro para
ſeu uſo ; mas temendo o Prelado , que
ifto
112 FR : JOAM DE S. VICENTE
)
iſto pudeſſe ſervir de tropeço a quem ,
como Fr. Joao , proteflava ' pobreza ,
lhe moſtrou aquella ſomma, nao lhá
entregando , mas depoſitando -a na ca
ſa da livraria da Communidade . Eſta
acçao tao longe efteve de deſagradar
ao poſlobom Religioſo , que antes ſe
lhe vjao indicios no ſemblante de lhe
ſer muito grata . Era de hum genio
igualmente candido , que laprazivel ,
e taó humilde , que ſendo , como era ,
literatiſſimo , é muito diſcreto, por
ser mui dado aos estudos , qualortro
Santo Antonio , praticava com mum-
mente a tao pouco viſta virtude de
occultar a ſua ſciencia , que a outros,
e ainda notavelmente faltos desta qua-
lidade , faz , como ja notou S. Paulo ,
tab vaidoſamente inchados. Remune-
sava-lhe o Ceo etta mortificaçao , que
elle tomava por ſeu amor , fazendo
brilhar no pulpito a ſua doutrina , e
eloquencia, com tanta ( aceitaçao ido
auditorio , que ao meſmo tempo , em
que convertia , fummamente agrada.
va . Etimando menos eſtes applau.
fos , do que ir ganhar para Deos as
almas dos Gentios da América, para
onde o chamava o ſeu zelo , paſſou ás
Indias de Caſtella , aonde ſe vio quan-
to abençoava o Eterno Pay dasmiſe.
ricordias as ſantas intencoens de ſeu
bom ſervo .
· 3. Aprendeo a lingua Zacapula
com huma tal perfeiçao , e brevidade
de tempo , que ſe teve por milagre.
Bautizou hum numero admiravel de
Indios ; e nao foi pequeno o dosido
los deſta gente , que elle condenou
ao fogo. Vivia ella como brutal , e
incivil em choupanas, vagas , e diſ
perías ; e o bom Padre os perſuadio
a viverem juntos , e vizinhos em po-
voaçoens , que com effeito ſe fizeraõ
com ſua grande utilidade , eſpiritual,
e temporal. A parte da vinha do Pay
defamilias que cahio em ſorte ao nor.
ſo jornaleiro do Ceo , era huma das
mais intrataveis , e aſperrimas daquel
le paîz ; mas ao Servo de Deos The
parecia o jardim do mundo , e cha,
24 de Julho,
mava- lhe o ſeu paraiſo , tendo em na
da o trabalho que tinha , aſſim por ſer
muito penitente , e mortificado , co
mo pelo muito que aqui frutificava a
palavra de Deus. Daqui foi, mais que
removido , arrancado por violencia
para ſervir alguns Priorados daquella
Provincia , de que nao puderaõ eſcu
far - ſe as industrias , e artificios da ſua
humildade . Era a & ualmente Prior de
Coban no anno de 1562. quando alli
foi convocado hum Capitulo Provin
cial , que foi o intermedio do Vene
savel Padre Fr. Affonſo de Vilhalya ,
de quem trataremos no nono Tomo
deſte Agiologio , ſe Deos nosempre
ltar a vida . Nelle foi o Servode Deos
o primeiro Definidor , e alli ſe vio
BE
praticada a humildade , e religiao dos
Capitulares, nao admittindo ,fóra do
€
ordinario da Communidade , diftin
çao alguma de tratamento , e meza ,
com 8
a que ſervio no primeiro dia ,
grande edificaçao de todos , o noſſo
Veneravel Prior . Pouco depois foi
eſte exaltado a Vigario Géralda Pro
vincia , em quanto o Provincial Fr.
0
Joao de Caſtro foi expedido a Hel
panha : e depois de haver vivido tao
exemplar , ereligiosamente , morreo
1
aos 24. de Julho , no anno do Senhor
de 1590., de huma morte tao ſanta ,
que de todos os que o conhecerao , e
iratarao , foi louvavelmente invejada.
1
RECOPIL A C, A M
de 24. de Julho .
1
I M Limoges, o Religioſi
E ffimo Fr. Gerardo de La
vernbe. Foi eſte grande filho de S.
Domingos huma das primeiras doze
columnas daquella Caſa, em todos os
tempos huma das mais inſignes , eſan
tas de toda a Ordem , para onde elle
fugio , depois de haver ſido valorolo
ſoldado na malicia do mundo . Pouco
tempo o logrou aquelle ſantuario ,
porque morreo no anno de 12 30. , an
tes de chegar a receber as Ordens Sa
cras ;
| FR.BENTO , FR.MANOEL ,
cras ; mas neſſe pouco tempo o edifi
cou tanto com as ſuas lantas acçoens ,
que o perder a vida parece que toi por
der mais digno da companhia dos An-
jos , que do comercio dos homens . =
Ex Steph.Salanh. M. S.
2 Em Metz , os Veneraveis Pa
dres Fr. Thomaz de Arancei, Pedro ,
e Thibaut de Lambert de naſcimento
to muito diftincto , e Joao de Hoy , e
Henrique de Contilha. Todos ettes
Religioſos forao de huma vida mui
ſanta , e tal foi a ſua precioſa morte
no apno de 1390. originada por hum
contagio . Ann .Domin .
3 Em Die , do Deltinado , o Vene-
ravel Padre Fr. Joao Reynardy . Ette
Religioſo foi muitas vezes aguia ; po
têm maisquetudo na elevaçao da con-
templaçaõ das couſas celeſtiaes , que
elle explicava dignamente com huma
eloquencia de ouro. No pulpito fez
grandes terviços a Deosprégando com
huma tal energia , e com humatalelo-
quencia , que parecia impoſſivel Ou-
villo ſem fruto . Quiz ſervir -ſe das ſuas
muitas letras , e muito mais da ſua re-
& iffima equidade o IlluſtriſſimoBiſpo
de Die ,ede Valença ,Dom Gaſpar de
Turnon , e fello feu Vigario geral, of-
ficio , que elle deſempenhou com to-
da aquella exacçao , que ſe podia pro-
metier dos Miniſtros mais graves , e
mais Santos . Apanhou- o a morte pre-
venido para tella , como teve , de pre-
deſtinado no anno de 1512. , e depois
della fez hum leu ſobrinho , tambem
Religioſo da Ordem , imprimir dous
ſeus Quareſmaes , hum intitulado : Pe-
regrinaçao , e outro intitulado : En.
fermidades do genero humano . =
Soueges.
Tom. VII.
FR.PEDRO & c.25 de Julho. 113
25. de Julho.
Vi da s dos Veneraveis Padres
FR . BENTO SERRAM ,
L
FRE Y MANOE
DA RESURREIC ,AM ,
E
FR . PEDRO DE S. JOSEPH ,
Extrabida do Padre Fr. Antonio
da Incarnaçao.
I Veneravel Padre Fr. Ben
to Serra o ſuccedeo
O potserraveluced ao nor
die besohet
fo Fr.Chriſtovao , por quem ElRey de
Silabaő , e todaa ſua Corte ſe conver
terao , e bautizárað . Foi eſcolhido o
noflo Servo de Deos para ir trabalhar
na reducçao , que muito deſejava , do
Reyno de Mena , e teve por leucom
panheiro neſta empreza do Ceo ao Ve
neravel Padre Fr. Manoel da Relur
reiçao Foraó alli bem recebidos ,bau
tizando -ſe o Rey daquella Ilha , e a ſua
imitaçao muitos outros Senhores , e
alli ſe erigirao duas Igrejas, huma em
honra de poſla Senhora , e outra de
noſſo Santo Patriarcha , de cuja cultu.
ra foi encarregado o noſſo Veneravel
Padre Fr. Manoel daReſurreiçao , cu
ja virtude pedia maior , e mais erudi
to elogio : mas que majs he neceſſario
dizer , ſenao que viveo , e morreo co
mo verdadeiro filho de S.Domingos,
quando illo , ſegundo a ſentença de
hum Soberano Pontifice , he baitante
para ſe canonizar huma peſloa por
Santa .
2 Juntou - ſe o noſo Veneravel
Padre Fr. Bento com Fr. Pedro de S.
Joſeph , e abrazados ambos em amor
de Deos , e caridade daquelles proxi
mos , partirao para Larantuca , que he
hum como centro das Miffoens da Or
dem ,naAlia Portugueza.Pouco tem
po pudéráð alli deſcanſar , chaman
do-os outras dependencias do ſerviço
de Deos ; porque pondo o Rey de To
lo , que era Mahometano , hum formi
davel exercito em campanha , e que
rendo conſtranger todas aquellas Po
tencias a ſeguir forçadamente os deſa
P tinos
 1
114 FR . ANTONIO DE S.
tinos de Mafoma; foi preciſo que o
noſſo Veneravel Fr. Bento , e Fr. Pe-
dro de S. Joſeph foſiem pedir adjuto-
rio a alguns generofos , e Chriftianiſ-
ſimos Portuguezes para rebater , e Foi facil de alliar- ſe
abater a orgulhoſa intolencia daquelle
barbaro .
3 Aproveitou a ſua diligencia ;
porque dentro de mui pouco tempo
foi por elles roto , e desbaratado.Prin-
cipiáraó primeiro pelo Rey de Ser-
viao , que ſe havia confederado como
de Tolo , convencionando - ſe com els
le , e recebendo do expreſſado Rey de
Tolo , em ſignal de fe fazer tambem
Agareno , que Agarenos , ou Ilmaeli-
tas , como judicioſamente alguem ja
notou , he que devem ſer chamados os
barbaros profeſſores daquella infame ,
e torpe feita , e nao Sarracenos. Que
impenetraveis , e altiſfimos ſao os jui.
zos do Ceo ! Sendo deftruido pelos
noflos eftePrincipe ,a deſtruiçao do ſeu
exercito foi o principio da ſua maior
felicidade; porque vendo -ſe preciſa.
do a eltar pelas condiçoens a que foi
obrigado pelos Portuguezes , e ſendo
huma dellas : Que elle reporia , e re
cuiſaria pel calmente as arrhas, que o
Rey de Tolo lhe dera , e ſe obrigariale
gal , e ſolemnemente a nunca profeſar
os abſurdiſimos erros do Alcorað , nem
aperſuadir, ou conſtranger a 1/0 ſeus
vaſallos ; elle foitao fiel na execuçao
dos capitulos eſtipulados , que dalli a
bem pouco tempo pedio as aguas do
ſanto Bautiſmo , que com effeito lhe
adminiſtrou o noflo VeneravelPadre
Serraő , eſtabelecendo ,taõ livre, como
opportunamente , a nofla Santa Fé em
todos os ſeus dominios .
4. Depois de huma tao feliz con-
jundura , voltou o meſmo Veneravel
Padre Fr. Bento a Larantuca , mas
logo lhe foi neceſario viajar ſegunda
vez a Serviañ , para pedir ſoccorro ao
Rey , que elle raõ pouco antes bauti-
zára , em ordem a embaraçar os inten-
tos do mencionado Rey de Tolo , que
confederado com o outro de Valla-
jem , que a ſua perſuaſao havia profef-
JACINTO 25 de Julho.
lado os deſpropoſitos Mahométicos
emprendiao fazer guerra ao Rey de
Amanubão , e á Rainha de Mena , por
haverem abraçado a nofia Santa Fé .
com noico o de
Serviao , e com tao bom ſucceſſo , que
morrendo o Rey de Tolo depeçonha,
que lhe deo iua mulher , por eitar af
feiçoada torpemente com hum ſeu
amante , alcançáraó os noſſos Portu
guezes huma honorabiliffima vi & oria
dos contrarios de noſla Santa Fé. Vi
via o Veneravel Padre Fr. Bento Ser
TE
raó no anno de 1641., e he mui natu
ral , que havendo trabalhadotantope
la maior gloria de Deos , lhe concede. Ć
ria ette Senhor , como tað fiel que he a
ſeus bons Servos , huma (anta morte
no mundo , que o levou a 25.de Julho, Pa
e a ſua Viſao beatifica no Ceo . elt
12
25. de Julho. g
Vida do Veneravel Padre
ill
FR . ANTONIO foi
DE S. JACINTO ,
Extr abid a do Padre Fr. Antonio da lo
Incarnaçao.
I Omo Sol de virtude ref
C plandeceo o noſſo Vene
ravel Padre Fr. Antonio de S. Jacinto
na patria do meſmo Sol . Foi elle hum
dos mais celebres Miſſionarios das
noſlas Indias , e hum dos mais fortes
combatentes contra a herefia , e gen
tilidade daquelles paizes. Em conſi
deraçao do ſeu zelo ſanto , e da ſua
muita piedade , e religiaõ , foi promo
vido a Vigario das Igrejas erectas , e
conlervadas pela Ordem naquelle E
ftado ; e mereceo as bençoês do Pay
das miſericordias, que viſivelmente
ajudou os ſeus bons intentos , fazen
do - o inſtrumento de gloriofiffimas
convertoens. A primeira , de que nos
dá noticia o noſſo Fr. Antonio da In
carnaçao na ſua Relaçao do que obrá
rao naquellas terras Orientaes os fi
lhos de S. Domingos , impreſa em
Lisboa no anno de 1665. , he ado Rey
de
 FR . ANTONIO DE S. JACINTO 25 de
de Endo , aquem fao ſujeitos muitos
outros reinantes naquella Ilha. Che .
gado o dia do leu Bautiſmo ſe para
mentou ricamente a Igreja , aondeen-
tao : ſe achárað osGrandes do Reyno ,
e huma extraordinaria multidao de
povo , para ſerem tambem lavados na
Sagrada Fonte Bautilmal . Parrio de-
pois o noſſo Veneravel Fr. Antonio a
Goa ; e ſuppoſtas as boasnovas , que
elle deo deſta converſao , e tambem
em attençao a muitas outras, que ſe
haviaõ feito por aquellas partes , hou- .
ve tres dias de fogos feſtivos, e foi
hum delles condecorado , e ſantifica-
do com a expoliçao do Santiſſimo Sa-
cramento do Altar .
2 Concebendo o noſſo Veneravel
Padre Fr. Antonio de S. Jacinto boas
eſperanças de ganharmuitasalmas pa-
ra Deos no poriode Japa , diitrido da
grande Ilha de Java , e propondo quan-
to ſeria conveniente expedir- ſe para
iſto hum Enviado a outra de Timor ,
foi elle meſmo eleito para eſta com-
millað . Embarcou -le em hum navio
Inglez , que ſe fazia á véla para a Chi-
na , e pafiando por Malaca a tempo ,
em que os Hollandezes eſtavaõ ja ſe .
nhores della , conttando - lhes a eſtes
hereges , ao tempo em que viſitáraó a
embarcaçaô , que hia nella o nojlo Ve-
neravel fr . Antonio , o virárað para
fóra , paſſando o primeiro para huma
dura , e eſtreitillima priſao , aonde
padecen extremas penurias , e violen-
cias daquelles impios apoftatas da ver
dadeira Religiao. Finalmente , pare-
ce que olhando o Senhor para a lua
caula , e vendo as afflicçrēsde leu Ser.
vo mais pelo impedimento da ſua Miſ-
ſao , do que pela infolencia dos inimi-
gos da Fé , abençoou as ſuas depreca-
çoens , livrando - o , como a S. Pedro ,
das maos daquelles impios , e dando-
The meyos favoraveis para chegar , co-
mo chegou , á Ilha de Timor.
3 Pouco havia que aqui tinha ap
parecido no ar huma Cruz mui gran-
de , formola , e luzidiffima com a face
voltada para a parte Septentrional , e
Tom . VII,
Julbo. 115
tomando-ſe'eſta appariçao por bom
augurio , pedirao , e receberaõ agora
os habitantes da terra a ſagrada ablu
çao do Bautiſmo, com as demonftra
coens mais candidas , e ſincéras do
quanto eſtimavao veftir a nova Efóla
da graça , deixando o homem velho ,
e remoçando- ſe em Jesu Chriſto . Da
qui paflou o noſſo Miffionario ao Rey
pode Mena, acompanhado dos noſſos
Padres Fr. Chryfoftomo de Sant-la
go , e Fr.Pedro Manſo , e alli bautizou
a Rainha , e ſeu filho, aquem impozo
nome do grande Precurſor de Chri
fto , por administrar elte Bautiſmo no
dia do meſmo Santo , de quem ſe di
gnou recebello o me'mo Soberano
Author , a ſlim daquelle , como deto .
dos os mais Sacramentos . Pallou de
pois ao Reyno de Lifað , aonde foitað
bem recebido , que antes de abrir a
bocca para prégar a Chriſto Senhor
noſſo , lhe fahirao ao encontro a Rais
nha , e o Principe ſeu filho , idoſo de
dezeſeis annos , dizendo abertamen
te , que queria o ſer Chriſtaos : gallou
perto de onze dias em catequizar.
Trabalhou muito o Veneravel Padre
por trazer ao tað ſuave jugo da Fe
hum tio do Principe , que , attenta a
minoridade deſte , governava entao
aquelles domînios ; mas elle , que era
ja de ſettenta annos , e cego , queria
eſcular - ſe com ifto meſmo ás inſtan
ciasdo noſſobom Operario : mas quan
do eite em 20. de Julho de 1640. hau
tizou.a Rainha , o Principe herdeiro
daquelles Eſtados , aquem deo o nome
de Pedro , ſuas irmais , os principaes
do Reyno , e muitos deſtes , que em
parentava ) com a Caſa Real , nao pou
cos amigos deftes Senhores , ſuas fan
milias , e outros muitos Neophytos ;
havendo ſe feito conduzir á Igreja , e
percebendo o alvoroço dos novos bau
tizados , começou a gritar , dizendo ,
que tambem o queria ſer, como logo
foi, por estar muito bem inſtruido do
que antes ouvira aos nosſos Padres ; e
foi cal a ſuavidade , que ſe lhe diffun
dio na alma, que nao podia , nem ſabia
Pii con
 116 FR . ANTONIO DE
conter os ſeus inexplicaveis effei-
tos.
4 Correndo a fama do que paſſa-
va no Reyno de Amanubaõ , trintale-
goas dalli diſtante ,mandou o Rey bum
teu tio por Embaixador aos noſſos Pa-
dres , rogando- lhes quizeſſem paflar á
4 ſuaCorte , para regenerallo a elle , e a
feus vallalios , que todos queriaõ abra-
çar a Religiao Catholica em Chriſto .
Em quanto nao podia ir peſſoalmente
o noſſo Servo de Deos , mandou hum
Portuguez com quatro Chriſtos da
quellas partes a Amanubao , para que
da ſua parte viſitaſlem aquelle Princi-
pe , compromettendo- lhe ver-ſe com
elle quanto antes lhe foſſe poſſivel.
Recebeo aquelle Potentado os Em
baixadores com igual contentamen-
to , que urbanidade, e em ſignal delhe
der mui graca a promeſla do noſſo Vi.
gario , o preſenteou com huma peça
riquiſſima de leda bordada de ouro.
Mas entretanto que eſtes progreſſos
corria6 tao favorávelmente , invejo-
lo o demonio de ver tao dilacerado ,
e abatido o ſeu imperio , excitou o
Rey de Tolo a fazer guerra aos Prin-
cipes Catholicos daquellas partes , co-
mo acima o deixamos ja tocado na vi-
da do noſſo Veneravel Fr. Bento Ser •
raó , aquem , com eſta occaſiao , o nof-
ſo Veneravel Padre Fr. Antonio en-
viou com o Veneravel Padre Fr. Ma.
noel da Reſurreiçaõ ao Reyno de Me-
na para confirmar na Fé aquelles no-
vos convertidos . A eſte meſmo fim
mandou Er . Alvaro de Tavora a Lia
e Fr. Jacinto de S. Domingos , e
fab ,
Fr. Pedro de S.Joſeph a Manubao .
5 No Reyno de Cupao fez tam-
bem o noſſo bom Religioſo grandes
ſerviços a Sua Divina Mageftade. Foi
o Rey bautizado pelos noſſos ; e a ſua
imitaçao ſeguiraomuitos dos ſeus vaf-
ſallos os ſeus veftigios : mas temendo
o Veneravel Padre Fr. Antonio que
algum Rey infiel, ou os hereges Hol
landezes , inimigos jurados , e capi
tíes da verdadeira doutrina da Santa
Igreja Romana inquietaflem eſta no
S. JACINTO 25 de Julho.
va Chriſtandade, obteve permiſlao do
Vice - Rey , o Excellentiflimo Conde
de Aveiras , para levantar em hum litia
mui opportuno,e commodo huma For
taleza para maior ſegurança das em
barcaçoens, que allihiaõ ter , e para fie
car mais defenſavel aquelle terreno.
1
Começou - ſe , e proſeguio -ſe a obra
1
com grande calor , e adiantamento ;
mas como paõ ha obra humana , que 1
careça de contradiçoens , e contradie
& ores , houve quem , levando mui
to a mal eſte zelo do Servo de Deos ,
e dizendo que a conſtrucçao das For
lo
talezas era mais para feculares do que
para Religiofos , ( como le iſto tolle do
huma materia mui tranſcendente á
ſua capacidade , ou como se foſſeim
proprio , que elles procuraſſem aſſe
gurar até no temporal a conlervaçao cid
da Fé que prégavao , e eſtabeleciao ) tat
embaraçou a continuaçao da obra , T
chamando o Vice-Rey D. Filippe de ce
Maſcarenhas o noſſo Obreiro da Vi 194
pha do Senhor para Goa , e determi
nando , que ficaſſe a incumbencia da. tes
quella obra ao Capitao Franciſco Car de
neiro . Obedeceo Fr. Antonio a eſta
ordem , mas pouco tempo foi neceſ
fario para modrar o deſacerto deſta
diſpoſiçaõ ; porque como o noſio Ve
neravel Padre nao cuidava na con
ftrucçao daquelle edificio militar , ſe 1
nao com os olhos na maior gloria de
Deos , e ſeu lubſtituto tanto nao ti .
nha eſte penſamento , que impruden
temente abandonou de todo como
inutil aquella defenſa , pouco tardou
que os Hollandezes ſe ſenhoreaf
fem della , completando -a, e ſervin
do -ſe della com huma naõ vulgar uti
lidade. Vivia eſte Veneravel Padreno
anno de 1649. , em que paſſou aos 25 .
de Julho a lograr a melhor vida , como
piamente o cremos , em premio dos
ſeus trabalhos .
RE
 SOROR ISABEL DA VISITAC ,AM
RECOPILAC , A M
de 25. de Julho.
I O Convento de S. Domin-
NO
gos de Napoles, o Vene-
ravel P.Fr.Joao de Anverſa.Delempe-
nbou egregiamente o emprego que
teve de Inquiſidor, a que foi promo-
vido pela Santidade de Joao XXII.
tendo acerrimo defenſor dos interef-
ſes da Igreja em hum tempo tao cala-
mitoſo , qual era aquelle , em que o
Imperador Luiz de Baviera fautor
do partido do Anti -Papa Nicolao V.
a oppugnava com todas as ſuas forças,
emprendendo , como elle deitou fa-
ma , collocar a Imagem do ſeu favore,
cido , nao menos que no meſmo Al
tar da Igreja de S. Pedro de Roma.
Teve porêm o meſmo lanto Pontifi-
ce Joao XXII . a conſolaçaõ de ver
aquelle Principe reconhecido da ſua
culpa , indo a Avinhaõ pedir a ſeus
pés perdao da ſua facrilega temerida-
de com huma corda ao peſcoço. Re-
cebeo - o o Vigario de Chrifto com en
tranhas de pay ; e por obviar alguns
tumultos , que podjao ſucceder , ore
teve no ſeu Palacio Apoftolico mais
como amigo , que como priſioneiro.
Tres annos depois morreo efte Prin
cipe , como ſimples Religioſo Mino
sita , é como tal foi ſepultado no Con
vento da ſua Ordem , Entao ſe vio bem
a conſtancia do noflo Fr.Joao , ſendo
tao inflexivel para exercer as funçoēs
do ſeu cargo , a pezar da poderoſa op
poſiçað que le lhe fazia, como infu-
peravel ( ao modo de huma palma ,
quando por violencia lhe querem do
brar os ramos ) a todos os trabalhos ,
que lhe reſultavao de adminiſtrar,com
tanto valor, e inteireza , o ſeu officio .
Era de hum trato , e converſaçao mui
affavel, ſó comſigo meſmo era auſte
riffimo. Foi ſempre mui obſervante ,
e taó pobre , como verdadeiro Reli
gioſo , que era . Ornado com as flores
deftas , e outras muitas virtudes, paf-
26 de Julho. 117
fou a lograr- ſe eternamente do fruto
dellas no anno do Senhor de 1330 .
Soueges,
2 No Convento de Almeria , o Ve
neravel Padre Fr. Belcbior da Concei
çao . Era profeſoda Provincia de San
ta 'Catharina Martyr de Quito na A.
merica , e foi hum Religioſo obfer .
vantiſſimo até dos menores ápices das
Conſtituiçoens. Desfazia -ſe o ſeu co
raçao , qual ſe fofle de cera , no amor
dos pobres , aquem ſoccorria , e con
folava mais como pay amoroſo , que
como eſmoler caritativo . Eftribava o
grande edificio das ſuas virtudes em
huma profundiſſima humildade , e del
confiança de ſi proprio ; e quando nao
reſplandecefle ( quereſplandeceo )mais
que em huma heroica , e conftantiffi
ma paciencia , eſta ſó bastava para fa .
zello hum homem muito grande : com
ella padeceo as penoſas moleſtias da
fua derradeira enfermidades e ſentin .
do proxima a hora do teu triunfo , le
vaucando - ſe do leito , dobrando os
joelhos , e levantando as maos ao Ceo,
paſſou a poſſuillo eterpamente no an
no de 1646. , deixando tao illuſtre o
ſeu nome , que delle fazem condigna
memoria as Actas do Capitulo Valen
ciano , celebrado no anno ſeguinte. =
A &t.Cap.Val.1647.
26. de Julho.
Vida da Veneravel Madre
SOROR ISABEL
DA VISITAC , AM ,
Extrahida da Chronica do Padre Fri
Lucas de Santa Catharina , e das
memorias , que ſe conſervað no
Moſteiro do Salvador
de Lisboa .
I Ranciſco Fragoſo Pereira ,
F e Antonia de Macedo fo :
rao os venturoſos pays de Veneravel
Madre Soror Iſabel da Viſitaçao , húa
das mais benemeritas Religioſas, que
florecêrao no ſeculo paſlado no Mo
ſteiro
 AC
118 O PIL
REC
ſteiro do Salvador . Proteflou a Serva
de Deos neita Caſa do primeiro dia de
Janeiro de 1622. , e pelo eſpaço de pou
co menos de cincoenta e quatro an
nos , que perſeverou naquella Commu
nidade , a edificou , e condecorou gran
demente com o leu exemplo , e virtu
des . Eſmerou -ſe particularmente na
mortificaçao , como aquella que , por
mais oppoſta ao amor proprio , melhor
facilita o conhecimento , e o apreço ,
que deve fazer huma alma Religioſa
do amor de feu Divino Eſpoſo . An-
dava deſcalça Soror Iſabel , e nao ſó
mente je juava aquelles dias , que era
obrigada pela Conflituiçaõ , ſenaõ que
tambem je mortificava com outras
muitas abſtinencias , que ella dedica-
vá a muitos Santos , de quem era de-
yota .
Era mui frequente na Oraçao ,
e quando depois della ſahia do Coro,
paſſava logo a occupar - ſe no Culto Di.
vino , por fer a boa Religioſa huma das
ſuasmais acerrimas cultoras ,como lo-
go diremos . Para ſe fazer verdadeira
pobre por Chrifto , mendigava o ſu-
Itento dentro da Clauſura , vendendo
a fua raçaõ para comprar alguns ade
reços , e alinhos para melhor compo .
ftura dos Altares , e ſagradas Imagens ,
e muito eſpecialmente para o Culto do
Santiſſimo Sacramento , de quem era
devotiſſima. Com a ſua boa diligencia
a genciou o necellario para hum pallio ,
e cortinado riquiffimos, e para algūas
peças de prata de grande importe, e
conſideraçao . Profeflava tambem hūa
devoçao muito eſpecial á prodigioſa
Imagem daquella Caſa , chamada do
Senhor Menino , e contribuio com
effeito com o cuſto preciſo para hum
bom ornamento , e lampada de prata
da ſua capella, de cujo 81 ejo tratava ,
aſſim como tambem de algumas mais
de varios Santos , que havia tomado
por ſeus Advogados. Finalmente de-
pois de haver lervido a hum taobom
Senhor , foi chamada para a ſua glo
ria em 26. de Julho de 1675 .
, A M de 26 de Julho
RECOPILAC, A M
de 26 de Julho. }
I, Emoria de hum noſſo Ve
M.neravel Religioſo de Ge
nova . Cahio na inadvertencia de pro
ferir algumas palavras menos bem
foantes , e com ſabor de deſobedien
cia contra os ſeus Superiores, e naole
lembrando de dar huma conveniente
fatisfaçao deſte leu exceſlo , nem lhe
paſſando tal pela imaginaçao , ſe reco
ineo a dormir : os demonios porêm ,
havida licença do Todo Poderoſo , ti
rarao - no da cama , e açoutendo - o ri
goroſamente , o deixáraó alíaz adver
tido , e caſtigado. Cahio entao o mi
feravel po jeu erro , e lembrado da
quellas palavras do Apoftolo de fer
coula horrenda cahir nasMaós de hum
Deos vivo , chorou , e emendou a ſua
culpa , deixando - o eſta tao advertido
para o diante , que fez huma vida de
perfeito Religioſo , e como de tal foi
a ſua morte . Vivia no anno de 1250.
Vita Fratrum . 4.p.2.16 .
2 Em Condom , na Gaſcunha , o
Veneravel Padre Fr. Pedro de Baule
nes . Foi eſte Servo de Deos hum dos
primeiros , e digniſſimos Religioſos
detta magnificentiflimaCafa , deſtrui
da depois pelos impios faccionarios de
Calvino . Era elle bom Padre de huma
notavel piedade , e religiaõ ; e como
nað foſle menos inſigne em literatu
ra , e prudencia , foi promovido a
Prior dos Conventos de S. Severo , e
do outro em que celebrou a ſua pro
fiflaó , ſendo elle o ſexto , que admi
niftrou eſta Prelazia com todas as qua
lidades de perfeito Superior . Haven
do chegado finalmente ao quadrage
ſimo da lua idade , foi chamado para
o premio dos ſeus trabalhos , e mere.
cimentos,correndo o annode 1305. =
Guid ..
3 No Convento de S.Domingos de
Veneza , o Illuftriflimo , e Veneravel
D. Fr. Joao Durazzo , meritiflimo Biſ
ро
 FR. PEDRO DE MULCEON
po de huma das Igrejas de Dalmacia .
Governava elle a ſua Igreja com a eco
nomia , e ſantidade daquelles ſantos
Biſpos, que ainda hoje fazem tao ama-
veis, e ſaudoſos aquelles primeiros
tempos da Chriflandade ; e conſtan
do - lhe da eſtreiteza , e maior perfei
çaõ da obſervancia , que entao ſe pra.
ticava no referido Convento , renun-
ciou generoſamente as honras da Mi-
tra por humacella daquella Caſa: paf-
ſou a ella , e com hum tal apimo de fe
aproveitar , que ſervia de digno exem-
plo aos mais obſervantes, e fervoro .
ſos. Aſlim viveo , e aſſim morreo , con
ſervando agora a meſma boa opiniao ,
que adquirira taõ juſtamentepelas ſuas
virtudes. Vivia no anno de 1392. =
Pius.
4 Em Metz,os Veneraveis
Padres
Fr.Ricardo de Langres , e Fr. Effelin .
O primeiro foi Prior , e o ſegundo Sub-
Prior da meſma Caſa : ambos forao in-
fignes pela ſua erudiçao , e muito mais
pela redidað , e integridade dos ſeus
bons coſtumes. Fr. Ricardo eſtava ti.
do em huma tal opiniao , que paſſan-
do, aflim como tambem Fr.Effelin ,por
meio de huma bemaventurada morte,
como de ambos he muito de crer , á
eterna felicidade , ficou recommenda-
da a ſua memoria com hum honorifi-
co Epitafio Latino , no anno de 1396.,
que reduzido a Portuguez , ſoa defte
modo :
Ricardo obrou primeiro ,o q enſinava;
Eramuirecto, e rečtidaõ queria :
Alim com a mais ſólida energia
Co o exemplo a doutrina concordava.
Soueges.
27 de Julho . I19
27. de Julho.
Vida do Veneravel Padre
FR . PEDRO DE MULCEON ,
Extrabida de Guido , e outros.
I Aſceo o VeneravelPadre
N Fr. Pedro de Mulceon de
aſcendentes muito illuſtres ; mas nað
ha palavras com que ſeja poſſivel ex
plicar - ſe a nobreza da ſua ſantidade.
Foi de hum genio mui affavel, e mi .
ſericordiolo , mui compadecido dos
pobres , e ſempre acerrimo em buf
car em tudo a maior gloria de Deos.
Fez a ſua Profiſſaõ no Convento de
Brive , e illuftrou , e ſantificou o de
Limoges , de que foi tres vezes Prior,
com o fanto exercicio das ſuas virtu
des . He - lhe devedora aquella Caſa da
face , e cellas do dormitorio , que cahe
para a parte da Igreja , fervindo -ſe pa
ra eſta conſtrucçao da generoſa elmó
la, com que nos ſoccorreo o Illuftrif
fimo Biſpo de Perigeo , D. Pedro ,
que, renunciando a Mitra, veio a aca
bar Religioſo da noſia Ordem , no
meſmo Convento de Limoges . Ad .
miniftrando pela terceira vez o mel
mo governo , foi eleiro Prior de Mom
pelher, logo por Inquiſidor de Tolo
fa , e depois finalmente por Prelado
de toda aquella Provincia na Feſta da
Aſſumpçaõ da Virgem Sephora. Fo
rao Definidores delte Capitulo os Ve.
neraveis Padres Fr. Joao Vigoroſi, e
os Priores , Fr. Raimundo Hunod ,
de Tolofa ; Fr. Guiran de Avinhao ,
de Marſelha ; e Fr. Odon de Coſſens,
de Mompelher : o que , por ſerem
todos illuſtriſſimos por talentos , e
Religiao , nao cede em pequena glo
ria do noſo Veneravel Provincial.
2 Inſtituirao -ſe nas Actas deſte
Capitulo vinte e ſete Leitores de
Theologia , e aſſignaraő -ſe demais
quarenta e tres , que ſe deſtináraó pa
ra diverſas partes ; dezanove eſtudan .
tes para Toloſa , e quinze para Mom
pelher. Comprehendiao -ſe neſte nu
mero Fr. Arnaldo Fradet do Conven
to
 I 20 FR , PEDRO DE MULCEON
tode Burdeos, depois Biſpo deCou :
ſerans, Fr.Roſting de Condola , que
veyo a ſer Biſpo de Sydonia , efalle-
ceo Arcebiſpo de Negroponto em
Achaia , e Fr. Berengario de Landor-
ra , que , depois de Reverendiſſimo Gé-
sal da Ordem , morreo Arcebiſpo de
Compoftella. Aqui le eſtabelecerao
ſeis eſcolas de Fyſica, e doze de Lo-
gica . Entao ſe aceitou o lugar de S.
Gaudencio para alli ſe erigir hū Con-
vento , ſendo eleito para Vigario Fr.
Arnaldo de Morlas, Religioſo de vida
irreprehenſivel, e de prendas nao vul-
gares . Iſto le executou no anno adian-
te de 1293. no Capiculo de Carcaflo-
na , elegendo -ſe para primeiro Prior
daquella Caſa Fr.Bernardo de Champ-
Bernard , e Leitor Fr. Ademaro de
S. Paulo : aſſignárab -ſe maisnove Re-
ligioſos Sacerdotes , e dous Irmaos
Leigos. Neſte primeiro Capitulo de
Carcaſſona , que foi o primeiro que
1
depois da eleiçao do Veneravel Fr.
Pedro ſe celebrou, admitrioefte Ve-
neravel Prelado a profeflo o noſſo Bea.
to Roberto deUzés ; ecomo eſte Ser
vo do Senhor reſplandecia ja com hū
raro , e admiravel eſpirito de profe-
cia , e muito mais com huma vida re-
ligioſamente exemplar , ordenou o
poflo Provincial, que todos os Padres
Capitulares diſſellem por elle huma
Milfa do Eſpirito Santo , e a todos
os Conventos outra de noſſa Senhora .
3 Forao Definidores deſte Capi.
tulo os Veneraveis Padres Fr. Bernar-
do de Claramonte , Inqoiſidor de To .
Joſa ; Fr. Bernardo de Juzic , Prior
de Burdeos, e depois Reverendiffi-
mo Géral; Fr , Berengario Alfaud ,
Prior das Religioſas de Eſte , e Gui.
Therme de Montelar , Prior de Nar-
bona. Celebrou o noſſo Provincial ſe-
gundo Capitulo em Mompelter , cor.
rendo o anno Chriſtao de 1294. , e
foi immediato ao Géral , debaixo do
Reverendiſſimo Fr.Ettevao de Beſan-
çon . Aqui , excepto o noſſo Venera
vel Fr. Pedro , e os PadresFr. Beren .
gario Raimundo Guilha , Joao Vigo
27 de Julho .
roſi, Arnaldo Seguier , Raimundo
Hunod , Guilherme de Tonens ,Joao
de Geneítet , Franciſco de Valença ,
Bertrando de Claramonte , Bernardo
de Turnes , Pedro dela Fabrica , Ge
rardo Bermudi , Guiran de Avinhao ,
Pedro de Maſſac , Simao de Marſe
Iba , Pedro Capelli , e Roulde la Fon
tene , o velho , ( diſculpe-ſe -nos o po
mear individualmente eſtes grandes
homens , ſuppotto ler tao digno o ſeu
qualificado merecimento deita atten
çao ) foi abſoluta a maior parte dos
Prégadores Géraes da Provincia de
Toloſa , ainda por entao unida i de
Provença. Os Definidores delte Ca
pitulo forao os meſmos que concorre
rao da eleiçao do noſſo Veneravel Pro
vincial , a quem o Reverendiſſimo
Géral abſolveo , por huma Carta do
feu Officio , bum dia antes da lua mor
te , que ſuccedeo em Luca ; era po I
rèm o noſſo Fr. Pedro tao amado em 1
toda aquella Provincia ,que novamen
te tornou a ſer eleito em dia de S. C
1
Mathias.
4 Celebrou terceiro Capitulo no
anno de 1295. , que parece que foi o
da ſua morte , no Convento de S. Vi
cente de Caſtres . As determinaçoens
mais notaveis , que , aſſim neſta occa
fiao , como nas duas precedentes ſe
comarao , forao eſtas tres : Primeira :
Que nao ſe admittiriaõ indiſpenſavel
mente pretextos algunsmenosconfor
mes á pobreza de Religioſos mendi
cantes . Segunda : Que le teria muito
particular cuidado em fazer obſervar
que os noſſos Religioſos fizeſlem as
fuas jornadas a pé , como pobres , e
por nenhum principio de outro modo.
Terceira : Que ſe prohibiria o uſo dos
habitos, que nao foſſem toſcos , e
groſſeiros,e de nenhum modooftento
los, e roçagantes. Neſte uloimo Ca
pitulo foi encarregado o Prior de vi
firar peſſoalmente os Conventos de
Mompelher, e Montohān. Aqui foi
o noſſo Veneravel Fr. Pedro atacado
da ſua ultima doença ; e depois de
haver trabalhado tao dignamente pelo
bem
 FR . GERARDO DE
bem da Igreja , e da Ordem , paſſou
no dia 27. de Julho a lograr -ſe da Co-
roa , que o Senhor lhe tinha preparado .
Tres annos depois da ſua morte
trasladado o ſeu corpo do Convento
de Mootoban para o de Brive , aon
de jaz em honorifico ſepulchro.
27. de Julho.
Vida do Reverendiſlimo e V.
FR . GERARDO
DE DO MARO ,
Decimoſettimo Géral da Ordem , e
Eminentiſſimo Cardeal da Santa
Igreja de Roma ,
Extrabida de Guido , e Pio.
1
Noflo Eminentiffimo Fr.
O Gerardo de Domaro foi
Profeſſo do Convento de Brive , no
Limoiſin , e hum dos Doutores de
mais nota , que teve a florentiſlima
Univerſidade de Pariz . O noſſo
Bernardo Guido , tantas vezesallega .
do neſtes Agiologios , diz que elle
fora hum Varao devotiflimo. Foi de
muita modeſtia , e humildade ;
muito ſilencio , e
compofturas mui
temente a Deos , e fidelitlimo na pra-
rica de todos os exercicios espirituaes.
Achou -ſe no Capitulo Geral de Avis
nhaó no anno de 1341. , e aqui ſe lhe
deftinou a regençia dos Eſtudos
Pariz . Tantas eraõ as ſuas letras , tan-
ta a ſua capacidade. Era Fr. Gerardo
Sobrinho , pela parte materna ,
Eminentiſſimo Cardeal Pedro Roger;
e ſendo exaltado eſte Eminentiſlimo
á Cadeira de S. Pedro , por morte de
Benedicto XII . , que quiz introduzir
algumas innovaçoens na Ordem , af-
fim como ſeu Succeflor, ſe ſagrou na
poſſa Igreja, e a elle melmo tempo Principe da Igreja : e deixando per
era fallecido o Reverendiflimo Gé- fumada a Militante com a fragrancia
ral Fr. Hugo de Vaníleman ; perſua- . das ſuas candidas , e irreprehenſiveis
diram -ſe os noſſos , ( e nao com pou .
co fundamento ) que ſe acabariaó por
huma vez todos os debates , que ti-
dhe havidn, propondo no Capitulo
Tom. VII
DOMARO 27 de Julho . 121
Geral deCarcaſſona a Fr.Gerardo por
primeiro Prelado de toda a Ordem ,
visto que o que lhe faltava de idade
foi aſſaz o
aſfaz fuppria a ſua grande pruden
o luppria
cia , e labedoria,
Eſtava o Reverendiſſimo Padre
a eſte tempo em Pariz , a fim de Dou
torar -ſe ; e posto que ja te via confir
mado no Generalato , nem por iſſo
deſiſtia de continuar os ſeus Actos , e de
tomar , como tomou , o ſeu Gráo de
Doutor no dia do Precuſor de Chri.
Ito Senhor noſlo , o grande Bautista .
Nao deixaremos aqui de dizer , que
no Capitulo da ſua eleiçao ſe tomou
acordo de que, viſto ler a doutrina de
Santo Thomaz tao reſplandecente em
todo o mundo, e , abaixo daquella dos
Doutores principaes da Igreja , decla
rada pela mais faā , e pela mais ſegu
ra , o que aſſim era reitimunhado pe
los Doutores Pariſienles, todos os
Leitores , e eſtudantes a ſuſtencariao ,
e explicariaô , para bem ſe inftruirem ,
Fr. e melhor enſinarem a ſeus di /cipulos,
Na feita immediatamente ſeguinte de
S. Miguel , do meſmo anno de Douto
ramento , e Generalato , foi o poſlo
de Fr. Gerardo exaliado á Sagrada Pur
pura Cardinalicia ; pelo que lhe foi
preciſo paſſar logo á Corte Pontificia ,
então reſidente na Cidade deAvinhao
de França : e ouviodo o Papa benig
namente as ſupplicas, que o noſſo bom
de Religioſo lhe fez a favor da Ordem ,
deo por annullado todoo procedimen
to intentado por leu Predeceſſor ,
do concedendo algumas graças particu .
lares aos que viſitafem as noſas Igre
jas no dia , e oitavario do poflo An
gelico Doutor . Quando a Religiao
je promettia os maiores progreſlos das
letras , e virtudes de Fr. Gerardo , ao
penas ſe logrou elle da dignidade de
acçoens , falou a lograr-se da gloria
da Triunfante aos 27.de Julho do anno
do Senhor de 1345 .
Q RE
 1 22 RECOPIL A C,
RECOPIL A C, A M
de 27. de Julho.
I MTolofa , o Veneravel Pa .
dre Fr. Raymundo de Foix .
- Naſceu de pays nobiliflimos efte bom
Religioſo ; mas prezando em mais a
gloria de Servo de Chriſto , do que as
vaās glorias do feculo , lhe deo as co
ftas, veſtindo o noſſo ſanto habito . A
ſua converſaçaõ era mais de Anjo ,que
de homem ; e era tao acerrimamente
apaixonado pela cauſa da Fé , que a an-
tepôs alguma vez á ſua meſma vida ,
como desafiando o martyrio. Aſſimo
deixou ver , quando havendo ſahido
o noſio Inquilidor de Toloſa expolio
pela furia dos hereges , obediente ás
fuas ordens o notlo Fr. Raymundo, e
outros quatro , ſe apreſentarao dian-
te dos Conſules da Cidade , notifican .
do -os para que compareceſſem dian-
te do meſmo Inquiſidor a dar razao
da ſua Fé , ao meſmo tempo em que
eftavaõ prohibidas , e cominadas eitas
notificaçoens com pena capital . En
Taivecidos os notificados ,
puzeraõ
guardas ao noſſo Convento Toloſano,
para impedirem que ninguem pudel-
ſe dar , nem vender couſa alguma aostao precioſa diante de Deos , como
noſſos Padres, nem ainda huma pou .
ca de agua . De todos eſtes trabalhos
foi companheiro, e ſoffredor o noſlo
Veneravel Fr.Raymundo , e fahio com
os outros noſſos Religioſos daquella
ingrata terra cantando todos proceſ-
ſionalmente, cheios daquella ineffa-
vel conſolaçaõ , que o Senhor ſabe
conceder aos que padecem por elle ,
o Te Deum , o Credo, e a Salve.
companhou o Beato Poncio de S. Gil,
que capitaneava eſta ſanta comitiva ,
na jornada que fez a Roma , para in-
formar a Sagrada Curia dos injuſtos
procedimentos do Conde de Toloſa ,
e ſeus alliados . Volcando outra vez
áquella terra , e reftituidos os noſſos
Padres do ſeu Convento , quizerao
commetter aquelle Priorado a Fr.Rai.
mundo ; mas reputando -ſe a ſua hu-
A M de 27 de Julho.
mildade por indignadepreſidir a huns
Varoeos tað benemeritos , paſſado al
gum tempo do ſeu governo , procu
rou , e conſeguio remitillo : mas foi
tao generoſa acompetencia de parte a
parte, que ſendo novamente eleito ,
por dezaſeis annos exerceo digniſſi
mamente aquelle mando até o anno
de 1258. Nefte meimo ſe celebrou no
ſeu Convento o Capitulo Geral de bai
xo do Generalato do Beato Humber
to . Depois ditto o chamou Deos para
ſi , para dar - lhe a coroa , e premio da
ſua conſtancia, e fidelidade. = Ex
Bernard. Guid .
No Convento Napolitano de S.
Domingos , o Illuitriſlimo e Venera 1
vel D. Fr. Guilherme Lombardo , Biſ 11
po de Eſcala , Dieceſe ſuffraganea á
Metropoli de Melfi, no Reyno de Na,
poles . Zelou com exemplariſſimacon
Itancia os direitos , e immunidadesda
ſua Igreja : reformou ſaptamente o
ſeu Clero : atiendeo com muita elpe .
cialidade a conduzir ſeguramente o
feu rebanho pelo caminho mais ſegu
1
ro da ſalvaçao ; e a todos enſinava pri
meiro com o exemplo , que com a
palavra . A ſua morte , gruccedeo no 6
anno de 1342. , he mui crivel que foi
foi na terra invejada dos homeos .
Vallus. pag. 108 .
3 Em Italia , o Veneravel Padre
Fr. Goberto Hugonis . Era natural ;
e profeflo de Metz , de quem foi hum
decoroſiſlimo ornamento pelas fuas
eminentes letras , e muito mais pelas
fuas eſclarecidas virtudes : Morreo in
do em devota peregrinaçaõ á Santa
A Cidade de Roma lucrar o Jubileo no
anno do Senhor de 1400. Honra a ſua
morte hum elegante epitaphio Latino,
que ſe abrio na lua ſepultura. = Ann .
Domin .
4 Em Parîz , no Convento de Sant
Jago , o muito Religioſo , e doutiſ
fimo Padre Fr. Carlos Forget. Nao
paſſava de vinte e cinco annos quan
do ja tinha dado tantas moftras de ſa
bedoria , e virtude , que nao dava pe
queno
 FR : MANFREDO DE
queno fundamento ás grandes eſpe-
ranças, que a Ordem hia concebendo
de hum filho , que podia vir a ler em
algum tempo a ſua gloria , e as ſuas
delicias. Todas cortou huma lanta
morte no anno de Chriſto de 1568.
Foi tao ſentida a ſua morte , que ſe
recommendou á poſteridade em huns
engenhofifſimos verlos Latinos , com
que fe condecorou a ſua fepultura .
Exejus Epitaph.
28. de Julho .
Vida do Veneravel Padre
FR . MANFREDO
DE VERCEIL ,
Extrabida de Fr.Thomaz Soueges.
I Venerável Padre Fr.Man-
homem tanto de Deos, que mereceo
ter por Chroniſta das ſuas virtudes nao
menos quehum Santo Antonino , que
nao ſó diz expreſſamente que era
hum Religioſo de vida veneravel , e
temente a Deos , ſenao que conclu-
hio a ſua vida aquiétando netle Sephor .
A'imitaçao do noſſo grande Apofto-
lo Valenciano S. Vicente Ferrer an
nunciava ás gentes a vinda do Anti .
Chriſto , provando a ſua proximidade
com muitos lugares da Eſcriptura ,
eſpecialmente do Apocalypſe , no que
foi criminado por ſeus emulos; porém
ao que parece com menos razaő , ſup-
pofto que o Santo , a quem o Venera .
vel Padre imitava , cujos Sermoēs ſao
tað eftircados, nað fómente chegou a
afleverar que o Anti-Chriſto eſtava
proximo , lenaõ que era ja naſcido .
Abalava de tal modo os animos dos
ouvintes com as ſuas prégaçoēs, que
além de converter a Deos huma no
tavel muliidao de almas , eſtabeleceo
huma numeroſa Congregaçao de Ir-
maos , e Irmaās da noſſa Terceira Or
dem ,
, que muitas peſoas , de major , e
menor idade , abraçáraó ,mettendo o
mundo debaixo dos pés. Viviaõ os ho-
Tom . VII .
VER CEIL ” 28 de Julho. 123
mens , que eraõ cem , ſeparados das
mulheres, que paſſava o de trezentas :
adquiriao por ſuas maõstodo o necef
fario para o leuluitento , aindaque en
tre elles tudo era commum . Recita
vao todos os dias o Officio Divino ; e
confeſſavao - ſe , e commungavao mui
to a miudo .
2 Como o demonio ſeja tao ſolîci
to em embaraçar tað bons progreſſos,
nao perdeo occafiao , e chegou o caſo
a termos de conceber , como conce.
beo , o Pontifice Martinho V. alguma
deſconfiança deſta Congregaçao. Te
mendo pois a Cabeça da Igreja que
daquirelultaſſe algum damno , inten
tou desfazer eſta alliança ; mas , por
muito que ſe empenhou niflo , elta
vaó aquelles bons Terceiros tao ad
didos ao Padre Manfredo , que de na .
da valerao as diligencias que te fizerao
a pureza de vida do noſlo Veneravel
Fr. Manfredo, de tal modo inſupera
vel a todo o genero de calumnia , que
de nenhum modo podia ſer denegri
da , ou offuſcada. Admirou - ſe a Cida .
de de Florença , quando nella entrou
tao ſanta companhia , vendo tanto a
mor das couſas do Ceo , tanto deſase
go ás da terra . Achava - ſe entao neſta
Cidade o Papa Martinho V., e deter
minando que a nenhum deſtes con
federados te delle eſmóla , por ver fe
aſſim podia desfazer aquella ſocie
dade, nao o pode conſeguir: porque,
élèm da natural compaixao , era mui
perſuaſiva a bondade dos coſtumes,
que ſe obſervavao veftes Congrega
dos . Reſolveo - fe Sua Santidade a exa
mirar, e examinou o noſſo V.Padre Fr.
Manfredo ; e depois de bem averi
guada a cauſa, o achou tao inculpa
vel , que patlando a Roma com toda
a fua Corte , nao impedio que alli paſ
falſe , como logo paſſou , toda aquella
comitiva .
3 Era tao ſevero ſeu Veneravel Di.
rector , que ás culpas mais ligeiras ap
plicava grandes penas. Verdade ſe ja
que Santo Antonino o nota algum
Q ii tan
 124 RECOPILAC ,AM
tanto de crédulo em algumas viſoens
das ſuas confefladas ; mas iſto paoce.
de em ſeu benos credito , tendo cer
to , que peſſoas faniiflimas fe alluci-
náraó nella parte : e quem poderá ne-
Ata parte contiar-le, quando hum ho-
mem tao eſpiritual , e taomyftico , co-
mo o noſo Veneravel Padre Fr. Luiz
de Granada ſe declarou a favor de hũa
hypocrita ; e , o que he mais , aquelle
grande Santo de penitencia , e lanci .
dade tao monstruota S. Simeao Etti-
lita , depois de muitos annos de me-
recimento , perſuadio- ſe a que era cer
ta huma illuiao demoniaca . Algumas
deitas dirigidas forao vexadas dos ef-
1 iritos de tentaçao , 5 apparecêrao por
vezes a muitas dellas mais moças trans-
figurados em Anjos de luz . Naó eraõ
poucas as que estava o capacitadas que
o Padre Manfredo chegaria a occu
) 1
par a Cadeira de S. Pedro , e que ellas
haviao de manifeitar o Anti -Christo,
Contendeo ( porque tambem tem luas
deſavenças as Eſtrellas ) com S. Ber-
nardino de Sena , e havendo vivido
lantamente ,governando Eugenio IV .
a Igreja de Deos , paſſou a lograr -ſe da
viſta deste Senhor aos 28. de Julho de
1644 .
RECOPIL A C , A M
de 28. de Julho.
1 O Moſteiro de Adlinhau.
fen , junto de Triburgo , a
Veneravel Madre Soror Margarida
de Flaſterin . Etta feliz Eſpoſa de Chri-
Ito entrou na noſſa Religiao , ou no ſeu
primeiro florentiſſimoleculo , ou pou-
co depois , e illustrou - a grandemente
com a pratica das ſuas ſingulares vir .
tudes . Nao ſe moſtrando a principio
mui fervoroſa a Deos , que a tinha eſ
colhido por muito particularmente
ſua , a trouxe a fi por huma occaſiao
bem notavel . Acabava ella de receber
e Corpo de Sua Divina Mageftade em
hum dia de Communhað geral, e in-
do a dar graças , ſe lhe repreſent
le lhe repreſentouvi-
ou vi
de 28 de Julho,
fivelmente o Senhor com as Chagas
muito vivas , e reprehendendo - a n ui
to da ſua ingratidao , e negligencia.
Prottiou - ſe Margarida por terra , e
convertidos os olhos em duas fontes,
pedio perdoens , e protettou emen
das . Nao foi infiel no cumprimento
do prometido; porque dalliem dian
te je deo a Deos tanto devéras , que a
todas as luzes era aſſon bro a ſua vida.
Entao he que abrio os olhos para co
nhecer as delicias , que , por mais que
partça fragolo , e intratavel, ſe achao
no caminho da perfeiçao , recebendo
multiplicados favores do Divino Ef
poio das almas : porém quanto eites
eraò mais levantados , tanto era maior il
a lua deſconfiança propria , que eſta
he a baſe mais tegura do edificio'eipi
ritual . Chegarao -lhe deſejos em huma
noite de Natal de ver o Menino Deos 1
do meſmo modo , que Elle apparecê
ra em outra noite ſemelhante no Pre
ſe pio de Bélem : eis - que,durante a Mil C
fa , vê vir do Altar para ella hum Me C
nino de elegantiſlima formoſura : dei
tou-lhe os braços , e aſſim eſteve todo
o tempo que continuou a celebraçao
daquelle Incruento Sacrificio , e aca
bado ette , ſe tornou a retirar o Meni
no ao meſmo lugar de que tinha ſahi
do. Outrosmuitos favores recebêo do
Ceo eſta feliz alma ; e he mui crivel
que ſeria coroa de todos huma morte
muito precioſa. Vivia no fim do ſecu
Jo de 13c0. = Memor.de Alemanh.
2 Memoria de hum excellente
Religioſo , cujo nome , como piamen
te cremos que he de bençao , ignora
mos.Trabalhou com fortiſſimo , edeſ
velado empenho na reforma da Reli
giao em França , e introduzio muide
itra , eluavemente eſta obſervancia no
Convento da Cidade de Leao daquel
la Provincia , aonde acabou felizmen
te os ſeus dias . Commetteo - lhe a San
ta Sé de Roma o Officio de Inquiſidor
Apoftolico na Dieceſe de Autuna , no
Ducado de Borgonha ; e cumprio com
eſta obrigaçao com aquella madureza ,
e vigilancia , que pedem empregos de
tal
 FR . LUIZ BELTRAM EXARCH & c. 29 de Julho.
125

tal qualidade . Nao foi pequeno o ſumido com eſte trabalho , recebeo
exercicio que derað ao ſeu zelo os finalmente aquelle premio , prometti
feiticeiros , e nao era menos deſtro do no Evangelho ao miſericordioſos ,
em perſcrutar , e emendar os defei no anno de 1676. , que foi o da ſua
tos do eſpirito , que em deſcobrir , e ditoſa morte . = Soueges.
anniquilar os maleficios do corpo. Fi
nalmente , depois de haver trabalhado
29. de Julho.
com io fatigavel diligencia pela maior
pureza da Fé , paſſou do mundo para Vida do Veneravel Padre

o Ceo , correndo o decimo quarto f.- FR . LUIZ BELTRAM

culo . = Ex Nider.1.4.6.3.
E X ARCH ,
3 Em Tul , oa Lorena , o Vene
ravel Padre Fr. Manſuero Gilberto , Dos limaos Leigos

Fora eſte Padre Doutor famoſo da FR . M A N C I O

Univerſidade de Pariz , e Vigario da
D A CRUZ ,
Provincia de França . Entrado na Or E
dē , procurou introduzir nella a maior F R. P E D R 0
regularidade , e iſto a tempo , em que
DE SANTA MARIA ,
ſe nao ſabia o que iito fofle na Pro
E DE
vincia de França . Deos o ajudou de
SOROR MARTHA ,
modo , que teve a conſolaçao de ver

bem logrados em grande parte os ſeus Sua hoſpedante , todos illuſtres

ſantos intentos. Nao foi pouco o que
Martyres de Chriſto no
cooperou para este bom effeito o ter
o Servo de Deos da ſua parte os Ve . Јараб ,

neraveis Padres Fr. Renato Chelhant , Extrahida da Hiſtoria das Filippis

Franciſco Chevalier , e Henrique Bu. nas , e de Soueges.
lieu. Promoveo o Convento de Tula
hum tal gráo de perfeiçao , que nao 1 Primeiro appellido do
deixou que invejar ao primitivo ef O Bemaventurado

plendor da Ordem . Daqui tomáraó do Senhor, Fr. Luiz Beltraó Exarch ,

exemplo os noſſos Religiolos de Pro-
vins , pedindo Reformadores ao noflo
Veneravel Padre Fr. Manſueto , que
fechou placidamente os olhos no se
nhor , no anno de 2014. = Ex Me .
mor . de Tul.
4 Em Cavelhaõ a virtuofiffima
Soror Izabel Martinha da nosa Ter-
ceira Ordem . Foi mulher de muita
Oraçao , grande autteridade de vida ,
e de caó excellente caridade , q fican-
do mais livre para praticar os ſeus exer
denota a affinidade, que elle tinha pe
la parte materna com o noſſo glorio
fo Santo do meſmonome ; razao ,por
que preferio o cognome de Beltrað
ao de Exarch , que lhe vinha pela par
te de ſeu pay . Naſceo en Barcelona ,
e criárað -no ſeus pays com huma edu
caçaõ tao ſapta, ao que dava mais op
portunidade a ſua bõa indole , como
le ſoubeſſem o ſanto fim , que havia
de coroar a lua vida . Chamando-o
de coroar
Sua Mageftade para fi por huma for

cicios , pela morte de ſeu marido , ſe
conſagrou inteiramente ao ſerviço dos
pobres: de tal modo os amava , e fa:
vorecia , como ſe realmente viſſe em ca-
da hum delles ao meimo Jesu Chrifto
peſſoalmente. Era mui ordinario eſ.
quecer-ſe de ſi , por melhor ſe lem-
brar delles ; e depois de ſe haver con
uiſlima inſpiraçao , quando elle ainda
nao contava quatorze annos de idade,
correspondeo tao fielmente a eſta vo
caçao , que nao tardou em pertender,
evertir o habito Dominicano no Con
vecto de Santa Catharina Martyr da
quella Cidade . He fama , que nun
ca perdeo a graça bautiſmal; e , poſto
qu2
 126 FR , LUIZ BELTRAM
que tað innocente , era tað rígido , e
auttero comſigo meſmo, como se eſti-
veſſe empenhado em ſatisfazer a Deos
as culpas mais abominaveis . Achava
elle que tinha huma triplicada obriga-
çao para proceder dette modo no lan
gue , po habito , e no nome que ti-
nha de ſeu ſanto parente , cujas me
morias eſtava ainda entao muito de
freſco . Os ſeus jejuns , vigilias , di-
ciplinas , e todas as outras Tuas moro
tificaçoens nada tinhao de ordinarias,
e mais ſe podiaõ chamar continuas ,
que amiudadas.
2 Teve dous annos de Novicia-
do ; e chegando aos dezaſeis foiman-
dado aos eſtudos , aonde, ſem affroxar
do
hum ponto do ſeu modo de vida
vida ,,
aproveitou deſorte , que , em ordem
a promover melhor os ſeus progrellos
literarios, foi mandado para o Colle-
gio de Origuela, hum dos mais famo-
los das Heipanhas, e aonde eſtudaö
os talentos mais avançados da Provin-
cia . Ainda nao eſtava entrado no Sa-
cerdocio , quando ja ardia em deſe.
jos de ganhar almas para ſeu Crea .
dor. Veyo por eſte tempo aquella Ca-
ſa o noſſo Vigario Géral das Filippi-
nas , procurando alguns Miſſionarios
mais zelozos para levallos comſigo
aquellas partes; e quando o pollo Ve .
neravel Fr. Luiz o vio , e ſoube os
ſeus intentos , pareceo - lhe que via
humn Anjo do Ceo : offereceo.ſe logo
eſpontaneamente , e fez como verda-
deiro filho de S. Domingos a ſua jor-
* nada a pé até Sevilha . Aqui le em
barcou com outros muitos Religioſos
noſſos , correndo o anno de Christo
de 1617. , e com feliz fucceflo chegá-
rao finalmente a Manilha , Metropo
li das Filippinas , no outro ſeguinte de
1618. Naö era ainda entao ordenado
o Servo de Deos ; e entretanto que
nað le lhe dava ette caracter , oman-
dáraó os Superiores eltudar a lingua
de hum daquelles povos vizinhos , cha-
mado Tagalos , para que , logo que
foile Sacerdote , ſe pudefle applicar
mais utilmente . Breviſlimo tempo lhe
EXARCH , & c. 29 de Julho,
foi neceſario para aprender nað ( ó
mente aquella linguagem , lenao a da
China, em que fallava com alexpe
diçao , e energia , que mais pareciao
nelle maternas, que eſtranhas , o que
tudo o fazia mui amavel entre aquellas
gentes , e nao com pouca fua utilida
de eſpiritual.
3. Aqui trabalhava o fervente , e
zelofiſlimo Operario do Senhor , quan
do a obediencia ſe ſervio delle no an
no de 1623. Para expedillo ao Japao ,
aonde entao estava mui embravecida
a perſeguiçao daquella nova , e tao
fanta Chriſtandade , eſpecialmente
contra os Miſſionarios Evangelicos ,
havendo nove destes da nolla Ordem
confirmado com o tangue , que derra
maraó por Chrifto , a evidencia , e
ſantidade da ſua Fé. Eraó muitos , os
que queriaõ paſſar aquelle Eſtado', com
a fanta ambiçao da Lauréola domar.
tyrio ; mas nao podiao ir todos os que
delejavao. Onofio Veneravel Fr. Luiz
foi hum daquelles , a quem coube eſta
tao ſuſpirada , e feliciſſimaforte. En
trarao em o Japao com o maior disfare
ce, qde lhes foi poſſivel, e forać lo
go buſcar as ordens do Superior da
Ordem , que , antes de os empregar
naquella melhor conquiſta , lhes de
terminou que aprendeflem primeiro a
lingua Japoneza. Feito ſenhor della
o noflo Veneravel Miſſionario , com
igual perfeiçao , que facilidade , foi
mandado ao Reyno de Omura, que
he aonde a tyrannia dos inimigos do
nome Chriſta o era mais inſolente ,
e mais atroz , e aqui ſe empregou o
Servo de.Deos por tres annos , pade
cendo penurias, e trabalhosicauditos.
4 Mil vezes eſcapou , como por
modo de milagre , das maos daquelles
furioſos , e implacaveis miniſtros do
inferno , para conſolaçaõ daquelles po
bres Chriſtãos , e para ſua maior co
soa de merecimento . Erao a perta
diſſimas as peſquizas , que fazia o osof.
ficiaes de juſtiça por haver ás maos os
Prégadores , e Millionarios do Evan
gelho , e graviſſimas ascomminaçoēs
a quam
 FR . LUIZ BELTRAM
a quem lhes deffe favor , ou abrigo ;
e em tanto tempo , no meyo de tantas,
e taõ eſcrupuloſas diligencias,podean
das occulto , e deſconhecido eite in
figne Martyr , fazendo inceſſantemen-
te notaveis ſerviços a N.Senhor.Con- '
fiderando os neifos Superiores quan-
to ſe hiao reſtringiado as ordens con
tra os Operarios daquella copioſa vi-
nha do Eterno Paydefamilias, e quan-
to era importante a vida do noſobom
Padre , para animar, e confortaraquela
les pobres Catholicos deſvalidos de
todo o auxilio humano , ordenárað
lhe que ſahiſle dalliquanto antes , co-
mo dando algum lugar a que fizeſſe . que , ſegundo parece , nao deixa de
algum termo a furiola tormenta, que ter myſterioſa.Foi o caſo : Que andan
entao corria aquelle Chriſtianiſmo , do hum howem Chriftao cortando le
a cujas neceſſidades occoiria ſempre nha , ſucedeo acontecer aqui a repeti
o Servo de Deos com mais ancia, e
deſvélo, do que ſe foſſem propriamen-
te ſuas; tirando para isto , comoſe diz ,
forças de fraqueza por ſermuidébilde
compleiçao , e padecer algumas quei .
xas, que ,com o ſummo trabalho que
elle rinha , e com o máo tratamento
que levava , ſe faziao muito mais gra-
ves , e moleſtas.
5 Sabendo aquelles fantos Fieis a
determinaçao dos Prelados, fizerao-
lhes efficaciſſimasfupplicas para que,
entre conſternacoens tao amargas ,
lhes naõ tiraffem hum alivio tao gran-
de , como elles sinhao na companhia
de Fr. Luiz , com o que , ou ſe eſque-
ciao , ou de fuavizavao tantos pezares ,
e deſconſolaçoens. Haviaõ elles con
delcendido outras muitas vezes com
ſemelhantes rogos ; mas agora vendo-
ſe tao imminente ,einevitavelo peri-
go , pareceo mais conveniente que
elle obedeceſſe ao que ſe lhe manda.
va , ſahindo , como promptamente ſa-
hio , a Miſſionar com menos riſcoem
outras partes , fóra de Omura . Masco-
mo os intentos de Deos ſejao inexcry .
taveis , e tao differentes , e ainda nao
poucas vezes oppoſtos aos dos homens ,
mudárað as couſas de ſemblante de tal
modo , que o Veneravel Padre tornou
a entrar outra vez , com beneplacito
EXARCH & c. 29 de Julho. 127
dosSuperiores, que forað osmeſmos,
qo mandáraó ,naquelle melmo Reyno
a extinguir as laudadescom que havia
deixado aquelles verdadeiros Catho
licos . Allim o diſpôs a juſtiſſima Pro
videncia do meſmo Senhor , queren
do que o Reyno de Omura ſantificado
com a ſantidade , doutrina , e exemplo
do noſſo tao eſclarecido Martyr , o fof
fe tambem com o ſeu ſangue , vertido
Evangelicamente em confirmaçao da
meſma Fé , que elle tao Apoftolicamen
te promovia , e propagava.
6 Antes do ſeu gloriolo martyrio
ſuccedeo huma coula bem notavel , e
çao daquelle prodigio vitlo naộ pou
cas vezes no meſmo Japao , e em Ingla
terra , ao tempo em que a Santa Igreja
ſe vio mais deprimida , e oppugnada
por feus iniquiffimos inimigos ; por
que forao achadas dentro de hum da
quelles troncos duas Cruzes tam per
feitas , e bem obradas , que feria im
poſſivel fazellas tao bellas, e taô ele
gantes o artifice mais detro , ou mais
engenholo . Admirado o homem do
que via , guardou as Cruzes com mui
ta reverencia ; masjulgando -ſe por in
digno de poſſuir prendas tað milagro
fas, deo buma dellas ao noſſo Venera
velFr . Luiz : elle a recebeo com indi
zivel alvoroço , tomando - a [ e na vér
dade aflim era ] como por hum mimo,
que lhefazia o Altiſlimo, excitandr - o
a dar a vida por ſeu amor . Soube elle
que a outra le dera ao Veneravel Pa
dre Fr. Franciſco de Santa Maria , da
Serafica Ordem de noſſo Padre S.Frá .
ciſco , e diſlo lhe deo os parabens, per
fuadindo- o a aſpirar á palma do mara
tyrio .
7 Sempre ſe deſvelou o noflo Ve .
neravel Fr. Luiz em promover aquela
laboa Chriftandade; mas agora mais
que nunca : hiao -ſe-lhe as noites em
ouvir confiſſoēs, e retirava- ſe de dia
a hūa pobre palhoça de leprolos , aon
de
128 FR , LUIZ BELTRAM
de vivia mais encuberto , pelo nimio
horror que tem os Japoens daquella
enfermidade . Aqui etteve occulto por
alguns tempos ; mas nao falcou hum
atraiçoado Judas,( como o Santo Mar
tyrlhe chama ) que o mallinaſle ,edeſ
cobrille . Foi prezo, pois , o noſo Ve
neravel Padre naquella cazinha por
hum homem de juitiça, que aportará-
ra de nofla Santa Fé, com dousJapoēs
Chriitaos, hum , que lhe ſervia de guia
nas ſuas jornadas, e outro ,que tambem
o ſeguia , e o ajudava a catequizar os
Neophytos daquelle rebanho do Se
nhor. Quando ja hia caminho do car
cere , occorreo alli huma boa mulher
Chriſtaa , chamada Martha , de quem
era a pobriſfima choça , aonde elles
haviaõ ſido prezos ; e initigada eſta dos
impulſos do Eſpirito Santo , começou
a rogar muito , com as lagrimas nos
olhos , aos executores da prizao , que
a levallem ambem a ella , ſuppoſto ha-
ver contravindo tao claramente ás or-
dens do Imperador , em dar hoſpicio
aquelle Religioſo , e a ſeus dous com
panheiros : por entao nao quiz Deos
aceitar detta ſua fiel Serva mais que
a lua boa vontade , e por iſſo a deixá-
raó ir livremente , ſem fazer alguin ca-
lo dos ſeus rogos; mas ſe eſtes nao fo
raðaqui de algum effeito , nað lhe ne.
gou o meſmoSenhor , como tao fiel a
ſeus amigos , e tao propicio a ajudar a
leyar adiante os bons , e fantos inten-
tos , quaes eraõ os deita virtuola mu .
lher , o bom logrodos ſeus deſejos, de-
Kinando - a tambem a dar a vida porteu
amor . Conſta de huma Carta , que o
noſſo Venerare ! Fr. Luiz eſcreveo da
prizao ao noſſo Fr. Antonio do Roſa-
rio , Governador do Biſpado de Ma-
cáo , e nós a lançaremos aqui traduzi-
da 'da lingua Cattelhana na noſſa vul-
gar , por conter muitas particularida-
des muito dignas de nota . Eis-aqui as
clauſulas della.
EXARCH & c. 29 deJulho.
O Dulcißimo JESUS faça habita
çao em noſſas almas, e encha do ſeu
amor Divino ao meu Padre Gover .
nador.
8 Аб роffo
N a V. Reverendiſſima, por
deſpedida , das ineffaveis miſericor
dias, que Sua Divina Magefiade ufa
com hum taõ vil eſcravo, como eu ; pa
ra que V. Reverendiſſima , ſupprindo
as minhas faltas, e emendando a mi .
nha ingratidao , lhe dè inceſantes lou
vores por mim . Andava eu neſte mez
de Julho proximo paſlado viſitando
certos povos deſte Reyno de Omura , (
aonde eu fui, no dia da Bemaventura
da Santa Maria Magdalena, que eſto
vaõ tao neceſſitados de remedio eſpi
ritual , que havia ſette , dez , e vinte
сC
annos que muitas deſtas gentes ſe nað
g
haviaố confeflado; quando fui prezo,
도
pela traiçao de hum novo Judas, por
@
hum official de juſtiça , grande apoſta
ta danoſ a Santa Fé, na noite antes da
Oitava da meſma bendita Santa. Fo
rao prezos comigo dous Japoens , hum
chamado Mancio , ja baſtantemente
idoso , peloa mui fanta , que muitas
vezes ſervio de guia aos Miſſionarios;
o outro tern dezaſeis annos , e, com o
nome de Pedro, os coſtumes de hum
Anjo.
Š Derco sobre nós os miniſtrosjua
diciaes, de que acudio huma grande
turba com luzes , e armas , e apanba .
rao -nos na pobre choupana de bumas
le profas , por nao haver nos povos
quem me quizeſſe dar abrigo, ou fa
vor. Cuidava eu que alli podia eſtar
mais disfarçado, e acudir a dous da
quelles povos mais circumvizinhos,
e de facto ja tinha quaſi concluido com
hum delles ; e determinando com con
felbo dos Chriſtaos partir para o 01
tro no dia ſeguinte. Mas Sua Divi .
na Mageftade , que , nao obſtante eu o
deſmerecer , como deſmereço , me faz
tão grandes mimos , diſpoz as couſas
muito de outro modo , como foi mais
Jervido , adiantando- ſe em me fazer
a def
 FR . LUIZ BELTRM EXARCH
a deſmerecida graça de chegar a ſer
prezo por ſeu amor : leja Elle para
Impre bendito. Inveſtiraõ primeiro
aquelles impios com os dous Japoens,
que diſſe,è poſto que logo lhe deita.
raõ prizoens , nað ufáraõ do meſmo
rigor commigo, eſperando até que vieſi
fem no outro dia pornós da Cidade de
Omura ; e quando foi neceſſario atar-
mepara ſeraflim entregue aos Juizes ,
antes que o fizeſſem , me pediraõſub-
miſjamente muitos perdoens. Mas ſe
nao fui logo ligado , ſeria por querer
v Pay de toda a conſolação ( que diz
que nos trará' a ficom os laços do amor ,
e vinculos da caridade ) prender -me,
como com couſa , que por pobre taõbem
repreſentava a Sua Divina Magefta-
de, com os braços de huma boa mulher
Chriſtaā leproſa, chamada Martha ,
que era a dona da pobre cazinha , em
que fomos apanhados; porque vendo
eſta que hianos prezos, e que a ella,
pelo ſeu achaque abominadiſſimo entre
os Japoēs, a deixavao , começou a pe-
dir com toda a efficacia , que a pren .
deſem tambem , allegando as caufas,
que para iſſo havia . Naõ derað por
iro os executores, e ella, pondo os grio
tos nos Ceos , pedia a N. Senhor inſtan-
tiljima, eferventemente, que naõ per-
mittiſje que ella perdeſſe a minha com-
panhia ; e deſte modo procurava, ainda
Jem maðs , e ſem pés, pegar -ſe amim ,
mais
e ir em meu ſeguimento e por
que a juſtiça a quiz fazer retirar ,
jánais o pode conſeguir. A eſte mefabor o conſerve ſempre na ſua fanta
mo tempo recitavana ſua lingua ma- graça , e mo deixe ver adonde por to
terna á Salve Rajnha , o Louvado ſeja
o Senhor por todas as gentes , e outras
devotas oraçoens com ancia fervoro
filima. Acompanhou nos àté a caſa ,
aonde ficamos aquella meſma noite ,
fofto que nem pode entrar dentro , nem
embarcar - ſe comnofco para nos acom
panharaté oca : cere.Masouvio , edef
pachou o Ceo benignamenteasſuas de
precaçoens ; porque , ſabido o que pal
Java pelo Juiz de Nangazaqui , eſte
ordenou que folle preza , e nao lhe falo
tão eſperanças defer , como muito de
Tom . VII,
& c 29 de Julho.
129
ſeja , queimada comnofco.
S Se eſtas couſas ſe forem de
morando mais algum tempo, e V.Re
verendiſſima ainda nað receber com
eſta a noticia da noſſa morte , peços
lhe que nað le deſcuide V. Reverendif
lima de rogar por mim ao Senhor ; para
que , naõ attendendo aos meusgrandes
defeitos, me aſiſta com aquelles auxi
lios, que tao
preciſos me ſao ,para que
ſeja mais glorificado o ſeu Santo No
me . Procure V.Reverendiſſimaem tu
do, quanto mais puder , a ſua maior
gloria , e cumpra ( como ſempre ) tudo
aquilvo , que diſſer reſpeito ao ſeu ſan
to ſerviço com toda a inteireza , e fide
lidade, eſperando que Elle nao deixa
rá de dar em tempo algum a ſua bençao
ataobons propofitos ; e tenha por mui
certo , que quando o meſmo Soberano
Senhor for ſervido de que e1!, poſto que
tao indigno , paſſe do mundo a ver a ſua
dulciſſima Face , jamaisme eſqiiecerei
de V.Reverendiſſima. Muito bem me
faõ conſtantes os bons officios com que
V. Reverendiſima tem aſiſtido ás
muito virtuofas Senhoras Ignez Cor
rea , e ſuas filhas: por tudo rendo a
V. Reverendiſſima muitas graças , e
por deſpedida lhe recommendo que
lhes continue os meſmos obfequios ;
porque lhe aleguro que todos lhe faõ
muito devidos de juſtiça , pelas muitas
attençoenis , de que lhe fomos, e ſere
mos perpetulamente devedores os fin
lhos de S. Domingos . Deos noſſo Se
da a eternidade nos naõ ſeparemos.
Feita na prizaõ de Omura a 6. de
Agoſto de 1626 .
Muito humilde filho de V.Re
verendiflima
Fr. Luiz Beltrað .
9 Defta carta ſe póde inferir que
o Padre , a quem o Servo de Deos ef
crevia , ( entao Governador de Macáo,
aonde ires Religioſos noſlos , os pri
R meiros,
130 FR. LUIZ BELTRAM
meiros , que entrarað nas Filippinas ,
fundárno hum Convento , que ſe deó
aos noſſos Religioſos Portuguezes , e
que era como huma Fortaleza da Fé ,
de donde ſe fazia inceflante , e vivá
guerra á idolatria , e ao inferno ) era
de muita caridade, ſervindo - ſe, co-
mo alliin o deviao fazer todos os bons
Prelados , das rendas da fua Dieceſe ,
para acudir , nað fómente aos Miſlio .
narios, que pela cauſa de Chrifto ſe
expunhaò a padecer a fome, a ſede ,
o frio , a calma , a nudez , e todos os
mais incommodos , que ſe lhes apre .
fentávao , até chegar , ſe aſſim era pre-
ciſo , a dar nella demanda a ultimagot-
ta de langue das vêas ; ſenao ainda
aquelles pobres feculares , que , por
mais promellas , ou ameaços dos Gen-
tios , ſe conſervavao fieis a Deos ; e
huma vez que haviao abraçado a ſua
Fé , a chegavaõ a ſuſtentar no meyo das
penurias mais inſopportaveis , e dos
ſupplicios mais atrozes . O que porèm
ha demais notavel na referida carta ,
he a igualdade de eſpirito do noſſo
bendito Martyr , e a muita piedade,
e Religiao , que ella está moſtrando,
IO Verdadeiramente he para ad-
e alegria
mirar a ſua paz , e em huma
alegria em huma
prizao tao dura , pequena , e incom-
moda , que o ſeu mayor comprimen-
to era de nove pés : aqui eſteve o Ser-
vo de Deos hum anno , e hum dia . O
que mais pena lhe dava , era nao po-
der receber o Corpo de Christo Sa.
cramentado : eſtas, que haviao lido em
outro tempo as ſuas delicias , eraõ ago- '
sa todas as ſuas unicas laudades. Ac-
creſcia a eſta amoroſiſſima fede a vi-
gia dos guardas da prizad , aquem ſe
havia paſſado ordem para que tivef-
ſem muito cuidado em ver ſe elle fa
zia alguma couſa tocante ás ceremo
nias Eccleſiaſticas de noſſa Santa Fé .
Como porém o noflo bom Deos ſeja
de tanta clemencia , e tao inclinadoa
deferir cao benignamente ás periçoēs
de quem padece por leu amor , diipoz
que , paſados oito dias da prizao do
Veneravel Martyr , nao obitante tan
EXARCH & c. 29 de Julho.
tas precauçoēs , e elpias , tiveſſe a cons
ſolaçaõ que tanto deſejava , facilitan
do -le-lhe tanto os meyos , que em to
dos os dias , que perſeverou naquella
prizao , até o último em que ſahio para
o martyrio , nunca deixou de cele
brar .
II Os dous venturoſos prezos,Pe
dro , e Mancio , incendidos em deſejos
de morrer com o habito de noſſo Pa
dre S. Domingos , inftára tanto com
o Servo de Deos , que , aſſim por nao
lhes faltar á caridade , que elles tao
bem mereciao , como por conſidera
çaõ da lua juſtificada vida , e de elta
rem por inftantes em veſperasde pade
cer hum tað gloriofo martyrio, foi
neceſſario condeſcender com os ſeus
piedoſos rogos , admitindo - os , em
virtude dos poderes , que os Superio
res lhe tinhaò comettido , por Irmaos
Converſos da Ordem ; e naquella mi
ſera, e triste maſmora fizeraõ elles hum
Noviciado , no anno que alli eſtiveraõ
detidos , muito mais rigoroſo do que
pudera ſer no Convento mais reforma
do , e penitente . Ao Catequiſta , que
era o mais moço , impoz o nomede Fr.
Pedro de Santa Maria , e ao ſeu guia
o de Fr. Mancio da Cruz, o que allu
dia a haver- ſe achado preſente eſte
bom Chriftaõ ao achado das Cruzes
milagroſas, de que ja fallamos acima.
2 Poſto que o Author da Hiſtoria
da nofla Religiaõ nas Filippinas, que
elcreveo o Martyrio do Veneravel Pa
dre Luiz , e ſeus ditoſos companhei
ros , nao faça mençao de que Martha,
aquella boa mulher , de quem o Vene
ravel Mariyr do Senhor da huma tao
bella idéa na ſua carta , que ja expen
de:nos,foi tambem admitiida pelo Ser
vo de Deos á noſa Terceira Ordem ;
o Padre Fr. Thomaz Soueges , com tu
do , diz que elle naõ ſó achára eſta ad
miſao em muitosmonumentos , e Hi
ftorias do Japao ;mas , o que he mais,na
pagina 18. do proceſſo eſtampado em
Roma , e ordenado para ſe haver de
tratar na Curia da Canonizaçao deto
dos eſtes inclytos Martyres do Senhor :
e co
 RECOPILAC, A M
e como eſtas Adas ſejaõ de tanto cre-
dito , pelo muito delgado que nellas,
até nas circumitancias de menos mo
mento , le fia , bem ſe deixa entender
o grande jus , que tem a Familia de
S. Domingos para lhe ſer adjudicada
eſta preclariſſima Amazona de Chri-
ſto , de quem ella recebe tanta hon
ra .
13 Devoluto finalmente o anno da
prizao deftes glorioſos Athletas de
Chriſto , e lentenciados a perder a vi •
da em odio do meſmo Senhor , le pre-
parou o noflo Veneravel Padre Fr.
Luiz , celebrando a ultima vez com
aquelle amoroſo , e devotiſſimo fer-
vor , que ſe pode imaginar de hum
Varao tao lanio , que , como ja diſle-
mos , ſempre reteve a graça bautiſmal ,
e agora eitava para ſer laureado com
e ſempre immarceflivel coroa de hum
ſanto Martyrio . Affiftirao a esta Sa-
grada Ceremonia os bemaventurados
prezos , e , concluida que ella foi , ad .
micio o Santo Martyr ſeus Compa
nheiros a fazer a ſua Religioſa profiſ
ſao , exhortando- os a dar conſtante
mente as vidas por huma cauſa tao Di
vina . Forað tirados finaloente da pri
zao naö ſomente os nosos benditos
Martyres , o Veneravel Padre Fr.Luiz
Belirao , e os Veneráveis Fr. Pedro ,
Fr. Mancio , e Martha , mas tambem
duas mulheres Chriſtaás, humadellas
chamada Beatriz , e outra , cujo nome
eſtá eſcrito , com indeleveis caracteres
de materia mais precioſa do que a maf-
da das Eſtrellas , no livro da vida . Cami-
nhavao todos eſtes SantosRéos para para o
ſupplicio , indo o Veneravel Padre
Fr. Luiz , e ſeus dous Companheiros
adiante , e pouco mais atraz Martha ,
e fuas duas companheiras. A alegria , ý ,
com admiraçaõ de todo o concurſo ,
reverberava ' nos ſemblantes deſtes
Athletas do Senhor , era hum bellilli-
mo emblema da tao grande , e taő pro-
xima felicidade , que dalli a bem pou
cosmomentos haviaõ de entrar a por-
ſuir por toda a eternidade .
14 Acabáraõ de chegar em fim ao
Tom . VII ,
de 29 de Julho . 131
lugar , em que haviaõ de padecer , e
ſendo atados todos a ſeus poſtos , ſe
poz , em execuçao do decreto , que
affim o mapdava , fogo á lenha , de
que eſtavaõ rodeados.Forao -nos quei
mando lentamente , e até o ultimo in
ftante das ſuas vidas perfiftirao os San
tos Martyres fem perder hum ponto
da graça , e ſerenidade dos ſeus afpe
Aos, até que acabados ultimamente de
conſumir os ſeus Veneraveis Corpos ,
forao as ſuas benditas almas tranſpor
tadas por maos de milhares de Anjos
a triunfar no Empyreo em 29.de Julho
de 1627. , em que ſe completava hum
anno , e mais hum dia , depois que fo
ra prezo o noſo illustre Miſſionario ,
ſendo eſte do ſeu martyrio , e de ſeus
inſignes companheiros , fauftiflimo na
Ordem , por fechar a Oitava de huma
ſua Tutelar tað auguſta , como Santa
Maria Magdalena .
RECOPILA C , A M
deg d ze Julho.
I M Pamiers , o Veneravel
Padre Fr. Guilherme Ga!
ein . Era tio de hum noſſo ſanto Re
ligioſo , chamado Fr. Pedro Regis ,
aquem imitou grandemente em reli
giao , e piedade, e de quem foi ſuccef
for no Priorado de Carcaſſona. Go
vernou tambem o noſſo Veneravel Pa
dre Garin o Convento de Caſtres com
aquella ſantidade , e exemplo devida ,
que nunca , em quanto ella lhe durou ,
deixou de obſervar. Fora elle muito
antes eſcolhido para primeiro Prior
do Convento de Pamiers , e com de
zoito Religioſos , que ſe aſſignárað
aquella Caſa , naõ ceſſavao , como An
jos do Ceo , de percorrer todas aquela
jas terras circum vizinhas , annuncian
do - lhes a palavra , e o temor de Deos
com efficacia ta o intenfa , que pare
ciao huns Apoftolos. Deraõ eftes bons
Padres principio aquelle Convento ,
que andando os tempos veio a ſer hum
Rii dos
 L
132 RECOPI A C,
dos mais fumptuofos, e magnificos
de toda a Religiao. Ficou - lhe aquele
le povo tao afeiçoado , que por esta
conſideraçao houve de fer , como foi,
ſegunda vez eleito Prelado do meſmo
Convento ; mas iſto nao teve lugar ,
porque primeiro Deos o chamou para
a ſua gloria no apno de 1275. = Guid.
2 Em Peruſa o Veneravel Fr.
Paulo Guaitaferri. Deo -le eſte bom
Religioſo a Miſſionar , e fez com iſto
muito grandes ſerviços a Deos , por
cuja cauſa padeceo muitos trabalhos,
e perſeguiçoens. Correo grande par-
te da Grecia : vio Conftantinopla, Pe
ra , Nigroponte , e outrasmuitas ter
rasdaquellas partes, en que tinhamos
Conventos. Tinha hum tað bom mo-
do no pulpito , que , por muito que nel
le ſe dilataſſe , nem por iſio ſe enfada
vao de ouvillo , ainda osmais faſtien-
tos . Por ſer fiel á ſua vocacao paſſou
á Tartaria , e fazendo volta da Cida-
de de Capha para a Aſia menor , pré-
gou muitas vezes em Efeſo , na Igre-
: ja do Amado Evangeliſta , com igual
alfombro, que aproveitamento de leus
ouvintes , que faziaõ ſempre hum
monitruofiflimo concurſo . Tornando
a Italia , aqui ſe occupou no meſmo
fanto miniſterio , deſempenhando.e
pia , e magiſtralmente de algumas Lei-
torias , que , aſſim como em outras
muitas vezes antecedentemente , lhe
forao agora commertidas em muitos
Conventos da Provincia Romana . Fi-
nalmente morreo aomundo , para co .
meçar a viver eternamente com Deos ,
no anno de 1334. Pius 1. p . h, 2 .
n . 12 ,
3. Em Bolonha , o Veneravel e
Illustriſlimo Biſpo Treviſano D. Fr.
Joao Bento . Naíceona Cidade de Ve-
neza,'e haviao - no deſtinado teus pays ,
vendo -o muiinclinado , como ſempre
foi, a couſas de piedade , para o elta-
do Eccleſiaſtico , querendo , como
The fora mui facil , que elle aſcendef.
ſe á dignidade Patriarchal : mas o ſeu
animo , que tinha mais de Evangelico ,
do que de temporal ,, prezando em
A M de 29 de Julho.
mui pouco , ou em nada, eſtas hon .
ras , e grandezas mundanas, metten
do- as debaixo dos pés , ſe refolveo a
profeflar o noſſo Sagrado Inſtituto ,
veſtindo , como promptamente veitio ,
o noſſo ſanto habito , no noſo Con
vento Veneziano da Invocaçao dos
Santos Martyres Joab , e Paulo , que
entao florecia em huma excellente
opiniao de tantidade , e de que o Ser
vo de Deos, andando os tempos, veio
a fer dignillimo Prior. Suitentou elte
Veneravel Religioſo em todo o tem
po que viveo aquelle primitivo fervor,
com que entrara na Religiaô . Con
denou -le a principio eſpontaneamen
te a huma vida tao autiéra , e morti
ficada , que os cilicios mais aſperos,
e mais pungentes lhe pareciao brin 1
cos de menino . Uſava muito de hum C
peito de ferro . Prégava com grande
eſpirito : e como a lua vida era a que
era , fazia hum grande fruto a doutri
na junta com o exemplo , e a palavra
com o zelo . O ſeu argumento princi LE
pal , era a promoçao da maior eſtrei
teza de vida Religiola ; e ſem duvida
que nao fez menos serviços á Ordem ,
do que á Igreja.
S' Eítava tao bem opinado em ma
terias myſticas , que achando -ſe actual,
mente Procurador do Convento de
Bale , a tempo em que era Prior da
quella Caſa hum homem tao eſpiritual,
como o Veneravel Padre Fr. Joao Ni
der , o eſcolheoefte Prelado para exa
minar huma certa Religioſa , que ha .
via annunciadd prefixamente o dia da
ſua morte , o que foi cauſa de acudir
huma notavel muliidaõ de gente ao
ſeu Moſteiro , a quem o noſſo Vene .
ravel Fr. Joao deſenganou , conven
cendo claramente a Profetiza de illu
za , o que ſe verificou maiscertamen
te , do que aquelle falſo vaticinio . As
luas cao bellas qualidades lhe facili
tarað o adito para ſubirá Cadeira Epiſ
copal de Trevigi , que elle governava
fantiflimamente no apno de 1434. , e
achando - ſe em Bolonha , alli morreo
no noflo Convento , e nao com pou
COS
 FR . MANOEL DA CONCEIC ,AM
cos indicios de paſſar a lograr- ſe na
Bemaventurança da fruiçao dos leus
Apoſtolicos trabalhos. = Fontan , in
Theatr.p. 304 .
4 Em Veneza no Convento dos
Santos Martyres Joao , e Paulo , o
Veneravel Padre Fr. Barnabé Saxon .
Naſceo em Napoles de pays nobiliſſi
mos , e cahio - lhe a bõr forte de rece
ber o habito da Ordem em Caieta , das
maos de Santo Antonino , Prior entao
daquella Caſa, e de fazer a ſua pro-
filla o nas do Beato Fr. Jeremias . To.
mou com toda adocilidade, e affetto
a educaçao da Congregaçao reforma-
da , que entao fiorecia naquella Pro
partes , o piomovêrað mui digna , e
vincia ; e de tal modo abençoou o
Senhor a applicaçao do leu bom ser- juſtamente a Vigario Geral das Mil
Toens do Oriente . Suſtentava a cauſa
vo, que o fez brilhar naquelle feculo do Senhor com valor șintrepido no
como hum dos Altros de mais crefci-
dos luzimentos em letras , e virtudes .
Nao foi a menor prova deſtas ſer elei
to para adminiſtrar os primeiros em .•
pregos da meſma Congregaçao , que
ſe nao confiavao ſenaõ dos Religiolos
mais obſervantes, aflim para que fu-
ftentaflem , e levailem adiante a quel
le edificio eſpiritual , como para que
o ſeu exemplo ſerviſe aos ſubditosde
eſtimulo , e incentivo . Occupou - o a
obediencia no Officio de Vigario Gė
ral, e de Prior do Convento de S.
Domingos de Napoles, o principal de
todos, os que alli temos . Fizerao - no
depois Procurador Géral da Ordem ;
e ultimamente,com huma approvocaó
quaſi uniforme,trigefimo quarto Gé
ral no Capitulo de Veneza de 1486 .;
eco
e quando le eſperava da ſua bõamafle
nomía , e prudencia , que ſubli
as couſas da Ordem ao andar mais al
to , que lhe foſſe poſſivel , aralhou a
fua fanta morte eſta commia expe&ta
çao , dentro de hum mez logo depois
da ſua eleiçao , correndo ainda o mef
mo anno do Senhor . Vall.de Prov.
Reg . pag. 195 .
30 de Julho. 133
30. de Julho .
Vida do Veneravel Padre
FR . M A N O EL
DA CONCEIC , AM ,
Extrabida do Padre Fr. Antonio da
Incarnaçao.
I Oi o Veneravel Padre Fr.
F Manoel da Conceiçao hum
dos mais illustres Miſſionarios, que
paſſarao ás Indias Portuguezas. Co
nhecido o ſeu zelo pelos Superiores
da Congregaçao da Ordem naquellas
Reino de Macaflar,nasIlhas de Solor,
e Timor , e en outras muitas partes
daquelle continente. Vio -ſe quanto
ettava da Mao de Deos eſte ſeu bom
Miniſtro pelas muitas vezes que eſca
pou milagroſamente das maos, e cila
das dos hereges Hollandezes, maiores
inimigos da Igreja do meſmo Senhor,
do que os Mouros, e Gentios , fen
do ſempre guardado, e re guardado
deftes impios para fazer maiores fer
viços a Sua Divina Mageſtade . Por
iffo entrava neftas emprezas com ſū.
ma confiança , nao deſprezando po
rèm os meyos humanos , que melhor
podiaô conduzir para os ſeus bonsin .
tentos, Inflamava muito de ordinario
aos noſſos Portuguezes para fazerem
guerra , e exterminar para ſempre , fe
foſle poſſivel, da patria do Sol osmer
mos filhos das trevas , e monſtros da he
refia. Cuidava niſio com todo o calor ,
quando huma precioſamorte o levou
para Deos aos 30. de Julho de 1658.
2 Adoçou -ſe o ſentimento da ſua
morte com hum ſucceſo admiravel ,
que nao deixou de parecer fruto das
ſuas oraçoeos . Foi o caſo : Empren
dendo aquelles malditos Ssctarios dei
tar fóra de Timor os Portuguezes , e
muito principalmente os Miſſionarios,
e
134 FR. MANOEL DA CONCEIC ,AM
e Miniſtros Evangelicos , e aſſolar os
Dominios do Rey de Amarrafto , que,
depois de convertido , e bautizado
pelo noſſo Fr. Rafael da Veiga , ja-
mais quiz aflentir ás inſtancias dos mef-
mosHollandezes , que o perſuadiao a
apoitatar de nofla Santa Fé , e contra-
hir alliança com elles ; vieraõ de man-
dando aquellas terras com hum exer
cito mui poſſante : as vantajens, que
havia da ſua parte , podiao parecer
inſuperaveis humanamente ; porque
o Capitað era mui pratico da diſcipli-
na da guerra , e os guias tinhaó hum
conhecimēto mui individual do paiz :
iſto porém nao obſtante , forao ettes
de tal modo infatuados , que condu-
zirao a ſoldadeſca por caminhos mui
aſperos , intracaveis , e eſpinhoſos,
que quando chegaraó a aviſtar -ſe com
a gente do Rey apenas podiao ter- ſe
em pé . Mas postoque o leu canſaço
foſſe em tapto extremo, vendo a pou-
ca gente ,que havia para lhe fazer roſto,
ganharao mais confiança. Cuidavao
elles que podiao invadir a terra , co
mo coſtumamos dizer , ás maos lava-
das ; porêa o Senhor dos Exercitos,
e Vitorias ,tinha determinado as cou-
ſas muito de outro modo .
3 Havia alli hum Capitao Portu
guez , parece que chamado Franciſco
Carneiro de Siqueira , e dezafecte ſol.
dados ; mas cinco deſtes por doentes
nao eſtavaõ em termos de pelejar .
Vendo -ſe aquelle Monarcha em huma
conſternaçao tao inſtante ,pôs os olhos
no Ceo , e com huma fanta confiança
pedio favor a Sua Divina Mageftade,
ſuppoſto que , por lhe fer fiel, chega-
va a ver -ſe em hum aperto tað gran-
de . Travou- le a baralha , e dando húa
bala no ventre do Capitað , o que foi
viſto de huma e outra parte , cahio
em terra , ſem fazer- lhe a mais leve
offenſa . Havia dous poftos mais im-
portantes que defender , e determi-
nou o meſmo Capitao que ficaſſem
ſette homens no mais perigoſo , e que
foſſem cinco guardar o outro paflo :
aſlim ſe executou ; mas vendo o Ca-
30 de Julho.
pitao , que diſcorria , como era precia
lo , ora por ella , ora por aquella par
te , que eſtavað pelejando doze ſolda
dos juntos , lhestoinou a advertir que
foflem cinco para onde os tinha man
dado , mas elles, nao obitante eſta or
dem , ficasað alli perſiſtindo, e guer
reando aféquedo. Naó havia aquelle
tempo Religioſo algum dos noſſos na
quella povoaçao ; mas osinimigos viaõ
hum , que com huma arma de fogo ,
que elles viao carregar por outra peſ
loa , fazia nelles huma notavel mor
tandade . Diziao- lhe elles , como por
zombaria : Veja lá Padre como atja
ra ; porque ſe naõacerta , destamo- lo a
terra. He o que elles queriao , mas ;
por muito que trabalhavao em fazer
ſhe pontaria , jamais lhe pudera o to
car .
4 Com aſfaz de confuſao ſua ore
ferirao elles aſſim , nao ſomente em
Cupao, Solor, e Maflacar, Jenaõain
da dentro de Hollarda d
, izendo que
nunca mais tornavao a Timor , viſto
que alli havia Religioſos tao def!ros 0
em pelejar . Começou - ſe a contenda
43
de manhaā muito cedo : eraõ ja tres
horas depois do meyo dia , os noſſos
nao haviaõ perdido nem hum toldado,
e do campo dos inimigos fahiao rios
de ſangue , e eſtava todo juncado de
corpos mortos de Hollandezes, Ter
nates , Amboins , e de outrasnaçoens
confederadas com aquelles feros ini.
migos da noſſa unicamente verda
deira , e tapuiſſima Religiaõ Catholi
ca. Vendo eſtes ifto , deixaraó -ſe pe
netsar de hum tao grande horror , que
deraõ a fugir mais que depafo. Ven
do iſto osnoſſos , forao - lhe nas coſtas ,
carregando os com tanto brio , que
ainda fizeraõ nelles hum muiconſide
ravel deſtroço. Os mortos Hollande:
zes foraõ trezentos ; os dos ſeus al
liados nao tinhao numero . O deſpo
jo foi de muita conſideraçao , e com
elle ficarao enriquecidos os noſſos
combatētes . Ficaraõ tres eſtandartes ,
alguns tambores , muitas peçasde ar- .
tilheria , e huwa nao pequena quan
cidade de viveres. 5 Ven
 FR . JOAM DO ROSARIO
5 Vendo -ſe depois o Capitaõ com
os cinco Soldados , aquem ordenára
foflem fuftentar o ſitio , que era
que
de menos perigo , picado de elles lhe
nao terem obedecido , os increpou
com algumas palavras mais acres; e
elles desbautizavao -ſe , dizendo que
elle os arguia muito injuſtamente ,
porque elles haviao cumprido á riſca
o que ſe lhes mandára , e nao haviao
arredado pé daquella paſſagem , ſe-
nao quando virao fugir os contrarios
para cerrar com elles. Conſideradas
bem tantas circumſtancias de lhe ha
ver dado huma bála , fazendo -lhetan-
to damno , como ſe foſſe de algodao ;de
ver hum tao pequeno numero , e deſa-
percebido , tao glorioſamente triun.
fante de hum poder taô grande , e van.
tajoſo , e a irrilao dos inimigos , que
fallavao como ſe houveſſe i nao ha-
vendo ) algum Padre no exercito , fez
ver evidentemente que o Ceo lhesti-
nha mandado maior ajuda ; pelo que
naõ ceſlavao de render -lhe graças : e
o Rey , pezando com a devida refle .
xao eſte incidente , ficou mais que
nunca confirmado nas verdades de
nofla Santa Fé . Entendeo - ſe , e com
sazao , que os Soldados ſupernumera-
sios , que pelejava ) com os tette , eraõ
Anjos mandados do Ceo , e que o Re-
ligioſo , que apertava tanto os inimi .
gos , era noſſo Padre S. Domingos,
tao coſtumado a pelejar pela Fé con .
tra os filhos da hereſia , que agora guar .
dava , e affiftia aquelle ditoſo Rey ga •
nhado para Deos por hum illuſtre fi
lho da ſua Ordem , o noſſo Veneravel
Padre Fr. Manoel da Conceiçao , que
tao glorioſamente o tinha trazido ao
gremio da Igreja Catholica .
30 de Julho. 135
30. de Julho.
Vida do Veneravel Padre
FR . JOAM DO ROSARIO ,
Extrabida da Relaçaõ do P. Fr. Ang
tonio da Incarnação.
I
do Roſario foj digno com
panheiro dos trabalhos , e Miffoens do
noilo fervoroſo Miſſionario das Indias
Orientaes Fr. Manoel da Conceiçao ,
e imitou -o grandemente en affervo
rar os Portuguezes a oppugnar , e ex
tinguir daquellas partes os hereticos
monitros de Hollanda, e teve a gloria
de ver por ſua intervençao outros ef
feitos igualmente prodigioſos , como
os que ja deixamos referidos na vida
de feu Veneravel Companheiro.Mor
to o Capitao Franciſco Carneiro de
Siqueira , que era o Comandante da
quella pequena eſquadra , fazia - ſe pre
ciſo prover aquelle pofto ; e era niſto
mui preciſa a brevidade , para que os
inimigos nao intentaffem tirar algum
util detta intercadencia : e nao os en .
ganava eſte penſamento , como logo
diremos . Reſolveo - fe o noſſo Vene
ravel Fr. Joaõ a embarcar para Luran
tuca , e rogar a Simao Luiz, que era
outro excellente Capitao Portuguez,
a que quizeſle encarregar -ſe daquella
Capitania. Ela embarcaçao era mui
perigoſa , porque os inimigos naõ ceſ
ſavao de infeſtar aquelles mares ; mas
o Anjo do Senhor livrou aquelle na
vio das garras daquellas harpyas, com
o que pode o Veneravel Padre che
gar ao deſejado termo que ſe propu
nha perſuadir Simao Luiz a que paf
ſafle a Timor , referindo-lhe as eſtu
pendas maravilhas queja contamos na
memoria que eſcrevemos do Venera.
vel Padre Fr. Manoel da Conceiçao ,
e paſſarem ambos com bom ſucceſſo
á meſma Ilha de Timor .
2 Quando chegáraó , acháraó que
o Hollandez bavia dado principio ao
projecto que tivera de expulſar dalli
os Por
 136 FR , JOAM DO ROSARIO
os Portuguezes , e ſenhorear -ſe da ter-
ra , fazendo no coraçao da Ilha huma
inexpugnavel Fortaleza , que com ef.
feito eſtava ja começada , exiſtindo al-
di perto de cincoenta Soldados Hol-
landezes , fóra hum monstruoſo nu
mero dos ſeus alliados . Entendendo
Simao Luiz que mais facil lhe ſeria
deſalojar o inimigo em quanto elle
nao ſe acabava de fortificar , juntou o
maior numero de Soldados , que pôr
de , e foi demandar o Forte principia-
do . Foi couſa notaveloque aqui acon-
teceo ; porque vendo - le buſcados de
ſte pequeno exercito os Hollandezes,
e ſeus amigos , ficáraó de tal modo
cortados , que ſelhes eſtava lendo nos
ſemblantes qual foſle o medo, e o ter-
ror , que lhes infundia a noſſa viſta :
pao ſe dando alli por ſeguros , ſem fa-
zer a menor repugnancia , forao der.
pejando a toda a preſia, levando com
ſigo o trem da lua artilheria . Indo-
ſe fortificar no alto de huma monta
nha mui eſcabrofa , einacceſſivel , em
prendeo Simao Luiz ir alli atacallos :
a empreza era generoſa , mas difficul-
tofillima; porque, pela razao ,, que
que ja
apontamos , era neceſſario montar
aquelle poſto ,lubindo como de gati-
nhas . Nada lhe fez mudar de relolu
çao : tentou -ſe elta , e venceo -fe.
3 Inveſtio Simao Luiz com osini-
migos como hum Leao ; e eisque el.
les, vendo-nos diante de ſi , ficaram tao
1 atterrados , que nem ſequer tiverað
animo para nos carregar com hum ti .
ro de eſpingarda, o que he couia bem
notavel ; porque, humanamente fal-
lando , como elles eſtavaõtao melho-
rados , e vantajolos de poſto ,antes de
virem comnoſco ás maos , ( ſe aqui nao
houveſſe , como piamente ſe entende
que havia , auxilio do Ceo , que nos pa.
trocinava , e atterrava os ſeus, e non
fos contrarios ) ſó com pedras nos po-
diao fazer reziſtencia , e ainda muito
damno ao tempo ,em que ſubiamos,ain-
da quando os noſos combatentescom
puzellem hum exercito extraordina-
rio . Virao -ſe os triſtes , e pobres ho-
30 de Julho
mens tao atarantados, e confuſos, que ,
faltando-lhes o animo , e as forças para
dar hum ſó tiro , lançáraó bandeira
branca para capitular . Parece que ſe
repetio aqui aquella eſpecie de mila
gre , que refere a Eſcritura Sagrada de
Jonathas , e de ſeu Eſcudeiro , quan,
do , depois de haverem ſuperado altu
ras mui fragoſas , e difficultofiflimas
para chegar ao campo dos Filitteos ,
ficárað eltes tao perturbados, e atto
nitos , que huns cabirao diante de Jo
nathas , e o ſeu armigero matava nos
outros , ſem encontrarem alguma re
ſittencia. Nao de outro modo os Por.
tuguezes , de tal modo confundirao ,
e confaſcináraõ aos Hollandezes , e
ſeus parciaes , que mais pareciaõ elta
tuas que homens , antes infenſiveis
que viventes .
4. Sem embargo da bandeira bran
ca , que ſe deitou , avançáraó os noſ
ſos adiante , e fazendo aos Hollande
zes prizioneiros de guerra , pafáraó
à eſpada huma notavel ' multidaó dos
ſeus colligados; e querendo muitos
delles evitar eſta ultima furia , ſe del
penbávao da montanha abaixo , aon
de tambem encontravao outro cruelif
fimo genero de morte , acabando fei
tos em pedaços : deſorte que , feito o
computo dos que alli ficáraó , houve
mil e oitocentos mortos . Naõ forao
ſó eſtes os unicos máosluceflos , que
tiverao os naturaes do frio , e alagado
inferno de Hollanda , como aſſimelo
quentemente lhe chamou o noſſo ,
apezar da ignorancia , e muito maisda
inveja , ſempre grande Padre Anto
nio Vieira , ornamento de Portugal , e
immortal gloria da Eſclarecidiflima
Companhia de Jesus : em outras mui
cas partes, em que quizeraõ extirpar á
nofſa Santa Fé , lhe acontecêrað ou
tros muitos ſemelhantes fracaffos ; o
que , ſe nao fofle gente tao mundana ,
que ſó cuida na ſua conveniencia , co
mo ſe nao houveſſe , como nós cre
mos que ha, eternidade , e hum Deos
juſtiſſimo, lhes podia ja ter feito abrir
os olhos . Perguntados depois pela
cal
 RECOPIL A C, A M de 30 de Julho , 137

cauſa do pânico terror , que os fatia de
ſalentar , e eſmorecer , havendo ( na-
turalmente fallando ) tanta vantajem
da ſua parte , na reſpoſta , que derao ,
confeflaraó , e confirmáraó os prodi-
gios que ja deixamos eſcritos na vi-
da do Veneravel Padre Fr. Manoel
da Conceiçao . Seu companheiro o nhor pelos ſeculos dos ſeculos no fim
noſſo Veneravel Padre Fr. Joao do
Roſario , que contribuîo tao glorio .
Jamente para eſta ſegunda victoria ,
pelo que he mui digno deſte lugar ;
porque lá parece que nunca Deosſe
deixa de ſervir para couſas rao grano
des daquelles que faõ ſeus boos fer
yos , he mui crivel que , alcançando
a derradeira do inferno , paſſou a lo-
grar -ſe ultimamente da eterna felici
dade . Vivia pelo anno de 1658 .
R E COPIL A C , A M
de 30. de Julho .
I M Leao de França o Ven
E neravel Padre Fr.Joao . Foi
Varao de eſtupenda lantidade : efta
grande pratica lhe deo a lanca con
fiança , com que zombou do inimigo
hum dos mais poraveis Prégadores
D minicanos , que annunciaraó a pa
lavra de Deos . Nao ſomente fazia
guerra aos vicios, queria que todos
fizellem o meſmo. Melhorou muitas
conſciencias, fez muitas converſoens,
e paſſou a lograr -ſe da viſta do Se
do decimoquarto . A ſua memoria fi
cou tað illuitre , que, para ficar eter
na na posteridade , ſe recomendou
em hum elegantiſſimo diſtico latino ,
que lhe ſerve de Epitafio. EM . SS.
Metz . Apud. Soueg.
3 Na Provincia de Alemanha hum
noſſo Veneravel Religioſo , de quem
nao fabemos o nome, digno de ſer
eterno em marmores , e bronzes pe
las fuas excellentes virtudes . Era co
mido incelantemete do zelo de major
gloria de Deos , e salvaçao das almas.
Teve hum dem mui particular para
conhecer , e diſcernir as illuloen , e
eſtratagemas de inimigo. Teve fingu
lar methodo para a partar da ſua com
municaçao aquellas peſſoas , que ,do
tando- as o Creador de entendimento ,
e razao , fazem alliança com ette mala
dito , como ſe pudeliem viver em boa

no ultimo extremo da ſua vida . Ap- paz com quem nao buſca mais que
pareceo - lhe elle entao para o amedre a ſua maior delgraça , e ruina . Hum
iar , e perturbar ' ; mas o bom Religio- caſo della natureza lhe aconteceo com
fo lhe dille , como outro S. Martinho : huma feiticeira, que morava em hum
Que fazes ahi beſtafera ? Ettava pre- pequeno lugarejo ,em que le rêa quali
jente o Prior , e perguntou lhe: Que dade do teu elpirito , e prudencia.
beſla era, a de que fallava ,e aonde a via ? S Dizia -lheella, ý nasnoitesde to
Padre Priori( tornou elle ) a beſta, de dos os Sabbados era tranſportada ſo
que fallo , he o demonio, que eſtá allibre naturalmente com outras perloas ,
na figura de huma mulher mui velha , tambem como ella poctarias, a outros
fcißima , e horrivel: mas a Deosgra . lugares . Canſou-le o bom Padre com
ças, nieszbum medo lhe tenho ; porque ella , pertendendo deſenganalladaquel
a verdadeira Fé, de que ſempre fiz lo abulo , dizendo -lhe queiudo aquil
huma prufiſaõ mui cordial, me ad- lo maó era mais que huma mera ima
quirió ( bendito seja o meſmo Senhor) ginativa fantaſtica : ( o que he fegui
a minha eterna ſalvaçci ). Diſe , e do por grandes Letrados , ainda que
dalli a pouco fechou Tuavemente os algumas vezes realmente pode aflim
olhos em Sua Divina Magestade no acontecer )masa pobre in ulher lhe cor
anno de 1250. = Vita Fratrum.5.p . nava , mui ſenhora de ſi , que elcuzaſ.
fe de ſe amofinar em perſuadilla ; por
6. 6. 3 •
2 Em Metz o Veneravel P. Fr. que aonde etiava a lua experiencia
Diogo Roſcel. Efte bom Padre foi eraõ fruitradas codas as razoens , que
S elle
Tom . VII
 ILAC
138 RECOP , AM
elle lhe podia allegar . Ora eſtá bem ,
( replicou o Padre ) pollo eu tambem
1r a elas partes , aonde tu dizes ? E
porque 1120 ? ( tornou ella ) na oſómen-
te Voľa Paternidade, ſenaõ ainda as
perſoas que quizer , para me ſerem te-
fiimunhas de tudo. Convieraó -ſe em
que viria o Padre para a primeira de-
itas bellas occaſioens, e nao faltou el.
la á ſua palavra , fazendo avizallo que
podia vir em tal dia a ſua caſa : acudio
o Servo de Deos a ella , acompanha-
do mais de alguns . Chegada a hora ,
e eſtando todos preſentes, poz ella hűa
maſſeira de amallar pað eincima de
hum banco , allentou - ſe nella , difle
algumas palavras ſuperſticioſas, e be
Tuntando - ſe com hum certo unguento
ſoporífero , immediatamente adorme-
ceci entrou logo a ter huns ſonhos
tao alegres , e feſtivos, que a ouviaõ
cantar , ainda que nao em voz muito
alta ; e erao tao rijos osmovimentos,
e gatimanhos, que fazia com osbraçor ,
que vindo banco , e maffeira a terra ,
partio mui notavelmente acabeça,
( le he que a tinha ) e ainda aſlim naó
acordava ; entao o Veneravel Padre
The começou a gritar com grande for-
ça dizendo -lhe : Ora mulher , dize-
nos aonde eſta's , ſe em tua caſa , ou
se tens fali ado della ? Tu fim muda-
ltes de lugar , bem á tua cufla ; mas
foi de cima dobanco para o chao. Tor-
nou entao em ſi a mileravel, e ven-
do -ſe cao mai ferida, e illuſa , foide
tal modo a ſua confulaó , que, renun-
ciando os commercios infernaes , fez
penitencia do feu erro , e viveo , e impio Duque de Borbon , avantajan
morreo como huma boa Chriſtaā . Fi-
nalmente o noſſo bom Religioſo , ga-
nhando , aſſim como eſta , outras
muitas almas para Deos , paſſou a go-
zar da ſua viſta no anno de 1420. =
Nid . in Formic.l.2.C . 4.
4 Em Roma o Veneravel e Illu-
ſtriſſimo Biſpo Sorrentino D. Fr. Fi
lippe de Strozzis . Era natural de Flo-
rença , e teve cinco irmaostodos Re-
ligioſos exemplariſſimos da Ordem :
niſo pareceo o Servo de Deos mais
de 30 de Julho.
leu irmao do que no ſangue, mas an
tes os excedia , que os imitava , bem
como a Lua excede as Estrellas meno
res . Recebeo o habito da mao do noss
ſo Venerável Padre Fr. Jeronymo Sa ,
vonarola no Convento de S. Marcos,
no anno de 1495. , e foi hum dos me
ritiſſimos discipulos daquelle nofloin
ligne Religioſo . Teve diverſos em
pregos na Religiao , chegando a ſer
Vigario Géral , officio que exerceo
muitos annos ; e aſlim nette , como
em todos os outros cargos, que ſer
vio , motirou bem , aſlim como o ſeu
preſtimo , e capacidade , a lua Religiao,
e o ſeu zelo. Conſiderando Clemen
te VII . a fua grande piedade , e oleu
raro merecimento , elevou - o á Cathe
dral de Sorrento : elle a occupoudig
namente alguns tempos , e nao teve
pouco que padecer por ſuſteorar , e
cumprir com as ſuas paſtoraesobriga
coens . A fua humildade , e de ſinte .
ieſle , e o amor , e ſaudade com que
vivia da ſua Religiao , o perſuadirao
a fazer , como fez , huma Evangelica ,
e generofarenuncia da ſua Igreja ,aon
de foi muitolentida eſta ſua reſoluçao
pelo muito que as ſuas ovelhas o ama.
vaó , e elle certamente lho merecia .
S Voltou para Roma, para a ſua
Religiao , e alli ſe deo a huma vida
tao ſanta , que igualmente cauſavain .
veja que edificaçao. Netta fanta , e
ſacerdotal Cidade padeceo alguns in
commodos , que fizeraõ relplandecer
grandemente a ſua muita reſignaçao
na vontade do Senhor. Entrando o
do -te aos antigos Atilas, naquella Ca
beça do mundo , com o exercito Im
perial, que todo ſe compunha de re
finadiſſimoshereges , fizeraõ eſtes alli
as mais infolentes , e deſcaradasmal
dades , e profanacoens, que o inferno
lhes ſuggerio . Saquearaó , deſtruirao ,
e tratáraó os Romanos comindizivel
indignidade. Com eſta occaſiao foi
captivo tre ; vezes o no To Veneravel
Biſpo: por duas ſe reſgatou elle das
unhas daquelles milhafres infernges ;
da
 FR . THOMAZ CARAFFA
da ultima ja nao tinha com que con
tentar a lua inſacia velambiçao , e nao
lhe faltaria que fentir , ſe a generoſi-
dade de Pompeo Colona , ſummamē.
te affeiçoado á ſua virtude, lhe inaő
valera. Finalmente depois de ter vi
vido com toda aperfeiçao Chriſtaa , e
Religioſa , foi huma ſanta morte o ter-
mo dos ſeus trabalhos , e o principio
da eterna dita , de que entrou a ſer
eternamente pofluidor em 30. de Ju-
Ibo de 1545. Jaz ſepultado no noilo
Convento Minervitano em hum mag
foleo , que elle lemandára fazer mui-
10 antes , para ſe lembrar da ſua mor
te , e nelle ſe lê o ſeu Epitafio com
poſto por elle melmo , de cujas clau-
ſulas bem conita qual fofle a ſua de-
voçao , e humildade. = Ex Fontan ,
in Theat. p. 101 .
31. de Julho.
Vida do Veneravel Padre
FR. THOMAZ CARAFFA ,
Extrahida do Anno Dominicano , e
outros.
I Ao foi pequena a ſeme
N Thança , que teve o nosſo
Veneravel Fr. Thomaz Caraffa , af.
ſim como no nome , na nobreza , no
habito , na virtude , na ſciencia , e
em outras muitas circunſtancias com
o noſſo Anjo das Eſcolas Santo Tho-
maz de Aquino. Era filho dos Mar
quezes de Anzi , e Santa Lucida , e
mettendo debaixo dos pés os eſplendo
res, e honras do ſeculo , entrou na
noſia Ordem , a que deo tantos credi
tos com a ſua virtude , e ſabedoria ,
que ſe pode chamar verdadeiramen
te huma das mais flámantes Eſtrellas
!
do Firmamento Dominicano . Foi
dom muito particular o que teve pa .
ra as letras . Nao ha palavras que poſ
ſao dignamente explicar os ornamen-
tos da ſua facundiſſima Rhetorica ;
por iſſo occupou , e encheo os mais
luſtroſos pulpitos de Roma , e das
Tom . VII.
31 de Julho . 139
principaes Cidades de Italia ; mas era
tal a ſua eloquencia, que , parecendo de
Serea , nao attrahia , lenao que forte
mente deivjava as conſciencias dos
infames naufragios da culpa.
2 Era impoſſivel ſer ouvido , e
nao fazer huma mui fenſivel commo
çaõ nos animos . Prégando em huma
occaſiaô em Napoles , de tal modo de
fenredou os nós mais cegos , e intri
cados , que atað , e enredao os pecca
dores , canto exaggerou o como ſe ha
via de temer a Deos, e recorrer a im
plorar quanto antes a ſua graça , tao
bem expôs a perfeição , e focego da
vida privada , e Religioſa , e tudo
com huma tal graça , e ordem , com
huma cal connexao , e regularidade ,
que nao pode conter.ſe hum dosteus
ouvintes de celebrallo em huns ele
gantes verſos, que traduzidos em vul
gar ſao deſte modo :
O ' vós em todo o ſentido
Religiofo illufire, óvós
Digna trombeta do Immenſo
Dos Exércitos Senhor :
Cahir vejo a vosos eccos,
Quaes muros de Jericó,
Os coraçoens penetrados
De tao podera fa voz .
Seus mais occultos arcanos
Vedes com mais luz , que hum Soli
Moſtrando como ao Divino
Temer deve o peccador.
Que ha de applacallo quanto antes
Dizem voſ as frazes: oh
Que bem pintais as ſuas iras !
Que confuſaõ! Que terror !
Fugis as honras do mundo,
Šendo digno da maior ;
E por não ſer viſto delle
Hum clauftro vos occultou .
Que bem aſſim perſuadis,
Eloquente Prégador ,
Que a verdadeira grandeza
Se buſca em Deos , e em Deos fó.
E que em ſua Caſa ſe buſca,
Como o ſabeis bem propor
Vós , que em exemplo , e palavra
Noro melhor Tiphys fois ?
Sii Pro
 140 RECOPILAC,
Prosegui glorioſamente
Em tað Jagrado fervor ,
E Deos nos cumpra a eſperança ,
Que concebemos de vós.
Pois ſe aſſim nos inflīmais.
Dos vosos annos na flor ,
que nao efperaremos
Quando for mais ao depois ?
Ob como nos incendvis
Do Paraiſo no amor !
Què melhor o pintaria
Hum Cherubim , do que vós ?
Largos annos , ou eternos ,
De que fois merecedur
Vivei, e a volla Ordem fanta
Se honre com Thoma zes dous.
Ja no fim delles vos vemos
Evangelico Gedeon
Do demonio , mundo , e carne
Cabalmente vencedor.
Juſto premio na verdade
Do muito que trabalhou
Volo zelo em conduzir
A creatura ao Creador
I
3 Tro quanto á ſua oratorja . Na
Filoſofia foi elle hum homem muito
grande: na Theologia , apenas lelbe
podiao igualar os maiores Coriféos ;
que profeffarað efta Sciencia Divina
nos ſeus tempos. No anno de 1608 .
defendeo humas Concluſoens dedica
das a Paulo V. , na Cidade deRoma,
no Capitulo Géral da eleiçao do Re
verendiſſimo Padre Meſtre Fr. Agoſti .
nho Galamin , honradas com a aflitten-
cia de trinta e dous Eminentiflimos
Cardeaes , que vale o meſmo que di .
zer com quaſi todos os que havia na
Sagrada Curia ; e ainda , com ſer tao
grande , pareceo pequena honra, ſup
pofto o excellente merito do Defen-
dente . Dette luftre fe doeo muito a
inveja de hum certo Dupleſis Morné,
a quem o noſſo Veneravel Fr. Tho-
maz Souages dá o honorabiliſſimo
epiteto de tambor da hereſia : mas
da calum nia , com que eſte perfido quiz
denegrir a gloria do noſſo Veneravel
Padre Caraffa, no feu impio , e falſi-
fli no Livro intitulado : Myſterio da
A M de 31 de Julho.
iniquidade , o convenceo , econfun
dio , ſem lhe deixar recurſo , o noſſo
eruditiflimo Padre Coefeló .
4 Teve tambem o noflo V.Padre
Thomaz Caraffa hum grande genio pa
ra a Poetica, e em algunsverſos que ,fez ,
ſe via hum eflylo , e hum enthuſiaimo
digno de competir com as primeiras
Muſas Gregas, e Latinas. Quandoal.
ſim enchia de eſpleodor , e de eſpe
peranças a Ordem , o levou em Na .
poles huma doce morte , para aquel
le Senhor , porquem elle havia renun
ciado o mundo , em 31. de Julho de
1614.Nao era elle do Cõclaveda Facul.
dade dos Theologos ; mas eſte labio , e
illuttre gremio , The quiz fazer , e
fez as melmas hooras , como le ode
funco foſſe tambem ſocio daquelle me
revillimo Conclave . Sahirao depois da
ſua morte impreſſas algumas das ſuas
Obras , que ſe dedicaraó ao Principe
de Biffinhano , e Chilla , Cavalleiro
do Tuylaó de ouro ,e Grande de Hel
panha, Dom Tiberio Caraffa , ecem
merecido huma univerſal acceitaçao ,
ainda entre as peſſoas de melhor cul
tura , e doutrina .
R E COPIL A C, A M
de 31. de Julho.
1 M Oxford , em Inglaterra ,
E o Venera vel Padre e ll .
luftrifliwo D. Fr. Gualtero Mauclerc .
Apenas teve igual nos ſeus tempos.
Foi primeiramente Theſoureiro de
EIRey , e eraõ tao bons os ſeus pro
cedimeotos , que o meſmo Soberano
o quiz condecorar com a honra de
the commetter a ceremonia Bautiſ
mal do Principe Eduardo , ſeu filho
primogenito . Promoveo - o depois fa
Biſpo de Carleol , e era tal o concei.
to , que fazia'dalua capacidade , ý ro
gou ao Pontifice quizeſſe diſpenſallo
de ir ao Concilio Lugdulenle ; por
que o Servo de Deos nao faltafle á
tutéla, e educaçao do Principe , de
que o havia encarregado . Tinha dous
annos
 RECOPIL A C,
annos de adminiſtraçao da ſua Igreja,
quando vendo a ſantidade, e fervor
dos noſſos primeiros Religioſos, que
paſfáraõ a fundar naquellaspartes , re
nunciou as honras da ſua Prelazia pela
pobreza , que muito amou , do noſo
habito ,que veſtio com ſumma devoçao
no pollo Convento Oxfordienſe. De
tal modo deo coſtas ao mundo , que
nao tinha mais exercicio do que dar-
le todo aos actos, e exercicios Reli-
gioſos. Foi de muita oraçao , e nella ,
e nos eſtudos gastava o mais tempo
que podia , fazendo para iſſo largas ,
e frequentiſſimas vigilias. Teveas vir-
tudes da humildade , e obediencia em
hum elevadiſſimo gráo. Foi monitro
na fciencia ; e o Author , que fez a Bi
bliotheca dos Eſcritores Inglezes ,
diz que elle foi hum dos Theologos
mais profundos do ſeu tempo . Efcre-
veo algumas Obras , igualmente uteis
que eruditas ; mas o pouco cuidado,
que houve em conſervallas, defrau-
dou o mundo literario de hum dos
ſeus mais eſpeciofos ornamentos . Fi
palmente depois de haver lucrado
tam bem com os talentos , que o Se.
nhor lhe repartira, paflou a lograrole
do premio promettido aos bons Ser-
vos no apno de 1248. = Pitſaus de
Scriptor. Anglis , & aliis.
2 Em Quiûſi, Cidade Toſcana , o
feu Veneravel, e Illuſtriſſimo Biſpo
A M de 31 de Julho, 141
D. Fr. Mattheus de Medicis . Naſceo
na Cidade de Florença de pays nobi
liffimos , e foi- o muito mais dentro
da Religiao ,aonde floreceo com gran
des avanços de piedade , religiao , e
( ciencia . Attento Bonifacio VIII. ao
ſeu tao diftinéto merecimento ,o pro
moveo áquelle Biſpado ; e deſempe
nhou elle tað altamente as ſuas Epif
copaes obrigaçoens, que depois de
paftorear quatorze annos os ſeusſub
ditos com muita ſantidade de exem .
plo , e doutrina , ſe foi uoir , por meio
dehuma boa morte , ý lucedeo noan
node 1313., com aquelle Senhor , que
he , como Elle ſe chama a li , cao bom
Paftor, que offereceo os hombros ao
pezo das ſuas ovelhas deſgarradas , e
por todas ellas chegou a ſacrificar a vi
da em huma Cruz . Fontan.in't heat,
p . 175 .
3 Em Syria o Veneravel, e Illuf.
triffimo Biſpo Auricenſe D. Fr. Am
broſio Butigella . Era da Ilha de Mal
ta , e de vida tao Apoftolica , que ſen
do promovido aquella dignidade no
anno de 1555., e pregando aos infieis
Syriacos , depois de haver feito nume
roſas, e admiraveis converſoēs , paſ
ſou , por huma boa morte, a lograr -ſe
da viſta daque lle Senhor , por cuja
gloria tanto havia trabalhado , no an
no de . 1560. = Ex eodem Fontana .
P.135 .
PRI
 142
PRIMEIRO
VIDA DO VENERAVEL , E REVERENDISSIMO PADRE
FR . JOAQUIM
TURRIANO ,
Trigefimo quinto Geral da Ordem dos Prégadores ,
1
Extrahida de Pio . p . 2. k. 3. e de outros .
RIQUISSIMA Cida-
de de Veneza , eſpo-
la do mar Adriati-
A co , foi affortunada
patria do noſſo Veneravel , e Reve
rendiſſimo Géral Fr.Joaquim Turria .
no . Veitio o noſſo habito , e profef-
ſou a posla Regra no Convento , que
) allitemosdedicado aos Santos Joao , e
Paulo . Nas letras fez o Servo de Deos
progreſſos extraordinarios , e era tao
Iciente nas tres linguas ſcientificas , e
condecoradas no titulo da Santa Ar-
vore da Cruz , Hebraica , Grega , e La-
tina , que apenas havia quem o igua-
Jaffe , ninguem que o excedeſſe. Di-
dou , e nao com pouca gloria , e lu .
1 ſtre da Religiao, Metaphylica em Pa-
dua , e ilustrou con hum belliſſimo
Commentario a Phyſica de Ariſtote .
les. Atcentos a eſtas , e a outras mui-
tas luas elpeciofiflimas qualidades, foi
ſubindo de degráo , em degráo os car.
gos da Ordem , até que veyo a parar
ultimamente no maior de todos. Era
elle , e o havia ſido muito tempo , Pro .
vincial da ſua Provincia , entao cha-
mada da Lombardia inferior , e ago.
ra S. Domingos de Veneza , quando
foi eleito ao Generalato , no Capitulo
celebrado em Veneza , no Convento
de que o Servo de Deos era profeſſo ,
no anno de 148 7 .
Foi mui feſtejada eſta eleiçaõ ;
porqueno tempo, em que tivera o Pro-
DE AGOSTO.
33SE
:*in
'22.
vincialado , que agora depunha, achan
do -ſe em muitiſlimos, e eſplendidos
conclaves tocantes á Ordem , ſe tinha
diftinguido altiſſimamente em todas
as condiçoens , e requiſitos de hum
perfeito Prelado . Nao fizeraõ reparo r
os Capitulares em que ele tiveſſe , co e
mo tinha , letenta e hum annos , e elle Di
exerceo aquelle officio por mais tre
ze , que ainda viveo , com igual credi
to que utilidade de toda a Ordem .
Nao foi baſtante a lua muita idade ,
para que elle nao tentaſſe viſitar , evi
litou , muitasProvincias , e ainda che
gou a celebrar outros muitos Capitu
los , hum em França no Convento da
Cidade de Mans , no Ducado de Me
na , e dous na Cidade de Ferrara . Em
todos elles ettabeleceo Conſtituiçoēs
ſantiſſimas.Faremosmençaõ dehuma ,
tocante ao Culto Divino , de que foi
ſempre zelador acerrimo . Ordenou
pois : que o officio Divino ſeria Totum
duplex nas Feſtas dos Apoftolos , dos
quatro maiores Doutores da Igreja ,
que o Papa Urbano VIII . mandou ce
lebrar com os Apoſtolos . Aquiadver
tiremos de caminho , que a eſtes qua
tro inclytos Doutores , os Santos Je
ronymo , Agoſtinho, Ambrofio, e Gre
gorio Magno , accreſcentou o noflo
S. Pio V. o noflo Angelico Doutor
Sanio Thomaz de Aquino , e Sixto
tambem V. o Doutor Serafico S. Boa
ventura . No tempo delle grande Ge
ral
 FR . JOAQUIM TURRIANO
ral foi creada a Congregaçaõ de Tof
cana , que ſe compunha de alguns Con-
ventos, que agora ſao da juriſdiçao de
outras Provincias .
3 Entre os glorioſos progreſſos
com que aſſim florecia o Generalato
do noilo Reverendiſſimo Padre Tur-
riano , teve elle a amarga deſconſola.
çao de aſſiſtir como Juiz á condena.
çað do noilo taõ celebre Fr. Jeronymo
Savonarola , tao amarga , que nunca
mais ſe lhe vio alegria no ſemblante.
Mas ſe , ſegundo a doutrina de Santo
Thomaz , ainda aquelle que he Juiz
por Officio , quando nað póde , pelos
principios de Direito , convencer de
calumnioſas as provas allegadas con
tra o reo , deve admittillas , e ſeguillas
para dar a ſua ſentença ; com quanta
maior força ficará militando ella opi-
niaõ , reſpeitando aquelles,que naoſó-
mente nao ſao Juizes , como aqui naõ
era o noſlo Reverendiflimo Geral, le
nao que havia o de proceder em virtu-
de das ordens , e commiſſoens de Su-
periores , aquem era preciſo obede-
cer : quanto mais que , vindo ja fabrica-
da , é armada aquella téla judiciaria
por Juizes apaixonados , que funda-
vao as ſuas deciſoens em ditos de te .
fimunhas fallas , naö podia eſta cavilo
laçaõ , e maldade deixar de fechar as
portas a qualquer recurſo , ou appels
laçao .
4 A innocencia do Padre Savona-
róla le tem vitto , e apurado em mi-
lhares de apologias de pennas muito
eruditas, que o deſendem ; poſto que
aliàs ainda ſeja encontrado por ou
tras de nome nao pequeno , em cujo
numero entra , que fora melhor nao
entrar, o doutiſſimo Padre Feijó ,Be
Dediclino ; porque nao tendo , como
ninguem poderer, ſciencia certa, ein-
fallivel delte facto , e lendo couſa tao
dûbia , pois nao pode deixar de ofer ,
ſendo o litigio tao forte , e porfiado
por huma , eoutra parte , e muito mais
o que he da parcialidade do Savona-
róla , quando Sua Reverencia nao qui-
zefle , como podia , ou deixar o caſo
1. de Agoſto. * 143
em Glencio , ou propender para a par
te de mais favor , què grande mercê
nos faria em ſe conservar [ fora o mais
juſto , e o melhor ] em neutralidade ?
Porêın nao ſao ſómente ettes Apolo.
giſtas daquelle tao perſeguido Reli
gioſo , os que mais branqueao , e illu
Itrao a ſua fama ; o que ſuperiormen
te a realça muito mais , he o ler de
pois cañ authorizado pela Santa Sé
Apoftolica, e pelo Vigario de Chriſto
na terra , chegando a vender-ſe em
Roma com a ſua permiſao os retra
tos de Fr. Jeronymo , com eſta inſcri
pçao , Latina : B.M.HieronymiSavo
narola Ordinis Fratrum Prædicato
rum , Virginis, Doctoris , & Marty
ris , vera effigies. Quer dizer : Ver
dadeiro retrato de JeronymoSavonaa
róla da Ordem dos
de boa memoria ,
Prégadores , Virgem , Doutor, e Mar
tyr.
5 Tornando agora ao noſo Vea
neravel, e Reverendiflimo Turriano ,
levou elle eſte accidente , que lhe foi
tao amargo , com huma admiravel re
ſignaçao na vontade do Senhor, abra
çando efta fua difpofiçaõ como loma
Cruz vinda do Cco , podendo -ſe bem
duvidar qual das duas era maior , le a
do innocente reo , ſe a ſua propria .
Teve eite Reverendiffimo muitas
grandes, e excellentes virtudes , e foi
de huma abſtinencia maravilhofiflima .
Sempre ſe guiou por aquelle afforiſmo
da Medicina , de que ſe lembrou o
nolo incomparavel Theocryto Por
tuguez o ſaudoſiſlimo , ę melifluo Dio
go Bernardes , quando diſſe em huma
das ſuas inimitaveis Eglogas :
De pouco ſe contenta a natureza.
Comja pois muito pouco , e nao bebia
mais que huma vez no dia , ainda no
coração dos maiores calores eſtivos :
pouco tempo , que gaſtava na meza ,
fazia avultar o que elle applicava ao
que dava aos ſeus eſtudos , e Eſcritos .
A ſua modeftia foi de Anjo . Nas cou
ſas de Deos era inſaciavel. Delle diz a
r.cfia
144 RECOPILAC, AM
nolia breve Chronica addicta ás Con-
Nituiçoens da Ordem : que foi dulciſ.
ſimo , e humaniſſimo : que governou
a Religiao com caridade , e benigni-
dade : que nao era moletto ſenao aos
máos ; e que todos os bons o acháraó
bom .
6 fez - ſe tambem digno do mere
cido , e alto elogio , con que faz men
çao delle o Author da nolla Biblio
theca , dizendo : que o Reverendifli-
mo Padre Fr. Joaquim Turriano foi
homem de coniummada virtude: que
fez reflorecer com os ſeus exempla-
riflimos procedimentos a primeira
idade de ouro Dominicana : que no
feu gelto , nas ſuas palavras , e no ſeu
modo de andar , foi inſignemente gra-
ve , compoſto , e commedido : que foi
amantiſlimo da pobreza , muito eſpe-
cialmente no veſtido ; e que de tal mo
do praticava elte voto , que nao 16.
mente atalhava tudo o ſuperfluo , le-
nao que até goſtava muiras vezes de
carecer do mais preciſo. Era entrado
nos oitenta e quatro annos , e tinha
hum tal vigor , como ſe tiveſſe a me
tade daquelles . Idoio dos annos que
diſſemos , o levou huma morte reli-
giofiffima para Deos no primeiro de
Agoſto no fim do quintodecimo fe
culo. Foi a luamorte ſentida, e che-
rada univerſalmente em toda a Or-
dem , que antes perdia nelle hum pay
carinhoſo , que hum Prelado taö per
feito , e fanto como elle certamente
era . Eſpera a univerſal returreiçaono
coro do Convento Minervitano , e fi-
ca a ſua ſepultura ámao direita do cu :
tro tambem Reverendiffimo Geral
ſeu anteperultimo ſucceſſor Fr. Leo .
pardo Manſueto .
RECOPILAC, AM
do primeiro de Agoſto.
I M Rimino o Veneravel , e
E que haviaõ florecido em muita fan
ceſe , D. Fr. Ambroſio de Florença .
Na Cidade , de que tomou o appellido ,
do 1: de Agoſto.
veſtio o habito de S. Domingos no
Convento de Santa MARIA Nova.
Nelle ſe desao com toda a boa graça
as maos , as letras , e as virtudes , de que
elle ſe podia chamar propriiſlimamen
te o ramalbete. Com eſta boa parte
aproveitou muito com os ſeus ser
moens : cada hum delles era humaar
te perfeitiſſima de prégar : claro pa
ra todos , para todos util : zelo , fer
vor , regularidade , lima , erudiçaõ ,
tudo ſe achava nelles . Clemente IV .
hum dos Pontifices mais Santos que
tem governado a Igreja de Deos , e
grandemente affeiçoadiflimo ás cou
las da Ordem , pondo os olhos em
qualidades iaz egregias , para que el .
las poſtas em lugar mais alto melhor
allumiallem , põllo na Cadeira Epif le
copal de Rimino , e ele a ſervio , co fc
mo aquelle Supremo Paftor muito de
sejava. Reformou o Clero , e å imita
çao deſte todas as outras ſuas ovelhas, 01
que elle pattoreou por tempo de cin ic
co annos com exemplo , e dontriga ,
com juſtiça , e caridade . Finalmente
depois de fazermuitos, e grandes ſer
viços a Deos , foi a lograr-se para ſem
pre da ſua vitia , havendo chegado a
huma exemplar, e veneranda velhice
no apno de 1270. Deo - ſe á cerra , co
mo elle muito delejára , na Igreja do
noflo Convento. = Pius 2. pol. 1 .
col. 19. Fontan.in Theat.pag.131 .
2 Em Cahors , em Querci , o Ve
neravel Padre Fr. Arnaldo de Orguel .
Tomou elie nome de hum lugar da
juriſdiçao da quella Cidade. Foi na
Provincia de Toloſa hum dos Reli
gioſos mais antigos , e mais Santos da
Ordem nos leus aureos tempos pri
mitivos . Governou muitos Conten
tos ; e governando o daquella referi .
da Cidade debaixo do ſeu Priorado ,
tiveraõ os noflos Religioſosa commo .
didade de mudar , e melhorar de vi .
venda , trazendo con ſigo as cinzas , e
offadas de ſeus ſantos companheiros,
tidade na Caſa , que agora demittiaõ .
Verdadeiramente ſe pode entender ,
que
 RECOPILAC, A M
que todos eſtes Veneraveis defuntos,
cujas reliquias agora ſe tranſportavao,
havendo ſido garfo da fundaçao de
Limoges, e havendo tido por ſeu Prior
o Beato Fr. Pedro Cellano , erað 10.
dos dignos de ſer eſpecificados nas
noſſas bittorias, aſſim como ſe achao,
como piamente he muito de crer ,
lançados no livro da vida . Eſtava ſer .
vindo actualmente de Prior do Con-
vento de Montoban , quando o Pro .
vincial Toloſano Fr. Gerardo de Fra-
chet o fez ſahir dalli , para ir , como
logo foi, govergaro Moſteiro de Pro-
vilhe , correndo o anco do Senhor de
1258. Batte etta eleiçao para prova da
ſua virtude , e do comoelle eſtava bem
opinado na Ordem em hum tempo cao
fecundo em produzir dentro dos noſ-
ſos Clauſtros gigantes de ſantidade.
S Foi o noſſo Veneravel Fr. Ar-
naldo o ſettimo Prior daquella Caſa :
outros o computaõ pelo fexto Prela-
do della , e ao que parece nað muide-
ftituidos de razao . Vem a ſer o caſo :
Que ſendo terceiro Prior de Provilhe
Fr. Guilherme Claretii , depois de on-
ze annos deſte Priorado , deixou o ha-
bito de S. Domingos por ir buſcar o
de Cifter , na Abbadia de Bolbone da
Dieceſe de Pamiez , de que era natu
sal. He fóra de toda a dúvida , que ſe.
melhante procedimento nað póde
deixar de eſcandalizar ; mas a noſa
queixa ainda he mais viva , ſuppoftos
os grandes esforços , que fez elte ho-
mem , perſuadindo a muitos Religio .
fos noſſos a que ſeguiſiem efte ſeu ex-
emplo , como le o ir elle ſó deixalle
de fer eſcandaloſo , e em menos at
tençao de huma Ordem tao ſanta co .
mo a Dominicana . Ainda aqui nao
pára o noſſo queixume : até chegou
Fr. Guilherme ( nao ſabemos com que
boa Theologia o podia fazer ) a initar
fortiſſimamente as Religioſas para
que trocaſſem aſſim melmo , como el.
le , de Inſtituto , antepondo o Cifter .
cienle ao Dominicano : ellas , como
dignas habitantes de hum Moſteiro
Primaz de todos os noſſos , naô ſó .
Tom . VII.
do 1. de Agoſto . 145
' mente reſiſtirao a eſta perſuaſaõ , ſea
nao que , como era muito juſto , be
nemeritamente a abomináraó. Por
etta razao , pois , nao he contado Fr.
Guilherme por Prior daqueila Caſa
por alguns dos noſſos Eſcritores. O
noſſo Veneravel Padre Fr. Arnaldo
a governou fantiſſimamente ſeis an
nosi e havendo - le retirado nos ſeus
ultimos para o Convento de Cahors ,
alli o achou a morte bem aparelhado
para fechar , como fechou , lantamen
ta os olhos no Senhor , no anno de
1275. Pius. 2. p.l.i.col. 19 .
3 Em Tolola o Veneravel Padre
Arſſien . Era natural daquella Dieceſe
do lugar de Moveſin , e foi inſigneem
Religiaõ , e em prédica. Como ardia
em zelo da ſalvaçaõ das almas , atten
tos os Prelados aos notaveis progreſ
los , que elle fazia nos pulpitos, o con
ftituirao Prégador geral no Capitulo
Provincial , que le fez em Toloſa no
aono
anno de 1274. ,, Officio , que entao ſe
de 1274.
nao dava , ſenao a Religioſos de hum
mérito mui tranſcendente, e de eſpi
rito mui fervido , e Apoftolico. Elle
ſe deſempenhou tao altamente das
ſuas obrigaçoens, como ſempre o fi
zera , e delle ſe eſperava. Foi Prior
cinco annos do Convento de Carcal
fona , e nette tempo foi eleito Inquifi .
dor de Toloſa em 1277. Servio exa
Aamente eſte laborioſo, e ſagrado em
prego , aindaque por tað pouco tem
po , que no primeiro de Agoſto do an.
no proximo , e immediatamente fe .
guinte , deixou o mundo pelo Ceo ,
Bernard.Guid.ex M.SS.
4 Em Inglaterra o Veneravel Pa
dre Fr. Guilherme de Magliffet. Ef.
crevem alguns Authores , que foi na
cional daquelle Reino , e que Make
les felde,povoaçao da Dieceſe de Con
ventér , foi a ſua patria . Foi hum dos
Doutores de maior nome , com que ſe
illuſtrou a Ordem , e ainda aquelle Rei
no , e lervio os primeiros empregos da
Religiao . Fizera-ſe tao aceito a Be.
nedicto XI . deſde que na ſua Provin
cia havia occupado os poſtos maisim
T por
 146 FR . DOMINGOS GRAVINA
portantes da Ordem até ſubir ao mais
supremo della com o nome de Fr. Ni-
colao de Trevigi , que tinha reſoluto
honrallo com a Sagrada Purpura Car
dinalicia na primeira promoçao;e com
efieito celebrando -ſe eita nas ultimas
Temporas de 1303. The fez eſta graça .
Nao paſſou ella de projetada, e pro-
posta ; porque o Servo deDeos, que
tornava entao do Capitulo Géral, ce-
lebrado naquelle meſmo anno em Be-
zançon , morrendo no caminho , foi
receber no Ceo outra honra mais per-
• manente, e mais glorioſa. = Ex Guid.
Trivet . & alijs .
2. de Agoſto
Vida do Veoeravel Padre
FR . DOMINGOS GRAVINA ,
Extrabida do Anno Dominicano.
I Ntrou o V.P.Fr.Domingos
E Gravina na Religiao, cha-
mado primeiro do exemplo , e depois
das inltancias de ſeu irmao Fr. Oeta-
yiano Gravina , cambem Religioſo
Dominicano , e de hum merito muizes neſtas ſagradas fontes, que citava
abalizado.Havianalcido onoſſoFr.Do.
mingos em Piperne , e fora educado
no Seminario do Arcebiſpo de Napo-
les , aonde aproveitou muito na dif-
ciplina das bõas artes , nao menos na
pratica de excellentes virtudes, deque
por toda a ſua vida foi fideliſſimo, e
acerrimo caltor. A boa propenſao ,
e o muito amor , que tinha ás ſcien .
cias , cudo conduzio para o ſingula-
rizar em muitas Faculdades ,deque elle
foi illuſtre profeſſor. Soube a muſica,
e as humanidades com eminencia ;
porém a Filoſofia em ſummo gráo.
Neſta materia nao he tanto neceſſa-
rio fazer -lhe elogîo , como ler asſuas
muitas , e todas doutiſſimas Obras :
ellas faó o ſeu mais justo encomio :
ellas as que lhe adquirirao com toda
a juſtiça do merecimento a fama de
hum dos Varoens mais fabios , e be-
nemeritos , que floreceraõ em ambas
2 de Agoſto,.
as erudiçoens , ſagrada, e profana no
ſeu tempo.
2 Chamado , como diſſemos , pa
ra a Ordem por Fr. Octaviano , nað
foi mui difficil de perſuadir : o achar .
ſe ja caõ entrado no caminho do Ceo
facilitou brevemente as pertençoens
de ſeu bom irmao . Veltio o habito
de S. Domingos no pollo Convento
Napolitano da Saude , hum dos mais
reformados de toda a Italia , e fez o
ſeu Noviciado eſmerando - ſe em to
das aquellas qualidades , que conſti
tuem hum perfeito Religioſo , qual
elle , ſem a menor controverſia , ſem
e
pre foi. A ſua humildad , a candidez
dos ſeus costumes , a ancia , e fervor
com que aſpirava ſempre ao mais alto ,
forao huns infalliveis pronosticos da
fantidade , com que elle depois aftom
brou . O eſpirito , com que fez a ſua
Profiflao , foi em tudo proporciona .
do a tao ſaptas diſpoſiçoens. Hemui
to de crer , que havendo ſubido atélli 0
tanto , aqui remontaria agora muito 1
mais emineutes os ſeus voos . Aper
feiçoou -ſe em Theologia , e na licao
dos Santos Padres ; e bebeo taotasla
de memoria comtoda a fidelidadepagi
nas , e paginas inteiras deſtes livros ;
e nao ſomente Regentou em Napoles ,
e em muitos outros Conventos , mas
ainda dentro da meſma Roma , aon .
de foi companheiro do Procurador
Géral da Ordem , Fr. Marcos de
Marcianize.
3 Foi zelador acerrimo da pure
za da Fé , e defendeo a doutrina da
Igreja contra ſeus adverſarios com os
ſeus irrefutaveis Eſcritos , que álèm
de oito volumes de folha de juſta gran .
deza , fazem por todos quarenta e cin
co , ou quarenta e ſeis. Nos pulpitos
atroou , e ſempre ouvido de concur .
ſos extraordinarios . Prégou em Pi .
perna , em Napoles , em Palermo , e
em Roma , aonde nao poucas vezes
foi ouvido da Santidade de Paulo V.
Foi occupado em muitos cargos , de
cujas obrigaçoens ſe deſempenhou
com
 FR . DOMINGOS GRAVINA
com a bella ſatisfaçaõ que a Ordem ſe
promettia de hum Varað tao digno , tao
Letrado , e tao lanto . Fizeraö- no Vi.
gario Géral, e foi o primeiro Doutor
em Theologia da Congregaçao da Sau-
de . Como era tað verfado nas Scien-
cias Eccleſiaſticas , foi condigniſſimo
Theologo de tres EminentiſſimosCar-
deaes , que ſucceſlivamente ſe forao
ſuccedendo huns aos outros na digni-
dade Archiepiicopal de Napoles , a
faber : Os Eminentimmos , Caraffa ,
Boncompanho , e Filamarino . Tam-
bem foi Conſultor do Santo Officio ,
e teve a honra de ſer , como foi, nao
ſó membro , ſenao Deao do preclariſ-
ſimo Collegio dos Theologos de Na-
poles: Regentou os eſtudos geraes do
Convento de S. Domingos daquella
Cidade, e commetteo - le-lhe o gover .
no da Provincia Napolirana ,
4. A ultima de duas vezes , que
ſervio de Reitor do Collegio de San
to Thomaz de Napoles , foi promo .
vido porUrbano VIII.aVigarioGéralda
Ordem , e conſequentemente a ſeu
Procurador Géral. Por auzencia do
noſſo Fr. Miguel Mazarini , teve o
o poſto honorifico de Mettre do Sacro .
Palacio . Nao parariaô aqui os ſeus
empregos , e lubiria a occuparaigüas
Cadeiras Epiſcopaes, que defacto fe
The commetteraó , ſepao deſſe a 10-
das de maó , reſpondendo que, á imi-
taçao de feu Meſtre Santo Thomaz ,
( de quem foi devotiſſimo, defenden
do a ſua Eſcola taõ férvida , como in-
vencivelmente ) queria viver , emor .
rer na ſimplicidade Religioſa. Aflim
como o imitava niiło , ſeguia tambem
o ſeu exemplo , recorrendo á Oração ,
e aojsjum , para melhor alcançar a in
telligencia das Letrss Divinas. A'vel.
pera da ſua Feſta , aſſim como tam
bem á de noſſo grande Padre Santo
Agoſtinho,jejuava,em obſequio defies
dous egregios Santos Doutores da
Igreja , a paā , e agua .
5 o menos, que o noſſo Venera
vel Padre Fr. Domingos teve que ad .
mirar , foi a ſua prodigioſa literatura ,
2 de Agoſto. 147
os ſeus excellentes Eſcritos , e os im
portantes , diftin &os cargos que ſer
vio : o mais , foi a ſua fiel obſervan
cia da Regra , a que juntou a pratica
de clariflimas vircušes . Cuffava - lhe
muito a faliar com peſoas de outro
ſexo ; e he fama, que por toda a ſua
vida conſervou candida' , illeſa , e fra
grantiſſima a açucena da virgindade .
Na meſa era abſtinentiffimo ; e cele
brava com tanta piedade , e deveçao,
que a influïa em todos , os que a ad
miravao . Finalmente depois de haver
florecido com tantas letras, Religiao,
e ſantidade, paflou a deſcanſar glo
rioſamente dos ſeus trabalhos naquel
le Senhor, que he a quietaçað , eglo
ria do , ſeus eſcolhidos. A morte delte
Servo de Deos , fuccedida em 2. de
Agosto de 1643., foi univerſal, e in :
confolavelmente ſentida , e chorada
de todos os eſtudioſos, e amantesda
virrude : muito mais dos noſſos Reli .
giofos , que perdiaõ nette hum dos
maiores ornamentos que teve a Ordem
no decimoſetimo ſeculo . Fez - lhe o
Collegio dos Theologos de Napoles ,
de que elle , como ja ponderamos ,
foi Reitor , hum estrondofifiimo fu
peral , e honrou a ſua memoria com
huma Oraçao , nao menos elegante
pela ſua materia , que forao as vircu.
des do elogiado , do que pela diſcri .
çað , e eloquencia do Panegyriſta, que
as ſoube delinear , e cobrir com as
cores mais vivas , e energicas da Rhe .
torica . Fizerao -lhe tambem magnifi
cas exequias ; e oraçoens encomiafti
cas em Roma, e em todos os noſlos
Conventos de Napoles .
2. di Agoſto.
Vida do Veperavel Padre
FR . PEDRO MANSO ,
Extrabida do Padre Fr. Antonio da
Incarnaçao .
I Veneravel Padre Fr. Pe .
O dio Manlo , foi hum dos
Tii liais
 O O
148 FR . PEDR MANS
mais incanſaveis Miſſionarios, que ti.
vemos nas noſſas Indias Aſiaticas : nao
ſe pode dizer o muito que elle traba-' Irmaās , e á Rainha ſua māy ,
Ibou , introduzindo , e cultivando a
Fé nas Ilhas de Solor , e nos Reinos
circunvizinhos. Foi mandado digoa-
mente a Savo , para ſuſtentar os gran-
des progreſlos , que alli fizera em ou
tro tempooVeneravel Padre Fr.Rafael
da Veiga , e neſte laborioſo , e Apo .
tolico emprego diſpendeo elle uci-
liſſimamente nao poucos annos , de
ſempenhando -ſe do ſeu Officio com
todo aquelle zelo, que pedia a taõim-
portante commiſſao , que ſe lhe fiara.
Mandou - lhe o Irmao do Rey de Cu.
paā huma embaixada , rogando -lhe
mui civil, e cortezmente quizelle pal-
far áquellas partes para lhe adminiitar,
como elle grandemente deſejava , o
Santo Bautiſmo. Fora o VeneravelPa-
dre logo ſem alguma duvida ; como
porém naquella meſma paragem , fo-
ra morto o noſſo Veneravel Fr. Luiz
da Paixao , temendo - ſe de algum en
gano , ou cavilaçao , e de haver de
faltar aquella nova , e fecunda Chri .
Itandade , aonde era tao preciſa a ſua
alliſtencia , mandou -ſe primeiro in-
formar cauteloſamente por hum Por-
tuguez , homem de muito fundo , e
ſagacidade. Tornou elle , bem como
a pomba , com o ramoda paz , aflegu-' Rey de
rando- o de que podia navegar a Ču-
pao com toda a confiança ; porque
alli era deſejado extremamente para
regenerar em Chriſto muitos Cupa-
nezes.
2 Ficou o Veneravel Miſſionario
tao alegre com eſta noticia , quanto
nao ſe pode explicar . Embarcou , e
navegou aquellas partes com todo o
bom fuccefío, e foi melhor o que te-
ve a ſua bôa diligencia ; porque aſſim
áquelle Principe , como a quarenta
pefioas mais da Caſa Real , a todos bau-
tizou por ſuas maos . Cooperou tam-
bem muito com os noſſos Padres Fr.
Antonio de S. Jacinto , e Fr. Chry-
foftomo de Sant -lago para ſe admi-
niſtrar , como adminiſtrou , a fapta
o
2 de Agoſt .
abluçao bautifmal ao Rey de Mena ,
idoio de dezaſeis annos, a ſuas duas
Apdan
do os tempos , e tornando a Mena o
Veneravel Padre Manſo com o noſſo
Fr. Beato Serrao , em ordem ao foc
corro da Ilha de Timor , aqui foi re
cebido deites Principes, may , e i
Tho, que elle havia ganhado para Deos,
com demonſtraçoeps igualmente ca
rinhoſas , que magnificas. Tanto eſti
mavao ( e deviao eſtimas ) a quem os
havia poſto no caminho da ſua maior
felicidade.
3 Foi tambem expedido o noſſo
Veneravel Millionario ao Reyno de
Batamiaõ , cuja Rainha , que ficara
de pouco viuva , e outros muitos Se
nhores , todos tinhaõhuma ancia mui
to viva de detestar a infidelidade , em
que ſe criárað , e participar dos me
recimentos do Sangue de Jesu Chri
fto . Neſta bõa obra teve o noſſo Ve
neravel Fr. Pedro por companheiros
alguns outros Religioſos da Ordem ,
que todos receberao grande conſola
çao do Author de todos os bens , pe.
las muitas converſoens , e Bautiſmos,
que aqui fizerað. Bautizarað - ſe no
dia de Sant Iago maior o Rey de Ba
tamiaõ , a quem ſe impôs o nome de
Pedro , dous ſeus sobrinhos , filhos do
Amanece , cinco filhos do
Rey de Mena, toda a Corte , e os
principaes do Reyao . No outro dia
conſagrado ao culto da Senhora San
ta Anna , cujo nome ſignifica graça ,
forao illuftradas com a bautiſmal 'a
Rainha , e todas as ſuas damas . O
unico , entre as peſſoas da primeira
Claſſe , que pad ſe havia alliſtadoentre
aquelles tao felizes Neophytos , era o
Governador do Reyno , e eſte foide
pois bautizado pelo noſſo Veneravel
Fr. Pedro , aílim como huma grande
multidao de peſſoas de diverſas con
diçoens de hum , e outro ſexo . Aqui
ſe deixou ficar por Miſſionario prin
cipal deſta bõa, e recente Chriſtan
dade o noſo Veneravel Religioſo ,
que piamente entendemos eſtará go
zando
 SOROR LUIZA DA
zando da vifta de Deos , pelo muiro
que ſe eſmerou em ſervir fielmente
elte Senhor, cuja felicidade pafloua
lograr ao 2. de Agosto de 1645 .
2. de Agoſto.
Vida da Veneravel Irmaã Con-
verſa
SOR OR LUZIA
DA TRINDADE ,
Conforme as memorias , que ſe confer
vao no Moſteiro de Nosa Senho
ra da Confola çaõda Cidade de
Elvas.
1 Veneravel Soror Luzia
A da Trindade foi natural
da Cidade de Evora , e filha de Ben
10 Diaz , e Amara de Freitas , ambos,
ainda que de mediocre fortuna , de
vida exemplar, que criáraó a nofla
Serra de Deos com huma taõ virtuo-
ſa educaçao , como ſe antevirao o So-
berano Elpoſo , que ſua filha havia de
eſcolher. Floreceo eſta inſigne Con-
verſa muito eſpecialmente na virtude
da pureza , de que foi vigilantiſſima
zeladora . Nao le ſabe ao certo ſe fez
voto de nao quebrantalla antesdeen-
trar para o Moſteiro de Noſſa Senho
ra da Conſolaçað da Cidade de Elvas,
aonde viveo mais Angelica , do que
Religioſamente ; o que conſta , he , que
affirmou em certa occaſiao , que , ſeu-
do ainda muito menina , ſe havia der-
poſado com o ſeu Jesus. Jamais vio-
lou eſta promeſſa; antes ſe obſervou ,
que nem por hun levantar de olhos
commetteo quebra alguma neſte par-
ticular , ele acaſo prefentia qualquer
acçao que foſſe , que neſte particular
a deſgottaſle , fazja logo todo o pof-
ſivel pela emenda , e correcçao. Eſta ' nos o conſelho dos Medicos, aſſim
ſua bella qualidade foi mui contraria
aos intentos de ſeus pays , que per •
tendiaõ que ella ficaſſe no feculo pro-
rogando no estado do ſanto Matrimo-
nio a ſua pofteridade ; e vencidos fi ,
TRINDADE 2 de Agoſto 149
nalmente os obftaculos , que ſe intera
punhaõ de permeio, entrou Luzia pa
ra veſtir o habito de Leiga na referi
da Cala de Elvas , ſendo de idade de
vinte annos , com pouca differença ,
mas contados com tanta ſinceridade,
que parecia que ainda perſiſtia no
eſtado da innocencia.
2 Foi ſingular na inteireza , e ob
Servancia dos votos. Da caſtidade te
mos dito alguma couſa. Nao foi me
nos admiravel na obediencia , aſlim
ás Preladas , como aos ſeus Directo
res : nao fe eſmerou menos na fanta
pobreza , antes ſe lhe offerecerao oc
cafioens , em que moſtrou bem quan
to amava de coraçao eſte tao eſſencial
fundamento da perfeiçao Religioſa. .
O fed veltido era de eſmola ; e ainda
aflim nada lhe contentava tanto , co
mo o mais velho , e desluzido . Dan
do -ſe - lhe hum habito para que fizefle
delle huma tunica , reparou a Serva de
Deos que tinha viſto a Prelada da
Caſa com outro menos bom , do que
aquelle , que lhe tinhao dado : foi- ſe di
reita á ſua Cella a fazer - lhe offereci
mento delle ; e como aquella Reli
gioſa recuſaſſe , lhe inilava Soror
Luzia , que o trouxeſſe algum tempo ,
e que depois de mais uſado , e poido
entao lho tornaria . Na ſua Cella , que
era o vao de huma eſcada , mais ſe
podia chamar ſepultada, que mora
dora :eſtava ella do meſmo modo defti
cuida nao ſó do curioſo , mas até do
mais preciſo. A cobertura da ſua ca
ma erao duas mantas groſſeiras ſobre
huma cortiça ; e ſó depois que lhe fo
rao fobrevindo os achaques lhe ajun
cou mais hum pobre enxergaozinho :
nunca admittio outra inais branda ,
excepto quando a gravidade da quei
xa aſſim o pedia , e opreceito da Pre- ,
lada , e dos Confeſſores, e nao me
o
diſpunhao.
Nao ſe viaõ na ſua quadra ou .
tras alfayas, ſenaõhum Crucifixo pin
tado em huma Cruz ; hum Villa -Ca
fin , e outro livro da Paixao do Se
nhor ,
150 SOROR LUZIA DA
nhor , deque era devotiſſima. Nah
( abia ler a Serva de Deos ; mas quan
do ſe lhe lia , ella melma era a que
apontava neftes dous volumes os lu-
gares , que lhe pareciao . Tinha mais
humas diciplinas , e ainda que o exer-
cicio que lhes dava, he parecia pouco ,
como ella dizia , nao o era na verda-
de ; porque era cottumada a tomállas
ou por espaço de ſeis Miſereres ,
ou de huma hora . Sempre trouxe ci-
licio , e era tao amante de padecer ,
que nos dias de Communhao nunca
tomava aſſento , paſlando codos , ou
de pé , ou , o que he mais , de joelhos;
e tambem praticava iito meſmo nas
Feſtas , em que o Senhor ſe expunha
na Igreja: e fóra do neceſſario nao ſe
lhe ouvia neſtas occaſioens huma pa-
lavra . A tempo , em que eſtava fazen-
do o exercicio da Cruz, deſcarregou
em ſi meſma huma cao tremenda bo-
fetada , que lhe faltou hum dente fó-
ra . Olhava a Serva de Deos para o teu
corpo , como para o ſeu mais cruel
inimigo ; por iſto ſe deſprezava , ele
abaria com os maiores extremos de
humildade , e conhecimento proprio .
4. No ſerviço da Communidade
era infatigavel, e nao ſe apegava ao
mais ſuave , ou decente , ſenao ao mais
vil , e mais trabalhoſo . Servio em mui .
tas officinas com igual utilidade , que
diligencia : ſó nao quiz fervir na Por
taria , confeſſando - ſe por menosido
nea de ſervir neſte lugar . Em quanto
foi Sacriſtaá , zelou tanto este empre-
go , que vendeo todo o precioſo ,que
trouxera do feculo ; e junto eſte pro-
dudo com muitas eſmolas, que alcano
çou , tudo offereceo generoſamente
para que Sua Divina Mageftade foſſe
ſervida , e venerada com maior culto ,
e obſequio. Naõa depuzerao , arran-
caraö -na deſte lugarquando ja os ſeus
muitos annos a deſobrigavao de ſer-
vir : e quando ultimamente fahio para
fóra , foi com tanta violencia , que ſe
abraçava com a porta , dizendo : Ah
Sacriftia de minha alma , quem me
dera nað ſahir daqui, e que pudeſſem
TRINDADE 2 de Agoſto
supprir os deſejos, aonde naõ cbegao
as forças . Ainda depofta deste car
go , não deixava de ſervir em qual .
quer outra coula , que ſe lhe offere
cia , e entao ſe alegrava muito , di .
zendo que nao queria comer o pao
ociolamente . Nao perdia de viſta a
hora da morte ; e efta lembrança a
inſtigava a ſer mui commedida em to
das as luas palavras . Quando á noite
ſe hia recolher, ſe por ventura eſtava
converſando com alguem , pedia en
carecidamente mil perdoens de algum
eſcandalo , que dizia poder ter dado,
accreſcentando , que temia amanhe .
cer morta na outra vida .
5 Foi extraordinaria a ſua carida
de.Valeo -le della huma Religioſa, que
andava afflicliſſima com hum certo
1
gravamen da conſciencia, pedindo
The quizeſſe ſer ſua interceſora diana
te do Pay das Miſericordias , promet
tendo mais concorrer com alguma ef
0
móla para a feſta de algum dos San
tos da noſſa boa Converſa : encarre .
gou-ſe com efleito deſte negocio a
Serva de Deos , e com tað bom fuc -
ceflo , que nao cardou muito em cal .
mar , e ſerenar aquella grande cor
menra de disturbios , e inquietaçoens.
O ſeu comer quotidiano era igualmen.
te limitado , que grofleiro , e nos dias
de jejum , em queera abſtinentiſſima,
o fummo dezejo , que tinha de pade
cer por Chriſto , lhe fazia excogitar
outros novos inventos de parcimonia ,
e reſtricçao : alimentava - ſe de paā ,
e efle o mais duro , e menosmimoſo
que podia achar , e quando muito , mais
de alguns legumes , que pedja pelo
amor de Deos , para desfaltio : comia
ſempre no chao ; ſó em Quinta feira
maior , em commemoraçao , e 'vene
saçao da Cea legal do Senhor , arma
va ſobre huma tripeça huma peque
nina meſa : nunca guardava para a noi
te couſa alguma, que lhe ficava do
jantar ; porque tudo levava em con
tinente aos pobres. Carne jamais lhe
foj á boca , nao ſendo por algumaurº
gentiſſima occurrencia de moleſtia.
Sen.
 SOROR LUIZA DA TRINDADE
Sendo tao apertada noſuſtento , o era
infinitamente mais , quando fazia os
exercicios de Santo Ignacio , allim na
quantidade , como na qualidade ; e le
The davao alguma couſa de maior ap-
petencia para o goſto , pedia encare
cidamente que ſe deſle aos pobres.
Era muito liberal com elles a Serva
de Deos : ſó nao repartia por elles a
ſua raçao , porque a vendia para fe-
ſtejar os Santos, de quem era devota.
6 Deftes alcançou a Serva de Deos
muitos favores ; e nao ſerá fóra de pro-
poſito fazer memoria neſte lugar de
alguns poucos , de que nos ficou noti
cia . Dizia ella que nao havia petiçaõ
que mettefle a bum Senhor , que eſta.
va no Coro de cima , de que nao alcan-
çaſſe hum favoravel, e prompto delo
pacho. Entre os muitos Santos , que
elegia por ſeus tutelares , tiveraõ ma
ior eſpecialidade S. Bernardo , e San .
to Antonio. Cahio em certa occaſiao
a Serva de Deos pelas eſcadas da Sas
criſtia , e nao ſe eſqueceo ao meſmo
tempo de invocar o Santo Doutor
Mellifluo. Vio - a outra Religioſa ; e
quando lhe parecia que a iria achar
feitas em pedaços , a achou riodo , e
tað illela , como ſe foſſe hum ſonho ,
o que acabava de lhe ſuceder. Queria
ella que por ſua morte lhe ficafle ſuc.
cedendo outra Religioſa no ſerviço ,
e culto do meſmo gloriofo Collaço de
Chrifto ; e fuccedendo cabir de cama
esta meſma que a Serva de Deos eſco-
lhera por ſua ſubitituta , tomou huma
eftóla do Santo , e de humas eſcadasa
arrojou á enferma, apimando -a a ter
eſperança de muitas melhorias, dizen-
do haver ja recorrido a Santo Antonio ,
para que nao deixalle decahir o cre
dito de S.Bernardo . Do maior Menor
Portuguez nao foi menos tayorecida
a boa Converſa : aflim o teſtimunhou
a Serva de Deos , dizendo , ao tempo,
em que eſtava para expirar , que ti-
nha nelle hum bom amigo . Nunca a
nofla boa Converta fallava nette Sol
de Padua , ſem ſe lhe arrazarem os
olhos em ternas , e devotas lagrimas ,
2. de Agoſto. 151
dizendo ſer eſte coſtume nella mui
antigo , e da ſua criaçao : fazia- lhe a
ſua feſta de eſmólas ; e do meſmo mo .
do , que a estabeleceo , ſe ficou depois
continuando.
7 Perdendo- ſe em certa occaſiao
huma grande peça de prata , e achan
do - ſe a Prelada , por eſte incidente ,
em hum grande enleyo , e conſterna
çao , por nao ſer couſa do Moſteiro ,
mandou a Soror Luzia que foſle de
precar ao Santo , que ſe ſerviſſe de
deparar aquella alfaya: foi a bõa lub
dita correndo ao Coro , e aviſtando
o Santo , lhe diſſe com huma engra .
çada , mas irreprehenſivel confiança :
Meu Santo , huma de duas: ou appa
reça a prata , ou se acabe a noſa ami
zade : no outro dia chegou hum ho
mem a hum ferrador , entregou - lhe
a peça , que faltava , declarando ſer
das Freiras de S. Domingos ; e dito
iſto , foi- le embora . Levou o official
aquella prata a huma filha de ſeu me
Atre ; e como eſta tinha huma irmaa
80 Moſteiro , mandou - a logo á Com
munidade , e achou -le queera a mef
ma, que ſe havia perdido , e tanto ſe
deſejava. Pelas oracoens da Serva de
Deos alcançou huma ſua amiga to
mar eſtado , e ter hum filho ; mas tao
bravo , e inquieto de condiçao , que
era quaſi impoſſivel acalentallo : e co
mo Soror Luzia lhe havia mandado
huma capinha do Santo , com condi
çaõ de haver de ler Juiz da ſua feſta ,
levou - o a máy hum dia ao Moſteiro .
Esbravejaya -le o menino ſobremo
do , nao havendo geitos , e affagos
que o pudeflem aquietar : toma- o
nos braços a Serva de Deos , vai- ſe
com elle ao Santo , poem - no ſobre o
ſeu altar , e diz - lhe : Elle voſobe , ahi
o tendes, abrandai - o. Caſo prodigio
fo ! No meſmo ponto ficou o peque
nino tao manſo , e accomodado , co
mo le eſtiveſſe dormindo no ſeu ber
ço muibrandamente . Depois demor
ta a noſſa Converſa , adoeceo o mel
mo innocentezinho :mandarao -lhe as
Religioſas o Menino do Santo , ecom
elle
 C
152 RECOPILA , A
elle asmelhorias , porque com brevi .
dade fárou de todo .
8 Antevio a Serva de Deos algus
futuros, e o ſuceſlocomprovou muito
ao pé da letra as ſuas predicçoeos . Vio
em certa noite hum clarað mui grande
fobre a Sé : diſle a Serva de Deos que
illo denotava morte ; e a do Excellen
tiſlimo D. Balthazar de Villas-boas ,
que nao tardou muito , moſtrou a in
fallibilidade do annuncio . Do meſmo
modo previo , como piamente ſe en
tende , o fim da ſua vida alguns dias
antes . Pedia ella todas as quartas fei.
ras para a feſta de Santo Antonio ; e
na ultima , que empregou neſta occu-
paçao , diſle logo que nao cornaria a
pedir em outra . Logo procurou huns
arames velhos , e tirando humas pou-
cas deRoſas brancas , e encarnadas de
huns ramalhetes do meſmo Santo , el.
la meſma fez por ſuas maós o ſeu pal-
mito , e capella ; e perguntando - ſe-
lhe, porque gaſtava tempo niſto , rel.
pondeo : Que nao havia de tardar
muito , que huma, e outra couſa forſe
preciſa . Veio logo chegando a Con-
fillaó , que ſe faz pela Feſta da Máy da
Máy de Deos , e foi ella a primeira ,
que ſe chegou á fonte do Santo Sacra
mento da Penitencia . No dia da Com-
munhao diſſe: Que nao receberia 04.
tra naquelle Coro ; e depois de dar
graças , foi direita á cella da Prioreza
pedir -lhe a cova . Delped10 -a a Prela .
da , parecendo -lhe que esta propofi .
çað era effeito de loucura ; mas Soror
Luzia lhe tornou a initar , que fallava
muito em ſeu juizo , e que a cova que
Supplicava naő tardariamuito tempo ,
glhenað foſſe preciſa : entao , pornaó
ouvilla mais ,a deſpedio a Prelada com
boas palavras , moſtrando condeſcen-
der com o ſeu requerimento . Reco ,
lhida ao ſeu apoſento , logo naquelle
meſmo dia foi accomettida de huma
crueliſſima cezaő , e em letre dias ,
nem comèo , nem deo mais final de
vivente do que fallar algum pouco .
Receb20 os Sacramentos com admi
raveis moftras de piedade , e devo-
M de 2. de AgoPo
çao , e munida com eſte Divino foc :
corro voou á palma do ſeu premio em
2. de Agoſto do anno do Senhor de
1743. em idade de noventa e dous
com pouco notavel differença.
RECOPIL A C, A M
de 2. de Agoſto.
I M Provilhe a Veneravel
Gulfheimina deFan
MadreGuilhelmina
EMadre defan
jaux . Foi mulher tantiſſima. Quanto
O foile ſe deixa bem conhecer da ef
colha tez della notlo Padre S.Do
que
mingos para a fazer elle meſmo Prio.
reza daquella Caſa , no dia do Evan
gelifta mimoló de 1208. e de nunca
permittir que ella fofle , como nao
foi , aliviada daquelle cargo , lena no
anno de 1221.em que noſſo Santiſſimo
Patriarcha morreo . Quando elle pro
moveo a VeneravelMadre Guilhelmi
na áquelle cargo , Dao conítava aquella C
Communidade mais que de onze Re (
ligioſas , entrando a noſſa Serva de 1
Deos. Eis - aqui os ſeus nomes : Huma
dellas tinha o nome da nolla Prelada:
chamava -ſe Guilhelmina de Bopuy :
as outras eraõ , Ricarda , Berengera,
Aladaicia ,Curtolana ,Genciana,Mef
fanda, duas Raimundas,
huma appel
lidada Clareta , outra Paſſerina, e Bar
baixana Jordana Nove deftas Reli
gioſas eraõ aquellas moças hereticas ,
a quein o Santo Patriarcha trouxe ao
gremio da Igreja , fazendo por ellas
muita oraçao , e muitos jejuns , mo
ftrando - lhes o demonio , author dos
erros,queellas ſeguiao , na feia , e hor
rendiſſima figura de hum gato . Tive
ra o Santo huma viſao , em que ſe lhe
reprelentou o lugar , em que depois
fundou , naquella Cidade , o Moſtei
10 , allumiado de hum fogomaravilho
ſo ; e aſlim eſtas primeiras habitantes
daquella Caſa , como muitas outras ,
que nella ſempre floreceraõ em mui
ta virtude , e religiaõ , verificárað áriſ .
ca aquella appariçað . Deſobrigada a
nofla Veneravel Religioſa do gover
no ,
 SOROR CATHARINA DE
no , por morte de noſſo Padre S. Do-
mingos, e commertido o governo da
Ordem a ſeu ſucceſſor , o Beato Jor.
dao , nao foi menor o conceito , que
eſte grande Prelado fez de Guilhel
mina ; e tanto, que o noſſo Padre Soue
ges diz que morrera Prioreza da
quella Caſa. A ſua vida foi precioſa aos
Olhos de Deos , e de leus Santos : cre
ſe mui pia , e provavelmente , que tal
ſeria a ſua morte . Ann . Dominican .
2 No Moſteiro Real de Poiſly a
Veneravel Madre Soror Catharina de
Guinharde . Era de tanca virtude , que
achando - ſe naquella Caſa quatro Prin
cezas , a ſaber : as Sorores , Iſabel de
Valois ,irmaá do Rey Filippe de Va
lois; Iſabel de Artois, ſobrinha de S.
Luiz ; Iſabel de Alençon , neta do Rey
Filippe , o Animoſo ; e Maria de Bre-
tanha , filha do Duque Artus de Bre•
tanha , e de Yolanda , Rainha de Ef
cocia , e Condella de Monforte ; a to .
das preferio, ſendo eleita Prioreza .
Quatro annos teve eſte governo , que
adminiſtrou com igual prudencia , que
ſantidade . Anda eſcrito , que eſta Ser.
va de Deos morreo em Pariz, aonde
ſe retirára com toda a lua Communi-
dade , por cauſa das guerras que havia
Daquelle tempo , e que oito annos de-
pois da ſua precioſa morte , que foino
anno do Senhor de 1354., foi tranſpor-
tado o ſeu corpo ao feu Mosteiro, aon-
de jaz , eſperando a reſurreiçao uni-
verſal. Soueges.
3 No Convento de Duái , nos Pai-
zes baixos de Flandes, os muito Reli-
gioſos Padres Fr. Joao Vairrier , In-
guerando de Satura , e Jeronymo
Normán . Forao todos tres Doutores
da Univerſidade Duacenſe , todos tres
Inquiſidores Apoſtolicos contra a pra-
vidade beretica , a tempo , em que el
la eſtava mais deſafforada , e inſolente.
O noflo Padre Soveges no primeiro
Tomo do mez de Agoſto , aonde eſ.
creve a memoria deftes tres fieis
operarios da vinha do Senhor , e foi
impreſſo no anno de 1693. , diz queao
tempo , em que elle fazia a meſma re
Tom . VII.
HUNGRIA 3 : de Agoſto: 153
cordaçao , que aqui fazemos , eſta .
vaó eſtas couſas mui freſcas,
Soueges?
3. de Agoſto.
Vida da Veneravel Madre
SOROR CATHARINA
DE HUNGRIA ,
e de trinta e oito Tuas Co-Reli
gioſas
Extrabida de Fr.Sigiſmundo Fer
rario , na Hiſtoria da Proving
cia de Hungria .
1 Moſteiro da Ilha do Danu
bio , na Hungria , foi fun
dado debaixo da lavocaçao da Vir .
gem Senhora noſſa por Bela IV. do
nome , Rey dos Hungaros, e ditoſo
pay da noſſa Santa Margarida de Hun
gria . A Veneravel Madre Soror Ca
tharina, que de ſette annos tipba en
trado no Moſteiro de Veſprim, era
de huma tal capacidade , que foi ef 1
colhida por primeira Meſtra da Santa
Princeza na lingua Latina ; e na(reſo
luçaõ de pallarem ao Moſteiro da Ilha,
foi ſua inſeparavel Companheira. Era
actualmente Prioreza daquella Caſa ,
quando alli le foraõ tirar as informa
coens para ſe proceder á Canonizaçao
da meſma Santa Margarida: a poſla
Veneravel Madre Soror Catharina , e
trinta e oito Religioſas , que tinhao
vivido com aquella Real , e ſantiſſima
Senhora , e obſervado as ſuas excel
lentes , e elevadiſſimas virtudes, derao
os ſeus depoimentos , como deviao ao
merecimento da Santa , e mais quetu
do ao rigor da verdade. Todas eſtas
depoentes , excepto huma , eraó do
fangue mais qualificado do Reino , e
podendo prometter-ſe por eſtas, e ou
tras ſuas mui relevantes qualidades
grandes intereſſes no ſeculo , tivera/
a melhor , e mais incomparavel de ſe
rem Eſpoſas do Elpoſo das Virgens ,
em cuja Caſa entrarao quaſi todas, na
mais tenra flor dos ſeus annos.
2 Eraõ eſtas eſclarecidas, e Reli
U gioſif
154 SOROR -CATHARINA
giofiffimas informantes , como diffe .
mos , trinta e oito : aquellas de que
temos noticia , duas tinhao o nome de
Benta , e as mais eraõ as Sorores , A.
gueda , Margarida , Alexandra , Ca-
tharina Cautrix ; Helena , que entrou
de ſetre annos para o Moſteiro ; Ague .
da , Religioſa deſde os ſette annos ;
Ignez deide os doze ; Ilabel, filha do
Conde de Solon , deſde os ſette ; Co.
negunda , filha do Conde Bagoldi,
deſde os nove ; Eliana deide os dez ,
que farou de hum mal , que lhe deo
nas maos , tocando as da Santa : Ila
bel , tilha, e Margarida ſobrinha, de
Eftevao V. de Hungria , que ambas
eptrárao para aquella Caſa de quatro
annos , e a ſegunda fora companhei-
sa infallivel da Santa nos ſeus devotos
exercicios ; Margarida , filha do Du-
que de Makonia , que ſe deo a Deos de
nove annos de idade , e fora cariſſima
companheira daSanta , nas ſuas peni-
tencias , na Oraçao , no trabalho da
cozinha , e na aſſiſtencia que fazia ás
doentes ; Iſabel, que era Prioreza do
Mosteiro , ao tempo da morte da San-
ta ; outra Iſabel , filha do Conde de
Serenai , recebida naquella Clauſura
de ſette annos , e a quem a Santa de-
ra repentina , e admiravel faude em
huma doença de funeſtiſſimos ſympto .
mas ; Sabina , Religioſa de dez annos,
companheira da Santa no Officio de
Procuradora ; Helena , aquem appa:
receo a Santa inſtruindo - a do que de
via informar ; Iſabel filha do Conde
Thomaz Bedomerai , e de ſua mulher
Olimpiada , que havia entrado para a
Religiaó de ſette annos, e tratou a a Santa livrára de morrer , havendo
Santa familiariſſimamente ; Eſtevane.
ta , conſagrada ao Senhor de dous an-
nos , que vio a Santa já glorioſa , que
a farou de huma doença graviſſima,
fazendo - lhe o Santo final da Cruz ;
Eofroſina, que , mediante hum voto ,
que fez a Santa Margarida , farou de
hum importuno mal , que muito a in
commodava .
3 Luzia , que entrara para dentro
daquelle Santuario de mui pouca ida
DE HUNGRIA 3. de Agoſto.
de , e farou de huma lethaliſſima en
fermidade , bebendo huma pouca de
agua , em que ſe deitárað alguns ca
bellos da Santa ; Judith , filha do Pa,
latino Moiſés ; Candida , Religioſa
deſde os ſette annos milagroſamente
curada de hum terrivel achaque por
S. Bartholomeu , S. Lourenço , e S.
Demetrio , para depór o que fabia da
Santa Princeza ; Iſabel filha do Conde
Adriano , que em dar a beber a huma
fua Co-Religioſa , gravemente mole
ftada , hum pouco de vinho , em que
ſe botáraõ algūscabellos da noſſa Real
Santa , lhe deo a faude ; Alinka , que
entrara para aili idola de dez annos ,
e que farára de huma queixa , que pa
decera , por favor danoſſa Santa ; Ma
ria , a quem a Santa fizera igual mer
cê ; Petronilha , aquem huma repre
henſao da Santa deixára mais adver.
tida , e reformada ; Ignez , Senhora de
condiçaõ mui diſtincta , e que no mais
avançado da ſua idade entrou para
aquella Caſa para ſe diſpor para huma
fanta morte; Margarida ,máy do Prin :
cipe de Tranſilvania , que por morte
de ſeu eſpoſo feconſagrou ao ſeyoda
quelle Senhor que o he das almas ; a
Condeffa Olimpiada , máy de Soror
Iſabel , de quem ja fallamos, que por
conſenſo de ſeu' marido , o Conde
Thomaz Bedomerai , deixou o feculo
pela Religiao , e fora ama de leite , e
primeira aya de Santa Margarida , e
entrando juntamente com ella para
aquelle Moſteiro , nelle acabou fan
tiffimamente os feus dias . Finalmen
te a Irma . Leiga Soror Ignez , aquem
cahido em hum poço . Como he mui
perſuaſivel que os nomes de todas
estas boas Religioſas eſtejao Jança
dos indelevelmente no livro da Vida ,
nós os recommendamos aqui à poftea,
ridade , por honrar eítes Eſcritos. : .
RE

RECOPIL
RECOPIL A C ,
de 3. de Agoſto,
I M Verona , Veneravel e
E de crer , que ſeria huma feliz morte
ral delta Cidade , D.Fr. Pedro da EF
cada, da antiga , e nobre familia dos
Condes de Verona , e de muitas ou-
tras Cidades da Lombardia . Tem - ſe
por mui provavel,
que recebeo o habi
to das maos de noſſo Sáto Patriarcha :
reſplandecendo em doutrina , e
tidade como aſtro da maior magnitud ,
tanto levou as attençoens á ſantidade
de Nicoláo IV . , que o promoveo a
Paftor eſpiritual da ſua patria. Cinco
annos a governou com hum talexem
plo de virtude , zelo , e caridade , que
deixou para ſempre o leu nome igual .
mente memoravel, que ſaudoſo. El
creveo muitas Obras doucillimas , e
morreo com grande opiniao de pre
deſtinado no anno de 1295. = Ex
Bern.Guid .& Font.in Theat.pag.320.
2 No Convento de Santa Maria
das Graças da Cidade de Atripalda ,
no Reino de Napoles, o Veneravel Pa
dre Fr. Agoſtinho Lápio . Foi , como
verdadeiro Dominicano , cordialiffi-
mo amante da Rainha dos Anjos . Pe-
Jo favor deſta Celeſtial Senhora , dif-
pentadora que he , ſegundo a ſenten-
ça de S. Bernardo , de todos os bens,
alcançou muitas bençoēs , e graças ; e
finalmente a ultima de hüalanta mos .
te no anno de 1595. = Vallus. Hift.
Reg.pag.269.
3 Em Capua o Veneravel Padre
Fr. Alberio , appellidado com o no .
me da meſma Cidade. Foi Religioſo
mui Apoſtolico , e tanto ſe encendia
no pulpito em promover a gloria de
Deos , que comovido das prégaçoes,
que elle fazia na Cidade de Napoles ,
hum grande numero de donzellas , ſe
reſolveraõ eſtas a metter o mundo de
baixo dos pés , e abraçar a vida Reli .
giola . Favoreceo o bom Padre tao
ſantos intentos , e á lua inſtancia
Tom . VII.
.
A C, Á M de 3 de Agoſto. 155
fundou alli hum Moſteiro junto de
A M Porta Medina , debaixo do nome, e
protecçao do Santiſlimo Roſario . Nel
le ſe introduzio huma obſervancia ri
goroſa, e foi aceito no Capitulo ge
rol de Roma de 1644. Faz - le muito
o premio detta , e de tantas outras
louvaveis acçoes do meſmo Servo de
Deos . = Vallus.Hiſt. Reg.pag.3374
47 de Agoſto.
Vida do Veneravel , e Reve
ſan
rendiffimo Padre
FR.BARTHOLOMEU
COMACIO ,
Trigefimotercio Geral da Or
dem ,
Extrabida de Pio , e Leandro Ale
berto .
i
I Oi eſte grande Prelado de
F coda a Ordem Dominicana
filho de pays honorabiliſſimos da Ci
dade de Bolonha . Sendo de dezaſeis
annos veitio o noflo ſanto habito , e
de tal modo fe applicou ás letras , e
virtudes , que em mui breve termo ſe
fez em hutas , e outras hum dos ſeus
Corifeos mais abalizados . Em atten
çað á fingularidade do leu mereci
mento , contra o eltylo da ſua Pro
vincia da Lombardia, foi conſtitui
do , antes de chegar aos quarenta da
ſua idade , Doutor em Theologia .
Fizerao -no conſequentemente duas
vezes Prior do Convento Bolonhez ;
e governou elle aquella celebre , e
grande Cala com igual prudencia ,
que equidade : era tað rigoroſo com
figo proprio , quanto affavel com os
ſubditos: tinha huma graça tao eſpe
cial para os trazer a tudo , o que que
ria , que mais parecia que ſe lhes fo .
metriaó por vontade , que por obe
diencia . Cuſtava lhe muito o caſti
gar ; mas fazia o com hum tal eſpiri
to , e moderaçao , que nao deixavade
ſe le conhecer manifestamente o grande,
U ii fru
156 FR . BARTHOLOMEU
fruto que fazia em alliar a correcçao
com o aproveitamento .
2 Bartholomeu Comacio ; e pallando a
Outras duas vezes o fizeraõtam-
bem Regente daquella meſma Caſa ;
e nefte officio deo a conhecer opti-
mamente o grande fundo que tinha
para os governos , e cadeiras . Tinha
huma graça , huma eloquencia , e hija
ſabedoria , que nao cabem em pala-
vras : o bom ar do ſeu aſpecto ; a bel-
la cadencia , e expediçao da ſua pro .
nuncia , e o claro , e ſonoro da ſua
voz , tudo inſpirava hum relpeito , e
veneraçao de nenhum modo vulgar .
O ſeu juizo era ſubtil, claro , e pene.
trante : a ſua memoria tenaz fi liz-
mente , e a todas as luzes prodigiosa:
tao bem explicava a Santo Thomaz ,
cuja doutrina poſſuía inteiramente ,
que parecia a expoſiçaõ do melmo Au-
thor do contexco . Foi tábe promovido
a Inquiſidor da ſua patria , e exerceo
eſte tao importante officio com inex
plicavel vigilancia , e circunſpeçaó ,
Vio - le nao poucas vezes a ſua grande
conſtancia nas penas , que intrepida-
mente fulminou contra algunsimpios,
que com deteſtavel doutrina aſpira-
vaó a contaminar a pureza da Fé pela
relaxaçao , e corruptibilidade dos
bons coſtumes ,
3 Havendo dado tab bõa conta
de tao diverſos, e ponderoſos empre-
gos , foi feito Vigario Géral de toda
a ſua Congregaçao . Os acertos , com
que elle le delempenhou , moftráraó
a bõa eſtrella em que elle cinba naſci-
do para estas couſas: por eſta cauſa ,
conſultando o Eminentiffimo Cardeal
Olivero Caraffa, acerrimo, e aman .
tiſſimo Protector da Ordem , ao ſuc .
ceſſor do noſſo Veneravel Fr. Bartho
lomeu naquella Vigairaria , aonde en .
tao floreciao muitos Religioſos com
fama de grandes Letrados, e Santos ,
para elegerem pela morte do Reve .
rendiſſimo Géral Fr. Salvo Caſſetta ,
outra cabeça , que nao ſomente a fu-
stentafle no ſeu antigo , e prelente ,
plendor, ſenao que a ſublimafea
grandeza ; reſpondeo o Vigari
COMACIO 4. de Agoſto.
Eminencia , que nenhuma peſſoa lhe
Fr.
occorria mais a propoſito do que
dar a razaő , le expraiou em ſeus louvo
res , fazendo hum largo , mas bem
merecido elogio das ſuas virtudes .
Contentiſſimo o Cardeal cometta ref
posta , o propôs a Sixto IV. que por
entao o promoveo a Vigario geral da
Ordem . Morto eſte Pontifice , ſeu
Succeſſor Innocencio VIII. o confir
mou neite cargo , e ultimamente a
grandes instancias do Eminentiſſimo
Caraffa o creou Géral da Ordem em
9. de Outubro de 1484. 110 Conven
to Minervirano .
4 Verdade ſeja que eſta eleiçao
naó foi un nime; porque muitos dos
16
Vogaes , que ſe temiaõ da ſua nimia
da
inflexibilidade, lhe negarao o ſeu voto.
e
Das muitas leis , que estabeleceo , foi
d
a mais notavel preſcrever : Que todos
m
os Religioſos , que viveſlem ( ainda
ex
que folle com licença , e beneplacito
eu
do Géral ) fóra da Religiao , ſeria )
privados inteiramente das ſuas gra
dir
ças , e indultos ; e no tocante aos
cargos , e officios della , de todos os
votos activos, e paſſivos. Ennobre
ceo com muitas graças , e privilegios
a ſua Congregaçao de Lombardia ; e
fez donativo ao ſeu Convento de Bo
lonha de hum braço de Santo Alber
to Magao . Tinha o Servo de Deos ao
tempo da ſua eleiçaõ quarenta e ſeis
annos , e começou logo a ſua viſita :
chegando ao Convento de Peruſa ,
ferido de hum mal contagioſo , aca
bou fantamente naquella Caſa a 4 . de
Agoſto de 1485. pouco mais de nove
mezes do ſeu Generalaro . He coſtu
me fazerem -ſe as eleiçoeps dos noſſos
Reverendiſſimos Géraes na Veſpera
da Dominga do Eſpirito Santo ; e fal
lando Leandro Alberto do noſſo Re
verendiſſimo Fr. Bartholomeu diz
que, ſe bem le reparar , ſe pode ver que
nenhum Géral Dominicano eleito tó
ra do dia referido chegou a comple
- hum anno neſta dignidade.
4. de
 D. FR . PEDRO RANSANO
4. de Agoſto.
Vida do Veneravel e Illuſtriſſie
mo Bilpo de Lucera
D. FR. PE DR O copalmuitos edificios,
RANSANO ,
Extrahida de Miguel Pio , e Pedro
Patavino , na quinta parte da
Hiſtoria da Ordem .
I Ez-ſe o Veneravel , e Il-
lustriſſimo Biſpo de Luce
ra Dom Fr. Pedro Ranlano merece .
dor daquella retribuiçao prometida
no Evangelho aos que obrarem , e
juntamente inſtruirem ; porque nao
ió floreceo na Religiao , e no Biſpa-
do exemplariſſimamente, praticando ,
e unindo as eminentiſſimas , virtudes
deſtes dous eſtados, ſenaõ que ao meſ .
mo tempo allumiou o mundo com a
excellente doutrina dos ſeus elegantes,
e utiliſſimos Eſcritos. Muitos fazem .
no de Palermo ; he porém mais atten-
divel o ſeu melmo teftimunho , por
onde confeſſa haver profeſſado em
Auguſła , dos noſſos , o Convento pri .
macial de toda a Sicilia . Attento a
tao bella uniao , como concorria ne .
fte homem do Ceo , da literatura , e ſan-
tidade , pôs nelle os olhos Fernando
Rey de Napoles , e Sicilia para Me-
ſtre do Principe Joað , feu filho. Foi
enviado por Embaixador , da parte do
meſmo Rey, a Mathias Corvino Rey
de Hungria ; e depois de haver ſervi-
do outros empregos de importantiſ-
fim as conſequencias , foi exaltado á
Cadeira Epiſcopal de Lucera. Logo
que le vio conſtituido neſta dignida-
de, eſcolheo para exemplar das ſuas ac-
çoens a vida do noſſo Beato Agoſti-
nho de Gazoithe ; e tanto trabalhou
por ſeguir os ſeus veſtigios, que pare-
cia , quando o imitava , que o com
petia. Governou largos temposaquel-
1a Igreja , e procurou reformar , e fan-
tificar com ioda a ſuavidade, e pru-
dencia o ſeu Clero , de cujo exemplo
4. de Agoſto 157
tanto pende o acerto , ou deſacerto
das ovelhas menores. Attentiſſimo
ao melhor commodo dos ſeus Diece
ſanos fez levantar na ſua Corre Epiſ
e enriqueceo
a ſua Cathedral de riquiſſimas peças ,
e ornamentos , para que foſle mais de
cente a celebraçao dos Officios Divi.
nos.
2 Jamais cellou de enriquecer o
mundo literario com as ſuas Obras.
Era hum dos primeiros Theologos
do ſeu tempo ; e nas letras humanas,
era hum dos talentos mais famigera
dos . Conſta de muitas das ſuas Obras
a eminencia , com que elle profeſſa
va a Poeſia , a Hiſtoria , e asMathe
maticas . Nao havia para elle impedi
mento que o tiraſle , e retiraſle de ef
crever : para iſſo tinha muito na lem
brança o axioma de Apelles: Nao je
paſa dia , em que ſe nao lance alguma
linha. Ainda quando foi com a Em
baixada , que diſſemos ; do Rey Fer.
nando , nao foi baſtante o trabalho ,
e canſaço da jornada para que elle mu
dafle de ſyftema: entao he que com
pôs a ſua eloquentiſſima Hiſtoria das
couſas de Hungria. Compôs em bel
liffimo eſtylo a vida do noſſo grande
Apoſtolo Valenciano S. Vicente Fera
rer ; e quando deſcreveo o Santo ſe
delineou a ſi meſmo , deixando -ſever
muito bem das ſuas expreſſoens quan
to amava a virtude , quanto lhe era
odioſo o vicio , quanto zelava o maior
eſplendor , e gloria da ſua Religiao.
Elcreveo em quatro volumes ſobre a
Hiſtoria , e Geografia , donde bem ſe
colhe o fundo , e profundo da ſua tað
valta , e agigantadiſſima penetraçao .
Fez mais bum Livro das Antiguida
des de Palermo , e emprendeo pôr
maós á laborioſiſſimaObra de todos os
tempos ; mas chegou entretanto oda
ſua morte , que ao meſmo tempo
de bum córte truncou dous fios , o
daquella hiſtoria , que era mui pre
cioſo , e o da ſua vida precioſiſſimo.
Foi ſentidiffimo o ſeu obito , que ſuc
cedeo a 4. de Agoſto de 1492. , por
todos
158 FR . IGNACIO DE SANT.THOMAZ & c.4 . de
todos os ſeus Dieceſanos , de quem
elle, antes que Prélado , fora compa-
nheiro ; antes Pay , do que Paftor.
4. de Agoſto.
Vida dos Vencraveis Padres
FR . I GN A CI O ou Doutor em Theologia.
DE SANTO THOMAZ
FR . M ANO E L
SARDINHA ,
FR . JOAM DE MELLO ,
E de de almas naquelle valtiſſimo Rei
FR . SAL VA DOR
DO ROSARIO ,
Extrabida de huma Relaçao imprela.
I Scolheo o Senhor por Mi-
E niftros da ſua palavra , e
Authores de prodigiolas Converſoēs
eltes quatro Veneraveis Millionarios
noſſos, e favoreceo os ſeus Apottoli-
cos trabalhos com muitas bençoes , e
conſolaçoens. Cultivavaó elles a Fé
na Ethiopia , no dilatadiſſimo Reyno
de Monomotapa, ſendo infatigaveis
no trabalho deſta MifTao ; e pagou ſe
tanto o Ceo do ſeu ardentiſſimo zelo,
que o primeiro convertido , e bauti-
zado quiz ſer o Emperador pay . Era
ja mui velho , e renovou ocomo aguia
nas Sagradas aguas do Bautiſmo Fr.
Manoel: no pouco , que lhe restou de
vida , procedeo ſempre com muita
Chriſtandade , e como quem abraçá-
ra noſſa Santa Fé com toda a ſincerie
dade do leu coraçao , Aſim como vi-
veo depois de incorporado no gremio
da Igreja , aſſim morreo com demon-
ſtraçoens de grande piedade em 25.
de Março de 1652. Fr. Joao bautizou
o Imperador filho , e a Imperatriz
ſua mulher, ſendo padrinho Fr. Salva .
dor : Quizo bautizado chamar - ſe Do-
mingos , e deo -ſe -lhe eſte nome, por
ſer feito eſte Bautiſmo no diade noſſo
Padre : a ella foi - lhe impoſto onome
de Luiza . Forao tambem bautizados
dous filhos do Imperador Domingos;
e hum delles, chamado Miguel, re-
nunciando o ſeculo pela vidaClauſtral,
Agoſto.
veſtio o habito Dominicano. O noflo
Reverendiffimo Géral Rocaberti , co
mo elle meimo aſſim o diſſe muitas
vezes ao noſſo Fontana , ſegundo eſ
creve eſte Author nos teus Monumen
tos , debaixo do annode 1652. , o creu,
2 Deo -ſe o noſſo Fr. Miguel ao
exercicio da prédica , e pôs Deos tal
virtude nas luas palavras , a que ſe
juntava a ſantidade da vida , que con
verteo á verdadeira Féhumainfinida
no . Difto informou tambem em Ro
ma ao noſſo Reverendiflimo Géral ,
da Congregaçao da Pro
aos Officiaes
pagaçao da Fé , e muitas vezes aos
Religioſos da Minerva , aonde aflttio is
dous annos , o goffo Padre Fr. Luiz (
da Trindade, natural de Lisboa , e
tambem Miſſionario em Monomota 1
pa , que viera expedido pela noſſa 1
Congregaçao das . Indias aquella Saa
cerdotal Cidade . Ordenou o melmo
Imperador que foflem bautizados
tambem quatro Grandes do Reyno , e
determinou mais os nomes , que elles
haviao de tomar , que eraõ osde Fer
nando , Sebaſtiao , Joao , e Pedro :
aſlim ſe chamou hum deſtes Senhores
mui favorecido da graça daquelle
Principe , e diſſe que cinco , ou ſeis
mezes antes havia lonhado que o
bautizava hum Religioſo de habito
branco , e preto . A ettes Bautiſmos,
de ſeguirao muitos outros ; e poſto
que nao era pequeno o canſaço dos
pollos Millionarios em catequizar eſtes
muitos pertendentes dos merecimen
tos duSangue de Christo ,o goſto delu .
crar tantas almas para elte Senhor nað
fólhes aliviava eſte incómodo , ſenam
que lho fazia mui formoſo ,(na verdade
oera)e muito appetecivel. O Impera
dor Neophyto eſcreveo ao noſio Pro
vincial Fr. Diniz deLancaſtre ,congra
tulando ſe de ſer regenerado para
Chrifto pelos Religioſos da Ordem ;
e , aflim como deſta converſaõ, lhe de
raó noticia de outros fucceßlos ; que
o Padre Soueges interpreta , e nao ſem
fun
 D. FR, THOMAZ DE
fundamento , a favor daReligiaõ de S.
Domingos , entendendo que alguns
Religioſos , que , aſſim como alguns
Portuguezes vaſſailos do Imperador,
alli haviao lido mortos violentamen-
te por bum tyrannico uſurpador da
quelles Dominios , e Eftados , eraõ
noflos.
3 Tudo iſto , que continha aquel-
la carta , atteſtava o Secretario do Im-
perador , Antonio Soares . A noticia
de todos eſtes ſucceflos foi applaudi.
diffima na Europa ; e em Roma a fez
eſtampar o noflo Reverendiſſimo Gé-
ral Fr. Joao Bautiſta Marinis, para a
fazer publica em toda a Ordem . He
muito crivel que os Authores de ac-
çoens tao glorioſas eftao ja de pofle
do premio deſtinado aos que aſſim
trabalhao pela exaltaçao da noſſa San-
ta Fé , e maior gloria de Deos . O Pa-
dre Soueges eſcreve neſte dia as Vi-
das deſtes Heroes Dominicanos.
RECOPILAC, AM
de 4. de Agoſto .
I M Limoges o Veneravel
E Fr. Gerardo de Vermeil .
Foi huma das primeiras doze colum-
*nas delta Cara , e teve a gloria dere .
ceber o habito das maós de ſeu Fun :
dador o Bemaventurado Fr. Pedro
Cellano . Foi Religioſo conſummado ,
e morreo com hum ſanto no primei-
to Convenco que teve a Ordem da ou
tra parte do rio . Guid , in M. SS.
53 de Agoſto
Vida do Veneravel e Illuſtriſ
fimo Biſpo de Panamá,
D. FR . THOM AZ
DE BERLANGA ,
Extrahida de Avila , Remezal , La-
pes , e Melendes.
I Ttentos os Vigarios de
A Chriſto na terra a que os
BERLANGA 5. de Agoſtu. 159
Religioſos de S : Domingos forao os
primeiros , que paſfáraó a conquiſtar
eſpiricuralmente as Indias de Caſtella,
e aos progreſlos tao notaveis que nel
las tem feito em todos os tempos, em
tanto major gloria de Deos, e auge
mento da Santa Igreja de Roma, tem
fe dignado de honrar a Ordem , pro
movendo ſeus filhos ao governo das
ſuas mais illustres Cathedraes. Neſte
numero entra o noſſo Veneravel , e
Illuſtriſſimo Biſpo de Panamá , D. Fr.
Thomaz de Berlanga, cujas memo
rias agora pallamosa referir. Era na
tural do Lugar , que tomou por ap
pellido, e veſtio o noſſo habito no au
guſtiſſimoConvento doProto -Martyr
Santo Ettevao de Salamanca . Era hum
dos talentos mais inſignes do ſeu tem
po ; e podendo bem prometter-ſe al
gumas vantajens na ſua Provincia,
todas estas eſperanças poſpôs á gloria
de lucrar almas para Deos.
1 2 Paſſou á América ,parecegem co
panhia do noſſo Fr. Domingos de Men
donça , o principal Author do eſtabe
lecimento da Ordem paquellas partes,
e chegou á Ilha chamada de S. Do
mingos , a primeira que deſcobrio
Chriſtovao Colon , e foi hum dos que
alli mais contribuirao para plantar, e
eſtabelecer a Religiao , atravellando
todo aquelle valtiſlimo eſpaço,que dif
corre da referida Ilha acé o Perú ,
aonde elle foi expedido pelo Impera
dor Carlos V. , a quem pareceo que
nao podia haver pefloa , que vieſſe
mais a pintar , ido que Fr. Thomaz ,
para ſupprimir as civîs diſcordias, que
o inferno havia feito inſurgir entre os
dous principaesConquiſtadores do Pe ;
rû , Pizarro , e Almagro . Aflimoen
cendia o Cerar , e com effeito o noflo
bom Religiofo empenhou para eſte
fim a authoridade , a prudencia , e
quantos outros meyos lhe pôde ſug
gerir aſua vaſtiſſimacapacidade ; mas
de nada a proveitáraõ as ſuas diligen
cias. A ambiçaõ tinha ja deitado as
ſuas raizes muito por dentro daquel .
les coraçoens ; e, comoCeſar , e Pom
peo ,
160 D. FR . THOMAZ DE
peo , nao attendiao aquelles dous Ca-
pitaens mais que aos ſeus intereſſes :
cada hum delles queria ſer unico , e
diſporico no mando da Cidade de Li-
ma ; e poſtoque Almagro era paren-
te mui chegado de Pizarro , eſte o
matou : mas hum filho daquelle tiran-
do a vida a eſte cruel , e ambicioſo
homicida de ſeu pay , aſſim vingou a
ſua morte. He couſa notavel ( obler .
va o noſſo Remezal ) que todos os
deſcobridores , e Conquiſtantes da
América morrerao , ou deſaſtradá, ou
infelizmente. Vio -ſe com evidencia
em Colon , e ſeus filhos.
3 Achando le por eſta occaſiaó
em Lima o noſſo Illuſtriſſimo Biſpo ,
e conſiderando os grandes progreſlos
da Ordem naquellas partes, cuidou
muito em cooperar para ſe acabar o
noflo magnificentiflimo Convento do
Roſario , e a elle ( como aſſim o con-
feſlao noſſas hiſtorias ) he que mui
particularmente ſe deve outras muitas
fundaçoens em nada inferiores ás mais
fumptuoſas, que temos em outras para
tes. No anno de 1518. foio noflo Ser-
vo de Deos eleito Prior do Conven-
to de S. Domingos da Ilha Heſpanho-
la ; e morto no outro de 1525.0 Vi-
gario Provincial Fr. Pedro de Cor-
dova , lhe ſuccedeo Fr. Thomaz ,'que
ſabendo que o Capiculo Geral eſtava
aſſignado pelo Reverendiſſimo Fr.
Franciſco Silveſtre de Ferrara para o
anno de 1530. , paſſou das Indias a
Roma , para que la Congregaçao dos
Conventos,que tinhamos no novo mū-
do ſe erigiffe , como erigio , debaixo
do glorioſo titulo de Santa Cruz , em
Provincia , que ainda entao Dao era ;
e por determinaçao do Reverendiffi-
mo Fr. Garcia de Loaiſa eſtava incor-
porada , como a ſua cabeça , à de An-
daluzia . Logrou - ſe a ſua diligencia ,
e foi o meſmo Veneravel Fr, Thomaz
inſtituido primeiro Provincial pelo
Reverendiſlimo Fr. Paulo Butigela ,
ſucceſſor do Reverendiffimo Padre
Ferrara por ſua morte. Determinou .
ſe , que comprehenderia etta Provin-
BERLANGA 5. Agoſto.
cia todos os Conventos das Ilhas def
cubertas , e por deſcobrir , e da terra
firme do Oceano ; razao porque le
vou comfigo quarenta Religioſos, pa
raque o ajudaflem na ſanta obra de en
tender , e propagar a Religiaõnaquel
le continente.
4 Celebrcu o ſeu primeiro Capi
rulo no Convento de S. Domingos, e
aqui ſe nomeou Prior , e Sub - Prior
para o de Mexico , aondelogo paſſou
acompanhado de vinte e dousReligio .
fos , para dar - ſe aconhecer ; e como
em tres mezes , que alli teve de aſſi
ſtencia , entendeſe que aquelles Reli
gioſos emprendiao levantar Proyin
cia , e haviaõ para iſloexpedido a Ro
ina o Veneravel Padre Fr. Domingos
de Betancos ; reſolveo- le a paſſar a
Heſpanha , para que eſtas couſas ſe
terminallem , como ſe entendefle fer
de mayor augmento , e gloria da Re
ligiao . Aſſim ſuccedeo ; porque re .
preſentando os Padres Mexicanos
que ſe lhes abria huma grande porta
para prégarem o Evangelho , é fun
darem muitos mais Conventos ; mas
que lhes era inconveniencia grande
o haver de ſer feu Superior o Provin .
cial de S. Domingos , por lhes ficar
tao diſtante ; ſe condeſcendeo com a
fua pertençaó ,inſtituindo - ſe ,debaixo
da invocaçao do glorioſo Patrao das
Heſpanhas Sant-lago maior , aquella
Provincia , a que ſe aflignou por cabe
ça o Convento de Mexico .
5 Achava -ſe o noſlo Veneravel
Provincial em Valhadolid no anno de
1533. aonde tinha entao a ſua Corte
o Imperador Carlos V., que por eſte
meſmo tempo o elegeo Biſpo de Pa
damå. Governou elle eſta Igreja com
muito 'zelo da cauſa de Deos , e com
lumma caridade, que tinha com os ſeus
ſubditos. Como foi ſempre amantif
fimo da Ordem , nunca uſou de bra
zaõ particular: o ſeu Eftemma era o
da noſſa Religiao Sagrada ; e a ſua di
viſa aquellas palavras do Pſalmiſta :
Sufcitans de terra inopem , & de fler
core erigens pauperem . Finalmente
de .
 D. FR . THOMAZ DE
depois de haver attendido perto de
dez annos , com toda a vigilancia , pe-
lo maior bem das ſuas ovelhas , ven-
do -ſe entrado em annos , quiz dar ef-
ſe pouco , que ja lhe podia reſtar de
vida, em preparar le para a morte.
Inſtou com S. Santidade que lhe accei-
tafle a renuncia daquella Mitra ; e ale
cançando favoravel deſpacho das ſuas
fupplicas, reſolveo - ſe a paſſar á Hef-
pacha. Embarcou , e foi a viagem a
principio de roſas; nao aſſim mais ao
diante : porque veyo a levantar-ſe
huma tao furioſa tempeſtade, que foi
neceſſario que tomaſle cada hum dos
navios differente rumo , por evitar o
perigo de chocarem huns com outros.
Era noite eſcuriſſima ; ſó a allumiavao
triſtemente relampagos medonhos , e
tanto mais , quantoferindo de repente
nas ſoberbiffimas montanhas deagua,
as moſtravao ſummamente formida
veis , e aſſim como crefciaô , tornavaõ
a detcreſcer com hum eſtrépido pa
vorofiflimo. O vento , que zoava for-
temente , era deſtemperadiſſimo no
ajor extremo , e aſſanhava mais a fu .
ria das ondas . Tudo eraõ clamores,
tudo horror , cudo confulao. Traba-
Ihavao os marinheiros , empenhando
toda a ſua força, toda a ſua induſtria ,
mas em vao , e ja todos ſe davao por
perdidos.
6 Vendo- ſe taó faltos de ſoccor-
ros humanos , implorárað o verdadei
To , que he ſó o Divino. Poſtos dejoe-
lhos iodos , pediao com muitas lagri.
mas auxilios , e proteſtavaõ emendas:
batia - ſe muito nos peitos , faziao . ſe
muitos Actos de Contriçao, promet
riao - le muitos votos . Durou eſte cruel
temporal alguns dias , atéque movido
o Ceo de tantos trabalhos , começou
a moſtrar a ſua face algum tanto mais
clara , ſerena , e alegre ; mas ainda
naõ de todo applacada. Entao onof-
so Veneravel Prelado , que fora fem-
pre cordialiffimo devoto daquella Se-
nhora , a quem a Igreja dá o eſpecio-
ſo titulo de Etrella do mar , reveſti-
do de Pontifical, exhortou a todos a
Tom . VII.
BERLANGA 5. de Agoſto 161
que vieſſem aſſiſtir , e alternar com el
le a ſua Ladainha . Ninguem faltou , e
todos rezárao tao devotamente , co
mo ſe foſſe aquella a ultima acçao de
Catholicos, q fazerpodiao na ſua vida .
Ainda creſceo mais a ſua devoçao ,
implorando o Patrocinio da Mãy de
Miſericordia , quando virao que na
flor das ondas andava jogando , ao
parecer , hum pezado, e grandiſſimo
tronco , que vinha atopar direitamen
te no navio . Fizeraõ muito por defe
viallo daquelle horrivel encontro ;
mas , por mais que ſe canſavao , era fru
Atraneamente, que ſempre aquelle ma
deiro os hia ſeguindo , e perſeguin
do , ou foſſem para eſta , ou para aquel
la parte . Aclarou hum pouco mais o
dia , e pudéraõ ver melhor que aquil
lo nað era outra couſa mais que huma
caixa , que ao quebrar da onda ſe veyo
juntar aquella embarcaçao. Tomá
rao mais animo , e muito mais como
o mar , pouco , e pouco , le hia como
deixando-ſe adormecer , e deitárað al
gumas fateixas , com que ſeguráraõ
aquella arca , e com effeito a recolhe
raó para dentro . Antes de a abrir , en
tendendo que alliviria ( e vinha no re
trato da que ſómente ohe ) alguma ri
queza mui conſideravel, puzeraõ-fe
em competencia os dous principaes
Commandantes da máo , allegando
cada hum de ſua juſtiça , e pertenden .
do ſer o Senhor daquella adventicia
tomadia.
7 No meyodeſtas altercaçoēs difle
onoſso Veneravel Biſpo , e parece que
nao tem moçaõ ſuperior , que ſe alli
vieſſe couſa ſagrada, de juttiça ſe lhe
devia julgar . Convierao logo niſto
uniformemente; e eſtando ja o mar
inteiramente ſocegado , antes que o
Veneravel Paſtor deſpiſſe os indu .
mentos lagrados , ſe abrio a caixa :
( oh prodigio ! ) apenas ſe abrio , quan
do ſahio de dentro huma claridade
tao grande , e tao diffuſa , que cegou
os olhos de todos os que eſtavao pre
fentes , que todos ſe movêrao , ecom
moveraõ a muita devoçao. Era hum
X pal
1
162 D. FR : THOMAZ DE
vulto envolvido em alguns pannos ; e
tirados eſtes , appareceo o Santelmo
daquelle naufragio , a pomba como
samo da oliveira daquelle diluvio em
būa belliſſima Imagem da Máy de Deos
com o leu Menino , que era eſpecio-
ſiſſimo , nos braços . A gente do mar
nao ſe ſatisfazia de ver , e venerar a
ſua Senhora , confeſando todos a hűa
voz , que a Ella he que deviao tao
proſpero ſucceilo : e ſera tempo em
que ſe obſequiava a benditiflima
Rainha dos Anjos com as ſuas Ladai-
nhas , cada hum entendia ſer de my-
ſterio ; e foi- o tanto , que aqui ſe aca-
bárað todos os fuitos, fazendo aquel .
le navio a lua viagem até Heipanha
tao tranquillamente , como ſe le ca
minhaſle por terra , e por partes mui
ſeguras. Vendo o Capitað que eitas
Santas Imagens erao tao formoſas, e
elegantes , quiz tornar atrazcom a pa
lavra, que pouco antes dera ao noſſo
Biſpo , dizendo, que mais incompa ..
ravelmente eſtimava aquelles lagra-
dos Vultos , do que todo o ouro ,
prata , pedras precioſas , e todas as
couſas de maior preço , que ahi pode
liaver : que neſtes termos havizo de
ſer preciſamente leus. Entao foi re-
convindo o Veneravel Prelado , exe-
cutando-o pela palavra que lhe dera ,
com aflenſo de todos os que eſtava
preſentes. Nada foi baſtante para o,
homem le aquietar : depois de gran-
des debates , vieraõ a ajuſtar -ſe , em
que ſe levafle a quella joya do Ceo por
fortes. Deitada a primeira , ſahio pe-
lo Biſpo : ja era ſua por dous princi-
pios ; mas o pertendente era mui tei-
moſo ; pedio que ſe deitaſſe outra , dei
tou -ſe , e ainda mais outra , e de to
das as vezes ſucedeo o meſmo queda
primeira. Entao deo as mais , nao
iendo mais que allegar de ſua juſtiça.
O noſſo pofluidor , por ſuavizar de al
gum modo as ſuas desfavorecidas per-
tençoens, lhe deo algumas prendas ,
com que tudo ficou em paz .
8 Ja deſembarcado , tomou o C.
minho do lugar da ſua naſcença, e al
BERLANGA 5 , de Agoſto.
li quiz fundar hum Convento da Or
dem , e collocar em humaCapella da
Igreja a Bendita Senhora , dando -lhe
a ſua tao agradavel Invocaçaõ do Ro
tario . Ja eitava nað fómente compra
do o chao para o edificio , fenao fei
ta alguma parte delle ; conſiderando
porém os noſſos Religioſos, que alli
nao podiað ſer de tanta utilidade co
mo em Medina de Rio Secco , per
ſuadirao o noflo Fundador , que , co
mo homem qem tudo deſejava o me
Jhor acerto , e para elle nao havia cou
ſa mais poderoſa que a razao , eſteve
pelo conſelho , e em Medina he que
le fez a fundaçao . Para lá he que ſe
paſſou a Senhora , menos c ſeu Meni
no , que ficou em Berlanga : fime o
queriao levar ; mas os Conegos do
Cabido deſta terra que quizeraõbem
ficar , aſſim como com o Filho , com
a Máy , como eſta pertençao nao po
dia ter
dia viſto que o Convento ,
lugar ,, viſto
ter lugar
fe edificava em honra da Rainha dos
Anjos , e para o culto daquella ſua ve
neranda Effigie , quizeraõ que aome
nos lhes ficalle parte daquelle ſagrado
penhor : por iſlo as muitas , e muitif
limas allegaçoens, que lhes fizerao os
noſſos Religicſos, de nada aproveitá
rao . O noſſo Veneravel Biſpo , posto
que quizera que a Senhora nao fofle
tem o ſeu Menino para Rio Secco ,
com tudo , como , por tað bom filho da
ſua patria, lhe tinha muito amor , e ef
fe divamente nella
fectivamente he que lhe queria
nella he
fundar o Convento , e por ſua diſpo
fiçað alli foi a ſepultar ; lá je lhe fa
zia mais ſuave de algum modo eſta ſe
paraçao , e o conſiderar que ſe hon .
rallem tanto dous lugares com aquel
la Celeſtial prenda . Finalmente o Fi
lho eſtá em Berlanga acatado com to
da a grandeza , aſſim como a Senho ,
ja em Rio Secco , aonde he venerada
com muitas Novenas , e romagens de
monſtruoſiſſimo concurſo , e aonde fe
tem feito celebre por muitos prodi
gios , que a Mao daquelle Senhor, que
fez tao grande e Original daquella
Cópia , ( como afim o proferin a ſua
Sacra
 SOROR AGOSTINHA
Sacratiſſima Boca ) obra pela ſua tao
efficaz , e poderoſa interceſſao.
9 Parece bençaõ mui particular
da Senhora do Roſario do Rio Secco
os Religioſos de inſigne ſantidade ,
que para aqui ſe retiráraõ, e aqui vi-
vêra , e morrérað . Hum Veneravel
Fr. Affonſo de Ontiveros , duasvezes
Provincial de Caſtella : hum Fr. Joao
Soares, Doutor celeberrimo , Theo-
logo ſapientiſſimo, e companheiro ,ao
Santo Concilio de Trento , do bem
nomeado Padre Fr. Domingos de So-
10 , Theologo daquelle illustriſſimo,
e fantiſſimo Ajuntamento : hum Fr.
Thomaz Xuera , Preſentado do Con-
vento de Burgos ; e Prégador de gran .
de nome de Filippe II .: hum Fr. Pe
dro Serrano , Procurador Géral da
Ordem na Corte de Caſtella: hum Fr.
Diogo Ximenes , que depois foi com-
panheiro do noflo Illuſtriſſimo Arce
biſpo Toledano , D.Fr. Bartholomeu
Carranza : hum Fr. Affonſo de Elta-
va , diſcipulo , e companheiro do San-
to Reformador de Heſpanha Fr. Joao
Hurtado ; e finalmente tantas outras
Extrellas do Firinamento Dominica-
no , que fora largo referir , conſagra-
das neſta Caſa ao Culto da Aurora do
Eterno Sol , e como o meſmo Sol er
colhida .
10
Fez - ſe eſta fundaçaõ no anno
de 15 + 3 . Principiou com vinte Reli-
gioſos , os mais obſervantes, que fe
puderaõ deſcobrir . Eftas as raizes da
eſpiritual arvore genealogica delta Ca-
fa , que , ſem loberba, e fem encareci.
mento , tein creſcido até o Ceo , mais
que a que ſonhou a fantazia de Na
buco . Aqui ſe atura inceflantemente
nos confeſſionarios : aqui ſe reza o
Officio Divino no Coro de noite , e
de dia exactiſiimamente : aqui ſe je-
jua rigoroſa ,e leveriſſimamente : aqui
mora a modeſtia , aqui a penitencia ,
aqui o ſilencio , aqui a obſervancia ,
aqui a pobreza , aqui a obediencia ,
aqui a caſidade , e daqui finalmente
ſahem exercitos de Pregadores a de-
fruir os vicios , a plantar virtudes , e
Tom. VII .
DE JESUS 5. de Agoſto. 163
a vencer o inferno . Pudera - ſe dizer :
que ver hum Religiolo della Caſa ,
he ver o que he hum Anjo . Efte Con
vento , que ſem dúvida he hum dos
mais ſantos das Heſpanhas, lhes tem
dado Prégadores , é Miſſionarios da
maior grandeza , e nao he pequena
gloria ſua ter por filho , o celebre Fr.
Diogo Alvares, invencivel defenſor
da Graça de Jesu Chriſto na tao de
cantada Congregaçao de Auxiliis.
II No numero de tao grandes ho
mens , nao mereceo o menor lugar ſeu
VeneravelFundador , o noſſo famoſo
Biſpo Fr. Thomaz de Berlanga , que
aqui viveo com canta humildade, co
mo pudera viver o Leigo mais devo
to . Nao quiz , como pudera com tan
ta juſtiça , gravar o ſeu Convento com
alguma obrigaçaõ particular , que diſ
feile reſpeito à ſua peſſoa. Foi grande
na America , grande em Caftella ; e
no Ceo , aonde o eſtima a noſſa pie
dade , naõo conſidera pequeno. Mor.
reo finalmente em 5. de Agosto , e pa
rece que no anno de 1550. Deixou
renda para ſe dotarem algūas orfaās ,
com a obrigaçao de os repartir o Prior
daquella Caſa.
5. de Agoſto.
Vida da Veneravel Madre
SOROR AGOSTINHA
DE JESUS ,
Conforme as memorias , que ſe conſer
vao no Moſteiro do Santiſimo Sa
cramento de Lisboa .
I S
pays da Veneravel Ma
O dre Soror Agoſtinha de
Jesus forao Manoel Fernandes de Pá ,
e Margarida Alvares de Cravo. Naſ.
ceo a Serva de Deos na grande Cida
de de Lisboa em Alfama, na fregue
zia do Proto - Martyr Santo Eſtevao .
Criou - ſe com huma louvavel educa
çao , e em 20.de Janeiro de 1644. ve
ilio o habito da Ordem do exemplar
Moſteiro do Santiſlimo Sacramento
X ii detta
164 RECOPIL A C , A M
deſta meſma Corte. Eſmerou - ſe tan
to na obſervancia do Inſtituto , e dos
piiſſimos eſtylos da Caſa , que nove
annos ſucceſlivos teve o cargo de Me
ftra de Noviças . A qui aproveicou mui
to a Serva de Deos ; porque o leu ex
emplo , e a ſua prudencia , e affabili .
dade era capaz de vencer couſas ao
parecerinvenciveis. Foi tambem mui-
tos annos Sub - Prioreſa , nao reſplan-
decendo menos neſta Prelazia a qua
virtude , do que a ſua providencia .
Forao carregando os annos , e nao
menos os achaques, ſem por iſo def-
mayar a viveza do ſeu fervor. Semem
bargo de contrarios cao grandes , acu-
dia pontualiſſimamente ás Matinas da Scriptorib . Angl.
meya noite : como porém as forças do 2 No Convento de Chiapa , Pro
ſeu corpo deixáraó de le ir confor. ' vincia de S. Vicente das lodias Ame
mando com a intenſao das do teu ef-
pirito , levantava - ſe ás tres , ou qua-
tro da manhãa para tomar a dicipli-
na costumada em todas as velperas da
Communhao .
2 A ſua paciencia foi muitas mil
vezes heroica : os ſeus trabalhos , as
adverſidades, e moleftias jamais fo .
rao baſtantes para lhe fazer perder ,
nem hum ponto da ſua admiravel con-
ſtancia. Por huma idade mui larga , e
por queixas mui importunas , eſtava
ja diſpenſada de jejuar ; com tudo nað
quiz a Veneravel Madre Soror Ago
Itinha que lhe valelle efta diſpenia,
quanto ás Seftas , e Sabbados. A taô
fanta vida correſpondeo huma pre
cioſa morte , ſendo chamada para as
nupcias eternas em 5. de Agosto de
1713. cahindo- lhe o dia do Senhor ,
em hum dia duas vezes da Senhora ,
por Sabbado , e pela ſua Feſta das Ne .
ves , que entao ſe celebrava no ſeu . ſua Máy Santiſſima. Os effeitos do pri
Moſteiro , na Capella da Senhora da meiro o fizerao paſſar á America a
Miſericordia , aonde ella , como ver.
dadeira , e legitima filha do eſpirito
de S.Domingos , rezára todos os dias,
que tivera diſpoſiçaõ para iſſo , o ſeu
Santiſlimo Roſario .
de s. de Agoſto ,
RECOPIL A C, A M
de 5. de Agoſto.
I M Inglaterra , o Veneravel
Padre Fr. Ricardo de Ca
E
ftriconia. Foi hum bom Religioſo , e
germanava -ſe com a ſua muita virtu
de hum excellente juizo , e habilida
de . Foi mui feliz na explicaçao das
queftoens eſcolatticas , e nao menos
na Sagrada Eſcritura ; e no anno do
Senhor de 1270. deo grandes credi
ços á Ordem na ſua Provincia . Viveo
bem , e aſſim morreo . Ptif. de
ricanas , o muito virtuoſo Irmao Leigo
Fr. Gregorio Caſtano. Floreceo mui.
to em Oraçao , e Humildade : eſta o
fazia reputar -ſe pela mais vil creatu ..
ra que a terra ſuſtentava. O ſeu exem
plo era para todos de admiravel edi
ficaçao . " Era tað acerrimo procura
dor, e ben feitor dos pobres , que fe
pudera remediallos com o ſeu cora
çað , ſem dúvida o arrancaria do pei
to ; por iſſo era neceflaria a força da
obediencia , para que nao lhes deſſe o
ſeu habito . Foi a lograr- ſe das pro
meſſas do Senhor , mediante huma
bemaventurada morte , no anno de
1564. = Remez.l.10.6.18.pag.647 .
3Nas Indias Occidentaes , o Ve
neravel Padre Fr. Raymundo de Ve
guer . Fra do Convenio de Perpinbao .
Ardia em dous incendios , nao leiqual
mais celeſtial , hum do zelo da maior
gloria de Deos, outro dos amores de
propagar o ſanto Evangelho entre a
quella vaſtiſſima gentilidade , e de
que lucrou hum numero notavel de
almas, que , diſſipada a idolatria com
a luz da Fé, encaminhou para ſeu
Creador . Neſte ſanto trabalho o apa
nhou a morte , que teve muitos ſipaes
de predeſtinada. Aſſim o teftimonhá.
rao
 SOROR MARIA DO BAUTISMO
rao os Religioſos, que a preſenciárað,
em huma carta , que para ſua edifica-
çao , e conſolaçao eſcreverao aos do
ſeu Convento no anno de 1630. =
P.Sunber.
6. de Agosto.
Vida da Veperavel Madre
SOROR MARIA
DO BAUTISMO ,
Extrabida de Fr.Lucas de Santa Ca-
tharina , e bum manuſcrito , que
Je conſerva no Moſteiro de Cor
pus Chriſti da Cidade do
Porto,
I Veneravel Madre Soror
ANMaria do Bautiſmo foi fi.
lha de André Ferreira Grande , e de
Catharina Carvalha , peſſoas mui hon-
radas, e opulentas ,moradores na Lom-
ba . Nao tendo mais que tres annos de
idade , foi levada para o noſo Moſtei.
to de Corpus Chriſti, ſituado nas vie
çoſas margens do celebrado , e cau
daloſo rio Douro , defronte da popu .
lofiffima Cidade do Porto : aqui cor
reo a ſua educaçao por conta de huma
Religioſa grave, e de muita virtude ,
e com tao feliz ſucceſſo , como ao de .
pois bem o vieraõ a moſtrar as ſuastao
innocentes , e louvaveis acçoens. Ve-
fio o noſſo habito em 29. de Mayo de
1604. , e tomou em 8. de Dezembro
do meſmo anno o ſeu anno de appro-
vaçao , por nao ter ainda quinze an-
pos completos . No outro Dezembro
ſeguinte fez a ſua profilao, e conti-
nuou com tanta exacçao de oblervan .
cia pelo tempo adiante, que, como A-
guia Real de perfeiçao , nao ſabia deſ-
viar os olhos do eſplendor do maior
merecimento ,
2 Ainda nao tinha a idade queſe
para as Prelazias ; mas a ſua boa
requer
opiniao a diſpenſou neſte accidental
requiſito , ſendo eleita muito à ſatiſ-
façao de toda a Communidade por
Prioreſa do Moſteiro. Recuſava a Ser .
6. de Agoſto . 165
va de Deos eſte governo , como quem
fazia tanto maior apreço de obedecer,
que de mandar, de ſujeiçoens, que de
dominios ; mas por mais traças que
excogicou a ſua humildade , nenhumas
The valerao para evadir eſte cargo ; e
nao ſendo menos humilde ás diſpoſi
çoens da Providencia , do que antes
o havia ſido para recuſar a honra da
quelle mando , lhe offereceo reſigna
damente os hombros , com os olhos
naquelle Senhor, de quem diz S. Pau
lo , queaté á morte nos deixou a obe
quere .
diencia . Durante o tempo , em
gêo aquella Caſa , a promoveo ao maior
auge de reforma , e regularidade , ſen
do a ſua exemplariſlima vida o melhor
modello , que ella fabia proporá imi
taçao das ſuas ſubditas.
3 Findo o tempo da ſua regencia ,
retirou -ſe a Serva de Deos a ſua Cella ,
e deide entao começou a entregar -ſe
a hum taò profundo filencio , que ja
mais tomava pretexto algum para o
quebrantar , ſenaõ era o zelo que a
compellia a tornar pela inteireza, e ri
gor do Initituto , reprehedendo algúas
faltas , que nað ſabia ſoffrer , nem dif
ſimular . Podia -ſe dizer que o Coro
era a ſua Cella , pela , pouco menos
que continua , aſliitencia , que nella fa
zia diante do Sancifſimo Sacramento ,
aquem profeſſava huma amantiſſima
devoçaó , e em cujo culto ( naõja em
mimos,'e regálos , com que parece que
tinha antipathia , por ſer ſempre o ſeu
prato , o mais pobre , eo mais groſſei
io ) empregavaomelhordos ſeus mui
tos bens patrimoniaes. Tendo vivido
tað ſantamente , huma ditoſa morte
foi a coroa da inviolavel fidelidade
deſta feliciſlima Eſpoſa , parlando a
unir -ſe para ſempre com o ſeu Ama
do, pelas ſeis horas damanbaā domy
ſterioſo dia da Transfiguraçao do Se
nhor aos 6. de Agoſto de 1630. com
quarenta e dous de Clauſura, e qua
renta e cinco de idade , com muito
pouca differença.
6. de
166 SOROR JOANNA DE
6. de Agoſto.
Vida da Virtuoſiſſima
SOROR JOANNA
DE S. JOSEPH ,
Extrabida do Padre Fr.Thomaz
Soueges.
I (ùpplica ,
Sta he a primeira Irmaã
Ele ,
Moſteiro Dominico da Cidade de
Burd eos . Deveo a Sua Divina Mage-
ftade , deſde a ſuameninice , hum cui-
dado mui particular da ſua conſerva-
çaõ ; porque cahindo deſaftradamen
te no rio Garona com perigo eviden-
tiflimo ſe affogar , deitando caſual-
mente mao de hum pedaço de hum
torraó , que mui naturalmente ſe hao
via logo deſpegar do ſeu todo , nao
ſucedeo aſſim , e houve lugar de che-
garem alguns barqueiros a tiralla para
fóra : apenas lhe acudirao , e a fegy.
ráraó , quando logo todo o torrao ſe
desfez.De outro perigo a livrou tam-
bem a Mao do Todo Poderoſo , co-
mo quem a reſervava para lhe fazer
ainda muitos terviços . Foi o caſo , que
andando com outras cavando em bum
grande areal , como eſte ſe foſle mi-
nando , e ſolapando muito por baixo,
que he por onde faziao a ſua cava ,
cahio todo o pezo de cima ſobre els
las , e ficáraõ muitas peſſoas ſuffoca-
das , menos a noſla Joanna , que , po
fto que tambem enterrada como as
outras , pode dar final de ſi, e ſer ,
como foi, livre ſem algum perigo .
2 Paſlou a ſervir huma Senhora
de grande piedade em Burdeos , ea
innaca propenfao que ella tinha á vir-
tude , junta com o ſanto exemploda-
quella devota mulher , começárað a
inſpirar-lhe os primeiros bons deſejos
de Ter Religiola. A dona da caſa fazia
tal conceito da virtude da noſſa Joan-
ud , rue lendo -lhe neceſſario fazer
hum voro , por huma grande neceſſi.
dade , a Noſſa Senhora de Betarram ,
S. JOSEPH 6. de Agoſto.
Imagem muito milagroſa , e venera
da em huma capella , fita em huma
grande eminencia , junto dos Montes
Pyreneos , entendeo que nao deixa
riaó de ſer mui poderoſas diante de
Deos as ſuas oraçoēs , e encarregou
lhe encarecidamente eſta commitfaó
Forao ambas , com effeito , aquelle
ſitio : foi a noſſa Joanna a offerente, e
alli com fervoroſa Oraçao fez a ſua
tað favorecida do Ceo , que
Ardendo della de dia em dia mais
activos os deſejos de conſagrar-ſe ao
Eſpoſo das Virgens na Religiao , e
fazendo para itlo algumas diligencias,
como lhe ſahiflem deſaproveitaļas,
exclamava aſſim : Senhor , ou me tin
rai , ſe be-de volo agrado , a infpi
raçaõ que me déjtes , ou me deixai
chegar ao logro della . Chegou o ſuf
pirado termo delte deſpacho , che
gando a fundar em Burdeos a nofla
Veneravel Madre Soror Maria de
Santo Aleixo .
3 Veyo logo Joanna ter com el
la ; e depois de bem ioceirada a Fun
dadora do muito cabedal de virtude,
e ſantidade da Serva de Deos , lhe
veſtio o no lo ſapto habito . Quaren
ta annos o trouxe , praticando ſempre
acçoens muito dignas , e decoroſas
de tal inſignia . Animou muito aquel
las Religioſas nas grandes contradi
coens , e difficuldades , que inſurgi.
raõ contra ellas , e perſeveráraó mui
tos annos . Era de muita caridade , e
exercia- a muito particularmente na
enfermaria, ſendo inſeparavel neſta
Caſa de dia , e de noite . Na Oraçao
era mui dilatada , mui pia , é mui fer
voroſa . Daqui lhe naſcia o fallar tab
altamente de Deos , que era allombro
ouvilla. Nao cauſava menospaſmoas
ternuras , e amores , que muitas ve .
zes ſe lhe ouvirao dizer denoite , fal
Jando com a Virgem Senhora ; por
que diſcorria com huma tal proprie
dade , e diſcriçao , que bem perſua
dia que nao linha menos Meſtre
que o Eſpirito Santo. Finalmente
achan
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ac do ſe id iſt de 74 an 1 , e co : co o u, e e co is eſ a ſ e o
e n r 7 s t o rq m a
u a tr
r o de Ch de 16 , ao 6. ri ; p ja q ou
i so mereceraõ oleu applauſo , ou appro .
n

Senhor , em que inceſantemente ſe ſervando até a ſua derradeira idade,

deſejaõ eltar revendo os Santos Anjos ,
6. de Agoſto,
Vida da Veneravel Madre
SOROR IZ ABEL
DE JESUS MARIA ,
Extrabida de hum manuſcrito , que
Je conſerva no Cartorio do Mo.
ſteiro do Santiſimo Sacramento
de Lisboa ,
Ilha de Antonio Saraiva de
F S. Paio , e de D. Guio-
mar de Valconcellos , foi a Veneravel
Madre Soror Izabel de Jesus MARIA .
Foi educada taõ fantamente nos ſeus
primeiros annos , como le ja previſ-
lem ſeus pays a ultima eleiçao , queha-
via de fazer a Serva de Deos do ſeu
eſtado . Inclinou- le tanto á Caſa de
Deos logo deſde menina , que lendo
ainda de mui pouca idade eſtranhava
muito recolher-ſe, depois de aſſiſtir,
aos Officios Divinos , nos dias de pre-
ceito , dizendo admirada : que nao
ſabia como os demais cinhaộ animo
parafabirem da Igreja para fóra. Mor .
ta fua máy , que foi huma das mulhe.
res de mais inſigne caridade , e decu-
jó eſpirico pareceo, como logo vere
mos , a noſſa Servade Deos a mais le-
gitima fucceffora, e talvez que , pela
fympathia dos genios , ſeptifle , como
effe & ivamente fentio , a noſſa bõa Re-
ligioſa a ſua morte com maisexceſſo ,
do que qualquer outra de ſuasirmaās .
Nao degenerou das ſuas inclinaçoens
a noſſa Izabel: via ſim que ſuas irmãs
ſe divertiao, e tinhao por grande re-
creaçao a liçaõ de livros profanos de
ccmedias , e cavallerias ; ella porém
nao tinha maior divertimento , que a
porque muitos annos depois , ſendoja
Religioſa , ſe aparelhava para os dias
das Communhoens lendo anteceden
temente as Obras da extatica Santa
Thereſa , de quem a noſſa Serva de
Deos foi huma fideliſſima imitadora.'
2 Padeceo a noſſa Izabel o incom.
modo de ſer algum tanto doentja , e
em quanto a cura dos ſeus achaques
correo por conta de ſuas irmaās , te
ve mais que ſeptir neſta parte ; pore
Gnao cuidavaõ ellas em lhe aſſiflir com
o neceſſario para a ſua cura : mas do ,
tava-a Deos de huma tal alegria , que
no meio do maior deſamparo parecia
eſtar gozando do mais competente
remedio das ſuas queixas . Huma das
virtudes , em que , comoja deixamos
indicado , mais ſe apurou a Serva de
Deos , foi a da eſmóla. Efta bõa pro
penſao começou ella a moſtrar , quan
do huma fua tia , que ficou admini
ftrando os ſeus particulares , e de fuas
irmaás na ſua menoridade , deo á nof
ſa Soror Izabel a quantia da ſua legiti
ma ; porque o primeiro dinheiro , que
diſpendeo della , forao ſeis mil reis ,
que logo deo a huma ſua criada , por
eſta ſe lhe haver chorado muito antes,
que eſtava devendo a meſma impor.
tancia. Eſte foi o primeiro lance da
pratica , em que Soror Izabel come.
çou a pôr as liçoens, que aprendera
da ſua boa progenitora. Foi tambem
mui celebre outra facçao da Serva de
Deos , que ſuccedeo vivendo ella aia
da no ſeculo . Eſtava ella em huma cou
cada com ſua irmaá mais velha, que,
por ſe haver caſado com hum teu tio ,
à tinha levado , e a outra irmaá para
Jua caſa ; e ſendo achado hum pobre
homem , que andava alli á caça de
coelhos , foi trazido ao rio de Izabel :
forao depois acallo a hum pinheiro , e
dan
 168 SOROR IZABEL DE JESUS
dando -lhe muita pancada , o ameaça-
rao , ſó com intento de lhe pôr me
do , que viriao depois a cortar -lhe hũa
perna: Compadecida a noſſa Izabel
da conſternaçao daquelle mileravel ,
foi, o mais diffimuladamente que po-
de, aonde elle eſtava , o que lhe naó
cuſtou pouco trabalho , por ſer o ma
to mui aſpero , emuidenſo : vio ettar
aquelle trifte homem ; e como naõle .
vava com ſigo couſa com que pudelle
cortar - lhe as prizoens , tornou atraz
em buſca de huma faca, e com effei-
to cornou outra vez a deſprendello ,
facilitando- lhe o incendio da ſua cae
sidade o horror do perigo que pude-
ra ter de ſe ver , ſó , por lo , com hum
homem ruſtico em parte tao eſcura ,
e dezerta . Nao forað eftes os unicos
finaes , que ella deo do amor do ſeu
proximo. Succedia tirar muitas vezes
a toalha da cabeça , quando naõ tinha
outra couſa que dar de eſmóla . Ore-
ſto deſta memoria nos offerecerá ou-
tras muitas demonſtraçoensſemelhan :
tes de nao menos edificaçao, que
exemplo .
3 Deſde os ſeus primeiros annos
havia tido grandes deſejos a Serva de
9 Deos de recolher-le a huma Claulu-
ra ; mas o inimigocommum ,anteven-
do quanto lhe havia de fer formida.
vel a virtude de Izabel , procurou ,
como ſempre coſtuma , impedir os
ſeus bons propoſitos logo ,a principio.
Nao faltarað algumas circunſtancias
occurrentes , que podiao tirar a eſte
melmo fim ; porque ſeu tio , que ja
diſſemos eſtava caſado com ſua irmáā
maior , era tutor de todasas outras ſuas
ſobrinhasorfaás , a quem , como tam
bem diſſemos, tinha em ſua caſa , aon-
de as tratava com tanto amor , egrā-
deza , como le realmente fora ſeu
pay . Com eſta occaſiao , e com o fa-
vor que tinhade ſua irmaāicatada , que
The moſtrava muito amor , e por eſta
caufa inftava muito com ſeu marido ,
para que lhe delle o neceſſario para
que a Serva de Deos mais galeaſſe , e
luzifle ; começou Soror Izabel, que
MARIA 6 de Agoſto.
era a mais moça de todas , a tomar mais
o goſto ao mundo , e a esfriar naquel
le primeiro ardor , que moſtrára ás
couſas de Deos. Foi porém couſa ad
miravel nao ſe extinguir nella jamais
aquelle grande incendio de caridade,
que ardia no ſeu peito. Ao tempo ,
em que Soror Izabel tanto ſe hia es«
friando dos ſeus antigos propoſitos ,
pao ſe deſcuidava o Caçador Divino
de ſegurar huma preza tanto do ſeu
agrado : e o conſervar ſempre oa nof
fa Izabel alguns reſquicios daquelle
grande amor do proximo , foi final
expreſſo de que nunca deixou apagar
nella as chámas do teu Divino amor;
porque bem reparado nao ſe pode dar
hum ſem outro.
4 Vio - ſe bem o quanto a zelava
para ſua eſpoſa o Amante Divino ,de
hum notavel acontecimento , que lhe
fuccedeo , e que foi preſenciado, ſe
lhe havemos de dar credito a quem
fez a primeira memoria da vida da
Serva de Deos , de que preſentemen
te nos ſervimos. Succedeo verem -ſe
por acaſo a Serva de Deos , e hum
illattre mancebo, e contrahindo de
Atas viſtas huma honeſta correſponden
cia , a palavraraó - le para ſe fallarem
huma noite , em parte, em que nao
eſtiveſſe mal eſta licença á noſla Iza
bel : depois de a noitecer, começou
a fazer hum luar tao claro , que era
mui pouco o que lhe falcava para pa
recer hum dia mui reſplandecenre : a
hora que eſtava dada era a da meya
noite ; antes porèm que eſta defle ,
appareceo o amante cavalheiro no lie
lio , mas em occaſiao tao pouco op
portuna , que ſe via por toda aquella
vizinhança huma luzidiflima compa
nhia de homens , todos com os ſeus
archores accezos ; e como eſtavañ ar .
rimados ás portas, impediaó preciſa
mente o paſſo aquelle deſvelado mo .
ço ; enfadou -ſe elle de tao larga eſpe
ra , e para dar final, ou da ſua pon
cualidade , ou da ſua impaciencia , co
meçou a atirar com algumas pedrinhas
para hum eirado , onde preſumia
que
 SOROR IZABEL DE
que Izabel tambem eſtaria eſperando:
A eſta diligencia acordou ſeu tio ; e
como ſe levantafle logo , para exami-
nar o que iſto poderia ſer , totalmen-
te ſe fruſtrou elta occaſiao . Quem vio
etta ge nre , cuidou que ſeria a guarda
gen
Real ; mas tanto pela grande dilaçao ,
que fez naquelle polto , como por ou-
tras muitas conje & uras, que nao con
diziao bem com este juizo , ſe ficou
entendendo que ſeria a guarda lim ,
mas de outro maior Rey , que nao
toffria competencias no amor de Iza-
bel , a quem pertendia para ſua eſpoſa.
5 Delejava ſeu tio metier Freiras,
a Izabel , e a outra ſua irmaã , em
qualquer Communidade , que ellas
quizeſſem , com tanto , que nao folle
militar ; mas agora nao reparou em
que o foſſe effectivamente o Moſteiro
da Incarnaçaõ , que foi o que mais
promptamente ſe lhe offereceo.Fellas
paſſar ambas para eſta Caſa , aonde
começáraó a renovar -ſe aquelles pri-
meiros ardores da Serva de Deos, pa
ra poder ſer mais util á neceſſidade
dos ſeus proximos. Vendeo primei-
ramente todas as peças , e alfayas do
deu uſo , deſpojando-ſe dellas para co
meçar a morrer de todo para o mun-
do . Com o meſmo fim de ſoccorrer
as urgencias dos necellitados ſe occu-
pava a Serva de Deos em fazer alguns
brincos , ecurioſidades para diſtribuir
o ſeu producto pelos pobres , e era ,
ou tað inculpavelmente ambicioſa ,
ou tað exemplarmente humilde , que
nao queria que as ſuascriadastiveſlem
alguma parte neſtas obras . Quanto
ellas foflem do agrado daquelle Se
nhor , por cujo amor ella as fazia , lho
moſtrou hum ſuaviſſimo ſonho , que
ella teve , em que ſe lhe reprelentou ,
que via huma Imagem do Menino
Deos , que ſe venerava no Coro daquel .
la Caſa, com algumas daquellas galan-
tarias feitas pela poſla Izabel , penden-
tes de huma fica , que com gracioſi-
ffimas laçadas lhe rodeava a cintura.
O grande exceſſo do trabalho , o fer
( e nao pouco ) achacada do figado ,
Tom . VII .
JESUS MARIA 6 de Agoſto. 169
e a muitiſſima abſtinencia ,com que
vivia , ou por mortificar-ſe , ou por
Soccorrer melhor neceſſidades alheas,
ainda que folie tanto a feu cufto , lhe
forao occaſionando graviſſimas quei
xas , que pelo decurſo de quatro an
nos nao derao o menor exercicio á
ſua invencivel paciencia . Deitava grā
de copia de ſangue pela boca , pade
cendo ao meſmo tempo humas peno
fiffimas inſomnolencias , e o que he
peior , deſacertando os Medicosmais
lhe oc
peritos da Corte a ſua cura ,
cafionarao maiores violencias , e in
commodos .
6 Temendo a Prelada , ou Com
mendadeira , que o mal de Soror Iza
bel degeneraſſe, como ja ſe boqueja
va em huma tyſica , perſuadio -lhe que
mandale avizo a ſeus tios, para ir com
elles , e ſuas irmaás , fazer huma No
vena a noſla Senhora de Penba de
França , de quem ló , comoſaude que
he dos enfermos, como aſſim lhe cha
ma a Igreja , ſe podia eſperar remedio
em hum caſo tao deplorado. Aſſim
ſe executou ; e aquella Senhora , de
quem diſſe o grande Meſtre da Sagra
da Eloquencia Portugueza , hum dos
ſeus maiores creditos, o famoſo Pa
dre Antonio Vieira , era a falta doli
vro dos ſeus milagres , foiſervidaim
petrar - lhe de ſeu Sacratiſſimo Filho
a proſpera ſaude , que logo lhe alcan
çou , como quem tao bem ſabia o
quanto ella havia de vir a ſer bem em
pregada no ſeu ſerviço , e no do mer
mo Senhor . E que foſſe favor mani
feito ,que lhe fez Maria Santiſſima,
nao ſe pode duvidar , ſuppoſto o mi
ſeravel, e languido eſtado , em que
ella fahio da Incarnaçao , e a repen
tina brevidade das tuas melhoria . A
irmsā da Serva de Deos , que diſſe
mos ſe recolheo juntamente com ella
á Clauſura, queria paſſar -ſe para ou .
tra Caſa de mais eſtreita obſervancia.
Naố quiz leparar le della a noſſa Ser
va de Deos ; e poſtoque nao lhes con
ſtava do Moſteiro do Santiſſimo Sa.
cramento deſta nobiliſſima Cidade de
Y Lis .
170 SOROR IZABEL DE JESUS
Lisboa , informadas da perfeiçao do
Jeu Inſtituto , antepuzeraõ etta Cala
a todas as mais, entrando a ſer per-
tenforas do noſſo fanto habito : Havia
muitas , e grandes difficuldades de
permeio ; mas todas ellas ſe vieraõ a
vencer , mediante a Providencia Di.
vina : e do muito , que aqui obrou a
Mao do Altiſlimo, he demonftraçaó
evidente a acceitaçao que ſe fez de
Soror Izabel , ſem embargo de fer ,
como era , tao delicada , e doentia .
• 7. Chegado o tempo da Profillió ,
vio - le a noila Noviça mettida em hum
tempeſtuoto mar de eſcrupulos de
conſciencia , parecendo - lhe mui diffo .
nante obrigar - ſe á guarda de huma
Conſtituiçao , nao fó ſuperior , mas,
ao parecer , contraria ás ſuas forças.
Eftes eſcrupulos , porém , todos ſe
ferenáraõ com o parecer de alguns
Religioſos graves , e doutos, e cele .
brou effeAivamente os ſeus deſpoſo
rios na terra com o Divino Espoſo no
dia da Preſentaçao de ſua Máy San .
tiilima. Ao meſmo paſio , que corriao
os annos , carregavao os achaques:
iſto porém nao obſtante , ſeguia a Ser .
va de Deos , o mais que lhe era polii ." competentes, para que nelle ſe reco
vel, o Coro , e todas as mais obriga- Theſſem donzel as pobres , quenao ſe
çoens da Communidade: era pontua-
lilima nas Matinas da meya noite , e
na Oraçao , aonde ſe derinha até ás
tres da manhaá , que he o commum ,
e ás vezes até as quatro . Nao faltava
aosdejuns , nem a quaeſquer encargos ,
que The eraõ aflignados pela obedien
cia . Teve huma mortificaçao muito
grande em accommodar -ſe aos uſos , e
ao trato , e comeres da Religiao ,por
ſer de muito delicada compleiçao ; mas
ſopportava todos eſtes incommodos
com a cara de hum Anjo , nao fe lhe
vendo , nem ſe lhe ouvindo , couſa
que foſſe indicio de queixa , ou en-
fado .
8 Nunca ſe eſqueceo da ſua anti-
ga caridade ,exercendo-a com as peſ-
foas, que dentro de caſa adoeciai ,
e fazendo -ſe , muito a pezar da ſua de .
bilidade , e poucas forças, a ſua mais
MARIA 6 de Agoſto.
deſvelada enfermeira , e guizando-lhes
ella meſma com muita perfeiçao os
caldos , e ſubſtancias que haviao de
tomar , ſem cahir por illo na mais le
ve falta , no tocante ás fuas devo .
coens . Suſtentava - ſe com excefliva
parcimonia para diſtribuir pelos po
brezinhos de Chrifto o que lhe ſobe
java . De quantos pezares ſe lhe po
diaõ dar , nenhum iinha por mais ſen :
fivel a Serva de Deos , do que a pri .
vaçao de licença para poder ſoccor
rer a indigencia de gente miſeravel .
A eſte propoſito coſtumava ella dizer ,
qquádo tinha permiffo das Preladaspa
radar elmóla , lhe faltava o animo para
deixar couſa alguma para ſi. Juntava
tudo o melhor que lhe davao , lem to .
car em cruſa alguma , para mandar a
huma pobre honrada ; e no dia em
que a preſenteava , era ja ſabido ſer
quaſi nada o que lhe bia á boca , pa
ra lhe mandar tambem a ſua raçao em
pezo . Todos os ſeus penſamentos, e
deſejos reſpiravao igualmente eſtes
grandes incendios de Caridade. Suf
pirava por eigir hum Moſteiro , e
buſcar quem o provelle de rendas
pudeſſem dotar . Aſlim como o ſeu
caritativo cor çao ſe empenhava tan .
to em promover o alivio dos proxi .
mos , affin ſe entriſtecia , e laitimaa
va com os ſeus deſaſtres, e infortu .
nios .
9 Ainda a Serva de Deos vivia no
feculo , quando ette Reino facudio tam
proſpera, e glorioſamente o violene
tiſlimo jugn Caitelhano , acclamando
por ſeu legitimo , e unico Soberano
ao Senhor Rei D. Joao o IV , feliciſ.
fimo reparador da liberdade Portu .
gueza ; e no dia em que forao dego
lados o Duque de Caminha , e outros
Potentados , de quem fe dizia que
eraõ confidentes de ElRey Catholi .
co , metteo - le a Serva de Deos no ſeu
Oratorio , e alli deprecou com muitas
lagrimas ao Pay das mifericordias pe .
las ſuas almas ; e foi tal o exceſſo ,
com
 SOROR IZABEL DE JESUS
com que ſentjo as ſuas execuçoens,
que lhe fobreveyo hum fortiſſimo ac .
cidente ; como te aquellas peſſoas, que
hiao a morrer , foſſem coula , que por
jangue, ou in tereſſe lhetocaſſem . De-
pois de recolhida ao Moſteiro da Or
dem , ſuccedendo pegar fogo infeliz-
mente em hum navio , que eſtava ne-
ſte porto , ſe foi logo ao Coro a Ser-
va de Deos a ſolicitar o favor Divino ,
chorando tao impetuoſamente, como
ſe pertendeſle apagar da quelle modo
as vorazes levaredas , que hiaõ tra-
gando aquella infeliz embarcaçao.
Іо Eite amor do proximo era
hum final manifeſto do muito que
Soror Izabel labia amar a ſua Divina
Mageſtade : nao o temia menos ,
e pao
que o amava ; porque, como era ſen-
tença do noſſo Santo Arcebiſpo de
Braga o V. Fr. Bartholomeu_dos
Martyres , o amor , eo temor de Deos
ſao as duas azas , com que huma alma
ha de voar ao meſmo Summo Bem :
porque ſe o voo nað for agitado por
ambas , mal podera elevar - le o elpi-
rito até chegar á ſua esfera. Succe-
deo - lhe ficar ſem Mifla em hum Do-
mingo de Ramos, por humaequivo-
caçao , e fez tantos extremos de fen-
timento , que nao ſe lhe enxugáraõ
por muitos dias as lagrimas , nem ſe
lhe enxugariaõ , ſe não a focegaliem
Religioſos doutos , que lhe aſſegurá.
raô , que, ſuppofia a ſua intençao , e
apparencia , que fora cauſa daquelle
incidente ,bao ſo naõ havia peccado ,
denao que tinha merecido muito.
II Propendeo lēpre com hūa no
tavel inclinaçao para tudo aquillo que
era de piedade, e religiao . Erainda
ſecular , quando , nao le percebendo
o fim a que tiravao as diligencias dos .
quarenta Acclamadores do Sereniffi-
moSenhor Rey D.Joað oIV.pelo invio .
lavel ſegredo, com que ſe diſpôs, e
executou eſta tao memoravel acçao ,
de rompeo hum voato , dizendo - ſe
que eſtava Lisboa tomada dos Ingle.
zes. Nao perdeo o animo Izabel , co .
mo le podia eſperar do ſeu ſexo , e
Tom . VII.
MARIA 6 de Agoſto. 171
pouca idade , antes ella pertendeoin .
flammar as peſſoas, com quem entao
eſtava , paraque fahiſſem indas a teſti
munhar as verdades da Fé com odef .
prezo das ſuas vidas . Nao ha palavras,
com que ſe explique a amargura , que
lhe cauſava o ficar ſem Communhao
nos dous dias da semana , em que as
fuas Co - Religiolas chegavao á Meſa
Eucariſtica a ſaciar -le do delicioſiſli
mo Pao dos Anjos: recolhia -ſe á fua
Cella , e folcando as correntes dos
olhos , feita huma Magdalena, alli ſe
queixava mui brandamente das gran
des ſaudades , que lhe fazia do ſeu
amado, e unico Bem .
12 Trinta e hum annos tinha vi
vido naquella Caſa , quando come
çou a padecer huma leſao no olho di .
reito , que parecia , pelos fymptomas,
ſer procedida de ter o figado muito
eſquentado. Sangrarao -na, e torna
rao - na a ſangrar , porém ſempre com
pouca fortuna ; porque, portoque co
braſſe alguma melhoria , era tao pou
co ſubſiſtente , que apenas ſe levan
tava , quando logo recahia . Eſta quei
xa , que foi a ultima da Serva de Deos,
a atormentou mais que todas as ou
tras , que atélli havia ſentido ,e com ef.
feito , aſſim o confeflou ella meſma
vocalmente. Seis mezes lhe durou
este mal , e em todos elles foiadmira
vel a reſignaçao , e conformidade ,
com que ella le ſujeitou as diſpoliçoēs
Divinas : por mais acerbas, e pungen
tes que foſſem as dores ; por maistra
balhoſas , e moleſtas que foſlem as
curas ; jamais ſe abrio aquella boca
fem riſo , e ſó para dar louvores a
Deos , e exemplos de edificaçao , e
compunçao ás ſuas aſſiſtentes. Aper
tavaõ -na as ſedes no maior extremo ,
e. Soror Izabel nao ſabia dizer outra
couſa mais , que eſtas palavras : Dd
nos Deos eſta fede ? Padeçamo - la .
Nao erao menos inſoffriveis os effei
tosdas repetidas faltas de fomno ; mas
todos eſtes rigores cedio o campo á
ſua conſtancia , e grandeza de animo.
13 Alguns dias antes de expirar ,
Y ii fe
172
RECOPIL A C,
ſe reconheceo nella maior frequencia
de Oraçao , e parece que Sua Divina
Mageftade lhe enſinuou que era che.
gado o termo da lua peregrinaçao ,
o que ſe deixava inferir demuitas pa-
lavras da bôa Religioſa. Eu ( dizia
ella ) ſempre hei de morrer ; pois que
mais me vay , em que ſeja boje , 0u
amanha 7: leja logo, ou quando for mais
vontade do meu Deos. Chegou final-
mente a Feita da Transfiguração de
Chriſto Senhor Noflo , diamuito pro-
prio para exaltaçoens , e glorias : e
como Izabel havia feguido , e imita-
do tao fielmente a hum tao . Divino
exemplar, a quiz agora fazer partici-
pante dos jubilos de outro Tabor ,
que eternamente ha de ſubſiſtir , eper •
manecer . Ao declinar do Sol , buf-
cou Izabel tambemo Occaſo de huma
vida , que tantas , e taö virtuoſas ac
çoeas haviao feito tað illuſtre . Havia
dous dias , que nada tinha levado á
boca , e ſem embargo de eſtar taó des-
fallecida, e entrada nas ultimas ago .
niasda morte , prorompeo neſtas foro
maes palavras, que pronunciou mui
fonóra, e diſtinctamente , e forao as
ultimas que articulou : Virgem minha
Senhora , valei -me ; Virgem minha Se-
nhora , foccorrei-me ; Virgem minba
Senhora, ouvi - me . Ainda viveo algúas
horas, até que ultimamente expirou
placidamente pelas feis da tarde , em
que piamente le crê pallou a gozar da
eterna Bemaventurança , aus 6. de
Agoſto . O anno pa o te ſabe com cer-
teza .
RECOPIL A C, A M
de 6. de Agoſto.
ІI Emoria da muito virtuo .
M
ſa Soror Florentina Er-
plugas . Teve grande parte no traba .
iho da noſla Veneravel Reformadora
do Moſteiro da Magdalena de Ago .
ftiohas , e Fundadora de outro Do-
minicano de Maureza , aVeneravelMa .
dre Maria chamada a Negra , come
A M de 6. de Agoſto.
enfatico , por ſer mais clara que aluz
do dia a pureza , e candura de lua al
ma . Acabou a ſua Religiofiffima vida,
nao com poucos finaes de predeſtina
da , no apno de 1610. = Ex vita V.
Matris Hyppolitæ à JESV .
2 No Convento de Oaxac , nas
Indias Occidentaes o Veneravel , Pa
dre Andre de Cunilhas . Era natural
da meſma povoaçao , ainda que tan
ta virtude ió podia ter o Ceopor dig
na patria. Quando via affroxar algum
de ſeus companheiros, bem longe de
ſeguir o ſeu exemplo , excicava o ſeu
elpirito a mais acerbas mortificaçoēs,
ou reprehendendo aſlim tacitamente
a fraqueza dos outros , ou querendo
fatisfazer por elles. Poſto pela obe
diencia no lugar de Meſtre , por mais
que elle nao quizera , ſendo mui cau
teloſo em furtar os hombros aos Offi .
cios de mais honra , exerceo eſte po
ſto com tanta devoçao , como ſuffi
ciencia . Dez annos antes que o levaſ
fe amort- , ſe vio bem qual era origor,
qual a exacçao das ſuas penitencias .
As ſuas diciplinas eraõ as mais into
leraveis , e as de mais dura ; os ſeus
ja juns os mais continuados , e os mais
aufteros ; a ſua cama a mais dura , e
a mais deſab igada ; huma taboa oſea
mimoſo colchao , e colcha preciofil .
ſima, huma mui pobre , e avelhentada
cobertura. Morreo finalmente na
bençaõ do Senhor no ando de 1615 .
idoſo de 43. Eſtava tað bem opinado,
que acudio hum numero fem nume .
ro de gente & venerallo , e a ſolicitar
alguma reliquia ſua. Delle fazem ho
norifica mençaõ as Actas do Capitulo
geral de Bolonha celebrado no meſ.
mo anno . = Ex Altis Capituli Bono
nie.1615 .
3 No Reyno de Amanubáo , nas
noſſas Indias , o Veneravel Padre Fr.
Alvaro de Tavora . Elle foi hum dos
mais zelolos intrepidos , e inſignes
Miſſionarios do Oriente . Foi Compa
nheiro de Fr. Antonio do Salvador ,
Viſitador dos Reynos Infulanos , em
que os noſſos ReligioſosMillionavao ,
 FR. THOMAZ DE
e applicava-ſe o noſſo bom Obreiro
Evangelico muito mais particular-
mente ao bem eſpiritual dos Indios de
Lifaó . Daqui foi expedido a Amanu-
báo , cuja Caſa Real, com huma gran-
de parte daquelle Reyno , recebeo o
lanto Bautiſmo, e ficou o bom Padre
cultivando aquella Chriftandade, oc
cupaçao em que o achou a morte ,
que foi de homem ſanto no anno de
1650. = Ex relation . P.Fratris An-
tonii ab Incarnatione.
4 NasIndias Orientaes o Religio
Giflimo Padre Fr.Eftevao do Roſario .
Naſceo em Cochim , e coube -lhe gran-
de parte do trabalho dos noſſos Mif-
ſionarios daquellas partes , e ſuccedeo
digniſſimamente ao noſo Veneravel
Fr. Alvaro de Tavora na Miſſao do
Reyno de Amanubáo. He muito de
crer que ſeria huma morte ditora
o premio de huina vida tað justificada.
Vivia no anno de 1665. = Ex relaz
tione P. Fratr . Anton . ab Incarnat .
7. de Agoſto.
Vida do Reverendiſſimo eVe .
neravel Padre
F R. T H O M A Z
DE FIRM O ,
Vigefimoquarto Géral da Ordem ,
Extrabida de Pio , na ſegun
da parte .
I Overnouo V.Padre Fr. Tho-
G
maz de Firmo a Ordem ſen-
do o teu Vigeſimoquarto Géral , e
ſuccedendo immediata, e digniſſima.
mente ao Beato Raymundo de Ca.
pua , ao meſmo tempo em que tive-
Tao o governoda Igreja Bonifacio IX . ,
Innocencio VII. , e Alexandre V.; cu.
jos tempos corrêrað mui calamitofos
no eſpiritual pelo terrivel Ciſma, que
entao inquietava a Chriſtandade Or.
thodoxa. Entao poz Deos eſte gran-
de homem na Religiao Dominicana ,
qual outro Querubim no Parailo , para
ter , e contêr os Conventos na jufta
FIRMO 7 de Agoſto, 173
obediencia do Papa legitimo , que ti
nha a ſua Cadeira na Pontifical , e
ſanta Cidade de Roma , ao meſmo
tempo , em que o Ciſmatico havia col
locado a ſúa em Avinhaõ de França.
Foi eleito no primeiro anno do deci.
moquinto ſeculo , e daqui expedio
cartas circulares chêas de muita ſaa
bedoria , e piedade, aſſim como o fez
em outros tres Capiculos que teve , ex
pedindo - as a Erford , Nuremberg , e
Bolonha .
2 Entendendo bem a obrigaçao
que lhe incumbia de promover o ma
ioradiantamento da Ordem , e olhan
do para o muito , que neſte meſmo par
ticular havia trabalhado feu illuſtre
anteceſſor , deliberou- ſe a ſeguir,
quanto mais pudelle , as ſuas pizadas ,
rectificando o que nao foſſe direito ;
roborando o que nao foſſe forte ; fa
rando o que eſtivefle ferido ; repon
do o que estiveſſe deslocado ; e cum
prindo em tudo as obrig çoes de hum
verdadeiro filho , e ſuccetíor doGene
ralato de S. Domingos . Como ainda
entao havia hum nao pequeno nume
ro de Conventos , que nao tinhao a
braçado a reforma , que elle tanto de
tejava introduzir, procurava facilitar
elte negocio com a exactiſſima regu
laridade das ſuas acçoens : porque , co
mo dizo Proverbio : As palavras fim
movem , mas os exemplos ( quanto mais
os dos Superiores) attrahem . Viſitou
muitas Provincias , procurando re
duzillas á maior perfeiçao . No Capi
tulo que fez em Nuremberg , do anno
de 1405. eſtabeleceo huma belliſſima
Conſtituiçaõ para fechar a porta á fi
monia , que muitas vezes infenſivel
mente ſe vai introduzindo debaixo do
eſpecioſo pretexto da pobreza Reli
' gioſa. Eisaqui o ſeu theor vertido em
vulgar :
3 Para que na recepçaõ dos Fra .
des , e Freiras de atalhe o vicio da
fimonia , nao ſe lhes aceitará dinhei .
ro algum ; porque em caſo de haver
aqui alguma convençao, ou intençao
de que , Jem tal , 015 qual quantia , nao
Jeria
 174 FR . THOMAZ DE FIRMO
ſeria aceito o pertendente , por mui
limitada que ſeja a fomma, e seja
pretextada como for, para comer , ou
para qualquer outra couſa , a peſoa
que aſim recebe , fica deſde então ex-
commungada por huma Extravagan.
te de Vrbano V., e nao pode ſer abfol-
vido , ſenaõpelo Papa. De modo, que
o que recebe dinheiro , e o que he re-
cebido por eſte meyo , ambos fao fimo-
niacos , e como taes devem ſer expuls
Jos da Ordem , e abraçar, ſegundo
aſſim o diſpoem o Direito Pontificio.
Outra mais apertada. Nao ſomente
incorrem em fimonia os Superiores ,
que fazem ſemelhantes convençoens,
Jenaö ainda os que dao para iſo cono
Jelho, que como, outro fim , determia
na o meſmo Direito Canonico , devem
ſer caftigados , e ſuſpendidos do exer .
cicio das ſuas Ordens.
4 Accreſcentou as Conſtituiçoēs
com muitas outras , e todas neceſſa-
riſſimas. Prohibio poder alguem ſer
promovido a Prégador Géral, Prior ,
ou Inquiſidor , ſem ter fufficiencia,
e talento , com que bem ſe deſempe-
nhaſle deſtas obrigaçoens. Ordenou
que , excepto Doutores , e Prégadores
Geraes , todos os outros que ſe carteaf
ſem fem permiſſaô , follem punidos ,
• como.de hum crime da primeira ca
beça : que ſe nao poderia reounciar
privilegio algum da Ordem ſem con-
ſenſo do Capitulo geral : que os Re-
ligioſos nao exerceriao a Medicina ,
o que aſſim fora determinado muitas
outras vezes , ſingularmente no Ca
pitulo de Ruam de 1320.,pelos inſepa.
Taveis , e grandes inconvenientes , que
este uſo traz comſigo : que os Reli
gioſos , que foflem permutados de
hum a outro Convento , executaria7
as ordens dos Superiores dentro de
oito dias : que a Provincia da Lom-
bardia inferior tomaria a invocaçaõ
de S. Domingos ; a da luperior , o no-
me de S. Pedro Martyr : que a Festa
da Viſitaçao da Virgem Senhora ſe
celebraria totalmente duples com oi-
tavas ; e que na primeira Dominga do
7 de Agoſto.
Advento começaria ſempre o hebdo
medario o Officio da parte direita do
Coro .
5 Com huma adheſao tao cuida
doſa, e fanta , cendente ao maior adian
tamento , e luftre da Religiao , aſſim
a fez florecer o noſſo Reverendiſſimo
Padre Firmo , como hum ameniſlimo
paraiſo. O Santo Padre Bonifacio IX .
vendo a lingular obſervancia, que el
le tinha introduzido na Ordem , e
conſiderando que nao podia haver
melhor incentivo para introduzir esta
meſma regularidade nos Moſteiros
de Religioias, do que o efficaz exem
plo, com que procediao os noflos Fra 2
des , ſujeitou todas as Clauſuras do
outro lexo å juriſdiçao do noſſo Ve 1
neravel Geral . Eita meſma exacçao
dos noſſos chamou huma grande mul.
tidao de homens , e mulheres para a
noſſa'Terceira Ordem , ao que atten
ta a Santidade de Innocencio VII. ex
pedio a Bulla , que principia : Sedis a
Apoftolicæ , aonde em vinte e dous
Capitulos ſe exáraő todas as ſuas obri
gaçoēs . Alcançou o noſio Veneravel
Geral muitas graçasdaSanta Sé Apo 1
ftolica , bumas ſolicitadas por elle , e
outras que ſe lhe concederaõ gratui
tamente em attençao dos ſeus tao di
Itinctos merecimentos . O meſmo Bc
nifacio IX . , dando- lhe permiſſao de
inſtituir em Roma hum Procurador
geral da Ordem , diz neſta Bulla : A
quelle amor paternal , com que olha
mos para vós , pela bõa affeiçao, que
nos tendes , e á Cadeira de S. Pedro ;
eo feres peloa taõ recommendavel
por vosſas qualidades , e pelo confpi
cuo zelo ,que ſempre haveis moſtrado
da Religiaõ , nos move a que benevo
lamente vos concedamos quanto for
mais conducente á maior quietaçao,
e proſperidade da Ordem dos Préga .
dores. Tao fantamente governou o
noſſo Reverendiffimo Padre Firmo a
Ordem , por tempo de treze annos ,
e correndo o de Chriſto a 7. de Ago
ſto de 1413. , achando -ſe em Genova ,
foi a deſcançar no Ceo dos ſeus tao
gloriolos trabalhos . RE
 FR.JERONYMO BERNERIO DE CORVEGA & .de Agoſto.
RECOPIL
A C, A M
de 7. de Agoſto
I M Limoges os Servos de
Deos Fr. Clerc Garcia Na
varro , e Fr.Pedro de S.Juniano , Sub
diaconos. O primeiro toi hum dos do
ze , que viverao , e morrerao ſantif
fimamente no Convento que eſtava
para lá do rio . No anno de 1230. dei
xou o mundo pelo Ceo , para onde
tambem , em premio das ſuas excel-
lentes virtudes , paſlou o ſegundo no
anno de 1265, Guido.
2 Em Sonſino , o Veneravel Pa-
dre Fr. Thomaz de Pavia . Foi eſte
bom Padre hum dos preclariſſimos
propagadores da maior obſervancia ,
que Santa Catharina de Sena introdu-
zio na Ordem depois da ſua gloriofa
morte . Governava por eſtes tempos
a Ordem o noſo Reverendiſſimo Fr.
Marcial Auribelli , que protegia gran-
demente eltes zeloſiſſimos amantes da
maior perfeiçao da Ordem ; e delejo-
fa a Republica de Soncino de ſe hon-
rar com estes illuſtres Reformadores,
os pedio com inſtancia ao Vigario Ge-
ral , e aos Definidores do Capitulo da
Congregaçao da Lombardia , e obte-
ve quatro Religioſos de vida mais re .
gular , e juſtificada, quaes forao os Pa-
dres Fr. Thomaz Doñat, que morreo
Patriarcha deVeneza , o Beato Ago.
finho de Bugella , o Beato Mattheus
Carrerio de Mantua , e o noſſo Vene-
ravel Fr. Thomaz , que a todos pre .
ſidia , e foi o primeiro Prior daquel-
le Convento , que naõlómente traba
lhava por adiantar a grande obra da
reforma da Ordem , ſenao a de toda
aqueila Cidade , que o tinha por hum
fanto , e como tal morreo . Florecia
no anno de 1470. Ex Seraf. Raz .
in Vita Sor.Luzie de Son fino.pag.125.
175
8. de Agoſto.
Vida do Veneravel , e Emi
Dentiffimo Cardeal
F R.
BERNERIO DE CORVEGA ,
Extrabida de Fontana in Theatr ,
pag.39 ., & 132 .
I
E huma eſtirpe mui illu
D Here
n e gloriofa foi condi
gna vergonta o noſlo Eminentiſlimo,
e Veneravel Fr. Jeronymo Bernerio
de Corvega , e a lua preclariſſima no
breza , lhe deveo o mais realçado eſ
plendor , com que elle a ſublimou , das
ſuas muitas , e excellentiſſimas virtu .
des. Era natural de Corvega na Lom
bardia , e deſprezando os faftos , e
as eſperançasdo mundo , quando mais
o liſongeavao as ferêas das ſuas hon
ras , lhe deo generoſamente as coſtas
abraçando - ſe com Chriſto Crucifica.
do na Religiao . Teve fumma habilia
dade para as ſciencias , em que ſe di
ſtinguia como o Feniz entre as aves ;
mas voava muito mais altamente pela
esfera da maior perfeiçao Chriſtaa , e
Religioſa. Logo que pode ſubir aos
cargos da Religiao , começou a ex
ercellos com toda a ſatisfação , eap
plauſo. Foi duas vezes Prior do Con
vento de Boſco , fundado pela Santi.
dade do noſſo S. Pio V. , e foi-o tam
bem das Caſas de Santa MARIA das
Graças de Milað , e de Santa Sabina
em Roma , habitaçao que elle muito
amou , e que depois de The haver fei
to em todos os tempos muitas bem
feitorias , ultimamente a honrou , or
denando que foſle , como foi, depo
fitado nella o ſeu cadaver , aonde ef
pera a univerſal reſurreiçaõnaCapel
Ja de S. Jacinto . Fizeraõ no tambem
Definidor da ſua Provincia , no Capi
tulo de Breſſa , no anno de 1583. , em
prego que elle fervio com os olhos
unicamente em Deos , e no amor da
fua Religiao .
2 In
176 RECOPILAC, A
2 Informado Sixto V. das bellif-
ſimas qualidades do noſo Veneravel
Fr. Jeronymo , o promoveo a Bilpo ,
e Principe de Aſcolina Marca Ancos
pitana , Igreja que elle fervio de mo
ao , que lhe fizera diminuir as ſauda .
des quando immediatamente hou.
vera ſido governada por algum dao
quelles mais celebres Prelados da I-
greja primitiva . Olhava para cada hum
de leus Parochianos como pudera o
pay mais amoroſo para hű filho unico .
Prégava muitas vezes , ſabendo muie
to bem de quanto mais bem ouvidas
haviao de ſer as vozes do Paſtor , que
as dos pegureiros . Em obſervancia
dos Decretos do Sagrado Concilio
Tridentino , inſtituio hum Semina-
rio para ſerem nelle inftruidos os Cle-
rigos, e todos aquelles que ſe defti-
navao a Miniſtros de Deos. Do mer-
mo modo foi tambem Author de hūa
Congregaçaõ mui util ao bem eſpiri-
tual das ſuas ovelhas. Defentranhava-
ſe em caridade , e nao ſomente daria ,
como dava , prodigamente largas ef-
mólas, ſenaõ ainda as ſuasmelmasen-
tranhas aos pobres. Sendo tao com-
padecido delles , era.o muito particu-
larmente daquellesmais envergonha-
dos , e bem procedidos . Finalmente
eſta ſua piedade hia , como nos co
ſtumamos explicar , tanto de monte
a monte , que mereceo que ſe reco .
mendaſſe o ſeu nome á pofteridade
na Caſa do Senado Aſcolano com hữa
breve , mas glorioſiſſima inſcripçao
Latina , que alli ſe fez gravar , ever
tida em vulgar, dizia allim : Dedica-
ſe eſta memoria a Fr. Jeronymo Ber.
nerio , Cardeal, [ era - o ja o Servo de
Deos com o titulo de Santa MARIA
fobre a Minerva , havendo- lhe alcan
çado o Cardeal Alexandrino efta hon
rade Sixto V. ] Biſpo , e Principe de
Aſcoli, pay da patria , pay dos pobres,
e pay de todos osbons .
3 Conſiderando o noſſo Eminen
tiſlimo Biſpo , que a applicaçao da ſua
Dieceſe o impoſſibilitava para poder
empregar-ſe, como muito deſejava,
M de 8. de Agoſto.
com maior adheſaõ ao ſerviço da Igre .
ja univerſal , renunciou aquella digni,
dade , reftituindo - ſe logoa fanta Cida
de de Roma ; porém Clemente VIII.
attento aos caó recommendaveis pre
dicados do noſſo Eminentiſſimo , nao
quiz que elle ficaſſe deftituido da au
horidade Epiſcopal, e de novo o fez
Biſpo de Abba , ſuffraganeo a Roma .
Ameſma attençao teve com elle Pau
lo V. nomeando - o Biſpo Portuenſe ,
que era outra dignidade muito mais
avantajada , e honorifica. Tomoude
baixo da ſua protecçaõ os Padres Ser
vitas , Religiao dedicada ás Dores de
MARIA Santiſſima; e com hum tal
fervor fazia as partes daquelles Vene
raveis Religioſos, como ſe fora pro
feſlo do ſeu fagrado Inſtituto . Os opti
mos requiſitos deſte grande homem
The ganhára ) , igualmente que os cora
çoens, a eltimaçao de todos os Princi
pes da Chriſtande. Foi devoriſſimo de
Chriſto Crucificado , e do Doutor Ma
ximo , que com o nome parece lhe
participára o talento , e a virtudes
Tambem era muireſpectuolo a Santo
Emydo , Patrono da Igreja deAſcoli ,
e em honra do meſmo Senhor, deſtes
dous Santos, e de noſſo glorioſo Pa
dre S. Domingos , aquem juntamente
amava com o mais carinhoſo affecto ,
fez levantar em Aſcoli huma Capella
no ſeu Palacio Epiſcopal. Tambem
era muinotavel a devoçao , que elle ti
nha com S. Jacynto , a ſombra de cuja
Imagem , como ja diſlemos, quiz ler
enterrado . Paſlou , como piamante ſe
crê , para a companhia deites grandes
Servos do Senhor em 8. de Agoſto de
1611 .
RECOPILAC , AM
de 8. de Agoſto.
I O Moſteiro de Salamanca ,
NOa muito virtuofa Irmãs
Leiga S
, oror Iſabel de Caſtella . Ain
da em vida começou a gozar das do .
çuras do Ceo , correſpondendo eſte á
fan
 FR . ROMEO DE BURGARIA
fantidade da ſua vida com favores ex
traordinarios . Na obſervancia foi mui
ſingular , nao faltando , antes accref.
centando muitos outros aos jejuns da
Religiao , aſſim como a eſtesmaior ri
gor , chegando a paſlar huma Quarel-
ma ſem beber. Por muito que ſe achaf
ſe fatigada do pezo do grande
trabalho que ſuſtintia de dia , à noite
era ſempre infallivel ás Matinas : de .
pois dellas ſe entretinha com o ſeu Di
vino Amado em larga , e profunda
contemplaçað : quanto aquieraõ ma-
iores os mimos , tanto erao mais os
tomentos , que a inflammavao - para
praticar , como praticava , aſperrimas
penitencias . Tinha , igualmente que o
a bo-
coraçao aberto para o Creador ,
ca fechada para as creaturas . Final.
mente acabou como hum Anjo os ſeus
dias , paſſando a louvar com elles a
Deos para ſempre no fim do decimo-
quinto ſeculo. = Lopes. 3. part. l. 1.
cap.44 ;
No Moſteiro de Provilhea mui-
to Religioſa Madre Soror Franciſca
de Calemajou . Era cementiſſima a
Deos , e eſtava tao preoccupada de .
stes devotiſſimos ſentimentos , que
olhava para tudo o que reſpeitava o
ſeu culto , e ſerviço com humildiffi.
mo reſpeito . Para ella hum peccado
venial , era o meſmoque hum facrile-
gio da primeira cabeça , e logo que ſe
arguia de alguma leve imperfeiçao ,
igualmente pareciao irremediaveis ,
que eraõ copioſas, as ſuas lagrimas .
Èm premio de tanta devoçao , e fide-
lidade , a chamou o Senhor para ſi , me .
diante huma boa morte . Parece que
vivia no fim do decimoſexto ſeculo .
Soueges.
Tom . VII.
9. de Agoſto. 177
9. de Agoſto
Vida do grande Servo de Deos ,
o Veneravel Padre
FR E Y ROMEO
DE BURGARIA ,
Extrabida de Diago.
I Ra o noſſo exemplariſſimo
E Fr. Romêo de Burgaria da
Ilha de Malhorca , e honrou detalmo
do a Religiao na ſua Provincia , que,
recebido o grao de Doutor, paſſou a
regentar em Pariz pela Feſta do Naf
cimento do grande Bautiſta de 1306 .
Foi amantiſlimo da razao , e da juſti
ça . Ao tempo , em que ſe achava em
França, le tratava com muito calor
da cauſa dos Templarios , tao celebres
na Hiſtoria Ecclefiaftica , e cuja ex
rinçað he attribuida por muitos , e
graviſſimos Authores á ambiçao de
Filippe , o Formoſo , de França . So.
bre eſte incidente diz o noſſo Vene
ravel Fr. Romêo ao Rei de Aragao D.
Jayme II . em huma carta que lhe ef
creveo , haver - le elle achado pormais
de ſeis mezes em muitas conferencias
que refpeitavao eſte ponto , e conti
nûa aconſelhando aquelle Principe ,
que reveſtido unicamente do zelo da
verdade, e do ſerviço de Deos , con
feriſſe a meſma materia com Eccle
fiafticos doutos , para ſe reſolver no
que ſe devia praticar nos ſeus domi
nios , de modo que, ao largar ao fim da
vida a coroa caduca do ſeu Reino , pu
defle receber outra de im marceſſivel ,
e interminavel gloria , deixando ao
meſmo tempo recomendavel, ebem
quiſta a ſua memoria entre os homēs. 1
2 Voltando á ſua Provincia , que
no anno de 1301. ſe ſeparára da de
Heſpanha , ſe lhe cometteo o gover
no della em 1309. no Capitulo de C ,a
ragoça , e ſervio elle eftelugar satisfa
zendo de ſobejo aquella expectaçao
univerſal com que fora promovido.
Poz todo o cuidado na converſaõdos
2 Mous
178 FR : ROMEO DE BURGARIR
Mouros , tanto dos circumvizinhos ,
como dos Africanos, a cuja conver-
sao pallavaö , tað util , quanto glorio .
famente, os noſſos Millionarios. Para
adiantar melhor eſta grande obra , aſ-
ſignou algus Conventos para o eſtudo
da lingua Grabe , que elle fomentava,
e cultivava com viva, e ardente ap-
plicaçao . Goſtou muito o noſſo Re-
verendiſſimo Geral da ſanta enterpre-
za , que tomára o bom Provincial , e
otorgou - lhe que elle pudelle man- ' da Igreja tantas naçoens. Vós fois
dar para Africa os Religioſos que bem por nós deſtinados , em remiſao dos
lhe parecelie , e pôr -lhes alli hui Vi-
gario , cargo que o noſlo Veneravel
Fr. Roméo dettinou a Fr. Pedro Fer-
rer de Manreſa , Religioſo de hum
merecimento mui diſtindo , e de vi
da inculpavel , Attenta a Santidade de
Alexandre IV . aos bons ſerviços, que
os noſſos faziao á Igreja , aſſim neita ,
como em outras muitas ſuas empre
zas , eſcrevendo ao nosſo Provincial
de Caftella o Vencravel Padre Fr.Ro.
mêo , lhe dizia , que entre todos os
Propugnadores , e defenſoresda dou
trina Orthodoxa , eraõ os noſſosRe-
ligioſos, os que ,poſſuidos de hum ſan .
to zelo , ſe conformavao com as obri.
gaçoens do ſeu Eſtado . Nem foi eſta a
unica occaſiao , em que o fervor , com
que os filhos de S. Domingos traba-
ihavao na cultura da Vinha do Eter-
no Pay de Familias , mereceo ter por
ſeus dignos Panegyriſtas os meſmos
Oraculos do Vaticano .
3 Innocencio IV . , no announde .
cimo do ſeu Pontificado , eſcreveo
aos noſſos Miſſionarios, que cultiva .
vað a ſeara de Chriſto entre os Gen-
tios , Mouros , e Ciſmaticos na Gre-
cia , Ethiopia , Syria , Nubia, Arme-
nia , India , Tarcaria , Hungria , e em
outros muitos paizes,tyrandizados pe-
la infidelidade, e pela hereſia ; e ape
plaudia grandemente o eſpirito , e
fervor, com que os noſſos haviaõ em
prendido eſta conquiſta eſpiritual: e
traduzida de Latim em vulgar huma
clauſula da ſua carta , ſoa deſte modo :
Vós que ajuſtados a's Leis da volo In .
9. de Agoſto.
Rituto , e comidos do zelo do bem das
almas , conftituis , ornados de excel
lentes dons , e fortalecidos de huma
Fé inconcuſſa , a quarta quadriga ,
correndo, e diſcorrendo por todas as
partes do mundo conhecido, e fazen
do tremolar nas mais remotas , aonde
reina a idolatria , o eſtandarte do Rei
da Gloria , annunciando o Nome, que
alli ſe deſconhece , de JESV Chriſto ,
e procurando incorporar ao gremio
vosſos peccados , a prégar as verdades
Divinas a eſtes povos , ſemeando fo
bretant as aguas, confiados unicamen
te naquelle Senhor , que le proteſta
vencedor do mundo : Vagai pois por
toda a terra ; illuſtrai a com as luzes .
da verdadeira doutrina ; ponde en
fempiterno exterminio a beretica im
piedade ; confirmaios eſpiritos vacila
lantes ; corroboraios dos Fieis Ortho
doxos , e procurai que, ſendo fantasas
volas palavras , sejao ſantiſimas
as vol as obras ; para que todos ſeedia
fiquem , e ninguem entre em eſcanda
lo: deſte modo honrareis , e reforça
reis melhor o veſlo miniſterio ; ſerá
a Igreja mais bem fervida , a volle
Ordem muito mais acreditada . Con
tinúa o Santo Padre enchendo -nos de
muitas graças , e indultos, e eſpecifi
cando mui honorificamente os noſſos
Millionarios Heſpanhoes , que traba
lhavao na converſao dos Mouros , e
haviao paſſado á Miſlao de Tunes , em
Africa . Ao meſmo tempo era o noſſo
Veneravel Padre Fr. Romeo hum Ara
gos vigilantiffimo em promover a ma
ior regularidade na ſua Provincia , ce
lebrando, ſegundo o ekylo daquelles
bons tempos , Capitulo todos os annos .
Teve o ultimo na Cidade de Pamplo
na no anno de 1313. , que foi o da ſua
fanta morte , que o levou para Deos ,
achando - ſe em Barcelona , a 9. de Ago
fto.
si de
 FR . JOAM CLEREO
9. de Agoſto.
Vida do Veneravel e Reverendif-
ſimo
FR . JOAM CLEREO ,
Trigeſimoſettimo Geral da Or
dem ,
Extrabida de Fr.Miguel Pio na 2.p.
b.3.col.1oo. das Actas do Capitu
lo Romano , e de outros .
I Ez o poſſo Veneravel e Re-
verendiflimo Fr. Joao Cle-
reo trigeſimoſettimo Geral da Or-
dem , poſto que elle na carta circular ,
que expedio à Ordem , por occaſiaõ
da ſua eleiçao , diz ſer elle o trigefimo-
oiravo , que aſcendia aquelle potto ,
muito mais illuſtre a Normandia, que
a Providencia lhe deo por patria. Ex-
ercitou por muitos annos o ſagrado mi-
niſterio do pulpito com igual gloria do
ſeu nome , que da Religiao . Era de
vida tao ſania , e ajuſtada , que o Rei
Chriſtianiſſimo Luiz XII., Principe de
tanta bondade, que lhe chamáraó Pay
dos ſeus vaſſallos , que aſſim como a .
Rainha ſua mulher , Anna de Breta-
nha , o favorecia em todosos ſeus pro-
jectos, e com tanto melhor vontade ,
quanto elles nao tinhao outra couſa ,
que nao fofle do Ceo , o elegeo leu
Confeffor , e da meſmaRainha o era
o noſſo Beato Fr. Ivo Mattheus . Era
amantiſlimo da obſervancia , e refor :
ma , e principiando a fomentalla com
o ſeu exemplo , que era ſanto , paſſa-
va a eſtabelecella com quantas boas din
ligencias podia . Depois que , á inſtan
cia do noſſo Cardeal Protector da Or-
dem Fr. Oliverio Carafa , ſe vio pro-
movido por Julio II . a Vigario Geral
da Religiao , incentou reformaro Mo-
ſteiro de Poyfli : diſto padeceo muitiſ .
fimas contradiçoens , calumnias , e li-
tigios aré nos Tribunaes ſeculares , o
que tudo ſe faria inſuperavel a outro
qualquer animo , que nao fofle o ſeu .
Depoz por eſta cauſa a Prioreza Soror
Tom . VII .
9. de Agoſto. 179
Joanna de Eſtoutevilhe , que ſe oppu :
nha aosſeus bonsintentos , ecommet
teo aquella Prelatura á Madre Soror
Pergenta de Melun , Religioſa de vi
da irreprehenſivel, e mui juſtificada.
2 Corria o anno de 1507. quando
elle acompanhou a Sua Mageftade
Chriſtianiſſima na guerra que entao
fazia aos Genovezes , e victorioſas as
Armas de França , ſe retirou com o
meſmo Soberano a Pavia , aonde eſta
va aſſignado o Capitulo Geral, quecom
effeito alli le celebrou na Feſta do Ef
pirito Santo daquelle anno , e no ter
ceiro eſcrutinio ſahio eleito unanime
mente Geral da Ordem o Servo de
Deos . Merece aqui particular memo
ria a liberalidade dos Reys Chriſtia
niſſimos , dos Prelados ( muitos del
les Eminentiſſimos Cardeaes )de Sanz,
Ruao , Pariz , Och , Alby, Marſelha,
Baiona, e Rhenes : eſte era o noſſo ja
mencionado Fr. Ivo Martheus , que
violentado pela obediencia aceitára o
pezo daquella dignidade , a que pri
meiro muito havia fugido com os hom.
bros . Todos eſtes , e outros muitos Se
nhores uſáraõ de muita benificencia ;
e attençao com os noſſos Padres do
Capitulo, moſtrando igualmente que
a ſua grandeza , a ſua muita affeiçao á
Ordem , que lhes conſignou particu
lares fuffragios, admittindo- os ásſuas
graças , e indultos. Parece que nao foi
eleito o Reverendiffimo e Veneravel
Fr. Joao fenao para ſaudade de ſeus
ſubditos ; porque o ſeu governo , que
ſe eſperava que foſſe hum dos mais
glorioſos, e fantos, apenas chegou a
quatro mezes.
3. Eſta grande deſconſolaçaõ , te
ve o lenitivo de ſe eleger em ſeu lugar
o noſſo grande Caietano , que digna
mente ſuccedeo a hum Prelado tao
augufto , e Religioſo . Eſcreveo o nof
fo Reverendiſſimo Clereo huma car .
ta circular á Ordem , que parecia ver
dadeiramente o mais expreſlo retrato
do ſeu eſpirito . Nella , conſiderando
ſe , como acima notamos , trigefimo
oitavo Geral , faz huma bella alluſao
Z ii áquel ,
180 RECOPIL A C , A
áquelle doente do Evangelho , que,
depois de haver padecido a ſua lelao
por tempo de trinta e oito annos , buſ.
cando as aguasda piſcina, achou mais
preſentanea a ſaude na Miſericordia
do Salvador . Por tanto animava ago
ra o poſſo Veneravel Geral á Ordem a
procurar toda amelhorîa eſpiritual , e
recuperar aquella mais nervoſa dici-
plina da Regra , com que a Ordem na
ſua primeira idade de ouro florecêra :
e ao meſmo tempo empenhava a ſua
palavra a fazer osmaioresesforços em
reſtituir elte antigo , e tao formoſo
Juſtre ao habito de S.Domingos. Tu
do o que ſe ordenou nette Capitulo
tendia muito principalmente a promo
ver a maior eitreiteza , e perfeiçao da
regularidade , ou , pormelhor dizer , a
renovar tudo o que a eſſe intento ſe ha-
via inſtituido. Corroborou pois todas
as Ordenaçoēs feitas a eſte fim nos Ca-
pitulosantecedentes, mandando que,
ſegundo o ſeu rigor , ſejao caſtigados
os tranfgrellores , e deſobediences .
Prohibio que ſe pudeſle na Ordem ap .
pellar para Tribunaes eſtranhos , an-
nullando tudo o por elles decidido
em ſemelhantes particulares . Orde .
nou que todos aquelles Religioſos,
que tiveſſem algum beneficio , menos
que o nað renunciaſſem , nao pudeſ.
ſem ter domicilios nos Conventos ,
impondo que eſta ſua reſoluçao ſeria
executada dentro de quinze dias , pe-
na de ſerem apeados do ſeu cargo os
Superiores , que foſlem negligentes
em fazello aflim obſervar .
4 Poz obrigaçao aos Priores para
avocarem á Communidade todos os
Religioſos, que andaſſem fóra da Ca
fa , uſando para iſſo de cenſuras, quan
do aflim foſſe neceflarió , e até deſa
pindo - lhes o habito em caſo de maior
renitencia . Exceptuava deſta ordem
aquelles Religioſos que Parochiaf ,
ſem , como, por exemplo , ſuccede em
Roma , em Provença , e nas Indias Por-
tuguezas , donde elles ſao Curas de al-
mas. Decretava aſſim meſmo que os
Priores , pena de ſuſpenſao de offi-
M de 9. de Agoſto .
cio , menos que nao foſſe por cauſa de
doença , nao pudeſſem hoſpedar , e
retardar por mais de tres dias todo
aquelle Religioſo Conventual de al
gum Conventoreformado. Igualmen
te impedia que em algum deftes pu
deſfem receber algum Religioſo de
outras Caſas, em que nao florec elle
igualmente a reforma , ſalvo ſe elle
déſle bons ſinaes, e teftimunhos de
querer abraçar aquella vida mais ac ,
atera. Finalmente cominava prizao,
e penas da mais grave culpa a todos
osReligioſos , que le mettelem a Me.
dicos , ou Métinheiros. Celebrado o
Capitulo , partio de Pavia para Roma
a deitar - le aos pés de Sua Sanridade ,
e gratificar ao nojlo referido Cardeal,
e Protector Carafa , a bõa affeiçao que
The tinha . Entrou logo a dar cumpri
menco ao que havia projectado , e de
pois de reformar breve , e feliciſſima
mente o Convento de Parma , cami
nhando para o de Pavia , morreo , com
grandes ſignaes de predeſtinado , no
Convento de Santo Apollinario da
Congregaçao da Lombardia , extra
muros daquella Cidade , em 9.de Ago
fo de 1507. Eſtava tað opinado por
Santo , que Luiz Laſleré , que foi leu
coetaneo , onumera entre outros Va
roens de finalada lantidade daquelles
na vida quecompozem Fran
tempos ,
cez do Doutor Maximo , dizendo , g
ſe em Roma houvera noticia das ſuas
eminentes viriudes , podia haver hũa
bem fundada eſperança da ſua Cano ,
nizaçao .
RECOPILAC , A M
de 9. de Agoſto :
I M Salamanca o Veneravel
E Padre Fr. Diogo de Alde
rete . Erafobrinho do Eminentiflimo
Cardeal Gaſpar de Quiroga , e cele
brou a ſua profiſſao naquelle auguſtil
fimo Convento , que illu ! trou com to
das as virtudes Religioſas , com que
ſempre o edificou . As que nelle mais
reſplan
 FR . DIOGO ESTUBACH ,
reſplandeciao ; como em elemento
proprio , erao , huma pobreza verda-
deiramente Evangelica , huma obe-
diencia cega a tudo o que ſe lhe man-
dava , huma penitencia digna dos an-
tigos Eſtilitas, de modo que paflou
mais de quarenta annos ſem ſaber o
que era cama; huma humildade raras
vezes viita , com que recuſou muitas
Prelazias Epiſcopaes , que felhe offe-
recêrað , e huma obſervancia tað re-
gular , que depois da ſua precioſa mor
te ſe fez credor o ſeu nome dos elo.
gios , que ſe lhe fizeraó no Capitulo
de Roma de 1612. , ſegundo conita das
ſuas melmas Actas. = Acta Capituli
Generalis Roma . 1612. 6 Lopes 4 .
part .
2 No Convento de S. Lucas de
Barrameda , da Provincia de Andalu .
zia , o devoto Irmao Leigo Fr.Ildefon-
ſo da Cruz. Sendo eminente em todo
o genero de virtudes , zelou com a ul
tima exacçaõ aquellas que tinha vota
do a Sua Divina Mageltade pela pro
fiſſao . Zelava muito a virtude da pu-
reza , e conſervava a fragrancia , e
formoſura delta roſa , entre acerbil
fimos eſpinhos depenitencias. Por lua
morte felhe achou huma grande Cruz
de ferro guarnecida de pontas , que
elle trazia volcadas mui apertadamen
te para a parte da carne . Sempre foi
inimigo jurado do ocio , pelo que , ou
havia de trabalhar , ou orar . Era de
muito ſilencio ; e nao ſomente foi pon
tualiſſimo nos jejuns das Conſtitui-
çoēs , ſenao que accreſcentava a eſtes
muitos outros , e todos mui rigoroſos.
Goſtava moito da ſolidaõ ; e viveo mui-
tos annos ſem ſahir do ſeu Convento ,
menos que naõ pediſle o contrario a
obediencia , ou alguma inevitavel ne-
ceſſidade. Finalmente , depois de ha-
ver vivido tað fantamente , pafiou a
ver a Deos no anno de 1646. = Alta
Capituli Valentia . 1647 .
3. No Convento de Xeres ,na Provin-
cia de Andaluzia , o Religiofiffimo Pa
dre Fr.Paulo de Santa Maria . Eralno
glez de naçao , e aſſiſtio nas Caſas de
1
& c. 10 : de Agoſto . 181
Jaen , e Xeres , que edificou , e fanti
ficou com a ſua vida , ſempre incul
pavel , ſempre fanta . Era ouvir hum
Anjo , o ouvillo . Foi igualmente ob .
lervante , que penitente , buſcando
mortificar- ſe de modo em tudo , que ,
ao parecer de muitos , eſta auſterida
de lhe encurtou notavelmente os teus
dias . Finalmente foi hum daquelles
bemaventurados , queconſervou ſem
pre candida, e illeſa a innocencia bau
tiſmal. Foi premio de tanta virtude a
eterna felicidade , para onde paſſou
no anno de 1648. = Acta Capituli
Generalis Roma . 1650 .
10. de Agoſto.
Memoria dos Veneraveis Pa
dres
FR . DIOGO ES TUBACH ,
CHRYSO S T O MO ,
HUMBERTO
PEDRO FULDNER ,
AGOSTINHO DE ZAGRABIA ,
DIOGO RIECH ,
E
LEONARDO DO VALLE,
Extrahida da Hiſtoria da Provin
cia de Hungria , na 4. part .
cap.9.
I H tempos ! Oh coſtumes !
0 ! Exclama o Satyrico. E ain
da mal que em todas as idades tantas
occaſioens ha de tomar na boca eſta
expreflao ! Corria o decimoquinto fe
culo de Chriito , quando ſe achava a
noſſa Religiaõ tao decahida do ſeu an
tigo luſtre na Hungria , que morren
do em Buda no anno de 1419. o noſ.
Eminentiſlimo , e Bemaventurado
Cardeal de Raguſa , que fora por Le,
gado de Sua Santidade ao meſmo Rei .
no , preferio o Convento dos Reli .
gioſos de S.Paulo , primeiro Eremica ,
ao noflo , eſcolhendo naquelle o lugar
da ſua fepultura , nao querendo ficar
entre os nolios; que elle calvez ven ,
do . Os
182 FR . DIOGO ESTUBACH ,
do-os tao degenerados do ſeu primi-
tivo eſplendor , nao teria por irmaos,
nem por filhos de S. Domingos ; ſen-
do certo que em ſemelhante ſituaçao
diſle eſte Santo a outros, que o invo-
cavao como a Pay , que nem o era ,
nem'elles ſeus filhos : leheg efta reſo
luçao , que tomou aquelle noſio gran-
de Servo de Deos , nao teve por fun-
damento huma cortez , e Religioſa
caridade , pela boa alliança que ſe dá
entre nós , e os MM . RR . PP . da Or-
dem do Archi - Eremita S. Paulo , ſen-
do protegido em Roma ſeu Inſtitui-
dor o Beato Euſebio de Eſtrigonia
do noſlo Santo Thomaz para o ſeu
eſtabelecimento ; e havendo huma tal
harmonia de parte a patte , que ſe fe-
ſtejao naquella preclariſſima Familia
as feſtas do Santo , e da ſua Canonis
zaçao com huma nao pouco notavel
folempidade. Tornando á mileravel
decadencia , em que ſe achava a ob.
ſervancia naquelles Eſtados , Eneas
Silvio , Biſpo Senenſe , e depois fuc
ceffor de S. Pedro com o nome de
Pio II . , muito affeiçoado ás noflas cou-
ſas , en huma carta eſcrita com a da-
ta de dez de Novembro de 1453. á
Santidade de Nicolao V. , de que abais
xo fallaremos , ao tempo em que alli
ja florecia a mais eſtreita reforma , diz
a reſpeito dos tempos immediatamente
proximos , que a Regra de S. Domin-
gos ſe'achava ja naquellas partesto-
talmente extindta.
No meyo deftas trevas appare-
ceraõ como Éttrellas verdadeiramen .
te Dominicanas os Veneraveis Padres
Fr Diogo Eftubach , Chryſoſtomo ,
Humberto , Pedro Fuldner , Agotti
nho de Zagrebia , Diogo Riech , e
Leonardo do Valle de Breſla. Tinha
ja ſido reformadoo Convēto de Vien-
na no dia de S. Kiliano , e ſeus com
panheiros Martyres do anno de 1434.
pelo noflo bem celebre , e Veneravel
Doutor Fr. Joao Nider ; e deſta Ca-
ſa , como he hum mar de virtudes , fa-
hirao aquellas torrentes de obſervan-
cia , e lantidade a fertilizar , como
&c. 1o . de Agoſto.
em outros tempos , o tað fecundo
campo da Ordem , que agora ſe via
tao arido , e infru & uoſo . Era o Ve
neravel Padre Entubach primeiropro
feſſor da Univerſidade de Vienna , e
a eſte deveraõ a lua reforma os Con
ventos de Ratisbona , Friſac , e Brun ,
e o Moſteiro de Offenhuſen . "Os Ve
neraveis PadresFr.ChryfoftomoeFul
dner forao encarregados do Conven
to de Budoitz , e dos mais da Bohe.
mia . Fr. Leonardo primeiro, profeſ
for de Theologia da Univerſidade
Viennenſe em hum ſeu manuſcrito,
que ſe conſerva na Bibliotheca de
Vienna , na dedicatoria , que he da
data de 7. de Junho de 1454. , ſe deſ
culpa com o ſeu Mecenas , de nao po
der ſer mais largo , e lheda hum : a
Deos , dizendo eitar a ponto de par
tir , em obſervancia das Ordens do Gé .
ral da Ordem , a reformar o Conven
to de Caſſovia . Tres annos trabalhou
ette Servo de Deos naquella empre
za do Ceo. Succedeo -lhe dignamen
te o Veneravel Padre Fr.DiogoRiech ,
que , em virtude da faculdade, quelhe
concedera o noſo Géral , inſtituio
Fr. Humberto Leitor do Convento
de Callovia , e propugnador acerrimo
da maior perfeiçao Religioſa , e Viſie
tador do ConventosReformados;efo
raó ambos duas columnas , ein que le
allegurou digna , e fantamente aquel
le eſpiritual edificio.
3. Finalmente Fr. Agoſtinho de
Zagrabia foi Religioſo de vida tao in
nocente, e de obſervancia taõ eſtrei
ta , que baſta ter por ſeu panegyriſta
o referido Prelado Eneas Silvio em
tres honorificentiſſimas cartas com
mendatorias , em que o abona como
Procurador Géral da Ordem , como
Reverendiſſimo Géral Auribelli , e
com Sua Santidade , ao tempo em que
pedia a neceſſidade que o Servo de
Deos pafTaffe á Cidade de Roma Fr.
Jorge Herberitein , digno Provincial
de Alemanha . Oinerecimento deſtes
grandes homens foi cañ diſtindo ,
que eſcrevendo o noſſo Géral Fr. Ro .
dulfo
 FR . THOMAZ DE VIO
dulfo no anno de 1634. ao noſſo Fr.
Jorge Herberitein , ( foi ſer ifto a tem-
po , em que a noſſa Igreja ſe reedifi-
cára , concorrendo infinito povo com
muito mais particular devoçaõ a ella )
o inflamma a cultivar aquella religio-
ſa formoſura , que ſeus antigos apie-
cellores haviao dado á Ordem naquele
Jes paizes , e pelo que a noſſa pieda-
de os conſidera triunfantes no Ceo
10. de Agoſto.
Vida do Eminentiſſimo Cardeal
do titulo de S. Sixto , o ſem
pre grande , e Veneravel
FR . T H O M A Z
DE VIO CAIETANO ,
Trigefimooitavo Géral da Ordem ,
Biſpo de Caieta , Arcebiſpo de
Palermo , e Legado da Santa
Sé Apoftolica ,
Extrabida do Padre Alvares , Bra;
liot , Spondano, Granada , Sixto
de Sena , Ughello na Italia
Sacra , Flavio , Soueges , e
outros muitos .
I Ebaixo deſtę dia do In
clyto Padroeiro de Ro-
ma S. Lourenço Martyr , e paõ a no-
ve de Settembro , em que Spondano
diz que ſuccedeo amorte do grande
filho do eſpirito de S. Domingos , e
de Santo Thomaz de Aquino , o Emi
nentiflimo Fr. Thomaz de Vio Caie-
tano , mais conhecido no mundo por
eſte ultimo cognome , que ſe lhe dá
em razao da ſua patria , que elles fez
tao clara , e tao celebre em todo o
Univerſo , relumiremos em pouco pa-
pel as ſuas precioſas memorias ; por-
que a haver de hiſtoriar - ſe toda a vi-
da deſte Varaõ do Ceo , ſeria neceſ-
ſario eſcrever volumes , e volumes .
A Cidade de Cajeta , a quem , como
cantou o Poeta , deo nome a ama de
leite de Eneas , que alli teve ſepultu-
ra , ja ficou menos celebre por eſta
CAIETANO 1o de Agoſto .
183
prerogativa , do que por haver fido
patria do noſſo Thomaz , nao pouco
lemelhante , aſſim como em nome, e
habico , em letras , e virtudes ao noſ
ſo Doutor Angelico ; e ainda houve,
a eſte meſmo propoſito , outra admi
ravel circunſtancia , que agora dire
mos . Andava ainda pejada do noſſo
menino Izabel Sieria , ſua máy , e
repreſentou -ſe -lhe , que o Anjo das
Elcólas tomava muito a ſeu cargo en
ſinar , e instruir ſeu filho , e levallo
ultimamente para o Ceo . Communi
cou o ſegredo a ſeu marido Franciſco
de Vio , e ambos conceberaõ as bem
fundadas esperanças , que depois ſe
virao tao bem logradas , de ſerem ,
como foraó , feliciſſimos progenito
res de hum grande Servo de Deos .
2. Foi o ditoſo dia do naſcimento
de Thomaz , aquelle , em que ſe felte
ja a Viſitaçao, que fezMaria Santiſſi
ma a ſua Prima Santa Izabel , e corria
o anno do Senhor de 1469. Impôs-ſe
lhe no Bautiímo o nome de Diogo , e
ſeus pays, que erad peſloas de huma
inſigne religiao , começáraó logo a
tratar de educar ſeu filho religiofifli
mamente . Hia elle creſcendo naida.
de , e de dia em dia fazendo - ſe major
aos Olhos de Deos , e dos .
Moſtrava hum eſpirito mui vivo , e
diſtinguia.ſe entre todos os ſeus Coe
taneos como Hercules entre os Pig
meos . Era continuo no eſtudo , eerao
nelle á competencia duas couſas ad
miraveis, o ſeu juizo , e a ſua memo
ria . ' Tinha huma fanta prudencia , com
que ſabia fugir de todas ascompanhias ;
que o podiao deſencaminhar da eſtra
da real , por onde proſeguia cao fe
lizmente a ſua carreira , Era reſpec
tuoſo , e obedientiflimo aos seusmain
res , e moſtrava- fe ja inclinado tanto
de fizo ás couſas do Ceo , como ſeri
veſle muitos annos de pratica da vida
mais exemplar , ereligioſa. Dizia elle
muitas vezes , como por graça , que
ainda eſperava hum dia , em que aca
baſſe de renunciar o mundo de todo ,
morrendo para o ſeculo em huma Re
ligiao . 3 En
184 FR . THOMAZ DE VIO
3 Entrado nos annosdapuberda-
de , todo o ſeu trato , e commercio,
era , ou com Religioſos, ou com peſ.
ſoas de honeſta , e ſanta vida ; e da-
quicomeçou a fazer hum tao alto con-
ceito da integridade virginal , que lo-
go fez voto a Deos de le conſervar
ſempre puro ; e deſempenhou altiffi-
mamente eſtá promefia ,que fez a ſua
Divina Mageftade, imitando até neſta
parte com amaior perfeiçao a Santo
Thomaz de Aquino. Queriaõ os pays,
e parentes do noſo Diogo , que eraõ
mui abattados , que elle abraçaſle o
eſtado conjugal, e propunhaõ fe mui-
tas donzellas , que por nobres , pren •
dadas , e ricas , ſe podiao fazer mui
amaveis para eſtes deſpoſorios; mas
o bom moço , conſtante em nao que .
brar a palavra, que dera a Deos , fazia
a maior reſiſtencia por evadir as in
ſtancias , e ainda os ameaços , com
que o mundo , e a carne lhe faziaõ
guerra : e deliberado a romper por
huma vez com eſtes embaraços, con-
tando deſaſeis annos de idade , foi
pedir ao noſſo Convento da referida
Cidade , aonde ja tinha chegado , e
era bem notoria a fama das ſuas letras,
e virtudes , o habito de S.Domingos ,
que logo com effeito le lhe veítio ,
mudando - lhe o Prior , e ao que pare-
ce nað ſem myfterio , onome de Dio-
go no de Thomaz , do que logo le
augurou , que elle ſeria na vida Re-
ligioſa , e na paleſtra das ſciencias ou
tro ſegundo Santo Thomaz no firo
mamento Dominicano. A experien-
cia aſſim o veio a verificar .
4. Por muitos Capitulos honrou
o Eminentiſſimo Cardeal à Ordem
Dominicana , praticando todas as vir-
tudes em hum levantadiflimo gráo ;
nós porěm , teceremos o ſeu elogio
pelos tres principaes , com que elle
tanto nos honrou , e ainda que elle ſe
fez tao juſtamente crédor dos cargos
que fervio pela limpidiſſima candura
das fuas obras ; com tudo , ainda que
façamos niſſo alguma violencia á or
dem hiſtorica , fallaremos primeirame :
CAEITANO 10 de Agoſto:
te dos ſeus empregos , cedendo o ſe :
gundo , e terceiro lugar , como mais
decoroſos, por ultimos , ás ſuas gran
des letras , e eminentes virtudes. A
primeira honra , que elle alcançou na
Religiao , foi a de receber o grão de
Doutor no Capitulo Géral , celebra
do em Ferrara , debaixo do Genera
lato do Reverendiſſimo Turriano no
anno de 1494.contando o noſſo Tho
maz , nad vinte e dous , como alguem
eſcreveo , mais vinte e cinco de ida .
de. Dalli voltou o Servo de Deos a
Padua , aonde regentou ſuſtentando
aquelle nome , que elle igualmente
deixou inconcuflo , que recommen
davel a todas as idades do mundo . O
meſmo exercicio teve em Pavia , cba
mado para huma Cadeira honorifica ,
por Luiz Duque de Milao .
5 Manteve firme efta meſma glo
ria o noſlo clariſſimo Doutor em
Roma , aonde fora chamado pelo Car
deal Protedor da Ordem Oliverio a
Caraffa , que aſſombrado das maravi
lhas que ouvia dizer do Caietano , que
aſlim heque comummente lhe chama
yao , pela razao que ja apontamos da
patria do Seryo de Deos ; porque con
ferindo -lhe aquella Eminencia , com
o cargo de Procurador geral da Or
dem , que por entao vagára pormor
te de Fr. Franciſco de Florencia , e
o Servo de Deos adminiſtrou exa & if
fimamente por dez annos , o encargo
de enſinar no Collegio da Sapiencia,
que he a Univerlidade daquella Cida
de Pontifical ; o noflo Fr. Thomaz
correſpondeo a eſta promoçaõ de mo
do , que deixou muito atraz as efpe
ranças, com que nelle ſe fizera ſeme
Thante eleiçaõ . Fez.ſe elle crédor no
anno de 1508. em que ſó contava 39 :
annos de idade , de ſer conſtituido
Géral , ſendo tal a ſatisfaçao , e con
deſcendencia de todos , que , median
te eſta ſua exaltaçao , ſe diminuîo mui
notavelmente nos coraçoens dos nor
fos Religioſos o ſentimento , que lhes
cauſára a morte do Reverendiſſimo
Fr. Joao Clereo, immediato predecef
for
 FR . THOMAZ DE VIO
for do noflo Veneravel Fr. Thomaz:
6 Nao podia aſcender a mais da
Religiao de S. Domingos : e tambem
nos empregos , que ſervio na Igreja ,
ſe amorte o Dao arrebatafle do mun-
do para o Ceo , ſubiria , quanto pel
la ſe podia ſubir ; porque ja a expe-
Staçao univerſal olhava para elle , co-
mo para hum digno Succeflor de Cle .
mente VII. Corria o mez de Junho
de 1517. , e havia nove para déz , que
o Reverendiſſimo Fr. Thomaz , que
entao era idoſo de 49., tinha o Gene .
ralato Dominico , quando a Santida-
de de Lcao X. o creou Cardeal de S.
Sixto . Por eſte tempo , em que as
coulas da Chriftandade eſtavaô muito
envoltas , começou a correr voz , de
que Celim , Imperador dos Turcos,
maquinava aproveitar -ſe deſta occa-
fiao , batendo ſe , e combatendo - ſe
com os Principes Chriftaos : eſta po.
ticia cauſou hum tétrico pavor no
animo do Papa , e nos de todos aquel-
les , que , como verdadeiros Catho-
licos , deſejavao o culto , e o rebanho
de Chriſto mais dilatado, Fizerao - le
muitas prociſſoensem Roma, e omel-
mo Vigario de Chriſto acompanhou,
ſem calçado , a primeira que ſe fez á
noſſa Igreja da Minerva , aonde aſſi.
ſtio a huma Oraçao de Jacome Sado .
leto , hum dos varoens mais eloquen-
tes , que entao ſe conhecia o nomuo
do . Deſejava grandemente o Papa
concluir a Igreja de S. Pedro , a mais
elegante , e mageftoſa do mundo , e
a que feu anteceſſor havia feito abrir
os alicerces ; e agora , abrindo os the .
douros da Igreja , concedeo muitas
graças , e Indulgencias a quem quizeſ.
ſe contribuir com eſmólas voluntarias,
aſlim para ſe acabar aquella obra , co
mo para ajudar aos Principes Chri .
Itaos na guerra , que projectavao fa-
zer- lhe os infieis, ſobre cujo inciden-
te fe haviaõ ja tomado as medidas pe-
rante o meſmo Summo Pontifice em
12. de Novembro daquelle meſmo an-
no de 1517 .
7. Quanto ásIndulgencias,foicom-
Tom . VII.
CAIETANO 10 de Agoſto. 185
mettido eſte miniſterio ao Arcebilpo
de Moguncia , que eſcolheo para a ſua
publicaçao , álèm de outros Religio- '
fos nollos,Fr. Joao Tetzel , e Fr.Ďio
go Honcitrat , ja mui celebresem ha
ver prégado a favor dos Cavalleiros
Catholicos da Germania contra os
Motcovitas, e outros inimigos de nof
la ſanta Fé . Deſtinou o Papa o noflo
Veneravel Cardeal para paſſar, co
moſeu Legado , a Alemanha á Corte
do Imperador Maximiliano , que era
entao em Ausburg , pela celebraçao
da Dieta que alli ſe fazia , conferindo
ſobre as conjunduras preſentes com
os Principes do ſeu Real Imperio .
Eltando occupado neſta Legacia o
noſſo Eminentiſſimo , lhe deo omel
mo Vigario de Chriſto huma com
miſſao para proceder contra hum dos
monstros mais infernaes da hereſia ,
fe acaſo, nao foi o maior , Martinho
Luthéro ; por haver ja chegado a Ro
ma a noticia da impiedade tao eſcan
daloſa daquelle perfido hereſiarca .
Hum Author pouco verdadeiro , el
crevendo com mil falſidades mani .
feſtas a hiſtoria do Sagrado Concilio
de Trento , diz , com a ſua coftuma
da verdade , que o Papa recommen
dara ao Cardeal Caietano , que eſte
procuraſſe tentar a Luthéro , fazen
do - lhe algumas promeflas honorificas,
e uteis para o trazer á obediencia da
Santa Igreja Romana . Mas eſta im
poftura , quando menos tem contra
ſi , o teftimunho do meſmo Luthéro ,
que tranſcreveo no primeiro Tomo
das ſuas obras o Breve expedido por
Sua Santidade, cuja ſubſtancia , que
faz mais ao noſſo intento , he deſte
theor .
8 Diz , pois , o Vigario de S.Pedro :
Que elle fora informado , como de hu .
macouſa de notoriedade publica , que
Martinho Luthéro eſtava preoccupa
dode opinioens hereticas, termos emý
ſe o meſmo reo ſe nao apreſentaſſe vo
luntariamente ante o noſo Eminentif
ſimo, para deteſtar , e retractar osſeus
erros , dando ſinaes de hum verdadei
Аа ro
186 FR , THOMAZ DE VIO
ro arrependimento , e procurando
reunir-ſe , econgraçar -ſe com a San-
ta Igreja Univerlal, o meſmo Nuncio
Apoſtolico o fizesſe prender , implo-
rando , ſe foſſe neceſſario , o auxilio
do braço ſecular , e até , excepto Sua
MageftadeCelarea , fulminando com
Cenſuras Ecclefialticas quaeſquer ou :
tras peſſoas, que lhe dellem ſoccorro,
e abrigo , e interdictando as terras de
quaelquer Senhores , que o patroci-
nallem ; e que pelo contrario pudeſ.
ſe o noflo Eminentiſſimo conceder
Indulgencia plenaria a todos os que
neſte particular lhe obedeceſſem , e
ſeguillem o feu partido . O decurſo
deſta memoria nos preciſará ainda a
fallar mais vezes neſta materia : por
ora continuaremos a narraçao , em que
vamos , dos outros cargos que ſervio
o noflo Servo de Deos .
9. Foi elle Arcebiſpo de Palermo;
e deixando eſta Igreja ,Leao X. o pro-
moveo a Biſpo da ſua patria , para
onde elle ſe retirou no anno'de 1527.
por occaſiao , como depois diremos
mais ao largo , da atrocidade com
que Carlos de Borbon , capitanean-
do hū numeroſſimo exercito de Lu-
theranos , ſaqueou , e tyrannizou a
fanta Cidade de Roma . Sendo por
morte do meſmo Leao X. immedia
to Predeceſlor elevado Adriano VI .
natural de Utrech , Doutor da Uni-
verſidade de Lovaina , Meſtre que fo-
ra do Imperador Carlos V. Gover-
nador de Caſtella , e Biſpo de Tor-
tofa , á Cadeira de S. Pedro , em cu .
ja eleiçao , nao foi pouco oque tra
balhou o Cardeal de S.Sixto , foi eſte
expedido tambem por Legado de Sua
Santidade a Hungria , com aoccafao
de eſtar ameaçado por entao aquelle
Reyno , do Turco , que de pouco
tempo ſe havia ſenhoreado da Ilha de
Rhodes . Naõ deixou de votar neſta
fua nova Legacia huma refinada poli-
tica de ſeus Collegas , aſſim porque
nað podiao ſofrer ao perto tanto ef-
plendor de ſciencia, e virtude , co.
mo porque temiao que o Pontifice ,
CAIETANO 10 de Agoſto.
que muito lhe queria , e o eſtimava
por ſabio , e fanto , reformaſſe a ſua
inſtancia a Corte de Roma . Partio
o noilo Caietano para onde o manda
vað , e aballado ao eſtrondo da ſua
fama o Rey Hungaro , o recebeo na
ſua Corte , como ſe aquella embaixa
da lhe vieſſe mais da Corte de Deos ,
que da de ſeu Vigario na terra . Foi
tao bem ſuccedida eſta Enviatura , e
tao opportuno o ſubtidio que levára
com ſigo o noſlo Cardeal, para a guer
ra , que nao lómente ſe acháraõ aquel
les povos em eſtado de defender , ſe
nað ainda de atacar aquelle tao for
midavel inimigo do Nome de Chri
Ito . Finalmente eſtava , como ja tocá
mos ; augurado o noflo Cardeal para
Succeflor de Clemente VII . , e fora
o fem duvida, ſe a morte , que deſtroe
os maiores projectos,ſenaõ metielle de
permeio , ou , o que he mais certo ,
le a Bondade daquelle Senhor, a quem
elle tao fielmente ſervira , lhe nao
quizeſle dar maior coroa de gloria na
Igreja que triunfa , do que a Tiara na
Igreja que milita. Temos dado huma
idea do que foi o Cardeal Caietano
nos poſtos que ſervio ; vejamos agora
a outra luz quanto foi grande nas
Sciencias que cultivou .
10 ' O noſſo Lopes diz que elle
eſtudára em Pavia ; mas Soueges he
de outro parecer , e diz que elle ſó
fizera os ſeus eſtudos no Convento
Napolitano de noſo Padre S. Domin
gos, e nos de Bolonha, e Padua, que
fao as tres Univerſidades mais inſignes
Ja Italia . Nellas aproveitou de modo ,
que começáraộ ( como ja temos dito ,
dando tambem a razao ) achamar -lhe
por antonomaſia o Caietapo. Teve a
gloria de cer por leu Meſtre Fr. Va .
lentim de Perutia, Filoſofo , e Theo.
logo da maior es fera : mas que unin .
do huma ſingular piedade com huma
elevadiſſima tabedoria , nao inſpirou
menos huma , do que outra na bran .
da cera do coraçao do ſeu diſcipulo .
Depois veremos a ſua ſaptidade: con
inuemos por ora os ſeus progreſſos li
tera
 FR. THOMAZ DE VIO
terarios. Era prodigio , era encanto
vello argumentar : ou fofie defenden-
do , ou obftando , quer queſtionaſſe,
quer reſpondeffe , de qualquer modo
le fazia ſenhor de todos os coraçoes.
Era o ſeu entendimento , no mar das
ſciencias , huma ſerêa inculpavel , e
mais attractiva dos animos .
II Ja diffemos que elle recebe-
ra o grao de Doutor no Capitulo Ge-
ral Ferrarienſe de 1494 .: diremos ago
ra comoʻmereceo etta honra. Conca .
va entao , como tambem ja indicá-
mos , vinte e cinco annos de idade ,
e nao tinha mais que oito , ou nove
de eſtudos; e como a ſua repucaçao
era ja tao celebre , foi eſcolhido , en-
tre inſignes eſtudantes de que abun-
dava a Ordem , para defender Con-
cluſoens naquelle acto . Argumentou-
lhe hum dos ſujeitos mais abalizados
Das diſciplinas Scientificas daquelles
tempos , canto, que era conhecido ge-
ralmente pelo nome do Feniz dosen-
genhos : era eſte o decantado Pico
Mirandulano . Fez eſte grande adver-
fario os maiores esforços neſta pale-
ftra , e o noſſo Thomaz lhe fez huma
tao invencivel , como incomparavel
reſiſtencia. Merece o meſmo Miran-
dulano que digamos aqui, que lendo
convertido a Deos pelo noflo Apofto .
lico Fr. Jeronymo Savonarola , entrou
no pentamento de veſtir o habito de
S. Domjogos, e morrendo neſta per-
tençao , foi ſepultado na noſſa Igreja
de S. Marcos de Florença . Acabadas
as Concluſoens, apenas quiz largar o
poſto o noſſo defendente , quando
correraõ a tomallo nos braços muitos
dos circunſtantes , que logo o forao
aprelentar ao Duque Hercules de Fer-
rára , e depois ao noſſo Reverendiſli-
mo Turriano ,que o condecorou com
a diſtinçaõ que dillemos.
12 Em quanto regentou em Pa-
dua , ſe reſuſcitafſem os Socrates , eos
Platnens da Grecia , ſeria impoſſivel
que enſinafſem com majoracerto ,ap-
plauſo , e concurſo. Havia Doutores
de grande credito naquella Cidade ,
Tom . VII ,
CAIETANO 10. deAgoſto . 187
e que haviaõ gaſtado largos annos nas
bõas artes ; e como eſtes nao faziao
profillaõ de Thomiſtas, tinhad gran
des altercaçoens como noflo Thomaz ;
e ao modo com que a lima faz mais
luzidios osmetaes , aſſim ſerviaõ eſtas
diſputas de dar maior luſtre aonome
do noilo erudiciſlimo Eſcolaſtico .
Achavao - le de ordinario ambos eſtes
contendores nos Capitulos , que ſe
faziao na Congregaçao de Lombar -
dia ; e forao : Verona , Bergamo,
Brella , Mantua , Milao , e Pavia glo
riotos cheatros das victorias do nolfo
inſigne Letrado.Quando enſinava ,
como ja apontamos , no Collegio da
Sapiencia em Roma , fazia lembrar o
aureo ſeculo de Auguſto , fecundo
em tancos Gigantes das iciencias.Cor
riao todos lequioſos a vello , e ou .
villo :
cada hum madrugava muito de
manhaā para eſcolher lugar mais com
modo . Jamais ſubia para a Cadeira ,
que nao fofle rodeado de hum extra
ordinario numero de ouvintes : amef
ma ascençaõ ſe tinha com elle quando
fahia dalli , ſendo igualmente acom
panhado, e cortejado.
13 A ſua converſaçaõ era a couſa
mais placida do mundo : nella Unia o
preceito Horaciano , que recommen
da aos Poetas , que unao o util como
doce ; era , igualmente que erudita , e
goſtoſa, initrutiva , e fanta; e la lhe
dava mais alma aquelle bom ar de af.
fabilidade , de que elle a tabia reve
ſtir . Era cal a apprehenfaõ que tinhao
feito , os maiores bomeas do ſeu tem
po , do ſeu fundo , e capacidade ,que
nas luas duvidas mais arduas recor
riao a buſcar o Oraculo da lua deci
ſao , como aſſim o fazia ſempre o Ma
giſtrado de Milao , quando o Servo
de Deos regentou , comoja diſlemos,
a Cadeira de Pavia , que lhe copſignou
Luiz Duque Mediolanenfe. Sendo
Geral da Ordem lhe eſcreveraõ mui
cas vezes ſeus ſubditos, pedindo -lhe
a foluçao de queſtoens nao pouco em
baraçadas ; e poſtoque as obrigaçcēs,
em que elle era infallivel, do Gene
Aa ii ralaro .
188 FR . THOMAZ DE VIO
ralato lhe podiaõ ſervir de pretexto
para ſe eſcuſar dareſpoſta , a todos fa-
tisfazia com incomparavel clareza .
Dos ſeus Opuſculos conſta , que mui-
tos delles não tiverao outro principio,
fatisfazendo urbana , e ſcientiſſima
medie a muitos quezitos de Fr.Fran-
ciſco de Ferrara , Geral tambem de .
pois da Ordem , e digno Commenta .
dor da Summa de Santo Thomaz con-
tra os Gentios, Fr. Querubino de Flo-
rença , Fr. Mattheus de Paz , Profel
for Salmantino de Theologia , Fr.
Conrado Koelin , Fr. Thomaz de Ra.
guza ; e depois de Cardeal reſpondeo
ás objecçoens que lhe poz Fr. Diogo
Crecton conciliando algūs lugares dos
ſeus Comentarios , que pareciaõ con
tradictorios
. O Cardeal Sadoleto ,que
muito o honrava , tambem acudia a
buſcar luz nos ſeus eſcrupulos, e em
huma carta que lhe eſcreveo , pedin-
do -lhe ſe era de parecer que elle dei-
xafle a lua Igreja para ſe achar no Con-
cilio Lateranenſe , de que logo abai-
xo fallaremos, lhe diz que elle procu-
ra o ſeu voto , porque o Caietano nao
ſó pode ſer ſeu Metre , ſenaõ de to
dos .
14 Deſta honra ſe fazia mui bene.
merito o Servo de Deos , pelo leu ra .
ro dom de conſelho. Aindaque Gui-
chiardino , Eſpondano , e Pallavicino
ſejao de outro parecer , he muito mais
provavel o que refere Joao Bautista
Flavio , Secretario que foi do noſſo
Cardeal , e o primeiro que eſcreveo
a ſua vida , e por ſua morte lhe fez o
elogio funebre , perante o Collegio
Sacro , e nao ſomente lhe teceo ele-
gantes encomios em Oraçoens ſoltas,
ſenaõ tambem nas ligadas , cantando
em jucundiffimos Poemas as ſuas vir-
tudes , ſobre o que lhe ſuccedeo com
o Papa Julio II . , o que os referidos Au-
thores em contrario attribuem ao E.
Eminentiſſimo Cardeal Antonio do
Monte , tal vez por ſer eſte o primei.
ro que confirmou , e approvou o pen-
famento do noſo Cai tano. Foi pois
o caſo : que favorecidos de algumas
CAIETANO 10. de Agoſto.
Potencias fahiraõ no tempo do ſeu
Pontificado alguns Cardeaes , a titulo
de deſcontentamento , de Roma, e
juntando -ſe em Piſa , alli determina
vao ( fundados em alguns Decretos do
Concilio, que havia oitenta anoos ſe
celebrára em Conſtancia, e no juizo
de alguns celebres Juriſconſultos, de
cujo partido era o nomeadiſſimo Fi
lippe Decio , como ſe vê do numero
151. dos ſeus Conſelhos ; porque , co .
mo bem refle &tio o Illuftriflimo , e
doutiſſimo Efpondano , nao ha ahi
cauſa tao abſurda, que careça de in
ſignes protectores , e a que mais pros
priamente podia chamar Aquitofeis)
fazer hum Conciliabulo , que os meſ
mos Juristas , e outros faccionariosper
tendiaõ que foſſelegitimo, e o fim era
depôr da Cadeira de S. Pedro aquelle
Supremo Paftor. Aptevendo eſte que
daqui poderia originar - ſe algum cif
ma de pernicioſiſſimas conſequencias,
entrou logo a cortar os herpes; e pa
ra illo conferio , e pezou com muita
madureza o negocio com o noflo Caie
tano .
15 Eſte foi o Cusî,que deſarmou ,
e de: baratou toda aquella maquina ; e
das razoens peremptorias, que logo
deo , e que effectivamente forao ſegui
das , e abraçadas, ſe ſervio o Pontifi
ce na Bulla que ſobre eſte incidente
expedio . Diſſe pois o noſſo Eminen
tillimo: Que para deſtruir os intentos
dos adverſarios nao podia haver me
Thor meio , que oppor ao teu perten
dido Conciliabulo hum verdadeiro
Concilio , convocando -o Cidade de
Roma na Igreja de S. Joao de Latrao ,
bem celebre por tantos outros , que
nella ſe haviaõ feito : Que antes que
elles tomaſſem o atrevimento de o fa
zer notificar , foſſem citados para com
parecer no meſmo Concilio a humi
Thar - ſe , reconhecendo o ſeu menos
acertado procedimento , e dar ſatiſ
çao do eſcandalo , pedindo contrita
mente perdaõ delle: Que era eviden
tiſlimo, que os ſucceſſos do tempo ha
viaõ retardado a execuçao do Conci .
lio
 FR . THOMAZ DE VIO
lio , que tanto ſe deſejava no governo
de feu Anteceſſor Alexandre VI. , e
por cuja cauſa houvera tantos incon .
venientes : Que á Igreja , e á lua Ca
heça he que ſó tocava conhecer das
materias que lhe pertencem ; e que
pinguem tem impiedade podia diſlen-
tir deſte parecer , e uſurpar eſta pri-
vativa authoridade Papal : Que era impreſia : anda inſerta nas Adas do
falſa a luppoſiçaõ de ý muitos Senho- . meſmo Synodo , e entre os Opuſculos
res Cardeaes erao da lua facçao .ain-
da quando aliàs pareceſſe que eraõ de
contrario parecer : Que a Conftitui-
çaõ allegada do Concilio Conſtancia
enſe havia oitenta annos que nao ti .
vera alguma obſervancia ; eque quan-
to ás culpas de que o arguiao , neste
caſo ſe verificava o dito do maior
Doutor da Igreja S. Jeronymo , que
dilcorre , que os impoitores querem
achar pó no junco , pertendendo ca
lumnioſamente achar culpa aonde nao
ha fombra della . Pezadas codas eſtas
razoens , fe acceitáraólogo : publicou .
le o Concilio , e foi tað felizofuccef-
ſo , que abrindo os olhos os Padres ,
Os Cardeaes Deſertores vierao como
fimplez Ecclefiafticos dar obediencia
ao Concilio , congraçando -ſe com o
Vigario de Chriſto , ſegundo aſſim
conta das ſuas Actas na Seſlao ſetti-, Jeruſalem , iſto he , Cidade pacifica de
ma .
16 A excommunhao , e ſentença
condemnatoria com que a Santa Sé
Apoftolica fulminou Henrique VIII.
foi tambem aconſelhada pelo noflo
Fr. Thomaz , depois que vio irreme .
diavel aquelle tao deſgraçado Princi-
pe . Tambem toca a eſte Capitulo di-
zer , que era de tal modo formidavel
o nome do Cardeal Caietano a Lu-
thero , que havendo eſte de aſſiſtir a
huma conferencia com o Arcebiſpo
de Treves , logo que lhe conſtou que
o noſſo Legado havia de tambem a-
char - ſe nella , le eſcuſou , afte &tando
ter huma caufa mui urgente que o
impedia . Finalmente commentou o
noſſo Eminentiſſimo, eminentiſſima.
mente , os livros Ariſtotelicos do Ceo
ſobre as categorias do meſmo Filoſo-
CAIETANO 10. de Agoſto . 189
fo , ſobre os predicaveis de Porfyrio.
foi Orador da primeira ordem . Quiz
Julio II . honrallo , commettendo-lhe
a ſegunda Oraçao , que ſe recitou no
Concilio Lateranente , e deſempe
nhou elle tao nobremente hum tað
delicado aſſumpto , que os Padres qui
zerao que ella fofle , como logo foi ,
do Author.
17 Tomou por alicerſe de tabele.
gante Architectura , aquellas palavras
do Querido Evangeliſta : Vi à Cidade
Santa de Jeruſalem nova deſcendo do
Ceo ; e diſcorreo fer impoſſivel da.
rem - te eſtas cinco qualidades , ſenao
na Santa Igreja de Roma : ella he hūa
Cidade ; mas nao he huma Cidade
defendida de muralhas , e foflos , ſe
naõ de cantos Fieis , elcolhidos , quan
tos fubfiftem no Ceo , no Purgatorio ,
e no mundo , obedientes a huma Su
Prema Cabeça que he o Pontifice Ro
mano . Diffe : que eſta Cidade he fan
ta , ſantificada pelos Santos Sacramen
tos , pela bella paz , e harmonia que
ha entre os ſeus Con -Cidadaos, e pe
la participaçaó que tem huns das boas
obras de outros : que eſta Cidade he
uniao , e de nenhum modo de diſcor
dia , ou differença , por ler habitaçao
de Deos , que, ſegundo o Salmiſta , he
lugar de paz , e quietaçao . Que e fta
Cidade Santa era nova ; porque poſto
que o meſmo Senhor , que nella col .
locára o ſeu Throno , tirava dos ſeus
theſouros as precioſidades novas , e
antigas , com tudo a ennobrecia com
mais excellentes regalias , do que as
da Ley velba ; e quecomo tudo o que
procede da carne , e corpo hé carne,
oque do eſpirito eſpirito , aſſim como
lanta , e nova , era tambem celeſtial , ou
deſcia do Ceo eſta Jeruſalem , tendo
ſem ficçao , ou artificio Poetico , os
ſeus fundamentos mais acima das Ef.
trellas , nos montes de ſantidade , ou
em Deos , feu glorioſiſſimo, e unico
Author , que deſcera do Ceo a veſtir
fe
 190' FR . THOMAZ DE VIO
ſe da noſla natureza , e tornando eſte
noſſo Príncipe para o Ceo , nao nos
deixára mais de huma Cabeça , que
nos regeſle , e dominafle , o Supremo
Paitor Romano .
18 Accommodadas eſtas circum .
ſtancias da Santa Igreja de Roma , pal-
ſou o noſio Orador a demonſtrar , que
ellas.por nenhum principio ſe podiaõ
achar na Igreja de Piſa, aonde ( como
diſlemos ) o partido opposto perten-
dia celebrar o Conciliabulo ; porque
a Igreja , diſcorria o noilo Caietano ,
nað podia ter mais de hum Eſpoſo
legitimo , e Canonico , a que aquella
cilinaticamente repugnava , e queria
deprimir : que bem longe de ſe poder
intitular Jeruſalem , era huma ſegun.
da Babylonia , ou Cidade de confu-
ſað , edificada no terreno de Senaar :
que nao era deſcida , ou proveniente
do Ceo , mas que ſubia , ou rebentava
lá das cavernas infernaes: que ſe nel-
la ſe achava alguma novidade, nað era
mais , que de eſcandalo , e ſediçao.
Que apenas brotára em Constancia ,
quando logo ſe extinguíra; que que
rendo reſtabelecer-ſe em Baſilea , allija. Ouvia ſe no mundo Chriſtao , com
fora inteiramente deſapprovada ; e
que o meſmo fuccederia agora em Pi-
ſa , pela fiel generoſidade que ſe eſpe-
rava que agora moſtrariao as ovelhas
de Chriſto , ſeguindo o ſeu verdadei.
ro Paſtor. Perorava finalmente o nol-
ſo Prégador apostrofando a Sua San-
ridade, exhortando- o aquella virty .
de , e caracter de hum Succeſſor , e
Vigario de Jesu Chriſto : que á imita .
çao do Pay das Miſericordias, que faz ' e devoto , que nao falta quem lhe ac
naſcer o ſeu Sol ſobre juſtos , e inju- tribua huma piiſſima, e lapientiſſima
ftos , e quando chove , chove ſem ex-
cepçao para todos , bons , e máos;
uſaſſe agora de clemencia , naõlómen-
te com osbons , e amigos , ſenao ainda
com os menos bons , e deſencaminha.
dos , chamando - os ſuavemente á obe-
diencia , que elles juſtamente nao po
diaõ recuſar á Santa Igreja de Roma .
19 Continuando agora as Obras
do nofio Cardeal Caietano , fez elle
bum Tratado eruditiffimo das mais
CAIETANO 10, de Agoſto .
notaveis queſtoens da Eſcriptura. Em
materias de controverſia foi tao ſin
gular , quanto o pedia a neceſſidade
daquelles tempos , le por huma parte
mui fecundos de Santos, a outra luz
nao menos copioſos de hereſias , ehe
reſiarcas. Sobre o meſmo incidence de
pertendido Conciliabulo Piſano , ef
creveo huma douciſſima Diſſertaçao
ſobre o poder do Papa , e dos Conci.
jios . Joao Bautiſta Flavio lhe dá o
nome de divina , e ella foi huma das
mais potentes armas , que muito con
tribuio para derrubar a facçaõ contra
ria. Diziao os contrarios que eſta
Obra , compoſta por hum certo Fr.
Caietano , homem atrevido , e fuſpe.
& ofo, era hum ſeminario de injurias ,
nao fó contra o ſeu Concilio , fenao
contra os de Conſtancia , e Baſilea , e
contra o celebre defenſor da Igreja,
Joao Gerſon ; mas eſtes meſmos, aos
reflexos deſta admiravel Obra , acabá
rao de abrir os olhos , conhecendo a
fealdade do ſeu procedimento , e 10
mettendo - ſe tao humildemente , co
mo járeferimos, áobediencia da Igre
igual horror , que eſcandalo, a perver
ſaode Henrique VIII., que , como diſ
cretamente cantou Lope de Vega , aos
pés de huma mulherzinha torpe , co
mo Anna Bolena , felhe metteo na ca
beça a taõ delvariada preſumpçao de
querer ſer , como aſſim ſe intitulou ,
Cabeça da Igreja .
20 Fora aquelle mal aconſelhada
Principe nos ſeus principios taó pio ,
invetiva contra as mais execrandas
eſtravagancias deLuthero ; pelo que
merecêo que a Santa 'SéApoſtolica o
condecoraſſe com o honorificentifli
mo titulo de Defenſor da Fé ; e como
agora paſſava de extremo a extremo ,
tomou o noſſo Caietano o empenho
de eſcrever , como eſcrevéo, aquelle
Soberano , e ſe vê a ſua carta no ter.
ceiro Tomo dos ſeus Opuſculos : ella
conſticue o decinotercio Tratado , e
no
 FR . THOMAZ DE VIO CAIETANO
no decimoquarto continúa tratando
magiſtraliſſima, e prudentiffimamen-
te a queitao . Pertendia aquelle Rey
hereſiarca pretextar o divorcio da
Piedofiffima , e Sereniſſima Rainha
Dona Catharina ſua Eſpoſa legitima ,
com ella haver ſido caſada co o Princi-'
pe, irmao maior do meſmoHenrique,ja
defunto , de quem nao ficára deſcen-
dencia , e que , ſegundo eſcrevem al-
guns , nao chegou a tocalla. Queria
mais o referido Monarcha ganhar a
ſeu favor o voto das mais celebres, e
florentes Univerſidades , aſpirando a
que ellas decidiſſem por illegitimo, e
invalido o deſpoſorio da meſma Ca-
tharina . Sustentou eſta o ſeu partido
com toda a magnanimidade , e poz - le
da ſua parte a Santa Sé de Roma , e
foi encarregado o noſſo Caietano de
reſponder ao Libello , com que Hen-
rique procurava juſtificar os exceſſos'
da lua brutal laſcivia , cauſa muito in-
fluente neſte pertendido, e taô eſcan-
daloſo repudio de ſua verdadeira
Conſorte. Diz-lhe , pois , o noſſo Emi-
pentiflimonos allegados tratados, que
elle ſe alegraya , e regozijava muito
do que lhe havia conitado , de que
SuaMageftadeAnglicana nao quizeſ-
ſe divorciar - ſe da Rainha com a dif-
potica authoridade do Ceptro , ſenaö
pela das letras Divinas : que dava mui-
tas graças ao Ceo por viver em tem.
pos tao felizes , em que os Reys eraõ
taõdoutos , e taodados áſanta Theo-
logia . Mas que , com a devîda venia ,
lhe fupplicava quizeſſe attender ás ra-
zoens que agora lhe propunha , por
ver ſe mais dous olhos podiao fazer
melhor inſpecçao no preſente ligitio :
e que ſupporto haver de fallar com
hum Soberano Theologo , nao faria
mais que fundar o ſeu diſcurlo nos
mais folidos alicerces da Theologia
mais optima.
21 Paſſava logo a diſcorrer na ma
teria , provando , e concluindo , que
o conſorcia , que elle contrahira com
a Rainha Catharina, de nenhum mo-
do era contra o Direito Divino : que
1o. de Agoſto. 191
a diſpenſa , que elle para iſſo impetrás
ra do Vigario de Chriſto , fora legiti
ma ; que denenhum modo opodia fer
a abſurdiſſima licença , que elle queria
tomar : que os deſpoſorios daquella
preclariſſima repudiada nada tinhao
contra o Direito da natureza , naoſen
do poucos os ſeus titulos , que o noflo
Controverſiſta entrava a eſpecificar ,
que podiao honeſtar as meſmas nu
pcias : que aſſim meſmo em nadaeram
eſtas repugnantes á Ley de Deos, ſup
poſto que Efte mandava no Capitu
1025. do Deuteronomio , que o cunha-,
do ſe deſporaſle com a mulher de ſeu
irmao , que fallecefle fem deſcenden
ces : que aſſim era , que eſta determi
naçao da Ley Velha havia preſcripto
na da Graça ; mas que , como ja lábia
mente Sua Santidade o tinha bem ad
vertido na Bulla da diſpenſaçao da
quella alliança nupcial , podia eſta ter
a ſua juſtificaçao no util do bem com
mum , que reſultava da paz entre as
duas Coroas de Caſtella , e Inglaterra :
que a deciſao deſtas dúvidas tocava ,
e privativamente ,ao legitimo
unica ,
Succeſſor de S. Pedro , que ninguem
lhe podia , ſem huma tyrannica im
piedade , infringir eſta regalia : que
nem abaixo , nem acima da Lua ha
via poteſtade, que pudeſle prevale
cer contra o poder do Summo Pon
tifice , e deſmanchar , ou contravir os
ſeus decretos : fechava , rogando á .
quella Mageftade, que,vencendo-ſe a
fi , e triunfando das ſuas paixoens, ſe
dignafle de extirpar o eſcandalo , que
havia dado a todo o Chriſtianiſino, e
que de logo ſe offerecia elle para ſer
O primeiro que proclamafle , e divul
galle a ſua juitiça, e a ſumma gloria ,
que lhe ficaria redundando de huma
acçaõ tao religioſa ,e tao digna das ſuas
muitas letras , e do ſeu Real cara ,
eter .
22 De nada aproveitáraõ as ra :
zoens do noſſo Cardeal para aquella
teſta coroada , e apoftata ; porque ato
lado até os olhos , ao modo dos ani
maes menos limpos , no infecto loco
das
192 FR.THOMAZ DE VIO
das ſuas torpezas , deixado ja da Maõ
de Deos , abrio a porta aos facrilegios,
exterminios , e perſeguiçoepstao du-
ras , e tao odiofas , que le nað pódem
ler fem huma extraordinaria averſao .
Tyrannizou o ſeu Reino , e tyranni .
zou - o mais , que os mais barbaros ty ,
rannos ; porque a intruzao deſtes era
temporal, e aquella foi eſpirirual, e
que com magoa , e laſtima univerſal
de toda a Chriſtandade dura ha mais
de dous ſeculos , e permitta a Bonda-
de Divina, attenta ás Oraçoens de tan-
tos Cacholicos daquelle Reino , e ain-
da de muitos dos ſeus Reys , que pia-
mente entendemos eltað á viſta de
Deos, acompanhando , e reforçando
eftas meſmas ſupplicas , taes , como a
Senhora Rainha Dona Maria , filha da
Senhora Rainha Dona Catharina , e o
Senhor Rey Jacobo II.,que ambosqui-
zeraõ reparar tantas ruinas , introdus
zindo a doutrina Orthodoxa nos ſeus
dominios; eoſegundo com tanta ge-
neroſidade , que depois de experi-
mencar huma feiſſima traiçao em ſeu
proprio genro , foi precilado a refu .
giar-ſe na França , aonde viveo ſantiſ .
ſimamente com a Rainha , ē Princi.
pe ſeu filho. Permitta , pois , a Bon-
dade Divina abrir os olhos tao cegos
daquelles miſeraveis , fuppofto que
aſſim como a verdade he indivizivel,
affim be tambem huma ſó a doutrina
da ſalvaçao .
23 As conſequencias, que de tan-
tas deſordens reſultáraó , forao as que
ſe podiao eſperar de tao infernaes
permiſſas. Aona Bolena , que ſegun-
do a opiniao de Sandero , ainda
que
em outra opiniao pouco veriſimil , e
provavel, era filha do meſmo Henri-
que VIII:. e que vivêra com taó del-
carada, e deshoneftiſſima diſſoluçao
na Corte de França , que de ordina-
rio era alli apodada pela mula de In-
glaterra ; foi máy da impiiſſima Iza-
bel , mais propriamente fallando Je-
zabel ; porque uſando com alguma
leve inverſao das palavras do noſſo
Epico , de tal māy , tal filha de eſpera.
CAIETANO 10 : de 'Agoſto,.
va . Nao contente Anna de ver tað
bem ſatisfeita a ſua ambiçao , e de ha
ver deſtruido temporalmente a Chri
ftianiſſima Rainha Dona Catharina ,
The tinha tal odio , que ao tempo em
que morreo efta Senhora , o Reyman
dára tomar luto a todos os delua Ca
fa , Anna Bolena , e ſuas damas ſe ve
ſtirað todas de gala , e de triunfo ;
mas durou - lhe pouco tempo eſte go
fto , aſſim como lhe durou pouco o
governo daquella Monarchia, ou por
melhor dizer do coraçao de Henri
que : porque as grandes,e crueis violen
cias ,com que ella aſcendêra ao thro
no , ſegundo a bõa Filoſofia, ja eraõ
hum funeito augûrio daquella brevi.
dade . Morta , como dillemos , a ver
dadeira Rainha da quelles Eſtados ,
como a lenhora Bolena tinha tao
.
boas manhas, foi convencida , naõ 16
de milhares de adulterios , até com
peſſoas da mais infima, condiçao , le
nao de inceſte com hū ſeu irmao , e foi
condenada com cinco dos ſeus de
votos , e favorecidos a perderem a
cabeça em hum affrontoło fupplicio .
Morrêrao eſtes martyres da chamada
Igreja Anglicana em 19. de Mayo de
1536 .
24 Nao foi menor contendor o
noſſo Caietano de Luthero , que de
Henrique , ſendo acerrimo flagello
daquelle herege, quedelle , comoja to
camos , muito ſe temia . Contra elle
eſcreveo o leu douto Tratado das la
dulgencias , e foi o primeiro , que mais
erudira , e profundamente tratou a
quetta 7 : Se mediante ſemelhantes
graças pódem as almas ſahir do Pur
gatorio? Pertendia Luthero corrom
per a Conſtituiçaõ Vnigenitas de Cle
mente VI., ' e tirar algumas conclu .
foens abſurdas da applicaçao , que
reſpectivamente aos meſmos indul.
tos concedidospelos Oraculos do Val
ticano aquelle Pontifice alli fazia de
ſte lugar do livro da Sabedoria : A Sc .
bedoria de Deos ( lao as palavras ) he
para os homens , que ſe valem della ,
bum thefouro infinito, com que fè fa
ze us
 FR . THOMAZ DE VIO
zem participes da amizade de Deos ;
e contra ella publicou o meſmo Inpo-
vador alguns libellos ; e achando -ſe
entao em Moguncia o noſſo Cardeal
Caietano , contra aquelles peftilentes
eſcritos , fez huma doutiſſima ſuſten-
taçao , em que moſtrava , contra ſeu
competidor , que a Santa Sé Apofto-
lica jamais abuſou nos ſeus Canones
das palavras da Sagrada Elcritura , ex
plicando , com igualpiedade , que lo-
lidez , aquelle Texto .
25 O ultimo Tratado do primei-
ro Tomo dos ſeus Opuſculos he tao-
bem huma confutaçao , álém de ou
de cinco propoſicoens
hereticas ( erao -no todas ) daquelle
Apoftata. Primeira : Que nao ha me-
lhor penitencia , que abiter do pecca .
do . Segunda : Que elles ſó ſe perdoao
aos que crem alcançar eſte perdaſ ,
Terceira: Que eſtao enganados todos
aquelles, que chegao á Sagrada Meſa
da Communhao , parecendo - lhes ir
bem diſpoſtos pela Confiſſao , Ora .
çað , e por quaeſquer outras piedofas
preparaçoens . Quarta : Que as Indul
gencias nao he fructo dos merecimen
tos de Jesu Chriſto , ou dos Santos.
Quinta : Que quando o Pontifice com
alguma grande porçao da Igreja ti
veſſem para fi alguma
alguma opiniao bem
fundada, nao ſe daria peccado , ou
hereſia , em quem levafle a contraria
até haver hum Concilio geral, que de-
cidiſſe o que ſe havia de ſeguir ; e nao
ad vertia o perfido as muitas experien-
cias que ha, de que muitas hereſias ſe
apagárað , ſem precedencia de Con-
cilios geraes , e que tinha contra ſi
huma bella Sentença de S. Jeronymo ,
que eſcrevendo ao noflo grande Por-
tuguez S. Damaſo , ornamento , e
gloria da corna da Villa de Guima-
raens: Seapprovareis (diz o Doutor
Maximo àquelle Santo Pator ) efta
noſſa confiſao , mais depreſa ſe mo-
frard'incurialmalevolo,ou naő Catho-
lico , aquelle que me quizer pôr culo
pa , do que me poderá arguir de be
reje.
Tom . VII.
CAIETANO 10 de Agoſto. 193
26 Intentava o Autor daquella ,
em que vamos fallando , que nao em
prendia fazer a guerra que fazia á Igre
ja , ſenao por ſuſtentar melhor a ver
dade , e boa intelligencia das Eſcri
turas : e contra eſte ſeu maligniſſimo
ſubterfugio eſcreveo o noflo Cardeal
hum folidiſſimo Tratado , deſcobrin .
do as enredadas cavillacoens daquel .
le perjuro . Com textos mui Canoni
cos, é expreſſiſſimos comprovou o
noflo Apologiſta que a Sagrada Eu
chariſtia era hum verdadeiro Sacrifi
cio. Servirao de demonftraçaõ a eſta
verdade as palavras de Chriſto refe
ridas no Capitulo 22. do Evangelho
de S. Lucas : Fazei iſto em minha
commemoraçao , que bem ſe moſtra a
força deſte artigo. A eſte lugaráccreſ
centava eſtoutras palavras do Capitu
lo 26. de S. Mattheus : Efte he o meu
Sangue do Novo Teſtamento , que ſe
rájem remiſſaõ dos peccados, derrama
do por muitos. Nao comprovava me
nos o nollo Impugnador o ſeu thema
com o que le lê no Capitulo undeci
mo da primeira aosCorinthios , a qué
o Apoftolo faz huma increpaçaõ pela
diſlidancia , que havia entre elles, to
cante á celebraçaõ da Cea do Senhor ,
e ja no Capitulo precedente havia
dito o meſmo S. Paulo : Por vent1
ranaõhe o Caliz ,qne a bençoamos, hũa
communicaçao do Sangue de JESV
Chriſto ; e O Pao que partimos ,a do
Corpo do Senhor ? Diz mais allio Va.
ſo de eleiçao : Vede , ó Ifrael , segun
do a carne, naõ be certo, que aquel
les que commem as victimas , ſao com
participes do Altar ? Que mais ? di
go eu , que ſe tinha immolado aos ido
los alghia couſa : ou que ſeja algía con la
cada hum delles ! O que os Gentios
facrificaõ , naõ he ſacrificado a Deos,
mas aos demonios. Ora eu nao que
ro que vós ſejais por algum princi
pio companheiros deſtes. Vós nao po
deis participar da Meſa do Senhor ,
e da dos maos Anjos. Eſtas as pala
vras do Doutor das gentes ; e ſendo
evidentiſſimo que elle nas palavras:
Bb Atar
 194 FR . THOMAZ DE VIO
Altar , Meſa , e Vi &timas , diſcer .
nindo entre eſtas meſmas couſas o ef-
* tylo que havia entre Catholicos , e
Gentios , fallava, e entendia de hum
verdadeiro Sacrificio :
ſegue-ſe por
bem deduzida conſequencia, que nao
ha, nem póde haver outro naLey da
Graça , niais que o Incruento da nolla
Milla .
27 Das circunſtancias do Senhor
tomar o pao , dar graças a ſeu Co-
Eterno Pay , abençoar o meſmo paó ,
dizer que elle era o ſeu corpo , que
feria dado pelos que allitinha preſen .
tes ; e que ſeu Sangue ſeria vertido
pela remiſlaõ dos peccados , e ſucce-
der immediatamente eſte Sacrificio á
ſua figura do Cordeiro Paſchoal, to
mava fundamento o noſſo adverſante
para confundir , e anniquilar o erro da-
quelle ſegundo , e nao menos formi-
davel Lusbel. Confirmava mais o nof-
ſo defenſor da pureza da Fé o ſeu
penſamento com a praxe nao ſó da
Igreja Grega , e Latina , ſenao da Per-
ſica , Armenica , e de todas as mais
que havia ſobre a terra . Tratava Lu-
thero Sobre o meſmopropofito , per-
tendendo provar a realidade da exi-
Atencia do Corpo de Chriſto no San-
tiſſimo Sacramento do Altar , irriſo.
riamente a Calvino , que invertia aquel .
las palavras: Aqui eſtá o meu Corpo:
ſupprindo -as impiamente com eſtou.
tras : Eſta he a figura do meu Corpo.
Contra eſta inveríao dizia o hereje ,
que era o meſmo dizer : que hum cer.
to paſſaro : era o outro . Se elle aſſim
zombava de Calvino , que razao nao
teremos nósoutros os Catholicos de
eſcarnecer dos abſurdos do meſmo in :
crepante , que , para deſtruir o Augu-
Itiſlimo , e Santiſſimo Sacrificio da
Miſſa , pertendeo tambem dar outro
ſentido as meſmas palavras , nað me
nos impio , ' nem menos alheio da ſua
tao clara , e natural intelligencia .
28 Poi eſta Apologia dedicada a
Clemente VII., e porordem ſua el .
creveo o noſſo Einigentiſlimo Fr.
Thomaz dous Tratados contra o mef-
CAIETANO 10 de Agoſto .
mo Luthero . Em hum delles impug
na quatro erros daquelle peſlimo. Pri.
meiro : Que nao ſe podia das verda .
deira Communhao debaixo de huma
ló eſpecie. Segundo : Que a confiſfað
nao podia ſer integralreſpectivamen
te aos peccados mortaes. Terceiro :
Que nao podiaõ ſer tambem integraes
a ſatisfaçao , e penitencia das mel
mas culpas . Quarto : Ser invalada a
invocação dos Santos . No outro ſe
confutao a Fé , e as obrasdaquelle tao
abominavel homem . Queria elle que
antes do peccador fazer huma boa
obra , ſe podia ja dar por justificado:
que nem eſtas obras podiao merecer
a graça , o perdaõ das culpas , ou avi .
da eterna ; porque tudo iſto virja a ſer
inglorioſo á ſatisfaçao de Chriſto Se
nhor noſlo , que diziaõ elles tinha
exuberantemente ſatisfeito por nós .
He paſmar nos abyſmos de ignoran
cia , em que a miſeria humana, dei
xada da Mao de Deos , ſe deixa pre
cipitar : nao advertia eſte monſtromi
leravel no que diz o Senhor no Evan
gelho, que promette retribuiçaõ a quē
der huma pouca de agua fria , e no
que diſferao os dous Principes dos
Apoſtolos: S. Pedro : Que Chriſto pa
deceo por nós,para nosdeixar o exem
plo de ſeguir os ſeus veftigios ; e S.
Paulo : Que fe veja ſempre em nós a
mortificaçao deChriſto, para que ap
pareça em nós a vida domeſmo Senhor .
29 Eſcreveo aſſim meſmo o noſſo
Eminentiſſimo Purpurado hum Tra
tado doutillimo de Indulgencias , em
que prova que ellas ſao proprias da
igreja , e fruto dos merecimentos de
Chriſto , e dos Santos : Que he ado
de perfeiçaõ lucrar ſemelhantes gra
ças : Que aquelle , que recuſa dar eſ.
móla a bum pobre , por ganhar com
ella a Indulgencia , nao pecca : Que
com a Indulgencia igualmente ſe pó .
de remittir a penitencia impoſta pelo
Confeſſor , ý coma outra, que o pecca
dor merece pela Juſtiça Divina ; e que
as Indulgencias nao aproveitað ás Al
mas do Purgatorio ; mas que o poder
das
 FR . THOMAZ DE VIO
das chaves de S. Pedro Iha póde dar.
30 Em outros generos ,de Theo
logia , nao foi menos inſigne. Na Mo.
Tal eſcreveo hum doutiſlimo Trata .
do , que intitulou : Summa de Confef.
fores . ' Illuftrou a Summa de Santo
Thomaz , e teve a gloria de ſer o pri-
meiro , e digniſſimo Commentador
das ſuas Obras. Ja fallamos das ſuas
queſtoens mais apraziveis ſobre a Ef.
critura Sagrada. Accrelcentaremos
agora , que elle fez dentro de mui
pouco tempo hum doutiſlimo Com
mentario de quaſi toda ella ; e dos li.
vros , que nao chegou a expôr , ſubſis
ſtem alguns fragmentos, deque le vê
que elle tinha intençao de explicalla
abſolutamente , excepto o Apocalyp-
ſe do Evangeliſta Aguia ; porque elie
mais depende de hum eſpirito profe-
tico , do que de qualquer literato ,
ainda que alias da mais extraordina,
sia grandeza . Nao goſtao muitos deſta
ſua Obra ; e comparando - a o Emic
nentiſſimo Pallavicino com as outras
da meſma mao , diz : que o noſſo Au .
thor ſe podia aflemelhar a hum pavao,
muita fachada , muita formoſura ſem
mao , os pés negros . Por iſſo duvida
o noflo Soueges , ſe aquelle meritiſſi.
mo Principe da Igreja chegaria a ler
eſta expoſiçao. Outros Authores lhe
ſao mais favoraveis , e fallao com ſū .
ma honra do que alli ſe diz ſobre os
Pſalmos Davidicos. Verdade ſeja que
o noſſo S. Pio V. mandou fazer neſta
Obra algumas correcçoens em luga-
res , aonde elle , talvez por menos ad
vertencia , diſſentia de alguns pontos
aſſentados na noſſa Eſcola. Nos ſeus
Opulculos anda tambem hum Tra
tado porque elle reſpondeo á cenſu-
ra que lhe fizeraõ certos alumnos da
Faculdade Theologica Pariſienſe:
31. Entremos ja na ultima , eme .
lhor parte : iſto he, no dilatado campo ,
que occultava o theſouro das ſuas in-
clytas , e maistranſcendentes virtudes .
Nao obſtante os ſupremos poſtos, e
empregos , que ſervira, e as eſtima-
Çoens com que, como depois diremos,
Tom . VII,
CAIETANO ro de Agoſto. 195
foi tratado pelos maiores Principes
do ſeu tempo , foi fempre taõ humil.
de , e viveo tao deſenganado da pou
ca ſubſiſtencia das couſas da terra ,
que achando- ſe ja proximo ao ſeu ul
rimo termo , fez chamar o Procura
dor Geral da Ordem , e ordenou - lhe,
que quanto antes lhe fizeſſe preparar,
com a maior ſimplicidade , a ſua ſe
pultura fóra da porta , e á entrada da
noſſa Igreja daMinerva , ( porque , á
imicaçao dos Chriſtãos, pormaior de
coro da Caſa de Deos, nao queria ſer
ſepultado dentro della ) naomais que
com eſta breve inſcripcao , que elle
tambem determinou em Latim , e no
noflo idioma dizia aſſim : Fr. Thomaz
de Vio Caietano Cardeal de S. Sixto ,
da Sagrada Ordem dos Prégadores.
replicar ; mas de nada
Quiz - le -lhe i
aproveitáraó eſtas inſtancias : fez-ſe a
obra , e fez ſe como elle a ordenára ; e
poſtoque fe pôso epitafio ,que elle com
puzera , conſiderando os noſlos Reli
gioſos que tanto merecimento era
digno de maior recommendaçao , pu
zerað outra Letra ſepulchral, tama
bem Latina , mais ampla : diz aſſim
em Portuguez : Eſta lápida anterior ,
para qne olhas, conſerva os ofros de
Fr. Thomaz ile Vio , Cardeal Caieta
no defeliz memoria : merece a pieda
de de que ſe rogue a Deos por elle ;
porque em fefſenta e cinco annos dos
dias que viveo , foſe com doutrina ,
ou com os bons coſtumes , jamais cesa
fou de utilizar , quanto mais podia,
o genero humano. Nao quiz mauſo
leo mais faftofo , contentando- ſe com
eſcolher eſte tað humilde . Morreo no
anno de Chriſto. Eſta a ſua humilda .
de , vejamos agora o ſeu deſinte
reffe.
32 Nao ſomente em quanto foi
Geral da Ordem , ſenao em codos os
eſtados, tratou todo o genero de tem
poralidades com hum ſummo deſape
go : preſenteallo , era querer ganhar
hum inimigo , einhabilitar-ſe para to .
das as graças da Ordem ; de ninguem
admittia eſtas offertas. Era dito mui
Bb ji ordic
 196 FR . THOMAZ DE VIO
ordinario ſeu : Que eſtes ambicioſos ,
e preſenteadores aos Prelados, eraõ
o flagello da Religiao. Para elle nao
havia maior mimo, ou maior liſonja,
do que a virtude, e obſervancia ; fa .
zendo ſe inflexivela dadivas , e rogos .
Igualmente queria que ſeus compa-
nheiros foliem aſſim meſmo deſinte-
reſados: por iſſo meſmo adnotaraó
nette particular os Diffinidores as dif-
policoens do ſeu Capitulo com eſtas
palavras : E porque o Reverendiſlimo
Meſtre da Ordem declarou logo de-
pois da ſua eleiçao que elle muito de
( ua vontade naõ queria acceitar couſa
alguma; e deſejava que todos ſeus
companheiros procedeſem do meſmo
modo : ordenamos deſde o preſente,
que todos os Religiofos aſim o pratio
1
qucm .
33 Era modeſtiſſimo nos mais re-
nhidos actos literarios : jamais ſe lhe
ouvirao gricarias , nē palavras de acri-
monia ; ou jamais ſe vio que elle per-
dede hum atomo do ſeu comedimen
to , e compoftura. Por iſſo muitos
The nao chamavaoMeſtre , ſenaõpay.
O ſeu genio era ſó de fazer bem . Fr.
Joao Bautiſta Flavio , que , como ja
diflemos , foi feu Secretario , e com
eita occaſiao , ja ſe vê que havia de
O tratar muito familiarmente, affirma ,
que jamais diſle o Servo de Deos al .
guma palavra dura , ou pezada a ſeus
domélticos. Daqui ſe vê a pouca ra
zaõ , com quealguns o quizeraõ calum-
niar , dizendo : que nunca o incen :
dio do Lutheraniſmo chegaria a eva
porar tao grande levareda, e que fe-
sia mui facil apagallo ao principio , a
proceder o nofio Caietano com hum
termo mais civil com ocabeça daquel
la hereſia. Antes porèın que nós en
tremos a juſtificar o pofio Legado ,
daremos aquihumaidéa daquelle mal-
dito hereje .
34 O nome da ſua familia , que
he o de Luter , e ſegundo outros , Lan
ther , ſignifica bufaó, cubobo, ladrao ,
e embrulhador ; mas elle ainda achou
meio de abater , quanto mais fe podia,
CAIETANO 10 de Agoſto.
eſtes honorificos ſignificados,mudan .
do-os por hum funefto prelagio no de
Luther, que, ſegundo obſervárað al
guns Authores eruditos, reduzido a
caractéresHebraicos, produzem eſtes
aſomma de 666.numero que o Amado,
e Amabiliſlimo Evangeliſta refere no
ultimo verficulo do Capitulo 13. do ſeu
Apocalypſe ao Anti-Chriſto . Efte ho
nem , ou , por melhor dizer , eſcan
dalo da natureza, e da Religiaõ , era
teimoſiſlimo, fobeiho , inſolente, e
cavilloſo : ao diante eſpecificaremos
mais ao largo muitas dettas ſuas vir
tudes . Tudo isto he nada , em com
paraçao doque agora diremos . Nopri
meiro dia , em que celebrou Milla ,
logo ſe vio hum infernal preſagio de
haver de ſer este monitro hum ſacri
lego inimigo de tað ſacroſanto mini
fterio ; porque ſe deixou penetrar de
hum tal horror , que ,de eſpavorido ,
nao atinava a fahir da ſua confuſao .
Foi caſo igual, o que lhe íuccedeo
em outra occaſiao , cantando na Miſſa
o Evangelho da expulſao do demonio
ſurdo , e mudo , em que cahio por
terra , e começou a dar muideſatina
dos gritos , dizendo : Nao ſou eu ,
nao ſou eu . Ainda antes de ſe preci
pirar em tao miſeravel pego de abo
minaçao , impiedade , e ignorancia ,
etcrevem , com Surio , outros Autho
res , que nao deixou de haver gran
des ſuipeitas de que elle commer
ciava com o demonio ; e de hum in
cubo o fazem filho,alguns Authores,
e era ellera deſcarado , que chegou
a eſcrever nas ſuas obras eitas , e ou .
tras muitas ſemelhantes bem ſoantes
propofiçoens .
35 Ogrande Padre Antonio Viei
ra , ornamento da fantiſſima, e Dou
tiſlimaCompanhia de Jesus , allega, em
hum Sermaõ de Nolla Senhora do
Roſario , hum lugar do Blapide , de
que ſe vê jactar-ſe Luchero de haver
comido meio alqueire de ſal á meſa
com o demonio . Em huma carta ef.
crita pelo meſmo hereje ao Eleitor
de Saxonia , lhe diz expreſſamente que
ode .
 FR . THOMAZ DE VIO
o demonio de tal forte lhe preocupa-
va ás vezes o cerebro , que nao lhe
deixava acçao para ler , ou eſcrever.
No primeiro tomo das ſuas obras diz ,
haver -ſe elle enfurecido pela pertur.
baçao da ſua conſciencia : no ſeu li-
vro do tumulto de Witemberg , ſe
glorîa de conbecer muito be o diabo, e
nos teus entretenimentos pag. 274.
diz : que quando elle estava em com
panhia de alguem , o demonio o dei.
xava ; mas logo que o apanhava ſó ,
vinha a elle , eoinftruia : que muitas
vezes andavao paſeando ambos pelo
dormitorio ; e que de mais perto que
outros , hum , ou dous daquelles in
fernaes eſpiritos , que nao eraõ do
commum , ſenaő demonoens muito
grandes , e , entre os mais doutorescha-
padiſſimos em Theologia. Tal he o
caracter , com que ſe pinta a ſi meſ
mo aquelle deteftavel ! Que favora-
veis lhe podem ter os ſeus mais devo
tos Chroniſtas, ſe elle deſcreve táo
bem a ſua hiſtoria ?
36 Diſleraõ , pois , alguns que o
noſſo Cardeal podia atalhar a ruina , e
naõ a atalhára , ou pela indocilidade
com que tratára aquelle malvado , ou
por ter moi favoravel aos noflos Re-' ge de repreſentar com fidelidade, e
ligioſos, eſcolhidos pelo Arcebiſpo authoridade o ſeu caracter , o ridicu
de Moguncia , para a publicaçao das
Indulgencias , que por illo te fizeraõ
odiofillimos a Luthero , eſcrevendo-
ſe de parte a parte ſobre o ponto das
meſmasgraças Apoftolicas: os Catho-
licos queimáraó pub icamēte as Con-
cluſoens adverias ; é o noſſo Padre
Thetzel , hum dos mencionados , foi
atraiçoadamente entregue por Car-
los Miltitz , Legado tambem da Sé
Apoſtolica, com a occaſiao que logo
diremos, a Luthero ; e dizem que, á
imitaçaõ de S.Caietano , tambem pre-
clariſlimo adverſario de Luthero, e
que para impugnar viſivelmente a blas-
femia , em que elle negava a Divina
Providencia , inſtituio debaixo do mef-
mo titulo a ſua Sagrada Religiao ; af-
ſim como aquelle Santo morreo do
viviſſimo pezar que tinha das offen
CAIETANO 10 de Agoſto. 197
fas de Deos ; aſſim morreo tambem
o noſſo Padre , à viſta das execraveis
inſolencias daquelle infame hereſiar
cha . Mas para vermos ſe eſta incre
paçao , que te faz ao noilo Enviado
Apottolico , conclue , ou nao conclue,
levaremos a couſa mais de principio.
37 Dada pelo Pontifice a commiſ
faô , que diſlemos, ao CardealCaie
tano para proceder contra Luthero ,
fello o Legado advertir logo do que
paſlava. Eita noticia foi hum rayo , que
deo emcima do hereje : a ſuamalda
de confundia - o , a virtude do ſeu Juiz
atterrava - o . Nefes termos recorreo
a valer-ſe de muitos ſenhores para ſer
patrocinado por elles diante do Nun
cio , e até chegou a alcançar delle, á
inſtancia do Imperador , hum ſalvo con
duro , aindaque 1ó debaixo de pala
vra , e nao por eſcrito , por não autho
rizar o que nao podia impedir de que
rer hum Principe dar a ſua protecçao
a hum homem ſuſpeito na Religiao ,
e ja notorio a Sua Santidade , cujas
vezes alli fazia , e com todo o deco
ro bem ao contrario do outro Nun
cio , tambem Pontificio , de que aci
ma fizemos ja mençao , que bem lon
lou nað ſómente com a indignidade ,
que pouco acima nocamos , lenao com
outras , que ainda referiremos. Nao
quiz Caierano faltar com aquella at
tençaõ ao Ceſar , viſto achar -ſe nas
ſuas terras , e ſer-lhe neceſario valer
ſe do ſeu poder para tudo aquillo que
diſſeſlereſpeito ao bem da Igreja .
Apreſentou -ſe Luthero diante donoſ
fo Legado , que Flavio , a quem ( po.
ftoque lau bem referiremos os ditos
de outros Hiſtoriadores, por melhor
juſtificar o noſlo Eminentiſſimo Fr.
Thomaz ) ſeguimos com mais fé , por
haver talvez elle meſmo preſenciado,
como Secretario que era do noſſo
Cardeal, o que eſcreve ; e merecer
por iſſo neſta parte outra attençao
mais particular .
38 Apreſentou -ſe , pois, Luthe
ro
4
198 FR. THOMAZ DE VIO
ro diante do noſſo Legado , que o
recebeo com coda a cortezia , e doci-
lidade : entrou -ſe o hereje de huma
tal confulao , que ficou totalmente
inapto para dar razao de fi : deitou-
ſe aos pés do Cardeal ; e eſte toman.
do o da mao o fez levantar , e com
hum ſemblante mui placido , e mui
ſe reno , diſſe -lhe : que le reconhecel-
ſe: que o Summo Pontifice, achando .
o dilpofto,lhe daria paternalmente per-
dao ; porque a Igreja nunca ſe nega.
va a quem a buſcava , nem tambem
fazia extranhezas á vista dos grandes
peccados de ſeus filhos, fólhes eſtra-
bhava a perſeverança , eobſtinaçao no
mal : que Santo Agoſtinho lhe eſtava
dando hum bello exemplo ; porque
ſendo , comofoi, luz da Igreja, com
muita facilidade ſe retractou dos ſeus
defeitos; por ſer eſte reconhecimen-
to mui proprio dos grandes homens .
A tudo iſto reſpondeo Luthero com
ambiguidade , e ſem liſura. Pareceo
a Caietano que a conſternação do
bereſiarca provinha do pejo de con
feffar , e deteſtar alli abertamente as
ſuas culpas ; e para lhe ſuavizar eſte
enleio , continuou dizendo : que elle
nao ſe empenharia agora em lhe fa-
zer ver evidentemente os ſeus erros ;
porque ſe perſuadia , vilto ſero mel-
mo Luthero hum homem Religioſo ,
naó haver cahido nelles com adver-
tencia ; que como porèm nos ſeus ef-
critos havia algumas doutrinas diſfo-
nantes, era logo neceſſario que elle
ſe deſdiſſeſſe ; e que com dizer eſtas
poucas palavras : Se nos meus eſcrio
tos ha couſa algúa , que ſe aparte do
mais recto ſentir da Igreja , eu intei-
ramente os fometto á Santa Sé Apofto-
lica ; daria huma facisfaçao a Roma,
e a toda a Chriſtandade , e poria hum
feliz termo a tantos eſcandalos , ere
voluçoens.
49 Ouvindo iſto Luthero , pro-
metteo a Caietano fazer tudo o que
lhe aconſelhava : com iſto ſe deſpe.
dio , e ficou determinado concluir -ſe
a materia no outro dia ; mas quando
CAIETANO 10 de Agoſto .
aſſim ſe eſperava , o hereje , ou arre
pendido da palavra que dera , ou por
naõ deſcontentar aos faccionários , e a
algumas Potencias , que tinha da ſua
parte , e a quem a ſujeiçao do Summo
Pontifice nað era mui grata , tornou
no termo prefixo ; mas nao como
quem vinha a eſtabelecer a paz , ſe
nao a atiçar mais a diſcordia ; porque
chegou á caſa do Legado , arrotando
de foberba , e rodeado de Notarios,
eSatéllites ; e bem ao contrario da per
turbaçao do dia antecedente , difle
mui ſenhor de fi : Que lhe naõ erane
ceſſario congraçar-ſe com alguem , ſem
haver fundamento em que aſentaſe
eſta reconciliaçao : que mal podia elle
offender a alguem com a verdade: que
o que eſcrevera, ou diſera, naõ care
cia de correcçao ; e que aſſim eſcuzaf
ſe o noſo Cardeal intentar procedi
mento algum contra elle ; porque def
de entao proteſtava , que seje lhe fi.
zeſe alguma violencia , appellava pa
ra o Concilio futuro.
40 Paímou o noſſo Eminentiffi
mo à viſta deſta inſolencia , e reſpon
deo - lhe com toda a brandura , e mo
deraçao : que hum Varao conſtante ,
Religioſo , elabio naõ devia ler ta 7
aereo em dizer , e deſdizer : que a ca
beça da occaſiao ſó tinha cabellos por
diante , mas que por detraz era cal
va ; peloque nao perdeſe a que ago
ra tinha , e o buſcava, de reſarcir a ſua
conſciencia , eo feu credito ;porque ,
ſe a perdia , depois lhe nao leria facił
achar outra tao opportuna : que ſe re
tiraſſe , e conſideraſle mais ſeriamen
te o que mais lhe convinha . De nada
valerao eſtas razoens. Entao lhe deo
Caietano hứa reprehenfao com mais
vehemencia ; diſle-lhe : que viveſſe
com igual temor da Juſtiça do Ceo ,
que da terra ; porque nao era a pri ...
meira vez , que os máos pagáraõ de
vidamente as luas deſordens, que cla
mavao o Ceo , e mais ſe accumulavao
com os excellos, que comettiao aquel
les , que erao enganados por elles ; e
que eſte caſtigo canto ſe podja temer
mais
 FR . THOMAZ DE VIO
mais grave , e oneroſo , quanto mais
paſſaite á poſteridade : que nao era
aquelle eſtylo , com que deviaõ ſer tra-
tados os Pontifices Romanos : que o
Imperador Maximiliano , e todos os
mais Potentados da Alemanha ſe eſ-
candeſceriao , e voltariao contra elle :
que todos os outros Principes Chri-
ftabs, tinhaõ eſpada aſfaz comprida ,
e poderoſa para ſatisfazer a indi .
gnaçað , e impaciencia , a que tanto os
começava a provocar a ſua malicia.Iſto
dizia o zeloſiſſimo Legado : e como
o hereje fizeſſe pouco caſo ; voltan-
do -le Caietano aos ſeus, lhes diſſe,
fallando de Luthero : Que eſte tinha
neceſſidade de hum par de ovos fref-
cos ; fraze, com que tachou a ſua lou-
cura,
41 O Cardeal Pallavicino, nafua
Hiſtoria do Concilio de Trento , re
fere , fundado no que eſcreveo omeſ
mo Luthero , que comparecendo eſte
diante do noſſo Caietano , o bom Le
gado o recebera benigniffimamente ,
e o admoeftára a fazer tres couſas .
Primeira : Que retrattaſſe as ſuas pro-
poſiçoens mal ſoantes. Segunda : Que
nunca mais as proferiſe . Terceira :
que deſde alli ao dianie ſe abflivelle
de todas aquellas opinioens, que diſ-
fentem da doutrina da Santa Igreja
de Roma . A iſto reſpondeo Luthero :
Que até entao nada havia dito con-
trario ao ſentir da Igreja. Replicou
Cajetano , dando -lhe nos olhos com
duas ſuas propoliçoēs ,que de pois con-
futou raõ ſolidamente , como ja pon-
derámos. Primeira : Que o tbeforro
da Igreja naõ confiftia nos mereci-
mentos de noſo Senhor JESV Chri-
fto, e dos Santos; allerto contrario é
Conſtituiçaõ Unigenitus de Clemen-
te VI. Segunda : Que para alcançar
a graça , que ſe nos communica pelos
Sacramentos ,era neceſario crerem , co :
mo artigo deFé, aquelles , a quem el-
i les je adminiſtravao ,que a alcă çavaõ ;
o que he contrario a muitos lugares
da Eſcritura ; donde ſe vê , que ne-
nhum póde aſegurar - ſe de eſtar em
CAIETANO " ro de Agoſto 199
graça . Tornou o hereje dizendo : Que
elle" havia lido a Conſtituiçao de Cle
mente , e outra ſemelhante de Sixto
IV .; mas que a opiniaõ dos Papas
nao podia ſer preferida aos Divinos
Oraculos da Eſcritura , que em mui
tas partes repugnavao, como elle aſſim
o poderia
o moſtrar,
poderia moſtrar a's meſmas Confti.
, as
tuigoens . Quanto mais ( dizia elle ,
e do que dizia ſe via com que ſipce
ridade tinha dito inil vezes , que pro
feſſava humaverdadeira fubmiffað ao
Pontifice Romano , nað ſendo outro
o ſeu fim , mais que ir ganhando tem
po . ) a authoridade Papal nað heine
fallivel ; porque ſujeita aos Concilios
geraes. Reſpondia á ſegunda objec
çao do noſlo Cardeal , confundindo
à Fé com a eſperança ; porque alle
gava alguns lugares da Eſcritura , que,
ou recommendao a confiança , que de
vemos ter na Misericordia , é Bon .
dade Divina , ou aſſegurao ! que
aquelles que ſe chegao a Deos , devem
ettar ſeguros de que , ſendo Sua Di 1
vina Mageftade de tanta juſtiça , nao
deixará de recompenſar a quem o
buſca .
42 Vendo o noſſo Servo de Deos
a impiedade daquelle perjuro , econ
liderando que elle nað vinha tanto a
proteſtar a ſua ſubmiſlað á Santa Igre
ja de Roma , quanto por modo de de
ſafiallo para diſputas , o que nao po
dia condizer com o auguſtiſſimo ca
racter de hum Inviado Pontificio , lhe
reſpondeo : Que era mui diverſo o ſeu
animo do que elle imaginava, ſe en
tendia que eſtava para ſuſtentar -lhe
argumentos : que ſomente paternal
mente o admoeſtava , como , ſegundo
a ſua commiſſao , devia , a fazer huma
ſolemne retra &taçao dos ſeus erros.ſo
meitendo - ſe à doutrina da Santa Igre
ja de Roma . Continuou , fazendo -lhe
alguns ameaços ; e retirando - ſe o he
reje mais docilmente , preſumio o
Legado que o deixava perſuadido ;
mas no outro dia ficou cheio de ai
fcmbro , quando vio que elle chega
va a lua caſa no meio de alguns No
tarios ,
 200 FR . THOMAZ DE VIO
tarios , e outros officiaes de juſtiça,
para fazer , como fez , na ſua preſen .
ça hum proteſto de nao ſer ſeu ia .
tento oppor-ſe a algum dos artigos da
doutrina da Igreja Romana ; e que
todas as propoſicoens eraõ boas , e
faas, e eſtava prompto a ſuſtentallas,
e ainda a ſomettellas ás Univerſidades
de Baſilea , Triburgo , Lovaina , e
Parîz . Note -ſe que eltas duas ultimas,
aſſim como tambema de Colonia , ſen-
tenciáraộ contra Luthero .
43 Como o Cardeal nao podia
deixar de fazer affronta á Santa Sede
Roma , ſe permittiſſe que eſta cau
{ a foſe appellada para outro Tribu .
nal ; quanto mais que Luthero nao
pertendia in ais que ir mettendo tem-
po em meio com eſtes ſubterfugios ;
porque mudando a cada paſo de Jui-
zes , nenhum tinha ; tornou a admoe .
fallo brandamente , dizendo -lhe : Que
poſto que o ſeu projecto nað era mais
ſ buſcar quáto antes a ſua reuniao com
a Igreja; com tudo , pelo fatisfazer ain-
da
melhor , queria que elle ſe juſtifi-
caffe por eſcrito . Fez , e apreſentou
o hereſiarcha a ſua defenſa ; mas fun
dada em alicerces cao inſtaveis , ena
da ſólidos, que teve mui pouco tra-
balho em moſtrar- lhe a futilidade, e
ipſubſiſtencia das ſuas razoens , onoſſo
Cardeal , que entao lhe prohibio o
apparecer mais na ſua preſença ,menos
que nao fizeſſe primeiramente hūa ſia-
céra retra &taçao dosſeus erros . Final-
mente o Eſpondano diz , que force .
jando Luthero por dar cor aos leus
erros, e ſendo ameaçado do noſſo
Eminentiſſimo, appellou para o Papa;
e retirando - ſe calladamente para Auf-
1
burg , para concitar a furia do povo
contra o Papa , e contra o Legado,
puzera varios editaes deſta fua appel.
laçaõ pelas praças publicas daquella
Cidade .
44 Della eſcreveo ao noflo Caie-
tano , gratificando -lhe a bondade, de
que uſara com elle , e procurando ho-
neſtas o juridico recurſo, que intenta-
ya , e ao meſmo tempo advertia o
CAIETANO 1o. de Agoſto.
pouco reſpectuoſo , que tinha anda
do com elle , e com Sua Santidade.
Como o hereje , porém , era de hum
eſpirito fraudulento , e tortuoſo , el.
creveo ao meſmo tempo outras mui
tas cartas , e būa dellas ao Pontifice,
em que , além de outros vicios , que
lhe impunha , arguîa o Legado de per
fido, ignorante , imprudente , ſober
bo , tyranno , e turbulento. Dizia :
Que elle era a cauſa daquella fediçao :
que fechara a porta á paz , que mui
luavemente ſe podia fazer: que indo
as couſas em bom eſtado , elle as in
vertera , e peyorára ; e que a elle de
via ſer imputado unicamente todo o
mal , aflim fuccedido , como por fuc
ceder . Conclue o Autor que reſen
tindo-ſe eſta cavilloſa féra de que , pe
las cartas do noflo Enviado , ſe nao
continuaſſe em Roma o proceſſo con
tra elle , appellou em Witemberg , a
28. de Novembro de 1518. , do Papa
para o futuro Concilio , querendo
juſtificar - ſe , que a neceſſidade extre
ma , a que por entao ſe achava redu
zido , o preciſava a eſta appellaçao.
45 Dos teftimunbos referidos ſe
vê bem quanto o noſſo Cardeal fica
indemne da culpa , que neſte particu
lar ſe lhe argûe ; porèm he ja deſgra
ça muito antiga no mundo , aindaque
fó cahem nella juizos mui vulgares , e
materiaes , nao olhar para as couſas ,
ſenaó pelo ſeu bom , ou máo fuccef
ſo . Alguns dos contrarios , querendo
culpar o noſſo Eminentiſſimo Nun
cin , nao puderaõ ao meſmo tempo
deixar de advertir que Luthero era
tao altivo , e ſoberbo, que ſeria im
poſſivel fazerem -no deſdizer do que
huma vez atteftaſſe. Teve penſamen
to , como ſe lê nas ſuas cartas , de
abater os dous nomes , que mais ſe
tem reſpeitado, e reſpeitao nas Er
cólas pelos profeſſores de Filoſofia ,
e Theologia , Ariſtoteles , e Santo
Thomaz . Em outra parte ſe gloria ,
que ſeria fruftranea toda a preſun
Pçaõ delhe fazerem cantar a palinodia ;
iſto he , de fazer alguma retractaçao
do
 FR . THOMAZ DE VIO CAIETANO
do quehũa vez diſleſſe , ainda que
fofle a maior impiedade ; porque ten
do huma diſputa em Lypſic no anno
de 1519. com Joao Eckio , ſe deixou
dizer , que a funeſta revoluçao, que
elle movera na Alemanha , tinha prin-
cipiado , nem havia de acabar por
Deos . Tambem ſe vaāgloriava muito
de que nao teria ſoffrimento , para que
lhe quizeſlem interpretar as Divinas
Eſcrituras ; como ſe eſte foſſe ogran-
de Oraculo , que Deos punha na ſua
Igreja para ſer unicamente conſulta-
do , e nao S. Pedro , por quem , por
ſeus legitimos Succeitores , luben-
tendidos na pelloa domeſmo Santo ,
os Summos Pontifices Romanos, man-
da que ſejao apaſcentadas as ſuas
ovelhas .
46 Ora hum homem de genio tao
indomavel , taõ impio , de taö pouca'
palavra, que , ora eſcrevia ao noſlo
Cardeal , agradecendo - lhe o bom ter :
mo , com que o tratara , ora contra
elle a outras peſſoas , tratando - o de
inſolente , de orgulhoſo, e quanto mais
queria ; hum homem finalmente que
ſe gloriava de ter hum tao abomina .
vel commercio como demonio , bem
ſe vê quanto havia de ſer obſtinado ,
e inflexivel. Melhor juſtiça faz ao nof-
ſo Purpurado o Eminentiilimo Car-
deal Palavicino na ſua ja allegada Hi-
ſtoria do Concilio de Trento, dizen-
do: Que poſto que a principio ſe tinha
deixado levar da opiniao menos favo-
ravel ao Legado , viera depois a de-
ſenganar-ſe, e louvava muito a bran-
dura , com que elle tinha tratado a
Luchero , reduzido entao a tao miſe .
raveis termos , que vivia da eſmóla,
que lhe faziaõ os Padres Carmelitas
de Ausburg , e querendo ir dalli a
Witemberg , lhe faltára huma caval
gadura . Que ainda quando o negocio ,
que entao ſe tratava , tomaſſe outro
fer blante , nao faltaria quem impu .
zefie culpa a Caietano , por deixar de
haver ſuitentado dignamente a Autho-
ridade da Santa Sé Apoftolica.
47. Porém , o que acaba de jufti-
Tom . VII .
10. de Agoſto. 201
ficar inteiramente o noſſo Cardeal , he
o parallelo entre elle , e Carlos Mil
titz . Era eſte homem Saxonio , e Ca
merário de Leao X. que quiz que elle
foſſe , o que levaſſe a Rola de ouro ,
que , legundo o coſtume,
benzera fo
lemnemente na quarta Dominga da
Quareſma, ao Duque de Saxonia , per
tendendo aſſim pôr em paz os tumul
tos , que haviaõ inſurgido. Aſſimo
cuidava o Pontifice ; mas nao ſucce
deo aſſim : porque aquelle Potenta
do , recebendo algum tempo antes
hũa carta do noſſo Cardeal, em que
ette lhe ſupplicava , quizeſſe deixar
ſe da protecçaõ de Luthero , reſpon
deo de hum modo cao pouco atten .
to , que abertamente dava a conhecer
o ſeu eſpirito de rebelliao contra a
Igreja ; e agora fez tao pouco caſo do
Pontifice Romano ,que nao quizaccei,
tar a Roſa de ouro , que elle lhe man
dava , pelloalmente , ſenao por inter
vençaõ de algum dos ſeus. Mas o que
he de mais vilipendio para Miltitz ,
cujo intento era ir por caminho mui
to oppoſto ao que levava o noſſo Caie
tano , faõ as indignas baixezas , que
obrou , tanto em indecoro da authoe
ridade da Santa Sé de Roma , por
que elle devera facrificar mil vidas.
Nós vimos que elle ſacrificou á furia
de Luthero o noſo Padre Tetzel.Di .
zia - ſe , que aſſim elle , como leucom
panheiro o Padre Hoocitrat commet .
ciao alguns abulos no modo de Pré
gar as Indulgencias : tudo iſto eraõ
cilladas do meſmo Luthero , eſcande .
cido , e injuſtamente inſtigado pelo
ſeu Vigario Geral de Alemanha Joao
Stauptiz , por de haver commetcido
eſte emprego aos noſlos , e nao aos
Religioſos da ſua Ordem .
48 Como era poſſivel que , em
materia deIndulgencias , nao ſouber
ſem os noſſos Religioſos elegidospe
lo Arcebiſpo de Moguncia , e conde .
corados por outros muitos titulos , o
que ſabem os principantes da Theo
logia ? Nao he conſtante que para ſe
lograrem as graças da Santa Sé Apo
Сс ſtolica ,
202 FR . THOMAZ DE VIO
tolica, he neceflario a dor , e con .
triçaõ das culpas ? Se ſe concedem
Indulgencias a quem viſita algreja dos
Principes dos Apoftolos em Roma ,
comole nao poderiaõ conceder a quē
contribuifTe com eſmolas para a edi .
ficar ? Se he eſtylo muito louvavelca ,
obrigar de algum modo , poſtoque ſe
falce a outras couſas, ainda que aliás
licitas , para a fundaçao de Igrejas,
Seminários, e Hoſpitaes, quanto mais
O ſeraõ as eſmólasvoluntarias ? Senao
ſe póde negar ſem hereſia , que os
mendigos, e Religioſos mendicantes
pódem pedir ; como nao ſerá impie-
dade negar , que ſe pode fazer peti•
torio para huma obra tao ſanta , qual
era a da fundaçao da Igreja dos Prin .
cipes dos Apoſtolos ? Mas deixando
eſta materia , e tornando ás indigni-
dades de Miltitz , concluimos com o
que diz o Cardeal Palavicino . Lou.
va eſte grande Principe da Igreja , e
diz que o noſſo Caietano ſupprimindo
a inſolente fereza de Luthero , lu-
ſtentou ao menos a authoridade da
Santa Sé Apoſtolica ao meſmo tem-
po que Miltitz a inſultou até o ulti-
mo extremo , moſtrando- ſe humilde,
e timido aquelle homem infernal, e ,
o que he mais abominavel, aré felhe
offereceo para receber huma ſua reſ.
poſta ignominioſiſſima contra o Papa
Mas ja he tempo de paſſarmos de ma.
terias tao contencioſas, e deſagrada-
veis a outras mais venuſtas , e plaufi-
veis , continuando o pouco que le fa-
be das virtudes do noſſo Eminentif-
limo Caietano .
49 O mais rigido Ariſtarco ja ,
mais acharia que culpar nos ſeus bons
coſtumes. Em todos os eſtados deo
ſempre hum exemploſanto ; comel
Je fazia mais efficazes as ſuas palavras .
Foi amaztiſſimo da verdade : amou -a
mais do que a ſi, e dizia-a francamen- do trabalhava , comoja diſlemos, em
te , ſegundo o entendia em ſua conf-
ciencia , diante das peſloas mais ſobe-
ranas , é poderoſas ; o que melhor
juſtifica os noſſos promulgadores das
Indulgencias, Tetzel , e Hoocſtrat ;
CAIETANO 10 de Agoſto.
porque nað ſeria capaz o Servo de
Deos de paſſar -lhes pelo minimo de
feito , que houvelle que emendar nel
les . Era tao parco , e temperado , que
apenas uſava do neceſſario para a lua
subſiſtencia. Nas materias da mytti
era prudentiſlimo : nao era da
quelles que ſe deixavao levar dos pri
meiros jactos. No tempo , em que foi
Geral , fallava - ſe muito na ſantidade
da noſſa Soror Maria de S. Domin
gos : outros pelo contrario ajuiza
vað muito de outro modo . Estavao
ainda mui freſcas na fua memoria as
especies de outras ſemelhantes nori
cias , que haviao corrido de proximo
de Alemanha , e bem ponderadas , ſe
acharaó infubfiftentes; e no tempo
do noſſo Veneravel Padre Fr. Luiz de
Granada , le vio outro ſemelhante ſuc
ceflo , chegando tal vez a ſer reputa
da por hūa inſigneſantidade , hứa das
mais refinadas hypocriſias. O noſſo
previſto Geral determinou que , ſem
propender para qualquer das partes ,
mais , ou menos favoravel, feexami
naſſem as couſas, e que ſe nao deſie ,
lenzo pelo merecimento do que ſe
achafie determinou ao Superior da
Provincia , lhe mandaſſe hūa fiel , e
exacta relaçao dos particulares de So
ror Maria , e ao meſmo tempo impôs
preceito , para que ſepað fallaſſe nas
fuas revelacoens , e favores ſobrena
turaes , pelo demonio ſer tað ſagaz ,
que , como dizo Apoſtolo,ſe transfor
ma em Anjo de luz , e tao inſolente
mente atrevido
mente que ſe atreveo aten
atrevido ,, que
tar noſlo Redemptor. O Ceo abonou
a noſlacauía , manifeſtando -ſe do Ceo
o eſpirito daquella grande Serva de
Deos .
50 A ſua caridade foi tao abraza.
da , que ella parecia a'que dava cor
mais incendida a ſua Purpura. Quan
' commentar a Eſcritura , lervia -ſe pa
ra iſlo de dous Rabinos intelligentil
fimos na fanta lingua Hebraica : hum
deftes era Catholico , o outro vivia na
cegueira Judaica ; nao tanto pelo pre
flimo
 FR . THOMAZ DE VIO CAIETANO
ſtimo deſtes homens , quanto por con-
firmar melhor hum delles na noſſa
Santa Fé , e tentar fe podia attrahir
o outro ao gremio da Igreja . Quando
diſpôs, que ſe lhe delle fepultura do
modo que diſſemos, vendo aos teus
deſcontentes deſta ordem , lhes diſſe:
que o dinheiro que deixava por ſua
morte, nao chegaria para ſe fazer outra
couſa , e quando muito chegaſſe , erao
os ſeus primeiros crédores os pobres;
porque em primeiro lugar eſtava ſuſtē .
tar as paredes vivas ,do ý levátar as de-
ſanimadas. Com effeito mandou por
ſua morte , que porelles ſe diſtribuiſ .
ſe tudo o que ſe lhe achaile. Zelou
ſempre com o mais ardente affecto a
maior gloria da ſua Ordem . Defen.
deo acerrimamente os ſeus direitos ,
e impetrou - lhe hum mar de graças
Apoftolicas quando foi Geral . Todas
asConſtituiçoens,que fazia, ſe encami-
nhavao a promover melhor o Culto
Divino , e o augmento do Inſtituto , e
levavaõ a melhor efficacia no leu ex-
emplo . Com elle reduzio a Religiao
de S. Domingos á lua primitiva for-
moſura. Eſcreveo -lhes muitascartas
circulares , todas cheyas de fogo , do
zelo, e da luz da perfeiçao : e mui-
tos deſtes preciosos monumentos ſe
guardaõ ainda hoje com o competen-
te reſpeito no archivo do poſto Con-
vento de Valhadolid . Tinha em to
das as Provincias Religioſos de virtu-
de , ſeus confidentes, de quem ſe in-
ftruia. Cortou por hũa grande mul-
tidaõ de preceitos , que mais ſerviað
de confundir , que de aperfeiçoar.
Viſitou peſſoalmente as Provincias da
Italia. Prohibio , em obſervancia dos
Sagrados Ganones , oimitar no canto
de Orgao os ſons profanos do feculo.
Solicitou , e approvou a Reforma de Caſtro , e com elle Gabriel Prateolo,
muitos Conventos . Como Varao que adnumerando - o ao Catalogo dos he .
era de ſumma equidade , reparando ,
em que muitos Religioſos de mérito,
por falta de poſſes, deixavao de adian-
iar-ſe nas Univerſidades , impetrou
graça para elle meſmo poder crear
Doutores, fem a penſao ordinaria de
Tom : VII.
1o . de Agoſto. 203
ler nellas quatro annos. Ha qrem el
creva , poito que menos bem funda
do , que foi o noſſo Geral Caietano , o
que introduzio nas Actas dos Capitu .
los os fuffragios particulares dosbem .
feitores ; mas he eſtylo eſte tao anti
gocomo a Ordem , eja delle faz men
çao em muitas partes o noſſo Fr. Ber
nardo Guido .
51 A ſua pobreza mais foi de fim
plez Religioſo , que de Eminentiſſi.
mo Cardeal. Fr. Joao Bautiſta Flavio
elogiou em eloquentiſlimos numeros
latinos eſta virtude do Seryo de Deos ,
dizendo : que ainda no ſeu Cardea
lado , nao le fervia de outra louça ,
mais que de barro . Ozelo , com que
pognava pela Igreja , largamente ſe
tem viſto. Quando foi do Concilia
bulo de Piſa ( era entao Geral o Ser .
vo de Deos ) prometteo ao Pontifice
mandar , emandou , alli os noflos Pa
dres Fr. Bartholomeu Rondanini , Fr.
Agoſtinho Nallio , e Fr. Mattheus de
Sulmo , que ſe oppuzerao aos ciſma
ticos com hum tal brio , reſoluçao , e
generoſidade, que ſe virao os contra
rios preciſados a dar coſtas deſairoſa
mente , para ir, como foraó , conti.
nuar as ſuas Seſloens a Milao, Teve
tambem a conſolaçaõ , de ver no ſeu
tempo , em que os Bentiváthios uſur
parao Bolonha , e o Pontifice interdi
ou eita Cidade ; a intrepida conitan
cia , com que os noſſosReligioſos ſea
guirao inviolavelmente o partido do
Papa, muito
' a pezar dos ameaços , e
máos tratamentos dos intruſos, que
até chegáraõ a inſinûar - lhes que os
expulfariao daquella terra . A'viſta do
referido , ſe faz verdadeiramentedig
no da maior admiraçao o que eſcre
ve do noſſo Caietano , Affonfo de
rejes ; e iſto ao meſmo tempo , em
qué o primeiro deſtes Authores naõ
pode fugir de louvar a nimia piedade
do noſo Cardeal, que nem pódeexi
Itir ſem caridade, nem fóra do gre
mio da Igreja. Porém eſta demazia
Cc ii nao
204 FR.THOMAZ DE VIO
nað palla , nem póde paſſar de hum
inadvertido fervor Eſcolaſtico. Foi
ſempre tanto do Ceo , que quando ,
como ja diſlemos , lhe começar að
achamar o Caietano , nao era menos co
nhecido pelo nome de ſanto Religio-
fo. Foi devotiſſimo da Mãy da MAY
de Deos, e do Caftiffimo, e Digniſ-
fimo Eſpolo deſta Senhora , S. Jozé,
e elle foi o que no ſeu Generalato in-
troduzio as ſuas Feſtas na Ordem , queria do noſo Cajetano muitos Eſcri
ella atélli nao celebrava . Amcu com tores eruditos , fazendo delle hūa mui
extremoſa, pia , e reverente devoçao
a Immaculada Rainha dos Anjos , e
fufpirava morrer. na veſpera , ou no
dia da ſua Aflumpçaõ triumphante.
Deos porém lhe anticipou a coroa .
52 Confeſſou ſe aosnove de Ago-
fto de 1534. devotiſſimamente; e ti
nha elle de coſtume purificar ſe neſte
ſanto Sacramento todas as ſemanas.
Levantou - ſe ,para receber o Santiſſimo
Viatico , da cama, como ſe nao tiveſle
queixa, que o impedifle ; e poito de
joelhos, com devotas lagrimas , e en-
rernecidiſimos colloquios recebeo o
feu Senhor , que , como ja tocamos
acima, o levou para ſiem dia do gran-
de , e Martyr S. Lourenço , daquel-
le anno , e nao , no meſmo , a nove
de Settembro , como eſcreve oconti .
nuador do Eminentiſſimo Cardeal Ba-
ronio . Foi o Cardeal Cajetano eſti-
madiſſimo de Julio II .: elle lhe mere .
cia eſta bõa vontade , pelo bem que,
como ja vimos , o ſervio . Quizera pre .
miallo aquelle Pontifice com a Pur-
pura ; mas metteo - ſe a morte de per .
meio . Clemente VII. equiparando - o
a hum Santo Agostinho , the chama .
va luz da Igreja. Com o Cardeal Pro-
tector da Ordem , o Eminentiſſimo
Oliverio Caraffa de Napoles , teve hū
valimento muito paroicular . Ja diſſe-
mos quanto eſtava optimamente opi-
nado com o Cardeal Sadoleto . Car-
los V. poſto que ao tempo da ſua al
cenfao ao Throno do Imperio naõte .
ve favoravel o poſſo Cardeal , que'fe .
guia o partido da Corte de Roma, a
quem ſe fazia duro , que eſte Princi,
CAIETANO 10. de Agoſto.
pe , que era Rey de Napoles , e ſegun
do ſe eſcreve , havia jurado nao acei
tar juntamente Reino, eImperio , fol .
ſe agora promovido a elle ; com tu
do , depois de aflegurar aquella Co
roa , eſcreveo ao noſſo Legado mui
tas cartas , cheias de honra, attençao,
e reſpeito. Demais deſtes grandes Prin
cipes de ambas as Jerarchias Eccleſia
fica , e Secular , honrarao a memo
diſtincta, e illuftre recordaçao .
53 O Padre Balthazar Alvares da
ſempre illuſtriſſima Companhia de
JESUS, e Varao defumma eminencia ,
na doutrina Myftica , tranſcrevendo
hūas palavrasque allega de Santo Tho .
maz de Aquino, allega logo as outras ,
com que o noſſo Caietano as explica ,
a que aquelle Eſcritor dá o nome de
admiraveis ; elogio , que por ſer de
quem he , vale por outros muitos , e
mui eſpraiados. O noflo Veneravel
Padre Fr. Luiz de Granada , citando
outro lugar do Doutor Angelico , ac
H
creſcenta as outras , com que Caie
tano as illuftra , e lhe dá o meſmolou
vor , que o Padre Alvares, o que bē
prova o grande talento , de que era
dotado o noſſo Veneravel CardealFr .
Thomaz de Vio Caietano para mate
rias eſpirituaes. Sixto de Sena dá -lhe
grandes encomios na ſua Bibliotheca
fanta , diz : Que foi igualmente gran
de ca ſantidade , que na literaiura :
Subtiliſlimo Dialetico , Filoſofo pro
digioſo , Theologo incomparavel , e
entre os eruditos do ſeu ſabio ſeculo,
eruditiſſimo . O Abbade Ughello na
fua 1:alia Sacra , fallando dos Biſpos
de Caiera , lhe chama outro ſegundo
Santo Thomaz , milagre dos engenhos,
farol da Eſcritura , flagello da hereſia,
defenſor da Eſcola Thomiſtica, e pro
pugnaculo da verdadeira doutrina. O
Padre Braliot do Oratorio , deſcre
vendo as ſepulturas da noſa Miner
va , diz : merecer mais eſpecial at
tençaõ a do noſſo Cardeal , a quem
condecora com os ſuperlativos , de
cele
 RECOPIL A C, A
celeberrimo , doutiſſimo , e piiſfimo.
Finalmente Fr. Joao Bautiſta Flavio,
que , como ja deixamos dico , foi Se-
cretario do noſſo Veneravel , e Emi-
neniillimo Fr. Thomaz de Vio Caie-
tano , fez o ſeu doutiſſimo elogîo fu-
neral , diante do Sagrado Collegio ,
tecido das virtuofiffimas acçoens do
Servo de Deos , cuja memoria elle tam-
bem eternizou ,por nao ſer menos ele-
gante Poeta , que eloquente Orador,
em levantadas , e argutiſlimas Poeſias .
RECOPILAC , AM
de 10. de Agoſto.
I M Limoges o Veneravel
E Fr. Roberto de Ahu , aliàs
de Ageduno . Conta-ſe eſte Servode
Deos no numero dos primeiros Relie
gioſos do Convento Dominico da-
quella Cidade , e em todo o ſentido
ſe pode chamar primeiro. Prégava
muito , e ſempre com bum eſpirito,
e fervor digno de hum verdadeiro fi-
lho de S. Domingos , qual elle era .
Era de būa entranhavel caridade , e
mui adherente á lanta Oraçao . Deos
o levou para ſi , no anno de 1265 .
Ex Guido.
No Convento de S. Paulo de
Cordova , o Veneravel Padre Fr.
Agoſtinho Esbanoya. Entre outros
ſeus tres irmãos , todos profeſſos da
quella Caſa , foi eſte bom Religioſo o
que mais ſe diſtinguio nas fciencias ,
e na perfeiçaõ da vida regular . Re-
gentou no Collegio Sevilhano de San-
to Thomaz , e com hum cal applaulo ,
que álèm de deitar eminentes diſci-
pulos , tendo hum argumento com o
noſſo bem decantado Fr , Domingos
de Soto , primeiro profeſſor de Sala-
manca , nao pôde aquelle Meſtreeru-
ditiſſimo deixar de exclamar : Oh fe-
liz engenho ; mas naſcido infelizmen-
te ! Dizia -o pelo Regente ler natural
de Andaluzia , em que nao podia ter
tanta opportunidade para brilhar, co .
mo lhe fora tao facil nas Univerſida.
M de ro, deAgoſto. 205
des mais florecentes das Heſpanhas.
Finalmente depois de haver feito hūa
vida inculpavel, morreo de hūa more
te ſanta em dia de S. Lourenço Mar
tyr do anno de 1554. = Lopes s.p.l.
1.6 . 49 .
3 Em Tul , no Moſteiro da Ter
ceira Ordem, a muito inſigne Serva de
Deos Soror Ignez da Aſiumpçao . En
trou para aquella Caſa por Pupilia ;
mas vendo o ſanto exemplo das habi
tantes , ſeaccendeo nos ſantos deſejos
de profeſſar aquella vida .Entenden
do iſto ſeus parentes, a tirarað para
fóra , e no ſeculo vivia com tanta per
feiçao , e piedade , como pudera na
Clauſura. Depois ſe facilitavao melhor
os ſeus bons intentos ; mas obitava a
fua flebil compleiçao , e hüa queixa
que muito a incommodava. Pegou -le
com S. Jacinto , para que lhe impe
traſſe de Sua Divina Mageftade as for
ças competentes ; e foi bem deſpacha
da a ſua rogativa, porque pôde fazer
a ſua profiſſao. Poucofardou que pao
tornaſſe a inquietalla a ſua antiga mo
leftia , pelo que foi neceſſario fazer
ſe - lhe huma doloroſiſſima inciſao Ci
rûrgica , cujo rigorſopportou taopa
cientemente , que lhe chamavao por
antonomaſia o Cordeiro da Caſa . De
nada a proveitou a cura , e em nove
annos , que lhe rettarao de vida , nao
fabia abrir a boca , tenao para louvar
a Deos . Foi devotiſſima dos Santos
da Ordem , e em honra ſua compôs
hứa Ladainha , que infallivelmente re .
zava todos os dias . Era tambem mui
affeiçoada aos Santos Anjos , e á fe
melhança da ipnocencia dos coftumes,
eſtreitava mais elle affecto . Da Se
nhora foi tambem amantiſſima , eti
nha , como tambem eſcrevemos do
CardealCajetano , grandes deſejos de
morrer no dia da ſua Aſſumpçao ; co
mo porèm , pelo muito que ſoffreo ,
era mais ſemelhante ao grande Mar
tyr S. Lourenço , paſſou deſta , a me ,
Thor vida no dia daquelle gloriofılti
mo Heroe de Chriſto no anno do Se
nhor de 1655. Ann . Dominican .
II de
206 ANTONIA DA COLUMNA II de Agoſto.

11. de Agoſto com effeito , brevemente com D.Joan

Vida da Veneravel Pupilla
A N T O N I
DA COLUMNA ,
Extrahida da Chronica de Fr. Lu •
cas de Santa Catharina , e das
memorias que ſe conſervað no
Moſteiro do Santiſſimo Sa
cramento de Lisboa.
Oraõ ditoſos progenitores
F da noſſa Antonia da Co- ,
lumna , D. Joao de Almada , e D.
na , outra ſua irmaā , ainda de me .
nos annos do que ella , que depois
A veio a fer Religiofa , ambas para Pu
pillas, Os apertos da Clauſura , e as
ſaudades do ſeculo naõ deixavao de
combater a D. Joanna ; mas D. Anto
nia fabia remover com cao deſtro ar
tificio eftes terrenos penſamentos de
ſua irmaā , que as razoens com que a
diſſuadia , no ſólido, e no concertado,
pareciao tranſcendentes aos annos , e
á capacidade de hūa menina .
2 Aquelle fortiſlimo impulſo ,que
moveo a D. Antonia a deixar a ſua

Violante Henriques. A bõa criaçao
que recebeo de taö illuſtres progeni-
tores , e mais que tudo , a bella in-
dole de que foi dotada pelo Divino
Amante , que fez elcolha de Antonia
para elevalla ao excelſo grao de ſua
Eſpoſa , a fizeraõ logo dar muitasmo .
ſtras da ſua futura perfeiçao , e ſanti.
dade . Apenas hia abrindo os olhos
para ver o mundo , quando , como
caſa pela de Deos , nao lhe foffria tan
tos vagares , e dilaçoens , como ſe in
terpunhaõ de permcio antes que ella
chegaſſe ao tempo cao ſuſpirado do
ſeu Noviciado . Via que atua infancia
a excluja dos rigores , e aufteridades,
que via pôr em pratica a tantas Eſpo
ſas do Cordeiro Immaculado, e era
para ella hūa couſa mais dura do que
a morte ſervir de teftimunha , e nao

ſe ja tiveſſe experimentado as ſuas de companheira . A ardentiſfimavon

fraudes , pada pertendia com tanto
empenho como dar-lhe as coſtas . In-
fava com grandes verascom ſeus pays
para que a retiraſlem a hum Mofiei-
10 ; e niſto perſiſtia com tal conftan-
cia , que nao havia artificio que lhe fi .
zeſle mudar de linguagem : parecia-
Thes a ſeus pays , que iſto nao paflava
#
dehumpenlamento pueril , ſem pezo ,
ou reflexao ; mas Antonia reforçava
com tal eſpirito , e vehemencia a { ua
petiçao , que ja ſeus pays olhavao pa-
ra as ſuas inſtancias com outra mais
feria attençao ', parecendo - lhes que
8 quinao deixava de haver muito mais
do que á primeira viſta le podia ima
ginar ; e por nao diſſaborearem a fie
Tha , e muito mais por temerem op-
por -ſe ás diſpoſiçoens do Ceo , vierao
em condeſcender com os bons defe-
tade, que tinha de caminhar ſem mais
demoras pela eſtrada Real da Cruz,
lhe ſuggerio alguns meios de ſer No
viça , ao menos em alguns exercicios ,
ja que nao o podia ſer de outro mo
do. A eſte fim obſervava hum grande
filencio ,applicava- ſe ,com igual goſto,
que attençao , a ler alguns livros eſpi
rituaes , e recolhia ſe ao ſeu apozento
a ter Oraçao diante de humaImagem
do Menino Jesus . Era eſta bellifima:
nao faltou porèm curioſidade , que
eſpreitando a nolla Antonia , quando
ſe empregava neſte tanto exercicio ,
obfervaffe que o ſemblante do Meni
no entao le moſtrava infinitamente
mais engraçado , e riſonho , quando
ella ſeenirecinha em hum commercio
tao celeſtial . Eſte a prendia , ou en
cantava , de modo , que ſe era cha

jos de Antonia . Vendo ella que acc- mada para alguma innocente diver
caſiao ja lhe mofirava mais favoravel fao , ſe eſcuſava quanto mais podia .
ſemblance , eſcolheo a recluzao da Hía vez lhe replicáraó , que havia de
virtuofillima Caſa do Santiſſimo Sa- tella por hypocrita quem a viſſe tao
cramento deſta Corte , aondeentrou, rapariga , e tao dada'á folidao . Nao
Sonnen

/
1
 ANTONIA DA COLUMNA
Somente digao (reſpondeo a noſſa me .
nina ) ſenão, que tambem façao o que
bem lhes parecer , com tanto , que o que
1
fizerem , e diferem , nao me impida,
ou embarace , que eu firva , e ame ao
meu JESUS. Eſtas palavras Iheſabi-
rao da boca com hum tal fervor , e
vehemencia de eſpirito , que nao cau-
ſou menos aflombro , q edificaçao ás
ieſmas authoras daquella inſtancia .
3 Nao ceſſava de importunar as
Preladas, para que lhe permittillem
maiores licenças, para melhor deſaffo
gar a ſua ardentiſſimadevoçað ; eco
mo eſtes requerimentos hiaõ acompa-
nhados de hum padrinho tað efficaz , e
poderoſo , como era o bom exemplo
da ſua vida , nao deixavao de alcan
çar , quaſi ſempre , nao menos hűabõa
condeſcendencia , do que hum pla-
cido acolhimento. A pertenção , em
que Antonia mais ſe empenhava, era
em que ſe lhe concedeſſem Commu-
nboens mais frequentes ; porque as
menos , que , em reſpeito dos ſeus pou-
cos annos , ſe lhe facultavao, mais ſer-
viaõ de mais lhe atiçar a ſede , que
eſta cerva ferida das frechas daquelle
Amor ,
, que fórnente o he , moſtrava
ter de ſaciar -ſe , e refrigerar - ſe mais
a miudo na inexhaurivel corrente das
a guas de vida . Quando , em attençao
dos piedoſos , e terniſiimos extremos ,
que ella fazia para alcançar eſta graça,
ſe lhe deferia aos ſeus deſejos , o que
fuccedia muito deordinario , eraõno .
tabiliffimas as preparaçoens com que
efte Anjo em carne ſe diſpunha para
comer o Pao dos Anjos , principal.
mente dia da veſpera da Communhao ,
e no outro immediatamente ſeguinte,
em que effe & ivamente Commungava.
Gaſtava ambos em continua , e altii-
fimacontemplaçað , nað reconhecen-
do por entao couſa alguma por tað
urgente , ou importante , que a obri.
galle a quebrar aquelle ſilencioſo , e
devoro recolhimento , que a eſte tem-' por å viſta de tantas circunſtancias,
po mais inviolavelmente guardava ,
em devido obſequio daquelle Senhor,
que Elle ſó era as fuas unicas delicias
II de Agoſto . 207
da ſua innocente , e,a
pezar da idade ;
grande , e muito grande alma.
4. Mudava , a leureſpeito , de na .
cureza a reprehenſao , parecendo que
mais bia a excitar-lhe o goſto , do que
a excitar - lhe a paciencia. Em todo o
ſeu trabalho , tinha ( ſegundo as ma
ximas ſagradas) por ſocia inſeparavel,
e fideliſlima, hūa verdadeira , e con
ſtante alegria . Se tinha perleguiçoens
que padecer , que nunca faltao 20s
eſcolhidos ,bem como a ſombra ſe
gue o corpo , nao carecia de hūa fir
meza inexpugnavel para reſiſtir aos
ſeus aſfaltos. Jamais ſoube conhecer o
que eraõ favores, ou inconſtancias ,
agrados , ou deſagrados do tempo ,
ou da fortuna ; porque como o Pilo
to , que regia o baixel da ſua candidiſ
fima coniciencia, era aquelle , que
fó he , e ſemprehe , eſtava perpetua
mente livre de conhecer , ou temer
naufragio. Eftes ſancos effeitos devia
a Serva de Deos as ſuas bellas , e bem
regradas inclinaçoens , aoseſpirituaes
exemplos , e dictames dos bons livros ,
e ſobre tudo ! aos ſobrenaturaes influ
sos , e baterias do Ceo ; e como elle
toda era detta patria de luzes, pare
ce que, com inveja da terra , começou
o Cordeiro ſem mancha a dar -lhe
vozes , chamando -a muitas vezes do
Libano da Clauſura , para as nupcias
do Empyreo.
5 Moſtrou ſer irrevogavel eſte de
creto hűa febre , de que Antonia foi
accommettida , bem que ao parecer
dos Medicos era hūa queixa leve , e
momentanea : o melhor juizo na ma
teria foi o da Serva de Deos , que co
nhecendo q hia andando a todo o cor
rer para a baliza do ſeu termo , pedio
inftantiſſimamente os ultimos Sacra
mentos . Em fim confeſſou -ſe na ver
pera de noſſo Padre S. Domingos , e
no dia Commungou , com aquella de.
voçað , e ternura , que ſe pode ſup .
como lao , em primeiro lugar , a Fe
fa de hum Santo , que era ja , por tan
tos titulos , ſeu pay , pela eleiçaõ , e
goſto
 208 RECOPIL A C,
gofto deſta ſua tao inſigne , e verda-
deira filha ; pela eximid lantidade com
que vivia em ſua caſa; e , o que he
mais , porque as ſuas relevanuiſſimas
virtudes a habilitavao , e conflicuiao
por muito digna della filiaçao : em ſe-
gundo , a occurrencia do tempo , em
que ſe achava a doente , que como
tao chegada ás viſinhanças do ſeu fau-
ftifſimo fim , entañ ſe empenharia em
moſtrar as maiores provas da ſua reli-
gioſiſſima perfeiçao , ao modo com
que a tocha , quando está para ſe a .
pagar , entao ganha hum clarao mais
tranſcendente , eluminoſo ; e ultima-
mente pelo candor admiravel da lua
inculpavel , e Angelica vida , que, ſe-
gundo depois ſe publicou , foi de cal
forte pura , e ſem nota , que jamais
deixou profanar , ou eſcurecer a gra
ça Bautiſmal . Recebida a Sagrada Co.
munhao , aggravou -ſe a moleftia , ma
lignando -ſe a febre de tal modo , que
foi acompanhada de tantos delirios ,
que nao deraõ mais lugar , do que pa-;
ra ſe lhe adminiſtrar a Santa Uncao .
e aqui ſe perſuadirao nao poucas pel.
ſoas , e nao fem hum prudente fun .
damento , que talvez que por ſobre
natural inſpiraçao havia pedido a en
ferma tao anticipadamente o Santilli-
mo Viatico . Chegado finalmenje odia
onze de Agoſto de 1654. oitavo depois
da Solemnidade de noſſo Santiſlimo
Patriarcha , chegou tambem o rigor
do mal ao maior faſtigio do ſeu aug-
mento ; e deſatando -ie dos vinculos
da carne a noſſa virtuoſiſſima Pupil-
.
la , ſubio aos 14. annos da ſua idade
a celebrar na Bemaventurança aquel
le deſpoſorio , porque tanto ſuſpira-
va na terra .
RECOPIL A C , A Mzando da felicidade eterna Vivia pe
los annos de 1260. Eſcrevemos e fra
de 11. de Agoſto
I Emoria do Illuſtrilimo
i
M e Veneravel Padre D. Fr.
Conſtantino de Orvieto , aſſim cha .
mado por haver ſido Biſpo delta Ci ,
A M de 11 de Agoſto .
dade : Alguns eſcreveraõ ſer natural
de Sena ; he mais veriſimil que naf
ceo em Peruſa . Conta-le eſte Servo
de Deos entre os noſſos primeiros Re
ligioſos da Italia , e foi verdadeira
mente hum dos que mais a acreditá
raó por douto , e fervoroſo , pio , e
fanto. Era de muita Oraçao , e pare
cia que pelle , como em centro , def
canſavao todas as virtudes . No Biſ
pado deo inſignes moſtras dozelo com
que entendia em corduzir ſeguramen
te o ſeu rebanho ao fummo da gloria.
Como verdadeiro Dominicano , foi
mui apaixonado pelos intereſſes da
Santa Igreja de Roma, e talvez que
por eſta conſideraçao foſſe eſcolhido
de Alexandre IV . para paſar , como
pofTou , por Legado Pontificio á Gre
cia no ando'de 1255. Alli morreo , com
a boa opinia o que ſempre teve das ſuas
virtudes , em 1257. , e forao trazidos
ſeus oſſos á cidade de Peruſa. Com
pôs a vida , e Officio de N. P. S. Do
mingos, de quem era devotiſſimo ,
que foi approvada em hum Capitulo
Geral, no Generalato do noſlo Re
verendiflimo Fr. Joao Alemañ . Tam
bem ſe lhe attribue o officio domef
mo Santo , que anda no noflo Brevia
sin , postoque outros lhe dao por Au
thor o noſſo Beato Fr. Jordao . = Pius
p . 2. l. 1. col. 56. Font . in Theatr. p .
685 .
Em Pariz o Veneravel Fr. An
dre de Longjumeau . A atividade do
ſeu eſpirito o fez paflar á Terra San
ta , aonde Millionou comohum Apo
itolo . Era tao acceito a S. Luiz Rei
de França , que foi elle hum dos ef
colhidos para o tranſporte da Coroa
de eſpinhos do Senhor. Cremos pia .
mente , que o Servo de Deos eſtá go .
memoria do noſio Veneravel Padre
Fr. Andre debaixo do dia onze de
Agosto , por ſer aquelle , em que ſe
celebra ſolemnerente em Parīz à me
moria da recepção da meſma Sacra .
tiſlima Coroa , o que ſe executa do
modo ,
 FR . DOMINGOS DE
do , que agora diremos : Sahem os
noſſos Religioſos do Convento
Sant - lago daquella grande Corte em
prociſlao a cantar as primeiras Veſpe-
ras à Capella : no outro dia Terça, e
a Miſſa, em que préga hum Religio-
ſo noflo , e ultimamente ſe canta Sex-
ta . O noſſo Fr. Thomaz Soueges
achou -ſe neſta funçao no anno de
1678. Ann. Dominic.
3. Em Provilhe o Veneravel Fr.
Pedro de Fanjaux. Era filho de huma
ſenhora de muita Chrittandade , que
morreo ſantamente Religiola no Mo-
ſteiro daquella Cidade : a meſma fe .
licidade teve ſeu pay , que veſtio tam
bem o noflo ſanto habito , e teve hūa
ſepultura commūa com ſeu filho à
entrada da porta da Igreja da meſma
Caſa . Teve tambem Fr. Pedro hum
tio Religiolo da Ordem , chamado Fr.
Guilherme Garini , e que hūa vez lhe
fuccedeo no cargo de Prior de Car-
caflona , e morreo governando o Prio-
rado da Pamiez no anno de 1275. Era
e noflo Servo de Deos , ſegundo pa
rece mui provavel , profeflo do Con
vento de Toloſa , e eſtava actualmen
te Conventual em Carcaſſona ,aonde
foi o primeiro Leitor quinze annos,
Prior duas vezes , e depois Inquiſidor
da meſma Cidade, quando dalli foi
removido pelo Provincial Toloſano
Fr. Pedro de Valerique a oitavo Prior
da Caſa de Provilhe , a primeira da
Ordem . Elle a ſuſtentou naquella ſua
primitiva perfeiçao , que a fizera tao
illuſtre , e recomendavel . Paſſou de .
pois a ſer Prior do Convento de To
loła, officio que exerceo por ſeus an-
nos com iguaes acertos . Retirado ul .
timamente a Provilhe , alli ſe deoin .
teira , e unicamente a Deos. Foi de
hűa prudentiſſima economía , de hum
zelo verdadeiramente de fogo , de
hữa doutrina fanta , e mil vezes emi .
nente no ſagrado miniſterio do pul-
pito . Foi premiado tanto merecimen-
to com a Coroa da gloria em 11. de
Agoſto de 1299. = Ex Bernardo
Guido.
Tom . VII.
MENDONC , A 12 de Agoſto 209
4 No Moſteiro da Roſa da Coroa
de da Villa de Guimarens a Veneravel
Madre Soror Maria de Santa Anna ..
Floreceo efta bõa Religioſa muito di
ftinctamente em virtudes. Era dada
grandemente a hūa continua, e pro
longada Oraçao . Para conſervar ame
lhor paz do ſeu eſpirito , andava fem
pre em viva guerra com o ſeu corpo ,
macerando- o , e affligindo - o com
perpetuos rigores. A lua obſervancia
foi exemplariſſima : abſteve -le com
tanta , e religioſamente de comer care
De , coſtume ſanto que ſempre ſuſten
' tou inteira , e indiſpenſavelmente. Foi 1
hũa vida tao lanca luccedida , como
piamente ſe pode crer ,
Santos , precioſa ſempre nos Olhos do
Senhor , acabando depois de munida
com os Sacramentos placidamēte com
grandes indicios da lua eterna prede
itinaçao , e felicidade em 11. de Ago
ſto de 1747. = Memorias do Moſteis
rio de Guimaraens.
12. de Agoſto:
Vida do Veneravel Padre
FR . DOMINGOS
DE MENDONC, A
Fundador da Ordem nas Indias 1
de Caſtella , e dos Conven
tos das Canarias ,
Extrahida de Remezal , e Marini.
I Nolio Veneravel Padre
O Fr. Domingos de Mēdon
ça era irmao mais velho do noſlo Fr.
Garcia de Loaysa , que foi Arcebiſ
po de Sevilha , Inquiſidor Geral de
Caſtella , Reverendiſſimo Geral da
Ordem , e ultimamente Eminentilli
Cardeal da Santa Romana Igreja . Pro .
fellou o noſſo Servo de Deos no au .
guſtiſſimo Convento do Proto -Mar
tyr Santo Eſtevao de Salamanca , e
era , como ainda o eſtáva lendo em
27. de Fevereiro de 1517. , Sub . Prior
| da meſma Caſa , quando alli chegou
Dd ode
210 FR . DOMINGOS DE
o decantado Chriſtovao Colon , a
conſultar os noflos Padres ſobre odeſ.
cobrimento do Novo Mundo , pro-
pondo - lhes quanto ſeria facil eſta em-
preza , ſe houveſſe Principe, que qui-
zelle correr com as deſpezas de hũa
navegaçao tao dilatada, e trabalhoſa.
Deliberado o Rey Catholico D. Fer-
nando a fomentar eſte projecto , co-
mo tao pio que era , quiz que paſlaſ-
ſem áquellas partes nao lómente con-
quiſtadores terrenos , ſenaõ celeſtiaes;
é estava o noſſo Veneravel Fr. Do-
mingos de Mendonça em hūa opiniao
com aquelle Principe , que elle foi o
primeiro Superior nomeado para eſta
expediçao . Merecia elle verdadeira-
mente o bom conceito , em que o
avaliava aquelle Rey, por ſer Religio-
ſo de muita Oraçao , donde partici-
pava as mais excellentes luzes para die
rigir recta , e lantamente as ſuas ac
çoens .
2 O noſſo Servo de Deos logo dei .
tou os olhos para os companheiros, que
melhor o podiao ajudar neſta empre-
za toda do Ceo , e forao eſtes eſco
lhidos entre milhares , os Padres , Fr.
Antonio de Monteſino , Fr. Bernar-
do deS. Domingos , eo Vigario Prior
Fr. Pedro de Cordova , ainda que
entre todos os mais moço , e que nao
tinha aquelle tempomais de 28 annos .
Ficou ainda o noſſo Veneravel Fr.Do-
mingos em Caſtella para fomentar , e
promover as dependencias daquella
conquiſta eſpiritual, e quando lhe pa-
receo conveniente , embarcou tam
bem para aquellas partes com outro
bom numero de Miſſionarios. Achou
na Ilha Heſpanhola , por outronome,
de S. Domingos , oreferido Vigario ,
e ſeus companheiros , fazendo todos
aquella religioſa , e auſteriſſima vida ,
que anda expendida em outras partes
deſtes Agiologios . Deixou -ſe aqui fi-
car alguns annos , adiantando eſtes
fantos principios com o ſeu conſelho ,
muito mais com o ſeu raro exemplo
de vida . Talera , a que alli faziam eſtes
bons Religioſos, que vindo depois a
MENDONC,A 12 de Agoſto
paſſar ás Canarias o'nofo bem nomea
do Fr. Bartholomeu de las Caſas, lhe
differao que exorcizando alli o Servo
de Deos Fr. Domingos de Mendon
ça em certa occaſiao hum energume
no , para o que tinha dom mui eſpe
cial , como perguntaſſe ao maldito ,
de donde viera apofſar-ſe daquelle cor
, po ; refpondera o demonio , que co
mo os Prégadores o expulſallem da
Ilha Heſpanhola , aonde ! elle tan
tos tempos havia imperado , naõſaben
do aonde ir , le viera aquartelar Da
quelle homem . Pois ( lhe cornou ' o
Servo de Deos ) aſim como nem o da .
quella Ilha , nao be tambem eſte o
quartel que te convem ; mando que
deixes livre eſta creatura , e que vas
morar a's cavernas infernaes. Ref
pondeo o maldito que pois o Servo de
Deos aſſimo mandava , obedecia ,mas
que elle lho diria dalli a cem annos.
Como o Servo de Deos nao chegou
a numerar aquelle computo de annos,
e o demonio , por outra parte , ſeja o
pay da mentira , nao ha para que fag
zer caſo das ſuas palavras.
3. Daqui partio o Servo de Deos
para as Canarias, procurando a funda
çaõ , que alli cao feliz, e abençoada
mente ſe conſeguio dos noſſos Con
ventos : elles multiplicáraótanto , que
erigindo -ſe a principio em Congrega
çao, depois meando- ſe o decimofet
timo ſeculo , le conſtituirao em Pro
vincia debaixo da tutéla da Rainha
dos Anjos com o titulo de SantaMA
RIA das Canarias. Concluida com tan
ta felicidade eſta fundaçao , voltou
Fr. Domingos a Salamanca ; e como
por aquelle tempo expiraſle o Gene
ralato do noſſo Cardeal Caietano , pe
la ſua aſcenſao ao ſagrado Collegio
dos Eminentiſſimos Senhores Car
deaes, e os noſſos Padres da Ilha de
S. Domingos propagaſem tanto pela
terra dentro do Novo mundo, pedirao
eſtes ao noſſo Padre Mendonça qui
zelle pallar a Roma netta occaſião ,
para que alli ſe crataſie naquelle Ca.
pitulo Geral do que lhes ſeria mais
.
con
 FR . FRANGISCO DE
conveniente . Sahio entao eleito por
Geral o Reverendiſſimo Fr. Garcia
de Loayſa irmao de Fr. Domingos , e
aceitou o Convento de S. Domingos ,
a que ſe deo por Prior Fr. Thomaz de
Berlanga , por formado. Encorpora ,
rao - le a eſta Caſa as outras , que tie
nhamos , e podiamos ter naquellas
Ilhas , e na terra firme do mar Ocea .
no , ſendo inſtituido o ſeu Superior
por Vigario Provincial dellas , e fican-
do todas ſubordinadas á Provincia de
Andaluzia , donde depois forao ſe
paradas no anno de 1528. fazendo -ſe
Provincia , condecorada com a Invo-
caçao de Santa Cruz .
4 A vida, que aqui faziaõ os noſſos,
eraõ tao pobre, deſintereſada , eſan
ta , que havia huma ordenança invio .
Javel , que prohibia o peditorio de pao,
vinho, e azeite, em quanto Deos lhes
aſliſtiſſe com forças ; e ſaude ; per
mittia -le porém , que eſtes viveres ſe
poderiao acceitar para a entretantoa
nao houveſſe neceſſidade urgente em
caſa , fe diftribuiſſem pelos pobres en
fermos da terra . Succedeo, por obfer
vancia deſtaConſtituiçaõ , que em hũ
dia de Ramos , em que os noſſos Pa
dres ſabirao do Officio da Paixão
aſſaz canſados, nao tiverao melhor
prato no Refeitorio , que hum pou
co de paā da terra com alguma cou
ſa mais, poſtoque guizada tem azeite,
e fem mais ſainete , que hum pouco
de ſal, e pimento do paiz. Rematare-
mos eſta memoria com hum ſucceſſo
tocante ao poſlo Convento da Cana-
ria grande . Erao os noſſos Padres alli
Inquiſidores, eachando ſe recluſo na
priza por delicto pertencente á nofla
andes , pi .
Santa Fé hum herege Hollandes, pi .
cado diſto hum pirata da meſma na.
çað , invadio aquella terra , e pondo
fogo ao meſmo Convento , o reduzio a
cinzas . Havia naquella Ilha hum Ca-
valleiro calado , muito rico , e ami-
go de Deos ; fonhou eſte , e aſſim
meſmo fua mulher , tres vezes ſuc-
ceſſivamente, que reedificaſſem aquele
le Convento : affim o fizeraó , e com
Tom . VII.
VICTORIA 12 de Agoſto. 211
hũa tal magnificencia ; que lhe ficou
mui pouco que invejar as obras Re .
gias mais primas,
5 Voltou finalmente o noflo Ve.
neravel Padre Fr. Domingos de Men
donça , ſegundo as ordens que para
iſſo teve , ás Canarias , e eſtando af 1
fiſtente na Ilha chamada a Grande Ca
Daria , aonde exiſte a Dieceſe de to
das ellas , e o Servo de Deos fundara o
primeiro Convento em honra de S.
Pedro Martyr , veio o açoute de Deos
ſobre eſta terra , ferindo -a com o for
midavel mal da peſte. Receavao os
noſſos o perigo , e Fr. Domingos ca
pitaneando -os , bem como outro Ami
nadab , que foi o primeiro que ſe dei
tou as ondas do mar vermelho , foi
tambem opprimido'daquelle contagio ,
de que morreo no ſeu Convento com
as mãos levantadas ao Ceo, aonde voou
a ſua grande alma em 12. de Agosto
do anno de 1540 .
12. de Agoſto.
Vida do Veneravel Padre
FR . FRANCISCO
DE VICTORIA ,
Extrabida de Lopes , e Fr. Miguel
Pio.
1 Rao Servode Deos , o Ve.
E neravel Padre Fr. Franciſ
co de Victoria, profeſlo do noſlo Con
vento de Burgos. Os Superiores, die
Ninguindo nelle hūa viveza de eſpi
rito nað vulgar , fizerao -no paſſar a
eſtudar em Pariz , aonde aproveitou
infinitamente nas ſciencias , ſendo hū
dos mais celebrados eruditos daquele
la idade . Teve por feu Mestrena Fi. '
loſofia o Sapientiſfimo Fr. Pedro de
Brucellas , hum dos que mais adian :
táraõ aquella tað illoſtre , e neceſſa
ria Faculdade . Aprendeo a Theolo ..
gia , que he o eſtudo que lhe deveo
mais amor , applicaçao , e progreſſos,
ſendo elle verdadeiramente o reſtu.
rador defta Divina Sciencia , e o Me.
Dd ii ſtre
212 FR . FRANCISCO DE
ſtre dos maiores Meſtres , e Douto
res da Ordem que a profeſláraó em
Caſtella, com Fr. Joao de Fenario , que
depois veio a ſer o quadrageſimoſe-
gundo Geral da Ordem . Naoſómen-
te pela ſua bõa aptidaó , ſenao tam
bem , e muito mais, pelas ſuas rariſſi-
mas , e excellentes virtudes ,merecia
hum dos primeiros lugares na eſtima .
çaõ dos ſeus Collegas . Era recolhi-
diffimo,e jamais perdia inſtante ; ou ha
via de orar,ou eſtudar . Fezos ſeus actos
luſtrofiffimamente ; e bem quizera
aquella grande Univerſidade nao per:
der hum Varaõ taðinfigne , que tan-
10 apodia honrar com a lantidade , e
doutrina ; mas foi preciſo que o Ser
yo de Deos obedecefle aos ſeus Pre-
lados de Valhadolid , que oavocavao
á fua Provincia , mandando ao melo
mo tempo outros fubditos a fazer alli
os ſeus eſtudos,
2 Reftituido o noſſo famigerado
Eſtudante aquella povoaçao , alli foi
inſtituido Leitor do noſſo Convento ,
emprego que elle optimamente fer-
vio entretanto que pao vagou a pri:
meira Cadeira de Salamanca , aonde
foi chamado para ſe oppor a ella por
morte de Fr. Pedro de Leao. Ocon
curſo foi mui notavel , e nelle fazia
numero hum Religioſo de muitas
prendas , e reputado nao por menos
fabio, que perfeito Religioſo . O noflo
Fr. Franciſco nao tinha ainda gran .
de nome no mundo literario ; daqui
começou a lavrar tanto a ſua fama,
que ſe julgava por premio limitadif-
ſimo doſeutañ relevante merecimen-
to aquella Cadeira , com que indif-
putavelmente ſahio premiado. Anco-
rava-ſe eſtreitiſſimamente a doutrina
de Santo Thomaz , e enſinava com
hũa tal clareza , ordem , e elegancia ,
que encantava . Nao obftante fer acha
cadiſſimo da cabeça , jamais ſe tirava
de cima dos Livros : de noite , e de
dia nunca os deixava . Por mais que
ſe ſentiſſe incommodado, jamais fal-
tava na Claſſe , antepondo ao ſeu par
ticular o bem commum . Naoſómen-
VICTORIA 12 de Agoſto
te fenao negava a inſtruir ſeus diſci
pulos, ſenaõ ainda nem a reſolyer as
duvidas mais intricadas , em que era
copſultado de todo o genero de pel
foas. Poſto que eraõ tao profundas as
ſuas especulacoens, profundava as ma
terias até o ſeu ultimo extremo , dil
correndo por todas aquellas circunttā
cias , que melhor podiao contribuir
para a clareza , e decizao .
3 Sendo em certa: occaſiao con.
ſultado pelo noſlo Fr. Bartholomeu
de Miranda em materia concernente
as conquiſtas do Novo mundo , reſ
pondeo -lhe Fr. Franciſco : Que nao
foſſe facil em contentar -ſe dasprimei
ras idéas ; que pezalfe , e repezaſſe
bem hũa , é muitas vezes tudo o que
Daquelle ponto podia haver de ponde
ravel; porque hūa reſoluçao arreba.
tada he mui perigoſa ; e ſe por dila
graça nað he ſolida, mettida em pra .
tica , fica fem remedio . Procedia
com igual eſcrupulo em tudo aquillo
que olhava para a guerra , e politica ,
ou razao de eſtado , e lempre o ſeu
parecer foi igualmente util , que fan
to , affim aosmaiores , comoaos ſub
alternos . Ouvillo converſar , era ou
vir hum Anjo . Jamais ſe vio a ſua mo
deftia vulnerada do deſvanecimento .
Sem embargo de hum merecimento
tao levantado , elle ſe tinha pelo mais
humilde bichinho da terra . Era iſto
em tanto extremo , que jamais pude
rao acabar com elle alguns de ſeus
dilcipulos, e affeiçoados, que impri
miſle : e ficaria a poſteridade defrau
dada de monumentos caó precioſos ,
fe Banhes , de quem o Servo de Deos
fora Meſtre , e hum dos ſeus mais for
tes apaixonados nao fizera imprimir
posthuma a ſua Summa dos Sacramē
tos , e os Commentarios, que eſcre
veo ſobre Santo Thomaz . Os ultimos
dous annos que viveo, em que obſer
vou com hūa devotiſſima piedade,
hũa incontratt avel paciencia na tole
rancia , com que levou hum muito
importuno mal da gotta , que cruelif
fimamente o perſeguio , ccítumava
dizer
 RECOPILAC, A M
dizer que ſendo elle hum méro nada ,
era a luaeftimaçao muito infinitamen
te ſuperior á dos maiores Principes
da terra ; porque eſtes erao ſervidos
de peſſoas, que fundavao nelles as ſuas
eſperanças, e intereſles: mas elle pe-
lo contrario de quem em lhe aſſiſtir
nao punha a mira fenaõ em Deos. Com
eſte grande deſprezo proprio contra-
minou a inveja , fazendo - ſe grande de
todos os modos, ſem que o ſeguiſle
aquella harpya , mais inſeparayel de tu
do , o que he tranſcendente , do que
a fombra do corpo .
4. Morrendo finalmēte com a fan-
tidade com que vivera, paſſou a ver
para ſempre o meſmo Senhor , aos 12.
de Agoſto de 1546. Foi mui chorada ,
e ſentidiflima a ſua morte , e fizerao-
ſe - lhe hūas eſtrondofiflimas exequias,
ſendo tranſportado o ſeu defunto cor .
po aos hombros dos primeiros profef-
1 ſores de Salamanca . O noſſo Fr. Bel-
chior Cano ſe gloria muito de haver
aprendido debaixo do Magiſterio do
Veneravel Padre Fr.Franciſco de Vi-
coria. Fr. Domingos de Soto , e Fr.
Bernardo de Medina', tambem Do-
minicanos , confeſſaō ingenuamente
ſerem -lhe devedores , abaixo de Deos ,
dos progreſſos que fizerao nas ſcien-
cias . Covarruvias , e Navarro lhe te
cem grandes , e juſtiſſimos Elogios.
RECOPIL A C, A M
de 12. de Agoſto.
I e achando - ſe Fr. Joao
M Briva , o muico virtuo .
E ſo Padre Fr. Reginaldo
Clareti. Era profeffo do Convento
de Limoges , e muito moço quando
ja florecia em admiravel ſantidade.
Entrando no Sacerdocio , era atten-
tamente eſcrupuloſiſſimo em praticar
as mais altas virtudes, principalmen-
te aquellas , a que a obrigaçao mais o
eſtreitava ,com a ultima exacção. Com
eſta vida tao pura , ſe diſpôs para hūa
morte , que o levou para o ſuſpirado
centro dos teus affectos, Vivia no an-
de 12 de Agoſto. 213
no de 1313 :Bern . Guid.
Em Madruſch , o Illuſtriſſimo
e Veneravel D. Fr. Antonio de Zara ,
Biſpo da meſma Cidade . Foi ſujeito
Religioſiſlimo , e de inſignes letras,
Servio com bella ſatisfaçaõ o poſto de
Vigario Geral da fua Provincia de
Hungria. Mathias Corvino, Rey da
quelles Domioios , e a Rainha lua ef
pola o elegeraõ ſeu Confeffor, e ul
timamente lhe commetterao o gover
no daquella Cathedral , que elle ad ,
miniſtrou como hum ſanto , e como
tal morreo no Senhor , no anno de
1490. Fontan. in Theatr. pag.230 .
3 Em Ari , na Ilha de Creta , o
Illuſtriſſimo e Veneravel D. Fr. Ti.
motheo Juſtiniano , digniſſimo Paſtor
daquella Cathedral, e da de Quio.
Servio com os deſvélos de hum Jacob
da Ley da graça a primeira deſtas ſuas
eſpoſas tantos annos , quantos aquel 1
loutro da Ley elcrita viveo , ſervin
do a Labao pela eſperança da ſua Ra
chel ; e deixando o ſeu nome mui
claro pela ſua muita Religiao , fabe
doria , e virtudes paftoraes, paſſou a
fazer numero na Bemaventurança
com os mais ſantos Prelados no anno
de 1570. = Ex Font. in Theatr. pag .
230 .
4 Em Liſieu o Illuſtriſſimo e Vem
neravel D. Fr. Joao Hennuies Biſpo
daquella Cidade . Eſte grande homem
foi Doutor eminente da Univerſidade
de Pariz , Meſtre do Rey de Navarra ,
e Confeſſor, e eſmoler deHenrique
II. de França. Succedendo Carlos IX3
aquelle Rey ,
paſtoreando a ſua Igreja , recebeo or
dem 'do Monarcha para fazer pallar á
eſpada todos os Hugonotes de Liſieu,
bem aſſim como ſe executou com os
de Pariz . Ficou o Veneravel Biſpo
cheio de horror á viſta deſta ordem ,
e reſpondendo aoGovernador da ter
ra , que poſto que aquelles mileraveis
foflens ovelhas a partadas do leio da
Santa Igreja , iſto nao obſtante , elle
nao tinha perdido de todo as eſperan
ças de poder ainda reduzillas à ver
dadeia
214 FR . AFFONSO DE LA
dadeira doutrina. Concedeo - ſe-lhe
tempo de eſcrever a Sua Mageftade
Chriſtianiſſima, que ,em conſideraçao
do merecimento do noſſo Veneravel
Bilpo , teve por bem eximir da pena
capital aquelles fectarios : Elles re-
conhecidos a tanto beneficio , e em
jufta gratidao ao ſeu bemfeitor , ſe
converteraõ mui fincera , e cordial
mente á profiſlaõ da Religiao de ſeus
antepaſſados. Tanto he certo que as
couſas antes ſe levao melhor por bem ,
do que por mal . Teve o bom Prela-
do a conſolaçao de ſobreviver feis an
nos depois deita alliança , e de ver lan-
tiſſimos effeitos della , e deſcançou ul.
timamente no Senhor , no anno de
1578. = Gallia Chriſtiana.
5. Memoria do muito Religioſo
Padre Fr. Mattheus de Ulonis. Era
de Moravia , e foi elle o digno , e fi
deliſſimo Acates do noſſo Veneravel
Martyr do Senhor Fr. Andre Bobio ,
ſendo participante de nao pequena
parte do pezo da ſua Cruz. A este
Servo de Deos devemos as preciozas
noticias daquelle martyrio , de que ſe
fez honorifica mençao Das Actas do
Capitulo Geral de 1612. He mui fa-
{ tivel , que
que ſendo Fr. Mattheus pre
clariſſimo ſocio daquelle esforçadiffi-
mo Athleta de Chriſto , o ft ja tam
bem da coroa da ſua gloria . == Soueges.
13. de Agoſto.
Vida do Veneravel Padre
FR . AF FONSO
DELA ZERNA ,
Extrahida de Melendes.tom . I.p.541
Oi o noſſo Veneravel Pa-
F dre Fr. Affonſo de la Zer-
na hūa das mais fortes columnas do
edificio eſpiritual do Convento do Ro-
fario de Lima . Principiou a carreira ,
que fantamente acabou , da ſua tranſ.
cendente virtude por hűa vida inte .
rior : achava -ſe obrigado ,depois de
renunciar o ſeculo , a allittar-ſe na Mi-
ZERNA 13 de Agoſto.
licia da Cruz. Creſcendo de dia em
dia a ſua opiniao de ſantidade, fize
rao - no Meitre de Novicos ; elle exer
ceo eſte officio , como quem em co
das as ſuas acçoens nao tinha outro
fim mais que a maior gloria de Deos .
Para que eſte Senhor abençoaſſe aquel
las novas plantas , Ihas recommenda
va ſeu bom ſervo inceſantemente ,
com ardentiſfimas inſtancias. Perlua
dia a ſeus fubditos a fazer hum devi
do apreço da ſua vocaçao , e a ren
derem eternas graças a Deos pelos ha
ver trazido à ſua Caſa . Enſinava - lhes
os meios, e induſtrias, com que deviao
evitar os peccados leves, de que a ſa
gacidade do demonio le ſerve , para
inſentivelınente ir fazendo como de
graos para os mortaes : allegava-lhes
a ette intento o que diz o Eſpirito San
to : Os que buſcao a Deos , em tudo
tomao ſentido ; e em outra parte : 0
que teme a Deos nao omitte couſa al.
guma.
2 De Meſtre de Noviços paſſou
a Sub- Prior : neſte cargo deo iguaes
moftras da circunſpecçao da ſuaregu
laridade: era pafmo ver como anda
va tudo regrado no ſeu tempo . Co
mo hum Sub - Prior he braço direito
do Prior , e obrigado mais ftri ta
mente a ordenar as couſas com bõa
diſpoſiçaõ ; Coro , Refeitorio , e mais
officioas , tudo andava em hūa perfei
tiflima harmonia . Era inimiciſſimo
do ocio , e jamais o acharao deſoc
cupado : hûa das liçoensmais frequen
tes que elle dera no Noviciado , era
eſta ; porque , dizia elle : A occupa
çaõ faz -nos Anjos , a inacçao demo
nios . Por eſte bom Religioſo pude
ra dizer o Senhor , o que ja diſera
reſpeitando a David : Que era homem
ſegundo o ſeu coraçao : naquelle de
Fr. Affonto, que era throno das maio
res virtudes, nao havia mais que bon
dade . A comodava - le , ſegundo a ſen
tença do Apoftolo , a todos , e todos
experimentavao a fua beneficencia .
No tempo de Sub -Prior violentava - ſe
grandemente em haver de caſtigar ;
mas
 RECOPILAC , A M
mas fazia-o por ſer inevitavel a obri :
gaçao de ſuſtentar o bom exemplo ,
que fem aquella inteireza le corrom
peria. De tal modo fe aproveitarað
deltas occaſioens ſeus bem affortuna-.
dos fubditos , que depois muito illu-
ſtráraõ com os leus religioſiſſimos pro-
cedimentos aquella grande Provincia .
3 Os afflictos , e neceſſitados
achavao promptiffimo, ora para o loc .
corro , ora para a conſolaçao. Foi de
fumma penitencia ; porque fez ſem-
pre hum eſtudo muito particular em
lo bpor ; a carne lao eſpirito. O ſeuje .
jum era pouco menos que continuo ,
e uſava na meſa de todaa parcimonia ,
de modo que era aſſombro como elle
podia fubliltir com tað limitado ,
flebil ſuſtento . Jejuava inteiramente
as quareſmas a pao , e agua ; e addia
a eitas , outras muito mortificantes
austeridades. Na obediencia foi ſin-
gulariſſimo . Eſtava para morrer quan-
do lhe mandarao tomar hum reme.
dio , que era a meſmaamargura . Bem
fabia elle o nenhum fruto que lhe ha-
via de fazer ;mastomado na mao o me .
dicamento , e olhando para o enfer :
meiro , lhe diſſe com ſemblante mui
placido : Em fim , meu Irmao , a ſan
ta obediencia quer que eu tome ain
da eſta bebida . Dico iſto levou- a abai .
xo , ſem deixar hūa gotta , e ficou mui
alegre , e riſonho por ſe conformar
com Chriſto Senhor noſio naquella
hora , em que lhe deraõ fel, e vina-
gre . Era mui dado á Oraçao ; muito
mais ao tempo em que tinha ſubditos,
a quem mandar , paſſando a maior par-
te da noite empregado neſte tanto
exercicio , que lhes inculcava muief-
ficazmente , dizendo mui a propoſito
com Santo Thomaz : Que aſim como
nað ſe pode viver sem reſpirar , naő
Sahia elle como hum Religiofo podia
paſar ſem o halito espiritual da Ora-
çað. Enternecia -o muito a conſidera-
çao das penas do Purgatorio ; e tinha
de coſtume rezar todos os dias o Of-
ficio de defuntos de joelhos , perten-
dendo aſſim , ſegundo eſcreveo noflo
de 13 de Agoſto . 215
1
Cardeal Caietano tratando do Purga
torio , fazer-ſe tambem 'crédor de fe
melhantes ſuffragios.
4 Deſconfiado dos Medicos na ſua
ultima enfermidade , ſe diſpôs para o
ultimo combate com hūa admiravel
confiança naquelle Senhor , a quem
elle cao fielmente ſervira . Perto doſeu
o ultimo tranſito , pedio hum Crucifixo
ao enfermeiro , e cifle -lhe , que podia
retirar -ſe a deſcanſar. Foi elle , mais
por lhe nao replicar , do que por ou
tra coula , porque ſempre ficou á ler
tavigiando. Entretanto ouvio os amo
rofillimos colloquios ,com que o bom
Padre ſe deſpedia do ſeu Jesus . Dura
rao elles alguma meya hora , depois
e do que o Veneravel moribundootor
sou a chamar para a viſar o Prior , pa
ra lhe trazer a Santa Unçaõ ; e rece
bida ella devotiſlimamente , deo o ul
timo , e ſaudoſiſſimo a Deos a ſeus
Co -Religioſos: logo perdeo a falla , e
pouco depois a vida,por melhorálla na
viſta daquelle Senhor, por quem vive
tudo, aos 13. de Agoſto de 15809
RECOPILAC , AM
de 13. de Agoſto,
I M Dijon o Veneravel Pao
E dre Guilherme de Cave .
Thon . Levou-o Deos de mui . poucos
annos , mas coroado de grandes virtu
des . Quando os Medicos lhe diſerað
que ſe regozijaſle , porque ſe eſtava .
indo por inſtantes ao Ceo , concebeo
hūtaõ exceſſivo alvoroço , que come
cou , melhor Cyſne , a cantar aquelles
verſos elegiacos, que ſe cantað no Ofa
ficio de Ramos : Gloria , Laus i ., e
dando - lhe os Religioſos logo hūa cruz,
em que havia engaſtada huma precio
ciofa reliquia daquella, em quemor.
reo o Salvador,continuou ſaudando -a
com aquillo da Igreja: O‘Cruz , Deos
te ſalve, unica eſperança. Dalli a pou
co vio as ſuas felizmente conſumma
das , pallando do leito ao Empyreo no
anno de 1248. = Vita Fratrum.p.s.
pag . III . 2 Em
216 VIDA DE HUM RELIGIOSO ANONYMO 14 de Agoſto.
Em Limoges o Veneravel P. Fr?
Gerardo Elias de Filitin . Entrou na
Ordem de cincoenta e tres annos, e
com tudo isto foi nella ſelediſlimo
Leitor , e Prégador de hum altiflimo
talento . Neite miniſterio fez grandes
Serviços a Deos , trazendo á ſua maior
amizade muitas peſſoas de ambas asje-
rarchias , Eccleſiaſticas , e ſecular ; e
depois dos ſeus glorioſos trabalhos ,
paſſou a ſer grande do Ceo , ſegundo
eſtá prometido aquelles , que naõ ſó-
mente enſinaö , ſenao que obrao o
meſmo que enſinað . Vivia no anno
de 1302. Er Bernard: Guid .
3 Na Ilha de Tenerifle , nas Ca-
narias no Convento da Candelar ia , o
Veneravel P. Fr. Antonio Lopes . Era
amantiſlimo da mortificaçao. Na hu
mildade foi muito grande', e nao me-
nos na obediencia . Como verdadei .
ro filho de S. Domingos , era apaixo-
nadiffimo no amor , e culto da Senho
ra ; e como eſte he hum dos ſinaes de
predeſtinaçao , morreo o noflo Ser:
vo de Deos, e de fua Máy Maria
Santiſſima com opiniao de Santo no
anno de 1690. = Lopes. 5. p.6.46 .
14. de Agoſto.
Vida de hum Religioſo da Ora
dem
Ν Υ
Extrahida do Additamento de hum
Livro intitulado : Vidas dos
Frades Prégadores. pag . 46 .
1
Loreceo no Convento de
F Metz hum Religioſo nof-
ſo , de quem faz honorifica mençað o
antigo , e veneravel Livro das vidas
dos noſſos Frades . Nao conſta deſte
qual foſſe o nome do Servo de Deos ,
tanto mais digno de o ter no mundo,
do que os tao decantados · Aquilles ,
Alexandres , e Ceſares afoladores do
genero humano , e cheios de vicios ,
e de eſcandalos, que ficárað fazendo
tanto horror á poſteridade. Alguns en-
tenderao que eſte illuſtre filho de S.
Domingos era Fr.
Henrique de Me
tring , Leitor de Theologia no Con ?
vento de Metz ; eſta opiniao porém
nao agrada ao noſſo Annaliſta Fran
cez , que accumula muitas razoens, e
nao inprovaveis, para refutalla. Era
o noſſo Veneravel Innominado Va
raó de grande espirito , e fobreſahio 1
com eminencia no util , eſagrado mi
niſterio do pulpito, para o que ſe ſer
via utilmente da bõa intelligencia que
tinha das linguas Franceza , e Ale
maá . Prégava com tanta caridade nas
aldeias , e lugarejos mais contempri
veis , como le fora nas Cidades , e
povoaçoens mais avulcadas, e tivera
diante de ſinumeroſiſſimos concurſos.
Foi fideliſſimo a Deos na Evan .
gelica renuncia,que fez do ſeculo ,pra
ficando hūa maravilhoſa humildade .
O amor , que tinha ás couſas do Ceo ,
era o que unicamente dominava no
ſeu coraçao : parece que tudo mais
lhe era odioſo. Nas fundaçoens das
pollas Caſas trabalhava tað ſervil , e
diligentemente como qualquer dos
officiaes. Trabalhava aſſim meſmo
nas mais apertadas , eurgentesnecef
lidades da Ordem , pelo que podia ex
plicar-ſe com as palavras do Apofto
io : Tenho trabalhado mais que todos .
Affifia no Coro com hła attençao
em Deos , era maravilha ver comonao
ſómente ſe podia ter , ſenao andar em
tudo tao pontual , e previſto . Elme
rou - ſe mui ſingularmente na devoção
do Roſario deMaria Santiſlima , ſen .
do Prégador mais frequente das ſuas
grandezas , e acabando ſempre os ſeus
diſcurſos com algum milagre da mef
ma Auguſtiſſima Rainha dos Anjos ,
por fazer , como elle dizia , a boca
doce a ſeus ouvintes .
3 Chegando a Tul adoeceo gra
viſſimamente. Havia alli hum Sacer
dote fecular , homem de caridade mui
entranhavel , e que fazia os melhores
officios , a expenſas do ſeu Biſpo , aos
noflos Religioſos , a quem hum , eou
tro
 RECOPIL A C,
tro eraõ mui affeiçoados, e eſte quiz
levar o Servo de Deos para ſua caſa ;
mas elle que era tao humildiſſimo ,
comoja ponderámos , nao quiz ler
hoſpedado ſenaò no Hoſpital da terra .
Admiravao - ſe huns , e eſcandalizavao-
ſe outros ; mas o bom Padre ſatisfez
a todos , dizendo : Que hum Frade
que tinha a pobreza de profilao , em
nenhuma parte podia eſtar de juſtiça ,
mais propriamente como entre pobres.
Os Religioſos, que tinhao a ſeu car .
go ſer hofpitalarios, receberað o nof-
ſo doente com grande urbanidade ,
tratando - o em tudo muito particular,
e diftinctamente . Foi - le alargando a
doença , e cahio o bom Religioſo em
hữa melancolia profundiffima , que
pelo que pareceo , naõ tinha mais ori .
gem , que a penetrante dor dos ſeus
peccados . Vinha ja chegando a mor-
te , e continuava a triſteza , lem que
o Servo de Deos entraſſe em conſola-
çaõ ; mas etta lhe concedeo a ſua po-
deroſiſſima Protectora Maria Santil-
fima, antes que elle terminalle a lua
fanta vida . Afliftia - lhe hum Religio-
fo , quando elle começou a bater as
palmas com ſummo alvoroço , e a fal
lar com a Santiſſima Virgem como ſe.
a tiveſle preſente. Muito bem vinda
Jejais ( dizia elle ) dulciſſima Senhora
minha a de faſombrar o voſo pobre
Capellaõ , e Prégador : e accrefcen
tou : Os Coros dos Anjos , ó benditif
Jima Confoladora dos affligidos fecom
prazém das voſas excellencias. Vós
fois' a que redu ziſtes a graça Theofia
lo , deſeſperado Apoſtata.
4 Nao entendia ifto o Religioſo
affiftente , o que talvez dizia o Servo
de Deos com alluſao á profa da Feſta
da Annunciaçao , de que , ſegundo
ſe crê , foi Author o melmo Theofi-
lo , que ſendo devotiſſimo da Máy de
Deos cahio miſeravelmente como f
lho de Eva em deſgraça de Sua Divi-
na Mageſtade, com quem tornou a
congraçar-ſe por favor da meſmaSo.
berana Senhora . Diz , pois , a proza :
Vós 6 Immaculatiſima Princeza do
Tom . VII.
A M de 14 de Agoſto . 217
Ceo , fois a Cidade do Rey de juſtiça ,
a Mãy das miſericordias: Vós a que
tiraſtes, e retiraftes de hum lago de
immundicias, e miferias a Theofilo ,
reſtabelecendo- o no eſtado de graça.
Como o noſſo enfermo dizia jito fem
alguma cautella , e podia ſer ouvido ,
advertio -lhe aquelle Padre , que fal
laſſe com mais alguma contençao ;ao
que elle ſatisfez proteftando , que tu
do o que tinha dito nað era effeito de
hypocriſia , ( feillimo delicto que elle
muito abominava ) e que prorompe
ra nas referidas clauſulas , porque naõ
faberta conter- ſe de louvar a ſua mi .
ſericordioſiflima Advogada , de quem
confiava todo o ſeu maior bem . Dale
li a pouco tempo , eſtando o outrona
reza das Marinas , e ouvindo o doen
te aquellas palavras : Louve todo o ef
pirito ao Senhor ; levantou algum tan
to a cabeça, e repetiodo- as tambem ,
paſlou a alternar com os Anjos os Tri
ſagios , e cantilenas do Empyreo en
14. de Agoſto de 1228. Celebrou - ſe
a memoria deite Servo de Deos com
hum elegante diftico Latino , que ver ,
tido em vulgar , ſôa deſte modo:
No Ceo renaſce, e aqui fica
Muito mais grande do que era ,
Voando de Santo á esfera ,
La com Deos ſe communica .
RECOPILAC, AM
de 14 : de Agoſto.
M Arleso Veneravel Pe.
E dre Fr. Guilherme . Eltan
do muito mal difle com huma'admi
ravel confiança , preſente o Prior do
Convento daquella povoaçao : Que
elle certamente ſabia , que nao elca .
pava daquella, que morria na veſpe .
ra da Aſſumpçaõ da Senhora , e Fr :
Joao , que era outro Religioſo , que
tambem eſtava muitiflimo doente , o
havia de ſeguir no outro dia . Como sa
beis iſo? Replicou o Prior. Tornou
elle : Repreſentou -ſe-me, que eu eſta
Ee VE
218 FR . PEDRO DE BARRIALES , is de Agoſto .
va com outros Religiojos veſtidos de
branco em hứa embarcaçao , e que Fr ..
Joað me gritava , que eſperafle por
elle, suppoſto que haviao ir ambos de. FR .
jornada para a eternidade. Tudo af
lim ſe verificou dentro de hūa fema .
na . Ex vit . Fratr . pag . 115. anno
de 1240 .
2. Em Limoges o Veneravel Pa .
dre Fr. Pedro Vifcle de Rochouard .
Prégaya a palavra do Senhor com for-
tiflima vehemencia , e ainda a refor-
çava melhor com búa vida tanta .Com
efte bom exemplo fez hum grande
fruto no teu proximo, attrahindo- o
tao fuavemente a feu Creador , que
que
o laureou com a gloria no anno de
1348. = Bern . Guid.
3 Em Bobio , o Illuſtriſſimo e Ve-
neravel Biſpo deſta Cidade D. Fr. Pe
dro , chamado aſſim meſmo de Bobio .
Foi elevado aquella Cadeira por Bac
nifacio VIII. no anoo de 1296. , e elle
a governou diuturna, e fantamente,
ſeguindo em tudo as pizadas daquel-
les fantos Paſtores de maior venera.
çaõ na Hiſtoria Ecclefiaftica. Fez - ſe
iambem mui aceito ao noſio Santiſlio
mo Benedicto XI., que o ſublimára ,
e elle o merecia , a maiores honras, fe-.
a intempestiva morte do meſmo San-
to Pontifice naõ defarmara tað juitos
projectos. Antes que aquelle digno
Vigario de Chriſto paſlaſſe do mundo ,
fez graça ao noſſo Servo de Deos da
Igreja , Clauſtro , e jardim dosCaval
leiros do Templo , e lha confirmou
no aonode 1304. Qual foſſe o damore
te do Veneravel Padre D. Fr. Pedro
nao te fabe ; fabe- ſe fim , e he o que
mais importa, que morreo fantamen
te. = Ex Font . in Theatr.pag. 143 .
1
15. de Agoſto.
Vida do Veperavel Padre
PEDRO
DE BARRIALES ,
Extrabida de Remezal, pag . 575.
I Ra o Veneravel Padre Fr.
E Pedro de Barriales profeſa
so do noſo magnificentiffimo Con
vento de Santo Ettevao de Salaman
ca. O deſejo de lucrar almas para
Deos na America , aonde por aquel
les tempos trabalhavao com tanto fere
vor os noſſos Religiolos, o fez viajar
com outros da Ordem aquellas partes.
Como o noſſo Venerayel Miſlionario
era dotado de qualidades mui atten
diveis , allignou -ſe- lhe o Convento
de Gatemala . A prendeo feliciſſima
mente as linguas daquellas gentes, e
começou a occupar -ſe na fua Mifjao ,
fazendo tao maravilhoſos progreffos,
que ſe diftinguia entre os mais férvia 1
dos , e zeloſos Obreiros da vinha do
1
Senhor , mas nao foi Elle ſervido dar
a ſeu Servo a conſolaçaõ de empregar
ſe neſte exercicio por muito tempo ,
como querendo dar- lhe maior coroa
de merecimento , nao ſó netta mor
tificaçao , mas na que elle tolerou he
roica , e pacientiffimamente em húa
penoziſſima doença de que morreo ,
e ainda na circunitancia de ſer ellefó
o que morreo , ſendo tað geralaquel.
la moleftia na Communidade que ſó
exceptuou hum ſó habitante da Caſa,
que a Providencia talvez reſeryou para
tratar de tantos enfermos.
2 Tinhamos a eſte tempo contra
nós os Juizes ſeculares Caſtelhanos
pela Chriſtaa , e generoſa reſiſtencia
que lhes faziamos pelas excorſoens, e
violencias , com que elles tao deshu .
manamente tyrannizavao os pobres
Indios. Diziao elles ; e bem que nos
achaſlemos em extremo deſprovidos
até do neceſſario , o que agora ſe fa
zia tanto mais amargo , elenſivel, nao
fómente porque nao hiao aquellesho .
mens
 RECOPILA C, A
mens ao noflo Convento , ſenso que
para endurecer mais os animos daquel
ja gente , começáraó a deitar vóz, que
aquelle malepidémico , que tanto nos
opprimia , naô era ſenaô em juíto caiti-
go de nos oppormos ás convenien-
cias dos Chriltaos, e patricios , zelan-
do mais a cauta dos infieis, e eſtra-
nhos ; e tanto melhor côr davao a eſte
feu dizer , quanto aquelle contagio ,
ou quaſi contagio , ſó nos affligia , fi.
cando illeſo o mais reſto da povoaçao:
mas no meyo do tantas anguſtias foi
ſervido aquelle Senhor , que traz ,
como diz o Profeta , a ſaude nasſuas
azas , de acudir pela verdade , que
Elle he , confundindo, e anniquilando
aquelles calumpiadores.
3 Melhorárað todos os noſſos Re-
ligiofos, excepto Fr. Pedro , que foi
o ſegundo quemorreo naquella Caſa,
ainda que pela circunſtancia do dia,
em que paſſou ao Ceo , ſe podia cha-
mar primeiro , por ſer aquelle , em
que a Igreja celebra a Aſſumpçaðtri-
umphante da Senhora ſobre os Coros
dos Santos Anjos ; pelo que , e com
attençaõ a chamar o Principe dos
Apoltolos ao dia da morte , dia do
Senhor , podemos fechar com toda a
propriedade o breve elogio que faze-
mos a eſte ſeu tao fiel Servocom eſtas
palavras do grande Vieira : Ditora
alma a quem cahio o dia do Senhor
no dia da Senhora ! Morreo no anno
de 1555 .
RECOPIL A C, AM
de 15 de Agoſto.
1 O Real Moſteiro de Poi .
N ſly a muito virtuoſa Soror
Joanna de Nelle . Entrou , a pezar de
ſeus maiores , que eraõ muito nobres,
e queriaõ impedir - lhe fortiſſimamen
te eſta reſoluçao , Daquella Caſa , de
quatorze annos ; e dous depois a cha
mou ſeu Divino Eſpoſo para o pre-
mio no meſmo dia , em que ſubia a
triunphar no Ceo a Rainha das Vir-
Tom . VII.
M de 15 de Agoſto. 219
gens no anno de 1484. Soueges.
2 No meſmo Mosteiro de Poiſly
a muito virtuoſa Soror Anna Fournier,
Foi inligne em paz interior , eemze
lar a maior gloria de Deos , a quem
amava extremoliſſimamente , e a qué
ſe unio por hūa ſapta morte no dia da
Aſſumpçao de Maria Santiſſima, cor
rendo o anno de 1555. = Soueges.
3 No Convento de Coimbra , em
Portugal , o Veneravel Padre Fr.
Martinho de Ledeſma. Era da Pro
vincia de Caftella , e paſſando a Por
tugal , os Superiores o adoptárað á
nofla. Foi Doutor eminente em Theo
logia na noſla Athenas , em nada in
ferior, antes muitas vezes ſuperior
á da Grecia . Era de grandes eſpiritos,
e de hūa liberalidade Alexandrina ; de
modo , que emprendeo a fundaçao de
dous Conventos , odo Collegio de Sá
to Thomaz , e o outro para onde ſe
transferirao os noſos Religioſos, da
ſua primeira habitaçao . Ao meſmo
tempo reſplandecia nelle hūa pobre
za , e ſimplicidade de verdad eiro Re
ligioſo , parecendo o mais humilde
da
Caſa. Eſtava em tanta opiniao com
a Rainha D. Catharina , que quiz fa
zello Biſpo de Vizeu , o que 'elle ata
tenta , e humildiſfimamente re cuſou.
Foi aman iſlimo da Ordem · procu
rando com a maior ancia o ſeu maior
adiantamento. Era muidado ao eſtu
do ; e poſtoque pelo ſeu gráo eſtava
deſobrigado, jamais cetava deſte
louvavel exercicio . Era conſultado de
toda a parte ; e elcreveo algūas Obras,
todas de mui particular a preço . Par
te deftes Eſcritos faó ſobre o quar
to Livro das Sentenças, e parte ſobre
a Summa de Santo Thomaz . Final
mente foi alegrar-ſe com as Jerarchias
dos Anjos, quando ellas feſtejavao a
Aſſumpçao da ſua Immaculada Rainha
no ando de 1574. = Souſa. 1. pol. 3 .
6. 5 .
3 Em Artois , em Santo Omer , no
Moſteiro de Santa Margarida , a vir
tuoſiſſima Soror Thereza de S. Jn
feph. Foi inſigne em humildade . Di
Ee ji Ninguio - a
220 SOROR JOANNA DO
ſtinguio -a ſingularmente o Senhor ,
obrando por lua interceſlao algumas
maravilhas . Confiados nas ſuas ora
çoens os Condes de S. Venancio , que
bao havendo tido luccefſao em fette
annos , recorrerao ás oraçoens de So-
ror Thereza , e tiveraõ húa menina , a
que le impôs o nome de Magdalena
Gil Domingas , e que em reconheci-
mento de tanto beneficio , trouxe ou
tros tantos annos o habito da Ordem ,
Nao foi menor a gratidao de ieus pays ,
que fizeraõ dourar o Tabernaculo
do Altar do Moſteiro. Na devoçao
de ſeu , e noſſo grande Patriarcha S.
Domingos foi extremoſiſſima Soror
Thereza , e ſempre ſe eimerou na da
Senhora com as maiores finezas. Elia
parece lhe impetrou a graça de a fa .
zer participante das glorias da ſua Afo
fumpçao Auguftillima, em cujo dia ,
Segundo aflim o crê a nolla piedade,
paltou para o Ceo , no anno ,de 1665. =
Ex Guilbel Ayo. in Fund. Conv. S.
Marg .
16. de Agoſto .
Vida da Veneravel Madre
SOR OR JOANNA
DO ROSARIO ,
Extrahida da Chronica do Padre Fr.
Lucas de Santa Catharina .
I Slim he que Deos Senhortos dotes , e perfeiçoens,
A noflo tanto he poderoſo
para moitrar as maravilhas do ſeu Bra .
ço , tanto em ſujeitos humildes , e
contemptiveis ,como nos eſclarecidos ,
e abalizados ; enos muitos exemplos,
com que hüa , e outra claſſe ſe acre .
dita , tem o mundo ſempre admirado
Os affombroſos effeitos do ſeu puder :
mas parece que quando ſe dao as
maos , o virtuoſo com o nobre , en-
tað he , ou ao menos parece que he ,
mais nobre o virtuoſo. O meſmo Fi-
lho de Deos , havendo de fazer - le ho.
mem , quiz nalcar de hūa Virgem def-
cendente de Reis , e ler chamado fic
lho de David ; e quiz tambem que
ROSARIO, 16 de Agoſto .
em todos os tempos foſſe a ſua Igre
ja ennobrecida , e ornada com ſujei
tos nobiliflimos de ambos os lexus ; e
cometta lua bençaõ foi prendada tam
bem a Veneravel Soror Joannado Ro
lario , de quem agora daremos aquel.
la eſcalfa noticia , que nos ficou reitan
do das suas piiflimas , e exemplares
acçoens.
Foi filha eſta eminente Religio
fa de D. Joao de Almeida , ede Dona
Violante Henriques, familias taô pre
claras , como be bem labido , naõló
em Portugal , eno najsrelto domun
do , aonde elle heroiciflimamente le
tem feito conhecer . Tiveraõ ettes Se
nhores muitus filhos , e conſagrando
quatro filhas a Deos no Mosteiro ce
leberrimu do Santiſſimo Sacramento
deſta Corte , tomou o meſmoSenhor
por ſua conta remir eſte grande em
penho daquella obfervantiflima Cala ,
tran formando nella er fantas eſtas
quatro defpozadas do meſmo Chri
fto , que alli entrarao como mulhe
res . Entrando a fallar mais particu
larmente da Veneravel Soror Joanna ,
como ao preſente ſomos obrigados,
entrou eſta grande Serva de Deos na
quelle Paraiso de ſeu Amabiliſſimo
Espoſo nao tendo de idade mais de
ſette annos . Na ſua formoſura , e gra
ça natural , diviſarao logoas Religio
las hum como ſobre eſcrito dos mui
que em hū
tao bello theſouro hia ja , e enfinuavs
querer ir depoſitando o Author , e
fonte de toda a ſantidade. A mode .
ftia da Serva de Deos era notavel , e
parecia meis propria , e natural de hū
Anjo ,, que
Anjo que de'hūa pura creatura : nao
fe lhe percebia acçao , que nao folle
nað fómente ſuperior a idade , ainda
á natureza . Era Pupilla , e pudera ſer
invejada das Noviças : foi Noviça , e
pudera ſer das Profeſſas: foi finalmē
te Profeſſa , e tiverao neila hum er
pelho as maisreformadas : e alim he,
que era eſpelho ; porque ſe acaſa ſe
chegava algumas vezes aonde feeſta
va converſando , baſtava fomente a
fua
 SOROR JOANNA DO
ſua viſta para compungir a todas , e
fe alguma por ventura com deſejo de
ouvir alguma ſua bõa reſpoſta ſe mete
tja a tenialla , dizendo alguma graça ,
acudia logo a Veneravel Madre So-
ror Joanna , como estranhando a que
fallara o deſacear a caſinha; por céfi-
nha entendia a coniciencia , e eſtes ter-
mos eraõ mui uſuaes neſtas occaſioēs
na ſua boca .
3 Na Oraçao era igualmente fer-
vorofa , que applicada : parece que
a contemplaçao que nella fazia dostra-
balhos , penas , e tormentos , que
Chrifto Senhor noſſo padeceo pelo
decurſo da ſua Santiſſima Vida , e
Morte,( materia eſta que tomava, prin-
cipalmente deſde as quintas feiras até
os Domingos ) foi a escola, que lhe fez
ſuaves nao fomente os muitos jejuns ,
e diciplinas, com que amiudadamen-
te le mortificava , fena o aquella heroi .
ca , e invencivel paciencia com que
ſopportava os mais violentos incom-
modos das ſuas enfermidades , haven-
do - ſe com hữa tal reſignaçao , que
jamais ſe lhe obſervou , que abrifle a
boca , que ſempre tinha chea de ri-
ſo , ſenaõ era para louvar , como mui-
to louvava , a Deos , e nao para for-
mar nem hűaleve queixa , ainda quan-
do as penalidades , e aſperezas do mal
mais ſe deſcobriao , e exacerbavao .
Pudera diſputar - ſe problematicamen-
ſe em attençaõ a eſta conſtancia ,
conformidade da Veneravel Madre na
vontade de feu Senhor , ou á firmil.
fima eſperança , com que ſempre ef.
persya na ſua Immenſa , e Divina Mi-
ſericordia,lhe ſuccederaó algunscaſos
prodigiofos, que ja paſſamos a refe-
rir , com que o Ceo ainda em vida
quiz premiar , ou o ſeu foffrimento ,
ou a ſua fé ; como efle allumpro , po .
rèm , fora mais proprio para hūa Ora ,
çað , e nað o he tanto para hūa Hifto .
ria , deixando eſta queſtañ , paffare
mos antes a referir os meſmos caſos ,
por ſer , o que he , mais tocante á
Dofla obrigaçao .
4 Nao ha prova mais evidente de
ROSARIO , 16 de Agoſto. 225
amor , do que padecer em obſequio
do bem que ſe ama ; eſta ſentença ,que
nao tem Author menos abonado , do
que o meſmo Chrifto , foi por elle
executada á riſca , que deo a vida pe
los homens , e ſeguida em ſeu oble
quio pelos Martyres , e mais Santos ,
que mais ſe diſtinguirao em amallo .
Claro eſtá, que nao podia tambem
faltar este deſejo de penar , e feptir
na Veneravel Madre Soror Joanna ,
como taõ eminente , e deſejoſa de
imitar os mais optimos exemplos, que
nos deixáraó os Santos, e o Rey dos
Santos. Por esta conſideraçao pois ,
quando eſtava de cama , por muito
que neceſlitaſſe de qualquer couſa ,
nunca ſe affoutava a chamar para pe
dilla , eſtando á eſpera de quem , ou
chegaſſe , ou primeiro fizeſle reparo.
Hum dia pois, em que ella ſe achava
enferma , e affli & iflima , neceſſitan
do dorefrigerio de hum copo de agua,
antes ſe quiz ſujeitar a padecer hũa
ſede tao penoſa , do que reſolver- le
a fazer final ás Religioſas , ouvindo
as na caſa da recreaçao : ló deſejava
que chegafle ſua irmaa Soror Magda
lena das Chagas ; e para mitigar , ou
enganar elle penſamento , fepós a cha
malla , ſem a chamar , ifto fallando ,
como por entre os dentes , mui de
manſinho : mas apenas acaba de for
mar aquellas tao ( ubmiffas vozes , eis .
e que vè entrar Soror Magdalena pela
porta da cella , perguntando -lhe o que
The queria ; ou para que a chamava.
Piamente ſe pode crer , que eſte ſuc.
ceſlo , ( que lemelhante fe reperio ou .
tras vezes ) nao tem viſos de natural ,
e que ninguerh podia fazer vir aquel
la Religioſa a ſoccorrer a poſſa pacien
tiſſima doente , ſenañ quem teve po .
der de dar ecco ao flebil daquelle cha
mado , que mais pudera chamar - ſe mu
dez , que muffitaçao.
A diligencia com que a Vene
ravel Madre Soror Joanna ſervia na
Communidade , era igualmente util
que zeloza , diſpondo as couſas com
fe
hūa tao prudente economia , que
fazia
222 SOROR JOANNA DO
fazia mui grata aos Olhos do Pay de
Familias, que parece que continua-
mente eſtava abençoando o cuidado,
e providencia da noſia bõa operaria ,
o que ſe via no luzimento das couſas,
na bõa ordem das officinas, e naome-
nos na muita ſatisfaçao da Commu-
nidade , que vendo tao bello expedien-
te , e a boa conta que dava a Vene-
ravel Madre Soror Joanna em mate .
governo , a promoveo a Pro-
curadeira , e verdadeiramente que
nao ſe enganou neſta eleiçao ; porque
nunca no ſeu tempo ſe ſentio falta ,
antes de ordinario havia para a ſub-
liſtencia de toda a Caſa de ſobejo.Ad-
mirava -ſe difto grandtmente hūa Ir-
maá Leiga , coadjutora da polla Ser-
va de Deos ; porque parecendo - lhe
algumas vezes , que nao poderia dei-
xar de experimentar -ſe indigencia ,
tanto pao era aſſim , que a elles me
dos correſpondia húa abundancia mui
demaziada .
6 Mas entao creſceraõ demonte
a monte as admiraçoens deſta ſocia da
Veneravel Madre Soror Joanna , len
do a primeira teftimunha deſte admi-
ravel ſucceſſo. Succedeo haver na Ca-
ſa hűa grande falta de hūa das ſuas . cia do prodigio ,
mais neceſſarias proviſoens , qual he
o azeite ; principalmente em hum Mo-
ſteiro taõpenicente , que, por florecer
na primeira diſciplina da Ordem , ſe
alimenta com a maior exacçao de her.
vas , e de peixe . Faltavao recurſos
humanos, que como a neceſſidade
he tao acanhada , chegava a parecer
menos duro nao abrir a boca para o
ſuſtento , do que abrilla para implo .
rar auxilios em canta eltreiteza , epe
nuria . Achavañ -ſe as calbas nao fó-
mente eſgotadas , ſenao ſeccas. En-
trou a Irmaa Converſa hum dia aon
de ellas eſtavao , e reparando em húa
dellas mais pequena, pela ver cuberta ,
chegou , e por ſeus olhos vio que efta-
va chêa daquelle genero rao preciſo.
Foi logo correndo dizello á Madre
Soror Joanna , poſtoque pelo aperto
ſer já de dias , ſe culpava a ſi meſma,
ROSARIO , 16 de Agoſto.
dizendo que aquillo talvez ſeria en
gano da ſua imaginaçao , pois naopa
recia veroſimil , que no meio de hūa
indigencia tao grande , ſendo esta tao
grande mettra de diſcurſos , faltaſſe
quem advertiſſe, em que ainda tinhao
para onde appellar . Entrou tambem na
deſpenſa no outro dia , e olhando pa
ra a meſma parte , vio eltar outra ta .
Tha grande, que ella meſma por jua
mao havia alimpado no dia anteceden
te , tambem chea de azeite . Aqui
nao teve mais remedio que contun
dir -ſe , e reconhecer as maravilhas do
Altiſſimo. Abforta na contemplaçao
da fidelidade , e Providencia , com
que o Pay das miſericordias nao ſe
deſcuida de favorecer as ſuas Servas,
fahio dalli nao menos admirada , que
chorofa ; e encontrando - ſe ao melmo
tempo com a Prelada, que caſualmen
mente hia paſſando , perguntou - lhe
eſta , vendo- a com os olhos cheios de
lagrimas , a cauſa que para iſſo tinha .
Referio a Irmaā Convería de plano
todo o lucceffo , e ambas levantarao
as maos ao Ceo , rendendo- lheasgra
ças , acçao , que toda a Communida
de , a quem nao tardou muito anoti
foicelebrar maisſo .
lempemente ao Coro com hum Te
Deum laudamus.
8 Foi tambem mui decantado ou .
tro acontecimento , e preſenciado
de nao poucas teſtimunhas. Era de .
votiſſima a Madre Soror Joanna do
Menino Deos , e tinha muito parti .
cular cuidado de aſlear , e enfeitar
hūa ſua perfeitiſſima Imagem ; e hae
vendo acabado de pouco de fazer -lhe
hum nao menos cuſtoſo , que bem
trabalhado veſtido nacarado , quando
foi a tomallo nas maos , ovio mancha
do de hūa fea nodoa , que , ſem ella o
poder evitar , lhe havia cahido , nao
lhe eſcurecendo menos o coraçao ,
pelo grande goſto com que eſtava de
pôr o ſeu Menino de galla . Como as
ſuas amantes , e devotas queixas fize
raó o caſo mais publico , concorreraõ
muitas Religioſas , que virao comef
feito
 RECOPILAC, A M
feito aquella roupa tao denegrida , è
maculada, comono outro dia a toro
náraó - a ver mui flamante , e ft m ſie
nal de haver ſido contaminada ; por-
que havendo - ſe queixado amorofiffi-
mamente Soror Joanna na noite paſſa .
da ao ſeu Senhor por haver permittit
do que ſe enxovalbafle, e denigraſle
būa couſa , que havia de ſervir para
o teu culto , no outro dia appareces
o veſtido fem - fealdade , ou lelao al .
guma , havendo querido aquelle Se-
nhor , em cuja veneraçao Soror Joad.
na canto havia trabalhado , duas
couſas em abono de ſua Serva , e em
maior gloria do ſeu Santiſſimo Nome ,
e vem a ler ; que permiurio , que a
noſa Veneravel Soror Joanoa tiveſle
aquelle grande diflabor , que foffe co-
mo hum degráo , para que aſſim lo-
breſahifle , e ſe realçaſ e depois mui-
to melhor a ſua conſolaçao ; e para
que o caſo foſſe mais celebre , e tirar
The toda a dubiedade , diſpôs que as
melmas teſtimunhas , que cinhão via
ſo manchada aquella galla , que So-
ror Joanna lhe queria veſtir , foſſem
tambem asmeſmas , que ,depois tefti-
munhaſſem a recuperaçao do ſeu lu «
ſtre , e do ſeu alinho , que para me-
moria perpetua deſte favor , ainda ho-
je fe guarda comobūaReliquia ,ven
do -ſe igualmente illeſo , que reſpei-
tado .
8 Pode ſer que nao foſſem eſtes
os unicos favores , com que o Ceo
quiz prendar hūa alma , que lhe era
tao aceita , e que , ao que piamente
ſe pode entender , eſtava predeſtina-
da pelo Eſpoſo da Virgens para ir ier
Palaciana das ſuas eternas glorias : mas
ja be queixa nao menos antiga , que
incuravel , a que ſempre houve , prin-
cipalmente neſta Provincia de Portu :
gal , de perpetuar as acçoens , e ca-
fos mais memoraveis , que lhe podiao
ſerrir iyoalmente para o exemplo , ý
para o abono .
9 Chegou -ſe o tempo finalmente ,
em que a Serva de Deos havia de
paſſar a coroar - ſe no Empyreo de lu .
de 16 de Agoſto . 223
zes em premio daquellas de perfeição ,
e caridade , em que capto havia rers
plandecido. Hūa febre foi o correio ,
que lhe trouxe ettas boas novas , e que
ella reconheceo com tanco goſto , co
moreſignaçao , affirmando ,que aquel
la era a doença , de que havia de mor
rer . O meſmo certificou , paſſados
poucos dias depois de haver cabido
de cama; porque havendo estado inclii
nada para a parte da parede, e viſto
húa fombra notavel , poſtoque eſta a
principio lhe cauſou algum juſto , lo
go proteſtou , que ſeguramente ſe nað
levantaria dalli , fenao para a ſepul:
cura. Sangtarað -na ; mas como a fua
fraqueza era em extremo , a-repe
tiçaõ das fangrias , que a foi condu
zindo mais de preſla ásportas da mor
te , no pouco tempo que eſta tinha que
tardar , deo lugar a que ſe verificaffe
+
melhor a proxima predicçao da Serva
de Deos . Feito ja fenhor do campo
eſte ultimo deſengano , Sacramentá .
raó -na , e ás duas depois da meia noi
te , em dia de S.Jacinto , 16.de Ago
ſto de 1665., pôsfuavillimamente o ſeu
eſpirito das Maos daquelle Senhor ,
que entao a chamava, para dar -lhe a
fua, em prenda de
ra ſer eternamente ſua deſpoſada.
R E COPIL A C, A M
de 16. de Agoſto.
I M Inglaterra o Veneravel
E Padre Fr. Radolfo Boc
king. Era do territorio de Cuefter
e nao menos inſigne pela ſua muita
piedade , que pela ſua prodigiofa eru
diçao . Foi acerrimo pela doutrina de
Sapto Thomaz a quem muito ſe
aſſemelhava por fabio , e por fanto .
Teve tao grande cabimento com S.
Ricardo , Biſpo , que o eſcolheo por
Director dalua coniciencia; e inſtruin
do - ſe melhor com eita familiaridade!
das virtudes daquelle Santo Paftor ;
veio a fer o noſſo Veneravel Padre
Fr. Radolfo o digao eſcritor das ſuas
fan .
2.24 D. FR . MATTHEUS DE URSINS, 17 de Agoſto

faptiſſimas acçoens. Naöfendo as ſuas timamente para a Enfermaria , láex :

inferiotes , paſſou a ſer participe da cogitava meyos de praticar as ſuas au .

ſua gloria , mediante hua morte fe
liciflima. Dizem huns , que florecia
pelos annos de 1270. , outros que pe-
los de 1390. , e tudo poderá fer yer .
dade . = Ptifæus de Scriptorió. An.
gliæ .
fteridades. Andava de continuo tao
abiorca em Deos , que dizia , por ſer
de indefectivel finceridade , que lhe
daria mui : pouco trabalho contar as
diftracçoens de hum anno. Havendo
Commungado devotiſſimamente no

2 : Em Bergen , na Noruega , oll- dia da Aliumpçaõ da Senhora , cahio

luftriſlimo , e l'eneravel Bispo daquel: em huin lyncope, e torpando a li ,ex
la Igreja , ſuffraganea da de Nicrolia , pirou no ſeguinte dia' , do Senhor ,
D. Fr. Nicolao de Marvia . Foi eleito com os facratiffimos Nomes de JESUS,
nefta dignidade no apno de 1340. , e e MARIA na boca , no anno de 1646 .
depois de havella logrado ſantillima- Ann. Dominic .
mente alguns annos , paſlou ,por hùa
boa morte para acompanhia dos San :
17. de Agoſto.
tos. Fontan . pag . 139.
Vida do Eminentiffimo Cardeal ,
3 Na Provincia da Lombardia o
Veneravel Padre Fr. Miguel de Breſ do titulo dos Saotos Joao , e
fa. Tinha hūa candura de pomba , e Paulo , e depois do titulo de
reſplandeceo com húa obleryancia ad. Santa Sabina , Arcebiſpo de
miravel . Foi humildiflimo : na peni
Santo Angelo , o Veneravel
tencia , fez aſlombrozos progreſſos.
Padre
Os ſeus jejuns, eraõ mais para fazer

aſſombro, que exemplo. A lua cama D. FR . MATTHEUS

eraõ hūas taboas. Gaſtava na ſanta
D E URSINS,
Oraçao noites , e noites . A ſua boa
vida o fez benemerito do Priorado de Extrabida de Fontana , no Theatro.
Mantua , e muito mais de ler adou
merado ao gremio dos Santos . As Aſceo o Eminentiſſimo
Actas de bum Capitulo Romano , ta. N Cardeal , Arcebiſpo de
zem delle hũa honorabiliſſima recor Santo Angelo , o Veneravel D. Fr.

daçað. Anno de 1613. = Capituli Matcheus de Urſins, da eſclarecida

Roma . familia de quem deduzio o ſeu appel .
4 No Moſteiro de Santa Cathari- lido , e que tanto tem contribuido
na de Dijon a muito virtuoſa Soror com ſujeitos religioſiſſimos de ambos

Dionyſia Vallot. Era filha de hūa māyos ſéxos para o maior eſplendor da
de fumma Chrittandade , e muito mi- Ordem na auguſta Roma . Vindo eſtu
fericordioſa com os pobres de Jesu dar a Pariz , obteve neſta Corte hūa
Chriſto ; e para influir melhor eſta Conezia na Igreja do Proto. Ma: tyr
caridade em ſeus filhos, mandava - lhes S. Eſtevaô. Applicava-le ao Direito
dar a eſmola aos pobres, que lhe che- Canonico naquella Univerſidade , e
gavao á porta . Neſte exercicio era a fahio conſummado netta profiſſaõ .

noſa Catharina a mais prompta , e a Depois de haver recebido a laurea de

mais liberal ; tanto , que muiras ve Doutor naquella florentiffima Acade

zes ſe privava do melhor que ſe lhe
dava , para repartillo pelo amor de
Deos . Entrou para a Religiao , e vie
yeo nella com a maior perfeiçaõ de
vida , que le póde deſejar. Foi mor
lificadiſſima, e ainda quando foi ule
mia , reparando na lanca vida dos nof
ſos Religioſos Pariſienſes de Conven
to de Sant - lago , reſolveo-le a ſeguir,
e ſeguio fielmente os ſeus veftigios,
entrando na Ordem . Deo- le com a
maior feryor ao eſtudo das ſciencias
mais
 RECOPIL A C,
mais proprias da ſua profiſlao ; e tan-
to aproveitou nellas , que em breviſ
fimo tempo le pôs habil para 'enſinal.
las en Bolonha , Florença , e ultima:
mente em Pariz , para onde foi deſti-
nado Leitor das Sentenças oo Capi.
tulo Bononienſe de 1315. Subia muie
tas vezes ao pulpito , lendo os ſeus
Sermoens , de luz pela facundia , e
de fogo pelo zelo.
2
Quando no anno de 1324. aſſi-
ſtio po Capitulo de Burdeos , eſtava
conſtiruido Provincial da ſua Provin
cia Romana. Foi amantiffimo da Or-
dem , e beneficiou - a com magnificas
liberalidades . Attento ao aperto , a
que ſe reduziaô os Conventos, em
que ſecelebravaő os Capitulos Geraes,
deixcu por ſua morte hūa porçaõ per
petua , mui conſideravel, as meſmas
Calas ; acçao que depois imitou ge-
peroſamente o noſſo Reverendiffimo
Geral , e Cardeal tambem da Santa
Igreja ; Fr. Vicente Juſtiniano. Confi-
derando o Senado , e o povo Roma-
do os predicados de virtuoſo , e dou-
to , eloquente , e authorizado , que
con corria o optimamente no poſſo Ve-
neravel Fr. Mattheus , o elegeraó por
teu Orador diante da Santidade de
Joao XXII . a fim de deprecar -lhe que,
deixando Avinhao , reftituifle a Ro-
ma a ſua tao annoſa , e privativa glo-
ria de collocar nella a Cadeira de S.
Pedro . Eftimou aquelle Pontifice o
noſſo Enviado com ſummas honras , e
premovendo - o primeiro a Biſpo de
Agrigento na Sicilia , no ando de 1326.,
ſendo eſte ainda corrente o fez.Ar-
cebiſpo de Santo Angelo , da Apulha;
fazendo -lhe tambem graça da Purpu .
Ta de Cardeal do titulo dos Santos
Joao , e Paulo , que Benedicto XII,
The removeo no de Santa Sabina , huma
dos ſuffraganeos de Roma .
3 Foi verdadeiramente pay dos
pobres , o que lhes fez ſentir com mui-
fas lagrimas no anno de 1340. a ſua fe-
liz morte, mais digna certamente de
invejas , 20s 17. de Agoſto. Foi trans-
ferido o cadaver dette glorioſo Prin
Tom . VII.
A M de 17 de Agoſto.: 225
cipe da Igreja á Cidade de Roma ; aon
de deſcança em hum meſmo jazigo
com o Cardeal Latino , na Sacriftia
da Minerva : Correndo o anno de
1630. forao ſeparados , e transferidos
Para a Igreja , defronte de hūa per
feitiſſima eſtatua de marmore de Chri
to noflo Senhor , obra da maõdomais
inſigne profeſſor de deſenho daquel
les tempos , o tao famigerado piacor ,
eſcultor , e Arquitecto , Miguel Ang
gelo Beconafoti.
RECOPIL A C , A M
de 17. de Agoſto.
I M Dinamarca o Venera
E vel Padre Fr. Agoſtinho.
Contribuio muito effe bom Religioſo
para a propagaçao da Ordem daquel
las terras . Foi duas vezes Provinciale:
a primeira por dez annos , e vinte e
dous pela ſegunda , em queſuccedeo
no anno de 1272 , o noflo Veneravel
Padre Fr.Nicolao, quando eſte foi fei.
to Penitēciario da Corte do Papa.Cha
mou.0 o Ceo por hűa ſanta morte no
anno de 1282. = Ex Bern, Guid .
Fm Florença , o Illuſtriſſimo
Biſpo defta Cidade , antes de ſer ere
gida em Metropoli , D. Fr. Diogo
Caſtelbon de Peruſa. Tivera cargos
de muita honra na ſua Provincia , e
dera de todos būa belliſſima fatisfa
çao . Era Prior do Convento de San
ta Sabina, quando havia vagado aquel
la Prelazia ; e Honoriu IV ., eſtima
dor dos grandesmerecimentos doSer
vo de Deos, lhe deo aquella mitra
Entrou na ſua Dieceſe ſolemniſſima
mente em 8. de Julbo de 1286., e qua
renta dias depois olevou Deos para fi.
Foi tepultado na Igreja de Santa Ma
RIA a Nova . Italia Sacra.
3 Em Carcaſſona o Veneravel
Padre Fr. Eftevao de Gatinois . Foi
perfeito Religioſo , e ſervio com grā .
de exacçao , e fidelidade o cargo , em
que o puzerao de Inquiżidor daquel
la Cidade. Indo em húa noite a cavala
Ff lo ,
226 SOROR LEONOR . DAS
Jo
lo , por juntoa Mompelher , fahio
lhe hum herege ao encontro , e levan
do da eſpada a enterrou pela cavalga-
dura do Servo de Deos : Quizerao
os que hiao com o Veneravel Fr. E
ftevao fazer apprehenſaõ naquelle mal-
feitor; mas elle lhes elcapou . Era
Mompelher naquelles tempos dos Do
minios de Aragao ; e S. Luiz Rey de
França eſcreveo a D. Jaime , Rey
daquelles Eltados , informando - o do
fuccedido , erogando -lhe quizeſſe pôr
melhor cobro em evitar ao diantele.
melhantes attentados. O nolfo Vene-
ravel Fr. Eftevao , parece que flore.
cia no anco do Senhor de 1290 .
Soueges.
4 Em Mets , o Veneravel Padre
Fr. Pedro de Remiremont . Houve
neſte grande Religioſo qualidades
eftimabiliſfimas. Foi filho de pays no-
biliflimos ; grandemente ſabio , pelo
que foi Meſtre com igual acerto , que
applauſo em muitos Conventos : teve
húa capacidade muito grande para os
governos ; mas o que o fez mais gra .
to a Deos , e ao mundo , forao as ſuas
excellentes virtudes. Alcançou para
o ſeu Convento a precioſa Reliquia
de húa coſtella de Santo Antaô Abba-
de, e para ſi a coroa da gloria por hũa
morte ſantiſſimi no anno de
1292 .
Condecorou -ſe a tepultura deſte Ser.
vo de Deos com hum diftico Latino,
que na noſla lingua , vale tanto , co
mo dizer :
Morreo Pedro mui idoſo ;
Foi da caſa luminar :
Das virtudes exemplar
Nas virtudes eſpeciofo. · tudes .
Soueges
CHAGAS , 18 de Agoſto .
18. de Agoſto.
Vida da Vegeravel Madre
SOROR LEONOR
DAS CHAGAS ,
Conforme as memorias que ſe conſer .
vao no Moſteiro de N. Senhora
da Alump çaõda Villa de M04 .
ra , no Reyno de Portugal.
Ntre os Anjos, que tam
E bem ſao comparados ás
Elrellas , nem todos forao bons, nem
todos fieis ; entre as Ettrellas, nem
todas lao fixas , muitas ſao errantes ;
nem todas benignas , muitas ha que
lao adverſas : pao de outro modo luc
cede no Ceo da Igreja , aonde dem
todos os que tem o nome de Chri
Itaós deixao de viver como inimigos
de Chritto ; nem todos os quevivem
na Religiao, deixao de conſervar den .
tro della o eſpirito , e asprofanidades
do feculo decadencia eita , que ; até
chegou a fazer -ſe experimentar no
meſmo. Apostolado , que nao tinha
menor Prelado , que o meſmo Filho
de Deos , ſendo funeſtada eſta Sacra
tiſſima Congregaçao dos mais excel
lentes Heroes da Santidade , pela com
panhia aleivola de hum Judas . Na vi
da da noſſa Veneravel Madre Soror
Leonor das Chagas , veremos bum
luminar de ſuperior grandeza , que
nao fó procurou honrar o habito que
veltia , fenao fazello fummamente hon
rado dentro , e fóra dos clauftros ; e
procurou , nao menos fóra , que den.
trodelles , que influiſlem , eallumial.
ſem os intenſos reflexos das ſuas vir
2
A Villa da Vidigueira , ſituada
Da Provincia do Alentejo , foi a patria
ditola da Veneravel Madre Soror
Leonor das Chagas . Teve por ſeus
progenitores Antonio Soares de Fi
gueiroa , e Dona Helena de Zuniga ,
peſſoas de mui diſtincta nobreza , e
que ambas juntavao ao eſplendor do
naſcimento hua innata propenſao á
piedade Catholica. Com a fanta edu
саҫаб
 SOROR LEONOR DAS
caçaõ de pays taõ virtuoſos ſe incli-
nou Leonor tanto de veras ás couſas
do Ceo , que ja naquella primeira flor
da ſua idade vivia , como ſe nao vi
veſle , abitrabida das couſas da terra ;
e ſendo tao retirada , e penitente, que
mais parecia habitante da Thebaida ,
que da caſa paterna . Alli ſe conſumia,
e mortificava com aſperrimas peniten-
cias , frequentiſſimos jejuns , e nao
poucos delles a pao , e agua , e nos
exercicips de outras muitas virtudes,
que bem davao aconhecer quanto eſta-
va tranſportada, e embebida no amor
de Deos , que era ſómente o que po .
dia dar-lhe forças para emprender hūa
vida tao ſuperior , etranſcendente ao
feu ſexo , e aos ſeus annos . Seria de
trinta , quando entrou ,juntamente com
ſua irmáā a Madre Soror Brites do La-
do , no noflo Moſteiro de Nofla Se.
nhora da Allumpçaõ da Villa de Moue
ra , em dia de noilo Serafico Patriar-
ca S. Franciſco , de cuja prodigioſa
auſteridade era Leonor hũa tað fiel
imitadora . A formoſura da alma de
fta Serva de Deos , havia ſido como
annunciada por hūa Angelica belle-
za , com que o Ceo lhe dotou o cor
po , como aquelle que havia de ſer co
fre de búa perola tao grata aos olhos
do Eſpoſo Divino : mas como Leo-
nor , como virgem prudente , nunca
fez caſo ſenaõ daquella graça eſpiri-
tual, que he eterna , e permanente ,
e nao da corporal, a que o Eſpirito
Santo dá o titulo de vaā , e falſa , pa-
ra ,conſervar aquella em toda a ſua pu-
reza , aſſim tinha deixado deſtruir
eſtoutra com'abſtinencias , e' rigores,
que admiradas as Religioſas de verem
hum roſto tao pallido , e quebrado ,
acudio a eſte reparo , o tao famoſo , e' mortificada , e Religiofa , etaõadhe
Veneravel Padre Fr. Antonio da-
Chagas , irmao da noſſa Serva de Deos,
que agora quiz acompanhalla ao ſacri•
ficio que ella hia fazer da ſua liberda-
de ao Todo Poderoſo . Bem tomara
eu ( diſſe o Veneravel Miſſionario )
poder prégar com a cabeça de minha
irmaã Leonor, nas maos , aquelles ,
Tom . VII .
CHAGAS, 18. de Agoſto. 227
que em outro tempo a conheceraõ de
viſta , para que acabaſſem de defen
ganar - ſe doque faõbellezas domundo.
3 Veſtio o noilo ſagrado habito
com igual goſto , que devoçao ; e pa
recendo -lhe que era brinco de meni .
nos a vida que atélli fizera , deo em
excogitar outros novos generos de ar
perezas, e crueldades , com que no
vamente ſe tyrannizaſſe ; e como era
tao grandemeftra , einventora na ma
teria , naő falhou o ſeu dezejo em
ſuggerir-lhe novas machinas , einven
coens, com que bem pudefle faciar
ie . Nao ſomente dobrou , multipli
cou osjejuns , as diciplinas , e os cili
cios ; levando hum anno de approva
çaõ tað fiel , exado , e rigoroſo , co
mo ſe tiveſſe certeza , de que havia
de ſer o ultimo da ſua vida . Para fa
zer a ſua Profiſlao , ainda ſe diſpôs a
padecer mais ardor, a atormentar -ſe
com mais vehemencia : parecia , que
queria anniquilar totalmente o ſeu cor
po com abſtinencias, mortificaçoens,
e vigilias para chegar toda eſpirito ao
dia tao ſuſpirado dos ſeus deſpoforios.
O cumulo de devoçao , de lagrimas ,
de amor, de humildade, e de Religiao ,
com q eſta fiel eſpoſa de Chriſto havia
de celebrar eſtas nupcias com oCordei
ro Divino , he muito melhor que o con
fidere o diſcurſo , luppoſta a preceden
cia de extremos tað finos , do que o
expreſſe a minha tao deſigual penna ,
quando ainda outras mais bem apara
das ; poderiaõ ſentir penurias de ter
mos , para haver de diſcorrer em hū
thema tao elevado.
4. Profeſſa em fim a noſſa Venera
4
vel Soror Leonor , ficou continuan
do adiante o meſmo genero de vida
rente á Oraçao , como ao mais deli
cioſo ſuſtento da ſua alma . Astregoas
que fazia com o ſeu macerado corpo,
era em quanto lhe permittia algum
deſcanſo ; e ainda eſte era , ou tao
imperfeito , ou dado de tað má von .
tade, que antes, em lugar da carida
de , que a ſi meſma ſe devia , ſe pu
Ff ii dera
 228 SOROR LEONOR DAS
dera chamar eſtrando effeito de hum
odio entranhavel ; que de joelhos , e
encoftada a hűa cadeira, he que fem-
pre deſcanſava bum pouco , e bem
pouco ; porque nunca dormio em ca
ma ; regalo que ſó admittia nas ſuas
penoſiſimas enfermidades , e ainda
entao havia de ſer muito pobre , de-
ſaceada, e deſprezivel, e ſó de joelhos
encoſtada a huma cadeira do Coro ,
a que , pela continna aſſiſtencia ao San :
tiſlimo, que nelle fazia a Serva de Deos
ſe podia mais propriamente chamar
a ſua caſa , aonde ſempre deſcanſa- ' huma volta , como para tirar a forte
va hum pouco , e tao pouco , quan ,
to mal..
5. Uſava no ſanto tempo da Qua-
reſma, e aſſim meſmo em todas as
destas feiras do apdo , de trazer duas
cruzes de ferro , cravejadas de agu .
mi diſſimas pontas , que lhe traſpaſſavao
as coſtas , e o peito , que eſtes eraõ os
dous calvarios, que a ambas ellas deſti-
nava . Andava ſempre carregada de
cilicios , e todos elles de tao extraor .
dinarias, como differentes invençoēs,
e ſómente os largava quando adoecia.
As diciplinas que tomava erao com
igual intenſao , que demora ; e le por
ventura ſe achava desfallecida de for-
ças , recorria a hūa ſerva, que havia
na Communidade, de compleiçao , e
naturalmui forte,e mettendo.The hūas
cordas breadas na mao , lhe pedia que
a acoutaſſe com a maior violencia que
pudeſſe: a outra aſſim o fazia , deſe-
jando cumprir inteiramente eſta von-
tada da Serva do Senhor : e era cou-
ſa maravilhoſa obſervar , que primei-
so ſe via a executora deftituida de ef-
forço para continuar o caſtigo, que
a Veneravel Madre Soror Leonor de
conſtancia para padecer os açoutes.
Era6 verdadeiramente potaveis as ſuas
mortificaçoens no comer , e beber .
Nos dias , em que jejuavaa paõ, e agua ,
jamais lhe entrou couſa na boca , em
que ſe pudeſſe dar goſto, ou ſabor :
havia deſtinado certos dias da ſema-
na para nelles pao beber agua ; e na
quelles , em que a bebia , era hūa uni-
CHAGAS , 18 de Agoſto .
ca vez , e com hũa tao eſcaſſa parci
monia , que lhe ſervia de copo o co
medouro de hum papagaio. Tinha
būa roda de ferros , nao deſlemelhan
te à de navalhas de Santa Catharina ,
porque havia nella certos caracteres ,
em que eſtavao deſignados varios exer
cicios de aſpereza ,
e auſteridade: era
eſta roda a da melhor fortuna ; por
que ainda que voluvel , eraella , a que
melhor aflegurava o merecimento , e
a gloria de Leonor ; porque apenas
era manbaā , quando ella lhe hia dar
com que ella naquelle dia ſe havia de
fazer mais digna dos agrados de ſeu
Divino Eſpoſo ; e aquella penitencia,
que entaõ The labia , era para ella tao
inviolavel , que andava , como ſeco
Atuma dizer , com cem ſentidos para
nao commetter na ſua obſervancia
nem hűa leviſlima quebra . Andava
tao previſta em trazer tað mortifica
dos os ſentidos , que uſava a eſte fim
de hum rígido inftrumento de ferro ,
que com fagaz diſſimulaçao trazia
com ſigo para caſtigar, como ſevera
mente caſtigava , qualquer delles em
lhes preſentindo qualquer venialida
de que foſſe .
6' Na guarda dos tres votos, fun
damento , ou alicerſe de toda a per
feiçao Chriſtaā , e tað eflencial, co
mo indiſpenlavel para a vida Religio
ſa , foi a todas as luzes conſumada a
Serva de Deos . Era eſculado dizer .
ſe palavra nette particular ; porque
quando nao foſſe por outra couſa , ſó
pelo que elles tem de mortificaçao ,
lhes haviao de ſer conjuntiſſimos :pô
rèm para maior gloria de Deos , e de
ſua Serva , e para nollo exemplo , ou
confuſao , nao deixaremos de expen
der aquella noticia , que neſta parte
pudemos alcançar ; poſtoque ſó falla
remos da pobreza , pois quanto á obe
diencia o temos por deſneceſſario ;
porque , bem reparado, a maior parte
do que atégora temos hiſtoriado fepu
derá bem reduzir a eſte capitulo : quá .
to mais quem ſe mortificava tao ex
ceſſiva ,
 SOROR LEONOR DAS
ceffiva , e voluntariamente , que dif.
ficuldade le lhe offereceria em fazer o
menos , e o mais ſuave , tendo mui-
to rendida , cobediente aos ſeus Pre-
lados ? E como poderia ella deixar
etta ſumma fragrancia de virtudes , e
bom nome , ſe le lhe houveſle notado
algum orgulho , ou deſobediencia,
paixoens tao incompativeis, e oppo-
itas com hum coraçað tao humilde , e
paciente ? Quadco a 'ſua indefedivel
$
pureza nao ha neceſſidade de fazer .
i mos a lua demonſtracao : illo ſeria
gaſtar inutilmente o tempo , e as ra-
zoens . Quem eſtando ainda no fecu-
1 lo , e no melhor dos teus annos fez
tanto deſprezo de hum dote tao cul-
0 tivado , e ainda affectado do ſexo fe-
mineo , como he a formoſura , ja le
deixa ver o bem que queria parecer
ao mundo : e quem depois de lhe dar
1 as coſtas ſe mariyrizava com tantoem-
penho , e adiantamento com tantasin
clemencias , e rigores , pao ſeria iſto
querer zelar mais efficaciffimente hũa
virtude tao Angelica, vendo que ſe
havia eſmerado nella , quando agora
The era neceſſario viver como hum An-
jo pelas obrigaçoebs da Religiao ? O
certo he que para nao delmerecer a
graça de hum Eſpoſo, que he o Lirio
dos valles , vivia tambem como puro
Lirio entre os eſpinhos da penitencia .
Agora quanto a pobreza , demais de
que grande parte do que eſtá dito pó-
de ter aqui ſua applicaçao , conſerva-
remos outras noticias de nao menos
edificaçao que caridade .
7 Tipha a Serva de Deos íua ten-
ça , com que podia paſar com toda a
commodidade ; mas aſſim olhava pa-
ra o Ceo , e aſſim deſprezava tudo , o
3
que era caduco , e terreno , que nað ti .
1
nha couſa alguma de ſeu mais doque
aquelles pobres habitos , que ſe lhe fa-
ziao preciſos para poder apparecer. O
dinheiro , que lhe vinha å mao , para
nepbūa outra couſa o queria mais que
para fazer habitos a Religioſas neceſ
fitadas ; e para ficar ſendo mais po-
bre que os meſmospobres, guardava
CHAGAS, 18 de Agoſto . 229
como galla ,para ſe veſtir, aquellas co
berturas gaitas , e inuteis , de que eſtas
meſmas Freiras acabavao de ſervir -ſe.
Adoecendo alguma Religioſa, era ja
ſabido que havia de ſer a Madre Leon
nor a ſua enfermeira ; ella lhe aſliftia ,
ella a conlolava , ella a que a ſervia , a
que lhe trazia osregálos, a que lhe va
lia mais depreſa, e a que lhe ſolicita
va todos os alivios. Nao faltava da
cabeceira do leito das moribundas ,
intercedendo por ellas , exhortando
as com muitas , e ſuaves razoens :por
ſua conta corria depois o amortalhal
las , o que fazia com toda a caridade ;
e nað ſendo menos benéfica com as
ſuas almas , do que ſe moſtrava com
paſſiva com os teuscorpos , e cadave
res , offerecia a Deos noflo Senhor
muitas oraçoens , e ſuffragios pela ſua
intençao . Amava ternamente os pobre
zinhos de Chriſto , remedeando -os, e
valhendo -lhes em tudo quanto podia ,
e pondo , ou por melhor dizer , en
theſouraodo nas ſuas maos tudo quan
to podia alcançar -lhes ; e teve lugar de
exercer com elles eſta piedade, eco
miſeraçao no tempo , em que lervio
de Rodeira ; porque , ainda que deſem
penhou altamente eſta incumbencia
pelo nimio cuidado que tinha da po
breza , parecia que elle era unicamē.
te o feu officio.
8 No que diz particular reſpeito
á exacçao com que a Serva de Deos
ſe havia na guarda das Conſtituiçoēs,
parece que era o ſeu coraçao hum no
vo , emais precioſo livro, aonde ellas
eſtavaõ eſtampadas : he tradiçaõ con
ſtante, que jamais ſe lhe vio que vio .
laſſe nem venialmente os ſeus precei
tos . Eſta inflexibilidade da Veneravel
Madre Soror Leonor a malquiſtou tal
vez com algumas luas Co -Religioſas
menos obſervantes, que ſe viao mais
confundidas da ſantidade do exemplo
da Serra de Deos , e de ſua Religio ,
fillima irmaā a Veneravel Madre so
ror Brites do Lado , que de algumas
brandas , e ſaudaveis admoeſtaçoens;
com que eſtas duas Veneraveis filhas
de
230 SOROR LEONOR DAS
de S. Domingos haviaõ procurado
por vezes fazer - lhes reconhecer as
obrigaçoens do ſeu eſtado , e voca
çað . Eftes conſelhos, que por virem
donde vinbao , ifto be , de quem per.
fuadiſle búa couſa , e obraſle outra ,
o que he taocommúmēte praticado na
terra, fó ſervirao deendurecer , e ob-
ſtinar mais aquelles animos: e aggra-
vando -ſe muito de hūa diligencja tao
Santa , e tanto do agrado do Pay das
luzes , e de S. Domingos tambem noſo
ſo Pay , e que tambem podemos cha-
mar das luzes, pela Eſtrella que fcio .
tilla na tetta , e pela tocha que lhe ar-
de aos pés , divila muito propria pa-
ra denotar o fogo do ſeu zelo , e os
reſplandores da lua doutrina , e vir.
tudes ; determináraõ cegamente to
mar vingança daquellas , a quem erao
devedoras do maior amor , e carida-
de : porque demais de ſerem todas
ſocias , deviao aquellas inconſidera.
das Freiras a ' Leonor , e a Brites , a
extremoſa fineza de as ver intereſſa
das na ſua converſao , e aproveita-
mento. Com effeito prevenirao -lere.
folutamente as que ſe davao por offen-
didas , ſendo ellas por tantos capitu .
los as offenſorás ; forao fazer hűa eſ-
pera á porta da nofla Veneravel Leo-
nor , que eſtava dentro com ſua ir-
maā : preſentirao eſtas o que podia
fer , e como verdadeiras Religioſas
fahirao a affrontar -ſe com ſuas inimi
gas , mas nao ſabiraó com arrogan .
cias , e ferezas tao alheas de hûa al-
ma Chriſtaā , quanto mais de quem
nao ſomente a dora a Chrifto , mas
ainda vive abraçada com a Cruz da
Religiao . Sahirao pois com a maior
modeftia , com os olhos em terra , e
com as maos cruzadas debaixo doeſ
capulario , e lem olharem para algũa
de ſuas contendoras forao parlando
pelo meio , e abaixando acabeça a to .
das . Aquelle meſmo Senhor , que ſuf-
pendeo a eſpada de Abrahao quando
hia a cahir, ſobre acabeça de Iſaac,foio
meſmo q agora apagou o muito fogo ,
4 propriamēte podemos chamar fatuo,
CHAGAS, 18 de Agoſto.
com que aquellas Freiras inadverti
das commetterao hữa imprudencia
tao abſurda , e criminofa ; porque
com etta viſta , como ſe nem ao me
Dos tiveſſem boca para dizer húa pala
vra , as delinquentes, aſſim ficáraó frias,
e deſgoſtoſas da ſua neſcia delibera
çao , que até ſe corriao , e envergo
nhavao de olhar húas para as outras.
9 Efte ſucceſſo lá tem em parte
algumas apparencias com o outro ſuc
cedido no Horto de Gethſemani ,
gonde o Senhor fez cabir por terra os
miniſtros que hiao aprendello ; por
que no noſſo caſo tambem cahirao por -
terra , cahindo em ſi, aquellas Frei .
ras incautas . Tao certo he , que mui
tas vezes permitte Deos os males pa
ra le ſeguirem dahi muicos bens , co
mo aqui ſe vio ; porque em primeiro
lugar ficou vencedor , comoſempre ,
o partido do meſmo Senhor , por cu .
ja gloria o havia lómente a Serva de
Deos : em ſegundo , tambem eſta fi.
cou mais triunfante , ſempre havia
de o ficar : le o ſucceſſo foſſe ao con
trario triunfaria Leonor diante dos
Olhos deDeos;mas acontecendo como
aconteceo , nao ſó triunfou diante de
Deos, ſenao diante do mundo : emter
ceiro lugar , ficou - le aflim conhecendo
melbor a agigantada virtude , e fanti
dade deſta grande Serva de Deos,eulti
mamēte o aproveitamento eſpiritual ,
ý daqui podiao tirar aquellas menos at
tentas Religioſas, e he mui crivel ,
que nao deixaria o de abraçar as luzes
du Ceo ; porque parece , que o arre
pendimento, com que ſe retiráraõ do
ſeu máo propoſito , era ja principio do
arrependimento das fuasimperfeiçoēs.
10 1 Era devotiſſima a Serva de
Deos do Amado , e amabiliſſimo Evā
geliſta S. Joao ; e como lhe profeſſa
va hum cordialiſſimo affecto , de mais
dos muitos obſequios , com que em
todo o tempo o ſervia , e com que
no ſeu dia proprio o feſtejava , era
coſtumada neſte meſmo a veſtir hum
pobre à ſua honra deſde o alco da ca
beça até os pés ; porque lhe dava cha
peo ,
 SOROR LEONOR DAS
peo , camiza , veſtido, meyas , e ça .
patos ; e como os Santos faõtao fieis,
e generoſos em premiar a quem os ſer .
ve , naó havia de faltar o filho adop-
tivo de Maria Santillima a eſta gene-
roſidade ,impetrando -lhe de Deosnof-
ſo Senhor graças em vida , e hūa tao
feliz , e ſanta morte , como agora ex-
penderemos.
U Cahio de cáma a Madre Soror
Brites do Lado , e como a nolla Ser.
va de Deos a amava muito affeduuſa-
mente , nað ſó pelos vinculos do fan
gue , ſenab , e muito mais , pela fuas
excellentes virtudes , e qualidades ,
nao deixou de cauſar - lhe sentimento
eſta novidade : por eſta conſideraçao
deprecava muito' a Deos noſſo Se
phor pela ſua vida , e fazendo hūa
confiſſao , ſabio della taô conſolada ,
e conforme com a vontade Divina ,
que encontrando -ſe com outra Reli .
giofa , com quem tipha mais familiari.
dade , e perguntando -lhe eſta ſe efta-
va mais livre da ſua affliccao , lhe ref
pondeo a Veneravel Madre Soror
Leonor , que lim ſe achava tao bem
difpofta , e reſignada, que inteiramen-
te ſacrificava o ſeu goſto ; e os ſeus
deſejos ao Altiffimo , para que diſpu-
zeſſe de ſua irmáá , edella , o que foſe
ſe 'mais ſervido . Aceitou o Ceo ella
renuncia tao ſincéra , e deſintereſſa-
da , porque neſte meſmo dia adoeceo
tambem a noſſa Veneravel Leonor .
Achou -a o Medico com hūa pequena
5
febre ; e , aſſim elle como as Religio-
ſas , todos ſe perſuadirao a que nao
ſeria queixa de conſideraçao nao af-
ſim a Serva de Deos , que allumiada
ſuperiormente , ao que bem ſe pode
crer da ſua boa vida , de ſer chegado
o prazo , ſe preparou para o ultimo
certame . Recebeb o Santiſſimo Via.
tico com tanta devoçað , e com lagri
mastaõ copioſas , que nao havia quem
pudefle contêr as ſuas, ou motivadas
da edificaçao , ou da anticipada f & u
dade , que ja lhes começava a hume
decer os olhos. Pouco depois hia paf
ſando a ſanta Uaçao para outra Frei
CHAGAS, 18 de Agoſto. 231
ra , que tambem eſtava perigoſasmas
a Veneravel Madre Soror Leonor
inſtou que queria ſer logo ungida , e
antes que o tofle a outra doente, por
ſer maior a lua neceſſidade : condeſ
cenderaõ com eſta ſua inſtancia ; e a.
penas ſelhe deo eſte Sacramento , quá.
doentrou logo em agonia , tao depref.
ſa , que com iſto ſe verificou a ſua pre
dicçao , porque a outra Religioſa, pa
ra quem hia a Santa Uncao, nao mar,,
reo .
I2 Correo voz que eſtandoja nos
ultimos parociſmos a Veneravel Ma .
dre Soror Leonor lhe appareceo ode
monio na figura de hum Crucifixo, e
que a Serva de Deos o affugentára
com imperio , e deſprezo , mandan
do - o fahir , e dizendo -lhe que muito
bem o conhecia . Eſtando abraçada
com hũa devotiſſima Imagem do Se.
nhor Crụcificado , e deoſculando
muitas vezes a Chaga Sacratiſlima do
Lado , expirou mui brandamente com
os Auguſtiſſimos Nomes de Jesus , e
Maria , que entao pronunciára mui .
tas vezes , na boca , a 18. de Agoſto
de 168 5. Efteve o leu cadaver ſobre
terra 24. horas , etaõformoſo , flexi
vel, e meneavel como ſe aquillo nao
fofle morte , ſenaõhum brando fomno .
Os olhos ficárab -lhe abertos , e taõ cla.
ros como ſe foſſem duas pedras prea
cioſas finiſſimas ; porque eſtavao res
verberando nelles os reflexos das tog
chas , que allieſtavaā ardendo: Quan:
do foi poſto no féretro , admiravao
le os Padres do pouco , ou nenhum
pezo do Cadaver ; mas aflim havia de
ſucceder com o ſeu corpo , como en
tao declarárað os ſeus Confeflores ,
tambem o onus da culpa nað havia
feito alguma oppreſſao no ſeu grande
eſpirito .
RE
232 RECOPILAC , A M
RECOPILAC, A Mla , menos que nao o pediſſe aſſim a
reſtricçao da caridade: Netta virtude
de 18. de Agoſto
I M Piſa , o virtuoſiſlimo
E Fr. Guilherme . Profeſiou
no Convento daquelia Cidade. Na
eſtatuíria , teve hua relevante habi-
lidade . Aſſistio á Trasladaçao de N.
P. S. Domingos, e sem -le que por
milagre houve a mao hūa lua coſtella,
que elle fez depoſitar debaixo de hum
altar da Santa Magdalena , diante de
quem elle orava de dia , e de noite , ca-
ſtigando -le com largas diciplinas. Pa-
rece que vivia no anno de 1312. =
Razzi . pag. 346.
6 2 Em Colonia o Venerave! Padre
Fr. Thomaz Segrypfo . Era Meſtre
da Sagrada Theologia daquella Unio
verſidade, que elle enſinou 15. annos ,
e deitou eminentes dilcipulos , que
muito grandemente ſe gloriavao de
haver tido tal Meſtre , e lhe adqui-
rirao hũa luzidiſſima reputaçao . Re.
genteou os Ettudos em Vienna , e eſ.
creveo algumas obras com iguallima,
que acerto pelo feu zelo . O que o fa-
zia mais amavel , e attendivel paó ſóc
mente aos maiores Letrados do ſeu
tempo, ſenao aos mais suguftos Prin
cipes Imperiaes , era a mode ſtia que
elle tinha de hum Anjo , e a bonda :
de do ſeu genio . Parece que florecia
no anno de 1630. Soueges.
3. Em Blois o Veneravel Padre
Fr. Diogo Maria . Profeflara no Con-
vento de Renes , e foi hum dos maio.
rés homens , que florecerað no feu
tempo em Theologia Moral . Era muie
to amigo de paz , e inimigo capitalif-
ſimo de todos aquelles que a impe-
diao , ou alteravao. Procurava mor
tificar -ſe em tudo quanto mais podia:
deftemperava com agua o comer que
ſe lhe punha diante ; jamais abria as
janellas do ſeu apoſento , privando .
ſe aflim dos dous alivios , do benefi-
cio da luz , e do maior refrigerio do
ar. Profeſlava hym eltreitiſſimoreco .
de 18 de Agoſto.
lhimento , e jamais o viao fórada cel
era certamente fingular. Ora o ſeu
proximo beneficiava com o ſoccorro,
ora com a palavra , ja com a interceſ
faó , e ja com o conſelho. Acudia
elle muita gente para ſe confeſſar , e
tinha elle hum cuidado muito parti .
cular deſtes ſeus dirigidos ; jamaisal
gum lhe chegou aos pés , que nao vol
Calle muito melhorado. Navirtude da
ſanta pobreza era o Servo de Deosmui
to grande ; via - ſe na fua cella , nos
ſeus habitos , e muito mais no ſeu af
fecto. Quanto à ſua caftidade , pelo
tellimunho de ſeus Confeflores , era
digna de hum Anjo. Era a meſma de
vocao , a meſma piedade , e galt ava
muilo largas horas em húa levantadil
ſima contemplaçao. Amou cordialif.
fimamente as maiores excellencias de
Maria Santiſſima ; rezava o feu Ro
Sario com os mais ardentes affectos,
e nao ceſſava de propagar quanto mais
lhe era poflivel hūa tao importante de
voçao . Finalmente ſendo tal a ſua vi .
da , foi a ſua morte precioſiſſima no
Conſpecto daquelle Senhor , que nun
ca morre , que o levou para ti , no
apno de 1660. Soueges.
4 Em Rhodes , no Moſteiro de S.
Jozé, a Veneravel Madre Soror Mar
garida da Virgem . Ha tradiçaõ de
que tioha hūa inſigne intelligencia das
Eſcrituras. Vivia no Mosteiro To
brano com admiravel perfeiçao de vi
da , ſendo muito dada a Deos ; por
iſſo a eſcolheraõ para ir , como foi ,
fundar o Mofleiro deRhodes ; econ
tinuando os meſmos exercicios de pie
dade , com o que dava mais força ás
ſantas exhortacoens que fempre fazia
ás fuas Religioſas: depois de haver pa
decido dous annos húa terrivel par
lylia, paſlou, correndo o anno do Se
nhor de 1670. , a gozar -ſe do melmo
Summo Bem por eternos feculos.
Soueges.
5 Na Cidade de Leiria , em Por
tugal , no Moſteiro de Santa Aona, a
Vene
 FR , PEDRO DE TONCNES , 19 de Agoſto.
Veneravel Madre Soror Thereza
Caietana de S. Jozé . Em anno emeio ,
que teve etta inligne filha de S. Do
mingos de Religiota protefla , pudé-
ja cauſar muitas laptas invejas a ou .
tras mais adiantadas em annos , e vir
tudes ; mas em fim , ja foi opiniao do
noflo Doutor Angelico , que hum ſan
to póde começar por onde acabaõou-
tros . Foi exemplariſſima no voto , e
virtude da ſanta obediencia , ena ba-
ſe de todas as virtudes , qual he abu •
mildade: ſe eſta nao fora ta o incom-
pativel com a emulaçaõ , pudera ſer
digna competidora dos Servos de
Deos, que melhor ſe diſtinguirao pe-
lo deſprezo , e abatimento proprio .
Paſſou de hum anno a ſua ultima doen-
ça , cujos rigores ſoffreo com tanta in
Senſibilidade como ſe foſſe eſtatua , e
nao creatura humana ; e como ſe fi.
zeſſe pouco em accommodar -ſe como
muito que padecia , ainda o ſeu arti
ficiofo delejo de padecer por Chriſto
ſoube excogitar novos meyos , e ar-
bitrios de fe mortificar. Por todo eſte
tempo jamais faltou ao exercicio da
Oraçao , com tanta exacção , e per
man ncia , como ſe eſtiveſle logran .
do a laude mais florente , e vigorola,
como tudo depôs quem lhe affiftia.
Com tao bôas diſpoſiçoens , ſe pôs
alerta para o ultimo combate , que ella
havia previſto , e em que entrou ar •
mada , e fortalecida dos Sacramentos,
querecebeo com tanta conſolaçaõ pro-
pria , como edificaçaõ das Religioſas.
Morreo finalmente em 18. de Agoſto
de 1743. , e nao fem grandes ſidaes
de predeſtinada , que forao corrobo-
Jados com os honorificos , mas nao
delmerecidos teſtimunhos de ſeus
Confeflores. Memor. Monafterii
Leirienſ.
Tom . VII.
233 ;
19. de Agoſto.
Vida do Veneravel Padre
FR . PEDRO DE TONCNES ,
Extrahida de Diago. L. 1.c.5 . & 6 .
I Ez o Veneravel Padre Fr.
Pedro de Toncnes conce
F
ber hûas raõ bellas eſperanças de de .
fenſor , e propagador da doutrina
Orthodoxa Romana á Ordem , que
foi hum dos primeiros , que no ſeu
tempo paſlárað a eſtudar nos Colle
gios, em que ſe enſinava a lingua dos
Arabes , diligencia , em que teve por
ſocio o noſlo Fr. Raimundo Martinho .
Parece que antes de ſer, como foi
promovido pela Santa Sé Apoftolica
ao cargo de Inquiſidor, o foi do Il
luftriflimo Biſpo de Urgel . Nelle te
ve por companheiro Fr. Guilherme
de Colonic , e antes deſte o noflo San.
to Martyr Fr. Pedro de la Cadirete .
O zelo , e vigilancia , com que elle ſe
pôs em campo aberto pela cauſa da Fé,
vio -ſe em muitas occaſioens , porque
ja os Albigenfes começavao a infettar
naquelle tempo a Catalunha ; mas ef
pecialmente houve tres occaſioens ,
em que elle fez hūa generofiſlima de
monitraçao da fua conſtancia. Era ja
defunto hum Senhor dos principaes
do Reino de Aragao , e preſentes El
Rey D. Jaime , e o Illuſtriſſimo Bif
po 'de Barcelona D. Arnaldo , profe
rio o nollo Veneravel Fr. Pedro len
tença contra elle condenando.o por
heretico , e fulminando contra os leus
oſſos o anathema , que com effeito
le executou.
2 Sentenceou aſſim meſmo.com
ſeu companheiro o Padre Colonicem
2. de Novembro de 1269. no Capitu
lo do noſſo Convento de Barcelona
preſente o Prior do Convento de Nof
ſa Senhora de Monferrate , e outras
muitas peſſoas de authoridade , a Ar
naldo , Viſconde de Caſtel -bom , que
era tambem ja morto , a ſer deſenter
rado , e ſeparado do cemiterio dos
Fieis , pelo meſmo crime de hereſia .
Pela
Gg
234 FR . ITHERIO DE COMPRENHAC , 20 de Agoſto .
Pela meſma culpa 'ſe impôs a meſma
pena a Eſmengauda , filha domelmo
Viſconde , eque , outroſim , nað era
tambem ja viva. Deſtas duas ultimas
deciſoens, que ſe guardao no archie
vo da Cathedral da Cidade de Urgel ,
e de que , aſſim como da primeira ,
fe vê quanto o noſſo Servo de Deos
exercia opportuniſtimamente aquelle
emprego , atcefta havellas viſto o noflo
Fr.Franciſco Diago ,de quem tomamos
eſta memoria . O noſſo fielzelador da
maior pureza , e gloria da Fé, tendo
militado com outro nao fabuloſo , e
mais heroico Alcides , por expurgar
de ſemelhantes monttros a Igreja Mi.
licante , paſſou para a Triunfante a
19. de Agoſto de 1270 .
RECOPIL A C, A M
de 19 de Agoſto
1 M Chartres o Veneravel
E Padre Fr. Guerino . Era
Conego Regrante de S. Agoſtinho ,
na Abbadia de S. Joaõ ,proxima aquel
la Cidade ; e delejando á imitação de
N. P. S. Domingos fazer outra vida
mais eſtreita , paſſou para a Ordem
dos Prégadores , aonde viveo com
hum admiravelexemplo , e ſantidade ;
e condizendo em tudo com a ſua vi
da a ſua morte , mediante eſta paflou
de mortal , e caduco ,'a eterno , e glo- ,
riofo . Vivia no anno de 1260 .
Ex Fabro .
2. Em Azeitað , no Convento de
Noſſa Senhora da Piedade , em Poré
tugal , o Veneravel Padre Fr. Eftevao
Eltevens. Era calado com Maria Lou-
rença , de cujo conſorcio houvera
dous filhos , e duas filhas ; e atterra
dos todos do flagello , com que o An
jo Exterminador caftigára a ingratia
dao humana no anno de 1435. ſe re :
ſolverao a mudar de vida , conſagran-
do o reſto dos feus dias ao ſerviço de
Deos . Ettevao Eftevens, que era pef-
foa mui diftin &a , e opulenta , fun .
dou , com ajuda daRainhaD. Leonor ,
de quem era Confeſſor o noſſo Fr.
Joao de S. Eftevao , o referido Con
vento de Azeitao , aonde entrou com
ſeus filhos , aſſim como ſua mulher ,
e filhas no Moſteiro do Salvador de
Lisboa : huns , e outros viverao com
hum procedimento muito digno da
fua generoſa reſoluçao. Soufa p.2.l.
4.c. 1. & c .
3 Em Vienna de Auſtria o Vene
ravel Padre Fr. Joao de Valdeſpina ,
Doutorou-ſe naquella inſigne Univer
ſidade , aonde ſe fez digno da publi.
ca eſtimaçao que delle ſe fazia , ora ſe
olhalle para a ſua rara ſabedoria , ora
para a lua vida inculpavel . Era for
midavel aos inimigos de noſia Santa
Fé , de cujos dogmas foi o Servo de
Deos inluperavel defenſor . Foi Com
miffario daOrdem , e Prior obſervan
tiſlimo daquelle Convento ; e depois
de viver com a maior perfeiçaõ regu
lar no mundo , foi affociar -ſe com os
verdadeiros , e Bemaventurados filhos
de S. Domingos no Ceo no anno de
1640. = Soueges.
20. de Agoſto.
Vida do Veneravel Padre
FR . I T H ER I O
DE COMPRE.NHAC ,
Extrabidé de Bernardo Guido.
I Irao - ſe bem logradas as
V boas experanças , que eſte
Veneravel Religioſo , nao fó antes
de entrar na Ordem , ſenao depois
Jogo de recebido ao habito , fe con
ceberaõ de que ſeria hum dos ſeus
mais eſpecioſos ornamentos. Veitio
o habico de S. Domingos no Conven
to de S. Pedro de Verona , correndo
o anno do Senhor de 1263. , em que
elle contava treze para quatorze de
idade , ' e deitou-lho o Veneravel Pa
dre Fr. Gerardo de S. Valerico . Foi
o Servo de Deos hum dos que fize .
rao mais diſtindo avanço na carreira
dos ettudos. Teve- os em Pariz em
com
 FR , ITHERIO DE COMPRENHAC , 20 de Agokto .
em companhia de Fr. Bernardo de
Juſic , depois Leitor de Fyſica em
Condom , legundo Leitor de Tneo
Jogia em Toloſa, e ultimamente me
sitiſſimo Geral da Ordem . Com eſte
meſmo Religioſo foi eſtudante de
Fyſica em Burdeos, ſendo Meſtre da-
quella Faculdade Fr. Pedro de Mai-
Jas , depois Illuſtriſſimo Biſpo de Baio-
na . Enſinou depois o noflo bom Re-
ligioſo a meſma ciencia com a mais
bella ſatisfaçao em muitos Conventos
da ſua Provincia. Do meſmo modo
ſe commetteraõ á ſua capacidade as
Leituras de Briva , Burdeos, Tolo-
1a , e Cahors. Foi juntamente com os
Veneraveis Padres Fr. Bernardo de
Turnes , e Fr. Arnaldo de Morlas
conſtituido Prégador Geral , e mere .
cia juftiſſimamente eſta condecoraçao
naquelles bons tempos , em que ella
era muitiſſimo mais rara , por fer hum
tao excellente Ministro Evangelico ,
que bem te lhe podia applicaraquillo
do Profeta: Calle- ſe todo o individuo ;
porque em elle dizendo, parece que
jó deixava lugar para a admiraçao , e
nenhum para a novidade, ou maioria.
Servio , com igual prudencia , que rem
ligiaõ , alguns Priorados , e foi elle o
primeiro da Ordem que morreo an-
tes de expirar o tempo do ſeu
ſeu gover :
no , pelo que diz o poſſo Guido , que
o levou Deos , como primicias de to-
dos os outros , a quem aconteceo ſe .
melhante evento . Foi pois o Servo
de Deos Prior de Perigêo , Burdeos ,
Toloſa , e quatro vezes de Limoges.
Finalmente no fim do feculo decimo-
terceiro foi eleito Definidor da ſua
Provincia no Capitulo Provincial , en-
tao celebrado em Marſelha.
2 Mas o que
que fez eſte homem do
Ceo mais recommendavel foi a iono .
cencia da ſua vida jamais maculada
depois da ſua bautiſmal abluçao . Era
humildiſſimo o Servo de Deos : recu
ſou o primeiro Priorado , que lhe qui
zerao commetter , que foi o de Bri
va ; repetio outras vezes ſemelhantes
rejeiçoens , e a terceira vez que go ,
Tom . YII,
235
vernou a Caſa de Limoges , foi neceſ
fario condeſcender com asſuas inſtā .
cias apeando - o daquelle poſto. Da ul .
tima foi neceflario apertar com elle
para aceitar com o ultimo rigor da
obediencia . Entre tantas virtudes , a
que nelle reſplandecia com mais ex
ceſſo era hum cordialiſſimo amor de
Maria Santiſſima. As excellencias de
fta Senhora eraõ de ordinario o argu
mento dos ſeus Sermoens , aſſim co
mo eftes ſeus Sermoens hum 'retrato
expreffiſſimo do ſeu coraçao. Pre
miou a Máy de Deos tanto affecto com
hũa circunſtancia notavel. Prégava
della na povoaçao chamada de S. Ju
niano da Dieceſe de Limoges ,, e foi
o themado ſeu diſcurſo aquillo do
Ecclefiaftico : Tenho buſcado o meu 1
deſcanſo em todas as couſas. Tað ve
hemente ſe deixou arrebatar do eſpi
rito de amor , e devoçaö á Rainha
de todas as creaturas, que a ultima
palavra,que proferio, foi aquellacom
que rematou o ſeu Sermaõ. Nao ti
nhamos ainda Caſa naquella terra , e
foi levado o Servo de Deos para a do
Deao daquella Cathedral , e dalli a
tres dias expirou em 20. de Agoſto no
anno de 1304. com os bons auſpicios,
tantas virtudes , pare
que promettiaõ
ce que eſteve eſperando pela occaſiao
para morrer no dia do grande Dou
tor Mariano , Collaço de Chriſto, o
mellifluo , e grande Padre S. Berpar
do , com quem o Servo de Deos tan
to ſe havia parecido em ſer devoto
da Immaculada Princeza da Gloria.A.
brirao - ſe -lhe na ſepultura quatro ver
ſos Leoninos, que reduzidos a vulz
gar foao deſte modo :
Com lagrimas copioſas acabava
Deprégar excellēcias de MARIA
Quando a voz , quando o alento , lbes
faltava.
Tudo á fua ardente devoçaõ cedia :
Termo, quãdo a ſua vida terminava,
Punha a meſma Arca da Sabedoria ;
E emmudecendo foi mais eloquente.
A tanto rapto ſeelevou ſua mente !
Gg ii . 20 de
236 FR . DOMINGOS DA ANHAIA , 20 de Agoſto.
20. de Agoſto.
Vida do Veneravel Padre
FR . DOMINGOS
D Ε Α Ν Η ΑΙΑ ,
Extrahida de Lopes 4. P. L. 1. 6.92 .
I Ra o Veneravel Padre Fr.
E Domingos de Anhaia pro-
feſſo do Convento de Salamanca ; e
eſcrever a ſua vida , aindaque em taõ
ſuccinta memoria , be o melmo que
fazer a Hiftoria das Virtudes . Aquel.
las em que o Servo de Deos floreceo
foraõ raó eminentes , que foi eleito
Prior daquella grande Caſa. Nao po-
dia ella ter melhor fortuna , como ſer
mandada de hum Prelado tao Reli .
gioſo , e tao ſanto. Era enrao Provin-
cial de Caſtella Fr. Affonſo de Onti-
véros ; e deſejoſo o bom Prior de in-
tro duzir no ſeu Convēto a mais eſtrei-
ta reforma , ſe valeo da authoridade
daquelle ſuperior,que,comotao aman-
te que era da maior perfeiçao , em :
penhou todos os ſeus esforços porque
le lograſſe hũa empreza , que era tan
to do Ceo . O fervor com que o Vee
neravel Padre Fr. Domingos proce .
dia , para affervorar ainda aos mais ze .
lozos da obſervancia , nað sem expli.
caçao . Pondo os olhos no ſeu exem-
plo , ninguem cuidava em mais que
em cumprir á riſca as ſuas obrigaçoēs.
Confeffar , prégar , viſitar doentes ,
encarcerados, e affligidosera o maior
cuidado deſtes taõ benemeritos filhos
de S. Domingos ; e em tudo iſto era
o ſeu Prelado o primeiro , ou hum
dos primeiros : Ainda quealli era mui
ordinario orecolhimento , e a ſolidaõ,
com tudo nao ſe violava a lei da cari
dade com os proximos, e lahia prom-
ptamente ora a Miſſionar, ora aqual
quer outro piedoſo miniſterio .
2 O ſilencio era indiſpenſavelmē.
te perpetuo ; 1ó nos dias mais folem .
nemente feſtivos , ſe permittia algu
ma moderada recreaçao . A pobreza
eſtava no ſeu mais rigoroſo 'ponto ;
defituidas as cellas de todo o orna-
to , e nada mais de cama que hum
1
groſſeiro enxergaõ. A abſtinencia da
carne era tao reſtricta ', como ſe to
dos os dias foflem feltas feiras , eitto
nað fó dentro , ſenao fóra da caſa ,
ainda em lugares pobriffimos , e fal.
tos de viveres; pelo que eraõ ja tao
conhecidos, ao modo dos noilos Pa
dres primitivos , que nao chegavao a
porta , aonde le lhes perguntafie o que
queriao comer . Que ventaſſe , que
choveſſe , que gealſe , que o tempo
eftiveſſe de calma, ou de tempeftade ,
ninguem caminhava ſenaõ a pé . Se a
jornada excedia de quatro legoas ,
tomavao abençaõ depois de Matioas,
por nao inquietar o Prelado pela ma .
nhaá ; e no meſmo dia em que volta
vaó a caſa, por mui canſados que vies
lem , jamais faltavao ás Marinas da
meia noite . O tempo que commum
1
mente tinhaó de Oraçao , era meia
hora ; iſto porém naõ obſtante , jamais
fahia dalli algum menos que dadas as
tres , excepto ſe havia particular , e
urgente neceſſidade, que pedifle o
cootrario . Finalmente florecia taó ob
ſervance aquella grande Caſa , que os
ſuperiores ſe nao atreviaõ amandar pa
ra ella , ſenao os que aſſim o queriao
muito por ſua vontade. O goito Ve
neravel Padre Fr. Domingos, quetao
fantamente a edificava , e exemplifi
cava , depois de Deos lhe dar a
conſolaçaõ de ver tao glorioſos pro
greſſos , teve a ineffavel de paſar a
lograrſe para lempre da viſta do mel
m Senhor , que he o que unicamen:
te faz a Bemaventurança dos Bem
aventurados , as 20. de Agoſto doan
no de 1572 .
RECOPIL A C, A M
de, 20. de Agoſto.
I A Provincia de Limoges
N o Veneravel Padre Fr.
Bernardo Andre de Sarlat . Eſte ulti
mo appellido era o da ſua patria , que
elle honrou naõlómente neſta circun
lancia , ſepao vivendo , e morren .
do
 FR , GODOFiREDO ro
d e
a
lla m
o
m rd
ne o u ve
e c h , ed .
gniſſimo filho de S. Domingos. Go-
verdou os Convenios de S. Gauden .
cio , devendo - ſe a ſua boa diligencia
o adiantamento , e magellade da fum-
ptuofiflima Igreja daquella Caſa; e foi
tambem Prior duas vezes de de San-
to Emelion na Dieceſe da Burdeos.
Sendo-lhe preciſo ir ao ſeu natural ,
allı o achou a morte diſpoſto para en:
trar , como piamente cremos que en-
trou , no Ceo no anno do Senhor de
1305. Bern, Guid.
2 Em Auxerra o Veneravel Pa .
dre Fr. Germano , cognominado o
Admirando . Era naſcido em Iranci ,
povoaçao diſtante tres legoas daquel.
la Cidade , e nað ſómente honrou a
tua patria com ſuas virtudes , ſenao
toda a Ordem , de que certamente foi
hum belliflimo ornamento . Foi Me .
ftre , e depois Prior do ſeu Conven-
to , em que elle estabeleceo , durante
o ſeu governo , a mais florecente ob-
ſervancia , de que ſempre foi aman
tiſſimo ; morrendo finalmente como
hum tanto no apno de 1517. paſiou a
louvar a Deos no Ceo por toda a eter-
nidade . = Soueges.
3 Em Sevilha , oo Moſteiro de
Santa Maria das Graças , a Veneravel
Madre Soror Maria de S. Bernardo.
Era das Canarias , e Senhora igual .
mente dotada da natureza, que da for-
tuna. Ficando viuva de mui poucos
annos com tres filhos , emprendeo con-
trahir outras pupcias com o Eſpoſo
que he immortal , para o que com-
met teo hűa navegaçao de ſeiscentas
legoas acompanhada de hum dos ſeus
pequeninos . Eite , vendo -a entrar pela
porta do Mosteiro , perguntou -lhe a
quem ella o deixaya encommendado ?
A Deos noilo Senhor,( reſpondeo ella )
que he voſo Pay ,e a MARIA Santiſ
fima , que he vola Māy: eftes ſao os
melhores pays que podeis ter ; fede
lhes mui fiél, é obediente, que elles
terao todo o cuidado de vós. Difle , e
deo coftas com hum ſem blante ale
grillimo. Acçao be efta , que nos faz
SLUSSEL , 21 de Agoſto. 237
i
quem eſcreve o maior dos Doutores
S. Jeronymo, que vendo teu filho mor
to , e eitendido na arêa , pondo os
olhos no Ceo fe fez á véla. A provei.
tou - ſe o menino da tutéla , que lua vir.
tuoſa May lhe conſignava , e veſtindo
tambem o habito de S.Domingos , foi
hūa dasmais brilhantesExtrellas da ſua
ſagrada Ordem . A noſſa Veneravel
Madre viveo paquella reformadiſſima
Caſa com virtudes dignas de ſe eſcre .
verem com pennas tiradas das azas do
ſantos Anjos. Era hum extremo de
humildade : e o que lhe reſtou de vie
da , que forað largos annos , porque
a morte a levou de cem , foi humado
1
miravel exercicio de rigoroſas pepi
tencias , parecendo que ao modo que
os Mythologos eſcrevem da luta de
Anteo com Hercules, que quanto mais
abacja o leu corpo , entao mais o re
forçava. Avançava-ſeao trabalho mais
penoſo das officinas, e andava ao uſo
da Caſa ſempre deſcalça. A abſtinen
cią era tao rigoroſa , como ſempre
continua a pao , e agua. Tomava di.
ciplinas aſperrimas , e jamais ſoube
daquellas portas a dentro o que era
cama ; porque as noites ſe lhe hiaõ na
Oraçao , diante do Santiſſimo Sacra .
mento. Na devoçao da Virgem Se
nhora noſſa nao ſe contentava com me
nos imicaçao que a de S. Bernardo :
por etta circunſtancia , fazemos men
çaõ della no ſeu dia , como quem acon .
(idera comparticipe da ſua palma de
gloria . Parece que viveo tudo , o que
durou o decimo ſexto feculo : Los
pes. 4. p . b. 1.6. 47 .
21. de Agoſto
Memoria do Veneravel Padre
FR . GODOFREDO ..
SLUSSEL ,
Extrabida do Padre Nider.pag.413.
I Veneravel Padre Fr. Goo
dofredo Slufel foi Reli
gioſo
238 FR . DIOGO ALAVARIO ,
gioſo inſigne. Delle eſcreve o noflo
Fr. Joao Nider hum fucceflo prodi-
gioio acontecido ao melmo tempo em
que o meſmo Author foi mandado
eſtudar Theologia á Univerſidade de
Colonia , aonde o Servo de Deos flo-
receo , e acabou ſantamente no poſſo
Convento . O caſo pallou como ago-
ra diremos . Havia alli hũa moça de
quinze para deſaſſeis annos muito bem
cducada , e temente a Deos : vivia el-
la fóra da caſa de ſeus pays na de hūa
ſua prima . Succedeo -lhehum dia que
brar por deſaſtre hûa vazilha de bar .
so , e de valor bem tenue : adona da
caſa , que era de eſpiritos muiacres ,
a amitinou muito de palavra , de mo-
do que, a fez cahir em húa grande
triſteza. Chegadas as horas de comer,
ſendo a pobre culpada chamada para
a meſa , eſcuſou - ſe. Has de comer ;
diſſe a outra : e ella , como depois aſ
ſim o confeflou , diſſe interiormente
no ſeu coraçao : Se hei de comer ſeja
em nome do demonio : e obedecendo
á inſtancia que le lhe fazia , ou eſque-
cendo - ſe de rezar o que primeiro co-
ſtumava, ou que pela grande raiva com
que eſtava , nao quizeſle; ao primeiro
bocado , ſeatio entrar - lhe na boca hūa
moſca, e por mais que forcejou por
deitalla fóra , nao pôde : ſem ſaber o
que fazia engolio -a , e nella o inimi
go do genero humano . Vendo -a ve
xada , levarao nalogo para caſa de ſeus
pays , que a receberaõ com fummo ſen
'
aqui foi mais admiravel , foi o nao
perder a pobre energumena o uſo da
razao , que ſempre conſervou incon
cuſiamente . Os máos tratos , que lhe
dava o maldito , eraõ extraordinarios .
Foi apreſentada a muitos Exorciſtas;
mas aquelle máo Anjo , que nao ce
deo a algum delles , nao pode reſiſtir
á virtude , dada por Deos neſta oc-
caſiao ao noflo Veneravel Fr. Go-
dofredo .
2 Compadecido eſte da deſcon-
ſolaçao dos pays da triſte endemoni-
nhada , e dos tyrannos rigores , que
21. de Agoſto .
eſta padecia , entrou a exorcizalla ;
mas depois que a meſma,poſlella eon .
veio no que o Servo de Deos lhe pro .
pôs , e foique ſe Sua Divina Magelta
de foſſe ſervido livralla daquelle hor .
roroſiſſimo trabalho por ſua interven
çao , ella em reconhecimento de tan
io beneficio mao tomaria o eſtado con
jugal , conſagrando com toda a fideli.
dade ao Eſpoſo das Virgensa ſuavir.
ginal pureza. Ouvio a obſeſſa a Miſla
do Veneravel Padre Godofredo com
muita quietaçao , porque entretanto
nao a affligio o verdugo iofernal; mas
torpando logo ao ſeu coſtumado , foi
ultimamente conſtrangido a deſpejar
para ſempre. A moça ficou quebran
tadiſſima de taõpeflima hoſpedagem ;
e como tinha aprendido tanto a lua
cuſta , foi dalli em diante ſummamen
te acautelada nos ſeus penſamentos , e
palavras , e em vencer as luas pai
xoens : no que mais ſe eſmerou foi
em ſer fiel Eſpoſa de Chriſto , viven
do ſempre honeftiſlima, e puriſſima
mente . O Author de tanta perfeiçao ,
abaixo de Deos , o noſlo Venerável
Padre Fr. Godofredo Sluſſel , he mui
natural que por tanta caridade foſſe
premiado com fazer numero no Ceo
entre os amigos do meſmo Senhor aos
21. de Agoſto , em que morreo fanta
mente no apno de 1410,
21. de Agoſto.
Vida do Veneravel Padre
Extrahida do Padre Fr. Joső Ni.
der . k. 3. C. 10. pag . 244 .
I Oi o Veneravel Padre Fr.
F DiogoClavario intimo ami
go do noſlo doutiſſimo , e piiſſimo Fr.
Joao Nider , que refere hva conver
lao maravilhoſa , para que o Servo de
Deos contribuio maravilhoſamente
por ſeu proprio movimento , ao mer
mo tempo em que eſte Author regen
tava em Vienna de Auſtria. Havia na
Hungria hum Sacerdote Bacharelem
Theo :
 FR . DIOGO CLAVARIO ,
Theologia , hereſiarca , e de tal mo-
do cervicolo , e obllinado , que pare-
cia impoſſivel fer reduzido . Fallava
com deſprezo nas leitas dos Judeos ,
Arrianos, Agarenos , Viclefistas , e em
todas as outras, que andavao em uſo
no ſeu tempo ; e poſto que algumas
vezes prégava , celebrava , admini-
Atrava os Sacramentos, e affectava hűa
vida penicente , nao cria neſtas cou-
Tas, nem nas ceremonias da ſanta Igre-
ja de Roma . Nao admittia o Teita-
mento velho ; o novo era para elle
quali o melmo . Tinha a doutrina dos
Padres por hum deſatino : Eſtava fi-
palmente em hum tal deſamparo de
Religiao , quenao admittia myfterio
algum teu , que nao fofle naturalmen-
te demonſtravel : por exemplo , que
ha hum primeira principio , e cauſa
de todas as ſubalierpas.
2 Vendo ette mileravelem certa
occaſiao hum Sacerdote Catholico ,
que se eſtava revetlindo para dizer
Miffa , chegou -ſe a elle , e perguntou-
lhe com lingua blasfema, e com ter-
mos , que nem ainda caberiaõ naboca
de hum demonio , ſe eſtava aquelle
tempo com intençaõ de receber o Fi.
lho da Virgem ? Picou -ſe o bom Ec-
clefiaftico delta infernal inſolencia , e
apenas acabou de dizer Miffa , edarfos Medicos a viſitallo , começou elle
graças , quando foy o'mais deprešli a gritar deſcompallada, e furiofamen
que pode em buſca daquelle impio :
perguntou - lhe ſe era elle o que havia
fallado tao deſcaradamente ? Reſpon-
deo , que fim , e que alli eſtava para
ſuſtentar o que tinha dito ; e ſoltando-
ſe em novas furias, rompeo em mi-
lhares de blasfemias execrandas . Sa •
hio o outro dalli logo a delatallo ao
Biſpo, pelo que foy logo prezo aquel-
le deſventurado. " Era ilto a tempo ,
em que alli chegava o Cardeal de Pla-
cencia por Legado , e com elle tres
eruditiffimos Doutores em Theolo-
gia , e Direito Canonico , fazendo se
ainda mais benemeritos por huma vi
da exemplar , e irreprehenſivel. Com
eſtes concorrerao juntamte em com
panhia do meſmo Nuncio hum Marti-
21. de Agoſto. 232
nbo de Heſpanha , e o noſſo V. Fra
Diogo Clavario , ambos oculatiſſimos
profeſſores da Sagrada Theologia.Vi
ficarað todos ao pobre priſioneiro ;
mas acharao -no tao empedernido ,
que quaſi eſtiverao para deſconfiar da
empreza . Sobre tudotemia -ſe muito
aquelle homem do noſſo Servo de
Deos , que ſeguia eſta empreza muito
por devoçaõ propria , por ſerem as ſuas
razoensas mais fortes, e as mais ſubtiz ,
eja elle ſe receava grandemente de
cabir em alguma contradiçaõ ; mas
como era daquelles que nao faõ tað
igoorantes por cahirem em hum erro,
quanto por fuftentallo , depois de a
charem que hiao enganados , eſtava
de cada vez mais obſtinado o ſeu co
raçao .
3 Durou o combate largos dias ,
fem aquelle perjuro querer reconhe
cer a ſua miſeria : neſtes termos fug
gerirao eſtes caritativos miniſtros do
Senhor a quem tinha juriſdiçaõ , que
jelhe defle outro carcere mais eſcu
ro , e apertado , e nelle o prendeflem
fortemente com cordas , e com fer .
ros aos pés , por ver ſe aggravando
The a pena , o podiaõ trazer melhor ao
caminho da ſalvaçao. Allim ſe execu
tou ; e indo ao outro dia eſtes piedo .
te , dizendo eſtar prompto para ſer
queimado , que ſe nao canſaſſem com
elle , porque tudo era perder tempo.
Affearaõ elles a ſua contumacia, eco
mo virao a ſua indiſpoſiçaõ , lhe diſ
ſeraõ ao deſpedir- ſe , queſe naõ queria
experimentar mayor rigor , conſide
raile bem quam pouco ſeguros fao
os juizos humanos , quanto , como ja
diſſe o Principe da Medicina , a arte
he prolongada , a vida breve , e incer
tootempo . Reforçaraõ tudo iſto com
alguns exemplos, e reflexoens , e par
tirao dalli .
4 Tornando no outro dia , acha
raõ queja a luz da Divina Graça havia
rajado no eſpirito daquelle homem :
tanto que os vio , os recebeo com eſte
Sali
240 SOROR MARGARIDA GRILHON ,
Salvéte . Convenço-me, Senhores , de
que todos os esforços, que tendes feito ,
nað tirao a outro alvo, mais que ao
mayor bem da minha ſalvaçao; que
mais quereis livrar a minha almadas
garras do demonio , do que o meu cor
po deſta dura prizao ; e que nað era
alguma oſtentoſa vaidade de vos que-
rer moſtrar ſcientes ,e eruditos, a que
Vos moveo a ter comigo tað renhidos
debates. Ninguem vos póde negar ,
Jem injuſtiça , que fois eminentijimas
mente jábios ; mas ifto be o menos , o
mais be ter - vos Leos ejcolhido para
The ganhares hum tað grandepecca-
dor como eu , que tao longe eſtava da
ſua amizade, etað perto dos effeitos
da ſua vingança . Fallo com toda a
finceridade ; nada mais quero que o
que quizer des : ſó faltarer om vos
obedecer tudo o que tardareis emman.
dar -me. Qual fofle a alegria , que con
ceberao aquelles ſervos do Senhor ,
ella por ſi ſe eſtá inculcando ſem ne
ceſſidade de exageraçoens . Mandarao
primeiramente aquelle ditoſo conver-
tido que abjurafle , e deteftaffe osſeus
erros ; elle o fez aſſim publicamente:
e parecendo - lhe que ficando no mun .
do , ainda ſe arriſcava a padecer qual
quer outra ruina eſpiritual ,maisfacil-
mente ,entrou em hum Convento da
Ordem de S. Paulo , primeiro Her
mitao , florecente na Hungria com
maravilhoſos progreſlos : fez o ſeu No
viciado com grande fervor , e conti
nuou em dar grandes moſtras de ha-
ver de perſiſtir conſtantemente na
vida Religioſa, que abraçára. O nof.
fo V. P.Fr. Digo Clavario, que coo
perou tao altamente para hűa acçao
de tanto agrado deDeos, he mui per
ſuaſivel que ſe eſtá logrando do pre
mio , á ſua vifta , para onde paſſou a
21. de Agoſto de 1433 .
22. de Agoſto.
RECOPILAC , A M.
de 21. de Agoſto.
1 M Toloſa o.V.P. Fr. Joao
E de Merula.Conta-ſe por vi .
geſimo na ſerie dos que governárað
aquella Provincia ; mas pelas ſuas vir
tudes, o faziao primeiro. A ſua mo
deftia era credora de todo o reſpeito .
Foy inflexivel em fuftentar o mayor
vigor da obſervancia ; e como a pra
ticava com todo o rigor , ajudava gran
den ente o ſeu exemplo a ſua vigilan
cia . Húa morte precioſa o arrebatou
do n undo para o Ceo . Parece que vi
via no anno de 1400. = Ex ſuppl.Ber.
Guid ,
2 Em Polonia o V.P. Fr. Pedro .
Foy intrepido , e importantiſſimo In
quiſidor daquelle Reyno . Eltava em
tania e Itima, que foy eſcolhido para
ſer hum dos Padres do Concilio de
Baſilea . Alli contrahio amizade com
o noſſo V. Fr. Joao Nider , a quem o
Servo de Deos referio a falſa predic .
çao de hūa mulher infestada dos er.
ros dos Beguinos , porque havendo
prenunciado o dia da ſua morte ,veyo
a falhar a ſua profecia. Vivia eſte bom
Religioſo no ango de 1438. = Nider .
1.9.6. 10.p.244.
22. de Agoſto.
Vida da Serva de Deos
SOROR MARGARIDA
GRILH ON ,
Da Terceira Ordem do noſo Padre
S. Domingos ,
Extrabida de Soueges.
I Ra ainda muito menina a
E muito virtuofa Soror Mar.
garida Grilhon , quando ja lhe cha
mavao por antonomoſia a Religioſa.
Tanta era a devoçaā , tanca a piedade
que ja reſplandecia nellal Logo co
meçou a dar indicios de que ſeria fi
lha de S. Domingos ; porque de mui
pequena começou a recuſar a roupa
de
 SOROR MARGARIDA
de linho . Era de dez annos quando ſe
começou a maltratar com outros ex
quiſitos generos de mortificaçoens ; é
de dia em dia lhes accumulava novos
rigores. Ainda nao tinha noticia dos
inſtrumentos de auſteridade , quando
applicava grande quantidade de
eſpinhos á cintura ; ſobrepondo ca
dêas de ferro , apertava todo o corpo
com cingidouros feitos de cabellos
afperrimos ; e cingia os braços com
prizoens deferro pungentiffimas. To-
mava diciplinas mui formidaveis.Je-
juando coniinuamente , era pouquiſ.
li mo o que comia , e ſempre buſcava
o peyor , de modo, queo paõ era de or-
dinario , ou cheio de bolor , ou ſecco,
e cozido de dous mezes . Cuida-ſe, e
nað ſem fundamento , que eſta ſua
grande abftinencia foy a cauſa da ſua
morte ; porque chegando de Chartres
a lliers fua patria ja muito tarde , e
ſem haver comido , foy logo buſcar
a Igreja , e aſſiſtindo alli ás Velperas ;
que ſe cantáraô , começou , comoti:
nha de coſtume, gaſtando as noites ,
e dias quer pelo inverno , quer pelo
eftio , eſpecialmente nas veſperas das
das Festas mais folemnes, a fazer ra
malheres para os altares, de cujo ali .
nho foy fempre mui cuidadoza , affim
ſe deſcuidou , como ſempre, de co-
mer alguma couſa , e logo entrou a
arder em febre, demodo , que inflam-
mando -ſe.lhe horrivelmente a gargan-
ta lhe impedio poder tomar algum ali-
mento .
2 Nao era hum dos menores a que
ella ſe ſacrificava, por fer afſeadiſlima,
a diligencia que punha em catar os
pobres de Chriſto , e alimpar -lhes os
reſtidos dos bichinhos que os molefta- ' mungar da idade de dez annos :
vao . Do meſmo lhes curava as ſuas
feridas, ainda que ellas foſlem as mais
ingratas á viſta, ou ao olfato . A ſua
cama, ou era a terra fria , ou hūa dura
taboa : o ſeu traveſſeiro hum tronco .
Com eſtas aſpere zas ſe enſaiou parao
muito que teve que padecer nos acha-
ques que lhe ſobrevieraõ ; porque ſen-
do neceſario que ſe lhe fizeſlem algúas
Tom . VII,
GRILHÖN , 22 de Agoſto 241
doloroſiſſimas operaçoons' Cirurgi
cas , ella era a meſma que animava os
operantes a fazerem oleu officio , to
lerando violentiſſimas inciſoens com
cao admiravel paciencia, e alegria,que
acudia a ver iſto por admiraçao hum
grande concurſo . A ſua modeſtia era
celeſtial : o meſmo a ſua converſaçao,
que era mui placida , e goſtoſa , e toda
de Deos : oleu recolhimento , e amor
á vida ſolitaria pudera competir com
aquelle , porque ſe fizeraõtao illuftres
todos aquelles Servos , e Servas de
Deos , que viverao nos ermos . Foy
tao humilde , que algumas vezes , em
que o ſeu grande merecimento fez
força a algumas peſſoas para lhedatem
algum elogio, ou ſe fazia de pejo tao
encarnada comohum rubim , ou dei
xava immediatamente o poſto .
3 Amou vehentiſſimamente a pu :
reza , e candura virginal. Diz - ſe que
era ainda muito menina , quando a
havia conſagrado a Deos . Fugia da
companhia dos homens , como le fof
ſem féras, ſó ſe havia hūa grande ne
ceſſidade a veriaõ aonde elles eſtiveſ
fem . Era de muita caridade : muitas
vezes até chegou a dar os veſtidos do
ſeu uſo aos pobres : tratando acima
dasſuas tao admiraveis mortificaçoens,
vimos ja outros beneficios que a Serva
de Deos lhes fazia. Gottava muito de
enſinar a ler , a quem o delejava ; etia
nha por hũa grande recreaçao enſi
nar os Myſterios auguſtiſſimos de noſ
ſa ſanta Fé aos pequeninos , e ignoran .
tes . Em hūa palavra : era tao carita
tiva , que le podia chamar a māy dos
afflictos, e deſconſolados, Era nota
vel a ſua devoçaõ : principiou a com
ja.
mais a veriaõ nem venialmente diftra
hida , ou mover a cabeça de hūa para
outra parte ua Igreja. Nao le lhe ou .
viria alli dizer hūa palavra, ſó ſe fof
ſe preciſiſſima, e ainda affim o mais
laconicamente que era poſlivel ; e
quem quizeſſe obrigalla a mais , ex
punha-ſe a levar hũa feveriſſima fra
ierna . A fua oraçao era dilatadillima:
Hh de
 242 RECOPILAC, A M
de ordinario gaſtava nella poites in-
teiras . Foy amantiſſima da Virgem
Senhora : como foy de tanta caftida-
de , como ja ponderamos , procurava
por ſeu exemplar eſta Máy caſtiſſima,
ſendo a puriſſima integridade detta
Senhora hum dos maiores motivosdo
ſeu amor , e devoçao , que a meſma
Rainha dos Anjos lhe pagou impetran-
do -lhe hũa morte feliciflima no dia
oitavo da ſua Aſtumpçaõ triunfāte em
22. de Agoſto de 1680. A opiniað dá
ſua Santidade eſtava tao eſtendida,
que morrendo pela occaſiao que diſ-
ſemos em Iliers, e havendo de ſer, co .
mo foy, tranfportada a Chartres , aon-
de foy , ſepulcada no noſſo Coovento,
por ſer a Serva de Deos da noſa Tere
ceira Ordem , ſe fez mui cuftola eſta
trasladaçaõ pelo numeroſiffimos con-
curſo que acudio a venerar o ſeu
corpo .
RECOPILAC, AM
de 22. de Agoſto
IM Bitonte o Illuſtriſſimo
Biſpo deſta Cidade , o V.
Dom Fr. Pancracio . Eſte inſigne Pre-
lado foy hum dos primeiros que te-
ve a Ordem ; mas elle mais a hoprou
com as ſuasvirtudes, do que com eſta
honorabiliffima diſtinçao . Era actual.
mente Prior do Convento de Adha-
nia , quando foy propoſto para aquel-
la Cadeira pelo Arcebiſpo deBari , o
que, por ſer a eleiçaõ muito a ſeu go-
fto , foy logo confirmado pela Santi•
dade de Innocencio IV . do anno de
1253. Treze apnos exerceo eſta dig-
nidade o Servo de Deos , com todas
aquellas virtudes , com que os mais
Santos Biſpos fizeraõ mais eſplendi
da a coroa da ſua gloria . Aquella que
Sua Divina Mageftade preparou a feu
Servo , lha concedeo no anno de 1266 .
O Padre Soueges tem ſua duvida , ſe
fierá o meſmo Pancracio , de quem fal
lao Pio , e Vallo , poſto.quenenhum
d.elles façı mençaõ de que foy
. Biſpo.
de 22 de Agoſto.
= Fontan.in Theatr. pag .143.
Em Carcaſſopa o V.P. Fr.Gui .
Therme de Graſſanis. Em conſidera
çao da ſua fanta vida , o fizerao Sub-
Prior do Convento que allitem a Or
dem . Era de grande devoçao : para
edificar o ſeu proximo, naó era necef
fario que o Servo de Deos o exhortaf
fe, baſtava olharem -lhe para a cara ,que
ja na terra parecia outra couſa mais, ý
humana . O exemplo que dava a todos
a todas as luzes foy admiravel . Eſtava
naquelle Convento á morte o noflo V.
P. Fr. Romeo de Catalunha ; e fazen
do -ſe o final coſtumado , aconteceo
nao ſer ouvido deFr. Guilherme , que
havia adormecido ; ouvio porêm ou
tro diftincto , e particular , que lhe
fignificava o meſmo ; levantou -ſe , e
correndo a toda a preſſa para a enfer
maria, ainda chegou a tempo de aſfi
ſtir áquelle ditofo tranfito . Vinte an
nos depois , foy tefimunha da intei
reza , e incorrupçao do corpo domef
mo V. P. Roméo , de cuja gloria o crê
participe a noſſa piedade , depois de
acabar em ſanta velhice no anno de
1290. Ex . .
į Em Salamanca , no Convento
do Proto-Martyr Santo Eſtevao o V.
P. Fr. Martinho de S. Pedro . Flore
ceo eſte Servo de Deos com búa pro
digioſiſſima innocencia : fazia -ſe mui
am.avel pela docilidade do ſeu genio:
exercitava -ſe em duriffimas peniten .
cias . Cingia - ſe com hûa cadea de fer +
ro mui aſpera , e que muito ſe lhe en
cerrava pela carne dentro . Expirou
finalmente com tað boa opiniao , que
delle fazem glorioza memoria as Adas
de hum Capitulo Romano. = 1612 .
= A &t. Capitul. Rom.
23.de
 FR : SANCTES PAGNINO , 23
23. de Agoſto.
Vida do eruditiſſimo , c piiſſi-
mo Padre
SANCTES PAGNINO ,
FR .
Extrahida de Rotéro , e Sixto Se-
nenſe.
I Grande Servo de Deos
O Fr. Sanètes Pagnino foi
natural da Cidade de Luca. Criou.
ſe para a Ordem com os Religiofos
do Veperavel Padre Fr. Jeronymo Sa-
vonarola no Convento de Fieſoli , e
alli ſe enriqueceo de todas aquellas
virtudes , com que , andando o tem-
po , veyo depois a aſſombrar o mun-
do, ſendo hum dos maiores homens
que no ſeu tempo acreditou o mundo
Chriſtað. Foi pois o Servo de Deos o
Sol das ſciencias na ſua idade , que
elle fazia verdadeiramente de ouro.
Soube quatro linguas perfeitiſſimamē-
te , a Hebraica , a Caldaica , a Gre-
ga , e a Latina. Entendiaõ os hereges
Lutheranos, que os Doutores Catho-
licos , ſeus coetaneos , haviao aban :
donado inteiramente eſte genero de
eſtudos , e faziao por iſſo muita bu .
lha, gloriando -ſe muito de nao ſeguir
couſa , que nao tiveſſe apoio , e con
formidade na Eſcritura , como ſe nao
fofle , como tanto he , neceſſario en
tendella com aquella moderaçao , e
proporçao , queſeusmais doutiſſimos,
e faptifſimos Interpretes limitao ; e quelle Principe da Epopea da Grecia .
como ſe cada hum muito a ſeu talvo
pudeſſe explicalla como muito quizeſ.
ſe : quanto mais que a diffoluçao dos
ſeus depravadiſſimos coſtumes , con
trarios a todo o genero de virtudes ,
deſtru ia inteiramente a ſua prefum-
pçao , e a ſua jactancia. Mas Deos noſ-
ſo Senhor fulminou a ſua ſoberba dan .
do á lua Igreja Varoens infignes, que
a defendeliem de tað pérfidoscontra-
rios com as luzes da doutrina , e com
a lantidade dos procedimentos .
2 Hum deftes fervos fieis foi o
noſlo Veneravel Padre Fr. San &tes.
Sabîa a lingua Hebraica com toda a
Tom . VII .
de Agoſto, 243
eminencia , e muito mais perfeitamen
te , que qualquer das outras , em que
foi tao conſummado ; e nao menos
perito na cia
intelligen ſua, na pronuncia, que ha
? por iſſo nas ſuas obras
graduou com maior exacçao , e tra
balho do que os outros Eſcritores , e
Interpretes , que lhe haviao precedi
do , os acentos daquella lingua fanta .
Attento Leao X.á fublime capacida..
de do Servo de Deos , lhe mandou
abrir , como abrio, eſcola em Roma
para enſinar o Hebreo , e Caldeo , a
que acudia hum concurſo notavel de
diſcipulos. Os meſmos Rabbinos- o
eſtimavao por mui tranſcendente ne
ſtes eſtudos ; pelo que , acudiao a elle
muitas vezes, fazendo hūa eſtimaçao
muito rara dos ſeus eſcritos. Vendo
a omiſſao dos noſſos eruditos , depois
da verſao dos livros Sagrados de S.
Jeronymo , que entao andava ja me
nos corre &ta , entrou a leguir os ve
ftigios deſte ſanto Cardeal , verten .
do - os , e commentando- os fapientif
ſimamente. Ajudou muito a inſtan
cia , que lhe fazia Leao X. , que para
iſto lhe quiz aſſiſtir com todo o neceſ
fario. Traduzio todo o Teftamento
Velhodo originalHebraico . Fez mais
hūa ſingular Traducçao de todo oNo
vo Teſtamento do exemplar , eſcrito
em lingua Grega . Delta , paſlou para
a Latina , a Odyſſea de Homero ; e os
primeiros nove livros da Illiada da
Eſcreveo outras muitas Obras com po
lidiſſimo acerto , cuja ferie ſe pode
conſultar nos que tratao dos Eſcrito
res da Ordem. Alguns cenſuráraōri.
gidamente as ſuas Obras : moſtra po
rèm o Padre Soueges , que eſta criti
ca , antes mais accreſcenta , que eſcu
rece a ſua gloria.
3 A tarefa deſtes eſtudos de tane
to importe , e conſequencia , nað
lhe tirava, que elle deixaſſe de ſe ap
plicar lantiſſimamente ao exercicio da
prédica . Era o argumento commum
dos ſeus Sermoens a confutaçao das
herelias , que o inferno luſcitou na .
Hh ii quelles

244 FR . VICENTE TORRE ,
quelles taõ calamitoſos tempos contra
a Igreja de Deos . A Cidade de Leao
de França , aonde o Servo de Deos
morreo , lhefez hűas exequias eltron
dofiflimas , allumiando -ſe o ſeu feretro
com mais de trezentas tochas , echo
rando cada hum dos ſeus Cidadãos a
fua morte , como ſe ella folle a de ſeu
pay : muitos deitárað luto . Chegava
entao alli hum Religioſo noſlo , ( co
mo eſte eſcrevia a outro , que apoſta.
tára da Ordem , a quem elle perten-
dia reduzir , apontando-lhe os exem-
plos de alguns filhos de S. Domingos,
que recentemente haviaõ honrado o
ſeu habito , com ſciencias , e virtu.
des , e hum delles era o nolfo Pagni .
no ) e admirado de tað pompoſas de-
monitraçoens , moveo -o a curioſidade
a perguntar pela cauſa de tanto obſe-
quio . He, the refponderaó , porque,
abaixo de Deos , que nos fez tanta
mercê , pela bõa diligencia deſte bom
Padre , nað eftá Lutherana a noſſa
Cidade. Sendo cao caritativo como
ſeu proximo ; quanto ao eſpiritual,
que he o que mais importa , era-o tam-
bem muito . Thomaz Gadanho , Se-
nhor de muita Religiao , e de poſtes
opulentiſſimas , era muito feu amigo ;
e reparando o noſſo Veneravel Pa
dre Fr. Sanctes , no muito , que elle
havia diſpendido em maior obſequio
do Culto Divino , e do bem com
mum das Republicas das Cidades de
Leañ , Avinhao , e Florença , lem-
brou- lhe o quanto ſeria muito do agra .
do de Sua Divina Mageftade , que el
le ſe lembraſſe dos teus pobres. Foi
eſta advertencia attendida mui pla .
cidamente ; e por conſideração do
noſſo Servo do Senhorinftituio aquel-
lè Cavalheiro hum Hoſpital para os
feridos da peſte na meſma Cidade de
Leaā , conmūmente chamado de S.
Lourenço . Fra devotiſſimo o bom
Padre , e as ſuas delicias era tratar em
couſas do Ceo , para onde noflo Se-
nhor o transferio do mundo aos 23 .
de Agoſto no anno de 1540 .
!
23 de Agoſto .
23. de Agoſto
Vida do Veneravel Padre
FR . VICENTE
TORRE ,
Extrabida do Anno Dominicano.
I NofroVeneravelP.Fr.Vi
o cento Torre , que nole
culo ſe chamava Chriſtovao , milita
va nas tropas da Cavallaria de Ingla
terra : o Senhor dos Exercitos, que que
ria para ſi eſte ſoldado , lhe começou
a bater com repetidos auxilios ás por
tas do coraçao ; elle, que fora criado
muito louvavelmente , e a lua vidaera
certamente de hum homem muito de
bem , bao ſe fez ſurdo , ou indócil a
eite chamado. Partio Delta demanda
para França, com outros companheia
ros , todos peſſoas muito honradas, e
chegando a este Reino , tomou o ca.
minho de Renes , a pedir o habito pa
ra ſi , e para outro ſeu companheiro ,
e patriota , que morreo poucodepois
de profeflo,ao noſſo Fr. Hovardo, que
entao le achava alli , e andando os
tempos foi honrado com a Purpura
Cardinalicia , ſendo em codos elles
mui amante do noſſo Servo de Deos ,
com quem ſe carteava . Forao comef.
feito admitidos logo á Ordem com
muito agrado , e paſſou Fr. Vicente
a ter o ſeu Noviciado em Morlaix.
Era o Servo de Deos lapientiſſimo , e
conítante em todos os ſeuspropoſicos.
Poi dotado de hūa exemplariſſimain
nocencia . O exemplo que dava , era
o mais exemplar. A ſua gravidade , e
compoſtura podia influir eſtas virtu .
des nos ſeus mais affeiçoados. O ſeu
genio era dociliſſimo , e o ſeu come
dimento mui notavel. Ardia emcha
mas de zelo . A ſua innocencia pa
recia de Anjo. Tinha hum tað gran
de amor á pobreza , queem ſe achan :
do com qualquer couſa , logo o dil
pendia pelos pobres.
2 Foi promovido a algunscargos ,
e de todos deo cabal ſatisfaçao. Fize
rao - no primeiramente Mettre de No
viços ,
 FR . DOMINGOS LACOSTE ,
viços , e teve votos para ſer Geral da
Ordem , a que 'o queria promover o
noſlo Eminentiffimo Hovardo , ao tē-
po , em que foi promovido ao Gene-
falato , o Reverendiſlimo Fr. Anto.
pino Cloche . Como nos ſeus tempos
ſe premeditava a converſao do Reyno
de Inglaterra , ao que dava tao bons
aufpicios o Monarca daquella Coroa ,
que por eſta caula veio profugo , e
fugitivo , com toda a ſua familia para
França , foi eſcolhido o Servode Deos
por primeiro Operario deſta Miſſao .
Foi de muita Oraça6 ; e procurava
perſuadilla a todos os leus Noviços ,
quando teve o cargo de os dirigir com
o maior fervor . Quanto á humildade;
predominava tanto nelle etta virtude,
que ao tempo , em que foi eleito Miſ:
fionario de Inglaterra , e havendo ef-
colhido por ſeu Confeffor hum Reli.
gioſo da ſua Provincia , lhe dava tanta
obediencia , com o pudera hum Novico
a ſeu Mestre . Em materia de ſilencio ,
era talo do Servo de Deos ,quejamais
o rompeo , ſem haver hūa grandene
ceſſidade. Nos estudos era infatiga.
vel , e infallivel na obſervancia . Mo.
ſtrou ſempre hūa devoçao ardentiſſi
ma a S. Vicente Ferrer; tanto , que
em obſequio delte bendito Apoſtolo
Valenciano , ' mudou o nome de Chri.
ſtovao , peio de Vicente. Na devo
çao da Senhora ,foi fingulariſſimo , e
procurava em todas as ſuas acçoens
ſer imitador das ſuas virtudes. Pa .
gou-lhe ella tanto affecto , alcançan-
do - lhe a coroa da gloria por būa fan-
ta morte aos 23. de Agoſto de
1687 .
RECOPIL A C, A M
de 23. de Agoſto.
M Banharéa,o Illuſtriſſimo
E Biſpo deſta Cidade D. Fr.
Eftevaõ Taſca. Naſceo em Roma , e
foi hum dos mais belliſſimos orna-
mentos da ſua Provincia . Teve hūa
grande eſpecialidade para a prédica ,
24 de Agoſto. 245
e para as ſciencias; por iſſo ſe fez tað
grato a Deos , como aos homens. O
Cabido de Bapharéa , attento aos ſeus
grandes merecimentos , o elegeo por
ſeu Biſpo . Sagrou -ſe em Roma , pe
lo Cardeal de Tufcula , e em nove
annos, que governou aquella Igreja , ſe
fez merecedor da palma de gloria ,
de que a noſſa piedade o crê poſſui
dor na feliz eternidade no anno de
1306. = Pio , e Fontan .
2 No Real Moſteiro de ‘Poiſly a
Veberavel Madre Soror Claudia
Houel . Foi de muita Oraçao , de hū
zelo intrepido, de muita caridade com
os pobres . Nas outras duas virtudes
Theologaes da Fé , e Eſperança foi
ioligne , nao o ſendo menos em to .
das as outras, que maisconduzem pa
raa eterna felicidade.Morreoda mor
te dos Santos , parece que no anno de
1561. = Soueges.
24. de Agoſto.
Vida do Veneravel Servo de
Deos
FR . DOMINGOS
L A COSTE ,
Extrabida do Anno Dominicano.
I Oi o grande Servo de Deos
F Fr. Domingos Lacoſte hū
exemplar de Religiao , zelo , pacien
cia , e de todas as outras virtudes do
ſeu eſtado. Tinha- o Deos deſtinado
para levar o ſeu ſanto Nome ás extre
midades da terra , edotou -o de todas
aquellas boas qualidades preciſas pa
ra hūa empreza tao ſanta. Era humil
de , e modeſto , ſilencioſo , e peniten,
te : dava - ſe muito á Oraçao ; e o ſeu
maior cuidado era promover a maior
gloria de Deos . Fazia ſe mui diftin ,
čto entre ſeus condiſcipulos , pelo feli
ciſſimo talento, que recebera para os
eſtudos. Suſtentou eſtrondoſamente
hūas Concluſoens de toda a Theolo,
gia, no Capitulo Provincial de Beziers,
em que foi eleito o Padre Goneto.
Depois
!
 246 FR . DOMINGOS L'ACOSTE , 24 de Agoſto.
Depois teve as Leitorias de Tolofa ,
e Rhodes , que elle encheo com to-
do o acerto , e com tanta piedade ,
que nem faltava na Cadeira , nem no
Coro , de dia , e de noite . Do meſ .
ino modo era infallivel, e rigorofiſſi,
mo nos jejuns. Tomava diciplinas
muito deshumanas : queria encobrir-
ſe , mas nao faltava curioſidade, ſ as
obſervaſſe. Tinha hūa humilde cama ,
poftoque nao poucas vezes deixava de
ufar della ,ficando em algum confeffio-
nario , ou a hum canto da Igreja. As
ſuas palavras , eraõ mui brandas ; mas
muito fortes para perſuadir o amor
da virtude . A ſua caridade , e a ſua
modeftia o faziao grato igualmente a
Deos, que aos homens. Dando lugar
ás inſpiraçoens do Ceo , emprendeo a
Miſlaõ deGuadalupe, impetrando do
Prior do Convento de S. Germano ,
a quem eſtá addicta aquella Miſſao,
húa obediencia , para pallar, como
paſlou , aquellas partes , edificando a
todos com a ſua obſervancia , e regu-
Jaridade , o que perſuade , e acaba
mais que muitos Sermoens , e diſcur-
ſos , por ſer o exemplo de maisforça,
que as palavras.
2 Succedeo por eſtes tempos ſer
o vento contrario a hūa embarcaçao,
. que ſabira da Martinica a peſcar no
rio das Amazonas , o que a preciſou a
ir coſteando á deſcriçao, até que ul-
timamente ganhárað hũa terra incog.
nita , Havia alli hum Senhor, que aquel-
Jas gentes chamavao Hiopotoli , ido-
ſo de mais de ſeſſenta annos. Quan-
do era de doze , foi levado por hum
Cavalleiro , que fez preza nelle , á Cor .
te de Parîz , aonde o ſervia demoço
de ſeje . Abraçou a noſſa fanta Fé Ca-
tholica , e chamou - ſe Andre no Biu .
tiſmo. Defunto ſeu Senhor , teve meio
de voltar a ſua patria , aonde era Se-
nhor de vaſſallos , e de muitas fazen-
das . Ao tempo , em que alli chegou
aquella gente , correo logo a ver, e
ouvindo fallar Francez , os hoſpedou
com muita cortezia , caridade. Por
ulimo repreſentou ao Capitao , o raõ a preſidencia della. Voltanda da
quanto para ſe eſtabelecer commer
cio com aquellas gentes , ſeria util a
introducçao da Religia o Catholica ; e
para dar a entender os ſeus bons de
lejos, ſolicitou que duas peſſoas,das
mais poſſantes da terra , deflem ,co
mo deraó , dous dos ſeus filhos para
que foſſem a Martinica , e teſtimu
nhaſſem o quanto aquella naçao deſe
java ſer aggregada á obediencia da
Igreja. Ouvio -ie eſta noticia com la
grimas de gotto : e indo os dousmo
cos , que diffemos, a ver a nulla Igre
ja , fe offereceo o noſſo Veneravel Fr.
Domingos para propagador dos dog.
mas da doutrina Orthodoxa naquella
terra. Eſtava diſtante o Superior , ccu
ſa de trinta legoas , em Guadalupe ,
e o Servo de Deos The participou
eſta goſtoſa novidade, pedindo - lhe a
licença para partir para aquella Miſſao.
Era Prelado Fr. Raymundo Carbo .
niers , que foi Noviço , e depois Lei
tor em Theologia , em Limoges, ain
da que fez a ſua profiſſaono Cooven
to de Albi , de mais de 45. annos de
idade. Foi homem de grande pieda
de, e tao. empenhado namaior glo
ria da Religiaõ , que confeſa o noſſo
Padre Soueges, que elle o ajudou com
muita parte na ſua grande Obra do An
no Dominicano.
3 Agradeceo - lhe o Prelado mui
to eſte zelo , e mandou -lhe, com a
ſua bençao , hũa Capella portátil para
dizer Miſſa : eotretanto, ſe come
çou o noſſo bom Miſſionario a apare
lhar para a partida . Eſtava Conven
tual Fr. Raymundo no Noviciado de
S. Germano de Pariz , aonde era Pré
gador Geral , quando foi mandado
para as Ilhas , parece que no anno de
1664. aonde em 29. de trabalho fez
grandes ſerviços a noſſo Senhor . Em
tudo ſe moſtrava Miſſionario perfeitiſ
fimo. Foi Superior daquella Miſſao ;
e attentos , o noſſo Reverendiſlimo
Geral , e os Eminentiffimos Cardeaes
da Congregaçaõ da Propagaçao daFé,
as ſuas belliſlimas qualidades , lhe de
Ame
 FR, DOMINGOS LACOSTE ,
America para a Europa , morreo den-
tro de nove dias de hũa fluxaó , que
lhe cahio no peito , em Caftras fua pa-
tria . Era ſempre o primeiro nos actos
de Communidade : Tinhaja ſeſſenta
e dous annos de idade , quandomor-
reo , e ainda nao largava o trabalho
das Miſſoeds ,nem queria uſar das dif-
penſas , que lhe concediao os Prela .
dos : Conſervou - ſe até dar o ultimo
arranco no ſeu juizo perfeito . Fez
chorar a todos os que lhe affiftiaô ,
quando recebeo os Sacramentos , pe-
la muita devoçao , e Chriſtandade, que
moſtrou : alternou até á ultimaagonia
com a Comunidade todasas Oraçõens,
e encomendaçoēs da alma com igual
devoçaõ , que advertencia . Repetia-
lhe o Prelado alguns lugares dos Pſalo
mos, que lhe pareciao mais conformes
á occaſiao , e iſto lhe dava grande con-
tentamento , e alivio. Finalmente le
vou -o o Senhor para ſi da morte pre-
cioſa dos ſeus eſcolhidos.
4 Tornando ao noſſo V.P. Laco-
fte, logoque eſte alcançou a licença
do Preſidente, partio , qual outro Ab
brahao , ſem ſaber para onde ; para a
quella incognita Peninſula , e chegou
finalmente a ella em treze dias , em
que edificou grandemente a ſeus com-
panheiros ; porque tratando -ſe eſtes,
como ſe coſtuma dizer , à la grande ,
comendo , e bebendo lautamente , el .
le ao meſmo tempo , como tao obſer-
vante que era das ſuas Regras , nao fó
ſe contentava , ſenao que tinha por
hum grande banquete hum bocado de
biſcouto , com hum pouco de queijo .
Houve á maó , em quanto hia pelo mar,
hum Diccionario , poſto que imper-
feiiiſlimo , da lingua daquellas gentes:
trasladou - o , e deo -ſe logo com todo
o cuidado a aprendella . O deſejo que
tinha de aproveitar ao ſeu proximo ,
fez o milagre deoinſtruir ſufficiente-
] mente naquelle diale &to , no termo
que durou o embarque ; porque quan-
do chegou a terra , ja pode cumpri-
mentar naquelle idioma ao Capitað ,
que o veyo buſcar a embarcaça ) , e a
24. de Agoſtos 247
quem o Servo de Deos fez preſente de
hūa de duas caſaças , que trazia para
funçoens fimilhantes.O outro, pormo
itrar a grande eſtimaçao , que fazia da
offerta , a deitou logo por galla : e de
pois de paſſear dous dias com'ella , a
guardou , em ſinalde attençao , eref
peito , em depoſito mais eſtimavel .
5 Chegou conſequentemente o
Capitao André , a quem o noſſo Ser
vo de Deos deo a outra caſaca , que
elle aceitou com moſtras de grande
eſtima: levou -o comſigo para ſua ca
fa , e alli lhe determinou hum aloja .
mento mui decente , emui commodo
para eſtar em ſalvo dos accometti
mentos dos tygres , que infeſtao de
noite com as ſuas incurſoens aquelles
povoados: o bom Miſſionario fez na
quella quadra dous repartimentos ,
deſtinando hum para celebrar , outro
para aſſiſtir. Com as inſtrucçoens de
ite Senhor , e com a leitura do Diccio
nário referido , ſe poz , pao ſo mui
pratico , ſenao muito eloquente na
quella lingua.Entrou logo a fazer hum
Cateciſmo dos Myſterios Sacratiffi .
mos da noſſa fanta Fé, proporcionan
do - ſe em tudo , ſegundo o conſelho
do Apoftolo, á rudeza daquelles po
vos . Concluido eſte ſanto trabalho ;
começou logo a Miſſionar por aquel
las terras : em oitenta , ou cem legoas
por onde vagou ao largo , e ao com
prido , nao pode achar veftigios de
Religiao . Entendeo que búa das pri
meiras couſas , que lheconvinha , era
fer amado , e reſpeitado daquelles
Ilhéos , e conſeguio -o muito , como
deſejava . Alguns havia , que deſpre.
zando em pouco a noſla Crença , an
tes queriaõ ficar abyſmados no cáos
infernal da idolatria , do que fazerem
ſe filhos de Deos : mas vencidos em
fim dos auxilios deſte Senhor , mo
ſtravaő hűa tal piedade , e viviaõ tao
fantamente , que os meſmos, que os
haviao e Aranhado , como inconſtan ,
tes , corriao como Cervos feridos , a
buſcar a piſcina do bautiſmo. Hum
deſtes, que ainda nað era Bautizado,
foy
248 FR . DOMINGOS LACOSTE ,
foy mordido de hūa ſerpente. Correo
immediatamente a elle o noflo V. P.
Lacoſte , e applicando os labios á
mordedura , livrou aquelle homem
de ambas as mortes , eſpiritual ,e tem-
poral . A ſua exa & iſlima obſervancia
adquiria. The as maiores eſtimaçoens :
jejuava Quareſmas inteiras a pao , e plantado
agoa : atravellava deſcalço ribeiras
mui caudaloſas , e em tudo mottrava
hum zelo digno de hum Elias .
6 Vendo -ſe o demonio deſapoſ,
fado daquellas terras , procurou vin-
ganças ', e recorreo a ſuggerir ſeus
grandes partidarios , os hereges Hol-
landezes: entráraõ com mao armada
naquella Ilha , e alli,depois de muitas
conteſtaçoens , e practicas, commet
terao tantas mortes , e aleivozias nos
principaes da terra , eſpecialmente
com hum Capitao , que ſervia de lin-
gua a Fr. Domingos, que ja deixáraó
menos que eſtranhar aos Neros , e
Deoclecianos . Como a vida do noflo
V. Padre era a eſpinha, que mais os
engaſgava , e elle nað le achava por
entao na terra , contratárað -ſe, em
certa quantia , com hum perfido Ju-
deo , que ſe lhes offereceo muito de
rozas para ſer feu homicida . Mas Deos
noſlo Senhor, que o queria conſer-
var , para fazer-lhe ainda outros mui-
tos ſerviços, deſtruio todas eſtas cil-
ladas . Tres vezes eſcapou da morte
em perigos imminentes , por inter
ceſlao do grande Apoſtolo das noſſas
Indias Portuguezas, S. Franciſco Xa-
vier , gloria auguſtiſſima da ſempre
douta, eſclarecida ,e ſanta Companhia
de Jesus . Figurou -le - lhe em hūa de-
ſtas tres , que o bendito Santo bia
diante delle guardando - o , e alivian .
do - o do fuſto, que , como creatura fra-
gil , podia ter ; como ſe aquelle me .
Thor Sol do Oriente quizeſſe aſlim
teſtimunhar quanto lhe eraõ gratos
os trabalhos, e a diligencia do noſſo
Servo de Deos , que tao fielmente ſe .
guia as ſuas pizadas. Era o noſſo V.
Fr. Domingos devotiſimo deſte gran-
de Miniſtro do Senhor , e ſe moſtra.
24. de Agoſto.
va igualmente glorioſo , do queagra
decido em recordar , e fallar neites
favores.
7 Hia por dez mezes de Miſao ,
eja o noflo bom Padre tinha bautiza
do pouco menos de mil Gentios , em
dezaſette povoaçoens , aonde havia
outras cancas Cruzes , em
ſinal de que cada hūa dellas eſtava
convertida , ou toda , ou quaſi toda.
Vendo , porêm , que ainda de parte
a parte , iſto he , da ſua, e da dos ſeus
Neohpycos era , ainda que violenta ,
forçola a ſua auſencia , porque aſſim
cefiaflem , ou ao menos ſe minorat
ſem os damnos , que lhes faziaõ aquel
les miniſtros de Satanás , deixou.os ,
e paſſou dalli para os dominios de
Heſpanha. Chegado alli , tiverao- no
por eſpîa ; mas attentos os noſſos Re
ligioſos de Habana á fua modeftia , e
gravidade , concebêraõ delle hūa
tal opiniao , que o Prior da Caſa ,que
era obſervantiſſimo , quiz ter nella
bum filho de hűa Provincia tao famo
ſa em noſſos Annaes, qual a de To
loſa , como era o V. P.Fr. Domingos.
Efte Prelado , querendo em certa oc
caſiao fazer experiencia da virtude do
Servo de Deos , depois de ouvir a ſua
culpa ( era mui momentanea ) em Ca
pitulo , diſſe- lhe, que ſe preparaſle
para a diciplina . Ainda o bom Padre
nao tinhabē acabado de o ouvir, quan
dologo começou a aparelhar-ſe. Ficou
admiradiſſimo o Prior , e todos os
mais , cheios de edificaçao . Havia
aqui hum Medico , homem de muita
piedade, e formou hum tal conceito
do noflo Miſſionario , quelhe fez gra
ça de hũa milagroſiſſima Imagem de
N.Senhora,de cujo invento, por mui
celebre, faremos aqui algúa memoria .
8 Antes que os Caſtelhanos apor .
taſlem as ſuas Indias , reinava allicom
o mais dilpotico imperio a idolatria ,
a que eraõ tao dados aquelles barba :
ros , que , como diz o noſſo Lanuza;
ſacrificavao todos os annos aos ſeus
idolos vinte mil coraçoens de meni .
nos. A Virgem Senhora, porém, que
como
 FR . DOMINGOS LACOSTE , 24
como diz a Igreja , tem deſtruido ,
deftroe , e deſtruirá todas ashereſias,
converteo aquelles eſpinhos da infi-
deiidade em rozas gratiſſimas , dignas
de ſerem offerecidas ao Rey Eterno
da Gloria . Corria , pois , oanno do
Senhor de 1531. , eera o decimo de
pois que os Conquiſtadores Caſtelha-
nos, que tinhao paſſado á America ,
ſubjugáraõ Mexico , e aquella vaftif-
ſima regiao , chamada Nova Heſpa .
pha , quando ſuccedeo que hum lo-
1 dio Chriſtao pallava com toda a ſua
.
familia a achar -ſe em hum Sabbado , 9.
de Dezembro , em hűa Igreja dos Re .
ligiofos de N. P. S. Franciſco , para
alliſtirem todos a hūa Miſla cantada ,
que em dias ſemelhantes alli ſe coitu-
mava cantar em obſequio da Rainha
dos Anjos . Chegando ao romper do
dia junto de hūa pequena montanha ,
que confinava com muitas outras , e
dittava hūa legoa da Cidade de Zu-
marraga, ouvio alli foarhūa ſuaviſſima,
e deſuſada harmonia de avezinhas ,
digna de ſuſpender , e arrebatar 10.
das as attençoens : levantou os olhos
para aquella parte , e vio hūa gracio .
ja nuvem mui candida , e reſplande-
cente , e a modo de coroada com hū
formoſiſſimo arco Iris , matizado de
finas , e viviſſimas cores , procedido
de hūa ſoberana luz , reconcentrada
na meſma nuvem . Eſtranhou o quevia ,
e muito mais quando ouvio eſtas pala-
vras , ao parecer de hūa mulher mui
grave , e que muito lhepenetráraó o
coraçao : Meu filho Joao Diogo ( eſte
era o nome do venturoſo Indio ) vem
alli. Sentio a eſte tempo banhada a
ſua alma de tanto jubilo , que , corren-
do , ſubio aquella eminencia : Notou
entre aquellas luzes hűa Senhoramui
Veneravel , e muito ſemelhante á Ima-
gem , que depois appareceo : dima-
navaõ huns tao ineffaveis reſplando-
res do ſeu veſtido , que em todas as
partes , aonde hiaõ fazer reflexo , cu-
do tranſmutavað , e convertiao em
graça , e formoſura : reverberando
em hum terreno mui eſteril , que lhe
Tom . VII.
de Agoſto. 249
ficava de fronte, nao parecia ſenað
hum puriſſimo jaſpe matizado das
mais bellas , e elegantes cores : Os
penhaſcos mais afperos, e mais bron
cos , tomavao ſemblante de pedras
preciolas.
9. Eſtava o homem attonito do que
via , e aquella Senhora lhe pergun
cou para onde caminhava ? Continuou,
aſſegurando -lhe que Ella era a Māy
de Deos ; e mandou -lhe que partil
ſe dalli em continente á Cidade de
Mexico , a dizer da ſua parte a Fr. Joað
de Zumarraga , ( era o digoiſlimo , e
primeiro Bilpo daquella povoaçao , e
muitas vezes inſigne Religioſo de N.
P. S. Franciſco ) que lhe fizeſſe levan
tar hūa Igreja naquelle ſitio . Partio
a toda a preſla o bom Indio, e deſempe
nhou -ſe da incumbencia , que lhe fo
ra dada com toda a bõa diligencia : 0
Biſpo , porém , nað lhe parecendo
fer prudencia allentir logo a eſte avi
lo , ſem maior averiguaçao , defpe
dio com palavras mui brandas o bom
Joao , dizendo -lhe: Que tornaſeem
outra occaſiao , em que ſe veria me
lhor o que ſe havia de fazer. Tor
nou elle no meſmo dia com a reſpoſta ,
e achou a Senhora , que eſtava eſpe.
rando por ella ; referio elle o que par
ſapa , e mandou- lhe a Rainha dos An
jos que tornaſſe outra vez a fazer a
melma inſtancia no dia ſeguinte : fel
lo elle aſſim , tornando a advertir que
a Senhora queria que ſe lhe erigiſſe
hũa Igreja naquella paragem . Era o
Indio homem mui ſimplez , e propu
nha a lua enviatura com muitas lagri
mas , e gemidos : o Biſpo lhe fez al
gumas perguntas, a que elle reſpon .
deo ſempre com muita exacçao , e
coherencia; pelo que aquelle Prelado
ſe perſuadio , que aquillo nað era ef
feito de preoccupaçaõ , e imaginaçaõ ;
e concluio dizendo lhe : Que para
acabar de certificar-ſe pediſſe algum
final áquella Senhora , por onde elle
ficaſſe bem entendendo qual era a ſua
vontade. Voltava o Indio com eſte
aviſo , quando gadiantando -ſe a Senho
li ra ,
250 FR . DOMINGOS LACOSTE
ta , lhe veio ſabir ao encontro , junto
aonde corria hứa cryſtallina fonte,
de
que dimanavao excellentes aguas
mineraes : diſſe-lhe , que nao tiveſle
pena ; porque hum ſeu tio , chamado
Joao Bernardino , que ao tempo , em
que fahira de ſua caſa , ſe achava mui
doente , pelo que deixára a ſua viven-
da, por chamar hum Religioſo Fran-
ciſcano , que lhe adminiſtraſie osul-
timos Sacramentos , nao perigaria , e
teria melhoría ; e mandou - lhe queſu-
biſle aquella montanha , aonde a vi-
ra a primeira vez ; e que colheſſe as
roſas que alli achaſſe : o Indio ſabia
muito bem que aquelle ſitio era mais
proprio para matos, e aſperezas, do
que para roſas, e flores , e muito mais
no mez de Dezembro , hum dos mais
deſabridos daquelle clima ; iſto , po.
rèm , nao obſtante ,obedeceo , paſſou
áquelle poſto , e alli achou hum gra-
cioliflimo roſal, carregado de encar.
nadas , e belliſſimas roſas: colheo as
mais que pode , e botando - as na ába
da capa , tornou-ſe aonde a Senhora
o eſperava, junto de būa arvore , que
nao dá mais que certas flores brancas
a ſeu tempo .
10 Tomou ella as roſas nas ſuas
Maos benditas, e diſſe ao venturoſo
Joao : Filho meu , eis -aquio final,que
dou para levar do Biſpo, mas olha
que o nao has de moſtrar a outrem',
que naõſejaelle. Aſlim o quizera exe.
cutar aquelle venturolo Enviado ; mas
alguns familiares do Biſpo , vendo que
o Indio levava alguma couſa envolta
na capa , quizeraõ ver o que era : pa-
receo -lhes a principio , que na mer-
ma capa eſtavao pintadas būas poucas
de roſas ; quando porém chegou dian-
te do Biſpo , cahiraõ ellas em terra ,
e appareceo na meſma capa hua ad-
miravel pintura da Senhora , do mo.
do que ainda hoje ſe venera. Poſto
que o quadro ſeja de laā , reprefen-
ta- ſe ao modo que o deſcreve o Dif-
cipulo Amado , dentro de hum Sol
de figura cliptica , ou ovada , cujos
rayos lao de ouro puriflimo : debai-
24 de agoſto.
xo dos Pés tem hūa elegante meya
Lua, ehe luftencada graciofiffimamen
te por hum Anjo , que tem hua cruz
na mao , e ſe preſume ſer S. Gabriel;
a Cabeça eſtá cingida de formofiffimos
reſplandores: traja hūa veſte de finiſ
lima purpura matizada de ouro, ſobre
poſta dehúa cobertura de cor do Ceo ,
que a cobre do alco até os Pés , bor
dada tambem de ouro finiſſimo. De
fte meimo metal tem eſcrito noſeụ
cingulo o Santiſſimo Nome de Jesus:
pende- lhe da garganta húa pequena ,
e bem formada Cruz na parte ſuperior
do veſtido: tem asMaós levantadas,
e o ſemblante tao devoto , modefto,
e inclinado , que he impoſſivel vello , 1
e nao ſentir algum affecto celestial.
Largou o Indio aquella lua cobertu
ra , que foi collocada primeiro no
Oratorio daquelle Prelado com a por
fivel decencia , e depois na Cathedral ,
aonde concorreo povo immenſo a ve
nerar aquelle prodigio. Partio o Biſ
po com o bom Indio para aquella par
te , aonde ſuccederaõ os referidos ap
parecimentos , e regiſtou todosaquel
les contornos com a poſſivel decen .
cia . Levantou - ſe alli o ſagrado edifi
cio , que a Senhora queria, tranſpor
tando- ſe para alli com hũa prociſſao
muito ſolemne a milagroſiſſima Ima
gem que diſlemos. O ditoſo Indio ,
chegado a ſuacaſa , achou verificado ,
por depoſiçaõ de ſeu tio , o que a
Máy de Deos lhe diſera ; porque ap
parecendo-lhe ao meſmo tempo , em
que ſeu ſobrioho ſe occupava em obe
decer as ſuas ordens , lhe havia dado
ſaude.
II Trouxe, pois, o noſſo Vene
ravel Miſſionario eſte eſtupendo Re
trato de Maria Santiſſima , com in
tuito de o collocar , como decentiſ.
fimamente collocou , com a Invocaçao
de Senhora dasIndias, no noſſo Con
vento de Rodez , Capital da Provin
cia de Roverga , na França , de que
elle era profeflo , e aonde a Mãy das
Miſericordias tem feito milhares de
favores a todos aquelles que recor
rem
 FR . DOMINGOS LACOSTE , 24. de Agoſto
rem ao validiſſimo preſidio da ſua pro-
tecçao.Como o noſſoVeneravel P.La-
coite era , como ja diſſemos , reputa-
do , nas terras da obediencia de Sua
Mageftade Catholica , por hum ex-
plorador, veioremettido a Cadiz , aon
de o Governador o quiz mandar , e
mandara metter em hũa prizao ,le nro
acudiffe a acalhar este temerario pro-
cedimento o Nuncio , quelhe facilitou
o embarque , que fez para Lisboa, , giao : mas Sua Divina Mageftade o de
aonde nao ſe deteve no noſſo Con- ſtinava para mais promover o culto
vento mais que huma noite. Sabindo
com tanta brevidade deſte porto , fez
feliciffimamente a ſua viagem para
França , de donde determinava vol-
tar outra vez a Millionar em Siao , e
Tunquim : obteve para iſſo patente do
Commiſſario das Mifloens da Ordem
o Padre Fr. Maſloulié, Inquiſidor de
Toloſa, e companheiro do Reveren-
diſſimoGeral,aquem o Servo de Deos,
mandando -lhe a relaçao da ſua Mil-
fao , que ſe lhe pedia , reſpondeo : Nao
ibe faltar vontade de emprender nou
vamente a Miſao, que felbe conſigna-
va , do que era prova, haver ja parti-
do, e chegado a Tolofa , para dalli
declinar para Burdeos , mas que ao
meſmo tempo fe havia ſentido mui
maltratado de huma perna , que com o
exceſſo do caminho maligniſimamente
ſe lhe ulcerara : que depois de hum
mez de detença, deſaproveitados mui-
tos remedios , nað havia experimen-
tado melhoria , antes peiores ſympto-
mas no ſeu mal ; mas queja , Deos ben-
dito , ſe achava com melhor diſpoſiçaõ,
porque de.poucos dias aquella parte
Je havia achado taõ bom , que pudera
celebrar : que por tanto lhe rogava
que deſſe todo o calor aquella empre
za de tantagloria , e ſerviço de Deos ,
apertando com os Miniſtros, aquem
mais tocava a ſua expediçað , em cu-
jas conferencias, elle muito ſe deſeja
va achar ; e que ſe no Convento de S.
Germano de Pariz faltaſſe algum
Operario , que alli eſtava elle ; que ſe
Deos , como Senhor , que tanto goſta de
obrar com inſtrumentos humildes ,fof
Tom . VII.
251
reafim ſervido , ſem attender aos ſeus
deméritos, e imperfeiçoens , bem lhe
poderia abrir as portas da Miſao de
Tunquim ; porque couſas muito mais
admiraveis , e incomprehenſiveis ha
via na ſua Providencia . Allim ſe of
ferecia o Servo de Deos , que muitas
vezes diſſe, que ſe o Author da vida
The alargafle mais a idade , eſperava fa
zer algum grande ferviço á ſua Reli
de Sua Máy Santiſlima, e para lhe la
vrar mayor coroa no muito que teve
de padecer no ſeu Convento com os
trabalhos , e moleſtias com que o quiz
viſitar , e exercer .
12 Nem foi eſta a unica vez , que
a ſua caridade o empechou em ſeme
lhante conjuntura , e tal vez que for
fe a ſua morte procedida de haver ex
ercido muitas vezes por largo tempo
aquella diligencia , com a chaga de
bum pobre homem . Voltado a Rhos
dez , aqui le occupou no ſerviço da
ſua Senhora , tributando.The todos os
dias amoroớſſimos obſequios . Reza
va - lhe todos os dias o ſeu Officio ; e
nao menos de ſette vezes o ſeu Roſa
rio ', procurando entranhar nos cora
çoens dos Fieis o amor , e a devoçao
á Máy Amabiliſſima do verdadeiro, e
ſó formoſo Amor . Ella lhe pagou tan
to culto , e fidelidade com graças mui
eſpeciaes . Foi couſa notavel, que cor
rendo tantas fortunas , em nenhuma
parte lhe deflem buſca , ou o privaſ
ſem do que trazia comſigo para a ſua
ſubſiſtencia,ou, o que elle fentiria mais
que tudo , da Soberana,
e milagrofa
Imagem daſua Senhora . Tambem nao
ſerá fóra de propofito , attribuir a ſua
protecçao o haver livrado hum navio ,
em que hia , de ſer tomado pelos In
glezes , que lhe quizeraõ dar caça com
todo o empenho. Mas a coroa detan .
tosfavores , foi o impetrar -lhe hūa fe
liz morte , depois de haver ſidomarty
rizado por tempo de dous annos , de
doenças , e deſconſolaçoēs, tanto mais
onerofas , quanto mais hia ſendo maior
li ii оре .
 252 FR. FRANCISCO MIQUELET ,
o pezo da ſua idade . Recebeo com hūa
diſpoſiçao admiravel os Sacramentos,
e entregou placidamente o ſeu eſpiri-
fonas Maôs de Deos no dia de S. Bar-
tholomeu , correndo o anno Chritta ā
de 1686. idoſo de quarenta e dous.Po
ſto que tað myrrhado, e conſumido de
huma molettia tao prolongada , ficou '
tao bem aſſombrado de aſpecto , que
apenas le podia crer queetta va morto .
Houve hum grandiflimo concurſo ,
que occorreo a venerallo , e a buſcar
reliquias fuas ; e nao faltáraó algúas
pefloas ſeculares,dignas de todo o cre-
dito , que affirmáraó , que elle reſpi-
rava húm cheiro celeſtialmente ſuavif-
ſimo.
24. de Agoſto
Vida do grande Servo de Deos
o Padre
FR . FRA NCI SCO
CIS CO
FR . F RAN
.
MIQUELET ,
Extrahida do Anno Dominicano .
1 Iz hum proloquio , que tal
he a morte , qual coſtuma
fer a vida : cal foi a do noſſo Venera .
vel Padre Fr. Franciſco Miquelet , que
o Prior do Convento de Bezieres, aon
de o noflo Servo de Deos veſtio a more
talha do habito , e teve ultimamente a
fepultura, havendo de dar noticia do
obito deſte illuſtre filho de S. Domin-
gos , conſiderando - o como o Religio-
ſo mais perfeito daquella Caſa , deo
principio á ſua narraçaõ por aquellas
palavras do Profeta Jeremias: Cahio
da noſſa cabeça a coroa . Seodo manda
do Fr.
Franciſco a ter o teu Novicia-
do em Toloſa, procedeo de modo, que
era o maior objecto de edificaçao , nao
fó aos Noviços, lenañ aos Religioſos
mais avançados no caminho da perfei-
çaõ de huma Caſa tao eſtreitamente
obſervante. Daqui o mandárað eftu-
dar Filoſofia a Avinhao ; e juntava els
24. de Agoſto .
le de tal modo , como dos eſtudos , o
amor de Deos , qne viſto por qualquer
dos lados , eraõ tao digao de allom
bro , como de exemplo.
2 Era achacadiſſimo o noflo Ve .
neravel Padre Fr. Franciſco ; e poſto
que iſto lhe podia ſervir de eſcuſa para
admittir alguma diſpenſaçao , jamais
quiz uſar deſtas licenças, antes Ihede
fagradava o ſummamente : era indefe .
divel no Coro de dia , e de noite , e
nos jejuns daConſtituiçaõ inexpugna
vel. Mas como o ſeu eſpirito ſe nað
dava ainda aſſim por contente , ao ri
gor do Inſtituto junfava outros novos ,,
e nao menores rigores. Foi de muita
humildade. Attentos os Prelados ao
muito que elle deſejava aproveitar os
ſeus proximos, eſpecialmente leus Ir
maos , commetterao - lhe alguns car
gos , que elle ſervio com toda a cir
cunſpeçao , e utilidade ; was dizia el
le , que mais eſtimaria morrer Portei .
ro do Convento de Toloſa , ou de
qualquer outro dosmais reformados,
do que ſervir aquelles empregos . Por
eſta meſma razao andava a eſmola pe
la Cidade , e tinha nifto būa muito ela
pecial complacencia. Goſtava muito
de fer pobre voluntario : Era muida
do a eſcrever couſas eſpirituaes ; e te
ve intentos de publicar hum livro , a
que applicára muito eſpecial eftudo
para maior bem das almas ; e para iſto
aproveitava todo o papelinho que po
dia.
3 O habito do ſeu uſo era tað vé
Shinho , erecheado de remendos , que
por ſuamortenao foi poſſivel achar -ſe
outro mais pobre , e incommodado .
Praticou ſempre hum recolhimento
notavel ; e na ſua cella o tinha ſempre
certo de ordinario quem o queria con
ſultar. Tinha hum grande amor de
Deos ; e para elle naõ havia couſa co
mo achar huma peſioa igualmente in
clinada , e que fallaffe affectuoſamente
do meſmo Summo Bem . Por eſta mel.
ma razao ſe dava muito á liças dos
bons livros , notando por efcrico
aquellas maximas , que lhe pareciao
mais
 RECOPILAC,
mais conducentes para o melhor apro-
veitar no caminho da perfeiçao ,e de curente fechallo duas vezes em hűa ca.
jas flores , como abelha laborioſa , ha-
via talvez organizado o livro eſpiri.
tual que diflemos, qne elle queria fa-
zer publico. A innocencia de ſua vie
da era ta õ candida ,tao pura , que , por
teftimunho de ſeu Confeffor, pelo de
curſo dedez annos , jamais havia com
metcido hum peccadovenialcom per-
feita deliberação. Como por defeito
da debilidade da ſua conftituiçaõ nao
podia prégar , como tanto anhelava a
ſua devotiſſimapiedade, e tantoome
recia a ſua erudiçao , e eloquencia ,
queria ao menos ſatisfazer , de algum
modo , ao ſeu fervor , acompanhan-
do os noflos Miſſionarios.
4. Andava tao embebido ſempre
na viſta de Deos, que quando difleraõ
ao Biſpo deBezieres , que Fr. Francif-
cojera morto , aquelle Prelado , que
muito ſe havia edificado de o ver al.
gūas vezes em ſua caſa , com a oc
caſiao de ir acompanhando algum Re-
ligioſo , exclamou : Que o noſobom Pa.
dre jamais havia perdido de viſta à
preſença de Deos;razaõ , porque nun-
ca attendia a's converſaçõens em que
se achava . Goitava muito de viſitar os
enfermos, pobres , e perleguidos , pro-
curando ſuavizar , e ſuavizando as ſuas
penas , e afflicçoens com muitos di-
etames ſantos , e elpirituaes . Era
muito devoto da Senhora , pelo que
era mui coſtumado a rezar publica-
mente o ſeu Roſario na Igreja . Final-
mente depois de haver feito hūa vi-
da de Anjo , morreo pouco menos
que Angelicamente , ſendo os ſinaes
que te obſerváraó poſteriormente á
ſua morte bum feliciſſimo avgørioda
Bemaventurança , a que paſlou aos
24.de Agoſto do annode 1693. Ficou
o ſeu roſtoraõplácido, e bem affigu .
rado , que parecia a imagem da meſo
ma vida. Concorreo hứa extraordi-
naria multidaõ de povo para o ver ; e
como todos eſtavao tað fequioſos de
algūa reliquia ſua , pelo que lhe cor :
tarao os cabellos , e os habitos , foi ne-
A M de 24 de Agoſto . 253
ceflario para detero impeto deſta tor
pella , e implorar o adjutorio da juſti
ça para moderar tanto exceſſo. Hedi
gno de nota o que affirmou hūa Digni
dade daquella Cathedral, dizendo ha .
ver percebido neſta occaſiao hūa fra,
grancia celeſtial na noſſa Igreja .
RECOPIL A C, A M
de 24. de Agoſto.
Emoria de hum Venera
M vel Religioſo , Confeflor
da Rainha Dona Leonor de Aragao ,
Fundadora do Moſteiro das noſſas
Religioſas de Medina do Campo ,aon
de, poſta de parte a grandeza , e Sobe .
rania Regia , veſtio tambem o habito
de S. Domingos. O noſſo Servo de
Deos era de huma perfeiçao de vida
taố coníummada , que aquella Senho
ra o elegeo ! para Palinuro da ſua con
ſciencia, e jamais o quiz abſolver de.
Ite cargo . Entre outras muitas virtu
des , reſplandecia neſte Veneravel
Padre hum ſummo delapego ás couſas
da terra , que elle avaliava em menos
de que hum mero nada. Vio - ſe iſto
quando aquella Real Senhora quiz ſu
bir de ponto asrendas, com que dotá
ra o referido Moſteiro : elle a diſſua
dio deſte propofito , parecendo - lhe
ſer contrario eſte adiantamento á ver
dadeira pobrezaReligioſa , e Mendi.
cante . Com eſte heroico , e lantodelin
tereſſe , lucrou a riqueza do Reyno do
Ceo , aonde o conſidera a noſſa pieda ,
de , pelos annos de 1400. = Lopes.
2 Em Vienna de Auſtria o Vene .
ravel Padre Fr. Henrique Roftoch.
Foi Religioſo de eminente doutripa,
e de húa perfeita Religiað . Nem he
necellario dizer mais , porque lheba
Ita , e fobeja para elogio , do que ha
ver educado tað myftica, e fantamen
te ao noſſo Veneravel Padre Fr. Joao
Nider , cuja precioſa memoria canto
acredita osFaſtos Dominicanos.Anno '
de 1400.- Ex Hiftor. Prov.Hungar.
3 Em
254 FR . PEDRO CHATANHAC ,
3 Em Ruaõ a muito virtuoſa So
ror Magdalena de Santo Antonio . Eo
trou eſta Serva de Deos po numero das
primeiras habitantes daquelle Moſtei.
ro , alegrando - ſe ſobre todo o encare
cimento , quando ſe vio honrada com
o noſſo ſanto habito , que inftantiffi
mamente havia pedido , e a cujas obri
gaçoens correſpondeo ſempre com a
maior fidelidade. Como he mui natu
ral lerem mais incommodas as funda
çoens de povo , commettia ella todo o
genero de trabalho , e por mais grave,
e eſcabroſo que foſſe
foſſe ,, o goſto ,, eo
o goſto co a
a florecêrao egregiamente na Ordem
gradecimento quemoſtrava por ſe ver
ja oa Caſa de Deos , lhe fazia compu .
iar tudo pelas ſuas maiores delicias.
Era humildiſſima, e nao havia couſa,
que lhe fizeſſe maior diſonancia , do
que ouvir fallar em ſuperioridades, e
Prelazias . Igualmente era incorrer no
ſeu maior deſagrado tratalla com a me
nor diſtinçaõ. A fanta pobreza eraõ
os amores porque ſe perdia , eem tu.
do fe lheobſervava. Na caridade nað
foi menos inſigne ; porque, eſtando pa.
ra morrer , menos fentia as agonias
em que eſtava , do que a pena que via
que dava pela ſua falta á Prioreza, que,
allim como todas as outras fuas com
panheiras , muito a amava.Levou -a
Deos para ſi, recebidos os ſantos Sa.
cramentos, po anno de 1671. idoſa de
vinte e oito. = Soueges.
4 Na grande Corte, e Cidade de
Lisboa , no Mosteiro da Roſa , a Vene.
savel Madre Soror Ignez da Nativi.
dade . Foi Religioſa penitencillima ,
e nimiamente zelota, e obſervadtená
guarda das Conſtituiçoens. Morreo
Santamente no anno de 1743. Me-
mor. do Moſteir.da Roſa.
25. de Agoſto.
25. de Agoſto.
Vida do Vencravel Servo
de Deos
FR . P E DRO
CHATANHAC ,
Extrabida do Anno Dominicano.
Res Religioſos , e irmaos,
T quanto á razao do langue,
do nome de Fr. Pedro Chatanhac',
de S.Domingos , ſeguindo a outro ſeu
irmao mais velho Fr. Joſeph Chata.
nhac : aquelle de que preſentemente
tratamos , he o ſegundo , é muito di
gno pelas ſuas relevantes virtudes da
honra de occupar o lugar do meyo .
Eſpecializou - o a natureza,muito mais
a graça, fazendo - o cada hûa hūmo .
délo da perfeiçao . Foi muito doentio ;
mas nem iſto , nem as luas laboriofil
ſimas applicaçoens . The tiravao o ſer
indiſpenſavel até o ultimo jota daob .
ſervancia. Nos dotes do animo , foi a
todas as luzes admiravel. Tinha hum
penetrante , e clariſſimo entendimen
to : de tal modo aclarava , e reſolvia as
maiores difficuldades , que ſeria hūa
dasmaiores materialidades pao enten
dello depois de ouvillo. Quando eſte
ve em Roma , e teve a honra de fer
apreſentado a Innocencio XI . de tal
modo fe havia nas dúvidas , que ſe
propunbao todas as ſemanas , que nao
foi pequena a gloria , que accrefcen .
tou á Ordem ; e alli a ficaria ſervindo,
ſe , por attender a ſua faude, ſe nað ville
preciſado a tornar a buſcar os ares da
patria . Finalmente , a lua erudiçao
Eſcolaſtica era tao conhecida , que
havendo o nofio Padre Reverendiſſi
mo de fazer pública huma edicçao das
Obras do noſlo inſigne Fr. Joao Ca
preolo , foi deſtinadoo Servode Deos
para hūa tao laborioſa commiflao , a
que eſte diligentiſſimo, e oculariſſimo
Eſcritorſeapplicou com a mais adhe
rente indagaçao.
2 Fi.
 SOROR URSULA THERESA DA GLORIA ,25 de Agoſto,
2 Fizerao -no Meſtre de Noviços
de Limoges , aonde foi hūa vez Prior.
Governou tambem duas vezes o No-
viciado de Toloſa ; e nao parecêrao
eſtas eleiçoens de homens , ſenaõ de
Deos , pelos bons effeitos , que dellas
reſultarao. Para exercer este meſmo
poſto na noſſa Caſa de Santa Sabina ,
foi chamado a Roma pelo Padre Gei
ral ; mas as ſuas queixas, como diffe
mos , o inhabilitárað. Teve hum ta-
lento ſelectiſlimo para o pulpito . Aba-
lava-ſe quaſi gente innumeravel para
ouvillo , e nao deixavaõ de fazer gran .
de ecco nos coraçoens as ſuas palavras.
Parecia que fallava pela boca da mel
ma gravidade, da meſma doutrina .
Ao modo que ſe diz do Cyſne , que
canta morrendo , neſte exercicio , tao
proprio da ſua Ordem , acabou eſte
verdadeiro Dominicano ; porque vin
do de prégar hūa Quareſma em Briva ,
ao tempo , em que era ſegunda vez
Prior de Limoges , poſto que tanto o
neceſſitafle , naõ quiz admittir algum
deſcanlo , ſeguindo a vida Religioſa
em todo o rigor da Conſtituiçaõ , e ja
ſe diſpunha para prégar o Advento , e
Quareſmaimmediatamente ſeguintes,
na Igreja de S. Marcial , Biſpo deLi
moges : aſſim o executou , foſſe em to
do , ou em parte ; mas como a averſao ,
que elle tinha a deixar , ainda que por
pouco tempo , o trabalho era tað gran-
de , e o pezo dos Sermoens , juntos a
hūa regularidade taõ inflexivel , tudo
iſto o veyo a proſtrar ultimamente em
húa cama .
3 Era de hūa eſtranhahumildade :
ſendo homem de hum taõ claro , e pro .
fundo juizo , era fazer-lhe būa das
maiores violencias o conſultallo ; nem
jamais deferia a ſemelhantes propo .
ſtas , ſenaõ depois que , de muito im-
portunado , ſe perfuadia que o seu fi-
jencio poderia encontrar-ſe com algũa
cenſura de nota. Pela modeftia, que
The reverberava no exterior , ſe podia
inferir que a interna ſeria como de
hum Adjo. A hera nað ſe prende tan-
to com as plantas , ou muros, quanto
255
elle eſtava unido , e adherente a Deos.
Daqui lhe provinha hũa tao candida
innocencia , que depuzerao os Reli
gioſos , que por muitos annos o con
feſſárao , jamais o acháraó incurſo em
hum peccado venial de determinaçao .
Finalmente depois de haver cabido;
como diſlemos , de cama, no dia do
grande Monarcha de França S. Luiz
em 25. de Agoſto , o progreſſo da
doença ſe foi aggravando de modo ,
que recebidos os Sacramentos partio
do mundo para o Ceo no anno de
1609. A fama da ſua Religiao , e fan
tidade eſtava cañ eſtendida, quehou
ve grande concurſo , pertendendo to
dos algúa reliquia lua ; pelo que , por
eſcuſar algum tumulto , foi neceffario
abbreviar, quanto antes , a piedoface.
remonia de o dar á terra .
25. de Agoſto.
Vida da Veneravel Madre
SOROR URSULA
THERESA DA GLORIA ,
Conforme as noticias , que ſe conſer
vao no Moſteiro da Annuncia
da de Lisboa.
I S pays da Veneravel Mar
dre Soror Urſula Therela
da Gloria , natural deſta invencivel, e
populoſa Cidade de Lisboa , chama.
vao -fe Joſeph Ferreira Cabedo,e Fran
ciſca Pacheco : eraõ peſſoas mui hon
radas , e tementes a Deos ; e poſto
que viviao com decencia , e limpeza,
faltavao - lhe com tudo as póffes para
poderem mettercinco filhas; que ti
nhaõ , Freiras, como ellas muito de .
ſejavao : lembrando - ſe porém de que
eſtas pertendentes , eraõ fobrinhas do
Padre Fr.Antonio Pacheco , Religio
fo da noſa Ordem , e que ſervio com
bella latisfaçao os ſeus cargos , e de
que tinhao duas tias no Moſteiro da
Annunciada , quehaviao ſido acceiras
pela prenda deMuſicas , e de que ſuas
filhas tinhao muita devoçaõ ao habito
de
256 SOROR URSULA THERESA DA GLORIA , 25.de Agoſto.
de S. Domingos, entrarao logo a pro-
curar - lhes Meſtre de Solfa , e naõ dei-
xou o Senhor de abençoar a ſua dili-
gencia,vindoa lograr-te effectivamen-
te os ſeus bons intentos.
Indo agora aos particulares da
noſla Urſula , começou eſta deſde mui-
to menina a dar logo indicios do que
ainda algum dia havia de vir a ſer. A-
conſelha o Eſpirito Santo que ſe que-
remos nunca offender a Sua Divina
Mageftade , ſejamos lembrados dos
nosos Noviſimos ; eſta Divina maxi
ma abraçou logo deſde os ſeus mais
tenros annos Urſula Thereſa. Ja en-
tao ( aſſim o confeſſou depois ſince-
ramente a hũa Religioſa fua amiga de
maior confiança ) ja entao gaſtava lar-
gas horas á noite na conſideraçao da
morte,antes que o fomno ( imagem ſua
mui propria) lhe houvelle de furtar
algum tempo . Aſſim ſe enſaiou , nao
fómente para a muita Oraçao , que,co-
mo bem fe obfervou no Moſteiro ,
ſempre tinha , ora eſtiveſſe , ora nao
eſtiveſſe locegada ,naõ perdendo hum
ponto de viſta a preſença de Deos , em
que ( como ella aſſim o diſle a hűa ſua
confidente) continuamente andava ;
e aſſim ſe via em todas as acçoēs , prin-
cipalmente aflim na modelia , alleio,
e perfeiçao , com que cumpria com as
ceremonias do Coro, como preftimo,
celeridade , e boa graça,com que a to
das fervia , coma ſe niſto oblequiaſle
ao meſmo Creador em peſſoa , que el-
la de facto contemplava, e reſpeitava
em cada individuo , ſena ) para parti-
cipar aquella referida bencao , que o
meſmo Eſpirito Santo , de cujos doos
teve muito a Serva de Deos,e nao pou..
cas vezes aproveitou o teu proximo
com o do conſelho , que promette a
ſemelhantes contemplativos; porque
foi tal a pureza de conſciencia com
que viveo Soror Urſula , que coman-
do ſempre larguiffimo tempo para co-
dos os exames das ſuasconfifloens ; em
hūa geral, que lhe ouvio ſeu Confef-
for o Padre Meſtre Fr. Pedro Montei .
ro , e ja ſe vê quanto havia de ſer maior
a ſua prevençao ,eimpertinencia , con
feffou depois aquelle Religioſo , nao
lhe haver deſcuberto būa ló culpa gra
ve.
3 O que os antigos Mythologos,
e Poetas tabulárao da ſua Pandora ,
fantaziando que cada hum dos ſeus
falſos deoſes à tinha enriquecido , e
condecorado com as ſuas mais bellas ,
e honorificas qualidades, parecia que
ſe via vereficado , Chriſtaa, e mais' al
tamente , na noſſa Urſula ; porque co
mo a ſua Eſpoſa , tað fiel, e tao per
feira , que ella havia de ſer , a dotou a
Soberana , e prodiga Mao do Author
de todas as perfeiçoes de exquiſitas, e
muito amaveis prendas. Quem havia
de receber tantos dotes da graça , que
muito que alcançaſſe tanto dos favo
res da natureza ! Teve hum juizo mui
claro : e ſe S. Paulo ſe accommodava
com todos , e a tudo , eſta Serva de
Deos , aſſim como oimitava em ter a
meſma aptidaó , le diſleſſe de ſiomer
mo , dillo -hia certamente com toda a
piedade . Todas a achavao de preſti.
mo , e ninguem jamais acudia ao que
ella tinha , que nao foſſe igualmente
fervida , que admirada. Qualquer cou
fa que fazia , era com hum tað bello 3r ,
e com tað bom ſucceſſo , que hūa ſó
hora de trabalho ſeu nao podia ſer
igualada por muitas , de muitas outras
concurrentes ; por iſto lhe puderao
tambem cahir muito a propoſico aspa
lavras do meſmo Doutor das Gentes,
que dizia de fi:Havertrabalhado mais
que todos. Nem era muito que foſſe a
Serva de Deos tao preſtadîa , tendo ,
como tinha , por meſtra a ſua fervoro
ſiſſima caridade. Eſta foi sempre mui
intenía , e muito com os olhos naquel
le Deos , que , ſendo Fonte de todas ,
ſe diffine dizendo expreſſamente : Ser
Elle meſmo eſta Rainha das virtudes.
Diremos aqui com opportuna digreſ
fao alguma coula , donde ſe infira o
grande amor , que eſta boa Religioſa
teve , ſempre em Deos , ao ſeu próxi
mo .
4 Qbſervou - ſe depois que ella en
trou
 SOROR URSULA THERESA DA GLORIA , 25 de Agoſto
trou na Religiao ; queſendo , como
era , de grande humildade, e pondo-a
a obediencia em alguns officios , que
ao diante eſpecificaremos, todos ſer-
vio com muito goſto , com o penſa-
mento , em que aſſim deſcanſava da
ſua parte algumas Religioſas, a quem
muitos delles nao deixaria o de ſer
mui cuftoſos ,'e moleſtos : por eſta mel.
ma razao , ſupprio nao poucas vezes,
por outras , como ſe o tiveſſe de obri-
gaçao , os Officios do Coro, e as len-
das da meſa , procurando aſſim ſer-
villas humilde , e aliviallas caritativa,
mente. Quando foi Enfermeira , nao
podia haver mais deſvelada máy em
aſſiſtir , e amimar ſeus filhos do que
a poſta Veneravel Madre Soror Ur-
ſula , no reſguardo , e ſerviço das ſuas
doentes : de noite , e de dia jamais
lhe faltava da cabeceira, conſolando-
as muito com as amoroſas palavras que
Ibes dizia , e nao as obrigando menos
com o muito que em ſeu pró obrava .
Mas nað eraõ ſomente as habitantes
da caſa aquellas , a que ſomente abrā-
gia a ſua muita benignidade, que nao
podendo conter-ſe dentro daquelles
clauftros, ſahirao até fóra delles os
ſeus miſericordiolos effeitos. Naopo-
dia ouvir couſa , ainda que em mate-
ria mui venial, que eſtiveſſe 'menos
bem ao ſeu proximo . Fazia muito por
divertir a converſaçao , ſe acaſo per-
cebia , que ella tendia a ſemelhantes
materias : e quando iſto nao lhe era
poſſivel, ao tempo em que ſe eſperava
que ella diſleſſe tambem alguma cou-
ſa ao intento do que ſe diſſera, ſahia-
de com eſtas poucas palavras, com q da-
va por concluida a pradica naquelle
particular : Somos todos muito miſerar
veis , e ninguem póde cuidar que he
7
melhor , e tal vez nem ferá tað bom
como aquelle que nao lho parece : ſó
Deos nos conhece, e elle ſó ſabe a ver.
dade de tudo ,
5 Dos pobres foi ſempre amantiſ.
fima: andava mendigando pelo Mo-
ſteiro para os favorecer , com tanto ,
ou maior empenho do que fe pedille
Tom. VII.
257
alguma couſa do que extremamente
careceſſe para fi. Eftava ja para ir por
inſtantes dar contas a Deos, e a fua
maior ancia , era recommendar os ſeus
neceſitados : punca lhe quiz dar as
elmolas frias ; primeiro as hia aquen
tar ao forno, ou áscozinhas : ifto mef
mo advertio , quando ja eſtava para
morrer ; a reſpeito de hum donato
da Caſa , a quem a Serva de Decs era
bem affecta pelo ver com grandes 10
clinaçoens à virtude , dizendo, que
lhe nao deflem fria a ſua eſmola, por
ſer mui achacado de queixas eſtoma.
caes.
6. Voltando agora aos muitos do
tes naturaes da noſia Veneravel Ma
dre Soror Urſula , tinha ella húa voz tao
clara, tao canora , e taõ cadente , que
a fer poſſivel poder dar-ſe no mundo
alguma idea da harmonia dos Anjos,
ella ſomente a poderia offerecer , e
repreſentar. Elta prenda conſagrava
ella aos Cultos de ſeu Divino Eſpoſo
com hűa piedade extraordinaria. Re .
conhecendo que lhe nað fora dada
para outra couſa, quiz muito por ſụa
vontade ſer Captora alguns doze an
nos. Seria deſneceſſario defcrever a
qui o bem que ella ſervio efta occupa
çao. A ſciencia, que tinha deſta facul
dade , foi, ſem hyperbole , a todas as
luzes mui tranſcendente : a cada ver
ſiculo dos Pſalmos dava differente
ar , e ſempre com a meſma galla , com
o meſmo acerto . Dava -lhe grande tra
balho inſtruir neſta habilidade as me
ninas ; mas inftruia -as com igual per
feiçao , que paciencia , dando por bē
empregado todo o trabalho que niſto
tinha , que nao era pequeno , menos
na avaliaçao da Serva de Deos, que
nenhum lhe parecia , pela devota uſu
ra , com que ella procurava que todas
as creaturas obſequiaſſem ao Creador
com os talentos que elle lhes partici .
pára , ao modo , com que os rios tor
nao o cabedal das aguas ao mar , don
de primeiro as haviao contrahido. De
tal forte te davao no leu canto as maos ,
a devoção com a melodia , queigual
Kk mente
258 SOROR URSULA THERESA DA GLORIA , 25
mente recreava as potencias , que os
ſentidos. Nao era o que dava menos
alma ao muito preftimo, que tinhapa-
ra o Coro , a exactiſſima perfeiçaõ , e
lumma piedade, com que ella exercia
todas as ſuas ſagradas ceremonias .
7 Em húa noite do Natal canta-
va tao doce , ou , por melhor dizer ,
tao celeftemente , que parecia que-
rer competir com a conſonancia dos
Santos Anjos , que em outra femelhan-
te noite forao ouvidos em Belem ,
Mas aſſim como ella , aindaque pudeſ.
ſe parecer que o ſeu cuidado unico
era cantar bem , opunhamuito maior
no Sagrado Myfterio que celebrava :
aſſim outra Religiola , que lhe ficava
de fronte , de talmodo ficou abſorta ,
e embebida nas harmónicas vozes de
Soror Urſula, que ſe eſqueceo de acu-
dir ao Officio Divino . Vendo - a no
outro dia , e dizendo-lhe o que lhe
acontecera : Tomára eu , minha Ma-
dre, ( lhe reſpondeo a noſſa muſica )
tomára eu as ſette cabeças do monſtro
do Apocalypſe , e ainda outrasmuitas,
ſeriaõ todas muito poucas para louvar
a Deos.
8 Temos viſto maravilhas defta
inſigne Religioſa , e que ella obrou
dentro dos clauſtros da Annunciada
de Lisboa , e ainda a nao temos den-
tro delles : o haver de tocar em tan-
tas das ſuas perfeiçoens , que fomos
deduzindo com a melhor ordem , e
connexao que nos foipoſſivel , aſſim
nos foi entretendo : vamos pois ago-
ra á ſua entrada naquelle tað illuſtre
Moſteiro. Tendo , pois , Urſula a pe-
regrina voz que ponderámos, ſendo,
como ja dillemos , tað notavel a ſua
propenſao para tudo o que empren-
dia , muito mais para ambas as fcien-
cias muſicas , inſtrumental, e vocal ,
que gaſtando , e talvez deſaproveitan-
do outras Tette annos , e mais , em
aprendellas , a noſa Urſula no brevif
fimo termo de ſeis mezes ſe pôs tao
corrente , que mais parecia meſtra ve-
terana , do que diſcipula , que detao
pouco tempo acabava de ſer. Habili.
de Agoſto ,
tada aſſim para entrar naquella tao Re
ligioſa Cala , como era tað vehemen
te o deſejo que ellatinha de conſagrar
ſe a Deos nella , feitas todas as boas
diligencias, foi brevemente recebida
com todo o agrado , e ſatisfaçaõ da .
quella exemplariſlimaCommunidade.
9 Fez o ſeu Noviciado tao lanta
mente , que naõiómente aproveitava
com o ſeu exemplo as outras Noviças,
ſenao ainda as outras Religioſas mais
adiantadas no caminho da virtude ;
porque como ſe ja foſſe Coreira pro
feſta, e mais obrigada , obſervavain
violavelmente até os apices de me .
nor momento da Conſtituiçao. Che
gado o termo de profeflar , ſe diſpôs
para celebrar , e celebrou eſte acto
mais como creatura Angelica , do
que humana. Da exacçao que tinha
moſtrado quando Novica , ſe pode
colher qual ſeria a ſuaobſervancia de
pois de profeſſa. Era ja capaz de ſer
Meftra ; mas nao quiz admittir dif
penſaçaõ para ſer tirada antes de pal
ſados os tres annos da Caſa de Novi
ças , como ſe eſtyla na maior regula
ridade da Ordem . O veſtido , e co .
bertura da cama , tudo era de eſta
menha , tudo pobriſſimo: era muial
ſeada ; mas o alinho do ſeu veſtido ,
fim muito limpo , mas era o mais deſ :
pido de alleio , o mais reformado ,
cumprindo aſſim piſto , como emou
tras muitas couſasmuifielmente ovo.
to de pobreza, que fizera aquelle Se
nhor , que lendo a unica riqueza do
Ceo , e do mundo , neſte quiz ſer tao
pobre , naſcer de pays pobres, e vi .
ver principalmente com os pobres ,
e humildes. Era rigoroſiſſima nos je .
juns dos ſettemezes , e a que a ſua de
voçaõ accreſcentava muitos outros ,
todos mui ſeveros. Era mais certa no
Coro de dia , e de noite , do que em
qualquer outra parte ; e como goſta .
va tanto do Officio Divino , poſtoque
nao aprendera Latim , tinha hūa bela
liſſimaintelligencia das homilias , ede
toda a'mais reza das Horas Canonicas.
Tinha huma notavel devoçaõ com o
Pfal.
 SOROR URSULA THERESA DA GLORIA , 25 de Agoſto.
Pſalmo Davidico , que principia : Can .
tarei eternamente as miſericordias
do Senhori: he mui crivel ' , que de-
pois de as haver cantado tao digna-
mente em tempo na terra , ja agora
as eſtará alternando no Ceo com os An-
#
jos,por toda a eternidade.Como o meſ-
mo Pſalmoera tanto de ſeu goſto , im-
portunava muito os ſeus Confeſſores
para que lho deſſem de penitencia.
IO Aſſim como era tað rigidamen-
te obſervante , deſejava que todas as
outras luas Co -Religioſas foflem igual-
mente zeloza , e poptuaes : por iſſo
em vendo qualquer omiſſaõ , ouder-
cuido , logo o apontava , e advertia
para a emenda. Como era tað conhe-
cido o ſeu eſpirito de obſervancia , e
a ſua prudencia a fazia tao digna , e
crédora de todos os empregos da
Religiao , foi promovida a alguns, e
chegaria a ſervillos todos , ſe nao ſe:
The intrometreſſe a morte de permeio :
aquelles que teve , deſempenhou com
fingular ſatisfaçao. Foi refeitoreira :
ja difTemos por occaſiao da ſua cari .
dade , que a fizerao Enfermeira : do
meſmo modo tocamos tambem que
foi Cantora, e Porteira : eſte officio
occupou.o duas vezes. No cargo que
fe lhe confiou de Sacriſtaa ſegunda,
moſtrou bem o ſeu goſto , e grande
devoça o no difpendio , e aſſeio de tu-
do o que havia de ſervir na Igreja ao
Culto Divino . Finalmente fizerab -na
Meſtra de Noviças , e neſte lugar ſere
vio tað utilmente a Religiaõ , for-
mandoo eſpirito de ſuas fubditas, que
parecia , por tranſmigraçaõ Pythago.
sica , lhes communicava o ſeu proprio ,
couſa que tanto deſejava Eliſeo a ref-
peito de Elias.
II
Foi ſempre mui amiga de mor-
tificar ſe. Ja diſlemos, que aos jejuns
das Leys da Ordem juntava muitos
outros. Callejárað -ſe lhe os pés : nao
podia andar , ou andava com mui
to trabalho , e difficuldade, e o mui-
10 deſejo que tinha de padecer com
Chriſto , e por Chriſto , lhe fazia le-
ves, e ſuaves todos eltes incommon
Tom . VII:
259
dos. Levava todas as noites dos Lauf
perenes , e das Endoenças dejoelhos
no Coro cantando Pſalmos , e Hym
nos , e convidando outras Religioſas
para o meſmo exercicio : nem ainda
ſe levantava quádo neſtas occaſioes The
cabia por turno cantar as lamentaçoēs;
porque ajoelhada o fazia . Diciplina
va-ſe deshumaniſſimamente, e caſtiga
va de ordinario o ſeu corpo com aſper
rimos cilicios . Teve algumas adverſi
dades , e muito que padecer por cauſa
de ſeus parétes de fóra , e tambem com
as moleſtias das de dentro : a tudo foi
ſempre ſuperior o ſeu animo , e confor
midade com as diſpoſiçoens da Provi.
dencia. Neſtes , e em quaelquer ou
tros incidentes menos favoraveis , lhe
aſliftio tempre hũa paciencia ta 7 firme
e ajuſtada com as ordensde cima , que
nao podiaô haver rocha maritima, que
tanto reziſtiffe as ondas mais furiolas,
e empenhadas na ſua expugnaçao , do
que o impenetravel diamante da ſua
tolerancia no meio do mar das tribu
lacoens, e disfavores da fortuna. Mor
reo-lhe , ſem tal ſe eſperar , porque
eſtava muito bem diſpoſta , hũa'lua ir
maã em menos de hūa hora , de mor
te apreſlada: pinguem lhe pode jamais
ouvir outra couſa , lenaô muitos actos
de reſignaçao . Senhor ( dizia ella de
ordinario ) faça - ſe em tudo a voſa
Santiſſima vontade.
I2 A lua devoçaõ daria materia a
muita eſcrita. Ja diſtemos alguma cou
fa do muito, que ella amantemente
zelava o maior explendor do Calto
Divino. Prohibirabos Prelados o can
to de Orgao , que era da fundaçao
da Caſa , pela neceſſidade , que eſta
tinha de receber Religioſas mais bem
dotadas , do que as que entrao por
muſicas, cujos doces nao ſao tao es
forçados ; e podendo ella por eſte
principio poupar-ſe aquelle trabalho , 1
e accommodar -ſe com as novas ordēs ,
como eſtas nao tendiaô mais que ao
fim que acabamos denotar , jamais ſe
quiz excluir aquella maior perfeiçao
coral, e por cuja cauſa tinha ſido acei
Kk i ta
260 RECOPILAC,
ta na Caſa: O meſmo fizeraõ ſuaspa :
rentas . Naó podia a Communidade
obrigallas aos Officios; mas ellasacu.
diao mais promptas, e voluntarias por
devotas , do que o podiao fazer por
obrigadas . Fallava a noſſa bõa Reli
giola muito pouco ; mas 'nem podia
fallar mais, nem melhor ; porque nao
mais que Deos he que foi ſempre o
unico argumēto das ſuas converſaçoēs.
O deſcanſo que tomava depois de jan-
tar era ler por livros eſpirituaes, a cu-
ja liçaõ ſe dava com igual frequencia,
que propenſao .
12 foi devotiſſima do Santiſſimo
Naſcimento do Senhor ; e acima fi-
ca ja referido, o que lhe ſuccedeo em
hữa noite de Natal. Foi mui affeiçoa
da aos Santos da Ordem , e devia.
The affecto mais particular , o Doutor
Angelico , cuja Capella tomou á fua
conta, para enfeitalla, e aſſealla ; e
S. Vicente Ferrer: nao havia Imagem
defte Santo na Caſa ; mandou a fazer
Soror . Urſula ; e houve algumas eſmó-
las para accrelcentar o culto da ſua
Capella : accreſcentou.o , e andava
na diligencia dea dourar ; masa mor-
te , como termo de todos os proje-
etos , e eſperanças, cortou eſtas , nao
obftante ſerem tao piedoſas , e Chri.
ſtaás. O Santo porèm , naõle deſcui-
dou ; porque indo ao Paço Sua Ma
geftade , que naõ cede em piedade, e
grandeza aos Principes mais decanta-
dos nas Hiftorias , pela religiao , eli-
beralidade , lhe deo hũa magnificen-
tiſlima eſmóla , com que ſe fez com
todo o fatto o melmo douramento .
14. Chegado finalmente o ditoſo
termo de hūa vida rao illuſtre , cahio
de cama a Serva de Deos de hum pleu-
riz : nao parecia a principio de cuida-
do ; mas de tal modo ſe foi engrave-
cendo , que deſconfiáraõ os Medicos.
Aviſarao na : recebeo ella a adverren-
cia com alvoroço ; preparou.fe com
os Santos Sacramentos , e em 25. de
Agoſto de 17 .... voou o ſeu grande
eſpirito com azas de aguia , a fixar
para ſempre os olhos nas luzes do
Eterno Sol .
A M de 25 , de Agoſto .
RECOPIL A C, A M
de 25. de Agoſto.
I O Reino , e Cidade de
N Valença as Veneraveis
Madres Adelaidas de Romans . Erao
meias irmaās ; e nao levaõ alguns Va
lencianos em paciencia , que eſtas fi
Ihas de S. Domingos ſejao referidas
ao natural, que alguns Authores Ihes
aſſignaõ na ltalia , dizendo contra eltes ,
que lhes querem fazer argumêto com
o appellido das Servas de Deos , que
efte , aſſim como nas Provincias Ita
licas , o havia tambem nas Helpanhas.
O Padre Soueges porém , atiento a
que ellas etdavao conjunctas com a
Veneravel Madre Soror Catharina de
Pezáro , Italiana , cuja vida ſe eſcre
veo ja no 5. Tomo defte Agiologio ,
propende mais para que todas foſſem
de hūa patria. Deſta ſe paſſaraõ a Va
lença , aonde a Ordem ainda nao 11
nha Moſteiro algum de Religioſas ; e
como vinhao patrocinadas pelo Papa
Honorio IV. por hűa ſua Bulla partie
cular , forao com effeito admittidas
ao Inſtituto de S. Domingos , no nof
fo Capitulo Geral de Burdeos , cele
brado pelo Reverendiffimo Fr. Mu
nio de Zamora no anno de 1287 .
S Foi creſcendo com grandifli
mosaugmentos aquella fundaçao , que
tem a Invocaçao da Santa Magdale
na , muito mais com os favores , e
graças do Rey Dom Jaime de Aragao ,
a cuja inſtancia deo o Papa Bonifacio
VIII. a ella caſa hom Convento , que
Gregorio X.quizera extinguir no Con
cilio de Leao. Tambem foi mui fa
vorecido o meſmo Moſteiro da Rai
pha Dona Branca , mulher do referi
do Dom Jaime , e filha de Carlos de
Sicilia ; e de outrosmuitosSenhores ,
e Soberanos. Eraó péfioas de vida
jufiificadiſſima, e cumo taes mui re
commendadas na referida Bulla Pop
rificia. Sabiao com habilidade a lin
gua Latina , ſegundo aſſim ſe deixa
colher , tanto da meſma Bulla , como
da
 D. FR . JOAMDE PUI DE NOIA , 26 de Agoſtos
da Cedula que ſe lhes paflou no mef
mo Capitulo . Hũa deltas Adelaidas
foi Prioreza da Caſa , e morreo no
anno do Senhor de 1293. A outra
em 1295. = Diago.
2 Neſta Provincia de Portugal o
Veneravel Padre Fr. Pedro Lopes. A
ſemelhança , que em bõa Filoſofia he
cauſa de amor , como temelhante na
virtude , fez muito huns nos affectos
a eſte bom Padre , e o noſſo Venera .
vel Padre Fr. Luiz de Granada . Am
bos ettes Servos de Deos emprende
rao , e concluirao a fundaçao donof .
ſo Convento de Santo Antonio de
Montemor o Novo . Dizem que , co
mo ſe os Santos , que ſe conſervaõ
todas á viſta de Deos em būa tao in-
explicavel caridade , foſſem capazes
deites caprichos , ou parcialidades ,
pao levando a bem os moradores da
terra que hum Santo da Ordem de
N. P. S. Franciſco deffe nome a hūa
Caſa de S. Domingos , duas vezes le .
váraó a Imagem do Bendito Santo
Antonio para outra parte , e que ou
tras tantas tornára ella a ſer repoita
milagroſamente na Capella , que lhe ha
viamos deſtinado na noſſa Igreja. A
eſte propoſito eſcreve o Padre Soue
ges, que em Avinhao fe venera tam .
bem o noſſo meſmo grande Santo Por-
tuguez em hūa elegantiflima Capella ,
a onde vai rezar folemnemente a noſlá
Communidade as Vefperas , e Offi-
cio do meſmo gloriofo Taumaturgo
de Portugal . = Souſa , Lopes ,
Soueges.
1
262
26. de Agoſto.
Vida do Illuſtriſlimo Biſpo de
Cathania , e Vice -Rey do >
Reino de Sicilia , o Vene
ravel
D. FR . JOAM DE PUI
DE NOIA ;
Extrabida do Anno Dominicano.
I Noſſo Illuſtriſſimo Biſpo
O Cathanenſe , e Vice- Rei
de Sicilia , o Veneravel Padre D. Fr.
Joao de Puî, foi hum dos mais claros,
e preclaros ornamentos da ſua Pro
vincia de Toloia . Sendo Prior do
ſeu Convento de Limoges , inſtituio
nelle alguns eftylos muito ſantos , que
ainda hoje ſe praticao, nao fem pe.
quena gloria do ſeu nome. Elle foi o
primeiro 3 , que determinou que ſe
juntaſem todos os Religioſos no dor
mitorio a cantar Matinas , que cada
hum até entao rezava na fua cella .
Foi Author de outras muitas diſpoſi
coens, e beneficiou com muitas obras
a meſma Caſa de Limoges. Fezo Ca.
pitulo , e a livraria , que condecorou
com venuſtiſſimas Imagens da Santa
Magdalena , S. Domingos , S. Pedro
Martyr, e Santo Thomaz Angelico.
2 Era amiciſſimo de S. Vicente
Ferrer ; e nao ſao poucos os Autho .
res, que trazem húa carta , que eſte
Santo lhe eſcreveo, aonde miuda , e
individualmente lhe noticiava os ſuc
e
ceſſos das ſuas Miffoens. Fxercia o
feu Priorado de Limoges , quando a
Igreja ſe achava dividida com aquelle
eſcandaloſo ciſma de Pedro de Luna ,
que pertendia aſcender ao Summo
Pontificado , e cuja facçao , aſſim co .
mo de outros muitos grandes , e fan
tos homens era apoiada pelo meſmo
S. Vicente ; e attentos os Padres que
ſeguiao eſte partido aosrelevantes me
recimentos do noſſo Fr. Joao , o fize
raó cabeça da ſua parcialidade .
3 Celebrado no ſeu Convento o
Capitulo Geral , nelle ſa hio eleito , e
dezoi
262 D. FR . JOAM DE PUI DE NOIA , 26 de Agoſto.
dezoito apnos foi Geral da Ordem :
Com eſta dignidade , afſiftio ao Con-
cilio de Conſtancia , aonde ſe dimit.
tio della. Quanta foſſe a eſtimaçaó ,
ſ ſe fez do Servo deDeos naquelle Sy-
nodo,ſe vê expreflamente da Seſſao 32 :
aonde ſe diz : Que querendo os Padres
do Concilio proceder na materia que
se ventilava.com toda a madureza,ha
viaõ commettido os pontos della aos
filhos dile &tiſimos da Igreja , os Emi-
nentiſimos, Guilherme Presbyterodo
Titulo de S. Marcos , e Franciſco de
titulo de S. Cofme, e Damiaõ ; a Joao
eleito Patriarcha de Conſtantinopla ;
aos Veneraveis Irmaos Roberto Sares-
berî,Joao de Lichfeld ,ao Biſpo Eſtevaõ
de Dol, a Guilherme Le Bel , a Neveu
de França , e a Joao de Puido Noia,
Geral da Ordem dos Prégadores,ſub-
ordinado a Pedro de Luna , chamado
Benedikto XIII. Doutor ó em Theo-
logia; a Miguel de Navers, Doutor
em ambos os Direitos ; a Joao de Le
dena Juriſconſulto, e orador dos Se .
reniſimos Reys de Aragao , e Navar-
ra ; a Jacome eleito Biſpo de Parma ;
a Hermano de Dunquerque Proto :
Notario da Santa Sé Apoftolica ; a
Roberto Abbade del Luni ; a Nico-
lao Voidis Doutor em Direito Cano-
nico , e Civil ; a Pedro Nordi; a Hen-
rique Fleckel Doutor Canoniſta , Ca.
pellaens da Santa Sé de Roma ; ao
Auditor do Sacro- Palacio , e a Joao
Rellis Doutor em Direito : Que era
feu intento , que todos eſtes Commif-
Jarios juntamente , ou a maior parte
delles examinafſem os artigos da que-
ſtað , que , ou ſe leriaõ publicamente
no Concilio , ou perante os meſmos De
putados : Que ao menos dous deſtes
conheceriaõ doproceſado, e das teſti.
munhas , e provas, que ſe produziſ
fem ; para o que ſe lhes concedia a fa.
culdade de juramentar aos depoentes,
attendendo -ſe muito a que ſe averi .
guaſſem , e pezaſſem as couſas no mais ' aos Padres daquelle Concilio . Para
rečto equilibrio da razao : porque nao iſto , ouvidos os Embaixadores dos
fuccedeſe, ſe naõ a tiveſe ficar de,me. Preclariſſimos Principes Ladisláo de
Thor condiçaõ a facçao que tiveſe
maior ſequito ; nem eſte maior nume .
ro , ou qualquer outro incidente, que
muito ſe devia precaver , fole de ab.
gum prejuizo a outra parte : Que fof
ſem recebidas, ainda que em diverſos
tempos, outras novas provas a buns
meſmos artigos: Que de tudo que
achalem na jua inquiriçaõ , darinā
conta ao Sagrado Concilio, para eſte
haver de proceder como folle mais
conforme à vontade de Deos, ao bem
da ſua Igreja , e a deſcargo das conf.
ciencias dos Padres : Qne os meſmos
Delegados, ou todos , ou parte delles,
tomariao a ſeu cargo citar , ou fa
zer citar peremptoriamente a Pedro
de Luna no dia , lugar , e hora , que
lhes pareceſſe mais competente para
elle comparecer naquelle Synodo, e
ver , receber, produzir , e fazer ju
rar as teftimunhas da ſua cauſa , e de
por ſobre as materias, em que foſe
perguntado, para melhor indagaçao,
é conhecimento da juſtiça , ou menos
juſtiça da ſua cauſa. Detta Seſlao ſe
póde interir nao fomente agrandeza
do talento do noſſo Veneravel Fr.
Joao , pelos encargos , que ſe lhe com
metterao naquella graviſſima , e dou
tiſſima Allembléa , ſenaộ a diſtincta
eſtimaçaó que delle ſe fazia , dando
fe - lhe preferencia a Roberto Abbade
de Clunî, ſendo oſeu Moſteiro cabe
ça da Ordem .
4 Continuando o Concilio , foi
eleito upiformiſſimamente na Seſlao
41. Martinho V.,nomeque tomou por
ſucceder eſta promoçaõ no dia do San
to Biſpo Turonenſe , que lho dêo , e
entao ſe feſtejava. Eſtava eſte Pontifi
ce grandemente affeiçoado ás muitas
virtudes , e prendas do noflo Fr Joao ,
eoelegêo por ſeu Confeflor, conſtitu
indo - o ſeu Viſitador Apoſtolico , e
Biſpo de Cathania , em Sicilia. Quiz
tambem honrallo , dando - lhe a com
millao de deſpedir , como deſpedio ,
Polonia , e AlexandreGrao Duque de
Litua
 RECOPILAC ,
Lituania , ſubio ao pulpito , aonde fez
buma belliſlima Oraçao , fundada na
quellas palavras do verſiculo 22. do
Capitulo 16. do Querido Evangeliſta:
Vós eſtais agora triſtes, eu me verei
comvoſco outra vez , e o volo cora-
çao entao je alegrará .
s Parlou o noſſo Veneravel Biſpo
a Cathania , e ordenou o Papa ao Bil.
bensque
po de Syracuſa , que todos os bens que
eſtiveſſem por elle, ou ſeus Predecef-
fores alheados á Cathedral Cachanen-
ſe , lhe foſſem reſtituidos. Aſlim ſe
executou effectivamente com grande
conſolaçao do noſſo Prelado , para
ter mais que repartir pelos pobrezi-
nhos de Jesu Chriſto , a quem aſſiſtia
mais comoPay , que como bemfeitor.
Inteirado Affonſo , Rey de Aragao , e
Sicilia , dos ſantos procedimentos do
Veneravel Biſpo D. Fr. Joao de Pui ,
por hum ſeu expreſlo , com data de
15. de Junho de 1421. que lhe enviou
a Meſlina , o eltabeleceo Vice Rey de
Sicilia , emprego de que o Servo de
Deos dêo toda aquella boa conta , que
delle ſe esperava , e vigiando , naõme-
nos do que ſobre o ſeu rebanho , fo-
bre a ſua ultimahora , confiado no pa
trocinio da Senhora do Roſario, de
quem era devotiſſimo , a tevede hum
Santo aos 26. de Agoſto do anno de
1431 .
RECOPIL A C , A M
de 26. de Agoſto.
I MOrleans o Veneravel Pa-
dre Fr. Guilherme . Havia
tido hum emprego em Sells , capital
da Provincia de Champanha , em
França . Renunciando o mundo , en-
trou na Religiaõ , aonde viveo incul.
pavel , e exemplariſſimamente. Efta-
va ás portas da morte ja ungido , e ro
gou aos ſeus aſſiſtentes , que lhe nað
fallaſſem áquelle tempo do rigor do
juizo , das penas do inferno , ou de
qualquer outra couſa , que o pudeſſe
contriftar , e affligir ; mas que ſó lhe
A M de 26 de Agoſto. 263
trouxeſlem ao penſamento as miſeria
cordias do Senhor , eas delicias do Pa
raiſo . Pareceo que iſto era tentaçao,
e como o bom Religioſo havia vivido
tað regularmente , e era tað bemqui
ſto de
ſto todos , choravao- no muicos.
de todos
Porque chorais , ( lhes perguntou )
ou porque vos entriſteceis, Cariſſimos
Irmaos meus ? Se eu me ſalvo , antes
deveis congratular -me, que carpir
me ; e le paro ao Purgatorio, inges
nuamente confeſo , que maior pena
merecem os meus grandes peccados ;
mas ao inferuo, eſtai ſeguros quenaõ
hei de ir , comoeſpero na infinita Bon
dade de Deos . Eſtavaõ niſto , quando
entrou pela cella dentro outro Reli
gioſo , chegou - ſe a ſua cama , e per
guntou - lhe como eſtava? Reſpondeo
o doente : Que muito bem . O outro
entrou a perjuadillo , que eſtiveſſe de
bom animo , e ſe confeſſaſſe. Gran
de , e muito culpavel deſcuido feriad
meu ( reſpondeo elle )ſe meguardare
para taõ tarde. Pouco tempo depois,
deſcanſou placidiſſimamente no Se
nhor , go anno de 12 40. = Vitæ Fra
trum.l. 3.p.6.2 .
2 Em Beona ,na Borgonha , as mui
to virtuoſas Irmaás Noviças Soror Be
nigna Brunet, e hũa fua Companhei
ra.Nafcêra Soror Benigna de hūa Ma
trona , que tinha muito de Deos , e o
bom exemplo da máy com as boas in
climacoens da filha deraõ muito lugar
a que ſe viſſem neſta menina os efei.
tos da Divina Graça. Fez Benigna ,
ſendo de doze para treze annos , hum
concerto com ſua máy , e foi, que por
hum mez ſe obrigava a guardar hum
ſilencio rigoroſiſſimo : ajuſtáraõ fe
niſto , e paflárað oito dias , em que a
pequena obſervou o eſtipulado com
hūa fidelidade extrema . Receou a
máy que eſta mortificaçao , pela pri
var das diverſoens proprias dos teus
annos, a vieſſe a prejudicar na ſaude,
e pedio 10 ſeu Confeſſor, que a ali
viaſle no reſto do termo , que ainda
faltava para completar o mez . Aſlim
o fez o Padre ; mas Benigna nao quiz
que
 264. SOROR MAGDALENA DE S. PAULO , 27 de Agoſto .
que eſta diſpenſa ficaſſe ſem remune-
raçao,e apertou tanto com ſuamáy,pa-
ra que a metteſſe no noſſo Moſteiro de
Santa Catharina daquella Cidade , que
nao houve mais remedio , que condeſ-
cender com os ſeus piedoſiflimos de-
ſejos. As Religioſas recebêrao.na a
ella, e a outra pertendente da meſma
idade, e nao de menos fervor, como
le foflem dous Anjos , que lhes entraf-
ſem pela porta dentro : Pouco tempo
ſe puderao lograr deſta felicidade ,
porque deſcarregando Deos noflo Se
nhor ſobre aquelle paiz a açoute da pe-
Ite morrêrao deſte contágio eſtas
duas innocentes almas, ſendo as pri-
meiras, que daquella Caſa paffáraópa-
ra o Paraizo no anno de 1638. = Fr.
Joannes à Santa Maria. Tom . I. pag.
987 .
27. de
Agoſto .
Vida da Veneravel Madre
SOROR MAGDALENA
DE S. PAULO ,
Extrabida do Anno Dominicano .
1 Cidade de Toloſa , tao ceo
A cuin
canos , foi a illuſtre patria da poſla
Veneravel Madre Soror Magdalena
de S. Paulo . Seus pays eraõ peſſoas
muito honradas , e fundavao neſta fi-
lha , que era o unico fruto do feu thá-
lamo , as esperanças da ſua mais levan-
tada fortuna ; por iſſo a criavao com
todo o mimo , e cuidado. Aſſim co
a dotou tambem a natu .
mo a graça ,
reza com mao muito prodigamente
larga. Aconteceo - lhe por delaſtre ca-
hir bú dia no rio Garona , aonde era
imminente o perigo dele affogar ; mas
Deos , que a reſervava para outro fim
mais ditoſo , tomou a ſua conta livral-
la deſta deſgraça. Vendo a ſua māy tao
inclinada ao recolhimento , e ſolidao ,
a induzia a ſahir a divertir-le , e ainda
queria que ella ſe achafle nos bailes ,
é feſtins: iſto cuſtava muito a Magda-
lena, e tinha muito que merecer neſta
obediencia. Como lua máy lhe dava
eſtas largas , valeo-ſe a menina della
liberdade para ir , como foi , pedir o
habito de S. Domingos ao noſſo Mo
fteiro de Toloſa , queentao eſtava nos
ſeus principios. Oppuzerao -ſe aos in
tentos de Magdalena ſeus parentes , e
mais que todos ſua máy , que nao dei
xou de procurar todos os artificios, e
calumnias , que lhe ſuggerio o demo
nio , por arrancar ſua filha dosBraços
de ſeu Eſpoſo ; tudo por fim cedêo á
virtude , lendo , depois de bem exami.
nada a ſua vocaçao , admittida a Serva
de Deos no Moſteiro, ſem que ſua máy
o ſoubeſſe , mas com a bençaõ de leu
pay , no dia dosPrincipes dos Apofto
los S. Pedro , e S. Paulo , tomando o
appellido do ſegundo, pela deroçao
que lhe tinha , e de quem chegou a
receber alguns favores , como ainda
veremos.
No dia do Tutelar da noffa Or:
dem em França , Sant-Iago Maior, da
quelle meſmo anno (era o de 1612. )
ſe lhe deitou o habito. Deſde entao
tomou a boa Novica por norte aquel
la ſentença do Apoſtolo : A Vira
gem abftrabida do mundo , nenhila on
dar em naõ deſagradar aquelle que a
chamou. Concluido o le uNoviciado ,
fez com a Madre Soror Antonieta
Mainard a ſua profiſſao , ao meſmo dia
de noſſo Padre S. Domingos . Antes
porém que nos engolfemos no mar va
Rtiflimo das virtudes deſta grande Ser
ya de Deos , faremos aqui hūaſuccinta
mençaõ de algúas das ſuas muitas bel
las qualidades naturaes. Tinhatað ef
perto o ſentido do ouvido , que a mais
ſubmiſſa voz lhe entrava até o fundo
do coraçao : parece que com o nome
havia deduzido a formoſura da Mag
dalena . A todas as peſſoas ſe fazia a ui
grata, porque executava qualquer ac
çaõ ſua 'com hūa gracioſidade muito
airoſa. Nao ſomente roubava aſſim as
attencoens das tuas Co -Religioſas, le
nao ainda as de muitas peſloas lecula
res , que corriao a vizitalla. Ninguem
partia jamais da ſua preſença , quenad
foffe
 SOROR MAGDALENA DE S. PAULO ,
foſſe igualmente faudoſo , que conſo-
lado. Abominava comoraiz dos vicios
tudo o que era ocio . Seria hum quaſi
impoſſivel achalla deſoccupada : def
de mui pequena ſe dêo com tanto a
mor ao trabalho , como ſe elle fora o
ſeu deſcanço .
3 Nas luas mais trabalholas doen-
ças le occupava em fazer as flores , e
ramalbetes artificiaes para ornamento
dos Altares . Efte era hum ſeu diver-
timento ordinario . Houve occaſiao ,
em que eſteve ás portas da morte : Deos
a livrou por entao , e apenas vio que
tinha mais algum alento , ſe pegou lo-
go ás tuas laborioſasoccupaçoens . Ef.
creveo elegantiſſimamente os livros
do Coro . Sendo tao devota , era paf-
mo como ella podia attender ás ſuas
devoçoēs , e trabalhar , como traba
va , pérfcitiſſima, ediligentiſſimamen.
te . Comode ordinario ſe occupava no
que havia de ſervir para o Culto Divi.
no , parece que a ſua nimia piedade lhe
convertia as maos em azas , e em azas
de Anjo , que ella parecia em carne .
Encantava olhar para os véos que fa-
zia para os Calices. A eſte modo , era
maravilhoſo tudo o mais que obrava.
Eſtava tao perſuadida , que hūa Reli-
giofa conſagrada a Deos , ſó Deos ha
via de ſer o ſeu tudo , que fazia todos
os esforços por conſervar , quanto a
ſi , eſta grande fidelidade de Eſpoſa ;
e ſe ſe achava comprehendida neſta
materia , o carpia , e chorava com mui-
Caslagrimas , e delconſolaçoens . Ha
vendo de partir do Moſteiro de Tolo .
la as Fundadoras da Caſa de Burdeos ,
cahio a forte em Soror Magdalena .
Muitos tempos antes lho havia reve
lado ſeu Eſpoſo , chegando ella a ou
vir hūa voz interior , e muito fenſivel
que lhe dizia : Has de lá ir : teve por
companheiras as Veneraveis Madres
Soror Maria de Santo Aleixo , e Soror
Margarida de Jesus ; eſta deo a alma a
ſeu Creador no meſmo dia da ſua che.
gada , e paſlados oito , cahio de cama
a noſſa Magdalena : efteve ás portas da
morte , pelo que chegou a receber o
Tom. VII.
27 de Agoſto. 265
Santiſſimo Viatico ; Deos porém pre
ſervou ſua Serva para lhe fazer muitos
mais ſerviços.
4 O ſeu animo era largo como hū
mar ; mas nada inconſtante , como
aquelle que ſempre eſtava fixo em
Deos . Jamais ſe lhe pode deſcobrir
Do ſemblante o que foſſe hūa paixao
da alma . No meio das ſuas maiores
afflicçoēs, era o ſeu ſemblante naoló
mente a meſma terenidade , fenaó que
baſtaria ſomente o vello para ſerenar
as maiores tribulaçoens . " Podia con
verter com a ſua modeſtia a meſma
immodeftia. Quanto ás perfeiçoens
de Religioſa , ella o foi em hum gráo
muito inſigne. Já diſſemos quanto era
diligente , e amiga do trabalho : ſó a
obediencia podia ſer a remora , que
a deſviaſle das luas tarefas. Talvez ſe
chegou a deſconfiar , fe a Serva de
Deos era , ou nao era regida de bom
eſpirito ; motivo porque foi occupa
da , e gravada ſummamente no traba.
lho das officinas : enegando -ſe - lhe até
o tempo da Oraçao ordinaria , que ſe
concedia ás demais , obedeceo promp
tamente , e alegre . A tudo o que ſe lhe
The mandava , tao cega , como veloz
mente ſe rendia . Veremos depois por
outros ſucceſſos quanto eſta nova
Magdalena nað era menos ferida , e
namorada do amor Divino . Por ora ,
por occaſiao da virtude da obedien
cia , em que vamos , referiremos
hum .
5 Aſſiſtindo a Serva de Deos &
Oraçao , que tinha a Communidade ,
achava -ſe tao poſſuida , e fantamente
furioſa da vehemencia do meſmo a
mor , que ſe via preciſada a dar mof
tras do muito que amava , com alguns
geſtos, movimentos ,lagrimas , e luſ
piros . Tudo iſto le fazia importuno
à ſuas companheiras , pelo que ſe lhe
aſſignou a ſua penitencia noNovicia
do . Era Magdalena de feu aſleadilli
ma , e muito contraria de coufa que
nao foſſe limpeza : por aqui he que a
entrarað a mortificar , fizerao -lhe too
mar hum veſtido mais ſordido , dogus
LI podia
 A
R ALEN
266 SORO MAGD
podia deixar por ultimo hũa Irmãa
Leiga , que ſerviſle na cozinha : aco .
bertura da cabeça em tudo condizia
com o traje ; mas parecendo que iſto
ainda nao battava, pizárað - 1ha primei-
ro aos pés , ſubſtituindo -a com hũa
sodilha. Aſſim quizeraó , ſegundo o
eftylo do Moſteiro , expolla ás vayas ,
e irriſoens de ſuas companheiras ; mas
como qualquer trage eſtava muito bem
a Magdalena , e a ſeriedade , e mode-
ſtia jamais lhe deſappareciaõ do roſto ,
ainda aſſim mais motivava daquelle
modo edificaçoēs, que desprezos. Ne-
fta occaſiao le deliberou a obedecer ás
Irmaās Noviças , pedindo -lhes com a
maior inſtancia que a mandaffem , co
mo a ſua ſubdita .
6 A obediencia , que proteſtou á
Madre Soror Maria deJesus, Priore .
za da Caſa , dao foi menos meritoria:
fobreveio á Serva de Deos , pallando
nað muito tempo depois da ſua Profiſ.
ſao , būa indiſpoſição , em que naõte .
ve pouco que merecer : achou - fe tao
faſtienta, que nao havia couſa, que ſe
lhe conſervaſſe no eſtomago , o que
pôs em hūa extrema debilidade , mui-
to mais attento o muito tempo , que
eſte gravame a opprimio , que nao foi
menos que pallante de hum triennio.
O Senhor ſe compadeceo finalmente
de lua Serva, dando-lhe perfeitas me-
lhorias . Niſto de enfermidades teve
muito que padecer a Veneravel Ma-
dre : ver.ſe -ha iſto ainda em outros
muitos lugares deſta memoria.Vamos
ao muito exercicio que ao ſeu ſoffri:
mento dêo aquella Prelada . Como o
termo deſta queixa foi tao prolonga-
do , e a reduzio a hűa tal extenuaçao ,
como diſlemos , nao ſe podia ter em
pé abõa Religioſa ; por iſto ſe via mui .
ias vezes ir para o Coro com paffos
mais languidos , e vagaroſos do que
ſuas Companheiras . Como o Moſtei.
to eſtava nos ſeus principios , queria
aquella Superiora que a oblervancia
foſſe a mais sigida , e pontual , e que
ſe nao introduzifle a mais venial rela-
xaçaõ na Caſa : por iſlo deo em tomar
O
DE S. PAUL , 27 de Agoſto .
a ſeu cargo a Veneravel Madre Sorot
Magdalena, reprehendendo.a , e pe .
nitenciando -a com mais algum rigor,
acé chegando a metrella em prizao. A
tudo iſto le fometria a Serva deDeos,
querendo antes parlar por imperta ,que
allegar deſculpa a ſeu favor,
7 Asindicaçoens ,bom fobreeſcris
to erao da moleitia da Serva de Deos ;
mas pada era baſtante a mitigar a in
flexibilidade da Prioreza : nað ſómen
te nao deſobrigava a Magdalena das
obrigaçoēs da Communidade , ſenao
que até aobrigava ao trabalho das mais
Religioſas; com ellas acarretava ter
ra , chegava pedras , e demolia pare
des velhas para adiantar a fábrica da
quella fundaçao. O alivio que lhe ap
plicava a Prelada , era outro novo
martyrio para Magdalena, porque lhe
fazia tomar algúas miſturas, e com
poſiçoēs, que nao ſerviao mais que de
a provocar a vomito : a Serva de Deos
obedecia , e nada rejeitava , lembrada
daquella fanta maxima, com que S.
Bernardo , quando fundou o ſeu Con
vento de Claraval, diſſe aos ſeus Reli
1
gioſos: Que alli, como a Caſa de Deos,
e retrato do Ceo, nao se devia levar
couſa algúa de corpo, porque tudo na .
quella Caſa devia ſer nao mais queef
pirito . A Madre Soror Maria de S.
Domingos , irmáa da Prioreza , eftra
nhava -lhe caritativamente tanto del
dêm : nao ſabia ella reſponder lhe
mais , ſepao que reconhecia a razao ,
mas que por hum impulſo muito for
te , que em fi percebia, nao podia mais
comſigo. Aſſim continuou em obede .
cer á ſuaPrelada a noſſa boa Religio
fa todo o triennio doſeu governo , até
que por meio da ſua ſucceflora, a Ma
dre Soror Antonieta de Santa Cruz ,
lhe quiz Deos conceder a conſolaçaö ,
e abrigo ,que atélli , pelos ſeus altos jui
Zos , e para ſeu major merecimento ,
lhe havia negado . Conſignáraó-ni as
Preladas ao governo da Veneravel Ma
dre Soror Margarida de Jesus , que
entao florecia naquelle Moſteiro com
ſingular ſantidade ; e foi tal a ſua ren
dida
 SOROR MAGDALENA DE S.PAULO , 27 de Agoſto.
dida ſujeiçaõ a eſta Serva de Deos, que
dalli contrahîrao būa cordialiſſima, e
fanta amizade , de modo , que tratan-
do - le eniao da nova fundaçao de hum
Moſteiro , de que a meima Veneravel
Madre Soror Margarida havia de ſer
digna Fundadora , entendeo eſta que
paó podia levar melhor Companheira
do que a noſſaMagdalena. Vio.ſe fi-
palmente o muito fundo da obedien-
cia da Veneravel Madre , quando a fi-
zerao Sub - Prioreza , porque todo o
ſeu ponto era conlervar as Religioſas
debaixo de hũa ultimada ſubmiſlao á
Prioreza .
8 Como ella obſervaſſe hum ver.
dadeiro voto de pobreza , ſe pode in
ferir da graça , ( entre tantas querece.
bêo , e de que faremos mençao mais
adiante, quando tratarmos particu-
mente dellas) que ella eſcreve ſe lhe
fizera em hum dia da Purificaçao de
N. Senhora : Eſtando eu ( dizia ella )
conſiderando o ſacrificio , que a Vir.
gem Senhora fazia no Templo , nao
menos que de ſeu Divino Filho , que
era unicamente todo o ſeu amor , todas
as ſuasdelicias ; ſenti no coraçaõ tres
golpes tað vehementes , que alli cui
dei de ficar por morta . Entao dizia
o eſpirito ao meu Amado : Morra eu
aqui , e morra , meu Deos , do volo a .
mor : paſſadas algúas horas chegou-
mege accommetteo -me būa febre taðar .
dente , que ſentia no coraçaõ bum vi.
vo fogo, que me queimava. A obra de
Deos ,ainda que amoroſa ,era tað gran-
de , que nao podiaõ as minbas forças
com tanto pezo ; aqui me communi.
cou eſte Senhor hum particular eſpio
rito de pobreza. E aqui ſenti hū a a
moroſa calma, búa paz ,e hũa uniaõ
tao grande, que nao podia tomar cou-
ſaalgüa que ſe me fizele , fenao com
os meſmos affe & tos , que ſe meinſpio
ravao.
9. A ſua caſtidade finalmente foi
de hūa Eſpoſa muito amante , e mui-
to fiel do ſeu Querido. A prova, que
nos ha de fiar eite aflérto , ha de ſer
femelhante áprecedente ; e ainda que
Tom . VII,
267
em outro lugar havemos de tratar das
ſuas devoçoēs , anticiparemos aqui a
devoçao que ella tinha com ſeu Elpo
fo Sacramentado , para aſlim demon
Atrarmos o que deixamos affirmado.
Continuamente ſuſpirava por aquelle
Pao dos Anjos. Desfallecia de amor ,
como a Eſpoſa dos Cantares. Como ſe
queria chegar frequentiſſimamente
aquella Divina Meſa , temia por oų .
tra parte , que , reſpectivamente a ſuas
Compapheiras , pareceſſe que era iſto
affectar ſingularidades. Muitas vezes
a aliviava o Senhor deſta anguſtia,
participando - lhe inviſivelmente a Sa
grada Comunhao pelas maós dos An
jos: ſentia ella , e levava para baixo as
Sagradas Eſpecies Sacramentaes, co
mo em qualquer das outras Commu .
nhoens ordinarias . Valia -ſe Magdale.
na deftas Communhoens como de hū
preſervativo da caſtidade para ſe con
ſervar pura , e javiolada na Caſa de
Deos. Etta , e nað outra, razao , porque
tinha hūa devoçaõ muito particular
com a ſantiſlima Corea das ſagradas
Virgens ; e como o Pao dos elcolhi
dos , e o vinho que procrêa Virgens
he o Santiſſimo Sacramento do Altar,
com permiſao da Prelada fez voto , a
que nao faltou jamais a Serva de Deos,
decömungar todas as Feſtas das mel
meſmas glorioſiſſimas Virgens ,
10 EraTuiincommodada de hua
importuna tofle ; mas logo calmava
quando ſe chegava á Mela dos Santos
Anjos . Apenas acabava de receber a
Sagrada Communhao , quando ficava
o ſeu roſto com viſos da formoſura de
hum Serafim . Quem queria alegralla ,
e varrer- lhe da imaginaçao qualquer
diſlabor ,por muito grande que foſſe ,
diſſeſle-lhe que havia de commungar
no outro dia. Na ſua ultima enfermi.
dade era neceflario , para acalentalla ,
conduzilla a commungar com as mais
Religioſas; e na maior intenſao do ſeu
mal,
em que nao tinha forças para mo
ver - le , oamor lhe fazia tirar forças de
fraqueza para fazer as maiores , e mais
affe &tuoſas reflexoens, e reverencias
Ll ii
 268 SOROR MAGDALENA DE S.PAULO 27 de Agoſto.
ao ſeu Senhor Sacramentado . Ella
plantava , regava , ' e cultivava as flo-
res , e concertava os vaſos, em que el-
las ſe haviao de collocar para alli fer-
vir . No coraçao do Efio ſe leyanta
Va as quatro da manhãa para cuidar
dos meſmos vegetáveis , e conſerval .
los freſcos , e viçoſos contra os calmo
los , e ardentes raios, com que naquel-
le tempo arde o Sol, para que aſſim
ſerviſlem mais decentemente ao Cul .
to do ſeu Divino Namorado ; para que,
fe Elle havia feito a graça de appare-
cer á Magdalena disfarçado em Hor-
telao , houveſle outra Magdalena , que
nao por disfarce , lenao verdadeira-
mente procuralle correſponder a tan:
to affecto .
II
Temos viſto eſta boa Eſpoſa
quanto foi fiel, e admiravel a ſeu Er-
poſo nos tres votos , que lao a baze da
Religiao : agora naturalmente ſe ſe-
gue que paſſemos a ver quanto ella
ſe elmerou na fidelidade particular da
obſervancia da Conſtituiçaõ , parti-
culares , e rigoroſos eſtylos , inſtitui-
dos naquella nova Caſa . Ora ſubdita ,
ora Prelada , era hum expreſſo model-
lo da exacçao , eguarda de hûas , e ou-
tras leys . Era a primeira em todos os
actos de Comunidade , a primeira em
recolher -ſe , ſobre tudo porém a pri-
meira no Coro : niſto era tao pontual,
que , attenta a ſua invariavel promptia
dao , lhe derao a incumbencia de to-
car o fino a ſeu tempo . Como ella era
tao diligente, como deixamos ponde-
rado , em ella chegando a ajudar as
mais que trabalhavao naquella funda-
çaõ , em breviſſimo eſpaço , nada dei-
xava para fazer. Era tao ambicioſa de
cumprir com as mortificaçoens ordi-
narias, impoſtas paquelle Moſteiro ,
de diciplina, jejuar a pao e agua ,
tranſportar grandes cruzes aos hom-
bros , beijar os pés , e outras couſas a
eſte modo , e tað enfadonha ſe fez por
eſta cauſa ás Superioras , por a Serva
de Deos não ſó queria que , como Apel.
les dizia , ſenao paſlaſe hum ló dia , ſem
deitar ao menos hũa linha , lenaõpra ,
ticar os meſmos exercicios até o mais
extremoſo exceflo , ý as meſmas Pre
ladas para ſe livrarem das ſuas importu .
naçoès , eocaó foi, como ja diſlemos,
a commettêrað á direcçao, e obedien
cia da Madre Soror Margarida de
JESUS .
I2 Sendo Prioreza teve hūa gra
viſſima doença , de que eſteve ás por
tas da morte, e pouco antes de cahir
de cama deve eſta viſaõ , que outra vez
ſe lhe repetio:appareceo - lheo Senhor
cuberto das Chagas dos açoutes, iní.
pirando - lhe huns ſantos ſentimentos
de padecer , e levar húa vida mui cru .
cificada. Conformou -ſe ella com mui
to goſto co eſtas diſpoſiçoēs; mas ella s
vierao - lhe a lahir muito mais agras do
que ella entendia . Deo- lhe ſeu Divi
no Eſpoſo a entender que nao mor
reria da doença que diſſemos ; mas
que livre della , nao guardaria ja mais
os jejuns , vigilias, abſtinencias , e as
mais regras do feu Inſtituto . Podia has
ver punhal mais penetrante para a Ser
va de Deos ! Chorou - ſe muito com a
Sub - Prioreza , aquem revelou o ſe
gredo ; e perguntou -lhe a outra , quan
do havia de ſer a ſua morte ? Iſtoinqui.
rîa da Madre Magdalena por lhe dar
algum alivio , caſo que o ſeu termo
nao foſle mui prolongado. Nao ſei :
( The tornou a Veneravel Madre ) El
la nada mais me diffe. A predicçao La
hio taöcerca como de quem ella era , e
foi a eſte propoſito bem notavel o que
lhe aconteceo em duas feſtas feiras
fantas : querendo jejuar em būa del .
las ſe achou tao indiſpoſta , que no Do.
mingo da Paſcoa de flores nao pode
ouvir Miſia. Na outra , queixando -ſe
muito ao Senhor , diante do Altar do
Santiſſimo Sacramento de nao poder
tomar com as outras Religiotas a di .
ciplina ,foitao viva a ſua pena , e lhe
fez derramar tanto ſangue pela boca ,
que lhe ficou tinto nelle o veo , com
que cobria a cabeça.
13 O amor que ella tinha à ſua ,
e noſſa Sagrada Religiao , a fazia fer
cao fiel , e devotamente obſervante.
Falla
 SOROR MAGDALENA DE S. PAULO , 27. de Agoſto.
Fallava com boca de ouro , quando
tocava neſta materia , ou perſuadia a
outrem ao estado Religioſo. Tinha
húa bella ponta de lingua, mas jamais
tita era tað eloquente , como quan-
do tocava eſtas materias. Achava - ſe
húa vez apertadiſſimamente atormen
tada do ſeu mal , e eſtava preſente hūa '
moça , que pertendia engolfarſe no ſe
culo ; lorrio -ſe a Veneravel Madre
Soror Magdalena de S. Paulo , e fi-
cou com hum ſemblante tað engraça ,
do , que em nada dava a conhecer o
muito que padecia ; e pondo bũa grā .
de contiança em Deos, de que aben
çoaria as ſuas palavras, lhe diſſe : Ab
quanto melhor farieis vós, chariſi
me , le vos conſagraſeis a volo Crea-
dor em ſua caſa ! A Serva de Deos ſe
dava por tað feliz em ſe achar naquel-
la , que , como ſe temera que eſte in- Deſpenfeira: promovêrao -na tambem
eftimayel beneficio , que ſeu Eſpoſo a Rodeira : occupou , comoja fica to
The fizera , lhe fugiffe ,deſejava fer as
primicias que o Ceo colheſſe do ſeu
Moſteiro , ſendo ella a primeira de to.
das ſuas companheiras , aquem leval-
ſe a morte . O Senhor o difpôs muito
de outro modo , ſendo a preferida a
eftes ſeus deſejos Soror Catharina de
Santo Aleixo , que de idade de 19.
annos paſſou deſta vida. Era de mui
pura conſciencia : zelava com o maior
extremo a ſua virginal integridade:
mortificava -ſe com aſperiſfima auſte .
ridade : a ſua paciencia era ſumma.
mente inacceſſivel a todos os traba-
lhos ; e profeſſava hüa amoroſiſſima
devoçao á Virgem Senhora. Logo que
a noſa Veneravel Madre SororMag-
dalena vio que aquella Religioſa en.
trava nas ultimas agonjas , nao ſe lhe
tirou da cabeceira , e alli a importu .
nou para que pediſſe a Deos , que fof-
ſe ella a que Elle primeiro leyalle .
14 O termo de trinta dias , por-
que ſe lhe retardou eſte delpacho , lhe
pareceo mais dilatado , do que le fof-
ſe de trinta milandos. Apparecia- lhe
a defunta em hum deploravel eſtado ,
pedindo- lhe oraçoens , e ſuffragios:
iſo , ora pela commiſeraçao que lhe
269
mettiao , as penas , em que Soror Ca.
tharina ſe achava ;ora porque ,cm quan
to ella padecia no Purgatorio , ſe lhe
dilatava o que tanto pertendia ; era
para ella mais duro do que a mais du
ra morte. Paſlados finalmente os trin
ta dias , que diſſemos , eſtando a Ve
neravel Madre Soror Magdelana pa
ra ouvir a Miſſa de Defuntos, que
por aquella Religiofa ſe havia decan
tar ; eis- que a vê paflar contentiſſima
para a Bemaventurança com os olhos
em ſummo gráo reſplandecentes. A
qui cahio affombrada deſta viſta a Ser .
va de Deos , ficando de modo, que foi
neceſſario conduzilla dalliem braços .
15 Servio alguns cargos na Reli
giao , de modo, como ſe quizefle dei..
xar a perfeita norma do como elles
ſe deviao adminiſtrar. Foi leis annos
cado acima , o officio de Sub -Prio .
reza , e ſuccedeo no lugar , que , co
mo tambem ja diſlemos , exerceo por
hum triennio de Prioreza , a Funda
dora da Caſa a Madre Soror Maria de
Santo Aleixo. A ſua humildade a ne
ceffiraria a demittir de ſi eſte cargo ,
ſe nao foſſe tao temente a Deos, que
eſcrupulizaſſe, em que deſta ſua re
pulla ſe poderia offender Sua Divina
Mageftade . Durante o tempo do ſeu
governo eſteve , como ja diſſemos ,
expirando por inſtantes; duas vezesſe
The encommendou a alma , receben
do os ultimos Sacramentos , como
quem ja ſe diſpunba a partir para a
eternidade. Entao convocou ante ſi
as ſuas Religioſas, e fez-lhes búa piiſ
fima exhortacao , perſuadindo -as a
viver em húa reciproca , eperfeita ca
ridade. Eſcapou do perigo , comoja
diſlemos , mas ſempre tao doeotia , e
debilitada , como ſe pode inferir da
revelaçao que teve , e ja referimos ,
em que lhe foi annunciado , que já
mais poderia obſervar a Conſticuicao.
Nao obſtante, porém , o ſeu mal , pro
ſeguia o feu governo com todoo ma .
gifterio. Era mui favoravel a todas as
fgas
270 . SOROR MAGDALENA DE S. PAULO , 27 de Agoſto.
foas Religioſas. Achava -ſe em hũa
Veſpera do Natal debilitadiflima de
modo , que nao podia fazer-lbes o Ca-
piculo , e exhortaçao que ſe eſtyla :
húa dellas , que lhe aſſiſtia , muide-
ſejoſa de ouvilla , ſignificando - lhe o
muito goſto com que a Communida-
de eſperava pelo cumprimento deſta
ceremonia , The fez nitto alguma in-
stancia ; nao foi neceſſario mais, cirou
forças de fraqueza, eexecutou aquel-
la acçao com tanto brio , e alma, co-
mo fe lografie de búa boniſſima ſaude.
Velava , e vigiava inceſſátemete ſobre
o ſeu rebanho , e deſconfiando ſempre
tanto de ſer indigna de encher aquele
le lugar , que ella meſma ſervia no
Refeitorio . Nao forao poucas as ve •
zes que , ſe os ſeus achaques lhe davao
alguma tregoa , hia ajudar a ſervir na
na
cozinha. Em outras ſe deitava aos pés
das Religioſas, pedindo- lhes perdão ,
e deoſculando os veftigios , aonde
ellas punhaõ os pés . Entao foraõ maio-
res eſtas demonftraçoens quando ex:
pirou o ſeu cargo , em que pedio perº
dao a todas ſuas ſubdicas com tanto
encarecimento , ſinceridade, confu-
fað , e lagrimas , que ninguem atioa-
va alli maisý com o ſilencio , e com o
affombro .
16 Depois de termos viſto a noſſa
Magdalena tao illuſtre naquellas vir-
tudes, quemais privativamente perten-
cem , como baſe , as obrigaçoens de
būa perfeita Religioſa , a veremos
agora nao menos clara no pouco que
diſlermos , pelo que toca a muitas ou-
tras, em que o Senhor a quiz fazer tao
inſigne. A ſua innocencia era ver-
dadeiramente columbina : tem - ſe por
muito certo que jamais perdeo a gra-
ça , que no Bautiſmo le lhe conferio.
Da ſua humildade muito fica ja dito ,
ſó temos que accreſcentar, que co.
mo as ſuas enfermidades eram ſobre
naturaes , como ainda diremos , fez
o Director eſpiritualda Serva de Deos
que foſſe advertido o Medico para
que procedeſſe na applicaçao dos re
medios com o maior tenco. Tambem
inſinuou ás Religioſas, que nao foſſem
mui faceis em fazer chamallo ; mas
que com tudo precedelle o voto da
nofla doente . Perguoráraó -lhe, pois,
em certo dia ſe queria que ſe chamal
ſe o Medico ? Diffe ella , que ſe ſu
jeitova netta parte a qualquerparecer,
nao ao ſeu. Replicára6- lhe que o Di.
rector aflim o mandava, e ella , igual
mente humilde que prompta , diſle :
Pelo que me parece , nao heprecize
que venha. Nao he menos o que fica
referido da ſua paciencia . A pobreza
do Moſteiro era extrema , chegando
a faltar nao poucas vezes o mais pre
ciſo , e urgentementeneceflario ;po
rèm a tolerancia da Serva de Deos ,
aſſim neſtas penurias , como em quaeſ.
quer outros apertos,era ſuperior ato.
do o humano deſamparo .
17 Sendo tao affiigida de queixas,
jamais ſe lhe ouvio būa, antes ſe ha
via notado , que quando ella havia de
ſer accomettida de algum accidente,
ſe lhe fazia o roſto tanto mais bem pa
recido , que parecia hūa moça de quin
ze annos . Teve hũa argentiffina ca.
ridade . Eſtava a Fundadora muito
mal , e eſperava -ſe que com húa lan
gria pudelle ter alguma melhora : 0u .
vio iſto a Serva de Deos , eexclamou :
Eu vo- lo peço , Deos , e Senhor meil :
se naõ peço couſa que ſeja do volo de.
fagrado , experimente eſta Religioſa
o volo favor pelo meio que se perten
de : dille iſto com hum talfervor , que
parecia hūa braza o ſeu alpecto : fan
grou -ſe com effeito a Religiola , e fez
aquelle remedio o bom effeito que ſe
eſperava. Nas ſuas maiores enfermi
dades eſlava o ſeu eſpirito de talmo
do unido a Deos, que ſentia ( dizia
ella ) hum ineffavel álvoroço neſta fe
liciſſima uniao.Nunca fallava fenaõ em
Deos , mas tam impetuoſamente , tan
todo coraçao , que era neceſſario ro
gar - lhe que ceſlaffe de diſcorrer na
materia ; porque le temia que o ſeu
muito fervor lhe foſſe de a'gum mo
do prejudicial. Como era tao aman
te do recolhimento , aqui participou
hum
 SOROR MAGDALENA DE S. PAULO , 27 de Agoſto.
hum muito particular dom de altiffi
ma Oraçao , cujos extraordinarios ef-
feitos forao , como ja diſlemos, cau-
ſa de ella ſer remertida ao Novicia
do , e reveſtida daquelle airoſo traje ,
com que acima a pintamos. Tanto le
decinha neſte celeſtial commercio , e
tao abſorra ficava, que alli permane-
cia tres dias inteiros ſem ſequer repa-
Tax , ou ſentir , em quem lhe entrava
a fallar.
18 Era a ſua Oraçaõ mais paſſiva,
que activa , e la dava huns longes da
eſtreitiſſima uniao que tinha com
Deos . Eſta era tað exceſſiva , que en
trando a vella em certa occaſiao a Re-
ligioſa deſtinada a fervilla na Enfer.
maria , lhe pareceo que eſtava ja ago.
nizando , e correo a dar aviſo para a
Sacramentarem . Tres quartos de ho .
ra eſteve immovel , e com osolhos fi-
xos no Ceo . Entao recobrando-ſe ,
diſle que aquillo vinha a ſer couſa ne-
nhuma , que ja ſe achava melhor . A
preſença , em que ſempre andava de
Deos , eraigualmente ſucceſſiva , que
affombroſa. Via- ſe muitas vezes toda
I engolfada no Summo Bem ,nao le
vendo em ſi, mas Deos nella , ſó ſe
o Senhor , ou lhe fazia entaðreconhe-
cer alguma ſua imperfeiçao , ou lhe
dava qualquer outro tino ; effeito eſte,
que , ſegundo a experiencia dos Santos,
e dictames da Theologia Myftica,
provêm de hūa habitual transforma:
çaó no Summo Bem . Pois que ſe di-
sá do ſeu amor de Deos ? Elle era o
Rey do ſeu coraçao , aonde ( dizia ella )
d's peſſoas
The parecia eſtava o ſeu Senhor afſen- d's peſoas,, que
tado , como em hum Throno , de mo . lhe conſagrarem na Religiao , he mui .
do que lhe parecia que amava a eſte
Senhor no Paraiſo , nao na terra pre-
za ainda nos vinculos da carne . Per-
guntando -ſe -lhe muitas vezes no que
cuidava ? Em amar a Deos , relpon :
dia ella . Paſſando por algum altar de .
dicado a noſſo Senhor, rogava ao ſeu
Santo Anjo Cuſtodio , de quem , co .
mo ainda diremos , era devotiſſima,
que fizeſle entrega do ſeu coraçao a
Cbrifto Bem noſio .
270
19 Em hũa quarta feira de Tre
vas , ſe pós a fallar tað altamente de .
ſte Divino Amor , que ſe admiráraó
com pafmo univerſalasReligioſasnao
menos do que lhe ouviao , do que na
inflammação , e formoſura do ſeu ſem
blante. Do muito que ſe abrazava ne
ſte Divino incendio , eraõ teſtimu
nhas as ſuas enfermidades, que , co
mo ja 'deixamos advertido , eraõ ſo
brenaturaes . E como o amor he le
melhante á morte, dizia a Serva deDeos
que muitas vezes , ou oraſle , ou re
cebeſſe a ſeu Senhor , lhe parecia que
chegava ao extremo da morte : pare .
cia - lhe outras vezes , que lhe fahia o
coraçað do peito , e que voava abuſ.
car o feu centro no ſeu Amado ;eou
tras lhe parecia que le lhe abria o
meſmo coraçaõ , e nelle ſe introduzia
húa diffuſiſſima torrente de graças , e
delicias celeſtiaes. Daqui lhe provi
nhao os incendidiſſimos deſejos de
martyrio , em que ella te abrazava . Se
viſſe diante de l as cruzes , os cutel
los , os incendios , as Cataſtas, as ro
das de navalhas , e todos os outros
artificios, que inventou a crueldade , e
odio dos maisfurioſos , e juradosini
migos de Jesu Chriſto , tanto ſe nao in .
timidaria , que antes ſe moſtrara hy
dropica de maiores tormentos , ene
nhuns poderiað verdadeiramente ſa
ciar o ſeu amor. A recompenſa ( diz
hum virtuoſo , e douto Religioſo da
Sagrada Companhia de Jesus , que el
piritualmente a tratou ) A recompen
ja, que Deos Senhor noso promette
que deixam o mundo por se
to grande: muito grande hetambem o
premio , gne deftina d's Virgens ſuas
efpofas; e finalmente muito grande a
gloria, que tem preparado para coroar
os Santos Martyres , que padecem
por ſeu amor . Ora agora quanto ſerá
grande o galardaõ de hua alma , em
quem concorrer að taõ altamente eſtas
très taõ eſpecioſas prerogativas, ſen
do Religioſa perfeitiffima , fidelijima
Virgem , e Martyr a mantilima, se
nao
272 SOROR MAGDALENA
naõ dando a vida pela Fé , confagran ."
do- a nos incendios da caridade ?
20
Eftes delejos de morrer pelo
Amado , foraõ nella mui arrebatados .
Tres annos antes da ſua morte , prin-
cipiando a ter hum maior recolhimen-
10 , no dia da Exaltaçaõ da Santa Cruz,
ſe achou como crucificada neſta , par-
ticipando - lhe o Amante Divino buns
adivillimos ſentimentos da ſua Paixao
Sacratiſſima : nos tres ultimosdias de-
tte ſeu recolhimento , ſentio que o mef-
mo Eſpoſo lhe fazia hūa larguiſſima
chaga de amor pa ſua alma , e queele
la nao queria demittir por todos 'os
the ſouros, e delicias do mundo . Ao
tempo da Oraçað eraõ mais vivos os
effeitos deſta dulciffima chaga com
hum incendio , que deſpedia de ſi ar-
dentes fettas, que lhe paſſavao oco .
raçaõ ; e a ſua maior ancia era a de
morrer eſpiritualmente crucificada
com leu Eſpoſo. Por eſte meſmo tem
po vio com os olhos da alma , e nao
ſem inexplicaveis dores , o ſeu corpo
deſpedaçado em pequenos fragmen-
tos. Ouvio , outrolim , a voz do Ef
poſo , que lhe dizia : Pega - te á miö
nha Cruz , e abraça.me nella , nem
te dé cuidado o como pode ſer , que eu
te hei de ſuſtentar , é conduzir . Com
effeito ſentio o ſeu eſpirito amante-
mente crucificado pormuitosdiasda-
quelle meſmo modo. Em Fevereiro
de 1641. appareceo -lhe o ſeu Queri-
do , e por acenos lhe intimou que o
ſeguifle ao Calvario : fello ella aſſim ,
e alli ſe lhe intimou que ficaſſe eſpe-
rando : obedeceo , e decretou eſta ef-
pera até o fim de Junho ; entao tor :
nou a ver o Senhor acompanhado de
dous Anjos , a quem mandou que fi-
zellem , como breviſſimamente fize-
yao , hűa cova mui profundiſſima :
aqui arvorárað , e ſegurárað muito
bem hūa grande Cruz , em que pu-
zeraõ a Serva de Deos , deixando a
alli até a morte .
-21
Enriqueceo o Senhor eſta ſua
taõbella Eſpoſa com muitos dons Nao
lhe faltou o de lagrimas. Já dillemos,
DE S. PAULO , 27 de Agoſto.
que quando fua Mãy a levava aos bai
les , no meio deftes feſtins fe via de
ordinario o ſeu roſto devotiſlimamen
te choroſo . Na Oraçao muitas vezes
lhe pareceo que ſe lhe derretia o cu
raçao pelas correntes de lagrimas , que
lhe cahiao dos olhos . Recebeo tam .
bem o dom de profecia. Elavaõ duas
Religioſas ás portas da morte , e fo.
rao recommendadas ás ſuas oraçoens :
difle a Veneravel Madre que ninguem
tiveſle pena , porque as doentes nao
haviao de morrer. Pareceo ifto duro
de crer ; mas aflim ſe cumprio con
tra todas as eſperanças.
22 A piedade deſta inſigne Reli
gioſa era em tudo proporcionada ás
outras ſuas tao eminentes virtudes .
A eſte propoſito ſe notavaõ nella duas
couſasbem encontradas , e, como taes ,
maravilhoſas : nas veſperas de alguma
Feſta da ſua devoçaõ ſentia' os ſeus
males mais efficazes : de modo que ja
era proverbio nas Religiolas dizer
neſtas occaſioens : A manhaā temos
eſta , ou aquella Feſta ; paſſado o dia
della , parecia que reſuſcitava. As
ſuas maiores devoçoens eraõ as que
agora diremos : tinha hũamuito gran
de com os Santos Fundadores de Re
ligioens : teve a gloria de morrer na- .
veſpera de hum dos mais preclaros ,
a grande luz da Igreja , Aguia de Afri
ca, o noſſo Padre Santo Agoſtinho .
Era amantiffimamente apaixonada pe
los Santos , e Santas da Ordem : neſta
ſérie muito mais eſpecialmente a pro
teſtava a noſlo Santiffimo Patriarcha
Domingos. Amava muito aos Princi
pes do Sagrado Apoſtolado : do fe
gundo recebeo favores grandes . De
via - lhe a Santa Magdalena, que lhe
dera o pome , hum muito grande ca
rinho ; de ordinario trazia na boca as
ſuas palavras : JESUS, o meu Se
nhor , o meu Senbor. Da Myſtica , e
Serafica Doutora Santa Thereza , era
amantiſſima. Tinha grandes amores
com o ſeu Santo Anjo Cuſtodio , e
podiamos dizer , Cuſtodios, pelo que
logo diremos.
23 Era
 SOROR MAGDALENA DE S. PAULO , 27 de Agoſto.
23 Era mui perſeguida a Serva de
Deos dos demonios : appareciao-lhe
em figuras de féras horrendiſſimas;
tratavao -na crueliflimamente, canto,
que ouvindo hūa Irma. Leiga o ala-
rido que elles faziaõ na ſua cella , eo
ecco das pancadas , e golpes, com que
a maltratavao , corréo a toda a preſſa
a ver o que era : nao vio mais , que
a Serva de Deos de joelhos , e com
as lagrimas nos olhos , e com o cor
po muito bem macerado : perguntou
o que fora , o que ouvira ; mas nada
mais pode cirar da boca da Veneravel
Madre SororMagdalena , mais , que
ſe foſſe recolher . Contra eſtes allal-
tos , além de outros muicos favores
que lhe fazia , pugnava inſignemente
o leu Santo Anjo . Era-lhe ella agra .
decidiſſima. Deſde que entrarano No-
viciado contrahio com elle hua tao
amante familiaridade, que , reſpeitan-
do- o como ſeu Meſtre, e Superior ,
todos os dias ſe lhe accuſava da ſua cul-
pa , e lhe dava conta de ficom mara
vilhoſa exacçao , e fidelidade. A ſua
mais ordinaria oraçao , era diante do
ſeu Altar . O Bendito Eſpirito cele-
ftial a favorecia com eſtupendas gra-
ças . Quando fallarmos da devoçaõ
que ella tinha com a Máy de Deos ,
referiremos húa. Todas as manhaás
tinha elle cuidado de acordalla pelas
tres horas a fazer oraçao : nao poucas
vezes lhe deixou ver a ſua amabilif
fima preſença. Muitas vezes via ella
dous Anjos; mas hum mais grande ,
e mais eſpecioſo do que outro .
24 Palemos da devoçao , que a
Serva de Deos tinha aos Santos An
jos , á que profeflava á ſua Santiſſima
Rainha . Foi ſempre apaixonadiſſima
pelas ſuas glorias ,'e excellencias . Co-
mo tao legitima filha que era do eſpi-
rito de S. Domingos , jamais faltou a
offerecer- lhe a coroa daseſpecioſiſſi:
mas roſas do Paraizo do ſeu Roſario .
A eſta Soberana Senhora recorria co-
mo bum menino a ſua Mãy . Nao po .
dia Eſta faltar a hűa correſpondencia
tao fina , e tað fincéra. Muitas forao
Tom . VII.
273
as graças que Magdalena recebeo de
Máy cao miſericordiofa, e Clemen
tiffima, cujas Maos ( diz S. Bernar
do ) ſao o Soberano aqueducto por
onde le diſpenſao as correntes de ben
çoēs , e graças , que faz o_Altiſfimo.
Foi hūa muito notavel aquella que
agora referiremos . Em oito de De
zembro , dia da Immaculada Concei
çao da meſma Auguftiffima Rainha
dos Anjos , lhe appareceo eſta Senho
sa acompanhada de leu Cafiſſimo, e
Meritiſſimo Eſpoſo o Senhor S. Jozé ,
do Santo Anjo Cuſtodio da Serva de
Deos , de S. Paulo , N. P. S. Domin
gos , Santa Catharina de Sena , e ou
iros Santos da Ordem : fez , pois,
Maria Santiſſima fazer a Magdalena
hum contrato , de ſer eſta para ſem
pre , e ſem algũa reſerva , toda de
ſeu Santiſſimo Filho . Eſcreveo o Cu
ftodio da Veneravel Madre eſta obri
gacao , e feita ella , a Senhora a afli
nou , e conſecutivamente todos os
Santos que alli ſe achavao . Renovava
a Serva de Deos todos os dias eſte vo
to no meio das ſuas maiores devo .
çoens com o mais vivo fervor. Reve
renciava profundiſſimamente o San
tiſſimo Nome de Jesus , e ſempre, af
fim como no coraçao , o trazia nabo
ca. Quando andava pelo jardim , o
ſe conſiderava ſolitaria , ſe lhe ou
via repetir eſte Diviniſſimo Nome ,
vezes innumeraveis . Finalmente pro
tettava hum devotiſſimo amor , Fé, e
reverencia á Santiſſima Trindade ,
mui perſuadida ( e com
todo o fun
damento ) de que ſendo Ella a fonte ,
e o mar , que nos fecunda de hūas , e
outras graças eſpirituaes,e temporaes,
neſte Diviniſſimo Oceano he que nos
devemos engolfar , e ſubmergir
amando tudo o que Ella ama , e quer
1
que ſe ame , tudo dentro della.
25 Concluamos ja eſta memoria ,
fazendo aqui mençao de alguns dos
grandes favores, com que eſta alma
eſcolhida foi prendada do Ceo. Suf
piraça ella , com as palavras do Pſal
miſta , por deſatar- ſe ja do carcere tera
Mm tenog
274 SOROR MAGDALENA DE S. PAULO , 27 de Agoſto.
reno , para ſe ir eſtreitar , e unir para
ſempre com o ſeu Senhor . Triſte de
mim , ( dizia ella ) que tantoſe me pro.
longa o prazodas minhas eſperanças!
Triſte de mim ! Quem me ha de dar
bữas azas como a pomba ? Comellas
voára , e aquietara ! Mas por outra
parte nao deſconhecendo quanto as
Religioſas temiaõ perdella, e que ha.
viao feito dizer muitas Miſſas por ſua
intençao em honra do noſſo tao In-
clyto Apoftolo do Septentriao : rema
tava eſtes ſeus abrazados ſuſpiros , imi.
tando a ſeu Divino Eſpoſo na Oraçao
do Horto . Mas Senhor , nada mais
do que o que vós quereis , nada mais ,
ſe vida , vida ; Je morte, morte. Entao
teve hūa vilao , em q ſe lherepreſenta-
va S. Jacinto , orando pela vida da
Serva de Deos , e que o Sapto hia de
vencida . Com effeito , durante dous,
ou tres dias , experimentou algumas
melhorias ; mas aquelle coraçaõ defo-
go, nao podendo deſcanſar ſenao no
feu centro , foi brevemente attendi .
do , e fatisfeito. Hūa noite a ouvio ,
contra o ſeu coſtume , fallarmuialto
na ſua cella , húa Religioſa ſua vizi-
nha , que ſabia muito bem que ne-
nhumaoutra entao lhe a ſliftia : entrou
a vella , e nao encontrando effe & iva ,
mente pefloaalgumadentro , pergun-
,
tou - lhe, com confiança de amiga com
quem eſtivera fallando ? 180 ( reſpon-
deo ella ) foi nada : va - ſe recolher : Re.
tirou -ſe a outra ; mas no outro dia
repetio a meſma inſtancia : entao a
Veneravel Madre movida piedoſa-
mente dos inftantes rogos deſta ſua
bõa confidente , a tirou de duvida,
dizendo -lhe : Aqui eftive fallando
com o meu S.Paulo, quemeveio aqui
aſſignar o termo de minha morte .
26 Em outra occaſiao lhe appa
receo , acompanhando a Chriſto Se
ubor noſſo , o meſmo Santo , e aqui
ouvio que
ſe lhe diziañ eſtas palavras,
que elle eſcrevera aos Romanos . Vei
fli-vos de noſo Senhor JESU Chrifto .
que quer dizer ( eſcreve a Serva
de Deos ) que havemos de aſpirar á
mais perfeita imitação do Espirito ,
Virtudes deſte Senhor: quebavemo's
de fer abatidos , anniquilados, e per
seguidos com muito goſto , aſſim como
Elle padeceo os ſeus ſantifimos tra
balbos, por glorificar a ſeu Eterno
Pay : que nao havemos de fugir ás fo
mes , e fedes , aos frios , e calmas; e
que havemos de ir pelos veftigios que
Elle nos regiſtou , pelos ultimos paf
fos que Elle deo neſta vida, indo per .
der por nósa ſua no Calvario, que
nos haõ de metter medo os opprobrios,
as bofetadas , os eſcarros, oseſpinhos,
os cravos , as agonias, os deſamparos
de nao ter , nem ſequer aonde recli
nar a cabeça. Eſcreve de ſia noſſa bõa
Religioſa , que a ſua alma ſe perſua
dia , que ella abraçava muicarinhoſa
mente o Menino Deos , e lhe beijara
attencioſa , e muito amoroſamente os
ſeus Pés . Diz mais , que lhe parecia
haver -ſe achado a ſua alma entre o
meſmo Deos Menino , e ſua Máy
Santiſlima como hum menino entre
feus pays : Ambos olhavao para ella
com placidiflimos Olhos , affogando
lhe o coraçao em mares de delicias.
Em bum dia de Reys felhe repreſen
tou eſte Soberano Myſterio. Eis- aqui
os termos porque ella explica eſte tao
grande favor: Parecia Ibe ( palavras
ſuas) a'minha alma, que ella eſtava
preſenciando a SagradaScena ,quepaſ.
Java no Preſepio , e que a Eſtrella ,
que encaminhava os Magos, nað era
menos que o meſmo Espirito Sants ,
que para que a alma ſenaõ defencami
nhe do ſeu fim , com Divinas luzes
a conduz , e leva a Deos. Neſta occa
fiao foram taes os impulſos , que ſenti
no coraçao, que cuidei de ver -me d's
portas da morte.
27 Vio , ſegundo o que depõem
hum ſeu Director , e com certeza de
fta prelença pormuitostempos , a Ser :
va de Deos na ſua Oraçao intellectual
a Chriſto Senhor noflo preſente , fem
o véo , ou disfarce de alguma figura.
o vio outras
Tambem fóra da Oraçaõ
vezes ao ſeu lado direito caminhando
dian
 SOROR MAGDALENA DE S. PAULO, 24 de Agoſto .
diante della , e muitas mais como
Crucificado. Vio tambem outras , que
o meſmo Senhor verdadeira , e amo
roſiſſimamente a abraçava , eque tam-
bem ella igualmente lhecorreſpondia ;
mas que entre huns , e outros ample-
xos havia differença , porque os que
o Divino Eſpoſo lhe dava , lhe cauſa-
vað outros affectos maisternos , e cele-
ftiaes.Eſtando eu [diz a Veneravel Ma-
dre ] em Oraçao na preſença de meu
Deos , e em būa uniao tao intima com
Elle,que nelle eſtava todo o meueſpiri-
to parecia lhe a minha alma, queo
meſmo Sexbor a tinha abraçada de mo-
do , que hum dos ſeus Braços me ficava
pelas coſtas, e afim mais me conchega-
va ,eapertava com o ſeu coraçao. Oef-
pirito eflava aquiattentiſſimo; ecom
todas as potencias interiores a alma,
tudo aby /mado neſte mar de amor , e
bemaventurança . Durou eſte abraço
tres , ou quatro dias, e quandomeleme
bra, me acho tao repleta de affectos,
e ſentimentes Divinos, que nao acho
termos com que os explique. Vamos
agora a concluir o reſto deſta tao pre-
cioſa vida.
28 Hum adno antes da ſua mor.
te , padeceo a mais terrivel de todas
as ſuas moleſtias : Conſiſtia em búas
agudiſſimas dores de cabeça compli-
cadas com húa febre , e tyſica, que a
queimáraó , e myrráraó de modo ,
que parecia hum deſcarnado , e ani
mado eſqueleto , em que nao havia
mais que o oſſo , e pelle. Ulcerou.ſe-
lhe a garganta de modo , quenao po
dia levar couſa alguma; e ſendo por
efta caula conſignada ás operaçoens
de Cirurgia , eſtas a chegárað ás por-
tas da morte. Sobreveio- lhe hūlom-
no letárgico , que continuamente a
fazia eſtar cabeceando , o que lhe ag-
gravava o mal. Buſcando fe meio de
atalhe , eſte accidente ſahio mais fu-
neiło ; porque elle foi a cauſa de que
a Serva de Deos recebeſſe hūa gran-
de ferida na telta , e em cada bum dos
olhos hūa empola de agua, do tama-
nho de búanoz, que muito lhe income
Tom . VII.
275
modava a viſta. Inchou -lhe enormiſ.
ſimamente o corpo , e determinárao
os Medicos , que ſe lhe fizeſſem in
ciſoens nas pernas para a pertendida
evacuaçao dos liquidos, que alli havia
deſde o joelho até o artelho dos pési
o que fe executou ſem ſe lhe ouvir
mais que o ſeu coſtumado Jesus , Jesus.
De nada baſtarao todas eſtas precau
Çoens dos Fyſicos , ſenao de accref-
centar mais dor , e merecimento á
Serva de Deos, que depois de hūatao
formidavel carnificina , ficou expofta
aosrigoroſoseffeitos de hūa gangrena ,,
que pao tardou em lhe ſobrevir.
29 Corria o Agoſto de 1641. tem
po , em que o agricultor recolhe nos
celleiros o que recolhera dos campos,
quando o Eterno Paydefamilias ſe
ſervio de levar do mundo para o Ceo
hum fruto ja tað ſazonado em mere
cimentos . Reconhecido , como dif
temos , pela Serva de Deos o ſeu
ultimo dia , contra a opiniao de todo
o Moſteiro , que a deſejava eterna , e
contra toda a apparencia , que pare
cia nao prometter morte tao acelera
da, entregou a alma nas Maôs de ſeu
Creador no dia 27. do referido mez ,
e anno . Acabou finalmente com tanta
opiniaõ de ſantidade, que as Religio
tas, que lhe applicavao luffragios , an
tes ſe viao mais movidas a implorar a
ſua interceſſaõ e aquelle piiffimo Re
ligioſo da Sagrada Companhia de Je
sus , que acima diſſemos, em húa.car
ta , de cuja ſao as palavras, que aci.
ma tranſcrevemos , e que elle em ref
pofta de outra da Prelada do noſſo
Moiteiro , mandou a eſta ; diz tam
bem nella eſtoutras palavras : Oh que
eſpecioſo , que precioſlimothe fouro en
viou a terra ao Ceo , o mundo ao Pa .
raiſo , na Reverenda Madre Soror
Magdalena de S. Paulo, ſempre de
boniſſima, e feliciſſima memoria. Vós
me pedis , que rogue a Deos pela fua
alma , e eisaqui o que eu me naðatre
vo. a fazer , porque tenho por couſa
mais que moralmente certa , que ella
eſtá na Geo. Tao perſuadido eſtou die
Mmii lo ,
276 RECOPILAC ,
sto, que logo que acabei de ler a voja
carta , recitei o Te Deum , confian-
do tanto do ſeu valimento diante de
Deos , que me tenho recommendado na
ſua protecçað, o que vós , e todas elas
boas Religioſas podeis tambem confia
damente fazer. Aiéqui o Padre .
30 Honrou Deos a ſua bộa Serva
em vida , e morte , obrando por ſua
conſideraçaõ algumas maravilhas.An-
dava hūa moça com grandes deſejos
de que ſeus pays a defporallem ; elles
o tomavao muito ao revez , e trata
vao-na por eſta cauſa com menos at-
tençao : vio - ſe a pobre tað allucina-
da por hum , e outro motivo , que ſe
relolveo a commetter hum luccidio ,
tirando -ſe iniquamente a vida a ſi mesa
ma . Levada deſte penſamento , ſe dei.
tou dentro de hum poço da caſa da
noſſa Magdalena, que ainda entað vi .
via no ſeculo . Teve aquella deſatina-
da mulher a fortuna de ſer viſta a eſte
tempo pela Serva de Deos , que imme.
diatamente fez oraçao por aquella de-
ſeſperada, que experimentou logo a
efficacia de tanto auxilio , nað ſópor.
que ficou ſuſpenſa no ar , aonde lheap-
parecêo a Virgem Senhora nofſa, in .
fluindo - lhe o animo que teve, em
quanto nao a tiráraó , como pudérað
tirar , dalli para fóra ſem leſað algūa;
mas porque arrependida ja da ſua pri-
meira liviandade viveo , é morreo ao
depois muito ajuſtada, e Chriſtaámen
te.Morta a Serva de Deos , teve hūa
fua Co-Religioſa algúadûvida na bon-
dade do ſeu eſpirito ; mas amanheceo
lurda no outro dia : parecendo - lhe
que iſto era caſtigo da ſua temerida .
dade , revogou o ſeu primeiro penſa .
mento , e tomando o Santo Cuſtodio
da Serva de Deos por ſeu Advogado
diante della , ſe achou taniſſima no ou .
trodis . Em outros muitos caſos ſe tem
Deos Senhor noflo moſtrado prodi-
gioſo naquella Caſa com eſtupendiſſi.
mos milagres , que tem obrado por
fua interceſlao , como em hum ſeu
grande Santo .
A M de 27 de Agoſto.
RECOPILAC, AM
de 27. de Agoſto.
I M Dijon , o Illuſtriſſimo Ar.
cebiſpo de Dublin , em Ir
landa , o Veneravel Padre D. Fr. Gui.
lherme de Odon . Era eſte Servo de
Deos natural de Inglaterra, cuja Pro
vincia governou duas vezes meritiſſi
mente . A ſuavidade de ſeus coſtumes,
e o'inculpavel de ſeusprocedimentos
o fizeraõ mui bemquiſto com a Mage
ftade Britanica do Rey Eduardo , e o
eſcolheo por feu Embaixador peran
te a Santidade de Bonifacio VIII . , que
para ſignificar quanto o noſo Servo
Deos era do ſeu beneplacito, o pro
moveo aquella Paſtoral dignidade. Sa
gradoja em Roma , hia para a ſua Igre :
ja ; mas Deos , que o chamava ja para
a Triunfante , diſpôs as couſas muito
de outro modo. Cahio o Arcebiſpo em
Dijon , eaqui morreo religioſa, e Chri.
ftianiſſimamente na veſpera do gran
de Doutor da Igreja,Santo Agoſtinho,
de quem o noſſo Prelado era muito de
voto . Por moſtrar grandes deſejos o
nofloVeneravel Arcebiſpo de que fol
ſe depoſitado oleu corpo no ſeu Con
vento de Londres, fepultárão -ſe os
ſeus inteſtinos no deDijon , aonde fal
leceo ; o mais reſto das ſuas Reliquias
ſe expedio para Inglaterra, aonde foi
ſepultado com aquellas demonftra
çoēs devidas ao ſeu merito , e caracter.
Anno de 1298. = Guido.
2 Na Provincia de Alemanha o Ve .
neravel Padre Fr. Nicoláo Harcilech .
Abrazava-ſe eſte bom Religioſo , co
mo hữa verdadeira , e melhor Sala
mandra , po zelo , de que : Religiaõ ſe
coplervaſieſem o menor abuſo , ou re .
laxacao no ſeu primitivo eſplendor :
eſta a razao , que o movêo a publicar
hum douto Tratado ſobre a materia ,
e que , como piamente cremos , nað
teria menos premio do que a eterna
Bemaventurança. Anno de 1359. =
Pius.p.2 .
28.de
/
 FR . ESPIRITO ROTERO ,
28. de Agoſto.
Vida do Veneravel Padre
F R. ESPIRITO
ROTERO ,
Extrabida do Anno Dominicano.
Memoria do Apoſtolo de
I
A ,
dre Fr. Eſpirito Rotero , pedia mais
dilatada eſcritura ; mas he queixa ja
muito antiga deixarem - ſe perder por
hũa culpavel omiſlao as memorias
mais precioſas, e exemplares, e que
podiaó redundar em maior gloria de
Deos , e aproveitamento das almas.
• Foi eite Servo de Deos Doutor da-
quella florentiffima,Univerſidade. Na
Religiao ſervio alguns cargos com a
melhor ſatisfaçao da ſua Provincia ,
governando com todo o acerto , e re
gularidade nao poucas vezes o ſeu
Convento de Toloſa. O ſeu mereci-
mento era tao diftincto , que morto o
noſlo Inquiſidor Fr. Raymundo Go.
zin , foi eleito o Servo de Deos para
ſubitituir aquelle lugar pelo noſſo Re
verendiſſimo Fr. Agoſtinho Recupe-
rato , a tempo , em que ainda era Vi.
gario Geral da Ordem , por hūa paten
temui honorifica com a data de5.de
Settembro de 1535. Eraiſto a tempo,
em que a hereſia de Calvino hia ga
nhando maior terreno ; was a bõa pre
cauçao do noſſo fiel Miniſtro do Se
nhor hebetou quanto mais pode os
progreſſos daquella peſtilencial dou.
trina. Nao ſe poupava a trabalho , oc
cupando utiliſſimamente o ſeu tempo
na impugnaçaõ dos erros hereticos.
Eſcreveo hūa doutiſſima Carta
a hum certo Apoſtata , e nella ( como
ſe lê no frontiſpicio ): A codos os mo
radores da nova Babylonia ; pelo que
o Servo de Deos entendia a infame Ci.
dade de Genebra , covil dos monſtros,
e filhos da hereſia , fediçao , e malda
de . Divulgou ' mais hum ſeu Tratado,
que foi recebido com applaulo uni-
verlal, e tende a refutar aquella im-
28 de Agoſto. 277
pia liberdade, com que os hereges ver
tem , e invertem nas linguas vulgares
os livros ſantos da Eſcritura. O Sagra
do Concilio de Trento , que depois ſe
celebrou , aſſim o ſentio , autorizan
do com os ſeus Decretos a meſma opi.
niaõ que levára o Servo de Deos . Nao
fómente nos ſeus eſcritos , ſenao que
nos ſeus Sermoēs clamava ſem cellar.
prégou em Toloſa ; e álèm de outras
muitas Feſtas , prégou mais de trinta
Quareſmas . Leo quatorze annos a Ef
critura na Capitalde Auch , com igual
intelligencia , que devoçao.Finalmen
te de dia, e depoite ſe deſvelava com o
hum amante Jacob , em obſequio da
melhor Raquel a Santa Igreja ; ifto
com hũa tal ancia , que apenas tinha
lugar de comer , e deſcançar. Moſtrou
aquelle Senbor ,que em outros dias ha
via dado mela franca aos Ifraelitas 'no
deſerto , quam gratos lhe erao os tra
balhos de ſeu bom Servo ; porque ſen
do o tempo do ſeu Priorado de Tolo
ſa extremamente calamitoſo , jamais
experimentou ſenaõ huma lautiffima
abundancia no ſeu Convento , e mul
crivel he , que lhe remuneraſle com
mais larga mao os ſeus gloriofos tra
balhos na Bemaventurança , para on
de a noſſa piedade ſe perſuade que el
le, paſlou aos 28. de Agoſto de 1570,
28. de Agoſto.
Vida da Vencravel Madre
SOROR MARIA
DO PRESEPIO ,
Extrahida da Chronica do Padre Fr.
Lucas de Santa Catharina , e das
memorias , que ſe conſervaõ no
Moſteiro de Corpus Chriſti
da Cidade do Porto ,
1 Veneravel Madre Soror
A Maria do Preſepio foi filha
de pays mui diſtinctos , igualmente por
ſangue , que por poſſes. Entrou , e pro
feſſou no noſſo Moſteiro de Corpus
Chrifti,
278 SOROR MARIA DO
Chriſti , ſituado nas margens do ce-
lebre rio Douro , olhando para a famo.
ſa Cidade do Porto , que lhe fica de
fronte. Era -profeſla na melma Cala
hūa irmaā da Serva de Deos , e com
ambas ellas ſe moſtrava liberaliſſimo
ſeu Pay ; porêm de todas eſtas de-
monftraçoens de amor , e beneficen-
cia , pelo que reſpeitavaõ a Soror Ma.
tia , eraõ os pobres mais utilizados :
acudia eſpecialmente a algúas Reli-
gioſas menos poſſantes, e a outras en.
fermas , foccorrendo a hūas , e outras
com mao nao menos larga, que miſe-
ricordioſa. Com a mais pobreza exer.
cicava a Serva de Deos generoſamen-
te a ſua caridade , repartindo por el-
la nao ſomente as ſobras , ſenao ain
da , o que he mais , aquillo meſmo que
The podia ſer preciſo , ficando aſlim
Soror Maria nao ſomente mais po-
bre que as pobres da Communidade ,
ſenaố mais pobre que os proprios men
digos.
¿ Quanto á obſervancia da Regra ,
foi būa das Religioſas , que mais ſe di.
ftinguirao neſta parte . Os ſeus habi .
tos eraõ propria , e verdadeiramen-
te de hūa fiel Eſpoſa de Chriſto , po-
bre , e auſtéra, e que anteslheſerviao
de mortalha , que compoſtura . Duas
vezes foi eleita Sacriſtaa , e da ultima
vendêo quanto tinha de feu , ficando
muito pobrezinha. Padecêo graviſſi-
mas enfermidades; mas todas a achá-
rao com paciencia mui ſuperior. Ja
mais foube o ſeu coraçao o que era
dólo , ou dobrez ; tudo nelle era liſura,
e ſinceridade. Depois de deſempenhar
as obrigaçoens do ſeu officio , que lhe
levava õ a maior parte do tempo , go
ſtava muito de occupar aquelle pouco
que The reſtava em alimpar , e aſlear
as gaiolas de alguns paſſarinhos , que
tinha na cella .
3 Padecêo os ultimos quatro an-
nos da ſua vida hūa tyfica mui peno-
ſa ; mas por muito que lhe foflem ſen
fiveis os effeitos defte mal , era taāze-
loſa alServa deDeos da deſobrigaçao
dos teus Religioſos encargos , que foi
PRESEPIO , 28. de Agoſto .
muito neceſſario domalla com o jugo
da obediencia ; porque nao le podia
acabar de perſuadir, do muito me
Jhor que ſatisfazia padecendo , co
mo padecia , conformemente as ſuas
queixas, do que obſervando exacta
mente os atomos , e miudezas do In.
ftituto. Depois de confeſſada , pedio
Os Sacramentos , e poſto que a Enfer
meira nao concordava com estas in
ftancias, deo -ſe -lhe, pela intervençao
de outra Religioſa , o Santiſſimo Via
tico a toda a preſla. Recebeo - o amo
ribunda com muitos ſinaes de contri
çaõ , e piedade , e dahi a pouco pal
lou, como piamente ſe pode crer , a
gozar na ſua Corte aquem pouco an
tes hoſpedára no ſeu peito , em 28.de
1
Agoſto de 1690.
RECOPILAC , A M
de 28. de Agoſto.
I M Friburgo , o Veneravel
E Padre Fr. JoaoSimskil. Era
de hūa ſantidade mui illuſtre, o que
foi occaſiao , de que os Religioſos da
Caſa, aſſim para conſervar a ſua me
moria , como para intimar o ſeu ex
emplo , mandaffem pintar hiſtoriada
mente , no anode 1374. , as mais bel .
las acçoēs da ſua vida , na Capella da
Santa Cruz , junto á porta do Clauftro,
aonde ſe lhe deo jazigo . Ann.Domi
nicano .
2 Em Boffano o Illuſtriſſimo , e
Veneravel Biſpo da meſma Dieceſe ,
D. Fr. Luiz Gomos . O Papa Marti
nho V., que conhecia particularmen
te o ſeu mérito , tello Biſpo daquella
Igreja , que he da Sardenha : o bom
Prelado a governou fancamente cinco
annos, paſſados os quaes fechou os
olhos ao mundo para os ir abrir para
ſempre no Ceo. = Font. in I heatr.
pag.145.
3 Em Argertan , o Veneravel Pa .
dre Fr. Gerardo Menil . Foi Doutor
em Paris, e alli Regenteou , e gover ,
nou o Convento de Sant-lago .Era ti
.
do
 FR . ALEXANDRE ESTROZZI , 29 de Agoſto.
do em hűa cal eſtima, e reputaçaõ ,
que le fallava por excellencia nas re-
foluçoens do Padre Menil . Viveo tao
dancamente no ſeu Convento , que a
hữa voz lhe chamavao o Santo .Co-
mo tal morreo no dia de Santo Ago-
Itinho , ao meſmo tempo , em que ſe
cantavao , no nono Responſorio do
feu Officio, aquellas palavras :Coram
pofitis Fratribus , & orantibus dor
mivit cum Patribus ſuis. Ficou -ſe-
The tendo hũa tal veneraçao depois
da ſua morte , que por muito tempo ,
1 pinguem paſſava por cima da ſua ſe-
pulcura. = Anno de 1570. Ex Joan.
à Sanct. Maria.tom.i.pag.913 .
4 Em Bruges o Veneravel Padre
Fr. Adriao Mick. Foi tao obſervante,
e perfeitiſſimo filho de noſſo Padre S.
Domingos , e fez tantos ſerviços á
Ordem, que ao meſmo tempo, em
que por elles eternizou o ſeu nome ,
a conſtituhio para ſempre em húa ef-
treita , e fortiſſima obrigação. = Ex
Joan . à Sanet . Mar.
29. de Agoſto:
Vida do Veneravel Padre
FR . ALEXANDRE
ESTROZZI ,
Extrahida de Fr. Miguel Pio , na
2. parte .
I Ao foi o Veneravel Padre
NAFr. Alexandre Eltrozzi, o
unico da ſua familia , que veſtindo o
habito de noſlo Santillmo Patriarca
Domingos , lhe accumulou repetidos,
e glorioſiſſimos creditos . Era Alexan-
dre ainda ſecular , mas ja tao modeſto ,
que o olhar -ſe lhe para a ſuacara , era
olhar para a de hum Anjo. Ja entaõ
media , e compaflava tað bem as ſuas
acçcēs , que parecia hum anciao mui-
to experimentado , e caſtigado de an
nos , e deſenganos. Morto ſeu pay ,
reſolveo - ſe Alexandre a deixar o fe- · Ordem , e contando 33. de idade ,cor
culo , e entrar na Ordem , pela aflei.
çaõ que lhe havia cobrado, naſcida
do grande trato , e converlaçao ,que
279
elle tinha com os noſos Religioſos.
Fello aſſim o virtuofo moço , ſem dar
parte a alguem do ſeu ſanto intento :
Quando ſua mãy ſoube o que paſſa
va , cuidou de enlouquecer : depois
de haver entendido que fruſtrava, e
perdia todas as ſuas diligencias, quei
xou -ſe , por carta , ao Papa , o qual
commetteo faculdade ao Biſpo Flo .
rentino , para poder tomar conheci
mento deſte incidente. Por eſta cau .
ſa , foi tirado Fr. Alexandre do Con
vento ; e poſto que eſte era o centro
do ſeu amor , vendo - ſe agora fóra del +
le , nao perdeo hum quadrantedaſua
religioſa firmeza , perſeverandoſem ,
pre incontraftavel no ſeu primeiro
propoſico.
2 Finalmente de taõbõainduſtria
ſe ſoube valer , que ſua mãy naõifó o
deixou ſeguir , muito de ſeu agrado,
a ſua vocaçao , ſenao que até lhe com
metteo a adminiſtraçao de ſeus bens,
que eraõ muito groflos, e conſidera
veis . O bom Religioſo os diſpendia
fantamcote , ja com os pobres de Chri
ſto , e ja em outras muitas neceſſida
des . Era humildiſſimo ; e poſtoque
naſcido tao illuftremente , ſe arreme
çava com muito goſto a ſervir nos em
pregos mais abatidos , e trabalhoſos
da Čommunidade . De condiçaõ 'era
muito affavel: a todosmettia no cora
çao , e tinha na ſua mað os coraçoēs
de todos. Foi dado mui grandemen
te aos eſtudos , pelo que chegou a fer
hum Theologo da primeira claſſe , e
hum dos mais famigerados Prégado .
res do ſeu tempo . Teve o dom de con
ſelho em altiſſimo gráo : mortificava
ſe muito com o ſilencio , jejuns, vi
gilias , e com outras duriſſimas auſte .
ridades . Foi Prior do ſeu Convento
de Santa Maria a Nova em Florença,
que fez fiorecer em muita Religiao ,
e Santidade . Paſſados fipalmēte deza.
nove apnos depois da ſua epirada na
rendo o Chriſtao de 1364. aos 29. de
Agoſto , deixou os trabalhos domun
do pelas delicias. do Ceo .
29. de
280 SOROR CATHARINA DA CONCEIC, AM, 29 de Agoſto,
29. de Agoſto.
Vida da Veneravel Madre
SOROR CATHARINA
DA CONCEIC , AM ,
Conforme as memorias que ſe confer .
vao no Moſteiro do Santiſſimo Sa ,
cramento de Lisboa .
I Alceo a Veneravel Ma-
N dre Soror Catharina da
Conceiçao na Fergueiza de S. Juliao
da Cidade de Lisboa , e forao ſeus
pays , Gonçalo Ferreira , e Izabel Je-
ronyma , que a educáraó Chriſtaa , e
fantamente , ſegundo as maximas de
hũa ſincera , e devota piedade. To-
mou o habito aos vinte annos da ſua
idade em 8. de Dezembro , no Mo-
ſteiro religioſiſſimo do Santiſſimo Sa-
cramento , e fez a ſua Profiſao em
6. de Janeiro de 1677. A vida deſta
inſigne Religioſa foi illuſtrada com
grandes acçoens ; mas entre todas
ſobreſahirao aquellas , em que ſe eſ -
merou na obſervancia do rigor do
Inſtituto : occaſionou -lhe o zelo, e
inteireza , com que ſervio nos ſeus of.
ficios, hum moleſtiſſimo achaque ; mas
iſto nao foi baſtante para que ella ſe
eximiſle da ſerventia de outros mais ,
e ſempre com o meſmo rigor , e cir-
cunſpecçao nao ſe poupava a 'jejuns.
Uſava perpetuamente de camiza de
eftamenha , e nao faltava jamais a tra
zer cilicio, ou affiſtencia das Matinas
á meia noite .
2 Foi devotiffima do benemerito
Eſpoſo da Mãy de Deos , S. Jozé , de
quem parece que ella recebeo favores
extraordinarios, poſtoque nao ficaſſe
memoria , pela intempeſtiva morte de
ſeus Confeſſores, que , ao que le pre-
ſume , ſepoltáraó comſigo eſtas-me-
morias. Valeo - ſe da Serva de Deos
outra Religioſa , pedindo -lhe que te .
comendaſle ao Santo o bom ſucceflo
de certa mulher , que era coufa fua ,
e eſtava proximaao ſeu parto ; e rel-
pondeo -lheCatharina, que nao recu .
ſava fazer o que ſe lhe pedia , com
tanto , que nao ſe havia de tirar ao
menino o nome de Jozé , o que tu.
do ao depois ſe veio acumprir. Em
hum dia de Reys , anniverſario da ſua
profiſlao , ſervindo de Sub - Prioreza
à Veneravel Madre Soror Catharina,
foi viſta na meſa tao abſorta , e for
moſa , que cauſava nao menos alvoro .
ço , que admiraçao . Alliſtia em cer
ta occaſiao Soror Catharina ao Santiſ
fimo Sacramento , e era iſto a tempo,
em que hum ſeu Irmao Conego havia
fallecido de pouco , e mais apreſſado
do que ſe imaginava : eneſta occaſiao
diſle a Serva de Deos para outras que
alli eſtavað , que lhe ajudaſſem a dar }
graças ao Senhor, porque ſeu Irmao
le ſalvara , nao lhe havendo ſervido
de pouco as bõas diligencias , que
fizera, para que foſſe Clauſura o Mo
ſteiro de Sania Apollonia .
3 Na ſua ultima enfermidade ;
ſuccedeo muitas vezes , e ao que pa
rece nað ſem myſterio , haver de cui.
do em quem tratava de lhe dar deco
mer ; e poſtoque ,advertindo neſta
omiſſao , propunha emendalla , era
mais certa no outro dia a reincidencia ,
do que a emenda: nem por iſſo fequei
xava a bõa Religioſa , antes dizia com
muita graça , que tudo quanto deſe
java lhe fahia ás aveſſas , porque ſe ti .
nha ſede, ou achava o Refeitorio fe
chado , ou por entao nao havia agua ; e
ſe lhe era neceſſaria qualquer couſa ,
por minima que foſſe, corria -ſe toda
a Communidade , e ou ſe naõ achava
ou ſe achava , como ſe coſtuma dizer,
tarde , ea más horas . Foi achada mui
tas vezes na cella mal ferida , e mala
tratada, e ao que parecia eraõ ifto ef.
feitos do odio , e perſeguiçao dode
monio ; e em duas deſtas, foi neceſ.
fario que vieſſe o Cirurgiao fóra de
horas a curalla . Acabou finalmente a
vida a 29. de Agoſto de 1724.com
ſettenta annos de idade , e cincoenta
de Religiao , aos rigores , com todos
os Sacramentos , e belliſſimos ſinaes ,
que ſe podiao prometter da ſua ſanta
vida.
RE
 FR. CONRADO DE
RECOPILAC ,AM
de 29. de Agoſto.
1 M Ferrara , o Veneravel
Padre Fr. Floro de Vicen.
cia . Pugnou , como verdadeiro filho
de S. Domingos , contra a peſtilente ,
e Tarrárea hydra da hereſia. Aſſim
doube netta ſanta batalha ganhar tao
bem a vontade ao Pontifice , que o
quiz crear, na meſma pátria do Serpo
de Deos, Biſpo Vicentino . Lembra .
do Fr. Floro daquillo de S. Bernardo ,
que poſto que nao fique tem retribui-
çao a caridade , nem por iſlo ſe deve
ter por mercenária , fe eſcuſou humil ,
demente , fazendo -ſe aflim digno das
maiores exaltaçoēs. Anno de 1270. =
Ex Bernard . Guid ,
2 Em Cajáca , o Illuſtriſſimo Bif-
po deſta cidade , o Veneravel Padre
D. Fr. Joao de Anverſa. Carlos I. de
Napoles o eſtimava em tanto , que
depois de o haver promovido a leu
Confeflor, o propôs a Gregorio X.
para Paſtor daquela Igreja , ſubordi-
nada á Metropoli de Capua ; e para
lhe dar maior prova do ſeu affetto , e
veneraçao , cedêo pelle todos os dizi-
mos das ſuasReaes pertenças , quanto
ásterras do ſeu Biſpado . Teve tres an
nos , o Veneravel D. Fr.Joao , aquella
Cadeira , e no fim delles , o chamou o
Soberano Paſtor da'Igreja para remu-
nerallo eternamente á ſúaviſta. Anno
de 1276. = Font. in Theatr.pag.148.
3 Em Calahorra o Illuftriflimo , e
Veneravel D. Fr. Joao de Quemada .
Em hum ſeu Synodo , celebrado em
Logronho , além de outros muitos De
cretos , inſtiruhio a celebraçao da Fen
Ita da Viſitação da Senhora . Foi de-
pois conſtituido Vigario Geral do
Arcebiſpado de Toledo , e havendo
chegado a hűa veneravel velhice , foi,
mediante hữa bõa morte , adnumera .
do mui dignameute á ſerie de ſeus
pays : parece que vivia no anno de
1480. = Font.pag . 149,
Tom . VII.
PRUSSIA , 30 de Agoſto , 23
30. de Agoſto.
Vida do Bemaventurado Padre
FR . CONRADO
DE PRUSSIA ,
Extrahida de varios Authores ,als
legados aqui meſmo.
I Altima grande he carecer
L mos das memorias precio
fiflimas de muitos Varoēs inſignes da
Ordem , que ſe nao foſſe o deſcuido ,
que houve nos antigos, que, tendo a
felicidade de obſervallas, ihes faltou o
cuidado de eſcrevellas, poderiaõ dar
materia a creſcidiffimos volumes . Vi
vem taó recommendados da fama, e
da hiſtoria os Alexandres, osCeſares,
e todos os outros chamados Heroes
do mundo , e nao hao de permanecer
na recomendaçao dos ſeculosos mais
verdadeiros Heróes , quaes ſao os da
Santidade , que na Milicia deChrifto ,
e debaixo da bandeira da ſua Santa
Cruz , vencendo -ſe a li , ao mundo ,
á carne, e ao demonio , obtivérað vi
Aorias , tanto mais altas , e glorioſas ?
Se nað fofle a ſua grande humildade , À.
hum deſtes, que com mais razao ſe po
dia dar por queixozo , ſeria lem a me
nor dûvida o noflo Bemaventurado
Fr. Conrado de Pruſſia , primeiro ,
e digniſſimo Reformador da Ora
dem , na Germania , e a quem o Ceo
fez clariſſimo por muitos milagres.
Nós , por honrar eſtes tað iocultos Ef
critos, produziremos aqui as breves
noticia que ,achamos deſte homem to
do de Deos .
2 Naſceo elle em Pruſſia , e foi Ir
mao de outro nao menos fanto Reli.
gioſo noſio , chamado Fr. Thomaz , e
que aſſim meſmo , como no habito , e
ſangue , ſe germanou muito mais na
perfeiçao Religioſa. Eſpera a univer
ſal reſurreiçao em hum Moſteiro de
Religioſas noſſas em Eſchomeltem
e alli he tido em veneraçao fum
bac ,
ma . Nao ſao poucosos Authores, que
NA fazem
 FR. CONRADO DE
fazem mençaõ da ſantidade do noſſo
Bemaventurado Fr. Coprado , mas
todos com rapicaſſima peona : e ver
dadeiramente, quando ſe nao ſoube-
ra do Servo de Deos mais , que elle
fora tao acerrimo Reſtaurador da dil-
ciplina regular , que nos ſeus tempos
jazia mui amortecida em Alemanha,
iſto ſó baſtava , para o fazer crédor de
eternos elogios .
3 Foi Doutor ſapientiſſimo, Theo-
logo celeberrimo ,e hum dos que no
Pulpito ſuttentáraó mais glorioiamen-
te a caula de Deos . O Pontifice , at
tento aos ſeus tao louvaveis procedi-
mentos , o promoveo no cargo de Pe-
nitenciário mór , que hoje anda nos
Eminentiſlimos Senhores Cardeaes.
Entrado no projecto de reformar a
Ordem , na ſua Provincia , fazia o Ser
vo de Deos pelos noſlos , o “ S.Vicen-
te Ferreira pelo maior bem commum
de todos ; ora prégava , ora pedia , ora
reprehendia , e ora ſe procurava valer
de todos aquelles meios , que lhe ſug-
geria o ſeu zelo , e o ſeu fervor para tra-
zer ao fim os ſeus ſantos intentos. Con-
gregado com trinta Religioſos no
Convento de Colmar da Dieceſe de
i Baſilea ,faziao hữa vida tao ſanta , que
merecêrao os elogios , que lhes faz
Bonifacio IX . em hum Breve , que a
deu favor expedio , em que os exhorta
á perſiſtencia da meſma obſervancia ,
eſpecializando , com hum bem mere .
cido encômio ao noſſo Corrado . Do
meſmo modo lhe eſcreveo o noflo Re-
verendiſſimo Geral , inflamamndo -oa
ſuperar , como intrepidamente fupe-
rou , os obſtaculos, e oppoſiçoēs , que
de ordinario inſurgem contra proje-
dos de tanto ſerviço , e gloria de
Deos.
4 O noſſo Padre Nidér , conhe
ceo , etratou mui familiarmente o Ser :
vo de Deos : falla delle reſpectuofiffi-
mamente , e refere algūas couſas , que
diz lhe ouvio , e que nós tranſcreve-
remos neſte lugar. Diz pois o Author
citado , que he ſentença de Santo Tho.
maz de Aquino , que a ſciencia , e cu.
PRUSSIA , 30 de Agoſto.
do o mais que tende para a noſſa pro
pria ſatisfaçao , tal vez conduzem pa .
ra que o homem ſe pague , e le confie
de fi, e nao acabe de dar- ſe inteira
mente a Deos ; mas que quando com
os bons progreffos do eludo , nos nao
deixamos cegar deſte amor proprio ,
apres confellamos o pouco que pode
mos , a ſabedoria que alcançamos nos
póde adiantar muito pa devoçaó , de
modo que , como dizia Santo Agoſti
nho , dao poflamos dizer , que le le
vantao os idiotas , e illiteratos , e mui .
to ros preférem no adiantamento do
caminho do Ceo. Accrelcenta : que
elle ouvira muitas vezes ao noſſo Pro:
vincial , tutor de todos os Reforma
dos , que ,em Gopping m houvera bûa
pobremulher , porém mui catła , e de
vota , que ,muito antes que acontecef
ſe , vaticinára o incendio que havia
reduzido a cinzas aquella povoaçao :
que eſta havia exclamado muitas ve .
zes , que dentro de hum breve ter
mo deſceria a ira do Senhor ſobre a
quella povoaçao : que perguntando
fe lhe que caitigo havia de fer aquel
le ; reſpondia que o de fogo, que havia
de conſumir aquella terra pelos pec
cados de ſeus moradores : que tor
nando - se- lhe a replicar onde havia
pegar para aquelle fogo a queimar , aſo
ſinava a caſa de bum certo homem .
Efte , que era pay de filhos, e muite
mente a Deos , nao tendo coraçao pa
ra ver a execuçao daquelle preſagio ,
fugio de ſua caſa : como porém , pe.
las luas virtudes , foſſe mui bem quiſto
em Goppingem ,foi preciſado a tornar
para o ſeu lugar :pouco depois , ſem ſe
ſaber como , ſe lhe steou o fogo em
caſa , e paſſando as outras da terra ,
inteiramente as abrazou , e deftruio .
5 Diz mais o Padre Nider haver
ouvido ao noſſo Illuſtre Reformador ,
que ſendo o Conde de Vitemberg da
Dieceſe deConſtancia , de ſeſſenta an
nos , adoecêra ; mas que nao lhe pare
cendo que fofle a ſua moleſtia couſa de
cuidado ,'ſe reſolvia a ir tomar banhos.
Iſto porém não obſtante , lhe diſſe o
Me.
 FR . CONRADO DE
Medico , que lhe affiftia , que tratafle
quanto antes da melhor medicina ,
que he a da alma ; porque nao tinha
mais de cioco horas de vida. Repli-
couio Conde , que muitostempos ha
via que ſe lhe havia predicto que elle
havia de morrer , ao meſmo tempo em
que húa mulher , que aſſiſtia nao mui
distante de ſua caſa , e que até entao
nao lhe havia chegado noticia de q ella
tiveſſe nem ſequer adoecido. A iſto
The tornou o Medico, que aquella mef.
ma mulher ſe acháva ja na ultima ex
tremidade da ſua vida. Inftou ainda o
Conde , que tambem felhe havia dito ,
que hūa certa arvore bem conhecida
havia de ſer decepada antes que a
morte o rendeſſe ; entao concluio o
Medico , que aquella meſma planta
bavia cahido naquelle meſmo dia . At- , o confeflar
tonito aquelle Senhor com tantos pre-
fagios, diſpôs- e o melhor que pôde
para a jornada da eternidade , e con
cluido o termo de cinco horas , cahio
morto .
6 Deixando finalmente outras cou-
fas , que refere o meſmo Padre Nider ,
concluiremos eſta memoria com ou-
tra noticia do noſſo Servo de Deos ,
que elle nos miniſtra , e que nos pódeligiaõ;
Servir de exemplo para aprender em
cabeça alhêa . O caſo paſou neſtes
termos . Houve hum Religioſo Pro-
fello da Ordem , que pormuitostem
pos foj devotiffimo da Gloriofa Vir-
gem e Martyr Santa Barbara , advo-
gada das mortes felizes , nao morren-
do , ſegundo eſcrevem nao poucos
Authores, aquelles que lhe profeflaõ
devoçao , ſem que ſeja o munidos com
os Santos Sacramentos . Gratificou a
Inclyta Amazona de Chrifto os obfe-
quios do noſlo Religioſo com preſer-
vallo ,e defendello demales imminen-
tiſſimos. Andando o tempo , veio o
miíeravel Frade a decahir do ſeu fer-
vor primitivo , deixando -ſe vencer
de huanegligentiſſima froxidao . Por
efte tempo lhe appareceo em ſonbos,
e , ſegundo o que elle meſmo depós ,
lhe diffe aſſim : Pois me deixafte , dei-
Tom . VII.
PRUSSIA , 30 de Agoſto . 283
xar-te hei tambem . Acordou o ho
mem cheio de pavor , com hum tað
formidavel ameaço : e devendo elle
ſervir - lhe de avilo , e aguilhao para
o fazer tornar ás ſuas antigas devo
çoens ; tanto nað foi aſſim , que, antes
precipitando -ſe de hum em outro
abyſmo , até chegou a apoſtatar do
Ioſtituto Dominicano , que cao ſo
lemnemente profeſſára , deſpindo , e
renunciando o ſanto habito , que ve
ftira .
7 Qual outro Pródigo , depois de
haver paſlado por muitos males tem
poraes , e eſpirituaes, veio ter ao Hof
pital de Nuremberg . Era aſua doen
ça mortal, e a da conſciencia morta
liflima : eſtando ja deſconfiado dos
Medicos, mandou -ſe -lhe chamarpara
o noſſo . Bemaventurado
Fr. Conrado de Pruſſia ; e , ou dan .
do -lhe a noticia , quem foi em ſua buf
ca ; de quem era o moribundo , ou
o bom Servo de Deos a adquiriſle por
qualquer outro principio , levou com
ligo hum habito de S. Domingos. Ou
vio aquelle Apoſtata,conſolou 0, e pe
ſuadio o muito a reſarcir agora o eſcan
dalo que dera em abandonar a ſua Re .
que alli lhetrazia hum habito ,
que o veſtiſſe , e foile morrer a ella ,
aonde, ſem embargo da ſuaapoſtazia,
nao acharia mais que caridade, e amor
de Deos . Apenas vio diante de ſi o ha .
bito , e ouvio a propoſta de ſeu Con
feffor , ou foſſe que , pelos ſeus anti.
gos , e máos habitos , ſe deixaſſe ven .
cer das ſuggeſtoens do demonio , ou
que'foſſe effeito dos delirios, e ter
mos da enfermidade , começou , ao
modo de hum cavallo eſpantadiço , e
desbocado , aclamar em altos gritos :
Aſim be que me quereis ver envile
cido, e affrontado ? Ide vos daqui,
que jamais farei o quemeaconſelhais.
Retirou -le o Padre, cheio de deſcon
ſolácao , e amargura ; e aquelle infe
liz , entrando logo em agonia , mor
reo dalli a bem pouco , na ſua im
reo
penitencia . Finalmente, o noſſo Bem
aventurado . Fr. Conrado , havendo
Nn ii
pro
284 FR . RAIMUNDO GOZIN ,
procedido ſempre como ſervo fiel ,
paſſou por hūa morte mui precioſa ,
que o levou no Moſteiro de Eſcho.
neſtembac, aos 30. de Agoſto , no
anno de 1426. , a ſer conſtituido na
gloria de ſeu Senhor.
30. de Agoſto.
Vida do Veneravel Padre
FR . RAIMUNDO
GO ZIN ,
Extrahida do grande Chroniſta Fr.
Eſpirito Rotero, e de outros Au .
thores .
I Primeiro Eſcritor , e Pa .
negyriſta , que precedeo
a todos , os que eſcreverað as memo-
rias do Veneravel Padre Fr. Raimun-
do Gozin , foi o Veneravel Padre Ro-
tero , que immediatamente lhe ſucce-
deo no cargo de Inquiſidor de Tolo-
ſa , naquella carta com que elle , co .
mo ja diſlemos em 28. de Agoſto ne-
fte meſmo Tomo, reſpondeo a outra
dos Cidadãos da nova Babylonia , ilto
he da Cidade de Genebra, ou , por
melhor dizer, hia mais diretamente
dirigida a increpar hum Religiolo
Apottata da Ordem , e foi impreſſa
em Toloſa no anno de 1549.
Ź Naſceo o Veneravel Padre Fr.
Raimundo Gozin em Foix , Capital
do Condado do meſmo titulo. Tinha-
o Deos eſcolhido para ſe oppor á fu-
rioſa , e infernal torrente dehereſias,
que pertenderao abſorber a Europa
no meio do decimoſexto ſeculo , e
obediente ás moçmens do Ceo , ve
ſtio o habito de S. Domingos . Tinha
os dons da perſuaſað , e do conſelho
em fummo gráo . De hum , e outro
le ſervio muiconveniente para melhor
acudir pela cauſa de Deos . Perſuadin-
do reduzir nao ſó muitos Religiofos ,
fenao muitas Communidades á mais
perfeita obſervancia ; e aconſelhando
propôs á Santidade de Clemente VII .
hum arbitrio mui efficaz para acabar
30. de Agoſto. :
por húa vez com as facçoens , e ab
ſurdos que entao perturbavao a paz
da Igreja de Deos . O Pontifice ſe pa
gou muito delle , e nao deixára ſem
duvida de pôr- ſe em pratica , ſenao
obftafem de permeio os fataes inciden
tes , que ao meſmo tempo recreſce
rao , como foi a inundaçao do Tybre,
o ſaqueyo de RomapelosLuteranos ,e
outras muitas occurrencias de ſeme .
Ihante natureza.
3 Fez o Veneravel Padre Gozin
hum tao eſtupendo progreſio nas le
tras , que em quanto ellas tiverem eſti
maçao no mundo ſerá veneradiſlimo o
ſeu nome . Parecia incrivel poder ca
ber em comprehenſao humana tanto
cabedal de erudiçao. Ouvillo no pul
pito , era ouvir os Ciceros, e os De
mofthenes; mas nao ſem a piedade ,
e o fervor dos Jeronymos , e Agosti
nhos . Oraſſe , ja em Latim ,ja em vul
gar, de qualquer modo parecia que
nao fallava , fenao na ſua lingua ma
terna. Eſcrevendo em proſa , parecia
nað ſe haver exercitado jamais 'o ſeu
eſtudo, e a ſua penna , ſenaõ na com
poſiçao ſolta ; ecompondo em verſo ,
dava motivo de ſe preſumir , que to
da a ſua applicaçao tinha dirigido á
Poetica. Fallava tao radicalmente nos
termos da Agricultura , Aſtrologia ,
Medicina , Geografia , Arte de guer
ra , Fyſica , Hiſtoria ,eem quaeſquer
outras Faculdades profanas , que dao
podiao os ſeus profeffores deixar de
reconhecer a ſuperioridede de hum
talento taó univerlal , e ſublime. A
liçaõ que teve dos Authores da Eſcó .
la, foi 'generaliſima, e a tenacidade
da ſua memoria lhe ſuggeria , quan
do aſſim lhe era neceſſario , as autho
ridades mais terminantes , e conclu .
dentes . O muito uſo que tinha desLi.
vros da Eſcritura , de hum , e outro
Teſtamento , lha fizeraó familiariſſima.
Leo todos os ſeus Interpretes , e acha
vaõ.no promptiſſimo para diſſolver
as queſtoens mais intricadas dos Li
vros ſantos. Eſte extraordinario co .
nhecimento , que elle tinba da liçao
ſagras
.
FR : RAIMUNDO GOZIN ,
fagrada, e profana, lhe veio a ſer de
húa nao momentanea utilidade , quan
do teve o Officio , que tao importan-
te e religioſamente fervio , de Inquiſi-
dor Apostolico .
4 Serao eternos'monumentos da' ameaçado
ſua literatura alguns Tratados , que
elle compôs , e que muito a pezardo
tempo recommendaó o leu nome á
posteridade. Eſcreveo hum volume
ſobre a moderaçao , e parcimonia dos
alimentos : deſcreveo em verlos hexa-
metros as excellencias da ſua patria :
fez hũa impugoacao contra a Altro-
logia judiciaria , è magia :muitos dif
curios , Oraçoens , e Sermoens: álèm
de outros muitos facundiffimos ver
fos, que podiaõ paſlar por obras do
feculo de Augusto , cantou em verſos
ſaficos a vida de S. Voluliano , Ar-
cebiſpo Turonenle , e publicou , álèm
de outros, hum Livro dos principios ,
e progreſſos da Fé. Neſta Obra demon-
ftra concludentiſſimamēte ,g Oldrado ,
e Pedro Ancharano quando falláraõ
do poder , e authoridade dos Inquiſi .
dores Apoſtolicos , nem diſcorrêra ô
como Theologos, bem como Cano-
Diſtas,
5 Em todo o genero de virtudes
foi inſigne. Obſervou á riſca toda a
Conſtituiçao. Guardava infallibiliffi-
mamente os jejuns: jamais faltava do
Coro ás Marinas dameia noite , e em
tudo o mais era igualmente pontual.
A ſua piedade o fazia reſpeitar por
hum ſanto. Era hua edificaçao ver
o quanto elle celebrava devotamen-
te . O zelo com que propugnou a pu-
reza da Fé The pudera merecer o epi .
theto de Elias da Lei da Graça . Ha-
via no ſeu tempo em Toloſa dous im-
puriſſimos Nigromantes , hum delles
mui prezado de advinhar futuros pe-
las eſtrellas, e ambos cheios de ini-
quidade , e irreligiao : de tal modo
ſe haviao feito ſenbores das vontades
dos Tolofanos , que nao ſomente o
vulgo , as mulheres , e os meninos
muito os veneravaó , mas até as peſ•
ſoas principaes, e, o que he mais feio,
30 de Agoſtos 285
eindigniſſimo de dizer-ſe, tanto ſe dei
xavao allucinar os meſmos Biſpos ,
que entrando , por occafiaõ do feu
Officio de Inquilidor, a perſeguillos
o pollo Padre Gozin , chegou a ier
pelos embandeirados da
quelles dous miniſtros do diabo , le
proſeguifle na tua condenaçao . E
como nao ha loucura , a que ſe nað
buſque algum decoroſo pretexto,paf
ſavao os prote& ores daquelles infa .
mes a excogitar alguns fundamentos,
com que perſuadiſlem licitos os pro
cedimentos de leus afilhados.
6 O noſſo bom , e Veneravel Pa
dre Fr. Raimundo Gozin , bem lon
ge de ſe intimidar com eſta nao pou
co formidaveloppoſiçaõ, compôs hum
excellente Livro , com que pôs por
terra os fubterfugios dos contrarios ,
moſtrando com toda a evidencia quan:
to he pernicioſa , e illicita a magia , e
a judiciaria , e raciocinando com tan
ta fubtileza , e ſabedoria , que haven
do ja diſcorrido fobre o meſmo argu
mento o celebre Pico de la Mirandu
la , confrontada húa com outra Obra ',
ſe vê bem as muitas couſas que a ette
Author lhe haviaõ eſcapado. Comoo
Servo de Deos oao aquietava nelte ne
gocio , la foi a ſua diligencia deſcobrir
cinco Livros da invocaçao dos demo
nios , alguns caracteres, e imagens
dedicados a eſtes anjos deſertores, o
Ceptro de hum mago , a quem osin
felizes , que o ſeguiao, davao o nome
de ſeu Rey , duas raizes de dormidei.
ras , húa em que ſe via a imagem de
bum homem , e outra em que ſe via
effigiada húa mulher . Tudo iſto fez
queimar publicamente o noſſo Ver.e
ravelInquifidor , e ſendo deſcuberta
a maldade daquelles dous magicos,
torao eſtes fugindo , nao fó da juſta
pena , que merecia a ſua perfidia, le
nao do furor do povo , ja reconhecido
da ſantiſſima doutrina do noſſo Ve .
neravel Padre Fr. Raimundo , 2bo .
minava como hűa peſte do inferno
aquelles dous deteſtaveis feiticeiros.
7 Nao tardou muito que a pravi.
dade
 DO
286 FR : RAIMUN GOZIN ,
dade Judaica , e a peſte da falſa dou.
trina de Luthero ſe nao diſſeminaſſe
por aquellas partes . Oppôs - ſe a esta
torrente o noſſoVeneravel Padre Go-
zin ; mas os contrarios lá buſcáraó
meios de impetrar , e impetrarao do
Pontifice hûa commiſſao para que fof-
ſe outro o Juiz , que conhecefle daquel .
la cauta : achava -ſe ja o bom Inquiſi-
dor mui cortado de annos, e traba-
Thos; iſto porèm pao obſtante , prefe-
rindo a tudo o mais a cauſa de Deos,
pôs- ſe a caminho para Roma , para in-
formar ao Papa de tudo o que paffa-
va .A proviſao que fez para o cami-
nho , nao foi mais que hùa firmiſſima
confiança na Providencia do Senhor,
que jamais faltou , nem ha de faltar
aquem aſſim trabalha para zelar a ſua
major gloria , buſcando, como Elle
manda , antes de tudo , o Reino dos
Ceos . Clemente VII . recebeo o nof-
ſo bom Velho com ſumma affabilida
de , e de tal modo ſe lhe fez grato ,
que nao poucas vezes paſlavaõ tres ,
e quatro horas , em quanto elles con.
verſavao ſós.
8 Chegado aos oitenta annos de
idade , dinle , e aſſim ſe verificou , que
era chegado o termo da ſua vida ; e
como ella fora taō juſtificada , corren
do agora eſta fama , acudiaõ a vello
muitas peſſoas. Na preſença dellas ,
eſtando ja proximo á fua morte , fez
hūa devota practica , em que tocou , e
explicou altiſſimamente as mais im-
portantes verdades de noſſa ſanta Fé.
Deo muitas graças a Deos pelo haver
allumiado com ella , proteſtando ef
ficaciſſimamente a ſua crença ; e ne-
ftes actos exhalou , ao modo que hūa
flor a ſua fragrancia , placidamente o
ſeu eſpirito aos 30. de Agoſto de 1549.
De Roma , donde ſe eſcrevêo , dando
noticia da ſua morte , ſe dizia que o
Servo do Senhor fora tido naquella
Cidade por bum Santo , e como tal o
venerava ja em vida o Illuſtriſſimo Bif-
po Lourenço Alemañ , que por letras
ſuas , aonde ſe vê a eſtimaçað ſumma
que fazia do noſſo Padre Gozin , o in-
30 de Agoſto
ftituhio ſucceſſor do noſſo Fr. Pedro
Rolin , Regente da Cadeira do Mo
fteiro , e Abbadia de S. Serneno de
Toloſa , a cuja Univerſidade anda in
corporada .
9 Concluiremos eſta memoria
com as meſmas palavras do meocio
nado Fr. Rotero, que , como diſſe
mos , eſcrevia eſta vida , invectivan
do a perfidia de hum Religioſo pol
ſo , que apoftatára da Ordem :Eja Ci
dade ( dizelle entendendo a de Tolo .
la .) foigará muito de ver honrada , e
perpetuada a memoria de hum homem ,
que tanto a beneficiou, e obrigou , e 40
meſmo tempo be ſem duvida , que por
mais que vos queirais empedernir , e
deſconhecer, naõ deixareis de fer abyf
mado em bum mar de confuſão, conſi
derando que deixaftes aquelle Inſti
tuto ,em que floreceoefte Varaõ cele .
fial , que vós fem algāa duvida viſtes,
e tal vez trataſtes , e que depois da
ſua morte ſe faz crédor de eternos
elogios o ſeu nome. Atéqui ſeu Succel
for, e Chroniſta o Veneravel Padre Fr,
Eſpirito Rotero.
C
RECOPILA , A M
de 30. de Agoſto.
1 M Nantes , a Santa Rainha
ER
de Navarra , Duqueza de
Lorena , Dona Margarida . Era de can .
ta piedade , que correndo o anno de
1298. ,ella , e o Duque Ferri , cedê
raó em 30. de Julho o ſeu Palacio pa
ra vivenda das noſſas Religioſas. Soli
citou -lhes MARIA Santiſſima eſta 2
mudança , apparecendo feparadamen
te á Rainha , e ao Duque , ee dizendo
The , que ſuas filhas não eſtavao bem
aquarteladas em hum retiro , em que
até entañ reſidiao junto a S. Nicoláo ,
aonde eſtava expoſtas á infolenciados
Soldados . Nenhum andou , nað fó re
miſſo em largar o Palacio , mas nem
ainda em outras muitas liberalidades,
e rendas , com que dotáraó aquella
fundaçao. A nofla Rainha ſe retirava
quan
 SOROR MARIA ROSA GENERALI,
quanto mais podia a aſſiſtir com as Re-
ligioſas, praticando ja , como ſe fofo
ſe obrigada pelo Inſtituto , todos os
actos da Religiao. Fez fagrar a Igre-
ja , e impôs . The o titulo da Annuncia
çao . Deo - lhe búa Imagem milagrola
da Senhora , que , ſegundo a iradı-
çao , veio boiando de Nancî , ſobre a
flor da agua . Entre outras muitas Re-
1 liquias, The deo tambem tres Cabeças
das Santas onze mil Virgēs Martyres,
que alli faõ mui veneradas por mui-
tos prodigios , que o Senhor tem obra-
do por lua interceſſao. Em certa oc.
caſião deſcuidou - ſe a Sacriſtaā de ex-
pollas como devia , e estando as Reli .
gioſas no Coro , Ouvirao hum celeſtial
concerto , que nao duvidáraó ſer das
meſmas Bemaventuradas Eſpolas do
Senhor , o que as determinou a com
mungar no dia da ſua Feſta .
Creou a noſſa eſclarecida Fun
dadora outros Moſteiros , dotando - os
taô liberalmente , que parecia traní.
formar- ſe em devoçaõ a ſua opulen
cia . Ficando viuva a Santa Princeza ,
dando de mað ás grandezas , e vaida
des do mundo , deixou o ſeu Paço , re
fugiando-ſe na Caſa de Deos : alli pra.
ticou as mais optimas virtudes . Era
de tanta humildade , que nao havia
quem mais ſe abateſſe , e aoniquilaſle.
Nas quartas, e feſtas hia lavar os pés
aos pobres do Hoſpital : na Quareſma,
e na ſemana Santa , frequentava mui-
to mais eſte piedozo exercicio . Buf-
cava todos os meyos de mortificar - ſe.
Jejuava muito , e fazia outras muitas
penitencias , que pareceriaõ incriveis
em hűa Senhora do ſeu caracter . Con.
tinuamente eſtava fazendo eſmolas.
Levava de comer aos pobres dos Hof.
pitaes , diſtribuindo -lho por ſuas maos,
com canto reſpeito , como ſe viſſe em
cada hum delles ao meſmo Jesu Chri-
fto . Depois deixava hum pao , e hūa
eſmóla a cada hum : gaſtava tempos ef-
quecidos na Oraçao : a eſta ajuntava
tantas outras virtudes, que nað heco.
mummente appellidada em Nantes ſe-
nao com o gloriofo titulo da Boa , e
31 de Agoſto. 287
Santa Rainha de Navarra . Deos a
chamou a melhor coroa , parece que
nos fins do decimoterceiro leculo .
Anno Dominic.
2 Em Rhodes o Veneravel Padre
Fr. Jacinto Roquete . Viveo eſte bom
Padre ſeſſenta e ſeis annos; dezaſette
no ſeculo , e quarenca e dove na Re
ligiao : mais de vinte annos , que fo
rao os ultimos da ſua vida, padeceo ,
com hùa paciencia inalceravel, a ter
rivel queixa de hum eſtupôr, purga
corio , em que ſe acriſolou tanto a lua
virtude , que morreo com a opiniao
de Santo no anno de 1694. Soueg .
31. de Agoſto.
Vida da Veneravel Irmaã
Leiga
SOROR MARIA
ROSA GENERALI,
Extrabida de Fr. Thomaz
Soueges.
I Ntre os filhos , e filhas de
e mais
E S. Domingos ,, qu
devoção civeraõ com Maria Santiſfi
ma , pela quel mais favoresreceberað
da ſua miſericordioſa Maó , le deve
hum dos primeiros lugares á Venera
vel Madre Irma. Leiga Soror Maria
Roſa Generali. Foi ſeu pay Franciſco
Generali , lavrador dos ao redores de
Sena , ſe he que ſe lhe pode dar o no .
me de pay , ſuppofta a crueldade com
que , comologo veremos ,'tratou ſem
pre a ſua bõa filha ; ſua mãy foi An
gelica de Batadfi. Andando eſta peja
da da Serva de Deos , dizia ſeu mari
do , que ſe pariſſe menina , tiveſſe por
certo que apenas a viſſe nalcida , a
podia dar por morta , porque elle ha .
via de matalla. Tal era a fua ferocia
dade ! calo reſpeito que conſagrava
as diſpoſiçoens da Providencia ! An
gelica , que ſabia muito bem que ſeu
Eſpoſo era tan cruel , e poucotemen
te a Deos, que era capaz de fazer aquel
le , e outrosmaiores exceſſos, quan
do
 288 SOROR MARIA ROSA
do le vio apertada das dores nao quiz
parir em ſua cala , e como era gente
mui pobre , e nao tinha outra , aon-
de ſe pudeſſe acolher , ſahio ao cam
po , e lem maisauxilio, ou aſſiſtencia
que a de Deos , alli deo á luz a Serva
do Senhor no dia da Beata Margari.
da do Caſtello do anno 1648. Rece .
beo no outro ſeguinte a agua de vida
do Santo Bautiſmo , e nelle lhe foi
impoſto o nome de Apollonia .
2 Cuidou Angelica que Francif-
co Generali eftiveile ja livre das ſuas
primeiras furias ; mas bem depreffa
reconheceo o ſeu engano , vendo -as
cada vez mais accezas, e ateadas : por
iſto lhe era neceſſario andar ſempre
com muito relguardo com a menina ,
eſcondendo- a aos olhos de ſeu tyran-
nopay , ora entreteno , e ora em efta-
bulos, nem o trabalho de caſa lhe dei
xava mais lugar que de lhe dar o pei-
to hūa vez no dia , e ainda eſta mui-
to ás furtadellas. Hum dia a veio achar
quaſi affogada ſua mãy por hum grof-
ſo , e repentino chuveiro que ſe le-
vantou . Quanto a noſa menina deveo
á protecçao da Senhora pelos perigos
a que a defaſſiſtencia de ſua máy , por
eſta mais nao poder , a expudha , bao
he explicavel . Quando tocarmos eſte
ponto, diremos alguma couſa 'ao in-
tento. Foi a menina creſcendo , e mo-
ſtrando a paſſo igual tantas graças , e
virtudes , que nao havia coração que
nað ganhaſie , menos o de ſeu brutal
progenitor , que a nada ſe movia . Mais
fe moſtrava tygre de Hircania do que ,
como devia ſer , pay amoroſo .
3 Logo que começou a raiar oa
Serva de Deos a luz da razao , foi hum
dos ſeus primeiros reflexos reconhe-
cer tantas dividas , que havia coptra
hido da Divina Bondade , e da Mao
tao liberal de Maria Santiſſima. A eſta
Senhora deveo a ſua vocaçaó á vida
Religioſa, e a Rainha dos Anjos, que
The inſpirou hum tað fanto penſamen-
1 to , lhe aplainou todas as difficulda.
des , que ſe podia o oppor ao ſeu pro-
jedo ; porque , humanamente fallan-
GENERALT, 31 de Agoſto.
do , nenhuma eſperança podia ter a
Serva de Deos do bom exito da ſua
louvavel reſolução , ſuppoitos os mui
tos inconvenientes que le mettiao de
per meio. Nao tinha quem a apoiaſle;
faltava -lhe a induſtria ; era fragiliſſi
ma de compleiçao ; carecia dosmeios
neceſarios para ſe docar , o queneſtes
tempos he hũa circunſtancia indiſpen
Savel, acabando mais o ouro , doque
a virtude ; como le elle foſſe neceila
rio a hūa Eſpoſa de Chriſto , que tan
tas vezes reprehendeo , e deſprezou
as chamadas riquezas do ſeculo . Tu
do iſto , porém , nao obſtante , aquel
la Mäyde Miſericordia, a que o Pure
purado , e Serafico Doutor S. Bôaven
tura deo o ticulo de noſſa unica efpe
gança abaixo de Deos , lhe facilitou
todas eſtas contradiçoens .
4 : Com a occaſiaõ que teve ' de pal
far aquelle lugar o noſo Fr. Vicente
Luqui , a prégar nelle a Quareſmado
anno de 1668. , tepelugar de examinar
o eſpirito da Serva deDeos ,e achou
a tað conſum mada em virtudes , e per
feiçoens, que volcando outra vez a
Sena , fez hum caó favoravelinforme
ás habitantes do noſſo Moſteiro de
Santa Catharina de Sena , que nao
houve quem ſe nao commoveſle mui
to de ajudar tað bons propofitos , que
de acordo commum a mandárað vir
aquella Caſa. Apreſença da pobre
poftulante foi outro povo incentivo a
ſeu favor , e ſem maior dilaçaõ a fize
rao entrar logo para dentro daquelle
tao ſuſpirado centro dos teus dele jos.
Foi neceſſario eſperar tres mezes para
ſe lhe deitar o habito , o que ſe exe
cutou no dia de Nofio Padre S. Do
mingos , com inexplicavel alegria da
Serva de Deos. Aſſim o deo a enten
der o profundo rapto , em que ficou
depois de receber hum favor, a que
tao ancioſamente aſpirava , ficando
como immovel na meſma poſtura ,
com o Crucifixo em húa mao, e a
véla na outra por eſpaço de tres ho
ras , e com o ſemblantetaõinundado
de formoſura, e alegria . No anno ſe
guinte ,
 SOROR MARIA ROSA GENERALI , 31 de Agoſto .
guinte , a 5. de Agoſto de 1669. dia
conſagrado a Noſa Senhora das Ne-
ves , foi o termo de todas as ſuas ef-
peranças , fazendo nelle , comiguaes
demonſtraçoens de piedade , a lua
Profifao nas maos da Madre Soror
Jeronyma Vinidi .
5 Vendo - ſe conſtituida em tanta
obrigaçao a leu Divino Eſpoſo , pôs
todas as ſuas forças em correſponder
tanto amor com a maior fidelidade.
Aquella , com que deſempenhou os
tres votos, foi igualmente inſigne,
que exemplar. Amou a pobreza de
todo o ſeu coraçao . Lembrava -ſe de
haver entrado para aquella Caſa , ſem
haver trazido , nem ao menos com
que ſe lhe fizeſſe o primeiro habito ,
e ficava entendendo que a verdadeira
pobreza Religioſa era a maior rique-
za ; por outra parte via o ſeu Jesus
naſcido de hũa Máy pobre em hum
pobriſſimo eftabulo , e morto em húa
Cruz ; iſto a movia a hum grande hor-
ror daque le idolo do ouro , em que
os mundanos tanto idolatrao . Ficou
com hũa tal veneraçao ao habito de
S. Domingos, que continuamente o
andava deoſculando , ecom tanto ex-
tremo ao tempo da ſua morte , que
ninguem baſtantemente ſe podia ad .
mirar de tanta devoçað . Jamais ſe vio
Religioſa teftimunhar gratidao mais
extremoſa ao dom da ſua vocaçao .
Hữa vil aldeaā , dizia ella muitas ve
zes , merecia os ſoberanos de fpoforios
do Rey dos Reys ? Oh quegrande bon-
dade a deſte Senhor ! Hữa vez a vio
hūa ſua amiga chorar muito amarga-
mente , o que era nella mui ordinario:
perguntou -lhe pela cauſa ; e refpon-
deo a Serva de Deos : Choro , porque
fou indigna de haver entrado na Cafa
do Senhor , e porque nao deixo de lhe
ler ingrata a muitos milhares de gra
ças , que cada dia me eſtá fazendo.
Que outra couſa merecia eu pela min
nha maldade, mais que arder eterna-
mente no mais profundo do inferno ,
yos pés do meſmo Judas ?
6 Todos os annos ſolemnizava o
Tom . VII .
289
anniverſario da fua Profifia , com as
demonſtraçoens do maior reconheci .
mento . Na obſervancia das Copſtitui .
coens foi inviolavel. Abſteve-ſe per
pecuamente do uſo da carne . Nosje
juns , obſervados com toda a exacçao
naquelle fanio Moſteiro , parecia tao
inimicavel , comorigoroſa. Nacbedi
encia nao foi menos maravilhoſa. Ti .
nha a Serva de Deos efta virtude pela
principal do eſtado Religioſo. Appli
cou -ſe tao adherentemente á fuaprati
ca , gera mui ordinaria na ſua boca eſta
jaculatoria: Ab DivinoEſpoſomeu, e
quanto fois amavel ! Concedei -me, Še .
nhor , pela voſſa Immenſa Bondade eſta
virtudetaõ preciſa da obediencia. Mui
tas vezes , quando mais engolfada na
devoçaõ da Senhora , a divertiaõ della,
para provalla, occupando-a ja neſte,
ja naquelle trabalho ; ella corria logo
a executar os preceitos , que lhe impu
nhaô , como le nada mais lhe lem
braſſe . Outras vezes , com hum er,
pirito igualmente candido , eſimples ,
que ardente , e devoto , ſe deſpedia
neſtas occaſioens do leu Senhor , com
eſtas palavras: Eſpoſo querido, bem
vedes quenao poſodeter -me aquimais
comvoſco: ſe quereis vir comigº ,vin
de. Nao he muito diffemelhante o que
ſe eſcreve do noſſo grande Portuguez ,
e Paduano Santo Antonio de Lisboa.
Achava -ſe muitas vezes o Santo mi
moſo com as viſitas, que lhe fazia o
Menino Deos; mas todo eſte favor
deixava o Santo, logo que lhe era for
coſo acudir a algum acto de Commu
nidade. Do meſmo modo era a obe
diencia, a que regrava as ſuas peni .
tencias, devoçoeos, e mais virtudes .
Quanto fofle fiel Elpoſa de Chri
fto em cultivar a integridade , e can
dura da açucena virginal , nao tem
menores demonſtraçoens , antes fim
mais maravilhoſas circunſtancias. Ain.
da nao tinha entrado no Moſteiro , e
andava guardando o gado de ſeu pay,
quando ja le moſtrava affeiçoadiſſima
a eſta virtude , que ſabe transformar
o barro, de que ſomos formados, de
Oo coico
290. SOROR MARIA ROSA GENEAALI ,
toſco em Angelico , ou mais , que An-
gelico ; porque hum Anjo em carne,
nao ſei o que lá parece , que diz
mais alguma couſa, que Anjo pura
mente eſpirito. Era de fette annos ,
quando já cuidava muito em preparar-
ſe para merecer o thalamo daquelle
Senhor por excellencia , Filho da mais
Santa Virgem , e que , como aſſimo
canta a ſua Igreja , he coroa de todas
ellas . Chegada aos treze annos , fez
voto de perpetua virgindade diante
de hūa Imagem da Senhora do Roſa .
rio . Fiel , e fantamente o cumprio até
a ſua morte, o que parece que obri .
gou o Ceo a affiilir-lhe maravilhoſa-
mente, dando-lhe a palma da virgin-
dade , e da victoria, na guerra quelhe
fez o demonio , e o mundo . Feito
aquelle voto , ficou a Serva de Deos
ainda no feculo , couſa de ſeis pa-
ra fette annos . Tancos forao os que
durára os combates , fem jamais po.
derem fazer moila , quanto menos bre-
cha, no ſeu peito mais firme no feu
ſanto intento , do que ſe foſſe hũa'ro .
cha de diamante .
8 Com outros muitos dotes , que
recebera da Mañ do Creador a noſſa
Paſtora , fazia nu vero hūa fuaviffi .
ma , e rara formolura . Nao poucos
moçosdo ſeu lugar a pertendiai . Hua
deltes , deſeſperado de poder contra .
hir nupcias com a Serva de Deos, en .
trou no frenetico deſatino de a violen-
tar por força. Muitas foraõ as cilladas
que lhe armou : todas everteo feu Di.
vino Elpoſo. Mas por duas vezescom
prodigios manifeftamente ſobrenatu-
raes . De ambas fabia aquelle cego , e
brutal, que a Serva de Deos eſtava
ſó paſtoreando . De hūa dellas deo Sua
Divina Mageſtade hũa tal velocidade
a fua Eſpola para fugir , que a Fabula
nað fingio com tanto encarecimento
azas nos pés de Mercurio , quanto ſe
poderiaõ agora preſumir nas plantas
deſta melhor , emais verdadeira Atha .
lanra . Semelhanie favor lemos nas Hi-
ſtorias deſte Reyno conceleo o Ceo
á Bemaventurada Paltora Tranſmön-
zr de Agoſto.
tana , Santa Comba , fugindo á furio .
ſa brutalidade de hum Rey Mouro ,
que em cao calamitofos tempos tinba
o dominio daquellas terras . O outro
favor, naô referimos aqui , por ſer
mui ſemelhante a eſte. Mas palferros
a algumas das ſuas muitas virtudes .
9 Era tal o ſeu deſapego ás crea
turas , que ſenað houvelle tantaspro
vas da ſua ardentiflima caridade, po .
deria parecer que as defamava. Nao
ceſſava o demonio de a combater , per
tendendo , como em outro tempo ,
ao grande Santo Antonio Egypcio ,
atemorizalla , reveſtindo-te das mais
extravagantes , e mais horriveis figu
ras , e ainda aſſim nenhuma taõ pro
porcionada para o expreſſar ao vivo .
A boa Irmak , bem ſegura de quantoo
eſtava em cumprir os preceitos da obe
dieacia , zombava de todas eſtas viſa
gens , profeguia focegada, e vi& orin
.
famente os ſeus ſantos exercicios. Na 1
virtude da hunidade , foi tempre 1
mui notavel : parecia que nao trazia
diante dos olhos outro penſamento
mais, que o pobre , e humildedoſeu
naſcimento , e polto inferior que oc
cupava na de Deos, para ſempre ſe hu
milhar , e confundir. Daidade de oi
to para dez annos começou a jejuar
inteiramente as Quarelmas a pao , e
agua . No Mosteiro creſceo depois a
muito mais ella ſua au { teridade . Je
juava a pao , e agua todas as veſperas
de Feſtas da Senhora , e de outras
muitas folemnida les , e nao poucas
de fua particular devoçao . A meſma
abſtinencia praticava nas ſegundas , e
Sabbados delde o primeiro de Agosto
até o dia da Aflumpçao Triunfante da
Máy de Deos . O meſmo fazia muitas
ſemanas antes da Paſcoa do Eſpirito
Santo. Era ainda ſecular, quando ja
tomava as mais rigorolas diciplinas .
Eſte exercicio praticou com a maior.
deshumanidade entrada ja no Mottei
ro . Aqui em hum lugar , que lhe pse
receo mais a geito , eſtabeleceo hun
como Olivete , e Calvario para caſtie
gar, e macerar o ſeu innocente corpo . '
I Polto
 SOROR MARIA ROSA GENERALI, 31 de Agoſto.
10 Poſtoque, como ja diſlemos ,
era a obediencia a regra Lesbia das
ſuas penitencias , com tudo, foi tao
induitrioſo o ſeu eſpirito da mortifi
caçað , que ſoube obter licença para
diciplinar- ſe, á imitaçao do noilo Sao-
tiſſimo Patriarcha Domiogos , tres
vezes cada noite : accreſcentava ou
tra diciplina nos dias das ſuas maiores
devoçoens . Alguns mezes , antes de
entrar no Convento , coſtumava ſero
Seu'leito , nao como o da Eſpoſa dos
Cantares cuberto de oloroſas, e agra .
daveis flores, fenaó de crueis , e pe-
Detrantes eſpinhos. Se a obediencia
Dao rivera nella tanto dominio , fize-
ra - ſe - lhe inſopportavel o nao le lhe
confentir outra mais dura cama do
que hūas taboas , que unicamente a
conftituhiaô . Cingia - ſecom húa grof-
ſa cadea de ferro cravejada de duras
pontas , o que tanto ſe lhe fazia mais
fenſivel, quanto a Serva de D- os era
diligentiſſima no trabalho da Caſa , e
quanto as ſuasmuicas , e graves enfer •
midades The hiañ diſſipando mais os
ſeus alentos. Como Elpoſa que era
tao fiel , era a meſma conformidade
na vontade Divina . Quando maislhe
parecia , que menos a lliſtida eftavado
Teu Senhor , quando mais creſciao as
fuas deſconfolacoens, trevas, amar
guras , e privaçoens da viſta intelle .
etual do ſeu Amado , prorompia ne-
ſtas , ou ſemelhantes expreſoens : Tra
te -me o Eſpolo muito embora comoqui .
zer : que favorecida, que desfavo-
recida ſimpresou ſua. A mim he - me
baſtante eſtar de hum animo firmiſi
mo de nunca offendello : procurallo
afim com todas as minhas forças ; e
jer ſempre ſua pelos dulciſimos vin-
culos do amor.
II A ſua caridade foi a todas as
lozes admiravel. Quanto ao amor do
proximo , ſe a obediencia nað lhe fo-
ra á mao , experimentáraõ os pobres
de Chriſto maiores demonftraçoens
da ſua clemencia , do que ſempre viao ,
e mais que viao admiravaố. Cahira
ſeu pay gravemente de cama, cuja
Tom . VII,
291
noticia naő tardou em chegar aos ou
vidos da noſa boa Leiga : Tabia eſta,
que ainda aquelle tempo era Novica ,
a indiſpoſição , com que ſeu pay ſe
achava para paſſar a dar contas, ja pe .
la experiencia que tinha do ſeu máo
coraçaā , ouja , o que talvez he o mais
certo , ſuperiormente illuttrada : de
tal modo le empenhou com ſeu Divi
no Espoſo , tantas penitencias fez,
tantas lagrimas chorou , que commo
vido o Pay das Miſericordias de tan
tas ſupplicas , muito mais quando ellas
eraõ táo generoſas, como te ndentes
á imitaçao do meſmo Senhor na Cruz,
pedindo nella por ſeus inimigos , a
mediar por bum pay , que em nada o
' havia parecido , concedeo ainda hum
anno de vida aquelle pobre homem ,
termo em que ſe pode arrepender dos
ſeus peccados, e brutaes exceffos, e
congraçar- ſe com Deos , deixando
muitas eſperanças , e finaes da ſua
predeſtinaçao. O zelo, com que ac
tendia á ſalvaçao das almas , era fo
bre todo o encarecimento. Deſejava
padecer tudo o que ha que padecer ,
e , com tanto , que nao foſſe privada
do Amor de Deos , as meimas penas
do inferno, para que nenhuma das al
mas , que haviaõ ſido reſgatadas com
o preço do Divino SanguedeJesuChri.
lo , ſe privalle de hûa fruição cao ce,
leftial.
12 Com as Eſpoſas do meſmo Sex
nhor , a quem le allociára , praticava
todos aquelles bons officios dalegiti
ma piedade religioſa , e Chriſtaa . Se
acaſo chegava a obſervar nellas algum
defeito , poſtoque momentaneo , era
a ſua ſumma deſconſolaçao nao aca
bar de as ver emendadas, o que in.
ftantiſſima, e fervoroſamente nao cer.
ſaya de deprecar , em quanto nao via
o damno atalinado. A's fuas oraçoens
ſe attribuîraõ , a eſte propoſito , nao
poucas vezes ſubitos, e maravilhoſos
effeitos. Quando adoeciao , nao havia
enfermeira , ' que as ſerviſle com maior
cuidado , e diligencia . Conſclava - as
com tanta graça , e com tanto amor ,
Oo ii
que
 292 SOROR MARIA ROSA GENERALI , zr de Agoſto
que as doenças mais penofas, com as
luas palavras , comole foſlem magas ,
ſe tornavaõ mui faceis , e loffriveis.
Havia outra Irmaā Leiga , que , ou
pelo ter aſlım de condiçao , ou , co
mo he muito mais provavel , diabo-
licamente inftigada , comou ( comore
diz ) á ſua conta a Serva de Deos. Ilto
o fazia com muito mais exceilo , quan
do trabalhavao ambas nas officinas,
Levava a noſſa bõa Irmaã com taõbõa
graça as ſemrazoens da companheira ,
que as Religioſas, que asſim o obfer-
vavai , igualmente ſe moviað ao af-
ſombro , que á compunçao . Mas foi
maior pafmo ver , que cahindo a
outra de cama , da lua ultima epfer .
midade , que foi dilatadiffima, nao
teve a ſua cabeceira mais cuidadoſa
a ſliftente , nem mais caritativa enfer
( meira ..
13 Mas como amaria tanto a Deos,
que he a parte mais nobre , e mais al-
ta da caridade, e he o que agora pal-
famos a ver , ſe nao amalle ao ſeu pro.
ximo com tantos extremos de miſe-
ricordia ? Nao ſe faz bem crivel , que
quem nað he para o menos , menos
ſerá para o mais ? Amava tanto a Deos
eſta ſua böa Serva , que ló vivia , ſó
reſpirava de amar . O ſeu coraçað era
hum incendio inextinguivel de amor .
E ſe Jacob dizia , que lhe fugia oſom .
no dos olhos , em quanto ſervia pela
ſua Rachel , igual effeito experimen-
tava a noſſa Soror Maria , deforte que
The era neceffario , á imitaçao de mui-
tos Santos , pedir ao Divino Amante,
moderaſſe os seus ardores , conceden-
do -lhe algum breve tempo de deſcan .
ço , para poder ſopportar o trabalho,
que a eſperava de dia . Muitas vezes
fe lhe nuviraó algumas Jaculatorias
reveſtidas de dous Gnaes cui expreſ-
fos de amor , iíto he , de penſamentos
mui amantes , e de hun modo de os
exprimir mui ardente . Quando refle-
ctia na tibieza , com que o Divino Amor
era correlpondido , cahia em taes def-
fallecimentos , taes eraõ as anguſtias ,
que a apertavao , que parecia ſe lhe
deſconjuntavao os oſſos : nem admita
tia , ao modo do Santo Rey , outro
ſuſtento mais, que o das ſuas affluen
tes , e amargozas lagrimas . He mui
proprio dos namorados celebrarem o '
Bem que amao nasdoces , enumero
las clauſulas da Poeſia . Nos maiores
amantes do Amor Divino ſe tem vitto
o meſmo , como em noſſo grande Pa
dre S. Franciſco , e em outros muitos
grandes Santos. Semelhantemente fez
a nolla bõa Irmaa Soror Maria alguns
Canticos de amor , que lhe elevavao
o coraçao ao ſeu centro entretanto
que ſe occupava no ſerviço da ſua
obrigaçao .
14 Accommertida finalmente da ſua
ultima enfermidade , proteſtou o Me
diconao poder averiguar a raiz , e na 11
tureza do mal , nem achar outronome ,
que lhe dar , ſenað o do amor . Como
nao ha mais efficaz prova de amor , do
que padecer, abrazava-ſe neſtes dele
jos a Serva de Deos . Foi mai ſujeita a
dores de cabeça , e chamava- lhes cam
ricias , e mimos do Eſpoſo : ninguem
a via jamais caó alegre , como quando
ellas eraõ mais agudas. Dizia que mais
devia a ſeu pay , que a tratára ſempre
com rigor , e aſpereza , que a ſuamáy,
que a amava , e favorecia. A razao que
dava , era efta : Porque elle me fazia
conforme a Chrifto padecendo , e ella
me deſviava de tanto bem . Os dele
jos que tinha de morrer , nað eraõ me.
nos vehementes. Deſde o dia da ſua
profilſað , a morte era toda a ſua eſpe
rança , todo o ſeu cuidado ; ſe nao for
ſe por ſer tað reſignada, nao ceſſaria
de importunar ao ſeu Senhor. Deſeja
va ao modo de S.Paulo fahir dos vin
culos da carne , para ſe unir a Chriſto .
Exclamava muitasvezes : Ah , e guan
to o Espoſo tarda em vir ! Andava
ſempre em hũa continua preſença de
Deos. Eſta de tal modo a ajudava no
feu trabalho , que era admiraçao ver
a preſteza , e o afleio , com que expe
dia , ainda o que era mais cultoſo . A
fua Oraçao , que he a porta por onde
Deos entra nas almas , era continua ;
por
 ? SOROR MARIA ROSA
porque tudo o que obrava , ou via
obrar ; tudo o que dizia , ou ouvia di-
zer ; em hūa palavra , todos os obje-
Aos ,que fe lhe repreſentavao, eraõ ma
j ceria da ſua contemplaçao .
15 Servindo no Refeitorio con
5 que aſlim o referio , e declarou , para
semplava na Prioreza JESU Chritto
noffo Senhor , nas mais Religioſas os
Sagrados Apoftolos, o que a fazia exer-
3 daquella Senhora ; a noſſa Veneravel
cer aquelle minifterio com a modeſtia
EL
de hum Anjo , e com fumma vigilan-
cia , para que tudo foſſe com toda a
i limpeza , e affeio. Se trabalhava na co
zinha , as brazas do fogo a faziao lem .
brar ja da voracidade do fogo do Pur-
gatorio , ja das delicias dos incendios
do Amor Divino . A primeira conſi-
deraçao lhe fazia reputar por nenhum
o trabalho que sinha ; a ſegunda, a in-
flammava nosſantos deſejos de ſer Sa.
lamandra derao Divino fogo . Se eſta-,
va no Coro , lugar deſtinado aos Dic '
vinos louvores , elle lhe trazia á me .
moria o Paraiſo , aonde Sua Divina
Mageſtade be inceſſantemente louva-
da com os repetidos, e alternados Tri-
fagios dos Anjos, e dos Santos . Eſta
conſideraçaõ a enchia de hum tað ex
ceſſivo alvoroço , que até lhe chega-
va a,reverberar no ſemblante com edi-
ficaçao das Religiolas. O Confeflor do
Moiteiro , que era hum Conego de
Sena, homem douto , experimenta.
· do , e virtuoſo , reconhecendo bem a
propenſaô , que havia na Serva de
Deos , para a via , e vida interior , man-
dou -lhe, que álèm da vocal , em que a
Serva de Deos era mui frequente , ti-
veſſe todos os dias duas horas de Ora .
çao mental. Aſſim meſmo lhe deter-
minou , que converſaffe duas Religio-
fas daquella Caſa mui favorecidas do
Ceo , no meſmo ſanto exercicio da
Oraçao , e verſadiſſimas em todo oge-
nero de virtudes.
16 O Senhor , que para taở gran-
de gloria fua a creara , a dotou de al .
guns attributos , com que que coſtuma
coſtuma
prendar os ſeus mais eſcolhidos. Eſta.
va gravemente doente hva Senhora
GENERALI , 31 de Agoſto. 293
chamada Lucrecia Rolpialioſi, ere.
fidia elta illuftre doente em hűa po .
voaçao mui diſtante doMoſteiro , em
que a Serva de Deos vivia , veio a ella
buſcalla o Padre Meſtre Sebaſtiac Con
1 ti da Sagrada Companhia de JESUS ,
lhe pedir , que nas ſuas oraçoens re
commendafle a Deos o bom fucceſſo
Soror Maria lhe reſpondêo figura
mente, que aquella enferma havia ja
paſſado desta vida : retirou le o Pa
dre , e poucos momentos depois , lhe
chegou hum aviſo , que confirmava o
que a Serva de Deos anticipadamen
te lhe havia dado . Do melmo modo
antevio o termo da ſua invejavel mora
te , dizendo muitas vezes com a cara
inundada de alegria , que ella teria a
felicidade de morrer antes de taes ,
taes Religioſas, que ella nomeava ,ain
daque aquellas, ao menos , quanto as
apparencias dos annos , e de outras 1
circunſtancias , pareceſſem eſtar mais
propiaquas á ſepultura.
17 A devoçaõ , que ſempre teve
com MARIA Santiſſima , foi mais que
extremoſa . Mas que muito he que
quem era tao agradecida , tellimu .
nhaſſe a lua gratidao á Máy de Miſe .
ricordia , a quem deſde o ſeu primeiro
oriente começára a dever tantos favo
res . Ainda era Paſtorinha , quando ja
entað , ſem embargo de que ſeu pay
lhe nao concedia inſtante livre de tran
balho, labia tomar algum tempo para
ir fazer viſitas á ſua Bemfeitora , buſ
cando- a em algūas Capellas , que lhe
eraõ dedicadas . Nunca ceflava de ex
cogitar osmaioresCultos com que ob
ſequiar a MARI A Santillima, nem
havia coraçað , en que ella nao entra ,
nhafTe com a ſua perſuaſað , e muito
melhor com o teu exemplo, a devoçao ,
e amor da Toda , ſem mancha , for :
noſa : nada recebia , do que ſe lhe da
va , que ella nao foſſe pôr primeiro no
Altar da Senhora, tomando- o dalli,
como ſe aſſim o recebefle , com a ſua
ben
294 SOROR MARIA ROSA
bençað , e beneplacito . Em fim , mui :
tos ſantos exercicios , que depois da
ſua morte fe ficárað fazendo naquella
Cala , em honrada Cheia de graça , co
doslao huns effeitos , que tiveraõ a ſua
cauſa ros ſantos exemplos daquella
grande devota de MARIA Santiffi-
ma . A's fuas instancias ſe erigio hūa
pequena Capella a hűa ſua ſoberana
Imagem , que ella , quando peitoreava
as rezes de ſeu pay, tinha achado ; ede
que levára comfigo hūa cópia para o
Moſteiro, que o Senhor , que fez tað
grande o Original della , tem enno-
brecido , e authorizado com reperi-
dos exemplos. Dizia ella , que jamais
pedira couſa algúaáfua Senhora , que
The folle denegada. Mas nao he mui-
to que , pedindo, recebefle , quando ,
ainda antes de poder pedir , ja a ſua
grande Protectora a tinha começado
a beneficiar.
18 Inſiimulada fua may das ſem .
razoens de feu marido , hia em certa '
occaſiao com a ſua menina nos braços
a affogar-ſe em hum rio : e ſem duvi .
da teriao ambas nas ſuas correntes a
morte , le pela filha ſe pao intrometteſ-
ſe a livrar tambem a mãy , a Máy da
Vida . Dizemos que pela filha ſe falo
vou a máy ; porque nos dá occaſiao
outro ſemelhante acontecimento , que
dalli a tempos tornou a acontecer ,
porque correndo outra vez aquella
matrona riſco de morrer affogada , ás
diligencias , e oraçoens de ſua bõa fi-
lhaſ deveo eſcapar a ſalvo daquelle
grande perigo . Em outra occaſiao ſe
vio a Serva de Deos accommercida de
duas grandes , e aílanhadascobras , de
que livrou felizmente , mediante a
protecçao da ſua Senhora . Ja diſſemos
que lhe deveo a vocaçað á Religia ),
e fo .
o amor á caſtidade , e á virtude;
ra hum nunca acabar , ſe houveſſemos
de diſcorrer por outras muitas eſpe-
cies lemelhantes . Remacaremos din
zendo , que tanto a quiz para ſi a So-
berana Rainha do Ceo , e terra , que
até a quiz levar para ſi no ſeu dia Se-
manario , qualhe o Sabbado , para met .
GENERALI , 31 de Agoſto.
tella de poſle do Sabbado do deſcan
ço da eternidade .
19 A memoria das penas do Fi .
lho de Deos , a moviao a huns affectos
doCeo : parecia-lhe impoffivel haver
Chriſtao , que muito muito ſe naš !
1
lembraſſe do muito , que no progref
fo da ſua Paixao padeceo o Filho de
Deos : por esta razao quafi nao podia
dormir , ou nao dormia nas noites da
quinca para a ſeita . Não fatis feita de
ouvir hua ( ó Miſſa todos os dias , tao
böa diligencia ſe ſabia dar na expedi
çao dos ſeus officios , que lá lhe vinha
a chegar o tempo para poder ouvir
outras muitas mais . Como aquelle la .
A
cruento , e fanto Sacrificio he hũare
preſentaçao , e memoria das ultimas
agonias do filho de Deos , Soror Ma
ria naõ podia affiftir a elle , menos que
nao foſſe com os olhos arrazados em
lagrimas . Era attentiflima ás horas
que dava o relogio ; porque em cada
hūa dellas medicava hua parte das Pe
1
nas do Senhor , ſegundo pelas horas 1
.
eſtao todas ellas distribuidas por mui
tas pennas , igualmente doutas , que
contemplativas. Lá eitabeleceo em
duas ſituaçoens diſtantes dous luga
res para ſe dar melhor a eſte exerci .
cio : chamou ao primeiro , Monte ( ) .
livete ; ao ſegundo , Monte Calvario : 1
daquelle hia diſcorrendo para estou
tro , pondo em pratica algűas penofas
morrificaçoens , que la hia rematarfi
nalmente com tūa aſperrima dicipli
nano Calvario. Sendo -o tanto da Pai
xað , veja-ſe quanto o ſeria , nao me .
nos do memorial della o Santiflimo
Sacramento do Altar .
20 Nunca ſe vio amante mais ar
1
rebatado , e furiofo , por lograr a
viſta do obje &to amado , do que o era
Soror Maria , por naõ perder a preſen
ça do ſeu Senhor : elta a razao por .
que frequentiſſimamente acudia a a .
dorallo , e a fazer -lhe Corte com os
meſmos Serafins da Gloria .Diante do
ſeu Querido he que ſe vinha aliviar do
pezo dos ſeus trabalhos , que ja entao
ficava lendo nenhum . Notou- le que
ſem
 SOROR MARIA ROSA
ſempre neſtas occafioēs eſcolhia o lu.
gar , que ficava mais proximo ao lagra-
do Tabernaculo : por eſta razao lhe
era mui ſenſivel o habitar em hum
apoſento , que ficava mui retirado da
Igreja. Em certos dias do anno fica
vao abertas todas as portas, que tinhao
communicaçao para aIgreja , para on-
de podiaõ ſahirlivremente as Religio-
fas: a Serva de Deos nao përdia occa
fiao algúa deſtas ; e , obtida para iſſo
licença das Preladas , paſava encaõ
toda a noite deſveladamente na Pre-
ſença dos ſeus Divinos Amores ; e len
do Christo na Eucariſtia Sol , eſta ſua
fideliſſima Eſpoſa vinha a ſer a ſua
mais namorada , mas tambem mais cor.
reſpondida Clicie . Ella meſma ceſtia
munhou eltes Divinos favores a hūa
dua confidente , que vendo - a em hum
destes dias tao alegre , perguntou -lhe
pela cauſa. Ainda quereis outra ma-
jor; ( reſpondeo Soror Maria ) do que
haver eu paſado eſta noite no Parai-
zo ? Para receberefte Sacramento de
amor , ſe diſpunha como hua verda-
deira Virgem prudente . Andava lem-
pre com hūa inſaciavel fome das deli-
cias dette Pao dos Anjos ,e a obedien-
cia , que , por ſer a que aſſim neſte , co.
mo em outros muitos a regulava , e
dirigia , parece que mais a exacerba-
ria , bem ao contrario era quem me
lhor a ſuavizava .
21
Chegava de ordinario á Sagra.
da Meſa duas , ou tres vezes cada ſee
mana. Por muito que creſceſſem as
ſuas occupaçoēs , tað induſtrioſamen .
te ſabîa cumprir com tudo , que ja .
mais pudérað ellas ſer cauſa de impe.
dimento para que ella deixaſſe de re-
ceber ao ſeu Adorado Senhor , ou ,
uſando da ſua melma fraze , deitar - ſe
ſem receio naquelle vaſtiſſimo Ocea .
no de miſericordias. Quando recebia
o Senhor , era com lhúa cara nadando
em tanta alegria , que ficava depois
com eſcrupulo de que ſe eſcandali-
zaſle o Sacerdote , e ſeus Mini tros .
Quando dalli ſe levantava , era com
hũa talabſtracçao ,que bem dava a co-
GENERALI, 31 de Agoſto . 295
nhecer , quanto por em cheio gozava
das delicias daquelle Senhor , que diz
haver conſtituido as ſuas na afliften
cia que elle faz com os Filhos dos ho.
mens . Se nao le podia deter o tempo
que queria a dar graças , porque a cha
mavaõ as ſuas obrigaçoens, dizia , com
igual confiança, que ternura , ao feu A
dorado : Dulciſſimo Amor men : nao
me polo aqui deter mais , se quereis
vinde commigo. Com a pratica de vir
tudes tao alias fe diſpô ; para hũa fea
liz morte , mediante a qual , paſſou pa
ra Deos em hum Sabbado 31. de Ago
ſto de 1680. idoſa de trinta e tres an
nos , os doze ulimos vividos no Mo
lteiro com aquella graude fantidade ,
e religiao , que inelegante, e ſumma
riamence deixamos referido.
22 Divulgada pela terra a morte
da noſſa Veneravel Soror Maria Roſa
Generali , foi immenſo o numero de
gente que acudio ao Moſteiro a vene
ralla. Por iſto foi neceſſario nao ex
pôr o feu Cadaver da Igreja , ſena6
que , antes de dar-ſe á ſepultura , le
deixou ficar da parte de dentro do
Moſteiro , aonde foi neceffario reter .
fe por eſpaço de tres dias. Vieraõ as
Dignidades da Cathedral hoorar o fue
neral da quella pobre Aldeáa , ſendo
ellas as meſmas, que a ſeus hombros
a tranſportárað á fepultura . Muitos
Senhores , que fe quizerao achar pre
ſentes, le tiveraõ por mui ditoſos de
levar com ſigo parte das flores, que
ſe haviaõ deitado ſobre o Cadaver da
Serva de Deos . Trouxerao na para a
Sacriſia , para alli a depoſitarem em
hum caixao , mas apenas lhe fizerao
o primeiro movimento , quando im .
mediatamente começou a deitar hứa
grande copia de ſangue , etaõ fluido ,
q ſe pode receber , e conſervar em fraſ
quinhos de vidro. Nað le eſquecêrað
as Religioſas de perpetuar eſte inci
dente , de que mandáraõ fazer auto ,
mettendo hűadas copias do extracto
no meſmo caixao deſtinado para de
poſito do corpo de Soror Maria . Fi
nalmente a portas fechadas foi ſepul
sada
 296 RECOPIL.C ,
tada com toda a decencia na ſua ſe :
pultura competente .
23 Quiz o Senhor manifeſtar qua-
to lhe havia ſido gratos os mereci-
mentos de Soror Maria , obrando va .
rios prodigios depois da ſúa morte ,
mediante a ſua interceſſað . Havia no
Mosteiro hūa Religioſa , Rodeira, cha
mada Soror Maria Pilhi ; predomina
va nella tao fortemente o humor da
melancolia , que nao ſó veio a fazer
Le furioſa , ſenao que era neceſſario
ſeguralla , e prendella muito bem com
cadéas . Dizia a noſſa Veneravel Son
ror Maria Rola , que ella muito eſ-
perava , e confiava em Deos , que
aquella pobre paciente , ou ainda em
fua vida, ou depois da ſua morte , vi .
ria a ter algum refrigerio , e conſola-
çað . Foi ſervido poflo Senhor verifi-
Cira predicçao de ſua boa Serva , quan :
to á ſegunda parte ; porque pafiados
poucos tempos depois demorta a Ser .
va de Deos, aquella Religioſa ſe te ,
ſtituhio ao ſeu primeiro eſtado . Nem
fci eſta a unica mercê, que deveo á
protecçao de Soror Maria : em outra
occaſiao , eſtando com hum pé mon .
ſtruoſamente inchado , e dolorido ;
o meſmo foi merello em hum çapato
da Serva de Deos , que ficar logo li
1 vre , e deſonerada daquella violencia .
Com o memo remedio melhorou de
ſubito a Madre Soror Conti de hum
importuno rheumatiſmo , que , ſegun-
do o annuncio dos Medicos , ainda
quando a doente lhe eſcapafle , devia
ſer com'a penſao de ficar laſtimada dos
ſeus effeitos por todo o tempo da fua
vida . Com a applicaçao que fez de
certa couſa , que fora do uſo da Ser-
va de Deos , ficou livre a Madre So-
ror Alinerinda Grefoni de hūas acer-
bas , e dilacadas dores de cabeça ,nal-
cidas de hũa febre lenta , e que eraõ
preſagas de outras muitas conſequen-
cias terriveis. O Medico fe perſuadio
tambem de que elas melhorias eraõ ef .
feito de cauſa ſobrenatural , que ne-
penhuma duvida teve de atteſtallo , co
mo atteſtou , por eſcrito . Allim tem
A M de de 31 Agoſto .
por bem o Senhor de exalcar os hu
mildes , e affim fe cumpre ao pé da
letrao q diz S. Pedro : Que nao faz ex
cepçao de peſſoas.
RECOPILAC, A M
de 31. de Agoſto.
I A Ilha Fermoſa das Filip .
N pinas o muito grande Ser
vo de Deos , e Irmað Leigo Fr. An
tonio de Vianna.Era noſlo Portuguez ,
e paſſando aquellas partes , veitio o
habito da Ordem em Manilha , de don .
de , feita ja a ſua Profifað , foi expe
dido aquella Ilha. Guardou a Regra
no ſeu maior rigor , e foi de tanta ca.
ridade , que continuamente le exer
citava em inſtruir os pobres Indios nas
verdades de nofla Santa Fé . O bom
modo , com que o fazia , ganhava os
coraçoens daquellas gentes, e osnof
ſos Padres ſe admiravao , e edifica
vao muito , vendo a grande copia de
peſſoas de todos os ſexos, idades , e ,
condiçoens, que elle a cada paſſo lhes
enviava para ſe lhes administrar o fan
to Bautiſmo. Neſta fanta occupaçao
o achou a morte , que , como piamen .
te ſe pode crer , nao deixaria de ſer
precioſiſſima diante de Deos . Anno
de 1637 = Ex 2.p. Hift. Filipp.
2 Nas Filippinas o Veneravel Pa .
dre Fr. Jeronymo Morez . Veſtio o
habito de S. Domingos no Convento
de Valença . O zelo de converter al .
mas , e dilatar os cultos ao Santiflimo
Nome de Jesus , o fez paſſar aquellas
partes. Aportou felizmente ás Ilhas
chamadas Babuiannas , facilitando
lhe o Senhor o paſlo a ellas , que he
perigoſiſſimo , e infame por muitos
naufragios, para o bem eſpiritual da
quelle Gentiliſmo , que vivia brutal
tnente , deixado nao mais que á def
cripça ) , e lei da natureza. Fez o Ve .
neravel Padre Fr. Jeronymo que le
juntaflem dous povos ; a hum levan
tou alli hua Igreja , que pela intenſa
devoça o que lhes cinha , conſagrou a
Santa
 SOROR ANTONIA BAUTISTA , 1 de Settembro. 297

Santa Urſula; e a ſuas onze milcom .
panheiras na virgindade, e no mar-
tyrio . Era o bom Miſſionário de mui
pouca ſaude ; mas o zelo que tinha
da maior gloria de Deos , é do bem
de ſeus proximos o fazia trabalhar fem
interpollaçaõ na lavoura deſta ſeára
deſde pela manhaã até a noite : Final-
mente puderaõ tanto as ſuas préga-
çoens , e boas diligencias , que exter-
minou dalli inteiramente o demonio ,
Nao careceraõ as virtudes deſte ſanto
Religioſo de premio , ' ainda neſta yi .
da , chegando a receber altiſſimas cona
folacoens da Mao daquelle Senhor ,
por cujo ſerviço tanto trabalhava . Era ,
de vida taõinculpavel , que , por testi
munho de quem o confeilou geral
mente , jamais commetteo hum pec
cado mortal. Húa morte fanta o fez
voar para o Ceo , nao tem hum amar
go sentimento de quantos o haviaó
tratado ,e conhecido.Annode 1639 .
Ex 2.p. Hiftor. Filipp.

PRIMEIRO DE SETTEMBRO

VIDA DA VENERA VEL MADRE

SOROR ANTONIA

BA U TISTA ,

xtrahida da Chronica de Fr. Lucas de Santa Catharina , e confora

me as memorias , que ſe conſerva7 no Moſteiro do Salvador da Cia
dade de Lisboa.

I
Orao Franciſco de Fa.
ria , e Dona Joanna da
Fonſeca os ditofiffimos
F
e preclariſſimos pays ,
de quem participou o fer a noſſa Ve-
ſempre conchegadas immediatamente.
á carne ; e porque deſte modo he que
as'amanſava , e domeiticava , coſtuma
va pedir as outras Religioſas , que lhe
entregaſſem as que faziao denovo pa

neravel Soror Antonia Bautiſta , Re .
ligioſa, que profeſſou no Moſteiro do
Salvador de Lisboa em 22.de Novem-
bro de 1628. que ella honrou ,e con-
decorou com as ſuas Religiofiflimas ,
e ſantas acçoens. Diftinguio -feelta in-
figne filha de Domingos em rigoro-
fiſſimas penitencias , com que morti-
ficava o ſeu innocente corpo , e na in-
violavel obſervancia dos preceitos da
Conſtituiçao , que era a pedra deco-
que aonde ella provava todas as ſuas
obras . Nunca veſtio outras tunicas ſe-
ra feu uſo , para ella Ihas tornar com
ſemelhante diligencia mais dóceis , e
trataveis . Goſtava muito de applicar
fe ao enſino das Noviças , para que
ſerviſlem com mais preftimo , eapci .
dao no Coro , e nasmais funçoens do
Moſteiro ; e neſte exercicio gaſtou a
major parte do tempo da ſua vida ,
tao bem empregado , como o veio a
moſtrar o fruto deſte ſeu cuidado , em
repetidas, e louvaveis experiencias .
2 Duas vezes foi eleita Prelada ,
emprego que ella acceitou nao poram

naõ de eſtamenha mui grofleira , e biçaõ de imperio , fim porque ſe lhe

Tom . VII. Pp abria
298 : RECOPI A C,
L
abria caminho de termais em que fer- "
vir ; porque nenhuma differença ha .
via entre ella , e luas ſubditas , ſenao
acharem - na ſempre diante de ſi em
cudo aquillo que era ſerviço , e tra-
balho ; porque ſó neſte ſentido heque
era primeira . Foi inflexivel efta illu .
Itre Dominicana no rigor ", e contie
nuaçao de nao menos crueis , que fre .
quentes diciplinas : jejuava pouco me-
nos que quotidianamente , e jamais
fe affaſtou da diſpoſiçao das leys da
Ordem no tocanie á abſtinencia da
carne ; porque nunca incorreo na frac-
çaõ dejte ponto por todo aquelle tem-
po que viveo dentro dos noſſos Clau-
itros . Era devotillima da Soberana
Imagem de noſa Senhora daNazareth ,
detinha todos os dias por hum gran-
de eſpaço , não ſe recolhendo vez al .
gúma ao ſeu apofento , que lhe nao
beijaſle reſpectuoſamente a mañ , co .
mo em reconhecimēto de vaſſallagem
e eſcravidao. Aqui executava a Ser
va de Deos as praticas das ſuas devo
çõens de todo o anno , e muito el
pecialmente aos Sabbados , como di-
Itinctamente conſagrados pela pieda-
de Chriſtaā ao Culto , e memoria da
Rainha dos Anjos.
3. O muito que queria a ſeu Divi-
no Eſpoſo a abrazava em deſejos de
padecer por feu amor, e quando o
Ceo lhe faciava parte deſta vontade,
jamais podiao igualar as maiores pena .
lidades a ſua tað affectuoſa paciencia .
Abrio - fe - lhe huma chaga no peito ,
acompanhada de terribiliſſimas do-
res , e por mais que fuou o Cirurgiaõ
em atinar com a ſua cura , veio a fi-
car finalmente fruſtrada , parecendo
que aquella brecha nao a permittia o
Ceo com outro fim , ſenaố para ſer
hum como reſpira douro dos amoro .
Los incendios de húa tao grande alma.
Creſciaõ os penoſos effeitos deſte in-
commodo , e pudera - ſe imaginar que
deſcreſciaõ á viſta da alegria , eiguale
dade de animo da boa Religiofae
1
A M do 1 de Settembro.
Quando lhe fallara7 com o ultimo dea
lengano , annunciando- lhe a morte ,
elteve tað longe de reſentir -ſe dette
aviſo , queances moſtrou eftimalio em
muito , exclamando com ſemblante
imperturbavel, e ſereno ſemblante :
Oh como folgo de morrer ! Ob como
folgo ; e que mercê tao alta me faz
Deos niſo ! Tivera a Serva de Deos
a devoçaõ de rezar ſempre , fem al
guma quebra , ou interrupçao de dias ,
o Officio menor de noſa Senhora ; e
conbecendo bem a Communidade o
alivio ,que lhe daria em recitallo a ſua
viſta ao tempo , em que eſtava agoni
zando , apenas acabou de proferir -ſe
a ultima fyllaba delle , quando aquel
le columbino eſpirito voou , como
nopremiocre , a lograr fe do eter
Settembro de 1681 .
RECOPI .
LA C, A M
do 1. de Settembro.
I O Moſteiro da Virgem
N Maria de C ,amora , hứa
Sereniflima Senhora Infanta de Caſtel.
la , filha de ElRey D. Fernando . En
trou na Ordem a perſuaſoens do Ve
neravel Padre Fr. Joao Carraſco , con
feſſor da Rainha mãy da meſma Se
nhora. Dentro do Clauſtro , quando
ja nao o fora pelo ſeu Regio naſcimen
to , o que ella em nada prezava , ſe fi
zera , como verdadeiramente o foi,
unicamente grande pelas ſuas raras , e
admiraveis virtudes. Eftas , mediante
hūa feliz morte , lhe abrirao caminho
para o Ceo , parece que no fim do
{ eculo decimoterceiro = Anno , de
1300. = Lopes. 3. p. 245 .
2 No Real Moſteiro de Poiſly a
Preclariſſima Princeza , do ſangue da
Caſa de França Soror , Izabel de Va :
lois . Era filha de Carlos de Valois ,
neto de S. Luiz Rey de França , e Iro
maã de Carlos de Alençon , que en .
trou nella , e profeſſou a noſſa Ordem ,
exemplo queheroica , e Chriſtaâmen .
te
 FR. JOAM DA CRUZ ,
te ſeguio a Serva de Deos , veſtindo
o nollo ſanto habito . Depois de accu
mular - lhe novos creditos , e eſplen .
dores morreo ſantamente pelos fios
do primeiro ſeculo Dominicano , em
que ella occupou dignamente hum
dos primeiros lugares entre os filhos
de S. Domingos. Anno de 1315 .
Joan . à S. Mar. tom . I. p . 657.
3 Em Montargis a Sereniſſima
Princeza , e Chriſtianiſſima Rainha
f
Maria de Luxemburg . Foi eita Se-
1 nhora filha do Imperador Henrique
VII . , e Irmaã de Joao Rey de Bohe-
mia . Sendo ainda muito menina foi
kvida a hum Moſteiro de Religioſas
da nolla Ordem , aondefoi lantamen-
te educada , e inſtruida. Alli vettio o
fagrado habito Dominicano , a que
1 adquirio novos luſtres com os ſeus ir
reprehenfiveis, e ſempre exemplares
procedimentos . Naö pode ( comode-
ſejava ) ter a conſolaçao de viver , e
morrer enire luas companheiras, por
que nao pôde eſcuſar o ſer cirada de
entre ellas para ſubir ao Throno de
França , deſpoſando -ſe com a Mage
ſtade de Carlos o Fermoſo , pelo Pon-
cifice , attento ao juizo dos Deputa
dos a este fim nomeados , haver annul
lado as nupcias,que ette Soberanoan
tecedentemente contrahira com Bran
ca de Borgonha.
ſ Jam is deixou a Rainha Maria
no Palacio, nos tres annos que viveo
maritalmente com aquelle Principe ,
o habito Dominicano , gloriando le
mais de veftillo , do que de todas as
gallas Reaes. Dentro deſte meſmo
sempo nao ceffou , outroſim , co
mo nem feu Real Eſpofo , de dar
ſucceſſivas demonſtraçoeas do muito
que ambos amavaô , é reſpeitavao a
Religiaõ de S. Domingos , ſendo os
filhos deſte Santo Patriarcha os voicos
directores do eſpirito de ambas aquel.
las Mageltades. Era Confeſſor doRey
O Veneravel Padre Fr. Huberto , a
quem o meſmo Senhor era tao addi
diamente attencioſo , que nadarefol-
ou determinava , menos quegaó
via ,
Tom . V II .
2 de Settembro . 299
intervieſle o parecer , e approvaçao
de leu Confeffor , pelo que o meſmo
Pontifice mui principalmente nego
ciava com elle todas as dependencias
que tinha com aquelle Monarcha , do
que ſe pode notar hum exemplo em
Bzovio .
S Finalmente a Rainha morreo de
de hum parto em lffoudung ; e , em
cumprimento do que ella , aſſim por
ſua ultima vontade ordenar a, foi tranf
portada ao leu Mosteiro Dominicano
de Montargis , aonde ſe lhe deo ſe
pultura , em cuja ſuperficie ſe abrio
este Epitafio. Aqui jaz a poderofili
ma , e muiEgregia Senhora Maria de
Luxemburg filha
, do Imperador Hen
rique , irmaā do Rey de Bohemia , e
mulher do poderofilimo , e Chriftia
niſimo Carloso Fermofo, Rey de Fran
fage Navarra : morreo em I foudung,
da Provincia , e Ducado de Berî , e
foi trazida a eſta Igreja em 3. de
Março do anno do Senhor de 1324 ..
Iu quem quer , que vas paſando , a
les eſtas clauſulas, encommenda a ſua
almi a Deos. - Eſpondano, Vinhier,
e Guido.
2.de Settembro.
Vida do Veneravel Padre
FR . JOAM DA CRUZ ,
Extrahida da Hiſtoria das Filippi
nas . tom . 1. l. 1.pag. 232 .
I Izera eſte grande filho de
F Domingos , noſſo Santiſli .
mo Patriarcha , a ſua rofiffa o no
celebre Convento de S. Paulo de Se
vilha , e ardendo em deſejos de con .
fagrar a ſua vida aquelle Senhor.que
por elle havia dado a ſua no patibulo
de búa Cruz , viajou aquellas Ilhas a
cultivar a feára Evangelica , ſem que
foſle obſtante a impedir a generoſida
de da ſua reſoluçao o ſeu natural , que
era mui debil , e doencio . Chegado
á Provincia de Pangaſinan , aonde
fora expedido com outros compa
Рp ii nheiros ,
300 RECOPIL A C , A M
nheiros , nao foi pequeno o exercicio
que aqui teve a fua paciencia , e re .
fignação na vontade de Deos , me
diante as contradiçoens, e perſegui-
çnens , que alli ſuſcitáraó, contra eites
bons Operarios , os inimigos do Evan-
gelho. Daqui paſſou para Bathan , pa-
sa cooperar com as ſantas diligencias
de outros noſſos Milliy narios , que ja
pelo pezo dos ſeusannos , e pelo cref-
cido numero dos ſeus Apoſtolicos tra-
balhos , nao tinhao forças para ſuſten-
tar o pezo daquellas eſpirituaes con-
quiſtas.
2 o deſejo , que tinha de imitar
ta ) grandes Meſtres , lhe fez apren-
der com ſumma facilidade a lingua
daquelles paizes , de modo que foi fei.
10 Superior de tres delles , com gran .
de aproveitamento daquelles povos.
Nao perdia inſtante este bom Cultor
da vinha do Paydefamilias , ja pré .
gando , ja cathequizando , ja bauti.
zando , ja ouvindo confiffoens, e ja
fazendo outras muitas fantas obras ,
cop q ſe fazia ſenhor dos coraçoēs da
quellas gētes . Nao perdoava aos maio
res trabalhos , andando de choupana
em chonpana , e de aldea em aldea , por
mais que as inclemencias dos tempos
ſe lhe mostrarema oppoſtas, e ainda
inacceffiveis. Chegando a parte,aonde
hia Miſſionar , o deſcanſo que tinha
das fadigas, e contratempos do ca-
minho , era deicar -ſe veſtido , e ain .
da talvez molhado , ſobre a terra du .
ra , ſem admittir outro mais mimoó
ſo tratamento . O ſeu ſuſtento eraõ
hűas poucas de ervas mal guizadas , e
que lhe era neceſſario fazer nað pe ..
quenos esforços para haver de as levar .
3 Como a ſua compleiçao era taő
fraca, como diſſemos , e a inteníaôdo
feu eſpirito tao forte , veios achar - ſe
fomertido a muitos achaques , muito
principalmente a hūa cruel aſthma ,
que mui fenlivel, elamiudadamente
o maltrataya . Com eſte accidente ſe
complicavao outros nao menos peno-
fos, da pedra , e de repetidas colicas .
Eftes incommodos , ſendo, como eraõ,
de 2 de Settembro ,
tao crueis , ainda lhe nao mereciao
tratar - ſe mais humana , ebenignamen
te : proleguia nos jejuns, no ; cilicios,
é nas diciplinas com hũa tal ſeverida.
de , como ſe ſe achatſe muito moço ,
e robuſto . O noſſo Illuftriffimo Arce
biſpo de Manilha , D. Fr. Miguel de
Benavides, havendo reconhecido a
virtude , capacidade , e deſintereſſe
delte Servo de Deos , o conſtituioleu
Confeffor , e Vigario Geral. Como
a vircude unida he mais forte, detta
ſanta communicaçao tirava cada hum
deltes grandes Servos de Deos mais
incentivos para ſe adiancar no cami .
nho do Ceo. Por morte daquelle in
ſigne Prelado, tornou o noilo bom
Obreiro do Senhor á cultura , e in
itrucçao dos ſeus Indios , em cuja im
portanţe empreza confummou glorio
ſamente os
ſamente ſeus dias ,, terminados por
os ſeus
hūa illuſtre , eſanta morte a 2. de Sets
tembro de 1605 .
RECOPILAC , A M
de 2. de Settembro,
I O Real Moſteiro de Poil ,
N ſy , a Veneravel Soror Iza
bel du Bois . Nao tinha mais de doze
annos quando veſtio o fagrado habito
de S. Domingos ; eallim como viveo
ignorante do que era mundo , ſe me
Ihantemente nao ſoubetambem o que
era peccado. Enriquecida de todas as
virtudes Religioſas paſſou a melhor
vida no anno de 1341. Ficou recom
mendada a memoria da ſua innocen
cia , e religiao nas elegantes clauſulas
de hun Epitafio , que ſe abrio na ſua
ſepultura = Fr. Carlos de S. Vicente,
no Anno . Dominic.
2 Em Lima , Cidade Capital do
Perû , a Veneravel Madre Soror Lui
za Barbara . Teve a fortuna de tratar
com Santa Roſa de Lima, que com
a ſua irreſiſtivel, e celeſtial perſuaſao .
nao ſomente a fez mudar de concei
to e
, de animo a reſpeito do habito
da Terceira Ordem de S. Domingos,
para
 JOAM BAUTISTA DE BRUEIL, 3 de Settembro.
para que Luiza olhava com ſummo
horror , ſenam aindaa veftillo , ehon-
rallo , como muito honrou com húa
vida muijuftificada , e com humamor
te moi glorioſa, no anno de 1620. =
Ex vita Sanli & Rofa .
3 Em Toloſa os dous devotos
Irmãos Leigos Fr. Claudio Borrey , e
Fr. Joao Raimundo . Merecem hum
1 diſtincto nome nas noſſas Hiftorias ,
)
pelo muito que trabalharao na ettru-
etura do magnifico tumulo , que alli
ſe erigio ' na noſſa Igreja ao Angelico
Doutor Sáto Thomaz de Aquino,e naő
menospelo edificio eſpiritual , em que
muito le canſárao dasluas eminentes ,
3 e religioſas virtudes. O primeiro fri
dotado mui fiogularmente do dom de
lagrimas , e de hum grande eſpirito
de Oraçao . O ſegundo , a penas re .
cebeo o Pao de vida , quando , co-
41
mo piamente ſe crê , pullou a lograr .
ſe para ſempre da eterna . = Anno de
1662. - Ex Fr. Carol.à S.P'incent.i .
Ann . Domin .
3 . de Settembro.
Vida do Veneravel Padre
JOAM BAUTISTA
DE BRUEIL ,
Sacerdote do Oratorio de JESUS ,
e da noſia Terceira Ordem ,
Extrabida do Padre Fr. Carlos de
S. Vicente , no Anno Dominic.
I Aſceo o Veneravel Padre
N Joao Bautiſta de Brueil ,
Sacerdote do Oratorio de Jesus ,e me-
ritiſſimo alumno da noſſa Terceira Or-
dem , em $ . Remberto , da Diecele
de Leao . Nos ultimos annos do Emi-
nentiſſimo Cardealde Berulle , eotrou
na Congregaçao do Oratorio , pare-
ce que para nelle le conſervar o eſpi.
rito de recolhimento , piedade , e ora .
çao daquelle Santo Ioſtituidor , le
Eminentiſſimo pela Purpura , nao
menos pelo exemplar , e ajuſtado da
ſua inculpavel vida ; porque, ſegundo
301
le via do noſſo Veneravel Congrega.
do , a ninguem parecia ſenzo haver -le
transfundido nelle fantas , eraõi ſig
nes qualidades . Até os teus ultimos
dias , conſervou ette Servo de Deos
fielmente a pratica dellas , obrando
em tudo o mais heroico ,eo mai Chri.
ſtað , que le pode dar nas virtudes.
Applicou ſe ás fciencias , e as ſoube
no mais eminente gráo , mas o eftu .
do que fez deilas Dao le dirigia mais
que a buſcar por eſte meio a maior
gloria de Deos. A eſte modo dizia
Santo Agoſtinho , que deviamos def
pojar a idolatria , como pofluidora de
má fé da erudição dos ſeus labios , fa
zendo -a ſervir ao maior culto do ſo
verdadeiro , e unico Deos .
Pôs todo o cuidado em ſer hum
fiel Miniſtro do Sinior, procurando
ſantificar - ſe primeiro a ſi com todos
aquelles requiſitos , quedevem ſer in
ſeparaveis de hum verdadeiro Sacer
dore , para melhor ſantificar aos ſeus
proximos . Dado ao importantiſſimo
exercicio do pulpito , mottrou hum
preftimo, e hũa capacidade , que ſó
podia ter hūa adequada proporçao na
dilarada esfera do ſeu zelo , e do ſeu
eſpirito . Ette o motivo porque muin
tos Senhores Prelados o buſcavao , pa
rece que em competencia , perten
dendo cada hum aitrahillo a Miſſio .
nar nas ſuas Dieceres. Com eſta oca
caſiao chegou a prégar nas mais inlig
pes Cathedraes da França , ſendo fem
pre ouvido de hum extraordinario
concurſo de ouvintes. Tal foi a ſua
acceitaçaõ em būa muito diſtincta das
muitas Metropolis, em que Evangeli
zou a palavra Divina , que nella aſcen
deo aos empregos de Conego , Peni
tenciario mor , e Cura de almas . Do
meſmo modo ſe vio proximo a ſer ca -
beça do Oratorio , ſe naõ ſe intromet
teſſe hum certo reſpeiro , ouinciden
te,que deſvaneceo a bem fundada idéa,
que os Eleitores haviao formado de
o inſtituir Geral . Peſſoas igualmente
qualificadas por naſcimento, que rel
peitaveis por virtude,fe gloriavao muje
to
302 JOAM BAUTISTA BRUEIL ,
to de o ter por Diredor das ſuas cons
ciencias .
3 Os ultimos annos da ſua vida ,
que elle paſſou em Alés , nað foraõ
ſenaõ húa excellente pratica de todas
as virtudes , que elle poffuſa em hum
tao relevante gráo . Aqui ſe vio a ſua
humildade, a lua colerancia , a fua
caridade , e a ſua devoçaó em repe .
cidas occalioens , que ſe lhe ofierece
rað . Era de mui debil conſtituiçaõ ,
eja muico entrado em annos , ea maior
parte delles conſumidos , e tyran-
nizados de importunas moleſtias , ain
da aſſim era tao activo no trabalho ,
como ſe nao pailaile de trinta annos ,
e fora dotado de hũa faoiſſima diſpo :
ſiçaõ. Dedia ,e de noite jamaisera pof-
fivel achallo , que nao foſſe entretido
em alguma obra. Nettes ſeus ultimos
anaos ſe applicou a eſcrever hum li .
vro de controverfias contra os abſure
diſſimos erros de Calvino , eodeixou
prompto para entrar , como,
Deosque-
rendo , ſe eſpera, na imprellző . A ſua
converſaçao Dada linha de enfadoſa,
ou peſada. Nunca fallava ſenao das
couſas do Ceo , e ſempre com tanta
graça , novidade , e diſcriçao , que
ninguem podia apartar -le de ouvillo,
quenzó folle violencado. Tinha hũa
memoria muitenáz , e ainda no tem
po da ſua velhice a conſervava tao fir-
me ,que,folle em qualquer materia que
ſe ventilaſſe , mais parecia quea eſtava
lendo pelos Authores mais Claſſicos,
que a tratavao , do que raciocinando
fobre ella . Inundava -lhe o ſemblante
em glorias , e alegrias quando ſe lhe
dava alguma nova tocante ás profperi.
dades da Igreja , ou da França , cujos
Soberanos tao benemeritamente lo-
grao o titulo de ſeus filhos primoge .
bitos .
4 A todos procurava , e fazia bem ,
e as adverGdades do proximo naopo.
diaõ fer mais Tenſiveis a ette , do que
á verdadeira , e grande caridade, com
que o Servo de Deos o amava . Quale
quer bom officio , que ſe lhe fazia , po-
toque de momentanea conſideraçao,
3 de Settembro.
era eternamente crédor da ſua grati.
dab , e reconhecimento . Tao doma
das , e anniquiladas trazia as ſuas p : i .
xoens , que parece naõ as tinha ; e
ao igual era a lua conſtancia nos c :
ſos proſperos , comonosadverſos ; Os
primeiros naõ o deſvaneciao , os ul
timos nao o contraſtavao. Vinha -ſe
chegando o ſeu glorioſo termo , e foi
o correio húa diſleoteria complicada
com hūa febre lenta , que tanto o foi
proſtrando , que nao pôde fugir da
cama . Quanto mais ſe hia aproximan
do ao ſeu tim , quanto eraõ mais no
caveis , e repetidos os exercicios das
ſuas generoſas virtudes : a eſte modo
a véla , que eſtá acabando de arder ,
ganha de quando em quando maior
levareda; e a harmonia do Cyſne quan
do eſtá perto de expirar he mais pla
cida , terna , e ſaudoſa. Nada ſe via
nelle , que nao fofle hūa demonſtraçaſ ,
mais que hum indicio,depredestinado.
Naole ſabia qual era nelle mais admira
vel , ſe a ſua admiravelpaz interior, le a
ſua firmillima paciencia , ſe os arden
tes deſejos em ý , como outro S.Paulo ,
ſe abrazava , delejando verſe ja defem
baraçado dos vinculos da carne, pa
ra ſe ir unir com o ſeu unico , eEcera
no Bem .
5 Chamou a eſte tempo o Padre
Prior do noſſo Convento , e tendo - o
preſente , lhe difle com as maiores
demontraçoens de liſura , e ſinceri
dade : Eſtou taõ perſuadido , e ainda
tao edificado , meu Reverendo Padre
Prior , da virtude , e piedade dos fi
lhos; e' filhas da Terceira Ordem de
S. Domingos , que me terei por mui
feliz de ſer aggregado a húa Congre
gaçaõ tao inſigne , e ſer compartici
Pe de tantas, e taõ grandes obrasme
ritorias ; por iſo vos rogo com todo o
encarecimento , que vos digneis ad
mittir- me em hum tað illuſtre C013
greſo, debaixo da protecçao de S.
Domingos, em cujo habito, e profil:
faõ proteſto que quero morrer. Eita
propoſiçao igualmente admirou , que
encheo de hum ſū mo alvoroço aquel.
le
 JOAM - BAUTISTA DE
Je Prelado, que nem ainda imagina.
va hüa tal reſoluçao . Bem quizeralo .
go deferir ao meritiſſimopoſtulante ;
a prudencia porém lhe ſuggerio al .
gumas razoens , porque era ainda ne.
ceſſario dar algum tempo ao tempo :
propoilas ao bom Padre , que, como
tao judiciofo , eracional,as abraçou de
muito boa vontade. Entretanto que
fe demorava eſte cermo , nao ceflava
o doente de fazer todas as inſtancias
por obrer a graça que pretendia : du
tárað eftas fupplicas iette , ou oito
dias , em que bem ſe deixava ver o
fervor do espirito , com que elle an
hela va a ſer recebido ao Instituto da
Terceira Ordem Dominicana . Em
huin deltes dias , eſtando preſente o
Prior , fez aquelle grande Sacerdote
todos os esforços por faltar tóra do
leito : perguntárao -lhe, que cauſa o
movia a eſte exceffo; a que reſpondeo ,
que queria levantar - ſe , e pôr-ſe de
joelhos para ſer admittido por filho de
S. Domingos . Entao naõteve o Prior
mais eſculas que dar , edando muitas
graças a Deos pelo fervor , que inſpi..
raya naquelle cao exemplar Eccleſia .
ſtico , com tanta gloria da Ordem de
S. Domingos , o recebeo no gremio,
porque elle tanto ſulpirava.
6 A alegria que ſahio á cara do
Veneravel doente, nao teftimunhou
menos , quanto elle ſe ſatisfazia , ere .
gozijava de haver conſeguido o que
tao ardentes deſejos , e taó reforça-
das inſtancias lhe havia cuſtado. Não
ceflava de invocar todos os Santos da
Ordem de S. Domiogos , acujo fim
fezhúa mui ampla Ladainha , que mui
frequentemente recitava. Seguia-ſe
no outro dia em que ſe feſtejava San-
ta Roſa de Lima, e em que elle feza
fua profiſſao com todas as moftras de
hum verdadeiro filho de S. Domingos.
Nella prometteo que , ſe o Authorda
vida ainda continuaſle em otorgar.
Iha , proteſteva obſervar á riſca todas
as Conſtituiçoens da Ordem , quan-
to os teus annos , e achaques lho pu :
deffem permittir. Jamais largou o pe .
BRUEIL , 3 de Settembro. 309
queno eſcapulario da Ordem , que ſe
The deitou , dando niſto hum indicio
do quanto affectuofa , e cordialmen .
te amava , e reſpeitaya o habito de S.
Domingos . Finalmente 'aviſinhado ja
ao ſeu ditolo termo hum tað excellen
te eſpirito , pedio o Santiſlimo Via
tico ao Paroco da freguezia da ſua
reſidencia, com quem havia ja feito
antecedentemente hūa confillao ge
fal .
7 Quando vio diante de fi o feu
Sacramentado Senhor , que ſe lhe vis
nha offerecer para o acompanhar pa
ra a difficil , e dilatadajornada da eter
cidade , quiz teftimunhar -lhe a ſua
veneraçao , levantando -ſe da cama, e
pondo - ſe de joelhos , na preſença dos
Conegos , e de outros Senhores Ecu
clefiafticos, e ſeculares , que vierao
acompanhando o Santiſſimo; alli fez
hũa ſolemne proteſtaçao da fé , de
clarando que como fiel, e amante fi
lho da Catholica , e unicamente uni
verfal, Apoftolica; e Santa Igreja de
Roma , aſſim como nella tinha fem
pre vivido , aſſim agora queria more
rer ; que por conſequencia cria tudo
o que ella enſinava , e detettava tudo
o que ella prohibia ; que adheria , e
abraçava tudo , o que em materias de
Fé haviao determinado os Summos
Pontifices , e muito em particular ſe
ſometria ás Deciſoens de Innocencio
X. Alexandre VII . e Innocencio XII .
Paſlou logo a fazer varios actas de hu
mildade , contriçao, confiança, amor ,
e de outras infinitas virtudes , em cu
ja pratica era tað verſado, ecom tan
ta alma , que igualmente enternecia ,
que edificava os aſſiſtentes, tirando
ainda dos olhos daquelles , de quem
menos ſe podiao eſperar, devotas , e
copioſas lagrimas.
8 Ainda eſtava ſujeito aos vinculos
da carne , mas ja moſtrava hum tal
aſpecto ' de tranquilidade , e alvoro
ço , que ja parecia achar-ſe de portas
adentro no Paraiſu. Nio paffárað
muitos dias quando pedio a Extrema
Uoçað , e agora pedio que ſe lhe ape
plicaſſe
1
304 RE A C, A
CO
PI
L
plicaſſe hűa Indulgencia plenaria , que
o Pontifice para eſta occaſiaố lhe
conced - ra . Pedio aſſim meſmo ao
noſſo Prior mandaſſe applicar -lhe as
cottumadas deprecacoens da agonía ;
mais lhe recommendou que procuraf-
ſe excitar o ſeu expirito aos affectos
de amor , e eſperança em Deos com
os verſiculos de alguns Pſalmos, coa
mo por exemplo : Quam diletta ta .
bernacula , e quemadmodum defidea
rat cervu's, poitoque, aboa luz exa-
mioado , pouca neceſſidade tinha de ,
ftes ſoccorros , porque a graça incef-
fantemente o eſtava movendo a fazer,
como elle aſſim o executava , actos mui
internos de amor de Deos , o que ſe
manifeſtou viſivelmente quando elle'
perdeo a voz , porque ainda a eſte
tempo ſe obſervou que naõ ceſſava
de mover os labios , como tao coſtu
mados á eſtar ſempre abertos para os
louvores, e exaltaçoens do Altiſſimo.
Beijava ao meſmo tempo o Crucifixo
com extrema devoçao , e ternuras, e
poftoque pelo ſeu tranſito ſer mui
prolongado , nao pôde deixar de ſer
igualmente mui penoſo , jamais per-
deo nem hum atomo da ſua bella paz,
que ſahindo - lhe ao ſemblante bem de-
notava quanto as fuas raizes tinhaó
profundado pelo ſeu interior .
9 No meio de tað ſaptas diſpoſi-
çoens , entregou pois o Servo de Deos,
idoſo de 86. annos , o ſeu eſpirito ao
ſeu Senhor com ſinaes mui viliveis de
haver paſſado a lograr - ſe para ſempre,
face a face , de tað ſummo Bem . Foi
o feliz dia deſta precioſa morte o de
3. de Settembro de 1696. pelas cinco
da manhaa , ou quaſi ao tempo , em
que o Prior , que ſempre lhe aſſiſtira,
The eſtava encommendando a alma
com as oraçoens a eſte fim deſtinadas
pela Igreja . Foi extraordinario o con
curlo , que acudio ao ſeu funeral, a que
affiſtio o Cabido , e o mais illuſtre , e
benemerito da Cidade. Levou á fe-
pultura , como affim inſtante , e ar
dentemente o deſejara , o eſcapulario
de S. Domingos , e reveſtirao -no de
M de 3 de Sette
mbro
todos os paramentos Sacerdotaes."
Hum dos primeiros Senhores da ter
ra , mui preclaro , e nobiliſſino , dana
do bem a entender a ſumma ettima
çaõ que fazia do Servo de Deos , lhe
deo lugar no ſeu jazigo em hū a Capel .
la da Cathedral de Alés. Por depoli .
çaõ do Confeflor, que diſlemos lhe ou
vira a ſua ultima confillao geral , ſeſa
be que ſempre o Servo de Deos con
ſervara illeia, e candida a integrida
de virginal da ſua pureza , editto oaa
derao menos teftimunho algumas ac
coens , que nelle ſe haviaõ obſervado ,
durante a ſua ultima enfermidade, no
que bem ſe vio quanto folle exacto ,
elimpidiffimo o ſeu eſpirito de catti
dade .
RECOPILAC, AM
de 3.de Settembro.
1 A Paleſtina o Veneravel
N Padre Fr. Nicoláo de Se .
na . Fora eſte grande Servo do See
nhor o primeiro , e benemerito Prior
1
do Convento de Chartres. Movido .
1
do ſeu grande eſpirito de devoçað ,
1
emprendeo deixar a França , e viajar
1
a viſitar na Paleſtina os fantos lugares,
em que o meſmo Filho de Deos con
ſummou a grande obra da noſſa Re
dempção. Aqui foi digniſſimamente
conſtituido Provincial, emprego que 1
deſempenhou com a maior edifica
çao, e ſatisfaçao de todos os filhos .
de S. Domingos, que vivia ) naquel
le paiz , em outros tempos tao fancia
ficado, e boje pelos peccados domun
do tao perdido , e prevaricado. Pare
ce que vivia eſte Servo de Deos no an
no de 12 40. = Ex Joan , à S. Maria
tom . 3. p . 592.
Em Leao , o Reverendiſſimo,
e Veneravel Inquiſidor Geral damef
ma Dieceſe , e das deMacon , e Cla
ramonte , Fr. Pedro Candelarii . Naf.
ceo em Vienna , povoaçao Jo Del .
finado , e foi procreado para a ordem
no Convento da referida Cidade de
Leao .
 RECOPILAC,
Leaõ. O ſeu merecimento foide tan-
to apreço na eſtimaçao do Provincial
de França , que o promoveo em 4. de
Outubro de 1322. áquella çaõ necef-
faria , e illuſtre occupaçao , em virtu
de dos poderes , que para iſſo naquelle
ſeculo dourado faculcava aos Provin-
ciaes a Bulla de Martinho IV . , e ou-
trcs indultos particulares dos Tribu-
paes do Reino . No anno ſeguinte ,
ſettimo do Pontificado deJoao XXII .,
tomou poſle do ſeu emprego no pri.
meiro de Abril , em Leao , entre innu .
3 meraveis vivas do povo , ſendo admit-
.) tido a exercer as funçoēs do ſeu Apo-
ftolico miniſterio pelos officiaes do
Arcebilpo daquella Cidade , e pelos
outros dos Biſpos de Claramonte , e
e Macon .
S. O Padre Fr. Carlos de S.Vicen-
te , benemerito Succeflor do Padre
Soueges, na continuaçao da grande
Obra do Anno Dominicano , e a quem
Seguimos neſta memoria, diz haver
vilto os documentos deſta acceitaçao
aſſinados por Joao Tricodi com as
ſubſcripçoens , e ſellos de outros Mi-
niftros , por ſe conſervar eſte original
no arquivo , ou cartorio donoſlo Con-
vento Lugdunenſe , aonde tambemle
acha o ſeu extrado com a memoria . torze annos : no fim delles paſiou da
de outros muitos privilegios concedi-
dos á Ordem , eſpecialmente aquella
meſma Caſa , em hum livro manufcri,
to muito velho , que ſe conſerva na
livraria daquella Comunidade , e de
que parece nao haver tido noticia a
vaſta penetraçao do noſſo Padre Fon
tana ; porque eſcrevendo o Catalogo
dos noſſos Inquiſidores, nao faz men .
çao alguma dos da Cidade de Leao .
S. Teve o Servo de Deos a gloria
de ſer hum dos muitos brilhantes As
tros Dominicos, que entao illuſtra-
vao o Convento que alli temos , nao
ſómente com o eſplendor das letras ,
ſepað , e muito mais , com a eminencia
das ſuas virtudes . Vigiando ſempre
por conſervar a pureza da Fé nas tres
Dieceſes, que lhe haviað ſido conſi-
gnadas , acabou de conſommar no fo ,
Tom . VII.
A M de 3. de Settembro. 305
go do ſeu zelo o facrificio, que ſempre
fizera a Deos de todas as ſuas acçoēs,
encaminhadas unicamente ao fim da
ſua maior gloria . = Ex Carol.à S.Vin
cent .
3 Em Placencia o Illuftriffimo
Biſpo daquella Cidade , o Veneravel
D. Fr. Bartholomeu Catra . Vivendo
no noſſo Convento de Veneza , pare
cia na vida mais hum Anjo , do que
hum verdadeiro , e obſervante Reli .
gioſo , qual elle era ſem a menor dûe
vida . Era iſto a tempo , em que na
quella Caſa ſe acabava de reitabele
cer húainfigae reforma ; porêm quem
obſervaſſe os ſeus exemplares proce
dimentos , nao poderia entender ſe
nao que o Servo de Deos era muive
terano em virtudes . Annunciando aos
povos a palavra de Deos com hūa ir
reſiſtivel eloquencia , era ſem com
paraçao maior a efficacia com que per
ſuadia o ſeu exemplo . Eftes os pria
cipios , porque fazendo hum copioſo
fruto nas Italias ſe movềo a Santidade
de Bonifacio IX . a promovello aquel.
le Principado da Igreja. Foi eſtaproa
moçao no anno do Senhor de 1390 .
ſervindo; eſte Sagrado Paſtor qual oy
tro Jacob a Raquel da ſua Igreja qua
milicia , ou guerra deſta vida, para a
paz , e triunfo da eternidade, deixan
do a todos os Prelados hū a excellen
te norma , eregra de paſtorear , e con
duzir os rebanhos deChriſto . Ex
Theatr. Dominic.pag.265 .
4 Em Napoles o Illuftriffimo , e
Veneravel Nuncio Apoſtolico Fr:
Deodato Gentilis . Naſceo em Geno
va , e veſtio o habito de S.Domingos
no Convento de Santa MARIA do
Caftello . A candura , e bondade dos
feus coſtumes , e a elevaçao , e pro
fundidade das ſuas letras, tudo con
duzio para ſer , como foi, aceitiſſi.
mo ás Santidades de Clemente VIII.
e Paulo V. O primeiro deſtes o creou
Inquiſidor de Milað , e depois Com
miſſario geraldo Santo Officio de Ro
ma , de donde foi expedido para Bir
Qq po
 306 AGOSTINHO CHINO
po de Caſerta , Igreja fuffraganea ao
Arcebiſpado de Capua . O ſegundo o
inſtituio Nuncio Apoftolico em todo
o Reino de Napoles . Foi o Servo de
Deos de muita prudencia, e Religiao ,
e de hum eſpirito ſummamente recti-
ficado. Suſtentou todas as negocia-
çoens , que emprendeo, durante a ad .
miniſtraçaõ de tao importantes , e glo.
rioſos empregos , com hũa inexpu-
gnavel conſtancia , e inflexibilidade
no anno de 1616. , em que ſe achava
idoſo de cincoenta e oito annos em-
pregados em acçoēs de grande utili-
dade , e credito da Ordem , e da Igre-
ja : acabou , mediante hūa placida
sorte , os ſeus bem logrados dias.
Como tempre conſervou hum filial,
e muito intimo amor á ſua Ordem ,
quiz fer enterrado entre ſeus Reli.'
gioſos Irmaos
no Convento de Santa
Catharina de Formello . Ex Thea-
tr . Domin , pag.158.
4. de Settembro.
Vida dos Veneraveis Irmaos da
Ordem Dominicana ,
A GOSTINHO
CHIN 0 ,
e ſua mulher
ANNA SINENSE ,
Devotiſſimos do Santiſſimo Ro
ſario ,
Extrahida da Hiſtoria das Filip
pinas.2.p.1.1.
1 vaftiffimo Reyno da
China ,aondetao
temente vemos renovado , nao ſei ſe
para maior edificaçao , ou conſolaçao
da Chriftandade Europea , o eſpirito
da Igreja primitiva, florecerao em to-
dos os predicados da unicamente ver
dadeira Religiao Catholica os noſſos
dous acerrimos Irmaos devotos do
Roſario de MARIA Santiſſima Ago :
ſtinho Chino , e ſua mulher Anna . Å fu
Giftiaô em Fogan , quando alli chegá-
&c. 48 de Settembro .
raõ os filhos de S.Domingos acomba
ter a idolatria , e annunciar aquelles
povos o Santiſſimo Nome de JESUS .
Foi Anna a primeira , que recebro o
ſagrado bautiſmo, a tempo que era
ja chegada aos ſettenta da ſua idade ,
e ſegundo a expreflao de S. Paolo fana
tificou eſta böa mulher a leu eſpoſo
Agoſtinho , que ainda era muito mais
idoſo. Regenerados, pois , em Chri
fto eſtes bem caſados , pelo aperto
das guerras , que entao inquieravao
aquelles peizes , forao precilados a
paflar de Fogan para Jukjan pa Pro
vincia de Fokien , aonde ſe perſua
diao poder viver com maior tranqui
lidade, e deſimpedimento para tratar
das couſas do Ceo.
2 Paſſados quatro annos, foi An
na rijamente atacada da ſua ultima
doença . Os Medicos , que naquellas
partes ſao experientiffimos, nao lhe
julgavao mais que dous dias de vida .
Tao funeſtas eraõ as indicaçoens , e
ſymptomas do mal: a doente porèm
chêa de búa viva Fé, e eſperança em
Deos , contradiſſe eſte parecer , affir
mando que ella nao morreria menos
que nao tiveſſe a consolaçaõ de ter
hum Confeffor ; e accreſcentou , que
The fizeſſem vir alli o noſſo Venera.
vel Padre Fr. Joao Garcia , que era o
unico , que entao ſe achava naquellas
terras !, poſto que ſempre occulto , e
retirado pela grande perſeguiçao que
alli ſe ſuſcitára contra os Miniſtrosdo
Evangelho . Nao fizeraõ caſo algum
diſto ſeus filhos , porque ainda lhes
faltava o lume da Fé ; Agoſtinho po
rêm , nao obſtante achar- le taoidolo ,
e pezado quiz , porque ſua mulher
morreſſe com aquelle alivio , tomar o
cargo de ſemelhante trabalho à ſeus
hombros . Tres dias andou o bom ve
Tho em buſca do Padre ſem lhe ſer pof
ſivel encontrallo , dem ainda noticias
delle , com o que voltou a ſua caſa
mui deſconſolado : achou ſua molher
ainda com alentos de vida , e em ſeu
perfeito juizo , e com o uſo da lingua
totalmente expedito , nao obſtante,
que
 AGOSTINHO CHINO
que paffára nos quatro dias antece-
dentes ſem comer, beber , ou dor . ' collocado ao ſeu Senhor , o amava ,
mir. e oblequiava . Rezava todos os dias
3 Cada vez fazia a doente maio . o Roſario inteiro ; mas nos mais fo
B res inſtancias , porque lhe chamaſſem
o Padre Garcia , é Deos , que nunca
falta a quem põem nelle a ſua confian-
ça , muito mais em negocio de lalva-
3 çao , lhe deo o goſto de ſe achar aſfi-
itida do melmo Veneravel Padre no
0 extremo contido da lua agonia. Te
ve tempo de fazer húa confiſlao ge-
1 ral , em que nao deo menos viſiveis
demonſtraçoens daſua piedade , que da
ſua contriçao . Deos , cujos juizos ſao
tao profundos , e imperfcrutaveis ,
: nao lhe deo a ſatisfaçaõ de poder re
ceber o Santiſſimo Viatico , ora fofle
porque o Padre ſe nao achava como
preciſo para celebrar , ou porque ha-
via oito dias que a enferma tinha a
guéla taõ impedida , que nem ainda
podia levar para baixo hūa gotta de
agua . Pode porém receber a ſanca Un-
çao, e morreo em fim com tantos fi-
naes de predeſtinada , comɔ te póde
inferir do teftimunho, que deo depois
da ſua morte o Veneravel Padre Gar-
cia, jdizendo que Anpa , depois quere. '
cebera o bautiſmo , jamais havia vio-
lado a graça , e innocencia , que o Ceo
nella lhe conferira .
4 Agora pelo que toca a feu Ven
neravel conſorte Agoſtinho , eſte lhe
ſobreviveo ainda tres annos , e todos
exercitados em admiraveis, e altilli-
mas virtudes . A ſua Fé quotidiana-
mente era agitada , ecombatida ,ja pe-
la perſeguiçaõ que lhes faziao os habi-
tantes de Jukian, que todos eraõ in-
fieis , e ja pelas importunas ; e amiu.
dadas inſtancias que lhe faziao ſeus
meſmos filhos , que perſiſtiao na ce..
gueira da infidelidade, e da idolatria,
nao obſtantes os ſantos exemplos , e
admoeſtaçoēs, que tinhao recebido de
ſeus veneraveis progenitores. Erigi-
ra no ſeu apoſento hum Oratorio , em lugar de chamar-lhe o Confeflor,
aonde , na veneraçao que tributava a . que elle pedia , determináraó fazer
algumas fantas Imagens , que nelle ti-
nha , teſtimunhava os cultos , com
Tom . VII.
& C . 4. de Settembro . 307
que o ſeu coraçao , altar aonde havia
lemnes , e feftivos triplicava elta de
voçao . Obſervava hūa admiravel har
monia na ordem , com que tinha di
Atribuido pelas horas as ſuas devo
coens , para o que , aſſim como para
rezar as Ave Marias , ſe valia do uſo
de hūa campainha com capta regula
ridade , como ſe pudéra praticar em
hũa bem regida Igreja da Chriſtanda
de .
5 Zombavao diſto nao ſomente
os infieis , lenaõ ſeus melmos filhos ,
e era para elle hum goſto paſar por
tonto no mundo , aonde até o meſma
Filho de Deos , Sabedoria Ecerna , nað
pode eſcapar de fer tido por fatuo .
Sabia muito bem que as mais das ve
zes os o mundo chama ſábios, fao ,co
mo diz S.Paulo ,hunseitultos diante de
Deos ; e que pelo contrario aquelles,
que os homes reputañ por idiotas,fað
os primeiros diante de Sua DivinaMa
geltade : que por iſſo ja dizia a Luz da
Igreja, noſſo Padre Santo Agoſtinho ,
que os ſimples, e illiteratos ſe levan
tao com o Ceo . Sem embargo de ſec
tanta a ſua idade, fazia muitas , é gran
des jornadas, a pé de ordinario , a fim
de facramentar- ſe , de ouvir a palavra
de Deos , e de congraçar -ſe com Elle .
Chegou a ſer tað exemplar , que era a
admiraçao nao ló de toda a Chriſtan
dade daquelles lugares , fenao ainda
do meſmo Veneravel Fr. Joao Gar
cia . Tanto pode a immenfidade da
graça dilatar , e exalcar o nada da na- ,
túreza. Hia ja chegando ao ſeu feliz
termo o venerando Anciaõ , pelo que
pedio muito encarecidamente a feus
filhos que lhe chamaſſem o Padre
Garcia ; elles porém , como tanto ini
migos de Deos que eraõ , fizerao zom
baria dos rogos de ſeu bom pay , e.
bum grande facrificio a ſeus falſos
deoſes, para aflim impetrarem delles
Qq ii o ali
 O
308 AGOTINH CHINO
o alivio , e melhoria da ſua moleſtia .
6 Percebeo iſto o Veneravel doen-
te , e com hũa tal ſeveridade repre-
hendeo aosimpios ſacrificantes, amea
çando-os com lhes intimar a ſua mal-
diçao , que nao tiveraõ mais remedio
que defiltir da ſua abominavel reſolu.
çao . Como nao pode acabar com ef
tes mal aconſelhados moços , que lhe
chamallem o ſeu eſpiritual Director ,
nem por iflo quiz Sua Divina Mage-
ftade que ficaſſe defraudada a lua
boa eſperança , elhe deparou hum po
bre intiel ja de annos , que , mais por
lhe dar aquella conſolaçao , do que
por outro algum intereſe, ſe lhe of-
fereceo para ir em buſca do Padre :
foi com effeito , e com diligencia tao
bem ſuccedida , que trouxe com ſigo
o Veneravel Miſſionario. Quando
bom Agoſtinho o vio diante de ſi,
nao pode deixar de chorar com go .
ſto , vendo que Deos lhe mandava ,
dizia elle , o ſeu Anjo , e o ſeu Apolto-
lo para o conduzir em hũa jornada
tao fummamente importante , e peri-
gora. Tirou logo debaixo do travel-
feiro hum papel eſcrito de ſeu punho ,
e deo -o ao Padre para eſte o ler , e
continha eſte theor : Noro Senhor
JESU Chriſto fez fe Homem , e ro-
metteo -fe á morte para remir noſas
almas : Proteſto eu Agoſtinho Chino,
que quero morrer ua obediencia da .
quella ſanta Ley , em que conſtantes
mente me tenho conſervado atégora.
Poreſta razaī , dado que meus filhos,
como idólatras , emprendað fazer a
meu reſpeito algum facrificio ao de-
monio, publicando aleivofamente que
eu aſſim lho determinei, para dar al-
gün apparencia de que eu dei as coſtas
ao verdadeiro Deos,e retrocedi do cao
minho do Ceo , proteſto , e affirmo por
eſta minha declaraçaõ por eſcrito ,
que he a minha ultima vontade nað
abandonar jamais a verdadeira Ley'
de Deos , que eu creio , e tenho até o
preſente ſeguido. Quero , pois , que
Jómente ſe dê inteiro credito a eſte
meu proteſto , eſcrito por minha mãā ,
& c. 4. de Settembro .
e de nenhum modo ao que meus dete
ſtaveis filhos podem maquinar , e di
zer ; aos quaes ſe elles fizerem , ou
tentarem fazer por mim tað execra
vel ſacrificiopor me de ſacreditarem ,
e darem a entender que eu , como o cao
ao vomito, tornei aos paſados erros ,
dou deſde aqui , como a infieis , e defobe
dientes a feu pay , a minha maldiçao.
7 Nao pode conter as lagrimas o
Veneravel Padre de ver tað lanta re
ſoluçao , e como Deos participára "
aquelle leu Servo tanta luz, para pre
caver as cavillaçoens de ſeus ingratos,
e indignos filhos , o que muito pode
ria eſcandalizar, e prejudicar aquella
Chriſtandade. Confeffou ſe depois
particular , e geralmente ; ſacramen
tou -le, e deo ao Padre algúas eſmo
o las para Miſſas pela ſua alma . Encar
regou no teftamento, que fez, a ſeus fi
Thos , que elles venderiaô certas ter
ras , cujo producto queria que ſe ap
plicaffe pelos ſeus ſuffragios, e de ſua
mulher Anna ; como porém aquelles
moços eraõ tao impios , nada diltode
raó a execuçao . Finalmente o bom
Agoſtinho , depois de proteſtar viva
pente a ſua muita Chriſtandade por
muitos , e altiffimos actos de virtudes,
que inceflantemente praticaya , ex
halou o ſeu eſpirito , como hum aroma
ſuavillimo, em que igualmente ſym
bolizava a fragrancia ao bom nome
que deixaya na terra , do que as deli
cias eternas , de cuja fruiçaõ agora ſe
hia para ſempre gozar. Parece que
nao deixa de haver algúas apparencias
de que eſte bom Chriſtao foſſe filho
de S. Domingos , aſſim pela extrema
devoçaõ que tinha ao Roſario de MA
RIA Santiſſima, como porque , ſendo
parente de Pedro Chino danoſſa Ter
ceira Ordem , era mui factivel , que
Agoſtinho foſle tambem hum de
ſeus alumnos . Foffe porém como fof
ſe , o certo he que fendo a eſtimavel,
e precioſa memoria deſte ſanto ho
mem tað plauſivel no Ceo , he muito
diĝna de ſer recommendada , e perpe
tuada na terra .
RE
 RECOPIL A C,
, A
RECOPIL A C, A M
de 4. de Settembro.
I M Chalon , Cidade do Du-
i E cado de Borgonha , a Ve.
neravel Madre Soror Maria Languet.
Efa verdadeira filha de Domingos
Santo, fez hűa láta vida deptro dos ſeus
0 clauſtros. Entrou a habitallos no ap-
no de 1628. ja entrada em annos , e
como via os poucos, que ja lhe po-
go
dia o reſtar , ſe applicou a nao deixar
perder inſtante, avançando -ſe quan-
to mais pudelle na carreira das virtut
des . O zelo com que cuidava em ' tu .
do o que mais incumbia ao Culto Din
vido , todas as ſuaspalavras , acçoens ,
e movimentos , era expreſſas,' e evi-
dentes demonſtraçoens do ſeu gran .
de Amor de Deos. Apenas ſe fazia
2
final para o Coro , quando arrebata-
damente deixava tudo , e hia corren-
do a toda a preſta por poder fer húa
das primeiras , que ſe achaſſem nelle .
§ Todo o tempo , que lhe reſta-
va do Officio Divino , e das outras
ſuas obrigaçoens Religioſas, gaſtava
em fazer algumas flores, ramalhetes,
outras galantarias,que ſervillem de aliº
phar , e condecorar mais decentemen
te os Altares , ou muitos ſagrados pa-
ramentos: para o uſo dosminiſterios
da Igreja, nao ló tinha para iſto hūa ra
sa habilidade, mas parecia ģ ſe lhe aug-
mentava neſtas occaſioensa ſua entra-
nhavel devoçao . Tinha hűa notavel
grandeza , e elevaçao de animo , de
que ella uſava em proſeguir com a
maior conſtancia , e generoſidade nos
leus ſantos exercicios, e em ioduzir
ſuas companheiras a hum fiel deſem-
penho das ſuas religioſas obrigaçoēs .
Com eſte grande zelo da maior glo-
ria de Deos, e de procurar com co-
das as ſuas forças a maior regularida.
de da oblervancia ,confederava hūa
humildade muito ſubmiſla , e profun-
da.Accommertida da ſua ultima doen-
ça , reſplandeceo neſta conjuntura a
ſua heroica, e ſempre inexpugnavel
M de 4 de Settembro . 309
obediencia ; e aperfeiçoada com eſte
ultimo trabalho a coroa do ſeu mere
cimento , foi admittida ao eternorriun
fo no anno de 1651. Ex Carol. à
S.Vincent. A.D.
2 Em Tul , no Moſteiro da Ter.
ceira Ordem de noſſo Padre S. Do
mingos ,a Veneravel Madre Soror Ma
ria Moyne. Parecia haver naſcido eſta
grande Serva de Deos no mundo pa
ra ſer , como foi, hum prototypo de
brandura , paciencia , e caridade . Ja
mais ſe travou de razoens com peſſoa
alguma, nem ainda ſervindo o cargo
de Procuradora da Cala , no que naš
podia deixar de ſe lhe offerecer algú
motivo de conteſtaçoens. Ao contra
rio deſejava logo fazer as pazes na
mais leve diflençaõ que ſe interpunha .
Occorria com grande diligencia , e
caridade a aliviar, o melhor que podia ,
todas as neceſſidades de ſuas compa
nheiras , e Irmaās , deſacommodan
do -ſe , como ſe foſſe ſua máy , aſi
pelas favorecer , eremediar . Tolerou
com inſigne paciencia as muitas doen
cas , que Deos lhe inviou
maior coroa de gloria. « Sendo Pric
reza do Moſteiro , foi chamadajno
anno de 1658. a maior ſuperioridade,
qual he a de gozar para lempre a Bea
tifica vilað . = Ex Carol,à S. Vincent .
in Ann . Dom.
3 Em Málaga a Veneravel Ma
dre Soror Anna de Jesu Chrifto. Foi
!
dotada de hum eſpirito Elîaco para .
tudo o concernente ao maior ſerviço
de Deos , e gloria da Ordem . Em
prendeo fundar o Moſteiro de Má
laga ; achou porém tantas contradi
coens , nað fómente pelo que tocava
ao braço ſecular, ſenao ainda por para
te da meſma Santa Sé Apoftolica ,que
verdadeiramente qualquer outra con
ſtancia , que nao fofle a ſua , tao for
talecida pela graça , vacillaria , e lar
gára maổ da empreza. Onze vezés a
tentou , e outras tantas forao as ſuas
fervoroſas inſtancias rebatidas , e re .
chaçadas . Florecia por aquelles tem
pos com grande opiniao de ſantidade
o Ve.
310 FR . PASCASIO MAUPAIETS ,
o Veneravel Padre Fr: Thomaz da
Virgem , ornamento da Sagrada Re-
ligiao dos Trinitários Deſcalços , e
conlultado eſte homem do Ceo pela
nolla pertendente , lhe deo o meſmo
palavra , de que , a pezar de todas as
contradiçoens , que contra o ſeu ſan .
to propoſito inlurgiſſem , havia de o
trazer ultimamente ao feliz fim , que
deſejava . Alentada de novo com a pro
fecia deſte grande Servo de Deos, re
perio , e reforçou novamente as ſuas
rogativas perante Sua Mageftade Ca.
tholica : niſto moſtrou hūa tal perſe
verança , que finalmente chegou a
obter o ſuſpirado complemento dos
ſeus deſejos no Real permiflo que ob-
teve para aquella fundaçao .
Vencidas aquellas difficuldades,
ſ
quiz Deos provar , e tentar ſua Ser.
va com outras , que accreſcerao da
parte de Roma. Nao deſmaiou o ani
modeſta grande Religioſa, ſenaõ que
á viſta destes novos obſtaculos , ſe
prometteo repetidos triunfos. Deter .
minou paſlar a Roma a eſta negocia-
çao , nao lhe dando algum cuidadoos
muitos, e grandes trabalhos , a que ſe
expunha netta peregrinacao. Fella por
mar , e aquilhe ſobrevieraõ dous con-
tratempos , a qual mais formidavel ;
porque a ſua embarcaçao foi impor-
tuna, e fortementeſeguida de alguns
piratas Mouriſcos; e em hūa grande
fempeſtade, eſteve muito a ponto de
naufragar , eſer conſumida das ondas .
Aqui ſe lembrou a Serva de Deos de
outra predicçao do meſmo Venera.
vel Padre Thomaz , que lhe profeti.
zara que teria netta jornada todo o
bom fucceffo ; e voltando - ſe la Deos
com hũa ſanta confiança, o executou
pela palavra , que ſeu grande Servolhe
havia dado . Caſo, maravilhoſo ! ao
meſmo tempo celou a tempeſtade ,
e a embarcaçao , que ja parecia ſub-
mergida nellas , comecou a ſurgir , e
boiar ſobre as ondas. Os pobres na
vegantes quele tinhao viſto por inſtan-
tes na garganta da morte , davaõ ,
com a maior alegria , as graças ao Ceo,
5. de Settembro .
Obtidas em Roma do Vigario de Chri
1ło todas as graças que deſejava, vol
tou a Malaga , aonde foi a Fundado
ra daquella Caſa , que ella muito il
luſtrou com as virtudes eminentes das
perfeicas Religioſas, que nella rece
beo . Anno de 1670. Ex vita V.
P. Thomé à Virg. Ordin . Santiſim .
Trinitat. p . 254 .
5. de Settembro.
Vida do Illuſtriſſimo Biſpo de Sa
lûbre , o Veneravel
F R. P A S C A SIO
MA U PAJETS,
Exirabida do Padre Fr. Carlos de
S. Vicente.
I Pay do noſſo Illuftriffimo
O e Veneravel Biſpo de Sa
lûbre D. Fr. Paſcaſio Maupajets , era
hum official, da povoaçao de Santo
Omer , bumilde, mas detanta pieda
de , que lhe concedeo o Senhor a glow ,
ria de hum tal filho. Era ainda muito
menino o Servo de Deos , quando ja
mottrava hũa lumma agudeza , e, o
que he mais , hũa notavel inclinação
ás couſas do Ceo . Tudo iſto lhe fa
cilitou o bom ádito que teve na ſua
pertençao de veſtir o habito de S. Do
mingos. Mandáraô -no eſtudar a Pa
riz , aonde , aſſim como na celebre
Univerſidade de Sorbona, ſe teve por
milagre , e por Feoiz o ſeu engenho.
Burges pertendeo honrar-le tendo - o
por Meſtre nas Cadeiras de Theolo.
gia , e Eſcritura . Voltando a repatriar
le , foi eleito Prior do Convento de
Santo Omer , e nao tardou muito ,
que foſſe promovido a Inquiſidor
Apoſtolico de Terouanne. Tudo iſto
ſe lê nas Actas do Capitulo Provincial
de Zelanda de 1525 .
2 Teve hum eſpecialiſſimo dom
de ganbar vontades, perſuaſiva com
que fez grandes ſerviços a Deos, in :
timando as gentes a ſua palavra . Foi
grande Meſtre de eſpirito , e as pef
foas
 RECOPIL A C,
ſoas mais qualificadas fe gloriavaõ mui-
to de que foſle o Servo de Deos o Di-
rector das ſuas conſciencias. Húa
deſtas peiloas mais diſtinctas , foi a
S
Condeira de Ræux , bem inteirada
eſta Senhora do merecimento de Fr.
Paſcafio , perſuadio a ſeu filho , o Il
luftriflimo Biſpo de Arras que impe-
traſle heneplacico do Papa , para o
confituir ſeu Coadjutor. Com effei-
to foi obim Religioſo promovido a
eſte cargo , e nao com menos gloria
da Ordem , que da Igreja. Viſitava o
Seriode Deos aquella Dieceſe peſſoal-
1 mente , naõ ceſſando de fazer a maior
guerra aos herejes , que como lobos
pertendia ô occultar-ſe naquelles di-
Itrictos, para devorar o rebanho de
Chriſto . Convertia huns , caftigava
outros , e confirmava na Fé aos anti
gos Catholicos .
3 Prégava inceſſantemente con
tra os erros daquelles impios , que , nao
tendo que oppôr á fuadoutrina,mui
to menos aos ſeus procedimentos , fi-
cavao cheios ja de raiva , ja de con
fuſao . Reprehendia com fanta liber
dade os vicios dos Ecclefiafticos , per
tendendo que foſſem os ſeus coſtumes,
como tao neceſſarios ao exemplo dos
menores , os mais candidos , e irreprea
henfiveis. Sobre tudo lhes eſtranhava
as mais leves tranſgreſſoens em mate-
ria de honeſtidade. Mediante a ſua
bõa diligencia fe acabarao as tres na :
ves da Igreja do noſo Convento de
Şanto Omer , que elle em outro tem
po começara , ſendo Prior daquella
Caſa. Tambem prendou eſta com a
fua livraria , e com muitos , e mui
precioſos paramentos . Favoreceo aos
pobres com mao muito larga , deven-
do- lhe talvez mais cuidado a fua , do
que a propria ſubſiſtencia . " Morreo
com todos os finaes de juſtificado em
5. de Settembro do anno de 1550.
4 A ſua memoria , que he de ben-
çaõ , recommenda o letreiro da ſua
ſepultura ſobre a porta da Sacriſtia do
meſmo Convento , aonde ſe vê effi-
giado o Servo de Deos em hūa efta
A M de 3 de Settembro. 311
tua depedra , que o repreſenta em
acçao de adorar o Senhor Reluſcita
do. Foi tao humilde , que para con
ſervar ſempre a memoria deleuspro
genitores , mandou pôr ' na ſua diviſa
hūa peça alluſiva ao officio de ſeu pay.
Amou com todo o extremo a ſua Re
ligiað : e como nao baſtava o amor
fem as obras , eſmerou - ſe com o maior
cuidado em nao fazer obra , que deſdir .
feſſe do caracter de hum verdadeiro
filho de S. Domingos , lembrado da
quellas palavras,com que Chrifto Bem
noſſo reprehendera em outro tempo
aos preſumidos cultores da Synagoga ,
dizendo - lhes , que pois ſe prezavað
de filhos de Abraham , o moftraſſem
mais com os coſtumes , do que com
as palavras. Por eſta razao juntou á
meſma ſua diviſa o cao , que fe coſtu .
ma pintar aos pés do noſſo Santo Pa.
triarcha com eſta letra : Domini eft
Jalus.
RECOPILAC , AM
de 5. de Settembro.
I M Baiona o Vener avel
E Padre Fr. Garcia Arnal :
do. Foi o lettimo Prior daquella Ca
fa , merecendo ſer o primeiro , ou o
ultimo, ou para deixar o exemplo, ou
para ſervir de coroaa todos os Prela :
dos daquella Caſa. Propugnou acer
rimamente o partido da mais eſtreita
obſervancia ; qualidade que muita
cooperou para ſer o Servo de Deos
propoſto naquelle Priorado, ainda que
aliàs ſe achaſſe ja muito velho . More
seo de hũa morte digna da religioſa ,
e ſanta
e fanta vida , que
que fizera , no primeira
anno do ſeu governo , correndo o da
nofla Reparaçaõ de 1278. Ex Guia
doni
2 " Em Hueſca o Veneravel Padre
Fr. Roldao . Attento a que o fim ,a que
deve aſpirar hum verdadeiro filho de
S. Domingos , he á fantificaçao dos
proximos, applicou todas as ſuas for .
ças a eſta , nao menos trabalhoſa , que
lanta
 312 Ř ECÖ PILAC ,
ſanta empreza . Mas ao meſmo tempo,
em que ſe fatigava tanto por fazer
Santos ao mais , nao cuidava comme
nos caridade de ſi , pondo em fiel pra-
tica os exercicios da mais levantada
perfeiçao . Morreo finalmente com
grande opiniao , e finaes mui perſua-
livos de predeſtinado , no anno de
1550. = Diago p . 279 .
3 Em Roma o Reverendiſſimo
quinquageſimoſexto Meſtre do Sa-
cro - Palacio , e Veneravel Padre Fr.
Luiz Iſtéla . Era do Convento de Va.
lença . Derao -lhe na ſua Provincia al .
gumas Cadeiras , emprego , em que
moſtrou todo o Magiſterio ; e nella
exerceo tambem alguns cargos , e fem-
pre com a maior ſatisfaçao. No Ca
pitulo de Roma , em que foi eleito
Geral o Reverendiffimo Fr. Agoſti:
nho Galamen , foi preſidente o Ser
vo de Deos , como Vigario . Era mui
reſpeitado pela ſua prudencia, reli-
giao , modeſtia , e literatura daquel-
la grande , e tao " celebre cabeça do
mundo , que tinha concebido as ef-
peranças; de que os merecimentos de
îte tað grande homem nao deixariaô
de afcender aquellas eſplendidas dig-
nidades, que tanto de juſtiça lhe com-
petiaſ . Paulo V. , a quem o bom Re-
ligioſoera ſummamente acceito ,o pro
moveo áquelle illuſtre , e taó impor .
tante cargo ; e quando ſe eſperava
que eſte erudito , e religioſiſſimo fi-
Tho de S. Domingos viria a occupar
na Igreja Militante outrosmaiores car
gos , de que eraõ tao crédoras as ſuas
letras , e virtudes , foi receber na
Triunfante o eterno premio dos ſeus
glorioſos trabalhos no quarto anno da
fua promoçaõ a Meſtre do Sacro Pa .
laçio , noanno de1614. Deo.ſe á ter-
. ra no noſſo Convento da Minerva .
Por ſua morte , ficáraõ huns ſeus dou .
tiffimos Commentarios ſobre o Gene .
fis. = Syllab. Magiftror. Fontan. p .
154
4 Em Melfi , no Reino de Napo
les , o Illuſtriſſimo , e Veneravel Bir
po da meſma Cathedral , Fr , Jacinto
A M de 3. de Settembro. !
Patroni . Para ſer em tudo grande ;
até o foi na patria , naſcendo na Ce
farea Sacerdotal , e ſanta Cidade de
Roma . Ainda ſe fez mais illuftre , vi
vendo na terra comoPatricio , e Cor
tezao do Ceo . Veftio o habito de S.
Domingos , fazendo - o novamente
eſtrellado com as ſuas innumeraveis
virtudes . Foi digniſſimo Cathedrati .
cono Convento da Minerva , e ſucce
deo no cargo de Mettre do Sacro -Pa
Jacio ao Reverendiſſimo Fr. Luiz Ifté
la : conſequentemente foi promov
do a Principe da Igreja , ſendo Ibe
conferida a Mitra de Melfi peia fan
cidade de Gregorio XV. Nao lhe foi
menos affetto Urbano VIII . , que atten
to ao ſeu grande zelo nas couſas da
Fé o joftituîo Inquiſidor Maior de to
do o Reino de Napoles .
Em ambos eftes empregos reſ..
plandeceo maravilhoſamente a ſua vi
gilancia Pastoral, e Apoftolica . Con .
ſervou ſempre hum amor muito 'in
tenſo á ſua Ordem , por cuja confide
raçao fez erigir hum ſumptuoſo , e
bem arquitectado Convento na 'fua
Corte Epiſcopal , para onde , depo
ſto o Bago , depois de o haver em
punhado pelo eſpaço de 25. annos , ſe
retirou a tratar de ajuſtar contas com
Deos . Foi eminente na Filoſofia , o
que ſe convence dos Sapientiſſimos
Commentarios, que eſcreveo fobre a
Logica , e Fyſica de Ariſtoteles. El
creveo cambem bum argutiſſimo Li
vro , para moſtrar e provar que a
agua deve ter transformada em vinho
primeiro que ſeja tranſubſtanciada no
precioſiſſimo Sangue de noſſo Senhor
Jesu Chriſto no Santiſſimo Sacramen
to do Altar. Annode 1647. Syla
lab . Magiftror. S. Palac. pag.156.
6. de
 S. VICENTE FERRER
6. de Settembro .
Trasladaçao das precioſas Reli .
quias do Apoftolo da Euro
pa
S. VICENTE
2 FERRER ,
Extrabida de Fr. Carlos de S. Vi
cente , no Anno Dominicano.
I
Nire todos os Santos, que
E a Igreja de Deos festeja
com particulares Cultos , S. Vicente
Ferrer he fem a menor dûvida hum
daquelles , em que mais ao pé da le-
tra le verificao eſtas palavras do Pral-'
miſta : o Senhor conſerva os ollos de
Jeus Servos ; delles nem hum ſo have-. condido hum tao precioſo 'theſouro ;
rá que ſe perca . Allim fe vio , pois o Senhor porém occorreo a que eſte
nos tumultos que padeceo a Chriſtan-.
dade neſtes apnos mais chegados em
muitas povoaçoens pela infernal fu-
ria , com que os herejes , que com
mao armada as invadiaô , aſpiravaða
profanar, e entregar ás chámas tudo
o quehavianos noſſos Sagrados Tem .
plos de mais veneravel, e fanco . Nao
obſtante porém eſte diabolico rencor,
quiz Sua Divina Mageftade reſervar ,
muito especialmente, das maos , e
deſacatos de ſeus raivoſos inimigos as
Reliquias de ſeu tao grande amigo , e
Servo . Nem o corpo , dem alguma
outra couſa , que lhe diflefle reſpeito,
chegou a experimentar as brutaes iras
de iaó impia inſolencia , conſervan-
do - ſe os meſmos veneraveis fragmen-
-
tos em muitas Sacriſtias dos noſſos
Conventos de França. Por eſta graça
as rende ao Ceo , mui particularmen-
mente neſte dia , a Igreja de Vannes
na Bretania inferior , folemnizando
pompoſamente a Trasladaçao do Cor .
po do Santo , livre , e triunfante dos
odios , e facrilegios dos Calviniſtas.
Naõ he menor a devoçaó , com que
aſlim melmo gratificaó a Deos eſta
preſervaçañ todos os Conventos da
Ordem de S.Domingos , fitos daquel-
le Ducado . Daremos aqui húa breve
6 de Settembro .
313
idéa deſta Feſta , e da cauſa da Tras
ladaçao do Santo.
2 Ameaçada , aſſim como outras
muitas de todas as Provincias de Frā .
ça , das hoſtilidades com q eraõ amea
çadas dos herejes , que por tantos an
nos moleftáraó aquelle florentiffimo,
e Chriſtianiſſimo Reino com intelli
nas , e truculentas guerras quando
mais ſe temia de alguma invalao , e
ſaque aquella nobiliſſima povoaçao ,
determinou o ſeu Veneravel Cabido
occultar , e occultou , o Corpo do
gloriolo Tutelar , e Padroeiro daquel .
la terra S. Vicente Ferrer . Como po .
rèm eſtes difturbios ſe forao prolon
gando annos e annos quaſi veio
eſquecer o lugar em que ſe havia eſ
elquecimento nað paſſaſſe a irreme .
diavel , porque nao ficalle hum corpo,
que tanto havia trabalhado pela maior
gloria , ſem os cultos das devidas ve .
geraçoens. A eſte fim accendeo nas
almas dos Fieis aquelle eſpirito de de
voçao , com que de antes coſtumavao
buſcar , e viſitar o tumulo do ſeu
Santo .
3 Concorriao a eſte fim innumea
raveis devotos de todas as partes , e
aquelles que ſe achavao impedidos ,
ja que nao podiaő teftimunhar o feu
reſpeito , e amor com a meſma dili
gēcia , a demonſtravaõ com muitos vo
tos, e preſentes, que lhe mandavao
offerecer.Grandes , e pequeoosigual
meore ſe moſtravaõ empenhados em
accumular , como em competencia ,
eſtes obſequios. A meſma Rainha
Chriſtianiſſima, Maria de Medicis, pe
dio inſtantemente algūa parte das mer
mas tao eſtimaveis Reliquias . Os mi.
lagres, que por eſte tempo experimen
tavað , e ' actribuîað á ſua interceflað
eſtes devocos do Santo , eraõigual .
mente extraordinarios , que reperidos,
com o que le accendiao inais os cora
coens em lhe conſagrar novas con
decoraçoens. Os coxos recebiaõ per
nas , os doentes faude, os paralytico
Rr movi
 S. VICENTE FERRER
314
movimento, e viſta, e ouvidos, cegos,
e ſurdos. Entre eſtes beneficiados de
S. Vicente fez numero hum filho de
Monſieur de Trehan , Preſidente de
Vannes, que cobrando , por media :
$
çao do Santo , o primeiro , emais no
bre dos ſentidos, de que carecia , em
obſequio de tanto beneficio quiz ſeus enaõ ſe podia deſcobrir. Para melhor
pay fundar hum Convento da Ordem
naquella Cidade : effectivamente ſe
executaria eſte projeto ; mas o Ca-
bido , que eſtava de poſſe daquellas to-
beranas Reliquias , antevendo que, ſe
alli fundaſlemos, pelo Direito que
nos aſſiſtia de ler o Santo da nolla Or-
dem , podiamos diſputar -lhe, e ain-
da tirar- lhe a poſſe de hum tað glo-
riolo penhor , embaraçou eſta relo .
luçao com tantas razoens, que nao
lhes pode reſiſtir aquelleMiniſtro : mas
para que a ſua graiidao nao ficaſſe de-
fraudada , e eicurecida, ja que nao
pode edificar - nos , como tanto que-
ria , hum Convento naquella terra ,
fundou no apno de 1627. outro , em
obſequio do bemfeitor de ſeu filho ,
com cujo nome o authorizou para vi
venda dos muito Reverendos Padres
Carmelitas Deſcalços.
4 Divulgados em Roma tantos
prodigios , o Reverendiſſimo Geral ,
que entað era da Ordem , Fr. Nicolao
Rodolfo , emprendeo fazer o melmo,
que haviao feito outros cinco ſeus Re-
verendiſſimos predeceſſores , que via-
járaõ a viſitar o Sepulchro do Santo .
Com effeito aſſim como concebeo eſte
idéa , a deſempenhou , pondo-ſe ao
caminho , e terminando -o no apno
do Senhor de 1632. Tao bem ſoube
perſuadir ao Conegos de Vannes , e
deſvanecer ' tao bem as ſuas frivolas
deſconfianças , que conſeguio o pero
miſſo para alli ſe fundar , como no an .
po de 1634. fundou , hum Convento
da Ordem . Fez -ſe a obra a expenſas
de Sebaſtiao Roimadec' du Pleſſex Jof-
fean , lobrinho do Illuftriflimo Biſpo
de Vannes , que , nao menos empenha
do nas glorias do Santo , lhe mandou
conſtruir hum excellente mauſoleo ;
6 de Settembro .
Os ' Conegos da Cathedral tomárað
por ſua conca fazer concluir hūa bel
liſſima Capella da Immaculada Vir
gem Senhora noſla , deſtinada prade
pofito das Reliquias de S. Vicente.
Sabia- ſe que ellas ſe haviao occultado
na Sacriſia , mas ignorava-ſe o lugar,
ſe poder deſcortinar eſte arcano , en
trou o Biſpo no penſamento de im .
plorar a luz do Ceo , pelo que deter
minou jejuns , e preces publicas.
5 Tentada finalmente a diligen
cia , tiveraõ os devotosdo Santo a con .
folaçao de ſer com effeito achado o
Veneravel depofito na Sacriſtia em
hum armario fechado a tres chaves ,
e mettido em hum cofre, guarneci .
do de muitas planchas de ferro que
foi com ſumma veneraçaõtranſporca
do para a Igreja . Abrio-le , preſente
o meſmo Biſpo , as Dignidades da Ca
thedral, muitos Religioſos de diver
las Ordens, e a Nobreza, Magiſtra
do , e Governo da terra. Concorre .
rao aſſim meſmo os mais peritos Me
dicos , e Çirurgioens da Provincia :
eſtes encaixáraó os ollos huns com oua
tros , e aſſim meſmo ajuſtáraó o quei
xo inferior , que ſempre ſe conſervá .
ra expoſto á publica veneraçaõ do po
vo, com aparte ſuperior, que ſe acha
ra tambem com toda a mais oſſada
naquelle relicario , e como toda ella
quadrava ao juſto , ſe concluio fer a
meſma do Santo . Pelo que o Illuftrif
fimo Biſpo atteſtou por eſcrito , que
aquelle era o corpo de S. Vicente
Ferrer , Canonizado por Caliſto III.
Ajoelhou depois diante delle , por
moſtrar o ſeu reſpeito , e reverencia,
acça ) , e devoçao , que confequente
mente foi imitada pelos mais Eccle
fiafticos, e por todo o reſto daquelle
grande concurſo , todos repletos de
hum celeſtial regozijo, que certamen
te nao podia ſer inſpirado ſegao por
Deos.
6 Collocára6.fe as ſagradas Reli
quias em hum caixao de prata , que
os Conegos ao meſmo fim havino man .
dado
 S. VICENTE FERRER ,
dado fazer , e o Illuftriffimo , e piiſfi-
mo Prelado ordenou , que no dia ſe ..
guinte 6. de Settembro ſe fizeſſe hūa
geral prociſſao folemne , em que ſe-
riao levadas em triunfo pela Cidade,
3 e ao redor das ſuas muralhas , as meſ:
1 mas venerandas Reliquias deſeu San-
to Patrono , e Defenlor. Affim ſe
1 executou com todo o eſplendor , e
grandeza. Os Cidadãos tomáraó as
armas , e vestidos brancos , e pretos,
como para denotar deſte modo as co
res do habito do ſeu Santo. Houve
hum eltranbo concurlo de todas aquel-
las povoaçoens, e lugares circunvizi.
3 ahos. Armárab - ſe as ruas riquiſſima-
mente , e com outras muitas demon-
ſtraçoens de feſta , e folemnidade ,
bem moſtravao aquelles ſobrenatu-
raes incentivos, que Deos inſpirava
neftas gentes para honrarem , 'e vene
Tárem ao ſeu Santo. Todos os angos
ſe repete hūa ſemelhante procifTao
no dia deſte anniverſario , e ſempre
com o meſmo eſplendor, e grandeza:
foi o ſeu Inſtituidor o meſmo Illuftrif-
fimo Prelado , que tambem ordenou ,
que eſta ſolemnidade ſe celebraria em
toda a ſua Dieceſe. i Reliquia a ſua caſa , aonde nella lhes
7 Collocou ſe a caixa das ſagra-
das Reliquias na urna de pedra , que
diflemos ſe erigio , e eſtá ſobre o Al .
tar da ſua Capella. Arde continua ..
mente diante dellas , de noite , e de
dia , a generoſas expenſas do Precla-
riſlimo ; e Reverendiffimo Cabido
húa lampada. Osmilagres, com que
o Eterno Paydefamilias acredita o
bom Operario da fua Vinha , faõigual-
mente aſſombroſos , que innumera-
veis . Fez -le eſta trasladaçao no aono
de 1637. a ſeis de Settembro , e o re
feridó Illuſtriſſimo Biſpo , em demon-
ftraçaõ do ſeu grande affecto a S. Vi .
cenie , inſtituîo deſde entaohữa Miſ-
fa quotidiana na ſua Capella em ſeu
obſequio. Tambem alli ſe venera o
primeiro féretro , em que o grande
Apoftolo de Valença foi enterrado ,
viſitado ,e reverenciado de húa in-
ſigne multidaõ de romeiros . Como
Tom . VII.
6 de Settembro . 315
S. Vicente Ferrer Miſſionou taš prin
cipalmente na França , nað ſómente
quiz Deos que elle illuftralle efta tam
nobre , e diſtincta parte do mundo
com a ſua doutrina , fenao ainda com
muitos milagres , para maior conſola
çaõ de leus devotos , e ſumma con
fuſao dos herejes pérfidos impugna
dores das verdades Catholicas , que
o Santo tao acerrima, e ardentiffima
mente , durante vinte annos , prégara.
8 He pois o ſeu tumulo hūa piſ
cina para todo o genero de enfermi
dades , e naõſómente.achao o ſeu cer
co alivio os miſeraveis doentes , ene .
ceſſitados naquelle ſagrado mauſoléo ,
ſenao ainda em qualquer outra Reli
quia do meſmo glorioſo Confeſſor de
Chriſto noſſo Senhor. No Convento
de Leao le venera hūa vazilha , por
onde elle bebia , e mediante ella tem
experimentado celeſtiaes maravilhas
muitas peſſoas, que tem bebido рот
ella. Sao infinitos os achacados que
buſcao eſte remedio , que ſempre
achao infallivel. Os que por eſtarem
de cama ſe achao impoſſibilitados para
eſte recurſo , mandao trazer aquella
entra a ſaude, que depois vaõ gratis
ficar ao ſeu bemfeitor. O noflo Padre
Fr. Carlos de S. Vicente , meritiffimo
fubftituto do noſſo Veneravel Padre
Fr. Thomaz Soueges na continuaçao
da grande Obra do Anno Dominica
no , e a quem ſeguiremos em grande
parte nas memorias delte Agiologio ,
diz haver ſido hum dos beneficiados
do Santo , mediante aquella ſua pren
da , em húa doença que tivera dedez ,
para doze annos . Attribue mais o mel
mo Padre os dous grandes beneficios
de haver vindo á Ordem , e ſer alum .
no della em húa das Provincias mais
reformadas daquelle Reino ao favor de
S. Vicente , a quem diz , que affim
elle , como outras peſſoas mais , ha .
viaõ feito feus votospara vencer, co
mode facto ſe vencerao , alguns obfta
culos , que ſe mettiaõ de per meio.
9 A antiquiſſima , e nobiliffima
Rr ii Igreja
 316 S. VICENTE FERRER , 6
Igreja primacial dos Condes , Cone-
gos de S. Joao de Leaā , ſe gloria mui-
to de pofluir a Reliquia de hum oſlo
de hum braço do Santo . Nao he me-
nor a eſtimaçao , que fazem de hua
atteſtaçao , que ſe guarda no ſeu arqui-
vo , obtida á inſtancia dos meſmos
Condes , e paſlada por hum Notario :
o Latim he bum pouco ſimples , e
raſteiro , tal , qual o davao osiempos
da ſua data ; mas he preciofiffimo o
ſeu theor , porque nelle ſe contêm :
que S. Vicente Ferrer, qne alli ſe in-
ticula o Meſtre Fr.Vicente, Valencia-
.
no , da Ordem dos Prégadores , che-
gou aquella Cidade em 7. de Settem-
bro de 1404. aonde prégara primei .
ramente no noſſo Convento , acudin .
do a ouvillo hūa prodigioſa multidaõ
de
povo : que depois paffára a prégar
Da Igreja Metropolitana, por melhor
commodidade do concurſo , que era
numeroſiſſimo ; e porque ainda ihe vi- tas vezes o referido Padre Fr. Carlos
nha eſtreito aquelle lugar , pafſára a de S. Vicente em hum extracto , 02
prégar fóra daquella povoaçaõ em al.' quelle manuſcrito , em que diaria
guns deſcampados , proximos a hūa
Capella da Magdalena, que ainda ho
je em dia ſubfiite , pouco diſtante dos
ao redores : que trazia com ſigo hum
altar portatil , que conduziao algũas
peſſoas do ſeu ſequito , ornado de fe-
das , ou eſtofos encarnados, e azues :
que nelle cantava Miſia muito de ma-
drugada , com tanta devoçaó , que lhe
corriao em fio as lagrimas dos olhos : . mente nos excitao a confiança do ſeu
queimmediatamente paſſava a prégar
ás gentes que o vinhao ouvir , moven
do com os ſeus diſcurſos os coraçoēs,
nao menos ao aflombro , que a edifi .
caçao , e compuncao .
IO Era quaſi ſempre ſeu ouvinte
o Illuſtriſſimo Arcebiſpo de Leao D.
Filippe , que nao menos ſe admirava
da affluente doutrina do Santo , do
quedos repetidiſſimosprodigios ,com
que Deos , por ſua intervençao , a con-
firmava. No fim dos Serinoēs lhe pu
nhao diante milhares de doentes e eſtá o ſeu bordao , que he mui ordi
aleijados , que concorriao a buſcar nas
ſuas oraçoens a ſua melhor medicina
de partes mui diſtantes , e nenhum ſe
de Settembro
levantava dos ſeus pés fem conheci
das melhorias. Nao fomente beneficia
va a eſtes que lhe chegavao aos pés ,
ſenao que acé ſe eſtendia o quaſi im
menfo da ſua caridade aos pobres
doentes , que le nao podiao levantar
da cama; o Santo os buſcava , e , de
pois de orar por elles, os deixava fi
nalmente faõs. Prégava em muitos
Moſteiros deReligioſas , que para if
ſo lhe fizerao inſtancia , nao conſen
cindo que deſtas occaſioens afliſtille
gente de fóra , para poder fallar com
maior liberdade. Da meſma pruden
te moderaçao uſou , quando prégou
na Igreja Metropolitana , nao admit
tindo mais ouvintes do que os Eccle
fiafticos feculares, e Regulares, ſem
ainda exceptuar as peſſoas meramen
te ſeculares , nao obltante que ellas
toſlem da primeira claſe.
II Tudo iſto affirma ter lido mui.
mente ſe achao deſcritas as acçoens
1
do noſſo Santo , e que elle obtivera
do Padre Carlos Gand ,
que o copiára
no arquivo dos expreſſados Condes
de Leao. Eſtas Adas tao authenticas,
bem facilîcao , e perſuadem o credito
que merecem cantas , é tao maravi
Tholas obras , como ſe lem do Apofto
lo do decimoquarto feculo , que igual
patrocinio , que a imicaçao das ſuas
virtudes,
12 No noſio Convento de Cham
berî em Saboia , fe conlerva a ſua ca
pa , de hũa materia viliſſima, e que
ainda aſſim he mais precioſa , e robe
rana do que os meſmos mantos Re 1
gios , e Imperiaes : eſtá conjuncto a
ella o ſeu Capello preto , ſegundo o
antigo eſtylo da Ordem , pela parte
anterior quaſi nao faz ponta, muito
menos pela poſterior. Tambem alli
nario ; o Miffal,de que uſava , eſcrito
com cara & éresGoticos, e o ſeu cha.
péo , que era tecido de palha , e for :
rado
 S. VICENTE FERRER ;
rado de tafetá preto . Como he mui
frequente o ſeu uſo na applicaçao dos
enfermos, principalmente aos que ſao :
atormentados de dores de cabeça , em
$ que ſe tem viſto repeatinas , e admi .
! raveis melhorias , fez -ſe -lhe būa de-
cente cobertura para nao padecer al-
gua deterioraçao. Tambem he quafi
5 galtar dous annos naquelle exercicio,
infinita a gente , que no dia de S.Vi-
cente Martyr acode a Igreja do noſo
ho To Convento , para ſe lhe applicar á
cabeça a meſma Reliquia ; huns im
plorando o favor do Santo , e outros
rendendo - lhe as graças dosbeneficios
de que ſe conſidérað devedores á ſua
interceffaö.
13 Parece , que o uſo deſtas gen-,
tes em venerar ao noflo Santo,que tan-
to as utilizou com os ſeus Sermoens,
segundo ſe vê de húa ſua carta ao Re.
verendiffimo Geral Fr. Joao de Puig
Noix , no dia do gloriolo Athleta de
Chriſto 3. Vicente Martyr , teve a ſua
origem em ellas começarem a vene,
rar as Reliquias de S. Vicente Fero!
rer , ainda muito antes de Caliſto III.
celebrar a ſua Canonizaçao . Ao meſ-
mo prodigioſo Santo déve aquelle
Convento de Chamberî a ſua funda .
çao : elle a ſolicitou no anno de 1404.
e elle executou a ceremonia de lan ,
çar- lhe a primeira pedra ; pelo que pas
rece que Deos quiz abençoar aquel-
la Caſa em atcençaõ a ſeu rao illuſtre
Fundador , florecendo nella a mais
perfeita obſervancia , com que tanto
ſe acreditou em muitos tempos a re-
formadiſſima Provincia de Hollanda
a quem ella pertencia . Dalli fahirao
gigantes de merecimentos em pieda-
de, zelo , e literatura . O Padre Fr.
Vicente Barou diz , no livro quarto
dasſuas Apologías,
que deſte Conven-
to fahiraõ dezoito Confeſſores, e Pré .
gadores dos Duques de Saboya, e tres
dos Duques de Borgonha, e Flandes.
Diz mais haverem enriquecido, e il-
luftrado a ſua Bibliotheca com mui .
tas excellentes Obras manuſcritas ,
em que igualmente reſplandece a lua
erudiçao , que a ſua piedade.
6 de Settembro .
317
14 Eftes meſmos manuſcritos
que ſó , como vulgarmente ſe diz , fe
deverao moſtrar por vidraças , deſap .
parecêraõ dalli ; porque concedendo
os noflos Religioſos entrada franca
na livraria a outro Religioſo de Intti .
tuto diverſo , ette , abuſando daquella
urbanidade , e galantaria , depois de
fez imprimir varias Obras, em cujas
edicçoēs diz o Reverēdo Padre Barou ,
que elle eſtava perſuadido que aquel
le Padre nenhum trabalho teve , mais
que copiar ao pé da letra aquellesma
nuſcritos, e ſupprimir o nome deſeus
verdadeiros Authores os filhos da
quelle Convento de S. Vicente Fer
rer , dando -os a ler ao público por
Obras ſuas , debaixo do ſeu nome. Nao
paſſaremos aqui em filencio o nome
de hum dos Religioſos mais beneme.
ritos , que , neſtes tempos proximos
grandemente honrárað elta Caſa , que.
ſempre ſe moſtrou empenhadiſſimo
Das glorias , e cultos do Sanco, Fr.Gand ,
Licenciado na celeberrima Univerſi
dade de Sorbona , irmao , e tio de dous
celebres Preſidentes do Senado de
Chamberi , cujo ſobrinho occupa di
gnamente a preſidencia do Supremo
Conſelho de Pinherole .
15 Piégou na preſença de Sua Se:
reniſſima, e Real Alteza Manoel II. ,
Principe , que grandemente o etti.
mou, e que para ſe utilizar dos ſeus
prudentiſſimos didames , o quiz ter
chegado a ſi , pertendendo pela ſua
mediaçao a reforma dos Conventos
de Saboia ; ſegundo aſſim ſe colhe de
húa carta , que o meſmo Senhor lhe
eſcreveo a Angers , aonde entao ſe
achava o Padre prégando actualmen
te a Quareſma. Mas quando o Padre
Gand ſe diſpunha a viajar á Corte de
Sua Alteza , foi Deos ſervido cha
mar para ſi ao meſmo Sereniſſimo Se
nhor , em quem parecia competir a
ſua piedade com a ſua grandeza. Oc
cupou o Servo de Deos quatro Ca
deiras dos Parlamentos de França com
aquella gloria , que ſempre foi inſepa-,
ravel
 318 S. VICENTE FERRER ,
ravel das ſuas acçoés. Allim meſmo
teve mui illuſtres empregos nas mais
celebres Cathedraes daquelle nobilif-
ſimo Reyno . Foimuitas vezes Prior,
e Vigario nacional dos Conventos de
Saboia ; governou , merecendo os ma
iores applauſos, o de Leao. Retirou-
le depois á Provincia de Tolofa a tra
tar de ajuſtar contas com Deos , e alli
acabava effectivamente os ſeus dias ,
ſe o ſeu prefimo foffe compativel
com eſta ſanta inacçao ; porque paſ-
ſados dous annos , é indo o Padre pa .
ra o noflo Convento de Avinhão ,
foi novamente chamado a Sabóia por
húa carta da Senhora Regente Real,
que perſiſtente no propoſito de Ma-
noel II : pertendia que Fr. Carlos paf-
faffe aos ſeus Eſtados a reformar os
Conventos delles ,
. " 16 Achava- ſe entao no Conven-
to de Chamberî , e ja com muito an-
no , o que nao obſtante acceitou o tra-
balhoſo emprego , que ſe lheconferio '
de Meſtre de Noviços. Procedeo ne-
fte poſto com tanta religiaõ , e de cal
modo inſpirou em ſeus fubditos o a-
.
mor á ſua Ordem , e a pratica da au-
fferidade , e mortificacao Religio- tuiſſe ao PadreGand por Prior , elna
fe ', que muitos delles morrêrao com
opiniao de fancos, e outros perſuadi-
dos da efficacia das ſuas razoens , e
fantos exemplos, paſlárað para a Pro-
vincia de Toloſa a viver mais addió
dos ao rigor das Conſtituiçoēs, ven-
do - ſe tranſplantado nos dilcipulos o
grande espirito de ſeu Meſtre. A'to .
dos pertendia inſpirar a devoçaõ de
S. Vicente Ferrer ; e para melhor a
avivar , e accender , fez imprimir al
gũas antigas Ladainhas , com que o
Santo era invocado , e applaudido , e
em que ſe lia hūa couſa bem notavel ;
ifte he , que S. Vicente Ferrer havia
reſuſcitado quarenta e quatro mortos .
Nað ſe poupava a trabalho , ou dili .
gencia , que conduziſſe para os ſeus
maiores cultos . A ' lua inſtancia con-
cedêo aquelle Convento de Chambe-
rî hûa Reliquia da ſua capa a hum
Grande de Caſtella ', que inſtantemen.
6 de Settembro . ;
te a pedia , no anno de 1889.5'e féacha :
va empenhado na fundaçao de hum
Convento ,que andava fazendo em
honra do Santo , aonde decentemen
te a queria depoſitar.
17. Quando eſteve em Avinhao ,
reſpeitava fummamente o apoſento ,
em que o Santo tinha aſſiſtido. Para
feu major alinho , e condecoração , lhe
dêo quatro excellentes pinturas com
hum Crucifixo mui precioſo . Sentia
grande conſolaçao eſpiritual de cele
brar naquella quadra , e tinha hū a fan
ta inveja dos Noviços daquella Caſa ,
aquem chamava os Anjos de S. Vicen
te Ferrer , por elles eſtarem de poffe
de hum thelouro tað eftimavel , po
dendo entrar a toda a hora naquelle
Santuario . ' Voltando a Tolofa ſe ap .
plicou acerrimamente á maior obſer .
vancia da regularidade do Inſtituto
Dominicano. Aos pertendentes do
noſſo fanto habito , mandava os ir ao
ſeu Convento , para que se inſtruiſlem
da vida Religioſa , a que ſe deviaó fo .
metter : 0 Illuſtriſſimo Biſpo deGene
bra D. Joao de Alés deprecou ao noſ
fo Reverendiſſimo Geral, que inſti
troductor da reforma do noſo Con
vento de Annecî; mas as guerras , que
entao perturbavao aquelles paizes ,
impedirao que le chegaſſe a affeituar
aquella tað benemerita promocao . Fi
nalmente , depois de haver recebido
os Sacramentos , morreo ſaptamente
no Convento de Chamberi a 20. de
Julho do anno de 1696. Dalidade de
lettenta e ſette .
18 : Havia dože , ou treze annos ,
em que elle naõ ceſſava de importu
nar aos Santos Anjos , e a S.Vicente,
pedindo-lhes hũa bõa morte , e a nof
1
ſo Padre Santo Agoſtinho hūa perfei.
ta converſao a Deos. Mui crivel he
que teria6 hum deſpacho mui amplo
e favoravel hűas petiçoens tao acerta .
das , e piedozas. Por ſua morte ef
crevêo o Padre Bellegarde, irmao do
Chanceler mór de Sabóia , e Prior de
Chamber) , húa carta circular , aonde
ſe
 RECOPIL AC, AM
ſe the dao os juſtos elogios, de que
tanto de juſtiça eraõ credoras as fuas,
eminentes virtudes. O Padre Fr.Car-
los de S. Vicente , ſe conteſſa muide. ,
vedor aos bôs officios delte Padre, que
diz haver ſido feu Meſtre no feculo , e
Da Religiao ; e como o Padre Gand
era tao devoto de S. Vicente Ferrer ,
eſperamos que eſta digreſſao ſe nao
naố
faça moleſta neſte lugar, conſervan
do a memoria , e o nome de hum tao
.
. grande devoto do Santo , ao meſmo
tempo , em que ſe hiſtorîa a Traslada
çaõ das luas Reliquias .
-19 Concluindo agora o que mais
fobre ellas nos reſta que dizer. Já no
ando de 1455. , o primeiro depois do
Santo Canonizado ,ſe havia feito ou .
tra Trasladaçao dellas . Caliſto JII. at
tento ás inſtancias do Duque de Bre .
* tanoia , promovéo o Eminentiſſimo
Cardeal Arcebiſpo de Avinhaô , Ala .
no Coetivian por ſeu Legado a Lace-
ie. Aſiſtirao quatro Arcebiſpos, dez
Biſpos, e os Abbades das Provincias
circunvizinhas, Suas Altezas Sereniffi-
mas , todos os Grandes , e Nobres da
Provincia , hũa infinidade de gente ,
e o noſſo Reverendiſſimo Geral Fr.
Marcial Auribelli com cem Religio .
los da Ordem , cujo affombrofilimo
concurſo eſtava como embeleſado ,
vendo os eſtupendos milagres , que o
Senhor ſe dignava fazer pela interceſ-
ſao de ſeu bom Servo , Lembrao - ſe
defta Trasladaçao as Actas do Capi .
tulo Geral de Mompelher do anno
de 1456. , e o Padre Joao Mahuet , ſe-
guindo os manuſcritos de Monſieur
de Suares, o eſcreve aſſim po ſeu Pre
dicatorium Avenonienſe. No Capitu-
lo Geral de 1644. ſe impôs ao Con-
vento de Vannes, e á Congregaçao
Britanica, a obrigaçao da reza do Of-
ficio de S. Vicente todas as quartas
feiras deſimpedidas ; e a Santidade de
Clemente Š . , inſtante o noflo Emi-
nentiſſimo Cardeal Fr. Vicente Maria
dos Urlins, concedeo em 29. de Set.
tembro de 1674. que toda a Ordem
pudelle recitar o Officio de S. Vi.
de 6. de Settembro. 3r9
cente Ferrer na primeirafegunda ; ou
jefta feira vaga de cada mez, para que
com a lembrança de tao ſagrados ex
emplos , como nos propõem a Lenda
do Santo , melhor nos inflámemos na
imitaçao dos ſeus taõ exemplares , e
tao lántos procedimentos .
RECOPILAC, A M
M
de 6. de Settembro.
I A Provincia de França o
Sereniſſimo Principe , e
Veneravel Padre Fr. Garcia . Era elle
filho do Rey de Navarra, e poſto que
havia ſido cirado entre os faltos, e
delicias da Corte , Deos , que o reler
vava para outro Reyno mais gloriolo,
Para lhe lavrar melhor coroa de glo
ria , o chamou a fi vehementiſſima
mente . Nao reſiſtio o Servo de Deos
ás inspiraçoens , e toques Divinos , e
dando de mao ao mundo, e a todas
as ſuas fantaſticas grandezas , veftio
o habito de S. Domingos. Achava- ſe
em Pariz ao tempo , em que os noſ
ſos Religioſos oravao , ou deſcanla
vao . De talmodo lhe fatigarao eſtas
couſas a imaginaçaõ , que veio a cahir
de cama . Como porém o noſſo Bea
to Fr. Jordao occorreo a atalhar eſte
inconveniente , determinando , no Ca«
pitulo que ſe celebrou naquella gran
de Cidade em 1224. , que depois de
Completas ſe cantaria a Salve , im
plorando o auxilio deMaria Santiffi
ma , tao coſtumada a humilhar a cer
viz da ſerpente infernal , ceffando
aquella diabolica perſeguiçaõ , cobrou
o Servo de Deos perfeita melhorîa.
Nao conſta ao certo do lugar da
morte ; tem -ſe porem por certo , que
naõ deixaria ella de ſer mui precioſa
diante de Deos , que nao deixaria de
premiar com o centuplo da eternida
de a quem cao generoſamente havia
renunciado o mundo por ſeu amor.
Anno de 1230. Maluend. Caſtilh.
lib.s. cap.62.
? Em Barleta , povoaçað naõ mui
CON
310. RECOPILACA
conſideravel de Apulha ; o noſſo Illu-
ſtriſſimo, e Veneravel Arcebiſpo D.
Fr. Joao Jalomoni . Foi promovido
áquella dignidade Paſtoral por Urba-
no V., e viveo ſempre ajuſtadiſimo
aquellas obrigaçoens, que incumbem
aos Succeſſores dos Santos. Apoftolos,
pelo que era, reſpeitado como hum
Santo deſcido do Ceo , dos maiores
de Barleta . Fipalmente , havendo con-
tado vinte annos daquelia Prelazia ,
paflou a lograr -ſe para ſempre dopre-
mio eterno no anode 1388. Font.
in Theatr.p.279.
3 Em Arras , o Illuſtriſſimo, e Veí
neravel Biſpo delta Ci iade D.Fr.Mar-
tinho de Poré . Era Francez de Na .'
çao , do Convento de Sens , como af-
fim conta da inſcripçao do ſeu ſepul-
cro , a que le deve mais credito , doſe gravou hum elegante Epitafio La
que ao que diz o Padre Fr.Joaõ de San-
ta MARIA , que o faz natural de Di-
jon . Na ſagrada Faculdade da Theo.
logia , em que era Doutor , ſe diſtin-
guio com hűa notavel eminencia. As
fuas letras , muito mais as ſuas virtu .
des , o eleváraó a Confeſſor do Sere.
niſſimo Duque , e Principe de Bor-
gonha , Flandes, e Artois . O meſmo
enhor o expedio por ſeu Embaixa.
dor'ao Concilio de Piſa , aonde ad.
quirio tanto credito , e reputação ,
que a lua inſtancia forao approvados
pelos Padres daquelle Sagrado Syno.
do os artigos do Padre Fr.Joao Pariz,
Theologo Minorita , naõ obſtante bai
verem ſido reprovados, e condena.
dos á queima pelo corpo da Univer-
dade de Parîz . Duas vezes ſe lhe com .
metteo a honra do officiar, preſente
toda aquella veneravel Allembléa , o
que o Servo de Deos aſſim fez nas Sec
çoens undecima , e trigeſima.
S Nao foi eſta a unica vez , que o
meſmo Principe Joao ſe ſervio do
noſſo Veneravel Fr. Martinho para
ſemelhantes expediçoens, conſignan
do - lhe a embaixada , que mandou a
Henrique VI . de Inglaterra , a fim
que pertendia con
dos Deſpoſorios ,
certar com huma ſua ſegunda filha, e
M de 6. de Settembro . :
o Principe , filho primogenito do Mo:
narcalnglez.Efte recebeo ao noſToEn
viado com a mayor gradeza , e urbani
dade, prendado-ocom precioſiſſimos,
e Reaes preſentes. Outra vez lhe foi
neceſſario pallar a Inglaterra com o
meſmo caracter de Embaixador de
Filippe, Succeſſor de Joao , imploran
do do Rey de Inglaterra auxilio , e
ſoccorro contra os inimigosdo meſmo
Filippe , que com mao armada ri .
phao ameaçando os ſeus Eſtados . Ha
vendo furtido todo o bom effeito a
ſua Enviatura , voltou ao governo da
ſua Igreja , que regeo faotiſlimamen
te por tempo de dezoito annos . Mor
reo de hüa morte digoa de cal vida
no anno de 1426. Deo -ſe -lhe huma di
ftincta , e honorifica ſepultura, em que
tino , que deſcreve a ſuccinta memo.
ria , com que aquirecommendamos á
poiteridade o nome dette Servo de
Deos. Ex Inful.Bel3.pag.4 .
4 Na Provincia de Tolola o Ve .
neravel Padre Fr. Pedro de Monmas .
Eſpecializou -ſe muito grandemente
na devoçao , e culto de MARIA Se
nhora noſla , a quem fez repetidilli
mos obſequios , reftabelecendo , ou
reſuſcitando a Confraria do feu Ro
fario em hum grande numero de Coni
ventos. Governou naõſómente o de
Toloſa , ſenao toda eſta famoſa Pro
vincia , depois que ella ſe ſeparou da
de Provença , fazendo -ſe benemeri ,
to de entrar ina ſérie de cantos inſig
nes Predeceflores , a quem elle , fenao
foi ſuperior , nao deixou de ſer igual.
Anno de 1493. = Ex Fr. Carol. à S.
Vincent .
7. de
 FR . MIGUEL DE S. DOMINGOS ,
7. de Settembro.
Vida do Veneravel Irmao
1 Efte generoſo , e Evangelico deſape
0 FR . M I G U E L
DE S. DOMINGOS ,
Profeſſo da noſſa Terceira Ordem,
Extrabida de Melendes. Tom.3.
)
pag.351.
I Author da graça diffun-
4 de - a muito como quer , e
paquelles em quem quer. Nao faz ac
cerçao de pefloas;todos podem entrar
a participar das delicias da ſua Cêa ,
ricos, e pobres , nobres , e plebeos.
Por iſſo nao he muito que , naſcendo
efcuramente , em muitos ſentidos, o
noflo Veneravel Irmao da Terceira
Ordem Fr. Miguel de S. Domingos,
ſe vieſſe a fazer tað egregiamente el
clarecido em virtudes. Sua patria foi
a Cidade de Cuſco , ſeu pay hum Ca.
ſtelhano , ſua máy húa preta. Acon-
o Vice-
teceo paſlar por aquella terra
Rey do Perú D.Franciſco de Toledo:
vio tao bõas diſpoſiçoens em Miguel,
e húa capacidade tao ſuperior aos ſeus
poucos annos , que nao ſomente ore-
cebeo na ſua familia , ſenaõ que o con-
ftituîo ſeu Secretario ;porque, de mui-
tas habilidades que tinha , era eminen-
te na dos raſgos da penna, a cujo ele-
gante corpo dava hūa alma muito vi-
va a bella intelligencia que tinha , e
de que aquelle Senhor muito fe fer-
vio , e ſe utilizou durante a viſita que
1
fez daquelle opulento , e valtiſlimo
Reypo .
Nao ſe enganou o Vice- Rey ,
porque correſpondeo de modo o noſ-
ſo Miguel á ſua expectaçao , que até
a chegou a exceder ; mas poſto que
o Servo de Deos adquiriſſe hõa muiſerem os negocios nao poucas vezes
alta reputaçaõ pelos ſeus exemplares
procedimentos, e pelasiábias , e pru
dentes direcçoens , com que ſabia ma-
nejar tao importantes negocios , ruc
do deſprezava , conſiderando.ſe hum
méro nada diante de Deos , e dos ho,
Tom . VII.
7.de Settembro. 321
mēs . Nada do mundo pofluía o ſeu
coraçað , cheio ſomente daquelle Se
nhor , que ſó o póde encher , e ſaciar.
godas couſas da terra ſe viobem quan
do D. Franciſco , terminado o ſeu go
verno , ſe apreſtou para voltar a Hefa
panha ; porque querendo premiar ,
quer na Europa , quer na America , os
bons ſerviços que Miguel lhe bavia fei
to , deſprezou ette heroicamente to .
dos eftes mundanos intereſſes , nað
pertendendo mais que aquelles , que
o Evangelho chama unicos , e fað os
mais importantes.
3 Paſſou a pertender o habito de
Donato no noſſo grande Convento da
Cidade de Lima , que de muito boa
vontade de lhe deo em 3. de Janeiro
de 1581. Neſta mudança de vida ſe
examináraó bem , como em pedra de
tóque, os altiſſimos fundos ,e quila
tes da ſua virtude. Vio -ſe quanto de
véras eſtava deſarreigado do mundo ;
porque do mando que acabava de ex
ercer com tanto applaulo , e ſatisfaçao
dos Indios , e Caſtelhanos , paſſou a
fer mandado de hūs pobres Religio
ſos, o que elle ſobre tudo eſtimava ,
gloriando -ſe agora da ſanta Obedien
cia , como nunca ſe havia gloriado
das ſuas anteriores eſtimaçoēs. Tudo
nelle era abatimento , e humildade ,
tudo virtude , e Religiao . Profeflou
com a maior vehemencia de affectos,
e pouco tempo depois o paſfáraó a Pro
curador da Communidade, emprego
que elle teve quinze annos , ſervin
do - a ao melmo tempo, nao menos util
mente no eſpiritual, do que no tem.
poral; porque o principio , e fim de
todas as ſuas acçoēns era Deos , de
quem elle jamais tirava os olhos . O
trabalho era cuſtoſiſlimo , dobraya- o
intricados : mas por muito que fofle
o canſaço , e a lida , jamais faltava o
Veneravel Irmao na afliſtencia das
Macinas ; jamais era fallivel na Ora
çað , e em outros muitos exercicios
de devoçao. Como por occaſiao do :
Ss feu
 L
322 RECOPI A C,
feu Officio manejava dinheiros ; por
maiores que foſſem as ſuas neceſſida .
des , jamaisſe atrevia a converter nem
hum real nos ſeus uſos. Parecia- lhe
queſeria eſta a mais enorme tranſgreſ-
fao da pobreza , com que na ſua pro
fiflað ſe havia conſagrado a Deos.
4 Como tinha hūa tao bõa mao
de penna , e era tað habil , ecurioſo ;
encarregárað - no para eſcrever os li .
vros Coraes. Dêo o Servo de Deos
muitas graças ao Ceo , porque eſta no .
va incumbencia lhe dava mais lugar
para melhor poder ſeguir a vida inte .
rior . As ſuas virtudes , por mais que
elle as queria occultar , ſe tranſparen-
tavao de modo , que bem arcentos a
ellas osPadres do Convento , bem que
ſoubeff : m quanto ifto era fóra do cô .
mum , lhe derao o officio de Depofi
tario . O Servo de Deos o adminitrou
até o tempo de ſua morte com aquel.
le preſtimo, prudencia , e ſabedoria,
que nunca delle fe duvidou . Preltava
a todos os Religioſos no que podia ;
e para elie nað havia mais gloria , que
poder -lhes ſer bom . Eftimava - os reſ
pectuoſiſſimamente , como ſe vifleem
cada hum delles hum S. Domingos .
Amodeſtia , com que ſempre ſe com-
portou , era humfobreſcrito da pure-
za , ebom eſtado da ſua conſciencia .
5 Depois de Matinas ficava ao pé
dos Altares até as quatro da manhaa
em Oraçao altiſſima. Entao ſe reco-
lhia a tomar algum pouco tempo de
deſcanſo , e logo tornava a deſcer pa-
ra a Sacriſtia, para ajudar a quantas
mais Miffas lhe era poſſivel. Gaſtava
o reſtante do dia no ſeu Officio , ean
tes da meia noite nao dormia mais que
duashoras, porque nao tinha mais cen-
tro do que a ſua Igreja. Vivia com eſta
fanta integridade , quando foi chama-
do pelo Eterno Paydefamilias , me.
diante o correio de hūa penofiſlima
quebradura , em que acabou de levar
acoroa da ſua victoria com hūa inex-
pugnavel paciencia. Recebidos, com
as mais devoras diſpoſicoens, os ſan-
tos Sacramentos , parlou para a com,
A M de 7 de Settembro ,
panhia dos bons Servos , aos 7 de Set
iembro do anno de 1642. idoſo de
oitenta e ſette .
RECOPILAC , A M
de 7. de Settembro.
I M Roma o Reverendiſſi
mo , e Veneravel Meſtre do
E.
Sacro Palacio Fr. Pedro Paulo Giag .,
Derin . Naicera para o mundo em A
para a Ordem no Convento de
rezzo ,
Saxo Ferrato da Provincia Romana ,
aonde veſtio o babico . Havia Regen
tado os eſtudos com grande credito
da Ordem , e gloria do ſeu nome no
Collegio de Perugia , e da ſua bõa eco
nomia ſe confiou o governo de mui .
tas Caſas, que elle adminiſtrou com a
mais alta ſatisfaçao. Commerteo - le
The conſequentemente o mando de
toda a Provincia , de que elle foi Re
formador , igualmente que Provin
cial . Sua Santidade por conſideraçaā
das ſuas grandes letras o expedio em
titulo de Theologo ao ſagrado Conci
lio de Trento , aonde ſe fez duas ve
zes veneravel pela ſua doutrina foli
da , e pelos ſeus irreprehenſiveis pro
cedimētos . Correndo o anao de 1564.
foi, como piamente ſe crê , chamado
para ſer hum dos grandes do Ceo em
conformidade da promeſſa de Chri
fto , que annunciou eſta honorifica di
ſtinçaõ aos que ſabem enſinar , e pra .
ticao fielmente aquillo meſmo , que
enſinao. = Theatr. Dominic. pagi
447 .
2 Em Abruza o Illuſtriſſimo , e
Veneravel Biſpo da Cidade Ducal D.
Fr. Jorge de Padella . Foi Varao in
figne em erudiçao , e piedade , ego
vernou a ſua Igreja com immediata
dependencia da Santa Sé Apoftolica.
Havia comado o habito em Help a
nha , que elle havia illuſtrado com a
fua doutrina , muito mais com o ſeu
exemplo . Morreo onze annos depois
deter promovido aquella Paſtoral dig
nidade porClemente VIII . , correndo
o de
 SOROR MARIA DE JESUS,
o de Chriſto de 1609. = Theatro Do-
min. pag . 171 .
3 Em Pacena , Cidade Epiſco-
pal , cuja Igreja he luffraganea da de
Sant •Iago de Compoitella , o liluftriſ.
fimo , e VeneravelBiſpo deſta Cathe .
dral D. Fr. Pedro Ponce de Leaõ .
Foi deſangue mui illuſtre , porque era
da familia dosPreclariffimos Duques
} de Arcos ; mas a ſua virtude , o fez
ſem comparaçao muito mais eſclare-
cido . Attento mais å eternidade, que
ao feculo , deixou as grandes vedta-
gens , com que eſte o liſongeava, pre-
ferindo a todas hum pobre habito de
i Religioſo . O ſeu merecimento era
1 tao grande, que nao baſtou o retiro
dos Clauſtros para o eſconder; de la
o forao tirar para o Candelabro da-
li quella Santa Igreja. Dez annosempu .
$ nhou o Bago de Paſtor della , e tem
pre com procedimentos muijuſtifica-
dos , e ſantos, e mui dignos daquel .
la cao alla dignidade . Antes de fer
promovido a eſta havia ja exercido o
Officio de Biſpo nas Dieceſes deCių .; e de muitos ſeus éminentes , e verda
dad Rodrigo, e de Zamora , dando
ſempre os indicios da ſantidade , com
que morreo no anno de 1615. Jaz no :
Convento de Santo Eſtevao de Sala-
manca . Theatr . Domin. pag. 170.
4 Na Ilha de Maiorca o Venerach
vel Padre Fr. Guilherme . Malfevir.
Foi hum dos mais illuſtres exempla-
res da penitencia , e obſervancia. Deſ.
de que veſtio o habito de S. Domin-
gos , até a ſua morte , ſe abſteve pa-
ra ſempre na meſa do uſo da carne .
Nunca bebeo vinho , e nao havia cou
ſa , em que nao procuraſſe mortifi
car-le com o.mais fevero rigor. Vi
veo tanto como Anjo , que mereceo
a honorificamençao , que delle fazem
as A &tas do Capitulo Geral do anno
de 1628. A &ta Capit.General.Tho
los
5 Na Manilha o Veneravel Padre
Fr. Diogo Quero , e naõ de Toro ,
como alguns menos advertidamente
eſcrevem . Naſcera em Caftella ; mas
paſlando ás Indias Occidentaes , re .
Tom. VII.
8 de Settembro. 3123
ftio o noſſo ſanto habito em Mexico .
Paſſou -ſe nos feus ultimos annos para
a Provincia das Filippinas 9 deſejoſo
de creſcer em perfeiçao , eſantidade ,
Aqui fez hűa vida digna dos antigos
Padres dos ermos : tal era o leu je .
jum , e o ſeu amor á pobreza , e á mor
Como ſe foſſe de nenhum
tificaçao.
momento a abſtinencia da Ordem , e
que naquellas partes ſe obſerva com
a maior circunſpecçao , accreſcentou
aos das Conftituiçoeos muitos outros
jejuns de paó , e agua , duas , ou tres
vezes na ſemana. Fazia largas jorna
das , ſem ir attido a proviſao alguma .
Tinha bum tal odio a dinheiros , que
ſó a ſua viſta era baſtante para o con
triſtar : foi ifto em tanto extremo ,
que nao fabia diſcernir o valor das
moedas .
S Foi inſeparavel do ſeu corpo hū
extreitiſſimo , e cruel cilicio . Depois
das Matinas da meia noite , naõ ſetor
nava deitar,, perſeverando ,
a deitar
nava a á imi
façao de noſſo Padre S. Domingos ,
deiros filhos ,em Oraçao na Igreja até
Prima . Derao - lhe o Officio deMeſtre
de noviços, que elle exercitou como
hum fanto , que na verdade era . Ou .
: tros muitos miniſterios Apoftolicos
adminiſtrou ,de ý ſempre deo.a melhor
conta . Finalmente , Deos o chamou pa
ra ſino annode 1640. O Capitulo Pro
vincial de Manilha ,e Geral celebrado
no apno de 1644. fazem glorioſa re
cordaçao deſte grande Servo de Deos.
= Hiſtor. das Filip. tom.2.1.I.
8. de Settembro .
Vida da Veneravel Madre
SOR OR MARIA
DE JESUS ,
Extrahida da Hiſtoria das Filippi.
nas , na 2. P.
I Vida da Veneravel Man
A dre Soror Maria de JE
SUS ſerá hum novo argumento , de
Ss ii
queo
324 SOROR MARIA DE JESUS, &
que fe colherá que Deos noflo Senhor,
para repartir os ſeus dons, nao faz
diſtinçaõ de naçao , qualidade , ſexo,
ou de quaeſquer outras circunſtan :
cias , de que fazem tanto myfterio os
ſequazes das maximas do feculo. Naf-
ceo a noſa Serva de Deos na's Filip.
pinas : ſeus pays eraõ peſſoas muito
honradas , e que haviaõ ſido expedi-
dos aquellas Ilhas , logo que ellas no
principio forao,defcubertas :
elle cha .
maya- ſe Alvaro d'Angulo Tobar , e
ella Iſabel de Morales, que pario a
noſſa menina em hum lugar chama-
do Arebalo da Dieceſe de Zebu.Paſo
fando depois á Manilha , educára
ſua filha com coda a piedade Chriſtaā,
cuidádo a que ella correſpondia com
hũa maravilhoſa docilidade. Chegan.
do , a idade competente calárað -na'
gom hum homem da ſua esfera , e de
quem a Serva de Deos ficou viuva de
trinta annos . Quizeraõ ſeus pays em-' rao com hūa inexplicavel conſolaçao
penhalla em ſegundas nupcias , mas da ſua alma . Se ſe ville Senhora do
inucilmente .
2 Deſenganada dos falſos goſtos,
e vaidades do mundo, nao quiz mais
vida ,' que para conſumilla em virta-
des, como ſe tiveſſe muito preſente
o Inſtituto , que o Apoſtolo preſcreve
ás viuvas Chriſtaās. A modeſtia ,a con-
tinencia , a humildade , o deſprezodo
mundo , e dos enfeites, e em hūa pa-
lavra , a pratica de todas as ſuas virtu-'
des era o ſeu maior cuidado , todo
o ſeu eſtudo. Para melhor atinar com
o caminho do Ceo , elcolheo por ſeu
Conductor o Veneravel Padre Fr.
Bernardo de Santa Catharina , que
benemeritamente foi duas vezes Pro-
vincial daquella Provincia , que elle
illuſtrou com húa vida a todasasluzes
prodigioſa , e fanta. Debaixo da con-
ducta deſte grande Servo de Deos ,
fez a noſſa Veneravel Madrę grandes
progreſlos ; e iodo ſempre de gráo
em gráo , para melhor ſe avançar ne
ſta virtuoſa carreira , ſe diſpôs a entrar
pa Congregaçao da noſſa Terceira
Ordem , ſita na Cidade da Manilha .
3 Nao pode conſeguir a Serva de
de Settembro ,
Deos eſta felicidade tanto a ſeu goſto,
como quizera ; porque foi incrivel a
repugnancia, que achou de parte de
ſeus parentes , que fizerao todos os
esforços pela reter no feculo , e per
fuadilla a ſegundos deſpoſorios ; na
da porém foi baſtante a dobrar a ſua
conſtancia , e ioflexibilidade ; doque
fummamente edificados os noflos Re
ligioſos a admittirao naquella Con .
gregaçao , diſpenfando a quanto á
idade ; porque Soror Maria nao che
gava a eſte tempo a ter quarenta an
nos , o que era circunſtancia preciſa,
ſegundo as diſpoſiçoens, e eliyloda
quella Caſa , em que nao podia ſer
admittida mulher alguma , menos que
nað foſſe quadragenária. Para melhor
examinar a ſua vocação , te lhe derao
quatro annos de Noviciado , e vendo
o quanto deveras eſtava deſapegada
do ſangue, e do mundo , a profeſſá
Univerſo , empunhando o Ceptro de
todos os seus ÉRados , nao o eſtima
ria em nada , em comparaçao da feli
cidade da que agora ſe via de poſſe.
Se atélli tinha procedido sao merito
riamente , agora conſiderando - ſe mais
reſtrictamente obrigada ' , parecia to .
da eſpirito na diligencia que punha
em agradar a Deos por todos os prin
cipios.
4 Poftoque era da ſua obrigaçao
guardar os preceitos da Terceira Ór
dem , que profeſſava , pao ſomente ſe
eſmerava nella obſervancia , ſenao
nas diſpoſiçoes da Primeira. Aosje
juns das Conſtituiçoens addia múi
tos outros por devoçao. Ulaya de laã
junto á raiz da carne , que demais a
mais mortificava com hom intratavel
cilicio. Recitava o Officio Divino com
a meſmaOrdem , que feeſtyla nas nof
fas Communidades. Para iſſo ſe levan
fava indiſpenſavelmente ás Matinas
da meia noite, depois do que tinha
oraçað , e depois diciplina , que to
mava tres vezes na lemana , e todos
os dias da Quareſma, em algum lu
gar
 SOROR MARIA DE
gar mais eſcuro. Affiftia continua :
mente na Igreja , e embebia -ſe tanto
na attençaõ, e contemplaçao dos Of
ficios Divinos , que nao parecia ſenao
hũa eſtatua lem ſenſibilidade, ouma
vimento . Todos os dias communga .
va : nos Domingos, e Feſtas real , e
Sacramentalmente ; enos outrosdias,
em eſpirito. Para que eſte Paõ dos
Anjos The folle Pao de vida, e nunca
fe lhe converteſſe em fomento de per-
.
diçao , como ſuccedeaospeccadores,
que chegao aquella Sagrada Meſa
com a conſciencia obſtinada , e can .
c'erada na fuá protervia , ſe diſpunha
para eſta recepçaõ como húa fanta ,
que ella na realidade era .
5 Podia a Serva de Deosler pro
poſta por normadas viuvas Chriſtaās,
no exemplar regimen , com que ſábia-
mente governava os ſeus domeſticos.
Occupava -ſe em enſinar.Jhesa doutrie.
na !Chriſtaá , e em inſtruillos em muis
fas devoçoens , que de dia , e denoi-
te inceſlantemente praticavað . Fazia-
lhes rezar em voz alta o Roſario quo .
sidianamente . Levava -os i com ſigo a
ouvir Miffa , e a palavra de Deos, ei ſanto exemplo que dava a todos ,
aos exercicios do Catheciſmo. Era
precatadiſima em atalhar a menor
converſaçao entre aquelles de diffe-
sente ſéxo. Nao erað muitas as ſuas
polles; como porèm 'he certó aquel.
le proverbio , quemais da quem quer,
que quem póde ,abria,o mais largamen-
ie que podia , as mañs para favorecer
os pobres deChriſto. Parecia que nea
ſta piedoſa obra diſpenderia todos os
ſeus bens , dentro de pouco tempo ;
mas a confiança que ella tinha naquel ,
le Senhor , por cujo reſpeito ella fe
deſapoíTava do que tinha , experimen .
tava effeitos mui diverſos. Repartia
liberalmente com a Igreja , com os
prezos , captivos , mendigos, e po .
bres envergonhados , e jamais a Pro-
videncia deixou de concorrer para
eftes exceffos da ſua Caridade . Deo
hữa bõa eſmola para ajuda da extru :
Aura da Igreja do noflo Convento,
Concorreo tambem com muitospas
JESUS, 8 : de Settembro. 325
ramentos para o miniſterio do Culto
Divino , que nelle ſe haviao de exer
cer . Podia -ſe chamar enfermeira do
Convento ; cal era o cuidado , acom
paixao , e o mimo, que lhe deviao os
noſſos Religioſos que padeciao algu
maindiſpoſiçao. Fazia lhes de comer,
e preparava - lhesos remedios , que ba
viaõ de tomar .
6 A devoçao, que teve com a Se
nhora do Rozario , foi fummamente
extremoſa : naõ ceſſava de elmerar
ſe nos alinhos dos veſtidos, e mais
paramentos neceſſarios para o ornato
da milagroſa Imagem da Senhora , e
da ſua Capella. Criava em ſua cala
muitas meninas , que haviao ficado
orfaas , e que naõ experimentavao fem
melhante falta no amor , e cuidado
que , como a ſua mãy muito delvela .
da, e carinhoſa , deviaõ á Serva de
Deos , a quem deviao , demais deſte
beneficio temporal , o de hũa educa
çaõmuito fanta , e virtuoſa. Quando
chegavao a idade competente , lhes
procurava aquelle eſtado, a que ellas
moſtravao maior inclinaçao . Com a
nað
parecia a ſua familia , tenaõhúa Com
munidade Chriſtaa , e fantamentere
gulada das melhores da Europa . A
exceſſiva devoçao ,que tinha a Ordem ,
lhe ſuggerio o penſamento de erigir
hum Moſteiro de Religioſas , para
cuja obra ſacrificou a ſua caſa, e to
dos os ſeus bens . Foi Deos ſervido
deixalla fó com o merecimento deſta
fua bõa vontade ; porque o Eſtado ſe
oppôs a eſta ſua deliberaçao. Viſto
que nao podia ſurtir o deſejado effei
to a fua pertençaõ , converteo as lom
mas, que havia de empregar naquella
fundaçao, em outras obras pias .
7. Era de grande caridade. Dian
te della , ninguem havia de dizer pa
lavra , que foſſe em delabono dos pro
ximos , ainda que aliàs foſſe couſa
tocante a peſſoa de quem eſtiveſſe of
fendida. Jamaisteve boca para ſe quei
ou buſcar algum deſaffogo ás ſuas
xar ,
adverſidades , que ſummia , e ſepul
taya
 L
OPI
326 REC Ä C,
tava em hum perpetuo , e profundif-
ſimo ſilencio . Tao boa cara mostrava
a ſeus inimigos , como ás pefloas que
ſe lhe moſtravao mais affeiçoadas. Jac
mais houve incidente , que divertilfe
a bella paz do ſeu eſpirito , ſempre ab-
forto , e abyſmado em Deos . Amou
tao eſtreitamente a virtude da ſanta
Obediencia , que nao ſe atrevia a ſa
hir de ſua caſa , ſem beneplacito do
Prior do noſo Convento . A ſua oc
cupaçao mais uſual era a Oraçao , ou
x leitura eſpiritual. Em oitenta e qua
ko annos , que viveo , eſtas forao pela
maior parte as luas delicias . O ultimo
anno da fua vida lhe foi mui traba
Thoſo , paſſando-o em hữa cama , cer-
cada de dores , e afflicçoēs , poſto que
por eſtar fundada na pedra angular ,
nao houve trabalho que a fizede de
cahir de animo' ; antes, conſiderando
nos tormentos , e crucifixao do Filho
de Deos , recebia todas as violencias
da ſua moleſtia , como favores , e mi .
mos mui particulares do Ceo. Por iſ.
ſo jamais a pụdérað ver. neſta ſitua-
çaó , que nao folle com o riſo na bo .
ca. :
8 Cuidava mui frequentemente
na conta que havia de dar ao Summo
Juiz ; mas a ſua boa conſciencia lhe in-
fluia hūa tal confiança no favor da
Summa Bondade , que parece que ja
eſtava annunciando a ſua eterna pre-
deſtinaçao. Pedio , e recebeo os ulti-
mos Sacramentos com tantas demon-
Iraçoens de piedade , que foi hūa no-
va moſtra daquella ſantidade , em que
florecêra em vida . Forao -lhe admini.
Atrados pelos noſſos Religioſos , que
nao podiao acabar de admirar tanta
virtude , e perfeiçao .Fechou final ,
mente os olhos em paz , fazendo cor-
rer de outros muitos , que a chora.
vao amargamēte ,faudofas , e affluen
tes lagrimas , ſentindo hūs a falta da
companhia, outros a do remedio da
neceſſidade , e todos a de hum ſanto
exemplo. Foi fepultada na Igreja do
noflo Convento , aonde concorreo
muita gente , menos chamada da pom .
o
A M de 8 de Settembr .
pa com que ſe celebrou o ſeu funerat,
do que da ſantidade da defunta. Deo
fe -lhe jazigo na Capella do Roſario ,
cuja decoraçao , e afleio lhe havia de .
vido tanto affecto , e eſtava tao bem
opinada naquella terra , que ainda ho
je a ſua memoria he mui eſtimada , e
precioſa. .
Ř E COPIL A C, A M
de 8. de Settembro.
I MM Calli , em Eſpoleto , olla
luftriffimem
E Mbilin o Espoleter otti
e Venerave l
Biſpo daquella Cathedral D. Fr. Pe
dro de Viterbo. Sendo Prior do Con
vento , que a noſſa Ordem tem naquel
la Cidade , merecêo a Santidade de
Martinho V. a attençaõ de o crear
Paſtor da meſma Dieceſe. Cinco an
nos a governou ſantamente com pala
m0 , e admiraçao de todas as ſuasove
lhas , nao largando jamais o hiabico
Dominico , que canto prezou ſempre
até a ſua morte , que foi ditoſiſlima
no anno de 1452. Theatr. Domi
can.pag.151. to ? ' H
2 Em Colicore o Veneravel Pa
dre Fr.Joao Gerardo . Foi o terceiro
Inquiſidor Apoſtolico da Ilha de Ma
iorca, depois que eſta ſe ſeparou de
Rouſilhon , e Catalunha. Alfiſtio co
mo ſeu Definidor no Capitulo Pro
vincial de Hueſca em 1460. , e era rao
perfeito Religioſo , que o noſlo Re
verendiffimo Geral Fr.Marcial Auri
belli o creou Vigario Geral da Con
gregao Reformada de Aragao ; antes
porêm , que lhe chegaſſem amao eſtas
ordens , o chamou noflo Senhor para 1
li , no anno de 1464. = Diego lib. 1 .
H
cap 23 .
3 Em Ruao o Veneravel Padre
Fr. Franciſco Anginor . Tarde entrou
na Religiao ; mas vingou - ſe do tarde ,
abbreviando , nos poucos annos , que
viveo dentro dos Clauſtros,
muitos an
nos de merecimento . Veftio o habi .
to no Noviciado geral de Pariz ; mas
fe
 SOROR JOANNA HERNON DE PENFRAT, 9. de Settemb :
fechou felizmente o circulo da ſua vi-
da em Ruao , aonde fora expedidope .
los Prelados para alli dar fomento á
vida Religioſa mais reformada. Tal
era o bom conceito , que elle lhes ha-
via merecido ! Morreo no anno de
1637. Soueges.
9. de Settembro.
f
Vida da Vencravel Madre
SOROR JOANNA
HERNON DE PENFRAT ,
Extrahida do Padre Soueges, e das
Relacoens dos ſeus Confejores.
I
Ropõem a Relaçaõ deſta
PA
Angelica creatura os dicta.
mes da vida interior , que faz Saptos
os Santos ; ſem a qual as acçoensmais
admiraveis feriaõ húm corpo ſem ale
ma , e hũa materia ſem fórma . Ella
meſma ſerá a relatora , eſcrevendo, e
obedecendo a hum dos ſeus Directo ,
res , Religiolo da noſſa Ordem : com
advertencia porêm , que muitas , e que goſtando eſtas primeiras doçuras ,
grandes virtudes que praticou , nos
roubou a ſua humildade , achandora-
zoens para as encobrir , ſem faltar á
obediencia. Só devemos dizer que
naſceo em Quinperles na Bretanha de
illuſtres pays; que foi puriſſima de cor-
po , e coraçao ; que profeſſou a noſſa
Terceira Orden ; e que finalmente
ſe empregou a ſervir os enfermos de
hum Hoſpital, onde fez maravilhoſos
fructos , aſlim naconverſao das almas,
como no alivio dos pobres. Morreo
no anno de 1690.; e foi tal a repura-
çao da ſua lantidade , que fe venerou
a ſua ſepultura , como de fanta Cano-
nizada. Principiemos a ouvilla; e quei.
ra a Divina Miſericordia que eſtas faiſ-
cas tóquem , e abrazem os noſſos co
raçoēs .
Em Nome do Padre , do Filho ,
e do Eſpirito Santo. Por obedecer
cegamente ao preceito de Voſſa Pa.
ternidade , principio a dar conta dos
favores, graças, e profuſoensdo meu
327
Eſpoſo , deſde o inſtante, em que a
ſua Miſericordia ſe dignou attrahir .
me a ſig: Sinto aſſiſtir -me hũa piedo .
. ſa mao , que me levanta , quando mi
ſeravelmente cahida nas minbas per
verſidades . E ſe naõ fora iſto , ó quan
tas vezes mais eu me precipitára em
mil miſerias, naõ ſó cada dia , masca
da inſtante ! Quantas vezes as minhas
froxidoős , e villanias me tem mere
cido os deſamparos deſte empenbado
Amante! Torno a dizer , que arra
Itada do grilhao da obediencia , pro
porei os diverſos modos, e meios, com
que me attrahio para o amar , e lhe
entregar o meu coraçao , com total
ſeparaçao das creaturas . Enlimou -me
que devia eu entrar no ſeu Coraçao
cheio de amor, para delle tirar fogo
com que purificar-me , e abrazar o
meu coraçao. Eſta attracçao me cau .
ſou , e cauſa hūa alegria ſenlivel. Man
dou- me fazer o retiro dos dez dias ,
e nelles me enchco de inſondaveis
graças . Principiou a alliança por hum
caminho ſuave, e amoroſo ; delorte , 1
ja nada me parecia difficil, antes me
prendia com tal ſuavidade , que me
deixara eſtar ſempre orando , ou em
algum outro exercicio eſpiritual : Pa
recia -me que o Senhor me tirára to
da a viſta , e lembrança dos meus pec
cados ; nao querendo que eu tiveſe
ſe o menor diſſabor do leu ſerviço :
por eſta caufa emprendi fervir aos po
bres no Hoſpital, naõ prevendo , nem
conſiderando as difficuldades, que
depois experimentei. Ajudava-me o
Eſpoſo a toda a luz, e baſtava o co
nhecimento , e conſideraçao deſta af .
fiſtencia , para me engolfar na maior
fadiga ,
e nella entregar -me a Elle to
da . Paſſados os primeiros ſeis mezes ,
me vi conduzida por hum caminho
cheio de cruzes , e de ſobreſaltos,
Tudo quanto me parecera luave , fa
zia ja húa vexaçao , e tribulaçaõ ao
meu eſpirico . Se olhava para os po
bres, e o trabalho com que os devia
lervir , ja julgava invencivel eſte tra
balho ,
328 SOROR JOANNA HERNON DE PENFRAT , 9 de Settembr.
balho. Repugnava o corpo a grofle.
ria do ſubitento ; e finalmente , em
nada achava conſolaçao , porque o
Soberano Amante queria que eu pa-
decefle a Cruz , por cruz .
3 Aliviada de algúa ſorte deſtas
repugnancias, eotravao outras maio.
res . Parecia - me que o mundo , demo-
nio , e carne , ſe ciphao conſpirado
contra mim . O demonio me levantou
cruelguerra introduzindo-mena ima.
ginaçao representaçoes impuras , que
enchiaõ a minha alma de temores . Al
bom JESUS ; ſó Vós ſabeis os cuſtos
deſte combate , que durou quafi cin-
co annos ! Vósſabeis,meu Amado Ef-
poſo , que aſſiſtida da Voſla Graça ,
procurava defender -me com as ar
mas , que Vós me enſinaveis. Eu fu-
gia das converſaçoens com pefloas de
outro ſexo : nað comia couſa que me
pudefie ſervir de regalo : eu me pri-
vava de ver ainda as couſas permitti:
das : eu me lançava fóra do leito , gri-
tande : Miſericordia. Mas nao achei
remedio taö efficaz , como pegar em
hūs acha incendida, e chegalla ao meu
corpo em memoria das cinco Chagas
do meu Senhor , dizendo - lhe de cada
Vez : Ah corpo miſeravel, Je a graça
te falta nelle combate, e tu nao tra
balhas por reſiſtir ao teu inimigo, que
incende na tua imaginaçao o fogo in- . começou a inſtruir -me nos modos de
fernal , cabirás nos ſeus laços , e de-
pois nos eternos incendios . Dormia
em hum enxergað , veſtia -me de cilin
cios , jejuava a pao , é agua , e ás ve .
zes com bem pouco pao: outros mui-
tos dias , paſſei ſem genero algum de
ſuſtento , e me deixar comer de bi-
chos . Depois de tað dilatado , e ri-
goroſo combate , ſe dignou o meu Ef
poſo fazer-me principiat a goſtar al
glins longes do ſeu amor ; porém iſto
ló foi para me preparar de novas pe-
nas , e provas nos combates de pene-
trantes calumnias , que durárað ſeis
1
para ſecte annos.
4. Juntnu - ſe aiſto hűa companhei.
ra , que a Mdo de meu Eſpoſo eſcolhe-
ra para exercitar a minha paciencia ,
Sendo mais virtuoſa que eu , permit
tio o Senhor que o ſeu genio foſſe
exceſſivamente aſpero para mim . As
minhas ſubmiſloens, e obediencias a
azedavao mais . Conheci que era iſto
particular providencia de Deos , para
abrandar , e amanſar o meu natural ,
ſempre duro , e rebelde . Nao faltava
eu todos os dias em lhe fazer algum
obſequio ; e quando acabava de o
executar , me ſentia com interior con
tentamento . Tres annos paſſei neita
ſujeiçao , mais , que a da mais obe
diente eſcrava : e daqui'me naſceo o
coſtumar-me tanto a naõtervontade,
quenem impulſos della ſentia em mim ,
Todo o meu recurſo neſtes contraites,
era o meu Eſpoſo : e porque em hűa
occaſiao me vali de certa peſloa , de
quem podia eſperar algúa conſolaçao ,
me achei deſpedida com tal deſabri.
mento , que reconheci o meu enga
no , e q ſó de Deos devia pertender to
do o ſoccorro . Proſtrava-me na pre
ſença do Santiſſimo Sacramento : pro
punha - lhe as minhas penas , que en
tao conſiderava como muito grandes;
porque ainda nao penetrava o valor
das Cruzes . Neſte tempo me achava
com mais valor , que conhecimento ;
e mais amor , que illuſtraçao. Porêm
a Summa Bondade de meu Eſpoſo
ſeguir hum caminho , que me parecia
muito afpero ; e a misturar-me algúa
doçura entre todas as penas .
5 Principiei a goſtar do ſerviço
que fazia aos pobres, e a amar as per
ſeguiçoens, que continuamente ſe me
maquinavao . Trabalhava ſem delcan.
ço , ou nacozinha , ou em lhes fazer as
camas , ou em lhes curar as chagas , ou
em lhes lavar a roupa , e nas mais cou
fas que fað neceſſarias em hum Hoſpi
tal . Dormia muito pouco , com me .
do deque a minha companheira acor
dafle primeiro que eu ; e em tudo iſto
experimentava hūa paz interior . Era
mui continua na Oraçao , que ordina
nariamente fazia na Morte , e Paixao
do amorofillimo JESUS , e docophe
cimen.
 SOROR JOANNA HERMON DE PENFRAT, 9 de Settembr . 329
cimento'de mim meſma : e ſuppoſto
nao me achava com tempo de ler,nem
tinha livros , ou pefloa, que me enſi-
Daſle que couſa era Oraçao : meu Ef-
poſo ſe dignou ſer o meu Meſtre , ven-
do a grande neceſſidade que eu tinha
deltecóforto para ſopportar as cruzes,
que me tinha preparado. Ob Amado:
2 e que fortes tempeſtades me diſpuze
0 ftes ! Todos me conſideravað , e cha-
mavao pródiga , regalona , que comia
a fazenda dos pobres , ao meſmo tem-
po que elles morriao de fome ; le lac
hia pelas ruas pedindo para o Hoſpi-
tal , todos me tracavao com injurias
do meſmo qualibre ; os meus paren .
tes , prezados de oftendidos da minha
vil occupaçao , erao os primeiros em
me ultrajarem. Começáraõ tambem
a cahir fobre mim as enfermidades,
e ſem o menor ſoccorro humano : en .
tao brilheva mais o poder de Deos ,
dando.me valencia para cao furioſa
tormenta .
6 Quando asminhas ingratidoens,
e infidelidades me apartayao mais do
meu Senhor , entao o experimentava
mais junto a mim , no meio deſtas mi .
Serias , dando - me a Mão para que me
chegaſſe a Elle . Oh bom Deos : quan-
tasaſſiſtencias da voſſa parte , e quan .
tas froxidoens da minha ! Dignou ,
ſe finalmente a Bondade do Divino
Eſpoſo de me deſcobrir o brilhante
das ſuas miſericordias , dando-me luz ,
conforme eu neceſſitava, para conhe
cer as cilladas do inimigo , que nao
ceſſava de maquinar o meu deſtroço.
Huas vezes me opprimia o eſpirito ,
propondo lhe impoſſibilidades neſtas
virtudes . Outras vezes me inſinuava a
natural obrigaçao de tratar da minha
faude, e que meperdia quando adeſ-
barataya. Reſpondia -lhe eu : que cu-
do eſtava nas Maós do Espoſo : e que
ſendo eu fiel em ſeguir as ſuas direc»
çoens , a ſua Providencia acudiria ás
minhas neceſſidades . Ob amantiſſimo
JESVS : e com quanta miſericordia
attendeftes á indigencia deſta voſa
inutil eſcrava , ainda nas couſas mi
Tom . VII,
nimas , e por caminhos inconſidera
veis! Algũas vezes ſe affligia hua mi
nha irmaā , vendo fe falta do mais ne
ceflario. Compadecendo- me della ,
apreſentava-me ao Diviniſſimo Sa
cramento , dizendo- lhe com ſimplici.
dade : Senhor , nós temosnecelidade ;
Vós fois o noso Pay ; dai nos o de que
neceſſitamos : ou ao menos ſe he como
ducente á noſa ſalvaçao o padecer .
mos , dai-nos hüa perfeita ſubmiſao
a's voſas ſubmiſoens. Acabando de
formar eſta fupplica , me achava con
tentillima, como būa filha ja legura
das promeſſas de ſeu Pay ; e ſahindo
da Igreja, me buſcavaõ algúas peſſoas,
que meoffereciao o de que neceſſita
vamos. Objuizos de Deos : e como fois
differentes , e oppoſtos aos da creatu
ra ! O ficarmos ſem pays , e na maior
penuria , quando muito meninas , nos
pareciaõ laſtimoſas tribulaçoē ; e efte
foi o principal motivo do amparo do
Ceo . Via - me a falcada de enfermida
des tao continuas , e violentas , que
nem podia comprehender como era
poſſivelo reſiſtir- lhe : porém meuque
rido Eſpoſo começou a miſturar - lhe
tantas ſuavidades neſtes males , que eu
nao deſejava mais que augmentallosi
!
Reprehendia -me a minha companhei
ra , dizendo-meque eu nao tinha alen
tos para a Oração , e que trabalhava,
fem fructos ; mas eu continuava lem
pre , entendendo que obrava bem . Em
concluſao : eftesimpulſos , com osmo
vimentos do amor de meu Eſpoſo , me
fizerað lançar cal quantidade de ſana
gue pela boca , que ſe compadeciao ,
e admiravao todos os que o virao .
Nao foi iſto mais que hum preludio
do que me havia ſucceder. Paſſeioia
to mezesſem lançar ſangue: e depois,
por eſpaço de ſeis, ou ſette annos foi
tal a quantidade , que com eſte traba «
lho , e com as operaçoens do Divino
Amor, a cada inſtante me eftalaria a
vida ſe
, o Eſpoſo me nao ſuſtentára
para ſer vi& ima ſua neſte mundo , co
mo mereciao meus enormes pecca
dos. Toda a ſorte de mal opprimio
T : efte
330 SOROR JOANNA HERMON DEPENFRAT, deSettembr.
eſte miſeravel corpo. Todos os reme-
dios naõ ſerviáo mais, que de augmē.
tar o perigo , e o ſentimento. E em
todo eſte tempo me nao ſuſtentava
mais que de alguns legumes , e al
guns bocados de pao . Porém o meu
Amado me, dava caes forças , que
com facilidade convaleſcia de cantos
males.
7 O meſmo Senhor diſpôs me vif.
fe combatida : com hum mal de gar :
ganta , deſorte que todos os dias me
lançavao fortiſſimas venroſas. A pri-
meira vez que o fenti , foi hūa vio .
lenta tentaçao contra a pureza , que
durou por duas horas ; e de modo iso
abomiaavel, que cauſaria horror aos
homens mais infames : que ſeria a hűa
Elpola de JESU Chriſto ? No mef-
mo tempo ſenti que hūamao me aper-
favá a garganta , como quem intenta-
va aifogar-me. Aſſiſtia entao, no Höf- , me as forças corporaes ;
pital. Gritei por meu Eſpoſo , pela
Santiſſima Virgem , e por minha 'Se
rafica Máy , Santa Catharina de Se.
na , a quem tive ſempre cordial de-
voçaó . Soccorreo -me ella poderoſa-
mente. Neſta occaſiaõ temi naquelle
combate algũa illufaõ ; mas a continua-
çao do mal me fez conhecer a ver •
dade. Nao he explicavel o que en
tao padeci ; porém tudo me parecia
nada á viſta de ſuavidades, com que
me regalava meu Elpolo , e me aſli-
stia a Serafica Máy . Ella me acaricia-
va com amoroſas viſtas, e me conſo-
Java com palavras chêas de amor , é
inſtruçao para me aproveitar do que
eu padecia, e da vidoria que alcançá-
ra . He verdade que eſte combace
foi cruel , e as dores violentiſſimas:
mas em tal companhia era igual a
luavidade.Quando a afflicçao meaper-
tava , ſentia eu tocar -me hũa mao no
lugar da dər, e aliviar-ſe o ſentimen-
to. Nao podendo tomar nenhum fu-
Atento por cauſa de hum grande mal ,
origem de invencivel faltio , perce
bia luaviſfimas fragrancias, quebaſta .
vao a dar -me forças. Entre eſtas en-
fermidades fem numero , bem mere.
cidas da minha ingratidao , decretou
Deos, conformando-ſe com o meu
deſejo , fazer -me navegar por outro
mar nao menos tempeſtuoſo que o
primeiro . Eu defejei ſempre a Cruz
do meu Eſpoſo , como a mais precio
la prenda do ſeu amor , e lhe pedia
todos os dias que me nao dilataſie a
vida , ſenao para padecer ; porque
mais eſtimo, e lucro , padecendo hú
dia com ſubmiſlao , que em todas as
doçuras, e ſuavidades, que o amor
de Deos póde conceder a húa alma.
Principiei a poſſuir aquellas opera
çoens , ou fulpenfoens, que o Divi
no Amor faz em hum coraçao porma
ravilhoſo modo. Fiquei vinte e nove
horas em hűa abſtracçaõ dos tencidos,
ſentindo-me unida ao meu amor, ſem
deſcontinuaçao Eftes modos de obrar
do Eſpoſo , tiravao -me , e diminuiaõ
mas fortale
ciao-me as do eſpirito, para empren
der as couſas mais difficeis, e ſoppor
tar com alegria toda a ſorte de pena
lidades . Nunca tive occaſiao de pa .
decer , que anticipadamente o Eſpoo
ſo me nao preparaſe o coraçao com
inundaçoeos do ſeu amor. Mas ob
Divino' Amante, e quanto fois zelo
zo ! Depois que vos fiz cabalentrega
de mim meſma, nað me confentiſte a
menor alliança com as creaturas mais
innocentes ; e ſe alguma bora a fez a
minha de fattençao , ſeveramente me
caftigaſtes , auzentando- vos da minha
preſença , e fazendo vos ſurdo aos
meus fufpiros. Oh Amado Eſpoſo , e
quanto me tem rufado eſtas auzen
cias , compradas com as minhasdeſat
tençoens !Meu Reverendo Padre ,de
vo dizer, e confeſſar , ſobpena de in
grata , e deſobediente , que depois
de meu Eſpoſo me pôr no ſeu cami
nho , me parece queme attendeo com
tao continuados deſvélos , como ſe
nao houvera do mundo outro empre
go de ſuas attracçoens. Oh Bondade
fuprema, por bữa creatura tibia , e
ingrata ! A ſuaGraça me levou fem .
pre , como pela maó em todos os ca.
minhos,

SOROR JOANNA HERMON DE PENFRAT ,gde Settembr. 331
minhos, que me fez paffar.
1
8 Ja principiei a referir as ope-
o raçoens, e fufpenfoens do Divino
Amor no meu coraçao . Deos , para
me mortificar , permittio que me
À ſuccedeſſem nas Igrejas , e outros lu-
gares publicos , ecom grandes eftron-
dos . Muitas vezes pedi ao Senhor
que reprimiſle eſtes favores ; porque
nao podia mais . Ilto medeo bem que
foffrer. Huns , e outros julgavao deites
raptos conforme a diverſidade dos
affedos. Eles diziao que era illuſao;
!! aquelles , que erao extaſis : os primei.
ros me liſongeavaõ ; porque euſó de
ſejava ſer deſprezada das creaturas :
porém os outrosmepenalizavao ; por-
que ſuppunhao bem demim . Depois
deftas conhecidas ſuſpenſoens ficava
tao confuſa , que me nað atrevia a le-
vantar os olhos. Queixava-me ao meu
Eſpoſo , propunha-lhe os perigos a
que eſtava exposta : e elle merelpon-
dia interiormente , que era o Senhor ,
e que o deixaſle obrar , que entraffe
em mim meſma, e logo conheceria o
meu nada. Hum dia eſtando na pre-
ſença do Santiſſimo Sacramento , len-
ti hūa attracçao de amor tað forte ,
que me cuſtou muito a ſopportar a ſua
vehemencia. Ao meſmo tempo me
achei com hum deſejo de padecer taó
violento , que pareceo nao le podem
ria nunca fatisfazer . Deſconheci a cau
ſa ; mas logo o experimentei. Man-
dou- me chamar o noſſo Padre Prior :
fui com grande contentamento , ſup-
pofo mo impedia hūa deſcomedida
inchaçao , origem deſta notavel bor-
raſca. Levou -me para a preſença do
Santiſſimo Sacramento , e me diſſe
que dous Religioſos , fallando a al-
gumas das principaes peſſoas, lhe man-
darao dizer - me , como amantes da
Ordem , que nao permittifle toſſe eu
mais ao Convento , ſobpena de eſcan-
dalo : pois de outra ſorte , arriſcava
a opiniao de todos os Padres ; por-
que eu eſtava pejada. Nunca ouvipra-
dica de maior alegria. Dei graças ao
Eſpoſo , por fabricar ao meu deſejo .
Tom . yli.
:
de padecer hum parto de tanto goſto.
Fez publica a cal conſideraçao : e era
eu o emprego de todos os olhos, e
diſcurſos: ló duas couſas me confun
diraó o contentamento . A primeira
foi encontrar na rua hum Sacerdote
meu parente , e dizer-me, que lhe
fizeſſe a honra de nao ſahir de caſa ,
moſtrando que fazia brazao da mi
nha corpeza . A ſegunda foi probibira.
ſe a hūa donzella innocente que me
fallalle. Sentio ella muito a pro
hibiçaõ , e eu o ſeu ſentimento . Cref
cia o ſoccorro ; huns o duvidavao ,
outros o criao , e todos fallavao com
diverſidade. Neſtes contratemposme
mandou o noſlo Confeflor fahir fóra
todos os dias , a pezar das minhas en
fermidades, que eraõ grandes . Eu
lhe obedeci em quanto pude ; e cref
cendo a impoſſibilidade , me fiquei
em caſa entregue aos Braços de meu
Eſpoſo. Ah bom JESU ! bem ſabeis
vós naõ era eu complice neſte crime ;
outros porèm me mereceráõ eſte ca.
ſtigo. Paſlados eſtes ſuſurros , o Di
vino Amante me communicou tanto
amor , e graças , que nao ſei como
eſte pobre coraçao nao eſtallou mil
vezes. Eu lograva viſtasinteriores de
meu Eſpoſo , que me parecia vizivel
de differentes modos . Húas vezes me
conſiderava tendo hum bello menino
no meu coraçao : e eſta delicia medu
rava quinze dias ſem deſcontinuaçao .
Outras vezes via hūa belleza , daqual
nao poſſo exprimir a forma : por ella
nao a tinha ; mas dava -me taes co
nhecimentos das ſuas perfeiçoens, e
com effeitos caó poderoſos para rou .
bar almas , que eu eſtava toda langui
da com attractivos tao doces , e tao
vehementes . Oh que poderoſo he o
Divino Amor , em hum coraçao de
que tomou poſle ! Depois que meen
treguei a Deos, ſempre delejei ſerio
deſprezo de todas as creaturas, enxo
fer conhecida mais que de Deos.Com
eſte penſamento , pertendi occaſioēs
de fugir a tudo da terra , por ir dis
farçada aonde me guiafle a Superior
To ii Pros
332-SOROR JOANNAHERMON DE PÉNFRAT, 9 deșettembr.
Providencia. No meſmo inſtante
me fazia Deos prohibiçoens interio .
res, e me fazia mudar de deſejos.
Buſcava hum lugar onde nao cuidaſ.
ſe mais que no meu Eſpoſo ; e elle
com fiel, e poderoſa illuſtraçao me
fazia conhecer, que em codos os lu-
gares ſe acha Deos ; nao conduzindo
o lugar para eſta felicidade , mas ſim
o ſer obediente ás luas inſpiraçoens,
e ouvir as ſuas vozes .
9 Seria materia impoſſivel , meu
Reverendo Padre , referir os collo-
quios, as viſtas interiores , que tive de
meu Eſpoſo , e com meu Eſporo. Ba-
Ite dizer-vos, que depois de ter cha .
mado ao ſeu amor, poucos dias le paſ.
ſarao em que nao experimentafle las
fuas aſſiſtencias, e bem empenhadas:
he verdade que acompanhada ſempre
de pezadas cruzes , e fortes perſegui-
çoens . Todos os que me teltificarao
amizade , ſe voltáraó contra mim .
Ifto me dava tao pouca pena , que an-
tes conduzia para mim intima uniao
com o meu amante ; e vendo as crea-
turastao inconſtantes, ſó nelle firma.
va as minhas eſperanças. Jamais ouvi
fallar contra mim , que eu lhe nao
achaſſerazao ; e ſempre fiz algum fere
viço a quem , ou me ultrajava , ou me
perſeguia. Algumas vezes reſpondi
com aſpereza ; effeito infernalda mi-
nha má condiçao : mas logo me pro •
ſtrava em terra , e mandando a hűa
ſerva que me pizaſſe. Penetrando o
meu nada , e reconhecendo os alciſti.
mos favores, que me concede a Di-
vina Bondade , nao paſſa inſtante , em
que lhe nað ſacrifique agradecimen .
tos. Ordenou me o Senhor de cuidar
de hõa minha parenta opprimida de
hum Cancro , e no mais miſeravel efta
do . Aos principios a natureza ſe vio-
Jentava , olhando para a horrivel cha-
ga . O Demonio ſe pộs da ſua parte ;
porém , a pezar de todas eſtas repug-
nancias , venci o inſopportavel fedor ,
e tratei da enferma até que ella mor-
seo. Experimentei grandes impulſos
de remediar as neceſſidades dos pro .
ximos ; o fica riső em deſejos , ſe meu
Eſpoſo me naõ acudira , augmentan .
do deſta forte os meus pobres cabe
daes , que baſtavaõ para extraordina
rios ſoccorros. Oh bom Deos : que
confuſoeps padeci , vendo - me veiti
da , e agazalhada , conſiderando a
vida de meu Eſpoſo , pobre , e ſem
reparo ! Hum dia do Eſpirito Santo ,
me buſcou hūa parenta , dizendo - me
que nao hia á MiſTa por pao ter çapa
tos. Eu , que nao tinha outros , e me
nao reſolvia a ficar todo o dia ſem ir
a Igreja , me eximide lhe acudir. En
trando logoem mim , me achei extre
moſamente confufa ;
deſcalcei -me,
entreguei os çapatos á parenta , e fui,
como pude , á Miſſa . Nao he dizivel ,
meu Reverendo Padre, a effuſao de
amor , com que meu Eſpoſo correſ .
pondeu a eſte pequeno Serviço : os
colloquios interiores, e as demonſtra
Çoens de ſeu agrado ; das quaes me
nao lembro , ſem a maior confuſao ,
e conhecimento de que nao ha cou
fa pequenana acceitaçao deDeos.Com
eſta experiencia , me refolvi a naõ fa
zer a menor reſerva para mim. Deos
me he teſtimunba , que nada mais de
fejo que morrer pobre de corpo , e
eſpirito. 2
IO Reſta dizer o eſtado , em
que me acho, ha cinco , ou ſeis an
nos , bem indigno de hūa Eſpoſa de
JESU Chriſto . Depois de ter paſſado
cao largo tempo fem reſentir as miſe .
rias da natureza , no que reſpeita ao
comer , e beber, me vejo agora na
mais penoſa eſcravidað. Hum acha
que me pôs em tal debilidade , que
me obriga a cuidar muito no ſuſtento
deſta belta de carga , lobpena de ha
ver cahido com ella . Ao principio
imaginei era eſtratagema, ou vingan
ça das abſtinencias paſladas ; porém
ficava incapaz da menor acçað , e em
continuos delmayos. Fiz entao con
trato com o corpo , dizendo - lhe : Tu
teras quecomer; mas ſerácom a grof
ſeria , que merece a tua vileza. Oh
querido Espoſo: e quanto cuſta etta
eſcra .
 SOROR JOANNA HERMON DE PENFRAT 9 de Settembre 333
eſcravidao a hūa alma , que deſeja fer
toda voila ! Quantas lagrimas me le-
varao os meſmos bocados, querece-
bia ! Ja agora le acha o meu coraçao
perfeitamente lometido a quáto meu
Senhor quer de mim : todas as ſuas
1
diſpoſiçoensme deliciao : nao permit-
3
ta Elle que as minhas infidelidades
occaſionem os ſeusdelamparos ; e no
demais prometto alegrar -me com os
meimos deſamparos. Digo com atre
vimento , mas com verdade, que em
ambas as veredas da Cruz, e do amor
teria perdido mil vidas ſe menaoſoc-
correllem as affifteocias Omnipoten-
tes . Eu nao ſei o para que Elle me
guarda ; ſei que ſempre temo , e me
conſidero com grandes razoens para
temer . Em tres occaſioens de retiro ,
experimentei tres diverſas execuçoēs
demeu Eſpoſo , as quaesdepo nao cal
lar . Na primeira fenti hum violento
delejo de padecer , e por toda a mi .
nha vida . Inſpirou -me o meu Eſpoſo
hum modo de vida crucificada : e pa-
. sa demonſtraçao do que me queria
neſte eſtado , lenti imprimir -le no meu
coraçao hũa Cruz, que me cauſou
extremoſa dor. Cohi em terra , nao
podendo ſopportalla : e á medida que
ſe fazia eſta impreſai, experimenta.
va eu que o meu coraçao ſe diſpu-
nha para recebertodas as cruzes com
rendimentos . A magoa da referida
impreſſao me durou largo tempo , e
le renovava em todas as ſemanas San-
tas por eſpaço de oito , ou nove an-
nos. Nos ſeis, ou ſette primeiros, pas-
ſava eu a ſemana Santa ſem comer : e
eſtando reduzida ao extremo , ſeme
miniſtrou a fanta Unçaõ ; mas na ſe-
ſta feira , ás tres horas , ceffáraó os
meus males , e pude deixar a cama .
O eſtado , onde eu meachava ha hum
anno , he bem differente do em que
me vejo agora ; porque o caminho,em
que eſtou , he todo amor , e ſuavi-
dade.
I O anno paſſado experimentei
hum retiro de meu Eſpoſo , que me
tez conhecer quanto inutil he a crea :
tura ſem o ſoccorro deſte grande Se
nhor . Meu Deos : onde eſiiveſte por
elpaço de tres mezes ? Eu me acha
va proſtrada (na cama, e opprimida
de agudiflimas dores de goita ; mas
tudo era nada á viſta da conſideraçao,
que vós me tinheis deixado , e entre
gue ás maós de meus inimigos. Per
mittitte que me combateſſem infer .
naes penſamentos de dezeſperaçao ,
e que acabafle com a minha triſte via
da , precipitando -me de hūa eminen
cia . Ab bom JESUS : e que forte
foi eſta tentaçao ! Vós me defende
Ite para que a nað executaſſe. Em to
do eſte tempo , nem cuidava no meu
Eſpoſo , mais que com o penſamento
de nao cuidar belle. E ſe me vinha
alguma idéa das ſuas miſericordias ,
era tao veloz, e inſtantanea , que mal
a percebia . Nao obitante iſto , tive a
felicidade de receber todos os dias
aquelle ſuſtento , que era o meu uni
co esforço; e depois de o receber ,a
pezar detodasas diligencias, me op
primia hum invencivel ſomno por eſ
paço de hūa hora . Bom Deos: quan
to soffria naquelle tempo ! permittin
do meu Eſpoſo , que em nenhū a pef
ſoa achaſſe hūapalavra de confolacao.
Finalizou -ſe eſte primeiro reciro , fa
zendo -me conhecer o Divino Aman
te , que a terra do meu coraça o ne.
ceſſitava de bum celeſtial Jardi neiro,
para arrancar as hervas 'inuteis, que
impedia ) o creſcerem as boas hervas.
Todos os diás me guiava por campos
ſemeados de Cruz, que era o ſeu
agrado , e deviaõ ſer o meu lucro .En .
ſinou -me que eſte jardim, depois de
cultivado , neceſſitava de grandesmu
ros , para que nao entraſſem os la
droeps: que eſtes muros eraõ a hu
mildade , e caridade ; dos quaes eu
tinha bellas occaſioens no meu mini
fterio do Hoſpital. Hecerto que eſtes
documentos de meu Eſpoſo , mealen
tárað muito para me entregar toda a
Elle .
12 No ſegundo retiro , me con
duzio a hum gabinete, aonde me.que
ria
1
334 SOROR JOANNA HERMON DE PENERAT,9 de Settembr. "
ria communicar os ſeus 'ſegredos, e
entranhar- me no conhecimento.ofeu
amor crucificado. Grande utilidade
tirei deſta communicaçao ! Deſde en-
tað experimentei os mais fortesdefe
jos de ſeguir a meu Eſpoſo por todos
os caminhos , que a ſua Providencia
me deſtinaſle, para me fazer partici •
pante das mais terriveis cruzes. Em
fim , no terceiro retiro , que ſuppo-
nho foi o ultimo da minha vida , me
levou ao ſeu amoroſo coraçao , para
me manifeſtar mais claramente , co-
mo em hum belliſſimo eſpelho , tudo
o que paſſa em mim . Ser via -me o mel.
mo coraçao de fortaleza para me abri-
gar , e defender dos meus inimigos.
Advertio me logo , que ſuppoſto io
ſeu coraçaõ era impenetravel refugio,
a creatura era, fraca , e ſe aparta mui-
tas vezes deſta ſegurança : pelo que
era neceſſario trabalhar , e temer ,
conſiderando tem muitos contrarios ,
que ſó attendem aos ſeus deſtroços .
Eſte coraçao de meu Eſpoſo memo .
ftra as ſuas riquezas , e nao ſe conten-
ta de que as veja , mas manda - me que
as participe. Paſſando a mais , entina
como hei de aproveitar - me deſtes
theſouros para ſoccorrer-me nas maio.
res penurias. Oh admiravel Senhor : 0
que grandes graças diſpendeis com a
mais ingrata creatura ! Hữa deſuza-
da effuzao do ſeu amor fez ao Supre-
mo Amante que ſe dirigiſſe ao meu
coraçao , fazendo-me conhecer as ſuas
perfeiçoens, e penetrar o ſeu incom-
paravel Poder . Delte beneficioi nao
poffo lembrar - me ſem aflombro , e
profundo conhecimento dolmeu na-
da . Eu lhe diſſe entao : Amado Ef.
pofo: reſervai -me eſtes conhecimen-
tos para quando com plena felicidade
vos vir ua Bemaventurança : neſte
mundo ſó quero conhecer- vos com hu-
milde fé . Nomeſmo inſtanteouvihūa
voz interior , que me declarou ſer
hup modo de adquirir eſta ſciencia
infuſa , ( que ſerve de confundir co-
da a ſabedoria adquirida ) hūa pro-
funda humildade : -que me pegaffebē
a ella , e que alcançaria perfeito co
nhecimento do ſer Divino .
13 Em outra carta ao meſmo Di
rector, dizia affim : O effeito do amor
de meu Eſpoſo he.mais que prodi
gio nas ſuas effuſoens: ſó le explica
dizendo que joga com as fuas Eſpo
fas. Elle me falla interiormente com
tanta ſuavidade , que eu fico como
fóra de mim , e como abyſmada do
meu nada. Algumas vezes me diz :
Minha filha : Eu porei no teu cora
çao o throno do meu Amor . Eu tete
nho provado nas penalidades, e co
nhecido a tua perſeverança ; ? por
eſta generofa fidelidade té enriqueci
com minhas doçuras. Com eſtas pala
vras do meu Eipoſo fiquei novamente
penetrada do ſeu amor ; e ſubmergin
do -me em mim melma, e no meu na
da, lhe diſſe: Meu querido Eſpolo ,
fazei de mim quanto quizeres ; aqui
tendes a minha alma , como terra pre
parada para qualquer ſementeira.
Eu vos offereço quanto em mim depo
fitais, a fim de vos pagar com o mef
mo que recebo . Elle me concede hum
esforço de amor tað vehemente , e
me falla ao coraçao tao Divinamente ,
que eu nao poſſo explicar tao amoro
fas expreſſoens. Algumas vezes me
faz experimentar cheiros tao ſuaves,
que me arrebata o todos os ſentidos.
Em outras occaſioens ſe me propõem
aos olhos corporaes com belleza tao
attractiva , que a nao poſlo compre
hender ; e como nao tinha forma,
fez que exclamaſſe a minha turbaçao :
que couſa taõ bella ; mas taő fufpen
ſiva ! No meſmo inſtante ouvi eſtas
palavras : Minha filba , nao compre
hendes? Os teus olhos, e o teu lenten
dimento faõ muito fracos na vida pre
ſente : he neceſſario deixaresagroffe .
ria da humanidade para conhecereso
que ves. Meu Reverendo Padre, que .
rer exprimir os termos , de que meu
Eſpoſo ſe ſerve para attrahir o mell
rebelde coraçao , feria impoſſivel. El
le meſmo me enſina o como hei de
poſluillo , e conſervalla , dizendo - me :
Mi.
 SOROR JOANNA HERMON DE PENFRAT, 9 de Settembr. 335
.
Minha filha , a humildade te enſina .
rá a levar a Cruz , a Cruz a amar ;
e o amor ſerá o Senhor do teu coraçao,
1 e collocará nelle o ſeu throno. Eu nao
conſidero que algum dos males , que
2 padeço , ſeja natural: pois que todos
elles procedem do amar. Eu me acho
1 algumas vezes em enfermidades de
amor tao grande , e com deſejos de
padecer taö violentos , que de boa
1 vontade faria deixaçao de todasas do
çuras do Eſpoſo , por me facrificar a
hūa pura cruz . Em outras cartas
repete ſemelhantes , e maiores excef-
fos do Amante Divino , e as poſſiveis
correſpondencias do ſeu puriſſimo,
e abrazado amor ; no qual perſeve
rou até hûa morte correspondente
a tao ſania vida , e deixou eſte mun :
doentre grandes veneraçoens , e ſua
vidades.
As cartas ſeguintes da Venera .
vel Soror Joanna foraó eſcritas do an-
Do de 1674. em diante .
14 Meu bom Padre : Sinto hũa
grande emoçaõ interior para inteirar
a V.Paternidade da cauſa porquetan-
tas vezes me tem perguntado da mi-
nha queixa da relaxação de eſtomago.
Creio eu que o deſejo que tive deſde
muito pequenina , em que lì a vida da
noſla Santa Catharina,de a imitar nefta
parte , veio elle affim a ler bem acei-
io , e deſpachado de Deos noſſo Se
nhor . Mas aqui me confundo eu mui-
10 , reconhecendo quanto faõ frageis,
e imperfeitos os propoſitos da creatu-
ra ; porque a penas tenho ſoffrido eſte
mal ſette , ou oito mezes , quando
me vejo deftituida daquella paciencia ,
com que era neceſſario que eu ſuſten-
talle o pedido , e prometido. Ain-
da não diffe tudo , até cheguei a con-
i fultar hum Religioſo douto , perten-
dendo faber delle fe me podia ſer li-
cito , aſſim como pedi a pena , im
plorar tambem a ſuſpenſao. Viole ,
ou póde ver - ſe maior infidelidade de
eſpoſa ! Permittio -ſe -me em fim , que
eu fizeſſe à petiçaõ a meu Eſpolo ;
mas efte , como em jufto caltigo da
minha grofleira , e inconſtancia, foi
ſervido reſolver que continaſſe em
padecer até o fim : eo meſmo Senhor,
olhando mais para a ſua Bondade , que
para o meu demérito , ſerem dignado
de abrir.me os olhos para ver a falta
da minha grande cobardia , e arre
pender.me della , dando - me alentos
para ſopportar a minha queixa com
mais varonilidade, conhecendo cla .
ramente quanto , e quam grande he
o bem, que me redunda de hum tað
leve detrimento , que ja ſe nao póde
chamar tal , attentos os ſeus bons ef
feitos ; porque V. Paternidade ſabe
muito melhor do que eu quanto eſtá
impedido , e indiſpoſto , para ter Ora
çað, hun eſtomago onerado, e oppri
mido de iguarias , cujos vapores até
fao tao prejudiciaes á ſaude : Por iſſo
nao pode fundar -ſe melhor aquella
maxima dos myfticos, que afledtao,
que com outra nenhũa couia ſe forti.
fica, e reſtabelece o eſpirito , q com os
jejuns, emortificaçoens. Queixo.me
algumas vezes com brandura a meu
Divino Eſpoſo , por me ſer neceſſa
rio empregar no tratamento de hum
tao máo ſervo o tempo que gattára
com melhor vontade no ſerviço , e
contemplaçao de Sua Divina Magefta
de; que , como eu entendo , allim o
permitte para melhor me firmar do
conhecimento do nada, que eu ſou .
Peço muito a V. Paternidadeque me
ajude a louvar a Divina Bondade , pe ,
los dons , com que ſe digna de enri
quecer , e condecorar hũa creatura
tao miſeravel , como eu ſou , pois ne.
nenhuma das queixas ,que padeço, por
cede de outra cauſa , que nao ſeja o
amor. Efte me inſpira muitas vezes
huns deſejos tao generoſas, e a ati
vos de padecer , que puzera eu de
parte , de muito boa vontade, todos
os mimos que recebo indignamente
do meu Amado, por eſtreitar-me, e
abraçar -me unicamēte.com a ſuaCruz;
e me conto por mais que feliz em fer
hūa daquellas Elpoias, que( ainda que
em tao pouco ) participo tambem das
vio
336 SOROR JOANNA HERMON DE PENFRAT, 9de Settembr.
violencias da meſma'Cruz. Peça -lhe
V. Paternidade aſſim como eu tam-
bem lhe peço , que a minha , que be
tao limitada, chegue a ſer tað gran-
de , naõ ſó como eu delejo , ſenaõ co-
mo a mereço. Alegro -me grandemē.
te de ver o bem que V. Paternidade
me falla do Amor Divino ; elle nos
abraze , e nos infláme cada vez mais
nos ſuaviſſimos incendios da ſua dilec-
çao ; e ainda aſſim oada faremos em
amar a quem tanto primeiramente
nos a mou .
15 Em outra carta , lhe diz afa
fim : Viva JESUS unicamente nos
noflos coraçoens. Reverendo Padre :
Quando o Eſpoſo ſe auzenta para pro .
var a fidelidade da Eſpoſa , he laſti.
ma o vella : entað he que ella reco .
nhece que Deos he o ſeu tudo ; que
o mais , que nao he Deos , he nada; e
o quanto depende do ſeu principio , e ' e maos , ſenaõ que até chega a diffun
do ſeu centro. Tudo iſto experimen-
to de proximo ; porque nao ſomente
houve o contratempo de fe deſenca :
minharem as minhas cartas , que hiað
para V. Paternidade faltando -me al.
ſim meſmo a reſpoſta , que com mui:
to alvoroço me promettia V. Pater-
pidade a hūa dellas , que lhe remerci
pela Cidade de Rennes, e em que lhe
dava conta muito por miudo do eſta-
do do meu eſpirito , ſenao que pare :
ce que tomou o inimigo por inſtru
mento dos ſeus odios , para mortifi .
car - me , e affligir -me, a minha irmaã ,
que entrou no Moſteiro das Urſulas,
porque niſto fe tem paſlado tantas
couſas , que fora nimia prolixidade
querer noticiallas a V. Paternidade;
batte dizer- lhe que me tenho viſto
em tanto aperto , que até me chegou
penſamento de a fazer fahir para fóra
da Clauſura.Duron hummez eſta cruel
batalha : graças ao meu Eſpolo , que
ja tudo eſtá quiero , ha quatro , ou
cinco dias ; e graças immenfas, pore
que na maior força do conflicto me
penetrava com alguns tiros taö ſua-
ves do ſeu amor , que algumas vezes
ficara, tao traniportada , e abſorta ,
que nao fabia de mim . Iſto meu Pa
åre , verdadeiramente be paſmar : ſer
eu a eſpoſa mais infiel, e mais ingra
ta , e achar -me aſſim mimoſa, e fa
vorecida . Deos ſenhorea - le mais do
meu coraçao com os dous attributos
da Juſtiça , e ! Miſericordia ; e poito
que confeſſo nelle tudo igual , acho
que o meſmo Senhor para mim he
mais Miſericordioſo , que Juſto infi
nitamente . Quantos milhoens de in :
fernos lhe nao terei merecido , por
tantas , e tað enormes culpas ; e ſem
embargo he tað bom , taõ compade
cido , e taö generoſo , que naõió me
nao tem caftigado , nem ſó nao me
caftiga, como lhe mereço , pelo que
defmereço , ſenao que até me dá ef
peranças da ſua gloria. Bendito ſeja
hum Senhor, que nao ſomente repare
te o ſeu Sol , e a ſua chuva ſobre bons,
dir a abundancia dos ſeus favores nos
meſmos coraçoens mais inficionados
de culpas . Antesde concluit naó que
ro occulcar a V. Paternidadehūapro .
va moderna deftestao precioſos bene
ficios. Chegando eu á Sagrada Meſa
Eucariſtica no dia proximamente ſe
1
guinta á Feſta da Transfiguraçao do
Senhor , ſe me repreſentou,nomeſmo
ponto que recebi, ao modo de hūr
grandiſſima, e refulgente claridade ,
o que me fez parecer que alli ficava
certamente abrazada , e conſumida .
Entao percebi que o meu Adorado
me fallava interiormente ao coraçao .
Deſta ſubſtancia : Eu, em quanto Deos,
sou bum fer puriſimo, e ſimpliciſſimo,
e puriflimo he que quero tambem o tex
coraçao. Perſuado.me que, aos refle
xos deſta grande luz , pude perceber
melhor , ainda que eu o nao ſaiba ex
plicar, todas aquellas imperfeiçoens ,
que podiao ſervir de impedimento , e
embaraço aos progreſſos deſta cor
reſpondencia , que meu dulciffimo
Eſpoſo de mim pertende. Nao tenho
falcado atégora em orar por V.Pater
nidade , como V.Paternidade me tem
mandado ; ę bem poderá ſer que Sua
Divina
 SOROR JOANNA HERMON DE PENFRAT, 9 de Settembr.
Divina Mageſtade fe digne de naõdeſ
attender a timplicidade do meu cora
çao .
16 Em outra carta dizia aflim :
LO
JESUS ( eja unicamente o noſo tudo .
3
Padre meu : A ultima violencia , que
me fez o amor foi com tanto exceilo ,
que me fez muito mais fenfivel a ſua
retirada , ou encobrimento , que , 'co
mo ja repreſentei a V.P. , foi quando
me confiderei como abandonada en .
tre as maos de meu inimigo : mas tu
do iſto me parecen eſtratagemas do
DivinoNamorado ; porqueagora tor-
no a fentir que vem caminhando para
mim com pallos de gigante : fez -me
Elle conhecer com tanta diſtinçao osla ; mas nao como hum Menino , fenao
favores , e mimos , que faz a ſuas verda
deiras Espoſas, que de confundo na
conſideraçao da minba inſenſibilida .
de ; porque ainda que eu muito mein
flamme nas a waveis levaredas da ſua
dilecçao , queria eu que foſſem maio-
res da minha parte as mortificaçoes ,
e penalidades , ſuppoſto que hao de
ficar immenſamente ſubalternasa tan- . Que coraçao haverá tanto de pedra ,
tas graças, e beneficios. Muitas vezes
me falla o meſmo Eſpoſo ao coraçao ,
dizendo-me que quer que a minha vi-
da acabe á força do imperio do ſeu
Amor , e da ſua Cruz : promette - me
introduzir - ſe no meu coraçaõ de hum
modo extraordinario , e inaudito , e
ir- me entao enſinando , pouco , e pou .
co , a preparaçaõ com que eu devodiſ .
pôr-me para recebello ; mas que he
neceſſario para iſto eſtar de animo pa-
ra padecer muito mais . Eſta esperan-
ça he a que me vai alentandoatéche.
gar hūa occaſiao tao deſmerecida da
minha indignidade , como deſejada
do meu affecto , e nað o feria tanto felicidade. Acautela -te daqui em dian.
me fallafle ſomente no amor , e no te em nao fazer couſa algũa por tell
em haver eu de penar , porque teria
eu muito que temer , e recear della
voz , fe ella naö vieſſe aſſinalada com
a cruz . Achei - me em grande foce-
go na quinta feira fanta , chegando a
fentir interiormente a ſua Auguſtiſſi-
ma Preſença em hum gráo taö fum .
mo,
que me pareceo ſer o maior que
Tom . VII.
337
podia imaginar -ſe , e iſto me inflam
mou tanto em amar o meſmo Immun .
fo Bem , que por todo aquelle dia nao
me lembrásao mais que actos de amor ;
Ah Padre meu , e que grande contu
faô nað virá a ſer a minha algum dia ,
por abuſar de tantos , e tao amoratos
extremos !
17 Emoutra , com data de 21. de
Dezembro de 1675. , diz a Veneravel
Sorer Joanna dette modo: O amor
Menino , que está naſcendo , fcja o
noilo todo , e unico Bem . Meu Reve
sendo Padre , o Divino lofante , qvem
naicendo me tem repleta , e inflamma
da do ſeu amor : aſſim Menino me fal
como Amabiliffimo Eſpoſo : As luas
palavras iaõ como frechas que me paſ
faā , e traſpaſao o coraçao. Quinto
me eplea , e arrebata ouvir -lhe dizer
que elle ſe apreſſa para palcer paflivel,
para melhor confirmar as almas luas
eſpoſas no caminho da Cruz , por on
de Elle quer que ellas o buſquem !
que ainda pudeſſe obftinar -te a eſtas
palavras que lhe ouvi : Conſidera bem
efpofa minha , conſidera qual foi o a
mor com que te amei , que me inſtigoit
a que naſcelle Menino , fazendo.me
alim mais acceſivel aos teus affeclos,
que eſperas logo? Chega ja a adorar
me no Preſepio, e aqui em correſpon
dencia de hum tao grande , e taõ ex
ceſſivo amor , qual ves que he o meu ,
faze hũa inteira renunciada tua pro .
pria vontade , para for ſacrificada a
meu Eterno Pai , juntamente com a
minha , que eu ja lhe offerece em fa
crificio por amor de ti , e da tua fea
arbitrio , ſenaõreſignada nomeu Que
rer ; porque Eu nao me contento com
menos , que com todo o teu coraçao , e
quero que nao tenhas outra vontade ,
ſenaõ a minha. Que paimo , que en
leio , que labyrinto eſte , meu Padre !
E he por ventura neceſſario que o
Creador , que podelenhorear , eman
Uu dar
338 RECOPIL A C,
dar a creatura muito a leu beneplaci
to , le ponha a pedir - lhe aquillo meſ.
mo, ý póde pertender com o major , e
mais justo imperio ; e heide eu ter tað
froxa, e tað ingrata , que ſeja neceí .
fario ouvir eſtas petiçoes de meu Se .
nhor ? Misſimouço , porque fou hūa
eſcrava raõ indigna , e tao insel . Pois
ainda com ſer o que fou , ( q !1e vergo .
nha ! ) fiato algúas vezes ao modo de
hűa mao de hum menino , que meto-
ca , e recolhendo -me entao no inte .
rior , finto hum menino muito bello ,
e esgraçado , que com hüa ſó vitta de
olhos me rouba todos os affectos : ito
mezitá ſuccedendo agora ao fazerde-
ftas poucas regras , o que bem me faz
conhecer , que eites effeitos nao tem
menos Autor que o meſmo D2os . A.
gora conſidere V. P. qual ſerá a mi.
nha confuſao , vendo da parte de meu
Elpufo tanto amor , e fineza, e da mi-
nha tanta ingratid1o , e groſſeria. He
neceíTario por aqui termo ao goſto ,
com que estou dando conta a V.P.
do muito que devo ao meu Divino
Amado , por Elle querer que eu me
prive de tudo aquillo , que o mundo
pode ter de mais agradavel para mim :
e ainda que isto pareça penoſo algum
tanto ; que mais he neceſſario do que
haver dito que o meſmo Senhor aſſim
o quer ?
18 Ultimamente em outra carta
eſcrita no anno de 1676. dizia aſſim a
Serva de Deos : O ardentiſſimo Amor
de Deos ſeja todo o noſſo bem . Aquel-
las intenſas chammas , que tanto me
abrazavao , tem continuado com
tanta efficacia deſde a veſpera de Ns-
cal , que nao ſei , Padre meu , como
ja póảe aturar eſte meu pobre cora-
çaõ . Nem elle verdadeiramente po .
deria reſiſtir a hūs impetos tao fortes,
e igualmente ſuaves , que violentos ,
ſe quem lhos faz experimentar deixal
ſe de o fortalecer , o que he tanto af
fim , quanto eu ſinto melhor a tua
uniao , e o ſeu dominin , do que me
finto a mim meſma. Tenho ſupplica-
do a meu Eſpoſo , que ſe digne de ſup-
A M de 9 de Settembro.
primir eſta torrente de graças ; e faa
vores de envergonhada de ver captos
exceſſos da ſua parte , e tantos deme
ritos da minha . Tem - me admirado
como nao le auzenta de mim o meu
Amado , á viſta de canta má correſ
pondencia : por outra parte me fer
ve de algum alivio , conſiderar que
Elle he meu Creador , e eu ſua crea
cura , e que nifto me quer dar hūa al
tiſlina idéa da ſua Miſericordia
Benignidade . Ouço a ſua voz , que
me diz : que quer purificar de novo
o meu coraçao para algúasoperaçoes,
que eu nao poſſo bem perceber ; e diz
mais :que quer conduzir -me a ſua von
tade por hum caminho , que Elle co
nhece , e mais lhe agrada . Da - me eſte
Senhor hum tal conhecimento do que
Elle ne , do muito que pode , e do na .
da ; que depende do nada da creatu
ra , que fico abiorta de como hum ſer
tao alto , e Omnipotente ſe nao dedi
3
gna de fazer tancas honras a hum bi.
cbinho da terra ; mas de que modole 1
poderia perceber melhor å fua Gran
deza , e Bondade ?
19 Atéqui a Serva de Deos , de
cujos fuccellos nos roubou a maior
parte a ſua humildade ; e nao menos
a negligencia , que houve de fazer a
juſta, e devida memoria das duas ac
coens : fatal deſcuido de que ſe quei
xa hum dos nollos Annaliſtas France
zes , aquem devemos eſta noticia . Mas
aſſim foi grata aos olhos de Deos , e
do inundo a ſua morte , que deſcreveo
melhor , que a mais pompoſa eloquen:
cia , quanto foſſe juſtificada, e ſanta a
ſua vida .
RECOPIL A C , A M
de 9 . de Settembre,
I M Hungria ; memoria de
huon Veneravel Padre , de
que nos ficarao os exemplos da virtu
de ſem a circunſtancia do nome . Te
ve a grande fortuna de fer reſuſcita :
do , ao tempo , em que era menino ,
me
 IS A BEL , 10
mediante a interceflaó de noſſo San-
tiffimo Patriarca . Em reconhecimen-
to de tanto beneficio , chegado a ida
de competente , veſtio o ſeu ſanto ha-
bito , e profeſou a Regra do ſeu Ia-
ftituto , de que foi fi - 1, e ſeveriſſima
mente obſervante. Deſde que entrou
2 para dentro dos Clauſtros do Conven .
to , até o ultimo artigo da ſua morte,
obſervou conſtantemente o genero
de vida que abraçára . Fazia hum ad
miravel deſprezo do mundo , nað af
) pirando mais que ao eterno , e cele
itial . Sendo eſtudante em Pariz , e con
verſando com hum de ſeus condifci.
pulos , que padecia vehementiſſimas
tentaçoens de deixar o habito ,lhere.
-- ferio a graça , que ſendo menino rece
bêra por intervençaõ de Noſſo Padre
S. Domingos , dizendo , que ao tempo
em que a ſua alma fora apreſentada
no Tribunal Divino , vira a noſlo Pa.
dre junto do Throno Divino com hũa
mageftoſa, e admiravel formoſura , e
todos ſeus filhos elevados por hūa gra
ça eſpecial ſobre todas as outras Re.
ligioens ; o que metrêo tanto animo .
aquelle Novico , que nunca mais tor-
nou a experimentar ſemelhante vexa-
çao . Hum , e outro acabárao ſanta
mente os ſeus dias , como primicias
della , no Oriente do primeiro ſecu .
lo da Ordem . Anno de 1240. Theo .
doricus liv.8.cap.13 .
Em Ploc , na Polonia , o Illuſtriſ.
fimo , e Veperavel Bilpo daquella Ci .
dade D.Fr. Bernardo de Novion . Era
da eſclarecida familia dos Novions ,
que entroncava com a dos Odrovains
de S. Jacinto ; mas a ſua maior nobre.
za conſiſtia em húa vida inculpavel ,
e verdadeiramente Religioſa. Sendo
Penitenciario de Ionocencio VI . , o
creou eſte Pontifice Paſtor daquel.
la Dieceſe , fuffraganea da Igreja
Gneſnenſe , cao affeiçoada á Ordem
de S. Domingos , que todos os ſeus
Paftores faó filhos deſte Santo Patriar-
ca. O Veneravel Padre Fr. Berpardo
governou a ſua Igreja com todas as
qualidades, que ſe requerem em hum
Tom . VII .
de Settembro . 339
verdadeiro Paſtor , ſuſtentando , cons
ſtante , e acerrimamente, os direitos ,
e regalias da ſua Cathedral, e conſer
vando -ſe em juſto equilibrio nas dif
ſenſoens que houve entre o Rey de
Polonia , e o Duque de Maſlovia . Fi .
nalmente havendo vivido com hũa
exemplariſſima candura , e pureza de.
costumes , paſſou a lograr -ſe da viſta
de Deos para lempreno anno de 1364 .
Tbeatr . Domin . 68 alii.
1o. de Settembro.
Memoria de buma Illuftre
Chriſtaa ,
Chamada I S ABEL ,
Confeffada do Veneravel Padre
Fr. Joao Bautiſta de Mo
rales ,
Extrabida da Hiſtoria das Filippig
nas.2.part.pag.271 .
I
E tural de Moyan da Provin
cia de Fokien , na China . Teve por ma.
sido hum Letrado tambem China,
que havendo abraçado o Chriftianiſ
mo , tornou miſeravelmente , comoo
cao ao vomito , aos erros da idolatria .
Nao aſſim ſua bõa mulher , que , por
muito que elle a perſuadio a ſeguir
o ſeu máo exemplo , jamais pode aca
bar com ella būa condeſcendencia tao
abominavel . Irritado ſeu marido de
Dam a poder vencer , accuſou -a peran
te o Mandarin de Fogan : ella com
pareceo com mais tresChriſtaás dian
te daquelle Miniſtro , aonde fora con .
duzida pelos ſeus Satelites. Como po
rêm ſeu marido deſiſtifie daquella ac
culaçao , nao teve lugar a bõa Iſabel
de poder dar maiores provas da ſua
conitancia . Tornando a ſua caſa , nao
ceſſava o Apoftata de ſeu marido de a
combater ja com bom modo , ja com
ameaços ; nada porêm foi baſtante a
render a ſua conſtancia . Sua Divina
Mageftade porêm quiz dar hum novo
exemplo neſta ſua Serva do pouco , ou
Uuii na .
340 RECOPILAC,
nada, que podemos confiar de nós , ſe
Deos nao nos tem da ſua mao . Como
de dia , e de noile nao ceſſava aquel- .
le monſtro do inferno de perſeguir
eſta Cordeira de Chriſto , fazendo - lhe
importunas , e ſucceſſivas inſtancias
para adorar o idolo domeſtico , que
elle: tinha em caſa , affentio a pobre
mulher a eſta infernal tentaçao ; mas
nao mais que apparentemente , con
fervando ſempre no ſeu interior a fi .
delidade , que devia a leu , e noflo
Deos , e Senhor .
2. Reflectindo depois no que fize
ra , ficou a pobre amargoſiſſimamente
inconſolavel. Nao podia comer , dor
mir , ou deſcanſar ; e jamais ſe lhe en
xugavao as lagrimas dos olhos . Toda
a ſua ancia era ver como ſe havia de
congraçar, e reconciliar com ſeu Se
nhor , é a ſua Igreja, aindaque lhe cu.
ſtaſſe oſangue , e a vida . O Pay das mi.
ſericordias compadecido da defconfo-
laçaõ daquella triſte deo - lhe meio de
paſſar á Moyan , ſua patria , aonde en-
fao ſe achava o noſſo VeneravelPadre
Fr. Joao Bautiſta de Morales. Ouvio -a
elle de Confiflao , e abominando- lhe
hum tao grande peccado , a deſpedio
mui conſolada, reſervando dar -lheo
Santiſſimo Corpo de Chriſto Sacra .
mentado dalli a alguns mezes Nao ha
palavras com que ſe expliquem asim .
pecuoſas furias, em que entrou ſeu im-
pio marido , quando ſoube que ella ſe
convertêra novamente a Deos. Eſpan-
cava- a , fechava - a , e nao lhe dava de
comer , ou beber , tentando de novo
a ſua prevaricacaā , perſuadindo-a á
adoraçao do seu idolo caſeiro ; mas
ella eſtava tao conſtante em fe confere
var fiel aquem jó he digno de'todo
o Culo , e adoraçao , que nada era
baſtante a fazer impreſao Daquelle
animo , mais que diamantino . Mais
prompta ſe moſtrava a dar mil vidas, do
que a violar hũa tao devida fidelidade.
3 Vendo ſeu indigno marido
quanto eraõ infructuoſas as ſuas in.
ftancias, e baterias , canſadoja de per-
ſeguir aquella bõa Serva de Deos , a
A M.de ro de Settembro .
deixou dalli por diante em toda a ſua
liberdade . A inflexibilidade detta ia
ſigne Fiel ſervio de exemplo a mui
tas outras , que em ſemelhantes con
junturas tem moſtrado hũa fortaleza
muitas vezes luperior ao ſeu ſexo. O
que tudo ſeja para maior gloria de
Deos , que ſeja ſervido allumiar aquel
la infedilidade, para que ſeja mais ex
altado o ſeu Santiſſimo Nome .
RECOPILAC , AM
de 1o . de Settembro.
I M Perigêo o Veneravel
E Padre Fr.Gerardo de Ter .
racinio . Viveo ſantamente na primi
tiva idade de ouro do primeiro fecu
loda Ordem . Foi digno Prior do Con
vento dePerigeo , e nao menos ſe fez .
digno de eſtimaçao pela lua excellen
te doutrina , que pelos ſeus irreprehen
fiveis procedimentos . Deos o chamou
para a companhia dos ſeus eſcolhidos,
meado o decimoterceiro ſeculo de
Chriſto. Guido.
2. Em Camerin , na Italia , o Illu.
ftriffimo, e Veneravel Biſpo deſta'Die
ceſe , D.Fr.Marcos Ardinghello. Foi
promovido ao governo daquella Ca
thedral pela Santidade de Innocen .
cio VI . , e regêo - a com todas aquellas
boas qualidades, recommendadas pe
lo Apoftolo a Timotheo. Morreo fi
nalmente'no Senhor, no anno de 1372 .
Theatr. Dominc. p.151.
3 Em Bovés, memoria do grao
de Servo de Deos Fr. Joao de Thiel.
Sobreſahio com eminencia no ſagra
do miniſterio do Pulpito , e foi hum
dos mais abalizados Doutores da cele
berrimaUniverſidade Pariſienſe. Go
vernou muitos Conventos na ſua Pro
vincia com todo o acerto , e regulari
dade , e exerceo com toda a ſatisfa
çað o emprego de Vigario do Inqui
ſidor Geral de França na Dieceſe de
Bovés , perſeguindo, e caitigando os
hereges com toda a vigilancia, e ſe
veridade , Morreo com cao boa opi
Diao,
 SOROR ANNA DE S. SEBASTIAM ,
niaỗ , que felhe deo hũa fepultura mui
diſtincta , de que o Padre Fr. Carlos
de S. Vicente extrahio ás noticias, que
1 aqui acabamos de preſcrever. Anno
71 de 1552. = Fr. Carlos de S.Vicente ,
0 apud An . Domin .
4 No Japao , em Nangaſaqui,me
moria do Veneravel Domingos Coro-
bijoje , Profeflo da poſla Terceira Or
dem , e cinco Companheiros , com
alli padeceo martyrio pela Fé .
quem
Seus Companheiros forao unicamen
te condenados a degolar ; mas o Ser
vo de Deos , que em outro tempo hoſ
pedåra mui caritativamente os nof.
los Miſlinarios, e fora Reitor da Con-
fraria do Santiſſimo Roſario , teve
mais parte nefte Caliz da Paixao do
Senhor padecendo o terrivel marty-
rio de fogo lento . Finalmente ſendo
conſumido o ſeu corpo entre aquellas
levaredas , a ſua almabendita , que ſe
abrazava em outro fogo maisintenſo,
qual era o do Amor de Deos , voou a
renaſcer qual Feniz no Ceo por toda
a eternidade no ano de 1628. Hie
ftor. das Filip.liv.z.cap.34.
5. Em Pariz , no Convento da An-
nunciaçao , o devoto Irmao Conver.
ſo Fr. Joao Boucrecio . Era Alemañ
de naçao , e doutorou -ſe em Medici-
na na Univerſidade de Padua, profiſ.
ſao que tambem exerceo na Corte de
Pariz . Deos , que o queria para ſi, o
retirou do caminho da perdiçao , mo-
vendo- o a abandonar os erros de Pro-
teftante , e ſeguir o farol da luz da ver-
dadeira Fé . Para melhor ſegurar oef-
feico da ſua bõa eleiçao veſtio o habi
to de S. Domingos no nofo Conven-
to de Santo Honorato , hum dos mais
obſervantes de todo o Univerſo. Quan-
do começava a enriquecer -ſe de vir-
tudes , foi chamado para a eternidade,
antes de aſcender ao Sacerdocio por
húa morte ſuaviſſima, aos trinta da ſua
idade , no anno de 1630. = Joan . à S.
Maria.tom . 1. pag.633 .
II de Settembro . 348
II , de Settembro .
Vida da Veneravel Madre
SOR OR ANNA
DE S. SEBASTIAM ,
Extrahida da Chronica de Fr. Lucas
de Santa Catharina , e ſegundo as
memorias , que ſe conſervaõno
Moſteiro da Roſa de Lisboa .
I Loreceo a Veneravel Ma
dre Soror Anna de S.S : ba
ftiað ein muitas , e religiofiflimas vir
tudes no celebre Moſteiro da Roſa de
Lisboa , cujo nome , junto com o bom
nome que a Serva de Deos adquirio
com a ſua boa , e fanta vida , recendeo
com muito mais oloroſa , e admiravel
fragrancia. Seu pay chamou - ſe Pedro
Coelho , e ſua mãy Dona Magdale
na , peſſoas ambas de qualidade mui
diſtincta, e que juntavao ao eſplen
dor doſangue hum procedimēto mui
fidalgo , e mui Chriſtao , e por iflo
meſmo mui fidalgo : e ſegundo a dou
trina do melhor Oraculo Chriſto Se
nhor noſſo : O fruto das boas arvores
be bom, e máo o das más; iſto ſe veria
ficou á riſca nanoſla Veneravel Soror
Anna, naõ degenerando , nem deſdi
1
zendo da Chriſtandade, e nobreza de
teus progenitores , teftimunhando -a
pelo contrario até o ultimo artigo da
ſua vida. A que ella fez das portas a
dentro da Clauſura mais parecia de
Anjo , que de creatura humana .
Era indispenſavel a Serva de
Deos no que dizia respeito ao ponto
da Obſervancia ; e ſendo cao branda ,
e humilde , que mais nao podia ſer ,
quando lhe tocava increpar algũa
tranſgreſlao , o fazia com hũa vehe
mencia tað ardente , e adiva, que pa .
recia que mudava por entao de genio ,
e denatural. Elegêrað -na Meſtra de
Noviças , cargo que foube deſempe
nbar com hum acerto poucas vezes
viſto , parecendo que, bem como de
Jano fingirao os Poetas Gedrios que
tinha
 C,
342 RECOPILA
tinha duas caras , a Serva de Deos tie
nha tambem outras duas , lendo hua
o retrato da
prudencia , e outra a da
Santidade: aſſim ſabirao tao bem apro-
veitadas aquellas tenras plantas , que
ſe conſignarað á íua cultura , que nas
ſuas acçoens ſe eſtavaõ lendo outros
melhores panegyricos da Serva de
Deos , do que ſe foſſem compoſtos pe
las pennas mais doutas , e eloquentes,
aindaque houveſſem de entrar nette
numero os Oradores Gregos , e Lati-
Dos da mais eſtrondoſa , e bem mere-
cida fama.
3 A Communidade , que obſerva
va os feliciſſimos progreſſos da noſſa
Veneravel Madre Soror Anna , lhe
commetteo depois o lugar de Priore-
za , officio que ella adminiſtrou tao
fábia , e perfeitamente que , comoef-
creve o doutiſſimo Chroniſta deſta
poffa Provincia , e em nada lomenos
a ſeu immediato anteceſlor, o fami-
gerado Fr. Luiz de Souſa, fez o mila-
gre de contentar a todas as ſuas fub-
dicas . Foi eſta grande Religioſa hum
monſtro de penitencia. Nas Quareſ-
mas , nos Adventos , e nas vigilias de
muitos Santos era o chao o ſeu leito ',
ao que juntou tantas mortificaçoens ,
e auſteridades, complicadas eſtas naõ
com menos doenças, nem menos tra-
balhoſas , que todas forao as gommas,
e os lenhos odoriferos , que elta Fe-
niz da perfeiçao Religioſa foi juntan-
do para o ſeu ultimo tranſito triun
fal, quando houve de morrer , como
feliz , e intrepidamente morreo na
terra , em 11. de Settembro de 1648.
para ir renaſcer por toda a eternida
de na Bemaventurança .
RECOPIL À C, A M
de 11.de Settembro.
M Pariz , 'no Convento de
ESSant-Iago , o Veneravel Pa-
dre Fr.Renato le Moine. Era do Con-
vento de Reiné, e foi tido por hum
Oraculo de Theologia;e o eſtudo deſta
A M de ir de Settembro. :
ſanta Faculdade o fez hum Santo , pro
curando imitar com a virtude quanto
deſcortinava com a eſpeculaçao.Mor
reo com feliciffimos auſpiciosem Pa
riz no anno de. 1546. = Fr.Carlos de
S. Vicente .
2 Em Pariz , no Noviciado Geral ,
o Irmao Noviço Fr.Joao de Santo An
dré . Naſcéra em hüa pequena povoa
çao , a pouca diſtancia da Cidade de
Colonia , e tomou o habito de S.Do
mingos na Caſa do Noviciado Pari
fiente. Tinha concebido a Ordem
grandes , e bem fundadas eſperanças
deſte illuſtre Servo de Deos ; mas feu ,
e noſſo Senhor da idade de vinte e
dous annos, em que morreo o achou
ja ſazonado para o levar para ſi, noan
no de 1638. = Fr. Carlos de S. Vi
cente.
3. Em Napoles , no Convento de
Noſa Senhora da Saude , o Veneravel
Padre Fr. Joao de Rocca- aſpri. So
1
bre-lahio eminentemente na pratica
das virtudes exercitando todas , e ca
da hua em cao alto grao de perfeiçao ,
como ſe fora ( ómente ſingular em
qualquer dellas. Era mui amante do
retiro , e ſolidao : fazia penitencias
extraordinarias , e tinha muita ora
çao . Andava ſempre como atanaza
do de cilicios ; tomava diciplinas
igualmente dilatadas que deshuma
nas. Comia hūa ſó vez no dia : foi
ſempre indiſpenſavel nas abſtinencias,
no ſilencio , e em todos os mais pona
tos da Conſtituiçao . Levava as noites
em véla com a ſuave uſura de ſe dar
todo a húa altiſſimacontemplaçao : ja
mais ſabia do Convento , e celebrava
o Santo Sacrificio da Miſla com co .
pioſas, e devotiſſimas lagrimas.Final
mente depois de haver praticado tao
excellentemente eſtas , e outras in .
finitas virtudes , a ſúa induſtrioſa
humildade , mediante húa morte de
jufto , transformou todos eſtes feus
trabalhos temporaes pelas eternas
delicias. Foi lentidiſſima a ſua morte ,
nao 16 dos ſeus Co -Religioſos, mas
até dos ſeculares, com quem elleha
via
 RECOPIL A C, A
via dignamente adquirido a opinian ,
o e eſtimaçao de Santo . Deſte grande
la Seryo de Deos fazer diſtincta , e ho-
norifica memoria as Actas do Capi .
tulo Geral de 1644. Morreo no anno
de 1640. = A t.Capit. General.1644.
4 Em Roma , o Veneravel Padre
Fr. Guilherme Matcheus . Naſcera no
Limoſin para o mundo , e para a Ore
dem oo Convento de Toloſa. Rece .
beo com os dielames de húa fanta vi.
da o elpirito de obſervancia , erefór .
ma do Veneravel Padre Fr. Sebaſtiaó
Miguel , praticando fielmente elteri-
gor até exhalar a ultimareſpiraçao da
ſua vida . Padeceo hűa formidavel ba .
! teria de eſcrupulos , que quafi o che
garia ) a privar do uſo do juizo , ſe nað
ſe atalhaſlem eſtes effeitos , acé com
1 remedios humanos . Mandou ſe - lhe
fazer búa ſangria jugular , com o que
T ſe achou muito melhor ; mas o que
lhe deo todo o alivio, foi o querer .
de dignar o Medico Divinode acabar
Elle meſmo a cura , que a Medicina
humana havia principiado . Praticou
sempre húa inaudita humildade . Nao
poucas vezes carregava para o Con-
vento , como qualquer homem de fer-
viço da Republica , o neceſſario para
a Communidade . Fizeraö.no Viga.
rio da Congregaçao , e ſó a obedien-
cia o poderia obrigar aquella acceita .
çao mais dura para elle do que mil
mortes . Nao ha exprefloens , com
que deſcrever a ancia , e o empenho,
coin que elle promovia a maior eftrei.
teza da obſervancia : era iſto cauſa de
punir qualquer tranſgreſſao com to-
da a circunſpecçaõ das Conſtituiçočs.
Aquelles, contra quem procedia mais
exactamente, erað os Priores , que ſe
deſcuidavao do deſempenho dos ſeus
encargos , como quem bem ſabia quá .
to o menos bem concertado exemplo
dos ſuperiores póde influir nos fub-
alternos.
S O Reverendiffimo Geral Ro .
dolfo , havendo ſido bõa teſtimunha
occular do muito fogo do zelo , e amor
da Religiao , que ardia no peito deſte
M de ir de Settembro . 343
Veneravel Religioſo , trouxe - o com
outros ſeus companheiros a Roma , a
fim de introduzir a meſma perfeiçao
de reforma de Toloſa no Convento
de S. Sixco . Deos abençoou ette ſeu
trabalho , chegando ſe a ver breve
mente aquella Caia huin limpidiſſimo
eſpelho da maior obſervancia. Nao
parecia ſesao que tornavao os primei .
ros tempos da Ordem ſem a fabuloſa ,
e dilatada revolução do anno Piatoni .
co. Era o Veneravel Padre Fr. Gui .
Therme a mao direita do Reverendiſ .
fimo Geral , aliitindo -lhe ja com o
conſelho , ja com a execuçað , efem
precomo acerto , com a piedade . Mor
to ſantamente o Servo de Deos no
anno de 1643. , eſcreveo o meſmo
Reverendiflimo hūa carta á Provin .
cia de S. Luiz , em que bem teſtimu .
nhava o alto conceito , que fazia das
fuas virtudes , e de todas as outras
ſuas boniſfimas qualidades . = Fr.Car
los de S. Vicente , apud Ann . Dom.
5 Na Vigairaria de Santa Maria
de las Celdas , na Dieceſe de Burgos,
em Castella , o piedoſiſſimo Irmao Lei.
go Fr. Lourenço de S. Thomaz . Pa
recir o centro da docilidade , humil
dade , pobreza, caridade, e devoçao .
Nao ſoffria inſtante de ocio ; jamais
o podia ) apanhar deſoccupado. Fo.
ra diſcipulo do incomparavel Refor.
mador do ſeu Convento , e Apoſtolo
daquellas partes , Fr. Joao Malfaz , e
aproveitou ſe inſignemenre deſte grã
de Magiſterio . Delle fazem honrada
memoria as Actas do Capitulo Gene
raliſſimo do apno 1644. = Act. Cap.
General.
6 Em Beaune , a Veneravel Ma
dre Soror JoannaGalóis. Era profel
fa do Mosteiro de Dijon , e foi eſco
Thida para ir fundar a Bearne hum Mo
fteiro de Religioſas poſias, com cu .
jas illuſtresCon -Fundadoras dignamē.
te fez, e prefez numero a Serva de
Deos. Alli ſe lhe conferio o lugar de
Sub -Prioreza , e cooperou inligne
mente para ſe introduzir neſta nova
cala o eſpirito de pobreza , obſervan
cia ,
344 SOROR JOANNA DESANTA CLARA , 12 de Settembr.
cia , e oraçao , que parece que dei
xou por ſingular herança aquella Re-
ligiola Cafa. Sendo feita Superiora ,
couſa Denhũa pertendia de ſuas fub .
diras , que oao lhes puzeffe primeira-
mente á viſta. Finalmente ao melmo
tempo , em que mais trabalhava por
zelar a maior gloria de Deos , a cha.
mou Elle para ſi , mediante hūabem
au picada morte , no zonode 1640. =
Fr. Carlos de S. Vicente.
7 Em Burdeos , no Moſteiro de
Santa Catharina , a Veneravel Ma.
dre Soror Joanna do Menino Jesus .
Entrou para aquella Caſa contando
naõ mais de quinze annos de idade .
Foi hứa viva Conſtituiçaö . Quatro ve
zes foi promovida a Mettra de Novi-
ças , e duas Prioreza , occupaçoens ,
em que te fez crédora igualmente da
im itaçaõ que do applauſo . Aborrecia
o mundo , e todas as ſuas inaximas,
como quem era a meſma innocencia.
Eſta averſao perſuadia inceſlantemē
te a ſuas ſubditas. Padeceo hũa cruel
batalha de eſcrupulos; masnosſeusul
timos dias lhedenoSenhora cóſolaçao
de moitrar-lhe q da fementeira de la
grimas ſe colbem , e recolbem frutos
de tranquilidade , e alvoroço . Rece
bidos os ultimos Sacramentos com a
mais extrema devoçao , piamente ſe
crê que, morrendo comohumafanta,
voou a lograr -ſe para ſempre da eter-
na gloria no anno de 1666. - Fr.Car-
los de S. Vicente , apud Ann. Dom.
12. de Settembro.
3 dos ) Sol : por eſte entendia o Verbo
Vida da Veneravel Madre
SOROR JOANNA
DE SANTA CLARA ,
Extrabida da Chronica de Fr. L4 .
cas de Santa Catharina , e con
forme algumas memorias , que
Je conſervao no Moſteiro do
Salvador de Lisboa .
Memoravel , e antiquif-
A ſima Cidade de Lamego ,
foi digna e illuſtre patria da Venera
velMadre Soror Joanna de Santa Cla
ra : Pedro Seraiva , e Done Meſſia
de Souto Maior , ambos de nobreza
mui qualificada, e antiga , furao ſeus
benemeritos pays . Entrou no Moſtei
ro do. Salvador de Lisboa , aonde iem .
pre ſe moſtrou inflexivel até o fimem
guardar no ſeu maior rigor adifcipli
da Religioſa. Fez devotiſſimamente
a ſua profiſlao em 24. de Junho de
1585. Era apaixonada a Serva do Se .
nhor pelas excellencias do Evange
lifta mimoſo , amando aquelle, que se
chama por excellencia o Diſcipulo
amado , e profeſſou no dia do maior
dos Naſcidos , moſtrando allion ter ,
como ſe deve ter, equilibrada fielmen
te a devoçaõ entre dous admiraveis
Santos ; porque, como bem exprefſou
hum diſcreto na letra , com que ani .
mou hũa pintura , em queelleste etta .
vao mutuamente abraçando : 1
Joao , hum , e outro ſe chama :
Hum meſmo amor ambos prende:
Juntamente os dous offende,
Quem juntamente os nao ama.
2 Era tambem muito devota do
noflo Doutor Angelico ; e como a tua
principal devoçaõ era a de Chriſto
Senhor noſſo no Sacramento de amor,
dizia a Serya de Deos com a ſumma
galantaria , e graça , de que o Ceo a
dotára , que amava mais ſingularmē
te tres objectos , dous delles aguias ,
e o ultimo ( antes primeiro que to
Divino Sacramentado , chamado pe
la commũa torrente dos pios doutos
Soloa Euchariſtia ; e pelas duasaguias ,
o Querido Jesus , moſtrado a Eze .
chiel na Aguia da mageſtoſa , erriun
fante carroça da gloria de Deos ; eo
Principe das Escolas Chriftiás , que
que perfcrutou com ( ciercia aquili
na as primeiras , e mais ſublimes lu
zes do Sol das ſciencias a Sagrada
Theologia. Talvez que o ſer tan de .
vora de Joao , e de Thomaz ſeria pe
la
 RECOPIL A C,
la ſympathia com que ambos ſe fingu-
larizárað nos mimos , enos cultos do
Paodos Anjos, havendo - ſereclinado
o primeiro na noite da ſua loftituiçaõ
Do Peito do Divino Pellicano , que
entao ſe nos principiou a dar em ſu .
ftento ; e diſtinguindo-ſe tanto o ſe-
gundo na celebridade dehum Myſte
rio tao amoroſo , e incomprehenfi-
vel , por ſe deverem ao ſeu elegantif
Ve ſimo , e piiſſimo enthuſiaſmo, a mel
:
liflua , e lonóra harmonia dos Hym
nos , ( e talvez , ſegundo algunseſcre
vem , a compoſiçaõ da ſolfa )com que
o Corpo de Chriſto he acclamado na
ſua Feita por toda a Igreja Univerſal.
3 Os extremos , com que a polla
Joanna ſe deſvelava em cortejar ao Rey
dos Reys , occulto debaixo da cortina
das eſpecies Sacramētaes, eraõ tao ex-
ceſſivos, que eſtando Elle Expoſto no
Moſteiro , eraõ contados os poucosin-
ſtantes, em que entao deixava o coro ,
aonde affilia em pé , e rezando. De-
fies, e de outros ſantos exercicios,
percendia deſvialla o demonio ; mas
ſempre ficava deſairoſo , fugindo ſó .
mente ao ecco dos ſeus tres Sagrados
Amantes, com que ella o ameaçava.
Húas vezes pertendia metter-lhe ter-
ror o maldito , apparecendo -lhe na
figura de hum feroz foldado , mas
que nao hia tirar outro fruto da ſua
venenofa diligencia , mais que hūa
vergonhoſiffima retirada. Outras ve-
zes o achava na cella , disfarçado na
apparencia de hum caozinho de hūa
ſua irmaā , tambem Religioſa , que
fazia de ordinario muita feſta á Ve
neravel Madre Soror Joanna ; eſta po-
rèm , como tao acautelada das ſuas
aſtucias, hia informar -ſe á quadra de
ſua irmaā , ſe eſtava , ou nao eſtava lá
aquelle animalzinho ; e reſponden-
do - ſe -lhe affirmativamente , dizia a
Serva de Deos , ſem o menor ſobre-, te em vida, e morte pelos annos de
falco , ou alteraçao : Ab fim ! Suppo-
ſto iſo ja ſei o quecá'tenho ; e arman
do - ſe entao com o ſinal da Cruz , pu-
nha - lhe preceito para ſeir , ao que el-
le obedecia comigual promptidao , ý
Tom . VII.
A M de iz . de Settembro. 345
violencia . Foi tanta a ſua finceridade,
que morrendo de largos annos , pare
ceo pao haver ainda fahido da idade
da meninice . Como pomba viveo : e
como he muito crivel voou como
pomba ao monte da gloria em 12 , de
Settembro de 1650.
RECOPIL A C, A M
de 12. de Settembro.
I M Bolonha o Veneravel
E Padre Fr. Armanin Ghiſ
leri . Delta preclariſſima familia , de
donde, andando os tempos , vejo a
proceder o noſlo S.Pio V. , e quedeo
inſignes ſujeitos á Ordem Dominica
na , nað degenerou o noſſo Servo de
Deos . Era irmao do Illuſtriſſimo Bif
po de Comahéio , e em ſeu nome af
liftio no Concilio Provincial de Ra
vena em Junho de 1310. , merecen,
do eſta commiſiao mais por ſer taðre
gular , e virtuoſo , do que por con .
fanguineo daquelle Prelado. Ann .
Dominic.
2 Em Leaõ de França o Venera
vel Padre Fr. Claudio de Refta. Il
luſtrou eſte grande filho de S. Domin
gos o quintodécimo ſeculo com as
luzes da ſua admiravel ſciencia , mui .
to mais com as da ſua eminente Re
ligiao , e ſantidade. Compós hūa ju
diciofflima Obra , a que deo o nome
de Obra de Ouro , em Latim , de gran
de utilidade para os Oradores Evan
gelicos. Eſcreveo mais as vidas de to
dos os Santos principaes , que em to
das as idades do mundo Chriſtaõ con
decorátaó a Igreja Catholica ; e fa
zendo objecto da ſua imitaçao , aquel
les meſmos Heroes , e Heroinas de
Chriſto , que eraõ aßumpto da ſua
penna , osimitou pontual , e fielmen
1500. = Lopes 4. p . pag. 9 .
3 Em Poſnacna
, Polonia, o Vene
ravel Padre Fr. Gregorio Trebine.
Exercicou com hum Eliaco zelo oſa
grado miniſterio do pulpito : foi Theo
Xx logo
346 SO ROR
SORO R MARIA DE COMBE ',
logo de grande nome ; e governou
duas vezes a ſua Provincia : o que
porêm o fazia mais benemerito , e re-
cömendavel, era o ſer inflexivelmen-
te oblervante da Regra , e Conſtitui-
çoens da Ordem . Por iſſo era tað exa-
& o na guarda do ſilencio , que era ma
ravilha ver como elle o praticava á
riſca , ainda quando hia de caminho .
Tinha hum grande dom de ganhar
vontades , de que elle ſe valia
valia para
para
maior gloria de Deos . Era abſtinentif-
fimo , e tað pobre , q nao pareciao os
feus habitos Tenaõ a meſma pobreza ,
a meſma miſeria . Foi ſempre deſve .
ladiſlimo no cumprimento das ſuas
obrigaçoens . Conſumia largo tem-
po na Oraçao ; prégava com o fervor
de hum Apoftolo , reprehendendoli.
vremente aos máos , animando aos re
miſfos , e mantendo na fidelidade da
ſua vocaçao os cimoratos , fazendo
tanto maior fruto com a ſua doutrina,
quanto era mais efficaz o bom exem
plo , que em fi lhe propunha. Mor
reo entre a fragrancia da boa opiniao
de Santo , em que todos oreputavao
Do anno de 1640. A &t. Cap. Gen.
Valent.
4 Em Pariz , no Collegio de Sant
Iago , o Veneravel P.Fr.Joao Nicolai .
Foi illuſtre Eſcritor da Ordem , fazen .
do -ſe crédor, mais pelas ſuas virtudes,
que pelos ſeus Eſcritos, dos maiores
elogios. Guardava - lhe o Ceo a gloria
de ſer hum digno Apologiſta do Sol
das Eſcolas , e das noſſas Conſtitui.
çoens Sagradas, empreza que lhecom-
meteo o noſſo P. Geral Fr. Thomaz
Turco , para rebater as calumnias
de hum adverſario , que , ſem reſpei-
to a ſua Sagrada Māy , a Ordem dos
Prégadores, queria inverter a ordem ,
que nosprelcreveraõ ,e deixaraó com
o ſeu exeroplo ſantificada os noſſos
maiores da Religiao. A inſtancia do
noflo Reverendiffimo duas vezes fez
imprimir a Pentheologia do noſlo Fr.
Raynerio , illuſtrando -a com erudi-
tiſlimas notas. Eſcreveo tambem mui-
tos , e doutiſlimos Commentarios ſo-
13 de Settembro.
bre as Epiſtolas de S. Paulo , e ſobre
as ſentenças , e Santo Thomaz. So.
bre algumas novidades , e opinioens,
que no ſeu tempo inſurgirao na Igre
ja , talvez ſeguió o partido menos ſe
guro ; porém niſto he neceſſario que
The demos a eſcuſa , que ſe dá a outros
muitos Authores Catholicos , e ainda
aos meſmos Santos Padres, que para
melhor trazerem ao caminho da ver
dade aquelles que o deſconheciao ,
uſavao de ſemelhantes eſtratagemas.
Eſcreveo tambem algumas Obras de
Theologia , que por ſua morte ficá
rao carecendo do beneficio da luz pu .
blica . Finialmente chamado para a
eternidade , e recebidos os Santos Sa
cramentos , entregou o ſeu eſpirito
DasMaosdo Senhor no anno de 1674 .
Fr. Carlos de S. Vicente.
13. de Settembro .
Vida da muito . Illuſtre , e Ve.
neravel
SOROR MARIA
DE CO M B E
Da noſſa Terceira Ordem ,
Inftituidora da Caſa do Bom
Paſtor.
Segundo o que eſcreve o Padre Fr. Car.
los de S. Vicente.
1 A vida da Veneravel So
N ror Maria de Combé , ſe
verificarao novamente aquellas incon
cuſlas verdades , de que ſó Deos he
o que conduz ſuave, e providentif
fimamente todas as couſas ao ſeu fim ,
e de que ſó Elle fabe uſar de inſtru .,
mentos ,,ao parecer do mundo , debeis ,
ao pare
e de pouco , ou nenhum momento pa .
ra confundir ao meſmo mundo . Naſ
ceo eſta ſua grande Serva em Leide,
em Hollanda, no ando de 1656. Di
ſtinguira- ſe grandemente hum de ſeus
avós nas guerras de Flandres ; masti .
rando das luas proezas mais gloria ,
que fortuna, vendo -ſe ſeu filho , e
Pay da Serva de Deos Joao de Cix ,
com
 SOROR MARIA DE COMBE, 13 de Settembro .
com poucos bens para ſuſtentar-ſe
com o decoro que pediaõ as obriga-
çoens do ſeu caracter , retirou - ſe a
Leide , aonde caſou , e eſtabeleceo a
ſua caſa. Teve ſeis filhos, entrando
nefte numero a nofla Maria . Nað
obftante haver eſta naſcido do infer-
nal ſeyo da hereſia , tinha bum eſpiri
1 to mui verdadeiramente pio , e Ca-
tholico. Naô havia couſa que mais lhe
levaſe os olhos , e os agrados, que
os exercicios , e devoçoens dos Fieis
Orthodoxos. Sua Divina Mageftade ,
que a eſcolhera para ſi muito eſpecial-
mente , claro eſtá que nao havia de
deixar de aſſiſtir -lhe com meios ,que
mais fomentaflem bum tao lanco in-
cendio no ſeu coraçao .
2
Andava por alli hum bom Sa-
cerdote Catholico occultamente ,pre-
cavendo que os fieis , mediante a re-
voluçao do governo , e Religiaõ, que
houve por aquelles tempos nos Paizes
baixos , nao incorreſſem em alguma
prevaricacao , dobrando cobarde ,in-
fiel , e idolatricamente o joelho a
Baal . Teve eſte bom Miniſtro do Se-
nhor a fortuna de communicar com
a noſſa virtuoſa Maria , que com as
ſuas devotas conferencias avivou mais
os ſeus bons propoſitos', aomodo que
com o vento creſce maiso fogo. Da-
va a Serva de Deos muitas elmolas ,
até , para melhor o poder fazer, cor-
sando pelo ſeu neceflario . Recolhia-
Se com Deos em hum como Oratorio ,
e fazia outrasacçoens muy religioſas,
e Chriſtaás. Tudo iſto porém nao
obſtante , permittio Sua Divina Ma-
geftade que Maria fechaſſe os olhos
a canras luzes , correſpondendo in
grata e infielmente a tantos benefi-
cios . Tað fragil he a condiçaõ buma
na , e tanto nada he o que pode de ſi,
ſe Deos nao a tem da ſuaMao ! Foio
caſo , que como eſta moça era mui
apaixonada pelos Catholicos Roma
nos , abertamente defendia a ſua cau-
ſa , com todo o ardor , epaixao . Ex-
candeſcidos deſta liberdade os teus ,
Dao houve induftria,de que nao uſaſ:
Tom . VII.
347
fem , ja por bem ,ja por mal , para apa
gar aquellas (uzes , com que o Eſpi
rito Santo havia illuſtrado o ſeu co
nhecimento . Laſtima he que os pays
nao procurem de ordinario imprimir
o que tem de bom , fenaô o que tem
de mảo em ſeus filhos.
3. Vendo - ſe a noſſa pobre Maria
eſcarnecida, e tratada com canto del
prezo , e rigor , antepôs infelizmen
te a ſua quietaçao á fidelidade , que
devia a ſeu Deos, e Sonhor. Mas ain
da que ſeus payscantárað elta vitoria
do inferno, nao lhes foi tao facil in
clinalla aos dogmas hereticoscomo
,
deſaffeiçoalla dos Catholicos . Tinha.
1
lhe hūa averſaõ inexplicavel ; e ſe nao
a dava aconhecer como rectamente a
ſentia , era por evitar maioresdelgo .
ftos , e diflenfoens. Por eſte tempo
paſſou a viver em Inglaterra com hūa
Senhora mui affecta a ſua familia , e
alli eſteve até á idade de 19. annos ,
em que ſeus pays a chamarao nova
mente á patria para contrahir , co
mo contrabio , caſamento com hum
homem de grandes riquezas , chamaa
do Adriano de Combé. Entendia o os
ſeus maiores que a chamavao para
húa grande felicidade, e nao foi fe
nao para a maior Cruz , que ſe lhe
podia dar ; porque ſeu conforte , que
era de muideſarrezoads; e cruelcon
diçao , a tratava mais como eſcrava ,
que como companheira. Parece que
o deſtinou Deos para caſtigar a infi
delidade , com que ella tinha correr
pondido á ſua vocaçao . Faltava-lhe
paciencia á triſte para paſſar por tan
tas femrazoens ; e paſſados dezoito
mezes , entrou a negociar o ſeu di
vorcio , e ſeparaçao . Dalli ameio an
no falleceo ſeu marido , e foi a Vene
ravel Maria ſolicitadapara novas nup
cias , por outro pertendente da ſua
mao , homem de grande eſtimaçao ,
e haveres . A ave, que ſentio , elivrou
do viſco com que ſe lhe armára , nao
ſe moſtra mais ſolicita em evitar no
vo perigo , do que a noſla viuva re
fiftio agora a esta pertenſao ; ja que
nao
 348 SOROR MARIA DE COMBE ',
nað foſſe pelas ſantas razoens com
que o Apostolo admoeſta as viuvas
para fugirem a outras vodas ; pelote-
mor , que tao aſſombrada a deixára, de
cahir em outra igual , ou mais dura
fervidao .
4 De taes meios ſe ſervio a Pro-
videncia para conduzilla ao ſanto fim ,
a que a deftinava. Succedeo paſſarem
a França ſua irmaā , e cunhado
veio -os ella acompanhando. Jamais
ceſſava o Bom Paſtor de bater-lhe as
portas do coraçao , chamando -a para
$
o gremio das ſuas ovelhas: nao dei-
xava ella de reſentir-ſe deftes repeti-
dos remorſos de consciencia ; mas o
ſeu coſtume taó inveteradamente op
poſto a eites toques , e o labyrinto
mundano , de que ella naõ deſgoſtava ,
e em que eſtava cao mertida , diſſipa-
vao de todo o ardor das ſuas delibe-
raçoens . Quem porém ſerá baſtante
a reſiſtir a Deos , quando Elle quer
trazer hūa alma a fi ? Dous annos an-
dou vacilando entre duvidas ; por
húa parce a falſidade da ſua Religiao,
nao mais que attenta ás liſonjas da fen-
fualidade , e em que por iſlo ſe com-
praz tanto mais facilmente a nature.
za ; e por outra a neceſſidade que nos
eſtá perſuadindo a Cruz de Chrifto
que temos , para ſegurar a ſalvaçao , de
nos atarmos ao ſeu rigor , naõ cefla-
vao de trazer agitado continuamente
o leu animo . Em hum dia , em que
le achou mais vivamente apertada da
guerra , que lhe faziao eites penſa-
mentos , prorompeo neſtas palavras :
Que quereis, Deos , e Senhor meu ,
que eu faça ? Que quereis ? Sabeal-
guem , como vós, que eu nao tenhoca
pacidade para poder diſcernir a ver .
dade , e a falſidade de Religiao ? 01-
vido hum Calviniſta , ou Lutherano,
cada hum delles diz fer Meſtre da
voſa ſanta doutrina , tomada na vere
dadeira fonte da ſua pureza . Os Ca.
tholicos dizem que eſta limpeza , e
integridade he imposſivel dar-se fóra
da Igreja Romana , aonde, aſſim co
mo na árca , só pode haver ſalvaçao.
13 de Settembro.
Vós conheceis muito bem , que eu nað
quero condenar-me. Ora pois , que
mais porro eu fazer nas minhas duvi
das , ſenaõ buſcar os vosos Pés ? Al
lumiai-me, encaminhai-me, e alifi
me , pois fois meu Pay , e meu Deos.
Dito iſto , pao podia aquietar ; dei.
tou - ſe entao chorando aos pés do ſeu
leito , dizendo com a ſua innata ſince .
ridade. Senhor , che poſſivel que te
nhais coraçao para me negar a vola
Face ? Nao. Pois logo, porque nao
ouvís , e deferís á'sminhas fupplicas?
Proteſto que quero ſalvar -me, e como
iſto não pode ſer ſem á voſa graça ,
allumiai ja com hüm rayo da volla luz
a tenebroſidade da minha confülao, e
ignorancia.
5 Deitou -ſe depois na cama , aon
de , de taô canſada deſta continua ba
talha , facilmente pegou no fomno .
Aquiteve hum lonho verdadeiramen 1
1
te daquelles promettidos por Deos
pela boca do Profeta Joel aos filhos
do Teſtamento Novo , e com elle ſe
acabou aquella formidavel bateria ,
que, tanto a tinha inquietado . Pare
ceo -lhe que perfiftia , e inſtava na ſua
Oraçao , pedindo a Deos lhe mani.
feftafle a verdadeira Religiao , em que
o havia de ſervir , quando lhe ferio os
ouvidos hűá voz , que ella bem diftin
Atamente percebeo : Levanta-te , e
chega á janella ,ſe queres ſaber qual
be a unicamente verdadeira Religiao.
O alvoroço a fez acordar inttanca
neamente , e foi correndo á janella
que cahia para a rua , a tempo que
vio ir por ella hum Sacerdote Catho
lico , que levava por Viatico a hum
enfermo o Santiſſimo Sacramento . Fie
cou atronica com a viſta do que lhe
fuccedia. Onayegante, que depois de
húa formidavel cempeitade vê , como
pronoſtico da bonança , a raiar a luz
do Sol, nao fica tao deſaffombrado ,
e alliviado como gaquella hora ſe fen
tio a Serva de Deos. Logo alli chês
de outra luz mais clara que a do Sol ,
em quaato nao podia mais ſolemne.
mente, tez por entretanto no ſeu in
terior

SOROR MARIA DE COMBE ,
terior profiçaõ de crer tudo o que en-
ſina a noſſa fanta Fé Catholica , muito
particularmente a Real existencia do
li
Corpo , e Sangue de Chriſto no ado-
ravel, e Santiſſimo Sacramento do Al-
tar , em devîda gratidao de haver de-
vido a ette Sacroſanto Myſterio de
amor a ſua quietaçao , etoda a ſua fe-
licidade. Percebeo ſeu cunhado a
moçao com que o Eſpirito Santo a
viſitára , e cheio de hūa furia , e raiva
infernal a tratou com o maior exceſo
to da indignidade, einſolencia.Amea:
çou a com a perda dos groſſos bens de
que ella era Senhora em Hollanda ;
mas a ella entao 16 lhe faziao eccoda
alma eſtas palavras do Salvador: Que
importa , que ſeja ſenhor do mundo,
guem ha de vir a perder a ſua alma ?
6 Por eſte tempo cahio de cama
a Serva de Deos . Em odio della ſer,
e querer ſer tað fiel á vocaçao de
Deos , derao - lhe os Calviniſtas, a titu-
lo demedicamento , hum ingrediente
tao violentamente forte , que por to-
do o reſto de ſeus dias ſentio as mali . mono elpiritual , eſta fidelitlimaServa
gnas conſequencias dos ſeus effeitos:
apenas ella o tomou , quando logo lhe
cabirao codos os dentes. Talera a ſua
natureza ! Tao brutal , tao crueloze-
lo que moſtravaõ aquelles perfidos pe
la peſtilencial, e heterodoxa doutri-
na de Calvino ! Houve pretexto para
que a viſitaſſe o Vigario de S. Sulpi-
cio , enao quiz a Servade Deos dila-
tar mais a lua ſapta reſolucao : recea
beo aquelle Sacerdote a ſua abjuraçao
do Calviniſmo , e nos Sacramentos
The adminiſtrou o mais preſentaneo
remedio do ſeu mal. Ao meſmo tem-
po que na alma , melhorou no corpo .
Agora creſceo mais a perſeguição , e
odio de todos ſeus parentes, de que
ſeachava hūaboa parte em Pariz. Nao
ſómente cahio á borla Neofyca a bõa
ſorte de crer , ſenao tambem a de pa .
decer. Aqui ſe vio bem que a hereſia,
aſſim como a uniao da Igreja univer-
fal , nao ſe envergonha de romper os
mais eſtreitos , e indiſſoluveis vincu .
los da natureza . Palárað quelles le,
1
1
13 de Settembro. 349
&tarios , cujo ſangue circulava pelas
vêas da noſla Maria , a vingar a af.
fronta , que entendiaõ que ella lhes
havia feito em deixar o caminho da
perdiçaõ , por tomar o do Ceo , mais
que cruelmente. Deixárão - Da ao deſ
amparo , fazendo retirar būa enfer
meira que a ſervia , e de que a pobre
enferma ainda grandemente neceſſi
tava. Nunca mais lhe aſſistir ao como
ſuſtento de que carecia . Mas por to
das eſtas, e outras faltas mui ſenſi
veis , ſupprião mui ſuperabundanrifa
ſimamente as conſolaçoens , com que
aquelle Senhor , que por eſtes exor
dios a admiitia á doutrina de ſeu Evan
gelho , e por quem ella tanto padecian
a viſitava. Nomeio de todos eſtes tras
balhos , e adverſidades , eſtava chên
de paz , e alegria . Vendo-a affim a
bandonada de ſeus parentes o Senhor
de la Barmondiere , que era hum per .
feito , e fanto Ecclefiaftico , Cura á
quelle tempo de S. Sulpicio , tomou
a ſeu cargo , aſſim no temporal , co
do Senhor. Conſeguio- lhe com a ſua
boa diligencia hūa tença , e introdu
zio -a em hūa virtuola Communidade
de Eſpoſas de Chriſto .
7. Reſtabelecida inteiramente da
ſua bõa diſpoſiçaõ a noſſa Neofyta ,
começou a ſentir que interiormente
a chamavao para o retiro , e ſolidao:
e por eſta conſideraçao , paflou delta
para outra ſemelhante Caſa religioſa ,
fita no campo . De hora em hora le hia
a Fé apoderando , e deitando mais
profundas raizes naquelle bom cora
çað ; e como, ſegundo o dico do A
Poſtolo , a Fé ſem obras he cadavéri .
ca , a eſta baſe das virtudes Catholi
cas aggregava a Serva de Deos com
as outras duas, que com ella mais ef .
treitamente ſe colligiao , todas as ou.
tras , que a podiao fazer mais expe
Aavel aos Olhos de Deos, e do muna
do . Tornou depois para Pariz , eſco
lhendo a lua vivenda naquella Paros
quia , em reconhecimento dos gran.
des favores , que alli lhe fizera a Di.
vina
 OR
350 SOR MAR
IA
DE COM
vina Bondade . Tanto hia creſcendo
na perfeiçao , que mais parecia hūa ar-
vore forte , e apriga , que hűa nova , e
tranſplantada planta . Sendo viſitada
por hum virtuoſo Sacerdote , nao po-
de eſte deixar de fazer grandes admi-
raçoens de ver as muitas graças , dede
que o Eſpirito de Deos , dentro de tað
brevetermoja enriquecêra : e comoas
grandes almas lá tem hũas com ou .
tras hūa mais forte , e adiniravel ſym .
pathia ; nao deixando de reconhecer
a Veneravel Serva de Deos o grande
fundo de ſantidade daquelle hom Ec-
cleſiaſtico , o eſcolheo por feu Con-
feſſor. Como o amor de Deos achou
taõbellas diſpoſiçoens neſta feliz crea-
tura , começou a influir - lhe todas a .
quellas inſpiraçoens, que ' mediante a
ſua pratica a podiao fazer voar á ma
ior lummidade da montanha da per-
feiçao: por iſſo ella começou a diſtin-
guir -ſe em caridade , mortificaçao , e
em todas as boas obras .
8. Tomou por companheira húa
pobre moça , que eſtava em opiniaõ
de hūa grande virtude ; e com ella re-
partia irmaãmente a ſua pequena ten-
ça . Teve penſamentos de deixar os
ſeus veſtidos de galla, trocando -os por
outro de penitencia ; mas o Confef-
for , ou por tentear melhor o ſeu eſ-
pirito , ou porque lhe nao quadravao
eſtas ſingularidades , lhe negou eſta
licença , que ella por hum anno nunca
ceſľou de inſtar. Finalmente vendeo
hum dia todas as ſuas melhores rou-
pas , e repartindo pelas pobres aquel-
le producto , ſe veltio , ou por melhor
dizer , amortalhou-ſe em hum pouco
de burel, e aſſim ſahio pelas ruas de
Pariz . Era iſto pelo tempo , que cha-
mao do Entrudo,
que a Serva de Deos
eſcolheo para ſe fazer objecto dos op-
probrios, e irriſoens da plebe . Efta ,
diziaõ os que a conheciao , be hūa in-
fenſata , a quem os Capuchinhos (Miſ-
fionavaö elles a eſte tempo na Paro-
quia de S. Sulpicio ; mas nenhua cul-
pa tinhao no que ſe lhes impucaya ) ti-
ráraõ de ſeu juizo. O Contellor lentio
o
BE embr
, iz de Sett .
eſtes didterios , talvez muito mais , o
que era mui natural , porque no te
lhe tornaſſe a elle , aſſim como aquel
les Miſſionarios, algúa culpa deita no
vidade . Por eſta conſideraçao, a pri
meira vez que a Serva de Deos o buſ
cou para ſe confeſſar , a deſpedio ,
e lançou de fi com grande ſeccura , e
deſabrimento . Sentio Maria eſta re .
jeiçao , mais por ſer de quem era , do
que pelo que tinha de mortificaçao ;
e deo muitas graças a Deos por ſe ver
tratada por ſeu amor como fabula
do povo , e injuria da natureza; poistē .
do à meima Divina Sabedoria Homa
nada digna de toda a honra , aindaal
fim foi cao eſcarnecida , e vilipendia
1 da dos homens. Seu Confeffor a re
prehendeo muito daquelle exceſſo ;
e attenta a Serva de Deos a que na
obediencia dos ſeus Diredores nao
deixava tambem de ofterecer ſacrifi .
cio , se conteve dalli em diante den
tro daquelles limites , que elle lhe
preſcreveo.
9 Deſejoſa de dar - ſe quanto mais
pudefle a Deos , e ſó a Deos , come .
çou'a guardar bum eſtreitiſſimoreco
lhimento , ſahindo de cala ſó de ma
nhaā muito cedo á Miſſa, e retiran
do -ſe à ſua pobre vivenda , aonde con
fummia todo o tempo em hum Ora .
torio. Aqui rezava o Officio da Se
nhora , e continuava outras muitas de.
vocoens , orando vocal , e mentalmen .
te , que nem ainda deixava quando
por evitar o ocio ſe occupava em fa
zer algúa coula . O ſeu jejum era qua
fi ſem interrupçao , alimentando -ſe
de hum pedaço de pao , queijo , elei .
re ; e bem pode ſer que o ſeu eſto
mago tao debilitado de abſtinencias
nao pudéra conformar-ſe com outras
nutriçoens mais ſubítanciaes , e eſpi.
rituoſas. O leito em que dormia era
aſſim meſmo muito pobre , deſabri
gado , e penitente ; muito mais por
que inftigada da ſua ardente carida .
de ſe havia eſquecido de li por aflil
tir aos pobres, a quem tinha dado qua
li todas as peças da meſma cama. o
alo
 SOROR MARIA DE COMBE ,
uſo dos cilicios , diciplinas, e outras
muitas auſteridades , era igualmente
frequente , que rigoroſo. Nas feſtas
feiras accrefcentava hūa cinta de fer-
ro , guarnecida de tres ordens de pon-
tas. Perſuadia - lhe hũa peſſoa muito
de ſua confiança , que ſe deixafle da
mortificaçao deſta cinta , porque ſe
o ferro ganhaſle ferrugem , lhe podem
ria cauſar algúa moleſtia graviſſima.
Ora ſim ( reſpondeo ella ſorrindo-ſe )
mandaremos fazer hūa de prata ,por.
que naõ he juſto de fiftir deſte pequeno
deſejo de padecer algúa cousa por Qué
tanto padeceo por nós.
10 Era mui amigo da virtude o
dono da cala , em que morava a Ser-
va de Deos ; e havendo reflectido na
ſapta vida de Maria de Combé, pe .
dio - lhe em certa occafiao , que ella
quizeſſe perſuadir a ſua mulher , que
naö era muito devota , o amor das
couſas do Ceo . Moralmente fallan-
do , pouca victoria ſe podia promet-
ter a Serva de Deos ; porque pa
ra eſta perſualao ſeria neceſſario
que ella eſtiveſſe , que nao eſtava ,
bem inſtruida na lingua Franceza para
ſe explicar mais felizmente , e a ſua
expreſſað era hum miſto de Hollan-
dez , e Francez apenas intelligivel: a
ſua caridade em nada diſto reparou :
emprendeo eſta conquiſta , fiada na
quelle Senhor , que revela os arcanos
da ſua Sabedoria , que elconde aos
chamados grandes , é fabios da terra,
aos pequeninos, e deſpreziveis. Buf-
cou aquella mulher ; fallou - lhe , tra .
tou- a , e quaſi de repente a converteo ,
com tað bom ſucceſſo , que foi pafmo
ver a lólida tranſmutaçao daquella vi-
da. Pouco tempo depois deſta reduc .
çao , morreo aquella feliz convertin
da , deixando muitos linaes , e eſpe-
ranças da ſua ſalvaçao . Ele foi o pri.
meiro annuncio que teve de cima a
Serva de Deos , de eſtar deſtinada pe
la Providencia para trabalhar pela ma-
ior gloria de Sua Divina Mageftade
na ſantificaçao das almas , ao modo
que depois de Moilés haver vivido
13 de Settembro. 351
largo tempo ſó com Deos no deſerto ,
foi daqui tirado para livrar ao povo
do meſmo Senhor da fervidaõ do E.
gypto. Nao de outro modo eſtava re
fervada eſta ditoſa Hollandeza para
fer Inſtituidora de búa illuſtre Com
munidade de filhas de S. Domingos ,
cuja Invocaçao he do Bom Paſtor , na
grande Corte de Pariz .
II Hum anno antes que ſe entral
ſe neſte penſamento , teve a Serva de
Deos hum extraordinario annuncio
deſta fundação . Foi o caſo : que indo
por hūa rua , aconteceo encontrar-ſe
com hūa pobre mulher , mas muito
bõa Chriſtáa , que pondo - lhe os olhos,
nao lómente pao os tirava della , re
parando mui attentamente , ſenaõ que
foi leguindo a Serva de Deos a ſua
caſa , e ſempre a modo deadmirada :
como ſe lhe perguncaffe ſe queria al
gũa couſa , ſem responder palavra ,
mas chorando muitas lagrimas de go
fto , fazendo ſó hūa grande cortezia
a noſla virtuoſa eſtrangeira , fe reti
rou . Maria de Combé, por nao ficar
em dûvida , foi em ſeu ſeguimentos
e vendo aquella mulher que nao po
dia eſcuzar.ſe de dar a razao do que
fizera , lhe fallou ſinceramente nestes
termos: Hum dia , em que eu eſtava
em oraçao , creio que vi JESU Chri
ſto noſſo Senhor formando para habi
taçao da juſtiça hum novo mundo. A
ette tempo vinhao concorrendo , a
buſcar de diverlas partes os Divinos 1
Pés do meſmo Senhor hũa grande
multidaõ de donzellas. A primeira de
todas que chegoo , e que apreſentou
todas as mais ao Eſpoſo das Virgens,
foftes vós , Senhora. Vós meſma he
que ereis , muito bem vos reconhe
ço . Bem me vedes arruinada de an
nos , e moleſtias com os pés para a
cova , em veſperas de dar contas
no Tribunal do Supremo Juiz ; que
aqui tomo por reitimunha da ver
dade que vos declaro . Ficou admi
radiſſima do que ouvia a Serva de
Deos , e paſſou a dar conta de cudo
ao teu Confeflor. Eſte prudentemen
te
352 SOROR MARIA DE COMBË ' ,
te entendeo que , por nao trovar ?,
como dizemos, de repente , era ne
ceſſario fondar ette pégo com toda a
prudencia : quiz ellemelmo ver aquel-
la profetiza, e feodo ella com effeito,
poſto que vivia mui occulta aos olhos
do mundo , achada ; ás circunſtancias,
que diſf : ra , accreſcentou agora mui.
tas outras , poſto que por entao nao
foran tað attendidas como depois que
effectivamente ſe virao verificadas.
I2 Dizonoflo Fr. Carlos de S.Vi-
cente , continuador da grande Obra
do Anno Dominicano , que ao tem-
em que eſcrevia as memorias da Ser .
ya de Deos , de quem agora as parti-
cipamos , que eite Eccleſiaſtico era
ainda vivo ; e de hum recto procedi .
mento , candidez , e liſura a todasas
luzes evidente na Corte de Pariz , o
qual nao pode reſiſtir a dar aſlenſo
ao que o Eſpirito do Senhor lhe re-
velava pela boca daquella bõa mu
lher. Por eſte tempo tomou a note
ſa Maria por ſua mui eſpecial Prote-
etora Santa Catharina de Sena . Eſta
devoçao teve principio em hūa viſao
que ella teve , em que ſelhe repreſen-
tou Chriſto Senhor noſſo , dizendo
áquella Santa , que tinha junto de ſi ,
que tomaſle a ſeu cargo a noſſa Maria
de Combé . Teriao paſlado ſeis mezes
quando ſuccedeo ir - ſe confeſſar hũa
moça , ( aquem Deos inſpirára hūare-
foluçao mui firme de retirar -ſe do
mảo estado , em que andava ) com o
Confeffor da bõa Maria :efte,parame
lhor confirmar aquella convertida , a
commetreo á direcçao da Serva de
Deos : a eſta ſe forao juntando mais
outras , hūas que a buſcavao por ſe
ſe
guirem a eſtrada real da virtude , e
outras , a quem ella retirava dos deſpe-
nhadeiros da perdiçao. Como eſta fa-
milia, mais , e mais ſe accreſcentava,
achou -ſe a Serva de Deos na preciſao
em que a punhao as palavras de liaias,
de dittender , e ampliar os limites da
ſua vivenda . Por outra parte obſtavað
as poucas poſſes , achando -ſe eſtran .
geira , e deſconhecida, inintelligen-
13 de Settembro .
te da lingua do paiz , e deſtiruida de
meios : o que tudo attento , ſegundo
a economia da carne , era hứa teme
ridade a grande empreza , a que ſe
avançava ; mas os di &tames da Provi.
dencia lao mui oppoſtos aos do mun
do.
13 Pór eſte tempo ſuccedeocou .
trahir a Serva de Deos hum eſpiritual
commercio com hum bom Sacerdote
da noſſa Terceira Ordem . Tinha elle
muito do Eſpirito Santo , e abba Ser
va de Chriſto achou nas ( antas razoēs
que lhe ouvio muito de que apren
der , e de que ſe utilizar . Elle pene
trando temelhantemente o muito ca.
bedal de graça , que a bõa Maria de
Combé tinha adquirido na Eſcola da
perfeiçao Religioſa , como cao fiel .
mente amante que era do Inſtituto
Dominicano que profeſſa va , enten .
deo que nao lhe faria hum ſerviço , e
honra vulgar em adquirir-lhe Maria
de Combé , e aſſim lho inſinuou a el
la . Eſta propoſiçao foi muito de feu
goſto , viſto que era afilhada de San
ta Catharina de Sena, e que fometa
tendo -ſe agora as meſmas Leys, que
ella profeſlára , ſe lhe abria hum lar
go caminho para melhor ſeguir as ſuas
lantas pizadas. Chegado que foi a Pa
riz o noſſo Veneravel Padre Fr. Ber
nardo do Roſario , Miſſionario 'Apo.
ftolico em quaſi toda a França , foi
com effeito admittida á Terceira Oi
dem de S. Domingos eſta illuſtre mu
lher .
14 Faltavao os meios para a ſu
ſtentaçao das diſcipligas de Soror Ma .
ria , e falcava accommodaçaõ compe
tente para as que havia , e podiao 10
brevir ; mas ſobejava a ſua confiança
em Deos : ninguem jamais ſe arrimou
com tanta Fé aquellas palavras do E
vangelho, que nosmandao : Nao pôr
cuidado na noſa ſuſtentaçao , ſupporto
que o Eterno, e amorofiflimo Pay co
nhece muito bem a neceſidade, é ngã
faltará em'aſiſtir- nos com o neceſa
rio , com tanto que buſquemos antes
que tudo o seu Reyno, Ao tempo , em
que
 SOROR MARIA DE COMBE ',
que inſtava eſta conſternaçao, ſucce-
deo ir viſitalla búa Senhora : eſta, ha-
vendo entendido a neceſſidade que
pafiavao aquellas virtuoſas Servas de
1 Deos , de muito boa vontade fe offe-
seceo a dar húa contribuiçaõ annual,
para que pallallem a viver em outra
habitaçao maiscommoda. Acceitou a
Veneravel Soror Maria eſte favor ,
que como cahido do Ceo lhe manda-
va a Providencia , e com effeito le
achou húa caſa em boa conta para on
de logo paſſarað , e que foi como a
primeira pedra da fundaçao da Com
munidade do Bom Paſtor Ficava ain-
da em pé o outro inconveniente q
, ue
reſpeitava a ſuſtentaçao deſtas Con-
vertidas , nao battando o pouco pro-
ducto , que reſultava do trabalho das
ſuas maos. A Serva de Deosoccorria
a eſta urgencia fahindo a mendigar
por aquella grande Corte hūa eſmola,
e algumas vezes quiz Deos tentar , e
1 provar a ſua conſtancia.
15 Hum dia , em que a neceſſi-
dade era inftantiſſima, ſahio a pedir
elmola ; e depois de ſe ter canſado
em pedilla por toda aquella grande
Cidade , não foi poſſivel achar quem
lhe defTe couſa alguma . Dalli veio cor-
rendo a S. Sulpicio , e alli ajoelhada
fez Oraçaõ a Deos noſſo Senhor , pro ,
pondo -lhe o aperto , em que eſtavan
ſuas filhas, e pedindo -lhe auxilio , e
ſoccorro . Depois de haver indtado
mais de hûa hora , vinha fahindo da
Igreja , quando se lhe chegou hūa peſo
ſoa, rogando - lhemui encarecidamen .
1 te quizeſeacceitara pouquidade que
, tido bum ſonho , em que ſe lherepre
alli lhe offerecia em hìa bolla. Ella
a acceitou , e agradeceo como favora-
vel deſpacho do memorial,que acaba
va de fazer ao Pay das mifericordias.
Chegando a caſa , achou būa boa lom-
ma , com que remediar a ſua penuria .
Efte fuceflotao extraordinario lhe tez
deitar tanto mais raizes na confiança
da Providencia , que poſto que tinha
a Caſa repleta de fubditas , nað ri-
nha coraçao para deſpedir alguma das
muitas , de dia em dia vinhaõ corredo
Tom . VII.
13 de Settembro. 353
a buſcalla. Para recolher a todas , dei
xava o ſeu apoſento , e leito , accom
modando - ſe em qualquer parte , po .
ftoque deſabrigada, e offerecendo -ſe
a maior rigor , por nao faltar á cari .
dade de ſuas filhas eſpirituaes. Como.
poderei ( dizia ella ) despedir 'demim
eſtas pobres ovelhas deſgarradaso que
me envia o Bom Paſtor ? Que contas
me naõ tiraria Elle deſta rejeiçaono
ſeu tremendo Juizo ? Confeffor da
Serva de Deos era hum homem de
grande zelo , e fé ; temia porém que
a fua dirigida nao emprendeſſe couſa
que fofle ſobre as ſuas forças ,e eſpe
ranças , que nao tinha por muito bem
fundadas , e fazia -lhe muitas vezesal.
gumas exhortaçoens neſte particular.
16 Hum caſo ſuccedido por eſte
tempo parecia favorecer de algum
modo eita fua precauçao , faltando
por certos reſpeitos á palavra que de
ra para o aluguer da maior vivenda
aquella Senhora que diſſemos. Pare
cia que eſte incidente , era baſtante
para reduzir aquella caſa á ultima rui
na dos ſeus fundamentos ; mas a ſegu
rança , e firmeza, com queSoror Ma.
ria confiava em Deos , baſtava para ſu
ftentalla a pezar das maiores contraa
diçoens. A todas animava e forta.
lecia com tanta reſolucao , como ſe
ja tivera triunfado de tantos inconve.
nientes. Em hũa occaſiao , em que o
Confeffor lhe fallou neſta materia ,
perteodendo fomettella aos di &ames
da economia , e prudencia humana ,
lhe diſſe ella , que de proximo havia
fentára que ella propuzera ao Senhor
a eſtreiteza, e aperto , em que ella , e
todas as ſuas penitentes vivia o , pe
dindo favor, e milericordia ao Deos
de Bondade , que lhe havia promet
tido outra mais comoda vivēda , e com
as maos chéas de riquezas , lhe havia
dado com que acudir á ſua indigene
cia . Nao tinha ella ainda bem acaba:
do de dizer ifto , quando entrou hum
Miniſtro de Sua Mageftade Chriſtia
niflima com ordem de a metter de
Yу pofta
354 SOROR MARTA DE COMBE ,
poſle de hūa caſa pertencente a hum
Calviniſta , que deproximo fahira da-
quelle Reyno. Dizia a ordem do so.
berano : Que fendoelle informado dos
acertos , e piedade , com que Soror
Maria de Combé governava as ſuas
dirigidas, lhe concedia a ſua protec-
çao, para que ella mais amplamente
pudeſſe exercer a ſua exemplar cario
dade. Iſto ſuccedeo a 15. de Março
de 1688 .
17 A caſa eſtava mui desbarata .
da , pelo que havia de importar a ſua
reparaçao em hūa groſſa quantia , e
nao havia nem para dar principio á
obra ; mas a Serva de Deos, iſto nao
obſtante , a mandou começar , fiada
no patrocinio daquelle Senhor , cuja
Providencia em tao repetidas occa-
fioens ſemelhantes havia achado ma
ravilhoſa. Pouco tardou que Sua Ma.
geſtade Chriſtianiſſima lhe nao man .
dalle hũa boa contribuiçaõ para aquel-
les gaſtos . Outras muitas peſſoas opu. , ſticuîo aquelle melhor tabernaculo no
lentas , e virtuoſas , que muito feedi-
ficávao dasvirtudes da Serva de Deos,
The aſſiſtiram com boas eſmólas : e ſe
aquella Senhora , como ja inſinuamos,
alhe faltou á palavra de cooperar para
hūa tao ſanta obra , houve outras mui-
tas , que larga , e mais perleverantemēte
ajudárað , e ſoccorreraó em todas as'
urgencias que ſe lhe offereciao . Pou-
co tardou que ſe nao aperfeiçoaffe
aquelle edificio , ficando com capaci-
dade de accommodar paſſante de qua-
reata Convertidas. Ainda queallinao
havia capella , mandou hūa Senhora a
Soror Maria hum ornamento mui pre-
cioſo : ifto a fez entrar no penſamen-
to de erigir alli hum Oratorio para
celebrar . O Paroco a principio nao
ſe accommodava muito ; examinan-
do porém com mais reflexao a neceſ.
fidade que tinhao aquellas bõas mu
Jheres de viver recolhidas , elle mef-
mo foi o queandou naquella negocia-
çao , de modo que no Sagrado dia de
Pentecoſtes daquelle anno le celebrou
alli aprimeira Miſſa com univerſal con-
tentamento das virtuoſas habitantes
13 de Settembro .
daquella Caſa , que nao podiañ aca
bar de dar graças ao ſeu Bom Paſtor
de vir fazer - lhes companhia dentro
daquelle ſeu apriſco.
r8 Dentro de pouco tempo veio
a ſer mui eſtreito eſte domicilio aquel .
las boas penitentes, chegando a pre
fazer o numero de ſettenta ; mas era
couſa admiravel , que ao paſlo em que
experimentavao a neceſſidade , cami
nhavao tambem os ſuffragios. Succe
deo encontrarem-ſe duas Senhorasno
Bom Paſtor : ( efta foi a invocaçaõ que
ſe impôs aquella Caſa ) húa deltas,
rindo -ſe, diſle a outra que lhe ſatis
fizeſſe húa apoſta , que lhe ganhára
havia vinte annos , em que ſe abſtive
ra , como apoſtára , de aſſiſtir a fun
coens mundanas. A outra ſe lembrou
que aflim era ; e a que ganhara , traos
ferio aquella quantia que vencera , e
era mui conſideravel , para as obras
do Bom Paſtor. Deſte modo fe con
deferto do mundo , mediante as ri
quezas , e deſpojos do Egypto . Final-,
mente , tao provido ſe quiz moltrar
o Bom Paſtor das almas com aquella
Caſa , que em menos de hum anno ,
diz o noſſo Diariſta Fr. Carlos de S.
Vicente , que ſem rendas , ou petito .
rios , ou impreflimos, ſe pôs nos ter
mos em que ainda ſe via , ao tempo
em que elle eſcrevia , na grande , e
laborioſiſſima Obra do Anno Domini
cano , as memorias da noſſa illoltre
Serva de Deos. Mas fe efta Caſa tan
to florecia no temporal , muito
mais incomparavelmente ſe diſtinguia
nos progreſſos da virtude, edevoçao.
Parece que eſte era o confugio da pe
nitencia , da caridade , e da piedade
Chriitaa . Nao ſomente ſe eſqueciao
eſtas noſſas Convertidas detudo o que
era mundo , mas até de fi proprias
parecia que eſtavao deſmemoriadas ,
ſendo nao mais que Deos o unico ob
jecto das ſuas Potencias , e Sentidos.
19 Tinhaõ muita Oraçao , muica
liçao eſpiritual, e nem no trabalho
manual perdiao de viſta o ſeu Arpa.
do,
 SOROR MARIA DE COMBE ', 13
do . Entretanto que Jesu Chriſto rei-
nava tao placida , e tranquilamente
3 naquelle Recolhimento , invejoso o
demonio de over eſtabelecido em tan-
0 ta ſantidade , entrou a maquinar a ſua
ſubverfað , e deſtroço . Forao infini-
tas as calumnias , que começáraõ a in
11
ſurgir contra a Serva de Deos , em
tanto extremo , que até ſe chegou a
fazer ſuſpeita aos primeiros Senhores,
e Miniſtros da Corte de França . Mui .
tas petroas opinadas por timoratas , e
virtuoſas entenderaõ que ſeria hun
grande ferviço de Deos deſtruir até
os fundamentos daquella Caſa , que
Soror Maria com tanto trabalho , e
merecimento levantára . Nao atiçou
pouco este incendio hūa Convertida ,
que fora deſpedida, e que pertendia
7 contra nós quem poderá prevalecer ?
palliar , e dourar os ſeus defeitos, ia
pondo muitos outros imaginarios á
Serva de Deos . Aquelles, por cuja in-
tervençao o inferno lhe fazia guerra ,
diziao que ella era hūa fina hypocri .
ta , e que o ſeu fito era adquirir hūa
grande ſomma de dinheiro com que
ſe retiraſſe a viver em Hollarda . Ac-
creſcentava ) , que ja ella com eſte in-
tuito tinba em hum cófre hūa extra-
ordinaria quantia . Chegárao a tanto
eſtas impoſturas , que ſe vio obrigada
a comparecer, e juſtificar -ſe em Juizo ,
dando ſe buſcano Recolhimento , que
alguns , a titulo de bem intencionados ,
quizeraõ queimar . Até houve quem
ſe atreveo a inſultallo na face do dia ,
tirando violentamente delle hũa Con-
vertida . Parecia que os quatro yen
tos Cardiaes ſopravao de todas as par
tes do mundo , empenhados em ex .
tinguir, e anniquilar aquella Caſa de
Deos : mas como ella eſtava tao bem
fundadanapedra angular ; que inuteis
erao todos eſtes esforços , com que
pertendia oppugnalla o Principe das
trevas ! A virtuoſa Soror Maria , qua
to mais creſcia a conſternaçao , tapto
maiores alentos obrava a ſua Fé , lem-
pre inconcuſſa, e ja no maior ardor
da batalha triunfante .
No meio deſta tribulaçao , ſe
Tom . VII.
de Settembro 355
tinha por mui feliz em ter que pade .
cer por quem por ella canto havia pa .
decido . Mais ſe compadecia ella de
ſeus contrarios , para quem implora
va perdaõ de cantos exceſſos , do que
de tantas perſeguiçoens, e calamidas
des como a cercavaõ , Nao deixou de
a conturbar algum tanto hūa noticia
que ſe lhe deo : vinha a ſer , que hum
ſujeito de grande repucaçao , e opi
niao na Corte de França , ſe havia
tambem declarado parcial deſeus ini
migos , e hum dos mais apaixonados,
e fogoſos na pertençaõ de acabar com
aquelle Recolhimento ; mas ſobrela
hindo ſuperior a todos eſtes contraſtes
a ſua eſperança no Senhor, rebateo eſta
amarga noticia no eſcudo destas Divi
nas palavras : Se Deos eſtá por nós ,
Acabou -ſe finalmente a hora da poten
cia das trevas , e começou a declarar
ſe a victoria pela parte da innocente .
2I Inteirado hum grande Mini
ftro ( cuja irreſiſtivel authoridade foi
hūa muralha que deixou inexpugna
velmente allegorada a Cidade de Da .
vid ) da injuſtiça , e violencia que pa
decia a Serva de Deos , e toda aquel
la virtuoſa Cala , tomou a ſeu cargo ,
e com tanto ardor a ſuadefenſa , que
dentro de hum breve termo ſe virao
confundidos todos os Antagoniſtas
da virtude. Efte meſmo Ministro vi
fitando hum dia a Serva de Deos, fi
cou tao admirado daquella ſabedoria
dos Santos , que nella vio reſplande .
cer em todo o ſeu exterior , que nao
pode deixar de proromper neta ex
clamaçao : Oh mulher , eqiiam gran
de be a tua Fé ! Allim , ſegundo o
dito do Pſalmiſta , quer Deos honrar
aos ſeus , depois de ſerem inſultados
pelos iniquos , e malevolos. Nao pa
rou aqui o triunfo .
22 Sendo conſtante a Sua Mage
ftade Chriſtianiſſima as formidaveis ,
e injuftas contradiçoens , que ſe ha
viao ſuſcitado contra a Caſa do Bom
Paftor , ſe declarou agora mais que
nunca ſeu Protector. Allie o fez ſa
Yy ii ber
356 SÖROR MARIA DE COMBE', 13
ber o Marquez de Seignelai ao Illu.
ſtriſſimo Arcebiſpo de Pariz, inſinuan-
do- lhe ſer muito do beneplacito de
Sua Mageftade, que aquelle Prelado
lhe affiftiſſe com todo o favor , e ad-
jutorio , como que acabou Soror Ma .
ria de cantar a victoria de tantos , e
tao inacceſſiveis obſtaculos. O Arce-
biſpo lhe mandou logo intimar o que
ſe ordenára , e vindo ella a render.
lhe as graças , a recebeo com as maio-
res demonſtraçoens da urbanidade , e
benevolencia , promettendo- lhe a af-
ſiſtencia do ſeu preftimo , e authori
dade . Entao tornou a brilharaquella
Cala co mais alco ponto do ſeu Zenith.
Aquellas virtuoſas Servas de Deos ,
reconhecidas a tantas bondades com
que o Pay das miſericordias as prote-
gera ,ſe eſmeravašem proteſtarmaio-
res demonſtraçoens de fidelidade , e
amor. A ſua modeftia , penitencia , e
Chriſtandade edificava , e compungia
a toda aquella grande Corte . Vinhao
alli muitos Senhores , e Senhoras , e
voltavaó a ſuas caſas louvando a Deos,
pelo que acabavao de ver , ouvir , e
admirar. Diſtendia - ſe mais , e mais
por toda a França a famade tanta fan-
tidade ; e aquella Caſa foi o tronco,
que produzio com ſeus glorioſos ra-
mos os Recolhimentos de Orleans ,
Angers , Troia , Toloſa , e Amiens ,
fundados pelas Recolhidas do noflo
Bom Paſtor , que de todas eſtas par-
tes forað pedidas para tranſplantarem
nellas o eſpirito de tanta perfeiçao,
como de Soror Maria , como ſuas con-
dignas filhas , e diſcipulas,haviaõ par-
ticipado.
23 Quieta , e focegada ja a noſſa
Veneravel Fundadora Soror Maria
de Combé, protegida pelos Magna .
tes de fóra , e amada , e eſtimada co
mo tanto merecia , dentro de Cala ;
nao teve muito lugar delograr -ſe das
doçuras deſta tranquilidade : porque
a.Cruz he neſte mundo todo o deſcan-
ço , que a Providencia deſtina a ſeus
eſcolhidos. Sobreveio - lhe agora hūa
violenta , e penoſiſſima febre com do-
de Settembro .
res inſopportaveis , e com húa 'tao
extremadebilidade de estomago ,que
nao podia tomar o iuſtento , nem os
remedios, accidentes todos que lhe
lavrarao maior coroa de merecimen
to . Com eſta tao dura moleftia lhe
deo o Elpoſo os bons annos no pri
meiro de Janeiro de 1691. Deſconfia
da dos Medicos , ficou abandonada
ao deſamparo das creaturas ; mas ſem
pre tao aſſiſtida da Providencia , co
mo aſſim o merecia a ſua credulida
de , e reſigo açao . Quanto mais ſe via
deixada , tanto era maior a ſua fatis
façao , e complacencia ; porque ago
ra fe via mais deſembaraçada para le
dar a Deos , mediante a Oraçao , e
contemplaçao . Pedio , e recebeo o
Santiſſimo Viatico com tantos affectos
de humildade , e Fé , de devoçao , e
amor como quem eſtava lao deſape
gada das couſas do mundo , e tao
eſtreita, e cordialmente unida ao Sū .
mo Bem . Mas ainda nao era chega
da a hora , em que eſta grande alma
havia de deſatar. ſe dos vinculos da
carne , para ſe unir por toda a eter
nidade ao feu Senhor. Ainda Elle a
queria entre os mortaes para fazer - lhe
novos , e nao mais inferiores ſerviços.
Cumprio -le niſto a predicçao de hūa
de ſuas ſubditas, que confiada, ere
folutamente , affirmavaque Soror Ma
ria de Combé nao morreria daquella
doença ; porque ainda nao concluira
abſolutamente a obra de que a Pro
videncia a encarregára , e a que ella
havia de dar a ultima perfeição. Ea
tretanto parecia que hia caminhando
a doente com pallos de Gigante para
o ſeu termo final , canto , queo Paro
co de la Barmondiere a mandou un
gir , e dilpôs para bem morrer.
24 Hum dos remedios, com que
melhor le achava a Serva de Deos em
todos os ſeus males , era hűa pouca
de agua quente. Agora lha 'mandou
applicar a quelle bom Sacerdote , e
com tao bom ſucceſſo , que quer for
ſe por virtude natural, quer por fo .
brenatural, pelo que abaixo da miſe
ricor
 SOROR MARIA DE COMBE , 13
ricordia de Deos 'nelle podia influir
! a Fé do receitante , a virtude da en-
ferma, e as Oraçoens das ſuas Con .
vertidas , Soror Maria de Combé ſe
achou agora muito melhorada : logo
pode dormir ; aquietáraó a febre , e
as dores , e , cedendo o ſeu notavel
faltio , brevemente pode comer , e
reſtituir -ſe das ſuas forças. Nao ad-
mittio na ſua convaleſcença as coſtu
madas diſpenſaçoens de cuidar do ſeu
alivio , ereftabelecimento ; fenao que
penetrando muito bem as diſpoſiçõēs
do Altiſlimo, de novo lhe facrificou
a ſua vida na Cruz dos trabalhos , e
mortificaçoens. Agora começou a ſer
mais extrema a ſuavigilancia , nao tó
no tocante aquella ſociedade, que ſe
lhe commettera , ſenaő, e muito mais,
dobre ſi meima . Nao erao baſtantes
os reſquicios que ſempre lhe ficáraõ
da enfermidade, que , comoja diſſe.
mos , por cauſa da ſua converſao pa-
1 deceo em caſa de ſeus parentes , nem
tantos outros , que a efteincommodo
ſe juncáraó , para que deixalle de ac
tender com hum eſpirito fortiſſimo a
tudo o que era de maior gloria de
Deos , e maior aproveitamento da-
quella Caſa, Cuidava na Igreja , e no
trabalho eſpiricual, e temporal della
com hūa tao adherente applicaçao
que era aflombrover o bom expedien-
te que dava a tudo , como ſe nað ti.
veſſe mais de qualquer couſa deſtas em
que cuidar .
25 Era ſentidiſlima das offenſas
commettidas contra a Summa Bonda
de , principalmente das que ſe lhe
fazem nos Sagrados Templos, e da .
quellas executadas pelas ſuas Recolhi .
das nos ſeus primeiros annos. Muitas
vezes foi viſta diante do Altar com
hĩa corda , a modo de delinquente ,
pendente do peſcoço , como na per-
tençao de ſatisfazer a Sua Divina Ma-
geſtade por tantas maldades , e abomi-
. Era tao humilde , que mui-
naçoens
tas vezes comia em terra os ſobejos,
que ficavao ás ſuas Convertidas . Eſtas
fuas acçoens , que tað fábia , e fanta ;
de Settembro. 35
mente as encaminhava , davaõ mais
efficaz perſuaſiva ás ſancas razoens ,
com que jamais defiftia de asadmoe .
ſtar , ja no ſeguimento da virtude , ja
na correcçaõ da negligencia , e dos
vicios. A pouca expediçaõ da pronun
cia Franceza pao era baſtante a dimi .
nuir o ardor dos ſeus penſamentos,
antes lhe dava hūa graça particular :
como tudo o que dizia era naſcido da
abundancia do coraçao , nao havia al
gum , em quem nað ateafle o fogo da
caridade. Em kūa deltas occaſioens,
penetrada húa das ſuas diſcipulas do
que lhe ouvira , exclamou , que abo
ca de Soror Maria nao fabia proferir
ſenaő a palavra de Deos . Louvai (lhe
reſpondeo ) ao meſmo Senbor , e pedi
The que se lembre , e cumpadeça de
mim ; porque nao fucceda ,que quan .
do vos quero inftruir , e fallar do ca
minbo da ſalvaçao, por minha mi
ſeria me ſaya , é aparte delle. Como
ſe chamava , e reputava a creatura
mais indigna , nao podia entender
como Deos a eſcolhera por inftrumē .
to de húa obra tanto de ſua gloria , e
dizia que o meſmo Senhor , paramo ,
ftrar evidentemente que toda ella ſe
lhe devia , havia eſcolhido para
cao ſanta empreza hūa pobre , e tað
inhabil eftrangeira, qual ella era, de
quem nada ſe podia eſperar de bon
dade , ou de preſtimo ; e que nao po
dia acabar de admirar - le da pacien
cia de ſuas diſcipulas em dar attençao ,
quanto mais em ſopportar o imperio
de hûa creatura taõinutil , e abjecta,
como ſe nao podia negar que ella era .
26 Mas ainda que ella pezaſſe tao
mal os ſeus merecimentos neſta ba
lança , ninguem jamais duvidou que
ella entrava po numero daquelles ,de
quem diz o Eſpirito Santo : Que o ef
pirito de ſabedoria , e conſelho de for
taleza , e piedade a ſiſtemuifamilia .
mente noshumildes. Como o ſeu pro
prio abatimento era tað ſincero , e
por outra parte ſe via mui allumiada ,
e favorecida na Oraçao , todas eſtas
graças accumulavaõ mais ſólidos fun
damen
 OROR MARIA DE
damentos á lua humildade , e mais
efficazes motivos á ſua confuſao . To-
das as peſſoas dadas a Deos , que com
ella conferiao , ſeadmiravao de tantas
luzes como della reconheciao . Jamais
ſe enganou no juizo , e conceito que
fazia de ſuas ſubditas. Parecia que no
exterior lhes eſtava decifrando o mais
eſcondido , e recondito do ſeu coras
çao . Predizia muitas vezes que algúa
dellas , poſtoque lhe era conveniente
aſſiſtir naquella caſa , nao perſevera-
ria nella ; porque nao vinha , como
devia ſer , verdadeira reduzida ,
penitene; e o tempo aſſim o verifi.
cava . Succedeo chegar alli hūa moça ,
nao mais que para levar , dizia ella ,
hum par de dias de ma vida . He ne
ceſario , filhaminha , ( lhe difle, pon-
do nella os olhos, a Serva de Deos)
que ſejais conſtante, e fel a Deos na's
boas reſoluçoens. Fazer o que melhor
vos dičtar a conſciencia : a porta deſte
Recolhiments eſtá tao patente para
entrar por ella quem ſe quizer dedi-
car a Deos , como para ſahir quem
nao quer ; mas o certo he , que a von
tade do meſmo Senhor he , que aquiaf
fiſtais. A vutra , vendo qu : Soror Ma-
ria lhe lia taô claramente as ſuas in-
cençoens mais occultas , que ella a nia-
guem deſcobrira , mudou de acordo ,
e alli ficou perſiſtindo mui virtuoſa-
mente .
27. O Inſtituto daquella fundaçao,
era ſó para penitentes voluntarias ; ifto
porém nao obſtante , muitas vezes re
primio a noſſa bõa Superiora alguma
de ſuas fubordinadas, quando enten
dia que a ſua imperfiitencia era fo-
mentada de alguma tentaçao . Em
certa occaſiao hiahúa dellas a fahir ja
pela porta , vio.a a Serva de Deos, e
1
comando - a pela mao , lhe diſſe : Ca.
riſima , deſta vez ngõ vos deixarei
er ſabır ; agora veremos quem pódemodando -ſe com o que parecia mais
mais, le Deos , ou o diabo. Em outra
occaſiaõ ſendo importunada por outra
que lhe pedia que a deixalle fahir ,lhe
reſpondeo primeiramente com hũa
tal aſpereza , que a fez tremer , de
COMBE , 13 ' de Settembro .
pois a obrigou a veſtir hũa roupa : gror
feira, e atando - lhe as maos atraz , a
foi conduzindo , como a húa eſcrava
fugitiva, com hūa corda pendente do
peicoço , preſentes todas as mais Re .
comidas , diante da Capella do Reco .
lhimento . Ficou aquella moça tao
emendada, que nunca tratou em mais
que em dar ,comodeo, hūa conftan
te , e fideliſſima fatisfaçaõ a Deos .
Deftas , e outras muitas acçoens , que
por brevidade ſeomirtem ,bem ſe dei.
xa ver que grande Meſtra de eſpiri
to era eſta Veneravel mulher . Quan
do alguma commettia falta , ella a cha
mava ; e depois que com muita affa
bilidade lhe repreſentava a ſua culpa ,
The dizia que eſcolheſſe a penitencia
que queria , porque nella a queria
acompanhar. De ordinario ſe religna.
vao ellas na diſpoſiçaõ da Serva de
Deos , fomettendo-se de boa vontade
a tudo o que ella reſolvia. Em cerca
occaſiao recuſou hũa comer hum pe
daço de paô , que fobejara a outra.
A Serva de Deos tomando o , o co.
meo , e para caſtigar aquella ſubdita , 1
ordenou que oito dias nao comeria
outra couſa , ſenao o que ſobraſſe
de ſuas companheiras : moſtrou
ella a eſte preceito a mais extrema
repugnancia ; porém a Serva de Deos,
durante os meſmosoico dias , ſe ſujei
tou ao meſmo rigor que preſcrevera
aquella ſua ſubdita , moltrando que
naomandava couſa, que foſſe violenta ,
ou impoſſivel, e em que ella meſma
ſe nao pudeſſe propôr por exemplo .
28 O ſeu governo era mui ſuave .
Muitas vezes nao applicava aos de
feitos da Recolhidas mais correctivo
do que hūa prudente reprehenſa5 .
Aos principios nao as gravava com pe
nitencias , e auſteridades , que lhes
fizeſſem decahir os animos, accom
conveniente ás forças, e a ogenio de
cada hūa . A maior correcçao con
ſiſtia em olhar com mais ſeveridade
para as tranſgreſſoras. e ameaçallas,
que em quanto nao proteſtallem a ſua
emen
 SOROR MARIA DE COMBE ,
emenda , e fatisfizeſfem o eſcandalo ,
. nao teriaõ parte na ſua graça ; e iſto
era para todas hum tal cattigo , que
3 nao le lhes podia dar ſemelhante, Su-
cèdeo quando ella eſteve doenteman .
11 dar ſahir da ſua preſença hüa ſubdica,' tencia , á diſcriçao , e á caridade. Pai
3 que cahîra em algum deſcuido , de .
terminando - lhe que nao tornalle a
entrar alli , ſenao paſſado hum mez ;
a outra , nao podendo ſopportar hum
tao largo , e penoſointerdido , pouco
depois deſta comminaçao cornou a mellem de hum meſmo modo unifor.
buicar a Serva de Deos , e pondo.
fe de joelhos aos pés da ſua cama
com
muitas lagrimas lhe pedio
que a aliviaſſe dapuella pena , com
mutando- lha em qualquer outra que
muito quizeſſe . Aſſim fentiað ver -le
privadas do ſeu trato ; porque o A.
quilles das maximas de Soror Maria
Jeopre conſiſtio em ganhar os cora-
çoens de ſuas filhas. Para melhor exa-
minar , e tentear a ſua vocaçað , e
perſeverança , retardava-lhes algum
tempo a entrada que pertendiaõ no
Recolhimento . Depois deadmitidas ,
nao as introduzia logo á obfervancia
do Inſtituto , ſenaô que primeiro as
hia dirigindo , e encaminhando á de-
vida fidelidade , que ellas deviað á
quelle Senhor , que para alli as cha .
maya . -
29 Jamais deitou em roſto a al.
gūa das convertidas as ſuas paſſadas
verduras , ainda quando muita occa-
fiao houvelle para iſlo. Nem ainda
queria que ellas , nabõa confiança que
faziao de hūa tão providente , e pie.
doſa Máy , the tocaflem nettas mate
rias , muito menos que as participar-
ſem a ſuas companheiras. Efte filen-
cio he hum dos principaes elementos
do Inſtituto da Caſa do Bom Paſtor .
Aſſim apagava as faiſcas, que o inimi-
go commum , a titulo de humildade,
queria talvez conſervar , e de que pe-
Los tempos adiante poderia fazer ſur-
gir algum laſtimoſo incendio . Todas
as habiçadoras daquelle recinto ſe ef-
timað , e honrað mutuamente hūas
a outras , nao tendo mais noticia de
13 de Settembro . 399
ſuas companheiras do que as boas
obras , que daquellas portas adentro
lhes vem praticar.Exterminou -ſe dalli
a curioſidade , a murmuraçao , e os
mexerîcos , cedendo o lugar á peni .
ra que todas ſe honraſſem , e reſpei
taſſem , determinou a noſſa Venera .
vel Fundadora , que ſem diſtinçaõ de
riquezas , ou qualquer outra razaõde
fingularidade, todas veſtiſſem , e co
memēte . Se vinha algūa menosbemen
roupada , e por eſte motivo podia ſer
tratada com algúa menos attençao,
antes de apparecer em Comunidade
a veſtia decentemente , e tinha tanto
cuidado della , como de qualquer ou
tra das mais diſtinctas , que naquelle
domicilio nao erão de algum modo
indultadas, ou attendidas com algúa
eſpecialidade.
30 Se algúa Senhora queria fallar
particularmente a alguma deſtas Re
colhidas , a Serva de Deos com a ſua
prudencia , e induſtria eſcuſava eſtas
vizitas , que podiao inſpirar em ſuas
fubditas algum influxo de eſtimaçao
propria , ou produzir algum effeito
menos coherente com os ſantos fins,
a que ella caminhava . Entrou em cer
ta occaſiao hūa grande Princeza para
fallar a hűa diſcipula da noſſa Vene
ravel Soror Maria : efta , tomando - a
pela mao , lhe diſſe : Senhora , eſte lu
gar he mui incommodo para Voja Alin
teza em tempo detanto frio ( era iſto
no coraçao do inverno )Logo a levou
dalli aonde havia hum bom brazeiro .
Outras Senhoras pedirao -lhe algías
vezes , que lhes moſtrarle a ſua familia .
Nao Senhoras ; ( lhes reſpondia ) pelo
que me parece vós naõ vos quererieis
ſujeitar á imitaçao do ſeu eſpirito :
e he muito de temer , que vós mais de
preſa lhes communiqueis o voſſo. Se
alguem lhe eſtranhava eſta ſeccura , di
zendo que poderia ſer que com ella
tiraffe aquellas Senhoras do penſa
mento de fazer algum beneficio a Ca
la do Bom Paſtor ; Refpondia logo:
Deine
360 SOROR MARIA DE
Deixai, que Deos proverá ao diante,
ſe nað lho deſmerecermos , como atén
qui tem provido. Quando eraõ raes
as Senhoras , que pertendiaô entrar
alli dentro , que nao ſe lhes podia re-
plicar , cobriao as Recolhidas o roſto,
e applicando -ſe ao ſeu trabalho , ob-
ſervavaõ hum inviolavelſilencio.Sem-
pre que a noſla Veneravel Soror Ma-
ria entrava na Igreja,ſe proſtrava dian-
te do Altar do Senhor , tao penetra .
da da grandeza , e Immenſidade da
ſua ſoberania, que jamais a póde in .
quietar neſtas occaſioens algúadiſtrac-
çað . Allim eſtava em hum dia da Af.
jumpçao da Senhora, quando chegou
húa grande Princeza a fazer - lhe nao
Sei que pergunta de pouco momento .
A Serva de Deos , ſem lhe dar reſpo
ſta algúa , ficou como inſenſivel, lem
ao menos lhe relponder com hum
aceno. Chegou entao hũa peſſoa per
guntando lhe ſe eſtava ella em que numeroſa fem rendas fixas, eaflenta
quem lhe fallava era hū a tal Prince.. das , dizia a Serva de Deos , que ca
za . Entao deo a encender Soror M3-
ria , que alli nao accendia mais ý á Ma .
gettade das Mageſtades.
31 Poſto que neſta ſituaçaõ ſe aba-
tia, e anniquila va até o ultimo exceſſo,
iſto nao era baſtante para que deixalo za . Accreſcentava : Quando nós era
je de ter húa ſincera , e amante con . 1 mos só vinte , Deos dava para vin ,
fiança com o ſeu Senhor . Eſta era tal ,
que havendo -ſe perſuadido que Elle
a deſtinava para cuſtodia , amparo,
e luz das luas Convertidas , dizia que
ainda que em hum dia foſſe buſcada
de cem dellas , nenhũa havia de def-
pedir ; porque Deos acudiria com
meios para as ſuſtentar : naofendo na-
tural , que Quem dava o mais , que era
a vocaçao , falcaffe com o menos, que
era o ſuſtento , e veltido ; e que Quem
havia foffrido , e ſuſtentado hűa moça
no tempo da ſua perdiçao , menos
lhe faltaria , quando ella lhe proteſta.
va o ſeu arrependimento. Senhor ( di .
zia ella a Deos paſlando a fazer- lhe
Oraçaõ na Igreja ) o numero de volfas
ſervas creſce , accreſcentai,Bom Pa .
for , por Quem tudo vive , osmeyos
da ſua confervaçaõ , e ſubfiftencia.
COMBE 13 de Settembro .
Mil vezes ſe vio que o meſmo era
acabar Soror Maria de fazer ſemelhan
tes petiçoens , do que ſerem imme.
diatamente deſpachadas. Iſto deo oc
caſiao a que difleſſe hūa grande , e
mui virtuoſa Senhora , que nao have
ria couſa , por mui difficultoſa que
foſſe , que ſe nao pudeſſe emprender
com a Pé de Soror Maria de Combé.
Foi obſervacao deſta meſma, que os
fubfidios , com que era favorecida a
Caſa do Bom Paſtor , eraõ como cor
tados a medida das ſuas urgencias, e
neceſſidades, ao modo que a S. Pau .
10 Thebeo , quando teve por ſeu hof.
pede ao grande Santo Antonio Egy
pcio , lhe trouxe o corvo duplicado
o ſuſtento .
32 Quando algũas peſſoas affer
radas aos dictames da prudencia hu .
mana parecia que deſconfiavao de
poder conlervar- le hũa familia tao
da Recolhida , que deſenganada do
mundo, e movidados toques , e au .
xilios do E {pirito Santo a hia buſcar ;
levava comigo a bençao de Deos , e
Delta bençao o fundo da melhor rique .
te ; agora que fomos restenta, nads
falta para as fertenta : e fe a Cafe
fora capaz de alvergar mil , e mui
tas mil ,para todas daria Deos ;por
que ninguem póde abbreviar aquella
Maó , que no deſerto fuftentou mais
de ſeis mil peſoas. Quem ſe atreve .
rá a limitar debaixo de numero as
bondades , e the fouros de noso Pay
Celeſtial, que faö infinitas ? Com a
meſma ſegurança emprenderia , fer
( 4 foſſe a ſua vocaçao, a noſſa Vene .
ravel Serva de Deos o remedio de
todas , e quaeſquer outras pecellida
des , fundada nas Milericordia ; do
Senhor , de cuja confiança nenhum
incidente , ou contradiçao e podia
apartar .
Como tao bem cimentada,
nao podia conſentir , que ſe lhe 10
calle em reſervar couſa algúa . Suas
dilci
 SOROR MARIA DE COMBE, 13 de Settembro.
diſcipulas bem aprendêraõ della eſtas
liçoeps, chegando a fupplicar ,em tem-
pos de grande penuria , e careftia, que
je cortaiſe pela tua ſuſtentaçao , para
poderem ter tambem aſſiſtidos outros
neceſſitados. Trazia em certa occa-
fiao Soror Maria a quantia de certa
penſao que fe lhe conſignára : quan .
do encontrou no caminho hũa pobre
mulher de incorruptivel procedimen-
to , e cujas neceſſidades nao eraõ deſ.
conhecidas áboa Serva de Deos, deo .
!
The entao ametade daquella ſomma, e
nao foi pouca a violencia , que ſentio
em nao lha poder
ceder inteiramente.
33 Era neceſſario que ſeas Con-
feffores refreaflemn eſte impetuoſoar.
dor da ſua caridade com todooimpe-
rio da obediencia . Era ella coftuma .
da a dizer , que em similhantes dona-
tivos era maior o intereſſe, do que o
merecimento , fuppoſto que o Eter.
no Pay cottumava recribuir cento por
hum . Nolo Deos , e Senhor ( dizia
ella ) he taomagnifico , que he contra
toda a razao perſuadirmo -nos , que
se deixard'vencer em liberalidades de
hữa viliffima creatura. Jamais pode-
rei entrar na deſconfiança de que vi
rei a empobrecer pelo que dér pelo
Divino Amor, viſto quenao tenhome-
nos fiador do que a palavra do meſmo
Deos tantas vezes deſempenhada , é
verificada. Parece , que quem nos
impede que demos eſmóla , quer que
fe eſtanque o manancial dos grandes
lucros que della nos provem . Muitas
vezes occorreo a Serva de Deos a loc-
correr algūas neceſſidades de fóra ,
ja com dinheiro , ja com pao , e ja
com outros fubſidios , e ao meſmo
tempo entrar pela porta todo o pre-
ciſo para a ſuſtentaçao da ſua familia.
Em certa occaſiaõlhe perguntou hũa
Senhora , admirada de ver a fran-
queza com que ella dava providencia
ás urgencias de dentro , e de fóra do
Recolhimento , ſe ella tinha dinhei-
sos promptos para acudir a tudo ? Ide'
( lhe relpondeo ella ſorrindo-fe ) Ide,
Senhora, perguntar ao mar ſe tem
Tom . VII.
365
agoa , e ſabei que mais facilmente lhe
póde faltar do que as Immenfas , e
inexgottaveis riquezas de Deos. Ti
nha deitado tao profundas raizes no
ſeu coraçao eſta boa fé, em que ef
tava , que ſendo a meſma docilidade
na obediencia , que proteſtava a ſeus
Confeflores, ſó leotja alguma tal , ou
qual repugnancia em ſometter-ſe -lhes
neſta materia . Em certa occaſiao ſe
The inſinuou de parte do Cura de S.
Sulpicio , que ſeria bem que ella di
Atribuiffe as eſmolas que dava , nao
mais que pelos pobres daquella Paro
quia. Tomara ( diſſe ella a quem lhe
razia o aviſo ) que perguntaſeis ao
Cura , ſe JESU Chriſto morreo uni .
camente pelos ſeus Paroquianos ?
34 Succedēdo haver hūa extreme
careftia, em que ainda as Communi
dades mais bem eſtabelecidas fe po
diao dar por nao ſeguras , lhefez hum
Eccleſiaſtico hum diſcurſo , perten
dendo reſtringir a ſua caridade , den
tro dos limites da prudencia humana ,
e que agora queria uſar da juriſdiçao
que tinha , para reduzir a Soror Ma
ria a ſuas ſuggeſtoens. Ella ouvio o
que ſe lhe diſle com húa ſumma do
cilidade ; depois reſpondeo aquelle
Padre neſta ſubſtancia : E a que fim
tiraõ ,ſenhor,asrazoens que me alle
gais , ou a que virieis a conſeguir ,
caſo negado", que me esfriaſeis na
confiança que tenho na Providencia ?
Ab que ſetiveſeis , ſenbor,outra ex
periencia , que nao moſtrais ter das
bondades de Deos , quam differente
mente havieis de ſentir , e diſcorrer !
Nao me apontareis alguma neceſſida
de do preciſo , que atéqui tenha ex
perimentado o Recolhimento do Bom
Paftor ? A viſta das mercês atéqui
recebidas ; que motivo ha de menos
confiança para o futuro? Por ventu
ra experimentará tambem eſta cala
midade publica , qeu agora ſe experie
menta , aquelle Senhor , ge u fuſten
ta todos os viventes douniverſo Dio
zeis que as Communidades bem eſtas
belecidas nað eftao aſegurades ; e que
22 com
362 SOROR MARIA DE COMBE , 13 de Settembro .
comoo eſtará hum Recolhimento, que
nao ſuhliſte fundado em rendas . El.
pero na Bondade de Dios que confer :
ve inteiramente as meſmas Commu-
nidades; mas caſo que ellas padeçaã,
naõ he neceſario buſcar-lhe o motivo,
Senaõnos fundamentos humanos da ſua
conſervaçao. Nao aſſim o noſo Reco-
lhimento , como aquelle que ſe firma
nos mais folidos , e infalliveis ali .
cerces. Se por noſa miſeria nos fizer .
mos indignas do cuidado da Provi-
dencia , niſo nos puniré juſtamente. ella , e 'Deos, nao queria agora que
a vingança Divina , que quanto he ſe metteſſe entre ambos aquella quan :
' fe correſpon dermos com fidelidade aos tia de permeio .
feus quotidianos beneficios , naő porlo
convencer -me , que caia ſobre nós for
milhante flagélo.Nao be o meſmoDeos,
como Bom Paſtor , aquelle que chama
para o ſeu Recolhimento as Conver .
tidas ? Logo feu ha de ſer o cuidado de
as ſutentir. Fiemos hum pouco mais
da fua Bondade, e Miſericordia, que
do 101 receio , e cuidado. Os peitos
dr Providencia , com de hüa taõbõa
Miy , jamais deixsö de abundar de
leite , amor , eclemencia : e como os
negará hìa Māy aos filhos , que nebo
la confi17 , e eſperaõ tað firmemente?
Pelo contrario eſperava eu que me
perſuadiſeis a accreſcentar , naõ a
diminuir , a fixa eſperança , que te .
nhoen Deos , viſto que eſta perfua.
fað era tãő propria das voſſas obri.
gagoens , e do vodo eſtado. Emquinº
to poraj caber no Recolhimento , ef
tou de acordo de abrir as portas a to.
das as que o buſcarem . E ſe nao dizei-
me : que paforeſponder a Deos quan-
do me tirar contas, fe fe me endure .
cer o coração contra aquellas almas,
que Elle quer ſalvar , é chama para
Si ? O Eccleſiaſtico nao teve inſtancia
que Ine fazer , e retirou - ſe , deixan ,
do - a muito em paz.
35 Oatras muitas demonſtraçoens
deo a Serva de Deos deſte feutaoge,
neroſo , e Evangelico deſapego. Quiz
hữa peſſoa mui eſclarecida , e opu-
lenta dar hũa grofa forma de dinhei :
ro ao Reculñimento . Trazia hum
Notario a doaçao á Veneravel Soror
Maria ; mas eita a rejeitou cogitaa
temente . Nao ( ó fez iito adinirar , fe .
nao que nao faltou quem ſe naõ eſcan
dalizaſſe:ella deo muitas graças ao Au
mas perfittio
thor daquelle donativo ;
reſolutamente no ſeu proposito dizen
do , que nao queria dever a confer .
vaçao daquella Caſa mais a dadivas
humanas , do que aos arbitrios da Pro .
videncia , e pois aquelle tempo nao
havia couſa que ſe intrometteſſe entre
Hūa Senhora' mui
preclara , e abaſtadiſſima, quiz quazi
pelo meſmo tempo dar bum eſtabe
lecimento á Caſa do Bom Paſtor , e
alim o deo a entender á nofla Vene
ravel Soror Maria de Combé . Agra.
deceo ella a boa vontade ; mas eicu
ſou -le , dizendo : que aquelle tempo,
nada convinha tanto , comoreſignar
ſe coda da vontade ,e Providencia de
Deos. A outra tinha hūa grande de . 1
voçaõ aquella obra ; e attenta a que
1
naõ pudéra trazer a ſeuintento a Ser
va de Deos por palavra , tentou redu .
zilla ao leu parecer mediante hûa car
ta . Neſta lhe repreſentava ardente
mente o bem daquella Caſa , a necef
ſidade de a eitabelecer , a inſubfitten
cia das Communidades nao fixas , a
bõa occaliaõ que agora fe offerecia
que perdida nao teria facil recobrar ,
e todos os mais argumentos, que po .
diaõ dar mais calor , e efficacia aquel
la perluaſiva. A Serva de Deos , ſem
1
ceder da ſua determinaçaõ , deo hūa
reſpoſta a esta carta digna de ſer lida
como texto de todo o deſintereſle
religioſo , e da verdadeira , e unica
confiança , que todos aquelles que
confeſſamos a Chrifto , principalmen
te Regulares, devemos pôr em Deos.
36 Hũa Princeza chegou a dizer
em certa occafiao , que ella nao podia
dar hum paflo , aonde nao ouviſſe
queixas de milerias , que quaſi nao
havia Communidade , que nao exag .
geraffe as ſuas neceſidades, mas que
do
 SOROR MARIA DE COMBE ' ,
1 mentos , que
do Bom Paftor , jamais ouvira ſimi-
Ihantes laſtimas , que as sāas , e as
doentes , todas eraõ bem tratadas , e
aſliftidas. Algumas das Recolhidas
attentos os muitos annos , trabalhos ,
e moleſtias da ſua bõa Superiora , de-
rao - lhe em certa occaſiao a entender ,
que por ſua morte nao deixariao 'de
to
experimentar hūa grande falta. Ella
reprehendeo ſeveramēte eſta deſcon-
fiança , affeando - lhes muito o confia-
rem mais , que no Creador , da crea-
tura , que Elle deitina aos fins que
quer , e de que nao tem neceſlidade.
Que com tanto que ellas ſe nao del
garrallem do rebanhodo Bom Paſtor,
nada lhes faltaria , e em nada viriao a
ter a ſua perda ; porque encao reco
rheceriaõ que Deos era , o que uri .
camente ſultencava o leu Recolhimen-
to.
37 Chegou finalmente o prazo da-
quella vida,de que o mundo nao era
merecedor. Os dous ultimos annos
della forað os braços da derradeira
Cruz , que lhe eſtava deſtinada. Nel-
les jamais ceſſou de morrer lenta , e
por iſſo mais atormentadamente. A
quaſi immenſa caridade em que ſem-
pre vivera , juntou agora hũa carida .
de immenſa . A febre jamais alar .
gava : a extenuaçao do ſeu eſto
mago era mais extrema: asdores, que
a incommodavao, eraõ exceſſivamen-
te inſoffriveis : os pulſos eraõ tao dé .
beis , e infenſiveis , que mais a davao
por morta , que por animada. A eſte
tempo nao ſe lhe ouviaõ mais que muie
tas jaculatorias , e muitos actos de amor,
e conformidade, offerecendo -ſe a pa .
decer aquellas penas , ſe eſta fofſe
a vontade de Deos , até o dia do Jui-
20. Quando ſe lhe fallava do Ceo ,
a alegria que moſtrava no ſemblante,
parecia que eraõ ja reflexos da patria
das luzes , que tanto ſe lhe aproxi-
mava . O grande delejo , que tinha de
padecer , lhe cornava lodioſo todo o
alivio , que ſe lhe procurava , e eraõ ne-
ceſarios os esforços da obediencia ,
para a obrigar a tomar os medica•
Tom . VII.
13 de Settembro 363
le lhe conferiaõ . Em
huma occaſiao lhe perguntou huma
ſubdita como ſe achava ? Muito
, bem , ( reſpondeo ella . ) Muito
bem ? ( replicava a outra ) como podeis
dizer igo com verdade no mifero
eftado, a que o voſo mal vostem re
duzido? Muito bem , torno a dizer ,
( concluio Soror Maria ) por eſte
fer o eſtado , em que Deos me quer.
Efte era o conceito, que fazia dos teus
achaques , e ao meſmo tempo era deſ
veladiſima por acudir , e auxiliar as
'molettias de ſuas filhas.
38 Mandou á Enfermeira ,que a
deixaſſe a ella , e cuidalle unica , e
mais adherentemente da aſſiſtencia
das outras eoferpas . Outras vezes
Ihes fazia levar aquillo que a ella ſe
lhe trazia ; e porque lhe conſtou que
a Enfermeira, pela nao deixar , havia
faltado a húa Convertida, que tam
bem eſtava moleftada , levou hũa le
veriſſima reprehenfao , dizendo , que
a ley da caridade he totalmente op
poſta a diſtinçoens, e preferencias.
Ganhando mais forças o mal , pedio
o Santiſſimo Viatico , e no outro dia
a Extrema Unçao
Uncao . O Padre de la
Barmondiere , que foi quem a Sacra
mencou , ficou igualmente admirado ,
que edificado do elevado eſpi
rito deſta mulher . Suas filhas , ainda
que penetradas de tao intenſa dor ,
eſtiveraõ attentiſlimas a eſtes ſeus ul
timos dictames : ella lhes deixou por
legado hũa conſtante , e ſeguriffima
confiança nas miſericordias Divinas ,
promettendo -lhes a protecçaõ de Sua
Divina Mageftade em ſeu nome , ca
fo que procedeflem com a devida fi
delidade á ſua vocaçao. Chamando
depois hūa Convertida, que era a que
ultimamente alli entrára , lhes difTe,
que aquella era a ſubſtituta que Deos,
em ſeu lugar , lhes deixava . Em vir
tude deſta inſtituiçao , a elegerao , nao
obſtante a ſuamenos antiguidade , eal
gumas indiſpoſiçoens, que , demais
de outros apparentes inconvenientes,
padecia,por Superiora do Recolhimē .
22 ii to.
 364 RECOPIL À C,
to . O acerto deſta eleiçaõ foi hūa no .
va moſtra do bem que a Serva de Deos
fabia diſcernir , e caracterizar as pef-
ſoas. No dia , em que a Santa Igreja
manda recitar da Miſſa o Evangelho
daquelle Bom Paftor, que deixou no
venta e nove ovelhas por ir em buſ.
ca de hūa , que ſe lhe deſgarrára , e
Elle reconduzio ao rebanho aos ſeus
Hombros , ſe obſervou na Serva de
Deos hūa extraordinaria , e inexpli-
cavel alegria . Ah ,Cariſſimas Irmaäs
minhas , o Bom Paftor me tirou de
Hollanda, e trouxe a Pariz , eago :
ra de Pariz me chama para o Ceo.
Que de eternas graças nao devo eu a
tanto amor , e bondade ! Tinha ja frias
as extremidades do corpo , e por'in-
ftantes ſe eſtava concluindo aquella
tao benemerita vida , e ainda ſe lhe
ouvia dizer com húa ardente , e ma-
ravilhoſa força , que ella pallava ja a
deitar - ſe para ſempre nos Braços de
ſeu Eterno, e amoroſo Pay . Acabou
| finalmente de fazer tranzito do tem ,
po , para a eternidade , com hűa tao
fuave feparaçao de corpo , e alma ,
que mais pareceo que adormecia , que
expirava . Foi o dia da ſua fanta mor
te 13. de Setcembro de 1692. pelas
cinco da manhaa. Contava entao mui-
tos ſeculos de merecimento em 36.
annos de idade.
39 Divulgada a noticia da ſua mor•
te ,acudio hum imměſo concurſo, con
ftituido das peſſoas de todas as condi .
çoens, ao Bom Paſtor.Viao -le alliSa-
cerdotes ſeculares , e Regulares , Se-
nhores , e Senhoras , venerando aquel
le Veneravel deſpojo , e acclamando
a Serva de Deos com grandes , ebem
merecidos elogios . Ella ficou tao bem
affombrada , e flexivel, que antespa-
recia vencedora , que vencida da mor
te . Aquella tao inexpugnavel confian
ça em Deos , que tantas raizes deitá
ra naquelle coraçao , e porque Soror
Maria padecera tantas contradiçõens ,
era agora applaudida uniformemente
com toda a exaggeraçao . Chegou alli
o Padre Baudrand , fucceffor no Cu :
A M de 13 de Settembro.
rato de S. Sulpicio do Padre Barmona
diere , e coma occaſiao de deitar agua
benta a defunta , lhe fez hūa Oraçao
funebre , louvando as altas virtudes
de Soror Maria de Combé , e exhor .
tando ſuas diſcipulas a ſeguir fielmen .
te as ſuas pizadas. Pouco depois tor
nou com o ſeu Clero a buſcar para a
ſua Igreja aquelle Venerando Cada
ver , que as Recolhidas ,por nao per .
der a poffe , bem quereriaõ que an
tes ficaſſe na ſua Capella. Nao faltá
ram muitas Senhoras , que attentas á
juſtiça , e bõa intençao deſtes delejos
quizeſlem apoiar a ſua pertençao ;mas
obſtava a diſpoſiçaõ da Serva de Deos,
que declarou que queria ſer enterra
da em S. Sulpicio , e outra Senhora,
que fora muito ſua amiga , e muito a
ajudára na ſanta empreza daquelle Re
colhimento , ſuſtentava firmemente a
determinaçao da Veneravel defunta.
Por eſtas conſideraçoens foi, ſegun
do aſſim o deixára diſpoſto, ſepulta
da no cemiterio dos pobres 'da Igre
ja de S. Sulpicio . Mas ainda que ella
eſcolheſſe hūa tao humilde ſepully
ra , as ſaudades que deixou , e os lou
vores , com quegrandes , e pequenos
entao a acclamayao , lhe conftituiao
hum funeral mais eſplendido, e gio.
rioſo , do que aquelles com que vaõá
sepultura os chamadosgrandes , e po
deroſos do Seculo . Com a ſanta obra,
que emprendeo eſta inſigne filha da
Terceira Ordem de noſſo Inclyto Pa
triarcha S. Domingos , abriocaminho
a outras ſemelhantes fundaçoens oa
França , em que tem grandemente
reſplandecido a caridade de outrasila
luftre Filhas da noſſa Terceira Ordem .
RECOPIL A C, A M
de 13. de Settembro.
1 O Reyno de Napoles, em
N Venoſa , o Veneravel e
Illuftriflimo Biſpo daquella Cidade
D. Fr. Paulo Oberto. Pelas ſuas mui
tas , e excellentes vircudes foi exalta
do
 D. FR . MIGUEL RANGEL ,
do pela Santidade de Pio V. aquella
Epiſcopal Cadeira , a que ſe eſpera
va que elle accumulatie novosluttres
ſe a morte logo ao principio do ſeu
governo o nao fizera paſlar a melhor
vida no anno de 1567. Theatr .
* Dominic . pag. 319 .
1 2 Memoria de hūa inſigne Chri-
ftrá do Reyno da China , confeſſada
de hum Millionario Dominicano . Mui
induttrioſo ſe tem moſtrado , naõem
poucas , ou vulgares occaſioens o amor
humano ; e niſto nao lhe cede , an
1 Cruz de Cochim , e se consa
tes infinitamente o excede o Amor
Divino . Padecendo algumas Chri
ftaás da China algumas oppoficoeos
> para buſcarem o ſagrado recurſo dos
Sacramentos da Igreja , chegáraó a
uſar de alguns extraordinarios eſtrara
gemas , porque vieraõ aconſeguir fe
lizmente os ſantos fins a que anhela-
vao . Tal foi būa boa Fiel daquellas
partes , que deſejando, como cervafe-
jida ,a fonte das aguas vivas do Sacra-
mento da Penitencia , jamais lhe foi
poſlivel poder ter addito a hum Mif-
fionario nodo , que adminiſtrava oc-
cultamente as funçoensEccleſiaſticas
em húa caſa de campo de bum Fiel .
Nem por iſſo deſcorçoou , antes mete
tendo -ſe em hūa tumba , como ſe real-
mente eſtiveſſe morta , ſe fez , acom-
panhada de hum Chriſtaó , que affe .
&ava levar os inſtrumentos necella .
rios para a ſepultar , conduzir aonde
eſtava o Servo de Deos , que verda-
deiramente a reſuſcitou , fazendo -a
viver em Chriſto . Nao faltárað traças
para eſta bõa mulher tornar para ca-
ſa , e encobrir a fanta acçao que fize-
ra. Ab Senhor, e que reſponderdo a
húa acçao tao ſanta aquelles que, tento
5
do tanto maños Santos Sacramentos,
que para ſua maior ntilidade inftze
tuiſtes, je naõ querem , como devem ,
aproveitar delles ! Hiftor. das Fj .
lipp . 2. p.
14 de Settembro . 365
14.de Settembro
Memoria de algumas acçoens
do grande Servo de Deos , e
Illuſtriſſimo Biſpo de Co
chim .
D. FR . MIGUEL
RANGEL ,
Extrahıda da noticia,quefoi remettis
da por eſcrito a eſte Reyno, pe
lo Illuftriffimo Cabido de Santa
Jerva na Bibliotheca de S.
Domingos de Lisboa .
Ueixa - ſe a maior parte dog
noſſos Eſcritores do der
cuido ſempre fatal, com
a'nofla
Naçað , hűa das mais eſclareci
das, e florentes, que a Europa reconhe
ce em letras , e armas, deixa perder, é
fepultar as memorias mais gloriofas ,
e honorificas, com que Portugal'nað
teria que invejar a Grecia , e Italia ,
ſenaõ que antes poderia fazer-lhes hűa
notavel competencia : eſta queixa nao
pode ſer mais bem fundadado que he,
vendo -ſe quanto as demais Naçoeng
tem cuidado ha muitos ſeculos em
ampliar , e recomendar as glorias dos
ſeus Principes , e naturaes ; mas o
que he mais de admirar he , queſen .
do , como na verdade he , tao antiga
eſta queixa , ainda depois della per
maneça mais iadeſculpavelmente o
melmo deſcuido. He eſte mui preju «
dicial nos fatos de toda a Hiſtoria ;
porém na Eccleſiaſtica muito mais ſem
comparaçao ; porque aſlim fe fepul
tao as acçoens mais dignas de ſe per
petuarem , como aquellas que ſó ſe po .
dem chamar propriamente grandes ,
pelo terem verdadeiramente diante
de Deos , e dos homens. Que osSer
vos do Senhor eſcondað , e occultem
o que obra o , he hũa politicado Ceo
muito bem fundada , e nao menos que
na baſe de todas as virtudes , qualhe
a humildade ; mas que a omiſtab , e
ne
366 D. FR . MIGUEL RANGEL , 14
negligencia dos ſeusCoetaneos , que
as obſervað , e admirao , as deixem
perecer em hum injurioſo filencio ;
isto he hũa affronta muito grave , que
ſe faz , nao digo eu ja tanto á Fé , co
mo á natureza.Odamno quedaqui re-
fulta ſe ficará conhecendo com muita
evidencia das poucas memorias , que
alcançámos do grande Servo de Deos,
e Illuſtriſſimo Biſpo de Cochim D.
Fr. Miguel Rangel , que ſendo pela
maior parte as ultimas da ſua vida ,por
ellas ſe poderá inferir o que perd :
mos nas que nos faltao para o raci 1
navelcomplemento delta memoria , ý
em cudo he tao diminuta , que iendo
promovido este grande Religioſo á
dignidade Epiſcopal, o que nao po
dia ſucceder , fem que elle foffe de
hum naſcimento diſtincto , ou de hũa
Jantidade, e literatura muito eminen-
te ; nem ſequer achamos conſervada
a memoria de ſeus pays .
2 Paflando , pois, ao pouco , e
quaſi nada das noticias do noſo Ve-
neravel Dom Fr. Miguel , que ſe pu-
derao ſalvar do naufragio de hum per-
petuo eſquecimento , vettio eſte pre-
clariſſimo Religioſo o noſſo habitos
começando a naſcer para a Ordem
no melmo dia , em que naſceo a Máy
de Deos para o Ceo , e para o mun-
do ; e como teve hum horoſcopo tao
feliz , nem ha que duvidar , nem que
admirar na grandeza da ſua lantidade.
3 Eſtandoja conſtituido na digni .
dade Epiſcopal, ainda aſſim era elle
tao humilde , que chegou a fazer mui-
tas vezes as camas aos ſeus criados , e
quando alguem ſe deſvelava com mais
aigum empenho em ſervillo , nabaca .
bava de encarecer o quanto le dava
por obrigado a eſta boa vontade , e
diligencia. Hum Franciſco Coelho,
que era caſado na Cidade de Goa , e
hum dos domeſticos do Servo de Deos
que melhor ſe eſmeravao em moſtrar-
fe com elle obſequioſos , era frequen-
tiſſimamente mui ſujeito a eriſipélas ;
e vendo - o em certa occaſiað o Vene-
Tavel Biſpo tao zeloſo , e ſolicito , dif
de Settembro .
ſe - lhe aſſim : Tanto trabalbo !' tanto
trabalho ! Deos the pague ; e confie
no meſmo Senhor , que ainda qne se
canſe tanto , nem por iſſo ha de adoe
cer. Deſempenhou o Ceo elta pro
meſla , porque vivendo ainda Dom
Fr. Miguel mais de tres mezes , nao
ſentio aquelle homem por codoaquel .
le tempo , nem hum vettigio mais ve
nial da ſua ordinaria queixa , quando
aliàs atélli jamais deixava de oviſitar
todos os mezes .
4 Menos favoravel ſim ; mas naõ
foi menos hem deſempenhada outra
predicçao feita pelo bom Operario de
Chriſto a ſeu Confeſſor o Padre See
baſtiao de Aguiar , pottoque a virtu
de do Biſpo de Cochina pode mino
rar , e dar alivio ao meſmo accidente
que annunciava. Vendo pois o noflo
Veneravel Dom Fr. Miguel aquelle
Padre em certa occaſiao , lhe diſſe ,
como aſſuſtado : Recolba -ſe meu Pa .
dre , que ha de adoecer : nao faltou a
execuçao deſte aviſo , cahindo dahi
a vinte e quatro horas aquelle Eccle .
fiaſtico de cama , perſeguido de búa
violentiſſima cezao , que nao pode
moſtrar ás Oraçoens do nofloioſigne
Biſpo a meſma reliſtencia , que fizera
aos remedios mais generofos da Me .
dicina ; porque o enfermo ſe pôs fi .
nalmente a pé, confeſſando que Deo ;
noſo Senhor lhe reftituira a laude pes
la interceſlao de ſeu bom Servo . Elte
era cao graco , e acceito ao Pontifice
Urbano , que ette Summo Pattor da
Igreja Univerſal lhe fez preſente do
Hymno , e Oraçao de Santa Barbara
Virgem , e Martyr, eſcudo tao opci
mo contra os trovoens , que tem da
do vida a muitas peſſoas. Soube com
efeito o noſſo Veneravel Paſtor fazer
o devido apreço de hum donativo
tað eftimavel; porque tanto nao quiz
ſeparar de G em vida , ou em morte,
hứa prenda tao diſtincta , que a levou
comligo á ſepultura; e como aquella
grande Santa he advogada para as boas
mortes , faz-ſe mui crivel, que nao
deixaria de ter grande parte na feli
ci.
 D. FR. MIGUEL RANGEL ,
licidadedaquella,deque morreo o Ser-
vo de Deos , que o que agora ultima.
mente nos refta para eſcrever.
5 Foi elle accommettido da ſua
final doença no derradeiro de Agosto
de 1646 .; e em quatorze dias , que
forao os que ſó lhe concedeo de vida
o Authordella , ſoffreo violentiſſimos
incommodos com hūa paciencia inſu-
peravel . Nenhuma palavra ſe lhe ou..
vio , que nao fofle chêa de confor ,
midade , amor de Deos , e do proxi-
mo , trazendo a eſte propoſito mui-
to de continuo na boca aquellas pala :
vras , com queo Redemptor fazia Ora-
çaõ no Horto a ſeu Eterno Pay : Non
ficut ego volo , fed ficut tu . A queixa
principal, e mui antiga no Venera-
vel Biſpo, eraõ as dores que ! he fuf-
citava o mal da pedra , e eſtas com
plicavao-ſe com outras muitas pena
jidades de vao menos lenſiveis con-
ſequencias ; porque nada podia comer,
ou ſe comia a' guacouſa , como o elto-
mago lha nao abraçava,tudo vinha im-, pediſle conta .
mediatamente fóra ; e álèm diſto , ſop 7. Sendo tenteado finalmente por
portava outras muitas indiſpoſiçoens,
que a ſua humildade fazia igualmen-'
te irremediaveis, que occultas. Foi
mui ſentida em Cochim a primeira
noticia , que correo da moleſtia do Ser.
vo de Deos ; e os pobres , que eraõ
os mais intereſſados,offereceraõ ao Se-
nhor muitas preces , e Ladainhaspa-
ra que a morte lhes nao levaſſe hum
Bemfeitor tað benefico , e fanto .
6
Por hūa grande junta de Me-
dicos , que le fez , ſe aflentou que
pelos effeitos das ſuppreſloens que ſe
iuppunhao na pedra , foſle tenteadoo
Servo de Deos ; porque depois de ſe
fruftrarem tantas , e tao acerbas in-
duſtrias , quantas le haviaô excogita-
do , ja lhes nao ficava algum recurſo,
ou eſperança , mais do que o meio de
centear o Illuftriffimo doente. Quan-
do Franciſco Coelho o inteirou do
acordo , que ſe tinha tomado , tendo
mui novo , e inaudito para elle over
bo tentear , perguntou -lhe o que por
elle ſe entendia ; e ouvindo a reſpoſta,
14 de Settembro. 367
que ſe lhe deo , nað he dizivel o pe .
jo , e confuſao, que entao concebeoo
Servo do Senhor , por haver cultiva
do deſde menino com o maior cuida
do a Angelica virtude da pureza , co
mo ſe já eſtiveſle apertado com ovo
to da ſua inteira obſervancia deſde os
ſeus primeiros annos . Fez todos os
esforços porque ſe evadiile aquella
operaçao , dizendo muitas vezes , e
em com que bem deciarava qual foſle .
o ſeu aniino : E para que querem mo
leſtar , e affiger tað fenſivelmente a
hum Religioſo honeſto ? Quem mais
honeſto, ( ihereplicou de hüa vez Fran
ciſco Coelho ) que o Filho de Deos, e
modo o
sem embargo de tudo , de que
operárað os homens depois que Elle
lhescabio nas mãos. Com eſtas, e com
outras razoens o foraõ fazendo entrar
em eſcrupulos , até que com aflaz de
repugoancia deo o ſeu conſentimen
1o , dizendo que alli ſe tujeitava , o
que ſó fazia para que Deos lhe nao
dous Cirurgioeos , que er Franciſ
co de Abreu , e Antonio Dias ; ſeal .
cançou por Franciſco Coelho , que
toda a repugnancia, que o Biſpo mo
ſtrára , fora effeito de hũa verdadeira
humildade , porque o acháraó com a
fua integridade virgidal , como ſe foſ.
fe hum menino nacido de mui pou
co
co ,, e
e nao
nao faltando
faltando quem attribuiſſe
o caſo a myſterio , por ficar aſſim mais
notoria a virtude do Servo de Deos.
Nao ſe deſcuidava agora o inimigo
commum em combater a D. Fr..Mi.
guel; mas como eſte nome he cao for
midavel ao inferno , nao apreſentava
batalha , de que tiraſſe mais vantajem ,
que a fuga. Prevendo o Servo de Deos
as cilladas deſte cavilloſo; e inexoraa
vel contendor , proteſtou hum dia
que ſe no progreio da fua queixa lhe
falafle a advertencia , ou diflefle al
guma couſa menos conforme como
ſentir da Igreja , deſde aquelle mo.
mento ſe deſdizia , e retractava , e fe
chou finalmente eſte proteſto com a
anti,
 368. D. FR . MIGUEL RANGEL ,
anticipada repetiçaõ que fez do Sym-
bolo , e profiilao da Fé Eſtas meſmas
cautélas repetio elle mais outras ve .
zes , e ſempre com hum fervor, que
bem demonſtrava qual foſſe o centro
de donde ſabiao eſtas levaredas . Ora
dizia que queria viver , e morrer na
Santa Fé Catholica , e dar em ſua . O
defenſa muitas mil vidas , letantas tie
vera. Ora ſe enfurecia arremettendo
contra a parede, para onde foi viſto
dar algumas figas, e punhadas ; ja pe-
dia agua benta ;; agora repetia o Cre-
do , e , o Te Deum ; logo dicia com
grande ſeveridade , e deſprezo , fal
lando com o contendor : Vai·temal .
dito , que nao tens que fazer comigo.
Mas ſe o inferno procurava inquie.
talio , nao fe moſtrava o Ceo menos
folicito em favorecello .
8 Alguma vez ſe oblervou que el .
le eſtava fallando, ſem ſe reconhecer
com quem ; e em outra lhe ouvirao
eſtas palavras : A mim ! Amim ! Quem
sou ell, miſeravel peccador ! O glo-
rioſa , e amante Magdalena ! Oʻama-
do , e amabiliſimo Joao ! O benigno,
e soberano Cuſtodio meu ! Foi conci-
nuando com hum colloquio Latino ,
que nao pode perceber-ſe diſtincta-
mente. Entre os aſſiſtentes,que eſcu-
tavað eſtas couſas com a admiraçao
que ellas pediaõ , entrava tambem
hun Nicolao Gomes , leu bom cria-
do : tomou -o pela maõ o Veneravel
D. Fr. Miguel, dizendo aſſio : Pan
gai-lhe, Senhor, pagai -lbe , pois eu
The nao pude preſtar ; e nao ſomente
vos peço , que vos lembreis deſta vof
sa creatura , fenaő , e muito mais de
volla Igreja , e dos voſſos, e meus Cle-
rigos , quefaõ miſeraveis , e ficaõ em
tanto deſamparo: perdoai -lhes, Se.
nhor ; e le por ventura poſo ter al
gum preſtimo para trabalhar na voſa
vinha , ou na reducçao dealguma mi
ahn ovelha , aqui eſtou, Senhor , aqui
N
eſtou, ġnaõrecuſo ſervir ,e me offereço
a chorar , pelo tempo que for voſa von .
tade , as minhas culpas, e miſerias:
a eſte tempo fez hum movimento com
14 de Settembro.
maior impeto , e proſeguio deſte mo .
do : E não ſó as minhas miſerias , e
culpas , mas todas as offenſas que ſe
vos tem feito , deſde que o mundo he
mundo . Entretanto ſe deixou perce
ber , entre hum notavel murmureo
de grande multidaõ de fallas, eſta voz :
Beate Micha ..... nao ſe podendo
entender a pronuncia da ultima fylla
ba de Michael. Diffundio -ſe entao
hum cheiroſuaviſſimo, eceleſtial por
toda aquella quadra , e eſte perſiſtio
por largo tempo , ainda muito depois
deſtes colloquios.
9 O Padre Belchior da Silva , Ca
pellao , e Beneficiado da Sé , pela boa
harmonia, e amizade, que conſervá
ra ſempre com o noſſo Veneravel Bif
po , era hum dos que elle cinha idais
frequentemente a ſua cabeceira ; eem
hūa quarta feira , dous dias antes que
expiraſſe o Servo de Deos , o convi
dou eſte para ſe irem ambos para o
Ceo : reſpondeo o bom Sacerdote ,
que fim queria , como tao intereſla
do em rer tanta ventura , e em lograr
tao ſanta companhia ; mas , que quan .
do havia de ſer a jornada pira le apa
relhar para ella ? Ao que o bom Pre
lado reſpondeo , que havia de fer na
fetta feira proxima ſeguinte no dia da
Exaltaçaõ da Santa Cruz ; edito iſto
pôs-ſe a cantar , com igual ſaudade
que confiança, aquelle verſo do Pfal .
milta : Attollite portas principes ve
Aras & c. Nao ſomente ſe vio deſte
fucceflo que o noſlo grande Paſtor
teve anticipados annuncios da ſua
morte , ſenao do que elle difle algu
mas vezes aos Padres , que lhe faziao
aſliſtencia , e tanto mais eſcrupuloſa,
quanto mais temiad que o Servo de
Deos os deixalle por inſtantes ; por
que condoendo -ſe do grande trabalho ,
e inquietaçao em que os via , entre
os Hymnos, e Pſalmos, que muito
amiudadamente recitava, os aſſegura -
va deſte modo : Nao ſe canſem tanto
comigo , meus amados irmãos; porque
menos de feſta feira naõpartirei deſte
mundo i mas no meſmo dia be que o
Senber
 D. FR. MIGUEL RANGEL
Senhor que tevea meſma Cruz, que
entaõ ſe feſteja exaltada por ſua glo-
ria , mechamará para o ver glorioſo,
e glorificante no ſeu Reyno.
10 Preparou -ſe para recebero Sá-
tiſlimo Viatico com toda aquella de-
voção , limpeza , e ternura , que bem
ſe pode conſiderar do que deixamos
dito ; e entao fez,vir perante ſi codos
os Padres da ſua Sé , e os Prelados
das Religioens , e fez diante de to .
? dos a profiſſao da Fé . Eltando a pon
to ja de receber o Senhor , levantou .
ſe da cama , e poſto de joelhos, an-
tes de hoſpedallo no ſeu peito , lhe
fallou com tao pias , e ſaudoſiſſimas
jaculatorias, que ninguem podia ou
villas com olhos enxutos : alli ſe fez
Orador da ſua Diecele, principalmen-
te das meninas dos feus olhos , que
eraõ os Eccleſiaſticos , implorando pa-
ra todos muitas benções , e mileri ..
cordias , ſendo veneraveis duas ve.
zes as ſuas palavras , tūa por ſerembar deſaftrada , e humildiſſimamen
colhidas de lugares expreſſos, e ter-
minantes da Eſcritura Sagrada ,
outra por terem articuladas pela boca
de hum Varao tanto de Deos , e em
hūa tal ſituaçao. Tendo ja dentro de
ſi , o ſeu e 'noſio Amado , e maior
Bem , pela fua extrema debilidade , e
attenuaçao , foi, encoſtado a dous Ec-
clefiafticos, acompanhallo deſde a ſua
cama até a porta da fala. Deo -ſe -lhe
conſequentemente a Santa Unçaõ ,
como elle aſſim o pedio e em quan ,
to nao eſteve delirante , poftoque mais
ſe hia enfraquecendo , quanto a mor .
se ſe lhe vinha mais apreſando , naõ
ceffou da aſſidua repetiçaõ dos hym .' eo mundo delles. Que tem que ver
nos , e çapticos Eccleſiaſticos , em os louvores , que ſe dão a hum pode
que a penas ſoftria interrupçao , eain-
da quando ja eſtava mais quebrado , e
desfallecido , forcejou por dizer o
1
Te Deum Laudamus , que com effei-
to ainda chegou a proferir inteira-
mente. Finalmente depois de haver
reſiſtido , e triunfado no ultimo cer-
tame , pafiou a lograr-ſe na Bemaven .
turança da duplicada palma de Ven
cedor , e Virgem em húa ſefta feira
Tom , VII,
, 14 de Settembro. 369.
pelas quatro da tarde , 14 de Settem
bro de 1646. dia muitas vezes myfte
rioſo , e fauſto para o Servo de Deos ,
por ſer dedicado á Fefta , e memoria
da Exaltaçao da Cruz Sacroſanta
Orago da ſua dilectiſlima Eſpoſa , a
Santa Igreja de Cóchim , como tam .
bem da meſma Cidade ; e por ſer aa •
quelle , em que a noſa Ordem faz
commemoraçao de S. Domingos em
Soriano .
II Notavel he a differença , que
ſe dá entre os chamados heroes do
mundo , e os verdadeiros , e unicos
Heroes do Ceo . Muitas vezes os mel .
mos Celares ; que entráraó em Roma
atroando os ſeus ambitos com faitoſif
fimos , e ſoberbos triunfos , e que fo
rao adulados com elegantes , e arti
ficioſos elogios dos mais eloquentes
Oradores, vira6 voltada tao trágica
mente a Scena das fuas affectadas glo
rias , egrandezas , que vieraõ a aca
te ; porque todas aquellas honras, com
e que o mundo os incenſava , erao da
das, ou pelo interelle , ou pela adu
laçao e nao cahião ſobre virtudes tão
ſolidas, e qualificadas , como aquel
las , com que o Alciſſimo ſe digna de
ornar os ſeus Eſcolhidos , cujo triun
fo he canto mais glorioſo , quanto
mais encontrado com os triunfos da
terra : porque ſe eſtes ſe dedicão a
pefloas vivas, e de grande estimação,
e fortuna , os ſeus dão -ſe-lhes de pois
da morte , que he quando elles fao
ſómente conhecidos, pelo reciproco
deſprezo, que elles fizerão do mundo,
rolo, durante as proſperidades cadu
cas da ſua vida , aonde ha mais de yai
dade liſonja, que delilura , e entidade?
Que comparação tem os ticulos de
Pays da patria , e Achlantes do Impe
rio , que ſe vendião tão baratos aos
vaidoſos triunfadores Romanos , com
os vivas , e acclamaçoens de Pays dos
pobres , Columpas dá Religião , é Pro
pugnaculos da virtude ? Nao ſe eſtá
Aaa vendo
 370 D. FR : MIGUEL RANGEL ";
vendo facilliſſimamente quanto diſtaő
huns applauſos de outros; e quaes faó
os que naſcem naturalmente do co
raçao , ou os que la o hum wero effei-
to do artificio , e da dependencia ?
Iſto be o que agora temos que ver no
obito do nofio Veneravel,e Illuſtril .
fimo Dom Fr. Miguel Rangel .
I2 Morto elle , concorrêraõ atro-
pelladamente a condecorar com devi-
das attençoeos o ſeu venerando corpo,
os moradores da Cidade de Cóchim
de todasas condiçoens, ſexos , e ida-
des , ſentindo todos com inconſola-
veis gemidos a ſua falta , e expreflan-
do -a com aquelles magoados , e fau
doſos termos, que lhes ſuggeria a ſua
afflicçao. Eftes funebres threnos do
Veneravel , e Sagrado Paſtor , nað
conſtavaóſómente dos balîdos das ſuas
ovelhas ; porque tambem alternavao
com ellas os Gentios , os Mouros , e
o que he mais , os meſmos Judeos . Ja
morreo o nolo ſanto Biſpo , diziao na
ſua orfandade os Dieceianos do noflo
Pre clariſſimo Prelado ; e concorda-
vað agora todos aquelles inimigos da
nofla fanta Fé , em que era Varað
verdadeiramente ſanto o noſſo Illu-
Atriſſimo Dom 'Fr. Miguel . Torna.
vað os primeiros : Ja la vay , ja se foi
para o Ceo o pay dosneceſitados ,o am
paro dos mendigos , o protector das
orfäas , donzellas, e viuvas. Que ha
de agora ſer de todos ? Quem l.bes ha
de fer bom ? Quem lhes ha de valer ?
E ſeguia-ſe logo over -fe todo o ſegun-
do Coro , continuando : Morreo , de
pois de ſe pôro fol; e eſte que tem ja
agora que fazer , fe nunca poderá af.
fugentar as trevas de triſteza, com
que ficaz enlutados tantos coraçoens.
13 Tocavao - ſe Roſarios , é me-
dalhas no ſeu corpo , como em cou .
fa celeſtial , e cortavao -ſe -lhe os ca.
bellos , e os habicos como eſtimadas
reliquias : exceſto que creſceo com
mais fervoroso empenho quando foi
levado á ſepultura ; porque quaſi por
milagre deixou de ca bir o féretro em
terra. Muitas peſſoas , que ſe acháraộ
14 de Settembro :.
impedidas para ſe encorporarem na :
quelle concurſo , vinhao ás janellas,
e dalli , com as lagrimas nos olhos
acompanhavaõ a voz commúa , como
pregoeiros das virtuoſas acçoens do
noſſo grande Biſpo. Finalmente , le
pultado que elle foi , ſe renovarao
grandes prantos , e gemidos na Cida
de , que parecia ella a habiraçao do
tentimento , e da deſventura : é como
tudo iſto cedia em tanto credito do
bom Prelado , nao quiz o Ceo andar
menos attento nos ſeus abonos , tetti
munhando a lua lantidade com mui
tas maravilhas. Diremos algúas.
14 Indo hum Cavalheiro , chama
do Pedro Bringuel , em companhia de
Domingos de Almeida, viſitar o Pa
dre Franciſco de Barros Matella , na
Cidade de Goa : queixou -ſe a eſte de
hua importuna pontada que trazia de
alguns tempos , e de que ſe achava en
tao meſmo accomercido.Compadeci.
do o Padre daquelle moleſto incom
modo , deo -lhe hūas contas , que ha
viaā lido do uſo de Dom . Fr. Miguel :
beijou - as Pedro Bringuel com muita
fé , e devoçao , e applicando as á
parte doloroſa , em menos de hum
Credo confeſſou que ſe achava ſao ,
e nao ſomente o ficou por aquella vez,
ſenaő para ſempre. = Paſſando o Pa .
dre Domingos Carreiros para Vaj
pim , foi chamado muito á preſſa ,ao
tempo em que ſe hia pondo o fol , pa
ra confeflar Antonio Fernandes , pel .
cador , que eſtava em grande perigo,
por cauſa de hūa colica ſecca , comº
plicada com hũa trabalhoſa eryſipé
la nas partes baixas ; e entendendo
que o Padre era Sacerdote , e Con
fellor, nao tendo elle mais Ordens ,
que as de Evangelho : ſem embargo
diſto , nao quiz elle deixar aquelle
pobre homem totalmente deſconſo
lado ; e como trazia ſempre comſigo
hum pedaço da capa do V.D. Fr , Mi.
guel , deitou -a em būa pouca de a
gua , e dando- lha a beber, lhe pro
metteo por infallivel a ſua melhori :
nem falhou o vaticinio , porque no
outro
 RECOPILAC,
outro dia le achou tað bem diſpoſto
o doente , que , com aſlombro de quan-
tos o tinhao vitto no dia de antes ,
foi continuar as ſuas peſcarias .
15 Achando -ſe com febre, e ator-
mentada com exceſſivas dores de ca-
beça , da Cidade de Goa , a mulher de
hum eſcravo de Manoel Fardilhao ,
e havendo eſtado deſde a meia noite
até as cinco da carde ſem lhe entrar
couſa alguma na boca , o que a vio :
lencia do mal lhe nao copientia , dei :
tou o mencionado Manoel Fardilhao
1
hum pedaço de habito do Servo de
Deos em agua , e correndo Jho aſſim
molhado pela teſta , dando-lhe junta-
mente a beber a agua , varreo intei-
samente a febre , e as dores , abrindo .
ſe-lhelogo a vontade de comer : refeita
eila neceffidade , foi crabalbarimme-
diatamente para hūa quinta , com
tantas forças , como ſe foſſe hum ſo-
pho tudo o que pouco antes havia pa
decido . = Adoecendo gravemente
Magdalena de Faria , natural de Có
chim , e caſada com Jacinto Carreiros,
eſtava ja abandonada de Medicos , e
Cirurgioens: deo - lhe Dona Maria de
. Faria , de cuja familia era a enferma,
hūa pouca de agua , em queſe lançára
hum pequeno retalho do habito do
Veneravel Biſpo , e ſurtio tao bom
effeito eſta diligencia , que naquella
meſma noite lhe rebentou hum apo
ftema interior , que tinha no ventre , e
era toda a cauſa do ſeu mal ; e den-
tro de cinco dias ſe achou livre de
todo o perigo . = Hum prezo do Alo
jube tinha hum olho fechado , e mui-
to offendido ; pôs ſobre elle hum pe-
dacinho do habito do Servo de Deos,
molhado em agua , e logo o abrio ,
deſvanecendo -ſe-lhe nað fómente a
dor pouco , e pouco , ſenao gaſtan-
do-ſe-lhe tambem hūa bellida, que si-
nha naquella parte .
16 Eltava hūa mulher em Cou .
lao , de parto , e em grande aperto
por nao poder expellir o féto : puze.
rao - lhe emcima do ventre būa reli.
quia do habito do V. D. Fr. Miguel ,
Tom . VII.
A M de 14. deSettembro 371
e logo pode parir muito ſuavemente .
Tendo hứa neta de Domingos do
Roſario aſthma confirmada , a fortu
na de beber hūa pouca de agua , em
que fora , metrida hüa pequena parce
do habito do noſſo grande Biſpo ,
lhe fez logo cobrar perfeita ſaude.
Padecia hum menino , filho de Do.
na Maria , cunhada do Padre The
ſoureiro da Sé de Cóchim , hűa peno .
fillima , e immoderada delenteria
que ſe tinha por incuravel ; mas be
bendo hūa pouca de agua , em que o
Meſtre Eſcola da meſma Cathedral
deitou as contas do uſo do Servo de
Deos , melhorou dentro em breve
tempo , com admiraçao univerſal de
quantos haviao preſenciado os deplo .
raveis effeitos daquella moleſtia. Fi
nalmente a outras muitas foi tama
bem hum preſentaneo medicamento
o uſo da meſma agua .
RECOPILAC, A M
de 14. de Settembro.
I Emoria de hum Virtuofil .
M ſimo Religioſo em Zamo.
ra , nos domînios do Reyno de Ca
ftella. Tinha ette Servo de Deos húa
estreitiſſima , e fanta familiaridade
com outro Religioſo , tambem de
grande eſpirito , e virtude , e com
quem
ainda tinha algum gráo de pa
repteſco , da Ordem de noſſo locly
to Patriarca S. Franciſco . Compro
metteraô - le , que aquelle que primei.
ro morreſle , viria, permittindo-o al
fim Deos , a dar noticia , ao que ficaſ.
ſe ſobrevivendo , do eſtado da ſua al
ma . Succedeo ir diante o Franciſca
no , e naõ tardou em deſempenhar a
ſua palavra , apparecendo ao noflo
Religioſo no Refeitorio. Converſá
rao ſobre algūas couſas da vida futu .
ra ; porém o que lhes deo mais ma.
teria a eſta fanta conferencia , foi o
fogo , e penas do Purgatorio , aon
de aquella alma ſe eſtava purifican
do . Dinle , pois, o Minorita que ellas
Aaa ii erao
372 SOROR JERONYMA DE JESUS ; Is
eraõ inexplicaveis ; mas que lhas que
sia inſinuar de algum modo fenſivel-
mente : entao eſtampou em hūa meſa
os veftigios de hõa maó de fogo. Foi
ella hum continuo deſpertador do
poffo Servo de Deos , que applicado
máis ferventemente dalli em diante
a todo o genero demortificaçoens , e
a hūa tal pureza de conſciencia , que
piamente ſe crê , que , tendo o leu
Purgatorio neſta vida , pallou a lo
grar-ſe da eterna, logo que o ſeparou
dos vinculos da carne , e ſangue hũa
preciola morte , pelos annos de 1219 .
Malvend. pag.252 .
2 Nos Paizes baixos , na Friſia em
Lewarden , o V.P.Fr. Cornelio Sue
ki . Alcançou a juſta eſtimaçao de fer
hum Oraculo da ſabedoria , eda pru
dencia económica nos grandes em-
pregos a que foi promovido. Eſcre-
veo muitasObras, que todas cederaõ
em ſumma utilidade da Igreja . Zelou
inceſſantemente o maior bem , ea
mais perfeita obſervancia do Inſtitu-
to Dominico. A fua piedade era inſig-
nemente fervoroſa; e juntando a eſtas,
todas as mais qualidades de hum ver-
dadeiro Religioſo , mereceo paſlar
por hũa ſanta morte , fruto , e pre .
mio de ſeus tao grandes trabalhos , e
mere imētos no anno de 1581.Bi.
bliothec. Ordin .
3 No Japao o glorioſo martyrio
de quatro Irmãos da noſſa Terceira
Ordem . Eraó filhos eſpirituaes dos
noflos Veneraveis Martyres Fr. Joao
Bautiſta de Morales , e ſeus compa .
nheiros , de quem ſe faz mençaõ a
dez de Settembro , e forað martyri-
zados quatro dias depois da ſanta
morte deſtes ſeus condignos Directo .
res . Tinha ) eſtes bons Fieis ſido mui:
tas vezes benéfico , e generoſo aſylo
dos noflos Miſſionarios : tinhao con-
ſumido os ſeus bens temporaes neſtas,
eem muitas outras boas obras : tinhaõ
guardado inviolavelmente o ſagrado
Inſtituto Dominicano, quehaviaõ pro-
feſſado : e tinhaõ dado evidentes de
monſtraçoens de amar a Virgem Máy
de Settembro.
de Deos com a mais extrema,e affe :
Ayola devoçao . Servio pois de Coroa
a tanto merecimento a palma, que lhes
deo o martyrio de fogo , que heroica ,
e intrepidameote padecêra õ pela cau
fa da Fé , no anno de 1622. = Hiftor.
das Filippinas 1.2.6. 33 .
de 15. de Settembro.
Vida da Veneravel Madre
SOROR JERONYMA
DE JESUS ,
Extrabida da Chronica de Fr. Lucas
de Santa Catbarina.
I Enhũa outra couſa organi
N za tanto a formofura do U.
niverlo , como a variedade: as eſtrel.
las , nem todas ſao fixas ; muitas del .
las faõ errantes : nem todas grandes ;
muitas ha pequenas : nem todas be
nignas ; porque ſao poucas as infau
ftas : eno eterno Firmamento do Em
Pyreo ſao os Beatiſſimos Eſpiritos da
quella eterna regiao de felicidades tao
ditindos huns de outros , como as
flores de hum ameno jardim , que fe
ria menos viſtoſo ſe foſſem codas as
ſuas flores de hũa unica eſpecie. Eſta
meſma tao plauzivel variedade aftor
mozeou tambem o noſlo Motteiro do
Santiſſimo Sacramento de Lisboa
copia muito ao vivo do meſmo Ceo
Empyreo , aonde, entre muitas Vir
gens caſtas, floreceo tambem a V.M.
Soror Jeronyma de Jesus , honeftiffi
ma viuva, que ,havendo vivido no Se
culo como Religioſa , dentro da Re
ligiao ſe transformou em Anjo .
2 Chamou - ſe eſta Serva de Deos
noſeculo DonaJeronymaFerraz,como
ſua máy ; e foi ſeu pay Andre Machado
da Silveira. Deſporou -ſe com hū bene
merito conſorce, de muitos que alpi
ravað á triplicada ventura de logra
rem de hum lanço , virtude , nobre,
za , e opulencia. Em quanto foi ſe .
cular , era Jeronyma hūa mao muito
caritativa , e apaixonada dos pobres,
que
 SOROR JERONYMA DE
que ſe lhe deviaõ muito na eſmola ,
The ficavaõ muito mais endividados
pela compaixao , com que ella ſe doia,
e laſtimava das ſuas miſerias ; porque
ſe lhes dava para foccorrellas o que
menos eſtimava que era ordinario pa-
ra ſentillas , dao lhes ſacrificava me.
nos que o coraçao , que todo era de
Deos. No bom regimen da ſua fami:
lia , moſtrava a Serva de Deos igual
prudencia , que Chriſtandade , vene
do -ſe nos coſtumes dos domeſticos
huns viſos , e reflexos de quem os
mandava , e dirigia. Chegando a viu-
var , nao ettimou eſta liberdade, ſe .
nao para mudar de cadêa , e de Ef-
poſo , reſolvendo-ſe a claufurar -ſe , e ſopportar , nað ſómente nem ſequer
dentro das paredes do Moſteiro do
Santiſſimo Sacramento. Via fim que
era tarde ; mas animava-ſe com faber
que os operarios da vinha foraõ re-
cebidos , e premiados , poſto que nao
entraflem todos á meſma hora ; por
que o Senhor della nað ettá tað mal
com a tardança , como com o eſque-
cimento , e he tað bom de contentar,
que nao recebe com menos agrado os
deſejos , que as execuçoens. Veſtido
finalmente o noſſo ſanto habito , pro-
cedêo com hum tao bello deſempe-
nho , durante o anno da ſua approva-
çaõ , como ſe nunca houveſſe levan .
iado mao daquelles exercicios. O que
havia de mais trabalho , iſſo era o que
ella buſcava com mais goſto , e facis-
fazia com a maior pontualidade , fa •
zendo de ſi hum tað baixo . conceito,
que ainda lhe parecia que nao era dig.
na das mais abjectas occupaçoens na
Caſa de Deos .
3 Daqui ficará muifacil de inferir,
qual ſeria o zelo , qual o fervor, com
que ella ſe havia nas materias tocan-
tes ao rigor do Inſtituto , ou vencen-
do , ou deſmentindo os ſeus muitos
annos . A aſliſtencia do Coro era
pouco menos que continua , e os
jejuns , e diciplinas os mais aſperos,
e frequentes. Era tal a ſua ancia , cal
o ſeu eſpirito ,que parece que ago-
ra queria exceder-ſe a ſi meſma, para
JESUS, 15 de Settembro 373
refazer o tempo , que havia cardado
em buſcar o porto da Clauſura . A'
inſtancia , que lhe faziao os annos , e
aos argumentos, que lhe punhao, e
oppunhao os Medicos para que affro
xalle daquella força com que profe
guia a ſua carreira , fe fazia cao ſurda
a Serva de Deos , como dizem ſe faz
o aſpide ao murmureo do encanta
dor . Nao deixaria eſte desprezo ,de
contribuir tal vez para apreſlar-lhe
būa perigoſa , e longiſſima enfermi.
dade ', com que parece que o Ceo
quiz ſubir de ponto a ſua inalteravel
paciencia. Como quem nao podia ig
norar o muito que lhe bia em padecer
tinha boca para hum flebil ſuſpiro
ſepao que pedia com grandes exag
geraçoens á Enfermeira que fervitſe
primeiro todas as mais doentes, deig
xando - lhe a ella o ultimo lugar.
4. Por muito que padeceffe ; fa
bîa ella moſtrar que era tao pouco
ou nada , que jamais ſe lhe percebia
no roſto indicio algum de pezar , ou
ſentimento , ſenaö pelas faltas da Sa
grada Communhao : eſta , e nao oq
tra, era a unica iguaria, de que ſempre
andava faininta , e deſejoſa. Para aca
lentar de algum modo as ſuas fauda
des , pedia aquellas Religioſas queha
viaõ de ir receber o ſeu Amado , nao
ſomente que lhe repreſentaſſem da
ſua parte , que a ſua elcrava ſe fazia
preſente á ſúa memoria , ſenao que
lhe trouxeſſem reſpondida eſta ſua re
preſentaçao. Como as Freiras eſtavao
cabalmente perſuadidas da grande de
voçaõ da Madre Soror Jeronyma ao
Senhor Sacramentado , cada hūa del
las quando tornava lhe dizia lua reſ
poſta, e de ordinario extrahidas to
das do Officio do Sacramento . Gotta ,
va muito com iſto a V. Madre , expli
cando os meſmos lugares com doutri
Das ca o doutas , folidas , e efficazes,
que pareciao ſuperioresao ſeu juizo ,
poſto que foſſe , como era , mui diſ
creta , e mui pratica na intelligencia
dos latins, que aprendêra , e exercitá.
ra
 374 SOROR JERONYMA
ra com muito goſto , e applicaçao ,
pronunciando o e construindo o
com raó elegante acerto , como ſe
folle aquella ſábia lingua a ſua mater-
na : exemplo que deviaõ ſeguir to-
das as Espoſas de Chriſto , para ſer-
virem ao meſmo Senhor com a maior
perfeiçao , para ſenaõ privarem dos
penetrantes rayos de luz , que le en-
contraõ a cada paſſo na reza do Offi .
cio Divino ; e para cooperarem aſſim
melhor para a inſtrucçao , e aprovei.
tamento das ſuas Co -Religioſas , á
imitaçao da V. M. Soror Jeronyma
de Jesus , a quem ſervio de muito eſta
ſua bella prenda , para inſtruir , e af.
fervorar as Noviças com os muitos ,
e ſalutiferos documentos , que lhes
propunha .
5. Eſta nimia devoçaõ da Serva
de Deos ao maior dos Sicramentos,
foi- lhe remunerada pelo meſmo se ,
nhor, com búa graça , que pareceo
milagroſa ; porque aggravando -ſe-lhe
a molettia , e declinando para huns
vomicos muito violentos , diſpuzé-
raó os Medicos que foile Sacramen.
tada . Entriſtecerao -ſe muito as Re-
Jigioſas, vendo impoſſibilitada a M.
Soʻor Jeronyma para receber o ſeu
Divino Amante , e muito mais le con-
triitavao , conſiderando bem o eſpe-
cial affecto , que a Serva de Deos lhe
conſagrava na Angelica Mela Euca.
riſtica ; mas ( quem tal diſſera ! ) af-
fligindo -ſe tanto ſuas companheiras ,
ſó por iſto ſe nao affligia a bõa Reli :
giola , antes tomava à ſua conta con-
folar as mais , promettendo - lhes, que
nao ſe lhe havia de ſeparar a alma do
corpo fem partir do mundo laciada
daquella ſagrada corrente de deli-
cias ; e quanto o mal ſe fazia mais
grave , e creſciaõ os vomitos com mais
exceſo , tanto eraõ maiores as eſpe
ranças que dava do cumprimento do
Seu annuncio . Nem baltou para re
/
tractar ſe , ou deſdizer -ſe , o ver -ſe
taó vizinha ás portas da morte , que
chegou a eſtar ungida ; porque á viſta
de tudo iſto nao ceſſava de reforçar
DE JESUS, 15 de Settembro .
novamente a ſua palavra:
6 Continuava a impoſſibilidade
com o maior progreſlo , quando ſuce
cedeo paflar o Santiſſimo por Viari
co a outra doente : aqui ſe lhe avivá .
rao os ſeus ardentiflimos delejos , e
pedio que , ſuppoſto paõ lhe dar lu
gar a ſua molettia para hua dica ſe
melhante a daquelloutra Religioſa ,
ao menos lhe permittiſſem a conſola
çaõ de adorar mais de perto o Augu .
itiſſimo Pao dos Anjos : que repug
nancia podia haver que encontralle
hűa petiçaõ tao jufta , e de peſſoa tað
juſtificada ? Entrou o Senhor na fua
cella , e a Veneravel Madre Soror
Jeronyma o adorou com tanta Fé ,
amor, humildade ,e reſpeito , que á
viſta de tao bella diſpoſiçao , ſe ficou
evidentemente alcançando as violen
cias que ficaria padecendo em ſe lhe
naó participar aquelle Manná ſuaviſ
fimo da gloria. Tornou enrao de no
vo a fazer os ſeus coſtumados prote
ftos , e ratificaçoens , dizendo : que
1
nao havia de ſer aquella a ultima viſi
ta , que lhe fazia o feu Adorado , e .
Adorabilliffimo Bem , e que ficava
1
certiſſima da ſua Miſericordia , que
ainda ſe dignaria de entrar no baixo,
e indigno te &to do ſeu coraçao . Nao
cardou o effeito tantas vezes promet .
rido , e eſperado deſta predicçao da
Serva de Deos; porque ,contra toda
a eſperança humana , le finalizárao os
vomitos no outro dia , que era hua
feſta feira , 15. de Settembro de 1628 .
Recebido o ſeu Amanciſſimo Eſpera
do , occulto debaixo das eſpecies Sa
cramentaes, foilograr no meſmo dia
face a face a ſua viſta por toda a eter
nidade por meio de húa feliz , e di
toſiſſima morte, deixando nella mui
evidentes finaes da ſua eterna felici
dade .
15 de
 SOROR MARGARIDA DO ESPIRIT: 5.00, 15. de Setembro
15. de Settembro.
Vida da Veneravel
SOROR MARGARIDA
DO ESPIRITO SANTO ,
Converſa no Moſteiro do Santil .
fimo Sacramento de Lisboa ,
Extrabida da Chronica do Padre Fr.
Lucas de Santa Catharina.
I Oplendêrao antigamente
Clea r
ſette Cidades , percenden .
do honrar - ſe cada hūa dellas com ſer
patria de Homero : ſe hum Poeta
Gentio ſe conſiderou baſtante para
felicitar aquellas ſette Colonias da
Grecia , quanco ſe pode ter por mais
glorioſo o lugar de Bemfica, em ha•
ver ſido berço nað ſó de hūa , ſenao
de tantas , e tao ſantas irmáas Con-
verſas , que tem florecido no Reli .
gioſo , e obſervante Moſteiro do San-
tiſſimo Sacramento de Lisboa. Entra
nelle eſclarecido numero Soror Mar.
garida do Eſpirito Santo , cuja vida
igualmente foi hum retrato da more
te , cuja morte foi hum retrato da
verdadeira vida .
2 Ficára de mui pequena ſem māy
a Serva de Deos ; e dando-lhe ſeu pay,
dahi a pouco tempo , madraſta , come-
çou eſta a moſtrar-ſe taó deſarrazoa.
da com Margarida , como ſe experi-
menta mui de ordinario neſtas mu.
danças : apenas conſervava de filha
a pobre menina mais que o nome ;
porque , quanto ao trato , naõ era mais ,
nem menos que hüa eſcrava , corren:
do por ſua conta todo o pezo do tra
balho . Condoia - ſe de vella em eſtado
tao triſte hūa ſua tia , nao mais que
pela obſervaçao que fazia ; porque
à Serva de Deos , pela lua bõa cria-
çao , e muito mais por aquellas vir
iuoſas condiçoens, com que a pren .
dára o Ceo , tolerava , com igual con-
ſtancia , que ſilencio, as mais traba +
Ihofas fadigas ; e attenta aos adianta-
mentos da ſobrinha , deſejava tralla
daquella injufta fervidao , mas acha .
375
va -ſe embaraçada pela falta de meios :
iſto , porém , nao obſtante , tentou
buſcar , e buſcou , o ſeu recurſo no
Molteiro do Sacramento de Lisboa;
e forao tao bem ſuccedidas as ſuas di.
ligencias , que foi acceita para Con
verſa , a pobre moça , ainda que mui
to a pezar de seu pay , que perdia
deſta vez hūa ſerva tað baraca, e tao
humilde .
3 Admittida finalmente a noſſa
Converſa ao habito Dominico fou
be reconhecer tanto o beneficio , de
que eſtava devedora aquella Caſa
que por todo o tempo da ſua vida ja
mais perdeo a memoria detta obriga
çaõ ; pelo queera muiordinario acha
rem -ſe- lhe, em quarenta annos, que
viveo naquella Clauſura , eſtas pala
vras : Eu nao ſou Freira , nao, you
būa inutilpobrezinha de Chrifto, ad .
mittida , e ſuſtentada pelasReligioſas
por amor de Deos. Trabalhava nas
officinas com o maior zelo , e dili
gencia , que pódeimaginar-ſe , enten
dendo que quem tanto ſe deſvelára
na caſa paterna , sonde havia expe •
rimentado tanto deſamor , devia do
brar , e treſdobrar a actividade , aon
de viera achar nað fómente a ſua re.
dempçao , mas hum tað grande cumu.
lo , e abundancia de bens eſpirituaes .
Quaſi ſempre dormia veſtida ao pé de
algum altar , para eſtar mais prompta
á Oraçao , que he por onde ella dava
principio , e fim ao ſeu tráfego ; pora
que á noite , findas as duas occupa
que
coens, cornava outra vez á contem
plaçao , a que chamava o ſeu centro ,
e a que entao dava mais largo tempo,
juntando aos cuidados de Martha a
devoçaõ da Magdalena : para iſto ſe
levantava' muito de madrugada , e
paſſando para o Coro , alli le deixa
va ettar , aré ſe fazerem horas de ir
para a ſua officina, aonde parece que
tinha cem maos , ſendo nella muito
igwaes, a ordem , o aſſéjo , a vivezas
e a taciturnidade ; virtude eſta , que
dava muito que merecer á Serva de
Deos , por ter mui fogoſa , e terna
tural
 376 SOROR MARGARIDA DO ESPIRIT. 5.00, 15. de Settembro
tural de reſponder : mas aſſim ſabia
ſupprimir , e mortificar as ſuas incli
naçoens , que igualmente dava moti-
6 vo ao paſmo, que a edificaçao.
4 Era mui dáda á Santa peniten-
cia , e tað parca na meſa , que rariſ
fimas vezes ſe alargou ao regálo de
comer hum bocado de peixe , paf-
fando cõmymmente com hervas , e
legumes ; o que era muito de notar
em quem , como ella , fervia na co .
zinha, ande o goſto , ou a neceſſida
de lhe pudéra offerecer algúa occa-
ſiao de appetencia . A ſua caridade
era verdadeiramente Chriftka , e re
ligioſa , e á boa pratica, com que ella
exercia eſta Rainha das virtudes , ſe
lhe attribuhia a belliſſima diſpoſiçaõ
com que ſe conſervou por todo o tem .
po que viveo no Moſteiro , nao ha-
vendo moleſtia que ſe lhe atreveſſe .
Contava ella , nao com menos graça
que ſingeleza, que ao tempo em que
eſtava deſcançando hūa noite , e nem
bem dormindo , nem bem acordada ,
ouvîra hūa voz , ( devia ſer do ſeu bom
Anjo , pelo que depois ſe obſervou )
que lhe dizia : Levanta -te , e vai
rezar pelo Conde de Baſto : ( aquelle , ao coveiro , viſto fer húa caſa , aon
tempo , era Dom Diogo de Caſtro )
acordou , e parecendo -lhe que o que
ouvira ſeria effeito do ſomno , tornou a
encoſtar - ſe , e apenas hia dormitando ,
ſoou de novo o meſmo aviſo , a que
ella obedeceo promptamente. Verifi .
cou -ſe depois , que a Serva de Deos
nao fora illuſa ; porque dalli a tres
dias chegou noticia ao Moſteiro de
ter fallecido aquelle fidalgo.
5 Trazia continuamente na me-
moria os dous fins, que laó comunsa
todos os humanos , e que os Chriſtãos,
e mais reſtrictamente os Religioſos,
nunca devêrao perder deviſta ; ofima
do corpo , que he a morte , e o fim
da alma , que he Deos: por tudo iſto
commungava Soror Margaridd a uas
yezes na ſemana , trazendo aſſim a
a fua conſciencia igualmente limpa
que menos arriſcada . Veremos ago ..
ra , no que reſta que dizer , quanto
The aproveitou būa precauçao tao
prudente , e bem fundada.
6 Cahio finalmente de cama com
hūa grande febre , e delenganada ja
dos Medicos , ouvio eſte apnuncio
com tanta ſerenidade , e alegria , co
mo recebera hum captivo a nova da
lua liberdade . O que entao fez , foi
voltar ás Religioſas, e pedir - lhesque
entoalem por ella o Te Deum , em
agradecimento de acçao de graças ao
feu Senhor . Ja diſlemos que era a Ses
va de Deos muito ſilencioſa , ecomo
tal , nunca ſe lhe tinha ouvido galan .
faria algúa ; agora , pelo contrario
diſſe algumas , e com muito pico , e
lepôr : foi húa dellas , vendo ler mui
to curta a cama que lhe fizerað , di
zer ás Religioſas que eſtavaõ prelen
tes : E quem me diſera a mim , mi .
nhas Madres, que nao mehavendo eu
deitado em leito em tantos annos, para
ſervir melhor a Volas Reverencias,
chegada hüa occaſiao, em que me foi
neceſario deitar -me em cama , ſeme
havia de fazer hila tað efcaſamente,
que nao me dá lugar a eſtender-me
nella ? Ora pois, nað ſeja afim com a
cova ; mandem fazella bem comprida
de todos cabem , grandes , e pequenos.
7 Obfervando hūa Religiofa o
muito que padecia com o ſeu febrað
a Serva de Deos , diſſe - lhe : que ſe
conformaſſe muito com a Divina von
tade , e agradeceffe muito á Provi
dencia aquelle mal , que lhe dava a
ſentir , e com que abbreviaria talvezo
ſeu Purgatorio . Muito me admiro eu
( lhe cornou Soror Margarida ) de vof
ja Reverencia me aconſelhar que
me reſigne no querer de meu Se
nbor : iſto nað he padecer , nem pa
ra lá vai ; tomara eu que as minhas
penas foſem maiores , e ſentillas por
ſeu amor até o dia do ultimo Juízo.
Ettando ja Sacramentada , e entran
do por inſtantes em agonia , pergun
tou muito em ſeu acordo ſe estavao
alli os Padres. Para que ? ( The reper.
guntou hűa Freira ) Quer -ſe confefTar?
Confeſar,naő ,(reſpondeo SororMar
garida ) porque nunca pela miſericor
dia
 SOROR JOANNA DE SANTHIAGO , 15 de Settembro.
dia do Senhor reſervei a Confſaõpa .
ra hum tal extremo: o porque per-
gunto por elles , he para ſaber ſeaca-
baõ de mandar-me ja para meu Sec
nhor JESU Chriſto. Entao ſe abra-
çou eltreitamente com húa fua devo-
ia Imagem , e concluido que foi o
Officio , pedio a véla , e entre , ſuavif-
ſimas jacularorias , exhalou , ao mo .
do de hũa candida pomba , o ſeu in-
nocente eſpirito ; que, como piamen-
te ſe crê , voou ao premio daGloria
em 15. de Setembro de 1659. dia
mui glorioſo nos noſſos Faſtos , por
1
fer aquelle meſmo , em que ſe feite.
a milagroſa Imagem de noſſo San-
tiſlimo Patriarcha , trazido do Ceo
.
ao Convento de Soriano , pela Rai .
nha , e'Senhora de todas as creaturas .
15. de Settembro.
Vida da Veneravel Madre
SOROR JOANNA
DE SAN T - IAGO ,
Conforme as memorias , que ſe conſer-
vaõ no Moſteiro de Noſa Senbo .
ra da Aſsumpçao da Villa de
Moura em Portugal.
Um dos mais perfeitos
H exemplares das virtudes
Evangelicas, dos votos da Religiao ,
e da obſervancia, e zelo das Confti-
tuiçoens da Ordem , he o argumento
da preſente memoria , que entramos a
eſcrever , a Veneravel , e penitente
Madre Soror Joanna de Sant-lago,
com que nao menos ſe gloria , que ſe
ennobrece o Ceo Dominicano . Nal-
ceo elta inſigne Religiofa na Villa de
Moura , e foi filha de progenitores
muito nobres , que emparentavaó com
a Fundadora do pollo Motteiro de N.
Senhora da Aſſumpçao daquella ter
ra ; para onde entrou Joanna tendo
oito annos, de idade , dando logotao
bõas moftras do que havia de ſer ao
diante que em 67. annos que teve de
clauſura , apenas ſe lhe pode perce :
Tom . VII .
377
ber outra differença entre elles mais
que alguns accidentaes , e increpa
veis effeitos do tempo . Chegando a
ter idade capaz , tomou o habito : e
havendo ſido mui admiraveis as diſ
poliçoens de Oraçoens , jejuns , e
diciplinas,com que ſe prevenio para re
cebê - lo ; depois de recebido , procu
rou fazer , e fez hūa tal vida, que
mais parecia de hūa das primeiras San .
tas da Ordem , que de hūa Religioſa
a mais auſtéra , obſervante , e refor
mada .
2 Retirou ſe , com licença das
Preladas, a viver em hứa Capellinha
do grande Bautiſta , que eſtá na cerca
do Moſteiro , de donde ella aao fa
hia , mais , que para ſe achar nas fun .
coens preciſas daCommunidade , vol
tando fe immediatamente ao ſeu ama
do retiro. Aqui gaſtava o tempo em
fervoroſa , e larga Oraçao , em exer
cicios devotiſſimos, e em aſperrimas
penitencias ; abftrahindo -ſe tanto das
couſas do mundo , que parecia nao
viver mais que para Deos , e fó em
Deos . A's Ave Marias , paſlava para
o Coro , e alli ficava orando de joe
Thos a maior parte da noite . Nelle mel
mo lugar deſcanſava algum pouco
tempo , ſe por ventura ſe pode cha .
mar deſcanio o que ella buſcava , nað
ſe deſpindo jamais , e fuftentando
fe, curvada de brucos , ſobre os joe .
lhos , e ſobre as maos : e como ſe iſto
foſſe pouco , pedia a outras Religio.
fas, que tambem alli ficavao , que ſe lhe
deitaflem ſobre as costas, o que algu
mas dellas aflim faziaõ , ainda que
muito contra ſua vontade , por ſe li
vrarem por hūa vez dos ſeus rogos ,
e importunaçoens. Os rigores inau
ditos , cam que efta Serva de Deos ſe
maltratava , eraõ igualmente aflom .
broſos , que eſtranhos. A ſua abſti
nencia nao ſomente emparelhava , mas
tranſcendia as mais abalizadas ; por
que o ſeu ſuſtento mais quotidiano
era hūa celada muito groſſa , e mal
feita , de hervas cruas , de que nem
ainda ſe abſteve depois de cega , ſens
Bbb do
378 SOROR JOANNA DE SANT- IAGO 15 de Settembro .
do a Madre Soror Joſepha Bautiſta
a que entao lhe preparava eſta bella
iguaria , que ella atava em hum pan
po , de donde bia tirando por toda a
lemana , em cujos ultimos dias ſe vê
muito bem o eitado , em quele acha-
ria aquelle bom prato . Nao tocava na
raçað , que lhe dava a Communidade ;
porque inteiramente hia aos pobres:
e não affroxava a Madre Soror Joan .
na deſta ſua nimia ſeveridade , ſenao
em occaſiaõ de doença , ou em alguns
dias , em que ſe ſentia mais quebrada
de forças;masainda neftas occaſioés,
que eraõ rariſſimas , fazia a mortific
caçao de naõ bolir em couſa de regá-
lo .
3 Achando -ſe ja muito velha , e
carregada de muitos , e trabalhoſos
achaques , que lhe adquirirao as af
perezas tao notaveis da ſua vida , re-
tirou ſe entao da Capella do Santo
Precurſor , e aquellas breves horas ,
que permittia de tregoas ( { e ainda aſ-
fim as permicia ) a tanto ſoffrer , e pa.
decer , pallava ella , com licença das
Superioras , em hìa caſa aonde dor-
miaõ as criadas : tinha para iſſo hum
colchaozinho , mas tao apoucado , e
faminto de loā , que era o meſmoque
le ficaile caboalmente ; ainda aſſim ,
tal , qual elle era , nað lhe ſervia de
mais , que para encoſtar nelle os coto
vellos ; porque jamais ſe desfez do
ſeu antigo eſtylo , que ja diſſemos, de
ficar por aquelle tempo veſtida , ede- .
bruçada. Foi obſervantiſſima dos tres
votos , enaomenos das Conſtituiçoēs
da Ordem : foi tao pobre , que nun •
ca teve mais de ſeu , ſenao o que le
vou comſigo á lepultura . Cultivou a
obediencia com a bumildade ; a pu-
reza com a mortificaçao. Guardou
o ſilencio tao perfeitamente , que ( ex .
cepto em couſas preciſiſimas ) nem
ainda fallava no tempo que ſe permit
te : amou tanto eſta virtude a Vene .
ravel Madre , que nem ainda em oc
caſiaõ demoleſtia , nem peloinciden
te de cegar alguns annos antes da ſua
morte , le lhe pode ouvir hum ay ,
ficando - lhe deſte modo maisfenſiveis,
e inſopportaveis os teus males .
4 O desprezo proprio , e o bai
xillimo conceito que tinha de ſi, foi
hum abyſmo, em que a Serva de Deos
fepulcou quaſi todas as ſuas acçoens ,
cuja noticia nao poderia deixar de ſer
mui glorioſa para o noſo habito . Ele
ſeu humildiſlimo abatimento lhe inf.
pirou a rejeiçaõ que fez muitas vezes
da Prelazia da Caſa , reſpondendo
com a maior finceridade que ſe acha
va deſtituida de talento para gover
nar , e procurando corroborar ella ſua
eſcuſa com muitas razoens, que pelo
eſpirito , e bumildade com que eraõ
proferidas , deixavao as Religioſas
lummamente edificadas. Nem os ſeus
muitos aonos , e achaques , nem a fal
ta de viſta , que padeceo , como ja in
dicamos , a Serva de Deos, forao ba
(tances a fazer - lhe affroxar a corda do
arco , que ſempre aflettára contra ſi,
como preſenciava toda a Communi.
dade , e muito particularmente a Ma
dre Soror Jolepha Bautiſta ; porque
elta , depois que lhe faltou o lume dos
olhos , era a que a levava pela mao para
o Coro , e dalli a tornava a pôr , ere
pôr na ſua quadra .
5. Húa vida tao regular , e tao au
i
ſtéra, foi coroada com húa precioſa ,
e ſanta morte em 15. de Settembro
de 1700., partindo deſte mundo com
todos os Sacramentos, e com hũa tal
luavidade , que mais pareceo ý paſſava
por hum ligeiro , e brando fomno ,
que pelos terribiliffimos , e tremen
dos effeitos da morte. Ficou o ſeu
corpo mui flexivel , e maneavel , e
com hūa cal formoſura , que contan
cando entao 75. annos de idade , eha
vendo ſido ſempre penitentiſlima, nem
hūa ſó ruga ſe lhedeſcobrio no roſto .
15. de
 SOROR AGUEDA DE
15. de Settembre.
Vida da Veneravel Madre
SOROR AGUEDA
DE JESUS,
1 Fundadora do Recolhimento da noſa
Terceira Ordem da Cidade de
Braga , em Portugal.
I
S dias , em que naſceo , e
O morreo a noſſa Irmak Ter-
ceira Soror Agueda de Jesus , deraõ
buns feliciſſimos augurios de que ſe .
ria , como foi , hũa verdadeira filha
de S. Domingos ; porque hum , eou
tro foi aquelle de 15. de Settembro ,
em que a noſa Ordem faz comme-
moraçao deſte ſeu Preclariſſimo Pa.
triarcha em Soriano . Seus pays, bem
que gente de campo ,eraõ opulentos,
emuiabaltados do que ſe chamaõbens
da fortuna : chamavaõ.ſe Domingos Companheiro, filhos do grande Pa
Franciſco , e Catharina Barboſa , e triarcha S. Filipe Neri ; e por conſe
affiftiao em húa quinta chamada a
Cortinha, na fregueria de S. Juliao
de Taboaſſos, no Concelho de Viei-
ra , da Dieceſe Primaz de Braga . Te-
ve hum irmao Sacerdote , e foiirmaa
de Maria de JESUS, que floreceo com
bõa opinia o no Recolhimento da Or-
dem Terceira , fundado pela noſſa
Serva de Deos , naquella Cidade. Del
de muito pequena foi logo mui da
da a couſas de devoçao , pelo que quiz
aprender a ler , para ſe applicar aos
livros eſpirituaes: ſeus pays nao go .
ſtavaõ difto , e fizerao quanto eſteve
da ſua parte por atalhar eſta ſua pere
tençáõ ; mas ella lá teve meio ás ef-
condidas de aprender a ler por alguns
livros , e pelo tempo adiante ſe exer-
citou tambem no eſcrever.
2 Em trinta annos , que viveo no
ſeculo , foi ſempre tað ajuſtada com
a Lei de Deos, que mais parecia viver
em hűa clauſura , do que em caſa de
ſeus pays . Era neceſſario que ella os
ajudaſſe no trabalho do campo , e an-
dava a noſſa Agueda taõpontual com
Deos , e com os ſeus maiores , que
em nenhuma parte faltava : elles , que
Tom. VII.
JESUS , 15 de Settembro. 379.
viaõ eſta ſua exacçao , nao lhe atalha .
vao o ſeu modo de vida . Era mode .
ftiffima,einimiga juradade tudo aquil
lo que tinha alguo fabor a gallas , ou
vaidades ; jamais trajou fenaô de cor
honefta : em tempo nenhum deixou
creſcer o cabello , nem uſou nelle de
algum enfeite : nunca pôs nas orelhas ,
que por iſſo nunca as furou , nem fe
quer huns brincos de pouco valor ;
nem tinha de ſeu peça alguma deou .
ro , ou prata. O ſeu thelouro era o
do eſpirito : levantava -ſe todos os dias
muito cedo , para poder ouvir Miffa,
e viſitar a Via - Sacra . Frequentava
muito a Igreja , e os Sacramentos; e
por viver ſujeita a obediencia , abra
çou o Inſtituto da Terceira Ordem de
noſſo Padre S. Franciſco. Succedeo
irem a prégar de Miflao ao ſeu lugar
o Padre Joao Ferreira , e outro leu
1
lho deſtes , deixáraõ a nota Agueda ,
e Maria lua irmaã a patria , para vi
rem ; como , vierao , viver à Cidade
de Braga. Aqui ſe aflociáraó comel.
las algumas companheiras , que de
mui boa vontade admittirao , viven
do todas com muita perfeiçao de eſo
pirito .
3 Poſtoque Agueda era muito mais
moça , ſe The fometteo fua irmaá ,
foſie por humildade , foffe porque a
ſua capacidade o merecia , ou por
hum , e outro motivo . Vendo tao
bons principios a noſſa Agueda , quiz
principiar a fundar hum Recolhimen
to ; porque ja a vida, que naquella
Cala ſe fazia , era tao edificativa , e
regular , que ſó carecia daquelle im
plemento . As penitencias eraõ mui
tas , e amiudadas ; havia horas deſti
nadas para o ſilencio , hum recolhi.
mento muito grande; porque fomen a
ce a muita neceſſidade a fazia fahir
fóra a negociar o que era preciſo ,
ſem haver permiſſo para que asmais
fizeſſem ſemelhantes ſabidas. Tanto
que le perceberað os intentos da Ser.
va de Deos , começáraõ à iplurgir
Bbb ii COA
 380 SOROR AGUEDA DE JESUS , 15
contra a ſua reſoluçao milhares de
contradiçoens. Houve oppoſiçoens ,
demandas, obſtaculos ; mas a cauſa
bem mostrou ſer de Deos : porque
fendo poderoſos, e authorizados os
contendores, ſempre em fim ficou o
vencimento pela parte de Agueda .
i 4 Vendidas hūas caſas ,que quan-
do paſjárað para Braga haviao com-
prado da rua da Quingoſta , pafláraó
a viver para S. Victor , aonde come
prarað hum campo ahum Cavalheiro ,
capaz para a fundaçao que ſe intenta-
va. Atéqui , poſtoque os ſeus exer-
cicios erão taö religioſos, e em Bra
ga havia tantos Conventos, e Moſtei-
ros das Sagradas Religioens de hum , ' comprida , e importona , como he a
e outro léxo , nao veſtiao habito al-
gum Religioſo , trajando todas de ſes
culares . Muito ſe inclinava a noſſa
Agueda a profeſſar o Inſtituto de Tri-
na ; mas quando menos ſe eſperava,
fez , e , ao que pareceo por muitos fi-
paes , nao fem particular inſpiraçao
do Ceo , eleiçao da noſſa Terceira
1 Ordem Dominicana . A eſte fim par-
tirao todas para a coroada , .e nobilif-
fima Villa de Guimaraens , aonde re-
ceberao o habito das maos do Dire-
or da noſſa Veneravel Ordem Tere
ceira , o Padre Fr. Jozé Corrêa .
: 5 Veltida a noſſa Agueda de Ter-
ceira Dominica , recebeo niſto hua
ao grande conſolaçaõ , que jamais
deixou aquella galla do Ceo . Quanta
foſſe a ſua devoçað á Ordem , conita
do muito que por ſeu reſpeito fez , e
padeceo. Intentou fundar oa meſma
Cidade outro . Recolhimento , cam-
bem de S. Domingos , e effectivamen
te chegou a comprar para iſlo hūas ca
fas , na rua das Goladas . Tambem
emprendeo eſtabelecer hum Conven-
to dos noſſos Religiosos alli meſmo ;
poſtoque, por altos juizos de Deos,
nað ſurtirao 'effeito as boas diligen-
cias , que fez para o conſeguir . Era o
ſeu animo , que ficaſſe aquelle Reco .
lhimento debaixo da noſſa obedien-
cia ,e aqui forao immenſas as ſuas
perſeguiçoens ; porque nao podia aca-
de Settembro.
bar de obter licença do Ordinario pa
ra erigir húa Capella. Aré le lhe che
gou a difficulcara lavocaçao ,que deo ,
e hoje conſerva o meſmo Recolhi
mento da Senhora do Roſario , e S.
Domingos , querendo impór- lhe ou
tra . Mandando pôr no frontiſpicio da
Caſa as Armas Dominicanas , fe ex
pedio , e deo á execuçao hua ordem ,
que as mandava picar , e deitar abai
xo . Por occaſiao deſtas dependen
cias , lhe foi neceſario andar por ca
ſa de Miniſtros loffrendo ao meſmo
tempo , acada paſſo , mil defattençoēs,
e reſpoſtadas. Cinco vezes ſe expôs
ap incommodo de búa jornada tao
de Braga para Lisboa , diſtante hûa
de outra Cidade ſeſſenta legoas . Em
hūa deſtas occaſioens fallou com hũa
peticao á Senbora Rainha Dona Ma
rianna de Auſtria , pedindo - lhe hũa
eſmola para a ſubſiſtencia daquella
fundaçaõ ; que mandando informar
o Almoxarife do Reguengo de Guie
maraens , como Senhora de tanta pis
dade , como he notorio , nao ſó em
Portugal , ſepao no mais reſto da Eq .
ropa , lhe fazia mercê para ſempre
de quarenta medidas de trigo , con
forme o eftylo daquellas terras , per
11
peruas no meſmo Reguengo ; mas a
intempeſtiva morte da Serva de Deos
malogrou todos eſtes bons officios.
6 ° O obitaculo das poucas poſles
era outro martyrio , contrapezado
com os leus deſejos. Eſtes lhe davao
azas para ſubir , aquellas lhe ſervia o
de pezo para nao a deixar voar. Fal
tava muitas vezes para ſuſtento para
as Recolhidas ; e quando ella mor .
reo , foi entre fumma pobreza , ne
ceſfitada até do mais preciſo. Care
cia-ſe de contribuiçaõ para a delpeza
das obras ; e algumas vezes tentirao
os crédores fazer- lhe penhora noRe
colbimento. Nao havia com que fa
zer a Capella , e lahindo Soror Ague
da a pé com hũa ſua companheira dal.
li quatro legoas a pedir algum dinhei
ro emprestado , nao foi posſivel def
cobril .
 SOROR AGUEDA DE JESUS ,
cobrillo . Mas Deos , que affim que-
ria provar a confiança , que ſua Serva
tinha nelle , acudja ſempre em tim
com a ſua favoravel Providencia , che-
gando a concluir.ſe tudo quanto ella
delejava.
7' Foi dorada de muitas , e eſpe .
ciofiffimas virtudes ; e começando
por aquella que as dirige a todas , a
prudencia , foi mui notavel a que ele
la teve para os governos. Sabia uſar
do agrado , e da reprehenſao , da af-
fabilidade , e do rigor tanto ao ſeu
tempo , que ſe viso maravilhoſos ef-
feitos deita ſua economîa. Foi extre-
] mamente humilde . Em preſentindo
que le fallava nella com algum reſpei-
to , ou louvor , ſe confundia tanto ,
como ſe lhe fizeſſem a maior injuria .
Trabalhava nas obras da Caſa tanto ,
ou mais do que os melhores , e mais
1 diligentes officiaes : ella cavava nos
alicerces : amallava cal :levantava pe .
dras : aſſentava tijolo ; e fazia outras
muitas couſas a eſte modo , com igual
aptidao, que deſtreza. Profeſſouſem .
pre hūa paciencia admiravel. Foi ſem .
pre mui doentia ; e jamais ſe ouvio
da ſua boca a mais leve queixa . Indo
em certa occaſiaõ de caminho , en
controu -ſe com hum ruſtico , que , in-
ſtigado do demonio , deo em perſe,
guir Soror Agueda com húa eſcada
que levava dando - lhe com ella ; con
tinuou aſſim por largo tempo , tem que
ella le queixalle, potto que aquelle ho.
mem muito a havia maltracado. Pa-
gou - lhe a Serva de Deos a caridade
com dar - lhe alguns conſelhos eſpiri-
tuaes , lem dizer palavra tocante ao
mal , que elle lhe fizera. Em outra
occaſiao , encontrando-le em hűarua
de Braga com hua mulher das mais
principaes da terra , a começou a tra-
Tar maliſimamente de palavra . A cu .
do ſe callou com aſſombroſa manfidao
a Serva de Deos a outra ſe excander-
ceo muito mais com o ſilencio , e do .
brou as gritarias , e as affrontas, que
fizerao tanta molla na conſtancia da
Serva de Deos , como fazem os gol
15 de Settembro . 381
pes de hum martelloem hum diaman
te .
8 Nao foi pouco o que teve que
padecer com duascalumnias, com que
pertenderaõ infamalla ; porque por
ter húa correſpondencia eſpiritual
com hum Sacerdote , que vinha de
muito longe fallar -lhe ; e por haver
reduzido a fazer penitencia , com as
ſuas fantas razoens , a hum official de
pedreiro , que trabalhava no Reco
lhimento , e andára mettido em hūa
má occaſiao ; com ambos eſtes quize
rao macular a ſua iacorruptivel fama,
e iſto lendo ella de tanta caſtidade ,
que querendo ſeuspays cafalla , e fen
do para iſſo mui ſolicitada de muitos
periendentes, recuſou ſempre vehe
mentiſſimamente contrahir aquelle
eitado . Com as meſmas ſuas Recolhi.
das naó foi pouco o que teve que pa
decer , chegando a fer por eſta cay ,
fa depolta da Superioridade , que tað
egregiamente 'exercia . Jamais deixou
as ſuas penitencias . Eſtando nolecu ,
lo uſava ja de rigoroſiſſimos cilicios ,
e diciplinas de ſangue; depois que
entrou na Caſa de Deos, era muito
mais addida a eſtas auſteridades: nem
as deixou ſendo por morte . A eſta era
mui ſemelhante a ſua caridade . Com
os pobres era muito compaſſiva, fa
vorecendo -os, quanto mais o podiao
ſoffrer as ſuas poſſes, com algumas ef
mólas ; e muito mais fe compadecia
Jas neceſſidades eſpirituaes do ſeu
proximo , aconſelhando -o, e dirigin
do-o quanto mais entendia que af
fim o pedia o eſtado das ſuas conſcien
cias .
9 Chegado finalmente o termo de
hūa vida ta juſtificada, e recebidos
os ultimos Sacramentos com todo o
fervor , e devoçaõ , ſe deſatou aquelle
feliciſſimo eſpirito dos vinculos da
carne , para ſe ir eſtreitar em dulciſ
fima uniao com o ſeu Senhor em 15 .
de Settembro de 1740. ,
de Settembr havendo ,
o de
como ja notamos , naſcido em outro
cal dia , e completando aſſim hum cir
culo perfeito de toda a perfeiçaoChri.
faas 1
382 RECOPIL A C,
ſtaa , e Regular. Nam exhalou algum
vapor cadaverico daquelle deſanima-
do corpo ,antes ficou com as ſuas cores
Daturaestao formoſo , que , parecendo
que ainda tinba vida , lá dava alguns
ſinaes da eterna , de que a ſua grande
alma eſtava depoſſe. Ficou tað flexi-
vel , que com toda a facilidadeſe mo-
viao os ſeus braços , como ſe alli nao
tivera juriſdiçaõ a morte . Eraõ paffa :
das vinte e quatro horas depois que
ella morrera , e picada em bum braço,
deitou ſangue tao liquido , e puro ,
como, ſe nao eſtivera morta , o pude :
ra lançar de humaferida. A'fama da
ſua morte foi tanto o concurſo de gen
te , que acudio avella, e reverencialla,
que ,por eſcular diſturbios , foi necef-
dario abbreviar o ſeu enterro , ſendo
ella a primeira que ſe enterrou na Ca.
pella , por cuja erecçað tanto havia
trabalhado .
RECOPILAC, A M
de 15. de Settembro.
M Soriano o Veneravel
E Padre Fr. Joao Bautiſta
Guzzari. Era tað notavel o eſpirito
de obſervancia deſte bom Religioſo ,
que , por melhor praticar a mais per-
feita regularidade das Conſtituiçoens,
jamais ſahio daquella Caſa. Era humil-
de no maior extremo , arremeſſando-
ſe ao trabalhomais cuftozo, e delpre.
zivel , ſervindo aos Irmaos Leigos
doentes, alimpando Jhes, e aſleando-
lhes as cellas. Foi muito mortificado,
deſafiando aquellas couſas em que o
feu genio achava maior repugnancia.
Frequentava muito o Coro , e a fan-
ta Oraçao , que de dia , e de noite
era o ſeu maior cuidado . Jejuava qua-
ſi todos os dias , e mui de ordinario
a pao , e agua. Tomava todas as noi-
tes hūa diciplina tao rigoroſa , que
nao tinha focego em quanto nao can-
Sava , e ſe deſangrava. Dormia vefti-
do em terra , e apertado muieſtreita-
mente com búa cordamniafpera. Pré-
A M de 15 de Settembro .
gava com grande eſpirito , confefla .
va , confolava , e fazia todo o bim
que mais podia ao ſeu proximo . Foi
hum dos mais acerrimos propugna
dores da devoçao do Roſario ; e vio
bem paga a lua devoçaõ ao tempo da
ſua morte : porque apparecendo -lhe
entao o demonio , e fazendotodos os
esforços por lhe tirar hum Roſario
que elle tinha ao peſcoço , occorreo
viſivelmente a Máy de Deos a defen .
dello , e he mui fađivel, quenao lhe
faltaria com o meſmo favor no Tri
bunal de leu Filho . = Ex Chronie .
Soriani. pag . 99.1.5 :
2 Em Soriano o Veneravel Padre
Fr. Joao de Gaeta . Era da Provincia
do Reino de Napoles , e de canta vir
tude , que o noſſo Reverendiffimo
Geral Rudolfo o deputou para Me.
ftre de Noviços do Convento de So.
riano. Elle ficou naquella Caſa , que
ſempre edificou , e ſantificou com as
ſuas virtudes, todo o tempo, que lhe
reſtou de vida . Todos os dias toma
va largas , e crueis diciplinas , e fa
zia outrasmuitas , e grandes peniten
cias . Era admiravel a ſua vigilancia
ſobre o rebanho , que ſe lhe commet
tera ; por iflo jamais ſabia do Novi.
ciado . Enſinava Filoſofia aosja profeſ
ſos ; mas nem poriflo queria a menor
dispenſaçao de Coro , ou de quaeſ.
quer outros actos da Communidade.
T'inha todos os dias tres horas de Ora .
çað , e muitas vezes foi obſervado em
extaſis. Hum deſtes nao pode elle
elle encobrir em hum dia , em que
eſtava ouvindo ler a vida da nolia Bea .
ta Margarida , filha do Rey da Hun
gria : durou - lhe duas horas, e ainda
entao foi neceſſario fazer - lhe alguma
violeocia para tornar a fi. Amava aos
Noviços , como ſe fora cada hum del
les o ſeu coraçao. A todos procurava
aſſiſtir , e conſolar temporal , e eſpi
ritualmente , ſervindo •os como ſe fof
ſe hum feu ſervo aſſalariado. Prediſ
ſe a hora da ſua morte ; eeſtando tres
dias ſem falla, ao expirar prorompeo
com voz mui clara , e mui canora o
Ver .
 FR . VICENTE LUIZ
Verſiculo : Aſperges me Domine . Lo
go pedio a alperlaö da agua benta , e
dando a bençaõ aos ſeus difcipulos , que
á roda da ſua cama choravao incon
ſolavelmente , deípedio placidamente
o eſpirito .Muitos annos depois da
fua, morte foi achado incorrupto o
deu corpo. = Ex Chronic. Soriani
pag . fol . n 7 .
3 Memoria do Illuſtriſſimo ,
Veneravel Biſpo de Calecut , Cida.
de celebre da India Aſiatica , D. Fr.
Joao de Riperia. Empregou eſte bom
Prelado , e Miſſionario Zelofiflimoo
melhor da ſua vida em conduzir o
ſeu rebanho pelo caminho da ſalva.
çað ; e entre eſtes cuidados o achou
húa feliz , e ſanta morte nette dia do
anno de 1538. Chronic. da Prov .
de Portugal 4. p.eClauſtr. Dominic .
4 En P. Fr. Diony-
Soriano o V.
fo de , la Placanica . Era dotado da
fimplicidade de hum Verdadeiro Ils
raelita , de modo , que ſe entende
que jamais manchou a graça do Bau.
ciſmo. Foi fideliffimo na obfervancia
da Regra , e era a ſua maior ancia
vê - la praticada geralmentena Ordem ,
em todo o ſeu rigor. Teve eſta con :
ſolaçao vendo , ás ſuas inſtancias
bem logrados os ſeus deſejosem mui-
cos Conventos da ſua Provincia , de
que foi digno Prior. Teve tambem
eſte cargo em Soriano , aonde , den-
tro , e fóra dos clauftros, era tido por
hum ſanto , Prediſle ao Marquez de
Arena , cuja conforte era efteril, que
Deos The havia de dar hum filho, que
havia de honrar -ſe com o nomede ſeu
ſanto Patriarca , mediante cuja inter-
ceſſaõ obreria a meſma graça. Final-
menie , havendo vivido com a pure
za de hum Anjo , que foi em carne ,
paſſou a alternar com elles os eternos
triſagios na gloria , no ano de 1610.
= Ex Chronic. Soriani cap. 10. 1.1 .
GOTTI , 16 de Settembro. 383
16. de Settembro.
Vida do Veneravel , e Eminen
tiflimo Cardeal
FR . V I CE N T E
LUIZ GOTTI ,
Extrabida da qne eſcreveo em Latim
:
o Padre Meſire Fr. Thomaz Ago
goſtinho Bicchino , Theologo.de
e Caſanate.
I Vida do noſſo Veneravel ,
A !
e Eminentiſſimo Cardeal
Fr. Vicente Luiz Gotti pedia hua .
penna tað eloquente como foi a lua ,
e ſómente aſſim poderia ſer propor
cionada ao ſeu grande merito ; mas
nós acompanharemos ſempre obrado
commum da ſua fama com eſta bre
ve memoria , por ſer tal a relevancia
do allumpto , que eſperamos que até
poderá , ou eſconder , ou afformo.
zear a rudeza do noflo eſtylo. Nafa
ceo eſte invencivel Aquilles da Igres
ja Catholica na Cidade de Bolonha
máy tecundiflima de monſtruoſosen
genhos, em 5. de Settembro de 1664.,
Era leu Pay Jacome Gotti , Doutor
1
Laureado em ambos os Direitos , e
Interprete publico de Leis naquella
florentiſſima , e illuſtre Univerſida
de , e ſua Mãy chamava - ſe Clara Cai
parda , matrona, em quem ſe uoiao
egregiamente com muitos dotes , e
perfeiçoens naturaes , aquelles , que
igualmente ennobreciao, que ornavao
o ſeu eſpirito . A educaçao de Vicen .
te foi como dada por taes progeni .
tores , e como recebida de hūa indo
le tao reda , e bem intencionada co.
mo a ſua.
2 De treze annos ficou orfao de
pay ; e como ja ſelbe começava a di
viſar hum genio mui propenſo para
os eſtudos , e nao pequenos finaes da
ſua futura , e tao aſſombroſa ſabedo
ria , paſſou a ter dous annos de Rhea
torica nas claſſes dos Padres Jeſuitas,
em que aproveitou ſingularmente
confirmando de mais em melhor a .
quellas boas eſperanças, que delle ſe
haviað
384 FR . VICENTE LUIZ
haviaõ concebido . Pelas ſuas muitas
prendas ſe pudéra prometter gran-
des avanços de fortuna no feculo ;
porém allumiado de Deos para co
nhecer a vaidade de tudo o que he
terreno , nao quiz dever o leuderen
gano ao pezo dos annos , entrando
de dezaſeis da noſa ſagrada Religiao .
Foi - ſe refugiar o Servo de Deos a
efte ſeguriſſimo porto furtivamente,
ſem dar parte a ſeus parentes da ſua
reſoluçaõ : depois os mandou cha-
mar ao Convento de Bolonha , aonde
entrára , e humildiſſimamente lhes pe-
dio o ſeu perdaô , e beneplacito ; e
obtido o ſeu conſenſo , lhe veſtirao
os noſſos Religioſos o habico de S.
Domingos , aſlinando-lhe o ſeu No-
viciado na Cidade Anconitana no an
no de 1680 .
3 Achando -ſe ja profeſio,foi man-
dado a Forlivio , e alli teve por ſeu
Meſtre na Filoſofia ao celeberrimo
Padre Jozé Turri ; mas havendo im-
pedimento para completar com elle
o ſeu curſo , o concluio felizmente
na ſua patria , debaixo do Magiste-
rio de Fr. Angelo Unda , hum dos ſu
jeitos mais acreditados de que entao
fe conftituia a Republica das Letras .
Ja ſe diſtinguia tanto o noſſo Fr. Vi .
cente , que nao ſuperava ſó os ſeus
condiſcipulos , ſenao que merecia osta Sé
primeiros applauſos, e attencoens dos
Meſtres; e iſto o pôs em hūa tal opi .
niao com os Prelados , que determi-
nárao nao ter occulta eſta grande luz,
plantando -a em lugar , em que ella
pudelle eſpraiar mais diffufa , e glo-
rioſamente os ſeus reflexos. Pareceo
que a esfera mais conveniente , eac
comodada ſeria a Univerſidade Sal .
mantina , tao decantada em todo o
mundo por cultora , e propagadora
das bõas Artes , e alli ſe conſumou
tao altamente , no nollo tao celebre
Convento de Santo Eſtevaõ , nas Fa
culdades de Filoſofia , e Theologia ,
que ſe diſtinguia nað fómente entre
os eſtudantes , ſenio entre os talen
tos mais abalizados daquella cao inſig :
GOTTI , 16 de Settembro.
ne Académia , bem aſſim como nos
parece que ſe diſtingue a luz entre as
estrellas menores.
4 Era incanſavelo Servo de Deos
na laborioſa adhelao , com que te da
va a eſtas ſciencias ; e o bem que lhe
luzia o ſeu trabalho o chamava para
ellas com mais gosto. Excedia a to .
dos na grandeza de engenho , e em
outras muitas qualidades ; demodo ,
que , complete o curſo de Theologia,
foi eleito , fóra de todo o coſtume
da Ordem , para preſidir Theologia
publicamente , em hum dos actos a
que chamao grandes : acçao , ý deor
dinario ſe naő fia henao de hum dos
primeiros Theologos, e que agora ſe
executou com immenta gloria do ſeu
nome na preſença de hum copiofiffi
mo concurſo . Ficáraó aquelles Pa .
dres taõ cativos do heroico deſempe
nho com que Fr. Vicente havia cor.
reſpondido a expectaçao do publico ,
que fizeraõ muitas diligencias para
o ficar retendo em ſua companhia ;
mas elle obrigando- os novamente
com as modeftas, e humildes eſcuſas,
com que rejeitou hũa cadeira mui ho
norifica ,que naquella Provincia le lhe
offerecia, mostrou nao menos a ſua hu
mildade , que o ſeu deſintereſſe. O
Illuſtriſſimo Duracio , Nuncio da San
Apoſtolica em Madrid , fazia
tanta eſtima de Fr. Vicente , que con
Itaudo - lhe que havia cahido de cama ,
o mandou buſcar de Salamanca aquel
la Corte , com o intuito de que elle
foſſe curado mais commodamente no
ſeu Palacio .
5 Dentro de quatro apnos que al
ſi tio em Heſpanha , e correndo o de
1688. , foi promovido ao Sacerdocio
pelo Arcebiſpo de Sant-Iago Dom
Fr. Antonio de Monroy , em outro
tempo Reverendiffimo Mettre Geral
da Ordem dos Prégadores . Restitui
do á Italia foi lente de Filoſofia no
Convento de Mantua ; mas eitando
ainda muito nos principios deſte care
go , foi chamado a Roma pelo Me
Itre Geral , para entinar a malima fa
culdade
 FR . VICENSE LUIZ GOTTI ,
culdade aos eſtudantes da Minerva ,
e alli foi leu diſcipulo Fr. Joao Bau .
tiſta Lomelino , que, andando os tem
pos , veio a ſer Biſpo de Saluzzo .
Daqui paflou o Servo de Deos para
hữa Cadeira de Theologia do Con-
vento de Favença , atéque, comíatis-
façao univerſal , paſlou no anno de
1695. a outra da meſma profiſlao ,
que vagára em Bolonha , pelo obito
do Lente de Prima daquella Univer-
ſidade Fr. Jeronymo Ballano. Coa-
corria a ouvillo hum auditorio mui
numeroſo , e ſeguindo o conſelho do
Apoftolo , que dizia de ſi , que a cari.
dade o conſtrangia a fazer -ſe ao geito
de todos para ler -lhes util , nað ſó-
1
mente labia agradar aos Theologos,
ſenao acs profeſſores de outras ſcien-
cias , ſendo igual á ſua facundia a ſua
erudiçao , por iſſo era mui buſcado,
e conſultado , ja na Cadeira , e jana
fua cella , e a todos acudia com o bom
conſelho , que valendo muito por
ſeu , ainda lhe dava maior valor o
bom modo com que elle o applicava .
Deitou deſta ſua eſcola diſcipulosemi-
nentes , que como raios de luz paſlá-
rao depois a illuſtrar , e beneficiar
grande parte de Italia , e Alemanha .
6 Em virtude da obediencia ao
primeiro Prelado da Ordem ,leoMe
taphyſica no apno de 1699.noConven-
to de Bolonha : em 1702 , foi promo-
vido pelo meſmo Superior á Cadeira
de Mestre de eſtudantes ; e alguns
annos depois foi Regente dos Eſtu
dos geraes de Bolonba , aonde deo
bem a conhecer a ſua literatura , jui-
20 , e providencia . Sabindo por eſte
1
Tempo eleito Provincial de toda a
Lombardia Fr. Angelo Guilherme
Molo, que depois foi Procurador ,
e Vigario Geral da Ordem , eſcolheo
eſte Superior ao noflo Ft . Vicente
por ſeu companheiro ; e aſlim neſte
emprego , como nos dePrior do Con .
vento de Bolonha , e de Preſidente
de toda aquella Provincia na promo .
çao dos ſeus Magiſtrados , em tudo
deſempenhou bem as condiçoens de
Tom . VII.
16. de Settembro . 385
hũa perfeita economia , e de hūa ad:
miravel religiao. Era tað ſuave o jugo
do ſeu governo para os ſubditos , que
quaſi lhes tirava o mérito da obedi
encia ; porque parece que mais os
ſomettia o affecto , do que a meſma
ſujeiçao : podendo bem queſtionara
ſe , ſe o Servo de Deos era mais te
mido , ou mais amado . Governou
tambem o Convento de Clavo , ſen
do tempre huns meſmos os ſeus acer
tos , hūa meſma a lua piedade.
7 Correndo o anno de 1714. le
the conferio ſegunda vez o Priorado
de Bolonha ; masainda elle eſtava no
primeiro anno defta regencia , quan
do a Santidade de Clemente XI. o
fez loquizidor Geral de Milao : tra
balhou muito o Servo de Deos por
fugir com os hombros a eſta promo
çao ; mas perdeo as ſuas diligencias,
porque de nenhũas cirou mais fruto ,
do que deixar mais patente a ſua mui
ta humildade , em fe reputar porme
nos digno , ſendo - o tanto de lervir
aquelle Apoftolico emprego. Vendo
que lhe nao ſurtia effeito o ſeu traba
lho , ſe ſujeitou ás diſpoſiçoens do
Summo Pontifice , partindo logo pa
ra a terra da fua juriſdiçao , aonde
foi recebido , como le viſiem quelhes
entrava pelos muros dentro Saoco
Ambrozio , que em outros tempos
havia governado tao digna , e palto
ralmente aquella populoſa Cidade.Ja
rella havia feito ecco o ſeu grande
nome , e fez a ſua entrada cortejado
de todas as Religioens , e das peſloas
mais conſpicuas , e authorizadas da
terra ; e alli ſe eſtreitou mais a bõa
amizade, que havia ja entre o Servo de
Deos , eo Eminencillimo Cardeal Be
pedido Odeſchalcho , que muito ami
ga , e familiarmente ſe carteavab : e
nað ha duvida que aquelle Sagrado
Principe teve muita parte na gloria
de animar a Fr. Vicente , em ordem
a que elle nao proſeguiſſe em inſtar
pela demiſſao do cargo de Inquiſidor,
ou ifto follem ſaudades do ſeu Relia
gioſo focego , e dos ſeus livros , e
Сcc eilu ,
386 FR . VICENTE LUIZ GOTTI ,
eſtudos , ou foſſe pelo baixo concei-
10 , que de ſi fazia , ou por hum , é
outro motivo ; e nao fó quiz o meſmo
Eminentiſſimo Purpurado affugen-
tar ao noſto Veneravel Padre dette
penſamento , fenao que até chegou
a fazer algumas reprelentaçoens à Sa.
grada Curia , para que nao foſſem a .
ceitos nella os pretextos, e eſcuras,
com que elle percendia fubtrahir -ſe a
quelle tað importante ministerio.
8 Vendo-le impedido para obter
o bom logro dos ſeus deſejos, ſe ap
plicou como Ministro vigilante da
Caſa do Senhor a propugnar a inte
gridade , e pureza de noſia Santa Fé ;
e cuidando em como melhor havia de
dar hum perfeito implemento ás ſuas
obrigaçoens, lhe deparou o Ceo hum
livro impiiſlimo , eitampado em Ita-
liano , em que ſe intentava ſuſtentar
o partido da pertendida Igreja retor-
mada. Era Author detta obra' hum
Jaques Picenino , inſolentiilimo he
rege Calviniſta , mui preſumido de
leirado ,e que era apontado pelos ini .
migos do rebanho de Chriſto , como
ſe foſle o Hercules da ſua facçao.
Haviao.ſe empenhado muitos Eſcri-
tores Catholicos em confutar eſta pe .
ſtilentiſiima obra , e muito diſtincta.
mente o Padre Andre Semery , da
Companhia de Jesus , e Jacinto Ton-
ti Auguſtiniano ; mas o herege , cu-
ja ſoberba tinha por mui deſiguaes as
forças deſtes Contendores , recon-
venceo ao Padre Semery com hum
novo Tratado , a que deo o nome de
Triunfo , e aonde tratava com deſca-
rada petulancia , nað ſó ao ſeu Anta-
goniſta , ſenaõ ainda a meſma cauſa
da Fé . Doido o noſſo Servo de Deos
no mais vivo da alma do orgulhoſo ,
e temerario atrevimento daquelleim-
pio , entrou na reſoluçao de fahir , co
mo novo David da Ley da graça , a
contender com aquelle fantaſtico , e
deſvanecido monitro ; e perſuadido
nao menos deſte penſamento , que da
instancia , que lhe fez para o pôr em
execuçaõ o Biſpo de Como , Jozé Ol.
16. de Settembro .
giato , eſcreveo douta , e ſubſtancia
liſſimamente ſobre a verdadeira Igre
ja de Chriſto , diſputando magiſtral,
e concludentiffimamente o ponto das
controverſias , enao deixando pedra
fobre pedra das aéreas maquinas , e
fübierfugios , em que os inimigos ſe
queriao acaſtellar. Foi viſta eſta gran,
de Obra pelos Cenſores Romanos á
ordem de Clemente XI . e com ap
plauſo de toda a RepublicaOrthodoxa,
appareceo a primeira vez em publi
co, ſendo eſtampada em Roma , em
tres grandes volumes , no anno de
1719 .
9 Como o Servo de Deos naõcef
fava de inſistir na renuncia do Officio
de loquiſidor , lhe foi eſta finalmen
te aceita pelo Pontifice ; pelo que ſe
rornou de Milao a Bolonha , aonde,
com approvaçao de todos os ſeus mo
radores , ſe lhe deu a Cadeira de Ef
critura , ou das Controverſias da Fé,
em que de mui pouco acabava depre
fidir , com grande ſatisfaçao , Bento
Bachinio Abbade Caſſinenſe , ſujeito
de muitas letras , e merecimentos,
No anno ſeguinte foi admittido por
Collega do Collegio Bononienſe dos
Theologos; e publicamente lhe forao
conferidas as inſignias daquella Fa
coldade , como a hum dos Varoens
mais dignos da Laurea , e immorta
lidade da fama. Vendo -le , como tane
to deſejára abſoluto do Officio de
Inquiſidor Mediolanenſe , e nao ſe
dando ainda por ſatisfeito de haver
oppugnado tað fortemente ao men
cionado Jaques Picenino, determinou
entrar ſegunda vez a debelallo , pon .
do - lhe por terra outra ſua obra inti
tulada : Concordia , em que aquelle
impoſtor diſputava cavilloſamente fo
bre o eltado do celibato , das peſſoas
conſagradas a Deos , defmandando -ſe
ao meſmo tempo em outras propoſi
coens diſlonantes , e mui contrarias
aos bons coſtumes. Contra eſte pe
gueno , mas informe, e lethaliffimo
fero , ſe pôs novamente em campoo
noflo Veneravel Gotti , e de cal for
te
 FR . VICENTE LUIZ GOTTI ,
te apertou , e deprimio aquelle mi .
nistro de Calvino , ou do demonio ,
que deixou demonſtradas com luz
mais que meridana as verdades Ca-
tholicas , e eſcurecidas , e concul .
cadas para tempre as ſuas calumnias ,
e falſidades da cizania daquella má
doutrina .
10 No anno de 1720. le lhe com
metteo terceira vez o governo do
Convento de Bolonha, e no Capitu-
lo Geral, quealli ſe teve por aquelle
tempo, foitambem augurado por Ge-
Tal da Ordem ; e nao foraõ tambem
poucos os votos, que elle teve para iſſo
no outroCapitulo celebrado em 1725.
mas o amor que tinha aos eſtudos , e
7
ao retiro da ſua cella , o obrigou a re-
fiftir, e vencer a determinaçað, que
entao tinha os votantes. Promovido
ao Generalato da Ordem o Reveren
diſſimo Fr. Agoſtinho Pipia , que de
pois aſcendeo a condecorar-ſe com a
Sagrada Purpura Cardinalicia ,foi hum
dos ſeus primeiros cuidados reftituir
os eſtudos das Faculdades Sagradas á
melhor, e mais regular exacçao que
The foſſe poſlivel ; e nao deixou dele-
var -lhe os olhos o noſſo Veneravel Fr.
Vicente , mandando -lhe compôrhum
novo curſo de Theologia Eſcolaſti .
ca , e Polemica , para ulo das noſſas
Eſcolas ; e postoque ſe achou muicar.
regado , e penſionado de outras mui .
tas occupacoens , reſpondeo a eſta
ordem com hứacega , e promptillima
obediencia , e nao ſe poupando a tra
balho , nem levantando maõda obra ,
a completou em dezaſeis volumes ,em
que correm a paſſo igual húa fumma
elevaçao , com hūa grandiſſima ucis
lidade .
II
Por eſtes temposfubio o poſſo
Benedicto XIII . á Cadeira de S.Pedro ;
e como Servode de Deos era mni a
ceito a eſte Santo Pontifice', por in-
ftantes ſe eſperava que , ajudados tao
grandes merecimentos , como erao os
do Padre Gotti , deſta favorayel con
juntura , ſeria elle hum dos primeiros
em quem cahiria a ſorte de ſer recé-
Toin . VII.
16. de Settembro . 387
bido no Sagrado Collegio . Aſlimo
executára Sua Santidade ; porém at
tento a que em primeiro lugar devia
preferir o noſſo Reverendiſlimo Ge
ral Fr. Agoſtinho Pipia , ficou retar :
dando algum tanto mais do que ſe cui
dava a promoçao de Gotti.Masquan
do outros diſcorriao nesta materia
eſtava elle tao fóra de que isto lhe p af.
ſafle pela imaginaçao , que quan do
com effeito lhe chegou a noticia de
que fora creado , e promovido no
Cardinalato , no ultimo de Abril de
1728. , ficou tao paſſado , como ſe a
quella nova folle hum rayo , que lhe
cahifle emcima ; e ſe elle cuidáffe em
lhe poder ſer alguma traça de proveis
to , ' he certo que nao deixaria de a
tentar, e emprender , por fe abſol
ver daquella honra. Antes que elle a
conſeguiſe , havia ja Gdo eleito Pa
triarcha Jerofolymitano, e agora o co .
Theo eſte novo avilo em hūa noſſa pe
quena caſa de campo , chamada Ron
žani , e ſita nos fuburbios da Cidade
de Bolonha , e obler vou-ſe que neſta
meſma quintazinha havia eſtado em
outro tempo o meſmo Benedi& o XIII,
e que alli o apanhára tambem o pro
prio ', que ſe expedîra a noticiar lhe
a ſua exaltaçao á dignidade Cardina
licia : e em attençao a eſtas circun
' ftancias , naõ ſó ſemelhantes pelo que
diz reſpeito aos factos , fenaõ á gran
de humildade, e triſteza com que am
bos eſtes grandes Varoens recebêrao
os annuncios deſta ſua Prelazia , alli
ſe conſerva ainda em hūa inſcripçao
Latina a tradiçaõ deſta memoria .
12 Sabendo -ſe em Bolonha que
eſtava feito Cardeal Fr. Vicente Got
ti , ſenaó era elle , nao houve peſſoa
alguma , ſ naõ feſtejaſle iſto muito in>
do buſcallo aquelle retiro, para dar -lhe
os parabens : recebia - os elle com mui
to agrado , disfarçando a grande pe
na que ſentia , por nao parecer in
graco , dergoftando aquelles , que tan
to moſtravao teſtejar os ſeus augmen :
tos , e fortunas. Mandou - lhe o Pon
tifice o Capello de Cardeal por Fr.
Ccc ii Joze
388 FR . VICENTE LUIZ GOTTI , 16 de Settembro .
Jozé Luiz de Andujar , da noſſa Or-
dem , Meſtre da ſua Bibliotheca , e
depois Biſpo Bobienſe ; e o Servode
Deos o recebeo ſolemniſſimamente
em 8. de Maio na Igreja do noſſo Con-
vento de S. Domingos da mao do Car .
deal Eſpinola , que entao era Lega-
do da Sé Apoftolica em Bolonha ; e
a 18. daquelle mez , em que cahio a Fe-
ſta do Eipirito Santo , fazendo Pon-
tifical no meſmo Convento o Eminen-
tiſſimo Arcebiſpo de Bolonha , e af-
liſtindo mais os Biſpos Forlivienſe , e
Faventino foi Sagrado Patriarcha de
Jeruſalem . Partindo para Roma , foi
recebido com grandes acclamaçoens
naquella Santa Cidade , aonde foiem-
pregado em beneficio da Religiaõ
Catholica o ſeu preftimo, ſendo de
finado por alumno das Congregaçoes
da Inquiliçao Geral dos Biſpos, e dos
Regulares , do Expurgatorio do Indi-
ce dos Livros , dos Sagrados Ritos ,
da diſciplina regular , do exame dos
Biſpos , dos Interpretes do Concilio
Tridentino , das Indulgencias das Re
liquias , da propagaçao da fé , e da
correcçao dos Livros Orientaes.
. 13 A mudança do eſtado , de ne .
nhum modo o deixou differente do
que antes era , tendo o meſmo
na bondade , na parcimonia , e na
moderaçao , ſem ſe tirar daquel.
le paſſo da vida Religioſa , que havia
eſcolhido p
, ara delle nunca fugir, ou
declinar. Por eſte principio nada efti.
mava em tanto, como viver muicon-
forme , e ajuſtado com as leysdo cof.
ſo fanco Inſtituto , ainda quando ſe via
livre , e diſpenſado dellas. A regra ,
que guardava nos ſeus eſtudos , na
Oraçao , na meza , eno leu tratamen
to exterior, era mais propria de hū
Frade razo , do que dehum Cardeal
da Santa Igreja de Roma , dignidade,
de que parece que ſó tomára o pe-
20 , renunciando o eſplendor. Sem-
pre ambicioſiſſimo do tempo , nao ha-
via inftante , que ſe pudeile dizer
que o ociolhe uſurpava. Ora le entre .
tinha com os livros, ora os commen-
tava ; e ora eſcrevia , e ſempre elle
meſmo , ſem adjutorio de amanuen .
ſe , e ſempre com tanta perfeiçao ,
que, entre todos osſeus papeis, jamais
le achou hum só , que nao encheſle
os olhos , aſſim pelo elegante , eſcien
tifico dos caracteres , como porque
nenhum lhe fahio deformado com a
fealdade de algum borrað . Se nao ti
nha impedimento demoleftia , nunca
tazia falta nos Conſiſtorios , e Con
gregacoens dos Senhores Cardeaes ,
iendo entao hum dos mais expeditos.
Nas materias conferidas neſta lagra
da Allembléa , era ſempreoſeu voto
hum dos que mereciao a primeira efti
maçao , por mais douto , e recto ; c
jamais houve para elle outros reſpei
tos ſenao a equidade , e a juſtiça . Era
inimiciſſimo de teimas , e contendas:
e por iſlo nunca ſe empenhava emim
pugnar ardentemente os votos dos ou .
tros Cardeaes , nao deixando de ſer
eſte hum effeito de humildade , eve .
neracao , com que ſempre os tratou
14 Nao ſomente lhe levavao a
maior parte do tempo as Conſulcas
Pontificias, ſenao ainda outras mui .
tas dependencias de 'peſſoas particu
lares , hūas q buſcavao o ſeu conſelho
por carta , e outras peſſoalmēte , eato
das deferia elle , tao igual na prompti.
dao como no maior acerto q ſe deſeja
va ; mas por muito que iſto lhe delle
que fazer , jamais ſe deſcuidava de
relervar algumas horas para os ſeus Er
critos , ſegundo a antiga maxima de
Apelles , que queria que nao ſepaſſa .
fe hum dia aos ſeus diſcipulos, em
que nao deſcreveſlem ao menos hũa
linha . Sendo -lhe neceſſario diſputar ,
como diſputou , com Joao Clerico
ſobre a ſentença, que ſe havia deto
mar ſobre a diverſidade de pareceres,
em alguns pontos concernentes á nol
ſa fanta Fé ; porque aquelle Eſcritor,
que era de grande come entre os Hola
landezes, ampliando o Tratado da
Religia o de HugoGrocio , per rendia
fazer decahir muitos dos fundamen
tos , que eltao mais bem recebidos na
Igre.
 FR. VICENTE LUIZ GOTTI,
Igreja Catholica , o executou aſſimo
doſlo Preclariſſimo Cardeal Gotti
com tal pezo , magifterio , e conclu-
4 dencia , que , convencendo aquelle Au-
thor até o minimo apice do ſeu livro ,
mereceo por elta reſpoſta os applau .
ſos , e honras , que lhe fizerao os Im-
preſſores Ratisbonenſes, que depois
de impreſſa etta defenſa de Gorti em
Roma no anno de 1734. , a reimpri-
mirao no anno de 1740., celebrando
o nome do noſlo Servo de Deos com
teftimunhos muieípeciofos, e bono-
rificos , e fazendo mençao entre os
muitos elogios , que lhe 'tazem , de
haver diſtado pouco o noſſo eruditif-
ſimo Author nos ultimos conclaves
dos Cardeaes do Supremo Throno
do Vaticano . ! do .
15 Ainda com haver contendido,
e confutado tantas vezes os noctur .
nos , e luciferos inimigos da doutrina
Romana, ſe nao deo por ſatisfeito o ſeu
heroico eſpirito , ſempre inquieto , e
anhelanie de aſegurar, eeonobrecer
a verdadeira Eſpoſa de Chriſto , com
outras novas palmas , e criunfos: iſto
o levou a compôr cutra Obra mais ex.
tenía , e laborioſa en materia de Con
troverſia, aonde os Theologos Pole-
micos tem hum como arſenalprovido
das armas da melhor prova para de
ſtruir todas as calumnias , e fubterfu-
gios , em que fruſtraneamente ſe que-
rem fazer fortes os idolatras , os Ju-
deos , os Mahometanos , e codos os
outros contrarios , que, bem como os
Indios , que apedrejaõ ao Sol , ſeconf.
pirao , e amotinao contra os aſſertos,
e dictames da Santa Igreja de Roma.
Eſta utiliſſima Obra , ou eſte novo els
cudo de diamante dos Doutores Ca-
tholicos , compõem -ſe de doze volu-
mes , aonde fe expendem , e diſpen-
dem mais raios de luz contra os in.
fieis, e fe &tarios,do que os q diftribueo
Sol pelas doze caſas do Zodiaco. Ima
primio -le o primeiro Tomo em Ro-
ma no anno de 1735. , e o ultimoalli
meſmo em 1740. Os dous annos ſe
guintes forao os derradeiros da ſua
16 de Settembro. 389
vida , epondendo ja deſcanſar de tað
glorioſos trabalhos á lombra dos lou
ros com que tanto havia ornado , e
condecorado os ſagrados trofeos da
piedade Orthodoxa , tomou por deſ.
canço outro novo trabalho , querendo
acabar os ſeus ultimos dias da liçao , e
illuſtraçaõ das lagradas letras , e com
effeito chegou a commentar até o Ca.
pitulo 25. do Genelis , obra verdadei
ramente digoa de ſer trazida de dia ,
e de noite nas mars , ou , como ſe diz ,
nas palmas dos Eſcriturarios, e que
fe em algum tempo ſe publicar , co
mo bem ſe eſpera', nao adquirirá me
nos creditos a ſeu Author , do que
todas as outras Obras, com que igual.
mente aſſombrou, que illuſtrou o mun ,
16 Tudo o que deixamos referi
do do Servo de Deos era muito ba
ftante para honrar , nað húa , ſena )
muitas vidas ; mas do que nos reſta
para dizer , le conhecerá melhor qua
to era altiſſima, e quanto precioſa a
ſua eminente virtude. O ſeu amor de
Deos era de modo , que era axioma
ſeu : Que tudo o que nao era amalllo ;
era vaidade mera . Era Deos o ſeu prie
meiro , eunico principio : Elle , ena .
da mais era o que o movia : Elle , o
que o dominava . Foſſem quaes fola
tem as ſuas occupaçoens , ſempre eſ .
colhia algum tempo para ter Oraçað .
Nas materias eſpirituaes fallava ſem
pre com muito goſto , e deſejava que
ninguem o ouville , que nao ſe arre
bacaſſe dos meſmos affectos. Dizia
Miſſa os mais dos dias que podia , e
era ver hum retrato da devoçao , o
vello no Altar . Sempre obſervou e
coſtume de confeſſar ſe duas , ou tres
vezes na ſemana, e era muito eſpe.
cialmente devoto de Maria Santiſli
ma , de Santo Thomaz de Aquino ,
de S. Vicente Ferrer, e de outros
muitos Santos da Ordem , cujas vir
tudes havia eſcolhido para perpetuo
exemplar das ſuas accoens . Nunca ſe
lhe pode encobrir aquelle grandeze
lo , com que cuidaga em propugnar ,
e de;

390 FR . VICENTE LUIZ GOTTI , 16 de
e defender acerrimamente o partido
da Religiaõ Catholica : aſſim o mo-
Itrou em todos os ſeus Eſcritos , eem
todas as occaſioens que ſe lhe offere .
ceraó para ventilar , e difcutir
dilcutir
ponto, a que acudia com hum animo,
e reſoluçao verdadeiramente de fogo,
merecendo com toda ajuſtiça o exi-
mio epitheto de propagador , e liber-
tador da Religiaõ Chriftaa .
17 Antes de fer Cardealera o Ser
vo de Deos muito humilde , e a mu
dança da Purpura nella parte naöfez
nelle outra mais que fazello hu nildif-
fimo. Jamais fallava de ſi , ſenaõ foſſe
apertado de hüa urgentiſſima necef-
fidade ; e ſe alguem lhe dava algum
louvor pelas ſuas Obras , nao deſcan
ſava em quanto naorem via a coaver .
façao para outro propofiro , ou ſe naõ ,
ſe dulentava. Parece que nao trabz-
Thou menos nas ſuas eſtudioſas vigilias
para ſer douto , virtuoſo , e bom ,
como para deslumbrar a todos , demo-
do que nunca o tiveſlem por tal . Con-
tra lua vontade foi Inquilidor , e Pre-
Jado na Ordem , e, com ja deixam's
tocado, deixára de ſer Cardealſe vil
ſe que le abria algum caminho para a
fua depoſição. Nem ſe namorou de .
pois melhor detta meſma exaltaçao ,
olhando ſempre para ella com o de
fafecto , com que começára a vella no
principio . Dizja elle que ſe ſoubeſſe
que não havia de perder a ſua diligen-
cia, ſe empenharia em cornar- ſe aos
braços da Religiaõ ; porque o Cardi-
i nalato nao tinha outra couſa de luſtre
mais do que a lua exterior apparencia,
e mageſtade, e fóra dahi trazia inſe-
paravelmente comſigo alguns encare
gos digniſſimos verdadeiramente de
mover a toda a laſtima, e compaixõ.
Iſto lhe ouvio muita vez o noſſo Fr.
Thomaz Bicchino , ſegundo aſſim o
atteita na vida que elegantemente ef-
creveo delte noilo tao inſigne , e il-
luſtre Parpurado . Hum dos grandes
finaes da ſua eſtupenda humildade foi
ficar ſempre conſervando todos leus
amigos ; porque, prezando a todos , e
---
Settembro
nunca deſprezando, nem ao mais del
prezivel . Aos meſmos ſeuscriados ſe
nao atrevia a mandar com imperio se
mais ſe pudera dizer que o ſerviao ro
eſte gados , quemandados.Fazia humeftu
do mui particular em nao eſcandali
zar a qualquer peſſoa que foſſe ; etað
certa tinha com elle a entrada hum po
bre homem , como hum grande Prin
cipe .
18 Amou aos Co -Religiofos com
muita eſpecialidade, e pareceo fem
pre hun delles na fimplicidade, na
pobreza , e em naõlargar , como nao
largou , jamais o ſeu habito . Nem
contentia que elles o trataffem com
os coſtumados obſequios, que ſe dao
aos Principes ſagrados do Vaticano ;
e para deſafogar o ſeu animo , met
tido em tāros,e tao arduos negocios , nia
pallar com elles as ſuas ferias nas quin .
tas , e calas de recreaçao , e enrao
nao queria ſer tratado com algum di . I
ftinctivo , indo comer com elles ao
meſmo Refeitorio . Sempre venerou
muito ao Reverendillino Geral da
Ordem , e em todas as occaſioens em
que fez publicos os ſeus Livros , nun
ca os divulgou ſem os haver ſometti
do primeiro á cenſura dos Theolo
gos da Ordem . Delapprovava todoo
genero de delicias , nao fazendo uſo
lenao das couſas, que unicamentelhe
eraõ neceffarias. Em comer , e beber
foi temperadiffimo, e 'viveo tempre
unido ás Ley : da Religiao , lendoel .
las ofeu leme,e o ſeu norte.Nenhũ caſo
fazia de ý os ſeuscomeres foſfē os mais
delicados ; com qualquer , por groſ
ſeiro que foſſe , ſe dava por muito
ſatisfeito , olhando ſempre á preciſao
da neceſſidade , e em nenhum tempo
á liſonja do goſto . O vinho que bebia
era aguado , e a ſua cea mais ordina
ria nao pasſava debum caldo . No tra .
to da familia foi tambem muito mo .
derado , de tal forte, que ſe ville a lim
peza , e o affeio , e de nenhum modo
a pompa , e ſuperfluidade. Nada ci .
na de ambiciolo : tao depreſia lhe
chegavao á mao as rendas , que tinha
por
 FR . VICENTE LUIZ GOTTI ,
por Meſtre publico , como elle libe-
ral , e gratuitamente as tralpaſſava ao
ſeu Convento, para que ſe proveffe de
mais Livros a Bibliotheca da Com-
munidade Depois que foi Cardeal ,
poftoque aceitava as rendas , que lhe
davaõ, tambem ſe naolhas davao,nun
ca por iſſo as pedia . Alguns differao,
mas taõ temeraria , como falſamente,
que elle recebera preſentes de alguns
2 Principes ; mas o deſapego do Servo
de Deos era tað notorio , e conitan-
. te, que nenhuma attenção mereceo
eſte dito .
: 19 Os ultimos dinheiros , que lhe
chegárzó á maó , deo elle ao Conven-
to de Bolonha ; porque ſendo , como
era , tao regrado , lhe ficava lugar de
fazer eſtas contribuiçoens. Nunca pe-
dio contas ao ſeu Mordomo: cal era
elle , e tal a ſatisfaçao que tinha da
Tua fidelidade o ſervo de Deos ; ſe naõ
he que tambem influiſſe neſta omil-
lao ( chamemos -lhe aflim ) o deſpre.
zo que eſte Veneravel Cardeal fazia
de todas as couſas do mundo. Quan-
do muito ſó perguntava algumas ve
zes ſe havia o neceſſario para os ga-
ftos quotidianos , e he o mais a que
ſe alargava a ſua curioſidade. Repar-
tia todos os mezes grandes ſommas de
dinheiro , principalmente por peſſoas
honradas , e que nao ſe atreviaõ amen-
digar de porta em porca ; e ſegundo
erao os encargos deſtas familias
allia era tambem , mais , ou menos
abundante , o auxilio , que lhes dava :
e o mais que procurava neftas occa
fioens, era que aproveitafle o foccore
ro , mas que ſe nað ſoubeſſe qual era
o aqueducto. A politica deſte grande
homem era aquella , que Chriſto Bem
noſlo preſcreveo no Evangelho a ſeus
verdadeiros diſcipulos, pagando o mal
com bem , os aggravos com benefi-
cios ; e jamais houve , que nao dei-
xaria de haver , injuria que ſe lhe fi-
zeſle , que o obrigaſſe a romper eſta
bella ſerenidade.
20 Ouvia a todos com fumma pa-
ciencia , e a todos deferia com entra-
16 de Settembro 396
nhas paternas ; a huns com o favor ,
a outros com o conſelho , e a todos
com o coraçao nas mãos . Nao houve
peſſoa , que delle foſſe affrontada, nem
hűa , a quem elle fallaiſecom mais feca
cura , ou aſpereza ; nem houve caſo ,
ern que ſe lhe viſſe alterada a paz , e
boa harmonia do ſemblante . Aos mel
mos Reos , com quem , por occaſiao
do ſeu cargo de Inquizidor , lhe era
neceſſario moſtrar -ſe mais rigido , a
eſtes meſmos procurava mover com
muito artificio , e brandura , perten
dendo acabar de os reduzir , ainda
aos mais negativos , nao tanto com o
eſtrondo , quanto com a benevolen
cia . Aos meſmos ſeus criados bao la .
bia reprehender , tanto com o impe
rio , quanto com a docilidade , del
culpando -os com tanta clemencia , co
mo hum pay o fizera a leus filhos.
Mas o que neſta parte hemaismyſte
rio , vem a ſer a violencia , que elle
fazia em contrafazer niſto ao ſeu tem
peramento , e conſtituiçaõ natural ,
por ſer de habito melancolico , e ni
miamente accezo ; o que , ſegundo
Ariſtoteles , he mui commum naspef
foas de maior engenho. Mas eſte foi
o fruto da grande diligencia , que ſem .
pre pôs em refrear , e ir á mað ás pai.
xoens do ſeu animo , por ſer muito
maior victoria que as de todos os Ce .
fares, Cipioens, e Alexandres , nao
a devencer aos inimigos nacampanha,
ſengö vencer -ſe a ſi meſmo , doman
do , e ſujeitando o corpo ao eſpirito,
a natureza á razao . Tinha.hum Irmaõ,
a quem muito amava , e dando -ſe- lhe
repentinamente a noticia da ſua mor
te, a recebeo com húa conſtancia, e
fortaleza , como ſe folle de bronze ,
ou de diamante.
21 Logo que ſe vio Cardeal , foi
hūa das ſuas primeiras diligencias ef
crever a ſeus pays , e mais parentes ,
delenganando -os mui leccamente ,de
que nao eſperaſſem delle couſa algu
ma , e aſſim o executou á riſca ; e pa
ra haver de deixar por ſua morte hũa
pequena conſignaçaõ a hum neto de
seu
392 FR : VICENTE LUIZ GOTTI ,
feu Irmao , que havia de ſeguir o fa-
cerdocio , foi neceſſario que o deter-
minaflem aſſim pelloas muito doutas ,
e timoratas, ſem o que certamente
ſe nao refolveria ainda fazer aquella
tenuiſſima deixa. Na prudencia , con-
ductora de todas as outras virtudes,
foi tambem optimo o Servo de Deos .
Em tudo o que obrou , e em todos os
cargos que tervio , era ella a regra
porque ajuſtava , e dirigia todos os
ſeus procedimentos. Allentou com i-
go em uſar ,quanto mais pudeſſe,do fio
lencio nos Conſiſtorios que ſe fizeſſem
para eleger Pontifice ; e em dous que
afli fio aſſim o obſervou , eſperando
mais da Providencia de Deos , que
do conſelho dos homens , a promoçao
do Sagrado Paſtor da ſua Igreja ; e
eſta ſua rectidað , e inteireza aiodao
fez muito mais amavel no Sagrado
Collegio , que conhecia bem quanto
eraõ virtuoſas, e deſintereſſadas eſtas
irreſoluçoens.
22 Éltas virtudes taố gratas no
Conſpecto de Deos, ſe fizeraõ tambem
mui aceitas na opiniao dos homens .
A'lèm de algumas honras, que ja diſle .
mos lhe fizerao os Prelados da pri-
meira Jerarchia , accreſcētaremos :
que os Senadores , e pefloas princi :
paes de Milao contendiaõ , como por.
fiando , ſobre quem mais o eſtimaria .
Todos os Eminentiſſimos Nuncios de
Bolonha o tinhaõ em muita venera-
çao , e o Cardeal Espinola , que foi
hum delles , de quem acima fizemos
mençaõ , ſe eſpecializou mais neſta
boa vontade com alguns favores, que
benigna , e gratuitamente lhe fez ; li-
ou quiz imitar ,
beralidade eita , que ,
ou competir em Ropa o Eminentiſ.
fimo Franciíco Barberino , que , em
reconhecimento da grande eſtima,que
fazia do noſſo Veneravel Gotti , The
affignou quinhentos cruzadosdasíuss
rendas. Na fua patria era amado de
indas as Religioens della , eameſma
Roma feſtejou com jubilosnað vulga-
res a ſua Cardinalicia promoçao , e
até chegou a cuidar que certamente
16 de Settembro.
leria regida de hum Paſtortað Incly .
to , e benemerito . O Rey de Sarde
nha , Victorio Amadeo o II . , e
Carlos ſeu filho , ambos o tiveraõ em
muito , e eſte ſegundo alguma vez ſe
deixou guiar pelo ſeu parecer. Nao
foi menos plaufivel a SereniſſimaRai ,
nha da Graā Bretanha Maria Sobies
ki , que o eſcolhera por Director , e
arbitro da ſúa conſciencia , o queſo
brepuja grandemente o merito do Ser
vo de Deos , fuppoftas as ſuas grandes
virtudes , de que foi dotada aquella
ſoberana Princeza. Os Vigarios de
Chrifto , Clemente XI.,que o metteo
na Inquiſiçaõ de Milao , e louvou com
admiraçao os ſeus Commentos con
tra Picenino , e o declarou Eſcritor
da Igreja : Benedicto XIII. ,que ofez
Cardeal Presbytero da Sanca Igreja
de Roma : Clemente XII . , que The
concedeo , e muitas vezes augmentou
rendas annuaes , ſem elle o imaginar:
e Benedicto XIV . pas eruditiffimas
Obras , que compôs antes da ſua af
cenfað ao Pontificado, faz mençao
dasObrasdo noflo EminentiſſimoGore
ti , e as aponta com honeftiſlimoslou
vores de gloria , e fama; e finalmen
te todos , nas muitas honras que lhe fi
zerað , bem teftimunháraó quam al
tamente ſentiao da religiao literaria ,
e tanta vida do Servo de Deos .
23 Achando - ſe ja baſtantemente
quebrado de forças, e mui proximo
à ſua morte , a que o ultimo Concla
ve em que le achou , por fer celebrado
na maior intenſao dos calores do Etio ,
o foi chegando mais apreſſadamente ,
nem por iſo deſiſtia de trabalhar , e
cultivar a vinha do Senhor ; mas co
meçou a enfraquecer muito do peito,
e a padecer hūa penoſa inchaçaõ de
pernas , deſorte que andava ja tað
proſtrado , que nem podia ſubir , nem
deſcer eſcadas. Lavrava , e hia fazen
do os ſeus effeicos a'moleſtia , myr
rhando - o , e deſtituindo- o de alencos
cada vez mais : aſſim foi reſiſtindo
dous annos , obviando quantolhe era
poſſivel cabir em mãos de Medicos ;
e de :
 R E COPIL AC,
e deſenganando - ſe do pouco , que ja
podia durar no mundo , nenhuma ou-
ira couſa ' reſpiravaõ ja as ſuas practi-
cas , mais que o grande deſejo , em que
ardia de ir ja ver -ſe com Deos, eaca-
bar de eſtreitar -le com Elle , median
te hűa dulciffima, e eterna uniao .
24.Em doze de Settembro de 1742 .
lhe fobreveio būa grande febre , com
plicada com hũa moleftiffima ſuppreſ
(ao de ourinas ; e aggravada comeltes:
accidentes a inoleitia , ſe começou a
eſperar por inſtantes o termo de hūa
1
4 taó precioſa vida . Ainda que ſeacha .
va tao delalentado , quiz levantar -le
no dia da Exalraçaõ da Santa Cruz
por ver fe ſe atirevia ainda a celebrar
em reverencia da meſma Sacratiffima
Joſignia da noſſa Redempçao . Falta-
vao - lhe as forças para ja poder ſeguir
elles paſſos da ſua devoçao ; ancesos
Medicos lhe intiaárað o pouco que
lhe poderia tardar a morte : e rece .
bida eſta noticia com mais alvoroço
que pezar , pedio os Santos Sacramen-
cos, que recebeo com lummoaffecto ,
e ternura ; e depois de applicar algu
mas penſoens, com permiflaó , que
para iſſo alcançára de Clemente XII . ,
a ſujeitos mais conſpicuos da ſua fa-
milia , a quem era mais obrigado , fe
preparou para entregar ultimamente
o ſeu ditolo eſpirito àquelle Senhor ,
que para tanta gloria , e utilidade da
ſua Igreja o havia creado . Finalmen-
te fechando ſuavemente os olhos do
corpo para ir ver com os do eſpirito
a Divina Efiencia , conſummou feliz-
mente o curſo deſta vidatemporalem
16. de Setembro do referido anno
de 1742. , com pouco mais de 78. de
idade . No dia ſeguinte lhe fizeraõ os
Eminentiſſimos Senhores Cardeaes as
1
.. fuas exequias . no Templo da Minera
va com aſſiſtencia do Papa , e dalli
foi levado , como elle aſſimo depuzé-
3
ra , a S. Sixto , de donde era Cardeal ,
aonde em lugar humilde , por nað
contravir a ſua ultima vontade ,
deo a terra aquelle corpo , tao digno
de diſtinguir - ſe por hum Sepulchro
Tom . VII,
A M de 16. de Settembro , 393
magnificentiſſimo, como no mundo
te havia feito hum tað illuſtre mere ,
cimento.
RECOPIL A C, A M
de 16. de Settembro.
I O'Delfinado , em Buix ,
N memoria do Beato Fr.
Fuillenti. He mui pouco o que nos
dizem as noſſas Hiſtorias deſte ſanto
Religioſo ; mas eſſe pouco he ſumma.
mence eſtimavel . Dizem algunsma:
nuſcritos mui fidedignos, que ſe fez
digno crédor do reſpeito dos homens
pelas ſuas muitas virtudes , e porthúa
mui ſincera , e ſolida piedade. Mo ,
ſtroa Deos Senhor noſſo quanto lhe
eraö gratos os bons ſerviços , que eſte
illuſtre filho de S. Domingos lhe fazia,
honrando a ſua memoria com muitos
prodigios , eſpecialmente em livraras
mulheres das conſequencias de partos
perigolos . Morreo com cao grande
opiniao de fantidade, que depois de
ſuamorte , eantes que os hereges da
França , que ao modo de viboras die
lacerárað o feio de lua patria com tan
tas guerras , inteftinas', deßruiſlem
aquelle Convento , concorria innume
ravel multidaõ de povo a venerar a
fepultura do Servo de Deos , que ſe
achava rodeado de hūa grade de fer
ro , por onde ſe tirava alguma terra ,
por cujo meio , e por interceſſao deſte
Beato Padre obrava o Senhor mui
tas maravilhas. Vivia no decimoquin
to ſeculo . P. Lafon ,
2. Em Cordova , no Convento de
S. Paulo o muito Religioſo Padre Fr.
Martinho do appellido daquella Cida
de. A innocencia , e ſuavidade dos
ſeus coſtumes , oleu clariſſimo juizo ,
as ſuas diſtinctas prendas , e ſobre tu
do as ſuas eminentes virtudes o faziao
bemquiſto de todo o manda dentro ;,
e fóra dos Clauſtros. Cogicluidos os
ſe ſeus eſtudos na florentiflima Univer
fidade de Salamanca , foi deſtinadope
la obediencia para enſinar Filoſofia
Dad em
394 SOR OR ANTONIA DE S. DOMINGOS , 17 de Settembr.
em Cordova . Neſte emprego naõdeo
menos a conhecer a ſua piedade , que
a ſua doutrina : tao fantamente ſe da-
vaõ nelle as mãos hūa , e outra ! De
ſempeohado eſte Cargo com a maior
fatisfaçao , foi allignado Regente dos
Eſtudos de Oſuna. Servio elle eſta no-
va occupaçao com todo o applauſo ;
mas ao meſmo tempo que a Ordem
eſperava os maiores creditos de hum
tao benemerito filho , foi chamado a
ſer hum dos grandes no Reyno do Ceo
pelo bem que tinha obiado , e inttrui lr ,
no anno de : 590. Lopes 3.p.1.3.6.1
17. de Settembro.
Vida da Veneravel Madre
SOROR ANTONIA
DOMINGOS ,
DE S.
Extrahida da Chronica do Padre Fr.
Lucas de Santa Catharina , eſe
gunduas Memorias , que ſecuno
< Jerva7 no Moſteiro deCor .
pus Chrifti , extra muros
da Cidade do Porto , em
Portugal.
1 Aſceo a Veneravel Ma .
N dre Soror Antonia de S.
Domingos em Villa nova de Gaia , de
fronte da grande Cidade do Porto ,
e entran lo no noſſo Moſteiro de Cor-
pus Chriſti, que alli temos, ſituado
nas abas do famolo rio Douro , que
pouco mais abaixo vaideſembycarno
Oceano , a Veneravel Madre, allin
antes , como depois da ſua Profiilai,
que ella fez no dia do grande Bautista
do anno de 1627. , fez húa vilaiguil-
mente lanta , que aittéra. Sý Jeix u
de penar quanto acabou le viver. An.
dava de ordinario com hùa cordade
eſpartomuigroſa , e indómita ao pef .
coço , cujas pontas , ou extremidades
lhe hizo rematar na cintura. Ein at
tençao 20 feu zelo , e obſervancia , fi-
zerai -na Miſtra de Noviças , lugar que
ella deſempenhou fantamente . Foi
muito dada á contemplaçao , e canto
a enterneciaõ os ſantos myſterios que
medicava , que acompanhava com hū
profufo dom de lagrimas , que recebe
ra , as altiſſimas reflexoens com que
os ponderava , ſendo tao copioſos eltes
eiflavios que ine brotavco do coraçao ,
q deixava maisregadu ý humedecido
o pavimento do Coro , aonde orava .
2 Repreſentárað - le - lhe por 10
nhos dous caminhos, hum muiintra
favel , e inculco ,povoado deeſpinhos ,
e rigores ; e outro de flores, e fuavi
dades: entao lhe perguntáraõ le que
ria ella ter o ſeu purgatorio em vida ,
repreſentado na estrada que via chêa
de alperezas, e trabalhos ; porque
( continuou aquella voz ) ffores ago
ra pelo caminho muis penoſo, e pun .
gente, caminhards depois pelo que
vês taö florido , e tað ſuave ; mas ſe
preferires ao contrario o caminho de
rofas, vir-te-basa achar depois no de
eſpinhos. A iſto respondeo a Serva de
Deos que fim queria padecer , emui
to padecer neita vida : e immediaca
mente começou a deſempenhar a ſua
palavra logo depois que acordou ; por
que o ſeu deſejo era aquelle melmo,
e a ella parecia lhe que nao paſſaria
aquella repreſentaçao mais que da
idéa illuſoria de hum frinho : mas a
experiencia foi logo moſtrando na ſua
verificaçao quanto elle era menosfan .
taltico do que myſterioſo ; porque ás
ſuas antigas penitenciasdos continuos
exercicios de cilicios , e diciplinas ,
da corda que diſlemos , e de outras
muitas que a ſua induſtrioſa humilda
de muilagazmente encobria , le fora
accumulando tancos , e tao novos mo
dos de ſentir , que nao ſomente lhe
faciáraó a vontade que tinha de fer
exceſſivamente atormentada , ſeaao
que até chegou a indicar alguma vez
que lhe hia faltando o ſoffrimento.
3 Tres annos lhe durou elta Cruz ,
e baſtando para ſer muito grande o
achar- ſe entrevada em hữa cama, e
taõentrevada , que até para beberhúa
gorta de agua ; era preciſo metter - ſe - lhe
húa pequena canazinha na boca , pa
ra
 RECOPIL A C,
ra ella affim a poder forver de hum
pucaro ; ainda aſſim lhe foi aggravan-
do o ſeu mal com tantas outras cir.
cunítancias, que nas ſuas moleſtias ſe
eſtava vendo hum retrato das penas
do Purgatorio ; porque hûa prima lua ,
que era a que tratava daServa de Deos
com mais diligencia, e cuidado , en-
trou em Caes frenezis, e melancolias,
que mais exacerbava com os ſeus ex-
cellos os moleſtiſſimos incommodos
de Soror Antopia ; e foi couſa muito
digna de reparo , que nem as violen.
cias do mal, nem as outras, com que
a quella Religioſa as accreſcia , jamais
The pudeſſem tirar da boca alguma pa
lavra menos comedida , que ou are
guiſſe nella menos conformidade, ou
que pudeſſe eſcandalizar aquella de
mentada Freira : ſó quando eſta lhe
exercitava a paciencia com mais ex
quiſitas extravagancias , dizia entao a
Serva de Deos , mas muito baixinho,
e por entre os dentes: Ab d'ElRey
sobre Sor Anna, ( ette era o nome de
ſua prima ) e jamais ſe lhe ouvio ou-
tra couſa .
4 Vio ſe quanto era do agrado
Divino que foſſe purificada por eſte
meio a Veneravel Religioſa ; porque
até o ultimo extremo da ſua vida hou-
ve accidentes mui trabalhoſos, eim
portunos , que fizerao avultar as ſuas
afflicçoens : pois até eſtando ja pa .
sa expirar , lhe deixáraõ cahir por der.
cuido hum pingo de cera da véla fo .
bre o peito. Húa vida tao larga , e
tao crucificada, teve o ſeu feliciffi.
mo termo na eterna : aſſim ſe pode
crer piamente da innocencia , obe
ſervancia , e mortificaçõens da Serva
de Deos : aſſim o teftimunhou o Rey
cor dos Orfaós do Porto , reputado
entao naquella Cidadepor hum Varao
de grande vir cude ;porque chegou
a dizer , que o demonio havia dado
hum fortiſlimo combate a Soror An-
tonia , mas que ella fahira do mundo
vencedora das ſuas inſidioſas tenta .
çoens ; e aſſim o confirmou finalmen •
1 te a fuaviſſima fragrancia , que ficou
Tom . VII .
A M de 17 de Settembro. 395
recendendo na ſua cella , e no Coro,
em quanto o ſeu venerando cadaver
Senao deo a terra . A Chronica do nof
ſo Padre Fr.Lucas de Santa Catharina
dá a ſua morte a ſeis de Mayo ; po
rèm hum informe, que nos veio do
referido Molteiro de Corpus Chrifti,
de donde ſe extrahio grande parte das
noticias , que aqui deſcrevemos, tem
que morreo a Serva de Deos em hūa
quinta feira depois do meio dia aos
17. de Settembro de 1682 .
RECOPILAC , A M
de 17. de Settembro.
I M Flandes ; em Gand, o
E Beato Odon. Fora no ſe
culo hum Legifta da primeira claſſe ;
e renunciando todos os adiantamen
tos , que ſe podia prometter das ſuas
grandes letras , paſſou a abraçar -ſe
com a Cruz de Chriſto na Ordem de
S. Domingos . A vida que fez dentro
della foi mui conforme a ſua vocaçao,
mui obſervante , é regular , mui de
vota , e ſanta. Como Deos o tinha
dotado de grandes talentos , como
ſervo fiel ſe empregou com todas as
véras em ganhar -lhe com elles muitas
almas. Nao obftanre ſer de hũa eru
diçao cao conſummada, foi ſempre
de hūa humildade nimiamente pro
funda. Fazia conſiſtir as ſuas delicias
em ler deſprezado , e tido
por hum
mero nada , e era toda a ſua averfað
dar -ſe - lhe a hoora , e louvor , de que
elle ſe fazia tao digno por ſciencia , e
por virtude . Foi bum extremo depe.
nitencia. Nao ſomente ſe abſtinha , co
mo aſſim o preſcrevem as poſlasConſti
tuiçoens, do uſo da carne na meſa, mas
até de peixes , e ovos , nao admittin
do outroſuſtento ,quenao foflem her
vas , e legumes . He fama que lhe foi
predico o termo da ſua feliz morte ;
e elle o diſſe a ſeus Irmaos . O noflo
Padre Cantimprato , que foiteftimu .
nha ocular de muitos dos fa &tos, que
deixamos expendidos , e os refere no
Ddd ii ſeu
396 FR . ANTONIO DE ARCEDIA ,
ſeu livro das Abelhas ,nao aſſigna o apno
da ſua morte ; mas Leandro , Malvēda ,
Pio , e outros dizem que ella ſuccedeo
no anno de 1239. Cantimprato ,
Leandro , Pio , e outros.
2 Em Barcelona , o Preclariſſimo ,
e 'Veneravel Padre Fr. Raymundo
Berengario . Era elle filho de D. Jay,
me II. Rey de Aragað , e Dona Bran .
ca , e Conde de Ampurias . Seu irmao
o Infante D. Jayme , que era mụi af .
feiçoado á Ordem de S. Domingos,
quiz veftir o ſeuſanto habito ; mas ja
mais pode obter o conſenſo de El Rey
ſeu pay , que empenbára a ſua pala
vra , para que elle ſe delpoļaſle com
a Princeza Dona Leonor , filha de El
Entretanto o noflo
Rey de Caſtella .
Raymundo , que nao era menos aman .
te do Inſtituto Dominicano , porque
eſta affeiçaõ tinhaô eſtes bons Senho-
res aprendido muito eſpecialmente de
ſeus pays , viſtoque nao tinha aquel-
les impedimentos , deixu a Corte
pelo retiro dos noffos Claustros. Vi-
veo ; e morreo dentro delles como
hum Santo . A ſua grande humildade ,
e fiel obſervancia , o deixáraõmui re
commendado diante de Deos, e dos
homens . Eſpera a univerſal relurrei.
çaõ no noſſo Convento de Santa Ca.
tharina Martyr, de Barcelona , aonde
jazem depozitadas as ſuas cinzas em
hum elegante , e mageſtoſo monumen-
to de alabaſtro. Anno de 1300. =
Diajus lib . 1.6. 12 .
3 Em Cracovia a muito devota
Soror Felicia . Era do Reyno de Po
lonia ; e em quanto viveo no feculo ,
nao parecia tenaõ húa Religioſa da
mais qualificada perfeiçao. Ainda af-
fim deſejando aſpirar a outra vida
mais fanta , veſtio o habito de S. Do-
mingos . Foi o ſeu maior eſtudo con-
cordar a lua vida com as obrigaçoens
do ſeu eſtado , eo deſempenho foico-
mo de quem eſtava tað bem diſpoſta
para os movimentos do Eſpirito San-
to. Dentro de breve tempo veio a ſer
bum cal modéio de ſantidade , que
era attendida como húa regra viva
18 de Settembro
dasReligioſasdo ſeu Moſteiro,de que
paſſou a ſer eterna ſaudade no anno
para G.
de 1508., em que Deos a levou
Pallados alguns annos ſe abrio a ſua
ſepultora , e exbalou bum cheiro tao
celeſtial, que bem conteſtou quanto
recendiao mais do qo meſmo incenſo
as ſuas virtudes diante deDeos. Pius
2. p . l. 3. Joan . à S. Maria , tom . 2 .
18. de Settembro,
Vida do Veneravel Padre
F R. Α Ν Τ Ο Ν Ι Ο
DE ARCEDIA ,
Extrabida da Hiſtoria das Filippie
nas , e Remezel,
1 Convento de Valbadolid
O tem a gloria de ſer feu
profeflo o Veneravel Padre Fr. An
tonio de Arcedia ', hum dos mais il
luttres Campeoens de Jesu Chriſto nas
Miſloens da China . Logo deſde que
veſtio o habito ſe começáraó a obler.
var nelle as duas tao eſſenciaes quali
dades de hum verdadeiro Dominica
no , ſendo muito douto , muito vir
tuoſo . Eſtava ainda na flor dos ſeus
annos , e moſtrava ja hūa prudencia
tro ſenil, que bem dava a conhecer
que iſto era effeito muito eſpecial da
quelle Senhor , a quem elle tao fiel .
mente ſervia, e que, aſſim como de
tudo o mais , nao depende do curſo or .
dinario dos tempos, A fidelidade , com
que deſempenhava as obrigaçoens de
bom Religioſo , e o bom termo com
que tratava a todos, tudo lhe gran
geou univerſaes eſtimaçoens entre os
ſeus , e os eftranhos. Na prédica , he.
rança tao particular dos filhos de S.
Domingos , fez progreſſos maravilho
fos. Ningué comoelle ſoube jamais ex
primir a formoſura, e luavidade da vir
iude ; a fealdade,e horror dos vicios . As
muitas converſoens, que fez , forao o
digno effeito das boas diligencias de
fte peſcador das almas. Naộ poucas
vezes ſe lhe commetteo o governo de
algu mas caſas daProvincia , em que,
mes
 FR . ANTONIO DE ARCEDIA , 18 de Settembro.
mediante as ſuas direccoens ; flore-
ceo na ſua maior perfeiçaõ a maior re-
gularidade da obſervancia.
! 2 Era muito amante do retiro , e
jamais The levou o ocio hum breve
momento : ſempre o virao applicado,
ja aos eſtudos , ja nas ſuas penitencias,
e devoçoens . Para ſe dar mais de af-
lentoa eftas couſas, evitava com gran.
de prudencia perder o tempo com vi-
fitas jouteis. Sabio hum dos primei .
sos Theologos do ſeu tempo , e foi
hum dos mais apaixonados propugna-
dores da doutrina do noſſo Angelico
Meſtre Santo Thomaz . Accento ao
bem que elle podia delempenhar ſe .
melhante officio , fizerao - no Leitor
do Convento de S. Paulo de Valhado-
lid . O meſmoempregoſervio no Con-
vento de Avila , e sempre com muita
gloria da Familia Dominicana .Nao foi
menos explendida a ý lhe adquirirao
muitos diſcipulos deſte inſigne ,e gran .. fao de hum genio mui altivo , e tal
de Mestre . Quando ſe achava occu
pado tao dignamente nas Cadeiras ,
ieve poticia que o noſſo Veneravel
Padre Fr. Joao Chryſoſtomo juntava
bum corpo de Miſſionarios para a ex
pediçao das Miſioens da China, Ja
pao, Camboia , e outros Efados ,
aonde os Obreiros do Evangelho tao .
totrabalhavað , e padeciao por deſar.
raigar a idolatria : nao foi neceffario
mais para o Veneravel Padre Arcedia
de determioar a encorporar-ſe naquel
la illuftre ſociedade. Renunciou logo
as Aulas, e cor: tituido Superior de
ſeus companheiros, embarcou para as
Filippinas no anoo de 1587. Apenas
ſe vio nellas , quando animado daquele
le incendio , que , ſem lha conſumir,
lhe abrazava a alma , emprendeo pe-
netrar o Imperio da China , nao ob-
ftante o aperto , vigilancia , e precau .
çoens dos Governadores , e Man-
darins .
3. Para fazer melhor a ſua ſurtida,
foi- lhe neceſſario coſtear todo aquel
le grande Etado ; fobrevindo porém
hūa implacavel tormenta , focobrou
a embarcaçao , e morrendo grande
397
parte de leus ſocios neſte naufragio ,
o Veneravel Padre Arcedia , e feu
Companheiro lahirao , como por mi.
lagre , a nado em hum daquelles Ilheos.
As ordens tao apertadas, quehavia de
probibiçaõpara osEuropeospao pode
rem entrar naquellas terras davao mais
pena ao Servo de Deos , do que o ex
tremo deſamparo aque ſe achava redu
zido ; mas aquelle Senhor, que tem
na lua Mao os coraçoens dos homens,
breve , e facilmente removeo eftes
temores do animo de ſeu Servo. Achou
o Veneravel Padre hum China , que
compadecido dos ſeus trabalhos o hof
pedou , luftentou , e tomou muito
particularmente debaixo da ſua pro
tecçao . Nao foi ingrato a tanto bene
ficio o Servo de Deos , moſtrando
aquelle infiel o verdadeiro caminho
da ſalvaçao , que elle hia annunciar a
ſeus paizanos. Os naturaes da China
vez inſuperavel: iſto porém nao ob
ftante,podecanto a força das razoens
dopoſſo Miſſionario, que aquelle ho
mem ficou logo muito de má fé com
os ſeus erros, e ſuperftiçoens; etan .
to ſe agradou da verdadeira doutrina,
que o Veneravel Padre lhe prégava,
que nao ſó nao recuſou que elle cele
braſſe o Sacroſanto Sacrificio da Mif
fa em ſua caſa , ſenao que quiz elle
meſmo aſſiſtir , e affiftio com muita
attençao , ereverencia aquella Sagra
da ceremonia . Como aquelle Chino
moſtrava canta graça ao bom Padre ,
pedio - lhe eſte permiſſao de poder pré
gar abertamente o Evangelho a ſeus
vizinhos : reſpondeo o outro , que
ſuppoſta a reftricçao das ordens , que
havia em contrario , nað ſe atrevia a
deliberar - ſe , menos que nao conful
taſſe primeiro o Vice - Rey , oqueta
ria quanto antes , e muito a favor do
Veneravel Padre , e de ſeu Compa
nheiro . Com effeito cumprio a pala
vra , mas nao ſe puderao lograr as per
tençoens do Servo de Deos ; porque
inteirado o Governador da chegada
do Veneravel Padre , o mandou da
China
398 FR. ANTONIO DE ARCEDIA , 18 de Settembro.
China para as Indias .
4.Nao obſtante eſta reſoluçaõ , o
Veneravel Padre Arcedia , e todos
ſeus companheiros , que haviaõ eſca-
pado do naufragio que diſlemos, via-
járað todos a Macáo. Naô lhe falıá .
rao trabalhos neſta jornada , a fome ,
a fede , e a falta de todo o neceflario,
foi hūa das mais extremas : perdeo
todos os ſeus moveis, e quaſichegou
inteiramente deſpido a Macáo , ſem
ter mais alivio em tanta conſternaçaő
do que padecer pela cauſa de Deos.
Em Macáo começou a prégar com
tanto elpirito , que nao havia quem
pudelle reſiſtir as ſuas palavras , mui-
to menos ſendo,como erao , animadas
de hūa vida tao ſanta , e irreprehen-
ſivel. Fez-le tao ſenhor das vontades
dos moradores , que por intervençað
muito particularmente dos Portuguc-
zes pode alli fundar hum Convento,
Hum dos primeiros que entrarao na .
quella Cala, e que verdadeiramente
veio a ſer hum dos ſeus primeiros or
namentos, foi hum Parocho de Ma-
cáo , que muito principalmente ſe de-
moveo a renunciar o mundo conven-
cido da lanridade do Padre Arcedia.
Efte novo Caſtello , que ſe levantava
para combater a idolatria , e o infer-
no ,nao podia deixar de padecer bũa
forte oppoſiçaõ do demonio , que an-
revia proxima a ſua ruina naquelles
paizes , que tao largos ſeculos h :via
tyrannizado. Quando pois o Venera-
vel Padre mais forcejava por tentar
novamente a entrada na China , que
de tao longe o levára a paizes tao re
motos , contou ao Vice - Rey das In-
dias a chegada daquelles Religioſos a
Macáo , e cemendo -ſe que elles fo-
mentaſſem alguma ſublevaçaõ em Ma .
cáo , de modo que eſta Cidade paſſaſ-
fe a outro Senhorio , expedio ordem
ao Padre Arcedia , para que elle , e
todos os outros Religioſos da ſua Na-
çao paffaflem a Goa , cedendo o Con-
vento de Macáo aos Religioſos Por-
tuguezes .
5 Quizeraõ eſcuſar - ſe os Padres ;
mas nem foraó admittidas as ſuas er.
cuſas, nem ainda ſe lhes concedeo fa
culdade de poderem paflar, como hu
mildemente deprecavao , á Manilha,
capital das Filippinas : termos em que
nao puderaõ deixar de fazer tranſito
a Goa. O noſſo Veneravel Padre ap •
pareceo nefta Metropoli da Aſia Por .
tugueza como hum luminar da primei
ra esfera . Tao bom lugar ſe ſoube fa
zer entre osprimeiros Magoates , que
nem o Vice-Rey , nem Ia nquiſiçao ,
nem o Arcebiſpo ſe atreviao a deli
berar negocio algum de importancia ,
e conſequencias, menos quenaointer
vieſſe a approvaçao do Veneravel Pa
dre Fr. Antonio de Arcedia . Aquien
finou Theologia cô todo aquelle acer
to ,gera necellariopara correſponderá
geral expectaçao de ſeus veneradores.
Itto nao tirava para que elle jamai . cel
falſe de ſer mais util aos ſeus proxi
mos , ja no Pulpito , ja no Confeffio
nario . Deveo -lhe o Convenio de Goa
a providencia de o fazer paſſar para
outro bairro de ares mais fadios , fup .
pottoque o ſitio, em que primeiramen
te ſe fundára , era grandemente infefto 1
a ſeus habitantes .
6 Como era , e ja o diſſemos , tað
addicto á doutrina de Santo Thomaz,
fez tambem alli edificar hum Collegio
de eitudantes, em honra do meimo
Santo Doutor. Depois de ſeis annos
de aſſiſtencia naquella Capital , inttou
hum Rey Indio em pedir alguns Mis.
fionarios paraa cultura Evangelica dos
ſeus Dominios : O bom Padre , que
nao havia largado as Helpanhas com
outro fim , foi hum dos primeiros que
le offereceo. Juntavao - ſe -lhe doze
companheiros ; mas poſtoque todos
ſe apreſtavao com a maior brevidade
para a partida , naő teve por entaõlu .
gar eſta expediçañ . Nao lhe fahia ao
Veneravel Padre do penſamento fa
zer todos os esforços por conſumiro
reſto dos ſeus dias na Miſſao dos in
fieis; mas Deos , cujos juizos faó in
comprehenſiveis, ſó ſe quiz pagar dos
bons deſejos de ſeu Serpo ; nem dian
te
 RECOPIL A C ,
te,delle tem menos bom cabimento
húa boa vontade , do que hūa effecti .
va execuçao .
7 Por eſte tempo ſuccedeo haver
nao ſei que diſlençao entre os noflos
Padres de Salamanca , reſpectiva ás
Cadeiras da Univerſidade: deſejavaố
elles hum Meftre , que em hūa Aca-
démia tao famigerada ſuſtentaíle o
credito Dominicano com a maior fa-
tisfaçao ; e como eſta qualidade reſ-
plandecia tao eminentemente no Pa-
dre Arcedia , initáraó com os Supe-
T riores para que o obrigaſſem , como
obrigáraó , a paſſar da Afia para a
Europa. Efte preceito por hũa par .
te lhe foi mui ſenſivel, porque o apare
fava da occaſiao de que nunca deſels
perava de poder ſer util em algun
tempo aquelles povos : por outra ,
como era , como perfeito Religiofo,
tao obediente , ſometreo -ſe com toda
a reſignaçao ás ordens da Providen-
cia ; e poitoque era Goa infurgirao
nao poucos obftaculos para o emba-
Taçarem , o que nao nafcia mais que
da grande devoçaõ que todos lhe ti.
nhao , e do muito que lhes cuſtava
perderem a ſociedade de hum homem
taniode.Deos ,nada com elle pode tā ,
to como o imperio da obediencia . Sy-
perados pois todos os obſtaculos ,
voltou finalmente a Salamanca , aon-
de , aſlim como tambem no noſſo Col-
legio de Santo Thomaz de Avila , aon .
de fantamente acabou os ſeus dias
fervio as Cadeiras com toda aquella
gloria , que a Ordem , e o mundo eſ.
perava de hum Meftre tao eminente
em doutrina , e virtudes . Finalmen ,
te perſeverando até o fim em unir būa
extraordinaria ſciencia com hūa rara
Santidade , rematou a ſua vida tað
exemplar com húa morte precioſa aos
18 de Settembro de 1599
6
11
A M de 18 de Settembro. 399
RECOPILAC , AM
de 18. de Settembro,
I M Aragao em Calataivd
E o Veneravel Padre Fr. Mi.
guel de Herrera. Foi hun dos pii-,
meiros Religioſos da ſua Provincia ,
e a quem ella deveo grandes luſtres,
ja pelas (ciencias, ja p « la bõa admin
Atraçaõ dos cargos , e muito mais por
fer , como era , hum ſanto Religioſo .
O zelo , que tiaha do maior bem da
Caſa de Deos , continuamente o de
vorava . Entre todas as outras virtu.
des , que como jnſigne Religioſo por.
fuia , tinha a da prudencia hum lugar
muito distincto. Nao deſconhecendo
iſto o noſſo S. Pio V. , e delejando
promover a Sagrada Familia Carme
litana Deſcalça , e reformada pela Se.
rafica Virgem Santa Thereza de Jesus,
a ſuamaior perfeiçao , lhe aſſignou por
Commiſſario deſta fanta reforma ao
Servo de Deus , commettendo - lhe
todos os Conventos dos Reynos de
Valença , Aragað , e Navarra . Elle
ſe deſempenhou deſte encargo com
grande utilidade da Igreja , e daquele
la Sagrada Ordem , enao com menor
gloria da Dominicana. Ao tempo em
que ſe achavaintimando a palavra Die
vina em Siguenca foi acometido de
hum accidente , que brevemente lhe
tirou a vida , paſſando - o á eterna no
anno 1570. Diag. 1.2.6.92 .
No Convento de Chincilhe o
Veneravel Padre Fr. Thomaz de Car .
mona . Contła fer este grande Relin
gioſo da Provincia de Portugal , e
que della paſſara ás Filippinas. A pe
nitencia , ea caridade forao duas vir
tudes , y ſobreſahiraõ com toda a emi :
nencia nelte Veneravel Padre . Nao
ſe eſmerou menos na piedade Chri .
ſtãa , de que era hum perfeito modé .
lo . Foi devotiflimo de noſſo Padre
S. Domingos , e era para elle hum
fagrado eacanto a maravilha do Con
vento de Soriano. Hum quaſi ſem
numero de almas deveo ás ſuas pré
gaçoens
400 FR . FRANCISCO DO
gaçoens , e aos ſeus conſelhos a me .
Thora das ſuas conſciencias. Era hum
dos maiores propugnadores da devo-
çao do Roſario.Inflammado dosdeſe-
jos de lucrar almas para o Ceo , par-
lou ás Filippinas para converter os
idolatras daquelle Paiz de eſcravos do
demonio em ovelhas do rebanho de
Jesu Chriſto ; mas eſte Senhor lhe pa-
gou tao ſantos delejos , chamando - o
para fi ao meſmo tempo em que ele
le prégando , e catequizando lhe fa-
zia grandesſerviços, no anno de 1549.
A & . Capit. Gener . 1650.
19. de Settembro,
Vida da Veneravel Padre
FR . FRANCISCO
DO ROSARIO ,
Extrabida de Melendes,
I Emos de referir neſte lu-
T gar a vida de hum dos mais
illuſtres Miſſionarios da Ordem de S.
Domingos , e que , ao modo de hun
Hercules da Ley da Graça ,padeceo
mais glorioſos trabalhos por enrique .
cer de maior numero de Cidadaons
a Corte Celeſtial , o Veneravel Padre
Franciſco do Roſario . Apenas eſte
grande Servo de Deos entrou no No-
viciado , quando logo teve a voca-
çao de dedicar -ſe a Noſſo Senhor na
Milaõ dos Indios . Para que Deoslhe
aceiraſle melhor a ſua boa vontade le
diſpôs com muitas penitencias,e mui-
ta Oraçao . De Chincha , aonde elle ſe
achava, na America , eſcreveo ao ſeu
Provincial Fr. Franciſco da Cruz , e
depois Biſpo da Dieceſe de SantaMar.
tha , pedindo -lhe a ſua bençao , ebe
neplacito para Miſſionar em Chuqui.
zuca . Aquelle Prelado , que era mui
verſado nas Miffoens, nao ouvio mui-
to bem a ſupplica do noſlo Noviço ,
interpretando - a em ſentido menos fa-
voravel , e entendendo que nað era
tanto o deſejo da converſao dos in .
fieis , quanto o pertender debaixo
ROSARIO , 19 de Settembro .
deſte eſpecioſo pretexto livrar -ſe da
Sujeiçaõ de ſeu Meſtre. Nao obſtante
le porèm eſta preoccupaçao , conce
deo ao Servo de Deos , que pudelle
paſſar a Chuquizaca a aperfeiçoar alli
os ſeus eſtudos.
Como Fr. Frapciſco tinha to
das as qualidades preciſas a hum bom
Religioſo , e conſequentemente nao
lhe podia faltar a da obediencia , ve
nerou na reſoluçao do Provincial a
vontade , e Providencia do Senhor,
fujeitando -ſe ao que le lhe determina
va com toda a ſubmiſlao. Com tudo
fentia -ſe chamado tao vivamente pe
lo Espirito Santo á Miſiao dos infieis,
que inceſſantemente trabalhava por
adquirir todas as boas diſpoſicoens
neceffarias a hum fim tao ſanto , dei
xando o mais á vontade de Deos . O
eſtudo , e a obſervancia , a penitencia ,
e a Oraçao eraõ o unico emprego que
lhe levava o tempo , e os affectos .
Bem moſtrava quanto eraó puras , e
ſinceras as ſuas intençoens na carida.
de , que praticava com os ſeus proxi
mos , e na infallivel aſſiſtencia , que
fazia no Confeſſionario . Como os de:
ſejos , que elle tinha de converter o
paganiſmo daquellas partes , de ne
nhum modo o podiao aquietar ; ef
çrevêo o Servo de Deos novamente
ao meſmo Superior , a tempo em que
ette ja ſe achava conſtituido Principe
da Igreja. Apontou todas as razoens ,
que lhe ſuggerio o feu zelo , mais ve
hementes , e mais fortes: Reprefen
tou -lhe com a mais reſpectuoſa hu .
mildade , que o pretexto com que
elle em outro tempo lhe denegára a
graça , que lhe pedira , nað afleptára
em fundamento ſólido ; porque defe
de a ſua entrada na Religiao , logo ſe
ſentira interiormente chamado ás
Miſſoens daquella infidelidade, eque
poſto que Sua Illuſtriſſima aquelle
tempo lhe naõ deferira , agora recor
ria novamente a elle , para que pro
tegeſſe eſta ſua tao antiga pertenſao
com o novo Provincial. Entao aca
bou o Biſpo de reconhecer o ſeu me
nos
 ER . FRANCISCO DO ROSARIO , 19 de Settembro .
nos bem fundado eſcrupulo ; e nao
Sendo pequeno o que lhe podia ficar
de impedir o grande fruto eſpiricual,
que o Veneravel Padre podia fazer
entre aquellas gentes , . niuito mais
quando achava conteftes a ſeu favor
nao poucos informes dos ſeus ſantos
procedimentos, nao ſe dedignou de
jer ſeu Orador perante o Provincial
1
Fr. Joao Lopes , que pao menos at .
1
tenio á virtude do pertendente , que
á authoridade do padrinho, foi mui
5
facil em conceder aquella graça .
3 Como ette Prelado porém era
tambem experientiſfimo nas Mifloës;
e fugia muito de empregar nellas Fra .
1
des moços , que ſem talvez haverem
E Postos a caminho eſtes Servos
ſido discipulos, pertendem fubir ao
gráo de Meſtres , nao lhe quiz com
metter a principio as Miffnens mais
arduas , querendo como enſayallo na-
quellas dos paizes de Tarama , e A-
comboba , cuja cultura zelára em ou
tro tempo com progrelos mui glo-
rioſos o meſmo Biſpo , atlociado com
outros Servos de Deos Fr. Luiz Tri "
vinho , e Fr. Diogo Gonſalves de Val-
docera. Cheio deinexplicavel alegria
o Servo de Deos, partio logo aonde
o chamava a Providencia . Atraveſou
o Potozi, aonde chegou em Mayo ;
ao meſmo tempo em que ſe acabavao
de celebrar as exequias do Illustriſſie
mo Biſpo , que fora protector: das
luas ſantas intençoens . Dalli partio
para Oruro , aonde lhe chegou tam
bem a noticia da morte do Provin-
cial , que nao poucoo affligio , aſſim
pelo muito que a Provincia perdia em
hum homem tao ſanto , como porque
efte incidente lhe retardava mais a
ſua jornada , preciſando - o a eſperar
alguns dias pelo Vifitador Fr. Pedro
de Quevedo , poſtoquede algum mo :
do lhe ſuavizava eſte inconveniente a
? eſperança que lhe ficava, de que eſte
Superior lhe deſle faculdade mais
ampla do que a que havia obtido pa :
ra Miſſionar, ou ao menos lhe confir-
maſle eſta melma , que elle tinha . A
chava -le o Viſitador no Convento de
Tom . VII,
40L
Cochambamba , e o Governador Pe .
dro Fernandes conveio com o Capi- .
tao Joao Peres de Santa MARIA , am
bos grandesamigos do Servo de Deos,
que por aquella meſma parte he que
parecia que elle podia entrar com
melhor eſtrella na ſua MifTao, pelo que
lhe aconſelhava que eſcrevelie a Fr.
Franciſco de Santa MARIA , para
que ambos compareceſiem diante da .
quelle Prelado , e imploraſſem 'a ſua
venia para entrar na Miſſao dos infieis.
Nao pareceo mal ao Servo de Deos
o conſelho , e aſſinando -lhe porcom .
panheiro Fr. Paulo Vanegas , tornou
a deſandar tudo o que tinha andado
para o ir buſcar a Chuquizaça .
4
de Deos , viajárað tres mezes , ſem
poder chegar a Andes , pallando būa
cordilheira , ou encadeado de mon
tanhas de mil legoas de extenſao . En .
tretanto que faziao eſta tao trabalho .
la jornada , os viſitou Deos com hũa
conſolaçao , que,aflaz foi baſtante
deſconto de tanta faiiga. Quando che
gárað á , abas de hūa caudaloſa ribei
ra , chamada Jungoma , aviſtárað a
hūa legoa de distancia hūa grande
multidaó dos Indios chamados Jomos.
o Capitao D. Joao Muela , que era
tambem da companhia , rogou aos
Servos de Deos ſe deriveſiem aiguns
í
dias entre aquelle povo , para lhes dar
alguma doutriaa . Elles eſtimáraó mui
too inyîte , promptamente executá
rao o que ſe lhes advertia , e todos
quatro tratárað logo de paſſar - se 4
quella parte . Faltava - lhes barco para
atraveſſar aquella corrente ; mas o
incendio da caridade Chriſtãa , que
nenhũas aguas podé exringuir ,afaz foi
agora engenhoſo para fupprir eſte de
feito. Pažlárað anado , alliſtidos do
Anjo do Senhor , que os pôs a ſalvo
da outra parte. Apenas começárað a
demandar os Indios , logo elles oad
" vertirao : talvez havia algum temor
da parte dos noſos de alguin mão fuc
cello , ſuppoíto o natural ſelvatico , e
indomito daquelles povos ; mas Deos ,
Eee que
402 FR. FRANCISCO DO
que de pedras pode fazer filhos de
Abrahaõ , os fez agora mui doceis ,
e ſociaveis , como ſe pudéra eſperar
de huma naçaõ mui polida , e repu-
blicana . O Cacique , ou Governador
da terra , que havia hum anno que
eſtava doente, alegrou - ſe grandemen-
te com a ſua vinda , e levantando as
mãos ao Ceo , comeltes , e outros ace-
nos , nao ceſſava de os chamar . O
coraçao lhe dizia quanta felicidade
lhe mandava o Ceo em Fr. Francif-
co ; porque parece que aquelle Idó-
latra nao eſperava outra couſa , ſenaő
o bautiſmo , e , pelo que piamente ſe
faz mui crivel , a ſalvaçao eterna , pa .
ra fechar com hum cao gloriolo ter
mo a ſua vida .
s O Venera vel Miſſionario , po-
ftoque o pezo do veſtido, que hia tao
molhado , foſſe aſſaz grave , nao bar
ſtou para que elle paò foſſe como voan
do a buſcar aquelle homem . Quiz a
fortuna que a mulher deſte ſoubeſe
a lingua do Servo de Deos , e ferviſ :
fe de interprete . O doente pedio ln-
go o bautiſmo com a mais fervoroſa
inſtancia. Fr. Franciſco cheio de hũa
inenarravel alegria , e venerando com
profunda ſubmiſao os ſegredos do
Altiſſimo que chamava a hum Idó .
Jatra no féio da Gentilidade com tao
fortes auxilios , ao meſmo tempo ,
que eltava dando com as luzes da ver-
dadeira Fé nos olhos de hum nume .
ro innumeravel de impios , que ſe ob-
Itinavao em fazer-lhes reſiſtencia , in-
firuhio no Catheciſmo aquella tað fe-
liz creatura . A moleftia , quanto ás ap .
parencias , pouco , ou nada tinha de
grave,e copliderando o VeperavelPa•
dre que conferir n - ftes termos preci-
pitadamente hum bautiſmo , podia
ſer attendido como húa pedra de eſ .
candalo da Igreja, quiz retardallo mais
algum tempo , para que o enfermoo
tiveffe melhor para fazer as neceſſa .
rias diſpoſicoens. Aſſim o deo a en
tender ao Cacique ; e poſtoque lhe
fez eſta repreſentaçaõ com os termos ,
e com as razoens mais ſuaves, elle ſe
ROSARIO , 19 de Settembro.
affligio em tantoexremo , chorou tan .
tas lagrimas, e fez tantas inſtancias,
que por parecer de Fr. Antonio ſe lhe
houve de adminiſtrar o bautiſmo a
toda a preſſa. A penaseſte feliz Neo
fyto acabou de regenerar-ſe em JESU
CHRISTO quando immediatamente
paltou a lograr -ſe da ſua Face na glo .
ia .
6 Quali neſte melmo meio tempo
cahio de camu a viuva : o termo da
fua doença , foi de quatorze dias , em
que mui racionavelmente ſe pode in.
ítruir nos Myſterios de nolla Santa Fé .
Elles fizeraó hũa tal impreſſao no leu
eſpirito , que no dia precedente ao da
ſua morte deo altiſſimos ſinaes de fer
húa das almas predeſtinadas para en
cher as cadeiras dos Anjos deſertores .
Os Indios , que muito a amavao , e
reſpeitavao , ſabendo da ſua moleſtia ,
nao deixavao a ſua aſſiſtencia ; e co
mo ſentiao grandemente perder a ſua
companhia , muito le affligiao , econ .
trittavao: ella porèm ,como ſe eſtiveſ H
Te pofluindo a gloria , a que eftava tao 1
proxima, aſſim eſtava placida , e ale
gre , como nenbūas palavras podem
referir. Ninguem ( dizia ella ) ſe laftia
me da minha morte ; porque mais de
preſa ſerá deſejar-me mal , do que
bem , ſentir que eu deixe v nada pelo
tudo , būa vida caduca , emiferavel,
por outra eterna , e gloriofa. Pagava
o bom affecto deſtas gentes ; ſendo
ſua prégadora , e exhortando- as a de
teſtar a idolatria , e abraçar , ao ſeu
exemplo , e de ſeu marido , a verdadei
ra Religiaõ . Dizia que ſe elles ainda
achavao que lhe devia6 alguma obe
diencia , nenhía outra couſa lhes
mandava , ſenao que todosſe conver
teffem , e bautizaſſem quanto antes.
Eſtas palavras eraõ tao incendidas
que bem moſtravao nao ler naſcidas
de menos origem , que dos fecundiſ,
fimos ardores do Eſpirito Santo .
7 Daqui forao paſſando os Servos
de Deos a outras partes , e chegarao
a hūa infeſtada de hūa cruel praga de
tygres , que faziao hữa extraordina .
rią
 FR . FRANCISCO DO ROSARIO , 19 de Settembro .
ria mortandade ; e carniçaria nos ha-
bitantes . Nao obitante cao grandes
perigos , detiverao - ſe aquinao menos
almas para Deos , e aqui radicou oos
coraçoens de ſeus Neofytos a devoçaõ
do Roſario da Virgem Santiſlima, de
cuja devoçao , e culto foi ſempre
grande Zelador , inclinando aquella
nova , e florecente Chriſtondade á
maior veneraçao das ſuas fantas Ima-
gens , e a recorrer ao ſeu poderoſo,
e ſempre efficaz patrocinio em todas
as adverſidades que nos a comertem
nefte valle de lagrimas . Piamente ſe
crê , que em virtude deſta Máy de
piedade ſe vio deſaſſombrada aquel-
la pobre gente da oppreſtao daquellas
féras . Ainda que eſte Veneravel Miſ :
fionario empregava tao glorioſamen-
te os ſeus srabalhos Apoftolicos , ja-
7
mais lhe fahia do penſamento a lua
primeira intençaõ de paſſar a Andes:
em quanto nao atraveſſava aquellas
montanhas , que ſe lhe interpunhaó,
nao podia ter algum ſocego , como
ſe lhe eſtiveſſem fazendo ecco nos ou
vidos os clamores de tantas almas
que eſperavao ſer lavadaspor elle no
Sangue de Jesu Chriſto . Muitas vezes
tentou penetrar aquelles deſertos
montes ; mas por luperiores juizos ,
que ſe naõpódem comprehender, ſahi-
rao ſempre fruſtrados os ſeus inten-
tos. Vendo pois deſaproveitadas, por
tantas vezes , as ſuas diligencias,en-
trou na reſoluçao de tornar a Chu.
quizaca. Aſſim o executou, e ſempre
ſemdeſiſtir dos ſeus primeiros inten-
tos .
8 Começou a tomar outras medi-
das para poder ſuperar aquella gran-
de difficuldade, conferindo com Fr.
Jozé Murilho , que nao deſejava me-
nos ſacrificar , em companhia de Fr.
Franciſco , o reſto da ſua vida em hun
emprego de canto ſerviço , e gloria
de Deos ; razañ porque le empenhou
em procurar húa groſſa ſomma de di-
nheiro , para fazer hum caminho por
onde ſe pudeſſe paſſar aquellas par-
Tom . VII ,
403
tes : como porém eſte intenco , ſup
poitas as muitas lagôas , e atoleiros
imprat
que icavel
havia offerecen
de ,permeio ; ficava ſendo
doava ſendo
vel Padre a Deos a ſua boa vontade ,
ſe recolheo ao Convento da Magda
lena , da Cidade de Lima , para ga .
ſtar os dias , que lhe concedefie de vi
dao Author della , em preparar -ſe pa- .
ra a eternidade . Duas mil legoas ;
que eſte homem Apoftolico havia pe
regrinado nas fuas Miſſoens , os in
commodos deſtas jornadas , as ſuas pe
nicencias , os ſeus muitos annos , e
outros muitos accidentes , tudo co
operava mui fortemente contra a ſua
diſpoſiçao. Os Medicos , havendo re
conhecido quanto os ares de Lima
The erao contrarios , aconſelharaó .
The , logo que elle alli chegou , que
paſſafle para outra parte . Elle , como
o ſeu zelo era infinitamente inſupe
ravel contra todas as contradicçoens
do tempo , e da natureza , eltimou
em muito eſte aviſo , na elperança de
que ainda podia ter algum meio de
executar o ſeu projecto. Paflou -ſe
pois ao Potoſi, nao tanto por attender
á commodidade da ſua ſaude , quan
to por tentar novamente a entrada
gas terras dosGentios , em compa .
nhia do Governador Dom Bento Ri
bera , e do Meſtre de Campo D. An
conio Lopes de Quiroga.
9 Depois de muitas conferencias
que ſe fizeraõ , a fim de deſcobrir
meio de ſuperar as quaſi inacceſſiveis
difficuldades , que le oppunhao aos
fantos intentos do Veneravel Padre,
affentáraó em viajar a Cochabamba ;
porque eſte era o unico recurſo , para
que podiaõ appellar , porque por a
quella parte nao eraõ tantos os impe
dimentos , como por qualquer outra .
Como nao havia caminho trilhado
foi neceſſario a grande cuſto abrir al
guns paſſos por aquellas intrataveis
montanhas , para o que o Governa
dor de Potoſi, ordenou a ſeu primo
D. Antonio Lopes , que empregaffe
neſta obra aquelle grande numero de
Eee ii tra
404. ' FR . FRANCISCO DO
trabalhadores de que ella preciſava.
Pallados finalmente tresmezesemeio
de moleſta viagem , teve o Servo de
Deos a conlolaçaõ de chegar aquelle
paiz , que fora lempre o attractivo dos
ſeus penſamentos . Começáraó a dif
correr por todas aquellas povoaçoens,
aonde erao recebidos comohunsAn-
jos do Ceo: tað bem os havia diſpoſto
Providencia para ſegurar -lhes a ſal-
vaçao ! Ilto conhecêrao melhor os
Padres , chegando a hum lugar, que
hũa furioſa peite aſſolava , e deſpo-
voava , trocando aquelles empeita.
dos , que muito principalmente eraõ
meninos , a vida mortal pela immor-
tal, mediante as faluberrimas aguas
do Jordao do bautiſſimo. Quando os
bons Miſſionarios muito ſe regozija-
vao de adquirir tantas almas para o
Ceo , que esta era a unica riqueza que
procuravað , reſeatido o demonio de
ver tao devaſtado o ſeu imperio , co-
meçou a perturbar as eſperanças, que
aquelles Operarios do Evangelho com
tao bom fundamento concebia o de
fazer os maiores progreſſos naquelles'
territorios . Os malignos eſpiritos da
ambiçıo , e ſediçao fora6 os motores
delta infeliz novidade.
10 Deſgoſtoſos osCaſtelhanos,que
acompanhavao aos Padres , de nað a .
charem naquelle paiz as minas , e ri-
quezas, que imaginavao, começárað
a ſaquear as caſas dos Indios com a
mais inſolente liberdade . Excandeſci.
dos deſte taö irracionavel termo os
naturaes da terra,ſe armáraó para dei
tar fóra dos ſeus confins aquellesſol•
dados ; e entre eſta diſſençaõ nað fo-
rző poucas as vezes que os Padres ti-
verao as vidas extremamente arriſ-
cadas . Serenou - ſe finalmente eſta diſo
cordia , atalhando -ſe o mal pelos
meios effectivos , e competentes , e
proleguirao os Miniſtros do Senhor
mui tranquilamente a ſua Miſſao.Por
eſte tempo , fatigado de tantos inco .
modos , e trabalhos Fr. Jozé Muri .
Iho cahio de cama de hūas terçāas , e
nao teve neſta enfermidade outro re-
ROSARIO , 19 de Settembro .
gélo , ou bom tratamento , mais do
que algumas poucas hervas, que pa
ra ambos, e ainda para alguns daquel
les miſeraveis Indios colhia , e guiza
va Fr. Franciſco do Roſario.
II Tao bem ſe ſoubérao fazer ſe .
nhores dos coraçoens deſtas gentes os
Servos de Deos , que quando dalli
quizerao paſſar-ſe a outra parte , fe
juncáraó todos os habitantes, e com
mað armada quizerao impedir a ſua
fahida . Era aflombro conliderar a fin .
ceridade , e piedade com que eſtes
bons Chriſtãos abraçavao as verdades
de noſſa fanta Fé . Faziao cruzes , e
collocavab.Das com toda a reveren
cia, e culto em ſuas caſas, e ſobre as
fuas portas: pocediaõ em cudo o mais
como ſe houvellem ſido educados de
meninos em húa Communidade mui
Religioſa , e fanca. Os Padres , ſe .
gundo era ſeu eſtylo , arvoravao elli
tambem duas Cruzes no meio da po
voacao , hũa aonde ſe juntavao os la
dios , e outra na praça do lugar. Nao
acháraó entre eſtes povos algum vefti .
gio de idolatria entre elles , nem ha
via templo , nem conſervavao idolos
alguns em ſuas caſas. Mas o que po
de ſervir de confuſao aos abominaveis
profeſſores do Atheiſmo, he que re
conheciao hum unico Deos , Senhor
de todas as couſas, a quem davao o no
me de Apu , e a quem offereciao em
ſacrificio o fumo do tabaco . Tambem
adoravao o Ceo , offerecendo - lhe por
vi & imas oloroſos perfumes. Tam
bem cinhao algum reſquicio de co •
nhecimento do demonio , a quem
chamavao Suiſui : tinhao para ſi que
era hum eſpirito de iniquidade, e que
como tal era opprimido , eflagella do
de Apu. Tambem tributavaõ culto
ao fol, lua , e eſtrellas. Nao deixava
de haver entre elles hum bom nume
ro de pefloas dadas a feitiçarias , mas
que erað ſūmmamente deſprezadas ;
porque os tinhao em conca de fervos
de Suiſui. 1
12 Plantada neſte ſitio tað feliz
mente a Fé Catholica , prorompeo o
demonio ,
 1
RECOPILAC,
-1 demonio , magoado de tanta ruina ;
nas luas costumadas raivas , e furores.
Em húa noite antecedente ao dia do
3 Naſcimento da Virgem Senhora Noſ .
ſa ouvio - ſe hum furioſo , e horrivel
eſtrondo na caſa do Senado , aonde
os Padres haviaõlevantado hũa Cruz,
e aonde ſe alojavao os ſoldados Cao
ſtelhanos. Ao melmo tempo ſe vio
ſahir daquella povoaçaõ bum homem
fugindo, acompanhado demuitos og-
tros. Os Miſſionarios , e os ſoldados
fahiraõ logo em ſeu alcance , enten-
dendo que realmente eraõ morado- '
res da terra , para os reconduzirem a
ſuas caſas : como nao pudérað ler as
chados por todas as partespor onde os
nollos diſcorrêrao em ſua buſca , e era
facil concluir que a ſer o que ſe cui-
dava , ninguem , ſuppoſta a prompta , e
bõa diligencia que ſe fizera , podia
eſcapar de ſer colhido ás mãos ; ad . '
mirados os Indios , diziao: que aquel.
le fugitivo era Suiſui , que muito ſe
laſtimava de que elles foflem tao faceis
de abraçar hũa nova doutrina: que
eſtavao porèm certos , que ſe elles
quizeſſem renuncialla , Suiſui naodei-
xaria de tornar no ſeguinte dia . Elles
porém eſtavað tað firmes em ſuſtentar
a Fé , a que ſe haviaõlomettido , que
naõ houve algum que vacillaſſe . Tu
do iſto eſcreve o Veneravel Padre Fr.
Franciſco do Roſario ao R. Padre
Fr.Joao de los Rios,Provincialaquelle
tempo , em carta dacada em 19 de
Mayo de 1677. Conſeguida tað glo-
riola , e felizmente eſta fanta empre .
za , deo volta com ſeus companheiro-
o noflo Veneravel Miſſionario Fran-
ciſco do Roſario ao Paiz ; e conti-
nuando ſempre , fem ceflar, as ſuas
Miſloens , neſta fanta obra o achou
a morte , que para elle foi mais eſtie
mavel , e precioſa do que a meſmavi-
da , aos 19 de Setembro de 1679 .
A M de 19 de Settembro . 405
RECOPILAC, A M
de 19. de Settembro,
I As terras da Republica de
N Veneza , em Quioza , o Ile .
luftriflimo , e Veneravel Biſpo deſta
Cidade Dom Fr. Angelo Baron. Era
natural de Veneza , aonde veftio , no
Convento de noflo Padre S. Domin .
gos , o habito deſte grande Santo
Patriarcha . As ſuas grandes letras , e
virtudes o fizerao digno de occupar
muitos officios na ſua Provincia , que
elle deſempenhou com a mais explen .
dida ſatisfaçao. Era de erudiçaõ cao
conſummada , e de vida tao ſanta , que
o fizerao Meſtre de Eſtudantes do ce
lebre Convento de Bolonha . Daqui
vagando ſempre a fama do ſeu taodis
itindo merecimento , foi chamado a
Roma para companheiro do Meſtre
do Sacro Palacio o Padre Fr. Joað
Maria de Briſille . Attenta a Santida
de de Clemente VIII. ás tam inſignes
qualidades do Servo de Deos, creou -o
Biſpo deCataro na Eſclavonia ,corren
do i anno Chrifta o de 1602. Até o de
1611. governou eſta Igreja com toda
e ſantidade . Em 13. de
a re & idao ,
Outubro deſte meſmo anno , foi no
meado por Paulo V. , que lhe era mui.
to affeiçoado , Biſpo de Quioza. Nao
chegou a reger hum anno etta Diece
fe ; porquea mudança dos ares lhe foi
prejudicialiſſima, e em Settembro do
anno ſeguinte paflou fantamente de .
Ata vida,com univerſal ſentimento dos
ſeus Dieceſanos, a lograr a eterna na
companhia dos Juſtos , como piamen
te ſe crê. Ital. Sacr.tom . 5. Theatr.
Dom . in Fontan .
Na Lorena, em Mers, a Venera
vel Serva de Deos Soror Odeta Beau
fis. Tinha deſaſeis annos , e corria o
de 1577. quando ella veſtio o habito
de Converſa no meſmo Moſteiro de
Mets , ſupprindo com a eminencia
das virtudes o defeito da idade , que
pretcreve a Conſtituiçao , ainda que
nelte ponto nao era aquelle tempo
tað
-
406 FR . FRANCISCO DE POSSADAS, 10 de Settembro .
faõ rigoroſa .
" Að exercicio de Mar.
tha fabia unir perfeitiſſimamente a
piedade de Maria. Conſervou a de-
voçaó , que começou a moſtrar deſde
a lua entrada no Noviciado até o ul.
timo periodo da ſua vida . Era de
muita Oraçao , e como tinha o tem
po tao penſionado , cortava pelo ſeu
deſcanço , levantando -ſe infallivel
mente as tres da manhãa para fallar
com Deos mediante aquelle ſanto
exercicio da Oraçao . Os annos, e as
enfermidades jamais forao baſtantes
a deſvialla deſte ſeu eſtylo . Tanto ſe
dava a eſte celeſtial commercio , que
ſe lhe chegáraõ a callejar os joelhos,
accidente que mui fenſivelmente a
incommodou . Naquella meſma parte
fe:lhe abrio hūa enorme chaga , que
ella occultou muitos tempos , e nem
a deſcobrira ſe hūa Religioſa paõ delle
fé della , e a obrigaſſe a curalla . Mas
ella eſcuſou mais remedio do que a
Oraçao ; porque tem le ſaber como
ſe lhe cicatrizou , ào que ſe pode crer,
milagrolamente.Guardava o ſilencio
do Initituto no ſeu maior rigor , ex
plicando - ſe de ordinario por acenos;
e no obſtante ſer Converia, com toda
a lubmiſlao chegiva talvez a tomar a
ſanta liberdade de advertir qualquer
tranſgreslao neſte particular. O pou
co que fallava era ſempre de Deos, e
ao meſmo tempo ſe lhe eſtava retra
tando o coraçao no aſpecto. He fama,
que foy favorecidiſſima do Ceo , pa-
ra onde paſſou por hūa bemaventu-
rada morte no anno de 1629. = La
fon , e Mem . de Mets.
3 Em Soriano o devoto Irmao.
Leigo , Fr. Gregorio de Gemilliano .
Foi ette Servo de Deos inſigne em
obediencia , e em devoçao , de que
dệo nao poucas moſtras no Officio que
muitos annos ſervio de Sacriſtao me-
nor . Era de hūa modeſtia celeſtial.
Os pobres cinnaõ nelle hum pay mui
próvido , e mui amante : ſendo hummui ſemelhante a eſta figura o ſuccef
incendio de caridade com todos, era so dos pays do Grande , e l'enera
comſigo a melma fereza , a meſma ty-
rangia. Quali ſempre jejuava , e nao
paflava noite, em que nao tomalle lar .
gas diciplinas de ſangue. Eſtava ti .
do em tað bõa conta , que muitos re .
corriao a pedir - lhe oraçoens. Toda
eſta aura de agrado era bem fóra de
introduzir nelle o deſvanecimento ,
antes o radicava melhor na humilda
de. Foi atacado de hūa cruel fluxao ,
que lhe cahio na lingua ; mas nem
por iſo ceſlava de louvar a Deos , ja
que nao com as palavras, com os af.
fectos de ſeu coraçao . Moſtrou peſte
incidente , que , por lhe impedir que
ſe pudelle explicar, lhe era muito mo
leito , haver - ſe com hứa inconculla,
e admitavelpaciencia .Recebidoscom
ſumma piedade os ultimos Sacramen
los , deixou o mundo pelo Ceo pare
ce que no anno de 1660.- Ex Chro
nic. Convent. Surian .
20. de Settembro.
Vida do muito Veneravel , e
Exemplariſſimo Padre
FR . FRANCISCO
DE POSSADAS,
Extrahida da que eſcreo o Padre Fr.
Pedro de Alcalá do Convento de
S. Paulo de Cordova.
I E beneficio mui conſide
H ravel o que fazem as libe
ralidades da larga Maõ de Deos áa
quelles, a quem exaltao entre os ſeus
meſmos ; mas he maior incompara
velmente o favor que recebe da Sum
ma Bondade quem logra eſpeciaes
creditos , e eſtimaçoens entre os ef .
tranhos. Por eſta razao , como diz
o Anjo das Eſcolas, tiron o Altiſſimo
da ſua patria ao Patriarcha Abraham ,
querendo collocallo fóra della em ma .
iores elevaçoens , e dar - lhe em hum
filho būa fumma profuſaõ de ben
çoēs , e miſericordias. Em tudo foi
vel.Servo de Deos o M.R. P. Preſen
tado Fr. Franciſco de Pofadas. Eraő
eftes
 FR . FRANCISCO DE POSSADAS,
eſtes , Eftevao Martins Loſlada , e Eſtados å ſeu legitimoRey , e Senhor
fua mulher Maria Fernandes Pardo
e Posledas , naturaes do lugar deLa-
ma de Arcos , no Reyno de Galliza ,
no Bilpado de Orenſe , ambos peſſoas
de illuſtre qualidade , e por huns, e
outros avós, paternos, e maternos, fo
rao Fidalgos de Solar conhecido co
feu natural paiz , como aſſim conſtou
tanto das informaçoens, que a Ordem
tirou antes de dar o habito ao noſſo
Veneravel Fr. Franciſco , como de
11 outros irrefragaveis documentos; por-
que conſta haver feito ElRey Catho-
lico Capitao de húa companhia de
Soldados a Affonſo Garcia bizavô de
Maria Fernandes : Que Pedro Paulo ,
filho do referido Capitao , foi Cone-
go de Mondonbedo , eD. Lourenço
Pardo Poſſadas, ſeu ſobrinho carnal ,
foi Inquiſidor Apoftolico em Gailiza ;
e ultimamente Jorge Pofladas , ir
mao da ditora progenitora do noſſo
Fr.Franciſco,foilegalmēte reconheci-
do por
nobre na Cidade de Cordova,
aonde provou a illuſtre qualidade ,
que tinha herdado de ſeus maiores.
O Padre Fr. Pedro de Alcalá , aquem
ſeguimos neſta memoria , diz que co-
nheceo hum Religiolo nofſo, a cujas
mãos ( como elle dizia ) chegáraó
huas documentos , de que ſe moſtra.
va authentica a nobreza dos pays do
Servo de Deos, e affirmava o referi-
do Religioſo ſerem de ſangue taõ qua-
lificado quemuitosCavalheirosfaziao
vaidade de lhe correr pelas veas . An-
ticipamos aos Leitores eſtas noticias
da preclariffima familia do noſio Fr.
Franciſco , para que venerem com
major rendimento , e aſſombroasdif-
poziçoens de Deos , quando virem
no decurſo deſta Hiſtoria o meſmo
Veneravel Padre , com ſeus pays em
hum defprezivel , e laflimoſo eſtado.
2
Viviaõ commoda , e alegremen-
te na ſua patria os venturoſos paysdo
Padre Pofladas, quando o incidente
da guerra , que entao ardia entre as
duas coroas Portugueza , e Castelha-
Da , originada pela reftituiçao deites
20 de Settembro 407
D. Joað o IV . de feliciffima recorda
çao , os obrigou a deixar aquelles ares ,
é ir buſcar ſeu refugio em outros eſtra
nhos ; porque entrando os Portugue .
zes com mao armada no lugar deLa
ma de Arcos , no Reyno de Galliza ,
e fazendo nelle as hoſtilidades ordina
rias , o deixáraðreduzido aos ultimos
termos demiſeria , e deſtruiçao. Obri
gados deſte fortuito , deixáraó Ette
vao Martins , e ſua mulher aquelles
campos , indo em buſca de outros ,
aonde pudeſſem firmar com mais ſe.
gurança , e ſatisfaçao a ſua caſa . To
márað o caminho da Andaluzia , ede
terminárað.ſe em allentar , e comef
feito aſſentáraó ,a ſua vivenda na cele .
bre Cidade de Cordova: a principio
comárað o trato de mercadores de
pannos , imitando , aſſim
como pays de
hum Franciſco tao juſto , os proge.
pitores do Serafico Santo , de quem
elle nao ſomente havia de tomar o no
me , lenao , e muito mais , a imitacao
das virtudes. Haviao cido eftes bons
calados alguns filhos , mas a todos
choravao mortos na primeira flor da
fua infancia , e achando ſe agora Ma
ria Fernandes em veſperas de ſer máy,
recorreraõ ella , e ſeu eſpoſo á pro .
tecçao de Maria Santillima , venera
da muito particularmentenaquella fa
moſa povoaçao , na ſua Veneranda, e
milagroſiſſima Imagem da Fonte San .
ta , fazendo á Senhora a promeſſa ,
de que no caſo , queciveſſem menino ,
lhe ſeria eſte dedicado na noffa Ordem ,
e que diria a ſua primeira Miſſa dian
te daquelle meſmo Soberano Simula .
cro .
3 Eſta petiçaõ nao deixou de fer
muito grata ao Ceo ; porque correo
do o anno do Senhor de 1644. naſceo
Veneravel Fr. Franciſco em 25.de
Novembro , dia dedicado á Inclyta ,
e acerrima Doutora da Igreja , a glo .
riola Virgem , e Martyr Santa Catha.
rina , Patrona de Cordova, e lingua
lar Prorectora da noſia Ordem , a qué
tem affiftido com muitos , e notaveis
favo
408 FR . FRANCISCO DE
favores. Nao forao poucos , net me
nos distinctos os que pelo tempo adian .
te recebeo deſta celestial Herojna o
noflo Veneravel Padre , como vere .
mos em ſeu lugar . Obſervou -ſe na
noite do ſeu naſcimento húa grande
claridade, que ſervia de coroa ao re-
lhado daquella humilde habitaçaõ ; e
quando naſceo Franciſco , diſcorreo
hum eſpecioſo , e mui brilhante raio
de luz pela quadra do apoſento , em
queeſtava lua máy , augúrio ette ,que
deo motivo ao vaticinio bem deiem
penhado que entao fizerao as peſſoas
que alli fe a havao , dizendo iodas a
hua voz : Eſte menino ha devir a ler
hum fanto. Vio fe tambem outra luz
muieſtranha, e refulgente ſobre a Cala
de S.Franciſco de Paula.com prenun-
ciando que o noſſo recem naſcido nao
fómente vinha ao mūdopirater omel
monome linao para exercer fiel,- exa
ctamente as virtudes da humildade , e
caridade , q , entre muitiſſimas outras ,
forao as duas com que ſe fez mais illu-
fire aquelle prodigiolo Santo . Foi o
noilo menino regenerado em Chriſto
na S. grada piſcina do Bautiſmo em 4.
de Dezembro daquelle anno , e alli
ſe.The impôs o nome de Franciſco, pe-
la devoçao affectuoſiſſima de ſeus pays
ao grande Apoſtolo dasIndias Portu,
gu zas S. Franciſco Xavier , ao que o
Doflo menino veio acorresponder de
pois cao genuinamente , que parecia
que naquella ſagrada funte, em que
recebeo a primeira graça , bebeojun .
tamente o eſpirito daquelle Apoltoli-
co Millionario do Oriente .
4 Congraçado ja com Sua Divi-
na Mageftade , mediante o primeiro
Sacramento , começou a obſervar -ſe
en Franciſco aquella meſma abſtinen-
cia , que ſe'admirára muitos ſeculos
antes em Domingos noſſo Santiſſimo
Patriarcha ; porque jamais ſe pode
acabar com elle que tomaſle o pei .
to nas ſegundas, quartas, e feſtas, feiras
mais de búa vez á cardinha : nos ou-
tros dias , ainda que a máy lhe faltaſ-
ſe com o leite , ou por deſcuidada ,
POSSADAS , 20 de Settembro .
ou por impedida , nunca o filhinho
ſe queria fazer lembrado pedindo com
lagrimas o luftento. Muito antes de
dar á luz o ſeu menino , havia Maria
Fernandes teito offerecimento delle a
Noſſa Senhora do Roſario na ſua Ca
pella : depois do ſeu parto levou -lhe
iambem por vezes o filbinho , conti
nuando ſempre o meſmo offerecimen .
Reparou a bõa mulher que em
to .
hűa deitas occaſioens foi o alvoroço
de Franciſco tao grande, que force
java por lhe lahir dos braços para ir
cingir com os ſeus aquella Santa Ima
gem , para onde elle nao ceflava de
apontar com o dedo , .mui feſtivo, e
rizonho ; e tornando a máy a fazer .
The o coſtumado voto , dizendo: Se
nbora , eſte fillo he viſto : ( oh por
tento ! ) eis - que levanta a vor o meni.
01 , que ainda entao nao fallava , e
diz mui clara , e perceptivelmente :
Sim , ſim . Ficou eſmorecida, e attoni
ta a máy de Franciſco , e muito mais
ſe aſſombrou reparando que a Ima
gem doMenino , que a Senhora tinha
nas Mãos , olhava para o ſeu com fi
naes de grande jubilo , e amor , do
que tudo deo graças ao Todo Pode
roſo, pedindo -lhe humildemente o
effeito de tao bons auſpicios, como
erao os que felicitavao a iwe prole.
i's Moſtrou a Rainha dos Anjos
que nao ſe deſagradára da vidima ,
que lhe apreſentava aquella piedoſa
mulher no ſeu filhinho ; porque pon
do - o a porta da loja em que vendia,
juntando -ſe outros meninos , profe .
ria o noſo , ainda que balbuciente ,
mente articulado , hum lom , em que
o melhor que ſe podia perceber del
le , eraõ eſtas vogaes A. J. A.que an
dados poucos tempos , foi elle omef
mo o que delcifrou o que por iſto con
cebera tantas vezes no animo ; porque
quando a lingua ſe lhe foi fazendo mais
expedica, entao organizou o Servo de
Deos aquellas informes fyllabas , dia
zendo diſtinctimente ; Ave MARIA;
e nao parando aqui o prodigio , nao
lhe foi neceffario mais para aprender
eft2
 FR . FRANCISCO DE POSSADAS, 20 de Settembro.
0
eſta ſaudaçao Angelica , ſenaõ ouvil-
la pronunciar duas vezes a ſua máy ;
do que admirada eſta , ouvio húa voz,
1
que lhe dizia : Que nao temelle couſa
alguma , porque ſeu filho o feria da
Igreja. Iſto a encheo de tantas , etao
felizes eſperanças, que,qual outra máy
de Samuel , chegou em certa occaſiaó
a fazer publicamente eſte vaticinio :
Meu filho ha de fer Religiofo, Prén
gador , Biſpo , e Santo ; porqueain .
da que ſeja pobrezinho, tambem Chri-
Bo Senhor noso o foi. Depois queco-
meçou a ter uſo mais perfeito da fal-
la , vendo que alliacudiaõ outrosme-
ninos ,armava , e ſegurava hum pulpi-
to a leu modo de algum certo dos que
alli tinha ſeu pay , deſorte que ficar-
ficaſ-
ſe com o fundo para cima, e ſubin-
dc - fe alli , aquelle Senhor , que eſcon-
de os ſeus arcanos aos chamados fae
bios do mundo , e os revéla aos hu
mildes , e pequenos,lhe ſuggeria cou :
las tao alias , ' e tranſcendentes, que
muitos que hiaõ paſando , e paravao
a ouvillo , hiao dizendo : Eſte menië
no leva geito de vir a ſer hum famo-
so Santo. Quē ja de tao longe come-
çava a ſer ſanto , dava ja muitos indi-
cios bons de o ſer muito abalizado :
por iſlo diſſe de fi , o nao menos Mie
ſericordioſo, que Pacientiſfimo, que
deſde os ſeus primeiros annos fora
creſcendo em ſeu coraçaõ a caridade,
que praticou ſempre com os pobres.
O meſmo pudera teftimunhar Fran-
ciſco de ſi muito fielmente ; porque
a commiſeraçao de que uſou lempre
com os neceſſitados , logo começou
a moſtrar- ſe nelle nos ſeus primeiros
dias ; porque ja eptað tirava da caſa
paterna o paā , e alguma roupa, com
que ſoccorria os mendigos, e miſe.
iaveis. Se alguns deſtes erao da ſua
idade , como algumasvezes fuccedia ,
nao fómente lhes acudia com oreme-
dio temporal , ſenaocom o eſpiritual,
dando - lhes confelbos mui fantos,
procurando inclinallos á devoçao da
Senhora .
6 Chegando aos cinco angos da lua
Tom . VII.
409
idade , em que ficou ſem pay , buſcou
logo o Servo de Deos a fonte do San .
to Sacramento da Penitencia , accu
fando-ſe com hūa tal diſcriçao ,epru . :
dencia , que era aſſombro. Antes de
chegar aos fette , jejuava inteiramen
te a Quarelma, e com tanto rigor ,
que nas feſtas feiras della paſſava ſó
mente com pad ; e agua . Foi igual.
mente pontual das outras abſtinencias
Eccleſialticas das Temporas , Vigi
lias de Paſcoas, da Senhora , e dos
Apoſtolos, e feſtas, e ſabbados do an
no . Havendo ja completado os ſette
andos , foi-lhe permitido que pu .
deffe receber o Senhor Sacramentado,
acçao para que elle ſe diſpunha com a
, e pureza de hum Sera
innocencia ,
fim . Importunava a ſeus pays para que
The compraſlem hūa Imagem de Chri
fto , e outra de ſua Máy Santiſlima,
e nao deſcanſou em quanto lhe naofi
zeraõ eſta vontade . " Pollas em hum
decente , e bem alinhado altar , fe
Rejando- as com muitos obſequios , e
recitando em ſeu louvor muiafleduo,
fos elogios : alli rezava o Roſario to .
dos os dias , e alli poſto de pé ſobre
hũa cadeira recitava com maravilho.
ſo eſpirito , eſpecialmente nas Feſtas
de Chriſto , e da Senhora os Ser.
moens, queouvia prégar de ambos na
noſla Igreja de S. Paulo de Cordova,
aonde elle ajudava codos os dias á Mir
ſa com atcenta , e affe & uofilima de
vocao .
7 Ha na praca de S. Salvador da
queila Cidade hum lugar alto , efron
teiro á porta principal de S. Paulo ,
de que ſe coſtumaõ ſervir, ematten
çaõ a ficar-lhes em húa proporciona
da altura , os Padres que alli fazem
Miſlao : a eſte meſmo poſto ſubia cam .
bem o noſſo Franciſco , a prégar nao
fómente a outros meninos como elle ,
fenaõa pefloas maiores, que gostavaõ
muito de ouvillo , por lhe eſcutarem
e couſas tao admiraveis , e tað ſuperio
res aos ſeus poucos annos. Depois dos
ſeus ſermoens , hiaā todos rezando
proceſſionalmente pelas ruas o Roſa
Fff rio
410 FR . FRANCISCO DE
rio da Máy de Deos ,cuja Sagrada
Imagem levava Franciſco nas mãos ;
e eſte exercicio fazia em todos os dias
feſtivos do Senhor , e da Senhora ,
para o que erigio húa Congregaçao
de quarenta meninos, a que entao ſe
aggregavao muitas outraspeſloas adul-
tas , dizendo : Quem nao ha de ter
devoçaõ, vendo huns meninos tao de-
votos ? Obſervou -ſe, que todos os Coe-
taneos do Servo de Deos , que o acom-
panhavao neſtas louvaveis , e lantas
occupaçoens,forao depois Religioſos,
e alguns da noſſa Ordem , e todos fo-
raõ mui pios , obſervantes, e virtuo.
fos. Goſtava muito ' o noſſo Franciſ,
co de fazer cruzes para repartillas , co-
m'o repartia , por aquelles innocentes,
a quem convidava repetidas yezes pa :
ja que foſlem todos viſitar a Via - Sa-
cra , fita fóra de Cordova no campo ,
que alli chamaõ da Mercê, concluin .
do a reza , eoraçoens de cada hūa das
Ettacoens, e deſpedindo -ſe da Santa
Cruz , de quem foi ſempre devotiſ-
fimo , com hum motete Caſtelhano ,
que pode ſer correſpondido das ca.
dencias do noſſo metro vulgar por
eſte theor .
Pois em ti venceo JESUS
O ſerpentino poder ;
Tú no lo ajuda a vencer ,
O Santiſima Cruz.
8 Por todo o tempo da ſua vida
foi zelofiffimo Cultor das Santas Ima
gens o Servo de Deos , reverencian-
do - as com aquelle decoroſo reſpeito
que ſe lhes deve , para o que ſe punha
de joelhos ſaudando -as nao ſó com as
expreſſoens da lingua , ſenao tambem
com as dos olhos em copiofas, e ter-
Diſlimas lagrimas , ſendomaiores eſtas
demonſtraçoens da ſua piedade ,quan-
do via as effigies da Cruz , e do Se-
nhor , ou deſua Máy Santiſſima, par-
ticipando eſte ſeu eſpirito aos outros
meninos , a quem induzia, e obriga-
va a que o acompanhaſſem neſtes meſ.
mos acatamentos. Ainda veremos a
POSSADAS, 20 de Settembro.
eſte propoſito outras iguaes acçoens
no progreſlo deſta memoria em con
firmaçao do grande amor , e venera
çao de Frāciſco aosSacroſantos Simo
lacros. Se notava alguma imperfeiçao
em ſeus condiſcipulos, econtempora .
neos, os advertia , e admoeitava com
muita prudencia , e magifterio , nao
conſētindo, quáto mais podia, ý em ſua
preſença de dilleſſe couſa contraria ao
temor de Deos , e caridade do proxi
mo. Vê lá como fallas ,( dizia o Servo
de Deos ſe algum ſe diftrahia neſta
parte ) e nao queiras que nos leve a
ambos o diabo , a ti por por fallar , e
a mim por te ouvir. Ja entao le come.
çava a affeiçoar á penitencia o Servo
de Deos ; porque quando ſabia com
os outros da ſua igualha , a prégar 1
Thes , e adivertir - ſe com ellesao cam
po de Arrizafa , diſtante meia legoa
da Cidade , entretanto que os mais
tratavao do ſeu recreio , e diverſao ,
coſtumava elle entrar em hűa cova
ſubterranea a diciplinar -ſe com al
gum pouco de matto do que elle poo
dia achar para iſſo maisa geito, e nao
ceſſava deſta mortificaçao , em quan
to os mais meninos o nao chamavao
para ſe irem para luas caſas. Aſſim ſe
hia enſaiando , naõ ſó para os nimios
rigores , e auſteridades , que dire
mos em ſeus lugares , ſenao para as
grandes perſeguiçoens , adverſidades,
e calumnias , que elle teve que ſentir
em diverſos tempos .
9 Via o inimigo commum todos
eſtes ſinaes com igual raiva , que ar .
lombro, temendo a ruina futura , que
elles lhes pronoſticávað , e deſdelo
gole começou a oppor mais fortemen
temente ao noſſo Franciſco , em cu
ja mais tenra idade lhe appareceo na
figura de hum eſtranho , e feiffimone
gro , eſtando elle fó em caſa : inve
ftia o com a furia, que ſe pode imagi
nar ; mas por mais que forcejou para
tirar- lhe o Roſario do peſcoço , co
mo antevendo ja as pouco menos que
innumeraveis almas , que por ſeu meio
lhe havia de tirar das unhas o Servo
de
 FR . FRANCISCO DE POSSADAS, 20 de Settembro.
de Deos , foi tal a reſiſtencia que eſte
lhe fez , que aquelle ſoberbiſlimo, e
infame elpirito le retirou finalmente
vencido , e acobardado. Nao fomen-
te livrou agora Franciſco das inſidias
do dragao infernal, ſe nao que ſe no-
tou em outras muitas occurrencias a
protecçaõ mui particular com que era
favorecido do Senhor eſte ſeu bom
Servo .
Іо
Ainda nao tinha mais de qua-
tro annos , e hia correndo o de 1648.
quando Sua Divina Mageftade viſitou
com o flagello de hum mal contagio .
do os povos de Andaluzia , e curandc-
ſe onoſio menino em caſa de fua máy ,
que téve induſtria para illudir hum
bando , que ſe deitou em Cordova ,
por onde ſe determinava , que todos
os feridos, e contaminados daquella
I orroroſa epidemia , ſe recolheffem
a certo hoſpital, que ſe lhes aſſignou,
a tempo , em que ja osMedicos o da-
vaó por morto , e parecendo aſſim ve-
rificar-ſe algumas vezes , prevaleceo
elle ſempre , recuperando milagroſas
melhorias . Em certa noice , em que ſe
feſtejava hum Santo com varios gene-
ros de fogos de artificios, cahio na
rua amortecido hum foguete, que ſe
havia deitado : correo Franciſco a pe.
gar delle ; mas apenas o levantou ,
quando elle ihe rebenton nas mãos ,
deixando - lhe o roſto , nao fó defor :
me , lenaõ tambem cego : afflicta ſua
pobre máy com eſte funeſto acciden-
te , implorou o auxilio de Santo An-
tao Abbade , e com tað bom ſucceſlo ,
que nao ſomente le reftituio Franciſ-
co da ſua viſta perfeita como de antes,
mas nem ſequer lhe ficou no ſemblan-
te hum pequeno veſtigio daquelle de-
Saſtre . Achando -ſe na cerca do Con-
vento de S. Jeronymo , affaltado tres
legoas de Cordova , e vendo hūabel-
lillima roſa , quiz colhella , fem repa-
rar que a roſeira , que a produzira , en
cobria a boca raza de hūa profunda ;
e medonha ciſterna , poucomovimen-
to lhe foi neceſſario para precipitare
ſe , como effectivamente ſe precipi,
Tom. VII,
411
tou dentro : quando vio o ſeu perigo ,
ainda que cheio de fuſto , e pavor, nző
ſe eſqueceo de implorar o patrocinio
da Rainha dos Anjos , e apenas aca
bou de invocar o ſeu poderofiſlimo
Nome , quando ficou ſuſpenſo no ar :
olhava para hūa , e outra parte, e naõ
achava couſa , em que pudelle ſegu .
rar -ſe ; mas quando mais eſtava lutan .
do com eſtas afflicçoens, eanguſtias,
ſe achou , ſem ſaber como , ſeguro , e
ja fóra daquella tenebroſa , e horrivel
profundidade .
II Outro caſo mui ſemelhante.
Nadando em certa occaſiao no Gua
dalquivir , tentou - o a ſua muita vive
za a fazer a traveſſura de cortar as ſuas
aguas oppoſtamente a ſua correnteza ;
mas fallecendo - lhe as forças, ſe hia in
do irremiſſivelmente ao fundo dellas:
clamou aqui pelo favor da Máy de
Deos , e o meſmo foi lembrar- ſe do
feu patrocinio , que achar - ſe imme
diatamente em terra livre da quella tre
menda fatalidade. Nos dous caſos
antecedentes, vimos como livrou o
Servo de Deos depois de mettido em
perigos de agua ; vejamos agora ou
tro , em que elle foi perſervado de ou .
troriſco ſemelhante. Caminhava com
outro da ſua idade para a Cidade de
Andujar , para ſe achar na feſta de
Noſſa Senhora da Cabeça , e chegan
do aonde chamaó Rabapales aſſentá
raó -le ambos juntos ao meſmo riopa
ra deſcanſarem algum tanto do traba
lho do caminho. Estando aſſim , virao
chegar hum homem a cavallo , cor
rendo a toda a preſſa em ſeguimento
de hūa vacca , que andava da banda
d'alèm ; mas como e , ao foſſe creſci
da a enchente , poſtoque muito bem
montado , nað ſe quiz metter a vadeal
la , e parecendo - lhe que hum daquelles
dousmeninospoderia atravellalla mais
facilmēte,chamou pelo ſeu proprio no
meao noſſo Franciſco , a qué conhecia :
levantou - ſe ellecom effeito com mui
ta agilidade , mas achou -le logo taſ
embaraçado, e eſtúpido , que foine
ceflario que o outro, que vinha com
Fff ii elle
 O
412 FR. FRANCISC DE POSSADAS , 20 de Settembro .
elle , ſubiſſe na beſta , e ſe arrojaſſe á
corrente ; mas com tam infeliz ſuccef-
ſo , que ficou bella affogado , e ſub-
mergido , ſem lhe poderem ſer bõas al-
gumas diligenciashumanas : donde ſe
vê o cuidado, que ja tinha o Ceo de
guardar , e proteger hūa vida tað efti-
mavel , e precioſa .
12 Eftas, e outras eſtupendas ma
savilhas derao grande fomento a hūa
voz , que correo , e ſe diffundio pe-
la Cidade , de que o rollo Veneravel
menino havia de ſer profeſſo na noſſa
Ordem Dominicana ; e com eſte ry .
mor publico ſe ajuſtavao tambem al-
gumas viſoens , que por entao teve
Franciſco , que todas lhe prenuncia .
vað elta futuriçaõ; porque achando-
ſe em certa caſa eſtranha , vio hum
menico belliſſimo da ſua melma ella .
tura veſtido no noſio habito , que olhou
para o Servo de Deos com hum agra-
do muito ſuave , e amoroſo. Outras
vezes lhe appareceo Maria Santiſſi.
ma ; e em hűa dettas a vio elle á por.
ta dos Ceos, ý le viaõ por entao abertos
de par , em par , e notou que pendendo
das Maos ſoberanas da Senhora húa
grande multidaõ de Roſarios, Ella o
convidava a tomar hum delles : alcan-
çou - o Franciſco com effeito , e logo
The pareceo que eſta ſagrada prenda lhe
facilitava o caininho dos Ceos ; porque
a penas a conſeguio , quando jale lup-
punha ,que lubia tao aftouto ,como fe .
lizmente, pela ſua eſcada.
13 Fez Deos a eſte ſeu Servo in
ſigne em milagres , e logo deſde os
ſeus primeiros annos. Ainda era mui:
to menino , e fazendo na Praça de S.
Salvador hum dos ſeus ſermoens , em
que ja fallamos no principio deſta ab-
breviada noticia , ſucede oferir - ſe ou-
tro pequeno por cauſa de húa grande
queda que deo de alto: acudio ſua
máy , e como nað faitou quem tor-
palle a culpa a Francilco , ſe enfure-
ceoella grandemente, praguejando -o,
e dizendo -lhe muicasinjurias: deſceo
o Servode Deos para baixo , chegou-
ſe ao queixozo , e pondo - lhe a mao
ſobre a ferida, lhe difle : Levanta - té,
que ja te naõ doe nada , e vamos a jo
gar . Nao foi neceſſario outro balla
mo , nem outra diligencia para a cura ,
porque immediatamente ſe estancou
o ſangue , fechou -le a cicatriz , e o
menino ſe achou bom , e fem leſao.
A eſte milagre , que foi o primeiro
que conſta que elle fez , ſe forao ſe
guindo outros,dequedaremos huma
abbreviada noticia para maior gloria
de Deos , e de feu Servo. Achando
hum ramo de loureiro , trouxe o com
figo , e polo a hum lado da ſua porta
entre hűas pedras ; e ſem embargo
de fer mui arido, e agreſte , deitou
raizes, ſubio a grande altura ,dilatou
le com folhoſos , e florentes ramos ,
e nunca deixou de eltar com flor. Al
ſim como foi milagroſa a tranſplanta .
çao deſta planta , alfim foraõ tambem
milagroſos os effeitos,como ſe le empe
nhaſſe em dar teſtimonho da lantidade
de ſeu agricultor , achando nella mui .
tos feridos a melhor cura da ſua mole.
ftia. Vejamo -lo nos ſeguintes caſos.
14 Joao Fernandes , Gallego de
naçaó , deo húa grande queda , que 1
lhe fez hūa profunda ferida na cabe
ça , de que deitava muito ſangue , que
ſe lhe nao pode vedar com muitos re
medios , e achou o melhor em huns
olhos daquelle vegetante , que o Ser
vo de Deosmetteo na boca , applican
do - o depois com a ſua maõ á parte
leſa do ferido ; porque logo deixou
de correr ſangue , e encarnou a cica
triz . = As calas de Diogo Villalobos,
Meare de meninos , e que entao o
era do Servo de Deos , tinhaõ búa el .
cada muito ingreme , e por deſaltre
cahio hum pequeno por ella abaixo ,
e pareceo que nao deixaria de ter
quebradoaspernas : acudio o Meſtre ,
e alguns difcipulos, e quiz levantal
lo ; mas entendendo que com eſta di
ligencia ſe magoava mais o menino ,
ficou muito embaraçado , nao ſaben
do que lhe fizeſſe. Chegou -ſe entaña
elle o noſſo Franciſco , e diſſe - lhe:
Anda ,ergue-te dabi, naõte façasdoen
te
 FR . FRANCISCO DE POSSADAS ,
te por naõ dar liçaõ. Obedeceo logo
ao imperio deſta voz . Levantou - ſe
com admiraçao de todos , e foi para
o teu lugar . O ſeguinte caſo he ſobre
todos eſtes referidos, e he muiſeme
Ihante a outro, que fuccedeo a S. Vi .
cente Ferrer. = Andre Moreno , con-
diſcipulo do noſlo Franciſco, era mui
ſujeito a padecer hū terrivel acciden-
te, de que amanheceo morto hum
dia : amortalhou -o fua máy , e ſabio .
ſe para outra quadra , chorando in-
copíolavelmente a falta do ſeu filho .
Chegou a eſte tempo o Servode Deos ,
e vendo a pobre mulher caõ chorofa,
perguntou -lhe o morivo : Choro ( ref.
pondeo ella ) porque he morto o meu
Andre: Qual morto ! ( acudio Fräg-
ciſco ) moſtre-mo V.m., que bem po .
derá ſer que o naõ efieja . Fello affim a
deſconfolada máy , e vendo -o onof-
ſo menino , pôs-lhe a mao ſobre a ca-
heça , dizendo lhe : Levanta- te da bi
Andrezinho; fazeſte morto por naõ
ir á Eſcóla ? Immediatamente reſuſ .
citou o outro . Aflentou -ſe na cama,
e a máy , laltando de alegria , lhedef.
pio a mortalha , e veſtindo - o , forao
ambos juntos ; e chegando o Servo
de Deos diante do ſeu Meſtre , lhe
1 diſſe: Caſtigue V.m. muito bem a An.
dré , que ſe fazia morto por naõ vir
para a Eſcola.
15 Mas veja - ſe agora ,para noſſa
confuſaõ , quam pouco haque fiar da
inconſtancia , e imperfeiçaõ humana :
do que nos dará o noſſo Franciſco , a
quem atéqui temos viſto tao favoreci-
do , e prodigiofo , hũa evidentiſſima
demonſtraçao. Paſſados os ſeus pri-
meiros annos , começou a diviſar-ſe
nelle hum genio eſperto , eoutras in-
clinaçoēs nao muito conformes aquel
las , que até entao le lhe haviaõ ad-
mirado, com igual aſſombro , que edi-
+ ficaçao ; porque pottoque nao perdeſ.
le totalmente o rumo das ſuas anti-
gas devoçoens , deo em ſer mais tra-
veſſo , e inquieto , o que ja dava oc-
caſiao a queſe diſleſe delle , que , ou
havia de vir a ter muito travelio , ou
20 de Settembro . 413
muito ſanto. Deſcontentava - ſe fum ·
mamente diſto ſua máy ; e dizendo
lhe ás vezes : Filho : muito mdos fi
naes ſao os que t14 va's dando : olho
que na tua familia nao tem havido
outro, que foſe tao deſenvolto, etura
bulento. Minha mãy, ( Ihe reſpondeo
elle hūa vez , em que ella lhe repetia
a meſma queixa ) nao façacaſodera .
pazes, andará o tempo, e ferdoutra
couſa muito differente : Vim . overa.
Em outra
Em outra occaſiao
occaſiao , em que ella ſe
enfadou muito , enaõ ſem cauſa , que
elle lhe deo , The diffe o filho : Min
nha māy , nað ſe afflija com tanto ex
ceſto , porque a pezar detodo o infer
no hei de ſer Santo . Nao faltou com
effeito a ella palavra ; e tao trocado
o vio a máy , que compadecida de
vello extenuado com os voluntarios
rigores , e penitencias, lhefallava com
as palavras do adagio : Filho Santo ,mas
naõtanto. Transformado,ou ,por me
lhor dizer , reſtituido o noſſo Fran
ciſco aos ſeus primeiros exercicios de
piedade , e devoçao , nao foi hum
dos menores principios dos ſeus tra
balhos, a mudança , que o tempo , e
a fortuna fez em ſua caſa .
16 Faltou -lhe ſeu pay aos cinco
apnos da ſua idade , ficando ſua mãy
tao exhaufta, e deftituida de poſtes ,
que lhe foi neceſſario contrahir ſe .
gundas nupcias com Joao Peres Ze
rezo, e largar a loja , que antes tive
ra , ſujeitando -ſe ao humilde trato de
vender algumas frutas , e outras cou
fas de pouco momento na Praça de S.
Salvador, junto ao noſſo Convento
de S. Paulo. He mui ordinario nos
padraſtos o deſamor , e leccura para
leus enteados, e nao faltou ao Caliz
de Franciſcoefte amargoſo trago , fen
do tratado menos humanamente do
feu , que era de natural mui aſpero ,
e de condiçaõ mui rija. Ja tinha ida .
de o Servo de Deos para entrar nos
eſtudos , e deſejava muito ſua máy
que elle aprendeſſe Latim no Colle
gio dos Padres da Companhia ; mas
por mais que infton para eſte fim com
lagrig
414 FR . FRANCISCO DE POSSADAS, 20 de Settembro .
lagrimas , e importunacoens ' , jamais
pode acabar com teu novo marido que
iſto ſe effeituaſſe , nað obiendo a pobre
mulher outra reſpoſta , fenaõ que , og
melhor convinha a ſeu filho, era apren-
der hum officio , por onde pudeſſe
ganhar paā para comer.Nē houve mais
remedio , que eſtar poresta ſua decer .
mina çao , indo o menino aprender
o officio de Cordoeiro , aonde chamao
as Caſilhas , junto à Cidade de Cupo-
le : mas quando podia cuidar que eſ .
capava de Scylla, foidar em Carybdis ;
porque quando deixava hum padra-
ito tao adverſo , encontrou com hum
Mettre taó deſarrezoado , que o malo
tratava de continuo com caſtigos mais
tyrannos , do que injuſtos. Tito junto
com a lembrança daquella piedoſa
criaçað , que tivera , para cujo , exer
cicios faltava tempo , tudo fazia a ſua
pena mais inſopportavel . Naõtinhaetta
outro alivio , mais que nos Domingos ,
e dias de preceito , em que elle junta-
ya os meninos , a quem fazia ſuas pra-
Eticas eſpirituae , e dando a cada hum
s o pobre, e incocente moço , eſpancan
lua Cruz , diſcorriao por aquelle di-
Itricto , formados em duas alas, al-
ternando a Coros o Roſario da Vir-
gem Santiſſima.
17 Raivava o demonio , vendo
que nem ainda com tantas desfortu-
nas , e diſſabores cedia o Servo de
Deos das ſuas primitivas , e ſantas in .
clinaçoens , e procurava fazer execu-
tor das ſuas furias ao Meſtre de Fran “
ciſco , ſuggerindo - lhe ſempre novos
pretextos para maltratar , como mal .
tratava , ao pobre , e innocente apren
diz ; e parecendo - lhe aquella beſta fé-
ra , e infernal , que ainda cudo iſto
era mui pouco , algumas vezes inve-
ſtia elle meſmo viſivelmente com hum
páo ao triſte moço , ao tempoem que
eſtava trabalhando na ſua tarefa. A
figura, com que le lhe apreſentava, era
fao fea , e medonha, que ſe via obri-
gado o menino a fahir dalli para fóra ,'
com os bendicos Nomes de Jesus , e
Maria na boca ; mas entað vinha ſo
bre elle o Mettre a eſpancallo com
hum páo , por ſe haver apartado da
ſua occupaçao ; e allegar -lhe Franciſ
co para ſeu deſcargo , com o que The
fuccedia , era o meſmo que provocal
lo a nova indignaçao , parecendo - lhe
que iſto ſó lhe dizia para o illudir com
eſcuſas frivolas , e disparatadas . Eis
aqui a roda viva de trabalhos , eaf
flicçoens, em que andava o Servo de
Deos : ſe eſtá na caſinha,em que tra .
balha,vê-ſe ameaçado do demonio com
hum páo , ſe lahe amedrentado para
fóra della ,n repelle , e carrega com
outro leu impio Meſtre . = Hia come
çando a fazonar -ſe hūa pera em būa
ſua pereira , e aviſou elle, aſſim a Fran .
ciſco , como a outrofeu aprendiz , que
nao lhe boliſem , pena de ſerpunido
o tranſgreſſor deſta ordem , com o
mais ſevero rigor . Teve induſtria o
outro de colher occultamente aquelle
pomo , e tornar toda a culpa ao Ser
vo de Deos. Naõ foi necellario mui
to para ſer crido do Meſtre , e fem mais
informes , nem exames , inveſtio com
do- o com tanta deshumanidade , que
cahio ſem tino , ou acordo em terra .
Tanta foi a impaciencia daquelle der.
comedido homem , que deo cole
ricamente aquella arvore aos demo
nios : ainda bem nao tinha acabado
de pronunciar eſta maldiçao , quin
do acudio a tomar a poile ,
que ſe lhe
dava daquella planta , hum chuveiro
de eſpiritos infernaes , em figuras de
húas aves negras , e infauftas ; mas
iſto nao o virao outros olhos , ſenao
os de Franciſco , quando ſe hia reco
brando do deſalento em que pouco
antes ficára : e como eſta viſaõ era caõ
eſpantofa , e horrifica , fez - lhe con
ceber hum tao grande horror , que
tornou a cahir ſegunda vez em igual
deſacordo , dizendo aſſombrado do
que via : Nao vem eſa pereira inça
da de demonios ? Cuidou o Meſtre que
1
ifto era alguma ficçao , que o Servo
de Deos ideava para poder evadir de .
ſte modo povos caftigos: e parecede
do - lhe que iſto aggravava mais aima
gina
 *
FR . FRANCISCO DE POSSADAS , 20 de Settembro 415

ginada culpa de Franciſco , tornou a 19 Mas ja era tempo que , depois i

tratallo de novo com a coſtumada ca- de tempeſtades tao desfeitas , raiaſle
ridade ; mas pouco tempo foi ne- . alguma luz de favor , e ſerenidade.
1 ceffario para Cahio o Mestre de Franciſco em ſi ;
verificar - se o dito
do Servo de Deos , ſendo arran- reconheceo a injuſtiça , com que ſe tj .

cado , e reduzido a cinzas aquelle nba portado com o innocente apren

tronco. diz , e diſſipando aquelles nevoeiros
18 Nað ſe deo por ſatisfeita a cruel- de paixoens, que lhe difficultavao o
dade brutal daquelle homem , com poder ver com os olhos da razao as
haver andado tað impio com Franciía muitas virtudes , que até entao havia
co , e iſto porhum crime, que ainda , opprimido , e tyrannizado , foi elle
caſo negado , que elle o tivefle com meſmo o que fallou a lua máy , para
mettido , ſeria couſa enormiffima , e que o fizeſſe ſeguir os eſtudos, e to
grandemente contraria á razao pu mar o caminho da Religiao ; offere
nillo com hūa ſevicia taö joſolente ; cendo -se elle meſmo a fazer tambem
ſenao que deixando- ſe alli ficar ſó fuas contribuiçoens para que tiveſſe
com Franciſco , o prendeo , e atou effeito , e ſe lograffe eſta boa obra.
fortiſſimamente ao pé de hõa arvore , Vio -ſe que andava por aqui a Mãy
!
e depois ſahio - ſe para fóra , ficando o de Deos ; porque , á viſta delta gene
affli & to moço em eſtado, que ninguem roſidade , pôstambem de parte as ſuas
The podia acudir , nem levar de co- antigas repugnancias o padraſto do
mer , por haver ſuccedido eſte inci. Servo de Deos . Mas tudo iſto nao
dente em dia fanto : e aſſim ſuccede. The ſervio de mais , que de trium
sa effe & ivamente , ſe Deos nao tocá- pho , para que aſſim ſe ville exal
ra o coraçao daquelle homem , que fi- tada, e bemquiſta á ſua virtude , por
nalmente ſe deixou render , e perſua- aquelles meſmos , que em outrotem .
dir dos rogos , com que ſua mulher , po canto o havia o impugnado , e
e a mais familia lhe pediaõ licença pa- combatido ; porque logo deſde en
ra ſolcarem o poſſo tao magoado Frā . tao o chamou o Altiſſimo para a noſ.
ciſco . Como eſte era mui habil, ecu- la Sagrada Religiao , aonde o Ve
riolo , trabalhava com fumma deſtre . Deravel mancebo lhe havia de fa
za no officio , que aprendera com to zer , como depois fez , tantos ſervi
da a pontualidade ; masnem ainda af- ços . Moveo a eſte fim o coraçao de
fim podia abrandar o duro coraçao hum Religioſo noſſo do Convento de
de ſeu Meſtre, que jamais deo outra S. Paulo de Cordova , para que o re

remuneraçao á bõa diligencia de ſeu
virtuoſo aprendiz mais, que más relo
poſtas, máo trato , injurias , femra-
zoens , e pancadas , o queera em ran
ta demazia , que em certa occaſiao
lhe foi neceſario ir curar- ſe a Cordo-
va a caſa de ſua mãy , aonde foi a de-
teoça bem pouca ; porque apenas co-
meçou a dar moſtras de convaleſcer ,
quando o desfavor deſeu padraſto o fez
logo partir ; e ſempre foi coula digna
de grande reparo , ver que , ſendo
dotado o Servo de Deos de hum jui-
zo mui penetrante , e agudo , jamais
Se lhe ouviſle formar hūa leve queixa
de ſeus contrarios , e perſeguidores .
cebeſſe na ſua cella , dando- lhe lugar
a que ſe applicaſſe aos eſtudos . En
trou elle no da lingua Latina , como
chave , que abre aporta a todas as ſcien
cias ſagradas , e profanas, havendo
chegado aos deſafleis annos da ſua
idade ; o goſto, com que entrou a eſtu .
dar , junto com a ſua viveza , e inge
nuidade o fizeraó hum conſummado
Grammatico dentro de breviffimotē .
po ; mas poſtoque ſahio tao bom eſtu .
dante , nem por iſſo ſe inchava , e
deſvanecia , como he tao commum ,
de ver logrado taó felizmente o fru
to do ſeu trabalho , dando tantas mo
Atras de būa verdadeira humildade ,
como
 416 FR . FRANCISCO DE POSSADAS ,20 de Settembro .
como quem eſtava tao perſuadido de
quanto as virtudes ſao mais eſpecio-
fas aos olhos do Senhor , do que os
dotes , e prendas mais eſtimadas do
mundo.
20 A habitaçaõ do Convento , e
a innata propenſað , que elle tinha pa-
ra as couſas de Deos, lhe augmenta.
Fao os antigos deſejos , que ſempre
tivera de dedicar - ſe ao ſeu Culco :nao
ſe renovavao menos com eſta meſma
occaſiaõ os de ſua máy , ſuſpirando por
aquelle dia , em 4 pudeſſe cumprir o
voto , que havia tantos annos , q ella fin
zera de conſagrar ſeu filho ao Senhor
pa Ordem de S. Domingos. Porém
havia ao meſmo tempo huas difficul.
dades taõ grandes , que pareciaõ hu-
manamente inſuperaveis , ſendo a que
fazia mais obſtaculo a eſtas piedoſas
pertençoensa do humildeeſtado,a que
eſtava reduzida a caſa do Servo de
Deos , tendo ſe por muita indecen-
cia , e indecoro , que elle veſtitie o
noflo fanto habito , estando ſua máy
vendendo fruta ao pé do noſo Con
vento . Procuráraó algumas peſloas
mais recomendaveis alhanar com o
ſe u reſpeito eſta contradiçaõ ; mas
to das trabalháraõ niſto fruſtraneamen
te ; porque o Prior , e todo o mais
reſto da Comunidade , excepto aquel .
le Religioſo , que chamára Franciſco
para a ſua cella , ſe oppunhao acerri- . The outraReligiao , em que elle pu
mamente a eſtes petitorios . Vendo o
meſmo Padre , que eſtava a favor do da eſta nova diligencia , que foi exa
Servo de Deos , que nada ſe podia
concluir neſta materia , e faltando -lhe
o animo paralhe dar cara a cara hum
deſengano tao duro, pedio a hūa ſua
irmaã, chamada Dona Marianna de
Moiano , que o chamaſſe para lhe di-
zer o que ſe paſſava. Fello ella aſſim ,
trafpafiando com eſta amarga noticia
o coraçao de Franciſco , que , poſto-
que taõ cuſtoſa , eſepſivel, a recebeo
com a maior conformidade, e con
ftancia ; e retirando -ſe a outra caſa ,ſe
pôs em Oraçao , buſcando eſte cele-
Itial exercicio para medicamêtode hũa
deſconſolaçað tao extrema , e rigo :
roſa . Seguio- o de manſo Dona Ma.
rianna com as lagrimas dos olhos , de
compadecida do fummo pezar de ſeu
irmao , e vio o meſmo, que depois le
lhe notou em outras muitas occaſioēs
no altar , no pulpito , no Confeffio
nario , e pelas ruas , parecendo , e
apparecendo tao formoſo , e diafano
como o cryſtal mais tranſparente , e
luminoſo , como iremos vendo em
leu lugar : Vio pois , que ao tempo
em que eſtava orando lhe coroa va a
cabeça hum globo de luz , que ſe di
latava até o tedo da cafa : era ella
taö fulgida , erelplandecente , que fez
cahir em terra aquella mulher , fazēdo
a maior diligencia por fechar- lhe os
olhos, temendo cegar em tanta pro
fuſao de reſplandores. Eis -aqui o que
ſao os juizos de Deos , e os dos ho .
mens : eis- aqui o que diftað huns de
outros . Aquelle meſmo.que os homens
julgao eſcurecido, eindigno , eſſe mef .
mo he manifeſto por Deos mais bene
merito , e illuftre, do que ſe tiveſle
a ſeu favor a maior nobreza , e opu
lencia do ſeculo .
21 Defcorçoada a may de Fran
ciſco de poder introduzillo dentro
dos noſſos clauftros, e vendo que ,per .
didos tantos meios que buſcara ja
The nað ficavao outros, que lhe puder.
fem aproveitar , deliberou -ſe a buſcar
deſte profeſſar ; e foi tao bem ſucedi.
minado , e aceito fem a menor con
tradiçao , de modo , que logo ſe deo
ordem á preparaçaõ preciſa parao ſeu
ingreſſo : mas elta promptidaõ, com
que o haviao admitido , poſtoque vi
ito a outra luz ſe pudera reputar por :
fortuna grande , era para o Servo de
Deos a que lhe penetrava o meis vivo
da alma; porque tinha cudo iſto por
contrario á ſua vocaçaõ , nao ſentin .
do outra mais que a de ſer filho de
noſſo eſclarecido, e Santo Patriarcha.
Chegou finalmente o dia , em cuja
tarde havia de fazer Franciſco a fua
entrada na Ordem , para que elle ago
ra
 FR . FRANCISCO DE POSSADAS , 20 de Settembro .
ra eſtava deſtinado ; e foi naquella
manhâa , como fazer a deſpedida ao
noſlo Convento de S. Paulo . Rece-
beo alli os ſantos Sacramentos da Pe-
nitencia , e da Eucariſtia , e entrou
depois na Capella da Senhora do Roo .
ſario , como a deſpedir -le ultimamen-
te da ſua Caſa , aonde ſempre lhe fi
cavao os olhos , e muito mais o cora .
çao. Poſto diante daquella Soberana
9
Imagem da Mãy de Miſericordia, fez
1
húa oraçao tao ala o Servo de Deos,
como ſe pode ſuppor da virtude do
!
ſujeito , e das occurrencias da con-
juntura : nella pedio com muitas la :
grimas o auxilio , e bençað á Rainha
1
Auguftiffima dos Anjos, e aquella co
lerancia , que lhe era neceſſaria em
hum caſo tao aveſſo , e tað encontra-
do ás fuas inclinaçoens . Levancou - ſe
dalli , e ao querer fahir para fóra , ſe
achou tao impedido , como ſe eſti-
veſſe prezo com fortiſſimas cadeas ,
Parece que deſte modo lhe deo a en-
render a Virgem Senhora , que ſem
embargo detodas as oppofiçoens ,que
contra elle inſurgiſſem , jamais o dei-
xaria fahir de ſua Caſa .
22 Chegado que foi à ſua , Fran-
ciſco , ſoltou o regiſto aos effluvios de
ſeus olhos com tanta vebemencia, que
admirada fua máy deftes grandes
choros , nao menos chorofa , lhe fal
lou affim : Que be ifto filho meu ? A.
qora he que choras , quando tudo eſtá
prompto,e aparelhado para que entres
na Caſa de Deos ? Sim choro , mio
nha māy , ( lhe tornou elle ) e chora
rei toda a minha vida inconfolavel-
mente , pois murrendo ſempre por ſer
filho de S. Domingos , V.m.me leva
a outra Religiao. A iſto lhe reſpon-
deo ſua mãy o meſmo , que elle fa-
bia muito bem : porém ad mirada de
ver os extremos de ſentimento que fa
zia ſeu filho , partio a todo o correr
( talvez nað ſem emoçao ſuperior ) ao
noflo Convento de S. Paulo , a dar
conta do que paſſava a ſeu Confeſſor,
que era aquelle bum Religioſo , que
ja diſlemos era mui favoravel aos in-
Tom . VII,
417
tentos de Franciſco. Ouvio elle a po .
bre mulher , e inteirado dos termos,
em que eſtavao as couſas , diſſe- lhe
que tornaſſe a caſa , e lhe mandalle
alli logo ſeu filho . Veio elle com ef.
feito , e aquelle Religioſo , inſpirado
ſem duvida por Deos Noſlo Senhor,
o mandou fahir immediatamente de
Cordova para o noſſo Convento de
Scala Cæli , ſituado em Serra more
na , e diſtante hūa legoa daquella Ci.
dade , dando-lhe hũa carta recom
mendatoria para o Prior Fr. Andre
Melhado . Executou - o aſſim o Servo
do Senhor , ficando por entao ſuſpen
fa toda a prevençao , que eſtava diſpo
fta para aquella celebridade . Leo o
Prior de Scala Cæli naquella carta tu
do o que acontecéra ; paſſou depois
ao exame da vocaçaõ do pertendente ,
e nao duvidando , nem podendo du
vidar da ſua legitimidade , o conſolou
muito brandamente promettendo -lhe
recebello : para eſte fim eſcreveo lo
go ao Provincial , pedindo - lhe con
ſenſo para admitir a Franciſco , e
para lhe aſſignar para ſeu Noviciado o
noſſo Convento de Santa Catharina
Martyr deJaen.Ignorava aquelle Pre
lado a oppofiçao ,
que em Cordova ſe
havia feito ao Servo de Deos , e con
cedeo faciliſſimamente a permiſlao
que ſe lhe pedia , demodo que veſtio
Franciſco o noſſo habito com grande
ſegredo em 23 de Novembro de 1662,
as dez da noite , e entao meſmo ſe
pôs acaminho para Jaen .
23 A 24. daquelle mez , havendo
algumas ſuſpeitas no noſſo Convento
de S. Paulo de Cordova , forað dous
Religioſos alli Conventuaes expedi
dos pelo Prior daquella Caſa , que
tao oppoſto ſe havia moſtrado lem
pre ás pertençoens do Servo de Deos,
a Scali Cæli, para impedirem a acei
taçao de Fr. Franciſco : mas ifto de
nada aproveitou ; porque ao tempo
que chegárað aquelles dous Padres
ja o noſo Noviço tinba andado mui .
tas legoas de caminho . Vendoo Pre
lado Cordovez , e todos os ſeus par
Ggg ciaes ,
418. FR . FRANCISCO DE
ciaes , deſarmadas as maquinas , e nhos de authoridade , que procurat
obſtaculos , com que pertendiaõ con :
travir os bons , e ſantos intentos do
Veneravel Fr. Franciſco , fizeraõ húa
repreſentaçao ao Provincial , expon-
do -lhe com grandes exaggeraçoenso
imaginado , e aereo deidouro , que
elles entendia o que reſultava a toda
Ordem , de ſer admitido nella o noſo
ſo tao benemerito Religioſo . Infor.
mou - ſe o Provincial ,como devia , e
conſtando -lhe evidentemente dalim-
peza , e boa qualidade de ſangue de
Fr. Franciſco , e muito mais da dos
ſeus louvaveis , eſantos procedimen-
tos , mandou que nao obſtante qual-
quer impugnaçao que ſe lhe fizeſſe,
foſſe correndo o anno da ſua appro-
vaçao , e a ſeu tempo ſe profeſſaſſe.
Grande foi a conſolaçao do Servo de
Deos á viſta de hū a ordem tað favo
ravel ; mas durou -lhe pouco eſte go .
fto , porque a Divina Providencia o
hia aperfeiçoandocom eſta myſterio-
fa alternativa de bens , e males .
24 Ainda elle hia no anno do ſeu culares , ou , o que he mais certo , in
Noviciado , quando morreo o Pro-, Nando ja de proximo o tempo , em
vincial , ficando , como he coſtume
da Provincia , por Vigario Geral del-
la o Prior do Convento de S. Pau .
lo de Cordova , o maior oppozitor
que o bom Noviço tinha contra ſi.
Recebeo elle eſta nocicia com aquel .
le lufto que he imaginavel , e funda-
do , como cao virtuoſo que era , na
reſignaçao dos decretos do Altiſſimo, tardalſe efte taö defejado complemen
ſe deixou totalmente ás ſantiſſimas to das ſuas eſperanças.
diſpoſiçoens da ſua vontade . Naotar
dou o Vigario Geral em mandar ex .
preſſamente, quanto antes foipoſſivel,
ao Prior de Jaen , que immediatamen-
te que lhe foſſe apreſentada a ſua or-
dem , em cumprimento della, def-
piſſe logo o habico a Fr. Franciſco
jançando -o do Convento . Viſta no
de Jaen a determinaçao do Vigario
Geral, nao houve naquella Caſa quem
nao lentiſſe mui dentro da alma eſte
golpe : tao amavel , e bemquiſto ſe
icbia fazer com todos o Servo deDeos!
Ponderou -ſe alli que o buſcar empe-
POSSADAS , 20 de Settembro.
fem mitigar a acrimonia do Vigario
Geral , nao ſurtiria mais effeito , que
atiçar com maior força o incendio,
ſuppoſto ſer elle o que mais fortemen
te le oppunha á profifao de Fr. Fran
ciſco : por outra parte executar áriſ
ca o ſeu preceito parecia -lhes ( e aſſim
era ) búa crueliflima deshumanidade :
para tomar algum meio entre extre
mos taõ irreconciliaveis , occorreo
que ſe averiguafle com a precila re
flexao , e ſeriedade eſte ponto em
corpo de Capitulo ; e executado eſte
projedo , nem hum ſó voto houve ,
que nao foſſe a favor do noſſo bom
Noviço , concordando todos em que
fe naõ deſſe pelo que mandava o Vi
garioGeral, aquem reſpondêrao com
os ſólidos fundamentos que os moviao
a eſcutar - ſe de dar o implemenco per
tendido á diſpoſiçaõ que elle lhes in
timava . Quizerao -ſe fazer outrasno
vas inſtancias da parte deCordova ; i
porém attendendo- ſe a alguns parti
que ſe havia de cumprir a vontade do
Senhor , contra quem nao tem poder,
ou virtude as mais ceimoſas , e por
fantes emulacoens, cedeo dos ſeus
intentos o Vigario: Geral , ordenan
do , ao contrario , que chegado o tem
po de poder ſer profeflo o Servo de
Deos , fe lhe nao differiſfe , nem re
25 Amanheceo finalmente aquel
le ſuſpirado dia , que foi no Genera.
lato do noſſo Reverendiſſimo Fr. Joað
Bautiſta de Marinis , em 25. de No
vembro de 1653. , dia muitas vezes
fauſto , e myſterioſo para o Servo de
Deos , aſſim pela circunſtancia da in
vocaçao daquella Caſa , conſagrada
á honra de Santa Catharina Virgem ,
e Martyr , como porque ſe havia de
fanove annos que nafcêra para o mun
do , quando a meſma fagrada Ama
zona le feſtejava , agora renaſcia pa
ra Deos na Religiao : a principio naſ
сега
 F
FR . FRANCISCO DE POSSADAS , 20 de Settembro .
cera filho de pays bumildes , e agora
paſlava a ſer filho de hum Pay tao pre-
claro no Ceo , e na terra , como hum
S. Domingos de Guſmao. Profeſlo
fipalmente o noflo Veneravel Novi-
ço , partio logo para o ſeu Convento
de Scala Cæli: mas como ainda o Se-
nhor queria provar o finiſſimo ouro
da ſua paciencia com outros novos
contrattes, ainda aquiteve muito que
ſentir o Servo de Deos ; porque ſen-
do ſabedor o Vigario Geral que Fr.
Franciſco eſtava tao proximo á ſua
patria , deo ordem ao ſeu Prior , para
1
que em nenhum caſo o deixafle ir a
Cordova , parecendo -lhe que ſeria
hum desluſtre nao pequeno da Reli-
giao ſe alli foſle viſto com o habito ,
hum filho de pays tao humildes , ea-
poucados . Executou -ſe eſte aviſo em
rigor por muito tempo com ſenti.
mento grande do Veneravel Profef-
ſo , que depois de ver -le aflegurado,
por meio de tantas tribulaçoens , e
incommodos, da poſle que tanto de-
ſejara de profeflar na Ordem de S.Do.
mingos , ſe via agora tratado como in-
digno da meſma felicidade. Lembra .
va -ſe tambem da pena , que eſte intero
di & o havia de cauſar a ſua deſconſo
lada máy , e como nao podia deixar
de pagar -lhe , como cao bom filho
que era , igualmente o grande amor,
que ſempre lhe havia devido, tudo
iſto erao punhaes , que lhe paflavað,
e traſpaſſavao o mais vivo da alma .
Em fim , compadecido oreo da māy,
e do filho , removeo eſtes obſtaculos,
facilitando eſtas grandes difficulda.
des ; porque pafiando o Veneravel
Coriſta a'ier no Convento de Barra-
meda , aonde foi recebido com todas
as demonſtraçoens de honra , e agra
do , os ſeus eltudos , em que elle mo-
Itrou quanto era dilatada a esfera do
ſeu talento ; eſta mudança pode bem
alhanar aquellas formidaveis contra .
diçoens, dando-lhe occaſiao a entrar
6
na ſua patria , e ſuavizar com a ſua viſta
os ſencimētos , e amarguras de ſua tað
amada , como amante progenitora.
Tom . VII.
419
26 Era ja tempo em que Fr. Fran
ciſco delle principio a colheita de al.
mas na ſeara da Igreja , com que mais
havia de enriquecer o celeiro do Pay
defamilias ; e comopara exercer com
petentemente hum minifterio tao al
to era neceſſario que elle entraſie
pela porta do Sacerdocio , recebeo o
Servo de Deos todas as Ordens em
22. de Dezembro de 1968. com tan
ta humildade , e reconhecimento do
ſeu nada , como com hum intenſo , e
vivo amor de Deos , e com hum en
tranhavel , e ardentiſſimo zelo da ſua
gloria . Paſſou logo a Cordova o Ser
vo de Deos , e alli , em deſempenho
do voto , que ja diſlemos que fizera
fua māy á Virgem Santiſſima, Vene
rada naquella Cidade debaixo do tie
tulo da ſua Santa Imagem da Fonte
Santa , celebrou a ſua primeira Miſla
no Templo ; e Altar da meſma Se .
ahora com aquelle affecto , e devo
çao , que ſe pode ſuppor daquella pi.
iſſima propeoſao,que o Veneravel Pa
dre Pofladas ſempre teve para tudoo
que diz reſpeito ao Culto Divino . Boa
occaſiao ſe nos offerecia neſte lugar
para fallarmos dos muitos favores,
com que o Cen prendou muito elpe
cialmente a eſte ſeu tað benemerito
Miniſtro no Sacroſanto Sacrificio do
Altar : mas para ſe ver melhor quan
10 o Servo de Deos os merecia, ſerá
mais acertado que digamos primeiro
algumas das ſuas muitas virtudes ſo
bre que elles aſſentavao.
27 Deſde que entrara o Servo de
Deos em o Convento de S. Lucar de
Barrameda , o menos em que come
çou a diſtinguir -ſe foi naquella ſum
ma elevaçað , e peripicacia de juizo ,
com que chegou a penetrar os mais
reconditos arcanos das ſciencias a que
ſe applicava: tudo iſto apenas merecia
fer o fumo do exceſſivo incendio do
amor de Deos, e do proximo , que ar
dia no ſeu innocentiſſimo coraçao . O
amor de Deos moſtrava em todas as
ſuas acçoens o noſlo graviſſimo Reli .
gioſo , e mais que tudo no deſamor
Ggg ii com
 420 FR . FRANCISCO DE POSSADAS ,
com que a fi proprio ſe tratava ; por .
que demais da longiſſima Oraçao , que
Sempre tinha , para que naõlómente
foſſe o ſeu eſpirito , ſenao ainda o ſeu
meſmo corpo inſtrumento do ſerviço
de Sua Divina Mageitade , ſe caſtiga-
va com exquiſitas, e aſperrimas pe-
nitencias ; jejuava muito a miudo ;
cingia-ſe com varios , e mui penoſos
generos de cilicios ; regava com cru
entiſſimas diciplinas os postos em que
orava : porque foi ſempre tað peni•
tente o Servo de Deos, que parece
que punha o ſeu maior eſtudo em ex .
cogitar outras novas , e deluſadas mor-
tificaçoens, como ainda veremos ; e
o amor do proximo ſe conhecia na
ternura , e affecto , com que elle re
partia as eſmolas aos neceſſitados no
meſmo Convento de Barrameda ;por-
que elegendo por devoçao exercer
aquella piedoza acçao , a administra .
va com tanta dilecçao , e aff bilida-
de , quemuitas vezes , durante o meſ.
mo exercicio , chegou a ſorver a ex-
ceſſiva affluencia das lagrimas , que
por entao lhe cahiao dos olhos . Mas
ainda que o Veneravel Padre exercia
tao cordialmente eſtas funçoens pelo
que tocava do temporal ao bem dos
proximos , infinitamente ſe via me-
Thor quanto elle os amava em lhes pro-
curar o ſeu maior aproveitamento eſ-
piritual , moſtrando -lhes com a dou-
trina , e muito melhor com o exem-
plo , o caminho mais conducente da
ſua ſalvaçao .
28 Paflou o Servo de Deos do
Convento de Barrameda para o da ſua
creaçaõ de Scala Cæli , e diffundin .
do - ſe a fama do ſeu grande nome, che..
gáraó a retumbar os ſeus eccos na
Cidade de Cordova ; e poitoque ja
eſtavao áquelle tempo mui diſlipadas
as forças da oppoſiçaõ que ſe lhe fizera
para entrar na Ordem , nao eſtavao
ainda aſſim tao extinctas, e deſmaia-
das , que deixalle de haver quem as fo-
meniaſſe. Mas como era cauſa de
Deos , chegou finalmente o termo de .
ſerem destruidas de todo ellas iglub-
20 deSettembro.
ſiſtentes objecçoens ; de modo , que
foiaſſignado para viveoda do noſſo il
luftre Religioſo o Hoſpicio do ſeu
Convento de Scala Cæli , immediato
á porta de Rincon , conhecido até
entao pela invocaçao de S. Barthc
lomeu Apoſtolo , e depois por hoſpi
tal do Padre Pofladas : tao admira
veis forao os procedimentos do Ser .
vo de Deos , que pudérao occaſionar
eſta notavel tranſmutaçao! Entrando
neſta habitaçao o Servo de Deos , vio
que o recebia hum Anjo ſuſtendo hũa
Cruz , e dizendo -lhe : Que esta era a
que eſtava aparelhada para elle a tran
portar aos hombros .
29 Antevendo odemonio os dam:
nos , que lhe pronoſticava eſta promo
caó , que elle nao pudéra deſviar
nem evitar com tantas induſtrias , e
artificios , como havia tentado , entrou
a querer deſgoſtar o Veneravel Padre
combatendo com duas armas taõfor
midaveis , como a ſoberba , e a luxu
ria , o que o Anjo das trevas empren
dia cohoneſtar à viſta dos grandes
creditos , e eſtimaçoens , quelograva .
o Servo deDeos ;e do numeroſo con
curſo de ambos os ſexos , que acudia
a elle a buſcar o remedio das ſuas ne
ceſſidades eſpirituaes ; e ſe o Padre
Poſadas queria defender ſe com o
conhecimento da ſua miſeria , a iſto
lhe inttava o inimigo , pertendendo
fazer -lhe perder o terreno , que ti .
nha ganhado o Servo de Deos , que
rendo induzillo a buſcar no retiro fó
ra da Cidade a ſegurança da ſua cons
ciencia . Foi tao porfiada a bateria de
Ata tentaçao , que chegou a fahir da
ſua vivenda o Servo de Deos , com
animo de ir pedir licença ao Prior de
S. Paulo para ſahir do Hoſpicio : e in
do a buſcar com effeito eſta permif
ſaõ , tornou a aparecer - lhe no cami
nho hum Anjo com hũa Cruz , inſi
nuando-lhe ſer vontade de Deos , que
elle perliftiffe no melmo lugar que
queria dimittir . Cahio entso o Padre
Poſladas em que havia ſido tentaç3ő,
e cavillaçao diabolica o pensamento
que
 FR . FRANCISCO DE POSSADAS,
que tivera ; e para moſtrar a ſeu ini .
nigo quao pouco elle o temia , e de-
teftava, e quanto eſtava de'outro acor-
do , rao ſomente voltou ao ſeuHof-
picio , ſenao que logo naquella noite
1
convocou os Fieis ao toque de hūa
campainha , para rezar-le , como deſ ,
1
de entað ſe rezou , o Rolario da Su-
!
prema Rainha dos Anjos , para fun-
dar no patrocinio deſta Soberana Seo
.
nhora o bom ſucceſſo da guerra , que
1
queria entrar a fazer ao inferno. De-
baixo de ſombra tao poderoſa , co
meçáraó a lograr -ſe tað felizmente os
( projectos do Padre Polladas , que
dalli ſe levantou būa numeroſa , e gra-
ve Congregaçao dedevotos , que com
o tempo foi creſcendo mui avulcada-
mente , e todos ſe ſomettiao á pru-
dentiſlima, e fanta direcçaõ donoſlo
tað fiel Miniſtro de Deos . Foi ifto
tanto do agrado do melmo Senhor ,
que nao ſomente ſubſiſtio , e perſeve-
rou durante a vida do Veneravel Pa .
dre Poſiadas , ſenao que até depois
da ſua morte continúa ainda hoje em
conſervar -ſe com grande eſpirito , e
fervor , ſendo lempre Director da
meſma piedoſa familia hum Religioſo
da nofla Ordem .
30 Fizerao - ſe com eſta occaſiaõ
muitas confiſſoens geráes : houve re
fórmas tao grandes noscoſtumes, que
mais ſe pudéra chamar transforma-
çao , do que correcção , ou emenda,
iendo os novos dirigidos de Fr. Fran-
ciſco bem como as aves , que come.
çaõ adefaflombrar -ſe á primeira luz
da madrugada , acordando do pezo ,
e mortiferoſomnoda culpa.Juntos to
dos á noite na Igreja do Hoſpicio , al-
ternavao as myfterioſas décadas Ma-
rianas , o que tambem ſe fazia proceſ-
ſionalmente pelas ruas da Cidade na
occurrencia das conjunturas mais in-
fauſtas , e calamitoſas , ſendo eſtas
prociſſoens , e muitos Novenarios de
penitencia as medicinas, que receita-
va o Servo de Deos aos trabalhos , e
conſternacoens da Republica ; e de-
pois da Oraçao vocal , ouviao ler a
20 de Settembro 421
ſeuVeneravel Director as doutrinas de
algum bom livro eſpiritual. Seguiafea
iſto ter húa hora de Oraçao ,em go Ve
neravel Padre Poffadas ficava extati .
co por muitas vezes , o que foi mui
ordinario no Servo de Deos , como
ainda comprovaremos adiante . Se
guia - ſe haver hūa diciplina , que le
iomava em tres dias da ſemana , e
conſequentemente levava o noſlovir .
tuoſo Paftor estas ſuas ovelhas a hum
ſitio accomodado , a que elle chama
va entao o Bomretiro , e depois ſe lhe
deo o nome de Calvario , e alliosad .
moettava a exercitar virtudes , e abo
minar vicios , ateando o fogo do leu
zelo , e amor de Deos nos coraçoens
daquelles proximos , com tanta effi
cacia , como bem ſe deixava ver no
bom regimen das ſuas conſciencias.
Expunha-lhes nas tardes das Feſtas
mais ſolemnes da Igreja o Santiſſimo
Sacramento do Altar , procurando
attrahir as vontades dos que chega
vaõ a adorar o Pao dos Anjos, emcu
ja Mageſtofiffima Preſença tiphao
hum notavel recolhimento as myſti .
cas , e douras pra & icas, que lhes fazia.
Concorriao alguns a feſtejar o Cor
deiro de Deos Sacramentado com in .
ftrumentos muſicos , e com elegantes,
e bem concertadas letras , que canta
va com igual piedade , que melodia,
infundindo aſſim devoçać nos animos
mais diftrahidos. Abençoou o Senhor
eſtas boas diligencias do noſſo gran
de Religioſo , que admirado dos fe
liciſſimos progreſſos de seus filhos eſ
pirituaes , ſe vio obrigado pela ſuali
zura , ou , o que he mais certo , pela
ſua humildade , a dizer que ja nao po
dia contemplallos ſem grande confu
faõ lua , pelo ſummo fervor que lhes
notava , que fazia hum incomparavel
exceflo ( dizia o bom Padre ) ao ſeu
fervor.
31. Como o Servo do Senhor go .
ſtava muito de fallar neſtas couſas
intentou o demonio , raivoſo de ver
tao florecente, fecunda , e bem cul :
tivada efta Seara Evangelica , fazer
lhe
422 FR . FRANCISCO DE
The guerra com as meſmas expreſſoēs,
com que elle ponderava os copioſos
frutos , que daquellas ſantas practicas
procediao ; porque alludindo unica.
mente ao bem eſpiritual dos ſeus , e
dizendo diante de alguns Religiolos,
que pao trocaria a Cala do ſeu Hor.
picio por hum Palacio Epiſcopal, hum
dos circunſtantes, interprecando, co-
mo he tao antigo, e ordinario no mun-
do , eſta propoſiçaõ de Fr. Franciſco
em ſentido totalmente oppoſto aquel .
le , com que o Servo de Deos a pro-
ferìa ; foi dalli queixar-ſe ao Prelado,
dizendo - lhe : Que o Padre Pofladas
retinha em fi muitos , e groſfillimos
lu blidios de eſmolas, que lherendiao
as caſas do Hoſpicio , em que mora.
va . Fez ayultar eſta injuſta queixa as
dos Padres Conventuaes de Scala Cæ-
li; porque,por ſer muito pobre , orde-
nára o Prior ao noſſo Veneravel Re,
ligioſo , que das contribuiçoeos , que
recebelle , lhe havia de fazer bomo
comeſtivel do referido Convento .
Cumprira ſempre o bom Padre com
eſta ordem até o ultimo , e mais rigo-
roſo extremo : como porém os ren
dimentos nao podiaõ ſempre ſer tao
largos , e tao certos que bem chegaſ-
ſem a ſupprir a neceſſidade da caſa de
Scala Cæli , pao podia o Veneravel
Padre contentar , e ſatisfazer com
pletamente aquella Communidade.
Ouvindo agora o Prior que o Servo
de Deos poſpunha hűa Mitra á caſa
que habitava , ſe deixou cegamente
preoccupar da frivola allucinaçao de
entender aquella clauſula de Fr. Fran-
ciſco na meſma accepçao em que
aquelle Religioſo , quea ouvira , erra-
damente a tomára : chamou perante
fi ao Padre Poſſadas,a quem quiz obri-
gar a dar todos os mezes hūa certa
porçaõ áquella Cala. Eu ( reſpondeo
o inſigne Religioſo ) nao pollo levar
licitamente eſte negocio pormodo de
contrato , nem poßo fazer outra cou-
Ja , mais que o queſimpre fiz , que
he dar tudo o que me daõpelo amor de
Deos ,
POSSADAS, 20 de Settembro .
32 A torcida intelligencia , que
aquelle Superior tinha dado aquellas
palavras de ſeu bom ſubdito , tinhao
tomado tanta força , que lhe naõ dei .
xárað perceber a verdade : e vendo
que nao podia mover o Servo de Deos
a outra couſa , lhe mandou que fa
hiſle do Hoſpicio voltando para o ſeu
Convento . Fello aſſim o noſſo defin
tereſſado Religioſo : cauſou iſto hũa
grande novidade , e eſtranheza em
Cordova ; e como o vulgo nað heme
nos noveleiro , do que ioſtavel, cor
reo fama por aquella Cidade, queti
nhao mandado lahir ao Padre Posla
das do Hoſpicio , porque elle o rou
bava para ſuſtentar ſuamáy . Nadadi
Ato ſe encobrio ao noſſo Veneravel
Padre ; mas , como Varao que era to
do de Deos , ſoffreo eſta calumnia ,
aſſim como outras muitas com igual
ſilencio , que conformidade. Como
o fio de ouro da verdade nunca ſe que .
bra , por mais que ſe adelgace , pou
co ſe paſſou , que Deos Noſſo Senhor
pað acudiſſe pela innocencia , e hon
ra de ſeu fideliſſimo Servo , e com
tanto maior credito ſeu , que conhe
cendo aquelle Prelado , aſſim como !
tambem o Religiofo delator , quanto
eſtavao enganados , pedirao moitos
perdoens ao Veneravel Padre , rogan
do -lhe muito quizeſle tornar para o
Hoſpicio que deixára. Nao foi neceſ
fario muito para que Fr. Franciſco ſe
rendelte a eſte partido , ſendo taõ fa
cil em voltar para o Hoſpicio , como
ſe moſtrou prompto em labir delle ;
nao ja porque aſſim ſe viſſe melhor
quam injuſtamente fora tratado, ede
poſto daquella Caſa , porque para el
le nao havia , nem podia haver maior
cauſa , que ſer a cauſa de Deos , quan
to por nao faltará obediencia , de que
foi ſempre obſervantiſſimo , como
ainda veremos em outras partes.
33 Reſuſcitáraõ de novo , e com
maior fervor os exercicios , a que ha
via dado tao bom principio o Servo
de Deos , bem como o rio detido ,
que , no ponto em que ſe vê livre, en
tao
 ER. FRANCISCO DE POSSADAS , 20 de Settembro .
tao corre muito mais impetuolo, ven.
do - ſe ao meſmo paſlo tao clara como
a luz do meio dia a innocencia
1
inculpavel do Servo de Deos , por
que todos á huma ſe perſuadiao ſer
hum caviloſo artificio do demonio a
impoſtura com que ſe havia calumnia-
do o indefectivel nome de hum Re .
ligioſo tao Venerando , e exemplar .
Vejamos agora quanto elle , ainda que
ſem querer , ſuſtentou da ſua parte eſta
fua reputaçao . Vejamo- lo , pois , pri-
meiramente nos dous pólos taõimpor-
tantes ao bem , e neceſſidade do Chri-
ſtianiſmo , como fað o pulpito , eo
Confeſſionario , e principiemos pelo
ſegundo.
34 Era infatigavel o Servo de Deos
em ouvir confiſſoens : achavao - no
promptiſſimo a qualquer hora a que o
chamaflē ,antes, e depois de dizer Mif
ſa ; ſe eſtava na Oraçao , a deixava , dei
xando a Deos por Deos , e andado pela
caridade como hū dos Anjos , y vio Ja-
cob ,ja ſubindo a eſte Senhor,ja deſcen-
do ao próximo : e lendo ſempre tao
continuo , era -o com tudo com maior
eſpecialidade na Quareima ; porque
entao perſiſtia neſte ſanto miniſterio
deſde amanhãazinha até o meio dia , e
muitas vezes até mais tarde ; e deſde
as duas da tarde até ás onze da noite.
Sao quaſi ſem numero os embaraços
de conſciencia ,de que elle deſenredou
as almas . Aſſim neſte , como em ou
tros muitos particulares do noflc Ve-
neravel Padre puderamos referir hūa
ferie mui prolongada de luccellos no .
taveis , le nao temeramos engroflar
deformemente eſta relaçao , que deſe-
jamos que ſeja igualmente ſuccinta,
que ſubſtancial
. Mas para que nao fic
que totalmente deſpida de noticia hūa
parte tao eſencial do Servo de Deos,
diremos ſempre algumas couſas de
mais nota ſobre a materia. = Vendo o
chegar hum moribundo , que o eſpe-
rava ancioſamente , o recebeo com
eſtas palavras : „ Venha com Deos ,meu
„ Padre , que tem de ouvir - me neſta ul-
wtima hora enormiſlimos peccados ,de
423
„ que nunca me accuzei por vergonha
em toda a minha vida .Ouvio - oo Ser
vo de Deos , e deixando - o muito con
ſolado , partio a adminiſtrar omeſmo
Santo Sacramento a outra peſoa , que
eſtava em igual eſtado, ea quem elle
tambem applicou o meſmo remedio ,
= Outro , que eſtava morrendo, pedio
que lhe chamaſlem o Padre Poliadas:
nao appareceo elle por entao ; e ain
da que o enfermo ſe confeflou , foi
ſacrilegamente . Tornando finalmen
te o Veneravel Padre , clamou aquel .
le homem que lho chamaſſem logo ,
e vindo com effeito , lhe dille elle af
fim : „ Ora venha , meu Padre , que ſe
„ 0 Veneravel Padre nað vieſle, eu deia
„ Xava -memorrer ſem me confeflarco
„ mo devia ,por nao manifeſtar as mi
„ nhas culpas a outro Confeilor .
35 Vinhao muitas peſſoas demui
longe a confeíTar -te com o Veneravel
Padre Pofladas. Buicou -o a este fim hū
grande peccador , morador em hum
povo mui diſtante , aonde era temi
do pela ſua diſſoluçao , e orgulho ;
mas tornou tao outro , que le atélli
muito tinha eſcandalizado os ſeus pai
zanos ,muito mais os edificou dalli por
diante com a publica reforma daſua vi
da , de ý jamais rétrocedeo em quanto
ella lhe durou . Outro peccador nað
menos eſcandaloſo veiò tambem de
fóra a purificar a ſua conſciencia , que
tinha māchada com enormiſlimas cul
pas , mediante hūa boa confilio , que
intentava fazer com o Veneravel Pa
dre , a quem ellenao conhecia de viſt a :
Tanto que o Servo de Deos o vio
perguntou -lhe com muita affabilida
de o que queria : Eu ( acudio o outro )
procuro 20 Padre Pofadas. Filbó,
( replicou o inſigne Confeflor) Eu he
que f014. Efta palavra , á imitaçao da
que Chriſto Senhor Noſlo diſle no
Horto aos ſoldados , que viohao a
prendello , foi de tanto effeito , que
cauſou naquelle homem hum tað gran
de tremor , que nem ſe podia ter em
pé . Tratou- o entao onollo Venera
vel Religioſo com toda a caridade ;
mettendo ?
 424 FR. FRANCISCO DE POSSADAS, 20 de Settembro.
mettendo -lhe animo , e dando - lhe
muitas eſperanças de alcançar perdaó,
e miſericordia das ſuas culpas . = Ne-
fta melma occaſiao foi buſcado cam .
bcm de cinco foraſteiros , que con
corrêrao de partes mui affaſtadas , e
a todos os congraçou com Deos Noſſo
Senhor , mediante o Santo Sacramen-
to da Penitencia .
36 Dotou o Altiſſimo a eſte ſeu
Servo com
o meſmo dom , que conce .
dêra a S. Filippe Neri ; porque co-
nhecia , como este Santo, os interiores
dos ſeus penitentes . = Chegou
Chegou -lhe
-lhe
hữa mulher aospés , e havendo -leac.
cuſado , inſtou pela ſua abſolviçao
dille -lhe entao o Servo de Deos, que
ville le tinha mais alguma couſa , de
que a conſciencia pudefle arguilla .
Reſpondeo ella negativamente ; e el .
le , que conhecia muito bem que a-
quella mileravel queria nao tanto
enganallo , quanto enganar - ſe a ſi meſ.
ma, lhe replicou : que o contideraf-
ſe com m : Thor reflexao , e exame
poi que ainda nao eſtava verdadeira.
mente confeſſada.Aſſanhava-ſe a mu-
lher , como ſe o Veneravel Padre lhe
levantaſſe algum falſo teſtimunho ;
mas elle , ſem embargo de tudo , in .
fifia em fazer - lhe a meſma adverten .
cia , ao modo com que Chrifto Senhor
Nollo fallou á Samaritana . Cahio a .
quella pobre em ſi, reconhecendo
quanto eraõ de lince os olhos do bom
Religiofo , e continuou deſcobrindo
as muitas enormiſſimas abominaçoens
que commetrêra , e atelli ſempre oc-
cuitára . = Confeflando á hora da mor-
te hūa mulher, que ſempre encobri.
ra por pejo os ſeus vicios, e ainda
agora perſiſtia na meſma cegueira ,
conſeguio de Deos , conhecendo ó
mío eſtado daquella pobre alma , que
de confeflafle , como ſe confeſſou.com
húa verdadeira confiſſao . = Eſtava
hum Religioſo noſo, do Convento
de S. Paulo de Cordova , para morrer,
e quiz que foſle hõa das ſuas ultimas
conlolacoens fazer hũa confiffaó com
o Veneravel Padre Polladas : Veio
elle , e lentando - ſe á cabeceira doen
fermo, antes que eſte abriſle a boca ,
lhe foi dizenao o numero , e eſpecie
dos teus peccados , diſtribuidos pelo
decurſo dos ſeus annos ; e era iſto
tanto , que nao achava o doente que
advertir , nem que accreſcentar , ou
diminuir. Deſte modo le fez aquella
confiſlao com a maior brevidade , e
exacçao poſſivel: aquiexclamou cheio
de alvoroço , e conſolaçao o mori .
Ab Padres , Padres , e
bundo : Ah
quanto be mais Santo o Padre Posa .
das do que nolo parece ! Muitas ve
das do
Zes lhe ſuccedeo iſto meſmo , ſendo
: elle meſmo o que apoprava as elpe
cies , e circunſtancias das culpas dos
ſeus confeſſados, o que lhes ſervia de
duplicado refrigerio ; porque aſſim
lhes aliviava o nosſo caritativo Reli
giolo o pejo , deſonerando - lhes ao
meſmo tempo as conſciencias. No ſe .
guinte caſo nao ſomente veremos o
conhecimento , e percepçao dos pec 1
cados , ſenaõ ainda a neceſſidade, que
havia de recorrer a Sagrada Fonte da
Penitencia , ſendo elle meſmo o que
buſcava os penitentes , convidando .
ſe para os ouvir , e abſolver .
37 Auſentou -ſe da Villa de Offu
na hum homem caiado , daquella ter
ra , abandonando , por certo deſgoto ,
a ſua cala , a ſua mulher , a quatro fi .
lhas , que tinha ; e entrando no Hof
, erguntou
picio do Padre Pofadas p
The eſte fe queria confeſſar -ſe ; e co
mo o outro lhe reſpondeſſe que nað ,
lhe declarou o Veneravel Padre todo
o ſeu ſucceſſo ,particularizando -o com
tanta miudeza , que nao foi neceſſa
rio mais para acabar com aquelle tri
Ite homem que volcafle a congraçar
ſe, e a viver com a ſua familia . S Hua
peſſoa muito eſpiritual, a quem Deos
Nofio Senhor fez a graça de manife
ſtar-lhe quanto lhe eraõ gracas as vir
tudes do noſſo Fr. Franciſco , fazen .
do - lho ver por algumas vezes muilu
minoſo , ereſplandecente , como di .
remos adiante , deſejava muito con
feſſar - ſe com o Servo de Deos , e de
facto
 FR . FRANCISCO DE POSSADAS ,
fa & to buicou - o para iſſo : recebeo -ao
Servo do Senhor com muito agrado ;
mas reculando ouvilla de Confiſſaô ,
The 'fallou : Levanta -te filha , e de ;o
xa •te ir como vas encaminhada peloteu
Confeſor ; porque eu nao vim aqui
em tua buſca. = Chegou em outra oc .
caſiao a elle certo Cavalheiro , que
havia tempos andava com hunselcru-
pulos ; e muito de antemaô lhe 'dille
o Servo de Deos , que nao tinha de
que eſcrupulizar , por lhe nao correr
obrigaçao alguma de reflituir o que
cuidava . = Confeſſava - ſe com o Ser
vo de Deos certa peſſoa mui eſpiri.
tual : previoo bom Confeſſor hūagrá-
de prova , que na melma noite havia
de fazer o Senhor daquella alma , le
exhortou -a para o vencimento com
rervoſiſſimas , emui conducentes ra
zoens , que nao forao proferidas tem
fundamento ; porque nao tardou o
fucceſſo em verificar pontualmente o
vaticinio . Em outras partes veremos
outras muitas provas do conhecimen-
to de intericres , que tinha o Servo
de Ders. Vamo-lo ainda vendo por
ora no Confeffionario .
2 38 Zelava o Veneravel Religio-
ſo com a maior intenſao a honra de
Deos , e a promoveo quanto lhe foi
poſſivel no Confeſſionario. Chegou
aos ſeus pés hūa mulher de vinte e
dous annos , dotada de hūa naô vul
gar formoſura ; mas que lhe nað fer .
via de mais que de ſobreeſcrito da feale
dade das ſuas corpezas: Taes couſas
lhe ſoube dizer o inſigne Confeflor ,
que reconhecendo aquella peccadorà
os laſtimoſos termos a que tinha che
gado a ſua miſeria , começou a teſti-
munhar com as ſuas muitas lagrimas
hum verdadeiro arrependimento . Vē.
do a o Padre tao outra , perguntou-
lhe , que fuppofto haver agora abra-
çado os auxilios do Eſpirito Santo , fe
queria eſtar aonde elle determinaffe?
Refpondeo a mulher com todas as ve
ras , que fim . Exhortou -a entao o pie-
dofo Director que ſe recolheíle ain-
da por oito dias, cuidando em fazer
Tom . VII.
20 de Settembro. 425
hữa bña Confiſſaõ 'geral . Executado
tudo iſto , levou - a elle meſmo a hū a
Clauſura , aonde a lua penitencia lou
be ' nað ſómente expiar , ſenao delo
mentir os eſcandalos paſſados . Vina
do-ſe a ſaber quem era o Author delta
boa obra , correrao a elle , pertenden
do , debaixo de varios pretextos, que
fahiſſe aquella mulher de donde esta
va para o ſeculo ; mas como acharao
nelle hūa reſiſtencia inexpugnavel ,
começáraó alguns calumniadores a
deitar fama que o Padre Pofadas fi
zera retirar aquella mundana á ſua re
cluſao mais affeiçoado da lua grande
belleza , que movido de fazer algum
ſerviço ao Senhor. Ifto era o que elles
diziaõ , e iſto o que nenhumaimpreſ.
faó fazia no Servo de Deos , que na
da tinha por primeiro mis que o ſer
vico , e gloria do ſeu Senhor. Emou .
tra occaſião reduzindo a hum Reli .
gioſo , apoftata de muitos annos , e
levando - o ao ſeu Convento , enfure .
ceo - ſe de modo a occafiaõ do ſeu pec
cado , que foltou a lingua em menos
credito do Veneravel Padre Poſſadas,
fempre tað ſuperior a eiles dicterios ,
como ſe deixa colher do que elle che
gou a proferir ao melmo propoſito.
Tive muito goſto ( dizia elle ) de ſaber
que era odiado, e detrahido por ſeme
Ibante caufi; porque quando mereci
eu padecer , por ſuſtentar a cauſa de
Deos ? Foioptimoinftrumento dare
ducçao de outros muitos Eccleſiaſti
cos , incurſos em apoftafia , firmando,
e confirmando fixamente a muitos de
ftes no caminho da falvaçao .
39 Deixou hum Religioſo Sacer
dote a Caſa de Deos , e voltando.ſe
ao ſeculo andou militando por mui
tos tempos das campanhas : enfadado
finalmente das larguezas , e diflolu
Çoens tam proprias,e inſeparaveis da
quelle genero de vida , iocado dos
auxilios do Ceo , e arrependido , qual
outro prodigo , chegáraô -lhe hūas
terniſfimas ſaudades do ſeu antigo , e
tao ſeguro retiro da Religiai , e com
effeito voltou dalli a percendello ; e
Hhh para
426 FR . FRANCISCO DE POSSADÁS, 20 de Settembro.
para que iſto ſe lhe facilitaſle melhor,
e mais ſuavemente , valeo - fe elle do
reſpeito do Biſpo de Cordova D. Fr.
Pedro Salazar , a cuja ſombra conſe .
guio felizmente quanto deſejava. Co-
mo eſta volta , que deo á ſua vida , era
fundada em hūa legitima contriçao ,
procurou confeſſar -le geralmente com
o Veneravel Fr. Franciſco : feita eſta
diligencia , começou a ler aſſombro
dalli pordiante ; porque os jejuns erao
quaſi quotidianos , e ſempre mui ri-
goroſos, por deixar os mais dias a ſua
Taçaõ aos pobres : dormia ſobre hum
feretro , e em hum lugar tao pavoro-
ſo , que a nenhuma hora ſe podia ver
ſem medo , e terror : a iſto juntava
outros ſemelhantes rigores ; e ſe lhe
perguntavao pela cauſa de transfor
maçao tao inſperada, reſpondia , que
todos eſtes effeitos ſe deviao aos con
ſelhos de Fr. Franciſco Poladas, que
com as razoens, com que lhe ponderá-
ra os ſeus extraviados excellos, lhe paſ-
Tara o mais vivo do coraçao. Elle fuc-
ceffo foi atteſtado pelo Prelado , e
Padres mais graves da Communida.
de do meſmo Religioſo em que falla-
mos .
40 Forao notaveis os caſos, que
The aconteceraô em materia de Con-
fiſſoens. Eſcrevendo elle em certa oc-
caſiao ao ſeu Director , lhe dizia ha-
ver confeffado hum homem gravado
de feiffimasculpas ; mas penetrado de
hum tao extraordiuario ſentimento
dellas , que nað ſó eſtava tremendo
todo , mas que até fazia tremer o ſeu
obſervara mais , que
aquelle feu ditoſo confeſſado era af-
fillido, e patrocinado de Maria San-
tiſſima ; que em quapto durou a con
fiſao , eſteve ao ſeu lado , e conclui-
da ,immediatamête deſappareceo.Sen .
do chamado em húa noite muichu .
voſa para confeſſar hũa mulher , que
eſtava perigoſa, de parto , o meſmo
foi pôr o pé na rua , que a pagar-ſe ,
com a grande ventasía , que eſtava
fazendo , hũa lanterna , que trazia a
peſſoa que viera buſcar o Servo de
Deos ; mas nenhuma falta fez , pore
que ao meſmo tempo le vio hum
braço com hũa tocha , que o foi guian
do até a caſa da enferma, é alli deſap
pareceo . Confeſſou -ſe ella , e o Ve.
neravel Padre lhe aſlegurou o seu bom
ſucceſſo , como aſſim depois ſe veri
ficou : Ao tornar para o Hoſpicio apa
gou - ſe a lanterna do melmomodo; po
rèm o Adjo , que alli o tinha condu .
zido , como ſe nao quizeſſe admittir
companhia naquella piedoſa acçao ,
tornou a levar o noſſo inſigne Confef
ſor a ſua caſa do meſmo modo que o
trouxera della ; e no meſmo ponto , em
que Fr. Franciſco ſe vio á porta do
Hoſpicio , nao ſe tornou a ver mais
couſa alguma .
41 Nao lómente o ſerviaõ os An .
jos para ganhar almas para Deos, até ,
muito a ſeu pezar , os meſmos demo .
nios . Ettava ja recolhido em certa noi.
te , quando ſe ſentio hóa tal tormenra,
e hū eſtrepito tað ſumamente deſcom
paſſado.q o Servo de Deos mādou a ſea
Companheiroſ deſceſle ao pateo, aon.
de a bulba eramaior, a ver o que aquil
lo era : diſſe -lhe entao hum demonio,
que aviſaſſe ao Padre Poſadas , para
que foſſe fazer bữa confifao , aliàs,
ſe perderia a peſſoa , que tinha ne
cellidade daquelle Santo Sacramento:
dito iſto , calmou todo aquelle reboli .
ço , dando lugar a que fofle , como
foi, o noflo bom Religioſo a conquiſtar
aquella alma para ſeu Deos , e Senhor.
A ' fama, que corria da ſantidade do
Veneravel Padre , e á imitaca o de
outras muitas peſſoas , que , como ja
diſlemos, fizerao o meſmo, vjeraõ de
Bruxalance a Cordova a confeſſar-ſe
com elle D. Luiz Truxilho , e Maria
dos Reys; e vendo eſta , quando en
trou na Igreja , ao Servo de Deos no
Confeſſionario , vio , e a ſlim foi viſto
muitas vezes , que deſpedia hunsref
plandores tao formoſos, e refulgen
tes , que lhe pareceo haver entrado
na gloria ; e D. Luiz obſervou que o
habito do Padre Poſladas era taōrer
plandecente como hum Sol , e que a
boca
 FR . FRANCISCO DE POSSADAS, 20 de Settembro.
boca do Servo de Deos refpirava būa
fragrancia mui ſuave, e delicioſa. Pa-
rece que com eſtas luzes , e fuavida .
des premiava o Ceoa oloroſa ; e can
dida açucena da pureza , que o Servo
do Senhor cultivou , nunca entorpe.
cida , nem manchada dostorpes laços
das occaſicens, que lhe armou o de-
monio no meſmo Sagrado Tribunal
da Penitencia , aonde elle cantou as
victorias pelo numero dos certames .
I Vejamos eſtes triunfos.
42 Padecia certa Religioſa hum
importuno , e trabalhoſo combate de
tentaçoens impuras ; e conſtando -lhe
da ſantidade do noſſo virtuoſiſſimo
Religioſo , chamou.o , eſcolhendo o
por ſeu Medico eſpiritual. Baſtou
fómente a viſta de Fr. Franciſco para
que aquella atormentada mulher ex
perimentafle hum alivio notavel na ſua
1 conſternaçao : mas vendo o feroz dra-
gañ eſte maravilhoſo effeito , procu-
rou inquietar o Veneravel Padre com
a meſma tentaçao , de que elle acabava
de libertar aquella Freira ; e era cou.
ſa notavel ver -ſe eſta livre logo que en-
trava o leu Director no locutorio , e
achar -ſe ao melmo tempo accómetti :
do o bom Religipſo : mas todas eſtas
maquinas nao ſerviraó de mais , que
de fazer a coroa do Veneravel Reli-
gioſo mais glorioſa; porque a poder
de penitencias, e auſteridades, diſſi .
pou toda a voracidade daquelle crue-
Jiſlimo incendio , ficando no meio das
ſuas levaredas tao intacto , como os
meninos da fornalha Babylonica.Abra-
zava - ſe em torpes chammas de amor
deshoneſto hũa mulher, a quem o de-
monio quiz provocar com o Servo de
Deos : buſcou - o aquella diſſoluta pec-
cadora no Confeffionario , e alli vo
mitou pela boca o lethal veneno do
ſeu coraçao: ouvio -a o exemplariſſi-
mo Religioſo , e de talmodo lhe fou-
be affear a abominacao , e gravidade
da ſua culpa , que nao ſomenre ſahio
+ livre das ciladas do inimigo , ſenaõ
que deſpedio dos ſeus pésverdadei-
ramente contrita , a que tinha chega-
Tom . VII.
427
do a elles cegamente liviana . Nao
ſe deo ainda pordeſenganado o infer
Do ; entrou a ſegundar os eſtratage .
mas . Accendeo o meſmo fogo em ou
tra mulher , que fe affectou doente,
Para diligenciar melhor o fim dos ſeus
depravados deſejos, pedindo que lhe
chamaſlem o Servo deDeos para con
fefiar - ſe com elle. Veio com effeito ;
e ficando no apoſento ſó por ſó com
a enferma nao tanto do corpo como
da alma , nao tardou ella em propôr
a Fr. Franciſco a ſua impudencia , e
deshoneſtidade, incicando- o a coinci
dir com a ſua torpeza por aquelles
meios , que faó mais para entendidos,
que expreſſados. Ajoelhou o Servo
de Deos aos pés daquella má mulher ,
e alli lhe ponderou com taes razoens
a enormidade do ſeu intento , que a
mulher , trocada , arrependida , e con
fuſa , chorou verdadeiramente o ſeu
erro , e liviandade.
43 Nao ſomente ſe livrava a fi , re
nao a outras peſſoas , que recorriao á
ſombra refrigerante da ſua interceſ
fao. Alcançára hum Religiolo hũa
reſpoſta por eſcrito do Servo deDeos,
e guardando -a como būa reliquia ,to .
das as vezes que o combatia o demo
nio tentando-o contra o voto da cafti.
dade , applicava a carta do Venera
vel Padre, que ainda entao era vivo ,
ao peito , e niſto experimentava o me
lhor antidoto contra as fetcaservadas
daquellas immuodas, e abominaveis
ſuggeſtoens. = Vendo -lehūa mulher
principal , de mui poucosannos , mui
apertada de tentaçoens Carnaes , de
pois de lhes haver feito a maior op
poſiçaõ que lhe foi poſſivel, nao po
dendo maisſopportar o rigor da pe
leja , foi buſcar o Servo de Deos : co.
municou - lhe a ſua pena, e pedio -lhe
que ſe commiſeraſſe della , mandan
do- a dalli mais quieta , e conſolada .
Filha, ( reſpondeo elle ) refifte , que
Deos te ajudard: refifte , que heo que
ſó te convem . Nao meu Padre ( tor
nou ella ) apertando - lhe as mãos ſem
o querer largar , nao mais reſiſtir , que
Hhh ii nao
 428 FR . FRANCISCO DE POSSADAS , 20 de Settembro .
nao poso mais. Vendo o Veneravel
Padre a força com que ioſtava, e al
tendendo á boa intençao de hűa lup-
plica feita a fim deevitar hum peri.
go tao grande , etaõimminente , dif-
le aſſim aquella anguftiada moça :
Calla - te , filha , calla te , vai-te em
paz , que eſa inquietaçaõ terá fim .
Diſie , e aflim o moſtrou o fucceffo ;
porque logo toda aquella tempeſtade
calmou , entrando ameſmapeſſoa em
hum Moſteiro , aonde padeceo gran-
des , e moleftiſſimos trabalhos , nao
1
delconhecendo ſerem elles a commu-
taçao daquelle penolo , e taðarriſca
do conflicto , de que o Servo de Deos
a libertára. Até qui temos visto oco .
piosſfimo fruto , que o Servo de Deos
fez no Confeſſionario ; e tempo he ja
de o vermos no Pulpiro , reforman-
do coſtumes, rectificando conſcien .
cias , extirpando vicios , e plantando
virtudes .
44. Vimos que começou Francif-
co deſde mui pequenino a moitrar a
notavelpropenfao ,que tinha para Pré .
gador , ſendo - o com effeito, nao lo
de outros meninos da ſua idade , mas
até depefloas maiores, que ſe admi-
ravao da energia , e viveza , que ja
entao começava a reſplandecer nos
ſeus diſcurſos , que mais tinhao de
fervoroſos , e lantos, que de ſuper.
ficiaes, e puerîz . Vendo - ſe agora Sa.
cerdote , e Religioſo de hūa Ordem
chamada , por excellencia , dos Pré .
gadores , abrazava - ſe em dezejos de
ganhar eſpiritualmente o mundo para
Deos ; e a eſte fim ſe diſpôs para en
nunciar ,como Varaõverdadeiramen-
te Apoftolico , a palavra Divina aos
povos. Ainda ganhou mais fervor pa-
sa dar - ſe a tao lagrado miniſterio me-
diapre a repetiçao de hum ſonho , que
elle teve por duas vezes ao tempo ,
em ģlhe chegára hum penſamentode
tratar muito particularmente da ſegu-
rança da ſua ſalvaçao , ajuſtando-le,
como elle realmente le ajuttava, ao
rigor, e exacçaô das Conſtituiçoens
daOrdem ;porque ſe lhe reprelentou ,
ſe achg .
como elle diſſe depois , que
va junto á orla de hum rio peſcando
peixes com a Boca : e por aqui enten
deo o Veneravel Padrehaver-lhe ca
bido a ſorte dos Apoftolos , a quem
diſſe o Divino Meſtre , que , de peſca
dores de peixes , os fazia peſcadores
dos homens . Era dotado o Servo de
Deos de todas as bellas qualidades ,
que conſtituem o todo de hum per.
feito Orador Evangelico . Era de hūa
eſtatura mui elegante , e que bem ſe
correſpondia , e proporcionava com
todas as pai tes do corpo. Oremblan .
te era trigueiro algum tanto , mas
conſervou até os ſeus ulcimos dias
hũa tal graça , que ſe repreſentava
nao menos modello , do que airolo..
Eltas beilis prendas da natureza ajn .
da ſobreſahiao melhor á vitta da ſua
muita docilidade , e fingeleza: pare
cia deſconhecer aquella fumma efti .
macao , com que era commūmente
reſpeitado ; porque no ſeu trato nao
havia outra couſamais , que deſprezo ,
e abatimento proprio , e iſto em tan
to gráo , que ſe reputava pela crea .
cura mais inferior , e indigna dequad
tos o Ceo cobria , e a terra ſopporta
va ; e tudo era de grande effeito para
a utilidade eſpiritual daquellas gentes,
em cujos animos nao podia deixar de
fazer grande impreſſao ver acompa
nhada a doutrina do Servo de Deos
de hum exemplo de vida tao auttero,
e tao ſanto.
45 Nao ſe edificavao menos da
ſimplicidade dos leus argumentos , e
razoens ; porque ſabia empregar o
Veneravel Padre tanto a propofito o
juizo claro , de que o Senhor o havia
dorado , que, ſem pompoſos , e eltu
dados artificios gananciou para Deos
hũa notavel multidao de almas , nao
podendo eſcapar das ſuas redes , nem
ainda as daquelles , que mais prelu
miaõ de doutos, ceruditos, que ſao
de ordinario os que mais reſiſtem aos
brados Evangelicos. Tinha o Vene
ravel Padre hūa diſcriçaõ mui nota
vel , e accómodada, com que ſabia or
gani
 FR . FRANCISCO DE POSSADAS, 20 de Settembro.
ganizar , e proporcionar os ſeus dil-
curſos a medida da capacidade ,ene-
ceſſidade dos auditorios. Nabera eſta
elegancia adquirida pela liçao , e eſtu .
do dos Livros , que trataó dos pre-
ceitos , e di&tames da facundia , era
fim unicamente dádiva daquelle Se-
nhor,que dá tudo ;porque ſabia achar
o Veneravel Padre as expreſſoens mais
eloquentes , e accomodadas ao ſeu in-
tento , devendo-as mais ao fervor do
ſeu zelo , do que ao deſvélo da ſua
applicaçao ; porque jamais le occu
pou em reflectir , e obſervar as re
gras , e preceitos da Rhetorica arti-
ficial. O ſeu eſtylo era igualmente ner-
voſo que perceptivel , nem jamais
ſe veftio de outra galla , mais que da
quella , que deſtrillimamente lhe fa .
bia dar o intenſo ardor , que lhe are
dia no peito, de conſumir os vicios, e
atear em todos hum viviffimoamor de
Deos. O unico fim , que o movia a ſu
bir ao pulpito , nao era outro mais,
que o ſerviço , e gloria do Senhor.
A'imitaçaõ de Santo Agoſtinho , mais
queria ſer de utilidade ás urgencias do
proximo, do que contentar ao capri-
cho dos Letrados, a quem dizia muie
tas vezes do pulpito a baixo , que le
queriao ſubtilezas , e arguiçaõ , era
neceſario que lhe concedellem que
nao eſtavaõ diftituidas delte ornato ,
ou acepipe as Theologias, Myftica,
e Moral : nem ſe enganava neſte pen-
famento porque era tal o fruto , que
fazjao os ſeus Sermoens , que até as
peſſoas mais negligentes , e diftrahi.
das , naõ ſó ſe reformavað , ſepao que
comunicavao a outros os incendios do
eſpirito do Servo de Deos , prégan-
do -lhes os deſenganos , que elle
Ihes incimava , e propunha .
46 Começou o Veneravel Padre
a ſervir a Sua Divina "Mageftade no
miniſterio da prédica , no Convento
de S. Lucar , e com ſucceflo tað fe .
liz , que bem ſe eſtava pendo nos ef-
feitos qual foſſe a puriſſimafonte, don-
de elle bebera tantas luzes de doutri-
aa , e fabedoria celeſtial. Nao acha-
-429
vað , nem lhe puphao outra coufa
aquelles que procurao fazer hum grá
de papel no mundo , ſendo, cenſores
de todas as acçoens alhêas , mais que
a pouca idade; mas eſte reparo ( le
o era ) eſtava tanto a favor do Servo
de Deos, que ja entað era buſcado ,
e conſultado, canto , e mais do que ſe
foſſe mui veterano , e mui conſuma
do nas materias de eſpirito. Bem ſe
dava o noſſo bom Religioſo com eſtas
centuras , ejuizos , e menos bem com
as eſtimaçoens, e decoros , com que
começou a ſer tratado , mediante os
progreflos, que hia fazendo nas ſuas
Apoſtolicas fadigas; porque eſte , e
nao outro , era o maior embaraço em
que le podia ver a ſua humildade. Nao
deſconhecia elle que Deos o havia ef
colhido para Ministro da ſua palavra ;
mas quanto mais o conſiderava , tanto
mais ſe confundia : porque o baixo
conceito, que fazia de fi proprio , lhe
fazia conceber a idea de fer tað indig
no , quanto elle eſtava univerſalmen .
te avaliado por benemerito..
47 Palou logo para o ſeu Conven
to de Scala Cæli; e como a este tem
po era ja mui conhecido , ecelebra
do o talento do Padre Poſadas, tea
ve grandes deſejos de ouvillo o Prior
do Convento de S. Paulo de Cordo
va , e a eſte fim lhe recommendou
hum Sermao , que o Veneravel Padre
aceitou com fummo goito . Anteven
do odragaõinfernal oimminente dam
no , que ſe lhe havia de seguir de Fr.
Franciſco entrar a prégar naquella Ci
dade ,procurou impedir hum tao bom
effeito por meio das luas aſtucias , e
ſuggeſtoens, e de tal modo as entabo .
lou , e reforçou o maldico adverſario,
que fuggerindo a hū Religioſo daquel
le Convento o pretexto do indecern ,
e indecencia , que ſe podia ſeguir a Or
dem , de ſubirao pulpico daquella Ci .
dade hum filho de peſſoas tao humis
des , e apoucadas , ſe levantou daqui
hum tumulto i að cego , e deſordena
do , que houve quem chegafle a pro
ferir: Que , ſe o Padre Polladas pré
gaile
430 FR . FRANCISCO DE
gaſle nd Convento de S. Paulo , le ha
via de pôr o fogo ao pulpito . Temeo
o Prelado maiores deſarranjos, e cha .
mando a Fr. Franciſco , lhe diſſe com
toda a Ibaneza , que largaſſe mao do
Sermaó , que lhe encomendára ,por .
que os Religioſos nao gostavao de ou-
villo . Eſtava tao fundado em Deoso
Veneravel Padre , que por nenhuma
parte o achou de prevenido eſte gran .
de deſprezo para o mortificar , e ven
do - ſe impoſſibilitado para intimar a
palavra de Deos aos Cordovezes , con-
verteo o ſeu zejo para outras partes ,
aonde o Senhor ſe quiz ſervir delle pa-
ra lhe fazer , como fez , muitos , e
grandes ſerviços.
48 Como a fama do Servo de Deos
hia creſcendo ao meſmo paſlo em que
ſe via manifeſtamente quanto ellé uti .
lizava , e melhorava os ſitios, e po.
voaçoens , em que era igualmente ad-
mirado , que ouvido; cahiraõ de to
do em ſi os Religioſos de S.Paulo de
Cordova , conhecendo a injuftiffima
femrazao , com queaté entao haviao
procedido em ter em menos conta ao
noſo Veperavel Padre , que ja con-
feſſavao , nao pordeſdouro , ou deſ
credito do habito de S. Domingos ,
ſenaộ por hú dos ſeus maiores luſtres, e
ornamentos. Encaõ he que virao bem ,
queſe foſſe capaz de vaidade o animo
de Fr. Franciſco , voltadas as ſcenas ,
elle heque podia ter para ſi que bonº
rava com a ſua aſliitencia aquella Co.
munidade; e eſta que nao era digna
de huin Varao de tað illuſtres pren •
das , e de tao inſigne ſantidade. Por
eſta conſideraçao foi chamado nova-
mente o Servo deDeos , que, ſem mais
attençao , que o serviço do Senhor,
paſſou para aquella Cidade, que tao
ingrata lhe havia ſido , eallicomeçou
a femear a palavra Divina com tanta
fortuna , que parecia eſtar reſervada
para eſte novo Jonas a Ninive daquel-
la grande povoaçao . Vinte e nove an-
nos de idade tinha o noſſo Prégador ,
e corria o de 1664., quando ſe entre-
gou a eſta conquiſta eſpiritual, que els
POSSADAS, 20 de Settembro .
le proſeguia com hum zelo verdadei .
ro da honrra de Deos, e da ſalvaçao
das almas : mas quando eſtava mais
fervoroſamente empenhado em fazer
guerra ao demonio , entao fe vio ata
Thado , pela razao , que ja diſlemos
acima , de ſe lhe imputar que desfru
cava as eſmólas do Hospicio em que
affiftia , para applicallas ao ſuſtento de
ſua pobre māy.
49 Retirado pois de Cordova o
noſo perſeguido, e innocente Reli
gioſo , ſuccedeo cahir de cama outro ,
Conventual em S. Paulo , que havia
de ir prégar aos forçados da Mina dos
azogues de Almadim , epallar depois
com o meſmo fim á Villa deChilhon .
Diſcorreo -ſe ſobre o meſmo impedi
mento aquella noite no Convento de
Scala Cæli, em que os Padres efta
vaõ queſtionando lobre quem iria ſup .
prir aquelle Apoftolico miniſterio ; 00
vio Fr. Franciſco húa voz interior ,
que lhe annunciava que ſeria elle, o
que ſeria expedido aquella Miſlao . A
ſua humildade lhe fez parecer que
iſto era illufaõ ; mas o ſucceſſo mo
ſtrou bem depreſſa a verdadeira ori
gem , donde ella naſcia , eſcrevendo o
Prior do Convento de Cordova ao
de Scala Cæli , para que eſte man
daſſe encarregar daquella; ſanta dili
gencia ao Padre Poſſadas. Nao teve
duvida entao o Veneravel Padre em
fer elle o inſtrumento, de que Deosſe
queria ſervir neſta occafiao , e tao
prompto le moſtrou em ceder, eobe
decer á ordem do ſeu Prelado , que
no meſmo ponto , em que lhe foi inci .
mada , ſe pôs a caminho a pé , o que
elle fazia de ordinario , e muitas ve
zes deſcalço , á imitaçaõ de noſſo grá
de Patriarcha S. Domingos : nað fez
agora outra prevençaõ elte ſeu bene
merito filho, mais que a de levar com
figo hum livro , com que outro Re
ligioſo , que ſe lhe molirava bem af
fecto lheacudio . Sujeitava fe de boa
võtade aos maiores trabalhos para bem
fazer o ſeu Officio Evangelico . Nao
faltou occaſiao ,em que, estando o tem .
po
 FR . FRANCISCO DE POSSADAS , 20 de Settembro
po de muita chuva , e tempeſtade, nao
achou , ainda que andou de porta em
porta , commiſeraçao em todo hum
jugar ,aondechegou, para quequizeſ-
2 fem recolher a elle , e a leu compa-
nheiro ; pelo que lhes foi neceflario
ficarem ambos affim molhados , ex-
poſtos ao rigor do temporal , que por
toda a noite nao ceffou de moſtrar- le.
trabalhoſo , e defabrido .
50 A frequencia com que préga .
va era com hum talexceſſo , que hou .
ve tarde , em que ſe lhe concáraâ veis
Sermoens , e todos igualmente diver-
ſos que eſpirituoſos, achando- ſe ſem
pre aſſiſtido de concurſos nað ſómen
te muito numeroſos , ſenaõ tambem ,
muito graves . Fazia o Veneravel Pa-
dre os ſeus Sermoens, ora nos Tem .
plos , ora oas Praças , e ruas das po-
voaçoens, ſegundo julgava que po-
. dia ſer mais a propoſito ; e alfombra .
va o refledir , que, pao tendo vagar
para eſcrever o que havia de proferir,
ainda que commummente repentinos,
eraõ ſempre caõ altos , claros , e ſó
lidos os ſeus diſcurſos, que parecia
impoſſivel poderem -ſe fazer melho-
res depois de ſe baverem trabalhado
muitos dias com toda a lima, e imper •
tinencia . Qual foſſe a efficacia da ſua
intimativa , ſe pode ajuizar dos pro-
digioſos ſinaes com que foi viſto mui-
tas vezes no Pulpito , ora incenden-
do - ſe -lhe o roſto , que muitas vezes
variava de figura , como búa braza ;
ora elevando-ſe , e ſuſtentando -ſe no
ar ; ora parecendo de outra eſtatura
mais corpulenta ; agora obſervando
le o ſeu corpo tao diafano, tranſpa.
sente , e luminoſo como hum cryſtal,
quando ferido dos raios do Sol; ja
ſuſpendendo -le, ou arrebatando -ſe ,
ſem poder proſeguir ; ja brotando pe-
los olhos groſſas , e verdadeiras lagri-
.
mas : porém ſobre tudo nas admira-
veisconverſoens demuitiſſimos , eine
veterados peccados, na extinçaõ de
muitos abuſos , e ſuperſticoens, eno
maior aproveitamēto daspeſoas mais
timoratas , e contemplativas. Iſto , que
431
aqui deixamos dito por maior , vere .
mos depois melhor comprovado com
alguns poucos exemplos; que ſe ſe
houveſſem de referir todos, pediriao
muitos , e creſcidos volumes .
51 A viſta de buns progreſostað
notaveis , ardia o demonio nas mais
vorazes chāmas de inveja , e impacien
cia , e tudo era armar-lhe algumas ma
quinas ,com que pudelle evadir osraios
da luz da celeſtial doutrina do Servo
de Deos , tað formidaveis , e terriveis
a todo o inferno ; mas todas as ſuas
induſtrias nao ſervirao mais que de ' .
augmento da ſua raiva , e confuzao ,
e de major cumulo á gloria , e mere
cimento de ſeu virtuofiffimo oppofi ,
tor . Havia ganhado a infernal ſerpen
te o animo de hum Sectario , que vi.
via abyſmado, e enlodado em tantos
erros , como vicios ; e vendo- o cao
bem diſpoſto para orgað , e inſtru
mento das ſuas diabolicas falſidades ,
lhe ſuggerio que ſe faria mais bem
acreditado com o povo , ſe deſle a en
tender que a ſua vida nað era regu
lada por menor director , que o Padre
Poſſadas: e que para que correſſe eſta
voz com maior validade , aſſimo po .
dia firmar , e affirmar por eſcrito de
ſeu punho. Eſtavaja deliberado o He
reje em aflentir a eſta inſolencia ; mas
ao tempo em que hia a tomar a penna ,
te deixou entrar de hum tal arrepen
dimento , que largando- a outra vez
com hum grande impeto , rompeo
peſtas palavras : Nunca Deos permite
ta , gue pela minha perfidia venha
a padecer búa infamia taõ grave hum
Varað tao bem opinado, e tao ſanto ,
e a quem eu ſó conheço por fama, e
5
naõ de viſta.
52 Prégando em hũa veſpera de
noſſo Padre S.Domingos hum Sermað
altiſſimo, ſó deixou de o parecer a cer
to Eccleſiaſtico , que,levado dehum
extraordinario , e imprudentiffimo
enthuſiaſmo, começou a publicar que
o Padre Poſadas havia prégado hia
doutrina falſa , porque havia de de
nunciallo ao Sagrado Tribunal da Fé ,
e com
432 FR. FRANCISCO DE
e com effeito aſſim cumprio a ſua pa-
lavra . Daqui ſe levantou , como he
tao ordinario , hum rumor tað inquie .
to , e ruidoſo , contra a reputação do
Servo de Deos , que nao faltou quem
o chegaſſe a dar ja por prezo nos car-
ceres do Santo Officio . Tanto fe di-
latou eſte boato , que forao algumas
peſſoas de maior diſtinçaõ a certificar-
je do facto ao Convento de S. Paulo,
e vendo tao ſoce gado , e quieto ao Ser
vo do Senhor , The eſtranháraó o nao
ſabir pelas ruas daCidade, a deſmen-
tir o que delle fe dizia . Eu ſabirei
( lhes reſpondeo elle muito e mli ) quan-
do houver neceſſidade de fahir . Tam .
bem foi notavel a reſpoita , que elle
deo ſobre eſte facto a Fr. Pedro de
Alcalá , ſeu Director , quando eſte lhe
fallou aſſim : E como ficariamos nós,
ſe foſe prezo o Padre Poſadas pela
Santa Inquiſiçao ! Padre ( lhe tornou
o noſſo bom Religioſo ) naõ creaVos
ſa Paternidade que era eu capaz de
hum favor de Deos tao grande, co
mo fora dar -me Sua Divina Mage.
ſtade hū a cruz tað pezada , eſtando
eu innocente : eſe pezo carece de ou
tros bombros mais robuftos , enaõtao
debeis como faõos meus. Convencida
finalmente aquella voz do povo , pro-
curou o Servo de Deos o primeiro
mobil della , a quem deo hũa correc-
çao efficaz, e ao meſmo tempo tað
ſuave ,que havendo ſido aquelle Eccle-
ſiaſtico hūa pedra de eſcandalo da ſua
bõa fama , o deixou agora feito o Ve-
neravel Padre hum dos maiores pre-
goeiros das ſuas virtudes .
53 Quanto mais prevalecia o Ve-
neravel Padre contra a oppoſiçao do
máo anjo , tanto eſte mais ſe obſtina
va em trabalhar por deſtruir a hum
feutañ gloriolo , eilſuſtre contendor .
De hūa correſpondencia illicita , que
contrahira com certo homem , ſe acha-
va pejada certa moça , que eſtava ti-
da em boa reputaçao : exhortava- a o
complice da lua culpa a folicitarhum
aborto ; mas elle arbitrio era de tan-
to horror para aquella pobre mulher,
POSSADAS , 20 de Settembro.
que nao tinha alento para o querer exe
cutar . Dize - me ( lhe perguntou aquel.
le barbaro ) je eu te apreſentar hum
papel do Padre Poſadas , porque o
Padre declare fer licito o aborto, ne
ſte caſo perſuadir te- has melhor do
que tantas vezes tetenho dito ? Ref.
pondeo a mulher : Que fim . l'artio o
outro a toda a preſſa a fazer lavrar hum
papel , firmado falſamente pelo Ser .
vo de Deos , em que, mediante mui .
tas razoens ſofiſticas, e apparentes ſe
perſuadia aquella grande maldade ; e
condeſcendendo à viſta delle aquella
mulher illuſa com a induçao de ſeu
infiel amante , na fuppofiçao de que
aſſim o ſentia o Servo de Deos : co
mo o demonio ſeja tao ſag : z , que def
cubra facilmente aquillo que pinta a
principio por mais recondito , e oc
culto , correo logo a noticia de que
o Padre Poſſadas havia approvado , e
aconſelhado por bom , e por licito
hum aborto : foi eſta fama ganhando
muito terreno , e vendo o Servo de
Deos que daqui nao ſomente lhe re
ſultava hum grande defcredito , ainda
que iſto era o que lhe dava menos cui
dado , ſenao que debaixo do feu no
me ſe podiaõ ir capeando , e pretex
tando caviloſamente outros abſurdos;
ſubio ar pulpito , donde deixou tao
conſtante a ſua bõa reputaçao , que
á viſta da mageſtade do feu aipedofi
cárað ſendo por demais os inconitra .
ſtaveis fundamentos, com que elle ſu
ftentou, e propugnou a invulneravel
candura da ſua innocencia.
54 Aré chegou a intentar a frau
de do demonio que foſſe a humilda
de do Servo de Deos , a que lhe deſ
ſe armas para o lançar , e apartar do
pulpito , querendo luggerir - lhe que
Deoso eſtava increpando , como ja in
crepara de outra vez a prevaricaçao
de Origines, com eſtas ponderoſaspa
lavras do Pfalmiſta :
Como teatreves
a referir asminhas juſtiças ? E como
ainda te encarregas de intimar as my,
ſterioſas , e tremendas verdades do
meu Teftamēto? Nao deixou de inquie
rallo
 FR . FRANCISCO DE POSSADAS, 20 de Settembro
callo algum tanto eſta ſubtileza ; mas
conſultando lobre ella a hum Mettre
da Ordem , peſſoade grande eſpirito ,
e capacidade , da ſua concluſão , e
nao menos da emoçao interior, com
que Deos lhe eſtava fallando ao co-
raçao , conheceo bem a futilidadede-
ftes eſcrupulos, ficando ao diante mais
confirmado em continuar com codoo
empenho hum exercicio , que , deſde
os ſeus primeiros annos , moftrára
ſempre haver ſido cao proprio da faa
devoçao . A notoriedade de todos
eftes triumphos do Servo de Deos
contribuio grandemente para o co
pioſiſſimo fruto , que produzio naſua
boca a ſemente da palavra Divina . A
Cidade de Cordova , como elle mel.
mo aflim o deixou eſcrito , eſtava fei.
ta húa cópia mui ſemelhante das an
tigas Nipives , e Babylonias. Erað
mortos os Jonas , que o Senhor lhes
havia expedido , e , ulando das meſmas
comparaçoens do Veneravel Padre ,
estava aquella occaſiao , como caſaſem
luz , mundo ſem Sol , e diſcipulo ſem
Meſtre. Reinarað alli os vicios como
em ſeu elemento proprio , eandavaõ
as virtudes fugitivas , defertoras, e
homiziadas . Homens , e mulheres ,
velhos , e moços , ricos, e pobres , to .
dos eſtavao como ſubmergidos em hū
aſcoroſiſlimo atolleiro de peccados .
Apenas havia palmode terra , que nao
foſſe profanado com eſcandalos , e of .
fenſas de Deos : em fim naõ fe via mais
que brutualidades , e abominaçoens ,
máos exemplos , e hũa inconfolavel,
e frequente ruina eſpiritual. Nao ló-
mente havia degenerado para hūade
cadencia cao calamitoſa a Ley Divina,
ſenao que até abrangeo a natural , nað
bavendo pay por filho , a quem nao
ſó faltava ) com a educaçao , mas ain-
da com o amor , ficando neſta parte
inferiores ás meſmas feras. Eftes eraõ
os fataliſſimos, e miſeraveis termos, a
que havia chegado aquella Cidade :
vejamos agora quanto a pôs de outro
modo o Servo de Deos . Principiou
pelo principaldasRepublicas: ifto he,
Tom , VII,
433
pela jerarchia Eccleſiaſtica ; e dalli
foi deſcendo até a ſua mais infima para
te , nao havendo eſtado tao humilde;
ou tao abjecto , que eſcapalle das fuas
redes . Ao zelo, com que ſe havia no
pulpito ,deveo Cordova converter - te,
de iao bruta , nao ſó para racional ,
ſenao para mui Catholica . Ninguem
fenaõ Fr. Franciſco dePoſſadas reſuf
citou nella a frequencia dosSacramen
tos , a reforma dos coſtumes , a ex
tirpaçaõ dos abuſos, o melhoramena
to das vidas , e o exterminio das mais
injuſtas , e irracionaveis deſordens.
Mas porque iſto nao pareça livremens
te dito , ja he tempo de o comprovar
mos com alguns raros acontecimen ,
tos .
55 Em būa das primeiras vezes
que ſubio ao pulpico do Convento de
S. Paulo , ſuccedeo ouvillo hum Mea
ſtre da Ordem , peſſoa ja idoſa , de
muitas prendas , e nao pouca autho
ridade , e que , abaixo do Prior , fora
quem mais ſe bavia oppotto a princi
pio ao Servo de Deos , procurando
embaraçar- lhe o ſeu ingreſſo na Reli
giao . Quando acabou de prégar o Ve
neravel Padre ,eftava tao outro aquel
le Meſtre , que á viſta nað fó de ſeus
Co -Religioſos, ſenao de outras pel
ſoas ſeculares, que alli.ſe achavao ,
diſſe em voz alta que todos percebe
raó clariſſimamente: E tu es aquel
le , a quem eu perſegui com lingua tað
acre , e tao impia ! Nao pode dizer
iſto fem muitas lagrimas , e com ela
las nos olhos ſe foi dalli a buſcar ao
Prégador , que deſcia do pulpito , e
á viſta de todos o abraçou, forcejan-,
do muito porbeijar-lhe a mao , ao que
o Veneravel Padre fez toda a refiften
cia ; e tað inclinado lhe ficou aquelle
Meſtre , que dalli em diante foi hum
dos ſeus amigos mais cordiaes , e feu
companheiro inſeparavel nas muitas ,
e frutuoſas Miſloens, que o noſio bom
Religioſo fez por toda aquella gran
de Cidade. Outros muitos Mestres
das mais Religioens ſagradas o ou
viao com ſumma atcençao , e procu
lii ravao
 434 FR . FRANCISCO DE POSSADAS, 10 de Settembro.
Tavao imitar o ſeu inimitavel modo
de prégar . Alguem chegou a dizer ,
que tinha vindo ao mundo Fr. Fran
ciſco para fazer perder os dezejos de
ouvir a hum S. Vicente Ferrer , ten
do o eſpirito do Servo de Deos por
meio equivalente .
56 Tendo acabado hum Sermao
Quareſmal , diſſe hum Meſtre de cer-
ta Ordem : Eſte Prégador prégacou-
fas , que nao ſe achao nos livros, e
o que diz he di tado certamente pelo
Eſpirito Santo : ſe alguem tiver du-
vida niſto ., chegue ſe a mim , que eu
o convencerei. Outra vez diſleraõ dous
Meſtres de muitos annos , letras , e
authoridade : A doutrina , que pré-
ga o Padre Poladas , be verdadeira .
mente celeſtial
. Era para ver acorn
moçao , que fazia em Communidades
inteiras, nas muitas vezes , que ſer .
vio de Orador Evangelico da Feſta de
noflo grande Patriarcha. Ifto , ( di .
ziao os Religioſos ) e.f6 iſto he quebe
prégar : eis -aqui o que he enſinar.
nos ao devido implemento danoſa vo-
caçab , e miniſterio. Em hūa deſtas
eccafioens, em queelle fazia o Pane-
gyrico de noſſo Santiſſimo Patriarcha,
de quem o Veneravel Padre foi bene .
merilo Chroniſta , deſcrevendo com
penna , etinta o meſmo, grinha copia-
do fideliſſimamente na alma , e cora
çao , voltando - ſe aos Religioſos, que
eſtavač aſſiſtindo á ſolemnidade , lhes
fez lembradas as grandes obrigaçoens,
que lhes incumbiao de caminhar pe .
' los veſtigios , que ſeus fantiſſimos Fun :
dadores lhes deixáraó illuſtrados com
o ſeu exemplo : como eſta advertene
cia porém , poderia parecer menos
attencioſa aos feculares , tomou o Ser-
vo de Deos o prudente acordo de con-
tinuar o ſeu diſcurſo na lingua Latina .
O fruto que daqui reſultou , que eſte
he o unico applauſo dos verdadeiros
Miniſtros do Evangelho , foi chora-
rem - ſe muitaslagrimas , e fahitem dal .
li os Leitores da Sagrada Theologia
de certo Convento com animo dere-
nunciar as Cadeiras , e retirarem - ſe
a gaſtar o reſto da ſua vida no Con
vento da mais eſtreita obſervancia.
57 Como todo o intereſſe do Ser
vo de Deos era o maior interefle do
bem dos proximos , jamais puderaõ
acabar com elle , que de tantiſſimos
Sermoens , que fez , aceitafſceſmóla ,
ou eſtipendio , nao querendo outra ga .
nancia mais,
do que a de lucrar almas
Para Deos. Tao eſcrupuloſo ſe mo.
Irou ſempre neſta parte , que nem
queria aceitar bum pouco de doce ,
quando prégava em algum Moſteiro
de Religioſas, deſorte que o deſpi
que , que podia ter com o Padre Por
fadas quem lhe encommendava hum
Sermaó , era fazer algumas eſmólas
ab ſeu Convento de Scala Cæli , ao
que ſó ſe nao oppunha o Vene ravel
Prégador; porque nao o podia fazer.
Hum dos primeiros bonseffeitos, que
eſte inſigne Miſſionario fez com os
ſeus Sermoens foi converter a hūa mu
lher muito amante de gallas , e orna
tos ; porque voltando a ſua caſa ,de .
pois de ouvillo , ſe delpedio das gal.
las para ſempre com eſtas palavras:
Quem acaba de ouvir hum Santo, ja
lhe nao fica liberdade para fazer ou
tra couſa. Fez hum Sermaõ no Col.
legio da Piedade da Cidade de Cor .
dova ; e como os argumentos , que to .
mava , nunca eraõ chimericos , e infru
Auoſos, como por miſeria dos noi.
ſos tempos ſe eſtá vendo tanto a miu. 1
1
do , porque ſabia o Servo de Deos
eſcolher os que eraõ mais neceſarios,
competentes , e opportunos ; ſucce
deo diſcorrer agora ſobre a dor dos
peccados , e tao vivamente exagerou ,
e dilucidou eſta materia , que demais
da impreſlað , que fez no animo dos
ouvintes, fez o admiravel effeito , que
agora diremos , em būa milvezes bem
affortunada mulher. Chamava -ſe etta
Urſula Maria , e era moradora no
Hoſpital da Landelaria ; em quanto
Fr. Franciſco prégou , eſteve sempre
de joelhos arrimada a hūa columna
daquelle Templo : acabou -ſe o Ser .
mao , e ainda aſlim ficou ella perfi
Itente
 FR . FRANCISCO DE POSSADAS , 20 de Settembro.
ſtente na meſma poſtura : advertirao-
na de ſerem horas para ſahir dalli ;
mas eſtava tao penetrada , e abſorta
do que ouvira , que nao teve forças,
nem tino para ir ſó , e foi neceffario ,
que a foſlem conduzindo ; e entran
do na ſua pobre caſa , diſſe eſtas for-
maes palavras : E poderá Deos que-
ter que alma alguma fe condemne !
Diffe , e acabando dalli a pouco , á
vehemencia do pezar das ſuas culpas,
deo a alma ao Senhor , nað ſendo ain-
da paliada húa hora , que o Servo de
Deos acabara de prégar. Com eſta
occaſiao lubio elle ao pulpito no dia
ſeguinte , aonde diſcorreo aquilina-
mente ſobre os muitos bens que traz
com ſigo hūa perfeita contriçao , ede
caminho perſuadio ao ſeu auditorio ,
que aquella feliz mulher morrera em
graça de Deos , como aſſim o tinha
para ſi apiedade Chriſtāa.
58 Prégando em certo lugar , e
fazendo, como ſempre ,hum notavel ,
e copioſo fruto , ſó nao pode redu-
zir a húa pobre mulher , que nao ſó
ſe endorecia , e fazia ſurda aos cla-
mores do Servo de Deos , lengo que
zombava dos que abraçavao os ſeus
ſantos documentos. A viſta de bũa
tal repugnancia , partio dallio Vene
ravel Padre magoado grandemente
de húa impenitencia taõ eſcandaloſa,
e , tornando bem por mal, hia rogan-
do a Deos , que participafle aquella
alma hum reflexo de luz ,para que vif-
se os abyſmos , em que a hia precipi-
tando a ſua cegueira : Caſo prodigio-
ſo ! Ao tempo em que aſſim depre-
cava , ouve , primeiro ao longe , e pou .
co depois demais perto, articular, en-
tre muitos gemidos , o ecco do ſeu
nome : parou para ver quem o cha-
mava , e vê que nað era outrem fe-
pao a melma, que tantas vezes ſe han
via empedernido aos fervoroſoscom-
bates das ſuasadmoeſtaçoens.Ouvio -a
de confiſſao , e exhortou-a a fazer pe .
nitencia das ſuas culpas: mas pouco
tardou em ſe ver que era deſneceſſa
rio efte conſelho ; porque apenas o
Tom . yli.
-435
Veneravel Padre acabou de abſolvel
la , no meſmo ponto , com tao gran
de fortuna , como contriçao , lhe ex .
pirou aos pés . Em ſubindo ao pulpi
to parece que ſe ſenhoreava o Servo
de Deos com hum abſoluto imperio
dos animos , e paixoens dos ſeus ou
vintes . Quando tocava algum ponto
pertencente á honra de Deos , trans
formava-ſe de homem em raio . Em
hūa occaſiao , ſó de ouvir -lhe hūa voz,
fez extremecer os Religioſos, o Go .
vernador da Cidade , e outras peſloas
de maior graduaçao , que eſtavao na
Tribuna do Covento ,deſorte que che
gáraó a encurvar-ſe com hūa inclina
çao profunda , eatapar os olhos com
as mãos , moſtrando aſſim quaõ gran ,
de fofle o ſeu enleyo , e confuſao.
59 Prégava todas as tardes dos
dias de feita pelas praças , e lugares
publicos ; e iſto ſem embargo de ha
ver pregado pela manhãa em algūa
Igreja. Sahia para iſto do ſeu Holpi.
cio acompanhado dos ſeus dirigidos,
e de outras muitas peſſoas , que pre
cedidas de hum devoto Crucifixo,
que hia diante , alternavaó a dous
coros as my terioſas Décadas Maria
nas , cuja propagaçao devêo hum dos
ſeus maiores augmentos á piedade , e
boa diligencia do Veneravel Padre
Fr. Franciſco de Poſſadas , a quem de
juſtiça pudéramos dar o nome de hum
ſegundo Beato Alano de Rupe ; por
que de tal modo fez reſuſcitar no ſeu
tempo a devoçaõ do Santiſlimo Roſa
rio da Senhora , como aſſim o moftrað
as Irmandades quaſi innumeraveis do
meſmo Roſario Santiſſimo, que , me
diante a ſua intervençao , ſe eregêraõ
dentro , e fóra de Cordova , que to
dasſahiao a cantaros louvores da Máy
de Deos pelas ruas , aondea cada pal
fo ſe eſtava o encontrando hūas com
outras, de modo que quando o Padre
Fr. Pedro de Alcalá eſcreveo a hiſto
ria do Servo de Deos ( dizelle ) ainda
ſe conſervavao com o meſmo fervor .
60 Sahia tres noites na ſemana a .
companhado de muita gente alceroan
lii ii do
 436 FR . FRANCISCO DE
do as meſmas ſagradas Oraçoēs.Quan-
to ſe agradaſſe a Rainha dos Anjos
deſte obſequio, o confirmáraô mui .
tos , e grandes prodigios. Sahio hum
dia o Servo de Deoscom eſta fua de
voçao ; e tomando no fim de hum
Sermaõ, que fez no Moſteiro da Incar-
naçao de Freiras Agoſtinhas, hum Se
nhor Crucificado das mãos , para aca-
bar com hum ado de contriçao , hum
menino de lette para oito annos, cha .
mado Andre , vio ſahir de hûa Vene
randa Imagem da Senhora do Roſa .
rio , que ficava defronte do pulpito ,
hữa belliſſima roſa de cor de fogo, que
voando pelo ar tocou nosPés domeſ
mo Santo Crucifixo , e voltou logo
para donde primeiro foi viſta , e dalli
ie foi pôr no peito do Prégador , aon
de fez maior detença , do que nos
Pés do Senhor . Vio mais, que a Igre-
ja eſtava cheia de hūa extraordinaria
A juz , e que muitos Anjos formoſiſſi-
mos corriao , e diſcorriao muito ale
gres pelos dous coros , debaixo , e
de cima das Religioſas. Sabindo em
hữa noite a louvar a Rainha de todas
as creaturas , ao ſubir a coſta do Ba-
clio , nao obſtante que o tempo efta-
va muito ſereno , levantou -ſe hum tal
furacao de vento , que levava tudo
levava tudo
pelos ares : aqui ſe intimidou tanto
aquella devota companhia , que ja co-
meçava a deſordenar -le tornando para
traz : Andem para diante ; (lhes gri-
tou aqui Fr. Franciſco ) de que tem
medo ? do diabo ? Diffe , e aſſim omo
ſtrou o ſucceſo , tornando ao impe,
rio deſta voz a lobrevir novamente a
primeira ſerenidade. Nao ſe podem
contar os favores , e maravilhas obra-
das por meio de hūa gracioſiſſima
Imagem da Senhora , a quem o Ve-
neravel Padre chamava a ſua Meni..
na , e os Cordovezes, que a enrique-
cia de muitas joias , veſtidos, e pe-
ças de cuſto , lhe chamavao a Virgem
do Padre Poſadas. Gavando-a de
muito formoſa certa mulher nobre de
Cordova , que tomou por ſua devo-
çao o velilla nos dias feitivos , diffeo
POSSADAŞ , 20 de Settembro .
noſio Veneravel Religiofo eſtas pa
lavras : O que eu poderei dizer he
que lá je aſſemelha em alguns viſoscom
a que eſta' no Ceo ; donde algumas peſ
foas ficáraó inferindo haver viſto no
Ceo a Pulcherrima , e Puriſſima El
pola do Eſpirito Santo .
61 Ordenou - lhe eſte ſeu tað fa .
vorecido Servo hum triunfo annual, .
no oitavo dia da Feita do Santiſſimo
Roſario : em Ella fahia pela Cidade
com oftentola , e luzidiſſima pompa,
ſendo acompanhada de toda a nobre
za da terra , eornando-ſe as ruas por
onde havia de fazer tranfito , naõ ſó
com precioſiſſimas armaçoens , ſenaõ
com muitos , e mui curioſos altares,
e nao menor numero de arcos triun .
faes , aonde nao brilhava menos o
engenho , do que o falto , nas muitas
pinturas ſymbolicas , epigrafes, in
ſcripçoens, emblemas, e outras mui.
cas , e elegantes Poeſias , que le via o
nas bem obradas, e polidiſimas tarjas,
que afformoleavaó hum tað efpecio
lo , e nobiliſſimo apparato ; tudo iſto
feito em obſequio , e applauſo dasex
celleacias da Imperatriz dos Ceos. A
principio fazia -le eſta folemnidade na
igreja do Hoſpicio ; mas achando- ſe
muito eſtreita , e pequena para tað
eſtrondoſa , e grande festividade , ſe
veio a mudar depois para o Real Con
vento de S. Paulo , para onde a See
nhora paſſava na Veſpera , e era feſte .
jada no outro dia , em que prégava
ſempre o Veneravel Padre , e encao
meſmo ſe tornava a reſtituir por ulti
mo á ſua Caſa com igual decencia , e
mageftade aquella , com que coſtu
mava ſahir della . Hum dos devotos
mais empenhados nos cultosdeſta Ce
leſtial Princeza era Joao Franciſco
Barrera , e todos os annos corria por
ſua conta levantar hum altar á porra
da Ermida de Nofla Senhora da In
Achando - ſe alcançado , e
carnaçao .
tao pobre , que nem tinha para o im
porte da cera , eſtava de animode nao
fazer couſa alguma. Soube iſto o noſſo
Veneravel Padre na veſpera da pro
ciſlao ,
 FR : FRANCISCO DE POSSADAS , 20 de Settembro.
cifſað , e indo a toda a preſla buf-
callo , The difle : Nao deixe de fazer
o ſeu altar , como ſempre tem fei ,
to ; e ſe nào tem para cera, nem por
amor dilo ſe deſcon fole, que a Pro-
videncia de Deos ,que he muito grane
de , e inexcrutavél , lhe dará toda
a que for miſter. Ficou o homem
cheio de fé ; e poſtoque era ja tað
tarde, entrou a fazer diligencia pe-
las alfaias , que lhe eraõ neceffarias , e
foi caſo notavel , que nao chegaſſe a
parte alguma , aonde deixafle de fur-
iir bcm effeito a ſua diligencia , demo-
do que com a maior brevidade ſe
achou com todos os apreſtos necefla-
rios , muito à medida do ſeu deſejo ,
para concertar , como concertou , o
altar com maior alinho , e primor , do
que em nenhūa das occaſioēs antece .
#
dentes.Neõ lhe faltava mais que a cera ;
mas apenas acabou o ſeu trabalho ,
quando chegou a ellehữa mulher , que
nem tinha viſto , nem mais tornou a
ver , entregando -lhe duas duzias de
vélas de cera , e dizendo- lhe que as
acceitaſſe como dadiva da Providen-
cia Divina , immediatamente ſe au-
zentou .
62. Nao foi menos admiravel eſ-
toutro ſucceſſo . Recolhendo -ſe a San
ta Imagem para o ſeu Hoſpicio , che-
gou JoaoGomes a accender húa roda
de fogo artificial; mas com tað máo
2 ſucceſſo , qlhe rebentou hum foguete
pa mao , deixando - lha horribiliſlima
mente deſcarnada , e paffada de par-
te a parte , correndo - lhe as golfadas
de ſangue a rios : chegáraó a acudir
algumas peſſoas , e entre ellas o Ser.
vo de Deos. 180 he nada , ( difle o
Veneravel Padre , lorrindo -ſe , ao po-
bre homem ) enada ha de vir a fer:
Vá depreſa á botica , e diga que lhe
1 untem a mao com hum pouco de oleo
de linhaça com alvaiade, que logo ſe
ba de achar bom . Foi o homem com
toda apreſſa a tratar da ſua cura ; mas
o boticario , e cirurgioensriao -ſe do
remedio que elle requeria , e a bom
ſalvamento lhe davaõ a bõa nova de
437
que podia deſpedir-ſe da maó , que,
quando menos , ſegundo o ſeu poto,
ſe lhe devia cortar quanto antes p
, or :
que do contrario ( diziaõ elles ) felhe
podia ſeguir nað fó perder o braço ,
fenao que lavrando a corrupçaõ po .
deria incorrer em riſcoimminente de
vids. Toda via , eſtava tað creduloo
ferido no conſelho do Padre Poſſa
des , que nao queria ceder , e porfia
va que ſe lhe fizefle o que o Servo de
Deos mandava . Fizerao -no aſſim
mais por ſe livrarem da ſua importu
naçao , que por outra couſa ; e foi
prodigio obſervar, que nao ſomente
nao fentio dor o curado , ſenao que
dalli meſmo tornou a ir continuar em
lançar o fogo , e logo no dia ſeguinte
ſe achou totalmente fað , ſem que lhe
ficafle outro veſtigio daquelle dela
ſtre , que a groflura de hũa linha par ,
dacenta.
63 Quem poderá dizer os favo
res do Ceo , mediante a applicaçao
do azeite , que ardia na lampada da
meſma Venerabiliſfima Imagem . Mas
naõ ferá juſto que deixemos em hum
ingrato ſilencio aquelles,de que ha no
ticia , para que Deos , e Sua Máy San.
tilfima ſeja o glorificadosem hum Ser
vo ſeu tao inſigne. Tinha o Venera
vel Padre hūa filha eſpiritual, cha
mada Dona Franciſca Peſquero , a
quem le intumeſceo deformemente
hum dedo da mao , o que a tinha tao
atormentada , que por toda hũa noi.
te nao a deixou ſocegar : foi buſcar
logo de manhãa o Veneravel Padre,
e pedir -lhe que lhe untaſſe a parte of
fendida com o azeite da lampada: fel
lo elle aſſim , depois de haver dito
Miſſa ; e com felicidade caõ preſtan
te , que logo lhe varreo a dor ,e
pouco e pouco a inchaçao , de modo
que ja no outro dia nao tinha couſa ,
que lhe deſſe pena. = Eſtava julga
da Izabel Andrea Toſcana , menina
de pouca idade, a cortar - ſe -lhe hum
braço infecto de hum humor tað
maligno, que lhe ameaçava a morte ,
Affli & iſlima ſua máy , que havia ga.
Ito
438 FR . FRANCISCO DE POSSADAS , 20 de Settembro .
ſto muito dinheiro com curas infru-
ctuotas , buſcou o ſeu ultimorecurlo
no Servo de Deos , aonde ſabia que
o achavao prompio , è certo tantas
outras peſſoas. Compadeceo-ſe elle
de tao magoada matrona , e exhor-
tou - a' a que puzeſſe toda a ſua eſpe-
rança na infinita Bondade de Deos
e ungindo o braço de ſua filha com o
azeite , lhe deo o remedio , que lhe
naő pudérao dar os maiores esforços
da medicina , deixando- a tanto tem
leſao , que dentro de breviſſimo tem-
po pode uſar com tanta liberdade de
hum braço , como de outro. - Ti-
nha D. Luiza de S. Anna , viuva de
D. Diogo Eſtaquero hum grandilli-
motumor ,que lhetomava deſde hum
dos hombros até a mao . Ungio - a o
Servo de Deos com o azeite da Se .
phora , e logo ſe lhe deſvaneceo a
dor : fui elle depois diſto dizer Miſ-
fa , a que aſſiſtio a doente , que entre-
tanto começou a mover o braço , e
com tal fortuna, que quando Fr.Fran-
ciſco deixou o Altar , ja ella ſe acha
va inteiramente fáa. ::
64 Havia - ſe engroſſado a lingua
de Joao Gonçalves Moreno , de mo-
do que lhe ſabia enormemente fóra
da boca , como couſa de quatro de-
dos , vindo - lhe aſſim a cahir ſobre a
barba , complicando -ſe a ſua moleſtia
com taes accidentes , que chegáraó
os Medicos a dalla por mortal ; epro
vavelmente o ſeria , re ſua mulher nao
recorreſſe á protecçaõ daquella Se-
nhora , a quem a Igreja tem dado a
denominaçao de Saude dos enfer-
mos . Foi pois a actribulada mulher do - lhe hūa grande inflámmaçao aos
pedir ao Padre Pofadas as ſuas ora- ' olhos , de que eſteve cega por ſeis me
çoens , e hum pouco de azeite da lam-
pada ; e naoſómente o trouxe, tenao
hữa bõa profecia do Servo de Deos ,
que lhe annunciou a melhoria de feu
marido . Voltou ella a caſa correndo,
e em primeiro lugar ungio.com muita
fé a lingua do marido com aquelle
milagrolo licor : foi depois difto a
Jargar o manto , que tinha ainda poſto,
e tornando immediatamente para fó-
ra , vio a lingua ja deſinchada, ſem
inchaçao , e muito melhor affombra
da , e entrando pouco , e pouco na
boca : pedio o doente de comer , o
peraçao para que atélli eſtivera mui
impoffibilitado : comeo , e foi me
Thorando com tað feliz progreſſo , que
ſe pôs a pé dentro de mui poucos dias.
= Jozé Galhardo , que depois veio
a ſer Religioſo Agoſtinho , ſendo de
onze annos de idade , padeceo mui
tos tempos o aſcoroſo , e importano
incommodo de tinha : Levou -o ſua
máy ao Servo de Deos, pedindo - lhe
que lhe fizeſſe o final da Cruz ſobre a
cabeça com o azeite da lampada da
Senhora : elcuſou -ſe elle ,como fem
pre fazia ; mas nao ſe podendo negar
ás aperradas inſtancias , veio em fim
a condeſcender com o que ſe lhe pe
dia . Acabou de formar o ſinalda Cruz
ſobre o menino , e immediatamente
lhe deixou a cabeça tao liſa , e com
cal limpeza , que nem raſto The dei
xou do ſeu mal . = Com igual felici .
dade ſarou būairmāa deſtemeſmo, de
quem acabamos de fallar , chamada
D. Roſalia Galhardo ,, larando per
feitamente , mediante o referido azei .
te , applicado pelo Servo de Deos
depois de ſe haverem deſaproveita
do muitas curas ' , com que os Medi
cos procuravaó extinguir- lhe huns
poucos de caroços , que lhe tomavao
a garganta .
65 Ettando de parto Agoſtinha
Maria , ſe entriſteceo de modo pela
morte de feu pay Andre Laguna ,ique
lhe lubio o ſangue á cabeça , ſobrevin
zes , exalperando-ſe - lhe mais as do .
res á viſta da applicaçao dos remedios,
que de nada lhe aproveitárað ; por
que nenhum outro The valeo , mais
que o azeite da lampada da Senhora ,
com que o Servo de Deos lhe ungio
a parte leza , porque logo recobrou
viſta , e ſaude , como fe nada fora.
Nao podia dormir, nem parar com
hūa grande dor de eſtomago D. Joao
de
 ER . FRANCISCO DE POSSADAS , 20 de Settembro.
! de Navao , e ungindo -ſe tres vezes
com o azeite , arrojou de cada húa
dellas hum vomito , com que ficou
bom para ſempre , como aſſim ao meſ-
mo o havia predito o Servo de Deos .
- Hûa prima defte , chamada Fran-
ciſca Poliadas, fárou immediatamen-
te de húa violenta fluxao de olhos,
1
logó que o Veneravel Padre acabou
de ungir -lhos com o azeite . = Alim
como deo remedio á máy , o deo tam-
bem a hum menino , ſeu filho ; por.
que ſendo - lhe apreſentado com hum
olbo fóra , pendente de búa tenuiſ-
ta
fima tez , por cauſa de hūa pedrada,
que lhe acirou outro pequeno , o Ser
vo de Deos, lem fazer outra diligencia
mais , que untar -lhe a parte offendida
com o azeite , ſe moveo o olho por
fi , reſtituindo ſe ao ſeu lugar , e fi-
cando logo tao bem curado, que ne .
nhúa inferioridade ſe lhe podia reco .
nhecer . = Quarenta dias padeceo D.
Luiza de Caſtella, mulher de Andre
de Bonilha , hũa queixa taó doloroſa,
e temivel , que nem ſe podia mover ,
nem conſentir que a moveſlem : deſ-
confiarao os Medicos da cura , e de-
rao lhe o ultimo deſengano ; mas acu
dindo lua ſogra ao Servo de Deos , e
trazendo ádoente hum pouco do azei-
te , em que fallamos, e o Roſario do
Servo de Deos , no meſmo ponto em
que eſtas couſas foraõ applicadas á
doente , começou ella a melhorar com
tao bom ſucceſſo , que dentro de pou-
cos dias ſe achou totalmente melho .
rada .
66 Aſeiſclo de Medina , filho de
Agoſtinho de Medina , e de D. Maria
Neto , naſceo com hum final encar-
nado nas coſtas, que creſceo dentro
de hum anno com cal grandeza , que
eſtava julgado a cortar -ſe - lhe , porque,
de outra ſorte , diziao os cirurgioens
que aquelle máo ſymptoma podia virvozo , aſſim de nao fe lograr da preza
3
a ſer infallivelmente mortal . Nao veio que fizera , como da injuria que dalli
1
fua máy em que ſe executafle a ope-
raçao ; e levando -o ao Servo de Deos,
com o azeite que ſe lhe pôs da lam .
pada da Senhora , lhe defappareceo
)
439
aquelle infauſto ſinal de modo que le
lhe nao cornou a ver em toda a ſua
vida. = Miguel de Caſtanheda foi
trazido ſemimorto para ſua caſa , aon
de eſteve ſem falla 36. horas. Quize
rao ſacramentallo ; mas achando - o o
ſagra
Paroco tao impedido para eſta
da adminiſtraçao ,le voltou outra vez
para a Paroquia . Foichamado o Ve.
neravel Padre Poſſadas neſte fatal
aperto :vio -o , lançou -lhe o Roſario ao
peſcoço , e diſle - lhe : Levantate Mi.
guel. Obedeceo promptiffimamente o
enfermo , achando - ſe logo tao bem
diſpoſto , que foi confeſlar- ſe com o
Servo de Deos , como eſte aſſim lhe
havia mandado . = Jozé Fernandes
Calero eſteve mui perigoſo pelo de
curſo de oito dias , por cauſa de hūas
parocidas , que lhe fahirað á garganta ,
.
e pedindo que lhe chamaſlem o Ve.
neravel Padre , correo-lhe elle a mão
por todo o corpo , e ſahio dalli dizen.
do : Que nao tiveſlemcuidado, e que
encomendaſem o doente a ſua Menina,
que ja diſſemos que eſte era o titulo
que elle dava á milagroſa Imagem da
Senhora . Ainda o Veneravel Padre
pað era bem ido , quando o enfermo
aflentando -ſe na cama pedio de co
mer : derao -lho , e acbou -ſe logotað
bom , que naquella meſma noite ſe
achou capaz de paſſear por caſa , e
dentro de tres dias por toda a Cidade.
67 Ficára certa mulher , até per .
to de meio dia , em būa Igreja de
Cordova , aonde entrou ao meſmo
tempo hum Jadrao , que levou furta
dos dous caſtiçaes de hum Altar : vin .
do o Sacriſtao , e achando -os menos,
perguntou á mulher o que havia paſſa
do , e ella , que conhecia muito bem
o delinquente , o deſcobrio logo de
plano : foraő a ſua caſa, e della Theci
rára ) o furto ; maselle ficou tao raj.
lhe reſulcava , que entrou logo no
penſamento de matar aquella pobre.
Confeſlava - ſe ella com o Veneravel
Padre Fr. Franciſco , e dando lhe
conta
440 FR . FRANCISCO DE
conta do riſco , em que ſe via , lhe
eſtranhou o Servo de Deos o que ella
fizera ; mas deſpedio -a finalmente mui
conſolada , dizendo-lhe que andaſle
affoutamente por onde quizeſle, que
elle tomava a leu cargo encomendal-
la a MARIA Santiſlima . Paſlados pou-
cos dias foi ella á meſma Igreja ; co
mo porém achaſle a porta fechada,
deixou.ſe eſtar no adro eſperando
que ſe abriſle : eſtando aſſim , eiſque
aparece o ladrao , que a tinha ja pre-
ſer , e vinha ja chegando para el .
la , moſtrando na furia do aſpecto o
malevolo animo que crazia . Hia -ſe-
The apertando o coraçao comelta viſta
quando ſentio paſlos ao pé de fi ; 0
Thou , e vio junto a ſi hum atentado,
e formoſo mancebo , que, tirandoda
eſpada , ſe deixou alli eſtar; paſſou o
ladrao olhando ſempre , mas de lar.
go , e o defenior da pobre mulher ſe
deixou alli eſtar em quanto a Igreja
ſenao abria ; e em ſe abrindo , imme .
diatamente deſappareceo. Contou ela
la tudo o ſuccedido ao Servo de Deos,
e eſte lhe encarregou que delle mui-
tas graças a Deos , porque o Protector,
que a tinhadefendido , era bum Anjo,
que Sua Divina Mageftade havia ex-
pedido para guardalla. Dalli pordian .
te ſe foi aquelle homem eſquecendo
do ſeu pailado rencor , cimo ſe je
houveſe eſquecido de tudo o paſſado.
68 Por todos eſtes bons officios,
que codos recebiao do Veneravel Pa-
dre , era univerſalmente procurado,
e conſultado de todos , nað fó em ma-
terias eſpirituaes , ſenaõ tambem tem-
poraes , e politicas : huns procura-
vaõ ter ádico para lhe fallar , e ou
tros , que ſe achavao para iſſo impe-
didos , lhe pediaó por carta o feu
conſelho. Como S. Jeronymo aos
Romanos , roubava o noſſo Venera-
vel Padre as attençoens aos morado-
res de Cordova . Era incrivel o jubi .
lo , e reſpeito com que cada hum o
via entrar pela ſua porta dentro , ten-
do -ſe entao por mui ditoſos, e affor-
tunados : nao goſtava o bom Servo
POSSADAS , 20 de Settembro .
deDeos deſtesapplauſospublicos;ain
da qvia , nao deixavao de contribuir
em grande parte para muitas , e no
taveis converſoēs de peccadores. Mas
ſe atégora temos viſto reſplandecer
eſte mais luzido ſol de virtudes no
Oriente da ſua patria , vejamc-lo ago
ra raiar fóra della , Na Miſlao dos for
çados da Mina dos azogues fez hum
fructo tao conſideravel , que com
grande conſolaçaõ ſua o eſcreveo ao
ſeu Confeffor . De brenha inculta o
ſoube transformar a ſua boa di .
ligencia em jardim florecente ; dere
trato do inferno em traslado do Pa
raiſo , e de lugar de deſeſperaçoens,
e blasfemias, em centro de compun
çao , arrependimento , e lagrimas.
De tal ſorte deixou contritos aquel
les deſgraçados criminoſos, que nao
houve algum , que nao quizeſfereſti
tuir -ſe a graça de Deos , mediante
hūa confiflað geral bem feita . De Al .
madea tomou o caminho para Chil
lon , aonde , como ja deixamos inca
do , trabalhou com ſummo fervor por
aproveitar os moradores daquella Vil
la ; e teve a conſolaçao de ver bem
ſuccedido o fructo do ſeu trabalho.
Sao muito dignos de memoria os fre
quentiffimos caſos,que lhe ſuccedérað
nas reiteradas Miſloens, que fazia nos
povos eſtranhos. Vejamos alguns .
69 Caminhava o Servo de Deos com
eſte intuito por junto de hūa ſerra ,
quando ja hia anoitecendo , e a eſte
tempo ſe levantava hūa tempeſtade fu
riofiſfima: nocou Fr. Franciſco que ha
via alli húa vereda , e ſem ſaber o por
que ſe achou grandemente commovi
do a entrar por ella . Queria diſſuadil
lo o companheiro , repreſentando
lhe o rigor do temporal , o vir - ſe fe
chando a noite, o deſabrigado da mon
tanha , e outrascouſas mais, que bem
eraõ baſtantes a deſviar daquelle in
tento a outrem , que nao tiveſſe o
grande eſpirito do noſſo Veneravel
Padre.Nao ha remedio (dizia o Vene
ravel Padre ) por aqui havemos de ir :
com effeito levou conftantemenie :
vante
 FR . FRANCISCO DE POSSADAS , 20 de Settembro,
vante a ſua primeira deliberaçao. An .
dados poucos paſſos;aviſiáraó hűa hu-
milde caſa campeſtre , aonde habita .
vao , muitos annos havia ,hum homem,
e hùa mulher na opiniao do mundo
caſados , mas perdidos , e ſubmerſos . Correo em fim aquelle facinoroſo
em húa vida corpe, miſeravel. Con-
teſlou primeiro aquella pobre concu.
bina , e a ſeu éxemplo fez o meſmoo
complice da ſua culpa , declarando
haver commettido tantas , e tao abo ,
minaveis , quanto ſe pode preſumir de
1
hūa vida tao antiquada, e mettida
em brutalidades . Diremos brevemen-
te hűa , que de melhor vontade dei .
xáramos em ſilencio ; mas trapſcre.
vemo la , para que ſe veja , e conſidere
melhor, quanto he Immenſa a Bonda-
de Divina , e quanto he neceſſario de
clamar.ſe nos pulpitos contra hum
vicio , que tanto ſe tem eſtendido , e
que vemostao pouco eſtranhado.Ha
via naquella ioculta habitaçao huma
Santa Imagem do Senhor Crucifica.
do , de pintura , e pol { uia aquelle
brutaliſlimo peccador o lugar, em que
ella expreflava a Sacratiſſima Chaga
do Lado com as mais nefandas , e fa
crilegas torpezas . Confeflados, e con-
tritiſſimoseſtesdous miſeraveis ,ſelepa.
ráraó bum do outro , fazendo hūa vida
taodiverſa , e penitente , que bem def.
mentirao todos os ſeus deſmanchos.
70 Andava fortando em certo
monte hum ladraõimui conhecido pe-
lo grande numero de mortes , e fur-
tos que havia feito , e tað ſagáz, e
manhoſo , que jamais o pode a juſtiça
ha ver ás mãos , bem que para iſto ſe
empenhaſſe igualmente com a força,
que com a induftria . Vendo eſte ho
-1 mem perdido paſlar hum pobre, per-
guntou - lhe o que havia de novo :
Que eſtá prégando de_Miſſao ( ref.
pondeo elle ) o Padre Pojadas. Naõ
conhecia aquelle ſalteador o Servo
de Deos ; mas o meſmo foi ouvillo
nomear , que entrar na reſoluçao de
mudar , como mudou , de vida , e
fazer penitencia dos ſeus eſcandalos,
e atrocidades. Se baſtava o ecco do
Tom . VII .
441
nome de Fr. Franciſco para cbrar
elle ſó eſtas maravilhas ; que effeitos
ſe nao podiao eſperar da efficacia das
fuasvozes , da authoridade da ſua prea
ſença , e da força da ſua intimativa ?
a
buſcar ao Servo de Deos , ſem repa.
rar em que podia ſer prezo; e depois
de confeſſar-ſe com o bom Religioſo,
ſe retirou a viver aufteramente em
hum deſerto , para que aſſim como
hum retiro havia ſido teatro das ſuas
iniquidades, o foſſe outro da ſatisfa
çao , que elle devja dar ao Ceo , eao
mundo. = Reduzio mais o Servo de
Deos a outro ladrao , que ainda ago
gravou muito mais os ſeus muitos
roubos , e homicidios pela tyrannia
com que fez hūa morte ; e foi o caſo :
que cahindo - lhe hum pobre moço nas
mãos , quiz oblervar nelle hūa def
humana curioſidade; iſto he : ſaber
quantos dias podia hum homem dy
rar ſem alimento . A este fim atou a
quelle miſeravel a hūa arvore e alli
o deixou eſtar por nove dias , que lhe
durou a vida , ſem nem ainda lhe que ,
rer chegar á boca hūa gotta de agua ,
que muitas , e muitas vezes lhe pedio
pelo amor de Deos. Eſta féra huma
na ſoube domeſticar o Servo do Se .
nhor confeflando.o , e convertendo- o
a hūa legitima contriçaõ .
71. Nao tem numero os erros , &
bulos , e ſuperſtiçoens, que delarrai .
gou em lugares de gente ruftica.Che
gou a parte , aondeachou hum paſtor,
que eſtava para morrer : era de trin.
ta annos , e nao havia recebido mais
Sacramento , que o do bautiſmo ; pori
que eraõ ſeus pays taõrudes , que na
da lbe haviao enſinado dos myſterios
que devia crer, e dos preceitos que
devia de obſervar. Diſpollo o Servo
de Deos , confeſſou - o , e em acaban
do de receber os mais Sacramentos
immediatamente expirou . Feliz o pe.
nitente ; porém nao menos feliz quem
aſſim lhe facilitou , o caminho da ſua
falvaçao. Entrou em povos , donde
nem havia pias de bautiſmo. (Ah Pre
Kkk lados ,
442 FR . FRANCISCO DE POSSADAS, 20 de Settembro.
lados , Prelados ! ) Perguntou em
cerca occaſiao , e ao que parece nao
fem inſpiraçao ſuperior , a hūa mu-
lher caſada , e máy de quatro filhos,
ſe eſtava bautiſada '? Reipondeo ella
com grande reſoluçao , que ſim : tor
nou a inquirir della quem a havia
bautizado : apontou ella immediata.
mente hum homem velho : foi eſte
chamado ; e entrando o Veneravel
Padre a averiguar a forma com que
elle conferira aquelle chamado bau .
tiſmo, depôs elle , que ao lançar a
effuſao da agua proferira eſtas pala-
vras : Maria , Deus te faça ſua Ser-
va.Deo entao ordemoServo de Deos
que fofle , como foi , levada á fua Pa-
roquia, aondefoi regenerada em Chri-
fto , devendo deſte modo a ſua pri .
meira felicidade eſpiritual ao noſlo
taó previſto , e zeloſo Miſſionario .
= Entrou em hum lugar , aonde cor-
ria vulgariſſimamente huma ſuperſti-
çaõ ridicula ; e vinha a ſer : que o paõ
offerecido ſobre as ſepulturas ficava
inteiramente inſubſtancial , porque
os defuotos lhe comiao a ſubſtancia;
e mandando o Cura deſta gente hum
pouco de pao de hũa offerta por el
mola ao Servo de Deos , lhe diſſerao
que nao o comeſſe , pela razao apon-
tada. Ora riao-le diſo; ( refpondeoo
Veneravel Padre com muita graça ,
que ſempre teve ) porque nao heide
comer deſte pao? Nao vem que o come
o Cura , o facriſtao, e as ſuas fami-
lias, é mais nao deixaő por iſo de
andar muito bem gordos.
72 Por fer util aos ſeus proximos
nenhum caſo fazia o Servo de Deos
de trabalho . Caminhava a pé ; e le
nem hum bocado de paõ lhe davaõ de
eſmóla , ſempre moſtrava ficar mui
conſolado . A ſua cama de ordinario
era , ou o ſobrado , ou a terra , e
quando muito hum palheiro : naõlhe
ſuccedeo enxugar poucas vezes no
corpo a roupa do seu uſo , da muita
chuva que ella apanhava ; e como ſe
tudo iſto foſle pouco , accreſcentava
a eſtes rigores muitos outros volunta-
rios.Eftenimio zelo do Servo de Deos
lhe pagou o Senhor com alguns pro
digios extraordinarios. = Chegan
do em certa occaſiao o Veneravel Pa
dre , e ſeu companheiro á margem
de hum rio , que lhes era neceflario
paſſar , o que nao podia ſer por cor
rer entao mais creſcido , apparece
rao -lhes dous mancebos de eſpecioſa
preſença , montados em dous bons
cavallos, e differað - lhes: Padres , naā
hajao medo , paſſe cada bum em ſua
cavalgadura deſtas, e logo ſe porao
da outra banda muito a ſeu ſalvo : fi
zerao -no aſſim os bons Padres , elo
go deſappareceo tudo . Note- le quan
to ſaõ favorecidos do Senhor aquelles ,
que o ſervem com fidelidade : mas
como nað ha de fer afſim , ſe até eſtá
enchendo quotidianamente de ben
çoēs , e miſericordias aos maiores
peccadores ? Em outra occaſiao re .
colhendo - ſe de hũa Miſao á Cida
de', e chegando fóra de horas , atem
po em que eſtavao fechadas as ſuas
portas , a virtude do Altiſſimo lhe fa.
cilitou milagroſamente o ingreſſo , o
que o Servo de Deos aſſim confeſſou ;
porque ſendo perguntado por onde
entrara , reſpondeo : que por onde
Deos quizera, e fora ſervido ; e nao
ſó foi eſta a maravilha , ſenaõ que ba
vendo chegado com os pés muito in
chados , e abertos em chagas , e com
ameaços de hũa grande febre , ama
nheceo no outro dia ſem algum ſinal
de hūa , e outra queixa .
73 Correndo o anno do Senhor
de 1700. , e contando o Servo de Deos
cincoenta e ſeis de idade , fabio de
Cordova á lua Campanha, que cal foi
lempre o nome , que deo eſte esfor .
çado Capitaõ do Senhor dos Exerci
tos ás ſuas Miſſoens Apoſtolicas. Dil.
correo pela Cidade de Lucena , e pe
las Villas de Cabra , Dona Mencia,
Baena , e Procuna , e outras ; e de
pois de reſplandecer em todas o teu
zelo nas admiraveis conſequencias
que reſultárao da lua Evangelica dou
trina, ſe recolheo cheio de glorioſos
mere
 FR . FRANCISCO DE POSSADAS , 20 de Settembro .
merecimentos , deſpojos , e trofeos
ao ſeu patrio Convento. Recolheo-
ſe depois de haver mutilado as ami-
zades illicitas , de compor as licitas ,
obviar os publicos eſcandalos, refor-
mar os maos coſtumes , frequentar
os Santos Sacramentos , e executar
outras muitasacçoensCatholicas ,com
tanta gloria do Ceo , como pena , e
confulao dos infernaes abyſmos. Mas
que muito que fizeſſe couſas tað al-
fombroſas, ſe o Servo de Deos che-
gou a confeſar algumas vezes , que
elle era o primeiro , em cujo animo fa-
ziaõ as ſuas meſmas razoens hűa ſau .
dola , e ſuaviſſimaimpreſiao , quando
elle ainda eſtava eſcolhendo, e deli-
niando os diſcurſos. Quantas vezes
inſtado deftes vehementes , e piedo
fos affectos chegou a pedir a Sua Di
vina Mageftade que lhe concedeſſe a
cabar a vida prégando , para q nao lhe
rettaſſe de vida dem hum instante ,
em que elle deixaſſe de trabalhar pe-
·lo maior aproveitamento dos Fieis ?
Pois quem poderá deſcrever osimpe-
tos , e furores celeſtiaes , que o domi-
Davan , e tranſportavao no pulpito ?
Quem ?
74 Fazendo hum Sermaõ do Naf-
cimento de Chrifto em hum Moſtei-
ro de Religioſas , foi cao impetuoſa
a torrente de lagrimas, que a diluvios
lhe começárão a dimanar dos olhos
deſorte que lhe foi neceſſario ficar
parado por hum bom eſpaço de tem
po , nao havendo entretanto daquel-
la Igreja quem deixaſſe de acompan
nhallo , chorando muito enternecida
mente na ponderaçao das primeiras
finezas , que obrou por nós o Redem-
pror . Ette meſmo amoroſo acciden-
te era o que nos ſeus ultimos annos
mais lhe eſtorvava , e impedia a pro-
ſecuçao dos ſeus diſcurſos. = Em
hum dos Sermoens da Paixao do Se-
nhor , que o Veneravel Padre fazia
nas tardes das Domingas da Quareſ-
ma , quando fahia acompanhado de
muitas peſloas devotas a viſitar a Via-
ſacra, entrou elle a ponderar o gran ,
Tom . VII,
443
de amor , com que o Filho de Deos
expirou na Cruz: naõ ſómente ſe lhe
transformou o ſemblante, em que ſe
lhe obſervou hūa nova , e extraordi
naria formoſura , ſenao que tambem
ſe lhe mudou a voz em outra tað en
graçada , ſonora , e perſuaſiva , que
parecia eſtar convertido em hũa ſerea
celeſtial . = Prégando na Villa de Ca
bra , na Miſlao que diſlemos, que el .
le fez no anno de 1700, e tomando
por argumento exhortar o ſeu audi
torio á devoçao do Roſario de MARIA
Santiſſima , ponderou com hūa tað
intima , e nervola efficacia a profuſif
fima Clemencia da Senhora , que in
do a repetir aquellas palavras Eccle
ſiaſticas do Hymno Mariano .
Dó , Virgem Mãy dos peccados
dores , tende ,
E deſataitanto grilhao ,que os
prende ;
Se elevou de modo , que ſe ſuſpena
deo no ar , e o bom effeito defa de
precacao nao pode deixar de ſe attri
buir á benignidade , com que a Rai
nha dos Anjos havia de attender á fer
voroſiſlima Oraçao de feu Servo .
75 Tinha o noſio Veneravel Pa..
dre Poſladas hūa eſpecialiſlima devo .
çaõ com S. Filippe Neri , e' recomen
dou -lhe o EminentiſſimoCardealBif.
po de Cordova do Sermao do ſanto,
que havia de ſer prégado na Igreja da
ſua Congregaçao ; e epirando a dif.
correr Bos grandes extremos , com
que aquelle eſclarecido Taumathur .
go da Italia ſe abrazava nos incendios
do Amor Divino , de tal forte ſe dei
xou penetrar deſta conſideraçao , no
tempo em que eſtava po meio do Pa .
negyrico , que desfazendo- ſe em ter
nas , e amantes lagrimas , depois que
vio paſſado hum grande espaço , que
nem as podia comprimir , nem conti.
nuar , deſceo do pulpito , deixando
com eſta ſua ſuſpenfao muito mais
entranhado , em piedoſos affectos
aquelle populofo auditorio. Foi logo
buſcalloo Eminentiſlimo Cardeal Bif
po , e diſſimulando os bons effeitos,
Kkk ii
que
 444 FR . FRANCISCO DE
que nelle havia cauſado aquella piif-
fima acçao do Veneravel Religioſo ,
The fallou aſſim : Padre Fr. Francif-
co , eu encomendez-lhe a Vola Pater.
nidade hum Sermaõ de S. Filippe Ne
ri , Volta Paternidade nao me pregou
mais que a metade delle , e por iſo ve-
nho aqui executallo pelo prometrido
paraq me acabe de prégar para o'anno
a outra ametade. Ficáraõ aflim con
certados , e a ſeu tempo ſubio o Ser-
vo de Deos ao meſmo pulpito a reci-
tar o elogio do ſeu Santo , e entao ſe
notou outro incidente nao menos ad-
miravel ; e foi , que continuáraó as
lagrimas , e nao faltáraõ as vozes ,
com o que nao cauſou menor devoçao ,
e ternura em ſeus ouvintes . Haven-
do de prégar em outra occaſiao de
Santa Catharina de Sena , tanto ſe
deixou elevar na ponderaçao que fez
da troca do Coraçao
de Christo como
coraçao de hūa ſua Eſpoſa tao bene.
merita , que nao podia paſſar adiante,
nem pudéra , le nað le divertira , co •
mo divertio , em outras reflexoens.
76 Tellimunhou o Ceo por mui
mui-
tas vezes quanto lhe era bem acceita,
e agradavel a prégaçao de Fr. Fran-
ciſco , honrando-o com maravilhoſos
favores. Ao tempo , em que eſtava
prégando na Praça de S. Salvador , foi
viſto o Servo de Deos com hum raio
de luz , que banhando- lhe a tefta de
reſplandores, dalli lhe vinha deſcen-
do até a boca , moſtrando aſſim a ori .
gem donde nafciao os ſeus penſamen .
tos , e palavras. Em hum dos Ser.
moens da Paixaõ de Chrifto , foi viſto
por hüa peſſoa mui dada á contem-
plaçað das couſas do Ceo , rodeado ,
ao modo de humlol , de formoſos , e
clariſſimos reſplandores , e logo aſſiſti-
do de hūa luminoſa comitiva de Se-
rafins. Na Miſlao do anno de 1700,
em que temos fallado tantas vezes, foi
viſto naCidade de Lucena (por aquel.
la Serva de Deos , que ja diſlemos de-
zejava confeſſar -ſe com o Veneravel
Padre, e elle a deſpedio com muito
agrado , mandando -lhe que proſe,
POSSADAS, 20 de Settembro.
guiſſe debaixo da direcçao do ſeu Con
feflor ) delpedindo , ao tempo em
que acabou de tomar a bençao para
ir fazer hum Sermað , fulgentiſſimas,
e abrazadas luzes do ſemblante , eel .
coltado , e conduzido de hum ġrad
de'numero de Anjos : começando a
prégar creſcêrao a muito maior cum
mulo , coroando - lhe a cabeça huma
como hoftia mui ſcintillante , e agra
davel . Outras duas vezes , em que el.
le tornou a prégar , o tornou a ver
com ſemelhantes reflexos ; e em ou
tra , em que elle ordenou búa procif
fao de homens , e mulheres , em que
todos hiao cantando alternadamen
te o Roſario da Senhora , e havia de
diſcorrer até o Convento de Noito
Padre S. Franciſco , daquella terra,
vio - o a meſma peſſoa com aquella bri
lhante diviſa na cabeça . Vamos ago .
ra do pulpito para o Altar.
77 Deſde o primeiro dia , em que
o Servo de Deos miniſtrou o Santiſ
fimo, e lacruento Sacrificio da Ley
da Graça , começáraó a ſer tað peren
nes as ſuas lagrimas , ( que ſem duvi.
da nao deixavao de ſer daquellas a
que os Myſti cos dao o nome de infu
fas ) que parecia eſtar convertido em
duas fontes : ferviao ellas de muita
edificaçao a quem via a grande effica
cia com que elle chorava, e o Servo
de Deos as faacificava chorando -as
pelos mais pios , e Catholicos moti
vos, orapelos ſeus peccados , Ora pe
los alheios ; ja era o amor o que as
fazia diſtillar, ja o agradecimento , eja
outros reſpeitos mui proprios , e mui
dignos da ſua grande ſantidade. Mui
tas vezes ( dizia elle ao ſeu Confeſſor)
me enterneço , e commovo de confide .
rar , que ba de fer tala Summa Bon
dade de Deus , que ha de deſcer a's
mãos de hum peccador tao abomina
vel como eu ſou . Variava de affectos;
mas eraõ ſempre as meſmas as ſuas la.
grimas , ſempre amantes , affluentes,
e impetuoſas ; e muitas vezes forao
viſtas de hūa peſſoa mui eſpiritual
ao modo de finas , e belliſſimas pe
rolas,
 FR . FRANCISCO DE POSSADAS , 20 de Settembro .
rolas , e de precioſas , e eſtimaveis
pedras ; e nao menos lhe revelou Deos
Noſſo Senhor ſerem ellas muito do
ſeu Divino beneplacito . A viſta dos
eſtranhos effeitos , com que o Vene-
Tavet Religioſo celebrava , e elle tra.
balhava ſummamente por encobrir ,
chegáraó a temer , nao poucas vezes ,
os que afliftiao , que alli ficaſle por
morto . Era o Veneravel Padre , como
ja difemos , devoto mui apaixonado
de S. Filippe Neri , e delle aprendeo
ſem duvida eſtes ſeus amoroſos , e narcha,
extraordinarios extremos .
79 Corria o anno do Senhor de
1710. , e celebrando o Servo de Deos
em dia de S. Franciſco Xavier , dia
em que elle , como ja diſſemos , ſere.
generára em Chriſto na fagrada fon-
te bautilmal , a memoria defte bene
ficio o şôs nas maiores confuſoens;
e tudo era dizer : Ob Senhor , e que
ingrato tenho fidoa tantos , e taõ gran-
de's favores! Eftes affe & os de humil · ' ao tempo de tomar a Sagrada Hoftia
dade , amor , e devoçaõ lhe pagou
ſempre o Ceocom repetidos, e avan
tajados favores. Diremos alguns.
= Sentio em certa occaſiao huns de-
ſejos tab intimos , e ardentes de ir ver
a Deos , ao tempo em que eſtava ce .
lebrando , que parecia que a alma ſe
queria apartar do corpo , e voar ao
feu centro ; mas ao tempo em que to-
mou a Sagrada Hoſtia nas mãos , lhe
mitigou o Senhor eſtas faudades , ma •
nifeſtando -ſe -lhe nella claramente ; e
foi eſta a primeira vez , em que elle
logrou hum tao alto favor. = Cele
brando em outro , dia te arrebatou em
hum amoroſo extaſı , e aqui lhe re .
velou o Senhor tao profundos, e ma-
ravilhoſos os arcanos , que diſle o Ser .
vo de Deos a ſeu Director , que ſim
havia alcançado muito , mas que era
impoſſivel poder explicallo ; e neſta
meſma occafixo foi viſto o ſeu Vene-
ravel roſto banhado de hũa cao pro-
fufa irradiaçao de reſplandores, que
menos parecia viador , do que hum
dos Sagrados Cortezaos de Empy-
reo . Diſſe o Servo de Deos ao ſeu
445
Confeſſor, que muitas vezes o leva
va , e elevava a contemplaçaõ a con
fiderar que para comer o Pao dos An
jos ſe achava entre os meſmos Sa
grados Paranymphos, que, ſegundo a
lua piedoſa imaginaçao , aſſiſtiao em
numero notavel ao Sacroſanto Sacri
ficio da Miſſa ; e nao faltou com ef.
feito alma devota' , que aſſim o pre
lenciafle , vendo as meſmas puriffi
mas larelligencias Angelicas fazer cor
te ao ſeu , e noflo Omnipotente Mo
78 Contemplando em outra occa.
fiaõ o miniſterio altiſſimo que eſtava
ſe achariao por
ſervindo , para o que
indignos , e com muita razao , os mer.
mos Seraphins , começou , á imita
çaõ do noflo Santo Ambroſio de Sena
a quem ſucedia o meſmomuito a miu .
do , a tremer -lhe o corpo com defu .
fado exceſſo , o que era mui ordina
rio no Servo de Deos, maiormente
nas mãos , chegando a parecer alguma
vez que até fazia tremer o Altar .
Preoccupado pois de hum tað ſummo
reſpeito , clamou ao Senhor , dizen
do -lhe com todo o coraçao : E como
Soffreis Vós , Deos , e Senhor meu , hum
tað indigno Miniftro no voſo Altar !
Porque me nao excluis , porque me nao
arrojais delle ? Senbora ( continuava
elle convertendo -ſe a Maria Santiſ
lima ) ſede Vós executora , lançai-me
deſte reſpectuoſiſſimo lugar para fóra;
pois bem ſabeis que nao fou eu digo
no de que volo Sacratiſimo Filho
deſça a hűas mãos tað ſacrilegas co
mo as minhas . Mas quando ſe cinba
por tað indigno , vio que a meſma
Senhora lhe entregaya ſeu adorado , e
adorabiliſſimo Filho , animando -o a
que o recebelle com palavras de mui
ta dignaçað , e mifericordia . = Pa
decendo em outro dia o importuno
combate de tentaçoens impuras , ao
tempo , em que offerecia ao Eterno
Pay leu Sacroſanto Filho , recorreo á
Virgen das Virgens , eſencio que eſta
Soberana Senhora lhe promettia , e
aflegu .
 446 FR . FRANCISCO DE
aſſegurava o ſeu patrocinio contra as
inſidias do tentador infernal. Emoc-
C - ſiao , em que padecia o Servo de
Deos graviſſimas deſconſolaçoens,vio
elle no Altar a Chriſto Senhor noſo ,
e a Sua Máy Santiſſima , que ſendo
deprecada por ſeu Amabiliffimo Filho
para conceder alguma graça a ſeu
amante Servo , condeſcendeo a Mãy
de miſericordia com eſta tao attendi
vel recommendaçao , deitando no
Caliz ,antes que o feliciſſimoCelebran-
te conſumiſle , tres gottas de leite can-
didiſſimo , e dizendo -lhe que o bebef-
ſe juntamente com o Sangue do ſeu
Jesus . Bebeo elle com effeito ; e fo-
rað taes as ſuavidades que ſentio , que
duas vezes ſe ſuſpendeo no ar , com
o roſto cheio de inexplicavel formo-
ſura , e reſplandor. Naofoieſta a uni-
ca vez , em que elle alcançou favor
tao eſtupendo , goſtando ſegundavez
das ineffaveis doçuras daquelle deli-
ciofiffimo , e ſagrado nedar .
80 o Veneravel P. algūas
Padeceo
vezes tao terriveis , temores que aquil-
lo meſmo, com que Deos queria real-
çar a gloria do ſeu merecimento, at-
tribuia elle a effeito da ſua culpa , e
miſeria ; por eſta conſideraçao le via
no meio de húa batalha de affe & os
mui encontrados : o amor o impellia
a buſcar o ſeu alivio no Altar ; eome
do , e a deſconfiança o fazia chegar
a elle contriſtado , e violento. Vio
húa alma devota que o Senhor lhe to
cava o coraçao , e foi no meſmo in-
ſtante a metamorfoſis, que eſte tóque
produzio no ſeu animo tað notavel ,
que começou a tremer fortemente , e
a desfazer- ſe em correntes de lagri-
mas . Manifeſtou -ſe - lhe finalmente o
Senhor quando tomou a Hoftia para
Commungar ,e vendo-ſe agora na per-
plexidade em que opunha o ſeu temor,
e o ſeu affe & o ,detinha- ſe igualmente
perturbado que reſpeitoſo : Oh Senhor
( clamava elle ) Vós fois o Innocentif-
Jino Cordeiro , e ainda aſſim confen-
tis que bum lobo tao deshumano , e
feroz , como cu fou ,vos tome nas mãos !
POSSADAS , 20 de Settembro.
Ob Senhor , e quanto he grande, e
aſombroſa a voja Bondade ! Animou
o entao o amoroſiſſimo Pay , e fora
tao admiraveis os effeitos , que logo
ſentio o Servo de Deos , que ficou im
movel , e extatico ſem uſo algum dos
ſentidos.
81 Outro ſemelhante deſamparo
experimentou o Servo de Deos , que
o teve por cinco dias ( que na lua
apprehenſao podiaõ equivaler a cinco
feculos ) na mais lugubre , e deſcon
lolada triſteza , que ſe pode imagi
nar : via - ſe ſem porte , e ſem luz ; e
ſe queria recordar- ſe de tantos favo
res , e fioezas, ou fazer alguma idéa
da Bondade Divina , ſuſpendia -ſe de
enleado em hum cảos tenebroſo de
ſeccuras, e confufoens: depois de an
dar lucando em hum mar tao turbu
lento , e tormentoſo de afflicçoens, e
eſcuridades , raiou finalmente na al
ma feliciſſima do Veneravel Padre a
bella ſerenidade, que elle tanto appe
tecia, ao tempo em que elle ſubio ao
Altar para dizer Miſſa: começáraó as
lagrimas a fazer o ſeu officio com igual
força , que doçura, e continuárað tao
diffuſas, e ioceflantes, que lhe foi ne
ceflario ficar parado por algum tem
po ; e achando que era hum impof
ſivel poder contellas, foi proſeguindo
o Sacrificio com hum trabalho extra 1
!
ordinario. Antes de proferir as tre
mendiſſimas palavras daConſagraçao
da Hoſtia , ſe lhe manifeſtou o Se .
nhor , fallando -lhe amoroſamente ; e
ao levantalla ſe ſentio tranſportado
tao fortemente das ſuaviflimas vio
lencias do amor , que ficou elevado
por algum tempo ſobre a terra , cou
ſa de hum palmo. Continuáraó eftes
dulciſſimos effeitos com tanta effica
cia , que lhe cuſtou fummamente aca.
bar a Miſia , vendo -ſe bem o diluvio
de celeſtiaes delicias, em que lheinun
dava o coraçao , nos muitos, e bellif
fimos reſplandores, que dimanavao
do teu veneravel lemblante. Emoi
to dias , em que ſe achou com mo
lettia , padeceo o grande Servo de
Deos
 FR . FRANCISCO DE POSSADAS, 20 de Settembro.
Deos hum martyrio ſummamente in-
conſolavel; porque ainda que ſem-
pre deſcia a Igreja , bem que com
muito incommodo, e ſentimento pa-
sa ouvir a Miſla do ſeu Prelado , 16
quatro vezes recebeo da ſua mao o
Divino , e unico objecto do ſeuamor,
4 e em húa dellas com aſſiſtencia da
Immaculada Rainha dos Anjos; e o
++ ver - ſe privado da quotidiana fruiçaõ
do Paõ do Ceo , o abyſmava , e ſub-
mergia nas maior es agonias , e def.
conſolaçoens.
-82 Tambem feachava doente em
outra occaſiao , e amanhecendo o ſay-
doſiſſimo , e lantiſſimo dia do Natal ,
fe fentio movido de huns ardentiſfi-
mos deſejos de celebrar : com effeito
aſlim o executou , ainda que com dif-
ficuldade mui grande , e mui fenſivel;
e offerecendo por prenda ao Menino
Deos o ſeu coraçao , notou certa pef-
doa de muito eſpirito , que ouvia a
Miſia do Vegeravel Padre , que a Eter-
na , e Humanada Sabedoria fazia hūa
aceitação do offerecimento de ſeu
bom Servo , mui grata , e carinhofa.
Em hum dia da glorioſa Reſurrei.
çao do Salvador, começou a encher-
ſe , logo ao reveſtir - ſe , detaes conſi-
deraçoens, affectos, e ternuras , re-
flectindo na gloria , e mageftade.com
que o Triunfador Divino fabira da le
pulcura naquelle incomparavel dia ,
que Elle fizera para ſi victoriolo da
morte , e do inferno ; que quando
chegou ao Altar hia ja feito hữa bra-
za de amor : osextraordinarios , eſo-
: brenaturaes impulſos, que ſentia na
alma , lhe fizeraõ fummamente difficil
aquelle Soberano Sacrificio , e depois
de haver conſagrado , teve hum rap-
to , que o levantou da terra por eſpa-
ço de hum Credo , baixando taõ def.
maiado , e perdido de cores , que deo
com todo o corpo em cheio , em ci-
ma do Altar : pouco tardou em tor-
nar logo a ſi , vendo - ſe pallar ao meſ-
mo tempo de extremo a extremo ;
porque apallidez, que diſſemos, ſe tro-
cou logo em hum encarnado , e gra ,
447
cioſiſſimo rubim , e todo elle ficou
tao reſplandecente , que parecia ha
ver- le transformado no meſmo Sol .
Acabada a Mifla, bem como Jacob ,
que ſe ſentio claudicante depois de
haver lutado com o Anjo do Senhor ,
ficou a principio o noſſo Veneravel
Padre muito proſtrado, e desfallecie
do ; mas com tanta preſteza , e agilia
dade em ,codas as ſuas acçoens , como
ſe nada tiveſle decorporeo . Celebran
do em hum dia da Aſcenſao admira
vel de Chriſto Senhor noſſo , ficou
tambem extatico , e ſuſpenſo no ar ,
por muito tempo , como ſe entaöqui
zeſſe ir acompanhando aos Ceos oleu,
e noſſo adorabiliſſimo Jesus.
83 Hūa das Feſtas mais opportunas
para o Servo de Deos foi ſempre a
da Palcoa do Eſpirito Santo , que co
mo conſolador que he, e como ſua .
viſſimo fogo , em que deſcera naquel
le ſagrado dia , achando tao bellasdif
poſicoens na innocente alma de ſeu
bom Servo , o enchia de incendios , e
de graças . Nos dias da Senhora foi
tambem mui favorecido o Servo de
Deos. Em hum dia do leu Santiſſimo
Naſcimento ſe dignou a Princeza dos
Anjos de manifeſtar - ſe -lhe recem
naſcida, e agradavelmente receber os
parabens , que elle com profundiffi.
ma humiliaçaõ lhe rendeo do fim in .
comprehenſivel para que o Altiſſimo
a creava. Entre todos os Myſterios
Marianos , era eſpecialmente devotiſ
fimo da Annunciaçao , e a Rainha dos
Anjos , como taó generoſa que he ,
The premiou eſte bom affecto com re
petidos, e maravilhoſos favores. No
dia da Purificaçao da Máy de Deos ,
vio búa peſſoa contemplativa que
elle recebia no Altar hum grande cu
mulo demimos , e finezas ; e em hum
dia do Roſario Santiflimo foi viſto
elevado no ar , e cobrar - ſe deſte ex
tafi com o roſto inundado de luzes,
que parece, que mais ſe accendia o com
as copioſas lagrimas , que elle derra
mava .
84 Tambem o prendou muito a
Bon
 448 FR . FRANCISCO DE POSSADAS , 26 de Settembro .
Bondade Divina das feſtividades dos
Sagrados Apoftolos, e de outros mui-
tos Santos . Conſta da ſua Hiftoria ,
haver ſido eſpecialiſado com eſtes ce-
leftiaes beneficios nos dias dos Prin-
cipes do Sagrado Collegio Apoſtoli-
co ; da Converſao do Inclyto Doutor
das gentes ; do primeiro diſcipulo do
Senhor o grande Santo André , de
quem era devotiſſimo o Servo de
Deos , por ſer o Tutelar da Igreja ,
em que elle recebeo a graça bautiſ-
mal ; do Evangeliſta S. Mattheus, e
de Santa Catharina Virgem , e Mar
cyr , de quem o Veneravel Padre era
devotiflimo por haver naſcido no ſeu
1
dia . No anno de 1710., em que Fr.
Franciſco contava 66. de idade, vio
hūa alma devota que eſte feliz Sacer .
dote fora aſſiſtido no Altar por aquel-
Ja heroica Amazona de Chriſto ;ele-
melhante aſſiſtencia lhe fizerao tam-
bem alguns dos Santos que acabamos
de expreſſar. Porém quanto eraõ mais
creſcidas , e vantajolas eſtas graças ,
tanto era mais humilde , e profunda
a luaanniquilaçao ,côfundindo -ſecom
o ſeu nada , e nao vendo outra cou .
ſa em ſi , mais do que imperfeiçoens,
e deſſerviços. Fundava -ſe o Santo
Religiofo na maxima do Apoſtolo ,
que manda que vejamosprimeiro aon-
de havemos de pôr o pé para naoca .
hirmos . Porém compadecidas finale
mente as piedoſiſſimas entranhas do
Todo Omnipotente do muito que
feu bom Servo padecia com eſtas eſ-
curiſſimas confuſoens, lhe deo o alivio
dellas , em dar -lhe hūa perfeita reſig-
naçao na ſua re &tiffima vontade , in-
ſinuando -lhe haver -lhe acceito os ſeus
trabalhos , e adverſidades em deſcon-
to , e ſatisfaçao dos ſeus defeitos; e
que ao diante ſeria muito do ſeu Di-
vino Beneplacito que elle lhe offe-
receſſe todas as ſuas penalidadas , e
e mais obras meritorias , por aquellas
almas , a cujo favor foſſe mais incli.
nado ; o que elle aſſim fez com efiei-
10 , applicando tudo pelos peccadores
que andavaô em mão eſtado, e pelas,
almas do Purgatorio , de cujos inex
plicaveis incendios tirou muitas del
las , que forao gozar de Deos mais
apreſadamente , mediante a caridade
do noſo Veneravel Padre , como al
fim foi revelado a búa peſloa muito
myſtica , e amiga de Deos .
85 Rezou ſempre com a maior
exacçao , e nimiedade o Officio Di
vioo , e ajuſtado quanto mais podia
com as pauſas , etemposda meſma re
za ; eem hūa palavra , em todas aquel
las ſuas acçoens , que diziao ordem
a exercer as funçoens de hum Mini
ſtro de Deos , não ſe notava nelle ou
tra couſa mais , que muitos , e gran
des motivos para a edificaçao , e pie
dade . Via -leitto na devoçao com que
rezava os muitos Evangelhos, que ſe
lhe pedirao , e de que diremos alguns.
Melhorára de búa graviſſima enfer
midade Dona Theodora Caphete ;
mas ſentia ſe ainda muito laſtimada de
algusreſquicios de fta qu :ixa,q lhecaue
ſavao hứa dor moleftiſſima de cabe .
ça , que nao a deixava de dia , e de
noite : Leo - lhe o Padre Poſadashum
Evangelho ſobre a parte offendida ,
e logo experimentou hũa melhoria
igualmente completa , que repenti.
na. Ja tinha a inortalha em caſa bum
filhinho de D. Joao de Figueiroz , cha
mado Martinho , e com admiraçao ,
e affombro dosMedicos , que naopa
deraõ deixar de confeſſar o milagre ,
o livrou das garrasdamorte , median
te hum Evangelho , que lhe deo o
Padre Poſiadas. O ſeguinte caſo tem
muita ſemelhança com outro que ſuc
cedeo a S. Pedro de Alcantara. Etta
va para morrer hum menino filho de
André Lucas , e de ſua mulher Anna
da Mata : intentou eſta buſcar o ſeu
recurſo na piedade do Servo de Deos,
e indo abuſcallo com o filhinho nos
braços , lhe morreo nelles , antes de
chegar ao Hoſpicio. Nao ſe deſalen
tou por iſlo a afflicta māy , antes rom
peocom muita fé neſtas palavras : Eu
levava o meu pequenino vivo ao Pa
dre Dolladas, pois.como me morreo ,
ba
 ER . FRANCISCO DE POSSADAS , 20 de Settembro ,
ha de mo tornar a pôr vivo. Entran-
do na Igreja , veio o Veneravel Pa
dre , e vendo tantos clamores , e la
grimas , diſſe para a deſconſolada ma-
trona : Calle- ſe que ſeu filho nao eſtá
morto . Leo - lhe encao hum Evange-
lho , e logo o menino começou a ref-
pirar , tornando ao ſeu movimento ,
e abrindo com muita viveza os olhos.
Vê como nao eſtá morto ? ( exclamou
aqui o Servo de Deos ) Naõdiga que
o trouxe morto , nem que o levarefuf-
citado , porque iſto devja fer algum
accidente.
86 Chorou -ſe-lhe hum pobre ho-
mem , cego , da ſua miſeria , e fazen-
do-lhe o compaſſivo , e Veneravel Pa.
.
dre o final da Cruz ſobre os olhos , no
meſmo ponto lhe refticubio a viſta. =
Soror Maria de Nevoa , e Saavedra ,
Freira Jeronyma , e delcendente da
Caſa dos Marquezes de Villar , tinha
hum dos pés muito negro , inchado ,
.e doloroſo , e eſtava para ſe lhe ſarjar
por voto dos profeflores daMedicina;
como porém eſta operaçao podia ſer
ſuccedida de algum ſiniſtro , e infauſto
accidente , pareceo mais acertado Sa-
cramentar a doente primeiro que tu-
do : quiz ella confellar-ſe , e confef-
ſou - le com o noſſo Fr. Franciſco , e
fazendo - lhe elle o ſinal da Cruz ſobre
a parte leſa, logo aquella afflicta Re-
ligioſa ſe achou immediatamente me-
Thorada. Padecia Catharina de Pi-
no hūa queixa de olhos detao má qua .
lidade , que fruſtrou muitas vezes gran
des , e generoſos remedios da medi
cina : pôs-lhe em búa occaſiao o Ser-
vo de Deos a maó ſobre a tefta , ene.
Ite contacto recuperou a afflicta mu-
lher perfeita viſta , e melhoria. Ha-
via padecido Luiz Gonçalves por tem-
po de hum anno o hediondo mal da
ſarna, e depois de frultradas muitas,
e boas diligencias , levou.o ſua máy
ao Servo de Deos . Cure - 0, ( reſpone
deo elle aquella mulher , tomando a
mao a ſeu filho ) Cure.o, que eſta far.
na a ninguem ſe ha depegar . ( Repli-
cou ella ) Havendo-lhe Vera Pater .
Tom . VII .
449
nidade tomado a maõ , he a melhor cu
ra que ſe pode deſejar. Com effeito
nað foi deluſa , nem malograda eſta
fé; porque alli meſmo ſe começárað
a ver logrados os bonsefieitos do me .
lhoramento daquelle moço . = Ma
noel dos Reys fora perſeguido por
tantos tempos dehũas crueis , e gran
des dores de eſtomago , que ja ſe te
mia , e nao ſem fundamentosmuira
cionaveis , que foſſem ellas o correio
da ſua morte: dizendo -lhe hūa ſua fi.
lha que foile ter com o Padre Pofla
das , pareceo - lhe bem o conſelho , e
foi logo buſcallo . Informado o noſſo
bom Religioſo do ſeu incômodo , pôs
lhe a maõ focrea parte doloroſa , pro
mettendo - lhe , que nao deixaria de
experimentar alivio : aſſim ſuccedeo ,
porque no outro dia acordou o
doente ſao , e ſalvo .
87 Era infatigavelo Servo de Deos
em procurar o alivio, e melhoria dos
pobres enfermos , aſſim no eſpiritual,
como no temporal: niſto empregava
de ordinario as tardes ,diſpondo, con
feſſando , e conlolando a huns , e a
outros com igual diligēcia, caridade :
a calma , a chuva , os temporaes nada
tinhao que fazer para o deſviar de
hūa occupaçao tao meritoria , e cao
fanta ; e nao faltou o Ceo em appro
var efte feu fervor com frequentes, e
manifeſtos prodigios . = Hia em cer
ca occaſiao para o Moſteiro de Santa
Martha de Cordova , de Freiras Je
ronymas , para confeſſar hūa doence,
e era iſto a tempo , em que cahia hua
groſſa , e porfiada chuva ; mas quan
do entrou naquella Communidade ,
obſervou - ſe que trazia o habito taš
enxuto , que nem ſequer lhe tocára
būa goita daquelle grande aguaceiro.
Sabia de outra vez a confeſſar D.
Juliana Cavalhero , que eſtava para
morrer , e no meio tempo que alli fez
de detença começou a chover rija .
mente ; fem embargo diſto , conclui- s
da a confiſlao, ſe deſpedio o Servode
Deos , ſem que o pudeſſem deter os
muitos rogos, que lhe fizeraó para
LII
que
 430 FR . FRANCISCO DE
que nao ſahiſſe em quanto a chuva nað
abrandava : partio dalli com efeito
acompanhado de Antonio de Almo-
guera, marido da moribunda : hia
ette aſombrado de ver que , nao ob-
ftante a muita agua , que entao cahia ,
nem ſequer hūa gotta lhe tocava . Che-
gáraõ a hum regato , que engroffado
agora com tao grande enxorrada, nao
podia ter atraveſſado fem ponte ; mas
iſto nao foi de impedimento para o
Veneravel Padre , que o paſſou com
ſumma facilidade , ficando com os ca-
patos tao enxutos, e limpos , como
ſe houvera paſado por cima de hűa
pedra . Chegando finalmente ao Hof-
picio , aquelle homem , que havia fica- .nao deo poucas vezes lugar a multi
do attonito á viſta de hūa tao clara , daõ , e tropel dos grandes concurſos,
e eſtupenda maravilha , nao pode dei-
xar de fazer eſta pergunta ao Servo
de Deos : Padre como nao molhou
Voſſa Paternidade o habito , nem o
calçado , havendo -ſe recolhido com
tanta chuva , e paſſando hum regato
tao creſcido , e invadeavel ? Filho,
( reſpondeo Fr. Franciſco ) vay para
tua caſa tratar de tua mulher , e nað
te importa outra couſa. Deſtes caſos
The ſucederaõ muitos . Demos fim com
o ſeguinte, que tambem nos dará prin-
cipio para diſcorrer ſobre aſua Evan
gelica humildade.
88 Quando fez a ſua primeira Mil-
ſao de Cordova , para concordar ,co-
mo tao zelozo Pregador que era ,
a doutrina comoexemplo , chamava
para a ſua meſa hum cortador do a-
çougue , eſtimando com eſta honra
hum homem , que nao tem eſtimaçao
na Republica : Tardou hum dia , em
que eſtava chovendo fortiſſimamente ,
e para maior prova do ſeu proprio deſ-
prezo ſahio a buſcallo o Veneravel
Religioſo. Coſtumava eſte na trazer,
como agora nao trazia , a cabeça cu
berta , mas o ſeu hoſpede ſim ; com
tudo nao era baſtante eſta diftirença
para que o cortador nao vieſle todo
alagado em agua defde o bico do pé,
até o alto da cabeça ; quando o Pa-
dre Poſſadas, pelo contrario ,vipharef-
POSSADAS, 20 de Settembro .
guardado, e izento daquelle deſco
medido chuveiro , que nem húa pin
ga de agua lhe cahio em cima . Ame :
moria deſte caſo , que ſoi viito , e ad.
mirado por muitas peſſoas, fez-ſe au
thentica, e para no noflo Convento
de S. Paulo de Cordova. Continue.
mos agora , vendo à luz de outros
muitos factos quanto era humilde o .
noſlo Veneravel Padre Fr. Franciſco
de Poſſadas.
89 Quando pregava de noite , ao
deſcer do pulpito , se deita va porter
ra , a buſcar , e beijar os pés de feus
ouvintes , tendo ſempre a cautéla de
occultar eſta ſua humiliaçao , a que
que acudiao a ouvillo. Recuſando em
certa occaſiao osFrades do Conven
to dos Santos Martyres de Cordova
eleger por ſeu Prelado hum Religio .
so de boa opiniao ; querendo juſtifi
car eſta lua eſcura , diziao que tanto
nao era o 'leu animo fugir do maior
rigor da obſervancia, que elegiao por
ſeu Superior ao Padre Pofadas :quan
do eſte ſoube o que paſſava , tomou a
penna , cheio de ſuito , e confuſao ,
e eſcreveo hūa carta ao Provincial ,
em que ſe tratava com a maior indige
pidade , e deſeſtimaçao : exageraçoēs,
que eraõ nelle tao ordinarias , como
ſinceras, naſcendo- lhe, como diz Caf
ſiano , de hum legitimo temor de Deos
esta intenſa dor das ſuas imaginadas
culpas : movia , e perſuadia ſumma
mente com a força das ſuas razoens ;
e agora com effeito ſe lhe aceitou a
renuncia . A eſte propoſito coſtuma
va elle dizer algumas vezes : Antes
quero ſer carniceiro, que Prior ; por
que eu nao fou para iſo. Teveem hum
Capitulo muitos votospara Provin
cial: e apenas o ſoube , ficou penetra
do de hum inconſolavel ſentimento ,
de que derao hum fideliſſimo teſtimu
nho as ſuas muitas , e inceſſantes la
grimas. Correo fama de que ElRey
Catholico o havia eleito por ſeu Con
feſſor , e nao ſe pode explicar qual
font
1
 FR . FRANCISCO DE POSSADAS, 20
foſſe neſte caſo o ſeu enleio , e a ſua
triſteza : via que a obediencia podia
obrigallo a que nao dimittifle eſteem-
prego , e refpondia : Aſim he , que
1.
me pódem obrigar a obedecer ; mas
neſe caſo bom remedio : fe ElRey
não fizer quanto eu lhe aconſelhar,
1
deprela tornarei para a cella. De
pois conſou que com effeito fora cer-
fa a eleiçao ; masmudando Carlos II .
de parecer, mandou recolher o pro-
prio , que ja hia no caminho de Cor.
dova . Pouco tardou que a ſua heroi-
ca humildade nað foſſe accommetti:
da de outra nova , e nao menor bate .
ria , chegando -lhe a viſo de eſtar apre .
fécado no Biſpado de Alguer.Deixou-
o eſte expreſſo tao eſmorecido, etao
cortado, que paſſou dalli com a car-
ta na mao a deſaffogar a ſua pena com
o ſeu Confeſſor. Padre, ( dizia o ma-
goado , e humildiſſimo Religioſo )
Padre , que vem a ſer ifto? Que vem
a fer ? Depois de ſuſtentar o pezo de
húa batalha tao terrivel de temores,
e deſconſolaçoens , entrou a conſuls
tar , e buſcar a ſoluçao das ſuas duvi.
das do Oraculo , e priocipio de todos jamais pode tirar.The da boca outra
os acertos , pedindo a Sua Divina Ma-
geftade o livraſſe daquella Prelazia ,
e muito principalmente ſe havia de
commetter hűa leviffima offenſa con . '
tra a Bondade Divina . Tirou - o o Se-
phor deſta penofiſſima prolixidade ,
como elle aſſim o eſcreveo ao feu Con
feffor , hum dia , em que estava die '
zendo Miſſa , revelando -se- lhe alli : das por mais altas dilpoſiçoens,
com voz intelligivel, que eſtiveſſe de
bom animo , porque livraria infalli-
velmente daquella dignidade. se
90 : Multiplicava -lhe Deos noſlo
Senhor eſtes combates para lhe accu-
mular ao meſmo paflo as victorias; por
que ainda nao foi eſte o ultimo aſfal-
to , que ſe deo á fua invencivel humil-
dade. Foi apreſentado outra vez pelodova D. Fr. Pedro de Salazar, e logo
meſmo Soberano , que tinha mui vivo
na memoria ' o fólido , e alto mere
cimento do Servo de Deos , no Biſpa.
do de Cadiz : Hia fahindo da porta
do Convento para fóra , quando felhelhe delle os parabens : fendo promo,
Tom . VII .
de Settembro 451
deitou aos pés hum homem , pondo
lhe nas maosa carta de ElRey : acei .
tou -a elle , e ſem abrilla , foi logodal
li levalla ao Prior , para que viſſe o que
continha: Padre , ( lhe reſpondeo o
Prelado ) iſto be a Mitra de Cadiz ;
que ElRey preſenta a Voſa Paterni
dade. Comojacinha promeifa decima
de haver de livrar do pezo das Mi
tras , nao fentio agora algum defalo
cego , e aos parabens , que lhe dava
o Prior , reſpondeo com leaccuſar de
milindignidades,e imperfeiçoēs, todas
incriveis , e ſó nað incriveis ao Servo
de Deos , por aquelle caó abatido con
ceito , que fazia de todas as ſuas cou .
las . Deixou ficar a carta , e foi -le di
reito ao Confeſſionario , aonde fazia
tantos, e tað conſideraveis ſerviços
a Deos. Apertavao com elle os Reli
gioſos para que admittiſfe ; porém el
le eſtava mais inconcuſſo no teu pro
pofito do que hūa rocha maritima aos
embates das ondas.Empenhou -ſe tam
bem o Eminentiſſimo Biſpo de Cordo
va D. Fr. Pedro de Salazar em incli .
nallo á acceitaçao daquella Igreja ; mas
reſpoſta , que nao fofleelta : Eminen
tiſſimo Senhor, Vofa Eminencia fim
me perſuade, mas naome move . Ven .
do - o tao inteiro em fuftentar a ſua fan .
ta deliberação , quizerao -ſe valer da
authoridade ſuperior do Provincial ;
mas como todas as diligencias huma
nas ſe perdem , quando faoencontra
por
muitas vezes que o proprio , que hia
em buſca daquelle Prelado, tentou dar
com elle , deſatinou deforte os ca
minhos , que naolbe pode ſer poſſivel
achallo .
: 91 Ainda temos de over conten .
der , para o vermostriumphar. Mor
reo o referido Cardeal Biſpo de Cor
foi augurado para ſubir a eſta Cadei
ra , Fr. Franciſco de Polladas. Como
eſta voz foi ganhando muito terreno,
houve muito quem lhe eſcreveſle , e
Lil ii vido
 452 FR . FRANCISCO DE POSSADAS , 20 de Settembro
vido finalmente a Paftor daquella Die .
ceſe hum benemerito Religioſo da San-
tiſſima Trindade foi inexplicavel
o alvoroço do Servo de Deos , e en
tao tudo era dizer : Eſcapamos , es
capamos. Taö remontado foi o ſeu
merecimento , que até chegou a ter
grande ſéquito hum boato , que cor .
reo, de que o Veneravel Padreche.
garia a occupar na terra a ſua maior
exaltaçao, aſcendendo á Cadeira do
Supremo Paftor de Roma ; mas para
o Servo de Deos, que eſtava tao bem
achado com as ſuas anniquilaçoēs, que
maior gloria que carecer defta glo-
ria , ou que mais honra que rejeitar
a dignidade, e nao lhe faltar o mere-
cimento . Aſlim o ſentio elle meſmo,
quando a hum Religioſo, quelheioſta-
va que acceicaffe hũa Mitra, e que
nao privaſle deſe luſtre ao Convento
de Scala Cæli , de que era filho ; deo
eſta reſpoſta muitas vezes como fua:
Meu Padre , ocerto be que as Mitras
daö muito maior credito poſtas aos
pés, do quefobre acabeça.
: 92 Nao Te humilhava o Venera .
vel Padre renunciando as exaltaçmēs
Prelaricias , que tanto o procuravao,
fenao ainda com outrasmuitas acçoēs,
em que deo a conhecer quanto era ver
dadeira, e quato profunda a ſua humil.
dade. Franciſca de Poſiadas , ſua pri-
ma , era muito pobrezinha, e obrigou.
1 a a ſua grande neceſſidade a ſervir em
hum Moſteiro de Religioſas,
e levan-
do para elle em certa occaſiao hữa
teiga de hervas , quando chegou á
rua de Ciſter ſe achou aſſaz afflicta ,
e fatigada com aquelle pezo , e pollo
em terra para tornar a tomallo com
algum alento : eis- que vê junto a ſi
a ſeu Veneravel primo , que ſem lhe
dizer palavra tomou a giga nas mãos ,
e clara , e deſcubertamente a levou
elle meſmo para onde ella bia , e en
tregando - a alli,immediatamente ſe foi
embora . = Hia pela rua do Fonſeca
hum moço conduzindo hum jumen-
to carregado de eſterco , fuccedeo ca
hir eſte em terra , e erao inſopporta,
veis as couſas que dizia o impaciente
conductor. Vinha vindo pela meſma
parte o Veneravel Padre , e elle meſ .
mo lhe ajudou a compôr outra vez a
carga , e ajudando a deitar o eſterco
noceirao , difle áquelle mancebo com
muita brandura , e affabilidade eftas
palavras: Ora meu filho, tem pacien
cia, naõ praguejes mais , que com
iſo nao remedeas nada , e offendes
mais a Deos . A eſte tempo chegáraó
muitas peſſoas pertendendo apartallo
daquelle baixiſſimo trabalho , dizen
do qne ellas o fariao ; mas nao quiz
vir nikto o bom Religioſo, a quem Deos
noſlo Senhor remunerou eite grande
acto de humildade com hum favor pro- ,
digiofo, e foi : que havendo trabalha
do tanto em hūa obra tao deſprezi
vel , e ſervil,ſahio della ſem manchar,
nem ainda levemente , as mãos , ou o
habito . Eſtando para morrer , e
pondo -ſe de joelhos diante da cama
hum Medico , que nelle tinha muita
fé , lhe tomou a mao para lha beijar :
beijou - a ; mas querendo polla fobre
os olhos , fugio muito depreſſa com
ella o Servo de Deos, moſtrando, que
ſe havia conſentido na primeira reve .
rencia como Sacerdote, nao podia
a ſua grande humildade contencir na
ſegunda, que ſe lhe pertendia fazer
como a ſanto. Muitas vezes fora o per
tendidos alguns retratos do Servode
Deos , mas quanto eraõ mais empe
nhadas as diligencias dos pertenden
tes , e pintores para fahirem com eſte
fim, canto era mais induſtrioſa a hu
mildade do Servo de Deos , para lhes
fruſtrar , e deſarmar os meios do teu
trabalho : finalmente nunca ſe pode
alcançar em vida hūa prenda tao deſea
jada , o que ſó ſe facilitou depois da
ſua morte , que foi quando ſe tiráraó
algumas copias , que ſe eſpalháraõ por
varias partes , e forao iuftrumentos ,
porque obrou o Senhor muitos mila
gres, de que faremos mençao em ſeu
lugar.
93 Hum Varao eminente em hu.
mildade ja ſe vê quanto bavia de ſer
terris
 FR . FRANCISCO DE POSSADAS, 20 de Settembro.
terrivel ao pay da ſoberba. Ja diſſe-
mos alguma couſa a eſte propoſito ,
agora diremos ainda mais . Por ſeus
inexcrutaveis juizos permitio Deos
que foſlem vexados diabolicamente
os corpos de algumas das filhas eſpiri-
tuaes do Veneravel Padre ; e defte
meſmo incidente ſe veio tambem aco .
nhecer o grande imperio que deo o
meſmo Senhor ao ſeu bom Servo , fo-
bre os eſpiritos immundos . Quando
era maior o eſtrepito , e a bulha , que
elles faziaõ na Igreja , baſtava hum ecco
de Fr. Franciſco para os atterrar , e
emmudecer : mandava retirallos a hum
canto do Templo , aonde os tinha
como prezos ,e domados, e era promp-
ta , e inteiramente obedecido : algu-
mas vezesqueriaõ bramar , como vio-
lentados delta imperioſa ſujeiçao : vi-
rava -ſe entao para elles o inſigne Re-
ligioſo com hum mageftoſo , e cir-
cunſpecto ſemblante , e pondo hum
dedo na boca , os deixava proſtrados,
e ſilenciofos. Algumas vezes , em que
Deos , para major gloria de ſeu Mini-
ſtro, queria exercitar a ſua paciencia ,
lhe dava permiſſao para romperem em
ameaços, e injurias contra elle , ao
modo que ſe haviao com S. Bernar-
do ; mas quanto entao ſe moſtravao
mais furioſos , e implacaveis , tanto
era maior a paciencia , e tranquilidade
de Fr. Franciſco . Valeo - ſe defte ar
1 did o maldito , affrontando , e amea .
çando com ſummas atrocidades ao
Servo de Deos , fazendo todas eſtas
bravuras diante de hūa ſua dirigida ,
a quem pertendia aparcar da ſua direç-
çao , de invejoſo do ſeu aproveitamen-
to eſpiritual: chegou ella mui affli&ta
aos pés do ſeu Veneravel Director ;
mas eſte contraminou de tal forte a
malicia do tentador, que deixou for :
tificada aquella alma , para naõ ſó re-
fiſtir , lenaõ zombar ; como zomba.
va , das maiores furias, e ralhos de
hum tað feroz , e cruel inimigo.
94. He imponderavel a ſujeiçao ,
1 que lhe proteſtavað, e o muito queo
temiao : por muito que quizeſlem re ,
453
pugnar , nao podiaõ deixar de obe:
decer ; e muitas vezes ſe vio , que
quando elle chamava alguma poffefla,
virem -na logo trazendo de joelhos a
ſeus pés : rendidos, e ſubjugados da
ſua voz , as deixavao livres , para po
derem fazer as ſuas Confilſoens , e
Communhoens com fructo , elocego.
Acabando em húa occaſiao hūa deitas
mulheres de Commuogar, tornou lo
go o inimigo a poſluilla, e levando as
mãos á boca, como fazendo forçapa
ra tirar a ſagrada Fórme ; acudio ou
tra mulher muito afflida a dar parte
ao Servo de Deos : Calle - fe ,( reſpon
deo - lhe o Veneravel Padre ) nað lhe
ouçaõ dizer tal ; havia elle de ter
eje atrevimento ! Iudo iſſo fao ma
caquices. Caſtigado com eſte deſpre
20 o inimigo , deixou immediatamen
te a energumena,para que pudeſſe dara
ſe ao ſeu recolhimento interior. =
Houve em Cordova húa mulher prine
cipal , a quem vexava algumas vezes o
mảo eſpirito , fazendo- a ſahir de fua
caſa , e andar pelas ruas da Cidade ;
mas quando ella neſtas occaſioers ſe
encontrava com o Veneravel Padre ,
punha preceito ao maldito adverſario ,
que logo logo a tornaſſe a reflituir á
ſua babicaçao , e era no meſmo pon
to obedecido ſem que houveſſe a me
por replica , ou demora. Até che
gou a atropellar o ſoberbiſſimo orgu
Jho deſteseſpiritos rebeldes , mandag :
do a ſuas filhas eſpirituaes , que foſſem
ellas meſmas as que os mandaſſem :
Mandavao nos , e ſendo Leoens cao
ferozes , ſe retiravao como fracas yle
impoflantes ſavandijas. = Hūa pobre
mulher foi mui atormentada deſta ve .
xaçao : tocou -a Fr. Franciſco com a
ſua mao , e immediatamente ficouli .
berta . = Achou - ſe Jozé Fernandes
Calero atormentado de hum deſtes
infernaes hoſpedes, e tað furioſo ,que
nao baſtavao muitos homens a ſuffel .
lo : levarao -no com grapde cuſto ao
Padre PofTadas ; mas ao querer en
trar na Igreja , foi lem comparaçao
muito maior o eſtrondo , e reſiſtencia,
que
454 FR . FRANCISCO DE
que fez o inimigo . Chegou finalmen-
te o bom Religioſo , e baſtou 16 elta
villa para fazer calmar em bum inftan-
te todo aquelle extraordinario morim :
começou o demonio a tremer , como
era mui ordinario nellas occafioens ,
e querendo agora retroceder como
de medo , que o Veneravel Padre nao
o tocaſſe , ficou quieto , e immovel
como hứa pedra , com eſta palavra
unica , que Fr. Franciſco proferio :
Deo gratias: pôs-lhe entao as mãos ,
molhou a extremidade do dedo na
ſua meſma faliva , para lhe fazer , co .
mo fez , o ſanto final da Cruz ſobre
a teſta , e applicando - lhe ultimamen-
te o eſcapulario , o deſpedio , dizen .
do - lhe: Vá com Deos , que ja eſtá
bom . Entao poſto de joelhos aquelle
homem beijou a mao a ſeu bem feitor,
levantando -ſe dos ſeus pés ſem ſaber
o que havia paſſado por elle, e dalli
em diante nunca mais foi accommei,
tido de hūa oppreſſao tao dura , e vio .
lenta .
: 95
95 Chamou Deos noſſo Senhor
com os ſeus auxilios a hűa pobre mu.
lher de vida muito perdida , e relaxa-
da . Lutava com eftas fantas inſpira-
çoens ; mas nao podia acabar de to-
mar aquella reſoluçao , que lhe era
faz neceffaria ': initavao com ella os
Confeflores, e outras peſſoas timora ,
tas , e deſejoſas do ſeu melhoramen-
to ; e ainda que tudo iſto lá nao dej .
xava de lhe fazer ecco na conſcien
cia , quando, havia de pôr mais
empenho em executar , e adiantar a
ſua vocaçao , cada vez ſe achava mais
fria , e atrazada : por a caſo lhe no
meou hūa ſua parenta o Padre Poffas
das , e ouvindo eſte nome , nao po ,
de deixar de ſentir būa efficaz , e dul
ciſſima emoção , e muito mais quan-
do preſentio que lhe dizia o Senhor :
Eſcolhe a Fr. Franciſco , que eſſe he
o meu beneplacito. Recorreo com ef
feito a elle a pobre mulher , e debai.
xo da ſua direcçao começou a dar os
primeiros paſſos da ſua melhora . Ja
le vê quanto havia de ſentir o infer-
POSSADAS , 20 de Settembro.
no eſta mudança: começou a fazerhữa
guerra tao viva aquella triſte , que lhe
naõ dava inſtante de focego : asten
tacoens contra a caſtidade , que lhe
davao a maior pena , erao tao fortes ,
comoinceſſaptes: por iſto buſcou mui
tas vezes ao Veneravel Padre meia
delcopfiada de que eſtava ſubmergi.
da em hum ſummo delamparo de
Deos ; e elle acontolava com razcens
muito ſuaves ,apimando a a que pa
deceſſe o duriſimo combate de ten
taçoens , e amarguras , que pelo tem
poadiante havia deluftentar , e preoc
cupando -a para que nunca deixalle de
lhe dar inteira , e mjuda conta de tu
do o que lhe acontecefle. Cinco an
nos durou eſta guerra tað penoſa , até 1
que chegou aquella mulher hun dia
aos pés do Veneravel Padre com tan
ta deſconſolaçaõ , e desfallecimento ,
que o vella , 'era ver todas as laſtimas
juntas . Commoveo je de hum tal ef
pectaculo o Servo de Deos , e fez por
aquella ſua dirigida hūa Oraçað tao
inſtante , e fervorofa , que ella meſ .
ma vio ir correndo , e precipitan
do-se mui envergonhados, e confu
fos nos abyſmos infergaes, aquelles
immundos eſpiritos , que tanto a ha
viao perfeguido , e nunca mais ror
naram a perſeguir , deixando- a de
ſembaraçada para proſeguir , como
proſeguio , hūa vida mui penitente ,
e ſanta.
96 Finalmente deixando outros
muitos acontecimentos defta qualida
de , remataremos com hum , com que
nao ſó ſe comprova o imperio, que o
Senhor lhe conferio ſobre os demo.
nios , tenao tambem o conhecimento
que lhe dava das ſuas más obras . Eſta
va o Servo de Deos á porta da Igre
ja do ſeu Convento , quando vio paf
ſar húa pobre mulher maleficiada : fez
o maldito quanto pode por encobric
a ſua maldade aos olhos do Venerad
vel Religioſo ; mas Sua Divina Ma
geftade o illuſtrou de modo , que vio
com toda a perſpicacia o miſeravel
eſtado , a que as más artes de cao cruel
ini.
 FR . FRANCISCO DE POSSADAS, 20 de Settembro.
inimigo haviaõ reduzidoaquella crea-
tura ; chamou -a a li , e difle-lhe com
moftras de muita compaixao : Abpo-
brezinha , e tal vas! Dico iſto , pôs-
lhe a mao ſobre a cabeça , e com eſta
acçao deitou ella pela boca dous bi-
chinhos , e logo le ſentio com perfei-
to alivio, e ſaude . Nettes conheci.
mentos foi admiravel o Varao de Deos.
Ja ſobre a penetraçao , que elle tinha
dos interiores , e conſciencias, difle-
2.
mos alguma couſa , quando o ponde-
ramos no Confeſſionario ; agora ve-
remos ainda outros effeitos deſta ſua
penetraçao , e do admiravel dom de
profecia,com que o Senhor o enrique.
ceo. A muitas peſſoas , que queriao
entrar na Religiaó ,declarou elle mui-
tas vezes qual ſeria aquella , em que
mais haviao de aprgveitar , ainda que
aliàs ſe ſentiſſem mais inclinados a al
guma dellas : aſſim melmo deſenga-
nava outras , a quem parecia que ti.
nhao a meſma vocaçao , nao a tendo
realmente , e com eſta luz , que o Ceo
lhe communicava ,lhe fez grandes ter-
viços .
97 Vamos agora corroborando
eſta verdade com alguns exemplos
mui ſemelhantes a outros , que acon-
cecerao na meſma materia a S. Ber-
nardo . = D. Maria de Prado tinha ar •
dentiſfimos delejos de ſer Religioſa ;
mas havia dous inconvenientes de per-
meio , qualquer delles'mui impediti-
porque nem
vo; tinha dote , nem aquel
la dilpoliçaõ robufta , que lhe era pre-
ciſa para ſervir na Religiao . Conſul
tou o Servo de Deos , e eſtea confo .
lou com a promeſſa de que teria o do-
te , e a ſaude neceſaria para ſer ad-
mittida: diſſe o Veneravel Padre , e
diſſe a verdade ; porque foi aceita no
noflo Moſteiro de Santa Maria da
Graça de Cordova , aonde viveo mui.
tos annos ſem a menor repetiçao da-
quella ſua inveterada queixa. Com
2
å occaſiaõ de hum Sermaó , que pré-
gou o Veneravel Padre no Moſteiro
da Immaculada Conceiçaõ de Cor.
dova ,procurou fallar-lhe Dona Catha ,
455
rina Peſquero ; que cntað era Pupil
la naquella Caſa ; e como vivia em
fumma deſconſolaçaõ pela falta que
tinha de dote para ſer Profeſia ditie a
Fr. Franciſco , que muito deſejava
faber ſe acaſonaõ era vontade de Deos
que ella foffe Religioſa. Nao duvide
que fim ( reſpondeo o Padre Poſiadas.
Padre ( tornou ella ) nao duvido que
chegada a hora da ininha morte me
nað faltem com eſſa conſolaçao . Pois 1
nað o entenda aſſim ; ( replicou o Pa .
dre ) porque ha de profeſſar no Coro
com toda a ſolemnidade , e ha de via
ver muitos annos profeſacomo eu ſou ;
mas o myſterio, queda na tardança ,
nao o ſaberá ſenaõ
para o dia do juizo .
Diffe o bom Religioſo , e aſſim o ve
sificou depois o teropo. Sebaſtiað
de Villalbos , ſendo ainda menino,
era tao craveſſo de natural , que foi
mandallo fua máy , D. Fran
neceſſario
ciſca de Torres , para a eſcola , don
de fempre andava fugindo , prezo
com grilhoens : indo conduzido deſte
modo por bum criado, fuccedeo paſ.
far o Servo de Deos ; chegou - ſe a
elle , tirou - lhe as prizoens , e diſſe
lhe com muito agrado : Vai para a
Eſcola , e nao tornes mais a fugir ,
que has de fer Religiofo aonde defe.
jas. Tiverao eſtas palavras a virtude
de lhe fazer mudar de natural : nunca
mais fugio , e depois entrou na Reli
giao de noſſa Senhora das Mercés , a
que logo deſde mui pequen o ſe come
çou a moſtrar muito inclinado.
98 Joao de Villa Real ſentia hūa
vehementiſſima propenſao para ſer
Religioſo de certa Ordem , e hoa nað
menor repugnancia para abraçarqual .
quer outro Sagrado Inſtituro. Sentia
iſto ſua máy , nao por lhe embaraçar
( que nao queria ) a vocaçao , que elle
tinha de dedicar - ſe a Deos , ſenao por
certo inconveniente que ſe dava'de
permeio . Foi buſcar Fr. Franciſco
para que lhe encomendaſle a Deos
eſte negocio , e diſſe -lhe o Venera .
vel Padre que tornaſſe para ſua caſa ,
vel Padre
e deſcanſalle , que cudo viria a ſuce.
der
 -456 FR . FRANCISCO DE POSSADAS, 20 de Settembro .
der como tanto deſejava: aſſim foi,
porque nelle comenos mudou aquel .
le moço de parecer , e quando vio ſua
máy , elle meſmo foi o que lhe diſle ,
ý diſpuzelle delle og quizeſſe; porque
eſtavapromto para entrar em qualquer
Comunidade que foſle ; e entrou com
efeito na TerceiraOrdem do noſo Se-
rafico Padre S. Franciſco . = Vivia
em hum Motteiro de Religioſas da Ci-
dade de Cordova hūa mulher nobremento com ſua tia Izabel Fernandes,
fecular , e confeſlou - ſe eſta com o Ser-
vo de Deos , com a occaſiaõ de fe
achar prégando de Millao naquella
Caſa: perguntou lhe o VeneravelMif-
fionario le tinha dote para ſer Reli :
gioſa, reſpondeo que lim ; mas que
1
nao tinha tal vocacao , antes ſentia
hūa repugnancia aquelle eltado . Não
ſe canje , ( diſle o Veneravel Padre )
que ha de fer Freira . Tornou ella a
recufar ; é eſtiverao neſta contenda
algum tanto : ella reimando que tal
nao havia de ſer, e elle que fim havia :
entao a tratou o Veneravel Padre com
alguma ſecura , e ſe deſpedio dizen-
do - lhe que , antes que elle acabaſſe
aquella Miſlao , ella meſma o havia de
buſcar para ſer Religioſa , e para lhe
pedir que fallafle niſſo. N : 7 padeceo
engano neſta ſua predicçao o Venera-
vel Padre , porque logo no outro dia
o buſcou com outra intençaõ muito
differente da que antes havia moſtra .
do , rogando ao bom Religioſo que
foſſe , como foi , medianeiro da fua
reſoluçao , e com effeito veſtio o ba-
bito , é ficou fervindo a Deos naquel ,
le Mosteiro . = Dona Catharina Efpa.
da , e Selaſco , teve grande vontade
de ſer Religioſa ; e porque nað tinha
dore , aprendeo muſica , e orgao , pa-
ra que esta prenda lhe facilitaſſeoin •
grello na Clauſura : queriac - na em
duas partes, mas iſto nao obſtantelhe
diſle o Servo de Deos : Defengane-
ſe que nao ha de fer Freira ; iſto pa-
recia impoſſivel ; mas nao ſomenteſe
deſvanecera as eſperanças , que tinha
de ſer aceita naquellas duas partes ,
ſepao em outras , que tambem ſe lhe
fizeraõ faceis, mas tem algum effeito ,
Ilto meſmo , e por termos identicos
ſuccedeo a Dona Roſa Peres .
99 Mattheus de Cabrera , ſobri
nho do noſſo Veneravel Padre, queria
ſer Monge de S. Bazilio do Conveg
to de Tardon : pareceo -lhe que lhe
ſeria mui conveniente apreſentar ao
Prelado daquella Caſa hūa carta de
feu tio ; e communicando eſte penſa
forao ambos ao Hoſpicio a buſcallo ;
mas antes que algum delles abriſfe a
2
boca , anticipou -ſe a todos o Servo
1
de Deos , dizendo : Nað he para Re
ligioſo. Bem ficáraõ daqui inferindo,
que eſtas palavras nao podiaõ ſer ſe
nao de quem deſcortinava os interio
res ; mas parecendo-lhea reſpoſta hum
!
tanto ſecca, ſe qufixáraõ delle , como
de quem ſe eſcufava. Por mim ( ref
pondeo elle ) nao ſeráa duvida ;mas
naõ ha de ſer Religiofo. Entregou hũa
carta aquelle moço : pôs -feeſte a ça
minho , mas delle ſe tornou para traz
muito mudado da ſua primeira refolu
caô , de que ſe eſqueceo tanto , co
mo ſe nunca em tal houveſſe cuidado .
Dos ſeguintes ſucceflos nao ſe argu
menta menos a luz profetica , de que
foi dotado o Servo de Deos para ver,
e antever futuros.
100 Achando -ſe em caſa de D. Frá .
ciſco de Argote com outro Religio .
ſo da Sagrada Ordem da Santiſſima
Trindade , fallou -ſe danovidade,que
entao corria ,da melhoria de Carlos II .,
e de haver ſabido a dar graças a Nor
ſa Senhora de Atocha ; acudio o Ser
vo de Deos , dizendo : Iſo he nadar ,
nadar , e'á borda da agua affogar :vi
virá ElRey dous annos com differen
ça pouco notavel: a laſtima eſtá nas
revoluçoens, que a ſua morte fe haā
de ſeguir : foiporſeguindo , e eſpecie
ficando muitas calamidades , que com
effeito le verificárað á riſca , a ſeu
tempo . = Profetizou a morte , e olu
gar della a bum Cavalheiro de Cordo
va ; e tudo aſſim ſuccedeo , como
elle o profetizou. Queixou -ſe -lhe
húa
 FR , FRANCISCO DE POSSADAS,
húa pobre viuva de húa inſolencia,
que lhe faziao, uſurpando -lhe os ſeus
bens com teftimunhas falſas, e com
documentos , que falſificára hum ho-
mem demáconſciencia : a eſte annun-
ciou o Servo de Deos hum prompto
caſtigo , e naotardou o Senhor em de-
11 ſempenhar-lhe a palavra , morrendo
elle dalli a mui pouco tempo de hūa
morte ſubita , e mal aflombrada.
4 Mandou aviſar a hum homem eſcan-
daloſo , que , ou cuidaffe de applacar
1 Deos , ou ſe apparelhafle para o fla-
gello da ſua ira , que lhe eſtava ca.
hindo em cima por inſtantes: nað fó
naõ quiz dar attençao a iſto , fenaő
que começou a proferir quantos op-
probrios lhe vierað á bocaem deſabo .
no do caritativo , e Veneravel Padre ;
mas acudio o Ceo pela ſua honra ,
J
fendo graviſſimos , e multiplicadosos
caſtigos, com que deſde entao come
!
çou a fulminar aquelle impio , ſendo
o ultimo , e mais terrivel de todos a
deſaſtrada morte , que elle teve , ſen-
do cozido a punhaladas. = Ardia hũa
viuva em deſejos de contrahir ſegun-
das nupcias com hum homem : eſcu-
ſava ſe elle , e pretextava a ſua eſcu-
ſa com hum filhinho que a ella lhefi-
cára do primeiro Matrimonio . Talfoi
acegueira do ſeu amor , e muito maior
a do injuſto odio , que começou a con
ceber ao ſeu menino , que ſereſolveo
a tirar- lhe a vida , para tirar todo o
impedimento ao ſeu appetite . Pegou
do pequenino , e deitou - o dentro de
hum poço ; mas eiſque as aguas co
meçaõ a creſcer até obocal do poço ,
e , ſem offender o menino , o tornaó a
offerecer aos braços da que o trouxe-
ra nås entranhas . Ora quem deixaria
+
de enternecer - ſe á viſta de hum pro-
digio tao novo , e inſperado ; e eſta
compaixao de quem ſe podia eſperar
melhor , que de hõa mãy ? Pois nao
ſó nað ſe enterneceo aquella féra, fe-
nao quehūa viſta, que devia influir - lhe
piedades , e ternuras, accumulou ri-
gores , e deſatinos , ſendo ella a meſo
ma o cruelverdugo da morte daquel-
Tom . VII.
20 de Settembro 457
le innocentezinho ; e publicando de
pois que elle morrera de húa enfermi
dade , aſſim chegou a lograr o fim dos
ſeus intentos . Eſtando ja calada , ſuc :
cedeo ir allide Miſlao oServo deDeos,
e remordida aquella alma do grava
men do ſeu grande peccado , chegou
aos ſeus pés a fazer hūa Copfiflað ;
ouvio-a o noſſo Profetico Miſſionario ,
e depois de exhortalla á penitencia ,
concluio dizendo : V.m.trate de an
dar com a ſua vida ajuſtada , e pre
venida para a morte , que ſeu meſmo
marido The ba de dar, pela que V.m.
taõ tyrannamente deo a ſeu filho : paſ
fados ſeis mezes , aſſim ſe cumprio do
meſmo modo queFr. Franciscoopro
nofticou.
101 Hũa mulher caſada , e ſobri
nha do padraſto do Servo de Deos ,
tinha hum filhinho de ſeis mezes , a
quem amava com o mais extremoſo
amor : vio-a o Servo do Senhor cao
embebida neſta affeiçao , e diſſe - lhe :
Tu eſta's louca com eſte filho : e como
por ſua caufa te nao lembrasde Deos,
Elle totirara. Allim ſe verificou dal
li a quatro mezes ; e andando aquella
mulher outra vez pejada , diſle , co
mo gracejando ao Veneravel Padre :
ora pois ſe o outro morreo , ja tenho
outro. Tens ? ( replicou o Padre) Pois
o meſmo te ha de ſucceder com ele , e
com todos os outros , que tiveres ; e tu .
do aſſim aconteceo , porque eſte fe
gundo morreo de dous annos e meio ;
e tres ,que ainda teve, todos pereceraõ
na puericia , nao paſſando, o que mais
viveo , de acabar de cumprir cinco an
nos . = Dom Paulo de Hineſtroſa per
tendia caſar com Dona Leonor Fer
nandes de Cordova, filha dos Viſ .
condes de la Puebla , que muito ſe
eſcuſavao deſta alliança ; porque , fei
ta ella , ſeria neceſſario perderem a vi
{ta , e companhia de ſua filha, por ſer
morador D. Paulo na Cidade de Eci
ja : depois que eſte vio fruſtrados dous
annos de pertençáó deſcorçoou do ſeu
intento , e foi conſultar o Padre Pof
fadas , q era padrinho do Bautiſmo de
Mmm Dona
458 FR . FRANCISCO DE POSSADAS , 20 de Settembro .
Dona Leonor , fobre outro caſamen-
to . Naö , Senhor D.Paulo , ( relpone
deo o Servo de Deos ) av.m.não lhe
convem outro caſamento ſenaõo de mie
nha affilhada. Com eſta reſpoſta vol .
tou mais alegre , e animoſo a profe .
guir as ſuas diligencias, e foraõ ellas
tao bem ſuccedidas, que logo come .
çára o as couſas a tomar outro ſemblan-
te. Chegado o diadaquella celebrida.
de, foi chamado o Servo de Deos pa-
ra dar a ſua bepçað á noiva: entrou
elle na caſa , e pondo-lhe os olhos,
diſſe : JESUS, e como minha affilha.
da eſtá degalla ; mas para quehetan .
tagallazon quanto tempo ha de durar ?
Padre , diſle a ſogra , naõ diga iſlo ;
e porque nao durarao ſendo tao mo .
ços ? Entao os chamou o noſſo profe-
tico Religioſo , e lhes diſſe com mui .
tas véras , que no que muito deviao
cuidar , era em pedir a noſſo Senhor,
que quanto antes lhes deſlefuccefſao:
prometterao fazello aſſim , pedindo-
The tambem muito as ſuas Oraçoens .
Nao forað ellas malouvidas , ou defa
pachadas do Pay das miſericordias ;
porque aos tres mezes ſe achou peja-
da Dona Leonor , e cahio de cama
D. Paulo de terçaás de que morreo
dalli a dous mezes ; e como era uni-
co em ſua caſa , ſe pao deixafle ſucceſ.
fao , paſlaria a outra o morgado , Pa-
rio a viuva a ſeu tempo hum engraça.
do menino , e tendo ja cinco mezes ,
paſſou a máy á Cidade de Cordova ,
aonde elle adoeceo gravemente de
bexigas , accidente, que derao osMe-
dicospormortal . Com a magoa dette
infautto annuncio mandou pedir Do-
na Leonor ao Servo de Deos , que lhe
vielle ler hum Evangelho , eſperando
da virtude de ſeu Veneravel Padrinho
a medicina , que lhe nao podia achar
por meios humanos . Era iſto ja no ul-
timo anno da vida do poffo bom Re .
ligioſo, em que elle ſe achava impof-
fibilitado pelas ſuas grandesmoleitias
para poder condeſcender com estes
rogos ; e dando a razao , porque nao
podia ir aonde o chamavao , accref-
centou , que nao tiveſſem medo ; por :
que o menino naõ perigaria daquella
doença , nem Deos ,que o havia con
cedido por meio de rogativas, e Ora
coens , o dera para o levar tao depref
la. Conſolou -ſe a máy grandemente
com efte vaticinio ; mas de inſtante
a inſtante continuavao os ſymptomas
cada vez peiores. Entrou o Medico a
viſitallo pelas dez da noite , e pelos
linaes que lhe vio , omais quelhe pro
metteo devida foraõ duas horas ; com
effeito chegado eſte termo , começou
O pequenino a lutar com as ultimasan
cias ; mas para que ſe verificaſle, con
'tra toda a eſperança, a predicçao do
Servo de Deos , eſcapou , e fornou
ao meſmo tempo como da morte á
vida . Tornou o Medico pela manhaā,
e a primeira couſa que fez , foi per
guntar a que horas morrera o doente .
Entre V.m. ( lhe reſponderao ) evel
lo ha ; entrou , e vio -o com outra ca
ra , e com os indicios , que ſe lográ
rao de recuperar , como recuperou ,
perfeita faude .
102 Adoecerao de hũa perigoſilli
ma queixa D. Franciſco , e D. Pedro
de Moraes , unicos fucceflores de ſua
Caſa , e ſuccedeo iſto a tempo , em
que o Servo de Deos eſtava prégan
1
do Millaóna Villa de Baena : anguſtia 1
da ſua máy com eſta fatalidade , ef.
creveo , e mandou a toda apreſla húa
carta ao Veneravel Padre dando-lhe
conta da lua conlternaçao : Reſpon
deo , que nao ſe contriſtalle ,nem des.
falleceffe , e que confiaße em Deos ,
e na interceſſão de Maria Santiffima,
que dentro de pouco tempo iriao os
doentes render as graças da ſua me .
lhoria á meſma Soberana Princeza dos
Ceos. Nao he dizivelo alvoroço , que
cauſou eſta noticia naquella caſa : pe
dirao os doentes a carta , e comárkó
na com grande fé, e logo começáraó
a experimentar muito alivio, e con
ſolaçaõ , e dalli a mui pouco tempo
ſe puzeraõ a pé. Tinha Iſabel Ro
drigues oitenta annos de idade , ea
fuftentava Jozé Romero , filho eſpiri
tual
 FR . FRANCISCO DE POSSADAS , 20 de Settembro.
qual do Servo de Deos : ſendo eſta ac-
commertida de húa grave molettia ,
! em oito dias nao pode tomar alimen ,
to algum , de modo , que o Medico
deſconfiou della , dando-a por incura-
vel : perguntou por ella Fr. Franciſco
áquelle ſeu dirigido , que lhe deo em
reſpolla o que paſlava : Jozé, [ diſle o
VeneravelPadre ] veseja velhazinha?
Pois pode ſer mui poſſivelõnos enterre
a todos. Aggravou - le o achaque , epa
recia que eitava a pobre pendente de
hum fio : Acudio o ſeu benfeitor ao
Padre Poffadas a dar-lhe eſta noticia,
e chegou a tempo , em que elle ſe pu-
nha á meſa para comer : tomou o bom
Religiofo a ſua raçao , e entregou - a
áquelle homem para que a deſſe a do
ente , e lhe diſeife que comeſie aquilo
lo , que elle lhe mandava. Correo o
outro a fazello aſſim , e tanto que a
velha ouvio nomear o Padre Poffa-
das , deomoſtras de alegrar-ſefumma.
meore , e , com palmo detodas as pelo
ſoas que lhe aſſiſtiao, comeo inteira-
mente tudo o que o Veneravel Padre
lhe mandou , e moſtrou ſentir -ſe com
forças , e diſpoſiçao.
A eſte tempo
chegou o Medico , que entendia que
aquellas horas ja ceria expirado , e
vendo- a aſſentada na cama ja livre de
febre , e de perigo , dêo asmãos , nao
ceflando de encarecer hum taõ gran-
de inilagre. Reſtituida ja das ſuas for
ças , recolheo -a'o Servo de Deos no
Hospital de Jesus Nazareno , e , nos 17
annos que ainda viveo , ſobreviveo ao
Veneravel Padre , a ſeu companhei
ro Fr. Jozé Ortis , a Jozé Romero , e
a ſua mulher . O ſeguinte ſucceſſo ,
que nao foi menos milagroſo , que
profeçico , pede attençao muito eſpe-
cial .
103 Hũa moça donzella , que tio
nha páys , eirmãos , deixou - ſe cegar
da ſua liviana paixao , e facilitando-
ſe com hum homem , ficou pejada :
a máy conheceo eſta quebra da ſua
honra , e ficou tað fóra de ſi de paixao ,
que cuidava de enlouquecer. Nao
encontrando meio de reſarcir aquel-
Tom . VII ,
459
la falta ; e antevendo que a ella lhe
haviao de tornar a culpa do pouco
reſguardo da filha, determinou extin
guir com a ſua vida a ſua infamia , ou
dando- lhe veneno , ou affogando -a
quando eſtiveſſe dormindo : como
entrou neſte delatinado furor , era
incrivel o máo tratamento que dava
aquella moça : em fim chegou lhe a
declarar o penſamento, com que eſta
va , dizendo - lhe : que aflim he que
fomente podia reparar o ſeu deſcre .
dito , e deshonra . Māy ( reſpondeo
a triſte pejada , e talvez nao ſem in
lindo ſuperior ) faça de mim o que
quizer , com tanto que vamos antes de
tudo fallar com Padre Pofadas , e
tempo lhe fica para me ſacrificar as
qualquer genero de morte, que lhe pa
recer. Concedeo -lhe a mãy eſte ali
vio , e forað : fallou -lheso Veneravel
Padre , e depois de conſolar a máy,
e ouvir de confifl'aõ a filha, chamou .
as ambas , e diſſe a eſta ſegunda: Pa
rira's hija menina taõbem affortunada,
que todos os Reys , e todos os Poren
tados do mundo nao poderaõ dar- lhe,
nem tirar- lhe o que o Rey dos Reys
lhe tem preparado , que he a ſua glo
ria : por eſta conſideraçaonao dès gol
pes no ventre , como aſimotens feito
tantas vezes para provocar o aborto ;
porque terás hum parto muito feliz ,
e que nao ſerá preſentido em tua caſa,
ou fóra della , nem dabite reſultará
padecer a menor calumnia : bevaefta
medalha do Santiſimo Sacramento , e
de Noſa Senhora ao pefcoço , e polla
has depois de parir sobre a pequeni
na , gue eu cuidarei della , e nao te .
mas , que nenhum mal te ha de ſucce
der . Dalli a tres dias pario a moça hū a
menina e pondo - lhe a medalha , ou
veronica , metteo-a dentro de hum
baul , aonde eſteve fem chorar , ou
dar ſinal de ſi , trinta e ſette horas .
Fiagio a mãy da parida que eſta ſe
achava indiſpofta, e entrando a vella
a gente da familia, fentando -ſe no
meſmo baul, em que eſtava a criança ,
pelo ſilencio , e quietaçao , que ella
Mmm ii obſer
 460 FR . FRANCISCO DE
obſervou , ninguem preſentio couſa
alguma : quando as duas ficáraó ſós
em caſa , tomou a avó ſua neta , ele-
vou - a ao Hoſpital de S. Jacinto , e
tambem nao chorou a criança em
quanco foi pela rua : finalmente cum-
prindo -ſe a profecia do Servo de Deos,
aos quatro apnos da ſua idade , acha
mou o Senhor para ſi.
104 Hum homem caſado tinha
húa concubina de portas adentro ,
e por lhe agradar melhor , eſtava dan-
do continuos delgoftos , e pezares a
ſua mulher : houve de fazer hũa jor .
nada , e deixou em outra parte a cau
ſa da ſua perdiçao, e hūa ordem mui-
to apertada a ſua eſpoza para que to
dos os dias lhe contribuiſſe com cer-
ta quantia de dinheiro para ſua fuften .
tação ; porém a pobre calada , que
vivia caõ deſgoſtoza , tomou agora a
deliberação de entrar em hum Mor-
teiro :mas communicando eſte ſeu
acordo com hũa amiga , lhe difle eſta
que ,antes de bolir em couſa algūa , ſe
aconſelhafle com o Padre Poliadas :
forao a iſſo , e ouvindo o Veneravel
Padre a queixoſa , lhe reſpondeo : De
nenhum modo cuideV.m.emrecolhere
Je: façamos todos Oraçað á Sobera-
na Rainha dos Anjos , e peçamos - lhe
que melhore de vida a ſeu marido
e confie em Deos que ha de levar būa
vida muitopacifica, e goſtoſa. Fize-
rao -no aſſim , e tornáraó para ſuas
caſas , e quando aquelle homem ſe
recolheo a lua , antes de entrar nella ,
foi aonde havia deixado a occaſiaõda
ſua ruina , porém naö a cratalla com
os antigos carinhos , ſenaõ a dar-lhe
com muita ſeccura , e deſagrado ode-
ſengano de que mais nao a queria ver :
foi logo buſcar a ſua mulher , com
quem viveo dalli em diante em muito
amor , e uniao . = Outra pobre mu
lher caſada vivia em hum penofiffi-
mo cativeiro pela ruim condiçaõ de
ſeu marido , que , ſem que , nem para
que , muitas vezes a feria , e eſpanca .
va. Hum dia , em que ſahia para fóra ,
perguntou -lhe aonde hia ? Vou ( lhe
POSSADAS, 20 de Settembro.
reſpondeo a triſte ) a confeſar-mecom
o Padre Pofadas. Pois vai , ( lhe tor
' nou elle ) eleja a confiſfaó como de
ve ſer , porque quando torpares has
de morrer aos fios deſta ; ( aqui de
ſembainhou a eſpada ) porque estou
reſoluto a livrar-me por hűa vez de
hum impedimento canto do meu de
fagrado . Deo a pobre conta de tudo
ao Veneravel Padre , e ao ir - le em .
bora , lhe diſle que nao tornava para
caſa : Nao ? ( diſle Fr. Franciſco ) Pois
o que has de fazer, ou para onde has
de ir ? Padre ( acudio a mulher ) ſe for
para caſa , morro ás mãos de meu ma
rido. Nao te ha de ſucceder tal :( dille
o Veneravel Religioſo ) vai, que nao
Somente nao te ha de matar , senao
que ha de ſabir a receber - teá rua com
muito amor , e affabilidade. Fiou - ſe
ella na palavra do Servo de Deos , vol
tou para caſa , e achou que a eſtava
eſperando fóra della feu eſpoſo , que
a foi acompanhando , e dalli por dian
te fizerao hữa vida muito amante , e
carinhoſa .
1 105 Divorciou - ſe hũa mulher ca.
ſada , e nobre ; e deſejando as per
foas principaes da R- publica concor
dar eſta deſuniao , acudirao logo ao
Padre PofTadas. Eu ( reſpondeo elle )
naõ bei de. fallar niſo , e podem ter por
efcuſado buſcar quem falle , ainda
que ſejaõ as peloas de maior reſpeia
to , porque nao ſe haõ de compôr ;me
nos que a Real Chancelaria de Gra
nada aſſim o determine. Aflim omo
ſtrou depois o tempo ; porque fazen
do -ſe as mais empenhadas diligencias,
todas ſe fruſtrarao , até que ultima
mente ſe ajuſtou a deſavença pelo mo
do que o Servo de Deos havia predi .
to . Dona Anna de Villa Realeſte
ve de cama por eſpaço de ſette annos ,
e alguns mezes , e neſte decurſo de
tempo nao ſó felhe lhe abrio ocor
po em chagas , ſenaõ que todo o ali .
mento , que lhe entrava pela boca , tor
nava logo a deitar fóra , fruftrando
todos os remedios , com que a medi
cina procurou acalhar eſte incommo
do,
1
 FR . FRANCISCO DE POSSADAS, 20 de Settembro.
1 do . Sendo viſitada em húa occaſiao
pelo Veneravel Padre ,lhe pedio ella
com toda a inſtancia que lhe alcançaſ-
1 ſe de S. D. Mageftade a melhoria de
hum mal tao prolongado , e importu .
no . Eſculou ſe elle , e tornou ella a
inſiſtir , rogando - lhe que ao menos
lhe impetralle domeſmo Senhor, que
ella ſe reftituiſſe de forças para ſe po-
der aſſentar na cama . Eu te mandarei
logo ( reſpondeo elle ) huns biſcoutis
nhos, come-os, e logo conſeguira's
que pertendes. Tanto que elles che.
gáraó comèo hum , e logo ſe achou
tao bem diſpoſta , que ſe veſtio , e an-
dou pela caſa ; e vendo que hum tó
tinha obrado effeito tao portentoſo,
repartio os mais pela ſua familia , ex-
.
ceptuando tres , que enviou a tres
doentes , mandando-lhe nelles a ſua
repentina ſaude ; porącodos andáraó
. no outro dia pafleando pela Cidade .
106 Muito deſejava a Viſcondel-
ſa de Miranda , comadre do V.P., hūa
firma do ſeu punho. Para havella pois ,
lhe eſcreveo ſobre certo negocio ; mas
nao teve effeito a ſua pertençao , porý
o Servo de Deos chamando o criado,
que havia trazido a carta , lhe diffede
palavra : Diga a minha comadre que
tenha paciencia , que pela minhaboa
vontade , que ella conhece muito
bem , nao lhe darei menos do que o
ſangue das minhas véas . Nao ſe en-
tendeo por entao etta reſpoſta ; mas
verificou-ſe na morte do noſio Profe .
ta ; porque buſcando-ſe , e guardan-
do -ſe comoprecioſa reliquia o ſangue,
que dimanára do ſeu corpo á violen-
cia das ſangrias , e ſarjas , alcançou o
Viſconde, marido daquella Senhora,
húa caça chea delle , que hoje pára em
ſua caſa . Depois veremos como eſte
Profeta nao 1o antevio a ſua morte ,
ſenaõ o tempo , lugar , e qualidade
della : agora vejamos o bom effeito
que furtirao algumas das ſuas firmas,
e papeis , como tao appetecidas , e
buſcadas , e nao menos efficazes para
neceſſidades eſpirituaes, que tempo-
raese
461
107 Vendo-ſe preciſado certo
Religioſo de fóra de Cordova a con
ſultar o Padre Poſladas, lhe eſcreveo
hũa carta , a que elle reſpondeo : eſti
mou o conſultante eſta reſpoſta como
reliquia de hum Santo , e com effei
to nao foi mal fundada a ſua fé ; por
que de todas as vezes ( forao muitas)
que ſe ſentia moleſtado de alguma
tentaçao contra o voto da caſtidade,
applicava ao peito a carta do Servo de
Deos , a quem ( nao obitante ſer ain
da vivo ) fervoroſamente invocava,
e com eſta diligencia ſentia logo oleu
eſpirito tranquilo , e refrigerado. S
No anno de 1713. depois logo da mor
te do Servo de Deos , foi chamado na
Villa de Carzola, do Arcebiſpado de
Toledo , hum Religioſo da Sagrada
Companhia de Jesus para auxiliar a
mulher de Franciſco Felix da Ponte;
porque havendo eſtado infructuofa .
mente com dores de parto , por tem
po de dez horas , ja ſe chegava a te .
mer evidentemente o riſco da ſua vi
da. Vendo o Padre eſte cataſtrofe
occorreo-lhe mandar buicar ao ſeu a
poſento huas cartas do Padre Poſla .
das , que elle guardava dentro de hum
cofrezinho, com igual fé , que vene
raçao : Vieraõ ; e tomou elle hũa ,
ſem dizer o que era , com que ſe co
cou o ventre daquella mulher , ecam
tao feliz ſucceſſo , que logo pode pa
rir hũa menina , fem que depois fi,
caſſe padecendo o menor accidente
de perigo. Como era tað ardente o
delejo que todos tinhao de alcançar
hũa firma do Veneravel Padre , e eſte
nao deixava de reconhecer hūa tao
louvavel ambiçao , a ſua humildade o
fazia negar-ſe a eſtas condeſcendēcias,
e por iſſo relpondia a muicas cartas
ou vocalmente , ou fazendo -as eſcre
ver , e firmar por outrem . Dom Mi
guel da Silva buſcou muitos meios
para alcançar húa firma do punho do
Veneravel Padre , e com eſte peaſa
mento chegou aos ſeus pés a fuzer
lhe a ſua delobrigada Quareſma: aca
bada a confiſſao , pedio -lhe hũa ce
dula
>
462 FR . FRANCISCO DE
dula para ir commungar á ſua Paro
quia ; mas o Servo do Senhor , que
conheceo o intuito deſte requerimen .
to , o despedio ſem ella .
* 108 A meſma ſede que havia de
alcançar bum papel eſcrito , ou fir-
mado por elle , havia tambem das
mais couſas, que , ou eraõ do ſeu uſo ,
ou lhe paſſavaó pela mao. Quando
efteve por Miſſionario na Villa de
Porcuna , e ſe hoſpedou noMoſteiro
das noſſas Religioſas , como tudo ja
referimos , a fama da ſua ſantidade
era tað aflentada , que buſcavao re-
colher , como eſtimaveis , e milagro .
fos os fragmentos da ſua pobremeſa .
Aré dos cabellos da ſua barba faziao
thelouro ; e nao forao poucos , nem
pequenos os prodigios que obrou o
Senhor pela intervenſao deſtas pre-
cioſas prendas : muitos delles ſucce-
dêrao ſendo ainda vivo o Veneravel
Padre ; e depois da ſua morte acon
teceo , que eſtando a Madre Soror
Catherina Daza com hūa perna gan
grenada , que por ſentença dos pro-
feffores da Medicina ja eſtava para ſe
The cortar , com lhe applicar hũa re-
liquia do Padre Poſladas, conleguio
alcançar a melhoria, e livrar -ſe dehūa
operaçað tao violenta . = Muitas ve-
zes lhe apanhavao o chapeo , pallian-
do eſta devoçaõ com dizer que eſtava
ja mui velho .Nao tanto ,(reſpondia el-
le neſtas occaſioens ) que eu naõopos
ſa trazer. = Entrou em certa occa-
Tiao em húa das caſas principaes de
Cordova , e deixando por accaſo o
chapeo ſobre hūa cadeira ; daquilho
tirárað ás eſcondidas , pondo - lhe ou-
tro novo , e mui fino em ſeu lugar :
nao reparou nitto o Servo de Deos ,
como ' nem reparou o noſſo Beató
Jordao na troca , que em certa occa-
ſiao lhe fizerao , tomando - lhe a ſua
correa , e ſuſtituindo -lhe com outra
guarnecida de prata : tomou pois o
chapeo , e com eile nas mãos entrou
no Convento de S. Paulo , e quando
allim o virao , começáraõ a olhar , e
a tornar a olhar para elle : perguntou
POSSADAS , 20 de Settembro.
a cauſa , e diſeraõ - lhe que olhavao ,
porque goſtavao muito de vello tao
airoſo , e bizarro ; e como ainda nao
cahia na cauſa , tomarao -lhe o cha
peo , e diſſeraô-lhe : Padre , eſte cha
el
peo he mui guapo ; entao foi que
le conheceo opiedoſo engano , quele
lhe havia feito , e deſculpou -ſe , que
aquillo lhe havia fuccedido por elle
nao haver reparado : tað embebido
andava em Deos , que nao advertio
na differença , que havia deir de hum
chapeo grande , pezado , e velho,
qual era o ſeu , a outro novo , fino ,
e.pequeno , porque lho trocárað .
109 Suſpirava hum Meſtremuito
grave de certa Ordem por alguma
reliquia de Fr. Franciſco , e teve a
bõa occaſiaõ de lograr o ſeu deſejo ;
porque fuccedendo mandar- ſe a la
var ao feu Convento hum habito do
Servo de Deos , ficou -ſe elle com a
capa defte , que era ja muito uſada, e
velha , e em lugar della pôs a ſua, que
era nova , e muito boa. Era bar
beiro do Servo de Deos Franciſco de
Caſtella , e de todas as vezes que o
barbeava , guardava , como fanta reli
quia , os cabellos do ſeu cercilio , em
que tinha muita fé , e eſta lhe apro .
veitou de tanto , que havendo de ſer
ſangrada Barbara Bilváo ſua mulher,
operaçao que nella , pela difficulda
de que ſempre ſe lhe achou nas vêas,
ſe fazia mui cuſtofa , enao menos ar
riſcada,teve agora a deſgraça de ſe lhe
picar hūa arteria , accidente de que
ſe eſperava , que le nao morreſſe , ou
nao ficaſſe aleijada , como era muito
de temer, quando menos nao podia
deixar de eitar tempos , e tempos de
cama . Afflicto ſeu marido com efte
tao ſiniſtro incidente,recorreo a Deos,
e applicando á cilura alguns dos ca
bellos do Veneravel Padre , ficou el .
Ja tao bem ſoldada ſem outra alguma
diligencia , que no outro dia amanhe
ceo inteiramente fáa. Por tempo de
cinco mezes padecêo Maria de Leao
hūas terçãas perigoſillimas , motivo
porque lhe veio a faltar o leite para ali
mentar
 FR , FRANCISCO DE POSSADAS , 20 de Settembro.
mentar hum menino . Levou - a ſua
máy ao Servo de Deos , pedindo -lhe
algum favor , eſcuſou -ſe elle , como
ſempre o fazia ; porém ellas nao cel-
Javao de implorar remedio , eadoen .
te pedia que lhe defle a beber huma
pouca de agua por ſua
ſua mao
mao :: tornou
à dar ſuas eiculas o Veneravel Padre
allegando que a agua antes ſeria fo •
mento , que remedio para aquelle a-
chaque ; mas vendo que nað o lar-
gavao , tomou hum pucaro de agua ,
e elle meſmo deo debeber á doente ,
que dalli em diante nao o foi mais , e
logo lhe acudio aos peitos o leite ,que
lhe era necellario. = Dona Izabel de
Reina tinha os ſeus partos mui traba-
Thoſos : em húa occaſiao , em que o
aperto era mui formidavel , e peri
golo, comendo hum biſcouto que
lhe dena comadre , que o havia re-
cebido do Servo de Deos , logo po .
de parir com a maior facilidade.
110 Malignando -ſe hūa febre a
Nicolao de Molina , de que eſtava mui
perigoſo , e ja ſacramentado , man
dou chamar Fr. Affonſo , companhei.
ro do Servo de Deos a pedir -lhe que
a toda a preſla lhe mandaſſe algum
bocado de paó , que tiveſſe ſobejado
a Fr. Franciſco , hũa pouca de agua
do pucaro por onde elle bebia , ee al.
ale
guma terra do lugar onde elle ora
va : partio logo aquelle Religioſo a
fazello aſſim ; eandando naquella di-
ligencia , reparou nella o Servo de
Deos , e perguntou o fim : diſle - lhe Fr.
Affonſo a verdade, e o Padre con-
tinuou : Leve- ſe -lhe tudo, que tem fé
O effeito aflim o moftrou ; porque
comendo o pao , e bebendo a agua ,
em que deitou hua pouca da terra
logo adormeceo , havendo atélli paſ ,
ſado muitas noites lem dormir , e nao
acordou ſenaõ no outro dia , pelas
nove da manhãa , e tao outro do que
tinha eſtado, que o Medico publicou
haver ſido a ſua melhoria hum evi-
dente milagre . = A tanto chegou a
lanca confiança , que todos tinhao
nos merecimentos do Servo de Deos,
463
que até o Confeffionario , em que ou
via as copfiffoens, e o pulpito , de don
de intimava a palavra Divina , eraõ
venerados por preſtantiſſimas reli
quias . Etta Veneraçao derao as Reli .
giolas do Moſteiro de Jesus ao pulpi .
to , em que elle prégou ; Cathari .
na de Pino , que padecia graviſſimas
dores , achando-ſe hum dia ſó naIgre,
ja , e aſlentando - ſe no Confeſſionario
do Veneravel Padre , de repente fi
cou livre dellas , e nunca mais lhe tor
nárző . Se eſte era o effeito , que ſur .
tiao as ſuas reliquias , como havia de
ſer o que redundava das ſuas Oraçoēs !
Ja nós o vimos comprovado com al.
guns ſucceflos , e ainda o veremos
com outros .
III Dilatou.ſe a fama do ſeu no .
me pelo mundo , e até entrou pelas
maſmorras de Africa : nao faltou cap
tivo , que lhe eſcreveſſe , pedindo que
o encomendafle a Deos , e a quantos
Fieis arraſtavao as cadêas daquella
tao dura , e pezada ſervidao : Ouvio
o Servo de Deos eſta ſupplica , e Deos
a de ſeu Servo , ſuavizando a muitos
delles com ſeus favores o tyrannico ri.
gor daquella eſcravidao. A liberdade
de outro muito peior , qual he a dos
vicios , achárað outras muitas peſſoas
na protecçao do Servo de Deos.
na
= Hum paſtor de gado foi tad perſe ,
guido dos combates da laſcivia , e
cao pouco forte em lhe fazer reſiſten
cia , que faciliſimamente ſe deixava
levar , e araſtrar dos ſeus torpesmo
vimentos ; mas quando aſſim o cega
va a ſua miſeria o allumiava com ſeus
auxilios o Pay das Luzes , e Miſeri
cordias, paõ ceſlando de bater a por .
ta do ſeu coraçao com paternaes inſ
piraçoens, e auxilios . Combatido de
ſtes impulſos aquelle pobre , deſeja
va , e procurava apartar -ſe de tantas
abominaçoens , e torpezas ; mas nao
podia achar o focego , que tanto per
tendia , nem na frequencia dos Sacra
mentos , nem nos rigores dos jejuns,
e diciplinas , que lhe receitava o ſeu
Confeſſor , que era hum Religioſo
noſſo
464 FR, FRANCISCO DE POSSADAS, 20 de Settembro.
noſſo do Convento de Soali Cæli , e
ainda em outros voluntarios , que el .
le accreſcentava , como era lançar- ſe
deſpido ſobre eſpinhos . Chegou aos
pés do ſeu Diredor depois de tres an-
nos de penitencia, que paſláraó , co
mo ſe nao paſſaſſem , pela nenhuma
emenda , e melhora do penitente ; e
ambos ficarao enleados na mais per-
plexa confuſao , cuidando aquelle ru .
Rico que era ſem remedio o leu mal,
e o Confeflor ſem ſaber a nova medi-
cina , que agora havia de applicar-
lhe , depois de te haverem excogita-
do tantas , ſem algum fructo . Final
mente , nao lhe negando , ſenso dif- . proprias , como nao proprias , nao ti.
ferindo -lhe a abſolviçao , partio para
a Cidade de Cordova a pedir conſe
lho ao Padre Poſadas: ouvio eſte o ca.
fo e confeſlou ſer o mais raro que
tinha ouvido , reſpeitando ao muito
deſejo , que aquelle homem moſtra .
va do ſeu melhoramento , eas muitas
penitencias, com quemacerava o ſeu
corpo. Ficou ſufpenfo o Veneravel
Padre por hum pouco , e parecendo-
lhe ao conſultante que era ja tem
po de ſe lhe dar reſpoſta , lhe diſle :
Padre , que mediz ao que tenho dito ?
Que remedio havemos de applicar a
elte pobrezinho ? Foraô em vað eftas
palavras, porque o Servo de Deos ſe
arrebatára em hum extaſis , voando
nas azas da ſua caridade ao Ceo a ne-
gociar o ſoccorro de tao grande ne
ceflidade: pudéra entender iſto aquel-
le Religioſo , e ter a prudencia de dar
tempo ao tempo ; mas faltando - lhe
eſta diſcriçaõ , cirou de hum braço
de Fr. Franciſco , clamando- lhe pela
reſpoſta , e ſoluçaõ da duvida. Abfol.
va eſe pobrezinho, ( refpondeo elle
acordando de hum fomno tað ſuave)
e nað lhe imponha mais penitencia ,
querezar tres Credos á Morte,e Paie
acao do Senhor todas as vezes que ſe
vir tentado. Foi tao preſentaneo o
medicamento , que celláraõ dalli em
diante as tentaçoens, e extinctas eſtas,
ſe extinguîraò tambem as culpas .
112 Combatia a Divina Miſeri-
cordia com hũa mulher Mahometa -
na de cento e quatro annos , para ti
ralla do abyfmo de trevas do Alcoraó ,
e tranſportalla ao Paraiſo das luzes
Evangelicas: perſuadiao -na ſuasmel
mas filhas , e netas com o exemplo
de fe haverem purificado das brutali
dades da maldita leita de Mafoma,na
ſagrada Fonte do Bautiſmo, e nao ſe
cantavao menos outras muitas peſſoas
de inuita doutrina , e caridade , em
cujo numero entrava tambem Fr.
Franciſco , e todas procuravao com
muito deſvélo ganhar aquella almapa
ra Jesu Chriſto ; porém codas , aſſim
ravao mais das ſuas diligencias , que
deixalla mais teimoſa na ſua obſtina
çao. Por cauſa de hum cancro , que
tinha em húa perna , ſe achava ja mui
proxima ao extremo da ſua vida, e
pedio hūa tarde que lhe chamaflem
o Padre Pofladas : forao a toda a
preſla em ſua buſca; mas elle, que tal
vez nao deixava de ter luz da ſua in
diſpoſiçao , como ſe duvidaſle da cer
teza deſte aviſo tres vezes perguntou
ſe ochamava ; como lhe diſerað , e
ratificáraó que ſim , foi. Entrou pelo
apoſento da Moura , dizendo : Har
bia ( eſte era o ſeu nome ) queres fer .
Chriſtia ? Refpondeo a iſto negati
vamente. Pois logo para que mecha .
mas? replicou o Padre. Ora vê lá ( con
tinuou elle ) ſe em tantos annos , que
tens vivido entre nósoutros ſem te
affeiçoar á noſa Santa Ley Seguin .
do a tua , tens tido algúa devoção aos
noſos ritos , e le tens viſto alguma
Imagem de MARIA Santiſima? Sim
Padre , reſpondeo ella , goito muito
da Imagem da Senhora do Carmo, e ,
pelo muito amor que lhe renho , todos
os Sabbados lhe dou hūa eſmóla : tam .
bem me agrada muito a Senhora da
Fonte ſanta ; porém ſobre tudo , a
que me tem roubado mais as atten .
çoenshe a Senhora a Branca.Ora pois,
( lhe diſſe o Veneravel Padre ) encom.
menda.te a eſa Senhora , e pede lhe
muito que te eſcolha o que for melhor
para
 FR . FRANCISCO DE POSSADAS , 20 de Settembro .
para a tua ſalvaçao. Dito iſto, voltou
para os Ecclefiafticos, que alli eſtavaó
ſolicitando a converſao deſta infiel
dizendo - lhes : Senhores temos feito o
que eſtá da noſa parte , agora deixe-
mos obrar a Deos.Deixáraó - na todos,
e ficarao os ſeus continuando as bate-
rias , lem tirarem outra reſpoſta mais
que eſta : Que vos importa o meu bem ,
ou o meu mal ? affim vivî, aſſim que-
ro morrer . Nao o permittio o Senhor ,
a Quem ſeu ſervo havia commettido
aquella reducçao , e a Quem initava
todavia com fervorofa Oraçao , para
que ſe nao perdefle hūa ſua creatura,
por cujo reſgate havia dado o Sangue ,
e a Vida . Era meia noite , e princi-
piava o dia da Annunciaçaõ da Senho-
ra , quando aquella mulher começou
a dar alguns ſinaes de maior ternura ,
e devoçao : perguncárao- lhe o que
tinha , e reſpondeo : Agora entrou
aqui hũa mulher muito branca : tra-
zia hum Menino fermoſlimo nos
braços , e hum Roſario na mao , que
alargava para mim , dizendo - me que
o tomafle , e ambos olhavao para mim
com muito amor : eſcuſava -me eu di .
zendo : Senhora para que hei de to .
mar eſſas contas , ſe ſou Moura , e nao
hei de rezar por ellas ? Inſtava -me
tornando - me a dizer que ficalle com
ellas , e eu tornava a allegar eſcuſas,
de que Ella moſtrou deſagradar-ſe vol-
tando - me o Roſto para le ir embora .
Como vos chamais, Senhora ,lhe per-
guntei eu ; e Ella me difie : Chamo-me
a Branca . Reperguntei -lhe : Aonde
affiftis ? e Ella relpondeo me , que
em Sant- lago. Oʻtia, ( gritou aqui húa
lua ſobrinha ) O' tia , eſla he Noſſa
. Senhora aBranca.Sim? ( tornou a Mou-
> ra ) Pois eu quero ſer Chriſtāa. Pafla-
do pouco tempo , tornou a dizer :
7 Eſta Senhora,a quem acompanha o Pa-
dre Poſadas, tem -me tirado os grie
lboens dos pés. A iſto diſſe hũa lua
neta : Qual Senhora , ou qual Padre
Poſladas ? V.m. minha avó eſtá cadum
cando . Nunca eu mais o eſteja : ( repli-
cou ella ) eyla aquieſtá com bun Mes
Tom . VII ,
46'5
nino belliſimo nos braços é minha
cabeceira ; e he taõ branča ! Chamem
me ora o Padre Pofadas;mas nao cha
mem , que nao he neceſſario , que aqui
eſtá : aflim proſeguio pelo mais reſtoda
noite , ora pedindo que lhe chamaf
ſem Fr. Franciſco , que ſe queria fa
zer Chriſtáa , ora dizendo que allieſ.
cava : bem poderia fer que Deos o
reproduziſſe ; e logo veremos alguns
calos ſemelhantes , fuccedidos com
eſte grande filho de S. Domingos.
II3 A penas amanheceo quando
partirao duas mulheres ao Hoſpicio a
chamar ao Veneravel Padre , e che
gára ) atempo , em que elle hia para
o Altar para dizer Miffa : preſentio a
grande preſſa que traziaõ , e diſſe ao
Religioſo , que eſtava para lhe mini
ſtrar , que viſſe o que aquillo era , e
Sabendo-o, largou logo as veſtimen
tas , dando aos que alli eſtavao eſta
fatisfaçao. Senhores, oa que vou eſtá
primeiro , que dizer Miſa: encom .
mendem -me a Deos, que lhe vou ga
nhar húa alma. As mulheres partirao
apreſſadamente para caſa de Herbia;
porèm chegou lá primeiro que ellas o
Servo de Deos , a quem deo azas o
feu zelo para ir naõ correndo , ſegao
voando , por haver feito hum grande
rodeio para levar , como levou , para
padrinho a Jozé Romero .Entrou pe
lo apoſento , dizendo : Que ha Ma.
ria a Branca ? Pois queres ſer Chri
ftaa ? Quero , quero , meu Padre
reſpondeo ella : Iloja eu o fabia deſde
hontem á noite, que foi a melhor ,que
tiveſte, e podias ter em tua vida , pois
foſte viſitada de N. Senhora a Bran
ca. Aqni ſe admiráraõ muito as pefloas
que eſtavao preſentes de haver o Ve .
neravel Padre alcançado o que alli
havia ſuccedido . Lançou- lhe elle o
Roſario , e chegando o Paroco da
freguezia, ſe puzéraó em contendas
de cortezia ſobre quem havia de con
ferir aquelle Sacramento ; porém diſ
folveo eſta duvida a nova convertida,
dizendo : que queria ter a conſolaçaõ
de ler bautizada pelo Padre Poliadas.
Non Foi
466 FR . FRANCISCO DE
Foi ſeu padrinho o mencionado Jozé
Romero , e em conſideraçao do dia ,
queriao que ſe chamaſſe Maria da In-
carnaçao ; mas o Servo de Deos , at-
tento ás circunſtancias , que deixar
mos expendidas, nao quiz ſenao que
ella ſe chamaffe Maria a Branca .
Concluida eſta fagrada adminiſtraçaó,
immediatamente ſe lhe aggravou a
enfermidade. Encomendou -lhe o Ve-
peravel Religioſo a alma , e no meſmo
inſtante difle aquella tao bem affor.
tunada moribunda : Padre Poſadas
eu morro ; e morreo . No melmo in-
Itante lhe tapou o Veneravel Padreo
roſto com a capa, e olhando para os
circunſtantes, lhes diffe : Querem ver
ſenhores hum eſtupendoprodigio . Def-
cobrio-lhe a cara , e nao parecia de
húa velha de 104 annos , nem tao tri
gueira , como era de natural , ſenaõ
que appareceo ſem alguma ruga, mui-
to liza muito fermoſa , e iaó alva
como ſe foſſe de cryſtal . Aſlim per-
mitrio o Senhor , que participaſſe o
corpo da quella feliz mulher dos ſobe.
ranos effeitos , que havia obrado na
fua alma aquella regeneraçao mais
admiravel , aſſim como tambem mais
certa que a do Feniz . Paſlemos ago .
ra , como aſſim promettemos , a al-
guns dos muitos caſos , em go Vene-
ravel Padre ſe reproduzio , achan-
do -ſe a hum meſmo tempo em dous
diſtinctos lugares ; prodigio, com que
Deos tem condecorado a muitos dos
ſeus Servos mais queridos.
114 Alliſtou -ſe por filho eſpiritual
do Servo de Deos hum moço caſado,
e aſſinou - lhe o Veneravel Padre, que
ſe mortificaſſe com diciplina ; mas
prohibio -lhe o tomalla nas coſtas
antevendo prudentemente ao meſmo
tempo que pela ſua delicadiſima
compleiçaõ lhe poderia ſer de peri-
go , e que as penitencias nao devem
ſer indiſcretas , nem menos bem or-
denadas . Nao ſe agradou , contra o
que devia , do preceito aquelle diri .
gido ; e determinando- ſe a fazer o
contrario em hum dia , em que o
POSSADAS , 20 de Settembro.
Veneravel Padre eſtava de cama , fe
retirou a hūa parte mais eſcuſa , ere
tirada de ſua cala , e eſtandoja defpi
do , e com as diciplinas na mao , eis
que, antes de deſcarregar o primeiro
golpe , vê entrar ſua mulher chaman
do - o a toda a preſſa , e dizendo - lhe
que tinha o Padre Pofadas á porta ,
que lhe queria fallar , ſem querer en
trar para dentro em quanto elle nao
deſcia. Veſtio -le logo , e indo a bai
xo , pedio ao Servo de Deos , que
entraſſe para dentro ; mas elle le el
cuſou , e ſe deſpedio dizendo eſtas
palavras : Haja muito cuidado em naã
quebrar a ordem , que tenho dado de
nao fe diciplinar nas coſtas. Arnoite
foi aquelle homem achar-ſe nosexer
cicios eſpirituaes , e achando menos
a Fr. Franciſco , perguntou por elle
a ſeu companheiro Fr. Jozé Ortiz :
refpondeo - lhe eſte, que o Veneravel
Padre ,havendo acabado de dizer Mil
ſa naquella manhãa , fora logo accom
mettido de hũa dor caō aguda , que o
haviao levado para a cama , em que
ainda eſtava. Como pode ſer iflo , dif
ſe o outro , ſe elle elleve comigo em
minha caſa ao meio dia ? Reſpondeo
Fr. Jozé que no que dizia nao havia
alguma duvida , e que logo o pode
ria ver com ſeus olhos. Acabados os
exercicios, ſubio eſte homem com ou
tros filhos eſpirituaes do Servo de
Deos á ſua cella , e alli acabou de
certificar- ſe , reconhecendo que o
Veneravel Religioſo ſoubera com luz 1
1
.
ſuperior o ſeu intento , e lhe appare
cêra em eſpirito para impedir a ſua
execuçao.
115 Dom Diogo Franco eſtava
muito doente , e tinha ancioſiſſimos
deſejos de conferir os particulares de
ſua conſciencia com o noſſo Venera
vel Padre , e por iſſo pedio muitas
vezes aſua mulher D. Hyppolita Car
rilho , que lho fizeſſe chamar ; ifto
porém nao podia ſer neſta occafiao,
em que o Servo de Deos ſe achava
tambem de cama , e com hūas poucas
de ſangrias ; e por eſte meſmo tempo,
em
 FR. FRANCISCO DE POSSADAS ,
em que ainda continuavað as enfer-
midades de ambos , vio D.Diogoen-
trar pelo ſeu apoſento o Padre Por-
ſadas, e eſtiverao fallando largamen-
te , até que o Padre ſe deipedio :
quando eſte hia a tomar a porca , vi-
nha entrando para a meſma quadra
Dona Hypolita ; e como ſeu marido
vio que ella nao fazia hűa reverente
inclinaçao a Fr. Franciſco , logo are
prehendeo , dizendo -lhe: Valha-te
Deos para mulher , que ſejas tao
pouco attenta , que déſſes lugar
que nem déſes lug
a que ſahiſe o Padre Poſadas, nem
sequer lhe abaixaſſes a cabeça, cor .
reſpondendo- lhe a cortezia que te fez;
quando agora bia fabindo ? Muito
bom pago leva nelle mao termo da gran .
2 de , confolaçaõ que meveio dar , e da
paz , e focego , com que me deita.
Dizia a mulher que tal Padre nao ha-
via entrado , nem lahido, e dizer ou .
tra couſa, ou era engano, ou delirio :
O meſmo lhe reſpondia ſeu eſpoſo ,
nao crendo que ella, deixaſſe de ter
viſto ao Veneravel Religioſc. Veio a
familia , e vendo que o enfermo efta-
va em ſeu inteiro , e perfeito juizo ;
teftificárað todos naõ haverem viſto
o Veneravel Padre , que preciſamen-
te devia entrar , e ſahir por onde elles
o viſlem ; quanto mais que a porta da
sua eſtivera por todo aquelle tempo
7 fechada , enaõ ſe abrira . Finalmente
á viſta de todas eſtas circunſtancias,
aſſentou - ſe que a viſita , que o carita .
tivo Padre havia feito a elte ſeu devo .
10 , nao podia deixar de haver ſido mic
lagroſa. = Eſtava afflictiſſima , por
cauſa de certo incidente , Izabel de
Navas , mulher de Miguel Ortiz , e
poftoque deſejava ir fallar ao Servo
de Deos ao ſeu Hoſpicio , tinha im
pedimento para o poder aſſim fazer;
e anguftiada, oao menos pela diffi-
culdade , que pela pena , o chamou
muito intimamente dentro do ſeu co-
raçao : no meſmo ponto o vio entrar
por hum apoſento , perguntando-lhe :
Irmāa minha , o que mequer ? Que je
lhe offerece ? Reſpirou a pobre mu,
Tom . VII,
20 de Settembro: 467
lber da ſua conſternaçaõ com eſte
grande alivio . Comunicou ao Vene
ravel Padre o teu trabalho, e ouvido
com muita conſolaçao o conſelho ,ſe
auzentou logo o bom Padre . Se ſe
houveſlem de expender todos os ſuc
ceflos deſta natureza, que lhe acon .
tecêraõ , ſeriaõ neceſſarios volumes
e mais volumes.
116 O ſeu coraçao , ao modo que
o do grande Agostinho, abrazava-ſe
em vivas chãmas de caridade. O cer
to he que nao poderia amar a Deos
com tað finos extremos , quem nao
amaſſe ao ſeu proximo com demon
ſtraçoens tao benéficas, e efficazes.
O que nao faria este bom Servo para
levar , e elevar os homens a ſeu Se
nhor ! Todas as palavras , movimen .
tos , e obras reſpiravao eſta ſua inſa
ciavel ambiçaõ , eftes ſeus ardentiſſi .
mos deſejos. A ſua humildade , eo
continuo deſconhecimento , em que
lempre vivêo , dasſuas excellentes vir .
tudes o fazia chorar amargamente as
ſuas culpas ; mas ſe chorava as pro
prias , nao lhe deviao menos ſuffra
gio as alheas. Chorava-as elle á imi
cacao de ſeu , enoſſo grande Padre S.
Domingos , no confeſſionario , e com
tanta dor , e intenſao , que nao pou
cas vezes attrahia com asſuas lagri
mas as lagrimas dos peccadores, que
lhe chegavao aos pés . Era elle Con
feſſor de certa peſſoa conſagrada a
Deos , que , além de outros muitos, e
grandes trabalhos, ſe via atormenta .
da de hũa tao cruel tentaçao , que por
todos os caminhos hia conduzindo
aquella pobre alma ao precipicio de
húa deleſperaçao , allim pela qualida.
de della , como pelo pejo que ſentia
a meſma peſſoa em confeflalla. Foi a
buſcalla o Servo de Deos, e diſſe-lhe
ellaque antes eſtava de animo de
condenar-ſe , do que confeſſar a ſua
miſeria , e confuſao. Ouvindo hūa
reſpoſta taõ deſarrezoada o Servo de
Deos , começou a chorar tao enter
necida, e copioſamente , que pode
abrandar com as ſuas lagrimas aquel.
Nno ii le
468 FR . FRANCISCO DE POSSADAS , 20 de Settembro
le endurecido coraçao : Confeſſou-
ſe com muita dor : ouvio os Santos
conſelhos do Veneravel Padre , ecom
tanta fortuna , que dalli em diante ſe
vio tao livre de tao trabalhoſos peń-
ſamentos, que nao corria , ſenao que
voava ao alco da perfeiçao .
117 Sendo tao compaſſivo com as
almas , nao o foi menos com os cor-
pos . Muita gente rica lhe dava di-
nheiros , que elle diſtribuía miſeri.
cordioſiſſimamente pelos pobres de
Chrifto . Nao tem numero as fáias , e
mantos , com que elle ſoccorreo don-
zellas , viuvas , e pobres ; menos o
tem os veſtidos , que repartio por ho •
mens , e meninos, e por outras mui-
tas pefloas de vergonha. Quando nao
tinha mais que dar , entao parece que
dava mais ; porque daya o coraçao
com que dera , egueria dar . Quemais
querem de mim ? Efe habito ? = Ven .
do entrar na Igreja hūa pobre mu-
Ther , ao parecer ſem camiza, ſubio á
cella , e pegando de hum lançol, de
que ſomente le ſervia em occaliao de
moleftia , lho entregou , dizendo -lhe :
Minha Irmãa , faça dahi hữa cami- , ſe, ſem ſe ſaber como , que o capital
za . Em outra occaſiao vendo tam . havia creſcido em muito maisdodo
bem na Igreja hum menino totalmen .
te deſpidinho , fubio apreſſadamente
á cella com o coraçaõ mui cortado
deſta viſta , pegou dehum penteador
que tinha, e deo -o a ſua mãy , dizen-
no - lhe : Tome lá para veſtir o melhor
que puder eſſe menino. Muitas vezes
calçou os pés dos pobres , ficando ele
le deſcalço , ou pouco menos que deſ-
calço , por ſe ficar ſervindo de çapa-
tos mui velhos , e deſmantelados ; e
fe entað lhe perguntavaô pelo ſeu cal .
çado , dizia que padecia muito dos
rés , e que ailim andava mais á fua
voniade . Nao eraõ poucas as vezes
em queentrava na ſua pobre cella a
tirar della as toalhas , e camizas,deſ-
provendo -ſe a ſi, para prover , eacu
dir ao ſeu proximo . Pallou em certo
dia no maior rigor do inverno ao ſeu
Convento de Scala Cæli , e achando
alli hum Religioſo mui pobre , emallas , ſenao
reparado do frio , que grandemente
o moleſtava , deſpio os ſeus calçoens ,
deo - lhos , e ficou lem ter que veftir.
= Chegou a elle hũa mulher muito
pobre , e muito falta de roupa ; eco
mo entao dao tinha dinheiro , ficou
hum tanto penſativo , e deigoſtoſo ; e
occorrendo- lhe que tinha na cella hũa
cortina de baeta , foi correndo a buſ
calla , e com ella teve aquella mulher
com que acudir igualmente a ſua de .
cencia , que á ſua neceſſidade.
118 Tanto ſe agradava o Senhor
deſta beneficencia de ſeu Servo , que
muitas vezes obrou por leu reſpeito
o prodigio de multiplicar os generos
das
das eſmolas , que elle fazia. Eſtava
o Servo de Deos com duas peſſoas
fuas dirigidas , quando lhe trouxerao
hữa certa ſomma de dinheiro. Im
mediatamente começou a repartillo
em varias porçoens, que logo foi man
dando a algūas caſas ; mas reflectin .
do quem eſtava preſente da quanci
dade que le lhe entregou , e combi
nando -a com as quantidades, que o
caritativo eſmóler diſtribuio , achou
bro . Deo o Servo de Deosa Franciſ
ca de Torres eſmola para comprar
hum paõ ; mas ella depois achou- a
dobrada , e teve com que comprar
dous, como aſſim o preſenciáraõ ſuas
meſmas filhas. = Adoecêra Antonio
Cabeçon , e a tempo em que eſtava
em grande neceſſidade, mandou -lhe
Servo de Deos algum
ra ſe remediar ; e nao havendo , nem
entrando outro em caſa , le foi ga
Stando na cúra , e no ſuſtento de ſua
mulher , e da mais familia por tempo
de quarenta dias , que durou a enfer .
midade , e ainda a eſte tempo havia
dinheiro : deſorte que , bem calcula
dos os gaſtos , que ſe fizerað , cref
ceo em quatro tantos aquella elmola
do noſo Fr.Franciſco .= Naoſómen
te ſuccediaô eftas prodigioſas multi
plicaçoens quando elle dava as eſmó .
tambem quando as rece
bia,
 FR . FRANCISCO DE POSSADAS, 20
e bia . Tendo comprado hūabõa quá.
tidade de legumes para ſemear , Ca-
tharina de Pino , falcáraõ na ultima
medida douscelemins: offereceo ou
tros dous ao Servo de Deos , que era
ſeu Confeſſor , dizendo - lhe com pie-
doſa ſinceridade , que lhe nao fazia
aquella offerta , ſenao a Maria San-
tiſſima. Quando houve de fazer a ſua
fementeira, tornou a medir , eachou
que a derradeira medida, para que fal.
favao a principio dous celemins; eago-
ra por boas contas haviao de faltar
quatro , por cauſa dos outros dous ,
que dera de eſmola ao Veneravel Pa.
dre , nao ſomente nao eſtava diminu-
ta , ſenaõ repleta , e ainda creſciao
ſobejos. Affim remunerou Deos not .
10 Senhor em mais de duplo aquella
porçao, que ſe havia dado por ſeu amor
à leu Servo. Vejamos agora outros ef-
feitos nao menos maravilholos , e mais
importantes da ſua tao notavel cari-
dade .
119 O anno de 1708. foi eſteriliſſi-
mo , e mui aveſſo para os pobres , que
eftalavað , e morriao de pura miſeria.
Hum deſtes ſuſtentava a ſua caſa pe .
lo ſerviço , que fazia em hūa herda-
de ; porém ,morto leu dono , paſſou
1 a outro , e por cauſa deſta novidade
foi deſpedido. Cuidou o homem de
1 endoudecer á viſta deſte incidenre ;
e deſeſperando , como nao devera ,
! da Miſericordia , e Providencia Di.
vina , cuidou que atalhava aquelle mal
com precipitar-ſe em outro infinita.
mente peyor , ſendo homicida de ſi
meſmo. Allucinado com este ruim
penſamento , ſahio da Cidade com
húa corda debaixo do braço , comin : ' do o inimigo tao bem entaboladas as
tentos de enforcar- ſe fóra della em ſuas malditas diligencias , lhe affeava
1 qualquer arvore . Ninguem preſumio
talcouſa ; porque o triſte ſe havia por
tado com muita manha , para que nin-
guem lhe percebelle o projecto : ſó
mente nað ſeoccultou 'elte a Fr. Fran-
ciſco lá no retiro da ſua cella ; e allu-
miado , e nao menos compadecido
de hūa tao barbara , e irracionavel de-
liberaçao tomou a capa , e foi a toda
de Settembro. 469
a preſſa em ſeguimento daquelle deſef
perado : achou- o , e perguntou - lhe
aonde hia ? Padre ( reſpondeo elle )
peço - lhe que nao me de'tenha ; por
que vou a couſa de cuidado , e nañ
ſoffre dilaçoens. Sim ; ( replicou o Ve .
neravel Padre deſviando The hũa vole
ta do capote , mas para que levas esſa
corda ? Vic -ſe apanhado, e nao teve
outro remedio ſenaõ confettar a ſua
culpa . Trouxe- o comligo o Servo
de Deos á ſua cella , e alli o admoe
ftou á contriçao de hum peccado'tað
feio , animando- o muito a que tiveſſe
eſperança em Deos, que nao deixa
ria de olhar, como Pay , para o ſeu a
perto , e neceſſidade. Tornou o ho,
mem para caſa mui arrependido do
ſeu primeiro propoſito , e nao menos
conſolado dasfantasrazoens, com que
obomReligioſo o deſpedio.Foi eſte loj
go no outro dia fallar com hum Pre .
bendado , que ás ſuas inſtancias lhe ac
cômodou eſte affilhado em outras tér.
ras ſuas, com o que ficou deſonera ,.
do da ſua triſteza , e conſternaçao.
120 Vivia hum homem calado em
duriſſima guerra com ſua propria māy,
pelo máo modo que eſta tinha com ſuz
mulher amofinando -a em quanto po .
dia com muitas femrazoens; e dei .
xou.ſe o filho cegar tanto , em certa
occaſiao , da ſua colera , que pegan
do della , hia a precipitalla de hum
corredor abaixo , e aſlim o execurá
ra , ſe naõlha tiraſlēdasmaos . Tornou
depois em ſi, e conſiderando naquel.
la lua inconſideraçað , deo entrada a
hūa profunda melancolia, de quedei .
xou lenhorear o ſeu coraçao : achan .
a graveza daquella culpa , e lha pinta
va indigna de perdao . Depois dean
dar batalhando com eſtas confuſoens,
aſlentou comſigo, que nao podia achar
melhor expediente para livrar - ſe de
hữa vida taõ eſpinhoſa , e amarga , do
que deitando húa corda ao pelcoço.
Sahio finalmente de ſua caſa reſoluto
em commetter eſta grande barbarida .
de ;
 470 FR. FRANCISCO DE
de ; e indo ja perto de hūas oliveiras,
ouvio dizer : Irmao, irmao. Voltou
a cara , e deo com os olhos no Servo
de Deos , que vinha ſeguindo - o a to
da a preffa , e quando chegou a elle ,
perguntou -lhe aonde hia ? Pallear,
reſpondeo o outro ; e o VeneralPa-
dre : Muito mao paſſeo leva. Nao fac
be que Deos be Pay de infinita Mi.
Jericordia ? Pois que quer dizer iſſo ?
replicou o outro. Quem negao que he ?
Largue, ( continuou Fr. Franciſco )
largue o que leva debaixo do braço.
Que hei de eu levar , ( acudio aquel.
le triſte homem ) ſe nada levo ? Entao
o Veneravel Padre , alargando a mao ,
The tirou o inſtrumento com que hia
matar - ſe , je continuou dizendo: Aino
da
que ſeja grande o peccado, que fez,
pondo violentamente as mãos em ſua
māy, he infinitamente maior a bonda.
de de Deos , os merecimentos do San .
gue de Chriſto , e a interceſ aõ de fua
Māy Santiſima , que tambem he Mãy
de peccadores. Entao o trouxe com
figo ao ſeu Hoſpicio, e o diſpôs a fa-
zer, como fez dentro de tres dias ,
hữa Confilſað geral , e depois deo hữa
jufta , e nao menos efficaz reprehen-
faõ a ſua máy , para ſe abſter dalli em
diante dos ſeus exceſlos com que ha .
via cauſado tantos eſcandalos, e pre-
cipicaçoens . = Em outra occaſiaõ , ſe-
ria pela hūa hora depois do meio dia ,
chamou apreſladamente a Fr. Francif-
co de Herrera , dizendo -lhe que pu-
zeſſe a capa muito depreſſa. Sahiraó
ambos , e forao correndo no alcance
de hum homem , que tambem naõhia
com muita fleima, e logo que o al
cançaraó , lhe diſle o Servo de Deos :
Irmao, eſtá em ſeu juizo ? Que quer
fazer ? Como nao eſpera em Deos ?
E dizendo iſto , tirou -lhe hũa corda ,
que levava de baixo do braço . Ficou
o pobre traſpaſlado, e cheio de ter-
ror á viſta do que acabava de ſucce-
der-lhe , e de plano confeſſou que
caminhava com intento de enforcar-
fe . Deixou - o arrependido , e aconte-
lhado , e auſentou -le.
POŠSADAS , 20 de Settembro:
121 Nao fómente lhe deo , e con .
cedeo o Senhor a graça de ver bem lo
gradas as fervorolas diligencias, a que
o moviaõ as chammas da ſua inextin
guivel caridade , ſenao que as honrou ,
e condecorou com eſtupendos, e ex
traordinarios prodigios. Era caſa
do Chriſtovao
Rodrigues , que ſervia
no Convento de Scala Cæli , com Ma
ria Antonia de Galvez ; e havendo
eſta adoecido de hūa graviſſima quei
xa por Agoſto de 1697. , ainda em De
zembro do meſmo anno ſe achava de
fticuida de melhorias : por este tem
po teve hum parto nao eſperado , dan
do á luz hum menino , que morreo
oito dias depois. Aos tres dias de pa
rida, em que ja hia tendomais alivio ,
fez eſta mulher o eſtranho deſpropo
fito de levantar -ſe da cama a comer
couſa , que conhecidamente nao po
dia deixar de lhe fazermuito damno :
por eſta cauſa , e nao menos pelo ar
de eſtaçaõ taõ deſabrida , que lhe en
trou por hūa janella , ſelhe aggravou
o mal de modo , que os Medicos a
deraõ por morta dentro de hum bre
viſſimo termo; e com effeito apenas
le lhe podiaõ
ja perceber alguns pou
cos , e tenuiffimor ſinaes de vivente .
Reparou o Servo de Deos na deſcon
folacao do marido , e diſſe - lhe : Chri
ſtovao , o que tens, que andastaõ triſte,
é tao deſcabido ? Pois nað hei de an
darſ relpondeo elle ] eſperando por
inſtantes a morte de minha mulher ?
Eu ſinto muito iſo ; ( tornou o Servo
de Deos ) mas ouve o que te digo , re
morrer naõ confintas que lhe viſtao
mortalha : vem logo chamar-me, que
eu irei lá , e hajaniſto ſegredo. Mor
reo finalmente a enferma cinco dias
depois que os Medicos a abandona
rað ; e como neſte tempo apenas ſe
lhe conhecia , como 'ja diſſemos , ſi
naldevida , agora quizeram certificar
ſe bem do ſeu fallecimento , fazendo
as diligencias poſſiveis para examinar
acerteza , ou incerteza dette obito , e
depuzeraõ doze petioas que realmen
te havia expirado, e eſtava defunta .
Nao
 FR . FRANCISCO DE POSSADAS, 20 de Settembro .
Nao quiz o marido que fofle amorta
amorta.
lhada, e fahio a todaa preſla a dar par-
te ao Padre PofTadas: quando chegou
á porta do Hoſpicio , conhecendo o
Veneravel Padre quem chamava , dif-
ſe de dentro : Chriſtovao? Padre Pol-
fadas, ( reſpondeo elle ) e o Venera.. zelozó , e diligente Operario da Via
vel Padre continuou perguntando o
que havia de novo ; e ſabendo ſer mor .
ta Maria Aptonia , fabio mettendo na
manga dous biſcoutos. Chovia entao
muito ; mas nem hūa gotta de agua
the cahio emcima . Chegando a pre-
ſença da defunta , chamou por ella
dizendo : Maria , e ella reſpondeo ,
Senhor , abrindo os olhos : perguntou:
lhe ſe tinha alguma cousa que confef-
far , ao que reſpondeo que nao . Co.
nheces-me? [ tornou o Veneravel Pa .
dre ] e ella diſſe que ſim . Pois quem
fou eu ? Continuou o Servo deDeos.
i O meu Padre Fr. Franciſco de Pofla .
des , reſpondeo a reſuſcitada mulher :
Diſle lhe ſe queria comer , e reſpon-
deo que fim ; deo -lhe logo hum bif-
coutinho , e pedindo mais, entao lhe
deo o outro , e ficou a mulher cao bem
diſpoſta , que logo naquella manhaá
eomeo meia gallinha , e andou no ou-
tro dia livremente pela caſa .
122 Atégora temos viſto quanto ſe
exaltou eſte Sol de virtude ao meio
dia da perfeiçaõ ; obſervemos agora
os paſſos com que elle foi declinando
( mas ſempre com as meſmas luzes )
para as viſinhanças do Occaſo damor
te , le he juſto que tenha eſte nome
húa morte mais precioſa , e maisama
vel , que todasas vidas . Trabalhando
iempre de dia , e de noite , ſempre
cuidava , que era nada o que fazia . A
aurora ainda dormia, quando elle ja
vigiava , lavando - ſe nas lagrimas da
ſua devoçao , mais gratas a Deos ,do
que o ſao ao mundo as do orvalho da
manhaa : eſte era o lavatorio , em que
elle ſe purificava, para ſubir ao lugar
do Sacrificio . Logo cuidava em afſig .
nar o tempo , em que havia de reſpon-
der a muicas conſultas, e propoſtas ;
em ver que meios , e arbitrios havia
471
de buſcar para compôr diſcordias ;
em que aſſuinptos podia diſcorrer nos
ſeus Sermoens , que foſſem de maior 1
gloria para Deos , e de mais utilidade
para as almas, e em outras muitas ne
gociaçoens eſpirituaes, com que eſte
nha do Senhor andava continuamen
te embebido , e occupado: o que era
em tanto extremo , que houve quem
fe offerecefle ajurar , que nos ultimos
dezoito annos da ſua vida , jamais o
vio parar , nenhum inſtante. Mas que
muito le era Sol ! Quando a occaſião ,
ou a prudencia o detinha com ſecu .
lares , convertia em edificaçao, o que
pudera ſer profanidade, ſem que ſe
fizeſle por iſſo moleſto, ou faſtidioso.
Se o impediaõ as ſuas moleſtias, gaſta
va todo o tempo com Deos , orando
rezando, e lendo ; e ſe algūas vezes nað
tinha occaſia para exercitar -ſe neſtas
ſantas occupaçoens , procurava algum
trabalho manual, em que ſe entreter,
como quem nao deixava de conhecer
as muitas, e grandes ruinas , que ſe
ſeguem do ocio. O coſtume, que ja
diſlemos ſer nelle mui ordinario , de
andar ſempre ſem cobertura na cabe
ça , pela calma , pelo vento , e pela
chuva , e nao menos a abſtracçao , ou
elevaçao dos ſentidos, ſem que o pu
delle perturbar o maior tumulto , ou
reboliço das gentes, bem indicava a
continua preſença de Deos , e oſum
moreſpeito , que lhe tinha em toda a
parte , em que o conſiderava preſen
te . A gravidade dos ſeus paſſos, e
a compoſtura dos ſeusolhos , eraõ húa
cabal demonſtraçao da ſua modeftia ,
alhea do menor átomo de artificio ,
ou hypocriſia.
123 A ſua penitencia antes foi
monſtruoſa , do que imitavel. A pal
lidez do ſeu rotto era o melhor , e
mais expreſſo ſobreeſcrito da ſua mor
tificaçao. Era o Servo de Deos mui
to acompanhado nasMifloens, que fa
zia, de hum ſeu filho eſpiritual; e
obſervando eſte as muitas vezes ,que
o Veneravel Padre ſe abaixava a co .
lher
 472 FR. FRANCISCO DE
lher cerca herva do campo , pergun-
tou-lhe , movido da curioſidade , pelo
preftimo que ella tinha. He bõa ( reſ-
pondeo o VeneravelMiſſionario ) pa-
radepois decomer. Cuidou o homem
que era aſſim , e apanhou hūa pouca
para fazer experiencia ; mastanto que
a goſtou , e conheceo a ſua inſoppor-
tavel amargura , começou a deitalla
fóra , e a cuſpir tanto , que o Padre
Pofladas lhe achou nifto muita graça ..
Parecendo-lhe que ainda ſe nao more
tificava nas Milloens, caminhando
ſempre ſem cavalgadora , e com os pés
feridos , e gretados , accumulou a eſte
incommodo outro nao menos mole-
fo : deitava dentro dos çapatos miu-
das pedras , para que cada paſlo , que
delle , lhe cuftaffe hum eſpontaneoços eſtendidos;
martyrio . Juntava ſe á noite com os
1
ſeus filhos eſpiritnaes, e acabados os
exercicios , os ficava continuando
por toda a noite . Viſitava a Via Sa.
cra deſcalço com hūa coroa de eſpi.
nhos na cabeça , e hūa pezada Cruz
aos hombros, e em chegando ao Cal-
vario , alli ſe detinha em Oraçao mais
dilatadamente. Logo deixava a Cruz ,
tomando a diciplina, que era , á imi.
taçaõ de noflo Santiſſimo Patriarcha
Domingos , hũa cadêa de ferro , cujas
pontas eraõ rematadas , ora com fuziz
ora com rozetas,com que raſgava, e ca-
ſtigava o ſeu Veneravel corpo ,naõ ſe
dando por ſatisfeito , em quanto nao
ſentia correr ſangue em grande copia ,
de que ordinariamente ficavao ſalpi-
cadas as paredes . Quando chegou aos
cincoenta annos da ſua idade , foi- lhe
preciſo ſujeitar -ſe ao conſelho dos Me-
dicos , portando -ſe com mais alguma
moderaçao , nunca deixando de di-
ciplinar -ſe, poſtoque com menos ri-
gor : e melhor diſſeramoscom maior ;
porque mais ſentia na violencia com
que ſe abftinha , do que pudera ſen-
tir na violencia com que ſe mortificá.
ra .
124 Havendo cumprido eſtes de-
votos, e mortificados exercicios, reza-
va Matinas á meia noite , e ultima-
POSSADAS, 20 de Settembro.
mente ſe dava á Oraçao , em que ſe
detinha por largo tempo , e depois
concedia algum , que ſempreera mui
to pouco , ao ſeu deſcanſo, que or .
dinariamente conſiſtia em deitar-ſe
fobre hum banco , ou em reclinar ſo
bre elle acabeça , e braços, deixan
do-le ficar de joelhos . Outras vezes,
como filho tað legitimo de noſſo eſ
clarecido Patriarcha, ſe deixava ficar,
como elle , encoſtado á grade do Al
tar , ou ſe nao , recolhia -ſe á lua cella ,
pouco antes que rompeßea madruga
da , e deſpindo -ſe , menos a roupa ne
ceflaria á decencia da honeſtidade ,
procurava deſcanſar em outro novo
genero de mortificaçao, que era hūa
Cruz , a que le encoitava com os bra
e ſe algumas vezes
ſe deitava na ſua cama , nem por iſlo
paſlava com mais commodo o pouco
tempo , que tomava para fazer tregoas
com tantas mortificaçoens , por ſer
tao pobre , e tao dura , que era com
poſta de duas taboas com hum tron
co por cabeceira . Era muito ordinario
no Servo de Deos em outras muitas
noites , depois de apanhar os mais Re
ligioſos recolhidos, lahir do Conven
to deſcalço com a coroa de elpinhos
na cabeça , e a Cruz aos hombros ,
deſcendo por hūa ladeira mui empi
nada, e trabalhoſa, até chegar a hum
riacho , que ſe chamava de S. Alva
ro , e atraveſlando - o tomava o cami .
nho de outra ſubida mui alcantilada,
e nao menos difficil, e naõdeſcanfaa
va , em quanto nao chegava ao alco
della , em que eſtava hūa Ermida,que
era o ſeu lugar eſcolhido, para alli ſe
entregar ás ſuas tao auſtéras peniten
cias ; e ſe nao , fubia a outro monre
chamado de Magdalena, que eracam
bem mui cuſtoſo , e alli procurava ſer ,
e era , hum fiel imitador das rigoroa
las aſperezas, praticadas por aquella
Santa Peccadora nas faudoſas ſolidoēs
de Marſelha, Alli ao ſom dos eccos
das diciplinas de ſangue, que coma
va , e com canto mais goſto , quanto
ſe dava por mais ſeguro de ſer obſer
vado
 FR . FRANCISCO DE
vedo naquelles intrataveis retiros, ſe
expraiava o ſeu amor nos terniſſimos,
e abrazados colloquios, que tinha com
o ſeu Amado ; e nao ſeriaõ poucas as
vezes que entoaſle ao meſmo tempo
hum acto de contriçao, de que muito
goſtava, de que paſſamos a dar a ver-
jaõ , por ſatisfazer melhor á devoçao ,
e curioſidade dos Leitores.
de offender -vos,
Ob quanto eſtou
Amado JESUS , contrito ,
Conſiderando o que fois ,
E o que fou , e tenho ſido !
Ob je desfeito em pedaços
Hum coraçao tao iniquo
Pudera aſſim desfazer
Quanto tem feito de indigno !
Nao me cauſao eſta dor
Mil infernos merecidos :
Pezar , que olha para penas ,
He pezar ; mas nao he fino.
Nem me perſuade a gloria ,
Que perdipor meus delictos:
Poro eu ter gloria maior,
Que chorar arrependido ?
Movem me as vol as offenfas ;
Deos Amante , Deos Benigno :
Que me haveis tanto eſperado ,
Que tanto me baveis sofrido.
Confeſarei penitente
I antos , e tað feios vicios :
Farei as pazes comvoſco ,
1 Guerra a voros inimigos.
Cumprirei a penitencia ,
Que me der volo Miniſtro;
E acumprira a ſer tao grande,
Quaes minhas culpas tem fido.
Pequei , prometto emendar-me
Adorado Crucifixo:
Pequei , apague meus erros
O volo Sangue Divino .
125 Aſſim gaſtava as noites o Ser-
vo de Deos , e tað fantamente , que
achando-ſe doente fua máy em caſa
de Dona Flora de Villa Real , e ſeo-
do mandado aſſiſtir -lhe por obedien-
cia , em hūa dellas foi viſto coroado
de hum clariſſimo raio de luz ,
ſubia até o tecto da cala . Teve o Ve-
Tom . VII .
POSSADAS , 20 de Settembro: 473
neravel Religioſo hua enfermidade ,
em que o Medico lhe mandou deitar
hūas ſanguelugas na eſpadoa : reſolu
çaõ foietta, que elle ſentio muito , vin
do-lhe a ſer mais cuſtoſo o remedio ,
que o mal , aſſim pelo pejo , que nao
podia deixar de ſentir a ſua honeſtia
dade , como por ſe haverem de def
cobrir os efieitos da lua aſſombrola
penitencia. Obedeceo , e delcuberta
aquella parte , a acharao tao cuberta
de negros vergoens com regos , e
Turcos feicos á vontade dos golpes ,
que a troços osretalhavao , e dividiao.
Deo -ſe parte ao Prelado , que man
dou que ſe lhe tiraffem , e ſumiſiem
os cilicios, cautéla que elle primeiro
havia tido , tirando -os , e eſconden
do - os . Eſta ordem do Superior foi
Para elle muito mais penoſa, e ſen
fivel do que os effeitos daquelles in- ,
ſtrumentos, de que agora o mandavao
deſpojar ; porque huns feriao -lhe o
corpo , e este preceito o mais vivo da
alma . Buſcaraó -le , e nao ſe acharao
todos ; mas baſtou o que appareceo ,
que foi hum cilicio de afperiſſimas ,
cedas , e hūa Cruz com hum gibao
de ferro com agudiflimas pontas, para
cauſar igual terror , que admiraçao.
Curárað -ſe - lhe com os remedios mais
adoçantes , e anodinos as chagas, que
elle coltumava curar com ſalmoura ,
que bem que ſurria o effeito da me
Thojia , ja ſe deixa ver com que rigor
o ſurtiria. Ulava elle de hū a cadea de
ferro de crinta e tres fuzîs , em mea
moria , e reverencia de outro tantos
annos , que Chrifto noſſo bem viveo
entre nós . Daqui andava pendente hūa
Cruz de ferro , que trazia ajuſtada no
alto dascoſtas , da largura de hum pal
mo , e de hum arrateldepezo , com
quinze perfurantes pontas, em obſe
quio dos quinze Mvſterios do Roſa
rio Santiſſimo da Máy de Deos . Ti
nha nas ſuas extremidades hups en
gonços , de que fahiao ſuas planchas
de ferro : de muitas deſtastrazia pre
que' zos , e opprimidos ſeusbraços , e ana
dava com hum devoto Crucifixo fo
Ooo bres
474 FR . FRANCISCO DE POSSADAS , 20 de Settembro .
brepoſto ſobre o peito. Tambem uſa-
va muito de būs ſaia de malha de aço ,
repleta de ſubtiliſſimas pontas , e de
hum gibaõ de duras , e indomitas ce-
das . Cingia -ſe com hũa cadea de fer
10 ; e tanto ulo lhe deo , que dentro
em cinco annos fe quebrou ; mas lo-
go lubftitulo outra a ſua falta . Hum
dia quiz fahir hum criado muito cedo
do Hoſpicio , e indo aviſar hum Ir-
mao Leigo , luccedeo paſſar pela cel .
la do Servo de Deos , e comovio que
havia luz dentro, moveo-o a curioſida,
de a ver o ý faria aquellashoras quem
gaſtava as noites em tanta Oração , e
penitencia ; e olhando por hūa peque-
na fretta , o vio deſpido , e aperiado
pela cintura com hūa groſſa cadea de
ferro .
126 Quandoja nos ſeus ultimos an-
nos pela decadencia das forças, e pe .
la prohibiçaõ dos Medicos , nao po-
dia o corpo ſeguir os voos do eſpiri-
to , lia , para ſua conſolaçao , algum
livro dos Padres do ermo ; e notan
do os palmoſos rigores , em que tan-
to ſe eſmerárao os Anacoretas , dizia
elle entao cotejando , com mais hu
mildade, que exacçao ,aquellas aufte
ridades com as ſuas: Eis -aqui o que
erao penitencias ; eis -aqui o que era '
fer ſanto ; e no geſto , e ſemblante
com que o dizia, bem demonſtrava a
ſingeleza ; e o fervor defte ſeu penſa.
mento. Aſlim brilhou , aſſim reſplan-
deceo no mundo em virtudes , mere .
cimentos,e milagres eſte VaraodoCeo .
Tanto reſplandeceo , tanto brilhou ,
que ſendo os Reynos de Heſpanhia
pequeno horizonte para tao eſclare .
cido, e prodigioſo Sol, chegáraó a
diffundir - ſe as luzes da ſua ſantidade
em paizes eſtranhos , e remotos . Paf-
ſou da Cidade de Cordova á de Ro-
ma . Affonſo Alvares atraveſſou a Frã .
ça , paſſou pelo Reino de Napoles, e
correo muita parte da Italia ; e em to-
das aquellas por onde paſlou , teve
a conſolaçao de ouvir fallar no Servo
de Deos com ſummo decoro , inve-
jando - lhe todos a dita de ſer de hũa
terra , aonde o Altiffimo havia poſto
hum ſeu Miniſtro tao maravilhoſo , e
tao lanto. Temos viſto a ſua exempla
riſſima vida, tempo he ja que admi
remos a ſua tao precioſa morte .
126 O mais luminoſo de todos os
Aftros , quando ſe poem no Occiden
te , entað ſe manifeſta mais pobre de
luzes : nao aſſim o Servo de Deos ;
quanto mais ſe aviſinhava para o leu
Occaſo , que elle conhecia tao alta
mente , entao moſtrou melhor o he
roico das ſuas valentias eſta grande
alma ; porém que muito que aſſimo
fizeſle , quem nunca vio amanhecer
bum dia com eſperança de chegar a
outro , eſtando aparelhado ſempre pa
ra o golpe , nunca deſprevenido para
a conta ? Dous annos antes que mor
reſle o ſanto Varað , teve hum myſte
rioſo , e profetico ſonho alluſivo ás
grandes honras, que depois de defun
to ſe lhe fizeraõ ; mas era tað humil
de , que o teve por aerea fantazia :
mas o tempo o verificou por infalli
vel realidade. Contou elle o como
paſfára , dizendo aſſim : Sonhei que
me paſavao morto para o Convento
de J. Paulo , e que me ſeguia būa no
tavel multidaõ de gente , que ancio
samente ſe chegava ao feretropara to
car em mim os ſeus Roſarios. Póde
baver ( concluía elle ) maior diſpara
te ! Vejaõ que Santo ! Vejaõ qiie San
to ! Padre ( The reſpondeo hum dos
que alli eſtavao , e fazia o devido con
ceito da virtudes do Servo de Deos )
bem o póde Deos fazer. Nað goſtou
deſta inſtancia o Veneravel Padre , e
reſpondendo que para Deos nao havia
impoſſiveis , mudou de propoſito.
128 Tem os Religioſos do Con
vento de Scala Cæli a ſua enferma
ria , e os ſeus jazigos no Convento de
S. Paulo , para onde paſſaõ logo que
adoecem : iſto porém nao obitance ,
dizia , e ratificava o Servo de Deos ,
que havia de morrer no ſeu Hoſpi
cio . Deſejava muito hūa das ſuas fi
Thas eſpirituaes ficar com hūa veroni.
ca do ſeu Roſario , e lhe pedio elta
preno
 FR . FRANCISCO DE POSSADAS, 20 de Settembro ,
prenda . Quando eu morrer [ lhe dif-
feelle ) entao a tomara. Padre [ inſtou
ella ]melhor ſerá que Vofla Paternida-
de agora me defira ; porque quando
chegar o tempo da ſua morte , leval-
lo - hao para S. Paulo , e morrendolá,
quem ha de dar - me a medalha, que
The peço , ou que occaſiao poderei eu
ter para a tomar. Eu ( tornou o Ve-
neravel Padre . ) aqui bei de acabar , e
nao em S. Paulo , e quando iſo for ,
entao a poderá tomar. Do modo que
o diſſe , aſſim veio a acontecer , ſem
amenor diſcrepancia . Tambem pre-
7 difle muitas vezes que havia de ſerre-
pentina a ſua morte : quiz deſvane.
cer - lhe eſta apprehenſaõ certa peſſoa
muito ſua devota ; mas o Veneravel
Padre , ficando muito firme na ſua pro-
poſiçao , lhe reſpondeo : Tu o verds;
1 e aflim foi , que o vio . Em hum dos
dias proximos á ſua feliz morte , ti-
rou huns papeis , e diſle : Aquitenho
a minha fé de Bautiſmo, e a do meu
babito , e profilao ; porque foi em dia
de Santa Catharina , tenho muita de
voçaõ com eſta Santa. Poucos, e bem
poucos dias me ficaō jareftando de vi-
da. Inftáraó - lhe que Deos noſſo Se-
nhor como Aucbor della , lha podia
dar ainda muito dilatada . He verda .
de ( tornou elle ) que aſſim he ; mas
bem depreſame veraõmorrer ; enao
tardou muito que le nao verificaſſe
eſta fua aſſerçao . Diffe tambem muitas
vezes a Pedro Martin Garcia , ſeu fi-
lho eſpiritual, e a outras peſoas mais ,
que pouco tempo tinha ja de viver ; e
!
em cudo moſtrou o ſucceſſo a infalli-
1
bilidade do vaticinio .
129 Mas antes que paſlemos a dar
noticia de venturoſa morte do Servo
de Deos , faremos aqui hūa abbrevia-
da memoria dos ſeus Étcritos , em que
elle tambem ſe moſtrou grande, e gran-
desſao chamados com effeito no Evan-
gelho aquelles que acompanhao a obra
com a doutrina, o exemplo com os
dictames. Para diſlipar , e deſtruir
os perniciofiflimos erros de Molinos,
eſcreveo, e fez publico hum Livro ,
Tom . VII.
4715
que intitulou : Triumphos da Caſtida
de , contra a luxuria diabolica de
Molinos. Nað ſe pode eſcufar ás fre.
quentiſſimas inſtancias , que muitas
vezes ſe lhe fizerao para que publicar
ſe os Sermoeos , que prégara em hũa
Quarelma com grande fruto , princi
palmente das primeiras peſſoas do Go
verpo , que eraõ as que ſe moſtravaõ
mais zelofas , eempenhadasneſta im
preſao , que com efeito ſe fez de
baixo deſte titulo: Latidos Evange
licos do Cað a'nobilißima Cidade de
Cordova ; ou Sermoens prégados na
fua Cathedral nas quintas feiras da
Quareſma. = Foi mui inclinado a el
crever Vidas de Servos de Deos , e
com effeito nao foi menos benemeria
to Chroniſta de Noſſo Padre S. Do
mingos , do que ſeu verdadeiro filho ,
e imitador. Compôs esta grandioſa
Vida em obſervancia do preceito ,
que lhe pôs , e impôs anbediencia , é
deſempenhou - ſe com igual prompti
dao , que acerto , dando -a concluida
dentro de mui poucos mezes , entran
do neſte computo o tempo , que ga.
ftou na ſua derradeira Millao. Foirao
bem recebida , que le gaſtou breviſ.
ſimamente a impreſſao: repetio -ſeou .
tra de muitos mais volumes , e mais
ampliada pelo Servo de Deos , eden
tro de pouco ſe conſumio toda , pelo
que ſe repetio terceira ediçao, que ſe
fez em Madrid. = Compôs, e fez
eſtampar a vida , e virtudes de hum
leu filho eſpiritual o Padre Chriſto .
vao de Santa Catharina, Presbytero ,
natural da Cidade de Merida , e fun
dador na de Cordova do Hoſpicio de
Jesus Nazareno. Foi tambem Hi
ſtoriador da Vida da Veneravel Ma
dre Soror Leonor Maria de Chriſto,
Religioſa profeſia de veo negro , do
Motteiro de Santa Maria dos Anjos
de Religiolas Dominicas da Cidade
de Jaen .
130 Eſtas faő as Obras do Servo de
Deos , que fahirað á luz;porém a maior
parte dellas conlerva -ſe manulcrita, e
laõ eltas: Carta do Eſpoſo mal correfa
Oou ii pondi,
476 FR . FRANCISCO DE
pondido de ſuas eſpoſas, que Chrifto
Senhor noſo eſcreve a's Religioſas. =
Vozes du Amor Divino. Doze pro,
priedades da Roſa de Jericó : inclue
doze diſcurlos em applauſo de Maria
Santiſſima. Dous tomos ya que deo
o titulo de Silvos , e em que moſtra
a differença dos Sibilos do Bom Pa .
ſtor Jesu Chriſto , e da Serpente in-
fernal. = Eſcreveo mais ouiro volu-
me ; porém nao com outro titulo ,
nem com outro penſamento. = Tres
Livros de Sermoens, além de outros
muitos , que deixou avulſos ; e note .
ſe que muitos delles padecerao hum
irremediavel deſcaminho , e tambem
que as ſuas continuas occupaçoens nao
The davao de ordinario lugar a fazer
papel , e era admiraçao ver a regula-
ridade , e erudiçao dos ſeus diſcurſos,
tal , que parecia que depois de largos
eſtudos , e de hūa meditaçao mui pro-
longada nao poderiaõ fahir com mais
lima , nem mais ſcientificos. Dous
Livros, que intitulou : Balî dos penis
tentes. Fez mais outros volumes ; e
eis - aqui os ſeus titulos: Pranto amar-
go ; dous tomos . = Horas de bum re
logio. = Cartas de Chriſto Espoſo d's
Religioſas fuas Eſpoſas. = Collyrio
proveitojo pora as almas tentadas da
Luxuria. Vozes da trombeta de
Iſaias. - Vozes do Amor Divino.
Deixou tambem muitos papeis , de
que ao menos diremos os ſeus titulos :
Myficas eſpigas da melhor Ruth
MARIA Santiſſima. = Affectos con-
ſagrados ao Sol da Heſpanba S. Do-
mingos no ſeu Oriente , e Occaſo ; ber-
go , e lepulchro. Deos peregrinopa-
rao Ceo. O Sõno da culpa. A Doen-
ça do peccado. O Homem inftruido.
FOTentado inſtruido. = O Aggrava-
do inſtruido. - O Convidado inftruie
do. = Tradiçuens do Alcoraõ domun
do , que ſeguem os mundanos. = O
caſtigo exemplar. Ficáraó tambem
muitas reſpostas de conlultas , que ſe
The remetterso de varias partes , e em
todas ellas ſe vê o fundo do ſeu talen-
to , ea pureza da ſua intençao . Tudo
POSSADAS, 20 de Settembro .
quanto eſcreveo , foi como ás furta
dellas por andar ſempre tao occupado ,
como temos viſto , no ſerviço de Deos ,
e no aproveitamento , e maior utili
dade dos proximos : eſtava eſcreven
do , e'era -lhe neceflariolargar a pen
na , porque o chamava a caridade,ja
Para o Confeſſionario , ja para a viſita,
e conſolaçao do enfermo , e ja para
outras muitas obras de caridade, ſuc
cedendo-lhe o meſmo, que ao Dou
tor Maximo, que lhe foi neceſario
fazer muitas , e grandes interrupçoens
nos Commentarios de Ezequiel por at
tender , e deferir á neceſlidade de
quem o procurava no retiro de Be
lem .
131 Mas ja he tempo de obſervar
mos os ultimos paſſos, que deo para
a morte o Servo de Deos ; e melhor
ſe lhe pudera dar onomede elevados
voos , com que elle ſubio tao altamen
te a lograr- ſe no Paraiſo do premio
das ſuas virtudes. Amanheceo o feliz,
e ſaudoſo dia de 20. de Settembrodo
anno de 1713., em que o noſio Vene
ravel Religioſo contava de idade 69 .
menos dous mezes , e cinco dias ,
ſubio a celebrar o ultimo Sacrificio
que havia de offerecer: e quem nelle
ſe desfazia em terniffimos affectos, e
em lagrimas taõ copiolas, que rega
va com ellas o Altar , e os corporaes,
e as caſûlas; quanto fubiria agora de
ponto neſtas amoroſiffimas demonſtra
Çoens ! Concluida a Miſſa ,paflou lo
go , á imitaçao de S. Filippe Neri ,
para o Confeſſionario a dar a ultima
deſpedida a hum Tribunal, aonde pre
lidira com tanta prudencia , como
piedade , juſtificando os juſtos muito
mais , e trazendo a Deoshum taôco .
pioſo numero de peccadores , e di
itrahidos. Alli eftere toda a manhaa
com hum ſemblante mui placido , e
ſereno , e depois ſe deſpedio de ſeus
filhos eſpirituaes , nao dando poucos
indicios de ſer eſta a derradeira vez ,
que os havia de ver , e communicar .
Recolhido ao ſeu Hoſpicio aperfei
çoou a luminoſa carreira da ſua vida
com
 FR . FRANCISCO DE POSSADAS,
( com hum novo triumpho que alcan-
E, çou do demonio , que tervio como
de prenunciar o outro , que pouco mais
depois havia de conſeguir vencendo-
o , e aſſegurando legitimamente a co-
soa de vencedor no ſeu extremo cer-
tame. Foi o cafo : havia naquelle
Hoſpicio hum Irmao Leigo , que ha
via profeflado no anno antecedente ;
e como o inimigo das almas o vio mui
zeloſo , e applicado ao ſeu maior apro .
veitamento, invejoſo de ver eſtes bons
finaes , procurou impedir- lhe os pro-
greflos da ſua virtude com as memo- rar-lhe antes o eſcapulario, do que o
sias , que muito ao vivo lhe repreſen-
tava dos goſtos, e divertimentos do
ſeculo ; e tantou apertou com eſta
a ſuggeſtao, que qualiohia ja inclinan-
do a propender para a apoftafia. Fal.
lava - lhe Deos ao coraçao , e aconſe-
lhava -lhe que conſulcaffe Fr. Francif-
I co ; mas elle nao acabou de executar
eſta ordem em tres mezes , em que
! andou inquieto , e vacilante no meio
de hûa tao rija tempeſtade de penſa-
mentos ; mas agora movido de lupe.
rior impulſo , chegou -ſe ao Venera .
vel Padre declarando -lhea ſua neceſ.
ſidade : taes , e tað efficazes , e inven-
civeis forao as razoeas que elle lhe
1 deo , que dalli em diante calmaraõ as
perturbaçoens , que tanto affligiao
aquelle Converſo ; e ficou vivendo ao
diante em húa tal paz , e quietaçao ,
como ſe a guerra que atélli ſe lhe ha-
via feito nao paſſaſie de hum leve ſom-
no.
132 Deraõ as onze horas , e meia,
e foi o Servo de Deos para a meſa :
tomou algum alimento , e muito li.
mitado , como ſempre tivera de co-
lume , e muito mais agora , que eſta .
va ja tao velho , e cortado de doen .
ças: vendo-ooutro Religiolo grande
mente eſmorecido , lhe deo hum bif-
coutinho
para molhar em agua ; mas
ficando com elle na mao , deo na 6
pequenas moſtras de ſer mortal aquel-
le accidente. Gritou o Religioſo , e
ás ſuas vozes acudio o Prior com ou
tro Padre ; e aquelle objecto , que al
20 de Settembro . 477
li ſe lhes offerecia , lhes tirou muitas
lagrimas dos olhos, e muito mais do
coraçao, vendo quanto prejuizo lhes
ameaçava a falta de hva vida tao be .
nemerita , e importante. Chamáraó
pelo Servo de Deos, pelo ſeu nome ;
porèm elle nao deo acordo algum por
muito mais altas , que fe deraõ as vo
zes. Mandou - ſe -lhe fazer a cama em
parte mais accomodada, e aquiſe ob
ſervou hūa circunſtancia digna de
muito reparo , e foi : que parecendo;
( e affim era ) que ſeria mais facil ti.
capello , ette ſe lhe tirou com ſumma
facilidade , e nao o puderaõ deſpojar
daquelle ,por muito que niſſo ſe traba
lhou: parece que iſto nao ſuccedeo
ſem providencia , e myſterio muito
particular , e diſpondo -o affim Sua
Divina Mageftade , para que ſeu Ser
vo nað mor efle deftituido de hūa
inſignia tao exprefla da ſua interior ,
e incontaminada pureza . Sobrevindo
lhe grandiſſimos ſuores, foi levado pa
ra a cama , aonde permaneceo até
morrer , com o ſanto habito. Nao tar
Jaraó em chegar os Religioſos de S.
Paulo , e os Medicos deſte meſmo
Convento ; e examinando - ſe antes de
tudo a qualidade da queixa , eraõhuns
de parecer , que ella conſiſtia em hum
accidente apoplexico : diziao outros,
é nað ſem fundamento grande , que
iſto nað paſſava de ſer algum rapto
do
amor Divino , o que era mui frequen
te no Servo de Deos ; e darem.The
com os ſymptomas , que alli ſe obſer
vava7 ao preſente , era impoſſivel.
Derao - lhe logo a Santa Unçað , e tra
tou -ſe depois da applicaçaõ de alguns
remedios: nao houve Medico algum ,
que quizeſſe deixar o Veneravel en .
fermo , poſtoque ſe lhes fizeraõ algu
mas inſtancias para que alguns ſe re
colhelem a luas cafes por ſerem ho.
ras de jantar , e que logo poderiaõtor
nar a render os que ficaſſem , moſtran .
do -ſe todos muiſolicitos, e empenha
dos na aſſiſtencia , e alivio do Servo
de Deos.
133 San
 O
CISC
478 FR. FRAN DE POSS
133 Sangrarað -no , ſarjarao - no , e
deitarao - lhe ventoſas , e a tudo isto
ſe moſtrou tao paciente como ſe fofle
infenſivel. Vendo -ſe onepbum effeito
que redundava deſtas diligencias , foi
encômendado , e abſolvido por hum
Sacerdote em virtude da Bulla da San-
la Cruzada , e dos privilegios da Or-
dem , e da Confraria do Santiſſimo
Roſario, e em continente ſe lhe can-
tou o Credo. Tornou - ſe - lhe a cantar
ás cinco e meia da tarde com alguns
Hymnos , Pfalmos , e verficulos mais
proprios á occaſiao , por ſerem mais
affe & uofos, e expreſlivos; e eſta foi
a maior liſonja , que ſe lhe pode fazer,
denotando o Servo de Deos quanto
ella era do ſeu agrado na intenſað, e
movimentos com que ouvia , ora hūas,
ora outras clauſulas , moſtrando , aſſim
piſto , como em outras muitas ſuas ac
çoenster livre o conhecimento,e eſtar
mui preoccupado , e aſſiſtido de Deos .
Pare ceo a alguns , que havia ja entre
gue o eſpirito àquelle Senhor , que
para tanta gloria ſua ocreára , e cor
ieraõ a tirar -lhe da mao o Crucifixo ,
e a véla benta do Roſario , para fe
lograrem de tudo , como de venera-
veis, e fantas Reliquias : cultou - lhes
trabalho ; mas deixáraó -no com efſei-
to deſpojado daquellas veneraveis prễ.
das . Vendo porèm que ainda reſpi-
rava , tornarao -lhas logo a reſtituir,
e o Servo de Deos as tomou , tornan-
do a fechar a mao : talera o ſeu deſemº
baraço , e acordo em hūa hora tao
confuſa, e terrivel . Cantou -ſe - lhe ul-
timamente o Credo ás ſette e meia ,
recitando -le tambem as mais preces
coſtumadas na Ordem ; e ao ſom de
ftas Sagradas Oraçoens ſe exhalou ,
como ſuaviſlimo fumo de incenlo ,
aquella bendita alma, em que ſem-
pre reſpirarao as fragrancias da virtu-
de , e agora paſlava a fazer no Ceo ,
e na terra mais oloroſa a açucena de
Domingos , de quem foracao amante
fora (ao amante
filho , como fiel imitador .
134 Logo que expirou lhe come-
çaraõ a beijar os pés , nao com menos
ADAS bro
, 20 de Settem ,
lagrimas , que devoçao . Cada hum
trabalhava por haver á mao alguma
couſa ſua . Tocavaõnelle os Rofarios,
etiráraó- lhe dous, que o Servo deDeos
trazia pendentes do peſcoço , e da
correa : tomarao - lhe hum Crucifixo ,
que, como ja diſlemos, trazia unido
ao peito ; nao puderaõ eſcapar alguns
pannos, que ſe lhe acharao nas man
gas : Levarao - lhe húa colher de páo ,
hum bordao , e outras couſas do ſeu
uſo : nem os eſcarpins deixarao ; e
apanhando hūa pefloa hũa meia , fo
rao caes as inſtancias, que ſe lhe fize .
raó , que nao pode eſcuſar -ſe de a par .
iir em muitos pedacinhos, para con
tentar a outros muitos pertendentes.
No languedas ſangrias, e ſarjas, a cu
ja violencia havia derramado paā pou
co o Servo de Deos, molharao iui
tes pandos ; e neſta occaſiao levou o
Viſconde de Miranda aquella taça
delle , de que ja fallamos em outra
parte . Eſtando ja lavado , e veſtido ,
cuidou -ſe logo em como havia de le
var - ſe ao Convento de S. Paulo , an
tes que foſſe maior o concurſo , e por
efta cauſa nað le pudefle effeituat o
projecto. Abrirao-ſe as portas do Hof
picio , e ja alli eſtava bum numero
ſem numero de gente , que por inſtan
tes ſe fazia mais creſcido. Chegarao
a eſte tempo alguns Miniſtros de juſti.
ça , e grandeparte da nobreza ; 'e com
iodo eſte acompanhamento foi tranſ.
portado ao Convento de S.Paulo en
ire muitos lumes , pelas dez da noite
o Veneravel Cadaver do Servo de
Deos. Foi conduzido pelos ſeus Co
Religioſos, ſeguindo -o logo aquella
tað populoſa comitiva , rezando alter
nadamente o Roſario da Senhora . Ar
fim paga aquelle Senhor , que he tao
fiel aos ſeus eſcolhidos: diſpôs agora ý
aquelle triumpho, ý tantas vezesſe de
dicára a ſua Máy Santiſſima nasruas,
e Praças de Cordova , fofle a gora
tambem triumpho daquelle bom Ser
vo , que com o ſeu zelo , e diligen
cia tanto o havia folicitado , e promo.
vido . Nao forao poucas as peſſoas,
que
 FR . FRANCISCO DE POSSADAS , 20 de Settembro.
que , quando o feretro hia paſſando ,
percebêrað húa fuaviffima , e olo
roſa fragrancia ; e outras muitas virao
o temblante de Veneravel Religioſo
banhado de bellos , e profuſiſſimos
raios de luz.As mulheresfahiao ás por-
tas , e ás janellas, e entre o alvoroço ,
e a ſaudade erað pregoeiras dos elo-
gios deſte Varao do Ceo , a que dava
mais alma o affecto , do que lhe podia
dar a facundia mais bem cultivada.
1
Hűas lhe chamavao Pay , e Conſola-
dor dos pobres , outras Meſtre , e
luz dos pequenos , outras Anjo em
carne e todos a hűa voz o canoni-
zavao fanto .
11
135 Para livrar o corpodo Vene-
ravel Padre das piedoſas iavaloens da
plebe , o depofitáraó , como ſe havia
feito com Santa Roſa ,na caſa dos No-
1
viços , e alli efteve acompanhado dos
Religioſos toda a noite, em que cor .
reo muitiſſimo ſangue das ciſuras das
ſangrias , e ſarjas. O cheiro que reſ-
pirava , era bum indicio ſeguro da
gloria de que eſtava de poſle o ſeu in-
corrupto , e glorioſo eſpirito . Teve
fempre o roſto deſcuberto , e ſempre
mui fermoſo , e bem aflombrado ,
conſervando -ſe tað flexivel, como ſe
eſtivefle entregue a hum brando ,' e
tranquilo fomno. No dia ſeguinte ,
dedicado ao Sagrado Apoftolo , e
Evangeliſta S. Mattheus , antes do
romper da alva , começáraõ a dobrar
os finos da Cathedral de Cordova , e
á ſua imitaçaõ ſe forao ſeguindo os
mais de todas as outras Igrejas , con-
tinuando -ſe eſte tóque até a entrada
da noite. Ainda bem nao era dia no
ſeguinte , quando ja ſe achava huma
multidaõ de gente numeroſiſſima as
portas do Convento para entrar a ver,
e venerar o fanto cadaver . Concor-
rêrao tambem algumas ſenhoras prin-
cipaes, por cuja conſideraçao foi ne-
ceffario dar-lhes entrada ao Capitu-
lo , aonde por ſeu reſpeito foi duas
vezes trazido o Cadaver do Servo de
Deos . Abertas as portas do Conven-
to , entrarao os que eſtavaõ ja com
479
impaciencia eſperando ; ao modo de
būa arrebatada corrente , ſem que
baftaſlem a contellos os Religioſos, e
os Miniſtros de juſtiça. Deraõ com as
portas do Noviciado em terra ; po.
rèm nao arrombárað as do Oratorio,
para onde logo indireitáraó em ve.
neraçao daquelle ſantuario , con .
tentando -ſe em ver, o melhor que pu. .
dérað, o deſpojo daquelle Julto , a
quem eraõ devedores de tantas gra
ças , e beneficios.
136 Sahirao dalli , e dando com
os ladrilhos do Clauftro , e do pateo
do Noviciado tintos em ſangue , co .
meçáraó a arrancallos para os leva .
rem , tendo em ſi grandes debates
e contendas , fobre quem havia de ſer
ſenhor delles. Conſtando que o Servo
de Deos deitava ainda muito fangue,
começáraó a pertender com grande
ancia eſta eſtimavel reliquia , dando
huns os lenços ,outros os peſcocinbos,
e cravatas , ou o que melhor ſe lhes
offerecia , para tudo ſe tingir naquel
le venerando licor , por cujo meio
depois ſe vieraõ á experimentar as
grandes maravilhas , que diremos.
Chegarað muitas condeſſas de alguns
Moſteiros de Religioſas chêas de Ro .
farios , para ſe tocarem no corpo do
noſſo Veneravel Padre , e de todas as
partes havia peciçoens , e empenhos
para alcançar alguma couſa , que lhe
diſſeſſe reſpeito . Entráraó no Con .
vento o Biſpo de Buenos Aires, da
Sagrada Ordem da Santiſſima Trin
dade , muitos Senhores conſtituidos
em dignidades Eccleſiaſticas, os In
quiſidores Apoftolicos , alguns Me
itres de outras Religoens, hũa gran
de parte da pobreza , todos como a
louvavel ambiçaõ de alcançar alguma
reliquia de hum Varao tao grato ao
Ceo , e ao mundo , a Deos , e aos
homens ; e de beijar huns pés tað il
luſtres , que fempre caminhárað , e
a tantos enſinarao a caminhar pela
eſtrada Real da ſalvação . Cuidou -fe
logo em mandar tirar hum retrato do
Veneravel Padre , couſa que até en :
tao
480 FR . FRANCISCO DE
tao ſe nao pudéra conſeguir, porque
a ſua induſtrioſa humildade ſempre
achou meios de deſvanecer , efruſtrar
o fim deſtas diligencias , que tantas
vezes emprendera o amor , e a pieda-
de ; e foi deſtinado para eſte fim Pe .
dro MartinsGarcia , Pintor muitoin .
figne, e deftro , que por cal foi eſcc-
lhido, e mandado por Dom Fernan-
do de Orelhana , Intendente daquel .
la Cidade . Depois ſe multiplicáraó
eſtas cópias , e dentro , e fóra de Cor-
dova forao inſtrumento dos grandes
prodigios , que ainda veremos adian.
te . Obſervando alguns Padres da
Companhia de Jesus, que quatro me
zes e meio antes, ſe havia celebra-
do a Canonizaçao do ſanto Pontifice
Pio V. , e vendo agora as acclama-
çoens da morte de Fr. Franciſco , ex-
clamavao : Oh fempre auguſta , ſem-
pre feliz , e ſempre fanta Religiao;
ainda hontem celebraſte a Canoniza-
çaõ de hum filho, e ja hoje eſta's dan
do outro á terra !
137 Na tarde, em que ſe havia de
fazer o enterro , foi ſem comparaçao
a grandeza do concurſo : endobre-
ciao -na as dignidades da Cathedral ,
os Inquiſidores , o Clero , todas as
mais Religioens , a nobreza que entao
ſe achava na terra , os Magiſtrados ,
e toda a mais gente de bem ; e era
tao ſequioſo o deſejo , que todos ti
nhaõ de haver á mao alguma peça do
Servo de Deos , que até chegáraó a
cortar pedaços da baeta com que ſe
exornava a Capella . Ja joſtava a hora
de dar - ſe á fepulcura o Veneravel
Cadaver , e temendo os Prelados das
Religioens que os Cavalheiros entral-
tem a querer tranſportar o féretro ,
o tomáraó a ſeus hombros ; mas aos .
primeiros paſlos ſe viraõ rodeados de
muitos Religioſos graves de diverſas
Familias Sagradas , contendendo to .
dos ſobre quem ſe havia chegar mais
para conſeguir alguma parte do habi-
to do Servo de Deos : huns o corta
vao , outros tocavað nelle as ſuas con-
tas , e outros ſe davao por bemaven-
POSSADAS , 20 de Settembro .
turados , eſtendendo o braço até to
car no féretro , e entretanto nao ſe
ouvia outra couſa mais que húa uni
forme voz , que acclamava por Santo
ao Veneraveſ Padre . Quando chegá .
rað á Capella mór , ja bia deſcalço , e
com as carnes deſcubertas por mui
tas partes: naõ le livráraó aqui de gran
des ſuſtos , e ſobreſaltos os noflos Re .
ligioſos temendo- ſe a execuçao de
hum rumor , que começou a correr
de que havia quem quizeſſe furlar
aquelle Veneravel Corpo , e nao me
nos outros intentos, de que fe per
ſentiaô , de haver quem intentaſſe fa
zer o meſmo Cadaver em pedaços , e
nao cuſtou pouco deſviar algūasCom .
munidades, que pertendiao cortar -lhe
os dedos da mao : Receoſos pois os
noſſos Frades deſtes devotos roubos,
buſcárað , e achárao meio de aſſegu
rallo , e fechallo na facriſtia, deitando
voz de que ficava deferido o enter
ro para o dia ſeguinte . Com efta fa
ma ſe foi indo pouco , e pouco aquel
le tað notavel numero de povo . Ve
Rio - ſe novamente aquelle Veneravel
Corpo ; e poftoquea gente ſe havia
retirado , ſempre ficára aquella noi
te no Capitulo muitas peſſoas nobres,
que preſumirao o intento , que ti
phao os Religioſos de enterrar , co 1
mo enterrárað , naquella noite em ſe
gredo o Servo de Deos , como aſſim
fe havia praticado com a noſſa Santa
Roſa. Aflim ſe executou com efei
to , com aſliſtencia daquelles Senho
res na hora da alva ; e mettida a cai .
xa no tumulo , ao dar - lhe hum pe
queno golpe , ſe ouvio repentina
mente hum trovao ſobre o Conven
to , que a todos fez eſtremecer , e
parecer nao deixar de termyſterio ,
por eſtar entao o Ceo muito iereno,
e limpo de nuvens. No outro dia cor
nou a acudir hum grande concurſo ;
e ſabendo eſtarja feito o enterro , forao
correndo ao Capitnlo , donde leva
raõ terra , que eſtimarao como preſtan
tiſſima reliquia . Os primeiros Senho .
res , e Senhoras de Castella de ambas
as
 FR . FRANCISCO DE POSSADAS,
as Jerarquias , Eccleſiaſtica , e ſecular,
todos eſcreviao ao Prior de S. Paulo
pedindo - lhe inſtantemente alguma
couſa do uſo do Servo de Deos ;
em attençao deſtes petitorios ſe re
colbeo com cuidado mui eſpecial a
ſua roupa , e toda ſe repartio por ſeus
veneradores , e devotos , nað fican
do louça , bordao , ou qualquer ou-
tra alfaia , de que elle ſe tiveſſe ſervi .
do a que ſe nao deſſe etta piedoſa
applicaçao .
+ 138 Teſtimuphou a Cidade de
Cordova quanto eſtimava hum filho
1 tao benemerito , e fanto ; porque fa-
bendo muito bem o eſtylo do Con- 'vo com
vento de S. Paulo , de ſerem ſepulta-
dos os ſeus Religioſos em ſepultura
ordinaria , iſto pao obſtante , impe .
trou , e alcançou o ſeu preclariſſimo
Senado de Fr. Joao de Arroio , Prior
1 daquella Caſa , que ſe lhe deixalleeri.
gir á ſua cuſta hum loberbo , e diftin .
ito mauſoléo , que ſerviſſe de depo-
firo ao corpo do Veneravel Padre.
Nelle ficou recomendada á poſterida .
de a luamemoria , mediante hum elo.
quentiſſimo Epitafio Latino , que , re-
duzido á cadencia Portugueza , ſôa
deſte modo,
Quem heġ jazem mauſoléo taönobre ?
Pois iſo ignoras ? Obfatal deſtino!
Efte opaco ſepulcro , o peregrino ,
Efteocadaver de Frāciſco encobre.
O Ceo , honrando cinzastao ſagradas
Na ſuperficie deſta pedra dura
Deſcreve com belliſima eſcultura
As ſuas grādes virtudes laureadas.
Cordova por dous fins pertende agora
Ser de Franciſco berço eſclarecido:
Ou porque nos ſeus ares foinaſcido,
Ou porâ morto affli&tamëte o chora.
Mas ob que em vaõ fe afflige, e ſela
menta !
Levanta os olhos para o Ceo ,levāta ,
Vera's ģ o ſeu Franciſco triunfante
Junto a Domingos , grande Pay, se
aſenta.
Ainda das fuas letrasas doutrinas,
E ainda dos ſeus eccos as memorias
Tom . VII,
20 de Settembro 481
Ao Ceo promettem muitas mais van
{ torias ,
Ao Bara : hro ameaçaõ maisruinas.
e Amante da Evangelica pobreza ,
Desprezou as caducas vaidades :
As Mitras regeitou ,e as dignidades,
E ſó buſcava em Deos toda a grana
de za.
Quando iſto tudo a lagrimas te excite ,
Hejuſto,o peregrino,que te exhorte,
Náõa chorar taõ excellente morte ;
Mas noſa gloria , ğ aquitem limîte.
139 Quiz o Altiſfimo fazer mani
feſta a grande gloria de ſeu bom Ser
extraordinarios , e maravi .
lhoſos linaes . Ao tempo , em que
elle eſtava expirando rogava hūaper.
ſoa de muita virtude por lua intençaõ ;
e voltando os olhos para a parte do
Hoſpicio vio hum fermofillimo , e
reſplandecente globo de luzes , que
reprelentava a figura de hum leiro ,
como que eltava eſperando receber a /
alma do Servo de Deos , logo que el
la ſe deſataile das prizoens corporaes.
= Dona Joanna , e D. Izabel Péres,
filhas de Joao Péres , e D.Luiza Ra
mires virao na meſma noite , em que o
Servo de Deos expirou , hūa luz muito
fermoſa , e diffuſa no Hoſpicio. Mui
( as peſſoas de ambos o ſexos obſervá
raó que no meſmo ponto em que o
Servo de Deos acabou de viver, ap
parecêo no Ceo hum fermochiſſimo, e
grande luminar , a que nað deſcobriao
ſemelhante , e çahia direitamēte lobre 1
a praça , cercando o diftri &to do Con
vento ,verificando -ſe affim no óbito do
Servo de Deos,o que mentio a liſonja
na morte dos Ceſares Romanos. Jo
zefa Roman , mulher de Antonio de
Banhos , eſtava a eſte tempo á porta
de ſua caſa , e notou , aſſim como tam
bem outras muitas peſloas , que aquel
le tempo ſe abria o Ceo , manifeſtan
do -ſe aquelle novo e fermoſiſſimo
aſtro , e deſpedindo de fi clariflimos,
e multiplicados raios de luz . Houve
demais difto outros muitos finaes
todos annunciativos da eterna bem.
PPP aveng
!
482 FR . FRANCISCO DE
aventurança, de que eſtava de poſſe o
noflo Ven ravel Religiofo Fr. Frar-
ciſco de Poiladas. = O Padre Fr.Joao
de Murga , Religioſo da Terceira Or-
dem de N. Serafico P. S. Franciſco ,
eſtava aſſiſtente na Cidade de Ubeda ,
e logo que lhe conſtou da morte do
Servo de Deos , quiz fazer algumas
deprecacoens pela ſua alma ; e que-
rendo dizero Verſiculo : Naö vos lem-
breis , Senhor, das minhasculpas, lhe
varreo da memoria , occorrendo - lhe
em ſeu lugar o Hymno : Te Deum ,
proprio de render graças a Sua Divi-
na Mageftade. = O meſmo quaſi ſuc .
cedeo a D. Joao de Muro , paſſados
poucos dias , depois da morte do Ve.
neravel Padre ; porque chegando -ſe
ao ſeu fepulcro para lhe dizer o Rer-
ponſorio : Lembrai-vos Deos meu de
mim , ſe lhe trocáraó , fem elle ſaber
como , as palavras , prorompendoem
eſtoutras do Pſalmiſta. Os ſantos falo
tarao de prazer na gloria , alegran .
do- ſe nas quadras da ſua aſſiſtencia.
140 Tambem conteſtáraó a eter :
na felicidade do Servo de Deos as
ſuas muitas appariçoens a ſeus filhos
eſpirituaes. Promertêra elle naó faltar
jamais a D. Francilca de Cordova
Viſcondeſſa de Miranda : achava -ſe
agora eſta Senhora apertada de hũa
moleftia , que muito a affligia , elem-
brando -ſe da palavra que lhe dera o
ſeu valedor , paſſou agora a executal .
lo por ella , e indo a voltar os olhos
por acaſo para a parte da cabeceira o
vio , e ouvio que lhe dizia : Naöfal-
to , nao , em foccorrer - te . Dicas eſtas
palavras, ſe achou logo tao bõa , co
mo ſe fose nada , o que atélli tivera .
Eſtava paralytico hum menino de
quatro annos , filho de D. Jozé Mar.
tins, e eſperava- ſe por intiantes a ſua
morte ; ein hũa noite dérao - lhe abe-
ber hūa pouca de agua , em que dei .
táraó huns fios de hum lenço , tintos
no ſangue do Servo de Deos , a quem
nuito o recomendarao : dalli a pou-
co começou o menino a gritar , pe
dindo que o veſtiflem , que ſe queria
POSSADAS , 20 de Settembro.
levantar , porque ja eſtava fao : acu.
dirao os pays, e vendo nelle todos os
finaes de hūa repentina , e nao eſpe .
rada melhoria , lhe fizerao varias perº
guntas ; e reſpondeo elle que se tinha
chegado a ſua cama hum Frade, e lhe
diſfera : Levanta -te que ja ellás bom :
forao continuando a ſua inquiriçao
perguntando - lhe os fipaes que tinha ;
é o menino foi dando muitos
que propriamente convinhao ás fei
çoens do roſto de Fr. Franciſco de
Poſadas. = Marianpa Franciſca Fer.
nandes começou a padecer hűas crue
liſtimas dores de eltomago deſde os
ſeus primeiros annos , e poreſpaço de
vinte , nunca a deixárað : hũa noite,
em que ſe achava ſummamente affli .
gida, encomendando -ſe ao Servo de
Deos , lhe appareceo elle , e para ſem
pre a deixou livre daquella moleſtia .
= Hữa ſua filha eſpiritual recebeo
muitas vezes eſte favor do Servo de
Deos , poſtoque ſó ſentia , e nao via
a ſua preſença, mas ſempre com igual
fruto , que conſolaçao . Vejamos ago
ra outros milagres , poſtoque naoto .
dos , ( o que pediria mais dilatada el
critura ) com que a Omnipotencia
Divina quiz acreditar o merecimen
to , e a ſantidade de ſeu Servo .
141 Havia padecido na America
hũa importuna qneixa de celoens a
Condeſſa de Calaalegre : voltando á
Europa , e paſſandode Sevilha para
Cordova , ſuccedeo achar -ſe em caſa
da Viſcondeſſa de Miranda , ao tem
po , em que expirou o Servo de Deos,
e entao melmo lhe começou a terçãa
com o frio ; eſtando aſſim , chegou
a taça chêa de ſangue do Veneravel
Padre , em que ja fallamos; e molhan
do a Viſcondeſſa nelle a extremidade
de hum lenço a applicou ao coraçao
da doente : Cefoulubicamente o frio,
1
achou - ſe bõa a Condeſſa , e nunca
mais lhe tornou aquelle mal . = Na
meſma noite , em que morreo o Vene .
ravel Padre, eſtava tambem proxima
a morrer Maria da Mata , viuva de
Antonio de Oluna. Enirou Pedro
Martins
 FR . FRANCISCO DE POSSADAS, 20
Martins em ſua caſa , e dife : Ponhaõ
lhe efte Roſario , que agora ſe acaba
de tocar no Padre Poſiadas, que he
hum Santo ; pegou delle hũa filha da
moribunda , e difle -lhe :Oʻminba māy,
tome V. m.eftas contascom muita fé,
que eſtao tocadas no corpo de Fr.
Franciſco de Pofladas , que he hum
Santo . Santo nao , ( reſpondeo ella )
agora bom Chriſtab , e muito bom Chri-
Jiao , illo fim . Deita -mo ao peſcoço.
+
Deitou -ſe -lhe; mas toda aquella par-
te , que abrangia o Roſario , ſe lhe
abrazava , como ſe elle foſſe hum cau .
terio . Perguntou-lhe a filha como
The hia. Tira -mo depreſa , ( reſpon-
deo a doente )tira-mo, quemeabraza .
O ' māy , [ difl'e a filha ) veja V.m.nao
Jeja iſo caſtigo de Deos pela poucafé,
que V.m. moſtrou , duvidando da Sano
tidade de hum Varað tað venerado
por Santo em vida , e morte . Cahio
a mulher em ſi, pedio perdao a Deos ,
proteſtando nao haver proferido a
quellas palavras com deſprezo , ou
má intençaõ ; e depois ſe abraçou com
aquella reliquia , dizendo : Meu San-
to da minha alma , Santo , e muito
Santo : Logo ſentio refrigerado , e
extindo aquelle ardor : teve vonta-
de de comer , e achou - ſe livre de
hum fluxo de ſangue , que era o que
a tinha ás portas da morte , deſorte
que em pouco tempo ſe achou faá .
Dalli a poucos dias teve hûas terçaās,
e deveo ſegunda vez á interceſlao do
Veneravel Padre o ſeu alivio , erefta-
belecimento .
142 Dona Izabel Maria de Eſpe
lho , tinha apoftemado hum peito , e
nelle hũa chaga , que continua , e
copioſamente lhe eſtava materiando ,
motivo porque os cirurgioens deter.
minavao fazer -lhe hūa operaçao mui
violenta , e ſenſivel: no dia doenter • '
ro do Servo de Deos , deſejou a en
ferma ter alguma fua reliquia ; mas
pao lhe ſervio de menos utilidade a
muita fé com que ſe pegou com ella ,
porque tomando huns fios , fem al
guma couſa medicinal , e applican-
1. Tom . YII.
de Settembro . 483
do- os em ſeu nome á parte offendi
da , no meſmo tempo farou , e cica
trizou perfeitamente . Deidade de
ſeis mezes , padeceo hum filho de D.
Jeronymo da Roſa hūa fogagem tao
exceſſiva , que deformando -lhe enor .
memente o roſto , lho fez todo hũa
viva chaga , affeando -lho com hūain
chaçao tao deſmarcada , que ſe lhe
nao percebia final de nariz. Anno e
meio paſſou deſte modo , ſem ſe lhe
poder deſcubrir medicina , até que
alcançando ſeu pay , no dia do enter
ro do Servo de Deos , hūa partezinha
de lenço tinto no ſeu ſangue , o ap
plicou aomenino , e com tanta fortu
na , que logo a cara lhe amanheceo
deſinchada no outro dia , e as chagas
ſeccas , cuja puſtulas ,pouco, e pouco
lhe foraõ cahindo a modo de eſcamas ,
ficando de todo
muito fað , e perfeia
to . Gaſpar de Texada teve hua ery
ſipela univerſal,que lhe tomava todo o
corpo , e era de taó perverla nature .
za , que lhe gangrenou as partes ge
nitaes , que o cirurgiao lhe ſeparou
varias porçoens , e todas com hum
fedor peftilente : iſto ſó baſtava para
dar a queixa por mortal; e a iſto ,de
mais da ſua muita idade , que paſſava
de Teflenta annos , ſe juntava outro
infauſto accidente que lhe ſobreveio
à tracaarteria , nað ſendo menos pe
noſa , nem menos funefta a circun
ftancia de ſe lhe abrir todo o corpo
em chagas , effeito proveniente do
muito tempo que eſteve de cama . Ac
cometido de tantos , e tað azarentos
males perdeo o movimento , e o ſen
rido ; e de momento em momento le
eſtava eſperando a ſua morte. Tor
nando do enterro do Veneravel Pa
dre , D. Anna de Cerro , cunhada do
doente , entrou a viſitallo , e trazia
lhe para ſe lhe applicar hūa cinta , to
cada no corpo do Servo de Deos : Lo .
go que ſe pôs eſta reliquia no enfer .
mo , ſe aſlentou elle na cama , abrio
os olhos , conheceo aos circunſtances ,
e pedio de cear , dizendo aos que
lhe aſſiſtiao , que foſlem a dejtar- le,
Ppp ii por :
 484 FR . FRANCISCO DE
porque elle ja ſe achava bom . Com
effeito deiappareceo logo a eryſipela ,
e a inflambaçao , farou a gangrena,
1
e dalli a quatro dias entrou o doente
a andar pela caía , e aos oito dias ſe
achou com búa melhorîa tao comple-
ta , que ao diante nunca mais tentio
effeito , ou reincidencia da ſua paſla.
da indiſpoſiçao.
143 No ſepulcro do Servo de Deos
acháraõ muitos o remedio eſpiritual,
e temporal das ſuas conſternaçoens.
Fora elle Director de hūapelloa com-
batida grandemente de būatentaçao,
e eſta , mediante os ſeus boos conſe .
lhos , experimentava muito alivio , e
refrigerio no ſeu mal ; porém morto
Fr. Franciſco ganhou tantas forças a
ſua inquietaçao , que o hia reduzindo
ao ultimo precipicio : foi hum dia
viſitar o monumento do Veneravelmanheceo no outro dia gritando a ſua
Padre , e como era tanta a ſua melao- māy : Ja eſtou bom , māy, ja eſtou
colia , nao fez , nem pode fazer mais
que proferir eſtas poucas palavras: E
entao , meu Padre , hei de eu conde .
nar -me? Rogai a Deos por mim . Dito
ifto , ſahio - le ; mas aos primeiros paſ.
fos ſe achou tao livre , que dalli por
diapte gozou de hūa imperturbavel
ſerenidade , e tao ſegura , que ſe lhe
forao diflipando , e deſvanecendo to .
dos aquelles obſtaculos em que mais
ſe acaſtellava o inimigo para lhe fazer
guerra . Achava-ſe decama, e mui-
to proſtrado Luiz Manoel , e com
huns ſymptomas tao terriveis , que
ninguem duvidava ſerem elles o cor
reyo da ſua morte . Ouvindo contar
tantas maravilhas do Servo de Deos
prometteo -lhe a doze do mez de Ou-
iubro , immediato a ſuamorte , que ſe
lhe valia , iria viſitar o feu fepulcro ,
e rezar alli nove dias de joelhoso Ro .
fario de Maria Santiſſima. Acceitou
o Veneravel Padre ette offerecimen-
to ; alcançou - lhe do Senhor o bom
deſpacho da ſua petiçao , deſorte que
dalli a tres dias podeir começar a dar
cumprimento á ſua promeſla. = Joao
Ruano foi hum dos artifices, que ſe
occupára ) na obra da ſepultura de Fr.
POSSADAS , 20 de Settembro
Franciſco ; é padecendo por tempo
de dous mezes hũa queixa , que o
colhia , e que lhe caulava muitasdo .
res , eſpecialmente quando o volta
vaõna cama de hum para outrolado:
naõlhe aproveitou o patrocinio demui
tos Santos da ſua devoçao , que havia
invocado ; porque refervava o Altil
fimo eſta gloria para ſeu Servo. Lem
brou-le o doente em būa noite de ha.
ver trabalhado na extructura do ſeu
mauſoléo , e cheio de hūa fé mui de
vota , o implorou por ſeu valido , fa
zendo - lhe a promeſla de que lhe re
Zaria ao diante todos os dias cinco Pa
dres Noſſos , e outras tantas ſauda
coens Angelicas , e logo entao deo
principio a eſta reza : ainda bem nao
a tinha acabado , quando ja ſe ſentia
muito melhorado ; adormeceo , e a
bum : o Padre Poſadas fez em mim
hum milagre : elle he que me impe
trou de Deos a ſaude. Com effeito
achando -ſe reſtituido de búa grande
agilidade para todos os ſeus movimen
tos , levantou.ſe , e começou a andar
pela caſa arrimado a hum bordao do
Servo de Deos: na noite ſeguinte ja
pode fahir fóra a caſa de leus ſogros ;
e no leguinte dia foi render as graças
ao feu bemfeitor, viſitando - o no ſeu
ſepulcro. Em outras muitas occafioens
achou igualmente correſpondida a ſua
boa fé do efficaz, e prompto auxilio
do Venerave Padre .
144 Era nao menos importuno ,
que irremediavel hum cancro , que a
tormentava a D. Maria de Navarre
te ; porque as dores eraõ mui acres,
o ardor mui forte , a fluxao perenne,
o faftio mortal , a ſede igualmente
perſeverante , que inextinguivel , e
nao podia andar , nem eſtar ſentada.
Chegárað -lhe deſejos de viſitar o le
pulcro do Servo de Deos ; foi com
ſummo trabalho , mas com tanta dita,
que o meſmo foi aſſentar -ſe na pedra
delle , que achar-le livre do cancro ,
e de todos os ſeus maos efieitos. =
Maria
 FR . FRANCISCO DE POSSADAS , 20 de Settembro.
Maria de Cordova,mulherde Manoel
Alvares , etteve por tres mezes com
3
terçaás ; e deſde que bebeo hūa pou-
ca de agua com terra do ſepulcro
do Servo de Deos , a tempo , em que
eſtava com tūa , nunca mais lhe re
petîrao , e ceſlou a grande inappe.
tencia , ou faltio , que atélli nao a ti
nha deixado. = Húa pobre viuva
eſtava em grande neceſſidade por lhe
faliar o recurſo de hum juro , que lhe
devia , e nao pagava hum Cavalheiro
da Corte de Madrid , e de quem nao
pudéra alcançar respoſta de muitas
cartas , que lhe havia eſcrito , ainda
fazendo muitas diligencias para que
ellas ſe lhe entregaſlem em mao pro
pria . Vendo le pois em tanto aper-
to , e ſem ter hum bocado de paõ que
dar a ſeu filhos, reſolveo -ſe a mandar
outra carta , e antes de a remettor foi
ao ſepulcro do Servo de Deos, e pol .
la ſobre elle , encommendando mui.
to ao Veneravel Padre o bom exito
deſta diligencia . Foi a carta , e no
primeiro correyo chegou reſpoſta , e
veio tambem ordem para que ſe lhe
pagaſſe toda a quantia , que ſe tiveſſe
vencido , e dalli em diante nao ſó con-
tinuáraó com muita regularidade , ſe .
nao que eſta pebre mulher era a que
ſe embolſava do ſeu cepſo , primeiro
que os mais credores. = Vio - ſe ac-
comertido de hūa inflammaçao , que
lhe cabio em hūa perna Fr. Vicente
de Véla , da noſſa Ordem , e Conven-
tual em S. Paulo de Cordova , ao tem-
po em que eſtava em Matinas : achou .
ſe precilado a aſtentar-le, e tocando
a quella parte com hum pedaço do ha .
bito do Servo de Deos, e prometten-
do rezar hum Padre Noſlo , e huma
Ave MARIA , no outro dia acordou
ſao .
145 Jozefa de Paniagua , mulher
de Joao de Argote , eltava tolhida
por hum lado de hum máo ar , que lhe
déo , e padecia mais hűascrueliflimas
dores de cabeça , que lhe influiao mui .
to particularmente em hum dos olhos,
de que andava ſempre choroſa , e mal
485
aſſombrada: quiz a ſua fortuna que
lhe chegaſſe á mão huma reliquia do
habito do VeneravelPadre tinta no ſeu
ſangue: tomou -a a enfermacom gran
de alvoroço , ' e dife: Agora he que
eu quero ver ſe he Santo o Padre Por
ſadas: Padre Poljadas , ſe fois Santo
dai me faude , tirai - me eſtas dores.
Omeſmo foi acabar de o proferir , que
começallo a experimentar. Achou -ſe
boa , e nunca mais tornou a ſentir ref.
quicio algum do leu mal . Dallia tem ..
pos deitou -ſe com hūa dor de eſto .
Wago, ao parecer de pouco cuidado ;
mas de tal forte ſe lhe accendeo
que cuidou ſeu marido que agora
nao podia eſcapar de morrer; e preoc
cupado deſte penſamente fahio pela
porta fóra a buſcar-lhe Confeffor :
entretanto ficou a mulher lutando
com a ſua pena , e chamando por
muitos Santos da ſua devoçao, que
The acudiſſem : Lembrou lhe o Padre
Peſadas, invocou o , promettendo
reſar -lhe hum Padre Nofio , e huma
Ave Maria , e ſeptindo - ſe logo pro
vocada a hum vomito , á ſua expul
fað ſe ſeguio hűa perfeira , e bem lo .
grada melhoria. = Sendo menino
Dom Franciſco de Moraes elleve tao
desfailecido de túa doença , que ja
ſe te mia a ſua morte como inevita
vel , tanto , que nem ſequer hūa got
ta de caldo , que treze dias foi o ſeu
unico alimento , podia ja levar para
baixo . Neiles termos o encomendou
ſua máy D. Franciſca de Cordova ao
Servo de Deos , promettendo que ſe
lhe melhorava ſeu filho , faria publi
co o milagre , porque tem milagre
[ diziao ] nao podia ter appellaçaõ o
doente . Trouxéraõ de jantar'a hūa
criada , que nao ſe apartava delle , e
em quanto ella eſtava comendo , en
trou Bartholomeu Nadales , e metten
do hūa Reliquia do Veneravel Padre
debaixo da cabeceira do enfermo
difle : Cuidado com o que agora fuccea
de : apenas ſe fez elta diligencia , quan
do o pequeno abrio os olhos , e alar
gou a maozinha para o prato da moça,
comendo
 486 FR. FRANCISCO DE POSSADAS , 20 de Settembro.
comendo com muito bõa vontade : 1o-
go calmou a moleftia , e em poucos
dias ſe pôs a pé .
146 Maria deJesus , mulher de Joao
de Luque , nao le pode ver livre em
quatro annos de hum copiofo , e mo .
lefto fluxo de ſangue , bem que ten-
tou frutraneamente muitosremedios :
foi elle tao deſmarcadamente grande
em certa occaſiao , que temeo a po-
bre mulher ſer chegada ao leu ultimo
extremo : chamou pelo Servo de Deos ,
promettendo - lhe que ſe a puoha a ſal
vo daquelle perigo lhe pediria hūaMif-
ſa de eſmola , e diligenciaria mandar-
Tha dizer no Altar do Capitulo , aon
de eſtá o ſeu ſepulcro. Ouvio o Ve ' ronyma Dieguez , mulher de Franciſ
neravel Religioſo esta de precacao be- co de Villa Real , e em quanto eſte .
pignamente , e deferio - lhe muito á
medida do ſeu deſejo , porque imme .
diatamente ceflou aquella fluxao , e
nunca mais lhe tornou a ſobrevir. Del-
cuidou- le a mulher de executar o que
promettera ; mas o Veneravel Padre
ie lhe fez lembrado , porque ſendo ac-
commertida de hűa dor muito deſeſ-
perada , que lhe deo da cintura para ci-
ma , e parecia abrazalla , a attribuio
a doente a caſtigo do ſeu ingrato ef-
quecimento : ratificou a promeſla , e
prometteo mais encomendar - ſe todos
os dias ao Servo do Senhor , e logo
ſe achou com hūa belliſſima diſpoſi-
çao . = Dona Laura de Cuelhar , mu ,
lher de MiguelGarcia , e fua filha D.
Maria , que depois eotrou Religioſa
no Moſteiro de S. Martinho , ambas
faráraó , cada hūa de ſua queixa, me .
diante hūa reliquia do Servo de Deos :
a māy , de hūa agudiflima dor de ca
deiras , que padecera ; e a filha demui-
tas chagas , que tinha nos pés :declarou
D. Laura o favor recebido diante de
bum Notario ' Apostolico ; e recuſan-
do D. Maria fazer o meſmo , no ou-
tro dia a manheceo muito peior do
que nunca eſtivera : conheceo , ere .
conheceo que iſto lhe ſucedia em jullo
cailigo da ſua omillaõ , mudou depen .
famento , e applicando outra vez a
meſma reliquia á parte doloroſa , e ofe
fendida, tornou a experimentar a me
Thoria , como tudo aſſim deposdian
te do Notario . Ficou totalmente ce
go , depois do curſo de hūa trabalho
la doença , Jeronymo Vaſques: in
vocou ſua may o Servo deDeos, pro
mettendo rezar quinze vezes o Padre
noſo , e Ave Maria em obfequio dos
quinze Myſterios do Roſario da Se .
nhora , de cuja devoçaõ elle havia ſi .
do tao acerrimo cultor , e ſatisfazen
do eſta reza logo naquella noite , acor
dou ſeu filho bom no cutro dia , elem
o menor ſinal de leſao em algum dos
olhos .
147 Adoeceo de hūa eryſipela Je
ve de cama , fuccedeo a morte do Ser.
vo de Deos : depois de ter levado qua
tro ſangrias a deſamparou o Medico ,
vendo que lhe fahiao duas parotidas
á garganta , e mandou que logo logo
a Sacramentaſiem . Pedio ella que lhe
chamaſſem o Padre Poſſadas , e por
nao delgoftalla mais , nao lhe quize
rao dizer que era morto , ſenao que
ſe achavaimpedido pormoleſtia. Fez
a ſua confiflao com outro Padre , e ef
perando por momentos deixar eſta vi.
da , lhe ſobreveio o parto ; mas como
era tanta a ſua debilidade, em quin
ze dias nao pode conleguir a excluía )
do féto , que nos dous ultimoseſteve
com hum braço de fóra muito negro ,
e inchado , e tað inflexivel, que nao
ſe lhe pode recolher para dentro : ad
miravao -ſe todos de ver , que ainda
aſſim perfiftiſſe aquella pobre mulher
com alentos ; e alcançando ſeu mari.
do hum pedacinho de lenço tinto no
ſangue de Fr. Franciſco , entrou em
caſa , dizendo : Eu venho de ver a
Padre Poſadas , e aqui te envia eſte
panno , que vem tingido no fer ſan
gue : tomou o ella com muita fé , ex
clamando muitas vezes : Padre meu ,
Padre meu . Nao , ( diſle o marido )
eſpera, que o Padre encommendou -me,
que cortaſſes dahi huns fios , e tos
deſe a beber em agua. Fello aflim , e
no
 FR, FRANCISCO DE POSSADAS , 20 de Settembro.
no meſmo ponto deo á luz a criança
viva , que depois ſe bautizou , e a mãy
je achou logorao bõa , que dalli a dous
dias ja ſe pode levantar da cama. =
Depois de eſtar tres dias de parto Ma-
ria Manuela Peres, mulher de Ago.
Ninho Soares , ficou em hūa cal deca-
dencia de forças, que a parteira del-
confiou, de que ella pudeſſe livrar com
vida : deo - fe -lhe a beber hűa pouca
de agua com hũa reliquia do Vene-
ravel Padre dentro , e foi tao bem a-
fortunada esta diligencia , que logo . bem a Joao de Armenta .
pode parir hum menino: padeceo eſte
ao terceiro dia hum accidente , de
que ja eſtava julgado por morto : che-
garao -lhe a meſma Veneravelprenda,
e logo deo ſinaes dereſpiraçao : bav .
tizarao -no logo Do Outro dia , e a ca
bando de receber aquelle primeiro , e
taŭ importante Sacramento , quando
entraraó com elle em caſa immedia-
tamente expirou , ficando aſſim em
divida ao noſſo VeperavelPadre ,nao
ſó de naſcer para o mundo , mas , o
que he mais , de renaſcer para Deos.
Dona Anna de Arando nao tinha
bicos nos peitos para criar a ſeus fi
lhos : recorreo á induſtria da arte , que
bem que contribuiſſe para o intento ,
ainda que muito eſcaſſamente, foicom
o fenſivel deſconto de lhe apoſtema. '
rem os peitos , cuja cura lhe deixou
inutil hum delles ; e eſta inutilidade
experimentou tambem no outro pou-
co depois, por outro accidente : pa.
rindo depois hum menino , que ſe cha-
mou Thomaz , e vendo quanto lhe
haviao ſidocuſtoſas , e deſaproveita.
das as ſuas diligencias , buſcou antes
o ſeu recurſo na ſantidade do Servo
de Deas , pegando-ſe com muita fé
com hūa ſua reliquia , e nao leenga-
nou neſta ſua confiança , porque logo
teve huns bicos depeitos mui capazes,
e leite em muita abundancia , para fa-
1 zer as ſuas criaçoens . Deſte genero
de favores fez muicos o Servo de Deos ,
que gaſtariaõ muito tempo , e muito
papel ſe todosſe houveſſem de referir.
148 Joao Alberto Toro tinha fel-
487
ſenta annos de idade , e era mui acha
cado : eſtando tres dias ás portas da
morte por cauſa das ſuas moleſtias,
fem tomar alimento , e com a véla na
mao , pôs-lhe na lingua Iſabel Maria
Mazuelos huns fios de panno tintos
em ſangue do Servo de Deos, e .no
meſmo tempo abrio o moribundo os
olhos , e ſe achou livre dos penoſos ;
e arriſcados accidentes , que lhe da
yao moleſtia. O meſmo, com diffe
reoça pouco notavel , ſuccedeo tam
Anna Me
rona , mulher de Joao de Luque, teve
hũa enfermidade, de que lhe procedeo
a de hűas terçaás, que em onze me
zes nao a deixárað , e malignando le .
lhe , derao os Medicos a queixa por
irremediavel : bebeo a doente hua
pouca de agua , em que ſe deitou hūa
reliquia do Servo de Deos , e punca
mais teve ceſao , nem raſto algum
da ſua primeira enfermidade. Sómen
te dos prodigios,que obrou o Altiſſi
mo pela interceſlao de feu Servo , li
vrando os doentes de terçaās , quar
taās , e outras cezoens , ſe pudera fa
zer hum catalogo nao pouco volumo
ſo .
149 Era de ſeis annos de idade Joao
Vicente , filho de D. Franciſco Theo
doro Munhoz , ede D. Maria Joſepha
de Toledo , quando foi accommetti
do de hũa violentiſima dor de coſtas,
ſobrevinda de hūa eryſipela geral , que
The tomou , e inchou todo o corpo
deide o alto da cabeça até aponta do
pé. Deixou-o o Medico por incuravel,
e continuando o progreſloda doença ,
tantolhe anniquilou , e proftrou as for
ças , que em onze dias nem ainda
pode levar para baixo hűa pouca de
agua : quando ja ſe nao eſperava oua
tra couſa mais certa do quea ſua mor
te , lhe pôs ſua mãy na boca huns fios
de panno , tintos no ſangue do Servo
de Deos , e apenas ſe fez eſta diligen
cia , quando o menino abrio osolnos,
dizendo : O minha mãy, queme deo
V.m., que eu ja eſtou bom ? Com effei.
to cellou a dor das coſtas, deſinchou .
fe
488 FR . FRANCISCO DE POSSADAS, 20 de Settembro .
ſeo corpo , foi-ſe a eryſipela , e odoen .
te pedio logo de comer , e dentro de
breviſlimo tempo fe pôs a pé muito
melhorado . Achava . ſe de cama D.
Thereza de Caſtro , mulher de Jozé
Octavio , e atormentada de dorestað
crueis , que dentro de onze dias nao
lhe derao lugar de focego : leodo fu-
neſliſſimos os accidentes, que ſe com-
plicavao neſta ſua indiſpoſiçao , era
ſem comparaçaõ algúa mais formida-
vel o de hum cancro, que lhe come
çava a lavrar em hūa das pernas , abran-
gendo até opé , em cujo peito metria
o Cirurgiao hum alfinere , fem ella dar
final de lentimento. Neſta ſituaçao lhe
deraõ a beber hūa pouca de agua , em
que le deitarað huns fios do habitodo
Servo de Deos : adorfneceo logo , e
acordou ſaa de todo o mal , e perigo.
Em igual confternaçaõ ſoccorreooria de Roxas, e amanheceo no outro
Venerayel Padre , por meio de hūa fua dia ſem fuíto , ou ſinal de moleſtia .
reiquia , hûa filha de Manoel Salgado ,
e de Maria Marcelia .
150 Hum filho de Joſeph de Caſtic
lhejo , e de Dona Maria Joſepha de
Pineda , tinha hum carbunculo em
hum ouvido , de cujo remedio ſe de-
rao os Medicos por deleſperados ,che-
gando a dizer em húa das ſuas viſitas,
que nao podia eſcapar a doente até
às duas horas : appellou a máy deita
ſentença para hứa reliquia do Servo
de Deos , que era hum pedacinho de
lenço tinto no ſeu ſangue ; applicou-o
ao filho , e as duas horas , em que
eſtava prenunciada a ſua morte , ſe
achou elle aſſiſtido de muitas melho
rias aſſentado na ſua cama. = Voltava
de Madrid para Cordova Barthomeu
Rubia , e fazia como pobre a lua jor-
Dada a pé : ao fahir da Villa de Li-
nares de Baeza , ſentio -ſe accommet-
tido de repente de hum horrivel car
bunculo , que nao tardou em inchar
The toda a cabeça , girganta ,braço , e
mao : chegando ao lugar de Menxi-
bar mostrou -ſe ao Cirurgiao , e ette
The dille ſe preparaſle logo para mor-
rer , porque nao havia lugar de eſpe ,
rar outra couſa . Pedio que lhe cha-
maſſem Confeffor , e entretanto que
vinha , tirou de hũa reliquia, queſem .
pre trazia com ſigo , da capa do Ser
vo de Deos , e cortando huns fiosdel.
la , os bebeo em agua: era mui racio
Davel que eſta diligencia ,naturalmen
te attendida , lhe aggravaſle o mal i
porém tanto nao foi aſſim , que im
mediatamente ſe achou aquelle pobre
homem reftituido inteiramente da ſua
bõa diſpoſiçaõ . = Maria de Lara achou
ſe na mao elquerda com cinco graos,
que lhe fizerao hūa grande inchaçao,
que ſe lhe dilatou até o hombro : dir .
ſe o Cirurgiao que eraõ carbuncu .
los, e receitava lhe hum cauterio ,
ſem maior demóra ; mas temendo ela
la hūa operaçao tao violenta , e for
midavel , recorreo a hūa reliquia do
Servo de Deos , que lhe deo Dona Ma
T
Qua ' ro annos foi martyr de hūas
acerbas dores de cabeça Catharinade
Navas, que até lhe influia no hom
bro , deixando -lho mui dorido , ea
tormentado : applicou - lhe , depois de
experimentar muitos outros inuteis ,
o remedio de hũa reliquia do Servo
de Deos , e logo experimentou o ali
vio que tanto deiejava. = O meſmo
ſuccedeo a Nicolao de Molina , que
pela meſma cauſa nao podia parar,nem
dormir . EHúa filha de Franciſco de
Flores , padecia hūa deſeſperada dor
de ouvidos , e com os ſeusmuitosgri
tos impedia o focego , e deſcanço da
mais gente de caſa : applicarao - lhe hūa
reliquia do Servo de Deos, ceffarao
as dores, e conſequentemente as gri
tarias . O meſmo , e pela meſma cau
ſa ſuccedeo a DonaLuiza de Moraes,
que em tres dias nao pode pegar no
fomno .
151 Tinha hõa moça , chamada Ma
ria , filha de D. Franciſco Eſcamilha ,
e deDona Beatriz Mojano, hū poftema
no peſcoço , e reſolveo -le o Cirur .
giao a levallo por lancetadas : na noi
te antecedente á operaçao applicou .
lhe lua máy hũa reliquia do Servo de
Deos,
 FR. FRANCISCO DE POSSADAS, 20 de Settembro.
Deos , e logo teve mais ſuavementea
melhoria que tanto pertendia . = Hũa
menina de hum anno filha de Domin .
gos Garcia tinha hum poftema na gar-
ganta : depois de fruſtradas muitas di.
ligencias , eſtava julgadaa lancetadas ;
mas confeguio - ſe melhor o effeito ,
pondo - lhe ſua mãy hum pedacinho da
capa do Venerável Padre :porque im-
mediatamente ſe abrio o tumor , efe
deſpejara o copioſamente as materias,
que atéllieftiveraõ nelle reconcentra
das . = Tendo cinco apnos de idade
Pedro Antonio , filho de Miguel Lo-
pes , metteo hum bocado de carne na
boca , e levando - o para baixo ſem o
haver digerido , ſe lhe encalou na gar-
ganta , de ſorte , que nem lhe paſſava
para diante , nem retrocedia para traz,
e por tempo de meia hora eſteve lutan-
do com a morte , affogado. Perdidas
muitas diligencias , lembrou -ſe ſua
máy do Padre Poſiadas. Pareceo vir
do Ceo eſta voz . Chegárað á bocado
menino húa reliquia fua, e logo dei :
tou o bocado de carne com algum ſan .
gue ; e levantando ſe pedio de comer ,
como ſe nada lhe houvera ſuccedido.
Hum filhinho de D. Diogo Fernan-
des Ailhon , enfermou dos olhos ,pou .
co depois de naſcido , e eſteve cinco
mezes cego , ſem os poder abrir em
mais de dez dias , por cauſa
cauſa da gran
da gran-
de deſcarga de materias , que lhe cor
riao como de hūa fonte. Depois de
ſe haverem perdido muitos remedios ,
i e quaſi as elperanças de ſer remedia
1 vel elte accidente, deo Fr. Afciſclo
de Ailhon , Religiolo noſſo , e tio do
menino , a ſua máy hūa reliquia do Ser.
vo de Deos , advertindo - lhe que a
+
1 deitaffe em agua , e com eſta lhe to-
caſle os olhos : fez - ſe aſlim , e encon-
trou -ſe neſta diligencia o mais prelen-
taneo colyrio daquella enfermidades
porque logo o menino recobrou a vi-
ita , e ficou com os olhos limpos de
nuvens , e impedimentos. = Era de
ſeis mezes hũa filha de Joao de Aro
ca , ch - mada Luiza , quando ſe lhe
inflámou hum olho com hiatal incha-
Tom . VII,
489
çao , que faltou para fóra , de modo
que ſe lhe nao podia ver a menina , ou
as peſtanas. Sahio ſua máy á rua a pro
curar - lhe algum alivio , e encontran
do - ſe com Joao de Salazar, condiſcia
pulo do Servo de Deos , lhe deo elle
ħúa reliquia fua , e nella a melhor me .
dicina daquelle accidente ; porque ap
plicando - a á menina, farou , fem lhe
ficar indicio de leſao , ou deformida.
1
de .
152 Com hũa reliquia do Venera
vel Padre ſe converteo em agua doce
a agua ſalobra de hum poço , ſitojun
to å Praça dos Carrilhos. Quebrou
de dez mezes de idade hum filhinbo
de Diogo dos Reys , e de Leonor de
Avila , e por algumas vezes chegou
a ter as tripas ſahidas vinte e quatro
horas : pôs fua máy hūa reliquia do
Santo Religioſo ſobre ellas , e por fi
meſmo ſe tornára ) a recolher , ſem a
intervençaõ de diligencia alguma , e
de todo ficou perfeitamente faā aquel
la rotura. = Teve Dona Paula de Val
derrama por tempo de ſeis annos hum
tumor em hum dedo , de que le nað
pode livrar, por muito que crabalhou
niſſo : as dores eraõ exceſſivas, e ad
mirava-ſe ella meſma de que , eſtando
viva , foſſem tað féridos os vapores
que ſe exhalavao daquella intumeſ.
cencia. Vendo a pertinacia delte mal
os Cirurgioens , determinarao cora
tar lhe aquella parte , antes que a ſua
malignidade foffe inficionando outras :
na noite antecedente ao dia , que eſta .
va conſignado para eſta operaçao , to
mou a pobre mulher búa reliquia do
Servo de Deos , applicou.a ao dedo,
aonde a deixou ficar atada toda aquel .
la noite : pela manhaã acordou lem
dor ; e indo a ver , achou odedo tað
bom como qualquer dos outros. =
D. Filippe Lopes em dous annos nað
teve alivio , ou interrupçao em hũas
deſatinadas dores de pernas , que lhe
impediaõ dar hum paſſo ſem arrim ),
e difficuldade grande . Noinverno do
ſegundo anno lubio mais depontoeſte
incommodo , deſorte que nao podia
Q99 levar
490 FR . FRANCISCO DE POSSADAS, 20 de Settembro.
levar hum breve fomno focegadamen-
te , eſpecialmente em 15. dias que le-
vou na cama , com maior magoa , e
deſconſolaçao: lembrou - ſe em hūa
noite ſua mulher Dona Victoria de
hum favor , que havia devido ao Ser-
vo de Deos por meio de hūa ſua re
liquia , que muito guardava , e appli-
cando - a a ſeu marido , logo adorme .
ceo , e acordou fað , ſem que em mui-
tos annos , que paſſaraó depois , tornaſ.
ſe a ſentir algum effeito da ſua paſſa-
da moleſtia .
153 Eſtava abandonada dos Medi .
cos Catharina Maria de Cazorta , que
a deixaram aos Miniſtros da Igreja , di :
zendo : que a elles he que pertencia
o conhecimento da ſua cura , e até , o mudo , recebeo aquelle corpo ſau .
deſtes dous ficou deſamparada, viſto
o pouco fruto , que haviao ſurtido as
ſuas diligencias : nao podia adoente
dizer hứa palavra , que ſe lhe perce-
belle , e tinha perdido o uſo da razao ,
achando - ſe pouco menos que cega ,
furda , e muda . Morreo por eſte tem
po o Servo de Deos , e entrando em
ſua caſa Maria de Lara com hum pe-
dacinho de lenço tinto no ſangue de
Fr. Franciſco , deo - o a Beatriz daAf-
cenfañ , filha da enferma, para que
cortafle huns fios, e os deitaſſe em
agua para dar de beber a ſua máy : fel-
lo aſſim ; e logo ella mudou de fem-
biante , como ſe acaballe de acordar
de hum pezadiffimo letargo , fallou
claramente , e com muito propoſito :
perguntou por hűa ſua amiga : relpon.
derao -lhe, que era ja morta, e que
iſto lhe haviao dito muitas vezes, e
confeflou que nao o ſabia : Quando
a cabou de beber a agua , virao ſahir
de entre a roupa da ſua camahũano .
tavel multidaõ de beſpas , e abelhas ,
e entre ellas dous animalejos de eſpe-
cie nao conhecida : hum delles eſca-
pou ; o outro puderao no matar , e
cauſou mui grande aſſombro o eſtra-
nho da ſua figura. De largo , e com
prido era como hum dedo auriculat :
na boca tinha ponta como Lacráo ; a
cabeça era á proporçaõ do corpo , em
cujo mejotinha quatroazas dobradas,
e ſobrepoſtas hūas a outras , e pelo
maior era de cor de canella . A penas
succedeo o prodigio , pedio adoente
o feu Roſario para rezar , couſa que
T
atélli nunca fizera : deſcançou o re 1
ſto daquelle dia na cama , e no outro
diſſe, que ja ſe achava bõa ; e era tan
to aſſim que no ſeguinte pode ir á
Igreja render as graças a Deos , e a
ſeu grande Servo , e nao a algumaque
ficaſle mais perto , ſenaõ á dos Padres
Deſcalços da Santiſſima Trindade ,
que ficava em grande diſtancia de ſua
caſa. Eſte foi hum milagre , que in
cluio muitos milagres ; por que aqui
vio o cego , ouvio o ſurdo , e fallou
de em quaſi todas as ſuas partes ; e,
o que he mais , retirou -ſe vencido ,
e confuſo o demonio , a quem ſe at
tribuîao todos os calamitoſos acciden
tes , que tanto penalizavao , e affligiao
aquella pobre mulher .
154 Hữa menina, filha de JoaoGon
çalves Moreno , ſendo de tres annos
padeceo hūa enfermidade , de que
foi deſamparada pelo Medico , que ſe
confirmou ainda mais neſte ſeu juizo,
quando vio que ſe hia gangrenando
por varias partes . Affligia -ſe ſua mãy
ſummamente por cauſa deſte grande
golpe , pelo que foi neceſſario fazella
retirar dalli , ficando Dona Victoria
de Aguiar aſſiſtindo aquella menina
que era tua ſobrinha : tinha elta ja to
dos os finaes de morte ; porque nem
ſe lhe percebia reſpiraçað , nem lhe
podia paſſar para baixo hum pouco de
leite que lhe lançavao com hūa penna ,
e em nove dias foi o unico alimento
de que ſe ſuſtentou , e agora ja nao o
recebia , derramando - o logo pelos
beiços fóra. Em fim , ja ſe andava
cuidando em buſcarmortalha, quan
do o pay da doente cheio de fé botou
hűa reliquia do Servo de Deos em bum
copo de agua , e deitando hūas pin .
gas della na boca da menina , eiſque
de repente abre ella os olhos , toma
outras cores , e abrindo-ſe- lhe a von
tade

FR . FRANCISCO DE POSSADAS, 20 de Settembro.
tade de comer , tomou logo hū as páf-
ſas , á noite ceou muito bem , e no
outro dia ſe achou cabalmente faā ;
5
pedindo de almoçar , e dando fe.The
húa romaā, nao quiz conſentir que
lha deſgranaſiem , e o fez ella meſma
pela ſua mao .
155 Era de tres annos de idade Jo .
ſeph Rafael, filho de Franciſco Ben-
to, e de Maria da Trindade , e dan-
do hūa grande quéda por hūa eſcada,
offendeo gravemente hūa fonte da ca
beça de modo que lhe rebentou hũa
arteria, de que deitava ſangue a ma
res . Vendáraó - lhe os olhos ; mas nað
lhe puderao vedar a ferida, porque
ſobrepondo-lhe muitas ataduras , o ſtes ſobre ella , e logo a reunio , como
ſangue as repaſſava facilmente tornan-
do a correr com todo o impeto. Pe-
gou -ſe ſua māy com muita fé com o
Servo de Deos, para o que lhe appli-
cou hūa ſua eſtampa , mas foi por en-
tað ſem effeito eſta diligencia , que em
outra occaſiao lhe valeo de muito, co.
moveremos abaixo. Paſláraõ tres dias
ſem haver remedio para eſtácar aquel-
le impetuolo fluxo ; e ſe achava o conſiderando ſua māy a grande falta
paciente com o roſto tað pallido , co .
mo ſe ja lho houveſſe tocado a fria
mao damorte : na quarta noite enco-
ſtou - ſe ſua máy á cama, com intento
de nað o perder de viſta , e acudir .
lhe quando viſle que tornava a correr
ſangue ; mas como andava tao trafnoi-
tada , pegou no fomno , e ficou ador .
mecida nao mais por tempo de meia
hora ; mas quando acordou , naõlhe
faltou que fentir , e chorar , vendo
nao ſomente a cama , em que eſtava o
filho , feira hum lago de ſangue , ſe
nao a caſa tambem toda enfopada ;
acudio a ver o menino , e achou -omor-
to com toda a evidencia : movia - o ,
chamava- o , abria - lhe os olhos , e fa-
zia outras ſemelhantes diligencias, e
de todas ellas nað tirava mais fruto ,'
que hum triſte , e mui delconſolado
deſengano , que mais ſe corroborava
com a falta doegreſſo do ſangue , que
ja naõ dimanava da ruprura da arte .
ria . Lavou -ſe finalmente o pequeno
Tom . VII,
.
491
defunto , e veſtio - ſe - lhe a mortalha ,
e entrando ás ſeis da manhaã em caſa
de ſeus afflictos pais Ambroſio Sola.
da , diſſe a Maria da Trindade. Ah ,
se V.m. lhe puzera hõa reliquia do
Padre Poſadas , que eu aqui trago
commigo , como he certo que o menino
naõ havia demorrer ! Era rao grande
a fé , que tinha a pobre máy do mor
to no Servo deDeos ,que pedio aquel
la Veneravel prenda com muita ancia ,
e vinha a ſer hum bocadinho de len .
ço tipto no ſangue do Veneravel Pa .
dre . Cortou huns fios, e applicou dous
delles ſobre a aperçao da arteria . Ca.
fo eitupendo ! atraveſſou-ſe hum de
ſe le lhe houveſle dado hum ponto
de agulha , e pelo tempo a diante nao
lhe ficou mais que o ſinal da ciſura, pa
ra recordaçaõ perpetua do prodigio ;
lançarao- ſe outros fios em agua , e
deitando algumas gottas na boca do
menino , começou eſte a mover-ſe ,
abrio os olhos , e começou a fallar co
mo ſao : quiz logo ſahir á rua ; mas
de ſangue, nao o queria deixar fahir
da cama;porém a panhando-a elle def
cuidada , levantou -ſe , veſtio - le , e
andou pela Praça de Valladares : eco
mo ſeus pais virao nelle cantos brios ,
perderað o cuidado com que eſtayao ,
deixando - o andar por onde elle que
ria . Vejamos agora , como acima pro
mettemos, algumas das muitas mara .
vilhas , que obrou o Senhor , toman
do por initrumento os retratos deſeu
Servo .
156 Efte meſmo menino , em que
acabamos de fallar, tornou a dever ou.
tro favor ao Servo de Deos , por vir
tude de hūa ſua eſtampa , e he o que
agora diremos . Andava elle brincan
do com outro da ſua idade , e cahio.
do no chao ao tempo , em que paſſa
va hūa ſeje , paſſou -lhe hūa das rodas
por cima da cabeça : fizeraõ.ſe parar
as beſtas aos gritos que elle dava ; mas
iſto fez maior o damno , porque lhe
pallou por cima da cintura : leváraó
Q99 ii ng
492 FR . FRANCISCO DE POSSADAS, 20 de Settembro .
no pouco menos que morto a ſua ca-
fa ; mas applicando-ſe.The hum retra-
to do Servo de Deos , nao lhe foi ne.
ceſſaria mais cura para ficar com to
da a bõa diſpoſicao. = Dopa Catha-
rina de Arias , mulher de Bartholo.
meu de la Ruiza , ficou deſcorçoada
dos Medicos em húas moleftiſſimas
terçaās , que tenazmente a perſeguiao:
ſuccedeo entrar -lhe em caſa , a tem
po em que eſtava com hūa dellas , hum
homem , e trazer comſigo hum retra-
to do Servo de Deos : pôs a doente
os olhos na pintura, e offereceo re-
zar ao Veneravel Padre todos os dias
o Roſario da Senhora , ſe ſe viſſe li-
ver daquelle achaque . Ainda bem oaŐ
tinha acabado a promeſſa, quandolo-
go ſentio o effeito do bom deſpacho,
que o Veneravel Religiofo lhe ſolici-
tára. Executou pontualmente o que
promettera nos primeiros dias ; mas
havendo'tido em hum delles hūa viſi-
ta de cumprimento em que ſe gaſtou
muito tempo , determinava deixar pa ,
ra o outro dia o cumprimento , e la-
tisfaçao do voto , que fizera : mas pa
gou -o com ſer logo aſlaltada de outra
çerçaā tremendiſlima; e conhecendo
bem donde agora lhe naſcia eſte acci-
dente , reformou a ſua promeſſa , pro-
pondo nao deixar de rezar o promet-
tido por qualquer humano reſpeito ,
que ſe pudeſſe offerecer : e feito eſte
propoſito , calmou logo o mal, de que
nunca mais tornou a ſer accommettida.
157 Joao da Rola , que foi o pin-
tor , que copiou o roſto do Servo de
Deos, tinha hum filho chamado Ma .
noel, de idade de tres annos , com hum
braço tao inſenſivel para o movimen-
to , como ſenſivel para ſe doer de qual-
quer tóque , por mui leve que foſſe ; e
tinha tambem hũa filha chamada Ma-
ria Paula , de quatro mezes , que da
cintura para baixo era toda hūa cha
ga : tocou ſua mulher o filho com o
retrato , e encomendando- o , alim
como tambem a filha,aoServodeDeos,
começou logo o menino a mover o
braço , dizendo que ja eſtava bom ;
e paflando a ver a menina , a achou tam
bem faã das ſuas chagas ; e lançando
pela boca do dia ſeguinte hum potte
ma de maligniſſimos humores , ficou
totalmence livre , e aliviada . Dom
Pedro de Andrada , e Dona Clara Ser
rano tiveraõ hum filhinho , chamado
Pedro Franciſco , que lhes deo mui
to em que entender ; porqueeraõ taes
os gritos , que , como couſa , que tranſ
cendia os limites da Datureza , nem
ſeus meſmos pais ſe attreviao a ſoppor
tallo , ao que ſe ajuntava nao reter o
menino o leite mammava, tornado
logo a vomitallo . Deo D. Chriſtovao
Lopes a Dona Clara hūa eſtampa do
Servo de Deos , dizendo - lhe : tocaf
,
ſe o menino com ella que logo mu.
daria de natural, e aſſim a foi; por
que no meſmo inſtante que lha puze
raó , começou a rir , e nunca mais tor .
nou a deitar o leite fóra , nem ſe lhe
tornáraõ a ouvir outras gritarias , aja
da que tardaſle , ou ſe deſcuidafle al
gumas vezes em dar lheo peito a ama
que o criava , pelo que dalliem dian
te lhe ficáraõ chamando o menino do
milagre . Com as eſtampas, e effi
gies do Veneravel Padre faráraó de
repente Joao Lucas Nolaſco de hūa
graviſſima dor de pernas ; Dona Aa
tonia da VeigaContrerasde hūas quar
taās ; Maria de Cadis de hũa fluxao
nos olhos ; Dona Roſalia de Eca de
hum grande fluxo de ſangue ; e ou
tras muitas peſloas de diverlos acci
dentes , achando todas a ſua conſola
çaõ no patrocinio do noſſo grande , e
virtuoſiſſimo Servo de Deos Fr. Fran
ciſco de Poſiadas , a quem a Divina
Omnipotencia quiz fazer tað grande
em virtudes , e milagres, comotemos
viſto : 0 que tudo ſeja para gloria do
meſmo Deos , e Senhornoflo, rem fim .
Amen.
RE:
 FR . MARCIAL AURIBELLI ,
RECOPIL A C, A M
de 20. de Settembro.
A Grecia o Illuftriffimo
' N e Veneravel Biſpo Cuna
bulenſe D. Fr. Ruthelem . Era Gre.
go de naçao , e foino ſeu tempo hum
dos primeiros ornamentos da Igreja
Latina. Dotou- o o Ceo de hūa fum .
ma prudencia ; enaõreſplandecendo
menos em (ciencias,evirtudes,foi ele .
vado ao governo daquella Igreja no
apoo de 1460. Elle agovernou cinco
annos como hum Santo Biſpo , que
indubitavelmente era . Nao contribuio
pouco a ſua vigilancia , e o zelo tao
ardente , com que elle procurava ſem .
pre o major bem da Religiao Ortho-
doxa , para os intereſſes da Igreja Ro.
mana , em huns tempos , e em hum
+ paîz , em que ella padecia tantas con-
tradiçoens, ainda que alias por eſte
reſpeito ſe expozefle a padecer, co
mo padeceo , grandes trabalhos , o
1 que mais fervia de animar a ſua pia in-
tençao . Finalmente depois de haver
fuftentado hum tao legitimo certame,
entrou a gozar -ſe da palma da victo-
ria na Bemaventurança , no anno de
= Pius 2 . 3 Font. in th .
. progreſſos cao maravilhoſos nas letras,
2 que ſe doutorou naquella Univerſida
Em C ,aragoça no Moſteiro de
Santa Ignez , a Veneravel Soror An-
na de Santo Agoſtinho . Foi Religio-
3
ſa mui oblervante , etao obediente,
que nao tinha mais vontade do que
húa admiravel reſignaçaõ nos precei-
tos dos Superiores. Fugia das ſuas in-
clinaçoens naturaes, ainda que incul-
paveis , ou indifferentes , como ſe foſs
fem deſpenhadeiros do inferno. A's
diciplinas, jejuns , e mais rigoresda
Conſtituiçao , accumulou outras in-
finitas auſteridades. Tinha muita Ora-
çaõ , em que gaſtava amaior parte da
noite ; e entende ſe que nella recebeo
nað vulgares favores do Ceo , mas el .
la deo a eſta noticia , que muito po.
deria acreditar as poſias Hiſtorias, hūa
ſepultura taó profunda , como a ſua
21 de Settembro. 493
profunda humildade . Fechou fanta .
mente os ſeus dias no anno de 1560 ,
Diario Dominic . e Lopes 5.p.
21. de Settembro.
Vida do Reverendiſſimo e Ve
neravel Padre
FR . MARCIAL
A URIB E L L I ,
Vigeſimonono Geral da Ordem,
Extrahida de Lopes, Pio , e Fonta ;
na nos Monumentos da Ordem .
I Cidade de Avinhao foi a
A glorioſa patria do noflo
Reverendiſſimo Geral Fr. Marcial
Auribelli , em todos os ſentidos hum
dos primeiros homens da Sagrada Fa
milia Dominicana. Foi naſcido de pais
muito illuſtres, e honrados ; maspu
deraõ referir a ſua maior nobreza a
terem hum filho taõ grande diante de
Deos , e dos homens. Corria o anno
de 1424. quando elle veſtio no Con
vento , que a Ordem tem naquella Ci
dade , o habito de S. Domingos . Lo
go deo moſtras do que havia de ſer;
porque a hum eſtudo incanſavel jun .
tava būa eminentiſſima devoçao . Fez
de no anno de 1437. A prudencia , que
moſtrava para manejar os negocios
mais arduos , e intricados , lhe adqui
rio hũa eſtima univerſal dentro , é fó .
ra da Religiao . Entre todas as boas
qualidades , de que o prendou mui
fingularmente a natureza , tinha hūa
memoria tao viva , que o fazia ſer at
tendido , como hum milagre . Deſde
que entrou na Ordem , o ſeu maior
eſtudo foi ſempre em regular todas as
ſuas acçoens pelo nivel da mais per.
feita obſervancia . Deraõ The todos
estes taö excellentes predicados hum
nome cao glorioſo na Provincia , que
ſe lhe commetterao os ſeus primeiros
Priorados .
Adminiſtrava elle eſta Prelatu
ra
494 FR : MARCIAL AURIBELLI ,
ra no ſeu patrio Convento , quando al.
li ſe celebrou no anno de 1442. hum
Capitulo Geral , aonde elle foi inſti-
tuido Provincial de Provença , e eſte
lugar repreſentou em Nantes , aonde
concorreo para a eleiçao de Geral ,
ſem ſaber que a ſorte havia de cabir
nelle ; porque o ſeu merecimento era
igualmente incomparavel, que noto-
rio. A circunſtancia do tempo , em ģ
aOrdem ſe achava com algúa decaden-
cia, dava muito maiores esforços á ju-
ſtiça da ſua caufa. Em concluſao , go
vernando Nicolao V. o leme da bar .
ca de S. Pedro , e correndo o anno
de 1453. , foio Servo de Deos promo.
vido, muito á ſatisfaçao de todo o
Capitulo, e detoda a Ordem ,ao Gene-
ralato della . Vendo- le tao empenha-
do em procurar os ſeus maiores avan
eadiantamentos , entrou na gran
ços ,
de empreza de lhe reftituir aquelle feu
primitivo eſplendor , que enriqueceo
de tao precioſos monumentos a Hiſto-
ria Eccleſiaſtica, aonde indiſputavel-
mente tem hum dos primeiros luga-
res os Faftos Dominicanos. Como
hum fim taô gloriofo nao ſe podia con-
ſeguir, menos que ſe nað reſtabele-
celle a antiga , e mais eſtreita obler-
vancia das noſſas leis , eſte foi todoo
feu cuidado. Para fahir com a ſua ,
convocou dous CapitulosGeraes , hum
em Mompelher , no anno de 1456. , e
outro tres annos depois , em būa po.
voaçao de Saxonia , chamada Novio-
magum . He indizivel o grande fruto ,
que reſultou deſtas Veneraveis Aſſem .
bléas : a melhoria que ſe obſervou nos
Conventos de Italia , Alemanha , Po
Ionia , Ruſſia , Sicilia , e nos de ou .
tras mnitas Provincias , aſſáz teſtimu-
nhou quanto as rectas intençoens de-
ſte grande homem eraõ protegidas da
Maõ de Deos . As oppoſiçoens , que
objeétavao os Religioſos menos aman
tes da perfeiçao ,delappareciao diante
delle com maior facilidade do que a
névoa á viſta dos raios do Sol .
3 O Duque de Borgonha reco
nhecendo muito bem o grande eſpi-
21 de Settembro :
rito de Religiao deſte Veneravel Pre
lado , ſe declarou pela ſua parte , e nao
foi de pouco momento a que elle
teve em que os Conventos deZurich ,
e Harlem abraçaſlem a reforma , que
elle introduzia. A melma attençao de
veo o Servo de Deos ao Illuſtriſſimo
Biſpo de Magdeburg , a cujas inſtan
cias ſe ſometterao ás diſpoſiçoeps de
Fr. Marcial os noſſos Religioſos Con
ventuaes paquella Cidade . Em todas
eſtas Caſas eſtabelecia eſte grande Pa
ſtor Vigarios , que zelaflem , e fo .
mentaflem a maior perfeiçaõ da refor .
ma ; e determinou quetodos os Con
ventos , e Moſteiros, que ſe edificaflem
no ſeu tempo , nao ſeria o admittidos
ao Corpo da Ordem , menos que tam
bem ſe nao ſujeitaſſem á meſma eſtrei .
teza de oblervancia . Teve a gloria de
ver Canonizado no ſeu governo o noſo
fo S. Vicente Ferrer , no anno de
1455. Elle foi o que compôs o Offi.
cio do Santo , e achou -ſe preſente com
cem Religioſos á Trasladaçao , que
ſe fez das ſuas Reliquias a Vannes , em
cuja ſolemnidade houve hum concur
ſo de cento e cincoenta mil peſſoas.
Fez inſtancias mui fortes ao Biſpo, pa
ra que cedefle o corpo do meſmo San
to a ſua Ordem : foi porèm diligencia
fruſtrada ; porque aquelle Prelado nao
quiz defraudar a ſua Cathedral de hum
tað eftimavel theſouro , que effecti.
vamente depoſitou nella com o mais
pompoſo , e reverente culto , que acé
eſtes tempos alli ſe lhe tributa .
4 Nove annos tinha trabalhado o
Servo de Deos em promover ſeus ſub
ditos á mais ſevera perfeiçao Religio
fa , quando Pio II. o apeou do gover
no . Nao ſe ſabem as razoens particu
lares , que houve para eſta novidade.
Alguns ajuizáraó que a devoçaõ que
tinha o Servo de Deos aos intereſſes
da França , foi o primeiro mobil de
{ te incidente ; mas ſeja qual for o prin
cipio . O certo he que toda a Ordem ,
que tanto eſperava florecer com os
majores creditos , debaixo de hum go
verno tað prudente , e tao ſanto , len
tio
 FR . MARCIAL AURIBELI,
tio no mais intimo da alma eſte gol-
pe. Convocou - le Capitulo Geral por
ordem do meſmo Papa , em Senaſua
patria, em 15. de Agoſto de 1462. ,
e ſahio eleito Succellor do Servo de
Deos o Veperavel Padre Fr. Conra-
do de Aſti, Piamontez, da Provin-
cia da Lombardia , e que actualmen-
te eſtava ſervindo de Procurador Ge
ral da Ordem , como veremos neſte
Agiologio em ſeu lugar a 15. de De .
zembro . Inteirado Paulo II . do mui-
to que a Ordem dos Prégadores hac
via ſentido a depoſiçaõ de Fr. Mar-
cia!; e ſendo - lhe bem conftante que
os pretextos , que para iſſo tomára ſeu
Anteceffor , não eraõ de grande mo-
mento , impôs hūa ſuſpenſao da ade
miniſtraçaõ do Generalato a Fr. Con-
rado . Eſte , que naõignorava o fitodo
Papa , pedio eſpontaneament em hum
e
Capitulo, que para iſlo convocou em
Novaria , à ſua dimiſſao. Os Padres
Capitulares pouca duvida tiverao na
eleiçao de Geral; e por uniformida-
de de votos foi reeleito paquella gran-
de Prelatura Fr. Marcial Auribelli .
5 Apenas elle começou a mode-
rar as redeas deſte mando, quando
logo tornou a tomar o fio da ſua em .
preza , procurando com o maior em.
penho o reſtabelecimento da obſer-
vancia . Deo a ſua confirmaçao áquel-
Ja que ſe plantára nos Conventos da
Colonia , Auvilar , e em muitos ou
tros do Reino de Polonia. Paſſou de-
pois a Caſtella, aonde foi inexplica-
vel o muito exercicio , que teve a ſua
paciencia para aqui radicar aſſim mer-
mo a maior exacçao da regularidade.
Teve porem contra as oppoſiçoens,
que achou , hum forte eſcudo no nof-
fo Eminentiſſimo Cardeal Fr. Joao de
Turrecremata ; porque unidos ambos
eftes Heróes do Ceo , nao houve dif
ficuldade , que pudeſle prevalecer
contra os teus ſantosintentos. A in
ſtancia daquelle grande Purpurado
Dominicano , começou o noſſo Ve
neravel Geral a ſua reforma pelo Con
vento de Valladolid , aonde elle ha
21 de Settembro . 495
via tomado o habito . Trabalhando
pois com osolhos em Deos , teve acon
ſolaçao de ver propagada a reforma
por toda aquella Provincia.
o Morto Paulo II . ſubio Sixto IV.
á Cadeira de S. Pedro . Nao faltáraõ
emulos , que pefte Pontificado quize
rao defraudar a Ordem de S. Domin
gos da honra,ſempre addicta aos filhos
deſte tao eſclarecido Patriarcha , de
Meſtres do Sacro Palacio . Eſta per
tençao nao deixou de ſuſcitar nos See
nhores Cardeaes , e ainda no meſmo
Papa , nao obſtante ler filho da meſ
ma Sagrada Familia dos pertendentes ,
hum nao pequeno eſcandalo , muito
mais attento o feliz deſempenho , com
que os noflos ſempre haviao enchido
aquelle tao importante cargo , pro .
pugnando com o mais illuſtre zelo os
intereſſes da Santa Sede Apoſtolica .
Neſtes termos , Sua Santidade , poſto
que tað favoravel a noſſos oppofito
res , lhes mandou que nao lhe tocaf
fem mais em ſemelhante materia. Vi
fitada , como diſſemos, tao felizmen
te a Provincia Caſtelhana , celebrou
o Reverendiffimo , e Veneravel Fr.
Marcial , durante o ſeu Generalato ,
com o maior credito , e utilidadedo
nome Dominicano, alguns Capitulos.
No anno de 1468. teve hum em Ro
ma ; no de 1470. outro em Avinhao ;
eno de 1473., que foi o da ſua fanta
morte , outro em Baſileia. Em todos
preſcreveo Conſtituiçoens muito dif
cretas , prudentes , e Religioſas,ten
dentes a aperfeiçoar todos os filhos ,
e filhas de S. Domingos pelo nivel dá
maior ſantidade. Morreo finalmente
em hũa gloriofa velhice em 21. de Set
tembro em Avinhaõ , depois de haver
regido tað illuſtremente a Ordem duas
vezes , que montáraó em 16. annos.
RES
 496 FR . JOAM GIL DE TODOS OS SANT ., 12 de Settembr .
RECOPIL A C, A M
de 21. de Settembro.
I M Viterbo a Beata Soror
E Anna , appellidada da mel
ma.Cidade . Naſceo em Carniola , e
paſlando a Viterbo , aqui fez hūa vida
de Santa , como ella verdadeiramen-
te era . Os deſejos que tinha de en
trar em maior perfeiçao , demovêrañ .
} na a abraçar , como abraçou , olntti-
tuto da noſia Terceira Ordem . Velti-
da de noſſo Santo habito , todo o ſeu
ponto foi dar hum fiel cumprimento
ás obrigaçoens,a que ſe ſometêra .Por
iſſo enchia com o mais pontual rigor
os artigos das Conſtituiçoens quanto
aos jejuns , abſtinencias , e vigilias .
Somettia de tal modo a carne ao eſpi
rito , que nao tinha couſa alguma,que
nao parecefle de Anjo. Morta lua
máy , recorreo á Virgem Santiſſima,
de Quem era grandemente devota ,
para que Ella , que paõ fe dedigna de
ſer Máy de peccadores , a aceilaſſe
tambem por ſua filha. Entao fez vo
to a Deos de perpetua Virgindade.
Tem lé que na Oraçao alcançou gra
ças mui particulares . Nao careceo da
deprofecia. A materia ordinaria da
ſua contemplaçao era a da Paixao do
Filho de Deos , que muito a enterne-
cia. Finalmente depois de haver pro-
fellado todas as virtudes , que lhe te .
cêrao hūa grande coroa de gloria ,
paſſou do mundo para o Ceo no anno
de 1306. , idoſa de 42. = Teſtimu-
nhou o Ceo quanto era verdadeira a
Santidade deſta grande mulher aſſim
com muitos milagres , com que de .
pois da ſua morte honrou a ſua me .
moria , como com a inteireza , e in-
corrupçao do ſeu corpo , que até el .
testempos ſe admira na Igreja do Con-
vento de S. Domingos de Viterbo . =
Font ana .
2 No Ducado de Milaő , em Or-
ta , o Veneravel , Illustriſſimo Biſpo
deita Cidade D. Fr. Joao de Folinho .
Era da Provincia Romana , e de tan
tas letras , e religiao , que Urbano V.
o nomeou no anno de 1366. Sagrado
Paſtor daquella Dieceſe , antes que
ella foſſe ſubordinada á outra de Caz
ftella . O noſſo Fr. Joao a governou
com toda a prudencia , vigilancia , e
caridade , pelo que ſe fez tao acceito
aos bons , como formidavel a todos
aquelles de menos juſtificados proce
1
dimentos . Celebrou alguns Synodos
a fim de preſcrever asregras Chriftaas
mais neceſſarias a ſeus Dieceſanos ; e
depois de haver ſantificado o ſeu re
banho 27. annos , correndo o de Chri
ſto de 1393. paſlou á melhor vida . =
Italia Ser . Font.pag.204.
22. de Settembro .
Vida do muito Virtuoſo Irmao
Leigo
FR . JO AM GIL
DE TODOS OS SANTOS ,
Segundo alguns manuſcritos, que nos
vi raõ remettidos , e hua attes
ſtaçao do ſeu ultimo Direa
& tor , do noſo Convento
de Badajós.
I Ecopilaremos o que
R hon
verinos de dizer do muito
Virtuoſo Irmao Leigo Fr. Joao Gil
de Todos os Santos , do informe, que
elle meſmo por mandado da obedien
cia fez por eſcrito ao ſeu Director ef
1
piritual , e de outras noticias , que ſe
nos participáraõ do noflo Convento
de Badajós , aonde elle floreceo , e
acabou com hūa muito grande opi
niaõ de Santidade , e doutrinaMyſti
ca.Como elle poièm foſle eſcrevendo
mui diffuſamente aquellas ſuas me
morias deſde que chegou aos vinte
e nove annos da ſua idade, o que pe
la major parte contêm , fao factosa
contecidos no Seculo , por nao alar
garmos demaziadamente eſta narra
çao ,a coarctaremos no quenos for pof
livel , referindo ſempre tudo aquillo
que forem virtudes fuas, como o que
he
 FR . JOAM GIL DE TODOS OS SANT., 22 de Settembr. 497
he mais preciolo aos Olhos de Deos,
para moſtrar quanto eſte bom Irmao
foi grande no mundo , e dentro dos
noſos Clauſtros , poftoque elle ſe pore
tou de modo no eſtado de ſecular , que
ja entao parecia hum perfeitiſſimo
Religioſo .
2 Naſceo Fr. Joao em hūa veſpe-
ra de ocſlo Serafico Padre S. Francif-
.
co , ( o anno nao ſe ſabe ) em humlu
gar da obediencia da Diece fe de Pla-
cencia , chamado Aldéa nova de la
Véra. Foi ſeu pay JoaoGil de Naran-
jo. Eſtava deſtinado para Sacerdote ;
Inas iſto nao pode ter effeito pela or
fandade em que ficou por morte de
ſeus pays : O noſſo bom Irmao diz que
elle vivia de cavador . Mas , ainda que
humilde por trato , e fortuna, de co
Itumes exemplariſſimos. Era temen-
tiſſimo a Deos , e procurava perſua•
dir com toda a efficacia eſte ſanto
temor a ſeus filhos , a quem dava hūa
laudabiliſſima educaçao . Tao circunl-
pecto ſe moſtrava com elles , que diz
o noſſo Veneravel Fr. Joao que era
iſto em fummo gráo. A hum acceno
ſeu ,de hūa ſua viſta de olhos os fazia ja
tremer : poriflo nao ſe atreviaõ dian.
te delle a dar o menor ſorrizo . Nem
aos ſeus filhinhos mais pequenos mo-
ſtrava agrado : aos maiores inuito me-
pos ; por eſta razao , eſcreve o Servo
de Deos, lhe fez muita admiraçaõo
e
vê- lo chorar em certa occaſiaõ de tra-
balho , em que ſe delpedîra o hum de
outro . Nao ſe fiava ſó do enſino , que
os meſtres podiaõ dar na eſcola a ſeus
filhos : em vindo á noite do ſeu traba-
lho , os chamava , e fazia eſtar em pé
para aprenderem a doutrina ,que lhes
enſinava. Jamais ſoube dizer couſa
que nao foſſe pura verdade ; e ſe elta
chegava a ſer offendida na lua prelen-
ça , mudava logo de cor . Era muito
humilde, e tudo era dizer aos filhos,
que nunca lhes ſuccedeſſe eſquece-
rem -ſe do que eraõ . Teve hūa pacien-
cia admiravel , no que ſoffreo a hūa
ſegunda mulher , com quem ſe caſou,
madraſta do nnflo Fr. Joao , emuiſe-
Tom . VII.
melhante á mulher de Job : iſto era em
hum tal extremo , que communmen
-te fe dizia que Noilo Senhor Jha ha
via dado em deſconto dasſuas culpas .
3 Teve ſumma confiança em Deos ,
e praticava hõa miſericordiofiflima
caridade com os pobres . Sendo Al
caide do ſeu lugar, tanto le nao atre .
via a vexallos pelos tributos , que an
tes nao poucas vezes os toccorreo em
graviſſimas neceſſidades ; e ſe a mu
Ther lhe queria ir niſto á mað , canſava.
ſe fruſtraneamente , porque elle nao
te podia contêr . Era muito devoto
e coſtumava dizer que todo o anno ,
em que era Mordomo de algum San
to , experimentava que ſe lhemultipli
cayao os bens . Particularmente The
devia hum bom affecto o noſlo gran
de Portuguez Santo Antonio , eo glo
rioſo Santo lho retribuîa de modo ,
que dizia elle , que tudo o que pedia
ao Senhor pela ſua interceſlaõlhe era
francamente concedido . O noſſo bom
Irmao ouvio ( diz elle ) fallar em hum
prodigio , com que o Tndo Poderoſo
The quiz remunerar o ſerviço , que
lhe fazia , promovendo o ſeu culto.
Foi o caſo : que ſendo eſte bom ho
mem Mördomo em hum anno do Se
nhor , venerado em hűa ſua Imagem
invocada do Sepulcro , por haverem
ſido mui largos os diſpendios , nao
chegava o dinheiro para pao , e vi .
nho. Accudio o pay do noſlo bom
Converſo a hum Joao Vorinos , com
quem tinha tratos , a pedir- lhe que
remediafle a falta do vinho : reſpon .
déo o outro , que nao o tinha preſen
temente. Initou o Mordomo , que
foſſe ſempre ver , que talvez poderia
achar pouco , ou muito , com que de
algum modo ſe pudelem remediar.
Aſlim le fez , e achou -ſe a vazilha
chêa de hum vinho excellente. Com
o pao ſuccedeo tambem o meſmo.Em
hűa palavra, diz o noſſo Fr. Joao que
para elle ſer bom lhe baſtava a imi
taçao do exemplo de ſeu рау .
4 Sua may chamava -le Maria Xi .
menes , em cujo mui igual ao genio,
Rrr e ás
 498 FR . JOAM GIL DE TODOS OS SANT. , 22 de Settembr.
e ás virtudes de ſeu marido . Era tao
honetta , e recolhida , que ſendo efty-
Jo daquelle lugar juntarem -ſe as mu-
lheres a fiar ao ſol , jamais a vîrao a
ella fóra de caſa , ſenaõ naquellas oc
cafioens , que faziao indiſpenlaveis,
ou a Religiao , ou a neceſſidade. Hum
dos pays do Servo de Deos , tegundo
elle refere havello ouvido a hū a ſua
tia , mas ſem declarar- ſe tia por parte
de ſeu pay , ou de ſua máy , proce-
dia da nobreza dos Ureñas, e Mon-
teros . Maior luftre lhes dava outra
parentéla de peſoas de muito exem
plo , e Chriftandade, como foi hum
Veneravel Sacerdote , tio do pay de
Fr. Joao , homem de grandes peni.
tencias , que parecendo que queria ,
mediante ellas , acabar com o teu cor-
po , ha fama de que depois de morto
ſe conſerva incorrupto : hum primo
do meſmo pay do noſſo Servo de
Deos , homem de tanta caridade,que
chegava a deſpir até a camizado cor-
po para acudir aos neceſſitados. Ti
veráð eftes bons caſados, pays do noſ-
lo Joao , entre outros filhos hūa me-
nina , que , com ſentimento de quem
a conhecia , morreo de ſette annos, po .
ſtoque ſe podia affirmar , que tinha
vivido largos ſeculos para a virtude.
Expuzemos ao largo os dotes da gra-
ça , e natureza dos progenitores , e humana .
conſanguineos do noſſo Joao , para
que ja daqui ſe comece ainferir o que
detta noticia ſe pode eſperar; Porque
(he ſentēça da Eterna Verdade )ſe a ar-
vore he bõa , bom he o ſeu fruto. Ve-
jamos , pois , quem foi Fr. Joao no
Seculo , quem dentro no Convento.
5 Appareceo o noſſo Veneravel
Fr. Joao no mundo tao extenuadinho ,
e debilitado , que foi neceflario acce-
lerar- lhe a agua do bautiſmo; porque
ao primeiro paſſo que dava no ſeculo
nao perdeſſe infauitamente duas vi-
das , a mortal , e a eterna . Forao ſeus
padrinhos pelta ſagrada Ceremonia
Andre Garcia de la Fuente ,e ſua mu-
lher , tios de Joao . Nao teve a con-
folaçaõ de poder fer criado aos pei
1 rio
tos de ſua mãy , por eſta ſeachar gran .
demente indispoſta. Dous annos pa
deceo Joao hūas moleftiſſimas cana
ras de langue . Por eſte meſmo tempo
o viſitou Deos com outro novo tra
balho ,como le quizeſſe ir ja de tao lon
ge diſpondo aquella ſua nova planta.
Quebrou Joað hûa perna ; e como
nao acertava a explicar -ſe , e a cura
ſe lhe nao fazia em lugar competen .
te , iſto o fazia paflar por acerbiflimas
dores . Ainda era muito menino quan
do
do morreo
morreo ſua
ſua máy
máy , ficando ſentin
do eſta falta o Servo de Deos , que ſe
ria entao de cinco annos , ou pouco
menos , e hum ſeu irmao de lette e
meio , chamado Andre , que foi de
pois hum Venerando Sacerdote. Co i
mo o pay era homem do campo , e
nao podia aſſiſtir a leus filhos, os en
tregou a hūa avó dos meſmos peque
nos , para cuidar delles. O amor , e
1
o carinho com que aquella bõa velha
.
os tratava , lhes diminuía o ſentimen .
to da perda de ſua máy . Elle abrigo
porém lhes durou pouco , reſolven
do- le ſeu pay a caſar -ſe com outra my
lher, ou mais depreſla , pelo que o
Servo de Deos refere , com hū a féra .
Começou a tratar eſtes pobresmeni.
nos com hũa ferocidade tao barbara ,
como ſe le quizeſſe deſnaturalizar de
Tratava- os com nomes , e
ultrajes vergonhoſiſſimos : os caftis
gos eraõ brutaes , e maiores daquel
les , com que podiao as poucas for
ças de duas criancinhas, e quaſi fem
pre lem cauſa. De fuftento , e veſti
do andavao miſerabiliſſimos , o que
ſe fazia mais ſenſivel, attenta a quali
dade da terra, que he frigidiſſima ;
a iſto accumulou o prohibir - lhes o
acceitar couſa alguma da mao de quem
quer que foſſe. A eſte modo lhes im
pôs outros ſemelhantes preceitos
todos ridiculos , e os mais delles tao
violentos , que a ſua pratica ſe fazia
inſopportavel ; mas era neceſſaria a
obſervancia, por naõ excitar a legisla
dora a maiores tyrannias.
6 Muitas vezes Ihes era necefla
 FR . JOAM GIL DE TODOS OS SANT. , 22 de Settembr.
rio mentir contra ſi diante do pay, que
ſenao , auſente elle , era atrociſſima
nas ſuas de propoſitadas vinganças .
Tampouco ſe podiao queixar a ſeu
pay , aonde ella naõ ville, porque a ſe-
veridade de ſeu pay os atemorizava;
e ſe elle quizeſſe pôr cobro niſto, te- '
miao que nao furtifle mais effeito , do
gne dobrar -ſe-lhes a conſternaçaõem
que ſe via7. Nao erad ſenhores de
tomar hum ſó inſtante de recreaçaõ
com os outros meninos : logo que
tahiao da eſcola deviaó vir para o ſeu
oneroſiſſimo cativeiro. Começou a vi-
ſinhança a eſtranhar hum termotao ru-
ſtico , e muitas vezes a chegou a incre-
par , arguindo-a : ſe ella por ventura el
tava ignorante , quando contrabîra a
1 quelle matrimonio , de que ſeu mari .
do tinha aquelles dous filhos. Nova ,
e maior pena eſta para os pobres pa-
cientes ; porque como aquella féra
nem tinha que reſponder para córar
ſemelhantes ſemrazoens , nem ſepo-
dia vingar de quem a reprehendia
tornava-ſe , como frenética, contra
os triſtes pequenos caſtigando -os com
tanta ſemrazao , ja pela boca, ja por
qualquer outromeio , que lhe ſuggeria
a lua boa condiçao. Em fim , parece
que foi o meſmo levar o pay do noſſo
Fr. Joao aquella harpya para ſua caſa ,
do que crasladar para ella o inferno
todo em pezo .
7 Poitoque os alaridos, e guer
ras eraõ tantos 9 ainda aſſim eſtava
ignorante do que luccedia a avó do
Servo de Deos : nao faltou peſſoa
bem intencionada , que lhe dco para
te , e pode -ſe concluir em que tornaf-
ſem os meninos para ſua caſa. Tor-
náraó : e parecendo ao marido que
aſſim poderia eſtar a ſua caſa mais
quieta , enganou - ſe ; porque como
era neceſario contribuir com algía
pouquidade para o ſeu ſuſtento , logo
que a madraſta dos pobrezinhoso per-
cebeo , era aquella vivenda o centro
da meſma diſcordia. Vendo o pobre
homem que nada tinha feito , deo
com leusfilhos novamente em caſa.
Tom . VII .
499
começou eſte monſtro a ter mais a.
verſao ao noſſo Servo de Deos , tra .
tando -o com maior aſpereza, gravad .
do - o com o trabalho mais cultoſo , e
deprimindo o com a mais tyrannica
ſujeiçao. Cuſtou muito acabar com
ella , que oirmao do noſlo bom Con
verſo ieguiſle os eſtudos ; mas notan
do opay o ar , e a viveza de Joao , di
zia que elle ſe enganára em nao haver
trocado as maos , preferindo - o para
eſtudante. Com tudo , por ver ſe iſto
podia ainda remediar -ſe , concertou
le com hum Mettre de Latinidades ,
dando -lhe hūa vinba : mas corrêrað
de tal modo as coulas , que nao che
gou ifto a ter effeito ; aſſim como
nem tambem o teve hum generoſo
offerecimento , que lhe fazia hum Ca.
valheiro , caſado com hūa parenta do
Servo de Deos , que o queria levar
gratuitamente para ſua caſa . Entre
tanto continuava a miſeria, e afflicçao
deftes meninos ; porque ſua madraſta
ſe foi fazendo taõ inſolente, que até
ſe tomava com ſeu marido, chegan
doa tratallo com palavras indecentes,
pelo que tudo , dizia elle ás vezes
que le envergonhava de apparecer
na rua , muito mais por ver ſeus fi.
lhos , deſcalços, tao deſpreziveis , e
mal enroupados , que de ordinario lhes
era neceſſario eſperar pela luz do ſol,
para terem algum abrigo .
8 Havia hum moço no meſmo
lugar , que tinha hum pay de condi
çaõ mui rija : nao podendo ja aturar
mais os ſeus exceſſos , e notando o
muito que eſtes pobres meninos tie
nhao que padecer com aquella tyran
Da , fallou com o noſſo Joao , convi
dando - o para partirem ambos furtiva
mente , e irem buſcar a protecçao de
hum tjo daquelle moço, entao Prior
de hum Convento de Santo Agoſti
nho , que por ſer homem de bom co
raçað ſem duvida os acolheria ,e lhes
mandaria dar eſtudos. O deſejo de
eſcapar daquelle Argel , e de dar -ſe
20s eſtudos , como tanto appeteciao,
determináraó logo ao noſlo Fr. Joao;
Rrr ii ainda
 500 FR . JOAM GIL DE TODOS OS SANT., 22 de Settembr.
ainda que eſtavao no coraçao do in .
verno , e elle , por ſe achar fem dinhei-
ro , e tao mal parado de roupa , ſe via
incapacitado para poder apparecer
diante de húa Communidade tao gra-
ve . Ajuſtara 7 -le pois a fahir , elahiraõ
no dia de Noſſa Senhora da Purifica-
çao . Apenas em caſa de Joao ſeſeorio
a ſua fuga , quando logo lua madraſta
começou a amotinar com grandes gri .
tasias a ſua viſinhança , dizendo que
o pobre menino lhe havia roubado
a ſua caſa , pragejando - o como coſtu
mava , e clamando pela juſtiça do
Ceo , e da terra : o triſte nao levou de
leu mais que hūa limitadiſſima eſmó.
la , que lhe fez húa tia ſua , pobre , e
vizinha ,que muito o amava , e a
quem por eſta cauſa tinha communie
cado a ſua reſoluçao , que ella muito
The approvou , pelo ver livre de hum
purgatorio tao intoleravel . Hiao os
noſios viajantes pizando neve , e ti-
ritando de frio , muito mais o noſo
Joao , até que Deos lhe deparou hum
piedoſo paſſageiro, que , compadecen-
do -ſe da ſua nudez , lhe deo huns
çapatos , para poder continuar mais
commodamente o ſeu caminho. Me-
nos piedade achou em outros ſeus
paizanos , que o encontrárað , e lte
imputáraó hum furto , ao que dava
mais forças a má fama que ſua madra-
fta deitava delle . O nað ſaberem os
caminhos , e pelo frio , e falta de ſuf-
tento nao poderem ſeguir a paſſoigual
os paſſageiros, que por ſerem osdias
mais curtos, madrugavaõ mui cedo ,
era outra nova afflicçao. Por eſte mo
tivo ſe pegávao muitas vezes ás cau .
das das cavalgaduras , e indo aſſim
quaſi arraſtados, iſto nao cbſtante,
o tinhañ por hum grande alivio .
9 Chegados a Penharanda os ac
cometreo outra nova afflicçao ; por-
que para aquella terra , em que entao
ſe fazia hūà feira , he que caminhavao
os Viandantes com quem elles tinhao
vindo , e como nao haviao de parlar
d2qui , lhes vinha a faltar o alivio do
ſeu arsimo, ecompanhia . Proſeguins
do o ſeu caminho , topáraõ hum bom
homem , que levava befta , ( condiçao
neceflaria , ſegundo o eftylo daquel
las terras , para qualquer poder fer
recolhido nas eſtalagens ) meiterao - ſe
com elle , pedindo -lhe talvez , que
em chegando á noite á hoftiaria , dif
fefle que eraõ couſa ſua para nao fica .
rem expoſtos á inclemencia do ar : el.
le o fez aſſim ; e poſtoque as donas de
caſa muito repugnáraó em acceital
los , entrarað para dentro . Como tan
to que paravao , apertava mais o frio
com elles ; a noite , quelhes devia ſer
vir de deſcanſo , e alivio , dobrava a
ſua tribulaçao. Pedirao licença hu.
mildillimamente para ſe chegar para
olume , e nao lha quizeraõ dar. Que
gente tao deshumana ha no mundo !
Eſtavaõ eſperando que ſe deitaflem os
de caſa , para poder chegar ; mas nem
iſto pudéraõ conſeguir , porque , por
occaſiao de hum enfermo que havia
em caſa , Daõle deitáraó. Aqui diz o
Servo de Deos que paſſou hũa tra .
balhofiflima noite , nað ſó exterior ,
mas (ſem ſaber porque ) interiormen
te . Removêrao - ſe eſtes medos acla .
rando o dia , em que continuáraó o
ſeu caminho; mas por outra parte ſe
accreſcentáraó , porque deſde aqui
em diante foi neceſario ao noſſo bom
Converſo mendigar hum bocado de
pao , ao que elle naõ fe podia delibe .
rar , nað ſó por ſer eſta a primeira vez ,
em que havia de ſer maior o pejo , le
nao pela criaçao , que lhe déra ſua
madraſta de nao poder, nem pedir ,
nem açceitar couſa alguma ; para que
iſto , junto com a eſcaíTez com que o
tratava, mais o tyrannizaſſe. Tinhao
de pallar hum rio mui largo , e alco ;
e vendo ao longe alguma gente , que
hia tambem a demandallo , ſe dérað
preſſa para ir todos juntos. Parece
que iſto nao teve effeito ; mas Deos,
que a ninguem delampára , lhestrou
xe alli hum homem , que vinha mon
tado a cavallo , que os paſſou a ams
bos de muito boa vontade.
10 O verem -ſe ja quali no fim da
iua
1
 FR . JOAM GIL DE TODOS OS SANT. , 22 de Settembro ,
ſua jornaha pudéra adoçar ao noſſo
Joao o trabalho della : mas nao foi
aſlim i; porque como hia tao mal tra.
tado , temja que aquelle Religioſo
1
Agoſtiniano , muito mais nao lhe ſen-
do couſa alguma , naő fizeſſe caſo del
le , e ſe envergonhaſſe de ver o traje,
em que ſe lhepunha diante hum feu
patricio . Mas Deos Noflo Senhor,
que tem os coraçoens dos homens na
fua Mao , annullou inteiramente eſtes
temores ; porque nao fomente o re
cebeo aquelle Padre mui carinhoſa-
mente , iratando - o igualmente como
a ſeu fobrinho , ſenao coda a Com
munidade , a quem oncflo Joao cahio
mais em graça do que ſeu companhei-
ro . Mandou -le perguntar por hūa
carta ao pay do Servo de Deos , ſe era
contente de que elle ficaſſe alíi ; mas
como Sua Divina Mageftade queria ,
por lhe dar maior coroa de mereci,
mento na outra , carregar -lhe mais a
- Cruz neſta vida, a reſpoſta que veio
foi, que tornafle para ſua caſa. Tor-
nou : e fentirao os Padres muito eſta
ida , porque ſe lhe tinhao affeiçoado
muito pela ſua eſperteza , e juizo , e
muito mais pelas ſuas boas inclina.
çoens , e coſtumes. A'vinda teve ſe
quer a conſolaçaõ de vir com ſeu · que ſua madraſta o havia infamado , e
companheiro ; agora voltava ſó , por-
que aquelle moço ficava eſtudando
naquelle Convento . Era ja entrada a
Quareſma, e apertava menos o frio ;
1 o que porém ſe deſcontava neſta par .
te ſe pagava por outras muitas . Con
1 feſla elle haver commettido naquella
caſa bum defeito de imputar a outro
húa culpa, que elle tinba : purgou o
muito bem , e pelosmeſmos fios , ex-
cepto em ſe vir a juſtificar a ſua inno-
cencia ; porque o crime que agora ſe
The imputava era muito mais feio , e
pezado . Vinha elle de camarada com
huns homens , e elles algum tantotur-
bados do cerebro , por haverem be
bido alguma couſa mais: metrêrao -fe
a caminhar alguma parte da noite , e
o noſſo João fielmente os acompa-
nhou . Nao apparecia hum pouco de
sor
dinheiro , e começáraõ a pôr a boca
nelle , ( nao foi etta a unica vez que
The fizeraõ ſemelhante favor ) eadar
lhe váias : o pobre moço , ja pela ſua
bõa criaçao , ja pela ſua innocencia
desfazia - ſe em lagrimas : tazia -Ihas
mais amargofas a lembrança do ſeu
defeito , refledindo que este era hum
digno caſtigo da ſua culpa . Conti .
nuava a bateria das affrontas, de que
elle ſe envergonhava tanto , que tale
vez ſe rezolvia a deixar a companhia ,
ficando -ſe mais atraz : por outra par .
te ſe lhe fazia mui duro ficar expoſto
a algum perigo em hum deſcampado
deſconhecido. Os dicterios eraõ mui
picantes , o caminho dilatado : elle
caminhava , e ſoffria . Depois de ha
ver durado largo tempo eſte tropel
de injurias , reſolverao -ſe a apalpallo .
Aqui The acudio o Pay das miſericor
dias ; porque ſe lhe nao achou couſa
alguma do que ſe imaginava , e aquil
lo , que nao apparecia , achou-le en
volto em hum capote emcima de hũa
cavalgadura .
II Chegou finalmente a ſua pa
tria ; e as falvas, e boas vindas , com
que foi recebido , foi com lhe darem
todos em roſto com a calumnia , com
com quantas outras queriao . Hum
irmao de ſua madraſia lhe diſſe na
lua casa
ſua cara ,, que
que elle merecia eſtar pen .
durado em húa forca. Algum tempo
depois cahio de cama , doente de hee
xigas laratrpaes : a ſede , que ſoffria,
era impoſſivel de aturar . Metierao -no
por eſta cauſa em hum apoſento , em
que aconteceo eltar hūa vaſilha com
algum vinagre : eſta era a regalada
bebida com que elle ſe refreſcava, e
nað tinha depois pouco que leotir nos
máos effeitos que experimentava.Com
eitas ſe complicárað ao meſmo tem
po outras grandes moleftias, que nao
obſtantes , nem por iſſo deixava o tra
balho ; mas o mal ſe foi exaltando a
hum tal extremo , que o pôs paraly
tico. O peior de tudo era a guerra
que lhe fazia ſua madraſta : diz elle ,
que
 soz FR . JOAM GIL DE TODOS OS SANT., 22 de Settembro,
que ſó a memoria de a ter contraſi ,
baſtava para lhe impedir a melhoria ,
que na verdade o influxo da imagina-
çaõ he fortiſſimo. Hia , ſem embar
go, recobrando algum alento , quan-
do ſe lhe deslocou hum braço: as cu
raso punhao ás portas da morte . Re-
ſtabelecido deite accidente , naotar
dáraó em fobrevir-lheoutros , dando
por vezes duas quedas , hūa de cima
de hūa arvore, outra indo montado
em hūa beſta eſpantadiça. Duas vezes
eſteve a perigo de morrer affogado :
de outros imminentes o livrou o Se .
nhor milagroſamente.
12 Em certa occaſiao nao ſei que
deſaitençaõ lhe quiz fazer ſua madra-
fta : elle , que ja lhe nao tinha tanto
medo , e muitas vezes ( de que ella
muito ſe picavalherespondia ,naquel-
la occaſiao , nao le podendo conter,
lhe perdeo o decoro. A vibora, piza-
da do pé do ruſtico , nað ſe tornamais
aſſanhada. Enraiveceo -ſe a mulher
com fummo exceſſo . O noſſo Joao
pôs -ſe muito depreſla fóra de caſa , e
ella acudio logo a fazer queixa á juſti.
ça , affeando , e exaggerando quanto
mais pode a ſua offenſa.Foicom effei-
to prezo o Servo de Deos ; mas ao
pallar por hűa Igreja teve induſtria de
acolher - ſe a Sagrado : puzérað lhe
guardas ; ſem embargo porém , teve
tambem meio de eſcapar , e foi fugin-
do daquella terra. Por eſte tempo
andou ſervindo alguns annos , e por
cauſa de algumas más companhias ,
mais facilmente podem perverter
que
hum ſanto , do que hum grande fan- '
to convertélas , ſe foi diftrahindo em
algumas liviandades. Porèm he digno
de notar - ſe , que , ainda mettido nel .
Jas , foi exceſſiva a {ua humildade .
Foi ella tao grande , que tocando na
fua relaçað o ponto mais pezado das
ſuas diſtracçoens , até expreſſa a eſ-
pecie , enumero de algumas luas cul-
pas mais graves , nao obſtante haver-
fe confeffado dellas , e haver feito por
eſta cauſa grandes penitencias . Seu
pay , que ſabia aonde elle eſtava, man-
dou - o recolher a caſa : elle obedeceo
logo , e depois de varios lances , paf
fou a ſervir hum tio de ſua madraſta ,
e havia intentos de parte a parte de o
cafarem com hūa filha daquelle ho .
mem . Nao eſtava o noſſo Fr. Joao fó .
ra diſto ; mas Deos , que conhecia o
que lhe eſtava melhor , deſviou ettes
intentos por huns meios inſperados.
13 Mas deixando varios lances
paſſemos agora ao melhor da ſua vi .
da , que foi o reſto della que elle con
ſagrou a Deos . Poitoque eſte meſmo
Senhor , para melhor o radicar na hu
mildade , e no verdadeiro deſengano
do nada que podemos ſem Elle , per
mittio que elle ainda cahiſle , talvez
menos por lua , que por culpa de más
companhias , em hūa falta , para viver
ao diante,mais cauteloſo , e mais com
os olhos no Ceo . Coptava dezoito an
nos de idade quando começou a ſer
illuſtrado com aquella luz , que allu .
mia todo o homem , que vem a -elte
mundo , econcebeo a eſte tempo hum
tal horror a tudo o q era peccado, que
antes ſe ſacrificaria à morte mais vio .
lenta , do que a commetter com ad
vertencia a menos grave offenſa de
Sua Divina Mageftade. Intentou ſeu ,
pay por eſte tempo caſallo com hūa
parenta ; e como o Servo de Deos
eſtava ja tað tocado , e trocado, ten
tio isto muito ; por nao deſobedecer
porém a ſeu pay , conſentio . Era eſta
moça mui virtuoſa , e conforme ao
genio do Servo de Deos , o que ali
viava grandemente eſte jugo do ma
trimonio , que poſtoque nao durou
mais que anno e meio , porque , com
pleto eſte termo , levou Deos para ſi
a conſorte de noſlo Joao , nað lhe fal
tou entretanto hūa penoſiſſima bate
ria de contradicçoens que contraftar.
Como a madraſta do noſſo bom Joao
lhe era tað bem affe & a , comodeixa
mos ponderado, foi ſua Oradora pa .
ra com ſeu pay , para que eſte lhe nao
deſte couſa alguma : o homem á bõa
paz de ſua caſa , aſſim o fez , eſperan .
do ſer demandado por juſtiça para
entregar
 FR . JOAM GIL DE TODOS OS SANT . , 22 de Settembro.
entregar o que devia. Pela parte da
mulher de Joao , tinha eſta padraſto,
que era mui pouco affecto á ſúa entea
1 da ; e pelo deſembolſo , que preci-
ſamente havia de fazer na entrega do
que a ella lhe pertencia , ſentio mui.
to que ſe fizeſſe eſte caſamento , de-
pois de haver trabalhado quanto po-
de por impedillo . Por eſta razao amo .
finou o noſſo Servo de Deos com va
sios litigios , como he coſtume mui
1
ordinario de caó bons pagadores .
14 Era- lhe neceſſario , entretan-
to que durárað eftes debates , ir ga.
nhar hum jornal para ſe ſuſtentar : a
efte tempo ſe applicou mais adheren-
temente á Oraçao , eáliçaõ de livros
doutrinaes , e myfticos. Affeiçoou .
ſe- lhe tanto , e gaſtava com elles , além
dos dias de feſta , quanto mais tempo
podia , como ſe houveſſe de ſer Pré-
gador, enlaiando ſe para eſte fim al .
gumas noites na ſolidao do campo .
Coſtumava dizer , com hũa cordialiffi-
ma ſinceridade , que eſtimava em
mais hum livro , do que toda a ſua ge-
raçað. Entretanto foi feito Alcaide
o tio de lua madraſta , que como diſ-
ſemos o quiz caſar com ſua filha: elte,
que ja em outra occaſiao lhe havia
moſtrado a lua boa vontade, fazen-
do-lhe hũa injuftiffima deſattençað,
vendo -ſe agora com poder , e relen-
tido de que ſe nao houveſſem effei.
tuado aquelles deſpoſorios, começou
a perſeguir o noſio Joao com paixao
mais forte , até chegallo a prender
para ſoldado. Como deſta vez naõte .
ve effeito , nem por iflo defiftio aquel-
le máo homem da ſua malevolencia
inſtando para fazer nova prizao . Pre-
ſentio -o o Servo de Deos, e retirou-
ſe a hūa povoaçao , chamada Cando-
leda . Acudio a huns ſeus conſangui-
neos nobres , para que o deixallem
eſtar em ſua caſa por jornaleiro ; co-
1
mo porém parentes pobres, ſegundo
a depravada politica , e vaidade do
mundo , nao faõ parentes , deſco-
nhecêrao-no . Vendo fe taõ deſampa.
rado , e ſem hūa fatia de pao para ſe
503
ſuſtentar, buſcou alli meſmo quem o
admittifle. Deos , que , como ſe diz ,
nunca deixa fechar húa porta , ſem
prevenir que ſe abra outra , lhe de.
parou hum bom homem , que lhe con
ſignou a cultura de búa ſua horta.Suc
cedeo vello andar nella trabalhando
hum daquelles ſeus parentes , e tras
vou -ſe de razoens com Joao , affean .
do -lhe o pôr -ſe a ſervir em hūa caſa
de menos reputaçao , e dizer que era
ſeu ſangue , como e depois do termo,
que haviaõpraticado com elle , e ſup .
pofta a ſua grande neceſſidade , lhe
eſtivera mal deitar mão dos meios,
que Sua Divina Mageftade lhe offe
recia.
15 Pouco tardou o aviſo que teve
de ſe poder recolher ſeguramente pa
ra ſua caſa , aonde fazia muita falta :
Voltou a ella , e terceira vez inſtou o
Alcaide ( bem que por iſſo lhe veio a
ſucceder o que nao quizera ) a perſe
guillo. Valeo -le do meſmo recurſode
dar - lhe as coſtas; mas aquelle inimi.
go prendeo ſeu pay , o que ſabendo
Joaõ , como tað bom filho que era
compareceo logo em Placencia en
obſervancia das ordens. Informado
o Miniſtro do grande odio , com que
aquelle homem tanto ſem cauſa mo
leitava ao noſio Joao , e que elle ti
nha hūa filha caſada com hum moço
capaz de ſer ſoldado ; e informado
tambem de outro Alcaide , que era
igualmente adverſo ao noflo Servo de
Deos , o qual tinha tambem hum fi
Iho ja caſado , condenou a amboseſtes
homens para que apreſentaſiem os
referidos dous moços. Cabio - lhes
hum raio emcima , quando ſe lhes
fez eſta notificação , muito mais quan
do viraó , que Joso ficava abſoluto,
e cahia a forte no genro do tio de ſua
madraſta. Aioda aqui nao parou o ca
fo ; porque indo aquelle novo ſolda
do apreſentar-ſe á Ciudad Rodrigo ,
alli perdeo dentro de moi pouco tem .
po a vida. Todos eſtes ſiniſtros acci
dentes ſopráraó mais vivamente o
incendio dos rencores deſta gente
contra
 504 FR.JOAM GIL DE TODOS OS SANT. , 22 de Settembr .
contra o noſſo Joao . Mas affim labe
Deos trocar asMãos para acudir pe-
los ſeus , confundir , e cattigar aos
iniquos poderoſos , que abujao do
mando , opprimindo os ſeus pobres.
16 Andava com eltas couſas caó
enfaſtiado , e deſenganado do mun-
do o noſio Joao , que fez voto de le
metier Frade da Ordem dos Prégado.
res , ſe acafo Sua Divina Mageltade
era ſervido de levar ſua mulher para
fi. O Senhor , que o guardava paraſer
hum dos mais dignos filhosde Domin-
gos , lhe pegou da palavra , porque
em breve tempo expirou aquella mo
ça . Pelo que, todas as ſuas virtudes ,
que deſde aqui formos narrando , ſe
devem entender como ja executadas
dentro dos noſſos clauſtros; pois nel .
les aſliftia ja com os deſejos, e nao
eſtava da ſua parte , ſenao pelas mui-
tas contradiçoens , que ſe lheoppuze .
rao , a tardança que ainda mediou an-
tes da ſua recepçao ao habito : quan .
to mais , que , como heproloquio bem
commum , naõ hetao eſencialmente
o habito , como a vida perfeita , e Re,
gular a que faz o verdadeiro Religio-
1o. Ainda que os Alcaides nao erao
ja os que antes o atribulavað , e erao
ſeus parentes, ſem embargo , decla-
raraó - fe -lhe adverfarios , tanto , que
no meſmo dia daquelle obito lhe de-
raó hűa falcada para o prender para
foldado . Foi fugindo a eſta nova con
fternaçao, e querendo os perſeguido-
res fazer apprehenſao em ſeu pay , te
ve eſte lugar de ſe pôr tambem em fal.
vo , e ir demandar ſeu filho para o avi-
ſar de que ja eſtes homens preſumiaõ
aonde elle eſtava , que era em hum
Convento de N. P. Santo Agoſtinho,
donde o queriaõ tirar . Achava -ſe o
pobre moço a eſte tempo febricitan . e hūa ſua tia , que lhes pegaffe o mal,
te ; mas aſlim como eſtava ſabio dallimandando -lhe que paſlaſe para caſa
com ſeu pay , que bem que quando
acudio a dar elle a viſo , vinha ja de
animo de partir com ſeu filho a buſca
rem a quieiaçao , que nao podiao achar
na ſua patria , em terras eſtranhas , ou
The faliou tempo , ou nao teve apre ,
vençao de trazer alguma conla de fua
cala. Como levavað eite fi o , é cami
nhavao por veredas incultas , pela
força do mal , e falta de ſuſtento bia
desfallecidiſlimo o noſio Joao : nem
era a menor das ſuas penas ver feu pay ,
homem ja provecto , fóra de tua caſa
em tanta neceſſidade, nao menos pe
lo grande amor , e reſpeito que lhe
profeſſava , ſenañ por ſe conſiderar
cauſa de tanto deſcommodo. Andadas
quatro legoas de muito máo caminho,
chegaraõ a hum lugar , aonde hum ſeu
paizano os recolheo de muito boa von
tade . Veio Medico , ou Cirurgiao ,
para viſitar o noſlo doente , e viſto o
eſtado da queixa , diſſe que nao paf
ſafſem dalli ſem fazer a cura ; porque
o mal era grave , e qualquer pequeno
exceſſo mais, o podia fazer irreme
diavel.
17 Vendo - ſe atalhado para poder
paſſar adiante o bom velho , mudou
de parecer , e buſcando hữa cavalga
dura para ſeu filho , voltou com elle
a lua caſa : chegarao ao lugará entra
da da tarde , em que a rua ſe achava
chêa de gente : apenas houve quem
ſe compadeceſſe da ſua miſeria ; 'huns
o motejavaõ ;outros ,que tinhao filhos,
affentavao em que ſe fazia doente fem
o eſtar ; e cada hū dizia o que lhe pa
recia . Pedio o afflicto enfermoʻa leu
pay , que nað olevaſſe a cala , porque
nao coroaſle ſua madraſta com as ſuas
coſtumadas cantilenas hũa tao peno
ſa ſerie de improperios , e trabalhos.
Conſentio o pay neſte juſto petitorio, 1
levando -o para caſa de ſua avó ; mas
Deos , que lhetinha predettinado hũa
mais precioſa coroa degloria , oque
ria provar com maior afflicçao. Co.
meçáraó a temer a avó de Joao ,
de ſeu pay ; ſentio elle eſta repulla no
mais vivo daalma , vendo que era ago .
fa lançado fóra com tanta leccura de
donde fora ſempre tratado com tanto
amor , como neto , e fabrinho . Ellas
diziao que foſſe curar-ſe a caſa de ſeu
pay ,
 FR.JOAM GIL DE TODOS OS SANT . , 22 de Settembr .
pay ; porque ſe lhes morreſſe em ca-
ja , ſeu pay herdaria a ſua fazenda, e
ellas o ſeu contagio. Quiz ir antes
que para caſa de ſeu pay , para hum
Hoſpital , poſtoque nað era de enfero
mos , ou para caſa de hūa ama , que
o havia criado , e a nada diſlo ſe lhe
deferio . Neſtes termos foi para caſa
de leu pay .
18 A conformidade com a vonta-
de Divina , que aquimoſtrou em mais
de tres mezes , em que foi atormen-
tado de terribiliſſimos accidentes, diz
o meſmo Servo de Deos que fazia
paimar . Fez hũa confiflaõ geral , e re-
cebeoos Santos Sacramētos com fum .
mo alvoroço , imaginando que ja Deos
o aſſegurava de punca maisooffender,
tirando - o de hum mundo tao cheio
de cardos , e eſpinhos , de culpas , e
infelicidades. Sua Divina Mageftade,
que he o que ſó ſabe o que mais nos
convem , o diſpôs muito de outro mo-
do : eſcapou de morrer ; mas cobrio-
ſe de lepra : entao lhe começarão a
ter mais horror,e elle pedio com mui-
ta humildade , como ſe eſtiveſſe entre
eſtranhos , que o paſſaſſem para debai-
xo de hũa eſcada: aſſim ſe fez ; mas
como até ſeu irmao fe horrorizava de
chegar a elle , nao lhe faziao a cama:
o comer , como era por mao de ſua
madrafta , cuja lingua era o peior da
doença , mais era accender , que ſa
ciar a neceſſidade. No cumprir com
as funçoens mais inferiores do corpo ,
padecia ſemrazoens inſopportaveis ;
porque nao lhe davao para iſſo adju-
torio : e nao ſe podendo mover , gri-
tava aquella féra que ſahiſle aquelle
effeito á rua . Só em ſeu pay achava
mais alguma clemencia ; mas ainda iſto
tinha luas penioens , quanto mais que
a maior aſſiſtencia dopobre velho era
no campo . Depois de tantos tormen
cos , levanta - ſe hum dia hūa formida
velguerra em caſa,ſuſcitadapor aquel
la barbara , e por outra ſua irmaā , co-
mo ſe tiveſſe alli alguma couſa , que ,
como duas furias infernaes, começá-
raõ a gritar , dizendo ao miſerrimo
Tom . VII.
sos
doente , que ſe puzeſſe na rua , e foſ
ſe muito para onde quizelle , que ja
lhes faltaya paciencia para aturallo .
As viſinhas , que ouvia eſta bulha ,
e ſabiao a fua lemrazao , começáraõ
a reprehendellas . Com iſto mais le ef
bravejavao . O afflictiſſimo Joað elta
va feito hũa eſtatua myrrhadiflima da
morte , tao deftituido de forças, e
movimento , que nem podia chegar
būa capa aos hombros : tinha pou cos
parentes a quem ſe chegar , e com o
deſengano de o haverem antes expul
fode caſa de ſua avó , e quererem -no.
agora deitar da de leu pay, ( que com
todos eſtes deſenganos nos dá na cara
o mundo ) poucas, ou nenhumas ef
peranças lhe podiaõ ja ficar de que al
guem o quizeſle recolher, Seu pay nað
fe achava em caſa ; mas achou ſe ſeu
irmao , que era ja Sacerdote . Tentou
eſte applacar aquellas viboras ,dizen
do a ſua madraita , que havia decon .
fiderar que o noflo enfermo era ſeu
irmao : o que ſe havia de dizer ſe viſ
ſem que o deitavaõ de caſa de ſeu pay:
que le lembraſſe de que era hūa po
bre villaā , e nao eſtava em caſa ſua :
que le Deos levaſſe a ſeu marido , nað
ſabia no que viria ainda a parar ; e que
pois tinha filhos , olhaſſe para elles,
que nao ſabia em que viriao a parar.
Outras couſas lhe diſſe a eſte modo ,
com que parece q por entao ſe aquie
tou aquella tao desfeita tempeſtade .
19 Entrecanto foi cobrando al.
gumas forças o doente , poftoque lhe
fobreveio outro achaque, quelheof
fendeo gravemente a viſta, e ainda
ſe vio muito a ponto de a perder . Aca .
bou finalmente deter melhoria , e com
municou com ſeu pay , e irmao ode
ſejo que tinha de ſer filho de S. Do
mingos, e o voto , que a eſte reſpei- ,
to fizera. Approváraõ grandemente
a eleiçao , e eſcreveo -ſe a hom Reli
gioro ', primo da defunta mulher de
Joað , Collegial em Valhadolid . A
relpoſta, que veio , exaggerava de tal
modo o ónus dos Irmãos Leigos , que
esfriárað muito . Queriaõ deitar-lhe
Sss oha
506 FR.JOAM GIL DE TODOS OS SANT . , 22
o habito em hum Convento da Invo-
caçao de Santa Catharina, mas deſa ,
gradava.lhe pela ſituaçao , por ficar
mui perto da ſua terra ; e elle , como
ja tao cortado, e deſenganadodo mun-
do , queria viver ſó para Deos , aon
de ninguem o conheceffe. Por eſta
meſma cauſa , nao quiz tambem que
ſe fizefle etta negociaçao , como per-
tendiaô , em Placencia. Lembrou -ſe
ſeu pay de ter hum ſeu amigo Reli .
gioſo da poſla Ordem , Conventual
em Truxilho : eſcreveo -ſe - lhe ao in-
tento , e veio promptamente a reſpo-
fla , dizendo : que o levaſiem logo ,
porque nao haveria duvida em ſer acei-
to . Aqui tentou o demonio mettello
outra vez nos enredos do mundo ;
porque ſabendo ſua avó , e ſua tia , e
outros parentes por parte da ſua māy ,
o que paſſava, emprendiao dilluadil .
lo dos ſeus bons propoſitos, ponde-
rando-lhe que ſendo feu irmao Sacer .
dote , e acolhendo ſe elle a hum Con-
vento , ficava extincta a ſua familia :
que o entrar em hūa Religiaõ era dar
hum goſto immenſo a ſua madraita ;
porque eſta nenhuma outra couſa de
ſejava com mais empenho, para que
ſeus filhos ficaſlem ſenhores do que
The pertencia , e que ſó por iſto nao
devia eſcolher aquelle eſtado. A avó
accreſcentava , que em ſua auſencia
arderia tudo em hūa guerra viva , fal-
tando o Servo de Deos , que muitas
vezes calmava algumas diſcordias , que
dobre pontos de heranças ſe ſuſcita-.
vað entre eſtas familias. Accumula-
vao 'outras muitas razoens ; mas to
das em vaó : porque o bom moço naõ
ſe dobrava , confundindo -as de tal mo .
do , que nao ſó naõ tinhaõ que repli-
car- lhe; mas ( envergonhadas talvez
do máo termo, com que o haviaõ dei-
fado fóra de ſua caſa , do que naopo-
diaó ſuppor elquecido o Servo de
Deos ) nao tinha7 animo de tornar a
repizar eſtas couſas.
20 Vendo o maldito que por aqui
nao podia fazer ſurtida, concitou o
marido da irmaã de ſua madraſta pa
de Settembr.
ra fazer irriſao dos ſeus ſantos inten
tos , dizendo aonde quer que le acha
va : Quer ſer Leigo ; ora havemos
de o ir ver para nos dar caldo. A elles
juntava outros ditos ſemelhantes. O
Servo de Deos vēdo iſto , partio quan
to antes , a pé , do ſeu lugar para Tru .
xilho, ſem ſe deſpedir de pefloa algu.
ma . Indo ſeu caminho , fahio lhe ao
encontro hum conhecido de ſeu pay ,
( obom Irmao preſume que ſeria mais
depreſſa o meſmodemonio ) que com
razoens mui perſuaſivas intentava apar
tallo de ſeu ſanto propoſito , concluin .
do , que ſe havia de arrepender ſe
nao aceitafle o ſeu conſelho ; e que
ville bem ſe depois, por nao poder
aturar , ſe viſſe preciſado a lahir, ha
via de viver affrontado , e ſer a affron :
ta de ſeus parentes ; quanto lhe eſta
ya melhor paõ delprezar precipitada
mente o ſeu conlelho. O Servo de
Deos lhe deo a reſpoſta devida , que
foi nao fazer caſo . Profeguio a ſua
jornada. Dentro ja do Convento de
Truxilho, continuou o meſmo infer .
nal inimigo a ſua batalha , ſug gerin
do - lhe varias tentaçoens , com que pro
curava pintar - lhe mui agra , e odio
ſa a vida da Religiao , para o a partar
della . Com effeito apertou detalmo
doo maldito por ſi , e poralgumas per
ſoas , de quem para iſto le valeo , que
chegou a deliberar-ſe o Servo de Deos
a ir -ſe embora .
21
Antes de partir foi á Igreja def
pedir -te da Senhora , e alli the rogou
de todo o coraçao nao conſentiſſe que
elle padecefle engano , ou allucina
çao. Feita a ſua Oraçaõ foi a fahir , e
ſahio para fóra ; mas com tanta vio
lencia, que parecia que alguem for
cejava , com grande empenho , com
elle para lhe impedir eſte exito. An .
tes de pôr -ſe a caminho , foi a deſpe .
dir - ſe de hum Religioſo ſeu paiſano ,
que com outros mais lhe approvára7
todos o ſeu intento. Diſle -lhe porem
hum Coriſta , que viſſe ainda aſſim bem
o que fazia , que nao foſſe aquillo al
guma tentaçao ; pelo que muito en
com
!
1
 FR.JOAM GIL DE TODOS OS SANT., 22 de Settembr.
1
commendafle aquelle negocio á Vir :
gem Senhora . Pareceo - lhe iſto hum
Oraculo da meſma Rainha dos Anjos ;
e naõ foi neceflario mais para elle vol .
tar logo ao ſeu Convento , poſtas ja
por terra as machinas das ſuggeſtoēs
infernaes. Como o noflo Joao tinha
pela maior felicidade o dedicar-ſe de
todo a S. D. M. abſtrahindo - ſe deru .
do o mais , e asoccupaçoens , em que
ſe exercitava na Comunidade,lhe con-
ſumiao o tempo , ao que accreſcia ha
ver de portas adentro algumas pef-
ſoas, hūas que o tratavaõ mal, e ou-
tras que com capa de zelo procuravaõ
apartallo do rumo que levava ; vendo
que acudiaõ á Igreja alguns ſoldados,
que entað alli ſe achavao ,na conſide-
raçaõ de que aſſim mais agradaria ao
5. Senhor, como ſe a obediencia , e a
mortificaçao nao fofle hum ſacrificio
tanto de ſeu beneplacito , teve deſe
jos de ſer tambem Milicar , para que ,
feita a ſua obrigaçao , pudeſſe empre
gar o tempo que lhe reſtaſſe livre em
exercicios de devoçao . Parece que
3 Deos o ouvio ; porque acontecendo
deſert ar bum daquelleshomens,foi o
Servo de Deos malſinado por alguns
caſados da povoaçao , que receavao
que lhes cahille a ſorte deſubſtituir por
aquelle delertor , allegando ſer moço
livre , por ſer ja morca ſua mulher. Or .
denou o Commandante , que foſleno .
tificado com graves comminaçoenso
pay do noſſo Jogo , para o repôr na
Cidade de Placencia. Pôs -ſe o pobre
velho a caminho ; e inteirado feu bom
filho do que paſlava , forao ambos dar
cumprimento aquellas ordens .
22 Chegados aquella terra , foi
prezo o noflo Joao ; porque ,bem que
ſeu pay era peſſoa mui conhecida , e
ſe ſujeitava a todas as condiçoens , que
The impuzeſlem , nao o quizeraõ accei .
tar agora por fiador. No carcere pade-
ceo Joao grandes frios, e fomes , tal .
vez ( diz elle ) permittindo Deos que
todos ſe eſqueceffem delle : e o que
mais lhe cuitava, era haver alligente
ſua conhecida, de que elle muito ſe
Tom . VII,
507
envergonhava. Attento á inclemen
cia do tempo , e ao muito que o Ser .
vo de Deos padecia , convidou - o ou
tro prezo para dormirem juntos ; was
ſem lhe dizer que tinha ſarna. Accei
tou o pobre moço o partido , e depois
ſe achou contaminado daquelle mal ;
e foi couſa notavel , que padecendo - o ,
e ſendo alojado em muitas partes ,
em nenhuma o pegou a alguem , aſſim
como muito orinha pedido a S. D. M .;
nem ao menos ſe ſoube que elle pa
decia aquella queixa. Tirarao-no da
qui nos principios do anno , contan
do elle 22. de idade , e conduzirao .
no a Villa Franca , aonde o Capitao
D. Jozé de Torova o dava por livres
mas dizendo elle eſpontaneamente ,
por haver entendido que eſta era a
vontade de Deos , que queria ſer ſol .,
dado , foi logo admitido.
23 A principio familiarizou -ſe
com ſeus camaradas, acompanhando
com elles ; vendo porém que do mảo
exemplo, que lhe davao , havia proce.
dido cabir em hūa deſgraça de Deos,
lhes cobrou tal horror , que come
çou a evitar quanto mais lhe era por
ſivel o ſeu trato. Deo volta á vida ; e
como ella atélli havia ſido taõbem aju
ftada , ſe achou agora menos indiſpo
ta para os auxilios do Ceo . Frequen
cava os Sacramentos ; penitenciava .
ſe rigoroſiſſimamente , e fazia todos
os actos de hum verdadeiro Chriſta ) .
Fora elle deſde mui pequeno affeiçoa .
diffimo ao Santo Roſario , em que
ſeus pays o haviao criado , e nao ſó
nao faliava todos os dias em aſſiſtir a
eſta devoçao na Igreja , ſenao que a
introduzia nas caſas , em que o aquar
elavao , fazendo - o rezar as noites a
coros . Entretanto que ſe aſſiſtia a eſte
obſequio de Maria Santiſſima, que ,
ria que por ſua maior honra da Senho .
ra houvelle luz acceſa , e ſuccedeo que
ſendo alojado em Fuente de Cantos ,
em cala de hūa pobre gente , mas de
conſciencia mui timorata , chegada a
hora da reza , advertio o noflo Joao
á dona da caſa que trouxeſſe luz, pa
Sss ii 12
 308 FR.JOAM GIL DE TODOS OS SANT., 22 de Settembr .
sa cantarem.o Roſario : reſpondeo a
pobre mulher , que nao havia azeite :
inſtou elle que foſſe ſempre acendel-
la : foi ; e rezando.ſe nað ſó o Rola
rio , ſenaõ a Coroa da Senhora de ſet-
te décadas , e tres Ave Marias , e ou •
fras devoçoens , o que tudo levou mui-
to tempo , eſteveſem embargo arden-
do ainda depois a candea, e dando hũa
luz iam clara , como ſe eſtiveſle mui-
to bem provida. Diz mais o Servode
Deos estar lembrado de que ſendo el
le ainda pequeno , ſe achára em cer-
( a noite em húa caſa, aonde concorria
muita gente de hum , e outro ſexo a
fazer o ſerao do ſeu trabalho ao fogo,
aonde ſe eſtava ſeccando húa notavel
multidaõ de caſtanha , que lhes ficava
por cima : Convidou o noſio Joao eſta
gente para a reza do Roſario , que ha-
via de ſer em ſitio differente , e levan-
tando - ſe todos para iſlo , nao fizerao
mais que dar hum paſſo aonde ficalfem
livres de damno , quando aquelle gran-
de pezo , que por ſer mui grave nao
tinha a ſegurança preciſa, veio abai-
xo com admiraçao de todos .
24 Aſſim como ſe notarao eſtes
favores , ſe virao tambem alguns ca.
ſtigos. Eſtando aquartelado o noſſo
Joao em hum lugar da juriſdiçaõ de
Zalameda chamadoMalpartida,tinha
a dona da cala em ſua companhia hùa
irmaá caſada com grandes desejos de
ter , que nao tinha, ſucceſſao : difleo
Servo de Deos quaſi profeticamentea
eſta moça , que ſe reſguardaſſe muito
de encontrar -ſe com ſoldados , que,
por ſerem taõ pouco tementes a Deos ,
lhepodia reluliar daqui algūa nao pe-
quena deshonra , e prejuizo eſpiritual.
Nao deo a outra por iſto , e começou a
faltar de caſa de ſua irmaā , aonde o
noſlobom ſoldado rezava o Roſario , e
explicava a ſanta Doutrina, por fazer
aſſiſtencia em caſa de ſeu ſogro , aon-
de ſe alojára bum ſoldado que muito
a pertendia . Concertárað-ſe em fima
fugir, e fugiraõ hūa noite do lugar ,
levando aquella mal aconſelhada mo-
ça de ſua caſa quanto mais pode , e
até a roupa defeu marido , para veſtir
ſeu amante . Divulgado o ſucceſſo ,
Partio būa ' eſquadra de ſoldados de
cavallo em ſeu alcance , que ſe tornou
a retirar ſem achar raſto , ou veſtigio
dos delinquentes.Entretanto o aggrel
for, depois de haver ſatisfeito ao ſeu
brutal appetite , a ameaçou com a mor
te , puxando para iſſo dehum punhal ,
dizendo -lhe , que ſuppoſto ella haver
fido cauſa da ſua perdiçao, com o ſeu
ſangue havia de ſatisfazer o mal que
lhe cauſava ; ſem duvida a matára , ſe
nao adormecera , entendendo que el .
la lhe nao fugiria ; mas a triſte ven .
do aquella occaſiao nao a quiz deixar
paſſar, e veio ter a hum lugarejo ,de
donde a trouxerao para caſa , e, me .
diante a intervençaõ do noſſo bomSer.
vo do Senhor , le congraçou ſeu ma
rido com ella.Seu impio amante , quan :
do acordou , e nao a achou , deixou a
noitecer , e voltou aMalpartida, ten
tando perſuadir a hum ſeu amigo pa
ra defertarem ambos ; mas ſendoſen
tido , foi prezo para ſe proceflar, e
punir a ſua torpiſlima aleivoſia .
25. Depois de rezar o Roſario o
noſlo Joao nas ſuas pouſadas , pallava
a explicar a Doutrina Chriſtaa , e o
methodo com que hum bom Chrifto
ſe deve diſpôr para os Santos Sacra
mentos da Penitencia , e Euchariftia :
tocava outras muitas materias eſpiri
tuaes , ſegundo aſſim opedia a necel .
fidade , ou a occurrencia . Iſto prati 1
cou por todo o tempo que foi ſolda
do , e eſta era pelos caminhos a mate
ria da ſua converſaçao ; e ainda que
nao tinha letras , era dotado de hūa
cal energia , que acudiaõ a ouvillo ho
mens , e mulheres , velhos, moços ,
e meninos , ſahindo todos mui con
ſolados da ſua preſença. Picados ſeus
antigos companheiros de havellos dei .
xado o Servo de Deos, e inteirados
do ſeu novo modo de vida , começá
raó a deitar -lhe peçonha : Que ainda
lhe lembrava ) a mui bom tempo as
beatices depois de haver ſido calado ;
e todos a hūa voz , fem exceptuar , o
que
1
 FR.JOAM GIL DE TODOS OS SANT . , 22 de Settembr.
que be mais fenſivel, os meſmos offi-
ciaes , lhe chamavaó irriſoriamente
Santo . Nao podia entrar na Igreja a
ler , ou fazer exercicio algum de de-
voçaõ publicamente ,ſem paſſar pelo
purgatorio deſtas vaias , e gritarias;
e como era mui vergonhoſo de ſeu
natural , lhe cuſtava iſtoſuores de mor
I
te. Sem embargo , pao retroceden-
3
do hum ponto da ſua reſolucao ,pro-
curou enriquecer-ſe de todo o gene-
ro de virtudes , praticando ſeveriſſi.
mas penitencias , e buſcando em tu-
doo maior ſerviço , e gloria de Deos .
Eſmerava - ſe em mortificar os ſenti.
dos : orava por mui largo tempo : ti-
nha jejuns mui amiudados ; cada ſe .
mana tres a pao , e agua , e nos dias
em que naõ jejuava ,naõ comia ſenaõ
ás fuas horas: Cingia.fe de cilicios mui
auſtéros tres vezes naſemana ; e elles,
quando nao achava eſpinhos , lhe ſer-
L viao muitas vezes , por falta de inſtru-
mento , para tomar diſciplina. Asde
ſangue eraõtres cada temana, e ás ve-
zes no campo deſcuberto; porque , co .
mo tao amante da vida ſolitaria , era
delicia para elle buſcar a Deos nos re-
tiros , e ſolidoens, expoſto á inclemen-
cia do tempo . Se por occaſiao da ſua
obrigação Militar nao podia cumprir
com eſtas couſas naquelles dias , que
elle cinha determinado , lhe deſtina .
va outros em que eſtava deſimpedido.
Outras vezes fahia no maior ſilencio
da noire a parte elcula , e alli fazia os
ſeus coſtumados exercicios , coman .
do , por naõ terhúa Cruz ſufficiente ,
húa pezada pedra aoshombros : fazia
iſto , por haver lido , que tomando S.
Pedro Nolaſco em certa occaſiao hữa
pezadiſlima Cruz as coſtas, e reparan-
do em naó ſer tao carregada como a
elle lhe parecia , volcou os olhos atraz ,
e vio que o Senhor , ajudando -o , mi
norava , e aliviava eſte pezo .
26 Tanto apertou neſte genero
de vida , que nem podia eſtar em pé ,
nem aſſentado; e deitado , com gran-
de trabalho ; porque o ſomno era pou-
co , ja pela força da ſua larga medita.
509
çao , que he o mais certo , ja pelo ex .
ceſſivo rigor das ſuas aulleridades, e
ja tambem pela falta de alimento ; por
que como era tao pontual nos ſeus je
juns , diziao . lhe ſeus camaradas : 0
Santo bem ſabe que o comer fe compra
junto para todos ; pelo que , hűa de
duas , ou comer carne , ou perder o
que lhe toca : concluiao, dando hũa
deſpropoſitadiſſimariſada. Vendo D.
Manoel Galhego , feu Tenente , eſta
impiedade , lhes impôs que nao ſemet .
teſſem com o Servo de Deos,porque
lhe dava licença para comer á parte ,
aſſim aiſto , como em qualquer outra
couſa , ainda que foſſe tocante ao ſer
viço Real . Poſtoque tað pouco lhes
devia , movido do preceito Evange
lico , que nos manda remunerar o mal,
como bem fez-ſe enfermeiro dos po
bres Soldados ; mas naõ ſó valeo a mui .
tos no alivio temporal, que lhes pro
curava , lenaõ no mais importante do
eſpirito ; porque tratando de hum po
bre ſoldado delirante , e compadeci
doo Servo de Deos do miſeravel efta.
do da ſua conſciencia , inſiſtio com
Sua Divina Mageftade pedindo - lhe
deſſe lugaráquelle miſero enfermopa.
ra poder fazer hūa confiflao : ouvio.o
o Senhor ; coofefTou -ſe o outro , e
logo teve muitas melhorias.
27 Succedeo aſſignarem por vi
venda ao noſſo bom Joao hum quar
tel de ſoldados , a que elle dá o no
me bem merecido de Sodoma ; por
q eraó cao deſaforados os exceſos de
palavras, e obras em materia de lafa
civia entre aquella taõ deſatinadagen,
te , que poderiaõ eſcandalizar qual .
quer peſſoa ſezuda ,quanto mais quem ,
aſſim como o Servo de Deos, ſe ti
nha dado a Deos taõ de véras . Ou fof.
fe por eſcarnecer delle , ou pelo ou
vir , ou ( o que fuppoftas as boas con .
ſciencias de felhapres homens nao he
incrivel ) por ver ſe o podiao derru
bar , convidavao - no para os ſeus de
leites carnaes ; e comoo fiel Servo do
Senhor lhes abominava as ſuas torpe .
zas , daqui tomavao mais pé para o
affron
 510 FR.JOAM GIL DE TODOS OS SANTOS 22 de Settembr.
affrontarem com maiores zombarias .
Trouxeraõ hũa noite para alli hūa
moça perdida, para uſar mal della á
ſua viſta. Quiz joao eſtorvallo , e foi
ameaçado de morte fe acaſo bulliſle
pé : nem o quizeraõ deixarir -ſe a outra
parte a fazer entretanto penitencia da.
quella tao graviſſima offenſa de Deos.
Tanta he amaldade , que pode caber
em hum coraçao humano ! Nao lhes
ſuccedeo aſſim em outra occaſiao , em
que quizerao paſſar a noite igualmen-
te em peccado ; porque o Servo de
Deos teve induſtria de ſahir para fó .
ra , e avizar hum official, que effe-
Aivamente correo a impedir aquella
inſolencia, ſahindo a madama muito
bem fulligada . Outras muitas vezes
por ſua intervençað le atalhárað op-
portuniſſimamente outras muitas de
jordens deſta cathegoria . Mas eſtas ,
e outras ſemelhantes fieis praticas de
virtude forao os feios, e atrozescri-
mes, porque tres vezes , ao fom de
muitas algazarras , foi eſpancado, e
moido com hum pão , e outras feri.
do . Tal he o mundo em applaudir o
que nao ſerve maisą para deſtruillo , e
em perſeguir a quem ſó quer edifi-
cállo .
28 Depois da varios lances , etra.
balhos , e de haver ſubido a alguns
poftos na Milicia até ſer feito Alfe-
rez , foimandadaſahir deſtacada a ſua
companhia de Fuente de Cantos , on
de havia eſtado algum tempo , para
Badajoz. Tinha-ſe aſſociado com o
Servo de Deos outroſoldado tambem
mui deſejoſo do ſeu aproveitamento ;
mas que , eſtava ainda nos ſeus prin .
cipios : contra elles ambos armou o
inferno būa tao turbulenta tempeſta-
de , ſendo tratados por todo o diſcur-
ſo do caminho com tantas affrontas ,
irriſoens , e gritarias por ſeus compa-
nheiros, que parece que fallava o de-
monio pela boca de cada hum delles.
O que era mais novél ſopportou eſte
ataque com toda a conſtancia , ou fof-
ſe que para iſto ajudalle o ſeu natural ,
que tinba mui pouco de colérico , ou ,
o que parece mais certo , que para nao
deſmaiar no caminho da virtude , que
agora emprendia , o fortificaſle a Di.
vina Graça , mediante o Pao dos An
jos , que antesde metter -ſe a caminho
haviao ambos recebido mui devota
mente. Entre eſte tropel de furias , e
perleguiçoens , chegáraõ na veſpera
do Domingo de Ramos ao lugar de
Parada , e diſpôsofe o noſſo Joao pa
ra a adminiſtraçaõ dos Santos Sacra
mentos da Penitencia, e Euchariſtia
no dia ſeguinte ; e porque havia dei .
xado em Fuente de Cantos hūas per
ſoas eſpirituaes , que muito o deſeja
vao ter na ſua companhia , com gran
des ſaudades ſuas, e eſtas lhe haviao
pedido encarecidamente, que em ca
ſo de poder livrar-ſe de ſoldado , vol .
taſſe a viver com ellas , partido que
lhe nao deſagradava por ſer affeiçoa
diſſimo á vida ſolitaria ; pedio agora
inſtantemente a S. D. M. le dignaſle
de dar lhe a entender o que era mais
do ſeu ſanto ſerviço , e beneplacito .
Confeſſou fe, e recebeo o Senhor , e
percebeo ( diz elle ) que ſe lhe inſi
nuava : Que chegado que foſſe a Bada
jós, foſſe a Cathedral, aonde entao
ſe acharia o Bilpo : que fizeſſe com
elle hūa confiſſao , declarando a pro
meſſa , voto , ou juramento , que ha
via feito de abraçar o eſtado Religio .
ſo , e que de caminho lhe advertille ,
que trataſſe eſta dependencia para a
favorecer com a mulher do General .
porque com eſta diligencia conſegui
ria ver-le poſto na tua liberdade. Al
lim o fez o noſſo Joao , logo que teve
mais opportunidade : e bem ſe vio
que era couſa de Deos ; porque ſem
maisempenho, ou negociaçao ,ſeveio
a conſeguir cudo mui facilmente .
29 Começou a fazer mais rumoro
nome de Joað , e ja os Officiaes maio
res da quella Praça o tinhao em mui
to , chamando- o a ſuas caſas , tratan
do - o, e rezando juntamente com els
le o Roſario , o que tambem fizeraõ
algumas vezes a Excellentiſlima Mar
queza , mulher do General , e outras
Se
 FR . JOAM GIL DE TODOS OS SANT., 22 de Settembro.
Senhoras , que iſto tem avirtude , que
ainda que ſeja perſeguida, ſempreul-
timamente vem a ſer coroada . Quiz
vello a mulher do General , e foi man
dado a ſua caſa com bem repugnançia
da ſua parte , ou por ſe acanhar , co-
mo filho de gente ruſtica, ou ( e fe-
ria o mais certo ) pela ſua muitiſſima
humildade : foi, e chegou em occa
fiao em que aquella Senhora eſtava
com outras muitas ; fallou -lhe ella com
muita lhaneza , e agrado , e pergun
tou-lhe porque Livrostinha lido : que
pelo do Cacheciſmo da Doutrina Chri-
itaa , e pelos da Madre Agreda , ref.
pondeo 'elle : depois de haverem fale
jado por algum tempo ,deo-lhe a mef .
ma Senhora em ſinal da ſua benevo-
lencia huns poucos de doces , e deſ
pedio -o , dizendo - lhe que tornaſſe a
vella todas as vezes que quizeſſe , e
The folle neceſſario , para o que man-
daria dar ordem na porta para ſe lhe
dar ſempre entrada franca. Paſſado
algum cempo , veio ordem para mar.
char o deſtacamento a outra parte ; e
como o Sargento mór doRegimento
do noſlo Joao , com quem ſe havia
tratar o ſeu livramento ,ainda nað ha-
via chegado a Badajoz , era força que
agora paruiffe tambem dalli o Servo
de Deos. Iſto porèm dao obſtante ,
mandou a mulher doGeneral , que o
noflo ſoldado ficaſſe fervindo de Orº
denança naquella Praça , e com aſſi-
Atencia em ſua caſa até chegar aquelle
Official , por quem te eſperava . Al .
fim ſe executou : eſteve o bom Joao
couſa de hum mez naquella caſa ,até
que veio finalmente o referido Sar-
gento mór , e ſe concluio , como por
maõ de Deos , diz ſeu bom Servo ,
aquella pertenção , dando -ſe por livre
no dia do Santo do ſeu nome , do Naf-
cimento do grande Bautiſta.
30 Deſembaraçado ja o Servo de
Deos , communicou o penſamento que
tinha de entrar na Religiao de S. Do-
1 mingos ( a que era mais affecto , por
haverem proteflado nella alguns feus
parentes ) com hum prudente , e vir .
516 ,
1
tuoſo Sacerdote Secretario do Biſpo
daquella Cidade , com quem elle ſe
confeflava. Eſte porèm The pôs algu
mas objecçoensem quanto ao haver de
entrar na Ordem , e concluio , que
lhe parecia mais acertado , que elle en
traſfe na Ordem de N.Serafico Padre
S. Franciſco , aonde para ſe viver do
commum naõ havia mais cuidado, que
de ſatisfazer á obediencia , e á devo
çao . Nao lhe deſagradou o arbitrio ,
e com effeito entrpu a ſer pertenden
te do habito de Minorîta . Achava - ſe
áquelle tempo o Provincial daOrdem
Serafica perto de Ciudad Rodrigo , e
diſpunha-ſe o Servo de Deos a ir
buſcallo com as cartas commendato
rias , com que peſſoas muito graves ,
eauthorizadas o favoreciaõ; mas antes
de metter- ſea caminho , foi deſpedir
ſe ao noſſo Convento da Senbora do
Rozario ,eencomendar -ſe na ſuapro .
tecçaõ para fazer a ſua jornada, econ .
cluir aquelle negocio ; mas depois de
eſtar dentro na Igreja ſe achou com
hũa tað notavel repugnancia para ſa
hir dalli para fóra , que bem lhe eſta
va prelagiando o coraçao , que aquel
le era o centro , aonde S.D.M.oque
ria . Eſtando niſto , chegou a elle hum
Sacerdote moito ſeu amigo , dizen
do -lhe que acudiffe muito depreſaao
Convento dos Agoſtinhos , aonde o
chamaya o Padre Fr. Caiecano: ( eſte
era hum bom Religioſo , que iinha
hum dom muito eſpecial para diſcer .
nir os eſpiritos, e com quem o nof
ſo Joao le tinha confeffado, e feito
algumas conferencias eſpirituaes) foi
o Servo de Deos , e aquelle bom Pa.
dre lhe diſſe que eſcuſava canſar-ſe ;
porque, lem embargo dos óbices que
ibe oppunhao , havia de ſer Frade de
S. Domingos . Ainda que iſto lhe pu .
dera dar alguma pena por haver de
ficar mal , na raza do mundo , com
as peſloas que lhe tinhao dado aquel
las cartas de favor, e ainda algumas
eſtavaõ de animo de o patrocinar com
o Provincial da Ordem de N. P. S.
Franciſco , eſcreyendo - lhe por outra
via ;
 $ 12 FR.JOAM GIL DE TODOS OS SANT ., 22 de Settembr.
via ; com tudo , como no noſſo Ser-
vo de Deos nada mais prevalecia do
que a vontade de ſeu Senhor , obe-
deceo logo á voz do Oraculo, que elle
The dava pela boca de feu Miniſtro ,
diſiftindo da quella pertenção .
31. Entretanto que nao ſe con
cluía o ſeu ſuſpirado ingreflo na Or-
dem , levou - o Dom Jozé Ponce , Se .
cretario do General , para ſua caſa , fa-
zendo elle , e toda a ſua familia hūa
grande eſtimaçao da ſua virtude : mas
todos eſtes reſpeitos nao deixavao de
ter ſeus deſcontos; porque osServos
de Deos nunca deixa o de ter con
tradicçoens , e obſtaculos, com que o
Senhor os quer provar , como dizen-
do - lhes , que pao ponhao os olhos nas
honras caducas daterra ,mas nas ſem-
piternas que lhes tem preparado na
gloria . Achava - ſe em caſa doGeneral
em cerca occaſiao , e ſuccedêo vello
hum Capitao de dragoens ; mordido . effeitos, outro nao menos aperto .
efte da inveja de o ver tað bem enta 32
bolado com aquelles Senhores, que
ao meſmo tempo lhe nao faziao a elle ,
ſendo official Militar, tao bom acolhi-
mento , ſe ſoltou em algumas pala.
vras contra o pobre Joao , accreſcen-
tando -lhe a mortificaçaõ que a ſuahu .
mildade padecia em ver -le eſtimado
de Senhores, e Senhoras , quando o
ſeu maior goſto fora ver - ſe dallimui.
to longe . Em outra occaſiao , entran-
do em hum Convento de Freiras , de-
pois de ſe haver perſignado , chegou
a elle hum Religioſo , e parece que
pelo provar , porque depois ria mui-
to com iſto , lhe deo hūa correcçao
á viſta dos circunftantes, enſinando .
lhe ao meſmo tempo o como ſe havia
de perſignar . O Servo de Deos , que
tinha aprendido mui cuidadoſamen.
te , e enſinado eſta Oraçað muitas
vezes , eſtimou muito a fraterna , que
The davao , em Satisfaçao de alguma
que elle deſconfiava de poder ter de
fe perſignar , e ſaber explicar a ſanta
Doutrina . Outra The ſuccedeo , que
tambem grandemente o mortificou,
e foi : que depois de haver ouvido
Miſſa , lhe fez Sua Divina Mageftade
hum dos mui frequentes favorescom
que o prendava , de modo que ficou
1
fem ouſo dos ſentidos: logo que cahio
em deſacordo, acudirao a elle , attri
buindo huns aquillo a accidente , ou
tros a falta de comer . Hum Sacerdo
te , que alli ſe achava ,entendendo que
o Servo de Deos era energumeno ,
exorcizou - o : tornou o bom Joao a fi
1
paſſado largo tempo ; e como depois
de ſemelhantes mimos ſe achava tao
occupado de Deos , que nao podia
dar razao de fi , cuſtou -lhe muito a
acertar a dizer ao Exorcizante , que
Dada havia alli do que elle imaginava:
entao , confirmando - ſe mais no ſeu
penſamento aquelles que preſumiao ,
que o ſuccedido fora effeito de fra .
queza , lhe trouxérao chocolate 0
que foi para elle , que ainda nao eſta .
va deſoccupado de cao maravilhoſos
Vinha chegando o dia de nof
ſo Inclyto Patriarcha S. Domingos :
elperava - o eſte ſeu bom filho , con
fiando humildemente go noſſo eſclare
cidiffimo Patriarcha lhe fizeſſe encao
a eſmola de o acceitar em ſua caſa ,
Por eſte tempo foi fazer hūa viſita á
mulher do General , declarando -lhe
mais encarecidamente os ſeus cuida
dos , e deſejos : ella , que era hūa Se
nhora de muita clemencia , e Chriſtan
dade, o recommendou , e patrocinou
com o Prior do noſſo Convento da
quella Cidade de Badajoz , o Padre
Fr. Miguel de Saavedra , que com
effeito o admittio ao noſſo lanto ha
bito para o emprego de Irmao Con
verſo , a quem depois profeſſou , e
dirigio , e lhe mandou eſcrever por
obediencia os ſeus ſucceflos. Aqui ſe
lhe cumprirao os ardentes ,e viviffimos
deſejos, que tinha de ſe dar a Deos
em ſua caſa , e que delde muito moço
o começáraó a incender , tendo ( diz
elle ) hứa ſanta inveja , principalmen
te quando ouvia tocar os ſinos,aos Re
Jigioſos de hum Convento , que fica .
va perto da ſua patria . Quando no
dia
 FR . JOAMGIL DE TODOSOSSANT . , 22 de Settembr.
dia , em que tomou o habito , foi a
commungar , notou o Sacerdote ſa-
hir -lhe a Fórma das mãos , e introdu-
zir - le rapidiſſimamente , como entre
hum agradavel incendio , na boca do
ditoſo Commungante , que o foi lo
go buſcar á facriſtia , pedindo - lhe
naõ difTefle couſa alguma do ſuccedi.
do. Temos em fim ao noſio Joao Gil,
filho de S. Domingos, vejamos ago .
ra com que paflos eſte gigante de
merecimentos correo ao fim da ſua
baliza no breve tempo , que vivêo
entre nós , que ainda fez mais coar .
ctado a ſaudade de hūa tao bõa , e
placida companhia .
33 Quanto aos votos da Religiao,
foi indiſpenſavel. Foi,comovimos,a-
cerrimo propugnador da Caſtidade,
atalhando muitas occaſioens de offen-
ſas de Deos : e quanto ao tratar com
mulheres , diz elle que havia expe .
rimentado ir-lhe ſendo pelo decurſo
do tempomenos faftidioſo que a prin-
cipio o converſallas ; mas que nenhum
commercio queria com ellas, menos
que aſſim o pao mandafle a obedien-
cia .Neſta naõ foi menos inſigne.Quan-
do ſe metteo ſoldado , lheagradáraó
fummamente as Ordenanças Milita-
res , pela ſubordinacao , edependen-
cia , que , deſde os primeiros Cabos,
até o mais infimo ſoldado , tem huns
de outros . Confeſla elle profeſſar a
cada hum dos ſeus ſuperiores hūa tao
reſpectuoſa obediencia , qual atélli
jamais tivera. Quando entrou para a
Ordem , foi com intuito de profeſſar
húa total abnegaçaõ propria , eſomet-
ter-ſe com hũa tal ſujeiçao aos ſeus
Prelados como eſtá ſujeita hūa roda
de Freiras ( com eſte ſimil ſe explica)
ao arbitrio de quem a move . Andava
pedindo hum dia eſmola naIgreja , e
pertendia o demonio influir -lhe al-
gum pejo , e ainda eſcrupulo : reba-
teo elle a inſtancia do centador , rele
pondendo - lhe : Allim mo tem man
dado a obediencia : nada mais me to-
ca. Suppotta a repugnancia da ſua
grande humildade, ſeria impoſſivel
Tom . VII.
593
que elle começaſſe , como começou ,
a eſcrever a ſua vida em hum dia da
Appariçao do Invictillimo Principe
da Milicia Celeſte , o Arcanjo S. Mi
guel , cujo favor para iſlo implorou .
34 Tinha a penna de modo , que
nao podia eſcrever com ella ; mas re
colhendo - ſe á ſua cellinha , diz elle
que a achára muito bem aparada.Ad
mirava - le muito de que , ſupporto o
grande trabalho a que era obrigado
na Religiao , e outro ſim a ruſticida
de , que ſe podia eſperar de hum fi
lho de gente ruſtica , como podia fa
zer neſte particular couſa , que fofle
digna de apparecer ; e conclue di
zendo : que Deos havia tomado a fi
o maior pezo desta obra , porque na
da havia no mundo que foſſe mais do
que a obediencia . Agora quanto á
pobreza , deſde menino começou a
praticalla , e nao houve tempo algum ,
em que deixafle de exercelia .Quan
do era ſoldado , tinha dous vintens
cada dia , que a iſto correſpondem
com pouquiſſima differença oito quar
tos do dinheiro de Caftella; e como
gaſtava mui pouco , e parece que ti
nha odio a dinheiro , o empreſtava a
primeira peſſoa, que lho pedia : faci .
lidadeeſta , com que muitas vezes re
mediou as vexaçoens dos patroens
com quem o aquartelavað. Húa das
razoens , porque ſe movia a entrar na
Ordem de N.P.S. Franciſco , foi por
que lhe differao , que os Leigos da
noſſa eraõ preciſados a adquirir one
ceflario para a ſua veſtiarîa , o que la
nao quadrava muito bem com o ſeu
eſpirito de pobreza . Finalmente como
bem notou , em carta que nos eſcre .
veo , o M. R.P.Fr. Andre Guerrero ,
tambem Conventual em S. Domingos
de Badajoz , no Servo de Deos, ſe
verificou aquillo de Nú fahi,nû torna
rei ; porque, murto o Servo de Deos,
foi cal a devoçaõ do povo que acudio
a venerallo , e a buſcar reliquias ſuas,
que até da camiza o deſpojárað.
35. Para deſempenhar com maior
exacção as obrigaçmens do leg eltado,
Tu leo
 514 FR . JOAM GIL DE TODOS OS SANT.
, 22 de Settembro,
leo as Conſtituiçoens, para melhor ſe
inteirar da vida que havia de fazer ,
e verdadeiramente foran ellas o nivel
da ſua , em quanto viveo , procuran-
do obſervallas até o ſeu ultimo apice .
Algumas vezes ſe vio vexado de fo .
me , pela parcimonia que praticava
Da meia ; mas fóra do Refeitorio ja-
mais comêo coula alguma : porque
antes , diz elle ,' queria paſſar pela
morte , do que commetter hũa trans-
greffaõ das Leys da Ordem . Foi emi-
nente na pratica das maiores virtu «
des , quaes ſao as Theologáes. Nao
era [ diz elle ] qualquer fé : era tao
acerrima que jamais teria duvida em
facrificar pela ſua confirmaçao , de
muito boa vontade , a vida ; elem-
brado de que o crer , ſem obrar , he
pouco menos que nao crer , por illo
trabalhou tanto em ſe adiantar no ca-
minho da perfeiçao . Qual foſſe a ſua
eſperança em Deos, departe dos leus
muitos trabalhos , ſe deixa inferir
muito bem ; porque , no meio detem-
peſtades tao desfeitas, jamais perdeo
de viſta o norte da confiança , que
ſempre reve no ſeu Senhor. Quanto
ao amor do proximo , ja dillemos
que com a limitação do ſeu ſoldo de
Militar remediou muitas vezes inſtan-
res neceſſidades. Tratava com muito
amor , e applicaçao os enfermos do
Convento ; e ſendo tao dado á Ora.
çaố , como diremos depois , nao le
atrevia muitas vezes a orar , por nao
ſe atrever a deixar a Deos por Deos .
Tendo as grandes queixas que diſſe-
mos de ſua madraſta , a trata , na rela-
çao que eſcreveo , por ſua māy ; e
quando eſteve as portas da morte , no
fez, lhe deixava hűa
bõa parte do quelhe pertencia . Final-
mente a caridade com os proximos
era tað viva , que coſtumava dizer
muitas vezes : Que pelo refrigerio de
hum ſeu irmao , nao tinha duvida em
padecer todas as penas do inferno.
Agora pelo que toca ao amor de Deos,
iſſo pedia muitos volumes . Sempre
daremos hūa moſtra.
36 Ardia neſte placidiſſimo in
cendio como Salamandra , que delle
ſe alimencava ; e como o natural do
fogo he fubir , muitas vezes o arreba
tava em maravilhoſos , e dulciffimos
extaſis. Nelle ſe verificou aquillo , de
que o amor he como a morte ; por .
que muitas vezes o puzerao os ſeus
extremos na ultima extremidade. At
tribue o Servo de Deos cantos traba
lhos , que logo deſde a ſua puericia
começou a padecer ,a medicamentos,
com que o Divino Amante o queria
curar , e defecar do amor proprio.
Andava tað poſſuido delte Divido af.
fecto, que nao tinha eleiçao fua, pe
lo que nao teve pouco que tentir o Pa
dre Prior Fr.Miguelde Saavedra; por
que quem punha os olhos ſó no exte
rior , ajuizava que Fr. Joao nao era
de prettimo algum para o ſerviço da
Communidade. Nao conhecia bem
.
os Padres , nem os fabia diſtinguir
por ſeus nomes : ſe lhemandavaõto .
caros finos, errava , e confundia huns
com outros osſeus toques . Outras
vezes , ſem lhe lembrarem as ordens
que ſe lhe davao , hia - ſe metter nacel
la . Outras , a agua que havia de con
duzir para o Refeitorio , hia levalla
á facriſtia. Tocando quotidianameña
te a Refeitorio , jamais o podia fazer
com tino . Servindo á meſa , perdia
ſe a cada paſlo . Se lhe mandavao dar
qualquer recado , elquecia -ſe. Outras
vezes
vezes ,, ſendo perguntado , nada ou .
1
via . Andava taõ cheo de Idéa , e amor
daDivindade, que a imitaçao de San .
ta Thereza , que padeceo tambem ſe . 1
1
melhante imaginaçao , lhe chegou a I
cauſar alguma repugnancia o haver
de contemplar na Oraçao , na Vida ,
Paixao , e Morte do Senhor ; mas o
exemplo daquella Santa , que attribue
aquelle penlamento a menos humil
dade , e o conſelho do leu Confeffor
lhe facilitáraó , aſſim como em outros,
neſte ponto a ſua mais recta direcçao.
Defte amor procedia o deſejo que elle
tinha de nao tratar com peſſoa algūa ,
unindo.ſe eſtreitiſſimamente com o
ſeu
 FR . JOAMGIL DETODOS OS SANT . , 22 de Settembro .
ſeu Senhor , nað ſendo eſte ſeu filen .
cio menos adequado pregoeiro dos
louvores do ſeu Amado .
37 Parece que Efte o chegou a
tratar alguma vez como cioſo de o
ver divertido , ainda que inculpavel-
mente , para outros objectos. Succe-
deo ( elcreve por depoſiçaõ ſua o
Padre Fr. Joao de Orelhana Leitorde
Theologia Moral, que tambem foi
ſeu Director ) fazerem ninho na ſua
cella , e criarem alli osteus filhinhos,
hūas andorinhas : recreava-ſe o Ser .
vo de Deos com ver aquelles volateis,
e chegou a confeſſar que elles lhe de
viao algum carinho. Por eſte meſmo
tempo teve hum rapto , em que notou
a Face do ſeu Senhor menos affavel,
repreſentando -ſe -lhe ao melmo tem
po aquellas avezinhas, que ja nao a-
chou, nem ratto do ninho , quando
1 voliou á fuá cella . Andava em húa
continua preſença de Deos interior :
daqui naſciaô os ſeus exteriores deſa-
cordos acima ponderados . Abraza.
va -ſe no zelo , e maior honra da glo-
ria de Deos : queria que eſte Senhor
de todos foſſe amado , de ninguem of-
fendido : toda , e qualquer culpa com-
mettida contra a SummaBondade, era
para o ſeu coraçao a mais penetrate el
pada de dor. Queria que os Prégado-
res prégaſlem Apoftolica , e deſenga.
nadamente con tra os vicios, em que
menos fe falla , principalmente con-
tra aquelles , que pela culpavel omiſ-
ſao dos pays de familias , que con-
ſentem que em būa meſma cama ſe
deitem juntos teus filhos, ainda ſendo
de differentes ſexos , ſe começaõ a
introduzir logo deſde a meninice.
Nem ſe ſatisfazia da reſpoſta , que al
guns lhe cornavao , de que ellas cou-
ſas , por evitar eſcandalo , ſe deixa-
vao para o Confeſſionario ; porque
temja , enaó imprudentemente , que
ſerá como ave rara na terra ,aquella pel
ſoa , g faiba fazer t.ūabõa confiflao , o ý
elle muito inſtava , que ſe devia en is
nar do pulpito . Diz elle , que Sua D.
M. ſe lhe queixára mui amargamente
Tom . VII.
515
neſte particular , dizendo : ( que ver,
gonha , e que horror para os ſeus Mi
niſtros!) Que no mundo naõ havia quem
prégaſe a verdade , que he o meſa
mo que nao pregar a Chrifto : que
por haver dito que Elle era a Verda
de , e por deſpido na Cruz , que he
como S. Paulo o prégava , duas vezes
a repreſenta. Por iſo ( diz Fr. Joao
que continuava o Senhor ) me agra
das muito quando dizes que queres
fer meu Pregoeiro. Estas erað húas
palavras ,que o Servo de Deos trazia
mui de ordinario na hoca .
38 Do que fica dito ſe deixa bem
colher , quao alia , quao perfeita ſe
ria a ſua Oraçao. Deſde muito pe
queno começou a tella , ſem ſaber que
à tinha : Vendo -ſe muitas vezes a
coſlado do inimigo neſte ſuaviſlimo
commercio com Deos , achou aquele
la bella paz , e abrigo , que o maldito
lhe conturbava; porque o meſmo era
appellar o Servo de Deos para eſte
recurſo , que achar -ſe logo quîte , e
livre da perſeguiçaõ infernal. Ella
[ ſegundo diz o Texto Sagrado , que
nao ſó pos alimentamos do pao mate
rial ) era o ſeu mais regalado ſuſtento ;
porque ( ſaõ palavras fuas ) quando ha
muita Oraçao de pouco ſe neceffita ,
e ao contrario . Lembrado do dito
do Eſpirito Santo : Quepara obviar
o peccado nos manda conſiderar os nof
Jos Noviſſimos ; eraõeltes mui de ora
dinario a materia da ſua contemplaa
çao , que ,ſegundo a ſua opiniaõ , ſem
pre he de grande aproveitamento .
Ainda vivia no feculo , quando o efa
pirito da maldade o quiz apartar delte
Tanto exercicio , apertando - o gran ,
demente para acudir a húafunçaõ in ,
ferior corporal , que ſentia. Sugge :
ria - lhe o pérro que era indecencia ,
e deſacato grande cumprir alli meſmo
com aquella neceſſidade , e que para
ir a outra parte , preſentirlao os donos
da caſa que elle eſtava ainda levan
tado . Entao lhe occorrian eſtas pa ,
lavras , com que S. Filippe Neri lhe
reſpondeo em ſemelhante fituaçao į
Tutii O que
1
516 FR . JOAM GIL DE TODOS OS SANT., 22 de Settembr.

O que eu preſentemente quero fazer nao perdia de viſta a meſma Caſa de

muito de minha vontade, he conver- Deos, nao ceflava de olhar para traz ,
far com Deos , e iſto he de meu Deos , moſtrando aſlim quanto lhe era cuſto
e Senhor ; agora o que acontece na par- lo dar-lhe o ultimo a Deos .
te inferior do corpo , ilo he para ti . 40 Olhava para hum Sacerdote
Nao pode ſopportar ella reſposta o in- como para hum vivoſacrario : tinha
ventor da ſoberba : retirou - le venci . le por indigniſſimo de communicar
do , e ficou o Servo de Deos inreira . com elles ; nem ſe animava , menos
mente focegado. Sentia hũa nota . que nao fofle impellido pela obedien
vel repugnancia em haver de eſcrever cia : recuſava muito que lhetomaſſem
os ſeus ſucceſſos, como aſlim lhe de- a mao ; porque ( dizelle ) parecia -me
terminava a obediencia ; e eſtando commetter hum lacrilegio em tocar
em Oraçao expreſſamente ſe lhe dif- hūas maos fantificadas ,naõ com me .
fe : Que fizeſſe o que o ſeu Confeſor nos contacto , que com o melmo Fi
lhe ordenava. lho de Deos. O ſanto Sacrifcio da
39 Como o demonio andava tan- Miſſa era para elle hum aflumpto de
10 , como vulgarmente costumamos tao eſtupenda veneraçao , que nač ſe
dizer , de ponta com elle , lendo Fr. atrevia a ajudar a ella ; e continuan .
Joao Refeitoreiro ,ſumio -lhe em cer- do eſte ſeu temor na Religiao , ficava
ta occaſiao as chaves do Refeitorio ,' muitas vezes paſmado ao paſſar o mil
ſem que foſſem poſſiveis diligencias tal para outra parte , e mudava- o com
humanas a achallas: tocou-ſe á meſa , fummo trabalho , e violencia . Era - lhe
lem ſe haver preparado , e vendo -ſe muitas vezes neceſario , por occaſiao
o bom Leigoneſte aperto , acolhen -ſe ' do ſerviço da facriſtia , tocar nos ca
á Oraçao, donde ſahio com ſemblan- lices , e eſta era para elle búa afflic
te mui ſereno , echegando ás porcas , çao equivalente á da morte , atter
nao foi neceflario ſenao applicar - lhes rando -o ainda mais a memoria do ſuce
as mãos , para logo ſe abrirem depar cello do Sacerdote , que por haver
em par , nao havendo ſido baſtantes ettendido a mao á Arca , ficou logo

para iſſo atélli as forças , que hum
Religioſo tinha poſto para abrillas.
Reſplandeceo inſignemente a ſua pie .
dade , fóra , e dentro dos Clauſtos,
Em vendo alguma folha de livro no
alli morto . Diz elle , á imicaçao de
N. P. S. Franciſco , que era tao pro
funda eſta ſua reverencia , que ainda
em caſo de S. D. M. o pôr em eſtado
de Sacerdote, lhe parecia , que nun

chao , levantava -a, para que ſe acaſo . ca poderia acabar comſigo‘o cele
nella eſtiveſle eſcrito algum nome brar.
digno de veneraçao , nao foſſe piza 41 Era devotiffimo Venerador

da. Se via alguns paoszinhos cruza-
dos em terra , defranchava a figura,
em que eſtavao,porque nao ſuccedeſſe
ficar debaixo dos pés o final da noſſa
Redempçao . Em quanto foi ſoldado,
obſervou ſempre olouvavel eftylo , de
das tantas Imagens, e profeſſava maior
1
affecto ás de Chriſto S. N. , da Senho
ra da Soledade, e do noſſo grande
Portuguez Santo Antonio ; devoçao
que aprendeo de ſeu pay , que,
eſta ,
como ja dillemos , era apaixonadiffi

ir logo que chegava a algum lugar,
feita a ſua obrigaçao , a viſitar a Igre ,
ja delle : havendo de marchar a ou
tra parte , ſe hia deſpedir do meſmo
fagrado templo , pedindo humildiſfi-
mamente perdañ ao Senhor das irre ,
verencias que alli houveſſe commet
tido . Poſto ja a caminho, em quanto
mo deite Santo . Fazia húa particula .
riſſima eſtimaçao do noſſo ſanto Dou
tor Angelico , e do grande S. Diony
fio Areopagita , de cujas doutrinas,
allegadas em hum catheciſmo da Dou
trina , ( a cujo estudo fe havia dado
com tanto gotto , que quaſi lhe ficou
de memoria ) ſe utilizou , diz elle ,
com
 FR . JOAM GIL DE TODOS OS SANT., 22 de Settembro .
com feliciſſimos progreſſos eſpiri-
tuaes ; e para melhor denotar a ſua
gratidao , todos os lugares , que o Au
ihor daquelle livro citava deftes San
tos , lia o noflo Servo de Deos de joe
lhos, rendendo aſſim muitas graças Infira -le quanto eſta theórica ſe havia
1
a Sua Divina Mageftade , por lhes ha- , de augmentar com a larga pratica que
ver communicado canto da ſua ſabe. elle teve da ſua falſidade , e inconli
doria para maior enſino ; e bem das
gentes. Da Paixao do Senhor foi de
votillimo , e do Santiſſimo Sacramen-
to do Altar , com cujo Divino Pao [diz
elle ] nað fó experimentava ſuſtento
no eſpiritual, ſenao ainda no corpo .
ral . Adiante o veremos mais favore
15
cido com eſte celeftial regálo : para
ſemos ora a vello nao menos grande
em outras muitas virtudes .
42 Ornou Deos Senhor Noſſo
álêm de eoriquecello com outros mui•
1 los dotes , o feu animo de hūa luz
mui clara , que deſde muito menino
começou a allumiallo , para penetrar,
e dilcernir o bem do mal . Foi intelli
gentiſſimo, e hia -o ſendo mais de
pois que ſe começou a dar a Deoscom
maior exceflo. Eſtava lendo hūa noi.
te feu Director , o Padre Orelhana ;
hum artigo de Santo Thomáz nama-
teria da Graça : Perguntou o Servo
de Deos , que materia era aquella , e
ſe era mui cuſtoſo o ſeu eſtudo ? Ref.
pondeo o Padre : que como era tao
tranſcendente a materia , nao podia
deixar de ſer difficillima. Joſtou elle,
perguntando como ſe havia deenten-
der aquella materia ? Entao ſe achou
o Padre com tanta luz , que confeſſa
haver fallado com mui baſtante pro ,
fundidade, e clareza , emui ſuperior
á que adquirira nas aulas. Depois de
haver dito , concluîo Fr. Joao : Tue
do quanto V.P. diſe nao be novo pa .
ra mim , porque o ſei por experien .
cia , e fej- o em Deos , aonde , como
em Fonte de toda a fabedoria ,ſe ſabe
iſlo , e muito mais , Jem tanta depeno
dencia, e máquina de eſtudos. Em
acabando de dizer , como que lhe pe.
zou , diſſe : Bom exercicio be o do
eſtudo, muito mais quando be obliga ,
517
torio : eu fui ſempre mui affeiçoado
ais livros . O deſengano do pouco ,
ou nada que he o mundo , comeyou.o
a ter logo que a luz da razao o come
çou a illuſtrar , lendo de oito annos.
ſtencia .
43 Concebeo hum tal horror ao
peccado , que em ſua comparaçao
ſe lhe repreſentava , como a todos de :
via repreſentar , a morte de flores.
Foi limpiſlimo de conſciencia. Pedia
inſtantiſlimamente a noſſo Senhor ,
que ainda que Sua Divina Mageftade
delle permillo aos deinonios para o
acormentárem , lhe nao perdoaſſe em
vida falta alguma , por minima que
folle: poderia ſer que o rigor do ca
ſtigo conduziſſe para a melhora da
emenda . Deſde mui pequeno come .
çou a moſtrar hūa invencivel averfað
a jogos de cartas , e a outros, com que
tanto ſe gravao , e aggravaõ milhares
de conſciencias. Em quanto foi lol,
dado , obſervou ſempre nao ſer mo.
lefto aos patroens , com quem o a.
quartelava ) , comendo ſempre a ſua
cuſta , em quanto tinha de leu , dan
do para iſlo dinheiro ; e ſe por nao
faltar á caridade , ſe via preciſado a
comer á mela com elles , entravatam.
bem nos gaſtos. Sendo muito meni .
no , lhe diſſerao que com afle de caſa
de hum avô , ſem eſte o faber , hūa
pequena medida de trigo : aſſim o fez;
mas cahindo depois do que fizera
ainda que por induçao , e nao por ma .
licia propria , tomou tanta pena, que
o exceſſo deſta lhe chegou a fazer
deitar ſangue pela boca . Servindo em
hũa caſa , rogou- o hum neto de ſua
ama para entrarem na fazenda de hum
homem a colher nao fei que ninheria
de crianças ; iſto lhefez tanto grava ,
me , que naõ deſcançou em quanto
naõſatisfez aquella bagatela por am -
bos , porque hum cacho de uvas , que
tomalle ſem licença , ou vontade de
ſeu dono , era ſempre com animo de
o facis
 518 FR . JOAM GIL DE TODOS OS SANT. , 22 de Settembr.
fatisfazer . Por iſſo andava ſempre a-
cauteladiſfimo quando algum , ou al .
guns invitantes' lhe diziaõ que foſſe
aqui , ou alli apanhar hūa pouca de
fruta para comer ; porque pao lhe fa- bencias, pelo baixo conceito que de
zia bòa conſonancia haver depois de
pagar por ſi , e pelos ſócios , e com-
metter o peccado de acompanhallos
para aquellas funçoens , que, por mui
momentaneo que ſeja o crime , nun-
ca podem deixar de ſer oppottas ás
leys da boa caridade .
44 Sendo tao fiel com os homens,
ja le vê que havia de ſer fideliſlimo
com Deos. Eſtivera elle aquartelado
por algum tempo na Villa de Azua-
ga , e alli contrahira amizade com hum
bom Sacerdote , peſſoa muito de Deos ,
de hum eſpirito mui relevante . Por
.
ſeu conſelho entrou o Servo de Deos
na pratica de algumas virtudes , e pe-
nitencias ; e diz elle que jamais re-
trocedêra hum ponto do bom andar ,
em que aquelle bom Padre o puzé-
ra , tomando para iſſo todas as ſuas
advertencias em memoria , por eſcri-
to . Infira -ſe daqui qual ſeria a maior
fidelidade , com que , como mais re-
ſtrictas , e obligatorias , havia de guar-
dar as diſpoſicoens da Conſtituiçaõ da
Ordem . A humildade dette homem
do Ceo foi a todas as luzes aſlom-
hroſa . Ja vimos a repugnancia que elle
teve a eſcrever os ſeus ſucceſſos ; e he
tambem mui digno de nota , que tra
tando o ponto de algumas livianda .
des , e precipicios , em que cahio , até
expreſſa na ſua relaçaõ aspenitencias,
que por ellas fez. Fazia- lhe S. D. M.
algumas mercês publicas, e era iſto
húa morte muito dura para o Servo
de Deos . Acabando de receber hũa
em certo dia , em que por ſer mui
ſolemne eitava a Igreja cheiſſima
de gente ; para ſe conſervar mais
bem pa baſe deita virtude ,
do alli hum cego o foi guiando ( diz
elle ) o ſeu Lazarilho . Procurava
de ordinario muitas occaſioens
em que hum ſeu irmao o mor
tificalle , e abateſle , fahindo mui
conſolado deſtas refrégas. Recorriao
a elle muitas peſioas , a pedir- lhe as
ſuas Oraçoens por varias neceſſida
des , e eſcuſava - ſe elle deſtas incum .
fi formava', quanto maispodia. Alua
abſtinencia foi maravilhola : Comia,
e bebia hūa pouca de agua , ainda na
maior força do eftio de 24. em 24 .
horas ; e ſempre em pouquiſſimaquan
tidade . Mortificava os braços , eco
xas com aſperiſſimos cilicios ; o pei
to com hūa Cruz de ferro guarneci
da de agudiſſimas , e crueis pontas.
Teve, lendo ainda ſoldado , hūa oc
caſiao de grande ſentimento por eſta
caula . Eſtando alojado , no tempo , em
que ainda era Militar , naquella caſa de
que ja fizemos acima mençao do lu
gar de Malpartida , adoeceo taõ gra
vemente , que todos julgáraó nað ef
caparia daquella . Nao deixava ainda
os cilicios , e parece que , por effeito
do mal , os deo , fem advertir no que
fazia , a guardar ; quando ja melho
rava , perguntou á dona da cafa , le
acaſo teria viſto huns ferros: acudio
ella , que era viviſſima ,mui prompta ,
dizendo - lhe : que os tinha ſeguros, e
ſe nað lhe lembrava ja , que lhos déra
para os ter da ſua mão . Mas nað erao 1
eſtes os unicos inſtrumentos da ſua pe
nitencia , que a ſua induſtria fabia fa .
zer de dia em dia mais laborioſa .
45 Teve muitas occaſioens de
mortificaçao . Como andava tao alie
nado no exterior , como ja diſſemos,
nao lhe falcava que ſoffrer na Com .
munidade . Huns lhe diziao , que elle
era como os Apoſtolos , ſem nada de
feu. Outros lhe perguntavao ſe era
fanto . Outros que o muito comer
( era tao pouco como ja diſlemos ) o
fazia aſſim delatinar . Naofómente de
portas a dentro , fenao que dellas a
fóra lhe nao faltava que padecer com
ſemelhantes cantilenas . Nao faltavao
ſeculares que lhe diziao , que ſe nao
foſſe em attençao ás peſſoas, que ha
viao mediado na ſua recepçao ao ha
bito de S. Domingos , mui pouco te .
ria
 FR . JOAM GIL DE TODOS OS SANT. , 22 de Settembr.
ria parado naquella caſa , e eſtaria ja
desfradado. O Servo de Deos ou-
via , e a tudo ſe callava ; porque era
tao amigo de padecer , que em hum
informe, em que dava conta de fi ao
#
ſeu Director , lhe pedia que o encom.
menda-ſe a Deos, e pediſle a eſte Se-
nhor lhe deparaſſe mais trabalhos , e
gente , que exercitaſſe a ſua paciencia ,
ainda que foſſem os meſmos demo-
nios . Alguma vez o quizeraõ atterrar
ettes malditos anjos das trevas ; mas
ſem effeito . Morto o ſeu Meſtre de
Noviços, lhe appareceo ( diz elle ] o
+
cao , tomando a figura daquelle Re
ligioſo , a horas de meia noite . Elle
o affugentou com aquellas palavras da
Eſcritura : Se Deos eſtá da noſa pars
te , quem poderá prevalecer contra
nós ? Finalmente , fora querer pro .
ceder infinitamente , querer abbre-
viar em hum tao pequeno reſumo
as eminentes virtudes deſte verdadei-
ro filho de S. Domingos. Com ellas
edificou eſte noflo Convento de S.Do.
mingos de Lisboa , que teve a gloria
de hoſpedallo , quando a obediencia
o fez paſſar a eſte Reyno , no anno de
1743. aonde , com eſta occaſiao , ti
vemos tambem a eſtimavel dita de o
ver , e communicar dentro da nolla
cella .
46 Nas antevefperas deſta jorna :
da lhe advertio o Padre Orelhana , feu
7
Director , que puzeſle todo o cuida-
do em cumprir eſta ordem , que ſe lhe
impunha , com amaior exacçao , efi-
delidade a ſeu Deos, que tao diftin- taçao de S. Paulo , que diz : Haver
& a , e altamente o bavia favorecido. ' viſto no Ceo couſas , em que nao come
Ouvio o bom Fr. Joao eſte conſelho,
e no dia anterior aquelle , em que ſe
1
havia de pôr a caminho , entrou na
cella do meſmo Padre com hum Pa-
pel eſcrito , e aſſinado da fua maố ,
em que dizia : Que elle dava pala.
vra a Deos , a ſua Māy Santiſima,
e a todos os Bemaventurados , em
mao daquelle Religiofo, de naõ offen .
der , nem ainda nas couſas de menor
momento , mortal , ou venialmente a
Sua Divina Mageflade ; e que je por
519
fua fragilidade faltare a eſta pro
mella , pedia ao meſmo Senhor man .
dale contra elle todos os demonios
para lhe darem todo aquelle caſtigo,
que folle miſter para o deixar ſatis
feito. Qual fofle a bõa fé com que
cumprio o promettido , ſe deixa en
tender do que o Servo de Deos dif
ſe, voltandoao ſeu Convento de Ba .
dajóz ,ao melmo Padre Orelhana,con
feſſando-lhe , como atteſta o meſmo
Padre : Que Deoso havia muito, mui.
to regalado.
47 Concluido, pois , o empenho ,
a que fora mandado , e reſtituido ou
tra vez para o ſeu Convento de Ba .
dajóz , ſe tanto edificou aquella Caſa
com os ſeus ſantos procedimentos
nao a admirou menos com os eſpe
ciaes favores , com que ainda em vi.
da o honrou aquelle Senhor , que he
cao fiel com ſeus ſervos. Ja difiemos
que algumas peſſoas ſe valia o delle,
pertendendo que elle foſle ſeu Inter
ceffor diante de Deos ; e poſtoque el
le ſe eſcufava , ja por humilde , e ja
porque , como tao amante de padecer,
julgava por mais uteis os trabalhos , e
amofinacoens, do que as graças , efa
vores ; com tudo , ás inſtancias do
Padre Orelhana , ſe deixou ,nao pou
cas vezes , vencer deftes rogos : e
dizia depois o Servo de Deos haver
eſte Senhor attendido aquelles, por
quem elle bavia rogado. Quanto aos
mimos que Sua Divina Mageftade lhe
fazia , diz elle ao ſeu Director, á imi
vinha intrometter- ſe lingua mortal :
que havia ſido grandemente favore
cido ; mas que o SummoBem , que o
prendava com eſtas efpecialidades, o
deixava ignorante para poder fallar
dellas . Com ſer tao parco o ſeu ſul.
tento , em hum dia , em que , pelo hu
milharem , o mandára ) comer pao , e
agua em terra , mandando - o o Prela
do cavar na cultura de hūas oliveiras ,
bem computado depois o trabalho ,
era equivalente ao que podiao fazer
tres
520 FR.JOAM GIL DE TODOS OS SANTOS 22 de Settembr,
tres homens . O que obrava nas outras
officinas , nao merecia menos admi-
Tacoens .
48 Muitas vezes ſe arrebatava em
exta fis , ja na ſacriftia , ja em outras
muitas partes . Eſtava- ſe hum dia con-
feffando na cella com ſeu Director, o
Padre Orelhana , e aſſim de joelhos
como eſtava , ſe foi elevando em fór
ma de Cruz , e com o corpo tao cur-
vado , que parecia hum arco : nefta
poftura eſteve , com pouca differença ,
por hầm quarto de hora , exclaman-
do : Oh Senhor, e quem fóra voſo pre-
goeiro ! e ſubio tanto , e tao alto , que
apenas podia o Padre Orelhana em pé
chegar- lhe com as mãosácorrea , com
que Te cingia. Quando , como diſſe-
mos , fallava com o meſmo Padreſo .
bre os favores , que Sua Divina Ma-
geſtade lhe havia feito na jornada de
Portugal : O Deos ( dille ) ó Senhor
meu , e com que confolacoens não me
aflifiiftes ! e abrindo os braços , ſe le .
vantou o ſeu corpo couſa de meia va .
ra , de modo , que eſcalainente lhe
pode chegar leu Confeſſor com as
mãos aos hombros . Em outra occa
fiaó eſtando na Igreja depois da Milla
do dia , exclamou aſſim : Ab mulhe-
res que eſtais.condenadas ! Amemos a
Deos : e arrebatando ſe extaticamen-
te , cemendo algumas mulheres que
elle cahiſle , e ſe maltratafle , chegou
húa dellas a advertillo , que nao delle
alguma queda . Deixa -me ( lhe tor .
nou elle ſem que alguem mais perce-
belle ) deixa-me, que ſe nao me precio
pitao os teus peccados, ſeguro eſtou
de mais cabidas . Obrigado depoisda
obediencia , declarou individualmen .
te o caſo por eſcrito , dizendo : que
Deos lhe havia communicado o máo
eſtado daquella mulher, que chegou
a elle , e que vendo- a Fr. Joao naquel-
ja occaſiao mais licēcioſa, deſejara mui
vehementemente o eſpirito de Sua Di-
vina Mageftade para converter aquel-
la , e que entrando ao meſmo tempo
Chriſto Crucificado no ſeu coraçao ,
prorompera em hűas , e outras pala-
. '"
vras , ſendo Oraculo do meſmo Chris ,
fto. Tinha - lhe poſto preceito , como
ſeu Confeffor , o Prior Fr.Miguel Saa
vedra , para que pediſſe a Deos lhe
occultaſle ſemelhantes beneficios: ifto
naš obſtante , eſtando - ſe renovando
em húa quinta feira o Santiſſimo Sa
cramento no Altarmór , ſe elevou de
tal modo extatico , que ſe o nao im
pediſſem , hia a entrar directamente
pela porta do Sacrario , que , eſtava
aberta. Levarao -no para a facriſtia ,
e depois de cobrar o uſo dos ſentidos,
eſtava feito hứa imagem da confuſao ,
e da humildade ; e neſta occaſiao he
que lhe ſuccedeo o que ja fica referi .
do de haver trabalhado elle fó como
tres homens.
49 Teve hū grande conhecimen
to dos interiores ; e muitas peſſoas ,
eſpecialmente Religioſos, the deveraó
faluberrimos aviſos. Eſtava ja com
o amido nas mãos para ſe reveſtir ,
para celebrar, hum Religioſo; che
gou o Servo de Deos , e diſſe -lhe : que
i
ſe diſpuzeſlemelhor , porque nao eita
va S. D.M. muito ſatisfeito delle : en
tao o Padre ,deixando os ſagrados in
dumentos , foi com hum mar de la
grimas nos olhos , fazer logohūacon
tiſfað geral , preparando-le aſſim pa
rachegar mais dignamente á Mela dos
Anjos. Foi tambem illuſtrado com o
dom da profecia . Por intervençaõ do
Padre Orelhana vaticinou a morte a
hum Religiolo , que ſe diſpôs fanta
mente para ella ; e com effeito more
reo dalli a dous annos , depois de os
haver paſſado em penitencias. Eſcre
ve o devoto Irmao haver tido algu
mas viſoens, e diz : Que ſendo ainda
muito pequeno , lhe apparecera a Vir
gem Senhora com ſeu Divino Filho ,
que ſe lhe moſtrava mui riſonho para
elle , nos Braços . Em hũa noite mui
tenebroſa, e ainda outra mais , patto
que pelo que lhe diſerao ſeus Dire
&tores, nað 1e aflegurou ſe feria illu
faõ do demonio , que , como diz o
Apoftolo , ſe disfarça tambem em An
jo de luz , ſe lhe repreſentou , banha
da
 RECOPILAC,
da de formoſiſſimos reſplandores hűa
)
Ermida , aonde ſe venerava hūa devo-
ta Imagem do Senhor , com o titulo
de JesusNazareno . Afliftindo em Vila
I
Ja Franca , aonde havia hum elegan-,
tiſſimo vulco , que repreſentava o nofi
ſo Thaumaturgo Portuguez , Santo
2
Antonio , lhe pedio que lhe delle o
Menino , que tinha nosbraços , e pa
receo lhe que o Santo mudava de cor,
e como que ſe ſorria. Por vezes fe
lhe repreſentárað algumas almas ,que
entendeo eſtavaõ expiando as ſuas culo
pas nos meſmos lugares, em que as
haviao commertido. Deſde mui pe
queno confeſſa , que havia começado
a ter viſoens diſcurſivas , ou imagina .
rias , pelo que, andando os tempos ,
veio depois a entender. Forao-lhe rea
velados muitos , e graviſſimos ſegre-
dos . Ja diſſemos , como lhe foireve.
lado q teria abſoluto da milicia . Eſtan-
do doente da moleftia ,que, como dir-
ſemos , padeceo no lugar de Malpar-
tida , diz elle , lhe revelára S.D.M .;
3 ſem embargo de que ſe julgava aquel
la doença por mortal , quenao acabaa'
ria della .
50 Coroou finalmente cantos fa-
vores o maior , que elle podia ter na
terra , e de que ſeu Director, o Padre
Orelhana , diz que vira expreſſos, e
evidentes finaes ; e vem a ſer : que ,
como aquelle Padre entendia , eſtava
ja o noflo Fr. Joao tra vida unitiva . Em
fim depois de húa vida taö juſtificada,
e perfeita , e depois de haver alliſti
do com fumma caridade a bum Cava ,
lheiro ſeu grande bemfeitor, que com
effeito falleceo , acabou o noſſo bom
Converſo de levar a lua coroa , no
que padeceo com hūa eryſipela em
hūa perna , que foi a ſua ultima en-
fermidade, ele complicava com acer-
biſſimas dores. Chegado ao artigo da
ſua morte , forao cruentiſſimos osata
ques , que lhe derað os demonios :
neſte conflicto pedio o noflo moribun-
do a hum Cavalheiro Prebendado, que
lhe affittia , que fizelle algumas afper
Coens de agua benta naquella quadra,
Tom . VII,
A M de 22 de Şettembro , 521
e o meſmo rogou affli & tiſſimamente
a hum Religioſo , até que chegado o
ſeu ditoſo termo , pallou de caduco a
eterno ; e , como piamente ſe crê , de
viador a Bemaventurado em 22. de
Settembro do anno de 1744. idoſo de
32. para 33. annos , como moito de .
ſejava, por melhor ſeconformar com
o ſeu Senhor , que acabou o curſode
ſua ſantiſlima vida oa meſma idade ,
das oito para as nove da noite . O con
curſo foi extraordinario , acudindo
toda a Cidade a vello , venerallo , e
procurar reliquias ſuas , delpojando
o dos habitos , e cabellos . Nao faltá
raõ devotos , que quizeraõ fazer- lhe,
á fua cuſta hum particular depoſito
para o ſeu corpo ; nao ſe aceitou po
rèm porentao eſte offerecimento , por
parecer que nao convinha. Tirou -ſe
The depois de morto hum retrato ,em
que muitos enfermos, aſſim como em
outras prendas ſuas , tem experimen
tado todo o alivio . Finalmente a opią
niao de ſantidade , com que morreo
no Senhor , he tao grande, que com
a lua memoria ſe honrarao, e illuſtra
raõ as Actas do Capitulo Provincial
Granacenie, celebrado no nodo Con
vento de Santa Cruz , em 30. de Abril
de 1746. ,
RECOPIL A C , A M
de 22. de Settembro.
M Flandes a mui Religio
E fa Soror Getrudes de Jesus,
Naſceo de pais muinobres , e opulen
tos , e com eſtes recebeo muitos ou.
tros mimos da natureza , e fortuna .
Nada porém foibaſtante a inclinalla ao
ſeculo , que generoſamente renunciou
por Chrifto , veſtindo o noſſo Santo
habito , quando ſe achava na tenra flor,
dos ſeus annos . Dentro dos Clauſtros
começou a praticar eminentemēte to
das as virtudes . Tinha muita Oraçaõ ;
e quaſi gaitava nella ' inteiramente a
noite. Nas penitencias naõ havia quem
The levaſſe exceflo , enem ainda quem
Voy tive :

527 SOROR CLARA DE SANTA ROSA , 23 deSettembro.
riveffe com ella igualdade. Hûa gran-
de peccadora ſinceramente arrepen-
dida , nað ſe podia tratar com tanto
rigor. Ao meſmo tempo era a Serva
de Deos o retrato mais ao vivo da in
nocencia . Em vinte annos , que vi .
veo no ſeu Moſteiro , jamais decabio ,
antes ſempre mais ſe reforçou em de-
fempenhar com a maior fidelidade as
ſuas religioſas obrigaçoens. A ſua hu-
mildade, paciencia , e reſignaçao na
vontade Divina, reſplandeceo muito
fingularmente na ſua derradeira epfer-
midade, nað tendo , poftoque ella
fofle extremamente incommoda , bo-
Ca para deſabafar , nem com hũa le :
ve reſpiraçao , ſó fim para louvar in-
ceffantemente ao Senhor . Elle a cha
mou da terra para a Patria Celeſte , no
anno que fechou o decimoterceiro fe-
culo . Pio liv . 1. n . 225 .
12. Na Armenia o llluſtriſſimo Ar
cebiſpo de Naxivan D. Fr. Nicolao
Fridónix , e o Veneravel Padre Fr.
Mattheus ; Prior do Convento de
Chiaug, e muitos outros Religioſos
da Ordem , foraõ mortos , depois de
haver padecido as maiores extorfoens,
e violencias dos Turcos em odio de
nola Santa Fé , pelos Ciſmaticos Ne.
ftorianos no anno do Senhor de 1597.
Gravina , e outros .
23. de Settembro. :
Vida da Veneravel Madre
SOROR CLARA
DE SANTA ROSA ,
Segundo as memorias,que ſe conſervaā
no Moſteiro do Salvador da Cia.s
dade de Lisboa ,
I Lluſtrou a Veneravel Ma-
dre Soror Clara de Santa
Rola o lugar de Carcavellos com o
ſeu naſcimento ; mas ainda illuftro !
melhor o Moſteiro do Santo Rey Salo
pador com as ſuas virtudes. Naſceo a
18. de Agoſto de 1686 .: forao ſeus
pais Franciſco de Siqueira, e Dona
1
1
Marianna Carraſca Serra ; e nao foi a
Serva de Deos a unica filha , que elles
conſagráraó ao Senhor na meſma
exemplariffima, e Religioſa Caſa. En
trou nella Soror Clara tendo doze an
nos de idade , e naquelles dias proxi
mamente anteriores a eſta entrada ſa
bia de ſua caſa , ſem que fofle viſta ,
e aflim ſe andava deſpedindo pela vi
zinhança , moſtrando ter ſummocon
tentamento do eſtado de vida , a que
ſeus progenitores a encaminhavao.
Chegando aos deſafleis annos da ſua
idade fez a ſua profiſſaô, havendo da
do atélli grandes moſtras da ſua gran
de , e futura ſantidade ; e paſlados tres
angos depois de proteffa, le diſpôs
a ſeguir a ſeu Espoſo pelo caminho da
maior perfeiçao, a pezar de todos os
obftaculos , que o mundo , e ojpfer
no lhe pudeflem pôr , e oppor.
2 Tal foi o ſeu deſapego á carne,
e ao ſangue , que nem a leu meſmo
pay queria fallar , nem elle o podia
conſeguir ſenao apadrinhado das per
(ualoens de muitas Religioſas. Eſme
rou -le grandemente 'em nao faltar de
algum modo ao ponto das Conſtitui .
çoens : trazia a eſtamenha mui con
juncta á carne , e della uſava na ca
ma em que dormia. Era tao rigoro
ſa , como, indiſpenſavel nas abſtinen
cias da Ordem e a eſtas juntava mui
tas outras da ſua devoçaõ : jejuava to
das as quartas , feſtas , e ſabbados a
paā , e agua . Guardava o ſilencio com
A.mais eſcrupulola regularidade. A'pa
ciencia , com que ſe portava nas ſuas
doenças, que foraõmuitas , e mui gra
ves , teve mais de incrivel , que de
heroica, e ſó parece que podia ſer
igual á muita alegria,queentao moſtra
va : del las ſe achava muitas vezes ſaa
tem queos Medicos pudeflem'enten
der o como. Era mui dada á Oraçao ;
e naõeſtando enferma, era menos cer
la a ſua aſſiſtencia na cella , do que
po Coro : tomava grandes , e afperri .
mas diciplinas ; e andava ſempre care
regada de varios generos de cilicios.
Das quintas para as feſtas viſitava as
efta .
 SOROR CLARA DE SANTA ROSA , 23 de Settembro .
eſtaçoens da Via Sacra , e dos Paſſos
do Senhor , deſcalça , ſem que lhe
metteſlem medo, ou horror os maio-
1 res frios, e deſabrimentos do inver .
no ; e deſte exercicio lhe reſultou ag-
gravarem -ſe -lhe mais as ſuas queixas,
e ficar incapacitada da mao direita,
de que le pao podia ajudar para couſa
alguma: nella le lhe abrirao cinco cha-
gas, que ſe conſerváraõ abertas até a
ſua morte ; porque nao ſe achou ſoc
corro na medicina para lhes cerrar :
attribuiao- le ellas a effeito de amor , e
fó elle pudera dar lhe a cura , mas nao
lha deo ; parece que pela gloria que
The reſultava de conſervar aquellas in .
fignias, ou demonſtraçoens do ſeu po-
der.
3 A fua caridade foi extremada ,
e moſtrou -a eſpecialmente com as al-
mas do Purgatorio . Vio ella em cer.
ta occaſiao cercada de grandes , e hor.
roroſas levaredas a de hūa Religioſa
de muita idade , que morrera de re
pente ; e tanto ſe deixou commover
da compaixao , que ſe offereceo ao Se-
nhor para padecer , quanto elle foſſe
ſervido , pela defunta. Nao tardou o
Supremo Fiſcal em lançar mao detta
palavra ; porque indo Soror Clara
acompanhar o cadaver ao Çoro , eaf-
fiftir ao Officio de corpo preſente, ale
li meſmo foi accõmertida de hũa gran-
de febre , inchando- lhe o roſto com
muita deformidade : levársā.pa dalli
para a cama, e nella teve muito que
jentir . Ifto ( diſſe ella neſta occaſião )
nað ha de ſer couſa de cuidado, nem
agora ha neceſſidade de chamar- ſe Me.
dico ; levarei leis ſangrias, e logo fin
carei bõa. Tudo ſe verificou allim
como ella o havia dito ; mas como
por cauſa delta indiſpoſiçaõnaõle dei-
xou da ſua abſtinencia , foi aſpera-
prentereprehendida peloſeuDirector.
Segunda vez lhe tornou a apparecer
no Coro a meſma alma , pedindo -lhe
novos fuffragios; e da bondade do ſeu
coraça6 fe póde bem crer , que naõ
deixaria de procurar-lhe novos ali-
vios . Raivava o demonio de a ver cao
Tom , VII .
523
adiantada no caminho da virtude , e
procurava atterralla , e affugentalla
do Coro , apparecendo - lhe em viſoens
mui elpantolas; mas a Serva de Deos
fundada na pedra angular ,iſto he , em
Chriſto feu Eſpoſo , fazia zomba
ria dos ſeus eſtratagemas . Padeceo
hūa graviſſima tentaçao , de que qua
ſi ſe chegou a ver deſeſperada, e de
veo a ſua paz , e quietaçao ao Senhor ,
a quem invocou na ſua Veneranda
Imagem do Ecce Homo. Foi tambem
muito mimoſa de algumas appariçoēs
do ſeu Amado , que lhe deixavao inug
dado o coraçao em mares de alvoro .
ços , e delicias . Em hūa occaſiao lhe
appareceo o Menino Jesus , com tres
cruzes , ao que ella clamou : O Se .
nhor , Oʻ Senhor, olhai que fou mui
fraca , e nao poro com todas tres ; e
em outra vio hũa mao de eſtranha bels
leza , e candura , que lhe atirava com
punhados de flores.
4 Foi devotiſſima do Senhor more
to ; e cuidava do ſeu alinho com muita
eſpecialidade. Era tambem muito
amante da Senhora no lagrado , e fau
doſo Myſterio da ſua Aſſumpçaõ triun.
fáte aos Ceos.Nao ſe empenhou menos
na devoçaõ do Sagrado Bautiſta , a
quem devềo , e attribuio muitos fa
vores ; e era talo affecto , que lhe pro
feflava , que ,depois de morta , ſe lhe
achou marcado o peito eſquerdo ( en
tende -ſe que por meio de algum arti
ficio , de que ſe valeo ) com a effigie
do meſmo Sagrado Precurſor. Sulpie
rava por morrer quanto antes ; e eſte
deſejo lhe fazia dar á morte o nome
da ſua formoſa. Em ordem a ter al
gum recurſo nos seus males , foi- lhe
neceflario ſabir do Moſteiro para os
ares da patria ; e postoque o eltimava
por centro do ſeu amor , pao repug
nou a eſtadiſpoſiçao, antes a abraçou
com ſinaes de muito goſto , e alegria,
Chegou -le finalmente o ditoſo termo
da vida deſta fiel eſpoſa ; e perguntan
do - lhe o Padre Fr.Manoelda Allum
pçao , ſeu Director: Pois que vay, mi
nha Soror Clara , parece -vos agora a
Vöv ii mor
 524 D. FR. HENIQUE DE KALTISEN, 24 de Settembro .
morte tao formola , como vós dizieis ?
E qual he a duvida ( reſpondeo ella)
quehe mui formofa? 0h venha ella
ja , venha , que tanto a deſejo ! Vol
tou -ſe entao para a parede ; e ao meſ.
mo tempo ſe notou , pao ſem admira
çað , que nella reverberava hum for
moſo reſplandor , que lhe fahia doro
fo : depois levantou os olhos , e o 1
corpo , e abrindo os braços , como
querendo aſſim ſegurar o Sūmo Bem ,
que ja via tao proximo; e depois fe
foi pouco , e pouco aquietando . Sa-
ciou - lhe Deos noſſo Senhor ettes ſeus
deſejos , e luſpiros no annode 1709. ,
em que contava pouco mais de 23.de
idade , aos 23. de Settembro , velpe-
ra ide Noſſa Senhora das Mercês do
meio dia para a húa hora , em gachamou
do deſerto do mundo , para o premio
da coroa .
Trouxerao -na logo no outro
5.
dia para o Molteiro , aonde entrou ,
mais como em triunfo , do que para
funeral, acompanhada de muitos lu :
mes . Coroavao- na duas capellas , co-
mo diſtinctivo da ſua pureza , que ele
la ſempre havia zelado com a mais vi-
gilante cultura. Foi chamado hum pin-
tor , para retratar eſta bõa Religioſa,
e ao melmo tempo foi mui notavel a
effuſaõ de ſangue, que lhe fabio pe-
los narizes , em que ſe enſopárað mui-
tos lenços , que depois le ficárað ve-
nerandocomo reliquias de muito apre-
ço . Manifeſtou Duos a gloria desta
fua Serva a duas peſſoas de grande er
pirito : : būa dellas a vio ſubir ao Ceo
com húa Cruz de prata na mað ,en-
tre muitas Santas Virgens da Ordem ;
e outra , que era companheira , e ami
ga muito eſpecial de Soror Clara , te
ve hum ſonho , em que ella ſe lhe re
preſentou mui ſatisfeita , e glorioſa
em hum riquiſſimo , e bem adereça
do apoſento ; e fazendo tranſito por
alli algumas peſſoas para outros , ex
cepło hũa menina , ninguem mais er
trava naquelle : entao ouvio que a Ser
va de Deos lhe dizia eſtas palavras :
Alerta , alerta em ſervir aoSenhor,
e em ſervillo bem , que ſob inexplica
veis os premios , que tem deſtinados
para quem o ſerve fielmente.
RECOPILAC , AM
de 23. de Settembro.
I A Lorena , em Metz , a
N Veneravel Madre Soror
Jaquelina de la Marche . Era ſenhora
de grande qualidade, e parenta mui
chegada do Imperador , mas todas
estas regalîas copſagrou comſigo mer
ma ao Eſpoſo das Virgens entrando
em 12 de Janeiro de 1513. a fazer pro.
fillao do noflo ſanto Infticulo paquela
le Moſteiro , que entao florecia na
mais apertada obſervancia . Como te
foſle nella culpa o haver naſcido tao
eſclarecidamente , ſe condenava ago
ra em ſervir a Communidade nos em 1
pregos mais abacidos . Fugia de todas
aquellas occafioens , em que podia ha
ver qualquer circunſtancia, quediſlef
ſe reſpeito a alguma ſua maior atten .
çao , como de hūa pedra de eſcanda
lo. Ao melmo tempo nað havia pef
foa dentro da Clauſura , a quen ella
nao trataſſe com as mais reſpectuotas
demonſtraçoens. Finalmenie depois
de haver empregado 32.annosdentro
daquelles Clauſtros, tao humilde, e
obſervantemente , rematou os ſeus
dias em 23. de Settembro de 1545.
com hũa morte ſantiſſima. = Lafon .
24 de Settembre.
Vida do Veneravel , e Illuftrif
ſimo Arcebiſpo de Dron
thein ,
TISEN,
DE KAL
Extrahida de Fontana , Pio , e Los
pes .
I A Cidade de Conflans,
N povoaçao mui celebre da
Germania , naſceo, e alli veftio no
nogo
 D. FR . HENIQUE DE KALTISEN, 24 de Settembr.
noflo Convento o habito de S. Do
1
mingos o Veneravel Arcebiſpo de
Dronthein , ou como ſe chama em
Italia de Nidroſia , Capital da Norvve-
ga D. Fr. Henique de Kaltilen . De
ſtinava.o Deos para ſer hum dosmais
acerrimos defenſores da immunidade
da unicamente verdadeira doutrina da
fua Santa Igreja Romana, e Univer-
fal , e para martello das hereſias dos
Hufficas , e de outros herejes de Bo-
hemia . Guardou inviolavelmente as
1 Conſtituiçoens, e até o ponto da ſua
morte , jamais deixou de arder no ſeu
coraçao o incendio do amor, que ſem-
3 pre reve á ſua Sagrada Ordem . So-
brefabio nos eſtudos da Theologia com
a maior eminencia , e no pulpito foi
hum dos mais eloquentes, e mais acti-
vos Oradores Evangelicos , e quaſi
toda a Alemanha foi bõa tellimunha do
zelo , e do fruto, com que elle annun-
3 ciava aos povos a palavra Divjna . Da
ſua preſença ſahjao conſolados os af-
flictos, os puſilanimes fortificados, os
1 cegos com viſta , e contritos os pec
cadores . Tanta ſabedoria , tanto ze .
lo , e tantas outras fuas eminentes vir
tudes lhe fizerao ádito ao lugar de
Inquiſidor de Alemanha , em que foi
conftituido companheiro do Venera .
vel Padre Fr. Manfredo no anno de
1426 .
¿ A vigilancia , e fervor , com que
elle ſe deſempenhou de hum tað im-
portante emprego , The merecerao o
glorioſo titulo de hum dos mais zelo
zos , e acerrimos defenſores da Igre-
ja . Asciladas dos herejes,em que a ca
da paſſo via arriſcada a ſua vida, e mui-
tas outrascontradicçoens , a que ſem-
pre andava imminentemente expoſto,
jamais forao baſtantes a introduzir a
menor tibieza nas ſuas 'ardentes reſo-
luçoens . A glorioſa fama do ſeu no
me , que ſe divulgava por todo o mun
do Chriſtao , fez hum ecco taő fono .
ro na Corte de Roma , que bem in-
formado o Papa Eugenio IV . da ſua
ſabedoria , e ſantidade , o expedio ao
Concilio , que ſe convocára em Bafi:
52.5
léia , a fim de abater o orgulho da he
reſia . Alli ſe achou o Servo de Deos
com outros muitos ſeus Religioſos ir
mãos , no anno de 1433. Alli vierao
tres Oradores dos Sedarios de Bohe
mia , para apreſentar aos Padres hum
extracto das luas abſurdas opinioens ;
e dentro de oito dias reſpondeo ao
primeiro , chamado Rokiſana, o noſo
lo Veneravel Padre Fr. Joao Domin
gos de Raguza , Procurador Geral da
Ordem . O legundo , que fe chama
va Wenceslao Taborita , foi conven
cido em húa diſputa de quatro dias
pelo Doutor Egidio Calleri, Deaõda
Igreja de Cambraia. Contra o tercei.
ro , que era hum Sacerdote , e 'o Di.
rector dos Orfaós de Bohemia , e ſe
chamava Uldarico , e argumentavaſo
bre a liberdade com que ſe deve inti.
mar a alguns a palavra de Deps , pug
nou o noſo Veneravel Padre Kaltiſen
com tanta energia , que dentro detres
dias deixou inteiramente exhauſto
aquelle Jerarca da hereſia.
3 Nao menos a naconfutaçaõdeſta ,
fervio tambem a Igreja em ſuſtentar
as ſuas regalias, que alguns innova
dores pertendia impugnar neſte
Concilio ; e em tudo moſtrou tanta
habilidade, e prudencia, que aquela
le Papa o chamou a Roma para ſeuti,
lizar dos ſeus conſelhos. Por morte
do Veneravel Padre Fr. Bartholomeu
Lapacio , o conſtituio Meſtre do Sa
cro Palacio , e em 24. de Janeiro de
1440. Biſpo de Crotona . Elle deſem
penhou tao importantes obrigaçoens
com acertos ſuperiores aos maiores
applauſos. Nicolao V. fazia hūa tao
eſpecial eſtimaçao deſte grande ho
mem , que o creou Arcebiſpo de Dron
thein , ou Nidroſia , Metropoli da
Norvvega em 27. de Fevereiro de
1452. , parecendo lhe , que nenhum
era tanto a propofito para congraçar
os herejes daquelle paiz com a Santa
Sé Apoftolica , como eſte Veneravel
Padre . Nao ſe enganou no tomar de
ftas medidas ; porque em 13. annos ,
que eſte bom Prelado regeo aquella
Dieces
426 FR . CARLOS ROGERON ,
Dieceſe, a illuſtrou , eſantificou com
os ſeus glorioſos trabalhos, e exem-
plos . Entre os immenſoscuidados de
reger o ſeu rebanho , nao lhe faltava
tempo para compôr , como compôs ,
muitas, e admiraveis Obras ,todas el
las de eſtimada , e conhecida utilida
de para os Oradores Evangelicos.Fi-
palmente nelle le verificou o dito do
grande Agoſtinho: Tal foicomo a ſua
vida a ſua morte ; ſuccedida no nolo
Convento de Conflans em 24. de Set
tembro de 1465 .
RECOPILAC , A M.
de 24. de Settembro.
I M Verona a Illuſtre Serva
E de Deos Soror Angela de
Salerno . Era hūa tao inſigne Religio-
da , que foi expedida do leu Molteiro
ao de Verona , para reftabelecer nel-
le a mais circunſpecta regularidade ,
de que foi ſempre acerrima propug-
nadora . Era humildiſlima; e de pro .
poſito buſcava com lofreguidaõ o tra-
balho dos exercicios mais abatidos ;e
juntando a tanta humildade o exem
plo de todas as outras virtudesreligio .
fas, em que era Mettra tan coplūma-
da , aperfeiçoou , e ſantificou aquella
Caſa , de donde finalmente paſſou pa
ra a da eternidade glorioſa. Viviano
anno de 1320. = Vall. de Provinc.
Regn.p. 105.
2 Em Peruſa o devoto IrmaoFr .
Joao de Verne . Depois de haver ſer-
vido com os mais louvaveis procedi-
mentos o Moſteiro das noſſas Religio .
fas daquella Cidade , paſou a ſer hu-
milde pertendente do habito de Con.
verſo . A ſua ſupplica , fuppoftos os
bons officios de que a Ordem lhe era
devedora , teve hum ádito muito fa .
voravel . Em oito annos , que viveo na
Religiaõ , a edificou muito com a ſua
bõa diligencia, com a ſua indiſpenſa-
vel obſervancia , e com todas as outras
virtudes de hum tao grande Servode
Deos como elle era . Paſſou finalmen
25 de Settembro . ?
te á companhia dos Santos por hua
ſuave morte, no apno de 1330. Raz
zi de Vir . Illuſtrib.
25 . de Settembro.
Vida do Veneravel Padre
FR . CARLOS
ROGER ON ,
Extrahida das Obras do Padre Fr.
Joao de Santa Maria , tom. I.
I Veneravel Padre Fr. Car
O los Rogeron veſtio o nof
So habito , e fez profiſlao do Inſtituto
de S. Domingos do Convento de An
gers . Determinou - o a esta ſanta em
preza a perfeiçao de vida dos noſo
los Religiofos reformados. Ffte pen
ſamento o fez tambem paſſar á Con
1
gregaçao de S.Luiz , para alliſe a per 1
feiçoar pa maior reſtricçao das Con
ftituiçoens. Nao havia Religioſo al
gum , ainda dos mais eminentes no el
pirito de reforma, que lhe fizeſſe o me.
nos exceflo. Isto reconheceo bem o
noſſo Reverendiſſimo Geral Fr. Ni
coláo Rodulfo , que ſem queſtao foi
hum grande Myſtico , chegando a dar
ette grande elogio a Fr. Carlos. Eſte
( dible aquelle inſigne Prelado deroda
a Ordem ) he verdadeiramente bum
Anjo de Deos. A obediencia fello par
far ao Noviciado Geral de S. Germa
no , ſuburbios de Pariz , e brevemen
te deo aconhecer aquella Caſa o mui
to cabedal de virtudes , deque o Se
nhor enriquecera a ſua alma . Era tao
humilde , que mais parecia ſervo, do
que alumno daquella Communidade.
Era pôllo a hūa tortora , eſtimallo ,ou
dar -lhe algum louvor. Buſcava todas
as occaſioens de le humilharcom mais
ancia , do ghū ſoberbo as de oftentar - le
grande aos olhos do múdo . De ordina
iro o achavao ſēpre occupado nos mi
niſterios mais abjedos das Officinas.
Nao ſe lhe podia fazer maior liſonja ,
do que dar - lhe alguma fraterna. Sem
pre andava pedindo de joelhos aos
Re
 FR. CARLOS ROGERON ,
Religiolos Sacerdotes , e Leigos , é
aos Noviços, que o advertiſem , ere-
prehende ſlem dos ſeus defeitos , e
imperfeiçoeds.
2 Quem era tað humilde, claro eſtá
que não havia de ler menos' obedien-
1 te. Quaſi que ſe podia dizer delle,
que
carecia da Potencia da Vontade. Tao
adherente a trazia aos preceitos dos
Superiores. Recebia as ſuas ordens
com hum tal reſpeito , como ſe lhe
foſſem participadas do meſmo S. Do-
mingos. Eſte o principio , porque era
tao eſcrupuloſo na ſua execuçao , af-
ſim nas couſas de maior , como de
menor momento ; porque nenhuma
deſtas couſas tinha por pequena , ou
inconſideravel. Pode-ſe dizer que
foi a quinta eſſencia da obſervancia
das Conſtituiçoens. Ainda nas ſuas
grandes moleitias , nao queria admit .
tir a menor diſpenſaçao no ponto da
abſtinencia, e do jejum ; e quando a
obediencia o violentava a tomar al-
guma refeiçao , elle fim ſomettia -ſe;
porém pode-ſe entender que iſto pa .
ra elle antes era moleftia do que ali-
vio , e aſſim o teſtimunhavao os ſeus
olhos, que jamais deixavao neſtas oc-
caſioens de arrazar-le com lagrimas.
A pezar da ſua eſtupenda humildade
fizeraõ-no Superior daquelle Novicia-
do. Servio elle eſte emprego com to-
das as condiçoens de hum verdadeiro
Prelado : haveria fim quem o pudeſſe
igualar ; mas nao ſe acharia quem o
chegaſſe a exceder. A ſua vigilancia,
o ſeu zelo em propagar a mais eſtrei.
ta reforma do Inſtituto , até naquellas
couſas de menos apprehenſao , a ſua
equidade em deſembaraçar-ſe deref:
peitos humanos, tudo iſto faô couſas,
que nao cabem em expreffoens huma.
nas. As faltas de ſilencio , e quaeſquer
outras quebras de obſervancia, ainda
em couſas tenues , era para elle hūá
caraſta inſopportavel. Nao ſó repre-
hendia fevéremente aos tranſgreflores,
ſenao que, como ſe foſle elle o mais
culpado , paſſava a dar hũa grande fa-
tisfaçaõ a Sua Divina Mageftade, to
25 de Setteinbro .
mando hũa larga , e deshumana di
ciplina.
3 Era neftas couſas fummamente
rigido , e ao meſmo tempo era o mel
moagrado , a meſmabrandura ,a mef
ma caridade para todos . Ainda com
aquelles meſmos, a quem reprehendia,
uſava de tanta docilidade , que nað
ſabiao menos conſolados, que puni
dos . Como o ſeu exemplo era tað ir
reprehenſivel, e todos eſtavao bem
perſuadidos que o Veneravel Padre
nao trabalhava mais , que por levan
tallos a maior perfeiçao , nao havia
quem ſe nao fomettefle ás ſuas correc
coens com toda a boa vontade . A ſua
pureza de conſciencia era tao indefea
Aivel como a luz do Sol . Apenas ca.
hia em algum eſcrupulo de defeito ,
quando logo , como ſe foſſe hum No.
viço , corria a accuſar - ſe ao Prelado ,
para receber delle a penitencia da ſua
culpa , que talvez nao tinha maisvul
to , do que a ſua imaginaçao . Se aca
ſo elcrupulizava em que havia qual
quer couſa do ſeu uſo demais , def
de logo cedia tudo nas mãos dos Su
periores . O ſeu lemblante era como
hum ſymbolo da modeſtia. Jamais ſe
lhe ouvio palavra , ou notou acçao ,
que deſdiſffle do nivel defta Ange
lica virtude. Todas as perfeiçoens de .
fte inſigne Religioſo , e outras muitas
que ſepultou em bum ingrato eſque
cimento a ſua profundiffima humilda
de, referia a ſua fonte á prelença de
Deos , em que elle continuamente an
dava . Nem os actos da Communidade,
em que era infallivel, nem o commer
cio dos Religiolos, ou de quaeſquer
outras peſſoas, nem os eſtudos , nem
quaeſquer outros exercicios , erao ba
ltantes a afaſtallo daquelle taõ forte ata
tractivo do ſeu coraçao . As ſuas pa
lavras nunca tivera o mais argumento
do que o amor , e louvor de Deos.
No meio das occurrencias mais embar
raçadas , eſtava taõ fixono meſmo Se .
nhor , que mais parecia comprehen.
for , que viador .
4 Que penna ſerá baſtante para ef.
crever ,
528 Ř ECOPIL A C, A
crever , e deſcrever a devoçaā , e at-
tençao com que elle celebrava o Augu .
fto , Incruento , e Sacrofanto Sacri
ficio da Miſſa ? Certo que muita ra
zao teve o noflo referido Geral Ro
dulfo em dizer o que difle , e ja dei
xamos notado, ſe algum dia chegou
a ver o Veneravel Padre no Altar.
Differaõ muitas peſoas , porque aſſim
o experimentavao, que era impoſſi.
vel ouvir hum Chriſtao , ainda que
menos devoto , a Miſla do Padre Ro-
geron ſem entrar nos maiores incen-
tivos da piedade Catholica . Finalmen-
te depois de haver ſidotaõ fiel a Deos,
tað utilaos homens , foi accommettido
de hūa grande hydropeſia nos princi-
pios do anno de 1640. Perſiſtio o mal
por muitos mezes , em que o Servo
de Deos pode lavrar com hũa mara .
vilhoſa paciencia búa immenſa coroa
de gloria . As dores traziao.no cruci-
ficado, e os mais fymptomas daquel .
la terrivel moleſtia hiao - no extenuan-
do mais , e mais de alentos ; e ainda
aſlim nem procurava , nem queria ad-
mittir alivio , ou diſpenlaçaö . Perfe-
verava na fiel aſſiſtēcia de todas as fun
çoens da Communidade , e nao que .
ria affroxar a corda do arco dos rigo-
res da ſua inflexivel obſervancia.Quan:
do muito por ultimo ſe fez impoſſivel
paſſaraó.no para a en-
a reſiſtencia ,
fermaria. Aqui pedio , e recebeo os
Sacramentos com aquellas bellas dif-
poſicoens , que facilmente ſe deixaõ
, que
perſuadir de hũa tað ſanta vida como
a fua. Finalmente vendo - ſe ja tao pro-
ximo do ſeu ulimo prazo , exclamou
com o Apoſtolo : Que comonao tinha
mais vida do que a JESVS Chriſto ,
neſtes termos ihe vinha a ſer a morte
ganancia , e nao ruina. Verificáraño
je fantamente eſtasſuas eſperanças por
húa morte precioſa em 25. de Settem•
bro de 1640. , e depois de detunto fi-
cou mais eſpecioſo o ſeu femblante ,
do que quando fora animado : Entao
parecera o retrato da penitencia , ago-
ra o da Bemaventurança .
M de 25. de Settembro.
RECOPIL A C , A M
de 25. de Settembro :
I A Provincia de Chiapa ,
N em Guatemala , o Vene
ravel Padre Fr. Agoſtinho Salablanca .
Foi mui condignamente o primeiro
profeflo daquella Caſa , e em todo o
ſentido hum dos primeiros della . En .
corporado com outros muitos poſlos
Miſſionarios, cultivou aquella nova
vinha do Senhor com largos luores ,
e trabalhos ; mas nao com menos fru
cto , e benções do Ceo . Foi de natu
ral mui docil , e iſto ajudou muito pa
ra elle melhor entrar no ſenhorio dos
coracoens dos Indios , ainda dos mais
deſarrezoados , e ferozes. Póde ſer
contado por hum dos primeiros Reli
gioſos mais illuſtres pa obediencia .Fi .
nalmente depois de haver trabalhado
tanto pela maior gloria de Deos , pal
ſou no anno de 1590.,em que morreo ,
a lograr -ſe do eterno ſalário , que elle
ab æterno predeſtinou para os ſeus
Servos mais fieis . Remez, l. 12.cap :
13 .
2 Em Arras, no Moſteiro de Thi .
euloie a Veneravel Madre Soror Bar .
bara de Blas. Foi hũa muito obſervan
te Religiofa , e o ſeu zelo pela maior
regularidade ſe vio bemquando os ſeus
merecimentos a elevarao ao cargo de
Prioreza do ſeu Moſteiro , que ella
regeo com igual lantidade que pru
dencia. Teve a larga vida de oitenta
annos , que mais propriamente ſe po
dia chamar hũa fecunda ſerie de vire
tudes . Muita penitencia , muita Ora
çao , e muito amor de Deos a diſtin
guiao mui fingularmente de todas as
outras ſuas Co Religioſas. Tinha húa
devoçað muito eſpecial a noſſo San
tiſſimo Patriarcha , e toda a ſua per
tenſao com elle , era que lhe alcan
caſſe hum tað alco eſpirito de contem
plaçaó como fora o leu. Parece que
de algum modo foi deferida, porque
alcançando em ſeus dias o formida
Yel aſiedio, que ſe pôs aquella Cidade,
dus
 FR . THOMAZ DA VICTORIA , 26 de Settembro .
durante eſte termo de tanta anguſtia,
e confternaçaó , perſiſtia orando fer .
vidiſſima, e altiſlimamente deſde as
feis da manhaã até ás ſeis da noite.
Levou- a hūa ſanta morte para o Ceo
no anno de 1640. = Lafon .
26. de Settembro .
Vida do Veneravel Padre
FR . TH
Τ O M A Z cudes o amava ,eainda reſpeitava com
DA VICTORIA
Extrabida de Remezal. l. 11.6.3 .
Oi o grande Servo de
I
Deos , Veneravel Padre
F
Fr. Thomaz da Victoria , Biſcainho de
naçao . Veftio o habito de S. Domin-
gos no Convento da Victoria , de que
parece que eile tomou o appellido.
+ Fez o eſplendido curſo dos leusefta-
dos em Salamanca , e Valhadolid . Deo
tao boas moſtras do que havia de vir
a ſer , que os Prélados o conftituirao
Leitor do noſſo Convento de S. Pe.
dro Martyr de Toledo . Foihum dos
maiores Prégadores de fama do ſeu
tempo , e tinha hum tað ferventeze .
lo do maior aproveitamento elpiritual
dos ſeus proximos, que nada obſtan-
te a incanſavel applicaçao dos eſtudos,
1
a queo preciſavao as Cadeiras, jamais
ceſſava de ſubir ao pulpito a ſemear a
palavra de Deos . Eſte Senhor lhe deo
a conſolaçaõ de experimentar quanto
era delle bem ſervido em hum taõim-
portante , e ſagrado miniſterio . Co
mo elle aſſim o teve entendido , dei-
xou de todo as Escolas , propondo
comſigo de conſumir os dias , que
Deos lhe deffe , na pregaçao do Evan- .acabar de admirar- ſe dos bons offi
gelho . Niſto he que elle ſe reſolveo ;
mas depois de conſultar pefloas mui
doutas, graves , e fantas.
2 Começou a prégar pelas Aldeas ,
e lugares circunvizinhos , fazendo - ſe,
3 e affazendo- ſe como hum S. Paulo ao
genio ruſtico , e falto de policia da-
quellas gentes, a quem fe fazia mui
claro , e perceptivel , ſem que por iflo
ficaſſe defraudada a gravidade , e de-
Tom , VII,
529
cencia, que ſerequer em hum Orador
Chriſtað. Nað era o ſeu eſtudo canto
pelos Livros, e menos, como laſtimo
lamente he tað ordinario , por aquel .
les da erudiçao profana , como pela
Cruz da penitencia , e na Academia
da fanta Oraçao mental . Emprendeo
fazer outra Miſlao mais larga , para o
que facilmente obteve permiſlo do ſeu
Provincial , que pelastuas muitas vir
muita eſpecialidade . Chegando po
rèm áquelle tempo hum Religioſoda
Ordem ao ſeu Convento , que vinha
das lodias Occidentaes , e andava no
projecto de juntar alguns Religioſos
para paſſarem a trabalhar na converta o
daquella gentilidade , foi o Venera .
vel Padre hum dos primeiros, que ſe
offereceraõ a fazer-lhe effectivamen .
te companhia . Logo que chegou ao
Novo mundo , cuja trabalhoſa viagem
The ſuavizou o Ceo com muitas gra
ças que lhe fez , entrou a aprender as
Jioguas daquelle paiz , em que ſe aper .
feiçoou tao breve , como magiſtral.
mente . Como o ſeu juizo , e as ſuas
letras eraõ como a luz , que logo dá
final de ſi, mandou - lhe a obediencia,
que enſinaſſe a Sagrada Theologia .
Tambem o conſtituio Prégador Ge
ral,
e alli ſe achou em dous Capitu .
los Provinciaes feito Definidor . Co
mo era de vida tað innocente , eſan .
ta , commetterao - lhe o governo de
hum Priorado , em que elle unio com
a major leveridade , que ſempre teve
de zelar amaior gloria de Deos , hũa
tal bondade de animo para todos os
ſeus ſubditos , que nao podiaõ elles
cios que a cada paſſo delle recebiao .
Tinhaõ tido os noſſos Padres naoſei
que differenças com os moradores de
Guatemala ; e poſtoque eraõ muito
renhidas , ſem embargo de tudo , o
Servo de Deos os congraçou com a
Ordem em toda a bõa harmonia .
3 Era todo caridade para os In
dios : nao podiao elles achar melhor
pay em todas as ſuas neceſidades eſ
Xxx pirig
 530 RECOPIL A C ,
rituaes , e temporaes.OsCaſtelhanos,
que
os tyraonizavað ſem algum temor
de Deos , e ainda parece que ſem a
menor tintura de Religiao , o temiao
como hum flagello , ou hum raio .
Talvez delconheciao iſto os meſmos
Americanos , e correſpondia . com
ingratidoens a tantos beneficios; mas
itto nað era baſtante para que elle le
abſtiveſſe, ou affroxaile de proſeguir
nos ſeus bons intentos ; porque tu .
do o que fazia era mais com os olhos
em Deos , do que nos homens . Naó
prégava fabulas, nem flores ; préga.
va verdades , e as verdades mais im
portantes como ellas ſe devem pre .
gar : e iſto con búa tao ſanta liber
dade , inſuperavel a todos os reſpei-
tos humanos ; que invectivando em
certa occaſiao genericamente algũas
deſordens , a tempo , em que alli fe
achava preſente hum Prelado , que
nah tinha muito bom nome ; como
elte attribuiile a fátyra particular,
que ſe fazia aos ſeus coſtumes , a dou-
trina do Prégador ; eſte, ainda que
tudo lhe foi conitante, comonao ti-
nha odio aos vicioſos, ſenaõ aos vi-
cios , jamais deixou de prégar , e ſem
pre com o meſmo fogo , e actividade
contra os eſcandalos , e peccados.
4 Nem por iſſo melhorou de eſta
do aquelle ſuperior , e condoido da
ſua ruina eſpiritual, e ainda das más
conſequencias, que de taõ máo exem .
plo podia o redundar , o Servo de Deos
entrou na reſoluçaõ de o procurar , e
repreſentar- lhe poſitivamente fóra de
todo o rebuço o máo eſtado da ſua
conſciencia .' Poſto na preſença da-
quella Dignidade com hum Crucifixo
Dasmaos, citou -o para diante do Tri .
bunal Divino , ſe quanto antes nao
fazia ceflar o eſcandalo publico , que
tanto ſem temor de Deos , e pejo dos
homens , eſtava dando ao mundo , e
pað fatisfazia a doutrina, que dopul.. argumentos os parciaes daquelle im
pito lhe havia intimado generica , e
agora lhe tornava a repetir particu .
lar , e occultamente . Nada foi baſtan-
te ' ; porque aquelle homem eſtava
A M de 26 de Settembro .
mui callejado na ſua culpa . Comeſta
deſconſolaçaõ le retirou o noſſo gran
de zelador da honra de Deos. Pou
cos dias depois o chamou ette Senhor
para premiar eternamente com a ſua
Viſta , e Graça tanta fidelidade , e
ſerviços, em 26. de Settembro de
1570. Quando o Prelado , 9 diſlemos,
ſoube da ſua morte , alegrou- ſe mui
to , e diſſe publicamente , que nun
ca ſaberia dar a Deos as devidas gra
ças de ter menos hum inimigo , e le .
vallo diante de ſi: mas como , bem con
fiderada a cauſa , eſtas graças ,que el
le dizia que devia dar a S. D. M.era
neceſſariamente hūa blasfemia contra
a fual Divina Ley , e contra a fapti
dade do ſeu Servo , que o meſmo Se
nhor commettêra por Medico daquel .
la conſciencia tað gangrenada ; dei
tando -ſe aquelle infeliz na melma noi 1
te do dia , em que diſlera eſta impie
dade , depois de haver ceado lautiffi
mamente , pela manhaā foi achado
morto . Sirva iſto para noſſo exemplo ;
porque , como bem notou Santo Am
brolio : A queda do que vai diante ,
he huma precauçao para o que vem
atraz .
RECOPILAC , A M
.
de 26. de Settembro .
I
E illuſtre Religioſo , e Mar.
tyr , cujo nome he tao glorioſo no
Ceo , como na terra deſconhecido.
Rokirana , hum celebre hereſiarca ,
convencido pelo noſſo Veneravel Pa
dre Fr. Joao Domingos de Raguza
no Concilio Conſtancienſe, teve neſte
Servo de Deosoutro nao menos acer
rimo antagoniſta. Eſta a cauſa do ſeu
glorioſo martyrio ; porque achando
ſe inteiramente convencidos dos ſeus
pio , quizeraõ vingar , como viogá
ram , a ſua confuſao , com a vida, que
tiráraó a eſte fabio ; e fanto Religio
fo , que deſpenháraó em hum alto , e
mui
 SOROR CLAUDIA DE RAIMUNDO , 27 de Settembro.
mui impetuoſo rio , no annode 1474.
E Concert. Præd. Palm . Fid.p.105.
2 Neſta Provincia de Portugal , e
na Cidade de Evora , o Veneravel Ir-
mao Leigo Fr. Affonſo das Vinhas.
Foi hum milagre da obſervancia. Ti- ,
nha noventa annos , e fora ſempre
exceflivamente diligente no trabalho
das officinas , e nem ainda aſſim que-
ria eſtar pela menor diſpenſaçao . Foi
de muita oraçao , e penitencia . Var-
lo ria todo o Convento duas vezes na
femana ; e querendo aliviallo deſta
penia o o Prior , porque , attentos os
feus muitos annos , ja fazia iſto com
fummo trabalho , reſpondeo com to .
da a humildade , que elle era hum
pobre Leigo , a quem de juſtiça toca
ra aquelle ſerviço , e que naô era tað
grande aquelle trabalho , como ſua
Paternidade imaginava ; porque o
jentir - ſe chamado de cao perto ao
Tribunal Divino , lhe fazia agora ti.
rar forças de fraqueza. Paſou em fim
a lograr-ſe, por hūa ſuave morte, da
eterna felicidade no anno de 1570.
E Souſa p.1.1.5.6.11 .
27. de Settembro.
Vida da muito devota
SOROR CLAUDIA
DE RAIMUNDO ,
da noſla Terceira Ordem ,
Extrabida do Anno Dominicano.
I
çou a moſtrar que era to .' incumbencias.
da do Ceo por hum maravilhoso de-
ſapego as couſas do mundo, a gran-
de Serva de Deos Soror Claudia de
Raimundo , da noſſa Terceira Or-
dem . Era inſaciavel a ſede que ella
tinha de padecer pelo Amado. Nao
era menos notavel o ſeu deſapego ás
3 couſas do mundo . Deſde logo afpi-
rou a ſubir ao mais alto da perfeiçao.
A ſanta Oraçað mental era ja naquele
les teus tenros annos todo o ſeu en-
canto . Tantos , e tað fauſtos augu .
rios bem davao a entender que eſta
Tom . VII ,
531
grande alma era toda de Deos . Poſto
que o ſeculo , o a fortuna aliſongea
vao , tapou os ouvidos a eſte canto
de fereas procurando dar-ſe coda a
Deos em hũa Clauſura. Tinha ella ef
colhido o noflo Moſteiro de Santa
Praxedes de Avinhao ; mas o Senhor
que a deſtinava para luz de gente ru
ftica , lhe atalhou eſta reſoluçao , pes
los meios de que ſe quiz ſervir dein
ſtrumento aos fins que havia decreta
do . A falta de ſaude da Serva de Deos
delcompôs ' , e malogrou todas as
ſuas eſperanças. Eſta falta de diſpoſi
çaõ dem por iſſo a deſcorçoou ; an
tesa animou a fazer no ſeculo hūa vi
da perfeitamente Religioſa.
2 Contava deſoito annos ; e en
tao com voto de perpetua Virginda
de ſe conſagrou ao Eſpoſo das Vir
gens. Começou a obſervar o retiro ,
e o ſilencio por devoçao , como pu
déra por obediencia . Tinha larga , e
activa Oraçao : exercitava todas as
virtudes com a mais exacta, e fielſe
veridade; e para de algum modo fa .
tisfazer aos ſeus antigos , e piedoſos
deſejos , pedio , eveltio oſanto habi
to da Terceira Ordem de noſſo Incly
to Patriarcha S. Domingos . De muito
boa vontade aſſentirao aos ſeus rogos
os Padres da Doutrina de Manda , af
ſaz inteirados das eminentes qualida
des da Serva de Deos , a quem os
noſſos Provinciaes Toloſanos , atten
to o ſeu grande zelo , e ſantidade de
Todo o ſeu cuidado
foi correſponder com a maior fideli.
dade ás ſuas obrigaçoens , e corref.
pondia mui verdadeiramente aos de
lejos a execuçao. Em breve tempo
veio a ſer o modelo deleus Co - Irmaos,
e a edificaçao daquelas gentes. Era
tao optimo o exemplo da ſua vida ,
que ſabiao da ſua preſença tao adian
tados os timoratos , como confufos
os menos devotos . A Oraçaõ era a
que lhe levava todo o tempo , e neſte
manancial da perfeiçao ſe enriquecia
de novos talentos para ſe fazer maiş
Ххх і grata
532 FR . CORNELIO DE AVITABLE ,
grata a Deos , e mais util aos proxi-
mos. Foi no maior extremo devota
do Santiſſimo Sacramento ; e era pa-
ra ella o attractivo mais vehemente a
uniao com o Eſpolo , na recepçaõ
dette celeſtial Pao do Anjos . Por iiło
era mui nimia a ſua frequencia na
Meſa da Commuphao ; mas ſempre
ſometrida ás prudentes direcçoens do
Confeflor , a quem protettava hūa rao
rendida ſubmiflað , que ainda que
muitas vezes a privava daquelle cele-
ſtial commercio , jamais deo o feu
femblante o minimo indicio do quan
to etta ſeparaçaõ lhe era violenta .
3 Teve hüa paciencia tað inſupe-
ravelmente heroica , que ſe pode di
zer que eſta foi a que mais brilhou
entre todas as outras ,de que ella era
inſignemente dotada . Começou logo
delde a lua meninice a padecer gran
des moleſtias, que até os ſeusultimos
dias nao a largárað.Os remedios , com
que ſe lhe acudia , accumulavao - lhe
dores fobre dores ; mas a todas era in .
fenfivel, ſe nao para o tormento , pa-
ra as queixas . Ao meſmo tempo ja
mais perdia , ou quebrava o fio das
fuas devoçoens.Aggravou ſe -lhe mais
a doença nos principios de Settembro
de 1698 , que foi aquelle em que ella
paſſou a ver a Deos ; e havendo reco .
nhecido quao proximo eſtava o ſeu
fim , recebeo com a maior devoçao os
ultimos Sacramentos; e depois de ha-
ver paſlado dous dias de agonia , paſ.
ſou a lograr - ſe dos eternos da Bema
venturança em 27. do referido mez .
RE COPIL A C , A M FR .
de 27. de Settembro.
I A Provincia de Santo Hy
N polito Martyr , no Con
vento de S. Domingos de Oaxaca o
inſigne Servo de Deos Fr. Lopo Cue
lhar. Vinte e dous annos gaſtou nas
Milloens das Indias , cuja lingua a
prendeo com ſumma brevidade , e a moſtrar , o que andando o tempo
perfeiçao. Na cultura detta ſeara pa.
28 de Settembro.
deceo trabalhosimponderaveis . Mas
tudo lhe parecia pouco , ou nada ;
porque o goſto que tinha de lucrar al
mas para Deos , aflaz baltava a contra .
pezar todos eſtes incommodos . So
breveio -lhe hũa paralylia , que lheto
mou todo o corpo: perdeohum olho ;
e os accidentes do ſeu mal o priva
raõ inteiramente do uſo dos dous pri
meiros fentidos. Mas affim eftas , co
mo outras muitas moleftias , que lar 1
gos annos acriſolárað o ouro dos ſeus
merecimentos, jamais foraó baſtan
tes a fazer- lbe perder hum ponto da
ſua bella paz interior , o que demon
ftrativamente ſe reconhecia no ſeu
ſemblante . Era tað amigode mortifi
car-ſe , g,nao obftante hūa tao dura mo
leftia, jamais deixava de cingir -ſe com
afperos cilicios . Pagou - lhe o Senhor
tantas graças , illustrando- o de mui
tos dons eſpeciaes , em que teve lu
gar muito diftincto o da proft cia .
Morreo finalmente da morte dos ſan
tos no ſeu Convento de Oaxaca , de
donde era profeſſo. He fama , que a
quelle Senhor , a quem elle tao fielmen
te lervira , honrou a ſua morte com
muitos milagres . O povo , que o ci
nha , e nao ſe enganaya , por hum San
to, correo a buſcar, como precioſas
reliquias , as particulas , em que ſe
lhe cortou o habito , e hum dos ſeus
mais apaixonados panegyriſtas foi o
Bilpo daquella Dieceſe . At. Cap.
Gen. an. 1650.
28. de Settembre.
Vida do Veneravel Padre
CORNELIO
DE AVITABLE ,
Extrahida das Altas do Capitulo
Geral , celebrado no anno de 1644 .
I Arece que naſceo como noſ
PO ſo Veneravel Padre Fr.Cor .
nelio de Avitable a devoçað , e a ſan
tidade . Deſde muy menino começou
havia de ſer . Viſitava devotiflima
mente
1
 FR. CORNELIO DE AVITABLE , 28 de Settembro.
mente as Igrejas : ouvia com a maior
attençao a palavra de Deos , e moſtra-
va ja hũa tal vigilancia em fugir de
tudo , o que era vicio , que parece
que ja naquelles tao poucos annos ef
2
tava inteiramente deſenganado das
ingratidoens do mundo. Frequenta.
va muito amiudadamente os Sacra-
mentos , e em todas as ſuas acçoens
31 ſe moſtrava igualmente admiravel.
Depois que veltio o habito de S. Do-
mingos , e fez profiſlao do ſeu Inſti-
tuto , nao le obſervou nelle couſa
que nao fofle digna de igual affom-
bro , que imitaçao . A fidelidade, com
que elle cumpria os preceitos das
Conftituiçoens, excedia todos os ter
mos , e expreſioens da rhetorica . Fa-
zia muitas , e rigidiſſimas peniten-
cias , e era de húa Oraçaõ a mais con-
BRE tinua , a mais elevada . Na obſervan .
cia dos votos nos podia ſervir de mo-
délo a todos , os que vivemos na Re-
* ligiao. Muito pobre , grandemente
obediente , e inſignemente cafto .
2' Era hum dos maiores inimigos
do ocio , que jamais lhe levou hum
tenuiffimo momento. Andava ſem-
pre em búa continua preſença o Deos:
Nelle he que fallava , o pouco que falo
lava ; e nephữa outra couſa queria
ouvir mais que fallar de Deos. Por iſto
ſe fez hum lugar mui diſtindo entre
outros Religioſos mui tábios , e de vi.
da mui juſtificada, e perfeita. Entre
eftes ſe podem contar os Veneraveis
Padres Fr. Joao Leonardo de Letfe-
ré , Fr. Joao Ricchi de Rocaalpri, e
Fr. Domingos Gravina , cujas memo-
rias tanto illuſtraõ eſtes Agiologios
Dominicanos. Fizerao- no Meſtre de
Noviços do Convento da Saude de
Napoles, de donde elle era filho , e
aonde morreo do Senhor ; e aſſim
peſte emprego , como no ſeu inviola-
vel ſilencio , e paciencia admiravel ,
que praticou em muitas , e muiacer-
bas enfermidades, de que foi acco.
mettido , deo grandes demonſtra-
çoens de ſer , como era , hum dos
1
mais verdadeiros filhos de noſo Pa .
533
dre S. Domingos. O noflo Fr. Theo .
doro do Valle , de quem as Actas do
Capitulo Geral mēdigarao eſta memo .
ria , como teſtimunha ocular , e que
teve a fortuna de ſer ſeu Noviço , fale
la neſte ſeu grande Meſtre com exi
preſſoens mui honorificas , poftaque
ſempre inferiores a tao conſummadas
virtudes .
3 Faziaõ ellas taõ glorioſo ecco
por toda a parte , que , aſſim como
tambem as ſuas grandes letras ; o ele
várað ao governo do Provincialado
de Sicilia.Elle exerceo eſte cargo com
conhecidas bençoens do Ceo. Tan
to fez reflorecer com o ſeu exemplo ,
e com a ſua applicaçao a maior obler
vancia nas Calas da ſua obediencia !
Attenta a tao maravilhoſos progreſ
ſos a Congregaçao reformada da Sau
de , o nomeou leu Vigario Geral . O
deſempenho correſpondeo fideliffi.
mamente ás eſperanças de ſeus affei
çoados. Nao havia reſpeitos huma
nos , que o pudeſſem dobrar em ma
terias tocantes ao maior intereſſe , e
credito da Ordem . Dona Joanna de
Auſtria era tao devota deite Servo
de Deos que fez os ultimos estorços
do empenho , porque elle ſe quizeſle
encarregar da direcçao da ſua conſ.
ciencia . As meſmas diligencias fize
raõ muitos Moſteiros principaes de
Napoles . Ninguem ſeenganava com o
Servo de Deos : viſivelmente ſe viaõ
os maiores adiantamentos eſpirituaes
daquellas pefloas, que chegáraó a al
cançar tað elpecial dita . Finalmente
depois de haver cultivado tao diftin
Ata , e felizmente a vinha do Senhor ,
paſſou a receber o premio do Eterno
Paydefamilias , aos 28 de Settem
bro de 1643. Logo que ſe ſoube a ſua
morte , acudio grande multidaõ de
povo ao Convento a venerar eſte gran
de Servo de Deos ; e poſtoque os Re.
V
ligioſos fizerað todas as diligencias pa
ra o reſguardar ,iſto nao obſtante, The
cortárað o habito em pedacinhos, que
todos eſtimavao como reliquias de
hum grande Santo , qual elle era , ſem
a menor queſtao. RE
534 FR. AMBROSIO SALVI DE BANHUOLS, 29 de Settemb.
RECOPILAC, A M
de 28. de Settembro.
I MLuca o Veneravel Padre
Fr. Pacifico Burlamachi.
Tinha ja muito anno quando entrou
na Religiao ; os effeitos
os effeitos porém
porém da
de
graça o diſtinguirao tanto , que eſles
poucos annos , que viveo dentro dos
noſlos Clauſtros , foi com tanta fan-
tidade, que podia) acreditar largos
ſeculos. Aquelles , que lhe preferiaõ
no tempo , nao podiao deixar de lhe
ceder na virtude. Foi zeloziſlimo da
obſervancia : Em todos a procurava ,
e podia ſervir de exemplo a todos.
Era de muita , e mui relevante Oras
çao.Macerava o ſeu corpo com as mais
leveras aufteridades de jejuns , dici-
plinas , e de muitas ouiras peniten-
cias , de que era inſigne inventor .
Foi ſujeito de muitas letras , e a elle
Tecorria ) os maiores Letrados nas du-
vidas de maior arduidade . Por iſſo
era muito eſtimado , poſtoque iſſo,
como nao contribuiſſe para maior
gloria de Deos , foffe de mui pouco
momento na ſua eſtimaçao . Foi todo
çaridade para os ſeus proximos mais
neceſſitados , que nelle mais depref
fa achavao pay , do que patrono .Mor
reo finalmente com grande opiniao
de Santidade no anno do Senhor de
1519. Para correſponder de algum
modo á devoçao do povo , que anhel
lava com maior ancia alguma ſua re-
liquia , pelo que lhe corcáraó o habi .
to em pequeninos retalhos , foi ne .
ceffario conſervar o ſeu corpo muitos
dias ſobre terra . = Font. Prov . Rom .
pag . 114
2 Em Dalmacia , na Cidade de Po-
lenra o Veneravel , é Illuſtriſſimo Biſ-
po detta Diecele Dom Fr. Ambroſio
Francaſſin . Era de hūa proſapia nobi.
liſlima da Cidade de Breſla , naItalia ;
mas todas eſtas liſonjas do feculo , e
da fortuna pôs de parte , antepondo
a tudo a pobreza do habito de S. Do-
mingos. Veſtio - o em 18 de Junho de
1613 no noſſo Convento da meſma
Cidade Breſſa ; e concluidos os ſeus
eſtudos com a mais ampla ſatisfaçao ,
paſſou a enſinar Theologia em muitos
Conventos da Lombardia. O deſem
penho foi cao cabal , que ſe lhe veio
offerecer o barrete de Doutor . Como
não era menos obſervante , que dou
to , foi promovido a Prior dos Con
ventos de Breſſa , Bergamo , e alguns
outros. Foi ioſtituido conſequente
mente Commiſſario da Inquiſiçao de
Veneza , algum tempo depois Inqui
ſidor de Vicenzo , e ultimamente da
meſma Cidade de Veneza . Tanto fer
vio todos eſtes lugares com aquellas
condiçoens mais importantes ,e mais
dignas de applauſo ,que inteirado Ale
xandre VII , dos ſeus eminentes pre .
dicados , o nomeou Biſpo de Polen
ta em 12. de Março de 1663. Andava
paftoreando o ſeu rebanho , paſſados
ſeis mezes depois da ſua promoſlao,
quando por hūa lanta morte foi cha
mado a melhor vida , no anno de 1683 .
Font. in Theatr. Domin . 167.
29. de Settembro,.
Vida do Veneravel Padre
FR. AMBROSIO
SALVI DE BANHUOLS ,
Extrahida de Fontana , e outros.
I Ttenta a ſua Provincia a tao
A eminentes qualidades Re
ligioſas, como reſplandeciaõ no gran
de Servo de Deos o Illuftriffimo Bif
po de Nardo , D. Fr. Ambroſio Salvi
de Banhuols , empregou- o com gran
de credito ſeu nos cargos mais diſtin
&os . Elle os ſervio com toda a ſatis
façao , moſtrando em todos , que
mais era para os honrar , do que pa
ra ſe honrar , nem com elles , nem
com outros muito maiores . Poſtoque
profundamente humilde , a fama nao
ceſſava de o proclamar a hum meſmo
tempo fabio , eſanto . Fizerao.no Vi .
gario Geral da Ordem ; e ſendo a meſ.
mavigilancia , parece que dao gaſta
va
 FR . AMBROSIO SALVI DE BANHUOLS, 29 de Settembr.
va o tempo ; mais que no eſtudo , e
na Oraçao . Ainda foi depois promo.
vido a Commillaric , e Viſitador A :
poftolico dos Religioſos de Monta-
nha Virgem , mas ainda que variaſſe
de Officio , era ſempre o meſmo da
bondade , e nas virtudes . Como tao
verdadeiro filho de S. Domingos , in-
timava a palavra de Deos ás gentes,
com o eſpirito de hum S. Paulo ; ra- ' Confrarias ,que inftituîa ,tiveſſem ou.
zao porque era reputado pelo maior tra cabeça , mais que os Conventos
Prégador do {eu tempo , e porque
mereceo artençoens mui particulares
á Mageftade Ceſarea, e Catholica de
Carlos V. , e á Santidade do noſſo gran-
de Pontifice S. Pio V.
2 Allim lhe pagava Deos o zelo
*** com que fubia ao pulpito , nao a pré-
gar-ſe , como hetao ordinario , lenao
a pregar Jesu Chriſto Crucificado ,
nao buſcando mais que a major gloria
deſte Senhor , e a ſalvaçao das almas,
que Elle reſgatára com o ſeu precio.
ſo Sangue . Pareceo - lhe que a este fim
nao podia aproveitar melhor o feu
trabalho , do que promovendo a de-
voçao do Santiſſimo Roſario ; e a
Máy dos peccadores lhe pagou aſſaz
o obſequio , que elle lhe fazia em
muitas , e maravilhoſas converſoens
de grande numero de almas. Podem-
ſe ellas inferir do elogio , que faz ao
Servo de Deos a Chronica da Ori.
gem do Santiſſimo Roſario neſtas pa ..
Javras fielmente traduzidas da lingua
Latina , em que ella he compoita:
Que major utilidade pao buicou elle
ás almas ? Quantos , e quantos pecca .
dores abyſmados no pégo da culpa , e
fordidamente manchados em todo o
genero de vicios , nao encaminhou
elle á eſtrada real da Salvaçao ? O mef-
mo Santo Pontifice , bem inteirado da
Santidade de vida deſte homem do
Ceo , lhe expedio hum Breve Apofto-
lico , com data de 13 de Junho de 1566.
em que ſe fazia panegyritta das ſuas
0 grandes virtudes , e lhe concedia fa-
culdade de poder erigir a Confraria,
e Capellas do meſmo Santiſſimo Ro-
ſario em todas aquellas partes da Ita-
535
lia , por onde o Servo de Deos Mif.
fionava , que para iſſo lhe pareceſſem
mais convenientes , alargando- lhe
tambem a permiflaó para elle poder
inſtituir Capellaens , que nas meſmas
Capellas celebraflem os Officios Di.
vinos. A melma authoridade lhe fa
culcou tambem Gregorio XIII. pofto
que o Servo de Deos nao quiz que as
da Ordem .
3 Zelou a pureza , e integridade
da Fé com os mais deſvelados çiu
mes . Nao ſervio de pouco eſta ſua
vigilancia para elle preſervar a Die
ceſe Napolitana do veneno dogmati
co , com que , mediante as ſuas pré
gaçoens , a pertendia inficionar o ce
lebre Apoitata Bernardino Ochino.
Inteirado das ſuas danadas intençoēs
o Servo de Deos , publicamente o
convenceo , e confundio de modo ,
que aquelle impio , vendo tao abatida
a ſua ieputaçao , ſe paliou logo oc
cultamente a Genebra , pelo que foi
com os livros da ſua peſtilencial dou .
trina queimado em eſtatua ,' por ſen
tença do Tribunal da noſla Santa Fé .
Amou D. Fr. Ambroſio como maior
extremo a Ordem , e a elle lhe hede
vedora da fumptuofa Igreja do noſſo
Convento do Eſpirito Santo , de que
elle foi hum como Fundador. Aqui
eſtá fica a celebre Congregaçao
erigida em honra dos Sette Dons do
Eſpirito Santo , governada por hum
Preſidente , e por ſeis Conſules : di .
vide-le em dous corpos , huin de me
pinos , outro de donzellas , e foi con
firmada por Pio IV . em 13 de Abril
de 1563. Tinhao eſtes Congregados
em outro tempo a lua Confraria na
Igreja dos Santos Apoſtolos, que, por
ſer mui pequena , ſe veio a encoporar
á outra Como porèm
de S. Jorge.
nem ainda aſſim havia a capacidade
requiſita para commodo daquella
grande Congregaçao , que deveo pro
digioſos augmentos ao noſſo Servo de
Deos , paſſou finalmente para a noſia
Igreja
536 RECOPIL A C,
Igreja em 6. de Novembro de 1557.
Mas como nem aflim ainda era capaz
de tanto bumero , comprou -ſe hum
grande pedaço de chaô no anno de
1562., e alli ſe levantou hum Hofpi
tal , e da referida Igreja do Eſpirito
Santo ſe fez hum dos Conventos da
Ordem .
4 Nao cooperou menos eſte gran-
de Biſpo para os outros noſſos Con-
ventos, de Santa Margarida , e Santo
Thomaz , que elle enriqueceo depa-
ramentos , e vaſos mui ricos , e de
húa bõa quantidade de ſele & iſſimos
volumes . Ja diſſemos a muita atten-
çao , que deveo o Servo de Deosa S.
Pio V. que quiz exaltar eſte grande
Religioſo como luz ſuperior ao Con .
delabro da Igreja de Nardo , para que
de mais alto pudelle allumiar melbor .
Encarregou - o pois do governo da .
quella Igreja em 26. de Abril de
1569 ; e nao baſtando as reziſtencias · posto muitas , e muitas vezes para o
com que ſe eſculava o Servo de Deos governo de mui rendoſos Biſpados;
por humilde , ſe nao pode cambem mas de todas eſtas honras foube fugir
eſcufar de ceder ás inſtancias de Sua
Santidade . Regeo a ſua Dieceſe fan-
tiſſimamente , tendo hum verdadeiro
pay de pobres , hum eximio prototy .
po da perfeiçao Clerical , e a todos
os ſeus Dieceſanos exemplo da maior
Santida de Evangelica . Nao ſatisfeito
o meſmo Papa de todas eſtas demon
ſtraçoens com que honrára a D. Fr.
Ambrozio , tinha tençao de o promo-
ver á Sagrada Purpura Cardinalicia :
Soube-ſe iſto pelas memorias , que
por ſua morte forao achadas ; mas a
morte de Sua Santidade , que ſe met-
teo de permeio , desbaratou eſte pro-
jecto. Corria o anode 1577 , e acha-,
va -ſe o Servo de Deos em Napoles,
quando foi chamado para receber o
eterno galardaó de tantas boas obras
em 29. de Settembro do referidoan
no . Deo -ſe -lhe ſepultura na ſua Igre-
ja do Eſpirito Santo , e alli ſe pôs hum
vulto , ou effigie ſua com hūa breve ,
mas elegante inſcripçao Latina , que
contêm ſummariamente o que dei,
xamos ponderado .
A M de 29 de Settembro .
RECOPILAC, AM
de 29 . de Settembro.
1
I M Napoles , no Convento
E
de ,o Veneravel Padre Fr.Antonio Cae
merota . Foi inſigne em Filolofia , e
Theologia ; porém muito mais inlig
ne , lem comparaçaó , em virtudes.
Foi em todos os ſentidos hum dos
primeiros Religioſos , que ſervirao
de columnas myſticas á Congregaçao
da Saude , que , andando o tempo ,
tao recommendavel le veio a fazer
pela ſua regularidade. Começou a
edificar aquelle Convento , poitoque
nos ſeus principios humilde , hum
dos mais celebres da Ordem pela
perfeiçao de vida de ſeus habitantes.
Vagando glorioſamente a fama das
virtudes do Servo de Deos , foi pro
1
com igual prudencia , que humilda
de. Regentou nove annos os Eſtudos
do Real Convento de S. Domingos.
Foi Meſtre de Theologia dos Religio
los Beneditinos de S. Severino, e do
Monte Olivete de Napoles, e ellefoi
o primeiro introductor dos Eftudos
na Sagrada Familia dos Minimos , que
ás ſuas inſtancias , e boas diligencias
deveraõ a fundaçao da ſua Caſa da
Efrella. Nao forao menores as atten
coens de que ſempre foi credorá Or
dem de S. Domingos , emprenden
do , e executando as fundaçoens de
muitos noſſos Conventos , como af
ſim o podem teftimunhar aquelles de
Compſo , do Roſario de Napoles, e
da Senhora da Saude de Marilhiane
la . Finalmente cheio de appos , e co
roado de merecimentos , acabou fe
lizmente os ſeus dias no Senhor, no
anno de 1589 : = Vall. Prov . Regn.
pag . 259 .
30 de
 SOROR SERAFINA DO SACRAMENTO , 30 de Settembr. 537
30 , de Settembro.
Vida da Veneravel Madre
SOROR SERAFINA
) DO SACRAMENTO ,
Segundo as memorias que ſe confer-
vao no Moſteiro da Villa de
Moura , em Portugal.
I Veneravel Madre Soror
A Serafina do Sacramento ,
foi būa Religioſa muito perfeita , e
como tal muito digna de ſe chamar
com toda a juſtiça hūa das legitimas
filhas do eſpirico de noflo Inclyto Pa .
triarcha . Foi natural de Lisboa ; e
corria -lhe pelas veias o eſclarecido
1 langue dos Mellos deſte Reino ; po-
1 rèm nunca ſoube eſtimar , nem co
nhecer outra nobreza mais que a das
ſuas eſpecioſiſſimas virtudes. Conta-
va quinze annos de idade , e corria o
o do Senhor de 1642. quando ella en-
3 trou no noſſo Mosteiro do Caſtello da
Villa de Moura , aonde fez a ſua pro-
fillao , dando muitas eſperanças da
s grande Santidade da ſua vida . Ajuſtou-
ſe com muito fervor ao nivel das Con-
ſtituiçoens , e por elle regulava fan .
tamente as ſuas acçoens. Foiaman-
tiſſima da lanta pobreza , e comtan-
to exceſlo , como logo veremos.Ga .
ſtava muito tempo em ter Oraçao , e
em outros devotos exercicios ; elen
do mui ſimples , e mui candida de
natural , era notavel a eſperteza , e
penetraçao que tinha para as couſas
de Deos. Duas vezes foi Meſtra de - foi
Noviças , e tambem foi Sub- Prioreza,
e em ambos eſtes cargos excedeo
com os ſeus rectos , e ſantos proce
dimentos a bem fundada confiança
que ſe fazia da ſua virtude . Quizerao
· tambem as Religioſas commetter -lhe
o governo da Communidade ; mas
como tao humilde , ſempre achou
traças , e pretextos com que fugir deſta
Prelazia . Docou -a o Senhor do eſpi.
rito de profecia , e nunca diſcrepá-
rao os tempos , e os factos do alvo
das fuas prediccoens .
Tom . VII.
2 Foi eſta Serva de Deos devotif
fimas da Virgem Senhora Nofla , na
tao eſpecioſa titulaçao do ſeu Roſa
rio ; e para cuidar do culto , e alinho
7
da ſua imagem , nað ſómente vendeo
as couſas do ſeu uſo , nað ſó lhe con
fagrou vinte mil reis que tinha deten
ça , tenaõ que até vendeo , com li
cença dos Prelados , as caſas, em que
aſfittia. Mandou fabricar hūa Capel .
la , e Sacriſtia á Rainha dos Anjos no
Clauſtro decima , e paflou a impetrar
nova licença , para comprar hum fo
ro , aſſim para azeite para ſe allumiar
a Bemdita Imagem , como para o
mais que foſſe preciſo para o ſeu af
feio , eornato , e paraſempre ficar húa
propina para a Communidade no dia
da Senhora ; e nao faltou quem muito
ajuizaſſe, que tudo iſto ſe nao pode
ria effeicuar ſem ſer por milagre.Co
mo deixou a caſa, ficou ſempre aſſi
ſtindo na Capella da Sua Amabilliffi
ma Senhora , aonde le detinha em
larga Oraçao , e aonde recebeo mui
tos favores. Hum ' delles foi , fallar
lhe ſenſivelmente a Máy de Deos, por
meio da ſua Efigie , em hūa Veſpera
de Natal, o que a deixou tam tranf
portada , e ſaudoſa de ir adoralla na
Bemaventurança', que nunca mais
teve inſtante de quietaçao em toda a
ſua vida . Fechou - a eſta grande Ser
va de Deos com húa ſuave morte ,
que teve depois de hűa doença tao
leve , ao parecer , quanto a faziao
grave os exceſſos do ſeu amor , de que
receber o juſtiſſimo premio em
30. de Settembro do anno de 1705 .
tendo 8o . de idade .
RECOPILAC, AM
de 30. de Settembro.
I O Convento da Cidade de
NE Evora , em Portugal o
muito devoto Irmao Leigo Fr. Gre
gorio dos Santos. Foi hum milagre
da penitencia . Da idade de ſettenra
annos , nao tinha mais cama do que a
Yyy Igreja
 5:38 RECOPIL A C,
1
Igreja , aonde depois de larga Ora-
çao dormia em terra . Muito lhe cu .
itou a tratar-ſe com mais algūa huma .
nidade neſte particular , quando os
ſuperiores , attentos aos ſeus muitos
andos , o obrigáraó por obediencia
a mudar de eſtylo. Era inimigo ca-
pital do ocio : Como bom Converſo
ſeria impollivel acharem - no deſoccu-
pado . Era reſpectuoſiſlimo nao ſó aos
Sacerdotes , ſe nao a todas as peſſoas,
como ſe qualquer dellas tiveſſe algum
dominio ſobre elle . Se foſlem ſeus
filhos os pobres de Chriſto , naõ os
trataría com mais affecto , ou maior
providencia . Ninguem punha nelle
hum
os olhos, que nao o tiveſſe por hum
Santo . Se eſte era o ſeu exterior, que
bello , e plauſivel ſeria o ſeu interior
diante de Deos ? Finalmente morreo
com tað boa opiniao, que mereceo
que o Capiculo Geraldo annode 1644.
The tecelie nas ſuas Actas hum breve,
mas perduravel, e glorioſo elogio .
A &t. Cap. Gener. 1644 .
2 No Reino de Valença de Hef-
panha , no Convento de S. Paulo , e
S. Thomas de Aquino , o Veneravelmente com grande fentimento dos
Padre Fr. Vicente de Segarra . Era
profeſſo do Convento de S. Onofre, e
foi hum Religioſo ſummamente en-
cendido no amor de Deos. A carida
FIM DO VII.
A M , de 30 de Settembro:
de que tinha com os pobres de Chri
fto nem tinha lemite nem ex
}
plicaçao . Tudo o que tinha de ſeu
ulo , era para elle como empreſtado ,
pelo que nao parava em quanto o nao
punha nas maos dos neceſſitados. !
1
Entrou no conceito da maior humil
dade que ſe pode imaginar , tendo
ſe por hum méro nada , ao meſmo
tempo , que nao eſtimavamenosqual
quer outro Religioſo , do que ſe fof
le o meſmo N. P. S. Domingos . Por
eſtas, e por todas as outras virtudes,
que poſſuîa em ſummo gráo , ſe fazia
Senhor dos coraçoens de todos, que
aſſim paga Deos a quem ſe ſabe hu
milhar por feu amor . Jamais faltou ao
mais leve ponto das Conſtituiçoens :
ſemelhantemente era infallivel na aſ
liſtencia do Coro , eem todos os mais
actos de Communidade . Era de tan
ta obediencia , que jamais empren
deo accaó alguma , poltoque depou
Ca entidade , que nao buſcalle pri---
meiro beneplacito dos ſuperiores. Fir
nalmente havendo feito hứa vida ſum
mamente exemplar , morreo fanta
pobres , que o eſtimavao como pay,
no anno de 1648. = A &t. Cap. Gen.
1650.
TOMO .
INDICE
 INDICE

j ALFABETICO .
i
gioſos de Nangansaqui, pag. 341.
A Anonymo de Genova , pag . 118 .
Anonymo de Hungria . pag . 338 .
Delaidas de Romans , pag 260. Anonymo de Leao pag . 124
Adriaó Mik ,
A pag. 279. Anonymo de Medina de Cápo, pag . 283 :
Affonſo de Luna , pag . 55. Anonymo de Metz , pag . 216 .
Affoolo de la Zerna , pag. 214. Anonymo de muitos Religioſos
Affonſo das Vinhas , Evora. pag . 31. de Armenia, pag. 522.
Agotinha de Jesus, Sacramēto. pag. 163. Anonymo de Praga , pag . 53 ) .
Agoſtinho de Dinamarca , pag . 225. Anonymo de quatro Martyres
Agoſt inho de Esban oya , pag. 208. do Jaraó pag . 3720
Agoſtinho de Zagrabia , pag . 181. 1 Anonymo de Zamora , pag. 371 .
0 Agoſtinho Chino , pag . 305 . Antonia de S Domingos, Porto . pag . 394 .
.
Agoſtinho Lapacio , pag. 155. Antonia da Columna, Sacra .
Agoſtinho Salablanca , pag . 528 . mento , pag . 2002
Agueda de Hungria , Primeira. pag . 153. Antonia da Conceiçao , Sacra
Agueda de Hungria , Segunda. pag. 153 . mento . pag . 13.
Agueda de Jesus, Braga. pag. 379. Antonia Bautiſta , Salvador. pag . 297 .
Aldaicia de Provilhe , pag . 152 . Antonio de S.jacinto , India . pag . 1146
Alberto de Capua , pag. 155. Antonio deArcedia , pag . 396 .
Alexandra de Hungria , pag . 153 . Antonio de Caceres , pag . 73 .
Alexandre Eſtrozzi , pag. 279. Antonio de Camerota ,
pag . 536.
Aleixo de Bohemia , pag . 10. Antonio de Jacques , pag. 45:
Alinka de Hungria , pag . 133 . Antonio de Moraes , pag . 49.
Alvaro deTavora , India . pag . 172. Antonio de Try pag .
Ambrozio de Florença , pag . 144. Antonio de Vianna , pag . 296 .
Ambrožio Butigella , pag . 141. Antonio de Zara , pag . 213.)
Ambrozio Francallin , pag . 534. Antonio Cuido , pag . 101.
Ambrozio Salvi de Banhuols , pag . 534 . Antonio Lopes , pag . 216 .
'André de Cunilhas , pag . 172 . Antonio Marreſi pag . 27:
André de Durazzo, pag. Armanin Ghisleri , pag . 345:
André de Longjumcau , pag . 208 . Arnaldo de Orguel pag . 144 .
André Piconis , pag . 27 . Arnaldo Badet , pag 101
Angela de Salerno , pag . 526 . Arflien de Toloſa , pag . 1457
Angela Mareri , pag . 64 .
Angelo de Napoles , pag . 110 .
Angelo Baron , pag. 405 . B
Anna de Santo Agoſtinho , pag . 493 .
Roza..
Anda de S Sebaſtiao , Roza pag. 341. Arbara de Blás , pag . 128.
Anna de Jesus , Porto. pag . 100. B Barba irana Jordana , pag . 152.
Anna de Jesu Chriſto , pag . 309. Barnabé Saxon , 34. Géral. pag . 133.
B.Anna de Vicerbo , pag. 496 . Bartholomeo de Piſa , fag 16 .
1
Anna Catalaá , pag. 58. Bartholomeo de Tivoli , P - g .. 21 .
Anna Fournier pag . 219 . Bartholomeo Carra , fag. 305.
Anna Maria de Mirada ,'Sacram . pag . 93 Bartholomeo Comacio ,
Apna Sinenſe , pag . 306 . 3j . Geral . pag . '55 :
Anonyma de Beona , pag . 263 . Bartholomeo Domingos de
Anonyma ds C ,amora, Infanta. pag . 298 . Scna , pag 20.
Anonyma da China , pag. 306. Belchior da Conceiçao , pag . 117
Anonymo de Alemanha , pag . 137. Benigna Brunet , pag . 2033
Anonymo de Barcelona , pag . 08 . Benta de Hungria , Primeira fag . 1531
Anonymo de Bohemia , pag . 10 . Benta de Hungria , Segunda. pag . 153.
Bento Serrað India , pag . 113
Anonymode cinco Reli.
Berena
Yуу іі
 IN DI CE

Berengera de Provilhe, pag . 152 . Dionizia Vallot , pag. 224.

Bernardo de Albuquerque pag. 104 . Dionizia de la Placanica , pag. 383 .
Bernardo de Auvernhat , pag . 38 . Diziderio de Roma, pag . 9.
Bernardo del Nero , pag . 66. Domingos de Anbája , pag . 236 .
Bernardo de Novion , pag . 339. Domingos de Cordova, fag. Si .
Bernardo André de Salart , pag . 230. Domingosde Mendonça , pag . 209 .
Brites de Lima , Roſa . 'pag 92. Domingos Carobijoie , Pag: 341 .
Domingos la Cotte , pag . 245 .
Domingos Drapeyron , pag. 10.
С Domingos Gravina , pag . 146 .

Andida de Hungria , pag . 153 •

С Cariſa de S. Domingos, pag . 57 . E
Carlosde Alençon , pag . 48 .
Carlos Forget , pag . I 22 , Liana de Hungria , pag. 15
Carlos Rogeron , pag . 526 . E Elias Arnaldo de Chaluz . jag. 48.
Catharina da Conceiçao , Sa. Elias de Manhac , pag. 36.
cramento . pag . 280. Eſpirito Rotero , pag. 277.
Catharina de Guinharde , pag . 183 Edelin de Langres pag . 119.
Catharina de Hungria , pag . 183 . Eftcvaó de Gatinois , pag . 225.
Catharina de Penia , pag 64. | Eftevao do Roſario , India . pag . 173 .
Catharina de Sena, Annunciada. pag . 102. Eftevaó de Ruzolo , pag. 48.
Catharina Bucco de Aragaó , pag . 64 . Eftevaó Eſtevens , Azeitað. pag . 234 .
Cacharina Cautrix , 153 Ettevao Talca ,
pag . pag. 245.
Catharina Thereſa de Santo Eftevaneta de Huogria , pag . 153 .
Agoſtinho , Sacramento. pag . 62. Eutrofina de Hungria , pag . 153 .
Clara deSanta Roſa , Salvador.pag . 522 .
Claudia de Raymundo , pag . , 531 .
Claudia Houvel , pag . 245. F
Claudio de Reita , pag. 345
Claudio Borrey , pag . 301 . Elicia de Cracovia , pag . 396 .
Çlerc Garcia Navarro pag . 175. F Filippe de Eſtrozzis , pag. 138.
Conegunda de Hungría pag . 153 . Fiorentina Elplugas , pag . 172 .
Conon de Tul , pag. 26 . Floro de Vicencia , pag . 281 .
Conrado de Prullia , pag . 281 . Franciſca de Cazemajou pag. 177
Cornelio de Avitable, pag. 532. Franciſca Balhiona , 61 .
pag .
Cornelio de Sueki , pag . 372 . Franciſco de Camerino , pag. 26.
Conftantino de Orvieto . pag . 208 . Franciſco de Poſiadas , pag. 400 ,
Creſcencio de Cava , Pag : 9. Franciſco do Rofario , pag. 400.
Curtolana de Provilhe, pag. 152. Franciſco de Victoria , pag 211 .
Chryfoftomo de Hungria , pag . 181 . Francisco Anginot ,
pag . 326 .
Franciſco Coronel . pag. 25.
Franciſco Miquelet , pag . 252 .
D Franciſco Servandi , pag . 55 .
Franciſco Urtia , pag 25.
E'cio Carrega , pag . 46. Fuillenti de Buix , pag. 39
Deodoto Gentilis ,
D pag . 305
Llogo de Alderete , pag . 180 .
Diogo de Bidgoitza , pag . 39. G
B. Diogo de Sezza , pag. 37
.
ss

Diogo Caſtelbon de Peruſa , pag . 225. Al de Tul , pag.

Diogo Clavario , pag . 239. G J Garcia de Navarra ;
Diogo Curterri, pag . 36 . Principe,
pag . , 319.
Diogo Eftubach , Garcia Arnaldo ,
pag . 181 . pag . 311 .
Diogo Maria , pag . 232. | Gaſpar de Chincilha , pag. 16.
Diogo Pedro dePigalordis , pag. 73 . Galpar de Orgueil , pag. 49 .
Diogo Quero , pag. 323 : Genciana de Provilhe, pag. 152 .
Diogo kuech , pag . 181 . Gerardo de Domaro , 17.Geral. pag
pag .. 121 ,
Diogo Roſcel, pag . 137 Gerardo de Lavernhe , pag . 112 ,
Ge
 A L F A B E T I C O.

Gerardo de Marivier , pag . 57. JeronymoMorez , pag. 290.

Gerardo de Terracinio , pag. 340. Jeronymo Norman , Ipag. 153 .
$
Gerardo de Vermeil , pag . 159 . Inacio de Santo Thomas , pag . 158 .
Gerardo Elias de Filitin , pag . 216 , Ines de Affumpçao , pag . 208.
Gerardo Menil , pag. 278. Ines de Hungria , Primeira. pag . 153 .
Germano Admirando , pag. 237. Ines de Hungria , Segunda. pag . 153
Gertrudes de Jesus , pag. 521. Ines de Hungria , Terceira. fag . 153 .
Goberto Hugonis , pag . I 22. Ines da Natividade, Rofa. pag . 254 .
Godofredo Sluſſel , pag. 237. Ines do Prezepio , Sacramento. pag. 95 .
Gregorio Gemilliano , pag . 406. Ines Sanches, pag 95 :
Gregorio dos Santos , Evora . pag. 539. Ingoerando de Sacura , pag. 193 .
Gregorio Caftano , ' India . pag . 164. Joao de Santo André , pag . 342 .
Gregorio Trebine, pag . 345. Joao de S. Bento, pag . so .
Gualtero Mauclerc , pag. 140. Joaó de S. Domingos , pag . .24.
Guerino de Chartres , pag. 234. Joao de Santo Thomas
Guilhelmina de Bopuy , pag . 152 Primeiro.
pag. 67 .
Guihelmina de Fanjaux , pag . 152 . Joao de Santo Thomás , Segundo.pag . 74 .
Guilherme de Arles , pag . 217. Joao de S. Vicente , pag. ili .
Guilherme de Cavelhon , pag. 215. Joao Anverſa , Primeiro.
de Anverſa pag. 117.
Guilherme de Cigiis, pag . 26. Joao de Anverla , Segundo. pag . 281 ,
Guilherme de Graſſanis pag . 242. Joao de Cereta , pag. Si .
Guilherme de Magliffet , pag . 145. Joao da Cruz pag. 290.
Guilherme de Odon , pag . 276. Joao de Folinho , pag . 496.
F Guilherme de Orleans , pag . 263. Joao de Gaeta , pag. 382 .
Guilherme de Pila , pag. 232. Joao de Hoy pag. 113
Guilherme Garin , pag . 131. Joao de Leaó , pag. 137
Guilherme Lombardo , pag . 122. | Joao de Mello , pag . 158 .
Guilherme Malfevit , Ipag . 323. Joao de Merula , pag . 240 .
Guilherme Mattheus , pag . 343. Joao de Ormaça pag 74 .
Joaó de Pui de Noia , Vifo.
Rey de Sicilia . pag . 261 .
Joao de Quemada , pag . 281 .
H joao de Riperia , pag . 383.
Joao de Rocca -aſpri , pag . 342.
Elena de Hungria, Joao do Rolario , India , pag . 135 .
H Primeira . pag. 153. Joao de Thiel , pag . 340 .
Heli na dc'Hungria , Segunda. pag. 153. de Valdeſpina,
Joao Fag. 234
Helena , Imperatriz de Erbiopia. pag . 46. Joaõ
de Verne, pag. 526 .
Henrique de Contilba , pag. 113. Bautiſta de Brueil ,
Joao pag . 3012
Henrique de Kalciten , pag. 524. Baucifta Guzzari,
Joao pag . 3820
Henrique Roftoch , pag. 293. | Joao Bento , pag . 132
Hugo de Bruzeo , pag. 45. Joao Boucrecio , pag . 341 .
Hugo de Mariac , pag os. Joao Clerco , 37. Geral. pag . 179.
Humberto de Hungria , pag. 181 , Joao Durazzo , pag . 118 .
Humberto Chalar , pag . 57. Joao Gerardo , pag . 326.
Joao Gil de todos os Santos , pag. 495 .
Joao Hennuies , pag . 213 .
Joao Jeronymo , pag 22.
I Joao Jordao , pag 43 .
Joao Maldonado de S. Pedro
Acinto Ceuli , pag . 86 . Martyr , India . pag.
Jacinto Patroni , pag. 312.
Joao Maria Ganzelli, pag . 110 .
Jacinto Roquete , pag. 287. Joao Nicolai , pag . 346.
Jacquelina de la Marche!!! pag. 524. Joao Nocher , pag 94.
Jacqueta de Penia pag . 64. Joao Raymundo , pag . 301 .
Ildefonſo da Cruz , pag . 181. Joao Reynardy , pag. 113.
Jeronyma deJesus ,Sacramento, pag. 372. Joað Salomoni , pag. 319.
10
JeronymoBernerio de Corvega, pag . 175. Joao Simskil , pag. 278.
Jeronymo Furnier , pag . 66. Joao Vairrier , pag. 153.
It
Joao
 IN D I C. EA

Joanna do Santiffimo Sacramen . Marcial Auribelli , 29. Geral.pag . 493 .

CO , Sacramento pag . 97 . Marcos ' Ardinghello, pag. 340 .
Joanna de Santa Clara , Salvador. pag . 344 . Marco Serre , pag . 98 .
Joanna de Sanc - Iago , Moura . pag . 377 . Maria de Santa Anna,Guimaraēs pag. 209 .
Joanna de S. Joſeph , pag . 166 . Maria de S. Bernardo , pag . 237 .
oanna do Menino Jesus , pag . 344 . Maria de S. Franciico , pag 67 .
Joanna de Nelle , pag . 219. Maria de S. Joſeph , Sacramento .pag. 72.
Joanna do Roſario , Sacramento. pag . 220 . Maria da Aſſumpçaó , Abrantes. pag . 17.
Joanna Galois , pag . 343 Maria do Bautiſmo , Porto. pag . 165.
Joa nna Her non de Penf rat , pag . 327 Maria de Combé , pag. 346.
Joaquim Turriano , 35. Geral. pag . 142.. Maria de Hungria , pag . 153 .
Jorge da Mota , India . paz 27. Maria de Jesus, pag . 323 .
Jorge de Padella, pag . 322 . Maria de Luxemburg , Rainba.
Icherio de Comprenhac , pag . 234 . de França , pag 299 .
Judith de Hungria , pag . 153 . Maria do Prelepio , Porto . pag . 277.
Izabel de Santa Roſa , San Maria Angela , pag . 64 .
tarem . pag . II . Maria Conſtança Piccolimini, pag . 44 .
Izabel du Bois , 300 ,. Maria Languet , pag . 309.
pag.
Izabel de Caſtella , pag . 176 . Maria Moyne pag . 309.
Izabel de Hungria , Primeira . pag . 153 . Maria Rola Generali ,
pag . 287.
Izabel de Hungria , Segunda. pag . 153 . Maria Thomazia do Santiffi
Izabel de Hungria , Terceira. pag . 153 . mo Sacramento . pag. 98 .
Izabel deHungria , Queria . pag . 153. Margarida do Eſpirito Santo ,
Izabel de Hungria , Quinta. pag . 153 . . Sacramento.
pag . 375 .
Izabel de Hungria , Sexta . pag. 153. Margarida de Flafterin , pag . 124.
Izabel de Jesus MAKIA , Sa Margarida deHungria, Primeira.pag . 153 .
cramento . pag. 167. Margarida de Hungria , Segunda .pag . 153 .
Izabel de Moyan , pag . 339. Margarida de Hungria, Terceira.pag. 153 .
Izabel de Valois , Princeza . pag . 298. Margarida da Virgem , pag . 232.
Izabel da Vifta çao , Salvador. pag. 117. Margarida Grilhon , pag . 240 .
Izabel Martinha , pag . 125. Margarida , Rainba de Navarra .pag . 286.
Martha Hoſpedante , pag. 125.
Martinho de S. Pedro , pag . 242 .
L Martinho de Cordova , pag. 393 .
Martinho de Lesdema , Coimbra.pag. 219.
Eonardo do Valle de Martinho de Poré ,
pag . 320 .
L Br
Breſla
ella,, pag . 181 . Marcinho Eſcola , pag . 25.
Lconor das Chagas , Moura . pag. 226..
226 Matcheus deChiaug , pag. 141 .
Lopo Cuelhar , pag . 532 . Mattheus de Medicis , 141.
pag.
Lourenço de Santo Thomás , pag . 343 . Mattheus de Ulonis , pag . 214
Luiza Barbara , pag . 300 . Mattheus de Urgos pag . 224
Luiz Beltrao Exarch pag . 125. Mellanda de Provilhe , pag. 152 ,
Luiz Gomós , pag . 278. Miguel de S. Domingos , pag . 321 ,
Luiz Iftella , pag . 312. Miguel de Breſla , pag. 224
Luzia de Hungria , pag. 153. Miguel de Herrera , pag . 399.
Luzia da Trindade , Elvas. pag. 149. Miguel Rangel, India, pag. 365:

M N

de Santo An Icoláo de Abbevilha , 39.

pag.
Magdal ena de Santo An N Nicolao de Berzezic ,
tonio , pag . 254. pag . 110 .
Nicolao de Marvia ,
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Manoel da Conceiçao , India . pag . 133. Nicoláo de Seria , pag. 10 .
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paz. 524 .
Manoel Sardinha , & pag 158. Nicoláo Hareiloch , pag . 276 .
Manſueco Gilberto , pag. 125: Nicoláo Pedro , pag 20.
Oderà
 A L F A B E T I C O.

O R
Adolfo Bocking , pag . 223 .
Deta Beufis , pag . 405 R Rafael Riva , pag . 44 •
O B. Odon de Gand , pag . 395 Raymunda Clareta , pag . 152.
Olimpiada de Hungria , pag . 153. Raymunda Paſſerina , pag . 152 .
Raymundo de Foix , pag. 122 .
Raymundo Bletgeri , pag . 36 ;
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Raymundo Gozin , pag . 284.
Acifico Burlamachi , pag. 534. Raymundo Sycres , pag. 19 .
P Pancracio de Bitonte , pag. 242. Raymundo Veguer, pag. 164 .
Paſcaſio Maupajers, pag. 310. Reginaldo de Aubinhi, Pag 57.
Paulo de Santa MARIA , pag . 181. Reginaldo Clareti , pag . 213
Paulo Guaſtaferri , pag. 132. Reginaldo Eftevaš , pag . 25.
Paulo Oberto , pag . 364. Renato le Moine , pag . 342 .
Paulo Tavares , pag . ni . Ricarda de Provilhe , pag . 152.
Pedro de Santa MARIA , pag. 125 . Ricardo de Caſtriconia , pag . 164.
Pedro de Santo Alterio , pag . Fo . Ricardo de Frizacre , pag . 44 .
Pedro de S Joſeph , India . pag . 113 . Ricardo de Inglaterra , pag . 26.
Pedio de S. Juniano , pag . 175 Ricardo de Langres , pag . 119 .
Pedro de la Baſtide de Jesus , Roberto de Ahu aliàs
, de Age.
India . duno ,
pag 27. pag . 250 .
: Pedro de Almannon , pag . 110 , Roberto Bacun , pag. 44 .
Pedro de Barriales , pag . 218. | Roberto Kilvarbio , pag. 59.
Pedro de Baulenes , Roldaõ de Hueſca ,
pag . 118 . pag . 3115
Pedro de Bobio , pag . 218. Romao Mauldint , Pg . 23
Pedro da Elcada , pag . 155. Romeo de Burgaria , pag . 177 .
Pedro de Fanjaux , Grego.
pag . 209. | Ruthelem , pag . 493
Pedro de Lambert , pag . 113.
Pedro de Monmas , pag . 320 .
Pedro de Mulceon , pag . 119 . S
Pedro de Polonia , pag. 153 ,
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Pedro de Remiremont pag . 226 . pag . 158.
Pedro de la Rocha de Rezes, pag . 73 . Sanctes de Paganino , pag. 243 .
Pedro da Silva , pag . ss . Serafina do Sacramento ,Motra.pag . 537 .
Pedro de Toncnes ,
pag . 233. Silveſtre de Prierio , pag . 37 .
Pedro de Viterbo , pag . 326. ] Simaó Tilquin , pag. 103 .
Pedro Candelarii ,
pag . 304.
Pedro Chatanhac , pag . 254.
Pedro Coppelli , pag 85 . T
Pedro Elias , pag . IIO , Ereſa de S. Jofeph, pag . 219.
Pedro Eſtrozzi , pag . 39 . T Thereſa Caietana de S.
Pedro Fabri , pag . 101 . Joſeph , Leiria , pag. 232 .
Pedro Fuldener , pag . 181. Thibaut de Lambert , pag . 113 .
Pedro Garnier , pag . 99. Timotheo Juftiniano , pag . 213
Pedro Lopes , pag . 261. Thomaz de Arancei , pag . 113
Pedro Mapſo , Iudia . pag . 147 Thomaz de Berlanga , pag . 159 .
r
Pedro Marty Croat , pag. 103. Thomaz de Cardenas , pag . 87.
Pedro Paulo Aretino , 66. Thomaz de Carmona, Portugal. pag . 399 .
pag .
Pedro Paulo Giannerin , pag . 322. Thomaz de Firao , 24 Geral pag. 173.
Pedro Ponce de Lcao , pag . 323 Thomaz de Pavia , pag . 175.
Pedro Ranzano
pag. 157. Thomaz da Victoria , pag . 529 .
Pedro Vilhete , pag. 23 Thomaz de Vio.Caietano ,
Pedro Viſcle de Rochovard , pag . 218 38. Geral. pag . 183 .
Petronilha de Hungria , pag. 153 Thomaz Caraffa , pag. 139.
Thomaz Heskin , pag . 85 .
Thomaz Segrypfio , pag. 232 .
Thomaz Stubs, pag. 43 :
Tres
 IN D I CE .

Tresladação das Reliquias Vicente Torre , pag . 244 .

de s . Vicente Ferrer , pag . 313. Urſula Thereza daGloria ,
Anunciada . pag . 255.

V
Z
pag . 538 . 1
V Vicente LuizGotti, pag . 383 . anta Zemedemaréa de
E
Vicente Nifo , pag . 36 . S chiopia. pag. I•
Vicente Pagani , pag . 94

1
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