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INSTITUTO BRASILEIRO DE ENSINO, DESENVOLVIMENTO E PESQUISA

CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU

ANÁLISE DOS RISCOS DECORRENTES DO CRITÉRIOS DO MODELO DE


OUTORGA DE AUTORIZAÇÕES FERROVIÁRIAS

Matheus Soares Salgado Nunes de Matos


Orientador: Prof. Me. Paulo Henrique Franco Palhares

Brasília - DF
2022
MATHEUS SOARES SALGADO NUNES DE MATOS

OS RISCOS DOS CRITÉRIOS DE OUTORGA DE AUTORIZAÇÕES


FERROVIÁRIAS

Artigo apresentado como requisito para a


obtenção do título de Especialista em Direito
Administrativo pelo Instituto Brasileiro de
Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa – IDP.

Orientador: Prof. Me. Paulo Henrique Franco


Palhares.

Brasília - DF
2022
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação
Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa
Biblioteca Ministro Moreira Alves

P289i MATOS, Matheus Soares Salgado Nunes de.


Quanto Mais Ferrovias, Melhor? Os Riscos dos Critérios de Outorga de Autorizações Ferroviárias/
Matheus Soares Salgado Nunes de Matos. – Brasília: IDP, 2022.

22 p.
Inclui bibliografia.

Trabalho de Conclusão de Curso (Especialização) – Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento


e Pesquisa – IDP, Especialização em Direito Administrativo, Brasília, 2022.
Orientador: Prof. Me. Paulo Henrique Franco Palhares.

1. Autorizações. 2. Ferrovias. 2. Critérios de outorga. I. Título

CDD: 341.361
4

OS RISCOS DOS CRITÉRIOS DE OUTORGA DE AUTORIZAÇÕES


FERROVIÁRIAS

THE MORE RAILROADS THE BETTER? THE RISKS OF THE CRITERIA FOR
GRANTING RAILROADS AUTHORIZATIONS

Matheus Soares Salgado Nunes de Matos*

RESUMO

O presente artigo visa analisar comparativamente a Lei n. 14.273/2021, que institui o modelo de
exploração ferroviária mediante autorizações administrativas, também denominado Marco Legal das
Ferrovias, em relação ao modelo vigente de exploração ferroviária no Brasil, bem como comentar sobre
possíveis elementos de risco relacionados aos critérios de outorga de autorizações ferroviárias. Para
tanto, realizou-se análise pontual das principais inovações trazidas pela Lei n. 14.273/2021, bem como
avaliação crítica acerca dos requisitos previstos na legislação e na proposta de regulamentação do tema,
tendo sido identificados riscos que merecem atenção do regulador e da comunidade jurídica. Ao fim e
ao cabo, conclui-se que, muito embora os riscos identificados a partir da análise dos critérios de outorga
de autorizações ferroviárias merecem acompanhamento no curso do desenvolvimento prático da Lei e
da regulamentação aplicável, dada a possibilidade de que se frustrem os objetivos da política pública
atual do setor de ferrovias.
Palavras-chave: Autorizações. Ferrovias. Critérios de Outorga.

ABSTRACT

This article aims to comparatively analyze Law n. 14,273/2021, which establishes the model of railway
exploitation through administrative authorizations, also called the Legal Framework of Railways, with
the current model of railway exploitation in Brazil, as well as to comment on possible elements of risk
related to the criteria for granting railway authorizations. For this purpose, a spot analysis of the main
innovations brought by Law 14.273/2021 was carried out, as well as a critical evaluation of the
requirements provided for in the legislation and in the proposed regulation for the matter, what led to
possible risks that deserve the attention of the regulator and the legal community. In the end, we conclude
that the risks identified from the analysis of the criteria for granting railroad authorizations deserve
monitoring during the practical development of the Law and the applicable regulation, given the
possibility of frustrating the objectives of the current public policy in the railroad sector.
Keywords: Authorization. Railroads. Granting criteria.
5

1 INTRODUÇÃO

O presente artigo visa analisar comparativamente a Lei n. 14.273/20211, que institui o


modelo de exploração ferroviária mediante autorizações administrativas, também denominado
Marco Legal das Ferrovias, em relação ao modelo vigente de exploração ferroviária no Brasil,
com vistas a avaliar os elementos de riscos relacionados aos critérios de outorga de autorizações
ferroviárias.

O Marco Legal das Ferrovias buscou construir a base jurídica para que a construção e a
exploração de ferrovias no Brasil pudessem ser feitas de forma mais simples, com maior
autonomia pela iniciativa privada. Para tanto, o Governo Federal lançou mão, em 2021, do
programa Pro Trilhos2.

Os objetivos do programa, através da promoção de autorizações ferroviárias, eram


principalmente três: (i) atração de investimentos privados para o setor de infraestrutura
ferroviária, notadamente em um momento de escassez de recursos públicos para tanto; (ii)
simplificação e redução de burocracia para a construção e operação de ferrovias e, com isso;
(iii) aumentar a extensão da malha ferroviária brasileira, promovendo a integração entre
ferrovias e a redução da dependência logística do modal ferroviário.

Contudo, ao passo em que se promoveu flexibilizações e estímulos à construção dessas


infraestruturas, o Marco Legal de Ferrovias, a partir das inovações implementadas, trouxe
consigo regramentos que, apesar de não contarem com regulamentação até o momento da
conclusão do presente trabalho, já são merecedores de cautela, especialmente aqueles
relacionados aos critérios para outorga de autorizações ferroviárias.

Almeja-se, com o presente trabalho, qualificar a discussão acerca dos impactos do


Marco Legal das Ferrovias e chamar atenção da comunidade jurídica e do setor ferroviário para

1
BRASIL. Lei nº 14.273, de 23 de dezembro de 2021. Estabelece a Lei das Ferrovias; altera o Decreto-Lei nº
3.365, de 21 de junho de 1941, e as Leis nºs 6.015, de 31 de dezembro de 1973, 9.074, de 7 de julho de 1995,
9.636, de 15 de maio de 1998, 10.233, de 5 de junho de 2001, 10.257, de 10 de julho de 2001, 10.636, de 30 de
dezembro de 2002, 12.815, de 5 de junho de 2013, 12.379, de 6 de janeiro de 2011, e 13.448, de 5 de junho de
2017; e revoga a Lei nº 5.917, de 10 de setembro de 1973. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-
2022/2021/lei/L14273.htm#:~:text=Art.,associadas%20e%20d%C3%A1%20outras%20provid%C3%AAncias.
Acesso em: 03 jun. 2022.
2
MINISTÉRIO DA INFRAESTRUTURA. Pro Trilhos – Programa de Autorizações Ferroviárias. Disponível
em: https://www.gov.br/infraestrutura/pt-br/assuntos/transporte-terrestre/programa-de-autorizacoes-ferroviarias.
Acesso em: 11 jun. 2022.
6

elementos de risco oriundos da nova legislação, a partir de análise legislativa e da literatura


jurídico-setorial.

Apesar disso, é preciso dizer que qualquer tentativa de esgotamento do tema seria
leviana neste momento, dado que a Lei n. 14.273/2021 entrou em vigor em dezembro de 2021,
restando, inclusive, veto pendente de apreciação pelo Congresso Nacional. Ademais, não se
tem notícias de ferrovias autorizadas em operação, igualmente, de forma que o presente
trabalho, ao fim e ao cabo, é um convite ao acompanhamento do desenvolvimento e
implementação do modelo de autorização de ferrovias, notadamente quanto aos pontos aqui
abordados.

2 AS AUTORIZAÇÕES FRENTE À FRENTE ÀS CONCESSÕES: PRINCIPAIS


ASPECTOS DE DISTINÇÃO

A necessidade de se tecer breves comentários acerca das distinções sobre as


autorizações e as concessões se dá pelo motivo de que até o momento da promulgação do Marco
Legal das Ferrovias, a exploração ferroviária brasileira era feita predominantemente a partir do
regime de concessões. Com a promulgação do Marco Legal de Ferrovias, ambos os regimes de
exploração ferroviária – público e privado – passaram a ser regidos pelo mesmo diploma,
porém, com características bastante distintas, conforme se comentará a seguir.

2.1 REFERÊNCIAS CONCEITUAIS: CONCESSÕES E AUTORIZAÇÕES

As concessões encontram sua base constitucional no art. 1753, da Constituição Federal4


e infraconstitucional em legislações diversas e com especializações setoriais, porém, como
principais marcos infraconstitucionais poder-se-ia citar as Leis n. 8.987/19955 (Lei de
Concessões) e 9.074/20046. A concessão do serviço público é o contrato administrativo pelo
qual a Administração Pública transfere à pessoa jurídica ou consórcio de empresas a execução
de certa atividade de interesse coletivo, remunerada através do sistema de tarifas pagas pelos

3
Art. 175. Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão,
sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos.
4
BRASIL. Constituição Federal de 1988, de 10 de maio de 1988. Constituição da República Federativa do Brasil.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 04 jun. 2022.
5
BRASIL. Lei nº 8.987, de 13 de fevereiro de 1995. Dispõe sobre o regime de concessão e permissão da prestação
de serviços públicos previsto no art. 175 da Constituição Federal, e dá outras providências. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8987cons.htm. Acesso em: 08 jun. 2022.
6
BRASIL. Lei nº 9.074, de 07 de julho de 1995. Estabelece normas para outorga e prorrogações das concessões e
permissões de serviços públicos e dá outras providências. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8987cons.htm. Acesso em: 13 jun. 2022.
7

usuários. Nesta relação jurídica, a delegação da prestação do serviço público é se dá mediante


concorrência (licitação) e tem sua execução por prazo determinado7.

Trata-se de transferência da mera execução da atividade a um ente privado, dado que,


segundo a conceituação ampla de serviço público a partir da análise dos dispositivos
constitucionais vigentes, serviço público corresponderia às atividades prestacionais do Estado,
exercidas diretamente aos indivíduos, que podem ser de titularidade exclusiva do Estado ou
não. Estariam compreendidos, assim, os serviços públicos econômicos (remuneráveis por taxa
ou tarifa), os serviços sociais (que podem ser prestados livremente – sem delegação – pela
iniciativa privada) e os serviços uti universi (inespecíficos e indivisíveis, sem beneficiários
identificáveis com exatidão)8.

O marco inicial das concessões ferroviárias remete ao final da década de 1990 com a
ocorrência dos leilões de concessão das malhas regionais, com a segmentação geográfica
promovida para oferecimento dos antigos ativos da RFFSA a empresas privadas. Conforme
comenta Paulo Pessoa Guerra Neto, a rede ferroviária da antiga RFFSA foi dividida em sete
regionais geográficas: Oeste, Centro-Leste, Sudeste, Tereza Cristina, Sul e Sudeste9.
Atualmente, a partir de informações da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT),
estão em curso dezesseis10 contratos de concessão ou subconcessão, quando há transferência de
parte das incumbências da concessão obtida a um terceiro.

No âmbito ferroviário, os contornos do instituto das concessões também são refletidos.


As ferrovias exploradas por meio do regime público de concessão estão sujeitas às regras
básicas da Lei de Concessões, de forma a se preservar as obrigações de preservação da
modicidade tarifária, obrigação de realização de investimentos conforme cronograma
contratual e critérios de avaliação de desempenho e qualidade do serviço, sob a regulação e
fiscalização de órgãos reguladores, no caso das concessões ferroviárias federais, a ANTT.
Atualmente, após a aprovação do Marco Legal das Ferrovias, o principal diploma
infraconstitucional que versa sobre as concessões ferroviárias passa a ser também a Lei n.

7
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 30ª ed. São Paulo: Atlas, 2016. p.
394.
8
ARAGÃO, Alexandre Santos. Direito dos Serviços Públicos. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013. p. 142.
9
NETO, P. P. G. Evolução dos Contratos de concessões de ferrovias. Instituto Serzedello Corrêa - Tribunal de
Contas da União. Coletânea de Pós-Graduação [Governança e Controle da Regulação em infraestrutura],
v. 4, n. 18, p. 48, 1 jan. 2019. p. 22.
10
AGÈNCIA NACIONAL DE TRANSPORTES TERRESTRES – ANTT. Concessões Ferroviárias. Disponível
em: <https://www.gov.br/antt/pt-br/assuntos/ferrovias/concessoes-ferroviarias>. Acesso em: 01 jul. 2022.
8

14.273/2021, que introduziu o regime de autorizações como forma de exploração de ferrovias


no Brasil.

Se as concessões constituem forma de prestação de serviços de natureza pública,


passíveis de serem delegados à iniciativa privada em função da melhor configuração econômica
da atividade, sem, contudo, deixar de ser um serviço essencialmente público, as autorizações
seguem lógica diversa, inclusive encontrando bases constitucionais distintas.

As autorizações aqui discutidas encontram suas balizas constitucionais no, art. 21, inciso
XI e XII11 da Constituição de 1988. Diferentemente do regime de concessões e permissões, que
são os meios utilizados em caráter geral pelo Estado para prestação dos serviços públicos, a
teor do art. 175 da Constituição, o art. 21 do texto constitucional enumera serviços específicos
passíveis de serem explorados pelo Estado também mediante o regime de autorizações, sem
atribuir a esses o caráter público, tal qual no art. 175.

Nesse contexto, as autorizações se prestarão ao exercício, pelo Estado, do poder de


polícia, atividade estatal de limitação e condicionamento dos direitos e liberdades dos
indivíduos. Por outras palavras, autorização, nesse sentido não se refere a serviços públicos,
mas atividades econômicas em sentido estrito, típicas da esfera privada, nos termos do art. 17312
da Constituição13.

Por se tratar de instituto que traz delimitações materiais quanto à possibilidade de


utilização a determinadas atividades, não seria possível determinar uma base infraconstitucional
comum a todos os regimes de autorização vigentes nos mais variados setores da economia.
Porém, no que é pertinente ao presente trabalho, é no Marco Legal das Ferrovias que se
concentram as disposições sobre as autorizações ferroviárias, conforme já mencionado.

11
Art. 21. Compete à União: XI - explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, os
serviços de telecomunicações, nos termos da lei, que disporá sobre a organização dos serviços, a criação de um
órgão regulador e outros aspectos institucionais; XII - explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão
ou permissão: a) os serviços de radiodifusão sonora, e de sons e imagens; b) os serviços e instalações de energia
elétrica e o aproveitamento energético dos cursos de água, em articulação com os Estados onde se situam os
potenciais hidroenergéticos; c) a navegação aérea, aeroespacial e a infraestrutura aeroportuária; d) os serviços de
transporte ferroviário e aquaviário entre portos brasileiros e fronteiras nacionais, ou que transponham os limites
de Estado ou Território; e) os serviços de transporte rodoviário interestadual e internacional de passageiros; f) os
portos marítimos, fluviais e lacustres;
12
Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo
Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse
coletivo, conforme definidos em lei.
13
ALMEIDA, Fernanda Dias Menezes. Art. 21, da Constituição da República Federativa do Brasil. In:
CANOTILHO, José Joaquim Gomes et al. Comentários à Constituição do Brasil. 2. ed. São Paulo: Saraiva
Educação, 2018. p. 792-796.
9

2.2 PRINCIPAIS DIFERENÇAS DA EXPLORAÇÃO DO SERVIÇO DE TRANSPORTE


FERROVIÁRIO MEDIANTE CONCESSÕES E AUTORIZAÇÕES

O Marco Legal das Ferrovias segregou com clareza as regras de exploração ferroviária
sob o regime público (concessões, que não se extinguiram com a promulgação da Lei de
Autorizações Ferroviárias, diga-se de passagem) e de regime privado (autorizações). A título
de ilustração, em seus art. 6º14, inciso III e 8º, incisos I e II15, o Marco é explícito ao mencionar
tal divisão. A partir de análise detida do texto do Marco Legal das Ferrovias, é possível traçar
comparação direta entre os dois modelos, notadamente no que diz respeito à liberdade tarifária
e capacidade de transporte das ferrovias. Vejamos no quadro abaixo tais elementos de
comparação:

Quadro 1 – Comparação entre as regras de exploração de ferrovias sob regime público e regime privado

Critérios Exploração sob Regime Público Exploração sob Regime Privado


Mediante prévia licitação, conforme definido na Mediante requerimento da operadora ferroviária ou
Outorga Lei de Concessões, formalizado na forma de mediante chamamento público, formalizado por
contrato de concessão. contrato de autorização com o Poder Público.
As tarifas máximas para a execução dos serviços
Tarifas Garantida a liberdade de preços.
de transporte serão fixadas no edital de concessão.
Capacidade de As metas e limites de capacidade de transporte da É livre a oferta de capacidade, devendo apenas ser
Transporte ferrovia serão previstos no edital de concessão. informada à ANTT.
Reequilíbrio
Econômico- Não se trata de direito assegurado às operadoras
Assegurado.
Financeiro de ferroviárias privadas.
Contratos
Avaliação de Legislação não menciona critérios específicos,
Desempenho Os critérios de avaliação serão previstos no edital porém se prevê a possibilidade de aplicações de
da Prestação de concessão. sanções por inexecução deficiente do contrato de
do Serviço autorização.
Acesso de Assegurado, com regras referentes à garantia de Assegurado, com regras de capacidade regidas por
Terceiros à capacidade a terceiros e cobrança de tarifas fixadas acordos com cada agente transportador ferroviário,
Ferrovia no contrato de concessão. mediante regime de liberdade de preços.
Reversibilidade Deverá ocorrer ao final do prazo da concessão, Não são reversíveis, salvo se houver cessão de bens
de Bens passando à titularidade do poder concedente. de titularidade do Estado para a operadora privada.
Fonte: Elaboração própria.

As diferenças apresentadas no Quadro 1 evidenciam não apenas a ideia de que, de fato,


as autorizações ferroviárias gozam da liberdade econômica característica das atividades
desempenhadas pela iniciativa privada, porém, mantendo-se a necessidade de prestação de
informações ao órgão regulador, garantia de acesso a terceiros e observação dos prazos e
condições estipulados nos contratos celebrados com o Poder Público.

14
Art. 6º A exploração de ferrovias classifica-se em: (…). III – quanto ao regime de execução: a) em regime de
direito público; b) em regime de direito privado.
15
Art. 8º A exploração indireta de ferrovias será exercida por operadora ferroviária: I - em regime privado,
mediante outorga de autorização; II - em regime público, mediante outorga de concessão.
10

Apesar de breve, a análise comparativa de algumas das alterações implementadas pelo


Marco Legal de Ferrovias é importante para que se possa compreender a estrutura de incentivos
que orienta o modelo recém implementado de autorizações: preza-se por maior liberdade e
redução dos critérios legais de execução e delimitações da atividade econômica, apenas com
balizas típicas do exercício do poder de polícia pelo Poder Público, basilares para que se possa
garantir a disponibilidade do serviço ao usuário, sem que haja abusos por parte da iniciativa
privada.

3 MAIS VALE O PONTO FINAL DO QUE O TRAJETO? AS PREOCUPAÇÕES


DECORRENTES DOS CRITÉRIOS PARA A OUTROGA DE AUTORIZAÇÕES
FERROVIÁRIAS

O Marco Legal das Ferrovias foi promulgado em de 23 de dezembro de 2021, e até o


momento da conclusão do presente trabalho ainda contava com vetos presidenciais pendente de
apreciação pelo Congresso Nacional16. A Lei consolida os objetivos do Programa Pro Trilhos,
por meio do qual o Governo Federal pretendeu aumentar a atratividade da realização de
investimentos em ferrovias pelo setor privado, sejam elas greenfields (novos empreendimentos
– ferrovias executadas a partir do “zero”) ou brownfields (empreendimento que utilizará
ferrovia já existente, pelo menos em parte da extensão desejada)17. A ideia era aportar na
infraestrutura ferroviária brasileira cerca de R$ 224 bilhões em investimentos.

Antes de a Lei n. 14.273/2021 se estabelecer como marco legal do setor ferroviário,


houve também a promulgação da Medida Provisória n. 1.065/202118, que caducou em fevereiro
de 2022, que introduziu boa parte das disposições que foram mantidas no texto da Lei.

Porém, na exposição de motivos da medida provisória elaborada pelo Ministério da


Infraestrutura19 já era possível identificar os objetivos da nova legislação: (i) otimizar a

16
CONGRESSO NACIONAL. Vetos em Tramitação no Congresso Nacional. Disponível em:
<https://www.congressonacional.leg.br/materias/vetos/-/veto/detalhe/14905.>. Acesso em: 08 jul. 2022.
17
MINISTÉRIO DA INFRAESTRUTURA. Pro Trilhos – Programa de Autorizações Ferroviárias. Disponível
em: https://www.gov.br/infraestrutura/pt-br/assuntos/transporte-terrestre/programa-de-autorizacoes-ferroviarias.
Acesso em: 11 jun. 2022.
18
BRASIL. Medida Provisória nº 1.065, de 30 de agosto de 2021. Dispõe sobre a exploração do serviço de
transporte ferroviário, o trânsito e o transporte ferroviários e as atividades desempenhadas pelas administradoras
ferroviárias e pelos operadores ferroviários independentes, institui o Programa de Autorizações Ferroviárias, e dá
outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-
2022/2021/Mpv/mpv1065.htm. Acesso em: 08 jul. 2022.
19
CÂMARA DOS DEPUTADOS. Exposição de Motivos da Medida Provisória n. 1.065/2021. Disponível em:
<https://www2.camara.leg.br/legin/fed/medpro/2021/medidaprovisoria-1065-30-agosto-2021-791688-
exposicaodemotivos-163608-pe.html.>. Acesso em: 09 jul. 2022.
11

utilização da malha ferroviária, a qual 30% ou possuía operação ineficiente ou não possuía
operação comercial, aumentando a participação do modal ferroviário na matriz logística
nacional; (ii) desburocratizar a construção e operação de ferrovias, com especial atenção às
short lines20 para instalações próprias e; (iii) permitir que a iniciativa privada financiasse a
instalação de ferrovias, especialmente em um período de escassez e supressão dos
investimentos públicos em função do cenário de crise econômica, à época intensificada pelo
ápice da pandemia da COVID-19.

Pode-se dizer que o modelo de autorizações ferroviárias tem sido bem-sucedido no que
diz respeito ao interesse manifestado pelo mercado. Até o momento, segundo dados oficiais do
Ministério da Infraestrutura, há 78 pedidos de autorização em análise, com projeção de
construção de cerca de 20,33 mil km de extensão de malha ferroviária e expectativa de
investimentos de R$ 237 bilhões21. Específica e programaticamente, a Lei materializou os
objetivos da política pública gestada em princípios norteadores e diretrizes em arts. 4º e 5º22.

Tais objetivos, inclusive, são manifestamente declarados no recente Plano Nacional de


Logística 2035 (PNL)23. Segundo o PNL, construído com dados do ano-base de 2017, as

20
Short lines são ferrovias que possuem área de abrangência limitada (municipal e estadual), tendo como principais
características a integração de indústrias que possuem ferrovias para uso particular, alimentação de tráfego em
ferrovias maiores e transporte de passageiros. LANZA, João Felipe Rodrigues. Shortlines no Brasil: O primeiro
passo da abertura de mercado, 2019. Disponível em:
https://fgvcelog.fgv.br/sites/gvcelog.fgv.br/files/artigos/shortlines_market.pdf. Acesso em 11 jul. 2022.
21
MINISTÉRIO DA INFRAESTRUTURA. Pro Trilhos – Programa de Autorizações Ferroviárias. Disponível
em: https://www.gov.br/infraestrutura/pt-br/assuntos/transporte-terrestre/programa-de-autorizacoes-ferroviarias.
Acesso em: 11 jun. 2022.
22
Art. 4º A política setorial, a construção, a operação, a exploração, a regulação e a fiscalização das ferrovias em
território nacional devem seguir os seguintes princípios: I - proteção e respeito aos direitos dos usuários; II -
preservação do meio ambiente; III - redução dos custos logísticos; IV - aumento da oferta de mobilidade e de
logística; V - integração da infraestrutura ferroviária; VI - compatibilidade de padrões técnicos; VII - eficiência
administrativa; VIII - distribuição de rotas de determinada malha ferroviária entre distintas operadoras ferroviárias,
de modo a impedir a concentração de origens ou destinos; IX - defesa da concorrência; X - regulação equilibrada.
Parágrafo único. Além dos princípios relacionados no caput deste artigo, aplicam-se ao transporte ferroviário
associado à exploração da infraestrutura ferroviária em regime privado os princípios da livre concorrência, da
liberdade de preços e da livre iniciativa de empreender. Art. 5º A exploração econômica de ferrovias deve seguir
as seguintes diretrizes: I - promoção de desenvolvimento econômico e social por meio da ampliação da logística e
da mobilidade ferroviárias; II - expansão da malha ferroviária, modernização e atualização dos sistemas e
otimização da infraestrutura ferroviária; III - adoção e difusão das melhores práticas do setor ferroviário e garantia
da qualidade dos serviços e da efetividade dos direitos dos usuários; IV - estímulo à modernização e ao
aprimoramento da gestão da infraestrutura ferroviária, à valorização e à qualificação da mão de obra ferroviária e
à eficiência nas atividades prestadas; V - promoção da segurança do trânsito ferroviário em áreas urbanas e rurais;
VI - estímulo ao investimento em infraestrutura, à integração de malhas ferroviárias e à eficiência dos serviços;
VII - estímulo à ampliação do mercado ferroviário na matriz de transporte de cargas e de passageiros; VIII -
estímulo à concorrência intermodal e intramodal como inibidor de preços abusivos e de práticas não competitivas;
IX - estímulo à autorregulação fiscalizada, regulada e supervisionada pelo poder público; X - incentivo ao uso
racional do espaço urbano, à mobilidade eficiente e à qualidade de vida nas cidades.
23
GOVERNO FEDERAL; EMPRESA DE PLANEJAMENTO E LOGÍSTICA S.A.; MINISTÉRIO DA
INFRAESTRUTURA. Plano Nacional de Logística (PNL) 2035. [s.l: s.n.]. Disponível em:
12

ferrovias brasileiras que somavam cerca de 21 mil km de extensão e apenas 0,20% do modal
de transporte nacional, teria sua representatividade em termos de market share do modal de
transportes nacional duplicado. É possível dizer que a política pública concretizada no Plano
Nacional de Logística está em curso, ainda em estágios iniciais, mas aparentemente
confrontando os problemas levantados pelo Poder Público no setor de ferrovias.

O Marco Legal também foi importante elemento de garantia de segurança jurídica ao se


estabelecer como lei geral acerca das autorizações ferroviárias. Isso porque, no momento da
promulgação da Lei n. 14.273/2021 ao menos três estados da federação (Pernambuco, Paraná
e Mato Grosso) já haviam dado início à regulamentação desse instituto, sem, contudo, haver lei
geral para orientação. O Marco, nesse sentido, privilegiou a descentralização da prestação do
serviço da União Federal, autorizando que por meio de delegação, os Estados, Municípios e o
Distrito Federal possam explorar tais serviços24.

Porém, muito embora o Marco traga consigo diversos aspectos positivos, inclusive a
partir da concretização de objetivos nobres no que diz respeito à política pública de transportes
do Estado brasileiro, do estudo da legislação e episódios práticos ocorridos já quando da
vigência da nova Lei decorrem algumas preocupações de ordem prática e regulatória, às quais
nos dedicaremos a explorar no próximo tópico deste capítulo, qual seja: os critérios para outorga
de autorizações ferroviárias elencados no Marco Legal de Ferrovias e regulamentação em
elaboração.

3.1 OS CRITÉRIOS PARA OUTORGA DE AUTORIZAÇÕES FERROVIÁRIAS E SEUS


RISCOS

Conforme se depreende do art. 25 do Marco Legal de Ferrovias, o interessado em obter


a autorização para a exploração de novas ferrovias deverá apresentar requerimento ao regulador
ferroviário, junto a uma série de documentos e declarações necessárias. Ao regulador
ferroviário caberá avaliar (i) a convergência do objeto do requerimento da política pública do
setor ferroviário; (ii) avaliar a documentação, os projetos e os estudos que compõem o

<https://www.gov.br/infraestrutura/pt-br/assuntos/politica-e-planejamento/politica-e-
planejamento/RelatorioExecutivoPNL_2035final.pdf>. Acesso em 11 jul. 2022.
24
Art. 2º. (…) § 2º A União pode delegar a exploração dos serviços de que trata o inciso II do caput deste artigo
aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, observada a legislação federal, nos termos do § 2º do art. 6º da
Lei nº 12.379, de 6 de janeiro de 2011.
13

requerimento e deliberar sobre a outorga da autorização e; (iii) avaliar viabilidade locacional


do requerimento com as demais ferrovias implantadas ou outorgadas.

Em uma primeira leitura, não se depreende preocupações evidentes do texto legal. Nota-
se, em verdade, mais um indicativo do estímulo legal de simplificação conferido à outorga de
autorizações ferroviárias. Porém, ao destrinchar a estrutura do texto da Lei, nos parece haver
elementos de riscos sobre os quais entendemos ser necessário manter os olhos atentos no curso
do desenvolvimento e implantação das ferrovias autorizadas.

Primeiramente, cumpre registrar que, até o presente momento, a Lei n. 14.273/2021 não
foi regulamentada, estando a proposta de regulamentação acerca do requerimento da
autorização ferroviária submetida a consulta pública no âmbito da ANTT25. Embora ainda se
esteja em processo de coleta de consultas públicas sobre a regulamentação pretendida, a ANTT
já disponibilizou as minutas de relatório e proposta de regulamentação26 sobre o tema.

O §1º do art. 25 estipula que o interessado em obter a autorização ferroviária deverá


apresentar minuta de contrato preenchida e memorial com a descrição técnica do
empreendimento, contendo as fontes de financiamento pretendidas. Ademais, devem ser
apresentadas informações técnicas sobre a ferrovia27.

No que diz respeito à indicação das fontes de financiamento, a opção regulatória foi de
exigir do requerente da autorização a indicação se os recursos financeiros necessários ao
empreendimento serão próprios ou de terceiros e se a sua natureza será pública ou privada,

25
AGÊNCIA NACIONAL DE TRANSPORTES TERRESTRES – ANTT. Audiência Pública com objetivo de
colher subsídios e informações adicionais para o aprimoramento da proposta de regulamentação do art. 25
da Lei Federal nº 14.273, de 23 de dezembro de 2021, que trata do processo de autorização para exploração
de ferrovias. Disponível em:
<https://participantt.antt.gov.br/Site/AudienciaPublica/VisualizarAvisoAudienciaPublica.aspx?CodigoAudiencia
=500.>. Acesso em: 14 jul. 2022.
26
AGÊNCIA NACIONAL DE TRANSPORTES TERRESTRES – ANTT. Audiência Pública com objetivo de
colher subsídios e informações adicionais para o aprimoramento da proposta de regulamentação do art. 25
da Lei Federal nº 14.273, de 23 de dezembro de 2021, que trata do processo de autorização para exploração
de ferrovias. Disponível em:
<https://participantt.antt.gov.br/Site/AudienciaPublica/VisualizarAvisoAudienciaPublica.aspx?CodigoAudiencia
=500.>. Acesso em: 14 jul. 2022.
27
Art. 25 (…). § 1º O requerimento deve ser instruído com: (…). II - relatório técnico descritivo, no caso de
autorização para ferrovias, com, no mínimo: a) indicação georreferenciada do percurso total, das áreas adjacentes
e da faixa de domínio da infraestrutura ferroviária pretendida; b) detalhamento da configuração logística e dos
aspectos urbanísticos relevantes; c) características da ferrovia, com as especificações técnicas da operação
compatíveis com o restante da malha ferroviária; d) cronograma de implantação ou recapacitação da ferrovia,
incluindo data-limite para início das operações ferroviárias; (…).
14

conforme se depreende do atual §2º, do art. 4º, da minuta de resolução em elaboração pela
ANTT.

A opção pela mera indicação, pelo operador privado das fontes de recursos a serem
utilizadas, chama atenção e nos parece ser um elemento substancial de risco financeiro de um
projeto, por dois principais motivos: (i) a possibilidade de ausência de concretude da
informação submetida ao regulador e; (ii) ausência de base legal para exigência de envio de
documentos financeiros e eleição de critérios de avaliação de viabilidade econômica do projeto,
quando indicado que o projeto será autofinanciado pelo requerente.

Quanto ao item (i), é de se pontuar, pela lógica do dispositivo legal, que no momento da
apresentação do requerimento de autorização, a requerente já possua informações suficientes
acerca do projeto que se pretende implementar. Porém, no que diz respeito à obtenção de
recursos para financiamento de projetos de infraestrutura, há dificuldades inerentes à situação
macroeconômica do Brasil, bem como a dificuldade de obtenção de crédito junto a instituições
públicas e privadas, que miram rentabilidades agressivas, fazendo com que os investimentos se
concentrem em regiões mais ricas e desenvolvidas, capazes de gerar maior fluxo para as
empresas em termos de pagamento de tarifas28.

Nesse sentido, a mera declaração por parte do requerente da autorização pode resultar,
ao fim e ao cabo, que se trate de um excelente projeto, mas sem possibilidade de execução,
notadamente em projetos greenfield e em regiões com menor tráfego ferroviário (e geração de
tarifas), levando o regulador a decidir pela aprovação de um projeto que não necessariamente
reunirá condições de se concretizar por completo, ou mesmo sair do papel.

O que nos leva ao item (ii), que é a ausência de base legal para requerer e realizar
avaliação das condições financeiras também através dos documentos financeiros da empresa
requerente da autorização, quando indicado o autofinanciamento do projeto requerido. Apesar
de não ser um elemento determinante, a identificação de ausência de caixa disponível para a
assunção de novos investimentos pela própria titular poderia ser um elemento de mitigação de
projetos inviáveis financeiramente.

28
MEDEIROS, Victor. RIBEIRO, Rafael Saulo Marques Ribeiro. Investimento em infraestrutura: uma estrada
para o desenvolvimento. Disponível em:
https://www.valor.com.br/sites/default/files/infograficos/pdf/CepalEnsaio2_03012019.pdf. Acesso em: 15 jul.
2022.
15

Note-se que tal preocupação tinha sido endereçada na alínea “e” do §1º, do inciso II, do
art. 25 do Marco Legal29, que, quando de sua promulgação, veio a ser vetada pela Presidência
da República. A alínea “e” estipulava que, dentre os documentos a serem apresentados ao
regulador ferroviário, deveria constar relatório executivo e estudos de viabilidade econômica
da ferrovia planejada.

O motivo do veto chama atenção pelo fato de que se aparenta demonstrar


despreocupação com a necessidade de que os investimentos, mais do que apresentados para
ilustrar cifras de investimentos e belíssimos projetos, se prestam a ser convertidos em ferrovias
eficientes e alinhadas com as diretrizes da política pública estatal, conforme já mencionado.

Segundo a mensagem do veto, a proposição contrariaria o interesse público, pois na


autorização para exploração de serviços ferroviários, o risco de implantação do
empreendimento é exclusivo do particular. Portanto, não seria o caso de imputar ao Poder
Público a tarefa de analisar os estudos de viabilidade técnica, econômica e ambiental produzidos
pelo interessado em obter a autorização. Tal disposição implicaria gasto desnecessário de
recursos humanos e financeiros por parte das entidades públicas envolvidas na análise dos
requerimentos de autorização e aumentaria de forma significativa e desnecessária o lapso
temporal para a conclusão de tais processos30.

Ora, nos parece ser justamente o contrário. O estudo de viabilidade econômica é


justamente aquele que irá reunir elementos sobre os aspectos financeiros necessários para a
elaboração do projeto e execução das obras, como o orçamento definido, os custos para a
compra de materiais e equipamentos, contratação de equipes e projeções de resultados sobre a
rentabilidade que o empreendimento proporcionará para o cliente31, facilitando a avaliação,
pelo Poder Público, quanto à necessidade e eficiência da instalação da rodovia requerida.

Indo adiante, de uma experiência prática, temos um outro elemento que nos parece
oferecer riscos ao desenvolvimento ferroviário eficiente, conforme pretendido pelo legislador
e pelo Governo Federal, através da política pública em execução: o critério de viabilidade

29
Art. 25 (…). § 1º O requerimento deve ser instruído com: (…). II - relatório técnico descritivo, no caso de
autorização para ferrovias, com, no mínimo: (…); e) relatório executivo dos estudos de viabilidade técnica,
econômica e ambiental
30
PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Mensagem de Veto a Dispositivos da Lei n. 14.273/2021. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/Msg/VEP/VEP-726.htm.>. Acesso em: 15 jul. 2022.
31
ALLONDA AMBIENTAL. Viabilidade técnica, econômica e ambiental em obras de infraestrutura.
Disponível em: <https://allonda.com/blog/infraestrutura/a-importancia-dos-estudos-de-viabilidade-tecnica-
economica-e-ambiental-em-obras-de-infraestrutura/>. Acesso em: 15 jul. 2022.
16

locacional elencado como um dos elementos de análise pelo regulador. Com o pedido de perdão
pela simplificação proposta, ainda que haja necessidade de observação dos critérios técnicos da
ferrovia, o critério de viabilidade locacional parece indicar que “se for possível, faça-se”.

O episódio prático mencionado, inclusive, ganhou nome emblemático dentre portais


especializados que comentaram o ocorrido. A Guerra Ferroviária32, protagonizada pela Rumo,
MRS e VLI, três das maiores operadoras ferroviárias nacionais em relação a três trechos
ferroviários (Água Boa (GO) e Lucas do Rio Verde (MT); Chaveslândia a Uberlândia (MG) e
na Ferradura do Porto de Santos (SP)33) chamou atenção para a amplitude e possíveis
consequências do critério de viabilidade locacional para outorga de autorizações.

Para o primeiro trecho, a VLI teria realizado o pedido de instalação de linha férrea logo
após a então vigente MP n. 1.065/2021. A Rumo, pouco tempo depois, solicitou a alocação de
ferrovia logo ao lado do trecho da VLI. O mesmo veio a ocorrer no trecho do estado de Minas
Gerais e no Porto de Santos. Ao menos para o trecho de Água Boa (GO) e Lucas do Rio Verde
(MT), foram concedidas autorizações para Rumo e para a VLI, ambas para construção de
ferrovias de 508 km e ambas se encontrando em estágio de assinatura do contrato de adesão
para autorização34.

Tal fato desperta questionamentos acerca da possibilidade de que condutas como essa
se tornassem corriqueiras, de forma que operadoras ferroviárias utilizem da tática como um
meio de inibição de concorrentes, agindo de maneira contrário à lógica de maximização da
eficiência da rede ferroviária no Brasil. De outro lado, a questão também convida à reflexão
sobre se em tais situações, estar-se-ia caminhando em convergência com os princípios do Novo
Marco Legal, como distribuição de rotas de determinada malha ferroviária entre distintas
operações, defesa da concorrência e eficiência de serviços.

32
AMORA, Dimmi. Guerra ferroviária leva Rumo a pedir autorização para trechos solicitados pela VLI e operados
pela MRS. Agência Infra, 2021. Disponível em: <https://www.agenciainfra.com/blog/guerra-ferroviaria-leva-
rumo-a-pedir-autorizacao-para-trechos-solicitados-pela-vli-e-operados-pela-mrs/>. Acesso em: 16 jul. 2022.
33
A chamada "Ferradura de Santos" é uma linha férrea curta, em forma de "U", com apenas 19 quilômetros na
margem direita e 24 quilômetros na esquerda do porto. Controlado pela MRS este é, talvez, a menor trecho
ferroviário brasileiro. E, com certeza, o mais cobiçado. A linha é o único acesso de trem ao Porto de Santos, o que
a transforma no negócio mais rentável do setor. TEREZA, Irany. Acesso a Santos pode mudar lei ferroviária. O
Estado de São Paulo, 2005. Disponível em:
<https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/305677/noticia.htm?sequence=1&isAllowed=y>. Acesso
em: 16 jul. 2022.
34
MINISTÉRIO DA INFRAESTRUTURA. Pro Trilhos – Programa de Autorizações Ferroviárias. Disponível
em: https://www.gov.br/infraestrutura/pt-br/assuntos/transporte-terrestre/programa-de-autorizacoes-ferroviarias.
Acesso em: 11 jun. 2022.
17

Importante que se registre que não se está indicando que o regulador ferroviário não
estará apto a realizar tal avaliação ou que há qualquer tipo de prática ilegítima ou estímulo a
ineficiências por parte do Novo Marco, mas apontando itens que, em nosso sentir, são
elementos lacunosos quando levados à prática. Mesmo porque, na proposta de regulamentação
em elaboração pela ANTT, não foram identificadas balizas para a avaliação de elemento
importante relacionado ao papel do regulador quando da avaliação dos requerimentos: a
convergência da ferrovia requerida com a política ferroviária.

Questiona-se, noutros termos: qualquer ferrovia autorizada, que reúna racionalidade


técnica (convergência de medidas de bitola e rampas máximas de exportação e importação –
conforme minuta de regulamentação), viabilidade locacional e os demais dados teóricos
exigidos pelo Novo Marco estaria apta a ser implementada?

Em que medida se estaria estimulando a concentração da malha em pontos já


concentrados e com baixas eficiências ao usuário? Ora, para determinados pontos, mesmo
podendo haver acesso de terceiros a uma malha já implementada, se estaria diante de várias
ferrovias ladeadas, capturando cargas uma das outras, e que poderiam ir de ponto a outro com
eficiência de custos.

Essa discussão inclusive tangencia o debate regulatório acerca da avaliação da ferrovia


como monopólio natural, de forma a contestá-lo, dado que a ideia de que a infraestrutura
ferroviária não poderia ser duplicada, para se preservar as economias de escala e escopo não
poderiam ser perdidas, sob pena de desperdiçar-se os recursos escassos35, não reflete a realidade
do caso Rumo-VLI, por exemplo.

Pois bem. Tais pontos são realmente delicados, principalmente ao se considerar que, os
requerimentos de autorização que preencham o checklist previsto na legislação devem ser
deferidos, salvo por incompatibilidade com a política nacional de transporte ferroviário
(conceito jurídico não delimitado na atual minuta de regulamentação) ou por motivo técnico-
operacional relevante, mediante justificação36.

35
DAYCHOUM, Mariam Tchepurnaya. SAMPAIO, Patrícia Regina Pinheiro. Regulação e Concorrência no
Setor Ferroviário. 1ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017. p. 60.
36
Art. 25. (…). § 6º Cumpridas as exigências legais, nenhuma autorização deve ser negada, exceto por
incompatibilidade com a política nacional de transporte ferroviário ou por motivo técnico-operacional relevante,
devidamente justificado.
18

Portanto, nos parece louvável que o Marco Legal tenha avançado em buscar cumprir
com os objetivos do Estado brasileiro em promover a diversificação da matriz de transportes
brasileiro, condições para maior integração de linhas ferroviárias e desconcentração do das
malhas ferroviárias nacionais. Contudo, elementos como os apontados no presente tópico se
apresentam como desafios de ordem conjuntural, econômica e regulatória que, até o presente
momento, não contam com soluções postas. Recomenda-se olho-vivo ao longo do percurso.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Marco Legal de Ferrovias, como tem sido referenciada a Lei n. 14.273/2021


implementou alterações substanciais na base jurídica que regulamentava a exploração
ferroviária no Brasil, instituindo dois modelos de exploração de ferrovias: (i) aquele sob o
regime público, por meio de concessões regidas pelo art. 175 da Constituição Federal, Lei de
Concessões e, agora o Marco Legal de Ferrovias e; (ii) aquele sob regime privado, através de
autorizações, conforme previsto no art. 21, da Constituição Federal e do Marco Legal de
Ferrovias.

As principais diferenças entre os dois modelos dizem respeito às regras de regência da


atividade ferroviária, critérios para outorga, regras tarifárias e compartilhamento de
infraestrutura ferroviária que, no regime de direito público, é regido pelo contrato de concessão
e, no regime privado, conta com liberdade típica de atividades privadas.

O Marco Legal das Ferrovias concretiza, no plano normativo, os objetivos de políticas


públicas elaboradas pelo Governo Federal brasileiro no âmbito do Plano Nacional de Logística
2035 e no Programa Pro Trilhos. Tais documentos preveem como objetivos relacionados ao
setor ferroviário a diversificação da matriz de transporte brasileira, o aumento da extensão
ferroviária nacional, a integração da infraestrutura ferroviária, a redução de burocracias à
implantação de ferrovias e a atração de investimentos privados em infraestrutura no Brasil,
notadamente em um momento de escassez de investimentos públicos e crise econômica.

Apesar dos números dos programas serem impressionantes no que diz respeito à
quantidade de requerimentos de ferrovias autorizadas e investimentos pretendidos, elementos
relacionados ao regramento dos critérios de outorga de ferrovias autorizadas suscitam riscos
que são merecedores de atenção.

Esses riscos estão relacionados, em nossa visão, (i) à desnecessidade de comprovação


da capacidade e da viabilidade econômico-financeira do requerente e do projeto submetido a
19

avaliação; (ii) a possíveis descompassos entre o critérios de viabilidade locacional e os objetivos


da política pública ferroviária, agravado por ausência de delimitações regulatórias até o presente
momento e, muito mais como consequência; (iii) que mesmo diante desses elementos de risco,
o regulador ferroviário seja obrigado a conceder a autorização ferroviária requerida.

Não se pretende, com o presente trabalho, fadar o Marco Legal Ferroviário ao insucesso,
mesmo porque os números públicos divulgados até o presente momento dão indicativo de que,
até o presente momento 78 pedidos de autorização estão em análise perante a ANTT, com
projeção de construção de cerca de 20,33 mil km de extensão de malha ferroviária e expectativa
de investimentos de R$ 237 bilhões no setor.

Ademais, mesmo sem o objetivo de esgotar o tema, perfilhamos o entendimento de que


há elementos de atenção importantes, sendo possível que conforme o Marco Legal venha a ser
experimentado, assim como sua igualmente nova regulamentação, tais pontos venham a ser
endereçados ou consolidados a partir da prática ferroviária. O convite, portanto, é ao
acompanhamento e aprimoramento das avaliações elaboradas sobre o tema.
20

REFERÊNCIAS

AGÊNCIA NACIONAL DE TRANSPORTES TERRESTRES – ANTT. Audiência Pública


com objetivo de colher subsídios e informações adicionais para o aprimoramento da proposta
de regulamentação do art. 25 da Lei Federal nº 14.273, de 23 de dezembro de 2021, que trata
do processo de autorização para exploração de ferrovias. Disponível em:
<https://participantt.antt.gov.br/Site/AudienciaPublica/VisualizarAvisoAudienciaPublica.aspx
?CodigoAudiencia=500.>.

AGÈNCIA NACIONAL DE TRANSPORTES TERRESTRES – ANTT. Concessões


Ferroviárias. Disponível em: <https://www.gov.br/antt/pt-br/assuntos/ferrovias/concessoes-
ferroviarias>.

ALLONDA AMBIENTAL. Viabilidade técnica, econômica e ambiental em obras de


infraestrutura. Disponível em: <https://allonda.com/blog/infraestrutura/a-importancia-dos-
estudos-de-viabilidade-tecnica-economica-e-ambiental-em-obras-de-infraestrutura/>.

ALMEIDA, Fernanda Dias Menezes. Art. 21, da Constituição da República Federativa do


Brasil. In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes et al. Comentários à Constituição do Brasil. 2.
ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018.

AMORA, Dimmi. Guerra ferroviária leva Rumo a pedir autorização para trechos solicitados
pela VLI e operados pela MRS. Agência Infra, 2021. Disponível em:
<https://www.agenciainfra.com/blog/guerra-ferroviaria-leva-rumo-a-pedir-autorizacao-para-
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ARAGÃO, Alexandre Santos. Direito dos Serviços Públicos. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense,
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Federativa do Brasil. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm.

BRASIL. Lei nº 14.273, de 23 de dezembro de 2021. Estabelece a Lei das Ferrovias; altera o
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1973, 9.074, de 7 de julho de 1995, 9.636, de 15 de maio de 1998, 10.233, de 5 de junho de
2001, 10.257, de 10 de julho de 2001, 10.636, de 30 de dezembro de 2002, 12.815, de 5 de
junho de 2013, 12.379, de 6 de janeiro de 2011, e 13.448, de 5 de junho de 2017; e revoga a
Lei nº 5.917, de 10 de setembro de 1973. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-
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BRASIL. Lei nº 8.987, de 13 de fevereiro de 1995. Dispõe sobre o regime de concessão e


permissão da prestação de serviços públicos previsto no art. 175 da Constituição Federal, e dá
outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8987cons.htm.
21

BRASIL. Lei nº 9.074, de 07 de julho de 1995. Estabelece normas para outorga e


prorrogações das concessões e permissões de serviços públicos e dá outras providências.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8987cons.htm.
BRASIL. Medida Provisória nº 1.065, de 30 de agosto de 2021. Dispõe sobre a exploração do
serviço de transporte ferroviário, o trânsito e o transporte ferroviários e as atividades
desempenhadas pelas administradoras ferroviárias e pelos operadores ferroviários
independentes, institui o Programa de Autorizações Ferroviárias, e dá outras providências.
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-
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22

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