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O riso como filosofia afirmadora

Bruno Nepomuceno*

Ao olhar de Nietzsche, nunca foi intuito da tragédia destronar a alegria da vida. E, da


mesma forma, o riso nunca pretendeu anular a dimensão trágica da vida. A maleabilidade
que o movimento entre esses dois pólos realiza em nós, a constante fluidez entre dor e
alegria, é que faz de nossa existência mais potente. Não se entende também que Nietzsche
tenha colocado o riso como sintetizador da dor. Há lugar para os dois, a dor também pode
ser encarada como alta e forte sensação do poder da existência em nós, o que faz de nós
também homens de dor. Seria o riso uma resposta?
É Dioniso que fará uma inesperada conjunção entre riso e dor. Tanto a figura do deus
da festa, do júbilo a alegria, que viveu em grande perseguição e tragédia, quanto seu
significado na filosofia nietzschiana, que pode também se chamar dionisismo, representam
a reunião dessas duas dimensões.
O dionisismo é uma espécie de contra-filosofia, pois vai num caminho diverso do
entendimento conceitual universalizante da realidade, voltado à captação das formas e
sistematização dos conteúdos. De sua parte, não há em relação à vida distanciamento, não
há um passo-atrás, mas sim um mergulho. O riso resgata a dimensão trágica da vida, não
para determiná-la ou compreendê-la, mas para afirmá-la.
Em As rãs, o dramaturgo cômico Aristófanes põe sobre a figura de Dioniso a
responsabilidade de buscar o recém-falecido Eurípedes do Hades a fim de trazer de volta às
cidades a tragédia. Não por surpresa, por vias cômicas, quem é trazido de volta é Ésquilo,
aquele que expõe de maneira mais crua e direta a dureza da vida. Na disputa final, ao se
pesar os argumentos dos dois para ver quem mereceria as honras de voltar a Atenas, Dioniso
diz sobre Ésquilo: “Ele pôs na balança a Morte, o mais pesado de todos os males.” Ou seja,
é como se Dioniso, zombeteiro, alegre e brincalhão, abrisse a passagem do Hades para a
volta da tragédia, mas não qualquer tragédia, como aquela pensada, elaborada e dominada
pela razão e persuasão de Eurípedes, mas a tragédia de Ésquilo, visceral, aguda, dura.
Em Dioniso, a vida seria experimentada, interpretada e reinventada de dentro, do
lugar da sensação, a partir da fisiologia. É uma realocação do olhar, um restabelecimento da
relação homem e vida, que agora passa a ser uma amálgama homem-vida. Vive como quem

*
Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade federal de Ouro Preto. (Linha de
pesquisa: Estética. Orientadora: Cíntia Vieira da Silva)
brinca.
A ingenuidade da criança passa a ser inspiradora para quem quer tornar-se o que se
é, pois o que vive em seu interior é muito maior que seu próprio corpo, extrapola os limites
de sua materialidade e toca a materialidade do entorno, o explorando, rabiscando e
ocupando. O artista, assim como a criança, vive dissolvido no fluxo das vicissitudes, cavando
alternativas, entrando nas brechas que se lhe aparecem, criando outras.
A experiência do riso alcança também o âmbito da linguagem, da expressão.
Mediante sua intervenção, a arte de comunicar o que se vive, o que se pensa, portanto o que
se filosofa, alcança outro patamar. Nietzsche fortalece na filosofia a possibilidade de se
pensar com o cômico, ele coloca o conhecimento em outro lugar, retira-o das disputas
acadêmicas e o orienta a favor da vida. Quando escreve Zaratustra está falando de coisas
relevantes, mas sem precisar vestir-se de velhas armaduras avaliadoras da vida.
Com Dioniso, ele recoloca os interesses da filosofia em lugares móveis, faz com que
eles se reconectem de maneiras diferentes e abre para nós possibilidades de nos
desprendermos das armadilhas metafísicas nas quais fomos nos.
É tão atual quanto perigoso seu pensamento, pois há três caminhos muito próximos,
os quais Nietzsche não indica, e que geram outro tipo de ridentes: o caminho daqueles que
confundem a alegria nietzschiana com uma espécie de ironia retalhadora das opressões;
aquele que faz rir dos poderes aos quais estamos subjugados, com uma inconsciente
celebração da sensação do escárnio a todo custo; e o dos que soltam a risada nervosa e
rangente enquanto encaram a vida sob o aspecto do vazio, como os niilistas.
Os primeiros são identificados com os ressentidos e decadentes, que usam da risada
somente como uma arma, uma flecha apontada para tudo o que limita nossa existência. É
deles a responsabilidade de transpor a significação do riso, que em Nietzsche é de leveza e
afirmação, para uma força opositora e pesada. O que os rege é uma insatisfação em relação
à vida.
O segundo grupo é aquele que ri de tudo, a todo tempo e a todo custo. O que entende
que a risada é uma espécie de fuga da realidade e por isso a usa para se manter vivo, mesmo
que distante da vida. Vive como alguém alheio à realidade e quando recebe algo dela não
entende suas possíveis significações e sempre mede diversas experiências com a mesma
régua da zombaria, da indiferença.
A terceira maneira que não coaduna com a interpretação nietzschiana é a de que o
riso serve como uma espécie de acesso rápido à absurdidade que é a existência. O cômico
levaria a reconhecermos que não há motivos para continuarmos vivendo, mesmo sabendo
que não teríamos força ou coragem para interrompermos nossa vida. O riso é amargo,
esquálido, cinzento. Ri-se de nervoso, de medo, de ansiedade, de angústia.
Por isso, não podemos empunhar a bandeira do riso a qualquer custo, sob qualquer
pretexto, pois em algumas escolhas poderíamos estar empreendendo jornadas ressentidas,
decadentes ou moralizantes. Não é pretensão dessa filosofia fazer de nós meros comediantes
da existência, que procuram o riso pelo riso, mas sim transformar-nos em bufões que anelam
pela experiência de estar vivos sobre o solo da tragédia. Riem e fazem rir para conduzir o
homem ao tão próximo jogo irracional sobre o qual estamos postos. Ela revela, brincando, a
corda bamba sobre qual estamos caminhando e que pede de nós maleabilidade, inventividade
e força. Não é por conservar-se em posição estável e distribuir igualmente os pesos nos dois
lados da corda que vence o equilibrista sua travessia, mas por adaptar-se ao movimento da
corda e do vento e ainda encontrar maneiras de dar um passo depois do outro de forma
inventiva. Se se coloca rígido sobre o fio estirado, acaba como aquele equilibrista que abre
o livro de Zaratustra, porque a travessia não deve ser tomada seriamente. Por outro lado, se
se entende o funcionamento do vento e do balançar da corda e se se prepara para ter de
improvisar quando eles mudarem, a travessia acontece. “Já se deformam as coisas, quando
se as tomam seriamente (...) Rir – é mais ou menos, se não a resposta mais inteligente, de
qualquer modo a resposta mais sábia a tais questões...”
Como numa brincadeira infantil, o homem se diverte e joga com a existência, aceita
suas regras, se embrenha em suas propostas e estira suas vontades quando for oportuno. E
mesmo quando os eventos não lhe forem favoráveis, ri de sua situação enquanto lança outra
vez os dados.

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