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COMÉDIA:
O MUNDO D O RISO
LEVADO A SÉRIO
O RISO NA FORMAÇÃO DOS GÉNEROS LITERÁRIOS
Uma pergunta que você deve estar se fazendo — que eu também
faria — é se os géneros literários só inventam histórias sérias sobre o
mundo e as coisas que nele vivem. Afinal, todos os géneros apresenta-
dos até agora, cada um a seu modo, representam o universo, seus ele-
mentos e os fenómenos da vida como coisas sagradas, que despertam
no homem apenas respeito e temor.
Não podemos nos esquecer de que a seriedade é a dominante na
visão de mundo do homem primitivo, para quem o universo era sagra-
do e, ao mesmo tempo, ameaçador. Por isso, todas as ações e criações
humanas — inclusive a literatura — pareciam um culto, um ritual atra-
vés do qual se esperava domar a cólera dos deuses e do Destino. Mas
esta concepção não diz respeito à natureza humana.
A natureza humana nada tem de sério, muito pelo contrário. O
homem é o único elemento que escapa da esfera do sagrado. E sabe
por quê? Não, não é devido à sua capacidade de falar. Segundo Aris-
tóteles, o homem é o único ser vivo que ri; o riso é considerado um
privilégio espiritual supremo do homem, que é inacessível às outras cria-
turas. " O homem se distingue dos animais graças a sua aptidão para MIKHAIL BAKHTIN,

falar e rir."
p. 6 1 , (14).

Embora a literatura oficial tenha consagrado o sério como o tom


dominante da expressão artística, o único capaz de despertar as emo-
ções, o riso sempre existiu na literatura e na arte em geral. Em Home-
ro, o riso aparece como um fenómeno indestrutível, eterno aos deuses.
Os deuses constantemente riam; Afrodite tinha "doces sorrisos". O
riso era um presente dos deuses.
Nem mesmo o mito da criação deixou de ser interpretado pela
ótica do riso. Este registro está num papiro alquímico do século III MIKHAIL BAKHTIN,

da nossa era, no qual é possível ler uma narrativa em que a criação


p. 6 1 , (14).

e o próprio nascimento do mundo são atribuídos ao riso divino. Nela


se afirma que o primeiro riso divino gerou os sete deuses que governa-
riam o mundo. Na continuação desta risada, apareceu a luz. Quando
Deus riu pela segunda vez, tudo se transformou em água. Da sétima
risada divina nasceu a alma.
Diante disso, não se pode negar o riso como força criadora de
literatura, inclusive nos tempos antigos. Por isso vamos considerar, em
nosso estudo, a força criadora do riso na formação dos géneros poéti-
cos. Se a clássica teoria dos géneros, formulada por Aristóteles, orga-
niza a própria história literária, valorizando apenas as manifestações
do campo do sério como géneros elevados, isto não significa que os
outros géneros devam ficar indefinidamente relegados à categoria dos
géneros inferiores. Pelo contrário, devemos abrir um espaço significa-
tivo não só para os géneros cómicos já consagrados, como também
para as expressões da cultura popular, em que o riso criou uma diver-
sidade meio anárquica de formas expressivas. Lembra-se das histórias
de Alexandre, narradas por Graciliano Ramos, a que nos referimos lo-
go no início de nosso estudo? Pois vamos recuperar também este tipo
de criação para delimitar o campo dos géneros produzidos pelo riso.
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Na literatura antiga foi a comédia que se encarregou de desmon-
tar o campo da representação séria, introduzindo aí uma outra forma
de Ver o mundo e uma outra linguagem. A comédia, de certo modo,
destronou o temor e o respeito, mostrando que o homem podia domi-
nar a natureza e lutar com suas próprias forças para conquistá-la e
transformá-la. Isto tem muito a ver com a época em que o homem co-
meça a se ver como o dono do mundo, aquele que trabalha, modifica
e questiona uma ordem natural predeterminada.
O riso que nasce deste espírito questionador não pode ser enten-
dido como um riso fácil, o riso-piada. Não, a coisa não é tão simples
assim. Não era com piadinhas ingénuas que se podia enfrentar o impé-
rio da tragédia e da épica.
O riso que organiza os géneros cómicos é o riso ambivalente, quer
dizer, aquele que pretende atacar o sério com um outro tipo de humor:
o humor irónico, capaz de revelar os pensamentos mais sutis no es-
trondo de uma gargalhada. Trata-se do riso provocado pelo ridículo,
pelo que vai contra um determinado estado de coisas. O riso fácil, em-
bora se alimente do ridículo, nem sempre se propõe como uma refle-
xão a partir de um outro ponto de vista oposto ao sério.
Este humor, que leva à-reflexão, é a base do campo sério-cômico,
que abriu caminho para a manifestação de vários géneros literários,
tais como a sátira, a alegoria, a poesia, o mimo, a farsa, a comédia,
inclusive notáveis expressões da cultura moderna, como o romance e
as narrativas curtas — as short stories — como o conto e a crónica,
surgidas neste século. Diante disso, você já não acredita mais que so-
mente o sério é capaz de produzir géneros literários, não é mesmo?
A COMÉDIA COMO UM GÉNERO LITERÁRIO
Origens da comédia
Assim como a tragédia, a comédia se vincula ao culto a Dioniso.
Contudo é importante lembrar que a festa popular profana, que gera
a comédia, não tem nada a ver com o rito sagrado religioso. A comé-
dia enquanto género é um momento de glorificação de um trabalho,
da intervenção do homem na terra, na transformação do solo para ob-
tenção de alimentos, garantindo assim a conservação da vida humana.
Por ocasião da colheita, os homens criaram as festas primaveris, em
que os agricultores cantavam, dançavam e representavam a si próprios
de modo alegre. Dos cantos entoados aí, nasceu a comédia; por isso
sua origem está ligada a um rito profano, no caso, a colheita. Ao se
glorificar o fruto de um trabalho realizado pelo homem não se está
mais cultuando os deuses e seus poderes.
A comédia, tal como a tragédia nascida dos cantos ditirâmbicos,
também tem sua origem ligada à música. Nasceu dos cantos fálicos dos
agricultores. Ora, mas em que consiste esta cerimónia fálica? Em nos-
so mundo não existe a mais breve notícia deste ritual. Realmente, não
existe, mas com pouco esforço de imaginação criaremos um quadro
a respeito.

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Na Antiguidade, nas regiões agrícolas, a colheita era um momento
de júbilo e glorificação: a terra cultivada oferecia seus frutos ao ho-
mem. Como o falo é o órgão da virilidade masculina, os homens
escolheram-no para ser o símbolo não só da força viril, como também
da fecundação. As festas fálicas eram um momento de culto a esta força
capaz de fecundar a terra ciclicamente, garantindo a colheita e a pre-
servação da espécie. É nesse sentido que dizíamos que nas festas pri-
maveris os homens criavam uma representação de si próprios. O falo,
como símbolo da virilidade e fecundação, era escoltado em procissões
por homens mascarados ou não que percorriam ruas em blocos e cor-
dões, entoando os cantos fálicos. Por mais estranho que possa pare-
cer, este era um ritual agrário profano, grotesco, carnavalesco — mas
levado a sério por todos que dele participavam.
Os cânticos de exaltação — os kómos — acompanhavam as dan-
ças alegres. E desta euforia nasceram as komodia, representações que
servem de modelo à comédia. Deixando de lado o reino dos deuses e
entrando no reino dos homens, os festejos buscavam despertar o riso
através da representação de figuras ridículas. Para isso criavam-se más-
caras contorcidas, deformadas de rostos, figuras com barriga e náde-
gas exageradamente aumentadas e grandes falos artificiais.

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Este é um primeiro traço distintivo da comédia com relação à tra-
gédia: as máscaras não eram o mero reflexo de uma divindade. A más-
cara representa uma outra dimensão do culto à fecundação e à colhei-
ta: Daí o caráter grotesco das figuras. A deformação do corpo e a ên-
fase no ventre, nádegas e órgãos genitais são uma forma de simbolizar
os estágios vitais do nascimento, da morte e da manutenção da vida.
O sistema de imagem destas festas mostra um rebaixamento: tudo que
Considera-se baixo cor- é espiritual, sublime e celeste é deslocado para o plano da materialida-
poral os órgãos genitais, de corporal. A escolha do baixo corporal tem um significado topográ-
o ventre, as nádegas e os
membros inferiores. fico, coerente com o culto representado.

Bufão com órgãos defor-


mados (Baldry, H.C. A
Grécia antiga, cit.l.

Numa representação desse tipo, é natural que não só o sistema


de imagem fosse diferenciado. A própria linguagem é mais despojada
e livre; os diálogos se abrem para obscenidades, grosserias, maldições,
insultos, palavrões, enfim, para aquela linguagem solta e liberada que
domina na rua.
A comédia define-se, então, como uma forma de representação
que busca provocar o riso através da caricatura grotesca do corpo, prin-
cipalmente o baixo corporal, os gestos e frases obscenas, o exagero e
o rebaixamento de tudo que é elevado. É deste modo que os temas mí-
ticos são dessacralizados e os costumes começam a ser alvo da repre-
sentação satírica. A comédia cria um mundo às avessas, em nada sub-
misso às determinações dos deuses e do destino que eles criavam para
os homens. A valorização do corpo e dos gestos será fundamental pa-
ra a evolução da comédia enquanto género teatral não-literário, caso
das pantomimas, do teatro de bonecos e de todo o tipo de representa-
ção que não se utiliza da palavra.

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ATIV1DADE DE PESQUISA

Uma festividade, em nosso tempo, que lembra um pouco


a comédia e seu ambiente profano, é o carnaval. Vamos enten-
der, então, este evento de nossa cultura procurando realizar as
tarefas abaixo através de pesquisa em jornais, revistas, enciclo-
pédias e livros.
1. Explique a origem do carnaval e o significado da palavra.
2. No Brasil, desde sua introdução pelos portugueses no século
XVII, o carnaval apresentou várias formas de brincar. Explique
o que foi cada uma das modalidades citadas abaixo:
a) entrudo
b) corso
c) Zé Pereira
3. Hoje, o carnaval é uma festa com eventos diferentes em cada
região do país. Estabeleça a diferença entre os eventos, indican-
do o local onde cada um ocorre. Procure também ilustrações pa-
ra cada um deles: E n t r u d o , por
(1768-1848).
Debret

a) desfile de escolas de samba


b) blocos afro-brasileiros de afoxé
c) blocos de frevo
d) maracatu
4. O carnaval brasileiro inventou géneros musicais especialmente
para animar os festejos. Explique cada um dos géneros propos-
tos e copie uma composição para ilustrar sua definição:
a) marcha-rancho
b) samba-enredo
c) frevo

A COMEDIA ANTIGA
Ao afirmar que a comédia é um género que, ao invés de exprimir
diretamente as interpretações sobre o mundo, vira-o às avessas, aca-
bamos reconhecendo na sátira uma de suas principais articulações có-
micas. Pois é exatamente assim que os gregos antigos entendiam a co-
média. O riso era uma provocação da visão invertida das coisas. Por
isso na comédia tudo deveria ser lido pelo lado contrário.
O grande realizador do género na Antiguidade foi Aristófanes
(445-404 a.C). Vivendo numa época de guerra — a Guerra do Pelo-
poneso — e desejando imensamente reviver a fase gloriosa de Atenas,
Aristófanes fez da comédia uma forma de demonstrar sua aversão à
guerra e à crise sócio-política pela qual passava sua pátria.
Para tornar suas peças uma manifestação satírica, Aristófanes
escolhia, como motivo central, uma tese ridícula, fantástica ou mesmo
séria: a necessidade de paz, a reforma do governo, os prejuízos da edu-
cação sofista, a inferioridade estética e moral da tragédia de Eurípi-

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des. A partir daí, procurava realçar os defeitos de cada situação e não
as virtudes, que eram deformadas e caricaturadas, para deixar em pri-
meiro plano o seu contrário.
As situações criadas eram, em geral, ridículas e grosseiras, foca-
lizadas tão-somente em seu momento presente, desligadas de qualquer
circunstância passada ou futura. Assim a unidade de ação típica da
tragédia deixa de ser o modelo de representação da comédia. A explo-
ração do ridículo exige outros procedimentos de composição.
A ESTRUTURA DE COMPOSIÇÃO DA COMÉDIA
A comédia de Aristófanes compunha-se de duas partes: a ação
dos episódios em confronto (agón) e a fala do coro (parábase). O coro
assume um papel importante: chamar a atenção do espectador na per-
cepção de algumas ideias ou pensamentos. Por isso a representação do
coro geralmente é feita através de uma figuração: pessoas que se trans-
formam em aves, vespas, rãs, nuvens, tornados símbolos da ideia crí-
tica fundamental do espetáculo.
A comédia se apresenta, deste modo, como uma forma de posi-
cionamento crítico diante de uma situação, que não deixa de ser uma
forma de aprendizado. Trata-se, contudo, de um aprendizado pelo ri-
so — o riso ambivalente de que falamos no início de nosso estudo.

Mascarada de homens a cavalo que antecede o coro da comédia de Aristófanes.

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Nem mesmo a linguagem usada pelos personagens ficou livre da
ridicularização. Para isso, Aristófanes procurava expressões que fos-
sem o contrário da linguagem usada na tragédia, quer-dizer, uma lin-
guagem cómica constituída por jogos de palavras, gracejos inespera-
dos, palavras solenes em contraste com expressões vulgares e obsce-
nas, rebaixamento de temas e assuntos elevados, chistes e toda espécie
de trocadilhos, ironias, sarcasmo.

Vaso com cena de A s


rãs, de Aristófanes
(Baldry, H.C. A Grécia
antiga, cit.i.

Com isso, a comédia antiga desenvolve procedimentos narrati-


vos que serão fundamentais à constituição do campo sério-cômico, do-
mínio das representações marcadas pelo riso.

ATIVIDADE DE ESTUDO DE TEXTO

1. Leia o fragmento da peça As nuvens, de Aristófanes. Siga a


seguinte orientação para a leitura:.
Nesta peça de Aristófanes há uma experimentação de gran-
de parte dos conceitos e posturas que fizeram parte de nossa ex-
posiçãq teórica. O alvo do ataque violento de Aristófanes é Só-
crates e o seu método de investigação.
O caráter cómico da representação fica por conta da carac-
terização grotesca do personagem: o grande filósofo Sócrates é
colocado em situações ridículas e seu discurso extremamente ele-
vado é banalizado com frases grosseiras e carregadas de expres-
sões grotescas.
A ridicularização do filósofo fica por conta da atuação de
Estrepsíades, um camponês grosso e ignorante que entende tudo
às avessas, mas consegue convencer Sócrates a aceitá-lo como alu-
no. Seu objetivo é um só: aprender o discurso da dissimulação,
quer dizer, convencer seus credores de que não lhes deve dinhei-
ro. Assim Aristófanes desmascara o método socrático e transfor-
ma em pastiche muitas doutrinas filosóficas.

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Há a ridicularização de outros filósofos como Tales de Mi-
leto, que se dedicava ao estudo de astronomia. Aristófanes in-
clui em sua peça a situação ridícula vivida por Tales de Mileto,
quando, ao caminhar olhando os astros, cai num poço. Nesta ce-
na, Aristófanes consegue produzir o riso que caracterizou seu tea-
tro, que é o riso ambivalente, quer dizer, ao mesmo tempo em
que rimos do ridículo tomamos conhecimento de que já era co-
mum, na época, a preocupação filosófico-científica com relação
aos fenómenos celestes. Isto mostra o enfraquecimento da ima-
gem dos deuses poderosos e invencíveis que nos desenhava a épi-
ca. O ridículo serve para mostrar que estas pessoas estão sujeitas
às mesmas situações que nós, simples mortais. Veja, por exem-
plo, logo no início da peça: descreve-se Sócrates como uma pes-
soa que anda descalça e mora num casebre. Acompanhe, então,
as situações ridículas exploradas por Aristófanes.

AS NUVENS, DE ARISTÓFANES
[...1
Estrepsíades: Olhe ali (aponta a casa de Sócrates). Você está vendo aquel
portinha e aquele casebre?
Fidípides: Estou vendo. Papai, de fato o que é aquilo?
Estrepsíades (Declamando.): De almas sábias é aquilo um "pensatório"...
Lá moram homens que, quando falam do céu, querem convencer de que
é um abafador, que está ao nosso redor, e nós... somos os carvões! Se a
gente lhes der algum dinheiro, eles ensinam a vencer com discursos nas causas
justas e injustas.
Fidípides: Mas quem são eles?
Estrepsíades: Não sei ao certo o seu nome. (Solenemente.) São pensadores
meditabundos, gente de bem!
Fidípides: Ah! Já sei, uns coitados! Você está falando desses charlatães,
pálidos e descalços, entre os quais o funesto Sócrates e Querefonte...
Estrepsíades: Eh! silêncio! Não diga tolices! Mas se você se preocupa um
pouco com o pão de seu pai, por favor, renuncie à equitação e torne-se um
deles.
Fidípides: Não, por Dioniso, não, poderia, nem que você me desse os fai-
sões de Leógoras.
Estrepsíades: Vá, eu imploro! Você, a mais querida das criaturas, vá
aprender!
Fidípides: E que irei aprender para o seu bem?
Estrepsíades: Dizem que no meio deles os raciocínios são dois: o forte, seja
ele qual for, e o fraco. Eles afirmam que o segundo raciocínio, isto é, o
fraco, discursando, vence nas causas mais injustas... Ora, se você me apren-
der esse raciocínio injusto, do dinheiro que agora estou devendo por sua
culpa, dessas dívidas eu não pagaria nem um óbolo a ninguém...
Fidípides: Não poderia obedecer-lhe. Pois não suportaria olhar para os Ca-
valeiros, com as minhas cores raspadas...
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Estrepsíades: Ah, é assim? Por Demetér, então você não há de comer dos
meus bens, nem você, nem o cavalo de trela, nem o puro sangue... Vou
expulsá-lo para fora desta casa... para o inferno!
Fidípides: Mas meu tio Mégacles não há de deixar-me... sem cavalos... Ora,
vou entrar! Você pouco me importa... (Fidípides entra. O velho, sozinho,
encaminha-se para a casa de Sócrates.)
Estrepsíades: Bem, mas é por ter caído que ficarei no chão... Vou invocar
os deuses e instruir-me eu mesmo, frequentando o "pensatório". (Pára).
Então como é que eu, um velho esquecido, e bronco, aprenderei as sutile-
zas das palavras precisas? (Põe-se a andar.) Devo ir. Por que razão todas
essas delongas, e não bato à porta? (Afinal, decide-se.) Filho, filhinho!
Discípulo (Fala de dentro da casa.): Vá para o inferno! Quem bateu à porta?
Estrepsíades (Solene e apavorado.): O filho de Fidão, Estrepsíades de Cicina!
Discípulo (Abrese o pensatório e sai um discípulo, pálido e irritado, dei-
xando a porta entreaberta.): Por Zeus, só pode ser um ignorante, você que
deu um pontapé na porta, assim tão estupidamente, e fez abortar um pen-
samento já encontrado...
Estrepsíades: Desculpe-me, eu moro longe, nos campos. Mas fale-me desse
negócio que está abortado...
Discípulo: Não é lícito dizê-lo, só aos discípulos.
Estrepsíades: Então fale, coragem! Pois eu aqui vim ao "pensatório" para
ser um discípulo...
Discípulo: Vou dizê-lo. Mas deve-se considerá-lo um mistério... Há pouco,
Sócrates interrogava Querefonte sobre uma pulga. Indagava quantas vezes
ela pode saltar o tamanho dos seus próprios pés, porque ela mordeu a so-
brancelha de Querefonte e pulou para a cabeça de Sócrates...
Estrepsíades: Então, como foi que ele mediu?
Discípulo: Com a maior habilidade. Dissolveu cera; depois, tomou a pulga
e mergulhou os seus pés na cera. A seguir, quando a pulga esfriou, ficou
com umas botinhas à moda pérsica; ele descalçou-as e mediu a distância.
Estrepsíades: Ó Zeus soberano, que sutileza de pensamento!
Discípulo: De fato, que diria você se soubesse de um outro raciocínio de
Sócrates?
Estrepsíades: Qual? Conte-me, eu suplico...
Discípulo: Querefonte de Esfétio perguntou-lhe qual a sua opinião, se os
mosquitos cantam pela boca ou pela rabadilha...
Estrepsíades: E que foi que ele disse a respeito do mosquito?
Discípulo: Ele dizia que o intestino do mosquito é estreito; como é aperta-
do, o ar passa por ele com violência e se encaminha diretamente para a ra-
badilha. Ora, como é oco e ligado a esse lugar estreito, o buraco ressoa por
causa da violência do sopro.
Estrepsíades: Ah, então o rabisteco do mosquito é uma trombeta! Seja ele
três vezes bem-aventurado, só por essa "intestigação"... De fato, numa de-
fesa, facilmente seria absolvido quem conhece a fundo o intestino dos mos-
quitos...
Discípulo: Sim, mas há pouco ele foi despojado de um grande pensamento
por uma lagartixa...
Estrepsíades: De que maneira? Conte-me.
Discípulo: Ele investigava os caminhos da Lua e suas evoluções. Então, co-
mo estava de boca aberta, de noite, olhando para cima, uma lagartixa ca-
gou lá do alto do teto...
Estrepsíades: Gozado que uma lagartixa tivesse cagado em Sócrates!...
Discípulo: Ontem mesmo, à tarde, não tínhamos que cear...
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Estrepsíades: Puxa! Então que é que ele manobrou para conseguir comida?
Discípulo: Espargiu sobre a mesa uma cinza fina, dobrou o espeto e, de-
pois, usando-o como um compasso... surrupiou o manto da palestra...
Estrepsíades: Por que então admiramos aquele famoso Tales? Depressa,
abra, abra o "pensatório", e mostre-me logo esse Sócrates, pois tenho von-
tade de aprender! Mas, abra a porta!
[...]

Estrepsíades: Diga-me, então, se realmente são nuvens, que lhes sucedeu,


por que parecem mulheres? (Aponta para o céu.) Aquelas lá pelo menos
não são assim...
Sócrates: Vamos ver, como são?
Estrepsíades: Não sei bem, mas é certo que têm apaiência de flocos de lã
desenrolada e não de mulheres. Não, por Zeus, nem um pouquinho!... Es-
tas aqui têm narizes...
Sócrates: Então responda ao que eu perguntar.
Estrepsíades: Pois diga logo o que quer.
Sócrates: Alguma vez, olhando para o céu, você já não viu uma nuvem se-
melhante a um centauro, a um leopardo, a um lobo ou a um touro?
Estrepsíades: Sim, por Zeus, já vi. E que quer dizer isso?
Sócrates: Elas se transformam em tudo que desejam. Se vêem um fulano
de longa cabeleira, um desses selvagens peludos, como o filho de Xenofan-
to, para ridicularizar a "mania" dele, tomam forma de centauros.
Estrepsíades: Ó Terra, que voz! Como é sagrada, solene e formidável!
Sócrates: Pois de fato só elas é que são deusas, todo o resto são lorotas!
Estrepsíades (Assustado.): Epa! E Zeus, em nome da Terra! Para vocês o
Olimpo não é um deus?
Sócrates: Que Zeus? Não diga tolices! Nem sequer existe um Zeus!
Estrepsíades: Que diz? Mas quem é que chove. Explique-me isto antes de
mais nada.
Sócrates: Elas, é claro! Mas eu vou demonstrá-lo com sólidas provas. Ve-
jamos, pois onde, alguma vez, você já viu Zeus chover sem Nuvens? E, no
entanto, ele deveria chover num céu límpido, sem a presença das Nuvens...
Estrepsíades (Confuso.): Sim, por Apolo, de fato você o comprovou muito
bem com esse raciocínio. E, no entanto, antes eu acreditava verdadeiramente
que era Zeus que urinava através de um crivo... Mas, diga-me, quem é que
troveja, coisa que me faz estremecer?
Sócrates: Elas é que trovejam, quando são roladas...
Estrepsíades (Muito espantado.): De que jeito, homem de todas as audá-
cias...
Sócrates: Quando se enchem de muita água e são obrigadas a mover-se,
cheias de chuva, forçosamente, ficam dependuradas para baixo, e, a seguir,
pesadas, caem umas sobre as outras, arrebentam e estrondeiam.
Estrepsíades: Mas quem é que as obriga a mover-se; por acaso não é Zeus?
Sócrates: Absolutamente. E o turbilhão etéreo.
Estrepsíades (Estupefato.): Turbilhão? Isso me tinha escapado... Zeus não
existe, e no lugar dele agora reina o Turbilhão!... Mas você ainda não me
ensinou nada a respeito do estrondo e do trovão...
Sócrates: Então você não me ouviu dizer que as Nuvens, cheias de água,
quando caem umas sobre as outras, estrondeiam por causa da densidade?
Estrepsíades: Está bem, mas como acreditar nisso?

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Sócrates: Vou explicar-lhe partindo de você mesmo. Nas Panatenéias, quan-
do você se encheu de caldo, depois nunca ficou com o ventre desarranja-
do? E, de repente, um rebuliço não o fez crepitar?
Estrepsíades: Sim, por Apolo, e logo ele me faz um alvoroço terrível e se
desarranja... O caldinho estrondeia como um trovão e berra terrivelmente.
Primeiro devagar, "papa, papa", depois continuando, "papapa, papapa",
e, quando eu me desaperto, ele troveja de uma vez, "papapapapa", assim
como as Nuvens.
Sócrates: Bem, pense bem como você peidou por causa desse ventrezinho
tão pequenino... E este ar, incomensurável, não é razoável que troveje in-
tensamente?
Estrepsíades: Ah! Então é por isso que até os nomes são parecidos, trovão
e peidão... Mas, ensine-me isto, de onde provém o raio relampeando fogo,
ele que, quando nos fere, fulmina alguns e por outros passa de raspão,
deixando-os viver? Pois esse raio, por certo é Zeus quem o atira contra os
perjuros...
Sócrates: Então vamos, o que é que você deseja aprender agora mesmo,
em primeiro lugar, daquelas coisas que nunca lhe ensinaram? Diga-me, se-
rão por acaso as medidas, os versos ou os ritmos?
Estrepsíades: As medidas, eu sim! Pois há pouco fui tapeado por um mer-
cador de farinha numa medida dupla...
Sócrates: Não é isso que lhe pergunto, mas que medida você julga mais be-
la, o trímetro ou o tetrâmetro?
Estrepsíades: Nada me parece superior ao quartilho...
Sócrates: Você diz tolices!
Estrepsíades: Então aposte comigo que o quartilho não tem quatro
medidas...
Sócrates: Vá pro inferno! Como você é bronco e totalmente ignorante! Hum,
talvez possa aprender.os ritmos mais depressa!...
Estrepsíades: De que me servirão os ritmos para o pão de cada dia?
Sócrates: Mas antes disso você deve aprender outras coisas. Quais são exa-
tamente os quadrúpedes machos?
Estrepsíades: Mas eu conheço perfeitamente os machos, se é que não estou
louco... Carneiro, bode, touro, pássaro...
Sócrates: Vê o que lhe está acontecendo? Você chama a fêmea de "pássa-
ro", com o mesmo nome do macho.
Estrepsíades: Como então? Diga-me!
Sócrates: Como?-"Pássaro" e "pássaro"...
Estrepsíades: Sim, por Posidão! E agora como devo chamá-los?
Sócrates: "Pássara" e o outro "passarão".
Estrepsíades: "Pássara". Está bem; pelo Ar!... Nessas condições, só por
este único ensinamento eu vou encher de farinha toda a sua gamelão.
[...]

2. Responda às seguintes questões em seu caderno:


a) Faça um quadro-síntese das cenas apresentadas na peça, se-
guindo a marcação dos diálogos.
b) Vamos exercitar o método socrático nomeando cada uma das
cenas, como se a peça se constituísse por etapas de um raciocí-
nio. (Por exemplo: cena 1 — Necessidade de aprender um tipo
de raciocínio.)

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c) O que é um "pensatório"? Interprete a concepção irónica na
determinação do termo.
d) Interprete a cena 1, quando o pai tenta convencer o filho a
aprender. Considere os motivos, os argumentos, a reação do fi-
lho e a decisão final do pai.
e) Interprete o caráter cómico e paródico da cena 2, consideran-
do sobretudo o rebaixamento de Sócrates e de sua filosofia.
f) Como Sócrates define as nuvens? Considere os aspectos sério
e cómico da definição.
g) Sócrates diz para Estrepsíades que as nuvens tomam a forma
que nós queremos. Interprete esta concepção dentro do contexto
de sua filosofia.
h) Agora conclua este raciocínio: ao denominar a peça como "As
nuvens", o que Aristófanes queria questionar em Sócrates?
i) Como Sócrates ridiculariza a concepção científica dos fenóme-
nos celestes?
j) Em que medida a comédia assimila o sistema de imagem e a
linguagem do baixo material e corporal das festas fálicas celebra-
das por ocasião da colheita na Antiguidade?

OFICINA DE REDAÇÃO
A proposta é a redação de um texto cómico que represente
um posicionamento crítico a respeito de uma determinada situa-
ção. Sugerimos, aproveitando o tema geral da peça de Aristófa-
nes, algo relacionado com a Educação. Por exemplo: a gravida-
de do analfabetismo num mundo dominado pela escrita e má-
quinas digitais. (Esta é apenas uma sugestão. Você pode criar seu
tema.)
Escreva uma história seguindo as seguintes orientações:
a) insira este tema sério em situações cómicas, deixando em pri-
meiro plano o ridículo e o grotesco;
b) explore a linguagem cómica colocando palavras solenes em con-
traste com expressões vulgares;
c) mostre como a ignorância pode rebaixar os assuntos e concei-
tos sérios e elevados;
d) não dispense a ironia nem o sarcasmo.
Este texto pode ser uma narrativa discursiva ou um diálo-
go, como no texto teatral.
Mostre sua redação para seus colegas.

A COMÉDIA NOVA
Historicamente, a conquista da Grécia por Felipe da Macedónia
pôs fim aos fundamentos de uma cultura sagrada, obrigando o homem

227
a se desgarrar dos deuses e baixar os olhos para a terra, de onde deve-
ria extrair riquezas e utilidades naturais. Todo este processo atinge seu
momento glorioso quando da fixação do Império Romano.
Em Roma, a realidade cultural e social era bem diferente daque-
la da Grécia antiga. O fortalecimento do Império dependia do seu po-
derio e grandeza materiais, obtidos às custas de muito trabalho e suor
dos escravos e humildes. Para eles, os ditadores, sedentos de glória,
prometiam "pão e circo" — abafando, deste modo, a revolta com o
riso.
Ora, foi exatamente este golpe de misericórdia que os autores ro-
manos deram na tragédia, favorecendo o surgimento de um outro tipo
de comédia. O povo empenhado na construção do glorioso Império
Romano precisava de espetáculos recheados de entretenimento para
os olhos e para os ouvidos, sem muito trabalho para o cérebro e com
pouco apelo à alma. Valorizava-se, assim, não aquilo que o ator iria
dizer em cena, mas a exuberância dos cenários, o colorido dos figuri-
nos, a profusão dos participantes, o riso fácil e a música excitante. Es-
tava fundado assim o teatro profano, oposto a tudo que fosse sagrado
e sério e também ao teatro literário.
O teatro profano surgiu como criação da cultura popular iletra-
da, aquela que não conhecia o latim eclesiástico e literário. Por isso
era um teatro para ser visto, baseado na mímica, no canto e no gesto.
Na ausência de um texto previamente elaborado, ganhava importân-
cia a improvisação da fala e a performance do ator. O riso surgia pelo
gesto e pela dança. Este é, até hoje, o caráter do mimo, um tipo de
representação cómica baseada nos gestos, na mímica e na dança, per-
mitindo aos atores explorarem as formas cómicas do corpo. Com base
neste tipo de representação, Charles Chaplin criou o seu Carlitos, o
genial vagabundo da época em que o cinema ainda não tinha aprendi-
do a falar.

OFICINA DE CRIAÇÃO
DE CARICATURAS E MÁSCARAS

O objetivo primordial deste estudo é chamar a atenção pa-


ra um modo diferente de dizer coisas sérias. Com isso, estamos
chamando a atenção para o segundo sentido, para o subentendi-
do, para o raciocínio relacional e, por que não dizer, para a ma-
lícia, entendida aqui como esperteza e vivacidade em ver e ouvir
as coisas do mundo. Estes sentidos, de certo modo, não são re-
quisitados pelos géneros sérios exatamente por apresentarem tu-
do pronto, já dito e constituído. Isso não acontece com nenhu-

228
ma intervenção cómica, que só nasce na fronteira entre dois cam-
pos paralelos.
Na verdade, o ensino e a vida acabam reforçando apenas
o sério; por isso os sentidos da percepção cómica devem ser con-
tinuamente exercitados. Mas o mundo, como o homem, não é
apenas o sério, como apontamos anteriormente. Tudo que venha
a dinamizar esta esfera será amplamente favorável.
Pensamos que o campo de atividades nesta área deve ser
o mais diversificado possível. Por isso nossas propostas serão
igualmente variadas, mas não aleatórias. O mundo do riso é o
mundo do duplo sentido e isso está pressuposto em cada ativida-
de ou exercício, por mais disparatado que ele possa parecer. Va-
mos pôr em prática todos os recursos que os próprios comedió-
grafos experimentaram ao criar suas peças. Muita coisa, eviden-
temente, extrapola o campo do verbal, mas tudo tem a ver com
o exercício consciente da linguagem e com a liberdade da ima-
ginação.
Caricaturas > i _ fsj es te exercício, você deve criar, graficamente, os traços de uma
pessoa, que pode ser seu colega, se o exercício foi feito em clas-
se. Não se preocupe com a perfeição e sim com a realização e
o processo criativo. A classe pode consultar o professor e propor
uma exposição dos desenhos.

Você sabia que muitos dramaturgos, cineastas e artistas visuais dedicam grande parte de
seu tempo à criação de desenhos e de caricaturas para os personagens que têm em men-
te? Somente depois disso é que saem à procura das pessoas adequadas para representar
tais personagens.

Máscaras > 2. Vamos, agora, reproduzir rosto humano ou não. Há uma ga-
leria de figurações neste sentido. A proposta é que cada aluno
consiga desenvolver máscaras de expressões humanas, animais e
seres fictícios ou imaginários. Você pode modular estas expres-
sões com massa de papel, gesso, barro ou outro ingrediente. (Con-
sulte o professor de Artes, para obter maiores informações.) De-
pois de confeccionar a máscara, dê os retoques finais, inclusive
com pinturas.

Teatro literário deve ser


entendido como o teatro
A COMEDIA MODERNA
que se utiliza de um tex-
to escrito; já o teatro po- É aquela que surgiu a partir do Renascimento, quando já eram
pular é aquele baseado
bem delimitadas as fronteiras entre o teatro literário erudito e o teatro
popular.
em gestos, mímicas, mo-
vimentação e improviso.

229
Como os géneros da cultura oficial esgotam facilmente o reper-
tório de suas formas estabelecidas, a única saída para a renovação está
no apelo às formas da cultura popular. Isto estava muito claro para
os atores romanos. Por isso surgiu, na Itália, por volta do século XV,
a commedia dell'arte — forma de representação teatral que aperfei-
çoou a performance do gesto, mímica, expressão fisionómica dos ti-
pos que os atores representavam. Muitos destes tipos tornaram-se po-
pulares durante os três séculos de existência da commedia dell'arte. Mui-
tos destes personagens viraram figuras de nossas festas carnavalescas.
Havia o Arlequim, que era um criado doméstico muito trapalhão; a
Colombina, personagem feminina endiabrada; o Polichinello, vagabun-
do apaixonado e sonhador — tornou-se Pierrot na França; o Avaren-
to, o criador de artimanhas para conseguir dinheiro; o Doutor, aquele
que não .tinha dinheiro mas era muito culto. Paul vestido de arlequim,
Pablo Picasso.
Estes "esqueletos humanos" vazios que a commedia dell'arte
criou foram o ponto de partida de muitos autores que se dedicaram
ao teatro, como o francês Molière (1622-1673). Para Molière a comé-
dia tinha um objetivo muito claro: divertir os homens, corrigindo-os.
Assim, procurou representar em suas peças os vícios humanos, intro-
duzindo na França a comédia de costumes — género cómico que se
tornou bastante popular, graças à simplicidade dos temas desenvolvi-
dos e à provocação do riso fácil. No Brasil do século XVIII foi o géne-
ro que Martins Pena escolheu para avaliar nossos costumes nascentes
através do riso.

A COMEDIA NA LITERATURA BRASILEIRA


Martins Pena (1815-1848) é o introdutor da comédia no Brasil.
Sua opção foi a comédia de costumes, quer dizer, buscava assunto pa-
ra suas peças nos hábitos e costumes da sociedade carioca em meados
do século XIX. Com isso, conseguiu criar oposições favoráveis à re-
presentação do sério através do cómico. Em suas peças, Martins Pena
sempre coloca em contraste dois pólos: a capital e a província, o caipi-
ra e o metropolitano, o culto e o ignorante.
Martins Pena concebeu suas peças dentro do modelo satírico for-
mulado por Aristófanes; daí o aspecto político predominar em suas
criações. Seus personagens são tipos sociais, caricaturas de traços so-
ciais coletivos. Com isso, ele pretende desenvolver um teatro didático.
Embora a linguagem teatral de Martins Pena não valorize a es-
pontaneidade da fala — suas frases submetem-se ao rigor da literarie-
dade — suas peças são farsas que visam provocar o riso fácil através
de alguns procedimentos comuns: disfarce, esconderijo, erro naiden-
tificação de pessoas. Estes recursos foram explorados também por Ar-
tur de Azevedo em suas peças, por exemplo, Como se fazia um de-
putado.

230
Tobias — Qual cera! E os olhos de que são? São também de cera!
Não pode ser; eles estão espiando a gente!
Inês — Os olhos são de vidros. Estas bonecas servem para mostrar
a moda dos penteados.
Tobias — Nessa não creio eu. Era preciso que o filho de meu pai não
as tivesse visto. Eu não mais quisera ateimar convosco.
Inês, à parte — Como é tolo! (A Tobias:) Quando quiser algo, cha-
me por alguma das pessoas desta casa, que será prontamente obedecido.
Tobias — Muito agardecido à senhora. (Inês vai-se.)

CENA VIII
Tobias.
[Interrompe-se neste ponto o texto dé Martins Pena]

OFICINA DE REDAÇÃO

Como você viu, a peça de Martins Pena ficou inacabada.


Propomos que você, após entender o espírito da situação esbo-
çada, termine a peça. Pense na continuidade da história, imagi-
nando as situações vividas pelo caipira ao descobrir o roubo, a
falsidade da jóia adquirida e os apuros pelos quais passou ao ter
de conseguir dinheiro para voltar para sua cidade.
Além das situações, uma fonte certa de riso é a aparência.
Que tipo de roupas e trajes poderiam provocar o riso? Pense tam-
bém nos contrastes causados pelo uso da moda e dos trajes fora
de moda. Mas, não pare aí. Pense que nas comédias a música
ajuda a criar a comicidade. Que tal explorar músicas satíricas que
funcionem como "coro" para a situação representada? Ou se-
não recuperar músicas sertanejas que possam entrar para o espí-
rito da peça?
Finalmente, pense na linguagem. A fala caipira tem sido alvo
constante de muita gozação. Pense numa possibilidade inventi-
va, cómica e séria para a representação desta fala. Cuidado para
não cair em estereótipos, isto é, deformações da escrita que não
correspondem à fala. Enfim, estas são pequenas dicas para acen-
der sua imaginação e criar o riso.
Escreva seu texto seguindo a forma usada para os textos tea-
trais. Se você achar muito difícil fazer a redação sozinho, faça-a
em parceria com um colega, depois mostre-a para os outros alu-
nos da classe.

237
ATIVIDADEÏ>E PESQUISA

Escolha um programa humorístico de televisão que apre-


sente a ridicularização de tipos sociais ou políticos. Em seguida,
anote em seu caderno os seguintes dados:
a) nome e descrição do personagem;
b) falas e expressões usadas por esse personagem;
c) descreva seus movimentos, tiques expressivos ou alguma gesti-
culação cómica;

d) tente representar esse personagem para a classe.

SÍNTESE DO CAPÍTULO
* O riso deve ser entendido como a força criadora importante na deli-
mitação dos géneros literários.
* A clássica teoria dos géneros considera géneros elevados aqueles cons-
truídos pelo tom sério, relegando as demais formas, inclusive as cómi-
cas, à categoria dos géneros inferiores.
* A comédia foi, no mundo antigo, uma manifestação que colocou em
xeque o poder das representações sérias, como a epopeia e a tragédia.
* O espírito favorável ao surgimento da comédia é aquele em que o
homem já não acredita na força absoluta dos deuses. O questionamento
desta ordem de coisas cria um ambiente ideal ao destronamento do sé-
rio e a evolução de formas cómicas.
* Os géneros cómicos não são manifestações do riso fácil, mas do espí-
rito crítico com relação ao sério. É o riso ambivalente, que não elimi-
na a reflexão, não paralisa a efervescência de ideias.
* Há muitos géneros literários no campo do sério-cômico: a sátira, a
alegoria, o mimo, a farsa, o romance, o conto, a crónica.
* A comédia antiga é um ritual profano: um culto consagrado ao tra-
balho do homem na terra, não aos deuses.
* A comédia nasceu dos cantos fálicos: cânticos de exaltação que os
agricultores entoavam nas festas primaveris por ocasião da colheita.
O falo é o símbolo da fecundação neste ritual profano, levado a sério.
* O procedimento básico da comédia tanto nas imagens como na lin-
guagem e no tema é o rebaixamento de tudo que é elevado para o pla-
no material e corporal.
* A comédia cria assim um mundo às avessas, onde tudo aparece in-
vertido.
* A comédia na literatura brasileira tende para a ridicularização dos
tipos sociais, políticos e de alguns costumes. Por isso é chamada co-
média de costumes.

238
13
CRONICA:
UMA PROSA Ä TOA
A CRÓNICA COMO UM GÉNERO LITERARIO
Imagine uma dessas ocasiões tão comuns em nosso dia-a-dia quan-
do, sem querer, somos envolvidos em situações ridículas. Sem pensar,
confundimos informações, nos enganamos, trocamos uma frase por
outra, enfim, por quase nada embaralhamos o curso normal das coi-
sas. Estes momentos brevíssimos, que não merecem atenção de nossa
parte, são o ponto de partida para a criação de muitas anedotas, como
esta, por exemplo:
Certa vez, caminhava eu por uma avenida de São Paulo, onde vinha < DÉCIO PIGNATARI,
de ser inaugurado um luxuoso hotel, quando, de passagem, abeirou-se de P- 47, (581.
mim um cidadão que, sorrindo, me disse:
— Veja o senhor. Agora há pouco, um sujeito ali atrás chegou e me
perguntou onde ficava o Hotel Camundongo. Logo estranhei... mas aí me
lembrei do nome desse hotel novo e esclareci o sujeito que se tratava do
Hotel Cómodos de Ouro e que ficava logo ali adiante.
Satisfeito o cidadão, sempre sorrindo, esticou os passos e se afastou
de mim. Tratava-se, em verdade, do Hotel Comodoro...
Se o imaginário popular valoriza exatamente estes momentos para
criar uma manifestação cómica, é porque eles podem dizer muitas ou-
tras coisas. Ora, se os deuses povoaram a literatura antiga e chegaram
até nós como a paisagem típica deste mundo, este tipo de situação con-
fusa é fruto de uma época em que as pessoas têm muita pressa. O rit-
mo frenético da vida faz com que nem percebamos direito o que acon-
tece a nossa volta. Queira ou não, esta é a paisagem deste final de sé-
culo. E isso só podia dar em crónica, quer dizer, numa manifestação
de linguagem que fez os acontecimentos pitorescos do cotidiano vira-
rem literatura. Os escritores de língua portuguesa distinguem as histó-
rias curtas em conto, crónica e novela, exatamente porque as tais his-
tórias modificaram o quadro dos géneros clássicos, misturando elemen-
tos dos vários modos composicionais.
A crónica não é apenas um produto da língua falada no Brasil;
ela é manifestação de algumas particularidades de nossa cultura. Já
tivemos oportunidade de mostrar que cada povo, em momentos espe-
cíficos de sua história, exprime de modo muito particular seu relacio-
namento com o mundo. Assim como estudamos manifestações de po-
vos de épocas distantes, chegou a hora de estudarmos a manifestação
de nosso povo e de nossa época. Deste modo, você não vai ficar com
aquela impressão de que somente o tempo passado e os outros povos
foram capazes de produzir géneros literários. Entender as manifesta-
ções literárias de nosso tempo e de nossa gente também faz parte de
nosso trabalho.
Em primeiro lugar, é importante entender quais são as particula-
ridades de nossa cultura que favoreceram o surgimento da crónica en-
quanto género literário. Para isso temos de nos deslocar para a segun-
da metade do século passado, quando muitos escritores tinham como
veículo certo para a publicação de seus textos apenas o jornal. Foi no
jornal que autores como Machado de Assis, Manuel Antônio de Al- Machado de Assis.

240
meida e tantos outros exibiam para um público restrito de leitores —
a classe média do Rio de Janeiro — suas criações literárias. Um ro-
Folhetim: correspondia a mance, por exemplo, era publicado em capítulos nos folhetins, como
uma seção do jornal, si- nossa atual novela de televisão.
tuada na parte inferior da
página, também chama- Muitos destes escritores, Machado de Assis, por exemplo, traba-
da gazetilha. Nesta se- lhavam no jornal, escreviam ou se encarregavam de outras atividades
ção se publicavam, dia-
riamente, o s capítulos da imprensa escrita da época. Esse ambiente que misturava notícia e
dos romances. ficção criou condições para o surgimento da crónica, que não é pro-
priamente a notícia, mas um artigo sobre a notícia, escrito com uma
linguagem não puramente informativa, mas num tom mais coloquial,
como o da anedota apresentada inicialmente. O cronista discutia so-
bre algum acontecimento como se estivesse conversando com um amigo.
Ao ocupar o espaço do Assim, a crónica se fixa como um género literário que nasce nos
jornal, a crónica enquan-
to género literário sofreu limites entre o sério e o cómico, tal como a comédia na Antiguidade.
um processo de rebaixa- Aliás, embora os tempos sejam bem outros, seus ingredientes são co-
mento. Sua origem literá-
ria nobre foi totalmente muns: a fonte da crónica é a atualidade viva e dinâmica do presente,
anulada. S e antes, lá pe-
lo século X V , a crónica
assim como sua expressão lingüística é a sátira e a paródia.
era um documento que

A CRÓNICA COMO UM GÉNERO SÉRIO-CÔMICO


registrava a vida e as rea-
lizações dos reis e no-
bres, no século XIX ela
se torna uma narrativa
sobre episódios comuns Tudo o que afirmamos a respeito da comédia será importante para
das pessoas anónimas. definirmos a crónica dentro do campo sério-cômico. A necessidade de
Sua linguagem perde a
seriedade e tende mais focalizar o homem e seus costumes sociais através de um riso irónico
ao anedótico do conta-
ambivalente é fundamental também para a crónica. Basta transferir
o ambiente espaço-temporal. Como a crónica surge no Rio de Janeiro,
dor de c a s o s .

o que explica o fato de grande parte dos cronistas ser carioca, vamos
nos concentrar neste cenário para entender as características composi-
cionais deste género.
Vamos recorrer à mitologia, sim, por que não? Mas não à mito-
logia grega e sim à mitologia brasileira sobre a distinção dos grupos
sociais de acordo com a cidade em que elas vivem. O carioca é sempre
o que sabe viver, o paulistano só pensa em trabalhar, o mineiro é sos-
segado, o nordestino é miserável, o sulista é carrancudo e os outros
são os outros. Por mais grosseira que seja tal distinção ela é uma reali-
dade muito presente em nossa cultura. Na peça de Martins Pena, apre-
sentada no capítulo sobre a comédia, o caipira mineiro é o otário, en-
quanto o cigano carioca é o esperto, lembra-se?
Há quem diga que Ma-
Pois foi o espírito humorístico, malicioso, carnavalesco do ca-
rioca que deu o tom sério-cômico à crónica.
chado de A s s i s , um dos
nossos primeiros cronis-
tas a se tornar grande es-
A crónica, contudo, não está presa à notícia. A crónica literária
se distingue da notícia porque se fixa não nos fatos que podem causar
critor, revolucionou o ro-
mance enquanto género
porque, além da linha-
impacto, mas nos acontecimentos do dia-a-dia que passam despercebi-
dos — como aquele narrado na anedota. São estes brevíssimos mo-
gem que seguia, o san-
gue lhe corria pela veia
da ironia.
mentos, estes instantes fugazes, que abrem a perspectiva para se re-
pensar grandes causas das questões humanas. Por isso o componente
emocional, ainda que irónico, é o que traz uma palpitação diferencia-
da a este texto e o leva para bem longe da notícia e da reportagem que
o gerou.

241
O poeta Vinicius de Moraes (1913-1980) escreveu, num texto chamado "O exercício da cróni-
ca", que: "num mundo doente a lutar pela saúde, o cronista não se pode comprazer em ser
também ele um doente, em cair na vaguidão dos neurastenizados pelo sofrimentofísico;na falta
de segurança e objetividade dos enfraquecidos por excessos de cama e carência de exercícios. Sua
obrigação é ser leve, nunca vago; íntimo, nunca intimista; claro e preciso, nunca pessimista. Sua
crónica é um copo d'água em que todos bebem, e a água há que ser fresca, limpa, luminosa
para a satisfação real dos que nela matam a sede".

Se ainda está difícil para você entender como é possível tratar de


assuntos sérios de uma forma descontraída, veja o que se pode apren-
der com um cronista já "descolado" no campo. Luís Fernando Verís-
simo, que ainda mantém colunas nos periódicos do país, escreveu uma
crónica dramatizando esta desmontagem do sério. Dentro de uma si-
tuação rigorosamente séria ele introduz situações cómicas, chegando
ao absurdo. Confira.

ATIVIDADE DE LEITURA
E INTERPRETAÇÃO DE TEXTO

1. Leia o texto " O recital", de Luís Fernando Veríssimo.

Uma boa maneira de começar um conto é imaginar uma situação ri-


gidamente formal — digamos, um recital de quarteto de cordas — e depois
começar a desfiá-la, como um pulôver velho. Então, vejamos. Um recital
de quarteto de cordas.
O quarteto entra no palco sob educados aplausos da seleta plateia.
São três homens e uma mulher. A mulher, que é jovem e bonita, toca viola.
Veste um longo vestido preto. Os três homens estão de fraque. Tomam os
seus lugares atrás das partituras. Da esquerda para a direita: um violino,
outro violino, a viola e o violoncelo. Deixa ver se não esqueci nenhum de-
talhe. O violoncelista tem um grande bigode ruivo. Isto pode se revelar im-
portante mais tarde, no conto. Ou não.
Os quatro afinam seus instrumentos. Depois, silêncio. Aquela expec-
tativa nervosa que precede o início de qualquer concerto. As últimas tossi-
das da plateia. O primeiro violinista consulta seu pares com um olhar dis-
creto. Estão todos prontos. O violinista coloca o instrumento sob o queixo
e posiciona seu arco. Vai começar o recital. Nisso...
Nisso, o quê? Qual é a coisa mais insólita que pode acontecer num
recital de um quarteto de cordas? Passar uma manada de zebus pelo palco,
por trás deles? Não. Uma manada de zebus passa, parte da plateia pula
das suas poltronas e procura as saídas em pânico, outra parte fica paralisa-
da e perplexa, mas depois tudo volta ao normal. O quarteto, que manteve-
se firme em seu lugar até o último zebu — são profissionais e, mesmo, aquilo
não pode estar acontecendo —, começa a tocar. Nenhuma explicação é pe-
dida ou oferecida. Segue o Mozart.
Não. É preciso instalar-se no acontecimento, como a semente da con-
fusão, uma pequena incongruência. Algo que crie apenas um mal-estar, de
início e chegue lentamente, em etapas sucessivas ao caos. Um morcego que

242
pousa na cabeça do segundo violinista durante um pizzicato. Não. Melhor
ainda. Entra no palco um homem carregando uma tuba.
Há um murmúrio na plateia. O que é aquilo? O homem entra, com
sua tuba, dos bastidores. Posta-se ao lado do violoncelista. O primeiro vio-
linista, retesado como um mergulhador que subitamente descobriu que não
tem água na piscina, olha para a tuba entre fascinado e horrorizado. O que
é aquilo? Depois de alguns instantes em que a tensão no ar é como a corda
de um violino esticada ao máximo, o primeiro violinista fala:
— Por favor...
— O quê? — diz o homem da tuba, já na defensiva. — Vai dizer que
eu não posso ficar aqui?
— O que o senhor quer?
— Quero tocar, ora. Podem começar que eu acompanho. Alguns ri-
sos da plateia. Ruídos de impaciência. Ninguém nota que o violoncelista
olhou para trás e quando deu com o tocador de tuba virou o rosto em se-
guida, como se quisesse se esconder. O primeiro violinista continua:
— Retire-se, por favor.
— Por quê? Quero tocar também.
O primeiro violinista olha nervosamente para a plateia. Nunca em
toda a sua carreira como líder do quarteto teve que enfrentar algo pareci-
do. Uma vez um mosquito entrou na sua narina durante uma passagem de
Vivaldi. Mas nunca uma tuba.
— Por favor. Isto é um recital para quarteto de cordas. Vamos tocar
Mozart. Não tem nenhuma parte para a tuba.
— Eu improviso alguma coisa. Vocês começam e eu faço o um-pá-pá.
Mais risos da plateia. Expressões de escândalo. De onde surgiu aque-
le homem com uma tuba? Ele nem está de fraque. Segundo algumas ver-
sões veste uma camiseta do Vasco. Usa chinelos de dedo. A violista sente-
se mal. O violinista ameaça chamar alguém dos bastidores para retirar o
tocador de tuba a força. Mas ele aproxima o bocal do seu instrumento dos
lábios e ameaça:
— Se alguém se aproximar de mim eu toco pof\
A perspectiva de se ouvir um pof naquele recinto paralisa a todos.
— Está bem — diz o primeiro violinista. — Vamos conversar. Você,
obviamente, entrou no lugar errado. Isto é um recital de cordas. Estamos
nos preparando para tocar Mozart. Mozart não tem um-pá-pá.
— Mozart não sabe o que está perdendo — diz o tocador de tuba,
rindo para a plateia e tentando conquistar a sua simpatia.
Não consegue. O ambiente é hostil. O tocador de tuba muda de tom.
Torna-se ameaçador:
— Está bem, seus elitistas. Acabou. Onde é que vocês pensam que
estão, no século XVIII? Já houve 17 revoluções populares depois de Mo-
zart. Vou confiscar estas partituras em nome do povo. Vocês todos serão
interrogados. Um a um, pá-pá.
Torna-se suplicante:
— Por favor, só o que eu quero é tocar um pouco também. Eu sou
humilde. Não pude estudar instrumento de corda. Eu mesmo fiz esta tuba,
de um Volkswagen velho. Deixa...
Num tom sedutor, para a violista:
— Eu represento os seus sonhos secretos. Sou um produto da sua ima-
ginação lúbrica, confessa. Durante o Mozart, neste quarteto antisséptico,
é em mim que você pensa. Na minha barriga e na minha tuba fálica. Você
quer ser violada por mim num allegro assai, confessa...
Finalmente, desafiador, para o violoncelista:
— Esse bigode ruivo. Estou reconhecendo. É o mesmo bigode que
eu usava em 1968. Devolve!
O tocador de tuba e o violoncelista atracam-se. Os outros membros
do quarteto entram na briga. A plateia agora grita e pula. É o caos! Simbo-

243
lizando, talvez, a falência final de todo o sistema de valores que teve início
com o Iluminismo europeu ou o triunfo do instinto sobre a razão ou, ain-
da, uma pane mental do autor. Sobre o palco, um dos resultados da briga
é que agora quem está com o bigode ruivo é a violista. Vendo-a assim, o
tocador de tuba pára de morder a perna do segundo violinista, abre os bra-
ços e grita: "Mamãe!"
Nisso, entra no palco uma manada de zebus.

2. Depois da leitura, responda em seu caderno: qual é a situação


séria e os acontecimentos que a tornaram cómica?
3. Explique também a tensão criada nesse momento.

A INFLUÊNCIA DAS MANCHETES NAS CRÓNICAS


Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) revela um lance ge-
nial nesse sentido. Escreva crónicas que têm tudo a ver com o noticiá-
rio de jornal, mas não são jornal. Suas crónicas incorporam a man-
chete de jornal, criando muitos títulos curiosos, que atraem o leitor
para a leitura do texto. Além disso, ele é capaz de provocar o interesse
de seu leitor com frases-slogans, típicas do texto publicitário, reprodu-
zindo como as pessoas assimilam frases feitas que os meios de comuni-
cação, principalmente a televisão, veiculam. Às vezes, nem se entende
direito a frase, mas todos falam. De repente, pelo menos enquanto se
repete a frase, se é um pouco o personagem da televisão. Pronto, a
pessoa comum virou ficção por um segundo. Veja como tudo isto está
realizado nesta crónica: preste atenção no título "manchete", na frase-
slogan e no personagem.

ATIVIDADE DE LEITURA
E INTERPRETAÇÃO DE TEXTO

1. Leia o texto " O professor Limão", de Carlos Drummond de


Andrade.

— Olha o Limonex, vem geladinho. A melhor pedida contra a po-


luição!
Como um banhista lhe perguntasse que é que tem a ver o suco de
frutas cítricas com a poluição, o vendedor respondeu:
— Primeiro, com a devida licença, me favoreça uma sombrana sua
barraca. Isso de pé na areia e lata nas costas o dia inteiro é fogo na Martini-
ca. Ai! Obrigado, ilustre.
Depositou no chão sua mercadoria, sentou-se, abriu em leque os de- Carlos Drummond de An-
ãos dos pés, para gozar melhor da bênção daquela sombra. E ficou um ins- drade n902-1987).

244
tante olhando o mar, desligado da obrigação de vender refrigerantes, ba-
nhista ele também, sócio da onda e do sol.
— Então? Explica o negócio.
— Da polu? Ora, é o seguinte. Poluição não dá só na água, por cau-
sa do esgoto, e no ar, por causa da fumaça. Isto é a poluição de fora, o
doutor sabe. Tem também a poluição de dentro, a imundície do coração,
a fumaça, os gases, essa porcaria toda que a gente carrega no miolo da gen-
te e os outros não manjam, que a gente mesma não manja, mas funciona.
E envenena o corpo e o fundo do fundo de dentro. Morou?
— Mais ou menos. E o limão?
— Ora, doutor, o limão corta. Limão é fruta sagrada, tem um prin-
cípio ácido que derrete tudo quanto é impureza. Sujeira de dentro não po-
de com limão. O que eu digo afianço. Tudo isso é muito velho e sabido
dos que sabem. De novo só tem essa palavra poluição, que eu comecei a
empregar em dezembro, porque está na onda.
— Antes, o que é que você dizia?
— Eu digo o que me vem na boca. Louvado seja o Senhor do Bon-
fim, minha boca não é de ofender as madamas e cavalheiros. Antes de en-
trar nessa jogada de vender limonex, eu já respeitava o limão como limpa-
dor da alma. Aconteceu comigo, o doutor acredite. Andei uns tempos do
lado do demo, com raiva de uma nega que me passou pra trás. Eu via a
nega gingar agarrada com outro, e tinha vontade de cortar os dois em fatia
de presunto, sabe como é? Fininho, fininho. Me dominava, de que manei-
ra? Infernando a vida dos outros. Pontapé no gato, pontapé no cachorro,
cacholeta no vizinho. Botava pra correr quem viesse me dar conselho. Me
encarei no espelho e taquei um murro nele: a mão ficou uma ferida. E ou-
tros etcéteras. Nisso a minha nega (porque eu já tinha outra nega no lugar
daquela, naturalmente) me deu pra beber um copo de caldo de limão puro
e disse: "Toma de um gole, Severino, e lava tuas mazelas com o poder de
Salomão encoberto no limão". Fiz uma careta, engoli. Quando acabei, es-
tava rindo, rindo pra nega, rindo pro gato e pro vizinho, rindo pra tudo,
uma felicidade. Nunca mais pensei com raiva na tal crioula dos meus
pecados.
— Bebeu e mudou, na hora?
— Bom, na hora, na hora mesmo, não. Me senti mais pacificado,
isso foi. E toda manhã a nega me dava um copo. No fim de um mês, eu
era uma limpeza de alma, um jardim de flores naturais. Aí me ofereceram
esse serviço de limonex. Como que não havia de topar? Topei. Salve o limão.
— É admirável.
— Não é? Então, vendo o meu limonex e dou de presente a notícia
desse bem secreto do limão. Conversa que eu tenho com fregueses como
o doutor, que me prestam a devida atenção. No que sou muito grato a sua
senhoria. De tanto falar virtudes do limão, ganhei apelido. Me chamam de
Professor Limão, bondade deles. Tem aí um colega que é o Doutor Limão,
um cara gozado, eu cá trabalho na base da seriedade. Na ciência do positivo.
E, despedindo-se:
— Com a devida licença, muito obrigado, cidadão. Vou pra forna-
lha. Professor Limão, às suas ordens, do Leme ao Posto Seis, no Fogo do
verão.

2. Agora, responda em seu caderno:


a) Qual é a manchete e qual é a frase-s/oga« da crónica?
b) Como esta frase chama a atenção do leitor?
c) Quais foram os argumentos que o personagem apresenta ao
banhista para justificar sua frase?

245
AS FORMAS COMPOSICIONAIS DA CRÓNICA
Segundo o crítico Jorge de Sá, num estudo sobre a crónica tal < JORGE DE SÁ, (64).
como foi e é praticada pelos cronistas cariocas, a crónica é um género
literário que permite várias formas composicionais: do humorismo ao
lirismo reflexivo; da sátira de costumes à crítica mordaz; do discurso
político ao diário confessional. Por isso o pitoresco, o lirismo, o hu-
mor, a parodia e a crítica são os aspectos fundamentais da crónica.
O caráter episódico
A escolha do pitoresco reflete uma valorização do episódico, não
das grandes ações heroicas sempre valorizadas pela literatura. Os epi-
sodios casuais do cotidiano vivido por seres comuns é que se tornam
os heróis do género.
Para captar a dimensão do pitoresco é preciso congelar o tempo,
deixando bem visível este momento, tirando o máximo de proveito da
falta de compromisso para com o futuro. Só assim os fatos insignifi-
cantes mostram sua grandiosidade, seu lado sensível e também seu hu-
mor sério ou cómico, como nesta crónica de Machado de Assis
(1839-1908), publicada em 1903, mas que mantém uma atualidade in-
vejável.

ATIVIDADE DE LEITURA
E INTERPRETAÇÃO DE TEXTO

1. Leia a crónica de Machado de Assis.

27 de agosto
Quando eu cheguei à Rua do Ouvidor e soube que um empregado
do correio adoecera do cólera, senti algo parecido com susto, se não era
ele próprio. Contaram-me incidentes. Nenhum hospital quisera receber o
enfermo. Afinal fora conduzido para o da Jurujuba, e insulado, como de
regra.
Conversei, para distrair-me, mas não estava bom. Podia estar me-
lhor. No bonde, quando me recolhia, eram seis horas da tarde, havia já
três casos de cólera, — o do correio, o de uma senhora que estava com-
prando sapatos, e o de um carroceiro na Saúde. Na Lapa entrou um ho-
mem, que me disse ter assistido ao caso postal. A figura do doente metia
medo. Chegaram a ver o bacilo...
— O bacilo? perguntei admirado.
— Sim, senhor, o bacilo vírgula; era assim, disse ele, virgulando o
ar com o dedo indicador, — e foi o diabo para matá-lo. Ele corria, abaixo
e acima, no ar, no chão, nas paredes, metia-se por baixo das mesas, nos
chapéus, nas malas, em tudo. Felizmente, tinham-se fechado as portas, e
um servente com a vassoura deu cabo do bicho. Aquele não pega outro.

246
Examinei bem o homem, que podia ser um debicador, mas não era.
Tinha a feição pura do crédulo eterno. Fosse como fosse, não fiquei me-
lhor do que estava na Rua do Ouvidor, e cheguei a casa sorumbático. Jan-
tei mal. De noite, li um pouco de Dante, e não fiz bem, porque, no círculo
de voluptuosos, aqueles versos
E como i gru van cantando lor lai,
Facendo in aere di sè lunga riga,
foram a minha perseguição durante o pesadelo, um terrível pesadelo que
me acometeu entre uma e duas horas.
Com efeito, sonhei que era esganado por uma vírgula, um bacilo, o
próprio bacilo do cólera, tal qual o descrevera o homem do bonde. Morto
em poucos minutos, desci ao inferno, enquanto cá em cima me amortalha-
vam, encaixotavam e levavam ao cemitério. No inferno, depois de atraves-
sar vários círculos, fui dar a um, cujo ar espesso era povoado das mais in-
fames criaturas que é possível imaginar. Era uma longa fila de bacilos, ta-
manhos como um palmo; e não só o vírgula, mas todas as figuras da pon-
tuação.
E come i gru van cantando lor lai
cantavam eles uma trova, sempre a mesma, meia triste, meia escarninha.
O que dizia a trova, não sei; era uma língua estranhíssima. Vulto humano
nenhum; cuidei que ia viver ali perpetuamente, e não pude reter as lágrimas.
Nisto vi ao longe duas sombras, que se aproximaram lentamente e
me pegaram na mão. — "Sou Epicuro, disse-me uma delas; este é Demó-
crito, que recebeu de outro a doutrina dos átomos, a qual eu perfilhei, e
que tu, após tantos séculos, vais concluir. Fica sabendo que estes bacilos
são os próprios átomos em que fizemos consistir a matéria; por isso disse-
mos que eles tinham todas as figuras, desde as retilíneas até às curvas. Cur-
vo é o tal vírgula que te trouxe a este mundo, do qual vais sair para pregar
a verdade. Vamos dar-te o batismo da filosofia.
Epicuro assobiou. Correram dois bacilos, forma de parênteses, e
fecharam-me entre eles, como se faz na escrita (assim); depois chegou o ba-
cilo da interrogação, a que não pude responder nada. Vendo o meu silên-
cio, empertigou-se o bacilo da admiração, enquanto os dois parênteses iam-
me fechando cada vez mais, mais, mais. Já me rasgavam as carnes; entravam-
me como alfanjes; eu torcia-me sem voz, até que pude gritar: Epicuro! De-
mócrito! José Rodrigues!
— Que é, patrão?
Abri os olhos, vi ao pé da cama o meu criado José Rodrigues, — aque-
le mesmo ignaro que traduzira debêntures por desventuras. Ao cabo, um
bom homem; pouca suficiência intelectual, mas uma alma... Deu-me água
e ficou ao pé de mim, contando-me histórias alegres, até que adormeci.
De manhã corri aos jornais para saber quantos teriam morrido do
cólera durante a noite; soube que nenhum; suspeita e medo, nada mais. En-
tretanto, choviam conselhos e vinham descrições, não só do bacilo vírgula,
mas de todos os outros, causas das nossas enfermidades.
Li tudo a rir. Sobre a tarde, pensei no anúncio de Epicuro. Era um
sonho vão; mas trazia uma ideia. Quem sabe se eu não tinha o bacilo do
génio... Dei um pulo, estava achada mais uma doutrina definitiva. Ei-la
aqui de graça.
Cada um de nós é um composto de cidades, não da mesma nação,
mas de várias nações e diferentes línguas, um mundo romano. Isto posto,
as moléstias que nos assaltam, são revoluções interiores. As macacoas não
passam de distúrbios, a que a polícia põe cobro. Tudo obra de bacilos; mas
como também os há da saúde, bons cidadãos, ordeiros, amigos da lei, da
paz e do trabalho, esses não só nos conservam a saúde, como subjugam

247
e muitas vezes eliminam os tumultuosos. Os médicos recebem cá fora ho-
norários que a justiça mandaria pagar a esses dignos defensores da paz in-
terior, se eles precisassem de dinheiro. Outras vezes são vencidos; os baci-
los perversos matam o homem; é a anarquia e a dissolução.
Os bacilos da saúde não são só modelos de virtudes públicas e priva-
das. Dotados de algum intelecto, associam-se para compor um talento ou
um génio, e são eles que formam as novas ideias, discursos e livros. Há uns
poéticos, outros oratórios, outros políticos, outros cientistas. Dante era um
homem de muitos bacilos. A vontade também se rege por eles; uma grande
ação pode não ser mais que o esforço comum dos bacilos do coração e dos
rins. Enquanto eles consolidam um tecido, Napoleão ganha a batalha de
Iena. [...]
Resumo a doutrina. Tudo é bacilo no mundo, o que está dentro do
homem, no homem e fora do homem. A terra é um enorme bacilo, como
os planetas e as estrelas, bacilos todos do infinito e da eternidade, — dois
bacilos sem medida de alguém que quer guardar o incógnito.

2. Se você acompanhou o movimento do texto, observou que o


autor parte de um caso e acaba criando as mais altas reflexões
sobre o bacilo do cólera. Responda em seu caderno:
a) Qual é o caso e quais são as ideias apresentadas pelo autor?
b) Procure, em jornais ou revistas, uma notícia sobre o bacilo
do cólera e fixe-a em seu caderno.

O lirismo
O caráter sério da crónica se manifesta em seu aspecto lírico. Quer
dizer, no modo como o cronista exprime seu jeito pessoal de ver as
coisas. Um texto assim escrito, deixa à mostra a paisagem interna, a
alma do cronista, que se sente muito à vontade, escrevendo a crónica
como se escreve uma página de diário ou uma carta íntima. Leia a cró-
nica de Paulo Mendes Campos para entender melhor este aspecto do
género.

ATIVIDADE DE LEITURA
E INTERPRETAÇÃO DE TEXTO

1. Leia o texto "Para Maria da Graça", de Paulo Mendes


Campos.
Agora, que chegaste à idade avançada de 15 anos, Maria da Graça, eu te
dou este livro: Alice no País das Maravilhas.
Este livro é doido, Maria. Isto é: o sentido dele está em ti.
Escuta: se não descobrires um sentido na loucura acabarás louca.
Aprende, pois, logo de saída para a grande vida, a ler este livro como um
simples manual do sentido evidente de todas as coisas, inclusive as loucas.

248
Aprende isso a teu modo, pois te dou apenas umas poucas chaves entre mi-
lhares que abrem as portas da realidade.
A realidade, Maria, é louca.
Nem o Papa, ninguém no mundo, pode responder sem pestanejar à
pergunta que Alice faz à gatinha: "Fala a verdade Dinah, já comeste um
morcego?"
Não te espantes quando o mundo amanhecer irreconhecível. Para me-
lhor ou pior, isso acontece muitas vezes por ano. "Quem sou eu no mun-
do?" Essa indagação perplexa é o lugar-comum de cada história de gente.
Quantas vezes mais decifrares essa charada, tão entranhada em ti mesma
como os teus ossos, mais forte ficarás. Não importa qual seja a resposta;
o importante é dar ou inventar uma resposta. Ainda que seja mentira.
A sozinhez (esquece essa palavra que inventei agora sem querer) é ine-
vitável. Foi o que Alice falou no fundo do poço: "Estou tão cansada de
estar aqui sozinha!" O importante é que ela conseguiu sair de lá, abrindo
a porta. A porta do poço! Só as criaturas humanas (nem mesmo os grandes
macacos e os cães amestrados) conseguem abrir uma porta bem fechada,
e vice-versa, isto é, fechar uma porta bem aberta.
Somos todos tão bobos, Maria. Praticamos uma ação trivial, e te-
mos a presunção petulante de esperar dela grandes consequências. Quando
Alice comeu o bolo, e não cresceu de tamanho, ficou no maior dos espan-
tos. Apesar de ser isso o que acontece, geralmente, às pessoas que comem
bolo.
Maria, há uma sabedoria social ou de bolso; nem toda sabedoria tem
de ser grave.
A gente vive errando em relação ao próximo e o jeito é pedir descul-
pas sete vezes por dia: "Oh, I beg your pardon!" Pois viver é falar de cor-
da em casa de enforcado. Por isso te digo, para a tua sabedoria de bolso:
se gostas de gato, experimenta o ponto-de-vista do rato. Foi o que o rato
perguntou à Alice: "Gostarias de gatos se fosses eu?"
Os homens vivem apostando corrida, Maria. Nos escritórios, nos ne-
gócios, na política, nacional e internacional, nos clubes, nos bares, nas ar-
tes, na literatura, até amigos, até irmãos, até marido e mulher, até namora-
dos, todos vivem apostando corrida. São competições tão confusas, tão
cheias de truques, tão desnecessárias, tão fingindo que não é, tão ridículas
muitas vezes, por caminhos tão escondidos, que, quando os atletas chegam
exaustos a um ponto, costumam perguntar: "A corrida terminou! mas quem
ganhou?" É bobice, Maria da Graça, disputar uma corrida se a gente não
irá saber quem venceu. Se tiveres de ir a algum lugar, não te preocupe a
vaidade fatigante de ser a primeira a chegar. Se chegares sempre aonde qui-
seres, ganhaste.
Disse o ratinho: "Minha história é longa e triste!" Ouvirás isso mi-
lhares de vezes. Como ouvirás a terrível variante: "Minha vida daria um
romance". Ora, como todas as vidas vividas até o fim são longas e tristes,
e como todas as vidas dariam romances, pois o romance é só o jeito de con-
tar uma vida, foge, polida mas energicamente, dos homens e das mulheres
que suspiram e dizem: "Minha vida daria um romance!" Sobretudo dos
homens. Uns chatos irremediáveis, Maria.
Os milagres sempre acontecem na vida de cada um e na vida de to-
dos. Mas, ao contrário do que se pensa, os melhores e mais fundos mila-
gres não acontecem de repente, mas devagar, muito devagar. Quero dizer
o seguinte: a palavra depressão cairá de moda mais cedo ou mais tarde.
Como talvez seja mais tarde, prepara-te para a visita do monstro, e não
te desesperes ao triste pensamento de Alice: "Devo estar diminuindo de no-
vo". Em algum lugar há cogumelos que nos fazem crescer novamente.
E escuta esta parábola perfeita: Alice tinha diminuído tanto de ta-
manho que tomou um camundongo por um hipopótamo. Isso acontece mui-

249
to, Mariazinha. Mas não sejamos ingénuos, pois o contrário também acon-
tece. E é um outro escritor inglês que nos fala mais ou menos assim: o ca-
mundongo que expulsamos ontem passou a ser hoje um terrível rinoceron-
te. É isso mesmo. A alma da gente é uma máquina complicada que produz
durante a vida uma quantidade imensa de camundongos que parecem hi-
popótamos e de rinocerontes que parecem camundongos. O jeito é rir no
caso da primeira confusão e ficar bem disposto para enfrentar o rinoceron-
te que entrou em nossos domínios disfarçado de camundongo. E como to-
mar o pequeno por grande e o grande por pequeno é sempre meio cómico,
nunca devemos perder o bom humor.
Toda pessoa deve ter três caixas para guardar humor: uma caixa gran-
de para o humor mais ou menos barato que a gente gasta na rua com os
outros; uma caixa média para o humor que,a gente precisa ter quando está
sozinho, para perdoares a'ti mesma, para rires de ti mesma; por fim, uma
caixinha preciosa, muito escondida, para as grandes ocasiões. Chamo de
grandes ocasiões os momentos perigosos em que estamos cheios de dor ou
de vaidade, em que sofremos a tentação de achar que fracassamos ou triun-
famos, em que nos sentimos umas drogas ou muito bacanas. Cuidado, Ma-
ria, com as grandes ocasiões.
Por fim, mais uma palavra de bolso: às vezes uma pessoa se abando-
na de tal forma ao sofrimento, com uma tal complacência, que tem medo
de não poder sair de lá. A dor também tem o seu feitiço, e este se vira con-
tra o enfeitiçado. Por isso Alice, depois de ter chorado um lago, pensava:
"Agora serei castigada, afogando-me em minhas próprias lágrimas".
Conclusão: a própria dor deve ter a sua medida: É feio, é imodesto,
é vão, é perigoso ultrapassar a fronteira de nossa dor, Maria da Graça.
(de O colunista do morro)

2. Responda em seu caderno:


a) Como você explica a crónica de Paulo Mendes Campos como
sendo uma conversa?
b) Qual é o assunto dessa conversa?
c) Copie o momento lírico do texto que mais mexeu com sua sen-
sibilidade.

O diálogo
A crónica não é só conversa, pode ser também uma forma de diá-
logo. A oralidade é um tom importante de discurso. O cronista cria
um diálogo com o leitor sem o qual a crónica não sobreviveria. Este
dialogismo flagrante na oralidade do discurso libera o discurso do ri-
gor da literariedade que domina na escrita. O texto vira uma "prosa
à toa", uma "conversa fiada". Cada um tem toda liberdade de contar
seu caso ou sua reflexão sobre coisas que, nem sempre, ocupam o pen-
samento das pessoas.
Machado de Assis escreveu, em sua época, várias crónicas em que
ele tagarelava com seu público as mais absurdas "conversas fiadas".
Essas crónicas foram publicadas, mais tarde, numa seção de suas obras

250
com o sugestivo título Conversas com as mulheres. Leia este pequeno
fragmento para você ter uma ideia de como Machado se dirigia a seu
público feminino.
Conversemos.
Primeiramente devo dizer-vos que sou o mais fervoroso amante de
mulheres que o sol ainda cobriu. Não há para mim mais honra ou posição
que iguale à posição do homem que se ajoelha aos pés de uma mulher, nem
honra tamanha como a de lhe beijar a fímbria do vestido.
Porque da fímbria do vestido passa-se aos lábios, e os lábios são as
fímbrias dos cortinados celestes...
Perdoem o arrojo da metáfora; mas o pensamento é sincero.
Já vêem que conversam com um amigo, um adorador, e, com certe-
za, um conhecido. (...)
É uma pessoa da casa que fala.
Há crónicas totalmente escritas em forma de diálogo. Na verda-
de, a reprodução do diálogo é a forma mais fiel de reprodução de uma
situação presente. O diálogo faz a cena acontecer em nossa frente, co-
mo nesta crónica de Drummond, em que o diálogo predomina.

ATIVIDADE DE LEITURA
E INTERPRETAÇÃO DE TEXTO

1. Leia o texto "Na escola", de Carlos Drummond de Andrade.

Democrata é Dona Amarílis, professora na escola pública de uma rua que


não vou contar, e mesmo o nome de Dona Amarílis é inventado, mas o
caso aconteceu.
Ela se virou para os alunos, no começo da aula, e falou assim:
Hoje eu preciso que vocês resolvam uma coisa muito importante. Pode
ser?
— Pode — a garotada respondeu em coro.
— Muito bem. Será uma espécie de plebiscito. A palavra é complica-
da, mas a coisa é simples. Cada um dá sua opinião, a gente soma as opi-
niões e a maioria é que decide. Na hora de dar opinião, não falem todos
de uma vez só, porque senão vai ser muito difícil eu saber o que é que cada
um pensa. Está bem?
— Está — respondeu o coro, interessadíssimo.
— Ótimo. Então, vamos ao assunto. Surgiu um movimento para as
professoras poderem usar calça comprida nas escolas. O Governo disse que
deixa, a diretora também, mas no meu caso eu não quero decidir por mim.
O que se faz na sala de aula deve ser de acordo com os alunos. Assim não
tem problema. Bem, vou começar pelo Renato Carlos. Renato Carlos, vo-
cê acha que sua professora deve ou não deve usar calça comprida na escola?
251
— Acho que não deve — respondeu, baixando os olhos.
— Por quê?
— Porque é melhor não usar.
— E por que é melhor não usar?
— Porque minissaia é muito mais bacana.
— Perfeito. Um-voto contra. Marilena, me faz um favor, anote aí
no seu caderno os votos contra. E você, Leonardo, por obséquio, anote
os votos a favor, se houver. Agora quem vai responder é Inesita.
— Claro que deve, professora. Lá fora a senhora usa, por que vai
deixar de usar aqui dentro?
— Mas aqui dentro é outro lugar.
— É a mesma coisa. A senhora tem uma roxo-cardeal que eu vi ou-
tro dia na rua, aquela é bárbara.
— Um a favor. E você, Aparecida?
— Posso ser sincera, tia?
— Pode, não. Deve.
— Eu, se fosse a senhora, não usava.
— Por quê?
— O quadril, sabe? Fica meio saliente...
— Obrigada, Aparecida. Você anotou, Marilena? Agora você,
Edmundo.
— Eu acho que Aparecida não tem razão, professora. A senhora de-
ve ficar muito bacana de calça comprida. O seu quadril é certinho.
— Meu quadril não está em votação, Edmundo. A calça, sim. Você
é contra ou a favor da calça?
— A favor 100%.
— Você, Peter?
— Pra mim tanto faz.
— Não tem preferência?
— Sei lá. Negócio de mulher eu não me meto, professora.
— Uma abstenção. Mônica, você fica encarregada de tomar nota dos
votos iguais ao do Peter: nem contra nem a favor, antes pelo contrário.
Assim iam todos votando, como se escolhessem o Presidente da Re-
pública, tarefa que talvez, quem sabe? no futuro sejam chamados a desem-
penhar. Com a maior circunspeção. A vez de Rinalda:
— Ah, cada um na sua.
— Na sua, como?
— Eu na minha, a tia na sua, cada um na dele, entende?
— Explique melhor.
— Negócio seguinte. Se a senhora quer vir de pantalona, venha. Eu
quero vir de midi, de maxi, de short, venho. Uniforme é papo-furado.
— Você foi além da pergunta, Rinalda. Então é a favor?
— Evidente. Cada um curtindo à vontade.
— Legal! — exclamou Jorgito. — Uniforme está superado, tia. A
senhora vem de calça comprida, e a gente aparecemos de qualquer jeito.
— Não pode — refutou Gilberto. — Vira bagunça. Lá em casa nin-
guém anda de pijama ou de camisa aberta na sala. A gente tem de respeitar
o uniforme.
Respeita, não respeita, a discussão esquentou. Dona Amarílis pedia
ordem, ordem, assim não é possível, mas os grupos se haviam extremado,
falavam todos ao mesmo tempo, ninguém se fazia ouvir, pelo que, com qua-
tro votos a favor de calça comprida, dois contra e um tanto-faz, e antes
que fosse decretada por maioria absoluta a abolição do uniforme escolar,
a professora achou prudente declarar encerrado o plebiscito, e passou à li-
ção de História do Brasil.
2. Depois da leitura, como você explica a ironia do final do texto?

O poema-crônica
A liberdade de poder escrever uma história com sabor de fala faz
com que o discurso da crónica se liberte da literariedade da escrita.
Abre-se uma total liberdade de experimentar a linguagem. E novas mis-
turas aparecem. O cronista pode até construir suas frases como se fos-
sem verso, sugerindo nele um flash da situação. Lidos como poema,
os versos descaracterizam o tom da poesia, que sempre foi dominada
pelo tom sério. Cria-se, a partir desta mistura, o poema-crônica, em
que os poetas que são também cronistas sentem-se à vontade para sol-
tar sua imaginação. Esta, aliás, foi a grande reivindicação de nossos
poetas modernistas: mostrar QS flashes do cotidiano em forma de poe-
sia. Mário de Andrade £1893-1945), Oswald de Andrade (1890-1954)
e Manuel Bandeira (1881-1968) foram os pioneiros deste tipo de com-
posição, como você pode ver no poema que se segue.

POEMA TIRADO DE UMA NOTICIA DE JORNAL


Manuel Bandeira
João Gostoso era carregador de feira-livre e morava no
morro da Babilónia num barracão sem número
Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro
Bebeu
Manuel Bandeira 11886- Cantou
1968).
Dançou
Depois se atirou na Lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.
A irreverência de Bandeira neste poema mostra a experiência que
os poetas modernistas realizavam, à revelia do ambiente poético de en-
tão. Bandeira queria trazer as cenas cotidianas para o poema, mas não
sufocá-las no verso metrificado. Ao construir versos tão irregulares —
preste atenção no tamanho de cada verso —, com frases justapostas
para reproduzir o flash em questão, cria a cena simultânea da morte
do João Gostoso e do verso metrificado. Talvez você nem tenha perce-
bido que, num poema tão curto, podem caber duas mortes, não é
mesmo?
O que Bandeira realizou neste poema foi e é ainda um exercício
notável da linguagem da crónica. Compare-o com este outro poema
do poeta Paulo Leminski. Neste poema, Leminski trata de modo iró-
nico um tema que sempre foi e é encarado com muita seriedade. Mas,
como ele mesmo diz, na crónica nada pode ser levado a sério.

253
narrador alerta Maria da Graça para os problemas sérios da vida não
através de frases e situações ameaçadoras. Não, em vez disso, ele vai
citando exemplos retirados de um livro cómico, o Alice no País das
Maravilhas, de Lewis Carroll, já referido por nós.
Ora, a citação de outros textos é uma forma de desafiar o rigor
da composição literária. Queira ou não, há mistura de discursos e de
contextos. No caso, o autor constrói um discurso sério — os conselhos
do adulto experimente para uma adolescente — através de situações
cómicas criadas por Carroll para a sua pequena Alice. O discurso pa-
ródico foi a arma com a qual Paulo Mendes Campos resolveu atingir
a sensiblidade de Maria, com a intenção de ver suas ideias aceitas.

ATIVIDADE DE INTERPRETAÇÃO DE TEXTO

Volte à crónica de Paulo Mendes Campos e relacione os con-


selhos sérios que ele dá a Maria através das situações cómicas de
Alice no País das Maravilhas. Você pode montar um quadro
assim:

conselho do autor situação cómica de Carroll


" a realidade, Maria, é lou- pergunta que Alice faz à gati-
ca." nha: "Fala a verdade, Dinah,
já comeste um morcego?"

Trazer para o campo da crónica temas e obras consagradas pela


tradição literária é outra possibilidade criada pelo procedimento paró-
dico. Às vezes lemos uma crónica descontraída e não fazemos ideia
do que está por trás daquele discurso tão "simples". A paródia tem
esta sutileza, por isso precisamos ficar atentos. Vamos fazer um teste?
Então leia o texto "Fausto doente", de Otávio Frias Filho.

— Fausto!
(Fausto acaba de ir pra cama)
— Fausto!
(Ele acaba de ir pra cama mas ainda está acordado)
— Fausto!
— Quem é que está aí?
(Fausto se levanta e acende a luz. Não vê ninguém)
— Sou eu.
— Eu quem?
— O vírus do sarampo.

259
(Vírus é um bicho tão pequeno que a gente nem vê: uma poeira de bicho.
Quando a gente respira ele entra no corpo voando junto com o ar. Se a
pessoa estiver fraca, como o Fausto está, resultado: gripe, catapora, saram-
po... é justamente o vírus do sarampo quem está no quarto do Fausto.)
(Fausto pergunta assim pro vírus:)
— Que é que você quer?
— Eu estava lá fora, passando pela janela, e resolvi entrar. Está fazendo
tanto frio e aqui dentro é tão quentinho! Vou ficar esta noite aqui.
— Mas onde é que você está? Eu não estou vendo nada!
(Fausto olha tudo e não vê nada. O vírus explica pra ele:)
>— Eu estou ao lado da cama, meu bem. Em cima do seu ténis.
Não adianta olhar porque você não vai me ver. Sou tão pequeno que nem
uma formiga me vê.
— Entendi.
— Fausto, você quer fazer um negócio comigo? Você me deixa passar esta
noite dentro do seu corpo. Amanhã você acorda com um sarampo daque-
les. Sabe o que acontece? Uma semana sem ir pra escola. Já imaginou que
delícia?
(Fausto topa. Ele acha a escola uma coisa muito chata, uma perda de tempo.)
— Topo!
— Excelente. Estou vendo que vamos nos entender muito bem.
— Como é que você chama?
— Pode me chamar £le Mefi.
(Dia seguinte. Fausto acorda com a maior febre. O médico chega, olha,
examina e diz:)
— Sarampo puro. E dos bravos! O nosso Fausto vai ficar pelo menos uma
semana em casa. Nada de sair da cama. Televisão? Não pode. Jogar fute-
bol nem se fala.
(Nem ler a "Folhinha" o Fausto pode. Olha a semana dele: febre, dor de
cabeça, termómetro, remédio, muito calor — um sofrimento. O tempo to-
do deitado, olhando sozinho pro teto)
(Um dia Fausto acorda e sente que ficou bom. Ele não aguentava mais olhar
pro teto! Até que enfim pode voltar pra escola — que vontade! — e voltou)
(O tempo vai passando. Fausto não ficou doente nunca mais. Só que uma
noite, quando já está no quarto pronto pra dormir, ele ouve uma voz cha-
mando o seu nome:)
— Está fazendo tanto frio lá fora!
(O vírus do sarampo de novo. Fausto nem acende a luz desta vez e fala as-
sim pro vírus:)
— Pode entrar. Sarampo não pega duas vezes mesmo.

Parece um texto teatral, não é mesmo? Nele predomina o diálo-


go, grande procedimento da crónica, que só é quebrado para a intro-
dução de algumas partes narrativas indicativas da situação. Uma si-
tuação típica do mundo infantil: o menino que fica doente para fugir
da escola: uma "enrolação"-crônica.
Ora, o menino ficou doente porque ele fez um "negócio" com
o vírus do sarampo. Como você poderia imaginar que tal "negócio"
foi assunto de uma das obras mais consagradas dentro da literatura
mundial? O vírus do sarampo Mefi, neste texto, é uma criação paródi-
ca do Mefisto, personagem da lenda de Fausto que trata do pacto en-
tre este e o diabo (leia a lenda que reproduzimos a seguir). Esta lenda
foi assunto para o clássico Fausto, de Goethe, em que o diabo é Mefis-

260
tófeles. O pacto entre o diabo e Deus é uma das situações mais provo-
cativas que um cérebro pôde criar dentro da literatura. Mas também,
não é à toa que Goethe levou mais de cinquenta anos para escrever
sua história! Por essa você não esperava, não é mesmo?

ATIVIDADE DE LEITURA
E INTERPRETAÇÃO DE TEXTO

1. Leia o texto que se segue:

A LENDA DE FAUSTO
Tradução e adaptação de >
A lenda de Fausto, o homem que vendeu sua alma ao diabo, é uma
Heloísa Prieto.
das mais antigas do mundo. Segundo relatos orais, Fausto vivia no vilarejo
A história de Fausto ins-
de Rode, perto de Weimar, e era filho de camponeses.
pirou poetas e romancis-
Como era um menino excepcionalmente inteligente, seu pai o levou
à casa de um parente rico para que fosse à escola e estudasse as Sagradas
tas. Uma das mais famo-
sas versões da lenda é a
escrita por J . W. Goethe. Escrituras. Mas Fausto demonstrava mais interesse pelos livros de magia
Ao contrário da versão
e bruxaria.
Anos mais tarde, numa noite, Fausto dirigiu-se a uma floresta densa
citada ao lado, para o
poeta alemão. Fausto se-
ria mais uma vítima do e negra para invocar os demónios, segundo os rituais da feitiçaria. Os dia-
que o causador da pró-
bos começaram a surgir diante de seus olhos. Fausto mantinha-se dentro
pria desgraça. Sua peça
da proteção de um círculo mágico traçado no chão, de modo que os espíri-
tos do mal não podiam atingi-lo. Até que surgiu o mais terrível de todos
teatral, escrita em versos
magistrais, inicia-se com
um diálogo entre Deus e os demónios: Mefisto.
— Por que nos invoca, doutor Fausto? — indagou.
Mefistófoles. Ambos dis-
putam a alma do estudio-
so e inteligentíssimo — Quero transformar um de vocês em meu servo. Tenho muitos de-
doutor Fausto.
sejos secretos que gostaria de realizar. Ofereço minha alma em troca de seus
Fazem uma aposta: Deus
acreditava que Fausto serviços.
seria capaz de resistir às Mefisto então lhe perguntou:
tentações dos demónios.
— E durante quanto tempo seu servo ficaria à sua disposição?
— Tenho vinte e quatro anos, se viver ainda mais vinte e quatro com
Mefisto usa todo seu po-
der de persuasão para
provar a Deus que seria o diabo a meu lado, estarei satisfeito. — declarou o doutor.
capaz de vencê-lo. Ob-
Mefis.to aceitou o trato. Fausto teve fama, dinheiro, muitas mulhe-
res e admiradores. Viajou ao passado e descobriu diversos segredos que os
tém a vitória, provando
que Fausto, assim como
a maioria dos homens,
tem a vontade fraca e o
homens desconhecem. Até que chegou o seu último dia de vida.
espírito frágil apesar de Fausto reuniu os amigos e declarou:
— Hoje devo entregar minha alma ao diabo. Nada do que tenho ga-
toda sua inteligência e
cultura.
nhei pelos meus próprios méritos. Devo minha fama e riqueza ao demónio
com quem fiz um pacto. Hoje me separo de vocês para todo o sempre. Es-
pero que minha vida lhes sirva de lição.
Primeiro os amigos pensaram que se tratava apenas de uma brinca-
deira e começaram a rir. Daí ouviram um grito lancinante ecoando no ar.
A cena foi horripilante. Fausto transformou-se numa massa disforme e en-
sanguentada, desaparecendo num buraco que se abriu no meio do solo. Seu
cadáver nunca foi encontrado. Mas ninguém jamais ousou se aproximar
do buraco negro pelo qual o diabo havia carregado seu escravo.

261
2. Agora responda em seu caderno:
a) O que levou Fausto a fazer um pacto com o diabo?
b) Quais foram os benefícios do trato?
c) Quais são os ensinamentos que se pode tirar da lenda de Fausto?
d) Compare a crónica com a lenda e explique o tipo de criação
paródica.
e) Compare os pactos feitos pelo Fausto criado por Goethe e Faus-
to da crónica de Otávio Frias Filho. Fausto menino cede seu cor-
po ao vírus do sarampo para permanecer em casa e faltar à esco-
la. Fausto adulto vende sua alma ao demónio em troca de conhe-
cimento. Será que a escola, no caso desta crónica, poderia ser
considerada como fonte do saber e conhecimento?

OFICINA DE REDAÇÃO

O dilema criado por Goethe é tão universal e eterno que


"vender a alma ao diabo" transformou-se numa expressão de cu-
nho popular. Agora pense como você explicaria o significado des-
sa expressão. Que tipo de pessoa é capaz de "vender a alma"?
Tente criar um personagem que cede às tentações. Coloque-o dian-
te de um dilema moral. No final ele poderá ser castigado como
o Fausto de Goethe ou aprender sua lição, como o "Fausto doen-
te". Leia sua redação para os colegas.

A paródia permite ao cronista incluir, em sua crónica, referên-


cias a muitos fatos, não necessariamente textos. Há autores que fazem
da citação paródica um momento crítico, uma forma de questionamento
de aspectos do mundo sócio-cultural com os quais não concordam. Mui-
tos autores, pedagogos e professores têm discutido o caráter moral das
histórias infantis. Millôr Fernandes — que ressuscitou a fábula numa
perspectiva do sério-cômico — em vez de fazer um depoimento sério
sobre o assunto, optou pela criação paródica desse tema em forma de
crónica. Veja o que ele fez com a história de Chapeuzinho Vermelho.
Leia os dois textos para entender o objetivo crítico do autor.

ATIVIDADE DE LEITURA
E INTERPRETAÇÃO DE TEXTO

1. Leia os textos "Cientificismo" e "Chapeuzinho Vermelho",


de 'Millôr Fernandes.

262
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