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Cahiers du monde hispanique et

luso-brésilien

O auto do boi na Paraíba


Altimar de Alencar Pimentel

Résumé
Résumé. — Rien de plus théâtral dans le folklore brésilien que le Bumba-meu- boi. Bien qu'il prenne plusieurs noms, selon les
régions, il n'en reste pas moins une manifestation populaire où l'influence noire est patente. Le nom lui-même — Bumba —
n'est-il pas d'origine africaine ? Mais ce « totémisme » du bœuf a peut-être d'autres origines religieuses et géographiques.
Rappelant la Commedia dell'Arte, en particulier par la présence des masques, le Bumba-meu-boi est aussi un spectacle
complet, tant par le nombre et la diversité des personnages que par la participation des spectateurs.

Resumo
Resumo. — Nada mais teatral no folclore brasileiro que o Bumba-meu-boi. Embora tome nomes diferentes conforme as
regiões, não deixa de ser uma manifestação popular, em que a influência negra é evidente. O próprio nome — Bumba — é de
origem africana. Mas esse « totemismo » do boi talvez tenha outras origens religiosas e geográficas. Lembrando a Commedia
deWArte, caracterizada pela prensença das máscaras, o Bumba-meu-boi é também um espetáculo completo, tanto pelo
número e pela diversidade das personagens como pela participação dos espectadores.

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de Alencar Pimentel Altimar. O auto do boi na Paraíba. In: Cahiers du monde hispanique et luso-brésilien, n°48, 1987.
Musiques populaires et identités en Amérique latine. pp. 37-48;

doi : https://doi.org/10.3406/carav.1987.2299

https://www.persee.fr/doc/carav_0008-0152_1987_num_48_1_2299

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C.M.H.L.B. CARAVELLE
n° 48, pp. 37-48, Toulouse, 1987.

O auto do boi na Paraíba

PAR

Altimar DE ALENCAR PIMENTEL


Universidade da Paraíba, João Pessoa (Brésil).

Depois do teatro popular de fantoches — Mamulengo, João


Redondo, Babau, Cassemir Coco, João Minhoca — nenhuma manifestação
folclórica brasileira é mais teatral do que o Bumba-meu-boi. Presente
em quase todo o território nacional — de Santa Catarina (Sul) ao
Amazonas (Norte) — o Bumba-meu-boi é o folguedo de maior-inci-
dência no mapa folclórico brasileiro e, certamente, aquele mais
estudado. Toma nomes diferentes em cada localidade — Bumba-meu-boi,
Boi de Reis, Boi de Mamão, ou simplesmente Boi e sofre
modificações no entrecho dramático, na relação de personagens, no guarda-
roupa, nas danças, na música, nos apetrechos cénicos, mas permanece
fiel ao motivo central — a morte e ressurreição do boi.
A tentativa de filiar o Bumba-meu-boi a manifestações religiosoas,
votivas, totêmicas e até teatrais ligadas ao animal que dá o nome
ao folguedo e aos cultos agrários tem fascinado os principais
estudiosos do nosso folclore. Raro será o estudioso das tradições
populares brasileiras que não se haja ocupado do Bumba-meu-boi, mesmo
superficialmente. Tanto é assim que o Bumba-meuboi é a nossa
manifestação folclórica de mais extensa bibliografia.
38 CM.H.L.B. Caravelle

Em trabalho cuidadoso, beneditino, o escritor Vicente Sales


levantou a bibliografia do Bumba-meu-boi até 1968, arrolando quase
trezentos títulos. Dezoito anos depois é de crer-se que o número de livros,
monografias, artigos e reportagens sobre o assunto já ultrapasse
quinhentos.
Entre os pesquisadores que se ocuparam do estudo do Bumba-
meu-boi, destaca-se Arthur Ramos (*) que vê no boi em torno do
qual se desenvolve o auto popular, uma sobrevivência totêmica e,
embora admita a influência europeia e ameríndia, acentua que o
« africano trouxe uma contribuição fundamental » ao folguedo. E
lembra que o « totemismo do boi é largamente disseminado entre os
povos Bantos. Por ocasião das colheitas, os Ba-Naneca, por exemplo,
prestam verdadeiro culto a um boi, a que chamam de Gerôa, e que é
conduzido em procissão no meio de cânticos e dança ». Segundo
Lang-et-Taste-vin (2), em julho, Ka-Kwenys, a seca pequena (a grande
seca é agosto), o na-w-anga, deixa o Krali do rei e visita, com cortejo,
o país, recebendo presentes. Os oficiais que vão na comitiva dançam
e cantam uma música ritual, extremamente pobre e curta, com vinte
e cinco notas, repetidas indefinidamente, na entrada das povoações.
No boi reside a alma dos soberanos mortos.
Não há necessidade de recorrer a muitos estudiosos para
evidenciar no Bumba-meu-boi a influência negra que se faz a partir
dos próprios personagens cómicos — Mateus, Catirina, Birico ou
Bastião — que, por assim dizer, carregam o espetáculo nas costas,
e que são pretos e ao distribuírem pancadas nos mais diferentes
representantes da sociedade introduzidos nos entrechos dramáticos,
revelam, em última análise, o antagonismo racial e social. O
próprio nome que o folguedo recebe — Bumba — é de origem africana,
como explica Luis da Câmara Cascudo (3) : « Bumba é do cangolês,
significando pancada, golpe, batida. Bumba-meu-boi será um
hibridismo, bate meu boi !, relativamente às chifradas e arremessos »...
E não só as investidas do boi devem ser levadas em conta, mas o
próprio tipo de espetáculo, como já assinalou Hermilo Borba Filho (4),
constitui um exemplo de teatro de pancadaria, a gosto da comédia e
da farsa populares tradicionais.

(1) Ramos, Arthur. O Folclore Negro do Brasil. Rio de Janeiro. Livraria Editora
Casa do Estudante do Brasil. 2a. ed. (1954).
(2) Apud Luis da Câmara Cascudo. Literatura Oral in História da Literatura
Brasileira, direção Álvaro Lins. Volume VI. Livraria José Olympio Editora (1952).
(3) Op. cit.
(4) Borba Filho, Hermilo. Espetáculos Populares do Nordeste. São Paulo.
DESA. (1966).
O AUTO DO BOI NA PARAÍBA 39

Mas, para Arthur Ramos o totemismo do boi, presente no auto


popular, tem origem muito mais remota. Lembra que no culto de
Osiris, no Antigo Egito, o Boi Ápis é um símbolo totêmico. Em seu
bojo continha a alma de Osiris, que escolhera esta forma para sua
aparição aos mortais. ísis, depois do combate de Osiris contra Titão,
reuniu os membros dispersos do esposo e os guardou numa vaca de
madeira. Vale lembrar aqui que Osiris é o deus da fertilidade, o seu
culto está relacionado com o cultivo da terra.
A propósito, Luís da Câmara Cascudo (5) assinala que Frobenius,
« aceitando a tradição erudita, indica o touro, o boi como
personalização lunar, sugerida dos cornos que lembram o curvo alfange da
Lua Nova. Vimos em Frazer essas recordações nos hábitos agrários
em época de recolta. A Lua é deusa do ciclo germinativo, protetora
dos vegetais ».
J.G. Frazer (6) levanta grande número de informações sobre o boi
nos cultos agrários. « Na Boémia, Turgovia, Suábia, Baviera, Dijon,
Pont-a-Mousson, Luneville, Turíngia, Hungria, Zurich fazem bois de
palha nos derradeiros momentos da colheita. Wurmlinger, o segador
que deu o último golpe na ceifa, é a « Vaca », com vestimenta própria,
tendo chifres, mugindo, e conduzido ao bebedouro por dois rapazes.
Na Suábia, o Boi de Palha é o ceifeiro retardatário, sofrendo
pilhérias e vaias, embora com direito a jantar e vinho ».
Para Guilherme Melo O7), no entanto, o auto é de origem portuguesa
e não passa de « uma variante do Monólogo do Vaqueiro, que Gil
Vicente representou a 8 de janeiro de 1502, nos paços do
Castelo de D. Maria, por ocasião do nascimento do príncipe D. João,
primogénito do rei D. Manuel ». Nesta representação, adianta Arthur
Ramos (8), a câmara onde repousava a rainha foi transformada em
presépio e a encenação inspirou-se na Festa do Aguinaldo, que era
uma celebração agrária ligada às janeiras.
Anteriormente, Arthur Azevedo (9) buscara identificar o Bumba-
meu-boi com o Boeuf Gras (Boi Gordo) francês que Louis Barron
(Paris Pittoresque, 1800-1900, Société Française d'Edition d'Art,
Paris) descreve :
« É o cortejo oficial, organizado nos seus mínimos detalhes pelo
clube de polícia, sob a augusta aprovação de sua majestade
imperial, o rei. Então, pela origem, cavalgam à frente os açougueiros de
primeira classe, penteados e mascarados de pó, com tranças e cober-

(5) Op. cit.


(6) Apud Luis da Câmara Cascudo, op. cit.
(7) Idem.
(8) Op. cit.
(9) Apud Arthur Ramos, op. cit.
40 C.M.H.L.B. Caravelle

tos com chapéu a Henrique IV, com fundo violeta e ornamentados


com penachos com cores nacionais; sua gravata é de museline branca,
posta elegantemente e muito larga com os nós caídos sob a gola da
camisa aberta; seu colete, calça, paletó em pano listado são feitos à
moda do hussard, como suas botas nas quais se penduram bolotas
de ouro e de prata. Um casaco vermelho bordado a ouro completa
este costume maravilhoso; eles seguram as rédeas de suas montarias
com luvas de punhos pretos salpicados de branco. Seguem quarto
soldados vestidos de veludo bordado com pedras preciosas e seis
outros soldados rasos sem enfeites; seis Osages e seis Romanos, quatro
gregos encourados, quatro cavaleiros caracterizados de franceses,
quatro poloneses e quatro espanhóis; dois corredores e oito turcos comuns;
um tambor fantasiado de guarda imperial; seis tambores vestidos
de gladiadores; dois pífaros vestidos de chineses; dezoito músicos
de todos os tipos com roupas características... E eis que surge o boi
pesando cerca de 1.300 a 1.400 quilos, ricamente enfeitado, tendo
nas costas um trono com uma criança sentada, representando o
Amor ou o deus Marte; seguro por dois carrascos armados de
machados e maças. Doze aprendizes de açougueiro, com vestimenta quase
semelhante às de seus patrões de primeira classe, fecham o cortejo
desse jovem deus e de sua majestosa montaria... Em 1812, o boi
indisciplinado escapa das mãos dos carrascos, atira no chão o Amor
e entra na multidão com os chifres baixos, fere três pessoas. É uma
desgraça, se lamentam as vítimas, mas o coretejo do boi não deixa
de ser alegre por tão pouco ».
Recorre Luís da Câmara Cascudo (10) a informação prestada por
Teófilo Braga sobre o Boi de São Marcos, conduzido processional-
mente igreja a dentro até o altar-mor. « Rodney Gallop alude ao Boi
Bento que desfila na procissão de Corpus Christi em Panafiel e em
Braga, precedido por moças que dançam. Noutras paragens de
Portugal, o Boizinho de São Marcos é identificado, evidentemente, com
o próprio orago. Entra Marcos, em louvor ao Senhor São Marcos,
dizem, fazendo-o passar entre os fiéis, pisando flores, até ao altar-
mor. Naturalmente Gallop recordou que Marcos proviria de Marte,
deus da vegetação antes de ser da guerra ».
Refere-se também à presença do boi no presépio de Jesus Cristo,
mas vê nas Tourinhas portuguesas — divertimento com novilhas
mansas ou de fingimento, e onde não havia cantigas nem se tem
notícia de sua presença no Brasil — o « motivo » que teria emigrado —
« a ideia de fazer o Boi dançar e escornear de brincadeira os falsos
toureiros ». Nas Tourinhas em que se usavam animais de fingimento,

(10) Op. cit.


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estes constavam de um arcabouço de canas — outras de vime cobertas


de pano, com a cabeça de boi. « Fingindo-o atacar, os rapazes eram
perseguidos, com rumos de alegria e algazarra coletiva. Pertencem
ao Minho especialmente, uma das fontes altas de emigração para o
Brasil ».
Refere-se, ainda Cascudo, à existência em Espanha e Portugal de
« touros fingidos, feitos de vime, bambu, arcabouço de madeira
frágil e leve, recoberto de pano, animado por um homem no seu bojo,
dançando e pulando para afastar o povo e mesmo desfilando diante
dos Reis », mas, actualmente, a maior concordância quanto à origem
do Bumba-meu-boi está relacionada com as Tourinhas portuguesas.

UM AUTO BRASILEIRO

Embora conflitem na tentativa de situar a origem e indicar pontos


de ligação entre as diferentes formas em que o boi aparece como
objeto de culto ou de folgar e o seu relacionamento com o Bumba-
meu-boi, os pesquisadores do folclore brasileiro que se ocuparam do
assunto concordam geralmente em um ponto : como existe no Brasil, o
auto é de formação nacional, obra do mestiço, tendo recebido a
contribuição das três raças principais, formadoras do povo
brasileiro. Sabemos da existência de folguedos em torno do boi entre
outros povos, mas não com o carácter e a teatralidade do nosso
Bumba-meu-boi.
E, o mais curioso é que, antigo de mais de um século, conserva
ainda as linhas básicas do primeiro registro conhecido, devido ao
Frei Miguel do Sacramento Lopes da Gama, e publicado no jornal
« O CARAPUCEIRO » n° 2, editado no Recife a 11 de janeiro de
1840. O artigo, em que pese a vérrima com que o clérigo jornalista
investe contra o folguedo, fornece informações importantes para o
cotejo com a sua forma atual. O artigo, transcrito por Pereira da
Costa (« FOLCLORE PERNAMBUCANO », in Revista do Instituto
Histórico e Geofráfico Brasileiro, tomo LXX, parte II, Rio de Janeiro,
1908), merece ser reproduzido :
« De quantos recreios, folganças e desenfados populares há neste
nosso Pernambuco, eu não conheço um tão tolo, tão estúpido e
destituído de graça, como o aliás bem conhecido bumba-meu-boi. Em
tal brinco não se encontra um enredo, nem verossimilhança, nem
ligação : é um agregado de disparates.
Um negro metido debaixo de uma baiêta é o boi; um capadócio,
enfiado pelo fundo dum panacú velho, chama-se cavalo-marinho,
outro, alapardado, sob lençóis, denomina-se burrinha; um menino
com duas saias, uma da cintura para baixo, outra da cintura para
42 C.M.H.L.B. Caravelle

cima, terminando para a cabeça com uma urupema, é o que se chama


de caipora; há além disso outro capadócio que se chama Pai Mateus.
O sujeito do cavalo-marinho é o senhor do boi, da burrinha, da
caipora e do Mateus.
Todo o divertimento cifra-se em o dono de toda esta súcia fazer
dançar ao som das violas, pandeiros e de uma infernal berraria o
tal bêbado Mateus, a burrinha, a caipora e o boi, que com efeito é
um animal muito ligeirinho, trêfego e bailarino. Além disso o boi
morre sempre, sem que nem para que, e ressuscita por virtude de um
clister, que pespega o Mateus, cousa muito agradável e divertida
para os judiciosos espectadores.
Até aqui não passa o tal divertimento de um brinco popular e
grandemente desengonçado, mas de certos anos para cá não há bum-
ba-meu-boi que preste, se nele não aparece um sujeito vestido de
clérigo, e algumas vezes roquete e estola, para servir de bobo da
função. Quem faz ordinariamente o papel de sacerdote bufo é um
brejeirote despejado e escolhido para desempenhar a tarefa até o
mais nogento ridículo; e para completar o escárnio, esse padre ouve
em confissão o Mateus, o qual negro cativo faz cair de pernas ao ar
o seu confessor, e acaba, como é natural, dando muita chicotada no
sacerdote ! »
O auto popular não só conserva os personagens e situações
descritos pelo frade, como ampliou sobremodo o seu número, enriquecendo-
se em todos os sentidos, com a inserção de entrechos dramáticos,
de novas máscaras (« figuras ») e situações e pela incorporação de
reisados tradicionais.
Hermilo Borba Filho (n) já assinalou a sua filiação dramática à
Commedia dell-Arte, caracterizada pela presença da máscara, dos
personagens fixos (arquétipos) e na construção, um tanto anárquica,
das pequenas tramas desenvolvidas. Os personagens variam em
número e tipo de grupo para grupo, por vezes, dentro da mesma
região, mas podem ser catalogados, de um modo geral, em
humanos — o Capitão do Cavalo-Marinho, os três cómicos (Mateus, Cati-
rina e Birico ou Bastião) e outros representativos da sociedade local
(padre, médico, valentão, etc.); animais — Boi, Burrinha, Bode,
Urubu, etc.; e fantásticos — Diabo, Jaraguá, Morto-carregando-vivo,
Caipora, Mané Pequeno, etc.
Enquanto o Boi-Bumbá, do Pará, revela sensível influência
indígena, inclusive com a presença de um feiticeiro índio convocado
para a pajelança que faz o Boi ressuscitar, no Boi de Mamão, de
Santa Catarina, surgem personagens fantásticos como a Bernúncia

(11) Op. cit.


O AUTO DO BOI NA PARAÍBA 43

e o Barão, totalmente desconhecidos no Norte e no Nordeste do


Brasil. Essa variedade de personagens pode ser explicada
naturalmente pela amplitude de incidência do auto, abrangendo quase todo o
territorio nacional, mas, revela-se sobretudo como indicativo da
capacidade criadora, da inventividade do povo brasileiro.

O BOI DE REIS

Em João Pessoa, Paraíba, registramos duas versões distintas do


auto popular : o Boi de Reis e o Cavalo-Marinho. Além das
diferenças de cantos, danças, músicas há as de personagens (muito mais
numerosas no Cavalo-Marinho), indumentária e entrechos
dramáticos. Ocorre que para os mestres a principal distinção entre as duas
versões paraibanas do bwnba-meu-boi está em os personagens do
Boi de Reis dançar com espadas e os do Cavalo-Marinho com arcos,
o que denota a enfluência indígena inexistente no primeiro, onde há
apenas a presença do branco e do negro.
O cotejo entre as duas versões paraibanas do auto folclórico —
evidenciando semelhanças e particularidades — merece estudo
específico e não comporta nas limitações deste artigo, razão porque
detenho-me apenas em considerações sobre o Boi de Reis.
Cómico, satírico, irreverente, por vezes descambando para situações
e piadas obcenas, o Boi de Reis alia a força da criação espontânea do
povo à beleza rude e maravilhosa do teatro antiilusionista,
primitivo e anárquico. A trama possui o encantatório do improviso, do
feito na hora, daí as transformações por que passa, em processo
dinâmico adaptando-se a cada nova realidade, a irresistível atração e
o interesse permanentes.
O espetáculo prolonga-se por oito horas. Assiste-o, de pé uma
plateia atenta que participa e por várias vezes, durante a função, invade
a área de representação tornando-se necessária a ação dos cómicos
que a amplia à base de investidas contra o público.
Um dos melhores grupos a que assisti representar foi o de Mestre
Paizinho, comerciante de Bayeux, Paraíba, que atualmente já não faz
« brincar » o « Boi de Reis ». O seu espetáculo, tanto pela
organização, pelo cuidado com a indumentária como pelo desenvolvimento
das diferentes cenas destacava-se de quantos já assisti. Embora os
« brincantes » ingerissem, a cada intervalo, grande quantidade de
aguardente, nem por isso perdiam a noção do que faziam, graças à
vigilância e autoridade de Mestre Paizinho.
O auto é dividido em cantos, recitativos (loas) e diálogos em prosa,
improvisados a partir de um roteiro conhecido, inserindo-se
situações e assuntos do dia, do momento, atualizando-se. Há evidente-
44 CM.H.L.B. Caravelle

mente situações definidas, tradicionais, mas os diálogos diferem de


um para outro espetáculo, pelo mesmo grupo, pois não há nada
escrito, tudo é sabido de cor ou inventado na hora.
Dividem os cantos em campeado, salva e baile e a cada um destes
corresponde um baiano — música de ritmo sincopado, binário,
executada após cada canto. Ao ritmo do baiano os brincantes dançam
forte sapateado.
Espécie de teatro dentro do teatro, na melhor tradição, no Boi
de Reis, inicialmente os atores representam a troupe que chega e
pede licença ao dono da casa para « brincar um pouquinho nesse seu
belo terreiro ». A troupe é composta pelo Mestre, Contramestre,
Io Galante, 2° Galante, 3o Galante, Ia. Dadam, 2a. Dama, dois Figu-
rinhos e mais os cómicos — Mateu, Catirina e Birico. À troupe chama
de maruja.
O Mestre veste-se como um rei : dolmã e túnica vermelhos, botas
de cano longo, coroa, espada e uma pala de onde caem fitas de
diversas cores. O Contramestre tem indumentária semelhante, menos
pomposa, em azul. Na ordem decrescente de ostentação vêm os
Galantes e as Damas. Os personagens masculinos, à exceção dos
cómicos, usam espadas. As Damas usam chapéus de palha enfeitados
com fitas de cor correspondente à do vestido.
Os atores — brincantes — que interpretam estes personagens
desdobram-se em outras interpretações ora utilizando-se de máscaras
ora de indumentária característica, como Padre, Doutor (médico)
etc. Estes personagens interpretados pelos integrantes da troupe
variam em número e espécie de grupo para grupo. Há os humanos
— como Padre, Doutor (médico), Tumtumquero (valentão,
desordeiro), etc.; os bichos — Boi, Urso, Urubu, Cavalo-Marinho, Bur-
rinha; os fantásticos : Margarida, Guriabá, Jaraguá, Gigante e
Isidora sua mulher : Há, ainda, a representação de corpos celestes,
elementos e fenómenos naturais — Sol, Lua, Ligeiro Vento e Aurora
Dourada, que, no nosso entender, correspondem às Quatro Estações
do ano. Para os mestres do folguedo, o Engenho é também
personagem, mas prefiro considerá-lo uma dança mnemónica inspirada nos
movimentos da primitiva máquina de triturar cana de açúcar e
descaroçar algodão, também chamada bolandeira.
Mateu abre o espetáculo. Em seguida entram Birico e Catirina.
Mateu dialoga com o Mestre (que permanece fora de cena, dentro
da tolda — empanada), que o manda pedir permissão ao dono da
casa para a « maruja brincar no terreiro ». Somente após concedida
a permissão, em diálogo longo e cheio de comicidade, é que os demais
componentes do folguedo sairão da tolda. Ainda dentro da tolda,
cantam a Ia. Salva, que inicia com a seguinte quadra :
O AUTO DO BOI NA PARAÍBA 45

« Graças a Deus para sempre...


Padre, Filho, Espírito Santo,
São as primeiras palavras
Que neste auditório eu canto ».
Após cada estrofe, o instrumental executa o baiano correspondente
e os « brincantes » pinotam forte sapateado. Uma loa do Mestre
antecede a 2a. Salva, que começa com a estrofe :
» Cadê o dono da casa ?
Por ele pergunto eu.
Quero dar-lhe o boa noite...
Boa noite lhe dê Deus ! »
Segue-se uma cena cómica ainda sobre a incumbência recebida por
Mateu para ir pedir permissão ao dono da casa para a troupe brincar
no terreiro. Mateu provoca o Mestre tentanto levá-lo ao ridículo e
recebe bordoadas. Recitativos do Mestre e de Mateu, que por fim sai
a desincumbir-se de sua missão, e volta, em seguida, com a resposta
do dono da casa que traduz em versos :
« Mandou dizer o sinhozinho
Dono da casa que
Podia botar a brincadeira
Dando pulo no terreiro,
Todo pessoal fagueiro.
Faça bom, bote ligeiro,
Viva D. Pedro Primeiro ! »
Só então saem todos os integrantes da troupe da tolda (a que
chamam empanada ou circo) e cantam a seguinte estrofe seguida de
outras :
« Lá saiu o nosso rei
Da parte do Oriente,
Veio adorar Deus Divino
Com todo o poder de gente ».
O canto é parodiado pelos cómicos, provocando risos na
assistência.
A cena seguinte é uma mescla de cantos e recitativos de
inspiração agrária referentes ao Sol, à Lua, à Aurora Dourada e ao Ligeiro
Vento, e aos seis primeiros meses do ano, incluindo comentários
sobre o inverno. Após esta cena sai o Cavalo-Marinho e, um após
outro, todos os bichos e por último o Boi. Á entrada, o Cavalo-Marinho
cuida de ampliar o espaço cénico, investindo contra os espectadores
ao som da música e do canto :
« Quem tiver aí por perto
Pode se arretirar
Que espaço tenho pouco
Pra meu cavalo dançar ».
46 CM.H.L.B. Caravelle

Entra em seguida o Gigante à procura de sua mulher Isidora.


Ele é estrangeiro e tem trezentos anos :
« Gigante, que bicho é esse
Que na roda apareceu ?
Foi por causa desse bicho
Que o Amazonas se perdeu ».
O Gigante informa que veio do estrangeiro e procura sua mulher.
Os personagens cómicos, com os quais dialoga, pedem-lhe que se
retire : « que o caso está perigoso/Quem se arretirou amante/Fez
ação de generoso ». E o Gigante termina por sair e voltar para « a
terra estrangeira » de onde veio. A introdução deste personagem no
folguedo parece-nos uma alusão à dominação portuguesa no Brasil
que durou pouco mais de trezentos anos — a idade do Gigante. Após o
Gigante introduzem a Margarida — imensa boneca com um ator no
seu interior; depois o Jaraguá e por fim o Boi.
O Boi e saudado com festa e grande contentamento não só por
parte dos « brincantes » como do público. Após a dança do Boi, há
o casamento do Galante que « ofendeu » (deflorou) a filha de Mateu.
Para oficiar o casamento, Mateu corre à procura do Padre. Mas o
Padre exige ser transportado em automóvel e acompanhado pelo
conjunto musical, isto, após um diálogo com Mateu que parece
interminável. Então a troupe finge vir de automóvel, dirige-se até a tolda
e o instrumental puxa o cortejo que canta uma canção em que faz alu-
ção a António Conselheiro, Moreira Cesar e Canudos, em evidente
crítica à Igreja Católica :
« João Moreira Cesar
Era um soldado,
No primeiro fogo
Ele saiu baleado.
Vamos, vamos povo,
Vamos pra Canudo :
António Conselheiro
Ele batisa, casa e tudo.
Vamos, vamos povo,
Vamos tudo igual,
Debaixo da capa santa
Fazer o Pelo Sinal ».
Segue-se a cena da morte do Boi. O Boi investe contra Birico e
este desfere-lhe uma paulada mortal entre os chifres. Cantam então
um lamento à morte do animal querido :
« Lá morreu meu boi !
Que será de mim ?
No sertão não tem ô maninha,
Outro boi assim ».
O AUTO DO BOI NA PARAÍBA 47

Então o Doutor é introduzido em cena para tentar salvar o Boi.


Mas trata-se de um médico e não um veterinário. Ao tomar
conhecimento de que viera para consultar um boi, o Doutor protesta que é
médico e não veterinário. Mesmo assim é convencido a examinar o
animal e constata a sua morte. A cena é cómica e evidencia a ignorância
dos médicos — é uma crítica à Medicina. Morto o Boi, segue-se a
partilha — divisão das diversas partes do Boi com os personagens e
pessoas da plateia.
Em alguns grupos de Bumba-meu-boi a ressurreição do animal
dá-se pela aplicação de um clister. Mas, no Boi de Reis paraibano, à
simples invocação pelo canto, o Boi ressuscita :
« Se levanta boi
Desse frio chão
Que a viagem é longa, meu boi,
Para o teu sertão ».
Se levanta boi
Do meu desengano,
Dá adeus ao povo, meu boi,
E até para o ano ».
O Boi levanta-se. Ressuscitou. Alegria geral. Cantam então as
despedidas.
As exibições nunca são completas. Suprimem partes e personagens
ora num ora noutro espetáculo, como, igualmente, usam da liberdade
de criar novas situações quando lhes apraz.
O instrumental é composto de rabeca e pandeiro. Compõe parte
muito importante do espetáculo, não só no acompanhamento
musical mas também por intervir na ação dramática. Os intrumentistas
são interpelados pelos personagens — principalmente os cómicos
que têm mais liberdade de improvisação — e participam da cena
fornecendo as informações solicitadas e, em alguns casos, criando
quiproquos.
O Mestre, com um apito, comanda o espetáculo do início ao fim.
A um apito seu tem início um canto, outro apito e este é encerrado.
Assim são também as danças, as cenas cómicas, enfim, todas as
ações.
48 CM.H.L.B. Caravelle

Resumo. — Nada mais teatral no folclore brasileiro que o Bumba-meu-boi.


Embora tome nomes diferentes conforme as regiões, não deixa de ser uma
manifestação popular, em que a influência negra é evidente. O próprio nome —
Bumba — é de origem africana. Mas esse « totemismo » do boi talvez tenha
outras origens religiosas e geográficas. Lembrando a Commedia deWArte,
caracterizada pela prensença das máscaras, o Bumba-meu-boi é também um espetáculo
completo, tanto pelo número e pela diversidade das personagens como pela
participação dos espectadores.

Résumé. — Rien de plus théâtral dans le folklore brésilien que le Bumba-meu-


boi. Bien qu'il prenne plusieurs noms, selon les régions, il n'en reste pas moins
une manifestation populaire où l'influence noire est patente. Le nom lui-même —
Bumba — n'est-il pas d'origine africaine ? Mais ce « totémisme » du bœuf a
peut-être d'autres origines religieuses et géographiques. Rappelant la Commedia
dell'Arte, en particulier par la présence des masques, le Bumba-meu-boi est aussi
un spectacle complet, tant par le nombre et la diversité des personnages que
par la participation des spectateurs.

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