Você está na página 1de 306

MEMÓRIAS E VISÕES DO PARAÍSO

Explorando o Mito Universal de uma Idade de


Ouro Perdida

RICHARD HEINBERG

1991
Este livro é afetuosamente dedicado a meus amigos Michael e Nancy
Exeter.

Tradução Octávio Mendes Cajado

Em algum lugar do mundo inferior, fomos criados pelo Grande


Espírito, o Criador. Fomos criados Primeiro um, depois dois, depois
três. Fomos criados iguais, na unicidade, vivendo de modo espiritual,
onde a vida é eterna. Éramos felizes e vivíamos em paz com os
nossos semelhantes. Todas as coisas eram abundantes, propiciadas
pela nossa Mãe Terra, sobre a qual fomos colocados. Não
precisávamos plantar nem trabalhar para obter comida. As doenças e
os problemas eram desconhecidos.
Ancião dos hopis Dan Katchongva

Os seres humanos mais antigos viviam sem desejos maus, sem culpa
nem crime, e, por conseguinte, sem penalidades nem compulsões.
Tampouco havia necessidade de recompensas, visto que, pela
instigação da sua própria natureza, trilhavam caminhos virtuosos. E
como nada se desejava contrário à moral, nada se proibia através do
medo.
Tácito, poeta romano (século I d.C.)

[Na Primeira Idade] havia tão somente uma religião, e todos os


homens eram santos; em vista disso, não se sentiam solicitados a
levar a efeito cerimônias religiosas. Na Primeira Idade não havia
deuses nem demônios. A Primeira Idade não conhecia doenças; não
havia redução de nada com o passar dos anos; não havia ódio, nem
vaidade, nem quaisquer maus pensamentos; tampouco havia tristeza
ou medo. Naqueles tempos, os homens viviam o quanto queriam viver
e não tinham medo da morte.
O Mahabharata da Índia

Na Idade da Virtude Perfeita eles eram justos e corretos, sem saber


que o ser assim significava retidão; amavam-se uns aos outros, sem
saber que o fazer assim significava benevolência; eram sinceros e
leais de coração, sem saber que tratava-se de boa-fé; em seus
movimentos simples, empregavam os serviços uns dos outros sem
pensar que estavam dando ou recebendo algum presente. Por
conseguinte, suas ações não deixavam traços e não havia registro dos
seus negócios.
Chuang Tzu, sábio chinês (século IV a.C.)

Também disse Deus: o homem à nossa imagem, conforme a nossa


semelhança; tenha ele domínio sobre os peixes do mar, sobre as aves
dos céus, sobre os animais domésticos, sobre toda a terra e sobre
todos os répteis que rastejam pela terra. Criou Deus, pois, o homem à
sua imagem, à imagem de Deus o criou; homem e mulher o criaram...
E plantou Deus o Senhor Deus um jardim no Éden, da banda do
Oriente, e pôs nele o homem que havia formado...
Tomou, pois, o Senhor Deus ao homem e o colocou no jardim do
Éden para que o cultivasse e guardasse.
Gênesis 1:26, 27; 2:8, 15

Agradecimentos

Estou encantado por ter, afinal, a oportunidade de agradecer


publicamente às pessoas que me ajudaram na criação deste livro.
Em primeiro lugar, gostaria de agradecer a Marilyn Ferguson e Jeremy
Tarcher, que viram que havia um livro para ser escrito e me tornaram
possível escrevê-Io; e a todo o pessoal da Jeremy P. Tarcher, Inc.,
que aplicou as suas várias habilidades editoriais com calor e
entusiasmo genuínos.
Sou também devedor de Susan Rogers que, incansável, esquadrinhou
para mim as bibliotecas e livrarias de Portland, Oregon, e me mandou
um sem-número de livros e artigos, que, de outro modo, eu nunca
teria podido encontrar; e de Roger Migchelbrink, que me acompanhou
em muitas excursões as bibliotecas do Colorado e farejou passagens
obscuras, mas importantes, da literatura religiosa do mundo.
Não posso expressar adequadamente minha profunda gratidão pela
generosidade e tolerância dos 150 residentes da comunidade de
Sunrise Ranch, que me sustentaram durante os dois anos, aliás
improdutivos, que passei preparando o manuscrito. Foi a sua boa
vontade para dar ao Paraíso uma forma terrena numa base cotidiana,
através da qualidade do seu modo de vida, que faz deste livro mais
que um simples exercício teórico.
Finalmente, eu queria agradecer ao meu editor, Dan Joy, que veio
compartilhar da visão inspiradora deste livro, e que, delicada e
persistentemente, cultivou tudo o que era harmonioso à visão, e,
paciente, arrancou as idéias e a linguagem que não se lhe ajustavam.
No processo de trabalhar juntos por meses ou anos, dissecando
pensamentos e podando parágrafos, autores e editores acabam
conhecendo o interior das mentes uns dos outros como a planta da
própria cozinha. Em alguns casos, tenho a certeza de que a
experiência é cruciante para as duas partes; neste caso, todavia, o
processo todo foi um prazer sem contraste.
Adam Naming the Beasts (Adão dando nome às feras), de William
Blake (1810)

Prefácio

Já se disse da música de Mozart que ela poderia ter sido escrita antes
da Queda. Poder-se-ia dizer o mesmo das Lembranças e visões do
Paraíso de Richard Heinberg.
Heinberg é um explorador das regiões do mito e da profecia. Essas
regiões são estranhas, no sentido de que o mundo pintado, assim no
mito como na profecia, é tão diferente do mundo que conhecemos que
é capaz de nos tornar, a princípio, incrédulos aos dois. Um explorador,
porém, é mais que um viajante, que pode simplesmente contemplar,
rápido e incrédulo, paisagens exóticas, e, logo, com um suspiro de
alívio, retornar aos lugares familiares que costuma habitar. O
explorador precisa demorar-se em ambientes não-familiares e ter
coragem suficiente para desafiar a desorientação inevitavelmente
resultante da sua estada. Em seguida, reorientado, precisa ter a
mente e o coração abertos para encontrar sentido no que se lhe
deparou, e a generosidade de espírito para transmitir esse sentido a
outros menos aventurosos do que ele. Tudo isso fez Heinberg.
Ele está fazendo muito mais, entretanto, do que apresentar, aos que
vivem longe dos mitos, histórias estranhas e predições forçadas. Está
Ihes dizendo - e a nós também que existe um componente oculto na
nossa relutância em acreditar em histórias antigas e aceitar descrições
de coisas por vir. Esse componente, diz ele, é que, longe de nos
serem alheias, as regiões umbrosas do passado e do futuro não são
ficções. Pelo contrário, o domínio mítico é a realidade a longo prazo
da nossa progênie coletiva, ao passo que o sonho profético é uma
possibilidade para os que desejam atualizá-Ia. Somos como crianças
adotadas que, ao descobrirmos que os nossos pais verdadeiros não
são os que tínhamos presumido, nos recusamos a reconhecer, não
somente o parentesco, senão também as perspectivas alteradas que
dele podem fluir.
A grande tarefa intelectual que Heinberg nos propõe é o que os
psicanalistas junguianos denominam anamnese, ou a recuperação de
lembranças sepultadas, individuais e coletivas. Como sugere a origem
grega da palavra, a anamnese não é uma proposta moderna. Platão
insistiu que todo pensamento é recordação. E os devotos dos
Mistérios Órficos procuraram compensar o Leste, o tradicional rio do
esquecimento, com um lago da recordação, no qual se banhariam os
iniciados para recuperar o apelo do cosmo primevo e o lugar deles
nesse cosmo. No século XIX, Friedrich Nietzsche, cuja carreira de
filósofo se iniciou com um estudo intensivo de filologia clássica,
interessou-se profundamente por essas idéias e advogou o que
denominava mnemotécnica - método sistemático de relembrar alguma
coisa que, a não ser assim, cairia no esquecimento.
Um dos pensadores mais aventurosos que herdaram a visão analítica
foi o médico austro-americano Wilhelm Reich, que declarou que "o
sonho do Paraíso... é racional e necessário". Reich, cujo objetivo
terapêutico era a restauração da criatividade energética das pessoas
que se sentiam profundamente deprimidas, convenceu-se de que os
grandes movimentos políticos do seu tempo, tanto revolucionários,
eram esforços desesperados, porém mal-orientados, para restaurar
uma ordem social pré-histórica perdida.
Conquanto a exposição de Richard Heinberg assuma a forma de
prosa, a sua visão é poética. Para utilizar um termo tomado de
empréstimo ao poema épico Paraíso, do poeta John Milton, Heinberg
mostra-nos o que era, e o que voltará a ser, viver "emparaisado".
Porém a mais rica expressão em versos dessa visão que conheço
vem do admirador e sucessor de Milton, William Wordsworth. É a sua
ode intitulada Intimations of Immortality from Recollections of Early
Childhood [Sugestões de imortalidade tiradas das lembranças da
primeira infância] (em que podemos interpretar a sua "infância" como
a da humanidade em geral, e o pronome "eu" se referisse a toda a
nossa espécie):
Houve um tempo em que o prado, o bosque e o ribeiro, A terra, e
todas as visões comuns, A mim me pareciam Vestidas de luz
celeste, Da glória e do frescor de um sonho.
Agora já não é como foi outrora;
Para onde quer que eu me volte, De noite ou de dia, As coisas que via
antes já não vejo agora...
O amor-perfeito a meus pés Repete a mesma história:
Para onde fugiu o brilho visionário? Onde estão, agora, a glória e o
sonho?...
Nosso nascimento é apenas um sonho e um olvido; A Alma que
nasce conosco, a Estrela da nossa vida, Teve alhures seu ocaso, E
vem de longe:
Não do pleno esquecimento, Nem da completa nudez, Mas, nuvens
roçagantes de glória, viemos De Deus, que é o nosso lar...
Que alegria! que em nossas brasas Haja alguma coisa que vive, Que
a natureza ainda se lembre Do que era tão fugitivo!...
Por isso, numa estação de tempo mimoso, Embora estivéssemos
longe, terra adentro, Nossas almas contemplaram o mar imortal Que
nos trouxe para cá, Que pode, num momento, viajar para lá E ver as
crianças brincando na praia.
E ouvir as águas poderosas rolando para sempre...
Graças ao coração humano pelo qual vivemos, Graças à sua ternura,
alegrias e medos, Para mim, a menor das flores que floresce pode dar
Pensamentos que jazem amiúde profundos demais para lágrimas.

Doù venons-nous? Que sommes-nous? Ou allons-nous? [De onde


viemos? Que somos? Aonde vamos?], de Paul Gauguin (1898)

Apoio mais recente, ainda que indireto, à tese de Heinberg vem da


teoria da acusação formativa do biólogo britânico Rupert Sheldrake.
De acordo com Sheldrake, tanto a "lei" física quanto o comportamento
humano são mutáveis, sendo, em grande parte, determinados por
padrões estabelecidos em tempos primitivos. O fato de tanta coisa da
nossa iconografia religiosa e tantas obras-de-arte, verbais e não-
verbais, pintarem um mundo radicalmente diferente de qualquer outro
conhecido da história pode indicar, em função da causação formativa,
que os nossos sonhos paradisíacos são, com efeito, lembranças
grupais. O conceito de Paraíso talvez mexa conosco porque,
antigamente, moramos no Paraíso e nunca renunciamos de todo à
esperança subliminal de voltar àquele estado.
Consoante a sabedoria convencional do nosso século, tudo o que se
diz do Paraíso é hipérbole ou fantasia. A definição de um local de
férias como paradisíaco é considerado um exagero de efeito.
Analogamente, ter uma visão do Paraíso é considerado "mera
imaginação". Mas o que é a imaginação? Literalmente, é imaginar -
vale dizer, formar ou perceber imagens. E, se bem algumas de nossas
imagens sejam formadas deliberadamente, a maioria simplesmente
nos vêm; de onde, não sabemos.
Nem toda imaginação, em outras palavras, é uma invenção ex nihilo,
senão o reaparecimento, nas mentes individuais, de imagens antigas
e coletivas. Quase todo visionamento é a memória revivificada. O
Paraíso é menos criado do que recriado.
Se, por outro lado, essas obras enriquecedoras de arte e ciência, que
comumente vemos como criações pessoais, são, na verdade,
ressurreições da humanidade que desapareceu, uma observação
recíproca parece igualmente válida: a de que o agir como veículo para
essa consciência imortal está, ele mesmo, entre as formas mais
elevadas de criatividade a que os indivíduos podem aspirar.
Lembrando-nos o Paraíso e ajudando-nos a revisioná-Io, Richard
Heinberg mostrou ser um compadecido e criativo explorador do
espírito humano.
Roger Williams Wescott,
Professor de Antropologia
Na Universidade Drew
Introdução

Se isso aconteceu ou não aconteceu assim, não sei; mas se você


pensar nisso, verá que é verdade.
Alce Negro

Quase todos os esforços humanos - desde a busca de empregos


melhores e relacionamentos mais satisfatórios até a fundação de
nações e a procura do progresso tecnológico e social - podem ser
vistos como expressões de um anseio, que incendeia as paixões de
cada geração, pode ser recuperado se remontarmos, através das
primitivas expressões da imaginação humana na literatura e no
folclore, à memória primordial de um Paraíso original, onde seres
humanos viviam em inocente e milagrosa harmonia com a Natureza e
o Cosmo. A imagem paradisíaca ainda acena para nós com um poder
e uma resistência realmente arquetípicos, mas sua origem e seu
sentido, não obstante, são misteriosos. Como uma sugestão hipnótica
esquecida, ela nos força o comportamento, mas permanece obscura.
Em 1979, uma série de acontecimentos conspirou para lançar-me a
uma busca, que durou uma década, do sentido do mito universal do
Paraíso. Naquela época, eu acabara de passar cinco anos
trabalhando com um grupo de amigos no desenvolvimento de uma
pequena comunidade de base espiritual em Ontário. Eu possuía
modestos antecedentes educacionais em arte, música e nos textos
budistas sagrados, sendo um leitor voraz de livros e artigos sobre as
fronteiras da pesquisa científica. Através de uma amiga, a sra. Grace
Van Duzen, fiquei sabendo que o controvertido cosmólogo e
historiador Immanuel Velikovski estava precisando de um auxiliar de
pesquisa. Como eu admirava os trabalhos de Velikovski pelo saber e
pela originalidade que denotavam, pedi a Grace, que conhecia o
cientista, já de certa idade, que me recomendasse a ele. Após umas
poucas cartas e chamadas telefônicas, rumei para o lar dos Velikovski
em Princeton, Nova Jérsei. Cinco dias depois, o dr. Velikovski, que já
havia completado 84 anos, veio a falecer. A pedido da família,
permaneci na casa dele e ajudei a editar dois dos seus manuscritos,
mais tarde publicados com os títulos Mankind in Amnesia (1981) e
Stargazers and Gravediggers (1983).
Velikovski fora pioneiro de uma nova maneira de ler a mitologia antiga.
Colecionara tradições muito difundidas de dilúvios, incêndios e outras
catástrofes, e as cotejara com as provas da geologia e da astronomia.
Concluiu que os mitos não eram simples fantasias infantis - como
haviam presumido muitos eruditos anteriores - mas lembranças de
eventos históricos. Essa idéia foi uma revelação para alguns dos seus
leitores e um ultraje para outros. Desde a publicação de Worlds in
Collision, em 1950, os descobrimentos científicos tenderam a
confirmar inúmeras propostas de Velikovski, mas nos círculos
acadêmicos a menção de seu nome ainda evoca respostas ambíguas.
À proporção que fui me familiarizando com os mitos de antigas
catástrofes que Velikovski utilizara como fontes de material, principiei
a encontrar, por acaso, tradições mais antigas de um tempo de paz e
abundância. Logo descobri que a imagem de um Paraíso
desaparecido e a procura de sua restauração são temas essenciais do
folclore mundial. Quase todos os povos antigos tinham tradições de
uma era primordial, quando a humanidade vivia uma existência
simples e, contudo, mágica, em harmonia com a Natureza. Diziam os
antigos que essa Idade de Ouro original chegara ao fim por causa de
um equívoco ou falha trágica, que obrigou à separação entre o Céu e
a Terra. De mais a mais, diziam que a ruptura entre os dois mundos
precipitara uma descida à separação, ao medo e à cobiça, que
caracterizam a natureza humana tal como a conhecemos hoje. Diziam
que só depois dessa mudança do modo de ser humano - a Queda - a
Terra ficou sujeita a horrendas catástrofes globais, cujo impacto
geológico, climático e psicológico apagou quase todos os traços do
antigo estado "áureo".
As palavras Paraíso e Queda nos trazem à cabeça, inevitavelmente, a
história hebraica de Adão e Eva no Jardim do Éden - a versão da
antiga narrativa do Paraíso mais conhecida dos ocidentais, e que
milhões de pessoas ainda aceitam literalmente. Eu estava decidido a
pesquisar a origem e o sentido da história do Éden, mas me sentia
igualmente fascinado pelas dúzias de mitos semelhantes que se
encontram entre povos tão diversos quanto os nativos americanos, os
antigos gregos e hindus, os povos tribais da África, e os aborígines da
Austrália. Aqui me pareceu topar com uma idéia mais ampla do que
qualquer religião singular poderia conter.
Senti-me compelido a perguntar, como Velikovski sem dúvida o teria
feito, onde poderia haver alguma verdade histórica no âmago do mito
do Paraíso. Houve realmente uma Idade de Ouro? Pus-me a aplicar
um método interdisciplinar, correlacionando os descobrimentos da
arqueologia, da antropologia e da psicologia com as tradições arcaicas
dos nossos ancestrais. Os resultados das investigações - sumariados
nos capítulos finais do livro - proporcionaram uma introvisão do
sentido do mito, mas também contestaram a maioria das minhas
suposições a respeito de história, psicologia e religião. Logo comecei
a ver que a tradição do Paraíso, com efeito, pode ser encarada como
história, mas somente se se reconhecer que se trata também de uma
metáfora profunda.
Descobri que o sentido metafórico do mito flui da visão sagrada que os
antigos tinham do mundo. A sua abordagem da vida, de caráter
inteiramente espiritual, carecia de todo sentido de sectarismo ou
dogmatismo. Eles pareciam ter uma compreensão da ordem e do
sentido universais da existência, que os guiava em suas relações com
o Céu e a Natureza. O mito do Paraíso, nas descrições de paisagens
milagrosas e poderes perdidos em virtude de uma mudança
desastrosa do caráter humano, encerrava essa visão do mundo, e, ao
mesmo tempo, contava como e por que se eclipsara gradativamente.
Quando cheguei a ver, através dos olhos dos primeiros fazedores de
mitos, minha própria visão da vida e da cultura humanas se
transformou. Comecei a encarar as religiões modernas como
remanescentes de uma tradição espiritual outrora universal, e a
história da civilização como o registro da perda progressiva, sofrida
pela humanidade, do seu sentido original de propósito sagrado.
Comecei a suspeitar, cada vez mais, de que a imagem mítica do
mundo tem um significado especial para nós na atual geração.
Conquanto, no mundo industrial moderno, propendamos a orgulhar-
nos de nossas consecuções, sentimo-nos, ao mesmo tempo,
profundamente inquietos. Toda civilização tem tido seus problemas
únicos, com os quais lhe coube lutar, mas a nossa se nos afigura
especialmente sobrecarregada. De fato, os derradeiros efeitos da
poluição, da guerra e da superpopulação são potencialmente tão
graves que exigiram se cunhasse um termo novo - onicídio. Seriam os
nossos dilemas correntes, mais do que acompanhamentos do
processo da evolução humana, sintomas de alguma neurose cultural
universal? Teremos perdido contato com uma dimensão interior do ser
tão vital e nutriente que o nosso afastamento dela deixou-nos uma
brecha no coração - uma brecha que debalde tentamos preencher
com realizações pessoais e aquisições materiais? E dar-se-ia que os
antigos, em suas histórias de um Éden desaparecido, estivessem
procurando dar-nos informações importantes sobre a natureza dessa
perda e sobre o modo com que ela pode ser compensada -
informações de que precisamos no estádio atual da história, se
quisermos tornar a um modo de existência sadio e estável?
Ora, depois desses anos de pesquisa e escritos, creio compreender
melhor por que o mito do Paraíso me atraiu tão irresistivelmente, e por
que fascinou multidões de gerações. Tendo examinado a literatura
mitológica importante, assim como os descobrimentos correlatos da
antropologia e da arqueologia, senti-me empurrado para a teoria
segundo a qual nossas memórias culturais de uma Idade de Ouro de
harmonia são o resíduo de uma compreensão, outrora universal, da
dimensão espiritual da consciência humana e, ao mesmo tempo,
lembranças do modo que essa dimensão foi quase completamente
decepada. E não posso deixar de notar a casualidade do fato de que o
estudo comparativo da mitologia chegou ao estado adulto, e está-nos
conduzindo de volta à visão sagrada do mundo, exatamente como a
nossa sociedade industrial moderna se aproxima do que só pode ser
denominado crise espiritual.
Os pensadores de vanguarda da nossa era proclamam a necessidade
de uma nova base para a vida e um novo conjunto de suposições a
respeito da Terra e do gênero humano. O psicanalista Carl Jung
compendiou esta situação quando disse que a humanidade necessita
de um novo mito, um novo fundamento de sentido, a fim de firmar a
superestrutura da nossa complexa civilização.
Tudo indica que o novo mito está emergindo, expresso de várias
maneiras por pensadores em disciplinas divergentes. O biólogo James
Lovelock, por exemplo, sugere, em sua hipótese Gaia, que a Terra é
uma entidade viva, capaz de regular seus próprios sistemas internos.
George Wald, vencedor do Prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina de
1957, argumenta que a consciência, longe de ser um desenvolvimento
evolutivo recente, inere à própria estrutura do Cosmo. O economista
mais perspicaz do nosso século, E. F. Schumacher, mostrou-nos que
enquanto "as riquezas, a educação, a pesquisa, e muitas outras
coisas são necessárias a toda civilização... o mais necessário hoje é
uma revisão dos fins a que esses meios se destinam a servir" -, fins
que devem proceder de ideais e de valores não materiais, como a
verdade, a temperança e a beleza. E os pesquisadores médicos e
psicológicos estão descobrindo que os estados emocionais influem
diretamente sobre a saúde física. As suas experiências sugerem que a
expressão das mais elevadas qualidades do espírito humano não é
apenas um ideal louvável, senão também a base necessária para uma
saudável abordagem da vida.
O respeito à Terra como entidade viva, o reconhecimento do propósito
e da consciência do Cosmo, a admissão dos valores espirituais
universais e a aceitação da responsabilidade pela expressão do
caráter nobre são atitudes e ídéias amiúde resumidas numa palavra
que define o novo mito que forcejamos por alcançar tão bem quanto
qualquer palavra isolada pode fazê-Io: holismo. O holismo é a crença
de que as totalidades (organismos e ecologias, por exemplo)
determinam o desenho, a função e a saúde de suas partes, em lugar
de ser o contrário.
Muitos dos nossos pensadores mais destacados são atraídos para
uma visão holística do mundo, aproximando-se dela a partir de cada
categoria e departamento em que se fragmentou o pensamento
humano. Mas quanto mais se segue a tendência na direção do
holismo, tanto mais nítida é a impressão de que alguém esteve aqui
antes. À maneira que nossas filosofias caminham para o
reconhecimento da ordem cósmica e para o respeito ao propósito
inerente da Natureza, estamos recapitulando, de muitas maneiras, a
antiga visão espiritual do mundo. Parecemos estar na iminência de
voltar ao ponto de partida, por um caminho que nos afasta da
especialização e nos dirige para a integração, que nos distancia do
excesso tecnológico e nos conduz ao respeito ao processo natural,
que nos leva para longe do materialismo e nos aproxima de um
sentido renovado do sagrado.
Talvez nada disso deva surpreender-nos. Para que o nosso novo mito
possua a profundidade de ressonância indispensável a que soe claro,
através da massa do inconsciente coletivo, é preciso que soe desde a
Fonte final da identidade, do significado e do propósito humanos. E
essa Fonte - a que chamamos de Brahma, Deus ou base universal do
Ser - não é uma invenção moderna.
Os povos indígenas, como os americanos nativos e os aborígines
australianos, nunca imaginaram. como nós imaginamos, que a
natureza existe para benefício do homem. Ao invés disso,
acreditaram, milênios a fio, que nós, humanos, temos uma profunda
responsabilidade para com a Terra como canais para a revelação do
Céu. Eles vêem o propósito essencial da vida mais em termos
espirituais do que em termos materiais, e vêem o próprio Universo
consciente e benévolo. Podemos dar-nos os parabéns por pensar que
os líderes intelectuais e espirituais do mundo moderno estão
alimentando pensamentos similares numa volta mais alta da espiral
evolutiva, mas não podemos ser muito arrogantes ao comparar o
nosso meio de vida com o dos povos tribais. Eles eram mestres de
holismo muito antes de chegarmos a cunhar a expressão.
A idéia de que podemos, de um modo ou de outro, trazer de volta um
Paraíso perdido, pode parecer a mais quixotesca das iniciativas nos
dias de hoje. Vivemos num mundo cínico e quase perdemos a
capacidade de olhar para um passado que nada mais é do que
bárbaro, ou para um futuro que pouco mais é do que passível de
sobrevivência. Muitos vieram a aceitar a perda da inocência como
necessária e irreversível, e considerar toda recordação ou sonho de
uma existência realmente satisfatória como nada mais que um
exercício de sentimentalismo, romantismo ou nostalgia. O mito do
Paraíso, em compensação, oferece a visão de uma idade de milagres
e prodígios, de simplicidade mágica, de paz e alegria. Diz-nos que é
possível viver com confiança. Teremos ainda a coragem de alimentar
uma visão assim? Em nossa resposta a essa pergunta talvez se
encontre a realidade do nosso futuro. "Sem a visão", proclama o
provérbio, "as pessoas perecem.”
Dada a amplitude assustadora e a variedade do material que
suplicava claramente a sua inclusão neste volume, tentei levar adiante
a nossa jornada através do mito, da profecia, da história, da
antropologia e da psicologia tão lógica e diretamente quanto possível.
A Primeira Parte do livro (Capítulos de 1 a 5) se compõe de uma
descrição geral e seqüencial da visão mítica da história do mundo. É
uma excursão orientada através da Criação, do Paraíso e da Queda.
Espero que esses capítulos interessem a todos os estudiosos e
amantes do mito.
A Segunda Parte é uma análise da visão paradisíaca tal e qual
emergiu das culturas humanas históricas. Como veremos no Capítulo
6, as profecias de uma dia futuro de purificação e retorno final ao
Paraíso são ubíquas, transcendem as divisas culturais. Além disso,
como veremos no Capítulo 7, as lembranças e sonhos de um Éden
passado ou futuro moldaram, em grau surpreendente, os ideais
literários e sociais da nossa própria civilização.
A Terceira Parte é uma investigação das tentativas da humanidade de
descobrir o sentido da imagem paradisíaca. No Capítulo 8,
exploraremos as provas antropológicas e arqueológicas relativas à
questão de saber se houve realmente uma Idade de Ouro muitos
milênios atrás, e no Capítulo 9, veremos que o mito do Paraíso
descreve, metaforicamente, estados alternados de consciência.
A Quarta Parte apresenta algumas implicações especulativas
nascidas, naturalmente, do nosso enfoque do mito do Paraíso. Como
veremos, há razões para pensarmos que, se estamos dispostos a
confrontar e mudar muitas de nossas suposições e valores atuais, e
muito do nosso condicionamento social, o mundo milagroso do
Paraíso pode ser, de fato, atingível, não só para nós individualmente,
mas também para a humanidade em geral.

Sumário

PRIMEIRA PARTE
A Memória

Capítulo 1
Os Mistérios do Mito.
Interpretando os antigos.
Dissecando o mito e a religião.
O retorno do sagrado.
A visão mítica do mundo.
Mito: história ou metáfora.
O problema da unidade mítica

Capítulo 2
No Princípio Fiat ex nihilo.
O Ovo Cósmico.
O Mergulhador da Terra.
A Emergência.
A origem dos seres humanos

Capítulo 3
A Procura do Éden Suméria e Dilmun.
O Jardim iraniano.
A era de Rá.
A Raça de Ouro.
Os Paraísos do Oriente.
O Primitivismo entre os Primitivos.

Capítulo 4
Imagens do Paraíso: Temas Comuns.
A paisagem mágica.
As idades do mundo.
A Idade dos milagres e das maravilhas.
A santidade de caráter.
A comunhão com a divindade: os pais divinos.
A imortalidade.
Paraísos celestes e terrenos.
A ponte do arco-íris.
Continentes perdidos.

Capítulo 5
A História Mais Triste.
A Mudança de caráter.
A desobediência.
O fruto proibido.
A ciência do bem e do mal.
O esquecimento.
Os efeitos da Queda.
O Dilúvio.
Outras catástrofes.

SEGUNDA PARTE
A Visão

Capítulo 6
A Profecia: O Paraíso Antigo e o Paraíso Futuro.
No fim como no princípio.
Esperando o milênio.
A grande purificação.

Capítulo 7
O Paraíso como Força na Cultura Humana.
O Paraíso na literatura.
Sonhos de um Paraíso terreno.
Utopia: o Paraíso feito de encomenda.
O poder do exemplo.
A América utópica.
O novo espírito comunal.

TERCEIRA PARTE
A Busca

Capítulo 8
O Paraíso como História.
Aconteceu realmente?
A arqueologia bíblica.
De forrageadores e agricultores.
O Paraíso como jardim.
O Paraíso paleolítico.
Atlântida e Mu.
Anomalias arqueológicas.
Os limites do conhecimento histórico

Capítulo 9
O Paraíso como Metáfora.
Os velhos e bons tempos.
O sexo e a Queda.
O complexo de Édipo.
O Paraíso como infância.
A evolução da consciência.
O Paraíso como união mística

QUARTA PARTE
A Volta

Capítulo 10
Desdobrando Imagens: o Espelho do Mito.
A Mente Original.
O Ego e a Queda.
A Sobrevivência do Milagroso.
Revisionando a História

Capítulo 11
O Paraíso Agora: Entre o Céu e a Terra.
A experiência da quase-morte.
Idéias da vida após a morte.
A experiência de quase-morte como forma de experiência mística.
Imaginação ou realidade?

Capítulo 12
Para Voltar ao Jardim.
A Atingibilidade do Paraíso.
Advertências do Inconsciente Coletivo.
A Nova Cultura.
Compreendendo o Paraíso

Epílogo.
CAPÍTULO 1
Os Mistérios do Mito
Era uma vez uma época em que todos os seres humanos viviam em
amizade e paz, não apenas entre eles mesmos, como também com
todos os outros seres vivos. A gente daquela Idade da Inocência
original era sábia, brilhante, capaz de voar à vontade pelo ar, e estava
em contínua comunhão com as forças e inteligências cósmicas.
Entretanto, uma trágica disrupção acabou com a Primeira Idade, e a
humanidade viu-se alheada do Céu e da Natureza. Desde então
temos vivido de modo fragmentário, nunca nos compreendendo
realmente a nós mesmos, nem o nosso lugar no Universo. De vez em
quando, porém, olhamos para trás, com saudade e pesar, e sonhamos
com uma volta ao Paraíso que outrora conhecemos.
O Paraíso talvez tenha sido a idéia mais popular e intensamente
significativa que alguma vez já se apoderou da imaginação humana.
Encontramo-Ia em toda a parte. "Em formas mais ou menos
complexas, o mito paradisíaco ocorre aqui e ali, no mundo inteiro”!,
escreveu a grande autoridade moderna sobre religiões comparadas
Mircea Eliade. O Jardim do Éden hebraico, a Idade de Ouro grega, o
Tempo de Sonho dos aborígines australianos e a Idade da Virtude
Perfeita do taoísmo chinês são apenas variantes locais do
universalmente relembrado Tempo dos Primórdios, cuja lembrança
coloriu toda a história subseqüente.
O impacto da imagem paradisíaca sobre a consciência coletiva
humana é tão profundo quanto vasto. Em nenhuma tradição o tema é
recente ou periférico; existe, antes, no próprio cerne do impulso
espiritual perene, que reemerge na literatura, na arte e nos ideais
sociais de cada geração. Com efeito, se estivéssemos buscando um
motivo que servisse de base a um esboço sumário de cultura humana,
poderíamos começar perfeitamente com nossas lembranças coletivas
de uma Idade de Ouro perdida e com nossos anseios pela sua volta.
Os grandes empreendimentos da história - as Cruzadas, as revoltas
milenárias da Idade Média, a demanda do Graal, o descobrimento e a
colonização do Novo Mundo, os movimentos utópicos na literatura e
na política, o marxismo e o culto do progresso - todos de certo modo,
estão enraizados no solo do Jardim mítico original. Quanto mais nos
familiarizamos com a essência da história, tanto mais freqüentemente
lhe reconhecemos o reflexo nos devaneios nostálgicos e nas
fervorosas aspirações de todas as culturas em todas as idades.

Ao passo que a imagem do Paraíso, em determinados sentidos, é


intemporal, suas expressões se encontram nas tradições orais e nas
antigas escrituras religiosas - isto é, em mitos. Para o Ocidente, o
Éden hebraico e a Idade de Ouro grega serviram de protótipos a todas
as visões subseqüentes do Paraíso na arte e na literatura. A situação
é semelhante em outros lugares. Em toda tradição, a imagem do
Paraíso deriva de um mito que remonta aos primórdios da cultura
humana. A natureza do Paraíso está ligada à natureza do mito.
Portanto, para chegarmos a qualquer nova introvisão a respeito do
anseio universal do Paraíso, talvez fosse útil ter primeiro uma
compreensão básica da natureza e do sentido do mito em geral. Mas
o assunto não é simples: a questão do sentido do mito atormentou
estudiosos durante milênios, e continua a atormentá-los.
São os mitos lembranças deformadas de acontecimentos históricos?
Ou são alegorias de introvisões morais ou psicológicas? Estas são as
duas primeiras direções que os eruditos exploraram na busca da
origem da panóplia desconcertante da mitologia do mundo. E
podemos reenquadrar as duas perguntas em função da história
universal do Paraíso: existiu uma verdadeira Idade de Ouro? Se não
existiu, que verdade psicológica estavam procurando os antigos ao
transmitir suas histórias ubíquas de um mundo perdido de felicidade e
abundância?
Visto que não se pode empreender a interpretação desta História das
histórias sem uma compreensão geral da natureza da mitologia,
começaremos examinando rapidamente, neste capítulo, as principais
teorias, crenças e especulações que exercitaram os estudiosos do
mito através dos séculos. Em seguida, tendo explorado o contexto do
assunto, prosseguiremos, no restante da Primeira Parte, com uma
investigação dos relatos míticos da Criação, do Paraíso e da Queda
em todo o mundo, em toda a sua variedade e colorido.

Interpretando os Antigos

Na maioria das conversações, a palavra mito é intercambiável com


mentira. Falamos em expor os mitos, dispersá-Ios e fazê-Ios
descansar. A equação do mito com a ficção não é particularmente
nova; de fato, pode ser seguida, pelo menos, até o século VI a.C.,
quando os primeiros filósofos gregos empreenderam uma avaliação
crítica da mitologia homérica. É nos escritos de Xenófanes, filósofo
grego do século VI a.C., que encontramos a primeira expressão de
descrença no panteão tradicional. Xenófanes, particularmente, fez
objeções às descrições dos deuses de Homero em termos
antropomórficos: "Se bois e cavalos tivessem mãos, ou fossem
capazes de puxar com as mãos e fazer os trabalhos que os homens
fazem, os cavalos puxariam as formas dos deuses como cavalos, e os
bois como bois.”
Xenófanes era um homem instruído e, para as pessoas instruídas
primitivas, os mitos já não faziam parte de uma experiência religiosa
viva; antes - por motivos obscuros - eles se haviam transformado em
matérias de interpretação e debate. Os gregos primitivos enfrentavam,
assim, um problema: a sua cultura estava cheia de rituais e histórias
de grande antiguidade, mas o sentido dessas tradições se evaporara
em grande parte. Como mostrar que tinham um sentido?
Era uma questão a que mentes curiosas e engenhosas se aplicaram,
entusiasmadas. Entre os gregos primitivos já podemos discernir os
primórdios das duas escolas interpretativas primárias que dominaram
o estudo do mito até os tempos atuais. Teágenes, escritor do século V
a.C., criou a escola alegórica de interpretação, sugerindo que todos os
deuses homéricos representam faculdades humanas ou elementos
naturais. A Teágenes devemos a idéia, por exemplo, de que, sendo
Hera a deusa do ar, as histórias de suas relações tempestuosas com
o marido, Zeus, devem ser compreendidas como descrições de
perturbações atmosféricas reais, tempestades e furacões. Segundo
Teágenes e seus seguidores em séculos posteriores, os mitos são
sempre sinais ou símbolos de alguma outra coisa; aceitá-Ios ao pé da
letra é errar inteiramente o alvo.
Dois séculos depois, no princípio do século III a.C., um escritor grego
chamado Euêmero deu início à escola histórica da interpretação. Em
sua famosa coleção de excursões filosóficas, Escritos sagrados,
sustentou ele que os mitos são relatos exagerados de acontecimentos
realmente presenciados por povos primitivos, e que os deuses
homéricos eram reis históricos. Zeus, ApoIo e o resto do panteão,
seres humanos de verdade, tinham sido deificados por gratidão ou
lisonja, e os seus feitos na guerra e na paz forjados em tradições
sagradas, para serem fielmente transmitidos de geração a geração.
Quando lemos um mito, segundo Euêmero, estamos, na verdade,
lendo a história deformada. Tão grande influência exerceu o livro de
Euêmero, que foi o primeiro texto grego a ser traduzido em latim, e a
discussão escolástica do panteão grego, através da Idade Média e da
Renascença continuou a ser dominada pelo euemerismo - o
tratamento do mito como história deformada.

Dissecando o Mito e a Religião

O debate entre os adeptos do metaforismo e do historicismo continua


até hoje, e nós o estudaremos mais profundamente adiante. Mas esta
não é a única saída para a antiga e continuada procura do sentido do
mito. Sendo a mitologia inseparável da religião, as atitudes mutáveis
da civilização ocidental em relação ao sentido misterioso e universal
do sagrado afetaram também profundamente tanto as idéias
populares quanto as idéias eruditas sobre a natureza do mito.
Durante a Idade Média, a Igreja declarou que todas as tradições que
não fossem as suas eram, por definição, pagãs e idólatras, e -
excetuando-se os mitos gregos e romanos, aos quais se concedeu um
interesse puramente histórico - não deviam merecer atenção alguma
das pessoas tementes a Deus. Conseqüentemente, suprimiu-se o
estudo das mitologias celta, germânica, zoroastriana, islâmica e outras
não-cristãs. Mais tarde, porém, à maneira que enfraqueceu o domínio
da Igreja sobre a livre indagação e os exploradores regressavam com
notícias dos costumes e do folclore de povos nativos das Américas, da
África e das ilhas do Pacífico, os filósofos entraram a discutir as
concepções paroquiais da Igreja sobre a religião e a cultura - a
princípio cautelosa e serenamente, mas com um vigor que aumentava
cada vez mais.
Por volta do meado do século XIX, tantos dados novos estavam
chegando de etnólogos e antropólogos de campo que os teóricos, em
suas tentativas de lidar com a superabundância de informações,
exigiram um plano simples, abrangente, organizacional - de
preferência completamente independente da influência eclesiástica. A
base ideal para um plano dessa natureza parecia ser fornecida pela
idéia, cada vez mais popular, da evolução. Antes mesmo da
publicação da Origem das espécies, de Darwin, os teóricos
começaram a aplicar o princípio evolutivo (a lei do desenvolvimento do
simples para o complexo, do baixo para alto - e, por implicação, do
inferior para o superior) em toda a parte e a todas as coisas. Enquanto
os astrônomos teorizavam acerca da evolução do Universo,
historiadores e eruditos continuavam a investigar a evolução da
linguagem, da cultura e da mitologia.
Conforme o ponto de vista evolucionista, os povos tribais eram
relíquias de um estádio primitivo, pré-racional, do desenvolvimento
humano. Essa conclusão levou diversas gerações de antropologistas
a adotar, para com as culturas indígenas e suas religiões, atitudes
quase tão superiores quanto as dos primeiros teólogos cristãos.
Enquanto isso, os cientistas ocidentais expressavam um antagonismo
crescente às raízes religiosas de sua própria cultura também.. A Igreja
restringira a investigação científica durante séculos; agora os
cientistas tinham liberdade para questionar e teorizar, e estavam
decididos a virar a mesa sobre os teólogos tratando a religião e o mito
como meras aberrações psicológicas peculiares, que tinham afligido a
humanidade arcaica.
As duas influências juntas - a insistência evolucionista sobre a
ordenação de todas as culturas humanas numa escala teórica de
valores, e a desconfiança geral, entre os cientistas, pelo quer que
exsudasse o mais remoto cheiro de religião levaram os mitólogos do
século XIX a construir projetos que hoje se nos afiguram estreitos,
racionalistas, para explicar as obsessões aparentemente irracionais
dos antigos. Destarte, o filólogo Max MüIler via a mitologia como uma
"doença da linguagem", em que os povos primitivos, incapazes de
distinguir com clareza as metáforas das declarações factuais, vieram a
referir-se a objetos naturais como coisas vivas, animadas por um
espírito. O antropólogo Lucien-Bruhl tentou explicar as tradições
culturais contemporâneas atribuindo sua origem a modos "pré-lógicos"
de pensamento. E o folclorista Sir James Frazer, cujo estudo
enciclopédico The Golden Bough [O galho de ouro] dominou a
mitologia comparada durante décadas, sustentava que uma atitude
cética em relação a toda e qualquer religião era o fundamento
necessário ao enfoque do estudo de qualquer religião.
Nem essa maré anti-religiosa e anti-primitivista refluiu com a virada do
século. Pode-se dizer que a antropologia do século XX começou com
Emile Durkheim e sua abordagem funcionalista, sociológica, do mito e
da cultura. Durkheim enfatizou a significação da consciência coletiva -
a maneira coletiva de pensar de uma comunidade - qualitativamente
diferente do pensamento individual. Para Durkheim e os
funcionalistas, o sentido do sagrado era o sentido da própria
sociedade; a mitologia servia, principalmente, como função social.
Assim sendo, é inútil especular a respeito do significado filosófico do
mito da criação de determinada cultura; deveríamos examinar, em vez
disso, o efeito do mito sobre os costumes e atitudes do povo. A função
social do mito é o seu sentido.
Entrementes, psicológicos, liderados por Sigmund Freud, estudavam
dados antropológicos em ordem a validar teorias da personalidade e
suas aberrações. Para Freud, os mitos eram expressões disfarçadas
das compulsões sexuais inconscientes e das compulsões agressivas
da humanidade primitiva. Em seu Totem e Tabu (1912), foi buscar a
origem das instituições, crenças e temores das culturas assim
modernas como primitivas num drama hipotético ocorrido na vida
familiar de povos da Idade da Pedra - o assassínio do pai tribal pelos
filhos com o propósito de possuírem a mãe. Esse drama está
sintetizado no mito grego de Édipo. Para Freud e seus seguidores,
todos os motivos míticos eram edípicos e sexuais em sua origem, e
estavam cheios de símbolos que só poderiam ser decifrados pelo
analista já familiarizado com a interpretação dos sonhos. No capítulo 9
teremos ocasião de examinar mais circunstanciadamente o enfoque
freudiano do mito, com uma referência específica à imagem do
Paraíso.
Poucos dentre os primeiros antropólogos do século XX escaparam à
influência de Durkheim ou de Freud, ambos os quais procuravam
identificar a religião com a ilusão, e explicar o mito pela referência a
fenômenos físicos, sociais ou psicológicos. Durkheim descobrira que a
mitologia pode servir a funções sociais práticas, e Freud mostrara que
os mitos são expressões do inconsciente coletivo. Entretanto, à
medida que foi passando o novo século, tornou-se claro que alguma
coisa significativa estava faltando em suas teorias. Como
entomologistas que estudam borboletas, eles haviam coligido,
dissecado, classificado e comparado os mitos do mundo, mas, no
processo, tinham passado por alto, ou eliminado, o princípio vivificante
do objeto do seu estudo um princípio que seria definido pela geração
seguinte de mitólogos como o sentido do sagrado.

O Retorno do Sagrado

Nas poucas últimas décadas, muitos psicólogos, antropólogos e


historiadores da religião abandonaram os enfoques redutores de
Durkheim e Freud. Entre os dois sábios e o público em geral há uma
crescente - posto que ainda não universal - valorização dos mitos de
povos antigos e indígenas no sentido de que eles não eram apenas
instrumentos sociais ou aberrações psicológicas coletivas, mas, em
lugar disso, meios para transmitir verdades universais. Nesta
concepção emergente, os mitos são portas para um reino da
experiência que era, e é, não só real como também profundamente
significativa.
Essa nova abordagem radical do mito deve muito à obra de
psicanalistas como Carl Jung. À semelhança de Freud, seu antigo
mentor, Jung via nos mitos passagens para, e do, inconsciente
coletivo. Mas ao passo que Freud tendia a ver o inconsciente com
desconfiança e até horror, e a desprezar a religião em todas as suas
formas, Jung via o inconsciente como um reino essencialmente
benéfico e considerava a experiência religiosa como
fundamentalmente terapêutica. Via os mitos como "revelações
originais da psique pré-consciente, afirmações involuntárias a respeito
de processos psíquicos inconscientes." Para Jung, "a mitologia de
uma tribo é a sua religião viva, cuja perda, sempre, e em toda a parte,
até entre os civilizados, é uma catástrofe moral".
Durante o estudo de seus próprios sonhos e fantasias, aos quais
concedia livre expressão, Jung notou imagens estranhas, que
pareciam relacionar-se com textos medievais herméticos e alquímicos
descurados, os quais passou a estudar profundamente. A partir
dessas experiências, desenvolveu a teoria dos arquétipos, que são
padrões instintivos, universais, da psique coletiva - o Herói, o Velho
Sábio, a Grande Mãe e assim por diante - que se expressam de
maneira semelhante nas imagens dos sonhos e no comportamento
das pessoas em toda a parte. Para Jung, os personagens e ações do
mito são simples expressões de arquétipos universais. "A consciência
coletiva," escreveu, "contém toda a herança espiritual da evolução da
humanidade, renascida na estrutura cerebral de cada indivíduo."
Durante a sua longa carreira, Jung contribuiu com diversos estudos
importantes de tradições arcaicas e orientais e exerceu considerável
influência no trabalho de muitos eruditos importantes - notadamente
Joseph Campbell, cujos livros e artigos fizeram mais para popularizar
o estudo da mitologia do que os de qualquer outro autor
contemporâneo.
Desenvolvimentos de estudos religiosos no século XX também
desempenharam uma parte na evolução da atitude contemporânea
diante do mito. Como vimos, o século XIX, em seu final, tendia a
explicar a religião em termos sociais ou psicológicos. Em 1917, no
entanto, o psicólogo Rudolf Otto publicou The Idea of the Holy [A Idéia
do sagrado], em que deu ênfase à realidade e irredutibilidade
fundamentais da experiência religiosa em todas as suas
manifestações.
Depois, nas décadas de 1930 e 1940, o filósofo René Guénon
apontou para o que denominava a Tradição Primordial das verdades
universais, que jazem no âmago de toda religião viva. De acordo com
Guénon, todas as tradições são caminhos para a compreensão prática
de princípios espirituais inatos na vida dos seres humanos. Virando de
ponta-cabeça o evolucionismo cultural do século XIX, Guénon
protestou, em termos muito fortes, contra a perda da verdadeira
espiritualidade no mundo moderno. "A prosperidade material do
Ocidente é incontroversa", escreveu, "mas dificilmente será motivo de
inveja. Com efeito, pode-se ir mais longe; mais cedo ou mais tarde
esse desenvolvimento material excessivo ameaçará destruir o
Ocidente se este não se recuperar em tempo e não pensar seriamente
numa 'volta às origens'''.
O historiador de religião romeno-americano Mircea Eliade aplicou a
nova atitude para com a religião diretamente ao estudo da mitologia.
Recusou-se a reduzir os mitos a significados econômicos, sociais,
culturais, psicológicos ou políticos; ao invés disso, enfatizou o primado
da experiência do sagrado em todas as tradições. Ademais, colocou
as religiões tribais e as escriturais do Oriente e do Ocidente lado a
lado (em lugar de arrumá-Ias numa seqüência evolutiva, como era
costumeiro) a fim de revelar e esclarecer os seus motivos comuns.
À semelhança de Jung, Eliade via temas míticos como arquétipos
inconscientes. Indo mais longe ainda, identificou os dois temas
centrais do mito mundial com a nostalgia de um Paraíso que se
perdera em razão de uma tragédia primordial (a Queda), e o cenário
iniciatório por cujo intermédio o mundo áureo original foi parcialmente
restaurado. Tanto a religião primitiva quanto a escritural, de acordo
com Eliade, traem:
A Nostalgia do Paraíso, o desejo de recobrar o estado de liberdade e
beatitude anterior "à Queda", o desejo de restaurar a comunicação
entre a Terra e o Céu; numa palavra, de abolir todas as mudanças
feitas, na própria estrutura do Cosmo e no modo humano de ser, pela
disrupção primordial.
A facilidade com que Eliade abrangeu ampla extensão de dados
religiosos, sua capacidade de perceber os padrões universais, e o seu
emprego de termos não-teológicos num estilo literário elegante e
lúcido, tudo contribuiu para a sua profunda influência no estudo
moderno do mito.

A Visão Mítica do Mundo

Através do trabalho de Jung, Otto, Guénon, Campbell e Eliade flui


uma corrente de respeito ao sentido do sagrado, tal e qual se
expressa em todas as religiões e mitologias do mundo. Através dos
seus escritos ganhamos algum sentido da visão do mundo dos
antigos, na qual rochas, árvores, rios e nuvens eram partes vivas de
um todo vivo; em que o Cosmo, vivo e consciente, partilhava da
mesma força inteligente que a nós mesmos nos animava; e na qual
seres humanos constituíam o elo entre o Céu e a Terra - entre a
dimensão interior do espírito e o mundo exterior da forma. Através
deles tornamos a familiarizar-nos com o contexto do pensamento
antigo, em que cada evento era significativo e cada indivíduo sabia
que sua vida era a materialização do princípio e do propósito. Na visão
arcaica da realidade, até as atividades mais mundanas tinham uma
significação dominante, e não eram exercidas como atos pessoais,
privados, mas como parte de um drama cósmico.
Para os antigos, o respeito ao sagrado derivava da consciência dos
processos criativos da Natureza, e implicava uma hesitação em
intrometer-se arbitrariamente neles. Para a consciência santificada,
até o tempo e o espaço eram sagrados, e cada átomo da criação fazia
parte de um coro jubiloso. No Tempo-da-Criação, de acordo com os
mitos dos australianos, africanos e americanos nativos, os seres
humanos tinham uma responsabilidade específica no conjunto da
Natureza, que consistia em fornecer uma ponte viva entre os níveis do
ser.
Dizer que uma coisa ou um ato são sagrados é o mesmo que dizer
que eles têm relevância num plano universal de valores e ideais, e
são, portanto, um ponto de contato entre dois mundos. Para os
antigos, tudo era sagrado, porque tudo tinha significação num contexto
mundano também; a própria matéria era substância sagrada. O papel
da humanidade estabelecido na idade paradisíaca dos primeiros
antepassados - era compreender essa qualidade sagrada pela
coordenação do tráfico entre o Céu e aTerra.
Os povos antigos tinham um sentido agudo de responsabilidade, não
somente para com a família ou a tribo, mas também para com o
conjunto da vida. Os índios hopis do Sudoeste americano, por
exemplo, conheciam o espírito da Terra como Maasauu. Diziam ter o
propósito de ser aprendizes de Maasauu, administradores da Terra.
Segundo os seus mitos, nos primeiros dias, Maasauu deixou este
plano de existência, tendo dado aos hopis instruções para levarem a
cabo cerimônias, a fim de manter a Terra em equilíbrio e intacto o
Plano da Vida. Para os hopis, as suas cerimônias ainda são
essenciais ao sustento de todas as coisas vivas do planeta. Há uma
cerimônia para cada espécie de planta ou animal, e todo o ciclo delas
continua por semanas a fio.
Talvez seja compreensível o motivo por que a insistência universal na
qualidade sagrada da vida foi descurada pelos mitólogos do século
XIX, que, ao mesmo tempo, se rebelavam contra a própria herança
religiosa e investigavam as poderosas filosofias novas do
evolucionismo e do positivismo. Agora, contudo, os estudiosos
começam a admitir que os conceitos religiosos dos antigos e dos
povos tribais, mais do que meros estádios de um padrão evolutivo de
crenças, já eram sistemas cosmológicos completos, sofisticados,
funcionais e coerentes consigo mesmos.
Entretanto, ao caracterizar as religiões tribais como sistemas de
crença - até como sistemas complexos e compulsórios - não lhes
transmite adequadamente a verdadeira profundidade. Para os povos
tribais, a dimensão sagrada não era apenas um objeto de
especulação, mas a realidade experimentada. Para eles, a divindade
não era um conceito, senão um poder e unia inteligência imanentes,
provindos de uma Fonte não-física, mas totalmente real. Um nativo do
Orinoco, na América Latina, disse certa vez a um missionário: "O seu
Deus fica fechado em casa, como se fosse velho e doente; o nosso
está na floresta, nos campos e nas montanhas de Sipapu, de onde
vem a chuva." O explorador Humboldt, depois de citar a observação
do índio, acrescentou que os nativos da região tinham dificuldade para
compreender as Igrejas e a arte religiosa dos europeus. "Nas margens
do Orinoco não existem ídolos.”
É difícil exagerar a importância deste reconhecimento cada vez maior,
da parte dos psicólogos e antropólogos, da realidade da dimensão
sagrada. Enquanto os pesquisadores lhe negaram a importância e
basearam suas explicações inteiramente em termos terrenos, negou-
se-nos efetivamente a possibilidade de compreender plenamente o
mito ou tirar proveito dele. E o que foi pior, diminuindo o sentido
sagrado, nós nos dissociamos de uma dimensão universal, intemporal
da significação, cujo ponto de acesso jaz, profundo, no interior da
psique humana, onde o individual e o coletivo, o antigo e o moderno
se fundem de maneira indistinguível. Com o retorno do sagrado, abre-
se diante de nós um mundo, ao mesmo tempo, prisco e primordial.

Mito: História ou Metáfora?

Mas se muitos eruditos modernos afiançam que os mitos são a própria


antítese das mentiras, isso não quer dizer que os mitos sejam agora,
comumente, equiparados ao fato histórico. As autoridades já
mencionadas - Jung e Campbell, especialmente - tendiam a ver os
mitos, não como alegorias de processos internos de transformação
espiritual - isto é, como histórias simbolicamente, mas não
factualmente "verdadeiras".
Muitos povos tribais, como os pawnees das planícies norte-
americanas, estabeleciam nítida distinção entre histórias
simbolicamente "verdadeiras" e histórias "falsas". Uma narrativa pode
consistir em elementos inteiramente factuais, e, apesar disso, ser uma
história "falsa" se foi tirada do contexto para marcar um ponto
favorável aos interesses do narrador ou se se destina puramente a
entreter. Outra história pode ser uma obra exclusiva de ficção, e, no
entanto, recordar-nos situações que todos encontramos, e,
arrastando-nos para a ação da narrativa, dizer-nos alguma coisa sobre
nós mesmos e a operação do mundo que talvez ainda não tenhamos
visto. Essa é uma história "verdadeira".
Para tirar proveito de histórias verdadeiras precisamos estar
acordados para mais de um nível de discurso. Quando lemos um mito
americano nativo da criação do mundo de um pedaço de lodo trazido
à superfície da terra por um rato-almiscarado, ou um mito boximane
africano a respeito de Mantis roubando o fogo de Ostrich, inclinamo-
nos a sorrir da singela coleção de imagens e podemos fechar a mente
para o seu sentido. Mas os antigos e os povos tribais compartiam de
um sentido agudo do símbolo, e somente cultivando em nós uma
sensibilidade semelhante poderemos esperar compreender-Ihes os
mitos.
O etnólogo francês Marcel Griaule contou-nos como chegou a
descobrir essa necessidade. Estava prestando atenção ao feiticeiro
Ogotemmeli, dos dogons, que narrava um mito a respeito de um
celeiro celeste, em cada um de cujos degraus muitos animais grandes
estavam supostamente encarapitados. Griaule calculou as dimensões
dos degraus e perguntou: "Como poderiam todos esses animais
encontrar lugar num degrau de um cúbito de extensão por um cúbito
de largura?" Ogotemmeli explicou cuidadosamente: "Tudo isso tem de
ser dito com palavras, mas, no degrau tudo é símbolo - antílopes
simbólicos, abutres simbólicos, hienas simbólicas... E qualquer
número de símbolos pode encontrar lugar num degrau de um cúbito
só." E, como conta Griaule, "para indicar a palavra 'símbolo', ele usou
uma expressão composta, cujo sentido literal é 'palavra deste mundo
inferior'''.
Os mitos, portanto, servem para ligar duas realidades - a visível e a
invisível, a Terra e o Céu - e o processo de relacionar mundos entre si
é levado a efeito através da metáfora, do símbolo e da alegoria. Os
tratamentos simbólicos dados pelos antigos aos anseios, medos e
aspirações humanos universais servem de guias para a nossa
experiência atual, tomando acessível o conteúdo do inconsciente
pessoal e coletivo. A abordagem metafórica do mito logrou a atenção
popular recentemente através das obras de psicólogos pós-
junguianos. O livro He, She, and We, de Robert Johnson, e o livro
Goddesses in Everywoman, de Jean Shinoda Bolen, educaram uma
geração de leitores no uso dos mitos como pedras de toque do
processo do descobrimento de si próprio.
Mas ao passo que a corrente principal dos modernos estudos do mito
- representada pelas obras de Jung e Campbell - flui ao longo do canal
do alegorismo de Teágenes, existe também uma moderna corrente
euemerista. Sustenta essa escola de pensamento que, pelo menos
em alguns casos, os mitos podem conter mais do que um conteúdo
metafórico que começaram como descrições de acontecimentos reais,
e não são, portanto, apenas histórias "verdadeiras" num sentido
alegórico, mas também histórias fatuais num sentido histórico. A
moderna escola euemerista é representada notadamente por
Immanuel Velikovski, segundo o qual as lendas mundiais de antigas
catástrofes que abalaram a Terra fundavam-se em verdadeiros
colapsos cósmicos, presenciados pelos nossos distantes ancestrais.
Dir-se-ia, a princípio, que o mito e a história têm pouca coisa em
comum. Afinal de contas, os mitos são narrativas das origens das
coisas e acontecem na milagrosa Idade dos Deuses, ao passo que a
história se preocupa com eventos que ocorrem no tempo humano
comum. E, todavia, quando examinamos o mito e a história de perto, a
linha divisória entre os dois torna-se ainda mais tênue e ambígua. A
própria história, como disciplina, originou-se do mito: quando
Heródoto, geralmente reconhecido como o primeiro historiador no
sentido moderno, escreveu suas Investigações como narrativas
factuais entre gregos e persas, deu-se ao trabalho de seguir a
trajetória do conflito até as suas origens, a guerra entre deuses e titãs
no Olimpo.
Além disso, antropólogos e arqueólogos descobriram muitos casos em
que os mitos escondem, sem sombra de dúvida, elementos do fato
histórico. Por exemplo, os índios klamaths do Noroeste do Pacífico
contam a história de uma antiga batalha entre um pássaro mágico e
uma tartaruga mágica. Quando a tartaruga foi derrotada, o monte
Mazama, em que estivera durante a batalha, desabou sobre ela. O
seu sangue formou um lago, e o seu dorso emergiu do lago qual uma
ilha. Hoje, o monte Mazama, que pode ter-se elevado outrora a 10.000
pés de altitude, é conhecido como a Cratera do Lago, e os geólogos
dizem que os klamaths devem ter dado forma de mito à uma erupção
vulcânica, que realmente se verificou há mais de 6.500 anos. De
maneira semelhante, animais pré-históricos da Austrália, extintos há
10.000 ou 15.000 anos, são recordados no mito aborígine, juntamente
com mudanças contemporâneas de clima e paisagem.
Sem dúvida, quando a memória coletiva preserva a impressão de um
evento, tende a fazê-Io de maneira "arquetípica", não levando em
conta aspectos específicos que não correspondem a um padrão
universal preexistente. Em inúmeros casos, nos tempos modernos,
podemos realmente observar a metamorfose de uma figura histórica
em herói mítico (como, por exemplo, em algumas biografias populares
de Washington, Lincoln e Lenin). E, no entanto, o cerne fatual da
narrativa, transformada em relato mitológico, indubitavelmente
persiste, seja na biografia de um chefe político heróico, seja no
histórico conto popular russo da invasão napoleônica, seja numa
narrativa épica grega das guerras troianas. A história existe no mito
tão seguramente quanto o "mito" persiste na história.
A interpretação histórica do mito apresenta arqueólogos e
antropólogos diante de um desafio único: até que ponto deve ser
tomada literalmente uma narrativa tradicional? Eis aí um desafio que a
maioria dos pesquisadores preferiria simplesmente evitar. Desde o
século XVIII, os historiadores têm discutido a interpretação literal da
Bíblia, e grande parte dos estudiosos do folclore parece ter sido presa
do medo raramente proclamado - comum do princípio ao fim da
academia - de que a validação histórica de qualquer mito possa abrir a
porta a um retorno da ciência baseada na Bíblia. Sente-se a
intensidade desse medo na declaração do antropólogo Robert Lowie
de que não poderia "atribuir a tradições históricas nenhum tipo de
valor em nenhum tipo de condições", e na determinação do
antropólogo Edmund Leach de encarar os profetas e reis do Antigo
Testamento como personagens puramente "míticos", sem nenhuma
base nos fatos.
Entretanto, é obviamente possível a uma história ser fatual e, ao
mesmo tempo, "verdadeira" num sentido alegórico: um acontecimento
histórico pode ser usado para ilustrar uma verdade universal. Através
da fusão que provocam entre a memória e a moral, os mitos dessa
casta tenqem a ser particularmente poderosos, e são sintetizados nas
histórias das vidas dos fundadores das religiões mundiais. Me-
taforistas extremados podem sustentar que Moisés, Jesus, Buda e
Lao Tzu nunca existiram realmente, ao mesmo passo que os
literalistas podem insistir na integridade fatual atédos mínimos
pormenores das suas biografias tradicionais. A verdade, todavia,
talvez resida em algum lugar entre as duas posições.
Como veremos nos capítulos 8 e 9, os enfoques alegórico e histórico
são instrumentos igualmente necessários em nossa análise do mito do
Paraíso.

O Problema da Unidade Mítica

Quer interpretemos os mitos como alegorias, quer os interpretemos


como memórias históricas, depara-se-nos o que emerge como o
grande problema do mito - a similaridade mundial dos temas míticos.
Durante o século passado, os etnólogos registraram e cotejaram o
folclore de centenas de culturas de todas as partes do mundo, e,
nesse afã, notaram repetidamente o fato de que os mitos, em toda a
parte, tendem a seguir um modelo comum. Joseph Campbell escreveu
que os mitos do mundo "se parecem uns com os outros como dialetos
da mesma língua". E, numa visão geral dos mitos da criação de todo o
mundo, Raymond Van Over pergunta: "Por que tal similaridade de
idéias e imagens míticas do princípio ao fim dessas culturas distantes?
A discussão entre os estudiosos estendeu-se, por decênios, e
continua até hoje. Nenhuma resposta definitiva parece ter-se revelado,
mas as teorias abundam.”
É possível, naturalmente, exagerar a extensão dessa unidade. Seria
não somente uma super-simplificação, mas também uma grave
deformação supor que não existem variedade nem nuanças entre os
mitos das culturas do mundo. Em certo nível a variedade é pasmosa.
Abrange, ao mesmo tempo, a visão cíclica do tempo dos hindus, como
também os conceitos históricos lineares dos hebreus: as imagens
arbóreas dos primeiros agricultores, e os deuses e animais dos
caçadores primitivos; o dualismo do Avesta iraniano, e a teologia
unitiva dos Upanichades hindus. E, contudo, até debaixo das mais
divergentes tradições, não demoramos a descobrir similaridades
temáticas subjacentes. Os hindus e os hebreus, os caçadores e os
agricultores, todos voltavam os olhos para um Paraíso original, todos
se lembravam de um Dilúvio de proporções mundiais, e todos
acreditavam num Outro mundo não-físico.
Como demonstraram Campbell e Eliade, na realidade existe apenas
uma história, traduzida nas tradições e circunstâncias de miríades de
povos. É o mito de um Tempo dos Primórdios, idílico e perdido, e da
jornada de um herói a fim de restituir ao mundo a sua prístina
condição de esplendor paradisíaco. Como veremos nos capítulos
seguintes, os paralelos entre as descrições das várias culturas desse
Tempo primordial, e da sua perda, são notáveis.
Daí o problema: Por que haveriam os povos antigos, em sítios
geograficamente remotos, em circunstâncias únicas, de chegar a tais
crenças similares? São poucas, na realidade, as respostas possíveis à
pergunta. Ou os temas fundamentais do mito estavam distribuídos
entre os povos do mundo há muito tempo, através de um processo de
empréstimo e difusão, antes talvez de terem esses povos migrado
para suas atuais localizações, ou motivos similares ocorreram, de
algum modo, independentemente, entre povos que já viviam longe uns
dos outros. Se os temas se originaram independente e
espontaneamente, devem tê-Io feito por causa de uma similaridade
universal da psicologia humana, ou porque toda a humanidade
participou de acontecimentos históricos reais, e provavelmente históri-
cos, que se imprimiram na memória de cada cultura.
Voltaremos ao problema da unidade mítica no Capítulo 3, onde
examinaremos exemplos específicos do mito do Paraíso de várias
culturas. Não tentaremos, porém, resolver o problema de uma vez e
para sempre; antes, sugeriremos que todas as explicações acima
podem ser em parte válidas, e ofereceremos um cenário provável que
talvez explique os fatos tais como se deram.
Mas agora, tendo examinado algumas questões primárias no estudo
moderno da mitologia, estamos prontos para investigar os próprios
mitos - as histórias universais de como o mundo veio a ser como é.
Investigá-Ios-emos de acordo com a seqüência dos acontecimentos
que eles descrevem: a Criação, o Paraíso e a Queda.

CAPÍTULO 2
No Princípio

Essas coisas são, na realidade, os pensamentos de todos os homens


em todas as idades e terras, não são originalmente minhas.
Walt Whitman

Em toda mitologia, a Criação é o primeiro ato de um grandioso drama


cósmico. Desenrola-se o drama por estádios através de uma Idade de
Ouro, de paz e fartura, uma Queda ou período de degenerescência, e
uma catástrofe que acarreta o fim da sagrada Idade dos Deuses e dá
início à atual idade profana do mundo. Embora o item principal da
nossa investigação seja o Paraíso original, não podemos realmente
esperar compreender a fase central da grande seqüência mítica sem
antes examinar o conjunto todo de que ela faz parte. E, assim,
começamos o estudo do mito do Paraíso, onde devemos fazê-Io - no
princípio - com a história universal da Criação.
A vida espiritual de todos os povos antigos e tribais girava em torno da
manutenção de ritmos e equilíbrios sagrados por intermédio de rituais
destinados a recapitular a Criação, o derradeiro ato sagrado, que há
de ser comemorado e repetido simbolicamente e em ocasiões
significativas da vida do indivíduo e da vida coletiva da tribo. O
processo criativo foi, a um tempo, fenômeno cósmico, histórico e
modelo de plano e controle na vida de todos os dias, meio prático de
harmonizar o Céu e a Terra. A história da Criação, portanto, teve um
sentido universal e imediato: descreveu a natureza da realidade
absoluta de um modo ao mesmo tempo transcendente (verdadeiro
para todos os tempos e lugares) e imanente (verdadeiro aqui e agora).
A Criação original assinalou o início da Idade dos Deuses. Eliade
escreveu: "Fora impossível exagerar a tendência observável em toda
sociedade, por mais altamente desenvolvida que seja - a trazer de
volta aquele tempo, tempo mítico, o Grande Tempo." O Grande
Tempo era o modelo de todos os tempos, de modo que as acessões
de novos chefes ou reis, ritos de iniciação, casamentos, jogos, plantio,
caça e, especialmente, comemorações do ano novo, todas eram
ocasiões de reapresentação simbólica do que acontecera no princípio.
Os aborígines da Austrália central praticavam rituais de circuncisão e
faziam pinturas de "raios X" em cascas de árvores precisamente das
maneiras que os seus Antepassados-Criadores lhes haviam ensinado
no Tempo de Sonho. Os índios iuroques do norte da Califórnia
executavam danças de renovação do mundo, que os Imortais lhes
haviam revelado quando o mundo era jovem. E, consoante Joseph
Epes Brown, autoridade moderna em religiões americanas nativas, as
tribos Pima e Pipago do Sudoeste americano viam o ato de fazer
cestas como:
A recapitulação ritual do processo total da criação. A cesta completada
é o universo numa imagem: e no processo de manufatura, a mulher
desempenha realmente a parte do Criador. Similarmente, ao
estabelecer a relação dinâmica recíproca entre a urdidura vertical e a
trama horizontal, o tecelão navajo de cobertores participa de atos que
imitam a criação do próprio universo.

Figuras Wandjina. Pintura em rocha da Austrália central. Os


Wandjinas eram seres-criadores ancestrais do AIcheringa, ou Tempo
de Sonho, que deixaram suas semelhanças impressas em paredes de
cavernas antes de voltarem ao mundo do espírito

Os antigos sábios hindus expunham o assunto com brevidade


quintessencial: "Assim fizeram os deuses; assim fazem os homens".
A nostalgia das origens, como diz Eliade, é o desejo "de recuperar a
presença ativa dos deuses" e "viver o mundo tal como veio das mãos
do Criador, fresco, puro e forte". Em toda cultura encontramos o
mesmo anseio de reentrar no tempo sagrado em que os deuses
estavam imediatamente presentes, criando e organizando o mundo.
Existem milhares de mitos da Criação entre os povos do mundo, mas,
como assinalaram Eliade e Campbell, são todos, na verdade, a
mesma história contada de maneiras diferentes. Ao passo que
algumas culturas dão ênfase ao papel de Deus Pai e relatam o mito
desde uma perspectiva celeste, outras retratam um princípio feminino
da Criação, a Mãe Terra. Mas até na descrição do processo a partir de
pontos de vista diferentes, os antigos formularam variações sobre um
outro de um punhado de temas: a Criação a partir do Nada, em que
um Deus-Criador solitário produz o Céu e a Terra por meio de um
pensamento ou de uma palavra; o mito do Ovo Cósmico, em que o
Universo se desenrola a partir da interação dos princípios primordiais
masculino e feminino; a história do Mergulhador da Terra, em que um
representante do reino superior, espiritual, mergulha no caos não-
formado e traz à superfície fragmentos de lodo, que crescem para for-
mar o mundo inteiro; e o mito da Emergência, em que o Primeiro Povo
se apresentou na luz do dia do ser físico, vindo de vários níveis do
mundo subterrâneo.
Estudaremos primeiro o modo com que cada uma dessas histórias do
Grande Tempo da Criação exemplifica o processo criativo universal, e
depois examinaremos os mitos de origem da humanidade no Paraíso
primordial.

Fiat ex Nihilo

No mito da Criação a partir do Nada, uma divindade todo-poderosa,


habitando sozinha o vazio do espaço, faz que apareçam primeiro o
Céu e depois a Terra. O método da criação, deliberado e ordenado,
parte de um pensamento ou de uma palavra. A narrativa desse tipo
m~is conhecida é a história hebraica da Criação, tirada do livro do
Gênesis:

No princípio criou Deus os céus e a terra. A terra, porém, era sem


forma e vazia; havia trevas sobre a face do abismo, e o espírito de
Deus pairava por sobre as águas. Disse Deus: Haja luz; e houve luz. E
viu Deus que a luz era boa; e fez separação entre a luz e as trevas.
Chamou Deus à luz Dia, e às trevas, Noite.

Como mostraram os antropólogos Andrew Lang, Wilhelm Schmidt e


Wilhelm Koppers, a idéia de um Criador original e único é universal e
primordial. Entretanto, seria simplista não dar atenção às diferenças
entre, por exemplo, o Jeová hebreu e o Brahma hindu: o primeiro é
comumente considerado pessoal e inteiramente outro, enquanto o
segundo é visto como imanente em todas as minúcias do universo
criado, como o Tao de Lao Tzu:

Existe alguma coisa anterior a todos os começos e fins, Que, não-


movida e não-manifesta, nem começa nem acaba. Onipenetrante e
inexaurível, é a fonte perpétua de tudo o mais... Quando sou forçado a
descrevê-la, falo dela como a "Última Realidade".
Mas ao passo que o princípio criativo pode ser descrito de maneira
algo diferente em várias culturas, a sua singularidade e a sua
qualidade de ser absoluto, não obstante, são universalmente
reconhecidas.

O Jeová hebreu existe sozinho antes da Criação do Céu e da Terra; o


mesmo se dá com o deus egípcio Quepri, que afirma: "Quando vim a
ser, o (próprio) ser veio a ser... antes que o céu viesse a ser, antes
que a terra viesse a ser...”
Em muitos relatos, o primeiro ato da Criação consiste na convocação
da luz, como neste mito dos maoris da Nova Zelândia:

Io habitava o espaço de respirar da imensidade.


O Universo estava no escuro, com água em toda a parte.
Não havia o bruxuleio da aurora, nem claridade, nem luz.
E ele começou dizendo estas palavras - "A treva se torna uma treva
possuidora da luz".
E imediatamente a luz apareceu.
(Ele) então repetiu as mesmíssimas palavras deste modo.
"Luz, torna-te uma luz possuidora de treva".

No Gênesis, a Criação ocorre pelo som ou pela palavra. Esse tema se


encontra também entre os egípcios, os celtas e os maias. O sacerdote
maori refere-se às palavras de Io como:

Os ditos antigos e originais As palavras antigas e originais A sabedoria


cosmológica antiga e original (wananga), Que causou crescimento
desde o vazio, O vazio que enche o espaço sem limite.

No mito havaiano, o Grande Deus Kane existe, só, na profunda noite


intensa. Ele primeiro faz surgir a luz, depois os céus, a seguir aTerra e
o oceano, o Sol, a Lua e as estrelas.
Os índios hopis, do Arizona, contam que Taiowa, o Criador, começou
encarregando um subordinado do resto do processo da Criação:
O primeiro mundo foi Tokpela [Espaço sem fim].
Mas primeiro, dizem, havia apenas o Criador, Taiowa. Tudo o mais era
espaço sem fim. Não havia começo nem fim, nem tempo, nem forma,
nem vida. Apenas um vazio incomensurável, que tinha seu começo e
fim, tempo, forma e vida na mente de Taiowa, o Criador.
Então ele, o infinito, concebeu o finito. Primeiro, criou Sótuknang para
torná-Io manifesto, dizendo-Ihe: "Criei-te, o primeiro poder e
instrumento como pessoa, para executar meu plano de vida no espaço
sem fim. Sou teu Tio. És meu Sobrinho. Vai agora e estende os
universos na ordem conveniente de modo que trabalhem
harmoniosamente uns com os outros, de acordo com o meu plano".
Sótuknang fez o que lhe foi ordenado. Do espaço sem fim, reuniu o
que devia ser manifesto como substância sólida, e modelou-o em
formas.
Brahma, o Criador, olhando para as quatro direções.

O universo criado é produzido da não-coisa; isto é, não tem


antecedente físico. Em vez disso, é precedido pelo Ser puro, a
consciência não-diferenciada.

O Ovo Cósmico

No mito do ovo cósmico, a Criação ocorre pela relação de princípios


masculinos e femininos (ativos e receptivos) equilibrados, interagindo
a partir de um estado de união primordial metaforicamente descrito
como ovo. A unidade dos dois princípios sexuais é uma imagem de
perfeição e de potência, vida e nascimento iminente. Para os
chineses, o símbolo do ovo cósmico - o T'ai Chi Tu, ou Diagrama da
Suprema última Verdade - era uma lembrança da profunda
necessidade de equilibrar as forças yang (ativa) e yin (receptiva) da
Natureza em toda ação, e em todos os aspectos da sociedade
humana, em ordem a liberar o poder da Criação:

Os antigos japoneses, cuja cosmologia sofreu a influência da filosofia


taoísta da China, diziam que:

Antigamente, o Céu e a Terra ainda não estavam separados e o In e o


Yo [os princípios masculino e feminino] ainda não estavam divididos.
Formavam uma massa caótica, semelhante a um ovo, que tinha
limites obscuramente definidos... A parte mais pura e mais clara
difundiu-se finalmente e formou o Céu, ao passo que o elemento mais
pesado e mais grosso acomodou-se e formou a Terra. O elemento
mais fino tornou-se facilmente um corpo unido, mas a consolidação do
elemento pesado e grosso realizou-se com dificuldade. O Céu,
portanto, fez-se primeiro, e a Terra estabeleceu-se
subseqüentemente. Depois disso, Seres Divinos produziram-se entre
eles.

Muitos mitos, que caracterizam a realidade primeva como caos ou


água, incluem o simbolismo de um ovo como a fonte imediata de toda
a vida, o ventre da Criação. Na tradição órfica grega, o Tempo
(Cronos) cria o ovo de prata do Cosmo, do qual irrompe Fanes-
Dioniso, que encerra os dois sexos e contém as sementes de todos os
deuses. Um mito da criação mande, da África, descreve gêmeos de
sexos opostos concebidos no "Ovo de Deus", que é também o "Ovo
do Mundo". O texto hindu intitulado As leis de Manu afirma:

Ele [que existe por si mesmo] desejando produzir seres de muitas


espécies do seu próprio corpo, primeiro, com um pensamento, criou
as águas e nelas colocou a sua semente. Esta [semente] tornou-se
um ovo de ouro, de resplendor igual ao do sol: no [ovo] ele mesmo
nasceu como Brahman, o progenitor do mundo inteiro... O divino
residiu no ovo durante um ano, depois ele mesmo pelo pensamento
[só por só] dividiu-o em duas metades: e das duas metades formou o
Céu e a Terra, os oito pontos do horizonte, e a eterna morada das
águas.

No mito do Ovo Cósmico, o masculino e o feminino, o Céu e a Terra, o


espírito e a forma estão num equilíbrio propositado, empenhados na
divina interação criativa.

O Mergulhador da Terra

O mito do Mergulhador da Terra conta a história da criação desde a


perspectiva de uma forma representativa do mundo superior, que
mergulha no caos primordial, em busca da primeira semente da
ordem. O mito do Mergulhador da Terra conta que um ser divino
(geralmente um animal) desce às profundezas da água a fim de trazer
para cima pedaços de lodo, os quais, crescendo, formam toda a Terra
ou até o Universo inteiro. Os mitos do Mergulhador da Terra são
comuns entre as tribos ao norte dos Estados Unidos, cujas
cosmologias apresentam um mundo superior original, habitado pelos
Anciãos imortais, acima de um caos informe de água.
O simbolismo dos mitos do Mergulhador da Terra é freqüentemente
caprichoso: pinta-se amiúde o Mergulhador como um rato-
almiscarado, um pato ou uma tartaruga. Entretanto, a despeito disso,
o sentido fundamental dos mitos é profundo. A água é a realidade
informe da qual surge a matéria, e a descida ao abismo é análoga ao
batismo, no fato de ser, ao mesmo tempo, um ato de limpeza e de
criação. "No princípio nada havia senão água", diz um mito dos
hurões.
De maneira semelhante, o Vishnu-Purana hindu fala de um caos
original de águas.
Ele, o Senhor, concluindo que dentro das águas jazia a terra, e
sentindo-se desejoso de erguê-Ia. ... Ele, o sustentador do ser
espiritual e material, mergulhou no oceano.
A tribo maidu, da Califórnia, em seu mito de Criação, refere-se ao
Mergulhador da Terra, a Tartaruga e a dois outros seres cósmicos, o
Pai-da-Sociedade-Secreta e o Iniciado-da-Terra, misteriosa presença
do alto:

No princípio não havia sol, nem lua, nem estrelas. Tudo era escuro, e
em toda a parte só havia água. Uma balsa veio flutuando sobre a
água. Ela veio do norte, e nela havia duas pessoas, a Tartaruga e o
Pai-da-Sociedade-Secreta. As águas fluíam muito depressa. Eis
senão quando, do céu desceu uma corda de penas, e por ela veio o
Iniciado-da-Terra. Quando ele chegou à ponta da corda, amarrou-a na
proa da balsa, e pulou nela. Seu rosto estava coberto e nunca foi
visto, mas o seu corpo brilhava como o sol. Ele sentou-se e durante
muito tempo não falou nada. Afinal, a Tartaruga disse: "De onde você
vem?" e o Iniciado-da-Terra respondeu: "Venho do alto". Depois a
Tartaruga disse: "Irmão, você não pode fazer para mim um pouco de
boa terra seca, de modo que eu possa, às vezes, sair da água?" ... O
lniciado-da-Terra replicou: "Você quer um pouco de terra seca: pois
bem, como vou arranjar um pouco de terra para fazê-Ia?" Respondeu
a Tartaruga: "Se você atar uma rocha ao meu braço esquerdo,
mergulharei à procura de alguma". O Iniciado-da-Terra fez o que a
Tartaruga pediu, e, em seguida, estendendo a mão à sua volta, pegou
a ponta de uma corda de um lugar qualquer, e amarrou-a na
Tartaruga...
A Tartaruga desapareceu por muito tempo. Ela partira havia seis anos;
e, quando tornou a subir, estava coberta de limo verde, pois estivera
todo o tempo lá embaixo. Quando chegou à superficie da água, a
única terra que trazia era um pedacinho muito pequeno, debaixo das
unhas; o resto fora levado pelas águas. O Iniciado-da-Terra pegou,
com a mão direita, uma faca de pedra do sovaco esquerdo, e, com
muito cuidado, raspou a terra que ficara sob as unhas da Tartaruga.
Colocou-a na palma da mão, e fê-Ia rolar até deixá-Ia redonda; a terra
tinha o tamanho de um seixo pequeno. Colocou-o na popa da balsa.
De quando em quando, ia olhar para ela: a bola de terra não crescera
nem um pouquinho. Na terceira vez em que foi vê-Ia, ela crescera
tanto que podia ser abarcada com os braços. Na quarta vez que
olhou, ela ficara do tamanho do mundo, a balsa estava encalhada na
terra, e tudo à sua volta, até onde ele podia enxergar, eram
montanhas.
Na seqüência do mito, o Iniciado-da-Terra - o qual, mais que a
Tartaruga, é a verdadeira figura do Criador da história - dá forma aos
primeiros seres humanos:
Pouco a pouco, foi aparecendo grande quantidade de pessoas. O
Iniciado-da-Terra quisera ter tudo confortável e fácil para as pessoas,
para que nenhuma tivesse que trabalhar. Todas as frutas eram fáceis
de obter, e ninguém ficava doente nem morria. À medida que as
pessoas se foram tornando numerosas, o lniciado-da-Terra já não
vinha tantas vezes quanto antes... Ele se foi. Partiu de noite, e subiu
às alturas.
Aqui já vemos, como voltaremos a ver em muitos outros exemplos, o
modelo universal do Paraíso, seguido pela separação entre o divino e
o humano.

A Emergência

O mito da Emergência concentra-se em torno do simbolismo da Mãe


Terra, da qual emergem seres humanos através de vários estádios ou
níveis do mundo inferior. Os mitos da Emergência encontram-se entre
os nativos americanos hopis, navajos, pueblos e pawnees, e em
certos grupos das ilhas do sul do Pacífico. No mito da Emergência, a
Terra, fonte fértil do ser, encerra dentro em si mesma as essências e
potências de toda a vida. Não se descreve o mundo inferior como um
inferno, mas como um mundo anterior de existência, um Paraíso
semelhante a um ventre. Tampouco se considera o mundo inferior
uma caverna subterrânea literal, mas antes um lugar "para onde, ao
morrer, voltaremos todos", outro plano de existência "sob" - isto é,
subjacente - o mundo físico perceptível. O Sol ou o Grão, muitas
vezes, é o agente de transformação e aceleração, conduzindo o
Primeiro Povo para a luz. "Antes que o Mundo fosse estávamos todos
dentro da Terra", começa um mito pawnee. "Mãe semente causou o
movimento. Ela deu a vida.”
Em parte, o mito da Emergência é uma metáfora da jornada desde um
plano espiritual de existência para a manifestação no mundo material.
Mas o mito também compendia o papel do feminino na Criação: é um
símbolo e uma lembrança da Mãe primordial, da própria Terra, tal
como era originalmente - fresca, nova, fértil, fonte de todas as formas,
receptáculo de todas as sementes, fomentadora de toda a vida. A
história é narrada desde a perspectiva da Criação, emergindo do
ventre da Mãe Terra.
Não somente são poucos os temas básicos expressos através de
todas as centenas de mitologias do mundo, aparentemente
independentes, como também esses poucos temas tendem a fluir
juntos, como tributários da descrição do único processo criativo
universal. À medida que nos familiarizamos com os arquétipos míticos
da Criação, vemos, cada vez mais claramente, que todos procedem
de uma única origem. Enquanto determinado mito pode estender-se
especialmente sobre um episódio da grande História, somos, quase
sempre, capazes de reconhecer outros episódios e elementos latentes
em seus pormenores aparentemente sem importância. É quando
vemos a História como um todo que todos os elementos e episódios
têm sentido.
No princípio há Um - uma Inteligência preexistente, só, e sem limites.
O Um, em que estão unidas em perfeita harmonia as polaridades da
existência, exercita um ato consciente de vontade e torna-se Dois -
masculino e feminino, ativo e receptivo, Céu e Terra. Os Dois
trabalham como parceiros iguais no encetar as pulsações cósmicas
cíclicas, das quais emana toda a vida.
A interação - poder-se-ia dizer sexual - recíproca dos Dois gera uma
multiplicidade de seres divinos, cuja atividade ulterior, baseada nos
mesmos princípios criativos, resulta no aparecimento de um Universo
manifesto de extensão e pormenores infinitos. Os seres divinos
mergulham no abismo áqüeo do caos e voltam com as primeiras
sementes da forma física. Ligando-se a esses núcleos de substância,
continuam a reunir material à sua volta e, gradativamente, emergem
dos reinos interiores, invisíveis, da eternidade, para o mundo visível,
tangível, do espaço e do tempo.
O Jardim do Éden, de Lucas Cranach, o antigo (1530)

Através desse processo grandioso, a Inteligência Una se diferencia


numa miríade de seres autoconscientes encarnados em forma
material. E, assim, gera-se um Universo de diversidade ilimitada, cada
parte minúscula da qual se baseia numa singular Realidade final.

A Origem dos Seres Humanos

Os mitos da origem dos seres humanos são, geralmente, de dois


tipos: a criação a partir do barro ou do pó, e a descida do Céu. De vez
em quando, o mesmo mito incorpora os dois temas, pois eles não são
mutuamente excludentes nem contraditórios. Assim como os mitos do
Mergulhador da Terra e o da Criação-do-Nada descrevem a Criação
desde a perspectiva do Criador, ao passo que o mito da Emergência
descreve o mesmo processo desde a visão do que foi criado, assim o
mito da descida-do-Céu refere-se às origens humanas a partir do
ponto de vista do divino, enquanto a história da criaçãoa-partir-do-
barro descreve o processo de uma perspectiva terrena.
A criação a partir do barro nos é familiar em virtude do relato do
Gênesis (2: 7), em que o Senhor formou o homem "do pó da terra, e
lhe inspirou nas narinas o sopro de vida; e o homem passou a ser
alma vivente". Existem, porém, muitas variações do tema. Entre
inúmeras tribos de índios sul-americanos, o primeiro homem é
modelado com barro ou com madeira, não pelo Ser Supremo, mas por
um herói cultural. Os miwoks da Califórnia dizem que o homem foi
criado por uma comissão de animais, cada um dos quais desejava
modelar um pedaço de argila à sua própria imagem. Os índios crows,
das planícies do norte, dizem que o Grande desceu do Céu à Terra
a.fim de modelar seres humanos com barro, e teve de repetir o
processo três vezes antes de ser bem-sucedido. E, de acordo com os
maoris da Nova Zelândia, o Criador, Tane, usou o próprio sangue para
umedecer o barro.
Em quase todas as variações da história da criação surgida do barro,
o sopro da vida é uma característica comum. Por exemplo, de acordo
com um mito do Havaí, Kane e Ku sopraram nas narinas e Lono no
interior da boca de uma imagem de barro, a qual veio a se transformar
num ser humano. Na história da Criação da Austrália, conta-se que
Bunjil, o Todo-Poderoso das tribos do sudeste, confeccionou duas
imagens de barro, uma masculina e a outra feminina, às quais
modelou em pedaços de casca de árvore. Ele as contemplou, deu-se
por satisfeito e dançou em volta delas para comemorar. Depois ele as
deitou e soprou em seus ouvidos, narinas e bocas. Elas estremeceram
e começaram a se erguer. Da mesma forma os nativos das ilhas Kei
da Indonésia contam que seus antepassados foram criados do barro
pelo seu Criador, Dooadlera, que com um sopro proporcionava vida a
figuras terrenas.
Em muitas línguas, as palavras que indicam "espírito" e "sopro" são
idênticas. Os mitos da Criação-a-partir-do-barro supõem que o sopro
dentro de nós - a essência do nosso ser, a nossa vida - é um dom
divino, uma centelha de divindade. "Eu sou Osíris", declara o Deus do
antigo Egito. "Entro e reapareço através de vós, decaio em vós, cresço
em vós." A mensagem fundamental dos Upanichades hindus, da
mesma forma, é que Atman (o Eu mais profundo do indivíduo) é
idêntico a Brahman (causa final de Tudo-o-que-é). Tat twan asi - "Isto
és tu" - talvez a frase mais famosa em sânscrito, é uma proclamação
da unicidade fundamental de Deus e do homem, uma unicidade que
finalmente se estende a toda a criação:

Vós sois tudo...


Ó eu de todos os seres!
Desde o Criador (Brahmâ) até a haste de relva tudo é teu corpo,
visível e invisível, dividido pelo espaço e pelo tempo...
Ó Eu transcendental!
Prostramo-nos diante de ti como a Causa das causas, a forma
principal sem comparação, além da Natureza (Pradhâna) e do
Intelecto...
Prostramo-nos diante de ti, o sem nascimento, o indestrutível,
És o sempre-presente dentro de todas as coisas, como o princípio
intrínseco de tudo.
Prostramo-nos diante de ti, resplendente
Habitante permanentemente presente (Vâsudeva)!
A semente de tudo o que é!

Ao passo que a história da animação do barro da terra por um Criador


todo-poderoso descreve a união do espírito e da matéria desde o
ponto de vista da criação (a matéria recebendo o alento do espírito), a
história da descida de seres espirituais à Terra, descrita às vezes,
como se eles vestissem casacos de carne, narra o mesmo processo
desde o ponto de vista celestial do Criador. De acordo com o clã
molama dos zulus, os seus antepassados mais remotos foram um
homem e uma mulher, que desceram do céu e pousaram num deter-
minado morro. Idéia semelhante se encontra entre os wakuluwes, que
vivem entre Niassa e Tanganica; dizem eles que o primeiro casal
desceu do Céu e produziu os seus filhos com partes de seus corpos.
Os exemplos que poderíamos citar são quase intermináveis: segundo
um mito dos caraíbas da Venezuela: "A princípio a terra era muito
macia... O primeiro homem, chamado Louquo, desceu do céu e,
depois de viver na terra e produzir muitos filhos, regressou ao seu lar
no céu. Quando morrem, os seus descendentes também sobem aos
céus, e ali se transformam em estrelas." No Orinoco e na Guiana, na
América Latina, encontramos uma tradição parecida:

Há muito tempo, quando Warau vivia nas felizes terras de caça, acima
do céu, Okonorote, jovem caçador, disparou uma flecha que errou o
alvo e se perdeu; procurando por ela, encontrou o buraco pelo qual ela
caíra; e, abatendo a vista, descortinou a terra lá embaixo, com
florestas e savanas cheias de caça. Por meio de uma corda de
algodão, visitou as terras embaixo e, quando regressou, os seus
relatos foram de tal forma que induziram toda a tribo dos waraus a
segui-Io até lá; mas uma infeliz [mulher], demasiado gorda para
esgueirar-se pelo buraco, ficou entalada nele, e os waraus se viram,
assim, impedidos de voltar algum dia ao mundo do Céu.

Os índios omahas das planícies norte-americanas também


acreditavam na preexistência celestial ou espiritual de seres humanos,
antes do seu aparecimento na Terra em forma física. "No princípio",
dizem eles, "todas as coisas estavam na mente de Wakonda.”
Todas as criaturas, incluindo o homem, eram espíritos, que se moviam
no espaço entre a terra e as estrelas (os céus). Estavam procurando
um lugar onde pudessem existir corporeamente... Então, desceram à
terra. Viram-na coberta de água. Flutuaram pelo ar rumo ao norte, ao
leste, ao sul e ao oeste, e não encontraram nenhuma terra seca... De
repente, do meio da água emergiu uma grande rocha, que explodiu
em chamas, e as águas flutuaram no ar em nuvens. As hostes de
espíritos desceram e tomaram-se carne e sangue. Alimentavam-se
das sementes das relvas e dos frutos das árvores, e a terra vibrou
com as suas expressões de alegria e gratidão a Wakonda, o criador
de todas as coisas.
Os malgaxes de Madagascar concordam em que, no princípio, os
seres humanos e todas as criaturas viviam no céu com Deus. Entre os
nativos da Oceania, as pessoas são freqüentemente mencionadas
como descendentes de deuses que desceram à Terra para nela viver.
Na Indonésia oriental, diz-se que os antepassados originais desceram
do céu, que ficava antigamente mais próximo da Terra, por meio de
uma árvore ou vinha. A idéia da origem celeste aparece também na
ilha de Nias, ao ocidente. Os tobas bataques de Sumatra dizem que a
humanidade descende de uma donzela divina, que desceu à Terra, e
do herói celeste que a seguiu. Nas Célebes meridionais, segundo os
bugis de Macáçar, existe a crença de que seu povo descendia do filho
da divindade do Céu e suas seis esposas, do mesmo modo que os
antigos gregos afirmavam que a humanidade descendia de Zeus e de
suas esposas. Entre os ifugaos de Lução, também encontramos a
crença numa descendência direta de divindades. Dizem os ifugaos de
Quiangan que o primeiro filho de Wigan, chamado Kabigat, foi da
região do céu, Hudog, para o Mundo da Terra. Mitos que atribuem
uma origem divina à humanidade encontram-se também nas
Carolinas, onde se diz que Ligobund desceu do Céu à Terra e ali deu
à luz três filhos, que passaram a ser os antepassados do gênero
humano. E a mitologia havaiana reconhece um período pré-humano,
quando somente espíritos povoavam, primeiro o mar, depois a terra.
Tanto a história do sopro de vida quanto a tradição dos antepassados
divinos descrevem uma conexão original entre a humanidade e o
mundo espiritual. E tanto uma quanto a outra supõem uma "intenção
original da parte dos antepassados-Criadores. A compreensão de que
a humanidade foi criada - ou desceu do Céu - para desempenhar um
papel único no mundo é extremamente difundida. Joseph Epes Brown
nota que, conforme a maioria das tradições norte-americanas, embora
os humanos tenham sido criados por derradeiro entre todas as
criaturas, são também o "eixo" e, portanto, num sentido, os primeiros.
Pois se cada animal reflete aspectos particulares do Grande Espírito,
os seres humanos, pelo contrário, incluem, dentro de si mesmos,
todos os aspectos. pessa maneira, o ser humano é uma totalidade,
que carrega o Universo em seu interior e tem, através do intelecto, a
capacidade potencial de viver com uma consciência contínua dessa
realidade.
A humanidade é feita à imagem e semelhança de Deus, a fim de servir
como os meios de expressão do Criador na Terra. O Criador habita o
coração de cada ser humano. A consciência primeva de um vínculo
sagrado entre a essência da humanidade e um Ser espiritual maior se
reflete no canto navajo seguinte. A palavra hozhoni expressa a relação
entre o macrocosmo e o microcosmo, entre o espírito da Terra e a
humanidade:

Hozhoni, hozhoni, hozhoni Hozhoni, hozhoni, hozhoni


A Terra, sua vida sou eu, hozhoni, hozhoni
A Terra, seus pés são meus pés, hozhoni, hozhoni
A Terra, suas pernas são minhas pernas, hozhoni, hozhoni, hozhoni
A Terra, seu corpo é o meu corpo, hozhoni, hozhoni
A Terra, seus pensamentos são meus pensamentos, hozhoni, hozhoni
A Terra, sua fala é minha fala, hozhoni, hozhoni
A Terra, sua penugem é a minha penugem, hozhoni, hozhoni
O céu, sua vida sou eu, hozhoni, hozhoni
As montanhas, sua vida sou eu
Montanha de chuva, sua vida sou eu Mulher-mutante, sua vida sou eu
O Sol, sua vida sou eu
Deus-falante, sua vida sou eu
Deus da casa, sua vida sou eu
Semente branca, sua vida sou eu
Semente amarela, sua vida sou eu
O besouro da semente, sua vida sou eu
Hozhoni, hozhoni, hozhoni Hozhoni, hozhoni, hozhoni

O feiticeiro dos lakotas (sioux), Alce Negro, expressou o mesmo


pensamento com a sua eloqüência característica:
A paz... penetra as almas dos homens quando eles compreendem o
seu relacionamento, a sua unicidade, com o Universo e todos os seus
poderes, e quando compreendem que, no centro do Universo, habita
Wakan-Tanka, e que este centro está, realmente, em toda a parte,
está dentro de cada um de nós.
De acordo com a história da criação universal, o sentido de unicidade
entre a espécie humana, a Divindade, a Natureza, o Cosmo, a
princípio foi completo. Nos dias em que o mundo era desconhecido e
novo, cheio de força e vitalidade, os seres humanos viviam num
Paraíso mágico de bem-estar e abundância, em perfeita harmonia
com Deus e com os animais. Era um tempo de que todas as pessoas,
em todas as nações, se lembrariam com inveja e pesar.

CAPÍTULO 3
À Procura do Éden

E plantou o Senhor Deus um jardim 110 Éden, da banda do Oriente, e


pôs nele o homem que havia formado. Do solo fez o Senhor Deus
brotar toda sorte de árvores agradáveis à vista e boas para alimento; e
também a árvore da vida no meio do jardim, e a árvore do
conhecimento do bem e do mal... Tomou, pois, o Senhor Deus ao
homem o colocou no jardim do Éden para que o cultivasse e
guardasse.
Gênesis 2:8, 9, 15

A idéia de que os primeiros seres humanos eram felizes, inocentes e


sábios está tão difundida que poderíamos iniciar um estudo geográfico
dos mitos do Paraíso virtualmente em qualquer sítio habitável, com
qualquer grupo étnico. Não obstante, parece inevitável que
comecemos a busca com o que é, disparado, o exemplo mais
conhecido: a história do Éden perdido. Ao compararmos a narrativa
hebraica com os mitos do Paraíso de outras culturas, manteremos em
mente a pergunta formulada no fim do Capítulo 1: Originou-se o mito
de uma região, espalhando-se dali para outros povos e lugares, por
um processo de empréstimo e difusão, ou ele apareceu em muitas
partes do mundo espontânea e independentemente?
A história do Gênesis sobre Adão, Eva, o Jardim e a serpente inspirou
gerações de teólogos e eruditos; seu conjunto de imagens faz parte da
própria base da civilização ocidental. Carrega consigo a ressonância
de milhões de recontagens. No entanto, a sua exposição, no princípio
do cânon hebraico, é tão lacônico que requer apenas umas poucas
sentenças para recontar. O Éden era um lugar cheio de árvores
frutíferas, ouro e pedras preciosas. Era a fonte das águas doces da
Terra; o rio que fluía através dele dividia-se em quatro correntes, que
corriam para os quatro quadrantes do mundo. Deus colocou os
primeiros seres humanos ali no Jardim do Éden para que o
cultivassem e guardassem.
Um Jardim do Paraíso cristão primitivo. Um cedro, cercado de
pássaros voantes, é flanqueado por uma cabra selvagem, roseiras,
lírios e heras. Friso central de um mosaico, fim do século V d.C.,
Bitola, Museu de Heracléia

O texto do Gênesis parece ser a fusão de dois relatos. No primeiro


(Gênesis 1:26, 27), homem e mulher são criados juntos. No segundo
(Gênesis 2:7, 18-23), Deus faz apenas Adão, depois alivia a solidão
do homem formando as feras e os pássaros e, finalmente, a primeira
mulher, Eva. Mais adiante, o casal original vive nu e sem conhecer a
vergonha, em harmonia um com o outro e com os animais.
Por enquanto, não precisamos preocupar-nos com o significado da
história. Em vez disso, examinemos o texto do Éden simplesmente
como documento literário. Quem o escrevéu? De onde veio ele? E
quando teve origem?
Existem duas escolas de pensamento em relação a essas perguntas.
Os comentadores fundamentalistas tratam a história do Éden como
um relato factual e divinamente inspirado, registrado por Moisés há
uns 3.500 anos, em que se descrevem eventos ocorridos uns 25
séculos antes. Conforme a crença ainda comum, todas as narrativas
similares de outras tradições culturais devem ter sido empréstimos
primitivos feitos à versão mosaica original, ou reminiscências
truncadas, preservadas pelos descendentes espalhados dos filhos de
Noé. Em suma, a história de Adão e Eva, tal como foi preservada no
Gênesis, é vista como verdade literal, pura e simples.
Por outro lado, a maioria dos estudiosos modernos de crítica bíblica
tende a ver a história do Éden como um composto de textos escritos
ou compilados por sacerdotes israelitas entre os séculos IX e IV a.C.,
histórias que, por sua vez, derivavam de mitos mesopotâmicos
anteriores ou haviam sido inspirados por eles. Os modernos críticos
literários, históricos e de textos procuram estabelecer os textos
originais dos documentos bíblicos e chegar a conclusões acerca da
sua estrutura, data e autoria na base da evidência interna
(vocabulário, estilo e gênero) do confronto com outros textos e das
provas arqueológicas correlatas. Embora, como veremos, essa
abordagem ainda não tenha produzido uma resposta final à pergunta
sobre as origens da história do Éden, fornece um ponto de ingresso -
tão bom quanto outro qualquer para a pista do Paraíso.

Suméria e Dilmun

No entender dos lingüistas, os hebreus provavelmente tomaram


emprestada a palavra éden aos sumerianos, que ocuparam o vale do
Tigre e do Eufrates desde, mais ou menos, o quinto até o terceiro
milênio a.C. Para os sumerianos, éden significava "planície fértil". Mas
a palavra pode ter até uma origem mais antiga. Em 1943, o assiriólogo
Benno Landsberger formulou uma teoria segundo a qual os nomes
sumerianos correspondentes a "Éden" e "Adão" tinham sido tomados
emprestados de um grupo cultural mesopotâmico mais antigo, que
ainda não tinha uma linguagem escrita, conhecido como o AI-Ubaid.
Os ubaidis parecem ter fundado as mais antigas cidades
mesopotâmicas meridionais, Eridu e Uruque, por volta do ano 5000
a.C., de acordo com a maioria dos registros.
Visto que os próprios ubaidis não pareciam ter tido uma linguagem
escrita, provavelmente nunca saberemos se foram, com efeito, a
última fonte da narrativa bíblica do Éden. Mas nem a idéia de que os
elementos da história do Gênesis derivam de fragmentos de primitivas
epopéias literárias mesopotâmicas - tal como a aceita a maioria dos
estudiosos bíblicos se prova com facilidade. O paralelo mais
próximo da história do Éden, discernível nos textos sumerianos, é uma
série de inscrições que descrevem uma terra situada a leste, chamada
Dilmun. Conquanto o Éden bíblico e o Dilmun sumeriano tenham
ambos uma localização oriental e sejam locais de paz e abundância,
os estudiosos têm encontrado freqüentemente, para o seu
desapontamento - mais dessemelhanças do que semelhanças entre
os dois Paraísos míticos.
Os sumerianos, aos quais, por muitas décadas, se creditou a invenção
da civilização, eram uma cultura cercada de mistério. Enquanto se
pode remontar às origens de outros povos antigos da região, até o
tronco indo-iraniano ou semítico, os sumerianos constituíam um grupo
isolado. Os seus documentos foram escritos no que os lingüistas
denominam "linguagem isolada", significando com isso que ela não
tinha nenhuma relação aparente com qualquer outro idioma co-
nhecido. Quando apareceram no delta dos rios Tigre e Eufrates, por
volta do ano de 4000 a.C., os sumerianos trouxeram consigo sua
agricultura, escrita, metalurgia e comércio próprios, seus templos,
padres e leis, além de uma literatura mitológica, que contava que o
deus Enki e sua esposa haviam sido colocados na terra mágica de
Dilmun, a fim de instituir "uma idade sem pecado de felicidade
completa":

Aquele lugar era puro, aquele lugar era limpo.


Em Dilmun o corvo não crocitava.
O milhano não gritava como um milhano.
O leão não lacerava.
O lobo não devastava os cordeiros...
Ninguém afugentava as pombas.

Os sumerianos tinham migrado para a Mesopotâmia. É possível, por


conseguinte, que o mito de Dilmun seja uma descrição idealizada do
seu lar anterior. Em alguns trechos descreve-se Dilmun como se
tivesse existido num passado distante:

Era uma vez, em que não havia cobra, não havia escorpião, Não havia
hiena, não havia leão Não havia cachorro selvagem, nem lobo, Não
havia medo, nem terror, O homem não tinha rival.
Era uma vez....
Em que todo o universo, o povo em uníssono Louva Enlil numa língua
só.
Em outras passagens, Dilmun é descrita como "terra dos vivos",
reservada para os deuses, ou para os que, como Ziusudra (o
equivalente mítico sumeriano de Noé), receberam "a vida qual um
deus".
Em outras ocasiões ainda, todavia, descreve-se Dilmun como um país
com o qual a Suméria mantinha relações simultâneas de comércio.
Muitos arqueólogos acreditam agora que Dilmun estava localizada nas
ilhas de Bahrein e de Failaka, ou na costa oriental da Arábia Saudita,
centros de comércio internacional no tempo em que a Suméria
dominava a região. Entretanto, a caracterização de Dilmun como
centro internacional de comércio dificilmente explicará por que era
mencionado tão amiúde em termos mágicos e paradisíacos.
Os babilônios, sucessores dos sumerianos, também situavam a sua
"terra dos vivos" em Dilmun. Era ali a "morada dos imortais", onde
Utnapishtim (o personagem babilônico de Noé) e sua esposa tiveram
permissão para morar depois do Dilúvio.
Em suma, os pesquisadores não chegaram a acordo algum no que
concerne à localização ou até à natureza de Dilmun. Os paralelos
gerais entre os textos do Éden e de Dilmun (que ambos descrevem
como terra de paz e imortalidade) são uma prova escassamente
convincente da sua origem comum. A história de Dilmun não partilha
nem das dramatis personae nem da trama da narrativa do Éden; ali
não há serpente, nem fruto proibido, nem um casal primordial.
Paralelos muito próximos da história do Éden podem encontrar-se em
mitos mais distantes. Na antiga Pérsia, ou Irã, por exemplo,
encontramos a tradição de um antepassado universal reminiscente do
bíblico Adão.

O Jardim Iraniano

A própria palavra paraíso vem da palavra do Avestá (iraniano antigo)


Pairi-daeza, que significa jardim murado ou fechado. O protótipo de
todos esses jardins era o de Yima, o primeiro homem. Segundo o
folclorista Albert Carnoy: "A história de Yima é o mais interessante e
extenso dos mitos iranianos, e é certo que a lenda data de Ariano, ou,
pelo menos, dos tempos indo-iranianos".
Diz-se de Yima que "foi o mais glorioso de toda a espécie humana... e
tão poderoso que deu a homens e feras a imortalidade". Finalmente,
Yima tornou-se rei dos mortos entre os persas, no qual as almas boas
se refugiavam durante a apocalíptica batalha final entre as forças do
bem e do mal.
O Jardim de Yima estava situado numa montanha mítica, a fonte da
Água da Vida, onde cresciam árvores mágicas, incluindo a Árvore da
Vida. A Idade de Yima foi um tempo de perfeição:
No reinado de Yima, o valente, não havia calor nem frio, nem velhice
nem morte, nem doença... Pai e filho caminhavam juntos, cada um
deles parecendo ter quinze anos de idade, ou assim parecendo.
No Avesta, livro sagrado do Zoroastrismo, o jardim de Yima,
denominado Airyana Vaejo, era descrito como um sítio-perfeito com
um clima suave. Mas a Idade de Yima acabou após o aparecimento
de Angra Mainyu (Ahriman), a encarnação do mal, que fez um inverno
catastrófico descer sobre a terra. O jardim original perdeu-se na neve
e no gelo.
A tradição de Yima dos iranianos assemelha-se, em diversos
pormenores, à história hebraica do Éden. Ambas aludem a uma
Árvore da Vida, a um Rio da Vida, a um homem original singular,
(Adão/Yima), a um Jardim e a uma Queda. Culturalmente, todavia, os
antigos iranianos tinham mais coisas em comum com os povos índicos
do que com os sumerianos, babilônios ou hebreus. Concordam os
estudiosos em que Yima era o equivalente iraniano do Yama hindu, o
primeiro ser mortal e preparador do reino dos que partiam. Mas
nenhuma ligação direta pode ser traçada entre Yima e o Adão do
Gênesis.

A Era de Rá
Em seu Myth and Symbol in Ancient Egypt [O mito e o símbolo no
antigo Egito], R. T. Rundle Clark diz-nos que a mitologia egípcia difere
fundamentalmente das outras literaturas do Oriente Médio:

A maioria dos mitos egípcios é constituída de episódios curtos, que


podem ser contados em uma ou duas sentenças. Não são
relacionamentos duradouros que envolvam os personagens, como os
que foram recuperados dos sumerianos contemporâneos da
Mesopotâmia.

Entretanto, como os sumerianos, os hebreus e os iranianos, os


egípcios também tinham um mito próprio.
Para os egípcios, toda a vida se afirmava na reconstituição dos
acontecimentos do Primeiro Tempo (Tep Zepi), o qual, de acordo com
Rundle Clark, constituía "uma idade de ouro de absoluta perfeição -
antes que sobreviesssem a fúria ou o clamor, ou a porfia, ou o
tumulto. Nem morte, nem doença, nem desastre ocorriam nessa
época bem-aventurada, às vezes conhecida como o tempo de Rá (o
deus do Sol)". Lenormant diz que:

Entre os egípcios, o reino terrestre do deus Rá, que inaugurou a


existência do mundo e da vida humana, foi uma Idade de Ouro, para a
qual voltavam continuamente os olhos com pesar e cobiça: para
proclamar a superioridade de qualquer coisa acima de tudo o que a
imaginação apresenta, bastava afirmar que "nada parecido foi visto
desde os dias do deus Rá".

Um texto egípcio primitivo, a respeito dos deuses primevos, diz que:

A ordem foi estabelecida no tempo deles e a verdade... veio do céu


nos seus dias. Ela se uniu aos que estavam na terra. A terra vivia na
abundância; os corpos estavam cheios; não havia ano de fome nas
Duas Terras. As paredes não caíam; os espinhos não picavam no
tempo dos Deuses Primevos.
Consoante outro texto, "não havia iniqüidade na terra, nenhum
crocodilo abocanhava, nenhuma cobra picava no tempo dos Primeiros
Deuses". Rundle Clark enfatiza que a restauração parcial dessa Idade
de Ouro era o principal objetivo do ritual da religião egípcia.
A mitologia egípcia, no entanto, faz menção de poucas minúcias
capazes de relacioná-Ia com a história do Paraíso bíblico. Entretanto,
embora a influência dos motivos religiosos e mitológicos egípcios se
possa encontrar na filosofia grega e na literatura gnóstica primitiva,
ninguém indicou o Tep Zepi dos egípcios como protótipo do Éden dos
hebreus.

O Deus-Sol Rá
A Raça de Ouro

Depois da narrativa bíblica do Éden, a história do Paraíso que exerceu


o maior impacto sobre o mundo ocidental foi a lenda grega da Idade
de Ouro. A expressão "Idade de Ouro" é uma tradução da frase latina
de Ovídio aetas aurea, a qual, por sua vez, se refere ao tempo da
"raça de ouro" descrita pelo poeta grego Hesíodo em sua epopéia
moralizante, Os trabalhos e os dias. Escrevendo provavelmente no
século VIII a.C., Hesíodo lamentava o estado de degenerescência da
sociedade contemporânea, que barões venais e gananciosos
governavam pela força, extraindo subornos e tributos da população
rural. Embora profundamente pessimista em relação ao futuro - "Zeus
destruirá esta geração de mortais" -, Hesíodo idealizava o passado
mais remoto num trecho que geraria um sem-número de elaborações
de gerações ulteriores de filósofos e poetas gregos e romanos, e
milhares de análises e interpretações de gerações ainda mais
próximas de eruditos europeus e americanos:
Primeiro que tudo, tendo os deuses imortais seus lares no Olimpo,
fizeram uma raça de ouro de homens mortais, que viviam no tempo de
Crono, quando este era rei no céu. À semelhança dos deuses, viviam
com o coração livre de tristezas e longe de trabalhos e pesares;
tampouco eram sua sina a idade miserável, mas sempre de pés e
mãos incansáveis, folgavam em festins, fora do alcance de todos os
males. E quando morriam, era como se tivessem caído no sono. E
todas as coisas boas eram suas. Pois a terra frutuosa lhes dava
espontaneamente frutos abundantes sem limites. E eles viviam no
bem-estar e na paz em suas terras com muitas coisas boas, ricos em
rebanhos e amados dos deuses abençoados.
Segundo Hesíodo, a Idade de Ouro foi seguida das Idades da Prata,
do Bronze, dos Heróis e do Ferro, a última das quais é a presente, a
idade mais decadente. Como os seus escritos figuram entre as
primeiras fontes literárias sobreviventes da mitologia grega, talvez
nunca saibamos se esse lavrador da Beócia inventou a história das
Idades do Homem, ou se, como parece mais provável, ele estava
apenas expondo para a posteridade uma crença já antiga. Em
qualquer caso, a idéia da beatitude original dos seres humanos e sua
subseqüente degeneração parece ter sido geralmente aceita como
fato histórico pela maioria dos gregos e romanos.
A diferença das mitologias da maioria das outras culturas antigas, a da
Grécia foi registrada e comentada por muitos autores cujos nomes
chegaram até nós. Talvez nunca saibamos quem escreveu as
passagens sobre os yugas no mahabharata, mas a respeito da
tradição grega da Idade de Ouro temos pronunciamentos de alguns
dentre os mais famosos autores da Antigüidade.
Árvore celestial egípcia, plantada nas "águas das profundezas", de
onde uma deusa distribui a comida e a bebida da imortalidade.
Detalhe de uma pintura do século XIII a.C.

A filosofia ocidental tem uma dívida incalculável para com Platão, em


cujas obras encontramos a corrente paradisíaca, clara e forte. Nas
Leis, Platão escreve que "devemos fazer quanto pudermos para imitar
a vida que se diz ter existido nos dias de Crono; e na medida em que
o elemento imortal habita em nós, precisamos atentar para ele, assim
na vida privada como na pública". Em O estadista, PIatão oferece o
seu relato da história humana. Em linhas gerais, ela consiste num
tempo de Paraíso, durante o qual o mundo está sob o governo de
Deus; a separação entre o mundo e Deus; o ingresso do mal no
mundo, seguido pela decadência e pela destruição; e, por fim, a idade
atual, em que os humanos, apesar de fundamentalmente miseráveis,
são capazes de civilizar-se de certo modo através dos dons de
Prometeu.
O neoplatônico Porfírio, do século III a.C., disse que o filósofo grego
Dicearco, do fim do século IV a.C., falava de:

Homens da mais primitiva das idades, aparentados com os deuses,


que eram, de seu natural, os melhores e viviam a melhor vida, de
modo que são considerados uma raça de ouro em comparação com
os homens do tempo presente... Desses homens primevos diz ele que
não tiravam a vida de nenhum animal... Dicearco conta-nos a espécie
de vida da Idade de Crono: se ela tiver de ser aceita como tendo
realmente existido, e não for apenas um conto ocioso, quando as duas
partes demasiado míticas da história tiverem sido eliminadas, ela
poderá ser reduzida a um sentido natural pelo uso da razão. Pois
todas as coisas, então, ao que se presume, cresciam
espontaneamente, visto que os próprios homens daquele tempo nada
produziam, não tendo inventado nem a agricultura nem nenhuma
outra arte. Por essa razão, viviam uma vida de lazer, sem cuidados
nem trabalhos, e também - a ser aceita a doutrina dos médicos mais
eminentes - sem doenças... E não havia guerras nem lutas entre eles;
pois não existiam entre eles objetos de competição de tal valor que
dessem a alguém motivo para procurar obtê-Ios por esses meios. Em
tais condições, era toda a vida deles uma vida de lazer, sem cuidados
acerca da satisfação de suas necessidades, de saúde, paz e amizade.
Conseqüentemente, o modo de vida deles veio a ser naturalmente
almejado por homens de tempos subseqüentes, que, mercê da
grandeza dos seus desejos, se tinham tornado sujeitos a muitos
males... Tudo isso, diz Dicearco, não é apenas asseverado por nós,
mas pelos que investigaram, do começo ao fim, a história dos
primeiros tempos.
Os autores romanos clássicos, Ovídio, Cratino, Pausânias, Tibulo,
Virgílio e Sêneca se estenderam livremente a respeito da história de
Hesíodo sobre a raça de ouro original, dando sempre ênfase às
qualidades que caracterizam os benefícios da vida simples, primitiva -
liberdade, auto-suficiência e ausência de dependência da tecnologia e
da organização social complexa. As Metamorfoses de Ovídio foram,
séculos a fio, prato obrigatório de todas as escolas européias, e sua
descrição da Idade de Ouro, no Livro 1, passou a ser a forma definitiva
do mito para a Idade Média e para a Renascença:

A primeira idade foi de ouro. Nela, a fé e a justiça eram queridas pelos


homens por sua livre e espontânea vontade, sem juízes nem leis. Não
existiam penalidades nem temores, nem palavras ameaçadoras
inscritas no bronze imutável; tampouco a multidão suplicante temia as
palavras do juiz, mas estava segura sem protetores. O pinheiro
cortado nos topos das montanhas ainda não descia para as águas
fluentes, a fim de visitar terras estrangeiras, nem fossos profundos
circunvalavam a cidade, nem havia trombetas retas, nem cornos de
bronze retorcido, nem elmos, nem espadas. Sem o uso de soldados,
as pessoas, em segurança, gozavam do seu doce repouso. A própria
terra, aliviada da enxada e não ferida pelo arado, dava todas as coisas
livremente... A primavera era eterna... não lavrada, a terra produzia
seus frutos e as pesadas espigas de trigo embranqueciam o campo
não arado.

Em outra parte, Ovídio se refere à pacífica amizade da própria


Natureza, antes da degeneração da espécie humana. "Essa idade
antiga", escreve ele:

A que demos o nome de Áurea, foi abençoada com o fruto das árvores
e das ervas que o solo produz, e não poluiu sua boca com sangue
coalhado. As aves, em segurança, abriam caminho com as asas pelo
ar, a lebre, sem temor, errava pelos campos e o peixe não era
apanhado graças à sua falta de inteligência. Não havia armadilhas,
ninguém tinha medo da traição, e tudo era cheio de paz.

Como vimos, o mundo ocidental tem uma herança de pelo menos


cinco tradições, aparentemente independentes, de um Paraíso
original: o Jardim do Éden hebraico, o Dilmun sumeriano, o Jardim
iraniano de Yima, o Tep Zepi egípcio e a Idade de Ouro grega. Não
parece haver nenhuma ligação. que se possa descobrir entre
nenhuma delas. Duas tradições, a hebraica e a grega, continuam a
afeiçoar os valores e ideais ocidentais. Na segunda parte,
analisaremos as duas tradições, particularmente sobre o
desenvolvimento da literatura e da teoria social européias e
americanas.
Mas não foi só a civilização ocidental que o mito do Paraíso modelou;
as grandes civilizações do Oriente também.

Os Paraísos do Oriente

Os antigos bardos da Índia descreveram a Primeira Idade, a Krita


Yuga, em termos semelhantes aos empregados por Hesíodo em sua
história da raça de ouro. Os hindus recordam quatro yugas, ou idades:
depois da Krita vieram a Treta, a Dvapara e a Kali. Como os gregos,
os indianos acreditavam que a seqüência das idades segue um
processo de degeneração moral, e diziam que estamos agora vivendo
a ultima yuga, decadente e materialista. De acordo com a epopéia
histórica, o Mahabharata:

A Krita Yuga [Idade Perfeita] era assim nomeada porque havia apenas
uma religião, e todos os homens eram santos: por conseguinte, não se
exigia deles que celebrassem cerimônias religiosas. A santidade
nunca diminuía, e o povo não decrescia. Não havia deuses na Krita
Yuga, e nem demônios... Os homens não compravam nem vendiam;
não havia pobres e não havia ricos; não existia a necessidade de
trabalhar, porque tudo que os homens requeriam obtinham-no pela
força de vontade; a virtude principal consistia na renúncia de todos os
desejos mundanos. A Krita Yuga era sem doenças; não havia
depreciação com o passar dos anos; não havia ódio, nem vaidade,
nem nenhuma espécie de maus pensamentos; nenhuma tristeza,
nenhum medo. Toda a espécie humana podia lograr a suprema
beatitude.

Existe uma passagem semelhante no Vaya Purana:

Na idade de Krita os seres humanos se apropriavam do alimento


produzido da essência da terra. ... Não os caracterizavam a retidão
nem a iniqüidade; não os marcava nenhuma distinção. ... Cada qual
era produzido com autoridade sobre si mesmo. ... Eles não sofriam
impedimentos, nem susceptibilidades aos pares de opostos (como o
prazer e a dor, o frio e o calor), e nenhum cansaço. Freqüentavam as
montanhas e os mares, e não moravam em casas. Nunca se
entristeciam, eram cheios da qualidade da bondade, e supremamente
felizes; andavam de um lado para outro à vontade e viviam em
contínuo deleite. ... Produzidas da essência da terra, as coisas que
essas pessoas desejavam surgiam da terra em toda a parte e sempre,
quando pensadas. A perfeição deles, ao mesmo tempo, produzia força
e beleza e aniquilava a doença. Com corpos que não precisavam de
embelezamento, gozavam da perpétua mocidade. ... Prevaleciam a
verdade, o contentamento, a paciência, a satisfação, a felicidade e o
domínio de si mesmo. ... Não existiam entre eles coisas como lucro ou
perda, amizade ou inimizade, gosto ou aversão.

Na China, voltamos a encontrar o mito do Paraíso temperado de


acordo com as sensibilidades culturais locais, mas, sem embargo,
caracterizando a primeira condição da humanidade como uma
condição de bem-estar, fartura e liberdade. A filosofia taoísta,
profundamente e, não raro, sardonicamente primitivista, permeou o
pensamento chinês, pelo menos, durante dois milênios e meio. De
acordo com os primeiros sábios taoístas, Lao Tzu e Chuang Tzu, a
própria Natureza é sábia, e o homem inteligente sabe que não
deve impor-lhe ritmos criativos. "A inteligência profunda". de acordo
com Lao Tzu. "consiste no poder penetrante e impregnado de devolver
a todas as coisas a sua harmonia original.”
Em todos os escritos canônicos taoístas existe a implícita
compreensão de que, na idade primitiva, "toda a criação gozava de
um estado de felicidade..., todas as coisas cresciam sem trabalho; e
uma fertilidade universal prevalecia". Segundo Lao Tzu: "Nos tempos
primitivos, os homens inteligentes tinham uma compreensão
intuitivamente penetrante da realidade que não poderia ser expressa
em palavras." A identificação da inteligência com os caminhos da
realidade, juntamente com a preocupação de devolver todas as coisas
à sua harmonia original. são temas que trazem a marca da
autenticidade, reemerguem no confucionismo e no zen-budismo, e
representam o cerne da sabedoria chinesa.
As tradições do Paraíso da Índia e da China apresentam algumas
similaridades com as da Grécia antiga. Poderia ter havido uma
influência direta de uma sobre as outras? A ser assim, essa influência
deveria ter chegado cedo, provavelmente por volta dos primeiros
desenvolvimento da agricultura, quando ocorriam grandes migrações.
do começo ao fim da Europa, da Ásia e das Américas. Mas como isso
se deu há tanto tempo, não há realmente nenhuma resposta definitiva
à pergunta.

O Primitivismo entre os Primitivos

Os povos civilizados sempre mantiveram mitos que glorificavam a vida


feliz do passado distante, quando os seres humanos viviam em
harmonia entre si, com os animais, e, na verdade, com toda a
Natureza e todo o Cosmo. Mas tais recordações não se restringem às
culturas civilizadas. Quando examinamos as tradições das tribos
australianas, americanas nativas e africanas, muitas das quais
conservaram uma existência simples de colhedores e caçadores até a
era moderna, tornamos a encontrar os mitos do Paraíso com temas
semelhantes: uma unidade interior com a Natureza, uma abundância
anterior de alimentos, um modo simples e supremamente satisfatório
de vida. Eliade comenta que:

Os selvagens consideravam-se. nem mais nem menos do que se


tivessem sido cristãos ocidentais, como seres num estado "decaído",
em contraste com a situação fabulosamente feliz do passado. A sua
condição atual não era a original: fora produzida por uma catástrofe
ocorrida in illo tempore [naqueles tempos]. Antes do desastre, o
homem levava uma vida que não diferia da de Adão antes de pecar.

Na América do Norte, por exemplo, um mito cheyenne fala numa


idade paradisíaca, quando os seres humanos andavam nus e
inocentes, no meio de campos fartos. Depois dessa idade veio um
tempo de dilúvio, guerra e fome, que se seguiu à dádiva do
conhecimento. As tradições da costa ocidental se compõem, em
grande parte, de narrativas do Primeiro Povo, varonil na forma e no
proceder, mas que existiu antes da criação da espécie humana tal
qual é atualmente constituída. A ordem atual começou com o
encerramento catastrófico da idade do Primeiro Povo. Segundo os
hopis, as pessoas, os pássaros e os animais da Primeira Idade, "todos
sugavam o peito da Mãe Terra, que lhes dava o seu leite de relva,
sementes, frutos e grãos, e todos se sentiam como se fossem um só,
pessoas e animais".
Histórias similares de uma comunidade do Primeiro Povo aparecem
de uma ponta à outra da América Central e do Sul. "Num passado
muito distante, tão distante que nem os avós dos nossos avós tinham
nascido", dizem os caraíbas do Suriname:

O mundo era muito diferente do que é hoje: as árvores estavam


sempre dando frutos; os animais viviam em perfeita harmonia, e o
pequeno aguti brincava, sem medo, com as barbas do jaguar; as
serpentes, não tinham veneno; os rios fluíam mansamente, sem seca
nem inundações; e até as águas das cascactas brilhavam
delicadamente ao caírem das rochas altas.

No Orinoco e na Guiana os nativos diziam que:

No princípio deste mundo as aves e as feras foram criadas por


Macunaíma - o grande espírito que nenhum homem vira. Naquele
tempo, eles eram todos dotados do dom da fala. Sigu, filho de
Macunaíma, foi encarregado de governá-Ios. Todos viviam juntos em
harmonia e submetiam-se ao seu gracioso domínio.

Os índios sul-americanos do Gran Chaco e da Amazônia dizem que,


nos primeiros tempos, havia um lugar onde o trabalho era
desconhecido; sem ser cultivados, os campos produziam comida
abundante. Quando o povo ali envelhecia, não morria, mas, em vez
disso, remoçava. Mas hoje, dizem, as pessoas já não se lembram do
caminho para esse "Lugar Feliz".
Os nativos australianos também têm uma tradição do Paraíso, que
preservam em suas lembranças do "Tempo do Sonho", o qual,
acreditam, ocorreu num passado indeterminado e distante. O Tempo
de Sonho não é apenas a era dos antepassados primordiais do
Criador; é também uma dimensão transcendente e mágica de
existência acessível no presente através de estados alterados de
consciência. Eliade escreveu:

Os australianos entendem que os seus antepassados míticos viveram


durante uma idade de ouro, num Paraíso primitivo, em que a caça
abundava e as noções do bem e do mal eram praticamente
desconhecidas. É esse mundo paradisíaco que os australianos tentam
descrever, ao vivo, durante certos festivais, quando as leis e
proibições são suspensas.
Os aborígines acreditam implicitamente, e sem fazer perguntas, na
superioridade dos seus antepassados do Tempo de Sonho,
possuidores de muitos poderes milagrosos, que eles mesmos tinham
perdido.
As tribos da África central e meridional preservaram mitos de um
tempo original, em que o Deus celestial e os seres humanos eram
amigos, antes da separação entre o Céu e a Terra. Uma idade assim
tipificada num adágio da tribo ngombe do Zaire: "No princípio, não
havia homens na terra. As pessoas viviam no céu com Akongo e eram
felizes." O etnólogo Paul Schebesta registrou a seguinte tradição dos
pigmeus bambutis da África central:

Depois de Deus haver criado o mundo e os homens, habitou entre


eles. Chamou-Ihes seus filhos. Eles lhe deram o nome de pai. ... Ele
se mostrou um bom pai para os homens, pois os colocou de tal jeito
neste mundo que eles podiam viver sem muito esforço e eram, acima
de tudo, livres de cuidados e medos. Nem os elementos nem os
animais eram inimigos do homem e as substâncias dos alimentos
cresciam, prontas, para a sua mão. Em suma, o mundo foi um paraíso
enquanto Deus habitou entre os homens. Embora não fosse visível
para eles, estava no meio deles e falava com eles.

Sumariando os mitos africanos a respeito da Primeira Idade, escreveu


o folclorista Herman Baumann:

No entender dos nativos, tudo o que aconteceu na idade primeva era


diferente de hoje: as pessoas viviam para sempre e nunca morriam;
compreendiam a linguagem dos animais e viviam em paz com eles;
não conheciam o trabalho e tinham comida em abundância, cuja
colheita, feita sem esforço, lhes assegurava uma vida sem cuidados;
não havia sexualidade e não havia reprodução - em resumo, eles
nada conheciam de todos esses fatores e atitudes fundamentais, que
hoje movem as pessoas.
Só quando as pessoas se colocaram contra as outras criaturas Deus
foi afastado e destruiu-se a harmonia original da Natureza.
Baumann observa que, enquanto a tradição africana do Paraíso é
notavelmente semelhante à dos hebreus, não existe a possibilidade de
que ela tenha sido simplesmente tomada de empréstimo aos
missionários. E o antropólogo Wilhelm Koppers concorda: "Estaremos
provavelmente mais próximos da verdade se presumirmos que a
versão da Bíblia, assim como as demais, deriva de uma fonte comum,
mais antiga".
A nossa busca nos levou da Mesopotâmia ao Irã, ao Egito, à Índia, à
China, à Austrália, às Américas do Norte e do Sul e à África. Em toda
a parte, encontramos essencialmente o mesmo mito - a história de
uma era primordial, quando a humanidade e a Natureza gozavam de
um estado de paz, felicidade e fartura. Quanto à nossa busca de um
ponto geográfico de origem do mito, precisamos concluir que, se uma
fonte cultural única existiu, a difusão cultural a partir dessa fonte deve
ter ocorrido há tanto tempo que o processo de empréstimo é agora
impossível de acompanhar. Não se podem interpretar tão facilmente
os mitos como se eles se tivessem originado independentemente em
muitas localizações.
Em nosso estudo geográfico dos mitos do Paraíso, só levamos em
consideração os contornos mais amplos da história; ainda quase nem
tocamos nas imagens específicas, reiteradas em todas as inúmeras
versões. A esses pormenores característicos, que examinaremos em
seguida, deve o mito, em grande parte, o seu apelo profundo e
universal.

CAPÍTULO 4
Imagens do Paraíso: Temas Comuns

A Natureza da Fantasia Visionária ou Imaginação, é muito pouco


conhecida, e a natureza eterna e a permanência de suas imagens
sempre existentes é considerada menos permanente do que as coisas
da Natureza Vegetativa e Generativa; entretanto, o Carvalho morre do
mesmo jeito que a Alface, mas a sua Imagem e Individualidade
eternas nunca morrem, mas voltam à semente; do mesmo modo, a
Imagem Contemplativa regressa à semente do Pensamento
Contemplativo.
William Blake

O mito é a história da alma.


William Irwin Thompson

Em muitas ilhas do Pacífico, encontramos mitos que correm paralelos


à história do Éden do Gênesis com miudezas surpreendentes. Embora
o contato com missionários tenha, indubitavelmente, tingido o folclore
local, muita coisa da similaridade nas tradições é anterior ao convívio
com os primeiros missionários, como sugere a seguinte passagem de
Sir James Frazer do seu Folklore in the Old Testament [Folclore no
Velho Testamento]:

Conforme tradição amplamente aceita no Taiti, o primeiro casal


humano foi feito por Taaroa, o deus principal. Dizem eles que, depois
de haver formado o mundo, Taaroa, criou o homem da terra vermelha,
que era também o alimento da humanidade, até ser produzida a fruta-
pão. Mais tarde, dizem alguns, um belo dia, Taaroa chamou o homem
pelo nome, e, quando este chegou, adormeceu-o. Enquanto ele
dormia, o Criador tirou-lhe um dos ossos... e dele fez uma mulher, que
deu ao homem por esposa, e o casal foi o progenitor do gênero
humano.

Observa Frazer que o missionário que registrou o mito presumiu


tratar-se de um "mero recitativo do relato mosaico da criação, que eles
teriam ouvido de algum europeu". Os taitianos, porém, insistiam em
algo diferente. E Frazer comenta que a mesma tradição, que data do
tempo das primeiras missões à ilha, tinha sido registrada não somente
no Taiti, mas também em outras partes da Polinésia.
Destarte, é mais que uma simples idéia geral de uma idade original de
felicidade que aparece, cultura após cultura, em toda a parte do
mundo. Temas específicos e indisfarçáveis caracterizam o mito do
Paraíso todas as vezes em que o encontramos. Como escreveu, de
uma feita, Wilheim Koppers, "por numerosas que sejam as variações
nas minudências da história, existem elementos fundamentais que
ocorrem sempre".
Neste capítulo estudaremos os traços característicos do mito do
Paraíso - a paisagem dos rios mágicos, das árvores, e das
montanhas; a colocação tradicional da idade paradisíaca no princípio
de uma série de idades do mundo, as capacidades milagrosas, o
caráter prístino e a imortalidade do Primeiro Povo; a presença na
Terra do Deus ou Deusa; e também a presença de uma ponte
maravilhosa ligando o Céu e a Terra.
Refletindo nessas imagens, entramos num mundo mergulhado em
nostalgia e anseio. Aqui - em imagens verbais que parecem
reaparecer inevitavelmente história após história, de pólo a pólo e de
continente a continente - está a descrição universal, primordial do
princípio feliz e inocente da humanidade.

A Paisagem Mágica

Ao ingressar no mundo mítico do Paraíso, o que primeiro nos salta


aos olhos é a sua paisagem única e notável: narrativa após narrativa
encontramos uma descrição de quatro rios sagrados, juntamente com
uma árvore mágica ej ou uma montanha cósmica.
Os quatro rios sagrados - os quais, como vimos, aparecem
destacadamente na história bíblica do Jardim do Éden aparecem
também na história dos navajos da Idade dos Primórdios, quando o
Primeiro Homem e a Primeira Mulher viviam numa terra paradisíaca
destruída por uma catástrofe.
"No seu centro", reza o mito, "havia uma fonte, da qual fluíam quatro
rios, cada qual para um dos pontos cardeais.”
Kwen-Iun, a montanha paradisíaca dos chineses, possuía, igualmente,
uma fonte central da qual fluíam, "em direções opostas, os quatro
grandes rios do mundo". A Edda escandinava refere-se a quatro rios
que correm da fonte Hvergelmir, na terra dos deuses; e os calmuques
siberianos lembram-se de quatro rios que emanam do Mar da Vida
central primordial e demandam os quatro pontos da bússola. A
tradição hindu também repete a imagem: de acordo com a Vishnu
Purana, o Paraíso de Brahma é o sítio do qual correm quatro rios
mágicos nas quatro direções.
A idéia de uma árvore milagrosa, capaz de conferir imortalidade, é
outro tema que encontramos repetido nas histórias do Paraíso de
quase todas as culturas. O Avesta dos antigos iranianos conta-nos
que Ahura Mazda, o Deus da Luz, plantou a árvore celestial haoma no
mítico monte Haraiti, declarando: "Quem comer dela torna-se-á
imortal." Na narrativa do Éden no Gênesis, há duas árvores, a Árvore
da Vida e a Árvore da Ciência do Bem e do Mal. Os babilônios
falavam numa Árvore da Vida e numa Árvore da Verdade, ambas
localizadas na entrada oriental do Céu.
No Gênesis, a Árvore da Ciência do Bem e do Mal fica no centro do
Jardim; outras tradições fazem menção de uma "árvore do mundo",
que é o axis mundi, ou pólo do mundo. Os povos altaicos da Ásia
central referem-se a um abeto gigantesco, que tem as raízes
enterradas no umbigo da Terra, e cujos ramos se erguem até o Céu.
Os escandinavos chamavam à árvore cósmica Yggdrasil - o Pilar do
Céu. E na Índia e na China, bem como entre inúmeras tribos norte-
americanas, ouvimos falar num eixo cósmico, variamente descrito
como árvore, poste ou pilar.
A árvore cósmica dos escandlnavos, Yggdrasll, liga os três planos de
existência - Asgard, Midgard e Utgard

Inúmeros povos falam também numa montanha cósmica no centro do


Paraíso. Em algumas tradições - a egípcia, a iraniana e a esquimó,
por exemplo - a montanha substitui a árvore central. Em outras, como
a chinesa, a hindu e a siberiana, a montanha é o sítio no qual se diz
que cresce a árvore. Os textos sumerianos parecem ligar o Paraíso
perdido a uma montanha cósmica - um texto cita "a montanha de
Dilmun, o lugar onde nasce o sol". As lendas da Índia localizam a
origem da humanidade no monte Mero, o lar dos deuses e o lugar em
que o Céu e a terra se encontram. Como ficou dito antes, os antigos
chineses chamavam à montanha cósmica Kwen-lun, descrevendo-a
como "uma estupenda montanha que sustenta o Céu" em cujo cimo
jaz o lar celeste. Os finlandeses dizem que o Primeiro Homem surgiu,
irradiando luz, sobre uma montanha cósmica, sítio do Paraíso original,
fonte dos quatro rios que sustentam o mundo e local da primavera
perpétua. As pirâmides do Egito, da Babilônia e do México foram
interpretadas por Mircea Eliade como representações da montanha
cósmica, cuja imagem se reflete também no monte Olimpo dos
gregos, lar dos deuses.

Árvore da Vida e do Conhecimento, bronze, Índia. No tronco central, a


roda do lótus e do Sol é encimada por uma serpente de cinco
cabeças. As figuras com cabeça de macaco agarram-se ao tronco,
flanqueado na base, por dois touros. Período Vigayanagar, 1336-1546
A Árvore da Vida: desenho de um traje de xamã, de Goldl, no rio
Amur, Sibérla, final do século XIX

As Idades do Mundo
Se a paisagem mágica fixa o Paraíso no espaço, sua posição no
tempo é definida por sua colocação no início de uma série de idades
do mundo. Já observamos as concepções gregas e hindus das idades
ou yugas do mundo, respectivamente; existem também estreitos
paralelos entre outras culturas. Os iranianos, por exemplo, conheciam
quatro idades cósmicas, que, num livro masdeano perdido, o Sudkar-
nask, são mencionadas como as idades de ouro, prata, aço e
"misturada com ferro". Na concepção iraniana, como nas concepções
grega e hindu, cada idade é um passo na deterioração do mundo,
processo esse que está levando para uma purificação apocalíptica
final.
Os maias contavam suas idades do mundo como Sóis consecutivos -
Sol da Água, Sol do Terremoto, Sol do Furacão e Sol do Fogo -
consoante a natureza da catástrofe que encerrava a época. Os hopis
também falavam de quatro mundos - Tokpela, Tokpa, Kuskurza e
Túwaquchi - o primeiro dos quais é descrito em termos paradisíacos.
Segundo sua criação do mundo Tokpela:
As pessoas seguiam suas direções, eram felizes e começaram a
multiplicar-se. Com a prisca sabedoria que lhes fora concedida, viam
na terra uma entidade viva como elas mesmas. Ela era sua mãe; elas
eram feitas da sua carne. ... Em sua sabedoria, elas também
conheciam seu pai em dois aspectos. Ele era o Sol, o deus solar do
seu universo. ... Entretanto, o seu era apenas o rosto através do qual
olhava Taiowa, seu criador. ... Essas entidades universais eram seus
verdadeiros pais, sendo os pais humanos meramente os instrumentos
através dos quais se Ihes manifestava o poder. ... As primeiras
pessoas, portanto, compreendiam o mistério da sua paternidade. Em
sua sabedoria prístina, também compreendiam a própria estrutura e
funções - a natureza do próprio homem. ... As primeiras pessoas não
conheciam a doença. Só depois que o mal entrou no mundo elas
adoeceram do corpo ou da cabeça.
A Árvore do Universo. Da raspagem de um relevo na Câmara das
Oferendas, por Won Yong, China, 168 d.C.

Finalmente, algumas pessoas esqueceram ou deixaram de lado as


leis do Grande Espírito, e o mundo Tokpela foi destruído. O mesmo
destino, tiveram também, o segundo e o terceiro mundos.
No sistema de idades dos lakotas (sioux), o mundo é protegido por um
grande búfalo metafórico, que se posta na porta ocidental do Universo
e retém as águas que periodicamente inundam a Terra. Todo ano o
búfalo perde um pêlo de uma das pernas; em cada idade ele perde
uma perna.
Dois caprídeos alimentam-se da Árvore da Vida. Friso de Gordium,
Frigia, século VI a.C.

Quando o búfalo perde todas as pernas o mundo é inundado e


renovado. A paisagem do Paraíso e as idades do mundo proporcio-
nam um cenário, no espaço e no tempo, para o desenrolar de uma
história. E exatamente porque o cenário da história é um lugar e um
tempo de paz e beleza definitivas, os seus heróis e heroínas - os
antepassados míticos, os cidadãos da Idade de Ouro - são seres
superiores e sábios.
Relevo assírico: dois personagens reais adoram a árvore sagrada.
Acima da árvore vê-se uma representação do deus alado do céu

A Idade dos Milagres e das Maravilhas

Virtualmente de acordo com todos os relatos, os seres humanos na


idade paradisíaca possuíam qualidades e capacidades que só podem
ser qualificadas de milagrosas. Sábios, oniscientes, capazes de
comunicar-se facilmente não só uns com os outros, mas também com
todas as outras coisas vivas, voavam pelo ar e brilhavam com uma luz
visível.
Em contraste com a visão contemporânea, que vê os primeiros
humanos como obtusos e abrutalhados, os mitos os afirmam sábios.
No folclore judaico, descreve-se Adão como tão sábio e tão belo de se
ver que as criaturas da Terra o tomavam, por engano, pelo Criador, e,
juntamente com os anjos do Céu, prostravam-se e cantavam: "Santo,
santo, santo". Diz-se também que Deus revelou todo o futuro a Adão,
bem como a geografia da Terra inteira. Nesses sentidos, Adão se
parecia com Adapa, o Primeiro Homem babilônio, "aparelhado com
vasta inteligência. ... O seu plano de sabedoria era o plano do céu".
Os antigos maias descreviam de maneira semelhante as quatro
Primeiras Pessoas como sábias e oniscientes. De acordo com o Popul
Vuh, o livro maia da ciência e dos costumes, as pessoas da primeira
idade eram tão perceptivas que, quando "erguiam os olhos ... o seu
olhar abarcava tudo; sabiam todas as coisas; nada no céu nem na
terra se escondia delas". Esses seres criados davam graças, dizendo:

"Verdadeiramente, tu nos deste todos os movimentos e todos os


talentos. Recebemos a existência, recebemos uma boca, um rosto;
falamos, compreendemos, pensamos, caminhamos; percebemos e
sabemos igualmente bem o que está longe e o que está perto; vemos
todas as coisas, grandes e pequenas, no céu e sobre a terra. Graças
te sejam dadas, a ti que nos criaste, ó Fazedor, ó Formador!" Mas os
Fazedores não se agradavam de ouvir essas palavras.

Na lenda maia, os Fazedores tinham medo de que as milagrosas


Primeiras Pessoas fossem "como deuses"; por conseguinte, o
Coração do Céu soprou uma nuvem sobre os olhos dos quatro
homens originais, obscurecendo-lhes a visão.
Dizem muitas tradições que os primeiros seres humanos falavam uma
língua só. No Gênesis, como nos mitos dos chins e dos twyans da
Indochina, todas as pessoas compreendiam as falas umas das outras,
até que desmoronou uma torre ou escada construída na tentativa de
alcançar o Céu. Os maias dizem também que as Primeiras Pessoas
"tinham uma única linguagem". Algumas tradições vão mais além,
dando a entender que, no Paraíso, a humanidade era telepática;
segundo os hopis, por exemplo, as Primeiras Pessoas "sentiamse
como se fossem uma só e compreendiam-se uma às outras, sem
falar".
Essa linguagem única parece ter-se estendido também ao reino
animal. Quer se diga que os animais podiam falar como os humanos,
quer se diga que os humanos estendiam a linguagem dos animais, o
resultado, em cada caso, era um estado de confiança e amizade entre
o homem e a fera. Afirmam as lendas judaicas que "em todos os
sentidos, o mundo animal tinha uma relação com Adão diferente da
relação que tinha com os seus descendentes. Não somente conhecia
a linguagem do homem, mas também respeitava a imagem de Deus, e
tinha medo do primeiro casal humano, e tudo isso mudou para o seu
contrário depois da queda do homem".
O contador de histórias grego Esopo escreveu melancolicamente que
"durante o tempo da raça de ouro... os animais tinham fala articulada e
conheciam o uso das palavras. E celebravam reuniões no meio das
florestas; e as pedras falavam, e as agulhas dos pinheiros... e o pardal
dirigia palavras sábias ao lavrador".
A capacidade dos seres humanos e animais de se compreenderem
uns aos outros resultou numa condição em que, no dizer do filósofo
grego do século V a.C., Empédocles, "Todos eram delicados e
obedientes aos homens, assim animais como aves, e ardiam de
agradável afeição uns em relação aos outros.”
No folclore africano, como nos mitos dos gregos antigos, a harmonia
da humanidade com os animais reflete-se na dieta vegetariana do
Primeiro Povo. Que os nossos primeiros antepassados evitavam a
mortandade de animais para comer também está implícito na Bíblia:
Deus diz a Adão e Eva: "Eis que vos tenho dado todas as ervas que
dão semente e se acham na superfície de toda a terra, e todas as
árvores em que há fruto que dê semente; isso vos será para
mantimento" (Gênesis 1:29). Só depois do Dilúvio é que Deus diz a
Noé: "Tudo o que se move, e vive, servos-á para alimento; como vos
dei a erva verde, tudo vos dou agora." Mas porque aos seres humanos
é agora permitido matar e comer os animais, "Pavor e medo de vós
virão sobre todos os animais da terra, e sobre todas as aves dos céus;
tudo o que se move sobre a terra, e todos os peixes do mar." (Gênesis
9:2-3.)
Inúmeras tradições dizem que o Primeiro Povo tinha a capacidade de
voar, ou tinha acesso ao Céu por meio de uma corda, árvores,
montanha, vinha ou escada. Os navajos, por exemplo, chamavam ao
primeiro povo o "Povo do Espírito do Ar":

Elas são pessoas dessemelhantes das pessoas de cinco dedos da


superfície da terra, que vêm ao mundo hoje, vivem sobre a terra por
algum tempo, morrem em idade avançada, e deixam o mundo. Elas
são pessoas que viajam pelo ar e voam, célebres, como o vento.
Pintura navajo com areias coloridas: a Árvore da Vida, com "trilha do
pólen" ou “caminho da bênção" estendendo-se no centro. Do lado
direito esquerdo, o ziguezague masculino do raio; do lado direito, a
curva feminina do arco-íris; em cima, o pássaro da felicidade,
representando a liberdade do vôo

Identicamente, segundo a cosmogonia de Jorai dos povos indígenas


indochineses, os seres humanos originais viviam com o seu Deus, Oi
Adei, e gozavam de uma existência imortal, em que voavam como
pássaros. A epopéia indiana Mahabharata observa que na Krita Yuga
os seres humanos "subiam ao céu e voltavam à terra a seu bel-
prazer". Em alguns mitos, a subida para o céu tornava-se possível
graças ao fogo ou à fumaça, a um arco-íris, a um raio de sol, às
nuvens, a um pássaro fabuloso ou a uma cadeia de flechas. Os
coriaques da Ásia central falam da era mítica do Grande Corvo,
quando todas as pessoas iam facilmente para o Céu; agora, somente
os xamãs podem fazê-Io. Os antigos egípcios utilizavam um pássaro
para simbolizar o espírito humano liberto da servidão do mundo
material, e em todas as culturas e eras o vôo e as asas são simbólicos
da liberdade da condição paradisíaca.
Outra qualidade miraculosa dos primeiros seres humanos era a sua
luminosidade. Consoante a lenda, a carne deles, menos densa do que
a nossa, libertava uma luz visível. Os apócrifos Livros de Adão e Eva -
dos quais sobrevivem algumas versões e cuja maioria data,
aproximadamente, do ano 200 a.C. - dizem que um dos primeiros
efeitos notados pelo casal original, depois da sua expulsão do Jardim,
foi a mudança na substância dos seus corpos: "Quando Adão olhou
para a sua carne, que estava alterada, chorou amargamente, ele e
Eva, pelo que tinham feito.”
Os povos siberianos também acreditavam que os seres humanos que
viveram antes da Queda eram luminosos. Quando o Primeiro Povo
comeu do fruto proibido, o mundo em torno dele escureceu. No crer
dos iranianos antigos, o Primeiro Homem era branco e brilhante; só
mais tarde foi vencido pelos poderes das trevas. Os calmuques da
Ásia Central concordam em que, durante o tempo do Paraíso; o
Primeiro Povo lançava luz. Naqueles dias, não havia Sol nem Lua;
entretanto, estes eram desnecessários, visto que os seres humanos
alumiavam os lugares em que se encontravam com sua radiância
natural. Mas quando comeram do fruto proibido, a sua luz extinguiu-se
de todo, a Natureza ficou escura, e Deus criou o Sol e a Lua para
atenuar a escuridão. Dizem os tibetanos que, nos primeiros dias do
mundo, os deuses o habitavam e cintilavam como estrelas. Depois,
quando comeram uma substância que a terra exsudava, os seus
poderes entraram a declinar. As suas vidas se tornaram mais breves
e, pouco a pouco, eles deslizaram para o egoísmo, a cobiça e a
violência, de modo que os seres, que originalmente haviam sido
deuses, se tornaram humanos, sujeitos ao desejo, ao sofrimento e à
morte.

A Santidade de Caráter

De acordo, outrossim, com todas as narrativas, as capacidades


milagrosas do Primeiro Povo promanavam de um estado santificado
de consciência. Os antepassados míticos eram santos sem
pretensões à santidade, inocentes sem ser tolos ou ingênuos.
Conforme o Mahabharata:

Os santos de antanho, compartindo da natureza de Brahma, não se


viam frustrados nos resultados a que visavam; eram religiosos e
falavam verdade. ... E morriam quando o desejavam, sofriam poucos
aborrecimentos, estavam livres da doença, realizavam todos os seus
objetivos, não suportavam a opressão. Senhores de si e livres da
inveja, contemplavam os deuses e os poderosos profetas.

Os gregos e romanos também davam ênfase à santidade dos


primeiros seres humanos. Em seus Anais, o historiador romano Tácito,
do primeiro século, escreveu que:

Os seres humanos mais antigos viviam sem maus desejos, sem culpa
nem crime, e, por conseguinte, sem penalidades nem compulsões.
Tampouco havia necessidade de recompensas, visto que, pela
inclinação da própria natureza, eles seguiam caminhos virtuosos. Uma
vez que nada se desejasse contra a moral, nada era proibido através
do medo.

Diziam os antigos chineses que, na primeira idade, não havia


necessidade de leis nem de códigos morais, pois estes se relacionam
com o "Caminho do Homem", ao passo que o povo da Idade de Ouro
seguia, ao invés disso, o "Caminho do Céu (T'ien)". Suas ações,
espontâneas, não requeriam esforços, como as da própria Natureza.
O sábio taoísta Chuang Tzu escreveu:

O Homem Verdadeiro dos tempos antigos não se rebelava contra a


necessidade, não se orgulhava da fartura e não planejava os seus
negócios. Sendo assim, não podia cometer erros nem arrepender-se
deles, encontrava-se com o sucesso, mas não fazia disso um
espetáculo. Sendo assim, subia aos lugares altos e não sentia medo,
entrava na água e não se molhava, entrava no fogo e não se
queimava.
Terminada a Idade de Ouro, as pessoas começaram a julgar-se auto-
suficientes, isoladas do divino e separadas, ao mesmo tempo, do
Caminho do Céu e uns dos outros. Os grandes sábios de antanho
renunciaram à sua dignidade real, e deram aos seres humanos o
dúbio privilégio de se governarem. Foi então que os poderes
milagrosos inatos das pessoas começaram a atrofiar-se, e elas se
puseram a viver com os seus sentidos animais e a procurar "muitas
invenções".

A Comunhão com a Divindade: os Pais Divinos

No começo, segundo os mitos de cada continente, toda a humanidade


se achava permanentemente na presença divina e continuamente em
harmonia com a vontade divina. A insistência dos africanos em que, a
princípio, Deus vivia na Terra com o povo, e a lembrança do Tempo
de Sonho dos australianos, quando os Heróis Criadores caminhavam
na terra, repetem a imagem bíblica de Adão e Eva passeando nus e
sem sentir vergonha no Jardim com Deus.
A tradição universal afirma a existência de um grande Ser espiritual,
que algumas culturas identificaram com a vida e a consciência da
própria Terra - Maasauu dos hopis, Geb dos egípcios, Gaia dos
gregos. Outras culturas viam a divindade como um deus do céu
onipotente - Ahura Mazda dos zoroastrianos, Jeová dos hebreus e
Zeus dos gregos. Outras ainda falavam do Princípio criativo universal -
Tao dos chineses, Wakan dos lakotas, Manitu dos algonquinos. Essa
entidade ou princípio é maior do que qualquer humano, assim como o
homem é maior do que uma célula em seu próprio corpo. Desse
Grande, no interior de cuja presença envolvente vivemos e nos
movemos, derivamos nosso próprio ser.
Muitos povos primitivos sustentavam que na Idade de Ouro esse Ser
estava encarnado na pessoa de um Rei do Mundo (o grego Crono, o
chinês Huang-ti, o egípcio Rá) ou numa Divina Antepassada (a
babilônica Ishtar, a egípcia Ísis, a Grande Mãe hindu). Muitas vezes as
divindades masculinas e femininas eram pintadas juntas, como um
casal divino (Ísis e Osíris no Egito, Tammuz e Ishtar na Babilônia, e
Xiva e Parvati na Índia). O casal vivia no jardim ou cidade celeste, no
topo da montanha cósmica, e presidia, com amor e sabedoria
exemplares, os negócios dos seres humanos.
Maat, a deusa da verdade. Baixo-relevo do túmulo de Seti I. Décima
nona dinastia. Museu Arqueológico de Florença

Nos primeiros tempos históricos, os chineses, os japoneses, os


mesopotâmios, os egípcios, os maias e um sem-número de outros
povos encaravam seus monarcas como descendentes diretos dos
Pais do Mundo, que governavam no Paraíso original. Como
documentou o antropólogo A. M. Hocart, os primeiros reis e rainhas
foram, sem exceção, sacerdotes e sacerdotisas. Na China, via-se o
imperador como o elo humano entre o Céu e a Terra; ele estabelecia a
ordem celeste nos negócios humanos. Da mesma forma, os faraós
egípcios que, em alguns casos, eram mulheres - foram considerados
encarnações de Maat. Essa palavra, embora seja amiúde traduzida
por "verdade", carregava um sentido para os egípcios que os
ocidentais modernos poderiam considerar equivalente a "integridade
manifesta". Maat - personificada, às vezes, como deusa - era o termo
usado para descrever o caráter da Criação original, a qualidade da
Idade de Ouro.
Em muitas tradições, o intercâmbio criativo do Céu e da Terra era
simbolicamente representado no hieros gamos, ou casamento divino.
O esposo hindu, até hoje, pode dizer à esposa, citando o Upanichade:
"Eu sou o Céu; tu és a Terra" (dyaur aham, priviti tvam). Por
intermédio do casamento do Rei do Mundo com a Rainha do Céu, as
relações entre o homem e a mulher, a Natureza e o Cosmo
revitalizavam-se, à medida que a força essencial do amor se liberava
através da consciência coletiva da humanidade e se entranhava na
Terra. O casal divino era uma representação ativa e uma
personalização do processo criativo, e o mundo inteiro compartilhava
das correntes de vida expressas através da sua união.

A Imortalidade

Poucas coisas na Natureza parecem mais axiomáticas do que a


inevitabilidade da morte. É notável, portanto, que um dos temas mais
sistematicamente encontrados nos mitos do Paraíso seja o da
imortalidade original dos seres humanos. Dizem-nos os mitos que a
morte, em certo sentido, não é nada natural, senão o resultado do
pecado o da feitiçaria. Dizem que a morte, longe de ser uma parte
necessária da ordem da Natureza, originou-se de um erro, ou de um
crime dos antepassados na Primeira Idade. Não fora esse crime ou
equívoco primordial, e todos seríamos imortais.
Nos mitos e no folclore de quase todas as culturas encontramos
exemplos dessa crença. A Idade de Yima dos iranianos, como vimos,
era um tempo em que "os homens nunca olhavam para a morte", e
"pai e filho caminhavam juntos, e cada qual parecia não ter mais de
quinze anos". De idêntica maneira, diziam os egípcios que nem a
morte nem a doença eram conhecidas durante o Tempo de Rá. Os
nativos de Vanuatu (Novas Hébridas) acreditam que, no começo dos
tempos, as pessoas não morriam, mas lançavam fora a pele, como as
cobras e, assim, renovavam a juventude. Quase todas as tribos da
África central e do sul dizem que as pessoas foram imortais até
ofenderem a Deus e obrigarem-no a recolher-se ao mundo do céu.
Em mitos nos quais a imortalidade não se indica explicitamente, está
implicada alguma coisa que lhe é próxima. Para os gregos, a Idade de
Ouro era um tempo em que não havia doença nem velhice;
igualmente, de acordo com os hindus, a Krita Yuga era um tempo
"sem doença; não havia diminuição com o passar dos anos. ...
Naqueles tempos, os homens viviam quanto queriam viver, e não
tinham medo do [deus da Morte]." Os calmuques da Ásia central
diziam que, no princípio, os seres humanos não eram imortais, mas
podiam viver, pelo menos, uma época do mundo de 80.000 anos; a
pouco e pouco, foi-se-Ihes reduzindo a longevidade, de modo que,
atualmente, a perspectiva de vida deles é de apenas 60 anos. A Bíblia
e as listas dos antigos reis da Babilônia registram ambas a
longevidade decrescente dos seres humanos depois da Queda.
Se os povos antigos consideravam a morte desnatural, inclinavam-se
a aceitar idéias similares a respeito do seu antípoda biológico, o
nascimento. Isso talvez ocorresse em resposta a um problema prático:
Se não havia morte durante a Primeira Idade, o que impediria a
população de aumentar de maneira incontrolável? Mas, fosse qual
fosse a razão - quer se tratasse de uma invenção baseada na
necessidade lógica, quer se tratasse da lembrança de alguma
condição que em outro tempo realmente prevalecera - os antigos
ligavam, não raro, a origem da morte à introdução da reprodução e do
sexo em sua forma presente.
Entre as tribos africanas, por exemplo, existe a idéia de que a
reprodução da espécie humana é exigida pela morte. Antes de
aparecer a morte, os seres humanos se reproduziam de maneira
diferente, se é que se reproduziam. De acordo com vários midrashim
(comentários sobre o Antigo Testamento, compostos entre o quarto e
o quinto séculos) judaicos, Adão, no começo, foi andrógino - homem
do lado esquerdo, mulher do lado direito. Ao que depois, Deus o
dividiu em duas metades. Os primitivos gnósticos cristãos não
somente asseveraram que o Primeiro Homem era andrógino, mas
ensinavam ao mesmo tempo que a reunião dos princípios masculino e
feminino é a essência da realização mística. Platão também
descreveu o antepassado primevo da humanidade como um ser
hermafrodita, esférico: no Banquete, o mito do andrógino divino se
funde imperceptivelmente com o do Ovo Cósmico.
A expulsão do Paraíso, de Giovanni di Paolo (aproximadamente
1445)

Paraísos Celestes e Terrenos

Em inúmeras culturas, a descrição da Idade de Ouro original é posta


exatamente em paralelo com a história do Outro Mundo, para onde as
almas viajam após a morte. Usa-se freqüentemente a mesma palavra
para referir-se a ambos - como é o caso em inglês, em que a palavra
paradise (paraíso) tanto se refere ao Éden quanto ao Céu. Na morada
dos espíritos encontramos um palácio, ou jardim, semeado de jóias e
cristais. Podemos encontrar, segundo o mito védico e o iraniano, uma
montanha sagrada, e árvores carregadas de frutas preciosas. No
Paraíso celeste não há tempestades, e o povo ali não sente fome nem
sede. Tampouco envelhece: todos parecem perpetuamente jovens. O
Midrash Konen dos judeus diz-nos até que a Árvore da Vida cresce
em Gan'Eden, o mundo além da morte.
A existência e a natureza do Paraíso do outro mundo constitui um dos
grandes temas do mito e do folclore do mundo. Os aborígines da
Austrália central chamam o Outro Mundo de Dowie; não está em
algum lugar distante do espaço, mas está em torno de nós, e
podemos estabelecer contato com ele a qualquer momento, em
condições apropriadas. Os polinésios conheciam o Outro Mundo como
Pulotu, reino mágico no meio do qual crescia uma árvore imensa,
cujas folhas satisfaziam a todas as necessidades. Depois da morte
fisica, reza a tradição, um rio conduzia o espírito, flutuando, até
PuIotu:

Todos flutuavam juntos, os bens e os malfavorecidos, os moços e os


velhos, os sadios e os doentes, os chefes e o vulgo; não deviam olhar
nem para a direita, nem para a esquerda, nem tentar alcançar o outro
lado, e tampouco deviam olhar para trás. Semivivos, flutuavam até
atingir Pulotu, onde se banhavam nas águas de Vaiola, quando todos
se tornavam vivazes, brilhantes e vigorosos; as enfermidades se
desvaneciam, e até os idosos voltavam a ser jovens. Tudo acontecia
em Pulotu de maneira muito parecida com o que acontecia no mundo
da vida, exceto que, aqui, os seus corpos, singularmente voláteis,
eram capazes de subir à noite, tornando-se centelhas luminosas, ou
vapores, revisitando os lares anteriores, mas recolhendo-se de novo,
mal aurorescia, ao mato ou a Pulotu.

O Paraíso original na Terra era uma materialização do Paraíso que


agora só existe além dos portais da morte. Analogamente,
considerava-se o Elísio do Outro Mundo dos gregos a réplica
espiritualizada da condição outrora prevalecente no mundo físico. Em
seu relato sobre o fim da Idade de Ouro, Hesíodo nos conta que Deus,
depois de haver destronado Crono, baniu-o para as Ilhas dos
Abençoados (o Outro Mundo) a fim de reinar sobre os heróis. Os mitos
africanos transmitem essencialmente a mesma mensagem: o Paraíso
não acabou: antes foi transposto para um lugar ou dimensão só
acessível post mortem.

A Ponte do Arco-íris

Consoante a tradição universal, o Paraíso terrestre original e o ainda


existente Paraíso do Outro Mundo estavam, no início, unidos ou, de
qualquer maneira, em estreita proximidade e comunicação. Os meios
de ligação são descritos de várias formas em culturas diferentes - do
modo mais vigoroso, talvez, como um arco-íris. Nas tradições do
Japão, da Austrália e da Mesopotâmia, via-se o arco-íris como o
remanescente de uma ponte que outrora existiu entre o Céu e a Terra,
acessível a todas as pessoas. As sete cores do arco-íris eram os sete
céus da religião hindu, mesopotâmica e judaica. Os centro-asiáticos
decoravam os tambores xamânicos com vários arco-íris, que
simbolizavam a jornada do xamã ao Outro Mundo. De idêntica
maneira, os sete níveis do zigurate (pirâmide com degraus) babilônico
eram pintados com as sete cores do arco-íris, e o sacerdote, ao
escalar-se os andares, subia simbolicamente ao mundo cósmico dos
deuses. A ponte do mundo primordial é alhures lembrada como
escada ou corda. De acordo com as tradições tibetanas pré-budistas,
chamadas Bon, existia originalmente uma corda que atava a Terra ao
Céu e era usada pelos deuses para descer e vir encontrar-se com os
seres humanos. Dizia-se que o primeiro rei do Tibete descera do Céu
por meio de uma corda, e que os primeiros reis tibetanos não
morreram, mas tornaram a subir ao Céu. Depois da Queda e da vinda
da morte, quebrou-se o vínculo entre o Céu e a Terra. Depois que a
corda foi cortada, só os espíritos podiam subir ao Céu. Em muitas
práticas mágicas tibetanas, especialmente as de Bon, as pessoas
tentam, ainda hoje, elevar-se por meio de uma corda mágica e
acreditam que, por ocasião da morte, os piedosos são puxados para o
Céu por uma corda invisível. A "corda mágica", que aparece nos mitos
de culturas inumeráveis, pode ser parente da "corda de prata" bíblica.
Segundo o Eclesiastes 12:6, esse elo etéreo entre o corpo espiritual e
o físico só se desata com a morte.
Desde que os antepassados originais eram todos capazes de viajar
entre o Céu e a Terra, à vontade, o primeiro sinal de autoridade
espiritual para santos, profetas e xamãs, em toda a história, tem sido a
sua capacidade de emular o Primeiro Povo visitando o Outro Mundo.
As histórias da subida de Moisés ao monte Sinai para falar com Jeová,
a transfiguração de Jesus numa "alta montanha" e a iluminação de
Buda debaixo da árvore Bodhi exemplificam o tema, amplamente
difundido, da visita do Ungido ao Céu.
Povos antigos e primitivos preocupavam-se, de maneira vital, não
apenas com a existência do Outro Mundo, mas também com a relação
entre aquela dimensão e a nossa, com os meios de conexão entre os
dois mundos, e com as implicações dessas relações e conexões para
os processos do nascimento e da morte. Acreditavam eles,
universalmente, que a perda da imortalidade ocorreu mercê de uma
ruptura na comunicação entre o Céu e a Terra. Como resultado de tal
separação, de ordinário só temos consciência hoje de um plano de
existência, o mundo físico dos sentidos. Sobre a natureza do Outro
Mundo, só nos chegaram relatos esporádicos, de segunda mão, de
místicos e xamãs. Para que se possa recuperar o estado paradisíaco,
será preciso que o Céu e a Terra voltem a unir-se.

Continentes Perdidos

A imagem do Paraíso existente numa ilha ou continente perdido talvez


não esteja tão difundida quanto os outros temas míticos que
examinamos neste capítulo, mas, sem embargo disso, é tão comum -
e tão intrigante - que assegura a nossa atenção.
No Timeu e no Criton, Platão transmite o que ele descreve como uma
tradição antiga relativa ao império perdido de uma ilha paradisíaca - a
Atlântida. Platão cita Sócrates, "o mais sábio dos Sete Sábios", que
diz, estribado na autoridade de sacerdotes egípcios, que os
deslocamentos dos corpos celestes produzem catástrofes na Terra, a
intervalos recorrentes, por meio de inundações ou do fogo. Subsiste,
costumeiramente, um pequeno remanescente de seres humanos, que
reaprendem, aos poucos, as artes da civilização. Na descrição da
civilização de Platão, que precedeu a destruição mais recente,
ouvimos os tons e a cadência característicos - embora talvez se trate
apenas de um eco - do primitivo canto de Hesíodo sobre a raça de
ouro original:

Por muitas gerações, enquanto durou neles a natureza divina, eles


foram obedientes às leis, e bem dispostos em relação aos deuses,
que eram seus parentes; pois possuíam espíritos ilustres e grandes
em todos os sentidos, que uniam a delicadeza à sabedoria nos vários
acasos da vida. ... Desprezavam tudo, exceto a virtude, pouco
estimando a sua atual condição de vida, e carregando sem dificuldade
a carga de ouro e de outras propriedades que possuíam; nem se
embriagavam com o luxo, nem as riquezas os privavam do domínio de
si mesmos, impossibilitando, por esse modo, a sua queda. Pelo
contrário, na sobriedade da mente, viam com clareza que todas as
boas coisas são aumentadas pela boa vontade mútua combinada com
a virtude, ao passo que o amor a esses bens e a luta por eles
destroem não somente os próprios bens, mas também a virtude com
eIes.
Mas o povo da Atlântida degenerou. A tendência moral divina, que
fazia parte do seu caráter, foi-se diluindo cada vez mais, e a natureza
humana prevaleceu. Aos poucos, tornaram-se avaros e imperialistas
da espécie mais ambiciosa. A riqueza e o luxo dos atlantes foram a
sua ruína: os deuses mandaram um dilúvio cataclísmico, e, no espaço
de um dia e uma noite, o reino ilhéu submergiu e perdeu-se debaixo
das águas.

Existem diversas tradições européias de uma ilha perdida a oeste -


entre elas, a de Avalon, dos galeses, a Antilia portuguesa, e a Ilha de
St. Brendan (comum a sagas de muitas línguas, apareceu em mapas
até o século XVIII). Mas também encontramos a idéia de uma pátria
paradisíaca, destruída por cataclismas, nos mitos de culturas
geograficamente muito distantes da Europa e dos países
mediterrâneos. Os maias e os hopis mantinham tradições bem
preservadas de um lar paradisíaco original, numa ilha ou continente
que afundara. Quando Hernán Cortés desembarcou no México, o rei
asteca Montezuma informou-o de que os antepassados dos nativos
tinham vindo de um sítio distante, chamado Aztlan (que quer dizer
"cercado pelas águas"), onde havia uma alta montanha e um jardim
habitado pelos deuses. O livro do profeta Chilam Balam (um dos
poucos textos maias subsistentes) refere-se ao primeiro povo do
Iucatão, conhecido pelo nome de Ah-Canule ("Povo da Serpente"),
que chegara em barcos, vindos do leste. O Popul Vuh também lhes
descreve a jornada:

Então chegaram; prepararam-se para partir e deixaram o Oriente. ...


Cada uma das tribos continuava a aparelhar-se para ver a estrela que
era arauto do sol (Vênus). Traziam no coração o sinal da aurora
quando vieram do Oriente, e, com a mesma esperança, partiram de lá,
daquela grande distância, segundo dizem agora os seus cânticos.

Os hopis chamavam ao seu lar original Muia, ilha do Pacífico que os


antepassados tinham deixado depois de alguma catástrofe da
Natureza. Os próprios ilhéus do Pacífico têm histórias de um lar numa
ilha paradisíaca perdida. Ao passo que os habitantes de Samoa dão à
sua terra natal o nome de Mu, a maioria dos povos polinésios se
lembra de um lugar chamado Hava-Iki, que também se perdeu num
cataclisma. Consoante os mitos da criação do Havaí (nome que deriva
de Hava-Iki), Kane, o Criador, deu a Kumuhonua, o primeiro homem,
um belo jardim para viver. O jardim, chamado Kalana-i-hauola,
situava-se na terra de Kahikihonua-kele ("a terra que foi embora").
Kane modelou uma esposa para Kumuhonua, tirando-a do seu lado
direito; deu-se-Ihe o nome de Ke-ola-Ku-honua, ou Lalo-hana. No
jardim paradisíaco, eles plantaram uma árvore sagrada, cujas maçãs
causavam a morte se comidas por estrangeiros.
Em outra tradição, descrevem-se os deuses Kane e Kanaloa como se
vivessem em corpos humanos, num Paraíso localizado numa das
doze ilhas míticas que se supunha existissem ao largo do grupo
havaiano. Essas ilhas são freqüentemente mencionadas em antigos
cantos e histórias, que datam de antes da última migração Paao do
Taiti. Hoje em dia, chamam-se "ilhas perdidas" ou "ilhas escondidas
pelos deuses". São consideradas sagradas e não se deve apontar
para elas.
Em outra história antiga, chamava-se à terra escondida de Kane,
Paliuli. Mais uma vez, é o Paraíso original, onde foram afeiçoados os
dois primeiros seres humanos, e onde viveram no começo. De acordo
com os nativos, Paliuli está bem no fundo dos mares. O Paraíso
perdeu-se debaixo das ondas.
Neste capítulo notamos os traços característicos freqüentemente
atribuídos ao Paraíso original, ou Idade de Ouro. Cumpre-nos
enfatizar que nem todo mito contém todos esses elementos.
Entretanto, existe um tema – até agora apenas tocado - que se pode,
com segurança, denominar universal: em nenhuma tradição a Idade
de Ouro dura para sempre. No dizer de todos os povos, o Paraíso
conheceu um fim trágico. E é essa calamidade, cujas implicações
atormentaram a raça humana em todo o correr da história, que
examinaremos a seguir.

CAPÍTULO 5
A História Mais Triste
Deus não fez a morte, e ele não se deleita na morte dos vivos; as
forças geradoras do mundo são sadias e nelas não há veneno
destrutivo.
A Sabedoria de SaIomão, 1:13, 14

Que é o mal? É o sofrimento, ou a causa do sofrimento?


Em qualquer um dos casos, pode-se dizer que o mal é inerente à
Natureza - à rapinagem, à decadência, à doença, à fome. Não
obstante, em todas as culturas e idades as pessoas adotaram a
crença de que no mundo humano existe outra espécie de mal,
profundamente desnatural. Podemos procurar na Natureza a origem
das tendências humanas para o desperdício, a guerra, a cobiça e os
impulsos turbulentos para possuir, dominar e matar, mas nenhuma
analogia clara se sugere. Os males da Natureza tendem a existir em
equilíbrio, servindo a pilhagem e a fome para mitigar o excesso de
população, ao passo que a versão do mal, aparentemente, não
conhece limites. Desde os tempos mais recuados, os seres humanos
acreditaram existir em si mesmos uma qualidade que os mantêm
apartados dos animais - uma qualidade que se manifesta como um
sentido de alienação e insuficiência, e como uma capacidade anormal
para a destruição e a crueldade.
Insistiam os povos antigos em que o mal, neste último sentido, nem
sempre existiu, e atribuíram-lhe uma causa específica. Em seus mitos,
o mal, que é peculiar à humanidade, se descreve como resultante da
Queda - o trágico evento que acabou com a Idade de Ouro. Diziam
eles que a natureza humana não é natural, porque foi deformada por
algum erro ou malogro fundamental, que se perpetuou geração após
geração.
Toda religião começa com o reconhecimento de que a consciência
humana foi separada da Fonte divina, de que se perdeu um sentido
anterior de unidade com a base do Ser, e de que somente por um
processo de purificação e transcendência podemos ser religados à
dimensão sagrada. Seja a culpa judaico-cristã pelo pecado de Adão e
Eva no Jardim, seja a nostalgia taoísta do tempo em que o Caminho
do Céu ainda não fora corrompido pelos caminhos do homem, seja a
tristeza dos africanos vendo os animais traídos pela humanidade, em
toda a parte, na religião e no mito, há um reconhecimento de que nos
afastamos de um estado original de sábia inocência e só poderemos
voltar a ele através da resolução de alguma profunda discórdia
interna.
O que teria causado a Queda? Por que e como foi a Idade da
Inocência levada ao fim? Essas perguntas deixaram perplexos
teólogos e filósofos durante milênios, e não podemos esperar
responder a elas de maneira definitiva em poucas páginas, embora
devamos, pelo menos, formulá-Ias e examiná-Ias. Os próprios mitos
não apresentam uma explanação direta, unificada; antes, ao
descrever o que se diria uma mudança na polaridade fundamental da
consciência humana, empregam uma variedade de imagens que
parecem metáforas de algum acontecimento subjetivo, espiritual.
Neste capítulo investigaremos a causa da Queda - descrita
variadamente como desobediência, como a ingestão de um fruto
proibido, e como amnésia espiritual - e os seus efeitos tanto sobre o
modo de ser humano quanto sobre a própria estrutura do mundo.

A Mudança de Caráter

Segundo quase todas as tradições, a Queda ocorreu em virtude de um


aviltamento da qualidade do caráter manifestado pelos seres
humanos. A natureza do processo de decadência é descrita de várias
maneiras. Se quisermos penetrar o âmago da história, talvez seja
melhor começar com as versões mais simples e mais facilmente
compreendidas antes de passar às mais enigmáticas. O mito africano
seguinte nos proporciona um ponto de partida adequado e pitoresco.
De acordo com os barotses da Zâmbia, o Criador, Nyambi, vivia
outrora na Terra com a esposa, Nasilele. Nyambi criara peixes, aves e
animais, e o mundo estava pleno de vida. Mas uma criatura de
Nyambi diferia de todas as outras: Kamonu, o primeiro homem.
Kamonu era especial por ser capaz de imitar tudo o que Nyambi fazia.
Se Nyambi estivesse fazendo alguma coisa de madeira, Kamonu fazia
o mesmo. Se Nyambi estivesse criando alguma coisa de ferro,
Kamonu trabalhava com ferro também.
Esse estado de coisas continuou por algum tempo, servindo Kamonu
de aprendiz de Nyambi, até que um dia Kamonu forjou uma lança e
matou um antílope. Apesar do protesto de Nyambi, Kamonu continuou
matando; percebendo que havia perdido o domínio da sua criatura, o
Criador zangou-se. "Homem, você está agindo mal", disse Nyambi a
Kamonu. "Estes são seus irmãos. Não os mate." Nyambi descobriu
que já não podia confiar em Kamonu, e principiou a ficar com medo
dele.
Nyambi levou Kamonu para fora de Litoma, seu reino sagrado, mas
Kamonu suplicou-lhe que o deixasse voltar. Nyambi deu ao homem
um jardim para tratar, esperando, dessa maneira, mantê-Io feliz e fora
de malfeitos. Mas quando o búfalo entrou, à noite, no jardim de
Kamonu, este o atingiu com a lança, e quando outros animais
chegaram perto, matou-os também. Volvido, porém, algum tempo,
Kamonu descobriu que todas as coisas que amava o estavam
deixando: o filho, o cão e um cântaro (sua única propriedade) tinham
todos desaparecido. Dirigiu-se ao reino sagrado de Nyambi para
relatar o que acontecera, e ali encontrou o filho, o cão e o cântaro que
tinham fugido de Kamonu e regressado ao seu verdadeiro lar. Kamonu
pediu a Nyambi que lhe desse poderes mágicos para poder conservar
o que era seu implicando com isso que não tencionava mudar seu
comportamento assassino, a verdadeira causa das suas perdas.
Nyambi recusou.
Em seguida, Nyambi reuniu os conselheiros para, juntos, discutirem o
assunto. "Kamonu conhece bem demais o caminho para este lugar.
Não teremos paz. Que faremos?" Nyambi tentou fugir de Kamonu
mudando-se, primeiro, para uma ilha, e, depois, para o pico de uma
alta montanha. Nesse intervalo, os descendentes de Kamonu se
espalharam pela Terra, matando os animais e criando um barulho
pavoroso.
Nyambi decidiu afastar-se de todo em todo da Terra, e mandou
pássaros à procura de um novo sítio para Litoma. Os pássaros não
vingaram encontrar um lugar adequado. Mas a Aranha descobriu uma
morada no céu para Nyambi e sua corte, e teceu um fio, que se
estendia da Terra ao novo lar celeste. Depois que Nyambi e toda a
sua corte subiram pelo fio, Nyambi cegou a Aranha, para que ela
nunca pudesse encontrar o caminho para Litoma outra vez.
Nesse ínterim, Kamonu e seus descendentes resolveram construir
uma torre para alcançar Litoma. Abateram muitas árvores a fim de
aproveitar os troncos e construíram a sua estrutura cada vez mais
alta. Mas esta, finalmente, ficou muito pesada no topo e desmoronou e
Kamonu nunca mais achou o caminho da morada de Nyambi. Mas
todas as manhãs, quando o Sol se levantava, Kamonu saudava-o,
dizendo: "Aqui está Nyambi." À noite, ele e seus descendentes
saudavam igualmente a Luz, chamando-Ihe Nasilele, esposa de
Nyambi.
A história de Nyambi e Kamonu, como quase todos os mitos africanos
da Queda, fala do desaparecimento de Deus no céu por causa da
depravação humana. Dizem os ngobes que, no princípio, o Criador
vivia na Terra, entre os seres humanos, mas, em razão da inclinação
destes últimos para a briga, deixou-os falando sozinhos. Ninguém
tornou a vê-Io depois disso, de modo que as pessoas não sabem
como ele é. Em Angola, Nzambi é "o nome de um Deus grande,
invisível, que fez todas as coisas e controla todas as coisas. ... Diz a
tradição que os homens o ofenderam, e ele retirou deles a sua
afeição".
De idêntica maneira, conforme os mitos dos bantos e yaos da África
equatorial do Sul, Deus, há muito tempo, se afastou em virtude de
crueldade dos humanos. Dizem os bantos que, depois de haverem
sido criados o primeiro homem e a primeira mulher por Mulungu:
Todos os animais ficaram olhando, para ver o que as pessoas fariam.
Estas esfregaram duas varetas uma na outra, de um jeito especial, e
fizeram fogo. O fogo propagou-se pelo mato e rugiu através da
floresta, e os animais tiveram de correr para escapar às chamas.
As pessoas agarraram um búfalo, mataram-no, assaram-no no fogo e
comeram-no. Depois, no dia seguinte, fizeram a mesma coisa. Todos
os dias, acendiam fogueiras, matavam algum animal e comiam-no.
"Estão queimando tudo!" disse Mulungu. "Estão matando o meu povo!”
Todas as feras correram para a floresta e ali ficaram, o mais longe que
puderam da humanidade. ...
"Vou-me embora!" disse Mulungu.

Desse modo, segundo os africanos, a crueldade das pessoas, a sua


mania de brigar e a sua insensibilidade para com a Natureza
causaram a Queda.
Os nativos americanos concordam. Os iuroques da costa da Califórnia
do norte dizem que, quando a Terra era nova, habitavam-na os
Imortais, seres do tempo do mito, que viviam de acordo com a lei
cósmica. Quando se criaram as pessoas, os Imortais se retiraram:
"Enquanto o mundo propriamente dito permanecia perfeito e belo, os
seres humanos tiveram a capacidade de violar e romper essa beleza,
e deitar por terra o equilíbrio da Criação, principalmente através da
sua cupidez." Da mesma forma, os hopis dizem que, muito depois do
tempo da criação, as pessoas começaram a afastar-se das instruções
do Grande Espírito:

[Elas] começaram a dividir-se e a apartar-se uma das outras - as de


raças e línguas diferentes, as que se lembravam do plano da criação e
as que não se lembravam dele. Surgiu entre elas um ser formoso. ...
em forma de serpente com uma cabeçorra, que as conduziu para mais
longe ainda umas das outras e da sua sabedoria prístina. Elas
passaram a desconfiar de tudo e de todas e a acusarem-se
injustamente, até que se tornaram bravas e belicosas e se puseram a
lutar entre si.
Os povos índicos descrevem a fatídica mudança no caráter humano,
dando realce à perda da santidade do Primeiro Povo:

Na Trela Yuga [a segunda idade] tiveram início os sacrifícios, e. ... a


virtude diminuiu um quarto. O gênero humano buscou a verdade e
celebrou cerimônias religiosas; os homens obtiveram o que desejavam
dando e fazendo.
Na Dwapara Yuga. ... a religião diminuiu a metade. ... A Mente
reduziu-se, a Verdade declinou, e chegaram o desejo, a doença e as
calamidades; por causa disso, os homens tiveram de sofrer
penalidades. Foi uma Idade decadente, à conta do prevalecimento do
pecado. .
Na Kali [atual] Yuga. ... subsiste apenas um quarto de virtude. O
mundo está aflito, os homens voltam-se para a maldade; sobrevem a
moléstia; todas as criaturas degeneram; logram-se efeitos contrários
celebrando ritos sagrados; a mudança passa por todas as coisas.

O poeta grego Hesíodo, em sua enumeração das idades do mundo,


descreveu a degeneração da humanidade em termos parecidos:

Então, os que moravam no Olimpo fizeram uma segunda geração. ...


Eles não conseguiam deixar de pecar, nem de se agravarem uns aos
outros, nem se conformavam com servir aos imortais. ... Pois agora,
na verdade, é uma raça de ferro, e os homens nunca descansam da
labuta e da tristeza durante o dia, nem de perecer à noite.
Mais tarde, os filósofos gregos e romanos discutiram minudentemente
a perda da auto-suficiência e da paz de espírito sofrida pelos seres
humanos após o fim da Idade de Ouro. Em seu elogio de Diógenes,
Máximo Tído escreveu:

Buscando, assim, o prazer, caíram na miséria. Quando campeavam


riquezas, sempre consideravam o que já tinham como pobreza em
comparação com o que lhes faltava, e suas aquisições nunca
chegavam à altura das suas ambições. Temendo a pobreza, eram
incapazes de contentar-se com a suficiência; temendo a morte, não
cuidavam da vida; procurando evitar a doença, nunca se abstinham
das coisas que a causavam. Cheios de suspeitas mútuas,
maquinavam contra a maioria dos seus semelhantes. ... Odiavam a
tirania e eles mesmos desejavam tiranizar; censuravam os atos vis,
mas não se abstinham deles. Admiravam a boa fortuna, mas não a
virtude; amiseravam-se da desgraça, mas não evitavam a
desonestidade.
Quando a sorte estava do seu lado, eram audazes, mas quando ela se
voltava contra eles, desesperavam-se. Declaravam que os mortos são
felizes, mas agarravam-se à vida; por outro lado, odiavam-na, mas
tinham medo de morrer. Denunciavam as guerras e eram incapazes
de viver em paz. Abjetos na escravidão, eram insolentes na liberdade.
Sob a democracia mostravam-se turbulentos, sob a tirania, tímidos.
Desejavam filhos, mas descuravam deles quando os tinham. Rezavam
para os deuses, como para seres capazes de assisti-los, e os
desprezavam, como incapazes de punir; ou ainda, temiam-nos como
poderes vingadores e juravam em falso, como se os deuses não
existissem.

Em resumo, quase todas as tradições atribuem a perda do Paraíso ao


aparecimento de alguma trágica aberração na atitude ou no
comportamento dos seres humanos. Ao passo que, na Idade de Ouro,
"falavam a verdade" e eram "senhoras de si", vivendo "sem maus
desejos, sem culpa nem crime", agora sucumbiam à suspeita, ao
medo, à cupidez, à desconfiança e à violência.
Mas como se verificou a mudança de caráter? Se bem dessem a
entender que estavam descrevendo um acontecimento histórico, as
descrições da causa da Queda, dos antigos, eram quase sempre
forjadas em metáforas e alegorias. Como já se observou, entre essas
histórias, os temas que mais freqüentemente se encontram são o da
desobediência, o da ingestão de um fruto proibido e o do
esquecimento (amnésia espiritual).
Árvore enlaçada por uma cobra. De um relevo tírio. Atenas, Museu
Nacional

A Desobediência

A idéia de que o primeiro povo cometeu um crime de desobediência é


reiterada em inúmeros mitos. Na história do Éden, no Gênesis, o
Senhor adverte Adão e Eva para não comerem da árvore da Ciência
do Bem e do Mal. Mas a serpente, "mais sutil do que qualquer outro
animal do campo", tenta Eva, dizendo: "É certo que não morrereis,
porque Deus sabe que, no dia em que dele comerdes, se vos abrirão
os olhos, e sereis como deuses.”
Vendo a mulher que a árvore era boa para se comer, agradável aos
olhos, e desejável para dar entendimento, tomou um fruto e comeu, e
deu um também ao marido, e ele comeu. Abriram-se, então, os olhos
de ambos; e, percebendo que estavam nus, coseram folhas de
figueira, e fizeram cintas para si (Gênesis 3:6-7).
Os antigos gregos tinham duas histórias da Queda. A primeira estava
contida na tradição das idades do mundo; na segunda, a origem do
mal era atribuída às ações de uma mulher mortal. Pandora (cujo nome
vem de duas palavras gregas, que significam "tudo" e "dádiva")
recebeu dádivas de todos os deuses, entre as quais se incluíam não
só a beleza e a graça, como também a capacidade de persuasão e de
impostura. No tempo dela, os seres humanos levavam vidas felizes,
pois todas as pragas e problemas tinham sido enfiados dentro de um
jarro pelos deuses previdentes. Mas quando Pandora chegou à Terra,
esquadrinhou tudo, e, finalmente, acabou dando com o jarro. Embora
a tivessem avisado de que não devia abri-Io, deixou que a curiosidade
levasse a melhor, e, erguendo a tampa, deixou cair inadvertidamente,
uma horda de pragas sobre a humanidade.
No mito seguinte, das Ilhas Gilbert, do Pacífico sul, a desobediência
relaciona-se com o sexo.
Nakaa, o juiz primordial, governava até os grandes deuses, os
espíritos da Árvore de Matang. Vivia debaixo de uma montanha na
terra paradisíaca de Matang, onde plantou dois pândanos, um no
norte para os homens, outro no sul, para as mulheres, e todas as
pessoas viviam, cada qual debaixo da sua própria árvore, imortais e
eternas.
Um dia, Nakaa reuniu todos eles para dizer-Ihes que ia embarcar
numa viagem. Ordenou-Ihes que se dispersassem de novo, voltando
cada qual para a sua própria árvore, o que eles fizeram, mas a vista
dos outros os perturbara, e, finalmente, os homens juntaram-se às
mulheres debaixo da árvore, e por isso os seus cabelos começaram a
agrisalhar-se. Quando Nakaa regressou e viu o sinal da desobediência
deles, expulsou-os para sempre de Matang.
Nakaa deixou o povo escolher uma das árvores para levá-Ia consigo.
Eles escolheram nesciamente, de modo que a árvore com que
partiram tornou-se para eles a árvore da morte, enquanto a árvore da
vida ficava com Nakaa em Matang. Ele disse-Ihes que os seus
fantasmas o encontrariam na junção das terras dos vivos e dos mortos
e seriam julgados por ele. Nakaa arrancou as folhas da árvore da
morte, embrulhou nelas toda a sorte de enfermidades, e arremessou-
as contra o povo quando este fugia de Matang.
O etnólogo Paul Schebesta relata a seguinte tradição da Queda
mantida pelos pigmeus bambutis do Zaire, em que não se especifica a
natureza da desobediência:
O "paraíso" em que Deus primeiro colocou o homem era a floresta
primeva. Ele colocou-a à disposição do homem, juntamente com tudo
o que ela produzia. Deus, entretanto, tinha dado também um
mandamento, de cujo cumprimento ou descumprimento dependia o
destino ulterior do homem, e ameaçara aplicar-lhe a punição mais
severa se o homem desobedecesse. A criação inteira formaria uma
liga contra o súdito rebelde. Animais, plantas e elementos, que tinham
sido, até então, amigos e servos do homem, tornar-se-iam seus
inimigos. Trabalhos e miséria, doença e morte seguiriam na esteira
dessa rebeldia.
Neste, como em tantos outros exemplos, o castigo - a morte, a
necessidade de trabalhar e a perda da presença divina parece
desproporcionado ao crime. Por um ato cuja natureza é obscura, ou
que aparentemente equivale à incursão de uma criança ao prato de
doces, toda a humanidade é condenada ao sofrimento, geração após
geração. Entretanto, como é típico das histórias de desobediência,
aqui se considera o castigo merecido. No dizer de Schebesta:
Os mitos dos pigmeus não contêm expressões que indiquem
ressentimento contra Deus por ter decretado tal punição pela
transgressão da sua lei. As conseqüências, portanto, devem ter sido
havidas por merecidas, e o mandamento original há de ter sido uma
questão de grande importância.
Tanto o mandamento divino quanto a desobediência humana, por
mais fatidicamente significativos que sejam, ainda são ambíguos. À
medida, porém, que examinamos outras imagens comuns nos mitos
da Queda, começamos a perceber a natureza do crime.

O Fruto Proibido

Muitos mitos descrevem a desobediência original como do fruto de


uma árvore sagrada. O exemplo mais conhecido desse tema é o relato
hebraico, em que Adão e Eva desobedecem a Jeová ao partilharem
do fruto da Árvore da Ciência do Bem e do Mal. Em outros lugares,
todavia, vamos encontrar paralelos espantosamente próximos da
história do Gênesis. Os massais da Tanzânia dizem que o primeiro
homem desceu do Céu, ao mesmo tempo que sua esposa emergiu da
Terra. Foi-Ihes vedado comerem de certa árvore, mas a mulher se viu
tentada a fazê-lo por uma serpente. Como castigo, ela e o marido
foram obrigados a deixar o Paraíso.
Impressão do chamado Selo da Tentação (2500 a.C.). À esquerda, a
deusa sumeriana Gala Bau, que tem atrás de si a serpente,
representa o poder da Grande Mãe. À direita da árvore sagrada está
sentado o filho-amante Dumuzi, o sempre-morrente, sempre-
ressurreto deus da vegetação, filho do Abismo, Senhor da Árvore da
Vida. Museu Britânico

Conforme alguns mitos, a ingestão do fruto terreno diminui


imediatamente os poderes dos seres celestiais. Uma versão do Nepal,
por exemplo, diz que a Terra foi outrora habitada por moradores do
céu, os quais, a certa altura, desejaram comer os frutos da Terra.
Logo que os provaram, perderam a capacidade de retornar ao mundo
superior. História semelhante, em que o grão substitui o fruto, é
contada pelos birmaneses, segundo os quais os primeiros nove
habitantes do mundo desceram dos céus e não tinham pecado nem
sexo. A maneira, porém, que se acostumaram com o novo lar, seus
apetites cresceram. Quando se puseram a comer determinada
espécie de arroz, tornaram-se grosseiros e pesados. Incapazes de
regressar ao bem-aventurado lar celeste, desenvolveram o sexo e
ficaram sujeitos ao trabalho e ao sofrimento. Dali por diante, tiveram
de trabalhar para viver, e, de vez em quando, lançavam mão do crime.
Que fruto era esse, cuja ingestão pôs fim ao Paraíso? É evidente que
não estamos falando aqui em maçãs ou peras comuns. A imagem,
sem dúvida, era metafórica - profundamente metafórica, aliás,
considerando-se-lhe a centralidade em relação à história. Ao passo
que, na maior parte das vezes, adiamos o estudo do sentido do mito
do Paraíso, deixando-o para mais adiante neste livro, no caso
presente as imagens míticas exigem uma decifração preliminar.
Em quase todas as línguas, usa-se a palavra fruto metaforicamente,
para aludir ao resultado de todo processo criativo. O fruto é o produto
final do ciclo vegetativo de reprodução e crescimento do qual
dependemos para a nossa sobrevivência, e é, pois, natural que as
pessoas, em todas as culturas, se refiram ao resultado final do
trabalho humano, ou a toda atividade construtiva, como seu fruto.
Visto que todos os processos criativos - desde o crescimento de uma
árvore ou de um embrião até a invenção de uma nova tecnologia -
começam invisivelmente e terminam com uma forma física
completada, a imagem do fruto é metaforicamente aplicável a todo
produto acabado.
Comê-lo é colocar alguma coisa dentro de si mesmo e permitir-lhe
tornar-se parte do próprio corpo. Mas existem processos emocionais,
mentais e espirituais análogos: falamos em devorar literatura e
deliciar-nos com a visão do ser amado. O que quer que nos fascine
incorporamos mental e emocionalmente a nós mesmos. O comer do
fruto místico, por conseguinte, foi uma fascinação ou união com o
resultado, ou produto final, da criação, que é a forma manifesta das
coisas.
Adão e Eva foram administradores do processo criativo, intimados a
tratar do Jardim e guardá-Io. A história supõe que os seres humanos
se interessavam mais pelo processo integral da criação do que
apenas pelos seus produtos finais. O jardineiro sábio - metafórico ou
literal - cuida de todas as fases dos ciclos criativos à mão. Mas
quando se deixa fascinar meramente pelo fruto, negligenciando ou
deformando outras partes do processo, o continuum se desequilibra.
Como estamos descobrindo hoje em todo o mundo, o lavrador que só
se interessa por aumentar a colheita, e não faz caso da saúde do solo,
acabará esgotando a terra e tirando-Ihe a capacidade de fornecer
alimentos nutrientes.
Esse ensinamento está explicitamente expresso assim em alguns
mitos do Paraíso, como nos ensinamentos religiosos centrais da
maioria das culturas. Muitas tribos americanas nativas (os hopis e os
iuroques, por exemplo) nos contam que o Primeiro Povo recebeu
instruções sobre as maneiras de manter o equilíbrio das forças da
Natureza. A Queda ocorreu quando os seus antepassados
abandonaram as responsabilidades da administração. De um modo ou
de outro, quase todas as escrituras do mundo advertem contra a "doce
e suave tendência para o pecado", como lhe chama o Bhagavad Gita,
o desejo obsessivo de um produto final na forma. "Não desejes! não
peças!" ordena Krishna. "Encontra a recompensa plena por fazer o
certo no certo! Sejam o teu motivo as ações justas, e não o fruto que
delas provém.”
No iraniano antigo, Adão significa "eu", e no antigo sânscrito, idioma
relacionado com ele, aham significa "eu" ou "o eu". O misticismo indo-
iraniano diz que o eu puro, imaculado - Adão - decaiu da perfeição em
suas habitações espirituais por causa da atração da Terra, que em
todas as tradições ocidentais se equipara à forma física. Os gnósticos
cristãos primitivos acreditavam da mesma forma que a consciência
humana pertence inerentemente ao Céu, e que o mal resulta do
envolvimento emocional do Eu celeste com o produto final terreno do
processo criativo.
De acordo com os escritos gnósticos atribuídos a Hermes Trismegisto,
o homem, emanação da mente de Deus - Nous - ficou tragicamente
enredado na matéria. Os Poimandres de Hermes contam que Nous,
Pai de tudo, da Vida e da Luz, criou o homem à sua imagem. O
homem desejava também ser criador, e isso foi permitido pelo Nous.
Foram-lhe dados plenos poderes sobre o mundo das coisas criadas e
sobre os animais irracionais, e ele revelou à Natureza a forma de
Deus. A Natureza sorriu-lhe, amorosa, e ele, vendo-se refletido na
Natureza, amou-a e desejou morar com ela. O desejo transformou-se
imediatamente em realidade, e o homem se viu preso no mundo da
forma e destituído da razão. Tendo recebido o amado dentro em si
mesma, a Natureza abraçou-o completamente, e eles se fundiram,
inflamados de amor.
E é por isso que o homem, dentre todos os animais da terra, é duplo,
mortal através do corpo, imortal através do Homem essencial. Pois
embora seja imortal e tenha poder sobre todas as coisas, sofre o
destino da mortalidade, estando sujeito ao Heimarmene [Destino];
embora estivesse acima da Harmonia [isto é, da lei das relações
recíprocas entre o Cosmo e os princípios psicológicos dos seres
humanos], tornou-se um escravo dentro da Harmonia; se bem fosse
andrógino, tendo saído do Pai andrógino, e, insone, do insone, é
vencido pelo amor e pelo sono.
A ingestão do fruto proibido e outras metáforas empregadas na
descrição da Queda dão a entender que a degeneração espiritual dos
seres humanos se deveu ao seu excessivo envolvimento com o
produto final da criação, o mundo manifesto das coisas e das formas.
Além disso, quando examinamos as metáforas mais de perto,
começamos a ver como e por que se acreditou que a fascinação da
forma eclipsou o sentido original da identidade divina e da consciência
do ofício administrativo da humanidade, no processo total da criação.

A Ciência do Bem e do Mal

Como vimos, a narrativa do Gênesis atribui a Queda a comer do fruto


de uma árvore específica - árvore da Ciência do Bem e do Mal. Essa
árvore "era agradável aos olhos e desejável para dar entendimento."
O ato de comer-lhe o fruto fez que se abrissem os olhos de Adão e
Eva, "e eles perceberam que estavam nus".
Então disse o Senhor Deus: "Eis que o homem se tornou como um de
nós, conhecedor do bem e do mal; assim, para que não estenda a
mão, e tome também da árvore da vida, e coma, e viva eternamente."
O Senhor Deus, por isso, o lançou fora do Jardim do Éden, a fim de
lavrar a terra de que fora tomado. E, expulso o homem, colocou
querubins ao oriente do jardim do Éden, e uma espada flamejante,
que girava em todos os sentidos, para guardar o caminho da árvore da
vida (Gênesis 3:6-24).
Poucas passagens na literatura mundial provocaram mais
especulação do que esta. Por que era proibida árvore da ciência do
Bem e do Mal? Poderíamos até pensar que Deus desejasse que os
seres humanos permanecessem ignorantes. Essa interpretação
inspirou seitas gnósticas, assim como filósofos do porte de Kant e
Schiller, a sugerir que a serpente, na realidade, fora a benfeitora da
humanidade, a portadora do conhecimento. Mas que espécie de
conhecimento é esse? Será ele, como insinuaram muitos teólogos, o
conhecimento do sexo (que leva o casal original a reconhecer a sua
nudez), ou o conhecimento discriminativo geral do certo e do errado?
A história supõe a existência de dois gêneros de mal - um inerente à
Natureza, encerrado na própria árvore da Ciência, e um criado pelo
ato de desobediência expresso no comer da árvore. É o último que
leva Adão e Eva a esconderem-se da presença do Senhor. De mais
disso, quando o Senhor chama Adão e pergunta: "Onde estás?", eles
procuram fugir à responsabilidade. Adão põe a culpa em Eva, e Eva
põe a culpa na serpente. Não tendo ninguém em quem pôr a culpa, a
serpente recebe a primeira maldição.
O primeiro gênero de mal - o que cresceu como fruto na árvore - é
anterior à escolha moral. É o mal a que Jó se refere quando diz: "O
quê? Receberemos o bem da mão de Deus, e não receberemos o
mal?" A teologia hindu reconhece a complementaridade do bem e do
mal pré-morais reverenciando igualmente Brahma, o Criador e Xiva, o
Destruidor: As tradições dos nativos americanos, chineses e
japoneses, em seus vários modos, também concordam em que, na
Natureza, assim o crescimento como a decadência, a completude e a
incompletude, existem como parceiros essenciais no processo criativo.
O segundo gênero de mal - o mal moral, que é único da humanidade -
nasce do julgamento das qualidades e pares de opostos inerentes à
Natureza e do apego emocional a categorias e distinções. O existir no
mundo fisico, em si mesmo e por si mesmo, de vez em quando produz
sofrimento, mas é um sofrimento contido no fluxo e refluxo dos ciclos e
processos naturais. Um sofrimento contido inteiramente no momento
presente. A mente humana produz outro tipo de sofrimento, que tem
por base a expectativa e a memória, a cobiça e o medo. É o
sofrimento da separação e da alienação, nascido do apego da mente
às suas próprias categorias artificiais de discriminação e à projeção
que faz dessas categorias no mundo. Este segundo mal é desnatural;
sua origem foi a Queda.
A compreensão da natureza do ato de comer da árvore proibida
aparece na literatura exegética judaico-cristã por via do gnóstico
Evangelho de Filipe, em que o autor busca a origem da morte da
tentativa do casal original de ganhar conhecimento dividindo a
experiência em falsas categorias, que consistem em pares de
contrários mutuamente excludentes: "Luz e treva, vida e morte, direita
e esquerda, são irmãos um do outro. São inseparáveis." Mas é no
hinduísmo, no budismo e no taoísmo que o erro fundamental - e as
conseqüências psicológicas - da falsa discriminação se explicam mais
claramente. Para os taoístas, por exemplo, a Idade de Ouro da
Grande Unidade foi o tempo anterior àquele em que os seres
humanos tinham conhecimento dos pares de opostos. Chuang Tzu
escreve:

O conhecimento dos antigos era perfeito. De que maneira era


perfeito? Eles ainda não tinham consciência de que havia coisas. Este
é o conhecimento mais perfeito; nada pode ser-lhe acrescentado.
Depois, alguns perceberam que havia coisas, mas não perceberam
que havia distinções entre elas. Quando o certo e o errado se
tornaram manifestos, o Tao, em resultado disso, decaiu.

Visto ser a feitura de falsas distinções o que produz a ilusão, então, a


iluminação e a libertação - a experiência do Paraíso - devem nascer
do abandono de categorias artificiais do julgamento humano e do
apego emocional às qualidades da forma.
No coração dos ensinamentos do Buda estão as Quatro Verdades
Nobres, que afirmam que todo o sofrimento humano provém do desejo
e do medo, baseados no apego à forma e nas fantasias da
discriminação humana. A doutrina budista descreve o nirvana - a
condição paradisíaca de paz, sabedoria e absorção na unicidade de
todo o ser - como a condição natural da consciência humana antes de
surgir o apego e depois da sua cessação. Conquanto o budismo não
reconheça a Queda como acontecimento histórico, pode-se dizer que
passagens como as seguintes (da Sutra Lankavatara) expressam a
análise budista da natureza humana "caída" e como ela pode ser
purificada:
A falsa-imaginação ensina que coisas como a luz e a sombra, o longo
e o curto, o preto e o branco são diferentes e devem ser
discriminadas; mas elas não são independentes umas das outras; são
apenas aspectos diferentes da mesma coisa, são termos de relação,
não de realidade. As condições de existência não têm um caráter
mutuamente excludente; na essência, as coisas não são duas, mas
uma. ...

Quando se põem de lado as aparências e os nomes, e cessa toda


discriminação, o que sobra é a natureza verdadeira e essencial das
coisas, e, como nada pode ser afirmado no tocante à natureza da
essência, ela é chamada a "Qualidade essencial" da Realidade. Essa
"Qualidade essencia" universal, não-diferenciada, inescrutável, é a
única Realidade, mas é variamente caracterizada como Verdade,
Essência da Mente, Inteligência Transcendental, Nobre Sabedoria etc.
Mas a cessação da mente discriminativa não poderá ocorrer enquanto
não se verificar uma mudança abrupta na sede mais profunda da
consciência. O hábito mental de olhar para fora, por meio da mente
discriminativa, para um mundo externo objetivo, precisa ser largado de
mão, estabelecendo-se em seu lugar um novo hábito de compreender
a própria Verdade dentro da mente intuitiva pela identificação com a
própria Verdade.
O apego e a falsa discriminação produzem uma condição em que a
nossa consciência da plenitude e da magia do momento presente é
afogada pelas maquinações intranqüilas da mente. Então, como diz o
Gita, "a memória - traída deixa fugir o propósito nobre, e solapa a
mente, até que o propósito, a mente e o homem estejam desfeitos".

O Esquecimento

Uma imagem alegórica final da Queda está contida na metáfora do


esquecimento. Consoante as tradições gnósticas, hindus e budistas, é
o ato de esquecermos nossa identidade e propósito verdadeiros, pelo
afastamento do mundo físico, que produz a miséria da condição
decaída.
Segundo a filosofia platônica, Lethe ("esquecimento") apagou não
somente a memória temporal, mas também as Idéias - ou seja, o
conhecimento absoluto dos princípios universais. No processo do
nascimento, a alma esquece as Idéias, seu próprio passado e
identidade, e o passado coletivo da espécie humana. Esse
esquecimento, no entender de Platão, é a causa primária da ilusão e
do sofrimento humanos.
O mito central dos gnósticos cristãos primitivos, tal como está
preservado nos Atos de Tomé, gira também em torno do esquecer e
do recordar. Um príncipe do Oriente chega ao Egito procurando "a
pérola única, que está no meio do mar, perto da serpente que respira
alto". Os egípcios escravizam o príncipe e dão-Ihe comida que o faz
esquecer quem é. "Esqueci-me de que era filho de reis, e pus-me a
serviço do rei deles; e esqueci a pérola, por cuja causa meus pais me
haviam mandado, e, mercê do fardo das opressões, jazi num sono
profundo." Mas os pais, inteirados do seu cativeiro e da sua amnésia,
mandaram-lhe uma carta:

De teu pai, o rei dos reis, e de tua mãe, a senhora do Oriente, e de teu
irmão, nosso segundo [em autoridade], depois de ti, nosso fIlho.
Lembra-te de que és fIlho de reis! Vê a escravidão - a quem serves!
Lembra-te da pérola, por cuja causa foste mandado para o Egito!
A carta, transformada em águia, voa para o príncipe. Pousando ao
lado dele, fala e volta a transformar-se em carta.
Ao ouvir-lhe a voz e o som do seu roçagar, assustei-me e saí do meu
sono. Tomei-a e beijei-a, e principiei a Iê-Ia; e de acordo com o que
estava traçado em meu coração tinham sido escritas as palavras da
minha carta. Lembrei-me de que era filho de pais reais, e minha nobre
linhagem afirmava a sua natureza. Lembrei-me da pérola, por cuja
causa eu fora mandado para o Egito, e principiei a encantar a terrível
serpente que respirava alto. Fi-Ia dormir e deixei-a imersa num sono
profundo, pronunciando sobre ela o nome de meu pai; apossei-me da
pérola, e virei-me para voltar à casa de meu pai.

A história pode ser vista como uma alegoria do processo de


encarnação. Antes do nascimento, o espírito humano vive nos reinos
eternos da luz, mas ao nascer - a jornada para o Egito - cai num sono
de esquecimento. A pérola é o propósito pelo qual o espírito encarna;
a serpente é a metáfora das poderosas inclinações da mente. A carta
é a gnose - o conhecimento espiritual que traz a vigília e a recordação.
Os gnósticos descrevem amiúde o esquecimento ontológico como um
estado de sono ou embriaguez, em que a alma veio a cair por seu
envolvimento com a forma. "Ardendo com o desejo de experimentar o
corpo", o espírito esqueceu sua verdadeira natureza. "Esqueceu sua
habitação original, seu verdadeiro centro, seu ser eterno.”
Se as imagens do esquecimento e do sono são metáforas poderosas
da Queda, o recordar e o acordar servem igualmente como descrições
apropriadas da meta de todas as práticas espirituais em todo cenário
cultural; o objetivo da meditação e do ritual é sempre recordar,
acordar.
O despertar implica uma volta à consciência da origem celestial da
alma, e o mensageiro que o traz oferece vida, salvação e redenção.
Um texto maniqueu exorta: "Desperta, alma de esplendor, do sono da
embriaguez em que caíste. ... segue-me ao lugar da terra exaltada
onde moras desde o princípio." A injunção não se limita a lembrar ao
injungido quem é divinamente, mas também as instruções com as
quais encarnou. "Não dormites nem durmas, e não te esqueças
daquilo de que te encarregou o teu Senhor.”
Estar "desperto" significa ter consciência do Céu enquanto se vive na
Terra. O hinduísmo e o budismo encaravam o Eu verdadeiro (purusha)
como expressão da base divina do Ser, individualizado em forma
humana. O pecado consiste em esquecermos o nosso verdadeiro Eu;
todo sofrimento dimana disso. O ensinamento central dos
upanichades, Tat twam asi (Isto és tu) corresponde à carta, no mito
gnóstico acima citado, enviada pelo Rei dos reis (Brahman) ao
príncipe (Atman) a fim de recordar-lhe a herança real.

Os Efeitos da Queda

Sejam quais forem as causas da Queda, os seus efeitos são descritos


similarmente em quase todas as tradições. Com a desobediência, o
apego e o esquecimento vem a perda de contato com a Fonte
sagrada; a morte e a necessidade de reprodução; e limitações de
várias espécies, como a perda da luminosidade e a capacidade de
voar e comunicar-se com os animais. Os seres humanos precisam
agora trabalhar a fim de obter o de que necessitam para sobreviver,
precisam inventar tecnologias para compensar a diminuição de suas
várias capacidades naturais, e precisam errar pela vida sem
consciência da sua natureza, do seu propósito e do seu passado
coletivo verdadeiros.
De todos os resultados da Queda, o mais severo foi a perda da
presença divina. Paul Schebesta escreve que, para os primeiros
antepassados dos pigmeus:

O que causou. ... o maior sofrimento foi a partida de Deus. Deus


desapareceu. Retirou-se e deixou de ser perceptível. ... Na opinião
dos pigmeus que falavam dessas coisas, o afastamento de Deus, sem
sombra de dúvida, foi a maior catástrofe que já vitimou a humanidade;
as outras conseqüências do pecado não foram tão sentidas.

Em todas as tradições, assinala Eliade, o anseio do Paraíso, primeiro


que tudo, é o anseio da comunhão imediata com a Divindade: "A
nostalgia das origens é uma nostalgia religiosa. O homem deseja
recobrar a presença ativa dos deuses.”
Já passamos os olhos por diversos mitos que atribuem a origem da
morte às transgressões dos primeiros seres humanos. Ao passo que
os seres humanos viviam outrora para sempre, eram capazes de voar
e visitavam o Céu à vontade, tornaram-se agora criaturas ligadas à
terra, e na expressão de Eliade, "limitadas pela temporalidade, pelo
sofrimento e pela morte".
Os Livros de Adão e Eva contam que a própria carne do casal original
se modificou. Antes da Queda, Adão e Eva brilhavam com uma luz
visível; agora, tinham corpos densos, semelhantes aos dos animais.
E, com efeito, quando Adão olhou para a sua carne, que estava
alterada, chorou amargamente, ele e Eva, pelo que ambos tinham
feito. ... E Adão disse a Eva: "Olha para os teus olhos, e para os meus,
que antes contemplavam anjos no céu, glorificando; e eles, também,
sem cessar. Mas agora não vemos como víamos: nossos olhos
tornaram-se de carne: não podem ver da maneira com que viam
antes." E Adão disse também a Eva: "Que é hoje o nosso corpo,
comparado com o que era antigamente, quando morávamos no
jardim?”
Como o Primeiro Povo da tradição maia - que podia ver "igualmente
bem o que está longe e o que está perto" - Adão e Eva tinham perdido
a "natureza brilhante" que lhes permitira estender o olhar para
abranger, com ele, o Céu e a Terra:

Disse, então, o Senhor a Adão: Quando me eras sujeito, tinhas uma


natureza brilhante dentro em ti, e, por esse motivo, podias ver coisas
muito longe. Mas após a tua transgressão, tua natureza brilhante foi
retirada de ti; e já não te foi dado ver coisas ao longe, mas apenas de
perto, ao alcance da mão; segundo a capacidade da carne, que é
abrutalhada.

De acordo com o texto, o ser humano é leve por sua própria natureza:
"Pois eu te fiz da luz; e queria fazer saírem de ti filhos da luz, e
parecidos contigo.”
E quando ele estava nos céus, nos reinos da luz, nada conhecia da
treva. Mas transgrediu, e eu o fiz cair do céu na terra; e essa treva
veio sobre ele. E em ti, ó Adão, enquanto estavas em Meu jardim, e
eras obediente a Mim, a luz brilhante também descansou. Mas quando
tive notícia da tua transgressão, privei-te da luz brilhante. Entretanto,
graças à Minha misericórdia, não te transformei em treva, mas fiz teu
corpo de carne, sobre o qual estendi esta pele, a fim de que ele
pudesse suportar o frio e o calor.
Nos mitos dos gregos, dos nativos americanos e dos africanos, a
crueldade dos seres humanos levou-os a perder o direito à amizade
com os animais. Mas então, tendo perdido os poderes divinos, as
pessoas vêem-se reduzidas a um estado materialmente equivalente
ao dos animais, com os quais já não podem comunicar-se.
Fazia-se mister desenvolver substitutos para as suas capacidades
mágicas anteriores, e esses substitutos assumem a forma de
invenções e instituições - rudimentos da civilização. Os filósofos
estóicos e cínicos gregos e romanos descrevem a emergência da
civilização como um processo de declínio moral. Conta-nos Ovídio,
por exemplo, que, depois de haver a humanidade perdido a áurea
condição original:

Irrompeu ... toda a sorte de males, e a vergonha fugiu, e a verdade e a


fé. Em lugar delas vieram enganos, imposturas, aleivosias, e a força, e
o maldito amor da posse. Estenderam-se velas ao vento, pois o
marinheiro ainda não as conhecia. ... E a terra, até então propriedade
comum, como a luz do sol e as brisas, e agrimensor cuidadoso
marcava agora com linhas de divisas longamente estendidas. Não
somente foram exigidos do solo rico cereais e alimentos necessários,
mas os homens furaram as entranhas da terra, e desenterraram a
riqueza que ela escondera e cobrira de escuridão estígia, incentivo
para o mal. E agora se produziram o ferro nocivo e o ouro, mais
nocivo ainda: e estes produziram a guerra - pois as guerras são
travadas com ambos - e armas estrondosas foram arremessadas por
mãos sujas de sangue.

A inocência se fora. Os seres humanos se afastam, não somente dos


deuses, mas também da Natureza, e vêem-se presos numa roda de
medo e desejo, que propende para o mal e mina assim a memória
como as forças vitais. Já conhecem o sentido embrutecedor da
vergonha e da perda. Modificou-se-Ihes tanto a experiência subjetiva
quanto a própria substância dos corpos físicos. Além do mais, o seu
novo modo de existência destina-se a ter efeitos que vão muito além
deles mesmos.

O Dilúvio

Consoante as tradições de culturas inumeráveis, a mudança de


caráter que avassalou a humanidade teve conseqüências catastróficas
para o planeta inteiro. Os índios iuroques dizem que porque as
pessoas infringiam constantemente a lei, a morte ameaçava
sobreexceder a vida no mundo.
À proporção que as violações da lei e as mortes aumentavam, o seu
peso começou à mergulhar o disco da terra nos mares sobre os quais
ela flutuava.
Virtualmente todas as culturas se lembram, pelo menos, de uma
destruição do mundo, associada, de ordinário, explicitamente à
Queda. A história mais difundida desse tipo evoca um Dilúvio mundial,
e de todas as histórias do Dilúvio, a mais familiar é a de Noé e sua
arca:

Viu o Senhor que a maldade do homem se havia multiplicado na


Terra, e que era continuamente mau todo desígnio do seu coração;
então se arrependeu o Senhor de ter feito o homem na Terra, e isso
lhe pesou no coração. Disse o Senhor: "Farei desaparecer da face da
Terra o homem que criei, o homem e o animal, os répteis e as aves do
céu dos céus; porque me arrependo de os haver feito" (Gênesis 6:5-7)
Um homem, Noé, achou graça diante do Senhor. Deus lhe deu as
dimensões de um barco, que ele construiu; para dentro dele levou sua
família, e "de todo animal limpo. ... sete pares, macho e fêmea: mas
dos animais imundos, um par. ... Também das aves do céu sete pares:
macho e fêmea; para se conservar a semente sobre a face da terra".
Depois se romperam as fontes do abismo e as comportas dos céus se
abriram simultaneamente, e "houve copiosa chuva sobre a terra
durante quarenta dias e quarenta noites. ... E pereceu toda carne que
se movia sobre a terra, tanto de ave quanto de animais domésticos, e
animais selváticos, e de todas as coisas que rastejam. ... e de todo
homem". Mas Deus lembrou-se de Noé, e as chuvas diminuíram. Noé
soltou um corvo e uma pomba à procura de terra seca. Quando a
pomba voltou, sete dias depois, com uma folha de oliveira, Noé deixou
a arca com sua família e fez uma oferenda. O Senhor prometeu que
"enquanto durar a terra não deixará de haver sementeira e ceifa, frio e
calor, verão e inverno, dia e noite".
Muitos estudiosos acreditam que a história babilônica de Utnapishtim,
parte da epopéia de Gilgamés, é o protótipo do relato bíblico do
Dilúvio. Na narrativa de Utnapishtim. como na história de Noé, o
Dilúvio é produzido em razão da violência da humanidade. Enlil dá a
Utnapishtim as dimensões do barco que ele deverá construir. Então:

Os anunnaki (juízes do mundo inferior) ergueram (suas) tochas


alumiando a terra com o seu resplendor;
A cólera furiosa de Adad (deus das tempestades e do trovão) chega
ao céu
(E) transforma em treva tudo o que era luz.
(...) a terra ele quebrou (?) como um pote
Nenhum homem podia ver seu semelhante.
As pessoas não podiam ser reconhecidas do céu..
(Até) os deuses ficaram aterrados com o dilúvio.

Mais uma vez. "a semente de todas as criaturas vivas" é levada para o
barco. Na versão babilônica, o Dilúvio dura sete dias; um corvo, uma
pomba e uma andorinha são mandados à procura de terra. Depois de
emergir do barco, Utnapishtim faz uma oferenda de agradecimento, e
Enlil promete que nenhum dilúvio tornará a destruir o mundo. A seguir,
Utnapishtim e sua esposa recebem uma bênção de Enlil.
Os gregos lembravam-se de três dilúvios: o dilúvio que destruiu a
Atlântida, o dilúvio de Deucalião e Pirra e o dilúvio de Ógiges. A
respeito do cataclisma que destruiu a Atlântida só temos o relato de
Platão; dos últimos dilúvios subsistem diversas versões.
Consoante o mito grego, Deucalião era filho de Prometeu; desposou
sua prima Pirra, filha de Epimeteu e Pandora. Quando Zeus decidiu
destruir a raça humana (a Raça de Bronze de Hesíodo, violenta e
corrupta), Prometeu aconselhou Deucalião a construir uma caixa e
aparelhá-Ia com as necessidades da vida. Nela, Deucalião e Pirra
sobreviveram, enquanto o resto da humanidade perecia. A versão
mais amplamente lida do dilúvio de Deucalião talvez seja a de Ovídio:
A uma ordem sua, as bocas das fontes se abriram Atirando ao mar as
águas das montanhas. Sob o golpe do tridente de Netuno a terra
tremeu, E abriu-se o caminho para um mar de água:

Onde havia terra os grandes rios arrasaram pomares,


O milho não cortado, vilas, carneiros, homens e gado.
Dentro das águas.
Até santuários e templos
Foram varridos, e se alguma casa de fazenda ou celeiro
Ou palácio ainda se erguia em pé, as ondas
Trepavam nas portas e someiros, nos tetos e nas torres.
Tudo se extinguia como perdido em águas vítreas,
Estradas, caminhos, vales, e morros mergulhavam no oceano,
Era tudo um mar movamente sem praia.

Depois que o casal emergiu, ofereceu um sacrifício a Zeus e passou a


repovoar a Terra. A civilização, porém, não reapareceu
imediatamente: de acordo com Platão, "por muitas gerações os
sobreviventes morreram sem poder expressar-se pela escrita".
O dilúvio de Ógiges, o lendário rei de Tebas, na Beócia, foi de uma era
diferente da de Deucalião. O cronista cristão primitivo Júlio Africano
escreveu que "Ógiges. ... que foi salvo quando muitos pereceram,
viveu na época do êxodo do povo do Egito, no tempo de Moisés".
Nas tradições hindus, Manu, o Primeiro Homem, é avisado por um
grande peixe de um Dilúvio iminente. Diz-lhe que construa um navio e
coloque a bordo todos os tipos de sementes, juntamente com os sete
Rishis (filhos nascidos da mente de Brahma e tradicionais
compositores dos Vedas). Vieram as águas, e um peixe guia o barco
até o pico mais alto dos Himalaias. "Neste, Manu amarra a arca.
Depois sacrifica. Da oblação surge uma mulher. Os dois, então, criam
de novo a humanidade.”
Em sua versão da história da Queda, os ciganos da Transilvânia falam
de um tempo em que as pessoas viviam para sempre e não
conheciam moléstias nem preocupações. A comida era abundante, e
os rios fluíam com leite e vinho. Não somente os seres humanos, mas
também os animais viviam felizes e sem medo. Um dia, um estranho
velho chegou ao lar de um casal, pedindo pousada. No dia seguinte,
quando se preparava para partir, ele deu aos hospedeiros um jarro
que continha um peixinho, dizendo: "Cuidem deste peixe; não o
comam. Voltarei dentro de nove dias. Quando vocês me devolverem o
peixe, eu os recompensarei.”
A mulher queria comer o peixe, mas o marido não deixou. Entretanto,
quando o marido estava fora de casa, a mulher sentiu fome. No
momento em que ia colocar o peixe sobre os carvões ardentes, foi
morta por um raio, e começou a chover. No nono dia, o homem
estranho voltou e disse ao marido: "Você manteve a palavra não
matando o peixe. Tome uma nova esposa, reúna a sua gente e
construa um barco. Todos os homens e criaturas perecerão, mas você
viverá. Leve consigo animais e sementes." Construiu-se o barco, e a
chuva continuou por um ano. O homem, sua nova esposa, seus
parentes e os animais sobreviveram, mas agora tinham de lutar para
viver. A doença e a morte eram a sua sina, e eles só se multiplicaram
muito lentamente.
O Dilúvio, de Albrecht Dürer (1525). Uma página do seu livro de
notas. Debaixo do desenho, o artista escreveu: Na noite entre quarta e
quinta-feira, depois de Pentecostes [30, 31 de maio] 1525, vi essa
aparição em meu sono - as muitas e grandes águas que caíam do
céu. A primeira bateu na Terra cerca de quatro milhas de mim, com
força terrível e um barulho tremendo, e rebentou e submergiu a terra
toda. Fiquei com tanto medo que acordei. Depois caíram as outras
águas e, ao caírem, eram muito poderosas, e havia muitas delas,
algumas mais longe, algumas mais perto. E elas caíam de uma altura
tão grande que todas pareciam cair com igual lentidão. Mas quando a
primeira água que tocou a terra a havia quase atingido, caiu com
tamanha rapidez, com vento e rugidos, e fiquei com tanto medo que,
ao acordar, todo o meu corpo tremia e durante muito tempo não pude
tornar em mim. De sorte que, quando me levantei de manhã, pintei-o
acima disto tal como o vi. Deus faz todas as coisas pelo melhor.
Albrecht Dürer.

Das montanhas do Iunão, no sudoeste da China, os lolos - raça


aborígine de pessoas que tinham uma escrita pictográfica própria, com
que registraram lendas e cânticos - dizem que os divinos patriarcas,
que ora vivem no céu, já moraram na Terra, onde viviam até idades
muito avançadas. O mais famoso foi Tose-gu-dzih, que trouxe a morte
ao mundo abrindo uma caixa proibida. Nessa época, os homens eram
maus, e Tse-gu-dzih enviou-lhes um mensageiro encarregado de
pedir-lhes um pouco de carne e sangue como tributo.
Somente um homem, Du-mu, lhe satisfez o pedido. Tse-gudzih
enfureceu-se e fechou as comportas da chuva, de modo que a água
começou a subir para o céu. Mas Du-mu e seus quatro filhos foram
reunidos num tronco oco, juntamente com lontras, patos selvagens e
lampreias. Estes foram os únicos sobreviventes; dos filhos de Du-mu
descendem todos os povos do mundo.
Os aborígines da Austrália central dizem que, muitos séculos atrás,
um Dilúvio desastroso trouxe fome para a terra. As pessoas e animais
só sobreviviam agarrados aos cumes das montanhas. Quando as
águas baixaram, os sobreviventes apelaram para o canibalismo. Então
Baiame, o grande antepassado totêmico, resolveu encarnar para
ensinar as pessoas a viverem em seu novo ambiente. Nas Américas,
as tradições do Dilúvio estão muito difundidas, e, no caso dos mitos do
Mergulhador da Terra, freqüentemente enredadas em histórias da
Criação. Encontramos, não raro, um herói e diversos animais
sobrevivendo ao Dilúvio numa jangada, da qual um, ou uma série de
animais, é enviado para descobrir solo, vegetação ou um sítio de
pouso numa montanha. Freqüentemente, a história continua
descrevendo a construção de uma escada para o Céu, a confusão das
línguas e a dispersão da humanidade.
Os nativos norte-americanos adotavam a crença de que todas as
pessoas se originaram juntas, no mesmo lugar, e só se disseminaram
após o Dilúvio. Os chelahis do noroeste do Pacífico chamavam aos
primeiros exploradores e comerciantes franceses o "povo trazido pela
água", acreditando que fossem chelahis que tinham sido carregados
para longe durante o grande Dilúvio e que agora regressavam.
Afirmam os navajos terem sido avisados do Dilúvio iminente. Tiraram
terra das montanhas dos quatro cantos do mundo e a colocaram no
topo da montanha que se erguia no norte, e todos foram para lá,
humanos e animais. As águas subiram, e a gente subiu mais alto. As
pessoas plantaram um junco e entraram-lhe no oco; o junco crescia
todas as noites, e cresceu tanto que chegou ao chão do mundo atual.
Ali as pessoas encontraram um buraco, através do qual passaram
para a superfície.
Os índios papagos do Arizona preservam uma história da Criação, do
Paraíso e da Queda, em que Montezuma e um coiote são os únicos
sobreviventes:

O Grande Espírito primeiro fez a terra e suas criaturas.


Depois desceu e veio ver o que tinha feito.
Cavando a terra que fizera, encontrou um pouco de argila.
Levou-a consigo de volta para o céu e deixou-a cair no buraco que
cavara.
Imediatamente dali saiu um homem, na forma de Montezuma, o herói
desta lenda.
Com a sua ajuda saíram também todas as tribos índias em ordem. ...
A paz e a felicidade [reinavam] no mundo nesses primeiros dias.
Como o sol estivesse mais perto da terra do que está agora, todas as
estações eram quentes, e ninguém usava roupas.
Homens e animais partilhavam de uma língua comum, e todos eram
irmãos.
Eis senão quando uma pavorosa catástrofe despedaçou os dias de
ouro. Um grande dilúvio destruiu toda a carne onde havia alento de
vida, com exceção de Montezuma e de um coiote, seu amigo. O coiote
profetizara a vinda do dilúvio, e Montezuma, seu amigo, acreditara
nele. ...
Os índios algonquinos diziam que, a princípio, a terra se achava em
estado de paz e felicidade. Mas quanto uma poderosa cobra surgiu no
meio das pessoas, estas se tornaram confusas e começaram a odiar-
se umas às outras. A cobra resolveu destruir todos os seres vivos por
meio do dilúvio. As águas espalharam sobre a terra e destruíram tudo
o que estava vivo. Na Dha da Tartaruga morava Manabhozo, avô das
coisas vivas; somente a sua oração vingou salvar algumas pessoas.
De acordo com os havaianos:

Doze gerações após o início da raça, na genealogia de Kumu-honua,


durante a chamada Era-da-Derrubada (po-au-hulihia), ocorre o nome
de N'u. ... Nesse tempo, sobreveio o dilúvio, conhecido como Kai-a-ka-
hina-li'i, que se pode traduzir por "Mar causado por Kabinali'i" ou "Mar
que fez os chefes (ali'i) caírem”.

A idéia de que Nu'u construiu uma grande embarcação, em que


sobreviveria ao Dilúvio, é provavelmente indígena, e não produto do
contato com missionários: "Os velhos do Havaí disseram ter sido
informados por seus pais de que toda a terra fora outrora inundada
pelo mar, exceto um picozinho no Maunakea, onde dois seres
humanos foram preservados da destruição, que havia dado cabo do
resto, mas acrescentavam que nunca tinham ouvido falar em navio
nem em Noé.”
Diz-se também que, na ocasião do Dilúvio, uma antiga pátria chamada
Hoahoamaitu submergiu debaixo das águas.

Outras Catástrofes

Enquanto o Dilúvio é a catástrofe mais ampla e vividamente lembrada


dos tempos antigos, a maioria das culturas conservou também
tradições de outras destruições do mundo. Os gregos, por exemplo,
acreditavam que as quatro idades do mundo, que já tinham expirado,
haviam, todas elas, terminado numa catástrofe. Em sua Teogonia,
Hesíodo descreveu assim o termo de uma das idades: "A Terra,
doadora de vida, arrebentou-se em ardências. ... toda a terra ferveu. ...
Dir-se-ia até que a Terra e o amplo Céu em cima dela se houvessem
juntado; pois um estouro tão portentoso só teria ocorrido se a Terra
tivesse sido violentamente arremessada à ruína, e o Céu, lá do alto, a
estivesse arremessando para baixo.”
Em seu Timeu, Platão relembra antiga reminiscência de catástrofes
recorrentes; aqui, o sacerdote egípcio fala com Sólon de Atenas:
"Sois todos jovens em vossas mentes", disse o sacerdote, "que não
conservam provisões de velhas crenças baseadas em longas
tradições, nenhum conhecimento encanecido pela velhice. A razão é
esta. Houve e haverá, daqui por diante, muitas e diversas destruições
da espécie humana, as maiores pelo fogo e pela água, embora outras,
menores, se devam a inúmeras outras causas. ... convosco e com
outros povos, repetidas vezes, a vida tem sido ultimamente
enriquecida com letras e todas as outras necessidades da civilização,
quando, mais uma vez, após o costumeiro período de anos, as
torrentes do céu cairão qual pestilência, poupando apenas os rudes e
os não-Ietrados dentre vós. ...”
Como os gregos, os tibetanos e hindus também recordavam quatro
idades completadas, cada uma das quais terminou em conflagração,
dilúvio ou furacão. Os chineses chamavam ao período entre as
destruições do mundo um "grande ano". Cada grande ano acaba
"numa convulsão geral da natureza, o mar é arrancado do leito, as
montanhas se atiram ao solo, os rios mudam o seu curso, arruínam-se
os seres humanos e tudo o mais, e os antigos traços são apagados".
Em quase todas as tradições relativas às idades do mundo, acredita-
se que o fim da era é provocado pela corrupção da população
humana.
Os aruaques do Orinoco dizem que houve duas destruições da terra,
uma pela água e outra pelo fogo. Ambas ocorreram porque os homens
desobedeceram ao Habitante-do-Alto, Aiomun Kondi. Os aruaques
também têm um herói à feição de Noé, Marerewana, que se salvou, e
salvou a família durante o Dilúvio, amarrando sua canoa a uma grande
árvore por meio de uma corda. Um dos primeiros exploradores da
América Latina, Cardim, relatou:

Dir-se-ia que esse povo não tivesse conhecimento dos primórdios e da


criação do mundo, mas parece que tinha alguma notícia do dilúvio:
mas como carece de escritos e letras, a notícia é obscura e confusa;
pois eles dizem que as águas afogaram todos os homens, e que
apenas um escapou, num Janipata, com a irmã, grávida de um filho, e
dos dois houveram eles o seu princípio, a partir do qual deram de
multiplicar-se e aumentar em número.

No relato hopi dos quatro mundos, os três primeiros terminam em


destruição. Quando o Primeiro Mundo está prestes a ser destruído,
Sótuknang diz ao povo:

Vocês irão para certo lugar. O seu Kopavi (centro vibratório no topo da
cabeça) os conduzirá. Essa sabedoria interior lhes dará a vista para
ver determinada nuvem, que vocês seguirão durante o dia, e
determinada estrela, que seguirão durante a noite. Não levem nada
consigo. A sua jornada só terminará quando a nuvem parar e a estrela
parar. ...
Quando estavam todos seguros e instalados, Taiowa ordenou a
Sótuknang que destruísse o mundo. Sótuknang destruiu-o pelo fogo,
porque o Clã do Fogo havia sido o seu chefe. Fez chover fogo sobre
ele. Abriu os vulcões. O fogo veio de cima, de baixo, e de todos os
lados, até que a terra, as águas, o ar, tudo se tornou num só
elemento, o fogo, e nada sobrou a não ser o povo seguro no ventre da
terra.
O relato hopi da segunda destruição do mundo contém uma descrição
do início de uma Idade do Gelo:

Assim, de novo, como no Primeiro Mundo, Sótuknang chamou o Povo


das Formigas a fim de abrir o seu mundo subterrâneo para o povo
escolhido. Quando este se achava seguro debaixo da terra.
Sótuknang ordenou aos gêmeos, Poqanghoya e Palongawhoya, que
deixassem os seus postos na extremidade norte e na extremidade sul
do eixo do mundo, onde estavam estacionados para manter a terra
girando adequadamente.
Apenas haviam os gêmeos abandonado suas posições, quando o
mundo, sem ninguém para controlá-Io, desequilibrou-se, começou a
girar sobre si mesmo feito um doido, depois deu duas cambalhotas.
Montanhas mergulharam no mar com grande estrépito, mares e lagos
derramaram-se sobre a terra; e, à maneira que entrava a girar através
do espaço frio e sem vida, o mundo congelou-se, transformado em
gelo sólido.

Muitos povos antigos parecem ter acreditado que o Dilúvio e outras


catástrofes estavam associados a mudanças nos movimentos do céu -
e, por conseguinte, em termos astronômicos modernos, com
alterações na direção axial e no movimento orbital da própria Terra.
Platão escreveu no Timeu:

Em certos períodos, o universo tem o seu atual movimento circular, e,


em outros, gira na direção oposta. ... De todas as mudanças que se
registram nos céus essa inversão é a maior e a mais completa. ...
Verifica-se, nessa época grande destruição de animais em geral, e só
uma pequena parte da raça humana sobrevive.

Em seu livro, Hamlet's Mill, Giorgio de Santillana e Hertha von


Dechend exploraram a base astronômica do mito e chegaram à
conclusão de que:

A teoria [dos antigos] a respeito de "como começou o mundo" parece


envolver a ruptura de uma harmonia, uma espécie de "pecado
original" cosmogônico, em conseqüência do qual o círculo da eclíptica
(com o zodíaco) se inclinou num ângulo em relação ao equador, e os
ciclos da mudança [as estações] passaram a existir.
Muitas culturas antigas instituíram rituais e cerimônias com o propósito
de prevenir outra catástrofe. Entre os índios iuroques, por exemplo,
diz-se que:

Sempre houve luta para manter o mundo equilibrado sobre as águas,


os ritmos de abundância firmes, de acordo com a lei e a despeito das
violações dela pelos seres humanos. Sabendo que isto seria assim,
antes de saírem os wo gey [Imortais, ou seres do tempo do mito com
espíritos puros] ensinaram a certas pessoas o que haviam de fazer
para tornar a equilibrar o mundo quando o peso das violações
humanas ficasse grande demais para ele.

Outras culturas limitaram-se a memorizar as catástrofes, ou tentaram


emular a sua capacidade de destruição através do sacrifício e da
guerra ritual. O erudito do século XVIII Nicholas-Antoine Boulanger,
depois de analisar as cosmologias dos antigos germânicos, gregos,
judeus, árabes, hindus, chineses, japoneses, peruanos, mexicanos e
caribes, concluiu que as cerimônias e mitos de todos esses povos
resultavam, em grande parte, dos efeitos de catástrofes globais e do
medo engendrado por elas. No entender de Boulanger, o medo foi
transmitido de geração a geração:

Ainda trememos hoje em conseqüência do dilúvio, e nossas


instituições ainda nos passam os medos e as idéias apocalípticas de
nossos primeiros pais. O terror sobrevive de raça para raça. ... A
criança ficará perpetuamente apavorada com o que assusta os seus
antepassados.

Mais recentemente, o psicanalista Immanual Velikovski encontrou nas


lembranças mundiais de cataclismas globais uma fonte dos sistemas
coletivos de ilusão, os quais, como Freud e Jung já tinham concluído,
afligem toda a raça humana. Em seu Mankind in Amnesia (1982),
Velikovski traçou os efeitos psicológicos e sociais do antigo trauma de
massa:

A agitação e a trepidação que precedem as convulsôes globais, a


destruição e o desespero que as acompanharam, e o horror da
possível repetição, tudo isso causou uma variedade de reações, na
base das quais estava a necessidade de esquecer, mas também o
estímulo para emular. Astrólogos e astrônomos, bem como adivinhos,
adivinhavam; conquistadores exceliam na devastação desumana e
cruel, invocando e imitando modelos planetários. Profetas e videntes
exortavam e sacerdotes propiciavam.

Vale a pena notar brevemente a existência de evidência física - sinais


das mudanças do nível do oceano, e das extinções simultâneas de
grande número de espécies vegetais e animais - que dão a entender
que ocorreram, de fato, destruições mundiais relativamente recentes.
Geólogos e arqueólogos mostram-se geralmente indecisos a respeito
da interpretação dessa evidência, e, não raro, referem-se a ela como
"misteriosa". Para os mitólogos e psicólogos, porém, não há o que
discutir: a memória da catástrofe é universal, e o terror persiste.
Nestes cinco primeiros capítulos examinamos as histórias da Criação,
do Paraíso, da Queda e da catástrofe, tais como foram contadas e
recontadas na literatura e nas tradições orais de cada parte do mundo.
Aqui, de acordo com os antigos sábios de todas as culturas, está a
explanação da atual condição dos seres humanos, e do mundo.
Mas o Paraíso não está inteiramente contido na mitologia. Aparece
também em outros aspectos da cultura humana. E se é objeto de um
nostálgico pesar, é também o combustível de um anseio
revolucionário e profético. Portanto, voltaremos a nossa atenção, em
seguida, para as erupções da imagem paradisíaca na profecia, na
literatura e no pensamento utópico, à proporção que progredirmos de
um estudo das memórias de um Paraíso original para visões do seu
retorno final.
CAPÍTULO 6
A Profecia: O Paraíso Antigo e o Paraíso Futuro
Porque agora, vemos como em espelho, obscuramente, então
veremos face a face: agora conheço em parte; então conhecerei como
também sou conhecido.
I Corintios 13:12

Paraíso não é apenas a matéria de memórias míticas.


Virtualmente, as pessoas de toda civilização e cultura tribal, em todas
as eras, alimentaram sonhos de um mundo de ouro por vir. Nas
culturas religiosas, as visões do Paraíso assumiram a forma de
profecias, ao passo que, no Ocidente secular moderno, propenderam
a expressar-se em obras literárias de ficção ou poéticas, e em teorias
sociais utópicas. Na Segunda Parte examinaremos essas várias
manifestações da visão do Paraíso, começando com as profecias de
uma volta final à Idade de Ouro.

No Fim como no Princípio

Profetas de todas as tradições espirituais imaginaram um fim


dramático para o atual estado de coisas humanas, e uma renovação
geral do mundo. O termo escatologia, referente a doutrinas do fim da
história e do mundo por vir, foi originalmente aplicado às profecias
judaicas e cristãs do juízo Final e do aparecimento do Reino
paradisíaco de Cristo, mas historiadores da religião costumam usá-Io
agora também com referência a temas semelhantes em outras
tradições. A especulação escatológica parece medrar em tempos de
crise. E se bem as imagens variem - desde a antecipação dos
pigmeus de Malaca de um grande dilúvio final, da qual se erguerão,
milagrosamente, os ossos dos homens e viverão de novo, até a
doutrina marxista do derradeiro triunfo revolucionário do proletariado
numa comunidade comunista paradisíaca - a mensagem fundamental
é notavelmente constante. O declínio moral ou espiritual da
Humanidade terá de culminar, em fim de contas, numa catarse de
dimensões cataclísmicas, da qual emergirá a semente de uma idade
restaurada de paz e perfeição. Esta semente é freqüentemente
personificada na pessoa de um messias, ou herói cultural
reencarnado.
Num texto babilônio primitivo já podemos discernir os elementos
essenciais das últimas e mais familiares escatologias hebraicas e
cristãs: haverá sinais no Céu, e o mundo se abismará em confusão:

"As pessoas venderão seus filhos por ouro, o marido abandonará a


mulher, a mulher abandonará o marido". Mas essa era de caos será
seguida de uma renovação universal, quando um Rei divino será
entronizado.

Os antigos iranianos acreditavam também numa confrontação final


entre o bem e o mal, quando o último dos descendentes espirituais de
Zoroastro surgirá para despertar os mortos e reabilitar a humanidade e
a Natureza. Um incêndio devorador abrirá caminho para "um novo
mundo, livre da velhice, da morte, da decomposição e da corrupção,
que viverá eternamente, que crescerá eternamente, quando os mortos
se levantarão, quando a imortalidade vier para os viventes, quando o
mundo será inteiramente renovado".
Os gregos e romanos tinham suas próprias escatologias -
influenciadas, sem dúvida, pelas dos babilônios, hebreus e iranianos -
às quais acrescentaram especulações acerca da recorrência de ciclos
cósmicos. O escritor romano Nemésio, do século V, por exemplo,
descreveu a crença, ainda corrente no seu tempo, relativa à
destruição e renovação do mundo, periodicamente repetidas:

Dizem os estóicos que os planetas serão restaurados para o mesmo


signo zodiacal, assim em longitude como em latitude, como já
aconteceu no princípio, quando o cosmo foi formado pela primeira vez;
que, em determinados períodos de tempo, uma configuração e a
destruição das coisas ocorrerão, e, mais uma vez, haverá uma
reconstituição do cosmo, tal como era no princípio. E quando as
estrelas se moverem da mesma maneira que antes, cada coisa que
ocorreu no período anterior será, sem variações, levada a acontecer
de novo.

Na Écloga "Messiânica", Virgílio aludiu a uma concepção da futura


repetição da Idade de Ouro, que se seguiria à era atual sem a
destruição interveniente do mundo. Seu poema preservou fielmente as
tradições literárias de Hesíodo e encontrou leitores entre os cristãos
primitivos. A criança do futuro, segundo Virgílio:

Nascerá para uma vida divina, e verá heróis misturando-se aos


deuses, e ela mesma será vista entre eles, e governará um mundo
restituído à paz pelas virtudes de seu pai. A ti, ó criança, a Terra, não
cultivada, oferecerá teus primeiros brinquedos - acompanhando o
rasto da hera com dedaleiras e o dos lírios com o acanto. ... A
serpente desaparecerá, e desaparecerão as enganosas ervas
peçonhentas. O bálsamo assírio será espargido sobre todas as beiras
de estrada.
Enceta tua grande carreira, querido filho dos deuses... o tempo agora
está à mão. Vê como treme o mundo debaixo da sua abóbada maciça,
as terras e a vastidão dos mares e o céu altaneiro: vê como tudo se
alegra com a idade que vai nascer.

À diferença de Virgílio, o nórdico teutônico profetizou que a renovação


do mundo só viria após uma grande destruição. De acordo com as
suas lendas, ragnarok, "o destino dos deuses", será precedido de um
período de anarquia, em que os seres humanos perpetrarão todo o
tipo de crimes hediondos. O céu, então, se abrirá, as estrelas cairão e
as montanhas serão despedaçadas em terremotos. Todos os deuses
morrerão, exceto Surtr, que fará seja a Terra envolvida pelas chamas,
destruindo o gênero humano. À maneira que as chamas se erguerão
para o Céu, a Terra afundará no mar. Mas, depois, ela se erguerá das
águas, renovada, fresca e verde, para ser repovoada. As estrofes
finais de Võluspá - a "Profecia da Sibila" - pintam uma imagem idílica
do Paraíso restaurado:

Agora vejo de novo a terra


Erguer-se, toda verde, das ondas outra vez;
As cataratas caem, a águia voa,
E apanha o peixe debaixo dos rochedos.

Em ldavoll reúnem-se os deuses


E falam do terrível cinteiro da terra.
E evocam o passado poderoso,
E as antigas runas do Soberano dos Deuses.

Maravilhosamente belas, mais uma vez,


As mesas de ouro estarão no meio da relva,
Que os deuses houveram nos dias de antanho.

Os campos não semeados produzirão frutos maduros,


Todos os males melhorarão, e Baldr voltará; ...

Mais bela do que o sol, vejo uma sala,


Com teto de ouro, assentada no Gimli;
Ali habitarão os justos soberanos.
E terão felicidade para sempre.

A crença na devastação do mundo pela água e pelo fogo antes da sua


renovação também existia entre os celtas, muito antes da chegada do
cristianismo. Documentos irlandeses nativos, por exemplo, atestam-
no: a profecia da deusa da guerra Babd e a de Ferdertne em The
Coloquy of the Two Sages lembram um pouco os contos de ragnarok
no Völuspá nórdico em suas descrições do fogo que deu cabo do
mundo.
Os muçulmanos esperam o Dia do juízo Final, assunto de muitos
suras, ou capítulos, do Corão. Nesse dia:
Quando a Trombeta for soprada com um único sopro e a terra e as
montanhas forem erguidas e esmagadas com um só golpe.
Então, nesse dia, o Terror sobrevirá, e o céu se partirá. ...
Nesse dia, ficareis expostos, nenhum segredo vosso será escondido.

Então os "Companheiros da justiça" serão "trazidos para junto do


Trono, no jardim das Delícias... recompensa pelo muito que
trabalharam. Ali não ouvirão conversas ociosas, nem causa alguma de
pecado, apenas o dito "Paz, Paz!" A seita Shia do Islã aguarda a
chegada do mahdi, "o divinamente guiado", o oculto duodécimo imã,
que reaparecerá nos Últimos Dias. E os drusos egípcios acreditam
que o califa egípcio al-Hakim, que reinou durante o período de 996 a
1021, para eles o último profeta e encarnação divina, voltará no fim do
mundo - que esperam ocorra no final do século XX.
A doutrina das idades do mundo no Mahabharata não é sem paralelo
nas passagens apocalípticas das literaturas iraniana, judaica, cristã e
islâmica. O fim da atual Kali Yuga, a idade da destruição, é descrito da
seguinte maneira:

E quando os homens começarem a entrematar-se, e se tornarem


perversos e selvagens, e sem nenhum respeito pela vida animal, a
Yuga chegará ao fim. E até a primeira das melhores classes, afligida
por salteadores, voará, como corvo, presa de terror, e partirá a grande
velocidade, buscando refúgio em rios, montanhas e regiões
inacessíveis. E sempre oprimida por maus governantes com cargas de
impostos, a primeira dentre as melhores classes, nesses tempos
terríveis, renunciará a toda paciência e cometerá atos impróprios. ... E
o baixo se tornará alto, e o curso das coisas parecerá invertido. E,
renunciando aos deuses, os homens adorarão ossos e outras relíquias
depositadas em muros. ... Tudo isso ocorrerá no fim da Yuga, e sabei
que estes são os sinais do fim da Yuga. E quando os homens se
tornarem violentos e destituídos de virtude, e carnívoros, e propensos
a bebidas embriagantes, a Yuga chegará ao fim. ... E o curso dos
ventos será confuso e agitado, e um sem-número de meteoros surgirá
subitamente no céu, prenunciando o mal. E o Sol aparecerá com seis
outros da mesma espécie. E tudo em torno será estridor e tumulto, e
em toda a parte haverá conflagrações. ... E fogueiras crepitarão de
todos os lados. ... E, quando chegar o fim da Yuga, corvos e cobras e
abutres e milhanos e outros animais e pássaros despedirão gritos
medonhos e dissonantes. ... E as pessoas errarão sobre a Terra,
exclamando: "Oh pai! Oh filho!" e outros gritos assustadores e
dilacerantes.

Mas O fim da Kali Yuga pressagia a recapitulação da Krita Yuga


paradisíaca.
Sempre - seja nas profecias orientais, seja nas ocidentais - o
desmoronamento da velha ordem assinala a emergência de um
Paraíso restaurado. Nichiren, professor religioso japonês do século
XIII, predisse que "a idade de ouro, tais como foram as idades quando
reinavam os reis sábios de outrora, realizar-se-á nesses últimos dias
de degeneração e corrupção, no tempo da Última Lei". Dizem os
tibetanos que estamos vivendo agora o fim de um período de 26.000
anos de trevas. Uma série de catástrofes globais, acompanhadas de
lutas políticas, iniciará uma Purificação e uma nova era de
espiritualidade e luz. A tradição Xambala do Tibete - preservada em
numerosos textos sagrados e ensinamentos orais - fala num reino
místico, escondido atrás de picos de neve, em algum lugar do norte.
Ali, uma linha de reis iluminados guarda os ensinamentos mais
secretos do budismo para um tempo em que toda a verdade do
mundo exterior se tiver consumido em guerras e cobiça. Então, de
acordo com a profecia, o rei de Xambala surgirá com um grande
exército para destruir as forças do mal e instaurar uma Idade de Ouro.
A batalha final se travará pouco depois que os bárbaros do mundo
exterior voarem sobre as montanhas de neve protetoras em "veículos
feitos de ferro", na tentativa de invadir Xambala.

Esperando o Milênio
Se bem que a expectativa de convulsões cósmicas e miséria humana
sem precedentes, conducentes ao retorno do Paraíso, seja quase
universal, as profecias mais familiares aos ocidentais são as da
tradição messiânica judaico-cristã. Com suas poderosas imagens de
um apocalipse futuro e do alvorecer de uma idade de paz, a tradição
profética no Ocidente modelou não só a religião, mas também os
movimentos sociais e literários.
Predisseram sistematicamente os profetas hebreus que, após uma
grande catástrofe cósmica, que, ao mesmo tempo, poria em
debandada os pagãos e purificaria o restante dos Filhos de Israel, os
justos voltariam a reunir-se na terra de seus pais e Deus habitaria
entre eles como governante e juiz.
Floririam os desertos; a Luz brilharia como o Sol, e o resplendor do
Sol aumentaria sete vezes; haveria grande cópia de todo o tipo de
alimentos; a doença e a tristeza desapareceriam; as pessoas viveriam
em alegria e paz perpétuas.
Foi, mais ou menos, ao tempo do declínio da sua nação, iniciado no
século VIII a.C., que os profetas hebreus começaram a profetizar que
a restauração do Paraíso dependeria do aparecimento de um herói
milagroso, o Messias. Embora fosse, a princípio, encarado como um
poderoso monarca da descendência de Davi, que levaria o seu povo à
vitória e à prosperidade, o Messias, mais tarde, foi retratado, em
termos sobre-humanos, como Filho do Homem, que apareceria
cavalgando as nuvens no Céu.
De acordo com o Apocalipse de Baruque, siríaco, composto no século
I d.C., o Messias só virá depois de um período de terríveis
atribulações, no tempo do último e do mais opressor dos impérios.
Destruirá o inimigo, aprisionando-lhe o chefe e levando-o,
acorrentado, ao cume do monte Sião. O Messias inaugurará um reino
de paz e uma idade de bem-aventurança, em que a fome, a dor, a
violência e, finalmente, a própria morte serão abolidas. Compelidos
pelo fascínio da crença no advento iminente do rei-salvador, os judeus
moveram a sua guerra suicida contra os romanos, que terminou com a
captura de Jerusalém e a destruição do Templo no ano 70 d.C.
Muitos cristãos primitivos interpretaram os ditos de Jesus segundo a
escatologia messiânica judaica então corrente, acreditado que o seu
advento prognosticava um fim rápido e cataclísmico de todas as
coisas. Suas profecias, vazadas na mesma linguagem da literatura
apocalíptica do tempo, pouco fizeram para diminuir tais expectativas:

E certamente ouvireis falar em guerras e rumores de guerras; vede,


não vos assusteis, pois é necessário assim acontecer, mas ainda não
é o fim.
Porquanto se levantará nação contra nação, reino contra reino, e
haverá fomes e terremotos em diversos lugares. ...
Porque nesse tempo haverá grande tribulação, como desde o princípio
do mundo até agora não tem havido, e nem haverá jamais. ...
Logo em seguida à tribulação daqueles dias, o sol escurecerá, a lua
não dará a sua claridade, as estrelas cairão do firmamento e os
poderes dos céus serão abalados.
Então aparecerá no céu o sinal do Filho do Homem; todos os povos
da terra se lamentarão, e verão o Filho do Homem vindo sobre as
nuvens do céu com poder e muita glória.
E ele enviará os seus anjos, com grande clangor de trombeta, os
quais reunirão os seus escolhidos, dos quatro ventos, de uma a outra
extremidade dos céus (Mateus 24;6,7,21, 29-31).
São João diante de Deus e dos Anciãos, de Albrecht Dürer, da série
de xilogravuras Apocalipse (1498)
Mas Jesus não aparecera como poderoso guerreiro, expulsando os
opressores romanos e instaurando um reino judaico edênico,
renovado. A primitiva igreja cristã viu-se, destarte, diante de um
problema: muitas profecias de Ezequiel, Isaías e Daniel continuavam
não cumpridas. Posto que o ungido tivesse vindo, os acontecimentos
não se desenrolavam através de uma intervenção divina apocalíptica,
mas de acordo com processos políticos e econômicos humanos
familiares. Resolveu-se o problema através da doutrina do Segundo
Advento: a nova idade, com efeito, aurorescera, mas não prevaleceria
sobre os negócios humanos enquanto Jesus não tivesse voltado À
Terra em poder e glória.
A doutrina do segundo advento foi formulada na parte final do século I
e incorporada no Livro da Revelação (Apocalipse), provavelmente o
trecho de literatura profética mais influente na história. Combinando
elementos judeus e cristãos num cenário escatológico poético e
imensamente poderosos, o Apocalipse de João (como o livro era
também conhecido) estabeleceu imagens e arquétipos - a Nova
Jerusalém, a mulher vestida de Sol, o dragão, a fera de sete cabeças
e dez chifres, o Cordeiro de pé no monte Sião, a meretriz de Babilônia,
o mar de vidro, os sete candelabros de ouro, as quatro bestas e sete
anjos - isso dominaria a imaginação profética por séculos a fio.
O capítulo 20 da Revelação descreve Satanás amarrado e lançado
num poço sem fundo, e mártires cristãos despertados dentre os
mortos e reinando com Cristo por 1.000 anos num Paraíso restaurado.
Depois desse Milênio acontecerá uma ressurreição geral dos mortos e
o Juízo Final, quando aqueles, cujos nomes não figuram no Livro da
Vida, serão lançados no lago de fogo. Então a Nova Jerusalém
descerá do Céu:

Vi novo céu e nova terra, pois o primeiro céu e a primeira terra


passaram, e o mar já não existe.
Vi também a cidade santa, a nova Jerusalém, que descia do céu, da
parte de Deus, ataviada como noiva adornada para o seu esposo.
Então ouvi grande voz vinda do trono, dizendo: Eis o tabernáculo de
Deus com os homens. Deus habitará com eles. Eles serão povos de
Deus e Deus mesmo estará com eles.
E lhes enxugará dos olhos toda lágrima, e a morte já não existirá, já
não haverá luto, nem pranto, nem dor, porque as primeiras coisas
passarão.
E aquele que está assentado no trono disse: Eis que faço novas todas
as coisas (Revelação 21:1-5).

O Livro da Revelação foi a expressão quitessencial da profunda


corrente profética da qual dimanou o próprio cristianismo. Mas, à
medida que a Igreja primitiva deixou de ser um grupo de visionários
perseguidos para tornar-se a religião oficial do estado do império
romano, o milenarismo, com suas visões do desbarato de toda
autoridade temporal, passou a ser visto como uma doutrina
perigosamente revolucionária e mística. O teólogo helênico Orígenes,
do século III, foi o primeiro dos padres da Igreja a rejeitar uma
interpretação literal das profecias apocalípticas da Revelação. A partir
do seu tempo, o cristianismo dividiu-se entre os alegoristas do
estabelecimento, que vêem o Milênio como um estado espiritual em
que a Igreja entrou em Pentecostes, e inumeráveis seitas milenaristas
radicais, que insistem em tomar as profecias bíblicas ao pé da letra.
Da heresia montaniana do século II, às predições amplamente cridas
do iminente alvorejar de uma idade de amor (originadas de Joaquim
de Flora na Idade Média), ao milenarismo de Charles Taze Russell e
das Testemunhas de Jeová em nossa própria era, a civilização
ocidental tem sido periodicamente varrida por movimentos proféticos e
messiânicos radicais. Hoje, visões de um Paraíso restaurado,
baseadas nas profecias do Antigo e do Novo Testamento, continuam a
afeiçoar a visão do mundo de milhões de cristãos em toda a parte. Os
acontecimentos do século XX nada fizeram para amortecer tais
expectativas, e o movimento milenarista nos Estados Unidos continua
a crescer, à proporção que livros, revistas e programas de rádio e
televisão, dedicados à interpretação da profecia bíblica, alimentam o
agudo interesse de ampla audiência.

A Grande Purificação
O pensamento apocalíptico não é, de maneira alguma, único nas
religiões escriturais. Povos tribais, em todas as partes do mundo,
preservaram suas próprias tradições não escritas falando do fim
eventual do mundo presente, que será seguido pela restauração do
Paraíso original.
No correr dos últimos séculos, as antigas crenças indígenas foram
aumentadas e transformadas pelo contato com missionários, e
centenas de novos movimentos religiosos tribais - não raro de caráter
dramaticamente escatológico apareceram. Embora seja, às vezes,
difícil para os antropólogos distinguir entre elementos indígenas e
elementos emprestados nas novas religiões, em quase todos os casos
os próprios povos tribais acreditavam que suas profecias - antigas ou
recentes - estão sendo cumpridas por acontecimentos que cercam a
colisão de suas culturas, relativamente pequenas e indefesas, com o
momento gargantuesco da civilização. É como se o mundo estivesse
sendo despedaçado por forças sobrenaturais que preparassem o
cenário para uma destruição universal final e o aparecimento de um
modo de ser inteiramente novo. Em muitos casos, as convulsões
culturais, que os povos tribais experimentaram durante os
últimos séculos, parecem apenas confirmar as antigas profecias de
um tempo em que os seres humanos se tornariam tão cúpidos que os
deuses os destruiriam para dar lugar a uma nova Criação.
Quetzalcoatl, a Serpente emplumada e deus civilizador dos toltecas,
foi associado ao planeta Vênus e considerado o deus da magia

Segundo os habitantes das ilhas Andamão, o mundo chegará ao fim


num grande terremoto, que destruirá a barreira entre o Céu e a Terra.
Os espíritos dos mortos serão, então, reunidos às suas almas, e os
seres humanos levarão vidas felizes, sem doenças, morte ou
casamento. Mesmo agora, dizem eles, os espíritos impacientes do
mundo inferior estão começando a sacudir as raízes da palmeira que
sustenta a Terra, para acelerar-lhe o fim.
Os aborígines da Austrália acreditam que o fim do mundo virá quando
a Lei do Tempo de Sonho - o código de rituais estabelecido pelos
Antepassados-Criadores - deixar de ser cumprida. Entre muitas tribos
aborígines, os últimos membros iniciados nesses códigos de ritual
estão ficando velhos, sem nenhum jovem iniciado para ocupar lhes o
lugar. A Lei do Tempo de Sonho está sendo esquecida, e os anciãos
pressagiam conseqüências terríveis para o mundo inteiro.
Os habitantes das ilhas Mortlock, do Pacífico sul, predizem igualmente
que, quando chegar o dia em que as pessoas deixarem de adorar a
Boa Sorte-Criadora, quando moverem guerras e cometerem pecados,
o Senhor do Mundo dará cabo delas. Tudo se arruinará; somente os
deuses viverão em seu Paraíso celestial.
Os pigmeus do Gabão, na África ocidental, dizem que, no princípio,
Kmvum, o progenitor arquetípico da raça humana, vivia na Terra com
toda a sua progênie numa Idade de Ouro. Mas o povo o traiu, e
chegou o dia da separação. Asseveram os pigmeus que, no fim da
idade atual, Kmvum retornará, trazendo consigo alegria, abundância e
felicidade.
Os tártaros altaicos acreditam, da mesma forma, que Tengere Kaira
Khan, o "gracioso imperador do Céu", que antigamente vivia entre os
homens, voltará no fim do mundo.
Os toltecas e astecas da América Central lembravam-se das profecias
de um padre nascido por volta do ano de 950 d.C., que consideravam
a reencarnação de Quetzalcoatl, o qual aparece na mitologia deles,
variamente, como herói cultural, figura de Cristo, e serpente
emplumada celestial. Diz-se que o Quetzalcoatl primordial ensinou
agricultura, astronomia, matemática e teologia aos maias no princípio
da sua história. O Quetzalcoatl reencarnado do século X predisse aos
toltecas que alguém como ele na aparência - barbudo e de pele clara -
viria um dia do Oriente, ostentando um penacho de penas e roupas
que brilhariam como o Sol, numa canoa de asas imensas. Em 1519,
quando Hernán Cortés chegou numa caravela, exibindo uma
armadura brilhante e um elmo emplumado, o imperador asteca
Montezuma reconheceu imediatamente o cumprimento da profecia.
Quetzalcoatl predissera que a chegada do homem branco
barbudo daria início a um período de nove "infernos" - ciclos de
cinqüenta e dois anos de trevas espirituais. No fim dos nove infernos,
viria um tempo de depuração e purificação supremas, quando cidades
e montanhas desabariam e a maior parte de mundo seria reduzida a
cascalho pelo fogo. Quetzalcoatl prometeu voltar nesse tempo para
encetar uma idade de Ouro de renovação espiritual.
As tribos índias salish, do noroeste do Pacífico, dizem que, antes de
haver deixado a Terra, o Deus-Criador prometeu voltar no fim dos
tempos. O mundo, então, renascerá, e todos os seres humanos
viverão juntos em paz e felicidade. A terra dos espíritos já não estará
separada do mundo físico, e todas as coisas serão endireitadas.
Consoante o mito pawnee, haverá uma terminação para toda a vida
terrena, precedida de portentos horripilantes: a Lua ficará vermelha e
o Sol morrerá. A Estrela do Norte presidirá à grande destruição.
"Quando vier o tempo de todas as coisas terminarem", dizem os
profetas pawnees, "o nosso povo se transformará em estrelinhas e
voará para a Estrela do Sul, que é o lugar delas." Os profetas da tribo
mesquakie prognosticaram a vinda de um tempo em que muitos
animais seriam extintos e as pessoas se assentariam e ficariam
olhando para uma caixa, vendo coisas acontecerem muito longe, e
ouvindo vozes de pessoas que não estavam presentes. Esses
videntes tribais previram inundações e terremotos como o meio de
limpar a Terra de tudo o que os seres humanos fizeram, a fim de que
a condição original do mundo pudesse ser restaurada.
Dizem os hopis que os seus profetas, há muito tempo, preanunciaram
a vinda de caixas com rodas, que rolariam sobre "cobras pretas",
estendidas de um lado a outro da terra. Eles também falavam de "teias
de aranha" especiais, por cujo intermédio as pessoas seriam capazes
de comunicar-se através de longas distâncias. Os profetas hopis
dizem que, dentro dos próximos decênios, a humanidade se destruirá,
ou entrará numa nova idade espiritual, o Quinto Mundo. Prevêem
guerras, fomes e desastres naturais como etapas da Grande
Purificação.
Como já se ressaltou, muitas escatologias tribais, de origem recente,
apareceram como respostas a contatos com a civilização, e,
particularmente, com os missionários cristãos. Famoso e trágico
exemplo é o movimento da Dança Fantasma dos índios das planícies
da América do Norte central. O movimento originou-se entre os
paiutes, por volta de 1860, e foi-se estendendo para o oeste até, mais
ou menos, 1873; um ressurgimento, inspirado por Wovoka, profeta-
messias paiute, espalhou-se para leste no final da década de 1880 e
culminou na chacina dos lakotas (sioux) em Wounded Knee Creek em
1890.
Segundo os profetas do movimento, no tempo da sua realização a
força espiritual inundaria a Terra. Os fiéis teriam de dançar por cinco
dias, até ser induzido um transe profundo, e teriam de repetir o
processo de seis em seis semanas. Os sacerdotes da dança curariam
pelo toque e, dizia-se, eram capazes de ver o mundo do espírito.
Conduzidos por Touro Sentado, os lakotas foram inteirados de que,
através das ações da raça branca, o Grande Espírito os castigara, e
que a libertação estava à mão. As suas fIleiras reduzidas seriam
aumentadas pelos fantasmas dos antepassados, e as balas do
homem branco já não seriam capazes de penetrar a carne índia. Foi
esse sentido de invencibilidade que desencadeou o ataque suicida
dos lakotas em Wounded Knee.
James Mooney, etnólogo que escreveu ao tempo do movimento da
Dança Fantasma, pintou-o da seguinte maneira:

O grande princípio fundamental da doutrina da Dança Fantasma é que


tempo virá em que toda a raça índia, vivos e mortos, será reunida
numa terra regenerada, para viver uma vida de felicidade aborígine,
livre para sempre da morte, da doença e da miséria. Sobre esse
fundamento, cada tribo construiu uma estrutura proveniente da sua
própria mitologia, e cada apóstolo e crente preencheu as minúcias
segundo sua própria capacidade mental ou idéias de felicidade, com
as adições que lhe acudiram no transe.

A Dança Fantasma, de que muitas tribos (como a dos navajos e a dos


hopis) não participaram, não foi o primeiro nem o último novo
movimento escatológico americano nativo. As circunstâncias que lhe
deram origem - pouco melhoraram. Os modernos líderes espirituais
americanos nativos recordam com tristeza a tragédia de Wonded
Knee e não têm nenhum desejo de ressuscitar as ilusões de
invencibilidade guerreira, associada à Dança Fantasma. Entretanto,
não podem senão reiterar a profecia fundamental que desencadeou o
malfadado movimento: a cupidez e o coração empedernido do mundo
moderno terá de morrer num tempo catártico de purifIcação, quando
não só o povo branco, mas os índios também terão de enfrentar, en
masse, os resultados de suas atitudes e ações. Depois disso, só se
permitirá que a vida continue se as pessoas retornarem ao caminho
sagrado original.
Uma das mais eloqüentes enunciações modernas da visão americana
nativa está contida nestas palavras do ancião hopi Dan Katchongva:

Os hopis são a família deste continente, como outros são a família de


outros continentes. Portanto, se os hopis forem votados à destruição,
o mundo inteiro será destruído. Sabemos disso porque a mesma coisa
aconteceu no outro mundo. Por conseguinte, se quisermos sobreviver,
deveremos voltar ao modo de vida do princípio, o modo pacífico, e
aceitar tudo o que o Criador estipulou para nós.
Meu pai, Yukiuma, costumava contar-me que eu seria aquele que
assumiria as funções de chefe neste tempo, porque pertenço ao [Clã
do] Sol, o pai de todos os povos da Terra.
Disseram-me que não cedesse, porque sou o primeiro. O Sol é o pai
de todas as coisas vivas desde a primeira criação. E se eu for
destruído, eu, do Clã do Sol, não haverá mais nenhuma coisa viva na
Terra. Por isso me mantive firme. Espero que compreendam o que
estou tentanto dizer-Ihes.
Sou o Sol, o pai. Com o meu calor todas as coisas são criadas. Vocês
são meus filhos, e estou muito preocupado com vocês. Rogo-lhes que
se protejam de todo mal mas o meu coração se confrange ao vê-los
deixar os meus braços protetores e destruir-se uns aos outros. Do seio
de sua mãe, a Terra, vocês receberam nutrição, mas ela está tão
perigosamente mal que não poderá dar-lhes alimento puro. Como há
de ser? Vocês querem alegrar o coração de seu pai? Querem curar os
males de sua mãe? Ou preferem abandonar-nos e deixar-nos com a
tristeza, para sermos desintegrados? Não quero que este mundo seja
destruído. Se o mundo for salvo, todos vocês serão salvos, e
quem quer que tenha agüentado firme completará este plano conosco,
de modo que todos seremos felizes de Maneira Pacífica.

Um novo Paraíso está esperando, mas a humanidade precisa,


primeiro, sofrer uma depuração catártica. Poucos profetas olharam
para além do dia da PurifIcação para descrever os eventos da Idade
de Ouro restaurada, pois o mundo futuro será inconcebível em termos
do mundo presente. Com a volta do Paraíso, a história - como crônica
de guerras e intrigas, maquinações e vilões - estará acabada. A
Humanidade e a Natureza, o Céu e a Terra mais uma vez se ajuntarão
em paz e harmonia, como um novo Início-dos-Tempos da Criação.

CAPÍTULO 7
O Paraíso como Força na Cultura Humana
... A Idade de Ouro, o mais improvável de todos os sonhos que já
existiram, mas o único pelo qual os homens deram a vida e toda a sua
força, pelo qual profetas morreram e foram mortos, sem o qual os
povos não querem viver e não podem sequer morrer!
Fiódor Dostoievski

A visão do Paraíso acende a imaginação humana como poucas outras


idéias, imagens ou sonhos já o fizeram. Nosso maior desejo é de um
estado em que todas as nossas interações se baseiem numa troca
livre, mútua e nobre de amor. Toda a gente deseja estar numa
condição de harmonia relaxada e, no entanto, íntima e premeditada,
com o conjunto da vida. E assim é compreensível que a expressão
quintessencial desses anseios, na imagem mítica do Paraíso, evoque
naturalmente uma resposta profunda. É uma imagem de
transcendência, radiância, vôo místico e união da espécie humana
com a Divindade e a Natureza. Descreve e explica, a um tempo, a
essência do mal humano, e culmina na imagem da jornada heróica
que vai da condição humana decaída atual ao estado original de união
perfeita.
Neste capítulo estudaremos três das muitas maneiras com que a
imagem paradisíaca configurou o curso da civilização. Primeiro,
acompanharemos o tema do Paraíso na literatura ocidental da Idade
Média até o presente. Depois, veremos como o anseio de um Paraíso
terrestre produziu o fenômeno do sonho americano. Finalmente,
seguiremos a corrente da visão edênica fluindo através das teorias e
experiências sociais mais importantes da história.

O Paraíso na Literatura
A literatura, como todas as formas de arte, geralmente se avalia
criticamente em função da sutileza ou delicadeza com que é
trabalhada. Mas somente as considerações formais pouco explicam
por que um poema ou um romance alcançam a imortalidade ao
mesmo tempo que outros caem no esquecimento. Um guia mais
seguro para chegar à força da literatura é a sua capacidade de evocar
e satisfazer anseios arque típicos universais.
Confirmam essa maneira de ver os descobrimentos de uma escola
relativamente nova de análise literária, conhecida como crítica arque
típica ou mítica. Seus pioneiros, Maud Bodkin (autora de Archetypal
Patterns in Poetry) e Northrop Frye (autor de Anatomy of Criticism),
não procuraram a fonte da atração universal da literatura na forma ou
no conteúdo por si só, mas nos padrões universais de imagens e
narrativa, como os que modelaram os mitos e rituais antigos. E os
padrões encontrados pelos críticos míticos saltam quase todos das
imagens do Paraíso e de sua perda, ou da busca heróica da sua
renovação. Em seus estudos minudentes e eruditos, os críticos
míticos mostraram que grande parte da maior e mais profundamente
comovente literatura da história deve seu poder de inspiração ao mito
paradisíaco.
O tema do Paraíso na literatura é tão vasto que não podemos esperar
fazer-lhe justiça numas poucas páginas. A única solução é limitar o
âmbito do nosso estudo, e, por conseguinte, escolhi um pequeno
núcleo de exemplos tirados das literaturas européia e americana.
A divina comédia de Dante Alighieri (1265-1321) é geralmente
considerada a maior obra literária singular escrita em língua italiana.
Poema épico de três grandes divisões - o Inferno, o Purgatório e o
Paraíso - descreve a jornada imaginária de Dante, através do inferno e
do tormento do pecado, para a montanha do purgatório, onde as
almas lutam para aprender a virtude. Dali, Beatriz - em que Dante
personificou a iluminação do outro mundo - conduz o poeta, através
de nove céus, ao Empíreo, oniabrangente e ilimitado, onde lhe é
consentida uma breve visão do próprio Deus:

Vindos do último corpóreo chegamos


Ao Céu, que é luz sem corpo;
Luz intelectual repleta de amor;
Amor da verdadeira felicidade, repleta de alegria
Alegria, que transcende toda a doçura do deleite.

Na procura de palavras para transmitir a experiência do infinito, Dante


se vale de imagens religiosas vívidas - derivadas, por certo, de fontes
medievais cristãs, mas talvez também do folclore zoroastriano e
islâmico, com os quais elas mantêm estreita semelhança.
A descrição de Dante de uma jornada ao Paraíso foi, como mostrou
Howard R. Patch em The Other World According to Descriptions in
Medieval Literature (1950), uma reformulação magistral do que foi
provavelmente o tema mais difundido na literatura e no folclore
europeu da pré-Renascença. No romance, na alegoria e nos tratados
didáticos, a imaginação medieval tentou, reiteradamente, descrever
um jardim de delícias terreno ou do outro mundo, cheio de fontes e
árvores carregadas de frutos, pássaros de canto suave, e
pavilhões adornados de flores, cristais e jóias. A realização de Dante
não se restringe ao seu poder de expressão literária, mas se estende
também à sua capacidade de penetrar o âmago do anseio que lhe
inundava o mundo. Ao fazê-Io, criou um poema que, aos olhos de
quase todos os críticos literários dos três últimos séculos só encontrou
igual depois do aparecimento do Paraíso perdido de Milton.
O plano do monte do Purgatório de Dant

Em sua obra suprema, o brilhante poeta inglês John Milton (1608-


1674) colocou diante de si o problema do mal: por que, se existe, e é
benevolente, permite Deus a tortura e a destruição da humanidade
pela guerra, pela doença e pela fome? A resposta de Milton sumariava
a visão espiritual da cristandade protestante. A humanidade sofre em
razão de uma perversidade inata, originária do primeiro casal. Adão e
Eva foram criados perfeitos e deu-se-Ihes uma liberdade cuja
amplitude nenhum ser humano conheceu depois disso.

Não havia então a vergonha culpada, a vergonha desonesta...


Assim passavam nus, sem evitar a vista
De Deus ou de anjo, pois não cogitavam no mal:
Assim passava, de mãos dadas, o mais lindo par
Que desde então se encontrou nos abraços do amor,
Adão, o mais belo dentre os homens desde então nascidos,
Seus filhos, a mais bela de suas filhas, Eva.

Entretanto, nossos primeiros pais optaram pela ciência e pela morte,


em lugar da obediência e da vida. Foi apenas uma punição apropriada
privá-Ios Deus então da liberdade e expulsá-Ios do Jardim para
morrerem num mundo que a sua própria transgressão tornara hostil. A
futilidade e a tristeza da humanidade presente, aliás inexplicável num
mundo criado por um Deus de misericórdia, são o resultado do crime
original. Desejos maus atormentam os seres humanos por dentro, e a
Natureza, que não perdoa, os ataca por fora. Todavia, com um
procedimento sóbrio, integridade no viver, e a graça de Deus, os
humanos podem esperar, de novo, atingir a liberdade de espírito e a
perfeição da alma - embora apenas individualmente e em grau
limitado.
O impacto do poema de Milton sobre a literatura inglesa foi
comparável ao impacto do poema de Dante sobre a italiana. Entre
1700 e 1800, publicou-se o Paraíso perdido mais de cem vezes; em
cqmpensação, no mesmo período, as obras de Shakespeare
apareceram apenas em 50 edições. O próprio Milton sentia estar
escrevendo - ou melhor, ditando, visto que cegara quando o poema foi
composto - por inspiração direta. À qualidade dessa visão interior deve
talvez o Paraíso perdido a sua continuada influência.
Não muito depois da morte de Milton, um popular pregador batista,
chamado John Bunyan (1628-1688), reformulou a busca do Paraíso
na linguagem da Inglaterra puritana. O livro de Bunyan, The Pilgrim's
Progress from This World to That Whitch Is to Come, era um retrato
alegórico de sua própria jornada íntima, que começou na infância,
como filho dissoluto de um latoeiro do interior, e abrangeu sua
dramática conversão religiosa, seu sucesso como ministro, lutando
como soldado do lado dos parlamentaristas na guerra civil, e sua
prisão fInal - circunstância que Bunyan usou vantajosamente para
escrever a sua obra-prima, a qual, no seu tempo, alcançou uma
popularidade que só perdia para a da Bíblia.
O principal personagem do romance é Cristiano simbolicamente o
próprio Bunyan - que, no começo da história, se encontra carregado
de pecados. Conhece um homem chamado Evangelist, que insta com
ele para que deixe a Cidade da Destruição e parta em busca de uma
luz distante, que o guiará para a Porta do Postigo, onde terá início a
sua jornada. Obstinado e Flexível tentam demovê-Io de seguir esse
caminho, mas os seus argumentos não surtem efeito. Flexível até se
oferece para juntar-se a Cristiano, e, no caminho, caem os dois, no
Charco do Desânimo, do qual escapam com dificuldade. Cristiano
continua a encontra empecilhos criados por personagens como os
senhores Feiticeiro Mundano (que vive na cidade de Esperteza
Carnal), Legalidade, Civilidade, Simplório, Preguiçoso, Presunção,
Formalista e Hipocrisia. Precisa escalar o Morro da DifIculdade e
atravessar os vales da Humilhação e da Sombra da Morte.
Finalmente, chega às Montanhas Deleitáveis, mas ainda tem de
cruzar o Rio da Morte, antes de chegar à sua meta - a
Cidade Celestial. A descrição do Céu, feita por Bunyan, é, ela própria,
uma fonte de imagens paradisíacas:

Construída de pérolas e pedras preciosas, suas ruas


eram pavimentadas de ouro; de modo que, em razão da glória natural
da Cidade, e dos raios do sol, que nela se refletiam, Cristiano se
sentiu doente de desejo.

Quando se aproximaram da Cidade, Cristiano e seu companheiro


Esperançoso, toparam com "homens brilhantes" e deixaram para trás
seus "trajes mortais".

Vocês vão indo agora, disseram eles, para o paraíso de Deus, no qual
verão árvore da Vida, e comerão dos frutos dela, que nunca murcham:
e, quando chegarem lá, ser-lhes-ão dados mantos brancos, e os seus
passeios e discursos serão todos os dias com o Rei, até todos os dias
da eternidade. ... Naquele lugar vocês usarão coroas de ouro, e fruirão
da vista e da visão perpétuas do Santo: pois ali "o verão como ele é".

Os séculos XVIII e XIX viram a literatura afastar-se das imagens


notoriamente bíblicas e seguir as descrições mais realistas e
psicologicamente penetrantes da condição humana. Durante esse
período, que abarcou a Idade da Razão e o aparecimento da escola
romântica, registraram-se poucas tentativas de pintar o Paraíso
diretamente. Em vez disso, os escritores lutaram com o problema
universal do mal e a busca heróica do amor, da felicidade e da justiça.
Essas tendências, exemplificadas nas obras de Defoe, Dickens e
Melville, chegaram ao fim da visão do mundo paradisíaco nas obras
do romancista russo Fiódor Dostoiévski.
Dostoiévski, cujos estudos, em obras de ficção, da mente e do espírito
humanos influenciaram não só a psicologia profunda mas também a
fIlosofia existencial, teve uma vida desafortunada e cheia de lutas
mesmo depois de ter chegado à sua própria marca não ortodoxa e
mística de Cristianismo, quando ainda não completara quarenta anos
de idade. Em seu conto "O sonho de um homem ridículo", trouxe à
vida o mito do Paraíso como talvez nenhum outro autor moderno o
tenha feito. O narrador da história está à beira do suicídio quando
adormece numa poltrona e sonha haver dado um tiro na cabeça. Em
lugar de experimentar dor, seguida do esquecimento, surpreende-se a
presenciar as próprias exéquias e sepultamento. Do túmulo, é
transportado por algum "ser escuro e desconhecido", através do
espaço, para outro mundo, geograficamente parecido com a Terra,
mas muito diferente em outros sentidos:

De repente, praticamente sem notar como, vi-me nessa outra terra, à


luz brilhante de um dia de sol, bela como o paraíso. ... Fulgia a relva
com flores brilhantes e fragrantes. Os pássaros voavam em bandos
pelo ar, e vinham empoleirar-se, destemerosos, nos meus ombros e
braços, e batiam alegremente em mim com as bonitas asas
palpitantes. E, finalmente, vi e conheci o povo dessa terra feliz. As
pessoas vieram a mim espontaneamente, cercaram-me, beijaram-me.
Os filhos do sol, os filhos do seu sol - oh, como eram belosl Eu nunca
vira, em nossa própria terra, tanta beleza na humanidade. Somente
talvez em nossos filhos, nos primeiros anos, se poderia encontrar um
pálido e remoto reflexo dessa beleza. Os olhos dessa gente ditosa
cintilavam com um brilho claro. Tinham o rosto radiante com a luz da
razão, e uma serenidade plena, que vem da compreensão perfeita;
não obstante, eram rostos alegres; nas palavras e na voz soava uma
nota de alegria infantil. Desde o primeiro momento, desde o primeiro
olhar que Ihes dirigi, compreendi tudo! Era a terra não maculada pela
Queda; nela viviam pessoas que não tinham pecado. Viviam num
paraíso como aquele em que, segundo todas as lendas da espécie
humana, viveram nossos primeiros pais antes de pecar.

Dostoiévski continua descrevendo o modo de vida dos habitantes


desse Paraíso do mundo dos sonhos:
Eles não tinham, por exemplo, uma ciência como a nossa. Logo,
porém, compreendi que o seu conhecimento era obtido e alimentado
por intuições diferentes das nossas na terra, e que as suas aspirações
também eram muito dessemelhantes. Não desejavam nada e estavam
em paz; não aspiravam ao conhecimento da vida, como nós
ambicionamos compreendê-Ia, porque suas vidas eram cheias. Mas o
seu conhecimento era mais elevado e mais profundo do que o nosso;
pois a nossa ciência procura explicar o que é a vida, almeja
compreendê-Ia em ordem a ensinar os outros a viverem, ao passo que
eles, sem ciência, sabiam viver; e isso compreendi, embora não
pudesse compreender-Ihes o conhecimento. Mostraram-me as suas
árvores, e não pude entender o amor intenso com que olhavam para
elas, como se estivessem conversando com criaturas da mesma
espécie. E talvez eu não esteja enganado se disser que conversavam
com elas. Sim, tinham encontrado a linguagem das árvores, e estou
convencido de que estas os compreendiam. Olhavam para toda a
natureza dessa maneira - para os animais que viviam em paz com
eles e não os atacavam, mas os amavam, vencidos pelo seu amor.
Apontavam para as estrelas e diziam-me alguma coisa a respeito
delas que eu não compreendia, mas estou persuadido de que, de um
modo ou de outro, mantinham contato com as estrelas, não somente
em pensamento, mas também por meio de algum canal vivo.
Não havia brigas, nem inveja entre eles, e nem mesmo sabiam o que
significavam essas palavras. Seus filhos eram os filhos de todos, pois
todos formavam uma só família. Dificilmente aparecia alguma
enfermidade, embora houvesse morte; mas os velhos morriam
pacificamente, como se estivessem adormecendo, distribuindo
bênçãos e sorrisos aos que os cercavam para receber-Ihes o último
adeus, com sorrisos brilhantes e afetuosos. Nunca vi sofrimento nem
lágrimas nessas ocasiões, apenas amor, que antingia o ponto do
êxtase, porém de um êxtase calmo, tornado perfeito e contemplativo.
Dir-se-ia até que eles estivessem ainda em contato com os falecidos
depois da morte, que não lhes contara a união terrena. Escassamente
me compreendiam quando eu Ihes fazia perguntas sobre a
imortalidade, mas estavam, evidentemente, tão convictos dela, sem
refletir no assunto, que isso, para eles, não era pergunta que se
fizesse. Não tinham templos, mas uma vida real e um sentido
ininterrupto de identidade com todo o universo.

O protagonista de Dostoiévski, inadvertidamente, produz uma Queda


apresentando a mentira, a vergonha, a guerra, o crime e a escravidão
- bem como a ciência, que tão-somente permite ao povo racionalizar
os novos males. O narrador, quase louco, vê os resultados da
corrupção, e, arrependido, prega o perdão e a redenção. Sua fórmula
para o retorno da Idade de Ouro acha-se sintetizada na Regra de
Ouro: "... num dia, numa hora, tudo será estabelecido imediatamente.
O principal é amar aos outros como você ama a si próprio. ... Logo em
seguida, descobrirá o que deve fazer".
Se a descrição de um Paraíso terreno pareceu, às vezes, ingênua a
leitores adultos, sofisticados, modernos, nunca deixou de ser, apesar
disso, um expediente essencial na literatura infantil. Pensamos
imediatamente na Cidade das Esmeraldas em O mágico de Oz, a
Terra do Nunca de Peter Pan, e nos animais falantes em Through the
Looking Class. O super-homem, como o sabem os leitores de histórias
em quadrinhos e todos os freqüentadores de cinema, foi mandado
para a Terra ainda bebê pelos pais do planeta paradisíaco Krypton,
que se achava prestes a ser engolido por um cataclisma. Disfarçado
no jornalista de modos suaves Clark Kent, o herói emprega os seus
poderes de vôo e a sua visão de raios X para derrotar as forças do
mal em prol da "verdade, da justiça e do estilo de vida americano".
Algumas obras de ficção arquetípica, se bem deixem de alcançar a
grandeza na literatura, mercê de imperfeições na forma ou no estilo,
logram ampla popularidade. Um dos romances que mais se venderam
na década de 1930 foi Horizonte Perdido, de James Hilton (que Frank
Capra transformou num clássico do cinema). O cenário da história é
um Paraíso himalaico, remoto e isolado, chamado Xangrilá, criado no
início do século XVIII por um frade capuchinho, que, pouco antes de
morrer, deu com o Vale da Luz Azul. Horizonte Perdido é a história de
um herói do século XX, o qual, com seu irmão e um avião carregado
de ingleses e americanos sofisticados, é levado para a cidade
escondida. Volvido algum tempo, Conway compreende que está
sendo preparado para ser o sucessor do agora velho frade
capuchinho, que ainda preside a comunidade. Ao invés de aceitar o
encargo, Conway decide escapar com o irmão, para quem Xangrilá é
o inferno na Terra. A história acaba com a luta de Conway para voltar
ao Paraíso.
Grande parte da literatura popular das últimas décadas assumiu a
forma de ficção científica, gênero que oferece ilimitada extensão para
o relato de temas míticos. As viagens pelo espaço podem ser vistas
como nova expressão do anseio imortal de um Paraíso fora dos limites
da existência mundana. Na ficção científica encontramos amiúde
descrições de planetas paradisíacos ou de mundos destruídos por
catástrofes, que se seguem a algum declínio moral. Exemplos
notáveis aparecem nas obras de Frank Herbert (Cod Emperor of
Dune) e Ursula Le Guin (The Dispossessed).
Dentro da vasta e irregular coleção de escritos da ficção científica,
algumas das obras mais bem escritas e mais mitologicamente
penetrantes são os romances de Doris Lessing. Shikasta (1981) fala
de um planeta edênico, Rohanda, que sucumbe à desobediência e à
resultante Moléstia Degenerativa. Lessing sopra vida nova nas
imagens do antigo Paraíso; sua descrição de Rohanda evoca visões
de Stonehenge e das pirâmides quando eram novas. Assim como os
druidas e egípcios antigos erguiam seus monumentos para misturar e
mediar as forças do Céu e da Terra, os rohandanos usavam suas
cidades geométricas e alinhamentos de pedra para manter contato
constante com a fonte cósmica da ordem e do controle, a estrela
Canopo.

A força de Canopo era continuamente dirigida a Rohanda. As forças


novas, cada vez mais aprofundadas, de Rohanda eram continuamente
dirigidas de volta a Canopo. Em virtude desse preciso e perfeito
intercâmbio de emanações, o principal objetivo e alvo da galáxia eram
fomentados - a criação dos sempre envolventes Filhos e Filhas do
Propósito.

Rohanda, contudo, mercê de uma falha interna, transforma-se em


Shikasta. "Para identificar-nos como indivíduos - esta é a verdadeira
essência da Moléstia Degenerativa, e cada um de nós, no Império de
Canopo, aprende a avaliar-se apenas na medida em que está em
harmonia com o plano."

Sonhos de um Paraíso Terreno


A ficção transforma-se gradualmente em não-ficção. Durante milênios,
pessoas de todas as culturas presumiram que, em alguma região
geograficamente remota, existia realmente um sítio de beleza, paz e
abundância, à espera de ser descoberto e explorado. Muitos autores
gregos primitivos especializaram-se no gênero da narrativa fantástica
do viajante: desde as viagens dos argonautas em busca do Velocino
de Ouro, até as descrições de Hecateu e Diodoro Siculo dos
hiperbóreos - raça que vivia num estado de Idade de Ouro num lugar
"além do vento do norte" - os leitores se regalavam com histórias de
jornadas a terras mágicas. Algumas eram relatos exagerados de
expedições reais, em que se romanceava a existência primitiva de
povos tribais como uma sobrevivência da Raça de Ouro de Hesíodo.
Em outros casos, as histórias eram inteiramente fictícias - como, por
exemplo, a descrição de Diodoro da viagem de lambulo a uma "ilha
feliz" no sul, onde as pessoas, altas e belas, têm ossos de borracha e
língua bífida, que lhes permite manter duas conversações ao mesmo
tempo.
Tais histórias de um Paraíso terreno ainda existente não são, de
maneira alguma, um fenômeno exclusivo da cultura ocidental. Já
notamos a lenda tibetana de Xambala, a qual, conforme a crença
popular, está escondida num vale remoto nos Himalaias. Certos textos
budistas afirmam conter instruções para ir ao reino perdido, enquanto
outros descrevem o modo de vida e a forma de governo desse reino
com pormenores complicados. De acordo com uma lenda, Xambala
desmaterializou-se há muito tempo, quando todos os seus habitantes
se tornaram iluminados, mas os reis Rigden de Xambala mantêm
vigilância sobre o mundo e voltarão num momento estratégico para
salvar o gênero humano da destruição. Estudiosos modernos dividem-
se entre a crença de que Xambala é completamente mística, e a
opinião de que ela corresponde a um dos reinos historicamente
documentados da Ásia central.
Algumas culturas tribais acreditam igualmente na existência
continuada de um Paraíso terreno. As tribos guaranis do Brasil, por
exemplo, lembram-se de um mundo anterior, totalmente destruído, e
esperam que o mundo atual seja consumido num futuro próximo.
Algumas tribos prevêem o fim pelo dilúvio, outras pelo fogo raivoso,
outras ainda pela treva prolongada ou por monstros. Com essa
expectativa em mente, algum tempo antes da chegada dos
portugueses, os guaranis se puseram a migrar em busca da Terra-
sem-Mal, na esperança de encontrá-Ia antes que chegasse a
destruição. Essa meta mágica, "a terra onde a gente se esconde", é o
único lugar seguro: uma terra sem medo, sem fome, sem doenças,
sem morte. A Terra-sem-Mal, acreditam os guaranis, é difícil de
alcançar, mas está seguramente localizada neste mundo.
Em todo o transcorrer da Idade Média e avançando bem pela Idade
das Descobertas, a maioria dos europeus confiava em que o bíblico
Jardim do Éden ainda existia fisicamente. As autoridades debatiam a
sua localização com todo o ardor. Santo Agostinho afiançava que ele
ficava no topo de uma grande montanha, que quase encosta na Lua, e
era, portanto, inacessível aos mortais. São Basílio escreveu,
entusiasmado, sobre a pátria sagrada, elevada à "terceira região do
ar" e cheia de todas as vistas e sons aprazíveis que se podem
imaginar, onde o clima é uniformemente agradável, as flores sempre
florescem, e as águas irrompem em fontes de cristal. Toda a Natureza
goza de juventude e alegria perpétuas, e nada decai nem morre.
Santo Ambrósio, cujos escritos no século IV obtiveram grande
popularidade, compôs igualmente rapsódias a respeito do verdor e da
beleza do Jardim ainda existente.
Destarte, no século XV - quando as técnicas de navegação e
construção de navios principiaram a ensejar viagens por mar cada vez
mais longas, e os interesses econômicos e políticos entraram a fazer
pressão no sentido de se descobrirem novas rotas comerciais - os
exploradores tinham mais do que a economia em mente ao darem de
velas para os confins da Terra. O maior dos descobridores, Cristóvão
Colombo, estava aparentemente familiarizado com os escritos de
Basílio e Ambrósio, e, consoante suas próprias declarações, em-
preendeu as viagens mais por motivos religiosos do que por algum
propósito econômico ou científico. Além disso, acreditava que as ilhas
que descobriu estavam muito próximas das portas do Éden.
Obcecava-o a profecia de Mateus 24:14, que diz: "E será pregado este
evangelho do reino por todo o mundo, para testemunho a todas as
nações. Então virá o fim." Em seu Livro das profecias, escreveu que a
conquista do novo continente e a conversão dos pagãos seriam os
penúltimos acontecimentos conducentes à destruição do Anti-cristo e
ao fim do mundo. Nesse drama apocalíptico, assumiu para si um
papel não menor: "Deus me fez mensageiro do novo céu e da nova
terra." Colombo disse ao Príncipe João que a localização do Paraíso
lhe fora revelada, em cumprimento das profecias de Isaías: "Ele me
mostrou o lugar onde encontrá-Io." A confusão entre o continente
recém-descoberto e o Paraíso terreno não terminou com Colombo.
Por toda a Europa fluiu uma profunda corrente de anseio pela
renovação do cristianismo, e os decobrimentos do outro lado do
Atlântico alimentaram a esperança de que um renascimento espiritual,
longamente ambicionado, talvez fosse produzido pela migração ao
Éden. Ulrich Hugwald, humanista utópico do século XVI, profetizou
que, após a colonização da América, a humanidade retoraria "a Cristo,
à Natureza, ao Paraíso" - a um estado sem guerra, sem escassez e
sem luxo.
Enquanto os exploradores católicos de Espanha e Portugal
procuravam subjugar os "índios" pagãos, no cumprimento de profecias
bíblicas, os representantes da Reforma protestante exultavam na
crença de terem descoberto a terra prometida, onde a reforma da
Igreja poderia ser completada e aperfeiçoada. Divulgou-se nas
colônias a doutrina para ser o lugar do Segundo Advento de Cristo. O
Milênio traria consigo uma transformação física do mundo. Como
declarou o puritano Increase Mather, presidente da Harvard University
entre 1685 e 1701: "Quando este reino de Cristo tiver enchido toda a
terra, a terra será devolvida ao seu estado paradisíaco."
Os primeiros colonos europeus, e as hordas de imigrantes que lhes
sucederam jornadearam para o Novo Mundo na expectativa de
recomeçar ali a vida, encontrar um novo começo. Tudo na América
era considerado maior, mais forte e mais belo do que qualquer outra
coisa no Velho Mundo decadente, não raro comparado ao Inferno. Os
colonos consideravam-se o povo eleito, e a sua volta à simplicidade
era um triunfo moral. "Quanto mais cultos e inteligentes vocês forem",
escreveu Cotton Mather, "tanto mais prontos estarão para trabalhar
por Satanás." A América proporcionava uma fuga da opressão e da
extravagância da aristocracia européia, e uma oportunidade de retorno
ao cristianismo purificado. Os colonos viam na inferioridade das suas
roupas e da sua cultura, em confronto com as dos europeus, um sinal
de superioridade moral.
A fronteira, o mais rude e primitivo de todos os lugares, era,
correspondentemente, o mais paradisíaco: as vastas florestas, os
espaços abertos e a simplicidade tosca da vida dos pioneiros eram
postos em contraste com os vícios demoníacos do ambiente urbano.
O movimento evangelizador começou na fronteira e espalhou-se na
direção do Leste, carregando consigo a convicção de que as
iniqüidades urbanas, de origem européia, tinham causado o declínio
do cristianismo; somente o regresso ao vigor e à simplicidade da
"religião de antigamente" poderia ressuscitar o modo de vida edênico,
moral, feliz.
Muitos pioneiros americanos consideravam o industrialismo um mal
europeu. Entretanto, outro modo de ver as coisas foi, aos poucos,
ganhando preeminência: em vez de ameaçar a esperança de lograr
um Paraíso terreno, as forças combinadas do capitalismo e da
invenção científica passaram a ser vistas como garantia do seu
cumprimento. Assim, no século XIX, a idéia de um progresso sem fim
tornou-se uma espécie de religião por si mesma, que prometia o
alcançamento final de uma Idade de Ouro, de lazer e riqueza para
todos. O livro de J. A. Eltizer, de 1842, The Paradise within the Reach
of All Men, by Power of Nature and Machinery expressava o novo
sonho ianque - um modo de vida aperfeiçoado pela automação - numa
linguagem que todo americano pudesse compreender.
Entrementes, os filósofos e poetas americanos proporcionavam uma
vazão mais sublime para os seus anseios adâmicoso Ralph Waldo
Emerson e Henry David Thoreau clamavam pelo retorno à inocência,
que seria levado a cabo por um descartar-se das empoeiradas
tradições espirituais e intelectuais da Europa, em favor de uma
percepção renovada e imediata do universal e do sagrado. Walt
Whitman, que se referia a si mesmo como "cantor dos cânticos
adâmicos", declarou: "Divino sou, por dentro e por fora, e torno
sagrado tudo o que toco." O passado estava morto, e à humanidade
fora concedido um novo começo, um segundo primórdio no Paraíso da
América. Na geração seguinte, entretanto, o Novo Mundo já estava
chegando ao fim da fronteira, já começava a lutar contra as próprias
instituições revolucionárias. Enquanto o sonho americano continuaria
vivendo no século XX, seria agora seguido de perto pela suspeita de
que o Paraíso, mais uma vez, lhe escapara das mãos.
Peaceable Kingdom with Seated Lion, de Edward Hicks (1833-1834).
Hicks, artista primitive Americano, pintava com freqüência asituação
paradisiacal descrita em Isaías 11: “e o leopardo se deitará junto ao
cabrito; o bezerro, o leão novo e o animal cevado andarão juntos, e
um pequenino os guiará”. Hiks encarava o tratado de William Penn
com os índios como um evento que pressagiava o Milênio, visto por
ele como a volta ao “reino pacífico”

Utopia: O Paraíso Feito de Encomenda


Em suas tentativas de organizar os seus negócios coletivos, os seres
humanos pãrecem cair sob a influência de dois impulsos psicológicos
contrários. Um deles é o anseio do Paraíso - o anseio de um estado
de felicidade, propósito e harmonia individuais e coletivos. Quando
atinge um estado de excitação anormal, essa compulsão leva as
pessoas à revolução, à reforma, a ousados experimentos sociais. O
outro impulso é o desejo de estabilidade, poder e dominação. Quando
se lhe dão rédeas largas, o segundo impulso parece resultar
inevitavelmente em alguma espécie de despotismo. A maior parte da
história pode ser vista como uma série de oscilações entre períodos
de dominância relativa de um ou do outro impulso. E, às vezes - como
foi o caso da França em 1793 e da Rússia em 1917 - as oscilações
podem ser tão rápidas e violentas que se justificam o totalitarismo e a
mortandade indiscriminada, em nome do amor e da fraternidade
universais.
Admite-se, de ordinário, que algumas formas de governo são
inerentemente paradisíacas ou idealistas, ao passo que outras são
inerentemente opressoras. Talvez fosse mais razoado sugerir que se
pode descobrir a influência dos dois impulsos, o visionário e o
burocrático, em todas as formas de ordem social. A monarquia, por
exemplo, originou-se do modo de comemorar o reinado do Rei do
Mundo da Idade de Ouro, e o monarca benevolente foi considerado o
conduto das forças da vida. Mas, naturalmente, nas mãos de um
autocrata megalomaníaco, a instituição da monarquia servirá, em vez
disso, às forças da morte e da opressão. A democracia também teve
primórdios idealistas como meio de realizar a liberdade e a igualdade
sociais. De acordo com o ideal democrático, a natureza humana é
fundamentalmente digna de confiança e, em lhe sendo dada a
oportunidade, a maioria das pessoas tomará, coletivamente, decisões
sábias e justas. Numa democracia, contudo, haverá sempre o perigo
de que a nação tenda, moral e intelectualmente, para o seu mais baixo
denominador comum, levando ao domínio de interesses especiais
poderosos e de astutos demagogos.
Mostra a história que na fase primeira, idealística, de uma ordem
social, o impulso visionário tende a predominar. A promessa do
Paraíso incendeia as emoções das massas, inspirando-as, não raro, a
um profundo sacrifício pessoal. Mais cedo ou mais tarde, no entanto,
um grupo qualquer encontra um modo de manipular o idealismo
paradisíaco em favor dos seus próprios interesses. Os que estão no
poder procuram, então, instilar no povo o medo de perder o que quer
que lhe pareça ter ganho do Paraíso. A cupidez e o medo conduzem à
corrupção e à burocracia, as quais, em seus extremos, semeiam os
germes de outra evangelização visionária.
Destarte, se desejarmos isolar e examinar o impulso paradisíaco na
psique social, talvez o façamos melhor examinando as premissas
idealistas que geram novas ordens sociais. E não existe nenhum meio
mais instrutivo ou econômico de fazê-Io do que levar a cabo um
estudo histórico dos sonhos e visões utópicas.
A crença de que os seres humanos podem construir uma sociedade
perfeita, se Ihes forem dadas previsão e indústria suficientes, tem
preocupado pensadores desde os tempos dos gregos antigos. Em sua
República, esboçou Platão a visão de um estado ideal governado por
reis-filósofos, com a proteção militar de uma classe de guardiães.
Seria uma república comunista, com todas as propriedades
partilhadas, sem dar importância ao status do nascimento. Na
República, o comunismo estende-se até ao casamento, sendo as
esposas e os filhos mantidos em comum. Tudo é ordenado
racionalmente, pela lei.
Se se pode dizer que o tipo de sociedade concebido por Platão
pressagia o nacional-socialismo, outra República anterior - escrita pelo
filósofo estóico grego Zenão - prefigurava o anarquismo moderno,
advogando a abolição do estado. Ensinava Zenão que as instituções
humanas geram a indolência e a corrupção, e que o maior bem advém
da cultivação, pelo indivíduo, da força de caráter. Se as pessoas
viverem de acordo com os ditames do próprio sentido inato de razão e
integridade, tudo correrá suavemente, sem necessidade de exércitos,
governos ou leis. Platão e Zenão representavam, assim, os dois pólos
do pensamento utópico - de um lado, a crença de que o Paraíso pode
ser alcançado através de uma ordem social imposta; de outro, a
crença de que a assunção da responsabilidade individual absoluta
resultará num estado final de paz e consecução. Historicamente, a
maior quantidade de utopistas seguiu Platão.
A palavra utopia (do grego, com o significado duplo de "lugar bom" e
de "nenhum lugar") foi cunhada por Thomas More (1478-1535) para
título da sua narrativa fictícia sobre um estado imaginário em que a
vida social é governada por princípios semelhantes aos advogados
por Platão. O texto de Utopia foi escrito como se fosse o relato de um
marinheiro português, Rafael Hythlodaye, que fizera três viagens ao
Novo Mundo com Américo Vespúcio. Embora Hythlodaye faça
referência a várias terras selvagens inexploradas, a peça central da
narrativa é a descrição da ilha de Utopia, fundada pelo rei Utopos. A
ilha contém cinqüenta e quatro cidades bem planejadas, cuja
população se mantém constante, e onde as colheitas são controladas,
a comida é distribuída livremente, o dinheiro e os ornamentos são
desdenhados, toda a gente trabalha seis horas por dia, e a educação
é compulsória. Escolhem-se os governantes no meio da classe
instruída, pelo voto secreto, e as leis são tão poucas e tão simples que
os advogados são desnecessários. O modo utópico de vida, no dizer
de More:

Proporciona não somente a base mais feliz para uma comunidade


civilizada, mas também para uma comunidade que, com todas as
probabilidades humanas, durará para sempre. Essa comunidade
eliminou totalmente as causas primárias da ambição, do conflito
político e de todas as coisas parecidas. Não há, portanto, perigo de
dissensões internas, que destruíram tantas cidades inexpugnáveis. E
enquanto houver unidade e boa administração em casa, por mais
invejosos que se sintam os reis vizinhos, nunca poderão abalar, e
muito menos destruir, o poder de Utopia.

À diferença da República de Platão, a comunidade perfeita de More é


descrita como se já existisse. A implicação é clara: a utopia será
realizável se as pessoas quiserem fazê-Ia assim.
Se bem a Utopia de More não pareça tão paradisíaca aos leitores
modernos - afinal de contas, qual é a vantagem de um dia de trabalho
de seis horas, perguntaríamos nós, quando a escravidão é permitida,
o lazer é rigorosamente regulado e a veda-se às pessoas reunirem-se
para discutir política? - foi considerada visionária em seu próprio
tempo. Durante a Idade Média, toda a hierarquia social, do rei ao
servo, era havida por divinamente ordenada e imutável. Após o
aparecimento de Utopia, a teoria política abriu-se novamente
àdiscussão. As pessoas entraram a perguntar se a desigualdade, a
opressão e a pobreza eram, com efeito, parte do plano inescrutável de
Deus, ou se podiam ser, ao invés disso, simples conseqüências da
estupidez, da cobiça e do descaso humanos. Talvez a aplicação da
razão e do engenho possibilitasse a criação, se não do Paraíso, pelo
menos de uma nova ordem social, em que toda a gente viveria em
melhores condições.
Depois de More, proliferaram as fantasias e propostas utópicas. A não
concluída Nova Atlântida de Francis Bacon (1627) foi uma tentativa de
acrescentar tecnologia às atrações da utopia. Na ilha imaginária de
Bensalem, a ciência é aplicada à natureza por uma sociedade douta
denominada Casa de Salomão (segundo a qual foi mais tarde
modelada a British Royal Society), e invenções como aviões,
submarinos, rádio "e telefone fazem da ilha um sítio de tranqüilidade e
fartura. É na comunidde ideal de Bacon que vemos a primeira expres-
são da idéia moderna do progresso científico e tecnológico como o
caminho do Paraíso.
Por volta do fim do século XVIII, o sistema feudal desmoronara em
quase toda a Europa, para ser substituído pelo capitalismo sem freios,
que trouxe o seu conjunto único de oportunidades e males. A
necessidade econômica forçava os camponeses a deixarem os
campos e dirigirem-se para as cidades povoadas, onde competiam
pelo aborrecido trabalho nas fábricas. Foi nesse contexto que o Conde
Henri de Saint-Simon (1760-1825) estabeleceu as bases do
socialismo com os seus escritos, que atacavam o individualismo sem
peias. Como alternativa do laissez-faire econômico, ele propôs uma
nova administração industrial. À semelhança de Bacon, Saint-Simon
via a salvação no advento da ciência e da tecnologia e advogava o
governo dos peritos científicos. A sociedade utópica futura funcionaria
como imensa oficina, da qual o estado - como instituição coerciva -
seria virtualmente eliminado.
Karl Marx e Friedrich Engels, pais do comunismo, apropriaram-se das
idéias de luta de classes de Saint-Simon e desenvolveram-nas.
Chamaram às idéias de Saint-Simon socialismo utópico, para
distingui-Ias do seu próprio socialismo científico, que tinha por base
uma interpretação estritamente material da história. Sem embargo
disso, o comunismo era claramente utópico em suas metas: Marx
predizia que a luta entre proletários (a classe operária) e os que lhes
impunham tarefas no moderno estado industrial redundaria,
finalmente, na formação de uma sociedade socialista, em que os
produtores associados cooperariam uns com os outros, livres de
restrições econômicas e sociais. Dessa maneira, não somente a luta
de classes, mas também a tirania da história seriam, ao cabo de
contas, levadas a um fim.
No fim da crítica que fez aos escritos do socialista Eugen Düring,
Engels esboça a sua visão de como será a sociedade futura
aperfeiçoada. O valor monetário já não terá conexão alguma com a
distribuição dos bens, e a economia será coordenada pelo plano de
produção; a divisão do trabalho desaparecerá com a "supressão do
caráter capitalista da indústria moderna". Com fábricas localizadas em
todo o país, a oposição entre os interesses urbanos e rurais se
dissolverá, em benefício da indústria e da agricultura. No fim do
processo, o próprio estado será abolido e a religião definhará.
Como assinalou Bertrand Russel, o marxismo, a despeito do seu
ateísmo dogmático, foi modelado pelo padrão messiânico da história.
Nos escritos de Marx, o papel redentor do “justo", do "ungido" e do
"inocente" dos escritos escatológicos cristãos é assumido pelo
proletariado, cujos sofrimentos mudam o mundo. Marx prediz uma luta
final entre o bem e o mal - personificados pelo proletariado e pelos
capitalistas, respectivamente - análoga à do início do Milênio. No
cânon comunista, o Paraíso é uma sociedade sem classes, na qual a
maior parte do trabalho e feita por máquinas, e todos os bens são
havidos em comum.
No princípio do século XX, o número de propostas e fantasias
utópicas, que se achavam no prelo, chegava às centenas, com a
maioria dos escritores discutindo pormenorizadamente as idéias
comunistas e tecnocráticas remontáveis a Platão, More e Bacon. Um
tema que apareceu mais de uma vez foi o da engenharia biológica da
raça humana, que se transformaria numa raça de patrícios sábios,
talentosos e incorruptíveis. Outros teóricos identificaram o Paraíso
com a cidade ideal, um Éden cosmopolita, que seria alcançado
através de um projeto e uma engenharia iluminados.
Mas todo esse entusiasmo pelas possibilidades da tecnologia como
salvadora da humanidade provocou violenta reação contrária. Alguns
autores começaram estudando a forma literária da contra-utopia.
Exemplo notável disso foi o 1984 de George Orwell (publicado em
1948), em que toda a humanidade se consome sob o poder do
derradeiro estado totalitário. Era a futura sociedade tecnológica - em
que até a reprodução humana era supervisionada por máquinas e
cientistas - realmente uma visão do Céu, ou seria, ao contrário, o
próprio Inferno na Terra? De um modo ou de outro, o problema
estendeu-se a todos os planos utópicos já concebidos: o Paradiso de
uma pessoa é o Inferno de outra.

O Poder do Exemplo
Enquanto alguns utopistas tentaram modificar a sociedade, através de
uma revolução, de um plebiscito, ou de uma reforma, outros optaram
pelo caminho tranqüilo de construir o modelo de uma comunidade
ideal na esperança de influenciar o resto do mundo pelo exemplo.
Distanciando-se da sociedade, esses experimentadores abriram para
si mesmos a possibilidade de perseguir ideais muito mais radicais do
que os que qualquer nação moderna poderia ser persuadida a aceitar
voluntariamente. Ao passo que muitas comunidades buscaram uma
experiência religiosa partilhada, através da contemplação e da
meditação, outras se arvoraram em defensoras da igualdade dos
sexos e das cores, e da abolição da propriedade privada ou das
instituições da monogamia e do casamento. Ao mesmo tempo que
algumas tentaram atingir um modo de vida mais natural por intermédio
do nudismo ou do vegetarianismo, outras deram ênfase à não-
violência ou ao desenvolvimento do caráter pelo trabalho e pela
escrupulosa habilidade do artífice. De um modo ou de outro, explícita
ou implicitamente, cada uma dessas experiências procurou realizar
algum aspecto da visão arquetípica do Paraíso.
Um dos primeiros experimentos sociais comunais de que se tem
conhecimento foi a comunidade pitagórica, estabelecida no século VI
a.C., em Crotona, no calcanhar da bota italiana. Além de ser um
instituto de educação e uma academia de ciências, a escola de
Pitágoras era uma cidadezinha-modelo, governada pelo Conselho dos
Trezentos, uma espécie de ordem política, científica e religiosa,
composta de iniciados, e cujo chefe reconhecido era o próprio
Pitágoras. A, Ordem Pitagórica, que tinha por meta a iniciação de uma
nova Idade de Ouro, de sabedoria e paz, foi tão bem-sucedida em
governar que logrou o controle de quase todas as colônias gregas
ocidentais. Onde quer que aparecessem Pitágoras e suas sociedades,
a ordem e a concórdia se seguiam. Entretanto, por volta do ano 500
a.C., um homem chamado Cilão, expulso da escola de Crotona,
organizou uma malta a cujas mãos morreram Pitágoras e quarenta
líderes da Ordem. A própria Ordem sobreviveu por mais dois séculos
antes de desaparecer.
Mais ou menos na mesma época, na Índia, Gautama Buda e seus
discípulos - os quais, por ocasião de sua morte, perfaziam o total de
1.200, de ambos os sexos e de todas as castas - estavam criando
uma espécie de aldeia nômade utópica. Na estação chuvosa,
permaneciam num lugar, ouvindo as palestras de Gautama e
estudando, mas, no resto do ano, seguiam o mestre em suas viagens.
O propósito de Buda e dos seus seguidores, no dizer de Nasaru, era
"produzir em todo homem uma transformação interna completa pela
autocultura e pela vitória sobre si mesmo". Se o Buda pudesse ser
qualificado de utópico, pertenceria, claramente, à escola de Zenão.
Após a morte do Buda, a comunidade continuou e formou a base do
monarquismo budista. Os monges budistas foram os grandes
civilizadores da China e do sudeste da Ásia: dirigiram o povo na
transformação de regiões incultas em arrozais, na produção da arte, e
no desenvolvimento da medicina, da ciência e da educação.
Os essênios, irmandade religiosa que floresceu na Palestina por volta
do século II a.C., até o fim do primeiro século d.C., tinham todas as
propriedades em comum, faziam refeições juntos, em silêncio, e
levavam vidas ascéticas de pureza ritualística, fora da sociedade.
Como os pitagóricos, os essênios só admitiam os que se haviam
qualificado mediante um processo de iniciação. O seu estilo de vida
comunal foi exemplo para o de mosteiros cristãos ulteriores, o primeiro
dos quais fundado pelo asceta Pacômio, da Tabaida.
A partir do começo do século V, surgiram mosteiros por toda a
Cristandade. Com o declínio do império romano, surgiram crises
sociais de todo o gênero; paradoxalmente, embora fosse responsável
pela destruição e supressão do antigo conhecimento espiritual e
científico, a Igreja, de vez em quando, atuava também como
preservadora. No mosteiro medieval, escreviam-se e copiavam-se
livros, desenvolviam-se e mantinham-se ofícios e inventavam-se
novas tecnologias. Os monges abriam escolas, distribuíam comida
aos pobres e mercadejavam. Toda essa atividade era uma articulação
do anseio do Paraíso: assim como os jardins murados dos monges se
destinavam a relembrar o Jardim do Éden original, as catedrais e suas
torres, que eles ajudavam a construir, destinavam-se a encarnar uma
visão da celestial Cidade da Revelação.

A América Utópica
Como já vimos, desde o tempo do seu descobrimento, e durante o
período da sua colonização, a América foi objeto dos anelos
paradisíacos de todo o mundo ocidental. Foi também a sede de vários
experimentos comunais, em sua maioria de natureza religiosa, como
as comunidades de Bruderhof - os menonistas e suas derivações
subseqüentes, os huteritas e amish - e os quacres, os shakers e os
mórmons. Todos esses grupos davam valor ao trabalho aturado e à
simplicidade do estilo de vida. Ao passo que alguns floresciam apenas
por alguns decênios, outros continuam a existir. Os amish da
Pensilvânia, por exemplo, evitam a tecnologia agrícola moderna, com
seus equipamentos caros e suas substâncias químicas, e, apesar
disso, figuram entre os lavradores mais bem-sucedidos da América.
Mas nem todas as comunidades experimentais americanas tinham
base religiosa. No correr do século XIX, muitas das mais de 150
comunidades cooperativas, fundadas na América, foram tentativas de
provar as teorias sociais dos teóricos utópicos europeus Robert Owen
e Charles Fourier.
Em seu livro A New View of Society, or Essays on the Principle of the
Formation of the Human Character, o socialista britânico Owen
enunciou a teoria de que o caráter é formado por influências
ambientais desde os primeiros anos da infância. Uma sociedade
perfeita, por conseguinte, deve começar com uma educação
esclarecida. Owen advogava a subordinação das máquinas ao homem
e o estabelecimento de aldeias de "unidade e cooperação", de cerca
de 1.200 pessoas cada uma, em que a competição seria eliminada e
as pessoas estariam livres para aprimorar-se física, mental e
moralmente.
Em 1825, Owen veio para a América com o propósito de pôr à prova
suas teorias. Adquiriu o local de um experimento comunal anterior,
Harmonie (comunidade religiosa fundada em 1815 por George Rapp),
que lhe chegou às mãos completo, com uma cidade de 160 casas, um
forno de tijolos refratários, e moinhos, vinhedos, e fábricas. Owen
dirigiu-se então ao Congresso dos Estados Unidos, descrevendo suas
teorias de reforma educacional e industrial e abrindo a comunidade de
New Harmony a membros em perspectiva. Estes acudiram às
centenas. Posto que os respondentes ao apelo de Owen formassem
um grupo heterogêneo - consiste em idealistas e estudiosos, com não
poucos fanáticos, mandriões e trapaceiros - a vida em New Harmony,
durante algum tempo, foi idílica. Concertos, danças, discussões e
conferências animavam o tempo de lazer dos habitantes. Um poema
owenita expressava-lhes a visão paradisíaca partilhada:

Ah, logo virá o dia glorioso,


Inscrito no cenho da Misericórdia,
Quando a verdade rasgará o véu
Que agora cega as nações.

O rosto do homem aprenderá a sabedoria,


E o erro cessará de reinar.
Voltarão os encantos da inocência,
E tudo será novo outra vez.

Não tardou, contudo, que a comunidade sucumbisse a desavenças


sobre as formas de decidir e o papel da religião. Conquanto as
controvérsias se mantivessem num espírito "admirável", Owen retirou-
se em 1828, tendo investido e perdido quase todos os seus bens. New
Harmony só existira durante dois anos, mas, durante esse tempo,
produzira o primeiro kindergarten, a primeira escola de comércio, à
primeira biblioteca pública gratuita e a primeira escola pública
sustentada pela comunidade nos Estados Unidos. Os cientistas que
Owen trouxera da Europa - que haviam sofrido perseguições da Igreja
em seus países natais e ambicionavam juntar-se ao experimento -
trouxeram os primórdios de geologia, botânica, zoologia e química
para a América.
Nas décadas de 1840 e 1850, mais de duas dúzias de comunidades
se instalaram nos Estados Unidos e no Canadá para pôr em execução
as idéias do visionário social francês Charles Fourier. Fourier era um
escritor prolífico, que tinha a capacidade de fazer as propostas mais
chocantes parecerem plausíveis e até obrigatórias. Profetizou, por
exemplo, que, quando a libertação da paixão humana finalmente unir
o mundo numa ordem harmoniosa e não-coerciva, os oceanos se
transformarão em limonada e os animais selvagens se transmudarão
magicamente em antileões e antitigres, que servirão à humanidade.
Fourier elaborou planos de comunidades-modelo em que o trabalho
do escravo seria abolido e as pessoas seriam livres para desenvolver
os seus talentos; poderiam, por exemplo, trabalhar em jardins de
manhã e cantar na ópera à noite.
Entre as experiências fourieristas inclui-se a Brook Farm em
Massachusetts. Fundada em 1841 por um grupo de intelectuais e
idealistas, dirigido pelo reverendo George Ripley, a comunidade, a
princípio, foi um simples exercício em que se combinavam a educação
e a indústria. Sua escola procurava preparar estudantes para a
faculdade, oferecendo, ao mesmo tempo, empregos e experiência
agrícola, ao lado de operários especializados. Ripley conseguiu atrair
algumas das melhores cabeças da Nova Inglaterra como membros ou
associados; entre elas se contavam Ralph Waldo Emerson, Bronson
Alcott, Margaret Fuller e Nathaniel Hawthorne. Na maior parte dos
cinco anos de sua existência, Brook Farm foi provavelmente a
comunidade mais inteligente e esclarecida da Nova Inglaterra, assim
como a mais feliz. À medida, porém, que Ripley a voltava cada vez
mais para o fourierismo doutrinário, muitos dos seus apoiadores
transcendentalistas recuaram. Em 1846 um incêndio destruiu a
principal sala de reuniões, cuja construção já comprometera os
recursos financeiros disponíveis. Os credores começaram a ficar
impacientes, os residentes se foram e, passados alguns meses, a
comunidade simplesmente se dissolveu.
Os membros da Comunidade Oneida, iniciada no Estado de Nova
Iorque em 1848 por John Humphrey Noyes, denominavam-se
"perfeccionistas", acreditando que o verdadeiro socialismo nunca
poderia ser logrado sem religião. Consideravam o egoísmo e a inveja
os males maiores e a propriedade e as responsabilidades comuns o
jeito de extirpar a exclusividade. O princípio estendia-se ao próprio
casamento. Ensinavam que a dedicação a um único esposo gerava a
possessividade. Como alternativa, a comunidade desenvolveu um
sistema de "casamento complexo", que lembrava algumas propostas
de Platão na República. As palavras de uma canção de Oneida
expressavam o sentido de comunalidade completa que lhes
impregnava as atividades:

Construímos um edifício senhorial para nós


Em nossa formosa plantação
E todos temos um lar
E uma só relação de família

Por deferência ao sentimento público, o casamento complexo foi


desativado em 1879, e a comunidade deixou de perfilhar a filosofia
perfeccionista. Incorporada a uma sociedade anônima em 1880, a
Oneida ainda opera como indústria bem-sucedida.

O Novo Espírito Comunal


O início do século XX assistiu a um intervalo na formação de
comunidades alternativas. Os preços das terras, mais elevados na
primeira década, tornaram tais experiências mais difíceis de organizar.
Depois veio a Primeira Guerra Mundial, seguida pela década cínica e
hedonista de 1920. Na de 1840, quando Emerson escreveu que "não
há homem de cultura que não tenha o esboço de uma nova
comunidade no bolso do colete", parecia haver muito espaço e muito
tempo para a experimentação individualista. Agora a atenção do
público se fixara nos problemas e oportunidades da sociedade como
um todo - a Grande Depressão, a marcha da tecnologia e os horrores
de outra guerra mundial.
Com a década de 1960, porém, veio o maior desabrochar de
experimentos sociais visionários da história. Muitos, produtos da
contracultura das drogas-e-revolução, formaram-se com pouca
previsão séria. Alguns eram puras cooperativas econômicas, ao passo
que outros provinham de uma filosofia espiritual universalista, cuja
linhagem poderia ser seguida até o transcendentalismo de Emerson e
os primeiros dias de Brook Farm.
Uma das primeiras - e, sem dúvida, uma das mais altamente
divulgadas - dentre as novas comunidades não foi iniciada na
América, mas em Findhorn, na Escócia, em 1963. Inspirada
inicialmente na orientação espiritualista recebida pelos fundadores,
Peter e Eileen Caddy, localizou-se a comunidade num parque de
caravanas, arenoso e desagradável, fora de uma pequena aldeia
costeira. Após vários anos de mera sobrevivência, o grupo original de
três adultos e duas crianças começou tentando estabelecer
comunicação com os espíritos locais da Natureza. Logo depois, o
seu jardim estava produzindo vegetais gigantescos, celebrados em
artigos de jornais e revistas e num livro popular, The Magic of
Findhom, de Paul Hawken. Os buscadores espirituais afluíram a
Findhorn, vindos de todas as partes do mundo, logo se descreveu a
comunidade como a capital da cultura New Age planetária.
Os que acudiram a Findhorn no princípio da década de 1970 levaram
muito idealismo, mas nem sempre o mesmo compromisso ou
disposição para perseverar. Os subseqüentes e crescentes
sofrimentos da comunidade acarretaram mudanças na chefia, bem
como desilusão para muitos dos que tinham acorrido atraídos pelas
narrativas romantizadas da imprensa. Pouco a pouco, no entanto,
ocorreu um processo natural de triagem e, hoje, Findhorn é estável e
próspera.
Seguindo o exemplo de Findhorn, surgiu uma pletora de comunidades
hippies e da New Age, a maioria localizada na América do Norte, mas
algumas também na Europa, Austrália e Nova Zelândia. A maior foi
The Farm, baseada na filosofia zen rural de Stephen Gaskin, antigo
professor universitário de Los Angeles que, em 1973, Ievou a sua
classe noturna das segundas-feiras para um passeio permanente pelo
campo até o Tennessee. Viajando em velhos ônibus escolares,
pintados com emblemas psicodélicos, os cabeludos peregrinos
paravam em cidades e vilas ao longo do caminho. Ali, em reuniões
improvisadas no campo, Gaskin falava, músicos tocavam e jarros de
chá de peiote eram passados aos ouvintes.
Quando chegaram à nesga de terra que haviam adquiri do perto de
Summertown, no Tennessee, os californianos cujas fileiras estavam
agora inchadas pelos hippies entusiásticos que se tinham juntado à
caravana ao longo do caminhocomeçaram a erguer uma aldeia, que
incluía instalações apropriadas à impressão e à distribuição dos livros
de Gaskin. The Farm, que logo se gabou de contar com uma
população de 1.100 habitantes, encetou também um programa fora
dos limites da aldeia, que incluía uma banda excursionista de rock-
and-roll, e turmas de socorro em casos de desastres, enviadas à
Guatemala e à Cidade de Nova Iorque. Nos últimos anos, a população
de The Farm decresceu consideravelmente, e hoje orça por 200 a 300
almas.
Uma das mais férteis dentre as comunidades espirituais experimentais
do século XX é a Sunrise Ranch, fundada em 1945 por Lloyd Meeker
(1908-1954), visionário que possuía modesta educação formal mas
uma riqueza de experiência em motivar e inspirar pessoas. Meeker,
que usava o pseudônimo de Uranda, experimentou uma dramática
transformação pessoal em 1932, que, mais tarde, descreveu como a
dissolução de sua personalidade humana, gerada hereditária e
ambientalmente, e a revelação de uma fonte interna transcendente de
conhecimento absoluto. Passou os doze anos seguintes viajando de
um lado para outro da América do Norte, espalhando a sua
mensagem de renovação espiritual e juntando seguidores numa
associação conhecida pelo nome de Emissários da Luz Divina.
Percebendo a utilidade potencial de uma instalação permanente, onde
pudessem dar expressão prática à sua visão, Uranda e seu
nucleozinho de associados, em 1945, compraram uma fazenda
desolada, abandonada, perto de Loveland, no Colorado. O seu
propósito expresso era plantar a semente do Éden restaurado.
A comunidade de Sunrise Ranch recebeu escassa atenção pública e,
em razão disso, cresceu lenta, mas solidamente. Com o passar dos
anos, os Emissários fundaram onze comunidades-irmãs na América
do Norte, Europa, Austrália e na África. Hoje, Sunrise Ranch tem uma
população estável de 150 pessoas, que vivem numa propriedade
milagrosamente revitalizada, quartel-general das organizações
internacionais consagradas à demonstração de princípios espirituais
na agricultura, educação, negócios, saúde e nas artes da
comunicação.
Recentemente, a revista Newsweek calculou que existem atualmente
umas 3.000 comunidades cooperativas intencionais nos Estados
Unidos. Extrapolando os estudos estatísticos dos experimentos
comunais passados, podemos predizer com segurança que a maioria
das experiências atuais não persistirá por mais de um a três anos
antes de dissolver-se. Se o bom êxito de uma comunidade tiver de ser
medido simplesmente pela longevidade, a vasta maioria acabará
sendo considerada um fracasso. Entretanto, a dissolução de uma
comunidade, como entidade, pode não significar malogro para os
indivíduos nela envolvidos. O esforço para criar e manter uma
comunidade intencional, nem que seja por uns poucos anos, traz
consigo uma espécie de experiência, inatingível no ambiente urbano
ordinário. Na melhor das hipóteses, a vida comunal oferece a
oportunidade de íntima associação com uns poucos amigos que
compartem de um compromisso de viver sempre segundo a sua visão
mais elevada.
O que faz algumas comunidades florescer e outras dissolver-se? Há
umas poucas questões essenciais que surgem, inevitavelmente, em
todo grupo comunal - questões de chefia e de tomada de decisões, de
divisão do trabalho, e de distribuição dos bens materiais - cuja
resolução requer um compromisso vigente da parte dos egos de todas
as pessoas envolvidas. As comunidades que sobrevivem por mais
tempo são aquelas cujos membros, de um modo ou de outro,
transcendem as próprias necessidades e os próprios medos pelo bem
de todos. Na grande maioria dos casos, a motivação deles surge de
uma visão paradisíaca compartilhada e um sentido compartilhado do
sagrado. Todo estudo sociológico de comunidades cooperativas
chega essencialmente à mesma conclusão: quando a visão morre,
morre a comunidade.
Seja qual for a maneira por que meçamos os seus sucessos
individuais, as comunidades intencionais terão, em todo o caso,
proporcionado laboratórios para o descobrimento e a busca pioneira
de um modo paradisíaco de vida, e beneficiaram o conjunto da
sociedade de um sem-número de modos. Desde os pitagóricos e o
seu profundo efeito sobre a filosofia grega e a teoria política à
comunidade de seguidores do Buda e a propagação do seu modo
pacífico e contemplativo de vida por toda a Ásia, às vezes estufas
culturais dos mosteiros medievos, à influência dos fourieristas e
owenistas da América do século XIX sobre o desenvolvimento das
instituições públicas, às comunas da Idade Nova do presente, as
comunidades experimentais têm sido uma força histórica tranqüila,
mas potente, e exercido uma influência sobre a civilização
inteiramente desproporcional ao número de pessoas envolvidas.

Vimos o quanto é penetrante e profunda a memória de uma Idade de


Ouro; vimos também o quanto é compelente a visão do seu retorno.
Temos ainda, todavia, de penetrar o âmago desses sonhos
arquetípicos. A imagem estereotipada do Paraíso é um foco perene de
anseios humanos. Mas, de onde ela vem? E o que significa?
Capítulo 8
O Paraíso como História
Eles não têm roupas de lã, nem de linho, nem de algodão, porque não
precisam de roupa alguma. Também não têm bens particulares; todas
as coisas são em comum. Vivem juntos sem Rei, sem Imperador e
cada qual é Senhor de si mesmo. ... Além disso, não têm Igrejas e não
obedecem a nenhuma lei, e, no entanto, não são idólatras. Que posso
dizer, senão que eles vivem de acordo com a natureza?
Américo Vespúcio

Deparam-se-nos alguns fatos extraordinários. Encontramos


virtualmente em toda cultura da Terra um mito que conta o modo com
que a humanidade apareceu num tempo de paz, felicidade e poder
milagroso e, mercê de algum erro ou falha, degenerou e chegou à sua
condição atual. Além disso, quase todas as tribos e nações veneram
os ditos de algum antigo profeta, que predisse que o mundo humano
corrupto será um dia consumido num cataclisma purificador, a fim de
abrir caminho para uma Idade de Ouro renovada. E, como se as
similaridades de todos esses mitos e profecias antigas já não fossem
assaz notáveis, surge diante de nós o fato adicional de que grande
parte da maior literatura da nossa civilização e muitas de suas mais
inspiradoras teorias e experiências sociais parecem tirar vitalidade e
fascínio das memórias e visões misteriosas do Paraíso.
Mas qual o significado dessas histórias? São elas, com efeito - como
dão a entender que o são - rememo rações e predições de
acontecimentos históricos, ou são, em vez disso, alegorias que
descrevem algum sutil processo espiritual ou psicológico? Está claro
que não somos os primeiros a meditar sobre a origem e o sentido dos
mitos e profecias universais do Paraíso e, assim, podemos agora
analisar as opiniões de estudiosos e cientistas que nos precederam.
Não tentaremos fazer aqui um estudo exaustivo, senão familiarizar-
nos com as principais avenidas de interpretação que foram abertas,
pelos séculos afora, por teólogos, psicólogos, mitólogos e
arqueólogos.
Neste capítulo, investigaremos o possível conteúdo histórico dos mitos
através das investigações de arqueólogos e antropólogos. No capítulo
seguinte, examinaremos algumas das principais interpretações
alegóricas aplicadas à história do Paraíso. Em seguida, tendo um
conhecimento prático assim dos mitos como do que os outros
disseram sobre eles, estaremos em condições de examinar o Paraíso
de uma perspectiva aberta recentemente por novas e ainda
controvertidas descobertas a respeito das fronteiras da consciência
humana.

Aconteceu Realmente?
Seria a história sagrada uma história fatual? Houve uma verdadeira
Idade de Ouro, houve uma Queda, e as catástrofes globais ocorreram
dentro da esfera da memória humana? Na Primeira Parte analisamos
certo tipo de evidência - a da mitologia comparada - a qual, em virtude
da sua coerência peculiar de cultura para cultura, sugere, pelo menos,
a possibilidade de um Paraíso histórico. Mas poucos de nós
baseamos nossas idéias do passado na mitologia. Que outra
evidência existe, e o que nos conta ela?
Talvez a melhor maneira de provar a realidade da Ida de de Ouro seja
desvelar a evidência arqueológica inequívo ca - ruínas de cidades de
cristal, com ruas de ouro juncadas de restos de deusas e deuses,
cujos corpos, milagrosamente preservados, ainda desprendem
lampejos de luz. Não manterei o leitor na expectativa: não se
descobriram cidades assim. Mas que podemos realisticamente
esperar encontrar? O que os arqueólogos já acharam? Os seus
descobrimentos descartam ou sustentam uma interpretação
paradisíaca da história?
Embora os artefatos físicos sejam importantes como evidência, não
são os únicos vestígios não-mitológicos de uma Idade de Ouro que
podemos esperar descobrir. É possível investigar também a existência
de artefatos culturais. Poderiam sobreviver, em qualquer cultura do
mundo, aspectos de um modo de vida original, paradisíaco? Sugerem,
acaso, os estudos antropológicos de sociedades "primitivas" , por
exemplo, que elas, de certo modo, são remanescentes de um
Éden pré-histórico?
Toda investigação da relação entre o mito e a história abre um campo
de idéias a um só tempo sagradas e seculares a respeito do passado
para serem reavaliadas, de sorte que o assunto que estamos
examinando é sensível e controvertido. De todos os campos da
ciência, a paleoantropologia - estudo do que eram os seres humanos
no passado distante - é talvez o mais especulativo. Os gêneros de
dados crus que temos à mão podem, quase sempre, ser interpretados
de várias maneiras diferentes. Portanto, em nosso estudo da
evidência de um Paraíso histórico, levaremos em conta tantas
opiniões divergentes quanto possível. E embora comecemos com um
olhar dirigido ao que os arqueólogos mais tradicionais dizem sobre a
possibilidade de uma Idade de Ouro passada, levaremos em conta
outrossim opiniões que, encaradas do ponto de vista do atual
consenso científico, são rematadas heresias.

A Arqueologia Bíblica
Os arqueólogos relutam geralmente em fazer uso de fontes míticas
como guia da pesquisa. Entretanto, graças à sua imensa
popularidade, uma peça da literatura antiga - a Bíblia - revelou-se uma
exceção a essa regra não escrita. Arqueólogos bíblicos de meia dúzia
de países vêm fazendo escavações por todo o Oriente Próximo há
mais de um século, e muitos achados significativos têm resultado das
suas investigações o descobrimento dos muros de Jericó, a
escavação das cavalariças de Salomão em Megido e a descoberta
dos textos de Nag Hammadi e dos rolos do Mar Morto, para citarmos
apenas alguns. Esses achados confirmaram repetidamente a
historicidade dos eventos e personagens, tanto do Antigo quanto
do Novo Testamento. De acordo com o especialista em Bíblia de
Harvard, William F. Albright: "A arqueologia... corroborou finalmente a
tradição bíblica de maneira não incerta." Uma vez que os arqueólogos
investigaram quase todos os sítios nomeados na Bíblia, poder-se-ia
esperar que a primeira localização geográfica mencionada no Gênesis
- o jardim do Éden - fornecesse descobertas importantes. Não é esse
o caso, porém, e não é difícil ver por que os arqueólogos voltam de
mãos vazias. Afinal de contas, que deveriam eles procurar? Não há
nada no Gênesis que nos autorize a presumir que Adão e Eva
deixaram para trás paredes, cerâmica, ou até alguns instrumentos. A
recuperação de artefatos edênicos está quase totalmente fora de
cogitação; o mais que podemos esperar fazer é localizar o próprio sítio
com base em qualquer indício proporcionado pelo Gênesis. Mas até
isso é problemático. Descreve-se a situação geográfica do jardim
apenas em função de quatro rios:

E saía um rio do Éden para regar o jardim, repartindo-se em quatro


braços. O primeiro chama-se Pisom; é o que rodeia a terra de Havilá,
onde há ouro. O ouro dessa terra é bom; também se encontram lá o
bdélio e a pedra de ônix. O segundo rio chama-se Giom; é o que
circunda a terra de Cuxe. O nome do terceiro é Hiddekel; é o que
corre pelo oriente da Assíria. E o quarto é o Eufrates
(Gênesis 2:10-14)

Três dos nomes desses rios são pouco familiares. O Hiddekel é


usualmente interpretado como sendo o Tigre, e o Giom, que "circunda
a terra de Cuxe", tem sido freqüentemente atribuído ao Nilo. O
historiador judeu Flávio Josefo, do século I d.C., entendia que o quarto
rio, o Pisom, era o Ganges. Nesse caso, o Éden teria abarcado toda a
região que vai da África oriental ao meio da Ásia. Mas a identificação
do Giom não deixa de apresentar dificuldades - por exemplo, os
tradutores da versão autorizada parecem ter-se equivocado ao
traduzir o hebreu Kush (Cuxe) por "Etiópia". Em resultado disso,
estudiosos subseqüentes entenderam que só o Tigre (Hiddekel) e o
Eufrates tinham identificação certa, o que deixou as identidades de
Giom e Pisom no escuro. Apesar disso, durante todo o último século,
pululam as teorias.
No início do século XX, a maioria dos estudiosos pusera de lado o
problema de localizar os rios do Éden e, em lugar disso, concentrou-
se na análise do próprio texto bíblico, ajudada pelo descobrimento e
tradução de documentos sumerianos e acádicos. Como vimos no
Capítulo 3, muitos estudiosos liberais da Bíblia adotaram a teoria de
que a história do Éden derivou de uma fonte mesopotâmia, talvez dos
textos do Dilmun dos sumerianos. Esse ponto de vista foi fortalecido à
proporção que se descobriram paralelos mais e mais numerosos entre
a literatura bíblica e a sumeriana. À semelhança dos antigos hebreus,
os sumerianos falavam da emergência do mundo de um mar primevo;
da criação de seres humanos a partir do barro; de um Dilúvio
universal; da rivalidade entre dois irmãos primordiais; e de uma torre
erguida para o céu, cuja destruição ocasionou a dispersão da
humanidade. Dessa maneira, enquanto as similaridades entre o Éden
hebraico e o Dilmun sumeriano eram contestáveis, muitos eruditos
simplesmente presumiram que, localizando Dilmun, encontrariam o
Éden também. Mas a própria identificação de Dilmun era um
problema: enquanto alguns pesquisadores proclamavam havê-Io
descoberto em Bahrein, ou na costa ocidental do Golfo Pérsico, outras
autoridades sugeriram áreas tão afastadas quanto o Paquistão e a
Índia. Em resumo, a equiparação tentada entre o Éden e Dilmun não
resolveu coisa alguma.
Recentemente, contudo, a passagem do Gênesis que descreve os
quatro rios do Éden inspirou outra série de especulações e pesquisas.
Em 1980, depois de uma década de trabalhos de campo na Arábia
Saudita, o arqueólogo Juris Zarins, da Universidade do Sudoeste do
Estado de Missouri, decidiu consagrar-se ao velho problema de
localizar o jardim original. Zarins começou com o relato textual, e
depois se familiarizou com a geologia e a hidrologia do Oriente
Próximo e com os padrões de linguagem dos antigos habitantes. Mas
o seu indício crucial viria da tecnologia da era espacial: imagens da
exploração via satélite mostram que o Tigre e o Eufrates foram outrora
encontrados por dois outros rios, um dos quais está hoje represado, e
o outro é um leito seco. Além disso, o vale em que os rios se
encontravam era antigamente rico em bdélio, uma goma-resina
aromática, e ouro, que ainda estava sendo extraído até a década de
1950. Como já vimos, essas duas substâncias são mencionadas no
Gênesis. Estribado na nova evidência, Zarins concluiu que o Éden era
uma área relativamente pequena, ao sul do lugar em que os quatro
rios se encontram, região agora coberta pela ponta do Golfo
Pérsico. Concordam os paleontologistas em que, por volta de 5000-
6000 a.C., a Mesopotâmia meridional era o sonho de um forrageador.
Embora a região houvesse sido anteriormente árida, ocorriam nela
agora chuvas copiosas e abundante vida vegetal e animal. A
agricultura tinha sido I desenvolvida havia, pelo menos, dois milênios,
e povoamentos estavam aparecendo no vale. À medida que o clima
mudou, e as pessoas abriram a migrar para a região, deve ter surgido
a competição entre os agricultores e os caçadores-colhedores pela
terra fértil. Zarins formula uma teoria segundo a qual o mito do Éden
apareceu naquela era de competição e mudança: "Toda a história do
jardim do Éden... poderia ter sido vista como representando o ponto
de vista dos caçadores-colhedores.”

Foi o resultado da tensão entre os dois grupos, a colisão das duas


maneiras de vida. Herdeiros de uma liberalidade natural, Adão e Eva
tinham tudo o que precisavam. Mas pecaram e foram expulsos. Como
pecaram? Desafiando a própria onipotência de Deus. Ao fazê-Io,
representavam os agricultores, novos ricos que insistiam em assumir o
comando das coisas, contando com os seus conhecimentos e com as
próprias habilidades, em vez de contarem com a Sua liberalidade.

Na história do Éden encontramos Adão e Eva nus e destituídos de


vergonha, comendo os frutos das árvores. Será preciso estender ou
torcer pouco a história para lê-Ia como descrição da vida dos
primitivos forrageadores. Afinal de contas, só depois da Queda Deus
mandou Adão lavrar a terra. O autor do trecho parece estar-nos
dizendo que os seres humanos eram inocentes e felizes enquanto
viviam simplesmente da liberalidade da natureza. Depois que
começaram a comer o fruto da Árvore da Ciência do Bem e do Mal -
depois que começaram a submeter os ciclos da natureza em seu
próprio benefício - a inocência se perdeu. Só então o casal original
simbólico compreendeu a sua nudez e foi expulso do Paraíso.
De Forrageadores e Agricultores
A idéia de que se pode considerar edênica a vida pré-agrícola parece
estranha primeiro para os que cresceram crentes na desejabilidade e
na inevitabilidade do progresso tecnológico. Nós, no mundo civilizado,
aprendemos a pensar que a agricultura foi o maior avanço na
sociedade humana pré-histórica: libertando os seres humanos da
dependência de uma fonte incerta de alimentos, possibilitou o
desenvolvimento das artes e das ciências. A nossa imagem
estereotipada dos forrageadores primitivos é de bandos de selvagens,
semimortos de fome, geralmente exaustos pela procura de raízes e
bagas, caçando animais selvagens, empenhados em excursões
sanguinárias periódicas pelos campos uns dos outros, e vivendo em
supersticioso terror das forças naturais, caprichosas e misteriosas,
que lhes controlavam a vida. Ao invés disso, os mitos retratavam a
existência do Primeiro Povo como supremamente feliz. O que mais
surpreende é que as descobertas recentes de antropólogos e
arqueólogos tendam a sustentar a visão primitivista em lugar da visão
progressivista.
Não só em virtude dos estudos arqueológicos de sítios antigos, mas
também dos estudos etnológicos de povos colhedores-e-caçadores
(como os boximanes da África e os aborígines da Austrália), os
pesquisadores estão achando que a agricultura pode ter sido, como
diz o fisiologista Jared Diamond: "o pior erro da história da raça
humana". Vemos a prova em que se fundou essa afirmação nos
estudos comparativos da dieta e da nutrição, por exemplo. A maioria
das sociedades agrícolas tende a adotar a dieta baseada numa
relativa pouquidade de alimentos - geralmente, duas ou três colheitas
de grãos feculentos que, por si sós, não proporcionam variedade nem
equlíbrio suficientes de substâncias nutrientes. Os forrageadores, por
outro lado, sabem como obter ampla variedade de alimentos. Os
boximanes Kung do Deserto de Kalahari, por exemplo, consomem,
mais ou menos, umas setenta e cinco plantas selvagens diferentes; os
aborígines da região de Cape York, na Austrália, há umas poucas
gerações, conheciam, pelo menos, 140 espécies edíveis. Os
paleopatologistas, que estudam evidências de moléstias em restos
humanos pré-históricos, descobriram que os esqueletos de antigos
caçadores-colhedores tendem a ser maiores e mais robustos e a exibir
menor número de sinais de moléstia degenerativa e decadência de
dentes de que os dos agricultores subseqüentes.
Igualmente, no que tange à questão do trabalho e tempo de lazer, a
agricultura pode ter sido um passo dado para trás. Como assinalou o
antropólogo Marshall Sahlins, da Universidade de Michigan, em seu
Stone Age Economics, e como o antropólogo Marvin Harris confirmou
em seu Cannibals and Kings: The Origins of Cultures, os colhedores-
caçadores só dedicam de doze a vinte horas por semana à obtenção
de comida. O resto do tempo é gasto com a família e os amigos, a
arte, a música e a narração de histórias. O antropólogo australiano
Max Charlesworth escreve que:

Embora, do ponto de vista tecnológico e material, a cultura aborígine


seja de extrema simplicidade, religiosa e espiritualmente é de extrema
complexidade e sutileza. Com efeito, provou-se que os aborígines
escolhem deliberadamente uma tecnologia e um estilo de vida
econômica simples, de modo que possam voltar-se à elaboração de
uma vida social e religiosa rica e intricada.

Além disso, entre as atividades dos povos primitivos podemos


imaginar que o trabalho - o forragear e o caçar tendem a ser
considerados como sagrados e altamente aprazíveis, e são cercados
pelo espírito de aventura. De fato, entre muitas tribos é difícil encontrar
alguma idéia indígena que corresponda ao nosso conceito civilizado
de "trabalho". Escreve o antropólogo Elman R. Service:

Pensamos num tempo de trabalhar e num tempo de folgar, e,


[queixamo-nos] da falta de tempo para todo o lazer e descanso que
desejamos. Em todas as comunidades primitivas que visitei, o tempo
de trabalho se mistura com o de folga ou, melhor, ninguém distingue
realmente [entre] os dois.

Visto que dificilmente poderemos dizer que a agricultura libertou os


seres humanos do trabalho desnecessário, tampouco se poderá dizer
que ela foi responsável pelo florescimento das artes. Se o tempo de
lazer é a chave da alta cultura, os forrageadores deveriam ter tido
tempo suficiente para edificar catedrais e escrever sinfonias, se o
tivessem querido. Mas a chave de formas mais complexas de
expressão artística não é, na verdade, tanto o tempo de lazer quanto
uma organização social esmerada. É impossível imaginar um
Beethoven, por exemplo, sem um piano, uma orquestra sinfônica, e
um editor sem uma impressora; ora, todas essas coisas são produtos
da civilização industrial. Não é desarrazoado supor, portanto, que
tenha havido Beethovens e Tolstois aborígines, que deram
contribuições significativas para as suas culturas, mas de maneiras
que o mundo civilizado ainda não pode apreciar: os seus esforços e
consecuções não foram preservados por meio da escrita ou do
artefato, mas, em compensação, foram tecidos numa tradição oral.
As tradições orais dos povos tribais são ricas e complexas, e revelam,
não raro, profunda compreensão das operações da Natureza e da
mente humana. Até agora, os antropólogos só compreenderam os
aspectos superficiais dessas tradições, atrapalhados pelas diferenças
de linguagem e dos estilos de pensar. Os nomes dos fundadores e
modeladores dessas tradições orais tribais, na maioria dos casos,
estão perdidos.
A agricultura tornou a habitação em cidades e a estratificação social
não apenas possível mas também, através da centralização da
estocagem de alimentos e da divisão de trabalho, virtualmente
necessária. De acordo com o pensar de Sahlins e Harris, as
implicações dessa organização e especialização não são de todo em
todo benéficas. Um dos resultados foi a criação de profundas divisões
de classes. Aos poucos, tornou-se praticável a uns poucos indivíduos
viverem dos alimentos tirados ou exigidos de outros a título de tributo.
E com a diferenciação das classes e ocupações sociais veio uma
perda da autonomia pessoal. À maneira que as pessoas se tornaram
mais dependentes do trabalho alheio para o seu sustento, a
sobrevivência do indivíduo passou a depender, cada vez mais, da
sociedade como um todo.
Outro resultado da introdução da agricultura foi o desenvolvimento do
conceito de propriedade. Os povos primitivos têm dificuldade para
compreender o sistema civilizado de propriedade da terra, visto que
não são proprietários de terra; pelo contrário, a terra os "possui". Para
esses povos, a terra não é tão-somente o solo ou as divisas
territoriais, mas também os espíritos dos lugares sagrados, e dos
animais e plantas associados a esses lugares. O povo é uma parte da
terra e não pode imaginar-se alienado dela. Não tendo o conceito de
propriedade, os povos tribais não praticam o comércio no sentido em
que o praticam os povos civilizados. Os ganenses nativos, por
exemplo, simplesmente dão, sem pensar no que poderão receber em
troca; o ato de dar, por si só, traz honra. Uma atitude assim pode ser
frustrante para missionários e antropólogos civilizados: o nativo que
considera o dar natural é uma bênção para o doador, não se sente
inclinado a dizer "obrigado".
Entre os povos tribais estudados por antropólogos, não existe guerra
no sentido mecanizado ou impessoal em que a conhecemos. Diz o
antropólogo Stanley Diamond: "O contraste não está apenas no fator
exponencial da tecnologia que multiplica um impulso humano
homicida constante; na sociedade primitiva, tirar uma vida era uma
ocasião; em nossa fase da civilização, tornou-se uma compulsão
abstrata, ideológica. '“
O historiador cultural Lewis Mumford escreveu:

O mais conspícuo nas escavações neolíticas é... a completa ausência


de armas, embora não faltem instrumentos e potes. Essa evidência,
se bem seja apenas negativa, está difundida. Entre os povos
caçadores, como os boximanes, as pinturas de cavernas mais antigas
não mostram representação alguma de lutas mortais, ao passo que
pinturas ulteriores, contemporâneas da monarquia, mostrem cenas
desse tipo.

Confirmam a observação de Mumford os sítios de todos os


continentes habitados. Conta-nos o arqueólogo W. J. Perry que é um
erro, tão profundo quanto universal, pensar que os homens na fase de
coleta de alimentos eram dados a lutar. ... Todos os fatos disponíveis
que temos mostram que o estádio de coleta de alimentos da história
há de ter sido um estádio de paz perfeita. Os estudos dos artefatos da
idade paleolítica não revelam nenhum sinal definitivo de guerra
humana. Em alguns povos tribais, essa inocência da guerra se
manteve até tempos recentes. O explorador e escritor Sir Laurens Van
der Post fala de uma tradição boximane africana, segundo a qual teria
havido outrora uma guerra entre as suas tribos, uma guerra tão terrível
que, finalmente, um homem foi morto. Os grupos de boximanes
envolvidos ficaram tão envergonhados do que acontecera que
traçaram uma linha no deserto e concordaram em nunca atravessá-Ia,
porque se sentiam indignos de partilhar a companhia uns dos outros
dali por diante.
Em face dos estudos dirigidos ou citados por Sahlins, Diamond e
Harris, só podemos concluir que as sociedades primitivas colhedoras
de alimentos proporcionavam uma boa alimentação, numa
comunidade estável e afetiva; relações de sustentação,
multifacetadas, durante toda a vida; e o desfio de um envolvimento
constante e direto com a natureza. Os caçadores-colhedores não
somente exibiam, de um modo geral, boa saúde, grande sensibilidade
estética e uma atitude amistosa e pacífica em relação aos outros,
como também muitos antropólogos entendem que eles devem ter sido
ecologistas intuitivos. Para citar apenas um exemplo, até há poucos
decênios, os aborígines da Austrália ateavam fogo livremente no mato
ao saírem em suas migrações sazonais - prática que os colonos
europeus os obrigaram a abandonar. Agora, entretanto, os ecologistas
australianos estão descobrindo que os fogos dos aborígines são
essenciais à reprodução dos eucaliptos indígenas, cujas sementes só
se abrem quando o calor é intenso. Todas essas qualidades dos pré-
agricultores - sua saúde física e psicológica, a simplicidade da sua
tecnologia e organização social e o seu íntimo relacionamento com o
mundo natural - são reminiscências de descrições míticas do Primeiro
Povo.
Poderíamos indagar por que foi adotada a agricultura, em vista de
suas desvantagens práticas e da resistência cultural e espiritual que
ela deve ter evocado. Os pesquisadores só podem especular, como a
agricultura alimenta maior número de pessoas - se bem que num nível
mais pobre de nutrição -, talvez o crescimento não controlado da
população, com a conseqüente oneração das fontes de alimentos,
obrigasse certos grupos isolados a recorrer à lavoura. A ser assim,
não podemos deixar de imaginar se a própria crise populacional
primodial não poderia ter sido resultado de alguma desarmonia sutil
entre a humanidade e o resto da Natureza. Podemos apenas tecer
conjeturas sobre se não teria sido apenas uma alienação inicial assim
da natureza que teria dado origem ao mito universal da Queda.

O Paraíso como Jardim


Nem todos os comentadores que voltam os olhos para um Paraíso da
Idade da Pedra concordam em que o crescimento da agricultura foi a
ruína da humanidade. Em The Recovery of Culture, volume
evocativamente belo publicado em 1949, o horticultor Henry Bailey
Stevens elaborou uma teoria segundo a qual a Idade de Ouro foi um
período de muitos milênios - que durou, mais ou menos, até 5.000
anos atrás, durante o qual os seres humanos viveram em paz e
harmonia, alterando, cuidadosos, espécies selvagens de grãos e
árvores frutíferas. Stevens citou descobrimentos arqueológicos que
mostram que a guerra é uma invenção humana relativamente recente,
e que, antes do período em que começaram a fazer armas, as
pessoas estavam muito mais interessadas em arte, religião e na
domesticação de plantas. Há milhares de anos, o trigo, o arroz, o
painço, a cevada, a aveia e o milho, assim como a maçã, a banana, a
laranja, a toranja, o limão, a azeitona, o figo, o morango, a tâmara, o
abricó, a noz, a avelã e a amêndoa, tiveram o seu estado selvagem
dramaticamente modificado, e as pessoas que levaram a efeito esses
milagres de transformação no início do período neolítico devem ter
sido horticultores de primeira ordem.
De acordo com Stevens, a Queda não veio com a invenção da
agricultura, mas com a invasão de pastores nômades, cuja vida era
dedicada ao trato e a alimentação de animais de corte. "Os povos que
tomaram o poder das mãos dos pacíficos horticultores eram
guardadores de rebanhos e manadas", escreveu Stevens. "Isso
significava lã, couros e leite. Também significava carne. O homem
entrara nos negócios como açougueiro." Stevens afirma que foi a
criação de animais que fez a diferença.

Enquanto os caçava, o homem não passava de outro animal de rapina


- parte do equilíbrio natural que mantinha a vida animal sob controle.
Mas quando criava e protegia vastas manadas de gado, atirava uma
carga intolerável sobre os recursos da terra, que vem pagando, com a
guerra, desde então.

A tese de Stevens recentemente recebeu apoio - e uma mudança


feminina de ênfase - da obra da douta ativista Riane Eisler, cujo livro
The Chalice and the Blade [O cálice e a espada] pressupõe 20.000
anos de parceiragem entre homens e mulheres numa sociedade
primariamente hortícula. Como Stevens, Eisler toma por base dos
seus argumentos descobrimentos arqueológicos na Europa e no
Oriente Médio, que põem em cheque suposições mantidas por muito
tempo. A nova evidência, que se tem acumulado desde os primeiros
decênios deste século, mostra que, muito antes do surgimento da
cultura sumeriana na Mesopotâmia, havia gente em cidades
instaladas por toda a Velha Europa (do Egeu e do Adriático ao sul da
Polônia e ao oeste da Ucrânia) que praticava a agricultura, trabalhava
o metal e empregava uma escrita simples para a maioria dos
propósitos religiosos. Diz Eisler: "Sabemos agora que não houve um
só berço da civilização, mas diversos, todos os quais datam de
milênios antes do que previamente se conhecia - até o neolítico."

Assim como no tempo de Colombo, o descobrimento de que a terra


não é plana tornou possível o encontro de um surpreendente mundo
novo que lá estivera o tempo todo, os descobrimentos arqueológicos -
derivados do que o arqueólogo britânico James Melaart cognomina de
verdadeira revolução arqueológica - abrem o mundo pasmoso do
nosso passado oculto. Revelam um longo período de paz e
prosperidade, quando a nossa evolução social, tecnológica e cultural
se dirigia para cima: muitos milhares de anos, quando todas as
tecnologias básicas, sobre as quais se construiu a civilização, foram
desenvolvidas em sociedades que não eram dominadas pelo macho,
violentas e hierárquicas.

Naqueles dias, segundo Eisler, as relações humanas se baseavam na


paz, na cooperação e na assistência mútua. Em Catal Huyuk, no que
é hoje a Turquia oriental, os murais e esculturas do maior povoamento
neolítico já escavado não contêm cenas de lutas nem de guerras;
fortificações e armas militares também estão ausentes. De idêntica
maneira, conforme C. C. McCown, as escavações neolíticas em
Teleilat el-Ghassul, no Vale do Jordão, não apresenta "provas de que
o lugar possuía algum sistema de defesa". Além disso, tais
povoamentos não mostram sinais de dominação masculina - os
túmulos, por exemplo, de mulheres e homens eram aproximadamente
iguais no tamanho e nas provisões - e existem poucos sinais da rígida
e hierárquica estrutura social que caracterizou as civilizações
subseqüentes na Mesopotâmia. Escreve Eisler: "O que encontramos
em toda a parte - nos santuários e nas casas, nas pinturas de
paredes, nos motivos decorativos em vasos, nas esculturas, nas
estatuetas roliças de barro e nos baixos-relevos - é uma rica coleção
de símbolos da natureza." Os motivos decorativos retratam o Sol, a
água, as serpentes, e as borboletas, e, escreve Eisler, "em toda a
parte... imagens da Deusa". As ruínas mais dramáticas desse período
pacífico e criativo foram, provavelmente, as achadas na ilha de Creta.
Ali, durante o período minóico - aproximadamente, 4000-1500 a.C.,
segundo a maioria dos historiadores - "pela derradeira vez na história
registrada, um espírito de harmonia entre mulheres e homens, como
participantes alegres e iguais da vida, parece ter prevalecido". Em seu
apogeu, a Creta minóica tinha uma cultura altamente desenvolvida,
com escrita, governo centralizado e cidades que ostentavam viadutos,
ruas pavimentadas, canos de água, fontes, reservatórios, palácios,
pátios e jardins. A civilização aqui não parece ter trazido consigo
governos autocráticos nem profundas divisões de classes. "Até entre
as classes dirigentes a ambição parece ter sido desconhecida; em
parte alguma se nos depara o nome de um autor preso a uma obra-
de-arte, nem o registro dos feitos de um soberano." Entretanto, em
Creta - ou alhures, durante toda a Antiga Cultura - principiaram a
ocorrer mudanças catastróficas há cerca de 5.000 anos. Ao mesmo
tempo que as catástrofes da natureza (uma seqüência de terremotos e
ondas gigantescas, provocadas por maremotos), invasores do norte
assolaram as cidades e vilas indefesas da ilha e puseram fim, de
repente, à vida pacífica dos habitantes. Os recém-chegados eram
tribos de pastores nômades, cuja vida se passava na criação e
matança de animais e numa guerra quase constante. Na Índia, os
invasores eram conhecidos por arianos; e na Grécia, aqueus e dórios.
"A única coisa que todos tinham em comum", de acordo com Eisler,
"era um modelo dominador de organização social: um sistema social
em que a dominação masculina, a violência masculina e uma estrutura
social geralmente hierárquica e autoritária constituía a norma."
Com a invasão dos pastores, a evolução humana sofreu uma
"regressão maciça", afirma Eisler.

Haverá, sem dúvida alguma, os que sustentarão que, por se haver


registrado na pré-história a mudança de uma associação para um
modelo dominador de sociedade, este deve ter sido adaptável.
Entretanto, o argumento de que, por ter acontecido na evolução,
alguma coisa era adaptável não se sustenta - como a extinção dos
dinossauros evidencia amplamente.

Tudo aquilo de que nos lembramos como história humana, no dizer de


Eisler, esgotou-se no contexto de modelos sociais e psicológicos
tragicamente deturpados, que se formaram num ponto crucial
decisivo, quando a catástrofe e a invasão puseram fim à pacífica
Idade de Ouro da associação entre mulheres e homens, e entre a
humanidade e a natureza.

O Paraíso Paleolítico
Eisler e Stevens são de opinião que a Idade de Ouro continuou até
cerca de 5.000 anos atrás (e, segundo Eisler, em Creta até 3.500 anos
atrás). Sahlins, Harris e Diamond diriam que o Paraíso terminou com a
invenção da agricultura por volta de 10.000 anos atrás, mas que
algumas tribos primitivas persistiram no estado "de ouro" até o
presente.
O estudo comparado da mitologia apresenta um fato importante, que
nos obriga a reconsiderar ambas as opiniões. Como já vimos, os mitos
do Paraíso não se restringem aos povos agrícolas; tribos de
colhedores e caçadores também têm histórias de uma Idade da
Inocência original. Se a Queda se referisse à primeira aparição da
agricultura ou a eventos subseqüentes, a presença dos mitos do
Paraíso entre povos pré-agrícolas seria inexplicável. O fato de
manterem os colhedores de alimentos suas próprias versões da
história do Paraíso dá a entender que a linha divisória espiritual,
relembrada como a Queda, deve ter ocorrido antes do
desenvolvimento da agricultura - e, por conseqüência, antes
dos primórdios da sociedade horticultural descrita por Eisler
e Stevens. A sociedade pacífica da Velha Europa talvez representasse
a sobrevivência de alguns aspectos de um tempo anterior, e até mais
feliz, precisamente como as poucas sociedades de colheita e caça
ainda fazem, à sua maneira.
Mas se a Idade de Ouro floresceu antes do advento da cultura da
Velha Europa e do desenvolvimento da agricultura, deve ter existido
no período paleolítico, ou Velha Idade da Pedra. Esse período, que se
estendeu (segundo a maioria dos paleoantropólogos) de cerca de
500.000 anos até por volta de 12.000 anos atrás, é um mistério quase
completo.
Segundo Stanley Diamond:

Sabemos quase nada em relação às origens das então formas de


linguagem, da organização social, da religião, e assim por diante,
então existentes; a maioria dos aspectos formativos, não-materiais, da
cultura permanecem inacessíveis a nós. O estudo dos povos
primitivos contemporâneos não projeta muita luz sobre esses
assuntos.

Enquanto alguns antropólogos encaram os povos tribais sobreviventes


da África, da Austrália, da Ásia, da Oceânia e das Américas como
representantes da cultura neolítica, todas as autoridades concordam
virtualmente em que não há culturas "fósseis" representando a
humanidade, como havia na era paleolítica. Os mitos do Paraíso dos
povos primitivos (e, por inferência, os dos povos civilizados também)
devem, portanto, referir-se a um estado de existência que
desapareceu completamente.
Conquanto a evidência arqueológica revele pouca coisa a respeito da
sociedade humana antes do período neolítico, as provas
paleontológicas proporcionam pistas intrigantes do ambiente do
tempo. Os fósseis mostram que a própria Terra era, em certos
sentidos, paradisíaca antes do limite entre o paleolítico e o neolítico.
Os paleontologistas sabem que, no final da época plistocênica
(contemporânea do período paleolítico) havia maior variedade de
espécies em todos os continentes, incluindo a África. P. S. Martin
escreve que as extensões prístinas do Oeste americano foram
"outrora partilhadas por elefantes, camelos, cavalos, preguiças,
extintos bisões e antílopes quadricórneos". A Austrália também perdeu
a maior parte dos seus grandes herbívoros mais ou menos nessa
época - "de um dia para outro", em termos paleontológicos ou
geológicos.
Antes das extinções ocorridas no fim do plistoceno, cuja causa ainda é
motivo de controvérsias, o nosso mundo era um lugar muitíssimo
diferente. Seriam os mitos do Paraíso lembranças dessa época,
quando os animais eram mais abundantes e as plantas selvagens
comestíveis mais copiosas?
Se quisermos correlacionar os mitos do Paraíso com um tempo de
abundância biológica, teremos de colocar a Idade de Ouro muito mais
atrás no tempo, antes do encerramento do plistoceno. Se o fizermos,
não poderemos deixar de perguntar se as extinções do fim do
plistoceno não eram, de certo modo, relembradas em mitos da Queda.
Talvez essas extinções fossem causadas por alguma vasta catástrofe
da natureza, que também resultou na destruição de populações ilhoas,
e, destarte, em histórias de grandes inundações e continentes
afundados.
Provas de uma destruição dessa ordem existem, mas são de natureza
controvertida. Nos últimos 150 anos, a ciência da geologia foi
dominada pela doutrina da uniformidade, que assevera que todas as
formações rochosas, hoje visíveis, são o resultado de processos
graduais, uniformes, que ainda podemos observar em ação, como a
erosão e a acumulação de sedimentos. O uniformitarismo, que exclui,
efetivamente, todas as teorias de catástrofes globais, alcançou o
predomínio no início do século XIX, não porque fosse sustentado por
provas irresistíveis, senão porque certos modeladores influentes da
opinião científica desejavam separar a geologia da tradição bíblica do
Grande Dilúvio.
Até recentemente, portanto, a discussão científica de catátrofes
globais praticamente não existiu nos círculos do establishment.
Immanuel Velikovski e outros teóricos, que insistiam em chamar a
atenção para a evidência de cataclismas globais, foram metidos a
ridículo. No entanto, evidências de catástrofes universais existem. A
última geração de geólogos está empregando, com o máximo cuidado,
uma forma diluída de "neocatastrofismo" para explicar certos
fenômenos, aliás misteriosos, como a extinção dos dinossauros e o
início das Idades do Gelo. Ainda assim, sinais de catástrofes globais
dentro da idade da espécie humana - sinais que poderiam ser usados
pelos fundamentalistas cristãos para secundar a interpretação literal
da história de Noé na Bíblia, ou pelos teóricos da Atlântida para
validar-lhes a interpretação literal da narrativa de Platão da destruição
da ilha-continente perdida ainda não estão sendo levadas em conta
pela ciência institucional.
Não temos espaço aqui para examinar minuciosamente nem o
catastrofismo em geral nem a hipótese de continente perdidos em
particular. Entretanto, ambos são relevantes para a seqüência da
história mítica: se mitos de extensão universal de pátrias perdidas,
destruídas pelo dilúvio ou pelo fogo, tivessem de obter validação
histórica a partir das provas da geologia, os mitos igualmente
universais do Paraíso e da Queda tornar-se-iam também candidatos
óbvios à reconstrução histórica. Justifica-se, pois, um rápido exame
dessas provas.

Atlântida e Mu
Como vimos no Capítulo 3, os mitos de muitas culturas descrevem a
perda da pátria paradisíaca como um continente ora afundado, e a
descrição da Atlântida de PIatão parece repetir a história da Idade de
Ouro escrita por Hesíodo. Localizava-se, pois, o Jardim do Éden, onde
agora só existe o oceano?
Embora o assunto da Atlântida esteja fora dos limites das academias
institucionais, alguns pesquisadores capazes encontraram uma prova
geológica, arqueológica e antropológica plausível da existência
anterior de pelo menos um continente recém-submerso. O dr. M.
Klionova, da URSS, relatou, em 1963, que rochas extraídas de uma
profundidade de 6.600 pés a sessenta milhas ao norte dos Açores,
mostraram ter sido expostas à atmosfera uns 17.000 anos antes.
Encontrou-se areia de praia - que só se forma ao longo de linhas da
costa - a uma profundidade de milhares de pés na parte do Atlântico
situado entre a América e a Inglaterra, e sedimentos na Crista do
Atlântico Médio revelam remanescentes de plantas de água doce, o
que prova que a crista, em outro tempo, estava acima do nível do mar.
Em 1975, explorando a Crista do Atlântico Médio, cientistas marinhos
encontraram fósseis e pedras calcárias que continham quantidades
substanciais de água de chuva, o que indica, mais uma vez, que a
crista, antigamente, se erguia acima da superfície. E, em todos os
oceanos do mundo há indícios de que, 11.500 anos atrás, mais ou
menos, súbito fluxo de água gelada forçou criaturas do fundo do mar a
se adaptarem tão depressa que formaram uma linha de tempo fóssil
para classificar núcleos sedimentares. Os teóricos da Atlântida
insistem em que esse fluxo gelado foi o dilúvio que destruiu o
continente mítico.
Achados arqueológicos, possivelmente relacionados com a Atlântida,
foram encontrados do outro lado do Estreito da Flórida, entre Miami e
a ilha de Bimini, longe da Crista do Atlântico Médio. Desde 1956,
diversos grupos de exploradores avistaram e fotografaram artefatos
submersos, incluindo colunas com caneluras, uma rua, a possível
plataforma de um templo, e uma cabeça estilizada de mármore.
Para o coronel James Churchward, aventureiro inveterado e autor do
livro controvertido The Lost Continent of Mu (1931), a história do
Jardim do Éden não era uma lembrança deturpada da Atlântida, mas
da vida idílica da espécie humana em Mu, continente afundado no
Oceano Pacífico. Provas descobertas desde o tempo de Churchward
deram-lhe à teoria - que se fundava em suas traduções de tabuinhas
da Índia e do México - um apoio intrigante. O cientista soviético V. V.
Belousov escreve em The Geological Structure of the Oceans: "Pode-
se afirmar que, muito recentemente, em parte até na idade do homem,
o Oceano Pacífico cresceu consideravelmente à custa de grandes
pedaços de continentes, os quais, juntamente com suas jovens
cadeias de montanhas, foram inundados por ele. Os cumes dessas
montanhas vêem-se nas grinaldas de ilhas da Ásia Oriental." E
George H. Cronwell, num ensaio apresentado no Décimo Congresso
Mundial do Pacífico, fez menção da descoberta de carvão e flora
antiga na Ilha Rapa (a sudoeste da Ilha Mangareva), "que enseja
testemunho irrefutável de que houve um continente naquela parte do
oceano".
Segundo Platão, a destruição da Atlântida verificou-se por volta de
10.000 a.C. Essa data aproximada aparece também nos escritos de
povos antigos do outro lado do Atlântico. O erudito meso-americano
do século XIX, Charles Etienne Brasseur de Bourbourg, como o seu
sucessor Augustus Le Plongeon, leu em documentos maias primitivos
relatos, ou coisa que o valha, de uma pátria ilhoa oceânica destruída
numa grande convulsão terrestre. De acordo com Brasseur de
Bourbourg e Le Plongeon, o Codex Troano maia fixa a data do
cataclisma em 9937 a.C.
Como observamos antes, geólogos e paleontólogos datam o fim da
época plistocênica e o princípio da holocênica, em que ora vivemos,
aproximadamente no ano 10.000 a.C. Foi então que a última grande
Idade do Gelo terminou, os níveis dos mares mudaram, e ocorreram
extinções muito difundidas da flora e da fauna. Os cientistas,
outrossim, de um modo geral, não concordam sobre a causa de todos
esses eventos; cada um deles é considerado um mistério. Claro está
que os proponentes da hipótese dos continentes perdidos dizem que o
dilúvio, as mudanças climáticas e as extinções resultaram do
cataclisma que destruiu Atlântida e/ou Mu.
A evidência geológica e arqueológica da existência de Mu e da
Atlântida é inconcludente. Durante treze anos de exploração, o dr.
Maurice Ewing, da Universidade de Columbia, não encontrou sinais de
cidades perdidas na Crista do Atlântico Médio. Mas, como assinala
Ralph Franklin Walworth: "Localizar pequenos fragmentos de uma
cidade sepultada debaixo de jardas de lodo e vasa naquelas
condições é o mesmo que tentar localizar uma arrasada e sepulta
Peoria, em Illinois, cruzando o meio-oeste, numa noite nevoenta e
carregada de nuvens, a bordo de um dirigível, arrastando uma câmara
fotográfica, presa na ponta de uma corda de três milhas de
comprimento." O fato é que ainda não temos dados geológicos e
arqueológicos suficientes para confirmar ou eliminar a hipótese dos
continentes perdidos.
A evidência antropológica da existência da Atlântida e de Mu é
igualmente inconcludente, embora tantalizante. A idéia de uma fonte
desaparecida de cultura humana pareceria extravagante e
desnecessária se pudéssemos remontar às origens humanas na base
de suposições ortodoxas e dados disponíveis, mas este não é o caso.
Existem imensas lacunas em nossa compreensão. Escreve o
antropólogo J. B. Birdsell: "A terra de origem dos tipos vivos de
populações modernas continua desconhecida. O seu aparecimento
em áreas marginais, como a Austrália... apresenta problema reais que
os dados existentes não podem resolver." E, de acordo com outro
antropólogo, Björn Kurtén:

Não há transição conhecida dos homens de Neandertal aos que


ostentam uma aparência essencialmente moderna, denominados
homens de Cro-Magnon. De mais a mais, esses novos europeus não
são um tipo qualquer de homo sapiens "generalizado", mas pertencem
claramente à raça caucasóide, ou , branca. Nessa data primitiva,
portanto, o homem já se dividira em raças distintas. Assim como os
primeiros homens modernos na China são, reconhecíveis como
mongolóides, os da Austrália são relacionados aos aborígines
australianos vivos, e os primeiros sul-africanos parecem estar ligados
aos boximanes. De onde vieram todos eles?

É evidente que a falta de uma evidência-chave na visão de consenso


das origens humanas não prova a validade de nenhuma teoria
alternativa. Mas o reconhecimento de lacunas e inconsistências deixa,
pelo menos, a porta aberta para novas reflexões. Como disse, certa
vez, James Clerk Maxwell: "Um estado de ignorância inteiramente
consciente... é o prelúdio de todo avanço real do conhecimento.”

Anomalias Arqueológicas
As anomalias são fenômenos que não podem ser explicados pelas
teorias científicas atuais. Por razões óbvias, a maioria dos defensores
do status quo na ciência sente-se mal diante das anomalias e,
freqüentemente, lhes nega a existência ou tenta racionalizá-Ias. Os
hereges científicos, porém, amam as anomalias, coligem-nas, e
chamam a atenção para elas sempre que podem fazê-Io.
Como o filósofo da ciência, Thomas Kuhn, assinalou, é o acúmulo de
anomalias que acaba forçando o abandono de velhos paradigmas
científicos e a instalação de novos. Este foi o caso, por exemplo, no
princípio do século XIX, quando as autoridades científicas do dia
sustentavam a crença de que os meteoros não podem cair do céu
porque, para começar, no céu não há pedras. Relatos difundidos da
queda de meteoros eram então considerados praticamente como o
são hoje as visões de OVNI’s. Mas depois que um número suficiente
de pedras caiu - e depois de ter sido visto por milhares de pessoas,
incluindo cientistas - o baluarte das autoridades da negação
simplesmente desabou.
As anomalias são definidas pela natureza das teorias atualmente
adotadas; o que é anômalo para uma teoria pode ser aceitável para
outra. Há três décadas, na América, toda prova geológica da corrente
continental era considerada anômala. Hoje em dia, qualquer evidência
que contestasse a teoria da corrente continental seria reconhecida
como anômala.
Na arqueologia e na antropologia, o paradigma atual - que reinou por
mais de um século - é que a cultura humana evolveu
unidirecionalmente do "primitivo" para o "avançado". Qualquer
evidência que contradiga este ponto de vista, por definição, é uma
anomalia. Neste caso, as anomalias são legião. Em cada continente
há terraplenagens, artefatos e remanescentes humanos que não se
enquadram no paradigma atual porque são demasiado velhos,
demasiado avançados, ou simplesmente porque estão no lugar
errado. Assim, por exemplo, encontraram-se na América artefatos e
restos humanos de dezenas de milhares de anos, velhos demais para
se ajustarem às teorias atuais sobre como e quando o Novo Mundo foi
habitado pela primeira vez. Objetos obviamente feitos por humanos
têm sido descobertos encerrados em pedaços sólidos de carvão ou de
pedra. Poderíamos estender-nos indefinidamente; há tantas anomalias
desse gênero, de fato, que alguns cientistas gastam toda a sua
carreira coligindo-as e estudando-as.
Os estudiosos de anomalias arqueológicas notam, com freqüência, a
existência de um modelo peculiar. Para onde quer que olhemos, as
realizações científicas, artísticas e de engenharia dos antigos parecem
ter alcançado o auge muito cedo, tendo, em seguida, sofrido um
declínio. Na Bretanha, os romanos construíram estradas sobre um
pavimento muito mais antigo, de origem desconhecida, mas, não raro,
de construção superior; na América, os esquimós estiveram, outrora,
familiarizados com trabalhos em metal, mas parecem ter sido, mais
tarde, separados da origem da sua cultura referente ao metal; e, no
Egito, algumas das primeiras pirâmides mostram maior habilidade de
engenharia e consecução científica do que os monumentos de
qualquer dinastia ulterior.
Muitas obras da alvenaria ciclópica de sítios na América, na Europa e
na Ásia, de idade e proveniência desconhecidas, dão testemunho de
uma habilidade e de uma força impressionantes. O famoso muro de
Sacsayhuaman, no Peru, por exemplo, consiste em blocos de pedra
que, em alguns casos, pesam centenas de toneladas, ajustados com
uma precisão muito maior do que a que encontramos na maioria das
estruturas de pedra modernas. Num caso depois do outro, os
remanescentes mais velhos de pedra são os mais grandiosos e os
mais perfeitamente executados; em confronto com eles, o que veio
depois não passou de imitações grosseiras.
Com base nessa evidência, diversos arqueólogos e historiadores
independentes foram levados a contestar a opinião ortodoxa de que a
espécie humana evolveu uniformemente a partir de um estado de
barbarismo nos últimos 10.000 anos, e concluíram, em vez disso, que
a nossa atual civilização deve ter começado no início de uma descida
de um cume anterior. Por exemplo, depois de estudar, durante vinte
anos, os monumentos do antigo Egito em primeira mão, o filósofo e
matemático alsaciano R. A. Schwaller de Lubicz concluiu que a
ciência, a medicina, a matemática e a astronomia egípcias estavam
muito mais adiantadas do que o admitiram os egiptólogos modernos.
Afiançou De Lubicz que todas as realizações daquela civilização
fluíam de uma filosofia profunda das relações recíprocas entre os
números, a geometria e o espírito humano - filosofia inacessível aos
egiptólogos modernos por sua incapacidade de seguir antigos estilos
de pensamento. Além disso, concluiu que, visto revelarem esses
textos e monumentos primitivos tal filosofia em sua forma mais pura, a
civilização egípcia deve ter sido um legado de alguma cultura anterior,
até mais adiantada. De Lubicz identificou a cultura anterior, perdida,
com as lendas da Atlântida e da Idade de Ouro.
Em seus livros populares, City of Revelation e The New View over
Atlantis, o historiador John Michell argumentou, similarmente, que
misteriosos monumentos pré-históricos em todo o mundo "foram
projetados de acordo com um plano de proporção, em unidades de
mensuração idênticas em toda a parte". Estas, afirma Michell, são
"relíquias de uma ciência elementar anterior, baseada em princípios
que agora ignoramos". Em The New View over Atlantis, ele propõe
que:

Em algum período, milhares de anos atrás, quase todos os cantos do


mundo eram visitados por gente que tinha uma tarefa especial para
cumprir. Com a ajuda de alguma força espantosa, por meio da qual
podia cortar e erguer blocos enormes de pedra, essa gente criou
vastos instrumentos astronômicos, círculos de pilares erectos,
pirâmides, túneis subterrâneos, plataformas ciclópicas de pedra, todos
ligados uns aos outros por uma rede de pistas e alinhamentos, cujo
curso de horizonte a horizonte era assinalado por pedras, túmulos e
aterros.

As pistas retas, os muros e túmulos, os círculos de pedra e as


pirâmides de origem desconhecida parecem a Michell provas de um
modo de vida que não corresponde a nenhuma de nossas idéias
preconcebidas a respeito do que constitui uma cultura "avançada" ou
"primitiva". A gente que construiu esse sistema global não pertencia,
pura e simplesmente, a uma Idade da Pedra primitiva, que habitava
um Paraíso inocente, mas ignorante, nem era constituída de
tecnólogos no sentido em que o somos. A nossa tecnologia destina-se
a promover o conforto e a conveniência dos homens, ao passo que a
daquela gente parece ter sido da Terra e para a Terra - isto é, voltada
à nutrição do planeta e à coordenação de ciclos terrenos de
germinação e crescimento com os ritmos do Cosmo. Todos os
monumentos megalíticos da Europa e da América, como os
monumentos do antigo Egito, parecem ter sido construídos com
propósitos religiosos. Astronomicamente alinhados, visavam todos a
encerrar com precisão as relações recíprocas geométricas e
numéricas, como a seção áurea e o número pi (3,1416...), que
governam a geração e o desenvolvimento dos organismos vivos.
As anomalias da pré-história, autênticas e numerosas, continuam a
roer a base das teorias atuais da evolução cultural humana. O
paradigma histórico presente acha-se em maus lençóis, e os fatos não
nos apresentam uma alternativa clara, facilmente assimilável pelo
pensamento atual. Ao contrário, elas sugerem possibilidades que nos
frustram continuamente o desejo de explicações simples, lineares.
De modo geral, as anomalias sugerem uma interpretação mítica da
história - supõem a Queda de uma Idade da Sabedoria universal
anterior, separada da idade presente por catástrofes da Natureza.
Entretanto, a construção de um paradigma mítico da história
apresenta seus próprios problemas. Ao passo que o mito descreve o
Paraíso em termos não-tecnológicos, os primeiros monumentos dos
egípcios e construtores megalíticos anunciam um estádio de
desenvolvimento em que os seres humanos tinham, a um tempo,
tecnologia e formas complexas de organização social. Talvez a própria
Atlântida - cujo legado os egípcios e os construtores megalíticos
receberam, segundo Lubicz e Michell - fosse um remanescente
degenerado de uma idade de milagres, em que a tecnologia era
desnecessária. Claro está que é impossível provar uma idéia como
essa tomando por base pedras e ossos. Mas a evidência arqueológica
da pré-história é tão fragmentária que o melhor sistema de
interpretação talvez seja o mais ilimitado. E tal sistema, se os
historiadores e arqueólogos fossem segui-Io, admitiria, pelo menos, a
possibilidade de um Paraíso histórico.

Os Limites do Conhecimento Histórico


Tendemos a esquecer que a arqueologia, como ciência, data, quando
muito, de um século, e que, na verdade, só depois do fim da Segunda
Guerra Mundial, as escavações sistemáticas - em oposição à
aquisição acidental de antigüidades - começaram a ser empreendidas.
Além disso, em grande parte por causa da juventude da ciência, e
também por causa de certos hábitos de pensamento por ela
trazidos do século XIX, a arqueologia continua a ser, hoje, ao mesmo
tempo, um fenômeno cultural e uma atividade científica objetiva.
Escreve o antropólogo Patrick Pender-Cudlip:

Quase todos os historiadores e antropólogos partilham de certas


idéias sobre possibilidade e probabilidade, e essas idéias, mais do que
outra coisa qualquer, determinam o modo com que eles distinguem o
mito da história ... nenhum relato possui uma qualidade inerente que o
torna histórico; não se torna histórico por ser verdadeiro, mas por ser
aceito como tal. Inversamente, um relato não-histórico ou "mito" (no
sentido popular da palavra) não é, por força, inverídico,
mas simplesmente considerado inverídico. Nem o mito nem a história
tem alguma existência "objetiva" à parte da sociedade. Os
historiadores, em diferentes sociedades, reconstroem o passado de
maneiras diferentes por diferentes razões, usando critérios diferentes
para distinguir entre o fato e a ficção, critérios produzidos por seu
ambiente cultural.

O arqueólogo Humphrey Case concorda: "A arqueologia é ... um corpo


de mitos e lendas para os nossos tempos, tão inspiradores,
consoladores, interessantes e fugidios quanto as do passado." E a
antropóloga Alice Kehoe escreve: "Insinuou-se lentamente nas
ciências sociais a compreensão de que essas disciplinas [antropologia
e arqueologia], tanto quanto a filosofia religiosa ou a política, encerram
axiomas e valores embutidos em ideologias."
Começamos este capítulo com o propósito de comparar a evidência
da arqueologia e da antropologia com duas versões da história e pré-
história humanas - o quadro padrão, unidirecional e evolutivo, e o
mítico cenário de uma Idade de Ouro seguida de um declínio geral. Ao
termo da nossa busca, talvez sejamos capazes de perceber melhor o
que a evidência não mostra, do que o que ela mostra. Sem embargo
disso, recapitulemos o que descobrimos.
Vimos que embora as tentativas dos arqueólogos bíblicos para
localizar o Jardim do Éden possam ter sido bem-sucedidas num
sentido limitado, no fato de parecer a história do Gênesis referir-se
geograficamente à área em que os rios Tigre e Eufrates se encontram,
pouco fizeram para iluminar as fontes dos mitos do Paraíso de outras
culturas. Notamos a crença de alguns antropólogos de que os mitos
de uma Idade de Ouro se referem ao modo de vida dos caçadores-
colhedores, que prevaleceu antes da invenção da agricultura.
Percebemos também o fato paradoxal de que os povos tribais, que
mantiveram um modo não-agrícola de vida na era moderna, também
voltam os olhos para um tempo perdido de inocência e fartura, como
fazem os povos civilizados. Estudamos recentes achados
arqueológicos que sugerem que, em algumas partes do mundo (Creta,
a Velha Europa e o Oriente Próximo), o princípio do período neolítico
foi um tempo de paz e criatividade gerais, durante o qual os seres
humanos desenvolveram a horticultura num grau só igualado no
século presente.
Examinamos à pressa o registro paleontológico, que mostra que
houve interrupções catastróficas há uns 10.000 anos, durante as quais
grande número de espécies animais foram subitamente extintas.
Vimos que essas catástrofes podem estar relacionadas com os mitos
de continentes perdidos.
Finalmente, notamos a existência de um sem-número de anomalias
arqueológicas, que sugerem - a alguns teóricos, pelo menos - que
muitos milhares de anos atrás existia uma civilização com uma
espécie de ciência avançada, que diferia da nossa ciência e tecnologia
assim no método como no propósito.
Rigorosamente falando, não se pode dizer que a evidência elimine
alguma teoria - nem a visão consensual corrente da pré-história, nem
mesmo as alternativas mais extravagantes, como, por exemplo, a
hipótese dos continentes perdidos. Ela não prova nem desaprova, em
nenhum sentido absoluto, a existência histórica da mítica Idade de
Ouro. Entretanto, não podemos escapar à tendência geral dos dados
que investigamos.
No fim do período paleolítico e no começo do período neolítico, os
seres humanos tinham capacidades técnicas, valores e um modo de
vida que as teorias atuais não explicam. Esse foi, evidentemente, um
tempo de tremenda criatividade, embora essa criatividade fosse
dirigida para projetos de paz e cooperação tão difundidas que
parecem milagrosas vistas pelos nossos padrões atuais. O cenário
mítico do Paraíso, da Queda e da catástrofe ainda não compreende
um paradigma científico plenamente desenvolvido, capaz de explicar
todos os dados arqueológicos e antropológicos existentes.
Proporciona, contudo, a semente da qual pode emergir um paradigma
assim. Se emergirá ou não, depende da boa vontade dos cientistas de
largarem o seu controle sobre o paradigma corrente de evolução
cultural e de encararem toda a evidência com novos olhos.

Como acabamos de ver, o mito do Paraíso pode representar uma


lembrança quase histórica de acontecimentos reais. Mas como vimos
no Capítulo 1, há duas maneiras básicas de se encarar o mito: como
história e como metáfora. Portanto, precisamos considerar a
possibilidade de ser a narrativa universal do Paraíso outra coisa ou
algo mais do que história - de poderem ter as imagens contidas no
mito dimensões de significado sem nenhuma relação com pedras,
ossos e artefatos. Será possível que o mito do Paraíso, além de
qualquer significação histórica que possa ter, seja também uma
alegoria, uma história usada por povos antigos para transmitir uma
mensagem psicológica ou teológica? A ser assim, que mensagem é
essa?

CAPÍTULO 9
O Paraíso como Metáfora
Porque os princípios que fundamentam o universo são, em toda a
parte, os mesmos, a analogia é um meio mais exato, e, ao cabo de
contas, mais "científico” para chegar à compreensão de fenômenos do
que a simples mensuração. Por isso, todos os ensinamentos sagrados
utilizam paráboIas, analogias, mitos e símbolos em lugar de fatos. Os
fatos não ajudam a compreensão.
John Anthony West

Os povos antigos e tribais amavam a metáfora. Em seu mundo, tudo


significava alguma outra coisa. No dizer do antropólogo australiano W.
E. H. Stanner, "Para os aborígines, o mundo é um vasto sistema de
sinais, e o seu pensamento está impregnado de simbolismo". A
respeito dos nativos americanos, Jamake Highwater escreve que eles
usam o simbolismo em sua arte a fim de pintar a essência - oposta à
mera aparência - do objeto que está sendo representado. Nossas
línguas modernas, em boa parte, são resíduos da consciência mítica e
consistem em milhares de palavras e expressões derivadas de
metáforas antigas. A própria palavra expressão significa "o que é
espremido para fora; espírito quer dizer "sopro" ou "vento"; e a palavra
ligar significa "tecer junto". De mais a mais, como observou o filósofo
da língua Owen Barfield, "Quanto mais retrocedemos no tempo, tanto
mais metafórica vemos que se torna a língua". Não há dúvida, pois, de
que uma história tão antiga e tão difundida quanto o mito do Paraíso
perdido há de encerrar profundos sentidos metafóricos. Mas quais
são, precisamente, esses sentidos? Neste capítulo analisaremos a
questão, examinando, em poucas palavras, as principais
interpretações alegóricas aplicadas à história do Paraíso no correr da
História.
À luz das investigações arqueológicas e antropológicas que
empreendemos no último capítulo, podemos começar perguntando: a
interpretação metafórica exclui a interpretação histórica? Como
veremos, a resposta é: não necessariamente. Algumas interpretações
metafóricas dão espaço ao conteúdo histórico do mito; outras, não.
Por amor à ilustração, todavia, iniciemos o nosso apanhado de
interpretações e intérpretes com um exemplo de pura alegoria.

Os Velhos e Bons Tempos


Talvez a explicação mais imediatamente óbvia do mito do Paraíso é
que se trata simplesmente da expressão alegorizada de um anseio
pelos "velhos e bons tempos" - anelo que todos conhecemos e
empregamos numa ocasião ou outra. Não é apenas o mortificado
homem de escritório dos dias de hoje que pensa: "O mundo era um
lugar melhor na minha mocidade". Encontramos o mesmo sentimento
expresso até pelos primeiros autores clássicos, os quais, como já
vimos, freqüentemente se queixavam da degradação geral da antiga
sociedade. "Aqueles, sim, é que eram os bons tempos", suspira cada
geração quando alcança a meia-idade.
Em seu livro Longing for Paradise, o psicanalista Mario Jacoby
apresenta uma versão aprimorada e sofisticada da explicação dos
velhos e bons tempos ao sugerir que os mitos da Idade de Ouro
perdida não passam de uma expressão da nostalgia universal do
passado. Além disso, pondera que esses anseios não têm nenhuma
base histórica real: "O mundo harmonioso que agora se considera
perdido... na realidade nunca existiu.“

Nós nos projetamos para trás, para os Anos Dourados, a Belle


Époque, em Paris, o tempo dos Wandervögel, a cidade medieval, a
Antiguidade Clássica, ou a vida "antes da Queda". O mundo da
totalidade existe principalmente em retrospecto, como compensação
para o mundo ameaçado e fragmentado em que vivemos agora. "Que
delícia é ser criançal" só pode ser dito por um adulto que, olhando
para trás, idealiza a inocência e a segurança pretensas da infância.

A explicação dos velhos e bons tempos é intuitivamente óbvia, e


dirige-se ao anelo psicológico universal que a história do Paraíso
focaliza tão intensamente. Mas é também superficial. Embora existam,
os "mitos" dos velhos e bons tempos tendem a ser relativamente
triviais e efêmeros, como os exemplos de Jacoby da Belle Époque,
dos Anos Dourados, e assim por diante. Depois de algumas gerações,
a nostalgia da "cidade medieval" ou da "Antiguidade Clássica" só
ocorre entre historiadores. Claro está que a narrativa universal da
Idade de Ouro perdida é de um estrato muito mais profundo que a
espécie de nostalgia do "quando eu era criança" que inspira
romances, filmes e novelas de televisão a respeito dos velhos e bons
tempos que se foram. Os mitos do Primeiro Povo têm uma potência
suficiente para ter-Ihes assegurado a sobrevivência por diversos
milênios, e eles possuem elementos temáticos característicos,
profundamente compactos, e intensamente significativos. Enquanto os
exemplos deJacoby estão ligados à cultura, o Paraíso é universal.
Ademais, todos os mitos antigos do Paraíso se propõem não só
descrever um tempo genericamente melhor, mas também o primeiro
tempo, um tempo perfeito; não somente de qualquer era primitiva, mas
também de uma idade específica de primórdios mágicos. Não se
tratava apenas de um tempo em que os animais eram mais
abundantes, mas um tempo em que animais e humanos
compreendiam a fala uns dos outros; não somente um tempo em que
as pessoas eram felizes e a vida mais fácil, mas um tempo em que
não havia morte nem doença, e os seres humanos conversavam
intimamente com Deus face a face. Em suma, a interpretação dos
velhos e bons tempos só tem sucesso quando passa por cima das
minudências das imagens, personagens e ação míticas. Em
compensação, outras interpretações se concentram nos pormenores,
mas à custa de estreitar o próprio foco a fim de incluir tão-só um único.
exemplo da narrativa.

O Sexo e a Queda
A maioria dos estudiosos no mito do Paraíso restringiu sua atenção a
uma única versão, a história do Éden no Gênesis. Sem dúvida
alguma, o maior corpo de comentários sobre as imagens paradisíacas
não foi gerado por folcloristas, mas por exegetas judeus-cristãos.
Os primeiros padres da Igreja se preocupavam com o simbolismo do
Éden. Fílon, o Judeu, que viveu em Alexandria no século I, descreveu
os frutos do Jardim como as virtudes da alma, e a atividade do Jardim
como a observância dos mandamentos divinos. Os quatro rios eram
as quatro virtudes da prudência, do domínio de si mesmo, da coragem
e da justiça. Nesse ínterim, Orígenes, Irineu e Cipriano, que viveram
nos séculos II e III, interpretam o relato do Gênesis da vida no Éden
como uma descrição da Igreja antes do crime, interpretação adotada,
mais tarde, por Agostinho: "O Paraíso é a Igreja; os quatros rios do
Paraíso são os quatro evangelhos; as árvores frutíferas, os santos e o
fruto, suas obras; a árvore da vida é o santo dos santos, Cristo”.
Para os primeiros teólogos cristãos, o símbolo mais significativo da
história foi o fruto proibido da Árvore da Ciência do Bem e do Mal. O
padre da Igreja grega do século IV, Atanásio, referiu que, enquanto
alguns contemporâneos presumiam que o fruto havia sido um figo,
outros sustentavam que se tratava de um fruto "espiritual" - algum
pensamento ou atitude importante. Ele notou, contudo, a existência de
um terceiro grupo, cujos membros viam no fruto proibido o encanto
sexual de Eva. Foi essa última interpretação que teve a influência
mais penetrante e duradouro.
Antes da Queda, o casal original andava nu e não conhecia a
vergonha; mas depois de comerem da árvore proibida, os dois se
advertiram, de repente, da sua nudez e confeccionaram aventais de
folha de figueira para se cobrirem. Pela primeira vez, experimentaram
a culpa e a vergonha. A história da perda da inocência no Jardim
primordial parece uma descrição da perda da inocência amiúde
experimentada por crianças ao atingirem a puberdade. Seguramente -
aos olhos de gerações de teólogos isso quer dizer que o próprio crime
dever ter tido alguma relação com o conhecimento do sexo.
A equiparação da Queda ao sexo pode ser atribuída, um século e
meio antes da era cristã, ao filósofo judeu Aristóbolo, para quem Adão
e Eva significavam a razão e a sensualidade, respectivamente, ao
mesmo tempo que a serpente representava o desejo sexual. Foi uma
corrente de pensamento que se mostrou irresistível a inúmeros
intérpretes cristãos subseqüentes (como, por exemplo, Clemente de
Alexandria e Ireneu, bispo de Lião) que concordaram em enxergar na
Queda uma união sexual. Ensinava São Jerônimo que, antes da
Queda, Adão e Eva eram "virgens no Paraíso", e que, portanto, "todo
o comércio sexual é imundo". O teólogo do século XVII Adrian
Beverland, em seu Original Sin [Pecado original], afiançava que a
maçã era o símbolo do amor sexual, e que a palvara arbor [árvore]
equivalia a membrum virile [órgão masculino]. A Queda não foi nem
mais nem menos que o descobrimento do sexo. O crime original foi
um ato de sedução, e toda a culpa cabe a Eva.
Mas se Eva, a primeira mulher e "mãe de todos os vivos", merecia ser
censurada pela perda do Paraíso, que tem isso a ver com todas as
outras mulheres subseqüentes e com a própria natureza, com a qual
Eva sempre foi identificada? Gerações de teólogos, interpretando o
Gênesis através dos olhos de Aristóbulo e Beverland, chegaram à
conclusão de que, visto haver a mulher, de acordo com a história,
iniciado a Queda, ela é, portanto, inerentemente má - uma tentadora
que precisa ser disciplinada e mortificada. Tertuliano, teólogo do
século III, talvez tenha atingido o ápice da misoginia quando escreveu:

E não sabeis que sois, cada uma de vós, uma Eva? A sentença de
Deus sobre o vosso sexo vive nesta idade: a culpa, por necessidade,
precisa viver também. Vós sois a porta do diabo; sois a desseladora
da árvore proibida; sois a primeira desertora da lei divina; vós sois
quem o persuadiu de que o diabo não era tão valente que se
atrevesse a atacar. Destruístes tão facilmente a imagem de Deus, o
homem.

A mulher é a mãe de todos os vivos e, assim, se identifica com a


natureza, e sendo também a agente da Queda. Por conseguinte, a
própria natureza é corrupta e decaída. De acordo com essa
concepção, enunciada pela primeira vez por Agostinho, o mundo não
só decaiu do seu estado prístino como concordam todas as tradições
do Paraíso - mas, de certo modo, partilha da culpa e do mal da
humanidade, e especialmente do sexo feminino. O corpo humano,
como parte da natureza decaída, é mau também, e a fruição do corpo
é suspeita, se não for positivamente pecaminosa.
Será provavelmente inútil tentar determinar se a criminosa
ambivalência da civilização ocidental tocante à sensualidade e ao
sexo, e o seu desdém moral da natureza indomada, resultou da
censura coletiva de todo o sexo feminino pela Queda, ou se a causou.
Seja como for, tais atitudes não são partilhadas por culturas cujas
histórias do Paraíso assumem a forma da enumeração de uma série
de idades do mundo. Na Índia, por exemplo, não se atribui a
degeneração da humanidade descrita na tradição dos yuga nem às
mulheres, nem aos homens; no hinduísmo, a santidade da
feminilidade, da sensualidade e da natureza é exaltada na literatura
religiosa canônica e na arte erótica dos templos.
A civilização ocidental tem duas cabeças, no sentido de que tira sua
inspiração mítica de duas histórias do Paraíso, a hebraica e a grega.
Os gregos e os romanos antigos descreviam, às vezes, o reino de
Crono/Saturno em termos moralistas, mas nunca antinaturistas, de
modo que a tradição da Idade de Ouro jamais adguiriu os
revestimentos puritanos associados à narrativa do Éden. Com efeito,
os poetas naturalistas primitivistas da Contra-Renascença - Pierre de
Ronsard, Torquato Tasso e John Donne - chegaram a exaltar a Idade
de Ouro como um tempo de livre expressão do impulso sexual, um
tempo em que o amor não tinha "regimento", quando os seres
humanos eram livres para seguir os seus instintos naturais
essencialmente saudáveis. "Como eram felizes os nossos Avós de
antanho", exclama Donne, "para os quais não era crime a pluralidade
do amor!"
Conquanto a equiparação da Queda com a sexualidade ainda tenha
expositores entre estudiosos modernos e sérios da Bíblia, Howard N.
Wallace encerra o seu estudo exaustivo da evidência e da
interpretação textuais concluindo que a expressão "a ciência do bem e
do mal" em Gênesis 2 com certeza não se referia especificamente ao
sexo, senão à "ciência universal", incluindo todos os aspectos da
cultura e da civilização. Mas a interpretação sexual tem exercido efeito
incalculável nas vidas de gerações de ocidentais, e continua a ser um
tema proeminente nos sermões de pregadores fundamentalistas. Além
disso, uma idéia correlata - a de que todo o sofrimento psicológico da
humanidade pode ser atribuído a tensões sexuais - teve sua própria e
ampla esfera de influência nos campos ostensivamente seculares da
psicanálise e da psicoterapia.

O Complexo de Édipo
Sigmund Freud não publicou uma análise do mito do Paraíso. Nada
obstante, acreditava que as ilusões coletivas da humanidade "devem o
seu poder ao elemento de verdade histórica que trouxeram da
repressão do passado esquecido e primevo". Essa "verdade histórica"
foi o drama edípico original, em que os filhos crescidos da era
paleolítica presumivelmente matavam os pais a fim de possuir as
mães. De acordo com o fundador da psicanálise, o grande crime pelo
qual a humanidade toda tem sofrido no transcorrer das idades não foi
o sexo por si mesmo, porém o assassínio motivado pela
concupiscência incestuosa.
Freud, provavelmente, teria equiparado o Paraíso com o período
anterior ao parricídio original. Esta, pelo menos, é a linha de
pensamento seguida por diversos seguidores seus. Em Myth and Guilt
[Mito e culpa], por exemplo, o analista freudiano Theodor Reik
interpretou a árvore sagrada como um totem arcaico e o crime de
Adão como matar e comer o pai/deus da tribo. Observando a
saturabilidade do culto da árvore nos tempos antigos, Reik asseverou
que a árvore não era o lar do deus, mas o próprio deus: "Não há
dúvida de que o deus dos hebreus foi outrora concebido como árvore
sagrada". De mais disso, ele identificou a árvore-deus com o pai da
tribo. O crime do Primeiro Povo consistiu em "comer da árvore" - isto
é, em matar e comer o “cabeça” da família primeva. Para Reik, o
parricídio canibalístico edípico é a origem de todos os tabus de
alimentos encontrados com tanta freqüência nas culturas primitivas. É
a verdadeira fonte do sentido patológico de culpa subseqüente da
humanidade.
Seria ocioso repetir aqui todos os argumentos pró e contra a teoria
edípica. Talvez seja suficiente notar que há pouca evidência
antropológica ou arqueológica que nos permita afirmar que o parricídio
foi, algum dia, difundido, e muito menos universal. Em que pese a isto,
os freudianos conseguiram interpretar virtualmente todos os aspectos
da cultura primitiva em função dessa teoria. Géza Róheim, por
exemplo, remata um artigo intitulado "As mulheres e a vida na
Austrália central" com o seguinte comentário: "Encontramos o
complexo de Édipo, transformado pela repressão em ansiedade, na
raiz de todas as suas crenças sobrenaturais". Expectativas teóricas,
quando mantidas com entusiasmo, tendem a confirmar-se na mente
do pesquisador, até mesmo na ausência de provas. Como comenta o
antropólogo W. E. H. Stanner (com referência específica à teoria
de Édipo): "A antropologia tem fornecido muitas provas de que a
suposição e o método podem dominar de tal maneira o esforço do
descobrimento que o verdadeiro descobrimento não é possível."
Para fazer justiça a Freud, no entanto, temos de notar que partes de
sua obra sugerem outra interpretação, puramente metafórica, da
história do Paraíso.

O Paraíso como Infância


A analogia é óbvia: se substituirmos a história de toda a humanidade
pela vida do invidíduo, não seria a Idade de Ouro equivalente à
infância? Foi isto, em essência, o que Freud propôs em sua teoria do
desenvolvimento da personalidade - que a infância é um paraíso
perdido, desmantelado pela impossibilidade da livre indulgência
continuada, concedida ao impulso para o prazer. Consciente ou
inconscientemente, os pais impõem inibições culturais à psique em
formação da criança pequena, e a aplicação dessas inibições é
experimentada pela criança como o Inferno, ou, em termos
mitológicos, como a Queda.
Embora Freud não sublinhasse as implicações míticas ou históricas do
seu esboço do desenvolvimento infantil, um dos seus primeiros
colaboradores, Carl Jung, continuou incorporando o conceito do
Paraíso-como-infância à sua teoria dos arquétipos. Para Jung, o
Paraíso é o aspecto positivo da mãe arquetípica, a fonte da segurança
e da nutrição do infante. As expressões "Mãe Natureza" e "Mãe Terra"
exemplificam ambas o arquétipo; de fato, a palavra inglesa matter
(matéria) deriva da palavra latina que significa mãe (mater). O Jardim
murado do Paraíso, o sítio de paz e fartura, é o símbolo de uma
condição em que existe completa harmonia com a Mãe Natureza.
Para Jung, a lembrança universalmente compartilhada das primeiras
fases da infância - em que se dá livre curso aos impulsos e
sentimentos, e mãe e filho estão ligados tão intimamente que formam
uma realidade unitária - é a base da qual surgiram todos os símbolos
e imagens do Paraíso.
Entretanto, a idéia de interpretar o mito do Paraíso como analogia do
relacionamento entre mãe e filho não apareceu com Freud e Jung.
Suas raízes, na realidade, chegam, pelo menos, até os gnósticos do
século I. Simão Mago, cujas opiniões estão preservadas (sem dúvida
de forma deturpada) na Refutação de todas as heresias de Santo
Hipólito, ensinava que o Jardim do Éden não era um lugar geográfico,
mas uma metáfora de ventre: "Se Deus forma o homem no ventre de
sua mãe - isto é, no Paraíso - seja então o ventre o Paraíso e o pós-
nascimento, o Éden, 'um rio que flui do Éden, a fim de irrigar o
Paraíso'. Esse rio é o umbigo."
Mas Jung desenvolveu a analogia de um modo novo: a Queda não é o
nascimento - a partida do ventre do Paraíso - mas o crescimento da
psique independente do infante, que precisa aprender, aos poucos, a
ver a mãe como pessoa separada, com limitações humanas e
existência independente. A Queda representa qualquer perturbação
do relacionamento primevo; como tal, é inevitável e necessária, mas
será também causa de neurose se for experimentada demasiado cedo
ou demasiado traumaticamente.
A interpretação do mito do Paraíso como projeção inconsciente de
lembranças da infância gira em torno de uma questão importante:
Pode a confusa rememoração de estados psiológicos individuais ser
transformada em mitos que pretendam descrever acontecimentos
históricos? Eis aí um problema que não pode estar ligado a uma
solução simples ou inequívoca. E ainda que suponhamos a resposta
afirmativa, ainda não teremos eliminado a possibilidade de o mito
esconder outras dimensões de significado. O conceito do Paraíso-
como-infância é, essencialmente, um desenvolvimento da hipótese
dos velhos e bons tempos: ajuda a explicar o apelo perene do mito,
mas talvez não seja suficiente para explicar-lhe a origem. Apesar
disso, quando o ampliamos para incluir nele um componente histórico,
o conceito passa a ser um argumento formidável.

A Evolução da Consciência
Invertamos a analogia que traçamos no início da seção anterior e
substituamos o indivíduo pela humanidade. Será possível que a
humanidade como um todo tenha conhecido uma experiência relativa
ao desenvolvimento análoga à de toda criança? Terá a nossa espécie
conhecido uma infância paradisíaca coletiva e um desmame e
separação coletivas, em que a natureza desempenha a parte de Mãe
Universal? Será possível, em outras palavras, que o Paraíso e a
Queda sejam descrições alegorizadas dos primeiros estádios da
evolução da consciência humana coletiva?
A idéia remonta, pelo menos, a dois séculos. Immanuel Kant, em suas
Conjecturas sobre os Primórdios da História Humana, interpretou a
Queda como o atingimento da maioridade com o desenvolvimento da
razão e do livre-arbítrio. De maneira semelhante, Hegel via a história
como o processo, experimentado pelo espírito, do pleno
desenvolvimento de suas capacidades, ambições etc.: a natureza é o
espírito caído na matéria, e a evolução é o método do espírito para
libertar-se. O Paraíso, condição primordial anterior à descida do
espírito, destinava-se a ficar para trás. Friedrich Schiller, seguindo a
mesma corrente de pensamento, entendia ser a narrativa do Éden
contida no Gênesis um relato do modo com que a humanidade se
elevou da inconsciência para a razão. A desobediência do primeiro
casal em relação ao mandamento divino foi o afastamento inicial do
instinto, por parte da humanidade, um "passo gigantesco de
progresso". Schiller escreveu que:

A defecção do instinto, levada a efeito pela humanidade, que” trouxe o


mal moral à Criação, mas apenas com o propósito de tornar ali
possível o bem moral, é, sem dúvida, o mais afortunado, o maior
evento na história humana. ... O homem transmudou-se de criatura de
inocência em criatura criminosa, de perfeito tutelado da natureza em
ser moral imperfeito, de instrumento feliz em artista infeliz.

Seguindo as pegadas filosóficas de Kant e Hegel, vários escritores


modernos expandiram a concepção evolutiva do mito do Paraíso em
reconstruções amadurecidas das origens e do desenvolvimento da
consciência humana. Ernst Cassirer, Nicholas Berdyaev, Jean Gebser,
Erich Neumann, Carl Sagan e Ken Wilber esboçaram planos
circunstanciados de desenvolvimento, em que a Idade de Ouro
representa um platô primitivo no entendimento humano. A consciência
edênica, segundo Wilber, era uma "unidade primeva natural...
dominada pela natureza inconsciente, pela fisiologia, pelos instintos,
pela simples percepção, pelas sensações e emoções". Neumann
escreveu sobre isso como o tempo em que "o germe do ego ainda
habita o pleroma, a 'plenitude' do Deus não formado, e dorme na
beatitude do Paraíso". Nessa condição coletivamente infantil:

[O homem] nada em seus instintos como um animal. Envolvido e


sustentado pela grande Mãe Natureza, embalado em seus braços, é
entregue a ela para o bem ou para o mal dela. Nada é ele mesmo;
tudo é o mundo. O mundo o abriga e alimenta, enquanto ele
escassamente quer e age. Sem fazer nada, inerte no inconsciente,
apenas estando lá no mundo inexaurível e crepuscular, todas as suas
necessidades supridas, sem esforço, pela grande alimentadora - tal é
o seu primeiro e beatífico estado.

Tradições orais antigas e documentos religiosos sugerem, de fato, que


a humanidade arcaica experimentava o mundo de maneira diferente
da que experimenta hoje a maioria das pessoas. O mundo era cheio
de deuses, espíritos e poderes mágicos; todo símbolo extraía a
eficácia da sua representação de uma realidade mais alta, invisível.
Onde somos racionais, eles eram não-racionais: ao mesmo passo que
nos preocupamos com economia, política e ciência, eles viviam
obcecados pelo ritual e pelo mito. Pergunta-se: Era a mudança
fundamental do modo de ser arcaico para o moderno necessária e
apropriada ao desenvolvimento? Vale dizer, é a nossa maneira de
pensar e de viver inerentemente melhor e mais altamente
desenvolvida que a dos antigos, ou é apenas diferente? Podemos,
naturalmente, tender a aceitar a primeira hipótese, mas a aceitação é
surpreendentemente difícil de sustentar com a evidência, sejam quais
forem os critérios uniformes e objetivos. Somos nós, por exemplo,
mais felizes, mais saudáveis e mais inteligentes do que os antigos?
Como vimos no último capítulo, muitos antropólogos duvidam de que
seja esse o caso.
É possível que os teóricos da evolução da consciência tenham tirado
mais conclusões do que as realmente asseguradas pela evidência.
Quem poderá dizer quais foram os motivos e os processos de
pensamento que orientaram nossos antepassados primordiais,
quando etnólogos das últimas décadas subestimaram tanto a
inteligência e consecuções culturais de povos tribais que ainda podiam
ser visitados e entrevistados em carne e osso?
A consciência humana modificou-se de maneiras fundamentais no
correr dos milênios, e a evolução representou, sem dúvida, parte
significativa nessas modificações. Mas não é permissível perguntar se,
além da evolução, sofremos também um processo tangencial de
decadência moral, como os mitos insistem universalmente em
afirmar? O verdadeiro problema com o conceito da evolução-da-
consciência é que ele despreza - e até nega - a mensagem essencial
que os antigos parecem estar tentando transmitir-nos. Eles não
se referem à Queda como a um estádio necessário de
desenvolvimento, mas como a um desastre. Não deram a entender
que tivemos de renunciar ao Paraíso a fim de ganhar alguma coisa
mais valiosa, mas, ao contrário, lamentaram que o que perdemos - a
presença divina, a unidade do Céu e da Terra - é mais precioso do
que tudo o que poderíamos, algum dia, esperar ganhar.
A idéia de que a história do Paraíso descreve um tempo em que a
humanidade conheceu um estado de consciência fundamentalmente
diferente daquele que compartimos comumente hoje não contradiz a
mensagem dos mitos - muito pelo contrário. Será possível, então,
desenvolver essa idéia à luz das modernas descobertas
antropológicas e psicológicas, de modo que respeite o âmago da
mensagem dos antigos?

O Paraíso como União Mística


A equiparação do Paraíso ao estado infantil é atraente porque
relaciona efetivamente uma condição desconhecida de percepção
(Paraíso) com uma condição conhecida (a infância). Mas será a
infância o único estado "de ouro" conhecido ou conhecível de
consciência? Manifestamente, não é. Místicos, profetas e santos de
todas as tradições falam-nos de reinos de experiência mágicos,
pacíficos e jubilosos, caracterizados pela unicidade, pelo
conhecimento e pela luz. Até recentemente, os psicólogos não
mediram esforços para explicar essas experiências como imaginação
ou ilusão patológica. Entretanto, como se observou no capítulo I,
existe entre os psicólogos e mitólogos uma nova escola de
pensamento, de acordo com a qual a dimensão sagrada não é apenas
real, mas também a fonte necessária de alimentação espiritual e
inspiração, assim para os indivíduos como para as culturas. E como
também se observou no citado capítulo, dois dos primeiros e mais
destacados expositores da nova escola de pensamento foram Mircea
Eliade e Joseph Campbell. É para as perspectivas deles que agora
nos voltamos.
Consoante um dos temas recorrentes nos livros de Eliade, a
experiência religiosa é uma janela para uma realidade "mais elevada"
do que o mundo físico, mental e emocional em que a humanidade
moderna passa os seus dias. Essa qualidade mais elevada
caracteriza-se pelas qualidades subjetivas do Paraíso - paz,
criatividade, poder e união extática com o divino. Escreve Eliade que
toda cultura histórica considerou a condição humana como estando
sob um fascínio temporário de limitação e separação desnatural, e que
o primeiro propósito de toda religião tem sido o de ajustar o indivíduo e
a sociedade a livrar-se desse fascínio. Em The Sacred and the
Profane [O sagrado e o Profano], ele escreve que:

A existência do homo religiosus, em especial do primitivo, está aberta


para o mundo; ao viver, o homem religioso nunca está só, pois parte
do mundo vive com ele. Mas não podemos dizer, como o fez Hegel,
que o homem primitivo está "sepultado na natureza", que ainda não se
encontrou como distinto da natureza, como ele mesmo. O hindu que,
abraçando a esposa, declara que ela é a Terra e ele é o Céu, está, ao
mesmo tempo, plenamente consciente da sua humanidade e da
humanidade dela.
Alhures, na mesma obra, ele nos diz que seria igualmente errado
presumir que o "homem religioso" estava na posição infantil de ser
incapaz de assumir a responsabilidade por uma existência
independente da Mãe Natureza:

Pelo contrário... ele assume, corajosamente, responsabilidades


imensas - por exemplo, a de colaborar na criação do cosmo, ou a de
criar o seu próprio mundo, ou a de assegurar a vida de plantas e
animais. É uma responsabilidade no Plano cósmico, em contraposição
às responsabilidades morais, sociais, ou históricas, as únicas
consideradas válidas nas civilizações modernas.

Não é a humanidade antiga, senão a moderna que está adormecida,


inconsciente, ou é infantil, segundo Eliade. Para os povos antigos e
primitivos:

Os símbolos despertam a experiência individual e transmitem-na num


ato espiritual, na compreensão metafisica do mundo. Na presença de
qualquer árvore, símbolo do mundo das árvores e imagem da vida
cósmica, o homem das sociedades pré-modernas pode atingir a
espiritualidade mais elevada, pois, compreendendo o símbolo,
consegue viver o universal.

Em compensação, as "mitologias particulares" de sonho e fantasia do


homem moderno:

Nunca se elevam ao status ontológico de mitos, precisamente porque


não são experimentados pelo homem todo, e, portanto, não
transformam uma situação particular numa situação paradigmática. Da
mesma forma, as ansiedades do homem moderno, suas experiências
em sonho ou em imaginação... não... proporcionam a base de um
sistema de comportamento.
Por conseguinte, a pessoa moderna "racional", conquanto ainda
alimentada, até certo ponto, pela atividade do inconsciente, é incapaz
de atingir "uma experiência e uma visão propriamente religiosa do
mundo". Eliade viu, na árvore e na montanha do Paraíso, símbolos de
ascensão e conexão, de comunicação entre o Céu e a Terra.
Correlacionou símbolos de ascensão e vôo com tradições orais e
escriturais, e concluiu que todos são expressões de uma compulsão
para transcender o plano ordinário, profano, da experiência, e para
conhecer de novo o estado de união extática que existia no princípio,
antes que a consciência humana caísse em seu nível atual.

Seria absurdo minimizar as diferenças de conteúdo que diversificam


exemplos de "vôo", "êxtase" e "ascensão". Mas seria igualmente
absurdo não reconhecer a correspondência de estrutura que emerge
de tais comparações. ... Em cada nível de cultura, e apesar dos seus
contextos religiosos e históricos, amplamente diferentes, o simbolismo
do "vôo" expressa invariavelmente a abolição da condição humana, a
transcendência e a liberdade.

Eliade tratou de modo semelhante a imagem dos ritos do Paraíso e da


Água da Vida: "a água viva, as fontes de juventude, a Água da Vida, e
o resto, são todas formas mitológicas da mesma realidade metafisica
e religiosa: a vida, a força e a eternidade estão contidas na
água". Joseph Campbell também descreveu o Paraíso como um modo
de consciência natural, satisfatório, estranho à humanidade moderna.
O propósito da prática espiritual é recuperar aquela condição prístina
de percepção. Como disse CampbelI, em entrevista concedida ao
jornalista de televisão Bill Moyers: "Voltar ao jardim é o objetivo de
muitas religiões".
A Queda, no pensar de Campbell, foi e é ocasionada pelas
maquinações do ego humano separado - a voz dentro de nós que
promove, infatigavelmente, os interesses "do eu, do mim e do meu"
acima dos interesses do processo criativo vivo de que somos
expressões individualizadas. Nós nos alienamos desse processo, e
tentamos, ansiosos, dirigir o curso do rio da vida, de preferência a
ceder à sua sabedoria e ao seu poder inatos. "Somos mantidos fora
do jardim", diz Campbell, "pelo nosso próprio medo e desejo em
relação ao que pensamos sejam os deuses da nossa vida".
O Paraíso - o estado imaculado da mente e da emoção, objetivo de
toda técnica espiritual - é imediatamente acessível a todo ser humano,
conforme Campbell. Todos nós o provamos em algum ponto de nossa
vida, todas as vezes que nos permitimos estar plenamente acordados
no momento presente. "A diferença entre o viver de todos os dias e o
viver tais momentos de êxtase é a diferença entre estar fora e dentro
do jardim. Passamos pelo medo e pelo desejo, passamos pelos pares
de opostos... rumo à transcendência."
Eliade e Campbell abriram uma via promissora de interpretação. O
seu reconhecimento da realidade do sagrado ilumina o fundamento
comum de todas as religiões. Além disso, a sua caracterização dos
mitos do Paraíso como descrições de níveis extáticos de percepção
convida a uma discussão dos achados experimentais da psicologia
dos estados alternados de consciência. Dentro em breve
empreenderemos tal discussão.
Às vezes, o enfoque mais simples e mais direto de um problema é o
melhor, e, às vezes, no entanto, é o que vemos por derradeiro. Nesse
caso, o enfoque mais direto da história universal da Idade de Ouro
seria, sem dúvida, perguntar: E se o mito do Paraíso significar
simplesmente o que ele diz - que houve um tempo em que os seres
humanos partilhavam de um estado de ser em que conheciam a união
com toda a vida e possuíam capacidades mágicas, e que esse estado
de ser, de um modo ou de outro, tragicamente se perdeu?
Vimos no capítulo anterior que os descobrimentos da arqueologia e da
antropologia não descartam, de maneira alguma, a possibilidade de
uma Idade de Ouro histórica. Vimos, pelo contrário, que o cenário
mítico do Paraíso, da Queda e da catástrofe pode oferecer as bases
de um novo paradigma histórico, capaz de integrar a provisão de
anomalias que se acumulam em torno do atual paradigma puramente
evolutivo. Neste capítulo, analisamos os possíveis significados
psicológicos e teológicos do mito do Paraíso. Concluímos que a via de
interpretação mais promissora é aquela em que se vê o mito referindo-
se à experiência anteriormente universal de um estado de consciência
fundamentalmente diferente do que hoje se considera "normal" - uma
consciência de união extática, mística. Tais abordagens históricas e
metafóricas não são contraditórias. Ambas convergem numa idéia
simples e surpreendente: Houve realmente uma Idade de Ouro. E era
um tempo em que, como insiste o mito, os seres humanos, sábios e
inocentes, privavam com Deus e com a Natureza ao mesmo tempo,
numa profundidade que dificilmente poderemos compreender.
Previna-se, porém, o leitor: a despeito da sua simplicidade e da
evidência em seu favor, a idéia que acabaremos de formular é tão
radical do ponto de vista do consenso científico atual que atinge as
raias da heresia. A contemplação de um Paraíso histórico de qualquer
variedade é academicamente impopular, para dizer o mínimo. Pode
ser incômoda também. Muitas pessoas acham deprimente pensar que
o nosso modo de ser moderno é deficiente em comparação com o de
povos antigos. Como veremos, entretanto, esse reconhecimento
talvez nos dê a chave que abre uma porta para um estado beatífico de
percepção - um estado que, de acordo com a concepção do mundo
civilizada, "racional", nem sequer existe.
CAPÍTULO 10
Desdobrando Imagens: O Espelho do Mito
Os antigos voltavam sua vida à manutenção do equilíbrio do universo:
a coisas grandes, imensas, coisas [misteriosas].
Xamã esquimó Najagneq

Virada e examinada por muitos ângulos, a história do Paraíso atua


como uma espécie de espelho mágico, que não reflete para nós a
nossa aparência imediata, mas nossa natureza essencial - quem
somos e de onde viemos. Embora o mito fale ao cerne eterno da
nossa identidade final, isso não quer dizer que vemos
necessariamente nele o que outros antes de nós já viram. O conteúdo
básico do mito pode ser mais ou menos dado, mas, à maneira que
vamos conhecendo mais a respeito da mente e do espírito humanos,
podemos começar a perceber padrões significativos em nossa
imagem refletida onde antes só víamos formas borradas. Os recentes
desenvolvimentos em psicologia, religião comparada, antropologia e
arqueologia, por exemplo, não podem deixar de influir em nossa
resposta à imagem universal do Paraíso e à nossa capacidade de
compreender-lhe os reflexos calidoscópicos de nossa natureza mais
íntima.
Neste capítulo faremos uso do espelho do mito, a fim de estudar as
implicações da tese que propusemos no fim da Terceira Parte - a de
que a Idade de Ouro realmente existiu, e que era um tempo em que
toda a humanidade partilhava de um estado místico de consciência.
Nossos estudos procurarão responder a uma série de perguntas que
essa tese naturalmente sugere. Primeira, que nova informação nos
ministra o mito acerca da natureza da experiência mítica, e o que o
nosso conhecimento de estados místicos e religiosos nos conta a
respeito do mito do Paraíso?
Uma segunda linha de investigação relaciona-se com a natureza da
Queda. Se o Paraíso é caracterizado por uma consciência unitiva
partilhada, como e por que se perdeu essa consciência? Os místicos
no correr dos séculos disseram-nos que o principal impedimento à
experiência do Paraíso é a atitude de alienação em relação ao fluxo
da vida, atitude que traz consigo tanto a cobiça quanto o sofrimento.
Muitos psicólogos e estudiosos de religião comparada equiparam essa
atitude habitual ao ego humano e ao modo egocêntrico de
funcionamento. O que o mito universal da Queda nos conta sobre a
natureza do ego, e o que o nosso conhecimento psicológico e religioso
do ego nos diz a respeito da Queda?
Xamãs, santos e iogues têm sido conhecidos por controlar poderes
milagrosos, reminiscentes dos poderes do lendário Primeiro Povo.
Assim sendo, podemos também perguntar: O que o mito nos diz
quanto à natureza e ao sentido dos milagres religiosos? E o que o
estudo de capacidades paranormais nos conta acerca do mito do
Paraíso?
Finalmente, formularemos uma pergunta relativa à nossa
conceituação do passado. A história, qual a conhecemos, foi escrita
de um ponto de vista progressivista. Virtualmente, todos os
historiadores começam com a presunção de que as pessoas estão
hoje em melhores condições do que as dos seus distantes
antepassados, e quanto mais para trás lançarmos os olhos veremos
que mais pobres, mais estúpidas e mais abrutalhadas eram as
pessoas. Mas o que aconteceria se os dados históricos e
arqueológicos fossem ordenados de uma perspectiva paradisíaca?
Será possível reinterpretar a história no contexto da história do
Paraíso? O que significa o mito para a nossa compreensão do
desenvolvimento de civilizações e instituições?
Quando pomos os olhos no espelho mágico do mito, perspectivas
religiosas, psicológicas, antropológicas e históricas convergem para
refocalizar a imagem primordial de um mundo de beleza e maravilha.
Visto que a imagem no espelho ainda está nebulosa, precisaremos
lembrar-nos de que nossas interpretações são especulativas. Sem
embargo disso, de vez em quando, captamos vislumbres de luz que
atravessam a névoa e iluminam uma prisca e eterna memória -
memória que parece viver dentro de nossas próprias células.

A Mente Original
O estudo psicológico de estados alternados de consciência ainda está
na infância, mas já desvendou vasta fronteira. Sabemos agora que o
nível da percepção vigilante, que consideramos normal, é apenas
parte de uma série infinda de estados conscientes potenciais. Assim
como existem condições psicológicas subnormais, em que o indivíduo
é isolado, retirado e incapacitado de interagir com o ambiente ou de
funcionar efetivamente dentro dele, existem também estados
supranormais, em que o indivíduo atinge poderes e percepções
usualmente inacessíveis, de modo que o momento presente se torna
uma janela para a possibilidade ilimitada.
Já vimos que as qualidades de inocência e poder criativo,
universalmente atribuídas ao Primeiro Povo, não sugerem uma
condição psicológica infantil ou subnormal, mas uma condição
supernormal. Mas supernormal de que maneira? Tomados em
conjunto, poderão os antigos mitos e os achados da psicologia
moderna (particularmente a psicologia da religião e dos estados
alterados de consciência) dar-nos alguma idéia do que era realmente
a consciência paradisíaca?
Em 1901, o médico psiquiatra Richard Maurice Bucke publicou o seu
estudo clássico intitulado Cosmic Consciousness [Consciência
Cósmica], em que descreveu, em linhas gerais, as experiências de
cinqüenta homens e mulheres cuja vida era assinalada por um clarão
resplandecente de introvisão, seguido de um processo de
transformação interior. A consciência cósmica, de acordo com Bucke,
é "uma forma mais elevada de consciência do que a possuída pelo
homem comum". É "a consciência do cosmo, isto é, da vida e da
ordem do universo". Com isto vem uma "iluminação intelectual", uma
"exaltação moral, um sentimento indescritível de elevação, exaltação e
júbilo, e uma aceleração do sentido moral", juntamente com "um
sentido de imortalidade, uma consciência da vida eterna, não a
convicção de que a terá, mas a consciência de que já a tem". Em
1902, o psicólogo William James publicou outro estudo clássico ao
longo das mesmas linhas, The Varieties of Religious Experience [As
Variedades da Experiência Religiosa]. Confirmando a afirmação de
Bucke sobre a existência de condições de percepção tão
fundamentalmente diferentes da consciência desperta normal quanto
a última é diferente do sono, James tentou classificar os estados
místicos em níveis e categorias distintos. Segundo ele, todos têm duas
características em comum: a inefabilidade - ou seja, desafiam a
expressão, de modo que não se pode fazer com palavras nenhum
relato adequado do seu conteúdo; e uma qualidade noética - a saber,
eles parecem aos que os experimentam estados de conhecimento.
São, escreveu James, "estados de introvisão nas profundezas da
verdade, não sondados pelo intelecto discursivo".
Mais recentemente, em 1975, o psiquiatra Stanley Dean esboçou as
características do que ele denomina "ultraconsciência":

1. O início é anunciado por uma percepção de luz ofuscante, que


inunda o cérebro e enche a mente. No Oriente chama se a isso
"esplendor brahmânico". Walt Whitman refere-se a ela como a uma luz
inefável - "luz rara, inenarrável, que alumia a própria luz" - além de
todos os sinais, descrições, idiomas. Dante escreve que ela é capaz
de "trans-humanizar o homem num deus...".

2. O indivíduo banha-se em emoções de alegria, êxtase, triunfo,


grandeza, temor reverente e assombro - êxtase tão arrebatador que
quase parece um orgasmo superpsíquico.

3. Ocorre uma iluminação intelectual totalmente impossível de


descrever. Num lampejo intuitivo, tem-se a percepção do sentido e do
curso do universo, a identificação e a fusão com a Criação, o infinito e
a mortalidade, uma profundeza além da profundeza de sentido
revelado - em suma, uma concepção do Supereu tão onipotente que a
religião a interpretou como Deus...

4. Há um sentimento de amor transcendental e compaixão por todas


as coisas vivas.

5. O medo da morte desprende-se como um casaco velho; o


sofrimento físico e mental se desvanece. Há uma acentuação do vigor
e da atividade mentais e físicos, um rejuvenescimento e uma
prolongação da vida...

6. Há uma reapreciação das coisas materiais da vida, uma acentuada


apreciação da beleza, uma compreensão da falta de importância das
riquezas e da abundância, comparadas com os tesouros da
ultraconsciência.

7. Verifica-se extraordinário aceleramento do intelecto, um


descobrimento do gênio latente. Entretanto, longe de ser um estado
passivo, semelhante ao sonho, dota o indivíduo de poderes tão
extensos que são capazes de influir no curso da história.

8. Há um sentido de missão. A revelação é tão comovente e profunda


que o indivíduo, não podendo contê-la dentro em si mesmo, é levado
a partilhá-Ia com todos os seus semelhantes.

9. Ocorre na personalidade uma mudança carismática - uma radiância


interna e externa, como se fosse carregada de um poder divinamente
inspirado, uma força magnética que atrai e inspira os outros com
lealdade e fé inabaláveis.

10. Há um súbito e gradativo desenvolvimento de talentos psíquicos


extraordinários, como a clarividência, a percepção extra-sensorial, a
telepatia, a precognição, a cura psíquica, etc.
A experiência mística descrita por Bucke, James e Dean - tão
claramente reminiscente de descrições míticas da natureza e da
experiência do Primeiro Povo - foi conhecida de muita gente no mundo
moderno, mas, de ordinário, só por alguns momentos numa vida
inteira. Podemos apenas imaginar o que seria, para toda uma
sociedade, compartir da abertura do coração, do sentimento de união
com a vida, que as grandes almas da história provaram, mas numa
base universalmente compartilhada e constante. O resultado talvez
fosse uma espécie de mente coletiva.
Como vimos no Capítulo 3, o mito do Paraíso parece implicar a
existência primordial de uma mente unificada, que abarca toda a
humanidade. As tradições hebraicas, indochinesas e maias, por
exemplo, falam da linguagem original única, também partilhada com
os animais. A lenda hopi do Primeiro Povo diz que eles "se sentiam
como se fossem um só e se compreendiam uns aos outros sem falar".
A mente original parece ter sido uma espécie de teia viva, pulsante,
de interligação telepática, através de cujos fios fluía uma corrente de
amor universal.
Figuremos o que teria sido viver num mundo em que o sentido de
perfeita harmonia, que, às vezes, conhecemos com os nossos amigos
mais íntimos, fosse universal. Numa condição assim de confiança
mútua - um mundo sem segredos e sem medos - não haveria ódio
nem incompreensão. Em nossa sociedade atual, gastam-se
quantidades incalculáveis de energia humana para controlar os
resultados de nossas sensações de isolamento. Combatemos as
ansiedades com drogas e distrações, ou expressamo-Ias por meio da
competição, do crime e da guerra. Num mundo telepático, toda a
energia, agora dada à luta, ao litígio e aos esforços de paz, seria
liberada para a comemoração e o fomento de nossas conexões inatas
com o Céu e a Terra.
A mente original parece ter incluído mais do que a própria
humanidade. O sentido da unidade universal está descrito nos mitos
como se se estendesse ao resto da natureza e mais além. O
antropólogo Roger Wescott, que contribuiu para a literatura dos
estados de consciência5 e é um dos poucos na profissão que
estudaram extensamente a mitologia do Paraíso, escreve:

Visto que, ainda hoje, muitas pessoas sentem ter, pelo menos de vez
em quando, mas comunhão espiritual imediata com muitas espécies
de plantas e animais, é pouco provável que as mentes mais instáveis
dos nossos antepassados paradisíacos a tivessem menos. Com
efeito, eles podem ter tratado com consciências, em cuja própria
existência achamos difícil acreditar, e muito menos experimentar. Tais
consciências poderiam ter estado associadas - senão ligadas - a
fenômenos inorgânicos de toda a sorte, dos minerais a estrelas. Além
do mais, muitas tradições míticas concorrem no asseverar que, na
Idade de Ouro, os seres humanos se associavam, fácil e
freqüentemente, com seres desencarnados ou apenas
intermitentemente encarnados, que iam desde as apavorantes
divindades cósmicas até os espíritos locais brincalhões.

Os mitos do Paraíso parecem dizer que a experiência da unidade


universal é a condição natural, saudável da consciência humana, e
que o costumeiro estado com que quase todos nós estamos
familiarizados - o da separação egocêntrica, com todas as suas
ramifIcações - é desnatural e mórbido. A idéia de que a consciência
mística ou paradisíaca é inata e natural concorda também com os
ensinamentos de quase todas as tradições religiosas. No budismo, por
exemplo, a condição fundamental de união com o centro de todo o Ser
chama-se natureza de Buda, essência da mente, ou mente original.
Identifica-se com a consciência pura, presente em todos, conquanto
na maioria das pessoas esteja mascarada pela ilusão da separação.
Da mesma forma, a tradição hindu sustenta que o eu individual
(Atman) é, na verdade, idêntico ao Eu Universal (Brahma), sendo este
o caso para toda a gente. A iluminação não é a criação de uma forma
de consciência fundamentalmente nova; antes, é o que acontece
automaticamente quando conseguimos dispersar certas ilusões
comuns.
Encontramos, em essência, a mesma compreensão expressa -
embora com menos freqüência - na tradição cristã. Para o monge
dominicano do século XIV, Meister Eckhart, por exemplo, a "centelha
divina" é propriedade de todos os seres humanos. Sempre que uma
pessoa, interiorizando-se, deixa para trás as sensações, os
pensamentos e as imagens da consciência superficial, realiza-se a
união divina.
Se a experiência individual da consciência cósmica é profundamente
exaltante, jubilosa e edificante, só poderemos, provavelmente,
começar a imaginar a profundeza do êxtase que teria caracterizado a
consciência paradisíaca original, universalmente partilhada. Mas todas
as nossas especulações a respeito da qualidade subjetiva do estado
edênico de percepção - e especular é tudo o que nos resta no
momento - só compõem o problema: Como e por que se perdeu tal
modo satisfatório de ser?

O Ego e a Queda
Como vimos no Capítulo 5, a despeito das numerosas descrições da
tragédia primeva da Queda, fornecidas pelas várias mitologias do
mundo, o evento retém um elemento de mistério. Se pudermos reunir
o mito e a psicologia para esclarecer a natureza do Paraíso,
poderemos fazer o mesmo com o evento principal que acabou
encerrando a Idade de Ouro?
Quase todas as religiões distinguem entre dois modos de ser, ou
condições de percepção fundamentais. Um dos modos caracteriza-se
pela ausência de necessidades e medos pessoais e pelo
reconhecimento da interligação de todas as coisas; expressa-se em
atitudes de responsabilidade, tranqüilidade, altruísmo e compaixão.
Essa condição se identifica, de um lado, com o objeto de toda a
devoção e prática religiosas, e, de outro, com o estado original da
humanidade no Paraíso. O segundo modo básico de ser consiste na
assunção da autonomia individual, proveniente de Deus e da
Natureza; expressa-se nas atitudes de carência, medo, arrogância,
dominação e censura. Como vimos, alguns psicólogos modernos,
assim como muitos filósofos religiosos, identificam esse modo de
consciência com o ego: quanto mais egocêntricos nos tornamos,
menores probabilidades temos de perceber e apreciar a base
unificada do ser, de que jorra toda a diversidade. Os mitos do Paraíso
e da Queda parecem estar-nos dizendo que a tragédia primeva
consistiu na transferência do foco da consciência humana coletiva da
condição de unicida de e participação para a de separação, ganância
e medo. A Queda, em suma, foi o aparecimento inicial do ego
humano.
A compreensão desses dois modos de ser essenciais é fundamental
não só para o mito e para a religião, mas também para a psicologia.
Todas as religiões do mundo, de um modo ou de outro, equiparam
virtualmente a presença do ego à ilusão, ao sofrimento e à morte, e
associam a experiência da unidade universal, ou união divina, à
liberação, à criatividade, à vida e à bem-aventurança. Descobrimentos
recentes em psicologia e medicina tendem a confirmar esses truísmos
religiosos. Experimentos médicos têm mostrado, consistentemente,
que as atitudes mentais e os estados emocionais exercem significativa
influência sobre a saúde. Os estados emocionais associados à
separação egoísta - cólera, culpa e sentimentos de isolamento -
tendem a reduzir os níveis das substâncias químicas do corpo que
servem de elevar o limiar da dor (endorfinas) e mantêm a imunidade à
infecção (imunoglobulinas). As emoções associadas à transferência
do ego - por exemplo, a empatia, o perdão e a educação produzem
níveis mais altos dessas substâncias químicas críticas do corpo.
Numa investigação, estudantes de universidade para os quais foi
exibido um filme da detentora do Prêmio Nobel da Paz, Irmã Teresa,
tratando de doentes e moribundos, em Calcutá, experimentaram
aumentos imediatos de imunoglobulina salivar. Tais descobrimentos
sugerem que, se houve uma idade de consciência mística partilhada,
deve ter havido igualmente um tempo de relativa saúde e ausência de
dor.
A equiparação da Queda com a origem do ego também ajuda a
esclarecer, e, por sua vez, é por ela esclarecida, a metáfora mítica do
fruto proibido. Como se observou no Capítulo 5, a história da ingestão
do fruto da Árvore da Ciência do Bem e do Mal pode ser vista como
uma alegoria que descreve o que acontece quando os seres humanos
permitem seja o seu comportamento governado por carências ou
medos obsessivos. Quando focalizamos egoisticamente nossa
atenção em nossos próprios desejos pessoais, tornamo-nos menos
sensíveis às necessidades dos modelos sociais e ecológicos mais
amplos à nossa volta. Visamos metas e produtos finais, mas não
fazemos caso das implicações mais extensas de nossos atos.
Chegamos a imaginar que nos é possível colher o fruto "bom" da
árvore e deixar o fruto "mau". Imaginamos, por exemplo, que podemos
continuar abatendo florestas para fazer lenha sem jamais desfalcá-Ias
de árvores. Porque a nossa absorção em nossas próprias carências
nos levou a não dar atenção aos efeitos inevitáveis dos nossos atos,
esses efeitos, quando se fazem sentir, parecem arbitrários e
imerecidos. Começamos a imaginar que estamos vivendo num mundo
hostil, o medo toma conta de nós, e os nossos sentimentos de
isolamento se intensificam.
O modo egóico de ser é hoje considerado tão inconteste por quase
todo o mundo que é amiúde equiparado à natureza humana. Tornou-
se parte do nosso direito hereditário, uma gaiola dentro da qual
nascemos e da qual ninguém - aparentemente - consegue escapar de
todo. Como vimos no Capítulo 9, alguns filósofos (incluindo Kant,
Hegel e Jung) sustentaram que o desenvolvimento do ego era uma
parte necssária da evolução humana. Os mitos insistem em
outra coisa. O argumento favorável à concepção mítica foi expresso,
com clareza e introvisão características, pelo filósofo Alan Watts em
seu Psychotherapy East and West [Psicoterapia no Oriente e no
Ocidente]:

A teoria de Jung da evolução da consciência e do ego...leva-o a


enxergar o modo egocêntrico de consciência como um passo
universal e historicamente necessário no desenvolvimento da
humanidade. É o mecanismo problemático, mas essencial, para
regular os instintos primordiais do pântano e da caverna, para elevar a
humanidade acima do nível meramente animal. Deveríamos, porém,
atentar para outra alternativa: a de que a bestialidade peculiar ao
homem tem pouco a ver com as bestas; que as suas irracionalidades,
apetites desordenados, histerias de massa e feitos de violência e
cruel dade chocantes não são, de forma alguma,
historicamente regressivos. ... Acaso a prática da psicoterapia, em
contraposição à teoria, não o confirma repetidamente? O
indivíduo perturbado não é tanto o retrocesso histórico em que a
força suficiente do ego deixou de desenvolver-se, de um modo ou de
outro, quanto é a vítima de um excesso de ego, de um isolamento
individual exagerado. De mais disso, não deveríamos presumir que o
desenvolvimento do ego é a base universalmente necessária da
consciência e da inteligência. As estruturas neutras do "tear
encantado", o cérebro, do qual depende a inteligência, não são, de
certo, criações deliberadas de nenhum ego consciente, e não se
dissolvem em pasta quando se vê que o ego é fictício - por um ato de
inteligência. Seguir-se-ia daí, portanto, que, quando o ego se dispersa,
não há "invasão" da consciência levada a cabo pelo
conteúdo primordial do pântano e da mata. Em vez disso, há
introvisão: a percepção de um padrão inteiramente novo de relações,
comparável a um descobrimento científico ou artístico.

A pesquisa médica e psicológica dá a entender que as atitudes do ego


humano isolado são mórbidas. Além disso, as grandes tradições
espirituais do mundo nos dizem que o ego é desnecessário e artificial.
Se a criação do ego não foi uma necessidade evolutiva, por que
aconteceu? Como poderia desandar o que já era perfeito? Desejamos,
naturalmente, uma resposta racional, significativa para a pergunta. No
entanto, é possível que não exista nenhuma resposta racional. Talvez
a Queda tenha sido apenas um equívoco.
Equívocos acontecem; se bem nosso corpo, por exemplo, tenda a
funcionar eficazmente e a consertar-se em caso de doença ou
acidente, a doença e o acidente são possíveis. Todo sistema
complexo é capaz de funcionar mal. Entretanto, os desequilíbrios, de
ordinário, acabam sendo corrigidos, sobretudo em sistemas
biológicos. A natureza absorve os produtos da desintegração e cria de
novo. Não é possível que o complexo sistema da consciência humana
tenha simplesmente funcionado mal? Ao passo que, em termos
humanos, esse mau funcionamento pareça catastrófico, em termos
cósmicos pode ser uma condição relativamente local e temporária,
que será finalmente equilibrada e neutralizada no fluxo e refluxo de
ciclos maiores (embora da nossa perspectiva atual dificilmente
poderemos imaginar como isso é possível).
Se a natureza ontológica da Queda se torna mais clara à maneira que
o mito e a psicologia se refletem um ao outro, os pormenores
históricos do evento podem permanecer nebulosos para sempre.
Talvez o ego se tenha originado de uma experiência aberrante, que
envolvesse os pensamentos e ações independentes de uns poucos
indivíduos. A atitude isolada pode ter-se parecido com o progresso
para os envolvidos. Quem poderia ter conhecido a conseqüência final?

A Sobrevivência do Milagroso
Como vimos no Capítulo 3, os mitos de todas as culturas descrevem o
Primeiro Tempo como uma idade de milagres e maravilhas em que as
pessoas refulgiam com sua luz e possuíam a capacidade de conversar
com animais e voar. Muitos intérpretes dos mitos do Paraíso deixam
de lado essas imagens por demasiado problemáticas. Para nós,
contudo, são pistas importantes. Como é que a nossa tese projeta luz
sobre a natureza e o significado de fenômenos milagrosos? E com
o que contribui para a compreensão do mito um estudo de poderes e
percepções paranormais?
Seria demasiado simples encarar os milagres do Primeiro Povo como
metáfora pura. Podemos ver a capacidade mágica de voar, por
exemplo, como metáfora da habilidade de obter acesso a níveis
transcendentes de consciência, e podemos enxergar a luminosidade
do Primeiro Povo como uma "luz interior", que Ihes permitia "ver" as
obras do Cosmo e da Natureza. Mas o estudo antropológico de povos
tribais e o estudo comparado de religiões sugere outra
possibilidade, mais intrigante: talvez as capacidades milagrosas do
Primeiro Povo fossem objetivamente reais.
Os chamados milagres - exibição de capacidades humanas
inexplicáveis em função do nosso atual conhecimento científico - não
são desconhecidos do mundo histórico, pós-paradisíaco, e quase
sempre se associam a estados místicos de consciência. Ademais,
encontramos descrições do exercício de capacidades "impossíveis"
em todos os continentes e em todos os períodos da história.
Para os africanos, os aborígines e os nativos americanos, a
capacidade do xamã ou do feiticeiro de entender-se com espíritos
animais e, em certos casos, de voar é lendária. O "homem talentoso"
australiano, por exemplo, é capaz de convocar um animal "familiar"
para assisti-Io, e dizem até que é capaz de transformar-se em um
animal. Domina os elementos, cura doenças, torna-se invisível, move-
se pelo ar, ou corre rapidamente sem tocar o chão com os pés.
E existem provas de que notícias dessa capacidade, ainda que às
vezes exageradas, não são totalmente imaginárias. Eliade escreve:
"grande número de documentos etnográficos já colocou fora de dúvida
a autenticidade desses fenômenos". Exemplos de capacidades
milagrosas, confirmadas, de outras culturas tribais incluem a
clarividência e a telepatia entre os camãs de Tonga; clarividência entre
os zulus; levitação e comunicação com espíritos animais entre os
feiticeiros dos nativos americanos; e profecia e clarividência em
sonhos entre os pigmeus.
Uma discussão de todos os poderes paranormais seria aqui
descabida. Em lugar disso, concentrar-nos-emos em relatos que
parecem ecoar descrições míticas das três principais capacidades ou
características milagrosas atribuídas ao Primeiro Povo.
A capacidade de entender-se com animais está preservada nas
tradições xamânicas de quase todas as culturas tribais. Uma parte
notável do ritual de iniciação do xamã é o encontro com um animal,
que se torna seu espírito familiar, revelando-Ihe conhecimentos
secretos, que, não raro, incluem a linguagem dos animais. Entre os
índios da América Central, o espírito animal guardião é conhecido
como nagual. Escreve o antropólogo Áke Hultkranz que o "elo estreito
e íntimo” entre o humano e o nagual - que é "às vezes o
representante espiritual generalizado de toda uma espécie animal,
outras vezes um simples animal real" - se expressa na capacidade
do xamã de transformar-se nesse animal familiar.
Relações semelhantes entre humanos e espíritos animais foram
descritas pelo antropólogo australiano A. P. Elkin em seu estudo dos
"homens de grau elevado" aborígines. O animal totêmico "avisa a
réplica humana do perigo, e chega a prestar-lhe serviços, como obter
informações sobre eventos a distância". Eliade sumaria a situação
dizendo que "a amizade com os animais, o conhecimento da sua
linguagem e a transformação em animal são outros tantos sinais de
que o xamã restabeleceu a situação 'paradisíaca' perdida no
aurorescer do tempo".
Existem pessoas em sociedades civilizadas que revelaram uma
capacidade semelhante de comunicar-se com os animais. Esta, por
exemplo, foi atribuída a certo número de santos cristãos, incluindo São
Francisco de Assis. Em 1954, Allen Boone publicou o livro clássico
Kinship with All Life [Parentesco com toda a vida], em que referiu suas
experiências de profunda comunhão com membros de várias espécies
- comunhão baseada no respeito, nas brincadeiras e na expressão de
nobreza de caráter. Mais recentemente, o cientista John Lilly e o
músico Jim Nollman escreveram sobre os seus experimentos bem-
sucedidos de comunicação com golfinhos. Lilly e Nollman chegaram à
conclusão de que níveis profundos de comunicação com animais
estão abertos a quem tiver paciência e abertura de coração,
suficientes.
Como se observou, a capacidade de voar é também amplamente
imputada a feiticeiros e xamãs em sociedades tribais. O funcionário
Ray Kelly do departamento australiano de Parques e Incêndios é um
iniciado em segundo grau dos Bhunguttis e havido pelo maior
conhecedor dos "homens talentosos" do que qualquer outra pessoa no
nordeste da Austrália. Kelly diz que, antes da disrupção da cultura
aborígine pelos colonos brancos, havia quatro graus de iniciação, e
que era no quarto que os iniciados aprendiam a voar. Dez por cento
dos aborígines, no máximo, atingiam esse grau. As chacinas da
década de 1860 e a subseqüente atividade dos missionários entre os
aborígines suspenderam as iniciações, com poucas exceções. Diz
Kelly que o último dos "homens talentosos" do quarto grau deve ter
morrido há coisa de vinte anos. Um tio, que alcançara o terceiro grau,
contou-lhe ter visto um homem do quarto grau "voar de uma montanha
para outra". O poder do vôo mágico não é desconhecido entre os
povos civilizados - onde, mais uma vez, está quase sempre associado
a estados religiosos ou místicos de percepção. Existe uma tradição
entre os chineses, por exemplo, segundo a qual os sábios e
alquimistas taoístas eram capazes de erguer-se no ar. Na Índia,
também, a tradição do vôo mágico é antiga e difundida: para os
iogues, a levitação é apenas um dos siddhis (poderes milagrosos) que
podem ser conseguidos através de exercícios espirituais. E, para o
budista, o vôo é uma capacidade natural do arhat (o iluminado).
Afirma-se ainda que certos santos cristãos levitaram; um exemplo é
São José de Cupertino, que viveu no século XVII. Conta uma
testemunha: "Ele ergueu-se no espaço, no meio da igreja, voou como
um passarinho até o altar-mor, onde abraçou o tabernáculo. ... Às
vezes, também, era visto voando para o altar de São Francisco e para
o da Virgem do Grotello".
Até o mito da luminosidade original dos seres humanos tem
correspondências na experiência e tradições, tanto dos povos tribais
quanto dos povos civilizados. De acordo com o etnólogo Knud
Rasmussen, os xamãs esquimós relatam uma experiência mística de:
Uma luz misteriosa que o xamã sente, repentinamente, no corpo,
dentro da cabeça, no interior do cérebro, um farol inexplicável, um
fogo luminoso, que lhe permite ver no escuro, literal e
metaforicamente falando, pois ele pode agora, até de olhos fechados,
ver no escuro e perceber coisas e acontecimentos porvindouros, que
estão ocultos dos outros.

Várias figuras religiosas históricas, segundo se diz, fulgiram


literalmente. Entre elas figura Moisés, quando desceu do Monte Sinai;
Jesus, na transfiguração; e diversos santos cristãos. Diz-se, por
exemplo, que quando o Aba Sisoes jazia em seu leito de morte, com
os padres sentados ao redor:

Seu rosto começou a brilhar como o sol. E ele disse aos outros: "Aqui
está o Aba Antônio chegando". E, pouco depois: "Aqui está o grupo de
profetas", e o rosto lhe brilhou ainda mais. Depois disse: "Aqui está o
grupo dos apóstolos", e a luz do seu rosto ficou ainda mais brilhante.

Em seguida, Sisoès "exalou o último suspiro, e foi como o clarão de


um relâmpago".

Nas religiões de povos civilizados, os milagres são amiúde associados


ao grande refinamento de caráter e vistos como prova da presença
divina. Nas sociedades tribais, são reconhecidos como lembretes da
condição paradisíaca original da humanidade e da natureza. Segundo
Eliade, o xamã inicia o seu transe, durante o qual se executam os
seus feitos milagrosos, a fim de "abolir esta condição humana - isto é,
as conseqüências da 'queda' - e reentrar na condição do homem
primordial, tal como é descrita nos mitos paradisíacos". Mas a
capacidade dos xamãs de chamarem de volta a condição original,
milagrosa, vem diminuindo, geração após geração. Eliade escreve que
"os chukchees, os coriaques e os tongans, bem como os selk'nams da
Terra do Fogo, concordam em que os 'velhos xamãs' tinham poderes
muito maiores, e que o xamanismo hoje está em declínio. Os iacutes
relembram com saudade o tempo em que o xamã voava diretamente
para o céu".
Em resumo, tanto nas tradições xamânicas de povos tribais, quanto
nas tradições religiosas escriturais do Oriente e do Ocidente,
encontramos relatos de capacidades supernormais, reminiscentes dos
poderes milagrosos do Primeiro Povo. Isto sugere não só que as
descrições míticas das maravilhas da Idade de Ouro podem ser mais
do que simples metáforas, mas também que a transformação
espiritual da condição humana decaída atual traz consigo a volta do
estado paradisíaco, incluindo a transcendência de muitas limitações
físicas comumente aceitas.

Revisionando a História
Conforme a tradição universal, nós, seres humanos, trocamos a alegre
e milagrosa experiência da unidade universal pela condição alienada
da separação egóica. De um ponto de vista psicológico e espiritual,
isso dificilmente soará como progresso. Não obstante, a maioria dos
estudiosos encara a história humana como uma longa série de
aprimoramentos gradativos, conducentes à nossa civilização industrial
presente, que, para eles, é a meta desejável e inevitável da evolução
cultural.
Adam and Eve Sleeping [Adão e Eva dormindo], de William Blake
(1808). Uma das doze Ilustrações para o Paraíso perdido de Milton.
Adão e Eva dormem pacificamente no Jardim do Éden, antes da
Queda, velados pelos anjos Ituriel e Zefan, que acabam de descobrir
Satanás, como um sapo escarrapachado, perto do ouvido de Eva,
tentando-a num sonho.

Será possível reescrever a história desde a perspectiva paradisíaca?


Para fazê-Io item por item seriam precisos alguns volumes. Teríamos
de examinar a origem e o desenvolvimento da religião, da economia,
da teoria política, da Ciência e da tecnologia, observando o modo com
que os dados históricos se realinham quando vistos como
desenvolvimentos pós-paradisíacos. Ao passo que um projeto dessa
natureza é obviamente pouco prático aqui, pode-se fazer, todavia, o
mais breve dos exórdios. O que se segue é um exercício especulativo
inicial num revisionamento paradisíaco da história.
Talvez o melhor lugar para começar seja imediatamente antes do
começo da própria história - a saber, pouco depois do colapso da
cultura unitária original. Após a devastação da natureza e da
sociedade humana registrada nos mitos da Queda e das
subseqüentes catástrofes naturais, várias gerações devem ter vivido
na mais absoluta confusão. Gradualmente, grupos de sobreviventes
se teriam abandado, e, dependendo do sítio em que estavam e de
quais haviam sido as suas experiências, deveriam ter começado a
construir culturas rudimentares. A partir desse ponto, descreverei um
curso hipotético de acontecimentos, reconstruídos com a ajuda de
dados históricos e arqueológicos. Eis aí o que pode ter acontecido:

Alguns grupos maiores, em áres relativamente hospitaleiras,


permaneceram estacionários e desenvolveram sociedades pacíficas,
dedicadas à horticultura. Estes foram os povos que domesticaram
todas as nossas atuais colheitas de alimentos e edificaram as cidades
pacíficas recentemente escavadas na Velha Europa e no Oriente
Próximo.
Outros grupos, menores, de sobreviventes em áreas mais devastadas
foram forçados a perambular em busca de alimento. Por que a
vegetação era escassa, tiveram de subsistir da caça e, finalmente, do
pastoreio de animais. Inteiramente aterrorizados pelos elementos
desencadeados, os pastores nômades puseram-se a adorar um deus
celeste de terror e a infligir compulsivamente os seus medos terríficos
a todas as culturas nascentes com as quais lhes sucedia entrar em
contato. Estas eram as tribos do norte, cujas conquistas instilariam um
caráter agressivo e belicoso nos fundamentos da civilização.
As pessoas lembravam-se vagamente dos representantes divinos, que
haviam presidido a Idade de Ouro, e, onde quer e como quer que se
reunissem, olhavam naturalmente para os chefes que melhor
exemplificavam as qualidades paradisíacas de caráter. Entretanto,
sobretudo entre as tribos nômades, um estado acentuado de medo
exigia um estilo duro e autocrático de liderança. Destarte, desde o
quarto até o segundo milênios a.C., à medida que os nômades
invadiam as cidades dos horticultores sedentários, nasceram as
cidades-estado militares, socialmente estratificadas.
Na proporção em que os chefes das cidades-estado eram movidos
pelo medo, pela ganância, pela fome de poder, o governo, aos
poucos, se tornou uma entidade secular, cujos objetivos principais
eram a proteção e a extensão dos privilégios materiais. As leis e o
crime apareceram simultaneamente. Ao passo que a organização se
tomava mais complexa, tornou-se necessário controlar o
comportamento cada vez mais irracional de algumas pessoas - mas
as penalidades impostas e as compulsões instituídas só serviram para
restringir as ações naturais, espontâneas, de que todas as
pessoas eram ainda capazes.
Em todas as sociedades e em quase todas as gerações, surgiram uns
poucos indivíduos extraordinários, capazes de reaver e exemplificar a
consciência paradisíaca, que serviam como padres, profetas, ou
xamãs, preservando o mito e o ritual e exercitando capacidades
psíquicas e de cura. Proporcionaram estabilidade e propósito às suas
comunidades e um elo vital entre a Natureza e o Céu.
Mas se bem as pessoas pudessem reverenciar os ditos dos que
tinham sido divinamente ungidos, já não se podiam compreender
plenamente certas idéias e termos. Quando os líderes espirituais
empregavam as palavras Céu, Paraíso e espírito, as pessoas, muitas
vezes, só logravam a compreensão tateando. Lembranças
esvoaçavam momentaneamente e depois morriam. Teorias e dogmas
proliferavam à proporção que o próprio clero perdia contato, pouco a
pouco, com a dimensão paradisíaca da consciência; as pessoas
faziam comparações e combatiam interpretações. A maioria das
culturas degenerou em culto aos antepassados, o qual apenas
parodiava a lembrança evanescente do Céu e da Idade de Ouro.
Assim, na maioria dos casos, as religiões - todas as quais
comemoram a existência anterior de um Paraíso terreno e tentam
reviver o estado beatífico de consciência experimentado, em outro
tempo, por todas as pessoas - tornaram-se meros códigos de dogmas,
a respeito dos quais os seres humanos brigaram interminavelmente.
No princípio não havia conceito algum de propriedade privada. Posto
seja especulativo, este pensamento, sem embargo, é conforme a tudo
o que sabemos das culturas primevas, e sugere que o dinheiro não
surgiu como um símbolo de posse material, senão como meio de
conter e transmitir certa substância espiritual - uma energia de vida e
de cura rotineiramente investida na matéria pela humanidade
paradisíaca. À medida, porém, que diminuiu a percepão da dimensão
espiritual e as trocas foram cada vez mais motivadas pela carência
material, os símbolos que facilitavam essas transações tornaram-se
mais e mais abstratos: em lugar de usar objetos e substâncias
carregados de energia, inerentemente valiosos, as pessoas puseram-
se a usar símbolos inertes, convenientes.
Com as coisas físicas representadas por símbolos monetários
abstratos, intrinsecamente sem valor, os objetos materiais podiam ser
manipulados interminavelmente sem consideração pela sua
singularidade, pelo seu lugar dentro de um contexto mais amplo, ou
pelo seu significado e finalidade inerentes. A praça do mercado
passou a existir como meio de equiparação - e, daí, de
desconsagração - de todas as coisas: dez unidades monetárias, no
valor de uma vaca, podiam ser trocadas por dez unidades no valor de
determinada quantidade de ferro, dez unidades no valor do trabalho
humano, e assim por diante. Desse modo, o dinheiro, que começara
como símbolo da substância do Céu investida na Terra, pouco a
pouco foi se tornando um meio de degradação e escravização das
pessoas e de rapina e desconsagração do planeta.
Na Primeira Idade, o conhecimento era inseparável da sabedoria, a
qual talvez se defina melhor como o sentido da conveniência das
coisas. O conhecimento era de conjuntos, de interação orgânica, e do
giro de sistemas dentro de sistemas. Mas à maneira que os seres
humanos perderam a percepção da sua identidade e propósito,
também perderam o conhecimento das operações da natureza.
Procuraram reaver o conhecimento perdido, mas o seu motivo para a
reaquisição era o desejo de dominar egoisticamente os processos da
natureza, e o método usado foi a análise - a fragmentação e o
dilaceramento de conjuntos. O conhecimento, assim, divorciou-se da
sabedoria.
Assim como o uso de símbolos monetários abstratos serviu para
desconsagrar a natureza, o mesmo fez a busca do conhecimento
analítico. Finalmente, descobriu-se que a maneira mais eficiente de
analisar e dominar a natureza é negar-lhe todo e qualquer atributo
não-físico. Daí que, através da análise, tornou-se possível conhecer
cada vez mais sobre cada vez menos, e utilizar esse conhecimento
sem nenhum interesse pelos valores espirituais.
À proporção que a consciência humana perdeu o contato com a sua
fonte interna, celeste, de poder, a tecnologia emergiu como um poder
substituto. Sua primeira aparição registrou-se qual magia congenial e
invocação de seres espirituais para mudar a natureza em benefício
dos homens. Entretanto, como a percepção humana foi-se
restringindo cada vez mais ao mundo material, apareceram
tecnologias puramente mecânicas. Com o casamento entre a ciência e
a tecnologia, tornou-se possível transformar a energia armazenada na
madeira, no carvão, ou no óleo em exibições impressionantes de
poder, de modo que um indivíduo, fazendo uso de máquinas, podia
fazer o trabalho de centenas. Tão impressionantes eram essas
capacidades que os descobrimentos tecnológicos entraram a criar
novos desejos - por exemplo, do transporte e da comunicação mais
rápidos, de um luxo maior e de conveniências de toda a casta. Tais
desejos logo se tornaram em necessidades.
Entrementes, poucos notaram que o trato da máquina tecnológica
passou a desviar cada vez mais a atenção das pessoas de suas
relações com a natureza e de umas com as outras. Por intermédio da
tecnologia, as pessoas puderam construir um ambiente artificial, em
que se viram completamente isoladas, por suas próprias criações, de
todo o contato com as pulsações cíclicas do Cosmo e com as
profundas e terrenas necessidades da Natureza.
As lembranças do Céu e do Paraíso não se limitaram a desaparecer e
decair, mas foram ativamente negadas. A crise avultou, ameaçadora,
mas poucos se dispuseram a fazer alguma coisa para evitá-Ia.
Subsistiu apenas um sopro incômodo de lembrança - e uma antiga
profecia de um tempo de purificação, quando o mundo artificial,
inventado pelos homens, seria levado embora, e divinos
representantes retornariam para instaurar uma nova Idade de Ouro.

Até agora, usamos o espelho do mito para ver o passado. O que


vimos pode ter importantes implicações para a compreensão do
potencial humano, para o entendimento das causas fundamentais da
nossa angústia individual e social, e para a remodelagem dos
fundamentos da história. Mas se olharmos mais profundamente no
espelho, veremos a imagem de um Paraíso que ainda está conosco e
dentro de nós, e cuja presença inelutável transcende o próprio tempo.

CAPÍTULO 11
O Paraíso Agora: Entre o Céu e a Terra
O Celeste está no interior, o humano está no exterior. A Virtude reside
no Celeste. Compreenda as ações do Céu e do homem, baseie-se no
Céu, tome a sua posição na virtude, e, então, embora você se apresse
ou recue, se incline ou se retese, poderá voltar ao essencial e falar de
definitivo.
Chuang Tzu

Não há morte, apenas uma troca de mundos.


Chefe Seattle
Vimos no Capítulo 4 que um sem-número de tradições coloca o
Paraíso não só no princípio da história, mas também em outra
dimensão ainda persistente da existência - o Outro Mundo, para o qual
os antigos povos acreditavam estar destinados a ir após a morte.
Originalmente, de acordo com o mito, o Paraíso terreno e o Paraíso do
Outro Mundo estavam ligados por uma ponte de arco-íris. O Primeiro
Povo, descrito como imortal, era capaz, ao que se dizia, de ascender
ao Céu à vontade. Mais tarde, a ponte do arco-íris (ou uma corda ou
escada primordial, que servia para ligar os dois mundos) foi cortada ou
retirada, e, desde então, as pessoas raramente têm obtido acesso ao
Paraíso celeste enquanto ainda fisicamente vivas.
Conquanto a imortalidade e o Outro Mundo sejam essenciais à
narrativa do Paraíso universal, e apareçam em quase todas as
versões, parecem apresentar os maiores problemas para uma
interpretação histórica do mito. Afinal, não é a idéia do Outro Mundo
imaginação pura, e a da imortalidade mero faz-de-conta?
No correr dos três últimos capítulos confrontamos os achados da
psicologia, da antropologia e da arqueologia com o conteúdo do mito
do Paraíso. Ao fazê-Io, descobrimos que a evidência moderna não
elimina a possibilidade de um Paraíso histórico. Na realidade, os
descobrimentos da ciência podem ser usados para esclarecer a nossa
compreensão das imagens míticas, ao mesmo tempo que os próprios
mitos sugerem novas maneiras de entender alguns dados da ciência.
Neste capítulo investigaremos algumas descobertas recentes da
psicologia, relacionadas com as questões da morte e da imortalidade.
Outrossim, a ciência e o mito se refletem um sobre o outro para
fornecer uma imagem mais clara. Como alguns dados científicos que
já citamos, os descobrimentos sobre os quais pretendemos agora
refletir são inconcludentes e controvertidos. Não obstante, relacionam-
se não só com o mito do Paraíso, mas também com as questões
fundamentais da existência humana.

A Experiência da Quase-Morte
Em anos recentes, novas técnicas em cuidados sanitários de
emergência têm resultado num aumento significativo do número de
pessoas salvas quando já estão à beira da morte. Freqüentemente,
um paciente ressuscitado recorda uma experiência de paz, júbilo e de
comunhão telepática com seres de luz. Diversos médicos e
psicólogos, intrigados pela freqüência e similaridade de tais relatos,
decidiram-se a investigá-Ios.
Dois dos primeiros estudos publicados sobre experiências de quase-
morte foram os livros populares de Raymond Moody Life after Life
[Vida após a vida] e Reflections on Life after Life [Reflexões sobre a
vida após a vida]. Filósofo e psiquiatra, Moody descobriu que as
histórias de experiências de quase-morte tendem a concordar com a
seguinte descrição generalizada:

Um homem está morrendo, e, ao atingir o ponto de maior angústia


física, ouve o médico pronunciá-Io morto. Começa a ouvir um barulho
incômodo, um toque de campainha, ou um zumbido, e, ao mesmo
tempo, sente-se mover muito rapidamente através de um longo túnel.
Depois disso acha-se, de repente, fora do corpo físico, mas ainda no
ambiente físico imediato, e enxerga o próprio corpo à distância, como
se fosse um espectador. Assiste à tentativa de ressuscitação do
seu privilegiado ponto de observação, num estado de perturbação
emocional.
Volvido algum tempo, cobra ânimo e acostuma-se melhor à sua
estranha condição. Nota que ainda tem um "corpo", mas de natureza e
com poderes muito diferentes dos do corpo físico que deixou para
trás. Logo começam a acontecer outras coisas. Outros vêm encontrar-
se com ele e ajudá-Io. Vê, de relance, os espíritos de parentes e
amigos que já morreram, e um espírito caloroso e quente de uma
espécie que nunca encontrou até entâo - um ser de luz - aparece à
sua frente. Esse ser faz-lhe uma pergunta, não verbalmente, para
fazê-Io avaliar a sua vida, e ajuda-o mostrando-Ihe um
apanhado instantâneo e panorâmico dos principais acontecimentos
de sua existência. Em algum ponto, descobre-se chegando perto de
uma espécie de barreira ou fronteira, que representa, aparentemente,
o limite entre a vida terrena e a próxima vida. Entretanto, descobre
que precisa voltar à Terra, que o momento da sua morte ainda não
chegou. Nesse ponto, resiste, pois agora, empenhado em
experiências no pós-vida, não quer retornar. Sente-se dominado por
intensos sentimentos de alegria, amor e paz. Todavia, a despeito da
sua atitude, de um modo ou de outro, reúne-se ao corpo fisico, e vive.
Mais tarde, tenta contar a outros a sua experiência, mas tem
dificuldade para fazê-lo. Em primeiro lugar, não encontra palavras
humanas adequadas à descrição desses episódios extraterrenos.
Descobre também que outros fazem troça dele, de modo que deixa de
contar aos demais. Mesmo assim, a experiência lhe afeta
profundamente a vida, sobretudo as opiniões a respeito da morte e da
relação dela com a vida.

As narrativas de experiências de quase-morte, como os mitos do


Paraíso terreno ou do outro mundo, nos descrevem um reino de amor
e paz, povoado de seres radiantes, oniscientes, cuja comunicação é
telepática e completa. A força desses paralelos - e a intensidade
pessoal da experiência tornam-se ainda mais aparentes quando
examinamos um relato especifico em primeira mão.
Depois de um desastre de automóvel, quase fatal, em 1976, o
antropólogo Patrick Gallagher ficou em estado de coma durante
algumas semanas. A sua experiência de quase-morte foi extensa e
vívida, típica do que os pesquisadores denominam uma experiência
"central". Aqui estão alguns dos pontos mais expressivos da sua
notável história:

Não somente me libertei da gravidade, mas também de todas as


outras restrições humanas. Eu podia voar, e voar tão bem que me
sentia transformado. ...
Em seguida, dei com a visão de uma árvore escura à minha frente,
vazia de toda a luz, que percebi ser a entrada de um túnel. ...
Finalmente, avistei uma luz circular a distância... amarelo-alaranjada,
de beleza total. ...
Quando saí do túnel, entrei numa área ofuscantemente bela. ... Era
um espaço completo, ou seja... total e perfeitamente iluminado. ... Vi
[ali] certo número de pessoas, algumas das quais estavam vestidas e
algumas não. As roupas, que se diriam transparentes, eram
decorativas, mas não... defensivas. ... As próprias pessoas eram
também graciosamente belas. ... Todas as que ali se achavam, como
fiquei sabendo no momento em que cheguei, pareciam possuir um
conhecimento tão radiante, transfigurante e ideal quanto a luz
resplandecente. E eu o possuía também. ... Percebi que tudo o que
devia fazer era aproximar-me de uma pessoa interessante e, com
extrema facilidade e quase de inopino, compreender-lhe a essência.
Para fazê-Io completamente bastava um rápido olhar... dirigido aos
olhos da pessoa, sem nenhuma fala... o resultado era uma troca
pefeita de conhecimentos. As palavras não proporcionam sequer uma
sugestão desse conhecimento universal.
Sem reflexão nem palavras, eu conheci-os tão integralmente quanto
eles me conheciam e, por fim, compreendi por que, no dizer dos
poetas, os olhos são a janela da alma. ... Também percebi que a luz
iluminativa nunca cessaria: ninguém tinha necessidade de dormir. ...
Percebi também que todas as pessoas presentes se achavam num
estado de perfeita compaixão em relação a toda a gente e a todas as
coisas. ... Estávamos livres das invenções que os historiadores
afirmam com freqüência serem as causas da guerra e de outros
conflitos, incluindo a terra, o alimento e o abrigo. O único axioma era o
amor. Essas condições ideais produziram um estado fenomenal, pois
não estava presente nem o ódio nem qualquer outra paixão
conturbadora - apenas a presença total do amor. ...
Entendi que era muito possível voltar à minha vida terrestre, e senti
falta... de meus filhos, minha esposa, e muitos outros. Decidi
regressar, embora soubesse também que o preço da passagem seria
gargantuesco: aceitando as necessidades e desvantagens biológicas,
fisiológicas e fisicas do meu corpo, assim como a perda, exceto uma
esquírola, do meu conhecimento luminoso. Nada sei sobre nenhum
aspecto da viagem de volta, mas, assim que decidi voltar e perdi o
TUDO do que sempre desejara ser ou saber, eu estava lá.

Se as lembranças de Gallagher fossem reexpressas apenas


ligeiramente, de modo que parecessem vir de alguma fonte antiga,
poderíamos imaginar estar lendo outro mito do Paraíso. Sua
experiência verificou-se num lugar bonito, semelhante a um jardim; ele
conheceu pessoas radiantes, com as quais partilhou de imediata
compreensão telepática; e assim o lugar como os seus habitantes
estavam impregnados de uma sensação de paz, inocência e amor.
A ascensão dos bem-aventurados, de Hieronymus Bosch
(aproximadamente no ano de 1500). Em sua pintura da ascensão dos
bem-aventurados ao Céu, Bosch utilizou imagens semelhantes às que
são descritas pelos modernos sujeitos a experiências de quase-morte:
eles se aproximam de uma luz brilhante, depois de passar por um
longo túnel em que os espíritos flutuam, livres e sem peso.

Existem, literalmente, centenas de milhares de pessoas, vivas ainda


hoje, que fizeram uma viagem semelhante ao Paraíso do Outro Mundo
e voltaram para contá-Ia. O especialista em inquéritos de opinião
pública, George Gallup Jr. descobriu que, praticamente, 5% da
população adulta da América do Norte tiveram uma experiência de
quase-morte. Ainda mais notável do que a freqüência das
experiências é o seu impacto sobre as vidas humanas. Quando
solicitados a comparar a experiência de quase-morte com sonhos de
que se lembram, os sujeitos dão ênfase à qualidade distintamente
anti-sonhadora da experiência. Com efeito, um comentário ouvido com
freqüência é que a realidade desperta comum parece um sonho em
comparação com a experiência de quase-morte: "Senti como se eu
estivesse acordado pela primeira vez na vida." Além disso, a
experiência parece, em quase todos os casos, resultar numa drástica
e imediata reorientação de valores. Notando essa tendência, o
psicólogo Kenneth Ring fez um levantamento de vinte e seis
experiências de quase-morte a fim de avaliar, sistematicamente,
mudanças de atitude e de valores depois da experiência. Em seu livro
Heading Toward Omega [Caminhando para Omega], ele conclui:

Depois de uma experiência de quase-morte, os indivíduos tendem a


mostrar maior apreço pela vida e mais consideração e amor aos
semelhantes, ao mesmo passo que o interesse por status pessoal e
posses materiais diminui. A maioria dos sujeitos de experiências de
quase-morte também declara que vive depois da experiência com um
sentido aumentado de propósito espiritual, e, em certos casos, procura
uma compreensão mais profunda do sentido essencial da vida. Além
disso, os relatos pessoais tendem a ser corroborados por outras
pessoas em condições de observar o comportamento do sujeito da
experiência de quase-morte.
Outros estudos demonstraram que as experiências tendem a ser
semelhantes na estrutura básica, sem impedimento da prática e das
convicções religiosas do sujeito. Tanto os ateus quanto os devotos
freqüentadores de igrejas têm a mesma probabilidade de passar por
uma experiência de quase-morte, e experimentar um túnel, um ser de
luz, e assim por diante. Entretanto, os antecedentes culturais parecem
colorir a interpretação da experiência feita pelo sujeito: o cristão pode
encarar o Ser de Luz como Jesus, por exemplo, ao passo que o
muçulmano pode compreendê-lo como mensageiro de Alá.
Quase toda a gente que estuda o fenômeno da experiência de quase-
morte se vê, no fim de contas, diante da questão de saber se as
experiências são alucinações inteiramente subjetivas, ou prova da
existência objetiva de uma pós-vida paradisíaca. A maioria dos
cientistas adota a primeira. Para a ciência positivista, a consciência é
um produto de processos eletroquímicos do cérebro; quando o
cérebro morre, cessa a consciência. Mas, como admitirão inúmeros
cientistas, essa conclusão - ou suposição, que é o que ela é - pode ser
apenas marginalmente responsável por provar ou desaprovar de
acordo com a evidência material. As pesquisas feitas não descartam,
de maneira alguma, a idéia de que a consciência pode existir
separada do cérebro; pelo contrário. A evidência é tal que o
neurocirurgião pioneiro Wilder Penfield, depois de ver malogradas
suas tentativas de explicar a consciência por meio dos processos
eletroquímicos do cérebro, concluiu, no fim da carreira, que a mente
deve ter uma existência independente do cérebro físico.
A conclusão de Penfield é sustentada pela existência de certa classe
de fenômenos de quase-morte, denominados visões autoscópicas.
Muitos sujeitos de experiências de quase-morte referem que,
enquanto flutuavam para cima e para fora de suas formas físicas
inertes, viam pormenores do ambiente que não poderiam ter
percebido por intermédio dos sentidos físicos - pormenores que
seriam, ao depois, corroborados por outros. Em seu livro Recollections
of Death [Lembranças da Morte], o cardiologista Michael Sabom
minudencia várias experiências autoscópicas, confirmadas
independentemente. Tenta explicar a exatidão aparente da informação
adquirida pelos sujeitos durante a experiência de quase-morte "por um
conhecimento geral anterior, por informações transmitidas por outro
indivíduo, e por percepções físicas de visão e de audição durante a
semiconsciência". Nota que "se descobriu que as miudezas dessas
percepções eram precisas em todos os casos em que estava à mão a
evidência corroborativa", e conclui que nenhum dos modelos de
explicações é apropriado para explicar a acurácia das informações
trazidas de "fora do corpo".
Sabom examina também a série de explanações fisiológicas e
psicológicas do fenômeno das experiências de quase-morte:
alucinações baseadas na expectativa; fabricação consciente; liberação
de endorfinas no cérebro; despersonalização e outros fenômenos
psicológicos conhecidos por produzirem alucinações; efeitos de
drogas e anestésicos; e ataque do lobo temporal. Ele não acha
nenhuma dessas explicações suficientes e conclui:

Estou... ciente de que meus argumentos contra as explicações mais


tradicionais das experiências de quase-morte... não provam ipso facto
que a proposta fora-do-corpo é correta. Outras explicações para a
experiência autoscópica de quase-morte explicações que não
investiguei - poderão, de certo, acabar explicando todos esses
descobrimentos. Acredito, porém, que as observações ... relativas à
experiência autoscópica de quase-morte indicam que essa experiência
não pode ser levianamente descurada, como se fosse uma invenção
mental, e que se deve dar uma consideração científica séria a
explicações alternativas, talvez menos tradicionais.

Dessa maneira, pouco pode fazer a ciência para responder à pergunta


fundamental da existência humana: Têm a mente, a alma ou o espírito
existência separada do corpo? Existe outro reino de existência, um
Paraíso do Outro Mundo, que seja objetivamente real e não apenas
produto da imaginação humana? É difícil imaginar algum avanço
técnico ou metodológico que permita aos cientistas resolver essas
questões de uma vez por todas. Mas conquanto a ciência física possa
dizer-nos muito pouca coisa sobre a existência ou a natureza do
Paraíso celeste, outras vias de investigação - como a religião
comparada e a mitologia - talvez ainda encerrem pistas interessantes.

Idéias da Vida Após a Morte


As características da experiência de quase-morte, que os
pesquisadores modernos acham tão interessantes, já eram bem
conhecidas dos antigos tibetanos, que compilaram um relato
circunstanciado da passagem do espírito entre os reinos, num livro a
que deram o nome de Bardo Thodol (habitualmente traduzido por O
Livro dos mortos). Atribuído ao fundador do budismo tibetano, o texto
descreve as entradas para os níveis de experiência, depois da morte,
encontradas pela alma ou espírito no estado intermediário (bardo)
entre as encarnações.
Consoante o Bardo Thodol, a alma do falecido tende a demorar-se ao
redor do corpo vários dias depois da morte. Durante esse período e
depois dele, a alma experimenta, por seu turno, três fases de bardo. A
inicial, Chikhai Bardo, caracteriza-se por visões de um Ser de Luz
Clara numa formosa paisagem. O livro tibetano dos mortos aconselha
a consciência moribunda a identificar-se com a luz e deixar que feneça
todo o apego à personalidade anterior.
Se for incapaz de fazê-Io, seguirá para a segunda fase, Chonyid
Bardo, em que começa a vestir-se com um corpo psiquicamente
projetado, semelhante ao seu corpo físico anterior. A consciência
encontra sete seres divinos; se for incapaz de identificar-se com
nenhum deles, vê-se diante de sete demônios aterradores. O livro
tibetano dos mortos aconselha a alma a encarar esses seres
grotescos como projeções de seu próprio subconsciente e a observá-
Ios sem receio.
Na terceira fase, Sidpa Bardo, a alma adquire a capacidade de mover-
se livre e instantaneamente pelo mundo físico; vê a família de luto e
tenta, em vão, convencer os membros de que ela não morreu. Erra
sozinha, infeliz, até avistar o Senhor do Outro Mundo, que veio julgá-
Ia; depois de uma revista passada à sua vida, sente a tortura dos
demônios de seus próprios medos e desejos.
O livro tibetano dos mortos não é uma descrição de céus e infernos
eternos, mas um catálogo cronológico das dimensões da realidade
que a alma, ou espírito, visita entre a morte e o renascimento. A
maioria das experiências de quase-morte ocorre mais em questão de
segundos ou minutos do que de dias, de sorte que - presumindo-se
estarem os sujeitos da experiência de quase-morte e os antigos
tibetanos descrevendo a mesma experiência - toda a seqüência de
fenômenos habitualmente relatados numa experiência de quase-morte
está provavelmente contida no primeiro bardo.
Inúmeras tradições - sobretudo na Ásia - fazem distinção entre alma e
espírito. Às vezes, como acontece entre os yukagirs, descreve-se o
ser humano como detentor de três "almas": a primeira, associada ao
corpo físico, a segunda, à personalidade humana, e uma terceira de
origem cósmica, cujo lar se situa nos reinos celestiais. As duas
primeiras almas são capazes de manter-se fora do corpo por
intervalos mais compridos ou mais curtos, mas, finalmente, entram em
decadência. Só a alma cósmica, ou espírito, é imortal. Esta alma,
fonte final de identidade humana, renasce em outro corpo, o qual,
durante o curso da vida, desenvolve nova personalidade.
O budismo maaianà ensina a doutrina do Trikaya ou "Três corpos" - o
Dharmakaya, ou cerne absoluto do ser, a Luz Clara do Vazio; o
Sambhogakaya, o Corpo da Bem-aventurança Espiritual,
manifestação celeste do Absoluto no mundo do espaço e do tempo; e
o Nirmanakaya, o corpo material em que o Eu está encarnado. O livro
tibetano dos mortos descreve a Luz Clara como "sutil, cintilante,
ofuscante, gloriosa e radiantemente instigadora de pasmo reverente".
O texto insiste com a personalidade humana para que "não se deixe
intimidar por ela, nem aterrar, nem assustar. Esta é a radiância de tua
própria natureza verdadeira, raramente consegue fazê-lo, tendo-se
tornado dependente de respostas ambiental e hereditariamente
condicionadas ao mundo material - desejo e medo - durante a vida.
Em lugar de erguer-se para a unidade com o Eu final, entrega-se a
vários infernos desintegradores.
De acordo com O Livro Tibetano dos Mortos, os reinos visitados pela
alma não são, objetivamente, reais nem irreais em nossos termos
costumeiros de referência. A paisagem do outro Mundo é uma
projeção mental da alma humana, embora cada reino pós-morte esteja
sujeito ao próprio conjunto interno de leis e regularidades, análogas às
do mundo físico, porém diferentes delas.

A Experiência de Quase-Morte como Forma de


Experiência Mística
Os mitos do Paraíso insistem em que a consciência "áurea" de amor e
união telepática foi outrora conhecida dos seres humanos na carne.
Podemos visionar a situação como sendo algo semelhante a uma
experiência contínua, em plena vigília, de quase-morte - sem trauma
físico - partilhada simultaneamente por toda a população. Será
possível um estado dessa natureza? Pondo de lado os mitos, haverá
alguma coisa que nos leve a presumir que o outro Mundo paradisíaco
é acessível a pessoas que estão vivas, bem, e conscientes?
Lá para o fim de sua descrição e interpretação da experiência de
quase-morte em Heading toward Omega, Kenneth Ring faz a seguinte
ousada declaração:

O que ocorre durante uma experiência de quase-morte nada tem que


ver inerentemente, com a morte ou com a transição para a morte. ... A
experiência da quase-morte... há de ser olhada como membro de uma
família de experiências místicas correlatas, que sempre estiveram
conosco, mais do que um descobrimento recente de pesquisadores
modernos, que vieram investigar o fenômeno do morrer.

Ring é levado a essa conclusão pela similaridade de todos os


aspectos da experiência de quase-morte com as experiências de
profetas, místicos e santos em todo o correr da história. Encontros
com seres de luz, visões de paisagens celestes e mudanças súbitas,
dramáticas de valores têm sido conhecidos de inúmeras pessoas, que
não se encontravam em circunstâncias que lhes ameaçassem a vida.
Algumas dessas pessoas continuaram a viver e transformaram-se em
líderes carismáticos, cujas visões estão registradas na literatura
sagrada das religiões do mundo. Na maior parte das vezes, contudo,
os que têm experiências místicas profundas simplesmente votam o
restante da vida à contemplação e ao serviço.
Da similaridade das descrições do estado de iluminação mística -
como as fornecidas por Bucke, James e Dean (veja o Capítulo 10) -
aos relatos em primeira mão de sensações e percepções ocorridas
durnte a experiência de quase-morte, só nos resta concluir, com Ring,
que ambos são membros de uma família de experiências correlatas. É
discutível que a experiência de quase-morte seja prova da
sobrevivência além da morte física, mas é, sem sombra de dúvida, um
tipo de experiência potencialmente acessível a toda a gente. Se
chamarmos à luz transcendental e à paisagem celestial evidências do
Paraíso, será possível a seres humanos no presente conhecerem a
experiência do Paraíso, qual foi descrita nos mitos antigos, enquanto
ainda estiverem vivos na Terra.
Apesar disso, o fato de verificar-se a experiência paradisíaca tão
predizivelmente quando as pessoas estão à beira da morte, não pode
menos de sugerir-nos a existência de alguma vínculo profundo entre a
consciência mística e o Além profundamente misterioso. As histórias
da Idade de Ouro em que uma ponte de arco-íris servia de ligar dois
mundos parecem relações de um tempo em que os processos
de nascimento e morte não eram tão misteriosos quanto agora. Ainda
hoje dizem os esquimós que "o nascimento e a morte... são menos um
começo e um fim do que episódios da vida. Os corpos são apenas
instrumentos das almas - as almas é que são as suas 'donas"'. O mito
universal da imortalidade do Primeiro Povo pode referir-se
simplesmente a um tempo em que a vida se equiparava mais à vida
do espírito do que à vida do corpo, e era, portanto, experimentada
como se fosse eterna.

Imaginação ou Realidade?
Os mitos do Outro Mundo paradisíaco são, às vezes, tão esquisitos ou
tão fantasiosamente enfeitados que é fácil ver neles invenções de
seres humanos que buscam uma fuga imaginária do dilema do nada
eterno. A maioria dos antropólogos adotou a opinião de que, quando
os povos primitivos enfrentavam o paradoxo final da existência e da
não-existência, como Arthur Koestler escreveu em Life after Death
[Vida após a morte]: "Suas mentes ficavam transtornadas e saturavam
a atmosfera de fantasmas dos mortos e outras presenças invisíveis.
que eram, na melhor das hipóteses, inescrutáveis, porém malévolas
na maioria, e tinham de ser aplacadas por rituais grotescos."
Muitos rejeitariam o Céu como não tendo lugar no mundo natural. Mas
pode aparecer - como aparece para os emergentes de experiências
de quase-morte - como mais real do que o que comumente se nos
afigura realidade. Será puramente imaginário o Paraíso do Outro
Mundo? Ou será um reino natural de experiência, do qual, de um
modo ou de outro, nos excluímos? Nossa linguagem concreta,
materialista, é incapaz de descrever ou definir o que não é
inteiramente objetivo nem meramente imaginário. Entretanto, por mais
esquiva que seja a visão profética para se contemplar, não podemos
deixar de lado a sua dimensão mítica. Em momentos de crise
decisiva, na iminência da morte, o que supúnhamos fosse mais real e
concreto se vai, e o Outro Mundo - que antes parecera inexistente -
toma-se, subitamente, mais intenso do que o terá sido, alguma vez, a
experiência dos nossos sentidos.
Nós, ocidentais modernos, temos feito o possível para banir os reinos
subjetivos e viver inteiramente num mundo material, objetivo,
Reprimido, o conteúdo do inconsciente investe conosco nas
compulsões irracionais da loucura e da profecia. Entrementes, o
mundo acordado, objetivo, libertado das suas amarras subterrâneas,
passa a ser a pior espécie de pesadelo. Os psicólogos. com exceção
de Jung e seus seguidores. têm tendido a encarar o mundo interior
como uma coleção de imagens abstraídas da realidade fisica. Quase
todos os sonhos parecem ser apenas a mente inconsciente
empenhada em limpar a casa, reunir fragmentos de emoções e
pensamentos que sobraram da estada de um dia no mundo material.
Mas há, de vez em quando. sonhos perturbadores de nível muito mais
profundo - sonhos proféticos, ou sonhos de voar e de falar com seres
angélicos - que não têm a sua origem no mundo mundano, mas em
algum lugar inteiramente diferente. Já nos esquecemos de como
interpretar estes últimos sonhos, e hesitamos até em reconhecê-Ios.
Os tibetanos talvez tenham chegado mais perto da solução das
contradições aparentes da psicologia do Paraíso com a sua descrição
dos reinos do bardo da alma, como se fossem projetados
mentalmente, mas sendo reais mesmo assim. Num sentido, até a
nossa experiência do mundo fisico é auto criada: duas pessoas nas
mesmas circunstâncias podem vê-Ia de maneiras diferentes. Não
obstante, tendemos todos a concordar em que existe um mundo
finalmente real "lá fora", com regras e limites inerentes, independente
das nossas interpretações e crenças. A darmos algum peso às
observações dos maiores sábios da história, precisamos também
estar dispostos a refletir na possibilidade de que, além dos bardos da
existência depois da morte, mentalmente projetados, existe uma Fonte
interior, finalmente real, de identidade, sentido e propósito que pouco
se incomoda com as nossas convicções religiosas a respeito da sua
existência ou inexistência.
Pode ser que o mundo objetivo de forma física e esta Fonte interior
final estejam separados por um sem-número de estados de emoção e
pensamento, condicionados pelo medo e pelo desejo - e pode ser que
neste continuum esteja incluída a nossa consciência desperta
"normal". Quando o véu de ilusão, mantido pelos estados de emoção,
se torna mais tênue - como acontece em momentos extremos -
podemos captar um vislumbre de um Ser de Luz, que é a Fonte
interior final. Nesse momento de unidade com a Fonte há paz,
segurança e inefável conhecimento. E esse é o Paraíso.

CAPÍTULO 12
Para Voltar ao Jardim
Pode ser que alguma raizinha da árvore sagrada ainda esteja viva.
Alimente-a, para que ela possa deitar folhas, florescer e encher-se de
pássaros canoros.
Alce Negro

A consciência edênica pode ser recuperável por indivíduos em raros


momentos de introvisão espiritual. Talvez quase todo o mundo tenha
uma visão fugaz do Paraíso, em algum instante, no decorrer de sua
vida. Mas é também possível, para todos nós juntos, viver no Jardim
outra vez - voltar e ficar lá? Este último capítulo oferecerá duas razões
para pensar que sim. Veremos, além disso, como os sinais de tensão
e desintegração nos fundamentos da nossa atual civilização,
juntamente com alguns desenvolvimentos intrigantes nas
extremidades crescentes da sociedade, dão a entender que uma nova
Idade de Ouro está lutando para nascer.

A Atingibilidade do Paraíso
A antropologia e a arqueologia talvez não provem (embora, decerto,
não a negue) a existência anterior de uma Idade de Ouro - isto é, de
uma cultura unitária em que as pessoas eram universal e
continuamente telepáticas, viviam na intimidade da natureza e
possuíam poderes milagrosos. Mas, como vimos no Capítulo 8,
descobrimentos antropológicos e arqueológicos mostraram, quase
sem nenhuma sombra de dúvida, que dois dos aspectos mais
destrutivos da civilização (o emprego e a justificação da violência
como meio de mudança social, e o desejo de dominar outros seres
humanos e a natureza) só foram adquiridos recentemente. Os
achados dos arqueólogos mostram que, no passado, os seres
humanos viviam - e, portanto, em princípio, são capazes de viver - em
paz e harmonia, não só entre eles mesmos, mas também com a
natureza.
Além disso, a psicologia sugere que tanto é atingível uma condição
subjetiva de unidade, paz e inocência, quanto este é o modo natural e
saudável da consciência humana. Se o corpo humano funciona melhor
na ausência dos estados-do-ego de culpa, medo e ressentimento
(como as experiências médicas mostram que o faz), o fato de
estarmos vivendo num mundo baseado no ego, em que o Paraíso é a
experiência excepcional, há de ser, por conseguinte, um estado de
coisas inusitado e temporário.
Se fomos capazes de viver no Paraíso outrora, devemos ser capazes
de fazê-Io outra vez. E se o modo de vida mais natural e saudável, ao
alcance dos seres humanos, é definido pela expressão das qualidades
paradisíacas essenciais de caráter e pela experiência subseqüente de
harmonia universal, o que é natural deve ser, em princípio, atingível.
Em outras palavras, podemos estar destinados a viver no Paraíso.
Por que, então, presumimos rotineiramente que o Paraíso está além
do nosso alcance? Talvez seja, em parte, porque temos um conceito
não-realista do que esse estado é ou deve ser. Inclinamo-nos a
pensar no Paraíso como um lugar ou tempo em que todos os desejos
humanos são satisfeitos; e como os desejos das pessoas tendem a
conflitar uns com os outros, presumimos, portanto, que o Paraíso
nunca poderia existir realmente. Mas o Paraíso do mito e da visão não
é um estado em que os desejos pessoais conflitantes são todos,
de um jeito ou de outro, satisfeitos. Antes, é um estado em que todos
os desejos e motivos humanos são completamente incluídos dentro de
um propósito criativo maior. Se os desejos individuais são satisfeitos
no Paraíso, isso só acontece porque o desejo avassalador de todos os
indivíduos é que o acordo consumado da Natureza e do Cosmo seja
alimentado e mantido.
Os habitantes do Paraíso - quer nos mitos da Primeira Idade, quer nas
visões da quase-morte - caracterizam-se universalmente por sua
expressão de valores específicos e qualidades de caráter. E, como
mostrou Aldous Huxley (entre outros), um estudo comparado das
religiões do mundo revela que esses valores e qualidades -
honestidade, compaixão e amor - são universais e inatos. Tenha sido
ou não uma realidade histórica, o Paraíso existe no presente eterno
como imagem que expressa o nosso sentido mais profundo do que é
direito e verdadeiro em relação a nós mesmos.
Visto por esse prisma, o Paraíso pode ser considerado como se
exercesse uma função específica, um propósito de vida embutido no
circuito da consciência humana. Todos os organismos biológicos,
incluindo os seres humanos, contêm elementos de propósito.
Sabemos, por exemplo, que o padrão das moléculas do DNA em
nossas células governa o propósito básico do nosso corpo físico.
Talvez contenhamos também, dentro de nós, um programa
neurológico ou psíquico que visa à perfeição das relações sociais e
espirituais entre nós, o Cosmo e a Natureza - um propósito de unidade
telepática e comunhão entre as espécies, que representa a meta em
cuja direção nossa experiência individual e coletiva tende,
naturalmente, a desenrolar-se.
Em não havendo interferências significativas, o propósito inerente às
moléculas de DNA em nossas células se expressa automática e
acuradamente na formação do nosso corpo físico. O mesmo talvez
seja potencialmente verdadeiro em relação ao propósito neurológico
do Paraíso: contanto que não se lhe bloqueie a expressão, o padrão
de unidade com as correntes universais da vida, assim como das
capacidades milagrosas, deveria refletir-se automática e precisamente
em nossa experiência ordinária.
Atualmente, porém, não se refletem. Como vimos, quase todas as
tradições espirituais do mundo concordam em que o propósito
paradisíaco inato está sendo cerceado em sua expressão por certos
padrões, agora universais, de atitude, pensamento e comportamento.
Advertências do Inconsciente Coletivo
Quando divergimos do modo com que devíamos funcionar, a natureza
nos manda sinais de advertência. Por exemplo, quando comemos
alimentos que somos incapazes de digerir, nosso estômago rebela-se;
quando usamos nossos membros em atividades a que eles não foram
destinados, nossos músculos e ossos protestam. Quando fazemos
essas coisas habitualmente em excesso, estamos sujeitos a receber
não somente sinais externos em forma de dor, acidentes ou moléstia,
mas podemos também receber alguns sinais externos, que assumem,
não raro, a forma de pesadelos e premonições, por cujo intermédio a
própria sabedoria inconsciente do corpo tenta alertar-nos e influir em
nosso comportamento.
Se isto é verdade para nós individualmente, talvez também o seja para
a humanidade coletivamente - isto é, se a humanidade está pondo de
lado um propósito paradisíaco inato (visionando um mundo
caracterizado pelo artificialismo, pela separação e pela supressão da
natureza, e trabalhando para ele), então deveríamos esperar estar
recebendo advertências externas e internas. No nível coletivo, tais
advertências externas podem assumir a forma da guerra, da
degradação ambiental, da fome, ou da peste; os sinais de advertência
interna surgem como visões, que ocorrem amplamente, de
acontecimentos apocalípticos.
Como Normam Cohn mostrou em The Pursuit of the Millenium, as
visões apocalípticas tenderam a aparecer em profusão durante
períodos históricos de opressão política e religiosa, sublevação social,
guerra e pestilência. Os profetas hebreus viveram numa idade de
derrota e cativeiro; Jesus viveu no auge do Império Romano
decadente e opressor; e os movimentos milenários medievais
pareciam sempre florescer em lugares e épocas de dificuldades
insólitas. Vemos a mesma associação entre a visão apocalíptica e a
tensão social entre os povos tribais: na América do Norte, na África e
nas ilhas do Pacífico, os novos movimentos espirituais, surgidos no
transcorrer do último século em resposta ao ataque violento da
civilização, têm apresentado, invariavelmente, um caráter profético e
milenário.
Existem muitas razões para pensar que a civilização ocidental
contemporânea está-se aproximando de um período de máxima
divergência do ideal paradisíaco. Em vez da simplicidade, da
inocência e da capacidade de trabalhar em harmonia com processos
naturais, a civilização industrial dá valor à sofisticação, à abstração, à
concentração das riquezas e à completa subjugação da natureza.
Esses valores não surgiram de repente nem recentemente; ao
contrário, podem ser acompanhados até os primórdios da própria
civilização. Mas parecemos estar presenciando a culminação da sua
influência. E, à medida que compreendemos as implicações finais de
tendências à longo prazo, que conduzem à centralização do poder
social, à dominação tecnológica da natureza, e à fragmentação da
consciência humana, vemo-nos no que parece ser uma colisão de
percurso com uma realidade mais profunda.
Distinguimos os sinais externos que aparecem em toda a parte à
nossa volta. Ouvimos falar, por exemplo, da morte de milhares de
lagos e florestas produzida pela chuva ácida. Enquanto o
adelgaçamento da camada de ozônio cria uma epidemia de câncer da
pele, descobrimos simultaneamente que um efeito de estufa - criado
pelo dióxido de carbono liberado na queima de combustíveis fósseis -
está alterando os padrões de clima globais. Ouvimos falar no
desaparecimento de dezenas de milhares de espécies, em resultado
do corte definitivo de florestas de chuva, e da perda de milhões de
toneladas de camadas superficiais do solo, insubstituíveis, à conta das
práticas agrícolas mecanizadas modernas. Estes e outros sinais de
advertência pressagiam catástrofes realmente apocalípticas,
catástrofes que só poderão ser evitadas se se tomarem medidas
imediatas para alterar o nosso relacionamento fundamental com o
ambiente natural.
Ao mesmo tempo, estamos vendo uma erupção sem precedentes do
que poderia ser interpretado como sinais de advertência internos,
psíquicos. As duas últimas décadas viram números cada vez maiores
de pessoas voltarem-se para o fundamentalismo milenariano, em
busca de um sentido de significação e propósito. Os fundamentalistas
cristãos olham para o fim iminente do mundo, a destruição dos infiéis,
e a restauração de um Paraíso terreno caracterizado por todas as
qualidades do Éden original - paz, felicidade e, acima de tudo,
oportunidade de viver na imediata presença do Senhor.
Mas ao passo que o mileniarismo fundamentalista extrai visões
escriturais apocalípticas de eras passadas, estamos também cercados
de proclamações proféticas, novas e originais. O cenário apocalíptico
clássico - a batalha final entre as forças do bem e do mal, seguida do
advento de uma condição restaurada de paz e beatitude - aparece,
por exemplo, em entrechos de ficção científica e nas predições
psíquicas de Edgar Cayce e dos "abridores de canais" da década de
1980. Além disso, as experiências de quase-morte estão dando a sua
própria contribuição para o que equivale a uma explosão de profecias
apocalípticas.
Depois de levar a efeito os estudos sobre as experiências de quase-
morte, Kenneth Ring começou a ouvir relatos de visões proféticas
acerca do futuro da humanidade, e decidiu coligi-Ios e cotejá-Ios. Ring
descobriu que as visões proféticas parecem ocorrer com mais
freqüência durante as experiências centrais de quase-morte, e que
existe uma "similaridade impressionante" entre elas. Em Heading
toward Omega, Ring compendia os elementos comuns da visão
profética clássica:

Existe, primeiro que tudo, um sentido de ter um conhecimento total,


mas, especificamente, temos consciência de ver a inteireza da
evolução e da história da Terra, desde o princípio até o final dos
tempos. O cenário futuro, no entanto, é habitualmente de curta
duração, e raro se estende muito além do início do século XXI.
Relatam os indivíduos que, nesse decênio, haverá uma incidência
crescente de terremotos, atividades vulcânicas e mudanças geofisicas
geralmente maciças. Haverá perturbações delas resultantes nos
padrões de clima e no suprimento de alimentos. O sistema econômico
do mundo entrará em colapso, e a possibilidade de guerra ou acidente
nuclear é muito grande (os respondedores não estão de acordo
quanto à ocorrência de uma catástrofe nuclear). Todos esses eventos
são mais transitórios do que finais, e serão seguidos de uma nova era
da história, caracterizada pela fraternidade humana, pelo amor
universal e pela paz mundial. Se bem muitos morram, a Terra viverá.

Ring cita, em seguida, diversos relatos de visões proféticas. O


seguinte é de uma mulher cuja experiência de quase-morte se
verificou em 1967:

A visão do futuro, recebida durante minha experiência de quase-


morte, foi de tremenda sublevação no mundo, em conseqüência da
nossa ignorãncia geral da "verdadeira" realidade. Fui informada de
que a humanidade estava infringindo as leis do universo, e, por causa
disso, viria a sofrer. O sofrimento não se devia à vingança de um Deus
indignado, mas, antes, à dor que podemos experimentar em
decorrência do nosso desafio arrogante da lei da gravidade. Seria uma
depuração educacional inevitável da terra, que subiria pelo corpo dos
seus habitantes, os quais tentariam esconder-se cegamente nas
instituições da lei, da ciência e da religião. Disseram-me que a
humanidade estava sendo consumida pelos cânceres da arrogância,
do materialismo, do racismo, do chauvinismo e do pensamento
separatista. Vi a sensatez tansformada em insensatez, e a
calamidade, afinal, convertida em providência.
No fim desse período geral de transição, a humanidade "nasceria de
novo", com um novo sentido do seu lugar no universo. O processo de
nascimento, porém, como em todos os reinos, seria excrudantemente
doloroso. A humanidade emergeria humilhada, mas educada, pacífica
e, por fim, unificada.

Ring tentou encontrar uma explicação racional para os padrões


notavelmente coerentes das imagens das visões proféticas que
coligira. Seriam essas experiências projeções de medos
inconscientes? Ou, talvez, os indivíduos que perceberam estar
morrendo não generalizariam a experiência como sendo "a morte do
mundo"? Ring chegou à conclusão de que nenhuma dessas
explanações era convincente: Por que não uma varidade maior de
cenários do futuro do globo? As visões proféticas são tão consistentes
que não podem ser projeções pessoais. Poderiam ser, então,
erupções dos arquétipos inconscientes de Jung? Essa explicação, no
entender de Ring, era mais plausível, mas ele ainda não se sentia à
vontade com a especificidade e o caráter paranormal das visões
proféticas. Depois de examinar todas as explicações que pôde
engenhar, viu-se Ring apenas com a interpretação dos próprios
sujeitos das experiências de quase-morte, que insistiam em que as
visões poféticas eram, de fato, exatamente o que pareciam ser -
profecias inspiradas de acontecimentos futuros.
A ser este o caso, por que se atira a humanidade para um dia
cataclísmico de ajuste de contas? Ring invoca uma metáfora
moderadora: sugere ele que a humanidade está-se aproximando - e
preparando-se subsconscientemente para isso de uma experiência
coletiva de quase-morte. Como já tivemos ocasião de observar, os
sujeitos de experiências de quase-morte experimentam, quase
invariavelmente, súbita e radical reestruturação de valores. Um
comentário típico é este: "O meu interesse pela riqueza material e
minha cobiça de posses foram substituídos pela compreensão
espiritual e pelo desejo apaixonado de ver melhorarem as condições
do mundo." Em todo o correr da história, os reformadores morais
procuraram exortar a humanidade a modificar seus valores coletivos e
recuperar seu sentido do sagrado. Em que pese aos êxitos ocasionais
e temporários, tais exortações, de um modo geral, foram desprezadas.
Parecemos convencidos de que a ganância e a agressão são
constantes, somente restringíveis pela força da lei. Mas a hipótese de
Ring supõe que a natureza humana, quando se vê frente a frente com
o aniquilamento, pode dissolver-se e revelar uma natureza mais
profunda, uma natureza que esteve escondida durante milênios atrás
do véu do ego humano.
Os russos têm um dito: "O camponês só faz o sinal da cruz quando
ouve o trovão." Isto é, as pessoas só tendem a fazer mudanças
básicas de atitude e comportamento quando se vêem de costas para a
parede. A observação parece tão verdadeira em relação à sociedade
como um todo quanto o é em relação aos indivíduos. Muitas vezes,
somente uma crise nos faz ver os resultados de um hábito destrutivo.
No caso da humanidade do fim do século XX, o comportamento
habitual (e o despertar potencial) chegou a um nível crítico e está na
base de todas as nossas realidades sociais, econômicas, científicas e
políticas. Essa crise é muito maior do que uma simples inconveniência
séria, ou mesmo do que uma catástrofe na escala da Grande
Depressão ou das duas guerras mundiais. Profetas religiosos e
futurólogos científicos visionam ambos o que equivale ao fim de todo o
nosso modo de vida, e, concebivelmente - no caso de um conflito
nuclear total ou da destruição irreversível do meio ambiente - a morte
da própria raça humana.
Recordamos as profecias dos povos tribais relativas a uma grande
Purificação, que limpará o mundo da depravação humana, mas
também reunirá o Céu e a Terra, anunciando uma nova idade de
espiritualidade e luz. Será isto o que todos estamos,
inconscientemente, trabalhando por conseguir?

A Nova Cultura
Os fundamentalistas cristãos acreditam que o apocalipse é inevitável.
Os ativistas sociais e os utopistas, por outro lado, acreditam que
podemos evitar o Armagedon operando uma transição gradual e
pacífica das atitudes e presunções da civilização industrial moderna,
para um modo de vida regenerativo e pacífico. De acordo com este
último modo de ver, o apocalipse só virá se nos recusarmos a
trabalhar, consciente ou coletivamente, pela reforma construtiva de
nossas instituições presentes.
Mas quer a humanidade rume para uma transição pacífica, quer
caminhe para uma purificação apocalíptica, o curso de ação dos que
estão comprometidos com um resultado paradisíaco é o mesmo:
começar deliberadamente a plantar as sementes de uma nova cultura,
baseada em valores espirituais universais. Uma transição pacífica
pode ser preferível a um cataclisma humanamente produzido, mas só
se verifica em resultado de mudanças nas atitudes e ações dos indiví-
duos. Entretanto, se for inevitável um período de purificação global, a
massa da humanidade exigirá modelos de integridade e estabilidade
para os quais possa orientar-se quando ocorrerem as comoções, se
houver alguma coisa para ser construída depois do período de
purificação.
Como Marilyn Ferguson, Willis Harman e outros agudos observadores
das tendências sociais nos disseram durante a última década, as
sementes de uma nova cultura já estão aparecendo. Essa nova
cultura não é o plano de nenhuma organização ou agência humana
específica, mas está-se erguendo espontaneamente, num milhar de
maneiras impredizíveis, através dos esforços de pessoas que, na
maior parte dos casos, não têm idéia da interligação - e muito menos
das implicações míticas ou arquetípicas - das suas ações.
Uma das sementes está representada no interesse difundido e
crescente pela ecologia e pelo ambientalismo. Ao passo que o
interesse de muitas pessoas pelas questões ambientais pode ser
motivado simplesmente pelo interesse próprio - o desejo de escapar
ao desastre - a contemplação da interligação dos sistemas da
natureza parece deflagar inevitavelmente concepções radicalmente
novas da nossa relação adequada com o resto da biosfera. À
proporção que nos tornamos cônscios das implicações dos princípios
básicos da ecologia, atitudes herdadas de exploração tendem a dar
lugar a atitudes de cooperação e aprovisionamento. Finalmente, as
pessoas que abraçam o ambientalismo parecem ser levadas de volta
à antiga concepção de que a Terra não está aqui apenas para
satisfazer as necessidades e desejos humanos; senão, pelo contrário,
que nós, seres humanos, aqui estamos para alimentar e aprovisionar
a Terra.
Outro presságio do tipo de mudança criativa, que pode conduzir à
emergência de uma nova cultura paradisíaca, é o interesse crescente
por religiões nativas e mitologia comparada. A própria palavra religião
vem do latim religare, que significa "ligar de novo". A religião sempre
foi o modo com que a humanidade procura recuperar alguma coisa
perdida. É a expressão de um anelo universal, que ambiciona um
estado de inocência e completude - estado projetado no passado, no
futuro, ou em outra dimensão da existência, mas que, apesar disso,
sempre se sentiu real e inato, se bem que um tanto afastado da nossa
experiência comum. O objetivo da religião é sempre a recuperação da
presença divina e o retorno do mundo milagroso do Paraíso.
O novo renascimento espiritual das duas últimas décadas parece estar
dirigido para a própria essência da experiência religiosa. Ao mesmo
tempo que se abebera das tradições nativas americanas, cristãs
místicas, sufistas e budistas (entre outras) existentes, seu objetivo
final é o ressurgimento do espírito do qual todos os sistemas de
revelação derivam o seu sentido.
Os tipos de mudanças fundamentais em valores e atitudes, que
estamos considerando, propendem a ocorrer primeiro nos pormenores
da vida das pessoas, e só mais tarde se refletem na linha de conduta
pública. Em seus relacionamentos mais íntimos, por exemplo, muitas
pessoas estão descobrindo o que é passar de um modo
dominante/submisso, baseado na necessidade e no medo, para um
modo de parceria, baseado no sentido partilhado de um propósito
mais elevado. Em suas vocações mundanas, as pessoas descobrem
que os velhos valores e motivos, centrados na necessidade
econômica e no impulso competitivo, são pressionantes e
insatisfatórios. À medida que ganha predominância o desejo inato de
elevação, santificação e alimentação, muitas pessoas mudam de
carreira, não raro trocando um salário maior por um meio mais
satisfatório de contribuir para a vida dos outros.
Para alguns, a mudança de valores é sutil; para outros, a busca do
Paraíso transmuda-se numa paixão oniabrangente. Como se notou
num capítulo anterior, milhares de comunidades utopistas foram
fundadas nos últimos vinte anos, particularmente na América do Norte.
Muitas delas são verdadeiras estufas, onde germinam as sementes da
nova cultura, fomentando estilos de vida pioneiros, fundados na
consciência ecológica, e em novos meios de revelar e reconhecer o
sagrado. Tais comunidades proporcionam um meio de explorar a
mudança através do comprometimento total do tempo e dos recursos
das pessoas envolvidas. Em última análise, entretanto, todo indivíduo,
toda ação ou movimento social, que favorecem os valores da unidade,
da paz e do respeito aos processos naturais, representam sementes
da nova cultura.
Por enquanto, é muito provável que não conheçamos em suas
minudências o aspecto que terá a nova cultura quando, e se, a
transição tiver sido feita. Não será, por certo, uma reprodução exata
do Paraíso terreno original. Embora a nossa permanência na
consciência egocêntrica tenha sido necessária à nossa evolução, ou
não passou de um erro trágico, a experiência nos terá ensinado uma
lição momentosa. Podemos regressar à inocência, mas esta não será
a mesma inocência que teríamos conhecido se nunca tivesse ocorrido
a Queda. Tampouco podemos predizer com precisão a natureza da
nova cultura, extrapolando simplesmente as tendências presentes: os
desenvolvimentos que acabamos de ponderar podem estar
conduzindo na direção de um estado paradisíaco renovado, mas ainda
não passam de sementes. Seja qual for o critério usado, a magnitude
da transformação requerida para que a humanidade, como um todo,
volte a um estado de ser integrado, regenerativo, é imensa. Mal
encetamos o processo.

Compreendendo o Paraíso
Paradoxalmente, enquanto a transição para uma nova cultura é um
projeto de vastas proporções, pode ser que ela só seja levada a cabo
através de mudanças nas atitudes e valores de indivíduos de ambos
os sexos - mudanças virtualmente invisíveis para o conjunto da
sociedade. Como, então, poderemos, você e eu, realmente levar a
cabo essas mudanças em nosso modo de ver as coisas e em nosso
comportamento, de maneira que realizemos o Paraíso em nossa
própria vida, aqui e agora, e, por essa forma, contribuamos para a
criação da nova cultura?
A civilização é construída de compromissos e trocas. Diariamente
comprometemos a integridade, a intimidade, a empatia e a
honestidade por um milhar de razões aparentemente válidas, e nos
sentimos apoiados, ao fazê-Io, pelo exemplo e pelo incitamento de
outros. Tornamos a nossa vida complexa e abstrata. Parecemos viver
para servir aos nossos inventos destinados a poupar trabalho. Muitos
de nós estamos dispostos a dedicar grande proporção de nossas
horas de vigília a tarefas intrinsecamente sem sentido em troca do
poder econômico. Em algum ponto precisamos perguntar se isso é
realmente justificável. A volta ao Paraíso requer que examinemos com
sinceridade a nossa vida, e, quando nos vemos agindo de maneiras
que contradizem nossos valores mais profundos, que mudemos de
direção - não retrocedendo para algum passado místico, mas
interiorizando-nos e buscando a nossa visão mais elevada de amor e
verdade. Precisamos estar dispostos a deixar a participação nos
meca nismos do mundo humano à medida que aprendermos a
simplificar, santificar e celebrar cada aspecto da vida.
O processo de transformação não precisa ser árduo. Na realidade, em
alguns sentidos ele é mais um jogo do que um trabalho - embora não
seja um jogo de ganhar ou perder de adultos civilizados, porém o jogo
espontâneo, mutuamente confiante, experimental e o extático das
crianças pequenas e dos animais selvagens. No dizer do psicólogo O.
Fred Donaldson, "O jogo é o triunfo da natureza sobre a cultura." Se o
Paraíso é o nosso estado de ser natural, a força mais profunda e
compulsiva existente no cerne do inconsciente coletivo é uma força
que sempre nos empurra para esse estado de equilíbrio. Enquanto
trabalhamos deliberadamente para um futuro caracterizado pelo
respeito e zelo da Natureza, e para alimentar o amor, o perdão, a
compaixão, e a celebração em nós mesmos e uns nos outros, nossos
esforços conscientes ressoam seguindo o padrão no âmago do nosso
ser. O Céu e a Natureza apressam-se a voltar a uma condição de
equilíbrio e consenso.
Também é verdade que, enquanto nos movemos no processo de
transformação, estamos trabalhando contra o condicionamento social,
que tende continuamente a separarnos uns dos outros e da mesma
base do nosso próprio ser. Daí a necessidade da busca espiritual,
que, em todas as aparências, é essencialmente um processo de
romper a crosta do ego, que nos impede de experimentar e revelar
nosso próprio caráter paradisíaco inato.
Essa busca não é nova e nem sem precedentes. Não é nem mais nem
menos do que ajornada do herói arquetípico, identificado por Joseph
Campbell como o centro de todas as tradições míticas. Toda cultura
se recorda de homens e mulheres exemplares, que realizaram
transformações internas, e deixaram instruções com o auxílio das
quais outros podem fazer o mesmo. Conquanto os pormenores
possam diferir, todos os exemplares espirituais concordam no tocante
aos largos lineamentos do processo. Este consiste, primeiro, numa
retirada do mundo tal qual é, e num ato deliberado, de purificação.
Segue-se um período de integração, dentro do sistema de valores
espirituais universais. O processo culmina numa realização final da
unidade com o Princípio fundamental de tudo o que é. Embora as
minúcias do processo sejam individuais, o esboço essencial da
jornada é sempre o mesmo, como o é a sua meta: o Paraíso - a
realização da unidade com o Céu e a Natureza.
A busca heróica, em essência, é uma jornada simbólica, que
representa o desdobramento progressivo do caráter e do destino
transcendentes do herói. Jesus e o Buda são figuras que levaram a
efeito a profunda transformação interior graças a qual uma porta se
abriu entre os mundos, e a sociedade humana foi levada a uma
condição parcial ou temporariamente restaurada. Finalmente, os
registros de suas vidas são metáforas do que deve ocorrer na
experiência de quem quer que encete a busca.
No mito de cada herói, a primeira fase da jornada consiste
simplesmente em ouvir o chamado e responder a ele. O herói, ou
heroína, precisa compreender que o mundo necessita de tratamento,
e que as suas ações farão diferença para outros. Para o Buda, o
chamado veio quando, aos trinta anos de idade, viu, pela primeira vez,
a doença, a velhice e a morte. Ficou tão comovido com o sofrimento
que presenciava que se afastou em silêncio da esposa e dos filhos
adormecidos, a fim de procurar a chave da libertação da condição
humana universal. Para Jesus, a primeira percepção do chamado veio
quando ele tinha apenas doze anos de idade. Deixou os pais e passou
três dias no templo entre os doutores, discutindo teologia. Quando os
pais, preocupados, enfim o encontraram, disse simplesmente: "Não
sabíeis que me cumpria estar na casa de meu Pai?”
À proporção que erguemos a atenção acima das nossas carências e
medos condicionados pelo tempo suficiente para darmos tento dos
propósitos de um Todo maior, vemos de súbito que a nossa vida
poderia ter um sentido que está além do conforto e da satisfação
pessoal. O chamado pode ser pressentido debilmente, ou pode
clangorar. Em qualquer caso, será preciso tomar a decisão consciente
de ouvi-Io ou dispensá-Io. Não ter conhecimento do chamado é morrer
para os propósitos da vida. Mas para ouvir e aceitar o desafio do
chamado, será necessária a disposição de deixar para trás os carris
que nos foram estabelecidos pela hereditariedade e pelo ambiente, e
explorar territórios não familiares. Não podemos entrar no Paraíso
sem nos descartarmos do nosso ambiente cultural ou psíquico atual.
A segunda fase da busca envolve o acordo com um dragão, um
demônio ou um inimigo. Vendo o sofrimento, buscamos a sua causa, e
as causas do sofrimento humano são inúmeras. No princípio da fase,
podemos ver um dragão fora de nós mesmos - fonte imediata de
injustiça e crueldade. Podemos concluir que o dragão está encerrado
numa filosofia que detestamos, ou numa pessoa cujos atos
parecem causar sofrimento a outros. Muitos indivíduos fixam-se nessa
fase da busca e negam-se a prosseguir. Passam a vida combatendo
os demônios do mundo, os quais, mesmo quando aparentemente
mortos, parecem formar novas cabeças e voltar para atormentá-Ios de
novo.
Enquanto continuarmos combatendo demônios externos, seremos
incapazes de trazer plenamente a paz ao nosso mundo. Por fim, se
continuarmos fiéis ao chamado - se continuarmos a ouvir -
chegaremos a compreender que o verdadeiro dragão está dentro de
nós: todos os problemas do nosso mundo foram produzidos por
tendências presentes em nós. Enquanto nossos dragões internos não
forem enfrentados, e a menos que o sejam, nem a mais valorosa
batalha externa produzirá frutos plenos. Alguns dos grandes heróis da
literatura religiosa parecem tê-Io compreendido desde o princípio.
Tanto Jesus quanto o Buda, por exemplo, sabiam, desde o princípio,
que a vitória que buscavam era um triunfo sobre as suas próprias
naturezas inferiores. Gandhi, por outro lado, iniciou sua carreira com a
crença de que o dragão consistia inteiramente no racismo posto em
prática pelo governo; e só aos poucos veio a enxergar, em suas
próprias atitudes e comportamento, o campo de batalha das forças do
bem e do mal.
Assim que se reconhece o dragão como força interna, começa uma
espécie diferente de batalha. Essa fase do processo, em que o herói
luta com os próprios demônios internos, não parece especialmente
paradisíaca. Envolve a exposição de nossas fraquezas e a renúncia a
apegos pessoais. Dir-se-á, paradoxalmente, que só podemos chegar
ao Paraíso se estivermos dispostos a passar pelo inferno. Mas esse
conflito também precisa chegar a um fim. A resolução da batalha com
o demônio interno está representada na história das tentações
deJesus no deserto. Antes de Jesus dar início ao seu ministério
público, e depois de haver jejuado no deserto por quarenta dias, o
Diabo apareceu-lhe. Primeiro, o Diabo ofereceu-lhe pão, simbolizando
a satisfação pessoal no nível físico; em seguida, desafiou a autoridade
de Jesus; e, por fim, ofereceu-lhe os reinos do mundo, "se, prostrado,
me adorares". Mas Jesus, recusando o desejo físico, a necessidade
de provar-se e a ambição pessoal como motivos para o seu
comportamento, replicou: "Retira-te, Satanás!" Para ele, o demônio se
fora.
Diz uma história semelhante do Buda que, enquanto estava sentado
debaixo da árvore Bodhi, imediatamente antes de atingir a iluminação,
veio tentá-Io o deus-demônio Mara. Em meio à violência e aos
oferecimentos de prazer e poder, ele sentou-se e permaneceu calmo,
"como um leão sentado no meio de bois". Mara e seus exércitos,
frustrados, saíram amargando a derrota.
O dragão ou demônio só pode ser plenamente domado por meio de
um trabalho interior sistemático, por um período de anos. Entretanto, a
transformação essencial que acaba vindo possui uma qualidade
instantânea: a qualquer momento ocorre uma súbita mudança de
estado e o Paraíso estápresente, nem que seja por um instante. O
herói não doma o dragão pelejando com ele, mas recusando-se a
pelejar com ele enfrentando-o, mantendo-se corajosamente firme, e
expressando o caráter da inocência e do amor. Subitamente o herói
percebe que o Paraíso estivera lá durante o tempo todo, sem ser
notado.
Mesmo depois de haver atingido momentaneamente a percepção
paradisíaca, o herói ainda precisa aprender a sustentar e comunicar
esse estado. A partir desse ponto, tem a certeza de haver conhecido a
condição verdadeira e natural da consciência humana - a pérola de
grande valor, pela qual a pessoa prudente venderá tudo o que possui
(Mateus 13:46).
Depois de haver desenvolvido a capacidade de manter
consistentemente a consciência paradisíaca, o herói volta ao mundo
terrestre com um bálsamo curativo. Tendo encontrado o Céu, precisa
partilhá-Io - o que significa partilhar-se, partilhar o seu estado de ser.
Para o indivíduo, o regresso é a culminação da jornada, mas a busca
não estará completa enquanto o mundo não tiver sido restaurado.

Epílogo
O Paraíso terrestre existiu realmente alguma vez, ou é produto da
imaginação humana? Mesmo agora, no fim da nossa investigação,
precisamos reconhecer que este é um problema que talvez nunca seja
resolvido por arqueólogos ou antropólogos. De um lado, é impossível
provar a realidade histórica de uma Idade de Ouro só por intermédio
de provas físicas; por outro lado, a evidência material não elimina, de
maneira alguma, a possibilidade, e as provas menos tangíveis do mito
e da cultura simplesmente não nos permitirão dispensá-Ia. Claro está
que a resposta que aceitarmos depende, em grande parte, da nossa
definição do que era o Paraíso, ou do que deveria ser.
Os mitos e tradições dos antigos não retratam o Éden como uma
espécie de Paraíso tecnológico que a nossa civilização atual tende a
projetar no futuro. Se a Idade de Ouro realmente existiu, deve ter sido,
ao contrário, como os chineses a descrevem, uma Idade de Virtude
Perfeita - uma idade em que:

Eles eram honrados e corretos, sem saber que o ser assim é


honradez; amavam-se uns aos outros, sem saber que o fazer assim
era benevolência; eram sinceros e leais de coração, sem saber que
isso era lealdade; cumpriam seus compromissos, sem saber que o
fazê-Io era ter boa fé; em seus simples movimentos empregavam os
serviços uns dos outros, sem pensar que estavam dando ou
recebendo alguma dádiva. Por conseguinte, suas ações não deixavam
traços, e não havia registro dos seus negócios.

É evidente que pode haver traços das ações do Primeiro Povo em


misteriosos megálitos antigos, e algum registro dos seus assuntos no
mito e na lenda. Mas estas são pistas fragmentárias e efêmeras. E, no
entanto, a visão do Paraíso - deformada, incompreendida, ou até
imaginária - insinuou-se, de certo modo, no cerne vital de todo
movimento religioso, na literatura e nos ideais sociais de toda cultura.
Seja qual for a origem do mito - realidade histórica ou ilusão de massa
ele tem vida própria no inconsciente coletivo.
A tese principal aqui apresentada - que, na realidade, é apenas uma
representação, em termos modernos, do que os mestres espirituais
vêem dizendo há milênios - é que a memória do Paraíso representa
um anseio, inato e univesal, por um estado de ser natural e totalmente
satisfatório, mas do qual, de um jeito ou de outro, nós nos excluímos.
Talvez a pista nova mais útil para esse estado perdido de ser esteja
contida no estudo moderno dos estados alterados de consciência, e,
em particular, da experiência da quase-morte. Como vimos, a
essência do Paraíso equivale ao que várias tradições denominaram
nirvana, êxtase, união divina e consciência cósmica. É a condição da
ausência do ego humano separado com todas as suas defesas,
agressões e categorias de julgamento.
Essa interpretação pode parecer óbvia, mas só recentemente os
desenvolvimentos de várias disciplinas a fIzeram assim. No campo da
psicologia, por exemplo, o estudo sistemático de estados alternados
de consciência só começou realmente neste século, e os maiores
avanços só ocorreram nos últimos vinte anos. No campo da
antropologia, só nas últimas décadas viemos a respeitar a sabedoria
dos povos tribais e a levar-Ihes a sério as crenças a respeito da
natureza da realidade. O campo da religião comparada - que abriu
uma vista para as similaridades fundamentais entre os ensinamentos
centrais de todas as tradições espirituais - só agora começou
igualmente a atingir a maioridade. Todos esses desenvolvimentos
convergem para o mesmo ponto, permitindo-nos deixar para trás não
só as idéias religiosas dogmáticas da Idade Média, mas também as
suposições evolutivas simplistas do século passado. Estamos, assim,
livres para alcançar uma nova visão, tanto do passado mítico, quanto
também das nossas possibilidades milagrosas no presente e no
futuro.
Um dos meus propósitos ao escrever este livro foi juntar os mitos
principais do Paraíso, da Queda, da catástrofe e da purifIcação. Outro,
porém, foi evocar a contextura e o matiz da visão espiritual do mundo
de povos antigos e tribais. A perspectiva deles, tão em desacordo com
o nosso jeito moder no de olhar para as coisas, pode conter alguns
dos próprios elementos de que nós, na civilização pós-industrial,
precisamos para construir uma cultura sustentável, regenerativa.
Estamos vivendo num mundo estático, que nos concede um tempo
infInito para uma preguiçosa discussão acadêmica, mas num mundo
que solapa furiosamente a própria viabilidade biológica. Perdemos o
sentido de proporção, o sentido da justeza das coisas, e o sentido de
estarmos contidos no interior de um Conhecer maior, que fornece à
nossa vida um contexto significativo, e diante do qual somos
responsáveis, não só pelas nossas ações mas também pelos nossos
motivos e valores. Perdemos, em suma, o sentido do sagrado. O mito
do Paraíso é o relato da perda da dimensão sagrada, da perda da
inocência. E se ele contiver pistas que nos ajudem a compreender por
que chegamos a essa precária conjuntura da história e o que
podemos fazer para recobrar o que deixamos para trás, talvez então
valha a pena empreender uma recontagem da história.
Seja como for, o momento da recontagem parece ter um signifIcado
próprio quase apocalíptico. Muitas gerações sentiram estar assistindo
à culminação da história, mas nunca nenhuma geração teve melhores
razões para sentir-se dessa maneira. Talvez estejamos vivendo
mesmo no tempo profetizado em cada tradição, quando o mito profano
da história humana e o mundo milagroso do mito estão prestes a
reunirse, de um modo ou de outro.
Parecemos, com efeito, ter-nos afastado muito do estado de inocência
e comunhão com a natureza, descrito nos mitos do Paraíso. O
esvaziamento da camada de ozônio da Terra, a poluição da água e do
ar, a perda da camada superficial do solo e da cobertura de florestas,
o efeito estufa e as extinções em massa das espécies, tudo isso fala
de um modo de existência tragicamente fora de contato com o pulso
do planeta em que vivemos. E o crescimento do crime, da doença
mental e do abuso de drogas parecem assinalar algum profundo
alheamento da sociedade das aspirações nutritivas do espírito
humano.
O mundo está cheio de problemas políticos, econômicos, sociais e
ambientais complexos. Mas não podemos esperar resolver esses
problemas sem nos dirigirmos primeiro aos valores e motivos que os
produziram. E como abordaremos a clarificação dos valores e motivos
humanos? Devemos, sem dúvida, olhar para a própria psique humana
- o reino misterioso cujos poderes e dinâmica supra-racionais
encontram expressão, primeiro, em mitos, sonhos e visões.
Defrontamonos, portanto, com a probabilidade, aparentemente
paradoxal, de que o exame de histórias antigas e pretensamente
irracionais pode ser uma das buscas mais práticas ao nosso alcance
no mundo moderno.
Se estivermos dispostos a tornar-nos outra vez parceiros do Céu e da
Natureza na realização de um plano já existente, que transcende os
propósitos humanos centrados em si mesmos, a memória e a visão
talvez possam convergir num Paraíso compreendido, em que as
tensões que ora nos atormentam - tensões entre a humanidade e a
natureza, o coração e a mente - podem dissolver-se num espírito de
acordo universal. Se pudermos ouvir uma voz vinda da fonte eterna de
mitos e sonhos, e obedecer a ela, poderá abrir-se diante de nós uma
idade não de conforto e prosperidade tecnologicamente construídos,
mas de princípios milagrosos - um novo Tempo de Criação. E talvez
seja apenas o poder misterioso da própria Criação que nos permitirá
sobreviver, e, por fim, viver plenamente.

http://groups-beta.google.com/group/Viciados_em_Livros
http://groups-beta.google.com/group/digitalsource

Você também pode gostar