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58 economia & história: difusão de ideias econômicas

eh

Celso Furtado e a Busca por um Novo Modelo de Desenvolvi-


mento
Rômulo Manzatto (*)

Publicado no início desse século, fluenciar os futuros possíveis para nuam sem solução. Permanecem,
“Em busca de novo modelo – Refle- o Brasil. a título de exemplo, a urgente ne-
xões sobre a crise contemporânea”,
1
cessidade de investimento em polí-
reúne intervenções e reflexões do O método que orienta o estudo é ticas educacionais, a baixa taxa de
economista Celso Furtado sobre os bastante conhecido pelos leitores poupança interna assim como uma
possíveis caminhos para a retoma- de Celso Furtado. Consiste no en- estrutura tributária essencialmen-
da do desenvolvimento no Brasil. foque histórico-estrutural, con- te regressiva. Esses são fatores que
sagrado pelo autor no já clássico contribuem para o principal pro-
Como sugere o título da obra, o Formação Econômica do Brasil, de blema do país: a grande concentra-
2
1959. Agora definido por Furtado ção de renda, causadora do quadro
livro de Furtado não propõe um
como “uma visão global derivada de heterogeneidade social que per-
modelo de desenvolvimento aca- 3
da história”, que se apoia no con- corre toda a trajetória de formação
bado a ser adotado pelo país. Pelo
ceito de “sistema de forças produ- econômica e social do Brasil.
contrário, para compreender o
tivas” para produzir seu enfoque
presente, a obra retoma reflexões Em busca de novo modelo é dividido
específico.
do passado, atualiza o pensamento em sete partes. As duas primeiras
de Furtado para os novos desafios Lidos atualmente, os textos de Em tratam diretamente dos problemas
que se impõem ao mesmo tempo busca de novo modelo dão testemu- brasileiros, procurando mapear a
em que procura discernir o que nho das mudanças ocorridas no questão da pobreza no Brasil para
há de estrutural nos movimentos país nos últimos anos. Da mesma então indagar sobre as possibilida-
da conjuntura, visando sugerir as maneira, evidenciam alguns dos des que o futuro poderia guardar
grandes tendências que iriam in- problemas brasileiros que conti- ao país. Já no ano de 2002, quando

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da publicação da obra, Furtado ricano, marcado pelo “desperdício, própria história em vez de sim-
assinalava como a desigualdade gosto pelo show off, pelo gasto os- plesmente subordinar seus centros
de renda brasileira era alta mesmo tentatório” que lhe seriam caracte- internos de decisão ao influxo das
quando a comparação era feita com rísticos.5 forças externas.7
países notoriamente desiguais,
como a Índia. A mudança desse quadro exigiria, Já as duas partes seguintes do livro
entre outras medidas, uma grande contextualizam o problema brasi-
Assim, enquanto no Brasil os 20% reforma no sistema tributário bra- leiro em sentido mais amplo, agora
de maior renda absorviam cerca sileiro, essencialmente regressivo, pensado no conjunto dos elementos
de 70% da renda total, na Índia de maneira a torná-lo socialmente que determinariam as raízes do
“somente” 40% da renda nacio- justo. Nesse âmbito, contudo, Fur- processo de globalização em curso,
nal era absorvida pelo grupo dos tado não defendia a ideia de que os assim como nos fundamentos que
20% mais ricos. Da mesma forma, impostos indiretos deveriam dar permitiriam a identificação das
os 20% mais desfavorecidos ab- lugar a alíquotas cada vez maiores duas vertentes formadoras da civi-
sorviam 9% da renda na Índia, de impostos diretos. Pelo contrá- lização industrial.
enquanto no Brasil a renda absor- rio, chama de “opinião ingênua” a
vida por esse mesmo contingente ideia de que o imposto direto seria É arejada a visão de Furtado de que
não ultrapassava os 2% da riqueza superior ao indireto.6 os movimentos sociais contestató-
nacional.4 rios foram tão importantes quanto
Para o momento de então, Furtado as inovações tecnológicas para a
Não por acaso, mesmo tendo um caracteriza o imposto indireto, que constituição da atual civilização in-
contingente maior de população incide sobre o consumo, como o dustrial. 8 O economista brasileiro
rural e renda per capita conside- mais adequado para o país, uma também caracteriza como ambiva-
ravelmente menor que o Brasil de vez que incidiria sobre o consumo lente o extraordinário dinamismo
então, a Índia era capaz de manter praticado majoritariamente pelos da inovação tecnológica, que opera
taxas de poupança interna bruta grupos de maior renda. O aperfei- no sentido do aumento de produti-
da ordem de 24% do produto, ao çoamento desse sistema tributário, vidade, mas também no sentido de
passo que no Brasil essa mesma afirma o economista, dependeria contração da demanda.9
taxa não passaria dos 20%. de mudanças adicionais com o ob-
jetivo de impor, por um lado, maior Ainda mais abrangente é a carac-
O fato é que, no Brasil, a concen- taxação sobre os gastos supérfluos terização da formação da atual
tração de renda agia em favor do – como carros importados e bens civilização industrial que resulta-
consumo das classes mais ricas, de luxo – e por outro, a instituição ria da ação convergente de “dois
desfavorecendo o investimento e de políticas de preço que garantis- processos de criatividade cultural:
prejudicando o fortalecimento da sem uma cesta básica de alimentos a revolução burguesa e a revolução
demanda interna. A alta propensão à população de menor renda. científica”.10 Vai no mesmo sentido
ao consumo dos setores mais abas- sua apreciação da criação das So-
tados no Brasil teria como princi- Ainda nessa parte, são interes- ciedades Anônimas, as “S/A”, com a
pal característica o que Furtado santes as indagações de Furtado invenção das “greves”.
considerava como um fenômeno a respeito do futuro do país, cujos
de aculturação, expresso no gosto dirigentes pareciam haver perdido Ambos os processos são vistos por
brasileiro pelo padrão de consumo a noção de que sua nação deveria Furtado como autênticas mutações
importado, ao padrão norte-ame- se portar como agente ativo da do capitalismo, que proporcio-

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nam a associação de indivíduos da infância vivida no Nordeste Referências


em atuações coletivas, de caráter brasileiro. Impressiona Furtado
cooperativo ou conflitivo. Desse que Euclides da Cunha, engenheiro
BIESLCHOWSKY, R. Cinquenta anos de
modo, se as sociedades anônimas de formação, tenha concebido uma pensamento na CEPAL. Rio de Janeiro:
propiciaram a um grupo de pesso- obra como Os Sertões, que se des- Record, 2000.
as privadas a capacidade de criar taca não pelo positivismo racista BRESSER-PEREIRA, L. C. Em busca de novo
uma entidade com personalidade tão em voga na época, mas por modelo - Celso Furtado. São Paulo: Editora
autônoma e vida indefinida, as gre- haver se livrado dessa “bagagem de Paz e Terra, 2002. Revista de Economia
ves possibilitaram “o uso contro- conhecimentos supostamente cien- Política, v. 23, n. 3, 2002.
lado da violência fora do Estado”.11 tíficos”12 para intuir o processo de CEPÊDA, V. A. O Pensamento político de
Duas inovações de grande impacto formação de uma nacionalidade, de Celso Furtado: desenvolvimento e demo-
cracia. In: BRESSER-PEREIRA, L. C.; REGO,
e longa duração. um povo essencialmente brasileiro.
J. M. A grande esperança em Celso Furtado
- ensaios em homenagem aos seus 80 anos.
As três últimas partes representam A trajetória não deixa de lembrar – São Paulo: Editora 34, 2001.
um breve reencontro de Celso Fur- com diferenças – a do próprio Fur- FURTADO, C. Em busca de novo modelo - re-
tado com sua trajetória de homem tado, que por toda a vida se bateu flexões sobre a crise contemporânea. São
público, intelectual e ativista políti- contra os dogmas da ortodoxia Paulo: Paz e Terra, 2002.
co. Ao tratar das responsabilidades econômica, no que intuiu a própria
dos economistas, Furtado produz formação da economia brasileira.
tocante testemunho de sua própria Mesmo assim, a obra de Euclides 1 Furtado (2002).
atuação como economista em um da Cunha nos ajudaria a perceber 2 Para uma avaliação do enfoque histórico-
país subdesenvolvido. o quanto ainda há por fazer em um estrutural na produção de Furtado e da
país em construção, formado por CEPAL ver Bieslchowsky (2000). Para
uma avaliação da obra aqui comentada ver
São lembradas a decisão de estudar “uma imensa população amorfa, de Bresser-Pereira (2002).
economia e o posterior doutorado raízes culturais múltiplas”,13 que
3 Furtado (2002, p.72).
realizado na Universidade de Paris estaria progressivamente adqui-
4 Furtado (2002, p. 13-14).
no final da década de 1940. Tam- rindo o estatuto de sua cidadania
bém a atuação pioneira na CEPAL, 5 Furtado (2002, p. 20).
plena.
onde descobriu a América Latina e 6 Furtado (2002, p. 22).
foi provocado a redescobrir a for- A busca de Furtado por um novo 7 Furtado (2002, p. 27-28).
mação de seu próprio país, assim modelo de desenvolvimento am- 8 Furtado (2002, p. 46).
como a criação da SUDENE e o biciona construir uma nação mais 9 Furtado (2002, p. 48).
período em que atuou como Minis- justa, menos desigual, ao mesmo 10 Furtado (2002, p. 55).
tro do Planejamento. O tom de re- tempo defensora e consciente de
11 Furtado (2002, p. 62-63).
memoração também é a tônica do sua independência política. 14 O
12 Furtado (2002, p. 100).
capítulo que relembra o centenário sonho confesso do economista bra-
de Raúl Prebisch, cuja trajetória se sileiro é o da construção “de um 13 Furtado (2002, p. 101).

confunde com a criação e consoli- país capaz de influir no destino da 14 Para um panorama do pensamento políti-
co de Celso Furtado ver Cepêda (2001).
dação da própria CEPAL. humanidade”.15
15 Furtado (2002, p. 43).
Encerra o volume um curto ensaio Longe de representar utopia ou
(*) Bacharel em Ciências Econômicas (FEA-
sobre Euclides da Cunha, no que quixotismo, essa é a aspiração de USP) e Mestre em Ciência Política (FFLCH-
Furtado retoma suas recordações um sertanejo universal. USP). (E-mail: romulo.manzatto@usp.br).

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