“A inimizade é outro triunfo de nossa espiritualização. Consiste em
compreender profundamente o que se ganha tendo inimigos; em suma, em agir e discutir de modo contrário ao que se agia e discutia antes. [...] Não é de maneira diversa que nos conduzimos com o inimigo interior; onde quer que seja que tenhamos espiritualizado a inimizade compreendemos seu valor por esse mesmo fato. Convém ser rico em oposições, pois só assim se é fecundo; para conservar-se jovem é preciso que a alma não descanse, que a alma não solicite a paz. Não há nada que tenha chegado a ser tão estranho a nós que o que era outrora objeto dos desejos, a paz da alma que os cristãos desejavam. Hoje não desejamos o gado moral nem a ventura gorda da consciência tranqüila. Quando se renuncia à guerra se renuncia à grande vida. É verdade que em muitos casos a paz da alma não é senão um equívoco, e apenas significa algo que não pode expressar-se honestamente.” Nietzsche, Crepúsculo dos Ídolos.
Me pergunto o que faria a humanidade se condenada a nadar do fundo à
superfície com pesos e correntes nos pés, condenada a nadar contra a maré implacável. Seria a mesma penitência dos homens na nossa realidade, a eterna busca por uma paz da alma inalcançável, pois está distante do que é fulcral na compreensão da vida: a contradição. A contradição existirá nos indivíduos e na sociedade. Pode ser um sinal de evolução ou um sintoma fúnebre de uma concepção de organização social falida. Mas é verdade que estou me antecipando, pois ainda não formulei a pergunta que vai guiar este excerto. O que tudo isso quer dizer afinal? Ainda não está muito claro, mas acho que serve como uma síntese do que está por vir. Nietzsche em seu livro O crepúsculo dos Ídolos estabelece uma oposição clara à ideia da paz da alma, da busca por uma consciência tranquila e pacífica, domesticada e medíocre em sua visão, e propõe uma nova forma de enxergar essa questão. Portanto, a pergunta que devemos nos fazer para nos guiar agora é: devemos buscar ou negar a paz da alma? Dentro disso podemos nos perguntar também se ela realmente existe, ou indo mais além, pra que ou pra quem serve a paz da alma. Apesar de Nietzsche não entrar em um campo de análise mais social e coletivamente emancipatório, muito devido a seu individualismo exacerbado e seu coração podre de um aristocratismo conservador quando se trata de hierarquias sociais, é um campo que que peço liberdade poética para abordar ao longo do texto, sem me limitar apenas no campo individual. A paz da alma pode ser compreendida de diferentes formas a depender do contexto histórico e do pensador/filósofo em questão. para o epicurismo, a mesma se traduz na ataraxia, um estado de tranquilidade, serenidade de espírito, segundo o próprio Epicuro, o “equilíbrio e moderação na escolha dos prazeres sensíveis e espirituais”. Dá pra traçar algo parecido falando do Budismo, em que a conquista de um estado de paz e tranquilidade alcançado pela sabedoria seria o nirvana. Para o estoicismo, o universo estaria sendo guiado por uma força racional e divina, e que a virtude estaria na aceitação daquilo que não podemos mudar ou controlar. No cristianismo, a paz da alma estaria na reconciliação com Deus e a fé em Jesus Cristo. Entretanto, a paz da alma não costuma passar de um conceito abstrato, até estranho a realidade. Sempre pensamos nela não como algo que temos, mas como algo que queremos ou tentamos alcançar. Mesmo aqueles que dizem se encontrar neste estado de espírito, ou estão mentindo para os outros ou estão mentindo para si mesmos. A vida, inevitavelmente, é marcada por um constante estado de conflito, nosso entendimento moral e ético se modifica porque conforme crescemos nos esbarramos com a realidade concreta, com as pessoas, com as consequência de nossos atos. O erro é inexorável na vida, o erro bate à porta todos os dias, como uma presença desagradável que você não quer mais olhar nos olhos mas não pode se livrar, pois ela é, por algum motivo, necessária. A verdade é que o erro ensina, não há viver sem errar e não há errar sem viver. O remorso, a dor, o arrependimento, costumam vir acompanhadas do erro e são constantes na vida, indispensáveis para o desenvolvimento individual e para o convívio humano com outros indivíduos. Por isso, o conflito é necessário como uma forma de emancipação individual. Sobre isso, Nietzsche diz que “a inimizade é outro triunfo de nossa espiritualização”, consistindo “em compreender profundamente o que se ganha tendo inimigos”, nesse caso, o “inimigo interior”. É nesse contexto que ele traz a ideia de que “Quando se renuncia à guerra se renuncia à grande vida”. Não se trata de uma guerra militar, de inimigos materiais, de carne e osso, se trata de um conflito interno. A existência de um inimigo se torna algo não só importante, mas fundamental. Usando o exemplo que Nietzsche traz em seu texto, “Uma nova criação, como o império alemão, por exemplo, tem mais necessidade de inimigos do que de amigos, pois em virtude do contraste começa a se sentir necessário, fazer-se necessário”, no sentido em que a existência de uma oposição aquela ordem social demarca a diferença entre o império alemão e seus inimigos, através disso, o império alemão tem ferramentas para justificar a sua necessidade. Nesse mesmo sentido, é possível associar o maior império que o mundo já conheceu: os Estados Unidos. Sua hegemonia tem como um dos elementos basilares a existência de inimigos internos e externos, sejam reais ou não, que “justifiquem” a violência contra grupos ou países, esmagando-os quase como o martelo que Nietzsche usa para esmagar os valores tradicionais. Entretanto, é apenas uma metáfora. Quando Nietzsche está falando sobre a necessidade da existência de um conflito interno, ele diz que a busca por uma consciência tranquila te domestica, te prende ao status quo, te impede o confronto com o desconhecido, mina o desenvolvimento individual, te impedindo de enxergar a moralidade convencional, os valores tradicionais e a forma de superá-los. Uma vida plena não existiria sem o conflito, sendo ela intrínseca a existência, base essencial para o alcance do nosso máximo potencial. Entrando em um campo de reflexão mais coletivo, a paz da alma não encontra espaço em um mundo de conflito, em que a dinâmica da existência é regida pela contradição, em que o custo do aprender costuma ser não a própria dor, mas a de outras. Por que não existe a paz da alma? por que quando machucamos alguém, seja fisicamente, seja ferindo o sentimento de alguma forma, não cabe a plena aceitação, não cabe a indiferença. É quase como uma obrigação moral o nosso desconforto, nosso remorso. Precisamos sentir esse incômodo na alma para podermos fazer algo a respeito do outro, é o que é ético, justo nas relações humanas. É o que devemos para nós mesmos e para aqueles que fizemos algum mal, o peso em nossas costas. Podem dizer que não podemos carregar esse fardo para o resto da vida, que não há razão nisso, mas digo que devemos ao menos nos lembrar. Além disso, trazendo essa ideia de Nietzsche de que a paz da alma tem como consequência o não questionamento do status quo, e como esse conceito está associada a moralidade cristã, essa busca por uma tranquilidade da consciência acaba por servir também a manutenção da ordem social vigente, das hierarquias, das relações de produção atuais, da existência de classes sociais antagônicas. quando Karl Marx diz em sua obra “Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel” que “a religião é o ópio do povo”, ele não está dizendo que crentes são cordeiros idiotas domesticados, e sim que, dada a miséria que sofre nosso povo devido a um contexto de exploração, opressão, privação de bens materiais, marginalização, muitos buscam como um refúgio a esperança de um dia viver em um paraíso no pós-vida, descrentes da possibilidade da construção de um “paraíso” no mundo material. É nesse sentido que quero abordar a ideia da paz da alma, com muito respeito e humildade perante os cristãos verdadeiros. Em um país em que poucas corporações lucram bilhões com a especulação imobiliária enquanto milhares de pessoas moram nas ruas, em que poucos latifundiários acumulam quantidades abundantes de terras enquanto muitos camponeses não têm seus meios de subsistência, em que poucos burgueses lucram com hospitais privados enquanto muitas pessoas se endividam para pagar um plano de saúde, em que milhares de pessoas negras são mortas pela polícia nas favelas em um contexto de guerra do Estado contra o próprio povo, não pode existir sequer a mínima fagulha de uma paz da alma, essa aceitação é inaceitável. A consciência deve pesar todos os dias, o desconforto deve ser rotineiro e maçante, pois é através desse conflito, é abraçando a “guerra” contra a ordem social estabelecida, que pode se construir um outro modelo de sociedade, abandonar os valores que servem a superestrutura da sociedade capitalista e construir valores novos, emancipados. Concluindo, concordo com Nietzsche quando ele diz que “para conservar-se jovem é preciso que a alma não descanse, que a alma não solicite a paz”. Ser jovem é buscar a evolução individual e social, através do conflito consigo mesmo e com o mundo, negando os valores e normas que limitem seu máximo potencial e que conservem uma ordem social falida, é nunca aceitar a paz da alma como um mantra e um guia, nunca deve ser sua utopia. Ser jovem é ser sempre, em todos os âmbitos, um revolucionário.