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ACAMPAMENTO em OMMEN

HOLLANDA
1937 1938

PALESTRAS E
RESPOSTAS A PERGUNTAS
PÚ S

KEISHNAMIIGTI i 9À0
INSTITUIÇÃO CULTURAL KRISH N A M U RTI
A V . RIO BRANCO 117-*.“ A N D AR , S A L A SOÍ
Hl O DE J A N E I R O — B R A S I L
Todas as palestras do livro original em

inglês, publicado pelo Star Publishing

Trust, foram revistas por Krishnam urti.


PALESTRAS E RESPOSTAS A PERGUNTAS

: por

KRISHNAMURTI
EM OMMEN — 1937/1938

(TRADUZIDO DO INGLÊS)

19 4 0
Instituição Cultural Krishnamurti
AVENIDA RIO BRANCO 117-2.° ANDAR, SALA 203
RIO DE JANEIRO
BRASIL
P A L E S T R A S EM O M M EN 1937

Há entre as circunstâncias mutantes da vida


algo permanente? Há alguma relação entre nós
próprios e a constante mutação ao nosso redor?
Se admitíssemos que tudo é mutável, inclusive
nós próprios, então jamais existiria a idéia de
permanência. Se nos imaginássemos em um es­
tado de contínuo movimento, então não haveria
conflito entre as circunstâncias mutantes da
vida e aquilo que agora supomos ser permanente.
Há em nós uma profunda e radicada espe­
rança ou certeza de que existe algo permanente
no meio da contínua mutação e isto cria o con­
flito. Vemos que a mutação existe em tôrno de
nós. Vemos tudo decaindo, fenecendo. Vemos
cataclismos, guerras, fome, morte, insegurança,
desilusão. Tudo que nos cerca está em cons-

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tante mutação, vindo-a-ser e decaindo. Tôdas as
cousas se gastam pelo uso. Nada há de perma­
nente em torno de nós. Em nossas instituições,
nossas morais, nossas teorias de governo, de
economia, de relações sociais — em tôdas as
cousas há fluxo, há mudança.
E entretanto, no meio dessa impermanência,
sentimos que há permanência; estando insatis­
feitos com essa impermanência, criamos um
estado de permanência, gerando, por êtfse modo,
conflito entre o que se supõe ser permanente e
o que é mutante, o transitório. Mas se perce­
bêssemos que tudo, inclusive nós mesmos, o
“ eu”, é transitório, e as cousas ambientes da
vida também o são, certamente não haveria en­
tão esse pungente conflito.
Que é que exige permanência, segurança,
que anseia pela continuidade? E’ nessa exigên­
cia que se baseiam as nossas relações sociais e
morais.
Se realmente acreditásseis ou sentísseis pro­
fundamente, por vós mesmo, a incessante mu­
tação da vida, então jamais existiria ansiedade
pela segurança, pela permanência. Mas porque
existe uma profunda ansiedade pela permanên­
cia, nós criamos uma parede estanque contra o
movimento da vida.
Portanto, o conflito existe entre os valores
mutantes da vida e o desejo que está procuran­

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do permanência. Se sentíssemos e compreendês­
semos profundamente a impermanência de nós
próprios e das cousas dêste mundo, então ha­
veria cessação do conflito amargo, das dores e
temores. Então não haveria apêgo, de que surge
a luta social e individual.
Que é pois esta cousa que se atribuiu per­
manência e está sempre procurando uma con­
tinuidade ulterior? Não podemos examinar isto
inteligentemente se não analisarmos e compre­
endermos a capacidade crítica em si mesma.
A nossa capacidade crítica brota dos pre­
conceitos, das crenças, das teorias, das esperan­
ças, etc., ou do que denominamos experiência. A
experiência baseia-se na tradição, nas memó­
rias acumuladas. A nossa experiência está sem­
pre matizada pelo passado. Se acreditais em
Deus, talvez possais ter o que chamais uma
experiência da Divindade. Certamente esta não
é uma experiência verdadeira. Tem sido gra­
vado em nossas mentes, através de séculos, que
há Deus, e de acordo com êste condicionamento
nós temos uma experiência. Esta não é uma
experiência de primeira mão, verdadeira.
A mente condicionada atuando de um modo
condicionado não pode experimentar completa­
mente. Tal mente é incapaz de plenamente ex­
perimentar a realidade ou a não-realidade e
Deus. Do mesmo modo, a mente que já está

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preconcebida pelo desejo conciente ou incon-
ciente do permanente não pode compreender a
realidade como plenitude. Tôda pesquisa de tal
mente preconcebida é apenas um novo fortale­
cimento desse preconceito.
A busca e a ânsia pela imortalidade são o
incitamento das memórias acumuladas da con-
ciência individual, o “ eu”, com seus temores
e esperanças, amores e ódios. Ê s s e /‘eu” fracio­
na-se em várias partes em conflito: o superior
e o inferior, o permanente e o transitório, e
assim por diante. Êsse “ eu”, em seu desejo de
perpetuar-se, procura e utiliza modos e meios
de se entrincheirar.
Talvez alguns de vós possais dizer-vos:
“ Certamente, com o desaparecimento dessas
ansiedades, deve haver realidade”. O próprio
desejo de saber se há algo além da conciência
em conflito da existência é uma indicação de
que a mente está procurando uma segurança,
uma certeza, uma recompensa para os seus
esforços.
Vemos como é criada uma resistência con­
tra outra, e essa resistência, através de memó­
rias acumulativas, através da experiência, é
cada vez mais fortalecida, tornando-se cada vez
mais conciente de si mesma.
Assim, há a vossa resistência e a do vosso
próximo, da sociedade. O ajustamento entre

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duas ou mais resistências é chamado relações
mútuas, sôbre que é construida a moralidade.
Onde há amor, não há a conciência das rela­
ções mútuas. Ê só em um estado de resistência
que pode haver esta conciência, que é apenas
um ajustamento entre conflitos em oposição
O conflito não existe somente entre as várias
resistências, mas também dentro de si mesmo,
dentro da qualidade permanente e imperma-
nente da própria resistência.
Há algo permanente nessa resistência? Ve­
mos que a resistência pode perpetuar-se por
meio da aquisividade, da ignorância, por meio
da conciente ou inconciente ansiedade de expe­
riência. Mas certamente essa continuação não é
eterna; ela é apenas a perpetuação do conflito.
O que chamamos permanente na resistência
é apenas parte da própria resistência, e, por­
tanto, parte do conflito. Assim, em si mesma,
não é o eterno, o permanente.
Onde há falta de plenitude, não-preenchi-
mento, há a ansiedade de continuação que cria
a resistência, e esta resistência dá a si mesma
a qualidade de permanência.
Aquilo a que a. mente se agarra como sendo
o permanente é em sua própria essência o tran­
sitório. Ê o produto da ignorância, do mêdo
e da ansiedade.

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Se entendemos isto, então vemos que o pro­
blema não é de uma resistência em conflito
com outra, mas como esta resistência vem a ser
e como pode ser dissolvida. Quando defronta­
mos este problema profundamente, há um novo
despertar, um estado que pode ser chamado
amor.

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II

O conflito deve invariavelmente surgir quan­


do há um centro estático no interior de cada
um, e, à sua volta, há valores mutantes. Êste
centro estático deve estar em luta com a qua­
lidade vivente da vida.
A mutação implica em que nada há de per­
manente a que a mente possa apegar-se, mas
constantemente ela deseja agarrar-se a alguma
forma de segurança. A forma do apego está
sofrendo mudança constante e esta mudança é
considerada progresso, mas o apego ainda con­
tinua.
Ora, esta mutação implica em que não pode
haver nenhum centro pessoal que esteja acumu­
lado, armazenando memórias, como salvaguar­
das e virtudes; nenhum centro que esteja cons­
tantemente colhendo experiências para si, lições
para o futuro. Embora intelectualmente possa­
mos alcançar isto, emocionalmente, cada um se

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apega a um centro pessoal, estático, identifi­
cando-se com êle. Na realidade não há tal cen­
tro como o “ eu”, com as suas qualidades per­
manentes. Precisamos compreender isto inte­
gralmente, não apenas com o intelecto, se qui­
sermos alterar fundamentalmente as nossas re­
lações com o nosso próximo, que estão baseadas
na ignorância, no temor, nos desejos.
Pensamos agora, cada um de nós, que esse
centro, do qual surge a maioria das nossas ações,
pensamos nós que esse centro é impermanente?
O que significa para vós o pensar? Estais
apenas estimulado pela imagem das minhas pa­
lavras, por uma explicação que examinareis in­
telectualmente, nas horas vagas, e transforma­
reis em um padrão, em um princípio para ser
seguido e vivido? Produzirá tal método um
viver integral? A mera explicação do sofri­
mento não o faz desaparecer, nem o seguir um
princípio ou um padrão, mas o que o destrói
são o pensamento e emoção integrais.
Se não estais sofrendo, então a imagem ver­
bal de outrem sobre o sofrimento, a sua expli­
cação a respeito dêle, pode, no momento, ser
estimulante e fazer-vos pensar que devíeis so­
frer. Mas tal sofrimento não tem significado.
Há duas maneiras de pensar. Uma é por
meio do mero estímulo intelectual, sem nenhum
conteúdo emocional; mas quando as emoções

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estão profundamente revolvidas há um processo
integral de pensamento que não é superficial,
intelectual. Êste pensamento-emoção integral é
o único que pode realizar a compreensão e ação
perduráveis.
Se o que estou dizendo age apenas como um
estímulo, então surge a pergunta de como apli­
cá-lo à vossa vida diária, com suas dores e con­
flitos. O modo, o método, torna-se de tôda
importância somente quando as explicações e
estímulos vos estão impelindo para uma ação
particular, O modo, o método, cessa de ser im­
portante somente quando ficais apercebido, in­
tegralmente.
Quando a mente revela a si mesma os seus
próprios esforços de temores e desejos, então
surge o apercebimento integral da sua própria
impermanência, o único que pode libertar a
mente dos seus trabalhos limitadores. A não ser
que isto esteja acontecendo, todo o estímulo se
transforma em maior limitação.
Todas as qualidades artificialmente cultiva­
das dividem: todo o cultivo intelectual da mo­
ralidade, da ética, é cruel, nascido do medo,
criando apenas outras resistências do homem
contra o homem.
A qualidade da resistência é ignorância.
Estar familiarizado com muitas teorias inte­
lectuais não é libertação da ignorância. O ho­


mem que não está integralmente apercebido do
processo da sua própria mente é ignorante.
Libertar o pensamento do desejo de adqui­
rir, por meio da disciplina, por meio da von­
tade, não é libertação da ignorância, pois, êle
continua ainda preso no conflito dos opostos.
Quando o pensamento percebe integralmente
que o esforço para se desembaraçar do desejo
de adquirir é também parte desse mesmo desejo,
então há um começo de iluminação.
Qualquer que seja o esforço que a mente
faça para se desembaraçar de certas qualidades,
continua ainda presa na ignorância; porém,
quando ela discerne que todo o esforço que
fizer para libertar-se está ainda dentro do pro­
cesso da ignorância, então há uma possibilidade
de romper o círculo vicioso da ignorância.
A vontade de satisfação fraciona a mente
em muitas partes, cada uma em conflito com
a outra, e esta vontade não pode ser destruída
por outra superior, que é apenas nova forma
da vontade de satisfação. Êste círculo de igno­
rância rompe-se, por assim dizer, como que
vindo do interior, somente quando a mente
cessa de ser aquisitiva.
A vontade de satisfação destrói o amor.

I n t e r r o g a n t e : Como podemos distin­


guir entre a revelação, que é verdadeiro pen-

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sarnento, e a experiência? Para mim, a expe­
riência, em virtude dos nossos falsos métodos
de viver, torna-se limitada, não sendo, portanto,
revelação pura. Ambas deveriam ser uma só
cousa.

I n t e r r o g a n t e : Quereis dizer que a ex­


periência é memória, memória de alguma cousa
feita?

K r i s h n a m u r t i : -— A experiência pode
condicionar ainda mais o pensamento ou liber­
tá-lo das limitações. Experimentamos de con­
formidade com o nosso condicionamento, mas
êste condicionamento pode ser rompido, o que
pode dar a todo o nosso ser uma libertação in­
tegral. A moralidade, que deveria ser espontâ­
nea, tem sido feita para seguir a um padrão,
um princípio que se torna certo ou errado se­
gundo as crenças que o indivíduo mantém. Para
alterar êste padrão, alguns recorrem à violên­
cia, esperando criar um padrão “ verdadeiro”,
outros se voltam para a lei afim de remodelá-lo.
Ambos esperam criar a moralidade “reta” atra­
vés da força e da'conformidade. Mas tal cons­
trangimento não é mais moralidade.
A violência, de certa forma, é considerada
como um meio necessário para um fim pacífico.

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Não percebemos que o fim é controlado e mo­
delado pelos meios que empregamos.
A verdade é uma experiência dissociada do
passado. O apego ao passado, com as suas me­
mórias, tradições, é a continuação de um centro
estático que impede a experiência da verdade.
Quando a mente não está sobrecarregada
com a crença, com o querer, com o apêgo, quan­
do está criativamente vazia, então há a possi­
bilidade de experimentar a realidade.

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Tôcla luta provém das relações mútuas, de
um ajustamento entre duas resistências, dois
indivíduos. A resistência é um condiciona­
mento, limitando ou condicionando essa energia
que pode ser chamada vida, pensamento, emo­
ção. Êste condicionamento, esta resistência, não
teve começo. Existiu sempre, e podemos vêr
que pode ser continuado. Há numerosas e com­
plexas causas para êle.
Êste condicionamento é ignorância, que pode
ser conduzido a um fim.
A ignorância é o não-apercebimento do pro­
cesso de condicionar, que consiste em muitos
desejos, temores, memórias aquisitivas, etc.
A crença é parte da ignorância. Qualquer
ação provinda da crença somente fortalece mais
a ignorância.
A ansiedade de compreensão, de felicidade,
a tentativa de se desembaraçar desta qualidade
particular e adquirir aquela virtude particular,
todo este esforço é nascido da ignorância, que
é o resultado desse querer constante.
Portanto, nas relações mútuas, a luta e o
conflito continuam.
Enquanto persistir o querer, tôda experiên­
cia condiciona ainda mais o pensamento e a
emoção, continuando assim o conflito.
Onde existe o querer, a experiência não pode
ser completa, fortalecendo, portanto, a resistên­
cia. A crença, o resultado do querer, é uma
fôrça condicionante; a experiência baseada em
qualquer crença é limitadora, por mais vasta e
ampla que possa ser.
Qualquer esforço que a mente faça para
romper o seu próprio círculo vicioso da igno­
rância deve auxiliar ainda mais a continuação
da ignorância. Se não se compreende o processo
todo da ignorância, e meramente se faz esforço
para se desembaraçar dêle, o pensamento estará
ainda atuando dentro do círculo da ignorância.
Assim, o que se deve fazer, discernindo que
qualquer ação, qualquer esforço que se faça
únicamente fortalece a ignorância? O próprio
desejo de romper o círculo da ignorância é ain­
da parte da ignorância. Então, o que se deve
fazer?
Ora, é esta uma pergunta da máxima impor­
tância, vital, para vós? Se é, então vereis que
não há resposta positiva, direta. Pois, as res­

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postas positivas Emente podem trazer mais
esforço, que apenas fortalece o processo da
ignorância. Assim, há somente um modo nega­
tivo de tratar a questão, que é estar integral­
mente apercebido do processo do mêdo ou da
ignorância. Êste apercebimento não é um es­
forço para vencer, para destruir ou encontrar
um substituto, mas uma tranquilidade de nem
aceitar nem negar, uma quietude integral de não
escolher. Êste apercebimento rompe o círculo
da ignorância, por assim dizer, como que vindo
do nosso interior, sem fortalecê-lo.

I n t e r r o g a n t e : Como se pode saber ao


certo se a mente está incondicionada, pois nisso
há possibilidades de ilusão?

K r i s n a m u r t i : Não nos preocupemos


com a certeza da mente incondicionada, mas es­
tejamos antes apercebidos das limitações do
pensamento-emoção.

I n t e r r o g a n t e : Há uma diferença real


entre estarmos desapercebidos do nosso condi­
cionamento e imaginarmos que estamos incon-
dicionados.

K r i s h n a m u r t i : Certamente, isto é ób­


vio. Investigar o estado incondicionado quando

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a própria mente está limitada é inteiramente
fútil. Temos de nos interessar com as causas
que manteem preso o pensamento-emoção.

I n t e r r o g a n t e : Sabemos que há reali­


dade e não-realidade, e que do irreal devemos
passar ao real.

K r i s h n a m u r t i : Esta é, por certo, outra


forma de condicionamento. Como sabeis que
existe o real?

I n t e r r o g a n t e : Porque êle está pre­


sente.

K r i s h n a m u r t i : Parastes de pensar, se
assim posso dizer, quando asseverastes que êle
está presente.

I n t e r r o g a n t e : Penso que percebemos


continuamente que estamos condicionados, por­
que estamos sempre sofrendo e em conflito.

K r i s h n a m u r t i : Portanto o conflito, o
sofrimento, a tensão das relações pessoais, in­
dicam condicionamento. Pode haver muitas
causas para o condicionamento, mas estais aper­
cebido ao menos de uma delas?

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I n t e r r o g a n t e : 0 mêdo e o desejo são
as causas da limitação?

K r i s h n a m u r t i : Quando fazeis essa de­


claração, estais conciente de que na vossa vida
o medo e o desejo causam luta, miséria?
Quando dizeis que o medo está condicionan­
do a vossa vida, estais conciente desse mêdo?
Ou é por terdes lido ou me ouvido falar sobre
ele, que repetis, “ O temor é condicionante”? O
temor não pode existir por si mesmo, mas so­
mente em relação com alguma cousa.
Ora, quando dizeis que estais conciente do
mêdo, é êle causado por algo exterior a vós ou
está dentro de vós? Teme-se um acidente, ou
o próximo, ou alguma relação imediata, ou
alguma reação psicológica, e assim por diante.
Em certos casos são as coisas externas da vida
que nos fazem ter mêdo, e, se delas nos liber­
tarmos, julgamos que não teremos mais mêdo.
Podeis livrar-vos do vosso próximo? Podeis
ser capaz de fugir de um próximo particular,
mas, onde quer que estejais, estareis sempre em
relação com alguém. Podeis criar uma ilusão em
que vos abrigueis pu construir um muro entre
o vosso próximo e vós e, assim, vos proteger.
Podeis separar-vos por meio da divisão social,
das virtudes, das crenças, das aquisições, e dêsse
modo livrar-vos do vosso próximo. Mas isso
não é libertação.
Há ainda o medo das doenças contagiosas,
dos acidentes, etc., contra os quais se tomam
precauções naturais, sem exagerá-las indevida­
mente.
A vontade de sobreviver, a vontade de estar
satisfeito, a vontade de continuar —■ esta é a
verdadeira causa raiz do medo.
Sabeis ser isto assim? Se sabeis, então o que
quereis dizer por “ saber”? Vós o conheceis ape­
nas intelectualmente, como uma imagem verbal,
ou dele estais apercebido integral, emocional­
mente?
Conheceis o medo como reação quando a
vossa resistência está enfraquecida; quando as
paredes da vossa auto-proteção se partem, então
ficais conciente do medo, e a vossa reação ime­
diata é concertar novamente essas paredes, for­
talecê-las afim de permanecerdes seguro.

I n t e r r o g a n t e : Podeis dizer-nos o que


é o mêdo?

K r i s h n a m u r t i : Dizer-vos o que é o
mêdo! Não sabeis o que êle é?
Se na vossa casa nada há de valor a que
estejais apegado, então não temeis o vosso pró­
ximo, as vossas portas e janelas permanecerão

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abertas. Mas o medo se encontra no vosso co­
ração quando estais apegado, então pondes
trancas nas vossas janelas, então fechais à chave
as vossas portas. Isolais-vos.
A mente reuniu certos valores, tesouros, e
pretende guardá-los. Se o valor destas posses é
posto em dúvida, há o despertar do mêdo. Pelo
mêdo nós as guardamos mais zelozamente, ou
vendemos as velhas e adquirimos novas que pro­
tegeremos com maior astúcia. Damos a esse
isolamento vários nomes.
Pergunto-vos se tendes algo precioso em
vossa mente, em vosso coração, que estejais
guardando. Se tendes, então forçosamente de­
veis criar paredes contra o mêdo, e esta resis­
tência é designada por vários nomes — amor,
vontade, virtude, caráter.
Tendes algo de precioso? Tendes algo que
vos possa ser arrebatado, a vossa posição, as
vossas ambições, os vossos desejos, as vossas
esperanças?
Que possuís atualmente? Podeis ter posses
mundanas que tentais salvaguardar. Afim de
protegê-las tendes o imperialismo, o nacionalis­
mo, as distinções de classe. Cada indivíduo,
cada nação está fazendo isso, gerando o ódio e
a guerra. Pode o mêdo da perda ser totalmente
removido? Todos os indícios mostram que êle
não pode ser extirpado por uma proteção maior,

23
um maior nacionalismo, maior imperialismo.
Onde há apego, há medo.

I n t e r r o g a n t e : E ’ pelo desfazermo-nos
dos objetos ou pelo estabelecimento de relações
diferentes entre nós e êles que o mêdo é dis­
sipado?

K r i s h n a m u r t i : Seguramente nós não


chegamos ainda à questão de como nos livrar
do medo. Estamos tentando descobrir quais são
as cousas preciosas que cada um de nós tão
astuciosamente resguarda e somente depois po­
deremos descobrir os meios de nos desembaraçar
do mêdo.

Interrogante: E ’ muito difícil saber.


.. .Eu não sei a que me estou apegando.

K r i h n a m u r t i : Sim, esta é uma das di­


ficuldades, mas a não ser que saibais disso, o
mêdo há de continuar, embora desejeis desem­
baraçar-vos dele. Estais conciente, com todo o
vosso ser, de que vos protegeis de uma ou de
outra forma, através da crença, das aquisições,
da virtude, da ambição?
Quando principiardes a considerar profun­
damente, percebereis como a crença ou qualquer

24
outra modalidade de exclusão vos segrega, seja
como grupo ou como um indivíduo, e que a
crença age como resistência contra o movimento
da vida.
Alguns de vós dirão que a mente não está
conservando uma crença, mas que ela é parte
da própria mente, que sem alguma forma de
crença a mente, o pensamento, não pode existir.
Ou podeis dizer que a crença não é realmente
uma crença, mas intuição, para ser guardada,
para ser encorajada.

I n t e r r . o g a n t e : Parece-me que a crença


existe em mim , e não sei o que fazer com ela.
Não sei se a estou guardando ou não.

K r i s h n a m u r t i : E’ exatamente isto. Ela


é parte de vós, como dizeis. Por que ela existe?
Por que é parte de vós? Fostes condicionado
através da tradição, da educação; adquiristes a
crença conciente ou inconcientemente como
proteção contra as várias formas de medo, ou a
aceitastes através da propaganda como uma pa-
nacéia. Podeis não ter crença em uma teoria
particular, mas podeis tê-la em uma pessoa. Há
várias formas de crença. O desejo de conforto,
de segurança, força a alguma espécie de crença,
que se guarda, porque sem ela nos sentimos in­
teiramente perdidos. Há, assim, a constante

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tentativa de justificar a própria crença ou de
encontrar um substitutivo para a antiga.
Onde há apego há medo, mas a libertação
do mêdo não é uma recompensa do desapego.
O sofrimento faz com que nos decidamos a ser
inteiramente desapegados porém este desapego
é, realmente, uma forma de proteção contra o
sofrimento. Ora, como a maioria de nós tem
algo — amor, posses, ideais, crenças, concep­
ções — a proteger, que vai constituir essa re­
sistência que é o “ eu”, o “mim”, é fútil per­
guntar como se desembaraçar do “ eu”, do“mim”,
com as suas várias camadas de querenças, de
temores, sem compreender integralmente o pro­
cesso da resistência. O próprio desejo de se
libertar dêles é outra e mais segura forma de
autoproteção.
Se estiverdes apercebido desse processo dá
proteção, da construção de paredes para guar­
dar o que sois e o que tendes, se estiverdes
conciente disso, então jamais perguntareis qual
o modo, o método de vos livrardes do mêdo, da
ansiedade. Então verificareis, na tranquilidade
do apercebimento, o ruir espontâneo das várias
causas que condicionam o pensamento-emoção.
Não ficareis apercebido meramente ouvindo
uma ou duas palestras. E’ como um fogo que se
tem de produzir, e vós tendes de produzí-lo.
Precisais começar, por pouco que seja, a ficar
conciente, a ficar apercebido, e podeis fazer

26
isto quando falais, quando rides, quando estais
em contacto com as pessoas, ou quando tran­
quilo. Êste apercebimento torna-se uma chama,
e esta chama consome todo o medo que causa
o isolamento. A mente precisa revelar-se espon­
taneamente a si mesma. E isto não é concedido
somente a uns poucos, nem é uma impossibi­
lidade.

27
IV

A ignorância é o não-apercebimento do pro­


cesso do próprio pensamento e emoção de cada
um. Tenho tentado explicar o que entendo por
apercebimento.
A experiência dissolverá essa ignorância?
Que entendemos por experiência? A ação e
reação de conformidade com o pensamento e a
emoção condicionados. A mente-coração está
condicionada pelas conclusões, hábitos de pen­
sar, preconceitos, crenças, temores, querenças.
Esta massa de ignorância não pode ser dis­
solvida apenas pela experiência. A experiência
pode dar à ignorância novo significado, novos
valores, novas ilusões; porém, é ainda ignorân­
cia. A mera experiência não a pode dissolver;
pode somente reformá-la.
Podem o simples domínio e alteração do am­
biente dissolver a ignorância? Que entendemos
por ambiente? Hábitos e valores econômicos,

28
divisões sociais, a moralidade da conformação,
etc. A criação de novo ambiente, produzido pela
compulsão, pela violência, pela ameaça, dissol­
verá a ignorância? Ou apenas a remodelará,
ainda de maneira diferente? Pode esta igno­
rância ser dissolvida pelo domínio externo?
Digo que não. Não quer isto dizer que a bar­
baria atual das guerras, da exploração, das
crueldades, dos domínios de classe, não deva
ser modificada. Mas a mera modificação da
sociedade não alterará a natureza fundamental
da ignorância.
Temos empregado dois processos diferentes
para dissolver a ignorância: um o controlo do
ambiente e o outro a destruição da ignorân­
cia pela experiência. Antes de aceitar ou negar
a impossibilidade de destruir a ignorância por
êsses métodos, deveis conhecer a realidade de
cada processo. Conheceis-la? Se não, tendes de
experimentar e descobrir. Nenhum estímulo ar­
tificial pode produzir realidade.
A ignorância não pode ser dissolvida, seja
pela experiência ou pelo mero controlo do am­
biente, mas fenece espontânea e voluntaria­
mente se existir êsse apercebimento em que
não há desejo, não há escolha.

I . n t e r r o g a n t e : Estou conciente de
amar, de que a mqrte levará a quem amo, e o

29
sofrimento é cousa de difícil compreensão para
mim. Sei que êle é uma limitação e sei que
desejo alguma outra cousa, mas não sei o que.

K r i h n a m u r t i : A morte traz à maioria


de nós grande tristeza e desejamos um meio de
fugir a êsse sofrimento. Voltamo-nos ou para a
crença na imortalidade, obtendo conforto com
ela; ou tentamos esquecer a tristeza por vários
modos, ou cultivamos uma forma superior dé
indiferença, por meio da racionalização.
Todas as cousas se decompõem, tudo se gasta
com o uso, tudo chega a um fim. Percebendo
isto, alguns racionalizam a sua tristeza, afas-
tando-a. Por um processo intelectual, amorte­
cem o seu sofrimento. Outros procuram sobre­
pujar êsse sofrimento pelo adiamento, pela
crença no além, por um conceito de imortali­
dade. Isto também amortece o sofrimento, pois
a crença dá abrigo e conforto. Pode-se não ter
mêdo do além, da sua própria morte, mas a
maioria de nós não deseja suportar a agonia da
perda de alguém a quem ama. Assim, começa­
mos a descobrir meios e modos de frustrar a
tristeza.
As explicações intelectuais de como afastar
o sofrimento tornam-nos indiferentes a êle. Na
perturbação causada pelo tornar-se apercebido
do empobrecimento próprio, pela morte de

30
alguém a quem se ama, surge o choque do sofri­
mento. A mente de novo faz objeção à tristeza,
e, assim, procura meios e modos de fugir-lhe:
satisfaz-se com as várias explicações sôbre o
além, a continuidade, a reencarnação, e assim
por diante. Um homem racionaliza para evitar
o sofrimento, de modo a viver o mais imper-
turbado possível, e outro, em sua crença, em seu
adiamento, abriga-se e conforta-se afim de não
sofrer no presente. Êstes dois casos são funda­
mentalmente o mesmo; nenhum quer sofrer, so­
mente as suas explicações é que diferem. O pri­
meiro despresa tôda crença e o último está pro­
fundamente imerso ou em fortalecer a sua
crença na reencarnação,' na imortalidade, etc.,
ou em descobrir “ fatos”, “ realidade” relaciona­
dos com ela.

I n t e r r g a n t e : Não vejo por que o re­


fúgio seja falso. Penso que refugiar-se é tolice.
A reencarnação pode ser um fato.

K r i h n a m u r t i : Se alguém está sofrendo


e há o suposto fato da reencarnação, que valor
fundamental tem êste se cessa de ser um refú­
gio, um conforto? Se alguém está a morrer à
míngua, que benefício lhe traz saber que há su­
perprodução no mundo? Quer-se ser alimenta-

31
do, não fatos, mas substância muito mais nu­
tritiva.
Não estamos discutindo se a reencarnação é
ou não um fato. Isto para mim é inteiramente
irrelevante. Quando estais doente, faminto, os
fatos não aliviam o sofrimento, não satisfazem
a fome. Pode-se ter esperança em um estado
ideal futuro, mas a fome ainda continuará. O
medo da morte e a tristeza que êle traz con­
tinuarão, a-pesar-do suposto fato da .reencarna­
ção; a não ser, naturalmente, que se viva em
completa ilusão.
Por que vos refugiais em um fato suposto,
em uma crença? Não vos estou perguntando
como sabeis que é um fato. Pensais que seja
e, no momento, deixemô-lo assim. Que vos im­
pele a procurar abrigo? Como alguém que se
refugia no conclusão racionalizada de que todas
as cousas decaem, e com isso apazigua o seu so­
frimento, refugiando-se dêsse modo em uma
crença, em um fato suposto, vós também amorte­
ceis a ação da tristeza. Devido à agudeza da
miséria, desejais o conforto, um alívio, e por
isso buscais refúgio, esperando que êle seja
duradouro e real. Não é por esta razão funda­
mental que procuramos refúgio, abrigo?

I n t e r r o g a n t e : Por não sermos capazes


de defrontar a vida, procuramos um subs­
titutivo.

32
K r i s h n a m u r t i : Declarar apenas que
estais procurando substituições, não resolve o
problema do sofrimento. Elas nos impedem de
pensar e sentir profundamente.
Aqueles de vós que sofreram e estão sofren­
do, qual tem sido a vossa experiência?

I n t e r r o g a n t e : Nenhuma.

K r i s h n a m u r t i : Alguns de vós nada


fazem suportando-o indiferentemente. Alguns
tentam fugir-lhe pela bebida, pelo divertimento,
esquecendo-se a si mesmos na ação, ou se refu-
giando em uma crença.
Qual é a reação atual no caso da morte?
Perdestes a pessoa a quem amais e gostaríeis
de tê-la de volta; não quereis enfrentar a soli­
dão. Compreendendo a impossibilidade de tê-la
novamente, procurais, em vossa vacuidade e
tristeza, encher a vossa mente e o vosso cora­
ção com explicações, com crenças, com infor­
mação de segunda mão, com conhecimento e
experiências.

I n t e r r o g a n t e : Há uma terceira possi­


bilidade. Vós nos mostrais somente essas duas
possibilidades, mas sinto distintamente que há
outro modo de defrontar a tristeza.

33
K r i s h n a m u r t i : Pode haver muitos mo­
dos de defrontar a tristeza, mas se há o desejo
fundamental de buscar conforto, todos os mé­
todos se reduzem a êstes dois modos definidos:
ou se racionaliza, ou se busca refúgio. Ambos
os métodos apenas abrandam a tristeza; ofere­
cem uma fuga.

I n t e r r o g a n t e : E se o homem se casa
novamente?

K r i s h n a m u r t i : Mesmo se êle assim


procede, o problema do sofrimento ainda per­
manece irresolvido. Isto é também um adia­
mento, um esquecimento. Dão-se a si mesmo
explicações intelectuais, racionais, porque não
se quer sofrer. Um se abriga numa crença, tam­
bém para evitar o sofrimento. Outro se refugia
na idéia de que se puder encontrar a verdade,
haverá, enfim a cessação do sofrimento. Outro,
pelo cultivo da irresponsabilidade, evita o so­
frimento. Todos estão tentando fugir-lhe.
Não objeteis quanto às palavras “ abrigo”,
“ refúgio”. Substituí-as pelas vossas próprias
— crença, D e u s , Verdade, novo-casamento,
racionalização, e assim por diante. Mas en­
quanto houver ansiedade conciente ou incon-
ciente de fugir à tristeza, a ilusão, sob muitas
formas, tem de existir.

34
Ora, por que não deveríeis sofrer? Quando
sois feliz, quando estais alegre, não dizeis que
não deveríeis ser feliz. Não fugis da alegria,
não lhe buscais um refúgio. Quando estais em
um estado de êxtase, não recorreis a crenças,
a substituições. Pelo contrário, destruís tôdas
as cousas que se lhe opõem, os vossos deuses, as
vossas moralidades, os vossos valores, as vossas
crenças, tudo, afim de manter esse êxtase.
Ora, por que não fazeis a mesma cousa quan­
do sofreis? Por que não destruís tôdas as cou­
sas que interferem com a tristeza, as muitas
explicações da mente, fugas, temores e ilusões?
Se vos fizerdes essa pergunta, sincera e pro­
fundamente, verificareis que as crenças, os
deuses, as esperanças, não teem mais impor­
tância. Então a vossa vida terá um significado
novo e fundamental.
Na chama do amor, todo o mêdo é con­
sumido.

35
V

Embora possamos perceber intelectualmente


a causa do sofrimento, isto pouca influência
tem em nossas vidas. Embora intelectualmente
possamos concordar que enquanto há apego há
medo e tristeza, mesmo assim o nosso desejo
é tão fortemente possessivo que sobrepuja todo
o raciocínio. Ainda que possamos conhecer a
causa do sofrimento, o sofrimento continuará,
pois o mero conhecimento intelectual não é
suficiente para destruí-la. Assim, quando a
mente, por meio da análise, descobre a causa
do sofrimento, esta mesma descoberta pode
tornar-se um refúgio. A esperança de que, pela
descoberta da causa da tristeza o sofrimento
cessará, é uma ilusão.
Por que a mente procura a causa da tristeza?
Evidentemente para vencê-la. Entretanto, nos

36
momentos de êxtase não há a procura da sua
causa; se houvesse, o êxtase cessaria. Na ansie­
dade pelo êxtase, tateamos em busca das causas
que obstruem o caminho. Essa mesma ansie­
dade pelo êxtase e o desejo intenso de dominar
a tristeza impedem a sua realização.
A mente que está sobrecarregada com o de­
sejo de realidade, de felicidade, de amor, não
pode libertar-se do mêdo. O mêdo não só amor­
tece a tristeza como também deturpa a alegria.
Estará todo o nosso ser em contacto direto com
a tristeza como está com a felicidade, com a
alegria?
Nós estamos apercebidos de que não somos
integrais com a tristeza; de que há uma parte
de nós que tenta fugir-lhe. Neste processo a
mente acumulou vários tesouros a que se apega
desesperadamente. Quando percebemos êsse
processo de acumulação, então sentimo-nos im­
pelidos a fazê-lo cessar. Começamos então a
procurar métodos, o meio de livrar-nos dêsses
fardos. A própria busca de um método é outra
forma de fuga.
A escolha de métodos, de um modo de de­
sembaraçar-vos dêsses fardos acumulados, que
causam resistência, esta mesma escolha nasce
do desejo de não sofrer, e, portanto, é preju­
dicial. Êste preconceito é o resultado do de­
sejo de refúgio, de conforto.

37
I n t e r r o g a n t e : Penso que ninguém haja
imaginado o que dissestes até agora. E* muito
complicado.

K r i s h n a m u r t i : Estamos tentando per­


ceber, sentir a verdade que libertará o homem
e não apenas descobrir quais são as causas da
tristeza. Se o que tenho dito, que pode parecer
complicado, é a verdade, então é libertador.
A descoberta da verdade é um processo com­
plexo, pois a mente envolveu-se em muitas
ilusões.
A aurora da verdade não repousa na escolha
do essencial contra o não-essencial. Mas quan­
do começais a perceber a ilusão da própria
escolha, então essa revelação é libertadora, des­
truindo espontaneamente a ilusão de que a
mente se nutre.
E ’ isso amor, que sofre quando é frustrado,
e quando há amargor, quando há vacuidade? O
què fere é ver exposta a pequenez do nosso
amor.
Sempre que a mente escolhe, sua escolha
tem de ser baseada em um preconceito auto-
protetor, e como não desejamos sofrer, seus
atos estão baseados no mêdo. O medo e a reali­
dade não podem coexistir. Um destrói o outro.
Mas é uma das ilusões da mente que cria a
esperança de algo além da sua própria escuri­

38
dão. Êsse algo, essa esperança de realidade, é
outra forma de abrigo, outra fuga da tristeza.
A mente perpetua seu próprio estado de con­
dicionamento por meio do mêdo.

I n t e r r o g a n t e : O que dizeis conduz a


uma forma muito materialista de vida.

K r i s h n a m u r t i : Que entendeis por uma


forma materialista de vida? Que há apenas
esta vida, que não há realidade, nem Deus, que
a moralidade deve basear-se nas conveniências
sociais e econômicas, e assim por diante. Agora,
qual é a atitude não materialista com relação à
vida? Que há Deus, que há uma alma que con­
tinua, que há o além, que o indivíduo encerra
em si mesmo a centelha do eterno. Qual a di­
ferença entre as duas, a forma materialista e a
religiosa?

Interrogante : Ambas são crenças.

K r i s h n a m u r t i : Por que então despre­


zais a forma materialista de viver?

I n t e r r o g a n t e : Porque ela nega a con­


tinuidade.

39
K r i s h n a m u r t i : Estais apenas reagindo
contra o preconceito. A vossa vida religiosa é
fimdamentalmente irreligiosa. Embora possais
encobrir esse fato falando em Deus, no amor,
no além, em vosso coração isto nada significa,
são apenas umas tantas frases que aprendestes
como o materialista aprendeu as suas idéias e
frases. Tanto a mente religiosa como a mate­
rialista estão limitadas pelos seus próprios pre­
conceitos que impedem a compreensão integral
da verdade e a comunhão com ela.

I n t e r r og a n t e : Ontem pediste-nos que


disséssemos porque tentávamos fugir do sofri­
mento e repentinamente vi todo o significado
disso. Se nos entregarmos ao sofrimento ao in­
vés de tentar fugir-lhe, quebramos a resistên­
cia dentro de nós.

K r i s h n a m u r t i : Sim, se isso não for o


esforço da vontade. Mas não será artificial en­
tregar-se à tristeza, não será um esforço do
intelecto para ganhar algo? Certamente, não
vos entregais ao êxtase? Se o fizerdes, não é
êxtase.

I n t e r r o g a n t e : Não queria dizer isso.


Quero dizer que ao invés de tentar fugir de­
vemos apenas sofrer.

40
K r i s h n a m u r t i : Por que sentis que de­
veis sofrer? Quando vos dizeis que não deveis
fugir, estais esperando que do sofrimento pos­
sais tirar alguma cousa. Mas quando estiverdes
integralmente apercebido da ilusão de toda
fuga, então não haverá vontade de resistir ao
desejo de fugir, nem vontade de conseguir
algo através do sofrimento.

I n t e r r o g a n t e : Sim, vejo isto.

I n t e r r o g a n t e : Repetí, por favor o que


acabastes ide dizer.

K r i s h n a m u r t i : Não nos entregamos à


alegria. Não há dualidade no êxtase. É um
estado que surge espontaneamente sem que o
queiramos. O sofrimento é uma indicação de
dualidade. Sem compreendermos isto perpetua­
mos a dualidade através de múltiplos esforços
e processos intelectuais para dominá-lo, entre­
gando-nos propositadamente ao oposto, desen­
volvendo virtudes, etc. Tôdas essas tentativas
só fortalecem a dualidade.

I n t e r r o g a n t e : Não agem as resistências


que opomos ao sofrimento também como resis­
tências contra o êxtase?

41
K r i s h n a m u r t i : Naturalmente. Se existe
falta de sensibilidade para a feialdade, para a
tristeza, deverá existir também uma profunda
insensibilidade para a beleza, para a alegria.
A resistência contra a tristeza é também uma
barreira para a alegria.
Que é êxtase? Êste estado de ser em que a
mente e o coração se encontram em completa
união, quando o mêdo não os separa, quando a
mente não está restringindo.

I n t e r r . o g a n t e : Há um modo melhor
de sofrer? Um melhor modo de viver?

K r i s h n a m u r t i : Há, e isto é que venho


tentando explicar. Se cada um se tornar con-
ciente do seu próprio estado condicionado, en­
tão começará a libertar-se do ódio, da ambição,
do apêgo, dos temores que mutilam a vida.
Se a mente destrói um estado condicionado
apenas para penetrar em outro, a vida torna-se
completamente vã e inútil. É o que está acon­
tecendo à maioria de nós, perambulando de pri­
são em prisão, pensando ser cada uma mais livre
que a anterior, quando, na realidade, cada uma
delas é apenas uma limitação de espécie dife­
rente. O que é livre não pode crescer do menor
para o maior.

42
I n t e r r o g a n t e : Aceito o estado condi­
cionado do mesmo modo que a revolução do
globo, como parte necessária do desenvolvi­
mento.

K r i s h n a m u r t i : Então não estamos uti­


lizando a inteligência. Pelo simples asseverar
que tôda a existência está condicionada, jamais
descobriremos se existe um estado que possa
não ser condicionado. Pelo tornar-se integral­
mente apercebido do estado condicionado, cada
um começará a compreender a libertação que
vem através da cessação do mêdo.

43
VI

As relações mútuas podem ser limitadas a


dois indivíduos, ou estender-se a muitos num
círculo sempre crescente. Limitadas ou exten­
sas, a importância está no caráter dessas re­
lações.
Que entendemos por relações mútuas? É um
ajustamento entre dois desejos individualistas.
Nessas relações há luta de ambições, apegos,
esperanças, desejos em oposição. Assim, quase
todas as relações mútuas tomam o caráter de
tensão e conflito. Elas não existem somente
entre as pessoas e os valores externos, mas tam­
bém entre os nossos valores e concepções in­
ternas.
Estamos apercebidos desta luta entre amigos,
entre vizinhos, entre nós e a sociedade.
Deve êste conflito sempre perdurar? Pode­
mos ajustar as nossas relações com outrem tão
astutamente que jâmais cheguemos a entrar vi-

44
talmente em contacto mútuo; ou o ajustamento
sendo impossível, as duas pessoas poderão ser
forçadas a separar-se. Mas enquanto há qualquer
forma de atividade, tem de haver relações entre
o indivíduo e a sociedade, que podem ser de
um ou de muitos. O isolamento só é possível
em completo estado de neurastenia. A não ser
que se aja mecanicamente, sem pensar e sem
sentir, ou se esteja tão condicionado que se
tenha um único padrão de pensar e de sentir,
todas as relações mútuas significam ajusta­
mento, seja de lutar e resistir, ou de ceder.
O amor não é uma relação mútua, nem um
ajustamento; é de uma qualidade inteiramente
diferente.
Poderá esta luta nas relações mútuas cessar
um dia? Não podemos, através da mera expe­
riência, produzí-las sem luta. A experiência é
uma reação a um condicionamento prévio, que,
nas relações mútuas, produz conflito. O simples
domínio do ambiente com os seus valores sociais,
os seus hábitos e pensamentos, não pode pro­
duzir relações mútuas que estejam isentas de
luta.
Há conflito entre as influências condicionan­
tes do desejo e a corrente rápida, vivente, das
relações mútuas. Não são, como a maioria das
pessoas pensa, as relações mútuas que limitam,
mas o desejo é que condiciona. É o desejo, con-

45
ciente ou inconciente, que está sempre causando
atrito nas relações mútuas.
O desejo surge da ignorância. Êle não pode
existir independentemente; precisa alimentar-se
do condicionamento prévio, que é ignorância.
A ignorância pode ser dissipada. É possível
A ignorância consiste de muitas formas de
medo, de crença, de querer e de apêgo. Estas
criam o conflito nas relações mútuas.
Quando estivermos integralmente apercebi­
dos do processo da ignorância, voluntária, es­
pontaneamente, há o começo dessa inteligência
que defronta tôdas as influências condicionan­
tes. Estamos interessados no despertar dessa
inteligência, dêsse amor, o único que pode liber­
tar da luta a mente e o coração.
O despertar dessa inteligência, dêsse amor,
não é o resultado de uma moralidade discipli­
nada, sistematizada, nem um resultado que se
possa buscar, mas é um processo de apercebi­
mento constante.

I n t e r r o g a n t e : As relações mútuas são


também um contacto entre hábitos, e através do
hábito há a continuidade da atividade.

K r i s h n a m u r t i : Na maioria dos casos a


ação é o resultado do hábito, hábito baseado na
tradição, nos padrões de pensamento e desejo,

46
e isto dá à ação uma aparente continuidade.
Geralmente, então, o hábito rege a nossa ação
e as nossas relações mútuas.
É a ação apenas hábito? Se a ação é o resul­
tado de simples hábito mecânico, deve conduzir
à confusão e à tristeza.
Do mesmo modo, se as relações mútuas são
apenas contacto entre dois hábitos individuali­
zados, então, tôda a relação de tal espécie é so­
frimento. Mas infelizmente, reduzimos todo
contacto com outrem a um modo tedioso e fati
gante, pela incapacidade de ajustamento, pele
mêdo, pela falta de amor.
Hábito é a repetição conciente ou incon-
ciente da ação, que é guiada pela memória dos
incidentes passados, da tradição, dos padrões de
pensamento-desejo, e assim por diante. Percebe-
se frequentemente que se está vivendo em uma
estreita senda de pensamento e em se afastando
dela deslisa-se para outra. Essa mudança de
hábito para hábito é muitas vezes denominada
progresso, experiência, crescimento.
A ação, que alguma vez pode ter sucedido
a um apercebimento completo, frequentemente
se torna hábitual, isenta de pensamento, sem
qualquer profundeza de sentimento.
Poderão existir verdadeiras relações mútuas
quando a mente estiver apenas seguindo um
padrão?

47
I n t e r r o g a n t e : Mas há uma resposta
espontânea, que absolutamente não á habitual.

K r i s h s n a m u r t i : Sim, sabemos disso,


mas tais ocasiões são raras, e desejaríamos esta­
belecer relações mútuas de espontaneidade. En­
tre o que gostaríamos de ser e o que somos há
uma enorme lacuna. O que gostaríamos de ser
é uma forma de apêgo ambicioso, que não tem
significado para quem procura a realidade. Se
pudermos entender o que somos, então, talvez
possamos conhecer o que é.
Poderão existir verdadeiras relações mútuas
quando a mente apenas segue um padrão?
Quando se está apercebido desse estado a que
se chama amor, há relações mútuas dinâmicas
que não proveem de um padrão, que estão além
de tôdas as definições e cálculos mentais. Mas
através da influência condicionante do temor e
do desejo, tais relações mútuas são reduzidas à
mera satisfação, ao hábito, à rotina. Tal estado
não constitue as verdadeiras relações mútuas,
mas uma espécie de morte e decadência. Como
poderá haver verdadeiras relações mútuas entre
dois padrões individualizados, embora haja res­
posta mecânica de cada um?

I n t e r o g a n t e : Há um ajustamento con­
tínuo entre êsses dois hábitos.

48
K r i s h n a m u r t i : Sim, mas semelhante
ajustamento é apenas mecânico, que o conflito
e o sofrimento forçam; mas êsse forçar não
destrói o desejo fundamental de formar hábitos
padronizados. As influências externas e as de-
ternimações internas não destroem a formação
de hábitos, mas unicamente auxiliam o ajusta­
mento superficial e intelectual, que não é con­
ducente às verdadeiras relações mútuas.
É este estado de padrões de idéias, de con­
formação, conducente ao preenchimento, à vida
e à ação criadora e inteligente? Antes de po­
dermos responder a essa pergunta, compreen­
demos ou estamos apercebidos deste estado?
Se não estamos apercebidos dele, não há con­
flito; mas se estamos, então há ansiedade e so­
frimento. Dele tentamos fugir, ou procuramos
destruir os velhos hábitos e padrões. Ao sub­
jugá-los apenas se criam outros; o desejo de
simples mudança é mais forte do que o de estar
apercebido de todo o processo da formação de
hábito, de padrões. Por isso passamos de hábito
para hábito.

I n t e r r o g a n t e : Sim, sei que o hábito é


insensato, mas posso livrar-me dêle?

K r i s h n a m u r t i : Antes de perguntar-me
como vencer um hábito particular, vamos veri­

49
ficar qual é a causa que o está formando, por­
que podeis abandonar um hábito, um padrão,
mas no próprio processo de fazê-lo podeis estar
formando outro. É isto o que geralmente faze­
mos; vamos de um para outro hábito. Continua-
remos assim indefinidamente, a não ser que des­
cubramos porque a mente procura sempre for­
mar hábitos e seguir padrões de pensamento-
desejo.
Todas as verdadeiras relações mútuas reque­
rem vigilância e ajustamento constantes, não
de conformidade com um padrão. Onde existe
o hábito, o seguir padrões, ideais, esse estado
de plasticidade é impossível. Ser plástico exige
pensamento e afeição constantes, e como a
mente acha mais fácil estabelecer padrões de
comportamento do que estar apercebida, pro­
cede à formação de hábitos; e quando é abalada
de um hábito particular, pela aflição e pela in­
certeza, muda-se para outro. O temor pela sua
própria segurança e conforto, compele a mente
a seguir padrões de pensamento-desejo. Assim,
a sociedade se transforma em produtora de
hábitos, de padrões, de ideais, porque a socie­
dade é o próximo, a relação imediata com quem
se está sempre em contacto.

50
VII

O sofrimento é a indicação do processo dos


padrões de pensamento e desejo. A mente pro­
cura vencer êste sofrimento pelo adormecer-se
novamente através do desenvolvimento de ou­
tros padrões e de outras ilusões. A mente é
outra vez sacudida dessa limitação auto-imposta
e novamente é induzida à irreflexão, até que
tanto se identifica com determinado padrão de
pensamento-desejo, ou de crença, que não pode
mais ser abalada, ou não se permite mais sofrer.
Muitos realizam êste estado e o consideram
como a mais elevada consecução.
Uma vez que tenhais desenvolvido a von­
tade que apenas subjuga todo hábito, condicio­
namento, essa vontade mesma se tornará irre­
fletida e repetidora.
Devemos compreender ambas, a ação habitual
e a ideal ou conceituai, antes que possamos com-

51
preender a ação sem ilusão. Porque a realidade
reside na atualidade.
O apercebimento não é o desenvolvimento
de uma vontade introspectiva, porém a unifi­
cação espontânea de tôdas as forças separativas
do desejo.

I n t e r r o g a n t e : . É o apercebimento cou­
sa de crescimento lento?

K r i s h n a m u r t i : Onde há interesse in­


tenso, há apercebimento pleno. Como se é men­
talmente indolente e emocionalmente mutilado
pelo temor, o apercebimento torna-se cousa de
crescimento lento. Então, não é realmente aper­
cebimento, mas um processo de construção
cuidadosa de muralhas de resistência. Como a
maioria de nós tem construido essas muralhas
auto-protetoras, o apercebimento parece ser um
processo lento, um crescimento, satisfazendo
assim a nossa indolência. Dessa preguiça tira­
mos teorias de adiamento-eventualmente, mas
não agora, a iluminação é um processo de cres­
cimento lento, de vida após vida, e assim por
diánte. Passamos então a racionalizar essa indo­
lência e arranjamos as nossas vidas, satisfato­
riamente, de acordo com ela.

52
I n t e r r o g a n t e : Êste processo parece
inevitável. Mas como se poderá despertar rapi­
damente?

K r i s h n a m u r t i : Ê um processo moroso
para os indivíduos, a modificação da violência
para a paz? Penso que não. Se alguém real­
mente percebe todo o significado do ódio, a
afeição surge espontaneamente; o que impede
esta percepção imediata e profunda é o nosso
temor inconciente de padrões e realizações do
intelecto e do desejo. Porque tal percepção po­
deria envolver mudança drástica na nossa vida
diária: o fenecimento da ambição, o abandono
de todo nacionalismo, distinções de classes,
apegos, etc. Êste temor incita-nos, aconselha-"
nos e, conciente ou inconcientemente, cedemos
a ele e por isto aumentamos as nossas salva­
guardas, o que apenas cria maior temor. En­
quanto não compreendermos êste processo, esta­
remos sempre pensando em formas de adia­
mento, de crescimento, e de dominação. O mêdo
não pode ser dissolvido no futuro; somente no
constante apercebimento pode êle cessar de
existir.

I n t e r r o g a n t e : Penso que devemos vol­


tar rapidamente à paz.

53
K r i s h n a m u r t i : Se odiais porque o
vosso bem-estar intelectual e emocional é amea­
çado por vários modos, e se meramente recor­
reis a nova violência, embora possais com su­
cesso, pelo menos momentaneamente, afastar o
mêdo, o ódio continuará. É só pelo estar con^-
tantemente apercebido, que o mêdo e o ódio
podem desaparecer. Não penseis em formas de
adiamento. Começai a estar apercebido, e se
houver interêsse, êste mesmo fato produzirá
espontaneamente um estado de tranquilidade, de
afeição.
A guerra, guerra em vós, o ódio do vosso
próximo, dos outros povos, não poderá ser ven­
cido pela violência, sob qualquer forma. Se
começais a compreender a absoluta necessidade
de pensar-sentir profundamente sobre isto ago­
ra, os vossos preconceitos, o vosso condiciona­
mento, que são a causa do ódio e do mêdo,
serão revelados. Nessa revelação há o despertar
da afeição, do amor.

I n t e r r o g a n t e : Penso que levaremos


toda a nossa vida para dominar o mêdo, o ódio.

K r i s h n a m u r t i : Estais novamente pen­


sando em têrmos de adiamento. Sente cada um
o estarrecimento causado pelo ódio e percebe
as suas consequências? Se sentis isto profunda-

54
mente, então não estareis interessado com a épo­
ca em que cessará o ódio, pois ele já terá cedido
a alguma cousa, a única em que pode haver pro­
fundo contacto e cooperação humanos.
Se alguém estiver conciente do ódio, ou da
violência sob seus vários aspectos, pode esta
violência ser extinta através do processo do
tempo?

I n t e r r o g a n t e : Não, não pelo simples


decorrer do tempo. Precisaríamos de um método
para nos desembaraçar dêle.

K r i s h n a m u r t i : Não, o mero decorrer


do tempo não pode dissolver o ódio; êste pode
ser bem encoberto, ou cuidadosamente obser­
vado e retido. Mas o temor, o ódio ainda conti­
nuarão. Pode um sistema ajudar-vos a vos de­
sembaraçar do ódio? Pode ajudar-vos a subju*
gá-lo, a controlá-lo, a fortalecer a vossa vontade
de combatê-lo, mas não produzirá esta afeição,
a única que pode dar ao homem liberdade per­
manente. Se não sentis profundamente que o
ódio é inerentemente venenoso, nenhum siste­
ma, nenhuma autoridade poderão destruí-lo
para vós.

I n t e r r o g a n t e : Podeis compreender in­


telectualmente que o ódio é veneno, mas ainda
sentis ódio.

55
K r i s h n a m u r t i : Por que isto acontece?
Não é por que intelectualmente estais super-
desenvolvido, e ainda primitivo em vossos de­
sejos? Não pode haver harmonia entre o belo
e o feio. A cessação do ódio não se pode pro­
duzir através de nenhum método, mas sómente
pelo apercebimento constante dos condiciona­
mentos que criaram esta divisão entre ó amor e
o ódio.
Por que existe esta divisão?

I n t e r r o g a n t e : Falta de amor.

I n t e r r o g a n t e : Ignorância.

K r i s h n a m u r t i : Não percebeis que ao


repetir simplesmente, que se vivêssemos corre­
tamente esta divisão não existiria, que deixando
de ser ignorante ela desapareceria, que o hábito
é a causa desta divisão, que se não estivéssemos
condicionados haveria perfeito amor — não per­
cebeis que estais apenas entoando certas frases
que aprendestes? Que valor tem isto? Nenhum.
Está cada um de vós conciente desta divisão?
Por favor, não respondais. Observai o que
ocorre convosco.
Compreendemos que estamos em conflito,
que há ódio e ao mesmo tempo desgosto por
ele. Há esta divisão. Podemos compreender

56
como surgiu esta divisão, através de várias cau­
sas condicionantes. O mero exame das causas
não produzirá a libertação do ódio, do mêdo.
O problema da fome não é resolvido pela sim­
ples descoberta de suas causas — o mau sistema
econômico, a super-produção, a má distribuição,
e assim por diante. Se, pessoalmente, estiverdes
faminto, vossa fome não ficará satisfeita apenas
por lhe conhecerdes as causas. Do mesmo modo,
o simples conhecimento das causas do ódio, do
mêdo, com seus vários conflitos, não o dissol­
verá. O que porá fim ao ódio é o apercebimento
sem escolha, a cessação de tôdo esforço inte­
lectual para o sobrepujar.

I n t e r r o g a n t e : Não estamos bastante


côncios deste ódio.

K r i s h n a m u r t i : Quando estamos con-


cientes, fazemos objeção ao conflito, ao sofri­
mento que êle envolve e passamos a agir, espe­
rando vencer todos os conflitos. Isto apenas for­
talece mais o intelecto. Tendes de estar aperce­
bido de todo este processo, silenciosamente, es­
pontaneamente, e nesse apercebimento surge
um novo elemento que não é o resultado de
nenhuma violência, de nenhum esforço, o único
que vos pode libertar do ódio e dos condiciona­
mentos que mutilam.

57
VIII

O ódio não é dissolvido pela experiência,


nem por nenhum acúmulo de virtudes, nem
pode ser dominado pela prática do amor. Tudo
isso apenas encobre o medo, o ódio. Apercebei-
vos disto, e então haverá uma tremenda trans­
formação em vossa vida.

I n t e r r o g a n t e : Que relação tem a


ilusão dêsse crescimento psicológico com o
crescimento que observamos ao nosso derredor?

J K r i s h n a m u r t i ; Vemos que o que é ca­


paz de crescer não é duradouro. Mas ao nosso
crescimento psicológico, cada qual se apega como
se fôra algo de permanente. Se sentíssemos pro­
fundamente e estivéssemos, assim, apercebidos
de que todas as cousas estão em contínua mu­
tação, em constante vir-a-ser, talvez então fôs-

58
semos capazes de libertar-nos do conflito exis­
tente em nós mesmos, e, do mesmo modo, com
o nosso próximo, com a sociedade.

I n t e r r o g a n t e ■ Quer-me parecer que


não posso saltar do ódio para o amor, mas posso
transformar a minha antipatia, vagarosamente,
em um sentimento de compreensão e afeto.

K r i s h n a m u r t i : Não podemos apagar


da mente o condicionamento passado e começar
de novo.
Mas podemos estar apercebidos do que man­
tém o medo, o ódio. Podemos estar apercebidos
das causas e reações psicológicas que nos im­
pedem de agir integralmente. O passado está
nos dominando com as suas crenças, esperanças,
temores, conclusões, memórias; isto nos impede
a ação integral. Não podemos apagar o passado,
pois a mente, em sua essência, pertence-lhe. Mas
estando apercebidos das acumulações do pas­
sado, e dos seus efeitos no presente, começa­
remos a libertar-nos, sem violência, dos valores
que mutilam a mente e o coração.
É isto, o passado com as suas influências
dominantes, seus temores, um agudo problema
para vós, pessoalmente?
A vida tal como é, produzindo guerras,
ódios, divisões, destruindo a unidade — é isto

59
um problema para vós? Se é, então, como sois
parte dela, sómente a compreendereis através
dos vossos próprios sofrimentos, ambições,
temores. Vós sois o mundo e o seu problema é
o vosso problema íntimo. Se é um problema
cruciante, como espero seja para cada um de
vós, então jamais fugireis para quaisquer teorias,
explicações, “ fatos”, ilusões. Mas isto requer
grande vigilância, o indivíduo tem de estar in­
tensamente apercebido; por isso preferimos o
caminho mais facil, o caminho da fuga.
Como podeis solucionar este problema se a
vossa mente e o vosso coração estão sendo afas­
tados dêle?
Não digo que este problema seja simples. É
complexo. Assim, tendes de lhe dar a vossa
mente e o vosso coração. Mas como lhe pode­
reis dar todo o vosso ser, se lhe estais fugindo,
se estais sendo desviado por meio das várias
fugas que a mente estabeleceu para si mesma?

I n t e r r o g a n t e : Mas não percebemos


isso no momento da fuga.

K r i s h n a m u r t i : Estamos tentando com­


preender-nos, expor os ângulos ocultos da
mente, para ver as várias fugas, de modo que
espontaneamente possamos encarar a vida, pro­
funda e integralmente. Qualquer modo de do-

60
minar um hábito por outro, dominar o ódio
pelas virtudes, é uma substituição, e o cultivo
dos opostos não afasta as qualidades de que nos
desejamos libertar. Temos de perceber o ódio,
não como a antitese do amor, mas como sendo
em si mesmo venenoso, um mal.

1 n t e r r o g a n t e : Pensais que podemos


distinguir as diferentes fugas? Poderemos saber
que o ódio é venenoso, e ao mesmo tempo saber
que continuamos com êle. Mas penso que se o
compreendêssemos plenamente, então teríamos
de estar dispostos a abandonar tudo: lar, esposa,
tôdas as cousas; teríamos de estender-lhes a
mão, dizer-lhes adeus, e entrar para um campo
de concentração.

K r i s h n a m u r t i : Não penseis nas con­


sequências da falta de ódio, mas considerai se
podeis libertar-vos dêle. Dizei-vos que sois in­
capazes de vos desembaraçar do ódio?

I n t e r r . o g a n t e : Podemos apenas tentar;


não sabemos.

K r i s h n a m u r t i : Por que dizeis que não


sabeis?

61
I n t e r r o g a n t e : Por que êste não é o
nosso problema atual.

K r i s h n a m u r t i : Embora o ódio exista


no mundo, em vós e ao vosso derredor, ainda
assim, afirmais que não é um agudo problema
para vós. Não estais conciente dele. Por que
não o estais? Ou porque estais livre dêle, ou
tanto vos tendes entrincheirado, tão astuta­
mente protegido, que não sentis mêdo, nem
ódio, porque estais certo da vossa própria
segurança.

I n t e r r o g a n t e : Não sentimos ódio neste


momento.

K r i s h n a m u r t i : Quando não estais aqui,


então o sentis, então é um problema para vós.
Aqui tendes-lhe momentaneamente fugido, mas
o problema ainda existe. Não podeis fugir-lhe,
seja aqui ou em qualquer outro lugar. Êle é
um problema para vós, quer o queirais ou não.
Embora seja um problema, vós o afastastes,
tornastes-vos inconciente dêle. Eis porque di­
zeis não saber como agireis com relação a êle.

I n t e r r o g a n t e : Muitas vezes deseja­


ríamos que a própria vida agisse diretamente,

62
e afastasse de nós as cousas que estimamos
embora reconhecendo-lhes o pouco valor. É isto
também uma fuga?

K r i s h n a m u r t i : Algumas pessoas pare­


cem aliviadas em tempo de guerra. Elas não
teem responsabilidades; suas vidas são dirigidas
pelo Departamento de Guerra. Nisto reside uma
das múltiplas razões porque a autoridade, tem­
poral ou espiritual, floresce e é adorada. A
morte é preferida à vida.
Fomos acostumados a pensar que o ódio é
inevitável, que devemos passar por êsse estágio,
que é parte da hereditariedade e do instinto
humanos.
Estamos habituados a pensar que não nos
podemos libertar imediatamente do ódio; que
precisamos passar por alguma espécie de disci­
plina afim de dominá-lo. Há, assim, um pro­
cesso dual que ocorre dentro de nós, violência
e paz, ódio e afeição, cólera e bondade.
O nosso esforço tende a reunir essas duas
forças separadas, ou a dominar uma pela outra,
ou a concentrar-se em uma de modo que a sua
oposta possa desaparecer.
Qualquer esforço que façais para destruir o
ódio pelo amor é em vão, pois, a violência, o
temor, revelam-se sob outra forma. Temos de
penetrar mais profundamente, além da mera

C3
disciplina; temos de descobrir porque existe em
nós esta dualidade do ódio e da afeição. En­
quanto não cessar êsse processo dual, o conflito
dos opostos tem de continuar.

I n t e r r o g a n t e : Talvez o ódio real­


mente não me pertença.

Interrogante: Ê o nosso amor tão


pobre assim?

K r i s h n a m u r í i : Estas perguntas são


bem reveladoras, mostram como a mente está
condicionada.
Qualquer esforço que a mente faça, deve ser
parte daquilo de que ela se está tentando
libertar.
A mente conclue que não vale a pena odiar,
pois descobriu que há muito maior sofrimento
envolvido nisso, e, assim, faz esforço para dis-
ciplinar-se, para dominar o ódio pelo amor, para
-subjugar a violência e o medo pela paz. Tudo
isto indica o simples desejo fundamental de
meramente fugir ao sofrimento; isto é, resguar-
dar-se nas virtudes e qualidades que não lhes
ocasionam dor, que não causam perturbações.
Até que êsse desejo, êsse anelo de segurança
auto-protetora cesse, o mêdo tem de continuar,

64
com todas as suas consequências. A mente não
pode desembaraçar-se dêle. Na sua tentativa
para fazê-lo, ela cultiva os opostos, que são
parte do próprio mêdo. Assim, a mente divide-
se, cria dentro de si um processo dual. Todo
esforço por parte da mente tem de manter essa
dualidade, embora possa desenvolver tendên­
cias, características, virtudes, para dominar essa
mesma dualidade.

I n t e r r o g a n t e : Não compreendo bem


como a mente se dividiu em amor e ódio.

K r i s h n a m u r t i : Há o bem e o mal, a
luz e a treva. A luz e a treva não podem co­
existir. Uma destrói a outra.
Se a luz é luz, então a treva, o mal, cessa
de existir. O esforço é desnecessário, êle é ine­
xistente então. Mas nós estamos em um estado
de esforço contínuo, porque o que para nós é
luz, não é luz, é somente a luz, o bem o intelecto.
Estamos fazendo esforço constante para do­
minar, para adquirir, para possuir, para sermos
desprendidos, para desenvolver-nos. Há mo­
mentos de claridade no meio da confusão en­
volvente. Desejamos' esta claridade e apegamo-
nos a ela, esperando que dissolva os desejos em
conflito. Êste desejo de claridade, êste desejo
de dominar uma qualidade com outra, é perda

65
de energia; porque a vontade que anseia, a von-
tade que domina, é a vontade do sucesso, da sa­
tisfação, a vontade da segurança. Esta vontade
deverá sempre continuar a criar e manter o
mêdo, embora asseverando estar procurando a
verdade, Deus. Sua claridade é a da fuga, da
ilusão, mas não a claridade da realidade.
Quando a vontade se destrói, espontanea­
mente, há então esta verdade que está além de
todo esforço. O esforço é violência; o amor e
a violência não podem coexistir.
O conflito em que existimos não é uma luta
entre o bem e o mal, entre o eu e o não-eu. A
luta está em nossa própria dualidade auto-
criada, entre os nossos vários desejos auto-pro­
tetores. Não pode haver conflito entre a luz e
a treva; onde há luz, não há treva. Enquanto
o mêdo existe, o conflito tem de continuar, ain­
da que êsse mêdo possa difarçar-se sob dife­
rentes nomes. E como o mêdo não pode, de modo
nenhum, libertar-se, pois todos os seus esforços
brotam da sua própria fonte, é preciso haver a
cessação de tôdas as salvaguardas intelectuais.
Esta cessação vem espontaneamente, quando a
mente revela a si mesma o seu próprio pro­
cesso. Isto ocorre sómente quando há apercebi­
mento integral, que não é o resultado de uma
disciplina, ou de um sistema moral ou econô­
mico, ou da compulsão.

66
Cada um tem de se tornar apercebido do
processo da ignorância, das ilusões que criou.
O intelecto não vos afastará deste caos,
confusão e sofrimento presentes. A razão deve
exhaurir-se, não pela retração, mas pela com­
preensão e pelo amor integrais da vida.
Quando o raciocínio não tiver mais a capa­
cidade de proteger-vos com explicações, fugas,
conclusões lógicas, então, quando houver com­
pleta vulnerabilidade, desnudamento absoluto
de todo o vosso ser, haverá a chama do amor.
Sómente a verdade libertará cada um da
tristeza e da confusão da ignorância.
A verdade não é o resultado final da expe­
riência, é a vida mesma. Ela não é o amanhã,
não é de tempo algum. Não é um resultado,
uma consecução, mas a cessação do mêdo, do
querer.

6?
S E G U N D A P A R T E
ACAMPAMENTO DE OMMEN

1938

Tentastes alguma vez comunicar a um amigo


algo que sentíeis mui profundamente? Devíeis
ter achado isso muito difícil, por mais íntima
que fôsse essa amizade. Podeis imaginar como
é difícil compreendermo-nos aqui, pois aj
nossas relações são peculiares. Não há essa ami­
zade que é essencial para comunicação e enten­
dimento profundos. A maioria de nós tem a
atitude ou de um discípulo para com o pro­
fessor, ou de um seguidor, ou de quem tenta
forçar-se a um ponto de vista particular, e a
comunicação torna-se muito difícil. A compli­
cação é maior se tendes atitude propagandista,
se vindes meramente para propagar certas idéias

71
de uma seita ou sociedade particular, ou uma
ideologia popular no momento. A livre comu­
nicação só é possível quando ambos, quem ouve
e quem fala, pensam juntos sôbre o mesmo
ponto.
Durante estes dias de acampamento não de­
veria haver ésta atitude de mestre e discípulo,
de condutor e conduzido, mas antes uma inter­
comunicação amistosa que será impossível, se
a mente estiver presa a alguma crença ou ideo­
logia. Jamais pode haver amizade entre con­
dutor e seguidor, e, portanto, a profunda comu­
nicação entre ambos se torna impossível.
Estou falando de algo que, para mim, é real,
em que encontro alegria, e vos será de muito
pouco significado se estiverdes pensando em
algo inteiramente diverso. Se, de algum modo,
pudermos ir além destas absurdas relações, que
estabelecemos através da tradição e da lenda,
através da superstição e de tôda espécie de fan­
tasias, então talvez sejamos capazes de com­
preendermo-nos uns aos outros mais natural­
mente.
O que quero dizer parece muito simples, pelo
menos a mim, mas quando estes pensamentos o
sentimentos são expressos em palavras, tornam-
se complicados. A comunicação torna-se mais
difícil quando vós, com vossos preconceitos par­
ticulares, vossas superstições e barreiras, tentais
perceber o que procuro dizer, em vez de ten-

72
tardes aliviar as vossas mentes destas perversões
que impedem a compreensão completa — a única
que pode produzir uma atitude crítica e afe­
tuosa.
Como sabeis, êste acampamento não se des­
tina a fins de propaganda, seja da Direita ou
da Esquerda, ou de qualquer sociedade ou ideo­
logia particular. Sei que há muitos que aqui
veem regularmente para fazer propaganda das
sociedades a que pertencem, da sua nacionali­
dade, da sua igreja, etc. Assim, eu vos pediria
seriamente que não vos entregásseis a e3ta espé­
cie de passatempo. Estamos aqui para propó­
sitos mais sérios. Os que teem queda por essa
espécie de divertimento, teem bastantes opor­
tunidades em outros lugares. Aqui, pelo menos,
tentemos descobrir o que individualmente pen­
samos e sentimos, então, talvez principiemos, a
compreender o caos, o ódio que existe dentro
de nós, e ao nosso derredor.
Cada um de nós tem muitos problemas: se
deveria tornar-se pacifista, ou até onde deveria
ir em direção ao pacifismo; se deveria lutar
pelo seu país; problemas sociais econômicos, e
problemas de crença, conduta e afeição. Não
vou dar uma resposta que resolva imediatamente
estes problemas. Mas o que desejaria fazer se­
ria indicar uma nova maneira de tratá-los, de
modo que quando estivésseis enfrentando estes
problemas de nacionalismo, guerra, paz, explo-

73
ração, crença, amor, seríeis capaz de os defron­
tar integralmente e de um ponto de vista que
é real.
Assim, por favor, não espereis, no início
destas palestras, uma solução imediata para os
vossos vários problemas. Sei que a Europa é
um perfeito manicômio, em que se fala da paz
e, ao mesmo tempo, há preparação para a guerra;
em que fronteiras e nacionalismo são fortaleci­
dos e, ao mesmo tempo, se fala da unidade
humana; fala-se de Deus, do amor, e ao mesmo
tempo o ódio se desencadeia. Isto não é apenas
o problema do mundo, mas o vosso próprio pro­
blema, porque o mundo sois vós.
Para encarar estes problemas, tendes de
estar incondicionalmente livre. Se de algum
modo estiverdes limitado, isto é, se de algum
modo tendes mêdo, não podeis resolver nenhum
destes problemas. Somente na liberdade incon-
dicionada há verdade; isto é, somente na liber­
dade podeis ser verdadeiramente vós mesmo. Ser
integral, em todo o seu próprio ser, é estar in-
condicionado. Se de algum modo, por qualquer
meio tendes dúvida, ansiedade, mêdo, isto cria
a mente condicionada que obsta a solução última
dos'múltiplos problemas.
Quero explicar o modo de vos aproximar­
des da liberdade dos temores condicionantes,
afim de que possais ser vós próprio em todas as
ocasiões e sob todas as circunstâncias. Êste

74
estado sem medo é possível, somente nele pode
haver êxtase, realidade, Deus. A não ser que se
esteja plena, integralmente livre do medo, os
problemas apenas aumentam e se tornam sufo­
cantes, sem nenhum significado ou propósito.
É isto o que desejo dizer: que só na liber­
dade incondicionada há verdade, e sermos com­
pletamente nós mesmos, integrais em todo o
nosso ser, é estarmos incondicionados, o que
revela a realidade.
Assim, o que é — sermos nós mesmos? E
podemos ser nós mesmos em tôda ocasião? So­
mente o podemos ser em tôda ocasião, quando
estamos fazendo alguma cousa que realmente
amamos; e se amamos completamente. Quando
fazeis algo que não podeis deixar de fazer com
todo o vosso ser, estais sendo vós próprio. Ou
quando amais a outrem completamente, neste
estado sois vós próprio, sem nenhum temor, sem
nenhum obstáculo. Nestes dois estados somos
completamente nós mesmos.
Assim, temos de descobrir o que fazemos
com amor. Estou usando a palavra “amor” deli-
beradamente. O que é que fazeis com amor, com
todo o vosso ser? Não o sabeis. Não sabemos o
que é sensato e o 'que é insensato fazer, e a
descoberta do que é sensato e do que é insen­
sato constitue todo o processo de viver. Não
ireis descobrí-lo em um piscar de olhos.

75
Mas como se descobrirá isto? Poderá ser
descoberto — o que é sensato e o que é insen­
sato — mecanicamente, ou espontaneamente?
Quando fazeis algo, com todo o vosso ser, em
que não há sentimento de frustação ou mêdo,
nenhuma limitação, neste estado de ação sois
vós próprio, independente de qualquer condição
exterior. Digo, se puderdes chegar a este estado,
quando sois vós próprio na ação, então desco­
brireis o êxtase da realidade, Deus.
Pode êste estado ser mecanicamente atin­
gido, cultivado, ou surge espontaneamente?
Explicarei o que entendo por processo mecâ­
nico. Toda ação imposta pelo exterior tem de
ser formadora de hábitos, tem de ser mecânica,
e, portanto, não espontânea. Podeis descobrir
o que é ser vós mesmo, através da tradição?
Permití-me fazer aqui uma pequena digres­
são e dizer que tentaremos, como fizemos no
ano passado, falar destas idéias durante as re­
uniões seguintes. Tentaremos tratar dos vários
pontos, não argumentando um com o outro, mas
descobrindo de maneira amigável o que indivi­
dualmente pensamos sôbre estas cousas. Em mi­
nha primeira palestra desejo dar um ligeiro
esboço do que, para mim, é o verdadeiro pro­
cesso' de viver.
Podeis ser vós mesmo se o vosso ser está,
de qualquer modo, afetado pela tradição? Ou

76
podeis-vos encontrar através do exemplo, atra­
vés do preceito?

I n t e r r o g a n t e : Que é preceito?

K r i s h n a m u r t i : Através de um pre­
ceito, através de um dito — que mau é tudo
que divide e bom tudo que une — por mera­
mente seguir um princípio, podeis ser vós
mesmo? Poderá o viver de conformidade com
um padrão condutor, com um ideai, seguindo-o
implacavelmente, meditando sobre êle, trazer-
vos à descoberta de vós mesmo? Pode o que é
real ser percebido através da disciplina ou da
vontade? Isto é, pela compulsão, pelo esforço
do intelecto, curvando, controlando, discipli­
nando, guiando, forçando o pensamento em uma
direção particular, podeis conhecer-vos? E po­
deis conhecer-vos por meio de padrões de con­
duta; isto é, preconcebendo um modo de vida,
do que é bom, o ideal, e seguindo-o constante­
mente, torcendo o vosso pensamento e o vosso
sentimento aos seus ditames, afastando tudo o
que considerais mau, e cruelmente seguindo o
que considerais bom? Revelar-vos-á este pro­
cesso, qualquer que êle seja, o que realmente
sois? Podeis descobrir-vos pela compulsão?
Êste desapiedado domínio das dificuldades pela
vontade, pela disciplina, é uma forma de com-

77
pulsão — este sufocar e resistir, uma resistên­
cia e uma renúncia.
Tudo isto é o esforço da vontade, que consi­
dero mecânico, um processo do intelecto. Po­
deis conhecer-vos pelo emprego destes meios
— por intermédio destes meios mecânicos? Todo
esforço, mecânico, ou da vontade, é formador de
hábitos. Através da formação de hábitos podeis
ser capazes de criar certo estado, realizar certo
ideal em que podeis considerar serdes vós pró­
prio, mas como é o resultado de um esforço in­
telectual, ou do esforço da vontade, é inteira­
mente mecânico e porisso não verdadeiro. Pode
êste processo produzir a compreensão de vós
próprio, do que sois?
Há, então, o outro estado, que é espontâneo-
Podeis conhecer-vos somente quando estiverdes
despreocupado, quando não estiverdes calculan­
do, nem protegendo, nem constantemente obser­
vando para guiar, para transformar, para subju­
gar, para controlar; quando vos virdes inespe­
radamente, isto é, quando a mente não tiver
preconcepções com relação a si mesma, quando
estiver aberta, não preparada para defrontar o
desconhecido.
Se a vossa mente está preparada, por certo
não podeis conhecer o desconhecido, pois vós
sois o'desconhecido. Se vos disserdes, “ Sou
Deus”, ou, “ Não passo de um agrupamento de
influências sociais, ou de um feixe de qualida­

73
des” — se tiverdes qualquer preconcepção de
vós próprio, não podeis compreender o desco­
nhecido, o que é espontâneo.
Assim, a espontaneidade só pode surgir
quando o intelecto não se está defendendo,
quando não se está protegendo, quando já não
teme por si; e isto só pode suceder partindo
do interior. Isto é, o espontâneo deve ser o
novo, o desconhecido, o incalculável, o criativo,
o que deve ser expressado, amado, em que a
vontade, como processo do intelecto, contro­
lando, dirigindo, não toma parte. Observai os
vossos próprios estados emocionais e vereis que
os momentos de grande alegria, de grande
êxtase, não são premeditados; eles acontecem,
misteriosa, obscura, desconhecidamente. Quando
passados, a mente deseja re-criá-los, recaptu­
rá-los e assim dizei-vos: “ Se posso seguir cer­
tas leis, formar certos hábitos, agir dêste e não
daquele modo, então terei aqueles momentos de
êxtase novamente”.
Há sempre guerra entre o espontâneo e o
mecânico. Por favor, não adapteis isto para en­
quadrar-se em vossos têrmos religiosos, filo­
sóficos. Para mim, o que estou dizendo é vital­
mente novo e não pode ser torcido, para se
adaptar aos vossos' preconceitos particulares do
eu superior e inferior, do transitório e do per­
manente, do eu e do não-eu, e assim por diante.
A maioria de nós, infelizmente, quase destruiu

79
esta espontaneidade, esta alegria criativa do
desconhecido, a única de que pode resultar ação
sábia. Temos perseverantemente cultivado, atra­
vés de gerações de tradição, de moralidade ba­
seada na vontade, de compulsão, a atitude me­
cânica da vida, chamando-a pelos nomes mais
bem sonantes; em essência isto é puramente
mecânico, intelectual. O processo da disciplina,
da violência, do domínio, da resistência, da
imitação, — tudo isto é a resultante do desen­
volvimento do mero intelecto, que tem as sua"
raizes no medo. O mecânico está acabrunhado­
ramente dominante em nossas vidas. Nele está
baseada a nossa civilização e a nossa moralidade
— e em raros momentos, quando a vontade está
adormecida, esquecida, há a alegria do espontâ­
neo, do desconhecido.
Digo que só neste estado de espontaneidade
podeis perceber o que é a verdade. Somente
neste estado pode haver ação sábia, não a ação
da moralidade calculada, ou da vontade.
As várias formas de disciplinas moral e reli­
giosa, as inúmeras imposições das instituições
sociais e éticas, são apenas o resultado de uma
atitude mecânica, cuidadosamente cultivada com
relação à vida, que destrói a espontaneidade e
produz a destruição da verdade.
Através de nenhum método — e todos os
métodos devem inevitavelmente ser mecânicos
— podeis desemaranhar a verdade do vosso pró-

80
prio ser. Ninguém pode, por modo algum, forçar
a espontaneidade. Nenhum método vos dará a
espontaneidade. Todos os métodos apenas criam
reações mecânicas. Nenhuma disciplina produz ..
alegria espontânea do desconhecido. Quanto
mais vos esforçardes para ser espontâneo, tanto
mais a espontaneidade se afasta e se torna oculta
e obscura, e menos pode ser compreendida. E,
entretanto, é isto que estais tentando fazer quan­
do seguis disciplinas, padrões, ideais, condutores,
exemplos, e assim por diante. Tendes de vos
aproximar dela negativamente, não com a in­
tenção de capturar o desconhecido, o real.
Está cada um apercebido do processo mecâ­
nico do intelecto, da vontade, que destrói o es­
pontâneo, o real? Não podeis responder ime­
diatamente, mas podeis começar a pensar sôbre
o intelecto, sôbre a vontade, e especialmente
sentir a sua qualidade destrutiva. Podeis per­
ceber a natureza ilusória da vontade, não atra­
vés de qualquer uma compulsão, nem através,
de nenhum desejo de conseguir, de atingir, de
compreender, mas somente quando o intelecto
se permitir ser despido de todas as suas envol-
turas de proteção.
Podeis conhecer-vos somente quando amar­
des completamente. Isto, novamente, constitue
todo o processo da vida, não para ser colhido
em alguns momentos, de algumas palavras mi-

81
nhas. Não podeis ser vós mesmo quando o amor
é dependente. Não há amor quando há apenas a
auto-satisfação, ainda que seja mútua. Não há
amor quando há restrição; não há amor quando
apenas se trata de um meio para atingir a um
fim; quando há apenas sensação. Não podeis
ser vós mesmo quando o amor está rsob o jugo
do mêdo; há então mêdo, não amor, que se está
expressando por vários modos, embora possais
disfarçá-lo, chamando-o amor. O mêdo não vos
permite ser vós mesmo. O intelecto apenas guia
o medo, controla-o, porém jamais pode des­
truí-lo, porque o intelecto é a própria causa do
mêdo.
Desde que o mêdo não vos permite ser vós
próprio, como, então, se pode dominar êste mêdo
— mêdo de tôdas as espécies, não de um tipo
particular? Como nos podemos libertar dêste
mêdo, de que podemos estar concientes ou in-
concientes? Se estais inconciente do mêdo, tor-
nai~vios conciente dêle; tornai-vos apercebido
dos vossos pensamentos e das vossas ações e cêdo
estareis conciente do mêdo. E se estais con­
ciente, como ireis libertar-vos dêle? Ireis livrar-
vos do mêdo mecanicamente, por meio da von­
tade; ou, começará êle a dissolver-se por i
mesmo, espontaneamente? O processo mecânico
ou daJ vontade, pode apenas ocultá-lo cada vez
mais, guardá-lo, e cuidadosamente restringí-lc,
permitindo apenas as reações da moralidade

82
controlada. Sob este padrão de comportamento
controlado, o medo sempre continua. Êste é o
resultado inevitável do processo mecânico da
vontade, com as suas disciplinas, desejos, con­
trolos, e assim por diante.
Enquanto não nos libertamos do mecânico,
não pode haver o espontâneo, o real. Ansiando
pelo real, por esta chama que brota do interior,
não podeis produzí-la.
O que vos libertará do mecânico é a profunda
observação do processo da vontade, sendo uno
com êle, sem nenhum desejo de vos libertardes
dele. Presentemente, observais a atitude mecâ­
nica em relação à vida, com o desejo de vos
desembaraçardes dela, de alterá-la, de trans-
formá-la. Como podeis transformar a vontade,
quando o desejo é da própria vontade?
Tendes de estar apercebido de todo o pro­
cesso da vontade, do mecânico, com as suas
lutas, as suas fugas, as suas misérias; e como o
fazendeiro deixa o solo sem cultivo depois da
colheita, assim tendes de vos deixar ficar silen­
ciosos, negativos, sem nenhuma espectativa.
Isto não é fácil. Se na esperança de atingir o
real, mecanicamente vos deixardes ficar silen­
ciosos, vos forçardes a ser negativo, então o
medo é a recompensa. Como já disse, esta va­
cuidade criativa não é para que empós dela se
corra, ou para ser procurada por caminhos
errantes. Ela deve acontecer. A verdade é. Ela

83
não é o resultado da moralidade organizada
porque a moralidade baseada na vontade não é
moral.
Temos muitos problemas tanto individuais
como sociais, e para estes problemas não há
solução pelo intelecto, pela vontade. Enquanto
o processo da vontade continua, sob-^qualquer
forma, tem de haver confusão e tristeza. Atra­
vés da vontade, não podeis conhecer-vos, nem
pode haver o real.

84
II

Podeis recordar-vos de que eu tentava expli­


car a diferença entre a espontaneidade e a ação
mecânica, a mecanica sendo a moralidade da
vontade e a espontânea aquela que brota da pro­
fundeza do nosso próprio ser. Esta manhã
falarei sobre uma ou duas cousas concernentes
a isto, e depois as discutiremos.
Eu estava dizendo que o medo, sob qualquer
forma, cria o hábito, que impede a liberdade
incondicionada, a única em que há realidade, a
única em que a integridade pessoal pode existir.
O medo impede a espontaneidade.
Ora, seria quase ridículo e impossível con­
siderar o que é ser espontâneo, ou julgar quem
é espontâneo e quem não o é, e considerar tam­
bém as qualidades, ós característicos da espon­
taneidade. Cada um saberá o que é ser espon­
tâneo, ser real, quando houver a condição inter­
na adequada. Sabereis por vós próprio quando

35
fordes verdadeiramente espontâneo , quando
fordes realmente vós mesmo. Julgar outrem
para verificar se ele é espontâneo, significa
realmente que tendes um padrão de espontanei­
dade, o que é absurdo. O julgamento do que á
espontâneo revela a mente que apenas reage
mecanicamente aos seus próprios hábitos e
padrões morais.
Assim, é futil e perda de tempo, conducente
à mera opinião, considerar o que é ser real, es­
pontâneo, ser — se a si mesmo. Tais conside­
rações conduzem à ilusão. Vamos ocupar-nos
com o que constituo a condição necessária que
revelará o real.
Ora, qual é verdadeira condição? Não há tal
divisão como condição interna e externa; ape­
nas as estou dividindo em interna e externa para
fins de observação, para compreendê-las mais
claramente. Esta divisão não existe na realidade.
Somente do estado interno reto é que as
condições externas podem ser modificadas, me­
lhoradas e fundamentalmente transformadas.
Partindo do meramente superficial, isto é, do
externo, para criar as condições adequadas, pou­
co significado terá para a compreensão da ver­
dade, de Deus.
É preciso compreender o que é a verdadeira
condição interna, mas não por qualquer com­
pulsão externa, ou autoridade. A profunda mo­
dificação interna lidará sempre inteligente-

86
mente com as condições exteriores. De uma vez
por tôdas, percebamos plenamente a importân­
cia dessa necessária modificação interna e não
confiemos meramente na alteração das circuns­
tâncias externas. São sempre os motivos e as
intenções internas que modificam e controlam
o exterior. Motivos, desejos, não são fundamen­
talmente alterados pelo simples domínio do
exterior.
Se um homem é interiormente pacífico e
afetuoso, sem ganância, por certo este homem
não precisa de leis que lhe imponham a paz,
nem de polícia para regular a sua conduta, nem
de instituições para manter sua moralidade.
Temos dado atualmente grande importância
ao exterior, para manter a paz; através de insti­
tuições, leis, polícia, exército, igrejas, e assim
por diante, procuramos manter uma paz que não
existe. Pela imposição e pela dominação, opondo
violência à violência, esperamos criar um estado
pacífico.
Se realmente compreenderdes isto, profunda,
honestamente, então vereis a importância de
não tratar os muitos problemas da vida como o
externo e o interno, mas somente do ponto de
vista compreensivo e integral.
Portanto, qual é a condição interna neces­
sária para sermos nós mesmos, para sermos es­
pontâneos? A primeira condição interna neces­
sária, é que o mecanismo formador de hábitos

87
deve cessar. Qual é a força motriz atrás dêste
mecanismo?
Antes de responder a isto devemos primeira­
mente descobrir se os nossos pensamentos e sen­
timentos são o resultado do mero hábito, da
tradição, e se estão seguindo ideais e princípios.
A maioria de nós, se pensar realmente sobre o
assunto, de modo inteligente, honesto, verá que
os nossos pensamentos e sentimentos usual­
mente surgem de vários padrões convenciona­
dos, sejam ideais ou princípios.
A continuação dêste hábito mecânico e de
sua força motora é o desejo de estar certo. Todo
o mecanismo da tradição, da imitação, do exem­
plo, da construção de um futuro, do ideal, do
perfeito e da sua consecução, provém do desejo
de estar seguro; e o desenvolvimento de várias
qualidades supostamente necessárias é para sua
segurança, para o seu sucesso.
O desejo dá uma falsa continuidade ao nosso
pensamento e a mente apega-se a essa conti­
nuidade cujas ações são apenas o seguimento
de padrões, ideais, princípios, e o estabeleci­
mento do hábito. Assim, a experiencia jamais é
nova, fresca, alegre, criativa; e daí a extraordi­
nária vitalidade das cousas mortas, do passado.
Tomemos agora alguns exemplos e vejamos
o que quero dizer. Tomemos o hábito do nacio­
nalismo, que se está tornando cada vez mais
forte e cruel. Não é o nacionalismo, realmente,

88
um falso amor do homem? Aquele que é nacio­
nalista de coração nunca poderá ser um ser
humano completo. Para o nacionalista, o in-
ternacionalismo é uma mentira. Muitos insis­
tem que se pode ser nacionalista e ao mesmo
tempo não pertencer a nenhuma nação; isto é
uma impossibilidade e apenas uma astúcia da
mente.
Apegar-se a uma determinada parte da terra,
impede o amor pelo todo. Tendo criado o falso
e artificial problema do nacionalismo, procura­
mos resolvê-lo com argumentos astutos e com­
plexos em favor da sua necessidade e manuten­
ção por meio de armamentos, ódio e divisão.
Todas estas respostas teem de ser inteiramente
insensatas e falsas, pois o problema em si mesmo
é uma ilusão e uma perversão. Compreendamos
esta questão do nacionalismo, e a êste respeito,
pelo menos, permaneçamos sãos em um mundo
de arregimentação e insânia brutais.
Não é o amor organizado do próprio país,
com seus ódios e afeições arregimentados, culti­
vados e impostos através da propaganda, dos
condutores, meramente um interêsse rendoso?
Não existe esse pseudo-amor pela pátria porque
alimenta o egoísmo individual por caminhos
tortuosos? Tôda compulsão e gratificação de­
vem inevitavelmente criar hábitos mecânicos
que constantemente entram em conflito com a
integridade e as afeições individuais. Precon­

89
ceito, ódio, temor, teem de criar divisão, que
inevitavelmente produz a guerra; não apenas a
guerra no íntimo do próprio indivíduo, mas
também entre os povos.
Se o nacionalismo é apenas um hábito, que
devemos fazer? Não possuir um passaporte,
não vos liberta do hábito nacionalista. A mera
ação superficial não vos liberta da brutal con­
vicção íntima de uma superioridade racial par­
ticular. Quando vos defrontais com os senti­
mentos do nacionalismo, qual é a vossa reação?
Sentis que são inevitáveis, que tendes de passar
pelo nacionalismo para chegar ao internaciona-
lismo; que tendes de passar pelo brutal para vos
tornardes pacífico? Qual é o vosso raciocínio?
Ou não raciocinais absolutamente, mas apenas
seguis a bandeira porque há milhões fazendo
esta cousa absurda? Por que estais todos tão
silenciosos? Mas como estaríeis animados para
discutir comigo sobre Deus, a reincarnação ou
as cerimônias!
Esta questão do nacionalismo está batendo
à vossa porta, quer queirais ou não, e qual é a
vossa resposta?

I n t e r r o g a n t e : Não é possível conside­


rar o nacioalismo como um progresso do pro-
vincialismo? E , por consequência, o primeiro
passo para o internacionalismo?

90
Interrogante: Ê a mesma cousa, cer­
tamente.

I n t e r r o g a n t e : Considero o naciona­
lismo uma extensão do provincialismo.

In te r r o g a n t e : Parece-me, senhor, que


talvez deis demasiado realce à posição naciona­
lista. Parece-me que há hoje menos sentimento
nacional em certos lugares do globo do que
havia há cincoenta anos atrás, e que, à medida
que o tempo corre, o sentimento nacional pode
tornar-se menor entre cada vez maior número
de pessoas, e que o internacionalismo pode en­
tão ter mais oportunidade. Penso que é muito
importante dar tempo aos elementos moderados
da população para que aumentem os seus pen­
samentos e sentimentos internacionais e impe­
dir, se possível, alguma explosão que varreria
o bem da presente civilização, juntamente corn
o mal.

K r i s h n a m u r t i : O ponto é este, não é :


podeis, em qualquer época chegar à paz pela
violência — quer a' chameis provincialismo, na
cionalismo ou internacionalismo? Pode a paz
ser conseguida através de etapas lentas? O amor
não é uma questão de educação ou de tempo.

91
A última guerra £oi travada pela democracia,
creio, e vêde, estamos mais preparados para a
guerra do que nunca, e os indivíduos estão
menos livres. Por favor, não deis livre curso a
meras argumentações intelectuais. Ou tomais
os vossos sentimentos e pensamentos seriamente
e os examinais profundamente, ou ficais satis­
feito com superficiais respostas intelectuais.
Se pensais que estais procurando a verdade,
ou criando no mundo relações humanas verda­
deiras, o nacionalismo não é o meio; nem pode
esta relação humana de afeição, de amizade, ser
estabelecida por meio de canhões. Se amais pro­
fundamente, não há o um nem os muitos. Há
apenas esse estado de ser que é amor, em que
pode existir o único, mas não é a exclusão dos
muitos. Mas se vos dizeis que pelo amor de um
haverá o amor dos muitos, então não estais em
absoluto considerando o amor, porém apenas o
resultado do amor, o que é uma forma do medo.
Tomemos outro exemplo do processo do me­
canismo formador de hábitos, que destrói o
viver criativo. Precisais tornar-vos novos, para
compreender a realidade.
Tomemos a questão do modo porque trata­
mos as pessoas. Notastes como as tratais —
quem julgais superior, com grande considera­
ção, e o inferior com desdém ofensivo e indife­
rença? Notastes? (Sim ) Isto é evidente neste
Acampamento; o modo por que me tratais e o

92
modo por que tratais os vossos companheiros
de acampamento, ou aqueles que auxiliam à exe­
cução dos trabalhos; a maneira por que vos
portais com uma pessoa titulada e com uma
pessoa comum; o respeito que tendes ao di­
nheiro e o que não tendes ao pobre, e assim por
diante. Não é isto o resultado do mero hábito,
da tradição, da imitação, do desejo de ter su­
cesso, do hábito de satisfazer a própria vaidade?
Por favor, pensai realmente sobre isto e
percebei como a mente vive e continua no
hábito, embora afirmando que deve ser es­
pontânea, livre. Qual é a vantagem de prestar-
me atenção se a cousa evidente está escapando
à vossa consideração? Estais silenciosos nova­
mente, porque isto é um acontecimento comum
em vossas vidas, e dêste modo ficais um pouco
nervosos ao tratardes dêste assunto, pois não
desejais ser expostos tão radicalmente.
Se existe este hábito — e é meramente um
hábito e não uma ação deliberada, conciente,
exceto no caso de alguns poucos — quando dele
vos tornardes conciente, êle desaparecerá, se
realmente amais todo este processo de viver.
Mas se não estais interessado, ouvir-me-eis e
podeis ficar intelectualmente excitado por
alguns minutos, mas continuareis no mesmo
modo antigo. Mas aqueles de vós que se acham
profundamente interessados, que gostam de
compreender a verdade, a vós eu digo, observai

93
como este ou qualquer outro hábito cria uma
cadeia de memórias que se tornam cada vez
mais fortes, até que somente permanece, o “ eu” ;
o “mim”. Êste mecanismo é o “ eu” e enquanto
existir êste processo não pode haver o êxtase
do amor, da verdade.
Tomemos outro exemplo, o da meditação.
Vejo agora que começais a tomar interêsse. O
nacionalismo, a maneira de tratarmos as pes­
soas, o amor, a meditação — tôdas estas cousas
fazem parte do mesmo processo; tôdas elas sur­
gem da mesma origem, mas vamos examiná-los
separadamente afim de os compreender melhor.
Talvez discutais comigo esta questão da me­
ditação, pois a maioria de vós, de um ou outro
modo, pratica esta cousa chamada meditação,
não é? (Sim e Não) Alguns praticam; outros
não. Aqueles de vós que a praticais, por que o
fazeis? E aqueles de vós que não a praticais,
por que não o fazeis? Aqueles que não meditam,
qual é o motivo deles? Ou a sua atitude é de
completa irreflexão, indiferença, ou teem mêdo
de ficar envolvidos nessas ninharias, ou temem
revelar-se a si próprios, ou há o temor de adqui­
rir hábitos novos e inconvenientes, e assim por
diante. Os que meditam, qual é o seu motivo?

I n t e r r o g a n t e : Egoísmo.

94
K ri s h n a m u r t i : Proferis essa palavra
como explicação? Também vos posso dar uma
explicação ótima, mas estamos tentando ir além
das meras explicações. Estas, usualmente, para-
lizam o pensar. Que estamos tentando fazer ao
discutir este assunto? Estamos nos expondo.
Estamos nos ajudando mutuamente a ver o que
somos. Estais agindo como um espelho para
mim, e do mesmo modo eu para vós, sem dis-
torsão. Mas se simplesmente oferecerdes e der­
des uma explicação, apenas atirardes algumas
palavras, embaciareis o espelho, o que impede a
percepção clara.
Estamos tentando descobrir porque medita­
mos e o que isto significa. Aqueles de vós que
meditais, provavelmente o fazeis porque sentis
que necessitais de certo equilíbrio e claridade,
por meio da introspecção, para tratar dos pro­
blemas da vida. Assim, dedicais algum tempo
para esse propósito e esperais durante êste pe­
ríodo entrar em contacto com algo real, que
vos ajudará a guiar-vos durante o dia. Não é
assim? (Sim). Durante êste período começais a
disciplinar-vos, ou durante todo o dia discipli­
nais os vossos pensamentos e sentimentos e,
do mesmo modo, as vossas ações, de acordo com
o padrão estabelecido naqueles poucos instantes
da chamada meditação.

95
I n t e r r o g a n t e : Não, considero-a um de-
gráu na senda para a libertação do eu, um passo
apenas.

K r i s h n a m u r t i : Certamente dizeis a
mesmo cousa que estou salientando, somente
empregais as vossas próprias palavras. Podeis
por meio da disciplina libertar o pensamento,
libertar a emoção? É esta a questão que o inter­
rogante levanta. Pode alguém disciplinar-se
afim de se tornar espontâneo, de compreender o
desconhecido, o real? A disciplina implica em
um padrão, um molde que está modelando, e o
que é verdade tem de ser o desconhecido e não
pode ser atingido através do conhecido.

I n t e r r o g a n t e : Penso que medito por­


que desejo conhecer-me, porque me temo, por­
que me odeio como odeio o meu próximo, e
desejo conhecer-me para me proteger. Odeio o
meu próximo e o amo. Odeio-o porque ameaça
os meus hábitos, o meu bem-estar. Amo-o por­
que o desejo. Sou nacionalista porque tenho
receio dos outros, além da fronteira. Protejo-me
por todos os meios possíveis.

K r i s h n a m u r t i : Dizeis que meditais


afim de proteger-vos. (Sim ) É isto, mas deve-

95
ríamos aprofundar-nos mais nesta questão da
disciplina, não somente da disciplina imposta
pelo mundo exterior, através das várias institui­
ções de moralidade organizada, através de sis­
temas sociais particulares, mas também da dis­
ciplina que o desejo desenvolve.
A disciplina imposta pelo exterior, pela so­
ciedade, pelos condutores, e assim por diante,
deve inevitavelmente destruir o preenchimento
individual; penso que isto é assás óbvio. Porque
tal disciplina, compulsão, conformidade, apenas
adia o problema inevitável do mêdo individual,
com as suas múltiplas ilusões.
Ora, há muitas razões para nos disciplinar­
mos; há o desejo de proteger-nos de vários mo­
dos, pela consecução, pela tentativa de nos tor­
narmos mais sábios, mais nobres, pelo encontro
de um Mestre, pelo nos tornarmos mais virtuo­
sos, pela persecução de princípios, ideais, pelo
desejar e ansiar pela verdade, pelo amor, etc.
Tudo isto indica trabalho do mêdo e as razões
nobres são apenas a cobertura deste mêdo inato.
Dizei-vos mentalmente: “Para atingir Deus,
para descobrir a realidade, para por-me em co­
munhão com o Absoluto, com o Cósmico” —
conheceis tôdas as frases — “ devo começar a
disciplinar-me. Devo aprender a ser mais con­
centrado. Devo praticar o apercebimento, desen­
volver certas virtudes”. Quando estais asseve­
rando estas coisas e vos disciplinando, que está

97
acontecendo aos vossos pensamentos e às vossas
emoções?

I n t e r r o g a n t e : Quereis dizer que n


uma forma de auto-glorificação?

I n t e r r o g a n t e : Estamos formando há­


bitos.

K r i s h n a m u r t i : Suponhamos que al­


guém conceba um padrão do que é bom, ou êle
lhe tenha sido imposto pela tradição, pela edu­
cação, ou que alguém tenha aprendido que mal
é tudo o que divide; e se êste é o ideal, o padrão
de conduta na vida, que alguém segue através
da meditação, através da disciplina auto-im-
posta, então, o que está sucedendo aos seus
próprios pensamentos e emoções? Êle os está
forçando, violenta ou suavemente, a conforma-
rem-se e, deste modo, estabelecendo um hábito
novo em lugar do velho. Não é assim? (Sim).
Assim, o intelecto, a vontade, está contro­
lando e modelando a moralidade; a vontade
baseada no desejo de proteger-se. O desejo de
proteger-se nasce do mêdo, que nega a reali­
dade. O caminho da disciplina é o processo do
mêdo, e o hábito criado pela chamada meditação
destrói a espontaneidade, a revelação do des­
conhecido.

98
I n t e r r o g a n t e : Não será possível for­
mar-se um hábito de amor, sem perder a espon­
taneidade?

K r i s h n a m u r t i : O hábito provém da
mente, da vontade, cuja ação é apenas a dc
dominar o mêdo sem destruí-lo. As emoções são
criativas, vitais, novas, e portanto, não podem
ser transformadas em hábitos, por mais que i
vontade tente dominá-las e controlá-las.
É a mente, a vontade, com os seus apegos,
desejos, temores, que cria o conflito entre si e
a emoção. O amor não é a causa da miséria;
são os temores, os desejos, os hábitos da mente
que criam a dôr, a agonia do ciúme, a desilusão.
Tendo criado o conflito e o sofrimento, a mente,
com a sua vontade de satisfação, encontra ra­
zões, desculpas, fugas, que são chamadas por
vários nomes — desapego, amor impessoal, e
assim por diante. Devemos compreender todo
o processo do mecanismo formador de hábitos,
e não indagar qual seja a disciplina, o padrão
ou o ideal melhor. Se a disciplina é coordena­
ção, então não pode ser realizada pela com­
pulsão, por meio de qualquer sistema. O indi­
víduo deve compreender a sua própria profunda
complexidade e nãó apenas procurar um padrão
para preenchimento.
Não pratiqueis disciplinas, nem sigais pa­
drões ou meros ideais, mas estai apercebido do

99
p r o c e s s o d a f o r m a ç ã o d o s h á b ito s . T e n d e c o n -
c iê n c ia d o s v e lh o s s u lc o s p o r o n d e a m e n te te m
c o r r id o , e ta m b é m d o d e s e jo d e f o r m a r o u t r o s
n o v o s . E x p e r im e n ta i is t o s e r ia m e n t e ; ta lv e z
p o s s a h a v e r m a io r c o n f u s ã o e s o f r im e n to , p o r ­
q u e a d is c ip lin a , a s l e i s m o r a is , te e m apenas
a tu a d o n o s e n tid o d e c o n te r o s d e s e jo s e p r o p ó ­
s ito s o c u lto s . Q u a n d o e s tiv e r d e s i n t e g r a lm e n t e
a p e r c e b id o , co m t o d o o v o sso ser, d e s ta c o n ­
f u s ã o e s o f r im e n to , s e m q u a lq u e r e s p e r a n ç a d e
f u g a , e n tã o s u r g i r á e s p o n ta n e a m e n te o q u e é
r e a l. P o rém d e v e is a m a r , f i c a r e n tu s ia s m a d o
p e la p r ó p r i a c o n f u s ã o e s o f r im e n to . T e n d e s d e
a m a r com o v o sso p ró p r io co ração , n ão com o
d e o u tr e m .
Se p rin c ip ia rd e s a e x p e rim e n ta r convosco
m e sm o , v e r e is o c o r r e r u m a c u r io s a t r a n s f o r m a ­
ç ã o . N o m o m e n to d a m a io r c o n f u s ã o h á c l a r i ­
dade; no m o m e n to d o m a io r m e d o há a m o r.
T e n d e s d e c h e g a r a is to e s p o n ta n e a m e n te , s e m
o e s f o r ç o d a v o n ta d e .
S u g ir o s e r ia m e n te q u e e x p e r i m e n t e i s c o m o
q u e v e n h o d iz e n d o e e n tã o c o m e ç a r e is a v e r o
m o d o p e lo q u a l o h á b ito d e s t r ó i a p e r c e p ç ã o
c r ia tiv a . M a s is to n ã o é c o u s a q u e p o s s a s e r
d e s e ja d a o u c u ltiv a d a . N ão se p o d e t a t e a r à
p r o c u r a d e la .

100
III

V enho te n ta n d o e x p lic a r q u a l a c o n d iç ã o
i n t e r n a c o r r e ta , e m q u e p o d e m o s s e r v e r d a d e i r a ­
m e n te n ó s m e s m o s ; q u e e n q u a n to o m e c a n is m o
fo rm a d o r de h á b ito s e x is tir, n ão p o d em o s ser
n ó s m e s m o s , e m b o ra ê s te m e c a n is m o s e j a c o n ­
s id e r a d o b o m . T o d o h á b i t o d e v e i m p e d i r a c la ­
re za de p ercep ç ão e o c u lta r a n o ssa p ró p r ia
in t e g r i d a d e . Ê s t e m e c a n is m o f o i d e s e n v o lv id o
c o m o u m m e io d e f u g a , u m p r o c e s s o d e o c u lta r ,
d e e n c o b r ir a n o s s a p r ó p r i a c o n f u s ã o e i n c e r ­
t e z a s ; f o i d e s e n v o lv id o p a r a e s c o n d e r a f u t i l i ­
d a d e d a s n o s s a s p r ó p r ia s a ç õ e s e a r o t i n a d d
tr a b a lh o , d a o c u p a ç ã o ; o u p a r a f u g i r à v a c u id a ­
d e , à t r i s t e z a , à d e c e p ç ã o , e a s s im p o r d ia n te .
E s ta m o s t e n t a n d o esc ap ar, fu g ir da ig n o ­
râ n c ia e do m ed o , p e la fo rm a ç ã o d e h á b ito s
q u e os c o n tr a b a la n ç a r ã o , q u e l h e s r e s is t i r ã o —
h á b ito s d e id e a is e d e m o r a lid a d e . Q u a n d o h á

101
d e s c o n te n ta m e n to , t r i s t e z a , o in t e l e c t o m e c a n i­
c a m e n te s u r g e c o m s o lu ç õ e s , e x p lic a ç õ e s , t e n ­
t a t i v a s d e s u g e s tõ e s , q u e g r a d u a l m e n t e se c r i s ­
ta l i z a m e se to rn a m h á b ito s de p e n s a m e n to ,
A s s im o s o f r im e n to e a d ú v id a sã o a c o b e r ta d o s ,
É o m ê d o , p o r t a n t o , a r a iz d ê s s e m e c a n is m o
f o r m a d o r d e h á b ito s . D e v e m o s c o m p r e e n d e r o
se u p ro c e sso . P o r c o m p re e n d e r n ão q u e ro s ig n i­
fic a r a p e n a s o m e ro a p a n h a d o in te le c tu a l, m as
o t o r n a r - s e c o n c ie n te d ê le co m o u m p r o c e s s o
a t u a l q u e e s tá o c o r r e n d o , n ã o s u p e r f i c i a l m e n t e ,
m as c o m o a lg o q u e e s tá a c o n te c e n d o d ia ria ­
m e n te n a n o s s a v id a . O e n t e n d im e n to é u m p r o ­
c e s s o d e a u to - r e v e la ç ã o , d e e s t a r a p e r c e b id o , n ã o
a p e n a s o b je tiv a m e n te , m a q u in a lm e n te , m a s co m o
p a r t e d a n o s s a p r ó p r i a e x is tê n c ia .
A f i m d e c o m p r e e n d e r m o s ê s te m e c a n is m o d a
f u g a p e lo h á b ito , te m o s p r i m e i r a m e n te d e d e s ­
c o b r ir o m o tiv o o c u lto — o m o tiv o que nos
im p e le p a r a c e r ta s a ç õ e s , q u e t r a z e m em seu
r a s tr o o que d e n o m in a m o s e x p e r iê n c ia . En­
q u a n to n ã o c o m p re e n d e rm o s a fô rça m o to r a
d ê s te m e c a n is m o que c r ia a fu g a , c o n s id e r a r
a p e n a s a s f u g a s é d e p o u c o v a lo r .
A e x p e r i ê n c i a é u m p r o c e s s o d e a c u m u la ç ã o
e d e d e s n u d a m e n to , d e r e v e la ç ã o e d e f o r t a l e ­
c im e n to d e a n t i g o s h á b ito s , d e d e s t r u i ç ã o e d e
c o n s tr u ç ã o do q u e c h a m a m o s a v o n ta d e . A e x p e ­
r i ê n c i a , o u f o r t a l e c e a v o n ta d e , o u , e m c e r to s
m o m e n to s , a d e s t r ó i ; o u c o n s tr ó i d e s e jo s c o m

102
f in a lid a d e , o u r o m p e os d e s e jo s q u e h a v ía m o s
a c u m u la d o , a p e n a s p a r a c r ia r o u tr o s . N e s te p r o ­
c e sso d e p a s s a r p o r e x p e r iê n c ia s , d e v iv e r , h á a
f o r m a ç ã o g r a d u a l d a v o n ta d e .
O r a , n ã o h á v o n ta d e d iv in a , m a s a p e n a s a
v o n ta d e s im p le s , c o m u m , d o d e s e jo : a v o n ta d e
d e o b te r s u c e s s o , d e e s ta r s a t i s f e i t o , d e se r.
E s t a v o n ta d e é u m a r e s is tê n c ia , e é o f r u t o do
m ê d o q u e g u ia , e s c o lh e , ju s tif ic a , d is c ip lin a .
E s t a v o n ta d e n ã o é d iv in a . E l a não e s tá em
c o n f lito co m a c h a m a d a v o n ta d e d iv in a , m a s,
d e v id o à s u a p r ó p r i a e x is tê n c ia , é u m a f o n te
d e t r i s t e z a e d e c o n f lito , p o r q u e é a v o n ta d e
d o m ê d o . N ã o p o d e h a v e r c o n f li t o e n t r e a lu z e
a t r e v a ; o n d e e x is te u m a , n ã o e x i s t e a o u tr a .
P o r m a is q u e g o s te m o s d e v e s t i r e s ta v o n ta d e
co m a d iv in d a d e , co m p r i n c í p i o s e n o m e s a l t i s ­
s o n a n te s , a v o n ta d e é, em s u a e s s ê n c ia , o r e s u l ­
ta d o do m ê d o , d o d e s e jo .
A lg u n s te e m c o n c iê n c ia d e s ta v o n ta d e do
m ê d o , co m tô d a s a s s u a s p e r m u ta ç õ e s e c o m b i­
n a ç õ e s . T a lv e z a l g u n s p e r c e b a m e s ta v o n ta d e
co m o s e n d o m ê d o e t e n t e m d e s t r u í - l a s e g u in d o -
lh e a s m ú l ti p l a s ex p ressõ es e a s s im c r ia n d o
a p e n a s o u tr a f o r m a d e v o n ta d e , q u e b r a n d o u m a
r e s is tê n c ia a p e n a s p a r a c r ia r o u tr a .
A s s im , a n t e s d e c o m e ç a rm o s a p e s q u is a r os
m e io s e m o d o s d e d e s t r u i r o m ê d o p e la d is c i­
p lin a , p e la f o r m a ç ã o d e n o v o s h á b ito s , e a s s im
p o r d ia n te , d e v e m o s p r im e ir a m e n te c o m p r e e n d e r

103
o m o tiv o m o to r q u e se e n c o n tr a a t r á s d a v o n ­
t a d e . J á e x p liq u e i o q u e e n te n d o p o r c o m p r e e n ­
sã o . E s t a c o m p r e e n s ã o n ã o é u m p r o c e s s o i n t e ­
le c tu a l, a n a lític o . N ã o é a s s u n to p a r a a s a la d e
v i s i ta s o u p a r a o e s p e c ia lis ta , m a s d e v e s e r c o m ­
p r e e n d i d a n a s a ç õ e s c o m u n s , em n o s s a s r e la ç õ e s
d iá r ia s . I s t o é, o p r o c e s s o d e v iv e r r e v e la r - n o s - á ,
se e s tiv e r m o s c o m p le ta m e n te a p e r c e b id o s , o
f u n c io n a m e n to d e s ta v o n ta d e , d ê s te h á b ito , o
c í r c u lo v ic io s o de c r ia r u m a re s is tê n c ia a p ó s
o u tra , a q u e p o d em o s d a r d ife re n te s n o m es —
id e a is , a m o r, D e u s , v e r d a d e , e a s s im p o r d ia n te .
O p o d e r - m o to r q u e e s t á p o r t r á s d a v o n ta d e
é o m ê d o , e q u a n d o p r in c ip ia m o s a c o m p r e e n d e r
is to , o m e c a n is m o d o h á b ito in te r v e m , o f e r e c e n ­
d o n o v as fu g a s, n o v as e sp e ra n ç a s, n o v o s d eu se s.
O ra , é p r e c is a m e n te n e s t e m o m e n to , q u a n d o a
m e n te com eça a i n te r f e r ir n a c o m p re e n sã o do
m êdo, que deve haver in te n s o a p e r c e b im e n to
p a r a n ã o se s e r d e s v ia d o o u d i s t r a í d o p e la s o f e ­
r e n d a s d o in te l e c t o , p o is a m e n te é s u t i l e a s t u ­
c io s a . Q u a n d o h á a p e n a s m ê d o , s e m q u a lq u e r
e s p e r a n ç a d e f u g a , n o s m a is n e g r o s m o m e n to s ,
n a m a is c o m p le ta s o lid ã o do m êdo, aí su rg e ,
c o m o d o i n t e r i o r d e s i p r ó p r io , a lu z que o
d is s ip a r á .
Q u a lq u e r t e n t a t i v a q u e f i z e r m o s s u p e r f i c i a l ­
m e n te , in te l e c t u a l m e n t e , p a r a d e s t r u i r o m ê d o ,
a t r a v é s d a s v á r ia s f o r m a s d e d is c i p l in a s o u d e
p a d r õ e s d e c o m p o r ta m e n to , a p e n a s c r ia o u t r a s

104
f o r m a s d e r e s i s t ê n c i a s ; e é n e s t e h á b ito q u e
e s ta m o s p r e s o s . Q u a n d o p e r g u n t a i s c o m o v o s
d e s e m b a r a ç a r d o m ê d o , c o m o d e s t r u i r o s h á b i­
to s , e s ta is r e a lm e n te e n c a r a n d o o p r o b le m a do
e x te r io r , in te le c tu a lm e n te e, p o rta n to , vossa
p e r g u n ta n ã o te m s ig n if ic a ç ã o . N ã o p o d e is d is ­
s o lv e r o m ê d o p e la v o n ta d e , p o i s e s ta é f i l h a
d o m ê d o jta m p o u c o p o d e ê le s e r d e s t r u i d o p e lo
“ a m o r ” , p o r q u e se o a m o r é u t i li z a d o com o
p r o p ó s i t o d e d e s tr u iç ã o , j á n ã o é a m o r, p o ré m ,
u m o u t r o n o m e d a v o n ta d e .

I n t e r r o g a n t e : Por lavor, o que c


Os que o atingiram sustentam que é a
s a m a d h i?
verdadeira realização. Não é êle, ao contrário,
apenas uma forma de suicídio, o resultado final
de um sistema artificial? Não há nele uma com­
pleta ausência de toda atividade criativa? Indi­
cais a necessidade de sermos nós mesmos, en­
quanto que o s a m a d h i é um mero suicídio, não é?

K r i s h n a m u r t i : Q u a lq u e r p r o c e s s o c o n ­
d u c e n te à lim ita ç ã o , à r e s is tê n c ia , a u m a e s p é c ie
d e is o la r m o - n o s c o m p le ta m e n te p ara chegar a
um e s ta d o in te le c tu a l ou id e a l, é d e s tru id o r
d o v iv e r c r ia tiv o . C e r ta m e n te i s t o é ó b v io . I s t o
é, se a lg u é m p o s s u e u m id e a l d e a m o r — e to d o s
o s id e a is te e m d e s e r i n t e l e c t u a i s e, p o r ta n to ,
m e c â n ic o s — e t e n t a p r a tic á - lo , t r a n s f o r m a r o

105
a m o r e m h á b ito , c h e g a r á c e r ta m e n te a u m e s ta d o
d e f in id o . M a s n ã o é o d e a m o r, é a p e n a s u m
e s ta d o d e c o n s e c u ç ã o i n t e l e c t u a l .
A p e r s e c u ç ã o d o id e a l é t e n t a d a p o r to d o s
o s p o v o s ; o s I n d ú s f a z e m - n ’a a s e u m o d o , o s
C r is tã o s e o u tr o s g r u p o s r e lig io s o s ta m b é m o
f a z e m . O m ê d o c r ia o id e a l, o p a d r ã o , o p r i n ­
c íp io , p o rq u e a m e n te p ro c u ra s a tis f a ç ã o .
Q uando e s ta s a tis f a ç ã o é am eaçada, a m e n te
f o g e p a r a o id e a l. T e n d o o m ê d o c r ia d o o p a ­
d rã o , m o ld a o p e n s a m e n to e o d e s e jo , d e s t r u i n d o
g r a d u a l m e n t e a e s p o n ta n e id a d e , o d e s c o n h e c id o ,
o c r ia tiv o .

I n t e r r o g a n t e : O maior mêdo que


tenho é que a vida de outrem, ou a minha pró-
pria, seja estragada.

K r i s h n a m u r t i : N ão e s tá cad a um , a
s e u m o d o , d e s t r u i n d o a s u a p r ó p r i a v id a ? N ã o
e s ta m o s d e s t r u i n d o a n o s s a p r ó p r i a i n t e g r i d a d e ?
P e l o s n o s s o s p r ó p r io s d e s e jo s , p e lo n o s s o p r ó ­
p r io c o n d ic io n a m e n to , e s ta m o s d e s tru in d o as
n o s s a s v id a s in d i v id u a is . T e n d o o c o n tr o lo de
o u tr e m e a c a p a c id a d e d e e s t r a g a r a n o s s a p r ó ­
p r i a v id a , p r o c e d e m o s à d e f o r m a ç ã o d a v id a d e
o u tr e m , s e j a d e u m a c r ia n ç a , d e u m s u b o rd i­
n a d o , o u d e u m v iz in h o .

106
H á in s t it u i ç õ e s , g o v e r n a m e n ta is e r e lig io s a s ,
à s q u a is , v o l u n t á r i a o u in v o lu n ta r ia m e n te , s o ­
m os fo rçad o s a nos c o n f o r m a r . A s s im , a q u e
e s p é c ie d e e s t r a g o se r e f e r e o i n t e r r o g a n t e ? À
d e lib e r a d a p e r v e r s ã o d a p r ó p r i a v i d a i n d iv id u a l,
o u à d e f o r m a ç ã o d a v id a d e a lg u é m p o r p o d e ­
r o s a s i n s t it u i ç õ e s ? A n o ssa re açã o n a tu ra l é
d iz e r q u e a s i n s t it u i ç õ e s , g r a n d e s e p e q u e n a s ,
e s tã o co rro m p e n d o as n o ssas v id a s . A n o ssa
r e a ç ã o é p ô r a c u lp a n o que é e x te rio r, n as
c ir c u n s tâ n c ia s .
E m o u tr a s p a la v r a s , e s ta m o s e m u m m u n d o
d e a r r e g im e n ta ç ã o , d e c o m p u ls ã o , d e té c n ic a
g o v e r n a m e n ta l a s tu c io s a e d e r e li g i õ e s o r g a n i ­
z a d a s p a r a a n i q u i l a r o i n d i v íd u o — e q u e se
d e v e f a z e r ? C o m o d e v e a g i r o in d i v íd u o ? G o s ­
t a r i a s a b e r q u a n t o s d e n t r e v ó s v o s t e r í e i s f e ito
s e r ia m e n te e s ta p e r g u n ta . A lg u n s podem te r
c o m p r e e n d id o a b r u t a l i d a d e d e t u d o i s t o e se
f ilia d o a s o c ie d a d e s o u g r u p o s q u e p r o m e te m
a l t e r a r c e r t a s c o n d iç õ e s . P o r é m , n o p r o c e s s o d e
a lte r a ç ã o , a o r g a n iz a ç ã o do p a r ti d o , d a s o c ie ­
d a d e , a s s u m iu v a s ta s p r o p o r ç õ e s e to r n o u - s e d a
m á x im a im p o r tâ n c ia . E , d ê s te m o d o , o i n d i v í ­
d u o f i c a n o v a m e n te p r e s o em s u a s e n g r e n a g e n s .
C o m o e n c a r a r e s ta q u e s tã o ? D o e x t e r i o r o u
d o i n t e r i o r ? N ã o h á d iv is ã o e m e x t e r n o e i n ­
te r n o , m a s, a p e n a s m o d if ic a n d o o e x te r n o , n ã o
p o d em o s m o d ific a r fu n d a m e n ta lm e n te o in te rn o
S e t e n d e s c o n c iê n c ia d e q u e e s ta is a r r u i n a n d o

107
a v o s s a p r ó p r i a v id a , c o m o p o d e is v o s d i r i g i r
a u m a i n s t it u i ç ã o , o u a u m p a d r ã o e x te r n o , p a r a
q u e v o s a u x ilie ?
S e s e n t i r d e s p r o f u n d a m e n t e q u e a v io lê n c ia ,
so b q u a lq u e r f o r m a , p o d e a p e n a s le v a r à v io ­
lê n c ia , e m b o r a n ã o p o s s a is p arar as g u e rra s,
s e r e is p e lo m e n o s u m c e n tr o d e s a n id a d e , c o m o
u m m é d ic o n o m e io d a d o e n ç a . A s s im , d o m e s m o
m o d o , s e p e r c e b e r d e s i n t e g r a lm e n t e d e q u e m a ­
n e i r a e s t a i s e s t r a g a n d o a v o s s a v id a , e s ta p e r ­
cep ção m esm a co m e ç a rá a c o r rig ir as co u sa s q u e
e s tã o d e f o r m a d a s . T a l ação n ão é fu g a .

I n t e r r o g a n t e : Devemos retornar ao
passado? Devo ter conciência do que tenho
sido? Devo conhecer meu karma?

K r i s h n a m u r t i : Em e s ta n d o a p e rc e b i­
d o , t a n t o o p a s s a d o c o m o o p r e s e n t e sã o r e v e ­
la d o s , o q u e n ã o c o n s t i t u e u m p r o c e s s o m i s t e ­
r io s o , m a s e m t e n t a n d o c o m p r e e n d e r o p r e s e n te ,
o s te m o r e s e a s l im ita ç õ e s passadas sã o re ­
v e la d o s .
K a r m a é u m a p a l a v r a s â n s c r i ta c u j o v e r b o
s i g n i f i c a a g ir . U m a f i l o s o f i a d e a ç ã o f o i c r ia d a
e m t o r n o d a i d é i a c e n tr a l , “ C o n f o r m e s e m e a r ­
d e s , a s s im c o l h e r e i s ’’, m a s n ã o n e c e s s ita m o s
t r a t a r d is to a g o r a . V e m o s q u e q u a lq u e r ação
n a s c id a d a i d é i a d e r e c o m p e n s a o u d e c a s tig o

108
te m d e s e r l i m i t a d o r a , p o is t a l a ç ã o s u r g e do
m edo. A ação o u tra z c l a r id a d e o u co n fu são ,
d e p e n d e n d o d o c o n d ic io n a m e n to i n d iv id u a l. S e
f o r m o s c r ia d o s a d o r a n d o o s u c e s s o , s e ja a q u i o u
n a ch am ad a e s fe ra e s p iritu a l, te m de haver a
busca de re c o m p e n sa com os seus te m o r e s ,
e s p e r a n ç a s , q u e c o n d ic io n a m tô d a ação, to d o
v iv e r . O v iv e r e n tã o se t o r n a u m p r o c e s s o de
a p r e n d iz a d o , d e c o n s t a n t e a c ú m u lo d e c o n h e c i­
m e n to . P o r q u e a c u m u la m o s e s s e c h a m a d o c o ­
n h e c im e n to ?

I n t e r r o g a n t e : Não devemos ter em


nós mesmos certa norma de ação?

K r i s h n a m u r t i : A g o ra ch eg am o s à p e r­
g u n t a f u n d a m e n t a l : d e v e m o s v iv e r d e a c o r d o
c o m p a d r õ e s , s e ja m e x t e r n o s o u i n t e r n o s ? N ó s
f a c ilm e n te re c o n h ec em o s os p a d r õ e s e x te r n o s
co m o c o m p u ls ó r io s e, p o r t a n t o , o b s ta n d o o p r e ­
e n c h im e n to in d i v id u a l. V o lta m o - n o s p a r a u m
p a d rã o in te rn o que cada um c r io u a t r a v é s d a
a ç ã o e re a ç ã o , a t r a v é s d o ju l g a m e n t o d o s v a lo ­
re s , d o s d e s e jo s , d a s e x p e r iê n c ia s , d o s te m o re s ,
e a s s im p o r d ia n te . E m q u e e s t á b a s e a d o esse
p a d r ã o in te r n o , e m b o r a e s te ja c o n s ta n te m e n te
v a r ia n d o ? N ã o e s t á e le b a s e a d o n o d e s e jo a u to -
p r o t e t o r e n o s s e u s m ú l ti p l o s te m o r e s ? Ê s te s
d e s e jo s e te m o r e s c r ia m um p ad rão de com ­
p o r ta m e n to , d e m o r a lid a d e , e o m e d o é o p a d r ã o

109
c o n s ta n te , a s s u m in d o f o r m a s d i f e r e n t e s so b d i ­
fe re n te s c o n d iç õ e s . H á o s q u e s e a b r ig a m na
f ó r m u l a i n t e l e c t u a l , “ a v id a é u n a ” , e o u tr o s
n o a m o r d e D e u s , q u e é ta m b é m u m a f ó r m u la
in te le c tu a l, e as tra n s fo rm a m e m p a d r õ e s , em
p r i n c í p i o s , p a r a s u a v id a d iá r ia . A m o r a lid a d e
d a v o n ta d e n ã o é m o r a l, p o ré m a ex p ressão
do m êdo.

110
IV

C a d a u m d e n ó s te m u m p e c u li a r e p a r t i c u l a r
p r o b le m a p r ó p r io . A lg u n s se p r e o c u p a m co m a
m o r te , c o m o m e d o d a m o r te e c o m o q u e
su c e d e rá no a lé m ; a lg u n s e s tã o tã o s o litá ­
r io s em su as ocupações que buscam o m e io
d e d o m in a r e s s a v a c u id a d e ; a l g u n s e s tã o r e p l e ­
to s d e t r i s t e z a ; a lg u n s te e m a r o t i n a e o a b o r ­
r e c im e n to d o tr a b a lh o , e o u t r o s o p r o b le m a d o
a m o r, c o m a s s u a s c o m p le x id a d e s . C o m o p o d e m
to d o s e s s e s p r o b le m a s , o u o p r o b le m a p a r t i c u l a r
d e c a d a u m , s e r s o lu c io n a d o s ? H á a p e n a s u m
p ro b le m a , o u v á r io s e d i s t i n t o s p r o b le m a s ? T e m
cada um d e le s de ser s o lu c io n a d o se p a ra d a ­
m e n te , d e s lig a d o d o s o u tr o s , o u d e v e m o s s e g u i r
c a d a p ro b le m a , e, a s s im , c h e g a r a u m p r o b le m a
ú n ic o ? H a v e r á , e n tã o , s o m e n te u m p r o b le m a , e
s e g u in d o c a d a d i f i c u l d a d e c h e g a r e m o s ao p r o ­
b le m a ú n ic o , a tr a v é s d o q u a l, se o c o m p r e e n ­
d e rm o s , r e s o lv e r e m o s o s o u t r o s ?

111
H á s o m e n te u m p r o b le m a f u n d a m e n ta l, q u e
se e x p r e s s a d e v á r io s m o d o s d i f e r e n t e s . C ada
um d e n ó s e s t á c o n c ie n te d e u m a d i f i c u l d a d e
p a r t i c u l a r e d e s e ja l u t a r c o n t r a e s s a d i f i c u l d a d e
p o r s i m e s m o . S o lu c io n a n d o a d i f i c u l d a d e p e ­
c u l i a r in d iv id u a l, p o d e r - s e - á e v e n tu a lm e n te c h e ­
g a r a o p r o b le m a c e n tr a l, m a s , d u r a n te o p r o c e s s o
d e c h e g a r a té a í, a m e n te e x a u r iu - s e o b te v e c o ­
n h e c im e n to , f ó r m u la s , p a d r õ e s , q u e r e a lm e n te
b lo q u e ia m a s u a co m p re e n sã o do ú n ic o p ro ­
b le m a c e n tr a l. A l g u n s d e n ó s p r o c u r a m s e g u ir
o p r o b le m a a té à s u a o r ig e m , e, n o p r o c e s s o do
e x a m e e d a a n á lis e , e s ta m o s a p r e n d e n d o , a c u m u ­
la n d o o c h a m a d o c o n h e c im e n to . Ê s t e c o n h e c i­
m e n to g r a d u a l m e n t e se tr a n s f o r m a em f ó r m u la s ,
p a d r õ e s . A e x p e r iê n c ia te m - n o s d a d o m e m ó r ia s
e v a lo r e s q u e g u ia m e d is c ip lin a m e q u e d e v e m
in e v ita v e lm e n te c o n d ic io n a r .
O r a , s ã o e s te s p a d r õ e s e m e m ó r ia s a u to -
p r o t e t o r e s , e s te c o n h e c im e n to a r m a z e n a d o , e s ta s
f ó r m u la s , q u e n o s im p e d e m d e p e r c e b e r o p r o ­
b le m a f u n d a m e n ta l e r e s o lv ê - lo . S e n o s d e f r o n ­
ta m o s c o m u m a e x p e r i ê n c i a v ita l e te n ta m o s
c o m p r e e n d ê - la b a s e a d o s em m e m ó r ia s m o r ta s ,
e m v a lo r e s , s im p le s m e n te a p e r v e r te m o s , a b s o r ­
v e n d o - a n a a c u m u la ç ã o m o r t a do p a s s a d o .
A fim d e r e s o lv e r ê s te p r o b le m a d o v iv e r ,
t e n d e s d e t e r m e n te v iç o s a , n o v a . U m n o v o n a s ­
c im e n to d e v e r á o c o r r e r . A v id a , o a m o r, a r e a l i ­
d a d e sã o s e m p r e n o v o s e sã o n e c e s s á r io s m e n te

112
e c o ra ç ã o v iç o s o s p a r a c o m p r e e n d ê - lo s . O a m o r
é s e m p r e n o v o , m a s e s te f r e s c o r é e s tr a g a d o
p e lo i n t e l e c t o m e c â n ic o , c o m a s s u a s c o m p le ­
x id a d e s , a n s ie d a d e s , c iú m e s , e a s s im p o r d ia n te .
S o m o s n ó s f e it o s d e n o v o , h á u m n o v o n a s ­
c im e n to c a d a d ia ? O u e s ta m o s a p e n a s d e s e n ­
v o lv e n d o a c a p a c id a d e d e r e s i s t ê n c i a p e l a v o n ­
ta d e , p e lo h á b ito , p e lo s v a lo r e s ?
.E s ta m o s a p e n a s f o r ta le c e n d o a v o n ta d e da
r e s is tê n c ia em f ô r m a s v á r ia s e s u t i s . D a í, a
e x p e r iê n c ia , a o in v é s d e n o s l i b e r t a r , d a n d o - n o s
lib e r d a d e de re n a sc e rm o s, de re n o v arm o -n o s,
to r n a r - s e um novo c o n d ic io n a m e n to , u m novo
lia m e à s a c u m u la ç õ e s m o r ta s d o p a s s a d o , d o c o ­
n h e c im e n to a r m a z e n a d o q u e é, r e a lm e n te , i g n o ­
r â n c ia e m ê d o . I s t o p e r v e r t e e d e s t r ó i a f o r ç a
l i b e r ta d o r a d a e x p e r iê n c ia .
É ê s te o p r o b le m a f u n d a m e n ta l — co m o r e ­
n a sc e r ou re n o v a r-se . O ra , p o d e is s e r re n o v a d o
p o r m e io d e f ó r m u la s , d e c r e n ç a s ? N ã o é u m
a b s u r d o a p r ó p r i a id é ia d e q u e p o d e is s e r r e ­
n o v a d o p o r m e io d e p a d r õ e s , d e id e a is , d e m o -
d ê lo s ? Pode a d is c ip lin a , fo rç a d a ou a u to -
im p o s ta , p r o d u z ir u m r e n a s c im e n to d a m e n te ?
I s t o ta m b é m é u m a im p o s s ib ilid a d e , n ã o é ? P o r
m e io d e e s t r i b i l h o s , p a la v r a s d e r e p e tiç ã o , in s ­
t i tu iç õ e s , por m e io da ad o raçã o de o u tr e m ,
p o d e is s e r r e n o v a d o ? T a lv e z m o m e n ta n e a m e n te ,
e n q u a n to m e o u v is , s i n t a i s a im p o s s ib ilid a d e d e

113
s e r d e s f e it o s d e n o v o p o r m e io d e u m m é to d o ,
a t r a v é s d e a lg u é m , e tc .
E n t ã o , o q u e n o s f a r á r e n o v a d o s ? P e r c e b e is
a n e c e s s id a d e v i t a l d e s e r re n o v a d o s , d e r e n a s ­
c e r ? P a r a c o m p r e e n d e r a v id a e m t o d o s o s s e u s
p r o b le m a s c o m p le x o s e a r e a lid a d e , o d esco­
n h e c id o , te m d e h a v e r m o r te c o n s ta n te e u m
n o v o n a s c im e n to . D e o u t r a m a n e ir a d e f r o n ­
t a r e i s n o v o s p r o b le m a s , n o v a s e x p e r iê n c ia s co m
a c u m u la ç õ e s m o r ta s , q u e u n ic a m e n te p r e n d e m ,
causando co n fu são e s o f r im e n to .
E s ta m o s , e n tã o , c o n f r o n ta d o s co m e s ta s m e ­
m ó r ia s e f ó r m u la s , c r e n ç a s e v a lo r e s acum u­
la d o s que a tu a m c o n s ta n te m e n te com o um
e s c u d o , co m o u m a r e s is tê n c ia . O r a , s e t e n ta m o s
r e m o v e r e s ta s r e s is t ê n c i a s , e s ta s s a lv a g u a r d a s ,
a p e n a s p e la v o n ta d e , p e la d is c ip lin a , a m e n te
n ã o se e s t á r e n o v a n d o . E , e n t r e t a n t o , te m o s o
p o d e r , a ú n ic a f ô r ç a q u e p o d e l i b e r t a r e r e n o ­
v a r , e e s t a é o a m o r — o a m o r, n ã o d o id e a l,
n ã o d e u m a f ó r m u la , m a s o a m o r d e in d i v íd u o a
i n d iv íd u o . M a s d e m a r c a m o s ê s te am or com a
m o r a l i d a d e d a v o n ta d e p o r q u e e x i s t e o d e s e jo
d e s a tis f a ç ã o e o s e u te m o r . A s s im , o a m o r se
to rn a d e s tr u tiv o , lim i t a d o r , ao in v é s d e l i b e r ­
ta d o r, re n o v a d o r.
V e m o s ê s te p r o c e s s o de e s c r a v id ã o e dôr
e m n o s s a v id a d iá r ia . É s ó n a v id a d i á r ia , co m
a s s u a s r e la ç õ e s m ú t u a s e c o n f lito s , s e u s te m o ­
r e s e a m b iç õ e s , q u e p r i n c i p i a i s a p e r c e b e r a

114
fo rç a re n o v a d o ra d o a m o r. Ê s te am or não é
s e n tim e n to . O s e n tim e n to , a f in a l , é a p e n a s a
in c a p a c id a d e d e s e n t i r p r o f u n d a , i n te g r a lm e n te ,
e, p o r ta n to , d e a l t e r a r f u n d a m e n ta lm e n te .

I n t e r r o g a n t e : Gostaria de saber por­


que, às vezes, estou demasiadamente preguiçoso
para me sentir bem disposto e novo?

K r i s h n a m u r t i : P o d e is te r p r e g u iç a
d e v id o à f a l t a d e d i e t a a d e q u a d a , m a s , p o s s u ir
u m c o r p o s a u d á v e l, g a r a n te o r e n a s c im e n to d a
m e n te ? P o d e is e s t a r tr a n q u ilo , a p a r e n te m e n te
p r e g u iç o s o , e, n o e n ta n to , e x t r a o r d i n a r i a m e n te
v iv o .

I n t e r r o g a n t e : Para sermos feitos de


novo temos de nos esforçar.

K r i s h n a m u r t i : N ão p o d e is ser f e ito
d e n o v o co m o p e s o m o r to d o p a s s a d o e, p e r ­
cebendo is to , p e n s a is que d e v e is fa zer um
e s f o r ç o p a r a v o s d e s e m b a r a ç a r d e le . E s ta n d o
p r e s o n a c o n f u s ã o , s e n tis q u e p a r a v o s d e s e n ­
v e n c ilh a r d e s d e la d e v e is d i s c ip lin a r - v o s , que
t e n d e s d e v o s e s f o r ç a r p a r a d o m in á - la , o u , d e
o u tr o m o d o , a c o n f u s ã o a u m e n t a r á e c o n tin u a r á .
Ê is to q u e p e n s a is , n ã o é? O u f a z e is e s f o r ç o

115
p a r a v o s c o n s e r v a r d e s t r a n q u i l o e o b s e r v a r , a f im
d e e n c o n tr a r m o d o s e m e io s de vencer e s ta
c o n fu são e c o n f lito , ou f a z e is e sfo rç o p ara
p e r c e b e r a s s u a s c a u s a s , d e m o d o q u e p o s s a is
d o m in á - la s ; o u e s t a i s a p e n a s i n t e l e c t u a l m e n t e
in t e r e s s a d o em o b s e r v a r — p o ré m , n ã o n e c e s ­
s ita m o s p r e o c u p a r - n o s co m os c h a m a d o s in te ­
l e c t u a is . O u a c e i t a i s o c á o s, a l u t a , o u t e n t a i s
d o m in a r o s o f r i m e n t o ; a m b o s e n v o lv e m e s f o r ç o .
S e e x a m in a r d e s o m o tiv o d ê s te e s f o r ç o , p e r c e ­
b e r e is q u e h á o d e s e jo d e n ã o s o f r e r , o d e s e jo
de fu g ir, de e s ta r s a tis fe ito , de p ro te g e r-s e , e
a s s im p o r d ia n te . F a z - s e e s f o r ç o p a r a d o m in a r ,
p a r a c o m p re e n d e r, p a ra tra n s f o rm a r o q u e so ­
m os n o q u e q u e re m o s ser, o u p e n sa m o s q u e d e ­
v e r ía m o s s e r. N ã o p r o d u z e m to d o s e s te s e s f o r ­
ç o s u m a s é r ie d e n o v o s h á b ito s e m l u g a r d o s
a n t i g o s ? O s h á b ito s a n tig o s , o s v e lh o s v a lo r e s ,
n ã o v o s d e r a m o id e a l, a s a tis f a ç ã o , e p o r is to
f a z e is e sfo rç o p ara e s ta b e le c e r novos id e a is ,
n o v a s é r ie de h á b ito s , v a lo r e s e s a tis f a ç õ e s . T a l
esfo rço é c o n s id e r a d o d ig n o e n o b re . E s ta is
fa zen d o e s f o r ç o p a r a s e r o u n ã o s e r a lg o , d e
a c o r d o co m u m a f ó r m u l a e u m p a d r ã o p r e c o n ­
c e b id o s . A s s im , n ã o p o d e h a v e r r e n a s c im e n to ,
m a s a p e n a s a c o n tin u a ç ã o d o a n t i g o d e s e jo so b
n o v a f o r m a , q u e c e d o c r ia c o n f u s ã o e t r i s t e z a .
H á a in d a o e s f o r ç o d a v o n ta d e p a r a v e n c e r e s te
c o n f li t o e e s ta d ô r ; f ic a - s e n o v a m e n te p r e s o n o

116
c ír c u lo v ic io s o d o e s f o r ç o , s e j a p a r a e n c o n tr a r
a c a u s a d o s o f r im e n to o u p a r a d o m in á -la .
O e sfo rç o é fe ito p ara d o m in a r o te m o r
a tr a v é s d a d e s c o b e r ta d a s s u a s c a u s a s . P o r q u e
q u e r e is d e s c o b r ir a c a u s a ? N ão é p o rq u e não
q u e r e is s o f r e r , te m e is s o f r e r ? A s s im , e s p e r a is
q u e p e lo m e d o , c e d e n d o a o m e d o , to d o o m e d o
s e r á d o m in a d o . Is to é um a im p o s s ib ilid a d e .
O ra , f a z e is esfo rç o p ara d e s c b r ir a causa
d a a le g r ia ? S e o f a z e is , e n tã o a a l e g r i a c e s s a d e
e x i s t i r e s o m e n te a s s u a s m e m ó r ia s e h á b ito s
e x is te m .

I n t e r r o g a n t e : Assim, pela análise, o


mêdo também deveria desaparecer do mesmo
modo que a alegria desaperece, quando exami­
nada. Mas por que não?

K r i s h n a m u r t i : A a le g ria é esp o n ­
tâ n e a , n ã o p r o c u r a d a , n e m c o n v id a d a , e q u a n d o
a m e n te a a n a lis a , p ara c u ltiv á - la ou re cap -
tu r á - la , e n tã o n ã o é m a is a le g r ia . E n q u a n t o q u e
o m ê d o n ã o é e s p o n tâ n e o , e x c e to e m i n c id e n te s
r e p e n t i n o s e im p r e v is to s , m as a s tu c io s a m e n te
c u ltiv a d o p e la m e n te n o s e u d e s e jo d e s a t i s f a ­
ção , d e c e r te z a . A s s im , se f a z e is e s f o r ç o p a r a
v o s d e s e m b a r a ç a r d o m ê d o d e s c o b r in d o a s s u a s
c a u s a s , e a s s im p o r d ia n te , a p e n a s o e s ta is e n ­

117
c o b r in d o , p o is o e s f o r ç o é o d a v o n ta d e , q u e é
r e s is t ê n c i a c r ia d a p e lo m e d o .
S e in t e g r a lm e n t e , c o m to d o o v o s s o s e r , c o m ­
p r e e n d e r d e s ê s te p r o c e s s o , e n tã o , n o m e io d e s ta
c h a m a d o s o f r im e n to , q u a n d o n ã o h á d e s e jo d e
fu g ir, de v e n c e r, d e s ta m esm a c o n fu sã o s u rg e
u m a n o v a c o m p r e e n s ã o , b r o ta n d o e s p o n ta n e a ­
m e n te d o t e r r e n o d o p r ó p r i o rn ê d o .

118
V

T e n h o te n ta d o e x p lic a r q u e a re n o v a ç ã o , o
r e n a s c im e n to , t e m d e s e r e s p o n tâ n e o e não o
r e s u lt a d o d e e s f o r ç o .
A n te s d e d e s c o b r ir m o s se o e s f o r ç o é m o r a l
ou im o r a l, im p o rta n te ou não im p o r ta n te ,
te m o s , em p r i m e i r o lu g a r , d e c o n s i d e r a r o d e ­
s e jo . C o m p r e e n d e n d o o d e s e jo , c a d a u m d e s c o ­
b r i r á p o r si m e s m o se o e s f o r ç o é m o ra l ou
im o ra l, r e la t iv a m e n t e à r e n o v a ç ã o , a o r e n a s c i­
m e n to d a m e n te . S e n ã o s e t iv e s s e m d e s e jo s ,
n ã o h a v e r ia esfo rç o . P o r t a n t o , te m o s de co­
n h e c e r o s e u p r o c e s s o , a f o r ç a m o t r i z q u e im ­
p u ls io n a o e s f o r ç o , q u e é s e m p r e o d e s e jo ; s e ja
q u a l f o r o n o m e c o m q u e g o s te is d e d e s ig n á - lo ,
r e tid ã o , b e m , D e u s e m n ó s, o eu s u p e r io r , e
a s s im p o r d ia n te , n ã o im p o r ta , é a i n d a o d e s e jo .
O ra , o d e s e jo d ir ig e - s e sem p re a a lg u m a
c o u s a ; é s e m p r e d e p e n d e n te e, p o r is s o , s e m p r e
p r o d u t o r do m ê d o . S e n d o d e p e n d e n te , h á se m -

119
p re i n c e r te z a q u e p ro d u z o m êdo. O d e s e jo
n ã o p o d e e x i s t i r p o r s i m e sm o , p r e c i s a s e m p r e
e s t a r e m r e la ç ã o com a lg u m a cousa. P o d e is
o b serv ar is to em vossas re açõ e s p s ic o ló g ic a s
d iá r ia s . O d e s e jo é s e m p r e d e p e n d e n te , r e l a ­
c io n a d o co m a l g u m a c o u s a . S o m e n te o am or
n ã o é d e p e n d e n te .
H á o d e s e jo d e s e r a lg u m a c o u s a , d e t o r n a r -
se, d e t e r s u c e s s o , d e n ã o s o f r e r , d e e n c o n tr a r
a f e lic id a d e , d e a m a r e s e r a m a d o , d e e n c o n tr a r
a v e r d a d e , a r e a lid a d e , D e u s . H á o d e s e jo p o ­
s i t iv o d e s e r a lg o e o n e g a ti v o d e n ã o o s e r .
S e e s ta m o s a p e g a d o s , h á a g o n ia , s o f r i m e n t o , e
d is to a p r e n d e m o s — o q u e c h a m a m o s a p r e n d e r
— q u e o a p e g o t r a z a d ô r. A s s im , d e s e ja m o s
n ã o t e r a p ê g o , e c u ltiv a m o s e s ta q u a lid a d e n e ­
g a tiv a , o d e s a p e g o . O d e s e jo im p e le - n o s a s e r
is to e n ã o a q u ilo .
E s t a m o s f a m ilia r iz a d o s c o m o d e s e jo p o s i­
tiv o e n e g a tiv o , s e r e n ã o s e r , t o r n a r - s e e n ã o
se t o r n a r . O r a , o d e s e jo não é em oção; é o
r e s u lt a d o d a m e n t e q u e e s t á s e m p r e p r o c u r a n d o
s a tis f a ç ã o , c u jo s v a lo r e s se b a s e ia m na s a tis ­
fa ç ã o . E s ta r s a tis fe ito é o m o tiv o o c u lto de
to d o d e s e jo . A m e n te p ro c u ra se m p re s a tis ­
f a ç ã o , a t o d o o c u s to , e, s e é c o n t r a r i a d a e m
u m a d ir e ç ã o , p r o c u r a c o n s e g u ir seu fim em
o u tr a . Todo e sfo rç o , to d o poder d ire tiv o da
m e n te é p a ra e s ta r s a tis fe ita . D e ste m o d o , a
s a tis f a ç ã o to r n a - s e um h á b ito m e c â n ic o da

120
m e n te . Em m o m e n to s d e g r a n d e em oção, de
a m o r p r o f u n d o , n ã o h á d e p e n d ê n c ia d o d e s e jo ,
n e m a s u a b u s c a d e s a tis f a ç ã o .
P a r a e s t a r s a t i s f e i t a , a m e n t e d e s e n v o lv e s u a
p r ó p r ia t é c n i c a d e r e s is t ê n c i a e n ã o - r e s is tê n c ia ,
q u e é a v o n ta d e . E q u a n d o a m e n te d e s c o b re
que no p ro c e s s o d a s a tis f a ç ã o há s o f r im e n to ,
e n tã o c o m e ç a a d e s e n v o lv e r a a u s ê n c i a d e d e ­
s e jo , o d e s a p e g o . H á , a s s im , a v o n ta d e p o s itiv a
e a n e g a tiv a s e m p r e se e s f o r ç a n d o , s e m p r e p r o ­
c u r a n d o s a tis f a ç ã o . O d e s e jo d e e s t a r s a t i s f e i t o
c r ia a v o n ta d e , q u e se m a n te m p e lo s e u p r ó p r io
e s f o r ç o c o n tín u o . E , o n d e h á v o n ta d e , te m de
se lh e s e g u i r s e m p r e o m e d o — m ê d o d e n ã o
e s ta r s a t i s f e i t o , de não c o n s e g u ir , d e não se
to rn a r . A v o n ta d e e o m êdo a n d a m se m p re
ju n t o s . E , a in d a , p a r a d o m in a r ê s t e m ê d o , fa z -s e
e s f o r ç o , e n e s t e c ír c u lo v ic io s o d e i n c e r t e z a a
m e n te f i c a p r e s a . A v o n ta d e e o m ê d o s e g u e m
s e m p r e d e m ã o s d a d a s e m a n te r ã o a s u a c o n ­
t i n u id a d e d e s a tis f a ç ã o e m s a tis f a ç ã o , a tr a v é s
d a m e m ó r ia q u e d á à c o n c iê n c ia a s u a c o n t i n u i ­
dade, com o o “ e u ” .
A v o n ta d e e o e s f o r ç o , e n tã o , sã o a p e n a s o
m e c a n is m o d a m e n t e p a r a e s t a r s a t i s f e i t a . A s ­
sim , o d e s e jo é t o d o d a m e n te . A m e n te é a
e s s ê n c ia m e s m a d o d e s e jo . O h á b i t o s e e s ta b e ­
le c e u p e la b u s c a c o n s ta n te de s a tis f a ç ã o , e a
s e n s a ç ã o q u e a m e n t e e s tim u la n ã o é e m o ç ã o .

121
T o d o o esfo rç o , p o rta n to , s u rg in d o d a v o n ­
t a d e , s e j a d e e s t a r s a t i s f e i t o o u d e n ã o o e s ta r ,
t e m d e s e r s e m p r e m e c â n ic o , f o r m a d o r d e h á b i ­
t o s e, a s s im , n ã o p o d e p r o d u z ir o r e n a s c im e n to ,
a re n o v açã o . M esm o q u a n d o a m e n te in d a g a
a c a u s a d o s o f r im e n to , e la o fa z p r i n c i p a lm e n t e
p o r q u e d e s e ja f u g i r , d e s t r u i r o q u e n ã o é s a t i s ­
f a t ó r i o e o b te r o q u e é.
O r a , to d o e s te p r o c e s s o em q u e a m e n te se
a c h a p r e s a é o s is te m a d a i g n o r â n c ia . A von­
ta d e , q u e s e m a n té m p o r m e io d o e s f o r ç o p a r a
e s ta r s a tis fe ita , p a ra te r p ra z e r, a tra v é s d e v á ­
r i o s m e io s e m é to d o s — e s t a v o n t a d e d e s a t i s ­
f a ç ã o te m d e c e s s a r p o r s i m e s m a , p o is , q u a l ­
q u e r e sfo rç o p a ra d a r f im à s a tis f a ç ã o , será
a p e n a s o u t r a m a n e ir a d e e s t a r s a t i s f e i t o .
Ê s te p ro c esso de s a tis f a ç ã o , de c o n te n ta ­
m e n to , p r o s s e g u e a s s im c o n tin u a m e n te e t o d o
esfo rç o p o d e a p e n as f o r ta le c ê - lo . P e rc e b e n d o
q u e t o d o e s f o r ç o é o d e s e jo de s a t i s f a ç ã o e,
p o r t a n t o , d o p r ó p r io m ê d o , co m o se p o d e c o n ­
d u z i r ê s te p r o c e s s o a u m t ê r m o ? M e s m o ê s te
p r ó p r i o d e s e jo d a c e s s a ç ã o n a s c e d a v o n ta d e d e
e s t a r s a t i s f e i t o . E s t a q u e s tã o m e s m a d e c o m o
e s t a r li v r e do d e s e jo é i n s p i r a d a p e lo p r ó p r io
d e s e jo .
S e s e n tís s e is in te g ra lm e n te to d o ê s te p r o ­
c e s s o c o m o ig n o r â n c ia , e n tã o n ã o p e d i r í e i s u m
m e io d e f i c a r l i v r e d o d e s e jo , d o m ê d o . E n t ã o
n ã o p r o c u r a r í e i s n e n h u m m é to d o , p o r m a is p r o ­

122
m is s o r , p o r m a is e s p e r a n ç o s o . N ã o h á m é to d o ,
n e m s is te m a , n e m c a m in h o p a r a a v e r d a d e ,
Q uando c o m p r e e n d e is o p le n o s ig n i f i c a d o in ­
t e r n o d e t o d o s o s m é to d o s , e s t a p r ó p r i a c o m ­
p r e e n s ã o c o m e ç a e s p o n ta n e a m e n te a d is s o lv e r o
d e s e jo , o m ê d o , q u e e s t á p r o c u r a n d o s a tis f a ç ã o .
S o m e n te na p ro fu n d a em oção não e x is te
â n s ia d e s a tis f a ç ã o . O am or não d ep en d e da
s a tis f a ç ã o n e m d o h á b ito . M a s a v o n ta d e d o
d e s e jo p r o c u r a s e m p r e f a z e r d o a m o r u m h á b ito
m e c â n ic o , o u t e n t a c o n tr o lá - lo a t r a v é s d a s le is
m o r a is , d a c o m p u ls ã o , e tc . D a í e x i s t i r u m a
b a ta lh a c o n s ta n te d a m e n te , c o m s u a v o n ta d e
d e s a tis f a ç ã o , p a r a c o n tr o la r , p a r a d o m in a r o
a m o r ; e a b a t a l h a é q u a s e s e m p r e g a n h a p e la
m e n te , p o is o a m o r n ã o te m nenhum c o n f lito
d e n t r o d e s i, e, p o r t a n t o , n e n h u m c o m o u tr e m .
S o m e n te q u a n d o o d e s e jo , c o m s u a v o n ta d e d o
m ê d o , c e s s a e s p o n ta n e a m e n te — n ão p e la c o m ­
p u ls ã o o u p e la p r o m e s s a d e r e c o m p e n s a — h á
a re n o v a ç ã o , o r e n a s c im e n to d e to d o o n o s s o s e r .

I n t e r r o g a n t e : Posso confiar ou ter fé


neste amor, ou isto é também um modo de auto-
proteção?

K r i s h n a m u r t i : N ão é a fé o u tr o
r e f ú g i o e m q u e a m e n te e n c o n tr a s a tis f a ç ã o e
a b r ig o ? P o d e i s t e r f é n o a m o r, o u t r o a te m e m

123
D e u s , e a s s im p o r d ia n te . T ô d a £é s e m e lh a n te
é u m a n c o r a d o u r o p a r a a m e n te . Q u a lq u e r r e ­
f ú g i o , q u a lq u e r a p e g o , s e ja q u a l f o r o s e u n o m e ,
te m d e s e r d e a u to - p r o te ç ã o , d e s a tis f a ç ã o e
p o rta n to , o re s u lta d o do m êdo.
P e rc e b e m o s ao n o sso d e rre d o r te r r ív e l c ru e l­
d a d e , c a o s e b a r b a r i d a d e c o m p le to s e p r o c u r a ­
m o s r e f ú g i o n o id e a l, n a c r e n ç a , o u e m q u a l-
q u e r f o r m a d e c o n s o la ç ã o . F o g e - s e a s s im p a r a
a i l u s ã o ; m a s o c o n f li t o e n t r e o a t u a l e o i l u ­
s ó r io te m d e c o n t i n u a r a té q u e o u o i r r e a l v e n ç a
o a t u a l , o u o a t u a l a tr a v e s s e to d a s a s s a lv a ­
g u a rd a s, to d a s a s fu g a s, e com ece a re v e la r o
seu p ro fu n d o sig n ific a d o .

I n t e r r o g a n t e : Insistindo meramente
no preenchimento individual, não estais pondo
de lado a questão social? Como pode o indi­
víduo, que está sempre em relação com a socie­
dade, ser o único fator importante? Por que
realçais o indivíduo?

K r i s h n a m u r t i : S em o i n d iv íd u o , a
s o c ie d a d e n ã o p o d e e x i s t i r ; e s ta e n t i d a d e s o c ia l
n ã o é i n d e p e n d e n t e d o in d iv íd u o . A s o c ie d a d e
é o c o n j u n t o d a s r e la ç õ e s m ú tu a s e n t r e u m i n ­
d iv íd u o e o u tr o . A s o c ie d a d e é pessoal m as
t o r n o u - s e m á q u in a in d e p e n d e n t e , c o m v id a p r ó ­
p r ia , q u e a p e n a s u t i l i z a o in d iv íd u o . A s o c ie ­
dade to rn o u -se s im p le s m e n te um a i n s t it u i ç ã o
q u e c o n tr o la e d o m in a o in d i v íd u o a t r a v é s d a
o p in iã o , d a s le is m o r a is , d e i n t e r e s s e s r e n d o s o s ,
e a s s im p o r d ia n te . C o m o a s i n s t i t u i ç õ e s n u n c a
são i m p o r ta n te s , m a s s o m e n te o in d iv íd u o , te m o s
d e c o n s id e r a r o s e u p r e e n c h im e n to , que não
p o d e s e r c o n s e g u id o p e la m e ra m udança de
a m b ie n te , p o r m a is d r á s ti c a q u e s e ja . A s im p le s
a lte r a ç ã o do s u p e rfic ia l não p r o d u z ir á o p ro ­
f u n d o p r e e n c h im e n to d o hom em , m as apenas
re a ç õ e s m e c â n ic a s . E s t a d iv is ã o e n t r e in d iv íd u o
e a m b ie n te é m e c â n ic a e fa ls a ; quando cada
q u a l c o m p r e e n d e r f u n d a m e n t a l m e n t e q u e is to é
a s s im , e n tã o o i n d iv íd u o a g i r á i n t e g r a lm e n te ,
n ã o co m o u m in d iv íd u o , n e m m e r a m e n te com o
o p r o d u to m e c â n ic o da s o c ie d a d e , m a s co m o
u m s e r i n t e g r a l.

I n t e r r o g a n t e : Isto certamente neces­


sitará muitos séculos, não? Assim, não devemos
fazer agora novas leis e condições sociais?

K r i s h n a m u r t i : C om o ' p o d em o s p ro ­
d u z ir e s ta m u d a n ç a q u e to d o s d e s e ja m o s ? O u
p o r m e io d a f o r ç a , o u c a d a in d i v íd u o p rin c i­
p ia n d o a d e s p e r t a r p a r a a n e c e s s id a d e d a m u ­
d a n ç a f u n d a m e n ta l. O u a tr a v é s d3 c o m p u ls ã o ,
d a r e v o lu ç ã o , d o d o m ín io , o u p e lo d e s p e r t a r d o
in d iv íd u o p a r a a r e a lid a d e .

125
S e q u e re m o s p ro d u z ir a p e n a s um m u n d o m e ­
c â n ic o d e s is te m a s m o r a is , d e le is , d e im p o s iç õ e s ,
e n tã o a v io lê n c ia p o d e s e r s u f i c i e n t e , o e m p r e g o
d a f ô r ç a so b t o d a s a s f o r m a s p o s s í v e i s ; m a s se
q u e r e m o s p a z e f r a t e r n i d a d e , r e la ç õ e s m ú tu a s
b a s e a d a s n o a m o r, e n tã o , a v io lê n c ia so b q u a l ­
q u e r a s p e c to não p o d e s e r o m e io . P e l a v io ­
lê n c i a n ã o p o d e is c h e g a r à p a z , a o a m o r , m a s
a p e n a s a m a io r v io lê n c ia . A v io l ê n c i a é c o m ­
p l e x a e s u t i l, e a t é q u e o in d i v íd u o n ã o f iq u e
liv re do seu d o m ín io e v id e n te ou e n c o b e r to ,
não pode haver paz, nem fra te rn id a d e du­
ra d o u ra .

I n t e r r.o\g a n t c : Então devemos deixar


as pessoas cruéis continuar a sê-lo?

K r i s h n a m u r t i : P a ra s a lv a r a h u m a ­
n i d a d e d e v e is p r i m e i r o d e s t r u i r o s e r h u m a n o ?
É is t o q u e m e p e r g u n t a i s ? P o r q u e t e n d e s c e r ta s
id e o lo g ia s , c e r ta s c r e n ç a s , d e v e o in d i v íd u o s e r -
l h e s s a c r if ic a d o ? N ã o , m e u s a m ig o s ,n ã o q u e ­
r e m o s a j u d a r o m u n d o , q u e r e m o s a p e n a s im p o r
a o s o u t r o s c e r t a id e o lo g ia , c e r ta f é , c e r t a c r e n ç a .
Q u e r e m o s q u e a t i r a n i a d a s id é ia s p r e v a le ç a , e
n ã o o a m o r.
C a d a u m e s t á s e g u in d o o s e u p r o b le m a p a r ­
t i c u l a r , o s e u id e a l d e h o m e m , o u a s u a c o n ­
cepção do E s ta d o , o u a su a c re n ç a em D eu s,

126
e a s s im p o r d ia n te . M a s , se v ó s q u e m e o u v is ,
c o m p r e e n d e r d e s f u n d a m e n t a l m e n t e o q u e e s to u
d iz e n d o , e n tã o vos p re o c u p a re is co m o p ro -
b le m a - r a iz , o d e s e jo co m s e u s t e m o r e s e e s f o r ­
ço s, q u e im p e d e m o p r e e n c h im e n to , o r e n a s c i­
m e n to in d iv id u a l.

127
VI

T enho p ro c u ra d o e x p l i c a r o m e c a n is m o do
m ê d o f o r m a d o r d e h á b ito s , q u e d e s t r ó i a r e n o ­
v a ç ã o , o r e n a s c im e n to , o ú n ic o em que pode
h a v e r r e a lid a d e . O d e s e jo d e s a tis f a ç ã o c r ia o
m ê d o e o h á b ito . C o m o e x p liq u e i, o d e s e jo e
a e m o ç ã o c o n s titu e m d o is p r o c e s s o s d i f e r e n t e s
e d is tin to s ; o d e s e jo sendo in te ira m e n te da
m e n te , e a e m o ç ã o a e x p r e s s ã o i n t e g r a l d e to d o
o n o sso ser. O d e s e jo , o p ro c e s s o d a m e n te , é
s e m p r e a c o m p a n h a d o p e lo m ê d o , e a e m o ç ã o é
i s e n t a d e le . O d e s e jo d e v e p r o d u z ir s e m p r e o
m ê d o , e a e m o ç ã o j a m a is o c o n té m p o r q u e e la
é a e s s ê n c ia d e to d o n o s s o se r. A em oção não
p o d e v e n c e r o d e s e jo , p o r q u e a e m o ç ã o é u m
e s ta d o d e d e s te m o r , q u e só p o d e s e r e x p e r i m e n ­
ta d o q u a n d o o d e s e jo , c o m o s e u m ê d o e a s u a
v o n ta d e d e s a tis f a ç ã o , c e ssa . A em oção não
p o d e d o m in a r o m ê d o ; p o r q u e o m ê d o , c o m o o
d e s e jo , sã o d a m e n te . A s e m o ç õ e s sã o d e c a r á te r ,

128
de q u a lid a d e e de d im e n s õ e s c o m p le ta m e n te
d if e r e n te s .
O ra , o q u e a m a io r ia d e n ó s e s ta m o s p r o ­
c u r a n d o f a z e r é d o m in a r o m ê d o , s e j a p e lo
d e s e jo , o u p e lo q u e c h a m a m o s “ e m o ç ã o ” — q u e
é r e a lm e n te o u t r a f o r m a d e d e s e jo . N ã o p o d e is
d o m in a r o m ê d o p e lo a m o r. D o m in a r o m ê d o
p o r m e io d e o u t r a f ô r ç a q u e c h a m a m o s e m o ç ã o ,
a m o r, n ã o é p o s s ív e l, p o r q u e o d e s e jo de do­
m in a r o m ê d o n a s c e d o p r ó p r io d e s e jo , d a p r ó ­
p r i a m e n te , e n ã o d o a m o r. I s t o é, o m ê d o é
r e s u lt a d o d o d e s e jo , d a s a tis f a ç ã o , e o d e s e jo d e
d o m in a r o m ê d o é d a n a t u r e z a d a p r ó p r i a s a t i s ­
fa ç ã o . N ão é p o s s ív e l d o m in a r o m ê d o p e lo
a m o r, c o m o a m a i o r i a d a s p e s s o a s v e r i f i c a p o r
s i m e s m a . A m e n te , q u e é d o d e s e jo , n ã o p o d e
d e s t r u i r p a r t e d e s i m e s m a . É is to o q u e t e n t a i s
fa z e r q u an d o f a la i s d e “ d e s e m b a r a ç a r - v o s ” d o
m ê d o . Q u a n d o p e r g u n ta i s , “ C o m o p o s s o d e s e m -
b a ra ç a r-m e do m êd o , q u e p o sso fa z e r com as
v á r ia s f o r m a s d o m ê d o ? ” e s t a i s m e r a m e n te q u e ­
r e n d o s a b e r c o m o d o m in a r u m g r u p o d e d e s e jo s
p o r o u tr o — o q u e s o m e n te p e rp e tu a o m êdo.
P o r q u e t o d o d e s e jo c r ia m ê d o . O d e s e jo p r o d u z
o m ê d o e t e n t a n d o d o m in a r u m d e s e jo p o r o u t r o
e s ta is a p e n a s ce d en d o ao m êd o . O d e s e jo s o ­
m e n te p o d e r e c o n d ic io n a r - s e a s i m e s m o , r e m o ­
d e la r - s e s e g u n d o u m n o v o p a d r ã o , m a s p e r m a ­
n e c e r á a i n d a d e s e jo , d a n d o n a s c im e n to a o m ê d o .
S abem os q u e os n o sso s h á b ito s a tu a is de

129
p e n s a m e n to e d e m o r a lid a d e e s tã o b a s e a d o s n a
s e g u r a n ç a i n d i v id u a l e n o lu c r o e q u e d e s s e
m o d o c r iá m o s u m a s o c ie d a d e q u e é m a n t i d a p o r
m e io d o n o s s o p r ó p r i o d e s e jo . C o m p r e e n d e n d o
is to , h á o s q u e t e n t a m c r i a r n o v o s h á b ito s , n o v a s
v i r t u d e s , n a e s p e r a n ç a d e c r ia r u m a n o v a s o ­
c ie d a d e b a s e a d a n a a u s ê n c i a d o lu c r o , e a s s im
por d ia n te . M as o d e s e jo a in d a p e r s i s t e so b
d i f e r e n t e s f o r m a s e e n q u a n to n ã o c o m p r e e n d e r ­
m o s to d o o p r o c e s s o d o p r ó p r io d e s e jo , a m e r a
t r a n s f o r m a ç ã o d a s c o n d iç õ e s e v a lo r e s e x t e r n o s
t e r á p o u c o s ig n if ic a d o .
M o d i f i c a r a f o r m a d e d e s e jo d o v e lh o p a r a
o n o v o , é a p e n a s r e c o n d i c i o n a r a m e n te , p o is e la
c o n t i n u a r á s e n d o d o d e s e jo e, a s s im , s e m p re
u m a fo n te do m êd o . P o r is s o , te m o s d e c o m ­
p r e e n d e r o p r o c e s s o d a p r ó p r i a m e n te . N ã o é a
m e n te , com o a conhecem os, um in s tru m e n to
d e s e n v o lv id o p a r a a s o b r e v iv ê n c ia , p a r a a s a t i s ­
f a ç ã o , p a r a a a u to - p r o te ç ã o , p a r a a r e s is t ê n c i a ,
e, p o r c o n s e g u in te , u m i n s t r u m e n t o do m êdo?
V a m o s p ô r d e la d o a c o n s id e r a ç ã o d e q u e a
m e n te é o i n s t r u m e n t o d e D e u s , o g u i a m o r a l
m a is e le v a d o , e a s s im p o r d ia n te , p o r q u e to d a s
e s s a s s u p o s iç õ e s sã o m e r a m e n te t r a d i c io n a is , o u
s im p le s e s p e r a n ç a s . A m e n te é e s s e n c ia lm e n te
u m i n s t r u m e n t o d o m ê d o . D o d e s e jo s u r g e o
r a c io c ín io , a c o n c lu s ã o , a a ç ã o — c u jo s v a lo r e s
e m o r a lid a d e s e s tã o b a s e a d o s n a v o n ta d e d e s o ­
b r e v iv e r , de e s ta r s a tis fe ito . D êsse m odo, a

130
m e n te , o p e n s a m e n to , d iv id e - s e em m u i ta s p a r ­
te s , c o m o o c o n c ie n t e e o in c o n c ie n te , o s u p e r io r
e o i n f e r i o r , o r e a l e o f a ls o , o b e m e o m a l.
I s t o é, a m e n te , p r o c u r a n d o s a tis f a ç ã o , d iv id iu -
se e m m u ita s p a r te s , c a d a u m a e s ta n d o e m c o n ­
f l i t o co m a o u t r a , m a s a b u s c a c e n tr a l e e s s e n ­
c ia l d e c a d a u m a e d o t o d o é d e a u t o - s a tis f a ç ã o
sob d ife re n te s fo rm a s. A s s im , a m e n te e s tá
se m p re e n g e n d ra n d o o se u p r ó p r io m êd o .
H á v á r ia s f o r m a s d e m ê d o : d o n o s s o p ró ­
p r io f u t u r o , d a m o r te , d a v id a , d a r e s p o n s a b i li ­
d a d e , e a s s im p o r d ia n te . P o r i s s o a m e n t e e s t á
s e m p re te n ta n d o to rn a r-s e s e g u ra a tra v é s de
c r e n ç a s , d e e s p e r a n ç a s , d e ilu s õ e s , d e c o n h e c i­
m e n to , d e id e a is , d e p a d r õ e s . H á u m a l u t a c o n s ­
t a n t e e n t r e o c o n h e c id o , e o d e s c o n h e c id o . O
c o n h e c id o é o p a s s a d o , o a c ú m u la d o , o h á b ito e
o d e s c o n h e c id o é o q u e é i n c e r t o , o in c o n q u is -
tá v e l, o e s p o n tâ n e o , o c r ia tiv o .
O passado e s tá se m p re te n ta n d o v en c er o
f u tu r o ; o h á b ito p ro c u ra tra n s f o rm a r o desco­
n h e c id o n o h a b i t u a l p a r a q u e o m ê d o c e s s e . H á ,
a s s im , o c o n f li t o c o n s ta n te d o d e s e jo , e o m ê d o
e s tá se m p re p re s e n te . O p ro c e s s o é a b so rv e r,
e s t a r c e r to , e s t a r s a t i s f e i t o , e q u a n d o is to n ã o
é p o s s ív e l, a m e n t e r e c o r r e a e x p lic a ç õ e s , t e o ­
r ia s , c r e n ç a s s a t i s f a t ó r i a s . D ê s s e m o d o , a m o r te ,
o d e s c o n h e c id o é t r a n s f o r m a d o n o c o n h e c id o ;
a v e r d a d e , o in c o n q u is tá v e l é t r a n s f o r m a d o n o
a tin g ív e l.

131
Assim, a mente é um campo de batalha do*
seus próprios desejos, temores, valores, e qual­
quer esforço que ela faça para destruir o medo
— isto é, para destruir-se a si mesma — é intei­
ramente inútil. A parte que deseja desven­
cilhar-se do medo está sempre procurando sa­
tisfação; e aquela de que ela anseia livrar-se
foi o motivo de satisfação no passado. D’est’arte,
a satisfação procura livrar-se daquilo que já
satisfez; o medo tenta vencer o que foi o ins­
trumento do mêdo. O desejo, criando medo na
busca de satisfação, tenta vencer este mêdo,
mas o próprio desejo é a causa do medo. O
mero desejo não pode destruir-se, nem o mêdo
dominar-se, e todo o esforço da mente para
livrar-se deles nasce do desejo. Dêsse modo a
mente fica presa no seu próprio círculo vicioso
do esforço.
Precisamos compreender profundamente a
natureza íntima da própria mente e esta com­
preensão não nasce da noite para o dia; neces­
sita de imenso apercebimento de todo o nosso
ser. Como eu disse, a mente é um campo de
batalha de vários desejos, valores, esperanças, e
qualquer esforço da sua parte para livrar-se
deles pode unicamente acentuar o conflito. A
luta existe enquanto o desejo, sob qualquer
forma, continua; enquanto um desejo se insurge
contra outro, uma série de valores contra outra,
um ideal contra outro, êste conflito tem de

132
continuar. Êste poder discriminativo do de­
sejo, da escolha, tem de cessar, e isto só pode
suceder quando se compreende, quando se sente
internamente o esforço cego do intelecto. A
profunda observação deste processo, sem que-
rença, sem julgamento, sem preconceito, e, por­
tanto, sem desejo, é o começo dêste apercebi­
mento, o único que pode libertar a mente de
seus próprios temores, hábitos e ilusões des­
trutivas.
Mas, com a maioria de nós, a dificuldade
está em perfurar através destas modalidades de
emoção que são realmente os estímulos do de­
sejo, do mêdo, pois tais emoções são destrui­
doras do amor. Elas impedem o apercebimento
integral.

I n t e r r o g a n t e : São o desejo e o inte-


rêsse, como os conhecemos atualmente, a mes-
ca cousa?

K r i s h n a m u r t i : Se o interêsse é ape­
nas o resultado do desejo, do lucro, do estar
satisfeito, de obter sucesso, então, o interêsse
é a mesma cousa que o desejo e, portanto, des-.
truidor da vida criativa.

I n t e r r o g a n t e : Como posso atingir a


qualidade de ausência de_ desejo sem o desejo
de atingi-la?

133
K r i s h n a m u r t i : Senhor, é sôbre isto
exatamente que falei esta manhã. Por que dese­
jais atingir a ausência de desejo? Não é por
que verificastes através da experiência que o
desejo é doloroso, que traz mêdo, que cria con­
flito ou um sucesso que é cruel? Assim, ansiais
por atingir um estado de ausência de desejo,
que pode ser conseguido, mas que é da morte,
pois é apenas o resultado do mêdo. Quereis
estar livres de todo mêdo, e porisso fazeis da
ausência de desejo o ideal, o padrão para ser
seguido. Mas o motivo por detrás dêsse ideal é
ainda desejo e, assim, ainda o mêdo.

I n t e r r o g a n t e : É mente a própria vida?


Por que não se pode dividir a vida em mente c
emoção?

K r i s h n a m u r t i : Como expliquei, a
mente tornou-se unicamente um instrumento de
auto-proteção de várias formas e dividiu-se em
emoção e pensamento — não que a vida a tenha
dividido nem que as emoções se tenham sepa­
rado da mente, mas a mente, através dos seus
próprios desejos, fracionou-se em diferentes
partes. A mente descobriu que estando sem de­
sejo ficará menos sujeita ao sofrimento. Apren­
deu pela experiência, pelo conhecimento, que a

134
ausência de desejo pode produzir o conforto
ulterior que ela espera seja a verdade, Deus, e
assim por diante. Por isso, faz esforço para
estar sem desejo, e, por consequência, divide-se
em diferentes partes.

I n t e r r o g a n t e : Ê possível ser sem de­


sejo quando se possue um corpo?

K r i s h n a m , u r t i : Que dizeis vós, se­


nhor? Êste é um problema que tendes de en­
carar, a que todos nós temos de fazer face. A
mente, como já disse, está sempre procurando
satisfação, sob vários aspectos. A necessidade
tornou-se assim um meio de obter prazer. Isto
se exprime de vários modos — ganância, poder,
posição, e assim por diante. Não se pode existir
neste mundo, sem desejo? Descobrireis isto na
vossa vida diária. Não separeis as necessidades
do desejo, pois seria uma tentativa falsa para
a compreensão dêste. Quando as necessidades
são glorificadas como meios de auto-importân­
cia, então o desejo principia o processo com­
plexo da ignorância. Se apenas realçais as
necessidades, e delas fazeis princípio, estais no­
vamente tratando a questão do desejo de um
ponto de vista não inteligente, mas se começais
a considerar o próprio processo do desejo, que

135
produz o medo e a ignorância, então, as neces­
sidades terão seu valor significativo.

I n t e r r o g a n t e : Por favor, dai-nos o


vosso ponto de vista ou o que desejardes dizer
sôbre o modo de como educar os filhos.

I n t e r r o g a n t e : Não é a criança que


constitue o problema; nós somos o problema.

K r i s h n a m u r t i : Dizeis que temos de


primeiramente resolver nossos próprios proble­
mas e então seremos capazes de lidar com a
criança? Não é isto uma concepção muito uni­
lateral? Não é a educação da criança um pro­
blema muito complexo? Quereis ajudar a crian­
ça a desenvolver-se na sua mais plena capaci­
dade integral, mas como não há nem professores
nem escolas adequadas a êste fim, a educação
torna-se um problema. Como pais podeis ter
certas idéias definidas, que ajudarão a criança
a ser inteligentemente crítica e naturalmente
espontânea a todo o momento, mas infelizmente
na escola, o nacionalismo, o ódio racial, o poder
condutor, a tradição, o exemplo, e assim por
diante, são inculcados à criança, contrabalan­
çando, dêsse modo, tudo que possais estar fa­
zendo em casa. Assim, ou tereis de estabelecer

136
uma escola própria em que os preconceitos de
raça, de país, de exemplos, de superstições reli­
giosas, de crenças, não sejam inculcados às
crianças — o que quer dizer que é necessário,
como professor, um ser humano inteligente;
e este raramente é encontrado. Ou tendes de
mandar a criança às escolas já existentes, espe­
rando pelo melhor e contrabalançando em casa
tôdas as cousas insensatas e perniciosas que ela
aprende na escola, ajudando-a a ser inteligente
e crítica. Mas, geralmente não tendes tempo
para isto, ou possuís dinheiro demais e então
empregais aias, para cuidar de vossos filhos.
É um problema complexo que os próprios
pais teem de resolver de acordo com a sua capa­
cidade, mas que infelizmente é paralizado pelos
seus temores, superstições, crenças.

I n t e r r o g a n t e : Pelo menos podemos


dar à criança o ambiente apropriado no lar.

K r i s h n a m u r t i : Mesmo isto não é bas­


tante, é? Porque a pressão da opinião é muito
grande. Uma criança se sente excluida se não
usar também alguma espécie de uniforme ou
deixar de carregar uma, espingarda de madeira,
quando a maioria o faz. Há a exigência da
chamada nação, cujo governo, com seu poder
colossal, força o indivíduo a certo padrão, a

137
•usar armas, a matar, a morrer. Há também a
outra instituição, a religião organizada, que
através da crença, do dogma, e assim por diante,
tenta igualmente destruir o indivíduo. Desta
maneira o indivíduo está sendo continuamente
desviado do seu preenchimento.
Êste é o problema de tôda a nossa vida, que
não pode ser resolvido através de meras expli*
cações e asserções.

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