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HOLLANDA
1937 1938
PALESTRAS E
RESPOSTAS A PERGUNTAS
PÚ S
KEISHNAMIIGTI i 9À0
INSTITUIÇÃO CULTURAL KRISH N A M U RTI
A V . RIO BRANCO 117-*.“ A N D AR , S A L A SOÍ
Hl O DE J A N E I R O — B R A S I L
Todas as palestras do livro original em
: por
KRISHNAMURTI
EM OMMEN — 1937/1938
(TRADUZIDO DO INGLÊS)
19 4 0
Instituição Cultural Krishnamurti
AVENIDA RIO BRANCO 117-2.° ANDAR, SALA 203
RIO DE JANEIRO
BRASIL
P A L E S T R A S EM O M M EN 1937
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tante mutação, vindo-a-ser e decaindo. Tôdas as
cousas se gastam pelo uso. Nada há de perma
nente em torno de nós. Em nossas instituições,
nossas morais, nossas teorias de governo, de
economia, de relações sociais — em tôdas as
cousas há fluxo, há mudança.
E entretanto, no meio dessa impermanência,
sentimos que há permanência; estando insatis
feitos com essa impermanência, criamos um
estado de permanência, gerando, por êtfse modo,
conflito entre o que se supõe ser permanente e
o que é mutante, o transitório. Mas se perce
bêssemos que tudo, inclusive nós mesmos, o
“ eu”, é transitório, e as cousas ambientes da
vida também o são, certamente não haveria en
tão esse pungente conflito.
Que é que exige permanência, segurança,
que anseia pela continuidade? E’ nessa exigên
cia que se baseiam as nossas relações sociais e
morais.
Se realmente acreditásseis ou sentísseis pro
fundamente, por vós mesmo, a incessante mu
tação da vida, então jamais existiria ansiedade
pela segurança, pela permanência. Mas porque
existe uma profunda ansiedade pela permanên
cia, nós criamos uma parede estanque contra o
movimento da vida.
Portanto, o conflito existe entre os valores
mutantes da vida e o desejo que está procuran
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do permanência. Se sentíssemos e compreendês
semos profundamente a impermanência de nós
próprios e das cousas dêste mundo, então ha
veria cessação do conflito amargo, das dores e
temores. Então não haveria apêgo, de que surge
a luta social e individual.
Que é pois esta cousa que se atribuiu per
manência e está sempre procurando uma con
tinuidade ulterior? Não podemos examinar isto
inteligentemente se não analisarmos e compre
endermos a capacidade crítica em si mesma.
A nossa capacidade crítica brota dos pre
conceitos, das crenças, das teorias, das esperan
ças, etc., ou do que denominamos experiência. A
experiência baseia-se na tradição, nas memó
rias acumuladas. A nossa experiência está sem
pre matizada pelo passado. Se acreditais em
Deus, talvez possais ter o que chamais uma
experiência da Divindade. Certamente esta não
é uma experiência verdadeira. Tem sido gra
vado em nossas mentes, através de séculos, que
há Deus, e de acordo com êste condicionamento
nós temos uma experiência. Esta não é uma
experiência de primeira mão, verdadeira.
A mente condicionada atuando de um modo
condicionado não pode experimentar completa
mente. Tal mente é incapaz de plenamente ex
perimentar a realidade ou a não-realidade e
Deus. Do mesmo modo, a mente que já está
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preconcebida pelo desejo conciente ou incon-
ciente do permanente não pode compreender a
realidade como plenitude. Tôda pesquisa de tal
mente preconcebida é apenas um novo fortale
cimento desse preconceito.
A busca e a ânsia pela imortalidade são o
incitamento das memórias acumuladas da con-
ciência individual, o “ eu”, com seus temores
e esperanças, amores e ódios. Ê s s e /‘eu” fracio
na-se em várias partes em conflito: o superior
e o inferior, o permanente e o transitório, e
assim por diante. Êsse “ eu”, em seu desejo de
perpetuar-se, procura e utiliza modos e meios
de se entrincheirar.
Talvez alguns de vós possais dizer-vos:
“ Certamente, com o desaparecimento dessas
ansiedades, deve haver realidade”. O próprio
desejo de saber se há algo além da conciência
em conflito da existência é uma indicação de
que a mente está procurando uma segurança,
uma certeza, uma recompensa para os seus
esforços.
Vemos como é criada uma resistência con
tra outra, e essa resistência, através de memó
rias acumulativas, através da experiência, é
cada vez mais fortalecida, tornando-se cada vez
mais conciente de si mesma.
Assim, há a vossa resistência e a do vosso
próximo, da sociedade. O ajustamento entre
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duas ou mais resistências é chamado relações
mútuas, sôbre que é construida a moralidade.
Onde há amor, não há a conciência das rela
ções mútuas. Ê só em um estado de resistência
que pode haver esta conciência, que é apenas
um ajustamento entre conflitos em oposição
O conflito não existe somente entre as várias
resistências, mas também dentro de si mesmo,
dentro da qualidade permanente e imperma-
nente da própria resistência.
Há algo permanente nessa resistência? Ve
mos que a resistência pode perpetuar-se por
meio da aquisividade, da ignorância, por meio
da conciente ou inconciente ansiedade de expe
riência. Mas certamente essa continuação não é
eterna; ela é apenas a perpetuação do conflito.
O que chamamos permanente na resistência
é apenas parte da própria resistência, e, por
tanto, parte do conflito. Assim, em si mesma,
não é o eterno, o permanente.
Onde há falta de plenitude, não-preenchi-
mento, há a ansiedade de continuação que cria
a resistência, e esta resistência dá a si mesma
a qualidade de permanência.
Aquilo a que a. mente se agarra como sendo
o permanente é em sua própria essência o tran
sitório. Ê o produto da ignorância, do mêdo
e da ansiedade.
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Se entendemos isto, então vemos que o pro
blema não é de uma resistência em conflito
com outra, mas como esta resistência vem a ser
e como pode ser dissolvida. Quando defronta
mos este problema profundamente, há um novo
despertar, um estado que pode ser chamado
amor.
10
II
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apega a um centro pessoal, estático, identifi
cando-se com êle. Na realidade não há tal cen
tro como o “ eu”, com as suas qualidades per
manentes. Precisamos compreender isto inte
gralmente, não apenas com o intelecto, se qui
sermos alterar fundamentalmente as nossas re
lações com o nosso próximo, que estão baseadas
na ignorância, no temor, nos desejos.
Pensamos agora, cada um de nós, que esse
centro, do qual surge a maioria das nossas ações,
pensamos nós que esse centro é impermanente?
O que significa para vós o pensar? Estais
apenas estimulado pela imagem das minhas pa
lavras, por uma explicação que examinareis in
telectualmente, nas horas vagas, e transforma
reis em um padrão, em um princípio para ser
seguido e vivido? Produzirá tal método um
viver integral? A mera explicação do sofri
mento não o faz desaparecer, nem o seguir um
princípio ou um padrão, mas o que o destrói
são o pensamento e emoção integrais.
Se não estais sofrendo, então a imagem ver
bal de outrem sobre o sofrimento, a sua expli
cação a respeito dêle, pode, no momento, ser
estimulante e fazer-vos pensar que devíeis so
frer. Mas tal sofrimento não tem significado.
Há duas maneiras de pensar. Uma é por
meio do mero estímulo intelectual, sem nenhum
conteúdo emocional; mas quando as emoções
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estão profundamente revolvidas há um processo
integral de pensamento que não é superficial,
intelectual. Êste pensamento-emoção integral é
o único que pode realizar a compreensão e ação
perduráveis.
Se o que estou dizendo age apenas como um
estímulo, então surge a pergunta de como apli
cá-lo à vossa vida diária, com suas dores e con
flitos. O modo, o método, torna-se de tôda
importância somente quando as explicações e
estímulos vos estão impelindo para uma ação
particular, O modo, o método, cessa de ser im
portante somente quando ficais apercebido, in
tegralmente.
Quando a mente revela a si mesma os seus
próprios esforços de temores e desejos, então
surge o apercebimento integral da sua própria
impermanência, o único que pode libertar a
mente dos seus trabalhos limitadores. A não ser
que isto esteja acontecendo, todo o estímulo se
transforma em maior limitação.
Todas as qualidades artificialmente cultiva
das dividem: todo o cultivo intelectual da mo
ralidade, da ética, é cruel, nascido do medo,
criando apenas outras resistências do homem
contra o homem.
A qualidade da resistência é ignorância.
Estar familiarizado com muitas teorias inte
lectuais não é libertação da ignorância. O ho
là
mem que não está integralmente apercebido do
processo da sua própria mente é ignorante.
Libertar o pensamento do desejo de adqui
rir, por meio da disciplina, por meio da von
tade, não é libertação da ignorância, pois, êle
continua ainda preso no conflito dos opostos.
Quando o pensamento percebe integralmente
que o esforço para se desembaraçar do desejo
de adquirir é também parte desse mesmo desejo,
então há um começo de iluminação.
Qualquer que seja o esforço que a mente
faça para se desembaraçar de certas qualidades,
continua ainda presa na ignorância; porém,
quando ela discerne que todo o esforço que
fizer para libertar-se está ainda dentro do pro
cesso da ignorância, então há uma possibilidade
de romper o círculo vicioso da ignorância.
A vontade de satisfação fraciona a mente
em muitas partes, cada uma em conflito com
a outra, e esta vontade não pode ser destruída
por outra superior, que é apenas nova forma
da vontade de satisfação. Êste círculo de igno
rância rompe-se, por assim dizer, como que
vindo do interior, somente quando a mente
cessa de ser aquisitiva.
A vontade de satisfação destrói o amor.
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sarnento, e a experiência? Para mim, a expe
riência, em virtude dos nossos falsos métodos
de viver, torna-se limitada, não sendo, portanto,
revelação pura. Ambas deveriam ser uma só
cousa.
K r i s h n a m u r t i : -— A experiência pode
condicionar ainda mais o pensamento ou liber
tá-lo das limitações. Experimentamos de con
formidade com o nosso condicionamento, mas
êste condicionamento pode ser rompido, o que
pode dar a todo o nosso ser uma libertação in
tegral. A moralidade, que deveria ser espontâ
nea, tem sido feita para seguir a um padrão,
um princípio que se torna certo ou errado se
gundo as crenças que o indivíduo mantém. Para
alterar êste padrão, alguns recorrem à violên
cia, esperando criar um padrão “ verdadeiro”,
outros se voltam para a lei afim de remodelá-lo.
Ambos esperam criar a moralidade “reta” atra
vés da força e da'conformidade. Mas tal cons
trangimento não é mais moralidade.
A violência, de certa forma, é considerada
como um meio necessário para um fim pacífico.
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Não percebemos que o fim é controlado e mo
delado pelos meios que empregamos.
A verdade é uma experiência dissociada do
passado. O apego ao passado, com as suas me
mórias, tradições, é a continuação de um centro
estático que impede a experiência da verdade.
Quando a mente não está sobrecarregada
com a crença, com o querer, com o apêgo, quan
do está criativamente vazia, então há a possi
bilidade de experimentar a realidade.
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Tôcla luta provém das relações mútuas, de
um ajustamento entre duas resistências, dois
indivíduos. A resistência é um condiciona
mento, limitando ou condicionando essa energia
que pode ser chamada vida, pensamento, emo
ção. Êste condicionamento, esta resistência, não
teve começo. Existiu sempre, e podemos vêr
que pode ser continuado. Há numerosas e com
plexas causas para êle.
Êste condicionamento é ignorância, que pode
ser conduzido a um fim.
A ignorância é o não-apercebimento do pro
cesso de condicionar, que consiste em muitos
desejos, temores, memórias aquisitivas, etc.
A crença é parte da ignorância. Qualquer
ação provinda da crença somente fortalece mais
a ignorância.
A ansiedade de compreensão, de felicidade,
a tentativa de se desembaraçar desta qualidade
particular e adquirir aquela virtude particular,
todo este esforço é nascido da ignorância, que
é o resultado desse querer constante.
Portanto, nas relações mútuas, a luta e o
conflito continuam.
Enquanto persistir o querer, tôda experiên
cia condiciona ainda mais o pensamento e a
emoção, continuando assim o conflito.
Onde existe o querer, a experiência não pode
ser completa, fortalecendo, portanto, a resistên
cia. A crença, o resultado do querer, é uma
fôrça condicionante; a experiência baseada em
qualquer crença é limitadora, por mais vasta e
ampla que possa ser.
Qualquer esforço que a mente faça para
romper o seu próprio círculo vicioso da igno
rância deve auxiliar ainda mais a continuação
da ignorância. Se não se compreende o processo
todo da ignorância, e meramente se faz esforço
para se desembaraçar dêle, o pensamento estará
ainda atuando dentro do círculo da ignorância.
Assim, o que se deve fazer, discernindo que
qualquer ação, qualquer esforço que se faça
únicamente fortalece a ignorância? O próprio
desejo de romper o círculo da ignorância é ain
da parte da ignorância. Então, o que se deve
fazer?
Ora, é esta uma pergunta da máxima impor
tância, vital, para vós? Se é, então vereis que
não há resposta positiva, direta. Pois, as res
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postas positivas Emente podem trazer mais
esforço, que apenas fortalece o processo da
ignorância. Assim, há somente um modo nega
tivo de tratar a questão, que é estar integral
mente apercebido do processo do mêdo ou da
ignorância. Êste apercebimento não é um es
forço para vencer, para destruir ou encontrar
um substituto, mas uma tranquilidade de nem
aceitar nem negar, uma quietude integral de não
escolher. Êste apercebimento rompe o círculo
da ignorância, por assim dizer, como que vindo
do nosso interior, sem fortalecê-lo.
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a própria mente está limitada é inteiramente
fútil. Temos de nos interessar com as causas
que manteem preso o pensamento-emoção.
K r i s h n a m u r t i : Parastes de pensar, se
assim posso dizer, quando asseverastes que êle
está presente.
K r i s h n a m u r t i : Portanto o conflito, o
sofrimento, a tensão das relações pessoais, in
dicam condicionamento. Pode haver muitas
causas para o condicionamento, mas estais aper
cebido ao menos de uma delas?
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I n t e r r o g a n t e : 0 mêdo e o desejo são
as causas da limitação?
K r i s h n a m u r t i : Dizer-vos o que é o
mêdo! Não sabeis o que êle é?
Se na vossa casa nada há de valor a que
estejais apegado, então não temeis o vosso pró
ximo, as vossas portas e janelas permanecerão
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abertas. Mas o medo se encontra no vosso co
ração quando estais apegado, então pondes
trancas nas vossas janelas, então fechais à chave
as vossas portas. Isolais-vos.
A mente reuniu certos valores, tesouros, e
pretende guardá-los. Se o valor destas posses é
posto em dúvida, há o despertar do mêdo. Pelo
mêdo nós as guardamos mais zelozamente, ou
vendemos as velhas e adquirimos novas que pro
tegeremos com maior astúcia. Damos a esse
isolamento vários nomes.
Pergunto-vos se tendes algo precioso em
vossa mente, em vosso coração, que estejais
guardando. Se tendes, então forçosamente de
veis criar paredes contra o mêdo, e esta resis
tência é designada por vários nomes — amor,
vontade, virtude, caráter.
Tendes algo de precioso? Tendes algo que
vos possa ser arrebatado, a vossa posição, as
vossas ambições, os vossos desejos, as vossas
esperanças?
Que possuís atualmente? Podeis ter posses
mundanas que tentais salvaguardar. Afim de
protegê-las tendes o imperialismo, o nacionalis
mo, as distinções de classe. Cada indivíduo,
cada nação está fazendo isso, gerando o ódio e
a guerra. Pode o mêdo da perda ser totalmente
removido? Todos os indícios mostram que êle
não pode ser extirpado por uma proteção maior,
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um maior nacionalismo, maior imperialismo.
Onde há apego, há medo.
I n t e r r o g a n t e : E ’ pelo desfazermo-nos
dos objetos ou pelo estabelecimento de relações
diferentes entre nós e êles que o mêdo é dis
sipado?
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outra modalidade de exclusão vos segrega, seja
como grupo ou como um indivíduo, e que a
crença age como resistência contra o movimento
da vida.
Alguns de vós dirão que a mente não está
conservando uma crença, mas que ela é parte
da própria mente, que sem alguma forma de
crença a mente, o pensamento, não pode existir.
Ou podeis dizer que a crença não é realmente
uma crença, mas intuição, para ser guardada,
para ser encorajada.
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tentativa de justificar a própria crença ou de
encontrar um substitutivo para a antiga.
Onde há apego há medo, mas a libertação
do mêdo não é uma recompensa do desapego.
O sofrimento faz com que nos decidamos a ser
inteiramente desapegados porém este desapego
é, realmente, uma forma de proteção contra o
sofrimento. Ora, como a maioria de nós tem
algo — amor, posses, ideais, crenças, concep
ções — a proteger, que vai constituir essa re
sistência que é o “ eu”, o “mim”, é fútil per
guntar como se desembaraçar do “ eu”, do“mim”,
com as suas várias camadas de querenças, de
temores, sem compreender integralmente o pro
cesso da resistência. O próprio desejo de se
libertar dêles é outra e mais segura forma de
autoproteção.
Se estiverdes apercebido desse processo dá
proteção, da construção de paredes para guar
dar o que sois e o que tendes, se estiverdes
conciente disso, então jamais perguntareis qual
o modo, o método de vos livrardes do mêdo, da
ansiedade. Então verificareis, na tranquilidade
do apercebimento, o ruir espontâneo das várias
causas que condicionam o pensamento-emoção.
Não ficareis apercebido meramente ouvindo
uma ou duas palestras. E’ como um fogo que se
tem de produzir, e vós tendes de produzí-lo.
Precisais começar, por pouco que seja, a ficar
conciente, a ficar apercebido, e podeis fazer
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isto quando falais, quando rides, quando estais
em contacto com as pessoas, ou quando tran
quilo. Êste apercebimento torna-se uma chama,
e esta chama consome todo o medo que causa
o isolamento. A mente precisa revelar-se espon
taneamente a si mesma. E isto não é concedido
somente a uns poucos, nem é uma impossibi
lidade.
27
IV
28
divisões sociais, a moralidade da conformação,
etc. A criação de novo ambiente, produzido pela
compulsão, pela violência, pela ameaça, dissol
verá a ignorância? Ou apenas a remodelará,
ainda de maneira diferente? Pode esta igno
rância ser dissolvida pelo domínio externo?
Digo que não. Não quer isto dizer que a bar
baria atual das guerras, da exploração, das
crueldades, dos domínios de classe, não deva
ser modificada. Mas a mera modificação da
sociedade não alterará a natureza fundamental
da ignorância.
Temos empregado dois processos diferentes
para dissolver a ignorância: um o controlo do
ambiente e o outro a destruição da ignorân
cia pela experiência. Antes de aceitar ou negar
a impossibilidade de destruir a ignorância por
êsses métodos, deveis conhecer a realidade de
cada processo. Conheceis-la? Se não, tendes de
experimentar e descobrir. Nenhum estímulo ar
tificial pode produzir realidade.
A ignorância não pode ser dissolvida, seja
pela experiência ou pelo mero controlo do am
biente, mas fenece espontânea e voluntaria
mente se existir êsse apercebimento em que
não há desejo, não há escolha.
I . n t e r r o g a n t e : Estou conciente de
amar, de que a mqrte levará a quem amo, e o
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sofrimento é cousa de difícil compreensão para
mim. Sei que êle é uma limitação e sei que
desejo alguma outra cousa, mas não sei o que.
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alguém a quem se ama, surge o choque do sofri
mento. A mente de novo faz objeção à tristeza,
e, assim, procura meios e modos de fugir-lhe:
satisfaz-se com as várias explicações sôbre o
além, a continuidade, a reencarnação, e assim
por diante. Um homem racionaliza para evitar
o sofrimento, de modo a viver o mais imper-
turbado possível, e outro, em sua crença, em seu
adiamento, abriga-se e conforta-se afim de não
sofrer no presente. Êstes dois casos são funda
mentalmente o mesmo; nenhum quer sofrer, so
mente as suas explicações é que diferem. O pri
meiro despresa tôda crença e o último está pro
fundamente imerso ou em fortalecer a sua
crença na reencarnação,' na imortalidade, etc.,
ou em descobrir “ fatos”, “ realidade” relaciona
dos com ela.
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do, não fatos, mas substância muito mais nu
tritiva.
Não estamos discutindo se a reencarnação é
ou não um fato. Isto para mim é inteiramente
irrelevante. Quando estais doente, faminto, os
fatos não aliviam o sofrimento, não satisfazem
a fome. Pode-se ter esperança em um estado
ideal futuro, mas a fome ainda continuará. O
medo da morte e a tristeza que êle traz con
tinuarão, a-pesar-do suposto fato da .reencarna
ção; a não ser, naturalmente, que se viva em
completa ilusão.
Por que vos refugiais em um fato suposto,
em uma crença? Não vos estou perguntando
como sabeis que é um fato. Pensais que seja
e, no momento, deixemô-lo assim. Que vos im
pele a procurar abrigo? Como alguém que se
refugia no conclusão racionalizada de que todas
as cousas decaem, e com isso apazigua o seu so
frimento, refugiando-se dêsse modo em uma
crença, em um fato suposto, vós também amorte
ceis a ação da tristeza. Devido à agudeza da
miséria, desejais o conforto, um alívio, e por
isso buscais refúgio, esperando que êle seja
duradouro e real. Não é por esta razão funda
mental que procuramos refúgio, abrigo?
32
K r i s h n a m u r t i : Declarar apenas que
estais procurando substituições, não resolve o
problema do sofrimento. Elas nos impedem de
pensar e sentir profundamente.
Aqueles de vós que sofreram e estão sofren
do, qual tem sido a vossa experiência?
I n t e r r o g a n t e : Nenhuma.
33
K r i s h n a m u r t i : Pode haver muitos mo
dos de defrontar a tristeza, mas se há o desejo
fundamental de buscar conforto, todos os mé
todos se reduzem a êstes dois modos definidos:
ou se racionaliza, ou se busca refúgio. Ambos
os métodos apenas abrandam a tristeza; ofere
cem uma fuga.
I n t e r r o g a n t e : E se o homem se casa
novamente?
34
Ora, por que não deveríeis sofrer? Quando
sois feliz, quando estais alegre, não dizeis que
não deveríeis ser feliz. Não fugis da alegria,
não lhe buscais um refúgio. Quando estais em
um estado de êxtase, não recorreis a crenças,
a substituições. Pelo contrário, destruís tôdas
as cousas que se lhe opõem, os vossos deuses, as
vossas moralidades, os vossos valores, as vossas
crenças, tudo, afim de manter esse êxtase.
Ora, por que não fazeis a mesma cousa quan
do sofreis? Por que não destruís tôdas as cou
sas que interferem com a tristeza, as muitas
explicações da mente, fugas, temores e ilusões?
Se vos fizerdes essa pergunta, sincera e pro
fundamente, verificareis que as crenças, os
deuses, as esperanças, não teem mais impor
tância. Então a vossa vida terá um significado
novo e fundamental.
Na chama do amor, todo o mêdo é con
sumido.
35
V
36
momentos de êxtase não há a procura da sua
causa; se houvesse, o êxtase cessaria. Na ansie
dade pelo êxtase, tateamos em busca das causas
que obstruem o caminho. Essa mesma ansie
dade pelo êxtase e o desejo intenso de dominar
a tristeza impedem a sua realização.
A mente que está sobrecarregada com o de
sejo de realidade, de felicidade, de amor, não
pode libertar-se do mêdo. O mêdo não só amor
tece a tristeza como também deturpa a alegria.
Estará todo o nosso ser em contacto direto com
a tristeza como está com a felicidade, com a
alegria?
Nós estamos apercebidos de que não somos
integrais com a tristeza; de que há uma parte
de nós que tenta fugir-lhe. Neste processo a
mente acumulou vários tesouros a que se apega
desesperadamente. Quando percebemos êsse
processo de acumulação, então sentimo-nos im
pelidos a fazê-lo cessar. Começamos então a
procurar métodos, o meio de livrar-nos dêsses
fardos. A própria busca de um método é outra
forma de fuga.
A escolha de métodos, de um modo de de
sembaraçar-vos dêsses fardos acumulados, que
causam resistência, esta mesma escolha nasce
do desejo de não sofrer, e, portanto, é preju
dicial. Êste preconceito é o resultado do de
sejo de refúgio, de conforto.
37
I n t e r r o g a n t e : Penso que ninguém haja
imaginado o que dissestes até agora. E* muito
complicado.
38
dão. Êsse algo, essa esperança de realidade, é
outra forma de abrigo, outra fuga da tristeza.
A mente perpetua seu próprio estado de con
dicionamento por meio do mêdo.
39
K r i s h n a m u r t i : Estais apenas reagindo
contra o preconceito. A vossa vida religiosa é
fimdamentalmente irreligiosa. Embora possais
encobrir esse fato falando em Deus, no amor,
no além, em vosso coração isto nada significa,
são apenas umas tantas frases que aprendestes
como o materialista aprendeu as suas idéias e
frases. Tanto a mente religiosa como a mate
rialista estão limitadas pelos seus próprios pre
conceitos que impedem a compreensão integral
da verdade e a comunhão com ela.
40
K r i s h n a m u r t i : Por que sentis que de
veis sofrer? Quando vos dizeis que não deveis
fugir, estais esperando que do sofrimento pos
sais tirar alguma cousa. Mas quando estiverdes
integralmente apercebido da ilusão de toda
fuga, então não haverá vontade de resistir ao
desejo de fugir, nem vontade de conseguir
algo através do sofrimento.
41
K r i s h n a m u r t i : Naturalmente. Se existe
falta de sensibilidade para a feialdade, para a
tristeza, deverá existir também uma profunda
insensibilidade para a beleza, para a alegria.
A resistência contra a tristeza é também uma
barreira para a alegria.
Que é êxtase? Êste estado de ser em que a
mente e o coração se encontram em completa
união, quando o mêdo não os separa, quando a
mente não está restringindo.
I n t e r r . o g a n t e : Há um modo melhor
de sofrer? Um melhor modo de viver?
42
I n t e r r o g a n t e : Aceito o estado condi
cionado do mesmo modo que a revolução do
globo, como parte necessária do desenvolvi
mento.
43
VI
44
talmente em contacto mútuo; ou o ajustamento
sendo impossível, as duas pessoas poderão ser
forçadas a separar-se. Mas enquanto há qualquer
forma de atividade, tem de haver relações entre
o indivíduo e a sociedade, que podem ser de
um ou de muitos. O isolamento só é possível
em completo estado de neurastenia. A não ser
que se aja mecanicamente, sem pensar e sem
sentir, ou se esteja tão condicionado que se
tenha um único padrão de pensar e de sentir,
todas as relações mútuas significam ajusta
mento, seja de lutar e resistir, ou de ceder.
O amor não é uma relação mútua, nem um
ajustamento; é de uma qualidade inteiramente
diferente.
Poderá esta luta nas relações mútuas cessar
um dia? Não podemos, através da mera expe
riência, produzí-las sem luta. A experiência é
uma reação a um condicionamento prévio, que,
nas relações mútuas, produz conflito. O simples
domínio do ambiente com os seus valores sociais,
os seus hábitos e pensamentos, não pode pro
duzir relações mútuas que estejam isentas de
luta.
Há conflito entre as influências condicionan
tes do desejo e a corrente rápida, vivente, das
relações mútuas. Não são, como a maioria das
pessoas pensa, as relações mútuas que limitam,
mas o desejo é que condiciona. É o desejo, con-
45
ciente ou inconciente, que está sempre causando
atrito nas relações mútuas.
O desejo surge da ignorância. Êle não pode
existir independentemente; precisa alimentar-se
do condicionamento prévio, que é ignorância.
A ignorância pode ser dissipada. É possível
A ignorância consiste de muitas formas de
medo, de crença, de querer e de apêgo. Estas
criam o conflito nas relações mútuas.
Quando estivermos integralmente apercebi
dos do processo da ignorância, voluntária, es
pontaneamente, há o começo dessa inteligência
que defronta tôdas as influências condicionan
tes. Estamos interessados no despertar dessa
inteligência, dêsse amor, o único que pode liber
tar da luta a mente e o coração.
O despertar dessa inteligência, dêsse amor,
não é o resultado de uma moralidade discipli
nada, sistematizada, nem um resultado que se
possa buscar, mas é um processo de apercebi
mento constante.
46
e isto dá à ação uma aparente continuidade.
Geralmente, então, o hábito rege a nossa ação
e as nossas relações mútuas.
É a ação apenas hábito? Se a ação é o resul
tado de simples hábito mecânico, deve conduzir
à confusão e à tristeza.
Do mesmo modo, se as relações mútuas são
apenas contacto entre dois hábitos individuali
zados, então, tôda a relação de tal espécie é so
frimento. Mas infelizmente, reduzimos todo
contacto com outrem a um modo tedioso e fati
gante, pela incapacidade de ajustamento, pele
mêdo, pela falta de amor.
Hábito é a repetição conciente ou incon-
ciente da ação, que é guiada pela memória dos
incidentes passados, da tradição, dos padrões de
pensamento-desejo, e assim por diante. Percebe-
se frequentemente que se está vivendo em uma
estreita senda de pensamento e em se afastando
dela deslisa-se para outra. Essa mudança de
hábito para hábito é muitas vezes denominada
progresso, experiência, crescimento.
A ação, que alguma vez pode ter sucedido
a um apercebimento completo, frequentemente
se torna hábitual, isenta de pensamento, sem
qualquer profundeza de sentimento.
Poderão existir verdadeiras relações mútuas
quando a mente estiver apenas seguindo um
padrão?
47
I n t e r r o g a n t e : Mas há uma resposta
espontânea, que absolutamente não á habitual.
I n t e r o g a n t e : Há um ajustamento con
tínuo entre êsses dois hábitos.
48
K r i s h n a m u r t i : Sim, mas semelhante
ajustamento é apenas mecânico, que o conflito
e o sofrimento forçam; mas êsse forçar não
destrói o desejo fundamental de formar hábitos
padronizados. As influências externas e as de-
ternimações internas não destroem a formação
de hábitos, mas unicamente auxiliam o ajusta
mento superficial e intelectual, que não é con
ducente às verdadeiras relações mútuas.
É este estado de padrões de idéias, de con
formação, conducente ao preenchimento, à vida
e à ação criadora e inteligente? Antes de po
dermos responder a essa pergunta, compreen
demos ou estamos apercebidos deste estado?
Se não estamos apercebidos dele, não há con
flito; mas se estamos, então há ansiedade e so
frimento. Dele tentamos fugir, ou procuramos
destruir os velhos hábitos e padrões. Ao sub
jugá-los apenas se criam outros; o desejo de
simples mudança é mais forte do que o de estar
apercebido de todo o processo da formação de
hábito, de padrões. Por isso passamos de hábito
para hábito.
K r i s h n a m u r t i : Antes de perguntar-me
como vencer um hábito particular, vamos veri
49
ficar qual é a causa que o está formando, por
que podeis abandonar um hábito, um padrão,
mas no próprio processo de fazê-lo podeis estar
formando outro. É isto o que geralmente faze
mos; vamos de um para outro hábito. Continua-
remos assim indefinidamente, a não ser que des
cubramos porque a mente procura sempre for
mar hábitos e seguir padrões de pensamento-
desejo.
Todas as verdadeiras relações mútuas reque
rem vigilância e ajustamento constantes, não
de conformidade com um padrão. Onde existe
o hábito, o seguir padrões, ideais, esse estado
de plasticidade é impossível. Ser plástico exige
pensamento e afeição constantes, e como a
mente acha mais fácil estabelecer padrões de
comportamento do que estar apercebida, pro
cede à formação de hábitos; e quando é abalada
de um hábito particular, pela aflição e pela in
certeza, muda-se para outro. O temor pela sua
própria segurança e conforto, compele a mente
a seguir padrões de pensamento-desejo. Assim,
a sociedade se transforma em produtora de
hábitos, de padrões, de ideais, porque a socie
dade é o próximo, a relação imediata com quem
se está sempre em contacto.
50
VII
51
preender a ação sem ilusão. Porque a realidade
reside na atualidade.
O apercebimento não é o desenvolvimento
de uma vontade introspectiva, porém a unifi
cação espontânea de tôdas as forças separativas
do desejo.
I n t e r r o g a n t e : . É o apercebimento cou
sa de crescimento lento?
52
I n t e r r o g a n t e : Êste processo parece
inevitável. Mas como se poderá despertar rapi
damente?
K r i s h n a m u r t i : Ê um processo moroso
para os indivíduos, a modificação da violência
para a paz? Penso que não. Se alguém real
mente percebe todo o significado do ódio, a
afeição surge espontaneamente; o que impede
esta percepção imediata e profunda é o nosso
temor inconciente de padrões e realizações do
intelecto e do desejo. Porque tal percepção po
deria envolver mudança drástica na nossa vida
diária: o fenecimento da ambição, o abandono
de todo nacionalismo, distinções de classes,
apegos, etc. Êste temor incita-nos, aconselha-"
nos e, conciente ou inconcientemente, cedemos
a ele e por isto aumentamos as nossas salva
guardas, o que apenas cria maior temor. En
quanto não compreendermos êste processo, esta
remos sempre pensando em formas de adia
mento, de crescimento, e de dominação. O mêdo
não pode ser dissolvido no futuro; somente no
constante apercebimento pode êle cessar de
existir.
53
K r i s h n a m u r t i : Se odiais porque o
vosso bem-estar intelectual e emocional é amea
çado por vários modos, e se meramente recor
reis a nova violência, embora possais com su
cesso, pelo menos momentaneamente, afastar o
mêdo, o ódio continuará. É só pelo estar con^-
tantemente apercebido, que o mêdo e o ódio
podem desaparecer. Não penseis em formas de
adiamento. Começai a estar apercebido, e se
houver interêsse, êste mesmo fato produzirá
espontaneamente um estado de tranquilidade, de
afeição.
A guerra, guerra em vós, o ódio do vosso
próximo, dos outros povos, não poderá ser ven
cido pela violência, sob qualquer forma. Se
começais a compreender a absoluta necessidade
de pensar-sentir profundamente sobre isto ago
ra, os vossos preconceitos, o vosso condiciona
mento, que são a causa do ódio e do mêdo,
serão revelados. Nessa revelação há o despertar
da afeição, do amor.
54
mente, então não estareis interessado com a épo
ca em que cessará o ódio, pois ele já terá cedido
a alguma cousa, a única em que pode haver pro
fundo contacto e cooperação humanos.
Se alguém estiver conciente do ódio, ou da
violência sob seus vários aspectos, pode esta
violência ser extinta através do processo do
tempo?
55
K r i s h n a m u r t i : Por que isto acontece?
Não é por que intelectualmente estais super-
desenvolvido, e ainda primitivo em vossos de
sejos? Não pode haver harmonia entre o belo
e o feio. A cessação do ódio não se pode pro
duzir através de nenhum método, mas sómente
pelo apercebimento constante dos condiciona
mentos que criaram esta divisão entre ó amor e
o ódio.
Por que existe esta divisão?
I n t e r r o g a n t e : Falta de amor.
I n t e r r o g a n t e : Ignorância.
56
como surgiu esta divisão, através de várias cau
sas condicionantes. O mero exame das causas
não produzirá a libertação do ódio, do mêdo.
O problema da fome não é resolvido pela sim
ples descoberta de suas causas — o mau sistema
econômico, a super-produção, a má distribuição,
e assim por diante. Se, pessoalmente, estiverdes
faminto, vossa fome não ficará satisfeita apenas
por lhe conhecerdes as causas. Do mesmo modo,
o simples conhecimento das causas do ódio, do
mêdo, com seus vários conflitos, não o dissol
verá. O que porá fim ao ódio é o apercebimento
sem escolha, a cessação de tôdo esforço inte
lectual para o sobrepujar.
57
VIII
58
semos capazes de libertar-nos do conflito exis
tente em nós mesmos, e, do mesmo modo, com
o nosso próximo, com a sociedade.
59
um problema para vós? Se é, então, como sois
parte dela, sómente a compreendereis através
dos vossos próprios sofrimentos, ambições,
temores. Vós sois o mundo e o seu problema é
o vosso problema íntimo. Se é um problema
cruciante, como espero seja para cada um de
vós, então jamais fugireis para quaisquer teorias,
explicações, “ fatos”, ilusões. Mas isto requer
grande vigilância, o indivíduo tem de estar in
tensamente apercebido; por isso preferimos o
caminho mais facil, o caminho da fuga.
Como podeis solucionar este problema se a
vossa mente e o vosso coração estão sendo afas
tados dêle?
Não digo que este problema seja simples. É
complexo. Assim, tendes de lhe dar a vossa
mente e o vosso coração. Mas como lhe pode
reis dar todo o vosso ser, se lhe estais fugindo,
se estais sendo desviado por meio das várias
fugas que a mente estabeleceu para si mesma?
60
minar um hábito por outro, dominar o ódio
pelas virtudes, é uma substituição, e o cultivo
dos opostos não afasta as qualidades de que nos
desejamos libertar. Temos de perceber o ódio,
não como a antitese do amor, mas como sendo
em si mesmo venenoso, um mal.
61
I n t e r r o g a n t e : Por que êste não é o
nosso problema atual.
62
e afastasse de nós as cousas que estimamos
embora reconhecendo-lhes o pouco valor. É isto
também uma fuga?
C3
disciplina; temos de descobrir porque existe em
nós esta dualidade do ódio e da afeição. En
quanto não cessar êsse processo dual, o conflito
dos opostos tem de continuar.
64
com todas as suas consequências. A mente não
pode desembaraçar-se dêle. Na sua tentativa
para fazê-lo, ela cultiva os opostos, que são
parte do próprio mêdo. Assim, a mente divide-
se, cria dentro de si um processo dual. Todo
esforço por parte da mente tem de manter essa
dualidade, embora possa desenvolver tendên
cias, características, virtudes, para dominar essa
mesma dualidade.
K r i s h n a m u r t i : Há o bem e o mal, a
luz e a treva. A luz e a treva não podem co
existir. Uma destrói a outra.
Se a luz é luz, então a treva, o mal, cessa
de existir. O esforço é desnecessário, êle é ine
xistente então. Mas nós estamos em um estado
de esforço contínuo, porque o que para nós é
luz, não é luz, é somente a luz, o bem o intelecto.
Estamos fazendo esforço constante para do
minar, para adquirir, para possuir, para sermos
desprendidos, para desenvolver-nos. Há mo
mentos de claridade no meio da confusão en
volvente. Desejamos' esta claridade e apegamo-
nos a ela, esperando que dissolva os desejos em
conflito. Êste desejo de claridade, êste desejo
de dominar uma qualidade com outra, é perda
65
de energia; porque a vontade que anseia, a von-
tade que domina, é a vontade do sucesso, da sa
tisfação, a vontade da segurança. Esta vontade
deverá sempre continuar a criar e manter o
mêdo, embora asseverando estar procurando a
verdade, Deus. Sua claridade é a da fuga, da
ilusão, mas não a claridade da realidade.
Quando a vontade se destrói, espontanea
mente, há então esta verdade que está além de
todo esforço. O esforço é violência; o amor e
a violência não podem coexistir.
O conflito em que existimos não é uma luta
entre o bem e o mal, entre o eu e o não-eu. A
luta está em nossa própria dualidade auto-
criada, entre os nossos vários desejos auto-pro
tetores. Não pode haver conflito entre a luz e
a treva; onde há luz, não há treva. Enquanto
o mêdo existe, o conflito tem de continuar, ain
da que êsse mêdo possa difarçar-se sob dife
rentes nomes. E como o mêdo não pode, de modo
nenhum, libertar-se, pois todos os seus esforços
brotam da sua própria fonte, é preciso haver a
cessação de tôdas as salvaguardas intelectuais.
Esta cessação vem espontaneamente, quando a
mente revela a si mesma o seu próprio pro
cesso. Isto ocorre sómente quando há apercebi
mento integral, que não é o resultado de uma
disciplina, ou de um sistema moral ou econô
mico, ou da compulsão.
66
Cada um tem de se tornar apercebido do
processo da ignorância, das ilusões que criou.
O intelecto não vos afastará deste caos,
confusão e sofrimento presentes. A razão deve
exhaurir-se, não pela retração, mas pela com
preensão e pelo amor integrais da vida.
Quando o raciocínio não tiver mais a capa
cidade de proteger-vos com explicações, fugas,
conclusões lógicas, então, quando houver com
pleta vulnerabilidade, desnudamento absoluto
de todo o vosso ser, haverá a chama do amor.
Sómente a verdade libertará cada um da
tristeza e da confusão da ignorância.
A verdade não é o resultado final da expe
riência, é a vida mesma. Ela não é o amanhã,
não é de tempo algum. Não é um resultado,
uma consecução, mas a cessação do mêdo, do
querer.
6?
S E G U N D A P A R T E
ACAMPAMENTO DE OMMEN
1938
71
de uma seita ou sociedade particular, ou uma
ideologia popular no momento. A livre comu
nicação só é possível quando ambos, quem ouve
e quem fala, pensam juntos sôbre o mesmo
ponto.
Durante estes dias de acampamento não de
veria haver ésta atitude de mestre e discípulo,
de condutor e conduzido, mas antes uma inter
comunicação amistosa que será impossível, se
a mente estiver presa a alguma crença ou ideo
logia. Jamais pode haver amizade entre con
dutor e seguidor, e, portanto, a profunda comu
nicação entre ambos se torna impossível.
Estou falando de algo que, para mim, é real,
em que encontro alegria, e vos será de muito
pouco significado se estiverdes pensando em
algo inteiramente diverso. Se, de algum modo,
pudermos ir além destas absurdas relações, que
estabelecemos através da tradição e da lenda,
através da superstição e de tôda espécie de fan
tasias, então talvez sejamos capazes de com
preendermo-nos uns aos outros mais natural
mente.
O que quero dizer parece muito simples, pelo
menos a mim, mas quando estes pensamentos o
sentimentos são expressos em palavras, tornam-
se complicados. A comunicação torna-se mais
difícil quando vós, com vossos preconceitos par
ticulares, vossas superstições e barreiras, tentais
perceber o que procuro dizer, em vez de ten-
72
tardes aliviar as vossas mentes destas perversões
que impedem a compreensão completa — a única
que pode produzir uma atitude crítica e afe
tuosa.
Como sabeis, êste acampamento não se des
tina a fins de propaganda, seja da Direita ou
da Esquerda, ou de qualquer sociedade ou ideo
logia particular. Sei que há muitos que aqui
veem regularmente para fazer propaganda das
sociedades a que pertencem, da sua nacionali
dade, da sua igreja, etc. Assim, eu vos pediria
seriamente que não vos entregásseis a e3ta espé
cie de passatempo. Estamos aqui para propó
sitos mais sérios. Os que teem queda por essa
espécie de divertimento, teem bastantes opor
tunidades em outros lugares. Aqui, pelo menos,
tentemos descobrir o que individualmente pen
samos e sentimos, então, talvez principiemos, a
compreender o caos, o ódio que existe dentro
de nós, e ao nosso derredor.
Cada um de nós tem muitos problemas: se
deveria tornar-se pacifista, ou até onde deveria
ir em direção ao pacifismo; se deveria lutar
pelo seu país; problemas sociais econômicos, e
problemas de crença, conduta e afeição. Não
vou dar uma resposta que resolva imediatamente
estes problemas. Mas o que desejaria fazer se
ria indicar uma nova maneira de tratá-los, de
modo que quando estivésseis enfrentando estes
problemas de nacionalismo, guerra, paz, explo-
73
ração, crença, amor, seríeis capaz de os defron
tar integralmente e de um ponto de vista que
é real.
Assim, por favor, não espereis, no início
destas palestras, uma solução imediata para os
vossos vários problemas. Sei que a Europa é
um perfeito manicômio, em que se fala da paz
e, ao mesmo tempo, há preparação para a guerra;
em que fronteiras e nacionalismo são fortaleci
dos e, ao mesmo tempo, se fala da unidade
humana; fala-se de Deus, do amor, e ao mesmo
tempo o ódio se desencadeia. Isto não é apenas
o problema do mundo, mas o vosso próprio pro
blema, porque o mundo sois vós.
Para encarar estes problemas, tendes de
estar incondicionalmente livre. Se de algum
modo estiverdes limitado, isto é, se de algum
modo tendes mêdo, não podeis resolver nenhum
destes problemas. Somente na liberdade incon-
dicionada há verdade; isto é, somente na liber
dade podeis ser verdadeiramente vós mesmo. Ser
integral, em todo o seu próprio ser, é estar in-
condicionado. Se de algum modo, por qualquer
meio tendes dúvida, ansiedade, mêdo, isto cria
a mente condicionada que obsta a solução última
dos'múltiplos problemas.
Quero explicar o modo de vos aproximar
des da liberdade dos temores condicionantes,
afim de que possais ser vós próprio em todas as
ocasiões e sob todas as circunstâncias. Êste
74
estado sem medo é possível, somente nele pode
haver êxtase, realidade, Deus. A não ser que se
esteja plena, integralmente livre do medo, os
problemas apenas aumentam e se tornam sufo
cantes, sem nenhum significado ou propósito.
É isto o que desejo dizer: que só na liber
dade incondicionada há verdade, e sermos com
pletamente nós mesmos, integrais em todo o
nosso ser, é estarmos incondicionados, o que
revela a realidade.
Assim, o que é — sermos nós mesmos? E
podemos ser nós mesmos em tôda ocasião? So
mente o podemos ser em tôda ocasião, quando
estamos fazendo alguma cousa que realmente
amamos; e se amamos completamente. Quando
fazeis algo que não podeis deixar de fazer com
todo o vosso ser, estais sendo vós próprio. Ou
quando amais a outrem completamente, neste
estado sois vós próprio, sem nenhum temor, sem
nenhum obstáculo. Nestes dois estados somos
completamente nós mesmos.
Assim, temos de descobrir o que fazemos
com amor. Estou usando a palavra “amor” deli-
beradamente. O que é que fazeis com amor, com
todo o vosso ser? Não o sabeis. Não sabemos o
que é sensato e o 'que é insensato fazer, e a
descoberta do que é sensato e do que é insen
sato constitue todo o processo de viver. Não
ireis descobrí-lo em um piscar de olhos.
75
Mas como se descobrirá isto? Poderá ser
descoberto — o que é sensato e o que é insen
sato — mecanicamente, ou espontaneamente?
Quando fazeis algo, com todo o vosso ser, em
que não há sentimento de frustação ou mêdo,
nenhuma limitação, neste estado de ação sois
vós próprio, independente de qualquer condição
exterior. Digo, se puderdes chegar a este estado,
quando sois vós próprio na ação, então desco
brireis o êxtase da realidade, Deus.
Pode êste estado ser mecanicamente atin
gido, cultivado, ou surge espontaneamente?
Explicarei o que entendo por processo mecâ
nico. Toda ação imposta pelo exterior tem de
ser formadora de hábitos, tem de ser mecânica,
e, portanto, não espontânea. Podeis descobrir
o que é ser vós mesmo, através da tradição?
Permití-me fazer aqui uma pequena digres
são e dizer que tentaremos, como fizemos no
ano passado, falar destas idéias durante as re
uniões seguintes. Tentaremos tratar dos vários
pontos, não argumentando um com o outro, mas
descobrindo de maneira amigável o que indivi
dualmente pensamos sôbre estas cousas. Em mi
nha primeira palestra desejo dar um ligeiro
esboço do que, para mim, é o verdadeiro pro
cesso' de viver.
Podeis ser vós mesmo se o vosso ser está,
de qualquer modo, afetado pela tradição? Ou
76
podeis-vos encontrar através do exemplo, atra
vés do preceito?
I n t e r r o g a n t e : Que é preceito?
K r i s h n a m u r t i : Através de um pre
ceito, através de um dito — que mau é tudo
que divide e bom tudo que une — por mera
mente seguir um princípio, podeis ser vós
mesmo? Poderá o viver de conformidade com
um padrão condutor, com um ideai, seguindo-o
implacavelmente, meditando sobre êle, trazer-
vos à descoberta de vós mesmo? Pode o que é
real ser percebido através da disciplina ou da
vontade? Isto é, pela compulsão, pelo esforço
do intelecto, curvando, controlando, discipli
nando, guiando, forçando o pensamento em uma
direção particular, podeis conhecer-vos? E po
deis conhecer-vos por meio de padrões de con
duta; isto é, preconcebendo um modo de vida,
do que é bom, o ideal, e seguindo-o constante
mente, torcendo o vosso pensamento e o vosso
sentimento aos seus ditames, afastando tudo o
que considerais mau, e cruelmente seguindo o
que considerais bom? Revelar-vos-á este pro
cesso, qualquer que êle seja, o que realmente
sois? Podeis descobrir-vos pela compulsão?
Êste desapiedado domínio das dificuldades pela
vontade, pela disciplina, é uma forma de com-
77
pulsão — este sufocar e resistir, uma resistên
cia e uma renúncia.
Tudo isto é o esforço da vontade, que consi
dero mecânico, um processo do intelecto. Po
deis conhecer-vos pelo emprego destes meios
— por intermédio destes meios mecânicos? Todo
esforço, mecânico, ou da vontade, é formador de
hábitos. Através da formação de hábitos podeis
ser capazes de criar certo estado, realizar certo
ideal em que podeis considerar serdes vós pró
prio, mas como é o resultado de um esforço in
telectual, ou do esforço da vontade, é inteira
mente mecânico e porisso não verdadeiro. Pode
êste processo produzir a compreensão de vós
próprio, do que sois?
Há, então, o outro estado, que é espontâneo-
Podeis conhecer-vos somente quando estiverdes
despreocupado, quando não estiverdes calculan
do, nem protegendo, nem constantemente obser
vando para guiar, para transformar, para subju
gar, para controlar; quando vos virdes inespe
radamente, isto é, quando a mente não tiver
preconcepções com relação a si mesma, quando
estiver aberta, não preparada para defrontar o
desconhecido.
Se a vossa mente está preparada, por certo
não podeis conhecer o desconhecido, pois vós
sois o'desconhecido. Se vos disserdes, “ Sou
Deus”, ou, “ Não passo de um agrupamento de
influências sociais, ou de um feixe de qualida
73
des” — se tiverdes qualquer preconcepção de
vós próprio, não podeis compreender o desco
nhecido, o que é espontâneo.
Assim, a espontaneidade só pode surgir
quando o intelecto não se está defendendo,
quando não se está protegendo, quando já não
teme por si; e isto só pode suceder partindo
do interior. Isto é, o espontâneo deve ser o
novo, o desconhecido, o incalculável, o criativo,
o que deve ser expressado, amado, em que a
vontade, como processo do intelecto, contro
lando, dirigindo, não toma parte. Observai os
vossos próprios estados emocionais e vereis que
os momentos de grande alegria, de grande
êxtase, não são premeditados; eles acontecem,
misteriosa, obscura, desconhecidamente. Quando
passados, a mente deseja re-criá-los, recaptu
rá-los e assim dizei-vos: “ Se posso seguir cer
tas leis, formar certos hábitos, agir dêste e não
daquele modo, então terei aqueles momentos de
êxtase novamente”.
Há sempre guerra entre o espontâneo e o
mecânico. Por favor, não adapteis isto para en
quadrar-se em vossos têrmos religiosos, filo
sóficos. Para mim, o que estou dizendo é vital
mente novo e não pode ser torcido, para se
adaptar aos vossos' preconceitos particulares do
eu superior e inferior, do transitório e do per
manente, do eu e do não-eu, e assim por diante.
A maioria de nós, infelizmente, quase destruiu
79
esta espontaneidade, esta alegria criativa do
desconhecido, a única de que pode resultar ação
sábia. Temos perseverantemente cultivado, atra
vés de gerações de tradição, de moralidade ba
seada na vontade, de compulsão, a atitude me
cânica da vida, chamando-a pelos nomes mais
bem sonantes; em essência isto é puramente
mecânico, intelectual. O processo da disciplina,
da violência, do domínio, da resistência, da
imitação, — tudo isto é a resultante do desen
volvimento do mero intelecto, que tem as sua"
raizes no medo. O mecânico está acabrunhado
ramente dominante em nossas vidas. Nele está
baseada a nossa civilização e a nossa moralidade
— e em raros momentos, quando a vontade está
adormecida, esquecida, há a alegria do espontâ
neo, do desconhecido.
Digo que só neste estado de espontaneidade
podeis perceber o que é a verdade. Somente
neste estado pode haver ação sábia, não a ação
da moralidade calculada, ou da vontade.
As várias formas de disciplinas moral e reli
giosa, as inúmeras imposições das instituições
sociais e éticas, são apenas o resultado de uma
atitude mecânica, cuidadosamente cultivada com
relação à vida, que destrói a espontaneidade e
produz a destruição da verdade.
Através de nenhum método — e todos os
métodos devem inevitavelmente ser mecânicos
— podeis desemaranhar a verdade do vosso pró-
80
prio ser. Ninguém pode, por modo algum, forçar
a espontaneidade. Nenhum método vos dará a
espontaneidade. Todos os métodos apenas criam
reações mecânicas. Nenhuma disciplina produz ..
alegria espontânea do desconhecido. Quanto
mais vos esforçardes para ser espontâneo, tanto
mais a espontaneidade se afasta e se torna oculta
e obscura, e menos pode ser compreendida. E,
entretanto, é isto que estais tentando fazer quan
do seguis disciplinas, padrões, ideais, condutores,
exemplos, e assim por diante. Tendes de vos
aproximar dela negativamente, não com a in
tenção de capturar o desconhecido, o real.
Está cada um apercebido do processo mecâ
nico do intelecto, da vontade, que destrói o es
pontâneo, o real? Não podeis responder ime
diatamente, mas podeis começar a pensar sôbre
o intelecto, sôbre a vontade, e especialmente
sentir a sua qualidade destrutiva. Podeis per
ceber a natureza ilusória da vontade, não atra
vés de qualquer uma compulsão, nem através,
de nenhum desejo de conseguir, de atingir, de
compreender, mas somente quando o intelecto
se permitir ser despido de todas as suas envol-
turas de proteção.
Podeis conhecer-vos somente quando amar
des completamente. Isto, novamente, constitue
todo o processo da vida, não para ser colhido
em alguns momentos, de algumas palavras mi-
81
nhas. Não podeis ser vós mesmo quando o amor
é dependente. Não há amor quando há apenas a
auto-satisfação, ainda que seja mútua. Não há
amor quando há restrição; não há amor quando
apenas se trata de um meio para atingir a um
fim; quando há apenas sensação. Não podeis
ser vós mesmo quando o amor está rsob o jugo
do mêdo; há então mêdo, não amor, que se está
expressando por vários modos, embora possais
disfarçá-lo, chamando-o amor. O mêdo não vos
permite ser vós mesmo. O intelecto apenas guia
o medo, controla-o, porém jamais pode des
truí-lo, porque o intelecto é a própria causa do
mêdo.
Desde que o mêdo não vos permite ser vós
próprio, como, então, se pode dominar êste mêdo
— mêdo de tôdas as espécies, não de um tipo
particular? Como nos podemos libertar dêste
mêdo, de que podemos estar concientes ou in-
concientes? Se estais inconciente do mêdo, tor-
nai~vios conciente dêle; tornai-vos apercebido
dos vossos pensamentos e das vossas ações e cêdo
estareis conciente do mêdo. E se estais con
ciente, como ireis libertar-vos dêle? Ireis livrar-
vos do mêdo mecanicamente, por meio da von
tade; ou, começará êle a dissolver-se por i
mesmo, espontaneamente? O processo mecânico
ou daJ vontade, pode apenas ocultá-lo cada vez
mais, guardá-lo, e cuidadosamente restringí-lc,
permitindo apenas as reações da moralidade
82
controlada. Sob este padrão de comportamento
controlado, o medo sempre continua. Êste é o
resultado inevitável do processo mecânico da
vontade, com as suas disciplinas, desejos, con
trolos, e assim por diante.
Enquanto não nos libertamos do mecânico,
não pode haver o espontâneo, o real. Ansiando
pelo real, por esta chama que brota do interior,
não podeis produzí-la.
O que vos libertará do mecânico é a profunda
observação do processo da vontade, sendo uno
com êle, sem nenhum desejo de vos libertardes
dele. Presentemente, observais a atitude mecâ
nica em relação à vida, com o desejo de vos
desembaraçardes dela, de alterá-la, de trans-
formá-la. Como podeis transformar a vontade,
quando o desejo é da própria vontade?
Tendes de estar apercebido de todo o pro
cesso da vontade, do mecânico, com as suas
lutas, as suas fugas, as suas misérias; e como o
fazendeiro deixa o solo sem cultivo depois da
colheita, assim tendes de vos deixar ficar silen
ciosos, negativos, sem nenhuma espectativa.
Isto não é fácil. Se na esperança de atingir o
real, mecanicamente vos deixardes ficar silen
ciosos, vos forçardes a ser negativo, então o
medo é a recompensa. Como já disse, esta va
cuidade criativa não é para que empós dela se
corra, ou para ser procurada por caminhos
errantes. Ela deve acontecer. A verdade é. Ela
83
não é o resultado da moralidade organizada
porque a moralidade baseada na vontade não é
moral.
Temos muitos problemas tanto individuais
como sociais, e para estes problemas não há
solução pelo intelecto, pela vontade. Enquanto
o processo da vontade continua, sob-^qualquer
forma, tem de haver confusão e tristeza. Atra
vés da vontade, não podeis conhecer-vos, nem
pode haver o real.
84
II
35
fordes verdadeiramente espontâneo , quando
fordes realmente vós mesmo. Julgar outrem
para verificar se ele é espontâneo, significa
realmente que tendes um padrão de espontanei
dade, o que é absurdo. O julgamento do que á
espontâneo revela a mente que apenas reage
mecanicamente aos seus próprios hábitos e
padrões morais.
Assim, é futil e perda de tempo, conducente
à mera opinião, considerar o que é ser real, es
pontâneo, ser — se a si mesmo. Tais conside
rações conduzem à ilusão. Vamos ocupar-nos
com o que constituo a condição necessária que
revelará o real.
Ora, qual é verdadeira condição? Não há tal
divisão como condição interna e externa; ape
nas as estou dividindo em interna e externa para
fins de observação, para compreendê-las mais
claramente. Esta divisão não existe na realidade.
Somente do estado interno reto é que as
condições externas podem ser modificadas, me
lhoradas e fundamentalmente transformadas.
Partindo do meramente superficial, isto é, do
externo, para criar as condições adequadas, pou
co significado terá para a compreensão da ver
dade, de Deus.
É preciso compreender o que é a verdadeira
condição interna, mas não por qualquer com
pulsão externa, ou autoridade. A profunda mo
dificação interna lidará sempre inteligente-
86
mente com as condições exteriores. De uma vez
por tôdas, percebamos plenamente a importân
cia dessa necessária modificação interna e não
confiemos meramente na alteração das circuns
tâncias externas. São sempre os motivos e as
intenções internas que modificam e controlam
o exterior. Motivos, desejos, não são fundamen
talmente alterados pelo simples domínio do
exterior.
Se um homem é interiormente pacífico e
afetuoso, sem ganância, por certo este homem
não precisa de leis que lhe imponham a paz,
nem de polícia para regular a sua conduta, nem
de instituições para manter sua moralidade.
Temos dado atualmente grande importância
ao exterior, para manter a paz; através de insti
tuições, leis, polícia, exército, igrejas, e assim
por diante, procuramos manter uma paz que não
existe. Pela imposição e pela dominação, opondo
violência à violência, esperamos criar um estado
pacífico.
Se realmente compreenderdes isto, profunda,
honestamente, então vereis a importância de
não tratar os muitos problemas da vida como o
externo e o interno, mas somente do ponto de
vista compreensivo e integral.
Portanto, qual é a condição interna neces
sária para sermos nós mesmos, para sermos es
pontâneos? A primeira condição interna neces
sária, é que o mecanismo formador de hábitos
87
deve cessar. Qual é a força motriz atrás dêste
mecanismo?
Antes de responder a isto devemos primeira
mente descobrir se os nossos pensamentos e sen
timentos são o resultado do mero hábito, da
tradição, e se estão seguindo ideais e princípios.
A maioria de nós, se pensar realmente sobre o
assunto, de modo inteligente, honesto, verá que
os nossos pensamentos e sentimentos usual
mente surgem de vários padrões convenciona
dos, sejam ideais ou princípios.
A continuação dêste hábito mecânico e de
sua força motora é o desejo de estar certo. Todo
o mecanismo da tradição, da imitação, do exem
plo, da construção de um futuro, do ideal, do
perfeito e da sua consecução, provém do desejo
de estar seguro; e o desenvolvimento de várias
qualidades supostamente necessárias é para sua
segurança, para o seu sucesso.
O desejo dá uma falsa continuidade ao nosso
pensamento e a mente apega-se a essa conti
nuidade cujas ações são apenas o seguimento
de padrões, ideais, princípios, e o estabeleci
mento do hábito. Assim, a experiencia jamais é
nova, fresca, alegre, criativa; e daí a extraordi
nária vitalidade das cousas mortas, do passado.
Tomemos agora alguns exemplos e vejamos
o que quero dizer. Tomemos o hábito do nacio
nalismo, que se está tornando cada vez mais
forte e cruel. Não é o nacionalismo, realmente,
88
um falso amor do homem? Aquele que é nacio
nalista de coração nunca poderá ser um ser
humano completo. Para o nacionalista, o in-
ternacionalismo é uma mentira. Muitos insis
tem que se pode ser nacionalista e ao mesmo
tempo não pertencer a nenhuma nação; isto é
uma impossibilidade e apenas uma astúcia da
mente.
Apegar-se a uma determinada parte da terra,
impede o amor pelo todo. Tendo criado o falso
e artificial problema do nacionalismo, procura
mos resolvê-lo com argumentos astutos e com
plexos em favor da sua necessidade e manuten
ção por meio de armamentos, ódio e divisão.
Todas estas respostas teem de ser inteiramente
insensatas e falsas, pois o problema em si mesmo
é uma ilusão e uma perversão. Compreendamos
esta questão do nacionalismo, e a êste respeito,
pelo menos, permaneçamos sãos em um mundo
de arregimentação e insânia brutais.
Não é o amor organizado do próprio país,
com seus ódios e afeições arregimentados, culti
vados e impostos através da propaganda, dos
condutores, meramente um interêsse rendoso?
Não existe esse pseudo-amor pela pátria porque
alimenta o egoísmo individual por caminhos
tortuosos? Tôda compulsão e gratificação de
vem inevitavelmente criar hábitos mecânicos
que constantemente entram em conflito com a
integridade e as afeições individuais. Precon
89
ceito, ódio, temor, teem de criar divisão, que
inevitavelmente produz a guerra; não apenas a
guerra no íntimo do próprio indivíduo, mas
também entre os povos.
Se o nacionalismo é apenas um hábito, que
devemos fazer? Não possuir um passaporte,
não vos liberta do hábito nacionalista. A mera
ação superficial não vos liberta da brutal con
vicção íntima de uma superioridade racial par
ticular. Quando vos defrontais com os senti
mentos do nacionalismo, qual é a vossa reação?
Sentis que são inevitáveis, que tendes de passar
pelo nacionalismo para chegar ao internaciona-
lismo; que tendes de passar pelo brutal para vos
tornardes pacífico? Qual é o vosso raciocínio?
Ou não raciocinais absolutamente, mas apenas
seguis a bandeira porque há milhões fazendo
esta cousa absurda? Por que estais todos tão
silenciosos? Mas como estaríeis animados para
discutir comigo sobre Deus, a reincarnação ou
as cerimônias!
Esta questão do nacionalismo está batendo
à vossa porta, quer queirais ou não, e qual é a
vossa resposta?
90
Interrogante: Ê a mesma cousa, cer
tamente.
I n t e r r o g a n t e : Considero o naciona
lismo uma extensão do provincialismo.
91
A última guerra £oi travada pela democracia,
creio, e vêde, estamos mais preparados para a
guerra do que nunca, e os indivíduos estão
menos livres. Por favor, não deis livre curso a
meras argumentações intelectuais. Ou tomais
os vossos sentimentos e pensamentos seriamente
e os examinais profundamente, ou ficais satis
feito com superficiais respostas intelectuais.
Se pensais que estais procurando a verdade,
ou criando no mundo relações humanas verda
deiras, o nacionalismo não é o meio; nem pode
esta relação humana de afeição, de amizade, ser
estabelecida por meio de canhões. Se amais pro
fundamente, não há o um nem os muitos. Há
apenas esse estado de ser que é amor, em que
pode existir o único, mas não é a exclusão dos
muitos. Mas se vos dizeis que pelo amor de um
haverá o amor dos muitos, então não estais em
absoluto considerando o amor, porém apenas o
resultado do amor, o que é uma forma do medo.
Tomemos outro exemplo do processo do me
canismo formador de hábitos, que destrói o
viver criativo. Precisais tornar-vos novos, para
compreender a realidade.
Tomemos a questão do modo porque trata
mos as pessoas. Notastes como as tratais —
quem julgais superior, com grande considera
ção, e o inferior com desdém ofensivo e indife
rença? Notastes? (Sim ) Isto é evidente neste
Acampamento; o modo por que me tratais e o
92
modo por que tratais os vossos companheiros
de acampamento, ou aqueles que auxiliam à exe
cução dos trabalhos; a maneira por que vos
portais com uma pessoa titulada e com uma
pessoa comum; o respeito que tendes ao di
nheiro e o que não tendes ao pobre, e assim por
diante. Não é isto o resultado do mero hábito,
da tradição, da imitação, do desejo de ter su
cesso, do hábito de satisfazer a própria vaidade?
Por favor, pensai realmente sobre isto e
percebei como a mente vive e continua no
hábito, embora afirmando que deve ser es
pontânea, livre. Qual é a vantagem de prestar-
me atenção se a cousa evidente está escapando
à vossa consideração? Estais silenciosos nova
mente, porque isto é um acontecimento comum
em vossas vidas, e dêste modo ficais um pouco
nervosos ao tratardes dêste assunto, pois não
desejais ser expostos tão radicalmente.
Se existe este hábito — e é meramente um
hábito e não uma ação deliberada, conciente,
exceto no caso de alguns poucos — quando dele
vos tornardes conciente, êle desaparecerá, se
realmente amais todo este processo de viver.
Mas se não estais interessado, ouvir-me-eis e
podeis ficar intelectualmente excitado por
alguns minutos, mas continuareis no mesmo
modo antigo. Mas aqueles de vós que se acham
profundamente interessados, que gostam de
compreender a verdade, a vós eu digo, observai
93
como este ou qualquer outro hábito cria uma
cadeia de memórias que se tornam cada vez
mais fortes, até que somente permanece, o “ eu” ;
o “mim”. Êste mecanismo é o “ eu” e enquanto
existir êste processo não pode haver o êxtase
do amor, da verdade.
Tomemos outro exemplo, o da meditação.
Vejo agora que começais a tomar interêsse. O
nacionalismo, a maneira de tratarmos as pes
soas, o amor, a meditação — tôdas estas cousas
fazem parte do mesmo processo; tôdas elas sur
gem da mesma origem, mas vamos examiná-los
separadamente afim de os compreender melhor.
Talvez discutais comigo esta questão da me
ditação, pois a maioria de vós, de um ou outro
modo, pratica esta cousa chamada meditação,
não é? (Sim e Não) Alguns praticam; outros
não. Aqueles de vós que a praticais, por que o
fazeis? E aqueles de vós que não a praticais,
por que não o fazeis? Aqueles que não meditam,
qual é o motivo deles? Ou a sua atitude é de
completa irreflexão, indiferença, ou teem mêdo
de ficar envolvidos nessas ninharias, ou temem
revelar-se a si próprios, ou há o temor de adqui
rir hábitos novos e inconvenientes, e assim por
diante. Os que meditam, qual é o seu motivo?
I n t e r r o g a n t e : Egoísmo.
94
K ri s h n a m u r t i : Proferis essa palavra
como explicação? Também vos posso dar uma
explicação ótima, mas estamos tentando ir além
das meras explicações. Estas, usualmente, para-
lizam o pensar. Que estamos tentando fazer ao
discutir este assunto? Estamos nos expondo.
Estamos nos ajudando mutuamente a ver o que
somos. Estais agindo como um espelho para
mim, e do mesmo modo eu para vós, sem dis-
torsão. Mas se simplesmente oferecerdes e der
des uma explicação, apenas atirardes algumas
palavras, embaciareis o espelho, o que impede a
percepção clara.
Estamos tentando descobrir porque medita
mos e o que isto significa. Aqueles de vós que
meditais, provavelmente o fazeis porque sentis
que necessitais de certo equilíbrio e claridade,
por meio da introspecção, para tratar dos pro
blemas da vida. Assim, dedicais algum tempo
para esse propósito e esperais durante êste pe
ríodo entrar em contacto com algo real, que
vos ajudará a guiar-vos durante o dia. Não é
assim? (Sim). Durante êste período começais a
disciplinar-vos, ou durante todo o dia discipli
nais os vossos pensamentos e sentimentos e,
do mesmo modo, as vossas ações, de acordo com
o padrão estabelecido naqueles poucos instantes
da chamada meditação.
95
I n t e r r o g a n t e : Não, considero-a um de-
gráu na senda para a libertação do eu, um passo
apenas.
K r i s h n a m u r t i : Certamente dizeis a
mesmo cousa que estou salientando, somente
empregais as vossas próprias palavras. Podeis
por meio da disciplina libertar o pensamento,
libertar a emoção? É esta a questão que o inter
rogante levanta. Pode alguém disciplinar-se
afim de se tornar espontâneo, de compreender o
desconhecido, o real? A disciplina implica em
um padrão, um molde que está modelando, e o
que é verdade tem de ser o desconhecido e não
pode ser atingido através do conhecido.
95
ríamos aprofundar-nos mais nesta questão da
disciplina, não somente da disciplina imposta
pelo mundo exterior, através das várias institui
ções de moralidade organizada, através de sis
temas sociais particulares, mas também da dis
ciplina que o desejo desenvolve.
A disciplina imposta pelo exterior, pela so
ciedade, pelos condutores, e assim por diante,
deve inevitavelmente destruir o preenchimento
individual; penso que isto é assás óbvio. Porque
tal disciplina, compulsão, conformidade, apenas
adia o problema inevitável do mêdo individual,
com as suas múltiplas ilusões.
Ora, há muitas razões para nos disciplinar
mos; há o desejo de proteger-nos de vários mo
dos, pela consecução, pela tentativa de nos tor
narmos mais sábios, mais nobres, pelo encontro
de um Mestre, pelo nos tornarmos mais virtuo
sos, pela persecução de princípios, ideais, pelo
desejar e ansiar pela verdade, pelo amor, etc.
Tudo isto indica trabalho do mêdo e as razões
nobres são apenas a cobertura deste mêdo inato.
Dizei-vos mentalmente: “Para atingir Deus,
para descobrir a realidade, para por-me em co
munhão com o Absoluto, com o Cósmico” —
conheceis tôdas as frases — “ devo começar a
disciplinar-me. Devo aprender a ser mais con
centrado. Devo praticar o apercebimento, desen
volver certas virtudes”. Quando estais asseve
rando estas coisas e vos disciplinando, que está
97
acontecendo aos vossos pensamentos e às vossas
emoções?
98
I n t e r r o g a n t e : Não será possível for
mar-se um hábito de amor, sem perder a espon
taneidade?
K r i s h n a m u r t i : O hábito provém da
mente, da vontade, cuja ação é apenas a dc
dominar o mêdo sem destruí-lo. As emoções são
criativas, vitais, novas, e portanto, não podem
ser transformadas em hábitos, por mais que i
vontade tente dominá-las e controlá-las.
É a mente, a vontade, com os seus apegos,
desejos, temores, que cria o conflito entre si e
a emoção. O amor não é a causa da miséria;
são os temores, os desejos, os hábitos da mente
que criam a dôr, a agonia do ciúme, a desilusão.
Tendo criado o conflito e o sofrimento, a mente,
com a sua vontade de satisfação, encontra ra
zões, desculpas, fugas, que são chamadas por
vários nomes — desapego, amor impessoal, e
assim por diante. Devemos compreender todo
o processo do mecanismo formador de hábitos,
e não indagar qual seja a disciplina, o padrão
ou o ideal melhor. Se a disciplina é coordena
ção, então não pode ser realizada pela com
pulsão, por meio de qualquer sistema. O indi
víduo deve compreender a sua própria profunda
complexidade e nãó apenas procurar um padrão
para preenchimento.
Não pratiqueis disciplinas, nem sigais pa
drões ou meros ideais, mas estai apercebido do
99
p r o c e s s o d a f o r m a ç ã o d o s h á b ito s . T e n d e c o n -
c iê n c ia d o s v e lh o s s u lc o s p o r o n d e a m e n te te m
c o r r id o , e ta m b é m d o d e s e jo d e f o r m a r o u t r o s
n o v o s . E x p e r im e n ta i is t o s e r ia m e n t e ; ta lv e z
p o s s a h a v e r m a io r c o n f u s ã o e s o f r im e n to , p o r
q u e a d is c ip lin a , a s l e i s m o r a is , te e m apenas
a tu a d o n o s e n tid o d e c o n te r o s d e s e jo s e p r o p ó
s ito s o c u lto s . Q u a n d o e s tiv e r d e s i n t e g r a lm e n t e
a p e r c e b id o , co m t o d o o v o sso ser, d e s ta c o n
f u s ã o e s o f r im e n to , s e m q u a lq u e r e s p e r a n ç a d e
f u g a , e n tã o s u r g i r á e s p o n ta n e a m e n te o q u e é
r e a l. P o rém d e v e is a m a r , f i c a r e n tu s ia s m a d o
p e la p r ó p r i a c o n f u s ã o e s o f r im e n to . T e n d e s d e
a m a r com o v o sso p ró p r io co ração , n ão com o
d e o u tr e m .
Se p rin c ip ia rd e s a e x p e rim e n ta r convosco
m e sm o , v e r e is o c o r r e r u m a c u r io s a t r a n s f o r m a
ç ã o . N o m o m e n to d a m a io r c o n f u s ã o h á c l a r i
dade; no m o m e n to d o m a io r m e d o há a m o r.
T e n d e s d e c h e g a r a is to e s p o n ta n e a m e n te , s e m
o e s f o r ç o d a v o n ta d e .
S u g ir o s e r ia m e n te q u e e x p e r i m e n t e i s c o m o
q u e v e n h o d iz e n d o e e n tã o c o m e ç a r e is a v e r o
m o d o p e lo q u a l o h á b ito d e s t r ó i a p e r c e p ç ã o
c r ia tiv a . M a s is to n ã o é c o u s a q u e p o s s a s e r
d e s e ja d a o u c u ltiv a d a . N ão se p o d e t a t e a r à
p r o c u r a d e la .
100
III
V enho te n ta n d o e x p lic a r q u a l a c o n d iç ã o
i n t e r n a c o r r e ta , e m q u e p o d e m o s s e r v e r d a d e i r a
m e n te n ó s m e s m o s ; q u e e n q u a n to o m e c a n is m o
fo rm a d o r de h á b ito s e x is tir, n ão p o d em o s ser
n ó s m e s m o s , e m b o ra ê s te m e c a n is m o s e j a c o n
s id e r a d o b o m . T o d o h á b i t o d e v e i m p e d i r a c la
re za de p ercep ç ão e o c u lta r a n o ssa p ró p r ia
in t e g r i d a d e . Ê s t e m e c a n is m o f o i d e s e n v o lv id o
c o m o u m m e io d e f u g a , u m p r o c e s s o d e o c u lta r ,
d e e n c o b r ir a n o s s a p r ó p r i a c o n f u s ã o e i n c e r
t e z a s ; f o i d e s e n v o lv id o p a r a e s c o n d e r a f u t i l i
d a d e d a s n o s s a s p r ó p r ia s a ç õ e s e a r o t i n a d d
tr a b a lh o , d a o c u p a ç ã o ; o u p a r a f u g i r à v a c u id a
d e , à t r i s t e z a , à d e c e p ç ã o , e a s s im p o r d ia n te .
E s ta m o s t e n t a n d o esc ap ar, fu g ir da ig n o
râ n c ia e do m ed o , p e la fo rm a ç ã o d e h á b ito s
q u e os c o n tr a b a la n ç a r ã o , q u e l h e s r e s is t i r ã o —
h á b ito s d e id e a is e d e m o r a lid a d e . Q u a n d o h á
101
d e s c o n te n ta m e n to , t r i s t e z a , o in t e l e c t o m e c a n i
c a m e n te s u r g e c o m s o lu ç õ e s , e x p lic a ç õ e s , t e n
t a t i v a s d e s u g e s tõ e s , q u e g r a d u a l m e n t e se c r i s
ta l i z a m e se to rn a m h á b ito s de p e n s a m e n to ,
A s s im o s o f r im e n to e a d ú v id a sã o a c o b e r ta d o s ,
É o m ê d o , p o r t a n t o , a r a iz d ê s s e m e c a n is m o
f o r m a d o r d e h á b ito s . D e v e m o s c o m p r e e n d e r o
se u p ro c e sso . P o r c o m p re e n d e r n ão q u e ro s ig n i
fic a r a p e n a s o m e ro a p a n h a d o in te le c tu a l, m as
o t o r n a r - s e c o n c ie n te d ê le co m o u m p r o c e s s o
a t u a l q u e e s tá o c o r r e n d o , n ã o s u p e r f i c i a l m e n t e ,
m as c o m o a lg o q u e e s tá a c o n te c e n d o d ia ria
m e n te n a n o s s a v id a . O e n t e n d im e n to é u m p r o
c e s s o d e a u to - r e v e la ç ã o , d e e s t a r a p e r c e b id o , n ã o
a p e n a s o b je tiv a m e n te , m a q u in a lm e n te , m a s co m o
p a r t e d a n o s s a p r ó p r i a e x is tê n c ia .
A f i m d e c o m p r e e n d e r m o s ê s te m e c a n is m o d a
f u g a p e lo h á b ito , te m o s p r i m e i r a m e n te d e d e s
c o b r ir o m o tiv o o c u lto — o m o tiv o que nos
im p e le p a r a c e r ta s a ç õ e s , q u e t r a z e m em seu
r a s tr o o que d e n o m in a m o s e x p e r iê n c ia . En
q u a n to n ã o c o m p re e n d e rm o s a fô rça m o to r a
d ê s te m e c a n is m o que c r ia a fu g a , c o n s id e r a r
a p e n a s a s f u g a s é d e p o u c o v a lo r .
A e x p e r i ê n c i a é u m p r o c e s s o d e a c u m u la ç ã o
e d e d e s n u d a m e n to , d e r e v e la ç ã o e d e f o r t a l e
c im e n to d e a n t i g o s h á b ito s , d e d e s t r u i ç ã o e d e
c o n s tr u ç ã o do q u e c h a m a m o s a v o n ta d e . A e x p e
r i ê n c i a , o u f o r t a l e c e a v o n ta d e , o u , e m c e r to s
m o m e n to s , a d e s t r ó i ; o u c o n s tr ó i d e s e jo s c o m
102
f in a lid a d e , o u r o m p e os d e s e jo s q u e h a v ía m o s
a c u m u la d o , a p e n a s p a r a c r ia r o u tr o s . N e s te p r o
c e sso d e p a s s a r p o r e x p e r iê n c ia s , d e v iv e r , h á a
f o r m a ç ã o g r a d u a l d a v o n ta d e .
O r a , n ã o h á v o n ta d e d iv in a , m a s a p e n a s a
v o n ta d e s im p le s , c o m u m , d o d e s e jo : a v o n ta d e
d e o b te r s u c e s s o , d e e s ta r s a t i s f e i t o , d e se r.
E s t a v o n ta d e é u m a r e s is tê n c ia , e é o f r u t o do
m ê d o q u e g u ia , e s c o lh e , ju s tif ic a , d is c ip lin a .
E s t a v o n ta d e n ã o é d iv in a . E l a não e s tá em
c o n f lito co m a c h a m a d a v o n ta d e d iv in a , m a s,
d e v id o à s u a p r ó p r i a e x is tê n c ia , é u m a f o n te
d e t r i s t e z a e d e c o n f lito , p o r q u e é a v o n ta d e
d o m ê d o . N ã o p o d e h a v e r c o n f li t o e n t r e a lu z e
a t r e v a ; o n d e e x is te u m a , n ã o e x i s t e a o u tr a .
P o r m a is q u e g o s te m o s d e v e s t i r e s ta v o n ta d e
co m a d iv in d a d e , co m p r i n c í p i o s e n o m e s a l t i s
s o n a n te s , a v o n ta d e é, em s u a e s s ê n c ia , o r e s u l
ta d o do m ê d o , d o d e s e jo .
A lg u n s te e m c o n c iê n c ia d e s ta v o n ta d e do
m ê d o , co m tô d a s a s s u a s p e r m u ta ç õ e s e c o m b i
n a ç õ e s . T a lv e z a l g u n s p e r c e b a m e s ta v o n ta d e
co m o s e n d o m ê d o e t e n t e m d e s t r u í - l a s e g u in d o -
lh e a s m ú l ti p l a s ex p ressõ es e a s s im c r ia n d o
a p e n a s o u tr a f o r m a d e v o n ta d e , q u e b r a n d o u m a
r e s is tê n c ia a p e n a s p a r a c r ia r o u tr a .
A s s im , a n t e s d e c o m e ç a rm o s a p e s q u is a r os
m e io s e m o d o s d e d e s t r u i r o m ê d o p e la d is c i
p lin a , p e la f o r m a ç ã o d e n o v o s h á b ito s , e a s s im
p o r d ia n te , d e v e m o s p r im e ir a m e n te c o m p r e e n d e r
103
o m o tiv o m o to r q u e se e n c o n tr a a t r á s d a v o n
t a d e . J á e x p liq u e i o q u e e n te n d o p o r c o m p r e e n
sã o . E s t a c o m p r e e n s ã o n ã o é u m p r o c e s s o i n t e
le c tu a l, a n a lític o . N ã o é a s s u n to p a r a a s a la d e
v i s i ta s o u p a r a o e s p e c ia lis ta , m a s d e v e s e r c o m
p r e e n d i d a n a s a ç õ e s c o m u n s , em n o s s a s r e la ç õ e s
d iá r ia s . I s t o é, o p r o c e s s o d e v iv e r r e v e la r - n o s - á ,
se e s tiv e r m o s c o m p le ta m e n te a p e r c e b id o s , o
f u n c io n a m e n to d e s ta v o n ta d e , d ê s te h á b ito , o
c í r c u lo v ic io s o de c r ia r u m a re s is tê n c ia a p ó s
o u tra , a q u e p o d em o s d a r d ife re n te s n o m es —
id e a is , a m o r, D e u s , v e r d a d e , e a s s im p o r d ia n te .
O p o d e r - m o to r q u e e s t á p o r t r á s d a v o n ta d e
é o m ê d o , e q u a n d o p r in c ip ia m o s a c o m p r e e n d e r
is to , o m e c a n is m o d o h á b ito in te r v e m , o f e r e c e n
d o n o v as fu g a s, n o v as e sp e ra n ç a s, n o v o s d eu se s.
O ra , é p r e c is a m e n te n e s t e m o m e n to , q u a n d o a
m e n te com eça a i n te r f e r ir n a c o m p re e n sã o do
m êdo, que deve haver in te n s o a p e r c e b im e n to
p a r a n ã o se s e r d e s v ia d o o u d i s t r a í d o p e la s o f e
r e n d a s d o in te l e c t o , p o is a m e n te é s u t i l e a s t u
c io s a . Q u a n d o h á a p e n a s m ê d o , s e m q u a lq u e r
e s p e r a n ç a d e f u g a , n o s m a is n e g r o s m o m e n to s ,
n a m a is c o m p le ta s o lid ã o do m êdo, aí su rg e ,
c o m o d o i n t e r i o r d e s i p r ó p r io , a lu z que o
d is s ip a r á .
Q u a lq u e r t e n t a t i v a q u e f i z e r m o s s u p e r f i c i a l
m e n te , in te l e c t u a l m e n t e , p a r a d e s t r u i r o m ê d o ,
a t r a v é s d a s v á r ia s f o r m a s d e d is c i p l in a s o u d e
p a d r õ e s d e c o m p o r ta m e n to , a p e n a s c r ia o u t r a s
104
f o r m a s d e r e s i s t ê n c i a s ; e é n e s t e h á b ito q u e
e s ta m o s p r e s o s . Q u a n d o p e r g u n t a i s c o m o v o s
d e s e m b a r a ç a r d o m ê d o , c o m o d e s t r u i r o s h á b i
to s , e s ta is r e a lm e n te e n c a r a n d o o p r o b le m a do
e x te r io r , in te le c tu a lm e n te e, p o rta n to , vossa
p e r g u n ta n ã o te m s ig n if ic a ç ã o . N ã o p o d e is d is
s o lv e r o m ê d o p e la v o n ta d e , p o i s e s ta é f i l h a
d o m ê d o jta m p o u c o p o d e ê le s e r d e s t r u i d o p e lo
“ a m o r ” , p o r q u e se o a m o r é u t i li z a d o com o
p r o p ó s i t o d e d e s tr u iç ã o , j á n ã o é a m o r, p o ré m ,
u m o u t r o n o m e d a v o n ta d e .
K r i s h n a m u r t i : Q u a lq u e r p r o c e s s o c o n
d u c e n te à lim ita ç ã o , à r e s is tê n c ia , a u m a e s p é c ie
d e is o la r m o - n o s c o m p le ta m e n te p ara chegar a
um e s ta d o in te le c tu a l ou id e a l, é d e s tru id o r
d o v iv e r c r ia tiv o . C e r ta m e n te i s t o é ó b v io . I s t o
é, se a lg u é m p o s s u e u m id e a l d e a m o r — e to d o s
o s id e a is te e m d e s e r i n t e l e c t u a i s e, p o r ta n to ,
m e c â n ic o s — e t e n t a p r a tic á - lo , t r a n s f o r m a r o
105
a m o r e m h á b ito , c h e g a r á c e r ta m e n te a u m e s ta d o
d e f in id o . M a s n ã o é o d e a m o r, é a p e n a s u m
e s ta d o d e c o n s e c u ç ã o i n t e l e c t u a l .
A p e r s e c u ç ã o d o id e a l é t e n t a d a p o r to d o s
o s p o v o s ; o s I n d ú s f a z e m - n ’a a s e u m o d o , o s
C r is tã o s e o u tr o s g r u p o s r e lig io s o s ta m b é m o
f a z e m . O m ê d o c r ia o id e a l, o p a d r ã o , o p r i n
c íp io , p o rq u e a m e n te p ro c u ra s a tis f a ç ã o .
Q uando e s ta s a tis f a ç ã o é am eaçada, a m e n te
f o g e p a r a o id e a l. T e n d o o m ê d o c r ia d o o p a
d rã o , m o ld a o p e n s a m e n to e o d e s e jo , d e s t r u i n d o
g r a d u a l m e n t e a e s p o n ta n e id a d e , o d e s c o n h e c id o ,
o c r ia tiv o .
K r i s h n a m u r t i : N ão e s tá cad a um , a
s e u m o d o , d e s t r u i n d o a s u a p r ó p r i a v id a ? N ã o
e s ta m o s d e s t r u i n d o a n o s s a p r ó p r i a i n t e g r i d a d e ?
P e l o s n o s s o s p r ó p r io s d e s e jo s , p e lo n o s s o p r ó
p r io c o n d ic io n a m e n to , e s ta m o s d e s tru in d o as
n o s s a s v id a s in d i v id u a is . T e n d o o c o n tr o lo de
o u tr e m e a c a p a c id a d e d e e s t r a g a r a n o s s a p r ó
p r i a v id a , p r o c e d e m o s à d e f o r m a ç ã o d a v id a d e
o u tr e m , s e j a d e u m a c r ia n ç a , d e u m s u b o rd i
n a d o , o u d e u m v iz in h o .
106
H á in s t it u i ç õ e s , g o v e r n a m e n ta is e r e lig io s a s ,
à s q u a is , v o l u n t á r i a o u in v o lu n ta r ia m e n te , s o
m os fo rçad o s a nos c o n f o r m a r . A s s im , a q u e
e s p é c ie d e e s t r a g o se r e f e r e o i n t e r r o g a n t e ? À
d e lib e r a d a p e r v e r s ã o d a p r ó p r i a v i d a i n d iv id u a l,
o u à d e f o r m a ç ã o d a v id a d e a lg u é m p o r p o d e
r o s a s i n s t it u i ç õ e s ? A n o ssa re açã o n a tu ra l é
d iz e r q u e a s i n s t it u i ç õ e s , g r a n d e s e p e q u e n a s ,
e s tã o co rro m p e n d o as n o ssas v id a s . A n o ssa
r e a ç ã o é p ô r a c u lp a n o que é e x te rio r, n as
c ir c u n s tâ n c ia s .
E m o u tr a s p a la v r a s , e s ta m o s e m u m m u n d o
d e a r r e g im e n ta ç ã o , d e c o m p u ls ã o , d e té c n ic a
g o v e r n a m e n ta l a s tu c io s a e d e r e li g i õ e s o r g a n i
z a d a s p a r a a n i q u i l a r o i n d i v íd u o — e q u e se
d e v e f a z e r ? C o m o d e v e a g i r o in d i v íd u o ? G o s
t a r i a s a b e r q u a n t o s d e n t r e v ó s v o s t e r í e i s f e ito
s e r ia m e n te e s ta p e r g u n ta . A lg u n s podem te r
c o m p r e e n d id o a b r u t a l i d a d e d e t u d o i s t o e se
f ilia d o a s o c ie d a d e s o u g r u p o s q u e p r o m e te m
a l t e r a r c e r t a s c o n d iç õ e s . P o r é m , n o p r o c e s s o d e
a lte r a ç ã o , a o r g a n iz a ç ã o do p a r ti d o , d a s o c ie
d a d e , a s s u m iu v a s ta s p r o p o r ç õ e s e to r n o u - s e d a
m á x im a im p o r tâ n c ia . E , d ê s te m o d o , o i n d i v í
d u o f i c a n o v a m e n te p r e s o em s u a s e n g r e n a g e n s .
C o m o e n c a r a r e s ta q u e s tã o ? D o e x t e r i o r o u
d o i n t e r i o r ? N ã o h á d iv is ã o e m e x t e r n o e i n
te r n o , m a s, a p e n a s m o d if ic a n d o o e x te r n o , n ã o
p o d em o s m o d ific a r fu n d a m e n ta lm e n te o in te rn o
S e t e n d e s c o n c iê n c ia d e q u e e s ta is a r r u i n a n d o
107
a v o s s a p r ó p r i a v id a , c o m o p o d e is v o s d i r i g i r
a u m a i n s t it u i ç ã o , o u a u m p a d r ã o e x te r n o , p a r a
q u e v o s a u x ilie ?
S e s e n t i r d e s p r o f u n d a m e n t e q u e a v io lê n c ia ,
so b q u a lq u e r f o r m a , p o d e a p e n a s le v a r à v io
lê n c ia , e m b o r a n ã o p o s s a is p arar as g u e rra s,
s e r e is p e lo m e n o s u m c e n tr o d e s a n id a d e , c o m o
u m m é d ic o n o m e io d a d o e n ç a . A s s im , d o m e s m o
m o d o , s e p e r c e b e r d e s i n t e g r a lm e n t e d e q u e m a
n e i r a e s t a i s e s t r a g a n d o a v o s s a v id a , e s ta p e r
cep ção m esm a co m e ç a rá a c o r rig ir as co u sa s q u e
e s tã o d e f o r m a d a s . T a l ação n ão é fu g a .
I n t e r r o g a n t e : Devemos retornar ao
passado? Devo ter conciência do que tenho
sido? Devo conhecer meu karma?
K r i s h n a m u r t i : Em e s ta n d o a p e rc e b i
d o , t a n t o o p a s s a d o c o m o o p r e s e n t e sã o r e v e
la d o s , o q u e n ã o c o n s t i t u e u m p r o c e s s o m i s t e
r io s o , m a s e m t e n t a n d o c o m p r e e n d e r o p r e s e n te ,
o s te m o r e s e a s l im ita ç õ e s passadas sã o re
v e la d o s .
K a r m a é u m a p a l a v r a s â n s c r i ta c u j o v e r b o
s i g n i f i c a a g ir . U m a f i l o s o f i a d e a ç ã o f o i c r ia d a
e m t o r n o d a i d é i a c e n tr a l , “ C o n f o r m e s e m e a r
d e s , a s s im c o l h e r e i s ’’, m a s n ã o n e c e s s ita m o s
t r a t a r d is to a g o r a . V e m o s q u e q u a lq u e r ação
n a s c id a d a i d é i a d e r e c o m p e n s a o u d e c a s tig o
108
te m d e s e r l i m i t a d o r a , p o is t a l a ç ã o s u r g e do
m edo. A ação o u tra z c l a r id a d e o u co n fu são ,
d e p e n d e n d o d o c o n d ic io n a m e n to i n d iv id u a l. S e
f o r m o s c r ia d o s a d o r a n d o o s u c e s s o , s e ja a q u i o u
n a ch am ad a e s fe ra e s p iritu a l, te m de haver a
busca de re c o m p e n sa com os seus te m o r e s ,
e s p e r a n ç a s , q u e c o n d ic io n a m tô d a ação, to d o
v iv e r . O v iv e r e n tã o se t o r n a u m p r o c e s s o de
a p r e n d iz a d o , d e c o n s t a n t e a c ú m u lo d e c o n h e c i
m e n to . P o r q u e a c u m u la m o s e s s e c h a m a d o c o
n h e c im e n to ?
K r i s h n a m u r t i : A g o ra ch eg am o s à p e r
g u n t a f u n d a m e n t a l : d e v e m o s v iv e r d e a c o r d o
c o m p a d r õ e s , s e ja m e x t e r n o s o u i n t e r n o s ? N ó s
f a c ilm e n te re c o n h ec em o s os p a d r õ e s e x te r n o s
co m o c o m p u ls ó r io s e, p o r t a n t o , o b s ta n d o o p r e
e n c h im e n to in d i v id u a l. V o lta m o - n o s p a r a u m
p a d rã o in te rn o que cada um c r io u a t r a v é s d a
a ç ã o e re a ç ã o , a t r a v é s d o ju l g a m e n t o d o s v a lo
re s , d o s d e s e jo s , d a s e x p e r iê n c ia s , d o s te m o re s ,
e a s s im p o r d ia n te . E m q u e e s t á b a s e a d o esse
p a d r ã o in te r n o , e m b o r a e s te ja c o n s ta n te m e n te
v a r ia n d o ? N ã o e s t á e le b a s e a d o n o d e s e jo a u to -
p r o t e t o r e n o s s e u s m ú l ti p l o s te m o r e s ? Ê s te s
d e s e jo s e te m o r e s c r ia m um p ad rão de com
p o r ta m e n to , d e m o r a lid a d e , e o m e d o é o p a d r ã o
109
c o n s ta n te , a s s u m in d o f o r m a s d i f e r e n t e s so b d i
fe re n te s c o n d iç õ e s . H á o s q u e s e a b r ig a m na
f ó r m u l a i n t e l e c t u a l , “ a v id a é u n a ” , e o u tr o s
n o a m o r d e D e u s , q u e é ta m b é m u m a f ó r m u la
in te le c tu a l, e as tra n s fo rm a m e m p a d r õ e s , em
p r i n c í p i o s , p a r a s u a v id a d iá r ia . A m o r a lid a d e
d a v o n ta d e n ã o é m o r a l, p o ré m a ex p ressão
do m êdo.
110
IV
C a d a u m d e n ó s te m u m p e c u li a r e p a r t i c u l a r
p r o b le m a p r ó p r io . A lg u n s se p r e o c u p a m co m a
m o r te , c o m o m e d o d a m o r te e c o m o q u e
su c e d e rá no a lé m ; a lg u n s e s tã o tã o s o litá
r io s em su as ocupações que buscam o m e io
d e d o m in a r e s s a v a c u id a d e ; a l g u n s e s tã o r e p l e
to s d e t r i s t e z a ; a lg u n s te e m a r o t i n a e o a b o r
r e c im e n to d o tr a b a lh o , e o u t r o s o p r o b le m a d o
a m o r, c o m a s s u a s c o m p le x id a d e s . C o m o p o d e m
to d o s e s s e s p r o b le m a s , o u o p r o b le m a p a r t i c u l a r
d e c a d a u m , s e r s o lu c io n a d o s ? H á a p e n a s u m
p ro b le m a , o u v á r io s e d i s t i n t o s p r o b le m a s ? T e m
cada um d e le s de ser s o lu c io n a d o se p a ra d a
m e n te , d e s lig a d o d o s o u tr o s , o u d e v e m o s s e g u i r
c a d a p ro b le m a , e, a s s im , c h e g a r a u m p r o b le m a
ú n ic o ? H a v e r á , e n tã o , s o m e n te u m p r o b le m a , e
s e g u in d o c a d a d i f i c u l d a d e c h e g a r e m o s ao p r o
b le m a ú n ic o , a tr a v é s d o q u a l, se o c o m p r e e n
d e rm o s , r e s o lv e r e m o s o s o u t r o s ?
111
H á s o m e n te u m p r o b le m a f u n d a m e n ta l, q u e
se e x p r e s s a d e v á r io s m o d o s d i f e r e n t e s . C ada
um d e n ó s e s t á c o n c ie n te d e u m a d i f i c u l d a d e
p a r t i c u l a r e d e s e ja l u t a r c o n t r a e s s a d i f i c u l d a d e
p o r s i m e s m o . S o lu c io n a n d o a d i f i c u l d a d e p e
c u l i a r in d iv id u a l, p o d e r - s e - á e v e n tu a lm e n te c h e
g a r a o p r o b le m a c e n tr a l, m a s , d u r a n te o p r o c e s s o
d e c h e g a r a té a í, a m e n te e x a u r iu - s e o b te v e c o
n h e c im e n to , f ó r m u la s , p a d r õ e s , q u e r e a lm e n te
b lo q u e ia m a s u a co m p re e n sã o do ú n ic o p ro
b le m a c e n tr a l. A l g u n s d e n ó s p r o c u r a m s e g u ir
o p r o b le m a a té à s u a o r ig e m , e, n o p r o c e s s o do
e x a m e e d a a n á lis e , e s ta m o s a p r e n d e n d o , a c u m u
la n d o o c h a m a d o c o n h e c im e n to . Ê s t e c o n h e c i
m e n to g r a d u a l m e n t e se tr a n s f o r m a em f ó r m u la s ,
p a d r õ e s . A e x p e r iê n c ia te m - n o s d a d o m e m ó r ia s
e v a lo r e s q u e g u ia m e d is c ip lin a m e q u e d e v e m
in e v ita v e lm e n te c o n d ic io n a r .
O r a , s ã o e s te s p a d r õ e s e m e m ó r ia s a u to -
p r o t e t o r e s , e s te c o n h e c im e n to a r m a z e n a d o , e s ta s
f ó r m u la s , q u e n o s im p e d e m d e p e r c e b e r o p r o
b le m a f u n d a m e n ta l e r e s o lv ê - lo . S e n o s d e f r o n
ta m o s c o m u m a e x p e r i ê n c i a v ita l e te n ta m o s
c o m p r e e n d ê - la b a s e a d o s em m e m ó r ia s m o r ta s ,
e m v a lo r e s , s im p le s m e n te a p e r v e r te m o s , a b s o r
v e n d o - a n a a c u m u la ç ã o m o r t a do p a s s a d o .
A fim d e r e s o lv e r ê s te p r o b le m a d o v iv e r ,
t e n d e s d e t e r m e n te v iç o s a , n o v a . U m n o v o n a s
c im e n to d e v e r á o c o r r e r . A v id a , o a m o r, a r e a l i
d a d e sã o s e m p r e n o v o s e sã o n e c e s s á r io s m e n te
112
e c o ra ç ã o v iç o s o s p a r a c o m p r e e n d ê - lo s . O a m o r
é s e m p r e n o v o , m a s e s te f r e s c o r é e s tr a g a d o
p e lo i n t e l e c t o m e c â n ic o , c o m a s s u a s c o m p le
x id a d e s , a n s ie d a d e s , c iú m e s , e a s s im p o r d ia n te .
S o m o s n ó s f e it o s d e n o v o , h á u m n o v o n a s
c im e n to c a d a d ia ? O u e s ta m o s a p e n a s d e s e n
v o lv e n d o a c a p a c id a d e d e r e s i s t ê n c i a p e l a v o n
ta d e , p e lo h á b ito , p e lo s v a lo r e s ?
.E s ta m o s a p e n a s f o r ta le c e n d o a v o n ta d e da
r e s is tê n c ia em f ô r m a s v á r ia s e s u t i s . D a í, a
e x p e r iê n c ia , a o in v é s d e n o s l i b e r t a r , d a n d o - n o s
lib e r d a d e de re n a sc e rm o s, de re n o v arm o -n o s,
to r n a r - s e um novo c o n d ic io n a m e n to , u m novo
lia m e à s a c u m u la ç õ e s m o r ta s d o p a s s a d o , d o c o
n h e c im e n to a r m a z e n a d o q u e é, r e a lm e n te , i g n o
r â n c ia e m ê d o . I s t o p e r v e r t e e d e s t r ó i a f o r ç a
l i b e r ta d o r a d a e x p e r iê n c ia .
É ê s te o p r o b le m a f u n d a m e n ta l — co m o r e
n a sc e r ou re n o v a r-se . O ra , p o d e is s e r re n o v a d o
p o r m e io d e f ó r m u la s , d e c r e n ç a s ? N ã o é u m
a b s u r d o a p r ó p r i a id é ia d e q u e p o d e is s e r r e
n o v a d o p o r m e io d e p a d r õ e s , d e id e a is , d e m o -
d ê lo s ? Pode a d is c ip lin a , fo rç a d a ou a u to -
im p o s ta , p r o d u z ir u m r e n a s c im e n to d a m e n te ?
I s t o ta m b é m é u m a im p o s s ib ilid a d e , n ã o é ? P o r
m e io d e e s t r i b i l h o s , p a la v r a s d e r e p e tiç ã o , in s
t i tu iç õ e s , por m e io da ad o raçã o de o u tr e m ,
p o d e is s e r r e n o v a d o ? T a lv e z m o m e n ta n e a m e n te ,
e n q u a n to m e o u v is , s i n t a i s a im p o s s ib ilid a d e d e
113
s e r d e s f e it o s d e n o v o p o r m e io d e u m m é to d o ,
a t r a v é s d e a lg u é m , e tc .
E n t ã o , o q u e n o s f a r á r e n o v a d o s ? P e r c e b e is
a n e c e s s id a d e v i t a l d e s e r re n o v a d o s , d e r e n a s
c e r ? P a r a c o m p r e e n d e r a v id a e m t o d o s o s s e u s
p r o b le m a s c o m p le x o s e a r e a lid a d e , o d esco
n h e c id o , te m d e h a v e r m o r te c o n s ta n te e u m
n o v o n a s c im e n to . D e o u t r a m a n e ir a d e f r o n
t a r e i s n o v o s p r o b le m a s , n o v a s e x p e r iê n c ia s co m
a c u m u la ç õ e s m o r ta s , q u e u n ic a m e n te p r e n d e m ,
causando co n fu são e s o f r im e n to .
E s ta m o s , e n tã o , c o n f r o n ta d o s co m e s ta s m e
m ó r ia s e f ó r m u la s , c r e n ç a s e v a lo r e s acum u
la d o s que a tu a m c o n s ta n te m e n te com o um
e s c u d o , co m o u m a r e s is tê n c ia . O r a , s e t e n ta m o s
r e m o v e r e s ta s r e s is t ê n c i a s , e s ta s s a lv a g u a r d a s ,
a p e n a s p e la v o n ta d e , p e la d is c ip lin a , a m e n te
n ã o se e s t á r e n o v a n d o . E , e n t r e t a n t o , te m o s o
p o d e r , a ú n ic a f ô r ç a q u e p o d e l i b e r t a r e r e n o
v a r , e e s t a é o a m o r — o a m o r, n ã o d o id e a l,
n ã o d e u m a f ó r m u la , m a s o a m o r d e in d i v íd u o a
i n d iv íd u o . M a s d e m a r c a m o s ê s te am or com a
m o r a l i d a d e d a v o n ta d e p o r q u e e x i s t e o d e s e jo
d e s a tis f a ç ã o e o s e u te m o r . A s s im , o a m o r se
to rn a d e s tr u tiv o , lim i t a d o r , ao in v é s d e l i b e r
ta d o r, re n o v a d o r.
V e m o s ê s te p r o c e s s o de e s c r a v id ã o e dôr
e m n o s s a v id a d iá r ia . É s ó n a v id a d i á r ia , co m
a s s u a s r e la ç õ e s m ú t u a s e c o n f lito s , s e u s te m o
r e s e a m b iç õ e s , q u e p r i n c i p i a i s a p e r c e b e r a
114
fo rç a re n o v a d o ra d o a m o r. Ê s te am or não é
s e n tim e n to . O s e n tim e n to , a f in a l , é a p e n a s a
in c a p a c id a d e d e s e n t i r p r o f u n d a , i n te g r a lm e n te ,
e, p o r ta n to , d e a l t e r a r f u n d a m e n ta lm e n te .
K r i s h n a m u r t i : P o d e is te r p r e g u iç a
d e v id o à f a l t a d e d i e t a a d e q u a d a , m a s , p o s s u ir
u m c o r p o s a u d á v e l, g a r a n te o r e n a s c im e n to d a
m e n te ? P o d e is e s t a r tr a n q u ilo , a p a r e n te m e n te
p r e g u iç o s o , e, n o e n ta n to , e x t r a o r d i n a r i a m e n te
v iv o .
K r i s h n a m u r t i : N ão p o d e is ser f e ito
d e n o v o co m o p e s o m o r to d o p a s s a d o e, p e r
cebendo is to , p e n s a is que d e v e is fa zer um
e s f o r ç o p a r a v o s d e s e m b a r a ç a r d e le . E s ta n d o
p r e s o n a c o n f u s ã o , s e n tis q u e p a r a v o s d e s e n
v e n c ilh a r d e s d e la d e v e is d i s c ip lin a r - v o s , que
t e n d e s d e v o s e s f o r ç a r p a r a d o m in á - la , o u , d e
o u tr o m o d o , a c o n f u s ã o a u m e n t a r á e c o n tin u a r á .
Ê is to q u e p e n s a is , n ã o é? O u f a z e is e s f o r ç o
115
p a r a v o s c o n s e r v a r d e s t r a n q u i l o e o b s e r v a r , a f im
d e e n c o n tr a r m o d o s e m e io s de vencer e s ta
c o n fu são e c o n f lito , ou f a z e is e sfo rç o p ara
p e r c e b e r a s s u a s c a u s a s , d e m o d o q u e p o s s a is
d o m in á - la s ; o u e s t a i s a p e n a s i n t e l e c t u a l m e n t e
in t e r e s s a d o em o b s e r v a r — p o ré m , n ã o n e c e s
s ita m o s p r e o c u p a r - n o s co m os c h a m a d o s in te
l e c t u a is . O u a c e i t a i s o c á o s, a l u t a , o u t e n t a i s
d o m in a r o s o f r i m e n t o ; a m b o s e n v o lv e m e s f o r ç o .
S e e x a m in a r d e s o m o tiv o d ê s te e s f o r ç o , p e r c e
b e r e is q u e h á o d e s e jo d e n ã o s o f r e r , o d e s e jo
de fu g ir, de e s ta r s a tis fe ito , de p ro te g e r-s e , e
a s s im p o r d ia n te . F a z - s e e s f o r ç o p a r a d o m in a r ,
p a r a c o m p re e n d e r, p a ra tra n s f o rm a r o q u e so
m os n o q u e q u e re m o s ser, o u p e n sa m o s q u e d e
v e r ía m o s s e r. N ã o p r o d u z e m to d o s e s te s e s f o r
ç o s u m a s é r ie d e n o v o s h á b ito s e m l u g a r d o s
a n t i g o s ? O s h á b ito s a n tig o s , o s v e lh o s v a lo r e s ,
n ã o v o s d e r a m o id e a l, a s a tis f a ç ã o , e p o r is to
f a z e is e sfo rç o p ara e s ta b e le c e r novos id e a is ,
n o v a s é r ie de h á b ito s , v a lo r e s e s a tis f a ç õ e s . T a l
esfo rço é c o n s id e r a d o d ig n o e n o b re . E s ta is
fa zen d o e s f o r ç o p a r a s e r o u n ã o s e r a lg o , d e
a c o r d o co m u m a f ó r m u l a e u m p a d r ã o p r e c o n
c e b id o s . A s s im , n ã o p o d e h a v e r r e n a s c im e n to ,
m a s a p e n a s a c o n tin u a ç ã o d o a n t i g o d e s e jo so b
n o v a f o r m a , q u e c e d o c r ia c o n f u s ã o e t r i s t e z a .
H á a in d a o e s f o r ç o d a v o n ta d e p a r a v e n c e r e s te
c o n f li t o e e s ta d ô r ; f ic a - s e n o v a m e n te p r e s o n o
116
c ír c u lo v ic io s o d o e s f o r ç o , s e j a p a r a e n c o n tr a r
a c a u s a d o s o f r im e n to o u p a r a d o m in á -la .
O e sfo rç o é fe ito p ara d o m in a r o te m o r
a tr a v é s d a d e s c o b e r ta d a s s u a s c a u s a s . P o r q u e
q u e r e is d e s c o b r ir a c a u s a ? N ão é p o rq u e não
q u e r e is s o f r e r , te m e is s o f r e r ? A s s im , e s p e r a is
q u e p e lo m e d o , c e d e n d o a o m e d o , to d o o m e d o
s e r á d o m in a d o . Is to é um a im p o s s ib ilid a d e .
O ra , f a z e is esfo rç o p ara d e s c b r ir a causa
d a a le g r ia ? S e o f a z e is , e n tã o a a l e g r i a c e s s a d e
e x i s t i r e s o m e n te a s s u a s m e m ó r ia s e h á b ito s
e x is te m .
K r i s h n a m u r t i : A a le g ria é esp o n
tâ n e a , n ã o p r o c u r a d a , n e m c o n v id a d a , e q u a n d o
a m e n te a a n a lis a , p ara c u ltiv á - la ou re cap -
tu r á - la , e n tã o n ã o é m a is a le g r ia . E n q u a n t o q u e
o m ê d o n ã o é e s p o n tâ n e o , e x c e to e m i n c id e n te s
r e p e n t i n o s e im p r e v is to s , m as a s tu c io s a m e n te
c u ltiv a d o p e la m e n te n o s e u d e s e jo d e s a t i s f a
ção , d e c e r te z a . A s s im , se f a z e is e s f o r ç o p a r a
v o s d e s e m b a r a ç a r d o m ê d o d e s c o b r in d o a s s u a s
c a u s a s , e a s s im p o r d ia n te , a p e n a s o e s ta is e n
117
c o b r in d o , p o is o e s f o r ç o é o d a v o n ta d e , q u e é
r e s is t ê n c i a c r ia d a p e lo m e d o .
S e in t e g r a lm e n t e , c o m to d o o v o s s o s e r , c o m
p r e e n d e r d e s ê s te p r o c e s s o , e n tã o , n o m e io d e s ta
c h a m a d o s o f r im e n to , q u a n d o n ã o h á d e s e jo d e
fu g ir, de v e n c e r, d e s ta m esm a c o n fu sã o s u rg e
u m a n o v a c o m p r e e n s ã o , b r o ta n d o e s p o n ta n e a
m e n te d o t e r r e n o d o p r ó p r i o rn ê d o .
118
V
T e n h o te n ta d o e x p lic a r q u e a re n o v a ç ã o , o
r e n a s c im e n to , t e m d e s e r e s p o n tâ n e o e não o
r e s u lt a d o d e e s f o r ç o .
A n te s d e d e s c o b r ir m o s se o e s f o r ç o é m o r a l
ou im o r a l, im p o rta n te ou não im p o r ta n te ,
te m o s , em p r i m e i r o lu g a r , d e c o n s i d e r a r o d e
s e jo . C o m p r e e n d e n d o o d e s e jo , c a d a u m d e s c o
b r i r á p o r si m e s m o se o e s f o r ç o é m o ra l ou
im o ra l, r e la t iv a m e n t e à r e n o v a ç ã o , a o r e n a s c i
m e n to d a m e n te . S e n ã o s e t iv e s s e m d e s e jo s ,
n ã o h a v e r ia esfo rç o . P o r t a n t o , te m o s de co
n h e c e r o s e u p r o c e s s o , a f o r ç a m o t r i z q u e im
p u ls io n a o e s f o r ç o , q u e é s e m p r e o d e s e jo ; s e ja
q u a l f o r o n o m e c o m q u e g o s te is d e d e s ig n á - lo ,
r e tid ã o , b e m , D e u s e m n ó s, o eu s u p e r io r , e
a s s im p o r d ia n te , n ã o im p o r ta , é a i n d a o d e s e jo .
O ra , o d e s e jo d ir ig e - s e sem p re a a lg u m a
c o u s a ; é s e m p r e d e p e n d e n te e, p o r is s o , s e m p r e
p r o d u t o r do m ê d o . S e n d o d e p e n d e n te , h á se m -
119
p re i n c e r te z a q u e p ro d u z o m êdo. O d e s e jo
n ã o p o d e e x i s t i r p o r s i m e sm o , p r e c i s a s e m p r e
e s t a r e m r e la ç ã o com a lg u m a cousa. P o d e is
o b serv ar is to em vossas re açõ e s p s ic o ló g ic a s
d iá r ia s . O d e s e jo é s e m p r e d e p e n d e n te , r e l a
c io n a d o co m a l g u m a c o u s a . S o m e n te o am or
n ã o é d e p e n d e n te .
H á o d e s e jo d e s e r a lg u m a c o u s a , d e t o r n a r -
se, d e t e r s u c e s s o , d e n ã o s o f r e r , d e e n c o n tr a r
a f e lic id a d e , d e a m a r e s e r a m a d o , d e e n c o n tr a r
a v e r d a d e , a r e a lid a d e , D e u s . H á o d e s e jo p o
s i t iv o d e s e r a lg o e o n e g a ti v o d e n ã o o s e r .
S e e s ta m o s a p e g a d o s , h á a g o n ia , s o f r i m e n t o , e
d is to a p r e n d e m o s — o q u e c h a m a m o s a p r e n d e r
— q u e o a p e g o t r a z a d ô r. A s s im , d e s e ja m o s
n ã o t e r a p ê g o , e c u ltiv a m o s e s ta q u a lid a d e n e
g a tiv a , o d e s a p e g o . O d e s e jo im p e le - n o s a s e r
is to e n ã o a q u ilo .
E s t a m o s f a m ilia r iz a d o s c o m o d e s e jo p o s i
tiv o e n e g a tiv o , s e r e n ã o s e r , t o r n a r - s e e n ã o
se t o r n a r . O r a , o d e s e jo não é em oção; é o
r e s u lt a d o d a m e n t e q u e e s t á s e m p r e p r o c u r a n d o
s a tis f a ç ã o , c u jo s v a lo r e s se b a s e ia m na s a tis
fa ç ã o . E s ta r s a tis fe ito é o m o tiv o o c u lto de
to d o d e s e jo . A m e n te p ro c u ra se m p re s a tis
f a ç ã o , a t o d o o c u s to , e, s e é c o n t r a r i a d a e m
u m a d ir e ç ã o , p r o c u r a c o n s e g u ir seu fim em
o u tr a . Todo e sfo rç o , to d o poder d ire tiv o da
m e n te é p a ra e s ta r s a tis fe ita . D e ste m o d o , a
s a tis f a ç ã o to r n a - s e um h á b ito m e c â n ic o da
120
m e n te . Em m o m e n to s d e g r a n d e em oção, de
a m o r p r o f u n d o , n ã o h á d e p e n d ê n c ia d o d e s e jo ,
n e m a s u a b u s c a d e s a tis f a ç ã o .
P a r a e s t a r s a t i s f e i t a , a m e n t e d e s e n v o lv e s u a
p r ó p r ia t é c n i c a d e r e s is t ê n c i a e n ã o - r e s is tê n c ia ,
q u e é a v o n ta d e . E q u a n d o a m e n te d e s c o b re
que no p ro c e s s o d a s a tis f a ç ã o há s o f r im e n to ,
e n tã o c o m e ç a a d e s e n v o lv e r a a u s ê n c i a d e d e
s e jo , o d e s a p e g o . H á , a s s im , a v o n ta d e p o s itiv a
e a n e g a tiv a s e m p r e se e s f o r ç a n d o , s e m p r e p r o
c u r a n d o s a tis f a ç ã o . O d e s e jo d e e s t a r s a t i s f e i t o
c r ia a v o n ta d e , q u e se m a n te m p e lo s e u p r ó p r io
e s f o r ç o c o n tín u o . E , o n d e h á v o n ta d e , te m de
se lh e s e g u i r s e m p r e o m e d o — m ê d o d e n ã o
e s ta r s a t i s f e i t o , de não c o n s e g u ir , d e não se
to rn a r . A v o n ta d e e o m êdo a n d a m se m p re
ju n t o s . E , a in d a , p a r a d o m in a r ê s t e m ê d o , fa z -s e
e s f o r ç o , e n e s t e c ír c u lo v ic io s o d e i n c e r t e z a a
m e n te f i c a p r e s a . A v o n ta d e e o m ê d o s e g u e m
s e m p r e d e m ã o s d a d a s e m a n te r ã o a s u a c o n
t i n u id a d e d e s a tis f a ç ã o e m s a tis f a ç ã o , a tr a v é s
d a m e m ó r ia q u e d á à c o n c iê n c ia a s u a c o n t i n u i
dade, com o o “ e u ” .
A v o n ta d e e o e s f o r ç o , e n tã o , sã o a p e n a s o
m e c a n is m o d a m e n t e p a r a e s t a r s a t i s f e i t a . A s
sim , o d e s e jo é t o d o d a m e n te . A m e n te é a
e s s ê n c ia m e s m a d o d e s e jo . O h á b i t o s e e s ta b e
le c e u p e la b u s c a c o n s ta n te de s a tis f a ç ã o , e a
s e n s a ç ã o q u e a m e n t e e s tim u la n ã o é e m o ç ã o .
121
T o d o o esfo rç o , p o rta n to , s u rg in d o d a v o n
t a d e , s e j a d e e s t a r s a t i s f e i t o o u d e n ã o o e s ta r ,
t e m d e s e r s e m p r e m e c â n ic o , f o r m a d o r d e h á b i
t o s e, a s s im , n ã o p o d e p r o d u z ir o r e n a s c im e n to ,
a re n o v açã o . M esm o q u a n d o a m e n te in d a g a
a c a u s a d o s o f r im e n to , e la o fa z p r i n c i p a lm e n t e
p o r q u e d e s e ja f u g i r , d e s t r u i r o q u e n ã o é s a t i s
f a t ó r i o e o b te r o q u e é.
O r a , to d o e s te p r o c e s s o em q u e a m e n te se
a c h a p r e s a é o s is te m a d a i g n o r â n c ia . A von
ta d e , q u e s e m a n té m p o r m e io d o e s f o r ç o p a r a
e s ta r s a tis fe ita , p a ra te r p ra z e r, a tra v é s d e v á
r i o s m e io s e m é to d o s — e s t a v o n t a d e d e s a t i s
f a ç ã o te m d e c e s s a r p o r s i m e s m a , p o is , q u a l
q u e r e sfo rç o p a ra d a r f im à s a tis f a ç ã o , será
a p e n a s o u t r a m a n e ir a d e e s t a r s a t i s f e i t o .
Ê s te p ro c esso de s a tis f a ç ã o , de c o n te n ta
m e n to , p r o s s e g u e a s s im c o n tin u a m e n te e t o d o
esfo rç o p o d e a p e n as f o r ta le c ê - lo . P e rc e b e n d o
q u e t o d o e s f o r ç o é o d e s e jo de s a t i s f a ç ã o e,
p o r t a n t o , d o p r ó p r io m ê d o , co m o se p o d e c o n
d u z i r ê s te p r o c e s s o a u m t ê r m o ? M e s m o ê s te
p r ó p r i o d e s e jo d a c e s s a ç ã o n a s c e d a v o n ta d e d e
e s t a r s a t i s f e i t o . E s t a q u e s tã o m e s m a d e c o m o
e s t a r li v r e do d e s e jo é i n s p i r a d a p e lo p r ó p r io
d e s e jo .
S e s e n tís s e is in te g ra lm e n te to d o ê s te p r o
c e s s o c o m o ig n o r â n c ia , e n tã o n ã o p e d i r í e i s u m
m e io d e f i c a r l i v r e d o d e s e jo , d o m ê d o . E n t ã o
n ã o p r o c u r a r í e i s n e n h u m m é to d o , p o r m a is p r o
122
m is s o r , p o r m a is e s p e r a n ç o s o . N ã o h á m é to d o ,
n e m s is te m a , n e m c a m in h o p a r a a v e r d a d e ,
Q uando c o m p r e e n d e is o p le n o s ig n i f i c a d o in
t e r n o d e t o d o s o s m é to d o s , e s t a p r ó p r i a c o m
p r e e n s ã o c o m e ç a e s p o n ta n e a m e n te a d is s o lv e r o
d e s e jo , o m ê d o , q u e e s t á p r o c u r a n d o s a tis f a ç ã o .
S o m e n te na p ro fu n d a em oção não e x is te
â n s ia d e s a tis f a ç ã o . O am or não d ep en d e da
s a tis f a ç ã o n e m d o h á b ito . M a s a v o n ta d e d o
d e s e jo p r o c u r a s e m p r e f a z e r d o a m o r u m h á b ito
m e c â n ic o , o u t e n t a c o n tr o lá - lo a t r a v é s d a s le is
m o r a is , d a c o m p u ls ã o , e tc . D a í e x i s t i r u m a
b a ta lh a c o n s ta n te d a m e n te , c o m s u a v o n ta d e
d e s a tis f a ç ã o , p a r a c o n tr o la r , p a r a d o m in a r o
a m o r ; e a b a t a l h a é q u a s e s e m p r e g a n h a p e la
m e n te , p o is o a m o r n ã o te m nenhum c o n f lito
d e n t r o d e s i, e, p o r t a n t o , n e n h u m c o m o u tr e m .
S o m e n te q u a n d o o d e s e jo , c o m s u a v o n ta d e d o
m ê d o , c e s s a e s p o n ta n e a m e n te — n ão p e la c o m
p u ls ã o o u p e la p r o m e s s a d e r e c o m p e n s a — h á
a re n o v a ç ã o , o r e n a s c im e n to d e to d o o n o s s o s e r .
K r i s h n a m u r t i : N ão é a fé o u tr o
r e f ú g i o e m q u e a m e n te e n c o n tr a s a tis f a ç ã o e
a b r ig o ? P o d e i s t e r f é n o a m o r, o u t r o a te m e m
123
D e u s , e a s s im p o r d ia n te . T ô d a £é s e m e lh a n te
é u m a n c o r a d o u r o p a r a a m e n te . Q u a lq u e r r e
f ú g i o , q u a lq u e r a p e g o , s e ja q u a l f o r o s e u n o m e ,
te m d e s e r d e a u to - p r o te ç ã o , d e s a tis f a ç ã o e
p o rta n to , o re s u lta d o do m êdo.
P e rc e b e m o s ao n o sso d e rre d o r te r r ív e l c ru e l
d a d e , c a o s e b a r b a r i d a d e c o m p le to s e p r o c u r a
m o s r e f ú g i o n o id e a l, n a c r e n ç a , o u e m q u a l-
q u e r f o r m a d e c o n s o la ç ã o . F o g e - s e a s s im p a r a
a i l u s ã o ; m a s o c o n f li t o e n t r e o a t u a l e o i l u
s ó r io te m d e c o n t i n u a r a té q u e o u o i r r e a l v e n ç a
o a t u a l , o u o a t u a l a tr a v e s s e to d a s a s s a lv a
g u a rd a s, to d a s a s fu g a s, e com ece a re v e la r o
seu p ro fu n d o sig n ific a d o .
I n t e r r o g a n t e : Insistindo meramente
no preenchimento individual, não estais pondo
de lado a questão social? Como pode o indi
víduo, que está sempre em relação com a socie
dade, ser o único fator importante? Por que
realçais o indivíduo?
K r i s h n a m u r t i : S em o i n d iv íd u o , a
s o c ie d a d e n ã o p o d e e x i s t i r ; e s ta e n t i d a d e s o c ia l
n ã o é i n d e p e n d e n t e d o in d iv íd u o . A s o c ie d a d e
é o c o n j u n t o d a s r e la ç õ e s m ú tu a s e n t r e u m i n
d iv íd u o e o u tr o . A s o c ie d a d e é pessoal m as
t o r n o u - s e m á q u in a in d e p e n d e n t e , c o m v id a p r ó
p r ia , q u e a p e n a s u t i l i z a o in d iv íd u o . A s o c ie
dade to rn o u -se s im p le s m e n te um a i n s t it u i ç ã o
q u e c o n tr o la e d o m in a o in d i v íd u o a t r a v é s d a
o p in iã o , d a s le is m o r a is , d e i n t e r e s s e s r e n d o s o s ,
e a s s im p o r d ia n te . C o m o a s i n s t i t u i ç õ e s n u n c a
são i m p o r ta n te s , m a s s o m e n te o in d iv íd u o , te m o s
d e c o n s id e r a r o s e u p r e e n c h im e n to , que não
p o d e s e r c o n s e g u id o p e la m e ra m udança de
a m b ie n te , p o r m a is d r á s ti c a q u e s e ja . A s im p le s
a lte r a ç ã o do s u p e rfic ia l não p r o d u z ir á o p ro
f u n d o p r e e n c h im e n to d o hom em , m as apenas
re a ç õ e s m e c â n ic a s . E s t a d iv is ã o e n t r e in d iv íd u o
e a m b ie n te é m e c â n ic a e fa ls a ; quando cada
q u a l c o m p r e e n d e r f u n d a m e n t a l m e n t e q u e is to é
a s s im , e n tã o o i n d iv íd u o a g i r á i n t e g r a lm e n te ,
n ã o co m o u m in d iv íd u o , n e m m e r a m e n te com o
o p r o d u to m e c â n ic o da s o c ie d a d e , m a s co m o
u m s e r i n t e g r a l.
K r i s h n a m u r t i : C om o ' p o d em o s p ro
d u z ir e s ta m u d a n ç a q u e to d o s d e s e ja m o s ? O u
p o r m e io d a f o r ç a , o u c a d a in d i v íd u o p rin c i
p ia n d o a d e s p e r t a r p a r a a n e c e s s id a d e d a m u
d a n ç a f u n d a m e n ta l. O u a tr a v é s d3 c o m p u ls ã o ,
d a r e v o lu ç ã o , d o d o m ín io , o u p e lo d e s p e r t a r d o
in d iv íd u o p a r a a r e a lid a d e .
125
S e q u e re m o s p ro d u z ir a p e n a s um m u n d o m e
c â n ic o d e s is te m a s m o r a is , d e le is , d e im p o s iç õ e s ,
e n tã o a v io lê n c ia p o d e s e r s u f i c i e n t e , o e m p r e g o
d a f ô r ç a so b t o d a s a s f o r m a s p o s s í v e i s ; m a s se
q u e r e m o s p a z e f r a t e r n i d a d e , r e la ç õ e s m ú tu a s
b a s e a d a s n o a m o r, e n tã o , a v io lê n c ia so b q u a l
q u e r a s p e c to não p o d e s e r o m e io . P e l a v io
lê n c i a n ã o p o d e is c h e g a r à p a z , a o a m o r , m a s
a p e n a s a m a io r v io lê n c ia . A v io l ê n c i a é c o m
p l e x a e s u t i l, e a t é q u e o in d i v íd u o n ã o f iq u e
liv re do seu d o m ín io e v id e n te ou e n c o b e r to ,
não pode haver paz, nem fra te rn id a d e du
ra d o u ra .
K r i s h n a m u r t i : P a ra s a lv a r a h u m a
n i d a d e d e v e is p r i m e i r o d e s t r u i r o s e r h u m a n o ?
É is t o q u e m e p e r g u n t a i s ? P o r q u e t e n d e s c e r ta s
id e o lo g ia s , c e r ta s c r e n ç a s , d e v e o in d i v íd u o s e r -
l h e s s a c r if ic a d o ? N ã o , m e u s a m ig o s ,n ã o q u e
r e m o s a j u d a r o m u n d o , q u e r e m o s a p e n a s im p o r
a o s o u t r o s c e r t a id e o lo g ia , c e r ta f é , c e r t a c r e n ç a .
Q u e r e m o s q u e a t i r a n i a d a s id é ia s p r e v a le ç a , e
n ã o o a m o r.
C a d a u m e s t á s e g u in d o o s e u p r o b le m a p a r
t i c u l a r , o s e u id e a l d e h o m e m , o u a s u a c o n
cepção do E s ta d o , o u a su a c re n ç a em D eu s,
126
e a s s im p o r d ia n te . M a s , se v ó s q u e m e o u v is ,
c o m p r e e n d e r d e s f u n d a m e n t a l m e n t e o q u e e s to u
d iz e n d o , e n tã o vos p re o c u p a re is co m o p ro -
b le m a - r a iz , o d e s e jo co m s e u s t e m o r e s e e s f o r
ço s, q u e im p e d e m o p r e e n c h im e n to , o r e n a s c i
m e n to in d iv id u a l.
127
VI
T enho p ro c u ra d o e x p l i c a r o m e c a n is m o do
m ê d o f o r m a d o r d e h á b ito s , q u e d e s t r ó i a r e n o
v a ç ã o , o r e n a s c im e n to , o ú n ic o em que pode
h a v e r r e a lid a d e . O d e s e jo d e s a tis f a ç ã o c r ia o
m ê d o e o h á b ito . C o m o e x p liq u e i, o d e s e jo e
a e m o ç ã o c o n s titu e m d o is p r o c e s s o s d i f e r e n t e s
e d is tin to s ; o d e s e jo sendo in te ira m e n te da
m e n te , e a e m o ç ã o a e x p r e s s ã o i n t e g r a l d e to d o
o n o sso ser. O d e s e jo , o p ro c e s s o d a m e n te , é
s e m p r e a c o m p a n h a d o p e lo m ê d o , e a e m o ç ã o é
i s e n t a d e le . O d e s e jo d e v e p r o d u z ir s e m p r e o
m ê d o , e a e m o ç ã o j a m a is o c o n té m p o r q u e e la
é a e s s ê n c ia d e to d o n o s s o se r. A em oção não
p o d e v e n c e r o d e s e jo , p o r q u e a e m o ç ã o é u m
e s ta d o d e d e s te m o r , q u e só p o d e s e r e x p e r i m e n
ta d o q u a n d o o d e s e jo , c o m o s e u m ê d o e a s u a
v o n ta d e d e s a tis f a ç ã o , c e ssa . A em oção não
p o d e d o m in a r o m ê d o ; p o r q u e o m ê d o , c o m o o
d e s e jo , sã o d a m e n te . A s e m o ç õ e s sã o d e c a r á te r ,
128
de q u a lid a d e e de d im e n s õ e s c o m p le ta m e n te
d if e r e n te s .
O ra , o q u e a m a io r ia d e n ó s e s ta m o s p r o
c u r a n d o f a z e r é d o m in a r o m ê d o , s e j a p e lo
d e s e jo , o u p e lo q u e c h a m a m o s “ e m o ç ã o ” — q u e
é r e a lm e n te o u t r a f o r m a d e d e s e jo . N ã o p o d e is
d o m in a r o m ê d o p e lo a m o r. D o m in a r o m ê d o
p o r m e io d e o u t r a f ô r ç a q u e c h a m a m o s e m o ç ã o ,
a m o r, n ã o é p o s s ív e l, p o r q u e o d e s e jo de do
m in a r o m ê d o n a s c e d o p r ó p r io d e s e jo , d a p r ó
p r i a m e n te , e n ã o d o a m o r. I s t o é, o m ê d o é
r e s u lt a d o d o d e s e jo , d a s a tis f a ç ã o , e o d e s e jo d e
d o m in a r o m ê d o é d a n a t u r e z a d a p r ó p r i a s a t i s
fa ç ã o . N ão é p o s s ív e l d o m in a r o m ê d o p e lo
a m o r, c o m o a m a i o r i a d a s p e s s o a s v e r i f i c a p o r
s i m e s m a . A m e n te , q u e é d o d e s e jo , n ã o p o d e
d e s t r u i r p a r t e d e s i m e s m a . É is to o q u e t e n t a i s
fa z e r q u an d o f a la i s d e “ d e s e m b a r a ç a r - v o s ” d o
m ê d o . Q u a n d o p e r g u n ta i s , “ C o m o p o s s o d e s e m -
b a ra ç a r-m e do m êd o , q u e p o sso fa z e r com as
v á r ia s f o r m a s d o m ê d o ? ” e s t a i s m e r a m e n te q u e
r e n d o s a b e r c o m o d o m in a r u m g r u p o d e d e s e jo s
p o r o u tr o — o q u e s o m e n te p e rp e tu a o m êdo.
P o r q u e t o d o d e s e jo c r ia m ê d o . O d e s e jo p r o d u z
o m ê d o e t e n t a n d o d o m in a r u m d e s e jo p o r o u t r o
e s ta is a p e n a s ce d en d o ao m êd o . O d e s e jo s o
m e n te p o d e r e c o n d ic io n a r - s e a s i m e s m o , r e m o
d e la r - s e s e g u n d o u m n o v o p a d r ã o , m a s p e r m a
n e c e r á a i n d a d e s e jo , d a n d o n a s c im e n to a o m ê d o .
S abem os q u e os n o sso s h á b ito s a tu a is de
129
p e n s a m e n to e d e m o r a lid a d e e s tã o b a s e a d o s n a
s e g u r a n ç a i n d i v id u a l e n o lu c r o e q u e d e s s e
m o d o c r iá m o s u m a s o c ie d a d e q u e é m a n t i d a p o r
m e io d o n o s s o p r ó p r i o d e s e jo . C o m p r e e n d e n d o
is to , h á o s q u e t e n t a m c r i a r n o v o s h á b ito s , n o v a s
v i r t u d e s , n a e s p e r a n ç a d e c r ia r u m a n o v a s o
c ie d a d e b a s e a d a n a a u s ê n c i a d o lu c r o , e a s s im
por d ia n te . M as o d e s e jo a in d a p e r s i s t e so b
d i f e r e n t e s f o r m a s e e n q u a n to n ã o c o m p r e e n d e r
m o s to d o o p r o c e s s o d o p r ó p r io d e s e jo , a m e r a
t r a n s f o r m a ç ã o d a s c o n d iç õ e s e v a lo r e s e x t e r n o s
t e r á p o u c o s ig n if ic a d o .
M o d i f i c a r a f o r m a d e d e s e jo d o v e lh o p a r a
o n o v o , é a p e n a s r e c o n d i c i o n a r a m e n te , p o is e la
c o n t i n u a r á s e n d o d o d e s e jo e, a s s im , s e m p re
u m a fo n te do m êd o . P o r is s o , te m o s d e c o m
p r e e n d e r o p r o c e s s o d a p r ó p r i a m e n te . N ã o é a
m e n te , com o a conhecem os, um in s tru m e n to
d e s e n v o lv id o p a r a a s o b r e v iv ê n c ia , p a r a a s a t i s
f a ç ã o , p a r a a a u to - p r o te ç ã o , p a r a a r e s is t ê n c i a ,
e, p o r c o n s e g u in te , u m i n s t r u m e n t o do m êdo?
V a m o s p ô r d e la d o a c o n s id e r a ç ã o d e q u e a
m e n te é o i n s t r u m e n t o d e D e u s , o g u i a m o r a l
m a is e le v a d o , e a s s im p o r d ia n te , p o r q u e to d a s
e s s a s s u p o s iç õ e s sã o m e r a m e n te t r a d i c io n a is , o u
s im p le s e s p e r a n ç a s . A m e n te é e s s e n c ia lm e n te
u m i n s t r u m e n t o d o m ê d o . D o d e s e jo s u r g e o
r a c io c ín io , a c o n c lu s ã o , a a ç ã o — c u jo s v a lo r e s
e m o r a lid a d e s e s tã o b a s e a d o s n a v o n ta d e d e s o
b r e v iv e r , de e s ta r s a tis fe ito . D êsse m odo, a
130
m e n te , o p e n s a m e n to , d iv id e - s e em m u i ta s p a r
te s , c o m o o c o n c ie n t e e o in c o n c ie n te , o s u p e r io r
e o i n f e r i o r , o r e a l e o f a ls o , o b e m e o m a l.
I s t o é, a m e n te , p r o c u r a n d o s a tis f a ç ã o , d iv id iu -
se e m m u ita s p a r te s , c a d a u m a e s ta n d o e m c o n
f l i t o co m a o u t r a , m a s a b u s c a c e n tr a l e e s s e n
c ia l d e c a d a u m a e d o t o d o é d e a u t o - s a tis f a ç ã o
sob d ife re n te s fo rm a s. A s s im , a m e n te e s tá
se m p re e n g e n d ra n d o o se u p r ó p r io m êd o .
H á v á r ia s f o r m a s d e m ê d o : d o n o s s o p ró
p r io f u t u r o , d a m o r te , d a v id a , d a r e s p o n s a b i li
d a d e , e a s s im p o r d ia n te . P o r i s s o a m e n t e e s t á
s e m p re te n ta n d o to rn a r-s e s e g u ra a tra v é s de
c r e n ç a s , d e e s p e r a n ç a s , d e ilu s õ e s , d e c o n h e c i
m e n to , d e id e a is , d e p a d r õ e s . H á u m a l u t a c o n s
t a n t e e n t r e o c o n h e c id o , e o d e s c o n h e c id o . O
c o n h e c id o é o p a s s a d o , o a c ú m u la d o , o h á b ito e
o d e s c o n h e c id o é o q u e é i n c e r t o , o in c o n q u is -
tá v e l, o e s p o n tâ n e o , o c r ia tiv o .
O passado e s tá se m p re te n ta n d o v en c er o
f u tu r o ; o h á b ito p ro c u ra tra n s f o rm a r o desco
n h e c id o n o h a b i t u a l p a r a q u e o m ê d o c e s s e . H á ,
a s s im , o c o n f li t o c o n s ta n te d o d e s e jo , e o m ê d o
e s tá se m p re p re s e n te . O p ro c e s s o é a b so rv e r,
e s t a r c e r to , e s t a r s a t i s f e i t o , e q u a n d o is to n ã o
é p o s s ív e l, a m e n t e r e c o r r e a e x p lic a ç õ e s , t e o
r ia s , c r e n ç a s s a t i s f a t ó r i a s . D ê s s e m o d o , a m o r te ,
o d e s c o n h e c id o é t r a n s f o r m a d o n o c o n h e c id o ;
a v e r d a d e , o in c o n q u is tá v e l é t r a n s f o r m a d o n o
a tin g ív e l.
131
Assim, a mente é um campo de batalha do*
seus próprios desejos, temores, valores, e qual
quer esforço que ela faça para destruir o medo
— isto é, para destruir-se a si mesma — é intei
ramente inútil. A parte que deseja desven
cilhar-se do medo está sempre procurando sa
tisfação; e aquela de que ela anseia livrar-se
foi o motivo de satisfação no passado. D’est’arte,
a satisfação procura livrar-se daquilo que já
satisfez; o medo tenta vencer o que foi o ins
trumento do mêdo. O desejo, criando medo na
busca de satisfação, tenta vencer este mêdo,
mas o próprio desejo é a causa do medo. O
mero desejo não pode destruir-se, nem o mêdo
dominar-se, e todo o esforço da mente para
livrar-se deles nasce do desejo. Dêsse modo a
mente fica presa no seu próprio círculo vicioso
do esforço.
Precisamos compreender profundamente a
natureza íntima da própria mente e esta com
preensão não nasce da noite para o dia; neces
sita de imenso apercebimento de todo o nosso
ser. Como eu disse, a mente é um campo de
batalha de vários desejos, valores, esperanças, e
qualquer esforço da sua parte para livrar-se
deles pode unicamente acentuar o conflito. A
luta existe enquanto o desejo, sob qualquer
forma, continua; enquanto um desejo se insurge
contra outro, uma série de valores contra outra,
um ideal contra outro, êste conflito tem de
132
continuar. Êste poder discriminativo do de
sejo, da escolha, tem de cessar, e isto só pode
suceder quando se compreende, quando se sente
internamente o esforço cego do intelecto. A
profunda observação deste processo, sem que-
rença, sem julgamento, sem preconceito, e, por
tanto, sem desejo, é o começo dêste apercebi
mento, o único que pode libertar a mente de
seus próprios temores, hábitos e ilusões des
trutivas.
Mas, com a maioria de nós, a dificuldade
está em perfurar através destas modalidades de
emoção que são realmente os estímulos do de
sejo, do mêdo, pois tais emoções são destrui
doras do amor. Elas impedem o apercebimento
integral.
K r i s h n a m u r t i : Se o interêsse é ape
nas o resultado do desejo, do lucro, do estar
satisfeito, de obter sucesso, então, o interêsse
é a mesma cousa que o desejo e, portanto, des-.
truidor da vida criativa.
133
K r i s h n a m u r t i : Senhor, é sôbre isto
exatamente que falei esta manhã. Por que dese
jais atingir a ausência de desejo? Não é por
que verificastes através da experiência que o
desejo é doloroso, que traz mêdo, que cria con
flito ou um sucesso que é cruel? Assim, ansiais
por atingir um estado de ausência de desejo,
que pode ser conseguido, mas que é da morte,
pois é apenas o resultado do mêdo. Quereis
estar livres de todo mêdo, e porisso fazeis da
ausência de desejo o ideal, o padrão para ser
seguido. Mas o motivo por detrás dêsse ideal é
ainda desejo e, assim, ainda o mêdo.
K r i s h n a m u r t i : Como expliquei, a
mente tornou-se unicamente um instrumento de
auto-proteção de várias formas e dividiu-se em
emoção e pensamento — não que a vida a tenha
dividido nem que as emoções se tenham sepa
rado da mente, mas a mente, através dos seus
próprios desejos, fracionou-se em diferentes
partes. A mente descobriu que estando sem de
sejo ficará menos sujeita ao sofrimento. Apren
deu pela experiência, pelo conhecimento, que a
134
ausência de desejo pode produzir o conforto
ulterior que ela espera seja a verdade, Deus, e
assim por diante. Por isso, faz esforço para
estar sem desejo, e, por consequência, divide-se
em diferentes partes.
135
produz o medo e a ignorância, então, as neces
sidades terão seu valor significativo.
136
uma escola própria em que os preconceitos de
raça, de país, de exemplos, de superstições reli
giosas, de crenças, não sejam inculcados às
crianças — o que quer dizer que é necessário,
como professor, um ser humano inteligente;
e este raramente é encontrado. Ou tendes de
mandar a criança às escolas já existentes, espe
rando pelo melhor e contrabalançando em casa
tôdas as cousas insensatas e perniciosas que ela
aprende na escola, ajudando-a a ser inteligente
e crítica. Mas, geralmente não tendes tempo
para isto, ou possuís dinheiro demais e então
empregais aias, para cuidar de vossos filhos.
É um problema complexo que os próprios
pais teem de resolver de acordo com a sua capa
cidade, mas que infelizmente é paralizado pelos
seus temores, superstições, crenças.
137
•usar armas, a matar, a morrer. Há também a
outra instituição, a religião organizada, que
através da crença, do dogma, e assim por diante,
tenta igualmente destruir o indivíduo. Desta
maneira o indivíduo está sendo continuamente
desviado do seu preenchimento.
Êste é o problema de tôda a nossa vida, que
não pode ser resolvido através de meras expli*
cações e asserções.
138