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Áurea Júlia Braga

Nunca foi, e nunca será, sempre é:

Para quando perguntarem como nos conhecemos

Porto Alegre

2023

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“Vou me derramar em palavras sim”

(Antônia, Rezadeira Guarani Kaiowá)

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Para Daniela,

Para a garota que me convidou para beber uma


cerveja,

Para a menina que fugiu da chuva depois de uma


peça fracassada, e dividiu um vinho meio seco,

e uma vida inteira doce:

mesmo querendo lhe dedicar minhas melhores


palavras, qualquer poesia é poucai, não há livro
que lhe caiba, menina, não há poesia que lhe
caiba, mas eu tento.

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SUMÁRIO

Prefácio .........................................................06

Introdução .....................................................08

A menina que cantava com a chuva...............09

A menina que dançava com a terra.............. 12

O descobrimento ..........................................15

Uma peça fracassada.....................................17

Um vinho meio seco......................................20

Manhã de quarta-feira...................................22

Primeira dança..............................................25

Uma história dentro da estória ....................27

Terra molhada.............................................. 31

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PREFÁCIO

Tudo que aqui reside, reside também no coração da


autora. Tudo que aqui faz casa, é metáfora, é realidade,
é estória, mas também é história. Nas entrelinhas tentei
o impossível, mas como boa escritora, carregando
teimosia no peito, insisti derramar em palavras aquilo
que em mim foi transbordado, nem sempre a literalidade
que rodeia o mundo vivido é capaz de carregar todo o
simbólico do sentimento. Quando paramos para olhar de
perto as coisas, como elas são, como quem aproxima os
olhos de um microscópio, vemos que ali mora muito
mais que os simples olhos conseguem apreender. Essa
foi minha intenção aqui, usar da escrita como meio,
como ferramenta, como esse microscópio que te faz
enxergam além, te faz perceber o simbólico por detrás
de tanto concreto e asfalto.

Essa história é muito mais que duas meninas, que uma


peça, que um vinho e um beijo, meu desejo aqui é que o
leitor não se pegue no concreto do chão, mas se permita
voar nas asas do simbólico das palavras. Essa é uma
história de amor, é uma história de ancestralidade, é uma
história de vida, e assim como a vida é: nada dela se pode
tirar além do que ela permite se apreender.

Que a escrita aqui desperte, o que ela estiver disposta a


se fazer conhecer em cada um.

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INTRODUÇÃO

Algumas histórias, por mais estranho que isso possa


parecer, não possuem começos. É coisa de tempo, de
vida, quando vê já tá lá, correndo e olhando o céu.
Algumas histórias são tão únicas que permear seu inicio
se torna inviável, intangível, algumas histórias são o que
são, se perpassam no espaço tempo, e se iniciam a cada
novo sol, a cada nova chuva que cai, a cada nova
primavera.

Essa é uma dessas histórias, e não posso começar com


“era uma vez” porque não era, nunca foi, e sempre é, e
aqui mora sua beleza.

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A MENINA QUE CANTAVA COM A CHUVA

Era de uma pequenez avassaladora, tão avassaladora


que se tornou grande com o tempo. A teimosia a
acompanhava desde o ventre, teimou de vir no mês sete
e não oito e assim fez, foi contra toda e qualquer
estatística, e continuou indo contra, só não sabia que
antes mesmo de ser, antes mesmo de ver, antes mesmo
de sentir, ela já arrancava o mundo com o ar.

Não tinha gosto em seguir expectativas, não via graça no


roteiro que lhe dera, tanto no parto, quando na saia cor
de rosa, tanto na boca dos meninos quanto no Deus que
lhe impusera, tanto no escorrido liso na cabeça, quanto
na ausência de cor que lhe teimavam entregar. Mas ela
nunca aceitou nada tão fácil. Resmungava em vestir
saias, beijava lábios mais macios, cantava Obaluaiê, e
recusava a palidez, que não era sua, e jamais viria a ser.

Ela particularmente tinha uma afeição pela água que caía


do céu, no começo não entendia, mas se identificava,
assim como ela, a chuva era de uma pequenez
avassaladora, sensível, mas movimentava correntes das
nascentes, maleável, mas sua teimosia em cair moldava
a rochas dos oceanos. Via na tempestade de raios e
trovões seu reflexo, assim como também conseguia
enxergar na chuva do orvalho que serenava nas
primeiras horas da manhã, um espelho.

Era tal como a água que cai, um universo de


grandiosidades num corpo pequeno que o mundo lhe

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dera, corpo esse que foi crescendo, de maneira
proporcional, crescera a água dentro dela. Percorreu
becos e vielas, dançou em bocas estranhas, e outras nem
tanto assim, se mudou mais de 15 vezes, se encontrara
em cada uma delas uma nova mulher, garota, menina.
Soube desde cedo onde o amor morava, no fundo do rio,
no braço do peito velho de cabelos brancos do vô, no
balançar da rede no final de tarde, nas cores do seu giz
de cera e nas linhas de suas poesias.

Em sua cidade, toda 3h da tarde chovia, e o calor era


amenizado, ela gostava da chuva, se sentia em casa, mas
as vezes, a chuva se passava, vinha brincar e não voltava
pra sua casa, e a menina inquieta, feita de agua, da agua
estava gasta, então ela fazia um ritual, seu próprio ritual,
cantava a música da chuva, a musica que a convidava
mas que também a despedia, e assim ela poderia voltar
a brincar sob o sol, viraram amigas, e a menina sempre
voltava a cantar com a chuva, para poder voltar a ver o
sol.

A menina que cantava com a chuva, cresceu, mas em


cada nova mudança, em cada novo ciclo, ela olhava pela
janela, e lá estava sua velha amiga, caindo do céu como
quem diz - olá estou aqui -, ela veio lhe visitar na
mudança de cidade, e em todas as outras novas casas
que ela fez morada desde então, na sua primeira
aprovação no vestibular a chuva lhe beijou o rosto,
quando a garota tirou a carteira de motorista, a chuva
caia pelo para-brisa daquele carro vermelho, e a garota
lembrava que jamais estaria sozinha. Mas por vezes,
sentia falta dessa simplicidade, desse ir e vir, dessa

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mensagem certeira e da solução que a vida lhe dera aos
7 anos, hoje a cidade que a abriga, tem vida própria, se
quer não chove por dias e as vezes a chuva fica por 7 dias
ou mais caindo em sua janela, não tem canto, não tem
ritual, e a garota somente a espera passar, somente
espera ela vir, como uma passageira que em nada pode
interferir. A menina da terra quente teve que se
acostumar com a temperatura baixa, até quando chove.

A menina que cantava com a chuva era de uma pequenez


avassaladora, tão avassaladora que se tornou grande
com o tempo, e mesmo sem saber, também era abrigo
para a água que cai, ela ainda não sabia, mas encontraria
terreno fértil para desaguar.

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A MENINA QUE DANÇAVA COM A TERRA

Era tão grande, firme, bem fincada ao solo, que muitos


quando a viam só enxergavam essa imponência, essa
fortaleza, se por um descuido, pequeno que seja,
passassem o olhar rápido por ela, como quem olha as
horas de um relógio, corriam fortemente o risco de não
apreender o todo da sua completude. Era doce, era forte
sem deixar de sentir. Como as nascentes que conquistam
seu lugar em meio às crostas arenosas, assim o afeto
fazia morada na sua fortaleza.

Era bicho solto, e continuou sendo com o decorrer dos


anos, era boa em insistir, em percorrer, em ir atrás, mas
também era muito boa em deixar ir, em pausar e deixar
vir. Teve que seguir desde muito cedo, sabia o que queria,
e o que precisava fazer, e isso não mudou. Por muita das
vezes as pessoas confundiam sua independência com
ausência de necessidade de cuidado, de atenção, de
afeto. Mas era o oposto. Era de uma beleza tão certa,
tão firme, que sua necessidade de cuidado o
acompanhava na mesma medida. Fazia por si, mas
também por eles, cuidava de si e cuidava deles, e ela
cansava.

Era decidida e também teimosa, colhia uva azeda do


terreno do vizinho, sofria comendo, mas colhia, pois a
agradava a ideia de ir e fazer, da concretude, do processo
finalizado, e ela sempre finalizava. O comprometimento
a acompanhava desde pequena, a pegava na mão para

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dançar. É segura e firme como a terra, e por diversas
vezes dançava com ela.

Ela pregava peças na vida, remexia o corpo nesse


mundão, e trocava o movimento, dava seu jeito, brincava
de ser gente grande, que as vezes até esqueciam que era
apenas uma menininha. Hoje gente grande, ainda muito
se ver essa menina dentro dela, essa que dança no ritmo
da terra, por que assim como ela, tem suas raízes bem
fincadas.

Seu olhar pelo mundo não mudou muito, ainda tem o


olhar singelo de uma criança, se emociona com curtas de
animação de 7 minutos, sorri se ver um ser humano de 2
meses balbuciando qualquer som numa passada de rua
qualquer, e quando ela lê para suas crianças do terceiro
ano, ela está onde sempre deveria estar, é seu lugar no
mundo.

Da terra já tirou muita coisa, e a terra dela também já


arrancou algumas risadas, flores e amores. Mas, sorria,
entregava amor, e exalava beleza, sem se deixar perecer.
Ela e a terra tem muito em comum, e toda vez que a
enxergava via nela a força e beleza de um planeta inteiro.

Apesar da grandeza, firmeza, se fincou em muitos solos


por aí, brincou de zigue sague e encontrou - como a
menina que dançava com a chuva -, vários lares também.
Muita das vezes, não por escolha, mas tinha esse dom,
de sempre encontrar solo fértil, se estabelecer e
presentear aquela terra com arvores frutíferas. Ao
mesmo tempo que era fixa, ela maleável, adaptável,
tinha que ser, a vida lhe cobrou essa natureza

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dicotômica, e ela a exercia com maestria, como tudo que
lhe ousassem pôr em suas mãos.

Tinha o dom de tirar o melhor da terra, e enquanto lhe


privavam de afeto, amor e cuidado de um lado da
fronteira, do outro ela cultivava o seu próprio ninho,
sempre encontrava almas boas e as cativava, era
também de sua natureza causar isso nas pessoas em
volta, era da terra, mas exala o brilho do sol, escolheu
sua família do coração, que a regava muito mais que o
sangue lhe entregue no nascimento. E isto também é da
sua natureza: nem sempre veremos justiça dançando em
volta da menina, mas ela sempre acompanhava a beleza
amarelo ouro que incendiava todos a sua volta.

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O DESCOBRIMENTO

Certo dia, como quem não quer nada, a menina que


cantava com a chuva, decidiu sair por ali, pela primeira
vez, em muito tempo, não tinha hora certa pra voltar, não
tinha pessoa certa pra avisar, correu como vento solto
após tempestade de verão, era noite de lua minguante,
já tinha feito tanto naquele dia que o corpo suado
anunciava o cansaço, e mesmo assim o som o do
atabaque e do agogô a conduziu a escadaria, por algum
motivo o som também tinha chamado um outro corpo
cansado.

Caminhavam em encontro um do outro, ela a avistou de


longe, era ela a menina que dançava com a terra, já tinha
ouvido falar dela por aí, de diversas bocas, sabia do
amarelo ouro que a rodeava, mas não tinha visto de
perto até então. Riu olhando pro lado como se não
tivesse o que temer, e tinha? Oxe! Claro que não! Pelo
menos era o que ela repetia inúmeras vezes dentro da
cabeça de voadeira dela.

Tentara se manter no tempo e no grupo presente, assim


como lutou para silenciar a roda de samba que tocava
dentro do seu peito, segurou o berimbau com mais força,
deu passos mais largos e riu alto, sorriu baixo,
desconversou com os amigos em volta, fingindo não
sentir aqueles raios se aproximando. A menina que
cantava com a chuva e a menina que dançava com a terra

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passaram pelo mesmo ponto as 21:05 da noite de um
quinta-feira fria estrelada, sabiam quem eram! Sabiam?
Não fez diferença, da boca nada saiu, da mente sim. Na
mesma velocidade que se aproximaram de afastaram,
não tinha sido a primeira vez, que terra e água chegaram
tão perto, mas também não seria a última.

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UMA PEÇA FRACASSADA: não recomendado

É tarde da noite, de uma quinta feira de julho, a menina


que cantava com a chuva estava começando a entender
que o tempo sara muita coisa. Dia 20 e ela saia para ver
a luz da cidade iluminar dentro do coração, dia 1 era tudo
escuro, não tinha uma iluminação se quer, nem uma de
canto, nem uma meia luz. Mas era dia 20, não dia 1,
então deixou as inquietações tomarem seu rumo, e
encontrou almas que lhe faziam rir, comeu pastel de
calabresa, e foi para fila do teatro.

Nunca tivera ido assistir uma peça, seria a primeira vez,


na verdade seria a primeira vez fazendo diversas coisas
naquele dia, reatou laços perdidos, ganhou dois copos de
cerveja de uma amiga, e ouviu a voz da menina que
dançava com a terra.

Não sabia que ela estaria lá, quando soube, o coração


começou a dançar samba miudinho dentro do peito, mas
fingia naturalidade, como era de praxe. Foi no banheiro
se olhou no espelho, não gostou muito do que viu. Era
dia 20, mas resquícios do dia 1 ainda estavam ali.

E o samba miúdo dentro do peito, deu lugar a uma escola


de samba inteira, lembrou da chuva que molhou o
cabelo, deixando murcho, lembrou do pastel de
calabresa que comeu, arrumou a jaqueta mil vezes,
torcendo as mangas e destorcendo, saiu do banheiro
segurando tudo na postura de menina despreocupada,

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que sai pela noite sem dono e dona, mas dentro mesmo,
só ela sabia como estava.

Talvez amiga que antes lhe dera dois copos de cerveja,


também tenha percebido, lhe deu um tridente de
melancia, e saíram do banheiro.

A fila estava enorme, o que a fez lembrar que havia


enfrentado diversas filas nos últimos meses, e nenhuma
delas tinha conseguido ingresso ou lugar que lhe cabiam,
algumas das vezes ficara irritada, outras ficara triste. Mas
dessa vez não, algo ali dentro do lado da escola de samba
que fazia morada temporariamente ao seu peito lhe
diziam que tudo estava como deveria está

Saíram do teatro e a cada passo para fora o coração


comandava uma orquestra inteira, se encostou na
parede do lado de fora, de costas pra rua, algo lhe dizia
que ela viria da direita e não da esquerda, dito e certo,
ouviu seus passos, seu andar balançante de um lado pro
outro, correndo como quem tem pouco tempo, mas
muita pressa pra viver.

Cumprimentou todas, a menina que cantava com a


chuva, olhou par atras como quem não esperava e fazia
pouco caso (mas se chegasse muito perto dava pra ouvir
e sentir as 300 escolas de samba dentro do seu peito),
trocaram olhares pela primeira vez tão de perto, e
ouviram a voz uma da outra pela primeira vez.

A menina que dançava com a terra tinha uma voz grave,


e tudo que a menina que cantava com a chuva pensava
era: “porque eu tô sentindo tudo isso aqui dentro?”

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A peça antes recomendada, não vestiu toda forma
daquela noite fria de julho, perderam a peça, mas
ganharam muito mais.

Nenhuma das meninas começou o dia imaginando que


iria terminar assim, não imaginariam que o não
recomendado caberia tão bem na pele de ambas.

Naquela noite perceberam que de um eminente fracasso


pode nascer o inesperado, e o inesperado é uma coisa
bem bonita as vezes.

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UM VINHO MEIO SECO

A chuva anunciava cair, a cidade iluminava o caminho


então decidiram beber vinho e ir para casa da menina
que dançava com a chuva.

Eram 3 mulheres, 3 vinhos, um seco, um suave, e um


meio seco. Nunca tinha tomado, nem achara graça em
coisa que ficava em cima do muro! Ora como pode não
ser uma coisa nem outra? Tinha lá seus preconceitos.

Mas a escolha pelo imparcial, pelo democrático causou


na menina que dançava com a chuva, algo que não sabia
explicar. Logo seguiram o trajeto, caminharam pela
cidade que abraçava seus 3 corpos e as direcionavam a
um lugar seguro, como quem diz: “vem é por ali, dobra a
esquina, tenho algo para vocês lá”.

E lá estava ela novamente, sua velha amiga, caindo do


céu, como quem anuncia boas novas, como tem feito
desde pequena.

Sentaram num sofá cinza de dois lugares, beberam o


primeiro vinho, ouviram a voz uma da outra, ouviram as
divagações da amiga, colheram erva do pé e riram como
criança em dia de sol, mesmo tendo lá fora água caindo
do céu.

Os corpos da menina da chuva e da terra cada vez se


aproximavam mais, e de repente já não eram três, eram
duas, ali paradas, se olhando mesmo.

E mais uma vez a água que cai, anunciou sua


cumplicidade com aquilo que vem pra somar.

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A menina que dançava com a chuva, viu a antiga amiga
lá fora, pelo vidro da janela, lembrou da sua idade, da
rebeldia, da vontade própria, de vir quando quer e ir
quando der na telha, e só pensou em agradecer por
tamanha liberdade.

Que bom que ela veio, e que bom que foi aqui, hoje, dia
20.

Mais um pouco de tempo, a luz que iluminava a cidade


se foi, a chuva serena se transformou numa sinfonia,
acompanhando a escola de samba dentro daquele peito
teimoso.

Não tinha luz lá fora, mas conseguia enxergar a luz que


vinha de dentro daqueles olhos cerrados próximos aos
seus.

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PRIMEIRA DANÇA

Ela ergueu levemente o sorriso manso, mas sorriu


mesmo com os olhos de dama moça, ao sentir o calor do
primeiro beijo se aproximando, se sentiu com 13 anos de
novo, sentia que brincava de amar, lá estava a descoberta
de um universo inteiro que ela não conhecera, ainda,
mas o sentia como um infinitivo particular e familiar.

Era um corpo como o seu, próximo ao seu, colado ao seu,


sobre o seu, e em breve descobriria que a suas almas
também fariam um belo par.

Carregava liberdade, e lar.

Os primeiros toques foram carregados de sutileza, como


quem brinca com as pontas dos dedos, como quem não
quer nada, mas quer tudo, passeavam pelo corpo com
rara calma, de um passageiro viajante em um novo lugar,
uma nova paisagem, e que precisa registrar cada trecho.

Estavam reaprendendo a amar, ambas tinham muito que


resolver com o amor, pelo menos é o que pensavam.
Contudo, não é assim que o amor trabalha, não foi assim
que ele trabalhou.

Não foi uma, nem a outra que ditou o início, não pegaram
o amor pelas mãos e o colocaram numa mesa de bar para
acertar as pendências, queriam, quiseram muito, mas
não é assim, não é assim que ele trabalha.

Ele é paciente, dizem por aí, mas também é ligeiro. Não


é algo nem outro, não se limita, não se petrifica, é o que
precisa ser, quando precisa, e onde estiver.

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Então ele aguardou paciente, virando a esquina,
escondido que nem criança pronta para pegar uma peça,
aguardou o tempo de cada uma de passar ali, naquela
rua, naquele dia, naquela noite.

E as meninas que tanto queriam pega-lo pelas mãos e


ensiná-lo a fazer seu trabalho, foram pegas, de surpresa,
arrastadas pelas mãos do amor a um lugar seguro.

Tiveram o que precisavam, uma boa e velha conversa


com ele, as perguntas das dores que a perseguiam, as
respostas das dúvidas que permeavam sua antiga
impermanência, a confusão que a ausência de
reciprocidade que já batera a porta antigamente lhe
causou.

Mas não da forma que imaginavam, não no tempo que


almejavam.

Naquela brincadeira de amar, como criança que não sabe


que tá aprendendo o mundo em volta e quando vê tá
caminhando com os próprios pés, assim elas foram
tendo suas respostas.

Entenderam o que era amor e o que era sua falta e toda


dor que isso poderia carregar, entenderam a dor com os
sorrisos que anunciou a chegada.

Entenderam a antiga impermanência do amor,


entenderam quando o viram chegar no olhar de duas
iguais. Já não era confuso, ao contrário era simples, era
natural, era como dançar em par uma dança ouvida pela
primeira vez, mas que os corpos respondiam como algo
familiar.

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Era o encontro da casa ancestralidade de cada uma
dançando com o tempo-vento.

Não sabiam naquele momento. Mas ergueriam


levemente o sorriso manso, com olhos de dama moça
muitas vezes ainda, dançando inúmeras vezes sua
primeira dança.

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MANHÃ DE QUARTA FEIRA

Assim como quem rega um jardim, e não sabe muito bem


a quantidade de água, mas mesmo assim floresce. Assim
como uma criança plantando feijão no algodão pela
primeira vez, sem eira nem beira, sem saber como, e de
repente ele cresce. Assim elas foram tateando os
sentimentos, e quando se viu havia muito mais.

Não sabiam nomear, havia morada de medo dentro de


cada uma. Era como se não houvesse palavras na língua
portuguesa e em nenhuma outra existente ou inativa
que abarcasse, todo o sentir.

Em uma manhã de quarta-feira, deitadas num colchão no


chão do quarto, botou pra tocar fundidos, e assim como
na letra gozaram felicidade. Sentiu o peso de outro corpo
sobre o seu e não era um incomodo, não havia dor, não
havia descontentamento, e naquele momento percebeu,
não sabia como, mas tinha certeza que gozariam muito
mais que felicidade.

Era madrugada de domingo, dia 20, também, quando o


corpo uma da outra se encaixavam novamente, não de
modo viril, mas como quem faz casa, abrigo no peito de
outrem, formavam um casulo confortável, dava pra
sentir o bater dentro do peito, a menina que dançava
com a chuva reconhecera aquele ritmo, era o mesmo do
primeiro dia 20, uma escola de samba inteira fazendo
morada ali dentro dela.

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Mas continuou na postura, atravessou o presidente,
carnavalesco, contornou o intérprete; deu de ombros,
como quem não ligava para nada, com a presença do
coreógrafo; saudou o mestre de bateria, cantou com os
passistas; tateou com o porta-bandeira, riu com ar de
despreocupada junto ao diretor de harmonia; sambou
com a rainha de bateria para enfim conseguir soltar voz
para fora daquele peito lotado, as palavras que
almejavam sair: “É lindo poder te amar”

E assim como quem rega um jardim, e não sabe muito


bem a quantidade de água, mas mesmo assim floresce.
Assim como uma criança plantando feijão no algodão
pela primeira vez, sem eira nem beira, sem saber como,
e de repente ele cresce. Assim elas foram com medo
mesmo, mesmo querendo gritar, mesmo querendo
correr, e se tornaram duas ali se amando mesmo.

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UMA HISTÓRIA DENTRO DA ESTÓRIA

Nas histórias dos homens data de 24 de junho de 1942,


no baixo Amazonas, quando se deu a famosa Batalha das
Icamiabas, em que os espanhóis se retiraram, para evitar
uma derrota, foi quando a sociedade de fora reconheceu
a existência delas.

Na história delas, o começo mesmo, o início, não se pode


contabilizar, não era, não foi, não será, apenas é. E essa
é a história do muiraquitã e suas guardiãs.

Eram altas como as mangueiras, adornavam seus cabelos


enrolados em volta da cabeça, assim como as copas das
árvores, e sempre cobriam sua intimidade, o que causava
dúvida quanto ao seu sexo a quem quer que chegasse, as
nomeando de mulheres com peito de homem
(Icamiabas) ou sem mama (Amazonas).

Dotadas de uma força imensurável, que perpassava o


viés físico, e alcançava suas metodologias de organização
social e política. Eram de fato uma sociedade matriarcal!
Não havia espaço em seu território para o outro sexo.

Apenas uma vez ao ano. Os guardiães do muiraquitã


abriam seu povoado aos homens, para usá-los em sua
única função aceita, a procriação de sua espécie.

Escolhiam os melhores, os mais vigorosos para serem


instrumento no seguimento de sua linhagem, se
nascesse menina era aceita e consagrada uma guardiã do
muiraquitã, se nascesse menino era sacrificado em prol

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do seguimento de sua cultura. E assim seguiam por
milênios, eram dadas grandes festas, sob a luz da lua,
onde o ritual era concretizado, e no dia seguinte os
passageiros viajantes eram dispensados.

No fundo do rio morava sua riqueza, no encontro da água


com a terra; se formava uma lama verde, verde musgo
que carregava em si poderes para além da compreensão
dos homens, por isso cabia a elas a guarnição.

No fruto da água com a terra nascia a matéria prima do


muiraquitã, e na junção água terra e amor nascia o
muiraquitã.

Era raro, era único, e era divergente, mas um belo dia,


uma das Amazonas se apaixonou pela passagem viajante
que adentrou em seu corpo e território, angustiada com
o ritual a ser seguido, sabia que logo após sua
concretitude ele seria deixado ao léu, para desbravar o
caminho de volta. Sendo assim decidiu fazer algo
mergulhou no fundo do lago espelho da lua, e do
encontro da água com a terra verde musgo colheu e
moldou o primeiro muiraquitã. Um amuleto de proteção,
entregue a pessoa amada que a mantinha longe do
perigo e a guardava no seu caminho percorrido.

O muiraquitã nasce da água, da terra, e da lua, porém


mais do que isso, ele é um símbolo do verdadeiro amor.
Não se há relatos de Amazonas moldando amuletos para
si mesmas, o muiraquitã sempre será um ato para fora,
para o outro, nunca é sobre o eu, é altruísmo, é cuidar
sem pensar em ganho próprio.

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E assim desde 1942, ou desde sempre e para sempre,
para as mulheres de peito de ferro, encontrar o amor
significa construir cuidado e cultivo.

Cultivo e cuidado assim como é o Muiraquitã, pedrinha


verde em forma de sapo, entregue para aquele a quem a
poderosa guerreira assumiu o riso de seu cultivo para
garantir a proteção de quem a fez conhecer o amor.

A menina que cantava na chuva ouvia essas histórias


desde pequena, da sua avó, das suas tias, das suas
mulheres guerreiras de peito de ferro que a rodeavam.
Aos 9 anos imaginou se um dia seria a ganhadora de uma
pedra do amor, aos 10 compreendeu que há muito mais
no dar do que no receber, e que se um dia fosse ela a
entregadora do muiraquitã, teria certeza que teria
ganhado muito mais, teria entendido o sentido do amor.

Os anos se passaram o muiraquitã sempre se fez


presente na sua vida, era herança, era tradição oral, ela
carregava sua imagem e sua história até quando se
percebeu longe de sua casa, de seu rio.

A vida foi correndo pelas suas nascentes, os movimentos


foram circulando, e ela já não se lembrava do muiraquitã,
até um belo dia quando toda água que ela carregava
desaguou no solo da menina que dançava com a terra,
quando ela sentiu a matéria prima verde borbulhando
dentro de si, sentiu o mergulho profundo no largo
espelho da lua e sentou a força do muiraquitã dentro
dela.

29
Lembrou da menina de 10 anos, na beira do rio
Amazonas; na ilha do marajó, no Estado do Pará, inquieta
pensando se um dia reconheceria esse amor, esse amor
que te arranca do comodismo e te faz mergulhar em
águas profundas só para desejar e garantir o bem de
outra pessoa. Esse amor que faz olhar o mundo fora do
egocentrismo e te faz amar simplesmente por amar.

Ela achou na menina que dançava com a terra o desejo


de cultivar e proteger, e por isso escreveu esse livro.

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TERRA MOLHADA

Daniela, te entrego hoje, além das minhas limitadas


palavras, esse pequenino amuleto, mas de tamanha
força e simbolismo pra mim. Ele me acompanhou antes
agora e a acompanhará depois. Ele nunca foi, e nunca
será, sempre é.

E é assim que sinto que é te amar.

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