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Motrivivência Ano XXIII, Nº 37, P. 69-82 Dez.

/2011
http://dx.doi.org/10.5007/2175-8042.2011v23n37p69

OLHARES SOBRE OS CORPOS E A


CONSTRUÇÃO DE “HOMENS” E
“MULHERES” NA ESCOLA1

Moisés Sipriano de Resende2

RESUMO

Este estudo visa levantar algumas problematizações referentes á construção de homens


e mulheres no âmbito escolar e o modo como o corpo se torna local de inserção
e produção dos discursos, marcas e linguagens. Foram aplicados questionários a
estudantes, professores e gestores de escolas públicas de Goiânia buscando articular
as compreensões destes sobre os comportamentos de homens e mulheres. Os dados
evidenciaram que os educadores propõem pouca reflexão acerca da construção histórica,
social e política dos corpos o que leva a reprodução das atuais diferenças de gênero por
meio da educação dos corpos e das formas de viver a sexualidade.

Palavras-chave: corpo; gênero e educação.

O corpo cenário lógicas, supostamente imutáveis,


não escapa a História”. Logo, todas
O que designa um ser as regras morais, produtivas e sociais
humano como sendo homem ou de convivência se encarregam de,
mulher, jovem ou adulto, criança ou por meio de pedagogias, formar
idoso? Como nos lembra Sant’Anna, determinados sujeitos sociais. Vê-se,
(2000, p. 50) “cada corpo, longe de portanto, que o corpo nada mais é
ser apenas constituído por leis fisio- que puro discurso, elaborado, pro-

1 Os dados desta análise partem de uma pesquisa financiada pelo CNPq, edital nº57/2008, protocolo
162/2008 do Comitê de Ética em Pesquisa da UFG, que se encontra em andamento. Os objetivos,
procedimentos metodológicos e dados, foram cedidos para a construção deste artigo.
2 Acadêmico do curso de Licenciatura em Educação Física da FEF/UFG e bolsista PIBIC. E-mail
para contato: msxufg@gmail.com
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duzido e reproduzido socialmente, A construção de corpos


que se constitui e se mantém pelas masculinos e femininos perpassa,
leis e normas vigentes em cada portanto, pela escola. Isso demons-
cultura. tra que, professores, gestores e
Nessa perspectiva, refletir toda a população deste local estão
sobre os discursos que, em nossa envolvidos em um processo cons-
sociedade, atuam sobre os corpos, tante de produção/reprodução de
significa pensar o que os produzem identidades. Identidades instáveis,
e o que estes representam. Desse corpos que escapam da norma e
ponto de vista, analisar as diferentes que, por isso, necessitam de ser
instituições sociais que se encarre- incessantemente afirmados em seus
gam de atribuir marcas e linguagens respectivos espaços. “Daí a preocu-
aos corpos, é um importante início pação constante em reiterar, repetir,
de discussão, uma vez que estas produzir, reproduzir, conduzir
investem na organização do tempo as normas regulatórias que mate-
e do espaço como forma de produ- rializam o sexo na construção de
ção de aprendizagens. Aprendem- homens e mulheres” (SILVA, 2008,
-se formas de ser e agir, o que é p. 90). Dessa forma, investigar
ser menino ou menina, adulto ou como os sujeitos envolvidos neste
criança, educado ou mal-educado, processo (estudantes e educadores)
inteligente ou pouco inteligente, compreendem o corpo em suas
calmo ou agitado, obediente ou intersecções com gênero e sexuali-
desobediente, entre outros (BAR- dade, nos permite averiguar como
BOSA; CARVALHO, 2006). se dá o processo de construção
Estas fortes influências e de homens e mulheres no âmbito
implicações sobre os corpos estão escolar e em qual perspectiva os
presentes, também, na escola, visto educadores atuam, se reforçam tais
que, neste local, os conhecimen- estereótipos ou contribuem para
tos e aprendizados não ocorrem melhores condições de igualdade
de gênero.
somente nas salas de aula, mas
também em todos os seus estabe-
lecimentos e arredores. “Todos os A pesquisa
processos de escolarização sempre
estiveram - e ainda estão - preocu- Este estudo visa compreen-
pados em vigiar, controlar, modelar, der as concepções de masculinida-
corrigir, construir os corpos de me- de e feminilidade de educadores e
ninos e meninas, de jovens homens estudantes a fim de problematizá-las
e mulheres” (LOURO, 2000, p. 60). para se pensar nas representações
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de gênero no ambiente escolar. A alcance descritivo da mensagem,


pesquisa foi realizada em 2009 com a fim de atingir uma interpretação
49 estudantes do sexo feminino e mais profunda (MINAYO, 2004).
36 do sexo masculino (último ano Neste momento, apre-
do Ciclo III), 26 professores/as e sentamos um recorte dos dados
6 gestores/as da rede pública de referentes á temática gênero e, mais
ensino de Goiânia/GO. Por meio especificamente, das percepções de
da aplicação de questionários educadores (professores e gestores)
composto por perguntas abertas e estudantes (meninos e meninas)
e fechadas a professores, gestores sobre os comportamentos típicos
e estudantes, buscou-se levantar, de homens e mulheres, buscando
identificar, problematizar e refletir articular e explicitar concepções de
sobre corpo, gênero e sexualidade, feminilidade e masculinidade dos
investigando a interseccionalidade sujeitos envolvidos e suas implica-
destas temáticas dentro de um con- ções para se pensar as diferenças de
texto social empobrecido. gênero no contexto escolar.
Os dados utilizados para
esta análise são referentes à parte Corpos identitários
do questionário aplicado em um
primeiro momento da pesquisa O que ocorre, ao nível
que buscou identificar como as das representações sobre os corpos,
questões de gênero são abordadas para designar e mesclar certas atitu-
por educadores e estudantes. Tais des como sendo de determinados
dados se mostraram relevantes, pois gênero? Quais os desdobramentos
apontaram concepções de homem e dos discursos arbitrários para o âm-
mulher fornecendo elementos para bito escolar? Quais as percepções
se pensar e problematizar de que e considerações de estudantes e
forma a desigualdade de gênero se educadores sobre tais questões?
circunscrevem no ambiente escolar. Ao questionar estudantes,
A apreciação e interpreta- professores e gestores acerca dos
ção dos dados foram realizadas a comportamentos típicos das mulhe-
partir da tabulação das respostas em res, observou-se que determinadas
quadros respectivos para cada sujei- respostas apontavam para uma iden-
to (gestor, professor, aluno e aluna). tidade feminina demarcada pela
A formulação de categorias permitiu fragilidade, sensibilidade e outros
a seleção, classificação, conexão, aspectos considerados intrínsecos
generalização e sistematização dos ao “ser mulher”, tais como: “de ser
dados, na tentativa de ultrapassar o delicada, de ser comportada”, “ser
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carinhosa, ser amorosa, ser bonita, Ou seja, a concepção que


inteligente, atenciosa”, “meiguice, atribui à mulher “mais inteligência
carinhos, beleza, compreensão, emocional e atenção difusa e que
amizade, sensualidade, fragilidade, os homens são mais inteligentes em
determinação”, são “mais sensíveis questões ligadas à razão instrumen-
[...]”, “mais frágeis e emocionais. tal lógica” (ANDRADE; BARROS,
Usam mais a emoção e não a razão. 2009, p. 91) é fundamentada por
Se apegam a detalhes”, apresentam discursos que determinam estes
“gestos leves. Delicados, com va- aspectos como sendo biológicos e
riedade”. inatos. Esta concepção, por sua vez,
Estas marcas possuem designa “determinadas atitudes,
como referência o próprio corpo comportamentos e características
feminino, evidenciando a presen- de pessoas de tal ou qual gênero” e,
ça de esquemas e operações que dessa forma, “ditariam as diferenças
visam destacar e generalizar tais entre os sexos, sendo pouca a luz
pressupostos conforme o órgão lançada sobre o ambiente sócio-
sexual. Tais caracterizações feitas -histórico no qual essas diferenças
sobre a mulher são consubstancia- emergem” (Ibid, p. 91).
das por construções históricas e Tais características susci-
sociais que determinam por meio tadas por estudantes e educadores
de simbologias (delicadeza, emo- sobre a mulher assemelham-se a
ção, sentimentalismo, fragilidade) a qualidades e valores compatíveis
suposta submissão e inferiorização com as funções atribuídas à corpo-
da mulher ao homem. ralidade feminina na passagem do
Segundo Bourdieu (2010, século XIX para o XX. Esta, segundo
p.20): Adelman (2003), era representada e
internalizada “em função da suposta
missão das mulheres como reprodu-
a diferença biológica entre
os sexos, isto é, entre o corpo
toras.” Nesse contexto, a “elegância
masculino e o corpo feminino e a delicadeza eram ‘atributos femi-
e, especificamente, a diferença ninos’ altamente valorizados [...]”
anatômica entre os órgãos sexu- (ADELMAN, 2003, p. 446).
ais pode assim ser vista como Uma estudante, ao des-
justificativa natural da diferença crever quais comportamentos con-
socialmente construída entre sidera próprio da mulher, revela
os gêneros e, principalmente, aspectos subjetivos de seu modo de
da divisão social do trabalho. ser e agir que apontam para um ide-
(BOURDIEU, 2010, p. 20). al de feminilidade, como descreve
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em sua resposta: “sorrir, sentar de zação, ou melhor, a naturalização


pernas cruzadas, comer devagar, de uma ética” (BOURDIEU, 2010,
ser mulher!”. Um estudante, já do p. 38).
sexo masculino, afirma que as “mu- Além dos gestos, compor-
lheres têm que sentar com as pernas tamentos e vestuários, a conquista
fechadas mesmo de calça [...]”. e a manutenção da beleza represen-
Como se pode observar, o corpo taram, nas respostas de estudantes
representa o lócus de demarcação e educadores, elemento intrínseco
de sua suposta “fragilidade”, algo da identidade feminina. Para alguns/
que é permeado por liberdades e as estudantes, ser mulher significa
interdições com vistas à formação “andar sempre arrumada”, “viver
e construção da “mulher”. no cabeleireiro”, “se maquiar de-
Segundo Bordo, citada mais”, “preocupar com a aparên-
por Adelman (2003), a busca pela cia”, “ser delicada, ser esbelta, se
feminilidade é ainda apresentada achar gorda, fazer a unha, arrumar
como o caminho mais importante o cabelo, querer aumentar os seios
de aceitação e sucesso para as mu- ou bumbum”.
lheres em nossa cultura. “Essa femi- Alguns elementos des-
nilidade pode ser entendida como critos merecem atenção, uma
uma “estética da limitação”, tanto vez que são de grande relevância
no que se refere ao comportamento para a compreensão dos discursos
quanto à corporalidade feminina” historicamente construídos sobre
(ADELMAN, 2003, p. 451). a mulher. Ao longo da história, as
A imposição de valores e imagens de belo e beleza sempre
normas sociais que limitam a corpo- estiveram associadas à imagem do
ralidade feminina ilustra o quanto a feminino. Esta percepção foi cons-
sociedade e a própria cultura está truída ao se relegar e condenar a
respaldada em princípios normati- mulher a ser seu corpo, ou seja,
vos que buscam mesclar os sexos o corpo e, mais especificamente
e as identidades de acordo com o a beleza feminina circunscrita
padrão de homem e mulher estabe- nele, passou a ser visto como
lecido. Como nos lembra Bourdieu algo identitário, adquirindo uma
(2010) “os princípios antagônicos relevância nunca antes vista e
da identidade masculina e da identi- experimentada. Nesse quadro, a
dade feminina se inscrevem, assim, beleza se torna sinônimo de feli-
sob forma de maneiras permanentes cidade e bem-estar e a feiúra em
de servir do corpo, ou de manter a elemento de negação e exclusão
postura, que são como que a reali- social (NOVAES, 2006).
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Em seu estudo acerca da deve se comportar e, principalmen-


construção histórica do embeleza- te, como ela deve ser, o que, na
mento feminino, Sant’Anna (1995) sociedade ocidental, significa ser
diz que a beleza, ao longo do século bela, maternal e feminina (GOELL-
XX, deixa de ser considerada um NER, 2000). Todos estes atributos,
dom e passa a ser algo conquistado, circunscritos em seu corpo, fazem
adquirido por meio de produtos, deste “ser” uma “mulher”.
técnicas, intervenções e muita disci- No mesmo sentido, os
plina como se evidencia na resposta educadores enfatizam que as mu-
do estudante “querer aumentar os lheres gostam de “expor o corpo”,
seios ou bumbum”. A autora ques- revelando que o próprio corpo não
tiona que tal conquista depende é apenas um local de investimento
unicamente da mulher e de seus do discurso, mas, também, o res-
investimentos para alcançar deter- ponsável pela representação deste.
minado padrão de beleza, e que a O fato de “expor o corpo” é, para
recusa desse embelezamento pode Goellner (2000), uma tentativa de
denotar uma negligência feminina. se buscar a feminilidade, pois, se-
Para Novaes, a beleza gundo a autora, “feminizar a mulher
atualmente deixou de ser um dever é, sobretudo, feminizar a aparência
social e passou a se desenhar como e o uso do seu corpo. A postura, a
um dever moral. Como ressalta a voz, o rosto, os músculos, o modo
autora: de vestir, de gesticular e exercitar
sua sexualidade são sujeitos à vigi-
O que é normativo para a mu- lâncias e inibições que são internali-
lher contemporânea não é o zadas a partir de uma submissão ao
fato de os modelos de beleza “outro”. (GOELLNER, 2000, p. 62)
serem impostos, uma vez que Na sociedade ocidental
o discurso sempre foi esse, nem
mesmo de que seja dito que [...] o uso do corpo continua,
ela deve ser bela, mas o fato de de forma bastante evidente,
se afirmar, sem cessar, que ela subordinado ao ponto de vista
pode ser bela, se assim o quiser. masculino [...] o corpo femini-
(NOVAES, 2006, p. 28). no, ao mesmo tempo oferecido
e recusado, manifesta a dispo-
Entre normas e imperati- nibilidade simbólica [...] e que
vos, a mulher se encontra em meio combina um poder de atração
a discursos e relações de poder que e sedução conhecido e reco-
afirmam incessantemente como nhecido por todos, homens e
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mulheres e adequado a honrar instituições sociais que produzem


os homens de quem ela depen- marcas e linguagens que incitam
de ou as quais está ligada [...]. a masculinidade, a postura de pra-
(BOURDIEU, 2010, p. 40-41) zer em relação ao sexo feminino,
simultaneamente, contribuem e
Observa-se, portanto, o corroboram para a manutenção dos
quanto a disponibilidade simbólica estereótipos, da heterossexualidade,
da mulher, isto é, o fato de mos- bem como das relações hierárquicas
trar, expor o corpo como forma de poder entre os sexos.
de sedução representa um fator Estudantes, ao descreve-
preponderante para sua submissão rem comportamentos masculinos,
ao homem. Em outras palavras, ilustram como estes estereótipos
isso reflete o quanto a vivência da estão presentes no contexto esco-
sexualidade feminina se encontra lar e se convergem para o ideal
envolvida por uma lógica de domi- heterossexual, tais como “safados,
nação masculina. tarados”, “banca o gostosão”, “não
O mesmo é sugerido por podem ver uma mulher que já
um estudante ao descrever que o estão mexendo”, “mulherengos”,
hábito das mulheres é “ficar se mos- “fica com [a] idéia poluída às vezes
trando, atrair os homens”. Porém, quando vê mulher bonita [...]”. Da
segundo um estudante, os homens mesma forma, estes/as afirmam que
também gostam de “se mostrar, as mulheres são “sedutoras”, gostam
dar em cima de mulheres”. Nesse de “pegar no pé dos homens [...]”.
sentido, se mostrar ao sexo oposto No mesmo sentido, os educadores
revela um imperativo, designando a afirmam que os homens fazem
relação heterossexual como um nor- “formação de grupos para falar
mativo que consubstancia o poder das meninas” e que as mulheres
simbólico masculino, na medida possuem “necessidade de maquiar,
em que reproduz seus estereótipos aproximando-se dos estudantes
de conquistador e dominador da mais velhos”.
relação. Percebe-se, por meio des-
O poder funciona, nesta tas respostas, que existe uma lógica
perspectiva, por um mecanismo de aparentemente pré-estabelecida que
duplo sentido. Ao mesmo tempo em “faz com que o macho e a fêmea
que ganha impulso por seu próprio sejam levados um na direção do
exercício, o prazer descoberto reflui outro por uma força irresistível.”
em direção ao poder que o cerca (CORBIN, 2008, p. 191). A hete-
(FOUCAULT, 1999). As diversas rossexualidade, presente na maio-
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ria das respostas de estudantes e estes apresentam uma “preocupa-


educadores ilustra a sexualidade ção com o corpo, com a mascu-
mais vivenciada na escola. Tal fato linidade”, e uma “necessidade de
permite afirmar que esta forma de mostrar o corpo quando tem”. O
viver a sexualidade se torna uma corpo, nesse sentido, parece estar
norma, uma vez que é reforçada diretamente associado às formas
pela forte vigilância dos estereótipos físicas e contornos musculares mais
que designam os modos “normais” delineados como forma de repre-
de ser homem e mulher, ratificando sentar a força, a masculinidade e a
o binarismo existente socialmente. virilidade. Assim sendo, o fato de
Para Louro (2000), as for- “mostrar o corpo” aparece como
mas de fazer-se mulher ou homem, uma preocupação em exibir tais
e as várias possibilidades de viver estereótipos que o definem como
prazeres e desejos corporais são homem, o que o leva a buscar, na
sempre sugeridas, anunciadas e maioria das vezes, o enrijecimento
promovidas socialmente. A escola, muscular por meio do treinamento
como sendo um local que oportuni- e do exercício oferecidos pelas
za a socialização e a integração das academias de ginástica.
pessoas, está repleta de “pedagogias Visto dessa forma, a pre-
da sexualidade e de gênero” (ALT- ocupação com a beleza masculina
MANN; MARTINS, 2007, p. 132). apresenta uma conotação aparente-
A escola, portanto, institui mente idêntica à feminina, mas se
diferenças de gênero por meio da torna diferente na medida em que
educação dos corpos e das formas representa uma forma de demons-
de viver a sexualidade tornando-se, trar atributos masculinos (força,
por isso, lócus privilegiado de cons- virilidade) para se afirmar diferente
trução de identidades masculinas da mulher e de qualquer caracte-
e femininas, reprodução do ideal rística e/ou comportamento que o
heterossexual e das desigualdades associe á um aspecto afeminado,
de gênero. Assim, como descreve isto é, da fragilidade e sensibilidade
Foucault, seria um equívoco afir- (WELZER-LANG, 2001).
mar que “a instituição pedagógica Nessa perspectiva, toda
impôs um silêncio geral ao sexo uma rede social constituída histo-
das crianças e dos adolescentes.” ricamente se encarrega de imbricar
(FOUCAULT, 1999, p. 31) sobre o homem “gestos, movi-
No que se referem aos mentos, reações masculinas, todo
comportamentos típicos dos ho- o capital de atitudes que contri-
mens, os educadores afirmam que buirão para se tornar um homem”
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(WELZER-LANG, 2001, p. 463), o identidade masculina se encontra


que, nas respostas dos estudantes, no topo da hierarquia de gênero.
se traduz em aspectos como “vio- Portanto, “o masculino é, ao mes-
lentos, apelões, muito briguentos”, mo tempo, submissão ao modelo e
“[...] mandões”, “ser agressivo [...]”, obtenção de privilégios do modelo”
“ser valente e bravo”. Estas respos- (WELZER-LANG, 2001, p. 464).
tas evidenciam alguns dos valores Dito de outra forma, a reprodução
impostos ao homem para adquirir o desse sistema de ritos e valores que
status de masculinidade. Tais discur- atribuem estereótipos de masculini-
sos afirmam, sem cessar e em todas dade e feminilidade, contribui para
as instâncias, que para ser homem a manutenção da hierarquia entre
se deve aprender homens e mulheres, e, conseqüen-
temente, da dominação masculina.
[...] a respeitar os códigos, os Nessa perspectiva, alguns
ritos que se tornam então ope- educadores reforçam comporta-
radores hierárquicos. Integrar mentos machistas, rígidos e racio-
códigos e ritos, que no esporte nais do homem tais como “duro,
são as regras, obriga a integrar fechado, esportivo e poderoso”, ao
corporalmente (incorporar) os descrevem que estes “avançam o
não-ditos. Um desses não-ditos,
sinal às vezes”, são “imperativos”,
que alguns anos mais tarde rela-
“mandões, ignorantes”, “sérios,
tam os rapazes já tornados ho-
egoístas, machistas, ciumentos, tí-
mens, é que essa aprendizagem
midos ou vulgares”, “normalmente
se faz no sofrimento. Sofrimen-
tos psíquicos de não conseguir autoritários, dono da verdade”,
jogar tão bem quanto os outros. “pouco sensíveis, muito impulsivo
Sofrimentos dos corpos que de- e controlador”, e que “ao contrário
vem endurecer para poder jogar das mulheres, são mais racionais e
corretamente. (WELZER-LANG, práticos”.
2001, p. 463) Estas considerações acerca
dos comportamentos masculinos
O ato de ser forte, agüen- atribuem ao homem características
tar a dor e o sofrimento, impor padronizadas e inatas, responsáveis
sua bravura e coragem diante dos pela sua dominação e superiorida-
demais evidenciam alguns impera- de. Isso se reflete, como apontado
tivos, características que se impõe pelos educadores, em todas as esfe-
ao homem, mas que, ao mesmo ras sociais como, por exemplo, no
tempo, lhe fornece benefícios e esporte, no trânsito, no caráter, nos
vantagens sociais, uma vez que a relacionamentos, etc. Corbin (2008),
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em seu estudo sobre o corpo e a his- lazer, nas relações humanas, enfim,
tória natural do homem e da mulher, em todas as esferas sociais pautadas
realiza a análise de um documento em papéis masculinos e femininos.
produzido no século XIX que reunia Sobre o corpo da mulher,
vários conhecimentos de obras mé- este mesmo documento estudado
dicas de grande repercussão: por Corbin (2008) atribui alguns
aspectos e características que deter-
Entre os machos [...] as forças minam sua subjetividade:
vitais são mais desenvolvidas
do que na mulher. O corpo, A mulher possui formas ar-
com uma “forma quadrada” tem redondas e graciosas. Seus
densidade. Os ombros são mais quadris e sua bacia são largos,
largos, mais grossos e mais for- dilatados. Suas coxas são fortes
tes. Os membros são mais mus- e mais afastadas do que as do
culosos. Os sistemas ósseo e pi- homem [...]. A pele da mulher
loso são mais desenvolvidos do é doce, lisa e branca; sua voz
que na mulher [...]. A espinha é mais suave. O sexo feminino
dorsal e a medula espinal são – o sexo por excelência – dá
mais volumosas no macho do mostras de uma sensibilidade
que na fêmea. Por isso, “o siste- que favorece a amizade, o pre-
ma nervoso cérebro-espinhal é dispõe às alegrias da família e,
mais ativo e mais vigoroso no de modo geral, às “afeições mo-
homem”, enquanto o sistema rais do coração”. Já o homem
simpático domina na mulher. “é feito para ações fortes” [...]
(CORBIN, 2008, p. 190 – 191) (CORBIN, 2008, p. 191)

Tais considerações feitas O corpo, nessa perspecti-


auxiliam a compreender o fato va, está colocado como campo polí-
pelo qual se atribui ao homem tico, onde se inscrevem discursos e
maior racionalidade e menos sen- se constroem personalidades e iden-
sibilidade que a mulher. O corpo, tidades, uma vez que a seriedade,
neste quadro, dá origem a diversos a virilidade, a força, e os músculos
aspectos subjetivos, tais como os assumem aspectos masculinos en-
citados pelos educadores (esportivo, quanto a sensibilidade, a fragilidade
poderoso, machistas, autoritários, e a delicadeza se definem como
controladores, racionais e práticos). características femininas.
Na sociedade isso implica pensar Repensar as percepções
em toda a estrutura social baseada sobre sexualidade sobre uma cate-
na divisão sexual, no trabalho, no goria histórica, descentralizando a
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legitimidade de tais explicações do que, em certa medida, causa-lhe


discurso biológico, representa lan- um receio de se aproximar do que
çar outro olhar sobre a desigualdade é culturalmente estabelecido como
entre homens e mulheres no que se masculino, conduzindo-a a busca
refere às discriminações e opressões incessante pela feminilidade, o que
específicas no âmbito social, políti- reforça os estereótipos de gênero e
co e sexual. interfere na superação das desigual-
dades entre homens e mulheres. “O
Novos desafios, antigos para- temor que a mulher rompa algumas
barreiras que delimitam as diferen-
digmas ças culturalmente construídas para
cada sexo torna imperiosa a sua
Segundo os educadores feminização, caso contrário, diz
“as mulheres procuram lutar pela o discurso dominante, ela estará
sobrevivência e até mesmo pela se masculinizando.” (GOELLNER,
qualidade de vida com indepen- 2000, p. 62)
dência”, são “geralmente submissas Isso ocorre porque na
as vontades dos homens e hoje medida em que as mulheres al-
curiosas sobre as informações do cançam uma posição social mais
mundo”. Apesar das várias trans- privilegiada e independente, os
formações ao longo dos anos no efeitos da dominação tendem a
âmbito da percepção sobre femi- reduzir-se (BOURDIEU, 2010). O
nilidade, provenientes do maior homem, nessa perspectiva, assume
acesso e ocupação da mulher a uma postura de medo e instabilida-
espaços públicos e de suas conquis- de, o que demonstra a fragilidade
tas políticas e sociais (MEYER, et das construções políticas e sociais.
al, 2007), observa-se, pela resposta Dessa forma, a superação das de-
dos professores, que os homens são sigualdades de gênero implica na
“ainda hoje, machistas e com medo mudança das estruturas simbólicas
das mudanças femininas” e, além que compõe as relações de poder
disso, “não conseguem manter a entre homens e mulheres.
qualidade de vida de chefe de famí- Pensar nas diferenças por
lia, dizem ser liberais concordando outra perspectiva, isto é, com ou-
com as mulheres trabalhadoras e al- tro “olhar”, significa repensar tais
guns até se aproveitam da situação”. categorias de gênero não como
A restrição da mulher, in- “naturais” e imutáveis como propõe
citada e fomentada por esse tipo de o discurso médico/biológico, mas
pensamento, gera um preconceito como características construídas
80

historicamente e, por isso, passíveis lhor compreensão dos estereótipos


de mudanças e re-significações. de gênero construídos socialmente
e sua perfusão no âmbito escolar.
Breves considerações Dessa forma, a problematização de
tais paradigmas torna-se essencial
na medida em que a escola deveria
As características com-
ser local de aceitação da diversida-
portamentais de homens e mu-
de, sendo este elemento intrínseco
lheres apresentadas pressupõem a
do próprio ser humano.
demarcação de marcas e atitudes
Observou-se que o indiví-
esperadas para determinado sexo,
duo é, então, condenado a ser seu
refletindo o quanto o corpo se as-
sexo, sua sexualidade, e que essa
socia (ou deve se associar) à iden-
coerção perpassa indubitavelmente
tidade padronizada. Os discursos
sobre corpo a partir de um poder
impostos constantemente ao corpo
legitimado exercido pela instituição
estruturam comportamentos, subje-
educacional. Como ressalta Foucault
tividades, modos de ser homem e
(1999), o poder acaricia o corpo com
mulher. Observa-se “o quanto a es-
os olhos, olhares que investigam,
cola está engajada em desenvolver
olhares que buscam, olhares que de-
determinados tipos de identidades
signam, olhares que julgam, olhares
consideradas para meninos e meni-
frios, olhares que incitam, olhares
nas” (FELIPE; GUIZZO, 2008, p. 35)
que reprimem, olhares distorcidos,
por meio de olhares vigilantes que
olhares sobre os corpos.
designam, constantemente, como
as pessoas devem agir e ser.
A escola, professores, Referências
gestores e estudantes, demons-
tram como se formam identidades ADELMAN, Miriam. Mulheres
masculinas e femininas, e como atletas: re-significações da
esta produção incorpora e vincula corporalidade feminina. Estudos
valores simbólicos da dominação Feministas, Florianópolis, 11 (2):
masculina. Apesar do quadro que 360, julho/dezembro, 2003.
se apresenta, pouca reflexão é ALTMANN, Helena; MARTINS,
feita sobre a construção de corpos Carlos José. Políticas da
binários, sobre o aspecto histórico, sexualidade no cotidiano
social e político. Os comportamen- escolar. In: CAMARGO, Ana
tos típicos de homens e mulheres Maria Facciolli de; MARIGUELA,
apresentados por educadores e es- Márcio. (Orgs). Cotidiano escolar
tudantes contribuem para uma me- – emergência e invenção.
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Piracicaba: Jacintha Editores, saber. Rio de Janeiro, Edições


2007. p. 131-150. Graal, 13ª Ed. 1999.
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ABSTRACT

This study aims to raise some issues related to the construction of men and women
in schools and how the body becomes a site of insertion and production of speech,
and language brands. Questionnaires were administered to students, teachers and
administrators of public schools in Goiania articulating the understandings about the
behavior of these men and women. The data showed that educators offer little reflection
on the historical, social and political bodies which leads to reproduction of the current
gender differences by education bodies and ways of living sexuality.

Keywords: body, gender and education.

Recebido em: agosto/2011


Aprovado em: março/2012

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