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Educação Unisinos

17(2):145-154, maio/agosto 2013


© 2013 by Unisinos - doi: 10.4013/edu.2013.172.07

Relações de gênero na escola: feminilidade e


masculinidade na Educação Infantil

Gender Relations in school: Femininity and


masculinity in early childhood education

Tânia Suely Antonelli Marcelino Brabo


tamb@terra.com.br

Valéria Pall Oriani


valeriaoriani@marilia.unesp.br

Resumo: O texto tem como objetivo refletir sobre masculinidade e feminilidade na Educação
Infantil, ambiente quase que eminentemente feminino. Apresenta os resultados de uma
pesquisa que investigou as relações sociais de gênero nesse nível de ensino em uma escola
na qual atuava um homem como professor. Para a consecução da pesquisa foram observadas
as práticas pedagógicas de uma professora e do professor de Educação Infantil. Ao final das
observações foram entrevistados: a professora, o professor, a coordenadora pedagógica, a
diretora e uma atendente de creche. Com base nas contribuições teóricas acerca de cultura e
gênero e da análise do material empírico, mostra-se que a identidade masculina e feminina,
bem como os papéis sociais para ambos os sexos, historicamente, são construções humanas
que podem ser modificadas, principalmente na escola.

Palavras-chave: gênero na Educação Infantil, masculinidade e feminilidade na docência,


cultura e educação.

Abstract: The text aims to reflect about masculinity and femininity in children’s education, an
almost entirely feminine environment, bringing findings of a study that investigated the social
relations of gender in this level of teaching in a school where a man worked as a teacher.
Data was composed by observations of pedagogical practices of a woman teacher and a man
teacher of Early Childhood Education. After that, those teachers, the pedagogical coordinator,
the headmaster and a nursery worker were interviewed. Based on theoretical contributions
about culture and gender, the paper shows that the masculine and the feminine identities
and social roles for both sexes, historically, are human constructions that can be modified,
especially at school.

Key words: gender in early childhood education, masculinity and femininity in teaching,
culture and education.
Tânia Suely Antonelli Marcelino Brabo, Valéria Pall Oriani

Introdução de padrões de comportamentos Considerando tais questões, pre-


desenvolvidos a partir de hábitos de tendemos, neste texto, refletir sobre
A menina constata que o cuidado massa que, uma vez estabelecidos, a importância da escola para desna-
das crianças cabe à mãe, é o que projetam-se no futuro e são tidos turalizar as diferenças construídas e
lhe ensinam; relatos ouvidos, livros como naturais. Em toda a sociedade, reforçadas culturalmente de ambos
lidos, tôda a sua pequena experiência
a diferenciação baseada em sexo e os sexos e o quanto ainda existem
a conforma; encorajam-na a encantar-
se com essas riquezas futuras, dão-lhe idade é universal: existem padrões dificuldades para o desenvolvimen-
bonecas para que tais riquezas assu- de comportamento distintos para to da educação na perspectiva da
mam desde logo um aspecto tangível. homens e mulheres, jovens e adul- igualdade de gênero, principalmente
Sua ‘vocação’ é-lhe imperiosamente tos; cada grupo tem suas próprias em níveis de ensino como a Edu-
ditada (Beauvoir, 1975, p. 24). características de comportamento, cação Infantil, em que os aspectos
que é fortemente influenciado pelos relacionados à feminilidade são tão
Tornar-se mulher ou homem, padrões de cultura. presentes.
de acordo com a perspectiva de Conforme Molinier e Welzer- Na Educação Infantil, constata-
Beauvoir (1975), envolve, desde a Lang (2009, p. 101), masculini- se a predominância de mulheres
infância, uma constante busca pela dade e feminilidade existem e se na docência, sendo vista, historica-
construção da identidade feminina definem em sua relação, designam mente, como uma área de atuação
ou masculina, que vai sendo deline- as características e as qualidades apropriada para as mulheres, pelas
ada baseada em características opos- atribuídas social e culturalmente aos características tidas como naturais
tas e que definem os papéis sexuais homens e às mulheres. Explicam às mulheres, dentre elas o cuidar,
bem como os comportamentos e os ainda que “são as relações sociais principalmente por trabalhar com
caminhos que homens e mulheres de sexo, marcadas pela dominação crianças pequenas. Por essas razões,
seguirão na vida. masculina, que determinam o que é consideramos instigante refletir so-
Atualmente, constatamos mudan- considerado “normal” – e em geral bre o que é ser um homem, professor
ças nessa lógica histórica graças ao interpretado como “natural” – para na Educação Infantil, num ambiente
papel importante de mulheres que mulheres e homens.” quase que essencialmente feminino1.
se insubordinaram aos costumes que Quando um indivíduo nasce ou
lhes eram impostos, dos movimentos entra no grupo, é submetido ao pro- Cultura e gênero:
feministas que desvelaram a realida- cesso de treinamento ou doutrinação, a construção da
de injusta das mulheres bem como isto é, de socialização. No decorrer desigualdade
das teorias feministas que compro- da vida, as sanções positivas serão
varam e ainda comprovam a desi- induzidas em conformidade com as A cultura é transmitida por ensi-
gualdade construída culturalmente. normas estabelecidas e as sanções namento a cada nova geração, tendo
Acrescentamos, também, no caso negativas vão desencorajar e repri- como modelo o comportamento dos
brasileiro, os avanços legais, tendo mir possíveis desvios. adultos. É assim que se formam es-
como marco a Constituição da Re- Segundo Bruschini (1981, p. 73), truturas de personalidade básica das
pública Federativa do Brasil (Brasil, os modelos masculino e feminino crianças, persistindo no decorrer da
1988), contudo, na vida em socie- são mais históricos e sociais do que vida do indivíduo.
dade se constata a discriminação de biológicos. Eles vão sendo cons- Segundo Stearns (2007, p. 27),
gênero. Pesquisas revelam que as truídos gradativamente na família
escolas, de uma maneira geral, ainda ou na escola, através de jogos e [...] por volta do quarto milênio,
desenvolvem práticas que reforçam brinquedos, da televisão e de “outros também a maior parte das socieda-
a cultura da desigualdade, baseada mecanismos transmissores da educa- des agrícolas tinha desenvolvido
numa visão androcêntrica de mundo. ção informal. Vão sendo incutidas novas formas de desigualdades entre
Nesse processo, temos que con- diferenças de temperamento entre os homens e mulheres, num sistema cha-
siderar que todas as inter-relações sexos que passam a ser consideradas mado de patriarcal – com o domínio
de maridos e pais. As civilizações,
sociais são dominadas pela cultura diferenças ‘naturais’, próprias à bio-
de uma forma geral, aprofundaram
existente, que consiste numa série logia do homem e da mulher [...].”

146
1
Alguns resultados da pesquisa realizada por Oriani, com bolsa CNPq, em nível de mestrado junto ao Programa de Pós-Graduação em Educação
da Faculdade de Filosofia e Ciências, UNESP/Campus de Marília, intitulada Direitos humanos e gênero na Educação Infantil: concepções e práticas
pedagógicas serão apresentados, mostrando como são controversas as relações que se estabelecem no cotidiano escolar.

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Relações de gênero na escola: feminilidade e masculinidade na Educação Infantil

é através da internalização dos di- nham como ideias norteadoras que


o patriarcado e, ao mesmo tempo,
definiram seus detalhes de formas
versos papéis (centrados em torno as mulheres não deveriam se sujeitar
distintas que combinavam com de idade, sexo, imagem do próprio à ideologia da inferioridade nem à
crenças e instituições mais amplas de corpo, etc) que a pessoa assume “na ideologia dos papéis sexuais, mas
cada civilização em particular. Nesse realidade do grupo familiar que sua lutar por igual direito ao trabalho.
sentido, pondo um selo próprio do identidade começa a ser gerada. Pos- Esse pensamento, assimilado por
patriarcado, cada civilização uniu as teriormente, a identidade de papel muitas mulheres e não aliado à
questões de gênero com aspectos de vai sofrendo um processo gradual de contestação sobre os papéis sexuais,
sua estrutura cultural e institucional.
individualização, sendo substituída inclusive no cotidiano delas, nas
pela identidade do EU”. sociedades contemporâneas, levou
Como constatado, cada socieda-
É preciso ressaltar o que Oliven a uma sobrecarga de responsabilida-
de constrói as relações de gênero
(1986) expõe, que, se a elaboração des na tentativa de ser dona de casa
de acordo com sua cultura. A esse
do modelo de identidade masculino/ primorosa até profissional de alta
respeito, também se lê em Rosaldo
feminino é gerado na vida social, a competência; nisso pode-se incluir
(1989), que os homens são definidos
ideologia é então condição dessa a professora que, com a desvalori-
historicamente em termos de suas
identidade, portanto, a identidade so- zação de seu trabalho, assumiu para
conquistas nas instituições sociais.
cial é uma ideologia que está presen- si uma dupla ou até tripla jornada de
Eles produzem cultura, ou seja,
te em todas as atividades de homens trabalho. Neste momento citado pela
o mundo da cultura é deles. Já a
e mulheres, em atividades religiosas, autora, não ficava clara a questão da
mulher, por seu status ser derivado
morais, estéticas, filosóficas. exploração do trabalho pela socie-
do estágio no ciclo da vida, de suas
A esse respeito, podemos relem- dade capitalista para a maioria das
funções biológicas, de seus laços
brar as afirmações de Habermas mulheres. Assim, ao mesmo tempo
sexuais e biológicos a homens es-
(1983, p. 57), ao dizer que que o trabalho proposto pela teoria
pecíficos, é definida como natureza,
marxista é visto como um dos meios
em contraposição ao homem que [...] a identidade do EU é gerada para a emancipação das mulheres, é
significa cultura. pela socialização, ou seja, vai-se usado, também, pelo capitalismo,
Ainda a esse respeito, Safiotti processando à medida que o sujei-
para sua exploração, como tão bem
(1991, p. 153), afirma, através da to - apropriando-se dos universos
simbólicos - integra-se, antes de mais
nos mostra Fraser (2007).
teoria do esquema de gênero, que
nada, num certo sistema social, ao Ainda conforme Chauí (1984),
passo que, mais tarde, ela é garantida é na pequeno-burguesa que a ideia
[...] a criança, além de aprender o
conteúdo de qualquer informação e desenvolvida pela individualização, de família nos moldes tradicionais
sobre gênero, capta a rede heterogê- ou seja, precisamente por uma cres- é mais forte, mais do que em outras
nea de associações relacionadas a ele, cente independência com relação aos classes, constituindo-se numa ins-
que lhe serve para avaliar e processar sistemas sociais. tituição importante à preservação
informações. [...] O processo de da ideologia burguesa, pois oferece
tipificação de gênero tem raízes na Chauí (1984, p. 111) apontava
descoberta dos vínculos entre o pró- também, na década de 1980, que as [...] ao pai uma autoridade substitu-
prio auto-conceito de um indivíduo primeiras manifestações feministas tiva que o compense de sua falta de
e o esquema de gênero. Isto implica iam contra o poder burguês porque poder na sociedade e que, por isto, ele
a aprendizagem não apenas dos atri- aparece como devendo encarnar para
ele era fundamentalmente um poder
butos conferidos e dos papéis sociais toda sociedade o ideal do Pai [...] à
atribuídos ao gênero de uma pessoa, masculino que discriminava social,
econômica, política e culturalmente mãe, um lugar honroso que a detenha
mas ao domínio de um esquema de fora do mercado de trabalho para não
gênero que prescreve condutas para as mulheres. Além disso, “é um poder
competir com o pai e não lhe roubar a
representantes dos dois gêneros. que legitima a submissão das mulheres autoridade ilusória, e que, por isto, a
aos homens tanto pela afirmação da mulher desta família está destinada a
Assim, a construção da identidade inferioridade feminina (fraqueza física encarnar para toda a sociedade o ideal
feminina e da masculina é estabe- e intelectual) quanto pela divisão de de mãe (Chauí, 1984, p. 117).
lecida por meio do contraste ou da papéis sociais a partir de atividades
diferenciação entre o papel social sexuais (feminilidade como sinônimo Louro (1997, p. 445-446) acres-
da mulher e do homem durante o de maternidade e domesticidade)”. centa que: “[...] as divisões de classe, 147
processo de socialização da criança. A autora afirmava, além do mais, etnia e raça tinham um papel impor-
Como Shäffer (1990, p. 13) afirma, que os movimentos feministas ti- tante na determinação das formas de

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educação utilizadas para transformar da educação e das circunstâncias de domésticas, representava também
crianças em mulheres e homens. vida a que estavam submetidas. uma solução para o problema de
A essas divisões se acrescentariam A educação constituiu uma ban- mão-de-obra para a escola primá-
ainda as divisões religiosas [...]”. deira nas reivindicações das mulheres ria, pouco procurada pelo elemento
Além do mais, diante das diferen- brasileiras. As ideias liberais, apesar masculino devido à má remuneração
tes concepções de educação para a de não defenderem uma educação conforme se lê em Tanuri (1979, in
mulher, um discurso era comum a que promovesse a emancipação Brabo, 2005).
muitos grupos sociais, “as mulheres feminina, constituíram um avanço, Desde o seu surgimento, a esco-
deveriam ser mais educadas do que mas é importante questionar: qual la reforçou o papel tradicional da
instruídas [...] a ênfase deveria recair escola foi proporcionada às meninas? mulher na família e na sociedade,
sobre a formação moral, sobre a Sabe-se que o ensino proporcionado formava boas mães e esposas pro-
constituição do caráter [...]”. para ambos os sexos refletia a visão fessoras, comprometidas apenas
Somente na Constituição de que se tinha do papel social de cada com a instrução elementar e não com
1823 é que se encontra a ideia de um deles, ou seja, para a mulher, con- a formação integral do educando;
proporcionar legalmente instrução vém frisar, mais uma vez, um ensino defensoras dos valores tradicionais,
ao sexo feminino, mas essa tendên- voltado à educação doméstica com o resistentes às mudanças ocorridas na
cia liberal é sufocada com a disso- objetivo de refinar o seu comporta- sociedade como um todo, atuando
lução da Assembleia. No projeto de mento. Ademais, a lei de 1827, apesar como reforçadoras e mantenedoras
lei da Constituição de 1824, no que de estabelecer a educação para ambos da ideologia dominante.
se refere ao ensino, aparece apenas os sexos, só admitia as meninas nas Outra peculiaridade da femini-
uma referência à instrução femini- escolas de primeiro grau. Os níveis zação do magistério no Brasil é que
na, com a justificativa de propiciar mais altos eram exclusivamente para representou um paliativo para a rei-
à mulher melhores condições de os meninos. vindicação feminina de entrar para
cumprir suas funções domésticas; Em 1846, foi fundada a primeira a vida profissional, não por ser con-
mas foi um avanço, pois reconhe- escola Normal Paulista; essa escola siderado uma verdadeira profissão,
cia legalmente a necessidade de se destinava-se exclusivamente ao sexo mas porque era visto como um pro-
instruir a mulher brasileira (Saffioti, masculino por haver desinteresse em longamento das funções maternas.
1976). Embora defendessem a edu- relação à educação intelectual da Na escola, elas não reivindicavam
cação para a mulher, apenas para mulher e por achar que a instrução o poder, ao contrário, sujeitavam-se
preparar boas mães de família que da mulher deveria ser inferior àquela à hierarquia paternalista de poder.
iriam formar o homem do futuro, ministrada aos meninos, o que levou Diferentemente, na Europa, confor-
essas ideias liberais, transplantadas a uma tardia instalação da 1ª Escola me aponta Freitag (1986), a femini-
da Europa, influenciaram algumas Normal Feminina (Tanuri, 1979, in zação fazia parte das reivindicações
mulheres brasileiras das classes Brabo, 2005). das mulheres de participar das de-
mais abastadas no que se refere a Louro (1997, p. 450) nos mostra cisões e do poder dos subsistemas,
seus direitos. ainda como havia resistência por tendo estas conseguido, em alguns
No final do século XIX, foram parte da sociedade para a inserção países europeus, atingir postos
essas mulheres que, contando com da mulher na docência: “para al- importantes na máquina educativa.
uma imprensa reivindicatória, luta- guns parecia insensatez entregar às Bourdieu (1999) é outro autor
vam pela educação da mulher, assim mulheres usualmente desprepara- que contribuiu para desvelar a
como de outras necessidades básicas das, portadoras de cérebros ‘pouco construção das identidades, dizen-
da população feminina, mostrando desenvolvidos’ pelo seu ‘desuso’ a do que estas se iniciam a partir dos
que um pensamento emancipador educação das crianças.” brinquedos oferecidos à criança
florescia no País. Nísia Floresta, ao Pode-se considerar que o ma- desde a mais tenra idade. As ações
traduzir o livro de Mary Wollstone- gistério representava uma das úni- no processo de socialização não são
craft, Vindication of the Rights of cas oportunidades para a mulher neutras e se direcionam na pers-
Women, aborda a privação dos direi- exercer uma profissão, elevar seus pectiva androcêntrica de mundo,
tos das mulheres brasileiras e a injus- conhecimentos, e uma forma de por meio de discursos e do habitus.
tiça cometida pelos homens, que as não interferir na sua função social As diferenças apontadas por Bour-
148 impediam de se desenvolver, e de- primeira, de esposa e mãe. Além de dieu (1999) atuam inclusive nas
nunciava que as desigualdades pro- representar uma profissão na qual escolhas profissionais, já que se
moviam a inferioridade, resultante a mulher conciliava suas funções pautam em aptidões naturais para

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indicar o que cada um deve fazer. desvalorização da profissão, tendo Como afirma Harding (1993,
Profissões que, por exemplo, envol- em vista que, se as habilidades são p. 13-14),
vem o cuidar são atribuídas às mu- naturais, então, não requerem uma
lheres tendo em vista que possuem o formação específica. A pesquisa feminista não representa a
dom nato da maternidade. Não é por Louro (1997, p. 450) enfatiza substituição da lealdade a um gênero
acaso que as profissões que acabam que, se a maternidade era a função pela lealdade a outro – a troca de um
subjetivismo pelo o outro-, mas a
se tornando guetos femininos são primordial da mulher, bastaria pen-
transcendência de todo gênero, o que,
as mais desvalorizadas; prova disso sar que o magistério representava
portanto, aumenta a objetividade.
é a feminização pela qual passou o “[...] a extensão da maternidade,
magistério, conforme apontamos an- cada aluno ou aluna vistos como um
Assim, com o objetivo de pensar
tes. De acordo com Almeida (1998), filho ou uma filha “espiritual”. [...]
as contribuições das teorias femi-
quando o magistério era um campo a docência não subverteria a função
nistas para as relações de gênero
masculino, representava uma pro- feminina fundamental, ao contrário,
na escola, especificamente em uma
fissão valorizada e, quando perdeu poderia ampliá-la e sublimá-la”.
escola de Educação Infantil na qual
seu valor, acabou sendo ocupada por Todas essas questões apontadas
um homem atua como docente,
mulheres. justificam a ausência do homem
apresentaremos, posteriormente,
A desvalorização do trabalho da atuando como professor na Educa-
algumas constatações da pesquisa
mulher, para Safiotti (1976), é ape- ção Infantil e, embora sejam poucos,
anteriormente citada, que permitem
nas mais uma artimanha utilizada eles precisam ser considerados e ou-
explicitar considerações a respeito
pelo sistema capitalista para manter vidos, tendo em vista que esse nível
de como professores e professoras
a competitividade entre eles e elas e, de ensino representa os primeiros
contatos da criança com um grupo de Educação Infantil lidam com
portanto, justificar o equilíbrio das as questões de gênero no cotidiano
ordens econômicas. Afinal, de acor- social diferente dos membros da
família além do que esses contatos escolar, ambiente em que masculi-
do com a perspectiva capitalista, é o nidades e feminilidades precisam se
homem quem deve manter o sustento contribuirão também para a cons-
trução da identidade de gênero da relacionar e são construídas.
do lar e não a mulher. De acordo com Medrado e Lyra
Ao se tratar da docência, essa criança. Ademais, o fato de homens
procurarem o magistério, principal- (2008), é dentro do feminismo, a
perspectiva parece ainda mais pre- partir da década de 1980, que os
mente para atuarem com crianças
sente em níveis educacionais como a estudos sobre as masculinidades
pequenas, pode significar um pro-
Educação Infantil, em que os cuida- começam a aparecer, mas, a partir de
cesso decorrente dos avanços com
dos são necessários, além do educar. 1990, é que começam a se destacar.
relação a relações sociais de gênero.
Acrescente-se a isso a visão apontada Conforme Fialho (2006, p. 2)
Sendo assim, consideramos im-
por Carvalho (1999, p. 71) de que foi Robert Connel quem definiu o
portante conhecer as rotinas peda-
gógicas de uma escola de Educação conceito de masculinidade como
[...] quanto mais o trabalho docente
Infantil Municipal da cidade de “[...] uma configuração de prática
com crianças é idealizado como
Marília/SP, na qual atuava um ho- em torno da posição dos homens
não-intelectual, enfatizando suas
dimensões relacional e afetiva, mais mem para compreender como e se na estrutura das relações de gênero
se aproximam as imagens da escola as relações de gênero influenciavam [...]”. Devido à diversidade de iden-
primária e seu trabalho docente das nas práticas pedagógicas. tidades, como aponta Fialho (2006),
características tidas como femininas. Entretanto, é importante ressaltar não é possível se falar a respeito
que questões como essas só ganha- de masculinidade, mas de mascu-
Assim, a mulher é eleita como ram visibilidade como responsáveis linidades, numa reflexão similar à
ideal para atuar com as crianças pela discriminação e pela subordina- do movimento feminista quando
pequenas porque, de acordo com ção das mulheres a partir das con- afirma a necessidade de se referir
suas características biológicas, ela tribuições teóricas das feministas. às mulheres, na tentativa de abarcar
traz consigo a aptidão natural para Os questionamentos suscitados por a diversidade humana.
o cuidar. Essa mesma justificativa, elas permitiram pensar não apenas Dentre as masculinidades, existe
aliada ao fato de que o salário da mu- em homens e mulheres, mas nas uma ideal, que serve de base para as
lher seja suplementar ao do marido, relações que se estabelecem entre demais que, segundo Fialho (2006), 149
o responsável pelo sustento da famí- eles e o quanto essas relações são foi definida como hegemônica por
lia, se aplica aos baixos salários e à permeadas de poder. Robert Connel, a partir do conceito

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de Gramsci (1978). A masculinidade para a masculinidade e “não apenas processo de feminização do magisté-
hegemônica subordinaria as demais apreender e analisar os signos e sig- rio associa-se às péssimas condições
masculinidades que permanecem nificados culturais disponíveis sobre de trabalho, ao rebaixamento salarial
em constate conflito pela conquista o masculino [...]” Nesse sentido, é e à estratificação sexual da carreira
da hegemonia. Conforme Weaver- possível pensar em como a educação docente, assim como a reprodução
Hightower (2011, p. 190), as outras influencia e é influenciada por esses de estereótipos por parte da escola”.
masculinidades são marginalizadas: signos e significados culturais que Dessa forma, de acordo com Sar-
“As masculinidades de classe, de definem as masculinidades e como mento (2004, p. 105), em pesquisa
raça, rural e deficiente física, ape- ela pode atuar para a construção de realizada em Portugal com edu-
sar de suas semelhanças com os relações menos desiguais. cadores de infância, a escolha dos
comportamentos da masculinidade Para Weaver-Hightower (2011, homens por essa profissão feminina
hegemônica, recebem menos recom- p. 191), a educação está diretamente requer determinação:
pensa material e exaltação cultural relacionada à difusão desses símbo-
por causa de seu status marginal”. los que reproduzem as característi- Mais do que as educadoras, os
Para Badinter (1993), as mascu- cas da masculinidade hegemônica. homens-educadores têm que possuir
Segundo argumenta, “Da pedagogia convicções muito fortes para levarem
linidades e feminilidades estão em
por diante seus propósitos, dado
constante relação, porque a mascu- ao currículo e aos regimes discipli-
terem que se confrontar com muitas
linidade se fundamenta nas feminili- nares, formas hegemônicas parti-
pressões sociais, quer de tipo familiar
dades para se constituir. Ela afirma, culares são favorecidas, exaltadas, quer do tipo mais geral, que identi-
recompensadas e em última análise ficando o exercício desta profissão
Embora o ‘macho’ e a ‘fêmea’ reproduzidas enquanto as formas com o gênero feminino, não aceitam
possam ter características univer- subordinadas são sancionadas, mar- a inscrição de homens na mesma.
sais, ninguém pode compreender a ginalizadas ou punidas”.
construção da masculinidade ou da A esse respeito, é importante Em consonância com a perspec-
feminilidade sem referência ao ou-
pensar: se e como essas questões tiva da autora, Carvalho (1998, p. 5)
tro. Longe de ser pensada como um
absoluto, a masculinidade, atributo
influenciam as práticas pedagógicas afirma que
do homem, é relativa e reativa. Tanto dos homens? Eles teriam um modelo
que, quando a feminilidade muda – diferente de atuação? Como são Trata-se de pessoas do sexo mascu-
em geral, quando as mulheres querem vistos e avaliados na docência da lino, lidando quotidianamente com
redefinir sua identidade –, a mascu- Educação Infantil? expectativas, conceitos e tarefas cul-
linidade se desestabiliza (Badinter, turalmente associados à feminilidade
e que, uma vez que a estreita corre-
1993, p.11). Homens, masculinidades lação entre feminilidade e mulheres,
e docência masculinidade e homens também
Complementando, a autora afir- é um pressuposto estabelecido, são
ma ainda que a identidade de um De acordo com Carvalho (1998), igualmente expectativas, conceitos
homem passa por outros agravantes o modelo hegemônico de masculi- e tarefas estreitamente associadas às
para seu delineamento. Ao contrário nidade nas sociedades ocidentais se mulheres.
das mulheres, os homens precisam baseia principalmente no sucesso
comprovar a todo instante que real- profissional para indicar a percep- É preciso considerar, além do
mente são homens, questão que se ção que os homens têm de si e dos mais, de acordo com Ribeiro e Si-
torna um problema, tendo em vista outros. queira (2007), que a mídia exerce
que o peso social se torna maior, Entretanto, segundo Vianna uma grande influência no que se
porque qualquer comportamento que (2001, p. 90), e como vimos ante- refere à masculinidade dos professo-
saia dos padrões heteronormativos riormente neste texto, a profissão res. Em pesquisa realizada por essas
permite o questionamento da mas- docente “que inicialmente constitui- autoras com homens docentes, elas
culinidade do homem. se por ser masculina, a partir do identificaram o surgimento de um
Sendo assim, como afirmam Me- século XX passou pelo processo novo homem. Esse novo homem se
drado e Lyra (2008, p. 825), pesqui- de feminização, que não se carac- diferencia dos padrões esperados do
sar sobre masculinidades significa terizou apenas pela predominância homem tradicional, principalmente
150 discutir preconceitos e estereótipos feminina, mas também pela des- em relação à família. Tais atitudes,
além de repensar a possibilidade de qualificação do trabalho docente”. de acordo com Ribeiro e Siqueira
construir outras versões e sentidos Além disso, conforme aponta, “o (2007), representam uma diminuição

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no distanciamento entre homens e que são frequentemente noticiados. masculinos e do endosso dos in-
mulheres. A nosso ver, essa consta- Segundo Werebe (1988), a pedo- teresses dos homens e dos meni-
tação mostra um avanço nas relações filia corresponde ao abuso sexual de nos”. Fica claro que essas situações
sociais de gênero. crianças pelo adulto, e geralmente o apontadas pelo autor dizem respeito
Para Medrado e Lyra (1998), a adulto corresponde a alguém próxi- ao funcionamento da “ordem de
mídia tem realmente contribuído mo a criança ou de confiança da fa- gênero” na instituição educacional
para uma nova imagem de homem mília Assim, o medo do abuso acaba e em outros espaços. Diante das
que ele identifica como o novo pai, gerando repulsa à proximidade de colocações feitas, resta-nos ir para
que, além de se responsabilizar homens com as crianças. De acordo dentro da escola, comprovando os
pelo sustento da família, também com Saparolli (1998), possivelmen- apontamentos feitos pela literatura
demonstra carinho em relação às te, são os mitos e as ideias arraigadas aqui relembrada.
crianças. sobre a masculinidade, associados ao
Outro autor que se refere a essa medo do abuso, que ainda mantêm o Um estranho no ninho:
imagem de novo pai é Fonseca homem afastado da atuação docente professor na Educação
(1998). Para ele, essa imagem na Educação Infantil. Infantil
tem sido recorrente em autores da É importante ainda apontar o que
Psicologia, que buscam respostas Weaver-Hightower (2011, p. 189) Essas questões se mostraram
sobre a participação dos pais no afirma e que ilustra as questões apon- presentes no cotidiano da escola de
desenvolvimento da criança, além tadas desde o início do texto no que diz Educação Infantil da cidade de Marí-
disso, esse tema tem se expandido respeito à cultura. O autor lembra que lia/SP2 onde realizei minha pesquisa
nas pesquisas acadêmicas brasileiras “a masculinidade não está somente de mestrado. Para a consecução da
e, principalmente, na mídia. conectada aos corpos masculinos ou pesquisa foram observadas as práti-
A busca por uma nova imagem a feminilidade aos corpos femininos”. cas pedagógicas de uma professora e
de homem parece surgir em resposta Argumenta que a masculinidade das de um professor de Educação Infan-
à pressão pela qual passa o homem “mulheres é um componente crucial til. Ao final das observações foram
para manter-se dentro dos padrões da manutenção dos projetos de gênero entrevistados a professora, o profes-
normativos heterossexuais e, no caso mais amplos da sociedade, legiti- sor, a coordenadora pedagógica, a
de atuar em uma profissão conside- mando e desafiando e destacando os diretora e uma atendente de creche.
rada feminina como a docência, o traços da masculinidade do homem e Durante as observações e entre-
julgamento a respeito de sua mas- também a opressão das mulheres e dos vistas, foi constatado o quanto os es-
culinidade pode causar problemas, queer”. Quando essa masculinidade tereótipos parecem estar naturaliza-
conforme pondera Garcia (1998). das meninas é identificada na escola, dos nesse contexto e, a olhos menos
Além disso, as expectativas que por exemplo, quando elas se interes- atentos, insensíveis à problemática
se criam a respeito de um homem sam por atividades dos meninos, tanto de gênero, passam despercebidos.
atuando com crianças também cau- adultos quanto colegas logo agem no Em relação à sua masculinidade,
sam questionamentos. De acordo sentido de restringi-las, colocando a o professor, em entrevista, afirmou
com Cruz (1998), se à mulher é feminilidade “em seu lugar”, o mesmo que, em seus primeiros dias de atu-
associada a figura materna, com as se pode dizer com relação aos meninos ação, sentiu-se avaliado. Além do
características afetuosas que se espe- desde a Educação Infantil, conforme estranhamento natural de um homem
ra da mãe, ao homem, a imagem não constatamos na escola e na vida em atuar nessa profissão totalmente
é a de um pai carinhoso ou educador, sociedade. Qualquer comportamento feminina, ele contou que sabia que,
mas de alguém que não consegue considerado desviante é mal visto. mesmo de forma indireta, sua mas-
conter sua sexualidade. Essa imagem Ainda seguindo as afirmações culinidade havia sido questionada.
negativa da masculinidade gera des- do autor, ao mesmo tempo, na
confianças em relação ao homem, escola, educadoras “participam da [...] eu não ouvi diretamente, as outras
principalmente no que se refere reprodução da dominação mascu- pessoas vinham e falavam para mim,
elas pensavam que você tinha algum
aos cuidados com a criança, sendo lina por meio da incorporação da
problema com a masculinidade,
agravada pelos casos de pedofilia, masculinidade, de comportamentos
151
2
De acordo com dados obtidos junto à Secretaria Municipal de Educação de Marília (SP), o número de docentes da Educação Infantil é de quatrocentas
e quarenta e cinco mulheres e de apenas um professor.

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tanta frequência porque já estava maiores para ele, porque considera


porque homem tem que ser firme
tem que ser grosso não sabe lidar
atuando nesta escola há aproxima- que, pelo fato de ser homem, pode-
com criança, os pais eu encontrei um damente dezesseis anos no momento rá ter dificuldades. Argumentando,
pouco de dificuldade e receio por ser da pesquisa. Contudo, a diretora mostrou o que considera natural
homem como que vai cuidar do meu explicou que não atribuía turma de para as mulheres e não para os
filho, a minha primeira turma foi um crianças muito pequenas a ele. Ela homens, afirmando que
maternal com crianças de três anos considerava que as crianças peque-
então as crianças vinham porque na nas tinham mais apego com a figura [...] quanto menor a criança mais
Educação Infantil o cuidar e o educar difícil para eles estarem ali de contato
feminina e que, normalmente, a fi-
são importantes não apenas o educar a limpar nariz porque você sabe que
o cuidar junto e o cuidar é reservado gura paterna se mantinha afastada da
nos pequenos você tem essa toda essa
a quem mais? Às mães. Às mulheres. criança, por isso quando as crianças
parte, então você vê que tanto deles
Então, foi essa dificuldade que eu en- pequenas chegassem e não vissem em se adaptar a esses novos papéis,
contrei, o cuidar como eu iria cuidar uma mulher, elas não ficariam na mas também, porque aí eles também
dos filhos deles? Será que essa minha escola. Ela complementou, dizendo são pais uma hora chegam a ser pais,
masculinidade esse meu jeito de ser que por ele ser homem “ele fica bem mas até eles serem pais, terem uma
ia me atrapalhar? [...]. com turmas integrais, as crianças família, estar em contato com o filho
precisam um pouco mais de discipli- deles esse amadurecimento. Então,
A diretora confessou que, ini- na e firmeza e eles obedecem melhor eles sofrem e a gente como mulher
cialmente, havia ficado admirada parece que as mães já mandavam
a um homem, a figura masculina
por um homem querer atuar como a gente olhar os sobrinhos e assim
impressiona também [...]”. por diante então a gente já está mais
docente com crianças tão pequenas Como constatamos, a diretora uti- acostumada [...].
“[...] quando tem homem a gente liza os estereótipos masculinos para
estranha, a gente já pensa logo que justificar a atribuição ao professor Em relação às práticas peda-
é bicha [...]”. A coordenadora pe- de turmas maiores e, pelos mesmos gógicas, a professora justifica as
dagógica também enfatizou que ter motivos, por não ser aconselhável diferenças entre sua atuação e a dele
um professor atuando em sua escola ficar com as crianças menores. A por meio dos estereótipos,
causava estranheza para as demais coordenadora complementou dizen-
coordenadoras, dizendo que do que, devido ao fato de ele ficar [...] quando a gente vê alguns pais
sempre com turmas maiores, os pais falam, mas é homem né? Depois se
[...] quando a gente fala na minha apaixonam, porque eles vão ver que
e as mães das crianças que iniciam
escola tem um professor, ah, tem um é diferente a relação de professora
professor? Sabe assim, a gente ouve sua vida escolar naquela escola já
com as crianças e de professor com
também tem um professor e como vão se acostumando à presença
as crianças é um pouco diferente.
que é? Tem gente que pergunta e dele, porque sabem que, quando A gente tem, eu principalmente
como é que é? Eu falei como que é, os filhos estiverem maiores, serão tenho, um pouco mais de medo de
normal, mas são crianças pequenas? seus alunos.Além disso, justifica aventuras tipo balançar muito alto
Sabe, então tem essa curiosidade às dizendo que subir em brinquedos que eu acho
vezes quando a gente fala que tem um que representam um certo perigo
professor por ser educação infantil, se parece que os homens tem mais
a professora em si, ela tem mais aque-
fosse, lá na escola de educação básica, facilidade de lidar com essa coisa
le não sei mais aquele acolhimento
ensino fundamental não teria tanto de movimento, de movimento mais
com as crianças assim aquele contato
isso porque como as crianças são me- amplo mesmo e isso é enraizado
mais físico e eu acho que talvez ele,
nores eu acho que tem essa coisa [...]. desde pequeno pra gente né homem
apesar de que, ele é carinhoso com as
crianças e tudo, mas eu acho, que já tem mais liberdade nesse sentido e
A curiosidade e o estranhamento não tem tanto quanto uma professora essa liberdade deles faz parte da
não estão apenas nas habilidades do assim o contato mesmo físico com as Educação Infantil também [...].
profissional, mas em como iria lidar crianças [...].
com sua masculinidade. Ele deixaria O professor também considera
de agir como homem para realizar a A esse respeito, a professora que há diferenças em suas práticas
mesma função que as professoras, também comentou que se ela ti- pedagógicas e que é criticado por
ou ele representaria um risco para vesse a oportunidade de escolher isso. Citou, como exemplo das dife-
152 as crianças? sua turma no início do ano letivo, renças, a confecção de cartazes, que,
A maioria desses questionamen- escolheria a de crianças pequenas para ele, tem que ser uma atividade
tos poderia não ocorrer mais com para deixar a classe das crianças da criança, e não dele, dizendo

Educação Unisinos
Relações de gênero na escola: feminilidade e masculinidade na Educação Infantil

figura paterna, durante a entrevista,


[...] eu não fico enfeitando os traba- [...] se pretendemos construir uma
lhos dos meus alunos, é mão de gato
sua resposta foi:
sociedade realmente democrática,
vamos dizer assim, o aluno pinta uma onde a igualdade entre mulheres e
tinta põe o dedo tira o dedo correndo [...] muitas vezes eu tive que assumir homens exista de fato e não apenas
tira o trabalho da mão dele e põe EVA um pouquinho o papel de pai, teve na lei, mas também nas relações e
e põe cola glitter e põe não sei o quê, mães, que vieram pedir pra mim e práticas cotidianas, é preciso que
você não vê o trabalho da criança, dá às vezes as mães gostam de colocar estejamos atentos em promover uma
na mão dela ela fala não foi eu que fiz, comigo filhos que são separados de prática educativa não discriminatória
entendeu e eu, eu não, eu valorizo o pais que o pai não tenha participação desde a primeira infância.
que a criança faz eu ponho o que ela entendeu? E, elas gostam falam ai
fez claro eu faço às vezes eu falo não eu não estou com meu marido, meu Encerrando, queremos lembrar as
você consegue fazer melhor você vai marido também não vai mais ver o palavras de Carvalho (2009, p. 13)
conseguir vamos fazer de novo tem filho, eles precisam do referencial que, citando Bourdieu, diz que a
que estimular a criança a ser mais masculino, menina também precisa problemática de gênero afeta homens
caprichosa e organizada, mas não, de um referencial masculino [...] a e mulheres de variadas formas, de
eu fazer um painel lindo ali fora e firmeza de um pai às vezes pegar no acordo com “classe, raça/etnia,
não foi eles que fizeram foi eu que colo eu pego no colo eu abraço eu sexualidade e idade, mas implica
fiz tudo pra quê? Que sentido tem beijo uma coisa que um pai podia ter subordinação e desvantagem para as
pra criança [...]? feito, mas tantas crianças que não mulheres e privilégios para os ho-
tem um pai pra pegar no colo, eu faço
mens, embora se reconheça que eles
questão às vezes da afetividade eu
Afirmou, ainda, que ouvia, fre- também são prisioneiros e vítimas das
sou muito sensível sou uma pessoa
quentemente, por parte das pro- representações dominantes.”
eu choro fácil eu sou um homem di-
fessoras, que não se preocupava ferente a minha mulher fala pra mim
em enfeitar os cartazes porque era você chora mais que eu [...]. É preciso relembrar que o femi-
homem e homem não costumava dar nismo configura novas identidades,
atenção a esse tipo de coisa. Durante É importante observar que, quan- tanto feminina quanto masculina.
as entrevistas, a professora também do o professor menciona as carac- Nesta perspectiva, trabalhar para que
mencionou a prática pedagógica do terísticas de um pai para explicar as relações sociais de gênero desde a
professor nessa mesma perspectiva sua atuação, ele inicia falando da Educação Infantil sejam pautadas no
de que ele não se importava com firmeza e depois da afetividade, res- respeito, na ideia de que o/a outro/a
alguns detalhes que são importantes saltando que é um homem diferente, é sujeito de direitos é essencial para
para as mulheres, sempre reafirman- sensível e que costuma chorar, ou que se forme cidadãos que compre-
do estereótipos da feminilidade e seja, características que não costu- endem e respeitam as diferenças.
da masculinidade, dizendo que “Eu mam ser atribuídas à masculinidade Concordando com Sousa (in
acho que as mulheres ficam mais hegemônica. Ser um homem diferen- Brabo, 2009), a escola trabalha na
atrás de flu-flu sabe enfeitando mais te nesse contexto onde a maioria é de perspectiva do “mito da igualdade”,
aquela coisa toda, mas ele já vai, mas mulheres pode significar a tentativa a identidade feminina e a masculina
a mulherada é um pouco mais tato e de conquistar um espaço que não são assumidas como categorias na-
homem, é um pouco mais oralidade seria nem do macho tradicional e turais que explicam as diferenças de
e leitura [...]”. nem da mulher, mas intermediário comportamento e interesses.
Outro aspecto a ser ressaltado a dos dois. Não os concebendo como ca-
respeito da prática pedagógica do tegorias culturais, que podem ser
professor foi que, nas entrevistas, Considerações finais modificadas, não promovem mu-
tanto a diretora quanto a atendente danças. Assim, conforme a autora e
comentaram que muitas mães pe- As constatações a respeito das o que temos constatado em nossas
diam para colocar seus filhos e filhas relações sociais de gênero nessa pesquisas, é que “desde os três
na turma do professor naqueles casos escola trazidas a debate permitem anos, as crianças têm consciência do
em que estavam com problemas questionamentos que levem, tanto papel cultural que lhes corresponde
com os maridos, ou separadas, para o professor quanto a professora, a segundo o sexo”, e a escola continua
que o professor substituísse a figura repensar sobre suas práticas, bus- trabalhando no sentido de manter
paterna. cando não reforçar os estereótipos essa cultura que, como vimos, discri- 153
Para constatar se o professor existentes, porque, como afirma mina mulheres e homens; e o círculo
também se sentia como substituto da Finco (2008, p. 261), vicioso da desigualdade continua.

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