Você está na página 1de 246

Vermelha

A ilha
Sob o domínio delas
Vermelha A ilha
Sob o domínio delas

1ª Edição Janeiro de 2024

®
Alessandro Almeida
E D I T O R A
IMPÉRIO CRISTÃO
Copyright © 2023 por Editora Império Cristão LTDA.
Todos os direitos reservados.
Nenhuma parte deste livro poderá ser reproduzida ou transmitida de qualquer forma ou por quaisquer
meios, eletrônicos ou mecânicos, incluindo fotocópias, gravação ou qualquer sistema de armazenamento e
recuperação de informações, sem permissão prévia do escritor ou da editora de forma escrita ou documento
digital autenticado.

Diretora Executiva: Jaqueline Massei


Todas as interpretações textuais e
Coordenação Editorial: Lívia Carolina Sena
Revisão Ortográfica: F. Tales Massei / LTLanguage- ideias teológicas neste livro é de
Tool/FRM- Suplementar responsabilidade do autor e não
Diagramação: F. Tales Massei necessariamente refletem o cará-
Produção Editorial: Setor de supervisão EIC
Capa: Setor de designer EIC
ter doutrinário da
Imagens: Vetorizar.ia/imagens © edit: PowerPoint (EDITORA IMPÉRIO CRISTÃO)
Tradução: F. Tales Massei © 2023
Créditos da Imagem da Capa: © Vetoriza.ia/imagens/ilustration Todas as referências Bíblicas usa-
Publicação: Editora Império Cristão/ Publisher das neste livro são da tradução livre
Impressão e acabamento: Gráfica EIC / Jundiaí-SP da versão KJA ou ARA, exceto as
que contem indicações da fonte.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP Brasil)

A586a Almeida, Alessandro


A Ilha Vermelha: sob o domínio delas. – 1ª ed. – Jundiaí-SP:
Editora Império Cristão, Janeiro de 2024.

246 p.; Tamanho: 14x21 cm.


ISBN: 978-65-981122-9-5
CDU: 82.3/791.42 | CDD: 823.08

o imperiocristao.com.br Índice para catálogo Sistemático


Editora Império Cristão 1. Ficção.
@editora_imperiocristao 2. Aventura em alto mar.
Editora Império Cristão LTDA 3. Narrativa.
CNPJ: 49.153.076/0001-46 4. Literatura.
Email: contato@imperiocristao.com.br
Contatos: (11) 91184-5727 – (11) 94202-1709 I. Título.
CEP: 13212-562 – Jundiaí-SP

do Livro ®
Register of (ISBN)
International Standard Book Number E D I T O R A
IMPÉRIO CRISTÃO
Dedicatória
Este livro é dedicado, em reconhecimento e gratidão, a Deus e
a minha família.
Índice
INTRODUÇÃO ....................................................................................... 11

CAPÍTULO – I
FIM DA MISSÃO.................................................................................... 14

CAPÍTULO – II
A CARTA .............................................................................................. 24

CAPÍTULO – III
A FUGA ................................................................................................. 33

CAPÍTULO – IV
GARGANTA GELADA ......................................................................... 45

CAPÍTULO – V
A ILHA VERMELHA ............................................................................. 53
CAPÍTULO – VI
O CONTATO .........................................................................................63

CAPÍTULO – VII
QUEM SÃO ELAS? ................................................................................ 77

CAPÍTULO – VIII
O CULTO ............................................................................................... 87

CAPÍTULO – IX
A REUNIÃO ..........................................................................................101

CAPÍTULO – X
A SABOTAGEM .................................................................................... 111

CAPÍTULO – XI
PRISIONEIROS.....................................................................................119

CAPÍTULO – XII
O RITUAL ............................................................................................ 127

CAPÍTULO – XIII
O SACRIFÍCIO .................................................................................... 141

CAPÍTULO – XIV
O SEGREDO ........................................................................................ 152

CAPÍTULO – XV
A RIVAL ............................................................................................... 165
CAPÍTULO – XVI
A OFERENDA ...................................................................................... 172

CAPÍTULO – XVII
PLANO DE FUGA ................................................................................ 178

CAPÍTULO – XVIII
A CARAVELA ......................................................................................194

CAPÍTULO – XIX
O SEPULTAMENTO........................................................................... 200

CAPÍTULO – XX
A TRAIÇÃO ........................................................................................ 208

CAPÍTULO – XXI
O JULGAMENTO ............................................................................... 220

CAPÍTULO – XXII
A REVANCHE .................................................................................... 229
Introdução

I
maginem um lugar sob o domínio exclusivo de belas
mulheres. Essa história nos traz uma das perspectivas
possíveis para a reflexão do leitor, abordando temas
como empoderamento feminino, aborto, implicações
do fanatismo religioso e homossexualidade.
Essa história é contextualizada no século XVIII, época em
que as grandes nações europeias disputavam entre si, numa corrida
desenfreada pela descoberta das últimas ilhas remanescentes do
planeta.
Após ser expulso da esquadra de quinze navios do capitão in-
glês James Cook, o capitão Isaac Turner, o conhecido Lobo dos Ma-
res e seus homens, decidiram mudar a rota para viverem arredios
pelos mares vivendo de pirataria, após descobrirem que estavam
sentenciados à prisão perpétua.

11
A Ilha Vermelha

No caminho de volta à Inglaterra, encontraram uma ilha vul-


cânica misteriosa em meio ao continente gelado da Antártida, atra-
vés de uma abertura no grande paredão das geleiras, onde habita-
vam belas mulheres ruivas e homens debilitados.
Em meio a essa descoberta fascinante, conheceram os prazeres
e os horrores da cultura local envolvendo práticas de culto erótico,
sacrifícios humanos, aborto de crianças e penas brutais para aque-
les que ousassem trair a confiança da matriarca.
Toda a história se desenvolve em acontecimentos frenéticos e
empolgantes, com momentos perturbadores e psicodélicos que vão
prender o leitor, a cada capítulo, numa expectativa ansiosa para
conhecer o próximo passo dessa história emocionante e envol-
vente.

Boa leitura!

12
CAPÍTULO – I

Fim da missão

E
do Sul.
ra o ano de 1771. Naquele ano, o capitão inglês James Cook
reclamava o território australiano para a Coroa Britânica du-
rante as Grandes Navegações, batizando-o de Nova Gales

Era o tempo em que as expedições marítimas em busca de no-


vas terras era uma febre competitiva entre as principais nações eu-
ropeias. O mito do “Continente Austral”, carregado de riquezas na-
turais, fauna e flora exóticas, envolto aos mistérios de habitantes
bárbaros, estimulavam o espírito aventureiro dos navegadores.
Eu faço parte da esquadra do capitão James Cook, junto à tri-
pulação da nau Leviatã do capitão Isaac Turner, o destemido Lobo
dos Mares, distintamente chamado de capitão Lobo.
O Lobo era homem de confiança do capitão Cook até o dia em
que descobriram nos porões de nossa nau, pepitas de ouro escon-
didas em sacos de carvão utilizados nas lareiras do fogão. O ouro

14
CAPÍTULO - 1 |
Fim da Missão

era parte das pepitas que haviam sido extraídas das terras das Ín-
dias Orientais em uma expedição anterior à descoberta das terras
australianas.
Não por acaso, mas fruto do conchavo do auxiliar de cozinha
do capitão Isaac, que na verdade, era o olheiro do capitão Cook em
nossa embarcação, fato esse que só iríamos descobrir tempos mais
tarde.
O capitão Cook é um homem astuto e estrategista, daqueles
que desconfia até de sua própria sombra. Ele tinha espiões em cada
uma das quinze embarcações que fazem parte de sua esquadra ex-
pedicionária, dentre caravelas, naus e escunas, assim como em to-
dos os lugares que têm algum tipo de vínculo. Ele deixa ali um de
seus homens de confiança para atuarem como a extensão de seus
olhos e ouvidos.
Já havia se passado mais de dois anos em que estávamos nave-
gando junto à expedição. De mão das informações necessárias, o
capitão Cook dissimulou a realização de uma inspeção naval em
todas as embarcações de sua esquadra, foi quando seus homens
acharam as pepitas de ouro bruto no porão da nossa nau, escondi-
dos em sacos de carvão.
Estranhamente, os homens foram diretos nos sacos onde esta-
vam as pepitas, como quem já tinham alguma informação.
Com esse flagrante inusitado, o capitão Cook expulsou o capi-
tão Isaac de sua esquadra. O Lobo do Mar assumiu toda a respon-
sabilidade por seus homens, embora tendo ideia de quem teria feito
aquilo. O Lobo era homem de valor; um comandante justo, que dava
a vida por sua tripulação, e naquela ocasião, não quis entregar o
verdadeiro larápio sem primeiro saber as suas intenções.
O capitão Cook ainda determinou ao capitão Lobo que vol-
tasse imediatamente à Inglaterra com os homens que desejassem

15
A Ilha Vermelha

acompanhá-lo, entregando-lhe uma carta selada com o seu próprio


anel, a fim de que o capitão Isaac entregasse à Corte quando che-
gasse em solo inglês.
Dos noventa homens que compunham a tripulação da nau do
comandante Lobo, apenas doze permaneceram com a gente, dentre
eles, a contragosto do capitão Lobo e dos demais homens, o espião
do capitão Cook. Era o auxiliar de cozinha; um sujeito gordo, ca-
reca, bochechudo, infarento e dissimulado chamado Theo Patel,
apelidado de Pombo, pois ao olharmos para ele, era a primeira ima-
gem que vinha à nossa mente.
O Pombo era o responsável pelo cuidado, envio e recepção dos
pombos correios da embarcação para a comunicação direta com o
capitão Cook. Era um sujeito irlandês e foi insistentemente indi-
cado pelo próprio capitão Cook para auxiliar o Toby Martin, mais
conhecido por Caranguejo, nos afazeres da cozinha da nossa em-
barcação. Para tanto, o capitão Cook alegou ser ele muito bom com
o manuseio de pombos correios para a troca de comunicação entre
os navios da esquadra.
Todos os mensageiros das quinze embarcações da esquadra fo-
ram recrutados especialmente pelo capitão Cook, para garantir o
seu controle e vigilância sobre toda a esquadra.
O resto da tripulação do Leviatã achou melhor não voltar com
o capitão Isaac, temerosos do que lhes aguardavam na Inglaterra
com aquela misteriosa carta selada. Os que se recusaram a vir co-
nosco, embarcaram distribuídos entre os outros quatorze navios
da esquadra.
Ora, não era por menos o temor daqueles homens. Todos sa-
biam dos rumores do que havia acontecido ao capitão Mason
Ward, jogado ao calabouço da guarda real em Londres até a sua
morte, depois de ter sido acusado de ter passado informações das

16
CAPÍTULO - 1 |
Fim da Missão

rotas marítimas que dava acesso à Nova Zelândia aos navegadores


franceses, e recém descobertas pelo capitão Cook.
Naquele tempo, já era comum o assédio dos navegadores das
nações rivais para capitular espiões entre as tripulações dos outros
países, a fim de interferir nas descobertas uns dos outros, para se
anteciparem no batismo das novas terras.
Embora temeroso, eu preferi não trair a amizade do Isaac, pois
éramos amigos de longas datas.
Tomando o caminho de volta, decidimos voltar atravessando
o Oceano Índico em direção às recém descobertas ilhas Kerguelas
pelos franceses, a fim de contemplar aquela ilha no extremo sul,
próximo ao continente gelado da Antártida, para depois irmos em
direção ao continente africano e costear o Cabo da Boa Esperança,
para tomar o caminho direto à Inglaterra através do Atlântico.
O capitão Isaac era um homem aventureiro e destemido, filho
de mãe francesa. A Claudete Bennet, era uma bela mulher que se
casou com um inglês viajante caixeiro, comprador de especiarias
orientais para revender em toda Grã-Bretanha.
Em uma dessas viagens, Harry Turner conheceu a bela Bennet,
que vendia frutas no mercado central de Paris e não retornou à In-
glaterra enquanto não a levou consigo, ao arrepio da vontade de
seus pais.
O Isaac era o terceiro filho de um total de dois homens e cinco
mulheres. Logo na infância, já demonstrava o mesmo espírito aven-
tureiro de seu pai. Era vislumbrado com as grandes embarcações
que viajavam ao redor do mundo em busca de novas descobertas e
muito cedo, começou a embarcar em viagens pelo Mediterrâneo em
caravelas acompanhando o seu pai nas viagens de comércio.
Aos vinte e cinco anos, após juntar suas economias traba-
lhando com o seu pai no comércio de especiarias, o que fazia por

17
A Ilha Vermelha

mera fonte de renda, comprou a sua primeira nau baleeira de um


velho português, denominada de Costa Azul, a qual rebatizou de
Leviatã.
Dali em diante passou a trabalhar no ramo da pesca de baleias,
mas o que ele queria mesmo era participar das grandes navegações
em busca das terras misteriosas, até que conseguiu engajar a sua
nau na esquadra expedicionária de exploração de além mar do ca-
pitão Cook, vindo logo a ser — por seu destacado espírito aventu-
reiro e de intrépido valor — homem de confiança do comandante
da esquadra.
Eu e o Isaac éramos amigos desde a infância quando moramos
próximos na rua Victória, no subúrbio de Londres. Meu pai tam-
bém era comerciante de especiarias e revendia os produtos trazidos
pelo pai do Isaac, cameloando de porta em porta.
Meu pai era um sujeito excêntrico, com muitas habilidades
persuasivas. Usava muito os textos das Escrituras Sagradas, a qual
não lhe deixava faltar entre seus objetos pessoais de trabalho, e
sempre que conveniente usava passagens bíblicas para justificar a
necessidade de seus clientes em adquirir determinados produtos.
Certa ocasião — dentre as histórias que meu pai Charles Scott
me contava — ele disse ao cliente que dracmas eram símbolo de
prosperidade, que possuí-las em casa garantiria uma vida próspera
no futuro, pois atraia bons negócios, fazendo alusão a parábola das
dracmas perdidas que Jesus Cristo contou nas Escrituras, atribu-
indo aos souvenirs orientais, um ar místico e portanto, desejável.
Com essa tática, ele vendia seus produtos como batata.
A minha longa amizade com o Isaac, além de ser de tenra idade,
tínhamos muito em comum. Tive um relacionamento com a sua
irmã Beth, o que estreitava ainda mais a nossa amizade. Éramos vi-
zinhos; nossos pais eram parceiros no comércio de especiarias e

18
CAPÍTULO - 1 |
Fim da Missão

tecidos orientais. Por algum tempo, durante a minha adolescência,


trabalhamos juntos no comércio para os nossos pais.
Assim como os pais do Isaac, os meus também eram protestan-
tes. A minha mãe era holandesa e de tempos em tempos eu passava
temporadas com os meus avós maternos na Holanda, de onde
aprendi a falar holandês fluentemente, apesar de ter nascido na In-
glaterra. Além disso, compartilhamos o espírito aventureiro. Eu,
porém, mais voltado à exploração da vida terrena, Isaac, dos mares.
Devido às minhas constantes ideias, desde a minha pré-adoles-
cência, muitas delas esdrúxulas demais para a época, eu era cha-
mado de louco por nossos amigos da escola.
O Isaac, contudo, conseguia ver na minha curiosidade fantasi-
osa pelas coisas da vida, uma criatividade fora do comum e uma
fonte de conhecimento instigante. Ele me apelidou de Sofista, de-
vido eu ter respostas para quase tudo, segundo ele.
Tomamos caminhos diferentes na fase adulta. Enquanto Isaac
se dedicava ao mar, tendo a sua nau como a extensão de sua própria
alma, eu me aventurava nos livros da biblioteca pública de Londres,
para compensar a falta de condições de fazer uma faculdade.
Li, de tudo um pouco, sempre sonhando em um dia ser um re-
nomado cientista. Estudei, desde Geologia, Teologia, Filosofia, Na-
turalismo e Astrologia. A cada fantasia, devorava livros e praticava
os meus conhecimentos nas necessidades das pessoas que me da-
vam crédito, apesar de não serem tantas.
Foi enxergando essa fonte diversificada de conhecimento em
mim que fez o Lobo do Mar me convidar insistentemente para
acompanhá-lo na expedição do capitão James Cook, convencendo-
me das possibilidades de fazer parte das novas descobertas do ad-
mirável mundo novo.

19
A Ilha Vermelha

Meus pais haviam morrido cedo logo depois dos meus avós da
Holanda. O meu relacionamento com a Shofie, irmã mais nova do
Isaac, já havia acabado há algum tempo. Era um momento difícil da
minha vida. Estava largado pelas ruas de Londres, sem dinheiro e
sem perspectiva.
Enfim, não havendo mais nada que me segurasse na Inglaterra
ou me levasse à Holanda, engajei na tribulação do Leviatã, mas não
sem antes ponderar ao Lobo: — Meu caro amigo, eu não sei nada
de navegação! Em que eu poderia lhe ser útil nessa viagem?
— Você será o meu imediato. E quanto aos conhecimentos
náuticos, não se preocupe, você aprenderá antes que passem os en-
joos. — O Isaac me falou sorrindo e em tom de entusiasmo.
Era fevereiro de 1769. Aquele convite realmente mexeu com
as minhas fantasias mais abstratas, imaginando a infinidade de no-
vas experiências que eu poderia vivenciar, o que restou para mim
irrecusável.
Voltei, enfim, a ter um novo propósito na minha vida.

De pronto, fui preparar os meus trapos. Separei meus poucos


livros, além das minhas anotações sobre Astrologia, Geologia e te-
orias sobre o mundo natural, que pensei pudessem ser úteis. Um
telescópio antigo trazido das índias, adquirido pelo meu pai; uma
bússola chinesa, além de alguns utensílios e meu inseparável ca-
derno de anotações.
Pois bem, embarquei no Leviatã, uma nau totalmente provida
para cassar os mais gigantescos cetáceos. Tinha arpão, flechas, ca-
nhões, balas explosivas e outras armas.
Tinha na tripulação um experiente arpoador chamado Jacob
Lee, conhecido por Pirata, de uma destreza extraordinária. Era o
tripulante mais velho da tripulação, com 59 anos de idade;

20
CAPÍTULO - 1 |
Fim da Missão

corpulento e com um metro e oitenta de altura, rosto grave, de ca-


belos e barbas longas, parecia aqueles profetas sisudos e rabugento;
era caolho devido a um acidente com anzol numa de suas pescas,
por isso, usava tapa-olho como o dos piratas, motivo do seu ape-
lido.
O Leviatã tinha velas azuis formidáveis para o impulso dos
ventos, mas nas intempéries, contava com um conjunto de doze
grandes remos para o esforço manual dos tripulantes, com seis de
cada lado, justapostos com engrenagens modernas que potenciali-
zava a força das remadas.
Seguimos em meio aquela esquadra deslumbrante de naus, ca-
ravelas e escunas, comandadas à frente pela pomposa nau HM Bark
Endeavour do capitão James Cook.
Era por volta das 6h da manhã do dia três de fevereiro de 1769
quando a imagem do continente começou a desaparecer no hori-
zonte. Já havíamos navegado por quase duas horas, foi então que
me surpreendi com a minha falta de enjoo, pois imaginei que na
primeira hora do balanço do mar eu iria começar a provocar as vís-
ceras, mas não! Estava tão bem como um experiente pescador.
“Como pode ser isso?”
Buscando razão para a rápida adaptação do meu organismo,
lembrei-me que desde a minha adolescência dormia em um tucum
forrado de panos para o tornar mais confortável, que meu pai com-
prou de um comerciante que o trouxe dos povos das Américas.
Logo me apaixonei por esse tipo de cama flutuante, de modo que
adaptei um dispositivo de balanço de peso e contrapeso a partir de
um projeto de pêndulo do Sir Isaac Newton que vi num livro de
matemática, de maneira que, ao acioná-lo, ele balançava levemente
o tucum sem parar, movido por seu próprio centro gravitacional.

21
A Ilha Vermelha

E assim, desde muito jovem, só dormia embalado pelo meu in-


vento magnífico. Não pode ser outro o motivo de eu não estar sen-
tindo os efeitos da maré. Não tenho em mente nenhuma outra jus-
tificativa… — Pensei.
Enfim, só se via mar e céu para qualquer direção que se olhasse.
Senti um temor entusiasmado. Nas minhas viagens pelo Mediterrâ-
neo, a terra nunca desapareceu por inteiro. Agora, a experiência seria
fascinante.

22
23
CAPÍTULO – II

A Carta

N o caminho de volta à Inglaterra, depois de quase três anos


fazendo parte da esquadra do capitão Cook, com a tripu-
lação ainda suspensa pelos últimos acontecimentos, certa
noite, no meio do Oceano Índico, depois do entardecer de céu ru-
bro com nuvens pesadas, nos vimos envolto a uma forte tempes-
tade e mar agitado, cujas ondas lavavam o convés a ponto de ser
necessário fechar todas as escotilhas para não encharcar a nau.
—Guardar velas! —Bradou o capitão Lobo.
Prosseguimos a nossa viagem açoitados por fortes ventos e
grandes ondas, com os doze homens remando intensamente e o ca-
pitão conduzindo o timoneiro, a fim de manter uma certa veloci-
dade para garantir a estabilidade da embarcação.

24
CAPÍTULO - 2 |
A Carta

Certa vez o capitão me falou que a estabilidade da embarcação


depende da sua constante movimentação para distribuir o impacto
das ondas e compensar as forças contrárias com a força cinética.
Após estabilizado o curso e estabelecida a velocidade ideal, de
acordo com a força contrária da maré, o Lobo deixou apenas seis
homens nos remos para revezamento, evitando assim a exaustão da
tripulação.
Ele me chamou discretamente ao passadiço, no que me seguiu
o Pombo, o irlandês auxiliar de cozinha e responsável pelos pom-
bos correios; aquele da confiança do capitão Cook.
O Pombo sempre estava atento aos mais discretos gestos do
capitão.
—Pombo, quero uma conversa a sós com o Sofista. —Advertiu
o comandante;
—Sim meu capitão, eu só quero ficar disponível, caso o senhor
precise de algo. —Com essa resposta ele se retirou vagarosamente;
Lobo —Não precisa! Qualquer coisa eu lhe chamo.
O capitão fechou a porta sobre os olhares contrariados do
Pombo, que pela penúria na parte de baixo da porta, era possível
perceber que ele continuava por perto.
O Lobo pediu que eu sentasse ao birô e colocou duas xícaras
e a garrafa de chá.
—Merda! não tem mais chá.
—Eu vou lá embaixo vê se tem na cozinha. —Antecipei-me.
—Deixa que eu peço ao Pombo.
—Não capitão! Vou rapidinho.

25
A Ilha Vermelha

Abri a porta rapidamente e assustei o Pombo que disfarçou a


sua posição curiosa próximo a porta para ouvir a conversa. Fiz-me
que não havia percebido.
Dirigi-me à cozinha que fica ao lado do refeitório, no compar-
timento central do porão no andar de baixo, entre os camarotes à
proa e o paiol à popa.
Entendi que a cozinha ficava ao centro para sentir menos o
efeito de gangorra produzido pelo balançar das ondas, devido ao
grande número de utensílios.
Estava com pouca luz, apenas o fraco cintilar de uma luz de
vela ao fundo e um total silêncio. Fui entrando, achando que o Toby
Martin, conhecido por Caranguejo —nosso cozinheiro —não esti-
vesse lá, o que era bastante estranho, já que o pessimismo do Toby
era tão grande que ele preferia não ver o mar, porque, dizia ele: “faz
pesar a minha mão no sal da comida.” Ele era muito meticuloso no
que fazia.
Ao me aproximar, percebi a silhueta de uma pessoa magra
como que sentada sobre a mesa próximo ao fogão, relaxada, com a
cabeça para o alto como quem olhava para o teto, apoiado pelas
mãos sobre a mesa atrás das costas, e como o Caranguejo é gordo,
percebi que não era ele e perguntei: —Você viu o Caranguejo?
Como um tropel de cavalos, houve um espanto dos que esta-
vam ali! O Caranguejo se levantou arrastando a cadeira, derru-
bando-a para trás. Agitado, balbuciava palavras incompreensíveis.
Vi que quem estava sobre a mesa era o jovem Max, o Marujo, que
pulou ajeitando as calças.
Virei o rosto para ou outro lado imediatamente e falei: —Fi-
quem tranquilos, eu só vim saber se tem chá quente para abastecer
a garrafa do capitão?

26
CAPÍTULO - 2 |
A Carta

Caranguejo —Tem sim, senhor! Eu só estava consertando a


calça do Marujo, dando uns pontos na braguilha que estava des-
costurada.
—Só abasteça a garrafa, Caranguejo. O que você está fazendo
não me diz respeito. Depois volte para os seus afazeres.
Caranguejo —Claro, senhor!
O Marujo calado estava, calado ficou, evitando-me olhar nos
olhos.
Caranguejo —Se precisar de mais senhor, é só chamar que eu
levo ao passadiço.
—Você vai mesmo se atrever a ver o mar em plena tempestade,
Caranguejo? —Falei com tom irônico e com um sorriso amarelo no
rosto.
—Deus me livre, senhor, o senhor tem razão!
Já havia percebido que o Caranguejo tinha um jeito afemi-
nado, mas não imaginava que ele gostava mesmo de homens. De
certa forma, ele pode ser o mais feliz dentre nós, afinal, por suas
preferências sexuais, ele tem um harém à sua volta, enquanto a
gente, estamos nessa castidade de três anos. —Pensei rindo por
dentro.
Voltei para o passadiço sem comentar nada, até porque, não
é da minha conta. Nas terras da Rainha pode ser crime ser pede-
rasta, mas enquanto estávamos em alto mar, as leis eram as do Le-
viatã e o capitão era o único juiz e não cabe a mim ser o acusador.
Lembrei-me, porém, que o Caranguejo sempre dispensava um
tratamento especial ao Marujo. Sempre o melhor pedaço do bacon,
o pedaço de bolo maior e comumente, o Marujo ficava para almoçar
depois dos demais sob a desculpa de ficar de vigília enquanto os
outros comiam. Muito provavelmente o Caranguejo guardava-lhe

27
A Ilha Vermelha

o melhor pedaço. Tudo agora se encaixava. São as peripécias da fi-


siologia humana.
Ao me aproximar do passadiço, percebi que o Pombo continu-
ava aos arredores, disfarçando contemplar a tempestade. Entrei e
fechei a porta sem lhe dar muita atenção.
Pus a garrafa na mesa e adverti o capitão, sussurrando com
mímicas que o Pombo estava lá fora curioso sobre o que estávamos
fazendo. O capitão assentiu com a cabeça silenciosamente e pediu
que eu sentasse, servindo-me uma xícara de chá, enquanto puxava
a sua cadeira e sentava-se ao meu lado.
—Está vendo esse selo? —Perguntou-me o Lobo mostrando-
me uma carta.
Olhei e vi um envelope com o selo do brasão do capitão Cook
violado. Em seguida, o Lobo tirou uma carta de dentro e me disse:
—Eu abri a carta que o capitão James Cook me deu para levar ao
Rei.
—Por que você fez isso, camarada? Isso pode ser a condena-
ção à morte de todos nós! —Exclamei apavorado, enquanto éramos
sacudidos pelo aumento da tempestade e da fúria do mar.
Lobo —Você não entendeu. Já fomos condenados a sentença
pior que a morte. A mim a prisão perpétua, para a qual eu prefiro a
morte. E para vocês outros que decidiram me acompanhar, prisão
de trinta anos, e como a gente bem sabe, pelo prestígio que o Cook
tem com a Coroa, eles não costumam contrariar o veredicto que o
Cook profere dentro da sua jurisdição marítima.
—Mas o que você pretende fazer?
—Amanhã, ao amanhecer, vou reunir a tripulação e anunciar
que não retornaremos à Inglaterra, mas vamos vaguear por esses
mares, pirateando, se for necessário, para a nossa sobrevivência,

28
CAPÍTULO - 2 |
A Carta

mas me recuso a terminar a minha vida enclausurado nos porões de


Londres.
—Vamos viver o resto da vida fugitivos. Eles vão nos caçar até
os confins da terra! —Afirmei nervoso.
—Que seja!
Fiquei pensando como seria a minha vida dali em diante. De
certa forma o capitão tinha razão. Ir para a Inglaterra era o mesmo
que decidir ir à prisão.
Quando será que eu voltaria a ver a minha terra natal nova-
mente. Decerto, além de alguns pertences que deixei na velha casa
de meus pais falecidos, não havia mais nada que me prendesse
aquele país.
A casa de meus pais era bastante simples e mal localizada, sem
muito valor comercial. Não tinha bens consideráveis. Após a morte
dos meus pais não me restou nada de material que os trouxesse à
memória, vez que meu pai, como vendedor de quinquilharias, ne-
gociava qualquer coisa e não se apegava a nada, e quanto mais an-
tigo para agregar valor, eram os primeiros objetos a serem vendi-
dos.
No dia seguinte, com a maré mais tranquila e o Sol despon-
tando no horizonte, trazendo ares de renovação, senti uma estra-
nha felicidade nostálgica, apesar da notícia da sentença de prisão
para todos nós. Talvez já tivesse me acostumado com a ideia aven-
tureira de partir pelos mares sem destino certo, lugar que me adap-
tei melhor do que imaginava.
Foi por volta das seis horas da manhã, antes mesmo do desje-
jum, que o Lobo convocou toda a tripulação com sons cadenciais
de convocação geral de seu apito náutico. Pelo som da convocação,
todos se reuniram no convés enquanto o capitão permanecia na sa-
cada superior externa do tijupá.

29
A Ilha Vermelha

Depois que todos já estavam presentes, disse o Lobo em voz


grave e solene, mostrando a carta do capitão Cook aberta em sua
mão: — Vamos voltar para morrer nas terras do Rei Jorge, senho-
res? Vamos voltar para passar o resto de nossas vidas nos calabou-
ços britânicos? Vejam o que aquele miserável escreveu nesta carta!
Ele já decretou nossas sentenças…!
Após esse introito, vi a expressão facial do Pombo absorta e
pálida de susto.
O capitão continuou, passando agora a ler abreviadamente a
carta —- “[…] Vossa Majestade, vida longa! Este homem portador da presente
carta, juntamente com os homens que lhe acompanham, traíram a vossa coroa,
ao se apropriarem das riquezas de Vossa Majestade extraídas sob a forma de
ouro bruto das terras da coroa além-mar, nas Índias Orientais […]. Para Tur-
ner, por tão desprezível ato e traição da consideração a si confiada, eu propo-
nho prisão perpétua sob trabalhos forçados e trinta anos de prisão aos homens
que decidiram acompanhá-lo em fidelidade cúmplice de seu crime, confessando
assim, as suas culpas em tão desprezível ato”.
—Se formos para a Inglaterra, considerem-se mortos-vivos a
caminho da cova que jaz preparada para cada um de vós! Ou pen-
sam vocês que resistirão a trinta anos de calabouço fétido? Aquele
ingrato sequer considerou os anos de dedicação e fidelidade que
dedicamos a ele! —Prosseguiu o capitão.
—Eu não quero morrer naquela terra maldita! Muito menos
beber da lama daquelas pocilgas pelo resto da minha vida! —Gri-
tou do convés o auxiliar de bordo Jack Clarke.
Todos no navio romperam em gargalhadas e com frases afir-
mativas: —Eu também não…! Nem eu…! Nunca…! Jamais…!
—Mas capitão, se desobedecermos às ordens do capitão
Cook não será pior? Não será o caso de sentença de morte para to-
dos nós? —Censurou o Pombo, absorto.

30
CAPÍTULO - 2 |
A Carta

Lobo —A morte é melhor que a falta de liberdade meu amigo!


Ainda que a minha pena proposta fosse prisão domiciliar rodeado
de lindas mulheres, eu não me submeteria, pois não sou passarinho
para ser aprisionado sem crime.
Com exceção do Pombo, todos concordaram unânimes, gri-
tando eufóricos, puxados pelo Thomas Green, o Timoneiro: —Li-
berdade! liberdade! liberdade!...
Capitão, por tudo isso eu me arrependo de ter vindo em vossa
companhia, o que fiz apenas por minha fiel obediência ao senhor,
mas minha obediência não vai além da minha morte, pois é isso que
vos espera no destino mais próximo. —Exclamou o Pombo deses-
perado, quase arrancando os cabelos da cabeça.
Lobo —Lamento meu amigo, agora é tarde! A não ser que você
queira voltar a nado de volta à esquadra do capitão Cook ou no
dorso de um de seus pombos correios? —Todos os demais tripu-
lantes romperam em gargalhadas…
Nesse momento olhei para a gaiola dos pombos que ficava pen-
durada próximo a sacada do tijupá e vi que haviam três pombos.
Lobo —Eu proponho, senhores, que a partir de hoje, o Leviatã
seja a nossa pequena nação vagueante nos mares infinitos, da qual,
não arredaremos mais os pés, a não ser para as conquistas e desco-
bertas que virão! Seremos os piratas mais temidos dos grandes ma-
res e o assombro das esquadras de mercadores! Seremos donos de
si, pois nenhum homem terá mais autoridade sobre a vida de cada
um de nós! Se carecermos de mulheres, aportaremos em cidades
para nos satisfazer por algum tempo. A natureza será nossa única
majestade e no acaso, reconheceremos nossos lordes. Quem está
comigo?!
—Somos filhos do Leviatã! Esse é o nosso único lar! Gritou
uníssona e repetidamente a turba do capitão Lobo, incluindo dessa

31
A Ilha Vermelha

vez, o dissimulado Pombo, que seguia o coro sem nenhum entusi-


asmo.
— Tudo isso merece uma comemoração! A nossa liberdade! —
Gritou o capitão.
—A nossa liberdade! —Replicaram todos.
Terminamos aquele dia nos embriagando com vinho e carne de
baleia assada.

32
CAPÍTULO – III

A Fuga
A
s ilhas Kerguelas começavam a despontar no horizonte,
turvada pelo intenso nevoeiro do frio das geleiras glaciais
do grande continente gelado. Resolvemos não nos aproxi-
mar demais, somente o suficiente para confirmar a recente desco-
berta dos franceses.
Não queríamos que as fragatas francesas nos tivessem por es-
piões ou invasores. Naquela época a rivalidade entre a França e a
Inglaterra se expandia pelos quatro cantos da Terra.
Lobo —Timoneiro, vire 45 graus a bombordo! Essa é a época
em que as cachalotes vão para os mares gelados da Antártida. Pre-
cisamos de óleo para abastecer nossas lâmpadas, gordura para sa-
bão e carne para a cozinha.
Após todo o alarido, nos reunimos para o desjejum no salão
do refeitório onde tinha uma grande mesa com vinte e dois lugares,
regada de vinho, queijo e massas. Conversamos sobre como conse-
guiríamos nossas provisões de tudo o necessário. Todos tinham
ideias para sugerir, de tal modo que o capitão interviu acalmando
os ânimos e dizendo que seria necessário uma coisa de cada vez,

33
A Ilha Vermelha

pois agora seria o momento de caçar uma baleia para nos suprir de
óleo e carne, depois pensaríamos nas outras demandas. Todos es-
tavam realmente empolgados com a ideia de viver nos mares, com
exceção do Pombo, é claro.
Na sua maioria, os homens do mar da Inglaterra daquela época
não gozavam de uma vida estável em terra. Eram irresponsáveis o
suficiente para deixarem as esposas com os filhos à própria sorte,
até o dia em que aportavam e passam mais tempo nos bordéis do
que com as famílias, indo para casa após gastarem o último centavo
com bebidas e prostitutas.
Original mente, a nau do Lobo era uma baleeira, com guincho
manual, espaço e todo o aparato necessário para manipular grandes
cetáceos. Dali em diante, o Lobo passou a reativar os equipamentos
necessários, tendo em vista que durante a expedição na esquadra
do capitão Cook, pouco se caçava, vez que estavam sempre fora das
rotas das baleias e nos abastecíamos com os víveres das colônias
inglesas.
Navegamos em mares calmos em direção ao Pólo Sul durante
todo aquele dia. Ao final da tarde, fui até a sacada do tijupá, onde o
capitão havia lido a carta pela manhã.
Observei a imensidão do mar e percebi que o clima estava es-
friando. Devemos estar nos aproximando da Antártida. Olhei para
a gaiola dos pombos e percebi que só haviam dois e não mais os três
que havia pela manhã na hora do discurso do capitão.
Após dois dias de navegação com o mar calmo e após contor-
narmos as ilhas Kerguelas em direção ao Sul, por volta das oito ho-
ras da manhã, Max, o Marujo, gritou do observatório do mastro
principal, que ficava a vinte metros de altura: —Baleia a estibordo!
Todos corremos para o convés e avistamos o que parecia uma
grande jubarte e um filhote que lhe acompanhava a cada emersão.

34
CAPÍTULO - 4 |
A Fuga

O filhote parecia ter uns cinco metros de comprimento, enquanto


a mãe, uns doze metros, pelo menos.
O Lobo falou ao Jacob Lee —nosso Arpoador —para arpear
somente o filhote, explicando que não precisávamos sacrificar uma
baleia tão grande para uma tripulação tão reduzida.
—Esse filhote vai nos garantir de carne, gordura e óleo por
pelo menos três meses. —Afirmou o capitão.
Jacob, o Arpoador, conhecido como Pirata, como já falamos no
capítulo anterior, tinha um olho só, porém, o seu único olho não
impedia a sua mira perfeita no manuseio do arpão, chegando, certa
vez, a atingir uma Cavala razantemente submersa a vinte metros
de distância.
Na primeira investida, o Pirata fisgou o filhote que nada pode
fazer, além de se estrebuchar um pouco antes de se entregar ao seu
algoz pelo cansaço. A mãe, irresignada com a captura de seu filhote,
apenas rodeou a embarcação a meia distância por algumas voltas
inúteis até se conformar com a perda do filho e seguir o seu curso.
A tripulação içou o filhote para o convés e a carnificina iniciou
imediatamente. O Cachimbinha retalhou o pobre animal antes de
matá-lo, que se retorcia sentindo fortes dores até o suspiro final.
Cachimbinha era o apelido do Charlie Cooper, o segundo mais
velho da tripulação, bem mais rabugento que o próprio Pirata. Era
careca e usava bigodes grandes e amarelados de tanto fumar ca-
chimbo —daí o motivo do seu apelido —--. Ranzinza, mas bas-
tante conhecedor dos sinais dos tempos, capaz de prever uma tem-
pestade com dois dias de antecedência só em observar a mudança
dos ventos e o cheiro da atmosfera. O Lobo não tomava qualquer
rumo antes de fazer a consulta ao velho.
Em trinta minutos o filhote de cachalote não passava de peda-
ços de carnes salgadas e gorduras passadas na prensa pelo Oliver

35
A Ilha Vermelha

Hill, para a produção de óleo, tempo suficiente para a mamãe baleia


desaparecer desamparada pelas águas frias do continente gelado.
Oliver era o nosso Auxiliar de Bordo, carinhosamente cha-
mado de Aríete, por ser um sujeito baixo e entroncado, de cabeça
achatada. Era extremamente espirituoso e se irritava fácil, mas era
uma pessoa bastante sincera. Sempre falava o que vinha à mente.
Os companheiros, sabendo que ele se irritava fácil, se divertiam me-
xendo com ele até ele sair em disparada correndo atrás do insultor,
dando voltas por todo o convés enquanto a turba gritava em garga-
lhadas.
No dia seguinte, após levantar âncoras, pois não era seguro na-
vegar a noite em meio aos icebergs, já estávamos nos preparando
para nos afastar mais para o Norte, pois aquelas águas se mostra-
vam muito traiçoeiras, repletas de blocos de gelo gigantescos, exi-
gindo redobrada atenção do Timoneiro sob as orientações do ob-
servador que se revezava entre todos no alto do mastro principal.
O Timoneiro precisava a todo o tempo ziguezaguear entre as
grandes rochas de gelo flutuantes. Porém, por ordem do capitão,
continuaríamos a costear o continente gelado, a fim de evitar as ro-
tas tradicionais das caravelas inglesas que rumavam para a recém
descoberta Nova Gales do Sul.
Nós estávamos decididos a sumir do mapa para viver como
mais um dos vários espectros das narrativas horripilantes dos na-
vegantes.
Ora, a sentença dada por Cook era lei na Grã-Bretanha, a con-
siderar pela grande admiração que o Rei Jorge III tinha pelo Sir Ja-
mes Cook —herói vivo da nação britânica —--. Traidores de tão
honrado comandante em uma missão tão nobre para aquela época,
com certeza não era visto com bons olhos.
—Vamos procurar novas terras! Vamos explorar as riquezas
do mundo novo! —Vociferava o capitão Lobo aos seus homens.

36
CAPÍTULO - 4 |
A Fuga

Todos em uníssona gritaria diziam: —As novas terras do Rei


Turner! Ao novo império de todos os tempos!
Os homens do capitão Lobo se embriagavam com qualquer
possibilidade de uma nova aventura, desde que regada de mistérios
e novidades. As histórias que circulavam entre os navegantes na-
quela época, eram de descobertas de novas terras longínquas,
cheias de habitantes estranhos, fauna e flora exuberantes, além de
riquezas.
Tudo aquilo incitava o espírito aventureiro de qualquer nave-
gador. Agora, gozavam de uma sensação de liberdade nunca expe-
rimentada. Era como se só existissem eles no mundo e fluía no pen-
samento de cada um, milhares de possibilidades fantásticas. Era
um êxtase da existência. O mundo não tinha mais limites.
De repente, o Marujo gritou mais uma vez, levando-me a pen-
sar que ele anunciava outra baleia. “Será que o Max não entendeu
o que disse o capitão? Que o filhote capturado era suficiente para
nos manter por pelo menos três meses?” —Pensei.
O segundo grito do Marujo me pareceu mais compreensível.
—Vejo uma caravela se aproximando a doze quilômetros pela
nossa popa!
A distância daquela estranha embarcação era ainda tão grande
que não conseguimos visualizar do convés.
“Teriam os franceses nos avistado quando passamos pelas
ilhas Kerguelas e agora nos perseguiam para combater contra a
nossa embarcação?”
O capitão mandou que todos carregassem os canhões e ficas-
sem a postos! Todos se dirigiram ao paiol para trazer os barris de
pólvora e as esferas de ferro fundido. —O que eu faço, capitão? —
Perguntei ao Lobo, desorientado.

37
A Ilha Vermelha

—Auxilie o Capeta no manejo do canhão! Mas fique de espada


em punho, porque após os primeiros embates de canhões, eles cos-
tumam invadir o convés.
“Meu Deus! Terei a minha primeira batalha dos mares?” —
Pensei, tomado por uma adrenalina recheada de pavor e ansiedade.
O Lobo, com a agilidade de sempre, a considerar os seus qua-
renta e seis anos, subiu ao observatório do mastro para se juntar ao
Marujo e ter uma melhor definição do que se tratava aquela embar-
cação, levando consigo a sua luneta de metal fosco.
Não mais que um minuto de observação, o capitão já descia
quase em queda livre, guiando-se pelas cordas que sustentavam o
mastro, e antes mesmo de tocar o convés, gritou ao Timoneiro: —
Virar a bombordo quarenta e cinco graus! Içar as velas extras Ca-
peta, precisamos de toda a velocidade possível!
O Capeta era como chamávamos o Jack Clarke, o marujo mais
experiente da tripulação, um sujeito de espírito aventureiro, da-
queles que topa qualquer coisa. Destemido e muito solícito, era um
dos homens mais queridos e da confiança do Lobo.
Segui o capitão que se dirigia ao passadiço para olhar os mapas
cartográficos e os instrumentos de georreferenciamento, e mais
uma vez, logo atrás de mim, nos seguia também o Pombo. Dessa
vez, ao entrarmos no passadiço, eu mesmo fechei a porta na cara do
Pombo e disse em voz autoritária que ele ficasse do lado de fora,
vendo os olhos de fúria desaparecer à medida que batia a porta.
Peguei o meu astrolábio e o quadrante, a fim de nos situarmos
no mapa e perguntei ao Lobo se a embarcação que nos seguia era
dos franceses.
—Não! É uma das caravelas do capitão Cook. Deu para reco-
nhecer o as cores das velas do infeliz.
—Tudo agora faz sentido! —Falei ao capitão de forma grave.

38
CAPÍTULO - 4 |
A Fuga

—O que?
—Diga-me capitão, qual a história do Pombo? Como você o
conheceu?
O Lobo começou a relatar que antes que o capitão Cook lhe
apresentasse aquele irlandês rabugento, ele nunca o havia visto
mais feio sobre a face da terra. Que não entendeu a sua insistência
em voltar para a Inglaterra conosco no Leviatã, enquanto alguns
dos seus melhores homens, dentre os quais alguns que ele conside-
rava amigo do peito, havia lhe deixado para trás. —Eu nunca lhe
dei maior espaço de intimidade e nem lhe dirige palavras com um
sorriso no rosto, para que ele tivesse tanto apego por mim.
—Pois bem. —Prossegui. —Foi ele quem avisou a frota do ca-
pitão Cook sobre a nossa mudança de curso e, com certeza, relatou
cada palavra do seu discurso à tripulação sobre a carta-sentença do
capitão Cook. Decerto, essa caravela vem garantir a sua e a nossa
prisão e o traslado às terras do Rei.
—Por que você acha isso? —Perguntou o Lobo, confuso.
Passei a dizer ao capitão os detalhes que me fizeram chegar a
essa conclusão. É que sempre achei estranho o comportamento do
Pombo, pois não via em suas solicitudes para com o capitão algo
voluntário ou de coração, mas havia ali um interesse escuso que de-
morei a entender, até que, ligando os pontos da sua breve história
com o Leviatã, cheguei à conclusão que ele poderia ser um espião
do capitão Cook, assim como todos os mensageiros de pombos cor-
reios em cada nau e caravela. Eram braços do capitão Cook em cada
embarcação que fazia parte de sua esquadra e usavam os pombos
correios como meio de comunicação direta.
Ora, percebi que o capitão Lobo não tinha qualquer controle
sobre os pombos correios que chegavam e partiam sob a exclusiva

39
A Ilha Vermelha

manipulação do Pombo, e quando ele achava por bem, trazia as


mensagens que recebia.
Certa vez, quando passamos pelas ilhas que o capitão Cook
denominou de Nova Zelândia, o Cook estabeleceu um posto de
guardas reais e lá, deixou um de seus mensageiros com uma gaiola
de quatro pombos correios para a sua comunicação direta.
Relatei que no final da tarde do dia do discurso do capitão
Lobo, na ocasião em que fui à sacada do tijupá e olhei para a gaiola,
vi que não haviam mais os três pombos que eu tinha seguramente
observado pela manhã, mas apenas dois pombos. Entendi que o
Pombo havia mandado mensagens ao capitão Cook com um dos
pombos, daí pensei: “Para onde o Pombo teria mandado aquele
pombo correio e com qual mensagem? Aquele pombo tomaria ou-
tro destino além da esquadra do capitão Cook? Seria aquele pombo
para enviar mensagens aos seus familiares na Irlanda? Muito im-
provável. Decerto, estaria o Pombo relatando os últimos aconteci-
mentos ao capitão Cook, traindo a confiança do Lobo. Mesmo com
esses questionamentos, preferi guardá-los comigo até que tivesse
certeza de algo, para não ser leviano. Mas agora, não tenho dúvidas
quanto a isso.
—No dia do seu discurso à tripulação sobre a sentença da
carta do capitão Cook, você mandou o Pombo enviar mensagens
pelo pombo correio para alguém?
Lobo —Não!
—Pois bem, naquele mesmo dia ele enviou um pombo correio.
Percebi no final da tarde a falta de um dos três pombos que haviam
pela manhã. —Afirmei com segurança.
O Lobo, com sangue nos olhos, mas contido e pensativo como
sempre, disse-me: —Ok Sofista, muito boa e lógica a sua observa-
ção. São coisas que não vemos de pronto, apesar de que sempre

40
CAPÍTULO - 4 |
A Fuga

estava claro aos nossos olhos, mas talvez a nossa boa-fé não permi-
tiu que eu enxergasse, mas não há dúvidas que isso faz todo o sen-
tido.
—Foi ele quem delatou o furto do ouro ao capitão Cook. Mas
vamos aguardar os acontecimentos. Só me faça mais um favor: Peça
ao Caranguejo para vir aqui. —Completou o capitão.
Desci e vi que o Timoneiro usava de toda a sua perícia para
desviar dos grandes pedaços de gelo enquanto o Marujo o guiava
pelas rotas mais seguras, com gritos constantes do observatório do
mastro, pois costeávamos perigosamente os paredões de gelo do
continente gelado, a fim de tentar despistar a caravela do capitão
Cook.
O Marujo alternava os seus olhares para a frente e para trás,
para ver a aproximação cada vez mais rápida da caravela. A cara-
vela era menor que a nossa nau e com uma maior quantidade de
velas, o que a tornava mais veloz.
—Deve ser a caravela do capitão Logan Wilson. —Disse o
Lobo da sacada do tijupá. —Ele é um dos comandantes mais peri-
tos do capitão Cook, e com certeza ele o confiaria a missão de nos
interceptar. —Prosseguiu.
De repente, o Marujo gritou para o Timoneiro, apontando para
uma grande fenda no paredão gelado. Olhei e vi como que uma gar-
ganta de um grande desfiladeiro que rachava a geleira de alto a
baixo, abrindo-lhe uma ferida exposta de rochas de gelo estriadas
em ambos os lados.
—Vire à bombordo costeando na margem esquerda do para-
dão, para não gerar arrasto na água e não denunciar a nossa rota e
assim que entrar na garganta, recolham as velas imediatamente! —
Bradou o capitão Lobo!

41
A Ilha Vermelha

—E se esse paredão fechar sobre as nossas cabeças, como


aconteceu na travessia dos egípcios no Mar Vermelho? —Falou o
sempre supersticioso Ariete, o que foi ignorado por todos, tendo
em vista a grande chance de despistar a obstinada caravela.
Habilmente, o Timoneiro em movimento de quebra de asa, di-
recionou o Leviatã para a garganta gelada, ao tempo em que nos
juntamos em força tarefa para recolher as velas o mais rápido pos-
sível.
Entrando na garganta de forma sorrateira a apenas duas nós
para evitar a tensão da água, avistamos um grande pavilhão à nossa
frente, a pelos menos cem metros na margem esquerda do paredão
de gelo, grande o suficiente para encostar o Leviatã sem compro-
meter o mastro principal.
O capitão mandou o Timoneiro encostar a nau e aos homens
que jogassem as âncoras.
Em poucos instantes tudo não passava de uma grande calma-
ria, mas contrariando a expectativa de todos, o local não parecia
tão frio, de modo que sequer nos exigiu reforçar as vestimentas. Até
o Ariete continuou sem camisa, de tão ameno que era a tempera-
tura do local.
Havia entre nós o intelectual da tripulação, Noah White, co-
nhecido por todos por Dom Quixote. O jovem Noah era filho de
família abastada, criadores de rés no Sul da Ilha inglesa.
Ingressou na faculdade de Medicina para fazer a vontade dos
pais, mas antes mesmo de concluir o curso, abandonou e fugiu para
participar das expedições do capitão Turner, que conhecera numa
enfermaria, quando o Lobo havia transfixado a mão esquerda com
um enorme anzol e precisou de uma pequena intervenção cirúrgica
para extraí-lo.

42
CAPÍTULO - 4 |
A Fuga

Naquela ocasião, o Lobo lhe contou um pouco de suas aventu-


ras no mar, e dali em diante, aquele jovem ficou fascinado e fez o
capitão prometer que o levaria na sua próxima viagem.
Ele não era feliz com a vida que levava para satisfazer a vontade
do pai. Agora, estava num caminho sem volta, pois preferiu se sub-
meter a sentença do Cook a trair seu admirável herói dos mares.
Lobo —Cachimbinha, o que você me diz do clima nesse corre-
dor de gelo?
—É realmente muito estranho meu capitão, nunca vi coisa
mais extraordinária, e olha que esse pavilhão não é tão fundo para
isolar o efeito do frio. É como se por dentro desse corredor de ge-
leiras tivesse uma fonte de calor, pois dá para sentir uma brisa
morna que corre do fundo do corredor.
—Será a porta do Inferno? —Falou o Pirata, apontando para o
corredor que se estendia mais a fundo das geleiras, porém, a nossa
visão só alcançava uma leve curva à direita logo mais a uns mil me-
tros à frente.
Dentro daquela grande garganta não tão gelada, todos pude-
ram perceber a grandiosidade daquelas geleiras, com altura de
aproximadamente uns cem metros.
Também pudemos observar que a fenda era perfeita, de alto a
baixo, variando entre cinquenta a setenta metros de largura. Estra-
nhamente, as paredes internas do corredor demonstravam um sin-
gelo derretimento, tornando as águas tranquilas no interior.
Passamos o resto do dia e noite ancorados no pavilhão da ge-
leira, tempo necessário para que a caravela do Logan passasse desper-
cebida do nosso esconderijo, apostando que eles julgariam que não
seríamos tolos o suficiente para nos arriscar a entrar em meio as ge-
leiras.

43
CAPÍTULO – IV

Garganta Gelada

F alando só o necessário, muitas vezes por mímicas, fomos


almoçar, cada um fazendo o seu prato e trazendo para o
convés, para não ficar alheio ao que se passava lá fora, foi
quando o Joseph Davis, sempre brincalhão, apelidado de Bôbo da
Corte, apontou para o prato do Pombo e sussurrou ironicamente
na roda em que estávamos eu, o Lobo, o D. Quixote e o Cachimbi-
nha: —Porque nós estamos comendo carne de baleia, até o coman-
dante, e só o Pombo está comendo frango?
A essa pergunta, antes que o Pombo falasse alguma coisa com
os olhos esbugalhados de surpresa olhando para os nossos pratos,
o Lobo se antecipou: —Até agora eu não tinha agradecido a leal-
dade do meu amigo Pombo, por não ter sido covarde como os de-
mais que nos abandonaram. Mesmo não estando conosco desde o
começo, foi leal o suficiente para não temer as incertezas do nosso
futuro na Inglaterra, mas preferiu se manter fiel a mim e ao Leviatã.
Portanto, com os meus sinceros agradecimentos, desfrute esse
prato especial de aves meu amigo Theo.

45
A Ilha Vermelha

Pombo —Obrigado meu capitão! —Com um sorriso esnobe no


rosto.
Depois do breve discurso, o capitão propôs um brinde ao
Pombo, que se encheu do orgulho arrogante de sempre, olhando
para todos à sua volta com desdém, convencido da sua importância
na embarcação.
Enquanto o capitão falava daquele prato especial de aves, sem
citar qual o tipo de ave, eu lembrei que mais cedo eu havia obser-
vado que a gaiola dos pombos correios não estava no lugar de sem-
pre, no alto do passadiço. Então entendi que o Lobo pôs fim aos
meios de sabotagem do Pombo, tirando a possibilidade de ele en-
tregar a nossa posição mais uma vez. Ainda fez o miserável comer,
sem saber que a cada pedaço engolido ele ficava mais incomunicá-
vel com o capitão Cook.
Não resisti a esse momento cômico e resolvi colocar lenha na
fogueira, e com tom de brincadeira, perguntei: —Esse prato espe-
cial de ave que o Pombo está comendo seria pombo correio Caran-
guejo?
O Caranguejo fingiu não ouvir a minha pergunta e saiu às pres-
sas para a cozinha. O Pombo parou imediatamente de comer e
olhou para o capitão, não acreditando nesta possibilidade.
—É pombo sim! Eu mesmo mandei preparar! —Confirmou o
capitão.
Com a resposta do capitão, o Pombo abandonou o prato com
o resto da comida e se levantou bruscamente, derrubando a ban-
queta ao chão e foi para o camarim.
Rompeu-se uma gargalhada sem fim por todos que estavam no
convés, mesmo sem entenderem bem o que estava acontecendo.
Passamos todo aquele dia ancorados no côncavo daquela
grande muralha de gelo, com a temperatura sempre estável, em

46
CAPÍTULO - 4 |
Garganta Gelada

torno de vinte e quatro graus. Nem ao cair da noite houve alteração


na temperatura, com total ausência de amplitude térmica.
Com o escuro da noite, dava-se para observar ao fundo da
grande garganta, pequenos clarões como tochas de fogo, deixando
claro que além da curva, à frente dos nossos olhos, havia algo mis-
terioso que produzia luz em meio as geleiras.
A noite, aquele grande corredor aberto, como as portas escan-
caradas de um castelo medieval, nos convidava a entrar. Era ainda
mais deslumbrante com a aurora boreal acima de nossas cabeças.
Todos estavam no convés tomando vinho do porto e observando
atônitos essas belezas naturais.
—O que você acha desse clarão ao fundo, Dylan? —Pergun-
tou-me o capitão ao nos juntarmos na popa, no convés.
—Olha Isaac, ainda há muitas coisas nesse grande mundo que
não conhecemos. Coisas que podem fazer uma reviravolta em nos-
sos conceitos de existência que conhecemos até então. Tenho ano-
tado tudo na esperança de que, ainda que venhamos a perecer di-
ante dos perigos dos mares, possamos deixar registros para outros
aventureiros.
Lobo —Verdade, esse mundo é muito grande e diversificado,
mas temos que saber a origem dessas luzes. Não acredito que seja
algo sobrenatural.
—Das luzes naturais que conhecemos, além do Sol e da Lua a
refletir a luz do Sol à noite, restaria apenas o fogo e os raios das
tempestades, todavia, não há nuvens no céu. Seria essa luz prove-
niente de fogo? Se for, é possível que haja pessoas aonde quer que
essa abertura vá dar.
Lobo —Não creio que haja pessoas com fogueiras dentro dessa
geleira.

47
A Ilha Vermelha

—E se forem demônios? Algo sobrenatural? —Perguntou o


Ariete ao se juntar a nós.
—Não acredito que seja algo além da compreensão humana.
Lobo —Amanhã acabaremos com as nossas dúvidas.
—Você pretende adentrar até o fim?
—Sem dúvidas! Nada que esteja ao nosso alcance ficará des-
conhecido. —Respondeu afirmativamente o aventureiro e deste-
mido Lobo da Mar, enquanto saia para os seus aposentos, seguido
pelo Ariete
Vendo que eu estava sozinho, logo se aproximou o Max, o
Marujo.
—Boa noite senhor Dylan.
—Boa noite Max. —Todos eles, com exceção do capitão, cha-
mavam-me de senhor pela minha função de imediato e segunda
pessoa do capitão.
—Eu queria lhe pedir desculpas por aquela noite que o se-
nhor me viu com o Caranguejo…
—Por favor, pare! Você não tem nenhuma satisfação a me dar.
Aqui não estamos sob julgamento e tenho certeza que o que vocês
estavam fazendo só é da conta de vocês.
Max —Suas palavras me deixam bem mais tranquilo.
—Pode ficar tranquilo meu amigo; da minha parte, eu não os
julgo. Cada homem tem o direito de viver a sua fé, os seus valores
morais e seus prazeres, desde que não invada o direito do outro.
—Obrigado, senhor!
Dei um abraço aconchegante nele aconselhando-o a não se pre-
ocupar com o que as pessoas acham, mas que buscasse sempre uma
consciência limpa para com Deus, pois a nossa nação agora era o

48
CAPÍTULO - 4 |
Garganta Gelada

Leviatã, e naquela nau, estávamos sobre as rédeas das leis do Lobo


e não mais da terra do Rei.
Garanti ao Marujo que ele não seria condenado por comporta-
mentos inofensivos, ainda que alguns o julgassem imoral por meros
preceitos culturais ou religiosos. Que se fosse ofensivo a Deus, isso
seria entre ele e Deus, e ninguém poderia se fazer juiz dessas coisas
enquanto homem sujeito às mesmas concupiscências
Com essas palavras, o Marujo me agradeceu dando-me mais
um abraço, quando de repente começou os sons de um grito aba-
fado que vinha dos porões do navio. Todos começaram a afluir para
saber o que acontecia.
À medida que eu me aproximava do porão, os gritos se torna-
ram mais nítidos e agudos. Era o Caranguejo e os gritos vinham da
cozinha.
Quando cheguei na cozinha, vi que o Pirata já estava com um
porrete na mão ao lado do Caranguejo ao chão, ameaçando o
Pombo, que estava em lado oposto segurando uma faca.
O Pombo praguejava todo tipo de palavrões contra o Caran-
guejo: —Esse filho da puta matou os meus pombos correios e ainda
me serviu no jantar!
—Foi o capitão que me mandou, eu só cozinho e faço o que me
mandam. —Grunia o Caranguejo ensanguentado no chão, como
quem falava e gritava de dor ao mesmo tempo.
Nesse momento chegou o Lobo e interveio imediatamente: —
Fui eu quem mandou, seu traíra maldito! Pensa que eu não sei que
foi você que avisou ao capitão Cook da nossa mudança de rota e de
eu ter aberto a carta!
O Pombo ficou feito estátua com os olhos esbugalhados,
olhando para todos à sua volta.

49
A Ilha Vermelha

Nesse momento o D. Quixote socorria o Caranguejo que tinha


duas perfurações a faca, uma no braço direito e a outra no braço
esquerdo, demonstrando lesões de defesa.
—Peguem ele! —Ordenou o Lobo apontando para o Pombo,
que covardemente se desculpava e dizia que só estava obedecendo
ordens do Cook.
Nesse momento, o Ariete e o Timoneiro agarraram o Pombo
pelos braços, um em cada lado.
—Mesmo diante da tua traição, primeiramente, por nos entre-
gar ao capitão Cook, por, seja lá quem foi, ter furtado aquele mal-
dito ouro, e depois por ter mandado um pombo correio para de-
nunciar a nossa mudança de rota, eu não ia te penalizar, mas dei-
xaria você conviver no Leviatã sob a nossa vigilância, mas com a
sua tentativa de matar o meu cozinheiro, agora você vai levar as
novas para o seu capitão Cook a nado! —Sentenciou o Lobo.
—Misericórdia meu capitão! —Gritava o Pombo covarde-
mente.
O Ariete e o Timoneiro levaram o Pombo sem dificuldades
para o convés, por ordem do capitão, que de imediato, sem dar ou-
vidos aos choros e berros do Pombo, ordenou que o lançassem ao
mar.
Corri e olhei para onde o jogaram e vi que ele permanecia junto
ao casco do Leviatã, procurando algo para se segurar. Era noite,
mas é possível que as águas não estejam tão geladas, devido ao mis-
terioso clima local, do contrário, ele morreria em poucos minutos
de hipotermia.
Mas antes, com o Caranguejo já com os braços enfaixados e
tratados pelo Quixote, que afirmou os ferimentos não eram sérios,
mas apenas superficiais, o Lobo estabeleceu vigílias com quartos
de uma hora para cada um dentre os doze, dividido por sorteio,
sendo que o capitão ficou na primeira hora.

50
CAPÍTULO - 4 |
Garganta Gelada

Eu fiquei um pouco fora com o Lobo enquanto os outros se re-


colhiam.
O Caranguejo, como criança mimada, seguiu se arrastando, le-
vado pelo Marujo aos seus aposentos enquanto grunhia como fi-
lhote de cadela desmamado antes do tempo.
—Dylan, o que você achou da minha decisão? —Perguntou-me
o Lobo.
—Razoável, capitão. Acho que você não poderia ter tomado
uma decisão mais acertada.
—A faca que o Pombo usava tinha o potencial de causar a
morte do Caranguejo. Se ele não tivesse alarmado e se defendido
das primeiras investidas, com certeza o destino dele teria sido mais
trágico. —Continuei.
—Foi exatamente o que pensei! Esse irlandês safado, além de
traidor, mostrou-se perigoso para estar em nosso meio. —Disse o
capitão.
Aproveitei aquela conversa particular e relatei ao Lobo o que
eu tinha flagrado entre o Caranguejo e o Marujo, na cozinha no dia
em que fui buscar chá. Falei da conversa preocupada do Marujo
mais cedo, em chegar ao conhecimento do capitão e que ele viesse
a castigá-los e o medo que ele tinha de que eu publicasse o ocorrido.
Busquei conscientizar o capitão da rigidez das leis da Ingla-
terra sobre a pederastia e de que ali, ele deveria ser mais compreen-
sível com as necessidades humanas, ainda que meio estranhas para
a gente. —Nem todos nascemos iguais, capitão, e temos que ser to-
lerantes com os diferentes. —Disse.
—Eu já conhecia esse comportamento do Caranguejo, ou
pensa você que esse apelido tem outro significado, senão o de andar
para trás. —Responde-me o Lobo com um sorriso no rosto e pros-
seguiu: —Antes do Marujo, o Caranguejo tinha um chamego com

51
A Ilha Vermelha

o Leo, o Copeiro. Quase todos aqui sabiam disso, mas eu nunca dei-
xei que ninguém os julgassem, pois a sua conduta em nada afetava
o seu bom trabalho na cozinha.
—E o Leu? —Perguntei.
—Ficou entre os covardes.

52
CAPÍTULO – V

A Ilha Vermelha
N a manhã seguinte, na penúria daquele Sol fraco dos pólos,
sombreados pelo corredor daquela enorme garganta ge-
lada, mas o suficiente para ofuscar aquele clarão que vía-
mos à noite, o capitão mandou içar âncoras. Íamos naquele mo-
mento avançar a remadas para dentro da garganta, guardando a de-
vida cautela.
Confesso que a ideia de avançarmos corredor adentro me deu
um frio na barriga pelas surpresas que poderíamos encontrar.
Saí ao convés e rodeei por todo o peitoril, olhando para as
águas para ver se eu via o Pombo, mas o miserável havia desapare-
cido. Teria morrido afogado de exaustão e frio e puxado para as
profundezas.
Todo o cuidado era justificável pois, a simples queda de um
daqueles blocos de gelo sobre a nossa embarcação, a depender do
tamanho, poderia provocar um tsunami suficiente para nos engolir
para as profundezas, pois a estreiteza do caminho potencializaria
a pressão das águas e o tamanho das ondas.

53
A Ilha Vermelha

E lá no fundo daquele corredor, o que poderia haver? Mesmo


sendo bastante racional, fiquei um pouco mistificado com aquele
ambiente surpreendente e exótico. O desconhecido sempre nos
leva a imaginar o inimaginável.
Enquanto apenas seis homens remavam no porão, três de cada
lado, o capitão observava e dava ordens ao timoneiro do alto do ob-
servatório do mastro principal.
Eu me posicionei no alto do passadiço para ressonar as ordens
do capitão ao Timoneiro, caso ele não as entendesse de pronto, pois
estávamos evitando fazer muito barulho, já que o corredor ecoava
com efeito o menor dos sons.
Ao avançar uns oitocentos metros corredor adentro, depois de
termos dado numa leve curva à direita, o capitão avistou um grande
monte fumegante expelindo, o que parecia ser rios de lavas incan-
descentes que desaguavam no mar, causando explosões de ondas e
fumaça branca, a uma distância aproximada de cinco quilômetros.
O Lobo não teve dificuldades em perceber que certamente era
um vulcão ativo que estava prestes ou acabara de erodir. Esse devia
ser o motivo daquela grande fenda gelada, mas, aparentemente, não
oferecia riscos.
O capitão Isaac Turner era um homem destemido, daqueles
que se sentia atraído pelo perigo, todavia, guardava reservas de res-
ponsabilidades sobre a vida da tripulação aos seus cuidados, pois
não se precipitava além de suas projeções baseados no seu conhe-
cimento e experiência no mar.
Os seus constantes acertos nos dava total confiança nas suas
decisões, o que nos atraía para as suas divagações aventureiras. O
Lobo realmente dominava os mares.
A cada aproximação, todos começamos a ver aquele vulcão
vermelho e choroso ao final do corredor gelado. Parecia um

54
CAPÍTULO - 5 |
A Ilha Vermelha

carnegão que eclode na pele, expelindo seus fluidos de forma enér-


gica sob pressão.
Não havia mais dúvidas que aquele vulcão ativo certamente
era o motivo do equilíbrio na temperatura local, compensando o
frio, deixava o ambiente sempre ameno. Dali em diante, o capitão
ordenou que se diminuísse ainda mais o ritmo dos remos. Estáva-
mos nos deixando levar por uma fraca corrente.
Ao nos aproximarmos mais ainda, percebemos a semelhança
de um grande pavilhão a rodear a montanha vulcânica em meia lua.
Mais próximo, já era possível distinguir uma pequena ilha de dupla
proporções, cercada de paredões de gelo e de águas ao redor que
deságuam numa enseada entre fiordes antes de tomar o caminho
do oceano pelo corredor de entrada, à semelhança de alguns caste-
los medievais da Europa.
Ligeiramente mais a Leste, aquela pomposa montanha, como
uma grande chaminé acesa nos dias de frio para manter o ambiente
confortável, reluzia escarlate, de modo a dar uma coloração espeta-
cular nos paredões de gelo em volta.
Vi que o Sol perdia a sua majestade naquele ambiente, a luz da
lava constante e incandescente predominava sobre toda a ilha. A
temperatura também havia aumentado consideravelmente, apon-
tando vinte e cinco graus celsius no termômetro.
Com certeza aquela ilha tão curiosa havia saído do fundo das
águas numa época não muito remota. Deve ainda estar em plena
formação e expansão, empurrando forçosamente as geleiras para
lhes abrir o espaço necessário. No meio de altas camadas de gelo, a
sua origem só pode ser atribuída à força do magma.
A cor do solo deixava claro que aquela ilha era composta uni-
camente de tufo vulcânico, consistente em aglomerados de pedras

55
A Ilha Vermelha

e rochas de textura porosas devido ao resfriamento rápido em con-


tato com o mar e o ambiente frio das geleiras.
O fiorde indicava uma grande fenda, de Sul a Norte da ilha,
pela qual se espalhou, pouco a pouco, toda a massa traquítica, sem
fúria e sem confronto devastador com as grandes geleiras, mas cres-
cendo sorrateiramente como um tumor maligno.
A saída era enorme e as matérias fundidas repelidas das entra-
nhas da terra estenderam tranquilamente em vastos lençóis ondu-
lados. Isso explica a porta de entrada das geleiras, indicando uma
grande fenda submarina que se estende para o norte da ilha em di-
reção ao Oceano Antártico.
Devido a esse derramamento a espessura da ilha aumentava
consideravelmente sempre a oeste, abrindo-se como um leque para
o norte e sul à medida que se distanciava da garganta que a expeliu,
ganhando terreno gradativamente sobre a massa antagonicamente
gelada.
A quantidade de fluidos elásticos que se armazenou em suas
bases, quando se estabilizou, devido ao esfriamento da crosta, deve
ser considerável, até que chegou o momento em que a potência me-
cânica desses gases foi tão grande que eles ergueram a crosta, esca-
vando a enorme chaminé que permanece ativa até hoje. Daí a ori-
gem desse vulcão em pleno continente gelado, garantindo esse
clima ameno de vinte e cinco graus celsius, em média.
Desde então os fenómenos eruptivos vem sendo substituídos
gradativamente por fenômenos vulcânicos, pela chaminé recém
formada, de onde vemos escapar essa coluna densa de fumaça e lava
incandescente, que formaram essas maravilhosas espécimes basál-
ticas que cobrem boa parte da ilha, moldadas em prismas com ba-
ses hexagonais pelo resfriamento contínuo.
Eis os motivos do surgimento dessa ilha magnífica, tudo pro-
veniente da ação do fogo subterrâneo que está sob os nossos pés

56
CAPÍTULO - 5 |
A Ilha Vermelha

em forma de líquido incandescente. Estávamos estupefatos com


aquela cena maravilhosa.
Percebemos que haviam plantas na ilha, porém, todas de colo-
ração que variava entre o vermelho, roxo e azul escuro. Não havia
verde, apesar de uma flora abundante.
Entendi que devia ser pela ausência da incidência direta dos
raios solares naquele local, não permitindo a fotossíntese como a
conhecemos, e que talvez, a luz produzida pelo vulcão exercia al-
guma influência na coloração das plantas.
Ao leste, era possível perceber pequenos rios de lavas resfri-
ando-se ao tocar o mar sob explosões de ondas e fumaça. Tudo era
deslumbrante! Certamente, uma descoberta extraordinária.
Paramos cerca de uns duzentos metros da praia, no meio da
enseada, e lançamos as âncoras por ordem do capitão, que desceu
do mastro e chamou a todos que estavam no porão para o convés, a
fim de que todos pudessem contemplar aquela descoberta.
—Essa ilha será chamada de Ilha Turner, em homenagem ao
nosso capitão! —Gritou o Pirata bajulosamente ao ver admirado
aquela ilha.
Todos saíram apressados naquela algazarra de sempre. Para
aqueles homens sem lei e eufóricos, tudo era motivo para piadas e
gargalhadas, como se a vida fosse uma eterna comédia. Até o Ca-
ranguejo já se encontrava mais entusiasmado.
Lá fora, ao contemplarem o que a vista alcançava, ficamos bo-
quiabertos sem entender como seria possível tudo aquilo. Uma ilha
com plantas e até árvores nunca vistas, cheias de vida, no interior
de uma geleira continental, cercada de águas e paredões de gelo que
pareavam a grande montanha fumegante em altura, sem, contudo,
tocar na ilha, em todas as suas extremidades que a vista de todos
alcançava.

57
A Ilha Vermelha

Os que vieram do porão, observaram, não menos perplexos,


que saídos nus da cintura para cima devido à quentura do compar-
timento dos remos que ficava no sub porão, e devido ao suor do
esforço das remadas, não se sentiram incomodados pelo frio, pois a
temperatura era amena.
Eu e o capitão usamos a luneta do alto do observatório do mas-
tro principal a fim de visualizar alguma coisa que chamasse a aten-
ção mais ao longe, foi quando o capitão disse ter observado o que
parecia ser pássaros nas árvores mais ao fundo.
Depois eu também vi algo parecido, porém, não dava para dis-
tinguir a espécie por estar muito distante. Mas claramente era pos-
sível ver que a copa daquelas árvores agitavam-se com o movi-
mento daquelas criaturas. No que parecia ser um promontório a
leste da ilha, mais próximo das bases do vulcão, observamos o que
pareciam ser focas e leões marinhos.
Enfim, seres vivos, o que nos garantia que a ilha não era tóxica
para a vida mamífera.
O Ariete sugeriu que alguns de nós fôssemos até a ilha no es-
caler, se voluntariando para tal, porém, o Lobo achou melhor
aguardarmos mais um pouco e observar, para ter uma ideia melhor
dos possíveis ocupantes e habitantes da ilha. Não sabíamos se ha-
via algum tipo de fera de grande porte ou se o vulcão alterasse sua
atividade de modo a nos oferecer algum risco.
O capitão achou melhor que a gente pernoitasse na nau na-
quela noite, e no dia seguinte, resolveria o que iríamos fazer.
Já era a terceira noite desde que entramos na garganta gelada.
De uma coisa tínhamos certeza. Conseguimos despistar a caravela
do capitão Logan.
Ao anoitecer, vimos a pomposidade daquela montanha ígena,
que ditava o tom escarlate de todo aquele enorme pavilhão. A au-
rora boreal acima se somava àquela profusão de luzes que nos

58
CAPÍTULO - 5 |
A Ilha Vermelha

deixou inebriados com uma sensação maravilhosa. Ninguém ousou


entrar para os seus aposentos para não perder um segundo daquele
espetáculo pirotécnico celestial.
Falei ao Lobo, entusiasmado, que a temperatura alta da mon-
tanha, assim como as poucas lavas cuspidas montanha abaixo e
logo resfriadas nas águas geladas do mar, mostrava que o vulcão
está moderadamente ativo. Aquece a temperatura do ambiente,
afugentando o avanço das geleiras sobre a ilha, garantindo esse pa-
raíso vermelho.
—A Ilha Vermelha! —Exclamou o capitão. Dali em diante foi
como passamos a chamar aquele paraíso misterioso.
Com o estabelecer da noite, a paisagem era ainda mais des-
lumbrante, algo que a tripulação nunca havia visto semelhante em
todos os lugares já visitados, nem mesmo na ilha de Madagascar
com sua fauna e flora mais exóticas do planeta.
Vez ou outra, os observadores afirmavam ter visto pares de
olhos brilhantes entre a escuridão da floresta. Eu mesmo acredito
ter visto, igualmente, mas até onde dava a areia negra da praia, não
era possível ver sinal de vida.
Vendo que aquela euforia não chegava ao fim, o capitão ins-
tou a todos que fossem descansar, após estabelecer os quartos de
vigília por sorteio, para estarmos dispostos para a expedição do dia
seguinte.
—Descansem e preparem-se! Amanhã vamos explorar essa
ilha por inteiro. —Reafirmou o capitão.
O meu período de vigília era de meia noite à uma hora. Ao
chegar no convés para render o Capeta, ele me disse que por volta
das 11h15min, assim que assumiu o seu horário, percebeu um vulto
de um homem saindo do mar em direção à praia, como que saindo
das águas.

59
A Ilha Vermelha

Ao chegar na praia já em direção a floresta, ele percebeu vários


pares de olhos brilhantes que convergiram para aquele vulto soli-
tário, momento em que ouviu um grito apavorado que ecoou por
todo o pavilhão, seguido de um tripudiante alvoroço e depois um
silêncio e o sumiço de todos os vultos e luzes na floresta.
—Sofista, acho que essa ilha é habitada por sereias! —Excla-
mou com assombro.
—Você tem certeza que não estava meio dormindo, Capeta?
—Estava mais acordado que agora! —Afirmou com certa ir-
ritação.
—Pois amanhã cedo, vamos relatar isso ao capitão e buscar
sinais do ocorrido.
O estranho relato do Capeta nos mostra que devemos ter
muita cautela ao descermos para a ilha amanhã, pois não temos cer-
teza do que podemos encontrar, nem da gravidade dos perigos que
podemos nos deparar. Pode haver bárbaros sanguinários dispostos
a defender a sua terra dos invasores.
Passei a minha vigília com os olhos arregalados para a ense-
ada da ilha, local apontado pelo Capeta onde teria ocorrido aquele
desiderato, pensando no que ele realmente poderia ter visto.
O Capeta não era homem de mentiras. “Será que há habitantes
na ilha? Seriam selvagens violentos e bem armados ou uma espécie
desconhecida, porém, perigosa?” Com esses pensamentos busquei
me barricar e não deixar o meu corpo totalmente exposto naquela
direção. Vai que eles usem flechas envenenadas ou incendiárias e
me acertem a distância na escuridão da noite. Por precaução, dimi-
nui as luzes dos lampiões e fique em um ponto de penúria.
Durante toda a minha vigília não testemunhei nada de estra-
nho, além das constantes e variadas luzes escarlate do vulcão refle-
tidas nos paredões de gelo.

60
CAPÍTULO - 5 |
A Ilha Vermelha

Por volta de uma hora da madrugada, passei a vigília para o


Pirata, advertindo-o para que tomasse cuidado e ficasse de olhos
bem abertos, após relatar resumidamente a história do Capeta e fui
me deitar, pensativo.
Naquela noite não dormi bem, apenas breves cochilos segui-
dos de pesadelos que me despertavam a cada sono. Sonhei repeti-
damente que estávamos sendo atacados por feras com aspectos
corpulentos de homens bárbaros, que tinham o dobro do nosso ta-
manho, cabeludos e de unhas que pareciam as unhas de urso ame-
ricano. Tinham tanta força que nos jogavam pelos ares a cada in-
vertida que faziam. Vi o coitado do Caranguejo se esbagaçar sobre
o armário da cozinha quando atacado por um deles. Mas não dei
muita importância. Eram apenas sonhos de quem estava impressi-
onado. Não sou homem de acreditar em presságios.
Enfim, para o meu alívio, vi os primeiros raios de luz da clari-
dade solar acender entre as brechas do meu aposento, o que me fez
dar uma vontade tremenda de pegar no sono e recuperar aquela
noite mal dormida.
Mas não poderia perder os próximos acontecimentos do dia,
pois já dava para ouvir o burburinho da tripulação acordada an-
dando de um lado para o outro e logo após, ouvi chamarem o meu
nome do convés. Pulei do meu tucun imediatamente e fui ver o que
estava acontecendo. “Teriam os meus pesadelos virado realidade?”

61
CAPÍTULO – VI

O Contato

Q
noite.
uando cheguei no convés, havia uma roda em volta do Pi-
rata e do Eunuco. Ambos relataram para o capitão e para
a tripulação o que tinham visto durante as suas vigílias da

O Pirata, contava o que havia me falado na noite anterior. Já o


Eunuco, chamado Samuel Morris, inglês de origem sul-africana, o
nosso veleiro, dizia que durante a sua vigília, por volta das 3h45min
da madrugada, ouviu um grito de socorro agudo, seguido de um se-
gundo grito mais abafado e depois silêncio total, mas não viu ima-
gens.
Segundo o Eunuco, o grito de socorro foi dado por alguém que
fala inglês. O Pirata também confirmou a semelhança. Diante dessa
informação, o capitão chamou a todos e passou a conferir a tripu-
lação. Todos os doze estavam presentes com a minha chegada.
Chegamos à conclusão que haviam seres inteligentes naquela
ilha, pois a interrupção dos gritos, nas duas ocasiões, foi feita de
forma eficiente e rápida. Uma fera simplesmente atacaria e os gri-
tos eram interrompidos aos poucos, e não abruptamente, como

63
A Ilha Vermelha

ocorreu nas duas vezes relatadas pelos marinheiros. Além do mais,


conforme o relato do Pirata, os vultos do ataque na praia da ense-
ada se mostravam com silhuetas altas e finas, em contraste com
quem estava sendo atacado que aparentava ser mais forte.
O Lobo designou um grupo armado de dez homens para a ex-
pedição após o desjejum, deixando na nau apenas o Caranguejo e o
Pirata.
Usamos armas de fogo e espadas para os que não tinham arma
de fogo.
O Lobo tinha me presenteado uma garrucha de cano duplo
com canos de dezoito polegadas e 45mm. Ele portava uma garrucha
de cano duplo de vinte polegadas por 45mm e um trabuco a tira-
colo de 50mm. Haviam ainda mais dois trabucos e quatro garru-
chas divididas entre o pessoal. O Marujo e o Quixote eram os úni-
cos que portavam apenas espadas.
Às 7h da manhã descemos o escaler e embarcamos com os dez
homens, incluindo eu e o capitão, com os batuqueiros à frente com
as armas apontadas para a floresta.
A ilha era pura calmaria. Não tinha vento, mas apenas uma leve
sensação de brisa relativamente fria, indicando uns 24 graus.
Aquele silêncio era quebrado por sons estranhos, que pareciam
cânticos de animais, talvez aves, no interior daquela floresta ver-
melha.
Ao chegarmos na enseada, sentimos a temperatura aumentar
para uns 25 graus. A água cristalina revelava uma terra negra, vul-
cânica. Contudo, nada se parecia alienígena, apesar dos aspectos
bastante peculiares das plantas. As árvores e plantas eram bastante
semelhantes ao que já conhecíamos, todavia, a cor predominante
em todas elas era de um vermelho arroxeado e tons azuis-marinhos.
A ilha não aparentava ter mais que cinco quilômetros de diâ-
metro, considerando os paredões de gelo que a cercavam, com uma

64
CAPÍTULO - 7 |
O Contato

grande montanha fumegante ligeiramente à esquerda da ilha, a par-


tir do nosso ponto de vista, cercada de um círculo de águas do mar
com não mais que duzentos metros de largura e paredões de gelo
em volta.
De repente, uma revoada de Andorinhas-do-ártico se precipi-
tou assustada à nossa frente como que espantadas por alguém. Isso
nos indicava que estávamos sendo observados. Todos se assusta-
ram e apontaram as armas com aquele tropel de pássaros.
Surpreendentemente, saiu em meio aos arbustos, uma mulher
alta e ruiva, de corpo magro, mas atlético, segurando uma vara li-
near e oca, na cor avermelhada, semelhante ao bambu, mas não pa-
recia ser uma lança, pois não tinha ponta.
Ela tinha pelo menos 1,80 de altura, com os cabelos longos
amarrados para trás, estilo rabo de cavalo. “Seria uma amazona
como descrito na mitologia grega?” —Pensei.
De braços erguidos, vestindo poucas roupas, mas com peças
bastante familiares da cultura europeia, ela sinalizou para nós le-
vantando os braços como quem quisesse se comunicar pacifica-
mente. Todos olharam e apontaram as armas, foi quando ela falou
em voz alta as seguintes palavras:
—Hovorí niekto po slovensky, po holandsky? dirigindo a nós
com voz grave e firme.
Mantendo a posição defensiva, o capitão, que sabia um pouco
de holandês devido aos nossos diálogos, perguntou-me: —Você en-
tende o que ela fala? Parece que ela perguntou se algum de nós fala
holandês.
—Ela perguntou se falamos holandês ou eslovaco, mas falou
numa língua mais nórdica. Talvez em escandinavo. —Respondi.
—Tente se comunicar com ela.

65
A Ilha Vermelha

Nesse momento, outras mulheres, umas altas, outras mais me-


dianas, mas todas atléticas, começaram a aparecer de entre a mata
vermelha, cujos cabelos longos e avermelhados se confundiam com
as folhas e ramos, pois todas, sem exceção, eram incrivelmente rui-
vas, até as que tinham cor, com os cabelos típicos dos africanos,
eram igualmente ruivas.
Todas seguravam aquela vara na mão. Dava-se para observar
pelo menos três grávidas entre elas, o que denunciava que haviam
homens escondidos que ainda não se mostraram.
—Os homens devem estar escondidos na retaguarda. —Aler-
tou o capitão.
A tripulação começou a se alvoroçar com aquela quantidade de
mulheres desarmadas e seminuas saindo da mata. Eram pelo menos
em torno de vinte e cinco mulheres.
—Deve ser uma armadilha! Onde estão os homens? —Indagou
o Ariete.
Fiz sinal para que os homens se acalmassem.
—Deixa eu tentar falar com elas. —Pus-me de pé na proa do
escaler para ser visto melhor por aquela que nos falava e falei na
língua holandesa: —Me chamo Dylan Scott e viemos em paz. Você
fala holandês?
A mulher alta fez sinal a uma outra que estava ao seu lado,
igualmente alta e ruiva, porém, um pouco mais baixa, mas não me-
nos atlética. Usava uma meia calça de tecido grosso de cor cinza,
surrada pelo tempo, com bolsos laterais e uma blusinha regata
branca que deixava a barriga bastante dividida e magra à mostra, o
que me deixou bastante intrigado. Era óbvio que não se tratava de
selvagens. “Seriam náufragos perdidos naquela ilha?”

66
CAPÍTULO - 7 |
O Contato

—Me chamo Erika. Essa é a Eva, a nossa matriarca. —Falou


aquela segunda mulher apontando para a mulher maior ao seu lado
que tinha falado primeiro.
Dali em diante eu e a Erika passamos a nos comunicar em ho-
landês, e assim como ela fazia com a Eva, vez e outra eu falava ao
capitão o que tinha sido dito por mim e respondido por ela, naquilo
que ele não compreendia completamente, pois era nítido, assim
como o capitão, a líder delas também entendia o holandês razoável.
Em boa parte da conversa o Lobo entendia, pois já tinha deco-
rado várias palavras em holandês durante a nossa convivência.
Falei que estávamos na pesca de baleias quando nos depara-
mos com uma abertura na geleira e decidimos entrar para ver onde
daria, daí vimos esse lugar.
—Onde estão os outros dois tripulantes? —Perguntou a ma-
triarca.
Olhei para o capitão espantado, que intrigado com aquela
pergunta, me pediu que perguntasse como ela sabia da quantidade
da nossa tripulação.
A Erika respondeu que na noite passada, um dos nossos havia
invadido a ilha de forma sorrateira, atitude que fez com que elas o
prendessem por uma questão de segurança, e como o homem havia
tentado reagir, chegando a agredir uma delas, inclusive, tiveram
que manietar e arrancar dele algumas informações.
—Não pode ser um dos nossos! Somos apenas doze no total e
dois ficaram na embarcação. —Afirmei.
Com essa resposta, a matriarca deu sinal para as outras mu-
lheres que logo trouxeram o Pombo que aparentava estar alheio
àquela situação, com o olhar distante, como quem estava sob o
efeito de algum alucinógeno, talvez pelas noites em claro enquanto
estava na água. Todos olharam espantados uns para os outros.

67
A Ilha Vermelha

—Coisa ruim não morre nem desaparece fácil! —Disse o


Bôbo da Corte sob gargalhadas.
—Esse homem foi banido da nossa embarcação, jogado ao
mar três dias atrás por ordem do capitão. Deve ter se agarrado ao
calado e se mantido junto ao navio, e aproveitado a noite para nadar
até a terra firme. Não menti para vocês; só não sabíamos que ele
ainda estava vivo. —Justifiquei.
Virei-me para o capitão e entendemos que se tratava das apa-
rições da noite passada.
—Então vocês não fazem questão dele? —Perguntou a matri-
arca.
—De modo nenhum!
—E onde estão os homens da tribo? —Questionou o capitão.
—Estão em nossa retaguarda por uma questão de segurança.
—Respondeu a Erika.
—A nossa matriarca deseja que todos vocês juntem-se a nós,
para conhecer o nosso lar e os nossos costumes, porém, pede que
todos deixem as armas no navio e venham desarmados, assim como
nós estamos desarmadas. Tragam os outros dois homens.
Passei a ideia ao capitão que só havia entendido em parte. Ele
pediu que primeiro mostrassem todos os homens da tribo. Em
nossa resposta, pelo sinal da matriarca, começou a aparecer por en-
tre os arbustos, vários homens, no total de dezenove, aparentando
idade de no máximo entre 40 a 60 anos.
O Lobo perguntou ao Pombo se todos os homens que ele havia
visto estavam ali ou se haviam mais, todavia, o Pombo, como quem
estivesse fora de si, alheio aquela situação, nada respondeu. Achei
aquilo bastante estranho. “Teria ele enlouquecido?”
Tudo indicava que elas estavam sendo sinceras com a gente,
mas não era possível entender o significado de tudo aquilo. Seria

68
CAPÍTULO - 7 |
O Contato

uma sociedade alternativa comandada pelas mulheres, cujo papel


dos homens e mulheres eram invertidos?
Com cautela, decidimos confiar nelas a fim de tentar uma
aproximação sem conflitos. Desembarcamos todos na praia e ficou
decidido que o Timoneiro e o Ariete iriam levar as armas para guar-
dar na nau e trazer o Caranguejo e o Pirata para junto de nós, não
sem os protestos de alguns, que não estavam confiando naquelas
mulheres.
—O senhor não vê que elas escravizam os homens? —Protes-
tou aterrorizado o Eunuco.
—Confiem em mim! —Disse o capitão em tom de mistério, e
continuou: —Não fiquem com nada! nem com o menor dos canive-
tes. Se desarmem completamente. Não se preocupem, são apenas
mulheres e homens debilitados, os quais a gente venceríamos
mesmo de mãos limpas.
—Eunuco —Não se pode confiar em mulheres, capitão!
—Isso é uma loucura. —Sussurrou em tom de protesto, o Ca-
chimbinha.
Enquanto o escaler seguia para a nau, voltei a trocar diálogos
com a Erika. Ela nos garantiu que não devíamos nos preocupar,
pois nós não éramos os primeiros a encontrar aquela ilha no meio
da geleira. Apontando para alguns dos homens, começou a dizer
que oito deles que ali estavam eram navegadores portugueses que
haviam naufragado e ficado com elas na ilha desde então, há pelo
menos dois anos atrás.
Ao olhar para eles enquanto ela os mostrava, eles desviaram a
vista como quem não quisessem contato visual, olhando discreta-
mente para a matriarca como quem esperasse um sinal ou uma per-
missão, a qual, ao mesmo tempo, olhava para a Erika discretamente
repreensiva. Dali em diante, vi que a Erika diminuiu a disposição

69
A Ilha Vermelha

para as conversas que vinha se tornando cada vez mais espontâ-


neas.
Achei aquela linguagem corporal bastante suspeita, mas guar-
dei para uma conclusão mais precisa em um momento oportuno.
Sendo portugueses, com certeza aqueles homens não enten-
diam o que estávamos falando, assim como a maioria, exceto a ma-
triarca e o capitão, que desfrutavam dos intérpretes e de um pouco
de conhecimento do holandês. Na nossa nau, a língua predomi-
nante era o Inglês.
Já na praia, a Erika falou que elas chamavam a ilha de Éden
Glacial, nome dado pela matriarca há dezessete anos atrás, quando
elas a descobriram acidentalmente. O vulcão era chamado de a
Montanha da Vida.
De fato, fazia todo o sentido o nome daquele vulcão, pois era
claro que a vida naquela ilha dependia da atividade e calor daquela
montanha incandescente.
Tais nomes atribuídos pela matriarca revelavam a feição pela
religião cristã, pois Éden se refere ao Jardim do Éden onde Deus
colocou o primeiro casal, Adão e Eva, e a Montanha da Vida, seria
uma referência à árvore da vida que ficava no meio do Jardim.
Isso nos trazia mais alívio por saber que eram pessoas com cul-
turas semelhantes a nossa e religião conhecida. Isso afastou o meu
temor de que elas pudessem fazer algum tipo de sacrifício humano.
Foi o meu primeiro pensamento assim que vi o Pombo manietado
sendo conduzido por elas, numa atitude bem semelhante às descri-
tas pelos exploradores acerca das tribos antropofágicas das índias
americanas.
Depois de um tempo bastante desproporcional, os quatros
marinheiros retornaram no escaler para a praia da enseada. Obser-
vei que o Caranguejo estava amarrado de pés e mãos.

70
CAPÍTULO - 7 |
O Contato

—O que aconteceu, por que demoraram tanto? —Perguntou o


capitão com certa irritação.
—Senhor, tivemos que amarrar o Caranguejo que só veio co-
nosco à força. —Respondeu o Timoneiro.
O Caranguejo, com cara de pavor e com os olhos fitos nas mu-
lheres, nada falava.
A matriarca chamou o capitão e todos nós para segui-las, en-
quanto abriu-se um corredor das mulheres que esperaram a nossa
passagem, com os homens, timidamente, à frente de todos, a pedido
do capitão, por segurança. Eu e a Erika íamos logo atrás do capitão
e da matriarca, traduzindo o holandês entre os dois sempre que eles
nos solicitavam.
Chamava bastante a atenção os homens da ilha, sempre retra-
ídos à parte. Acatavam as ordens da matriarca sem qualquer pon-
deração, das quais, a maioria, não passava de um simples olhar. Era
claro que existia ali alguma forma de hierarquia das mulheres sobre
os homens, o que nos deixava sempre aturdidos.
—O que o senhor quer que eu faça com o prisioneiro, capitão?
—Perguntou a matriarca com aquela voz firme de líder guerreira,
porém, bastante diplomática.
Ao me aproximar dela, vi que ela tinha pelo menos 1,82m de
altura. Era ainda mais alta que o capitão, mesmo estando descalça,
assim como todos na ilha.
A Erika olhava para mim com os olhos azuis penetrantes sem-
pre que traduzia o escandinavo da chefe para o holandês, como
quem sempre queria falar mais algo além das palavras interpreta-
das. Ela era mais baixa que a matriarca, porém, com altura consi-
derável para mulheres. Descalça, tinha a minha altura, 1,75m. Ca-
belos que, mesmo amarrados para trás em um único coque, chega-
vam à cintura, numa coloração vermelho arroxeados.

71
A Ilha Vermelha

Percebi, assim como os demais da ilha, não se tratavam de rui-


vos comuns, mas um tipo de ruivo peculiar. Ela tinha o andar firme,
de pernas fortes e torneadas que se harmonizam com o quadril ar-
redondado e firme. A barriga de fora denunciava a sua silhueta ma-
gra e estrutura muscular desenvolvida moderadamente, compatí-
vel com a biologia feminina, mas de afeições atléticas.
Por alguns momentos tive que pedir para ela repetir as frases,
distraído com os seus olhares e jeito fascinante. Estava extasiado
com aquela beleza extraordinária e exótica.
—Eu o joguei no mar para não o matar de pronto, diante da
sua traição e tentativa de matar um dos nossos. —O Lobo começou
a responder pausadamente para que a matriarca entendesse o seu
holandês ruim e continuou: —Mas a minha ira já foi aplacada pelo
tempo, até porque, achava que ele não tinha sobrevivido às águas
frias.
—Ele poderia ter morrido por qualquer coisa, menos pelo frio
dessas águas, pois a nossa montanha viva assegura a temperatura
ideal à nossa sobrevivência e conforto. —Respondeu a matriarca
com uma convicção inconfundível.
Ouvindo aquela resposta da matriarca logo atrás, percebi a de-
voção e misticismo que elas tinham por aquele vulcão.
Lobo —Não costumo ser vingativo, pois sei que a própria vida
se encarrega disso. Quero deixar essa decisão sob sua total dispo-
sição. Eu só tenho a acrescentar que ele não é nada confiável e não
pensa duas vezes para agir, se lhe derem condições.
Com as palavras rápidas do capitão, reproduzi à Erika o que
ele falou e ela por sua vez, à matriarca.
—Por favor, me chame de Eva. —Retrucou a matriarca e pros-
seguiu. —Nós temos a nossa própria lei, não muito diferente da que
vocês conhecem. Ele agrediu e feriu uma de nós. Por esse motivo,

72
CAPÍTULO - 7 |
O Contato

vou deixá-lo em custódia por mais algum tempo e depois decidi-


mos o que fazer.
—Perfeito! —Respondeu o capitão.
A medida que íamos avançando por uma trilha de chão negro,
eu observava as plantas e as árvores em volta. Todas eram de uma
homogeneidade incomum; eram na cor vermelha arroxeada com al-
guns tons de azul marinho, variando a intensidade do azul a depen-
der da espécie. Embora não houvesse diferença nas cores, dava para
distinguir espécies variadas de plantas e árvores.
O chão negro que pisávamos não negavam a sua origem vulcâ-
nica. Caminhamos às margens de um pequeno fiorde ladeado por
muralhas basálticas e exóticas.
O basalto é uma rocha marrom de origem ígnea. Nessa paisa-
gem excêntrica da ilha com rochas de formas regulares era admirá-
vel por suas disposições. A forma geométrica nos deixava dúvidas
do que era natural ao produto do trabalho humano, como se esqua-
dros, compassos e prumos tivessem sido os instrumentos usados
naquela composição gigantesca. Mas ao fundo, nas bases da mon-
tanha, as massas já eram dispostas mais desordenadamente, em co-
nes mal esboçados e pirâmides imperfeitas, rabiscadas por estra-
nhas sucessões de linhas. A Erika percebeu a minha admiração.
—Você já tinha visto coisa parecida? —Perguntou-me.
—Na verdade eu nunca tinha visto o espetáculo que é essas
formações basálticas. —Respondi admirado.
Nesse lugar esse fenômeno tinha uma magnificência espetacu-
lar. A muralha do fiorde era composta por uma série de colunas que
se destacavam e aumentavam de tamanho à medida que se aproxi-
mavam da grande montanha fumegante. Na outra margem do fi-
orde haviam intervalos regulares de aberturas côncavas de linhas
admiráveis, onde as ondas do mar combatiam formando espumas

73
A Ilha Vermelha

enfurecidas. Dessa guerra incessante, via-se pedaços de basalto ar-


rancados pelo choque das ondas, espalhadas pelo chão como um
templo que não restou pedra sobre pedra, formando ruínas eterni-
zadas pelos séculos de existência.
Os tons das plantas e das pessoas da ilha eram tão semelhantes
que a um metro de distância já se camuflavam naturalmente com o
ambiente. Olhando mais atentamente para esses detalhes, pude ob-
servar, igualmente, que nos cabelos ruivos da Erika tinham discre-
tas mechas azuis marinho.
Perguntei discretamente, alheio a conversa do capitão com a
matriarca: —Você fez essa mecha no seu cabelo aqui mesmo na
ilha?
—Não. É natural, assim como a de todos aqui. —Me respon-
deu com um discreto e sedutor sorriso no rosto.
A esses sussurros, a matriarca se virou e olhou mais uma vez
repreensiva para a Erika, que logo voltou a ficar séria e economizar
as palavras
Olhei mais atentamente para os cabelos da matriarca à minha
frente e olhei para as que vinham atrás de nós e realmente, percebi
que todos tinham essas mechas, igualmente. “Natural… como as-
sim?” —Pensei, absorto.
Percebi que a matriarca tinha um ciúmes ou um cuidado voraz
com a Erika. Eu não teria muitas oportunidades para conversar a
sós com ela. “Seria a filha da matriarca? Ou teriam algum relaciona-
mento amoroso secreto, à semelhança do Caranguejo e do Marujo?
As minhas curiosidades falavam mais alto que o temor que eu
tinha da matriarca e continuei com as minhas perguntas: —Mas
como essas mechas podem ser naturais?
—Ninguém aqui chegou naturalmente ruivo, com exceção de
alguns poucos — ela passou a me explicar em voz baixa.

74
CAPÍTULO - 7 |
O Contato

—Todo esse vermelho em nossos cabelos, coloração da pele,


plantas…, tudo isso é influência da montanha viva.
Ela me fez entender que o vulcão naquele lugar era mais sobe-
rano que o Sol, que não se mostrava nunca, mas apenas denunciava
a sua presença com seus raios inconfundíveis.
O vulcão influenciava tudo e todos naquela ilha, muito prova-
velmente através de composições químicas no solo e no ar, que em-
bora quase imperceptível, comecei a perceber que desde que colo-
camos os pés na ilha, passamos a sentir um cheiro fraco, porém,
perceptível, semelhante a ovo estragado, o que muito provavel-
mente provinha dos gases de enxofre expelidos constantemente
pelo vulcão.
—O que vocês comem aqui?
—Comemos vegetais, frutas, aves e peixes, e de vez em
quando, na alta temporada dos Elefantes-marinhos e Focas-leo-
pardo, caçamos alguns.
—Quais são as aves que vocês comem aqui?
—Têm as aves migratórias, como Petréis, Andorinha-do-
mar-ártico, Fuselos, Narceja-real… e as que convivem conosco,
como a Pomba-antártida, Mandrião-antártico, Corvos-marinho,
Albatroz de sobrancelha, Cormorão…
—Interessante, você fala de todas essas espécies pelo nome a
que a conhecemos na Europa.
—Como você pensa que aprendi holandês? —Ela me disse
sorrindo.
Nenhuma das espécies eram estranhas à civilização. Aquela
ilha realmente ainda era apenas um embrião em formação.

75
A Ilha Vermelha

Interrompi por um tempo o nosso diálogo para ouvir a histó-


ria da matriarca, que contava ao capitão, após o Lobo expor toda a
nossa odisséia.

76
CAPÍTULO – VII

Quem são elas?

A
matriarca, com aspecto remansado, disse que estava na-
quele jardim há dezessete anos. Que chegaram lá após um
naufrágio quando a sua caravela norueguesa de expedição
universitária na Antártida foi atingida, na escuridão da noite, por
uma grande geleira à deriva e rompeu o casco.
Haviam setenta pessoas a bordo entre passageiros e tripulan-
tes, das quais, vinte e cinco eram mulheres contando com ela, a es-
posa do comandante da caravela, ambos eslovenos.
As outras eram esposas dos outros acadêmicos noruegueses
engajados na missão de exploração científica no Ártico, cujo líder
da expedição era o Professor Dr. Ruben Bakker, cientista natura-
lista, esposo da Erika, ambos holandeses. Nesse instante a Erika me
olhou como quem quisesse ver a minha reação diante da informa-
ção de que ela era casada.

77
A Ilha Vermelha

Era uma viagem curta de verão para aulas práticas de natura-


lismo do professor Ruben aos seus alunos universitários, ao mesmo
tempo em que realizavam uma viagem de férias.
O professor Ruben alugou a caravela do marido da matriarca e
insistiu que ele levasse consigo a esposa para a viagem devido à
companhia de todas as esposas dos participantes, coisa que o ma-
rido dela nunca tinha feito, afirmou.
Na caravela só havia um escaler com capacidade máxima para
cinquenta pessoas.
Na hora que todos começaram a abandonar o navio que se en-
chia de água, após o embarque do comandante com os acadêmicos
e suas respectivas mulheres, houve uma rebelião dos vinte tripu-
lantes que ficaram no navio tomado pelas águas.
A Eva insistiu que o seu marido adentrasse para o escaler, por-
que ele, como capitão, queria ficar com o restante da tripulação.
O desespero dos que não iam se salvar os levou a uma agressi-
vidade tresloucada. Pegaram em facas e partiram para agredir o ma-
rido da Eva e os acadêmicos. Houve uma briga generalizada entre
os homens. Vários foram mortos e os feridos abandonados à pró-
pria sorte em mar aberto, incluindo todos os acadêmicos, o profes-
sor e o marido da matriarca que havia sido o primeiro a ser golpe-
ado covardemente.
Depois da luta e do desespero, restaram apenas quinze homens
dentre os da tripulação com as vinte e cinco mulheres no escaler à
deriva em mar aberto, margeando as geleiras para evitar o mar bra-
vio, tendo em vista que os remos foram perdidos durante a luta.
Ao fim de quatro dias, quando já estavam resolvendo arriscar
remar com as próprias mãos para o Norte, por perderem as espe-
ranças de serem salvos por outra embarcação nessa região gelada e
fora das rotas dos marítimas, sem água doce e comida, avistaram ao

78
CAPÍTULO - 7 |
Quem São Elas?

final do dia andorinhas adentrando essa grande fenda no gelo, in-


dicando que havia terra próxima.
Ao anoitecer, daquela fenda refletiam luzes vermelhas, o que
os levaram a imaginar que poderiam encontrar refúgio no destino
das andorinhas, foi quando entraram no corredor e encontraram
essa ilha, assim como nós.
Conseguiram remar até a ilha e decidiram explorá-la em busca
de comida e água doce. Fizeram cabanas e passaram a se alimentar
com plantas, aves e peixes.
Nos primeiros dias, os homens foram corteses com elas. Até o
Carrasco Jacob, o marujo que havia liderado a rebelião e assassi-
nado o esposo da matriarca, vinha sendo gentil com elas, porém,
depois que os homens decidiram morar na ilha com todas elas,
achando que jamais sairiam daqui, os homens passaram a agredi-
las, oprimi-las e estuprá-las.
Quando ouvi aquele relato da Eva, olhei para a Erika estarre-
cido e perguntei: —Onde estão esses trastes?
—Deixa a Eva concluir a história. —Me respondeu a Erika
com uma satisfação vingativa no rosto.
Suportaram essa vida de sofrimento por pelo menos três me-
ses. Eram tratadas como escravas em todos os aspectos: nos traba-
lhos domésticos e para a satisfação dos homens.
Como se não bastasse os estupros diários e muitas vezes cole-
tivos, eles não se contentavam com a própria natureza e passaram
também a sodomizá-las de todas as formas inimagináveis. Nos pri-
meiros dias, as mais belas chegavam a ser estupradas até dez vezes
por dia e até por dois homens ao mesmo tempo.
A Nora, uma jovem mulher, linda, norueguesa, de cabelos loi-
ros, olhos azuis claros e corpo esbelto, de alta estatura, suicidou-se

79
A Ilha Vermelha

com um cipó de trepadeira depois de vinte dias seguidos de estu-


pros diários. Todos os homens da ilha a usaram.
Comecei a sentir náuseas com todos aqueles relatos. O capitão
estava igualmente enfurecido. Vi a Erika com os olhos marejados
cabisbaixa. Passei o braço esquerdo sobre os seus ombros e a
trouxe para perto. Dessa vez, a Eva compreendeu a nossa aproxi-
mação. Que cheiro! Ela tinha um aroma de flores do campo, porém,
com uma fragrância desconhecida. Senti uma sensação maravi-
lhosa que não sei descrever. Tive muita dó em imaginar o sofri-
mento que aquela jovem mulher enfrentou. Certamente, pela sua
beleza, ela também era uma das mais procuradas por aqueles ani-
mais.
Continuando, a Eva falava que gradativamente o inferno delas
foi se aliviando aos poucos. Os homens começaram a perder o vigor
e adoecer, e com isso, o libido. Já não conseguiam mais possuí-las,
não antes de engravidá-las todas, com exceção de uma, que parece
ser estéril.
Mesmo assim, eles as forçaram a práticas alternativas até atin-
gir a volúpia, exigindo sempre que bebessem como forma de humi-
lhação e domínio. O mínimo desperdício era motivo para castigos
cruéis, com chibatadas de vara verde nas costas e pernas. As que
nauseavam, recebiam castigos cruéis, ao ponto de serem forçadas a
comer esterco.
Depois que elas perceberam a fragilidade deles, começaram a
negar a fazer o que eles pediam. Tomavam o cipó das mãos deles,
quando eles as agrediam, foi quando decidiram reagir.
De início, mataram os mais violentos, cravando-lhes no peito
lanças de pau enquanto dormiam. Mas pouparam a vida de alguns,
para que lhes fossem úteis.

80
CAPÍTULO - 7 |
Quem São Elas?

—Não estranhem o tratamento que damos a alguns homens


aqui, pois eles só estão pagando o que nos fizeram. —Disse a ma-
triarca.
—Posso matá-los agora! —Disse o capitão destilando ódio no
olhar.
—Não. Eles ainda tem muito o que pagar. —- Disse ela com
firmeza.
Olhei em volta e percebi que os homens não estavam bem de
saúde. Ruivos, como todas elas, porém, mofinados. Entendi que
elas os mantinham naquele estado como forma de domínio e cas-
tigo prolongado, o que era bastante justo. Era a revanche das mu-
lheres.
Com o passar do tempo, alguns foram morrendo de doença e
não precisaram matar mais nenhum deles com as próprias mãos. —
Continuou.
—Nunca tivemos prazer nisso. —Disse a matriarca.
—E esses homens que aí estão? —Indagou o capitão, ainda
arrebatado com essa história.
—Ainda há alguns poucos estupradores. Outros chegaram na
fragata portuguesa, como vocês, em descobrimento do Éden após
um naufrágio. Nós conquistamos esse jardim pelas nossas próprias
forças, depois de pagar um alto preço.
Lobo —Sem dúvidas. Vocês são todas heroínas.
Eva —Aqui é um lugar de paz e descanso, capitão, mas para
manter a ordem, temos as nossas próprias regras.
—Enquanto estivermos aqui, eu e os meus homens seremos
sujeitos às suas diretrizes, Eva. —Afirmou o capitão reverenci-
ando-a com o leve baixar da cabeça.

81
A Ilha Vermelha

A matriarca nos convidou para ficarmos com elas o tempo


que desejássemos, afirmando que tinham muitos lugares para nos
acomodar, apontando para as várias cabanas de barro negro, cober-
tas de palhas grossas e pretas, que ficavam em círculo, numa grande
clareira aberta na floresta, em forma de aldeia. No centro, uma
grande oca feita da mesma matéria prima, em forma de elipse, orbi-
tada por todas aquelas cabanas menores em volta, formando um
grande círculo elíptico de aproximadamente cem metros de diâme-
tro, à semelhança das moradas tribais dos povos bárbaros encon-
trados nas américas.
Olhei em volta por toda a aldeia e muito me intrigou não ver
crianças, apesar de algumas mulheres estarem grávidas. “Seriam es-
sas as primeiras a engravidar na aldeia? Mas elas já estavam lá há
dezessete anos e algumas tinham engravidado nos estupros, con-
forme falou a matriarca. E onde estão as crianças?” —Pensei.
Todos nós fomos guiados de dois em dois, por três mulheres
para cada par de homem, para cabanas diferentes. Eu e o capitão
fomos levados apenas pela matriarca e a Erika a uma cabana desta-
cada e mais pomposa, que ficava em frente à porta principal da
grande cabana. Era a casa da matriarca. Gostei daquele privilégio.
Olhei para trás. Vi o Caranguejo com os olhos arregalados
olhando para nós, como quem nos pedisse socorro. Ele estava des-
confiado daquela cortesia das mulheres, guiado junto com o Ma-
rujo por três mulheres a uma das cabanas a sudeste da nossa.
Dentre os outros e as mulheres não vi mais o Pombo. Não sei
para onde o levaram, mas depois da história que a matriarca havia
contado, não acho que elas iriam fazer algum mal com ele além do
que ele merecia. Sorte dele.
O vulcão, exuberante e assustador, ficava na nossa reta-
guarda. Dali era possível ouvir os sons de sua constante atividade,
como roncos graves assurdeados, seguidos de leves tremores de

82
CAPÍTULO - 7 |
Quem São Elas?

terra ou apenas o ecoar da sua atividade tectônica. Ele estava mais


vivo do que eu imaginava.
—Por esse tempo que vocês estão aqui, esse vulcão não entrou
em erupção severa nenhuma vez? —Perguntei a Erika.
—Ele está em constante erupção. Naquela encosta a direita
da montanha é possível ver um fino rio de larva que deságua no
mar. —Respondeu a Erika apontando para onde dava para ver, a
semelhança de uma linha irregular vermelha que ligava o alto da
montanha às suas bases, possivelmente indo até o mar.
—Quem sabe depois eu levo você até lá para contemplar a ma-
jestade da nossa Montanha da Vida? —Prosseguiu com um sorriso
sedutor no rosto.
—Eu adoraria!
Ela abriu um sorriso mais fascinante ainda. Aquela mulher ti-
nha uma beleza incomum e sedutora que me fascinava. Aquelas
poucas horas de contato com ela já tinham sido o suficiente para
eu me sentir totalmente rendido a sua beleza. Eu estaria apaixo-
nado?
Logo na entrada da cabana da matriarca havia uma grande
mesa de madeira retangular, com dez cadeiras igualmente de ma-
deira e alimentos sobre a mesa. Dois homens ruivos, magros e de-
bilitados em posição de serviço nos aguardavam em posição refe-
rente.
Ao me aproximar, vi o brasão da Coroa Portuguesa talhado na
madeira.
—Essa mesa foi feita dos restos da madeira da caravela dos
náufragos portugueses. —Se antecipou a matriarca quando viu eu
e o capitão olhando para o brasão.
—Comam conosco. Almoçamos ao meio-dia. —Disse a matri-
arca apontando para as cadeiras, ao tempo em que se sentava na

83
A Ilha Vermelha

cabeceira, sendo auxiliada por um dos ruivos que lhe puxava a ca-
deira cordialmente. O outro ruivo puxou a cadeira da Erika. Eles
não nos olhavam nos olhos, sempre cabisbaixos. Estava claro que
eles viviam sob rigorosa hierarquia. Senti um frio na barriga, ima-
ginando-me na posição deles.
O capitão puxou o relógio de bolso. —Mas agora são apenas
nove horas da manhã! Vocês fazem a refeição do dia cedo aqui? —
Perguntou o capitão admirado.
—Não usamos relógios aqui. Eles não funcionam devido ao
magnetismo da Montanha da Vida. Já são em torno do meio-dia,
acredite. O seu relógio está lhe enganando. Nos habituamos às mu-
danças do clima, que embora possa parecer imperceptível para vo-
cês, depois de alguns anos morando aqui, você interage com a na-
tureza local. Na próxima semana vai acabar o solstício de verão,
quando a luz do Sol ficará mais fraca e a luz do vulcão ganhará mais
importância durante todo o dia, e mesmo assim, a gente consegue
distinguir os períodos do dia. —Continuou a matriarca demons-
trando total conhecimento sobre o clima da ilha.
A matriarca falava com muita empolgação ao se referir a natu-
reza e clima locais. Nos apresentava as ervas, raízes e grãos da flora
local postos à mesa, que lhes serviam de alimentos, acompanhados
de peixes e aves. Desses últimos, nada de diferente. Eram espécies
de peixes e aves familiares, porém, as plantas eram bastante pecu-
liares, com nomes que faziam referências a plantas conhecidas, pela
semelhança, provavelmente nomeados pela própria matriarca.
Mesmo cozidos, mantinham as cores vermelhas arroxeadas e azuis.
Não nos foi oferecido bebida preparada, somente água bas-
tante cristalina que a matriarca disse ser de uma fonte termal reti-
rada próximo da montanha.
Os utensílios eram convencionais de modelo europeu, de cerâ-
mica e ágata. Provavelmente aproveitados dos navios que um dia

84
CAPÍTULO - 7 |
Quem São Elas?

lhes serviram de transporte marítimo, assim como as curtas peças


de roupas que elas usavam.
—Decerto vocês já perceberam a forte influência da Montanha
da Vida sobre tudo que tem vida aqui na ilha. Nós não chegamos
aqui ruivas, com exceção de uma das mulheres, a Freddie. Nós nos
tornamos ruivas com o passar do tempo. Essa é a magia que a mon-
tanha exerce sobre nós. É o nosso batismo como moradores da ilha.
—Prosseguiu a matriarca em tom místico.
—Com quanto tempo após chegar na ilha vocês ficaram rui-
vas? —Perguntei.
—Ao final de três meses já começam a nascer as primeiras me-
chas, começando por baixo. —Respondeu a Erika com um sorriso
safado no rosto, enquanto tocava nas suas belas mechas azuis entre
os cabelos longos.
Viajei nas minhas fantasias mais primitivas e imaginei não sair
daquele paraíso tão cedo. O capitão olhou para mim como quem
pensasse o mesmo. A matriarca, olhou para a Erika em tom mais
descontraído, mas de reprovação moderada de mãe para filha.
—Comam bastante e depois descansem! O Souza está prepa-
rando forras para vocês deitarem. Agora à tarde teremos uma reu-
nião só de mulheres na maloca. À noite, faremos uma grande ceia
noturna. —Falou a matriarca interrompendo a brincadeira, apon-
tando para aquela grande cabana ao centro, ao qual chamou de ma-
loca.
Olhei e vi o tal de Souza, cabisbaixo, parecendo o carcunda de
Notre Dame sem a carcunda, estendendo o que parecia ser camas
de palha pretas trançadas no canto da sala, sobre o chão de barro
negro batido, cobrindo-as de uma pele de animal. A Erika me falou
que era pele de Leão Marinho curtimentada, muito abundante no
promontório à extremidade leste da ilha e muito confortável

85
A Ilha Vermelha

Deitamos ladeados, eu e o capitão. E depois de termos combi-


nado em ficar mais alguns dias na ilha, dormimos profundamente
devido ao cansaço daquele dia agitado.

86
CAPÍTULO – VIII

O Culto

F oi uma boa tarde de sono. Comemos bem e estávamos can-


sados. Sonhei, imaginem? Com a Erika. Mas não entrarei em
detalhes por pudor. Até que as forras de palha cobertas com
macias peles de Leão Marinho eram bastante confortáveis.
A temperatura era sempre a mesma, sem amplitude térmica al-
guma, independente da hora do dia ou da noite. Por volta de 24 e
25 graus célsius. Fazia tempo que não tinha tirado uma tarde de
sono tão gostosa e confortável.
O capitão me acordou advertindo que parecia ser tarde, segu-
rando o seu dissociável relógio de bolso que de nada servia naquela
ilha, descontrolado por causa do magnetismo da montanha. Os re-
flexos da luz do Sol pareciam mais avermelhados. Talvez pelo pre-
púcio da tarde e preponderância da luz vulcânica.
Após uns trinta minutos, a Erika apareceu na porta nos cha-
mando e anunciando que estava na hora de irmos para o banho

87
A Ilha Vermelha

coletivo, nos dando pedaços de sabão vermelho com cheiro de


planta vegetal, feitos de seiva de uma árvore chamada Jasmim Es-
carlata, conforme nos ensinou.
Olhei para o capitão e ele exclamou olhando para a Erika: —
Banho coletivo!?
—Sim! Antes da Ceia Noturna fazemos o banho coletivo na
fonte das águas purificadoras. É um rito de purificação e todos têm
que participar, exceto os doentes. São regras da Ilha capitão. Vocês
não estão doentes, né? —Ela concluiu com essa pergunta em tom
de sarcasmo.
—Não que saibamos. —Respondeu o capitão no mesmo tom.
Seguimos em fila indiana. Dessa vez, de forma aleatória entre
mulheres e homens. O Capeta ia atrás de mim contando suas expe-
riências do almoço e do maravilhoso sono que tirou a tarde. Falou
que as três mulheres que estavam com ele e o Pirata tratavam muito
mal o homem que lhes serviam. Que chegaram a dar empurrões
nele. Falei a ele que elas tinham suas razões justificadas. Ele per-
guntou surpreso o que eu sabia, então falei que depois contaria a
história delas.
—E aí, o que você acha, o capitão vai querer ficar por aqui uns
dias? —Perguntou-me o Capeta.
—Não sei. Mas hoje, com certeza, dormiremos com elas.
Amanhã talvez ele resolva.
Naquela trilha margeada por plantas de folhas largas, a Erika
ia logo à minha frente, mostrava-me as que tinham propriedades
farmacêuticas e as que serviam de alimento.
—Tá Vendo essa planta de folhas roxas-azuladas? —Mos-
trou-me arrancando uma das folhas com as mãos —É a folha da Vi-
ril, que usamos para fazer um chá especial e tomamos na Ceia No-
turna.

88
CAPÍTULO - 8 |
O Culto

—Essa outra é a folha da Fantasia, também usada para fazer


chá para tomarmos na ceia. —Prosseguiu.
— Esses chás são alucinógenos? —Perguntei.
—Um pouco. Vai fazer bem a vocês.
Atravessamos magras pastagens sempre em direção ao pé da
montanha, mas sem perder a tonalidade homogênea da ilha, no seu
vermelho sangue-de-boi para arroxeadas.
Os cimos rugosos da montanha apareciam no horizonte entre
os rios verticais de lava rocheficadas. O pico da montanha estava
coberto com um nevoeiro vaporoso expelido e rapidamente con-
densado, o que indicava o resfriamento da montanha e um des-
canso na atividade vulcânica.
Via-se que o grande movimento plutônico concentrava-se na-
quela parte leste da ilha. Ali havia muitas camadas horizontais de
rochas sobrepostas, indicadas pela matriarca ao apontar, nos mos-
trando.
Ela falou forte a palavra trapps, cuja Erika me explicou tratar-
se de uma palavra escandinava para aquele conglomerado de ro-
chas vulcânicas. As faixas traquíticas, as erupções de basalto, os
tufos, todos os conglomerados vulcânicos. Naquela face da monta-
nha já era possível ver que as correntes de lava e pórfiro em fusão
construíram uma região de horror sobrenatural e magnífico.
À medida que caminhávamos, a montanha ia ficando mais im-
ponente e assustadora. Era um verdadeiro espetáculo da criação,
onde os desgastes de uma natureza fogosa formavam um caos exu-
berante. Um caos perfeito, esse antagonismo é o mistério da cria-
ção.
A impressão que se tinha era que a montanha iria expelir lava
sobre as nossas cabeças a qualquer momento. Ouvia-se um cons-
tante som de fervura, semelhante a um caldeirão de curtume

89
A Ilha Vermelha

borbulhante. Aquela montanha era uma verdadeira panela fervente


de receita única —lavas incandescentes —--. Sentia uma mistura
de medo e empolgação. Certamente estava com a adrenalina a mil.
O fascínio daquela montanha, da ilha, daquelas belas mulhe-
res e de todo o mistério envolvido, gerava em mim aquele senti-
mento de temor magnético, que você sente que está correndo pe-
rigo mas não consegue voltar atrás. “Duvido muito que saiamos
dessa ilha tão cedo.”
Aumentava-se o burburinho de vozes dos nossos companhei-
ros que iam falando entre si sobre cada descoberta. O Bobo da
Corte, sempre tagarela e piadista, vinha atrás às gaitadas com o Eu-
nuco, empolgados com a ideia de tomarem banho todos juntos.
—Agora eu quero ver se você tem pinto Eunuco? —Falava o
Bobo as risadas.
De repente, a matriarca, que ia conduzindo a procissão, virou-
se e falou com voz alta e forte: —Silêncio! Estamos nos aproxi-
mando da Montanha da Vida. Todos devem guardar a reverência
ao espírito Vulcano!
—Espírito Vulcano? —Perguntei sussurrando e surpreso, vi-
rando-me para a Erika, que a distância moderada e feições graves,
nada me respondeu.
O capitão se virou e olhou para mim. Prosseguimos.
Ao se aproximar, a Erika me disse que todas elas prestavam
referência ao espírito da montanha, pois ele é quem nos mantém
vivos naquele lugar. E a matriarca deseja que todos os visitantes
também façam isso. Apenas concordei com expressão de respeito.
—Há momentos em que a montanha se enfurece e precisa ser
aplacada antes que toda a ilha seja destruída e nós venhamos a pe-
recer. —Continuou a Erika em tom de seriedade. Ela acreditava
mesmo no que estava falando.

90
CAPÍTULO - 8 |
O Culto

—E como vocês fazem isso? Como se aplaca a fúria da mon-


tanha? —Perguntei.
—Ofertamos manjares.
—Que tipo de….?
—É ali! —Apontou a Erika para uma lagoa fumaçante ao pé
da montanha, interrompendo nossa conversa.
Finalmente a temperatura estava mais quente ao pé da mon-
tanha. Uns 27 graus.
Surpreendentemente, a matriarca se despiu e subiu no alto de
uma rocha, às margens daquele lago, que tinha em torno de uns oi-
tenta metros de diâmetro. A Erika separou os homens das mulheres
em lados paralelos
—Todos devem se despir e entrar na água para o banho de
purificação. Não é permitido entrar com nenhuma peça de roupas
ou apetrechos. Tirem cordões e pulseiras também. Lavem-se. Usem
os sabões que receberam. —Ordenou a matriarca em tom solene.
Naquele momento ela se virou para o alto da montanha com os
braços erguidos balbuciando ladainhas incompreensíveis, como
quem rezasse aos deuses. A cada hora que passava as coisas iam
ficando mais místicas.
Fiquei um pouco frustrado com essa divisão entre homens e
mulheres. Queria aproveitar aquele banho para contemplar a be-
leza da Erika mais de perto.
A água era morna, numa temperatura reconfortante. Entramos
na água até a altura do peito, olhando para as mulheres que se des-
piam e entravam tranquilamente na água, a quinze metros de nós.
Procurei a Erika entre as mulheres, mas não tive oportunidade
de vê-la por completo, com as outras à sua frente. O corpo da Eva

91
A Ilha Vermelha

era perfeito! Esbelto e atlético. O pouco que vi, pude contemplar as


divisões de sua musculatura das pernas e nádegas enrijecidas.
Na água, que aparentava ter uns 35 graus, o capitão reuniu
todos nós a parte dos outros homens da ilha que ficaram a cinco
metros de distância.
—Senhores, vamos ficar essa noite e participar dessa ceia. Dor-
mimos aqui e amanhã resolvemos o que iremos fazer. Espero que
todos estejam bem hospedados.
—Sim, todos estamos muito bem hospedados! —Responde-
ram unânimes demonstrando total satisfação.
—Eu não estou gostando muito de a gente dormir separados.
Isso nos enfraquece. —Falou o Ariete com desconfiança.
Lobo —Estamos de dois em dois. Aqueles que não estiverem
muito seguros do lugar, façam vigília entre si.
—Vamos estabelecer o assobio da alvorada, como sinal de pe-
rigo, caso aconteça algo com algum de nós. —Sugeri.
—Bom! —concordou o capitão.
Combinamos assim, que caso acontecesse algo ou percebês-
semos algum risco, a gente executaria o assobio que utilizamos na
alvorada da nau, tradicionalmente utilizado por todos os marinhei-
ros e que era do conhecimento de todos.
A água do lago era cristalina. Era possível observar vários
olhos d’águas eclodindo do solo negro, o que mostrava que aquela
água fluía do subterrâneo, das entranhas quente do vulcão. Provei
e percebi que era um pouco salobra. Isso justificava a facilidade de
boiar. As mulheres lavavam-se, umas às outras. Que harem! Eu es-
tava extasiado.
A matriarca, após fazer suas orações à montanha, saltou do
alto da rocha em um mergulho marcial de ponta-cabeça, desapare-
cendo nas águas e reaparecendo momentos depois entre as

92
CAPÍTULO - 8 |
O Culto

mulheres, que a rodearam. Ela falava algo enquanto uma das meni-
nas lavava-lhes as costas.
Uma das mulheres, bastante corpulenta, de ombros largos e
atlética, como que rivalizando a matriarca, saiu do lago, mos-
trando-se por completo para todos nós, com um corpo igualmente
fenomenal, e rodeou o caminho que a matriarca havia subido na
plataforma de rocha.
Dava para ver na sua silhueta quando ela andava de lado. As
suas nádegas preponderantes e seios avantajados. Ela subiu no alto
da plataforma e pulou marcialmente no lago, caindo como uma
lança ereta, de ponta-cabeça, assim como a matriarca, e nadou fe-
rozmente, causando um turbilhão na superfície da água.
Suas pernas pareciam hélices de moinho movidas pela força da
água. Em instantes ela estava novamente entre as mulheres. Era
uma exímia nadadora. Seus ombros largos a destacava das outras.
Por um instante deixei de pensar na Erika como a mais bela de
todas. Vi que a matriarca, diferente das outras mulheres que a ob-
servavam entusiasmada, ignorava aquela nadadora, deixando claro
a existência de uma certa rivalidade entre as duas. “Nós homens
recém chegados éramos o motivo de toda aquela apresentação acir-
rada.”
Ao final de vinte minutos, aproximadamente, todos saímos
da água por ordem da matriarca. Todos nós não pudemos esconder
a nossa atenção voltada para a nudez daquelas mulheres, enquanto
elas não demonstraram qualquer constrangimento e agiam natu-
ralmente.
Algumas, como aquela que nadou ferozmente, parecia até se
exibir lascivamente para nós, propositadamente, percebendo o
nosso fascínio, enquanto ela abria as pernas e enxugava as partes
íntimas com uma espécie de esponja em forma de rolo.

93
A Ilha Vermelha

Aqueles homens famintos pela prolongada abstinência dos


mares estavam mordendo os beiços e revelando a excitação inevi-
tável. Eu sentia um aperto no peito que me fazia suspirar profun-
damente. Era puro desejo!
—Está na hora de irmos pessoal. Enxuguem-se com as folhas
da Esponjeira e vistam-se. Vamos para a Ceia Noturna. —Falou a
matriarca em tom solene.
As mulheres saíram para baixo de uma grande árvore, com
copas abundantes, mas de meia estatura. Os homens foram para
uma árvore semelhante logo à nossa frente. Fomos atrás deles.
Eles começaram a colher umas frutas que pareciam mangas-
rosas e tiravam uma fina casca, revelando uma massa esponjosa de
cor vermelha-amarelada, e passava aquela esponja vegetal no
corpo, que absorvia toda a água, deixando-os secos rapidamente.
Fizemos o mesmo.
Depois de todos vestidos, seguimos as mulheres que foram na
frente retornando para a aldeia. Mas uma vez perdi a oportunidade
de ver a Erika antes dela se vestir.
“Não temos competidores aqui e elas estão sozinhas e caren-
tes. Os homens da ilha são couro e ossos, talvez sequer dão no
couro. Não podemos sair dessa ilha enquanto não desfrutarmos dos
prazeres das mulheres, afinal, estamos mesmo sem rumo na vida;
quem sabe, essa possa ser a nossa nova nação.” —Pensava entusi-
asmado com todas aquelas novidades e experiências. Parecia um
sonho de fantasias.
Apertei o passo para acompanhar a Erika. Ao me aproximar,
senti o cheiro de flores em seus longos cabelos. Seus passos tinham
cadências firmes e harmoniosas, típicas de mulheres guerreiras
nórdicas.

94
CAPÍTULO - 8 |
O Culto

A atmosfera tinha um tom avermelhado sob a luz do vulcão.


Naquele instante, a aurora boreal começava a se revelar.
Com o silêncio dos pássaros, os roncos do vulcão eram mais
acentuados. Os paredões de gelo à nossa volta, a distância, refle-
tiam o brilho da lava incandescente interagindo com o cintilar fre-
nético da aurora boreal, produzindo efeitos pirotécnicos fascinan-
tes em nossa volta, como um domo sobre a ilha. Daria um belo qua-
dro para Jan Dirksz.
—E a ceia, como vai ser?
—Será com todos sentados à mesa, em celebração ao deus
Vulcano. —Disse a Erika.
—Deus Vulcano?
—Sim, ao espírito que dá vida a grande montanha. A matri-
arca é a nossa sacerdotisa e se comunica com o espírito.
Eu não acreditava em nada daquilo, mas com respeito à crença
delas, silenciava em concordância, aguardando o momento de en-
tender se aquela crença tinha algum traço de racionalidade.
Naquele momento sentimos um leve e breve tremor na terra,
seguido de um ronco mais forte vindo da montanha. Todos se as-
sustaram. De várias árvores voaram Andorinhas-do-mar-ártico e
Petréis. Deu para ouvir o grito fino do Caranguejo logo atrás e a
risada estrambólica do Bobo.
A Erika pegou na minha mão e disse que eu ficasse tranquilo,
que tudo aquilo era normal e controlável. —“Como assim contro-
lável?” Pensei
—--. Disse-me que a matriarca tinha total controle sobre o es-
pírito da montanha, e sempre que necessário, ofertavam os manja-
res que o espírito reclama de tempos em tempos.

95
A Ilha Vermelha

Todo esse mistério relacionado àquele vulcão me assustava a


cada história, mas ao invés de medo, sentia curiosidades gritantes.
“Será que a matriarca via esse espírito? Falava com ele?” Eu ficava
navegando nos mares dos meus pensamentos de um romance de
ficção.
—A presença de vocês tem deixado a montanha agitada, mas
por ocasião da Ceia, faremos os batismos de apresentação de vocês
—--. Prosseguiu a Erika.
—Confesso que a cada coisa que fazemos aqui, tenho ficado
mais surpreso e confuso.
—Confie em mim. —Ela me acalmou colocando a mão no meu
ombro, com um sorriso reconfortante.
Na porta da maloca, cada mulher colocou uma espécie de co-
roa ascendente de penachos vermelhos e roxos sobre a cabeça. Elas
formavam pares com cada um dos homens e entravam juntos.
A Erika, após colocar a sua coroa de penas que pegou da mão
de uma das mulheres que a esperava, pegou na minha mão para en-
trarmos. Entrei com ela satisfeito naquele grande salão ovular. Sen-
tamos ladeados próximo da cabeceira de uma grande mesa de ma-
deira não muito trabalhada como a da casa da matriarca.
Dava para perceber que foi feita com vários engates de madei-
ras diversas. Os bancos tinham pernas de madeira, mas o acento era
de pele, possivelmente de focas ou leão-marinho.
A mesa era enorme ao centro da maloca. Estimo que caberiam
até sessenta pessoas sentadas próximas uma das outras, mas só ha-
viam vinte e quatro casais.
Olhei em volta e vi várias forras em um canto, semelhantes às
que usamos para dormir na casa da matriarca. Em outro canto, vi
instrumentos musicais rústicos: tambores, atabaques e chocalhos.
Havia também muitos utensílios de cozinha em outra parte.

96
CAPÍTULO - 8 |
O Culto

Cada mulher sentou ao lado de um dos homens —O que


aquele dispositivo queria dizer?
O capitão ficou à cabeceira com a matriarca, que usava um pe-
nacho maior e bem mais exuberante, que lhe destacava entre as de-
mais. Tinha no meio uma espécie de símbolo: um triângulo, trans-
passado com um V do meio para cima e o que parecia ser labaredas
sobre o V, o que muito provavelmente simbolizava a montanha vul-
cânica em erupção.
Uma das mulheres ficou coordenando o serviço de cozinha,
auxiliada por sete homens da ilha.
Posta à mesa com pratos e utensílios tradicionais do acervo
dos navios, o que me deixava bastante intrigado: “Como elas ti-
nham tantos objetos se as embarcações naufragaram, segundo a
história que a matriarca nos contou? Como elas teriam resgatado
tudo aquilo? Teriam mergulhado nas profundezas e apanhado nos
navios submersos? Mas como? Onde estavam os equipamentos ne-
cessários?” —Tentava entender aquilo tudo.
Com todos sentados à mesa, a matriarca, dando tragos em um
cachimbo rústico, dava baforadas em direção a todos nós com uma
fumaça amarelada e com cheiro de ovo estragado. Pois-se de pé e
começou a discursar:
—Queridos amigos, hoje celebramos mais uma Ceia Noturna
ao espírito da montanha, Vulcano, em agradecimento ao seu aco-
lhimento a todos nós que vivemos aqui nesse jardim secreto, e aos
nossos convidados, que hoje apresento e suplico as boas vindas ao
espírito da montanha.
Ao proferir essas palavras em holandês, ela passou a balbuciar
algumas palavras em outra língua desconhecida, que também não
era o escandinavo.

97
A Ilha Vermelha

Nesse momento ela saiu do seu lugar e se dirigiu a cada um de


nós, soprando aquela fumaça amarela e fétida sobre a nossa cabeça
enquanto proferia palavras que eu não compreendia.
Quando ela chegou próximo a mim, percebi em seu olhar que
ele estava em uma espécie de transe, meio que fora de si, e prosse-
guiu: —Agradecemos, pela nossa liberdade, pelos frutos da terra,
pela atração dos pássaros, peixes e animais que nos servem de ali-
mentos, e pelas providências dos suprimentos que todos nós ne-
cessitamos. Quero desejar boas vindas aos nossos convidados!
Nesse instante todas as mulheres ficaram de pé e disseram
unânimes: —Sejam bem vindos —--! Com as mão estendidas sobre
as nossas cabeças em movimentos frenéticos.
Arrepiei-me todo. O clima tinha ficado estranho e pesado,
como se tivesse uma presença ruim no local. “Seria esse tal espírito
Vulcano?”.
O capitão também fez os agradecimentos em nome de todos
nós. A mesa estava farta. Vez e outra o Caranguejo sussurrava re-
clamando que o tempero não estava adequado. Comemos de tudo:
peixes, aves, carnes de foca e ervas. Não serviam qualquer outra be-
bida além de água. Parece que elas não consumiam álcool nesse lu-
gar
Depois que todos estavam fartos, aqueles homens fantasmas
recolheram a mesa e trouxeram taças e duas enormes jarras trans-
parentes de chás, uma com o líquido de cor roxo-azulado que logo
identifiquei como sendo de folhas de Viril que a Erika havia me
mostrado no caminho para o banho. O outro líquido era averme-
lhado que devia ser o de folhas da Fantasia.
—Os chás que lhe falei. —Sussurrou a Erika ao pé do meu ou-
vido.
Nesse momento entraram com o Pombo no recinto, com os
olhos absortos e o sentaram à mesa, ao lado da moça que estava

98
CAPÍTULO - 8 |
O Culto

coordenando o jantar. Fez-se nesse momento, vinte e cinco casais


em volta da mesa. Os homens que trabalhavam, saíram e fecharam
a porta da maloca.
Não entendi porque o Pombo não participou do jantar, mas o
trouxeram para participar do chá. Será porque o jantar era de cor-
tesia e a ceia era uma cerimônia religiosa obrigatória a todos?
A Erika havia me falado de batismo, uma espécie de apresen-
tação ao espírito do Vulcano. Talvez o Pombo não participou por-
que já havia sido batizado em outra ocasião.
A matriarca levantou-se e pediu silêncio: —Queridos, as me-
ninas vos servirão o chá Viril —enquanto ela falava, servia a taça
do capitão com o chá roxo, seguida pelas outras mulheres.
A Erika colocou o mesmo chá na minha taça.
—As mulheres tomarão o chá da Fantasia. —Prosseguiu a ma-
triarca.
Agora as próprias mulheres encheram suas taças com o chá
vermelho.
—Fiquem todos de pé em reverência ao espírito da montanha!
—Ordenou em tom solene, a matriarca.
Todos levantaram e ela prosseguiu com a taça na mão. —Esse
chá representa a essência da montanha. Hoje o capitão Lobo e seus
homens iniciaram o batismo nas águas da purificação e agora com-
pletam o ritual com a Ceia Noturna.
De agora em diante, após beberem esse chá sagrado, serão co-
nhecidos do espírito Vulcano e terão parte nesse paraíso perdido.
Poderão permanecer, se quiserem, ou voltarem aqui quando quise-
rem, se resolverem ir embora. Que o espírito Vulcano os receba e os
aprove em harmonia! Brindamos e tomamos todos!

99
A Ilha Vermelha

Acompanhando a matriarca e o capitão, todos brindaram com


os mais próximos e viraram as suas taças de uma só vez. O chá roxo
que bebi tinha um gosto meio adocicado, semelhante a garapa de
açúcar trazida das índias americanas, mas ao final, tornou-se
amargo no paladar, como raiz Forte.
Depois de brindarmos, as mulheres, já mais agitadas, saíram
todas da mesa e foram para o lado do fundo da maloca onde esta-
vam os instrumentos musicais. Pegaram aqueles tambores e ataba-
ques rústicos, feitos de madeira e pele, e começaram a tocar e a dan-
çar, em rodopios com os braços abertos ao alto, entoando uma can-
ção numa língua rúnica desconhecida, talvez em escandinavo. Cha-
maram todos os homens para dançar com elas.
Entramos naquela balada cerimonial de forma tímida. Os ho-
mens da ilha, que já conheciam todo o processo, agiam de forma
automática. Cada mulher pegou o seu par pela mão e começamos a
bailar em círculos, em movimentos de rotação e translação, à seme-
lhança do planeta terra junto de si e em torno do Sol.
Talvez por aqueles movimentos e ritmos, comecei a ficar um
pouco zonzo, mas cada vez mais empolgado. Os movimentos da
Erika junto de mim me deixaram excitado. Vi que algumas mulhe-
res começaram a se despir.
O Marujo estava totalmente fora de si, dando gaitadas extra-
vagantes. Naquele êxtase da satisfação misturada com excitação,
também comecei a rir, vendo a Erika começar a tirar a sua camiseta.
Tudo ficou confuso e escuro à minha volta. Perdi os sentidos.

100
CAPÍTULO – IX

A Reunião

A
Acordamos deitados no canto da sala da casa da matri-
arca, sobre as mesmas forras que havíamos dormido na
tarde do dia anterior. O capitão se levantou de supetão,
meio desorientado e assustado. —Que horas são?
—Não faço ideia, capitão.
—Onde está todo mundo?
—Calma Lobo, já vi que as mulheres estão lá fora e o Souza
está na cozinha.
Eu ainda falava quando o Souza atravessou a sala levando à
mesa peixes e um pão feito de um tipo de trigo local para o nosso
desjejum. Nos sentamos à mesa. Havia uma jarra com uma bebida
quente, de tom amarronzado. Cheirei; parecia chá de ervas. Acha-
mos melhor não tomar até saber o que era, para não correr o risco
de perder a consciência como na noite passada.
—Você lembra de ontem à noite? —Perguntei ao capitão.

101
A Ilha Vermelha

—Só lembro que estávamos dançando, sob o som daquelas ba-


tidas hipnotizantes. Vi que as mulheres começaram a se empolgar
e tirar a roupa enquanto dançavam. A matriarca começou a tirar a
minha roupa, daí não lembro mais de nada.
—Também a minha memória só vai até o ponto em que vi a
Erika tirando a blusa e ver aqueles seios preponderantes de auréo-
las rosadas… Você acha que foi o chá?
—Sem dúvida!
—Quando fui ao banheiro —que ficava num compartimento
de barro e palha separado da cabana, com piso elevado de madeira,
a fim de que os resíduos ficassem depositados no compartimento
de baixo —, senti-me um pouco dolorido.
—Eu também me sinto assim.
—Você acha que elas nos usaram ou fomos voluntários incons-
cientemente?
—Disso eu não tenho dúvidas. Fomos muito bem usados! —
Afirmou o Lobo com risadas.
O que aconteceu na noite anterior teria sido uma espécie de
culto erótico. Deve ser esse o modo de adorar o espírito da monta-
nha. Todas aquelas mulheres seriam sacerdotisas do prazer, à se-
melhança dos cultos do deus Baco, dos antigos sumérios. A Erika
vai ter que me esclarecer todas essas questões.
Enquanto comíamos, o Lobo me disse que iria reunir nossos
homens para decidir o que fazer daqui para a frente. Mas a nossa
vontade era de permanecer ali por mais algum tempo e apostáva-
mos que os homens concordariam com essa ideia.
Eu senti uma leve ressaca e indisposição. Só pensava em tirar
mais uma tarde de sono.
A Erika apareceu na porta nos cumprimentando com um bom
dia.

102
CAPÍTULO - 9 |
A Reunião

—Bom dia Erika —Respondeu o capitão —. Gostaria de reu-


nir meus homens na maloca para discutirmos o que vamos fazer
daqui em diante.
—Na maloca não pode ser, capitão. Me desculpe. Ali é o tem-
plo sagrado do deus da montanha. Mas vocês podem se reunir em
uma das cabanas desocupadas mais a nordeste da aldeia.
Depois que o capitão concordou, a Erika perguntou como eu
estava. Se eu tinha dormido bem. Eu respondi que sim. Ela falava
com um tom de intimidade e delicadeza incomum. Tudo indicava
que houve sim, algo de mais íntimo entre nós na noite anterior. Que
pena que a minha memória me negava aquela lembrança. Se houver
votação para decidir ir embora, com certeza serei contra. Tenho
que conhecer melhor a Erika, quem sabe, até levá-la comigo.
Em resposta ao capitão a Erika disse que a matriarca estava na
caça de leões-marinhos na extremidade sul da ilha com outras mu-
lheres. Que caçavam com lanças e arco e flecha.
O Lobo insistiu que não deixassem ele de fora na próxima ca-
çada. A Erika respondeu que nos chamariam, contudo, dessa vez
precisávamos descansar, no que lhe dei razão.
Eu e o capitão trocamos o olhar como quem silenciosamente
confirmava a suspeita em comum.
O capitão saiu na frente para reunir os homens. Aproveitei
aquele momento a sós com a Erika: —O que aconteceu ontem à
noite?
—Fizemos o nosso culto sagrado ao espírito da montanha.
Apresentamos vocês ao espírito da montanha e vocês foram acei-
tos.
—Isso eu sei. Quero saber detalhes, já que não lembro de nada.
—Não há lembranças vivas daquilo que fazemos guiados pelo
espírito da montanha. —Respondeu a Erika em tom de mistério.

103
A Ilha Vermelha

—Quer dizer que você também não lembra do que aconteceu


ontem?
—Não!
—E o que tira as nossas memórias, são os chás?
—Os chás são as portas abertas para o espírito da montanha
em nossos corpos. Dali em diante, somos guiados por ele.
Essa resposta me deixou um tanto quanto frustrado. Não im-
porta o que fizemos, não há lembranças vivas nem para nós, nem
para elas? Que coisa mais sem graça. E por que a Erika está dife-
rente comigo? Pelas poucas lembranças, era possível deduzir que
estávamos todos nos dirigindo para momentos íntimos. O próprio
capitão concordou com isso. Achei tudo aquilo muito estranho.
Ela saiu para os seus afazeres do dia e eu fui atrás do capitão.
Fomos de cabana em cabana, reunindo os homens.
Disse ao capitão o que a Erika havia falado, que elas também
não tinham lembranças do que aconteceu na noite. O capitão ficou
bastante incrédulo quanto a isso. —Pois alguém tem que ficar com
o domínio da cerimônia. —Disse ele.
—A Erika disse que tudo fica sob o controle do espírito da
montanha.
—Você acredita nisso? —Perguntou-me.
—Confesso que estou confuso.
Em uma das cabanas encontramos o Pombo fazendo os traba-
lhos domésticos, como os outros homens da ilha. Ele não era mais
o mesmo. Andava cabisbaixo como os demais, não proferia pala-
vras; não nos olhava nos olhos e tinha o olhar distante, com a pupila
dilatada. Tentei chamar a atenção dele, mas ele apenas me fez reve-
rência para fazer o que eu mandasse. “Como pôde mudar tão rápido
assim? Teria ficado traumatizado com as noites em claro sob as

104
CAPÍTULO - 9 |
A Reunião

águas frias, correndo o risco de se afogar ou ser devorado por um


tubarão? Ou era apenas mais uma de suas artimanhas?”
Depois que todos os doze estavam reunidos, nos dirigimos a
uma cabana desocupada ao sul da aldeia. No caminho, íamos fa-
lando sobre a noite passada. Todos relataram se sentirem doloridos
nas partes íntimas, exceto o Pirata, que dizia não sentir nada de
incomum.
Concordamos também da falta de lembranças, exceto o Ca-
peta, que começou a dizer que estava com flashes de memória em
ter visto todas elas nuas até o momento em que a matriarca lhe fez
tomar mais uma caneca de chá.
—Eu lembro vagamente, porque estava meio tonto, que todas
as mulheres tiraram as roupas e depois tiraram as nossas, jogando
todas no centro da roda de dança, depois, colocaram as forras em
círculo e nos deitaram. Quando a moça que estava comigo foi me
deitar, ela olhou nos meus olhos e foi até a matriarca, que veio a
mim com mais uma caneca de chá e fez que eu bebesse, daí não
lembro mais de nada. —Afirmou o Capeta.
O Capeta é um homem alto e corpulento, bastante forte, da-
quelas raças que não precisa de muito exercícios físicos para de-
senvolver uma musculatura avantajada. É possível que ele tenha
mais resistência aos efeitos do chá, sendo necessário tomar o dobro
da dose que tomamos para surtir o mesmo efeito. E o que ele falou
confirma a tese do capitão… “Elas estavam no controle da situação.
A Erika não estava sendo sincera comigo.
—Dá próxima vez eu não vou tomar a porra daquele chá!
Quero ficar lúcido para curtir a noitada para ver o que acontece. —
Disse o Timoneiro.

105
A Ilha Vermelha

—Eu acho que elas não deixam participar da cerimônia se não


tomar o chá e sentir os seus efeitos. Você viu o que fizeram com o
Capeta.
—Eu não tomarei, e pronto! —Insistiu.
—Se o Timoneiro não tomar, eu também não tomarei! —
Acompanhou o Ariete.
—Pessoal, vamos com calma. Não precisamos conflita-las. Po-
demos resolver isso numa boa conversa. —Disse o capitão.
—O Marujo amanheceu sangrando! —Disse o Caranguejo com
certa indignação.
—É verdade? —Perguntou o capitão ao Marujo.
—Sim capitão. Elas abusaram da gente. Eu nunca possui mu-
lher e tinha o meu prepúcio intacto, que amanheceu rompido.
—Não vamos pensar que fomos abusados, todos podem ter
participado de forma inconsciente mas não forçados. E se assim
fosse, teria coisa melhor que ser abusado por lindas mulheres? —
Falou o capitão com sarcasmo, acompanhado pela gargalhada de
todos, exceto o Caranguejo que se mostrava bastante irritado.
Caranguejo —De forma voluntária eu não, eu nunca faria isso!
Todos riram e começaram a tirar sarro do Caranguejo. —Até
que enfim tiraram a virgindade do Caranguejo! —Diziam eles.
—Pessoal, ontem à noite nós participamos de um culto erótico
ao espírito da montanha. É um tipo de culto que se adora ao deus
através da sexualidade. Essa prática é muito antiga mas comum,
desde os antigos povos sumérios.
Talvez elas ou a própria matriarca professava essa religião an-
tes de chegar aqui, agora direcionam o culto à montanha, à adora-
ção desse tal deus Vulcano. —Tentei hipotetizar a fim de tornar a
situação mais lógica.

106
CAPÍTULO - 9 |
A Reunião

Todos começaram a falar sobre o assunto de forma entusias-


mada.
—Mas sem lembranças, que graça tem isso? —Falou o Qui-
xote, tendo a concordância de todos. Não se falava em outro as-
sunto.
Entramos na cabana. Tinha uma mesa pequena. Achamos por
bem sentarmos ao chão, em círculo, para que todos se acomodas-
sem igualmente.
O capitão tomou a palavra e passou a expor as nossas possibi-
lidades. Ficar naquela ilha junto com aquelas mulheres ainda es-
tava envolto em incertezas, porque ainda não sabíamos nada sobre
elas e a cada ato que elas realizavam relacionado aos seus costumes
e religião, era muito misterioso.
O tratamento delas com os homens da ilha não era o dos me-
lhores. Claramente a gente via que eles não tinham vez aqui e eram
tratados como escravos. —Nós estávamos dispostos a viver sob
esse jugo das mulheres? —O capitão concluiu nos fazendo essa
pergunta.
—No caso de partir, ainda não temos lugar seguro para viver.
Aquela caravela que nos seguiu mostrou que eles estão à nossa cap-
tura, dispostos a fazer valer a sentença do capitão Cook, e com cer-
teza, a caravela ainda deve estar rondando próxima, à nossa pro-
cura. Decidimos sair errantes pelos mares sem possibilidade de re-
ver nossos familiares nas terras do Rei. Mas buscar refúgio em ou-
tras terras também é uma boa ideia. —Prosseguiu o capitão.
As palavras do capitão mostraram claramente a sua preferên-
cia em permanecer na ilha.

107
A Ilha Vermelha

—A matriarca falou ontem que após o nosso batismo, estaría-


mos livres para permanecer na ilha ou retornar quando quisésse-
mos, em caso de sairmos. —Lembrou o Quixote.
—E o que vocês acham de ficarmos aqui mais alguns dias e de-
pois fazermos uma nova reunião daqui a uma semana, para delibe-
rarmos sobre a nossa partida ou não? —Propus.
—Eu acho uma boa ideia. —Respondeu o Quixote seguido por
todos os outros.
—Pois faremos isso. Vamos ficar por mais uma semana. Será o
tempo em que a gente vai conhecer melhor essa gente. —Concluiu
o capitão.
Ficou, enfim, decidido que ficaríamos mais uma semana. Di-
ante dessa resolução, resolvemos ir até a nossa embarcação para
pegarmos nossos pertences pessoais.
Quando saímos da cabana, a matriarca estava sob a sombra de
uma árvore com a Erika e outras mulheres reunidas. Mais à direita,
vimos os homens levando um leão-marinho enorme numa padiola
de madeira e rodas de timoneiro sem as manivelas.
Eu e o capitão nos dirigimos a elas enquanto os outros foram
até a praia. Ao nos aproximar, a matriarca perguntou: —Então
Isaac, como foi o seu dia?
—Bem. Obrigado por perguntar, Eva.
—E a reunião, o que decidiram?
—Decidimos ficar com vocês, se você permitir, é claro.
—Que notícia agradável! É claro que permito! —Respondeu a
matriarca entusiasmada.
—E seus homens, onde estão indo? —Nessa hora a Erika olhou
para mim desconfiada.
—Vamos pegar alguns pertences pessoais na nossa nau.

108
CAPÍTULO - 9 |
A Reunião

—Muito bom! Fiquem à vontade.


Eu e o capitão seguimos atrás dos demais, passando pela
mesma trilha que chegamos. Haviam mais pássaros, mas parece
que na ilha não haviam animais terrestres além das focas e dos
leões-marinhos, ao menos que tenhamos visto até aquele momento.
A falta de trilhas e de rastos deixava isso claro. Era o que o Ariete
já havia comentado. Ele tinha certa experiência com caça. Mas com
certeza aquela abundância de pássaros garantiria uma rica dieta de
aves.
—A nossa melhor caça são as mulheres! —Falou o Quixote em
tom de brincadeira e todos entraram em gargalhadas, soltando
cada um à sua piadinha pervertida
Todos estavam felizes e satisfeitos. Estávamos vivendo um so-
nho. Éramos os reis da ilha. Eu acreditava que a nossa estada não
seria somente de uma semana. Depois de passarmos a semana, com
certeza, iríamos decidir ficar mais tempo e daí por diante. “E
quando começarem a se envolver com as mulheres.” —Pensava co-
migo mesmo, imaginando planos matrimoniais com a Erika.
Quem diria. A nossa sorte mudou do inferno ao céu num sim-
ples achado dessa ilha. O destino estava mesmo ao nosso favor.
Ao se aproximar da praia, demos de cara com os homens vol-
tando alvoroçados ao nosso encontro.
—O que houve? —Perguntou o capitão.
—A nau sumiu!

109
CAPÍTULO – X

A Sabotagem

T
odos estavam alvoroçados falando ao mesmo tempo.
—Eu disse que não podíamos confiar nessas mulheres! —
Disse o Caranguejo em tom de desespero.
— Calma, calma! Vamos procurar pela praia. É possível que
as correntes possam ter levado a nau para outro ponto. —Falou o
capitão tentando acalmá-los.
—Impossível capitão! Eu fixei muito bem as âncoras! —Retru-
cou o Cachimbinha.
—Pessoal, aqui só tem mulheres e os poucos homens que tem
são uns inúteis. Não vamos nos precipitar, vamos procurar pela
orla como sugeriu o capitão — Completei.
Eu já sentia que aquele sumiço não era obra da maré nem dos
ventos, mas de ação humana e que não íamos encontrar coisa boa.
“Mas o que elas poderiam fazer com a gente? E se elas só estavam
querendo que a gente ficasse na ilha com elas para estabelecer

111
A Ilha Vermelha

família, já que aqueles homens eram imprestáveis? Não seria tão


ruim”.
Outra possibilidade era de algum dos homens terem aprovei-
tado a ceia noturna e fugido com a nossa embarcação. Essa ideia me
pareceu bem razoável. Compartilhei com todos essa hipótese.
—Realmente, muitos daqueles homens ficaram de fora du-
rante a ceia. Apagamos por toda a noite, não temos a mínima ideia
do que estava acontecendo. —Refletiu o capitão levando a mão à
barba.
—Alguém viu o Pombo? Não teria sido aquele palerma, se
passando por lesado na nossa frente, só aguardando a oportuni-
dade para aprontar mais uma vez? —Disse o Timoneiro.
—Era para o capitão ter matado ele quando ele tentou me ma-
tar, e não só tê-lo jogado ao mar. Coisa ruim não morre fácil. —
Protestou o Caranguejo.
—Senhores, por favor, não vamos nos precipitar em especu-
lações vazias, vamos começar a agir. —Disse.
O capitão dividiu o pessoal; metade para a direita e metade
para a esquerda, e determinou que vasculhasse toda a faixa de
praia.
Devíamos olhar atentamente para as marcas na areia e a pre-
sença de algum objeto na água, para encontrarmos alguma pista.
Fui para o leste da ilha com mais cinco homens. O capitão se-
guiu para oeste com os outros cinco. Separei dois dos homens para
andar mais próximo das águas e observar o mar; eu, o Marujo, o
Timoneiro e o Ariete vasculhamos a praia em linha. Eu ia mais pró-
ximo da floresta.
A areia negra dificultava ver os detalhes, por isso precisamos
andar em linha e meio abaixados, em passos lentos, para tentar ver
algum vestígio.

112
CAPÍTULO - 10 |
A Sabotagem

Logo o Timoneiro começou a reclamar das costas. Realmente,


depois de um tempo naquela posição as costas começam a doer.
Sugeri uma parada de alguns minutos a cada intervalo aproximado
de meia hora.
Nessa marcha íamos demorar bastante para percorrer toda a
faixa de praia, mas era melhor ser uma procura eficiente do que
perder algum detalhe. Estávamos dispostos a encontrar o nosso
barco a qualquer custo. Era o nosso portal entre aquela ilha da fan-
tasia e o mundo real. “Já pensou se ficarmos sem barco? Ficaríamos
presos naquela ilha para o resto da vida. O capitão deveria ter dei-
xado pelo menos um dos nossos homens na nau.” Essa ideia me dei-
xou perturbado.
Depois de caminharmos cerca de dois quilômetros, observa-
mos um fiorde com pelo menos duzentos metros de largura, aden-
trando a ilha por cerca de um quilômetro. As ondas batiam ruido-
samente contra as rochas preponderantes. Havia também uma en-
seada com várias focas e leões-marinhos divididos por uma fina
faixa de terra que se estendia para o mar e se abria entre muralhas
de rochedos, espécie de escarpa pontiaguda e esplendorosas, com
camadas marrons avermelhadas que separavam leitos de tufos.
Os mamíferos que nos avistaram começaram a se alvoroçar.
Com certeza era o local onde a matriarca e as mulheres os caçavam.
Tanto as focas como os leões-marinhos tinham filhotes, o que
mostrava que as mulheres não faziam caça predatória, mas só ca-
çavam o necessário para comerem numa dieta variável de aves e
peixes. Do contrário, aqueles mamíferos não escolheriam aquela
ilha como berçário.
—É melhor a gente voltar daqui. —Disse o Ariete.
—Não! vamos um pouco mais à frente. É só a gente contornar
pela floresta para não mexer com os leões-marinhos.

113
A Ilha Vermelha

Nenhum sinal da nossa embarcação, mas tínhamos que conti-


nuar. Dava para ver que além daquele atol das focas ainda havia
muita faixa de praia que rodeava a montanha para a face leste da
ilha.

Demos a volta adentrando um pouco as margens da floresta


além dos limites do fiorde. Observei em algumas plantas menores
por entre as árvores, aquelas com as folhas que a Erika havia me
falado, os pés de Viril e de Fantasia que elas usam para fazer aque-
les chás. Parecia serem abundantes na ilha. “Maldito chá! Tirou a
lembrança do que pode ter sido a melhor noite da minha vida.” —
Pensei, rompendo um sorriso involuntário.
Não haviam rastos de animais pela floresta, o que indicava que
realmente, todos os seres vivos daquela ilha eram imigrantes. Isso
também indicava que a ilha não era muito antiga, assim como a
areia preta do solo, vulcânica, sugerindo que aquela ilha tinha se
formado há pouco tempo, e pela atividade do vulcão, ainda estava
em formação e crescimento. Era possível que aquele buraco em
pleno continente gelado ainda iria se expandir aumentando o ta-
manho da ilha.
Que coisa magnífica! Será que um dia uma das nações euro-
peias iria descobrir aquela ilha e colonizá-la? —Pensei.
Voltamos à praia e continuamos as diligências. Com mais dois
quilômetros de caminhada, nos aproximamos de um corredor de
lava incandescente que descia do alto da montanha até o mar,
transformando aquela parte da praia em uma verdadeira sopa fer-
vente, numa luta incessante entre as águas e a lava incandescente,
que ao tocar a ondas, rapidamente transformava-se em basalto sob
os estalos químicos que rompiam em grandes cortinas de fumaça.
A lava tocava o mar e era imediatamente explodida pelas on-
das, gerando constantes nuvens brancas que se dissipavam no ar.

114
CAPÍTULO - 10 |
A Sabotagem

Era um belo espetáculo de se ver. Dava para sentir o aumento sutil


da temperatura naquele local. Era o fim da linha.
—Se a nossa nau tiver sido arrastada até essa parte da praia,
deve ter incendiado por completo nessas águas ferventes. —Co-
mentou o Marujo.
—Mas se isso tivesse acontecido, deveria ter algum vestígio
boiando por estas bandas, como pedaços de madeira carbonizados.
—Pontuei.
Na parte da montanha que ficava mais para dentro da flo-
resta, observei que nas margens do rio de lava havia uma parte que
não parecia ser natural, mas que tinha havido intervenção humana.
Fiquei curioso.
—Vamos até ali. —Convidei-os seguindo uma trilha entre as
bases da montanha e a floresta.
Ao nos aproximar, observamos a entrada de uma caverna com
cerca de dois metros de largura por três de altura em formato de
triângulo irregular, com um vão na entrada lineada por pedras la-
vradas, com uma trilha que adentrava a floresta para a direção su-
doeste, que muito provavelmente ia dar na aldeia. Aquele lugar era
frequentado pelas mulheres.
Fui entrando na caverna sob os olhares secundados do resto
da equipe. Vimos nas paredes laterais de basalto, pontos de peque-
nas bases com o que pareciam ser as mesmas velas de ceras negras
usadas na aldeia, enfileiradas lado a lado, usadas para iluminar o
corredor da entrada.
A vinte metros adentro, o corredor de entrada dava num
grande pavilhão iluminado por um caldeirão de lava fervente, em
formato arredondado com pelo menos uns três metros de diâmetro,
com dois troncos, um de cada lado, devidamente alinhados, com
pontas bifurcadas como cangalhas. No lado direito, havia uma

115
A Ilha Vermelha

escada esculpida na rocha, que dava acesso a uma espécie de tram-


polim ou plataforma que se projetava acima daquela piscina de
lava, a uma altura de três metros, onde havia um buraco no centro.
Envolta da piscina incandescente, o terreiro de chão negro era
limpo e batido, com pegadas recentes de pés envolta, o que indi-
cava atividade recente naquele lugar. “Seria um local de culto de
adoração ao espírito da montanha?” Achei muito intrigante.
O Quixote, que estava com a gente, deduziu que ali era um lu-
gar de sacrifícios humanos, mostrando uns desenhos na parede ro-
chosa. Me aproximei e vi que uma das ilustrações feita de tinta ver-
melha, mostrava duas pessoas sobre o trampolim; uma aparente-
mente manietada na figura de um homem e a outra, com cabelos
longos, aparentando ser mulher, como se estivesse empurrando o
homem para dentro da piscina de lava logo abaixo, enquanto ao re-
dor da piscina, várias outras figuras de mulheres pareciam dançar
com instrumentos semelhantes aos que as mulheres usavam na ceia
da noite passada.
Haviam pinturas semelhantes por toda a parede em volta. Vi
uma pintura que parecia ser uma mulher dando à luz na plata-
forma, com a criança caindo dentro do caldeirão.
—Vamos sair daqui! —Alertou o Cachimbinha.
—Não acho que esses desenhos foram feitos por elas. São pin-
turas silvestres, aparentemente muito antigas. Pode ser de habitan-
tes ancestrais da ilha. —Completei reflexivamente e prossegui: —
Vamos voltar, mas não contém desordenadamente para os outros o
que viram, para não causar alvoroço. Deixem que eu conto para o
capitão e aos poucos vamos falando uns para os outros sem causar
alvoroço. —Adverti-os.
Voltamos sem achar vestígios da nossa nau. Já estávamos com
fome, o que indicava que já era por volta do meio-dia.

116
CAPÍTULO - 10 |
A Sabotagem

Ao chegarmos no local do marco zero da praia de onde saímos,


o capitão e os outros já nos aguardavam. Ao nos aproximar o capi-
tão se antecipou: —Vocês acharam alguma coisa?
—Nada capitão! —Exclamei.
—Vimos essa pequena lasca de madeira que tem a cor da nossa
nau, mas não tenho certeza. —Indicou o Lobo nos mostrando um
pedaço de madeira lascada com pelo menos duas polegadas.
—O Capeta e o Eunuco estão mergulhando para ver se acham
algo submerso. —Prosseguiu.
Olhei e vi o Capeta e o Eunuco que em cada instante, submer-
giam para tomar ar, cada vez mais se distanciando da praia, na área
em que deixamos o nosso navio.
—Vimos algo muito estranho numa caverna da montanha,
próximo à praia. —Relatei ao capitão tudo o que havíamos visto de
forma discreta.
—Vamos nos organizar. Se não acharmos nosso navio, vou
confrontar a matriarca. Vamos começar a nos impor com essas mu-
lheres. —Disse o capitão com certa impaciência.
De repente, o Capeta apareceu na superfície, e veio nadando
rapidamente em nossa direção, segurando em uma das mãos o que
parecia ser um pequeno vaso de cerâmica. Quando chegou na mar-
gem e conseguiu ficar de pé, levantou aquele vaso azul com uma
das mãos e exclamou: —Achei o nosso barco!
—Ele está no fundo? —Se antecipou o capitão.
—Sim! encontrei no fundo com um grande buraco na lateral
esquerda, como que aberto a machadadas.
Nesse momento o Eunuco subiu para tomar ar, um pouco mais
a nordeste. Demos sinal para que ele voltasse.

117
A Ilha Vermelha

O capitão chamou a todos.


—Senhores, fomos sabotados por essas mulheres. A brinca-
deira acabou! A que profundidade está o barco Capeta?
—A uns cinco metros, senhor.
—Não está muito fundo. Quem souber mergulhar, vamos ten-
tar achar nossas facas e espadas. As garruchas talvez não sirvam
mais, com a pólvora molhada..
O capitão ainda falava quando se assustou com uma picada em
suas costas. Quando ele se virou me pedindo para ver o que tinha
lhe atingido, vi uma flecha miniatura, como dardo, cravada em sua
omoplata esquerda. Assustei-me e peguei nela para arrancar. —
Não se mexa, capitão!
De repente, antes mesmo de retirar o dardo das costas do ca-
pitão, também senti uma picada forte no meu pescoço. Com a dor,
arranquei rapidamente de forma involuntária um pequeno pedaço
de madeira roliço, com um espinho numa ponta e um pequeno pe-
nacho vermelho na outra extremidade. Era um dardo. Só tive
tempo de perceber o capitão caindo aos meus pés e os outros ho-
mens se assustando com as picadas dos dardos que vinham de vá-
rios pontos da floresta, quando de repente, tudo escureceu à minha
volta. Apaguei.

118
CAPÍTULO – XI

Prisioneiros

A
cordei ouvindo gritos distantes de socorro, que foram fi-
cando mais fortes à medida que eu ia recobrando a consci-
ência. Me vi em uma cova escavada na terra, com pelo me-
nos três metros e meio de profundidade, em formato de cone trian-
gular, com a entrada de diâmetro mais curta e base mais larga, se-
lada acima com uma grade de madeira amarrada com cipós.
Reconheci tratar-se dos gritos do Caranguejo, que gritava
meio abafado próximo dali. Ele deveria estar numa cova seme-
lhante à minha. Era provável que os outros também estivessem na
mesma condição, cada um na sua cova individual, para ficarmos in-
comunicáveis. “Era a estratégia das mulheres. Nos separar para nos
enfraquecer?”
Olhando para cima, vi que a minha cova ficava sob a sombra
das árvores. Não conseguia ouvir o barulho das mulheres. Talvez
aquele lugar ficava um pouco afastado da aldeia. Era por isso que
não tínhamos visto essas covas preparadas para os prisioneiros.
Com certeza não foram cavadas da noite para o dia.

119
A Ilha Vermelha

Senti o meu pescoço dolorido. Passei a mão e senti o local da


picada um pouco saliente. Elas usaram um dardo com algum tipo
de veneno que tirou os nossos sentidos.
Aquelas varas semelhantes ao bambu que todas usavam não
são tão inocentes quanto parecem. Na verdade se trata de uma
arma bastante eficiente, pois elas disparam aqueles dardos envene-
nados, mas… “E se não foram elas, mas outros habitantes da ilha, os
quais, inclusive, teriam afundado a nossa nau?” —Pensei com as-
sombro naquela possibilidade.
Meus companheiros começaram a chamar uns aos outros para
saber se todos estavam por perto. Respondi quando ouvi o capitão
pronunciar o meu nome. Todos responderam.
O Caranguejo não conseguia se acalmar. Estava em prantos pe-
dindo que tirassem ele dali antes que ele morresse sufocado. O coi-
tado era claustrofóbico.
Ninguém tinha ideia de quanto tempo estávamos ali, nem que
hora era do dia, mas muito provavelmente já era tarde, pois pelo
pouco que se via do céu entre a copa das árvores, era possível ver o
tom mais avermelhado do prepúcio antes da aurora boreal apare-
cer. Eu estava faminto.
Depois de quase três horas, aproximadamente, chegou um dos
homens da matriarca e desceu numa corda, uma vasilha com um
bolo e uma caneca de água. Não era o Souza que me trouxe a co-
mida, era um sujeito mais magro ainda, que aparentava ter uns ses-
senta anos ou mais.
Pelos sons próximos, dava para perceber que os outros tam-
bém estavam recebendo refeições e água. Fiquei aliviado. Isso des-
cartava a hipótese de que tínhamos sido atacados por outra tribo
de bárbaros. Foram mesmo elas que nos atacaram.

120
CAPÍTULO - 11 |
Prisioneiros

O Caranguejo não parava de gritar pedindo que o tirassem dali,


pois estava sufocando. De nada adiantava os apelos do Marujo para
que ele se acalmasse.
Depois que os homens puxaram as vasilhas e que todos se sa-
ciaram, ouvi passos. Apareceu a matriarca e deu uma rápida olhada
para dentro da minha cova. Ela estava acompanhada de outra pes-
soa, mas não consegui ver quem era. Seria a Erika? Sequer tinha a
coragem de aparecer.
Elas conseguiram nos enganar direitinho, nos enfraquecendo
com a guarda baixa e se utilizando da maior arma das mulheres: A
sedução. Além disso, nós subestimamos a força e inteligência femi-
nina.
Ouvi claramente o som de um sopro forte e abafado. Reconheci
de pronto a semelhança do som quando fomos atingidos pelos dar-
dos na praia. Logo em seguida o Caranguejo parou de gritar. Teriam
atingido ele com mais uma dose de veneno?
A matriarca começou a falar bem próximo com o capitão. Per-
cebi que a minha cova ficava bem ao lado da dele, talvez uns sete a
dez metros.
—Peço desculpas pelo desconforto capitão, mas ninguém que
acha e entra nessa ilha jamais sairá dela. Aqui é o refúgio das mu-
lheres que são oprimidas por todo o mundo masculino. Aqui nós
mulheres ditamos as regras. Aqui vocês homens são quem nos ser-
vem.
—Eva, não tínhamos a intenção de sair da ilha, fomos apenas
pegar nossos pertences pessoais, como eu havia lhe falado. —Re-
torquiu o capitão com uma humildade estratégica.
Eu conhecia bem o capitão. Sabia que ele usa a humildade di-
ante de seus inimigos para que diminuam a guarda, até que ele che-
gue no momento certo para aproveitar a primeira oportunidade e

121
A Ilha Vermelha

agir. Mas parece que não estava funcionando com a Eva, já que é a
mesma estratégia que elas usaram, e muito bem!
—Não Isaac, não podemos correr esse risco. Não pode haver
alternativas de saída da ilha e o barco era uma delas.
—O que você pretende fazer conosco?
—Não vamos lhe fazer mal, nem a você nem aos seus homens,
mas é necessário que vocês passem um tempo aqui nessas covas,
para adaptação. Mas depois de algum tempo, todos estarão soltos,
eu prometo. Terão comida, água para beber e para se lavar, e os ho-
mens colherão diariamente os seus dejetos a partir dessa vasilha.
Só não lhes garanto muito conforto nessa cova.
Olhei e entendi a finalidade daquela vasilha de ágata com uma
alça lateral e um balde de madeira com cinta de metal.
O amor e admiração que eu sentia pela Erika se converteu em
decepção e ódio. Como disse o Caranguejo: “não se pode confiar
nas mulheres.”
A primeira noite que passei ali foi muito desconfortável. Não
consegui pregar os olhos, e quando estava sendo abatido pelo can-
saço, despertei com a volta dos gritos do Caranguejo, mais deses-
perados do que nunca pela diminuição da luminosidade. Ouvi pas-
sos, e mais uma vez silenciaram o Caranguejo. Senti muita dó da-
quela pobre alma que estava prestes a enlouquecer.
Dessa vez, após o silenciarem, ouvi barulhos que sugeria que
estavam tirando ele da cova, desacordado. Cheguei a ouvir os sons
das rodas da padiola que usavam para transportar os leões-mari-
nhos abatidos. Desde então, não se ouviu mais os gritos do pobre
coitado. Teriam matado ou deixado ele na mesma condição do
Pombo, vivo, mas desalmado por efeitos constantes de algum tipo
de alucinógeno.

122
CAPÍTULO - 11 |
Prisioneiros

Depois de duas noites de confinamento a Erika finalmente


apareceu trazendo o meu desjejum, pela manhã cedo. Mal olhei
para ela, que começou a se desculpar comigo:
—Lamento muito a sua condição e a sua decepção comigo, mas
você entenderá um dia. Trago a notícia de que hoje à noite vocês
iram sair desse buraco.
—Olhei para ela espantado.
—Mas calma, será por essa noite, para que todos participem
da ceia noturna ao espírito Vulcano, na maloca. Fazemos a nossa
ceia semanalmente.
—Depois voltaremos para esse buraco novamente? —Pergun-
tei.
—Infelizmente sim.
—Vamos ter que tomar o chá de Viril?
—Sim. E também vão receber uma pequena dose da seiva da
Esmorecida, para que vocês percam a capacidade de reação.
—Foi com essa seiva que vocês nos atingiram na praia?
—Não. Aquele é um veneno paralisante; a seiva da Esmorecida
não tira a consciência, só os deixam lesados.
—Muita gentileza de vocês. —Ironizei.
—Para provar que eu quero o seu bem, mas tenho que seguir
ordens, na hora da ceia, prometo que vou tentar misturar o seu chá
com um pouco de água, para você ter um pouco de consciência do
que está acontecendo. Mas me prometa que você vai se esforçar
para imitar o comportamento dos outros homens, como se esti-
vesse inconsciente como eles. Se a matriarca souber que deixei você
consciente, ela irá me punir e talvez nunca mais eu possa falar com
você. —Ela me disse sussurrando agachada na grade para não ser
ouvida pelos outros.

123
A Ilha Vermelha

Ela usava uma camiseta de tecido leve, que mostrou seus seios
quando se abaixou. Aquela visão aplacou todo o meu sentimento
de ódio naquela hora. Que poder aquela mulher exercia sobre mim?
Vi na sua proposta e no risco que ela se propôs a passar para me
ajudar de alguma forma, que ela tinha um certo sentimento por
mim e que ela estava se esforçando para fazer o melhor, pois não
dependia dela, mas eram as ordens da matriarca.
É irônico a matriarca falar do mundo dos homens que oprimem
as mulheres, quando nesse mundinho criado por ela, ela mesma
oprime as próprias mulheres com disciplinas exageradas. “Não está
tudo baseado na mesma autoridade de quem detém o poder, indi-
ferente de ser mulher ou homem? Esse não é o princípio natural da
lei do mais forte? Pensar em um mundo ideal quando as bases da
dominação são as mesmas de toda e qualquer cultura, não passa de
hipocrisia.” —Pensei com irritação
Diante da proposta da Erika, assenti com um gesto submisso
com a cabeça e resolvi confiar. Afinal, não tinha opções. Mas uma
vez me senti seduzido e escravo daquela paixão, completamente
confiante pelo prazer de me submeter às vontades daquela deusa
das minhas mais célebres fantasias. A volta daquele sentimento me
fez sentir melhor, mais aliviado diante daquela condição subu-
mana.
—Além de dissimular a falta de consciência, você vai guardar
total segredo do que acontecer na ceia, promete? —A Erika pros-
seguiu com tom de agravo.
—Sim, prometo! —Exclamei.
Ela deu um breve sorriso e se retirou. Aquele sorriso em per-
feita harmonia com os seios fartos, firmes e rosados ficou na minha
memória durante todo o dia, fazendo com que o tempo, comparado
aos dos dias anteriores, passassem na velocidade da luz.

124
CAPÍTULO - 11 |
Prisioneiros

É incrível como o mundo à nossa volta está sujeito a nossa con-


dição psicológica. Realmente, o ditado que diz: “Cada cabeça é um
mundo”, faz todo o sentido, pois o mundo que cada um de nós ha-
bita é moldado por nós mesmos no campo psicológico, porque o
bom e o ruim; o triste e o alegre; as lutas e as vitórias, todos os sen-
timentos antagônicos da vida tem como fronteiras apenas as dis-
posições dos pensamentos de quem os vivem. Feliz daquele que
aprender a manipular tais disposições cognitivas. Esse viverá agra-
davelmente até no mais profundo dos infernos.
O dia correu, ao cair do entardecer, chegaram às mulheres
junto com os homens da ilha, empurrando não mais só uma padiola,
mas pelos rinchados das rodas, haviam pelo menos umas sete uni-
dades.
O mesmo humanoide magricela abriu a grade da minha cova.
A Erika apareceu com aquelas pernas torneadas e fortes, que vistas
do ângulo em que eu estava, de baixo para cima, pareciam duas co-
lunas perfeitas de marfim, unidas pelas junções harmônicas de suas
curvas, mistificadas pelas roupas implicante que negavam o mí-
nimo traço daquela beleza fascinante; nem uma brecha sequer. Eu
já estava hipnotizado antes mesmo de receber qualquer dose de en-
torpecente.
Sem que desse uma palavra, talvez para não deixar transpare-
cer qualquer intimidade às outras mulheres que estavam próximas,
incluindo a matriarca, friamente, ela apontou-me aquela maldita
vara de bambu e me atingiu com um dardo no ombro direito.
—Áuuuu!
Comecei a sentir uma dormência nos braços e pernas. Será que
eu iria desmaiar mais uma vez? Fiquei um pouco zonzo e com a
vista turva, o que me deixava bastante lesado e sem forças, mas
dessa vez, não perdi de todo a consciência.

125
CAPÍTULO – XII

O Ritual

D
esceram uma escada de madeira oca, semelhante ao bambu
que elas usavam nas armas de varas, talvez de uma espécie
similar, mas geneticamente alterada como tudo que tem
vida nesta ilha pelos efeitos radioativos do vulcão. Sim, o bambu
tinha tonalidade vermelho-arroxeado.
Me deram ordem para que eu subisse, o que fiz com muita
dificuldade, pois sob o efeito daquele dardo, me sentia lerdo como
uma preguiça na árvore, tendo que fazer um esforço doloroso se
quisesse aumentar a velocidade dos meus movimentos. Estávamos
indefesos com os corpos fragilizados sob o efeito daquele veneno.
No topo, recebi a ajuda da Erika e do humanoide para me equi-
librar em pé. Não sei se pelo efeito do veneno ou por ter passado
três dias naquele buraco sem espaço para me movimentar.
Aquela condição em que eu estava me deixava em dúvidas do
sentimento da Erika para comigo, mesmo considerando a nossa

127
A Ilha Vermelha

conversa anterior. O meu sentimento por ela residia nessa duali-


dade entre o amor e o ódio, a confiança e a desconfiança.
Vi que os meus companheiros também estavam sendo retira-
dos, cada um com uma mulher e um homem da ilha a sua guarda.
Alguns tiveram que ser puxados por cordas de tão debilitadas.
Me dei conta de que elas não largam aquelas varas de bambu a
tiracolo. Eram suas armas eficazes que lhes garantiam o domínio
da ilha.
Pela primeira vez observei que as covas eram relativamente
próximas umas das outras, de dez a quinze metros de distância,
num aglomerado em forma de colmeia. Vasculhando o perímetro
para conferir a presença de todos os meus companheiros, percebi
que o Caranguejo não estava entre nós. O que teriam feito com ele?
Na primeira oportunidade cobrarei isso da Erika.
Com essas minhas indagações, percebi que o veneno só tinha
efeitos musculares, mas deixava a nossa memória intacta e bem
ativa. Lembrei do que a Erika me falou que ela daria um jeito de me
deixar consciente nessa noite.
A matriarca passou à frente conduzindo o capitão pelo braço,
andando lentamente. A Erika passou o seu braço direito por baixo
do meu braço esquerdo, olhou para mim e disse: —Vamos!
Assenti com o menear da cabeça e fomos a passos lentos logo
atrás da matriarca e do capitão. Os homens da ilha tomaram posi-
ção em derredor. Seguimos em fila indiana.
Depois de uma boa caminhada numa vereda de chão negro cla-
rejada levemente pelo brilho escarlate das lavas, observei logo a
nossa frente o clarão da aldeia na mata, que ficava a uma distância
aproximada de cem metros das covas em direção ao norte.
Logo à frente nos deparamos com uma bifurcação no meio do
caminho, e para a minha surpresa, desviamos para a esquerda. Isso

128
CAPÍTULO - 12 |
O Ritual

me fez sentir um calafrio. No meu íntimo eu confiava na Erika, mas


nos meus pensamentos mais pessimistas, tinha minhas dúvidas
quanto às intenções daquelas mulheres para com a gente.
Percebi que nos aproximávamos da montanha, daí comecei a
reconhecer a trilha que dava na “fonte das águas purificadoras”,
como elas chamavam o lago fervente.
—Vamos nos banhar na fonte? —Perguntei a Erika.
—Sim! Antes do nosso culto, temos que nos lavar.
No estado físico em que eu estava era arriscado eu me afogar
no raso, por falta de forças nas pernas para me erguer.
Quando chegamos na fonte, diferente da outra vez, as mulhe-
res não se separaram de nós, mas nos ajudaram a nos despir, en-
quanto também se despiam.
Mesmo vendo a Erika totalmente natural à minha frente, não
sentia qualquer excitação, embora fantasiasse nos meus pensa-
mentos. Aquele veneno nos mortificava ao ponto de sequer reagir
às fantasias sexuais, até mesmo quando a Erika começou a me to-
car, lavando-me mergulhados com a água até o peito, pois não tinha
a mínima condição de me esfregar eficazmente. Naquele ponto, se
ela me soltasse seria fatal. Seguramente me afogaria.
Todos estavam sendo lavados pelas mulheres. Os humanoides
banhavam-se um pouco mais afastados. Isso mostrava que eles ti-
nham capacidade física, porém, bastante debilitada pelo raqui-
tismo. O que será que deixava eles assim? Passavam fome? Eram
maltratados? Um dia ficaremos todos assim? —Imaginava, ten-
tando entender aquela situação.
Depois nos retiraram das águas e nos enxugaram com as folhas
da Esponjeira. Era inacreditável olhar para a Erika passando sua-
vemente a esponja nas suas partes íntimas para se enxugar, desli-
zando sobre as curvas perfeitas, sem qualquer pudor à minha

129
A Ilha Vermelha

frente, e o meu corpo não reagir aquele turbilhão de pensamentos


eróticos. Aquele veneno era uma verdadeira castração química. Eu
ainda estava em pleno vigor com os meus 35 anos de idade.
Depois que as mulheres nos ajudaram a nos vestir, voltamos na
mesma ordem, com a matriarca e o capitão à nossa frente, seguindo
na trilha que dava para a aldeia.
Os homens da ilha haviam ido na frente; talvez para ajudar nos
preparativos da ceia. Com o banho, embora sem forças no corpo,
me senti mais leve e agradável. Por um instante não senti mais a
tensão que sentia constantemente desde que nos colocaram naque-
las covas.
Ao nos aproximarmos da aldeia, vi o Caranguejo sendo condu-
zido para a maloca por dois homens. Ele parecia estar mais entor-
pecido do que a gente. O Marujo, que vinha logo atrás, ao ver o Ca-
ranguejo, perguntou desesperado o que iriam fazer com ele em voz
alta.
A matriarca perguntou ao capitão o que ele falava, o que foi
explicado pelo capitão, visto que falava inglês. A Erika me disse que
ele iria se juntar a gente no culto. Me virei e acalmei o Marujo antes
que fizessem com ele o que estavam fazendo com o próprio Caran-
guejo.
Ao entrarmos na maloca, o Pombo e o Caranguejo já estavam à
mesa, ambos com aparência de lunáticos com olhares abstraídos.
Devem ter dado ao Caranguejo o mesmo entorpecente que deram
ao Pombo.
Sentamos todos na mesma disposição da vez passada. Além
dos treze, contando com o Pombo, haviam ainda mais cinco ho-
mens, dos mais jovens da ilha, aparentando entre 40 e 45 anos de
idade, cada um acompanhado por seus pares.

130
CAPÍTULO - 12 |
O Ritual

As duas grandes jarras de chás já estavam postas à mesa. Vi


que dessa vez a cerimônia seria encurtada, sem banquete. Já não
éramos mais tratados como convidados, mas como prisioneiros.

A matriarca colocou aquele grande cocar e pôs-se de pé dando


longos tragos naquele cachimbo cerimonial, desta vez, com alguns
apetrechos a mais, com parte dos enfeites com os tecidos do enxo-
val de cama do capitão retirados do nosso navio, os quais eu reco-
nheci pelos bordados do Leviatã. Percebi que antes de afundarem a
nossa nau, saquearam os nossos pertences. Era provável que tam-
bém estavam com as nossas armas de fogo e espadas.
—Abrimos o culto dessa noite ao espírito Vulcano. Honra e
louvor ao espírito da grande montanha, dono de nossas vidas! Que
o espírito da montanha fervente receba as nossas oferendas —--.
Com essas palavras, a matriarca dava baforadas em direção a todos,
manejando um chocalho que ruíam sons semelhantes ao da Casca-
vel prestes a dar o bote. Tudo aquilo me dava calafrios. Voltei a sen-
tir o pavor que senti naqueles últimos dias, como se a nossa morte
estivesse cada vez mais próxima.
A matriarca estava mais excêntrica e paranoica do que nunca.
Aquela mulher era um verdadeiro demônio.
Cada mulher serviu o chá Viril para os homens. A taça que a
Erika me serviu já tinha água pela metade. Discretamente ela me
fez sinal com o olhar de advertência, fazendo-me lembrar do nosso
segredo mortal.
Eu estava tão fragilizado que nem conseguia tremer as pernas
com o pavor que estava sentindo. Só me restava dissimular fiel-
mente que estava na mesma condição dos demais sob o efeito do
chá, como ela me pediu.

131
A Ilha Vermelha

Virei a taça junto com os demais de uma única vez, após a or-
dem da matriarca. Depois as mulheres tomaram o chá da Fantasia.
Levantamos da mesa e fomos para o espaço à direita onde estava
uma roda com as forras grossas de palha revestidas de pele de leão-
marinho, com os tambores, atabaques e chocalhos.
Havia uma mesinha ao canto com uma vela vermelha acesa em
formato de vulcão, revestida com uma cor preta, fazendo com que
a cera vermelha derretida reproduzisse a imagem de lava escorrida.
Era a reprodução de um vulcão em erupção. Detalhes que eu não
tinha distinguido da última vez devido ao efeito do chá. Lembrei
que eu não poderia aparentar lucidez. Olhei para os outros e passei
a imitar os seus jeitos de lunáticos entorpecidos.
As mulheres começaram a ficar agitadas, em estado de êxtase.
A Erika me puxava pela mão eufórica. Senti uma excitação. Entendi
que o chá, além de tirar a consciência, era afrodisíaco ao ponto de
sobrepor os efeitos daqueles dardos entorpecedores, pois agora
sentia o vigor masculino. De certa forma, senti uma satisfação em
confirmar que a minha momentânea broxandez era devido ao efeito
do veneno e não da minha virilidade.
Algumas mulheres pegaram os instrumentos e começaram a
tocar e a dançar junto com as outras sob o cântico de uma melodia
em língua desconhecida conduzida pela matriarca. Ela cantava
com uma voz estranha. “Estaria possuída pelo espírito da monta-
nha?” —Pensei.
Ao tempo em que as mulheres bailavam sob os sons daquela
estranha ladainha, tiravam as peças de roupas até ficarem total-
mente nuas. Eu não tinha certeza se estava sonhando ou vendo alu-
cinações. “Teria o chá produzido efeito, mesmo enfraquecido pela
quantidade de água acrescentado pela Erika na minha taça?” Es-
tava confuso com todo aquele rito erótico.

132
CAPÍTULO - 12 |
O Ritual

Os homens, passivos e estáticos, pareciam não entender a si-


tuação. Despidas por inteiro, as mulheres começaram a tirar as nos-
sas roupas. A Erika não se descolou de mim, talvez para evitar que
percebessem a minha lucidez parcial.
Fiquei preocupado, pois estava bastante excitado. Se a matri-
arca me visse daquele jeito, perceberia que eu estava consciente.
Olhei discretamente para a matriarca para ver se ela me obser-
vava, foi quando vi que ela deitava o capitão na esteira já sem as
roupas debaixo e me senti aliviado ao perceber que os outros tam-
bém estavam excitados como eu.
Confirmei que a minha excitação não era proveniente da visão
das mulheres nuas em danças sedutoras, já que me sentia assim an-
tes delas se despirem. Na verdade, era devido aos efeitos do chá,
pois naquela condição de inconsciência não tinha como os meus
companheiros se excitarem pelo o que viam. Esse era o propósito
então daquele chá. Deixar os homens preparados para elas, submis-
sos e com o vigor que elas precisavam? Não havia forma melhor de
dominação feminina.
Elas nos deitaram nas forras. Até os homens da ilha que parti-
cipavam daquela cerimônia estavam entorpecidos. Aquele rito era
um segredo exclusivo das mulheres. A Erika realmente sentia algo
por mim. Do contrário, não se arriscaria tanto para me revelar
aquele segredo ao arrepio da matriarca.
Enquanto elas nos deixavam deitados de costas, todos excita-
dos, elas dançavam em círculo fazendo movimentos corporais bas-
tante eróticos, com a matriarca agora compartilhando aquele ca-
chimbo com todas.
A Erika não completava o circuito para se manter próximo a
mim. O ambiente ficou tomado por aquela fumaça arroxeada. De

133
A Ilha Vermelha

certa forma, aquele ambiente turvo me ajudava a camuflar a minha


lucidez.
Depois, pararam com a canção e calaram os instrumentos.
Nesse momento, a matriarca começou a sentar-se sobre os homens,
um após o outro, e só era permitido que as outras sentassem
quando a matriarca, após três a cinco cavalgadas, partia para sentar
no próximo. Ela sentou em todos os homens completando o cir-
cuito, deixando o capitão por último.
Percebi que de todos, ela passou rápido sobre o Pirata. Talvez
porque ele não estava com o mesmo vigor que os demais. Vi tam-
bém que uma das mulheres trouxe uma dose extra de chá para o
Pirata, mas nem assim ele atingiu a rijeza satisfatória. O Pirata era
o mais velho de todos nós. Já estava com 60 anos e com certeza, a
sua avançada idade pesava no seu vigor masculino.
Quando a matriarca sentou sobre mim, percebi, por seus mo-
vimentos, que não eram apenas conjunção, mas uma espécie de rito
cerimonial. Senti todos os seus movimentos e me segurei para não
corresponder, pois vi que os outros homens permaneciam imóveis.
Ela se retorcia como uma serpente de modo a nos causar uma
grande sensação de regalo.
Ao chegar no capitão, a matriarca não se sentou diretamente
sobre ele, mas começou a prova-lo, o que foi seguido por todas as
outras. Era como se todas tivessem que provar dos fluidos que a
matriarca deixou em cada um de nós antes de sentarem.
A Erika me provou com muito entusiasmo e sempre que eu dei-
xava escapar um único sussurro de gemido, ela me apertava e
olhava para mim, repreensivamente, para que me contivesse. De-
pois, sentou-se hipnoticamente, como que cavalgando em um uni-
córnio alado. O seu rosto se tornara de uma inocência angelical, de
quem se entrega a mais primitiva das sensações.

134
CAPÍTULO - 12 |
O Ritual

Percebi que as mulheres começaram a trocar de pares, mas a


Erika se manteve sobre mim e não atendeu aos apelos de uma e ou-
tra que chegava a todo o momento lhe tocando para que liberasse
a posição.
Aquela mulher que nadou no dia do nosso primeiro banho, foi
quem mais insistiu para que a Erika lhe cedesse o lugar, de tal modo
que houve um certo estranhamento entre as duas. No fundo, apesar
de estar adorando aquele momento mágico, desejei sentir as outras
também, já que desfrutava de uma nova experiência e o privilégio
que os outros não tinham, de estar consciente naquele momento.
A companheira do Pirata não parava quieta, buscando a toda
hora trocar de par, o que dinamizou ainda mais a roda.
Começou a me exigir um maior esforço para conter os meus
acessos de prazeres, pois a Erika aumentava o ritmo de seus movi-
mentos, em um frenesi de sensações, foi quando percebi que algu-
mas mulheres saltavam de sobre os homens e colhiam os fluidos
sem desperdiçá-los.
Logo me veio a sensação final e a Erika, demonstrando total
experiência na leitura do corpo masculino, igualmente saltou para
trás como uma rã que se afugenta do predador, para cair certeira,
sobre medida, para abocanhar e agasalhar toda fluidez direto para
o seu ventre, de modo que nada se perdeu sob os efeitos da gravi-
dade.
Depois que quase todos finalizaram o círculo, a companheira
do Pirata permaneceu ainda por mais uns 15 minutos até conseguir
arrancar algo com muito esforço. Era nítida a insatisfação dela, que
olhava para a matriarca como quem reclamava do seu destino. Era
aquela dita nadadora. Ela era forte e vigorosa e devia ser mais fo-
gosa que as demais.

135
A Ilha Vermelha

Nem por isso os efeitos do chá deram trégua aos homens, que
permaneceram rijos, prontos para uma segunda sessão.
Senti-me, porém, levemente laceado, e enquanto as mulheres
voltavam a bailar sob os sons dos atabaques e da canção puxada
pela matriarca, a Erika foi até a mesa e me trouxe discretamente
uma pequena dose do chá na sua boca, transferindo-me com um
beijo invasivo que por pouco, não reagi por engasgo, o que teria me
denunciado à matriarca.
Com certeza ela sabia que a reduzida dose de chá que tomei
não faria eu andar no mesmo ritmo dos demais, sendo necessário
uma dose de reforço. Elas iriam nos usar mais uma vez.
Não se passaram meia hora, e o ritual acasalador reiniciou, na
mesma frequência e vigor que a primeira e mais uma vez, a Erika
não permitiu que nenhuma das outras mulheres me usassem.
Vi que ao final, a matriarca, assim como outras mulheres, ter-
minaram com outros. Algumas tomaram ao final, mas algumas re-
cepcionaram no próprio ventre, deixando finalizar sentada sobre
os homens. A escolha da procriação era uma opção para elas.
O Pirata não participou das outras rodadas. Foi colocado à
parte, deitado na forra, enquanto a sua companheira zanzava de
casal em casal, para dividir com as outras o instrumento que lhe
faltava.
Senti dó do Pirata, ao vê-lo ser descartado pelo que mais se es-
pera da figura masculina. O tempo é mesmo infalível nos seus efei-
tos mais drásticos na biologia do homem.
A Erika, porém, repetiu a dose como um bezerro faminto, e
pela segunda vez, trouxe-me uma dose de chá com um beijo rápido,
no que já não corri o risco de me engasgar, pois percebi antecipa-
damente a sua intenção.

136
CAPÍTULO - 12 |
O Ritual

Íamos incrivelmente para a terceira sessão. Aquelas mulheres


eram insaciáveis! Lembrei-me do porquê de termos ficado dolori-
dos após aquela primeira ceia. Elas fazem isso a noite inteira. E o
que seria de nós se não fosse esse chá milagroso? Eu ganharia uma
fortuna vendendo essas folhas para os velhos aristocratas euro-
peus, que pagam prostitutas para brincar com seus brinquedos
quebrados, apenas para alimentar as suas fantasias não correspon-
didas pelo corpo adormecido.
Começaram a repetir pela terceira vez todo o ritual; dessa vez,
a Erika não pode guardar a exclusividade sobre mim. A matriarca
chegou por trás e lhe tocou para que saísse e lhe desse a vez e ela
teve que ceder, pois jamais desobedeceria a rainha. Mas, saiu
olhando para mim com o olhar de advertência, no que eu me esfor-
cei sobremaneira para resistir aos movimentos da matriarca sobre
mim, agregado com apertos espontâneos.
A matriarca tinha músculos vulvianos fortes e controláveis.
Que mulher estranha. Era uma máquina de fricção. Aquele corpo
enorme e atlético, com as pernas musculosas e roliças encaixadas
em cada lado do meu dorso, apertava-me de modo que eu não sairia
dali fácil, ainda que tentasse, fazendo movimentos firmes, seme-
lhantes a dança do ventre, de alto a baixo, coordenadamente ao ex-
tremo da gleba, potencializando a sensação libidinosa. Achei que
chegaria ao ápice com ela. Insaciável, ela rodou todo o círculo, to-
mando tudo que eclodia durante o seu uso, deixando algumas mu-
lheres desprovidas.
A Erika, irresignada com a dominação da matriarca sobre mim,
não assumiu outro enquanto eu não fui desocupado, como quem
velasse para garantir o seu lugar original.
A sua fidelidade não ficou infrutífera, a tempo de eu me regalar
quando ela já tinha reassumido a posição, preferindo mais uma vez
degustar com aquele salto preciso e experiente. Entendi que ela

137
A Ilha Vermelha

evitava a germinação. Talvez por se sentir nova demais ou por não


estar disposta a correr o risco de colocar um filho homem para viver
sob a opressão das mulheres.
Depois que todos esguicharam em menor volume, devido às re-
petições exaustivas da noite em curtos intervalos de tempo, a ma-
triarca aos poucos foi retornando daquele êxtase.
Todas vestiram a si e aos homens. Era alta madrugada. As mu-
lheres ficaram à mesa tomando uma outra bebida, talvez um chá
nutritivo, com pedaços de gelo extraídos das geleiras que ficavam
em uma caixa de madeira.
Depois da terceira sessão, para o meu alívio, a cerimônia eró-
tica chegou ao fim. As mulheres nos ajudaram a levantar e nos con-
duziram novamente em fila na costumeira ordem encabeçada pela
matriarca que conduzia o capitão em direção às covas.
Dentre os meus companheiros, somente eu sabia o que estava
acontecendo. Como a Erika me conduzia praticamente abraçada
comigo com a cabeça próxima a minha, arrisquei perguntar-lhe
sussurrando ao pé do ouvido: —Vocês estão nos levando para as
covas novamente?
—Infelizmente sim. Você gostou da noite?
—Você é maravilhosa! —Ela sorriu discretamente sem me
olhar nos olhos.
—Não se preocupe, um dia vou dar um jeito de ficarmos jun-
tos. —Ela falou quase de forma incompreensível de tão baixo, mas
consegui entender.
Ela me desceu na cova segurando os meus braços até que eu
ficasse próximo o suficiente do solo para me soltar, que logo cai ao
chão por falta de forças nas pernas. Era possível ouvir estrondos
maiores nas covas mais próximas.

138
CAPÍTULO - 12 |
O Ritual

Certamente não soltavam os meus companheiros com tanto


cuidado como ela teve comigo. Que sorte a minha. Ela fechou a
grade sobre a minha cabeça e a amarrou com cordas.
Só eu desfrutava das lembranças daquela noite. Reviver os de-
talhes em minha memória amenizava o desconforto daquele bu-
raco. Dormir uma boa noite de sono. Coitados dos meus compa-
nheiros. Não imaginavam o que lhes tinha acontecido.

139
CAPÍTULO – XIII

O Sacrifício

N a manhã do dia seguinte fui acordado com um dos homens


da ilha me pedindo, com aqueles gestos familiares, a vasi-
lha dos dejetos para coleta, ao tempo em que descia o meu
desjejum de bolo e chá, e reabastecia a minha vasilha de água que
agora vinha com um pouco de gelo. Essa era a nossa rotina de todas
as manhãs.
Sentia-me bastante dolorido. Se não fosse os estímulos daque-
les chás, nenhum homem aguentaria aquela jornada libertina.
As mulheres nórdicas não tinham fama de serem tão apetito-
sas. “A liberdade daquela ilha sob a influência do vulcão teria tor-
nado-as ninfomaníacas? Seria esse o desejo de todas as mulheres,
porém, reprimidos pela cultura masculina?” —Pensava.
Passaram-se dois dias sem que a Erika aparecesse, o que tor-
nava os dias mais longos e entediantes.
Na manhã do terceiro dia após a última ceia, fomos desperta-
dos ainda pela madrugada, com um ronco forte do vulcão, seguido

141
A Ilha Vermelha

de tremores de terra. Por um instante achei que aquele buraco iria


desabar sobre a minha cabeça, quando, devido ao tremor da terra,
uma parte da estrutura cedeu aos meus pés, abrindo um buraco de
pouco mais de um metro de altura por cinquenta centímetros de
largura e sessenta centímetros de comprimento, o que parecia ser
uma entrada de um túnel soterrado.
Os roncos vulcânicos se prolongaram durante todo o dia de
forma inconstante e com variações de intensidade.
Dali do buraco, dava para perceber clarões relampejantes so-
bre as nossas cabeças. A montanha estava cuspindo fogo furiosa,
em plena erupção. Fiquei muito assustado imaginando que poderia
ser o fim daquela ilha. Pensei na possibilidade das nossas covas es-
tarem na rota dos rios de lava, o que nos cozinharia vivos.
O fato de as mulheres não aparecerem me deixava ainda mais
apreensivo. Teriam elas nos abandonado à própria sorte? Devido
aquele buraco de túnel que começou a se abrir em direção ao norte
da minha cova, achei mais prudente ficar em pé, para ter mais chan-
ces de escapar de um possível soterramento, caso o buraco desa-
basse por completo.
Ao final da tarde, com o vulcão cada vez mais embravecido,
ouvi um tropel se aproximando. Era a matriarca com as mulheres e
os homens da ilha que chegavam de forma bem alvoroçada.
Sem proferir uma única palavra, uma das mulheres apareceu
no alto da grade da minha cova —aquela mulher dos ombros largos,
nadadora —e disparou um dardo certeiro que atingiu em cheio a
minha jugular. De imediato, senti uma dormência nas minhas per-
nas e braços.
—De novo não! —Lamentei curioso com o que iriam fazer com
a gente.
Logo em seguida começaram a nos tirar das covas. A Erika per-
maneceu de longe, escoltando o Marujo, evitando olhar para trás

142
CAPÍTULO - 13 |
O Sacrifício

para não me encarar. Senti um certo ciúmes, mas fui tomado em


seguida por um pavor. Aquele comportamento delas não se asse-
melhava com nada que elas tinham feito até agora. Era algo novo.
O claro nervosismo de todas, o alvoroço, os terremotos e a erupção
vulcânica causou pânico em todos nós.
Todas elas estavam de cara pintada com listras vermelhas for-
mando desenhos em forma de V invertido, com penachos verme-
lhos arroxeados sobre a cabeça, coletes de couro e saias curtas de
penas sobrepostas, a expor as pernas quase na totalidade. Algumas
portavam os instrumentos musicais usados na ceia.
Olhando em volta, sem dúvidas a matriarca e a Erika tinham
as pernas mais bonitas da aldeia. Não deixei de observar mesmo
naquela situação de pavor, por entender que representava superio-
ridade hierárquica.
Algo estava errado. Tudo fugia do padrão de sempre e as mu-
lheres estavam com fisionomias graves. É assustador!
Duas mulheres começaram a pintar e a envolver o Pirata com
penachos, enquanto o mesmo era segurado por dois homens da
ilha. O Pirata aparentava estar mais entorpecido do que todos nós,
como se tivesse sido atingido por um dardo extra.
A Erika evitava me olhar nos olhos. Aquilo tudo me deixava
bastante confuso.
“Será que a matriarca percebeu o que eu e a Erika tínhamos
feito na última ceia, não me dando a quantidade de chá suficiente
para me deixar inconsciente e, por isso, ela não ia mais se arriscar?”
—Pensei receoso nas consequências dessa possibilidade.
Elas começaram a nos conduzir, levando o Pirata totalmente a
caráter à frente do cortejo. Estavam todos presentes: o Pombo, o
Caranguejo e todos os homens da ilha com as mulheres. Era uma
solenidade que envolvia todos os habitantes da ilha, sem exceção.

143
A Ilha Vermelha

Na bifurcação do caminho, tomamos o caminho da esquerda


em direção a lagoa. Isso de certa forma me aliviou um pouco. Mas
para a minha surpresa, numa segunda bifurcação à frente, pegamos
mais uma vez a esquerda e logo lembrei que esse era o caminho que
poderia nos levar a caverna da montanha que eu havia visto naquela
vez que procurávamos a nossa nau.
O vulcão expeliu uma coluna grossa e assustadora de fumaça,
a uma altura a perder de vista. De tão alta, era possível que fosse
vista pelos moradores das ilhas francesas de Kerguelas ou da cara-
vela do capitão Logan, se ainda estivesse pelas redondezas.
A quantidade de fumaça expelida era tão grande que o ambi-
ente se escureceu, deixando a atmosfera bastante tenebrosa, con-
tribuindo ainda mais para o clima aterrorizante.
O rio de lava aumentou o fluxo consideravelmente, de forma
que era possível observar várias novas bifurcações que criavam no-
vas corredeiras em direção ao mar. As explosões da lava tocando as
ondas do mar pareciam salvas de canhões ingleses em cadências ir-
regulares.
A minha dedução se confirmou ao reconhecer mais uma vez
aquela paisagem rochosa de basalto vermelho amarronzado que eu
havia visto ao descobrir aquela caverna. Depois de meia hora de ca-
minhada, chegamos à porta da caverna, de onde era possível obser-
var as velas de cera negra acesas em cada lado da entrada da ca-
verna, traçando uma rota até o salão onde estava localizado o cal-
deirão fervente.
Nos conduziram para uma posição de um grande semicírculo
em volta do caldeirão de lava borbulhante, que havia aumentado o
volume da lava, de modo a salpicar pequenas gotas incandescentes
para além do peitoril, tornando-se em pequenas pedras fumegantes
ao tocar o solo.

144
CAPÍTULO - 13 |
O Sacrifício

A temperatura dentro da caverna estava bastante elevada, a


uns 45 graus, de modo que todos nós transpiramos de forma inces-
sante. “Que loucura entrarmos no seio da caverna em plena erup-
ção!”
A matriarca se pôs ao meio do semicírculo, usando um pena-
cho negro ainda mais exuberante, com penas vermelhas vivas ao
topo, como que imitando fogo incandescente. Ela começou a pro-
ferir palavras naquela língua desconhecida e, a cada momento, to-
dos tinham que se ajoelhar em reverência voltados para o caldeirão.
Algumas mulheres pegaram os atabaques e chocalhos que tra-
ziam consigo e começaram a sonorizar batidas fortes e tenebrosas,
ao tempo em que a matriarca rodopiava no meio do semicírculo en-
toando aquela ladainha incompreensível, fumando o seu cachimbo
cerimonial de fumaça amarelada com cheiro de ovo podre. Ela fu-
mava enxofre.
Nessa hora levaram o Pirata ao meio do semicírculo, condu-
zido por dois homens da ilha, os quais o ajoelharam diante da ma-
triarca, que começou a dar voltas sobre ele enquanto baforava com
o seu cachimbo sobre a sua cabeça.
Nesse momento, flagrei a Erika me olhando discretamente
com expressão de lamento, mas logo desviou o olhar quando viu
que eu a percebi. Aquilo me deixou bastante intrigado. Estava me
sentindo cada vez mais desconfortável e apavorado diante daquela
situação que elas nos deixavam, a ponto de me sentir totalmente
impotente e vulnerável. Estávamos totalmente sujeitos a elas.
A matriarca passou a segurar a cabeça do Pirata pelas orelhas,
segurando-o por trás e apontando a cabeça dele para o caldeirão de
lava, enquanto soltava gritos estarrecedores, que ecoavam por toda
aquela caverna, ao ponto de tremular as chamas das velas.

145
A Ilha Vermelha

O eco dos gritos da matriarca ficavam cada vez mais assusta-


dores à medida que iam enfraquecendo e tornando-se grave, de
modo que já não pareciam mais com os gritos dela, mas gritos res-
pondidos pela própria montanha. Tudo aquilo era uma verdadeira
peça de terror.
Olhei para o Pirata diante de toda aquela manipulação hor-
renda e vi que ele estava com o olhar distante, mas não aparentava
inconsciência total, pois a cada movimento truculento que a matri-
arca fazia na sua cabeça, ele expressava desconforto.
Uma das mulheres passou a desenhar na parede, o que parecia
ser uma reprodução daquele ritual, ao lado de outros desenhos pa-
recidos com os traços que ela escrevia, o que demonstrava que
aquele ritual era uma repetição de vários outros.
Esforcei-me para distinguir o que estava sendo desenhado,
mas a distância e a falta de luz suficiente não me permitiram. Ten-
tei focar ainda mais, inclinando a cabeça naquela direção, mas fui
interrompido bruscamente pela mulher que estava do meu lado
que girou a minha cabeça com truculência em direção ao centro do
semicírculo.
Uma das mulheres entregou à matriarca um punhal, que logo
reconheci ser o cutelo árabe de estimação do capitão Lobo. Nesse
momento ele olhou para mim, que concordei com um olhar. Elas
estavam com as nossas coisas, dentre elas, facas, espadas e armas
de fogo. Estávamos mais vulneráveis do que nunca! Essa também
com certeza foi a conclusão do capitão.
A matriarca fazia movimentos circulares com o cutelo, zigue-
zagueando o corpo como uma serpente. A luz sombreada da ca-
verna pelas velas e pelo cintilar da lava borbulhante do caldeirão
refletida no penacho fosforescente da matriarca, dava a impressão
de que tinha fogo sobre a sua cabeça, sombreando o rosto pintado
que deixava os olhos dela com aspecto tenebroso e diabólico. A

146
CAPÍTULO - 13 |
O Sacrifício

matriarca assumiu aquela personagem de voz sonoplastica, como


uma possessa. Aquela era uma cena realmente assustadora. Todo
aquele ambiente mais parecia as profundezas do Inferno.
Sem perder os movimentos rítmicos de uma serpente de língua
de aço e cabeça de fogo sob os sons da batucada, pois era o que
aquela imagem me lembrava naquele momento, ela começou a su-
bir os degraus de pedra mal esculpidos na rocha, que meio circun-
dava o caldeirão em espiral crescente, dando acesso a plataforma
natural da rocha que se projetava acima do caldeirão, onde havia
um buraco no meio, de modo que as línguas de fogo expelidas pelas
borbulhas de lavas estouradas açoitavam a parte de baixo a todo
instante, refratando nas laterais e transpassando o buraco ao meio
da plataforma, causando um efeito pirotécnico fascinante.
No alto da plataforma, deixando amostra as suas partes ínti-
mas com o abrir das pernas na dança cerimonial, a matriarca pare-
cia ainda mais demoníaca, soltando gritos terríveis enquanto se re-
talhava superficialmente no peito com o cutelo, deixando o seu
sangue escorrer sobre o caldeirão, ao tempo em que as outras mu-
lheres se alvoroçavam com gritos igualmente terríveis sob um êx-
tases infernal. A Erika estava irreconhecível.
A sombra da matriarca projetada nas rochas superiores, titu-
beantes, devido aos reflexos das velas e da lava da piscina incan-
descente, dava um ar infernal, cujos penachos projetavam chifres
enormes e rabo de serpente quando ela, na sua dança ritualística,
erguia uma das pernas para trás, como se desse coices.
O braço da mão que segurava o cutelo formando uma cruz so-
bre o outro braço, projetava uma imagem enorme de um tridente
diabólico. Era uma cena realmente perturbadora que me deixava
aterrorizado.

147
A Ilha Vermelha

Os dois homens da ilha, um de cada lado, começaram a condu-


zir o Pirata pela escada até a plataforma onde estava a matriarca,
que fazia gestos hipnóticos chamando-os para cima.
O Pirata nada fazia além de obedecer a cada passo, com a face
entorpecida. Naquele momento pensei o pior: “Será que vão jogar o
Pirata dentro do caldeirão? Meu Deus!”
À frente da matriarca, manietado pelos dois homens de cada
lado sobre a plataforma, a face do Pirata manifestava um medo ater-
rorizante, porém, sem qualquer esboço físico além de uma leve ex-
pressão de pavor, talvez, pelos efeitos do entorpecente. Isso dava a
entender que ele tinha um certo grau de consciência, apesar da ler-
deza.
A matriarca começou a se contorcer diante do Pirata, erguendo
os braços para cima, e mais uma vez, bradou aquele grito estarre-
cedor, que ecoou de tal forma, que sentimos um leve tremor nas
paredes rochosas da caverna, ao ponto de precipitar cascalhos em
forma de poeira sobre as nossas cabeças, apagando a tocha de algu-
mas das velas, foi quando, surpreendentemente, a matriarca, de um
só golpe, cravou o cutelo no peito esquerdo do Pirata, perfurando e
rasgando a carne, ao forçar a lâmina para baixo. Depois, puxou o
cutelo com ímpeto com a mão esquerda, e com a mesma energia
frenética, penetrou a mão direita no corte e arrancou-lhe o coração
com um só golpe, de modo que foi possível observar aquele órgão
vital pulsar por duas ou três vezes na mão da matriarca antes de
parar de todo, que levantou mais uma vez os braços para cima com
o coração do Pirata em uma mão e o cutelo na outra.
Com aquela cena inacreditável, as mulheres começaram a gri-
tar em um frenesi estarrecedor, aumentando os tremores da ca-
verna de tal modo que as bolhas de gases que saiam da lava do cal-
deirão aumentaram em número e tamanho, chegando a transbordar
lava nas bordas mais baixas do caldeirão.

148
CAPÍTULO - 13 |
O Sacrifício

Vi no semblante do Pirata a sua vida se esvair aos poucos, já


sem o coração em seu peito. Mas antes que os homens o deixassem
cair, a matriarca o puxou pelos cabelos, precipitando-o perversa-
mente no caldeirão de lava, cujo corpo não afundou de pronto, mas
se transformou numa tocha de fogo incandescente que se desinte-
grou ainda na superfície.
Nenhum de nós esboçamos qualquer ato de desespero ou as-
sombro, além de deixar transparecer em nossas faces o que sentía-
mos ao ver a vida de nosso companheiro se esvaecer daquela forma
horrenda. Aquele veneno nos limitava o sistema nervoso central, de
modo que tínhamos consciência ao ponto de expressar no rosto os
nossos sentimentos, mas o restante do corpo não correspondia.
O frenesi das mulheres perdurou até que o corpo do Pirata foi
totalmente consumido pela lava, alimentando a labaredas de fogo
que lambia a plataforma onde estava a matriarca.
Para a minha completa indignação, como se não bastasse
aquela cena de terror, vi a matriarca devorar com dentadas o cora-
ção do Pirata, até lamber o sangue de suas mãos e limpar a lâmina
do cutelo com a própria língua.
Depois introduziu o cabo do cutelo na sua genitália, deixando
de fora apenas a lâmina, e passou a projetar o próprio corpo para
frente, como que espetando o ar com o cutelo, segurado apenas por
seus grandes lábios, ao tempo em que soltava aqueles gritos satâ-
nicos.
Aquela mulher não estava em seu perfeito juízo ou se encon-
trava possessa, realmente, por esse tal de espírito Vulcano, que ao
meu ver, tinha por trás um espírito demoníaco que se apropriou
dessa entidade sanguinária criada por aquelas mulheres. “A religião
de fato é o ópio do povo”, como disse Karl Marx séculos depois.

149
A Ilha Vermelha

Depois de uns quinze minutos após o sacrifício, as mulheres


calaram-se, quando a matriarca começou a descer da plataforma
ajudada pelos dois homens que conduziram o Pirata. Ela estava
como que debilitada e com o semblante já naturalizado, como se
aquele ritual exigisse dela um esforço descomunal. O espírito final-
mente a havia deixado.
Seguiu-se uma calmaria, correspondida pela própria monta-
nha, que aplainou as bolhas da lava de modo que perdeu mais o bri-
lho, cujo caldeirão borbulhante, agora parecia uma piscina de rocha
líquida rachada, causando um leve escurecimento do pavilhão ro-
choso.
Vi a mulher finalizar a pintura na rocha, acrescentando clara-
mente o que parecia ser um corpo em chamas sobre o caldeirão de
lava. Elas registravam cada sacrifício, que por sinal, foram muitos.
Começamos a ser conduzidos pelas mulheres no caminho de
volta. Os tremores de terra cessaram, estranhamente.
Ao sairmos da caverna, depois de alguns passos além da mon-
tanha, virei-me e vi que até aquela nuvem alta que a montanha es-
tava expelindo diminuiu de altitude. Os rios de lava também redu-
ziram os seus braços. Não se sentia mais tremores de terra. O espí-
rito Vulcano foi aplacado pelo sacrifício de nosso amigo Pirata.
Aquela montanha realmente tinha vida e éramos a sua principal re-
feição.

150
CAPÍTULO – XIV

O Segredo
N ão me incomodei pela Erika não estar junto a mim. Na ver-
dade, fiquei enojado de todas elas. Afinal, nunca me apai-
xonei de verdade. A paixão é para os idólatras.
Aquela matriarca era uma esquizofrênica que manipulava to-
das as outras alienadas sob o pretexto da religião, como o fazem
muitos mundo afora.
Dizem que as mulheres são sensíveis como uma flor. Quem
proferiu tal poema nunca conheceu esse lado sombrio delas, coisa
que talvez os homens não são capazes de fazer uns aos outros. Do
modo como se fez, a sangue frio, é escarnecedor. Não é humano.
Elas nos colocaram de volta em nossas covas. Já era madru-
gada. Naquela noite não consegui dormir pensando em tudo aquilo,
o que me deixou mais dolorido e ressaqueado depois que passou o
efeito do dardo.
Passou-se uma semana sem que nenhuma das mulheres apa-
recem, apenas os homens que nos serviam rotineiramente, até que

152
CAPÍTULO - 14 |
O Segredo

no sexto dia após o sacrifício do Pirata, a Erika apareceu mais uma


vez, sobre a grade que fechava o acesso da minha cova.
—Eu lamento. —Sussurrou ao pé da grade e em seguida me
atingiu com um dardo.
—Vamos para o banho e ceia. Você quer que eu lhe dê meio
chá novamente? Me perguntou docilmente.
—Não! Por favor, trate-me como os demais. —Respondi seca-
mente
Ela apenas silenciou.
Nos conduziram como nas vezes anteriores, para o banho pu-
rificador e depois para a ceia. A minha consciência só perdurou até
tomar o chá e ver o início das danças sob o som dos atabaques e
chocalhos conduzidos pela melodia diabólica da matriarca.
Eu não tinha mais estômago para ver as manifestações daquela
psicótica. Só em ver a Eva com todos aqueles penachos já me dava
um frio na barriga. “Quando chegará a minha vez de ser sacrifi-
cado?” —Pensei aterrorizado.
Agora eu entendia porque não haviam velhos entre os homens
da ilha. Elas os sacrificavam para alimentar de sangue aquela mon-
tanha infame.
Senti um alívio ao tornar a consciência na manhã seguinte, so-
zinho na minha cova-lar, sem ter qualquer lembrança de mais uma
noite sob as insanidades da matriarca. Por me sentir um pouco do-
lorido, não tive dúvidas que na noite anterior passamos por aquele
ritual lascivo novamente.
Passou-se um mês inteiro desde o sacrifício, que de tão mar-
cante, ficou como marco temporal para a minha noção de calendá-
rio naquele lugar, sem qualquer referência de tempo e estações.

153
A Ilha Vermelha

Eu estava mais magro do que nunca. Havia perdido boa parte


da minha massa muscular, talvez por estar sem me movimentar na-
quela cova por muito tempo, apesar de ter aproveitado parte da
terra que desabou para cavar um pouco mais e aumentar o meu es-
paço, sem que alguém percebesse lá de cima.
O espaço da minha cova agora era suficiente para ficar fazendo
alguns exercícios. Mas a minha insistente magreza mostrava que
os exercícios não eram o suficiente. Logo eu estaria como aqueles
homens da ilha, raquíticos, só coro e ossos.
Nas nossas saídas para o banho e ceia, via que os meus compa-
nheiros também estavam igualmente magros. Os meus pelos pubi-
anos estavam perdendo a coloração original e ficando com aspectos
mais avermelhados. Estávamos nos transformando em seres da
ilha, finalmente.
Magros, eternamente entorpecidos e vermelhos como toda a
ilha. Era como se um vírus ou bactéria alienígena invadisse o nosso
organismo e alterasse a nossa constituição biológica. Estávamos
condenados à uma morte lenta num processo debilitante, isso se
não fosse escolhido para o próximo sacrifício, a depender do ódio
da montanha em começar novamente a cuspir fogo e sacudir a terra
para exigir um novo sacrifício.
Consolava-me um pouco o fato de perceber que o Pirata, de-
vido aos efeitos das drogas, não sofreu tanto. Outro motivo que me
aliviava era saber que eu ainda estava em pleno vigor, pois só o que
explicava a escolha do Pirata para o sacrifício era a sua falta de vi-
gor nos rituais eróticos da ceia. Elas nos queriam para nos usar, e
para isso, tínhamos que ser homens produtivos, ou seja, em pleno
vigor varonil.
Se no mundo exterior as mulheres eram tratadas como objetos
dos homens, muitas vezes, nessa ilha, os homens não passavam de
objeto de prazer.

154
CAPÍTULO - 14 |
O Segredo

“Mas por que aquelas mulheres não ficam magrelas como os


homens? Do contrário, parecem mais fortes a cada dia?” —Indaguei
para mim mesmo, vacilante.
Além da rotina diária dos homens da ilha que nos serviam, uma
vez por semana, éramos levados ao banho e à ceia da orgia. Pela ro-
tina, já não sentia mais dores no dia seguinte. Elas teriam diminu-
ído a intensidade ou eu já tinha encaliçado?”
Surpreendi-me certa noite, após a noite da ceia, com a aparição
da Érika no alto da grade da minha cova. Quando me dei conta, ela
já estava descendo com uma corda amarrada na grade aberta, fa-
zendo-me sinal de silêncio. Ela veio com um vestido fino, talvez de
dormir, sem as peças de baixo, coisa que percebi ainda no seu tra-
jeto de descida.
—Por favor, você tem que entender o meu lado. Não posso fa-
zer muitas coisas por você. A matriarca é bastante severa com
quem a desrespeita. Mas saiba que eu te amo e tenho sofrido muito
em ver você nessa condição e não poder fazer nada. —Ela me falou
em tom de lamento enquanto me abraçava e me beijava, deixando
escapar lágrimas esparsas de seus olhos azuis refletindo o brilho
opaco da montanha.
—Eu entendo você, mas é muito difícil para mim suportar isso
tudo.
—Eu sei, eu sei!
Nesse momento nos beijamos ardentemente e a linguagem dei-
xou de ser verbal para liberar a comunicação de nossos corpos em-
briagados por aquela paixão ardente.
Nos deitamos sem sentir, enquanto nos livramos das poucas
peças de roupas. Fizemos amor como nunca antes, pois naquele
momento não estava sob o efeito de nenhum entorpecente. A Erika,
mais ardente do que nunca, me fez duvidar se ela tinha tomado um

155
A Ilha Vermelha

pouco do chá da Fantasia ou se ela era mesmo quente como um


vulcão ativo.
Naquele momento ignoramos o mundo exterior. A Erika gru-
nhia alto como uma fera ferida, sem se importar com quem nos ou-
visse, em um frenesi de movimentos irascíveis que se não fosse o
prazer, a dor se tornaria insuportável.
Naquele momento mágico, libertei-me de todos os medos e an-
gústias que me afligiam para dar asas a uma viagem de sentimentos
exultantes que nos fazem triunfar na satisfação de apenas viver.
Dessa vez, o prazer nos tomou em um êxtase de tal forma que
não foi possível interromper a volúpia no seu lugar mais íntimo, nos
deixando minutos em estado de recomposição racional, como
quem não quisesse atrapalhar aquela viagem pelo paraíso oculto no
íntimo de cada um de nós.
—Como eu estava precisando disso! —Desabafei involuntário.
—Eu quero você, e não vou abrir mão de estar com você, sem-
pre! —Ela falou com uma sinceridade incontestável, que me dei-
xava orgulhoso das minhas fraquezas.
—Você está ficando cada vez mais magro, e isso me dói muito.
—Esse buraco não nos deixa opção para nos exercitar.
—Não é isso! —Ela interrompeu a minha murmuração
—A influência do vulcão e a falta de luz solar direta em tudo
que há aqui, faz com que as plantas e os seres vivos não produzam
vitaminas importantes, causando o envelhecimento precoce e o ra-
quitismo.
Ela passou a me dizer que quando chegaram na ilha e foram
escravizadas pelos homens que estavam com elas, passados algum
tempo, quando começaram a sentir os efeitos da influência do vul-
cão, assim como eu, que já começava a mudar a tonalidade dos pe-
los do corpo, perceberam que os homens estavam perdendo força

156
CAPÍTULO - 14 |
O Segredo

muscular e vigor, ao ponto de já não poderem mais subjugá-las, ao


tempo em que elas, continuavam fortes e saudáveis, apesar de tam-
bém serem transformadas pela influência do vulcão.
Daí a Matriarca, que sempre foi uma mulher mística, que fala
com os espíritos desde a sua infância, quando foi consagrada a
deusa Frigga da fertilidade, pelo sacerdote de Odin da religião de
seus pais, na Escandinávia, na ocasião em que elas estavam ba-
nhando os homens na lagoa fumaçante, depois que eles nos usaram
e fizeram a gente se alimentar de seus fluídos, a matriarca teve uma
revelação de um espírito que saiu da montanha para falar com ela,
o qual disse que aquela humilhação que elas estavam passando ti-
nha tempo para acabar, pois o que os homens nos fazem beber para
nos humilhar também era o motivo do nosso triunfo.
De início a matriarca não entendeu aquele enigma, mas depois,
por outras revelações, o espírito Vulcano falou para a matriarca que
os fluídos dos homens nos supriam das vitaminas vitais que a mon-
tanha nos debilitava, o que se confirmou ao final de três meses: Os
homens estavam enfraquecidos de tal forma que já não conseguiam
força-las a nada. Elas derrubavam eles ao chão com um simples em-
purrão.
Ela disse que o espírito havia falado claramente à matriarca
que ele, na forma de vulcão, dominava a vida nessa ilha, e que su-
prime essas vitaminas vitais de todos os seres vivos, mas que os ho-
mens eram a única fonte natural, pela produção do próprio orga-
nismo, que ao gerar o líquido da procriação, sintetizam as proteí-
nas do corpo para suprir as vitaminas faltantes nos organismos vi-
vos da ilha, sem as quais, não é possível a procriação.
Porém, o esforço do organismo masculino é tão grande para
suprir essas deficiências que os deixam enfraquecidos e com ausên-
cia das vitaminas vitais, ao mesmo tempo que o organismo

157
A Ilha Vermelha

direciona exclusivamente para o aparelho reprodutor, os envelhe-


cendo mais rápido e os tornando raquíticos.
A Erika me disse, justificando-se, que esse era o motivo de to-
das elas venerarem a matriarca e o espírito da montanha, pois sem
a ação do espírito através da matriarca, elas não teriam o domínio
da ilha.
Esse também era o motivo da matriarca e das mulheres subju-
garem tanto os homens, como forma de vingança pelo longo perí-
odo de três meses de humilhação e dor que elas passaram.
—É por isso —--, continuou —que uma vez por semana faze-
mos o ritual da ceia, pois a ceia na realidade não é os alimentos e
chás que tomamos no banquete, mas o fluido de vocês homens, que
nos mantém saudáveis e fortes. E isso fazemos em solenidade e
culto ao espírito da montanha.
—E os chás?
—Todos os chás que conhecemos também foram revelados à
matriarca pelo espírito. O chá do Vigor serve de estímulo para os
homens e ao mesmo tempo nos garante o sigilo do que fazemos,
porque lhes tira a consciência. O chá da Fantasia nos deixa mais
dispostas, mas não nos tira a consciência.
Veja que eu revelei a você um segredo mortal, que não é permi-
tido a nenhuma mulher revelar, sob pena de ser sacrificada.
—E o sacrifício do Pirata? O que tem a ver com tudo isso? —
Perguntei com indignação.
—A matriarca nos disse, por suas revelações, que o espírito
Vulcano de tempos em tempos requer de nós sacrifício humano, a
fim de nos lembrar da sua soberania sobre toda a vida e sobre toda
a ilha. Que a vontade do espírito se manifesta para nós em forma de
erupção, lavas e terremotos, ao ponto que se não oferecermos o que

158
CAPÍTULO - 14 |
O Segredo

ele pede, imediatamente, ele destruirá toda a ilha por suas próprias
forças.
Desde que chegamos, já sacrificamos treze homens, contando
com o Pirata, além de diversas crianças, com intervalos de pelo me-
nos seis meses para cada sacrifício.
—Crianças?!
—Sim. Devido à deficiência de vitaminas, nossas crianças não
nascem sadias, elas nascem anencéfalas, daí as mulheres engravi-
dam não com a intenção de procriar, mas para oferecer o aborto
espontâneo em sacrifício ao espírito Vulcano. É preciso que todas
engravidem pelo menos a cada dois anos, para que todas possam
ofertar o sacrifício do seu próprio sangue.
—Agora entendi porque vejo mulheres grávidas e não vejo cri-
anças na aldeia.
—Isso.
—Você já sacrificou seus filhos?
—Infelizmente sim, dois. —Ela me respondeu com um claro
desconforto e vergonha.
—Você deve me achar um monstro? —Continuou.
—Nesse contexto que você está me apresentando, vejo que
você é obrigada a seguir os rituais da matriarca. —Respondi de
forma a tentar aliviar a culpa que ela sentia.
—E como é feito o sacrifício das crianças? A matriarca também
come o coração delas? —Perguntei com sarcasmo.
—O sacrifício que você presenciou é para aplacar a raiva da
montanha manifestado pelas erupções mortais. Quando fazemos o
sacrifício de nossas crianças, é para manter o espírito Vulcano sa-
tisfeito conosco. Daí a grávida toma um chá abortivo e dá a luz

159
A Ilha Vermelha

sobre aquela rocha acima do caldeirão, cuja criança cai pelo buraco
direto na lava.
—Meu Deus! Entendi o motivo daquele buraco no meio da pla-
taforma.
—Por isso, se vivermos aqui, temos que nos sujeitar às leis da
matriarca, pois ela é o único elo de comunicação com o espírito da
montanha.
—Mas você acredita mesmo que ela fala com esse tal espírito?
—No início também eu tinha as minhas dúvidas, mas depois
de tantas confirmações, acabei me rendendo aos acontecimentos.
Você não viu que depois de um dia inteiro de terremotos e erupções
do vulcão, logo após o sacrifício do Pirata tudo se acalmou?
—Isso é verdade, mas se tivéssemos esperado até o outro dia,
será que a montanha não tinha se acalmado por si só? Será que não
é apenas um círculo natural da atividade vulcânica? —Perguntei
incrédulo.
—Como eu lhe disse, um dia também duvidei de tudo isso.
Logo no início, a erupção durou mais de quinze dias. Todos nós es-
távamos aflitos. Algumas de nossas cabanas chegaram a desabar
por causa dos terremotos, até que a matriarca teve a revelação do
que fazer, e assim como aconteceu com o Pirata, a montanha se
acalmou por mais de um ano logo após o sacrifício, e desde então,
isso tem se repetido. O difícil é não acreditar. Esse é um mundo es-
tranho Dylan; aqui vemos coisas que nunca imaginamos ver um dia.
—Acredito em você. —Falei acariciando-a na face.
—E quando acabarem todos os homens? —Prossegui com mi-
nhas perguntas.
—Segundo a matriarca, o espírito Vulcano sempre vai atrair
novos viajantes para a ilha, assim como fez com vocês.
—Qual será o próximo da lista do sacrifício, será eu?

160
CAPÍTULO - 14 |
O Segredo

—Com certeza não! Você é meu protegido e eu nunca deixarei


você ser sacrificado. —Ela me falou com convicção enquanto cer-
rava o punho.
—Mas você sabe quem será o próximo?
—A matriarca tem em vista um dos velhos que nos serve, que
já não participa da ceia, pela dificuldade que tem de excitação.
Dentre vocês, por hora não há, mas acho que aquele que está sepa-
rado de vocês junto com o gordinho, será o próximo, pois também
ele não tem muito vigor.
—Então esse é o critério de escolha, o grau de virilidade dos
homens?
—Sim. Mas saiba que tudo isso vem da matriarca. Nós apenas
obedecemos.
Deixei de fazer perguntas, pois já estava ficando enjoado de
tantas histórias sórdidas. Passei a ficar imaginando que um dia che-
garia a minha vez de ser sacrificado. Fuji daquele pensamento de-
sesperador.
Estávamos deitados desde então, juntinhos sobre a terra fria
da minha cova.
—Vejo que você escavou aqui embaixo. —Ela falou quando
percebeu o buraco.
—Não escavei tudo, boa parte cedeu há alguns dias.
—Esse deve ser um túnel que um dos homens, tempos atrás,
havia feito para se comunicar com a outra cova. Quando a matri-
arca descobriu, usou ele no sacrifício seguinte e mandou soterrar o
túnel. —Ela me falou como quem me advertisse para ter muito cui-
dado.
—O que faço então? A culpa não foi minha. —Perguntei assus-
tado.

161
A Ilha Vermelha

—Bem, a matriarca havia mandado soterrar. Talvez tenham


enterrado sem encalcar a terra o bastante. Mas não se preocupe,
apenas não deixe aparecer areia fora do túnel, nem se deite nele du-
rante o dia, para o servidor não lhe ver dentro dele.
Ela continuou a falar: —Meu amor, você tem que engolir seus
fluidos, ao menos uma vez a cada duas semanas, para não ficar de-
bilitado como os demais.
—Eca! não sei se tenho coragem.
—Você não tem escolha; ou toma ou vai ficar enfraquecido
como todos.
—E se eu ficar forte e a matriarca perceber que estou dife-
rente?
—Deixe de fazer exercícios, apenas tome uma vez a cada duas
semanas, daí você não ficará forte demais e não enfraquecerá ao
ponto de ficar debilitado demais, pois sendo homem, embora apa-
rentemente magro, terá força suficiente para fazer o necessário.
Não entendi bem o que ela quis dizer com o “necessário”, mas
preferi não adentrar nessa questão.
—Tudo bem, vou me esforçar.
—Agora preciso ir, antes que o dia fique claro. —Ela me disse
despedindo-se com um beijo.
Não deixei ela sair da cova antes de beijá-la e mais uma vez,
usufruir do prazer de possuí-la, ainda que um pouco mais rápido,
devido ao tempo avançado.
Por essa ocasião, ela me afastou quando percebeu a chegada do
fim e degustou o meu prazer por ela, alimentando-se mais uma vez
com as vitaminas necessárias à sua sobrevivência.
—E se você engravidar? —Perguntei pensativo.
—Você acha?

162
CAPÍTULO - 14 |
O Segredo

—É uma possibilidade.
—Você sabe o que vai acontecer.
—Caso isso aconteça, jamais vou deixar você sacrificar o
nosso filho!
—Não temos que pensar nisso agora. Deixa que o tempo fa-
lará por si, mas saiba que eu estarei sempre do seu lado.
Com essas palavras, eu calei para não ser precipitado em mi-
nhas palavras.
Ela tinha razão. Mas nem por isso deixei de passar o resto da
noite e do dia seguinte pensando em tudo aquilo que ela falou.
Tudo agora fazia sentido; o pior dos sentidos. A matriarca me enoja
mais e mais a cada dia. Aquela mulher criou um verdadeiro sistema
religioso pagão, amarrando todas as pontas dos sentimentos huma-
nos mais primitivos, a fim de sustentar o seu domínio sobre todos
da ilha.
“Tenho que destruir esse trono maligno!” Pensei comigo
mesmo enquanto contemplava mais uma vez a beleza estonteante
da Erika, ao acompanhá-la com o olhar enquanto ela subia na corda
e saia da cova, despedindo-se com um olhar travesso ao chegar no
topo, de quem sabia no que eu estava pensando ao vê-la por baixo.

163
CAPÍTULO – XV

A Rival

N o dia seguinte pratiquei onanismo a fim de me suprir das


vitaminas necessárias, conforme me orientou a Erika. Bus-
quei ser rápido, o que não evitou que eu nauseasse, quase
indo a vômito.
Para o meu bem e sobrevivência, teria que me acostumar com
aquela indecência! Era muito contraditório pensar que os homens
eram a fonte de vida naquela ilha e ao mesmo tempo tão menospre-
zados por aquelas que dependiam de nós para se manterem saudá-
veis. Sempre imaginei que uma vez que as mulheres tomassem o
poder no mundo, tornariam a vida dos homens um inferno.
Toda semana, num intervalo entre uma ceia e outra, a Erika
vinha me fazer uma visita pela madrugada, porém, ela demorava
pouco tempo e não nos relacionávamos mais que uma vez a cada
visita.
Ela não queria correr o risco de sermos descobertos. Disse-me
que as outras mulheres levavam tudo ao conhecimento da

165
A Ilha Vermelha

matriarca. —Além do mais, a Joana tem uma certa rivalidade co-


migo porque eu não permito que ela te use na ceia. —Ela me confi-
denciou sobre uma das mulheres, a que tinha os ombros mais lar-
gos, aquela que nadou vigorosamente no lago.
Lembrei que realmente foi essa tal de Joana quem mais insis-
tiu com a Erika para ficar comigo na ceia em que eu estava lúcido,
mas a Erika não permitiu.
Aquela informação me deixou de certa forma orgulhoso, pois a
Joana também era uma das mais belas. “Sempre faz bem à vaidade
masculina ser motivo de briga entre mulheres.” —Pensei com sa-
tisfação, lembrando-me da época de minha adolescência, quando a
irmã do Isaac agrediu uma garota por minha causa.
—A Joana é aquela que costuma saltar da plataforma para
mergulhar de cabeça no lago efervescente? —Perguntei surpreso.
—É aquela exibida mesmo. —Respondeu a Erika com claro
ciúmes por eu ter referências atléticas sobre ela.
Na última saída para o banho e ceia que participamos, tentei
deduzir a direção que aquele túnel soterrado tomaria, para presu-
mir em qual cova ele me levaria para uma comunicação direta. De-
duzi que daria para a cova do capitão. Isso me deu ânimo e me dei-
xou eufórico para cavar aquele túnel.
Estabelecer comunicação direta com o capitão nos fortalecerá
e, quem sabe, possamos traçar um bom plano para sairmos dali.
Desejei compartilhar as minhas ideias com ele o quanto antes,
mas fora da cova, não havia oportunidades para conversarmos. As
mulheres estavam sempre próximas e vigilantes, além dos efeitos
dos venenos paralisantes que elas nos afligiam, o que nos deixava
lerdos e apáticos.
O capitão estava cada vez mais magro e debilitado. Eu tinha
que socorrê-lo o quanto antes, dizer para ele o segredo das

166
CAPÍTULO – 15 |
A Rival

mulheres. Logo ele que era um homem de porte físico bastante


avantajado, típico dos nórdicos da linhagem viking, que se orgu-
lhava da força de seu próprio braço.
Contei as minhas pretensões para a Erika, que apenas me pe-
diu para eu ter cuidado. Pedi que ela me ajudasse e sempre que ela
viesse à noite, trouxesse um balde de água, para eu comprimir me-
lhor a areia sem que fosse preciso tirar do buraco escavado, evi-
tando que ficasse visível do alto.
Como era um túnel soterrado com areia frouxa, bastava bater
bem a areia extraída para deixar espaço suficiente para passar sem
a necessidade de retirar a areia do túnel. Magro como eu estava,
como um rato, passava por qualquer espaço sem dificuldades.
Fui cavando aos poucos, avançando não mais que meio metro
por dia, devido ao excesso de areia que eu devia calcar a cada vo-
lume retirado.
Além do mais, tinha que ficar voltando para a cova a cada mí-
nimo barulho de folhas ao vento, com medo que surgisse alguém e
me flagrasse dentro do túnel e denunciasse à matriarca.
Evitava escavar à noite para não mudar minha rotina de sono
e gerar suspeitas ao homem da ilha que me servia. Todos esses de-
talhes faziam a escavação demorar mais do que o necessário.
A Erika me falou que cada um dos homens da ilha prestavam
informações semanais à matriarca, de como a gente estava de saúde
e de comportamento.
Na terceira semana de escavação, a Erika me disse que o Ca-
ranguejo não estava mais satisfazendo as mulheres na ceia, mesmo
sob os efeitos do chá do Vigor em dose dupla, e que era possível que
a matriarca colocasse ele para o topo da lista para o próximo sacri-
fício ao espírito Vulcano.

167
A Ilha Vermelha

Diante dessa possibilidade, eu me esforcei mais ainda na esca-


vação e passei a cavar um metro por dia. Se não precisasse evitar o
barulho e comprimir a terra extraída, não demoraria tanto.
—Não entendo porque o Caranguejo não corresponde aos
efeitos do chá. Ele não aparenta ser tão velho, apesar de gordo? —
Perguntou-me a Erika em uma de nossas noites.
—Ele é pederasta e nunca teve uma vida sexual ativa para o
membro masculino. Talvez seja esse o motivo. —Expliquei.
—É possível, já que o chá apenas potencializa os desejos mas-
culinos, e se ele não tem os desejos nessa área, é provável que os
efeitos do chá sejam redirecionados.
As meninas também reclamam do tamanho e de que nunca fica
ereto o suficiente para sentarem. E adivinha quem é a parceira dele
nas ceias? —Ela perguntou com um sorriso sarcástico no rosto.
Lembrei imediatamente: —A tal Joana.
Erika —A mais meandrosa de todas que reclama de tudo.
Fiquei preocupado com o Caranguejo. Ele não merecia morrer
tão cedo. O pior era que diante de seu histórico de não gostar de
mulheres, com certeza era uma situação irremediável, além do fato
da pequena anatomia. Ele caiu logo nas mãos daquela tal de Joana,
que parece ser aquele tipo de mulher inquieta e pervertida.
Logo ao amanhecer, assim que o homem da ilha me serviu,
comi e retomei as escavações a todo vapor. O túnel já estava bas-
tante avançado. Pelos meus cálculos, talvez faltassem mais uns dois
metros, apenas. Naquele dia, com esforço, consegui cavar pouco
mais de um metro.
Pela madrugada do dia seguinte, acordei com o barulho de
uma pessoa descendo na minha cova. Achei estranho pensar que a
Erika iria repetir a noite. Mas vi a silhueta diferente. Logo percebi

168
CAPÍTULO – 15 |
A Rival

a familiaridade dos ombros largos. Era a Joana na minha cova. De


tão assustado e confuso, passei a dissimular que estava dormindo.
—Sei que você está acordado —Ela sussurrou me tocando.
—Você fala inglês não é? —Perguntou-me com insistência,
movendo-me com as mãos.
Percebendo que a minha dissimulação não funcionou, res-
pondi com uma pergunta em inglês. —Quem é você?
—Sou a Joana. Eu sei que a Erika lhe faz visitas uma vez por
semana.
Aquela palavra me deixou aterrorizado. “Todos os meus pla-
nos haviam ido por água abaixo e a Erika estava em perigo.” —Pen-
sei.
—Mas não se preocupe, não direi nada a ninguém. Sei que ela
é apaixonada por você, e com razão. Você é o mais bonito dos ho-
mens daqui.
Eu apenas ouvia calado.
—Sei que todos vocês não estão satisfeitos de estarem presos
aqui. Mas a Erika não pode lhe ajudar; ela é muito devota à matri-
arca para contrariá-la. Mas eu posso te ajudar.
Fiquei surpreso com aquelas palavras e resolvi saber melhor o
que ela tinha a me oferecer.
—Como você pode nos ajudar, Joana?
—Posso ajudar vocês a sair daqui. Sei onde tem um barco em
boas condições, escondido. Só precisa de alguns reparos.
—Onde?
—Calma, uma coisa de cada vez. Primeiro quero que essa mi-
nha visita fique entre a gente. Não diga nada para a Erika.
—Tudo bem.

169
A Ilha Vermelha

—A matriarca não me favorece. Ela sempre coloca os piores


homens para mim. —Ao falar isso, a Joana começou a me tocar.
Seria verdade o que ela falava ou só estava querendo favores
sexuais? A possibilidade de existir esse barco seria o portal para
fugirmos desse inferno. Ela me deitou e começou a tirar as minhas
roupas.
—Vejo que você é cheio de segredinhos. —Ela falou olhando
para o túnel escavado.
—Tem alguns dias que desabou, não fui eu que escavei. —Res-
pondi com receio.
Com mais aquela descoberta, aumentava a ousadia da Joana,
julgando que tinha eu e a Erika nas mãos, o que era verdade naquela
altura. Se ela abrisse a boca, com certeza a matriarca acabaria com
a Erika e eu seria o próximo a ser jogado no caldeirão de lava.
—Já disse que você não precisa se preocupar, eu sei guardar
segredos, desde que você saiba também. —Disse ela.
Ela passou a me abocanhar enquanto se despia, numa fome de
leoa num desjejum de semanas. Aquela mulher forte e dominante
intimida o mais corajoso dos homens. Mesmo assim, deixei-me le-
var pelo deleite, de modo que comecei a interagir, palpando-lhes as
curvas e seios proeminentes. Não demorou muito até que ela arran-
casse todas as minhas energias em total domínio da situação.
De um único movimento, ela se levantou e se vestiu rapida-
mente, olhou para mim, ainda estático sobre o chão de areia batido
e disse sussurrando: —Eu voltarei —colocando o dedo indicador
sobre os lábios, como sinal para que eu mantivesse o nosso segredo.
Ela subiu a corda com apenas duas braçadas sem sequer usar
as pernas, como uma verdadeira amazona. Suas pernas eram gros-
sas e fortes, mas não tão bem desenhadas como as da Erika, o que
era compensado pelo busto de seios firmes e ombros retos e largos,

170
CAPÍTULO – 15 |
A Rival

em perfeita harmonia com a cintura trincada de um trapézio inver-


tido.
Passei o resto da noite pensando naquele encontro inesperado,
no que eu iria fazer dali em diante. Se mantinha o segredo ou falava
tudo para a Erika. Quais as consequências se a Erika descobrisse
por si só ou o que a Erika faria quando eu contasse? Tudo se cons-
tituiu em um emaranhado de possibilidades que acirrava ainda
mais o meu dilema.
Não dormi a noite toda e pela alta madrugada, quando fui ven-
cido pelo cansaço, tive pesadelos com a Erika sendo esfaqueada
pela matriarca com o cutelo árabe do capitão, por sua traição, e eu
sendo conduzido para o sacrifício no caldeirão, com todas aquelas
mulheres gritando enlouquecidas. Acordei me debatendo e mo-
lhado de tanto suor.
Amanheci exausto e pensativo, sem estímulo para cavar o tú-
nel durante todo o dia. As coisas agora tomaram um novo rumo. Eu
tinha que repensar os meus planos.

171
CAPÍTULO – XVI

A Oferenda

N ão havia nada a fazer diante das circunstâncias. Restava


para mim confiar na sinceridade da Joana e desejar que os
objetivos escusos dela não fossem tão trágicos para a Erika
e para todos nós.
Agora é deixar as coisas seguirem o seu curso. Era o melhor a
fazer. Não vou contar nada para Erika, ao menos por enquanto.
Acho que a rivalidade delas garantirá a distância e a incomunicabi-
lidade entre as duas. Decidi terminar o túnel e estabelecer o con-
tato com o capitão o quanto antes.
Na manhã seguinte, após ter uma melhor noite de sono de tão
cansado que estava, acordei cedo e disposto e esperei ansioso pelo
desjejum. Assim que o serviçal se retirou, fui como uma toupeira
brava cavar o túnel. Cheguei em um ponto em que a areia desabava
com um simples toque até que a areia endureceu novamente, ao
ponto de amassar um pouco o prato de ágata que eu utilizava nas
partes mais duras.

172
CAPÍTULO – 16 |
A Oferenda

Pelos meus cálculos, comparando a distância da minha cova


para a do capitão com a extensão do que já havia sido cavado, acre-
ditei estar bem próximo. “Talvez até o final da tarde eu atinja a cova
do capitão”. —Pensei com entusiasmo.
Fiz a pausa para o almoço, pois naquela altura, o serviçal es-
tava para chegar. Nessas pausas eu perdia até uma hora esperando
a chegada do almoço, para não correr o risco de ser flagrado dentro
do buraco. Com isso, perdia bastante tempo, somando-se o tempo
despendido para o almoço. Estava mais ansioso do que nunca.
O almoço de hoje foi carne de elefante-marinho, o que me dei-
xou bastante satisfeito, devido às calorias extras que eu estava gas-
tando. Depois que engoli o último pedaço, retomei imediatamente
as escavações e a terra continuava bastante rígida. Tive que parar
antes do fim da tarde, pois era preciso arrastar o prato cada vez
mais forte para desprender a terra, o que fazia muito barulho e me
cansava. Isso frustrou as minhas expectativas de finalizar naquele
mesmo dia.
Para a minha surpresa, o acaso parece que estava ao meu favor.
Assim que parei de cavar, ouvi passos se aproximarem. Era toda a
comitiva da matriarca. A Erika logo apareceu no alto e disse que eu
virasse as costas para ela.
Acertou-me com a droga daquele dardo novamente. Pernas e
braços dormentes, corpo esmorecido. O que seria dessa vez? Ceia
não era. Fazia apenas cinco dias da última.
Nos tiraram da cova. A primeira coisa que fiz foi medir com o
olhar a direção e a distância da minha cova para a do capitão. Es-
tava na direção certa e não faltava mais que um ou dois metros, no
máximo.
Já era noite e as luzes do vulcão e da aurora boreal prevaleciam
no firmamento.

173
A Ilha Vermelha

A Erika me segurou pelo braço, conduzindo-me logo atrás da


matriarca com o capitão, e sussurrou: —Vamos ofertar o bebe da
Vanderleia —indicando-me com o olhar para a mulher grávida que
ia andando à nossa frente. Fiquei assustado.
Vi que a grávida não tinha a barriga tão grande, mas a gravidez
era notória. Não estava com dores de parto, pois andava natural-
mente, sem ajuda.
Naquele comboio, evitava conversar com a Erika porque andá-
vamos muito próximos de cada casal. Dei uma leve olhada para
trás, virando apenas a cabeça para o lado e vi a Joana a dois casais
atrás, ao lado do Caranguejo, olhando para mim com a expressão
insatisfeita.
Aquela constante insatisfação da Joana era perigosa ou vanta-
josa? Ainda não era possível saber. Entendia perfeitamente a sua
irresignação. Ela é uma verdadeira bomba relógio. Porém, pelo o
que ela me confessou, a maior raiva dela é sobre a matriarca e não
da Erika comigo, apesar de certa rivalidade entre as duas. Com in-
teligência, eu poderia usar essa revolta dela a nosso favor.
Tomamos caminho direito para a caverna da montanha. Ao
nos aproximar da entrada, os homens da ilha, que nos seguiam,
aproximaram-se e um deles entregou aquele penacho cerimonial à
matriarca.
O capitão olhou para mim com o semblante de espanto. Fiz
gesto sereno para que ele se acalmasse, dando a entender que eu
sabia o que estava acontecendo. Talvez ele estava pensando que
iam sacrificar mais um de nós. Entendi que só eu estava sabendo do
verdadeiro propósito daquele evento. Todos os outros comparti-
lhavam da dúvida e temor do capitão.
Ao formarmos o semicírculo em volta do caldeirão, diferente
da última vez, a lava continuava estável e com o nível mais baixo.
Olhei para cada um dos meus companheiros passando a impressão

174
CAPÍTULO – 16 |
A Oferenda

de calma. Alguns entenderam vagamente, outros estavam tão apa-


vorados que sequer perceberam o meu olhar
De cocar, ao meio do semicírculo, a matriarca começou a pro-
ferir aquelas malditas palavras estranhas em direção ao caldeirão,
que como uma ilusão de ótica, o caldeirão parecia corresponder
com o cintilar das borbulhas efervescentes se agitando.
Com o sinal da matriarca, trouxeram a Vanderleia totalmente
despida até ao meio do semicírculo e uma das mulheres entregou
uma taça com bebida à matriarca, que fez com que a grávida a to-
masse de todo.
Depois que a grávida tomou aquela bebida, começaram-se os
sons dos instrumentos musicais rústicos e todas começaram a dan-
çar no ritmo da serpente.
Duas das mulheres pegaram a gestante, uma de cada lado, e a
conduziram pelas escadas de pedras que davam na plataforma so-
bre o caldeirão. Dessa vez, apenas as mulheres participavam ativa-
mente do ritual.
Vi que a Vanderleia começou a sentir dores, pois à medida que
andava, retraía-se e soltava gritos de dor. As duas mulheres que a
conduziam a deixaram sozinha na plataforma, sentada sobre o bu-
raco que havia no meio da pedra, sobre o caldeirão efervescente.
Enquanto a grávida se retorcia de dor e soltava gritos sobre a
plataforma, as mulheres tocavam os instrumentos e dançavam,
dessa vez, fazendo gestos de reverência com os braços em direção
ao caldeirão, como que invocando o aborto de cima para baixo.
Eu estava de olhar fixo naquela cena bárbara. As dores da grá-
vida se agravavam a cada instante e os gritos ficavam mais fortes e
estarrecedores, revelando que ela estava prestes a dar à luz.
A grávida, mesmo se contorcendo de dor, não saia de sobre o
buraco, como que para garantir o propósito daquela atrocidade.

175
A Ilha Vermelha

Aquela bebida que deram para ela devia ser um chá abortivo, uma
vez que ela começou a sentir dores depois que a bebeu.
Depois de alguns instantes, começou a descer líquidos averme-
lhados do buraco, caindo sobre o caldeirão, que saíam direto do
ventre da parturiente. Quando a matriarca viu as primeiras gotas,
ficou eufórica e aumentou o ritmo de sua dança diabólica, seguido
dos histerismos aterrorizantes, o que foi acompanhado por todas
as outras mulheres. Logo em seguida a criança começou a sair, sob
os gritos agonizantes da mãe que se contorcia como uma cobra
atingida mortalmente.
Enfim, a criança caiu, no silêncio dos inocentes, sendo travada,
por um instante, a poucos centímetros na lava, sob a resistência do
cordão umbilical que não suportou por muito tempo o peso da cri-
ança e partiu, finalmente, rompendo-se do ventre da mãe que deu
o último grito de dor, até que a criança caiu na lava, rompendo uma
labaredas incandescente que a envolveu cruelmente, fazendo com
que a criança desce o primeiro e último suspiro em forma de grito
engasgado.
Não sei qual das cenas foi mais repugnante, se o sacrifício do
Pirata ou a morte do inocente? Tudo era barbárie, tudo era atroci-
dade, tudo expressava o cúmulo da crueldade humana. Nem nas
piores guerras se faziam tantas atrocidades com os inimigos.
A história do Conde Drácula se tornou um conto infantil. As
mulheres eram mesmo mil vezes mais cruéis que os homens. Talvez
a sua fragilidade biológica com relação aos homens era uma solução
de Deus para o controle da crueldade humana na terra. “Maldita
matriarca, que era cúmplice e idealizadora de todos aqueles pande-
mônios!”
As mulheres, guiadas pela insanidade da matriarca, contor-
ciam-se como serpentes alvoroçadas, com gritos que tornavam

176
CAPÍTULO – 16 |
A Oferenda

aquele ambiente o verdadeiro quadro do inferno pintado por Bot-


ticelli.
Vi que a mesma mulher que pintou os registros do sacrifício
do Pirata, agora pintava o registro de mais uma atrocidade come-
tido por aquelas mulheres em nome de uma suposta divindade san-
guinária. Era ela a escriba dos registros demoníacos.
Nas paredes de basalto daquela caverna estava a prova de to-
dos os crimes cometidos por elas, cuja história, um dia as condena-
rão, ainda que apenas a sua memória. E eu não farei parte daqueles
anais de sangue e bruxaria! Tenho que sair dessa ilha maldita! O
barco que a Joana falou pode ser a nossa única opção.
Voltamos aos nossos sepulcros com mais esse peso na consci-
ência, pela impotência de assistir aquele massacre sem nada poder
fazer a respeito. Pobre criança, fruto da promiscuidade com uma
mãe desnaturada.
Até que ponto a culpa daquela mãe prevalecia na sua consci-
ência? Sabe-se que nos sistemas de crenças religiosas bem elabora-
das, as doutrinas levam os adeptos a seguir seus preceitos sem con-
testação, submetendo-se às práticas, por mais estranhas que sejam,
por acreditarem no propósito maior, que justifica todas as ações,
por mais absurdas que pareçam ser.

177
CAPÍTULO – XVII

Plano de Fuga

O
s meus sentimentos pela Erika eram uma mistura de amor,
paixão e nojo, mas a sedução da beleza estonteante dela
prevalecia sobre os meus desejos mais primitivos. É incrí-
vel como o humor e a capacidade de influenciar decisões importan-
tes em nossas vidas dependem da medida da tensão libertina.
Percebi que a Joana era a menos empolgada daquilo tudo. Se-
ria ela mais humana que todas elas? Mais consciente dos erros co-
metidos e menos fanática, a ponto de conseguir fazer algum julga-
mento? Se assim for, o quadro que a Erika pintou dela não corres-
pondia à realidade, mas refletia apenas a rivalidade pessoal entre as
duas.
No dia seguinte, logo após o desjejum, retomei as escavações
a todo vapor, parando apenas para o intervalo do almoço. Estava
compenetrado de tal forma que só senti sede e vontade de urinar
no intervalo do almoço.

178
CAPÍTULO – 17 |
Plano de Fuga

Mas os meus esforços não foram em vão. Por volta das três ho-
ras da tarde abriu-se um ponto de luz na parede de areia restante.
Parei de raspar imediatamente, para não assustar o capitão ou seja
lá quem fosse que estivesse do outro lado.
Soltei o prato e passei a tentar aumentar o buraquinho com as
próprias unhas. Antes mesmo que eu aumentasse o diâmetro do
buraco, percebi um olhar curioso e assustado no buraco. Era o ca-
pitão.
—Capitão! —Sussurrei.
—Quem está aí? —Respondeu.
—Fale baixo! Sou eu, Dylan.
—Sofista!
—Sim.
Ele, com suas mãos grandes e ainda com uma certa força, rapi-
damente pôs abaixo o resto da areia que fechava o túnel, enquanto
eu cavava do outro lado.
—Vá com calma, não podemos fazer barulho e nem deixar vo-
lumes de areia amostra. —Adverti
—Temos que bater a areia aqui mesmo dentro do túnel.
—Ok.
Terminamos os últimos retoques, ao ponto de deixar o túnel
suficientemente pronto para irmos de uma cova a outra, arras-
tando-se, quase deitados. Talvez se toda a areia pudesse ser reti-
rada, dava para se deslocar agachado, o que seria bem mais confor-
tável.
—Há quanto tempo você está cavando esse túnel? Você é
mesmo muito esperto. —O capitão me perguntou admirado, com
o rosto resplandecente de alegria.

179
A Ilha Vermelha

—Acho que há três semanas. Mas na verdade, descobri esse


túnel por acaso. Ele já existia e estava soterrado, foi quando desa-
bou parte da entrada no lado da minha cova.
—Entendi. Será que tem outros desse unindo os outros bura-
cos?
—Não sei. Mas capitão, precisamos conversar.
—Sim, muito! É uma ótima oportunidade, já que lá fora elas
não nos deixam a sós.
—Mas vamos deixar para a noite. Já está tarde e tenho que vol-
tar para a minha cova antes que apareça alguém.
—Tudo bem.
—Não vá para a minha cova, deixa que eu venho para a sua. Já
estou familiarizado com os horários e dias de visitas que recebo.
—Visitas? —O capitão ficou bastante surpreso e curioso.
—Lhe explico depois.
Entrei na cova dele para retornar ao túnel de ponta cabeça e
voltar para a minha cova. Dei-lhe um abraço e sussurrei no seu ou-
vido: —Temos um jeito de sair daqui.
Ele apenas me olhou nos olhos e assentiu.
O Isaac estava magro e ressequido. Os olhos fundos e o queixo
fino, o que lhe deixava mais dentuço e o descaracterizava da sua
imagem costumeira.
Vi que o consumo dos meus fluidos já estavam me fazendo
efeito, pois, apesar de ter perdido bastante massa muscular, estava
bem mais corpulento que o capitão. Tenho que contar para ele o
que ele deve fazer o quanto antes. Já faz quase três meses que está-
vamos naquela ilha sem ele consumir as vitaminas vitais para a
nossa saúde.

180
CAPÍTULO – 17 |
Plano de Fuga

Retornei à minha cova com a sensação de missão cumprida,


pelo menos a primeira etapa. Percebi que o túnel não era uma reta
perfeita, mas o suave arco que a trajetória formava era o suficiente
para retirar a visão direta da cova do capitão, a partir da minha.
Se eu tivesse cavado um túnel novo, com certeza erraria a di-
reção, já que não percebi o leve arco até completá-lo inteiramente.
Abaixo da terra é fácil perder a noção de direção.
Ao cair da tarde, os homens da ilha nos traziam a última refei-
ção do dia, geralmente um tipo de raiz cozida, semelhante a batata
inglesa, porém, com cores amarronzadas e gosto mais amargo, com
pedaços de peixe, ovos de ave ou carne de mamífero marinho. Na-
quela noite comi peixe.
Depois que o serviçal saiu, fiquei pensando no momento de
voltar à cova do capitão. Pelo dia da semana, amanhã seria o dia do
banho e da ceia semanal. A Erika só me visitava dois dias após cada
ceia.
E a Joana, quando será que ela vem novamente? Ela era a parte
aleatória do meu calendário, como as erupções imprevisíveis do
vulcão. Mas uma coisa ela deixou certo: “ela voltaria”.
Ela tinha vindo no dia seguinte à visita da Erika. É possível que
ela vai manter uma regularidade ou virá quando lhe der na telha.
Aquela mulher parece ser bastante ocasional e declinada aos seus
próprios impulsos e caprichos.
A Joana já sabe do túnel, mas não sabe da ligação direta com o
capitão. Pensando nisso, a curva do túnel nos favorece, conside-
rando que ela só vem à noite. Duvido muito que ela adentre esse
túnel apertado, já que ela passa bem menos tempo que a Erika. Não
sei, ela realmente é muito imprevisível. Mas tenho que arriscar.
Preciso conversar com o capitão o quanto antes.

181
A Ilha Vermelha

Ao escurecer, arrastei-me de volta ao buraco do capitão. Ele


estava ansioso me esperando. Foi até cômico vê-lo agachado
olhando a minha chegada e me puxando pelos braços para que eu
concluísse a travessia.
—Então Sofista, o que você sabe?
Logo de início eu tratei de deixar o capitão a par da necessi-
dade de se alimentar com seus próprios fluidos.
—O caralho! Nunca farei tal coisa! —Repugnou o capitão.
Tive que insistir explicando e mostrando a diferença dos mús-
culos dos meus braços e pernas em comparação com a musculatura
dele. Era evidente que o meu processo de raquitismo havia retroce-
dido depois que comecei a tomar. Expliquei que a falta de vitami-
nas básicas na dieta desta ilha era a causa do enfraquecimento de
todos os homens e que as mulheres se beneficiam por ocasião da
ceia, como um verdadeiro banquete revigorante.
—Olha a condição dos homens da ilha. —Enfatizei.
Com muita insistência, consegui convencê-lo. Era de fato uma
coisa muito incomum e nojenta. Passei a falar da minha relação com
a Erika. Ele se mostrou bastante incrédulo acerca da honestidade
da Erika, mas eu contei toda a trajetória do nosso relacionamento
desde que nos vimos pela primeira vez, inclusive, do que aconteceu
na ceia, na vez que a Erika me deixou semiconsciente, arriscando a
própria vida.
—Ela sempre se oferece para burlar a minha quantidade de chá
para que eu fique consciente, eu é que não quis mais, pois acho
meio perturbador, apesar de usufruir do prazer de ficar com ela,
principalmente pelo comportamento da Eva. Aquela mulher é uma
tresloucada. —Complementei.

182
CAPÍTULO – 17 |
Plano de Fuga

—De certa forma faz sentido. Eu percebia mesmo a química


que rolava entre vocês. —Disse o capitão com certo convenci-
mento.
Falei também da Joana, que havia descoberto o meu lance com
a Erika e surpreendentemente, veio à minha cova na noite retra-
sada. Falei tudo que ela me falou e o mais importante, sobre o su-
posto barco intacto que está na praia no lado leste da montanha.
—Essa sim é um motivo de preocupação. Ainda não sei bem
quais as intenções dela. —Disse.
—E se ela for uma espiã da matriarca e estiver apenas lhe son-
dando para descobrir algo —--? Questionou o capitão.
—Não acho, capitão, porque tem alguns acontecimentos que
batem com o que ela falou, como a rivalidade entre ela e a Erika e o
desfavorecimento da matriarca para com ela. Isso eu percebi, prin-
cipalmente na noite da ceia em que fiquei consciente.
—Uma das duas está mentindo. —Insistiu o capitão.
—Não falei nada da Joana para a Erika. Acho melhor testá-las
primeiro.
—Fez bem.
—Mas então, quais os seus planos? —Perguntou.
—Sozinho não temos como sair desse buraco, mas juntos po-
demos dar um jeito.
Passei a expor os meus planos que consistiam em sairmos das
covas a noite e tentar encontrar esse barco para ver a condição em
que se encontra e se haviam armas disponíveis.
Falei da necessidade de dizer aos outros colegas sobre a neces-
sidade de consumir os fluidos corporais, a fim de obterem mais
força e combinar um dia para soltarmos todos e tentar uma fuga,
caso o barco esteja em condições. Mas para isso, eu teria que

183
A Ilha Vermelha

arrancar da Joana mais informações sobre o barco e sua exata loca-


lização.
O capitão acrescentou aos meus planos a possibilidade de fa-
zermos lanças e escudos das cascas de umas árvores que se des-
prendem, que sempre vemos no caminho do lago borbulhante, para
nos proteger dos dardos venenosos das mulheres.
Essas cascas de árvores se desprendem por inteiro, formando
uma espécie de canoa que as mulheres usam para se deslocar no
mar a curtas distâncias a fim de pescar as pescadas maiores, de tão
grossas e largas que são, as cascas daquele tronco.
—A gente vai construindo aos poucos durante a noite e escon-
dendo o material num lugar seguro, para no dia da fuga, estarmos
preparados para um possível confronto. Sem proteção contra aque-
les dardos, vamos estar sempre vulneráveis. —Acrescentou ele.
—Mas para isso, precisamos de facas.
—Talvez seja possível apenas quebrando pedaços. Usando
lascas de pedras já seria o suficiente. —Disse ele.
—Ótima ideia! Amanhã será o banho e a ceia. Na segunda
noite, a Erika me visita e na noite seguinte é possível que a Joana
apareça. Se realmente ela aparecer, tentarei arrancar dela essas in-
formações e teremos um intervalo de três dias para a nossa expedi-
ção. Até lá, alimente-se com seus fluídos para começar a se fortale-
cer.
—Eu o jeito! —Concordou o capitão com irresignação.
Voltei para a minha cova e descansamos o resto da noite.
Agora, tínhamos um plano, uma chance possível para mudar a
nossa sorte. Se tudo correr como o planejado e a Joana cooperar,
quem sabe, levaríamos ela e a Erika conosco na fuga.

184
CAPÍTULO – 17 |
Plano de Fuga

No outro dia tudo correu normalmente com a montanha tran-


quila. Parece que o sacrifício do Pirata satisfez o demônio da mon-
tanha ou seja lá o que habita naquelas profundezas do inferno.
Ao cair da tarde, fomos visitados pelas mulheres que mais uma
vez vieram nos buscar para o banho e a ceia.
Pelo comportamento da Erika para comigo, ela não sabia de
nada sobre a Joana. Isso me aliviou, pois demonstrava que a Joana
estava cumprindo a sua palavra. Achei melhor mais uma vez ficar
inconsciente na ceia. Ainda não estava com saco psicológico para
assistir aquela cerimônia infame.
Vi que o Caranguejo não estava entre nós e o par da Joana
dessa vez era o Pombo. Já haviam excluído o Caranguejo da ceia.
Realmente, é provável que ele seja o primeiro da lista do próximo
sacrifício. O tempo de vida dele agora só depende da calmaria do
vulcão.
O Pombo não era lá essas coisas, pois também já tinha uma
certa idade, uns 50 anos, eu acho. Já não era mais gordo devido ao
definhamento causado pela falta de vitaminas. Com aquele excesso
de pele pendurada, parecia mais um buldogue francês. A pele ma-
gra da barriga era tão abundante que cobria suas partes íntimas, de
tamanho bastante reduzido. Decerto, a matriarca sempre dava o
pior para a Joana. Eis os motivos da sua indignação.
Essa rivalidade, se bem insuflada, pode transformar ela na
nossa melhor aliada. O problema seria unir ela e a Erika no mesmo
propósito.
Voltamos para a aldeia para o culto da ceia, não antes da ma-
triarca dar seu show de natação de sempre, seguido da apresenta-
ção da Joana, com aquela competição não declarada, mas que os es-
pectadores entendiam muito bem.

185
A Ilha Vermelha

Depois que tomei o chá e as coisas se apagaram das minhas


lembranças, acordei no outro dia pela manhã, na minha bendita
cova, com o brado de desespero que pareciam ser do Timoneiro.
Os gritos do Timoneiro eram sem nexo. Não era de dor, mas de
quem estava sofrendo de algum transtorno. Ele devia ter se esgo-
tado ao ponto de perder o juízo ou estava apenas tendo crise de
pânico naquele ambiente confinado e sem esperanças.
Tenho que dar um jeito de contar os nossos planos aos outros
o mais rápido possível, antes que a gente perca um por um nessa
situação degradante.
Não durou muito para a matriarca chegar com algumas outras
e silenciá-lo com um dardo. Assim como o Caranguejo, tiraram o
Timoneiro da cova para nunca mais voltar. Elas deviam ter algum
outro lugar para manter preso os dissidentes.
Não tinha como a gente ajudar os que saíssem dali, pelo menos
incluir nos nossos planos iniciais. Logo o Timoneiro, que era um
dos homens mais fortes da nossa equipe. Todavia, nem sempre a
força física corresponde a força psicológica.
Ao anoitecer, depois do jantar, voltei à cova do capitão para
acertarmos os detalhes.
—A primeira coisa que vamos fazer é visitar cada um e falar
que temos um plano e que eles confiem e alimentem-se de si. Essa
notícia será suficiente para evitar novos surtos, por renovar as es-
peranças.
—Você sabe para onde elas levaram ele?
—Não sei, mas deve ser para a mesma prisão em que está o
Caranguejo e o Pombo, já que os dois parecem receber tratamentos
semelhantes. Estão sempre na mesma condição psicológica, como
mortos vivos.
—Podemos ir agora!

186
CAPÍTULO – 17 |
Plano de Fuga

—Não capitão. Já houve vezes que a Erika veio logo na noite


seguinte à ceia. É melhor eu voltar logo para a minha cova.
—Ok.
A Erika não apareceu naquela noite. Mas foi melhor garantir a
cautela. Aproveitei para tirar uma boa noite de sono, pensando
sempre nos nossos planos.
Sonhei, induzido por meus pensamentos otimistas de que a
gente achava a nossa nau, intacta, com todas as nossas armas de
fogo. Nos armamos todos e fomos invadir a ilha e rendemos todas
as mulheres. Eu fiz questão de manietar a matriarca e jogá-la em
uma das covas. Proibi as grávidas de sacrificarem seus filhos, ainda
que nascessem anencéfalos. Arrancamos e queimamos todas as
plantas daquele veneno que elas utilizavam nos dardos. Mas nos
meus sonhos, aquele veneno era extraído do chá da Fantasia, uma
saída para o meu cérebro já que eu não sabia a origem do veneno.
Ao acordar, fiquei pensando: “A Erika nunca me falou de que
planta se originava o veneno dos dardos.” Realmente ela não me
contava tudo. Tinha suas reservas de fidelidade à matriarca. Pensar
nisso me deixava justificado em não lhe contar sobre a Joana, como
uma forma de revanche sentimental.
Na noite seguinte a Erika apareceu. Eu não estava com tanta
disposição como das outras vezes.
—O que você tem? —Ela me perguntou.
—Nada, só estou preocupado com o Timoneiro. —Foi o que
me veio à mente para disfarçar minha letargia. Na verdade, a minha
desconfiança nela tirava a minha disposição. Homens não sabem
disfarçar tanto como as mulheres. É da própria natureza.
—Não se preocupe, ele está bem.
—Bem onde? Para onde o levaram, ele e o Caranguejo?

187
A Ilha Vermelha

—Temos uma jaula feita de Aguoeira, uma das madeiras mais


fortes que tem aqui na ilha. Lá mantemos os presos agitados sob
constante efeito de remédios para se acalmarem.
—Agitado? Aquele homem está enlouquecendo como todos
nós!
—Eu entendo a sua irresignação, mas confie em mim. Vou tirar
você daqui.
Não perguntei mais nada e tratei de me concentrar nos desejos
dela, para satisfazê-la e garantir a sua amizade. Não deixei de pen-
sar qual seria o plano dela que não podia me contar agora mas ga-
rantia que nos salvaria da matriarca. Era provável que estivesse re-
lacionado com a embarcação que a Joana falou. Era melhor esperar
ela se manifestar.
Ela como sempre, deleitava-se de todo o meu corpo, atitude
que ia além de qualquer dissimulação feminina. Isso me garante a
verdade de seus sentimentos para comigo, pelo menos, no que diz
respeito à paixão ardente de uma mulher fervorosa.
Ao acabarmos, ficamos deitados ainda despidos sobre as nos-
sas roupas.
—Vejo que o túnel está mais fundo. —Ela observou.
Aquele comentário me deixou nervoso. “Devia eu falar do con-
tato com o capitão ou não? Acho melhor não falar dessa vez. Vou
arriscar. Deixa eu ver como vai ficar com a Joana, daí decidirei de-
pois.” —Pensei, após alguns instantes de silêncio.
—Derrubei a areia frouxa para evitar que desabasse e compro-
metesse a estrutura da minha cova. —Disfarcei com essa resposta,
que foi bem recebida por ela.
—Vejo que você não está mais emagrecendo além do que já
emagreceu.
—É verdade. Obrigado por me avisar do que fazer.

188
CAPÍTULO – 17 |
Plano de Fuga

—Mas não exagere. Não deixe o corpo se fortalecer além disso.


Diminua as doses, se for necessário.
—Tudo bem.
Passado-se em torno de uma hora, ela me deixou.
—Ei, deu para ouvir tudo. Você geme mais que ela. —Sussur-
rou o capitão do outro lado do túnel, com sarcasmo.
Realmente o som se propaga com muita facilidade sob a terra.
—Seu curioso! Você está com inveja. —Respondi com risadas.
—Pois tenha cuidado em não fazer barulhos quando eu estiver
com alguém. Não falei sobre o túnel e nem sobre você.
—Eu sei! —Disse ele.
Logo na noite seguinte a Joana apareceu. Parece que ela ia
mesmo manter a regularidade de nossos encontros logo após a
Erika. Ela devia ficar acompanhando cada passo da rival.
Dessa vez, ela veio com um vestido bastante curto sem peça
por baixo, mostrando-se toda logo na descida. Diferente de como
eu me senti com a Erika, já fiquei excitado antes mesmo que ela
tocasse o chão. Ficamos como animais que devora a presa sem mi-
sericórdia, sem trocar uma única palavra. O capitão ouviu que ela
grunhe como uma fera ferida.
Depois de mais uma noite de amor selvagem, não poderia me
considerar desventurado, comparado com os demais companhei-
ros de prisão. A Joana era mesmo muito abrasada, fazia qualquer
homem entrar em êxtase.
Assim que concluímos ela quis sair, sem falar nada. Diferente
da Erika, ela só queria me usar para satisfazer os seus desejos como
mulher.
—Espere um pouco. —Insisti enquanto lhe abraçava e passava
a minha perna sobre ela.

189
A Ilha Vermelha

—Eu não sou a Erika. —Disse ela sorrindo.


—Eu sei que você não é. Mas também gosto de você.
—Não se apaixone.
—Vou tentar.
—Você disse que tem um barco intacto?
—Sim, talvez precise apenas de alguns retoques para navegar.
É a caravela dos portugueses.
—Por que vocês pouparam ela e destruíram a nossa?
—Porque diferente de vocês, com os portugueses não demos
uma de amiguinhas, os atacamos assim que eles pisaram na ilha.
—E por que agiram diferente com a gente?
—Resolvemos mudar a estratégia porque no confronto, ho-
mens e mulheres ficaram feridas. Dominar com calma sob os efeitos
dos remédios pareceu ser mais inteligente. Mas como vocês decidi-
ram voltar ao barco logo no dia seguinte, nos forçaram a afundá-lo.
—A Erika disse que iria me tirar daqui —--. Essas palavras me
escaparam seguidas de um arrependimento imediato.
—Vai tirar é? É… na verdade todos vocês vão sair daqui,
quando estiverem fracos o bastante, como os outros homens da ilha
—. Ela me falou em tom irônico.
Não entendia o porquê, mas as palavras da Joana me soavam
com mais franqueza do que as palavras da Erika. Isso embaralha a
minha cabeça. Será que a Erika apenas quer ficar me manipulando
a vida toda, apenas para me ter por perto e satisfazer os seus dese-
jos?
—Você tem vontade de sair daqui? —Perguntei para testá-la.
Ela parecia ser bem impulsiva e falava o que vinha em mente,
sem filtros. Pessoas assim são ótimas para se conhecer como de fato
elas são.

190
CAPÍTULO – 17 |
Plano de Fuga

—Para passar a vida sob a liderança dessa louca, qualquer lu-


gar é melhor que aqui.
—Onde exatamente está a caravela portuguesa?
—Eu já lhe disse, no outro lado da montanha.
—E como a gente chega lá mais fácil?
—No que você está pensando? Você acha que dá para fugir da-
qui?
Fiquei bastante assustado com essa pergunta. Diante daquela
pergunta e da nossa conversa franca, eu resolvi arriscar tudo. Ou
ela seria a nossa aliada ou entregaria tudo de uma vez por todas,
mas sem ela não conseguiríamos seguir com o nosso plano. Não ti-
nha opções.
—Se eu conseguir chegar até o barco, acho que podemos sim
sair daqui, você, eu e os meus homens.
—Boa sorte. —Ela me respondeu irônica e sem qualquer inte-
resse no plano.
—Não me deseje só boa sorte, me diga como chegar até o barco
e me prometa guardar segredo da nossa conversa.
—Ah… todas estão contra mim, influenciadas pela matriarca.
Não tenho ninguém para revelar seus segredinhos.
Aquela confidência me deixou bastante animado. Tive que se-
gurar os meus ânimos para não me precipitar nas minhas palavras.
Tudo parecia ao nosso favor.
—Pois me fale, como chegar até o barco? E podemos planejar
algo juntos. —Insisti.
Ela olhou para mim como quem depositasse um pouco da sua
confiança.

191
A Ilha Vermelha

—Depois do lago purificador tem uma trilha que rodeia o pé


da montanha pelo lado sul. Siga a trilha e você vai dar de cara com
a embarcação amarrada numa rocha na praia. —Ela me falou em
tom de desinteresse enquanto levantava, subiu rapidamente na
corda e partiu.
Imediatamente fiz todo o trajeto em minha mente até onde eu
conhecia, ou seja, até o lago. De lá imaginei a margem e o ambiente
que dava na direção sul. “Acho que não deve ser tão difícil”. —Pen-
sei.
Arrastei-me no túnel, feito cobra na areia quente do deserto,
em direção à cova do capitão. Ele me recepcionou dizendo que ti-
nha ouvido toda a nossa conversa, com a facilidade da língua natal
dele.
—Vocês falavam em inglês?
—Sim, ela é da Inglaterra.
—Você se arriscou demais com ela, foi uma aposta em tanto.
—Verdade capitão, mas alguma coisa me diz que ela estava
disposta a me ajudar.
—O que faremos agora?
—Meu plano é nos preparar para tentar localizar esse barco
amanhã à noite. Primeiro a gente avisa para os companheiros sobre
a necessidade de beber-se.
—A gente sai e vai direto para a embarcação. Quando voltar-
mos, se o tempo for favorável, a gente fala com os outros. —Propôs
o capitão.
—Fechado!

192
CAPÍTULO – XVIII

A Caravela

O
dia seguinte passou se arrastando. Foi a minha impressão
diante da minha ansiedade exagerada. A minha ansiedade
era tamanha que não conseguia me concentrar para me ex-
citar. Era o dia do meu suplemento vitamínico. Nunca pensei que
para sobreviver chegaria àquele ponto. Era preferível comer carne
humana. De certa forma, não era pior que beber a própria urina,
como já fizeram alguns náufragos.
“Se o Caranguejo estivesse na mesma cova com o Marujo, teria
uma vida saudável de forma inconsciente, enquanto o Marujo iria
se esvair diante dele a cada dia. Como eles tinham uma vida feliz
no Leviatã, num romance secreto ao modo deles, pelo menos a sa-
úde do Caranguejo estava garantida.” —Pensava hilariante.
Após o jantar, aguardei meia hora para garantir a calmaria no-
turna de sempre e percorri o túnel com uma habilidade cada vez
mais aperfeiçoada. O capitão me aguardava mais ansioso que eu.

194
CAPÍTULO – 18 |
A Caravela

Ele me deu suporte nos ombros enquanto eu de pé, sobre seus


ombros, soltei o nó que amarrava a grade à madeira lateral do alça-
pão. Subi com bastante dificuldade. Uma corda facilitaria bastante
como fazem a Erika e a Joana.
Já em cima, deitei-me apoiando-me na grade aberta e dei a mão
para que o capitão subisse. No entanto, mesmo pulando, ele não
conseguiu alcançar a minha mão.
—Espera um pouco —Sussurrei.
Saí a procura de uma corda ou uma vara, qualquer coisa que
servisse de suporte. Encontrei ali próximo cipós de uma árvore que
sempre via no caminho. O cipó era tão resistente que tive dificul-
dades para extraí-lo. Foi necessário usar os dentes e rodá-lo por di-
versas vezes para conseguir romper.
Como é ruim a vida sem as ferramentas básicas. O mais simples
dos atos se transforma numa empreitada complexa.
Voltei com um bom cipó que de tão forte, suportaria eu e o ca-
pitão juntos pendurados. Numa das pontas, dei duas voltas na
grade para suportar melhor o peso do capitão e joguei a outra ponta
para dentro da cova. O capitão subiu com dificuldades. Já sentia os
efeitos do seu definhamento.
Subimos; fechamos a grade para não deixar visível. Enrolei o
cipó e escondi num arbusto próximo.
—Vamos!
Saí na frente numa corrida suave, fazendo o mínimo de pressão
ao solo possível, quase na ponta dos pés. O capitão me seguiu obe-
diente. Agora eu era o líder, devido a autoria do plano.
Tomamos caminho direito à lagoa purificadora. Na bifurcação
do caminho, ao tomar a direção da esquerda, olhei para o clarão da
aldeia, de onde se podia observar os bicos de luzes das velas de cera

195
A Ilha Vermelha

de cada cabana. Não vi sinal das mulheres. O primeiro obstáculo


estava superado.
Ao chegar no lago diminuímos o ritmo, dali em diante não co-
nhecia o caminho, mas a Joana disse que podíamos seguir uma tri-
lha que contorna o lago circundando a base da montanha à es-
querda.
A claridade do vulcão e da aurora boreal eram suficientes para
que distinguíssemos aquela vereda esparsa. Já caminhávamos por
quase uma hora.
Diminuímos o ritmo porque próximo da montanha o terreno
ficava mais acidentado, com a rocha de basalto enrugada devido as
veias de lava que um dia percorreram incandescentes, montanha
abaixo.
—Você acha que estamos no caminho certo? —Perguntou o
capitão duvidoso.
—Temos que alcançar o mar, daí saberemos.
—Estamos próximos. Já dá para ouvir o quebrar das ondas. —
Concluiu o capitão.
Mais uns dez minutos e conseguimos chegar à praia. Havia
uma enseada formada por basalto que formavam uma lua min-
guante, com pelo menos setecentos metros de diâmetro. Varremos
com a vista e logo o capitão observou a embarcação encalhada a
quinze metros da praia, mais para o norte.
As noites da ilha nunca ficavam totalmente escurecidas. Eram
sempre iluminadas pela aurora boreal e pela lava que sossegava no
topo da montanha, refletindo nos paredões de gelo em volta, que
traçava uma iluminação escarlata nas noites da ilha, semelhante ao
ambiente dos bordéis franceses.
Ao nos aproximarmos, vimos uma corda presa a uma ponta sa-
liente de basalto que mantinha a caravela próxima à praia.

196
CAPÍTULO – 18 |
A Caravela

O capitão tirou as roupas e entrou na água que lhe deu nos pei-
tos a uns cinco metros de distância. Nadou até a embarcação e su-
biu nela por uma escada de cordas laterais.
Fiquei olhando da praia, mas quando vi o capitão subir na em-
barcação, despi-me rapidamente e fui até o barco. Quando cheguei
no convés, o capitão já vinha me dando o diagnóstico da embarca-
ção:
—Não tem mastro, mas os remos estão intactos no porão.
—Então se tivermos que usá-la terá que ser a remo? —Pergun-
tei.
—Creio que sim. Mas ela está em bom estado. Não tem água
no porão.
—Maravilha!
—As mulheres depenaram o navio. Retiraram quase todos os
móveis e utensílios.
—Acho que o mastro foi usado para sustentar a coluna princi-
pal da maloca.
—Verdade. E a mesa da cozinha está na casa da matriarca. —
completou o capitão.
—E então, o que você acha? —Perguntei.
—Vamos voltar. Falar com os companheiros e depois falare-
mos a respeito.
Enfim, a história da joana era real. A embarcação existia. O
portal de saída do inferno estava aberto para nós. Senti minhas es-
peranças renovarem num júbilo que me faziam abraçar o capitão
em todo instante aos sorrisos deliberados. O capitão também não
escondia a sua satisfação, mas contido, típico de sua experiência.
Voltamos mais rápido, em pique moderado. Agora sabíamos o
caminho. Comecei a sentir um sentimento especial pela Joana, de

197
A Ilha Vermelha

modo que me fez diminuir a paixão pela Erika, instantaneamente.


Mas ainda tenho que dar crédito à Erika, ela deve ter seus motivos
e planos. Se ela está dissimulando comigo, vou manter o joguinho
dela.
A nossa volta foi bem mais rápida. Encontramos o local das co-
vas intacto, mas nos aproximamos sorrateiramente para se certifi-
car que não havia ninguém.
Tudo tranquilo. Nos dividimos. O tempo ainda permitia. Eu
tomei as covas do lado direito e o capitão as do lado esquerdo, a
partir de uma passagem que aparentemente fazia essa separação
entre os buracos, numa extensão de pelo menos cem metros, com a
média de quinze metros de uma cova para a outra. Não pensei que
fosse tão extenso assim.
Basicamente, ao se aproximar de uma cova a gente fazia sinal
de silêncio e se apresentava, para evitar que o companheiro se as-
sustasse e fizesse barulhos desnecessários:
—- Sou eu, o Sofista. Não faça barulho. Eu e o capitão estamos
bolando um plano. Confie em nós. Por hora, você deve extrair e
consumir os seus fluídos corporais, porque é a única forma de su-
prir as vitaminas que o corpo precisa para manter a nossa força,
porque os alimentos da ilha não supre —Transmitia aquela infor-
mação com a maior dificuldade, não pela clareza das palavras, mas
pela dificuldade de compreensão deles, afinal, essa prática era to-
talmente estranha à nossa cultura. Houve muita resistência.
Concluí que nem todos iriam fazer isso, pelo menos da pri-
meira vez, ou porque não entenderam ou porque acharam absurdo.
O Dom Quixote, sempre muito religioso, fez o sinal da cruz
meneando negativamente com a cabeça, deixou claro que não faria
aquilo. O Cachimbinha também deixou claro bradando a expres-
são: “Você está ficando louco!” De modo que eu tive que pedir si-
lêncio levando o dedo indicador à boca e fazendo um breve chiado.

198
CAPÍTULO – 18 |
A Caravela

—Vamos ter que reforçar para eles essa ideia dos fluidos. Está
havendo muita resistência entre eles. —Disse ao capitão quando
voltávamos para a nossa cova.
Repetimos a mesma posição de ficar sobre os seus ombros, a
fim de deixar a grade amarrada como elas deixaram para não deixar
vestígios. O cipó, nossa primeira ferramenta útil, enrolei e escondi
no meio do túnel.
—O Ariete também disse que não faria isso nem morto. —
Disse o capitão.
—Com o tempo eles vão perceber que isso é necessário. —
Conclui.
Terminamos toda a empreitada num tempo estimado de três
horas e meia. Restava agora dormir no pouco tempo que nos res-
tava para não aparecer tão cansado no outro dia.
A Joana disse que os homens da ilha relatam todos os detalhes
que observam para a matriarca, e se perceberem que não estamos
dormindo direito, podem suspeitar de algo.
Conseguimos realizar o nosso plano inicial. Agora, tudo ficou
mais fácil com a confirmação da existência da caravela. Se fugirmos
à noite, dá para tomar a saída para o oceano Antártico a remadas
antes do amanhecer. Mas para isso, os homens tinham que ficar
mais fortes para remar sem parar e o mais rápido possível. Agora só
tinham nas covas nove de nós.
E se elas começarem a perceber que não estamos ficando en-
fraquecidos como os demais homens da ilha? Essa vai ser a grande
dificuldade que temos que solucionar.
Dormi mal com os pensamentos acelerados, pensando em todas
essas questões que faziam a minha mente se esforçar sobremaneira
em busca de solução. A ansiedade estava me matando.

199
CAPÍTULO – XIX

O Sepultamento

N o outro dia, após o desjejum, fui conversar com o capitão.


Quando cheguei à sua cova o flagrei dormindo de tão exa-
usto. Ele era um gorila de tão resistente. O definhamento
surtia os seus efeitos debilitantes.
Despertei-o. Ele acordou assustado, contando-me que estava
sonhando com ele sendo jogado naquele caldeirão de lava.
—Esse sonho assombra a todos nós, capitão. Ficamos trauma-
tizados —Comentei.
Falei do que havia pensado na madrugada, sobre a possibili-
dade de fugirmos a remadas assim que os homens estivessem mais
recuperados. Logo era possível chegar fora da garganta de gelo e
estaríamos livres, porque elas não teriam como nos alcançar naque-
las canoas de cascas de árvore.
—Dá para sairmos no braço, a remadas, tranquilo. Mas como
sobreviveríamos lá fora sem víveres diante do tempo que levaría-
mos para chegar a próxima civilização? A remo, a gente duraria

200
CAPÍTULO – 18 |
O Sepultamento

pelo menos um mês para chegar às ilhas Kerguelas, as mais próxi-


mas, isso tomando caminho direto, sem contar que estamos sem
bússola, astrolábio, cartografia, quadrante e tudo o mais. Sem ma-
terial de pesca e arpão baleeiro não tínhamos como sobreviver a
tanto tempo no mar. —Disse o capitão com ar de pessimismo.
Aquelas palavras do capitão foram um verdadeiro balde de
água fria no meu entusiasmo. A experiência dele no mar o fazia ser
preciso nos detalhes. Ele tinha toda a razão. Isso deixava nosso
plano de fuga mais complexo e distante do que eu imaginava.
Não seria possível conseguir o necessário sem a ajuda da Joana
e principalmente da Erika.
—Ou seria o caso de a gente traçar planos de retirada dessas
coisas durante a noite e esconder em algum lugar, se a gente souber
onde elas guardam os materiais que roubam das embarcações. —
Sugeri.
—Exato! Primeiro temos que descobrir onde elas guardam
tudo isso. —Disse o capitão.
—No próximo encontro com a Joana, vou tentar ver isso com
ela.
—E a Erika, não lhe ajuda nisso?
—Para falar a verdade, não confio muito na Erika. Você disse
que uma das duas está me enganando. Eu optei por confiar na Jo-
ana. A existência do barco confirmou a honestidade dela.
—Você tem razão.
Não sei o porquê, mas me sentia bem mais à vontade de falar
essas coisas com a Joana do que com a Erika. Decidi seguir os meus
instintos.
Há momentos na vida que a razão não encontra meios para nos
dar uma decisão precisa, restando seguir a intuição.

201
A Ilha Vermelha

Após o almoço também fui à cova do capitão para continuar


idealizando o nosso plano, quando pelas três horas da tarde, ouvi-
mos tropeis de pessoas se aproximando. Apressei-me, desespera-
damente, arrastando-me de volta à minha cova. Já fazia o trajeto em
menos de um minuto.
Porém, a minha perícia não foi suficiente para evitar de ser fla-
grado pelo hominídeo que chegou sobre a grade há tempo de me
ver terminando de sair do túnel. Tentei disfarçar, contorcendo-me
no chão, dissimulando uma dor de barriga, mas percebi que ele se
inclinou para olhar o túnel de um ângulo melhor.
—A casa caiu! —Pensei aterrorizado.
Ele abriu a grade e logo em seguida a Erika chegou.
—Vamos ao sepultamento de um dos homens que veio a óbito.
—Disse-me ao tempo em que me atingia com aquele dardo maldito.
—Quem foi? —Perguntei desesperado, pensando no Caran-
guejo e no Timoneiro.
—Foi um dos nossos, não se preocupe.

Saímos como de costume, enfileirados, com a matriarca e o ca-


pitão à nossa frente e os outros atrás.
Encabeçando o cortejo, seis homens da ilha levavam um es-
quife com o corpo do morto, sobre seus ombros, à semelhança do
que vi quando passamos por Rabat, com a diferença que o morto
daqui era levado descoberto e despido, num total vilipêndio ao ca-
dáver.
—De que ele morreu? —Sussurrei para a Erika discretamente.
—Ele morreu enfraquecido, provocando sangue.
—Então esse é o fim de todos os homens da ilha?

202
CAPÍTULO – 18 |
O Sepultamento

—Quase todos morrem assim. —Acrescentou ela como quem


concordasse sem muita certeza.
—Mas ele já era bem idoso. —Afirmei ao observar a sua fisio-
nomia de um homem com seus 80 anos de idade.
—Não, acho que ele tinha uns 40 anos.
—Não é possível.
—Sim, a falta de vitaminas também envelhecem os homens. —
Afirmou a Erika.
A situação é mais séria do que pensei. Aquela ilha realmente
era uma sentença de morte de todos os meios, seja pelas leis da ma-
triarca seja pelo curso da própria natureza local, que diminui a ex-
pectativa de vida dos homens e acelera o envelhecimento.
Como as mulheres seguiam cantarolando uma espécie de lada-
inha fúnebre, era mais fácil conversar com a Erika sem chamar a
atenção, desde que permanecemos sem olhar um para o outro.
—Se aqui não se geram filhos e os homens têm a vida abrevi-
ada, a vida na ilha está condenada à extinção. — Falei afirmativa-
mente.
—De certa forma sim, mas como já lhe disse uma vez, o espírito
da montanha sempre traz novos aventureiros para a continuidade
dessa habitação. —Ela me respondeu com uma convicção religiosa.
Ela era mesmo devota das crenças da matriarca. Realmente não dá
para confiar numa pessoa assim.
Ao ouvir aquelas palavras percebi que a Erika veste a camisa
da causa da matriarca com afinco. Não a trairia nunca! Assim como
a maioria das mulheres da ilha, ela também já está alienada no mun-
dinho delas de forma convicta. Isso me desencorajou a deixá-la a
par de meus planos com o capitão. Realmente eu não sabia nada
sobre ela. Dali em diante, passei a conversar menos com ela, só o

203
A Ilha Vermelha

necessário, para não deixar ela perceber qualquer mudança no meu


ânimo.
Fomos direto para a caverna e para a minha surpresa, elas não
sepultavam os mortos, mas cremavam o corpo naquela fornalha na-
tural. Tudo que tinha vida naquela ilha servia de alimento para o
espírito Vulcano.
Entramos na caverna ao som daquela ladainha cantarolada por
todas as mulheres. Colocaram o esquife ao chão, em frente ao cal-
deirão.
Observei que aquele corpo era só pele e ossos e que ainda havia
sangue na boca e nas narinas do morto, o que indicava que ele havia
provocado sangue antes de morrer. Ele morreu de tuberculose, to-
talmente enfraquecido. Quantos teriam morrido e ainda iam mor-
rer naquela condição?
Durante o cerimonial, a mulher que fez os registros com pin-
turas na rocha não registrou o velório. Parece que elas não davam
tanta importância às mortes naturais. Sem registro, não era possí-
vel saber quantos miseráveis já tiveram aquele fim.
Olhei em volta para a fisionomia de todos eles. Haviam muitos
velhos, mas na verdade, não haviam velhos nenhum. Talvez o mais
velho dos homens de todos na ilha era de fato o Cachimbinha, de-
pois da morte do Pirata, que tinha pouco mais de 50 anos. Logo ele
sentirá os efeitos da falta de vitamina, caso não siga o nosso conse-
lho, e sua meia idade se transformará nos 80 anos
A cerimônia dos mortos parecia ser mais tranquila e simples.
Talvez não interessava ao espírito da montanha os mortos, mas os
vivos, assim como fazem as feras carnívoras da natureza.
A matriarca apenas falou algumas rápidas palavras naquela
língua desconhecida, feita a tradicional meia lua em volta do es-
quife e do caldeirão, sem aquela balbúrdia diabólica dos sacrifícios.

204
CAPÍTULO – 18 |
O Sepultamento

Depois as mulheres deixaram sobre o morto, em ordem anti-


horária, um triângulo feito de gravetos amarrados com finos cipós.
Até que enfim vi uma atitude de respeito sobre os homens, o que
era bastante raro naquela ilha.
Vi que a Erika trazia o seu graveto triangular no cós do short,
sob a blusa cavada. Quando ela voltou da oferenda eu perguntei:
—O que significa aquilo?
—É o triângulo da vida. Significa que ele cumpriu o seu círculo
de vida aqui na ilha. Alimentou as mulheres; teve seus descenden-
tes sacrificados e serviu enquanto teve força. Ele era o Sousa, o que
serviu você na casa da matriarca. —Completou.
—O Sousa! —Respondi surpreso.
Tinha lembranças do miserável servidor. Ele estava totalmente
irreconhecível, como se tivesse sido sugado todos os seus fluídos
corporais por um morcego vampiro da Austrália.
Fazia apenas pouco mais de dois meses que eu tinha visto ele
na casa da matriarca pela última vez. Isso é bastante assustador. Os
efeitos debilitantes da falta de vitamina corrói o corpo em pouco
tempo, como um câncer terminal.
As mulheres voltaram aos seus lugares junto aos seus pares na
mesma ordem. Vi mais duas mulheres grávidas, que certamente ga-
rantiriam os sacrifícios futuros.
Olhei para a barriga da Erika. Não havia sinal aparente de gra-
videz. Senti-me de certa forma aliviado. Não quero que um filho
meu seja jogado cruelmente naquele caldeirão, com cérebro ou não.
Após as oferendas das mulheres, os seis homens levantaram o
esquife e se dirigiram às margens do caldeirão. Nesse momento, pa-
raram a ladainha e fizeram silêncio.

205
A Ilha Vermelha

Na borda do caldeirão, cujo parapeito dava na altura da cintura


dos homens, com o morto de pés para o caldeirão, os dois homens
que seguravam na ponta da cabeça ergueram seus braços ao má-
ximo, enquanto os dois que estavam aos pés baixaram o esquife so-
bre o peitoril do caldeirão fumegante, até que o corpo deslizou para
dentro da sopa ardente.
Quando o corpo caiu deslizante sobre a lava, subiu uma laba-
redas que envolveu todo o corpo e com o impacto da queda do
corpo sobre a lava, respingou gotas em brasa sobre o pé direito de
um dos homens, que berrou estrondosamente em eco terrível sobre
toda a caverna e caiu ao chão se contorcendo de dor.
Os outros homens, como preguiças lerdas, o levantaram lenta-
mente enquanto a casca de lava se solidificou sobre o pé da pobre
alma. Um dos homens cutucou na casca com um graveto, que lar-
gou do pé levando consigo toda a pele e epiderme. Dava-se para ver
o pé em carne viva enegrecida, sem sangramento, devido a cauteri-
zação imediata.
As mulheres ficaram alheias ao sofrimento do desgraçado, com
exceção da Joana, que se aproximou e falou algo, talvez perguntou
como o moribundo estava.
Eu não tinha mais nenhuma dúvida que a Joana era mesmo di-
ferente das demais, principalmente da Erika, como se não tivesse
sido embriagada pelas ideologias da matriarca. Talvez a paixão da
Erika por mim e os nossos diálogos a faziam ter um pouco de pen-
samento crítico sobre as atitudes da matriarca, mas o seu fanatismo
prevalecia.
Voltamos na mesma ordem, com exceção dos homens com o
esquife, que vieram atrás da fila.
Como as mulheres já não cantarolavam, evitei conversar com a
Erika, principalmente quando logo na saída, a matriarca me olhou

206
CAPÍTULO – 18 |
O Sepultamento

de cima a baixo e me perguntou como eu estava, para a qual res-


pondi nervosamente:
—Tudo bem, minha senhora —baixando a cabeça, demons-
trando respeito.
Ela apenas assentiu com a cabeça e se virou olhando nova-
mente para os meus braços.
Fiquei pensativo, preocupado se ela percebeu a diferença do
meu corpo com relação ao enfraquecimento dos demais. Eu deveria
ter tido mais cautela em não consumir os fluidos toda a semana.
Vou diminuir a dose para cada quinze dias como a Erika orientou.
A minha ansiedade de estar pronto para a fuga levou-me à impru-
dência. A Erika me olhou advertidamente, o que me deixou ainda
mais preocupado.
Voltei para a minha cova tenso em meus pensamentos, dimi-
nuindo até a intensidade da minha respiração para diminuir o vo-
lume do meu tórax. Foi assustador.

207
CAPÍTULO – XX

A Traição
D
urante toda a semana fiquei em dieta de fluidos, a fim de
compensar o ganho de massa perigosa dos últimos dias.
Ainda não sabia até que ponto ia a desconfiança da matri-
arca.
Eu e o capitão decidimos agilizar a busca dos materiais neces-
sários à nossa fuga. Vamos tentar furtar durante a madrugada e es-
condê-los no caminho para a embarcação, a leste da ilha, em uma
pequena caverna que avistamos no caminho.
Nessa semana a Erika não veio me visitar e hoje já é o dia da
Joana. Se a Joana não vir, é sinal que algo de muito ruim está acon-
tecendo. A matriarca realmente teria desconfiado de algo.
Para o meu alívio, a Joana apareceu a noite, bem mais apres-
sada do que das outras vezes.
—A Erika não veio ontem? —Foi a primeira pergunta que ela
me fez.
—Não.
—Vocês estão brigados?

208
CAPÍTULO – 18 |
A Traição

—Não que eu saiba.


—Acho que a Eva cobrou algo dela. —Ela me disse tão alheia
aos motivos quanto eu.
Após o nosso momento ela quis deixar a cova imediatamente,
mas segurei o seu braço e insisti que ela ficasse mais um pouco.
—Não é seguro demorar aqui com você até eu saber o que re-
almente aconteceu.
—Preciso que me ajude. —Insisti.
—Com o que?
—Como faço para conseguir alimentos e utensílios para pre-
parar a nossa partida?
—Partida! Que partida?
—Vamos tentar fugir na caravela e quero que você venha com
a gente.
—A gente quem? —Respondeu ela cada vez mais confusa.
Contei a ela sobre o túnel e o capitão. Falei que sabíamos so-
bre a necessidade dos fluidos. Falei da noite em que eu e o capitão
tínhamos ido à caravela e feito uma inspeção. Que constatamos que
ela está em bom estado, mas para usá-la na fuga só precisávamos
de víveres e alguns materiais para navegação.
Arrisquei tudo, confiando nela, afinal, não tínhamos outra op-
ção caso ela se negasse a nos ajudar.
—A cabana que serve de depósito fica ao lado da cabana da
Eva. Lá ficam guardados todos os objetos que retiramos dos navios
e grãos de trifel para bolos e pães, mas dois dos homens da ilha dor-
mem lá. —Ela me informou de forma fria e aparentemente desacre-
ditada, mas de certa forma, surpreendi-me com a sua serenidade
diante do meu plano ousado de fuga.

209
A Ilha Vermelha

—O que é grão de trifel?


—É um tipo de trigo, que plantamos no sul da ilha. Usamos
para fazer esses bolos que vocês comem todos os dias. Não aguento
mais comer esses bolos malditos! —Acrescentou.
—E se você conseguisse para mim um desses dardos com o
veneno que vocês usam para desmaiar as pessoas?
—Basta meu querido! Você não acha que está me pedindo de-
mais? —Ela sentenciou de forma terminativa diante do meu último
pedido e saiu apressada da cova.
Fui ousado demais, mas precisava arriscar. A passividade dela
diante das minhas propostas me encorajou a ir mais longe, mas aca-
bei me excedendo, talvez. A minha confiança na Joana só aumen-
tava. Ela me transmitia essa segurança. O tempo me mostrará se
errei ou avancei no nosso projeto de fuga.
Nas noites seguintes eu e o capitão fizemos mais duas visitas
aos companheiros reforçando a ideia de que eles precisavam con-
sumir os fluidos pelo menos uma vez a cada 15 dias, para suas pró-
prias sobrevivências e para evitar o raquitismo exagerado e guar-
darem condições para a nossa fuga. A morte do servidor da ilha foi
usada como nosso argumento para mostrar o perigo que eles cor-
riam. O capitão já estava aparentemente bem mais saudável.
Até que na terceira noite após a última visita da Joana, antes
da noite da próxima ceia, eu e o capitão saímos pela madrugada
para ver as condições da cabana que servia de depósito. Chegamos
por trás, silenciosamente, para não chamar a atenção dos homens
citados pela Joana que protegiam o depósito.
Demos a volta, e pela frecha da porta, dava para ver através do
cintilar de uma vela fraca, os dois homens dormindo sobre forras
em um dos cantos.

210
CAPÍTULO – 18 |
A Traição

Por toda a cabana havia vários objetos, como a Joana tinha fa-
lado, dispostos em prateleiras de madeira mal trabalhados, co-
brindo as paredes laterais e traseiras.
—E agora? —Perguntei ao capitão.
—Pela porta é impossível entrar sem chamar a atenção dos ho-
mens. Mas podemos cavar um buraco de acesso por trás, aprovei-
tando que os materiais cobriram a visão dos homens.
Aquela proposta do capitão não parecia muito eficiente, mas
não pensei em algo melhor. Começamos a cavar com as próprias
mãos ao pé do muro na parte de trás da cabana, do lado externo da
aldeia, que dava para a floresta e para a trilha que levava ao lago e à
embarcação, numa parte onde os arbustos eram mais densos.
As paredes das cabanas eram feitas de pau a pique, com finas
varas trançadas e revestidas de barro negro. Não eram muito resis-
tentes e não tinham alicerce, além das estacas encravadas ao solo
para sustentação.
Usamos pedaços de madeira para afofar a terra, já que não tí-
nhamos instrumentos adequados. Como as bases da cabana era
feita de barro negro sobre estruturas de madeira fina trançadas e
amarradas com cipó, não demorou muito para que abríssemos um
buraco que dava acesso ao interior, por baixo da parede, com
acesso direto aos objetos empilhados.
Como já se fazia tarde, apenas cobrimos o buraco com galhos
e folhas e voltamos para as nossas covas.
Depois de mais um banho e ceia no dia seguinte, a Erika apa-
receu em minha cova.
—Por que você não veio na semana passada? —Perguntei.
—Depois do velório, a matriarca perguntou se eu tinha achado
você mais forte do que os outros, daí achei melhor não arriscar, pois
ela poderia ter colocado alguém para lhe observar. Ontem na ceia,

211
A Ilha Vermelha

ela ficou com você, talvez para sentir melhor como estava o seu
corpo, mas acho que ela não desconfiou de nada.
Quando ela me falou aquilo, desejei estar consciente na ceia
para lembrar do desempenho da matriarca. Tinha repulsa daquela
mulher, mas ao mesmo tempo, sentia um certo fascínio.
—Eu passei essa semana sem consumir. —Disse.
—Fez bem. Você tem que ter mais cuidado.
Mais uma vez não me senti seguro para contar nada para a
Erika. Ela podia apenas estar blefando. A fidelidade dela à matri-
arca me deixava temeroso de que ela não aceitasse o nosso intento.
A Joana, do contrário, era bem mais participativa. Perguntou
se a gente tinha conseguido ver algo com relação aos objetos. Com
ela eu já me sentia bem mais à vontade e satisfeito. Ela realmente
estava nos apoiando na medida do possível. Mas uma pergunta que
ela me fez, deixou-me intrigado: Ela me perguntou se tinha sido a
Erika que tinha me falado do motivo que levava os homens a fica-
rem fracos na ilha. Respondi que sim. A minha confiança nela me
deixou à vontade para isso.
—O que ela disse? —Ela insistiu na pergunta.
Falei que ela tinha dito que os nossos fluidos eram a fórmula
necessária para nos manter saudáveis e que eu estava tomando uma
vez por semana.
—Percebi que você é bem mais saudável que os demais. O ca-
pitão também está tomando?
—Sim. Você vai nos ajudar? —Completei.
—Peguem os materiais. Quando tudo estiver pronto me avise.
Quero ir com vocês.
—Se você conseguisse os dardos, ficaria mais fácil para a gente.
—Não! Isso eu não posso.

212
CAPÍTULO – 18 |
A Traição

Não entendia porque ela não nos ajudava a conseguir um


pouco de dardo com veneno. Ela estava cooperando bastante, mas
não aceitava nos dar o veneno. “Será que ela tinha receio que a gente
usasse contra ela?” —Pensei.
Mas uma vez abriu-se a janela de três noites para a gente avan-
çar na nossa empreitada. Na madrugada, fomos direto para atrás da
cabana, onde deixamos o buraco encoberto com galhos e folhas. Es-
tava como deixamos da última vez. Sinal que o plano corria per-
feito.
Como não havia espaço do lado de dentro devido ao acúmulo
de materiais ao pé da parede, começamos a retirar o que estava ao
nosso alcance, ainda que não nos interessasse, a fim de abrir espaço
do lado de dentro.
De certa forma, era vantajoso para a gente ter tanta coisa acu-
mulada, pois fazia barreira para que os homens que dormiam lá
dentro não nos visse, contudo, devido aos objetos de metal, tínha-
mos que ter muito cuidado para não fazer o mínimo barulho. O
simples toque de uma peça na outra provocaria um som agudo de-
nunciador.
Havia de tudo; tecidos, vasilhames, peças de decoração, uten-
sílios de cozinha. Colocamos à parte tudo o que nos interessava e
utilizamos os tecidos para fazer padiola.
—Não é bom acumular coisas aqui fora, vamos tratar de levar
logo para o local e o que não nos servir, escondemos no mato. —
Propôs sabiamente o capitão.
Para nossa sorte, o mato atrás da cabana era bastante denso,
permitindo esconder as coisas de forma que não ficassem à mostra
durante o dia. Outro fator que contribuía ao nosso favor: a cabana
ficava na extremidade leste da aldeia, de modo que já podíamos pe-
gar o caminho em direção ao lago sem passar por dentro da aldeia.

213
A Ilha Vermelha

Devido à distância, só era possível fazer uma viagem por noite,


com o tempo para a retirada e seleção do material.
Nas três noites consecutivas em que realizamos as coletas, pe-
gamos tudo de cozinha, incluindo algumas espadas, facas e pu-
nhais. Eu e o capitão ficamos cada um com um punhal, para o nosso
uso pessoal. Peguei um pequeno punhal de cinco polegadas que o
Pirata usava. Pobre Pirata.
—Com essas espadas estamos bem armados, porém, não pro-
tegidos dos dardos disparados à distância. Temos que providenciar
nossos escudos. —Lembrou o capitão.
Já que agora tínhamos espadas disponíveis, resolvemos que
nas próximas noites iríamos começar a confeccionar os escudos de
casca de árvore para nos proteger dos dardos.
Começou o novo ciclo semanal com o banho e a ceia. Já não
levavam mais o Caranguejo, o que me deixou bastante preocupado.
Eu não tinha mais dúvida que ele seria o próximo do sacrifício in-
fame.
A matriarca deixou de olhar para mim com os olhares suspei-
tos, como se estivesse convencida de que tudo estava na total nor-
malidade. Afinal, a biologia de cada um é uma variável para os efei-
tos da falta de vitamina.
Tudo indicava que o homem da ilha que me servia não havia
comentado nada sobre o túnel, apesar de eu perceber que ele sem-
pre estava de olhares desconfiados para mim e sempre chegava de
surpresa, para flagrar alguma coisa suspeita. Com uma pitada de
boa sorte, estávamos a um passo de sair daquela ilha.
Na noite seguinte, a Erika chegou me trazendo uma notícia
que fez a minha cabeça rodar.
—Acho que estou grávida. —Disse ela passando a mão sobre a
barriga.

214
CAPÍTULO – 18 |
A Traição

—Por que você acha isso? —Perguntei trêmulo.


—Esse é o terceiro mês que não venho a paquete, e sinto sin-
tomas semelhantes às gravidez anteriores.
—E se realmente você estiver grávida, o filho seria meu?
—Claro que sim! Não tive coito com ninguém além de você,
desde que você chegou à ilha. —ela me respondeu com uma con-
vicção convincente.
Aquela notícia me abalou bastante diante da possibilidade de
ver o meu filho ser sacrificado diante dos meus olhos.
—Erika, não podemos deixar o nosso filho ser sacrificado? Eu
não aguentaria ver isso. Temos que fugir daqui! —Deixei a minha
emoção falar mais alto e expôs diante dela todos os nossos planos.
Falei que o túnel me ligava direto ao buraco do capitão.
—Eu já imaginava. —Disse ela.
Falei das nossas saídas à noite e que sabíamos da existência da
embarcação, porém, não falei da Joana, deixei a entender que tudo
nós descobrimos por conta própria. Também não citei sobre as coi-
sas que estávamos pegando a noite no depósito. A minha intenção
era trazer ela com meu filho em nossa fuga, mas sem nos compro-
meter nos detalhes.
Diante dos seus questionamentos, falei do nosso plano de fuga,
que iríamos fugir numa dessas noites. Disse que falei aos demais
companheiros da necessidade de se alimentar de nossos fluídos,
para que todos estivessem em condições de fuga.
—Mas aquele barco não tem nada, está só a carcaça, eu mesmo
ajudei a esvaziá-lo. —Disse ela duvidosa.
—Quanto a isso não se preocupe, estamos providenciando
tudo, só quero que você venha com a gente.
—Dylan, se a matriarca descobrir, matará todos nós.

215
A Ilha Vermelha

—Eu prefiro morrer que ver o meu filho ser jogado no caldeirão
de lava.
Ela demonstrou estar muito preocupada com a nossa ideia de
fuga. Não acreditava que iríamos conseguir.
Naquela noite, os assuntos prevaleceram sobre os nossos libi-
dos de tal forma que não fizemos amor. Conversamos toda a noite
sobre nosso filho; como poderíamos criá-lo e vivermos juntos, de
volta à civilização, até que ficou tarde o bastante e ela teve que sair.
—Confio no seu silêncio. —Disse, segurando em sua mão.
—Não se preocupe. Só tenha muito cuidado! —Ela me disse
com olhar de preocupação.
De certa forma, apesar de temerosa, ela se mostrou bastante
interessada na ideia. Acho que ela quer mesmo compartilhar uma
família comigo. Talvez o seu jeito comedido passava a impressão de
ser uma pessoa mais fria em termos emocionais, e isso me levou a
duvidar de seus sentimentos por mim. Mas agora tudo mudou. É a
mãe do meu filho. Não poderia deixá-los de fora da nossa fuga.
Assim que a Erika saiu do meu buraco, o capitão, pela primeira
vez, surpreendeu-me quando apareceu na minha cova arrastando-
se pelo túnel.
—Você acha que foi seguro contar tudo para Erika? —Pergun-
tou-me de forma advertida.
—Tive que arriscar capitão, agora ela é a mãe do meu filho.
Não poderia deixar ela fora disso.
—Espero que você não se arrependa por isso.
—Também espero Isaac, mas acredito que ela está conosco.
Na noite seguinte a Joana apareceu bastante interessada em
nossos planos. Perguntou-me como estava os preparativos; se já tí-
nhamos pego boa parte do que precisávamos. Ela queria sair da-
quela ilha o tanto quanto a gente.

216
CAPÍTULO – 18 |
A Traição

—Você pretende levar a Erika junto?


—Ela, você e quantas mulheres quiserem se libertar dessa
louca da matriarca! —Respondi de forma a tirar a ideia de prefe-
rência sobre a Erika. Não queria perder a simpatia da Joana até que
pusesse os pés fora daquela ilha. Ela era muito importante para nos
ajudar. Porém, não falei da gravidez.
—Já tem data para a fuga?
—Se a gente conseguir pegar o resto das coisas que precisa-
mos, podemos ir na próxima semana, logo após a ceia. Mas não se
preocupe, não sairemos daqui sem você.
—Mas você não contou para a Erika sobre nós, né? Já disse que
ela não é de confiança!
—Claro que não!
Ficamos o resto da noite e achei melhor não falar sobre a minha
conversa com a Erika.
Amanheci no outro dia bastante ansioso. As três noites até a
próxima ceia tem que ser o suficiente para pegarmos tudo que pre-
cisamos.
—O que você acha de levar conosco o Ariete e o Capeta hoje à
noite? Eles parecem que ainda têm boas condições físicas, apesar
de magros. Podemos dobrar a nossa capacidade de transportar o
que precisamos. —Sugeriu ao capitão.
—Sim, é uma ótima ideia!
Colocamos em prática a ideia. Tiramos o Capeta e o Ariete da
cova deles, advertindo-os da necessidade de manter o maior silên-
cio.
—Façam exatamente o que a gente mandar e apenas nos si-
gam. —Enfatizou o capitão.

217
A Ilha Vermelha

Aquela noite estava particularmente mais clara. Era noite de


lua cheia, apesar de não vermos a lua no céu, a sua claridade dava
um tom diferente, diminuindo a intensidade do vermelho ao agre-
gar luz branca ao clarão do vulcão e a aurora boreal refletidos nos
paredões de gelo em volta de toda a ilha.
Fomos direto ao buraco na parede por trás da cabana do depó-
sito. Já dava para entrar devido ao espaço que ficou das coisas que
havíamos tirado nas noites anteriores.
Eu entrei silenciosamente para não chamar a atenção dos ho-
mens, a fim de escolher as coisas e repassar para os companheiros
lá fora. Lá dentro me certifiquei se os homens estavam dormindo,
mas surpreendentemente, ao procurar no lugar que eles ficavam e
por todos os cantos do compartimento, não vi eles em lugar ne-
nhum.
Voltei rapidamente e disse para o capitão, que dessa vez en-
trou comigo para confirmar.
—Estranho, mas vamos aproveitar para tirar tudo que preci-
samos nessa noite. Você fica olhando a fresta da porta, caso eles
voltem. —Planejou o capitão.
Fiquei de olho enquanto o capitão ia escolhendo os utensílios.
Dessa vez, sem se preocupar muito com os pequenos barulhos. De
vez em quando ele levantava para me mostrar alguns dos mais im-
portantes que ele encontrava, como uma bússola e o astrolábio. Ao
ver essas coisas eu vibrava silenciosamente socando no ar e sor-
rindo. Íamos fugir, finalmente!
O capitão deu sinal para que saíssemos. Ele já tinha pego tudo
o que achou necessário.
Ao sair, tapamos o buraco com terra e enchemos as padiolas
com as coisas mais importantes e menores primeiro, para deixar o
resto das coisas para levar na outra noite. Já tínhamos gastado bas-
tante tempo da noite colhendo o material.

218
CAPÍTULO – 18 |
A Traição

Saímos sorrateiramente com duas padiolas cheias, eu e o Ari-


ete levando uma e o capitão e o Capeta levando a outra.
Ao nos distanciarmos da aldeia, apressamos o passo em pique
moderado, de modo a não derrubar o material, afinal, já conhecía-
mos bem o trajeto.
—Vamos deixar essas coisas direto na embarcação. —Disse o
capitão sob a nossa concordância.
A claridade nos favorecia bastante com a lua cheia, mas para
fugir, era melhor escolher uma noite menos clara, por garantia. Da-
qui a duas semanas será lua nova, o que seria ideal, mas não sei se
vamos esperar tanto.
Para a nossa surpresa, quando demos a volta pelas bases da
montanha até chegar na praia onde estava ancorada a caravela, não
acreditamos no que vimos. A caravela estava parcialmente afun-
dada, apenas com parte do convés fora d’água.
—Fomos traídos! —Bradou o capitão jogando as coisas no chão, com
fúria.

219
CAPÍTULO – XXI

O Julgamento

T
udo estava perdido. O Ariete e o Capeta confusos com tudo
aquilo só ouviam de nós que tínhamos sidos traídos sem
qualquer explicação adicional. Não tínhamos saco para ex-
plicar nada naquela hora.
—Eu falei para você que não se podia confiar na Erika!
—Fui eu quem falou que não tinha muita confiança na Erika.
Toda a sua impressão sobre ela estava baseada no meu julgamento,
capitão.
—Você tem razão. Falei por impulso. Vamos voltar para as
nossas covas antes que amanheça e as coisas piorem, e vamos
aguardar o que virá daqui para a frente.
Voltamos desolados, de tal modo que largamos as coisas na
praia. Eu fiquei sem chão. A vontade que eu tinha era de pular do
alto da montanha sobre rochedos para me esbagaçar de vez.
Aqueles homens, o Ariete e o Capeta, só foram tirados de suas
covas para testemunharem o nosso fracasso depois de ouvir de nós

220
CAPÍTULO – 21 |
O Julgamento

o resumo de um plano perfeito. Foram da glória a desventura e de-


sespero em poucas horas. Tiveram que guardar a confusão daquela
noite sem entender bem o que realmente havia acontecido.
Na minha eterna cova, que desejei ser a minha cova fúnebre
naquela hora, passei o resto da noite em claro sem conseguir dor-
mir. Enterrei o punhal do Pirata na areia, por precaução. “Como a
Erika pôde fazer aquilo comigo? Seria a ideia da gravidez falsa, ape-
nas para arrancar de mim as informações que precisava? Como eu
pude ser tão tolo?” —Era só o que eu pensava.
No dia seguinte, tudo transcorreu estranhamente normal. Po-
rém, eu e o capitão não nos falamos. Eu não tinha forças sequer para
me levantar. Estava psicologicamente destruído por tamanha frus-
tração. Estávamos de luto pelo plano natimorto. À noite, só nos res-
tava dormir mais cedo para compensar a perda do sono da noite
anterior.
No dia seguinte, após o desjejum, arrastei-me até a cova do
capitão.
—Como você está? —Perguntei a fim de puxar assunto.
—Ainda estou desnorteado.
—Não é por menos, capitão. Você tem algo em mente? —Per-
guntei.
—Vamos esperar a próxima semana, a visita da Erika ou da
Joana, para saber de algo, já que até agora as coisas parecem estra-
nhamente normais.
—Será que a caravela afundou por conta própria? Será que
havia algum buraco que não vimos daquela vez? —Lancei essa hi-
pótese.
—Impossível! Apesar de escuro, vasculhei cada comparti-
mento. Estava tudo seco. Não tinha como encharcar daquela forma
senão por ação humana. —Ele respondeu rispidamente.

221
A Ilha Vermelha

—Esperemos os próximos dias então.


Como eu vi que o capitão se irritou com a minha opinião, que
mexia diretamente no seu ego de navegador experiente e perce-
bendo que ele começava a se alterar, buscando culpados, encurtei
o assunto e retornei para a minha cova, arrastando-me lentamente
e pensando se a Erika viria e o que eu ouviria dela sobre esse acon-
tecido. “Será que ela teria a cara dura de negar que sabia de alguma
coisa?”.
Ao anoitecer, o homem da ilha se atrasou na entrega do meu
jantar. Já comecei a achar que algo estava acontecendo.
Em poucos instantes, senti passos rápidos no chão e de re-
pente, surgiu uma sombra sobre a grade da minha cova. Pensei ser
o homem com o meu jantar, mas para a minha surpresa, ouvi a voz
da Erika que agachada sobre a grade, soltou um frasco pequeno e
disse:
—Entregaram a gente! Nesse frasco tem um antídoto contra o
veneno paralisante.
—Como assim? —Perguntei inutilmente.
Antes que ela me respondesse, ouvi um tropel de pisadas for-
tes e a Erika rapidamente saiu da minha visão. Ouvi barulhos de
passos descoordenados, como de uma luta e uma voz que parecia
ser da matriarca, em tom firme: —Levem-na!
Depois fiquei ouvindo passos que percorriam todo o local
onde estavam as nossas covas. Em dado momento, vi um dos ho-
mens da ilha dar uma rápida olhada para dentro da minha cova,
como se não quisesse ser visto.
“Entregaram a gente!” Foi o que eu ouvi claramente a Erika di-
zer. Peguei o punhal e escondi no cós da minha calça. Juntei aquele
pequeno recipiente que parecia um mini frasco de perfume francês
com um líquido amarelado pela metade e lembrei das palavras que

222
CAPÍTULO – 21 |
O Julgamento

ela disse: “Um antídoto para o veneno paralisante”. Escondi-o den-


tro de minhas calças.
As contínuas passadas daquele homem por todo o perímetro
levava-me a entender que a matriarca tinha estabelecido guarda
para nos vigiar. Realmente já sabiam da nossa trama. Agora esta-
mos entregues à própria sorte, aos caprichos daquela louca endia-
brada.
Naquela noite, sem jantar e vencido pelo cansaço, dormi como
uma pedra, de tal forma que sequer lembro se sonhei alguma coisa,
doravante, não tirei o punhal do cós e o frasco da roupa.
Pela manhã cedo, acordei sendo atingido por um dardo, que
certeiramente me atingiu na jugular, causando-me uma dormência
imediata de tal modo que não consegui me levantar. Contudo,
como aquele veneno não nos tirava a consciência, apenas as forças,
vi que dessa vez era a Joana que me acertou e me tirou da cova junto
com um dos homens.
Ao sair da cova, fui conduzido pela Joana logo atrás de outra
mulher que conduzia o capitão. Não vi a matriarca e a Erika. Os
outros companheiros vinham atrás com os outros homens e mulhe-
res da ilha. Tomamos caminho em direção a caverna. A Joana não
me direcionou palavras.
—O que está acontecendo? —Perguntei.
—Vocês serão julgados pela sedição. —Respondeu-me rispi-
damente.
A resposta fria da Joana não me deixou dúvidas. Era ela quem
nos tinha traído. Foi ela quem me ludibriou e não a Erika. Toda a
solicitude dela, demonstrando revolta contra a matriarca, não pas-
sava de dissimulação para ganhar a minha confiança. Ela na ver-
dade era o olho da matriarca e suas visitas logo após a Erika, de-
monstrava que ela nos vigiava e se introduziu através da nossa

223
A Ilha Vermelha

relação e com pretexto de ser desfavorecida, para arrancar de mim


tudo que eu sabia.
Caí como uma criança desejosa pelo brinquedo favorito. A mi-
nha inocência me enchia de ódio contra mim mesmo. Como pude
ser tão tolo e infantil? Meu subconsciente tentava amenizar a mi-
nha culpa, pensando o quão formidável era aquela mulher, atleta e
inteligente, que não à toa, foi escolhida pela matriarca para realizar
esse trabalho perfeito de espionagem. Qualquer um de nós cairia
na sua lábia diante das circunstâncias, até o capitão, que não de-
monstrou qualquer suspeita sobre ela. Justificava-me com esses
pensamentos.
Mas nada disso adiantava, eu me flagelava em sentimentos a
todo instante. Sempre me achei bastante inteligente, autodidata,
mas a Joana mostrou-me da pior forma o quanto eu era idiota e ima-
turo.
—Tudo o que você me falou era mentira? —Perguntei me viti-
mizando diante de uma suposta paixão traída.
—Quase tudo. —Ela respondeu secamente.
—E o que foi verdade disso tudo?
—O meu prazer em te usar.
Com essa resposta eu me calei. Bastava. Ela era tão diabólica
quanto a matriarca. E eu que suspeitava da Erika. Veio então em
meus pensamentos a ideia da gravidez. “Seria então verdade? Além
de tudo, o meu filho também estava em perigo?” —Pensei desespe-
rado.
Chegamos na caverna com a entrada iluminada com as velas
sobre as preponderâncias das rochas de basalto laterais. A matri-
arca nos aguardava próximo ao caldeirão, com uma mulher cabis-
baixa e ajoelhada aos seus pés.

224
CAPÍTULO – 21 |
O Julgamento

Ao nos aproximar, vi que se tratava da Erika, nua e manietada


com os braços para trás.
Ela levantou a cabeça e olhou para mim com um olhar de la-
mento. Senti uma opressão no peito e a enorme sensação de que
sim, ela realmente está grávida de nosso filho.
A Joana, que percebeu a nossa troca de olhares, empurrou-me
para o lugar em que eu deveria ficar, como uma resposta do seu in-
cômodo pela cumplicidade entre eu e a Erika.
Todos ficaram dispostos no mesmo dispositivo de sempre,
num semicírculo em volta do caldeirão, que se mostrava tranquilo,
com a fina camada de lava quase que solidificada por cima, fatiada
por rachaduras incandescentes que contribuem para a iluminação
do ambiente.
A matriarca, com o cocar de penacho sobre a cabeça, demons-
trando tratar-se de uma espécie de coroa real, simbolizando a sua
soberania sobre todos da ilha, levantou os braços e todos fizeram
silêncio.
—Estamos reunidos mais uma vez nesse lugar sagrado, di-
ante do portal do reino do espírito Vulcano, para cultuar o nosso
deus. Hoje, na forma de justiça, a fim de julgar a traidora de nosso
clã, a Erika, que pelas nossas costas, na surdina da noite e na tran-
quilidade de nosso sono sagrado, deitava-se com esse homem —
nesse momento ela me apontou —maritalmente, compartilhava os
nossos segredos e o ajudava nos furtos de nossos bens e no plano
de fuga. Como fruto dessa traição, ela concebeu o filho da desobe-
diência, que também será sentenciado com ela na morte, assados
sobre o caldeirão ardente.
Prosseguiu —Quanto a estes homens, que conspiraram com
essa maldita, ficarão no corredor da morte, mas não serão

225
A Ilha Vermelha

executados até que suguemos todos os seus fluídos necessários à


nossa subsistência.
A data de suas mortes será definida pela cessação de suas viri-
lidades. Para tanto, ficarão confinados sob a vigilância de nossos
homens, para que não desviem mais as vitaminas que pertencem
somente a nós mulheres.
Nesse momento as mulheres começaram a gritar e bater nos
atabaques e rebolear os chocalhos, enquanto quatro dos homens
traziam um tronco roliço e grosso, que logo reconheci tratar-se de
um pedaço do mastro da caravela portuguesa.
Deitaram-no ao lado da Erika e a colocaram deitada por cima
e a amarraram sobre o tronco, do tórax aos pés, de modo que ela
ficou totalmente esticada sobre a madeira.
Depois, dois homens em cada ponta, ergueram o tronco sus-
pendendo-o sobre os ombros, levaram-no e subindo sobre o peito-
ril do caldeirão, estenderam cada ponta do tronco nas estacas de
pontas bifurcadas que havia em cada lado do caldeirão de lava, de
modo que a Erika ficou amarrada ao tronco no meio do caldeirão.
Logo ela começou a gemer de dor devido ao calor intenso e em
poucos instantes, os seus gemidos contidos se transformaram em
gritos estarrecedores. O tronco ficava apenas a um metro e meio de
altura.
Eu vi a coloração da sua pele mudar, a cada instante, daquele
vermelho mel, que era a cor comum de todos na ilha, para um ver-
melhidão vivo e abrasador.
A Erika estava sendo assada viva. Em instantes, ela começou a
sangrar nas suas partes íntimas. Toras de sangue começaram a se
precipitar de seu ventre sobre o caldeirão, que os consumia de ime-
diato. Ela tinha abortado o nosso filho devido à dor intensa.

226
CAPÍTULO – 21 |
O Julgamento

Dois minutos depois, a pele dela começou a se desfazer em sal-


moura e derretendo como cera ao calor. Logo ela perdeu a consci-
ência e silenciou.
Durante aquele processo lento e doloroso a Joana olhou para
mim com olhar sarcástico e cruel, mostrando uma satisfação mór-
bida.
Senti-me impotente e enlouquecido com aquela cena horrenda
e comecei a gritar desesperadamente, caindo ao chão, foi quando
uma das mulheres que estava perto da matriarca me atingiu com
mais um dardo e eu perdi a consciência.
Acordei com o céu ainda claro, mas aparentando ser a hora ves-
pertina, dentro de uma pequena jaula de madeira grossa, vigiado
por um dos homens da ilha à porta.
Vi que haviam outras jaulas, a uma distância de dez metros
umas das outras, dispostas no perímetro direito da aldeia, a oeste
da ilha. Não vi a jaula onde estava o capitão.
Sentia uma dor de cabeça insuportável que me fazia nausear a
todo instante. Percebi que o punhal e o frasco que a Erika me deu
ainda estavam comigo.
Como os efeitos do veneno já tinham passado, com a lem-
brança vívida da tortura a qual a Erika foi submedida e o aborto do
nosso filho, coisa que eu nunca imaginei ver na vida, chorei deses-
peradamente pelo sofrimento da minha amiga e do meu querido fi-
lho que nunca o conheci.

227
CAPÍTULO – XXII

A Revanche
D
ali em diante, não passávamos de criação, como se usam os
gados, suínos, caprinos e aves, confinados para engorda ou
beneficiamento, aguardando o dia do abate.
Éramos apenas as provisões delas. Ao menos os animais irraci-
onais não têm consciência, não raciocinam de modo a projetar o seu
futuro trágico. Nós, nessa condição, sofremos antecipadamente, a
todo instante, a cada hora, todos os dias de nossa existência mise-
rável.
Eu já me sentia morto, pendente apenas de ser enterrado.
Sentir aquele frasco nas minhas calças era uma amarga e forte lem-
brança da última tentativa que a Erika fez para me ajudar de al-
guma forma antes de ser cruelmente martirizada.
“Como pude duvidar do seu amor?” Só em pensar nisso sentia
um aperto no peito. “Mas o que ela tinha em mente? Como poderei
usar esse antídoto?” Ela disse que era um antídoto para o veneno.
Mas que utilidade isso vai ter agora para mim, que estou sozinho e
enclausurado? Se pelo menos cada um dos meus companheiros ti-
vesse um desses.” —Divagava em meus pensamentos.

229
A Ilha Vermelha

Anoiteceu e naquele dia não houve banho e ceia. A jaula era um


retângulo de um por dois metros. Ao menos podíamos nos deitar
ao chão, e assim eu ficava o dia todo, como um vegetal.
Restava-me apenas a mente com a sua inquietude de pensa-
mentos, que me fazia lembrar que eu ainda estava vivo, pelo sofri-
mento incessante que me atormentava. “Como eu queria ser um
simples cabrito na sua inocência naquela hora”.
No dia seguinte, repetiu-se a rotina que tínhamos nas covas,
com os homens vindo nos servir o desjejum, almoço e janta, com a
diferença de que agora eu poderia contemplar o dia-a-dia daquelas
mulheres nos seus afazeres diários.
Passavam com raízes e plantas, vez e outra um elefante-mari-
nho abatido, peixes e aves, sempre carregados pelos homens, seja
aos ombros ou na padiola.
A matriarca pouco aparecia, a não ser passando de sua casa
para a maloca, o que fazia todas as tardes. Parece que a única ocu-
pação dela era a de ser a sacerdotisa do espírito Vulcano, zelando
pelo templo do culto.
Eu distinguia sempre por seus ombros largos as idas e vindas
da Joana. Deve ser ela que vai substituir a Erika como meu par nos
dias da ceia. Ainda bem que ficamos inconscientes durante aquela
abominação.
Passaram-se quatro dias naquela tediosa rotina. O homem que
nos vigiava, ficava atento sempre que eu usava a latrina, talvez por
ordem da matriarca para que eu não chegasse a consumir meus pró-
prios fluídos.
Logo eu estaria inutilizável pelo raquitismo e chegaria, enfim,
o dia da minha morte. Deverei ser assado como a Erika. Estremecia
com um calafrio que percorria toda a minha coluna arrepiando os

230
CAPÍTULO – 22 |
A Revanche

meus cabelos da cabeça aos pés só em pensar em ter aquela morte


horrenda.
Eu já cheirava mal e desejei que chegasse o dia do banho e da
ceia pelo menos para me aliviar com um banho quente. Mas como
eu farei para manter escondido o punhal e o frasco? Tenho que dar
um jeito de enterrá-los sem chamar a atenção do homem que me
vigia, o que farei ainda essa noite.
Ao anoitecer, após o jantar, esperei a distração do vigia para
enterrar logo essas coisas antes que eu fosse flagrado por ocasião
do banho. Mas percebi que havia uma movimentação estranha en-
tre elas.
Uma das mulheres chegou falando alto, correndo da trilha que
dava para a praia principal que dá de frente a garganta da geleira
de onde chegamos:
—Tem outra embarcação se aproximando!
A Joana fez sinal para que ela se calasse e a levou para a cabana
da matriarca. Tempos depois, saiu uma comitiva de seis mulheres,
dentre elas, a matriarca e a Joana, cada uma com aquelas armas de
disparar dardos disfarçados de um simples cajado, e seguiram pela
trilha que dá para a praia.
Aquela mulher falou claramente que “estava se aproximando
outra embarcação.” Quem poderia ser eu não fazia ideia, mas uma
coisa eu tinha certeza: são outros miseráveis caminhando para a
morte em meio a uma vista deslumbrante de paraíso perdido que
não lhes permite perceber o perigo iminente, à semelhança de
quem navega por um rio de belas margens em direção ao precipício
da cachoeira.
Se vão chegar mais homens, a nossa importância será diminu-
ída diante dos novos suprimentos para o interesse das mulheres.
Com isso, a matriarca deve antecipar a minha sentença.

231
A Ilha Vermelha

Depois de algum tempo, voltaram apenas a matriarca e outra


mulher. A Joana e as outras três parecem ter ficado observando a
embarcação.
Pela movimentação, mesmo à distância, deduzi que a matri-
arca falava para as outras mulheres que logo lhe rodearam com a
sua chegada, que ao amanhecer iriam recepcionar os homens da
embarcação.
Deduzi que elas usariam a mesma estratégia que fizeram co-
nosco. Vão nos drogar e nos levar com elas para recepcionar os ho-
mens da embarcação, passando a impressão de um lugar pacifico,
um paraíso perdido com um harém de mulheres bonitas e disponí-
veis, para convencer os visitantes a se desarmarem e os deixarem
vulneráveis como fizeram conosco.
Essa teia de aranha estendida por elas às presas, atrai e vulne-
rabiliza qualquer homem, porque mexe a fundo com a fantasia
masculina. Lembro-me da nossa chegada, como todos ficaram em-
briagados com aquela cena, com exceção do Caranguejo e do Eu-
nuco, que conseguiram enxergar o perigo por trás daqueles lindas
mulheres, mas foram ignorados por todos nós, machos primitivos
e burros.
Decidi não enterrar o punhal e o frasco naquela noite, mas es-
perar os acontecimentos do outro dia. Dormi muito mal, assus-
tando-me a cada movimento, para não perder nenhum dos aconte-
cimentos.
Logo na madrugada, vi as mulheres reunidas sob a liderança da
matriarca próximo a maloca. Convocaram todos os homens da ilha
e atiraram-lhes os dardos venenosos. Vi entre eles o Pombo e o Ca-
ranguejo.
Depois saíram em direção às nossas celas. Não pensei duas ve-
zes; tirei discretamente o frasco que a Erika me deu das calças,

232
CAPÍTULO – 22 |
A Revanche

saquei a rolha e tomei o líquido de um único gole, que desceu


amargo. O tempo ainda escuro favoreceu a minha discrição.
A própria Joana me atirou o dardo, que mais uma vez me acer-
tou na jugular. Aquela mulher parecia ser perita em tudo o que fa-
zia. Era de uma pontaria extraordinária. Senti vertigens e a vista
escureceu rapidamente. O efeito daquele veneno não era o parali-
sante, mas o entorpecedor.
Por um instante pensei que iria perder a consciência, foi então
que aos poucos fui recobrando os sentidos e quando dei por conta,
já estava fora da jaula.
Tinha perdido a consciência por um instante, mas agora, tudo
indicava que o antídoto estava fazendo efeito. Eu estava ficando
cada vez mais lúcido.
Fomos levados com elas pela trilha da praia. Logo tratei de ob-
servar e imitar os demais homens para não deixarem perceber que
eu estava em perfeito sentido.
Dessa vez, elas não nos seguravam, só davam ordens e todos as
seguiam. Eram todos como mortos vivos. O fato de nos deixarem
sós, facilitava a minha dissimulação. Olhar distante e sem foco, pas-
sadas curtas sem movimento dos braços e levemente cabisbaixo.
Era esse o padrão da personagem que eu devia assumir.
Próximo à praia, os raios do Sol começavam a marcar o firma-
mento. Mandaram que os homens aguardassem agachados entre os
arbustos ainda dentro da mata, uns quinze metros de distância da
praia, enquanto as mulheres apareceram na praia apenas segu-
rando aquelas varas inocentes, que de inocentes não tinham nada.
Elas fizeram gestos com os braços para que os navegadores se
aproximassem. Vi repetirem a mesma estratégia que fizeram com a
gente, de um ângulo oposto, o que evidenciava o quanto elas eram
dissimuladas.

233
A Ilha Vermelha

De onde eu estava, olhei entre os galhos e para a minha sur-


presa, era a caravela do capitão Logan Wilson, aquela que nos per-
seguiu pelo Oceano Índico a mando do capitão Cook, antes de
acharmos essa ilha maldita. Conheci pela insígnia no alto do mas-
tro. Tudo indicava que passado-se mais de três meses, ele ainda
continuava à nossa procura, até que encontraram a entrada no pa-
redão da geleira.
A caravela estava ancorada a vinte e cinco metros de distância
da praia.
A matriarca e a Joana estavam à frente das demais mulheres,
todas elas com roupas curtas, com a barriga e as pernas à mostra,
tudo como estratégia de sedução. Elas conheciam bem a fraqueza
dos homens e exploram muito bem a seu favor.
Vi que parte da tripulação do Logan, com ele próprio a bordo,
aproximou-se num escaler, mas não chegaram a descer, parando a
dez metros da praia.
O capitão Logan e a matriarca começaram a conversar em in-
glês, com a intermediação da Joana, já que a matriarca não falava o
inglês fluentemente.
Pela distância, pouco dava para ouvir, mas foi possível perce-
ber quando o capitão perguntou onde estavam os homens da ilha.
Depois de alguns instantes de conversa, vieram duas mulheres
e nos chamaram para a praia.
Segui os homens que saíram desordenadamente da mata, todos
aqueles homens magros andando como mortos vivos. Eu mantive o
meu olhar absorto e andava desengonçado, imitando o mais esdrú-
xulo entre eles.
Mandaram que parássemos um pouco atrás das mulheres, foi
quando o capitão Logan exclamou:

234
CAPÍTULO – 22 |
A Revanche

—Eu conheço aquele homem! É dele que estamos à procura! —


Apontando para o capitão Isaac, que estava vestido com uma ca-
misa muito utilizada pelos capitães ingleses, o que chamou a aten-
ção do capitão Logan.
A matriarca não esperava que fossemos reconhecidos e dava
para ver claramente que ela ficou bastante assustada e destreinada.
Ela não pensou no detalhe da roupa do capitão.
—Eles estão morando conosco faz um bom tempo. —Disse
ela desconcertada, como quem não tinha outra coisa para dizer.
O capitão Logan deu ordem para que aproximasse o escaler
da praia. Tinha com ele uns dez homens, todos de arma em punho.
Quando a matriarca viu que o capitão Logan e seus homens
iam descer para a praia, ela e as outras mulheres tomaram posição
de luta e a matriarca atingiu um dos homens do capitão Logan com
um dardo, vindo ele a desmaiar no escaler.
—Deixem as armas no barco! —Gritou a matriarca.
O capitão Logan levantou as mãos de arma em punho e pediu
calma.
—As armas ficam no barco! —Insistiu firmemente a matriarca.
Logan —Não queremos machucar vocês, só queremos conver-
sar.
—A gente conversa, mas com vocês desarmados.
Logan —Só nos entregue aquele homem e vamos embora. —
Apontando para o Isaac.
—Ninguém sai dessa ilha.
Logan —Pois tudo bem, vamos sair daqui.
O capitão Logan era um homem de guerra, inteligente e estra-
tegista. Com certeza ele estava cedendo às ordens da matriarca

235
A Ilha Vermelha

naquele momento, recuando pela sua condição de vulnerabilidade


para se preparar e voltar mais forte.
No entanto, eu não poderia perder a oportunidade que a sorte
me reservou naquele momento, mesmo que viesse a custar a minha
vida, o que não faria diferença. Eu já estava condenado à morte.
A matriarca falava a dois metros à minha frente, com ela e to-
das as outras mulheres de costas para nós, entretidas com aquele
embate. Foi então que puxei o punhal escondido no cós da minha
calça e rapidamente cheguei por trás da matriarca e dei uma gra-
vata no seu pescoço com o meu braço esquerdo enquanto com a
mão direita, pus o punhal pressionando a sua garganta, e gritei:
—Se alguém reagir ela morre! Se alguém reagir ela morre!
As mulheres se alvoroçaram. Então eu disse para a matriarca:
—Diga para elas que se afastem ou corto a sua jugular!
A matriarca deu sinal para que elas se afastassem e todas to-
maram distância. Nesse momento o capitão Logan deu sinal para
que parassem de remar.
—Capitão Logan, aqui é o Dylan, o imediato do capitão Isaac!
Desça e renda essas mulheres! —Gritei com todas as minhas forças.
Nesse momento, o capitão Lagan e seus homens pularam do
escaler com a água no peito, todos com armas de fogo em punho e
apontaram para as mulheres mandando-as que soltassem as varas.
Eu mandei que a matriarca soltasse a vara que ela segurava e
tirei o cutelo que ela escondia na cintura, depois dei um soco e uma
rasteira, fazendo ela cair ao chão.
A Joana ainda tentou reagir acertando a jugular de um dos ho-
mens do capitão Logan com um dardo, que caiu no mesmo instante,
e saiu em disparada para a mata, mas antes que ela alcançasse o fim
da praia e se embreasse na mata, foi atingida com um tiro nas costas

236
CAPÍTULO – 22 |
A Revanche

e caiu. Isso fez com que todas as outras mulheres soltassem suas
varas imediatamente.
—Tenha cuidado capitão, elas podem estar escondendo facas
na cintura! —Alertei o capitão Logan e seus homens.
Todas as mulheres foram rendidas e deitadas ladeadas na areia.
—Tem mais alguém na ilha? —Perguntou o Logan.
—Não, somente elas e todos esses homens drogados, como o
senhor pode ver.
O capitão Logan deu ordens para que os outros homens da em-
barcação viessem à ilha, chegando em torno de mais vinte homens
amontoados no outro escaler. Eles começaram a manietar as mu-
lheres com as cordas que trouxeram da caravela.
O capitão Logan chegou a se dirigir ao Isaac, mas falei para ele
que enquanto não passasse os efeitos do veneno que elas nos apli-
caram, eles ficavam inconscientes, como mortos vivos.
—E você, por que está lúcido, elas não lhe envenenaram tam-
bém? —Perguntou o Logan com ar de desconfiança.
—É uma longa história, capitão.
Levei-os até a aldeia e fui relatando todos os acontecimentos,
desde a nossa fuga, quando avistamos que a caravela do capitão Lo-
gan nos perseguia e de tudo que se passou na ilha de forma orde-
nada e cronológica.
Falei dos riscos que eles passaram caso ele não tivesse reco-
nhecido o capitão Isaac e tivesse descido sem armas como elas que-
riam, como aconteceu conosco. Falei da minha sentença de morte
e como ela sacrificou a mãe do meu filho. Da forma como elas man-
tinham os homens sob opressão e servidão, dos sacrifícios dos ho-
mens e das crianças.

237
A Ilha Vermelha

—Há muita coisa a se mostrar e falar ainda. Mas já se faz tarde,


é melhor o senhor e seus homens buscarem um lugar para descan-
sar. —Sugeri.
O capitão Logan decidiu voltar para pernoitar na caravela le-
vando o Isaac como seu prisioneiro e deixou os vinte homens na
ilha, para garantir a sua ocupação.
As mulheres foram amarradas com cordas com as mãos para
trás e ligadas umas às outras pelo pescoço, com nós de marinheiro.
Na aldeia, elas foram colocadas sentadas, ladeadas ao sopé da
maloca, sob a guarda de cinco homens armados que se revezavam
na vigília. Os outros quinze homens revezaram-se nos vigiando, en-
quanto dormimos amontoados dentro da maloca.
Na madrugada, percebi movimentos lá fora e gritos das mulhe-
res. Não era estranho que aqueles homens da tripulação do capitão
Logan, há meses longe de casa e de suas mulheres, não se aprovei-
tassem daquelas mulheres sob o seu poder.
Senti uma satisfação pelo menor dos sofrimentos que elas pas-
savam, principalmente se fosse contra a matriarca.
Na manhã seguinte, o capitão Logan chegou cedo com mais
dezenove homens e deixou o Isaac preso na caravela. Mandou que
me chamasse. Voltei a relatar todos os acontecimentos enquanto
mostrava o restante da ilha, numa comitiva de onze homens, inclu-
indo nós dois.
Fomos até a caverna e mostrei como elas faziam os sacrifícios.
Mostrei os registros das atrocidades em forma de pinturas rupes-
tres nas rochas de basalto. Ao contar para o Logan sobre a Erika e
o nosso filho, não contive as lágrimas.
Levei-o até a praia onde estava os restos da caravela portu-
guesa, passando pelo lago de águas ferventes.

238
CAPÍTULO – 22 |
A Revanche

Para a minha surpresa, as duas padiolas repletas de materiais


da nossa fuga ainda estavam na praia. Relatei o nosso plano de fuga
frustrado.
O capitão Logan era um cristão fervoroso e ficou bastante hor-
rorizado com o sacrifício das crianças. Ele viu com os próprios
olhos as manchas de sangue no alto da plataforma.
—E aquelas duas mulheres grávidas? —Ele perguntou.
—Com oito a nove meses de gestação elas são induzidas a
abortarem, ao tomarem um chá abortivo. Sentam-se despidas sobre
o buraco da plataforma de onde as crianças caem direto na lava.
Logo elas iriam fazer a mesma prática por ordem da matriarca.
—Essa matriarca merece a morte!
Concordei com essa sentença do capitão Logan e acrescentei:
—E devia ser executada nos mesmos moldes que ela executa a
quem ela considerava traidor, assada sobre o caldeirão.
—Faremos isso. —Disse ele para a minha satisfação.
Naquela mesma manhã, a Joana veio a falecer devido ao feri-
mento à bala do dia anterior. O capitão Logan mandou sepultar
fora do arraial.
Falei das deficiências de vitaminas nas plantas e nos animais e
aves da ilha, devido a influência do vulcão, que nos deixavam todos
com essa coloração avermelhada e com raquitismo.
Falei que o efeito do raquitismo que deságua na morte por tu-
berculose só tinha efeito sobre os homens. Porém, omiti que o flu-
ido dos homens supria a falta das vitaminas necessárias, principal-
mente de que eu e os outros companheiros chegamos a consumir.
Ora, sendo o capitão Logan extremamente moralista e religi-
oso, era possível que ele nos punisse pela prática de abominação.

239
A Ilha Vermelha

Resolvi não arriscar naquele momento. Tinha que garantir a minha


saída da ilha a todo o custo.
O capitão Logan me confiou a administração dos homens e
mulheres da ilha, sob o seu comando e vigilância de seus homens.
Enquanto os homens do capitão se alimentavam da comida da
embarcação, nós continuamos nos alimentando da dieta da ilha.
Ao final do dia, todos os outros companheiros já estavam lúci-
dos, com exceção do Caranguejo e do Pombo e dos demais homens
da ilha, que continuavam entorpecidos. Parece que o uso prolon-
gado do alucinógeno deixava a pessoa demente para o resto da vida.
No dia seguinte, o capitão cumpriu o que havia falado sobre a
matriarca. Os homens lúcidos permaneceram detidos na maloca
sob a vigilância de seus homens, assim como as mulheres, manieta-
das ao sopé da maloca pelo lado de fora.
Ele me levou com alguns de seus homens que levaram a matri-
arca manietada, juntamente com os homens da ilha e as mulheres,
todas ligadas entre si pelo pescoço, como um grande terço religi-
oso, em direção a caverna do caldeirão fervente.
Ao chegar, logo na entrada, ele mandou que destruísse aquelas
pirâmides, as quais eu falei que representava o espírito Vulcano, a
quem elas adoravam.
Foi feito com a matriarca tudo conforme eu fui ditando a ma-
neira como ela sacrificava as pessoas, conforme as pinturas nas ro-
chas que também mostrei ao capitão, com exceção de despi-la, pois
o capitão Logan não o permitiu.
Quatro dos homens trouxeram o tronco feito do pedaço do
mastro da caravela portuguesa. Amarraram a matriarca sobre o
tronco, do tórax aos pés, depois, dois homens em cada ponta, er-
gueram o tronco suspendendo-o sobre os ombros e levaram até o
peitoril do caldeirão.

240
CAPÍTULO – 22 |
A Revanche

Estenderam cada ponta do tronco nas estacas de pontas bifur-


cadas e deixaram a matriarca assar no meio do caldeirão, tudo con-
forme ela fez com a Erika.
Nesse momento me senti mal, relembrando o sofrimento da
minha amada. Pobre Erika.
A matriarca não gritava, apenas soltava poucos gemidos invo-
luntários. Ela suportou a dor em silêncio enquanto me olhava nos
olhos como forma de não se humilhar e não me dar o prazer de seu
sofrimento. Não demonstrou qualquer arrependimento.
Aquela mulher era mesmo um demônio em pessoa. Confesso
que fiquei de alma lavada ao sentir que a Erika e meu filho estavam
sendo vingados naquele momento, o que considerei ser a justiça di-
vina.
Não saí do local até ver os restos mortais da matriarca caírem
como sopa e se desintegrar no caldeirão após as cordas se queima-
rem e romperem. Talvez no meu inconsciente, ainda tinha a ideia
de que o espírito Vulcano ainda pudesse ajudá-la de alguma forma.
Mas tudo não passava da fantasia delas e minha também. “Ora, se
realmente existisse o tal espírito Vulcano, ele não deveria ter rea-
gido com erupções e terremotos ao ver a sua sacerdotisa ser sacri-
ficada?” —Pensei com ar de deboche.
Voltamos todos à aldeia e o capitão Logan, que ia ao meu lado,
começou a falar:
—Retornarei às terras do rei levando o capitão Isaac. Se você
quiser, poderei levá-lo junto com os outros homens, mas deixarei
as mulheres e os homens da ilha aqui. Não tem como eu lavar todos.
Como você nos ajudou, prometo a sua liberdade como recompensa.
—Mas capitão, essas mulheres vão continuar a escravizar es-
ses homens maltrapilhos. Elas conhecem todas as ervas da ilha ne-
cessárias para mantê-los sob o seu domínio. —Ponderei.

241
A Ilha Vermelha

—Depois voltarei com uma expedição trazendo estudiosos


para o estudo das peculiaridades dessa ilha, e então decidirei o que
fazer com todos eles. Essa ilha é um achado magnífico. Mas não
posso me demorar. Fiquei sabendo que os meus homens começa-
ram a se corromper com as mulheres.
Depois de mais dois dias de exploração e mapeamento de toda
a ilha, vimos o impressionante efeito que o vulcão produzia naquele
aberto em meio a geleira.
A vida, o clima, o ambiente e até as características de todos que
ali viviam eram determinadas pelo vulcão. Vi lugares ao sul da ilha
que ainda não tinha explorado e percebi que a ilha era um eclipse
quase perfeito, medindo aproximadamente uma légua e maia de
leste a oeste, por uma légua de norte a sul, com o vulcão na extre-
midade leste, estendendo o manto de basalto em direção a oeste,
cuja distância entre a ilha e os paredões de gelo variam de quinhen-
tos a duzentos metros, conforme se distanciava do vulcão.

O desenhista do capitão Logan ilustrou mais de trinta laudas,


dentre a geografia local e a flora, tendo em vista que a fauna já era
conhecida e não haviam espécimes extraordinárias.
O capitão rebatizou o nome da ilha de ILHA CALIDUM DE
HANOVER, significando Ilha Morna em Latim e Hanover em ho-
menagem ao Rei Jorge III, reivindicando assim, a Ilha Vermelha
para a Coroa Britânica.
Eu e meus companheiros decidimos voltar na caravela do ca-
pitão Logan. Todos os homens da ilha e as mulheres ficaram para
trás, sob a administração de dez dos homens do capitão Logan, que
ficaram na ilha para garantir a ocupação britânica.
Partimos pela manhã cedo, cruzando a grande garganta gelada.

242
CAPÍTULO – 22 |
A Revanche

Eu fiquei observando a ilha até que ela sumisse da vista na


curva da geleira, enquanto viajava em meus pensamentos de tudo
o que eu tinha vivido naquele lugar. Senti uma mistura antagônica
de nostalgia e alívio ao mesmo tempo. A Erika foi o meu grande
amor naquela peça teatral que chegava ao fim.
Fiquei pensando: “ao fim de dois meses se o capitão Logan não
retornasse à ilha, aquelas mulheres iriam retomar o poder, diante
do enfraquecimento dos homens.”
Em contra partida, o estupro delas garantiriam a saúde de to-
das sem que os homens do capitão soubessem. Recomeçaria todo o
ciclo de dominação das ruivas na ilha.
Eu teria que dizer ao capitão o segredo das mulheres em algum
momento, mas terei primeiro que avaliar se isso não custará a mi-
nha liberdade ou a minha própria vida. Decidi não contar até que
pisasse nas terras britânicas.
O capitão Logan chegou ao meu lado e também observava
aquela vista magnífica. Olhei para os pelos dos meus braços esco-
rados sobre o parapeito da caravela. Não eram mais aloirados, eram
vermelhos. Eu agora era ruivo. Eu estava saindo da ilha, mas ela
permanecia dentro de mim, entranhada no meu organismo, como
uma contaminação alienígena.
—Capitão, queria lhe pedir somente mais um favor.
—Diga.
—Traga-me junto quando o senhor retornar a essa ilha.

243
Copyright © 2023 Editora Império Cristão
CNPJ: 49.153.076/0001-46
(Todos os direitos reservados).

Este livro foi impresso sobre o Papel offset 75g/m2 para o miolo e Pa-
pel Premium Glossy 230g/m2 para a capa pela © Editora Império Cristão.
Este livro foi feito com a fonte: Autor:
Time New Romam: Alessandro Almeida
16; Corpo do Texto: Normal, T – 20 © Editora Império Cristão
Tópico: Time New Romam; T – 22

®
E D I T O R A
IMPÉRIO CRISTÃO

Vermelha A ilha
Sob o domínio delas

Você também pode gostar