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Avisos de Conteúdo .................................................................................................. 7
Representações ........................................................................................................ 8
Sinopse..................................................................................................................... 9
Dedicatória.............................................................................................................. 10
Introdução ............................................................................................................... 11
1. A Viagem de Carro ............................................................................................. 13
2. As Árvores-Garrafas ........................................................................................... 23
3. Bebê Chiclete ..................................................................................................... 30
4. Luta na Floresta .................................................................................................. 37
5. Haints e Navios de Ossos ................................................................................... 43
6. A Jangada........................................................................................................... 53
7. Monstros de Ferro 101 ........................................................................................ 61
8. Algemados .......................................................................................................... 69
9. O Gigante de Papel ............................................................................................ 75
10. Arvoredo ........................................................................................................... 79
11. Os Deuses da Terra Média ............................................................................... 90
12. O Encantador De Borboletas ............................................................................ 99
13. Anansesem ..................................................................................................... 105
14. Entrando em Desespero ................................................................................. 109
15. Combustível Para Os Deuses ......................................................................... 116
16. O Labirinto ...................................................................................................... 121
17. O Pior Plano de Todos .................................................................................... 125
18. O Adinkra ........................................................................................................ 132
19. Ataque! ........................................................................................................... 139
20. O Chefão ........................................................................................................ 146
21. Moscas-Marca ................................................................................................ 151
22. A Lenda da Garrafa Foguete........................................................................... 156
23. A Crescente Dourada...................................................................................... 164
24. O Palácio de Nyame ....................................................................................... 171
25. Aquilo Não Era Uma Estátua .......................................................................... 177
26. Cobrinha Ao Resgate ...................................................................................... 183
27. O Amuleto de Nyame ...................................................................................... 190
28. O Covil de Anansi ........................................................................................... 195
29. Lasers de Pedra .............................................................................................. 202
30. Dentro de Isihlangu ......................................................................................... 209
31. Os Anciões ..................................................................................................... 216
32. Espírito de Imbongi ......................................................................................... 224
34. Abiyoyo ........................................................................................................... 231
35. Grande John ................................................................................................... 239
36. Uma Perspectiva Diferente ............................................................................. 246
37. O Homem De Fogo E Fumaça ........................................................................ 252
38. Memórias Perdidas ......................................................................................... 256
39. A Caixa De História ......................................................................................... 262
40. Visitantes Indesejados .................................................................................... 269
41. Bestas Do Casco E Moscas-Marca ................................................................. 276
42. O Machado Mágico ......................................................................................... 282
43. Vudu e Confissões ........................................................................................ 285
44. A Floresta Mmoatia ......................................................................................... 292
45. Estamos Todos Quebrados — A Caixa de Histórias, Também ....................... 298
46. A Fuga do Povo Médio .................................................................................... 308
47. Uma Barganha Perigosa ................................................................................. 318
48. Rei Algodão .................................................................................................... 326
49. A Última Parada .............................................................................................. 336
50. Enganando o Enganador ................................................................................ 342
51. Revelação ....................................................................................................... 348
52. Despedidas e Vidas Novas ............................................................................. 358
● Afogamento;
● Luto;
● Medo de altura;
● Transtorno de estressei pós-traumático (TEPT);
● Morte;
● Violência;
● Menção a escravidão.
● Protagonista negro*.
● A maior parte dos outros personagens também são afro-
americanos, ou pessoas não brancas.
Não me interprete mal, os mitos gregos são ótimos! Mas você não
pode balançar a cabeça de uma górgona em qualquer livraria sem acertar
pelo menos uma dúzia de livros inspirados na mitologia grega.
Tente encontrar grandes aventuras baseadas em deuses da África
Ocidental, como Nyame ou Anansi. Tente encontrar histórias sobre
crianças modernas que encontram lendas do folclore afro-americano,
como Grande John, John Henry e Brer Coelho. Esses livros são muito
mais difíceis de localizar, apesar do fato de que milhões de crianças se
identificariam com esses deuses e heróis ainda mais do que com
Hércules e Perseu (desculpem, meus caros gregos).
Pode imaginar como seria se você pudesse encontrar um livro que
tecesse toda a brilhante e bela tapeçaria da lenda da África Ocidental e
afro-americana em um mundo mágico? Um mundo que fez os jovens
leitores afro-americanos pensarem, sim! Esta é a MINHA mitologia
incrível. Este é o MEU mundo mágico para explorar, e essas crianças
heróicas são como eu! Um livro que deixasse todos os leitores pensando,
Uau. Por que eu não soube dessas histórias incríveis antes?
Kwame Mbalia escreveu esse livro. Você está prestes a descobrir
Tristan Strong Punches a Hole in the Sky, e seu mundo nunca mais será
o mesmo.
Nem vou tentar descrever todas as incríveis aventuras que Tristan
Strong enfrenta neste romance de estreia. Isso estragaria a diversão! Mas
quando Tristan acidentalmente abre um buraco no céu da Terra Média, o
mundo das lendas afro-americanas, ele começa a mais épica das
missões. Esperando por ele estão um haint1 malicioso, monstros de ferro
1
Um “haint” é um tipo de fantasma ou espírito maligno que se originou nas crenças e
costumes do povo Gullah Geechee, descendentes de africanos escravizados, que vivem
implacáveis, navios de ossos assustadores, jangadas voadoras, mares
em chamas, animais falantes, deuses antigos e muito mais.
Mas, apesar de todos os seus grandes elementos de fantasia, o que
mais amo neste livro é seu lado humano. Tristan está lutando contra a
dor após a morte de seu melhor amigo. Ele acaba de perder sua primeira
luta de boxe, decepcionando assim as esperanças de seu pai e avô de
que ele continue o legado da família. Condenado a um verão na fazenda
dos avós na zona rural do Alabama, este garoto da cidade de Chicago
está lutando para descobrir quem ele quer ser e se seus pais (e a
sociedade) o deixarão ser essa pessoa. Tristan é forte mas terno,
inteligente mas cauteloso, corajoso mas inseguro. Ele é alguém com
quem todas as crianças se identificam, e você vai querer imediatamente
ser seu amigo.
Vou te contar um segredo: chorei enquanto lia Tristan Strong.
Diversas vezes, fiquei maravilhado com a felicidade, pensando no que
este livro teria significado para muitos de meus alunos quando eu
ensinava no ensino médio. Fiquei encantado em ver velhos amigos como
Brer Raposa, John Henry e Bebê Chiclete em uma aventura tão nova,
moderna e que nos faz virar uma página atrás da outra. Fiquei grato a
Kwame Mbalia por escrevê-lo para que novas gerações de jovens leitores
pudessem crescer com Tristan e conhecer as ricas histórias da África
Ocidental e da Diáspora Africana. Em uma vida cheia de destaques, devo
dizer que ajudar a publicar este livro está lá no topo!
Eu sei que você vai gostar de Tristan Strong Punches a Hole in the
Sky. Eu invejo você o lendo pela primeira vez. Quanto às novas aventuras
de Tristan, o céu é o limite. Espere, não. Tristan abriu um buraco no céu.
Não há limites.
predominantemente no País Baixo e nas ilhas barreira ao largo da costa das Carolinas,
Geórgia, e norte da Flórida.
HAVIA UM RITMO EM meus punhos.
Pow pow
Eles contavam uma história.
Pow pow
Todos achavam que conheciam a história. Que já tinham visto isso
antes.
Ele vai superar isso.
É só uma fase.
Dê-lhe espaço.
Mas eles só conheciam fragmentos. Eles não queriam ouvir o
resto...
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Em Português, “strong” significa “forte”.
— Eu sei.
— Será bom para você ir embora.
— Eu sei.
Ela esfregou minha cabeça e me puxou para um abraço.
— O terapeuta de luto disse que seria bom uma mudança de
cenário. Um pouco de ar fresco, trabalhar na fazenda. Quem sabe, talvez
você descubra que foi feito para trabalhar na terra.
Dei de ombros. A única coisa de que eu tinha certeza é que não era
para eu ser um boxeador, apesar do que meu pai e avô pensavam.
Eu me livrei do abraço da minha mãe, me levantei, peguei minha
mochila e saí para começar meu mês de exílio.
— Você não está esquecendo de algo? — Perguntou a mamãe.
Eu me virei e ela estendeu o diário de Eddie para mim. Sua mão e
pulso estavam banhados pelo brilho verde-esmeralda que vinha da capa.
Mas, como todas as outras pessoas a quem mostrei o diário, ela não
notou nenhuma luz estranha.
Minha mãe confundiu minha carranca confusa com apreensão
enquanto colocava o livro na minha bolsa.
— Ele queria que você o tivesse, Tristan. Eu sei que é difícil, mas...
tente ler quando puder, ok?
Não confiei em mim mesmo para falar, então balancei a cabeça e
me dirigi para a porta da frente.
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Território, feudo ou domínio governado por, ou representando o título de, um duque ou
duquesa.
— Haints? — Pressionei meu nariz contra o vidro e apertei os olhos.
— Espíritos malignos, bebê. Deus sabe, muitas dessas divagações
sobre, com... Bem, de qualquer maneira, não se preocupe com isso —,
Vózinha continuou. — Eu não quero você se enfiando por lá. Aquelas
velhas árvores não são para brincar. Você pode se machucar.
— Preciso cortá-las — resmungou vovô, mas vózinha apenas
enxotou as palavras com a mão.
— Silêncio, Walter. Agora olhe, Tristan, ali… — Ela começou a
bancar a guia turística enquanto tomávamos o rumo de casa, e eu me
acomodei, incapaz de afastar a sensação de formigamento de que algo
estranho estava acontecendo.
— Tristan! Tristaaaan!
Eu estava caindo de novo. Fosse o que fosse aquele lugar, quem
quer que fosse aquela voz, tudo ficou no fundo da minha mente quando
abri os olhos para um pesadelo.
As costas de Bebê Chiclete estavam presas ao meu pulso como se
estivessem coladas lá enquanto continuávamos a descer pelo túnel de
fogo. Felizmente, ela estava segurando o diário verde brilhante de Eddie
como se sua vida dependesse disso. Girando abaixo de nós estava um
mar escuro e fervente, tão horripilante que até meus gritos começaram a
gritar. O vento açoitou minhas bochechas e tirou lágrimas dos meus
olhos. Eu os fechei com força. O que quer que fosse acontecer a seguir,
aconteceria — eu não precisava ver.
Splash!
O impacto tirou o fôlego dos meus pulmões. Minha pele formigou.
A temperatura da água borbulhava alguns graus acima do confortável —
não escaldante como eu temia, mas quente o suficiente para me
assustar. Em pânico, abri a boca para gritar de surpresa e a água jorrou
para dentro. Engoli por acidente e queimou na descida. Nade! Eu disse a
mim mesmo. Nade, Tristan, ou você já era.
Forcei meus olhos a abrirem e tentei descobrir qual direção era para
cima. Uma luz embaçada piscou à distância. Minhas pernas me chutaram
em direção a ela por conta própria, meus pulmões gritando por ar, e eu
arranhei meu caminho para o que esperava ser a superfície. Formas
sombrias passaram rapidamente e — ah, cara — algo viscoso roçou meu
tornozelo.
Eu já tinha chegado a esse ponto. Era assim que Tristan Strong
encontraria seu fim? Em uma banheira gigante e suja de água quente?
Bem quando eu pensei que não poderia ir mais longe e meu peito
parecia que ia explodir, minha cabeça apareceu na superfície. Tossi e
gaguejei.
— Vou vomitar!
Minha boca tinha gosto de centavos velhos e leite morno estragado.
Sim... pense nesse sabor.
— Bebê Chiclete? — Eu gritei com voz rouca. Chutei e remei,
fazendo o meu melhor para pisar na água enquanto sugava o ar e olhei
ao redor em confusão. — Bebê Chiclete, onde...?
A pergunta morreu na minha língua enquanto eu olhava ao meu
redor.
Incêndios ardiam no mar. Não pequenos incêndios, mas sim
paredes maciças de chamas que se espalhavam pelo ar. A corrente
carregava infernos por toda parte, e suas chamas brilhantes
transformavam a água em redemoinhos laranjas e vermelhos.
O vapor sibilava da superfície e se acumulava nas nuvens alguns
metros acima da minha cabeça. Através de uma pausa ocasional na
névoa, pude ver que ainda era noite. E lá, bem no alto, o túnel de fogo
pelo qual caímos marcava o céu.
Eu olhei para baixo. As luzes piscaram nas profundezas e, a
princípio, pensei que fosse o reflexo das estrelas. Então vi uma longa
sombra passar por baixo de mim — um leviatã de alguma forma iluminado
por baixo — e engoli em seco.
Onde diabos nós caímos?
— Língua Solta! — O grito veio atrás de mim. — Socorro! Bebê
Chiclete não sabe na-glublublub. Bebê Chiclete não sabe nadar!
Eu desviei meus olhos da forma abaixo e virei minha cabeça. Com
certeza, lá estava a pequena ladra, se debatendo na água a uma curta
distância. Eu remei, um milhão de perguntas lutando para ser a primeira
a sair da minha boca.
Bebê Chiclete flutuou em suas costas, abraçando o diário com força
como um colete salva-vidas. Suas perninhas chutaram
desamparadamente no ar, e um pequeno fogo queimou em um pé. Joguei
água nela para apagar a chama, depois peguei o diário e o ergui — com
Bebê Chiclete ainda presa nele — da água com uma das mãos. Eu
esperava que não estivesse arruinado. (O livro, não a boneca. Ela poderia
flutuar ali para sempre, pelo que me importava.)
— Estava na hora! — Bebê Chiclete, agora pendurada por baixo,
tossiu e olhou para mim. — Por que demorou tanto? Bebê Chiclete não é
um peixe. Vamos, temos que...
— Onde estamos? — Eu perguntei, interrompendo-a.
— O quê?
— Onde estamos? O que aconteceu? Você viu uma coisa sombria,
com a voz e os cheiros, antes de cairmos na água? Por que estou
flutuando em um oceano de fogo, por que há estrelas embaixo de nós e
o que aconteceu com minha mochila?
Bebê Chiclete acenou com um braço e uma bola úmida de seiva
caiu no mar.
— Shh. A Bebê Chiclete não sabe do que você está falando metade
do tempo, e na outra metade ela não tem paciência. Não há tempo para
responder a todas essas perguntas. Bem, talvez haja, mas você me
drena. Como um canudo. Aí vem você e fwoop! Toda a minha energia se
foi.
Rosnei e sacudi o diário. Ela quase se soltou.
— Tá bom, tá bom! Pare de me sacudir. Bebê Chiclete não está tão
bem.
Mais seiva caiu como se para provar seu ponto. Enquanto
continuava a me firmar na água com apenas um braço, agradeci pelo
treinamento de natação do meu pai. Ele costumava me fazer dar voltas
na piscina do centro comunitário local quando estava frio demais para
correr.
Inclinei a cabeça, tentando tirar a água dos ouvidos, e por um
segundo pensei ter ouvido batidas de tambor e palmas. Mas isso era
bobagem. Voltei-me para a minha pequena companheira pegajosa.
— Onde. Nós. Estamos? — Perguntei novamente com os dentes
cerrados.
— Shh. Bebê Chiclete está tentando te dizer, agora não é hora para
falar. Se eles nos ouvirem, estamos com problemas.
— Eles? Quem são eles?
Foi aí que um respingo soou ao longe, e Bebê Chiclete me calou
novamente. Ela olhou para o fogo e a névoa, seus cachos pretos úmidos
colados em sua cabeça de madeira entalhada. Depois de um segundo,
ela relaxou.
— Não pode falar tão alto — ela murmurou.
Eu não sabia se ela estava falando comigo ou consigo mesma, mas
de qualquer forma, não era reconfortante. Pisquei o sal dos meus olhos
e cuspi outro gole de água ácida do mar. Vou precisar de oito frascos de
enxaguante bucal depois disso, pensei.
— O que é este lugar? — Perguntei. — Algum tipo de lago salgado
subterrâneo? Não achei que o Alabama tivesse isso.
— O quê? Não. — Bebê Chiclete pareceu surpresa, como se eu
devesse saber. — Isto não é nenhum Alabama, seja lá onde for.
— Talvez Mississippi, então?
— Eu não conheço nenhuma dona Ippy, e você pode dizer a ela
que Bebê Chiclete disse isso.
— Não, isso não é...
— Olha, chega de ficar batendo papo. Precisamos nos apressar
antes que...
Houve outro respingo, depois outro que pareceu ainda mais perto,
e Bebê Chiclete congelou.
— Eles estão vindo — ela sussurrou.
— Quem são eles?!
Um som ondulante ecoou pela água. Nós dois nos viramos para ver
uma coluna de fogo flutuante curvando-se através da água em nossa
direção, e a cada segundo ganhava velocidade. As ondulações que fez
se transformaram em ondas cheias de chamas quando uma forma longa
e nodosa cortou a superfície e o ar.
Meus olhos quase caíram.
— Meu Santo...
— Navio! — Bebê Chiclete gritou.
Uma embarcação diferente de qualquer outra que eu já vi antes
surgiu das profundezas. Seu casco era formado por duas mãos brancas
gigantes em concha, as pontas dos dedos se tocando na proa. Os nós
dos dedos nodosos se projetaram ao longo do lado. Não tinha vela,
apenas um único mastro descoberto que se projetava no meio do navio,
uma torre em forma de adaga que cortava as cortinas de vapor. Ninguém
podia ser visto no convés. Era apenas um estranho navio de mão do
tamanho de um iate, navegando sem capitão, rugindo por um mar
flamejante em nossa direção.
Ah, e não era feito de madeira pintada, como eu pensava.
— São ossos! — gritei para Bebê Chiclete.
— Pare de gritar e comece a nadar, idiota!
O navio assustador rangeu ao tombar para o lado, virando-se para
descer sobre nós. Sons horríveis flutuavam até nós através das ondas:
mil sofredores gemendo e gritando. Desesperados. Enfurecidos.
Assustados. Famintos. Eu não sabia quem — ou o quê — estava fazendo
o barulho, mas não planejava ficar por aqui para descobrir.
Eu tremi apesar da água quente, me debatendo com um braço, o
outro apoiando o diário do Eddie e a Bebê Chiclete.
— Eu não posso nadar e segurar você — disse.
— Entregue as histórias e coloque Bebê Chiclete nas suas costas.
Agora!
— Nas minhas costas? Eu não sou...
— Coloque a Bebê Chiclete nas suas costas, Língua Solta! Pare de
tagarelar e mexa-se!
Engoli várias palavras raivosas bem escolhidas e coloquei Bebê
Chiclete em meus ombros. Não confiava nela com o diário de Eddie, mas
o navio estava vindo em nossa direção e eu precisava de ambas as mãos
livres.
— Se você perder esse livro — disse eu —, ou fugir com ele de
novo, irei transformá-la em um porta-incenso.
Bebê Chiclete deu um tapinha no topo da minha cabeça.
— Shh, peixinho. Apenas nade em direção à nuvem de vapor
quando Bebê Chiclete disser para ir. Essas coisas não se viram
facilmente, então até mesmo sua cauda empoeirada deve ser capaz de
escapar.
Eu odiava aquela boneca. Eu odiava com uma paixão ardente.
— Preparar…
O navio gemeu para nós. Era um predador branco e afiado,
deixando atrás de si fontes de fogo.
— Apontar…
Lambi meus lábios.
— Bebê Chiclete, está quase...
Ela bateu na minha nuca.
— Shhh, idiota! Nós temos uma chance nisso. Navios de ossos
parecem assustadores, mas você pode evitá-los facilmente se souber
como.
Ah, ótimo, eles até eram chamados de navios de ossos. Isso não
tornava as coisas melhores.
Bem quando parecia que estávamos a momentos de ser
esmagados, bem quando a frente do navio de ossos — sem chance! —
se abriu, as pontas dos dedos baixando para nos pegar... Bebê Chiclete
gritou em meu ouvido:
— Vai, vai, vai!
Meu corpo respondeu ao comando antes que eu pudesse protestar.
Papai costumava gritar a mesma coisa para mim do lado da piscina
quando eu dava minhas voltas. Eu dei um chute poderoso, minhas pernas
cortando a água e me lancei para frente. Não olhei para trás, mas sabia
que o navio estava perto. A onda que estava criando quase me puxou
para baixo. Eu lutei, meus braços entrando e saindo da água como meu
pai havia me ensinado, e então o navio passou por nós. Nós estávamos
seguros.
— Para lá! — Bebê Chiclete gritou, apontando.
Uma espessa nuvem cinza-esbranquiçada de vapor pairava à
frente. Flutuava sobre um local calmo logo além das ondas e, felizmente,
nenhuma fogueira estava queimando nas proximidades. Cavei fundo para
obter um pouco mais de energia e chutei para frente. Outro gemido ecoou
sobre a água, tirando minha mente de como meus braços pareciam
pesados. Exaustão e batidas livres descansando nas entranhas de um
esqueleto de navio, entendeu?
Bebê Chiclete deu um tapinha na minha cabeça quando nos
aproximamos.
— Bom peixinho. Entre lá e espere até...
Um gemido estridente — ainda mais alto, mais profundo e mais
assustador do que o primeiro — soou bem na nossa frente. Eu podia
senti-lo através da água, no meu peito, e eu joguei meus braços para fora
e flutuei até parar.
Bebê Chiclete guinchou e algo rolou pelas minhas costas.
— Por favor, me diga que isso foi seiva — eu sussurrei, entrando
na água.
— Hm, ok.
Eu não conseguia nem ficar com raiva. Eu estava muito cansado.
Muito drenado. Com muito medo que...
Outro navio de ossos saltou da espessa nuvem de vapor à nossa
frente. Fiapos nublados se agarraram a ele como teias de aranha.
Embora tivesse quase o mesmo tamanho que o primeiro, sua forma
horrível o fazia parecer maior.
Era a mandíbula de algum réptil enorme. Longa, fina e pálida,
cortava o mar como uma lancha. Fios de algo que eu não queria olhar
muito de perto se arrastavam por entre seus dentes enormes. A água do
mar flamejante escorria pelas laterais, e soltou um berro de
esmagamento de almas quando começou a ganhar velocidade.
Com o canto do olho, vi outra faixa branca na água. Um terceiro
navio emergiu de baixo, como um submarino de um show de terror. Este
navio de ossos parecia uma caixa torácica, ossos curvos se curvando
enquanto saía do mar.
O primeiro navio, Mãos de Ossos, circulava atrás de nós.
Estávamos presos.
— Bebê Chiclete, para onde eu vou? O que eu faço?
Silêncio.
Eu podia sentir Bebê Chiclete deitada entre minhas omoplatas,
tremendo.
— Bebê Chiclete, levante-se! O que eu faço? Para onde vou?
Os três navios se aproximaram. O Costelas sacudiu quando se
aproximou. O Maxilar continuou a nos explodir com aquele rugido
profundo. Virei-me para ver o Mão novamente, a boca faminta entre as
pontas dos dedos escura e fétida. Um coro de gemidos torturou meus
ouvidos enquanto uma rajada de ar quente e podre arranhou minhas
narinas.
— Bebê Chiclete, o que...?
Um apito agudo cortou a noite.
Bebê Chiclete saltou de pé e subiu no topo da minha cabeça.
— Bebê Chiclete não está acreditando! — Ela disse, sua voz
animada.
— O quê?
— Estamos salvos!
— Salvos? Como?
Mas ela não respondeu. Em vez disso, pulou para cima e para baixo
na minha cabeça e começou a gritar com toda a força de seus pequenos
pulmões. Eu não sabia que bonecas bebês tinham pulmões.
— AQUI! — Sua voz estridente, e seus pés minúsculos batendo no
meu crânio, me fizeram estremecer. — ESTAMOS AQUI EMBAIXO!
Nada aconteceu.
Os navios de ossos se aproximaram, prendendo-nos, e eu olhei em
volta desesperadamente por alguma maneira de escapar. Eu poderia
mergulhar debaixo deles, mas o diário de Eddie (e sim, eu acho, a
criaturinha irritante e pegajosa segurando-o) seria difícil de segurar
enquanto eu nadava. Além disso, minhas pernas pareciam âncoras a
essa altura, e aqueles navios tinham vindo do fundo do mar — não havia
como dizer quantos mais deles espreitavam abaixo. Eu não poderia evitá-
los por muito mais tempo.
O Mãos avançou, a segundos de distância de me afunilar para
dentro...
Algo espirrou na água ao meu lado.
— Pegue a corda!
A voz — de uma garota — saiu do ar acima de nós. Uma jangada
gigante de madeira do tamanho de um ringue de boxe flutuou no céu
noturno, uma corda pendurada em sua borda. Uma risada histérica
borbulhou em meu peito. É claro. Uma jangada voadora. Por que não
pensei nisso?
— Pega, pega! — Bebê Chiclete gritou, e eu me lancei contra a
linha grossa. Senti a boneca rastejar para dentro do meu capuz
encharcado, bem na hora. A corda ficou esticada e quem quer que
estivesse na jangada nos puxou para cima. O mastro afiado do Mãos por
pouco não deixou de cortar a sola do meu pé, e então estávamos livres,
voando pela noite.
A PRIMEIRA COISA QUE VI quando rolei para a jangada foi um
cajado entalhado. Sua ponta dourada, um rosto torcido em um rosnado,
olhou para mim.
— Quem é você? — a proprietária do cajado exigiu.
Fiquei olhando para a ponta, que se movia de um lado para o outro
hipnoticamente, como uma cobra se preparando para atacar.
— Uhh…
— Não vou perguntar de novo. Quem é você?
— Meu nome é Tristan — eu disse. — Tristan Strong.
— Tristan Strong. Hmph. Bem, Tristan Strong, o que você está
fazendo no Mar Flamejante? Você poderia ter nos arrastado para uma
situação desagradável tentando resgatá-lo.
— Desculpa.
— Desculpa não alimenta os famintos. — O cajado abaixou,
entretanto, e eu finalmente saí do meu transe e vislumbrei quem o estava
segurando.
Uma garota baixa e redonda com pele marrom-mel e pulseiras de
cobra de ouro enroladas em seu braço olhou para mim. Ela parecia ter a
minha idade, talvez um ano mais velha. Seu cabelo estava puxado para
trás em duas tranças grossas que desapareciam atrás de sua cabeça, e
ela usava uma regata dourada sem mangas, calça preta com
acabamento dourado que batia no meio da panturrilha e sandálias
marrons com tiras de contas amarradas nos tornozelos.
Alguém — não, vários alguéns — amontoavam-se atrás dela na
outra extremidade da jangada. Um grupo de cerca de uma dúzia se
agrupou, todos usando mantos cinza longos e encardidos com capuzes
que escondiam seus rostos. Eles pararam entre sacos de couro
amarrotados e se agarravam desesperadamente aos corrimãos de corda
nas laterais da jangada. Meus olhos mudaram entre eles e a garota.
— Bem, levante-se — ela ordenou.
Eu me levantei devagar. Minhas pernas balançavam como
espaguete molhado e eu mal conseguia levantar os braços. Cansado
nem começava a descrever. Parecia que tudo, da Bebê Chiclete à Árvore-
Garrafa, ao estranho homem das sombras, ao Mar Flamejante e aos
navios de ossos, estava empilhado em uma torre vacilante em minha
mente. A qualquer segundo agora, tudo desmoronaria e me enterraria em
confusão.
Às vezes, você só precisa lutar contra o seu cérebro.
— Quem é você? — Perguntei à garota quando comecei a puxar a
corda que me salvou, enrolando-a em um braço. — De onde todos vocês
vieram?
— Por que você é tão intrometido? — Ela perguntou.
— Desculpe, eu...
— Não se preocupe, não temos tempo para isso. Apenas fique
quieto antes que eu te jogue de volta.
Obedeci.
Uma das figuras encapuzadas na retaguarda mudou de posição.
— Ayanna, devemos ir.
A garota bufou e se virou. Quando ela passou, senti a Bebê Chiclete
se erguer no meu capuz.
— Ayanna? É... é você? Como…? Por que…? Você tá tão grande!
— Bebê Chiclete! — Ayanna caiu de joelhos e tirou a boneca do
meu moletom para um grande abraço. — Como você…? Onde você
esteve? Te procuramos em todos os lugares. Estávamos muito
preocupados. Era pra você ter voltado logo!
— Bebê Chiclete só queria ficar por algumas horas, mas o Língua
Solta aqui era egoísta e insistia em ir junto. E então houve toda a briga
por este livro — ela ergueu o diário encharcado — e...
— Algumas horas? — Ayanna segurou Bebê Chiclete com o braço
estendido e olhou para ela. — Bebê Chiclete, você está fora há um ano.
O que...?
— Ayanna! Navios de ossos! — O passageiro mais alto se inclinou
sobre a lateral da jangada e apontou para o Mar Flamejante abaixo de
nós. — Lá! —, ele chamou em um latido de dor. Outros esticaram o
pescoço para ver, mas eu encarei aquele que havia feito o aviso.
Devo estar cansado. Meio adormecido, até. Mas seu braço parecia
estar... coberto de pelos.
Mas não havia tempo para se demorar nisso. Ayanna colocou Bebê
Chiclete no chão e, com a promessa de que conversariam mais tarde,
correu para a retaguarda e enfiou o cajado em um nó.
— Segurem-se! — avisou.
Todos agarraram as cordas e meus olhos se arregalaram.
— Espere...
Mas era tarde demais. Com um golpe do bastão de Ayanna, a
jangada saltou para frente e eu tombei de cabeça para baixo, caindo em
uma pilha de tecido. O que está impulsionando essa coisa?
— Oomph! — Alguém me empurrou para longe. — Cuidado!
— Desculpe —, eu murmurei, mas quando me virei para encontrar
os olhos sob o capuz, eu congelei. Eles brilhavam amarelos. E isso era
um... focinho?
— O que...?
Mas a pessoa — tinha que ser uma pessoa — se virou quando um
flash laranja brilhante queimou o céu noturno.
Ayanna empalideceu.
— Por que há tantos navios? — Ela sussurrou.
Olhei para o rosto dela, engoli em seco e, em seguida, recuei e
espiei pela borda da jangada.
— Meu santo pêssego — eu disse baixinho.
Navios de ossos enxameavam embaixo de nós como tubarões
farejando sangue. O Mãos, Costelas e O Maxilar — estavam todos lá,
mas havia mais também. Eles lutavam e se acotovelavam para chegar
bem debaixo da jangada, como se a qualquer momento nós caíssemos
do ar. O mar ficava cheio de luz cada vez que um navio colidia com outro,
e o impacto soava como um trovão. As chamas subiram como lava de um
vulcão em erupção, e mais de um grito ecoou ao meu redor. Ayanna
tentou desviar e seguir em frente, mas outra explosão quase chamuscou
a frente da jangada.
— Jogue alguns desses pacotes de suprimentos no mar — Ayanna
instruiu alguém. — Temos que subir. Estou interrompendo a procura e
voltando para casa. — Parecia que as palavras doíam quando ela girou
a jangada.
A procura? O que eles estavam procurando? Não o diário...
Bebê Chiclete ainda o segurava debaixo do braço enquanto se
agarrava ao corrimão, olhando em volta confusa.
— Bebê Chiclete ficou fora um ano inteiro? — Ela murmurou para
si mesma. — Isso não está certo.
Inclinei-me para olhar para o mar violento, depois sentei-me com
pressa e rezei para que fôssemos ainda mais rápido.
— Bebê Chiclete, quanto tempo você demorou para ir... deste lugar
para a fazenda dos meus avós? Demorou meses?
— Não! Segundos, minutos, talvez. Bebê Chiclete disse que ela se
move como o vento. — Ela esfregou o rosto em confusão. — Não faz
sentido.
— Bem, para onde estamos indo agora?
— Voltando — disse ela, sua voz estridente baixa e triste. — De
volta ao Arvoredo.
— Onde é isso?
Bebê Chiclete apontou para uma linha esfumaçada ao longe, quase
invisível além das chamas na água. Daqui, parecia uma mera mancha no
horizonte.
Mordi meu lábio.
— É muito longe — eu disse. — Os navios vão nos pegar antes...
Bebê Chiclete balançou a cabeça.
— Ayanna consegue fazer isso.
— Espero que você esteja certa — murmurou uma voz baixa atrás
de nós.
Todos os passageiros se abraçaram enquanto Ayanna persuadia e
implorava à jangada por mais velocidade. Os navios de ossos se moviam
lentamente, mas outros continuavam surgindo das profundezas de cada
lado abaixo de nós. Apenas quando parecia que tínhamos deixado alguns
perseguidores para trás, outros três ou quatro saltaram para fora da água
como os restos desenterrados de monstros pré-históricos. Ou zumbis
marinhos. Sim, zumbis marinhos. Eles gemeram de fome e se juntaram
à perseguição.
Finalmente, depois que a última sacola de suprimentos caiu para o
lado, e bem quando eu estava me perguntando a que distância seria até
o oceano, começamos a ganhar velocidade. Os navios ósseos foram se
afastando cada vez mais atrás de nós, até que finalmente desapareceram
nas chamas. Vários passageiros exalaram de alívio, mas meus músculos
não relaxaram e comecei a tremer.
— Você está com frio? — Ayanna perguntou. — Nós temos
cobertores...
— Não, estou bem. — Eu não queria dizer a ela o verdadeiro motivo
de estar tremendo. Eu não me dou bem com alturas. Especialmente em
uma jangada voadora sem cintos de segurança e com cordas frágeis
como corrimão. Mas parecia bobo reclamar disso depois de quase ser
engolido por um esqueleto enorme.
Continuamos deslizando até que a linha de fumaça branca se
tornou uma mancha turva, depois uma cortina de névoa. Finalmente, o
contorno vago de uma costa apareceu. Estendia-se muito e se curvava
levemente à distância, desaparecendo na névoa.
Depois que todos se acomodaram e alguns passageiros até
começaram a conversar entre si, cheguei mais para perto da Bebê
Chiclete e me inclinei.
— Aqueles navios lá atrás... O quê...? Como...? — Eu parei,
tentando colocar minhas palavras juntas e meu tremor sob controle. — O
que eram essas coisas?
Bebê Chiclete cutucou uma mancha de seiva nas calças.
— Todo mundo os chama de navios de ossos.
— Mas o que são eles?
— Necrófagos — Ayanna interrompeu. — Abutres. Senhorita... uh,
alguém que conheço os chama de ecos de um pesadelo de outro reino.
Mesmo assim, eles são mais um incômodo do que um perigo real. Pelo
menos costumavam ser. Eu já os vi se agruparem antes, mas nunca
assim.
— Mas os sons. As pessoas que ouvi gemendo...
— São apenas ecos. Nada está vivo nessas coisas, acredite em
mim. Você acabou de ouvir memórias de uma época diferente, uma
época ruim.
— Memórias do quê?
Mas ela me dispensou.
— Agora não. Estamos quase lá.
A jangada diminuiu a velocidade e começou a ficar cada vez mais
baixa. À medida que andávamos por entre nuvens brancas e finas,
árvores mortas sem folhas apareceram, inclinando-se para fora da água
como lanças. Ayanna acenou para que todos nós nos aproximássemos.
— Juntem tudo que puderem. Nós chegamos à parte rasa,
podemos caminhar até a costa a partir daqui. Prefiro pousar agora do que
tentar navegar por aquela névoa e aquelas árvores. Deixem o que não
podem carregar, ou qualquer coisa que possa atrapalhá-los. Vão para as
árvores, sigam as placas e estaremos de volta ao arvoredo antes que
percebam.
Comecei a me mover para a parte de trás da jangada para sair do
caminho de todos, tentando não balançá-la. Ayanna olhou para mim,
depois para a Bebê Chiclete, que subiu no meu ombro, e balançou a
cabeça.
— Eu não sei o que vocês fizeram, ou de onde vieram, garoto, mas
você pode muito bem vir conosco também. Se Bebê Chiclete te trouxe,
isso o torna um de nós.
Eu tossi e Bebê Chiclete se mexeu no meu ombro, mas nenhum de
nós tentou discutir com ela. Eu encontrei os olhos da pequena boneca, e
um acordo tácito passou entre nós. Quando estivermos em segurança
explicaremos tudo. Tive a impressão, pela reação de Ayanna, de que
Bebê Chiclete tinha feito um pouco mais do que deveria.
Ayanna olhou para o mar.
— Eu nunca vi os asseclas do Maafa agirem assim.
— A Máfia? — Eu olhei dela para Bebê Chiclete — Por que...?
A jangada pousou no mar com um solavanco e um respingo,
fazendo-me tropeçar. Ayanna tapou a boca com a mão, como se tivesse
dito algo que não deveria, e foi até o centro da jangada, dando instruções.
— Bebê Chiclete? — Perguntei. — Por que a Máfia...?
— Não é a Máfia, é o Maafa!
— Ah. O que é o Maafa?
— Shh. — Bebê Chiclete acariciou minha cabeça distraidamente e
examinou a área. A cortina de névoa pairava a cerca de cem metros de
distância. Tão perto, porém tão longe.
— Garoto! Ei! — Ayanna acenou para mim. — Nós precisamos da
sua ajuda.
— O nome é Tristan. Não garoto!
— Tristan, então. Estamos na parte rasa, mas a água ainda é muito
funda para alguns dos Povos Médios.
— Povos Médios?
Ela gesticulou para as pessoas encapuzadas recolhendo suas
coisas. Dei de ombros. O que quer que os estranhos membros do culto
quisessem se chamar, não fazia diferença para mim. Mas alguns deles
eram pequenos, e eu não queria que uma corrente os arrastasse de volta
para onde os navios de ossos esperavam.
Às vezes você só precisa entrar na festa, por mais estranho que
seja.
— O que você precisa que eu faça? — perguntei, arregaçando as
mangas do meu moletom.
— Você e BR pulam para o lado. Vocês dois são os maiores. Vou
manter a jangada longe das chamas, peguem a corda e nos arrastem
para a costa.
A pessoa de olhos amarelos se adiantou, carregando uma trouxa
nos braços. Ayanna se aproximou para falar com ele.
— Tenha cuidado — disse ela em voz baixa. — Se você ficar
cansado...
— Farei a minha parte — disse a pessoa. Soou como um rosnado,
mas Ayanna não pareceu ofendida. Ela apenas acenou com a cabeça.
A pessoa estendeu o pacote para ela.
— Cuidado com a Cacau, sim? Ela ainda não se recuperou.
— É claro. — Ayanna o aceitou e embalou-o como uma mãe faria
com um bebê. — Ela está...?
— Ela está bem. Ela apenas... se assusta facilmente.
Bebê Chiclete ficou na beira da jangada e colocou as duas mãos
em volta da boca.
— Língua Solta! Vá para as árvores!
— Meu nome. É. Tristan.
— Tristan, Língua Solta. Tudo soa igual. Bebê Chiclete não
consegue acompanhar.
— Tente manter o diário fora da água desta vez — eu disse. Já tinha
ficado molhado uma vez e, embora não pudesse acreditar que estava
realmente confiando a ela, eu precisava de ambas as mãos livres.
— BR — disse Ayanna —, me dê sua capa. Ela vai te arrastar para
baixo.
A pessoa chamada BR acenou com a cabeça, então encolheu os
ombros para fora de sua roupa. Meu queixo caiu e eu engasguei com
minhas palavras.
— Santo. Pêssego.
Os olhos amarelos.
O focinho.
A pessoa com quem Ayanna falou... não era uma pessoa.
Minha mente se transformou em gosma.
101
— GAAAAAH — EU DISSE.
Uma raposa com pelo marrom-avermelhado, facilmente tão grande
quanto a própria Ayanna — a maior que eu já vi — deixou cair sua capa
na jangada. Aquela coisa — ele — ficou nas patas traseiras, e seu focinho
se contraiu em diversão irônica.
— Acho que o quebrei — disse BR a Ayanna.
BR. Brer Raposa.
— Gaaaaah — eu disse.
Bebê Chiclete balançou a cabeça.
— Viu? É por isso que você é o Língua Solta.
Ayanna jogou a corda em minha direção. A ponta me acertou na
testa e caiu sobre meu braço estendido, que apontava para o animal que
andava e falava à minha frente. Na verdade — eu dei uma rápida olhada
nas outras figuras encapuzadas e respirei fundo — ele não era o único.
Uma cauda espetada aqui. Uma asa ali.
— Gaaaaah.
— Ele fez isso com você também? — Brer Raposa perguntou a
Bebê Chiclete.
A bonequinha acenou com a cabeça tristemente.
— Bebê Chiclete se preocupa com ele. Ele é tão frágil.
Bonecas falantes.
Navios de ossos.
Mares Flamejantes.
Jangadas voadoras.
Raposas do tamanho de seres humanos.
— Gaaaaah.
Brer Raposa escorregou pela lateral da jangada com um
estremecimento, então agarrou a outra corda que Ayanna jogou para ele.
— Bem — disse ele, seus bigodes brilhando na noite —, vamos nos
salvar?
O gemido longo e triste de um navio de ossos flutuou sobre as
ondas. O som me empurrou para os meus sentidos — mais ou menos.
— Gaaaaah. — Eu balancei a cabeça, e nós dois começamos a nos
esforçar pelas águas rasas até a cintura, fugindo dos navios mal-
assombrados desesperados atrás de nós.
Levei cinco minutos para decidir que talvez ir para a reunião era
uma má ideia.
Não me entendam mal — eu ainda queria encontrar alguém que
pudesse me ajudar a resgatar o diário de Eddie e sair desse lugar.
Aventuras são legais, mas não quando algemas de um metro de altura
estão te perseguindo. Mas enquanto Cacau me guiava pelo túnel do
Arvoredo suavemente inclinado, este com flores vermelho-cereja
brotando ao longo das paredes, ouvi o eco da voz de Bebê Chiclete à
nossa frente.
— E então Bebê Chiclete teve que correr para salvar sua vida!
Aquele menino perseguiu Bebê Chiclete, gritando e berrando como se
seus pés estivessem pegando fogo.
— Hummm — alguém disse. Uma mulher, pelo que parecia, e eu
hesitei. Eu conhecia aquele tom de voz.
— E ele começou a xingar a Bebê Chiclete. Nomes horríveis. Ruins
demais até mesmo para repetir.
— Uhumm — alguém disse. Outra mulher. O que era isso, um
almoço pós-igreja? — Um ano, Bebê Chiclete. Você se foi por um ano.
Você tinha um trabalho, simples, e falhou. E então você traz esse menino
com você... o que estava pensando?
Sorri. Bem feito para a falastrona, pensei, mentindo assim sobre
mim.
Cacau pulou pelo túnel e parou ao lado de uma grande entrada
cortada na parede do Arvoredo. A conversa continuava à nossa frente,
mas parei de prestar atenção, pois ouvi aquela música novamente.
Tambores e palmas rítmicas, mais altos do que antes. Eu balancei minha
cabeça para clareá-la e tentei me concentrar no que estava à nossa
frente. A luz se espalhava pelo túnel, brilhante e convidativa, mas não sou
idiota. Eu podia ver pela expressão de Cacau que ela não estava ansiosa
para pular. Ela torceu as orelhas em hesitação.
— Bem — ela sussurrou. — Eu provavelmente deveria deixá-lo
aqui.
Eu olhei para ela, então para a porta gigante, então de volta para
ela.
— Nananinanão.
— O quê?
— Eu não vou lá sozinho. Nem sei quem, ou o quê, está lá.
— É onde eles planejam estratégias e realizam reuniões e coisas
assim.
— Quem são eles?
Estávamos mantendo uma discussão sussurrada, nenhum de nós
com pressa para chamar a atenção.
— Brer Coelho e os outros.
— Personagens de contos powulares?
— Eles são deuses, Tristan! Talvez fossem outra coisa em seu
mundo, mas aqui, eles são os únicos que podem nos manter seguros.
Você tem que se lembrar disso. Tipo, o Arvoredo? Brer construiu tudo
sozinho. Você nunca se perguntou como todos os túneis têm a altura
certa para quem está passando por eles? E os espinhos também não são
apenas para decoração. Sim, sim, eles são deuses.
Meu queixo caiu. Nas histórias, O Arvoredo é onde Brer Coelho
enganou Brer Raposa para libertá-lo. Mas era apenas um arbusto
espinhoso… Esta... esta era uma cidade inteira de vinhas e espinhos.
Uma cidadela. Uma fortaleza. Era tudo tão incrível….
E eu não queria fazer parte disso.
— Olha, já chega — eu disse. — Agradeço toda a ajuda e, por favor,
agradeça a quem quer que tenha me colocado na cama, mas que tal você
apenas me mostrar a saída deste lugar e encerrarmos o dia. Estou
cansado, estou com fome e só quero ir para casa agora, então se você...
Uma sombra caiu sobre a porta, e Cacau e eu nos encolhemos
contra a parede do túnel. Essa pode não ter sido a melhor ideia. Para a
pequena Cacau estava tudo bem — ela apenas se abaixou entre alguns
galhos e se escondeu. Mas eu? O garoto alto com ombros largos demais?
Grande erro.
— Aaaaah! — gritei quando um espinho me espetou bem no
bumbum.
Então, se você acha que causou uma má primeira impressão —
talvez você tenha tropeçado e caído sobre os próprios pés, ou estava
com ketchup no rosto — imagine eu, Tristan Strong, pulando em uma sala
cheia de deuses enquanto tentava puxar um espinho da minha bunda.
NO MOMENTO EM QUE O PEDAÇO DESAGRADÁVEL do
Arvoredo foi removido do meu traseiro e Bebê Chiclete parou de rir, um
trio de adultos estava de pé sobre mim com os braços cruzados e
expressões sérias em seus rostos.
— Tristan — uma voz forte retumbou —, estou feliz que você
decidiu se juntar a nós.
Ah, meu Deus.
E eu pensava que eu era alto.
A voz profunda pertencia a um tórax. Pelo menos, foi isso que
pensei, até olhar para cima... e para cima... e para cima... e finalmente vi
o rosto olhando para mim. Parecia familiar. Marrom escuro, com rugas
nos cantos dos olhos e também na testa, como se ele só pudesse sorrir
ou ficar carrancudo.
Agora ele estava carrancudo.
— Meu nome é...
— John Henry — eu deixei escapar. — Eu... Desculpe, eu não
queria interrompê-lo, é só que... John Henry. Uau.
Escuridão.
Duas tochas queimavam de cada lado meu, mal iluminando um
longo corredor úmido. O tipo de espaço do qual você sai, não entra.
Mas eu não conseguia sair.
Algo não me deixava.
Um pé se moveu, depois o outro, e entrei na escuridão. Enquanto
caminhava, as tochas flutuavam ao meu lado e rostos apareciam em sua
luz fraca. Pessoas e animais olhavam para mim de dentro das paredes
semitransparentes, suas expressões horrorizadas revestindo cada lado
do corredor como retratos deformados. Algemas os mantinham no lugar
e suas bocas se moviam, mas nenhum som saía. Passei por dois ou três
antes de encontrar um que reconheci.
— Brer Raposa? — Tentei parar, mas meus pés não obedeciam
aos meus comandos e continuei andando. Quando olhei para trás, seu
focinho prateado se moveu enquanto ele tentava responder. — Brer
Raposa! — eu gritei.
Ele estava vivo! Ainda havia uma chance de salvá-lo.
Esse pensamento dominou minha mente tão completamente que
não percebi quando a escuridão começou a clarear. Água pingava e
coisas passavam correndo pelos meus pés enquanto eu caminhava pelo
corredor. Sussurros ecoaram e eu ouvi uma risada desagradável. Bem
quando eu pensei que andaria para sempre, uma porta emergiu da
escuridão.
Eu queria me virar, mas minha mão se moveu por conta própria e
não consegui impedi-la de empurrar a porta. Meus pés me levaram.
— Ei, ei. Veja quem é! Onde você esteve, Tristan?
A sombra de antes, a que eu tinha visto quando estava caindo pelo
buraco, estava na minha frente. Ela tinha uma forma agora — um corpo.
Eu podia ver a silhueta, embora apenas em partes, como se alguém
tivesse acabado de desenhar um monstro com tinta e raiva.
Um único olho se abriu e o rosto sorriu, mostrando uma fileira de
dentes brancos perfeitos.
— Você não está evitando o velho Tio A, está? — Algo caiu da
sombra, algo que não consegui decifrar completamente, mas parecia
uma flor com pétalas brancas difusas. Ela imediatamente murchou na
escuridão.
— O que você quer? — Eu sussurrei.
— Você não foi sincero comigo, Tristan. — A sombra parecia triste.
Traída. Como se eu tivesse roubado um dólar dele. — Não, você não foi
nada sincero. Depois que eu te salvei, é assim que você me trata? —
Uma lanterna se acendeu e vi mais flores murchas no chão. Ao lado,
estava um livro cheio de páginas dobradas com uma capa de couro
manchada de água. O diário de Eddie! De alguma forma, alguém o havia
restaurado. Eu apertei meus punhos com tanta força que minhas unhas
cravaram em minhas palmas.
— Isso é meu!
A silhueta da sombra endureceu e apenas por um segundo eu
pensei ter visto um rosto completo olhando para mim — caolho e
carrancudo.
— Não é o que eu pensei que fosse, mas você sabia disso. Onde
está a magia? Eu não posso fazer nada com esse troço. Eu deveria
queimar este pedaço de lixo!
— Não! — eu gritei.
— Bom, então você deveria ter sido honesto comigo!
Balancei minha cabeça.
— Não sei do que você está falando. — Mas quando eu disse isso,
a cena da história da clareira no Arvoredo surgiu em minha mente.
A lanterna se acendeu novamente e o cheiro de podridão quase me
sufocou.
— Você sabe exatamente do que estou falando! Você me fez
passar por idiota. Mas eu sou um tio gentil, sim, eu sou. Você sabe do
que eu preciso, e você vai conseguir para mim. Eu quero o poder daquela
aranha, e você vai trazê-lo para mim, ou eu colocarei fogo neste maço de
papel higiênico e irei te encontrar. E quando eu te encontrar, vou colocar
um fim em tudo e todos que te ajudaram ou olharam para você ou até
mesmo pensaram coisas boas sobre você. Vou enterrar todos eles! — A
lanterna tremeluziu quando o haint cuspiu: — Está me ouvindo? VOU
ENCONTRAR VOCÊ!
As palavras me deram um soco no peito, e de repente eu estava
voando para trás, puxado por uma corda invisível através da porta e pelo
corredor, até que fui abruptamente lançado pela entrada.
Me dê o poder de Anansi, garoto, ou este seu diário e todo o resto
será queimado.
A ameaça me seguiu, ou talvez estivesse gravada na minha
cabeça. Eu tinha o controle do meu corpo novamente, mas quando me
virei, outra voz me parou na escuridão.
— Ei, nimrod, você está falando com a pessoa errada.
A respiração deixou meus pulmões e eu me virei. Eu reconhecia
aquela voz. Só nunca esperava ouvi-la novamente.
— Eddie?
— Você está falando com a pessoa errada.
— Eddie! Onde você está?
Ele não respondeu, no entanto. A voz do meu melhor amigo
continuou repetindo essa frase, e eu agarrei meu crânio enquanto o
pânico, a confusão e o desamparo me puxavam em dezessete direções
diferentes.
— EDDIE!
Nada.
— TRISTAN?
Meus olhos abriram. Ayanna estava em cima de mim na lotada área
comum, os olhos estreitos. Me levantei e engoli algumas vezes.
— Ei. Onde você esteve? — perguntei a ela.
Ela me observou, depois olhou para as pessoas que tentavam não
ouvir. Virou-se e acenou para que eu a seguisse.
— Aqui não. Alguém quer falar com você. Venha comigo e eu
explicarei.
Curioso, segui Ayanna pelos túneis cheios de sombras do
Arvoredo. Feixes de luz do sol passavam pelas rachaduras nos galhos, e
eu vi pedaços de um céu azul sem nuvens mais de uma vez. A Terra
Média deveria ser um lugar tranquilo, um lugar onde você pudesse
brincar, crescer, cantar, dançar e se deixar levar pela magia do mundo.
Em vez disso, era um horror.
Um pesadelo.
Por minha causa.
O que o haint queria com a magia de contar histórias?
Eu precisava encontrar uma maneira de consertar isso. Talvez se
eu explicasse tudo para John Henry e para as Srtas. Rose e Sarah, eles
poderiam de alguma forma tirar o poder de Anansesem e eu estaria livre
para ir embora.
— Eu tive que falar com alguns dos Povos Médios — Ayanna disse
de repente. Olhei para ela, confuso, e ela suspirou. — Você me perguntou
onde eu estive. Tive que dizer a algumas famílias que não fomos capazes
de encontrar seus entes queridos.
Estremeci.
— Isso parece difícil.
— E é. E nunca fica mais fácil. Não sei como Brer Raposa fazia
isso...
Brer Raposa. Eu me perguntei se deveria dizer a ela que ele ainda
estava vivo... em algum lugar. Mas então decidi não contar, lembrando
da ameaça do tio A contra qualquer um que olhasse para mim.
— E depois tive que tentar convencer a Srta. Sarah a me deixar sair
em patrulha mais uma vez. Ainda há Povos Médios lá fora que podemos
salvar, eu sei disso! — Ela bateu com o punho na mão. — Tem que haver.
Eu não sabia o que dizer sobre isso. Caminhamos em silêncio por
um longo tempo até que Ayanna diminuiu o passo, e eu percebi que
estávamos de volta à clareira interna do Arvoredo, onde John Henry e os
outros me interrogaram antes. Ela se virou antes de entrarmos e me
encarou novamente.
— Que foi? — Perguntei.
— Você realmente fez aquilo? — Ela perguntou.
Meu coração errou uma batida. Ela quis dizer o rasgo no céu?
— Fiz o quê?
— Você sabe. Deu vida a essa história. Com magia. — Ela disse
isso com um pouco de raiva, como se eu tivesse traído alguém.
Soltei um suspiro de alívio.
— Não sei. Isso é o que os deuses me disseram.
— Não estou perguntando a eles, estou perguntando a você.
Aparentemente, você também pode ouvir coisas?
— Eu não sei, ok? Eu sinto... algo. Tambores, palmas, música
fraca... Não consigo explicar, a não ser para dizer que é como ter uma
memória fora de alcance. — Fechei minhas mãos em punhos e suspirei
de frustração. — Não sei se é essa coisa do Anansesem, mas...
Ayanna continuou a me observar.
— Espero que sim — ela murmurou. — Precisamos de toda a ajuda
que pudermos obter e talvez... apenas talvez, com a sua ajuda, possamos
fazer pender a balança a nosso favor de uma vez por todas. — Ela me
ofereceu um pequeno sorriso e entrou.
Eu esperei por um momento. Ela queria minha ajuda... Mesmo
depois de tudo que fiz e de todos os problemas que causei, ainda poderia
consertar isso.
Então, por que esse pensamento me paralisou de medo?
— Tristan?
Exalei e a segui para dentro.
Passamos pela colina, cruzamos o riacho e seguimos em direção
às árvores ao fundo, onde uma grande pedra estava localizada entre
vários troncos. A princípio pensei que havia uma brisa, por causa de todo
o movimento nas copas das árvores, mas então uma das muitas folhas
se soltou e caiu sobre nós.
— As borboletas! — eu disse com admiração silenciosa.
As árvores estavam cobertas com as borboletas de antes. Elas
fizeram suas casas nos galhos, dobrando e desdobrando suas asas, até
que parecia que todo o bosque era uma pintura viva. Eu estendi um dedo
e a maior borboleta que eu já vi pousou nele. Asas azul-celeste
salpicadas de pontos amarelos e brancos bateram lentamente antes que
o inseto voasse para outro lugar.
— Pacífico, não é?
A voz de John Henry retumbou na sombra. O que eu presumi que
fosse uma pedra era, na verdade, o herói powular gigante sentado contra
o tronco de uma árvore. Agora ele se virou lentamente e olhou para mim,
e meus olhos se arregalaram com as centenas de borboletas cobrindo
seus braços e ombros.
— Venho aqui para pensar às vezes — disse. Ele olhou para
Ayanna e sorriu. — Obrigado por trazê-lo. Sarah e Rose foram fazer um
sobrevoo na Floresta Afundada, para verem se conseguem encontrar
algum retardatário. Você conseguiu algo para comer?
Ela balançou a cabeça.
— Depois. Estou voltando para a patrulha. Eu vou pelo lado leste.
Os olhos de John Henry ficaram tristes.
— Ayanna, Rose disse...
— Eu vou patrulhar — ela repetiu teimosamente, e depois de um
breve impasse, ele suspirou e concordou com a cabeça.
Ela olhou para mim com aquela expressão quase suplicante de
novo, como se eu fosse a resposta de uma pergunta não formulada, antes
de agarrar seu bastão e sair andando.
— Sente-se, Tristan — disse John Henry. — Nós precisamos
conversar.
Eu relaxei em frente a ele e inclinei minha cabeça contra o tronco
da árvore. John Henry observou Ayanna sair, então se virou e estudou
meus olhos. Eu evitei os dele, preferindo olhar para as borboletas voando
acima de nós.
— Esses monstros de ferro estão nos matando lentamente — disse
o grande homem sombriamente. — Está chegando ao ponto em que as
pessoas não podem sair do Arvoredo sem um de nós, deuses,
acompanhando. Mesmo assim, é um pouco incerto.
— Mas — eu disse — você é John Henry. Vocês são todos heróis,
deuses! Certo? Como eles podem...?
— Fácil. Tudo o que precisamos é um bando daquelas criaturas
furtivas de metal para chamar nossa atenção, e então outras começam a
pegar as pessoas a torto e a direito. Eles são inteligentes, mais do que
deveriam. Mais do que costumavam ser. O Ma… o líder deles é mau de
maneiras que nunca poderíamos imaginar. Eles estão aprendendo e
levando nosso pessoal. Eles estão até levando nossas crianças. Nossas
CRIANÇAS! — John Henry bateu com o punho no chão, enviando
tremores por toda a floresta, e eu vacilei quando centenas de borboletas
alçaram voo em uma agitação de asas silenciosas.
— Quem é o líder deles? — Perguntei.
Ele esfregou a testa com os olhos fechados por vários segundos.
— Não é realmente um quem. É mais um sentimento. De
devastação e destruição, fome e ganância. É a dor, e é disso que eles
sobrevivem. Chegou aqui com os primeiros de nós, comigo, Brer Coelho
e Brer Raposa e as Mulheres Voadoras. A tristeza da nossa alegria.
Conseguimos derrotá-lo uma vez. Pensamos que se nós o deixássemos
afundar até ao fundo do Mar Flamejante, ficássemos em alerta e
proibíssemos qualquer pessoa de mencionar ou mesmo pensar nele,
poderíamos viver uma vida pacífica. — Ele olhou para o céu. — Mas algo
o trouxe à tona novamente, o transformou em uma fúria e está enviando
tudo o que tem atrás de nós. Todos os monstros de ferro que ele pode
desenterrar das profundezas estão vindo em nossa direção.
Quando ele parou de falar, lutei com a enormidade de suas
palavras.
Algo havia perturbado um monstro que todos os deuses se juntaram
para derrotar.
Esse algo era eu... e o haint que eu trouxe.
John Henry pigarreou.
— Brer diz que tem um plano. E você é parte dele.
Fiz uma careta.
— Mas…
Ele estremeceu.
— Eu gostaria que pudéssemos mantê-lo fora disso, mas não vejo
como poderíamos. Nós precisamos da sua ajuda.
Lá estava ela novamente. Aquela palavra.
Ajuda.
Comecei a balançar minha cabeça.
— Eu não acho que posso...
— Tristan, um Anansesem... isso é algo especial. Você pode não
perceber, mas este mundo e o seu estão conectados. As lendas, as
fábulas... todos os contos que você ouviu enquanto crescia, nos dão
força. Eles são como combustível para nós, heróis powulares, a razão
pela qual todos nos chamam de deuses. E quando um Anansesem os
conta, eles são ainda mais poderosos. Você está ligado a Alke mais do
que qualquer um de nós, porque carrega as histórias que nos trouxeram
aqui, histórias do seu mundo e do meu.
Eu abri minha boca, então fechei. Como eu deveria responder a
isso? De repente, todas as minhas desculpas pareciam triviais. Fechei
meus olhos e apertei meus punhos com força. Todo mundo estava atrás
desse poder que eu não entendia. Eu só queria me livrar dele, não salvar
o mundo. Mas se eu quisesse voltar para casa, que escolha eu tinha?
— Qual é o plano? — Perguntei.
SE VOCÊ ME DISSESSE que um cara do tamanho de John Henry
poderia passar por um túnel de espinhos que eu tive que me espremer
para poder passar, riria da sua cara. Mas, de alguma forma, o Arvoredo
parecia mudar e crescer e se esticar ao redor dele. Cacau disse que o
Arvoredo tinha magia entrelaçada em suas vinhas, mas ainda era incrível
de se ver enquanto caminhávamos pelo labirinto de corredores livres de
espinhos.
Encontramos Brer sentado no meio do chão de uma sala em forma
de cúpula. Pequenos buracos pontilhavam o espaço do chão ao teto, e
atrás das paredes eu podia ouvir os sons de arranhões e corridas.
— Uhum — Brer grunhiu quando pedaços de folhas caíram de um
buraco perto de sua cabeça. — Entendi — disse ele quando um lampejo
de pelo cinza desapareceu em uma toca perto de seus pés.
— Eu vou passar adiante — ele murmurou enquanto uma cauda
branca e fofa se afastava.
— Este é o Labirinto — John Henry sussurrou enquanto
observávamos Brer trabalhar. — Aqueles pequenos buracos são túneis
que conduzem a toda a Terra Média e até mais além. Alguém uma vez
disse que alguns deles vão direto para o continente. Os amigos de Brer
reúnem informações e as trazem de volta para cá, onde ele as organiza
e arquiva para referência futura.
— Ele tem espiões? — eu soltei. — E você me acusou de ser...
— Coletar informações dificilmente é espiar — Brer interrompeu,
suas orelhas achatadas em aborrecimento.
— Chega, vocês dois — disse John Henry. — Temos um problema
que precisa ser resolvido e acho que é hora de conversarmos sobre como
corrigi-lo.
— Bem, bem. Claro — disse Brer. — Mas estou esperando até que
os outros cheguem aqui, não faz sentido perder o fôlego duas vezes.
O coelho recolheu suas anotações rabiscadas e começou a
classificá-las sem dizer outra palavra. John Henry encolheu os ombros
em um pedido de desculpas para mim e eu revirei os olhos. Deus ou não,
Brer estava me dando nos nervos.
A Srta. Sarah e a Srta. Rose chegaram pouco tempo depois, e fiquei
surpreso ao ver Ayanna as seguindo para dentro. Enquanto as deusas
aladas murmuravam saudações para mim, a piloto da jangada me deu
um breve sorriso que eu hesitantemente retribuí.
— Ah, bom. Estava na hora. — Brer embaralhou uma pilha de suas
notas e pigarreou. — Eu, pelo menos, não vou perder tempo, porque
estou incrivelmente ocupado.
— Fazendo o quê, ficando sentado? — Eu disse antes que pudesse
me conter.
Brer saltou de pé em um bufo.
— Alguns de nós, garoto, realmente contribuem por aqui. Alguns de
nós acreditam que ajudar a sobrevivência de todos é importante. Eu
resolvo problemas, problemas que você criou, então me poupe do
sarcasmo insolente e comece a trabalhar duro.
— Eu não pedi para vir aqui! — eu vociferei.
— Nós também não pedimos por você, mas aqui está.
— Bom, me ajude a ir para casa e eu vou sair da sua frente!
— NÃO HÁ COMO IR PARA CASA! — Brer explodiu. Ele pulou a
centímetros do meu rosto e me encarou. — Esse é o problema! Ninguém
aqui tem a capacidade de levá-lo a uma espiral da morte que paira sobre
nossas cabeças há um ano, crescendo cada vez mais. Não com hordas
de monstros de ferro espreitando nas névoas! Não com moscas-marca
voando pelos céus, perseguindo você de um lado para o outro! Até que o
rasgo se restaure e aqueles monstros de ferro sejam controlados, você
não vai a lugar nenhum. Portanto, esqueça essa ideia até que eu diga o
contrário.
Eu segurei uma resposta e permaneci em silêncio, lutando contra o
que ele disse. Eu estava preso lá. Por quanto tempo? A diferença de fuso
horário entre o meu mundo e Alke continuou a me confundir. Quando eu
escapasse — isto é, se é que eu iria escapar — quantos dias teriam se
passado em casa?
— Então, qual é o plano, Brer? — John Henry ergueu os braços e
as pontas dos dedos roçaram as paredes em lados opostos da sala. —
Se não conseguirmos chegar lá, aquele rasgo continuará crescendo, e
aqueles monstros de ferro dos navios de ossos continuarão saindo no
Mar Flamejante!
Brer esfregou seu rosto peludo e suspirou.
— Pelas informações que pudemos reunir, há alguma conexão
entre a anormalidade no céu e essas criaturas. Eu apenas não fui capaz
de descobrir o que é. O que sabemos é que, quando o senhor "soco" aqui
— ele apontou as orelhas para mim — espancou a pobre Árvore-Garrafa,
isso perturbou alguma coisa, e os monstros de ferro, um incômodo menor
desde que você-sabe-o-quê foi derrotado, se tornaram uma ameaça
novamente. Se pudermos enviar esse menino de volta e fechar o buraco
atrás dele, é lógico que o que quer que os esteja perturbando acabará…
— Isso tudo é ótimo... — a Srta. Sarah disse
— … mas alguém ainda precisa subir lá — sua parceira continuou.
— E nós não vamos tentar de novo — concluíram elas ao mesmo
tempo.
A Srta. Rose fungou.
— Minhas asas ainda doem pela manhã, sabe.
A Srta. Sarah concordou com a cabeça, e eu imaginei as duas
deusas batendo suas asas enquanto disparavam em direção ao rasgo no
céu.
Um estrondo de trovão e penas pretas caindo, um grito de dor, e...
— Tristan, querido, você está bem? — A Srta. Sarah olhou para
mim e tirei a imagem vívida da minha mente. Eu podia até sentir o cheiro
das penas chamuscadas.
— Ótimo — eu resmunguei.
John Henry ainda estava discutindo com Brer.
— E como você acabou de dizer, aqueles monstros não estão
deixando ninguém chegar perto o suficiente para tentar — ele rosnou.
Brer hesitou.
— Desde que encontremos uma maneira de passar por eles, algo
em que estou trabalhando, há duas pessoas que conheço que podem
passar pelo fogo ilesas, mas apenas uma delas pode consertar o rasgo
no céu e talvez nos livrar de nosso convidado indesejado.
Todos nós nos inclinamos para frente para ouvir o nome.
— Anansi.
UM SOPRO DE VENTO PASSOU pelo meu rosto e pensei ter
ouvido alguém sussurrar meu nome, mas quando olhei em volta, ninguém
estava falando comigo.
John Henry e Ayanna estavam discutindo com Brer, que tinha as
duas patas cruzadas sobre o peito e um olhar determinado no rosto.
— Esse rasgo no céu precisa ser selado, e quem melhor para fazer
isso do que o próprio Tecelão?
— Kwaku Anansi não é visto há meses — disse a Srta. Sarah.
— Mas se pudéssemos encontrá-lo… — disse Srta. Rose.
— Não vai rolar. — John Henry abanou a cabeça. — Simplesmente
não vai. Mesmo que ele não tivesse ido embora há muito tempo, e
estivesse se escondendo em algum lugar, o que te faz pensar que um
deus Alkeano iria ajudar a nós, deuses da Terra Média?
— Porque ele tem que ajudar! — disse Brer.
— E como você espera encontrá-lo?
A briga continuou, crescendo em gritos e acenos de mão, e eu
balancei minha cabeça. Os adultos são tão rápidos em dar sermão a nós,
crianças, por agirmos assim, quando eles fazem a mesma coisa.
Hipócritas.
— Licença — eu disse em voz alta. — Ei! Com licença!
Todos interromperam o debate e se viraram para mim.
— Como Anansi pode nos ajudar?
O silêncio saudou minha pergunta por tanto tempo que comecei a
pensar que tinha comida nos meus dentes, até que a Srta. Sarah
perguntou lentamente:
— Você não sabe sobre Kwaku Anansi?
— Ah, eu sei sobre ele. Deus aranha. Roubou histórias dos deuses
e as trouxe ao povo. O enganador original. Faz o Brer aqui parecer o
bichinho de estimação preferido de um professor. Quero dizer, o aluno
favorito do professor, não o bichinho do professor, embora eu ache que
isso também funcione para você.
Brer rosnou, e a Srta. Rose se apressou em interrompê-lo.
— Sim, tudo isso é verdade. Mas o Pai Anansi também é conhecido
como o Tecelão. Os fios que ele tece são magias poderosas...
— … e agora, é disso que precisamos — disse a Srta. Sarah. —
Magia poderosa para fechar o rasgo no céu.
John Henry franziu a testa.
— Mas mesmo que possamos encontrá-lo, e mesmo que ele dê o
braço a torcer, sua ajuda não sairá barata.
— Não — disse Brer. Ele suspirou e voltou para sua posição
reclinada. — Não importa. Teríamos que oferecer algo muito valioso para
atraí-lo para o nosso lado.
Eu olhei em volta.
— E não temos nada? E o seu martelo?
Minha sugestão trouxe um grunhido de desaprovação de John
Henry.
— Esse martelo pode ser útil na próxima vez que aqueles monstros
de ferro surgirem. E, além disso, o que o deus aranha vai fazer com um
martelo?
Todos nós ficamos em silêncio por um momento, e então Brer
pigarreou.
— Há... uma coisa.
— Não — disse John Henry prontamente.
— Johnny, só estou dizendo...
— É muito perigoso, Brer.
— Assim como ficar parado aqui esperando ser esmagado!
Esperei por uma explicação e, pela aparência delas, a Srta. Sarah
e a Srta. Rose também, mas John Henry e Brer apenas se encararam.
Eu juro, às vezes os adultos agem pior do que alunos da sexta série.
— Entããão... alguém vai nos dizer o que é muito perigoso? —
Finalmente perguntei.
John Henry lançou um olhar de aviso para Brer, mas não disse
nada. Brer se sentou, suas orelhas coladas em seu crânio.
— A Caixa de Histórias — disse ele.
A Srta. Sarah e a Srta. Rose recuaram em uma agitação de penas
pretas e respirações aceleradas. John Henry cerrou os punhos. Ayanna
agarrou a ponta entalhada de seu cajado e estreitou os olhos.
E eu?
Eu fiquei lá como um idiota, confuso.
— Uma caixa do quê?
— Caixa de Histórias. Um cofre do tesouro para contos e cantigas.
Um arsenal de canções de ninar e fábulas mais antigas que o sol,
algumas familiares, outras que ninguém nunca ouviu antes. — Brer ficou
de pé e esticou os braços. — Desse tamanho, embora mude de aparência
dependendo de quem a carrega, e cada cidade em Alke tem sua própria
versão. A original, no entanto... a verdadeira Caixa de Histórias, a Caixa
de Histórias de Anansi, aquela que ele derrotou Nyame para conseguir...
é única.
— E você acha que esse tesouro que já é dele vai atraí-lo porque...
Brer se inquietou de repente.
— Porque estávamos trabalhando em um projeto relacionado a
isso, juntos. Então os monstros de ferro atacaram e nós fugimos para
caminhos separados. Voltei aqui e Anansi tinha desaparecido, mas a
Caixa de Histórias foi deixada para trás.
Pensei em todas as histórias de Anansi que a minha vózinha me
contara ao longo dos anos. Ele sempre tinha que se provar o mais
inteligente, o mais astuto e, acima de tudo, o mais renomado. Perder a
Caixa de Histórias foi um golpe em seu orgulho.
— Anansi é um glutão atrás de histórias — murmurei.
— Cuidado. É um péssimo negócio insultar um deus — advertiu
Brer. — Não que eu espere que alguém com sua educação saiba disso.
— É um fato bem conhecido, Brer — disse John Henry. — Pegue
aquela Caixa de Histórias e o Tecelão poderá vir até nós rápido, frenético
e com pressa.
Eu olhei para o homem gigante.
— Espere. Você disse que era muito perigoso, mas Brer diz que
cada cidade tem a sua. Por que não usamos a Caixa de Histórias da Terra
Média? Não é boa o suficiente para atrair Anansi?
Talvez isso pudesse funcionar... E uma vez que Anansi se reunisse
com uma Caixa de Histórias, não haveria necessidade de ficar parado
aqui como o novo Anansesem.
John Henry desviou o olhar e suspirou.
— Na verdade, não temos uma. A Caixa de Histórias é um ícone
importante da nossa história, e ainda não encontramos a combinação
certa de materiais e espírito para construir uma.
A Srta. Sarah disse:
— Já tentamos muitas vezes antes...
— … mas cada uma se desintegrou depois de apenas um dia —
disse a Srta. Rose.
— Há um pouco de madeira no continente alkeano — John Henry
disse. — Ouvi dizer que é muito poderosa, mas com as coisas do jeito
que estão, os monstros de ferro e o jeito como eles são teimosos, pode
levar meses até que possamos tentar novamente.
Esse comentário pairou sobre nós por um momento. Ayanna
balançou a cabeça tristemente como se isso fosse uma fonte constante
de decepção.
— Okaaaaay — eu disse. — Precisamos de uma Caixa de Histórias,
e não temos.
Brer pigarreou e o rosto de John Henry ficou sombrio, e novamente
ele se calou. Era óbvio que ele não aprovava o que Brer iria dizer a seguir,
e depois de ouvir, eu entendi o porquê.
Brer se aproximou, ambas as orelhas protegendo seus olhos
enquanto ele olhava para mim.
— Não, você não está entendendo. Há uma Caixa de Histórias
perfeitamente boa esperando por seu próximo dono. Eu acabei de dizer
que deixamos para trás. Ela está lá, agora, na Crescente Dourada. É
onde Anansi e eu estávamos estudando.
— Crescente Dourada? — Perguntei. — O que é isso? Uma cidade
ou algo assim?
— Era a joia de Alke — explicou Ayanna. — Mas logo depois que o
rasgo apareceu, Brer disse que os monstros de ferro vieram e a
destruíram. Qualquer esperança dos Povos Médios se refugiarem lá ou
em qualquer outro território de Alke desapareceu depois disso. Todas as
cidades estão com medo de serem as próximas a serem invadidas. E eu
não as culpo.
— Mas não estamos falando sobre se refugiar. Estamos libertando
a única coisa no mundo que nos dá uma chance de lutar. O poder dessa
Caixa de Histórias... — Os olhos de Brer se estreitaram em fendas
enquanto ele esfregava as patas, e eu balancei minha cabeça. Esse
coelho tinha problemas.
John Henry franziu a testa, mas não estava mais discutindo. Por
mais que ele odiasse a ideia, eu poderia ver que a luta constante, a
defesa e a liderança do ataque estavam começando a desgastá-lo. A
todos eles. Eu considerei as cicatrizes de Brer, e as penas queimadas de
Srta. Sarah e Srta. Rose. Os deuses estavam sofrendo ao lado dos Povos
Médios, que se escondiam no Arvoredo.
John Henry suspirou.
— Como? — foi tudo o que ele disse.
Brer se levantou e começou a andar ao redor do Labirinto.
— Simples. Bem, não é tão simples, mas mais fácil do que você
imagina. Especialmente com o encantador de borboletas aqui. — Ele
apontou para mim e eu fiz uma careta. — De qualquer forma, uma Caixa
de Histórias é um recipiente para a magia das histórias, certo? Ela as
segura, pronta para trazê-las à vida, da mesma forma que um
Anansesem faria, apenas em uma escala cada vez maior.
— Ok, então… — John Henry começou.
— Então, qualquer história contada em sua proximidade seria
atraída por ele. E vice-versa.
Eu não gostei de para onde isso estava indo.
— Se o menino...
— Meu nome é Tristan — eu disse, o jeito alarmante aparecendo
na minha voz. — E eu não acho…
— Sim, tanto faz. Se ele contasse um de seus contos como fez
antes, a magia dele nos levaria direto para a Caixa de Histórias. Então,
facilmente alguém entra e pega o tesouro, e nós saímos, de volta para
casa, e esperando que Kwaku Anansi apareça na mesa de barganha.
Ele bateu palmas e olhou ao redor da sala. John Henry ficou
pensativo de novo, enquanto a Srta. Sarah e a Srta. Rose pareciam
céticas. A sobrancelha de Ayanna estava franzida. Eu balancei minha
cabeça, mas ninguém prestou atenção em mim.
— E se alguém tiver… — Srta Sarah disse.
— … um problema com a gente pegando ela? — Srta. Rose
terminou.
— Ninguém está mais lá. Você não sabia? Desde aquela... reunião,
fiz o Labirinto acompanhar os movimentos na Crescente Dourada.
John Henry estreitou os olhos e eu fiz o mesmo. Então, os túneis
de Brer iam até o continente.
— Todos os cidadãos saíram depois que os monstros de ferro
atacaram — Brer continuou. — A Caixa de Histórias está parada ali,
esperando que seu próximo dono a pegue. — O coelho gigante olhou
para mim e franziu a testa. — E você a traz de volta para cá, entendeu?
Para mim... para nós.
— Espere um minuto…
Mas eles me ignoraram enquanto todos se calaram, pesando os
riscos versus o benefício em potencial de ter um tesouro tão valioso para
atrair Anansi.
Finalmente, John Henry encolheu os ombros.
— Odeio dizer isso, mas pode ser nossa única opção.
— Mas quem vai acompanhá-lo? — Srta. Rose perguntou. — É tão
perigoso.
— Posso só… — comecei, mas a conversa passou por cima de
mim.
— Não podemos ir — disse a Srta. Sarah. — Já estamos com falta
de mão de obra e essas feras vão atacar novamente a qualquer
momento. Além disso, John Henry seria visto a um quilômetro de
distância, e, Brer, você é necessário aqui para supervisionar o Arvoredo.
— Você está certa — disse John Henry.
Ayanna pigarreou.
— Cacau e eu iremos com ele. As patrulhas em torno da Terra
Média foram canceladas por enquanto, e me recuso a apenas sentar aqui
e esperar.
Srta. Rose franziu os lábios e depois assentiu.
— Seria reconfortante se você o acompanhasse. Quanto a Cacau...
— ela parou, e sua parceira falou.
— Isso iria distrai-la... de ter perdido Brer Raposa.
John Henry bateu palmas uma vez, quase me matando de susto.
— Então, Tristan, você está pronto para ser um herói?
Eu o encarei.
Pronto para ser um herói? As palavras ecoaram em meus ouvidos
e martelaram em meu crânio quando as imagens de Eddie e Brer Raposa
vieram à mente. Em ambos os casos, não consegui ajudar ninguém. Esta
seria a terceira tentativa, e desta vez havia ainda mais vidas em jogo. Eu
posso conseguir pra valer.
Recuei, quase tropeçando com a pressa, e balancei a cabeça.
— Não.
ENVIE UM GAROTO DO SÉTIMO ANO PARA fazer o trabalho de
um deus, por que não?
Quando me recusei a seguir o plano deles, Brer começou a puxar
as orelhas e gritar, John Henry resmungou alguma coisa, e a Srta. Sarah
e a Srta. Rose se revezaram cortando uma à outra. Mas foi a expressão
de Ayanna que doeu mais. Ela parecia que fora traída e saiu pisando forte
da sala, seu cajado agarrado com força.
Finalmente, John Henry acenou com os dois braços gigantes.
— Chega, chega! — Ele esperou até que todos se acomodassem
antes de se virar para mim com uma carranca. — Tristan, eu sei que isso
é assustador, mas precisamos da sua ajuda.
— Por quê? — Eu perguntei, um tom de desafio em minha voz.
— Porque... como Brer disse...
— Então deixe Brer fazer isso. Ele é obviamente o especialista. Eu
não vou voltar lá.
As orelhas de Brer ficaram moles e ele zombou de mim.
— Ah, esqueça. É óbvio que ele está com muito medo. Ele parou
de fingir ser um herói. Maravilhoso. Ótimo. Que seja.
Se meu rosto esquentasse ainda mais, minhas sobrancelhas
começariam a soltar fumaça, mas me recusei a desviar o olhar. Deixe-os
reajustar seus planos. Eu estava cansado de tentar corresponder às
expectativas de todos.
Antes que eu pudesse responder, John Henry pigarreou.
— Acho que preciso falar um pouco com Tristan. Vocês podem nos
dar licença? — Ele olhou para mim e acenou com a cabeça para a porta.
— Vamos dar uma volta.
Estudei John Henry com o canto do olho enquanto voltávamos para
a clareira do Arvoredo, onde ele gostava de pensar. Ele me lembrava do
meu pai e do meu avô. Homens orgulhosos, silenciosos e severos. Seus
dedos não tinham cicatrizes e nem estavam inchados como os deles, mas
seus pulsos estavam marcados e as palmas das mãos, calejadas.
Todo mundo usa as cicatrizes da vida de maneira um pouco
diferente, eu suponho.
O terreno começou a se inclinar para cima e o emaranhado de
galhos farpados por onde passamos tornou-se menos denso. A luz do sol
atravessou em feixes angulares. Botões verdes podiam ser vistos nas
trepadeiras que subiam pelas paredes, e pequenas flores brancas e
amarelas desabrochavam perto do teto.
As flores me lembraram do jardim do peitoril da janela da mamãe e,
sem aviso, fui atingido por uma onda de saudade. Eu queria voltar para o
meu mundo, mas os algemados e os navios de ossos que gemiam no
Mar Flamejante... eles estavam entre mim e a minha casa. O pensamento
de tentar derrotar tudo isso novamente travou meus músculos. Os
congelou.
E então havia a questão de alcançar o rasgo no céu. Parecia
impossível.
Isso me deixou com apenas uma outra escolha: atrair Anansi. E se
ele não viesse? E se ele viesse?
Eu não queria nada disso. Nunca pedi para me tornar um
Anansesem.
Todos esses pensamentos agarraram e puxaram meu cérebro, me
deixando um pouco para trás em uma caminhada cambaleante.
— Então, você é um boxeador, hein?
A pergunta me pegou de surpresa. Eu esperava um sermão ou um
interrogatório, não uma conversa fiada. Depois de me perguntar por um
momento se isso era uma armadilha, dei de ombros.
— Sim, acho que sim.
— Você acha? Ou você é ou não é.
— Eu sou.
— Você não parece feliz com isso. Estou surpreso. Ouvi dizer que
você deu um show muito bom na Floresta Afundada.
— Não ajudou em nada — eu disse, com uma pitada de amargura.
— Não foi possível salvar Brer Raposa. Perdi o diário de Eddie.
— Esse é o seu amigo? Eddie?
Eu balancei a cabeça, e John Henry franziu os lábios.
— Tenho certeza que ele vai entender.
— Ele... não está mais aqui.
Eu olhei para baixo e coloquei minhas mãos nos bolsos do meu
moletom. Cheirava como o ar livre e meus tênis estavam enlameados, e
tudo que eu queria fazer era me preocupar com o que a minha vózinha e
meu avô diriam quando vissem como tudo estava manchado. Eu sentia
falta dos meus antigos problemas.
— Então, você já teve alguma luta? — John Henry perguntou.
Fiquei feliz por ele ter seguido em frente.
Eu chutei um galho solto.
— Uma. Perdi.
— Ah.
— Eu não estava preparado — eu disse depois de um segundo. —
Não consegui focar. Não dormi bem na noite anterior, me senti cansado
e não conseguia obter energia. Então, sim, eu perdi.
John Henry olhou para mim.
— Ayanna disse que você se movia como um raio na floresta. Disse
que seus punhos eram um borrão.
Meu pescoço ficou quente.
— Ela disse isso?
— Uhum. E isso não combina com o que você diz que fez no ringue.
Então você provavelmente não é tão ruim quanto pensa. Quem segura o
saco para você?
— Meu pai. — Eu chutei o galho novamente, o rodando de ponta a
ponta por todo o túnel. — Alvin Strong. Bicampeão do peso médio.
Boxeador extraordinário.
— Ok, ok. Então corre no seu sangue.
Eu balancei minha cabeça.
— A única coisa que corre no meu sangue é a decepção. Meu pai
queria que eu fosse o próximo campeão da família. Ele nunca perdeu
uma partida profissional. Eu? Eu não consigo ganhar nem uma luta contra
um minúsculo tagarela pegajoso.
Caminhamos e continuamos a falar sobre boxe. Eu me mantive
longe de qualquer coisa muito pessoal e, eventualmente, começamos a
discutir os boxeadores favoritos.
John Henry assobiou maravilhado.
— Então, esse Ali... eles tiraram o título dele?
Eu concordei.
— Sim. Desrespeitoso, certo? Tudo por não querer atirar em
ninguém em uma guerra. Mas de qualquer forma, ele entrou sendo
desrespeitado e saiu com todos acreditando nele. Recuperou o título e o
fez em grande estilo. “Voe como uma borboleta, ferroe como uma
abelha.”
— Foi isso que ele disse?
— Foi isso que ele fez.
— Bem, caramba. Eu gosto disso. Como uma borboleta, hein?
Caramba. — Quando ele disse isso, alguns dos insetos coloridos
agitaram-se preguiçosamente ao redor de sua cabeça, quase como se
tivessem sido convocados. Eu encarei meus dedos com suspeita.
— E você? — Perguntei. — Você tinha um favorito? Eles sequer
lutavam boxe naquela época?
— Rapaz, cale-se. Nós lutávamos. Não existiam seus
equipamentos sofisticados, também. Juntas e coração era tudo que
tínhamos, juntas e coração.
— Então, quem era seu favorito?
John Henry não respondeu. Em vez disso, ele ergueu a mão e foi
até a parede do Arvoredo. Ele parou, colocou o ouvido o mais perto que
pôde, sem ser espetado por espinhos, e ouviu. Depois de um segundo,
ele continuou, balançando a cabeça.
— Pensei ter ouvido alguma coisa — disse ele. Comecei a
perguntar o quê, mas ele me empurrou para o lado. — Onde nós
estávamos? Boxeador favorito, certo? Isso é fácil. Velho Rawlins, sem
dúvidas.
Eu ri.
— Velho Rawlins? Pare de brincar, o nome nem se parece com o
de um boxeador. Qual foi o recorde dele?
John Henry parou de andar e me encarou.
— Cento e cinquenta e três a zero.
— Sem chance.
— Estou te dizendo, ele tirou cento e cinquenta e três. Sem perdas.
— Como isso é possível?
— Velho Rawlins teve uma história e tanto. Sabe, ele nunca teve
uma escolha em relação a isso. Ele teve que lutar, pura e simplesmente.
— Soa familiar — eu resmunguei.
Mas John Henry balançou a cabeça.
— Não, senhor, você pode pensar que é a mesma coisa, mas não
é. Não gosto disso. Você acha que foi forçado a entrar nisso, mas no final
do dia, aposto que seus pais o teriam deixado em paz.
Meus pais, talvez, mas não o vovô. Mas eu guardei isso para mim.
— Nós trabalhávamos nos trilhos, e todos nós trabalhávamos para
um homem que chamávamos de Chefe.
— Chefe?
— Isso. Uma palavra. É a pergunta e a resposta. O fim e começo.
Chefe queria que você trabalhasse até um pouco mais tarde, você
trabalhava até um pouco mais tarde. Chefe queria que aquela montanha
fosse perfurada antes do meio-dia, bem, é melhor você começar a
martelar ao amanhecer. E se Chefe disse que você iria boxear para o
entretenimento da noite, bem, você só esperava que o outro cara
estivesse tão cansado quanto você.
— Isso não parece… — eu parei antes que pudesse terminar, e
John Henry sorriu.
— Eu sei que você não ia dizer justo. A vida é justa?
Imaginei Brer Raposa sendo arrastado por um algemado.
— Não. A vida não é justa.
— Certo. Porque foi isso que o Velho Rawlins descobriu. Mas ele
também descobriu uma maneira de sobreviver. Cada vez que Chefe dizia
que ele precisava lutar, ele simplesmente pegava essas luvas de tecido
fino com os dedos de fora e ia para o meio do acampamento. Dez minutos
depois, tudo estava acabado. Outra vitória.
— Como?
John Henry piscou e deu um tapinha na cabeça.
— Vamos ver se você consegue descobrir. Você é o boxeador. Sem
pressa. Apenas um pouco de estímulo para o seu cérebro.
Repassei as táticas de boxe na minha cabeça. Como um homem
pode vencer de 153 a 0? Especialmente um homem chamado Velho
Rawlins. Ele soava como um ancião. Mais velho que o vovô,
provavelmente. Meias com sandálias antigas. Mas não importa o quanto
eu pensasse sobre isso, não consegui encontrar uma resposta.
Chegamos à entrada da clareira escondida e nos dirigimos para a
colina onde eu havia sido interrogado antes. John Henry ficou na parte
de baixo e eu subi até o topo para poder encará-lo cara a cara. Seu
martelo estava pendurado em ambos os ombros e ele colocou os braços
sobre ele. A cabeça estava gasta e amassada, mas John a mantinha
polida e ela brilhava ao sol quente.
Ele me viu olhando para ele e sorriu.
— Deve parecer bobo, eu carregando este martelo para todo lado.
Dei de ombros.
— Não, não parece bobo. Se ele significa algo para você, você deve
mantê-lo por perto. — Então acrescentei: — Contanto que você não o
leve para o chuveiro.
— Para onde?
Uau. Comecei a gaguejar alguma coisa, mas ele me interrompeu
com uma risada.
— Estou brincando com você, garoto. E sim, essa é uma maneira
infalível de deixar suas ferramentas enferrujadas.
Soltei um suspiro de alívio.
— Tristan — John Henry começou, depois parou e começou
novamente. — O livro do seu amigo. Significava algo para você?
— Tudo — eu disse imediatamente. Esfreguei o lado da minha
calça, sentindo o bolso onde o diário deveria estar. — Ele significava...
significava tudo.
John Henry assentiu com a cabeça, depois remexeu no bolso da
frente do macacão.
— Uma das ninhadas da Sis Crow pegou isso, elas sempre tiveram
um olho bom para coisas brilhantes, e essa coisinha brilha de uma
maneira que você não acreditaria. De qualquer forma, encontraram isso
nas árvores e, bem... achei que você gostaria.
Ele estendeu um cordão de couro esfarrapado e a respiração ficou
presa na minha garganta.
— Isto é...?
— Não é muito, mas é algo, e espero que ajude um pouco. Não
parece certo que um adinkra como este se perca.
Ele largou a borla do diário de Eddie na minha palma e perdi a
capacidade de falar por um segundo. O amuleto — o símbolo de Anansi
— ainda estava amarrado na ponta. Eu o segurei e o observei girar na
luz.
— Do que você chamou isso?
— Um adinkra. Outra coisa que foi transportada do seu mundo.
Símbolos de grande significado para as pessoas que os usavam. Nosso
povo. Reis e rainhas. Se saiu do livro do seu amigo, aquele sobre o qual
todo esse alvoroço é, imagino que você queira ficar com ele.
Enrolei o cordão em volta do meu pulso, usando meus dentes para
dar um nó, e respirei fundo.
— Obrigado. Eu pensei... Bem, obrigado.
— Ah, não foi nada. Na verdade...
— Ai! — Eu balancei meu pulso e encarei o amuleto. A madeira
estava muito quente, como se estivesse pegando fogo.
Espere um minuto.
Eu coloquei o amuleto perto do meu rosto, então coloquei minha
mão em volta dele. Com certeza, o Adinkra estava brilhando, uma luz
verde suave que me confundiu por um segundo.
— Por que…?
Um guincho enferrujado soou do outro lado da clareira, e depois
outro.
O rosto de John Henry ficou pálido e em um instante o martelo
estava em suas mãos.
— São aqueles monstros de ferro.
!
— Tristan?
Eu abri meus olhos para ver a cabeça de Bebê Chiclete a
centímetros da minha. Ela segurou meu rosto com uma das mãos
pegajosas e a outra esticada atrás dela, como se ela estivesse a
segundos de tirar as papilas gustativas da minha boca.
Eu estreitei meus olhos.
— Não se atreva...
SMACK!
— Ai! — Eu gritei. — Pra quê isso?
— Você não estava se mexendo. — Bebê Chiclete encolheu os
ombros. — Não há tempo para dormir, Língua Solta, Bebê Chiclete tem
missões e tals.
Eu lentamente percebi que estava de volta ao palco polido dentro
de Isihlangu. Não olhando o Arvoredo queimar. Não sendo ameaçado
pelo Tio A em um pesadelo. Eu estava na Crista.
Todo mundo estava olhando para mim. Os anciãos, Amagqirha,
Thandiwe… até mesmo Ayanna e Cacau estavam olhando para mim de
forma estranha. Grande John estava afastado de nós com os braços
cruzados, na mesma posição que estava antes, mas agora, em vez de
um sorriso, ele estava carrancudo. Ele encontrou meus olhos e eu recuei
com a fúria secular que ondulava em seu olhar. Mas só por um segundo,
outra coisa cintilou.
Confusão?
— Tristan, você está bem? — Cacau perguntou.
Eu balancei minha cabeça e tentei recuperar o atraso mentalmente.
Minha mente estava nebulosa. Tive um melhor amigo uma vez, onde eu
morava... Qual é o nome dele mesmo? Eddie? Eu lembrava vagamente
de tê-lo deixado na mão de alguma forma. Teve muita dor...
— Tristan? — Ayanna chamou.
Eu respirei e me recompus. Aparentemente, ninguém havia notado
que Grande John e eu tínhamos desaparecido por um tempo. Nas
histórias, ele levava os espíritos dos escravizados em viagens de
felicidade, alegria e admiração, enquanto seus corpos permaneciam na
plantação e continuavam a trabalhar.
Acho que foi isso que ele fez comigo, embora eu não pudesse dizer
que a viagem foi feliz…
— Tristan! — Bebê Chiclete gritou.
— O que foi?
— Você está aí parado babando, é isso que foi! Eles estão prestes
a entregar o que viemos buscar e você parece um sapo em um tronco. E
Bebê Chiclete odeia sapos. Você sequer está ouvindo? — Bebê Chiclete
subiu no meu ombro e agarrou minha orelha. — Está ouvindo a Bebê
Chiclete? Ah, não me surpreende... Você realmente precisa limpar seus
ouvidos.
— Ei! — Eu a afastei e ela deslizou para o chão e cruzou os braços.
Limpei minha garganta. — Desculpe. Eu só… Desculpe. Continuem.
Estou aqui, quero dizer, estou ouvindo.
Dois guardas da Crista flanqueavam um grande objeto coberto de
pano. Minha garganta se apertou.
O ancião líder se levantou, assim como o resto dos ancestrais, o
canto de Amagqirha ainda fortalecendo sua presença fantasmagórica.
— Como eu estava dizendo… — disse Fezile. — Grande John
desistiu de sua demanda pela Caixa de Histórias de Nyame.
Eu fiquei boquiaberto. Grande John encolheu os ombros, mas a
raiva ainda revestia seu rosto. Raiva e constrangimento.
— Antes de entregarmos a vocês, campeões da Terra Média, um
pedido deve ser atendido. Thandiwe, dê um passo à frente.
A garota alta foi até o centro do palco e estendeu sua prancha até
Amagqirha. A adivinha amarrou algo em seu meio, o tempo todo pisando
de um pé para o outro e cantarolando. Quando ela terminou, a mulher
mais velha devolveu o antepassado a Thandiwe, colocando-o em seu
braço como um…
— Um escudo? — eu perguntei em voz alta. — Espere, por que um
escudo?
A resposta me atingiu no momento em que Thandiwe sorriu e
amarrou um lenço de miçangas em volta da cabeça.
— Irei com vocês. Anansi deve uma explicação para todos em
Isihlangu. — Ela fungou. — E para mostrar a vocês, Povos Médios, como
lutar, é claro.
Bebê Chiclete revirou os olhos.
— Garota, por favor.
— Quieta, Bebê Chiclete — disse Ayanna, depois sorriu para
Thandiwe. As duas se tornaram amigas rapidamente desde a nossa
chegada. O que fazia sentido, porque elas eram muito parecidas. —
Precisamos de toda a ajuda que conseguirmos.
— Então peguem a Caixa de Histórias. — O chefe dos anciãos
comandou. — Espero que seus planos tenham sucesso. Pelo bem de
todos nós.
O tom da voz do espírito chamou minha atenção. Parecia que havia
algo que ele não estava nos contando. Antes que pudesse fazer qualquer
pergunta, no entanto, a Amagqirha parou de se mover e cantarolar. Os
anciãos começaram a desaparecer. Os líderes mais antigos do Povo da
Crista, ainda guiando e inspirando seu povo mesmo após a morte,
olharam para mim com tal intensidade que foi quase um alívio quando
partiram.
— Bem, vão abrir? — A fala arrastada de Grande John quebrou o
encanto.
Limpei a garganta e acenei para Thandiwe.
— Por que você não faz as honras?
Ela encolheu os ombros. Com um puxão sem cerimônia, ela puxou
a coberta e jogou-a de lado.
Todo mundo engasgou.
Eu esperava um baú de tesouro dourado brilhante, como o do
desenho da Cacau.
Ou uma caixa forrada de veludo incrustada de diamantes.
Até mesmo um baú de couro falso seria aceitável.
Grande John deu uma risadinha zangada e balançou a cabeça. Ele
enfiou as mãos nos bolsos e desceu do palco.
— É, podem ficar com tudo isso.
Bebê Chiclete jogou as mãozinhas para cima com tanta raiva que a
seiva voou pelo palco.
— Que porcaria é essa?
Um velho caixote marrom coberto de camadas de poeira, com
dobradiças pendentes e uma tampa parcialmente lascada, estava lá.
Thandiwe olhou para cada um de nós, perplexa.
— Não sabiam? Foi assim que Anansi a trouxe para nós. Está vazia.
— O QUE VAMOS FAZER? — Ayanna sussurrou para mim.
Estávamos em uma longa mesa — eu, Ayanna e Thandiwe. Bebê
Chiclete e Cacau sentavam-se na superfície e dividiam um prato de
cenouras quentes. Elas pareciam alheias ao nosso desapontamento. O
som de tambores, cantos e palmas impediu que nossa conversa fosse
ouvida.
Por que tanto barulho?
Ah, bem, acontece que sempre que os anciãos eram convocados
em Isihlangu, um banquete era servido — mesmo que fosse porque
tínhamos chegado como ladrões durante a noite. Me peguei olhando para
um prato de comida que eu não tinha vontade de comer enquanto toda a
powulação da montanha festejava ao nosso redor.
E se você me conhece, sabe que um prato de comida intocado na
minha presença é estranho.
— Tristan? — Ayanna repetiu e eu balancei minha cabeça.
— Não sei.
Thandiwe nos observou com um olhar confuso.
— Não entendo. Como vocês não sabiam que a Caixa de Histórias
de Nyame estava vazia?
Olhei para Ayanna, que deu de ombros e suspirou.
— Nunca pensamos em perguntar — eu disse.
— Não é como se pudéssemos termos perguntado — disse
Ayanna, olhando para Thandiwe e franzindo a testa acusadoramente. —
Vocês não falavam conosco. Nos trataram como mendigos e ladrões.
A garota guerreira apontou uma colher coberta de ensopado em
nossa direção.
— Um desses dois é verdade, não se esqueça.
— Ok, ok. — Eu interrompi, não estava no clima para outra luta
territorial. O Grande John já causou o suficiente. — A questão é: o que
faremos agora?
— Acho que devemos levar para Brer de qualquer forma, como
iríamos fazer — disse Ayanna. — Talvez ainda atraia Anansi...
— Acha que Anansi vai negociar com uma caixa quebrada e
empoeirada?
Mas Thandiwe não pareceu perturbada.
— E se estivesse arrumada? — Ela sugeriu.
Ayanna zombou, mas eu ignorei.
— Como assim?
— Quero dizer, leve-a de volta para Nyame. Em primeiro lugar, foi
criação dele. Ele com certeza consegue arrumar. Talvez até recarregue
com histórias. Daí levamos para a Terra Média e convocamos Anansi.
Pensei nisso por alguns segundos.
— Brer me disse para trazê-la imediatamente, mas...
— Mas, como você disse, não adianta levar uma Caixa de Histórias
vazia e quebrada — ela concluiu.
Concordei.
— Ok. É, vamos consertar. Nyame nos deve uma, de qualquer
maneira.
— Sério? — Thandiwe ergueu uma sobrancelha. — Por quê?
— Porque nós...
— Tristan o libertou do controle do monstro de ferro. — Interrompeu
Ayanna. Endireitei uma gravata imaginária e ela bufou. — Mas não fale
sobre isso perto dele ou sua cabeça crescerá ainda mais.
— Quem tem a cabeça grande? O Língua Solta? — Bebê Chiclete
gritou. Ela estava fora de sua cadeirinha em cima da mesa e dançava em
volta do meu prato ao som da batida comemorativa. Gotas roxas
pegajosas de seiva e xarope pingavam na minha comida. Eu gemi e
empurrei-a. Agora eu definitivamente não estava com vontade de comer.
— Bebê Chiclete vive dizendo isso. A cabeça do menino é tão
grande que poderíamos usá-la para tapar o rasgo no céu. Um pouco de
seiva e uma cabeça grande e velha fariam o serviço. Bebê Chiclete
ajudará. Céus, nem vai custar muito. Apenas um novo par de botas e um
sorriso.
— Você nem usa botas — eu disse, revirando os olhos enquanto
Thandiwe, Ayanna e Cacau riam de mim.
— Você nem usa botas. — Bebê Chiclete zombou. — Ah, vejam,
Bebê Chiclete é o Tristan. Gaaaaah. — Ela rapidamente rolou a seiva em
sua cabeça até que uma bola gigante e bamba descansou em cima de
suas tranças. Acho que era para ser minha cabeça. Ela desfilou ao redor
da mesa, gritando e dando alguns socos. — Gaaaaah. Cuidado, Cacau,
Tristan vai te pegar. Gaaaaah.
Cacau riu tanto que cenouras mastigadas saíram de seu nariz e
então, todos nós caímos na gargalhada. Os últimos dias foram difíceis,
então rir com os amigos — não importa o quão estranhos, pequenos ou
irritantes fossem — foi bom. Foi muito bom.
Eu vi algo se mover com o canto do meu olho e me virei para espiar
Amagqirha parada nas sombras. Ela acenou para mim e fiz uma careta.
O que eu fiz agora? Ela gesticulou novamente, colocando um dedo sobre
os lábios, e eu me virei para o grupo e limpei a garganta.
— Eu, uh, tenho que ir ao banheiro. Já volto.
— Rapaz, ninguém liga. — Bebê Chiclete gritou. — Vá fazer suas
necessidades e deixe nós, a galera maneira, em paz. — Ela se ergueu
novamente. — Tristan precisa ir…
— Tudo bem! — Gritei, tentando não sorrir. Caminhei até
Amagqirha. Ela subiu a rampa inclinada que circundava as paredes de
Isihlangu. Subimos em silêncio e observei a festa continuar abaixo de
nós, com as pessoas dançando e cantando. Era uma bela visão, e o fato
de que as pessoas da Terra Média e da Crista estavam aproveitando a
companhia juntas me fez sentir que ficariam bem. Por enquanto, pelo
menos.
De repente, percebi o quão alto estávamos subindo.
— Hum, para onde estamos indo?
Amagqirha apontou para o Átrio acima de nós e olhou para mim.
— Tenho que te mostrar algo.
Finalmente alcançamos a pesada porta de pedra do Átrio, que
agora estava fechada e flanqueada por dois guardas. Eles deslizaram
para o lado a complicada série de fechaduras magnéticas e a abriram,
permitindo que a profeta entrasse. Ela acenou para que eu entrasse.
Pensei em voltar para a festa, mas não fui criado para ser rude com
os mais velhos (obrigado, mãe). Entrei e os guardas fecharam a porta
atrás de mim, deixando-nos sozinhos. Eu deixei meus olhos se ajustarem.
— Meu santo pêssego — falei em um sussurro.
Estávamos em um cubo perfeito de pedra polida. As paredes de
obsidiana negra refletiam o brilho prateado fraco vazando de um
recipiente fechado em forma de concha no topo de um pedestal. O que
quer que estivesse dentro era a única coisa iluminando a sala, e deu ao
rosto de Amagqirha um olhar assombrado quando ela se aproximou e
sussurrou uma ordem. A luz dentro acendeu quando a concha se abriu.
— Pode se aproximar. — Ela me disse. Tufos de cabelo grisalho
escapavam das tranças sob seu xale frisado, e mais rugas do que eu
pensava ser humanamente possível revestiam seu rosto.
Ela grunhiu algumas vezes, e percebi que ela estava rindo.
— Acha que sou muito velha, garoto?
— Não, senhora — falei imediatamente, tentando não encarar.
— Mentiroso.
Ela mexeu as mãos no ar acima do pedestal, então me fez um sinal
para chegar mais perto.
— Olhe.
Subi três degraus, olhei para dentro do contêiner e meu queixo caiu
no chão.
— Isso é que eu acho que é?
— Depende do que você acha que é.
— Uma Caixa de Histórias?
Ela assentiu com a cabeça.
— A Caixa de Histórias do Povo da Crista.
Um baú brilhante prateado e preto repousava sobre um travesseiro
de cetim preto. Era um octógono perfeito, os oito lados unidos nos cantos
por costuras onduladas de prata. Padrões gravados na parte superior e
nas laterais brilhavam com luz de vez em quando, como se contivesse
energia muito poderosa para ser contida.
A Amagqirha continuou.
— Quando o deus do céu negociou sua Caixa de Histórias dourada,
ele tornou seus contos disponíveis para todos consumirem. Mas logo as
diferentes terras de Alke descobriram que algumas histórias são muito
potentes para serem trocadas livremente por pessoas comuns. Os
significados dos contos podem ser distorcidos se forem compartilhados
sem orientação. Anansi percebeu isso quando recebeu seu prêmio de
Nyame, então ele criou os Anansesem, seus oradores campeões, como
você, para levarem suas fábulas por toda parte. Os outros reinos, eles
não tinham tais campeões. Então, construíram Caixas de Histórias
parecidas com a original para proteger o poder das histórias que
coletaram. Mas nenhuma era como a primeira. Nenhuma poderia conter
todas as histórias. Apenas Nyame tem esse poder.
Ela fez uma pausa e sorriu para mim.
— Abra — falou
Não precisava dizer duas vezes. Estiquei a mão e… ela me deu um
tapa.
— Ai! — Chacoalhei a mão. — O que foi...
Ela balançou um dedo.
— Eu disse para abrir.
— Era o que eu ia fazer! — Reclamei.
Amagqirha balançou a cabeça.
— Qualquer garoto com dedos sujos pode encostar nela. Só você
pode abri-la. Você é Anansesem, aja como tal.
Cara, eu sempre levo bronca, não importa em que mundo eu esteja.
Mas respirei fundo e me concentrei. Depois de um momento procurando
as batidas e o ritmo da história, eu senti — o formigamento familiar. A
melodia elétrica cresceu na ponta dos meus dedos e, quando não
consegui mais segurar, deixei escapar um sussurro.
— Era uma vez, digamos que um garoto podia voar…
Quando as palavras saíram da minha boca, a Caixa de Histórias
prateada brilhou tanto que meus olhos doeram. Quando consegui
enxergar novamente, Amagqirha havia enrolado a manga em seu braço
esquerdo e estava cavando dentro do baú, a tampa agora aberta.
— O que você está fazendo? — eu perguntei, esfregando meus
olhos.
— Você vai ver.
Ela puxou algo do baú, grunhiu de aprovação e fechou a caixa de
histórias com força. Eu fiz uma careta — não tive a chance de olhar lá
dentro — mas ela me ignorou e começou a moldar algo em suas mãos,
sussurrando palavras estranhas sobre elas.
— O que você…?
— Eu disse que você vai ver. — Ela olhou para mim, então voltou
para sua atividade misteriosa. Depois de vários minutos, ela se
endireitou, examinou o que quer que fosse que ela havia feito e acenou
com a cabeça. — Servirá.
Ela estendeu sua mão.
— Sua pulseira.
— Oi?
— Sua pulseira com os pendentes. Passe para cá.
— Mas...
Ela estreitou os olhos e minha reação padrão era fazer o que me
mandaram. Desamarrei a pulseira e a segurei, e ela a agarrou rápido
como um raio. Amagqirha tinha uma força danada. Ela se curvou e
murmurou para si mesma e juro que vi símbolos de prata gravados no ar
antes de desaparecerem em uma nuvem de fumaça. Finalmente, ela se
voltou para mim.
— Aqui.
Peguei a pulseira e a segurei, apertando os olhos na luz fraca. Ela
a amarrou com uma pequena bola de prata, que se aninhava entre os
dois adinkras.
— Uma pérola? — Qual é dos alkeanos e suas joias?
— Um talismã, garoto. Para proteção.
— De quê, uma trança solta?
Amagqirha franziu os lábios.
— Seria sensato levar isso a sério. Algo está vindo. Algo que você
já viu antes, mas ainda sim nunca viu algo parecido. Você sabe de quem
estou falando, mesmo que não o tenha mencionado aos anciãos.
A gargalhada do Tio A ecoou em meus ouvidos e eu estremeci.
— Eu sei.
— Então você sabe que ele traz dor. Ele traz terror. Traz sofrimento
e destruição. O horror no qual ele cavalga, o velho mal que ele expulsou
do Mar Flamejante, irá trazer a morte para todos nós.
As palavras morte para todos nós ecoaram pela sala.
— Você precisará de toda a ajuda que conseguir se quiser derrotar
os dois.
Eu encarei a miçanga.
— Se? E não quando eu os derrotar?
— Se parece mais apropriado.
— E quanto a Anansi? Ele vai…?
A Amagqirha suspirou e se apoiou no pedestal, e em seu brilho eu
pude ver o quão velha e cansada ela realmente estava.
— Fechar o rasgo no céu, derrotar os monstros de ferro… Isso é
apenas o começo. — Seus olhos queimaram os meus. — Os anciãos
viram. Eu vi. Se você não tiver sucesso, uma guerra terrível acontecerá.
Este talismã fornecerá ajuda quando você precisar.
— Irá se transformar em um escudo ou em uma espada? —
Coloquei a pulseira e prendi-a.
— Não, ela vai ajudá-lo a se comunicar com o...
— Ai! — Pulei para cima e para baixo e balancei meu braço. Uma
dor aguda e intensa percorreu meu pulso, e virei-o para ver o adinkra de
Anansi brilhando em um tom laranja-avermelhado. Uma bolha já havia
começado a se formar onde havia queimado minha pele.
— O que foi? — perguntou Amagqirha.
— O pingente de Anansi — disse, estremecendo. — É… — Meus
olhos se arregalaram e eu inalei rapidamente. Antes que eu pudesse
explicar, no entanto, um som estrondoso sacudiu a montanha, fazendo
com que pedaços de rocha caíssem e nós dois tropeçássemos. O
pedestal com a Caixa de Histórias começou a afundar no chão, e um
estrondo baixo vibrou no ar.
— O que está acontecendo? — eu gritei.
O rosto da Amagqirha ficou pálido e ela agarrou meu pulso e me
puxou para a porta.
— Algo ativou as sentinelas — ela disse severamente. — Estamos
sendo atacados.
O TREMOR CONTINUOU ENQUANTO corríamos encosta abaixo.
Eu estava com medo de que Amagqirha ficasse para trás, mas tive que
correr para acompanhá-la enquanto ela corria à frente, levantando as
saias para que não se arrastassem. Contornamos as curvas, mal ficando
de pé enquanto os tremores sacudiam a montanha.
— O que está acontecendo? — Gritei depois que um tremor me fez
cambalear contra a parede.
Amagqirha me puxou para cima.
— Isihlangu está revidando.
Um nó de medo cresceu em minha garganta. O que poderia ter feito
as defesas da Crista ficar a todo vapor? Algemados? Nem mesmo os
chefões teriam chance contra as gigantescas torres flutuantes que
protegiam as bases. Seriam esmagados antes mesmo de chegarem
perto.
Então, o que poderia ter entrado numa montanha apelidada de
Escudo?
Algo em mim ainda esperava que fosse apenas um alarme falso.
Quer dizer, disparamos um alerta quando entramos. Talvez algum outro
grupo de Povos Médios desesperados tivesse vindo buscar a Caixa de
Histórias.
Aham, tá bom.
Finalmente voltamos à câmara central, que estava um caos. As
pessoas corriam para a esquerda e para a direita, em busca de kieries e
antepassados, enquanto tentavam evitar mesas e cadeiras caídas. Os
guardas zuniam no alto enquanto corriam para seus postos. As crianças
agarravam os irmãos mais novos e fugiam para a segurança de suas
casas, onde portas de pedra se fechavam e lacravam em raios de luz
prateada.
— Tristan!
Ayanna e Thandiwe estavam agachadas atrás de uma barricada
improvisada de mesas salpicadas de comida. Bebê Chiclete estava em
cima de uma, gritando insultos para os possíveis intrusos, enquanto
Cacau recitava nervosamente as estatísticas dos monstros de ferro sem
parar. A Caixa de Histórias vazia de Nyame repousava ao lado delas, tão
enfadonha e encardida quanto antes. Corri até elas e me joguei no chão.
— Onde você estava, seu…?
Amagqirha se agachou ao nosso lado, e qualquer insulto que
Ayanna iria lançar contra mim se dissolveu em um tom ressentido.
— Só… não nos assuste assim mais. Em um minuto estávamos
comendo juntos, e no seguinte você saiu e a montanha começou a
tremer.
— Amagqirha disse que poderiam ser alguns dos lasers de pedra
— falei
A velha olhou para Thandiwe, que assentiu com a cabeça e mordeu
o lábio.
— Ela está certa — disse a guerreira da Crista. — Mas não são
apenas algumas. Todas as sentinelas foram ativadas de uma vez. O que
quer que esteja lá fora é grande. Muito grande.
Como se suas palavras sinalizassem o próximo estágio do ataque,
as gigantescas portas duplas de pedra para a câmara estremeceram
quando algo se chocou contra elas. As pessoas começaram a gritar e
Thandiwe fez uma careta e puxou seu kierie e sua lança. Ayanna tirou
seu bastão do coldre — em algum momento os guardas da Crista
devolveram sua arma/remo para ela.
E eu?
Ora, eu tinha uma pulseira chique!
A expressão no meu rosto deve ter sido fenomenal, porque
Thandiwe riu e estendeu seu porrete para mim.
— Aqui — ela disse. — Tente ser útil.
Comecei a pegá-lo, mas pensei em algo.
— Não, estou bem.
Ela franziu a testa enquanto eu puxava as luvas que John Henry
havia me dado. Quando as coloquei, o símbolo do martelo acima dos nós
dos dedos brilhou. Eu sorri para Thandiwe.
— É melhor continuar com o que eu já estou acostumado.
Ela ergueu uma sobrancelha e se virou. Eu deixei o sorriso
desaparecer, mas as palavras ficaram comigo. Eu era bom no boxe. A
convicção me surpreendeu, mas eu honestamente acreditava que o que
quer que viesse, eu poderia enfrentar com os dois punhos erguidos.
BOOM!
As portas de entrada principal cederam. Algo enorme se movia do
lado de fora — eu peguei alguns vislumbres nas rachaduras crescentes.
Grande, determinado e zangado. Uma mão gigante de três dedos feita
de madeira podre e metal enferrujado apareceu na borda da porta. Ele
arrancou um pedaço de pedra, como uma criança de três anos agarraria
um pedaço de bolo e o jogou para dentro.
Me encolhi quando a pedra quicou perto de nós com um estrondo
no chão.
— O que é isso aí fora?!
— Não sei — sussurrou Thandiwe, com o rosto tenso. — Vamos
torcer para que os guardas consigam...
Um punho bateu, alargando o buraco, e o guincho de mil correntes
raspando juntas apunhalou nossos ouvidos, forçando todos a se curvar e
apertar os ouvidos.
— Devíamos sair de fininho por onde entramos! — Ayanna gritou.
Ela apontou no meio da parede da montanha, em direção ao túnel do
bonde. — Não vamos fazer diferença nesta luta. Podemos aproveitar a
vantagem e voltar com Nyame antes mesmo que esses monstros notem
que partimos. Thandiwe, você pode vir conosco.
Thandiwe fez uma careta. Ela não parecia gostar da ideia de deixar
seus conterrâneos lutarem sem ela, mas também não discutiu. Fazia todo
o sentido do mundo. Poderíamos escapar e estaríamos mais próximos de
salvar a Terra Média. Esse era o objetivo, certo? Certo?
E mesmo assim...
— Não — falei, olhando para a Amagqirha. — Não podemos.
— Como assim não podemos? — perguntou Ayanna. — Tristan,
esta é a nossa chance.
Cacau continuou.
— Ela está certa. Se não sairmos agora, podemos ficar presos aqui.
Eu balancei minha cabeça.
— Não. Não podemos simplesmente deixá-los em apuros. Eles nos
ajudaram e…
— Talvez vocês devessem ir. — Thandiwe interrompeu. Eu olhei
para ela com surpresa e ela agarrou seu kierie e sua lança com força. —
A Crista consegue aguentar. Vai ser difícil, mas meu povo pode lutar
contra eles. Seu povo precisa de você.
— Não! — eu balancei minha cabeça. — Não abandonamos
amigos.
Ayanna gemeu.
— Por que você tem que bancar o herói no pior momento possível?
Mais marteladas e arranhões na porta interromperam a discussão.
Engoli em seco e me virei para a Amagqirha.
— Você devia ir para algum lugar seguro. E leve a caixa de histórias
vazia de Nyame, só por precaução.
Ela me estudou, então assentiu com a cabeça.
— Vou guardá-la com... o que te mostrei. Estará mais seguro lá. —
Ela agarrou o caixote surrado e trotou em direção à rampa para o Átrio.
Depois de alguns passos, ela se virou. — Há força em não lutar, Tristan.
Lembre-se disso. — E então ela prosseguiu.
Um rugido alto explodiu do lado de fora do corredor e, com um golpe
final, as portas desabaram em pilhas de escombros. Algemados
invadiram.
— Estão vindo! — Gritei. — Tomem cuidado com o grande… seja
lá o que for aquilo. — Mas ele ainda não tinha entrado na câmara.
— Uma coisa de cada vez — disse Thandiwe.
— Certo. — Me abaixei quando um algemado saltou sobre mim,
então o esmaguei em pedacinhos com um soco cruzado da direita. —
Apenas me avise quando eu precisar me concentrar na coisa com a mão
do tamanho de um carro.
Um grupo de algemados correu pelo chão aberto em direção a
Thandiwe e a mim enquanto protegiamos nossas amigas e outras
pessoas agachadas atrás da mesa virada. Cerrei os punhos e fiquei em
posição, mas antes que pudesse balançar novamente, Thandiwe gritou e
acertou três do outro lado da sala com seu porrete. Outro tentou contornar
a borda da mesa, mas o cajado de Ayanna, brilhando com luz dourada,
golpeou e espetou-o na gola até que se desintegrou em um tilintar de
fragmentos enegrecidos.
Uma ovação subiu quando o último algemado foi espetado por uma
lança do guarda da Crista. Eu não participei. Aquilo não tinha acabado —
não estava nem perto.
— Ei! — Bebê Chiclete gritou. — É só isso? Deixem um pouco de
glória para a Bebê Chiclete! Vocês estão sendo gananciosos.
Assim que ela falou, um rosto — se é que se pode chamar disso —
abaixou-se até a porta e estremeci com a visão da boca retorcida de
tábuas de madeira lascadas e correntes com nós. Ele rugiu e o cheiro de
água com peixe fez meu estômago revirar. A boa notícia era que a
criatura parecia muito grande para entrar na sala. Como ele tinha entrado
na montanha eu não fazia ideia. A má notícia era que outra onda de
algemados passou por baixo dela, seguidos por um chefão. Eu gemi.
— Você tinha que abrir a boca.
Bebê Chiclete sorriu de orelha a orelha.
— Só fique quieto atrás da Bebê Chiclete. Bebê Chiclete vai te
proteger. — Ela girou no ar pousando nas costas de um algemado, puxou
as mãos algemadas para trás da cabeça e as usou como rédeas. — Irra!
Bebê Chiclete está a caminho!
— Tome cuidado! — Eu gritei, e então tive que dar um passo para
o lado quando dois algemados agarraram meus pulsos. No momento em
que esmaguei o primeiro e lancei o segundo no ar com meus punhos,
Bebê Chiclete e sua montaria estavam galopando ao redor, atirando
bolas de seiva em qualquer coisa que se movesse.
A monstruosidade do lado de fora da porta tentou aumentar a
abertura da porta, enquanto do lado de dentro, o chefão alternou entre
incomodar meia dúzia de guardas da Crista e limpar os escombros da
porta. Se os dois tivessem sucesso…
— Princesa! — Um guarda desceu de um trilho até uma parada
flutuante cerca de trinta centímetros acima do solo, seu antepassado
zumbindo enquanto ele se equilibrava nele. — As forças do Escudo foram
convocadas. Precisamos segurar o inimigo só por mais alguns minutos.
Thandiwe assentiu com a cabeça, e o guarda voou para se juntar a
um esquadrão que zumbia ao redor da cabeça do algemado-chefe, dando
golpes que não pareciam intimidar o monstro.
— Princesa? — perguntei.
— Calado — disse. Ela puxou o antepassado de seu pulso e o
mudou de um escudo para o modo de flutuação normal. Ela deu um passo
e acenou para que eu me juntasse a ela.
— Venha — disse Thandiwe.
Eu dei uma olhada na prancha.
— Não.
— Agora, Tristan. Temos que esperar até que as forças do Escudo
cheguem aqui. Se essa... criatura continuar cavando, não teremos
nenhuma chance.
Bebê Chiclete passou galopando, ainda cavalgando em seu
algemado, comemorando e gritando.
Rosnei, então agarrei a mão estendida da Thandiwe e subi a bordo.
— Tudo bem, mas é melhor você ir… — A prancha disparou para a
frente na grade mais próxima, e eu mal tive tempo de recuperar o
equilíbrio. — Devagaaaaaaaar!
Escalamos alto no ar, entrando e saindo das estalactites
penduradas no teto rochoso, e eu murmurei orações em sete idiomas
diferentes enquanto circulávamos por dentro de Isihlangu em seus trilhos
espirais cintilantes. O grande salão da fortaleza girava em ação, e de
nossa posição vantajosa podíamos ver tudo. O Povo da Crista fugia pelos
caminhos circulares em espiral ao redor das paredes, tentando entrar em
suas casas antes que algemados os pegassem. Os guardas andavam
em seus antepassadoes como skatistas profissionais, mudando as
pranchas alkeanas de um trilho para outro tão rápido que Tony Hawk
ficaria com inveja. O chefão escalou o palco de pedra no meio da sala e
gritou.
Tínhamos que fazer algo ou seríamos derrotados. Eu apontei para
o elo da corrente logo abaixo da cabeça do algemado-chefe.
— Lá! — Gritei. — Temos que acertar lá, é um ponto fraco!
Thandiwe assobiou, e os guardas da Crista se afastaram do
monstro de ferro e entraram em formação atrás dela, todos alinhados na
mesma fila. Ela apontou para mim.
— Sigam a liderança dele. Onde ele atacar, nós atacamos.
Entenderam?
— Sim, princesa! — Todos gritaram, e eu levantei uma sobrancelha.
— Concentre-se. — Ela rosnou, entregando-me seu porrete. — E
prepare-se. Nós atacamos… agora!
O antepassado mergulhou e eu dei um grito de guerra. Soou
heroico, mas honestamente, era um grito de terror. Todo mundo estava
contando comigo, então eu agarrei a kierie com uma das mãos, segurei
Thandiwe com a outra, e quando o chefão empinou na nossa frente, eu
balancei com todas as minhas forças.
CLANG!
Meus braços tremeram com o impacto. Nós passamos zunindo,
arqueando de volta no ar, e os guardas seguiram meu ataque com o seu
próprio.
— Mais uma vez! — Gritei por cima do ar agitado. — Ele ainda está
de pé.
Mergulhamos repetidas vezes, impedindo que o algemado-chefe se
concentrasse na porta. Ele guinchou e nos atacou. Uma de suas
correntes prendeu um guarda e ele caiu gritando no chão. Outro golpe
fez com que mais dois caíssem em espiral e, de repente, éramos apenas
Thandiwe e eu.
Mas o chefão também havia sofrido. Ele ignorava completamente a
porta e balançava suas correntes enroladas. No chão, Ayanna e Bebê
Chiclete seguravam um enxame de algemados, mas mais estavam
entrando. Eles cercaram as defesas e meus amigos.
— Precisamos nos apressar. — Gritou Thandiwe. — Ayanna está
em apuros!
— Mais um ataque deve bastar — eu disse, determinado a acabar
com isso. — Ele está cambaleando. Se conseguirmos...
Mas não consegui terminar a frase.
As portas se dobraram para dentro e as vigas de madeira da
moldura rangeram como se estivessem segurando muito peso. Em uma
explosão de poeira e pedra, o maior monstro de ferro que eu já vi abriu
caminho através da porta desmoronada, pisoteando o chefão ferido no
processo.
-
4
penteado da cultura afro que consiste em duas mechas torcidas para formar uma trança.
para-brisa e fervia as terras abaixo com seu brilho. Apresse-se, então, e
nos tire de nossa miséria, eu disse silenciosamente para o haint.
Quando o Velho Familiar se endireitou, ouvi Thandiwe dizer atrás
de mim:
— Ancestrais, ajudem-nos.
A encosta da montanha abaixo do Escudo estava em ruínas. Cada
torre sentinela foi destruída. Fragmentos pretos brilhantes pontilhavam a
terra, piscando para nós enquanto voávamos acima. Fissuras profundas
corriam por metros, como se os monstros de ferro tivessem descarregado
sua fúria na própria terra.
Thandiwe assobiou de dor. Eu estava prestes a ir consolá-la quando
Grande John me chamou da frente do pássaro.
— Tristan, venha aqui? — Sua voz parecia calma. Tipo, muito
calma.
Eu me levantei e dei outra olhada ao redor. Thandiwe, lamentando
sua casa. Bebê Chiclete, sofrendo pela amiga. Cacau e Ayanna tentando
sobreviver. Todo mundo lutando para se agarrar a algo precioso,
correndo o risco de perdê-lo para sempre.
— O que está errado? — perguntei, cuidadosamente passando por
Ayanna e indo para Grande John.
— Duas coisas. — Ele limpou a garganta e falou em voz baixa. —
Ayanna está enfraquecendo rápido. Nada do que estou fazendo está
ajudando, garoto, com certeza não está. Estou tentando, mas acho que
não tenho magia para isso.
Enfraquecendo rápido. Suas palavras me deram um soco na
garganta e eu não consegui falar.
Grande John olhou para o sopé das montanhas.
— Ela não vai chegar à Terra Média, Tristan. Assim não. Mas…
Algo em sua voz atraiu meus olhos para os dele.
— Mas pode haver alguém, algumas pessoas, naquela cidade
alkeana brilhante lá.
Eu segui seu dedo enquanto ele apontava para o norte e oeste.
— Você quer dizer a Crescente Dourada?
— É essa mesmo. Conheço algumas pessoas que têm uma
conjuração mais forte do que eu. Pode ser que salvem nossa piloto se
pudermos levá-la a tempo.
Eu mordi meu lábio.
— Íamos ver Nyame de qualquer maneira. — Expliquei nosso plano
de pedir ao deus do céu que consertasse a Caixa de Histórias. Então eu
o estudei. — Você disse "duas coisas". Qual é a segunda?
Ele se agachou ao lado de Ayanna e apontou para a bolsa de magia
que colocara em seu peito.
— Como eu disse, isso não está fazendo muito. É para manter seu
espírito perto de seu corpo, ajudá-la a lutar contra qualquer veneno que
aquelas criaturas de metal colocaram em sua alma. Mas ela precisa de
mais, ela precisa da sua ajuda.
— O que eu posso fazer?
Ele deu um tapinha em um local ao lado de Ayanna.
— Sente-se um pouco. Fale com ela. Você tem o dom do deus
aranha, garoto. Pode ser que você possa alcançá-la onde a bolsa de
magia não pode.
— Você quer que eu conte uma história a ela? Que tipo?
— Basta falar com ela. E não importa muito para mim. Fale com a
alma dela, distraia-a da dor.
Falar com a alma dela. Certo.
Mas eu me sentei e balancei a cabeça.
— Farei o meu melhor.
Ele bateu no meu ombro e avançou para guiar o Velho Familiar.
Eu sentei lá, de pernas cruzadas nas costas de um corvo gigante,
olhando para a forma inconsciente da garota que estava me apoiando
desde o início. Sem perguntas, bem, muitas perguntas, mas nunca sobre
se ela deveria me ajudar.
O que dizer?
O que ele...? O que ele...? Eu cerrei meus dentes, forçando o nome
do meu melhor amigo de volta na minha cabeça. Eddie. O que Eddie diria
se estivesse aqui?
Eddie iria...
Ele…
Um sorriso lento cruzou meu rosto. Eddie se apresentaria.
Alke rolou embaixo de nós enquanto eu reunia minhas palavras. Os
picos enevoados de Isihlangu ocasionalmente apareciam à vista. O vento
empurrava e puxava os twists de Ayanna. Coloquei um solto atrás da
orelha dela e limpei a garganta.
— Ei. Sou... sou eu. — Respirei fundo. Eu não poderia perder outro
amigo. Eu simplesmente não conseguiria. — Grande John disse que
você... que você ainda está aí, que eu deveria falar contigo, como se você
pudesse me ouvir. Porque você pode me ouvir. Então... acho que vou
falar.
O Velho Familiar subia e descia a cada batida poderosa de suas
asas. O movimento para cima e para baixo me lembrou de um navio
lutando contra a corrente. Deveria ter me deixado nauseado e tenso como
normalmente deixa, mas meu medo por Ayanna superou meu medo de
altura.
— Você me perguntou por que... lá atrás... por que eu sempre
procuro uma chance de ser um herói. Bem… — eu inalei, sugando o
máximo de ar que pude, em seguida, soltei com pressa. — A verdade é
que a única vez que eu deveria ter salvado alguém, entrei em pânico.
Eu… estraguei tudo e ele… ele morreu. E isso me assombra. Essa falha
me assombra todas as noites.
Tio A achava que ele era inteligente. O haint me deixou com a única
memória que eu mais odiava. A memória da morte de Eddie. Bem, todas
as memórias têm um propósito… O que são memórias, se não histórias
que contamos a nós mesmos, certo?
— Estávamos voltando de uma viagem de campo ao museu —
continuei. — Em Chicago, no meio do inverno, as estradas estavam um
pouco congeladas. Estávamos tão perto de voltar para a escola, acho que
estávamos a apenas alguns quarteirões de distância, quando passamos
por uma ponte e batemos em um pedaço de chão com gelo. O ônibus...
o ônibus girou cento e oitenta graus e nós escorregamos para a outra
pista, bem no caminho de um caminhão.
Senti alguém se movendo ao meu lado no Velho Familiar, mas
naquele momento eu só pude ver flocos de neve escorrendo por uma
janela quebrada e luzes vermelhas piscando contra um céu cinza.
— O impacto quebrou a traseira do ônibus, onde estávamos
sentados. Sempre nos sentávamos no fundo para podermos bater nosso
papo de nerd sem que ninguém nos olhasse estranho. A porta de saída
de emergência foi arrombada, o chão estava rachado e o escapamento
estava entrando, dificultando a respiração. Mas eu pude ver... eu vi que
o ônibus estava pendurado na beira da ponte...
— Todas as crianças estavam berrando e eu ficava ouvindo adultos
gritarem: “Esperem, nós vamos receber ajuda, esperem.”
— Eddie estava no canto de trás, preso entre dois assentos, lutando
e não conseguindo se libertar. Ele me pediu para salvá-lo. “Tristan, puxe-
me para fora. Tristan. Tristan.” Eu ainda ouço sua voz. Ainda vejo sua
mão estendendo-se para mim. Não me mexi. Eu estava tão assustado.
Estava com medo de cair, de me afogar na água abaixo. Eu não queria
morrer. Não queria morrer, e isso é tudo que eu conseguia pensar, que
eu não queria morrer. E Eddie me chamava, e eu não queria morrer.
Lágrimas rolavam pelo meu rosto agora, e respirei fundo,
estremecendo. Eu finalmente olhei para cima.
Todos se agacharam por perto. Thandiwe com Bebê Chiclete no
ombro e Grande John segurando uma Cacau inconsciente.
— Que grande herói, certo? — Eu disse.
— Tristan, não foi… — ele começou, mas eu o interrompi.
— Não me venha com esse papo. Não mesmo. Vocês adultos são
rápidos para dizer algo assim. “Ah, não foi sua culpa.” Não minta para
mim, Grande John. Dê-me isso, pelo menos.
O silêncio seguiu o desabafo e me concentrei em minha respiração.
Dentro e fora. Dentro e fora.
Grande John sentou-se e colocou Cacau no colo. Uma pequena
bolsa pendurada em seu pescoço — mais do seu remédio de magia. Ele
suspirou e virou-se para mim.
— Tudo bem. Acho que posso pelo menos ser honesto, com certeza
posso. Você poderia ter salvado seu amigo? Talvez sim. Mas esse talvez
não vai mudar nada. Você não pode viver sua vida com a dor sussurrando
em seu ouvido, puxando você para um lado e para outro. Mas também
não pode enfiá-la em uma gaveta dentro de você. Não, você tem que
sentir a tristeza e conversar com ela. Escutá-la. Aceitá-la. A dor é a
maneira que o corpo diz que está curando, então você tem que deixá-lo
curar.
Dei de ombros.
— Isso é o que o Sr. Richardson diz. “Dê um tempo, deixe que se
resolva naturalmente.” Mas quanto tempo é necessário? — Peguei uma
pena preta brilhante que caiu das costas do Velho Familiar. — Eddie era
meu melhor amigo, e eu sinto falta dele, e andar por aí com essa dor...
bem, dói.
Thandiwe falou.
— Os anciões têm um ditado. Demais é o mesmo que não o
suficiente.
— O que isso significa?
Bebê Chiclete jogou seiva em mim.
— Significa ficar triste, mas não muito triste.
— Ok, mas...
— Bebê Chiclete não teve tempo de levar você a todos os lugares,
Língua Solta. Este é um dos grandes mistérios da vida. Um quebra-
cabeça. Caramba, pode até ser uma daquelas coisas ouriço. Como se
chamam? Equidnas, isso mesmo.
Eu a encarei.
— Você quer dizer um enigma?
— Por que você sempre corrige alguém?
— A questão é — Grande John interrompeu com um fantasma de
um sorriso, — você deveria lamentar seu amigo. Mas lembre-se de viver
sua vida como ela é agora, e não como teria sido. Nunca se esqueça,
mas aceite. Entendeu?
Eu concordei. Eu achava que entendia.
— Ei — chamou Thandiwe. Ela apontou para a asa esquerda, onde
uma lasca brilhante de terra laranja-dourada apareceu. — Chegamos.
HAVIA ALGO DE ERRADO.
A fenda flamejante no céu cobriu a Crescente Dourada com um
brilho laranja. Chamas fantasmagóricas dançaram nos belos palácios sob
as asas do Velho Familiar, de alguma forma liberando o calor real. A terra
de Nyame havia se transformado em uma sauna gigante e o suor
gotejava na minha testa.
Mas não era só isso.
Havia uma... sensação no ar de que algo estava à espreita, nos
observando e nos seguindo quando chegamos. Aquela sensação familiar
da Floresta Afogada e dos meus sonhos.
Eles estavam aqui.
Tio A e o Maafa.
Eu não fui o único que percebeu. Grande John agarrou sua bolsa
de magia e franziu a testa, Thandiwe segurou seu kierie à postos, e Bebê
Chiclete... bem, Bebê Chiclete era ela mesma.
— Não foi assim que Bebê Chiclete deixou o lugar! Você vê? É por
isso que Bebê Chiclete não pode ter coisas boas. Visitas vêm e
ARRUINAM TUDO!
Nós voamos sobre a cidade vazia. As torres de marfim, agora
vermelhas como uma beterraba refletindo a fenda flamejante no céu,
erguiam-se altas e furiosas. As piscinas azuis cristalinas ferviam e
fumegavam, e uma névoa espessa serpenteava pelas largas avenidas e
ruas revestidas de mármore.
O corvo gigante pousou perto de uma floresta familiar com a cerca
dourada e o portão ao redor. Os olhos de Bebê Chiclete se arregalaram
e ela se aproximou de mim.
— Me diz uma coisa — ela murmurou —, este não é o lugar com
aqueles assobios assustadores e para onde você fugiu como um...?
— Grande John — eu disse apressadamente —, como isso vai
ajudar Ayanna? A cidade está vazia, pelo que ouvi.
Grande John saiu das costas do Velho Familiar. Seu rosto se
contraiu, como se ele estivesse prestes a fazer algo que os adultos
achavam desconfortáveis, como desentupir a privada ou se desculpar
com uma criança. Ele ajeitou o colete, alisou a frente da calça e pigarreou.
— Você pode trazer Ayanna? Talvez eu precise ter minhas mãos
livres.
Ele franziu a testa para o portão em arco, então bufou para as folhas
douradas desintegradas em uma pilha ao lado.
Bebê Chiclete perguntou a ele nervosamente:
— Você, hm, você conhece este lugar?
— Sim — ele murmurou. — Eu estudei com... eles, por muitos anos.
Antes... Bem, antes.
Eu me agachei e levantei Ayanna suavemente.
— Tristan?
O sussurro foi tão fraco que quase o perdi. Mas quando a cabeça
de Ayanna se moveu e olhei para baixo para ver seus olhos abertos,
enrugados de confusão, parei de me mover.
— Bem aqui. Eu estou bem aqui. Estamos recebendo ajuda, você
vai ficar de pé gritando comigo logo logo. Apenas espere.
— Tristan — ela murmurou novamente, e então seus olhos se
fecharam.
— Ayanna?
Assim que desci do Velho Familiar com ela em meus braços, o
corvo gigante grasnou e saiu disparado, desaparecendo nas sombras.
Minha voz saiu pela rua enquanto eu dizia aos outros:
— Ela acordou. Ela falou, mas agora...
O rosto de Grande John ficou preocupado.
— Vamos, precisamos nos apressar.
A rua de mármore ecoou com nossos passos, e a névoa enrolando
em volta de nossas cinturas era a única outra coisa se movendo enquanto
caminhávamos para o portão. Grande John ergueu uma sobrancelha
para a estátua com a mordaça de goma ainda cobrindo a boca, e Bebê
Chiclete e eu nos entreolhamos. Há um momento para a honestidade e
um momento para se concentrar nas questões importantes que
possivelmente ameaçam a todos em Alke.
Cruzamos a soleira e, como antes, o assobio começou. Thandiwe
não parava de olhar por cima dos ombros dela enquanto caminhava, e
Bebê Chiclete se escondeu no meu capuz.
— Olha quem é o gato assustado agora — eu disse.
— Faça isso pela nossa equipe — ela sussurrou em meu ouvido.
— Bebê Chiclete é bonita demais para se meter em encrenca.
Grande John nos conduziu até o pé da grande árvore de sicômoro
e, mais uma vez, fiquei pasmo com seu enorme tamanho. Isso me
lembrou da Árvore do Poder lá na Terra Média, com suas raízes
retorcidas e galhos parecidos com telhados. Paramos em um buraco
entre as raízes e Grande John me surpreendeu. Ele se ajoelhou, colocou
as mãos nas coxas e começou a assobiar.
— O que ele está fazendo? — Thandiwe sussurrou. — Ele vai nos
fazer ser pegos!
Os galhos da árvore começaram a farfalhar e as folhas flutuaram
ao nosso redor, como se alguém — ou um bando de alguéns — estivesse
descendo. Os misteriosos assobios se intensificaram, e Grande John fez
uma pausa e começou a assobiar novamente.
— Acho que — eu disse, começando a entender —, esse é o ponto.
Escutem. Eles estão conversando. Bem, sinalizando um ao outro.
— Quem são eles?
Uma pequena sombra saiu de trás do tronco e, no brilho de fogo do
céu, vi uma pequena criatura parecida com uma fada. De repente, muitas
coisas se encaixaram.
Os mentores de Grande John em conjuração e enraizamento.
Um palácio na floresta.
O assobio parou e Grande John nos disse:
— Acho que isso pode ser um pouco estranho, mas isso é...
— A mmoatia — eu interrompi. — Quero dizer uma aboatia, um dos
Mmoatia.
Grande John fez uma pausa.
— Sim. Como...? Não, deixe-me adivinhar. Aquela sua vózinha.
Thandiwe olhou entre nós, confusa.
— O que é uma aboatia?
— Uma fada da floresta — respondi.
A aboatia tinha um nariz comprido e pele marrom que ondulava
como um riacho na floresta. Suas tranças grossas tocavam o chão e seus
olhos penetrantes me seguiram enquanto eu respirei fundo e avancei
cautelosamente. Ajoelhei-me na frente dela, ainda segurando Ayanna, e
olhei para Grande John. — Minha vózinha me disse que os Mmoatia são
os guardiões da cura. Doenças e enfermidades são seu domínio, e eles
ensinarão curas para aqueles que consideram dignos.
Lembrei-me de mais, mas não achei que seria uma boa ideia dizer
isso em voz alta. Nyame encarregou Anansi de capturar um dos Mmoatia
para satisfazer seu preço pela Caixa de História. Para pegar a fada,
Anansi usou Bebê Chiclete. (Isso foi na época em que ela estava em
silêncio, acredite ou não.) A aboatia ficou presa à bonequinha e —
whoosh — Anansi levou os dois para o deus do céu.
Não era de se admirar que Bebê Chiclete estivesse se escondendo
agora.
Grande John acenou com a cabeça.
— Eles concordaram em ajudar. Mas... apenas Ayanna. Ninguém
mais pode ficar. Parece que eles tiveram um problema recente com
intrusos indesejáveis.
Seus olhos brilharam para mim e de repente meu tênis parecia
incrivelmente fascinante. Mas Bebê Chiclete sussurrou em meu capuz.
— E quanto à Cacau? — ela sussurrou. — Ela também está
machucada!
Grande John assobiou com a fada por alguns minutos, depois
acenou com a cabeça.
— Ela pode ficar também. Mas agora devemos ir. Os outros estão
ficando agitados, e você não quer irritar Mmoatia.
— É bom mesmo — Bebê Chiclete murmurou.
— O quê? — perguntou Grande John.
— Nada! — Eu respondi rapidamente. Coloquei Ayanna em um
terreno plano, coberto de grama. Arrepios subiram em seus braços com
a brisa da meia-noite e, após um breve momento de hesitação, tirei meu
moletom (“Ei!” Bebê Chiclete exclamou ao cair) e o coloquei sobre ela.
— Eu vou voltar — sussurrei para Ayanna. — Então, não se atreva
a ir a lugar nenhum.
Eu queria fazer perguntas à aboatia, pedir a Grande John para
traduzir…. Ayanna ficaria bem? Eles poderiam ajudá-la? Ela estava
inconsciente de novo, e isso estava me rasgando por dentro.
Primeiro Eddie, depois minhas memórias dele e agora Ayanna? Era
tudo demais.
Mais sombras dançaram sob a árvore e o assobio aumentou
novamente. Bebê Chiclete dançou nervosamente no lugar. Uma mão
pousou no meu ombro e Grande John se levantou.
— Está na hora, Tristan — disse ele. — Tenho que levar essa caixa
para Nyame.
— Sim, vamos logo! — sibilou Bebê Chiclete, puxando meu braço.
Eu balancei a cabeça e me levantei.
A aboatia inclinou a cabeça para os amuletos pendurados no meu
pulso, visíveis agora que as mangas do meu moletom não os escondiam.
Assobiou, e Grande John acenou com a cabeça e assobiou de volta.
Então ele se virou para mim.
— Estenda o braço — ele ordenou.
— Por quê? — eu perguntei, mesmo enquanto fazia isso. A fada se
aproximou e tentei não olhar enquanto ela pulava para um lado e para o
outro, olhando para os amuletos. Assobiou e Grande John coçou o
queixo. A fada curvou-se e ele curvou-se em resposta.
— Vamos, crianças — disse ele, dirigindo-se ao portão.
— O que foi aquilo? — Thandiwe perguntou enquanto ela e eu o
seguíamos. Bebê Chiclete estava em meu ombro, uma mão pegajosa em
minha cabeça para se equilibrar.
— Acontece — Grande John respondeu, — que, apesar do insulto
final de Anansi, os portadores de sua marca são bem-vindos sob os
ramos da Mmoatia. — Ele encontrou meus olhos e sorriu. — Parece que
eles gostaram de você, garoto. Você deve encontrar o caminho de volta
aqui em algum momento para ver o porquê. Os favores das fadas são
uma coisa poderosa, com certeza.
Eu definitivamente planejava voltar — por Ayanna e Cacau.
Bebê Chiclete afagou minha cabeça e sussurrou:
— Não espere que a Bebê Chiclete vá com você. Não mesmo.
Paramos do lado de fora dos portões e recuperamos a Caixa de
Histórias de onde o Velho Familiar a havia deixado. Grande John olhou
para a fenda flamejante piscando no céu.
— O tempo está ficando escasso. A fenda quase atingiu o
continente. Temos que nos apressar.
— O palácio de Nyame é por aqui — eu disse. Apontei para os
marcadores de trilha que Cacau havia deixado durante nossa última visita
aqui, sentindo um puxão dolorido. Pelo menos ela e Ayanna estavam em
boas mãos agora. — Vamos consertar essa Caixa de Histórias.
— ,
5
ele quis dizer thumbs up, mas trocou o thumbs por gum para fazer a graça
O DEUS DISFARÇADO gritou e cambaleou para trás. Ele
escorregou em um pedaço de barril quebrado e escorregou pela duna,
pousando em sua cauda de coelho falsa em uma piscina de maré. Ele
congelou quando os outros se reuniram ao meu lado, suas expressões
variando de confusa a enojada e furiosa.
— Qual o significado disso? — Perguntou Nyame.
Ayanna balançou a cabeça.
— Como você pôde?
— Esse tempo todo, você nos fez acreditar que tinha ido embora —
cuspiu Thandiwe. Sua kierie foi erguida, e ela desviou o olhar a segundos
de descer correndo a encosta para bater no impostor abaixo até ele se
tornar um pouco honesto.
John Henry apoiou-se no martelo com o braço bom.
— Nós confiamos em você.
— E você nos enganou que nem patinhos — disse Grande John. —
Claro que sim.
— Vejam bem — começou o disfarçado Anansi, levantando-se e
tirando o pó da areia de seu disfarce peludo —, seja lá o que aquela
malandra desonesta disse a todos vocês...
Nyame deu um passo à frente novamente e as palavras morreram.
O deus do céu parecia o sol na terra. Tudo ao seu redor
empalideceu em comparação com suas vestes brilhantes, e seu olhar
dourado ameaçou derreter Anansi em uma poça. Até John Henry o
observou com cautela.
E Bebê Chiclete montou na cabeça de Nyame como uma princesa
em uma carruagem, minha pulseira de adinkra pendurada em sua mão.
— Sabe — eu disse —, da última vez que estive aqui, o deus do
céu me fez um amuleto. Um adinkra. Se bem me lembro, ele foi feito da
luz e do ar.
— Não consigo ver como isso é relevante — murmurou o deus
trapaceiro, mas não se mexeu.
— Ah, é relevante, com certeza. Veja, aquele encanto era especial.
O que poderia fazer mesmo? Ah sim. Enquanto eu o usasse, poderia ver
através de qualquer ilusão. Muito útil, certo?
O impostor revirou os olhos, balancei a cabeça e continuei.
— Você estava lá quando o verdadeiro Brer Coelho foi levado por
monstros de ferro. Antes de dar um soco na Árvore-Garrafa, devo
acrescentar. Então você não pode atribuir tudo isso a mim.
Ele começou a protestar, mas falei sobre ele.
— Você e Brer estavam tentando descobrir como construir uma
Caixa de Histórias quando os monstros chegaram. Eles foram atraídos
pelas histórias que você ganhou de Nyame e capturaram Brer.
Parei por um minuto, imaginando como aquela cena havia
acontecido, com Anansi protegendo apenas a si mesmo. Isso me deixou
ainda mais irritado.
— Você escondeu a Caixa de Histórias quebrada de Nyame na
Crista para protegê-la — continuei. — Mas em vez de avisar a todos e
prepará-los, você se escondeu em uma roupa de coelho como um idiota.
Como um covarde.
— Estranho ouvir essa palavra de um menino que deixou seu amigo
para morrer — o impostor rosnou.
Uma semana antes, esse comentário teria me enviado voando duna
abaixo, pronto para lutar.
Até um dia atrás, talvez.
Mas não mais.
Agora, essas palavras saíram de mim como gotas de água do mar.
Eu sorri e dei de ombros, mas minhas acusações foram duras, pontuadas
por um dedo apontando.
— Mas então, quando eu criei o rasgo entre nossos mundos, você
estava preso! Encurralado! Você precisava de um novo plano, então usou
o Labirinto para manter o controle sobre todos. Você nos enviou atrás da
Caixa de Histórias, a Caixa de Histórias que você já havia drenado, não
para tornar as coisas melhores, mas porque ainda queria sua magia.
Você ainda achava que poderia consertar tudo por conta própria.
Eu balancei minha cabeça, enojado com o egoísmo de Anansi.
— Você nos fez passar por tudo isso para satisfazer sua ganância,
embora soubesse que isso só pioraria as coisas entre os alkeanos e os
Médios. Você já é um deus, mas isso não era o suficiente para você. Você
também tinha que ser o único contador de histórias. Não é verdade?
Silêncio.
Uma mão caiu no meu ombro e eu terminei minha declaração final,
fechando minhas mãos em punhos. Nyame acenou com a cabeça para
mim, então se virou para o deus amuado abaixo de nós.
— Revele-se — disse ele.
Uma palavra.
O poder nela jogou o impostor de volta na areia.
— O que você está… ?
— Revele-se.
De repente, senti a necessidade de admitir todos os meus erros.
As vezes que menti, as vezes que levei doces para casa depois da
escola…
Naquela vez em que disse à mamãe que estava saindo para correr,
mas em vez disso me sentei em um banco de parque e li os últimos
lançamentos de quadrinhos.
E eu não fui o único.
— Bebê Chiclete confessa! — A pequena tagarela caiu da cabeça
de Nyame e desabou na areia, batendo com os punhos. — Bebê Chiclete
foi quem comeu o biscoito grande! Ela sabia que era de John Henry, mas
era fofo e amanteigado e...
— Basta! — Nyame disse, e ele se virou para o impostor, que se
contorceu furiosamente na praia. — Eu não vou dizer isso de novo.
— Garoto inteligente. — A voz vinda do corpo trêmulo e
estremecido parecia distorcida. Como alguém falando com o nariz
entupido. Ou com a mão na boca. — Menino inteligente, inteligente.
Enganando o enganador. Muito bem.
Mesmo com todas as minhas suspeitas e suposições e até mesmo
com a ajuda de adinkra quando Bebê Chiclete me devolveu a pulseira,
eu não estava preparado para o homem alto, magro, de pernas finas e
pele marrom escura que pisou para fora do disfarce peludo que ele estava
usando desde que os monstros de ferro apareceram pela primeira vez.
Ele usava calças que iam bem acima dos tornozelos e uma camiseta
cortada, e seus dedos dos pés descalços balançavam na areia. Seus
olhos brilhavam maliciosamente e ele exibia um sorriso contagiante. Uma
brisa inconstante de repente levantou a areia ao nosso redor.
— Então — disse Anansi —, e agora?
Então aí está.
A história da fita.
A história de como eu passei doze rodadas com um espírito maligno
e venci.
Pare a luta, juiz, ele não quer isso comigo.
Eu continuaria a analogia, mas, na verdade, eu tinha muitas
pessoas (e deuses e criaturas e uma coisa de boneca irritante) me dando
apoio.
Não fiz isso sozinho.
E se a pulseira adinkra formigando no meu pulso fosse confiável,
eu precisaria do meu pessoal novamente me apoiando em breve.
Mas tudo bem.
Estou pronto.
Posso fazer mais doze rodadas.
Porque no final da luta?
Eu ainda estarei de pé.
Ainda socando.
Ainda forte.
Meu nome é Tristan Strong e tenho uma história para contar.