Você está na página 1de 365

Sumário ....................................................................................................................

5
Avisos de Conteúdo .................................................................................................. 7
Representações ........................................................................................................ 8
Sinopse..................................................................................................................... 9
Dedicatória.............................................................................................................. 10
Introdução ............................................................................................................... 11
1. A Viagem de Carro ............................................................................................. 13
2. As Árvores-Garrafas ........................................................................................... 23
3. Bebê Chiclete ..................................................................................................... 30
4. Luta na Floresta .................................................................................................. 37
5. Haints e Navios de Ossos ................................................................................... 43
6. A Jangada........................................................................................................... 53
7. Monstros de Ferro 101 ........................................................................................ 61
8. Algemados .......................................................................................................... 69
9. O Gigante de Papel ............................................................................................ 75
10. Arvoredo ........................................................................................................... 79
11. Os Deuses da Terra Média ............................................................................... 90
12. O Encantador De Borboletas ............................................................................ 99
13. Anansesem ..................................................................................................... 105
14. Entrando em Desespero ................................................................................. 109
15. Combustível Para Os Deuses ......................................................................... 116
16. O Labirinto ...................................................................................................... 121
17. O Pior Plano de Todos .................................................................................... 125
18. O Adinkra ........................................................................................................ 132
19. Ataque! ........................................................................................................... 139
20. O Chefão ........................................................................................................ 146
21. Moscas-Marca ................................................................................................ 151
22. A Lenda da Garrafa Foguete........................................................................... 156
23. A Crescente Dourada...................................................................................... 164
24. O Palácio de Nyame ....................................................................................... 171
25. Aquilo Não Era Uma Estátua .......................................................................... 177
26. Cobrinha Ao Resgate ...................................................................................... 183
27. O Amuleto de Nyame ...................................................................................... 190
28. O Covil de Anansi ........................................................................................... 195
29. Lasers de Pedra .............................................................................................. 202
30. Dentro de Isihlangu ......................................................................................... 209
31. Os Anciões ..................................................................................................... 216
32. Espírito de Imbongi ......................................................................................... 224
34. Abiyoyo ........................................................................................................... 231
35. Grande John ................................................................................................... 239
36. Uma Perspectiva Diferente ............................................................................. 246
37. O Homem De Fogo E Fumaça ........................................................................ 252
38. Memórias Perdidas ......................................................................................... 256
39. A Caixa De História ......................................................................................... 262
40. Visitantes Indesejados .................................................................................... 269
41. Bestas Do Casco E Moscas-Marca ................................................................. 276
42. O Machado Mágico ......................................................................................... 282
43. Vudu e Confissões ........................................................................................ 285
44. A Floresta Mmoatia ......................................................................................... 292
45. Estamos Todos Quebrados — A Caixa de Histórias, Também ....................... 298
46. A Fuga do Povo Médio .................................................................................... 308
47. Uma Barganha Perigosa ................................................................................. 318
48. Rei Algodão .................................................................................................... 326
49. A Última Parada .............................................................................................. 336
50. Enganando o Enganador ................................................................................ 342
51. Revelação ....................................................................................................... 348
52. Despedidas e Vidas Novas ............................................................................. 358
● Afogamento;
● Luto;
● Medo de altura;
● Transtorno de estressei pós-traumático (TEPT);
● Morte;
● Violência;
● Menção a escravidão.
● Protagonista negro*.
● A maior parte dos outros personagens também são afro-
americanos, ou pessoas não brancas.

Obs: palavras com asterisco (***) estão marcando representações


ownvoice, ou seja, de quem escreveu que se identifica também.
Tristan Strong, do sétimo ano, se sente tudo menos forte desde que
não conseguiu salvar seu melhor amigo quando eles sofreram um
acidente de ônibus juntos. Tudo o que sobrou de Eddie é o diário em que
seu amigo escreveu histórias. Tristan está temendo o mês que vai passar
na fazenda dos avós no Alabama, para onde está sendo enviado para se
curar da tragédia. Mas em sua primeira noite lá, uma criatura pegajosa
aparece em seu quarto e rouba o diário de Eddie. Tristan a persegue —
isso é uma boneca? — e um cabo de guerra se segue entre eles debaixo
de uma Árvore-Garrafa. Em uma última tentativa de tirar o diário das
mãos da criatura, Tristan dá um soco na árvore, acidentalmente rasgando
um abismo na Terra Média, um lugar volátil com um mar em chamas,
navios de ossos assombrados e monstros de ferro que estão caçando os
habitantes deste mundo.
Tristan se encontra no meio de uma batalha que deixou os deuses
negros americanos John Henry e Brer Coelho exaustos. Para voltar para
casa, Tristan e esses novos aliados precisarão atrair o deus Anansi, o
Tecelão, para sair do esconderijo e selar o buraco no céu. Mas negociar
com o trapaceiro Anansi sempre tem um preço. Tristan pode salvar este
mundo antes que ele perca mais das coisas que ele ama?
Para as histórias não contadas
e para as crianças que ainda vão contá-las.
O Mundo Além do Céu

Não me interprete mal, os mitos gregos são ótimos! Mas você não
pode balançar a cabeça de uma górgona em qualquer livraria sem acertar
pelo menos uma dúzia de livros inspirados na mitologia grega.
Tente encontrar grandes aventuras baseadas em deuses da África
Ocidental, como Nyame ou Anansi. Tente encontrar histórias sobre
crianças modernas que encontram lendas do folclore afro-americano,
como Grande John, John Henry e Brer Coelho. Esses livros são muito
mais difíceis de localizar, apesar do fato de que milhões de crianças se
identificariam com esses deuses e heróis ainda mais do que com
Hércules e Perseu (desculpem, meus caros gregos).
Pode imaginar como seria se você pudesse encontrar um livro que
tecesse toda a brilhante e bela tapeçaria da lenda da África Ocidental e
afro-americana em um mundo mágico? Um mundo que fez os jovens
leitores afro-americanos pensarem, sim! Esta é a MINHA mitologia
incrível. Este é o MEU mundo mágico para explorar, e essas crianças
heróicas são como eu! Um livro que deixasse todos os leitores pensando,
Uau. Por que eu não soube dessas histórias incríveis antes?
Kwame Mbalia escreveu esse livro. Você está prestes a descobrir
Tristan Strong Punches a Hole in the Sky, e seu mundo nunca mais será
o mesmo.
Nem vou tentar descrever todas as incríveis aventuras que Tristan
Strong enfrenta neste romance de estreia. Isso estragaria a diversão! Mas
quando Tristan acidentalmente abre um buraco no céu da Terra Média, o
mundo das lendas afro-americanas, ele começa a mais épica das
missões. Esperando por ele estão um haint1 malicioso, monstros de ferro

1
Um “haint” é um tipo de fantasma ou espírito maligno que se originou nas crenças e
costumes do povo Gullah Geechee, descendentes de africanos escravizados, que vivem
implacáveis, navios de ossos assustadores, jangadas voadoras, mares
em chamas, animais falantes, deuses antigos e muito mais.
Mas, apesar de todos os seus grandes elementos de fantasia, o que
mais amo neste livro é seu lado humano. Tristan está lutando contra a
dor após a morte de seu melhor amigo. Ele acaba de perder sua primeira
luta de boxe, decepcionando assim as esperanças de seu pai e avô de
que ele continue o legado da família. Condenado a um verão na fazenda
dos avós na zona rural do Alabama, este garoto da cidade de Chicago
está lutando para descobrir quem ele quer ser e se seus pais (e a
sociedade) o deixarão ser essa pessoa. Tristan é forte mas terno,
inteligente mas cauteloso, corajoso mas inseguro. Ele é alguém com
quem todas as crianças se identificam, e você vai querer imediatamente
ser seu amigo.
Vou te contar um segredo: chorei enquanto lia Tristan Strong.
Diversas vezes, fiquei maravilhado com a felicidade, pensando no que
este livro teria significado para muitos de meus alunos quando eu
ensinava no ensino médio. Fiquei encantado em ver velhos amigos como
Brer Raposa, John Henry e Bebê Chiclete em uma aventura tão nova,
moderna e que nos faz virar uma página atrás da outra. Fiquei grato a
Kwame Mbalia por escrevê-lo para que novas gerações de jovens leitores
pudessem crescer com Tristan e conhecer as ricas histórias da África
Ocidental e da Diáspora Africana. Em uma vida cheia de destaques, devo
dizer que ajudar a publicar este livro está lá no topo!
Eu sei que você vai gostar de Tristan Strong Punches a Hole in the
Sky. Eu invejo você o lendo pela primeira vez. Quanto às novas aventuras
de Tristan, o céu é o limite. Espere, não. Tristan abriu um buraco no céu.
Não há limites.

predominantemente no País Baixo e nas ilhas barreira ao largo da costa das Carolinas,
Geórgia, e norte da Flórida.
HAVIA UM RITMO EM meus punhos.
Pow pow
Eles contavam uma história.
Pow pow
Todos achavam que conheciam a história. Que já tinham visto isso
antes.
Ele vai superar isso.
É só uma fase.
Dê-lhe espaço.
Mas eles só conheciam fragmentos. Eles não queriam ouvir o
resto...

Ah, você quer?


Hum.
Bem, e se eu dissesse que fui à guerra por causa do diário brilhante
do meu melhor amigo morto? Ou que lutei contra monstros grandes e
pequenos, com poderes que não sabia que tinha, com deuses que não
sabia que existiam. Você acreditaria em mim?
Ah não, você não acreditaria. Você tem seus próprios problemas.
Você não quer ouvir sobre as minhas dificuldades.
Certo?
Ah, você quer? Bem, tenho que avisá-lo, é um passeio selvagem,
então aperte o cinto, campeão!
Deixe-me contar a verdade e espero que volte para mim.

— Tristan! Eles estão aqui.


Pow
O grito da mamãe interrompeu meu ritmo. Parei de socar o pequeno
saco de pancadas que meu pai instalou no meu quarto e afrouxei as alças
das luvas de boxe com os dentes. As luvas caíram na cama e eu me
joguei ao lado delas. O diário de Eddie estava na minha minúscula mesa
no canto oposto. Ainda brilhando. Ainda fechado desde que sua mãe o
dera para mim depois do funeral, duas semanas atrás.
Meu quarto era tão pequeno que eu poderia estender a mão e pegar
o livro de couro, mas isso significaria lidar com ele, e quem lida com seus
problemas por opção?
Pffft. Eu não.
— Tristan Strong! — Meu pai gritou do corredor.
Eu odiava esse nome.
Ele me fazia parecer algo que não sou. Meu nome deveria ser
Tristan Covarde, Tristan Fracasso, Tristan Falso. Até mesmo Tristan-
como-você-pôde-perder-sua-primeira-luta-de-boxe.
Qualquer coisa, menos Tristan Strong 2.
Os passos da mamãe ecoaram em nosso minúsculo apartamento
e, em seguida, uma batida suave soou na minha porta.
— Tristan, querido, você me ouviu?
Limpei minha garganta.
— Sim, estou indo.
A porta se abriu e minha mãe espiou para dentro. Ela ainda estava
usando a camiseta do TIME STRONG da noite anterior. Eu não acho que
nenhum de nós tenha dormido muito depois que voltamos da minha
primeira luta. Fiquei acordado cuidando do meu orgulho, a única coisa
que eu realmente machuquei. Meu pequeno fã-clube — meu pai, mãe e
meus avós do lado paterno — tentaram me animar, mas eu podia ver a
decepção estampada nos rostos de todos, então fingi ir para a cama
enquanto eles discutiam sussurrando até altas horas da madrugada. E
agora que havia amanhecido, era hora de colocar esse show na estrada.
Os olhos da minha mãe captaram o caos organizado do meu quarto
e enrugaram quando pousaram em mim. Ela cruzou o chão em dois
passos — evitando o jantar intocado de ontem no processo — e se sentou
no colchão.
— É apenas por um mês — disse ela, nem mesmo fingindo que não
sabia o que estava errado.

2
Em Português, “strong” significa “forte”.
— Eu sei.
— Será bom para você ir embora.
— Eu sei.
Ela esfregou minha cabeça e me puxou para um abraço.
— O terapeuta de luto disse que seria bom uma mudança de
cenário. Um pouco de ar fresco, trabalhar na fazenda. Quem sabe, talvez
você descubra que foi feito para trabalhar na terra.
Dei de ombros. A única coisa de que eu tinha certeza é que não era
para eu ser um boxeador, apesar do que meu pai e avô pensavam.
Eu me livrei do abraço da minha mãe, me levantei, peguei minha
mochila e saí para começar meu mês de exílio.
— Você não está esquecendo de algo? — Perguntou a mamãe.
Eu me virei e ela estendeu o diário de Eddie para mim. Sua mão e
pulso estavam banhados pelo brilho verde-esmeralda que vinha da capa.
Mas, como todas as outras pessoas a quem mostrei o diário, ela não
notou nenhuma luz estranha.
Minha mãe confundiu minha carranca confusa com apreensão
enquanto colocava o livro na minha bolsa.
— Ele queria que você o tivesse, Tristan. Eu sei que é difícil, mas...
tente ler quando puder, ok?
Não confiei em mim mesmo para falar, então balancei a cabeça e
me dirigi para a porta da frente.

A decisão de me enviar para a fazenda do vovô e da vózinha Strong


no Alabama foi tomada sem minha participação. Típico. Meus pais
haviam falado sobre isso algumas vezes antes, mas depois da morte de
Eddie e minha terceira briga na escola nas últimas duas semanas antes
das férias de verão, bem, acho que era a hora certa.
Pelo menos eu me saí bem nessas lutas escolares. Ao contrário do
ringue na noite passada.
Foi sorte minha que meu avô estivesse lá para testemunhar minha
humilhação.
— Você era três quilos mais pesado do que aquela outra criança.
— Meu avô disse depois da partida, em sua voz rouca e grossa. —
Retrocedeu o nome da família em uma década.
Esse sou eu: Tristan Decepção.
Filho de Alvin “Bola de Demolição” Strong, o melhor boxeador peso
médio de Chicago em quase vinte anos. Eu tinha a altura do meu pai e
o queixo do meu avô, e o boxe deveria correr em minhas veias. Eu usei
o velho shorts do meu avô e meu pai trabalhou ao meu lado. Esperava-
se que o legado Strong desse outro salto em minha primeira partida.
Em vez disso, ele foi derrubado no chão. Duas vezes.
— Você vai pegá-lo da próxima vez — foi tudo o que meu pai disse,
mas eu conseguia dizer que ele estava desapontado.
E isso doeu quase tanto quanto levar um soco.

Uma onda de calor do início do verão me saudou com uma explosão


de umidade quando deixei o prédio com minha mochila no ombro e mala
na mão. Grossas nuvens cinzentas se amontoavam à distância, e eu
adicionei isso à lista de coisas totalmente não ameaçadoras. Diário
brilhante? Sim. Tempestade no horizonte? Pode apostar.
Meu pai e vovô ficaram parados na calçada enquanto a vózinha
(ninguém nunca a chamava de vovó, não se você quisesse comer)
tricotava no carro. Papai era mais alto que seu pai, mas você podia ver a
semelhança da família. Pele negra profunda como a minha, queixo largo
e uma postura orgulhosa. Eu puxei o cabelo do lado da família da mamãe,
felizmente, porque os dois homens fortes tinham pedaços carecas
idênticos aparecendo através de seus afros curtos.
— Leve-o para o campo, coloque-o para trabalhar — dizia o vovô.
— Isso vai colocar um pouco de fogo em sua barriga.
Meu pai encolheu os ombros e não disse nada. Para ser justo,
ninguém falava muito quando o vovô estava por perto. Aquele velho
poderia tagarelar a mil por hora.
Vózinha me viu descendo as escadas, largou o tricô e saiu correndo
do carro.
— Aí está ele! Como você está hoje, querido? Está dolorido da noite
passada?
Ela me deu um abraço que abafou qualquer resposta, depois
enxotou meu avô para o lado.
— Pegue a mala do menino, Walter. Alvin — disse ela, dirigindo-se
ao meu pai. —, temos que pegar a estrada antes que a tempestade
comece.
Meu avô me olhou de cima a baixo.
— Isso é tudo que vocês crianças usam?
Eu olhei para baixo. Chuck Taylors preto com cadarços cinza
desamarrados. Shorts cargo cáqui folgado e um moletom cinza ainda
mais largo. Aquele moletom estava comigo em todos os lugares — tinha
a imagem de um bíceps flexionado nas costas em tinta preta desbotada.
Chame-me de sentimental, mas é o que eu sempre usava quando Eddie
e eu saíamos. Ele o chamava de uniforme de escolha do Tristan Strong,
perfeito para todas as ocasiões.
Então sim, eu o uso muito.
Vózinha o silenciou e me puxou para outro abraço.
— Não dê ouvidos a ele, Tristan. Mal posso esperar para te ter de
volta com a gente na fazenda. Você era tão pequeno da última vez, mas
as galinhas que você perseguia ainda não te esqueceram! Arrumei um
almoço e até arranjei uma ou duas novas histórias para a viagem...
E então, sem mais nem menos, com um tapinha no ombro do meu
pai e um abraço da minha mãe, eu era o problema de outra pessoa por
um mês.
Adeus, Chicago, e todo o seu glorioso serviço de TV a cabo, internet
e telefone celular. Foi bom enquanto durou.

Uma coisa ficou muito clara durante a viagem de carro de doze


horas até o Alabama — eu nunca faria isso novamente.
Jamais.
Sentar-se em um espaço fechado com o vovô era como enxugar as
lágrimas com uma lixa. Doloroso — excruciante, até — e você se
perguntava por que achou que era uma boa ideia.
Ah, você acha que estou mentindo?
Dez minutos de viagem:
— Quando eu tinha sua idade, tinha um emprego de tempo integral
e já havia lutado em duas lutas pelo título.
Três horas depois:
— Ah, você está com fome de novo? Trouxe algum dinheiro para
comprar lanches na parada?
Seis horas depois:
— Cara, eu não deveria ter comido aqueles feijões que sobraram
no café da manhã.
Oito horas depois:
— Não posso acreditar que dirigi todo esse caminho para ver um
garoto forte lutar tão fraco. Esse é o lado da família da sua avó. Nenhum
Strong jamais se saiu assim no ringue. Ora, eu me lembro...
Enfim, você entendeu.
No momento em que cruzamos a fronteira do estado do Alabama,
eu estava pronto para me arrastar até o porta-malas. Não sei como
vózinha conseguia simplesmente ficar sentada ali, cantarolando e
tricotando a maior parte do dia, mas foi o que ela fez. O Cadillac rodou
por uma rodovia de duas pistas, levantando trilhas de poeira e
escapamento, um foguete amassado explodindo no tempo em direção
contrária do futuro para uma terra em que o Wi-Fi foi esquecido.
Coloquei meus fones de ouvido em algum lugar de Kentucky, mas
a bateria do meu telefone havia se esgotado há muito tempo. Eu apenas
os mantive para que ninguém me incomodasse. Vózinha continuou
tricotando no banco do passageiro e meu avô batia com o dedo no
volante, cantarolando uma música que só ele conseguia ouvir. As coisas
pareciam mais ou menos calmas, exceto por uma coisa:
O diário de Eddie estava no banco ao meu lado.
Veja bem, eu poderia jurar que tinha enfiado o livro sob as roupas
da minha mochila. Que vovô colocara no porta-malas. E, no entanto, aqui
estava, esperando que eu fizesse algo que adiei desde o funeral. O sol
do fim da tarde, ocasionalmente aparecendo por trás das nuvens de
tempestade, fazia o diário parecer normal, comum. Mas de vez em
quando eu sombreava a capa com as mãos e a espiava enquanto prendia
a respiração. Sim, ainda brilhando.
Por que não abri-lo, você pode perguntar, e ver o que há dentro?
Bem, acredite em mim, não era tão simples. Antes da morte de
Eddie, a capa do seu diário de couro marrom sempre esteve em branco.
Agora, um símbolo estranho parecia estar costurado nela, como um sol
com raios que se estendem até o infinito, ou uma flor com pétalas longas.
O mesmo símbolo estava gravado em um amuleto de madeira esculpido
que pendia de uma corda presa à lombada do diário. Eu já tinha visto a
borla antes — Eddie a havia usado para marcar seu lugar ou para me dar
um tapinha na nuca — mas o amuleto era novo.
E, ainda mais estranho, a bugiganga pulsava com uma luz verde
também. Eu estava olhando para aquele livro todos os dias por minutos
a fio, mas o brilho sempre me impedia de abri-lo.
Quer dizer, eu sabia o que estava lá de qualquer maneira. As
histórias que Eddie havia anotado com sua caligrafia boba e compacta,
de suas próprias criações bobas às fábulas que a vózinha costumava nos
contar quando éramos mais jovens, quando ela vinha nos visitar. John
Henry, Anansi, a Aranha, as aventuras de Brer Coelho — eu li todas elas.
Nosso projeto de inglês de final de semestre era para ser uma coleção
gigante de histórias da nossa infância. Eddie estava escrevendo e eu ia
fazer a apresentação oral.
Então aconteceu o acidente. O terapeuta que minha mãe me levava
todas as quartas-feiras havia dito que eu deveria tentar terminar a parte
de escrever, mesmo que o ano escolar já tivesse acabado, como parte
da cura e outras coisas.
(Antes que você diga algo espertinho de que possa se arrepender,
o Sr. Richardson é muito bom para um terapeuta, entendeu? Jogamos
Madden enquanto conversamos, o que significa que posso me concentrar
em aumentar o placar em seu esquadrão dos Eagles e não em ficar
envergonhado de responder a perguntas. Ajuda um pouco... Se ficar
muito difícil, ele também sabe quando recuar. Portanto, você pode manter
seus comentários sobre eu ser Sensível e para Virar homem para si
mesmo. Idiota.)
Para evitar pensar no diário assombrado, observei o tempo pela
janela do carro. As nuvens nunca pararam, mesmo quando estávamos
no Extremo Sul. Elas simplesmente deixaram de lançar relâmpagos em
nós para lançar grandes gotas de chuva que espirraram no para-brisa
como insetos. Tudo em todos os lugares era miserável, e isso resumia
minha vida no momento.
Tirei os fones de ouvido e suspirei. Vózinha ouviu e se virou em seu
banco para olhar para mim.
— Você está com fome, querido? — Ela perguntou.
— Não, na verdade não.
— Não, senhora. — A voz profunda do vovô saiu do banco do
motorista. — Você responde "Não, senhora" para sua avó, entendeu?
— Sim.
Meu avô olhou para mim pelo espelho retrovisor.
— Quero dizer, sim, senhor.
Ele segurou meus olhos por mais um momento, depois voltou a
olhar para a estrada.
— Bem — Vózinha continuou, virando-se e pegando seu tricô. —,
apesar do que seu avô disse mais cedo — ela deu a ele um olhar furioso
—, me diga quando estiver. Sua mãe me disse que você não tem comido
muito e vamos consertar isso. E você não tem que escrever? É nisso que
seu terapeuta quer que se concentre.
— O garoto não precisa de terapeuta algum — resmungou o vovô.
— Ele precisa trabalhar. Não há tempo para lamentar quando os cavalos
precisam ser alimentados e as cercas precisam ser consertadas.
— Walter! — Vózinha repreendeu. — Ele precisa de...
— Eu sei o que ele precisa…
Balancei minha cabeça e parei de prestar atenção. Depois de
passar um dia no carro com eles, percebi que era isso que eles faziam.
Eles discutiam, riam, cantavam, discutiam novamente e tricotavam. Bem,
a vózinha tricotava. Mas eram as duas faces da mesma velha moeda.
Com o vovô, tudo era sobre trabalho. Trabalho, trabalho, trabalho.
Entediado? Aqui está um trabalho.
Terminou de trabalhar? Aqui está mais trabalho.
Precisa de alguém para conversar? Obviamente, isso significa que
você não trabalhou duro o suficiente, então quer saber? Trabalhe um
pouco mais.
Vózinha, por outro lado, cantava e cantarolava quando não estava
falando, o que quase nunca acontecia, porque ela sempre tinha uma nova
história para contar.
— Sabe por que a coruja não consegue dormir? — ela dizia, e a
história começava, e você se sentaria lá e ouviria, apenas sendo educado
no início, mas no final, você estaria na beirada de sua cadeira.
Eu sorri. Eddie adorava ouvir minha avó. Quando ela veio nos visitar
no início deste ano, ele praticamente a seguiu, seu diário na mão.
Falando nisso…
Minha mão esquerda descansou em cima dele no banco ao meu
lado, e tracei o símbolo costurado na capa.
— O que é isso, docinho?
Olhei para cima para ver a vózinha espiando por cima do assento.
— Hm? Quero dizer, uh, sim... senhora?
Vovô acenou com a cabeça e eu soltei um suspiro de alívio.
Vózinha sorriu.
— Isso é para você escrever?
Eu hesitei.
— Sim, senhora. — Eu levantei o livro para que ela pudesse ver, e
seus olhos se arregalaram com o símbolo na capa.
— Onde você conseguiu isso? — ela perguntou. Vovô se virou para
ver o que ela estava olhando, mas vózinha acenou com a mão para ele.
— Cuidado com a estrada, Walter.
— Do Eddie… — eu comecei, então parei. — Quer dizer, a mãe
dele me deu. É... era para nós. Para o nosso projeto escolar. Por quê? O
que está errado?
Ela conseguia ver aquilo? Ela conseguia ver que o livro estava
brilhando, mesmo à luz do dia?
Vózinha franziu os lábios.
— Esse símbolo. Eu simplesmente não vejo isso há muito tempo.
— Você sabe o que é?
— Bem… — Ela olhou para o vovô, que nos desligou assim que
começamos a falar sobre escrever. — É a teia de aranha, um antigo
símbolo africano de criatividade e sabedoria. Mostra como a vida pode
ser confusa e complicada. Mas com um pouco de pensamento criativo,
podemos resolver a maioria dos nossos problemas e dos outros.
— Você notou mais alguma coisa sobre o diário? — Eu perguntei a
ela.
Vózinha riu, um som brilhante e alegre que contagia qualquer
pessoa que estivesse ouvindo.
— Isto é um teste?
— Não, senhora.
— Eu não vejo nada além de procrastinação. Vá em frente e
experimente.
— Sim, senhora. — Eu fiz uma careta. Então vózinha podia ver o
símbolo, essa teia de aranha, mas não que ela estava brilhando. Bem,
isso não me fez sentir melhor.
Meu avô bateu no volante.
— Vocês precisam parar de encher a cabeça dele com essa
besteira de símbolos. Ele precisa ficar no mundo real, pensar sobre o que
fez de errado na noite passada. O menino precisa se concentrar! O boxe
não vai simplesmente acontecer, você tem que treinar seu corpo e sua
mente.
— Vovô, eu não quero...
— Eu não quero ouvir isso. Você não é mais uma criança. Você é
um Strong e...
— Walter — vózinha interrompeu —, não seja tão duro com o
menino.
— Ele precisa de um pouco de endurecimento, vocês estão sendo
muito moles com ele!
— Olha aqui... — Vózinha começou a dar um sermão em sussurros
para o meu avô, que balançou a cabeça e resmungou baixinho.
Deslizei no meu banco e tentei bloquear a discussão. Deixei meu
polegar traçar a capa do diário e antes que meu cérebro pudesse me
dizer para não fazer isso, eu o coloquei no meu colo e virei para uma
página aleatória. E daí se brilhasse? Ainda era um livro, e lê-lo seria
melhor do que ouvir mais insultos do vovô disfarçados de lições de vida.
Ou reviver aquele acidente de ônibus.
Quer dizer, sério, o que poderia dar errado?
-

DUAS FIGURAS AGACHAVAM-SE PERTO DA base de um


carvalho gigante. As enormes raízes com nós se espalhavam no centro
das sombras rastejantes e retorcidas. A primeira figura — um grande
homem negro com braços de mogno, punhos como pedras e ombros
mais largos que montanhas — caiu sobre um joelho na terra úmida e
macia. Ele pousou a mão em um tronco liso ao lado dele.
— Tem certeza de que isso é necessário, BC? — Sua voz retumbou
como mil trens indo para o mesmo lugar.
A segunda figura — um coelho do tamanho de uma criança no
jardim de infância — estremeceu nervosamente e retrucou:
— Claro que tenho certeza, John! Se apresse! Precisamos acabar
com isso. — Algo retiniu ao longe e o coelho saltou. — Agora!
— Ok, BC, ok —, disse John. Ele se ergueu... e ergueu... e ergueu,
até que sua silhueta parecia maior do que a velha árvore. — Mas você
precisa dar algum poder a essa ferramenta velha. Eu não posso fazer
isso sozinho.
— Tanto faz, apenas continue com isso!
John pegou o tronco, exceto que... não era um tronco. Era uma alça
— a haste lisa de um martelo maciço. Símbolos estavam gravados para
cima e para baixo na madeira, e zumbiam quando mãos gigantescas
encontravam ranhuras familiares.
John. Com um martelo. Sem chance... eu conhecia esse nome.
Aqueles personagens. John Henry e BC… BC… Brer Coelho? Mas...
Brer Coelho colocou as patas na enorme cabeça de ferro do martelo
e começou a falar em voz baixa. Seus sussurros rodopiaram e cresceram
até soarem como gritos, batidas de bumbo e de pés. A cabeça do martelo
— um bloco de metal grosso marcado com buracos e arranhões —
começou a brilhar com uma luz incandescente e vermelha escaldante, e
John o pressionou contra um emaranhado de raízes.
Um enorme buraco negro se abriu no chão na base da árvore.
John se abaixou e pegou um pequeno objeto do chão. Eu não
consegui descobrir o que era.
— Vá — disse ele, colocando-o suavemente no buraco. — Vá agora
e encontre-o. Encontre-o. ENCONTRE-O!

Clique clique clique


Tirei minhas mãos do diário com um ofego. O suor escorria pelo
meu rosto e eu estava pressionado contra o banco de trás do Cadillac
enquanto ele se movia. As nuvens de tempestade finalmente se
dissiparam e o sol estava quase no horizonte, seus raios laranja e
vermelhos entrando pela janela.
O que é que foi isso? Um sonho? Eu tinha adormecido enquanto
lia?
Então por que parecia tão real? E por que o diário estava fechado
no banco ao meu lado?
— Você está bem, querido? — Vózinha perguntou sem se virar.
Clique clique clique
Suas agulhas de tricô moviam-se furiosamente. Era minha
imaginação ou ela também estava suando?
— Tristan?
Clique clique clique
Mas a pressão daquilo... o que quer que fosse, ainda estava no meu
peito e trancou minha boca. Parecia quente, apertado e sufocante dentro
do carro, como se eu tivesse sido enfiado em um cobertor gigante de lã
que coça e de repente não conseguia respirar. De alguma forma,
consegui ir até a porta e abrir a janela para tentar tomar um pouco de ar
fresco.
— Tristan!
— Rapaz, feche essa janela! — O vovô latiu na frente. — Vai deixar
toda a poeira entrar aqui. Você está maluco?
Uma respiração. Duas respirações.
— TRISTAN!
Meu avô se virou, mas foi vózinha quem colocou a mão no meu
joelho e, de repente, a pressão sumiu. Fechei a janela com relutância e
respirei fundo. A sensação de algo me pressionando tinha se
transformado em uma presença à espreita. Eu poderia lidar com isso,
embora fizesse meu pescoço coçar. Vózinha tirou a mão, mas continuou
me olhando com uma expressão preocupada no rosto.
— Você está bem, querido?
Eu concordei.
— Responda sua avó quando ela...
— Silêncio, Walter — Vózinha repreendeu. — Fique de olho na
estrada.
Balancei minha cabeça.
— Só... fiquei com um pouco de enjoo por causa do carro, eu acho.
Vózinha me olhou como se suspeitasse que não era verdade, mas
não se intrometeu mais.
— Por que você não tenta tirar uma soneca, querido. Só mais uma
hora ou mais e então estaremos na fazenda, e você e vovô terão algum
trabalho a fazer antes do jantar. — Ela se virou, mas, apenas por um
segundo, eu poderia jurar que seus olhos olharam para o diário.
Clique clique clique
Vózinha continuou tricotando e eu olhei para o diário do outro lado
do banco. Depois de um momento de hesitação, estendi a mão e protegi-
o com as mãos, já sabendo o que iria acontecer, mas verificando de
qualquer maneira.
O diário pulsou mais rápido e mais forte, com um brilho verde
cintilante.

Algum tempo depois, meu avô diminuiu a velocidade e entrou em


uma estrada de cascalho acidentada que subia uma longa colina.
— Chegamos — disse ele.
Pulei fora de um torpor. Coloquei o diário de Eddie na minha
mochila, depois me estiquei e olhei cautelosamente para fora da janela.
Tudo parecia... bem, parecia o campo.
Que legal.
— Nós chegamos? Onde? — Perguntei.
— Em casa, docinho — disse vózinha, arrumando o tricô e voltando
a sorrir para mim. — Bem a tempo de eu começar o jantar.
— Ainda temos cerca de uma hora de sol — disse o vovô. — Posso
pelo menos consertar parte da velha cerca.
O carro chegou ao topo da colina e me sentei enquanto a fazenda
da família Strong se espalhava pelo horizonte. Uma colcha de retalhos
de campos verdes e marrons cercava um enorme celeiro e uma casa um
pouco menor. Fileiras de milho ficavam em posição de sentido enquanto
o Cadillac passava vagarosamente, como uma carruagem voltando com
o rei e a rainha da terra. E a vovó e o vovô pareciam sentar-se mais eretos
à medida que nos aproximávamos da casa. Até eu podia sentir, um puxão
de algo que esteve na minha família por gerações. Este era nosso
ducado3, nosso território. O domínio Strong.
Meu nariz pressionado contra a janela, a respiração embaçando o
vidro, avistei um grupo de árvores no canto mais distante da fazenda.
Elas eram velhas, como um pedaço de floresta que o tempo havia
esquecido. Seus troncos gigantes torcidos estavam agrupados como uma
espécie de multidão... ou guardas. Enquanto eu olhava para elas, a
pressão em meu peito voltou — a sensação de antes. Alguém... ou algo
estava procurando.
Procurando por mim.
Um flash entre os galhos chamou minha atenção enquanto
passávamos.
— O que é isso? — Perguntei.
— O que é o quê, docinho?
— Aquelas árvores ali. Algo está brilhando.
O vovô balançou a cabeça.
— Mais tolice, é isso.
— Calma, Walter — disse vózinha. — É só a floresta das Árvores-
Garrafas, querido.
— O quê? — Que tipo de árvores eram aquelas, e havia outra! Algo
brilhou novamente, como uma luz em um espelho ou vidro.
— Árvores-Garrafa. Ah, poxa, você viu isso? Eu pulei um ponto. O
que eu estava dizendo? Ah, as Árvores-Garrafa. Eu poderia jurar que já
tinha falado por alto sobre elas antes. — Ela se virou em seu banco. —
Os escravos trouxeram a prática com eles da África como uma forma de
capturar e se livrar de qualquer haint que vagueia por aí.

3
Território, feudo ou domínio governado por, ou representando o título de, um duque ou
duquesa.
— Haints? — Pressionei meu nariz contra o vidro e apertei os olhos.
— Espíritos malignos, bebê. Deus sabe, muitas dessas divagações
sobre, com... Bem, de qualquer maneira, não se preocupe com isso —,
Vózinha continuou. — Eu não quero você se enfiando por lá. Aquelas
velhas árvores não são para brincar. Você pode se machucar.
— Preciso cortá-las — resmungou vovô, mas vózinha apenas
enxotou as palavras com a mão.
— Silêncio, Walter. Agora olhe, Tristan, ali… — Ela começou a
bancar a guia turística enquanto tomávamos o rumo de casa, e eu me
acomodei, incapaz de afastar a sensação de formigamento de que algo
estranho estava acontecendo.

— Pegue essa ponta, garoto, e levante. Levante! Pare de fazer de


qualquer jeito e coloque a força das suas costas nisso.
Puxei a ponta de uma tora enquanto vovô e eu a colocamos na
fenda superior vazia de um mastro. Nós o colocamos no lugar e eu
afundei contra a cerca consertada com um suspiro. Estávamos
trabalhando na última hora, correndo contra o sol para consertar essa
seção da cerca, e eu estava exausto. Nem tive a chance de deixar minhas
malas. Peguei minha mochila, e o diário de Eddie quase caiu do
compartimento aberto. Eu poderia jurar que tinha fechado o zíper...
Meu avô me observou guardá-lo e balançou a cabeça. Ele enxugou
a testa com um pano velho que mantinha enfiado no bolso de trás do
macacão, depois o guardou e arregaçou as mangas.
— Você precisa deixar essa bobagem de escrever pra lá, garoto.
Não vai te levar a lugar nenhum, só te confundir.
Eu não disse nada.
— Sobre o que você tem que escrever, afinal? Jogos de
videogames? Televisão? Toda aquela vida na cidade deixou vocês
moles. Eu tinha seu pai aqui ao amanhecer. Como você acha que ele
conseguiu ombros largos? Strongs trabalham, garoto.
Apertei as alças da mochila até cortar minhas palmas, mas ainda
não disse nada.
Ele cuspiu o galho que estava mastigando.
— Hmph. Vá em frente e passe aquele fio extra de volta ao celeiro.
Depois, se limpe para o jantar. Apresse-se agora, sua avó está te
esperando.
Peguei o carretel de arame e segui pela trilha em direção ao celeiro.
Ouvi meu avô resmungando consigo mesmo e tentei ignorar. Não
importava o que eu fizesse ou aonde fosse, alguém sempre queria me
dizer o que eu estava fazendo de errado e o que deveria fazer diferente.
Você é bem grande, Tristan. Vá jogar futebol.
Pare de ler histórias em quadrinhos, Tristan, e vá ler um livro de
verdade.
Pare…
Eu olhei para cima, de repente ciente de que o mundo tinha ficado
quieto. Quer dizer, nada fazia barulho. Sem pássaros, esquilos, sem
folhas farfalhando — até mesmo o vento prendeu a respiração.
O antigo grupo de árvores apareceu na minha frente.
Há quanto tempo eu estava caminhando? Como eu vim parar aqui?
As sombras no chão se aprofundaram e se estenderam em minha
direção. Videiras grossas ao redor dos troncos pareciam se curvar como
dedos me chamando para mais perto. Emanavam desespero,
necessidade. As árvores cresciam cada vez mais, e levei um segundo
para perceber que era porque eu estava caminhando na direção delas.
ENCONTRE-O.
As palavras explodiram e estouraram na minha cabeça, uma
tempestade de comando, e eu congelei. Eram as mesmas palavras, a
mesma voz, do meu sonho no carro. Aquilo tinha sido um sonho, certo?
Eu havia chegado à beira das árvores. Uma brisa soprou
suavemente do centro escuro da floresta, quase como um sopro. Tinha
cheiro de… velho. Da terra. Como se o que quer que estivesse lá não
fosse perturbado há anos. Eu não queria ser o primeiro novo intruso.
E ainda…
Eu dei um passo à frente.
— Tristan? Tristaaaan? — A voz da vózinha quebrou qualquer
feitiço que caiu sobre mim, e eu balancei minha cabeça para limpar as
teias de aranha. Meu pé direito pairou no ar, a centímetros de distância
de entrar nas sombras. Eu lentamente o apoiei no chão, então recuei
alguns passos. Estreitei os olhos para as árvores. Algo estava lá e me
queria. Eu conseguia sentir.
— Tristan, hora do jantar! — A voz de vózinha flutuou do céu,
cavalgando a brisa de uma maneira que apenas a voz de uma anciã
poderia fazer.
Recuei ainda mais, virei e corri pelo milharal até a casa da fazenda.
De jeito nenhum você vai naquela floresta, disse a mim mesmo.
Sem chance.
Eu estava errado.
QUANDO O ATAQUE VEIO, EU estava meio adormecido.
A viagem de carro, o estranho sonho-que-não-era-um-sonho,
trabalhar na fazenda... Na hora em que fui para a cama, parecia que
minhas pálpebras pesavam uma tonelada. Mesmo assim, não consegui
dormir direito.
Não era a escuridão, embora eu não estivesse acostumado com a
noite no Alabama. Eu estava acostumado com a quase noite de Chicago
— com o brilho das luzes da rua e o piscar dos letreiros de néon do lado
de fora da minha janela.
Aqui, a completa falta de luz fazia tudo parecer... diferente. Uma
lanterna estava em cima dos cobertores ao meu lado. Não que eu tenha
medo do escuro, tá ligado, mas no caso de eu ter que usar o banheiro ou
beber água.
Cara, o que eu não teria dado por alguns postes de luz.
Não era o silêncio, embora também estivesse muito quieto. Em vez
dos sons reconfortantes de carros, caminhões, sirenes e pessoas
conversando na rua, ouvi talos de milho a farfalhar ao vento. A janela não
fechava totalmente por causa da moldura de madeira empenada, e isso
era bom e ruim. Bom porque eu não me sentia tão pressionado, tão
fechado, mas ruim por causa dos grilos.
Caaaara, esses grilos. Pensa numa coisa irritante. Como algo tão
pequeno pode fazer tanto barulho? Era como se um milhão deles
cercassem minha janela e estivessem gritando a letra da música mais
irritante que você poderia imaginar.
Sim, essa que você está pensando agora.
É um saco, não é?
E, no entanto, não era a escuridão, ou os sons estranhos, ou a casa
desconhecida que estava me mantendo acordado. A pressão que senti
no meu peito no carro estava de volta, esperando que eu relaxasse. Eu
sabia que assim que o fizesse, iria me agarrar como um oponente no
ringue, prendendo minha cabeça entre as luvas e esperando o momento
certo para me soltar e me acertar com aquele soco perfeito. Eu podia
sentir isso. Assim que...
Thump
O barulho vinha do outro lado do quarto, pela janela, como algo
caindo no chão.
Instantaneamente, me sentei, esforçando-me para ver no escuro.
Veja bem, se eu estivesse de volta a Chicago, colocaria um
travesseiro na cabeça para bloquear o barulho, imaginando que fosse um
vizinho. Nossas paredes eram tão finas naquele apartamento que dava
para espirrar e as pessoas dois andares abaixo diriam Saúde!
Mas aqui, definitivamente, não era Chicago. Então, quando algo
deu errado, prestei atenção. Especialmente porque eu já estava no limite.
Duplo-especialmente porque o som foi seguido por passos pegajosos,
sujos, pesados em um pedaço de fita adesiva.
Olhei ao redor do quarto. Não havia muitos móveis — uma cômoda
com minha mochila (o diário de Eddie ainda estava bem fechado dentro),
um cabideiro e uma cadeira com minhas roupas do dia. Ainda assim, a
estranheza noturna transformava as sombras de objetos comuns em algo
duas vezes mais assustador. Dedos esticados para fora do espaço vazio.
As formas se combinaram em criaturas que se arrastaram em direção à
cama.
— Quem está aí? — eu sussurrei.
Ninguém respondeu. Os grilos gritavam seu coro lá fora e o vento
cacarejava nos pés de milho secos. Mas esses eram sons de fazenda
normais, certo?
Eu não sei o que esperava. Respirei fundo e esfreguei meus olhos.
Isso era bobagem.
— Pare de ser um bebê, Tristan — eu disse, envergonhado. — Não
há nada aqui.
Algo raspou no chão, e juro que ouvi uma voz sussurrar:
— Onde está, onde está, onde está?
Meu coração deu um pulo e me arrastei para o pé da cama com a
lanterna presa em minhas mãos trêmulas. Liguei-a, mas nada aconteceu.
— Vamos, vamos, vamos — murmurei, batendo contra a palma da
minha mão. O interruptor estava preso. — Por que nada funciona por
aqui?
Clique
O feixe piscou após a quinta ou sexta tentativa.
— Finalmente!
Varri o feixe de luz ao redor, procurando por algo remotamente
assustador, relaxando um pouco cada vez que algo estranho se tornava
familiar. Os dedos voltaram a formar um cabide. Os monstros rastejantes
voltaram para a cadeira cobertos de roupas. A boneca bebê no meio do
chão…
...girou a cabeça quando o feixe da lanterna a atingiu.
Eu congelei.
A boneca parecia artesanal, como se alguém a tivesse esculpido
em madeira, pintada de marrom-melado escuro que ainda não tinha
secado, desenhado dois pontos pretos para os olhos e colado lã preta
encaracolada em sua cabeça em dois puffs afro. Ela ficou parada na luz,
quase trinta centímetros de altura, e nós dois nos encaramos.
— Ok — eu disse, então lambi meus lábios. A lanterna desligou
novamente. — Ok. Isso... não é estranho. Certo? Não há nada de
estranho em...
— Quem você está chamando de estranho?
Eu olhei em volta, confuso, enquanto tentava localizar a dona
daquela voz. Parecia estranha e aguda, como quando você respira hélio
de um balão e sua voz fica estridente.
— Ah, então você não vê a Bebê Chiclete agora? Ela está invisível
agora?
Veio de baixo. A lanterna acendeu bem a tempo de pegar a boneca
começando a andar pelo chão em minha direção. Cada um de seus
passos fez um som como tiras de velcro se separando.
Aquela coisa — ela? — pisou mais perto, olhando e apontando.
— Onde está? É melhor você contar à Bebê Chiclete e rápido.
Bebê Chiclete? Sem chance.
Eu já tinha ouvido esse nome antes. Não é a bonequinha das
histórias...? Não podia ser!
Nos contos de Anansi, Bebê Chiclete era uma boneca que Anansi
usava para prender uma fada africana enquanto ele estava em uma
missão. Mas, na história, a boneca permanecia calada e usava folhas
como roupa. Esta, por outro lado, usava uma blusa preta de gola alta e
calça preta, mas seus minúsculos pés estavam descalços. E o que eram
aquelas manchas que ela deixava no chão?
— Ei, Bebê Chiclete está falando com você, garotão. — A boneca
marchou pelo chão, a expressão séria em seu rosto arruinada pelo som
de pancada que cada um de seus passos fazia.
— Não faça Bebê Chiclete subir aí.
Plop plop plop
— A Bebê Chiclete está falando com uma parede de tijolos?
Plop plop plop
— Ah, você está pedindo por isso agora.
Plop plop plop
Ela estava ao lado da cama e deixando manchas escuras nos
cobertores quando eu finalmente me sacudi para fora do torpor e estendi
a lanterna como uma arma.
— Quem… quem é você? — Sussurrei.
A boneca de dez polegadas de altura olhou para mim, subiu no meu
pé e fez uma pose. Ambos os braços rechonchudos bem abertos, um pé
plantado no meu dedão do pé, ela riu com sua vozinha.
— Ha-ha-haaaa! Você quer saber quem é Bebê Chiclete? Bebê
Chiclete é a razão pela qual você dorme com a porta trancada. Bebê
Chiclete é a razão pela qual o sol se espalha pelo céu. Bebê Chiclete é o
seu pesadelo, e as pessoas sussurram o nome dela e tremem ao redor
do mundo. Aha-ha-ha-haaaa!
— Shh! — Eu disse, acenando com os dois braços em advertência.
— Você vai acordar meus avós.
Bebê Chiclete inclinou a cabeça e olhou para mim como se eu
tivesse acabado de lhe dar um tapa.
— Você… — ela começou. — Você fez shh pra Bebê Chiclete? Não
ouviu a apresentação? Eu sendo um pesadelo e tudo mais, e você
trancando a porta? Isso... isso não fez sentido?
— Não, fez sentido, é só...
— A Bebê Chiclete deveria esclarecer?
— Não, está tudo bem, eu só não quero...
— Ah bom. Nesse caso, a BEBÊ CHICLETE VAI VIRAR SUA
CABEÇA AO AVESSO SE VOCÊ PENSAR EM fazer shh DE NOVO!
Bebê Chiclete subiu no meu colo e bateu no meu peito com as duas
mãos pegajosas.
— Deixe outro shh sair dessa boca. Quero só ver! Será o último shh
que seu criador de shh irá shhchar!
— Está bem, está bem! — Eu rebati os golpes irritantes, me
desviando e me esquivando de mais daquela coisa pegajosa. — Pare
com isso, faz cócegas, e você está deixando... coisas na cama.
Bebê Chiclete lutou com minha camisa mais uma vez, depois ficou
no meu colo, com as duas mãos nos quadris. Limpei uma gota de gosma
da minha bochecha e fiz uma careta. O que vovô e a vózinha diriam sobre
a bagunça pela manhã?
— Assim está melhor. Agora onde está? — Bebê Chiclete cruzou
os braços minúsculos sobre o peito.
— Onde está o quê?
— Não banque o idiota. Você sabe o quê.
— Não, eu... Olha, eu não sei quem você é... Bem, acho que você
é... mas isso não faria sentido, eram apenas histórias e... Você pode só
me dizer por que está aqui?
Eu quis dizer por que ela estava viva e não era apenas uma fábula,
mas a Bebê Chiclete entendeu mal. Ela olhou para mim por um segundo.
— Bebê Chiclete está em uma missão, seu Língua Solta. Onde está
o sinal? Bebê Chiclete sabe que está brilhando por aqui em algum lugar.
Tentei formar palavras, encontrar algum tipo de resposta às suas
perguntas, mas toda a situação era muito irreal. Era como se eu estivesse
sendo interrogado por um brinquedo de 12 dólares da lata de lixo. Eddie
nunca teria acreditado nisso. Na verdade, esse era exatamente o tipo de
história que Eddie acreditaria...
Espere um minuto.
Brilhando por aqui...
Poderia ser?
Meus olhos foram para a mochila na cômoda — apenas por um
segundo, mas Bebê Chiclete viu, e um sorriso maligno cruzou seu rosto.
Rápida como um raio, ela jogou mais gosma no meu rosto.
— Pensa rápido!
— Gah! — Eu gritei.
Enquanto eu arrancava o material dos meus olhos, os cobertores
se mexeram e eu a senti correr para o final da cama e pular. Quando
consegui abrir os olhos, a pequena coisa estúpida não estava em lugar
nenhum. Uma linha de manchas escuras conduzia à cômoda. Eu chutei
os cobertores e corri, olhando em volta loucamente.
A mochila — com o diário de Eddie — havia sumido.
Eu me virei e apontei a lanterna para o chão. Bebê Chiclete havia
desaparecido. Olhei embaixo da cama: nada.
Então ouvi passos pegajosos se esgueirando para a parede atrás
de mim.
Virei bem a tempo de ver Bebê Chiclete pular pela janela, fugindo
para a noite com minha mochila, a luz verde escapando do zíper
ligeiramente aberto.
— Volte aqui! — eu sussurrei quase gritando enquanto corria para
a janela.
Bebê Chiclete correu com suas perninhas atarracadas ao longo do
caminho de terra lá fora, contornando o Cadillac e subindo a colina que
levava ao milharal. Segundos depois, eu não conseguia mais localizá-la.
Eu lentamente afundei no chão, abracei meus joelhos contra o peito
e fechei os olhos.
O que aconteceu? Foi um pesadelo. Era isso — meu sonho no carro
não tinha acabado. Não podia ser real. Eu não poderia ter perdido a única
coisa que tinha para me lembrar de Eddie. E para um brinquedo pegajoso!
Estúpido, estúpido, estúpido.
Minhas mãos tremiam e eu pressionei as palmas contra o chão para
mantê-las imóveis — direto em uma poça de algo macio e pegajoso.
O que era essa coisa? Mel?
Fios de… o que quer que fosse esticavam e dobravam como
caramelo enquanto eu esfregava entre meus dedos. Cheirava bem, mas
não exatamente como mel. Porém, algo familiar. Mais disso salpicava o
chão e olhei para a parede atrás de mim. Com certeza, pequenas
manchas escuras iam até o parapeito da janela.
Uma trilha!
Cerrei meus punhos, então olhei para o canto da cômoda onde a
mochila estava. Este diário continha o humor de Eddie, suas piadas
bobas, suas histórias, seus sonhos. Era tudo.
Talvez houvesse uma chance de recuperá-lo.
Peguei a lanterna, coloquei meu moletom com capuz e shorts cargo
e calcei meus tênis. A janela rangeu quando a abri, e o cheiro de cavalos
e outros odores de fazenda me atingiram, logo antes de o vento emitir um
aviso.
Fique na cama.
Eu ignorei.
Eu me espremi pela janela e caí na varanda. Por um momento,
hesitei. A escuridão, o vento sussurrante, o farfalhar dos pés de milho —
todos eles tentaram me fazer mudar de ideia.
Volte para dentro.
Isso não é para você.
Não há como dizer o que pode acontecer com um garoto da cidade
por aqui a esta hora da noite.
Eu estava prestes a ceder ao medo e me esconder na minha cama,
quando o facho da lanterna pousou em um pequeno pedaço de resíduo
pegajoso na beira da varanda que o circundava. E então um na grama a
alguns metros de distância. E outro. E outro.
Segurei a lanterna com tanta força que doeu. O vento assobiava
mais forte, sacudindo o milho, mas cerrei os dentes e balancei a cabeça.
— Você não me assusta. Vou recuperar aquele diário de volta.
Strongs continuam socando, valeu?
Eu me senti um bobo dizendo isso, mas o mantra do meu pai me
deu coragem. Antes que eu pudesse pensar duas vezes, saí da varanda
e fui para a noite.
MEUS TÊNIS ATINGIRAM O caminho de terra enquanto eu subia
correndo a trilha. Estrelas cintilavam acima, mas sem lua, eu mal
conseguia ver para onde estava indo. E os sons... Parecia que a noite
estava viva... e com raiva. Animais e pássaros e mais malditos grilos,
todos queriam um pedaço deste garoto de Chicago que estava invadindo
seu gramado. A única coisa que me fazia continuar era o som de algo
correndo pelo milharal à minha direita. Se eu me movesse rápido o
suficiente, poderia isolar a pequena ladra. Pelo som da reclamação da
Bebê Chiclete, ela estava enfrentando mais obstáculos do que eu.
— Quem planta milho no meio do campo? Ooh, criança, se Bebê
Chiclete tivesse tempo, ela mostraria a este mundo uma ou duas coisas.
Quem é esse? Mexa-se, pássaro! Isto não é uma festa. Bebê Chiclete
disse: mexa-se! Ei, solte isso… Solte! Então você quer um pouco disso?
Ataque de seiva!
Uma rajada de penas irrompeu do milharal e um corvo grasnou e
voou desajeitadamente para longe.
Seiva... Então era isso que a coisa pegajosa era. Nas histórias,
Anansi cobria a boneca com seiva de eucaliptos. Esta pequena ladra
parecia produzi-la como o vovô suava. E, sim, nenhuma das imagens é
bonita. Mísseis pegajosos de seiva e suados. Adorável.
Aumentei a velocidade e fiz a curva bem a tempo de ver Bebê
Chiclete atravessar correndo a estrada, com folhas e penas grudadas em
suas costas, e mergulhar nas árvores do lado oposto.
— Ei! — Gritei.
Bebê Chiclete me deu uma olhada e saiu correndo.
— Você de novo? Bem, chegou tarde demais, Bebê Chiclete é
como o vento!
Lancei-me para frente, mas ela e minha mochila desapareceram na
escuridão. Derrapei até parar na beira da estrada e engoli em seco. A
assustadora floresta das Árvores-Garrafas estava na minha frente, sua
copa criando a ilusão de um túnel. Sob o facho de minha lanterna, os
troncos nodosos pareciam rostos. Sentinelas de guarda, eles me olharam
com desconfiança.
Engoli em seco.
O vento soprou, cacarejando entre as folhas.
Eu te disse, garoto. Você não quer isso.
Recuei um passo, então parei. Uma luz verde suave balançava nas
profundezas da floresta.
O diário do Eddie. Cerrei meus punhos. Tinha que recuperá-lo.
O vento soprava mais forte, mas fiz um gesto rude com as mãos
para ele.
— Você não me assusta — eu sussurrei. Uma respiração profunda,
depois outra, e corri de cabeça para a floresta.
O vento uivava e os galhos arranhavam e se agarravam ao meu
rosto, mas eu continuei. As árvores rangiam e gemiam, e raízes se
emaranhavam em meus pés, mas mesmo assim segui em frente. Ficava
cada vez mais difícil correr, com os galhos e nós das árvores me forçando
a fugir e desviar, mas finalmente forcei meu caminho e tropecei em uma
clareira.
Achei que estava pronto para qualquer coisa.
Errado. ERRADO.
Bebê Chiclete parou na frente da árvore mais estranha que eu já vi.
Tinha apenas alguns metros de altura, talvez chegando ao meu queixo,
mas seus braços se esticavam como uma régua em todas as direções.
Garrafas de todas as formas e tamanhos — mas todas em um tom de
azul brilhante — estavam presas nas pontas dos galhos.
Quando o vento soprava, as garrafas gemiam. O suor gotejou na
minha testa enquanto a pressão do início do dia me sufocava como um
cobertor molhado. Meus braços e pernas pareciam as mochilas pesadas
da academia do meu pai, e movê-los exigia mais esforço do que eu jamais
imaginei ser possível. Eu estava tão distraído pelo medo que me envolvia
que não percebi que as árvores de garrafas estavam agora inclinadas em
minha direção. Um flash de azul me alertou.
Bem no fundo da maior garrafa da árvore, perto do topo, algo se
moveu. Se mexeu como óleo sujo se movendo na água, e a única coisa
que eu queria fazer naquele momento era correr gritando de volta para
casa.
— Você não sabe quando foi derrotado, não é?
A voz estridente da Bebê Chiclete chamou minha atenção. Ela se
encostou nas árvores de garrafas, uma mão segurando a mochila, a outra
empurrada para dentro do tronco.
— Ei! — Eu gritei.
— Com quem você está gritando, garoto? Se a Bebê Chiclete
tivesse mais tempo, ela usaria sua pele, dos pés à cabeça. Mas você não
vale a seiva crocante da sola do pé da Bebê Chiclete, então saia com um
aviso.
— Devolva minhas coisas! — Eu disse, me forçando a me
aproximar dela e da árvore. O galho segurando a garrafa grande e
assustadora no topo da árvore parecia inclinar-se mais e mais.
Ela riu.
— Vá para casa, seu tolo! Aproveite os pequenos prazeres da vida,
como respirar e comer alimentos sólidos. — Ela se virou e deu um passo
mais para dentro do tronco. Uma alça da mochila havia sumido, indo para
onde quer que aquela pequena árvore bizarra levasse. A raiva fria me fez
cerrar os dentes, ignorar a sensação de mal crescendo na floresta e me
concentrar em recuperar o diário do Eddie.
— Olha, sua... sua... boneca de bebê! Devolva a mochila ou eu...
Bebê Chiclete congelou. Ela se virou lentamente para mim e
inclinou a cabeça.
— O que você disse?
— Devolva...
— Não, quieto, antes disso. Do que você me chamou?
Lambi meus lábios.
— Uh... nada. Eu só queria o diário do meu...
— Ah não, não foi nada. Não pode ser nada agora. Você disse
alguma coisa. Você deixa as palavras saírem da sua boca e precisa
defendê-las. Enquanto tiver pernas para se sustentar, de qualquer
maneira. Então vamos, garotão, o que disse? Huh? O QUE VOCÊ
DISSE?
O vento diminuiu e as árvores de garrafas se endireitaram
novamente, como se a floresta quisesse ouvir minha resposta. Olhei em
volta, de repente desejando uma testemunha ou um escudo.
— Hum, eu só, quer dizer, posso ter dito ou chamado você de
boneca...
Bebê Chiclete saltou em minha direção com um grito assassino.
— CHAME BEBÊ CHICLETE DE BONECA, chame? ATAQUE DE
SEIVA! DOIS ATAQUES DE SEIVA! A BEBÊ CHICLETE ESPERA QUE
SUAS MÃOS grudem NO ROSTO PARA SEMPRE E VOCÊ TENHA QUE
COMER COM OS COTOVELOS. TRIPLO ATAQUE DE SEIVA, SEU…
SEU... CABEÇÃO GIGANTE COM CARA DE TARTARUGA!
— Ow, pare com isso! — Eu caí para trás enquanto ela subia pelas
minhas pernas e no meu peito. Ela desencadeou um ataque em
miniatura, e levou tudo que eu tinha para me proteger enquanto seus
pequenos punhos e pés me socavam. Finalmente, eu golpeei Bebê
Chiclete com minha mão, mas ela se levantou e correu para mim
novamente. Peguei uma alça da mochila, ignorando o resíduo pegajoso
que esmagava minhas mãos, e puxei-a para fora da árvore, cambaleando
para trás. Bebê Chiclete se agarrou à outra alça, e o jogo mais estranho
de cabo de guerra aconteceu no meio da clareira.
— Solta!
— Solta você! Bebê Chiclete está em uma missão.
— Uma missão? Que missão?
— Não é da sua conta, idiota!
Girei a mochila, tentando desalojar a ladra, mas Bebê Chiclete
segurou com uma determinação implacável. Eu bati no chão, girei sobre
minha cabeça, mas não importava o que eu fizesse, não conseguia
desalojá-la. Deixei um grunhido de frustração escapar e corri em direção
das árvores de garrafas.
Bebê Chiclete bateu as asas atrás de mim.
— Oh, você está fugindo é? É melhor que sim! Bebê Chiclete
estava prestes a… Ei, o que você está fazendo?
Eu balancei a mochila em um círculo e a bati — e Bebê Chiclete —
contra o tronco. Ela gritou, e se enrolou com ainda mais força na alça.
— Espere, pare com isso, tolo! Você vai danificar a árvore!
— Eu não me importo — rosnei. — Me dê minha mochila! — Eu a
lancei na árvore novamente.
As garrafas tremeram e tilintaram juntas, ecoando como sinos de
vento assombrados. Comecei a girar de novo para uma batida ainda mais
pesada.
— Não, seu idiota, você vai fazer com que nós dois...
— Cale a boca, cale a boca, cale a boca! — Eu gritei. Peguei um
punhado da mochila, fechei meu punho ao redor da alça e soquei as
árvores de garrafas com todas as minhas forças.
Crack
O soco atingiu a grande garrafa azul perto do topo, quebrando o
vidro. A mochila rasgou, o diário de Eddie caiu para fora e uma luz verde
brilhante queimou em um flash ofuscante.
Calor.
Vento.
Tudo explodiu de uma vez.
Mas, por baixo de tudo, ouvi uma risada sinistra. A pressão em
meus ombros desapareceu de repente. Com o canto do olho, vi uma
forma sombria escorrer do que restou da garrafa quebrada no chão e
rastejar pela grama. O vento uivava de agonia, a floresta rugia de dor e
um abismo se abriu ao pé da árvore. Um som gigante de sucção encheu
a clareira, como o ar correndo em direção a um buraco.
A fissura se dividiu e cresceu, como aquelas cenas em filmes de
desastre quando um terremoto quebra as ruas e persegue o herói.
Tentei fugir, mas o rasgo na terra se alargou para revelar um túnel
de fogo vermelho como carvão. Queimava como mil sóis e, em sua borda,
algo brilhava em um verde suave.
Respirei fundo.
O diário de Eddie balançou precariamente.
— Não! — Eu gritei, enquanto Bebê Chiclete gritou: — As histórias!
Bebê Chiclete saltou da mochila para o livro.
Sem pensar, eu também mergulhei, desesperado para resgatar o
diário do Eddie das chamas e da Bebê Chiclete.
Meus dedos roçaram a capa assim que Bebê Chiclete colocou a
mão pegajosa sobre ela. Comecei a gritar com ela, mas então percebi,
tarde demais, que estávamos caindo.
Nós caímos no corte brilhante no chão. Despencamos sem
desacelerar nem um pouco, girando e girando em velocidades
estonteantes. Era como uma pia de raiva ardente, e estávamos descendo
pelo ralo.
Tentei gritar, mas o rugido de dor da floresta me afogou. Bebê
Chiclete agarrou meu pulso com força enquanto caíamos pelo que
parecia uma eternidade, despencando como pedras no redemoinho de
fogo.
DOR.
Confusão.
Medo.
Escuridão.
E então, ecoando ao meu redor, uma voz:
— Calma aí, calma aí... estou te segurando, grandalhão, estou te
segurando.
Um fósforo foi riscado e uma lanterna acendeu-se no alto. O brilho
amarelo suave não eliminou as sombras tanto quanto as delineou. Eu
estava deitado no meio de uma sala rústica, como o interior de uma
cabana ou um galpão de madeira. Quem estava falando? Não conseguia
distinguir muito, exceto pelas sombras e aquela lanterna.
Água pingava do teto e o cheiro de pântano velho e vegetação
podre enchia o ar. Meus olhos começaram a lacrimejar e tossi quando os
vapores entraram em meu nariz e pulmões.
— Calma aí, Tristan. Esse é o seu nome, certo?
— Q-quem é você? — Eu perguntei no meio da tosse.
— Ah, cara, não sou ninguém. Só não queria que você caísse para
a morte, só isso. Eu te salvei, assim como você me salvou.
Meu peito queimou, mas me levantei e enxuguei as lágrimas dos
meus olhos.
— Onde você está?
Uma sombra destacou-se do resto, mas não tinha forma. Escoou
para cima e estremeci quando uma pressão familiar se reuniu em torno
de minhas omoplatas. Essa era a coisa da floresta das árvores-garrafa,
da garrafa quebrada. Eu reconheceria esse sentimento de desespero em
qualquer lugar.
— Eu te salvei? — Perguntei.
— Sim, Tristan, então eu tive que retribuir o favor. Eu estive
esperando por você. Você tem algo que eu preciso, e se trabalharmos
juntos, caramba, este mundo inteiro pode ser nosso. Eles não saberão o
que os atingiu. Mas estou me adiantando. Por que você não me entrega
aquele seu livro e podemos começar.
— Livro? — Eu balancei minha cabeça e congelei. O diário do
Eddie. A luta. Bebê Chiclete. Eu me virei, procurando o pequeno terror e
minha mochila, mas tudo que vi foi escuridão.
— Sim. O livro. — A voz passou de suave para impaciente. —
Cadê?
— Eu-eu não sei. — Abaixei minha cabeça em minhas mãos. — Eu
o perdi. Preciso encontrá-lo.
Um grunhido ecoou pela sala antes de se transformar em um
ronronar suave.
— Siiiim. Faça isso. Eu preciso daquele livro, Tristan, então quando
você o encontrar, traga-o para mim, e podemos começar a festa, ouviu?
Não conte a ninguém, garoto, e não perca tempo... Não, não tente brincar
comigo nem um pouco. Porque eu saberei.
O vento assobiava em meu ouvido e minhas roupas balançavam
como se uma grande rajada estivesse soprando.
— Espere, onde estou? Quem é você?
Por que todo mundo estava atrás do diário do Eddie? Por que
essa... coisa precisava tanto disso?
— Nós salvamos um ao outro, então somos praticamente parentes.
— A voz começou a desaparecer com o vento uivante e eu mal pude ouvir
as palavras finais. — Apenas me chame de Tio A.

— Tristan! Tristaaaan!
Eu estava caindo de novo. Fosse o que fosse aquele lugar, quem
quer que fosse aquela voz, tudo ficou no fundo da minha mente quando
abri os olhos para um pesadelo.
As costas de Bebê Chiclete estavam presas ao meu pulso como se
estivessem coladas lá enquanto continuávamos a descer pelo túnel de
fogo. Felizmente, ela estava segurando o diário verde brilhante de Eddie
como se sua vida dependesse disso. Girando abaixo de nós estava um
mar escuro e fervente, tão horripilante que até meus gritos começaram a
gritar. O vento açoitou minhas bochechas e tirou lágrimas dos meus
olhos. Eu os fechei com força. O que quer que fosse acontecer a seguir,
aconteceria — eu não precisava ver.
Splash!
O impacto tirou o fôlego dos meus pulmões. Minha pele formigou.
A temperatura da água borbulhava alguns graus acima do confortável —
não escaldante como eu temia, mas quente o suficiente para me
assustar. Em pânico, abri a boca para gritar de surpresa e a água jorrou
para dentro. Engoli por acidente e queimou na descida. Nade! Eu disse a
mim mesmo. Nade, Tristan, ou você já era.
Forcei meus olhos a abrirem e tentei descobrir qual direção era para
cima. Uma luz embaçada piscou à distância. Minhas pernas me chutaram
em direção a ela por conta própria, meus pulmões gritando por ar, e eu
arranhei meu caminho para o que esperava ser a superfície. Formas
sombrias passaram rapidamente e — ah, cara — algo viscoso roçou meu
tornozelo.
Eu já tinha chegado a esse ponto. Era assim que Tristan Strong
encontraria seu fim? Em uma banheira gigante e suja de água quente?
Bem quando eu pensei que não poderia ir mais longe e meu peito
parecia que ia explodir, minha cabeça apareceu na superfície. Tossi e
gaguejei.
— Vou vomitar!
Minha boca tinha gosto de centavos velhos e leite morno estragado.
Sim... pense nesse sabor.
— Bebê Chiclete? — Eu gritei com voz rouca. Chutei e remei,
fazendo o meu melhor para pisar na água enquanto sugava o ar e olhei
ao redor em confusão. — Bebê Chiclete, onde...?
A pergunta morreu na minha língua enquanto eu olhava ao meu
redor.
Incêndios ardiam no mar. Não pequenos incêndios, mas sim
paredes maciças de chamas que se espalhavam pelo ar. A corrente
carregava infernos por toda parte, e suas chamas brilhantes
transformavam a água em redemoinhos laranjas e vermelhos.
O vapor sibilava da superfície e se acumulava nas nuvens alguns
metros acima da minha cabeça. Através de uma pausa ocasional na
névoa, pude ver que ainda era noite. E lá, bem no alto, o túnel de fogo
pelo qual caímos marcava o céu.
Eu olhei para baixo. As luzes piscaram nas profundezas e, a
princípio, pensei que fosse o reflexo das estrelas. Então vi uma longa
sombra passar por baixo de mim — um leviatã de alguma forma iluminado
por baixo — e engoli em seco.
Onde diabos nós caímos?
— Língua Solta! — O grito veio atrás de mim. — Socorro! Bebê
Chiclete não sabe na-glublublub. Bebê Chiclete não sabe nadar!
Eu desviei meus olhos da forma abaixo e virei minha cabeça. Com
certeza, lá estava a pequena ladra, se debatendo na água a uma curta
distância. Eu remei, um milhão de perguntas lutando para ser a primeira
a sair da minha boca.
Bebê Chiclete flutuou em suas costas, abraçando o diário com força
como um colete salva-vidas. Suas perninhas chutaram
desamparadamente no ar, e um pequeno fogo queimou em um pé. Joguei
água nela para apagar a chama, depois peguei o diário e o ergui — com
Bebê Chiclete ainda presa nele — da água com uma das mãos. Eu
esperava que não estivesse arruinado. (O livro, não a boneca. Ela poderia
flutuar ali para sempre, pelo que me importava.)
— Estava na hora! — Bebê Chiclete, agora pendurada por baixo,
tossiu e olhou para mim. — Por que demorou tanto? Bebê Chiclete não é
um peixe. Vamos, temos que...
— Onde estamos? — Eu perguntei, interrompendo-a.
— O quê?
— Onde estamos? O que aconteceu? Você viu uma coisa sombria,
com a voz e os cheiros, antes de cairmos na água? Por que estou
flutuando em um oceano de fogo, por que há estrelas embaixo de nós e
o que aconteceu com minha mochila?
Bebê Chiclete acenou com um braço e uma bola úmida de seiva
caiu no mar.
— Shh. A Bebê Chiclete não sabe do que você está falando metade
do tempo, e na outra metade ela não tem paciência. Não há tempo para
responder a todas essas perguntas. Bem, talvez haja, mas você me
drena. Como um canudo. Aí vem você e fwoop! Toda a minha energia se
foi.
Rosnei e sacudi o diário. Ela quase se soltou.
— Tá bom, tá bom! Pare de me sacudir. Bebê Chiclete não está tão
bem.
Mais seiva caiu como se para provar seu ponto. Enquanto
continuava a me firmar na água com apenas um braço, agradeci pelo
treinamento de natação do meu pai. Ele costumava me fazer dar voltas
na piscina do centro comunitário local quando estava frio demais para
correr.
Inclinei a cabeça, tentando tirar a água dos ouvidos, e por um
segundo pensei ter ouvido batidas de tambor e palmas. Mas isso era
bobagem. Voltei-me para a minha pequena companheira pegajosa.
— Onde. Nós. Estamos? — Perguntei novamente com os dentes
cerrados.
— Shh. Bebê Chiclete está tentando te dizer, agora não é hora para
falar. Se eles nos ouvirem, estamos com problemas.
— Eles? Quem são eles?
Foi aí que um respingo soou ao longe, e Bebê Chiclete me calou
novamente. Ela olhou para o fogo e a névoa, seus cachos pretos úmidos
colados em sua cabeça de madeira entalhada. Depois de um segundo,
ela relaxou.
— Não pode falar tão alto — ela murmurou.
Eu não sabia se ela estava falando comigo ou consigo mesma, mas
de qualquer forma, não era reconfortante. Pisquei o sal dos meus olhos
e cuspi outro gole de água ácida do mar. Vou precisar de oito frascos de
enxaguante bucal depois disso, pensei.
— O que é este lugar? — Perguntei. — Algum tipo de lago salgado
subterrâneo? Não achei que o Alabama tivesse isso.
— O quê? Não. — Bebê Chiclete pareceu surpresa, como se eu
devesse saber. — Isto não é nenhum Alabama, seja lá onde for.
— Talvez Mississippi, então?
— Eu não conheço nenhuma dona Ippy, e você pode dizer a ela
que Bebê Chiclete disse isso.
— Não, isso não é...
— Olha, chega de ficar batendo papo. Precisamos nos apressar
antes que...
Houve outro respingo, depois outro que pareceu ainda mais perto,
e Bebê Chiclete congelou.
— Eles estão vindo — ela sussurrou.
— Quem são eles?!
Um som ondulante ecoou pela água. Nós dois nos viramos para ver
uma coluna de fogo flutuante curvando-se através da água em nossa
direção, e a cada segundo ganhava velocidade. As ondulações que fez
se transformaram em ondas cheias de chamas quando uma forma longa
e nodosa cortou a superfície e o ar.
Meus olhos quase caíram.
— Meu Santo...
— Navio! — Bebê Chiclete gritou.
Uma embarcação diferente de qualquer outra que eu já vi antes
surgiu das profundezas. Seu casco era formado por duas mãos brancas
gigantes em concha, as pontas dos dedos se tocando na proa. Os nós
dos dedos nodosos se projetaram ao longo do lado. Não tinha vela,
apenas um único mastro descoberto que se projetava no meio do navio,
uma torre em forma de adaga que cortava as cortinas de vapor. Ninguém
podia ser visto no convés. Era apenas um estranho navio de mão do
tamanho de um iate, navegando sem capitão, rugindo por um mar
flamejante em nossa direção.
Ah, e não era feito de madeira pintada, como eu pensava.
— São ossos! — gritei para Bebê Chiclete.
— Pare de gritar e comece a nadar, idiota!
O navio assustador rangeu ao tombar para o lado, virando-se para
descer sobre nós. Sons horríveis flutuavam até nós através das ondas:
mil sofredores gemendo e gritando. Desesperados. Enfurecidos.
Assustados. Famintos. Eu não sabia quem — ou o quê — estava fazendo
o barulho, mas não planejava ficar por aqui para descobrir.
Eu tremi apesar da água quente, me debatendo com um braço, o
outro apoiando o diário do Eddie e a Bebê Chiclete.
— Eu não posso nadar e segurar você — disse.
— Entregue as histórias e coloque Bebê Chiclete nas suas costas.
Agora!
— Nas minhas costas? Eu não sou...
— Coloque a Bebê Chiclete nas suas costas, Língua Solta! Pare de
tagarelar e mexa-se!
Engoli várias palavras raivosas bem escolhidas e coloquei Bebê
Chiclete em meus ombros. Não confiava nela com o diário de Eddie, mas
o navio estava vindo em nossa direção e eu precisava de ambas as mãos
livres.
— Se você perder esse livro — disse eu —, ou fugir com ele de
novo, irei transformá-la em um porta-incenso.
Bebê Chiclete deu um tapinha no topo da minha cabeça.
— Shh, peixinho. Apenas nade em direção à nuvem de vapor
quando Bebê Chiclete disser para ir. Essas coisas não se viram
facilmente, então até mesmo sua cauda empoeirada deve ser capaz de
escapar.
Eu odiava aquela boneca. Eu odiava com uma paixão ardente.
— Preparar…
O navio gemeu para nós. Era um predador branco e afiado,
deixando atrás de si fontes de fogo.
— Apontar…
Lambi meus lábios.
— Bebê Chiclete, está quase...
Ela bateu na minha nuca.
— Shhh, idiota! Nós temos uma chance nisso. Navios de ossos
parecem assustadores, mas você pode evitá-los facilmente se souber
como.
Ah, ótimo, eles até eram chamados de navios de ossos. Isso não
tornava as coisas melhores.
Bem quando parecia que estávamos a momentos de ser
esmagados, bem quando a frente do navio de ossos — sem chance! —
se abriu, as pontas dos dedos baixando para nos pegar... Bebê Chiclete
gritou em meu ouvido:
— Vai, vai, vai!
Meu corpo respondeu ao comando antes que eu pudesse protestar.
Papai costumava gritar a mesma coisa para mim do lado da piscina
quando eu dava minhas voltas. Eu dei um chute poderoso, minhas pernas
cortando a água e me lancei para frente. Não olhei para trás, mas sabia
que o navio estava perto. A onda que estava criando quase me puxou
para baixo. Eu lutei, meus braços entrando e saindo da água como meu
pai havia me ensinado, e então o navio passou por nós. Nós estávamos
seguros.
— Para lá! — Bebê Chiclete gritou, apontando.
Uma espessa nuvem cinza-esbranquiçada de vapor pairava à
frente. Flutuava sobre um local calmo logo além das ondas e, felizmente,
nenhuma fogueira estava queimando nas proximidades. Cavei fundo para
obter um pouco mais de energia e chutei para frente. Outro gemido ecoou
sobre a água, tirando minha mente de como meus braços pareciam
pesados. Exaustão e batidas livres descansando nas entranhas de um
esqueleto de navio, entendeu?
Bebê Chiclete deu um tapinha na minha cabeça quando nos
aproximamos.
— Bom peixinho. Entre lá e espere até...
Um gemido estridente — ainda mais alto, mais profundo e mais
assustador do que o primeiro — soou bem na nossa frente. Eu podia
senti-lo através da água, no meu peito, e eu joguei meus braços para fora
e flutuei até parar.
Bebê Chiclete guinchou e algo rolou pelas minhas costas.
— Por favor, me diga que isso foi seiva — eu sussurrei, entrando
na água.
— Hm, ok.
Eu não conseguia nem ficar com raiva. Eu estava muito cansado.
Muito drenado. Com muito medo que...
Outro navio de ossos saltou da espessa nuvem de vapor à nossa
frente. Fiapos nublados se agarraram a ele como teias de aranha.
Embora tivesse quase o mesmo tamanho que o primeiro, sua forma
horrível o fazia parecer maior.
Era a mandíbula de algum réptil enorme. Longa, fina e pálida,
cortava o mar como uma lancha. Fios de algo que eu não queria olhar
muito de perto se arrastavam por entre seus dentes enormes. A água do
mar flamejante escorria pelas laterais, e soltou um berro de
esmagamento de almas quando começou a ganhar velocidade.
Com o canto do olho, vi outra faixa branca na água. Um terceiro
navio emergiu de baixo, como um submarino de um show de terror. Este
navio de ossos parecia uma caixa torácica, ossos curvos se curvando
enquanto saía do mar.
O primeiro navio, Mãos de Ossos, circulava atrás de nós.
Estávamos presos.
— Bebê Chiclete, para onde eu vou? O que eu faço?
Silêncio.
Eu podia sentir Bebê Chiclete deitada entre minhas omoplatas,
tremendo.
— Bebê Chiclete, levante-se! O que eu faço? Para onde vou?
Os três navios se aproximaram. O Costelas sacudiu quando se
aproximou. O Maxilar continuou a nos explodir com aquele rugido
profundo. Virei-me para ver o Mão novamente, a boca faminta entre as
pontas dos dedos escura e fétida. Um coro de gemidos torturou meus
ouvidos enquanto uma rajada de ar quente e podre arranhou minhas
narinas.
— Bebê Chiclete, o que...?
Um apito agudo cortou a noite.
Bebê Chiclete saltou de pé e subiu no topo da minha cabeça.
— Bebê Chiclete não está acreditando! — Ela disse, sua voz
animada.
— O quê?
— Estamos salvos!
— Salvos? Como?
Mas ela não respondeu. Em vez disso, pulou para cima e para baixo
na minha cabeça e começou a gritar com toda a força de seus pequenos
pulmões. Eu não sabia que bonecas bebês tinham pulmões.
— AQUI! — Sua voz estridente, e seus pés minúsculos batendo no
meu crânio, me fizeram estremecer. — ESTAMOS AQUI EMBAIXO!
Nada aconteceu.
Os navios de ossos se aproximaram, prendendo-nos, e eu olhei em
volta desesperadamente por alguma maneira de escapar. Eu poderia
mergulhar debaixo deles, mas o diário de Eddie (e sim, eu acho, a
criaturinha irritante e pegajosa segurando-o) seria difícil de segurar
enquanto eu nadava. Além disso, minhas pernas pareciam âncoras a
essa altura, e aqueles navios tinham vindo do fundo do mar — não havia
como dizer quantos mais deles espreitavam abaixo. Eu não poderia evitá-
los por muito mais tempo.
O Mãos avançou, a segundos de distância de me afunilar para
dentro...
Algo espirrou na água ao meu lado.
— Pegue a corda!
A voz — de uma garota — saiu do ar acima de nós. Uma jangada
gigante de madeira do tamanho de um ringue de boxe flutuou no céu
noturno, uma corda pendurada em sua borda. Uma risada histérica
borbulhou em meu peito. É claro. Uma jangada voadora. Por que não
pensei nisso?
— Pega, pega! — Bebê Chiclete gritou, e eu me lancei contra a
linha grossa. Senti a boneca rastejar para dentro do meu capuz
encharcado, bem na hora. A corda ficou esticada e quem quer que
estivesse na jangada nos puxou para cima. O mastro afiado do Mãos por
pouco não deixou de cortar a sola do meu pé, e então estávamos livres,
voando pela noite.
A PRIMEIRA COISA QUE VI quando rolei para a jangada foi um
cajado entalhado. Sua ponta dourada, um rosto torcido em um rosnado,
olhou para mim.
— Quem é você? — a proprietária do cajado exigiu.
Fiquei olhando para a ponta, que se movia de um lado para o outro
hipnoticamente, como uma cobra se preparando para atacar.
— Uhh…
— Não vou perguntar de novo. Quem é você?
— Meu nome é Tristan — eu disse. — Tristan Strong.
— Tristan Strong. Hmph. Bem, Tristan Strong, o que você está
fazendo no Mar Flamejante? Você poderia ter nos arrastado para uma
situação desagradável tentando resgatá-lo.
— Desculpa.
— Desculpa não alimenta os famintos. — O cajado abaixou,
entretanto, e eu finalmente saí do meu transe e vislumbrei quem o estava
segurando.
Uma garota baixa e redonda com pele marrom-mel e pulseiras de
cobra de ouro enroladas em seu braço olhou para mim. Ela parecia ter a
minha idade, talvez um ano mais velha. Seu cabelo estava puxado para
trás em duas tranças grossas que desapareciam atrás de sua cabeça, e
ela usava uma regata dourada sem mangas, calça preta com
acabamento dourado que batia no meio da panturrilha e sandálias
marrons com tiras de contas amarradas nos tornozelos.
Alguém — não, vários alguéns — amontoavam-se atrás dela na
outra extremidade da jangada. Um grupo de cerca de uma dúzia se
agrupou, todos usando mantos cinza longos e encardidos com capuzes
que escondiam seus rostos. Eles pararam entre sacos de couro
amarrotados e se agarravam desesperadamente aos corrimãos de corda
nas laterais da jangada. Meus olhos mudaram entre eles e a garota.
— Bem, levante-se — ela ordenou.
Eu me levantei devagar. Minhas pernas balançavam como
espaguete molhado e eu mal conseguia levantar os braços. Cansado
nem começava a descrever. Parecia que tudo, da Bebê Chiclete à Árvore-
Garrafa, ao estranho homem das sombras, ao Mar Flamejante e aos
navios de ossos, estava empilhado em uma torre vacilante em minha
mente. A qualquer segundo agora, tudo desmoronaria e me enterraria em
confusão.
Às vezes, você só precisa lutar contra o seu cérebro.
— Quem é você? — Perguntei à garota quando comecei a puxar a
corda que me salvou, enrolando-a em um braço. — De onde todos vocês
vieram?
— Por que você é tão intrometido? — Ela perguntou.
— Desculpe, eu...
— Não se preocupe, não temos tempo para isso. Apenas fique
quieto antes que eu te jogue de volta.
Obedeci.
Uma das figuras encapuzadas na retaguarda mudou de posição.
— Ayanna, devemos ir.
A garota bufou e se virou. Quando ela passou, senti a Bebê Chiclete
se erguer no meu capuz.
— Ayanna? É... é você? Como…? Por que…? Você tá tão grande!
— Bebê Chiclete! — Ayanna caiu de joelhos e tirou a boneca do
meu moletom para um grande abraço. — Como você…? Onde você
esteve? Te procuramos em todos os lugares. Estávamos muito
preocupados. Era pra você ter voltado logo!
— Bebê Chiclete só queria ficar por algumas horas, mas o Língua
Solta aqui era egoísta e insistia em ir junto. E então houve toda a briga
por este livro — ela ergueu o diário encharcado — e...
— Algumas horas? — Ayanna segurou Bebê Chiclete com o braço
estendido e olhou para ela. — Bebê Chiclete, você está fora há um ano.
O que...?
— Ayanna! Navios de ossos! — O passageiro mais alto se inclinou
sobre a lateral da jangada e apontou para o Mar Flamejante abaixo de
nós. — Lá! —, ele chamou em um latido de dor. Outros esticaram o
pescoço para ver, mas eu encarei aquele que havia feito o aviso.
Devo estar cansado. Meio adormecido, até. Mas seu braço parecia
estar... coberto de pelos.
Mas não havia tempo para se demorar nisso. Ayanna colocou Bebê
Chiclete no chão e, com a promessa de que conversariam mais tarde,
correu para a retaguarda e enfiou o cajado em um nó.
— Segurem-se! — avisou.
Todos agarraram as cordas e meus olhos se arregalaram.
— Espere...
Mas era tarde demais. Com um golpe do bastão de Ayanna, a
jangada saltou para frente e eu tombei de cabeça para baixo, caindo em
uma pilha de tecido. O que está impulsionando essa coisa?
— Oomph! — Alguém me empurrou para longe. — Cuidado!
— Desculpe —, eu murmurei, mas quando me virei para encontrar
os olhos sob o capuz, eu congelei. Eles brilhavam amarelos. E isso era
um... focinho?
— O que...?
Mas a pessoa — tinha que ser uma pessoa — se virou quando um
flash laranja brilhante queimou o céu noturno.
Ayanna empalideceu.
— Por que há tantos navios? — Ela sussurrou.
Olhei para o rosto dela, engoli em seco e, em seguida, recuei e
espiei pela borda da jangada.
— Meu santo pêssego — eu disse baixinho.
Navios de ossos enxameavam embaixo de nós como tubarões
farejando sangue. O Mãos, Costelas e O Maxilar — estavam todos lá,
mas havia mais também. Eles lutavam e se acotovelavam para chegar
bem debaixo da jangada, como se a qualquer momento nós caíssemos
do ar. O mar ficava cheio de luz cada vez que um navio colidia com outro,
e o impacto soava como um trovão. As chamas subiram como lava de um
vulcão em erupção, e mais de um grito ecoou ao meu redor. Ayanna
tentou desviar e seguir em frente, mas outra explosão quase chamuscou
a frente da jangada.
— Jogue alguns desses pacotes de suprimentos no mar — Ayanna
instruiu alguém. — Temos que subir. Estou interrompendo a procura e
voltando para casa. — Parecia que as palavras doíam quando ela girou
a jangada.
A procura? O que eles estavam procurando? Não o diário...
Bebê Chiclete ainda o segurava debaixo do braço enquanto se
agarrava ao corrimão, olhando em volta confusa.
— Bebê Chiclete ficou fora um ano inteiro? — Ela murmurou para
si mesma. — Isso não está certo.
Inclinei-me para olhar para o mar violento, depois sentei-me com
pressa e rezei para que fôssemos ainda mais rápido.
— Bebê Chiclete, quanto tempo você demorou para ir... deste lugar
para a fazenda dos meus avós? Demorou meses?
— Não! Segundos, minutos, talvez. Bebê Chiclete disse que ela se
move como o vento. — Ela esfregou o rosto em confusão. — Não faz
sentido.
— Bem, para onde estamos indo agora?
— Voltando — disse ela, sua voz estridente baixa e triste. — De
volta ao Arvoredo.
— Onde é isso?
Bebê Chiclete apontou para uma linha esfumaçada ao longe, quase
invisível além das chamas na água. Daqui, parecia uma mera mancha no
horizonte.
Mordi meu lábio.
— É muito longe — eu disse. — Os navios vão nos pegar antes...
Bebê Chiclete balançou a cabeça.
— Ayanna consegue fazer isso.
— Espero que você esteja certa — murmurou uma voz baixa atrás
de nós.
Todos os passageiros se abraçaram enquanto Ayanna persuadia e
implorava à jangada por mais velocidade. Os navios de ossos se moviam
lentamente, mas outros continuavam surgindo das profundezas de cada
lado abaixo de nós. Apenas quando parecia que tínhamos deixado alguns
perseguidores para trás, outros três ou quatro saltaram para fora da água
como os restos desenterrados de monstros pré-históricos. Ou zumbis
marinhos. Sim, zumbis marinhos. Eles gemeram de fome e se juntaram
à perseguição.
Finalmente, depois que a última sacola de suprimentos caiu para o
lado, e bem quando eu estava me perguntando a que distância seria até
o oceano, começamos a ganhar velocidade. Os navios ósseos foram se
afastando cada vez mais atrás de nós, até que finalmente desapareceram
nas chamas. Vários passageiros exalaram de alívio, mas meus músculos
não relaxaram e comecei a tremer.
— Você está com frio? — Ayanna perguntou. — Nós temos
cobertores...
— Não, estou bem. — Eu não queria dizer a ela o verdadeiro motivo
de estar tremendo. Eu não me dou bem com alturas. Especialmente em
uma jangada voadora sem cintos de segurança e com cordas frágeis
como corrimão. Mas parecia bobo reclamar disso depois de quase ser
engolido por um esqueleto enorme.
Continuamos deslizando até que a linha de fumaça branca se
tornou uma mancha turva, depois uma cortina de névoa. Finalmente, o
contorno vago de uma costa apareceu. Estendia-se muito e se curvava
levemente à distância, desaparecendo na névoa.
Depois que todos se acomodaram e alguns passageiros até
começaram a conversar entre si, cheguei mais para perto da Bebê
Chiclete e me inclinei.
— Aqueles navios lá atrás... O quê...? Como...? — Eu parei,
tentando colocar minhas palavras juntas e meu tremor sob controle. — O
que eram essas coisas?
Bebê Chiclete cutucou uma mancha de seiva nas calças.
— Todo mundo os chama de navios de ossos.
— Mas o que são eles?
— Necrófagos — Ayanna interrompeu. — Abutres. Senhorita... uh,
alguém que conheço os chama de ecos de um pesadelo de outro reino.
Mesmo assim, eles são mais um incômodo do que um perigo real. Pelo
menos costumavam ser. Eu já os vi se agruparem antes, mas nunca
assim.
— Mas os sons. As pessoas que ouvi gemendo...
— São apenas ecos. Nada está vivo nessas coisas, acredite em
mim. Você acabou de ouvir memórias de uma época diferente, uma
época ruim.
— Memórias do quê?
Mas ela me dispensou.
— Agora não. Estamos quase lá.
A jangada diminuiu a velocidade e começou a ficar cada vez mais
baixa. À medida que andávamos por entre nuvens brancas e finas,
árvores mortas sem folhas apareceram, inclinando-se para fora da água
como lanças. Ayanna acenou para que todos nós nos aproximássemos.
— Juntem tudo que puderem. Nós chegamos à parte rasa,
podemos caminhar até a costa a partir daqui. Prefiro pousar agora do que
tentar navegar por aquela névoa e aquelas árvores. Deixem o que não
podem carregar, ou qualquer coisa que possa atrapalhá-los. Vão para as
árvores, sigam as placas e estaremos de volta ao arvoredo antes que
percebam.
Comecei a me mover para a parte de trás da jangada para sair do
caminho de todos, tentando não balançá-la. Ayanna olhou para mim,
depois para a Bebê Chiclete, que subiu no meu ombro, e balançou a
cabeça.
— Eu não sei o que vocês fizeram, ou de onde vieram, garoto, mas
você pode muito bem vir conosco também. Se Bebê Chiclete te trouxe,
isso o torna um de nós.
Eu tossi e Bebê Chiclete se mexeu no meu ombro, mas nenhum de
nós tentou discutir com ela. Eu encontrei os olhos da pequena boneca, e
um acordo tácito passou entre nós. Quando estivermos em segurança
explicaremos tudo. Tive a impressão, pela reação de Ayanna, de que
Bebê Chiclete tinha feito um pouco mais do que deveria.
Ayanna olhou para o mar.
— Eu nunca vi os asseclas do Maafa agirem assim.
— A Máfia? — Eu olhei dela para Bebê Chiclete — Por que...?
A jangada pousou no mar com um solavanco e um respingo,
fazendo-me tropeçar. Ayanna tapou a boca com a mão, como se tivesse
dito algo que não deveria, e foi até o centro da jangada, dando instruções.
— Bebê Chiclete? — Perguntei. — Por que a Máfia...?
— Não é a Máfia, é o Maafa!
— Ah. O que é o Maafa?
— Shh. — Bebê Chiclete acariciou minha cabeça distraidamente e
examinou a área. A cortina de névoa pairava a cerca de cem metros de
distância. Tão perto, porém tão longe.
— Garoto! Ei! — Ayanna acenou para mim. — Nós precisamos da
sua ajuda.
— O nome é Tristan. Não garoto!
— Tristan, então. Estamos na parte rasa, mas a água ainda é muito
funda para alguns dos Povos Médios.
— Povos Médios?
Ela gesticulou para as pessoas encapuzadas recolhendo suas
coisas. Dei de ombros. O que quer que os estranhos membros do culto
quisessem se chamar, não fazia diferença para mim. Mas alguns deles
eram pequenos, e eu não queria que uma corrente os arrastasse de volta
para onde os navios de ossos esperavam.
Às vezes você só precisa entrar na festa, por mais estranho que
seja.
— O que você precisa que eu faça? — perguntei, arregaçando as
mangas do meu moletom.
— Você e BR pulam para o lado. Vocês dois são os maiores. Vou
manter a jangada longe das chamas, peguem a corda e nos arrastem
para a costa.
A pessoa de olhos amarelos se adiantou, carregando uma trouxa
nos braços. Ayanna se aproximou para falar com ele.
— Tenha cuidado — disse ela em voz baixa. — Se você ficar
cansado...
— Farei a minha parte — disse a pessoa. Soou como um rosnado,
mas Ayanna não pareceu ofendida. Ela apenas acenou com a cabeça.
A pessoa estendeu o pacote para ela.
— Cuidado com a Cacau, sim? Ela ainda não se recuperou.
— É claro. — Ayanna o aceitou e embalou-o como uma mãe faria
com um bebê. — Ela está...?
— Ela está bem. Ela apenas... se assusta facilmente.
Bebê Chiclete ficou na beira da jangada e colocou as duas mãos
em volta da boca.
— Língua Solta! Vá para as árvores!
— Meu nome. É. Tristan.
— Tristan, Língua Solta. Tudo soa igual. Bebê Chiclete não
consegue acompanhar.
— Tente manter o diário fora da água desta vez — eu disse. Já tinha
ficado molhado uma vez e, embora não pudesse acreditar que estava
realmente confiando a ela, eu precisava de ambas as mãos livres.
— BR — disse Ayanna —, me dê sua capa. Ela vai te arrastar para
baixo.
A pessoa chamada BR acenou com a cabeça, então encolheu os
ombros para fora de sua roupa. Meu queixo caiu e eu engasguei com
minhas palavras.
— Santo. Pêssego.
Os olhos amarelos.
O focinho.
A pessoa com quem Ayanna falou... não era uma pessoa.
Minha mente se transformou em gosma.
101

— GAAAAAH — EU DISSE.
Uma raposa com pelo marrom-avermelhado, facilmente tão grande
quanto a própria Ayanna — a maior que eu já vi — deixou cair sua capa
na jangada. Aquela coisa — ele — ficou nas patas traseiras, e seu focinho
se contraiu em diversão irônica.
— Acho que o quebrei — disse BR a Ayanna.
BR. Brer Raposa.
— Gaaaaah — eu disse.
Bebê Chiclete balançou a cabeça.
— Viu? É por isso que você é o Língua Solta.
Ayanna jogou a corda em minha direção. A ponta me acertou na
testa e caiu sobre meu braço estendido, que apontava para o animal que
andava e falava à minha frente. Na verdade — eu dei uma rápida olhada
nas outras figuras encapuzadas e respirei fundo — ele não era o único.
Uma cauda espetada aqui. Uma asa ali.
— Gaaaaah.
— Ele fez isso com você também? — Brer Raposa perguntou a
Bebê Chiclete.
A bonequinha acenou com a cabeça tristemente.
— Bebê Chiclete se preocupa com ele. Ele é tão frágil.
Bonecas falantes.
Navios de ossos.
Mares Flamejantes.
Jangadas voadoras.
Raposas do tamanho de seres humanos.
— Gaaaaah.
Brer Raposa escorregou pela lateral da jangada com um
estremecimento, então agarrou a outra corda que Ayanna jogou para ele.
— Bem — disse ele, seus bigodes brilhando na noite —, vamos nos
salvar?
O gemido longo e triste de um navio de ossos flutuou sobre as
ondas. O som me empurrou para os meus sentidos — mais ou menos.
— Gaaaaah. — Eu balancei a cabeça, e nós dois começamos a nos
esforçar pelas águas rasas até a cintura, fugindo dos navios mal-
assombrados desesperados atrás de nós.

Nós avançamos pesadamente pelas águas rasas e nebulosas. A


altura da água baixou lentamente até que Brer Raposa e eu a espirramos
em vez de nos forçar. Grunhimos e rosnamos (adivinhe quem fez o quê)
enquanto arrastávamos a jangada para a frente. A névoa branca pairava
no ar como teias de aranha congeladas, e as chamas rugindo do Mar
Flamejante desbotavam enquanto um manto de silêncio misterioso nos
cobria.
— Onde estamos? — Perguntei a Brer Raposa.
— Na Floresta Afundada — ele disse, sua respiração ficando rápida
e pesada. — Por razões óbvias, você não acha?
A água pantanosa, espessa e nublada com sujeira, folhas e galhos,
cheirava e parecia horrível. Minhas meias respingavam, meu short estava
ficando verde pegajoso e eu nem queria pensar sobre como estavam
meus Chucks. Mamãe ia me matar quando eu chegasse em casa.
Se eu voltasse para casa.
Algo prendeu meu tornozelo e quase caí.
Minha mãe teria que entrar na fila.
— Um pouco mais longe — disse Ayanna da jangada. Ela falou em
um sussurro enquanto girava em torno de um toco de árvore irregular,
mas o som foi carregado pela água parada como um grito. — Fiquem
perto, todos. Tirem as capas. Precisamos de velocidade agora. Sem
tempo para discrição.
Bebê Chiclete pulou ao lado dela.
— Estamos seguros aqui, certo, Ayanna? Eles nunca chegaram tão
longe nas árvores.
— Quem são eles? — Perguntei. — Os navios de ossos?
Ayanna estremeceu, alguém engasgou e Bebê Chiclete balançou a
cabeça.
— Não, a menos que cresça algumas pernas neles. Não, é o...
— Shh, Bebê Chiclete — sussurrou Ayanna.
Ela olhou para trás por cima do ombro e eu fiz o mesmo, tentando
não ficar boquiaberto. Alguns dos Médios estavam nos observando,
enquanto o resto fingia estar ocupado. Eles haviam descartado suas
capas para revelar outros rostos peludos, junto com três pernas, e até
mesmo uma tartaruga. Também havia algumas crianças humanas.
Respirei fundo, mas, surpreendentemente, essa foi minha única reação.
Nesse ponto, todos eles poderiam ter começado fazer uma dancinha e
eu teria dado de ombros e me juntado a eles. A mente não só aguenta
tanta estranheza antes de aceitá-la como um novo normal.
Ayanna se voltou para mim.
— Chega de perguntas. Você vai assustar os outros. Prepare-se
para correr — disse ela — podemos conversar o quanto quisermos em
Arvoredo, eu prometo. Mas agora? Precisamos nos mexer.
Tentei acenar com a cabeça calmamente, embora meu rosto
estivesse queimando. Eu me virei e resolvi manter meus olhos à frente.
Uma risada soou à minha esquerda. Brer Raposa lambeu seu focinho
grisalho, e sua orelha esquerda se contraiu para frente. A direita estava
mutilada, como se algo a tivesse mastigado.
— Você não é daqui, suponho — disse ele. Não era uma pergunta,
mas eu balancei minha cabeça de qualquer maneira. — De onde, então,
se posso perguntar? Você tem a aparência do Povo da Crista, ou talvez
do Povo da Crescente, pensando melhor.
Mordi meu lábio e mantive meus olhos fixos em frente. Imagine
como você se sentiria falando com uma raposa. Isso lhe dá todos os tipos
de arrepios.
— Não conheço nenhum desses lugares — eu disse.
— Você não conhece os territórios de Alke?
— Quem é Alke?
Isso fez Brer Raposa tropeçar. Ele bufou e bufou, emitindo uma
tosse uivante, e levei um segundo para perceber que ele estava rindo.
— Quem-quem é Alke. Ah, isso é... isso é hilário. — Sua risada se
transformou em um chiado rouco, e ele parou de puxar a corda para se
curvar e tossir. Quando não parou, parei de puxar também.
— Brer Raposa? — Ayanna perguntou preocupada. — Você está
bem?
Ele acenou com a pata para ela, mas levou mais um ou dois minutos
antes de conseguir ficar de pé e respirar sem tossir. Ele respirou fundo,
assobiando, depois enxugou o focinho. Pegou a corda que flutuava perto
de suas patas traseiras e começou a puxar novamente.
Depois de alguns momentos, limpei minha garganta.
— Estou falando sério. Eu não sou... eu não conheço este lugar.
— De onde você é, então, se me permite a ousadia?
Meus olhos voaram para o céu, para o buraco que queimava como
um segundo sol, e ele seguiu meu olhar. Ele enrijeceu e suas orelhas se
achataram em seu crânio. O olhar que ele lançou para mim, como se
estivesse lutando para conter um rosnado, me fez estremecer.
— Você não acredita em mim? — Perguntei.
— Não. — A palavra saiu quase como um latido. — Não, muito pelo
contrário. Eu acredito em você.
— Sério? — Puxei a jangada em silêncio por mais alguns segundos,
então suspirei. — Eu não acredito muito nisso agora. Eu só... eu só quero
voltar?
Ele não respondeu, embora de vez em quando fitasse o céu e
depois olhasse ao redor. Achei que isso significava que ele não tinha a
menor ideia de como eu faria isso, e me arrastei de mau humor.
A água estava apenas na altura do tornozelo agora, e a névoa
clareou um pouco para revelar vislumbres de uma floresta extensa de
árvores cobertas de musgo. As trepadeiras pendiam de galhos baixos e
as raízes entravam e saíam da água, enquanto as copas das árvores
desapareciam em um branco borrado, como se algum cartunista supremo
tivesse esquecido de terminar de desenhá-las. O ar parecia denso e
úmido, e meu pescoço formigou como se alguém estivesse me
observando.
Brer Raposa me encarava enquanto eu tentava afastar o
sentimento.
— Bom. Você sente isso também. Cuidado, garoto. Ainda não
escapamos. Esse buraco no céu está fazendo com que criaturas muito
piores do que navios de ossos entrem em um verdadeiro frenesi. Você
quer saber como voltar de onde veio? Ficando vivo.
Engoli em seco e entramos na floresta.
Eu o observei com o canto do olho. Em seu auge, Brer Raposa teria
sido glorioso e temível. Mesmo agora eu podia ver traços de seu pelo
vermelho e prata através do cinza. Sua língua pendia enquanto ele
ofegava de exaustão, e seus dentes ainda pareciam perversos e afiados.
— Meu amigo — eu disse de repente —, costumava me contar uma
história.
— Bons amigos farão isso — comentou. — Mas eu teria medo de
contar a história completa aqui. Histórias são magias poderosas. Você vai
descobrir isso em breve. Melhor apenas resumir.
Eu balancei a cabeça, embora não entendesse inteiramente o que
ele quis dizer.
— Era uma história antiga. Um conto powular, na verdade. Sobre
um coelho, um urso... e uma raposa. O urso e a raposa faziam o possível
para pegar e comer o coelho, mas ele era muito esperto. Ele sempre
fugia.
Brer Raposa fez um barulho estranho com a garganta. Um tipo de
som tagarelante e lamurioso. Ele balançou sua cabeça.
— Muito esperto, de fato.
— Então...?
— Eu sou essa raposa? Hm. Suponho que sim.
Eu concordei.
— E o coelho e o urso?
— Suspeito que você verá Brer Coelho em breve.
Assim que ele disse isso, lembrei-me da visão no carro dos meus
avós. O coelho grande, cansado e machucado, ansioso e nervoso. Então
tinha sido real, e não um sonho como eu tinha assumido? Minha mente
girou. Primeiro a Bebê Chiclete, agora Brer Raposa e Brer Coelho. Todos
eles de histórias que Eddie reuniu, que minha vózinha contou, que eu li
de alguma forma enquanto crescia. E agora eu estava com os mesmos
personagens, arrancados direto de um livro.
Ou eu tinha sido jogado em um?
— E o urso?
A cauda da Raposa balançou com raiva, e ele mostrou os dentes.
— O urso não está aqui — foi tudo o que ele disse, e pronto.
A jangada encalhou — agora o Povo Médio teria que continuar a pé
até aquele tal Arvoredo. Onde quer que fosse, todos pareciam ansiosos
para chegar lá. Eu podia ler a esperança em seus olhos enquanto eles
ajudavam a se preparar. Ayanna sussurrou garantias reconfortantes, e
Brer Raposa e eu ajudamos no desembarque. Eu mantive meu rosto
neutro enquanto pegava as patas enrugadas e também as mãos marrons
como as minhas e levantei o Povo Médio da balsa. Uma velha corvo
fêmea rosnou seu agradecimento e saiu voando à frente com dois corvos
menores seguindo atrás dela, juntando-se ao resto quando começamos
a andar.
Algumas das poças no chão da floresta eram profundas demais
para a Bebê Chiclete, então ela viajou no meu ombro, ainda segurando o
diário, e gritando encorajamento.
— Aperte o passo!
— Isso não é uma viagem de campo!
— Não faça a Bebê Chiclete colocar um pouco de energia em seus
passos, ah, desculpe Ayanna. Não sabia que era você.
Com a Bebê Chiclete berrando no meu ouvido, recuei para verificar
uma velha tartaruga do tamanho de um prato de jantar ( “Me chame de
Tarrypin, filho. O Sr. Tartaruga é meu papai.”) Que estava lutando para
escalar uma raiz parcialmente submersa. Eu o levantei, então nós
corremos atrás do resto do grupo.
Ayanna balançou a cabeça.
— Como você e a Bebê Chiclete se juntaram deve ser uma bela
história.
Bebê Chiclete saltou no meu ombro e quase caiu quando eu saltei
um toco.
— O quê, ele? — ela disse. — Bebê Chiclete mal conhece o cara.
Dei de ombros sem avisá-la, e a bonequinha tombou para trás. Ela
conseguiu agarrar meu capuz e gritou comigo em sua voz estridente.
— LÍNGUA SOLTA, BEBÊ CHICLETE VAI GRITAR COM VOCÊ
COMO SE SUA BUNDA ESTIVESSE PEGANDO FOGO! ISSO NÃO É
ENGRAÇADO! VOCÊ VAI PAGAR, VOCÊ OUVIU A BEBÊ CHICLETE?
— Shh, gente! — Ayanna sussurrou, mas um pequeno sorriso
apareceu em seu rosto.
Bebê Chiclete conseguiu voltar para seu poleiro no meu ombro,
onde sussurrou outras ameaças horríveis em meu ouvido. Então ela
largou o diário de Eddie no meu capuz, pulou nas costas de Tarrypin e
fez gestos rudes para mim com suas pequenas mãos esculpidas
enquanto os dois se arrastavam atrás dos demais. Revirei os olhos e
coloquei o diário no bolso da minha bermuda cargo. O sorriso de Ayanna
se transformou em um sorriso largo.
— Ela é meio maluquinha — disse.
— Sim, ela é bem notável… — eu concordei. Nós nos separamos
por um momento para ajudar os outros a passar pelas árvores e galhos,
mas logo estávamos correndo lado a lado novamente. Hesitei, então fiz
a pergunta que estava me incomodando.
— Quem é você?
Ela franziu as sobrancelhas em confusão.
— Você não sabe meu nome?
— Não. Quer dizer, sim, mas tipo, todos vocês. Brer Raposa, Bebê
Chiclete, todos vocês são de histórias, mas agora...
— Ah.
Eu esperei, e ela se esquivou de um galho baixo (eu não me
esquivei, caso você queira saber) e pensou em sua resposta.
— Não tenho certeza de como explicar. Brer Coelho ou John Henry,
eles normalmente fazem todas as apresentações.
Tropecei em uma raiz de árvore e quase plantei o rosto em uma
poça de lama fedorenta e úmida.
— John Henry? — O homem gigante da minha visão surgiu na
minha mente. É claro. Se Brer Coelho e Bebê Chiclete estavam aqui, ele
também estaria.
— Mm-hmm. A propósito, cuidado com essas raízes.
Seu sarcasmo fez minhas orelhas queimarem.
— Ah, obrigado. Vou tentar.
Ela respirou fundo.
— Eu ouvi você e o Raposa conversando mais cedo. Este mundo,
tão confuso como está agora, é chamado de Alke. Estamos na Terra
Média, uma ilha no Mar Flamejante.
Eu parei no meu caminho.
— Isso significa que estamos presos aqui? Cercado por fogo e
aqueles navios de ossos? — O pânico começou a borbulhar em meu peito
até que Ayanna agarrou meu pulso.
— Não estamos presos. Apenas... esperando a hora certa.
Eu balancei a cabeça, embora realmente não entendesse, e ela me
soltou. Corremos para alcançar o grupo.
— O Mar Flamejante nos separa do continente — continuou Ayanna
—, mas ainda fazemos parte de Alke. Um território, se você quiser chamá-
lo assim.
— Como se Chicago fosse em Illinois — eu disse.
Ela encolheu os ombros.
— Claro, eu acho. Mas, para o bem ou para o mal, esta é a nossa
casa.
— Ok, já entendi. Mas... — eu hesitei, sem saber como fazer minha
próxima pergunta. — Pessoas e — comecei a dizer animais, mas parei
abruptamente — criaturas. Das histórias. Por quê?
Ayanna sorriu.
— Ok, estou começando a ver de onde veio o apelido Língua Solta.
— Ela se esquivou de um galho que eu joguei nela, depois ficou séria. —
Do jeito que John Henry conta, seu mundo e o nosso são como gêmeos.
Não, espere, esse é um mau exemplo. — Ela franziu a testa e suspirou.
— Como ele explicou isso? Alke... Alke é o sonho da realidade do seu
mundo. Os contos, as fábulas, as coisas que você pensa que são
inventadas, elas existem aqui. Não somos apenas histórias, somos reais,
com esperanças, sonhos e medos como você, e agora estamos todos
apenas tentando voltar para casa antes... — Ela se interrompeu, mas eu
sabia para onde ela estava indo.
— Antes que o Maafa, seja lá o que for, nos capture com os navios
de ossos — concluí.
— Não são apenas navios de ossos.
Eu parei. Ela começou a dizer algo mais, quando um aviso sibilante
cortou as árvores. Todo mundo derrapou até parar. Brer Raposa ficou
ereto, sua orelha boa sacudindo e sua cabeça balançando da esquerda
para a direita enquanto ele cheirava o ar.
Ayanna e eu rastejamos para o lado dele, confortando o Povo Médio
enquanto caminhávamos. Quando o alcançamos, seus dentes estavam
à mostra e seus pelos eriçados.
— Estamos sendo caçados — disse ele, e um arrepio percorreu
minha espinha.
CAÇADOS.
Pelo quê? Eu me perguntei. Não conseguia ouvir nada. A floresta
estava mortalmente silenciosa. Éramos as únicas coisas respirando ou
se movendo. Eu esperava que continuasse assim.
— Há uma ponte, logo acima, que marca a borda do Arvoredo —
sussurrou Ayanna. — Vamos cruzá-la, correr para o norte o mais rápido
que pudermos, e então outros Médios deverão ser capazes de nos
ajudar.
— E se quem está nos caçando nos seguir? — Perguntei. — O que
faremos então?
Ayanna não olhou para mim.
— Não. Deixe Te. Seguirem. Entendeu?
A orelha mutilada de Brer Raposa se contraiu. Ele deu uma patada
nela, então percebeu que eu estava observando.
— Ela me avisa quando há problemas à espreita, me avisa sim.
— E?
A orelha se contraiu de novo, depois estremeceu e achatou-se.
Achei que foi resposta suficiente.
— Do que estamos fugindo? — Perguntei. — Nas histórias...
— Isso não se parece em nada com as histórias que você ouviu —
disse Brer Raposa. — E nós tentamos manter seus nomes fora de nossas
bocas, se possível. Parece que discuti-los os traz mais rápido.
Com aquele comentário enigmático, começamos.
— O rio está logo à frente!
O aviso foi devolvido como um bastão de revezamento, e todos que
o ouviram encontraram uma nova explosão de energia. Um ponto de luz
perfurou a quietude verde-acinzentada. A fratura na floresta aumentou à
medida que corríamos para ela como mariposas para uma chama. Se
pudéssemos chegar lá, parecia que nossos problemas...
Um som de chocalho encheu a floresta, como um monte de
correntes balançando ao vento.
Eu diminuí para olhar ao redor e Brer Raposa rosnou para mim.
— Continue andando!
O barulho veio repetidamente de todos os lugares ao mesmo
tempo. Atrás de nós, da nossa esquerda, da nossa direita — como se
algo estivesse nos conduzindo para a frente. Os sons se acumulavam.
Todos nós bufamos juntos, ofegante e sufocando.
— Rápido agora! Para a ponte!
Saímos da Floresta Afundada para uma clareira. Lá, a lama
espessa havia secado até uma crosta escura e escamosa como uma
casca velha, e uma camada de folhas cobria o solo como um band-aid
esfarrapado. Derrapamos até parar. Uma ponte frágil feita de troncos
rachados e trepadeiras trançadas pendia em uma ravina íngreme e
rochosa. O maior rio que eu já vi surgiu debaixo dela, rugindo e
carregando galhos sobre rochas afiadas e curvas sinuosas.
Um som agudo de raspagem, como pregos em um quadro-negro,
rasgou o ar. Bati as mãos nos ouvidos e estremeci, e Tarrypin gemeu.
Brer Raposa caiu no chão e latiu de dor. Os outros reagiram de forma
semelhante. Até Ayanna se encolheu como se o barulho a machucasse.
Apenas Bebê Chiclete não parecia afetada. Ela correu para cada um de
nós, um de cada vez, empurrando com seus braços minúsculos, tentando
nos fazer mover. Ela disse algo, mas não consegui ouvi-la por causa dos
gritos. Finalmente ela desistiu e correu para a ponte.
Perto da borda da ravina, pouco antes de cair no rio faminto abaixo,
ela fez uma pausa. Algo nas folhas chamou sua atenção, e ela parecia
petrificada.
Quase paralisada.
Com minhas orelhas ainda cobertas, tropecei e parei perto de Bebê
Chiclete e do declive íngreme atrás dela.
— O que houve? — gritei.
Ela não respondeu. Seu corpo estremeceu — primeiro à esquerda,
depois à direita — e eu apertei os olhos.
— Bebê Chiclete? O que você está fazendo? Precisamos… Ah meu
santo pêssego.
A princípio pensei que fosse uma cobra. Um erro comum, de fato.
Aquilo se enrolou em torno de Bebê Chiclete e um truque da luz fraca
deu-lhe um padrão de elos, como uma cascavel.
Mas então percebi algumas coisas ao mesmo tempo.
Primeiro: a “cobra” era na verdade uma criatura parecida com uma
corrente com uma algema de metal no lugar da cabeça.
Segundo: ela segurava Bebê Chiclete com firmeza, a ponta da
algema se fechando em seu pescoço como uma argola, a longa corrente
presa a ela enrolando-se em seu minúsculo corpo de madeira.
Terceiro: mais dessas coisas estavam enchendo a minúscula
clareira.
Quarto: meus shorts estavam brilhando.
A luz verde ficou cada vez mais brilhante, enchendo a clareira e
afastando as sombras, e levei alguns segundos para entender que a luz
estava vindo do meu bolso — do diário de Eddie.
Gemidos suaves flutuaram do Povo Médio amontoados atrás de
mim, mas minha atenção ficou grudada nos esforços inúteis de Bebê
Chiclete. Ela se sacudiu para a esquerda e para a direita, mas a corrente
só apertou com mais força.
Brer Raposa cambaleou para fora do aglomerado no meio da
clareira, com as orelhas coladas ao crânio. Ele ainda estava a alguns
metros de mim e da Bebê Chiclete, longe demais para ajudar, e congelou
quando viu as criaturas acorrentadas surgindo da grama, penduradas nas
árvores e rastejando pelo chão. Seu pelo eriçou como agulhas em um
porco-espinho e ele rosnou.
— Algemados.
— Algemados a quê? — eu gritei de volta.
— Um tipo de monstro de ferro.
Duas das criaturas — algemados — balançaram nos galhos à
minha direita, perto da borda da ravina, e eu dei uma boa olhada neles.
Variavam em tamanho. O menor, como o que prendeu a Bebê Chiclete,
só tinha a cabeça em forma de argola. Os elos da corrente não eram mais
longos do que meu polegar. Os maiores tinham as algemas, correntes
muito mais grossas e braços parecidos com correntes que terminavam
em algemas abertas.
— Vê aquelas mãos em pinça? — Brer Raposa disse enquanto os
apêndices dos algemados estalavam juntos. — Eles usam aquilo para
arrastar suas vítimas.
Eu empalideci e minha boca ficou seca.
— Arrastar para onde?
— Para o líder deles.
Engoli em seco.
— Você quer dizer o Maa...
— Não. Não diga. — Brer Raposa caiu de quatro e gritou instruções.
— Devagar e com cuidado...
— Um deles pegou a Bebê Chiclete! — eu soltei. Odiei como minha
voz falhou de medo e o jeito como todos pareciam olhar para mim quando
ouviram. Até os monstros. Mas éramos só nós dois, um menino e uma
boneca, e quer saber? Foi assustador. Aí. Eu disse.
Mais algemados se ergueram do chão. Estávamos presos.
Alguns bloquearam nosso caminho para a ponte no lado norte da
clareira, bem onde Bebê Chiclete e eu estávamos. Outros rastejavam
pela grama no leste e oeste. E de volta à orla da floresta atrás de nós, do
outro lado da clareira e perto de onde Ayanna estava fechando a
retaguarda, mais algemados saíram das árvores.
— Ayanna? — Brer Raposa gritou.
— Estou pensando, estou pensando — disse ela, com a voz cheia
de desespero.
Os algemados balançavam para frente e para trás enquanto
deslizavam cada vez mais perto. O grupo que bloqueava a ponte sacudiu
ameaçadoramente, apertando a armadilha. Rezei para que Ayanna
apresentasse um plano logo, mas quando olhei para trás e nossos olhos
se encontraram, vi o desespero em seu rosto, a mesma expressão que
ela usava na jangada quando estávamos acima dos navios de ossos.
Havia muitos adversários.
Brer Raposa reconheceu sua expressão também.
Sua postura relaxou. De repente, ele parecia tão velho, apenas uma
raposa grisalha da floresta vivendo seus últimos dias, um fato com o qual
ele tinha feito as pazes.
— Certifique-se de que a Cacau chegue em casa em segurança —
disse ele a ela.
Ele ergueu o focinho para o céu e um grito lamurioso saiu de sua
garganta. Então, antes que alguém pudesse detê-lo, ele se jogou no
grupo de algemados perto da borda da floresta.
— Nãããão! — Ayanna e eu gritamos ao mesmo tempo, e a noite
explodiu em um frenesi.
Eu não acho que os algemados esperavam que suas caças os
caçassem. O ataque do Raposa os pegou de surpresa, então ele foi
capaz de despachar vários monstros maiores antes que soubessem o
que os havia atingido. Suas mandíbulas cerraram-se em um, suas garras
golpearam outro, e parecia um tornado prateado girando na clareira
enquanto os monstros de metal se desintegravam em elos quebrados e
ferrugem.
Mas os algemados logo se recuperaram e começaram a dominá-lo.
— Vão! — Brer Raposa rugiu antes de desaparecer embaixo de
uma pilha de monstros de ferro se contorcendo.
O grupo de algemados bloqueando a ponte passou por nós para
atacar a ameaça e Ayanna entrou em ação.
— Rápido agora — disse ela ao Povo Médio, sua voz alternando
entre um grito e um soluço. — Para a ponte. Vamos, Tristan! — Ela correu
na frente.
Bati meu pé no pequeno algemado que segurava a Bebê Chiclete,
e ele guinchou de dor. Fiz isso de novo, então uma terceira vez, enfiando
meu calcanhar no elo da corrente fina logo abaixo da base da argola, até
que ela se abriu com um pequeno clique.
— Tristan! — Bebê Chiclete gritou. Eu a agarrei junto com Tarrypin,
que tinha desaparecido em seu casco, e coloquei os dois em meu capuz.
Corri para a ponte, cobrindo a distância em alguns passos, e derrapei até
parar ao lado de Ayanna. A ponte oscilava e balançava sob os pés e patas
correndo do Povo Médio.
Quando todos os outros haviam chegado em segurança ao outro
lado, coloquei a Bebê Chiclete e Tarrypin no chão e dei-lhes uma
cotovelada para frente.
— Sua vez — eu disse.
Ganidos e uivos ecoaram atrás de nós, e me virei para ver os
algemados se soltando da pilha para rastejar em direção à ponte. Eles
eram grandes. Tremelicavam e sacudiam a parte inferior de seus corpos
que deslizavam como cobras enquanto suas algemas estalavam e suas
cabeças de argola clicavam.
Uma débil pata cinza emergiu da pilha atrás deles, lutando para
escapar de suas garras.
A luz verde do diário de Eddie ainda pulsava no meu bolso.
Uma memória se desbloqueou em minha mente.
Uma mão saindo de baixo de um assento de ônibus escolar
destroçado.
A imagem me atingiu bem no peito. Minhas mãos tremiam e
comecei a respirar cada vez mais rápido. Por um segundo, pude ver
Eddie estendendo a mão para mim no dia do acidente. O dia em que não
consegui salvá-lo.
— Tristan? Temos que ir. Agora, Tristan!
Duas vozes ecoaram em meu ouvido. Uma no presente, uma no
passado. Ayanna... e uma professora assistente. Ambas queriam a
mesma coisa: que eu deixasse alguém para trás.
— Tristan? — Ayanna chamou. — O que você está fazendo? Mexa-
se!
Mas era tarde demais.
Dois algemados correram para frente. Um tentou envolver meus
tornozelos, enquanto o outro foi para meus pulsos. Comecei a pular para
trás, mas meu pé bateu em algo. Um terceiro algemado deslizou pelas
folhas atrás de mim e me fez tropeçar.
— Tristan!
Caí de costas com força, mas imediatamente rolei para a direita,
para longe dos algemados. Uma argola se fechou na poeira onde minha
própria cabeça estivera momentos antes. O diário de Eddie continuava
brilhando. Lutei para ficar de pé e estava prestes a dar a Brer Raposa o
sinal de que eu estava indo ajudar, quando algo bateu no meu lado
esquerdo.
— Ooomph! — O ar abandonou meus pulmões.
Clique
O algemado que havia batido em mim passou uma algema na
minha mão esquerda e o ferro pressionou meu pulso.
ENTREI EM PÂNICO.
— Me solta! — Eu bati nas algemas com minha mão direita. Apenas
quando seu aperto pareceu afrouxar, outro monstro se enrolou em volta
do meu bíceps direito. Mais algemados deslizaram para frente e se
enrolaram em minhas pernas. Não importava o quanto lutasse, eu não
conseguia me libertar.
Um guincho alto de raspagem veio das árvores.
Todos os monstros de ferro na clareira ficaram imóveis por um
momento. Então, o grupo que me segurava e os que estavam presos ao
Raposa nos puxou para a floresta. As copas das árvores farfalhavam e
os galhos quebravam enquanto mais criaturas diabólicas corriam para se
juntar à luta.
— Tristan… — Brer Raposa disse em voz baixa.
— Não diga isso.
— Você tem que colocá-los em segurança.
— Não diga isso — eu sussurrei. — Você também vem.
— Ayanna! — BR gritou. — Eu sei que você ainda está aí. Você
nunca segue suas próprias ordens. Conte aos outros o que eu fiz! Você
ouviu? Dê à minha história um bom final por uma vez. Diga a eles que
eu...
A argola de um algemado se prendeu na boca de Brer Raposa. A
corrente ficou tensa e ele foi arrancado do chão e lançado na escuridão
da floresta.
Todos os algemados se voltaram para mim.
Meus olhos permaneceram no local onde o raposa havia
desaparecido. Ele foi levado para o Maafa e eu não fui capaz de impedi-
lo. Mais uma vez, não consegui salvar alguém que precisava da minha
ajuda.
Achei que os contos de fadas deveriam ter finais felizes. Qual era a
moral desta história?
Ruídos de farfalhar me tiraram do meu torpor enquanto os outros
algemados se aproximavam de mim.
O diário de Eddie começou a piscar no meu bolso.
A luz verde pulsou cada vez mais rápido até surgir em um clarão
branco e quente que cegou todos na clareira. Quando a luz se apagou e
meus olhos se ajustaram, meu coração saltou para a garganta. Uma
argola enferrujada pairava a centímetros do meu pescoço, parecendo
áspera e afiada. Mas isso não importava.
Centenas de páginas flutuavam na clareira.
A capa de couro do diário de Eddie estava aberta e vazia no chão.
Como foi parar lá? Tentei sentir meu bolso, mas os algemados ainda
estavam prendendo meus braços e pernas. Eles chacoalharam enquanto
eu lutava, mas, por outro lado, não prestavam atenção em mim. A
maravilhosa exibição os tinha fascinado, como gatos assistindo a um
ponto laser.
As páginas do diário giraram e se enrolaram no ar até formarem
uma figura humanóide. Ficou entre mim e a massa de algemados. Um
braço estendeu a mão e tocou o rosto sem traços característicos, como
se estivesse ajustando algo. Foi um gesto tão familiar, tão rotineiro para
qualquer um que já tenha usado óculos, que todo o meu corpo travou
como cimento e depois ficou mole.
— Eddie? — Eu sussurrei.
O gigante de papel ergueu o braço.
Se você estivesse no meu lugar, poderia dizer que viu um aceno
casual. Eu vi o punho do meu melhor amigo levantado, sua saudação
padrão quando ele não podia ser incomodado porque seu nariz estava
enterrado em um livro. Uma lágrima rolou pelo meu rosto, seguida por
outra.
Os algemados gritaram em desafio e a floresta inchou com o som
áspero.
Os que seguravam meus braços e pernas se soltaram. Eles
chacoalharam e estalaram suas algemas, e então atacaram a figura de
papel. Mas os monstros de ferro não conseguiam controlar nenhuma das
páginas. Eu me preocupei enquanto mais e mais algemados corriam para
entrar na batalha, mas o gigante continuou balançando golpe após golpe,
espalhando monstros nas árvores. Ainda assim, as criaturas
acorrentadas enxameavam.
Tropecei para trás.
Vários algemados conseguiram se enrolar em torno da página do
gigante de Eddie como uma píton, mas enormes punhos de papel os
estavam martelando a torto e a direito. Os lacaios surgiram em um frenesi
em torno das pernas da figura, agarrando e prendendo, arrebatando
páginas a cada ataque. A batalha se aproximou das árvores, e eu percebi
que os algemados estavam arrastando o gigante para longe, de volta
para onde quer que tivessem levado Brer Raposa.
— Não! — Eu gritei, correndo atrás deles. Algemados
interromperam-se para me atacar e eu os soquei como nunca antes.
Meus dedos não tinham proteção, mas a dor não importava. Nada
importava, exceto chegar ao meu melhor amigo. Ele voltou quando eu
precisei dele. Ele voltou para mim, para me salvar de um pesadelo, assim
como ele disse que sempre faria.
Perdê-lo novamente me destruiria.
— Eddie!
A batalha avançou para a floresta e eu a segui.
— Tristan! — Ayanna me chamou do outro lado da ponte. Eu já
tinha me esquecido do Povo Médio lá atrás. Eu os ignorei por ora.
Um algemado surgiu em meu rosto. Eu me esquivei de seu ataque
e acertei um gancho. Outro deslizou para cima e eu lancei dois jabs
rápidos e um gancho. Meu pai ficaria orgulhoso.
— Eddie!
Eu não conseguia ver o gigante ou quaisquer algemados agora,
mas ainda podia ouvir o beligerante farfalhar, chacoalhar. Corri atrás, mas
logo os sons desapareceram também. Tentei seguir os sinais que haviam
deixado para trás. Galhos quebrados. Troncos esmagados. Então, até
mesmo esses desapareceram. Girei em círculos, as lágrimas fluindo,
procurando por uma trilha, por qualquer pista que me desse esperança.
Nada.
Cambaleei até uma árvore e desabei embaixo dela no silêncio
ensurdecedor.
Eles me encontraram lá algum tempo depois. Chorando. Punhos
sangrando. Sentado na lama. Joelhos puxados para o meu peito, minhas
costas contra uma árvore morta.
Sozinho.
ACORDEI EM PÂNICO, encharcado de suor.
Uma voz ecoou em meus ouvidos. Obrigado pelo livro, garoto.
Tio A.
Conforme as sombras e sussurros desapareciam, tudo parecia
confuso e distante, como um sonho se dissipando pela manhã, mas uma
dor latejante em meus dedos rapidamente me trouxe de volta à realidade.
Eu estava acomodado em uma pequena cama de madeira sob
cobertores macios que não cobriam meus pés. Meu santuário atual era
uma sala com galhos espinhosos cobrindo as paredes e o teto. Não eram
espinhos pequenos, tá ligado, mas espinhos do tamanho de facas que
pareciam estar te desafiando a testá-los.
Eu não testei, é claro. Mesmo se eu quisesse, cada centímetro do
meu corpo doía.
Sem falar no meu coração.
Doía mais do que tudo. Eu tinha perdido o diário de Eddie para os
monstros, monstros que serviam a algo chamado Maafa. E agora estava
nas mãos de um haint — um daqueles espíritos malignos que a vózinha
mencionara. O tio A era o Maafa? Haviam perguntas demais e respostas
de menos. Nenhuma que gostei, pelo menos.
Fechei meus olhos com força, enviando os pesadelos confusos de
volta para os cantos da minha mente, então os abri para continuar a
examinar meus arredores.
A luz do sol penetrava por entre as aberturas do teto. O quarto
estava quente — e aconchegante, apesar dos espinhos. Minha cama e
uma cadeira de madeira rústica ao lado eram as únicas peças de mobília.
As paredes eram feitas de galhos da grossura do meu braço,
entrelaçados como cestos de vime. Vinhas com pequenas flores
silvestres subiam até o teto, enchendo o ar com o cheiro dos campos de
verão. E o chão... me inclinei para o lado da cama para ver melhor.
Sim.
Terra. Escura como a noite, macia e quebradiça, com tenros brotos
verdes aparecendo. Com um sobressalto, percebi que as colunas da
cama e as pernas da cadeira estavam crescendo do chão, grossas na
base como raízes e se enrolando entre si.
Algo farfalhou enquanto eu tentava entender tudo, e uma pequena
porta circular que não havia notado se abriu do outro lado da sala.
— Olá? — chamei quando ninguém apareceu. Eu me sentei um
pouco. — Bebê Chiclete?
— Ah, você está acordado! Bom. Eles estavam ficando
preocupados.
A voz veio do final da cama, leve e enérgica, como a de uma
criança. Mas não era a boneca.
— Quem está aí?
— Você não pode enxergar...? Ah, certo, me desculpe. — Houve
um barulho, como se alguém estivesse lutando com algo pesado, então
uma inspiração profunda, e o menor coelho que eu já vi pulou na minha
cama. — Oi!
Ela tinha pelo castanho-escuro com manchas brancas nas patas
dianteiras e uma das patas traseiras estava bem enfaixada. Recostou-se
suavemente, torceu o nariz e acenou. Eu me peguei acenando de volta.
— Eu sou Cacau — disse ela.
— Tristan — eu disse lentamente.
— Eu sei. Eu vim buscá-lo. Você está pronto?
— Pronto para quê?
— Todos estão na reunião. Temos que decidir, bem, não eu, mas
eles têm que decidir quem vai. Não, espere, primeiro temos que ver se
vamos, e, se sim, quem vai. Espero que seja eu. Parece muito
emocionante e...
— Espere, espere — eu disse, irremediavelmente perdido. Eu me
mexi para uma posição totalmente sentada e esfreguei minhas têmporas.
— Há quanto tempo estou dormindo?
— Um dia.
— Um dia inteiro?
Cacau acenou com a cabeça.
— Sim, sim! Eles te carregaram na noite de anteontem. Você
dormiu ontem e quase toda esta manhã. Você sempre grita enquanto
dorme?
— O quê? Não sei. Não — eu disse. — Por que isso importa?
Seu nariz se contraiu e suas orelhas voltaram para o meu tom
defensivo.
— Não importa. Desculpe. Brer Raposa diz que devo tentar conter
todas as minhas perguntas. Diz que elas deixam todos com raiva.
Ao som do nome de Brer Raposa, a memória dele lutando ao meu
lado — e perdendo — bagunçou meus sentidos e eu tive que respirar
fundo. Eu enrolei o cobertor em meus punhos e meus braços tremeram.
Cacau me observou.
— Você conhece ele?
— Algo assim. Na verdade. Nós escapamos pela floresta juntos. Ele
lutou e distraiu os... ele lutou para que o resto de nós pudesse escapar.
— Sério? — Ela se inclinou para frente com as patas dianteiras. —
Ele odeia violência. BR diz que isso nunca resolve nada, apenas espalha
mais violência e ódio.
Imaginei a raposa pulando, rosnando, no meio dos monstros de
ferro, e fiz uma careta, mas Cacau não percebeu e continuou falando.
— Ele diz que ferir ou machucar outra pessoa deixa uma marca
igualmente grande no agressor — ela continuou. — Você não pode ver,
mas está lá.
Me lembrei do pacote que Brer Raposa havia carregado no barco,
antes de entregá-lo gentilmente a Ayanna. Certifique-se de que Cacau
chegue em casa em segurança, ele disse a ela.
— Como você e Brer Raposa... como ele se tornou...?
— Meu guardião?
— Sim. Como isso aconteceu?
Cacau se sentou e mexeu as orelhas com orgulho.
— Bom...
Mas ela nunca terminou. Algo farfalhou nas paredes, e suas orelhas
se ergueram e apontaram para a porta.
— Ah, eu deveria levá-lo! A reunião começou. Vamos, temos que
nos apressar. — Ela pulou da cama e saltou pela pequena porta redonda,
sua voz sumindo enquanto ela desaparecia nas sombras. — Depressa!
A insistência infantil em seu tom fez com que o cobertor fosse
jogado de lado e meus pés batessem no chão frio coberto de terra antes
que eu pudesse pensar. O que há de errado comigo, perseguindo
criaturinhas estranhas falantes em espaços escuros? Primeiro Bebê
Chiclete, e agora isso.
Enquanto me levantava, pensei em recusar, talvez mexer com os
meus ferimentos até que eu pudesse entender as coisas, mas
rapidamente descartei essa opção. Se eu quisesse voltar para casa e
deixar este pesadelo para trás, precisaria de ajuda, e parecia que esta
reunião era um passo na direção certa, mesmo se eu não tivesse ideia
de quem estaria lá.
Meus sapatos estavam secos e esperando por mim na porta, junto
com minhas meias. Ambos tinham um odor ligeiramente mofado, e
suspirei ao colocá-los. Levei sete domingos economizando para poder
comprar aquele par de Chucks. Os sacrifícios que fazemos para um bem
maior. Cara, vou te contar...
Eu me espremi nervosamente pela porta espinhosa, me abaixando
e encolhendo a barriga, e entrei em um corredor longo e tortuoso feito de
galhos trançados ainda carregando folhas e flores. Tinha um cheiro
refrescante. Havia espaço mais do que suficiente para eu me mover
facilmente, mas um espinho me espetou quando cheguei perto demais.
Me curvei, lambi meu polegar machucado e continuei mancando.
Cacau esperava por mim em uma curva. O corredor se dividiu e ela
torceu as orelhas para o caminho à direita.
— Por aqui — disse ela, saltando à frente.
— O que é este lugar? — Eu perguntei, olhando para a grama
crescendo sob os pés, um tapete vivo que parecia tão macio quanto
qualquer coisa que você pudesse comprar em uma loja.
— Este túnel?
— Tudo isso. Essa floresta toda aqui dentro? Onde estamos?
— Ah, essa é fácil. Você está no Arvoredo.
— No Arvoredo... Ayanna mencionou esse nome. É uma espécie
de esconderijo? — E por falar em minha salvadora, onde ela estava? Ela
estaria na reunião?
— Sim, sim. — Cacau balançou uma orelha para mim. — Foi bom
Ayanna ter te encontrado. E Bebê Chiclete também, eu acho. Ela é boa
nesse tipo de coisa, encontrar, resgatar. Eu quero ser como ela quando
eu crescer. Ou como Brer Raposa. Ou ambos. Sim, ambos. Assim, serei
super forte e poderei proteger Alke completamente.
— Alke? E não Terra Média? — Eu me esquivei de uma coleção
particularmente desagradável de espinhos pendurada no teto. Todos os
nomes de lugares estavam começando a se misturar, e eu nunca fui bom
em manter detalhes como esse bem definidos.
— A Terra Média está em Alke, bobo! Eu quero proteger a todos.
— Ela parou e pensou por um segundo. — Embora as coisas não estejam
tão boas entre a Terra Média e o resto de Alke agora. Mas você não ouviu
isso de mim!
— Hum…
— BR diz para não mencionar isso a estranhos, porque não
devemos preocupar todo mundo, mesmo que o Arvoredo esteja sob cerco
e seja o nosso último esconderijo, e se algo acontecesse com ele
estaríamos todos perdidos, e o M...
Ela parou e quase tropecei nela. Cacau balançou as orelhas de
preocupação.
— Que foi? — Perguntei.
— Estou fazendo de novo. Falando demais.
— Sobre o Maafa? Isso é o que você ia dizer, certo?
A coelhinha estremeceu violentamente, como se estivesse a
segundos de desmoronar — literalmente. Eu cuidadosamente me
ajoelhei, mantendo um olho em um espinho no nível da bunda, e disse:
— Ei, ei, está tudo bem. Esqueça que eu disse isso, certo? Eu sou
novo aqui, e tudo está me assustando agora.
O peito de Cacau vibrou para dentro e para fora, e ela balançou a
cabeça, continuando como se não tivesse me ouvido.
— Brer Raposa disse para não dizer esse nome. Falar sobre isso
dá força aos monstros de ferro, e então ninguém estará seguro. E eu
fiquei tagarelando, e agora seremos atacados, e será tudo minha culpa,
e por que eu faço isso? Estúpida, estúpida, estúpida, estúpida...
— Ei. — Estendi a mão, mas parei antes de tocá-la. Algumas
pessoas não gostam de ser tocadas, e imaginei que os animais podem
sentir o mesmo. — Ei, isso não é verdade.
— Não é? Como você sabe?
— Porque uma vez alguém me disse que não é.
— Disse? — Ela fungou.
Me lembrei de uma das minhas primeiras sessões com meu
conselheiro, o Sr. Richardson, após o acidente de ônibus.
— Ele disse que não podemos nos esconder de nossos medos.
Temos que ser capazes de falar sobre eles, ou então irão apodrecer como
veneno, nos comendo por dentro.
Cacau começou a se acalmar.
— BR diz que tenho que trabalhar para não entrar tanto em pânico.
— Brer Raposa disse muito a você, não disse?
— Sim. Sim, ele disse.
— Vocês dois eram... são muito próximos? — Cacau sabia que Brer
Raposa se fora? Tive que escolher minhas palavras com cuidado.
Cacau começou a pular para frente, eu me levantei e a segui.
— Sim, sim. Ele me resgatou quando eu era bebê, sabe? Alguns
daqueles monstros estúpidos atacaram a toca da minha família. Brer
Raposa disse que eu era a única que restou e ele me carregou de volta
para cá. Ele me ensinou tudo. — Ela saltou. — Muitos sermões, no
entanto — acrescentou.
Eu sorri.
— Sim. Os adultos fazem isso.
Continuamos em silêncio. O túnel começou a se alargar e clarear,
e o zumbido de uma grande multidão flutuou pelo espaço. Pouco antes
de chegarmos à saída, Cacau diminuiu a velocidade até parar e olhou
para mim.
— Não é sua culpa, sabe, o que aconteceu com Brer Raposa —
disse ela.
Isso me pegou de surpresa. Então ela sabia.
— Eu... sinto muito — gaguejei. — Se eu tivesse sido mais rápido
ou mais forte, poderia ter sido capaz de alcançá-lo. Ele ainda poderia...
Cacau balançou a cabeça.
— Brer Raposa me disse que não podemos repetir os erros do
passado. Ele disse um monte de coisas assim. Não me lembro de tudo,
mas o que eu lembro, continuo dizendo a mim mesma, para não
esquecer. Manter as palavras de alguém vivas é como mantê-las vivas,
certo? Eu sei que você tentou, e eu sei o que Brer Raposa fez, e sei que
ele se foi, mas enquanto eu tiver suas palavras, eu o terei. Então está
tudo bem. Certo?
— Certo — eu disse suavemente. Eddie encheu minha mente, e a
perda de seu diário apunhalou meu coração novamente. Eu perdi suas
palavras. Isso significava que ele estava completamente perdido para
mim agora?
Cacau saltou em direção ao barulho.
— Vamos! Está começando.
Eu a segui, ainda examinando uma pilha de sentimentos, e não
tenho certeza se algum dia os desvendarei.
Entramos em um espaço semelhante a um anfiteatro e eu parei em
um rompante.
— Meu santo pêssego!
Acima da sala enorme em formato oval, galhos espinhosos
arqueavam-se como o telhado de uma cúpula, com trepadeiras e
sementes amarelas penduradas como serpentinas em vigas. À minha
esquerda, raízes grossas estavam empilhadas umas sobre as outras,
subindo e descendo como assentos de um estádio, que, percebi
enquanto olhava ao redor, era exatamente o que era.
Pessoas de pele marrom de todos os tamanhos e idades sentavam-
se entre as criaturas da floresta. Todas elas amontoadas em grupos.
Todas tinham cicatrizes no pescoço, pulsos e tornozelos.
— Sobreviventes — disse Cacau calmamente. Quando a olhei, ela
torceu o nariz tristemente.
Quase perguntei sobreviventes de quê?, mas eu já sabia. Ainda
podia sentir a mordida dos algemados em meus pulsos.
— De onde todos eles vieram? — Perguntei.
— De toda a Terra Média. Assim que os monstros de ferro
começaram a nos aterrorizar, John Henry convenceu Brer Coelho a abrir
o Arvoredo. Mas se alguém estivesse muito doente ou muito velho...
— Vocês todos iriam procurar — eu terminei, e as peças se
juntaram na minha cabeça. — Isso é o que Ayanna e todos vocês
estavam fazendo. Resgatando aqueles que não puderam se salvar.
Cacau sorriu.
— Sim, sim! Pessoas como Ayanna, nós as chamamos de pilotos!
BR costumava ser um, mas ele começou a sentir dores, então Ayanna se
tornou sua aluna. Eu seria a próxima...
Ela parou e eu engoli em seco. Suas orelhas se afundaram e eu a
ouvi fungar, então desviei o olhar para deixá-la chorar em particular.
Os animais, pássaros, répteis e anfíbios maiores que o normal
espalhados entre as pessoas nas arquibancadas também estavam de
luto. Uma tartaruga com um corte ao longo da carapaça confortava uma
mulher mais velha chorosa que segurava uma boneca de criança. Dois
coelhos estavam sentados um de cada lado de um menino de cerca de
cinco ou seis anos. Ele acariciava seus pelos suavemente com cada mão.
— Vamos — sussurrou Cacau, e ela saltou para a direita.
— Esta não é a reunião? — Olhei por cima do ombro para o mar de
rostos, tão diferentes e, ainda assim, todos compartilhando algo familiar:
o medo.
O outro lado do anfiteatro foi colocado contra o que parecia ser uma
parede marrom gigante e enrugada. Espirais nodosas grossas do mesmo
marrom se estendiam da base da parede. Uma pedra gigante foi
aninhada entre elas, e essas espirais se enrolaram em torno dela para
formar uma espécie de estágio elevado. Eu estremeci de surpresa.
Raízes. Eu estava olhando para as raízes. O que significava...
— Isso é o pé de uma árvore?
— Essa é a árvore — corrigiu Cacau. — A Árvore do Poder.
Ela pulou para frente, mas eu fiquei lá e estiquei meu pescoço o
mais longe possível, tentando assimilar a aura incrível. O carvalho
gigante parecia antigo, como as Árvores-Garrafa na fazenda dos meus
avós. Mas enquanto as Árvores-Garrafa eram um tipo de guardas,
certificando-se de que espíritos malignos como o Tio A não escapassem,
a Árvore do Poder parecia querer te proteger.
Era como estar na presença de uma relíquia, ou mesmo de uma
história viva. Enquanto eu estava sob o abrigo de seus membros e à
sombra de seu tronco, parecia que estava em uma das histórias da
vózinha. Eu ouvi algo — um sussurro ou música fraca, talvez até uma
batida de tambor — e o barulho soou muito familiar. A casca do tronco
começou a brilhar, como se algo estivesse escondido da vista de todos,
e a qualquer segundo se revelaria...
— Tristan! — O chamado de Cacau quebrou o encanto. —
Depressa, a reunião está começando!
Balancei minha cabeça e olhei de volta para a Árvore do Poder, mas
ela não estava mais piscando. O momento havia passado. Mesmo
assim... algo pairava no ar, como eletricidade depois de um raio. Uma
energia. Eu quase poderia...
— Tristan!
Fiz uma careta e, com um último olhar para a enorme árvore, andei
atrás de Cacau para encontrar algumas respostas.

Levei cinco minutos para decidir que talvez ir para a reunião era
uma má ideia.
Não me entendam mal — eu ainda queria encontrar alguém que
pudesse me ajudar a resgatar o diário de Eddie e sair desse lugar.
Aventuras são legais, mas não quando algemas de um metro de altura
estão te perseguindo. Mas enquanto Cacau me guiava pelo túnel do
Arvoredo suavemente inclinado, este com flores vermelho-cereja
brotando ao longo das paredes, ouvi o eco da voz de Bebê Chiclete à
nossa frente.
— E então Bebê Chiclete teve que correr para salvar sua vida!
Aquele menino perseguiu Bebê Chiclete, gritando e berrando como se
seus pés estivessem pegando fogo.
— Hummm — alguém disse. Uma mulher, pelo que parecia, e eu
hesitei. Eu conhecia aquele tom de voz.
— E ele começou a xingar a Bebê Chiclete. Nomes horríveis. Ruins
demais até mesmo para repetir.
— Uhumm — alguém disse. Outra mulher. O que era isso, um
almoço pós-igreja? — Um ano, Bebê Chiclete. Você se foi por um ano.
Você tinha um trabalho, simples, e falhou. E então você traz esse menino
com você... o que estava pensando?
Sorri. Bem feito para a falastrona, pensei, mentindo assim sobre
mim.
Cacau pulou pelo túnel e parou ao lado de uma grande entrada
cortada na parede do Arvoredo. A conversa continuava à nossa frente,
mas parei de prestar atenção, pois ouvi aquela música novamente.
Tambores e palmas rítmicas, mais altos do que antes. Eu balancei minha
cabeça para clareá-la e tentei me concentrar no que estava à nossa
frente. A luz se espalhava pelo túnel, brilhante e convidativa, mas não sou
idiota. Eu podia ver pela expressão de Cacau que ela não estava ansiosa
para pular. Ela torceu as orelhas em hesitação.
— Bem — ela sussurrou. — Eu provavelmente deveria deixá-lo
aqui.
Eu olhei para ela, então para a porta gigante, então de volta para
ela.
— Nananinanão.
— O quê?
— Eu não vou lá sozinho. Nem sei quem, ou o quê, está lá.
— É onde eles planejam estratégias e realizam reuniões e coisas
assim.
— Quem são eles?
Estávamos mantendo uma discussão sussurrada, nenhum de nós
com pressa para chamar a atenção.
— Brer Coelho e os outros.
— Personagens de contos powulares?
— Eles são deuses, Tristan! Talvez fossem outra coisa em seu
mundo, mas aqui, eles são os únicos que podem nos manter seguros.
Você tem que se lembrar disso. Tipo, o Arvoredo? Brer construiu tudo
sozinho. Você nunca se perguntou como todos os túneis têm a altura
certa para quem está passando por eles? E os espinhos também não são
apenas para decoração. Sim, sim, eles são deuses.
Meu queixo caiu. Nas histórias, O Arvoredo é onde Brer Coelho
enganou Brer Raposa para libertá-lo. Mas era apenas um arbusto
espinhoso… Esta... esta era uma cidade inteira de vinhas e espinhos.
Uma cidadela. Uma fortaleza. Era tudo tão incrível….
E eu não queria fazer parte disso.
— Olha, já chega — eu disse. — Agradeço toda a ajuda e, por favor,
agradeça a quem quer que tenha me colocado na cama, mas que tal você
apenas me mostrar a saída deste lugar e encerrarmos o dia. Estou
cansado, estou com fome e só quero ir para casa agora, então se você...
Uma sombra caiu sobre a porta, e Cacau e eu nos encolhemos
contra a parede do túnel. Essa pode não ter sido a melhor ideia. Para a
pequena Cacau estava tudo bem — ela apenas se abaixou entre alguns
galhos e se escondeu. Mas eu? O garoto alto com ombros largos demais?
Grande erro.
— Aaaaah! — gritei quando um espinho me espetou bem no
bumbum.
Então, se você acha que causou uma má primeira impressão —
talvez você tenha tropeçado e caído sobre os próprios pés, ou estava
com ketchup no rosto — imagine eu, Tristan Strong, pulando em uma sala
cheia de deuses enquanto tentava puxar um espinho da minha bunda.
NO MOMENTO EM QUE O PEDAÇO DESAGRADÁVEL do
Arvoredo foi removido do meu traseiro e Bebê Chiclete parou de rir, um
trio de adultos estava de pé sobre mim com os braços cruzados e
expressões sérias em seus rostos.
— Tristan — uma voz forte retumbou —, estou feliz que você
decidiu se juntar a nós.
Ah, meu Deus.
E eu pensava que eu era alto.
A voz profunda pertencia a um tórax. Pelo menos, foi isso que
pensei, até olhar para cima... e para cima... e para cima... e finalmente vi
o rosto olhando para mim. Parecia familiar. Marrom escuro, com rugas
nos cantos dos olhos e também na testa, como se ele só pudesse sorrir
ou ficar carrancudo.
Agora ele estava carrancudo.
— Meu nome é...
— John Henry — eu deixei escapar. — Eu... Desculpe, eu não
queria interrompê-lo, é só que... John Henry. Uau.

De todos os contos powulares, “A Balada de John Henry” era o meu


favorito. Eddie e eu havíamos pesquisado sobre ele uma vez. De acordo
com alguns contos, ele martelava espigões de aço em granito para uma
empresa ferroviária. Na virada do século XIX, homens e mulheres como
ele carregavam o progresso nas costas, criando trilhos por toda a
América, em torno de vales e lagos e através de montanhas. John era o
maior e o mais forte, o primeiro a desferir um golpe de martelo pela manhã
e o último a voltar para casa à noite. Nos primeiros anos após a
escravidão, quando os negros lutavam para encontrar seu caminho, John
Henry era uma âncora para sua pequena comunidade. Quando ele
aceitou o desafio de um sádico magnata das ferrovias e perfurou com
uma grande broca a vapor uma montanha e saiu vitorioso do outro lado,
ele se tornou uma fonte de orgulho, mesmo que depois o esforço tenha
parado seu coração e ele tenha desabado morto.
Isso é o que Eddie e eu encontramos.
Quando vózinha viu o que estávamos fazendo, ela nos fez sentar e
ouvir sua versão. As histórias dela eram um pouco mais sombrias.
Segundo ela, John Henry era um fazendeiro, um ex-escravo que se
tornou meeiro e que foi preso por algo ridículo.
— Você tem que se lembrar — vózinha disse enquanto se sentava
em sua poltrona, uma pilha de tricô no colo. — As pessoas estavam de
péssimo humor naquela época. Quando aboliram a escravidão, isso
despojou milhares de plantações de trabalho escravo. Agora eles tinham
que nos pagar. Você acha que correu tudo bem? Criança, por favor, né.
Ela bufou, estalou as agulhas e olhou para nós por cima dos óculos.
— Não, eles não iriam pagar por algo que costumavam tomar de
graça. Então, inventaram leis. Daí disseram que nós as burlamos. Nos
jogaram na prisão, e adivinha onde eles fizeram esses prisioneiros
cumprirem pena? Isso mesmo. Nessas fazendas ou, como John Henry,
em gangues de ferrovias, martelando espigões de manhã até a noite.
Ela se inclinou para frente e apontou uma agulha de tricô para nós.
— Então lembre-se disso. Muitas vezes, esses pequenos fatos são
apagados dos livros de história. Se vocês vão contar uma história, é
melhor terem certeza de que estão contando a história certa.

O que eu pensei ser apenas um cômodo no início, era na verdade


uma clareira na floresta, protegida por um entrelaçamento meio solto de
galhos do Arvoredo bem acima que deixavam a luz entrar. Borboletas
voavam em torno de flores que enchiam o ar com leves aromas de
baunilha e canela. Um riacho borbulhava no meio, circundando uma
colina de tamanho médio com topo plano. Duas mulheres idosas estavam
perto de mim, com Bebê Chiclete entre elas, e todos me encararam.
E de algum lugar, assim como quando eu estava embaixo da Árvore
do Poder, ouvi uma batida mais fraca. Um ritmo que, se tentasse capturá-
lo, desapareceria. Era enfurecedor!
Mas meus olhos foram rapidamente atraídos de volta para John
Henry, e esqueci todo o resto. Quer dizer, ele era enorme! Usava um
macacão azul, uma das alças solta e uma camisa branca de colarinho
encharcada de suor, com as mangas arregaçadas acima dos cotovelos.
Ambos os braços estavam cruzados sobre o peito, e eu não pude deixar
de olhar ao redor em busca de seu martelo enorme.
Ele limpou a garganta (pensei que alguém tivesse disparado um
canhão) e acenou com a cabeça para a colina, a carranca desaparecendo
e seus olhos brilhando.
— Se importa de se reunir com a gente lá em cima?
Eu quis dizer algo profundo. Algo sobre o quanto sua história
significava para mim e como me inspirou. Algo lá de dentro e inteligente.
— Gaaaaaah. — Balancei a cabeça e esfreguei minha bunda
dolorida.
Olá, meu nome é Tristan-por-favor-deixe-me-esconder-em-um-
canto.
A carranca de John Henry desapareceu completamente, e ele
tentou e não conseguiu esconder um sorriso antes de se virar para seguir
as duas mulheres, que já estavam subindo a colina. Elas carregavam
Bebê Chiclete pelos braços enquanto ela balançava as pernas no ar. Eu
fui atrás de John Henry, pensando que não tive que correr assim para
acompanhar alguém desde o jardim de infância. Cacau lutou para manter
o ritmo também, então me ajoelhei e ela pulou agradecida em meus
braços.
Quando chegamos ao pé da colina, John Henry parou, ainda se
elevando sobre as mulheres que agora estavam já no topo. Ele fez sinal
para que eu subisse.
Não há como voltar atrás, pensei, e isso me fez ficar carrancudo.
Enquanto subia o morro, preparei uma defesa contra quaisquer
acusações que eles iriam fazer. É disso que se trata, certo? Eu estava
com algum tipo de problema. Essa é a razão pela qual você é chamado
para um lugar onde você é a única criança em uma reunião de adultos.
Assim que cheguei ao topo, onde um grande toco de árvore
repousava em um grupo de minúsculas flores brancas, eu disse:
— Olha — tentando me antecipar ao sermão inevitável que vinha
em minha direção. — Eu não fiz isso. Seja o que for, não tenho certeza
de como aconteceu. Eu só quero ir para casa.
As mulheres se separaram, e o resto das minhas palavras se
misturaram em um nó na minha língua e se recusaram a sair.
Um coelho de um marrom terroso reclinou-se de costas sob a
sombra de um gorro gigante de cogumelo. Ele usou suas orelhas
compridas para proteger os olhos dos raios de sol que penetravam pelo
teto do Arvoredo. Bagas redondinhas estavam empilhadas em uma folha
ao seu lado, e ele colocou uma na boca. Seu pelo era irregular e longas
cicatrizes cruzavam seu corpo. De vez em quando, suas pernas se
contraíam incontrolavelmente, como se ele estivesse tentando se livrar
de alguma coisa.
Eu o reconheci. Eu só não esperava que ele fosse tão... real.
— Você é... você é o Brer Coelho — gaguejei.
— Brer.
— Perdão?
— Brer. Não Brer Coelho. Só Brer agora, eu realmente não vejo
necessidade de especificar mais, não é? Quer dizer, Urso se foi, e agora
Raposa se foi. Sou apenas eu, o velho Brer, o último do trio.
— Prazer em conhecê-lo. Eu sou...
Brer bateu uma pata.
— Eu sei quem você é. Você é o responsável pelo fim do mundo.
Então, é isso, obrigado.
— Calma, espere. Eu...
Mas mais duas vozes me cortaram e uma à outra. Elas falavam
rapidamente, em tons suaves que pareciam pássaros tagarelando, e
terminavam as frases uma da outra como irmãs gêmeas fariam.
— O que Brer quer dizer… — a primeira começou.
— É que você tem algumas explicações a dar, e rápido — a outra
terminou.
Uma sensação de formigamento e calor começou na base do meu
pescoço. Tentei manter a calma enquanto me virava para as duas
mulheres e realmente as olhei pela primeira vez.
Uma era alta, com corte de cabelo mais baixo que o meu. Ela usava
óculos empoleirados na ponta do nariz e olhou por cima deles para mim
como se eu tivesse esfregado lama em seu tapete novo. A outra mulher
era baixa, com dreadlocks grossos embrulhados em um pano
multicolorido e empilhados no alto da cabeça. A pele marrom-escura
brilhava sob o que a princípio pensei serem xales pretos pendurados
sobre os ombros.
Então uma pena, negra como a meia-noite mergulhada nas
sombras, caiu no chão.
Aqueles não eram xales.
Eram asas.
E eu sabia.
— Dizem que o Povo podia voar — sussurrei.
As mulheres se olharam nos olhos, então se inclinaram para frente
e me olharam ainda mais de perto.
A primeira disse:
— Parece que temos...
— … um contador de histórias — concluiu a segunda.
Eu olhava entre elas, sem fôlego. Vózinha costumava me contar
histórias sobre como, na África, antes dos horrores da escravidão, as
pessoas costumavam voar o tempo todo. Elas sussurravam palavras
poderosas, as frases pingavam magia antiga, e disparavam para o céu.
Irmãos competiam corrida com irmãs. Mães e pais carregavam bebês por
cima de lagos brilhantes e montanhas cobertas de neve.
Então vieram as correntes e os navios, e a dor e os chicotes, e as
asas do povo caíram ou foram arrancadas. Mas as palavras de poder
nunca foram esquecidas. Às vezes, no meio da noite, depois de um dia
brutal de trabalho em campos escaldantes, os anciãos as sussurravam
nos ouvidos dos que mais precisavam e, whoosh, as pessoas voavam
em direção à liberdade.
Não vou mentir — eu olhei boquiaberto para as duas mulheres.
John Henry deu uma risadinha.
— Tristan, estas são a Srta. Sarah e a Srta. Rose. — Ele não
apontou quem era quem, ou eu perdi, então fiquei confuso até que a
mulher alta e magra com óculos deu um pequeno pigarro e acenou para
sua parceira.
— Realmente útil, John. Essa é a Rose. Eu sou Sarah. Agora que
as apresentações terminaram...
— … talvez possamos voltar a quem você é — disse Rose. — E
no que vocês dois estavam pensando.
— Nós dois? — Olhei em volta, confuso, até que meus olhos
pousaram no toco da árvore. Lá estava Bebê Chiclete. Ela levantou a mão
pegajosa e acenou.
— Ei, Língua Solta.
— Você! Que mentiras estava contando ainda agora? Hein?
Para minha surpresa, Bebê Chiclete não esperneou ou começou a
gritar coisas sem sentido. Ela não ficou com raiva, não atacou nada com
seiva... Nem ergueu os olhos para mim. Apenas olhou para seu colo,
tecendo minúsculas coroas de grama e pétalas de flores.
— Se você já terminou de responder suas próprias perguntas… —
disse Srta. Sarah.
— ... talvez possa responder algumas das nossas — disse a Srta.
Rose.
Corei e voltei a olhar para as mulheres. Elas se entreolharam — eu
já tinha visto esse tipo de olhar antes. Nada de bom vinha depois de um
olhar assim.
— Perguntas? — Questionei.
John Henry pigarreou.
— Bebê Chiclete foi enviada para encontrar... algo.
— Eu sei. O livro.
Ele franziu a testa e Brer se sentou.
— Como você sabe? Ninguém fora desta sala sabia de nada sobre
isso.
Respirei fundo, fiz uma pausa e balancei a cabeça.
— Não importa. — Como eu poderia explicar a visão que tive no
carro e a outra magia estranha que o diário de Eddie tinha?
John Henry se inclinou para frente, e o gigante herói powular deixou
um rosnado estrondoso escapar de seu peito.
— Acho que nós diremos se isso importa ou não, entendido?
Eu olhei para todos eles, me lançando olhares de suspeita ou raiva
absoluta. Existem momentos certos para ser teimoso e esse não é um
deles.
— Sim, certo.
— Bom. Agora... o que você sabe sobre o plano de Bebê Chiclete?
Suspirei e cocei meu queixo.
— Hum, você e Brer a enviaram. Vocês todos estavam com medo
de alguma coisa... — Eu me lembrei do som de tinido em minha visão. —
Os algemados, eu acho.
Brer estremeceu com a menção dos monstros de ferro.
Tudo estava começando a fazer mais sentido agora.
— Você e Brer fizeram um buraco — um túnel — perto da Árvore
do Poder e enviaram Bebê Chiclete, dizendo a ela para encontrá-lo.
Encontrar o livro.
Todo mundo olhou para mim. Brer ficou de pé e pulou na minha
frente com um salto gigante.
— Espião! — ele rosnou. — Como ele nos seguiu? O Labirinto está
comprometido? Quem lhe disse onde nos encontrar?
— Eu não espiei ninguém — disse com raiva.
— Mentiroso!
— Eu vi quando toquei… — Não adiantava tentar esconder a
verdade agora. — Quando abri o diário do meu amigo.
Brer recuou como se eu o tivesse golpeado e engoliu qualquer
acusação que tinha na ponta da língua.
Srta. Rose olhou para mim com ceticismo.
— Um diário?
Eu concordei.
— Este diário… — Brer disse lentamente. — Tinha um símbolo?
— Sim. Embora nem sempre...
— Descreva-o.
— Hum… — Eu apertei os olhos em concentração. — Dourado.
Minha avó disse que era um antigo símbolo africano para uma teia de
aranha. Algo sobre ser criativo.
Brer deu alguns passos para trás, uma expressão maravilhada em
seu rosto peludo. Ele acariciou as orelhas e fez um sinal para que eu
continuasse.
— Quer dizer, é isso — eu disse. — Bem, exceto que estava
brilhando...
— Uma luz verde? Pulsando a cada três segundos mais ou menos?
— Brer perguntou ansiosamente.
Balancei a cabeça, e ele bateu palmas com as patas dianteiras e
riu.
— Eu sabia. Eu sabia! — Ele pulou e deu um soco no ombro de
John Henry. — Eu não te disse? Eu disse que iríamos encontrar, e
encontramos! Demorou um pouco mais do que o esperado, mas
encontramos!
John Henry resmungou.
— Por que demorou tanto?
Brer parou no meio da animação.
— Hein?
— Por que demorou tanto? Bebê Chiclete achou que tinha ficado lá
por uma ou duas horas, mas foi um ano. E a fenda flamejante no céu, tem
alguma coisa a ver com isso? — Ele se virou para mim. — Isso foi por
sua causa?
Respirei fundo e descrevi a invasão de Bebê Chiclete, a
perseguição pela floresta da Árvore-Garrafa e, finalmente, nossa luta.
Brer batia o pé com impaciência, até que finalmente bateu as patas
e me cortou.
— Ah, realmente, John, é uma simples distorção do tempo. Vários
reinos vivenciam o tempo de maneira diferente, isso já é conhecido há
algum tempo. Sem as devidas precauções, alguém poderia teoricamente
viver uma vida inteira em seu mundo e um momento no nosso. É bastante
complicado, você sabe, é algo que não espero que vocês percebam
imediatamente. Mas se adicionarmos aquele rasgo no céu à equação...
ora, todas as apostas estão canceladas. Bebê Chiclete surge no reino do
menino, passa uma hora subindo o mundo, mas volta através do rasgo
entre os reinos, em vez de usar o feitiço que lançamos? — Ele
resmungou. — Que desagradável. Ela poderia ter sido esmagada.
Bebê Chiclete arfou.
— Bebê Chiclete poderia ter virado Suco de Chiclete?
Brer acenou com uma pata.
— Mas vocês estão perdendo o ponto importante! Podemos
consertar o rasgo e todo o resto uma vez que construirmos... vocês
sabem. — Brer se virou para mim, suas orelhas praticamente tremendo
de excitação. — Então onde está?
— Onde está o quê?
— O livro! Onde estão as histórias de Anansi? Devemos começar
imediatamente. Os preparativos precisam começar, sem tempo a perder,
anda, anda.
— As histórias de Anansi? Não, era o diário do meu amigo. — Mas
as palavras morreram em meus lábios. Um antigo símbolo africano para
uma teia de aranha, disse vózinha. Anansi, a Aranha, cuja fome por
contar histórias e o jeito emocionante de tecê-las era lendária. Anansi,
que incitou o deus do céu Nyame a lhe dar as primeiras histórias, e cuja
lenda cresceu à medida que seus contos se espalharam.
Abri meus punhos e esfreguei minhas têmporas. Isso tudo estava
me dando dor de cabeça. Seria mesmo que o diário era na verdade uma
coleção mágica das histórias da Aranha?
Eu fechei meus olhos com força. Ok. Acredite, mesmo que por um
segundo. Digamos que o maior contador de histórias de todos os tempos
tenha algo relacionado a magia de alguma forma. Quer dizer, eu estava
conversando com um coelho gigante neste exato momento….
Mas por que Anansi daria um item tão poderoso para um garoto
negro e nerd de Chicago?
Abri meus olhos para ver todos esperando.
— O livro é mais do que você pensa — disse John Henry
gentilmente, mas com insistência. — É a chave de tudo. Agora me
entregue.
ABRI MINHA BOCA PARA responder, mas não saiu nada. Bebê
Chiclete olhou para mim e baixou os olhos rapidamente. Brer olhou
alternando o olhar entre nós, sua excitação desaparecendo e sua
suspeita retornando.
— Cadê?
Expliquei, lentamente e com grande dificuldade, o que tinha
acontecido na Floresta Afundada, quase perdendo o controle quando
admiti que não tinha sido capaz de salvar Brer Raposa, e cerrando os
punhos quando cheguei na parte sobre o gigante de papel.
Brer gemeu e caiu no chão, suas orelhas cobrindo os olhos.
— Não, não, não, nããão! Você perdeu? Estamos condenados.
Condenados!
— Chega, Brer — John Henry disse. — Isso não nos levará a lugar
nenhum.
Srta. Rose suspirou.
— Lutar com Bebê Chiclete, honestamente. Danificar uma Árvore-
Garrafa. Romper o véu entre os mundos... Você poderia ter destruído
tudo o que construímos aqui. Já é ruim o suficiente que os outros
alkeanos não falem com... — ela se interrompeu e eu franzi a testa.
— O problema entre nós e o resto de Alke só começou depois que
aquele rasgo apareceu — Brer murmurou. — Aqueles arrogantes...
— Brer! — A Srta. Sarah dobrou as asas com firmeza e estreitou os
olhos. — Já chega. Por enquanto, temos que lidar com esses dois. — Ela
franziu a testa para mim, então se virou para Bebê Chiclete. — E pensar
que demos a você outra chance, e é assim que escolheu se comportar.
— Vergonhoso — acrescentou Srta. Rose.
— Desrespeitoso, até.
Bebê Chiclete se encolheu ainda mais, sua cabeça quase tocando
suas perninhas atarracadas. Na verdade — e não posso acreditar que
estou dizendo isso — realmente me senti mal pela pequena vilã.
— Talvez ela simplesmente não esteja pronta.
— Talvez ela nunca esteja.
Elas continuaram assim por vários minutos. Indo e vindo com suas
críticas, às vezes a mim, às vezes a Bebê Chiclete. Brer ocasionalmente
soltava um suspiro de decepção ou um comentário malicioso aqui ou ali,
e John Henry dava um sermão em todos. Tentei intervir, mas não
consegui dizer uma palavra sequer. Quando os adultos sobem em seus
pedestais, essas coisas duram por dias.
Por fim, eu simplesmente joguei minhas mãos para cima.
— O que exatamente vocês querem que eu diga? — Perguntei em
voz alta. — E se eu responder às perguntas, vocês vão me dizer como
posso voltar para casa?
Todos ficaram quietos.
Brer bufou.
— Voltar para casa. Certo.
Olhei para ele. Para um deus inspirador, ele estava se tornando
super irritante.
— Sim, voltar para casa. Por aquele buraco em chamas.
Brer pulou em minha direção, suas longas patas traseiras batendo
no chão. Ele batia no meu peito, e tinha músculos que deixariam qualquer
jogador de futebol da Westlake Academy envergonhado, e agora que
estava de pé, uma de suas orelhas caiu. Ele parou a poucos centímetros
de mim e cruzou as patas na frente.
— Voltar. Simples assim. Deixar a bagunça que você criou para
outra pessoa limpar.
— A bagunça que eu criei?
— Sim, você. Você acha que pode simplesmente desaparecer
depois de todos os problemas que causou? Acha que pode sair por aí
desrespeitando o trabalho duro dos outros, perturbando o equilíbrio entre
os mundos como um mal educado? Só para se divertir? Acho que não.
Não, você está aqui embaixo, na sujeira e na lama com o resto de nós,
enquanto nos escondemos e fugimos para nos salvarmos.
Balancei minha cabeça, mais para limpar o calor formigante
rastejando pela minha espinha do que qualquer coisa.
— Eu não entendo o que você...
— Isso mesmo, você não entende. Eu já vi seu tipo antes. — Brer
pulou ao redor do topo da colina, apontando para o Arvoredo e depois
para os outros deuses. — Não tem respeito por nada que você não tenha
feito. Não tem respeito pelos outros. É selvagem e indiferente.
— Eu tenho respeito...
— Impulsivo. Perigoso. Arrogante.
Endireitei meu moletom e cerrei o punho.
— Eu não sou...
— E… — Brer interrompeu, como se eu não estivesse falando nada.
Ele se inclinou para frente, sua pata e orelha esquerda apontando para
mim acusadoramente. — Esta é possivelmente a pior característica de
todas, sempre decepciona os outros. Ele mesmo disse! Quase matou
todos enquanto perseguia os monstros de ferro apenas para parecer um
herói. Que tipo de amigo...?
— VOCÊ NÃO SABE NADA SOBRE MIM! — eu gritei.
O silêncio caiu sobre a clareira como cinzas finas após um incêndio
abrasador.
— Você não tem ideia de quem eu sou — disse, minha raiva
estrangulando minhas palavras em um silvo.
Todo mundo estava olhando para mim e eu mordi meu lábio. Calma,
Tristan. Precisa se acalmar. Os adultos não gostam quando não são os
únicos a gritar.
A Srta. Sarah olhou para a Srta. Rose e elas balançaram a cabeça.
Brer deu um passo para trás com uma expressão presunçosa no rosto.
John Henry suspirou.
A raiva que formigava em mim saiu do meu núcleo novamente.
Meus punhos cerraram enquanto eu tentava suprimir o sentimento, mas
aqueles olhares que eles trocaram...
Os adultos trocavam olhares de um lado para outro quando não
queriam que soubesse o que realmente pensavam de você. Esses
olhares podiam viajar por uma sala tão rápido quanto o vento,
substituindo todas as conversas assim que você entrava. Eles eram
trocados por adultos que você conhecia e por adultos que pensavam que
te conheciam. O Sr. Como-Você-Está-Campeão e a Sra. Você-Está-Bem-
Querido trocariam olhares antes de tentar dissecar suas últimas vinte e
quatro horas.
Eu odiava esses olhares
— Tristan.
A voz de Bebê Chiclete me tirou do devaneio e percebi que minhas
mãos estavam tremendo. O formigamento tinha se transformado em uma
coceira furiosa que precisava ser coçada, e eu estava chateado demais
para segurar por mais tempo. O tamborilar que persistia na parte de trás
da minha cabeça o dia todo começou a ficar mais alto.
— Vocês não sabem de nada — repeti em um rosnado baixo. —
Vocês só veem o que querem ver. Mandaram alguém roubar um menino,
porque queriam alguma coisa. Mas vocês viram aquele menino? Vocês
sabiam que ele tinha perdido um amigo? E não apenas um amigo, mas
seu melhor amigo, seu irmão, seu parceiro, seu braço direito, seu
companheiro de Não precisa falar mais nada, palavras não são
necessárias até o fim? Vocês sabiam que tudo o que este menino tinha
de seu amigo era um livro, um único livro no qual eles trabalharam juntos,
colecionando as histórias que eles adoravam ouvir quando crianças? Seu
grande projeto, seus pensamentos compartilhados, não é? Vocês sabiam
disso?
Eu estava me movendo ao redor do topo da colina agora. Todos
ficaram em silêncio. De repente, ninguém fez nenhum comentário. Sem
olhares. Sem frases em código adulto. Eu encarei Brer, que estava
examinando sua pata com grande interesse.
O formigamento passou para a ponta dos meus dedos. Parecia que
a qualquer momento toda aquela energia reprimida explodiria de dentro
e varreria todos para o lado.
Eu parei e cerrei meus punhos, então me inclinei, pressionando
minhas têmporas e rangendo os dentes.
— Vocês sabiam disso? Hein, deuses? — Eu perguntei novamente,
endireitando-me. — Vocês conseguem imaginar aquele menino, em um
lugar estranho, e aquele livro sendo a única coisa que o lembrava de casa
e dos bons tempos, e então alguém o rouba? Isso mesmo. Alguém invade
e rouba a única coisa boa que restou desse menino! Vocês conseguem
acreditar nisso?
A raiva acumulava atrás dos meus olhos em uma dor de cabeça
latejante, batendo em um ritmo que parecia estranhamente familiar. Eu
precisava dar um soco em alguma coisa, mas não havia luvas, nenhum
saco de pancadas por perto. Meu crânio iria explodir se eu não atacasse,
se não canalizasse essa energia de alguma forma.
— Tristan.
Eu ignorei o chamado de Bebê Chiclete novamente. Tudo era
demais. Tristeza. Confusão. Frustração. Emoções sobre emoções, todas
lutando para serem expressadas, e tudo o que alguém via do lado de fora
era um menino zangado.
Injusto.
In. Jus. to.
— Língua Solta!
— Vocês conseguem imaginar? — Perguntei de novo. O
formigamento e a dor de cabeça latejante saíram de controle em uma
onda poderosa, como uma onda gigante quebrando em uma praia e
destruindo o castelo de areia em que você trabalhou o dia todo. Ele saiu
de mim e gritei.
— VOCÊS CONSEGUEM IMAGINAR?
Pequenas mãos me agarraram, e eu pude sentir Bebê Chiclete se
levantar para se sentar no meu ombro. Ela deu um tapinha na minha
bochecha com as mãos pegajosas.
— Tristan... olhe. Olhe.
— Me solte...
Eu abri meus olhos e congelei.
Brer e John Henry, Srta. Sarah e Srta. Rose — todos olhavam
maravilhados, com as mandíbulas abertas.
A clareira da floresta estava cheia de luz verde suave e pulsante, e
logo abaixo da colina, todas as borboletas — milhões delas, ao que
parecia — vibraram em formação compacta, movendo-se juntas em
formas e padrões que pareciam...
— Minha história? — eu sussurrei.
E era.
As borboletas estavam reencenando minha história. Lá estava
Bebê Chiclete, passando pela minha janela. Lá, grandes borboletas
pretas e amarelas formaram a forma de um menino, que a perseguiu. E
havia a floresta, a Árvore-Garrafa, a luta e o rasgo no céu.
Eu olhei em volta. Ninguém disse uma única palavra enquanto
assistiam, maravilhados. Todos, exceto Bebê Chiclete. Ela parecia
aliviada, como se tivesse provado que estava certa.
— Viu? — Ela disse para os outros. — Vocês me disseram para
trazer-lhes o sinal de Anansi, e eu trouxe. — Ela deu um tapinha na minha
bochecha novamente. — Eu trouxe um Anansesem para vocês.
— ANANSESEM? — EU PERGUNTEI, ATRAPALHADO com as
sílabas. — O que isso significa?
— Um contador de histórias — respondeu John Henry. Ele coçou o
queixo pensativo. — Mas mais do que palavras, mais do que era uma vez
e fim. É sobre toda a experiência, do público ao palco e ao espetáculo.
Há música também, eu acho, mas...
— Já chega! — Brer gritou. Ele saltou bem alto, do topo da colina e
desceu para o campo abaixo, dispersando as borboletas. O feitiço foi
quebrado. Elas voaram para as flores e árvores, e Brer se virou com um
clarão. — Você quer trazer aqueles monstros de ferro até nós? De todos
os...
— Brer — John Henry rugiu em advertência.
— Estúpidos, idiotas, descerebrados...
— Já basta, Brer — disse a Srta. Sarah.
— Patetas, egoístas...
— BRER! — todos os três deuses gritaram, e Brer finalmente
encerrou seu discurso. Ele se virou e, com três pulos poderosos, saltou
da clareira na floresta e entrou na rede de túneis do Arvoredo.
John Henry, Srta. Sarah e Srta. Rose se juntaram, murmurando
baixinho, e revirei os olhos. Mais conversas “adultas”. Mas eu tinha que
admitir que estava assustado. O gigante de papel eu talvez pudesse ter
ignorado como uma ocorrência única e bizarra em um lugar bizarro com
criaturas bizarras. Mas agora as borboletas... De repente, eu me senti
como se fosse o bizarro.
Essa não era uma sensação boa.
— Tristan — John Henry chamou, me assustando. O homem
gigante acenou para que eu me juntasse a eles. Bebê Chiclete parou de
perseguir um aglomerado de borboletas e correu também.
— E então? — ela disse. — Bebê Chiclete foi bem ou não?
John Henry deu um tapinha em sua cabeça, quase lhe dando um
beijo, então pareceu confuso quando ergueu a mão e viu Bebê Chiclete
grudada nela.
— Sim, você foi bem. Mas o que importa é o que vai acontecer a
seguir.
Eu fiz uma careta.
— O que quer dizer com isso?
A Srta. Sarah alisou uma das asas e pigarreou.
— O Arvoredo está em perigo. Estávamos discutindo isso antes de
você, ah...
— Antes de ele cair de bunda em um espinho? — Bebê Chiclete
perguntou.
Meu rosto ficou quente de vergonha e Srta. Rose revirou os olhos.
— Sim, obrigada, Bebê Chiclete — disse ela. — O ponto...
— … está na bunda dele — Bebê Chiclete sussurrou e riu.
— ... nós temos um dilema — disse a Srta. Sarah em voz alta.
Eu olhei em volta para todos os rostos sombrios e soltei uma lufada
de ar.
— Os monstros de ferro de que todos vocês estavam falando. Os
algemados.
— E bestas de casco e moscas-marca — murmurou Srta. Rose.
Eu não sabia o que eram, mas estremeci com os nomes. Por que
tudo por aqui parecia tão doloroso? Por que não poderíamos lutar contra
criaturas chamadas de pássaros fofinhos e patas de caramelo?
— Sim, eu acho — continuei. — Brer Raposa disse que os monstros
de ferro estão todos exaltados por — minha causa, eu queria dizer —
causa daquele buraco gigante no céu. E...
— E eles estão nos eliminando um por um — concluiu John Henry.
— Estão nos caçando por algum motivo. Todo mundo que é pego é
arrastado para... bem, para um lugar ruim, para nunca mais ser visto.
— Para o Maa...? — comecei a perguntar, mas três vozes me
silenciaram e alguém jogou seiva na minha cabeça.
— Tentamos não chamar a atenção para aquela coisa… — a Srta.
Sarah começou.
— E você precisa ter um cuidado especial — Srta. Rose terminou.
— Eu? Por quê?
— Porque você é um Anansesem — disse John Henry. Sua voz
retumbou e ele se ajoelhou sobre um joelho gigante. — Quando você
conta histórias, algo especial acontece, como acabou de ver com as
borboletas. É por isso que os chamamos de monstros de ferro, e acho
que você especialmente deveria fazer o mesmo.
— Você tem que ter cuidado — alertou Srta. Rose.
Srta. Sarah assentiu.
— Você tem que se concentrar. Concentre-se no que você está
falando e aprenda a controlar.
Levantei minhas mãos.
— Eu nem sei o que Anna... Anon... o que isso significa!
— Significa que você tem o dom de Anansi — disse John Henry. —
Ainda não tenho certeza de como o Tecelão criou essa magia, mas o que
sei é que o mundo ouve você. E você o ouve.
Um pensamento subiu em minha mente e respirei fundo.
— A música… — Os outros pareceram confusos e eu expliquei. —
Tenho ouvido música desde que cheguei. Tambores. Bater de Palmas.
Até mesmo alguns cantando, mas é bem fraco e...
Fiz uma pausa quando um bocejo gigante escapou da minha boca.
Os eventos da noite passada estavam me alcançando, e eu ainda não
sabia como voltaria para casa, ou se eu poderia voltar para casa. Com o
rasgo no céu transformando a vida de todos aqui em um pesadelo, eu
nem tinha certeza se deveria ir para casa, não sem tentar ajudar. Mas ser
algum tipo de contador de histórias mágico não seria muito útil em um
ataque de monstros de ferro.
Tristan Strong, o encantador de borboletas. Bibbidi-Bobbidi-Boo.
Outro bocejo ameaçou sair — todo esse estresse era exaustivo. Se
era assim que os adultos se sentiam o tempo todo, já pode começar a me
deixar de fora dessa.
John Henry franziu a testa.
— Está certo, já é o suficiente por hoje. Precisamos pensar sobre
tudo isso. Bebê Chiclete, leve Tristan para comer um pouco com os
outros. E mande Ayanna aqui se você a ver.
Bebê Chiclete fez uma saudação e começou a trotar descendo a
colina gramada até a porta entre os espinhos. Comecei a seguir, mas
uma voz profunda me parou.
— Tristan — disse John Henry. Ele apontou um dedo enorme para
mim. — Isso não acabou. Algo não está fazendo tanto sentido, mas não
há tempo para pensar em tudo agora. Voltaremos a conversar.
Engoli em seco e acenei com a cabeça, depois corri atrás de Bebê
Chiclete.
No que eu me meti?
BEBÊ CHICLETE ME LEVOU DE VOLTA pelo túnel sinuoso. Ela
parava de vez em quando para examinar um galho ("Bebê Chiclete nunca
tinha visto este antes") ou um canto ("Isso é novo!") ou uma pegada
("Quem está andando nos corredores de Bebê Chiclete?”)
Eu estava prestando atenção pela metade e quase pisei nela
quando ela parou e coçou a cabeça.
— Bebê Chiclete não se lembra dessa bifurcação estar aqui —
disse ela.
— Espere, o quê? — Olhei em volta. Estávamos em um
cruzamento. — Você está perdida?
— Bebê Chiclete não se perde, garoto. Ela simplesmente decide ir
para algum lugar diferente às vezes.
— Aham.
— Ok. É por aqui. — Bebê Chiclete começou a marchar pelo
caminho mais à esquerda, eu suspirei e a segui. Caminhamos em silêncio
por alguns segundos antes de ela falar novamente. — Tudo está tão
diferente.
— O quê?
— Tudo. — Sua voz era mais suave e menos impetuosa. — Todo
o mundo. As pessoas costumavam dançar, cantar e brincar, agora estão
todas quietas. Assustadas.
Apertei meus lábios.
— Disseram que você se foi há um ano. Muita coisa aconteceu
nesse meio tempo.
Ela parou em outro cruzamento, ouviu e olhou para os dois lados
antes de seguir em frente. Eu conseguia ouvir vozes fracas agora, e Bebê
Chiclete parecia mais confiante para onde estava indo. Ela olhou para
mim e balançou a cabeça.
— Bebê Chiclete não foi embora por um ano inteiro. Ela saiu ontem!
Não faz sentido.
Um cheiro saboroso flutuou pelo corredor e meu estômago roncou.
Fizemos uma curva e entramos em uma grande sala cheia de
Médios. Bancos longos em estilo de piquenique se estendiam em fileiras
de ponta a ponta, com um pequeno corredor no meio para que as
pessoas pudessem caminhar até a estação de comida circular na frente.
Bebê Chiclete parou.
— Entende o que eu quero dizer? Eles parecem tão...
— Tristes — eu terminei.
Uma fila se enrolava ao redor da sala, e pessoas e animais
andavam para frente. Ninguém falava e todos os olhos estavam fixos no
chão. Um bebê chorou e foi rapidamente silenciado. As crianças se
sentavam em grupos, algumas devorando sua comida e outras mexendo
nela apaticamente. Entramos na fila e Bebê Chiclete subiu no meu ombro.
— Bebê Chiclete não conhece ninguém aqui — disse ela frustrada.
— Todos esses rostos novos.
— Refugiados? — adivinhei. — Da Terra Média?
— Mas essas não são roupas da Terra Média.
Ela apontou para um menino que estava colocando seu casaco ao
redor de sua irmã ainda menor enquanto ela segurava seu ombro. O
menino ofereceu a ela um gole d'água de uma garrafa alta, mas ela a
empurrou e enterrou o rosto em seu peito.
— Bebê Chiclete — eu disse lentamente. — Você... viu algo
estranho quando caiu no Mar Flamejante?
— Morte iminente?
— Bem, sim, mas mais alguma coisa? Você... viu uma sombra em
uma sala?
Bebê Chiclete balançou a cabeça.
— Não. Por quê?
A risada cacarejante do haint ecoou em meus ouvidos novamente,
junto com seu aviso.
Não conte a ninguém, garoto...
— Só curiosidade.
Ela deu um tapinha na minha bochecha e voltou a procurar por
alguém que porventura conhecesse, enquanto eu fazia uma careta e
limpava seu resíduo pegajoso e lutava com segredos.
O haint também havia caído pela fenda. Eu sabia disso agora. A
presença na floresta de Árvores-Garrafas, a sombra que saiu da garrafa,
a conversa estranha com o Tio A... cada batalha envolvia a mesma aura
maligna que se parecia com um gosto ruim ou aquele cheiro estranho da
minha bolsa de ginástica. E agora ele estava à espreita em algum lugar
lá fora, fazendo sabe-se-deus o quê com o diário de Eddie. Ele parecia
ansioso para possuí-lo, e agora ele o tem, por mais que me doa admitir.
Eu tinha que recuperá-lo.
Mas como? Eu encarei minhas mãos, então apertei meus dedos.
Aparentemente, as borboletas estavam à minha disposição, então
talvez...
— Ensopado?
A pergunta me assustou e eu pisquei.
— Perdão?
A garota que cuidava da panela desdenhou.
— Você quer ensopado ou não?
— Ah, hum, sim. Por favor.
— Pão?
— Sim, por favor.
Ela me entregou uma tigela de barro áspera cheia de vegetais
fumegantes, arroz temperado e um pedaço de pão crocante, e eu
agradeci e segui em frente. Encontrei um assento perto do fundo da sala,
na beira de uma mesa, e me sentei ao lado de uma família de Médios
com quatro filhos, cada um deles olhando para mim. Eles olharam ainda
mais quando Bebê Chiclete pulou do meu ombro e enfiou o rosto na
minha comida. A pestinha ainda teve a coragem de arrulhar para si
mesma enquanto devorava minha refeição.
Comi do outro lado da tigela. Os vegetais — cebola, aipo e algo que
parecia uma cenoura roxa — eram picantes e fizeram meus olhos
lacrimejarem. Também estavam deliciosos. Eu os devorei, mergulhando
o pão quente nos restos para enxugar todos os vestígios.
— Caraaaaca, Língua Solta, você estava com fome, não estava?
Bebê Chiclete queria seu pão também. Agora ela precisa se levantar e
pedir mais um pouco. Você é egoísta. — Bebê Chiclete desceu da mesa,
procurando por sobras.
Eu olhei em volta. Todo mundo estava me observando, e meu rosto
ficou tão quente de vergonha que minhas bochechas poderiam ter
começado um incêndio. Uma das crianças mais novas riu antes de ser
silenciada por sua irmã mais velha, que parecia ter a minha idade.
Ela sorriu se desculpando.
— Desculpa. Eu sei como é, você não percebe o quanto está com
fome até se sentar na frente da comida.
— Sim. — Me virei para a tigela, olhando para o pedaço de cebola
no fundo e decidi não enfiar goela abaixo.
— Meu nome é Netta.
— Tristan.
— Você acabou de chegar aqui? — Ela perguntou. Um de seus
irmãos subiu em seu colo e ela começou a balançá-lo automaticamente.
— Sim. Bem, ontem. Aparentemente, dormi um pouco. — À menção
de dormir, um bocejo forçou seu caminho para fora, e eu pisquei surpreso.
Netta sorriu.
— As camas são muito confortáveis depois de passar noites no
chão encharcado da Floresta Afundada.
— É, acho que sim.
— Desculpe por todas as perguntas. É só que... não há muitas
crianças da nossa idade que chegam até o Arvoredo.
Eu olhei para cima, confuso. Netta encolheu os ombros e acenou
com a cabeça para a multidão.
— Você não percebeu? Olhe em volta. Esses monstros de ferro
parecem preferir nós, crianças mais velhas, por algum motivo. Ninguém
sabe por quê.
Eu examinei a sala. Ela estava certa — todas as crianças, exceto
algumas como Netta e eu, eram mais novas. Crianças que, em Chicago,
estariam no jardim de infância. Por quê? Fiquei enjoado.
Eu estive esperando por você, Tio A disse.
Netta franziu a testa.
— Você está bem? Você parece estar meio mal.
Eu me levantei, empurrando a mesa com a minha pressa.
— Desculpe, eu... eu tenho que ir. — Corri pelo cômodo abarrotado
de gente, murmurando desculpas enquanto me espremia, até chegar a
um espaço livre contra a parede e me inclinar, minhas mãos nos joelhos.
Todas essas pessoas. Todas aquelas famílias, dilaceradas e
perseguidas pela floresta, só por minha causa. Aquele haint estava
caçando Povos Médios, de alguma forma trabalhando com o Maafa, o
que quer que isso seja, e enviando monstros de ferro à minha procura,
mas levando todos que eles conseguem capturar e... Eu senti como se
fosse vomitar tudo que tinha acabado de comer. Quanto tempo até todos
fazerem a conexão? Quanto tempo até eles descobrirem que era tudo
culpa minha?
Afundei no chão e coloquei minha cabeça em cima dos meus
braços cruzados. Uma onda de exaustão tomou conta de mim. Eu só
queria dormir e acordar e o pesadelo acabaria. Eu voltaria para Chicago,
Eddie estaria batendo na porta do apartamento e tudo voltaria ao normal.
Só queria dormir.
Dormir…

Escuridão.
Duas tochas queimavam de cada lado meu, mal iluminando um
longo corredor úmido. O tipo de espaço do qual você sai, não entra.
Mas eu não conseguia sair.
Algo não me deixava.
Um pé se moveu, depois o outro, e entrei na escuridão. Enquanto
caminhava, as tochas flutuavam ao meu lado e rostos apareciam em sua
luz fraca. Pessoas e animais olhavam para mim de dentro das paredes
semitransparentes, suas expressões horrorizadas revestindo cada lado
do corredor como retratos deformados. Algemas os mantinham no lugar
e suas bocas se moviam, mas nenhum som saía. Passei por dois ou três
antes de encontrar um que reconheci.
— Brer Raposa? — Tentei parar, mas meus pés não obedeciam
aos meus comandos e continuei andando. Quando olhei para trás, seu
focinho prateado se moveu enquanto ele tentava responder. — Brer
Raposa! — eu gritei.
Ele estava vivo! Ainda havia uma chance de salvá-lo.
Esse pensamento dominou minha mente tão completamente que
não percebi quando a escuridão começou a clarear. Água pingava e
coisas passavam correndo pelos meus pés enquanto eu caminhava pelo
corredor. Sussurros ecoaram e eu ouvi uma risada desagradável. Bem
quando eu pensei que andaria para sempre, uma porta emergiu da
escuridão.
Eu queria me virar, mas minha mão se moveu por conta própria e
não consegui impedi-la de empurrar a porta. Meus pés me levaram.
— Ei, ei. Veja quem é! Onde você esteve, Tristan?
A sombra de antes, a que eu tinha visto quando estava caindo pelo
buraco, estava na minha frente. Ela tinha uma forma agora — um corpo.
Eu podia ver a silhueta, embora apenas em partes, como se alguém
tivesse acabado de desenhar um monstro com tinta e raiva.
Um único olho se abriu e o rosto sorriu, mostrando uma fileira de
dentes brancos perfeitos.
— Você não está evitando o velho Tio A, está? — Algo caiu da
sombra, algo que não consegui decifrar completamente, mas parecia
uma flor com pétalas brancas difusas. Ela imediatamente murchou na
escuridão.
— O que você quer? — Eu sussurrei.
— Você não foi sincero comigo, Tristan. — A sombra parecia triste.
Traída. Como se eu tivesse roubado um dólar dele. — Não, você não foi
nada sincero. Depois que eu te salvei, é assim que você me trata? —
Uma lanterna se acendeu e vi mais flores murchas no chão. Ao lado,
estava um livro cheio de páginas dobradas com uma capa de couro
manchada de água. O diário de Eddie! De alguma forma, alguém o havia
restaurado. Eu apertei meus punhos com tanta força que minhas unhas
cravaram em minhas palmas.
— Isso é meu!
A silhueta da sombra endureceu e apenas por um segundo eu
pensei ter visto um rosto completo olhando para mim — caolho e
carrancudo.
— Não é o que eu pensei que fosse, mas você sabia disso. Onde
está a magia? Eu não posso fazer nada com esse troço. Eu deveria
queimar este pedaço de lixo!
— Não! — eu gritei.
— Bom, então você deveria ter sido honesto comigo!
Balancei minha cabeça.
— Não sei do que você está falando. — Mas quando eu disse isso,
a cena da história da clareira no Arvoredo surgiu em minha mente.
A lanterna se acendeu novamente e o cheiro de podridão quase me
sufocou.
— Você sabe exatamente do que estou falando! Você me fez
passar por idiota. Mas eu sou um tio gentil, sim, eu sou. Você sabe do
que eu preciso, e você vai conseguir para mim. Eu quero o poder daquela
aranha, e você vai trazê-lo para mim, ou eu colocarei fogo neste maço de
papel higiênico e irei te encontrar. E quando eu te encontrar, vou colocar
um fim em tudo e todos que te ajudaram ou olharam para você ou até
mesmo pensaram coisas boas sobre você. Vou enterrar todos eles! — A
lanterna tremeluziu quando o haint cuspiu: — Está me ouvindo? VOU
ENCONTRAR VOCÊ!
As palavras me deram um soco no peito, e de repente eu estava
voando para trás, puxado por uma corda invisível através da porta e pelo
corredor, até que fui abruptamente lançado pela entrada.
Me dê o poder de Anansi, garoto, ou este seu diário e todo o resto
será queimado.
A ameaça me seguiu, ou talvez estivesse gravada na minha
cabeça. Eu tinha o controle do meu corpo novamente, mas quando me
virei, outra voz me parou na escuridão.
— Ei, nimrod, você está falando com a pessoa errada.
A respiração deixou meus pulmões e eu me virei. Eu reconhecia
aquela voz. Só nunca esperava ouvi-la novamente.
— Eddie?
— Você está falando com a pessoa errada.
— Eddie! Onde você está?
Ele não respondeu, no entanto. A voz do meu melhor amigo
continuou repetindo essa frase, e eu agarrei meu crânio enquanto o
pânico, a confusão e o desamparo me puxavam em dezessete direções
diferentes.
— EDDIE!
Nada.
— TRISTAN?
Meus olhos abriram. Ayanna estava em cima de mim na lotada área
comum, os olhos estreitos. Me levantei e engoli algumas vezes.
— Ei. Onde você esteve? — perguntei a ela.
Ela me observou, depois olhou para as pessoas que tentavam não
ouvir. Virou-se e acenou para que eu a seguisse.
— Aqui não. Alguém quer falar com você. Venha comigo e eu
explicarei.
Curioso, segui Ayanna pelos túneis cheios de sombras do
Arvoredo. Feixes de luz do sol passavam pelas rachaduras nos galhos, e
eu vi pedaços de um céu azul sem nuvens mais de uma vez. A Terra
Média deveria ser um lugar tranquilo, um lugar onde você pudesse
brincar, crescer, cantar, dançar e se deixar levar pela magia do mundo.
Em vez disso, era um horror.
Um pesadelo.
Por minha causa.
O que o haint queria com a magia de contar histórias?
Eu precisava encontrar uma maneira de consertar isso. Talvez se
eu explicasse tudo para John Henry e para as Srtas. Rose e Sarah, eles
poderiam de alguma forma tirar o poder de Anansesem e eu estaria livre
para ir embora.
— Eu tive que falar com alguns dos Povos Médios — Ayanna disse
de repente. Olhei para ela, confuso, e ela suspirou. — Você me perguntou
onde eu estive. Tive que dizer a algumas famílias que não fomos capazes
de encontrar seus entes queridos.
Estremeci.
— Isso parece difícil.
— E é. E nunca fica mais fácil. Não sei como Brer Raposa fazia
isso...
Brer Raposa. Eu me perguntei se deveria dizer a ela que ele ainda
estava vivo... em algum lugar. Mas então decidi não contar, lembrando
da ameaça do tio A contra qualquer um que olhasse para mim.
— E depois tive que tentar convencer a Srta. Sarah a me deixar sair
em patrulha mais uma vez. Ainda há Povos Médios lá fora que podemos
salvar, eu sei disso! — Ela bateu com o punho na mão. — Tem que haver.
Eu não sabia o que dizer sobre isso. Caminhamos em silêncio por
um longo tempo até que Ayanna diminuiu o passo, e eu percebi que
estávamos de volta à clareira interna do Arvoredo, onde John Henry e os
outros me interrogaram antes. Ela se virou antes de entrarmos e me
encarou novamente.
— Que foi? — Perguntei.
— Você realmente fez aquilo? — Ela perguntou.
Meu coração errou uma batida. Ela quis dizer o rasgo no céu?
— Fiz o quê?
— Você sabe. Deu vida a essa história. Com magia. — Ela disse
isso com um pouco de raiva, como se eu tivesse traído alguém.
Soltei um suspiro de alívio.
— Não sei. Isso é o que os deuses me disseram.
— Não estou perguntando a eles, estou perguntando a você.
Aparentemente, você também pode ouvir coisas?
— Eu não sei, ok? Eu sinto... algo. Tambores, palmas, música
fraca... Não consigo explicar, a não ser para dizer que é como ter uma
memória fora de alcance. — Fechei minhas mãos em punhos e suspirei
de frustração. — Não sei se é essa coisa do Anansesem, mas...
Ayanna continuou a me observar.
— Espero que sim — ela murmurou. — Precisamos de toda a ajuda
que pudermos obter e talvez... apenas talvez, com a sua ajuda, possamos
fazer pender a balança a nosso favor de uma vez por todas. — Ela me
ofereceu um pequeno sorriso e entrou.
Eu esperei por um momento. Ela queria minha ajuda... Mesmo
depois de tudo que fiz e de todos os problemas que causei, ainda poderia
consertar isso.
Então, por que esse pensamento me paralisou de medo?
— Tristan?
Exalei e a segui para dentro.
Passamos pela colina, cruzamos o riacho e seguimos em direção
às árvores ao fundo, onde uma grande pedra estava localizada entre
vários troncos. A princípio pensei que havia uma brisa, por causa de todo
o movimento nas copas das árvores, mas então uma das muitas folhas
se soltou e caiu sobre nós.
— As borboletas! — eu disse com admiração silenciosa.
As árvores estavam cobertas com as borboletas de antes. Elas
fizeram suas casas nos galhos, dobrando e desdobrando suas asas, até
que parecia que todo o bosque era uma pintura viva. Eu estendi um dedo
e a maior borboleta que eu já vi pousou nele. Asas azul-celeste
salpicadas de pontos amarelos e brancos bateram lentamente antes que
o inseto voasse para outro lugar.
— Pacífico, não é?
A voz de John Henry retumbou na sombra. O que eu presumi que
fosse uma pedra era, na verdade, o herói powular gigante sentado contra
o tronco de uma árvore. Agora ele se virou lentamente e olhou para mim,
e meus olhos se arregalaram com as centenas de borboletas cobrindo
seus braços e ombros.
— Venho aqui para pensar às vezes — disse. Ele olhou para
Ayanna e sorriu. — Obrigado por trazê-lo. Sarah e Rose foram fazer um
sobrevoo na Floresta Afundada, para verem se conseguem encontrar
algum retardatário. Você conseguiu algo para comer?
Ela balançou a cabeça.
— Depois. Estou voltando para a patrulha. Eu vou pelo lado leste.
Os olhos de John Henry ficaram tristes.
— Ayanna, Rose disse...
— Eu vou patrulhar — ela repetiu teimosamente, e depois de um
breve impasse, ele suspirou e concordou com a cabeça.
Ela olhou para mim com aquela expressão quase suplicante de
novo, como se eu fosse a resposta de uma pergunta não formulada, antes
de agarrar seu bastão e sair andando.
— Sente-se, Tristan — disse John Henry. — Nós precisamos
conversar.
Eu relaxei em frente a ele e inclinei minha cabeça contra o tronco
da árvore. John Henry observou Ayanna sair, então se virou e estudou
meus olhos. Eu evitei os dele, preferindo olhar para as borboletas voando
acima de nós.
— Esses monstros de ferro estão nos matando lentamente — disse
o grande homem sombriamente. — Está chegando ao ponto em que as
pessoas não podem sair do Arvoredo sem um de nós, deuses,
acompanhando. Mesmo assim, é um pouco incerto.
— Mas — eu disse — você é John Henry. Vocês são todos heróis,
deuses! Certo? Como eles podem...?
— Fácil. Tudo o que precisamos é um bando daquelas criaturas
furtivas de metal para chamar nossa atenção, e então outras começam a
pegar as pessoas a torto e a direito. Eles são inteligentes, mais do que
deveriam. Mais do que costumavam ser. O Ma… o líder deles é mau de
maneiras que nunca poderíamos imaginar. Eles estão aprendendo e
levando nosso pessoal. Eles estão até levando nossas crianças. Nossas
CRIANÇAS! — John Henry bateu com o punho no chão, enviando
tremores por toda a floresta, e eu vacilei quando centenas de borboletas
alçaram voo em uma agitação de asas silenciosas.
— Quem é o líder deles? — Perguntei.
Ele esfregou a testa com os olhos fechados por vários segundos.
— Não é realmente um quem. É mais um sentimento. De
devastação e destruição, fome e ganância. É a dor, e é disso que eles
sobrevivem. Chegou aqui com os primeiros de nós, comigo, Brer Coelho
e Brer Raposa e as Mulheres Voadoras. A tristeza da nossa alegria.
Conseguimos derrotá-lo uma vez. Pensamos que se nós o deixássemos
afundar até ao fundo do Mar Flamejante, ficássemos em alerta e
proibíssemos qualquer pessoa de mencionar ou mesmo pensar nele,
poderíamos viver uma vida pacífica. — Ele olhou para o céu. — Mas algo
o trouxe à tona novamente, o transformou em uma fúria e está enviando
tudo o que tem atrás de nós. Todos os monstros de ferro que ele pode
desenterrar das profundezas estão vindo em nossa direção.
Quando ele parou de falar, lutei com a enormidade de suas
palavras.
Algo havia perturbado um monstro que todos os deuses se juntaram
para derrotar.
Esse algo era eu... e o haint que eu trouxe.
John Henry pigarreou.
— Brer diz que tem um plano. E você é parte dele.
Fiz uma careta.
— Mas…
Ele estremeceu.
— Eu gostaria que pudéssemos mantê-lo fora disso, mas não vejo
como poderíamos. Nós precisamos da sua ajuda.
Lá estava ela novamente. Aquela palavra.
Ajuda.
Comecei a balançar minha cabeça.
— Eu não acho que posso...
— Tristan, um Anansesem... isso é algo especial. Você pode não
perceber, mas este mundo e o seu estão conectados. As lendas, as
fábulas... todos os contos que você ouviu enquanto crescia, nos dão
força. Eles são como combustível para nós, heróis powulares, a razão
pela qual todos nos chamam de deuses. E quando um Anansesem os
conta, eles são ainda mais poderosos. Você está ligado a Alke mais do
que qualquer um de nós, porque carrega as histórias que nos trouxeram
aqui, histórias do seu mundo e do meu.
Eu abri minha boca, então fechei. Como eu deveria responder a
isso? De repente, todas as minhas desculpas pareciam triviais. Fechei
meus olhos e apertei meus punhos com força. Todo mundo estava atrás
desse poder que eu não entendia. Eu só queria me livrar dele, não salvar
o mundo. Mas se eu quisesse voltar para casa, que escolha eu tinha?
— Qual é o plano? — Perguntei.
SE VOCÊ ME DISSESSE que um cara do tamanho de John Henry
poderia passar por um túnel de espinhos que eu tive que me espremer
para poder passar, riria da sua cara. Mas, de alguma forma, o Arvoredo
parecia mudar e crescer e se esticar ao redor dele. Cacau disse que o
Arvoredo tinha magia entrelaçada em suas vinhas, mas ainda era incrível
de se ver enquanto caminhávamos pelo labirinto de corredores livres de
espinhos.
Encontramos Brer sentado no meio do chão de uma sala em forma
de cúpula. Pequenos buracos pontilhavam o espaço do chão ao teto, e
atrás das paredes eu podia ouvir os sons de arranhões e corridas.
— Uhum — Brer grunhiu quando pedaços de folhas caíram de um
buraco perto de sua cabeça. — Entendi — disse ele quando um lampejo
de pelo cinza desapareceu em uma toca perto de seus pés.
— Eu vou passar adiante — ele murmurou enquanto uma cauda
branca e fofa se afastava.
— Este é o Labirinto — John Henry sussurrou enquanto
observávamos Brer trabalhar. — Aqueles pequenos buracos são túneis
que conduzem a toda a Terra Média e até mais além. Alguém uma vez
disse que alguns deles vão direto para o continente. Os amigos de Brer
reúnem informações e as trazem de volta para cá, onde ele as organiza
e arquiva para referência futura.
— Ele tem espiões? — eu soltei. — E você me acusou de ser...
— Coletar informações dificilmente é espiar — Brer interrompeu,
suas orelhas achatadas em aborrecimento.
— Chega, vocês dois — disse John Henry. — Temos um problema
que precisa ser resolvido e acho que é hora de conversarmos sobre como
corrigi-lo.
— Bem, bem. Claro — disse Brer. — Mas estou esperando até que
os outros cheguem aqui, não faz sentido perder o fôlego duas vezes.
O coelho recolheu suas anotações rabiscadas e começou a
classificá-las sem dizer outra palavra. John Henry encolheu os ombros
em um pedido de desculpas para mim e eu revirei os olhos. Deus ou não,
Brer estava me dando nos nervos.
A Srta. Sarah e a Srta. Rose chegaram pouco tempo depois, e fiquei
surpreso ao ver Ayanna as seguindo para dentro. Enquanto as deusas
aladas murmuravam saudações para mim, a piloto da jangada me deu
um breve sorriso que eu hesitantemente retribuí.
— Ah, bom. Estava na hora. — Brer embaralhou uma pilha de suas
notas e pigarreou. — Eu, pelo menos, não vou perder tempo, porque
estou incrivelmente ocupado.
— Fazendo o quê, ficando sentado? — Eu disse antes que pudesse
me conter.
Brer saltou de pé em um bufo.
— Alguns de nós, garoto, realmente contribuem por aqui. Alguns de
nós acreditam que ajudar a sobrevivência de todos é importante. Eu
resolvo problemas, problemas que você criou, então me poupe do
sarcasmo insolente e comece a trabalhar duro.
— Eu não pedi para vir aqui! — eu vociferei.
— Nós também não pedimos por você, mas aqui está.
— Bom, me ajude a ir para casa e eu vou sair da sua frente!
— NÃO HÁ COMO IR PARA CASA! — Brer explodiu. Ele pulou a
centímetros do meu rosto e me encarou. — Esse é o problema! Ninguém
aqui tem a capacidade de levá-lo a uma espiral da morte que paira sobre
nossas cabeças há um ano, crescendo cada vez mais. Não com hordas
de monstros de ferro espreitando nas névoas! Não com moscas-marca
voando pelos céus, perseguindo você de um lado para o outro! Até que o
rasgo se restaure e aqueles monstros de ferro sejam controlados, você
não vai a lugar nenhum. Portanto, esqueça essa ideia até que eu diga o
contrário.
Eu segurei uma resposta e permaneci em silêncio, lutando contra o
que ele disse. Eu estava preso lá. Por quanto tempo? A diferença de fuso
horário entre o meu mundo e Alke continuou a me confundir. Quando eu
escapasse — isto é, se é que eu iria escapar — quantos dias teriam se
passado em casa?
— Então, qual é o plano, Brer? — John Henry ergueu os braços e
as pontas dos dedos roçaram as paredes em lados opostos da sala. —
Se não conseguirmos chegar lá, aquele rasgo continuará crescendo, e
aqueles monstros de ferro dos navios de ossos continuarão saindo no
Mar Flamejante!
Brer esfregou seu rosto peludo e suspirou.
— Pelas informações que pudemos reunir, há alguma conexão
entre a anormalidade no céu e essas criaturas. Eu apenas não fui capaz
de descobrir o que é. O que sabemos é que, quando o senhor "soco" aqui
— ele apontou as orelhas para mim — espancou a pobre Árvore-Garrafa,
isso perturbou alguma coisa, e os monstros de ferro, um incômodo menor
desde que você-sabe-o-quê foi derrotado, se tornaram uma ameaça
novamente. Se pudermos enviar esse menino de volta e fechar o buraco
atrás dele, é lógico que o que quer que os esteja perturbando acabará…
— Isso tudo é ótimo... — a Srta. Sarah disse
— … mas alguém ainda precisa subir lá — sua parceira continuou.
— E nós não vamos tentar de novo — concluíram elas ao mesmo
tempo.
A Srta. Rose fungou.
— Minhas asas ainda doem pela manhã, sabe.
A Srta. Sarah concordou com a cabeça, e eu imaginei as duas
deusas batendo suas asas enquanto disparavam em direção ao rasgo no
céu.
Um estrondo de trovão e penas pretas caindo, um grito de dor, e...
— Tristan, querido, você está bem? — A Srta. Sarah olhou para
mim e tirei a imagem vívida da minha mente. Eu podia até sentir o cheiro
das penas chamuscadas.
— Ótimo — eu resmunguei.
John Henry ainda estava discutindo com Brer.
— E como você acabou de dizer, aqueles monstros não estão
deixando ninguém chegar perto o suficiente para tentar — ele rosnou.
Brer hesitou.
— Desde que encontremos uma maneira de passar por eles, algo
em que estou trabalhando, há duas pessoas que conheço que podem
passar pelo fogo ilesas, mas apenas uma delas pode consertar o rasgo
no céu e talvez nos livrar de nosso convidado indesejado.
Todos nós nos inclinamos para frente para ouvir o nome.
— Anansi.
UM SOPRO DE VENTO PASSOU pelo meu rosto e pensei ter
ouvido alguém sussurrar meu nome, mas quando olhei em volta, ninguém
estava falando comigo.
John Henry e Ayanna estavam discutindo com Brer, que tinha as
duas patas cruzadas sobre o peito e um olhar determinado no rosto.
— Esse rasgo no céu precisa ser selado, e quem melhor para fazer
isso do que o próprio Tecelão?
— Kwaku Anansi não é visto há meses — disse a Srta. Sarah.
— Mas se pudéssemos encontrá-lo… — disse Srta. Rose.
— Não vai rolar. — John Henry abanou a cabeça. — Simplesmente
não vai. Mesmo que ele não tivesse ido embora há muito tempo, e
estivesse se escondendo em algum lugar, o que te faz pensar que um
deus Alkeano iria ajudar a nós, deuses da Terra Média?
— Porque ele tem que ajudar! — disse Brer.
— E como você espera encontrá-lo?
A briga continuou, crescendo em gritos e acenos de mão, e eu
balancei minha cabeça. Os adultos são tão rápidos em dar sermão a nós,
crianças, por agirmos assim, quando eles fazem a mesma coisa.
Hipócritas.
— Licença — eu disse em voz alta. — Ei! Com licença!
Todos interromperam o debate e se viraram para mim.
— Como Anansi pode nos ajudar?
O silêncio saudou minha pergunta por tanto tempo que comecei a
pensar que tinha comida nos meus dentes, até que a Srta. Sarah
perguntou lentamente:
— Você não sabe sobre Kwaku Anansi?
— Ah, eu sei sobre ele. Deus aranha. Roubou histórias dos deuses
e as trouxe ao povo. O enganador original. Faz o Brer aqui parecer o
bichinho de estimação preferido de um professor. Quero dizer, o aluno
favorito do professor, não o bichinho do professor, embora eu ache que
isso também funcione para você.
Brer rosnou, e a Srta. Rose se apressou em interrompê-lo.
— Sim, tudo isso é verdade. Mas o Pai Anansi também é conhecido
como o Tecelão. Os fios que ele tece são magias poderosas...
— … e agora, é disso que precisamos — disse a Srta. Sarah. —
Magia poderosa para fechar o rasgo no céu.
John Henry franziu a testa.
— Mas mesmo que possamos encontrá-lo, e mesmo que ele dê o
braço a torcer, sua ajuda não sairá barata.
— Não — disse Brer. Ele suspirou e voltou para sua posição
reclinada. — Não importa. Teríamos que oferecer algo muito valioso para
atraí-lo para o nosso lado.
Eu olhei em volta.
— E não temos nada? E o seu martelo?
Minha sugestão trouxe um grunhido de desaprovação de John
Henry.
— Esse martelo pode ser útil na próxima vez que aqueles monstros
de ferro surgirem. E, além disso, o que o deus aranha vai fazer com um
martelo?
Todos nós ficamos em silêncio por um momento, e então Brer
pigarreou.
— Há... uma coisa.
— Não — disse John Henry prontamente.
— Johnny, só estou dizendo...
— É muito perigoso, Brer.
— Assim como ficar parado aqui esperando ser esmagado!
Esperei por uma explicação e, pela aparência delas, a Srta. Sarah
e a Srta. Rose também, mas John Henry e Brer apenas se encararam.
Eu juro, às vezes os adultos agem pior do que alunos da sexta série.
— Entããão... alguém vai nos dizer o que é muito perigoso? —
Finalmente perguntei.
John Henry lançou um olhar de aviso para Brer, mas não disse
nada. Brer se sentou, suas orelhas coladas em seu crânio.
— A Caixa de Histórias — disse ele.
A Srta. Sarah e a Srta. Rose recuaram em uma agitação de penas
pretas e respirações aceleradas. John Henry cerrou os punhos. Ayanna
agarrou a ponta entalhada de seu cajado e estreitou os olhos.
E eu?
Eu fiquei lá como um idiota, confuso.
— Uma caixa do quê?
— Caixa de Histórias. Um cofre do tesouro para contos e cantigas.
Um arsenal de canções de ninar e fábulas mais antigas que o sol,
algumas familiares, outras que ninguém nunca ouviu antes. — Brer ficou
de pé e esticou os braços. — Desse tamanho, embora mude de aparência
dependendo de quem a carrega, e cada cidade em Alke tem sua própria
versão. A original, no entanto... a verdadeira Caixa de Histórias, a Caixa
de Histórias de Anansi, aquela que ele derrotou Nyame para conseguir...
é única.
— E você acha que esse tesouro que já é dele vai atraí-lo porque...
Brer se inquietou de repente.
— Porque estávamos trabalhando em um projeto relacionado a
isso, juntos. Então os monstros de ferro atacaram e nós fugimos para
caminhos separados. Voltei aqui e Anansi tinha desaparecido, mas a
Caixa de Histórias foi deixada para trás.
Pensei em todas as histórias de Anansi que a minha vózinha me
contara ao longo dos anos. Ele sempre tinha que se provar o mais
inteligente, o mais astuto e, acima de tudo, o mais renomado. Perder a
Caixa de Histórias foi um golpe em seu orgulho.
— Anansi é um glutão atrás de histórias — murmurei.
— Cuidado. É um péssimo negócio insultar um deus — advertiu
Brer. — Não que eu espere que alguém com sua educação saiba disso.
— É um fato bem conhecido, Brer — disse John Henry. — Pegue
aquela Caixa de Histórias e o Tecelão poderá vir até nós rápido, frenético
e com pressa.
Eu olhei para o homem gigante.
— Espere. Você disse que era muito perigoso, mas Brer diz que
cada cidade tem a sua. Por que não usamos a Caixa de Histórias da Terra
Média? Não é boa o suficiente para atrair Anansi?
Talvez isso pudesse funcionar... E uma vez que Anansi se reunisse
com uma Caixa de Histórias, não haveria necessidade de ficar parado
aqui como o novo Anansesem.
John Henry desviou o olhar e suspirou.
— Na verdade, não temos uma. A Caixa de Histórias é um ícone
importante da nossa história, e ainda não encontramos a combinação
certa de materiais e espírito para construir uma.
A Srta. Sarah disse:
— Já tentamos muitas vezes antes...
— … mas cada uma se desintegrou depois de apenas um dia —
disse a Srta. Rose.
— Há um pouco de madeira no continente alkeano — John Henry
disse. — Ouvi dizer que é muito poderosa, mas com as coisas do jeito
que estão, os monstros de ferro e o jeito como eles são teimosos, pode
levar meses até que possamos tentar novamente.
Esse comentário pairou sobre nós por um momento. Ayanna
balançou a cabeça tristemente como se isso fosse uma fonte constante
de decepção.
— Okaaaaay — eu disse. — Precisamos de uma Caixa de Histórias,
e não temos.
Brer pigarreou e o rosto de John Henry ficou sombrio, e novamente
ele se calou. Era óbvio que ele não aprovava o que Brer iria dizer a seguir,
e depois de ouvir, eu entendi o porquê.
Brer se aproximou, ambas as orelhas protegendo seus olhos
enquanto ele olhava para mim.
— Não, você não está entendendo. Há uma Caixa de Histórias
perfeitamente boa esperando por seu próximo dono. Eu acabei de dizer
que deixamos para trás. Ela está lá, agora, na Crescente Dourada. É
onde Anansi e eu estávamos estudando.
— Crescente Dourada? — Perguntei. — O que é isso? Uma cidade
ou algo assim?
— Era a joia de Alke — explicou Ayanna. — Mas logo depois que o
rasgo apareceu, Brer disse que os monstros de ferro vieram e a
destruíram. Qualquer esperança dos Povos Médios se refugiarem lá ou
em qualquer outro território de Alke desapareceu depois disso. Todas as
cidades estão com medo de serem as próximas a serem invadidas. E eu
não as culpo.
— Mas não estamos falando sobre se refugiar. Estamos libertando
a única coisa no mundo que nos dá uma chance de lutar. O poder dessa
Caixa de Histórias... — Os olhos de Brer se estreitaram em fendas
enquanto ele esfregava as patas, e eu balancei minha cabeça. Esse
coelho tinha problemas.
John Henry franziu a testa, mas não estava mais discutindo. Por
mais que ele odiasse a ideia, eu poderia ver que a luta constante, a
defesa e a liderança do ataque estavam começando a desgastá-lo. A
todos eles. Eu considerei as cicatrizes de Brer, e as penas queimadas de
Srta. Sarah e Srta. Rose. Os deuses estavam sofrendo ao lado dos Povos
Médios, que se escondiam no Arvoredo.
John Henry suspirou.
— Como? — foi tudo o que ele disse.
Brer se levantou e começou a andar ao redor do Labirinto.
— Simples. Bem, não é tão simples, mas mais fácil do que você
imagina. Especialmente com o encantador de borboletas aqui. — Ele
apontou para mim e eu fiz uma careta. — De qualquer forma, uma Caixa
de Histórias é um recipiente para a magia das histórias, certo? Ela as
segura, pronta para trazê-las à vida, da mesma forma que um
Anansesem faria, apenas em uma escala cada vez maior.
— Ok, então… — John Henry começou.
— Então, qualquer história contada em sua proximidade seria
atraída por ele. E vice-versa.
Eu não gostei de para onde isso estava indo.
— Se o menino...
— Meu nome é Tristan — eu disse, o jeito alarmante aparecendo
na minha voz. — E eu não acho…
— Sim, tanto faz. Se ele contasse um de seus contos como fez
antes, a magia dele nos levaria direto para a Caixa de Histórias. Então,
facilmente alguém entra e pega o tesouro, e nós saímos, de volta para
casa, e esperando que Kwaku Anansi apareça na mesa de barganha.
Ele bateu palmas e olhou ao redor da sala. John Henry ficou
pensativo de novo, enquanto a Srta. Sarah e a Srta. Rose pareciam
céticas. A sobrancelha de Ayanna estava franzida. Eu balancei minha
cabeça, mas ninguém prestou atenção em mim.
— E se alguém tiver… — Srta Sarah disse.
— … um problema com a gente pegando ela? — Srta. Rose
terminou.
— Ninguém está mais lá. Você não sabia? Desde aquela... reunião,
fiz o Labirinto acompanhar os movimentos na Crescente Dourada.
John Henry estreitou os olhos e eu fiz o mesmo. Então, os túneis
de Brer iam até o continente.
— Todos os cidadãos saíram depois que os monstros de ferro
atacaram — Brer continuou. — A Caixa de Histórias está parada ali,
esperando que seu próximo dono a pegue. — O coelho gigante olhou
para mim e franziu a testa. — E você a traz de volta para cá, entendeu?
Para mim... para nós.
— Espere um minuto…
Mas eles me ignoraram enquanto todos se calaram, pesando os
riscos versus o benefício em potencial de ter um tesouro tão valioso para
atrair Anansi.
Finalmente, John Henry encolheu os ombros.
— Odeio dizer isso, mas pode ser nossa única opção.
— Mas quem vai acompanhá-lo? — Srta. Rose perguntou. — É tão
perigoso.
— Posso só… — comecei, mas a conversa passou por cima de
mim.
— Não podemos ir — disse a Srta. Sarah. — Já estamos com falta
de mão de obra e essas feras vão atacar novamente a qualquer
momento. Além disso, John Henry seria visto a um quilômetro de
distância, e, Brer, você é necessário aqui para supervisionar o Arvoredo.
— Você está certa — disse John Henry.
Ayanna pigarreou.
— Cacau e eu iremos com ele. As patrulhas em torno da Terra
Média foram canceladas por enquanto, e me recuso a apenas sentar aqui
e esperar.
Srta. Rose franziu os lábios e depois assentiu.
— Seria reconfortante se você o acompanhasse. Quanto a Cacau...
— ela parou, e sua parceira falou.
— Isso iria distrai-la... de ter perdido Brer Raposa.
John Henry bateu palmas uma vez, quase me matando de susto.
— Então, Tristan, você está pronto para ser um herói?
Eu o encarei.
Pronto para ser um herói? As palavras ecoaram em meus ouvidos
e martelaram em meu crânio quando as imagens de Eddie e Brer Raposa
vieram à mente. Em ambos os casos, não consegui ajudar ninguém. Esta
seria a terceira tentativa, e desta vez havia ainda mais vidas em jogo. Eu
posso conseguir pra valer.
Recuei, quase tropeçando com a pressa, e balancei a cabeça.
— Não.
ENVIE UM GAROTO DO SÉTIMO ANO PARA fazer o trabalho de
um deus, por que não?
Quando me recusei a seguir o plano deles, Brer começou a puxar
as orelhas e gritar, John Henry resmungou alguma coisa, e a Srta. Sarah
e a Srta. Rose se revezaram cortando uma à outra. Mas foi a expressão
de Ayanna que doeu mais. Ela parecia que fora traída e saiu pisando forte
da sala, seu cajado agarrado com força.
Finalmente, John Henry acenou com os dois braços gigantes.
— Chega, chega! — Ele esperou até que todos se acomodassem
antes de se virar para mim com uma carranca. — Tristan, eu sei que isso
é assustador, mas precisamos da sua ajuda.
— Por quê? — Eu perguntei, um tom de desafio em minha voz.
— Porque... como Brer disse...
— Então deixe Brer fazer isso. Ele é obviamente o especialista. Eu
não vou voltar lá.
As orelhas de Brer ficaram moles e ele zombou de mim.
— Ah, esqueça. É óbvio que ele está com muito medo. Ele parou
de fingir ser um herói. Maravilhoso. Ótimo. Que seja.
Se meu rosto esquentasse ainda mais, minhas sobrancelhas
começariam a soltar fumaça, mas me recusei a desviar o olhar. Deixe-os
reajustar seus planos. Eu estava cansado de tentar corresponder às
expectativas de todos.
Antes que eu pudesse responder, John Henry pigarreou.
— Acho que preciso falar um pouco com Tristan. Vocês podem nos
dar licença? — Ele olhou para mim e acenou com a cabeça para a porta.
— Vamos dar uma volta.
Estudei John Henry com o canto do olho enquanto voltávamos para
a clareira do Arvoredo, onde ele gostava de pensar. Ele me lembrava do
meu pai e do meu avô. Homens orgulhosos, silenciosos e severos. Seus
dedos não tinham cicatrizes e nem estavam inchados como os deles, mas
seus pulsos estavam marcados e as palmas das mãos, calejadas.
Todo mundo usa as cicatrizes da vida de maneira um pouco
diferente, eu suponho.
O terreno começou a se inclinar para cima e o emaranhado de
galhos farpados por onde passamos tornou-se menos denso. A luz do sol
atravessou em feixes angulares. Botões verdes podiam ser vistos nas
trepadeiras que subiam pelas paredes, e pequenas flores brancas e
amarelas desabrochavam perto do teto.
As flores me lembraram do jardim do peitoril da janela da mamãe e,
sem aviso, fui atingido por uma onda de saudade. Eu queria voltar para o
meu mundo, mas os algemados e os navios de ossos que gemiam no
Mar Flamejante... eles estavam entre mim e a minha casa. O pensamento
de tentar derrotar tudo isso novamente travou meus músculos. Os
congelou.
E então havia a questão de alcançar o rasgo no céu. Parecia
impossível.
Isso me deixou com apenas uma outra escolha: atrair Anansi. E se
ele não viesse? E se ele viesse?
Eu não queria nada disso. Nunca pedi para me tornar um
Anansesem.
Todos esses pensamentos agarraram e puxaram meu cérebro, me
deixando um pouco para trás em uma caminhada cambaleante.
— Então, você é um boxeador, hein?
A pergunta me pegou de surpresa. Eu esperava um sermão ou um
interrogatório, não uma conversa fiada. Depois de me perguntar por um
momento se isso era uma armadilha, dei de ombros.
— Sim, acho que sim.
— Você acha? Ou você é ou não é.
— Eu sou.
— Você não parece feliz com isso. Estou surpreso. Ouvi dizer que
você deu um show muito bom na Floresta Afundada.
— Não ajudou em nada — eu disse, com uma pitada de amargura.
— Não foi possível salvar Brer Raposa. Perdi o diário de Eddie.
— Esse é o seu amigo? Eddie?
Eu balancei a cabeça, e John Henry franziu os lábios.
— Tenho certeza que ele vai entender.
— Ele... não está mais aqui.
Eu olhei para baixo e coloquei minhas mãos nos bolsos do meu
moletom. Cheirava como o ar livre e meus tênis estavam enlameados, e
tudo que eu queria fazer era me preocupar com o que a minha vózinha e
meu avô diriam quando vissem como tudo estava manchado. Eu sentia
falta dos meus antigos problemas.
— Então, você já teve alguma luta? — John Henry perguntou.
Fiquei feliz por ele ter seguido em frente.
Eu chutei um galho solto.
— Uma. Perdi.
— Ah.
— Eu não estava preparado — eu disse depois de um segundo. —
Não consegui focar. Não dormi bem na noite anterior, me senti cansado
e não conseguia obter energia. Então, sim, eu perdi.
John Henry olhou para mim.
— Ayanna disse que você se movia como um raio na floresta. Disse
que seus punhos eram um borrão.
Meu pescoço ficou quente.
— Ela disse isso?
— Uhum. E isso não combina com o que você diz que fez no ringue.
Então você provavelmente não é tão ruim quanto pensa. Quem segura o
saco para você?
— Meu pai. — Eu chutei o galho novamente, o rodando de ponta a
ponta por todo o túnel. — Alvin Strong. Bicampeão do peso médio.
Boxeador extraordinário.
— Ok, ok. Então corre no seu sangue.
Eu balancei minha cabeça.
— A única coisa que corre no meu sangue é a decepção. Meu pai
queria que eu fosse o próximo campeão da família. Ele nunca perdeu
uma partida profissional. Eu? Eu não consigo ganhar nem uma luta contra
um minúsculo tagarela pegajoso.
Caminhamos e continuamos a falar sobre boxe. Eu me mantive
longe de qualquer coisa muito pessoal e, eventualmente, começamos a
discutir os boxeadores favoritos.
John Henry assobiou maravilhado.
— Então, esse Ali... eles tiraram o título dele?
Eu concordei.
— Sim. Desrespeitoso, certo? Tudo por não querer atirar em
ninguém em uma guerra. Mas de qualquer forma, ele entrou sendo
desrespeitado e saiu com todos acreditando nele. Recuperou o título e o
fez em grande estilo. “Voe como uma borboleta, ferroe como uma
abelha.”
— Foi isso que ele disse?
— Foi isso que ele fez.
— Bem, caramba. Eu gosto disso. Como uma borboleta, hein?
Caramba. — Quando ele disse isso, alguns dos insetos coloridos
agitaram-se preguiçosamente ao redor de sua cabeça, quase como se
tivessem sido convocados. Eu encarei meus dedos com suspeita.
— E você? — Perguntei. — Você tinha um favorito? Eles sequer
lutavam boxe naquela época?
— Rapaz, cale-se. Nós lutávamos. Não existiam seus
equipamentos sofisticados, também. Juntas e coração era tudo que
tínhamos, juntas e coração.
— Então, quem era seu favorito?
John Henry não respondeu. Em vez disso, ele ergueu a mão e foi
até a parede do Arvoredo. Ele parou, colocou o ouvido o mais perto que
pôde, sem ser espetado por espinhos, e ouviu. Depois de um segundo,
ele continuou, balançando a cabeça.
— Pensei ter ouvido alguma coisa — disse ele. Comecei a
perguntar o quê, mas ele me empurrou para o lado. — Onde nós
estávamos? Boxeador favorito, certo? Isso é fácil. Velho Rawlins, sem
dúvidas.
Eu ri.
— Velho Rawlins? Pare de brincar, o nome nem se parece com o
de um boxeador. Qual foi o recorde dele?
John Henry parou de andar e me encarou.
— Cento e cinquenta e três a zero.
— Sem chance.
— Estou te dizendo, ele tirou cento e cinquenta e três. Sem perdas.
— Como isso é possível?
— Velho Rawlins teve uma história e tanto. Sabe, ele nunca teve
uma escolha em relação a isso. Ele teve que lutar, pura e simplesmente.
— Soa familiar — eu resmunguei.
Mas John Henry balançou a cabeça.
— Não, senhor, você pode pensar que é a mesma coisa, mas não
é. Não gosto disso. Você acha que foi forçado a entrar nisso, mas no final
do dia, aposto que seus pais o teriam deixado em paz.
Meus pais, talvez, mas não o vovô. Mas eu guardei isso para mim.
— Nós trabalhávamos nos trilhos, e todos nós trabalhávamos para
um homem que chamávamos de Chefe.
— Chefe?
— Isso. Uma palavra. É a pergunta e a resposta. O fim e começo.
Chefe queria que você trabalhasse até um pouco mais tarde, você
trabalhava até um pouco mais tarde. Chefe queria que aquela montanha
fosse perfurada antes do meio-dia, bem, é melhor você começar a
martelar ao amanhecer. E se Chefe disse que você iria boxear para o
entretenimento da noite, bem, você só esperava que o outro cara
estivesse tão cansado quanto você.
— Isso não parece… — eu parei antes que pudesse terminar, e
John Henry sorriu.
— Eu sei que você não ia dizer justo. A vida é justa?
Imaginei Brer Raposa sendo arrastado por um algemado.
— Não. A vida não é justa.
— Certo. Porque foi isso que o Velho Rawlins descobriu. Mas ele
também descobriu uma maneira de sobreviver. Cada vez que Chefe dizia
que ele precisava lutar, ele simplesmente pegava essas luvas de tecido
fino com os dedos de fora e ia para o meio do acampamento. Dez minutos
depois, tudo estava acabado. Outra vitória.
— Como?
John Henry piscou e deu um tapinha na cabeça.
— Vamos ver se você consegue descobrir. Você é o boxeador. Sem
pressa. Apenas um pouco de estímulo para o seu cérebro.
Repassei as táticas de boxe na minha cabeça. Como um homem
pode vencer de 153 a 0? Especialmente um homem chamado Velho
Rawlins. Ele soava como um ancião. Mais velho que o vovô,
provavelmente. Meias com sandálias antigas. Mas não importa o quanto
eu pensasse sobre isso, não consegui encontrar uma resposta.
Chegamos à entrada da clareira escondida e nos dirigimos para a
colina onde eu havia sido interrogado antes. John Henry ficou na parte
de baixo e eu subi até o topo para poder encará-lo cara a cara. Seu
martelo estava pendurado em ambos os ombros e ele colocou os braços
sobre ele. A cabeça estava gasta e amassada, mas John a mantinha
polida e ela brilhava ao sol quente.
Ele me viu olhando para ele e sorriu.
— Deve parecer bobo, eu carregando este martelo para todo lado.
Dei de ombros.
— Não, não parece bobo. Se ele significa algo para você, você deve
mantê-lo por perto. — Então acrescentei: — Contanto que você não o
leve para o chuveiro.
— Para onde?
Uau. Comecei a gaguejar alguma coisa, mas ele me interrompeu
com uma risada.
— Estou brincando com você, garoto. E sim, essa é uma maneira
infalível de deixar suas ferramentas enferrujadas.
Soltei um suspiro de alívio.
— Tristan — John Henry começou, depois parou e começou
novamente. — O livro do seu amigo. Significava algo para você?
— Tudo — eu disse imediatamente. Esfreguei o lado da minha
calça, sentindo o bolso onde o diário deveria estar. — Ele significava...
significava tudo.
John Henry assentiu com a cabeça, depois remexeu no bolso da
frente do macacão.
— Uma das ninhadas da Sis Crow pegou isso, elas sempre tiveram
um olho bom para coisas brilhantes, e essa coisinha brilha de uma
maneira que você não acreditaria. De qualquer forma, encontraram isso
nas árvores e, bem... achei que você gostaria.
Ele estendeu um cordão de couro esfarrapado e a respiração ficou
presa na minha garganta.
— Isto é...?
— Não é muito, mas é algo, e espero que ajude um pouco. Não
parece certo que um adinkra como este se perca.
Ele largou a borla do diário de Eddie na minha palma e perdi a
capacidade de falar por um segundo. O amuleto — o símbolo de Anansi
— ainda estava amarrado na ponta. Eu o segurei e o observei girar na
luz.
— Do que você chamou isso?
— Um adinkra. Outra coisa que foi transportada do seu mundo.
Símbolos de grande significado para as pessoas que os usavam. Nosso
povo. Reis e rainhas. Se saiu do livro do seu amigo, aquele sobre o qual
todo esse alvoroço é, imagino que você queira ficar com ele.
Enrolei o cordão em volta do meu pulso, usando meus dentes para
dar um nó, e respirei fundo.
— Obrigado. Eu pensei... Bem, obrigado.
— Ah, não foi nada. Na verdade...
— Ai! — Eu balancei meu pulso e encarei o amuleto. A madeira
estava muito quente, como se estivesse pegando fogo.
Espere um minuto.
Eu coloquei o amuleto perto do meu rosto, então coloquei minha
mão em volta dele. Com certeza, o Adinkra estava brilhando, uma luz
verde suave que me confundiu por um segundo.
— Por que…?
Um guincho enferrujado soou do outro lado da clareira, e depois
outro.
O rosto de John Henry ficou pálido e em um instante o martelo
estava em suas mãos.
— São aqueles monstros de ferro.
!

A LUZ DO SOL PASSOU PELO METAL À distância.


Muito metal.
E então os gritos começaram.
Monstros de ferro dispararam em nossa direção e, embora ainda
estivessem a alguns passos de distância, eu poderia dizer que seu
número era maior do que antes, na Floresta Afundada. Suas coleiras
estalavam juntas como garras de caranguejo, e eles soltavam um grito
terrível enquanto corriam. Como freios de carros antigos. Ou metal na
calçada.
— Algemados — eu sussurrei.
Os olhos de John Henry se arregalaram e sua cabeça se inclinou
para trás, como se a palavra fosse um tapa na cara.
Medo.
John Henry, o homem mais forte que eu já vi — um herói powular,
um deus — sentiu um lampejo de medo. Eu vi como momentaneamente
torceu seu rosto e teimosas gotas de suor brotaram em sua testa. Ele
mergulhou o cabo do martelo no chão, agarrou a cabeça do metal,
ajoelhou-se e fechou os olhos.
— Brer — sua voz retumbou.
Meu olhar alternava entre ele e os algemados, que passavam pelo
riacho. Então, para minha surpresa, a casca das raízes da árvore perto
de nossos pés começou a se mexer e girar.
— Brer! — John Henry chamou novamente. Sua voz parecia ecoar
e eu podia sentir as vibrações.
Engoli um grito quando um rosto se formou na sujeira ao redor do
martelo. De alguma forma, Brer estava olhando para nós.
— O que foi? — Brer perguntou.
— Monstros de ferro invadiram o Arvoredo. — Agora a voz de John
Henry parecia muito calma. — Nós precisamos de ajuda.
— Calma aí, calma aí, garotão. Deixe-me ver…. Não há um botão
para isso, sabe. Agora, vamos ver.
John Henry cerrou o punho enquanto se ajoelhava ali, esperando
Brer terminar o que quer que estivesse fazendo. Tínhamos apenas que
confiar que ele traria ajuda, e rápido, antes de sermos cercados. Eu
entendi a frustração do homem gigante. Deus ou não, Brer me passava
uma má impressão.
— Bom — disse Brer. — Algo está errado… o Arvoredo não está
falando comigo.
Eu fiz uma careta, perplexo, mas o punho de John Henry se fechou
ainda mais forte enquanto ele batia suavemente em sua perna.
— O Arvoredo fala com ele? — eu sussurrei.
John murmurou.
— Brer o ouve assim como você ouve aquela batida. É parte do
feitiço que ele usou para construir este lugar. Porém, ele está tendo
problemas com isso ultimamente, e eu...
— Más notícias, Johnny — disse Brer. — Isso vai levar algum
tempo. Você vai ter que segurá-los um pouco.
— Brer...
— Sem tempo, sem tempo. Tenho que fazer isso funcionar.
Mantenha-os afastados. Não os deixe chegar aos túneis!
Com essa última instrução, seu rosto desapareceu e John Henry
rosnou. Ele se virou, enfiou a mão no bolso de trás do macacão e puxou
algo. Ele a jogou — não, as jogou — em mim. Luvas simples de couro
marrom que deixam os dedos de fora. Do tipo que um empregado
ferroviário pode usar.
— Coloque isso — disse ele.
Fiz o que ele disse e fiquei surpreso ao descobrir que se
encaixavam perfeitamente.
Então ele agarrou seu martelo com as duas mãos.
— Dê-me força — ele sussurrou.
Fiquei confuso até perceber que era uma oração antes da batalha
e engoli em seco. Quando os deuses oravam, as coisas estavam prestes
a se tornarem reais.
Ele se levantou, puxando o cabo... e a madeira se esticou. Ela
cresceu mais e mais — um metro, dois metros, três metros! — e meu
queixo caiu quando o martelo de John Henry começou a zumbir por conta
da energia. Os símbolos ondulavam para cima e para baixo no eixo, e a
cabeça de metal brilhava em um laranja fosco. Ele balançou o martelo no
ar algumas vezes e o passou raspando pela minha cabeça, cheirando a
aço quente e madeira polida.
— Me siga.
Ele deu vários passos largos em direção ao vale antes que eu
pudesse começar a segui-lo e, quando o alcancei, ele estava na trilha
inclinada que levava de volta à entrada do túnel. John Henry deu dois
passos gigantescos para a direita e acenou com a cabeça para mim.
— Levante as mãos — disse ele. Ele tocou cada luva
cuidadosamente com o martelo, e um vapor saiu delas. Estranhamente,
não senti nenhum calor. — Pronto — disse John Henry. — Acho que isso
pode resolver o problema. Isto é, se você quiser me ajudar a defender
nosso lar.
Quando a fumaça que saía das luvas se dissipou, pude ver um
símbolo agora marcado na parte de trás de cada uma, logo abaixo dos
nós dos dedos. Um martelo.
— Você pode voltar se quiser — disse John Henry. Ele mantinha os
olhos nos algemados, não em mim. — Voltar aos túneis com os outros.
Engoli em seco e olhei para a entrada pela qual tínhamos vindo.
Estava escuro, mas parecia seguro, como quando você puxa as cobertas
sobre a cabeça no meio da noite. Eu poderia deslizar para dentro e correr
o mais longe possível…
Mas e daí?
Ainda não tinha como atravessar o Mar Flamejante.
Ainda não tinha como alcançar o rasgo no céu.
E você conseguiria olhar para si próprio novamente? Eu me
perguntei. Para a vózinha?
Quando me levantei, a decisão fora tomada. Respirando fundo, me
coloquei ao lado de John Henry.
— Talvez devêssemos cobrir a entrada do túnel — eu disse. —
Apenas no caso de um deles passar por nós.
Uma mão gigante deu um tapinha no meu ombro e ele sorriu, mas
seus olhos estavam duros.
— Nada passará por nós.

Os algemados saíram do riacho. Vinte. Trinta. Cem. Eles enchiam


a colina como se fossem gafanhotos.
John Henry e eu esperamos, ele segurando o martelo com as duas
mãos, eu com os punhos cerrados dentro das luvas emprestadas. Minhas
abençoadas luvas emprestadas.
A gritaria ficou mais alta. Tão alta que abafou todo o resto. Eles
tinham nos visto agora — eles tinham um alvo, e o ar se encheu de seus
gritos odiosos.
— Não deixe que eles assustem você — murmurou John Henry.
Seus dedos apertaram o cabo de madeira entalhada do martelo. — Você
está lutando por algo maior. Algo mais forte. Confie nisso e ficaremos
bem.
Eu arfei.
— Você deve ter sido um treinador de boxe.
— Eu fui. Para o Velho Rawlins.
Eu olhei para ele, então para minhas mãos. Eram as mesmas luvas
que Rawlins usava? Eu queria perguntar, mas agora provavelmente não
era o melhor momento.
Os algemados abriram caminho até o topo da colina e inundaram o
vale. As borboletas alçaram voo em uma exibição deslumbrante de cores
e tentei me concentrar no que estava por vir. O primeiro dos monstros de
ferro correu até nós, apenas para ter a cabeça sem olhos removida por
um único golpe poderoso do martelo. O algemado explodiu em pedaços
de metal e aquela mesma penugem branca estranha flutuou para o céu.
— Mantenha a entrada do túnel atrás de você — declarou John
Henry. — A clareira é mais estreita aqui, ou os repelimos ou o Arvoredo
estará perdido — Ele assumiu uma postura ampla. — Se eu cobrir o vale,
você consegue cobrir a colina?
Eu olhei para a inclinação e como o caminho se estreitava conforme
ficava mais perto do topo. À minha esquerda havia uma parede do
Arvoredo, e à minha direita havia um declive íngreme onde o martelo de
John Henry descansava. Os algemados só podiam vir um, dois de cada
vez, no máximo.
Eu bati meus punhos juntos. As luvas pareciam ter eletricidade,
como se eu estivesse usando um raio em minhas mãos.
— Strongs continuam socando — eu disse, e John Henry sorriu.
— Esse é o espírito. Os demônios não levarão nenhuma outra alma,
não enquanto estivermos aqui! — Ele riu, um grande estrondo cujo som
flutuou como um trovão, e quando a primeira onda de algemados saltou
para frente, seu martelo estava lá para saudá-los.
Um golpe o colidiu com um grupo de três, mandando-os voando de
volta para a multidão, e o golpe de quando estava voltando esmagou mais
dois. O ar se encheu de gritos e fiapos brancos.
Mas eu não conseguia apenas ficar parado olhando. Eu tinha
minhas próprias batalhas para lutar.
Um algemado correu para cima, com a coleira bem aberta e as
algemas se chocando. Eu desviei de um ataque e me afastei de outro. Se
esquive, eu podia ouvir meu pai gritando. E então ataque! Eu driblei,
então dei um soco rápido. Achei que era um soco decente, nada de
especial, apenas algo para me dar mais espaço para me movimentar,
mas o monstro de metal gritou de dor e cambaleou para trás como se eu
tivesse acertado um nocaute.
O algemado e eu paramos para olhar as luvas que eu usava — o
símbolo do martelo brilhava em um vermelho alaranjado raivoso, e o ar
ficou ondulado acima delas, como se meus punhos estivessem em
chamas.
O algemado cuspiu algo.
— Me conta outra — eu disse, e lancei um gancho de direita em
sua cabeça.
Ele explodiu, me cobrindo com pedaços quebrados de correntes e
fiapos. Um pouco caiu em meu rosto e lábios, e eu limpei minha boca.
— Vocês são nojentos — murmurei através da manga da camiseta.
— Tristan, cuidado!
O martelo passou a centímetros da minha cabeça e eu me abaixei
no momento em que um algemado saltou para frente. O martelo o atingiu
no ar e o mandou de volta em pedaços. John Henry girou e forçou outro
grupo a cambalear para trás.
— Foco! — ele rugiu, e eu me coloquei de pé, envergonhado.
Dois algemados tentaram me prender, mas eu afastei suas garras
de algemas, um sorriso se espalhou pelo meu rosto enquanto os braços
se desintegravam e uma alegria feroz explodindo dentro de mim quando
acertei uma combinação de socos que literalmente os explodiu.
Isso não se parecia em nada com a minha primeira luta de boxe.
Naquela época, eu estava à deriva. Não tinha nenhum propósito.
Mas agora?
Agora eu tinha um objetivo.
Pow.
Um objetivo.
Pow.
Uma missão, que eu deveria aceitar, que era defender o Arvoredo.
Pow pow.
Proteger este lar.
Pow pow.
Eles — o inimigo, os algemados, o Maafa, o Tio A e quem mais que
fosse — queriam vencer, mas eu queria mais.
Deve ter sido por isso que o Velho Rawlins continuava ganhando.
Logo não havia tempo para pensar. John Henry e eu lutamos lado
a lado (bem, não exatamente... eu mantive um espaço entre nós, porque
o martelo me assustava). A horda de monstros de ferro continuou
chegando. Lutei a rodada de boxe mais longa da minha vida. Desvio após
desvio, golpe após golpe. Quando um inimigo era derrotado, mais dois
avançavam. Eventualmente, meus braços começaram a ficar cansados
e o sorriso sumiu do meu rosto.
Os filmes, os quadrinhos, as histórias — nenhum deles mencionava
o cansaço.
— Johnny, temos um pequeno problema aqui.
O rosto gigante de Brer apareceu na encosta novamente, e as
vibrações de sua voz estrondosa fizeram alguns dos monstros de ferro
tombarem.
John Henry cerrou os dentes e chutou um algemado de sua bota,
depois o esmagou com o cabo do martelo.
— O que foi, Brer? Estamos um pouco ocupados aqui.
O rosto de Brer ergueu as sobrancelhas em surpresa.
— É mesmo? Nunca teria imaginado. Eu coloquei água para
esquentar e fazer um chá, mas creio que você não vai poder comparecer?
Eu me esquivei de um algemado e lancei um uppercut no meio dele
quando me levantei. O monstro explodiu e Brer assobiou.
— Parece que o covarde melhorou! Muito bem, campeão.
Antes que eu pudesse responder, John Henry falou.
— Brer!
— Está bem, está bem. Estava apenas me perguntando se você viu
o grande monstro de ferro vindo em sua direção. Se parece com os que
você está esmurrando agora, só que dez vezes maior? Talvez ele que dê
as ordens?
Os cabelos na minha nuca se ergueram.
John Henry atacou sete ou oito algemados, nos dando um segundo
para respirar, e olhou para o rosto de Brer.
— Não. Por quê?
Brer franziu a testa.
— Porque um coelhinho me disse que ele está prestes a abrir
caminho por dentro.
A PAREDE MAIS DISTANTE DA clareira explodiu em uma chuva
de galhos quebrados e algemados. Mais borboletas alçaram voo
enquanto a maior grilheta que eu jamais poderia imaginar tentava se
espremer por uma abertura como um T-Rex. Mesmo que um campo
inteiro, uma colina, um riacho, trinta jardas e um grupo de árvores nos
separassem, o chefe dos algemados (Chefão? Sim, isso soa bem.)
parecia enorme. Ele examinou a clareira, então soltou um rugido
estridente que fez meus dentes doerem.
Algemados menores derramaram pela brecha ao redor, saltando
sobre os galhos quebrados e trovejando pelo campo.
— John! Tristan!
Srta. Sarah e Srta. Rose voaram sobre a clareira, suas brilhantes
asas negras bem abertas.
— Rose, Sarah! — John Henry parecia aliviado. — Precisamos
liberar a colina!
Sem um momento a perder, as senhoras fecharam suas asas e se
lançaram contra o chão. No último segundo, as abriram e liberaram
poderosas batidas de asa. O vento cortante soprava na direção dos
intrusos, levantando-os e fazendo-os cair para trás até que se chocaram
contra a parede traseira e se desintegraram.
Mas mais algemados arranharam o buraco que prendia o chefão,
tentando ajudá-lo a passar. Enquanto isso, seu líder batia de um lado
para o outro, espremendo-se ainda mais para entrar no Arvoredo.
Justamente quando parecia que ia se soltar, trepadeiras espinhosas
dispararam do chão e o enredaram ainda mais.
— Pegue isso, seu cretino desajeitado! — alguém gritou atrás de
mim.
Brer saltou para fora da entrada do túnel e pousou ao meu lado,
finalmente aparecendo em carne e osso e não como um rosto mágico na
terra. Seu pelo estava emaranhado e se contorcia, como se seus
músculos estivessem em espasmos, e o coelho gigante rangia os dentes
com esforço. Eu ouvi uma música estranha na minha cabeça, como se
algo estivesse fora de harmonia, ou um instrumento estivesse
desafinado, e ele olhou para mim enquanto mais videiras disparavam
para lutar contra os monstros de ferro.
— Ainda aqui? Ayanna e os outros estão partindo para a Crescente
Dourada e a Caixa de Histórias. Eles precisam de você! Vocês dois
estiveram batendo papo o tempo todo?
Eu soquei um algemado antes de me virar para Brer, mas John
Henry interrompeu.
— Ele está certo, Tristan! A missão deles está fadada ao fracasso
se você não estiver com eles. Nós, deuses, estamos presos aqui.
Literalmente.
Dois algemados tentavam se prender em torno de seus pulsos do
tamanho de um barril. John Henry atirou-os para o alto e depois os
transformou em um milhão de pedaços.
— Vá! — Brer gritou para mim, assim que o chefão forçou sua
entrada.
— Por favor, Tristan — Srta. Rose chamou quando Srta. Sarah se
arremessou do céu, um algemado em cada mão, e os despedaçou no
chão. — Faça isso por nós!
Apesar do caos da batalha violenta, agora que os outros deuses da
Terra Média estavam aqui, parecia que eles poderiam se manter por
conta própria. Brer, lutando com o esforço, continuou a emaranhar os
algemados em vinhas e espinhos. John Henry bateu com o martelo à
esquerda e à direita, e a Srta. Sarah e a Srta. Rose lançaram ataques
devastadores repetidamente do alto.
Eles não precisavam da minha ajuda.
Mas os outros, sim.
Ergui minhas mãos em frustração.
— Ok! — Um algemado passou por Brer, e eu o acertei com um
soco que estourou sua cabeça. — Tá bom!
— Já era hora — Brer rosnou. Sua orelha esquerda apontou para a
porta. — Agora vá! Elas estão na cozinha, estocando, mas você precisa
se apressar. Siga o túnel à direita, sempre à direita, e você os encontrará!
O chefão finalmente emergiu. Ele trovejou através do campo,
pisando forte através do riacho, e John Henry correu em sua direção, com
o martelo na mão. As deusas aladas espiralaram acima, preparando-se
para outro ataque abrangente, e Brer chutou alto no ar, tentando fechar
o buraco que o monstro tinha feito na parede do Arvoredo.
— Vá!
Eu me virei e corri.
Corri pelo túnel do Arvoredo, virando à direita sempre que podia, e
o chão começou a subir. Gradualmente, a passagem começou a se
alargar, até terminar em uma sala circular com um grande buraco no teto.
Ayanna e Cacau estavam curvados sobre uma jangada familiar,
que carregaram com pacotes de suprimentos. Ambas olharam surpresas
quando eu derrapei e parei ao lado delas. Cacau sorriu, mas quando
olhou para Ayanna e viu a raiva fervilhando em seu rosto, o sorriso da
coelha desapareceu rapidamente.
— Achei que você não queria ajudar — disse Ayanna finalmente.
Eu cerrei meus punhos, então os forcei a relaxar. Eu mereci isso.
Em vez de discutir, peguei os últimos três pacotes de suprimentos e os
coloquei na jangada, prendendo-os com correias. Uma vez feito isso, eu
fiz menção de seguir em frente, mas Ayanna se interpôs no meu caminho.
— Ah não, você não. Você não pode se inserir depois de dizer não.
A frustração cresceu em meu peito.
— Os deuses me disseram que eu precisava ir!
— E essa é a única razão pela qual você está aqui?
— Sim! Não! Espere. — Eu agarrei meu crânio. Se eu tivesse
cabelo mais comprido, o teria arrancado. — Eu tenho que fazer isso,
acho.
— Você acha? — Ayanna cruzou os braços e Cacau pulou
ansiosamente de um pé para o outro. — Tanto faz. Vamos, Cacau.
Vamos lá.
— Espera. — Estendi a mão, mas não agarrei o braço dela. O olhar
em seus olhos quando ela se virou me disse que tinha sido uma decisão
inteligente.
— O quê?
— Eu... é verdade, não quero ir.
— Bem, isso é...
— Não, espere. Eu não quero ir porque estou com medo.
Pronto, eu disse. Em voz alta para que todos pudessem ouvir,
inclusive eu. Eu precisava admitir isso para mim mesmo.
— Ué, e nós não estamos? — Ayanna perguntou. Ela deu um passo
à frente, chegando perto do meu rosto, e apontou para o túnel. — Você
não acha que eu tenho medo dessas coisas?
— Não só deles. De falhar. De decepcionar outra pessoa.
Dizer essas palavras parecia como arrancar um curativo ou ter meu
peito depilado. (Presumo. Vi um vídeo disso online uma vez. Pareceu
muito doloroso.)
Os olhos de Ayanna se suavizaram.
— Por quê? Por causa do Raposa? Tristan, não foi sua culpa. Ele
fez essa escolha. Ele se sacrificou para que pudéssemos escapar. Você
não fez nada.
Você não fez nada.
Eu respirei fundo.
— Eu... estou tentando acreditar que não foi minha culpa. Então...
acho que preciso fazer isso. Eu quero ajudar, se você me quiser.
Ela me estudou, então olhou para Cacau, que torceu a orelha.
Finalmente, Ayanna se virou e acenou com a cabeça.
— Vamos. Acho que você pode ser útil. Além disso, tenho certeza
de que a Srta. Sarah e a Srta. Rose arrancariam meu couro se eu
recusasse você.
Forcei um sorriso e subi na jangada. Cacau pulou ao meu lado.
Ayanna murmurou uma frase e a jangada começou a zumbir. Os
símbolos brilharam brevemente na madeira, e então nós nos elevamos
no ar. A jangada subia cada vez mais alto, visando o buraco circular no
teto, até que saímos da escuridão do Arvoredo e atingimos o brilho
laranja-avermelhado do sol da tarde.
A Terra Média se estendia abaixo de nós. Foi estranho deixar os
outros para trás, mas eles estavam lutando para que pudéssemos tentar
esse roubo. A batalha deles estava distraindo os monstros de ferro.
A Floresta Afundada espreitava como um cemitério silencioso, e
quando giramos a jangada para enfrentar as cortinas de névoa e chamas
além, meu coração deu um pulo.
O Mar Flamejante.
— Segure firme — Ayanna disse, e nós avançamos, em nosso
caminho para roubar de um deus.
-

NÓS SOBREVOAMOS A FLORESTA AFUNDADA. Daqui, a ferida


aberta no céu parecia uma parte do pôr do sol. Quanto mais nos
afastávamos do Arvoredo, mais normal tudo parecia.
Mas eu sabia melhor.
Logo a jangada subiu em uma nuvem espessa que cheirava a
carvão úmido.
— Onde estamos indo? — eu perguntei.
Cacau se aninhou ao meu lado, mas não respondeu. Voando tão
alto quanto estávamos, onde Ayanna disse que não atrairíamos atenção
indesejada, o ar estava frio. Cacau estremeceu e eu a coloquei no bolso
da frente do meu moletom. Era o mínimo que eu podia fazer.
Ayanna olhou para mim e voltou a guiar a jangada. Seu cajado
pulsava com uma suave luz âmbar.
— Estamos indo para o norte, para a ponta da Terra Média. Em
seguida, cortaremos o Mar Flamejante e iremos em direção ao topo da
Crescente Dourada.
— Isso parece mais longo do que a rota que John Henry descreveu.
— Sim, bem, John Henry não está aqui. — Ela ainda parecia
irritada. Eu deixei a conversa morrer.
Cacau enfiou o nariz para fora do bolso.
— Quanto mais tempo estivermos nas nuvens, melhor — disse ela.
Suas orelhas surgiram e ela olhou para mim. — As moscas-marca
movem-se mais lentamente no ar úmido.
— Moscas-marca? — eu perguntei. Srta. Rose não disse algo sobre
isso?
— Assim, se uma mosca buscadora nos avistar — continuou Cacau
—, devemos ser capazes de pegá-la antes que alerte as outras.
— Mosca buscadora?
— Sim, sim. — Ela pulou fora do moletom e mergulhou em um
pacote de suprimentos. A coelhinha emergiu com um lápis grosso na
boca, e ela começou a desenhar um desenho no chão da jangada.
— Ei! — Ayanna reclamou.
— Desculfa — disse Cacau com o lápis na boca. — Eu vou limpar.
Ela pulou enquanto desenhava e eu me inclinei para dar uma
olhada.
— Você é muito boa!
— Sim, sim! Efa foi a fúnica razão pela qual a Senhorifa Sharah me
deixou vir.
— Essa coelhinha sabe tudo sobre tudo — disse Ayanna revirando
os olhos, mas sorriu para Cacau para tirar a acidez de suas palavras. —
Os pontos fracos de cada monstro de ferro, os esquemas de cada palácio
em cada região de Alke, você escolhe, ela pode explicar para você, sem
problemas.
Eu assobiei.
— Isso é impressionante.
Cacau largou o lápis e pisou nele para não rolar.
— Obrigada! — Ela sorriu. Em seguida, ela bateu no diagrama aos
meus pés com a pata. Dois diagramas, na verdade. — Dê uma olhada.
— O que estou olhando?
— Moscas-marca.
— Por favor, diga-me que as imagens são deste tamanho para que
possamos ver os detalhes.
— Temo que não. Elas são quase do tamanho real — eu posso tê-
las desenhado um pouco pequenas. Posso redesenhá-las para torná-las
mais precisas se...
— Não, isso não é necessário! — eu gritei. — Esses são uns insetos
bem grandes.
— Monstros de ferro — Ayanna me corrigiu. — Não apenas insetos.
— Aquele da direita, é a mosca soldado — continuou Cacau. — De
asas duplas, ela pode pairar ou acelerar a velocidades mais rápidas do
que uma ave de rapina. Duas de suas seis pernas são soldadas em um
ferrão que injeta um veneno. Se uma dessas tocar em você, vai queimar
e continuar queimando até você desmaiar.
— Então os algemados vêm te buscar — Ayanna disse, sua voz
severa. — O Maa... o cérebro por trás dos monstros de ferro tem enviado
onda após onda atrás de nós. Ele joga para valer.
— Um soco duplo — eu murmurei.
Cacau acenou com a cabeça e continuou.
— A princípio demoramos um pouco para descobrir o que estava
acontecendo. Estaríamos recolhendo suprimentos, então alguém gritaria,
e nunca mais os veríamos.
A dura finalidade de tudo, falada tão simplesmente, confundiu
minha mente. Era isso que o Tio A estava provocando? Levando o Maafa
ao frenesi, como raiva em animais selvagens. Quanto mais eu pensava
sobre isso, mais apropriada parecia a analogia. Tio A era uma doença,
os monstros de ferro eram os sintomas e a Terra Média — não, Alke
inteira — estava sofrendo.
Ayanna falou.
— Eu encontrei uma vítima uma vez.
— E? — Eu perguntei, mas ela ficou em silêncio.
Cacau se aproximou e sussurrou para mim:
— Ela nunca falou sobre isso, mas se ofereceu para ser piloto logo
depois.
Observei Ayanna enquanto ela guiava a jangada, seus olhos
constantemente varrendo o horizonte em busca de algo. Sobreviventes?
Monstros de ferro? Eu não sabia qual, e não tinha certeza de como ela
poderia encontrar algo na névoa densa.
Meu pé acidentalmente manchou o diagrama da mosca buscadora
e estremeci.
— Você não gosta deles, não é? — Cacau me olhou fixamente,
depois examinou o desenho.
— Eu... não sou um grande fã de insetos.
— Você tem medo de insetos? — Ayanna perguntou. Ela virou a
cabeça, e eu não sabia se ela estava sorrindo maliciosamente ou não.
— Não, eu disse que não sou fã — disse. Minha voz soou defensiva
e eu limpei minha garganta.
— Mm-hmm.
Cacau voltou a colocar o lápis na boca e começou a desenhar mais
moscas.
— Bem, estou feliz que você não tenha medo, embora estecha tudo
bem se você tifer, porque esses insetos viacham em enxames de
centenas.
— Centenas? — perguntei, me sentindo tonto.
— Sim, sim.
— Uma vez eu vi um enxame de mil — disse Ayanna.
Desta vez, tive certeza de que vi um pequeno sorriso malicioso em
seu rosto.
— Está tudo bem em ter medo — Cacau sussurrou para mim.
— Eu não estou com medo, ok? Apenas... preocupado.
— Tudo bem. Eu não gosto de alfuras.
Ayanna estremeceu.
— Ah, é verdade. Sinto muito, Cacau, mas eu precisava ir mais alto
para que não...
— Está tufo bem — Cacau continuou a desenhar. — Não consigo
ver o terreno nesta nuvem, então isso realmente afuda. E se eu continuar
me concentrando em outra coisa, isso também afuda.
— É por isso que você está desenhando — disse eu, sentindo pena
da coelhinha.
— Sim, sim.
— Se isso faz você se sentir melhor — sussurrei. —, também não
gosto muito de altura.
A coelhinha ergueu os olhos e torceu o nariz, esperançosa.
— Você não gosta?
— Não. Me dá arrepios. E uns tremeliques.
Cacau sorriu para mim, e eu a observei desenhar a imagem de uma
raposa e um coelhinho caminhando lado a lado. Depois de um tempo, ela
borrou e começou a fazer outra coisa. Ayanna olhou para frente e eu
inclinei minha cabeça e a estudei.
— Do que você tem medo? — eu perguntei.
Ela ergueu uma sobrancelha sem se virar para olhar para mim.
— Eu? Nada.
— Nada?
— Nada mesmo.
— Ok. Você não tem medo de nada. Bem, do que você não é fã?
Ela revirou os olhos.
— Conversas inúteis.
— E…
— E falastrões que querem atenção o tempo todo.
Eu ignorei isso. Ela só queria me irritar para eu deixá-la em paz,
mas em vez disso, pressionei-a um pouco mais.
— Vamos. Cacau e eu compartilhamos nossos medos. E isso é uma
equipe, certo? Além disso, se você não responder, cantarei aquela
música que Bebê Chiclete gosta de cantarolar.
Ayanna ficou rígida.
Limpei minha garganta e cantarolei alguns compassos. Ayanna se
encolheu e me lançou um olhar mortal. Cacau esperou que ela
respondesse também e, por fim, a piloto ergueu a mão para o alto.
— Tudo bem, tudo bem! — Ayanna balançou a cabeça para nós
dois e depois se virou para ficar de olho em nosso voo. — Surpresas. Eu
não gosto de surpresas.
— Tipo preshents? — Perguntou Cacau.
— Não, tipo... eu não sei. Como pessoas pulando em mim.
— Emboscadas — eu disse baixinho. — Você não gosta de ser
emboscada.
Ela ficou em silêncio, e comecei a fazer outra pergunta, quando uma
das sacolas de suprimentos começou a farfalhar, quase me matando de
medo. Ayanna deu um salto para trás e a jangada balançou, e meu
estômago embrulhou.
— Algemado! — eu gritei, pronto para chutar o saco inteiro para o
mar.
A bolsa se mexeu, então se ergueu e um rosto apareceu.
— ALGEMADOS? — A VOZ QUE VEIO da sacola estava abafada,
mas não havia como confundir aquela voz estridente. — Onde? A Bebê
Chiclete precisa gastar um pouco de energia de qualquer maneira.
— Bebê Chiclete! — Ayanna gritou. — O que você está fazendo
aqui?
Um pacote embrulhado em couro irregular se ergueu no meio dos
suprimentos. Duas pernas curtas e atarracadas se projetaram do fundo,
e a estranha criatura pisou indignada para o meio da jangada.
— O que a Bebê Chiclete está fazendo aqui? O que a Bebê Chiclete
está fazendo aqui? Sendo insultada. Como você ousa sair em missão
sem Bebê Chiclete! É tipo avião sem asa. Ou fogueira sem brasa. Ou...
— Tudo bem — interrompeu Ayanna. — Em primeiro lugar, nada
disso faz sentido.
— Tem como tirar a brasa da fogueira? — Cacau sussurrou, e eu
balancei minha cabeça.
— Em segundo lugar — Ayanna continuou —, estamos aqui.
Bebê Chiclete estava diante de um saco de cenouras que Cacau
trouxera. O pacote de couro preso ao rosto da boneca girou para a
esquerda e para a direita. Então, com um grunhido, puxões e muita seiva,
ele escapuliu. Seu cabelo encaracolado estava ereto e ela usava um
macacão em miniatura que estava amarrotado. Eles foram tingidos de
preto e ela tinha duas penas pretas coladas nas costas. Quase parecia ...
— Você está... vestida como a Srta. Rose? — Perguntou Cacau.
Isso mesmo! A roupa preta, as penas…. Bebê Chiclete tinha uma
nova mentora, ao que parecia.
— Não — disse Bebê Chiclete. — Só achei que as penas faziam a
Bebê Chiclete parecer feroz — Ela fez uma pose, flexionando os bíceps
e balançando as costas para que as penas se mexessem.
Cacau, Ayanna e eu nos entreolhamos e tentamos não sorrir.
— Tudo bem — disse Ayanna —, mas o que você está fazendo
aqui? Achei que você tinha tarefas na cozinha.
Bebê Chiclete afundou no chão da jangada e mexeu no saco de
suprimentos vazio.
— Bebê Chiclete achava que, se tivesse outra chance, conseguiria
provar que poderia fazer parte da equipe.
O rosto de Ayanna se suavizou. Ela mordeu o lábio e suspirou.
— Você não pode simplesmente se inserir, Bebê Chiclete. Você tem
que dar um tempo. Srta. Rose, Srta. Sarah e os outros irão se aproximar.
Mas fugir em uma missão que você não deveria estar não vai ajudar.
Você sabe disso.
Bebê Chiclete afundou ainda mais. Mais um pouco e seu rosto
estaria no chão.
— O que ela quer fazer? — Sussurrei para Cacau.
Pelo menos eu pensei que tinha sussurrado. Ayanna ergueu os
olhos com o cenho franzido. O que eu disse de errado dessa vez?
— Ela quer ser piloto — respondeu Cacau. — Como Ayanna.
Bebê Chiclete suspirou e olhou para suas mãos de madeira, depois
estendeu a mão para trás e puxou as penas de suas costas. Ela amassou
e jogou fora, então puxou os pequenos joelhos contra o peito.
— Bebê Chiclete achou que ela poderia fazer isso. Vá em
aventuras, encontre outros, leve-os para casa e seja uma heróina, sim.
Bebê Chiclete trabalhou muito. Ela treinou. Ela estudou. Ela pensou que
estava pronta. Bebê Chiclete suplicou e implorou. Mas não, eles
disseram. Ela era muito pequena ou muito pegajosa.
Todos nós a observamos — até Ayanna se virou para ela. Não era
normal ver Bebê Chiclete assim. Ela sempre era enérgica, nunca triste.
Pensei que eu fosse o triste.
Acontece que outras pessoas — até bonecas, eu acho — também
têm problemas.
— O que aconteceu? — eu perguntei.
Ela olhou para mim.
— Finalmente, depois que a Bebê Chiclete colocou-se atrás da
orelha de John Henry e sussurrou por alguns dias, eles concordaram em
fazer um teste com a Bebê Chiclete. Disseram que se ela passasse, Bebê
Chiclete poderia fazer um período de sofrência como piloto — Ela
acariciou seus cachos e suspirou. — Até fez com que a Srta. Rose
arrumasse seu cabelo.
Eu estremeci.
— Você quer dizer... período de experiência, certo?
Os olhos de Bebê Chiclete se arregalaram, então ela baixou o rosto
nas mãos e começou a chorar.
— Bebê Chiclete arrumou esse afro para nada? Você sabe como é
difícil tirar a seiva de um afro? Você sabe? VOCÊ SABE?
Cacau deu um tapinha nas costas dela enquanto Ayanna me dava
um olhar exasperado.
Eu levantei minhas mãos defensivamente.
— Desculpa! Eu só pensei que ela deveria saber!
— Você poderia ter dito isso mais tarde — ela murmurou.
Depois de alguns instantes, Bebê Chiclete se acalmou e fungou.
Entreguei a ela uma toalha de papel e ela assoou o nariz. Você já viu uma
boneca cheia de seiva assoar o nariz? Hum... confie em mim, você não
quer ver.
— Então, Bebê Chiclete — disse Cacau, tentando mudar de
assunto —, que missão te enviaram? Como você se saiu?
Bebê Chiclete encolheu os ombros.
— Pergunte a ele — disse ela, apontando para mim. — Ele também
estava lá.
— O quê? — eu disse. — O que eu fiz?
Bebê Chiclete fungou novamente.
— Você não deixou Bebê Chiclete ficar com o livro!
Eu fiquei boquiaberto em descrença.
— Você está brava porque eu não deixei você roubar o diário do
meu melhor amigo? Você é a razão pela qual estou preso aqui!
— Não, você é a razão de estar aqui. Ninguém mandou seu
cabeção perseguir a Bebê Chiclete. Você poderia ter deixado ela ficar
com ele. Você estava apenas sendo egoísta.
— De todos os... quero dizer, como...? Eu nem consigo começar…
— Eu gaguejei em frustração. Cacau e Ayanna olharam para trás e para
frente entre nós dois.
— Nunca ouvi a história completa — disse Ayanna, pensativa. —
Como você e a Bebê Chiclete acabaram destruindo a vida de todos na
Terra Média e possivelmente também de Alke? — Eu estremeci e ela
encolheu os ombros. — Só estou falando como eu vejo.
Cacau pulou para cima e para baixo.
— Ah, uma história, uma história!
Bebê Chiclete também começou a pular e eu franzi a testa para ela.
— Você conhece a história. Você estava nela.
— Bebê Chiclete apenas gosta de histórias — disse ela.
— Bem, eu não vou contar uma.
— Por quê?
— Sim, por quê? — Ayanna disse, e sorriu quando revirei os olhos.
— Porque coisas estranhas acontecem quando eu conto histórias,
lembra?
— Mm-hmm. Mas você é um Anansesem, certo? Não foi isso que
Brer, John Henry e Srta. Rose disseram? Você deve ser superespecial
quando se trata de contar histórias. Você está dizendo que realmente não
é tão especial assim? — Ela sorriu e ergueu as sobrancelhas.
Cerrei os dentes e tentei ignorá-la.
— Então... você não vai contar uma história? — A voz de Cacau
soou mais baixa do que o normal. Quando olhei para cima, ela e Bebê
Chiclete pareciam desapontadas.
Suspirei. Talvez nada de ruim resultasse disso. E se isso
acontecesse, bem, então pelo menos eu estaria desviando monstros de
ferro do Arvoredo. Sim. Eu estaria fazendo um favor aos deuses...
Para ser honesto, eu queria experimentar os poderes Anansesem
novamente, apenas para poder entrar no ritmo de contar histórias para
grupos de pessoas. Se fosse ajudar, eu precisava praticar.
— Tudo bem. Vou contar uma história, mas não aquela sobre como
conheci a Bebê Chiclete. Eu vi o que aconteceu quando falei sobre isso.
— Ah? Então, o que você vai compartilhar com a turma hoje? —
Ayanna inclinou a jangada ligeiramente para cima e nós aparecemos no
céu claro. O banco de nuvens flutuou abaixo e nós flutuamos em um mar
branco.
Eu mostrei minha língua para Ayanna antes de me virar para Cacau
e Bebê Chiclete, quebrando a cabeça. Que história seria segura de se
contar?
Outro bolsão de névoa e nuvens passou pela jangada e por cima
de nossas cabeças. Cacau deu uma risadinha quando uma esfera branca
se instalou entre as pontas de suas orelhas e gritou quando Bebê Chiclete
a estourou.
Eu podia sentir um ritmo na jangada.
Mais bolhas de nuvens surgiram, flutuaram ao nosso redor e
explodiram de alegria. Risos e gritos. Eu ouvi crianças chamando e
brincando.
Eu sorri.
— Ok — eu disse em voz alta, batendo palmas. Eu podia sentir a
energia nelas, como quando fiz as borboletas contarem a história na
clareira do mato. Ainda era um pouco estranho, mas a sensação era mais
leve desta vez, menos como agulhas e mais como um zumbido.
Todas olharam para mim, então se acomodaram e esperaram. Até
Ayanna parecia curiosa.
— Uma vez, Eddie e eu fizemos nosso próprio super refrigerante.
O ritmo estava na ponta dos meus dedos agora. Parecia que eu
poderia moldar a história, trabalhar as palavras como argila e esculpir um
conto para todos verem.
— Começou como um desafio. Uma pegadinha, na verdade.
A história se materializou com pouco esforço desta vez. Talvez
porque eu não estava com raiva ou ameaçado. De qualquer maneira,
todas na jangada fizeram "ooh" e "aah" enquanto as bolhas de névoa que
nos rodeavam giravam e se estendiam em um diorama. Dois meninos
das nuvens, um ligeiramente maior que o outro, entraram na grande
nuvem de um edifício. Nós entramos também e observamos os meninos
travessos enquanto eles riam e se amontoavam em um refeitório branco
e fofo.
Senti uma pontada de tristeza — quase esqueci essa memória.
— Nossos heróis pensaram que estavam sozinhos no prédio. Era
um sábado, não havia ninguém na escola e as luzes estavam apagadas.
Mal sabiam eles…
Uma mulher alta com dreadlocks de stratus prateados e usando um
vestido de nuvem cirro marchou pelo corredor para o refeitório. O menino
maior não a ouviu — ele estava enterrado na química, misturando água
com gás, corante alimentício e bala efervescente em seis garrafas
esportivas diferentes, e estava de costas para a porta. No último segundo,
o menino menor soou o alarme — alguém estava chegando! Os meninos
se esconderam, seu delicioso projeto empoleirado precariamente na
ponta de uma mesa. As garrafas começaram a borbulhar, suavemente no
início, mas depois começaram a tremer cada vez mais rápido até que
toda a mesa tremeu.
A mulher, com uma carranca cúmulonimbus cada vez mais escura,
investigou a comoção. Enquanto ela estava de costas, os meninos
escapuliram, suas perninhas se agitando e levantando baforadas atrás
deles.
Fechei os olhos, lembrando-me da risada sem fôlego, dos
sussurros, da antecipação. Eu podia ouvir Eddie sibilando para eu
diminuir a velocidade e esperar por ele, sentir minhas costelas se partindo
de tanto rir enquanto corria.
Eu não tive que abrir meus olhos para ver o que aconteceu a seguir.
Se desenrolou em minha mente.
As garrafas de refrigerante lançaram-se no ar e enviaram espuma
doce para fora de todas as janelas do refeitório, e uma garrafa voou pelo
corredor e saiu pela porta da frente. Crianças brincando a quarteirões de
distância disseram que a viram passar zunindo, e a lenda diz que as
pessoas que brigavam no estacionamento da hamburgueria pararam
para assistir. Quando todo o refrigerante acabou, os dois lados não
conseguiam se lembrar sobre o que estavam brigando.
Quando abri os olhos, uma garrafa de nuvem fluiu pelo céu. Cacau,
Bebê Chiclete e até Ayanna assistiram. Ela voou em nossa direção,
voando logo acima da jangada antes de explodir em vapor cintilante e
serpentinas enevoadas.
Mas minha atenção ficou no diorama. Nos dois meninos e na
maneira como o menor bateu no ombro do maior. Mesmo que ninguém
mais pudesse ouvi-los, as palavras que ele falou ainda soaram claras em
minha mente.
Estou do seu lado.
Uma onda de raiva se cravou em mim.
Eddie não estava mais por perto. Ele não poderia ficar ao meu lado.
Ele não estava lá para me colocar em apuros, ou me tirar de apuros, ou
fazer qualquer coisa. A memória era apenas um lembrete de algo que
nunca poderia ser novamente.
— Ei, o que aconteceu?
A voz de Cacau interrompeu meus pensamentos. Percebi que o
diorama havia congelado — os meninos estavam no meio do caminho.
Lutei para recuperar o ritmo, para ter a sensação de criação em meus
dedos, mas a raiva havia interrompido tudo.
— Nada — eu disse.
— É isso? Eles escaparam? — Bebê Chiclete pulava de frustração.
— Você não pode deixar Bebê Chiclete na mão assim. Pessoas estúpidas
da nuvem! Nunca posso dizer com eles.
Ayanna me estudou.
— Você está bem?
Eu não respondi. A batida dos tambores havia parado e minha velha
raiva e ressentimento voltaram. Mas desta vez, o formigamento
permaneceu em meus dedos, como aquela sensação pegajosa da qual
você nunca consegue se livrar depois de tocar em mel ou xarope.
Só para ver o que aconteceria, invoquei uma imagem de Eddie em
minha mente. Fechei os olhos com força, estendi a mão em direção à
névoa e tentei trazer o garotinho das nuvens de volta.
Nada.
Eu deixei minhas mãos caírem em decepção.
Concentre-se no que você está falando e aprenda a controlar.
As palavras da Srta. Sarah ecoaram em meu ouvido e eu fiz uma
careta. Concentre-se e controle…
Hesitei, depois estendi a mão novamente. Desta vez, mantive meus
olhos abertos e sussurrei para mim mesmo:
— Uma vez, tive um irmão e amigo...
Meus dedos zumbiram, e então o garotinho feito de névoa e
travessura saiu das nuvens.
Eu sorri.
— Atenção, pessoal — Ayanna chamou. A expressão solene em
seu rosto tirou o sorriso do meu. — Chegamos.
Bebê Chiclete correu para a beira da jangada. Cacau e eu ficamos
parados. Meu estômago embrulhou quando nos inclinamos. Ayanna,
dirigindo pela traseira, acenou com a cabeça em direção à frente.
— Vá olhar — disse ela.
Eu balancei minha cabeça.
— Estou bem aqui.
— Ah, não seja assim. Acredite em mim, esta é a melhor vista que
você verá. — Ela estudou minha expressão e ergueu uma sobrancelha.
— Uau, você não estava brincando sobre o seu medo de altura, hein?
Hesitei, então dei a ela alguns acenos curtos e espasmódicos e
esperei que ela risse de mim. Mas ela não disse mais nada. Apenas se
voltou para seu cajado brilhante, fez ajustes minuciosos e olhou para a
névoa como uma médium lendo folhas de chá.
Enquanto descíamos, Bebê Chiclete se juntou a Cacau e elas
sussurraram animadamente uma com a outra.
— Última chance, garoto voador! — Ayanna ligou. Ela não se virou.
— Se você perder isso, nunca vai se perdoar.
— Se eu cair, não vou me perdoar — murmurei.
Mas enquanto eu falava, a névoa assumiu um brilho dourado, como
se o fundo das nuvens tivesse sido mergulhado em purpurina. Pontinhos
de luz se ergueram do solo como holofotes em miniatura nos guiando
para um pouso. A jangada nadou em um lago dourado por vários
segundos. Cacau começou a pular para a frente e para trás — tão rápido
que Bebê Chiclete teve de mandar ela se acalmar.
— Calma, coelhinha, isso não é amarelinha!
A expectativa era contagiosa, e minha curiosidade acabou
superando minha alergia de mergulhar para a morte. Por muito pouco.
Eu deslizei para a borda traseira por instinto, ignorando o olhar
zombeteiro de Ayanna enquanto eu me acomodava ao lado dela.
— Já estava na hora — ela disse.
— É melhor que essa vista valha a pena — resmunguei.
Ela bufou.
— Ah, vai valer. E quando pousarmos, você vai se desculpar por
duvidar de mim.
— Sim, veremos.
Mas enquanto eu falava, os restos finais das nuvens empoadas de
glitter desvaneceram, e meu queixo caiu tanto que pensei que teria que
colocar fita adesiva de volta no meu rosto.
— Santo...
— Chegamos! — Bebê Chiclete e Cacau gritaram.
Ayanna sorriu.
— Bem-vindo a Crescente Dourada — ela disse.
ÁGUA TÃO AZUL COMO UM céu de verão se estendia abaixo de
nós, e navios gigantescos pontilhavam o mar. Iates e super iates.
Transatlânticos e enormes barcos planos e ovais com cúpulas que
cintilavam e ondulavam como bolhas ao sol — cada uma delas grande o
suficiente para fazer o Titanic corar. Os símbolos vermelho-rubi em seus
lados brilhavam quando a luz do sol refletia neles, mas eram
deslumbrantes demais para distingui-los.
E essa era apenas a entrada de automóveis.
— Aquilo são palácios? — Eu perguntei. Minha voz saiu em um
sussurro, como se eu não quisesse interromper o pintor que estava
criando a cena abaixo.
— Sim. — A voz de Ayanna soou sombria por algum motivo, mas
não perguntei por quê. Eu encarei avidamente, bebendo no mundo
glamoroso em que estávamos descendo.
A Crescente Dourada não era um lugar. Era um espetáculo. A
cidade costeira tinha a forma de um arco que ficava mais fino em ambas
as extremidades até as pontas cravarem no mar. Dois faróis de pérolas
com cristais enormes em seus topos ficavam no final de cada ponta
crescente.
Montanhas escuras se erguiam do horizonte — picos agudos e
furiosos que mastigavam o céu, uma boca ameaçando devorar a joia
cintilante à sua frente.
E quero dizer, esta cidade brilhava.
A areia rosa dourada encontrou o mar turquesa em um choque de
fúria vibrante. À distância, perto do centro da cidade, torres pretas da
meia-noite e prata dos sonhos erguiam-se orgulhosamente ao lado de
cúpulas de marfim e castelos de mármore. Casas enormes, maiores do
que qualquer mansão que eu já vi ao longo da Lakeshore Drive —
maiores, na verdade, do que os museus para os quais viajamos em
excursões — a cidade cheia de ruas tão largas que você poderia jogar
futebol de meio-fio incrustado de joias a outro meio-fio incrustado.
As ruas se curvavam para cima e ao redor à medida que o solo se
afastava da costa como uma espiral. E ali, no topo de uma colina, o maior
palácio de todos o aguardava.
Nós inclinamos para baixo em direção a uma marina gigante, onde
mais iates de formas e tamanhos estranhos flutuavam. Um tinha dois
andares, como um ônibus de dois andares, exceto que as janelas eram
bolhas transparentes. No interior, uma cachoeira espirrou em uma gruta,
enquanto um toboágua em espiral a conectava ao nível inferior, onde uma
praia em miniatura esperava.
— Isso é tão legal — eu disse quando passamos por ele. — Se eu
tivesse isso, nunca deixaria o Lago Michigan.
Uma estrada sinuosa conduzia do porto a um enorme quadrado de
mármore polido, e é onde Ayanna conduzia a jangada. Mais símbolos,
como aqueles pintados nas laterais dos navios, foram gravados no solo.
Engoli em seco ao reconhecer um — um adinkra, o mesmo da minha
pulseira e do diário de Eddie.
A jangada se acomodou no meio do espaço de pouso com um leve
solavanco.
— Vamos — disse Bebê Chiclete, mas Ayanna balançou a cabeça.
— Ainda não.
— Mas...
— Não vamos sair correndo para lugar nenhum. Você pode se
perder ou algo ainda pior pode acontecer.
Ayanna distribuiu equipamentos enquanto esperávamos, e levantei
minhas sobrancelhas enquanto Bebê Chiclete corria atrás de uma pilha
de suprimentos. Ayanna cutucou meu braço e me entregou uma mochila
vazia.
— Para que serve isso? — Eu perguntei.
— Para a Caixa de Histórias. Não vou carregar essa coisa.
Eu cruzei meus braços.
— Ah, então eu tenho que carregar os bens roubados? Que ótimo.
Muito bom.
— Bem, a Bebê Chiclete não vai fazer isso, Língua Solta — disse a
boneca, voltando ao campo de visão —, então nem mesmo comece a
abrir a boca para sugerir isso.
Comecei a gritar com a pequena tagarela, mas parei quando vi o
que ela estava vestindo.
Ayanna percebeu isso ao mesmo tempo.
— Hum, BC…
— O quê? — Bebê Chiclete estava agora com uma capa preta
sobre minúsculas calças pretas e uma blusa preta fina. Seu cabelo estava
puxado para trás em um coque minúsculo, e ela posou dramaticamente
com a capa estendida.
— Não deixe a Bebê Chiclete assustar você — disse ela. — É
apenas para discrição. Bebê Chiclete vai ser o vento. Não, raio! Espere,
o raio é furtivo? O vento faz um ruído sibilante, mas o raio meio que
estala, não é? Sim, Bebê Chiclete é um raio de vento. Vou fazer barulho
em todo lugar.
Ela correu ao redor da jangada fazendo sons de whoosh, e eu
suspirei.
Cacau ficou nas patas traseiras e deixou cair o lápis que estava
usando para desenhar na jangada.
— Ok, estou pronta.
Um mapa da cidade cobria as pranchas de madeira, e assobiei
silenciosamente com a quantidade de detalhes que Cacau conseguira
encaixar. Ruas, parques e fontes, pináculos e torres ladeadas de palácios
— todos estavam etiquetados com uma caligrafia clara e legível. As setas
apontavam para um palácio, maior do que todos os outros, tão grande
que ocupava metade do mapa, e engoli em seco.
Isso estava se tornando muito real.
Na verdade, planejamos roubar o tesouro de um deus.
Nyame, o deus do céu. Aquele que primeiro criou as histórias, e
quem as concedeu a Anansi depois que o Tecelão completou três tarefas
aparentemente intransponíveis.
Esfreguei minha testa e respirei fundo. Cara, ai cara.
Ayanna colocou sua mochila, em seguida, pisou na capa de Bebê
Chiclete para impedi-la de sair em disparada. Ayanna balançou o dedo
para ela e disse:
— Shhh. É hora de planejar nosso ataque.
Cacau olhou para cada um de nós e torceu o nariz.
— Ok, ouça. É assim que vai ser...
O plano foi por água abaixo em quinze minutos. Nosso grupo se
dividiu, com cada par tomando uma das duas principais avenidas que
levavam à propriedade de Nyame. Fiz parceria com o Bebê Chiclete.
Que surpresa.
Em vez de rastejar furtivamente por uma rua desconhecida cercada
por edifícios desconhecidos enquanto tentava roubar o tesouro mais
valioso em uma cidade desconhecida, adivinhe o que eu estava fazendo?
Sim.
Discutindo com uma boneca de vinte e cinco centímetros.
— Não, você não pode deixar um rastro de seiva! — eu sibilei
enquanto ela se movia atrás de mim. — Agora vamos.
— Mas e se monstros nos perseguirem pela cidade e precisarmos
encontrar nosso caminho de volta? Huh? E aí? Você não ouviu falar de
medidas pré-caixão?
— Em primeiro lugar, são medidas de precaução...
— Em primeiro lugar, ataque de seiva, Bebê Chiclete conhece a
frase, mas se você não quer morrer, é pré-caixão. Idiota. Bebê Chiclete
sabe quais palavras ela quer usar.
Eu cerrei meus dentes e limpei a bola de seiva que ela jogou no
meu rosto.
— Só... vamos. Estamos quase lá.
Subimos um pequeno morro, seguindo um mapa simples que
Cacau havia desenhado em um pedaço de papel. Havíamos passado por
vários palácios, cada um deles mais grandioso e luxuoso do que o
anterior. Mas era tudo muito estranho.
As ruas estavam desertas.
Nenhuma pessoa enfiou a cabeça para fora de suas casas enormes
para investigar os invasores.
Nenhuma criança correu pelas ruas brincando com seus amigos.
Sem fofoca, tagarelice ou movimento nas ruas ou tráfego do dia do
mercado ou festa do quarteirão ou qualquer outro evento baseado na
comunidade. Nada.
A voz de Bebê Chiclete quebrou o silêncio.
— Ei, olhe para isso.
Ela subiu as escadas para um palácio coberto de videiras do outro
lado da rua e ficou espiando pelo portão da frente. Uma pequena estátua
de cobre de uma garota estava em uma pequena coluna de marfim,
ambas as mãos congeladas nos quadris. Sei que não fazia sentido, mas
senti olhos em mim enquanto subia as escadas e olhei por cima do
ombro, inquieto.
— Bebê Chiclete — disse eu, a vários metros de distância —, acho
que não deveríamos...
— Tarde demais — ela anunciou em voz alta, e bateu na base da
estátua. — Você está com muito medo, Língua Solta.
— QUEM VAI LÁ?
Bebê Chiclete guinchou, escalou a estátua e rapidamente tapou a
boca com a mão pegajosa, silenciando a indignada campainha de cobre
da porta.
— Shh! Ataque de seiva! Você vai nos colocar em problemas. Dois
ataques de seiva!
A estátua parecia nos encarar por trás de uma camada de seiva
cobrindo seu rosto.
— Bebê Chiclete, desça daí — sussurrei.
Ela balançou a mão para mim, enviando gotas pegajosas de seiva
para todos os lados.
— Venha aqui — ela disse impacientemente.
Rosnei algo que eu provavelmente não diria em qualquer lugar
perto de Vózinha e subi o resto dos degraus. Mais duas estátuas
colocadas de cada lado do portão, e elas fizeram meu pescoço coçar —
eu senti como se estivessem me observando transgredir. Agachei-me ao
lado de Bebê Chiclete e tentei não ficar boquiaberto com o tamanho de
tudo ao meu redor. Os arcos de entrada, tão altos quanto John Henry,
eram árvores de cobre com silhuetas de minúsculas pessoas em
movimento no topo.
— Olha — Bebê Chiclete apontou além dos arcos para um pátio,
onde havia um pequeno arvoredo de verdadeiras árvores. Um sicômoro
monstruoso estava no meio, tão grande que sombreava todo o terreno.
Eu inclinei minha orelha.
— Você ouviu isso?
— Ouvi o quê?
Um leve assobio soou nas profundezas da pequena floresta. Muitos
assobios. Era como pássaros cantando alternadamente e depois se
juntando em um coro alto e vibrante.
— Isso — eu disse.
Bebê Chiclete balançou a cabeça.
— Não. Limpe seus ouvidos, Língua Solta, e talvez isso ajude.
O assobio ficou mais alto e próximo, e eu lambi meus lábios
nervosamente.
— Algo está vindo.
Então Bebê Chiclete olhou em volta, inquieta.
— O que é?
— Eu não sei, talvez devêssemos ir.
— Não se preocupe, Bebê Chiclete irá protegê-lo. — Mas quando
ela disse isso, tentou se esconder atrás das minhas pernas.
Eu já estava recuando. Essa floresta parecia antiga. Nem boa nem
ruim — mas poderosa. Eu não queria fazer parte disso agora, não com
tudo o mais que estava acontecendo. Meus pés estavam virando para a
rua por conta própria, e quem era eu para impedi-los?
Meu nome era Tristan Já-Dei-O-Fora.
— Língua Solta, pare de ser um gato assustado! Língua Solta! Ooh,
Bebê Chiclete vai te pegar! Não deixe a Bebê Chiclete sozinha aqui!
Nós nos encontramos com Ayanna e Cacau em uma praça gigante
cheia de fontes disfarçadas de estátuas e arbustos floridos em forma de
animais. Bebê Chiclete ainda fumegava, mas não senti nada além de
alívio. Um menino não aguenta tanto.
O ar estava cheio com o aroma da primavera e, se não fosse pelo
silêncio opressor, teria sido pacífico. Nossos passos ecoaram quando nos
encontramos no meio do espaço aberto.
— Acho que não precisávamos nos separar — admitiu Ayanna.
Eu gostaria de dizer que um sorriso presunçoso não apareceu no
meu rosto, mas você ganha as vitórias que pode obter.
— Acabei de marcar o caminho de volta à praça — disse Cacau. —
Para o caso de sermos perseguidos e nos perdermos.
— Ah, é mesmo? — Bebê Chiclete disse em uma voz
extremamente alta. — Você chamaria isso de... medidas de pré-caixão?
Cacau fez uma pausa e começou a rir.
— Sim, sim, acho que sim.
Eu podia sentir os olhos de Bebê Chiclete passando por trás da
minha cabeça.
— Ok, então o que vem a seguir? — eu perguntei, tentando seguir
em frente rapidamente.
— Aquela é a entrada para a propriedade de Nyame ali — disse
Cacau, apontando para o outro lado da praça, onde dois pilares de
mármore altos marcavam uma saída. Entre eles...
— Vocês estão vendo isso? — Bebê Chiclete perguntou.
— É um portão — disse Ayanna.
— Bebê Chiclete sabe como é um portão. Ela está muito
familiarizada com eles. Isso não é um portão.
— É o portão de Nyame — disse Cacau. — E é para lá que estamos
indo.
Entre os pilares, o ar tremeluzia, manchas douradas
ocasionalmente piscando para a existência como vaga-lumes incrustados
de joias. O terreno do palácio parecia distorcido, como se estivéssemos
olhando através de um vidro fosco.
Paramos em frente aos pilares. Ayanna olhou para mim, revirei os
olhos e suspirei.
Liderança é difícil, cara.
Levantei a mochila vazia em volta dos ombros, respirei fundo e
atravessei o portão cintilante.
OS TERRENOS DO PALÁCIO DE NYAME me deixaram
boquiaberto.
Meu cérebro estava torrado — como uma torrada queimada que
sua mãe raspa para que você ainda possa tentar comê-la no café da
manhã, mas não há como salvá-la.
— Essa é uma garagem gigante — eu disse.
A estrada pavimentada à nossa frente, alinhada com tijolos de
marfim cintilantes de um lado e com pedras douradas do outro,
contornava pomares maduros recheados de árvores frutíferas que eu
nunca soube que existiam. Ela saltava sobre colinas mais verdes do que
notas frescas de vinte dólares.
A luz do sol espirrou de cima, brilhante sem ser muito forte, e minha
tensão foi drenada. Uma brisa suave trouxe o cheiro da primavera
transformada em verão — grama recém-cortada, o oceano e flores
silvestres recém-desabrochadas.
— Este lugar é incrível — sussurrou Cacau.
Ayanna acenou com a cabeça, mas manteve os olhos fixos. Sempre
sendo piloto. Seus olhos encontraram os meus e trocamos um olhar de
descrença. Este paraíso parecia bom demais para ser verdade.
Bebê Chiclete subiu correndo uma pequena colina antes de nós e
congelou.
— O que foi? — eu perguntei, seguindo.
Bebê Chiclete balançou a cabeça e recuou. Meus punhos cerraram-
se e Ayanna alcançou o cajado pendurado em suas costas. Cacau ficou
atrás de nós quando chegamos ao topo da colina.
Tudo o que vimos até agora foi impressionante. Obviamente, a
propriedade do palácio fora projetada para atrair visitantes e surpreendê-
los com o esplendor e a glória da Crescente Dourada. Nyame sabia como
impressionar uma multidão.
Mas depois desses aperitivos veio o prato principal.
Enormes estátuas de pessoas que eu não reconheci alinhavam-se
no caminho que levava a um enorme palácio com cúpula dourada. Alguns
apontavam para o horizonte ou erguiam crianças no ar, e outros
carregavam lanças e escudos. A mais próxima era uma mulher com rosto
severo e um banquinho dourado debaixo do braço.
Enquanto caminhávamos, juro que seus olhos nos seguiram.
Ayanna ergueu uma sobrancelha enquanto eu acelerava meu ritmo,
mas ela não fez comentários. Ninguém queria falar perto dessas estátuas
que pareciam observar cada movimento nosso, então o silêncio caiu
sobre nós até chegarmos à entrada do palácio de Nyame.
E que entrada e tanto era aquela.
— Uma cachoeira — eu murmurei para ninguém em particular. —
A entrada é uma cachoeira. O que há com esta cidade e suas estranhas
portas de entrada?
A porta, que parecia grande o suficiente para uma das estátuas
passar, era emoldurada com pedra entalhada com símbolos — mais
adinkra. Uma cortina de água escorria de uma fenda no topo, caindo em
uma folha perfeita como um único painel de vidro, e as mesmas manchas
de ouro piscando no portão da frente apareceram aqui. Eu não conseguia
ver o interior.
Dei um passo à frente e uma fenda apareceu no meio da cachoeira.
— Espere, espere — Ayanna sussurrou. — O que é aquilo?
— Não sei — eu disse. Dei mais um passo e a fenda se alargou na
parte inferior, como uma cortina sendo fechada no início de uma peça. —
Eu acho que tem um sensor de movimento? Tecnologia de casa
inteligente alkeana. Quem diria?
Ayanna revirou os olhos.
— Só tome cuidado, garoto voador. Você é nossa passagem para
fora daqui.
— Estou comovido com a sua preocupação.
— Bebê Chiclete vai retocar seu queixo se você não se mexer. —
A pequena falastrona usou minhas pernas como cobertura, espiando de
uma antes de mergulhar atrás da outra.
— Está bem, está bem — Cheguei mais perto e a fenda na
cachoeira se abriu ainda mais, para que eu pudesse espiar e verificar o
terreno à frente. Nenhum sinal imediato de armadilha. Eu posso fazer
isso, pensei. Respirei fundo e pulei pela porta com um grito.
— HAH!
Ninguém saltou em mim. Sem monstros, sem estátuas estranhas,
nada. Em vez disso, eu estava em uma enorme sala retangular — uma
câmara de audiência, ao que parece. Pisos de mármore polido refletiam
as placas douradas penduradas nas paredes.
Bebê Chiclete veio atrás de mim.
— Cadê o teto? — Ela perguntou em um sussurro abafado.
Pilares de mármore branco se erguiam sobre nós. Eles terminaram
bem acima de onde deveria estar o teto, como se sustentassem o céu.
Cada um tinha uma imagem da vida na Crescente Dourada pintada nele
— famílias navegando na baía, crianças brincando nos jardins do palácio,
homens e mulheres em trajes formais neste mesmo salão. Todos eles
com pele negra profunda como a minha. Todos eles felizes.
Nenhum deles encontrados em lugar algum na vida real.
Os pilares se alinhavam em ambos os lados como sentinelas até a
outra extremidade, um campo de futebol cheio de distância, onde uma
estátua estava em um trono dourado. Mais cachoeiras saíam de buracos
nas paredes e caíam em piscinas ovais tão azuis quanto o céu. Lírios
prateados com flores vermelho-rubi flutuavam na superfície da água.
Tudo parecia tão...
— Lindo — eu disse em voz alta. Ayanna, que havia entrado atrás
de Cacau, mudou-se para o meu lado. — Onde eles estão? — eu
perguntei a ela. — Para onde todas as pessoas foram?
— Brer disse que a Crescente Dourada foi a primeira a ser
devastada pelos monstros de ferro — ela respondeu. — Talvez eles
estejam todos escondidos. Ou…
Ela não terminou, mas não precisava.
Talvez todos eles tenham sido levados.
— Ei, essas estátuas são diferentes.
A voz de Bebê Chiclete ecoou do outro lado do corredor. Ela ficou
perto da estátua no trono, sua capa boba tremulando em uma brisa
cruzada suave, e apontou para as duas figuras que a flanqueavam —
uma de um grande leopardo no meio de um salto, a outra de uma píton
atacando para frente. Eu me juntei a ela para examiná-las. Ambos
pareciam tão ferozes, tão vivos, que quase podia ouvir seus rosnados e
sibilos.
— Bizarro — eu murmurei.
Aproximei-me do trono, ansioso para me afastar daquelas criaturas.
A estátua na enorme cadeira era igualmente detalhada — um homem
olhando para frente, as mãos segurando os apoios de braço, com
pulseiras nos pulsos e tornozeleiras acima dos pés descalços. Sua
cabeça estava ficando calva e, em torno da coroa detalhada de cachos,
ele usava um diadema cravejado de grandes insetos como se fossem
joias cravadas.
Eu podia sentir de novo — aquela energia estranha, como uma linha
de baixa tensão elétrica tentando sair da minha pele. As cachoeiras
espirraram no tempo, mantendo o ritmo. Havia uma história aqui, em
algum lugar, louca para ser contada.
Meus olhos caíram em um círculo no chão bem em frente ao trono.
— Ei, olha. O que é isso?
As outras se aglomeraram ao redor enquanto eu me agachava e
olhava para as reentrâncias que estavam cobertas com poeira marrom
arenosa. Eu soprei suavemente pela superfície, então me inclinei para
trás com satisfação.
— É uma porta — Ayanna respirou.
— Você acha que...?
— Tem que ser.
Será que a Caixa de Histórias está mesmo lá embaixo? Isso estava
quase fácil demais.
Procurei uma trava que pudesse puxar para levantar o alçapão
circular, mas não havia nenhuma. Também não tínhamos nada com que
abri-la.
Ayanna se virou para mim.
— Lembra o que Brer disse? Quando o Anansesem conta uma
história...
— Ela vai ser atraída para a Caixa de Histórias.
— E vice-versa — disse Ayanna.
— Sim, eu me lembro.
— Vamos lá?
— Hum, certo. — História, história. Precisava de uma história. Eu
podia ouvir a batida rítmica fraca ao fundo. Mas que história seria
apropriada para invocar um baú do tesouro mágico?
Meus olhos percorreram a câmara, em busca de inspiração.
Finalmente eles pousaram na figura sentada no trono. Um velho, quase
maior que a vida, presidindo a sala como um rei. Ou um deus...
— Já sei — eu disse.
— Já era hora — Bebê Chiclete resmungou.
Ayanna a silenciou e fez sinal para que eu continuasse. Cacau
pulou mais perto.
Concentre-se no que você está falando...
Respirei fundo, olhei para o círculo no chão e comecei a falar
devagar, moldando a história com as mãos conforme as palavras a
formavam.
— E se eu contasse a você que histórias nem sempre existiram?
A luz da sala se apagou. As ranhuras do alçapão começaram a
brilhar, iluminando nossos rostos. A areia girou suavemente enquanto eu
falava, girando em pilares, paredes e cachoeiras, até que uma pequena
réplica da sala do trono apareceu na nossa frente.
— Antigamente, Nyame, o deus do céu, possuía todas as histórias.
Ele as mantinha em um baú magnífico, tecido de luz e sonhos. Ele as
mantinha… na sua Caixa de Histórias.
Eu girei meus dedos e uma pequena figura saiu da areia rodopiante
e tomou seu lugar no trono em miniatura. Ele apontou para o chão e a
porta circular se abriu. Um baú cintilante se ergueu no ar, girando
lentamente e se abrindo para revelar um brilho verde-esmeralda.
O mesmo brilho que veio do diário de Eddie.
— Mas Kwaku Anansi, o deus aranha, queria...
Um som de raspagem me interrompeu. A princípio pensei que Bebê
Chiclete tivesse caído, mas... não, lá estava ela, sentada no meu pé e
olhando fixamente para a areia.
O arranhão veio novamente.
Desta vez Ayanna ouviu também. Ela franziu a testa e olhou em
volta.
— O que foi...?
Um gemido encheu o corredor e todos os músculos do meu corpo
travaram.
A poeira caiu das três estátuas — o leopardo, a cobra e o deus no
trono. As pulseiras em seus pulsos e tornozelos tilintaram.
A cabeça da estátua girou em minha direção. Seus olhos se
estreitaram de raiva e uma voz estrondosa ecoou em meu crânio.
VÁ EMBORA!
EU RECUEI. A VOZ soou alta o suficiente para quebrar pedras,
mas ninguém mais parecia preocupado.
— Tudo certo? — Ayanna perguntou.
Eu abri minha boca, mas não saiu nada. Bebê Chiclete e Cacau não
prestaram atenção em mim — elas ainda estavam fascinadas com a
história da areia rodopiante. Ayanna inclinou a cabeça, mas antes que eu
pudesse tentar falar com ela novamente, a voz estrondosa ecoou.
Elas não podem ouvir. Mas você pode. Por quê? Por que você está
aqui?
Engoli em seco e me virei para a estátua no trono. Poeira e areia
escaparam dele em riachos em espiral para revelar...
— Gaaaaah — eu balbuciei.
Aquilo não era uma estátua.
Pele marrom. Cabelo grisalho e crespo. Olhos castanhos
penetrantes salpicados de ouro. Um colar de corrente com um símbolo
que eu já tinha visto. Não o símbolo de Anansi, mas outro adinkra ainda
mais familiar. Vózinha costumava tricotá-lo em suas colchas o tempo
todo.
— N-n-não — eu gaguejei. — É... você é…
Fale! Você veio para me atormentar ainda mais? Seu mestre
precisa mais da minha dor? Meu povo, meu coração, minha casa não
foram suficientes?
Lambi meus lábios. Estava dando tudo errado.
Um, Nyame não deveria estar aqui. Era apenas uma missão de
entrada e saída. Pegar a Caixa de Histórias e ir embora. Ninguém disse
nada sobre ter que convencer um deus zangado de que você não estava
aqui para destruir sua cultura.
Dois, como você se dirige ao deus do céu?
— Sua Alte...
Isso não parecia certo.
— Não estou aqui para te machucar.
MENTIRAS!
Eu cambaleei para trás com o ataque verbal. Ayanna agarrou meu
braço antes que eu pudesse cair.
— Tristan? Você está bem? Com quem você está falando?
Eu balancei minha cabeça para ela. Uma conversa de cada vez.
— Meu Senhor, nós estamos aqui… — Eu parei. O que eu poderia
dizer a ele? Estávamos aqui para roubá-lo? Isso era verdade, não importa
o quão digna nossa causa pudesse ter sido.
Nyame girou a cabeça e, desta vez, Ayanna percebeu.
— Pelas asas — ela disse em um sussurro sem fôlego. — Aquele
é...?
Pegue o que quiser, usurpador, mas sua hora chegará. Você não
pode nos manter aqui para sempre.
Eu pisquei. Quem era esse “nós” de quem ele falava? Pela primeira
vez, observei com mais atenção as duas estátuas de cada lado do trono.
O leopardo e píton realistas... Poderia ser? Eles estavam...?
Ayanna havia tropeçado para trás, segurando a cabeça com dor,
mas agora ela avançou novamente, quase desabando no meu ombro, e
apontou.
— As... pulseiras!
Segui seu dedo e minhas mãos se fecharam em punhos.
Claro.
As pulseiras e tornozeleiras de Nyame estavam totalmente visíveis
agora. Elas não eram feitas de ouro, como a maioria das belas criações
de Crescente Dourada. Elas eram feitas de ferro e conectadas a...
— Algemados — eu disse em um rosnado.
Os monstros de ferro atrás do trono estavam inanimados e
camuflados para parecerem parte das estátuas. Eles eram maiores do
que o chefão na Terra Média, mas ainda me perguntei como eles
conseguiram superar Nyame.
— Como eles podem conter o deus do céu? — Sussurrei para
Ayanna.
— Eu não sei, mas olha! A coroa! — Ela apontou para a tiara de
Nyame e, a princípio, não notei nada incomum.
— O quê?
— Apenas espere… Aí, você viu?
Eu vi.
— As jóias de borboletas. Elas estão se movendo, batendo as asas,
certo?
— Não acho que sejam borboletas.
O traço de medo em sua voz enviou um arrepio por mim.
— Ayanna...
— Essas são moscas-marca, Tristan.
— Espera, o quê?
— Elas o estão envenenando. Ele é muito poderoso para ser morto
por suas picadas, mas seu veneno o está mantendo paralisado. Ele não
podia fazer nada quando vieram e levaram seu povo. Ele só podia assistir
— Ayanna estava à beira das lágrimas e, vendo as moscas-marca
pressionando contra a testa de Nyame, pude entender o porquê.
Você consegue imaginar ser forçado a assistir enquanto as pessoas
que você amava e protegia eram caçadas e arrastadas para longe, para
nunca mais serem vistas?
Uma lágrima brotou em meus olhos também.
A raiva cresceu em meu coração.
— Não mais, elas não vão.
O ritmo dentro do corredor ficou mais alto e mais rápido. Ele inchou
em uma batida forte que enviou picadas de agulha pelos meus braços,
como se estivessem se recuperando depois de adormecerem. Minha
pequena reconstituição da história parou, a cena arenosa caindo no chão.
— Ei! — Bebê Chiclete protestou, antes de perceber que algo mais
estava acontecendo. Mas eu a ignorei.
Finalmente, algo que aprendi neste mundo viria a calhar.
Subi os três degraus até o trono. Os olhos de Nyame brilharam de
raiva e, por baixo disso, de dor.
Eu levantei meu queixo.
— Vim ajudar, Deus do Céu.
Ele fez uma careta. Você não fez o suficiente?
Ainda não, pensei. Era hora de uma história maior e mais alta.
Coloquei meu punho direito na palma da minha mão esquerda.
— E se eu dissesse a você, Nyame, que você deu suas histórias a
Kwaku Anansi depois que ele fez o impossível?
Desejei essa história para a sala do trono. Vózinha adorava conta-
lá, e foi a primeira vez que Eddie escreveu no diário. Grãos de areia
dourada e poeira saltaram no chão antes de subir e girar no ar. As
cachoeiras nas paredes pararam de fluir para as piscinas — em vez disso,
as gotas começaram a fluir para cima, cintilando como diamantes à
medida que se juntavam à história acima de nossas cabeças.
— Anansi visitou o deus do céu e pediu para comprar a sua Caixa
de Histórias, com todas as histórias lá dentro. Nyame, brincando com ele,
concordou. Mas apenas se Anansi trouxesse Leopardo, Píton e um dos
mmoatia, os espíritos da floresta.
Da areia e das gotas de água rodopiantes, uma cena apareceu.
Anansi — às vezes um homem sorridente, outras vezes uma grande
aranha — passeava por uma floresta. Ele parou na frente de uma árvore,
onde um leopardo gigante dormia nos galhos. Se curvou, o leopardo
ergueu a cabeça e saltou. Anansi apontou para uma pilha de folhas
embaixo da árvore e, quando o Leopardo rondou sobre elas, o grande
felino caiu em uma armadilha oculta.
— Anansi enganou o Leopardo e depois o trouxe até você, Deus do
Céu. Mas ele não tinha acabado.
Enquanto falava e tirava a história da areia, fiquei de olho nos
algemados gigantes. Suas correntes começaram a chacoalhar.
Anansi continuou a caminhar pela floresta, desta vez carregando
um longo cajado. Ele parou em uma pedra gigante ao lado da trilha, onde
Píton estava deitada ao sol. Anansi fez uma reverência e depois estudou
a cobra e o mastro de madeira, comparando os dois. Ele balançou a
cabeça, dizendo Certamente o cajado era mais longo? Píton sibilou,
insultada. Seu comprimento era seu orgulho, e nenhuma mera bengala
era mais impressionante do que ela! Anansi parecia inseguro, mas
pousou o cajado no chão. Píton estalou a língua, escorregou da rocha e
se esticou ao lado do mastro. Rápido como um raio, Anansi amarrou a
grande cobra ao cajado e levou-a embora.
— Anansi enganou Píton e depois a trouxe para Nyame. Mas ele
não tinha acabado.
Agora os chefões estavam claramente agitados. Suas correntes
chicotearam como cobras furiosas. As moscas-marca zumbiram de
irritação, e algumas descolaram da cabeça do deus do céu como folhas
molhadas e caíram fracamente no chão. Ayanna se lançou para frente e
as golpeou com seu bastão.
Nyame virou a cabeça. O que você está fazendo? Suas ações me
confundem, usurpador.
Eu o ignorei. Estava começando a entender.
Monstros de ferro não apenas reagem às histórias sobre eles.
Reagiam a histórias, ponto final.
Quando eu contava uma história, algo puxava as criaturas. O
conhecimento, a história, a cultura — isso as atraía como ímãs. Conte
uma história ou, se você fosse um Anansesem como eu, dê vida a uma
história na presença delas, e elas largariam o que quer que estivessem
fazendo para chegar a ela.
Agora, eu só esperava que a segunda parte da minha ideia
funcionasse.
Uma série de cliques altos ecoou pela sala do trono e eu engoli. Os
chefões soltaram Nyame e estremeceram. Quatro grandes monstros de
ferro se espalharam na nossa frente.
Não, seis. Mais dois se desligaram do Leopardo e da Píton e se
juntaram ao grupo.
Nyame desabou no trono atrás deles. Leopardo e Píton desabaram
no chão.
Ok, sim, eu realmente precisava começar a segunda parte do meu
plano.
— Tristan — disse Ayanna. — O que fazemos agora?
Ela segurou Cacau e a Bebê Chiclete se enfiou no meu moletom.
Juntos, todos nós recuamos enquanto os enormes chefões avançavam.
Eu observei a história girando no ar, senti a coceira continuar em minhas
palmas, então dei uma rápida olhada para trás.
— Bebê Chiclete, lembra da estátua que falou com você? — eu
perguntei.
Ela se contorceu no meu capuz.
— Bebê Chiclete não quer mais ouvir falar disso. Por que você
sempre vive no passado?
Eu estremeci quando dois dos algemados guincharam.
— Bem, me desculpe, mas os tempos estão difíceis. Quando eu der
o sinal, todos correm de volta e tocam a primeira estátua gigante de
bronze que verem. A grande, bem na frente.
Ayanna balançou a cabeça.
— Você quer que façamos o quê?
— Confie em mim. Apenas faça!
— Mas...
Todos os seis chefões gritaram e se lançaram para frente. Cortei
minha conexão com a história de areia acima de nossas cabeças e
empurrei todos para a entrada.
— Vão, vão!
UM BARULHO ALTO SOOU ATRÁS DE NÓS quando a areia
molhada pousou diretamente nos chefões. Eles desabaram em uma
cacofonia de metal rangendo e gritos enquanto lutavam para se libertar.
— Boa — Bebê Chiclete disse, espiando por cima do meu capuz.
— Bebê Chiclete te ensinou algumas boas estratégias.
— Tanto faz — eu disse, ofegando enquanto corríamos para a saída
da cachoeira. — Apenas se prepare.
— Prepare-se para o quê? Bebê Chiclete vai ficar bem aqui.
A fenda da cachoeira se abriu e saímos correndo para a praça. Eu
fui para o caminho na extremidade oposta. Um estrondo soou do palácio
atrás de nós, e pedra e água explodiram para fora quando a debandada
de chefões explodiu na luz do sol. Eles rapidamente chegaram até nós —
nós não íamos conseguir.
Tempos desesperados requerem medidas desesperadas.
Eu alcancei atrás de mim.
— Desculpe — eu disse antecipadamente.
— O quê? O que você está...? Ei! Solta a Bebê Chiclete! Isso não
é festa nenhuma! Ei!
Eu a agarrei do meu capuz, apontei para a mulher gigante de
bronze no pátio, em seguida, joguei a melhor espiral que já joguei na
minha vida. Tipo, cinquenta metros, fácil. Eu deveria ter jogado futebol. E
eu odeio futebol.
Bebê Chiclete voou alto, gritando insultos enquanto voava.
— Você vai se arrepender deste dia, Língua Solta! Bebê Chiclete
vai chutar sua...
Splat!
Ela pousou logo abaixo do joelho da estátua e ficou presa lá. Seus
pequenos braços e pernas se debatiam desamparadamente, mas eu não
conseguia mais olhar para ela.
— Tristan, cuidado! — Ayanna ligou.
Eu derrapei até parar quando um chefão pulou na nossa frente.
Ayanna se moveu para perto de mim. Ela segurava uma Cacau trêmula
em uma das mãos e seu cajado brilhante na outra. Monstros de ferro nos
espreitavam, quebrando seus colares e gritando.
— E agora? — Ayanna perguntou, mas eu não respondi. — Tristan
— disse ela novamente, quase implorando —, você tem um plano, certo?
— Apenas espere — eu disse.
Cacau olhou para mim e não consegui encontrar seus olhos. Se eu
estivesse errado...
Todos os seis chefões gritaram ao mesmo tempo, e um deles se
lançou para frente, alcançando minha garganta.
Um pé de bronze do tamanho de um carro compacto o despedaçou.
Cacau gritou e Ayanna brandiu seu cajado, mas eu levantei a mão.
— Espera.
— Mas...
— Olha — eu disse, apontando.
O chão tremeu quando a mulher gigante de bronze desceu do
pedestal e torceu o pé, transformando o chefão em pó. Os monstros de
ferro restantes gritaram com esse novo inimigo e passaram por nós para
atacá-la.
Bebê Chiclete montou o dedão do pé da estátua como um cavalo e
gritou de alegria.
— Pise nesses idiotas, Cobrinha! Olha, aquele ali está parecendo
sapo! Aha-ha-ha-ha, esmague aquele idiota. Siimmm. Vocês não querem
nada disso. Ah, onde você está indo?
Ela apontou para um chefão tentando se esgueirar ao redor do pé
da estátua. Parecia um rato rastejando em torno de um elefante, e sorri
quando a estátua o chutou com tanta força que voou para o céu e
desapareceu.
— Aha-ha-ha-ha! Vocês viram isso? — Bebê Chiclete deu um tapa
no joelho e deu uma gargalhada. — Cobrinha jogou aquela coisa na
bratosfera!
— Você quer dizer a estratosfera — eu disse, revirando os olhos.
— Ei, por que você sempre corrige algo? Você é o Professor Língua
Solta ou algo assim?
Ayanna manteve um olhar firme nos chefões restantes.
— Vocês dois podem adiar a briga até depois que estejamos
seguros?
A estátua saltou alto no ar, tão alto que o sol a enquadrou e deu a
ela asas de anjo brilhantes.
CRACK!
Quando abri os olhos, quatro algemados enormes se contorciam
sob os calcanhares dela, como baratas sendo esmagadas no chão da
cozinha. Ela torceu os calcanhares novamente e deu dois passos
tremendo para trás.
Eu olhei em volta. Esse foi o último deles.
— Bem... acho que estamos bem agora.
Bebê Chiclete espiou por cima do dedão do pé e chupou os dentes
ao ver os monstros de ferro derrotados.
— Vocês deveriam ter sido criados melhores — disse ela aos restos
mortais. — Não tiveram nenhum treinamento em casa.
— Kumi! — A voz de Nyame retumbou para fora do palácio, e todos
nós estremecemos. Sua voz não estava mais apenas na minha cabeça.
— Traga os usurpadores para mim.
A gigante de bronze estendeu a mão por trás dela, puxou uma lança
gigante com uma lâmina de folhas largas do tamanho de um para-brisa e
apontou para nós.
Ayanna olhou para mim e eu limpei minha garganta. Eu pensei que
estávamos seguros.
Bebê Chiclete cruzou as pernas e balançou a cabeça.
— Vocês estão com problemas agora.

— Vocês vieram atrás da Caixa de Histórias.


Não foi uma pergunta. Nós quatro ficamos em frente ao trono, onde
Nyame se curvou para o lado. Parecia que o efeito do veneno das moscas
da marca ainda permanecia no sistema do deus do céu. No entanto, seus
olhos estavam alertas. Ele reuniu todos nós em seu olhar, as manchas
douradas em seus olhos brilhando ao sol poente. Leopardo e Píton
estavam enrolados em cada lado dele, olhando para nós com
desconfiança.
— Sim — eu disse.
— Com a esperança de que Anansi o ajude.
Eu concordei.
— E você acha que eu deveria te ajudar... por quê? Por seus
esforços agora há pouco? Você tem meu agradecimento, mas meu
apoio? — Ele balançou sua cabeça.
— A Terra Média está morrendo, Lorde Nyame — disse Ayanna.
Ela ainda segurava Cacau com os dois braços. — Os monstros de ferro
estão separando nossas famílias.
— Os monstros destruíram meu país! — Nyame acusou.
— Sim, mas...
— Eles atacaram meu povo. Os monstros os perseguiram e os
capturaram e os tiraram de suas casas, vidas e famílias!
— Sr. Nyame… — Cacau guinchou, mas as palavras do deus do
céu rolaram sobre ela.
— Os monstros os levaram para morrer!
Seus olhos brilharam quando ele agarrou os braços de seu trono,
nos desafiando a falar. Ayanna mordeu o lábio. Cacau enterrou a cabeça
na curva do cotovelo de Ayanna. Bebê Chiclete jogou pequenas bolas de
seiva na cauda do Leopardo enquanto ele balançava em agitação.
Isso não estava nos levando a lugar nenhum.
Cerrei meus dentes, ignorando o aviso de vózinha de que eu iria
desgastá-los até a gengiva, eventualmente.
Eu sabia o que precisava ser feito. Não queria fazer isso — de jeito
nenhum — mas não tinha mais razão para guardar meu segredo. Quando
o revelei, cada palavra parecia um gancho de ferro quente sendo
arrancado da minha carne.
— Eles não estão mortos.
A cauda do leopardo ficou imóvel. Uma bola de seiva caiu bem na
ponta. (“Acertei!”) Ayanna se virou e olhou para mim, e eu fiz o meu
melhor para não encontrar seus olhos. Eles fizeram um buraco na lateral
do meu rosto, e eu não queria lidar com esse problema ainda.
— Não estão mortos? — Ela sibilou.
— Não estão mortos? — Cacau perguntou, suas orelhas sacudindo
de esperança.
— Não estão mortos? — Nyame sussurrou.
Suspirei. Desembuche tudo isso, Tristan.
— Eu os vi. Antes de deixarmos a Terra Média, eu os vi, em um
sonho ou uma visão. Eles estavam vivos dentro de... alguma coisa. —
Agora eu olhei para Ayanna e estremeci com a raiva e a traição em seus
olhos.
Suas narinas dilataram e ela balançou a cabeça.
— Você sabia? Todo esse tempo, você sabia?
Eu estremeci.
— Me desculpe, eu...
— Não! Você deveria ter me contado. Você deveria ter nos contado.
— Eu não tinha certeza se era real e não queria que você criasse
esperanças e...
Eu parei, porque nenhuma desculpa iria adiantar. Eu não tinha o
direito de decidir com o que eles eram ou não capazes de lidar. Os adultos
sempre faziam isso comigo e eu odiava.
— Sinto muito. Você está certa, eu deveria ter contado a você,
deveria ter contado tudo a vocês.
Ayanna balançou a cabeça e desviou o olhar quando eu notifiquei
o deus do céu sobre as visões que eu estava tendo, o cabelo com as
flores brancas, os alceanos e povos médios capturados nas paredes.
Nyame tamborilou com os dedos no braço da cadeira.
— Você os viu em um sonho? E eu devo acreditar nisso?
Comecei a protestar, mas parei, surpreso, quando Ayanna falou
antes de mim.
— Eu acredito nele, Lorde Nyame. Ele não mentiria, não sobre isso.
— Ela olhou para mim. — Se ele diz que viu, então é verdade. Você tem
minha palavra como piloto.
— Hmph. A palavra de uma piloto.
Seus dedos bateram em um ritmo mais rápido e um pouco da areia
começou a quicar no chão.
— E a minha Caixa de Histórias vai te ajudar na luta contra esse
fantasma e o Maafa? Isso vai libertar meu povo?
— Sim… Pelo menos, achamos que sim — respondeu ela. — Se a
tivermos, Anansi pode sair do esconderijo e aceitar como pagamento, já
que, você sabe...
— Ele queria muito antes — eu terminei.
— Como na sua história, Anansesem — Nyame me observou com
atenção. — Mas o que você quer dizer com "pagamento"? Pagamento de
quê?
Eu me endireitei.
— Precisamos do Tecelão para fechar o rasgo no céu. Se ele fizer
isso, cortará o poder dos monstros de ferro. Então podemos ter uma
chance de derrotar o Maafa de uma vez por todas.
Minhas palavras saíram da minha boca em um ritmo sem fôlego, e
todos nós cerramos os punhos e esperamos pelo veredicto do deus do
céu.
Nyame olhou para Leopardo, depois para Píton, antes de esfregar
a testa onde as moscas-marca haviam sido presas.
A mão de Nyame parou e ele acenou em direção ao círculo no chão.
— O Tecelão ainda está em Alke. Isso eu posso garantir a você.
Onde ele está, não sei, e se ele aceitará seu suborno é outra questão.
Mas vá em frente, Anansesem… Cumpra sua missão.
Eu fiquei boquiaberto de surpresa.
— Sério?
Nyame ergueu uma sobrancelha e eu caminhei em direção ao
alçapão. Eu esperava mais resistência dele. Quer dizer, a princípio
tínhamos a intenção de roubar a Caixa de Histórias, e agora Nyame ia
dar pra gente.
Quais eram as chances?
O ritmo de fundo da história ainda pulsava na sala do trono como
uma pulsação. Mais uma vez, desejei que a areia ganhasse vida acima
da porta circular e mal tive que puxar a figura de Anansi para a existência
antes que as ranhuras no chão ganhassem vida. O som de pedra
esmagando pedra ecoou pelo espaço, e o painel se abriu. Minhas amigas
e eu ofegamos simultaneamente.
Um pedestal polido feito de madeira com ponta de ouro ergueu-se
sob o chão. Esculturas detalhadas decoravam cada centímetro. Mais
adinkra — alguns eu reconheci, mas muitos não. O painel fechou-se sob
ele e o pedestal acomodou-se suavemente no topo.
Nossos suspiros se transformaram em gemidos.
Nyame acenou com as mãos e um sorriso amargo cruzou seu rosto.
— Diga-me, nenhum de vocês achou seu plano muito óbvio?
Eu apertei minhas mãos em punhos tão fortes que posso ter tirado
sangue.
Ayanna mordeu o lábio novamente.
Cacau enterrou a cabeça nas patas e estremeceu, e o queixo de
Bebê Chiclete caiu.
— Vocês não são os primeiros usurpadores, nem os segundos.
Sinto muito, pequeninos, mas vocês vão precisar de um novo plano.
O pedestal estava vazio.
A Caixa de Histórias havia sumido.
— VOCÊ SABIA DE NÓS — eu disse. — Você sabia, quando
chegamos, quais eram os nossos planos.
— Sim — disse o deus do céu.
Um sussurro de vento passou pelo jardim da cobertura do palácio.
Nyame ficou na minha frente, as mãos cruzadas atrás das costas,
enquanto olhava para o sol se pondo sobre a cidade. Lamentei que meus
amigos estivessem perdendo a vista, mas o deus do céu havia pedido
uma consulta particular comigo.
Nyame tinha mudado para um tamanho normal agora — um pouco
mais baixo que o vovô — e ele usava uma túnica listrada de creme e
marrom escuro e calças largas cor creme. Se eu não soubesse melhor —
se os olhos salpicados de ouro não transbordassem com muitos milênios
de conhecimento — eu juraria que ele era apenas um dos velhos
jogadores de xadrez no meu complexo de apartamentos em Chicago.
— Você usou as estátuas — eu disse. — Você olhou através dos
olhos delas.
Ele assentiu.
— Sim. Foi assim que testemunhei o que aconteceu ao meu povo.
Se eu tivesse previsto o que estava por vir, poderia ter sido capaz de
evitá-lo. Para salvar pelo menos alguns deles...
— Alguns escaparam — eu disse. — Eles fugiram para a Terra
Média. Mas agora eles e os Povos Médios enfrentam o mesmo problema
lá.
Nyame olhou para mim e engoli em seco com a intensidade de seu
olhar. Era como ser mantido no lugar por um imã enorme.
— Os monstros ainda estão à espreita aqui, também — ele disse.
— Eu esperava que o apetite deles estivesse saciado agora, que meu
povo pudesse voltar...
— Mas você não pode ajudá-los? Você é o deus do céu todo-
poderoso. Você não pode derrotar o Maa… er, você-sabe-quem? Você
não pode consertar o rasgo?
Nyame afundou em um banco de pedra e colocou a cabeça entre
as mãos.
— Eu gostaria de poder. Eu não tenho força. Meus poderes foram
exauridos.
— Então, todos nós devemos apenas sofrer? Não há nada que você
possa fazer?
Ele balançou sua cabeça.
— E aquelas estátuas? As sentinelas? Poderíamos levar alguns
para ajudar na luta.
— Apenas Kumi poderia enfrentar essa ameaça, e sua força está
ligada à minha. O resto... mal são o suficiente para proteger a Crescente
Dourada — Nyame disse tristemente. — Mesmo se fossem mais fortes,
não posso poupá-los agora, não quando estou tão fraco.
Eu afundei ao lado dele no banco.
— Então, estamos condenados?
O deus do céu voltou a olhar para a vista. O sol piscava atrás de
um banco de nuvens baixas, tornando sua parte inferior de um cor de
rosa.
Ele suspirou.
— Ainda não. Posso não ser capaz de lhe dar a ajuda que você
procura, Anansesem. Levará algum tempo até que eu seja eu mesmo,
mas posso lhe dar outra coisa. Isso pode aumentar a chance de que meu
povo acabe sendo restaurado em suas casas... em suas vidas, em sua
felicidade.
Eu assisti, confuso, enquanto Nyame se levantava e arrancava uma
nuvem rosada do céu.
Sim, está certo.
Ele arrancou... uma nuvem... do céu. Como se fosse uma flor de
uma das árvores do jardim. Ele rolou o fio entre as palmas das mãos.
Então ele apertou as duas mãos e sussurrou algo entre elas.
Ele estendeu a mão.
— Sua pulseira, por favor.
Eu agarrei a borla do diário de Eddie, não querendo me separar
dele.
Nyame sorriu, e desta vez esse alcançou seus olhos.
— Nenhum dano será feito. Posso estar sofrendo do veneno da
mosca-marca, mas ainda posso imbuir um ou dois feitiços.
Eu desamarrei e passei. Nyame pegou a borla e amarrou um
pequeno amuleto nela. Quando ele o devolveu, fiquei boquiaberto com o
adinkra rosa-dourado descansando ao lado do símbolo de Anansi.
Combinava com o que foi pintado nos iates do porto, na frente do palácio
e nos braços das estátuas.
— Gye Nyame — eu sussurrei, e o deus do céu acenou com a
cabeça.
— Você já tem a adinkra de Anansi, que traz força para suas
histórias. Isso é importante, Alke é tecido com histórias, e os fios existem
ao nosso redor. Você pode ouvi-los às vezes. Música. Cantando. Ritmo.
Eu inalei.
— Eu pensei que estava ouvindo coisas.
— Você estava. A pulsação deste mundo. Se você se concentrar, o
som pode se tornar tão vívido que você quase pode vê-lo. — Nyame
suspirou melancolicamente antes de apontar para o adinkra que ele
acabara de me conceder. — Não posso te dar uma de minhas sentinelas,
Anansesem. Mas eu posso te dar este amuleto. Isso trará o foco ao seu
redor e o ajudará a ganhar clareza. Você achará os mistérios de Alke um
pouco... mais fáceis de se resolver.
Enrolei a pulseira em volta do meu pulso e estudei os amuletos de
prata e ouro. Eles ficavam bem juntos. Mas como eles nos ajudariam a
consertar o buraco?
— Você está se perguntando o que adianta um pouco de amuleto
— Nyame cruzou as mãos atrás das costas e inclinou a cabeça para que
eu me juntasse a ele. — Venha, caminhe comigo.
Caminhamos pelo jardim. No lado oposto do telhado, voltado para
o sudeste, Nyame parou e olhou para as montanhas escuras e denteadas
que circundavam a Crescente Dourada.
— Alke é uma terra dividida — disse Nyame após um momento. —
As grandes cidades não compartilham como antes. Os monstros de ferro
apenas empurraram uma cunha em uma paisagem fragmentada que já
existia. Costumávamos nos encontrar a cada temporada, para trocar
ideias, músicas e histórias. Para trocar cultura. Nossos filhos dançaram
com suas filhas e seus filhos dançaram com os nossos. Nossas mães
ensinaram seus filhos e suas mães ensinaram os nossos.
— E com o rasgo e os monstros de ferro — eu terminei —, você
não pode melhorar as coisas. Terra Média e o resto dos alkeanos sempre
estarão divididos, mesmo se nos amontoarmos, nos escondendo da
mesma ameaça — Eu balancei minha cabeça. — Realmente precisa ser
consertado agora.
— Sim. E concordo com seu objetivo, se não com seu plano.
Anansi, se ele puder ser encontrado e subornado, pode tecer o buraco
fechado e diminuir muito o poder dos monstros de ferro. Mas depois
disso, eles ainda precisariam ser derrotados de uma vez por todas. Eles
— ele acrescentou severamente — e este haint que está te
atormentando.
Com isso, o rosto de Nyame se contorceu de raiva por um breve
momento.
Então ele exalou e apontou para um palácio com sete torres, isolado
no sopé da alta cordilheira.
— Esse é o palácio de Anansi. Se você quiser uma pista sobre o
paradeiro da Caixa de Histórias, eu começaria por aí. Não me entenda
mal, Anansesem, essa não será uma missão fácil. Se você continuar,
estará arriscando sua vida e a vida de seus amigos. Mas você deve
tentar, então eu lhe dou estes conselhos.
Eu me endireitei, pronto para receber algumas palavras profundas
de sabedoria.
— Aqueles que o ajudam podem não estar do seu lado, e aqueles
que se opõem a você podem ser seus maiores aliados.
Esperei por mais, mas Nyame apenas juntou as mãos novamente
e olhou para fora, sábio e onisciente, como se tivesse acabado de deixar
cair algumas barras de freestyle malucas e a multidão enlouquecer.
Não.
Eu limpei minha garganta.
— Hum... é isso?
Ele se virou surpreso.
— Sim. Você precisa que eu repita?
— Não, mas, tipo... você pode explicar?
— Não entendo.
— Quero dizer, por que tudo tem que ser tão misterioso? Não posso
ter uma instrução clara ou algo assim? Um manual? Um guia passo a
passo para ser um herói?
— Mas... não é assim que funciona. — O deus do céu parecia
confuso.
— Mas você é um deus, certo? Você não pode simplesmente falar
um ‘’abracadabra’’ e fazer um tradutor de missões para que eu possa ter
certeza de que estou fazendo a coisa certa?
— Não! Heróis não...
— Eu não sou um herói. Sou um menino com uma equipe saída de
um livro de contos de fadas empoeirado, e todos esperam que eu enfrente
feras e monstros e voe em uma jangada. Eu nem gosto de voar. Tenho
medo de altura. Pronto, eu disse.
— Mas — Nyame parecia preocupado agora.
— E eu nem mesmo consigo uma espada ou uma lança ou um
estilingue mágico?
— Você tem o adinkra dos deuses! O que mais...?
— Cara, você me deu um pingente da loja de departamentos. Meu
pai dá isso para minha mãe quando se esquece do aniversário dela, e
você espera que isso me torne um vidente contra o mal. Ok. — Eu
balancei minha cabeça. A confusão nos olhos dourados de Nyame
enquanto ele me observava ir embora quase me fez rir.
Teria sido engraçado se minha vida não estivesse em jogo.
MESMO DO ALTO E à distância, o palácio de Anansi atraía seus
olhos. Parcialmente oculto em um vale nos arredores da Crescente
Dourada, perto dos intimidantes penhascos da montanha que Cacau
chamava de Isihlangu. Era cercado por sete torres em espiral feitas de
marfim e ouro. Ayanna teve que circular algumas vezes para encontrar
um lugar para pousar a jangada entre os pilares. Se a magnífica casa de
Nyame exibia a riqueza e o poder do deus do céu, Anansi enfatizou sua
inteligência.
— Como entramos? — Ayanna perguntou quando estávamos no
chão. Ela sussurrou uma frase suave e musical e a jangada encolheu a
um tamanho que ela pudesse carregar nas costas.
Cacau espalhou alguns papéis que trouxe do Labirinto para
estudar, enquanto Bebê Chiclete cochilava debaixo de um cobertor na
grama próxima.
O adinkra de Anansi estava na frente e no centro de cada torre,
pintado em um ouro brilhante que chamou sua atenção. Mas a
característica mais surpreendente era a seda trançada que ligava cada
torre em uma teia cintilante. Se você olhasse para eles de um ângulo, os
fios eram invisíveis. Vire um pouco a cabeça e, de repente, eles — e
protuberâncias difusas e brancas espalhadas ao longo deles —
apareciam.
E, no centro da teia bem acima de nós, no meio de todas as sete
torres, ficava o palácio.
Quer dizer, Chicago tinha alguns arranha-céus impressionantes,
mas isso era incrível.
— Como vamos chegar lá? — perguntei à Cacau.
A coelhinha continuou a vasculhar suas anotações, mas continuou
balançando a cabeça.
— Eu não sei. A única coisa que vejo ser mencionada é que
ninguém nunca entrou. Nunca. — Ela olhou para cima e esfregou os
bigodes em frustração. — O Labirinto classifica este lugar como uma
dificuldade cinco em cinco patas.
Eu olhei para Ayanna.
— Podemos simplesmente voar até lá em sua jangada?
— Eu não sei. — Ela mordeu o lábio. — Algo sobre isso me
incomoda.
Estudei o pátio, com suas lajes de mármore, várias das quais
estavam quebradas. Cicatrizes gigantes cortaram um ponto, como se
uma garra enorme tivesse rasgado a terra. Mais daqueles caroços
estranhos estavam espalhados aqui e ali.
O tesouro óbvio estava fora de alcance. Uma pessoa desesperada
— digamos, alguém tentando fazer com que o deus-aranha conserte um
erro que despertou monstros — ora, essa pessoa pode tentar qualquer
coisa para chegar até Anansi no palácio acima. Se alguém tentasse um
pouco mais forte, talvez tentasse escalar as torres ou usar uma jangada
mágica...
— É uma armadilha — eu disse lentamente. — Esse palácio é uma
isca. Aposto que... aposto que se olhássemos com cuidado,
encontraríamos mais desses fios por toda a clareira. E isso significa que
aqueles caroços…
Os olhos de Ayanna se arregalaram, então ela franziu o nariz.
— Ah, credo. Aquilo são…?
Eu concordei.
— Pessoas que tentaram encontrar Anansi, se envolveram na teia
e...
— Pessoas... ou monstros de ferro.
— Esses também.
Como se fosse uma deixa, um dos caroços no chão se contorceu,
me assustando para caramba. Eu devo ter gritado. Mas era apenas Bebê
Chiclete se livrando do cobertor. Ela se sentou e jogou uma bola de seiva
na minha cabeça.
— ATAQUE DE SEIVA! Quem precisa ser ferido? Quem está
morto? O que aconteceu?
Esfreguei o ponto pegajoso e dolorido perto da minha orelha.
— Ninguém. Volta a dormir.
— Pô, você não precisa dizer duas vezes à Bebê Chiclete. De
qualquer forma, vocês são chatos. — De fato, três segundos depois, a
pequena falastrona voltou a roncar.
Ayanna deu uma risadinha e então suspirou.
— Ok, e agora? Não vejo como entraremos.
— Sim, eu não… — Parei e olhei para ela, então levantei meu pulso.
O adinkra de Nyame balançou na minha pulseira e as palavras do
deus do céu ecoaram em meus ouvidos.
Ele trará o foco para o seu entorno.
— Acho que tenho uma ideia. — Respirei fundo e fechei os olhos.
O palácio de Anansi tinha centenas de histórias sussurrando ao seu
redor. Eu podia ouvi-las, senti-las e, mais importante, quando agarrei o
Gye Nyame adinkra com força e abri os olhos, pude vê-los.
— Santo pêssego — eu sussurrei.
Os fios de Anansi cruzavam o vale e estavam ancorados em todos
os lugares. Quer dizer, em todos os mínimos lugares. Pedregulhos,
arbustos — alguns fios menores até grudaram em nossas roupas. Eles
tremeluziram e ondularam, e quando olhei mais de perto, percebi que os
fios eram fragmentos de histórias — versos reais de contos de que me
lembrava vagamente — transformados em seda dourada.
— Tristan! — Os olhos de Ayanna se arregalaram quando me virei
para ela, e Cacau guinchou de surpresa.
— O quê?
— Seus olhos... Eles estão brilhando!
Comecei a balbuciar em protesto, mas algo brilhante chamou minha
atenção. Atrás deles, uma pedra cilíndrica gigante brilhava tão
intensamente quanto as torres do vale. Até parece…
— Isso não é pedra — eu disse, a realização me acertando no rosto.
— Sobre o que você está tagarelando, Língua Solta?
Ah, não, isso não foi realização. Era a Bebê Chiclete me batendo
na cabeça enquanto subia no meu ombro com um bocejo.
Eu revirei meus olhos.
— Eu disse, isso não é pedra. É outro edifício. — Corri até a
estrutura semienterrada e, após uma busca rápida, encontrei uma porta
escondida pela qual tínhamos passado, só que agora brilhava como o sol
na água. — Sigam-me — disse, e entrei na casa de Anansi.
A descida para o covil subterrâneo demorou mais do que eu
pensava, em parte porque a escada curva estava coberta por armadilhas
invisíveis. Se não fosse pelo presente de Nyame, que me permitiu vê-los,
teríamos sido espatifados nas paredes de pedra várias vezes.
Além disso, a cada dez segundos mais ou menos, Cacau queria
que eu parasse para que ela pudesse tomar notas.
— Eles com certeza me deixarão entrar na Sociedade do Labirinto
depois disso — disse quando perguntei o que ela estava fazendo. Mesmo
que eu estivesse impaciente para descobrir se Anansi estava se
escondendo lá embaixo, mordi minha língua e a deixei fazer suas coisas.
Realmente não havia nenhuma razão para Cacau ser excluída do
exército de espiões coelhinhos de Brer, pelo que eu vi, ela era mais do
que capaz. Ele estava apenas sendo irritante como sempre.
Chegamos ao fim da escada como um trem lento de cautela.
Agarrei o Gye Nyame adinkra, Ayanna agarrou meu braço, Bebê Chiclete
andava no meu moletom e Cacau fazia a retaguarda. Uma grossa porta
de madeira nos esperava, coberta de teias de aranha e polvilhada com
saudações alkeanas douradas, e eu a abri, estremecendo quando algo
fez cócegas em minha cabeça. Eu espiei para dentro, gritei e rapidamente
fechei novamente.
— O quê? O que é? O que você viu, Tristan? — Ayanna sussurrou.
— Um monstro de ferro!
— O quê?
Eu me escondi atrás da porta, meu coração batendo forte no peito,
enquanto Ayanna e Cacau se aninhavam ao meu lado. A Bebê Chiclete
rastejou cuidadosamente para fora do meu capuz e encostou o ouvido na
porta.
— Por que não está tentando atacar? — Ela perguntou.
Olhei por cima do ombro para Ayanna. Essa era uma boa pergunta.
Não havia nada além de silêncio dentro. Eu abri a porta e espiei
novamente.
O adinkra de Nyame me deu o dom da visão, mas emoldurou tudo
com palavras douradas que contavam histórias alkeanas. A mesa de
Anansi foi delineada por um fragmento de uma fábula. A cama estava
coberta com uma colcha feita de canções de ninar. As panelas e a
chaleira estavam cheias de orações iniciais.
Mas o objeto que me matou de susto, parado bem no meio da sala,
era a silhueta dourada de um grilhão, pronto para atacar, com lendas
envolvendo seu corpo acorrentado.
Entramos na ponta dos pés e encontrei uma tocha caída no chão.
Ayanna o acendeu e a luz tremeluziu na torre abandonada.
— Santo pêssego — eu respirei.
Ayanna franziu os lábios e não falou.
Cacau começou a rabiscar furiosamente.
Bebê Chiclete saltou e bateu os pés no chão.
— Isso é o que Bebê Chiclete pensa que é?
Eu deixei de lado a adinkra de Nyame — o esforço de ver tantos
detalhes estava me dando dor de cabeça. Minha visão lentamente voltou
ao normal.
— Se você está me perguntando se isso é um algemado amarrado
em seda de aranha, então sim. Se você está perguntando se esses
algemados estão amarrados ao lado da mesa, com o que parecem ser
anotações, também sim.
Ayanna se moveu mais para dentro da sala, com cuidado.
— Anansi estava estudando os monstros de ferro? Por quê?
A coleira no centro da sala parecia pertencer a um museu. A seda
do Tecelã segurava o monstro com força, suas mãos algemadas no meio
do ataque, sua coleira no meio do estalo. Vários outros estavam em
vários estágios de desmontagem no canto, e pedaços de corrente
estavam espalhados pela mesa.
— Eu não sei — lati. — Mas ele não está aqui. O que significa que
estamos de mãos atadas. Novamente. — Uma onda de raiva ferveu em
meu estômago, e bati o punho na mesa, espalhando papéis e correntes
no chão.
Cacau começou a mexer nas anotações de Anansi enquanto
Ayanna suspirava.
— O que fazemos agora?
Eu levantei minhas mãos.
— Eu não sei! Toda essa viagem foi um fracasso após o outro.
Aquele haint idiota prendeu meu amigo em uma prisão fantasma e nunca
vou recuperá-lo. E também nunca vou voltar para casa neste ritmo!
— Ei… — Cacau começou, mas Ayanna a interrompeu.
— Não é tudo sobre você, garoto voador! Estamos perdendo nossa
casa neste momento!
— Eu sei que...
— Bem, então pense nos outros antes de começar a reclamar.
Cacau pulou mais perto, segurando alguns papéis.
— Hm...
Eu cerrei meus dentes e olhei para Ayanna.
— Que tal você sair do meu pé?
Suas mãos foram para seu cajado e eu agarrei as luvas em meu
bolso, no momento em que duas grandes bolas de seiva nos atingiram
entre os olhos.
— Vocês estão sendo grossos! — Bebê Chiclete apontou outra bola
para nós. — Bebê Chiclete sempre tem que ser a madura. Cacau está
tentando educar seus traseiros ignorantes. Agora parem de lutar e peçam
desculpas.
Ayanna e eu nos olhamos. A Bebê Chiclete ergueu suas bolas de
seiva mais alto e eu suspirei.
— Desculpe. Você está certa, eu não sou o único que perdeu algo.
Ayanna grunhiu.
— Sim. Eu também sinto muito.
Bebê Chiclete baixou os braços.
— Boa. Agora sentem-se no chão, cruzem as pernas.
Eu fiz uma careta.
— O quê?
— Você ouviu Bebê Chiclete!
Ayanna balançou a cabeça.
— Eu não vou sentar nesta...
— Bebê Chiclete DISSE SE SENTE DE PERNAS CRUZADAS,
ENTÃO VOCÊ FAZ, OU BEBÊ CHICLETE VAI VIRAR ESTA VIAGEM
DE PONTA CABEÇA! AGORA SENTEM-SE!
De alguma forma, Ayanna e eu estávamos sentados, com as mãos
no colo, e Bebê Chiclete fungou.
— Boa. Cacau?
Cacau parecia envergonhada, mas se ergueu nas patas traseiras e
ergueu um bilhete.
— Eu… acho que sei onde está a Caixa de Histórias.
Eu fiquei boquiaberto e Ayanna engasgou com o ar.
— Onde?
— Parece que Anansi estava estudando como e por que os
monstros de ferro são atraídos por histórias, e ele até conseguiu capturar
alguns, mas... acho que algo deu errado. Mais deles vieram e o atacaram.
Um arrepio percorreu minha espinha e examinei a sala enquanto
Cacau continuava. Parecia que uma reunião havia ocorrido lá. Vários
pratos e xícaras foram derrubados. O que quer que tenha acontecido,
Anansi e seu convidado foram interrompidos e, a julgar pela bagunça,
uma grande luta havia ocorrido. Mas quem...?
A resposta me atingiu como um raio.
— Brer Coelho — eu sussurrei.
— O quê? — Ayanna olhou em volta. — Onde?
— Não. Ele disse que ele e Anansi estavam trabalhando em um
projeto para a Caixa de Histórias, e então monstros de ferro atacaram.
— De acordo com esta anotação aqui — disse Cacau —, algo mais
forte do que algema… aquelas coisas ali apareceu e Anansi fugiu. Acho
que Brer Coelho também. Mas antes disso, parece que Anansi enviou a
Caixa de Histórias para algum lugar impenetrável. Onde ninguém poderia
pegá-la até que ele estivesse pronto para recuperá-la.
— Ok — eu disse, impaciente. — Então onde está?
Cacau engoliu em seco e, em vez de responder, virou o bilhete.
Todo mundo engasgou.
O esquema de uma montanha escura e agourenta estava rabiscado
no papel, mostrando túneis, pontos de acesso e saídas.
A mesma cordilheira erguendo-se ao longe além da Crescente
Dourada.
— Acho que ele a escondeu na Crista.
BEBÊ CHICLETE SUBIU ATÉ seu poleiro favorito em meu capuz
e apoiou os cotovelos em meus ombros quando saímos da casa de
Anansi.
— A Crista, hein? Bebê Chiclete ouviu algumas coisas malucas
sobre aquele lugar.
Nos braços de Ayanna, Cacau assentiu.
— Sim, sim. Uma fortaleza na montanha. Nada entra ou sai sem
passar por doze níveis de inspeção. Eles são muito territoriais.
— Sim — Ayanna concordou. — Terra Média e a Crista nunca se
deram bem. Algo a ver com as histórias de Alke, e o que pertencia a
quem. — Ela puxou a jangada de cima dos ombros, colocou-a no chão,
sussurrou algo e a jangada voltou ao tamanho normal. Ela pisou, colocou
Cacau no meio e ergueu uma sobrancelha. — Bem, você vem? — Ela
perguntou. — Temos lasers de rocha flutuantes para passar
despercebidos.
— Espera, espera. Repete isso para mim? — eu disse.
— Você me ouviu — disse Ayanna enquanto fazia suas checagens.
— Não, acho que não, porque parecia que você acabou de dizer
que teremos que desviar dos lasers de pedra.
— Eu disse.
— Aaaaaaa e foi aí que você me perdeu.
A Bebê Chiclete desceu pelas minhas costas e contornou a jangada
com passos minúsculos, resmungando para si mesma. Cacau começou
a desenhar algo no chão da jangada.
— Lasers de rocha não deveriam existir — eu disse. — Por que eles
existem?
Ayanna abriu a boca, fechou-a e falou rapidamente.
— Lembra da Kumi? A estátua de sentinela do palácio de Nyame?
É assim. A primeira linha de defesa.
— Isso deveria me fazer sentir melhor?
Ela ergueu os braços.
— O que você quer que eu diga? O povo da Crista não gosta de
visitantes. E se eles sentirem por um segundo que suas casas estão sob
ataque, vão enviar todos os guerreiros que têm. — Em uma fúria
repentina, ela apunhalou o ar com um dedo como se quisesse me prender
na jangada. — Então é melhor você ter certeza absoluta sobre isso.
Porque é... — Um pouco do calor desapareceu de seus olhos quando ela
se virou para prender seu cajado na parte de trás da jangada. — Isso vai
ser difícil.
Cacau pulou e acariciou a perna de Ayanna, e a piloto se abaixou,
pegou-a e enterrou o rosto no pelo do coelho. Então ela colocou Cacau
no chão, pigarreou e acenou com a cabeça.
— Vamos repassar o plano. Talvez algo dê certo pela primeira vez.
Cacau sentou-se nas patas traseiras e apontou para o mapa que
havia desenhado no chão da jangada.
— Este é o nosso alvo. A Crista. Uma cidade fortemente defendida,
ferozmente guardada e fortificada no alto de Isihlangu.
— Isihlangu? — eu repeti com uma carranca. — Esse nome
significa alguma coisa?
— Significa escudo.
Um arrepio percorreu minha espinha. Eu apertei os olhos para a
seção preta grossa que Cacau havia desenhado enquanto ela
continuava.
— Mas Isihlangu não é qualquer montanha. É uma parede de rocha
tão íngreme e alta que seus picos estão escondidos nas nuvens. As
pessoas costumavam descer e fazer comércio, pelo menos é o que os
registros no palácio de Anansi diziam, mas desde que os monstros de
ferro começaram a borbulhar para fora do Mar Flamejante, eles ficaram
atrás de seus portões.
Cacau parou e eu olhei para Ayanna.
— Tendo dúvidas? — Ela me perguntou. — Espere, fica melhor.
Eu a ignorei e me virei propositalmente para Cacau.
— Ok, é uma noz difícil de quebrar. Mas pode ser quebrada, certo?
Podemos entrar lá de alguma forma.
Cacau pigarreou.
— Sim, sim. Bem, mais ou menos. Pode ser.
— Pode ser?
— Quer dizer, acho que vai funcionar. Com sorte.
— Com sorte? — Minha voz começou a se elevar e Cacau se
apressou em continuar.
— Veja, olhe para estes. — Ela bateu a pata em uma seção do
desenho onde parecia que uma série de trilhas subia a montanha. — Eles
precisam de alguma forma de levar alimentos das fazendas na base da
montanha para a cidade no topo. Então, eles construíram esses bondes.
Eles até carregam passageiros.
— Como trens — eu disse. — Então, vamos viajar com os outros
passageiros?
— Ah, não. Eles veriam que somos estranhos. Vamos nos esconder
atrás, com o lixo.
Eu a encarei.
— Com o lixo?
— Sim, sim! Só por um momento, e então, antes de sermos
descobertos, vamos escorregar para um túnel de ventilação. Com sorte.
— Presumindo que funcione — disse Ayanna —, o que faremos
quando chegarmos ao topo?
A coelha respirou fundo antes de dizer:
— De acordo com minha prima Lily, que ouviu isso de sua irmã
Maçãzinha, cujo primo de segundo grau da mãe da melhor amiga, Tulipa,
viajou para lá com um grupo de comércio uma vez, o povo da Crista tem
um cofre onde guardam seus itens mais valiosos. Eles o chamam de
Átrio. Anansi circulou neste diagrama. — Ela puxou uma página que havia
tirado da sala de trabalho do Tecelão.
Eu apertei os olhos para ele.
— O Átrio, hein?
— Tem que ser lá que fica a Caixa de Histórias. Sim, sim — disse
Cacau, pulando de excitação.
— Tudo bem. — Eu olhei para o meu time. — Então pegamos o
bonde, vamos até esse Átrio, pegamos a Caixa de Histórias e saímos de
lá. Parece fácil.
Ayanna não parecia convencida.
— Mas primeiro, temos que evitar aqueles lasers de rocha flutuante.
Todo mundo, segurem firme, eu preciso ter certeza de que vocês não
estão rolando, vomitando em cima de tudo.
Meu estômago embrulhou com o pensamento.
— E, Bebê Chiclete? — Ayanna disse. — Prepare-se para algumas
medidas de pré-caixão.
— AAAAAHHHHH!
Eu mencionei que não amo alturas? Se não fosse pelo fato de que
a ilha da Terra Média, centenas de povos médios e o espírito do meu
melhor amigo morto dependiam de mim, eu teria encerrado a noite.
— AAAAAHHHHH!
Relâmpagos prateados e pretos estavam sendo arremessados
contra nós por torres gigantes de pedra negra com joias no topo, mas isso
não era motivo para pânico, era?
— AAAAAHHHHH!
Deitei de costas na jangada, esparramado de modo que parecia um
X marrom, minhas mãos e pés presos em montes de seiva. Por quê?
Bem, as jangadas não vêm com cintos de segurança, e os lasers de rocha
estavam todos exaltados.
— Quer parar de gritar! — Ayanna gritou comigo.
Ela ficou agachada, ambas as mãos em seu cajado enquanto o
vento chicoteava suas tranças atrás dela. Ela se encolheu para a direita
e, de repente, a jangada inclinou-se bruscamente e, infelizmente, fui
incapaz de seguir suas instruções.
Uma explosão de trovão escuro como a noite (Trovanoite? Será que
acabei de inventar uma palavra? É MARCA REGISTRADA, IDIOTA, TIRE
AS MÃOS!) Passou zunindo e queimou a terra abaixo. Eu podia sentir o
cheiro de grama queimada e sujeira.
— Faça-os parar de atirar em nós! — Eu gritei.
Cacau se encolheu em um canto, as alças da minha mochila — que
Ayanna tinha prendido à jangada — cruzaram seu corpinho como um
arreio. Ela fechou os olhos com força e as orelhas encostaram na cabeça.
Ayanna cerrou os dentes.
— Ah, me desculpe. Permita-me fazer esse pedido.
Outra explosão quase não acertou nossas cabeças. Abri a boca
para gritar, mas a voz de Bebê Chiclete me cortou.
— Estamos quase livres, Ayanna! Apenas mais um! Pronta?
Eu olhei para cima, pressionando meu queixo no meu peito para me
concentrar na boneca na frente da jangada. Ela ficou com as pernas bem
abertas, as mãos nos quadris e as tranças em miniatura puxadas para
trás em um rabo de cavalo.
— Pronta para quê? — eu olhei de volta para Ayanna. — Pronta
para quê?
Ela fez uma careta.
— Algo que eu esperava que não precisássemos fazer, mas se não
desligarmos esses lasers, os reforços estarão sobre nós.
— Um...
— BC! — ela gritou, falando bem por cima de mim. — Aqui vamos
nós!
Bebê Chiclete acenou com a cabeça. Ayanna apertou ainda mais o
cajado e olhou para mim.
— Segure firme.
Tentei esticar o pescoço o máximo que pude.
— Mas eu já estou segu-OOOOOHHHHH!
A jangada deu um solavanco para a direita no momento em que
uma torre de pedra polida do tamanho de um arranha-céu apareceu em
nosso caminho.
Perfeitamente lisa, como um cilindro de vidro preto, estendia-se
muito acima de nós. À medida que circulávamos, subindo em espiral, a
altura total da coisa explodiu minha mente. Safiras azuis recortadas e
ametistas roxas flutuaram em um espaço cortado no topo e brilharam em
advertência, como um farol. Os pelos dos meus braços se arrepiaram e
então, com uma explosão crepitante, outro trovanoite disparou das
pedras preciosas. A jangada balançou de lado para evitá-lo e Ayanna
gritou.
— Agora, Bebê Chiclete!
Mas nosso pequeno soldado atirador destemido — soldada
atiradora (soldada-atiradora-boneca-bebê?) — já estava mirando e
gritando a plenos pulmões.
— Ataque de seiva! Ataque de seiva, seiva, seiva! Ataque de super
seiva!
Globo após globo pegajoso de seiva pousou bem no centro das
joias que piscavam, apagando os feixes de luz, e a Bebê Chiclete acenou
com as mãos com urgência.
— Vai! Vai! Vai!
Ayanna puxou o leme para trás e a jangada se afastou,
mergulhando em direção à encosta rochosa lá embaixo. A torre brilhante
passou zunindo quando caímos, e então um estrondo soou bem acima
de nós. A seiva deve ter obstruído o mecanismo, porque um estalo
ensurdecedor ecoou pela encosta da montanha.
Cacau gritou de medo e eu apertei todos os músculos quando a
torre começou a se inclinar para o lado. Seu topo havia sumido — uma
cratera fumegante era tudo o que restava. A estrutura continuou a tombar
até atingir a encosta da montanha com um estrondo estrondoso e rolou
pelo declive em pedaços.
— Tanto esforço pela discrição — eu murmurei. — Alguém pode
tirar a goma de mim agora?
Ayanna me ignorou, concentrando-se em manter a jangada baixa
no chão. Bebê Chiclete pulou em meu peito. Ela se agachou e me deu
um tapinha no queixo.
— Bebê Chiclete ajudaria, mas ela não tira goma dos outros. Então
fique quieto, garotão. Aproveite o resto do voo. — Ela se sentou no meu
peito e se recostou, girando a cabecinha como se estivesse esticando o
pescoço, e suspirou. — Isso é legal. Devíamos fazer isso com mais
frequência.
Eu rosnei.
— Eu vou...
— Estou vendo o bonde! — Ayanna chamou.
Uma longa trincheira escura cortava a encosta íngreme de
Isihlangu, estendendo-se até as nuvens, onde desapareceu. No final,
havia um trem prateado reluzente, sua fila de vagões quase vertical
enquanto esperava para subir a montanha.
Um apito agudo soou e o rosto de Ayanna ficou preocupado.
— Eles estão prestes a sair. Segurem-se!
Ela apontou a jangada direto para baixo e nós caímos como uma
âncora. O vento puxou o grito da minha boca e meus lábios se agitaram
como se eu estivesse soprando uma framboesa de trinta segundos. O
trem foi ficando cada vez maior, e Bebê Chiclete ria cada vez mais alto à
medida que nos aproximávamos cada vez mais.
— Ayanna — tentei dizer calmamente enquanto voávamos a toda
velocidade em direção à parte traseira do trem. A borda do desfiladeiro
passou rapidamente como um borrão.
— Ayanna?
O último vagão do trem tinha uma porta aberta, larga o suficiente
para jogar lixo para dentro e para fora, eu imaginei. É para lá que a
jangada estava indo. Essa entrada pequenininha.
— Ayanna!
Eu olhei para trás e meu coração deu um pulo. Ela tinha uma
expressão severa e determinada e eu engoli, então fechei os olhos com
força. A última coisa que ouvi foi o grito de Bebê Chiclete no meu ouvido.
— Aha-ha-ha-ha, vocês não estão prontos para isso! Time da
Seivaaaaaa!
Whump!
ESTAVA ESCURO E ALGO apertava contra o meu braço.
— Eu...quero ir para casa.
Minhas mãos ainda estavam coladas, ou gomadas, na jangada, que
havia atracado. Alguma outra coisa — pegajosa e fria — tocou meu rosto,
logo acima da boca, e não consegui soltar meus braços para limpá-la.
Mantive meus lábios bem fechados enquanto falei:
— Eu realmente… realmente… quero ir para casa.
O piso do bonde vibrou, e parecia que estávamos apontados
diretamente para o céu.
Algo farfalhou ao meu lado e então a escuridão desapareceu, pois
o que estava em cima de mim foi arrancado. Ayanna levantou um poste
de metal que ia do chão ao teto, um olhar exasperado em seu rosto.
— Isso… — disse ela, balançando os braços na frente do bonde.
— Isso tudo foi ideia sua. Não pode reclamar, menino voador.
Ela encostou seu cajado na jangada e a madeira esquentou sob
meus pulsos e tornozelos. As restrições pegajosas se afrouxaram e eu
caí, batendo na parede do fundo.
— Ai!
Ayanna bufou.
— Quando tiver terminado de ser um bobão, devia dar uma olhada
nisso.
Enquanto a observava usar alguns apoios de mãos para subir até
o topo — ou na frente — do bonde, fiz uma careta para suas costas.
Quando me sentei, meu rosto congelou.
Eu estava sentado na versão do metrô de Alke. O trem L de Chicago
não era nada comparado a isso.
Quer dizer, a metade traseira do vagão estava uma zona, mas a
culpa era toda nossa. Afinal, era o vagão do lixo. Quando pousamos,
derrubamos recipientes finos de papel cheios de lixo. Roupas velhas
foram espalhadas pelo chão e sacos de comida estragada espalharam-
se pelas paredes. Eu estremeci. Era como se estivéssemos andando na
caçamba de um caminhão de lixo. Já sentiu o cheiro nojento do líquido
de lixo que fica pingando delas? É, eu precisava de um banho. Dois
banhos. Com chuveiro. Uma super sessão de limpeza.
Eu gemi enquanto me endireitava. Fechei a porta pela qual
entramos para que o lixo não caísse e nos denunciasse. Então me
esforcei para me juntar às outras.
Uma cortina de luz cintilante separava a metade traseira do vagão
da frente. Quando passei pela divisória, senti uma sensação de
formigamento da cabeça aos pés, e os aromas de limão, gengibre e ar
fresco tomaram conta de mim. Eu fechei meus olhos. Quando os abri,
todos os vestígios de nossa aterrissagem desagradável sumiram.
— Cara. — eu arfei. — Preciso de cortinas dessas para meu quarto.
Esta parte do bonde tinha um brilho prateado suave. Ayanna e
Cacau sentavam-se em assentos ligeiramente inclinados que eram
decorados com belos padrões. Bebê Chiclete estava nas costas da
cadeira de Cacau. Olhavam para a paisagem pelas janelas do chão ao
teto.
Quando me aproximei de Ayanna — muito lenta e cuidadosamente
— ela acenou com a cabeça em direção ao lado de fora.
— Veja.
Desabei em um assento ao lado dela, sussurrando uma oração de
agradecimento pelo cinto que coloquei, em seguida, olhei para fora da
janela...
...e engasguei.
Eu tinha visto a posição vertical do trem do ar, mas era ainda mais
intensa quando você estava dentro dele. Estávamos subindo reto ao lado
de Isihlangu. As paredes da trincheira pela qual estávamos passando
haviam caído e a vista além se estendeu por uma eternidade. O vale das
sentinelas de lasers de pedra ficava bem abaixo. A encosta da montanha
estava listrada com linhas pretas e azuis cintilantes, como as veias de
algum gigante que nós, pequenos insetos, seguíamos lentamente.
Quando pressionei meu rosto contra a janela, pude ver os picos das
montanhas desaparecendo nas nuvens.
— Olhem. — Cacau apontou para pequenas rochas semelhantes a
torres com as mesmas jóias girando nelas. O bonde passou por uma série
delas e, de repente, pegar uma carona em um trem de lixo não parecia
tão ruim.
Entre os lasers de pedra, a face da montanha íngreme e sua cidade
completamente obscurecida no topo, o povo da Crista realmente parecia
desencorajar os visitantes.
Eba.
Ayanna me cutucou.
— Essa é a nossa parada.
Bebê Chiclete subiu atrás da minha cabeça e se enfiou no capuz, e
Ayanna pegou Cacau. Eu fiz uma careta.
— Mas ainda está em movimento.
— E não queremos estar a bordo quando pararem — disse Ayanna.
— A menos que você queira se apresentar a um grupo de guardas
furiosos.
— Ah. Não. Não, não quero.
Ayanna expandiu a jangada, todos nós subimos a bordo e flutuamos
através da cortina de limpeza e voltamos ao compartimento de lixo. Os
pedaços de nojeira giravam ao redor quando eu abri a porta e me encolhi
quando algo molhado espirrou contra meu bíceps.
Cacau enfiou a cabeça para fora da curva do braço de Ayanna.
— Esperem. Uma entrada de serviço deve chegar em três… dois…
um. Agora.
A jangada disparou para fora do bonde, através de uma pequena
nuvem que parecia fria em minha pele, e entrou em um buraco aberto no
exterior liso de Isihlangu. Ayanna nos colocou no chão logo após a
entrada e mais veias de prata azul iluminaram a passagem além.
Cacau pulou para baixo e suas orelhas se moveram para frente.
Depois de um segundo, ela se virou.
— Não estou ouvindo nada.
— Finalmente algo deu certo. — Ayanna murmurou baixinho. — Os
guardas devem ter se distraído com a explosão da torre de laser. Bem,
não vamos perder a oportunidade. Eles sabem que tem algo errado.
Precisamos entrar, pegar a Caixa de Histórias e sair.
Bebê Chiclete acenou com a cabeça e se inclinou para frente perto
do meu ouvido.
— Não toque em nenhuma estátua estranha desta vez, Língua
Solta — ela sussurrou.
— Eu? Foi você que...
Ayanna sibilou e olhou para nós.
— Silêncio!
— Mas...
— Quieto! Vamos acabar sendo pegos por sua causa.
Balancei minha cabeça enquanto Bebê Chiclete gargalhava
suavemente em meu capuz e segui as outras nas profundezas da
montanha.
O túnel voltou e virou por várias centenas de metros. À medida que
avançávamos para dentro, a vibração que senti antes ficava mais forte.
— Que barulho é esse? — eu sussurrei.
Ayanna encolheu os ombros. Bebê Chiclete me ignorou e
cantarolou algumas notas da música que ela estava inventando. Ela a
chamava de "A Balada da Chicletinha”. Era cativante.
Cacau olhou para trás.
— O Labirinto não sabe sobre isso. É um dos poucos lugares em
que não pudemos entrar. O primo do melhor amigo da minha tia disse
que pegaram todos os kits enviados para cá.
Meus olhos se arregalaram.
— Está falando de coelhos bebês? O que aconteceu com eles? Eles
não...
Cacau balançou a cabeça.
— Não, não, nada assim. Apenas os mandam para casa com um
insulto. Boa sorte da próxima vez, esse tipo de coisa, só que mais rude.
— Ah.
— É por isso que isso é tão incrível. Se eu puder levar informações
novas para a Sociedade do Labirinto, terão que me deixar entrar.
Simplesmente terão.
Eu ouvi o mesmo desejo em sua voz que Bebê Chiclete tinha
quando ela sonhava em se tornar piloto. Ayanna e eu trocamos olhares.
Todos nós tínhamos algo a provar a alguém, mesmo que fosse apenas
para nós mesmos.
O túnel se alargou e clareou e a saída apareceu em uma curva.
Cacau e Ayanna deram uma olhada primeiro. Elas engasgaram.
— O quê? O que é? — eu sussurrei.
Ayanna murmurou algo que soou suspeitosamente como uma
oração, então fez um gesto para que eu e Bebê Chiclete avançássemos.
— Vamos, estamos perdendo tempo.
Eu a encarei enquanto saía do túnel. Ela era tão confusa…
Meu estômago embrulhou e revirou quando vi que eu estava em
uma borda muito estreita com uma queda acentuada.
— Eu odeio alturas.
Bebê Chiclete se inclinou sobre meu ombro e assobiou.
— Rapaz, você está em apuros. Conte para a Bebê Chiclete se
estiver com medo. Se você está com medo, diga que está com medo.
Não precisa ter vergonha. Deixa com a Bebê Chiclete.
Engoli seco e dei mais alguns passos.
Isihlangu estava quase completamente vazia. Não sei o que
esperava, mas realmente havia uma cidade dentro de uma montanha.
Torres e pináculos de obsidiana se erguiam das paredes angularmente.
Milhares de casas foram construídas na pedra, e cada uma tinha uma
única grande pedra preciosa embutida acima de sua entrada, como uma
luz de diamante na varanda. Trilhas cintilantes de ametistas preto-
azuladas cruzavam o vasto espaço aberto, conectando um lado da cidade
subterrânea com o outro.
Eu agarrei meu peito.
— Eles... eles atravessam de skate?
Um trio de povo da crista — não dava para saber a idade deles dali
— deslizava através do abismo em uma velocidade vertiginosa alguns
níveis abaixo. Eles estavam em placas largas e retangulares de obsidiana
que pairavam sobre os trilhos de ametista. Meus olhos se arregalaram
para os cajados assustadores semelhantes a claves amarrados em suas
costas. Eu podia ouvi-los rindo daqui. Crianças? Desapareceram sob a
borda em que nos escondemos e Ayanna sibilou para mim.
— Apresse-se, garoto voador, a menos que você queira ser pego!
Depois de mais um olhar de apertar o estômago sobre a borda,
segui Ayanna e Cacau pelo caminho sinuoso.
“A balada da chicletinha, balada da chicletinha.
Mais forte e mais feroz e seu nariz nunca fica vermelhinho.
Ataque de seiva, dê um passo para trás, o herói da horinha.
Montada em seu corcel desajeitado que precisa tomar um
banhinho.”
Revirei os olhos enquanto Bebê Chiclete cantarolava o resto da
música baixinho. Corcel desajeitado. A audácia!
— Lá está! — Cacau sussurrou. Ela apontou para perto do teto. —
Deve ser aquilo.
O que eu pensei era que o teto era, na verdade, a parte inferior de
uma sala gigante esculpida no pico da montanha. O parapeito em que
estávamos se curva várias vezes antes de desaparecer por dentro.
Um som estrondoso sacudiu a montanha, jogando-me de barriga
para baixo.
— O que é que foi isso? — Ayanna perguntou. Sua voz tremeu um
pouco, não a culpo. A minha saiu em um guincho agudo enquanto eu
espiava pela borda.
— Não sei. — Eu limpei minha garganta. — Espere. Tem algo
acontecendo lá.
As grandes portas principais estavam se abrindo. Um grupo do povo
da crista flutuava em pranchas de obsidiana. Eles diminuíram a
velocidade até parar por apenas um segundo antes de se espalharem e
decolarem em direções diferentes.
Eu olhei para cima.
— Eles estão procurando algo.
Ayanna encontrou meus olhos e assentiu.
— Nós. Aquele boom deve ter sido um sinal de alarme. Precisamos
nos apressar.
Corremos pelo parapeito, tentando nos manter abaixados, e, depois
de vários minutos estressantes, alcançamos a curva final. O Átrio. Duas
portas gigantescas estavam entreabertas e eu dei um suspiro de alívio.
Estava destrancado. Ayanna olhou para mim e eu engoli em seco e fui
para a frente. Bebê Chiclete saltou para cima e para baixo no meu capuz.
— Hora do jogo, garotão.
— É, é. — Manusei o adinkra em minha pulseira. O símbolo Anansi
de Eddie era frio ao toque, assim como o de Nyame. Não há monstros de
ferro ou armadilhas aqui.
Só uma montanha cheia de povo da crista furiosos.
— Strongs continuam socando — eu murmurei. Então respirei
fundo e corri para dentro, pronto com meu saco vazio para um pegar-e-
agarrar, um comer-e-fugir (não exatamente igual, mas você entendeu o
conceito). A única coisa que faltava era uma trilha sonora incrível para
esse roubo épico que estávamos prestes a realizar.
Ayanna veio atrás de mim e me cutucou nas costelas.
— Por que você está cantarolando? Quer que nos encontrem?
Idiota.
Meu rosto corou quando entramos na sala.
— Não me cutuque! E não seremos pegos. Eu… — nós dois
congelamos quando as pontas perversamente afiadas de três lanças
foram apontadas em nossos rostos — prometo.
AS LANÇAS NÃO VACILARAM.
Engoli seco e olhei além delas para as pessoas — guardas, acho
— segurando-as. Usavam mantos longos que pareciam cobertores com
costuras hipnotizantes e padrões com miçangas. O material parecia
absorver luz, e se eu olhasse para as miçangas por muito tempo, elas
começavam a brilhar e queimar meus olhos, como se eu estivesse
olhando para o sol. Seus rostos estavam envoltos em um pano para que
apenas seus olhos pudessem ser vistos — olhos brilhantes e cintilantes
que observavam cada movimento meu. Dois deles usavam lenços com
miçangas na cabeça e o terceiro tinha pulseiras e tornozeleiras de
miçangas. Quando me encolhi com o brilho de uma pulseira, o guarda na
frente olhou para mim ainda mais rigidamente.
No geral, todos eram lindos e eu poderia ficar ali por horas olhando
boquiaberto, mas precisava fazer algo.
Limpei minha garganta e dei um passo à frente com minhas mãos
para cima.
— Meu nome é...
Todos os três mantos foram jogados de lado enquanto os guardas
assumiam posições de combate. Cacau guinchou em alarme.
— Tristan — sussurrou Ayanna.
Eu engoli e recuei.
As lanças eram quase tão compridas quanto o cajado de Ayanna e
tinham largas lâminas em forma de folha do tamanho de bolas de futebol.
E agora, além delas, cada guarda tinha um daqueles porretes polidos que
os patrulheiros carregavam.
Ok. É.
— Vocês virão conosco. Falarão perante o conselho. — A guarda
na frente falou através de seu rosto coberto com uma voz suave, mas
clara. — Ou falarão com minha kierie. — Ela girou seu porrete na mão
esquerda, e meus olhos seguiram a ponta perversa da arma.
Eu engoli em seco.
— Sim. Sim. Sim, vamos, vamos fazer isso. Certo, pessoal?
— Sim!
— Sim, sim!
— Bebê Chiclete não vai para lugar… uuurgghh
Ayanna agarrou Bebê Chiclete e cobriu sua boca. Os olhos da
guarda líder se estreitaram, mas ela acenou com a cabeça para seus
camaradas.
— Levem-nos.
Um guarda pegou Bebê Chiclete e Cacau pelo pescoço. O outro
guarda amarrou os meus pulsos e os de Ayanna na nossa frente com
tiras de pano. Nos conduziram para fora do Átrio e para o caos. A guarda
mais próxima de mim tirou a coberta de seu rosto — era uma garota
apenas alguns anos mais velha do que eu —, me agarrou pelo colarinho
e sibilou, o que achei que fosse um aviso.
Do lado de fora, toda a powulação da Crista parecia se alinhar na
passarela que descia em espiral pelo interior da montanha.
Aparentemente, todos em Isihlangu tinham vindo testemunhar a comoção
e todos estavam armados. Homens, mulheres e crianças seguravam
porretes e faziam cara feia quando passávamos. Ninguém falou.
Bem, ninguém da Crista.
— Tire suas mãos da Bebê Chiclete! Esse não é um festival de
abraço. Está carrancudo por quê? Olhe assim para outro lugar. Não para
a Bebê Chiclete.
Eu cerrei meus dentes.
— Bebê Chiclete — murmurei. — Será que você pode, sei lá, não
insultar nossos captores?
— Bebê Chiclete não foi capturada — disse ela, fungando com
desprezo. — Ela está acompanhando vocês para sua própria proteção.
Comecei a dizer outra coisa, mas calei a boca quando minha guarda
acenou para que eu me calasse. O outro guarda balançava Bebê Chiclete
e Cacau.
— E quanto a elas, Thandiwe?
Minha guarda, Thandiwe, franziu os lábios e encolheu os ombros.
— Coloque-as num saco. — Foi tudo o que ela disse.
Cacau choramingou enquanto ela e a Bebê Chiclete, agora
amordaçadas, eram enfiadas em um saco. Fiz uma careta — presumindo
que todos nós sobrevivêssemos, eu nunca pararia de ouvir sobre isso.
Thandiwe me empurrou para a borda e eu resisti.
— Não, espere...
— Fique quieto e mova-se — ela retrucou. — Desça agora.
Eu lancei um olhar nervoso para trás, então avancei um pouco para
olhar além da borda. Uma das pranchas flutuantes de obsidiana
esperava, balançando para cima e para baixo acima de um corrimão. De
perto, pude ver que era maior do que eu imaginava. Tinha a forma de um
trapézio largo e havia duas reentrâncias no meio. Mais duas pranchas
flutuantes esperavam de cada lado e percebi que os guardas devem ter
subido os trilhos até aqui — foi assim que chegaram tão rápido.
Cara, aquela prancha era muito grande. Grande o suficiente para
duas pessoas ficarem de pé.
Ai, droga.
— Não — eu balancei minha cabeça. — Eu vou descer a pé.
— Qual é o problema, ladrão? Está com medo? — A garota colocou
seu kierie em um coldre atrás das costas, para que pudesse ficar junto à
sua lança, e cruzou os braços sob o manto. — Está pensando duas
vezes?
Eu murmurei algo.
— O quê?
— Tenho medo de altura — murmurei. Ayanna estremeceu.
— Fale alto, garoto.
— EU TENHO MEDO DE ALTURA!
O grito ecoou por toda a montanha. Um segundo se passou, e então
todo o povo da Crista caiu na gargalhada. E digo literalmente todos. Até
mesmo um bebê, enrolado nas costas de sua mãe, deu um sorriso
pegajoso e babou para mim.
Que audácia.
Thandiwe enxugou uma lágrima de seu olho e respirou fundo.
— Suba no antepassado antes que passe mais vergonha. — Abri
minha boca para protestar e seu sorriso desapareceu. — Agora.
Fechei minha boca, respirei fundo e pisei na borda do skate de vidro
— o antepassado. Afundou um pouco como um barco na água e eu
estendi as duas mãos para me equilibrar e fechei os olhos.
— Vá para o meio, perto da traseira.
Fiz o que me foi dito, e ela sorriu e segurou duas presilhas de metal
amarradas ao cinto.
— Segure firme ou você pode cair. Seria uma pena.
Eu segurei, apertei em meus punhos e esperei pelo sinal dela de
que íamos decolar. É por isso que, quando de repente saltamos para a
frente na grade de metal preto e voamos em direção ao chão quilômetros
abaixo, eu gritei a plenos pulmões.
Tudo era um borrão. Os aros de metal perfuravam minhas palmas
enquanto eu os agarrava com mais força cada vez que desviávamos,
mergulhamos ou descíamos. Juro que pegamos o caminho mais
assustador. O antepassado balançou para cima e para baixo, para a
esquerda e para a direita, pulando de um trilho para outro com o menor
movimento dos pés da garota. As crianças que patinavam no corrimão do
parque em Chicago teriam ficado impressionadas. Eu também, se não
tivesse que fechar os olhos a cada poucos segundos.
— Está com tanto medo assim, ladrão?
A voz de Thandiwe me atingiu. Cerrei os dentes e não respondi.
— Você enfrenta a ira de Isihlangu por invadir, mas o ventinho
batendo em seu rosto o apavora? Você é o mais patético dos ladrões.
Espero que o conselho o mande para as minas pelo resto de sua vida
miserável, assim que responder por seus outros crimes.
Abri meus olhos novamente e foquei no envoltório decorado em sua
cabeça.
— Que outros crimes?
— Não me trate como se eu fosse estúpida — disse Thandiwe
rispidamente. — Estávamos procurando você e as outras. Você falará
muito em breve. Isihlangu está com raiva. Você enfrentará o conselho
agora.
Ela inclinou o antepassado para frente e nós descemos um pouco
mais, e quaisquer protestos que eu iria fazer morreram na minha
garganta. Eu não gritei de novo, no entanto. Não ia dar a ela essa
satisfação. Mas, à medida que o chão se aproximava e nós reduzíamos
a velocidade, as perguntas saltavam na minha cabeça.
Que outros crimes?
Como uma montanha pode ficar com raiva?
Que conselho?
O antepassado parou em uma plataforma elevada bem no meio do
solo da montanha. Ótimo, outro palco. O povo da Crista saiu de suas
casas esculpidas na montanha para se reunirem. Subiram em seus
próprios antepassados ou dobraram ou triplicaram no de outra pessoa.
Ayanna chegou com sua guarda, uma mulher de meia-idade, e o terceiro
guarda largou Cacau e Bebê Chiclete perto de nós. No processo, a
mordaça de Bebê Chiclete escorregou, o que me deixou muito triste.
— Bebê Chiclete não vai deixar barato — Ela me prometeu e eu a
silenciei.
A multidão que nos rodeava encheu a caverna e mais pessoas
flutuavam nos trilhos acima de nossas cabeças. Gotas de suor se
acumularam na minha testa.
— Isso não é um interrogatório — sussurrei para Ayanna. — É um
julgamento.
Sons embaralhados vieram atrás de nós. Uma mulher idosa, com
dreadlocks grisalhos saindo de um lenço amarelo brilhante e vestindo
uma manta cravejada de ouro sobre os ombros, pisou descalça no palco
de pedra.
Um silêncio caiu sobre a multidão.
Eu engoli em seco.
— Acho que ela é nossa promotora.
Um golpe forte nas costas cortou meus comentários. Thandiwe
olhou para mim e pegou sua kierie novamente.
— Você vai mostrar respeito à profeta, ladrão.
Profeta?
Mantive minha boca fechada e me virei.
— Se isso é um julgamento — sussurrou Ayanna —, cadê o juiz e
o júri?
A velha ergueu os braços e então, com uma voz que me
surpreendeu com sua força e volume profundos, gritou para o topo da
montanha.
— Ancestrais! Emprestem a seus filhos sua orientação e sabedoria.
Nós precisamos! Por favor, desçam de seus tronos nas alturas!
Ayanna e eu trocamos olhares confusos. Mas antes que eu pudesse
dizer qualquer coisa, um milhão de feixes de luz da espessura de um lápis
irradiaram das pedras preciosas acima de cada casa. Brilhavam com
mais intensidade do que qualquer sol e uma chama gigante explodiu
silenciosamente logo acima do palco.
Estremeci e, com os olhos fechados, senti Ayanna fazer o mesmo.
Quando os abri novamente, um grupo de homens e mulheres
estava sentado em banquinhos em uma das extremidades do palco de
pedra. Eu olhei em volta, confuso sobre de onde eles tinham vindo.
Minhas mãos ainda estavam amarradas, mas consegui estender
um dedo para tocar o amuleto adinkra de Nyame no meu pulso oposto.
Ao fazer isso, examinei mais de perto os recém-chegados.
Segurei um suspiro. Eu conseguia ver através deles.
— São espíritos — murmurei e meus joelhos ficaram moles. — Os
ancestrais.
O ancestral na frente era um homem mais velho e magro, com uma
manta pesadamente frisado sobre um ombro, cabelo curto e
encaracolado e uma expressão severa. A maneira como ele se sentou
com uma perna cruzada sobre a outra me lembrou do vovô. Isso não me
tranquilizou.
Ele acenou com a cabeça para a multidão e fez uma reverência à
profeta, que retribuiu com uma ainda mais profunda.
Finalmente, ele olhou para mim e minha equipe e seus olhos se
estreitaram.
— E finalmente… você está aqui. Devo confessar que estou
profundamente desapontado. Você pegou muito, garoto. Essa é a última
vez que você e os outros roubarão um pedaço de nossa cultura. Não
mais! Faremos de você um exemplo.
Eu balancei minha cabeça.
— Senhor, nós não...
— Você não vai mentir na minha cara! — Ele apontou um dedo
fantasmagórico para nós. — Vocês foram pegos em nossa armadilha, tão
claro como o dia. Sabíamos que o trapaceiro enviaria alguém, mas
crianças? Ele está realmente desesperado.
Bebê Chiclete mostrou a ponta da língua para soltar um pfft de
desdém.
— Este é o pior roubo do qual Bebê Chiclete já fez parte.
— De quantos roubos você já participou? — murmurei pelo canto
da boca.
Ela contou com seus minúsculos dedos.
— Dois.
— Sem contar o roubo do diário de Eddie?
— Oh. Hum, um. Este.
Eu bufei, então congelei. O diário de Eddie. Uma ideia fez cócegas
no fundo do meu cérebro. Talvez… só talvez. Se eu...
O espírito idoso se inclinou para frente e os outros ao redor dele
flutuaram mais perto em seus banquinhos, até que um semicírculo de
ancestrais nos cercou.
— O que é isso? Conspirando? Nenhum plano vai salvar você e seu
bando de destruidores de cultura!
Lambi meus lábios. Isso não parecia bom. Mas eu não poderia
parecer um perdedor. De alguma forma, eles pensaram que fazíamos
parte de algum grande grupo de ladrões, mas éramos inocentes. Pelo
menos até aquele momento. Mas quem tentaria invadir uma montanha
fortificada, a menos que estivesse desesperado, como nós?
— Sem palavras! — O espírito bateu em seu banquinho cerimonial
com a palma da mão e balançou a cabeça. — Você não tem defesa.
Primeiro você pega nosso povo, então nosso...
Minha cabeça se ergueu.
Ayanna disse:
— O quê?
— Espere — interrompi. Thandiwe se mexeu atrás de mim, mas eu
a ignorei e dei um passo à frente. — O que você quer dizer com pegar
seu povo? Levaram pessoas também?
Os olhos do ancião se estreitaram.
— Não banque o tolo, garoto. Isso não é um jogo. Esta é a vida, a
história e o futuro do meu povo! Acha que pode entrar de fininho nessa
montanha e escapar com a herança de nossos filhos? Com seus pais,
irmãos e irmãs? — Ele bateu no banco novamente e, quando apontou
para nós, seu dedo tremia. — Você vai nos contar por que os levou e
onde estão. De um jeito… — ele olhou para Thandiwe, que deu um passo
à frente com a lança e o kierie em ambas as mãos — ou de outro.
Cacau enterrou a cabeça nos pés de Ayanna e até Bebê Chiclete
agarrou minha perna com força. Não podia decepcioná-las. Eu havia
levado-as até aqui — era minha responsabilidade tirá-las.
— Tudo bem — eu disse.
Hora do show.
Dei um passo à frente novamente — parando somente quando a
ponta de uma lança tocou suavemente meu pescoço.
Talvez não seja hora desse tipo de show, então.
— Movimente-se bem devagar, ladrão. — Thandiwe cuspiu suas
palavras como veneno.
Ok, câmera lenta.
Eu levantei meus braços muito deliberadamente, mantendo minhas
mãos amarradas estendidas, e rezei para que — pela primeira vez — eu
soubesse o que estava fazendo.
— E se eu dissesse que sei quem levou seu povo? Também
levaram amigos nossos e estão nos caçando agora mesmo.
O ancestral mais velho estreitou os olhos.
— Você…
— E se eu contasse… — falei, atropelando suas palavras e os
suspiros da audiência. — E se eu contasse que as outras terras de Alke
estão sob a mesma ameaça? Isso porque ninguém fala um com o outro
e… — apontei ao redor da sala, ignorando a lança em minha garganta —
porque todos vocês fecharam suas fronteiras e se recusaram a sair.
Vocês, Nyame e todos os outros, falharam em proteger tudo que amam.
— Tenha cuidado, garoto — sibilou Thandiwe. — Tenha muito
cuidado.
Sem pressão, então.
Eu sorri e, mantendo meus braços levantados, mexi meu pulso
esquerdo. O amuleto adinkra Anansi brilhou na luz, e um murmúrio varreu
a multidão em torno do palco.
— Deixe-me contar uma história.
— UMA HISTÓRIA? — THANDIWE OLHOU PARA mim, incrédula.
Ela se voltou para os ancestrais. — Honrados, deixe-me levar esse...
esse farsante, esse príncipe dos ladrões, para as minas, onde suas
palavras serão as únicas que ele ouvirá em muito tempo.
Príncipe dos ladrões? Isso até que é legal.
As minas, nem tanto.
Os ancestrais mais velhos flutuaram em silêncio. Finalmente, o líder
coçou o queixo — então espíritos sentem coceira? — e gesticulou para a
profeta parada por perto.
— O que você diz, minha Amagqirha?
A velha não ergueu os olhos. Ela meio que fez essa coisa de falar
e cantar ao mesmo tempo. Se você já ouviu um pastor ficar animado no
meio de um sermão, sabe exatamente do que estou falando. A voz dela
soou clara e alta, me surpreendendo — mas até aí, vózinha podia parecer
pequena e fraca também, até que decidir te contar sobre você mesmo.
Mas esta mulher, esta Amagqirha, nunca parava de se mexer em seu
próprio ritmo.
— Esse tem a bênção dos deuses e o espírito do imbongi, Ancião
Fezile — disse ela. — Consigo sentir isso. Se ele fala, Isihlangu deve
ouvir.
Murmúrios atravessaram a multidão de curiosos enquanto a
Amagqirha erguia a cabeça e olhava direto para mim. Olhos tão negros
quanto a obsidiana pendurada acima de nossas cabeças me prenderam
onde eu estava.
— Fale, imbongi. Fale.
Sua voz entrou na minha cabeça enquanto ela lentamente circulava
os ancestrais fantasmagóricos, cantarolando e sacudindo suas
miçangas. Cada passo levantava uma pequena nuvem de poeira que
brilhava de cor prateada acima do palco. As sombras se moveram com
sua batida.
E então… então eu senti.
A história que eu precisava contar — ela estava cantarolando. Meus
dedos começaram a se contorcer e meu pé começou a balançar.
Os ancestrais se aproximaram um do outro e conversaram antes de
tomar alguma decisão.
O chefe Ancião Fezile olhou para mim.
— Prossiga. — Foi tudo o que ele disse.
— Posso…? — Eu perguntei, segurando meus pulsos amarrados.
— Não consigo contar a história sem elas. Prometo que não vou
machucar ninguém.
O chefe deu um breve aceno de cabeça e, com um golpe da lança,
Thandiwe cortou minhas amarras.
Eu não consegui evitar — sorri enquanto me virava para a multidão.
Ayanna deu uma olhada no meu rosto e gemeu.
— Não exagere — ela sussurrou.
— Não, exagere bastante, Língua Solta — disse Bebê Chiclete. —
Bebê Chiclete vai ficar sentada aqui assistindo, mas você vá em frente e
exagere bastante.
O conselho delas desapareceu à medida que o ritmo da história
crescia em meus ouvidos. O que é uma música se não uma história
contada em ritmo? Esperei até que a Amagqirha fizesse um círculo
completo em torno dos ancestrais reunidos. Quando tive certeza do ritmo,
entrei.
Ela cantarolava e eu pisoteava. Ela estremecia e eu batia palmas.
Um zumbido familiar cresceu nas pontas dos meus dedos, o sinal
de que uma história precisava ser contada. Respirei fundo e me
concentrei, tentando me certificar de que entendi direito. Quando não
aguentei mais, estendi a mão e peguei um pouco da poeira que a
Amagqirha havia levantado e algumas das sombras que se estendiam
pelo palco. Eu as puxei em meus punhos e as segurei com força.
— Digamos que monstros existam. — Irrompi na quase silenciosa
cidade montanhosa. Meus olhos varreram a multidão. O ritmo havia
pegado e eles agora estavam batendo palmas.
Esse é o poder do Anansesem, eu percebi. Dar a história aos
ouvintes, para que a possam transmitir a outras pessoas.
Anansesem compartilhava não apenas as histórias, mas também a
experiência de contar histórias.
Eu sorri.
— Digamos que monstros existam. Vamos dizer que existem.
Dizemos isso porque é verdade. É verdade?
— Sim! — Uma criança gritou antes de ser silenciada.
Apontei na direção da voz.
— Claro que é! Monstros existem ao nosso redor. Eu digo Abiyoyo...
Eu joguei um pouco de sombra e poeira no ar e a multidão
engasgou. As palmas pararam, as crianças gritaram e mais do que alguns
adultos recuaram quando um gigante de três metros apareceu. Pesado,
ameaçador, com olhos de prata em chamas, Abiyoyo pisou no palco,
rugindo silenciosamente para as crianças que avistou.
— Escutem seus pais, jovens — gritei. — Ou Abiyoyo virá buscá-
los. Ou talvez os Malignos que perseguiram Demane e Demazane!
O gigante desapareceu em um canto e joguei um pouco mais de
história no ar. Um menino e uma menina saltaram da nuvem de poeira e
correram por uma floresta de árvores escuras. Atrás deles, criaturas
sombrias de duas pernas os perseguiam, suas bocas cheias de dentes
brilhantes e afiados. A menina e o menino se esconderam em uma
caverna, e as criaturas famintas passaram correndo, saltando do palco e
indo para a multidão.
Mais gritos ecoaram e, em seguida, risadas nervosas percorreram
a plateia quando perceberam que as criaturas conjuradas haviam
desaparecido.
— Sim — continuei. — Digamos que monstros existam.
Engoli um nó na garganta. A próxima parte seria difícil.
— Digamos que exista um novo monstro. Algo... algo que não quer
seu dinheiro ou tesouros. Não quer comer seus filhos ou sonhos. Não.
Joguei uma corrente gigante no ar e a multidão ficou mortalmente
silenciosa.
— Ele quer tudo.
Thandiwe deu um passo à frente e seu braço tremia ao erguê-lo
para apontar para o monstro de ferro.
— Eu vi isso... essa coisa! — ela olhou para os ancestrais no palco.
— Eu já vi ele.
— Ele nos caça — eu disse, me virando e me aproximando dela. —
Não importa se você é da Crescente Dourada ou da Terra Média. Não
importa se você está escondido em um matagal do tamanho do Lago
Michigan ou em uma fortaleza dentro do coração de uma montanha. Ele
encontrará você, seus filhos, todos os seus entes queridos e os arrastará
de volta para onde seu chefe os espera.
— O chefe? — O ancestral mais velho disse.
Eu balancei a cabeça, então lancei o último — e maior — punhado
no ar.
Uma forma indefinida, maior do que John Henry, girou acima do
palco. As sombras deslizaram em direção a ele, como se fosse um buraco
negro de pura maldade. À medida que a forma se alimentava, crescia
cada vez mais, até cobrir quase todo o palco, e quando se empanturrava
com todas as sombras que podia encontrar, virou-se e flutuou em direção
à multidão. No último momento, justo quando parecia que iria descer e
começar a devastar o povo da Crista, eu bati meus pés e gritei ao mesmo
tempo:
— O MAAFA!
O monstro explodiu em sombras que fugiram para os cantos.
Alguém gritou. Quando olhei em volta, vi Bebê Chiclete deitada no
chão como se tivesse desmaiado. Cacau estava abanando a pequena
rainha do drama com as orelhas.
— Mas o que é isso? Por que ele nos caça? — Outro espírito, uma
mulher com um grande lenço na cabeça, inclinou-se para a frente em sua
bengala.
— Como podemos pará-lo?
— O que podemos fazer?
Eu levantei minhas mãos e os ancestrais ficaram em silêncio.
— Essa coisa caça vocês… por minha causa.
Ruídos de raiva e confusão varreram o espaço, mas eu continuei.
— Eu venho de um lugar longe daqui chamado Alabama. Abri um
buraco entre nossos mundos quando danifiquei uma velha e poderosa
Árvore-Garrafa. Quando caí pelo buraco, algo veio comigo. Alguma coisa
antiga. Algo maléfico. Um haint que libertei. Agora ele está procurando
por mim e está irritando um velho inimigo de Alke, das profundezas do
Mar Flamejante — o Maafa.
Os ancestrais engasgaram. Pela expressão em seus rostos, alguns
— se não a maioria — estiveram por perto para testemunhar as batalhas
entre os deuses e o Maafa. Eles sussurravam entre si e eu levantei
minhas mãos.
— Nós temos que parar esses monstros de ferro. Mais e mais estão
aparecendo em Alke, cada um maior e mais malvado do que o anterior,
e se não encontrarmos Anansi e fazê-lo consertar o buraco no céu, eles
nos vencerão. Não teremos onde nos esconder.
Abaixei minhas mãos e respirei fundo. A multidão murmurou
enquanto os anciãos conferenciavam uns com os outros antes do chefe,
Fezile, finalmente assentir e olhar para mim.
— Vimos este buraco no céu. Se realmente está alimentando a
energia violenta que está fluindo por meio desses "monstros de ferro",
seria bom continuarmos como estamos. Permaneceremos escondidos na
montanha. Trancaremos nossas portas para todos os estranhos.
Protegeremos nossos filhos.
Um murmúrio varreu a multidão, com muitos concordando com a
cabeça. Nem todos, entretanto. Thandiwe não parecia convencida. Mas
ela não desafiou o chefe. Meus ombros caíram. Aquele foi um tiro no
escuro, tentar fazer com que o povo da crista ajudasse. E eu realmente
não poderia culpá-los.
— Eu entendo — eu disse. — Acreditem em mim, eu entendo. Mas,
por favor, me escutem. Não há como se esconder. Essas coisas vão
encontrar vocês, todos vocês, aqui. — Girei com meus braços para cima,
indicando toda a caverna.
— Eles até nos encontraram no Arvoredo! — Cacau complementou.
— Se não quiserem perder mais pessoas, precisamos tentar. —
Implorei. — Por favor. Tudo isso é… é culpa minha e eu preciso consertar.
Quando minha voz falhou, Ayanna assumiu.
— A Caixa de Histórias de Nyame é a chave. Achamos que está
aqui e é a maneira de atrair Anansi...
Fezile parecia achar que era um plano imprudente.
— Precisa funcionar — eu disse, tentando colocar convicção e
confiança em minhas palavras. — Simplesmente precisa. — Não sei se
estava tentando convencer o povo da crista ou a mim mesmo.
Os anciãos permaneceram em silêncio pelo que pareceu uma
eternidade. Eu tinha quase perdido qualquer esperança de que nos
ajudassem, quando alguém falou ao meu lado.
— Ele nos deu — disse Thandiwe baixinho.
Quando olhei, a raiva estava estampada em seu rosto.
— Anansi. Ele veio aqui, com seu charme e seus cumprimentos, e
apresentou a Caixa de Histórias para nós. “Um presente”, disse ele. “Para
melhores relações”, disse ele. Era um truque! — Ela cuspiu as palavras
com uma carranca. — Covarde. Ele estava fugindo!
Thandiwe olhou para mim e depois se voltou para os anciãos.
— Honrados ancestrais, devemos devolver a Caixa de Histórias de
Nyame ao seu devido lugar. Deixem os guerreiros da Terra Média pegá-
la, encontrar Anansi e tornar suas casas seguras novamente.
Desejaríamos o mesmo para nós.
Gritos de concordância ecoaram por toda a montanha, ficando mais
altos à medida que mais crianças e adultos gritavam em aprovação. O
coro de apoio cresceu como um trovão e parecia que Isihlangu estava
tremendo sob nossos pés.
O ancião chefe voltou-se para os outros espíritos do povo da Crista
e conferenciou. Eu dei um passo para trás ao lado de Ayanna e Cacau, e
Bebê Chiclete sentou-se grogue e olhou para mim.
— O quê… O que aconteceu? Que barulho todo é esse?
Eu sorri.
— Porque você é incrível, só isso.
— Ah. — Ela bocejou. — Diga algo que a Bebê Chiclete já não
saiba.
Eu bufei, e Ayanna e Cacau riram. Thandiwe ouviu e revirou os
olhos também. Ela começou a dizer algo, mas os ancestrais quebraram
seu amontoado fantasmagórico e voltaram ao semicírculo flutuante.
— Está decidido. — O chefe dos anciãos ergueu as mãos para um
silêncio completo, depois acenou com a cabeça. — Nós vamos...
Um rugido avassalador sacudiu a montanha, enviando poeira na
cabeça de todos.
Todos nós congelamos.
Então, uma menininha sentada nos ombros de seu pai apontou para
algo acima de nós e gritou. Mais pessoas na multidão começaram a gritar
e gesticular também.
Os olhos de Ayanna ficaram enormes. Ela agarrou meus ombros e
gritou:
— Tristan!
Eu me virei, pronto para qualquer coisa.
Bem, quase qualquer coisa.
— COMO…? O QUE… É AQUILO?
Ayanna me empurrou para frente.
— Pare de gaguejar e dê um jeito nisso! Você o chamou, agora
mande-o embora!
A sombra gigante de Abiyoyo estava pisoteando na parte traseira
do palco. Ele alcançou os espíritos ancestrais, tentando agarrar suas
formas cintilantes.
— Não se preocupe! — Eu gritei. — É apenas uma...
Um braço desceu violentamente e Ayanna se colidiu contra meu
ombro, fazendo-nos cair.
Marcas profundas de garras perfuraram o palco de obsidiana onde
estávamos.
— Apenas o que, garoto voador? — Ayanna grunhiu ao se levantar.
— Apenas uma história?
Eu balancei minha cabeça em descrença enquanto Abiyoyo rugia
novamente. Os anciãos tentaram fugir, mas pareciam amarrados no
lugar. O povo da Crista em torno do palco se espalhou à esquerda e à
direita, fugindo de volta para a segurança de suas casas.
— Tristan! — Ayanna gritou. — Faça alguma coisa!
— Fazer o quê? — Gritei de volta. Minhas mãos pareciam ter
adormecido com a história ainda formigando dentro delas, e eu as sacudi
enquanto procurava por uma solução. Os amuletos da minha pulseira
tilintavam. Eu definitivamente poderia usar a ajuda deles agora….
Espere. O fio da história de Anansi. Eu ainda conseguia sentir — o
ritmo. Normalmente, ele desaparecia após terminar de moldar a história.
Mas agora... a eletricidade ainda batia na minha espinha e descia até a
ponta dos dedos. A história de Abiyoyo não estava completa.
— Bebê Chiclete, vamos lá! — Gritei, pegando-a e colocando-a no
meu ombro. Então eu corri pelo palco em direção à onde Abiyoyo
perseguia a Amagqirha.
Amagqirha segurava sua saia frisada do chão e circulava o palco
em uma meia corrida, mantendo os ancestrais conectados a nós
enquanto Abiyoyo a perseguia, pisoteando e arranhando enquanto
avançava. Eu me esquivei dos ancestrais, me desculpando enquanto
corria por suas cadeiras e banquetas fantasmagóricas.
Alguém se juntou a mim e eu olhei para ver Thandiwe se juntando
à perseguição, sua lança desembainhada.
— Por que ela não interrompe a conexão? — eu gritei. — Ela não
pode, sei lá, desligar o telefone espiritual? — Amagqirha continuou a falar
em sua voz cantarolante, nomeando os anciãos e suas linhagens. Ela
saltou sobre um dos kieries dos guardas e correu para o outro lado do
palco, tudo sem perder a concentração.
Impressionante.
— Bebê Chiclete. — eu gritei, ainda correndo. — Tenho um plano!
Você pode atrasar o monstro?
— A Bebê Chiclete não é...
— Os pés. Jogue seiva nos pés dele!
Na hora, o gigante tentou pisar na Amagqirha. A expressão de Bebê
Chiclete se transformou em um “Ah!”, então fez um cumprimento, jogando
seiva para todos os lugares.
— Ooh, Bebê Chiclete entendeu. Bebê Chiclete entendeu o que
você quis dizer. Ela consegue sentir o cheiro do seu plano. Bebê Chiclete
escuta...
— Bebê Chiclete! Vai logo!
— Ah, certo! — Ela pulou do meu ombro e colocou as mãos em
volta da boca. — Ei, pés empoeirados! Aqui embaixo. Sim, bem aqui,
garotão. Você gosta de pisar nas pessoas? Pise nisso. Ataque de seiva!
Seiva respingou pelo palco e Bebê Chiclete deu uma cambalhota
para longe. Abiyoyo diminuiu a velocidade até parar, frustrado com a
surpreendente agilidade de Amagqirha, e seus olhos redondos giraram
em direção à minúscula matraca. Ele se arrastou atrás dela, mas quando
um pé pisou em uma das armadilhas pegajosas da Bebê Chiclete, ele se
grudou rapidamente. Vi minha chance.
— Ei! — Eu gritei. O ritmo vibrou enquanto eu puxava pequenas
sombras de crianças dos cantos da montanha. Vesti elas com roupas
brilhantes feitas de pó de prata e coloquei-as pulando ao redor dos pés
pretos do gigante.
— O que você está fazendo? — Ayanna gritou, encolhendo-se sob
uma saliência rochosa e embalando Cacau. — Crianças? Você colocou
crianças contra um gigante?
— Confie em mim. — Eu disse. — Lembra como mantê-lo longe?
— Tristan...
— Estou falando sério!
Abiyoyo fez força e com uma torção violenta e outro rugido, ele se
livrou da seiva.
Thandiwe parou atrás de mim.
— Hum, era… Ó, anciãos, nos ajudem. Era... uma canção de ninar!
— Ela estalou os dedos. — Cantávamos todas as noites.
— Certo! — Eu disse. Mais e mais sombras de crianças dançavam
nos cantos de Isihlangu. Elas empinavam e giravam em círculos ao redor
do palco. Eu engasguei com o esforço e me ajoelhei. — Precisamos de
todos na montanha para ajudar. É a única maneira.
— Todo mundo? — Thandiwe perguntou.
— Todo mundo. Vão avisando. Vou mantê-lo distraído aqui. —
Antes que Ayanna e Thandiwe pudessem discutir, corri para o centro do
palco. As sombras das criancinhas se separaram diante de mim e depois
me seguiram, saltando junto.
Tomara que isso funcione.
— Abiyoyo! — eu gritei, minhas mãos em concha em volta da minha
boca.
O gigante parou de se esforçar para enfiar as sombras das crianças
em sua boca.
— Abiyoyo!
Cada vez que eu gritava seu nome, ele se encolhia, como se ouvir
isso lhe causasse dor.
A história de Abiyoyo é muito simples. Os pais fazem seus filhos
cantarem seu nome suavemente todas as noites antes de irem para a
cama, e então as luzes se apagam, não se pode dar nenhum pio. Se não
obedecer e não for dormir, o gigante faminto irá entrar na sua casa e te
roubar. E não vai ser para brincar de esconde-esconde.
Está mais para fazer um escondidinho de você, entendeu?
Eu estava apostando tudo naquela canção de ninar.
As sombras das crianças deram os braços e dançaram em um
círculo gigante ao redor do palco, com um segundo círculo e mais outro
dentro do primeiro. Cada anel se movia em uma direção diferente até que
uma espiral preta e prateada desorientadora girou ao nosso redor. Deixou
nós dois, o gigante e eu, cara a cara. Olhos prateados como miçangas
de frente para olhos castanhos bonitos e inteligentes. Dentes de prata
super afiados para… bem, eu escovo meus dentes muito bem. Na maioria
das vezes.
ENFIM...
Abiyoyo se virou com um rugido confuso. Ele provavelmente não
conseguia escolher qual criança comer primeiro. Antes que ele se
decidisse, fiz as sombras das crianças fazerem uma concha com as mãos
sob suas bocas silenciosas.
— Agora, Ayanna! — Gritei.
Bem acima de nós, Ayanna se agarrou às costas de Thandiwe
enquanto elas deslizavam pela montanha no antepassado da guerreira.
Ao meu sinal, Ayanna acenou freneticamente na porta das pessoas e
Thandiwe os chamou.
Ninguém abriu.
Abiyoyo rugiu em desafio e veio em minha direção. Suas garras de
prata arranharam a pedra quando ele se esticou para me agarrar, e gotas
de baba negra chiaram quando sua boca se abriu para me engolir inteiro.
Consegui escapar.
— Abiyoyo!
Garras do tamanho do meu braço quase me fatiaram como um
pedaço de pão. Abiyoyo se afastou quando a montanha ecoou seu nome.
As sombras das crianças continuaram girando em círculos e, assim que
percebi que ainda estava inteiro, eu as fiz girar cada vez mais rápido.
— Abiyoyo!
Desta vez, meu chamado ecoou acima de mim. Meninos e meninas
paravam em suas portas abertas e gritavam com o gigante. Até mesmo
alguns de seus pais e avós entraram em ação.
— ABIYOYO!
O gigante recuou, mas as sombras das minhas crianças o
mantiveram encurralado para que ele não pudesse escapar. Elas pularam
nos ombros uns dos outros e o cercaram enquanto a montanha inteira —
ancestrais fantasmagóricos, Povos da Crista, Povos Médios e um menino
de Chicago — gritava o nome do gigante até que ele se rendesse.
— ABIYOYO!
Com um rugido final, o gigante se estilhaçou em um milhão de
pequenos fragmentos de escuridão. O povo da montanha explodiu em
uma gritaria gigantesca. Eu caí no chão de pedra do palco. As sombras
das crianças corriam como crianças de verdade perseguindo bolhas,
caçando cada pedaço do monstro e agarrando-os com força. Elas
saltaram sobre mim, pulando para cima e para baixo com orgulho e eu ri
com cansaço.
— Sim, tudo bem, vocês foram bem.
— Não — disse uma voz atrás de mim. Ayanna saltou do
antepassado quando Thandiwe parou. Ambas correram, gritando e
celebrando junto com o povo da Crista. — Você foi bem — disse Ayanna.
— Aquilo foi incrível!
Thandiwe sorriu e deu um soco no meu ombro.
— Nada mal, ladrão.
Eu sorri e fingi que meu ombro não doeu.
— Obrigado.
— Aham. — Alguém pigarreou e nos viramos para ver os anciãos
olhando para as sombras das crianças.
— Ah, certo. — Falei. Fechei os olhos e me concentrei, desejando
que as crianças voltassem para suas casas em cantos escuros e sob o
céu sem lua. Com uma lufada de ar, como um balão solto de suas mãos,
os pequeninos bebês prateados e pretos pularam para longe, até que
sobrou apenas um. Acenou para Bebê Chiclete e mergulhou na sombra
da minha perna.
— Aquilo foi ótimo, Tristan — Bebê Chiclete cantarolou. — Você viu
aquele gigante caindo? Ele estava tipo, Ai não, não, vocês são muito
fortes, especialmente você, Bebê Chiclete, você é muito talentosa e
deveria ser aplaudida, raaaaahhhhhh.
Eu sorri e Ayanna balançou a cabeça. Cacau pulou e ela e Bebê
Chiclete recontaram animadamente o que tinha acontecido.
Os anciãos e Amagqirha se reuniram ao nosso redor e todos
ficaram em silêncio.
— Seu esforço foi admirável — disse Fezile. — Você provou ser um
verdadeiro Anansesem. Talvez... um pouco mais do que o necessário.
Mas, por causa disso, está claro para nós que os Povos Médios precisam
do tesouro de Nyame. — O chefe dos anciãos olhou severamente ao
redor da câmara. — Se as histórias de infância podem ser corrompidas
até mesmo aqui, no topo de Isihlangu, aquele buraco no céu é de fato
uma ameaça para nós. Tragam a Caixa de Histórias!
Ao seu comando, dois guardas voaram para cima em seus
antepassados.
— Obrigado, honrados ancestrais. — eu disse, curvando-me. —
Não irei decepcioná-los.
Enquanto esperávamos que os guardas voltassem com a caixa,
balancei para frente e para trás de empolgação. Finalmente, depois de
procurar por tanto tempo, estávamos perto de consertar o dano que eu
causei. Assim que capturássemos Anansi e o convencêssemos a fechar
o buraco no céu, os deuses e heróis poderiam trabalhar juntos para
derrotar os monstros de ferro de uma vez por todas. Então eu voltaria ao
meu mundo.
Em apenas alguns minutos, os guardas emergiram da multidão,
planando sobre seus antepassados, carregando algo coberto de pano
entre eles em uma pequena maca.
O chefe dos anciãos acenou com a cabeça, e os guardas colocaram
o objeto na minha frente.
— Bem, vá em frente, Anansesem — disse ele. — Eis o seu prêmio.
A tão aguardada Caixa de Histórias.
Eu sorri e encostei no pano...
...e um repentino pico elétrico passou por mim.
Eu me virei. Algo acabara de entrar no palco. Não, alguém.
— Tristan? O que foi? — Ayanna franziu a testa em confusão.
Mas eu não conseguia explicar. Uma pessoa saiu do nada e ficou
atrás dos ancestrais, nos observando.
Me observando.
Seu rosto estava obscurecido pelo capuz de sua longa capa e eu
engoli em seco quando ele começou a se aproximar de mim. Quem era?
Outra história que esqueci de apagar? Eu vasculhei meu cérebro,
tentando imaginar quem eu poderia ter chamado a este mundo.
— Tristan? Você não vai…?
— Temo que ele não possa fazer isso corretamente, Srta. Ayanna.
De jeito nenhum.
A voz suave tinha notas de tristeza e alegria. Como alguém se
preparando para rir, chorar ou ambos. Isso me fez querer dançar e gritar,
e eu podia ouvir instrumentos tilintando em algum lugar à distância
quando o homem apareceu. Ele era grande — mais alto do que eu, mas
não exatamente do tamanho de John Henry. Assim que ele puxou o
capuz para trás, vi que ele tinha um rosto negro liso, covinhas que
ameaçavam puxar um largo sorriso, e cabelo crespo e encaracolado tão
preto que brilhava.
Ele piscou para Ayanna e disse:
— Mas vou pegar, com certeza. Vou pegá-la e seguir meu caminho,
se isso te agradar.
A energia que emanava desse cara era de cair o queixo. A
sensação de formigamento que normalmente tenho em meus dedos
invadiu todo o meu corpo, como se apenas estar perto dele tornava cada
história mais engraçada e memorável.
— Quem é você? — Cerrei os dentes. Poderoso ou não, eu não ia
desistir da Caixa de Histórias. Não agora. Não depois de tudo que a
equipe e eu passamos. De jeito nenhum, nem pensar.
— Ah. — O homem realmente teve a coragem de se surpreender,
como se eu já o conhecesse.
E... todos pareciam conhecê-lo mesmo. A boca de Ayanna estava
tão aberta que pensei que poderia tropeçar em seu queixo. Cacau tremeu
quando o homem caminhou até o centro do palco para sorrir
atrevidamente para mim. E Bebê Chiclete...
— Bem, alguém belisque a Bebê Chiclete… É quem estou
pensando que é?
O homem riu, um som brilhante e contagiante que me fez sorrir
antes que pudesse me conter.
— Ora, ora, se não é a BC. Suave na nave?
— Espere — eu interrompi. — Vocês todos conhecem esse cara?
Ayanna acenou com a cabeça, mas foi a Bebê Chiclete quem
respondeu.
— Claro que sim! Um dos melhores alunos da Bebê Chiclete. Esse
é o...
— Meu nome… — disse o homem, — é John, mas… — ele
estendeu a mão — você pode me chamar de Grande John.
QUANDO A ESCOLA COMEÇOU, eu almoçava na biblioteca o
tempo todo. De segunda a sexta, você conseguia me encontrar encolhido
atrás de uma grande pilha de livros de ficção científica, comendo um
sanduíche de peito de peru com queijo. Eu não conhecia ninguém bem o
suficiente para sentar com eles, e a hora do almoço era uma bagunça
barulhenta de panelinhas e conflitos. Nenhum comentário astuto
significava nenhum temperamento ruim, o que significava nenhum soco.
Era melhor para mim evitar tudo isso.
Então eu ia à biblioteca. A bibliotecária era legal — a Sra. Timmons.
Ela até me emprestava mais livros do que eu deveria, porque nós dois
amávamos histórias sobre mitologia. Deuses, semideuses ou heróis?
Pode assinar meu nome. Engraçado, né?
Um dia engoli meu almoço para poder passar os dezoito minutos
restantes devorando a história em quadrinhos mais recente sobre algum
super-herói de capa — não me lembro qual — quando uma voz
esganiçada me interrompeu no meio de uma batalha completa.
— Esse livro é idiota.
A voz veio de trás da pilha de livros sobre a mesa. Inclinei-me para
o lado para ver, sentado à minha frente, um garoto negro baixo e
magricela com um corte de cabelo feito em casa, óculos grossos de
armação vermelha e preta, shorts cargo super-folgados e uma camiseta
do Malcolm X.
— Aham, ok. — eu disse e voltei para o meu livro.
O garoto teve a coragem de continuar falando.
— Estou falando sério. Atletas exageradamente poderosos de
queixos quadrados e cheios de truques. Não me convenceu. E os vilões
são tão exagerados!
Sra. Timmons olhou para nós com uma carranca e eu olhei para o
menino.
— Ok, legal. — Então enfiei meu nariz no livro e tentei ignorá-lo.
Ele foi rude o suficiente para deslizar sua cadeira para que pudesse
olhar por cima do meu ombro. Eu estava pasmo demais para ficar com
raiva. Sabe como a vózinha chama pessoas como ele? Invasores de
espaço. Que cutucam sua bolha pessoal até ela estourar. Mas antes que
eu pudesse colocá-lo em seu lugar, ele estendeu a mão.
— Edward Garvey. Como Marcus Garvey, só que Edward. Mas todo
mundo me chama de Eddie. Comecei aqui essa semana.
Ah. E eu com isso?
Apertei sua mão.
— Tristan — eu murmurei.
— Maneiro. Mas, ei, sério. Esse livro é idiota.
Suspirei, marquei onde parei com um pedaço de papel, depois
recostei-me na cadeira e estudei o garoto. Ele tinha uma expressão séria
e honesta, como se realmente esperasse que eu debatesse com ele
sobre isso, quando tudo o que eu realmente queria fazer era dizer para
ele sumir. Mas… por algum motivo, não fiz isso.
Talvez fosse o olhar.
Você sabe do que estou falando. Aquele olhar que jovens têm
quando estão tentando fazer amigos e não têm certeza de como serão
recebidos.
Esperançoso. Ansioso. Nervoso.
Ele brincou com as alças de sua mochila e olhou para mim.
Todo mundo tem uma história, vózinha costumava dizer quando eu
era mais jovem. Ouça, e eles serão amigáveis. Envolva-se, e serão seus
amigos.
Tudo bem.
— Então, é idiota — eu disse, acenando para a história em
quadrinhos.
— Sim.
— E imagino que você tenha algo melhor?
Os olhos de Eddie brilharam.
— Só o herói mais forte, mais astuto e maneiro de todos os tempos.
Monta um corvo do tamanho de um caminhão Cadillac, não, uma
limusine! Ele até tem sua própria música ao andar, dizem que a bateria
toca quando ele anda.
Ele começou a bater um ritmo na mesa e comecei a balançar a
cabeça antes que pudesse me conter. Esse garoto não era tão ruim. Ele
conseguia fazer uma batida bem boa e, além disso, eu sabia para onde
ele estava indo.
— Ele costumava ser um príncipe. — Eddie continuou. — Na África.
Mas foi capturado e forçado à escravidão. O nome dele...
— É Grande John — falei, interrompendo-o. — Grande John, o
Conquistador.
Os olhos de Eddie quase saltaram das órbitas.
— Você conhece as histórias?
Dei de ombros.
— Minha avó costumava contá-las.
— Ei, isso é tão legal! Sabia que elas não foram escritas em lugar
nenhum? Foram contadas oralmente. Sua avó conhece outras histórias?
— Ela conhece todas as histórias. Confie em mim. Eu as ouço
desde que era um bebê. — Eddie basicamente mergulhou em sua
mochila, enquanto ainda estava em suas costas, o que era
impressionante, e puxou um diário de couro surrado. Eu enruguei meu
nariz. Cheirava a cachorros-quentes velhos que foram deixados no sol.
Uma estranha borla pendurava-se no topo do livro, um cordão de couro
gasto, velho e amarrado em vários pontos.
— Acha que ela me contaria alguma? — Ele me encarou com um
olhar sério, mordendo o lábio enquanto abria e fechava a capa do diário.
— O quê?
— Acha que, se eu pedisse, sua avó me contaria alguma? Eu
coleciono contos powulares antigos e coisas assim.
— Por quê? — Perguntei. Não parecia o tipo de coisa que um aluno
normal do sétimo ano faria.
— Porque sim. Alguém precisa. Por que não eu? Eu gosto deles.
Até consegui alguns desenhos de alguns dos heróis. Está vendo? Esse
é o Grande John. E esse é o John Henry. Ele é legal também, mas eu
amo mais o seu martelo. E esse…
Seus desenhos eram muito bons, tenho que admitir. Logo
estávamos ambos amontoados em seu diário, discutindo sobre “e se” e
equipes de batalha. Nos atrasamos para a nossa próxima aula, mas de
alguma forma isso não importava.
Foi esse o dia em que conheci meu melhor amigo.

Grande John ou Grande John, o Conquistador ou John de Conquer.


Todos os nomes de um dos heróis folclóricos mais fascinantes de
quem já ouvi falar. John Henry pode ter sido poderoso, mas Grande John
era o poder personificado.
Agora a própria lenda — a favorita de Eddie — estava ali, vestida
como o tio que é sempre o mais barulhento no piquenique da família.
Calças um pouco curtas demais para cobrir suas sandálias de cano alto.
Camisa de gola borboleta abotoada apenas pela metade e, por baixo,
havia uma pequena bolsa de pano pendurada em um cordão em volta do
pescoço.
Grande John notou meu olhar e sorriu, então enfiou a bolsa de volta
dentro de sua camisa. Ele se espreguiçou e estalou o pescoço.
— Não temos tempo a perder. Pegue essa Caixa de Histórias para
mim, por favor?
Ayanna mordeu o lábio. As orelhas de Cacau abaixaram tanto que
cobriram seus olhos, e Bebê Chiclete parecia confusa. Ninguém queria
dizer nada, e sabíamos bem o que isso significava.
Isso.
Teria que ser eu.
— Sr. Grande John...
— Apenas Grande John. — Ele interrompeu com um sorriso. — O
único senhor que eu conhecia batia chicotes e eu não sou ele.
— Certo — eu disse, nervoso. — Grande John...
— Mas não temos tempo para bater papo agora. — Ele se
aproximou e colocou um braço em volta dos meus ombros, dando um
sorriso largo para os outros no palco. — O jovem Tristan aqui fez um
ótimo trabalho até agora, mas acho que é hora de botar sebo nas canelas.
Ele esperou, mas quando todos — incluindo os anciãos, ainda
sentados em seus banquinhos espirituais — olharam para ele sem
expressão, eu suspirei. Adultos e suas estranhas figuras de linguagem.
— Ele está dizendo que quer que nos apressemos. — Expliquei
para a sala antes de me virar para Grande John. — Mas é isso que estou
tentando dizer. Deixa comigo. Nyame nos contou…
— Nyame? — Grande John bufou. — Ele nunca acerta, né? Ainda
tem minhoca na cabeça.
Thandiwe franziu a testa.
— Minhoca?
— Cabeça de vento — eu disse, um pouco distraído. O comentário
de Grande John me incomodou, mas tentei seguir adiante. — E eu sinto
muito, Grande John, mas vamos levar a Caixa de Histórias de volta
conosco. É a única chance que temos de salvar a Terra Média.
— A Terra Média? — Grande John olhou em volta sem acreditar.
— Vocês acham que…? Ah, não, não, não. — Seu braço escorregou do
meu ombro e ele foi para o centro do palco, uma mão em seu quadril e a
outra beliscando a ponta de seu nariz. — Não tem como salvar a Terra
Média, tirem isso da cabeça. Acabou. Já era. Se não hoje, amanhã.
Aqueles monstros com certeza já devoraram aquele lugar.
Suas palavras me atingiram como um soco no queixo.
— O que você quer dizer com acabou?
— Quero dizer, acabou. Aquelas pessoas ou fizeram as malas ou
morreram. Não tem ninguém na Terra Média agora, exceto os
algemados.
Um calafrio varreu Isihlangu, e ninguém falou por vários segundos.
Cacau quebrou o silêncio com uma fungada e desabou contra as pernas
de Ayanna. Bebê Chiclete tentou formar uma frase, mas não saiu nada.
Thandiwe e Amagqirha apertaram os lábios com força.
— Então — Grande John disse, olhando para mim —, o que temos
que fazer, se não queremos a mesma coisa que aconteceu com a
Crescente Dourada e a Terra Média, aconteça aqui? Temos que levar a
luta até eles.
— Mas...
— Mas nada, garoto, estou tentando salvar vidas! O quê? Ainda
está fixado nas palavras de um deus alkeano?
Uma onda de desespero tomou conta de mim. A divisão entre os
países destruiria a todos antes que os monstros de ferro conseguissem!
Grande John era um deus herói powular que talvez pudesse ter arrumado
isso. Mas ele não parecia respeitar Nyame ou se importar com a Terra
Média.
Era tão frustrante!
Uma pequena multidão de curiosos se reuniu novamente e
murmuravam entre si, mas eu ignorei a tensão crescente. Um onda
crescente e oscilante de dúvida não me deixava acreditar completamente
nas palavras de Grande John. A Terra Média já era? Sem chance. John
Henry não deixaria isso acontecer. Estivemos lá ontem. Sim, tudo bem, o
Bosque estava sob ataque e sim, as coisas pareciam ruins, mas a Srta.
Sarah e a Srta. Rose, e Brer e John Henry, não permitiriam que os Povos
Médios fossem levados.
A menos que...
Uma respiração aguda soou ao meu lado. Eu olhei para ver Ayanna
com a mão sobre a boca. Ela chegou ao mesmo pensamento.
— Eles estão bem — eu assegurei a ela. — Eles têm que estar bem.
— Talvez — interrompeu o ancião chefe — seja melhor iniciar esta
discussão e...
— Não, não há necessidade de iniciar porque não há discussão —
Grande John enfiou as duas mãos nos bolsos e balançou nos
calcanhares. — Há, Tristan?
Todos olharam para mim. Grande John ergueu uma sobrancelha e
esperou, uma onda de raiva subiu pelo meu rosto. Eu odiava ser colocado
nessa situação.
Coisas ruins sempre aconteciam quando eu era pressionado.
Coisas teimosas.
Eu estava prestes a fazer um comentário sobre o qual vózinha teria
algo a dizer (sabe que elas podem te ouvir do outro lado da rua, cidade
ou mundo, não importa onde você esteja), quando o pequeno
pensamento que estava me incomodando todo esse tempo finalmente se
libertou.
— Como você sabe que todo mundo na Terra Média se foi? — eu
perguntei devagar.
Grande John gemeu.
— Não temos tempo para...
— Não. Como você sabe que eles se foram?
— Eu só sei.
Cacau ergueu a cabeça.
— Tristan, o que foi?
Eu apontei para ele.
— Esse cara surge do nada dizendo que a Terra Média já era e que
não há necessidade de voltar lá. Como sabemos? Vocês simplesmente
confiam nele? Ele pode estar...
— Eu poderia estar o quê? — Grande John disse com um sorriso
fácil que não alcançou seus olhos. — Mentindo? Puxando seu tapete?
Isso seria uma coisa muito baixa de se fazer, não acha?
Eu olhei para ele. Ayanna começou a intervir, mas eu a ignorei.
— Tudo que eu sei é que não tinha te visto antes, mas assim que a
Caixa de Histórias de Nyame sai do esconderijo, você aparece. Não, não
gosto disso. Eu não gosto nem um pouco — me virei para Ayanna e
gesticulei minha cabeça para a porta. — Venha, vamos. Temos um país
para salvar.
Seus olhos se arregalaram. Virei-me para ver Grande John se
aproximando. Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, ele cruzou o
palco em três passos e agarrou a frente do meu colarinho com seu punho.
— Ei, tire suas mãos...
Mas ele puxou com força e eu senti algo se rasgar. Meu peito — ele
estava rasgando meu peito. Espere, não, ele estava me puxando para
fora do meu... O quê? Tudo parecia embaçado e de cabeça para baixo.
Um grito sem palavras saiu da minha boca e o mundo ficou escuro.
O AR ASSOPRAVA MEU ROSTO.
Antes mesmo de abrir meus olhos, eu sabia que estávamos nos
movendo. Deitei de costas e os ventos fortes puxaram os amuletos de
adinkra em meu pulso. Rolei para cobri-los com a outra mão, mas o chão
parecia estranho. Era macio. Não como um carpete ou aquele tapete
chique que mamãe não deixava ninguém pisar. Não, parecia pele ou...
Abri meus olhos e imediatamente os fechei novamente.
Meu santo pêssego.
— Se for vomitar, é melhor virar contra o vento — disse Grande
John de algum lugar à distância. — Caso contrário, sua cara vai ficar
cheia de sujeira.
— Não vou vomitar — eu disse, cerrando os dentes. — Eu só…
preciso de um segundo.
— Leve o tempo que quiser, garoto. Não vou a lugar nenhum, só
estou circulando.
Ele parecia sincero, o que só me deixou mais determinado a me
levantar. Eu engoli o nó de medo na minha garganta e forcei meus olhos
a abrirem. Penas pretas brilhantes ao longo do meu antebraço
tremulavam com o vento, e eu as encarei, então me levantei com as
pernas bambas.
Eu estava nas costas de um pássaro gigante — um corvo, eu acho
— tão grande quanto um jato particular. Suas asas se moviam para cima
e para baixo com longas e maciças batidas que cortavam as nuvens onde
estávamos voando. Eu não conseguia nem ver as pontas de cada asa.
De vez em quando, ele grasnava, um grito alto e estridente que me fazia
estremecer.
— Aí está ele, novo em folha.
Virei — lentamente — para encontrar Grande John me observando
de perto da cabeça do pássaro. Suas mãos estavam nos bolsos e ele
sorriu, todos os vestígios de sua raiva anterior se foram.
— Você me surpreendeu, rapaz — disse ele. — A maioria não
chega ao Velho Familiar na primeira tentativa.
— Familiar? — Eu perguntei, enquanto me aproximava. Passos de
bebê. Passos bem pequenininhos de bebê.
Grande John se agachou e deu um tapinha nas penas do pescoço
do corvo.
— Este velho senhor aqui. Está comigo há… Céus, nem sei mais.
Mas ele carregou mais almas do que estrelas no céu e segue firme e
forte. Não é verdade, senhor?
Familiar grasnou novamente e eu engoli.
— Almas? Eu… eu estou?
— Céus, não. Você só saiu.
— Saí?
— De si mesmo. Tive que dar um empurrãozinho, mas acontece.
— O que quer dizer com eu estar fora de mim? — Perguntei, assim
que o Familiar nivelou. — Onde estamos? A última coisa que lembro é de
você ficar bravo e puxar meu colarinho.
O rosto de Grande John ficou sério.
— Tive que fazer algo. Certas coisas não devem ser ouvidas por
todos. Muitas pessoas ouvem algo e esse algo ganha vida própria.
Eu balancei minha cabeça.
— Você não está fazendo sentido algum.
Grande John franziu os lábios.
— Você me chamou de mentiroso. Posso ser muitas coisas, rapaz,
mas mentiroso? Não o Grande John. Não senhor.
— Desculpe ter falado isso. É só que...
Ele me ignorou e continuou falando.
— Você é quem está mentindo. Você deveria ser um mestre em
contar histórias, certo? Fez um auê com todos os alkeanos por causa de
alguns contos que consegue trazer à vida.
— E?
— Então você sabe como histórias podem crescer e mudar com o
tempo. Suposições podem se tornar rumores que podem se tornar lendas
e que podem se tornar realidade. Deixe algumas pessoas pensarem que
há esperança e, de repente, uma situação ruim fica pior. — Grande John
apontou para mim com o dedo e depois apontou para baixo. — Aquele
pessoal, todos os da Terra Média, já era, garoto. Você foi abençoado.
Várias vezes. Deuses aqui e ali dando proteções e amuletos. Bem, vou
te dar algo também. Eu vou te dar dois presentes. O primeiro é um
conselho: pare de viver no passado. Não há nada lá atrás que você possa
salvar.
Ele me olhou nos olhos ao dizer isso e, de alguma forma, parecia
que ele não estava apenas falando sobre os Povos Médios. Ele estava
falando sobre Eddie também. Eu engoli e desviei o olhar.
— Agora, o segundo.
Grande John acenou com a mão e, como a névoa estava
desaparecendo enquanto o sol se erguia no céu, as nuvens se
dissiparam. Ele me fez um sinal para me aproximar e eu relutantemente
fui e olhei para o lado do corvo gigante.
— Meu santo pêssego — engasguei.
Grande John sorriu.
— Mexe comigo toda vez. Bem vindo à Alke, garoto.
A última nuvem desapareceu quando o mundo de Alke emergiu
como uma joia abaixo de nós.
Estávamos no alto — tão alto que meu coração subiu até a garganta
e ficou lá — e ainda assim as diferentes terras pareciam nítidas e focadas,
como se eu tivesse ampliado um mapa. Perguntei ao Grande John sobre
isso e ele riu.
— Esse é o Velho Familiar. É incrível o que você consegue ver
quando sai de si mesmo. O Velho Familiar ajuda com a perspectiva, sim,
ele ajuda. — Ele apontou para uma lasca de terra dourada e brilhante. —
Está vendo isso? É a Crescente Dourada. Agora, bem atrás dela é onde
estávamos, a Crista ou Isihlangu, como eles chamam. Aquilo brilha como
diamantes negros, rapaz, realmente. Agora, por trás disso…
— Por que você me trouxe aqui? — eu interrompi. Meus olhos
estavam grudados em uma ilha escondida sob nuvens de fumaça cinza-
carvão. De vez em quando, eu pensava que via lampejos, como um
relâmpago pulando durante uma tempestade.
Grande John grunhiu.
— Como eu disse, garoto, perspectiva.
— Aquela é a Terra Média? — Eu já sabia a resposta, mas
precisava ouvir.
— Claro que é.
— Podemos chegar mais perto?
— Não te trouxe aqui para ver aquelas pessoas sendo assediadas
e tiradas de suas casas. Eu trouxe você aqui porque você perguntou
como eu sabia. Olha para lá e me diga que o lugar não se foi.
Meus punhos cerraram, mas eu os forcei a relaxar, e por mais que
eu quisesse perder a cabeça, apontar para a terra em chamas e gritar,
não o fiz. Tive que me esforçar, mas consegui. O Sr. Richardson ficaria
orgulhoso.
— Sabe, minha avó costumava me contar histórias sobre você.
Grande John estufou o peito como um pavão.
— É mesmo?
— Sim. Ela me dizia que você era o mais forte de todos os heróis
folclóricos, e que você era um homem do povo. Sempre que um de nós
sofria, você conseguia sentir e estaria lá em um instante. Reconfortando.
Ajudando.
Eu me virei e o encarei, olhando-o nos olhos. O seu sorriso
congelou no rosto.
— Então — perguntei — por que você não os está ajudando?
— Veja bem, Tristan, não é tão simples...
— Você é um deus ou não é?
— Eu não posso simplesmente...
— Você é um deus ou não é?
— Eu preciso ser chamado. Não posso simplesmente aparecer
como...
— Você. É. Um. Deus. Ou. Não?
Em um borrão de movimento, ele estava parado na minha frente.
Minha camisa estava em suas mãos e fui erguido no ar.
— Acha que eu quero ver meu país morrer? — ele explodiu.
Sua voz quebrou as ondas do oceano e sacudiu a terra. Árvores
velhas e sóis do Mississippi. Casas de leilões e terras no Congo.
Não reconhecia nenhuma das imagens e mesmo assim conhecia
todas.
O Velho Familiar grasnou com as ondas de energia que emanavam
da fúria de Grande John. Eu engoli, mas não desviei o olhar. Ele me
segurou lá por mais um segundo, meus pés balançando a uma milha
acima de Alke, e eu não duvidei por um segundo que — fora de mim ou
não — se ele me soltasse, eu não acordaria novamente. Então algo
mudou em seu rosto, e Grande John suspirou e me colocou no chão.
— Aqueles são meus amigos. Acha que eu quero vê-los sendo
levados? Minha casa sendo queimada e destruída? Não quero. Mas se
eu voltar lá como estou agora, minha chance de fazer alguma diferença
é como uma gota no oceano. Você sabe disso. Esses monstros querem
que lutemos. Eles pegam gente do todos lados, não importa o quão forte
John Henry golpeie aquele martelo ou quantas pessoas Rose e Sarah
tentem salvar. Eles são muito fortes.
Ele agarrou meu ombro e olhou para mim.
— É por isso que preciso dessa Caixa de Histórias, Tristan. Com
ela, posso ficar mais forte. Muito mais forte.
— Como?
— A Caixa de Histórias é poder, Tristan. Todos esses contos, eles
são a força dos deuses. Eles nos alimentam, nos dão energia. Por que
acha que Nyame os guarda? Por que você acha que aqueles monstros
de ferro estão nos arrastando para a barriga daquele monstro? Poder,
garoto! É tudo uma questão de poder. Você controla a história, você
controla a narrativa, você controla o poder.
A busca de Anansi passou pela minha mente. Os algemados
desmontados. As notas. Os diagramas.
— Era isso o que ele estava procurando… — falei lentamente.
— O quê?
— Anansi. Ele… Deixa pra lá. Se essas Caixas de Histórias são tão
poderosas, por que a Terra Média não tem uma?
Grande John me soltou e fez um barulho de desgosto com a
garganta.
— Porque somos os novatos. Porque somos diferentes. Porque o
céu é alto, quem sabe? Mas não temos e agora que temos a chance de
colocar as mãos em uma, não vou desistir.
Eu balancei minha cabeça.
— Precisamos disso para atrair Anansi...
Ele grunhiu.
— Anansi? Está colocando nossas vidas nas mãos de um deus
alkeano? O que te faz pensar que ele vai ajudar? O que ele fez até agora?
Ele está lá apagando as chamas ou lutando?
— Você está?
— Ah, então é assim. Entendo. — Grande John deu um passo para
trás. — Entendo. Estou ajudando? EU ESTOU AJUDANDO! — Ele bateu
no peito. — Estou tentando ficar tão forte quanto aqueles monstros de
ferro para que eu possa fazer alguma coisa por conta própria.
Bufei impacientemente. O que mais eu poderia dizer para
convencê-lo a fazer a coisa certa?
Grande John bufou.
— Você quer chegar mais perto? Ok, vamos chegar mais perto.
Vamos dar uma olhada, garoto.
Ele rosnou algo para o Velho Familiar que eu não entendi direito, e
o corvo grasnou uma vez e começou a se virar. Achei que íamos descer,
mas Grande John agarrou meu colarinho de novo e, sem dizer mais nada,
saiu das costas do corvo, puxando-me com ele.
MEU ESTÔMAGO SUBIU À garganta para se unir ao meu coração
em uma casa de terror, e fechei os olhos, mas antes que pudesse gritar,
senti o chão sólido sob meus pés. Abri os olhos, tropecei um pouco e
quase engasguei.
O Arvoredo estava queimando em uma fogueira do tamanho de
uma montanha.
Estávamos no meio da clareira na floresta onde conheci John
Henry. Mas em vez de paz e tranquilidade, o caos e o desastre nos
cumprimentaram. Povos Médios corriam gritando para a esquerda e para
a direita enquanto pedaços do teto espinhoso caíam no chão em
explosões de calor e faíscas. Uma mãe fugia com o filho por cima do
ombro e outro segurando sua mão, e eles ziguezagueavam em torno de
um pedaço de grama em chamas e vinham direto para nós. Antes que eu
pudesse gritar um aviso, passaram por mim como se eu não estivesse lá
e se dirigiram para uma saída na parede traseira.
— O que… o que aconteceu? — Perguntei, abalado e confuso.
— Você não está realmente aqui. — Respondeu Grande John. Ele
se sentou no topo de uma árvore caída que ainda queimava, estudando
suas unhas. — Está fora de si, lembra? Mas você queria olhar, então vá
em frente. Dê uma boa olhada.
— Você não vai ajudar? — Perguntei. A miséria me preencheu
enquanto um grupo de Povo Médio se afastava das chamas e entrava na
noite brilhante.
— Eu estou, garoto. — Ele apontou para o alto, acima de nós, onde
chamas e fumaça estavam sendo puxadas por um buraco no teto da
clareira. — O Velho Familiar está sugando as chamas enquanto falamos.
Mas isso é tudo que consigo fazer. Não posso fazer muito desta forma e
não posso voltar para meu corpo daqui, porque isso o deixaria sozinho.
Você já não tem muito tempo; se vocês, humanos, passam muito tempo
fora de seus corpos, é provável que continuem assim. Não quer ser um
haint para sempre, quer?
Um arrepio percorreu minha espinha.
— Deve ter algo que possamos fazer para ajudá-los. — Eu disse.
Corri até as pessoas e animais aglomerados em torno de uma saída. Um
garotinho deixou cair uma trouxa de pano e correu atrás dela, e eu me
abaixei para pegá-la ao mesmo tempo que ele. Seu dedo deslizou através
do meu e ele parou para olhar ao redor. Alguém o chamou, e ele agarrou
a trouxa e correu de volta para seu lugar na fila.
— Todo mundo saindo por trás! — Uma voz familiar cresceu acima
do caos. John Henry passou, o chão tremendo enquanto cortava caminho
pela clareira. Seu martelo apontou para a parede traseira. Os símbolos
no cabo, adinkra, percebi com surpresa, brilhavam quase tão
intensamente quanto o fogo.
— Para trás e fiquem com seus grupos!
Um grito fraco cortou a noite.
Eu olhei em volta. Houve mais gritos e esperei ver alguém correr
para ajudá-los, mas ninguém o fez.
— Ninguém consegue ouvi-los — eu sussurrei. Me virei e comecei
a correr antes de lembrar que meu corpo não estava fisicamente ali. Os
gritos vieram de novo, e ninguém parecia ouvi-los além de mim, não por
causa dos rugidos de John Henry, então continuei correndo.
Saí da clareira e entrei nos túneis sinuosos do Arvoredo. Fumaça e
calor não me incomodavam na minha forma fantasmagórica, então eu
continuei correndo. Não conseguia ver, mas os gritos estavam vindo mais
rápido agora, da direção do auditório. Quando cheguei, saltei pela porta
larga e derrapei até parar.
Dois algemados enferrujados, gritando e batendo as algemas,
encurralaram um grupo de crianças mais velhas, como raposas
pastoreando galinhas. A menina maior estava tentando corajosamente
afastar os monstros com uma vassoura de palha enquanto o resto das
crianças chorava ou gritava.
Um dos algemados avançou, as algemas em seus braços se
agarrando a um menino e eu gritei:
— NÃO!
Antes de pensar no que estava prestes a fazer, e se era possível,
eu já estava fazendo. Puxei a fumaça e as chamas do corredor e
transformei-as em um homem alto. Os movimentos eram difíceis de fazer
na minha condição atual, como tentar andar na água. Várias vezes pensei
que perderia o fio da história e com muito esforço consegui fazer com que
continuasse.
Era uma vez um príncipe da África.
O homem de fogo e fumaça avançou. As crianças o viram primeiro
e começaram a gritar ainda mais alto. Os monstros de ferro sacudiram
quando o homem se colocou entre eles e as crianças.
Seu andar era como ritmo e suas palavras eram de orgulho.
Os algemados atacaram minha criação em vão. Eu o fiz apontar
para as crianças, depois para a porta, e as letras V-Ã-O apareceram na
fumaça acima de seus dedos. Algumas crianças reconheceram a palavra
e, com alguma convicção, fizeram o resto do grupo se levantar e se
mexer. A menina mais velha manteve sua vassoura levantada enquanto
empurrava seus companheiros em direção à porta.
Os algemados grunhiam de raiva, e eu mal conseguia controlar
meus movimentos agora, mas tinha energia suficiente para um último
comando.
Vendido como escravo, ele ajudou aqueles que não podiam se
ajudar.
O homem de fogo e fumaça deu dois grandes passos à frente e
explodiu em um vórtice de calor e vento. Os algemados foram varridos e
carregados por toda a extensão do auditório, até que se espatifaram
contra a parede espinhosa dos fundos.
Minhas pernas tremiam embaixo de mim e comecei a cair para o
lado e, de repente, Grande John estava lá.
— Hora de ir, garoto estúpido.
— Não — falei, tremendo incontrolavelmente. — Podemos fazer…
mais.
— Vamos. Mais um pouco e você vai começar a desaparecer. —
Ele apontou para minhas mãos enquanto me arrastava em direção ao
Velho Familiar, e eu observei com crescente horror sua cor marrom
escura lentamente ficando transparente.
E mesmo assim...
— Mais uma... coisa. — Eu arfei.
John Henry ainda estava conduzindo as pessoas para fora da
entrada em chamas do Arvoredo, e eu me concentrei o máximo que pude.
Eu precisava fazer isso direito. Eu precisava…
O homem de fogo e fumaça apareceu novamente e várias pessoas
gritaram. John Henry se encolheu e girou, o martelo erguido. Então ele
parou ao ver a aparição flutuando no ar.
— Grande John — ele murmurou.
O homem de fogo apontou para um adinkra rodopiando das chamas
ao lado dele — o Gye Nyame. Os olhos de John Henry se estreitaram
para o símbolo, então ele acenou com a cabeça bruscamente e deixei a
imagem desaparecer. Torci para que ele tivesse entendido.
Meu braço estava quase invisível agora. Grande John me pegou e
subiu no ar como se estivesse em uma escada escondida. Em seguida,
estávamos de volta ao Velho Familiar. Grande John falou novamente
naquela linguagem de escravizados dançantes e significados ocultos, e
o gigante corvo negro grasnou e voou para o céu.
Eu estava com mais frio do que nunca, mais até mesmo do que
durante o inverno mais brutal de Chicago. Meu tremor não parava e meus
ossos estremeciam. Não conseguia sentir os dedos dos pés ou as mãos
e só queria deitar e dormir. Meus olhos se fecharam.
— Tristan? — Grande John chamou.
— Sim? — eu murmurei
— Aquele homem que você conjurou do fogo e da fumaça... é assim
que eu pareço? É assim... é assim que você me vê quando conta suas
histórias?
Tentei responder. Tentei contar a ele sobre Eddie e como ele
poderia contar uma história sobre Grande John que ganharia de qualquer
outra história de super-herói. Sobre lutar contra a injustiça e fazer isso
com risada e dança. Mas tudo que consegui fazer foi fechar os olhos.
— Tristan? Tristan!
— ESTOU DECEPCIONADO COM VOCÊ, TRISTAN.
Estava de volta ao corredor escuro e mofado com duas tochas
flutuando ao meu lado. Meus pés avançaram automaticamente e uma voz
escapou das sombras.
— Muito decepcionado.
— Sim, bem, entre na fila — murmurei. — Decepcionar pessoas é
meio que minha especialidade.
Mais vítimas estavam acorrentadas contra as paredes agora. Povos
Médios e alkeanos. Estavam amontoados um contra o outro e, assim
como da última vez, não consegui parar para tentar ajudá-los — meus
pés me carregaram até que finalmente cheguei à mesma porta de
madeira apodrecida.
Lá dentro, a velha lanterna sibilou antes que a chama ganhasse
vida, só por pouco. Mais daquelas flores brancas embaçadas e
enrugadas recuaram para fora da luz tênue, rolando para o canto mais
distante, onde algo se moveu. Era como ver algo com o canto do olho e
nunca conseguir dar uma boa olhada nele. Apenas uma sombra e algo
mais.
Tio A.
— Eu disse que viria atrás de você — disse o haint. Ele quase
parecia se desculpar. — Eu te disse e você não me ouviu. Agora seu
precioso esconderijo está queimando, e vou caçar todos os seus
amiguinhos e juntar todas as suas miseráveis peles ao resto da minha
coleção.
Sua voz baixou para um silvo que se fundiu com a chama da
lanterna.
— Eu pedi uma coisa. Uma! E você está tentando brincar comigo
como se eu não pudesse pegar tudo que você ama. Acha que isso é uma
brincadeira? Talvez eu tenha sido muito tolerante. Talvez você precise de
inspiração.
A chama da lanterna finalmente apagou, e a escuridão me inundou,
carregando o som de farfalhar e o cheiro da morte. Os cabelos da minha
nuca se arrepiaram e uma corda invisível se enroscou em meus braços e
pernas. Não conseguia fugir ou me mover, e um vento violento passou
por mim, agarrando e apertando minhas roupas. Ele chicoteou meus
olhos e girou em volta da minha cabeça e…
Uma imagem de Eddie rabiscando em seu diário surgiu em minha
mente.
Outra se seguiu — essa dele rindo de alguma piada que eu tinha
acabado de fazer.
Mais cenas apareceram e giraram em volta da minha cabeça, assim
como o vento e...
E então…
Elas estavam fora de alcance. Eu podia me lembrar de... algo. Eu
podia sentir o espaço vazio onde as memórias costumavam estar, mas
todo o resto, os detalhes... já eram.
Exceto por uma.
Um acidente de ônibus, uma mão fraca pedindo ajuda…
— O que você fez? — Sussurrei.
— Eu vou acabar com você, garoto — Tio A sibilou. — Mas antes
disso, vou fazer você sofrer. Vou arrancar tudo que você ama. As
memórias do seu amiguinho? São minhas agora. A única imagem que
você vai ter é a de ter falhado em ser um herói. E todos aqueles amigos
que você fez, todos aqueles deuses com seus poderes, não vão te ajudar.
Vou arrancar suas lembranças, uma por uma, e deixá-lo com nada além
de poeiraaaa!
O silvo cresceu para um grito quando ele terminou. Uma grande
pressão, como o peso do mundo inteiro, caiu sobre meus ombros e
precisei de cada grama de minha força para não ceder e afundar no chão.
Ficou cada vez mais pesado e, quando pensei que não aguentaria mais,
o Tio A suspirou e o peso desapareceu.
— A menos que... você me dê o que eu quero.
— E o que é? — perguntei, exausto.
— Ah, eu realmente tenho que soletrar para você, garoto? Aquela
caixa chique que todo mundo está interessado. Traga ela para mim e
devolverei seu precioso livrinho, e ninguém vai se machucar. Me ouviu?
Agora é com você, Tristan. Dê-me o que eu quero e você poderá salvar
a todos.
A Caixa de Histórias? Todos queriam o poder dessa coisa. Mas por
quê...?
Antes que eu pudesse responder, a corda invisível me puxou
novamente, e fui arrastado para fora da sala, as últimas palavras do Tio
A me seguindo pelo corredor:
— Você quer ser um herói, certo?
— Ei, gênio. — Alguém disse com tristeza. — Você ainda está
falando com a pessoa errada.
Eu apertei meus olhos com força. Essa voz parecia familiar. Eu
sabia. Eu conhecia. Eu… Eddie. Era a voz de Eddie. O haint tirou algumas
das minhas memórias mais queridas, mas me agarrei ao que me restava.
— Não sei o que isso significa — sussurrei. — Tio A? Quem? Quem
é a pessoa errada?
— Você ainda está falando com a pessoa errada.
— EU NÃO SEI O QUE ISSO SIGNIFICA! — Gritei na escuridão.
A única resposta foi o silêncio.

— Tristan?
Eu abri meus olhos para ver a cabeça de Bebê Chiclete a
centímetros da minha. Ela segurou meu rosto com uma das mãos
pegajosas e a outra esticada atrás dela, como se ela estivesse a
segundos de tirar as papilas gustativas da minha boca.
Eu estreitei meus olhos.
— Não se atreva...
SMACK!
— Ai! — Eu gritei. — Pra quê isso?
— Você não estava se mexendo. — Bebê Chiclete encolheu os
ombros. — Não há tempo para dormir, Língua Solta, Bebê Chiclete tem
missões e tals.
Eu lentamente percebi que estava de volta ao palco polido dentro
de Isihlangu. Não olhando o Arvoredo queimar. Não sendo ameaçado
pelo Tio A em um pesadelo. Eu estava na Crista.
Todo mundo estava olhando para mim. Os anciãos, Amagqirha,
Thandiwe… até mesmo Ayanna e Cacau estavam olhando para mim de
forma estranha. Grande John estava afastado de nós com os braços
cruzados, na mesma posição que estava antes, mas agora, em vez de
um sorriso, ele estava carrancudo. Ele encontrou meus olhos e eu recuei
com a fúria secular que ondulava em seu olhar. Mas só por um segundo,
outra coisa cintilou.
Confusão?
— Tristan, você está bem? — Cacau perguntou.
Eu balancei minha cabeça e tentei recuperar o atraso mentalmente.
Minha mente estava nebulosa. Tive um melhor amigo uma vez, onde eu
morava... Qual é o nome dele mesmo? Eddie? Eu lembrava vagamente
de tê-lo deixado na mão de alguma forma. Teve muita dor...
— Tristan? — Ayanna chamou.
Eu respirei e me recompus. Aparentemente, ninguém havia notado
que Grande John e eu tínhamos desaparecido por um tempo. Nas
histórias, ele levava os espíritos dos escravizados em viagens de
felicidade, alegria e admiração, enquanto seus corpos permaneciam na
plantação e continuavam a trabalhar.
Acho que foi isso que ele fez comigo, embora eu não pudesse dizer
que a viagem foi feliz…
— Tristan! — Bebê Chiclete gritou.
— O que foi?
— Você está aí parado babando, é isso que foi! Eles estão prestes
a entregar o que viemos buscar e você parece um sapo em um tronco. E
Bebê Chiclete odeia sapos. Você sequer está ouvindo? — Bebê Chiclete
subiu no meu ombro e agarrou minha orelha. — Está ouvindo a Bebê
Chiclete? Ah, não me surpreende... Você realmente precisa limpar seus
ouvidos.
— Ei! — Eu a afastei e ela deslizou para o chão e cruzou os braços.
Limpei minha garganta. — Desculpe. Eu só… Desculpe. Continuem.
Estou aqui, quero dizer, estou ouvindo.
Dois guardas da Crista flanqueavam um grande objeto coberto de
pano. Minha garganta se apertou.
O ancião líder se levantou, assim como o resto dos ancestrais, o
canto de Amagqirha ainda fortalecendo sua presença fantasmagórica.
— Como eu estava dizendo… — disse Fezile. — Grande John
desistiu de sua demanda pela Caixa de Histórias de Nyame.
Eu fiquei boquiaberto. Grande John encolheu os ombros, mas a
raiva ainda revestia seu rosto. Raiva e constrangimento.
— Antes de entregarmos a vocês, campeões da Terra Média, um
pedido deve ser atendido. Thandiwe, dê um passo à frente.
A garota alta foi até o centro do palco e estendeu sua prancha até
Amagqirha. A adivinha amarrou algo em seu meio, o tempo todo pisando
de um pé para o outro e cantarolando. Quando ela terminou, a mulher
mais velha devolveu o antepassado a Thandiwe, colocando-o em seu
braço como um…
— Um escudo? — eu perguntei em voz alta. — Espere, por que um
escudo?
A resposta me atingiu no momento em que Thandiwe sorriu e
amarrou um lenço de miçangas em volta da cabeça.
— Irei com vocês. Anansi deve uma explicação para todos em
Isihlangu. — Ela fungou. — E para mostrar a vocês, Povos Médios, como
lutar, é claro.
Bebê Chiclete revirou os olhos.
— Garota, por favor.
— Quieta, Bebê Chiclete — disse Ayanna, depois sorriu para
Thandiwe. As duas se tornaram amigas rapidamente desde a nossa
chegada. O que fazia sentido, porque elas eram muito parecidas. —
Precisamos de toda a ajuda que conseguirmos.
— Então peguem a Caixa de Histórias. — O chefe dos anciãos
comandou. — Espero que seus planos tenham sucesso. Pelo bem de
todos nós.
O tom da voz do espírito chamou minha atenção. Parecia que havia
algo que ele não estava nos contando. Antes que pudesse fazer qualquer
pergunta, no entanto, a Amagqirha parou de se mover e cantarolar. Os
anciãos começaram a desaparecer. Os líderes mais antigos do Povo da
Crista, ainda guiando e inspirando seu povo mesmo após a morte,
olharam para mim com tal intensidade que foi quase um alívio quando
partiram.
— Bem, vão abrir? — A fala arrastada de Grande John quebrou o
encanto.
Limpei a garganta e acenei para Thandiwe.
— Por que você não faz as honras?
Ela encolheu os ombros. Com um puxão sem cerimônia, ela puxou
a coberta e jogou-a de lado.
Todo mundo engasgou.
Eu esperava um baú de tesouro dourado brilhante, como o do
desenho da Cacau.
Ou uma caixa forrada de veludo incrustada de diamantes.
Até mesmo um baú de couro falso seria aceitável.
Grande John deu uma risadinha zangada e balançou a cabeça. Ele
enfiou as mãos nos bolsos e desceu do palco.
— É, podem ficar com tudo isso.
Bebê Chiclete jogou as mãozinhas para cima com tanta raiva que a
seiva voou pelo palco.
— Que porcaria é essa?
Um velho caixote marrom coberto de camadas de poeira, com
dobradiças pendentes e uma tampa parcialmente lascada, estava lá.
Thandiwe olhou para cada um de nós, perplexa.
— Não sabiam? Foi assim que Anansi a trouxe para nós. Está vazia.
— O QUE VAMOS FAZER? — Ayanna sussurrou para mim.
Estávamos em uma longa mesa — eu, Ayanna e Thandiwe. Bebê
Chiclete e Cacau sentavam-se na superfície e dividiam um prato de
cenouras quentes. Elas pareciam alheias ao nosso desapontamento. O
som de tambores, cantos e palmas impediu que nossa conversa fosse
ouvida.
Por que tanto barulho?
Ah, bem, acontece que sempre que os anciãos eram convocados
em Isihlangu, um banquete era servido — mesmo que fosse porque
tínhamos chegado como ladrões durante a noite. Me peguei olhando para
um prato de comida que eu não tinha vontade de comer enquanto toda a
powulação da montanha festejava ao nosso redor.
E se você me conhece, sabe que um prato de comida intocado na
minha presença é estranho.
— Tristan? — Ayanna repetiu e eu balancei minha cabeça.
— Não sei.
Thandiwe nos observou com um olhar confuso.
— Não entendo. Como vocês não sabiam que a Caixa de Histórias
de Nyame estava vazia?
Olhei para Ayanna, que deu de ombros e suspirou.
— Nunca pensamos em perguntar — eu disse.
— Não é como se pudéssemos termos perguntado — disse
Ayanna, olhando para Thandiwe e franzindo a testa acusadoramente. —
Vocês não falavam conosco. Nos trataram como mendigos e ladrões.
A garota guerreira apontou uma colher coberta de ensopado em
nossa direção.
— Um desses dois é verdade, não se esqueça.
— Ok, ok. — Eu interrompi, não estava no clima para outra luta
territorial. O Grande John já causou o suficiente. — A questão é: o que
faremos agora?
— Acho que devemos levar para Brer de qualquer forma, como
iríamos fazer — disse Ayanna. — Talvez ainda atraia Anansi...
— Acha que Anansi vai negociar com uma caixa quebrada e
empoeirada?
Mas Thandiwe não pareceu perturbada.
— E se estivesse arrumada? — Ela sugeriu.
Ayanna zombou, mas eu ignorei.
— Como assim?
— Quero dizer, leve-a de volta para Nyame. Em primeiro lugar, foi
criação dele. Ele com certeza consegue arrumar. Talvez até recarregue
com histórias. Daí levamos para a Terra Média e convocamos Anansi.
Pensei nisso por alguns segundos.
— Brer me disse para trazê-la imediatamente, mas...
— Mas, como você disse, não adianta levar uma Caixa de Histórias
vazia e quebrada — ela concluiu.
Concordei.
— Ok. É, vamos consertar. Nyame nos deve uma, de qualquer
maneira.
— Sério? — Thandiwe ergueu uma sobrancelha. — Por quê?
— Porque nós...
— Tristan o libertou do controle do monstro de ferro. — Interrompeu
Ayanna. Endireitei uma gravata imaginária e ela bufou. — Mas não fale
sobre isso perto dele ou sua cabeça crescerá ainda mais.
— Quem tem a cabeça grande? O Língua Solta? — Bebê Chiclete
gritou. Ela estava fora de sua cadeirinha em cima da mesa e dançava em
volta do meu prato ao som da batida comemorativa. Gotas roxas
pegajosas de seiva e xarope pingavam na minha comida. Eu gemi e
empurrei-a. Agora eu definitivamente não estava com vontade de comer.
— Bebê Chiclete vive dizendo isso. A cabeça do menino é tão
grande que poderíamos usá-la para tapar o rasgo no céu. Um pouco de
seiva e uma cabeça grande e velha fariam o serviço. Bebê Chiclete
ajudará. Céus, nem vai custar muito. Apenas um novo par de botas e um
sorriso.
— Você nem usa botas — eu disse, revirando os olhos enquanto
Thandiwe, Ayanna e Cacau riam de mim.
— Você nem usa botas. — Bebê Chiclete zombou. — Ah, vejam,
Bebê Chiclete é o Tristan. Gaaaaah. — Ela rapidamente rolou a seiva em
sua cabeça até que uma bola gigante e bamba descansou em cima de
suas tranças. Acho que era para ser minha cabeça. Ela desfilou ao redor
da mesa, gritando e dando alguns socos. — Gaaaaah. Cuidado, Cacau,
Tristan vai te pegar. Gaaaaah.
Cacau riu tanto que cenouras mastigadas saíram de seu nariz e
então, todos nós caímos na gargalhada. Os últimos dias foram difíceis,
então rir com os amigos — não importa o quão estranhos, pequenos ou
irritantes fossem — foi bom. Foi muito bom.
Eu vi algo se mover com o canto do meu olho e me virei para espiar
Amagqirha parada nas sombras. Ela acenou para mim e fiz uma careta.
O que eu fiz agora? Ela gesticulou novamente, colocando um dedo sobre
os lábios, e eu me virei para o grupo e limpei a garganta.
— Eu, uh, tenho que ir ao banheiro. Já volto.
— Rapaz, ninguém liga. — Bebê Chiclete gritou. — Vá fazer suas
necessidades e deixe nós, a galera maneira, em paz. — Ela se ergueu
novamente. — Tristan precisa ir…
— Tudo bem! — Gritei, tentando não sorrir. Caminhei até
Amagqirha. Ela subiu a rampa inclinada que circundava as paredes de
Isihlangu. Subimos em silêncio e observei a festa continuar abaixo de
nós, com as pessoas dançando e cantando. Era uma bela visão, e o fato
de que as pessoas da Terra Média e da Crista estavam aproveitando a
companhia juntas me fez sentir que ficariam bem. Por enquanto, pelo
menos.
De repente, percebi o quão alto estávamos subindo.
— Hum, para onde estamos indo?
Amagqirha apontou para o Átrio acima de nós e olhou para mim.
— Tenho que te mostrar algo.
Finalmente alcançamos a pesada porta de pedra do Átrio, que
agora estava fechada e flanqueada por dois guardas. Eles deslizaram
para o lado a complicada série de fechaduras magnéticas e a abriram,
permitindo que a profeta entrasse. Ela acenou para que eu entrasse.
Pensei em voltar para a festa, mas não fui criado para ser rude com
os mais velhos (obrigado, mãe). Entrei e os guardas fecharam a porta
atrás de mim, deixando-nos sozinhos. Eu deixei meus olhos se ajustarem.
— Meu santo pêssego — falei em um sussurro.
Estávamos em um cubo perfeito de pedra polida. As paredes de
obsidiana negra refletiam o brilho prateado fraco vazando de um
recipiente fechado em forma de concha no topo de um pedestal. O que
quer que estivesse dentro era a única coisa iluminando a sala, e deu ao
rosto de Amagqirha um olhar assombrado quando ela se aproximou e
sussurrou uma ordem. A luz dentro acendeu quando a concha se abriu.
— Pode se aproximar. — Ela me disse. Tufos de cabelo grisalho
escapavam das tranças sob seu xale frisado, e mais rugas do que eu
pensava ser humanamente possível revestiam seu rosto.
Ela grunhiu algumas vezes, e percebi que ela estava rindo.
— Acha que sou muito velha, garoto?
— Não, senhora — falei imediatamente, tentando não encarar.
— Mentiroso.
Ela mexeu as mãos no ar acima do pedestal, então me fez um sinal
para chegar mais perto.
— Olhe.
Subi três degraus, olhei para dentro do contêiner e meu queixo caiu
no chão.
— Isso é que eu acho que é?
— Depende do que você acha que é.
— Uma Caixa de Histórias?
Ela assentiu com a cabeça.
— A Caixa de Histórias do Povo da Crista.
Um baú brilhante prateado e preto repousava sobre um travesseiro
de cetim preto. Era um octógono perfeito, os oito lados unidos nos cantos
por costuras onduladas de prata. Padrões gravados na parte superior e
nas laterais brilhavam com luz de vez em quando, como se contivesse
energia muito poderosa para ser contida.
A Amagqirha continuou.
— Quando o deus do céu negociou sua Caixa de Histórias dourada,
ele tornou seus contos disponíveis para todos consumirem. Mas logo as
diferentes terras de Alke descobriram que algumas histórias são muito
potentes para serem trocadas livremente por pessoas comuns. Os
significados dos contos podem ser distorcidos se forem compartilhados
sem orientação. Anansi percebeu isso quando recebeu seu prêmio de
Nyame, então ele criou os Anansesem, seus oradores campeões, como
você, para levarem suas fábulas por toda parte. Os outros reinos, eles
não tinham tais campeões. Então, construíram Caixas de Histórias
parecidas com a original para proteger o poder das histórias que
coletaram. Mas nenhuma era como a primeira. Nenhuma poderia conter
todas as histórias. Apenas Nyame tem esse poder.
Ela fez uma pausa e sorriu para mim.
— Abra — falou
Não precisava dizer duas vezes. Estiquei a mão e… ela me deu um
tapa.
— Ai! — Chacoalhei a mão. — O que foi...
Ela balançou um dedo.
— Eu disse para abrir.
— Era o que eu ia fazer! — Reclamei.
Amagqirha balançou a cabeça.
— Qualquer garoto com dedos sujos pode encostar nela. Só você
pode abri-la. Você é Anansesem, aja como tal.
Cara, eu sempre levo bronca, não importa em que mundo eu esteja.
Mas respirei fundo e me concentrei. Depois de um momento procurando
as batidas e o ritmo da história, eu senti — o formigamento familiar. A
melodia elétrica cresceu na ponta dos meus dedos e, quando não
consegui mais segurar, deixei escapar um sussurro.
— Era uma vez, digamos que um garoto podia voar…
Quando as palavras saíram da minha boca, a Caixa de Histórias
prateada brilhou tanto que meus olhos doeram. Quando consegui
enxergar novamente, Amagqirha havia enrolado a manga em seu braço
esquerdo e estava cavando dentro do baú, a tampa agora aberta.
— O que você está fazendo? — eu perguntei, esfregando meus
olhos.
— Você vai ver.
Ela puxou algo do baú, grunhiu de aprovação e fechou a caixa de
histórias com força. Eu fiz uma careta — não tive a chance de olhar lá
dentro — mas ela me ignorou e começou a moldar algo em suas mãos,
sussurrando palavras estranhas sobre elas.
— O que você…?
— Eu disse que você vai ver. — Ela olhou para mim, então voltou
para sua atividade misteriosa. Depois de vários minutos, ela se
endireitou, examinou o que quer que fosse que ela havia feito e acenou
com a cabeça. — Servirá.
Ela estendeu sua mão.
— Sua pulseira.
— Oi?
— Sua pulseira com os pendentes. Passe para cá.
— Mas...
Ela estreitou os olhos e minha reação padrão era fazer o que me
mandaram. Desamarrei a pulseira e a segurei, e ela a agarrou rápido
como um raio. Amagqirha tinha uma força danada. Ela se curvou e
murmurou para si mesma e juro que vi símbolos de prata gravados no ar
antes de desaparecerem em uma nuvem de fumaça. Finalmente, ela se
voltou para mim.
— Aqui.
Peguei a pulseira e a segurei, apertando os olhos na luz fraca. Ela
a amarrou com uma pequena bola de prata, que se aninhava entre os
dois adinkras.
— Uma pérola? — Qual é dos alkeanos e suas joias?
— Um talismã, garoto. Para proteção.
— De quê, uma trança solta?
Amagqirha franziu os lábios.
— Seria sensato levar isso a sério. Algo está vindo. Algo que você
já viu antes, mas ainda sim nunca viu algo parecido. Você sabe de quem
estou falando, mesmo que não o tenha mencionado aos anciãos.
A gargalhada do Tio A ecoou em meus ouvidos e eu estremeci.
— Eu sei.
— Então você sabe que ele traz dor. Ele traz terror. Traz sofrimento
e destruição. O horror no qual ele cavalga, o velho mal que ele expulsou
do Mar Flamejante, irá trazer a morte para todos nós.
As palavras morte para todos nós ecoaram pela sala.
— Você precisará de toda a ajuda que conseguir se quiser derrotar
os dois.
Eu encarei a miçanga.
— Se? E não quando eu os derrotar?
— Se parece mais apropriado.
— E quanto a Anansi? Ele vai…?
A Amagqirha suspirou e se apoiou no pedestal, e em seu brilho eu
pude ver o quão velha e cansada ela realmente estava.
— Fechar o rasgo no céu, derrotar os monstros de ferro… Isso é
apenas o começo. — Seus olhos queimaram os meus. — Os anciãos
viram. Eu vi. Se você não tiver sucesso, uma guerra terrível acontecerá.
Este talismã fornecerá ajuda quando você precisar.
— Irá se transformar em um escudo ou em uma espada? —
Coloquei a pulseira e prendi-a.
— Não, ela vai ajudá-lo a se comunicar com o...
— Ai! — Pulei para cima e para baixo e balancei meu braço. Uma
dor aguda e intensa percorreu meu pulso, e virei-o para ver o adinkra de
Anansi brilhando em um tom laranja-avermelhado. Uma bolha já havia
começado a se formar onde havia queimado minha pele.
— O que foi? — perguntou Amagqirha.
— O pingente de Anansi — disse, estremecendo. — É… — Meus
olhos se arregalaram e eu inalei rapidamente. Antes que eu pudesse
explicar, no entanto, um som estrondoso sacudiu a montanha, fazendo
com que pedaços de rocha caíssem e nós dois tropeçássemos. O
pedestal com a Caixa de Histórias começou a afundar no chão, e um
estrondo baixo vibrou no ar.
— O que está acontecendo? — eu gritei.
O rosto da Amagqirha ficou pálido e ela agarrou meu pulso e me
puxou para a porta.
— Algo ativou as sentinelas — ela disse severamente. — Estamos
sendo atacados.
O TREMOR CONTINUOU ENQUANTO corríamos encosta abaixo.
Eu estava com medo de que Amagqirha ficasse para trás, mas tive que
correr para acompanhá-la enquanto ela corria à frente, levantando as
saias para que não se arrastassem. Contornamos as curvas, mal ficando
de pé enquanto os tremores sacudiam a montanha.
— O que está acontecendo? — Gritei depois que um tremor me fez
cambalear contra a parede.
Amagqirha me puxou para cima.
— Isihlangu está revidando.
Um nó de medo cresceu em minha garganta. O que poderia ter feito
as defesas da Crista ficar a todo vapor? Algemados? Nem mesmo os
chefões teriam chance contra as gigantescas torres flutuantes que
protegiam as bases. Seriam esmagados antes mesmo de chegarem
perto.
Então, o que poderia ter entrado numa montanha apelidada de
Escudo?
Algo em mim ainda esperava que fosse apenas um alarme falso.
Quer dizer, disparamos um alerta quando entramos. Talvez algum outro
grupo de Povos Médios desesperados tivesse vindo buscar a Caixa de
Histórias.
Aham, tá bom.
Finalmente voltamos à câmara central, que estava um caos. As
pessoas corriam para a esquerda e para a direita, em busca de kieries e
antepassados, enquanto tentavam evitar mesas e cadeiras caídas. Os
guardas zuniam no alto enquanto corriam para seus postos. As crianças
agarravam os irmãos mais novos e fugiam para a segurança de suas
casas, onde portas de pedra se fechavam e lacravam em raios de luz
prateada.
— Tristan!
Ayanna e Thandiwe estavam agachadas atrás de uma barricada
improvisada de mesas salpicadas de comida. Bebê Chiclete estava em
cima de uma, gritando insultos para os possíveis intrusos, enquanto
Cacau recitava nervosamente as estatísticas dos monstros de ferro sem
parar. A Caixa de Histórias vazia de Nyame repousava ao lado delas, tão
enfadonha e encardida quanto antes. Corri até elas e me joguei no chão.
— Onde você estava, seu…?
Amagqirha se agachou ao nosso lado, e qualquer insulto que
Ayanna iria lançar contra mim se dissolveu em um tom ressentido.
— Só… não nos assuste assim mais. Em um minuto estávamos
comendo juntos, e no seguinte você saiu e a montanha começou a
tremer.
— Amagqirha disse que poderiam ser alguns dos lasers de pedra
— falei
A velha olhou para Thandiwe, que assentiu com a cabeça e mordeu
o lábio.
— Ela está certa — disse a guerreira da Crista. — Mas não são
apenas algumas. Todas as sentinelas foram ativadas de uma vez. O que
quer que esteja lá fora é grande. Muito grande.
Como se suas palavras sinalizassem o próximo estágio do ataque,
as gigantescas portas duplas de pedra para a câmara estremeceram
quando algo se chocou contra elas. As pessoas começaram a gritar e
Thandiwe fez uma careta e puxou seu kierie e sua lança. Ayanna tirou
seu bastão do coldre — em algum momento os guardas da Crista
devolveram sua arma/remo para ela.
E eu?
Ora, eu tinha uma pulseira chique!
A expressão no meu rosto deve ter sido fenomenal, porque
Thandiwe riu e estendeu seu porrete para mim.
— Aqui — ela disse. — Tente ser útil.
Comecei a pegá-lo, mas pensei em algo.
— Não, estou bem.
Ela franziu a testa enquanto eu puxava as luvas que John Henry
havia me dado. Quando as coloquei, o símbolo do martelo acima dos nós
dos dedos brilhou. Eu sorri para Thandiwe.
— É melhor continuar com o que eu já estou acostumado.
Ela ergueu uma sobrancelha e se virou. Eu deixei o sorriso
desaparecer, mas as palavras ficaram comigo. Eu era bom no boxe. A
convicção me surpreendeu, mas eu honestamente acreditava que o que
quer que viesse, eu poderia enfrentar com os dois punhos erguidos.
BOOM!
As portas de entrada principal cederam. Algo enorme se movia do
lado de fora — eu peguei alguns vislumbres nas rachaduras crescentes.
Grande, determinado e zangado. Uma mão gigante de três dedos feita
de madeira podre e metal enferrujado apareceu na borda da porta. Ele
arrancou um pedaço de pedra, como uma criança de três anos agarraria
um pedaço de bolo e o jogou para dentro.
Me encolhi quando a pedra quicou perto de nós com um estrondo
no chão.
— O que é isso aí fora?!
— Não sei — sussurrou Thandiwe, com o rosto tenso. — Vamos
torcer para que os guardas consigam...
Um punho bateu, alargando o buraco, e o guincho de mil correntes
raspando juntas apunhalou nossos ouvidos, forçando todos a se curvar e
apertar os ouvidos.
— Devíamos sair de fininho por onde entramos! — Ayanna gritou.
Ela apontou no meio da parede da montanha, em direção ao túnel do
bonde. — Não vamos fazer diferença nesta luta. Podemos aproveitar a
vantagem e voltar com Nyame antes mesmo que esses monstros notem
que partimos. Thandiwe, você pode vir conosco.
Thandiwe fez uma careta. Ela não parecia gostar da ideia de deixar
seus conterrâneos lutarem sem ela, mas também não discutiu. Fazia todo
o sentido do mundo. Poderíamos escapar e estaríamos mais próximos de
salvar a Terra Média. Esse era o objetivo, certo? Certo?
E mesmo assim...
— Não — falei, olhando para a Amagqirha. — Não podemos.
— Como assim não podemos? — perguntou Ayanna. — Tristan,
esta é a nossa chance.
Cacau continuou.
— Ela está certa. Se não sairmos agora, podemos ficar presos aqui.
Eu balancei minha cabeça.
— Não. Não podemos simplesmente deixá-los em apuros. Eles nos
ajudaram e…
— Talvez vocês devessem ir. — Thandiwe interrompeu. Eu olhei
para ela com surpresa e ela agarrou seu kierie e sua lança com força. —
A Crista consegue aguentar. Vai ser difícil, mas meu povo pode lutar
contra eles. Seu povo precisa de você.
— Não! — eu balancei minha cabeça. — Não abandonamos
amigos.
Ayanna gemeu.
— Por que você tem que bancar o herói no pior momento possível?
Mais marteladas e arranhões na porta interromperam a discussão.
Engoli em seco e me virei para a Amagqirha.
— Você devia ir para algum lugar seguro. E leve a caixa de histórias
vazia de Nyame, só por precaução.
Ela me estudou, então assentiu com a cabeça.
— Vou guardá-la com... o que te mostrei. Estará mais seguro lá. —
Ela agarrou o caixote surrado e trotou em direção à rampa para o Átrio.
Depois de alguns passos, ela se virou. — Há força em não lutar, Tristan.
Lembre-se disso. — E então ela prosseguiu.
Um rugido alto explodiu do lado de fora do corredor e, com um golpe
final, as portas desabaram em pilhas de escombros. Algemados
invadiram.
— Estão vindo! — Gritei. — Tomem cuidado com o grande… seja
lá o que for aquilo. — Mas ele ainda não tinha entrado na câmara.
— Uma coisa de cada vez — disse Thandiwe.
— Certo. — Me abaixei quando um algemado saltou sobre mim,
então o esmaguei em pedacinhos com um soco cruzado da direita. —
Apenas me avise quando eu precisar me concentrar na coisa com a mão
do tamanho de um carro.
Um grupo de algemados correu pelo chão aberto em direção a
Thandiwe e a mim enquanto protegiamos nossas amigas e outras
pessoas agachadas atrás da mesa virada. Cerrei os punhos e fiquei em
posição, mas antes que pudesse balançar novamente, Thandiwe gritou e
acertou três do outro lado da sala com seu porrete. Outro tentou contornar
a borda da mesa, mas o cajado de Ayanna, brilhando com luz dourada,
golpeou e espetou-o na gola até que se desintegrou em um tilintar de
fragmentos enegrecidos.
Uma ovação subiu quando o último algemado foi espetado por uma
lança do guarda da Crista. Eu não participei. Aquilo não tinha acabado —
não estava nem perto.
— Ei! — Bebê Chiclete gritou. — É só isso? Deixem um pouco de
glória para a Bebê Chiclete! Vocês estão sendo gananciosos.
Assim que ela falou, um rosto — se é que se pode chamar disso —
abaixou-se até a porta e estremeci com a visão da boca retorcida de
tábuas de madeira lascadas e correntes com nós. Ele rugiu e o cheiro de
água com peixe fez meu estômago revirar. A boa notícia era que a
criatura parecia muito grande para entrar na sala. Como ele tinha entrado
na montanha eu não fazia ideia. A má notícia era que outra onda de
algemados passou por baixo dela, seguidos por um chefão. Eu gemi.
— Você tinha que abrir a boca.
Bebê Chiclete sorriu de orelha a orelha.
— Só fique quieto atrás da Bebê Chiclete. Bebê Chiclete vai te
proteger. — Ela girou no ar pousando nas costas de um algemado, puxou
as mãos algemadas para trás da cabeça e as usou como rédeas. — Irra!
Bebê Chiclete está a caminho!
— Tome cuidado! — Eu gritei, e então tive que dar um passo para
o lado quando dois algemados agarraram meus pulsos. No momento em
que esmaguei o primeiro e lancei o segundo no ar com meus punhos,
Bebê Chiclete e sua montaria estavam galopando ao redor, atirando
bolas de seiva em qualquer coisa que se movesse.
A monstruosidade do lado de fora da porta tentou aumentar a
abertura da porta, enquanto do lado de dentro, o chefão alternou entre
incomodar meia dúzia de guardas da Crista e limpar os escombros da
porta. Se os dois tivessem sucesso…
— Princesa! — Um guarda desceu de um trilho até uma parada
flutuante cerca de trinta centímetros acima do solo, seu antepassado
zumbindo enquanto ele se equilibrava nele. — As forças do Escudo foram
convocadas. Precisamos segurar o inimigo só por mais alguns minutos.
Thandiwe assentiu com a cabeça, e o guarda voou para se juntar a
um esquadrão que zumbia ao redor da cabeça do algemado-chefe, dando
golpes que não pareciam intimidar o monstro.
— Princesa? — perguntei.
— Calado — disse. Ela puxou o antepassado de seu pulso e o
mudou de um escudo para o modo de flutuação normal. Ela deu um passo
e acenou para que eu me juntasse a ela.
— Venha — disse Thandiwe.
Eu dei uma olhada na prancha.
— Não.
— Agora, Tristan. Temos que esperar até que as forças do Escudo
cheguem aqui. Se essa... criatura continuar cavando, não teremos
nenhuma chance.
Bebê Chiclete passou galopando, ainda cavalgando em seu
algemado, comemorando e gritando.
Rosnei, então agarrei a mão estendida da Thandiwe e subi a bordo.
— Tudo bem, mas é melhor você ir… — A prancha disparou para a
frente na grade mais próxima, e eu mal tive tempo de recuperar o
equilíbrio. — Devagaaaaaaaar!
Escalamos alto no ar, entrando e saindo das estalactites
penduradas no teto rochoso, e eu murmurei orações em sete idiomas
diferentes enquanto circulávamos por dentro de Isihlangu em seus trilhos
espirais cintilantes. O grande salão da fortaleza girava em ação, e de
nossa posição vantajosa podíamos ver tudo. O Povo da Crista fugia pelos
caminhos circulares em espiral ao redor das paredes, tentando entrar em
suas casas antes que algemados os pegassem. Os guardas andavam
em seus antepassadoes como skatistas profissionais, mudando as
pranchas alkeanas de um trilho para outro tão rápido que Tony Hawk
ficaria com inveja. O chefão escalou o palco de pedra no meio da sala e
gritou.
Tínhamos que fazer algo ou seríamos derrotados. Eu apontei para
o elo da corrente logo abaixo da cabeça do algemado-chefe.
— Lá! — Gritei. — Temos que acertar lá, é um ponto fraco!
Thandiwe assobiou, e os guardas da Crista se afastaram do
monstro de ferro e entraram em formação atrás dela, todos alinhados na
mesma fila. Ela apontou para mim.
— Sigam a liderança dele. Onde ele atacar, nós atacamos.
Entenderam?
— Sim, princesa! — Todos gritaram, e eu levantei uma sobrancelha.
— Concentre-se. — Ela rosnou, entregando-me seu porrete. — E
prepare-se. Nós atacamos… agora!
O antepassado mergulhou e eu dei um grito de guerra. Soou
heroico, mas honestamente, era um grito de terror. Todo mundo estava
contando comigo, então eu agarrei a kierie com uma das mãos, segurei
Thandiwe com a outra, e quando o chefão empinou na nossa frente, eu
balancei com todas as minhas forças.
CLANG!
Meus braços tremeram com o impacto. Nós passamos zunindo,
arqueando de volta no ar, e os guardas seguiram meu ataque com o seu
próprio.
— Mais uma vez! — Gritei por cima do ar agitado. — Ele ainda está
de pé.
Mergulhamos repetidas vezes, impedindo que o algemado-chefe se
concentrasse na porta. Ele guinchou e nos atacou. Uma de suas
correntes prendeu um guarda e ele caiu gritando no chão. Outro golpe
fez com que mais dois caíssem em espiral e, de repente, éramos apenas
Thandiwe e eu.
Mas o chefão também havia sofrido. Ele ignorava completamente a
porta e balançava suas correntes enroladas. No chão, Ayanna e Bebê
Chiclete seguravam um enxame de algemados, mas mais estavam
entrando. Eles cercaram as defesas e meus amigos.
— Precisamos nos apressar. — Gritou Thandiwe. — Ayanna está
em apuros!
— Mais um ataque deve bastar — eu disse, determinado a acabar
com isso. — Ele está cambaleando. Se conseguirmos...
Mas não consegui terminar a frase.
As portas se dobraram para dentro e as vigas de madeira da
moldura rangeram como se estivessem segurando muito peso. Em uma
explosão de poeira e pedra, o maior monstro de ferro que eu já vi abriu
caminho através da porta desmoronada, pisoteando o chefão ferido no
processo.
-

ALGUMAS COISAS NÃO DEVEM EXISTIR.


Você me entende?
Esta criatura, cara... esta criatura era uma coleção de podridão em
quatro patas. Sim, quatro patas. Mais dois braços enormes que raspavam
o chão de pedra enquanto se movia para o corredor. Suas extremidades
eram vigas de madeira encharcadas entrelaçadas com algemas de metal,
as amarras de ferro revestindo seus membros como veias. Um pedaço
de um mastro grosso servia de cabeça, com olhos tortos feitos de vergas
de ferro enferrujado. O torso, uma enorme estrutura deformada de um
velho navio, balançou e esguichou enquanto caminhava e gotejava uma
trilha verde úmida de algas atrás dele. Era do tamanho de um elefante e
igualmente intimidante.
E o cheiro. Santo Deus.
Pântanos, peixes mortos, suor, banheiros sujos e um cheiro
horroroso da cabeça aos pés. Ele tomou conta de nós e ouvi mais do que
algumas pessoas tendo ânsia e vomitando, incluindo alguns guardas em
seus antepassados.
— O que é essa coisa? — Thandiwe engasgou, segurando o nariz.
— Eu... eu não sei, mas precisamos nos reagrupar — eu disse.
— Sim... sim, acho que você está certo.
Descemos rapidamente e, antes que o antepassado chegasse ao
chão, saltei e derrapei até parar ao lado de Ayanna.
O monstro caminhou pesadamente para o meio da sala, jogando os
guardas para os lados à esquerda e à direita. Manteve uma mão em seu
peito inchado, mas a outra esmagou pessoas, pilares e móveis
semelhantes. Ele bateu no chão duas vezes com um punho, então soltou
um rugido que quase nos jogou para o outro lado do corredor.
Bebê Chiclete cavalgou seu algemado até nós, tirou o braço e deu
uma surra no monstro de ferro com seiva. Ela apontou para a criatura
gigante e disse:
— Vocês vão cuidar disso ou a Bebê Chiclete tem que fazer tudo?
Ayanna a ignorou e virou-se para mim.
— Nós ainda temos tempo. Podemos escapar pelo túnel do bonde,
a jangada está lá em cima.
Hesitei, depois balancei a cabeça.
— Não, não podemos sair até que os reforços cheguem. Os
monstros vão destruir este lugar.
— Não, veja, estive pensando. E se eles estiverem nos seguindo?
Eu afastei meus olhos do monstro, que estava batendo nos
guerreiros da Crista perto de sua cabeça como se fossem mosquitos, e
olhei para Ayanna.
— O quê?
— Os algemados, os chefões, agora essa coisa, e se eles estiverem
nos seguindo? — Ela colocou uma mecha de cabelo atrás da orelha e
agarrou meu braço. — Estaríamos ajudando se partíssemos! Certo?
— Mas por que eles ...?
— Porque estamos tentando impedi-los, porque você é um
Anansesem, porque eles nos odeiam, não sei! Mas faz sentido.
Thandiwe começou a recuar.
— Eu acho... acho que deveríamos…
— Consegui! — Cacau interrompeu. Ela pulou nas patas traseiras
e ergueu uma única folha de papel. — Encontrei uma lista de monstros
nas anotações de Anansi. Acho que sei o que é isso.
Todos nós nos amontoamos atrás de uma mesa de pedra lascada,
a maioria de suas joias quebradas ou perdidas, e ouvimos enquanto
nossa espiã coelhinha nos contava tudo.
— Feito de madeira podre e algemas abandonadas —, ela leu em
voz alta. — Preso por uma malevolência podre...
— Valência o quê? — Bebê Chiclete perguntou.
— MALEVOLÊNCIA! Mal! Preso por uma malevolência podre e
portador de doenças por meio de seus... Ah, não. — Cacau ergueu os
olhos e engoliu em seco. — Portador de doenças através de moscas-
marca, as moscas infestam seu corpo. Besta do Casco.
Ayanna entrou em pânico.
— Mosca-marca? Você disse mosca-marca? Tristan, precisamos
sair daqui. Precisamos ir agora!
Lambi meus lábios.
— Ok. Ok, vamos…
Um grasnido ensurdecedor encheu o salão. O monstro — a besta
do casco — colocou a mão livre de três dedos em volta da boca larga e
grasnou novamente. Algo voou no ar e pairou sobre todos. Um zumbido
encheu a sala.
Cacau pulou nos braços de Ayanna e gritou:
— Cuidado! É uma mosca vasculhadora! Uma vez que se fixou em
você, toda a ninhada...
A mosca vasculhadora disparou e então mergulhou como um falcão
direto para nós. Ela pairou a alguns metros de distância. Duas antenas
de metal balançaram para nós — não, balançaram para mim — e
começaram a choramingar.
E quando digo choramingar, não quero dizer como sua priminha
quando ela está reclamando que você não vai deixá-la te maquiar. Quero
dizer, como um mosquito passando perto do seu ouvido. Mas pense em
um mosquito do tamanho de uma águia. E feito de metal enferrujado.
Deu para ter uma ideia?
Eu finalmente entendi porque os deuses não conseguiram chegar
perto da fenda flamejante. Com enxames dessas coisas enchendo o céu,
eles não teriam apenas que se preocupar em serem queimados pelo
fogo, também teriam que ficar de olho em insetos venenosos pré-
históricos grandes.
Maravilhoso.
O som de choramingo encheu o salão e Ayanna puxou meu braço.
— Agora, Tristan! Precisamos sair agora!
Todos saímos correndo para a rampa, mas então senti um
formigamento nas mãos e parei para olhar para trás.
O gigante monstro de ferro abriu amplamente a boca — mais larga
do que uma boca deveria, jamais abrir — e berrou, permitindo que um
turbilhão de moscas-marca gotejando com veneno verde irrompesse de
sua boca.
Não para mim, no entanto. Em direção a Ayanna.
— Não! — Eu gritei.
Gritos horrendos encheram a montanha. Os insetos de metal
enxameavam como abelhas em um piquenique. Em todos os lugares que
uma mosca-marca pousava, a pele chiava e se soltava. As vítimas
tentaram arrancar as moscas, mas qualquer que fosse o tipo de veneno
que aqueles monstros de ferro voadores carregavam, era potente. Depois
de algumas tentativas fracas de se libertarem, as pessoas da Crista
desabaram no chão, paralisadas. Algemados colocaram algemas em
torno de seus pulsos e tornozelos e os puxaram para fora da porta. A
besta do casco pegou mais pelos punhos e os jogou em seu torso
inchado.
Virei em círculos, atordoado.
Thandiwe e Ayanna foram cercadas na rampa. Eu as observei
balançar e se conectar, enviando inseto após inseto caindo no chão. Mas
haviam dezenas — não, centenas de insetos — tantos que logo eu não
conseguia mais ver as duas garotas.
Uma mosca-marca voou em meu rosto, mas pouco antes de
pousar, uma bola de seiva respingou em suas asas e ela caiu em uma
pirueta.
Bebê Chiclete tinha saltado no ar e pousado no meu capuz bem a
tempo.
— E então? Anda logo, a Bebê Chiclete não tem o dia todo.
Eu corri em direção à rampa. Um inseto passou zunindo pela minha
bochecha, me abaixei e ativei uma explosão de velocidade. Alguém gritou
atrás de mim e estremeci, mas não parei. Eu me amaldiçoei. Por que não
ouvi Ayanna antes?
Um grupo de pessoas da Crista tentou se barricar dentro de um
depósito perto da rampa sinuosa. Eles empilharam mesas, cadeiras e
antepassados na frente da porta antes de fechá-la. Pensei em tentar me
espremer para dentro com eles, mas então vi uma mosca-marca pousar,
enfiar as asas nas costas e se contorcer por uma pequena fenda na parte
inferior.
Parecia que os gritos vindos de dentro me seguiriam para sempre.
Abaixei minha cabeça e subi correndo a rampa. Bebê Chiclete
jogava seiva em qualquer coisa que chegasse perto demais. Algemados
estavam em nosso encalço, e ela acertou vários para trás com tiros
certeiros. Moscas-marca foram atiradas no ar, cada golpe pontuado por
um insulto.
Ping
— Você não é nada!
Ping
— Diga a eles que a Bebê Chiclete enviou você!
Ping
— Ai!
— Bem, mova sua cabeça grande, Língua Solta, a Bebê Chiclete tá
tentando salvar sua bunda esfarrapada.
Esfreguei minha nuca e continuei correndo. Tínhamos acabado de
dobrar a curva final, indo em direção à nuvem cada vez menor de moscas
perto da entrada do bonde, quando um grito cortou o ar.
Meu sangue gelou.
— Ayanna.
Várias moscas nos bombardearam à medida que nos
aproximávamos, e golpeei minha kierie emprestada como uma espada
de duas mãos, rebatendo-as. Mais se afastaram da nuvem em torno de
meus amigos, zumbindo e sacudindo e me mantendo longe. O chão
começou a tremer sob meus pés, e eu senti meus joelhos fraquejarem
quando uma nova horda de algemados carregou através da entrada
principal destruída. Alguns se separaram e agarraram pessoas da Crista
caídas — sem dúvida os arrastando de volta para o Maafa e o Tio A. O
resto disparou pela rampa atrás de mim e Bebê Chiclete.
Inimigos na frente.
Inimigos atrás.
Inimigos...
Uma mão de três dedos do tamanho de uma minivan caiu na rampa
entre nós e onde Thandiwe estava encolhida sobre Ayanna, golpeando
insetos de metal à esquerda e à direita. Eu não conseguia ver Cacau em
lugar nenhum. O rosto feio da besta apareceu por cima da saliência,
rosnando e cheirando a um banheiro de jardim de infância.
Bebê Chiclete puxou minha orelha.
— Língua Solta, a Bebê Chiclete com certeza espera que você
tenha um plano. Porque, hm... não está parecendo bem.
Ouvir essa nanica boca aberta, que normalmente é impetuosa, tão
preocupada me fez perceber o quanto estávamos em apuros.
Como se o enorme monstro de ferro não tivesse deixado isso claro.
Algemados guincharam e trovejaram subindo a rampa. As moscas-
marca mergulhavam e voavam, zumbindo no alto.
Thandiwe encontrou meus olhos quando me agachei com sua
kierie, preparando-me para fazer nossa última resistência. Tenho certeza
de que meu rosto parecia tão desesperado quanto o dela. Haviam muitos
deles, e não o suficiente de nós. Os reforços nunca chegaram. As
pessoas da Crista foram sedadas, arrastadas ou barricadas atrás de
portas de pedra. Estávamos sozinhos.
Batidas de tambor soaram, fracas e distantes, como se alguém
estivesse tocando em algum lugar em Isihlangu. Talvez fosse um pedido
de socorro.
A besta do casco ergueu o braço e facilmente afastou centenas de
moscas-marca. Mais duas oscilações e o ar ficou mais limpo.
Thandiwe deitou no chão, cobrindo Ayanna, protegendo-a das
moscas. Milagrosamente, embora dezenas e dezenas de insetos de
metal amassados estivessem espalhados ao redor da entrada dos
bondes, a pele da princesa estava limpa. Mas a de Ayanna...
— Não! — Eu gritei.
Quando os algemados viraram a curva final, corri em direção à
minha amiga ferida. Mas a besta do casco foi mais rápida. Seu braço
enorme se estendeu em direção às figuras de bruços e eu senti meu
coração apertar.
Eu não ia conseguir.
A BATIDA DO BUMBO FICOU MAIS ALTA, e o som de asas
batendo passou flutuando por minha orelha com uma brisa fraca.
Enquanto a besta do casco alcançava meus amigos, enquanto
algemados me perseguiam e moscas-marca circulavam as luzes de jóias
de prata como abutres, os tambores batiam cada vez mais forte, e eu
parei de correr.
Um corvo grasnou e um trovão retumbou, e todos em Isihlangu
congelaram ao mesmo tempo.
— Parece que você está com problemas, com certeza.
Grande John saiu da dobra das asas do Velho Familiar, seus
passos enviando pequenos redemoinhos de poeira rodopiando pela
rampa. Em uma mão ele segurava um machado com uma cabeça que
brilhava como um carvão vermelho raivoso. Juro que vi um rosto piscando
para mim.
— Você voltou — eu meio que acusei, meio que chorei.
— Pensou que eu não iria?
Eu não respondi. Em vez disso, apontei para onde Ayanna e
Thandiwe jaziam logo após o braço imóvel da besta do casco.
— Por favor, você precisa ajudá-las! Ayanna foi marcada, e talvez
Thandiwe também, e eu não consigo ver se elas estão se movendo, e a
fera vai engoli-las e arrastá-las para longe se nós não…
— Ok, ok — Grande John disse. — Nós vamos fazer isso juntos.
Tudo bem?
Eu respirei fundo, depois mais uma vez, e balancei a cabeça.
Grande John sorriu, me deu um tapinha no ombro, recuou e se virou para
encarar a fera do casco. Ele olhou para ela e deu um tapinha na cabeça
do machado.
— Ok, amor, parece que precisamos trabalhar novamente. —
Grande John deu alguns passos para trás, descendo a rampa até onde
os algemados estavam suspensos no tempo. Ele acenou para que eu o
seguisse. — Venha me ajudar com essas engenhocas sofisticadas, deixe
o Velho Familiar cuidar dessas moscas venenosas e meu machado vai
cuidar daquele gigante ali, com certeza.
— Seu machado vai...?
Minha voz sumiu quando Grande John jogou o machado no ar E
ELE FICOU LÁ.
Lambi meus lábios.
— Ela deu a John um machado mágico — recitei.
— Ei, olha aí eu conheço essa história.
— Não acredito que é verdade! — Uma das muitas histórias que
vózinha costumava nos contar sobre Grande John era como ele se
apaixonou pela filha do diabo. Para ganhar a mão dela, o diabo disse que
ele tinha que limpar um campo enorme, plantar milho e depois colher,
tudo em um dia. A filha do diabo, apaixonada pelo homem, deu a Grande
John um machado mágico e um arado para completar a tarefa.
— Onde está o arado? — Perguntei.
Grande John ergueu uma sobrancelha.
— Você quer que eu plante alguns monstros de ferro?
— Não, acho que não faria sentido.
— Eu acho que não. Agora, você tem mais perguntas ou podemos
continuar tratando do nosso negócio?
Eu levantei meus punhos e balancei a cabeça. Ele bufou, então
inclinou a cabeça para o Velho Familiar. O corvo gigante grasnou uma
vez e bateu suas asas enormes. O ar no grande salão tremeu e ondulou,
como um lago quando você joga pedras nele, e o mundo voltou à vida.
Os próximos minutos foram um borrão.
Eu soquei para a esquerda e para a direita, sem parar, derrubando
algemados da rampa ou esmagando-os na parede. Grande John dançou
entre os monstros de ferro, enredando-os enquanto se lançavam sobre
ele e deixando-os retorcidos em nós enferrujados, alvos suculentos para
meus ganchos e golpes no queixo. A rampa tinha largura suficiente para
que Grande John e eu a defendêssemos. Nada passou por nós.
Chop chop chop
O machado de Grande John foi trabalhar na besta do casco. Tive
um vislumbre uma vez quando me afastei de um ataque. Não foi bonito.
Você já viu um galho preso embaixo de um cortador de grama? Ou galhos
de árvores alimentados em um picador de madeira? Pois é.
Chop chop chop
Enquanto isso, o Velho Familiar gritava e caçava moscas-marca.
Embora os insetos se aglomerassem ao seu redor, o veneno não parecia
ter nenhum efeito sobre o pássaro das sombras — suas penas pretas
apenas o absorveram como tinta na página. Então, com um estalo de seu
bico, as moscas sumiram. Eu até consegui socar alguns algemados com
nós no ar e observei enquanto o Velho Familiar os atacava também.
— O último — Grande John chamou, chutando um emaranhado de
algemados se contorcendo e gritando pela rampa em minha direção. Eu
os avaliei, agarrei as duas mãos juntas como um porrete e sorri.
— À frente! — eu gritei, em seguida, afastei os monstros de ferro
da rampa.
— Boa!
Eu sorri, mas o sorriso sumiu do meu rosto quando ouvi um gemido
de dor.
Grande John e eu subimos correndo a rampa, chutando para o lado
moscas-marca danificadas e deformadas e paramos ao lado de
Thandiwe. Cacau deitou no peito de Ayanna, ouvindo. A pequena
coelhinha levantou a cabeça lentamente, como se pesasse o dobro do
normal, e seus olhos brilharam.
— Ela não está respirando — ela sussurrou, e meu sangue
congelou.
— VOCÊ PODE AJUDÁ-LA? — eu perguntei. Minha voz falhou e
nem me importei.
Grande John parecia preocupado enquanto puxava o saco de
raízes do pescoço e o colocava acima do coração de Ayanna.
— Este veneno não é algo do corpo.
— O quê?
Ele apontou para as marcas que marcavam sua pele negra —
vergões roxo-azulados escuros e raivosos.
— Sem febre, sem espasmos, apenas essas marcas, parecendo
que sempre estiveram aí. Ela ainda está viva, mas... — Ele balançou a
cabeça. — Isso está além da minha imaginação, eu acho. Vou tentar, no
entanto. Só não aqui. Preciso do Velho Familiar para isso. Vamos lá. —
Ele pegou Ayanna nos braços e saiu da borda da rampa.
Thandiwe engasgou, depois novamente quando o Velho Familiar se
ergueu no ar com Grande John em suas costas. Eu imediatamente pulei
também, com Bebê Chiclete no meu capuz.
Thandiwe respirou fundo.
— Você precisa da minha ajuda — disse ela, mais para si mesma
do que para mim. — Essa luta não acabou — Ela prendeu seu
antepassado no braço, pegou Cacau e se juntou a nós.
Consegui sorrir — sair de casa não era uma escolha fácil de fazer
— mas meus olhos nunca deixaram Ayanna.
Thandiwe se acomodou atrás de mim e me fez uma pergunta.
— O quê? — eu não a tinha ouvido. Minha atenção estava em
Grande John quando ele deitou Ayanna na parte mais larga das costas
do corvo gigante e a prendeu com uma corda.
— Achei que você não gostasse de voar — murmurou Thandiwe,
olhando o Velho Familiar com cautela.
— Não gosto — foi tudo que eu disse.
— É melhor vocês segurarem firme — Grande John gritou de volta,
e então o corvo bateu as asas poderosas duas vezes e se ergueu no ar.
— Tristan! Espera!
A Amagqirha acenou do chão abaixo. Ela subiu no palco com a
Caixa de Histórias de Nyame nos braços. O Velho Familiar caiu em uma
espiral e eu alcancei o agora irrelevante pedaço de lixo quando chegamos
perto o suficiente.
Mas, em vez de me dar, ela o largou e agarrou meu pulso.
— Que seus ancestrais os guiem. E lembre-se: Alke inteira está
com você — Seus olhos brilharam prateados, como os twists4 em seu
cabelo e as contas em torno de seus pulsos e tornozelos. Amagqirha deu
um passo para trás quando o Velho Familiar ergueu-se no ar novamente,
a caixa em suas garras, e voou para fora da entrada principal. Olhei por
cima do ombro para ver a profeta segurando a mão em despedida
enquanto ela, as pessoas da Crista e a montanha em que viviam
diminuíam à distância.
Thandiwe, sentado perto das penas da cauda do corvo gigante das
sombras, embalou Cacau, que parecia estar dormindo. Bebê Chiclete
sentou-se no colo de Thandiwe ao lado da coelhinha e falou comigo sem
levantar os olhos.
— Cacau vai ficar bem, certo?
Ah, não.
— Ela está...? — Perguntei a Thandiwe.
— Parece que ela também foi picada — disse a princesa.
— Coelhinha estúpida — disse a boneca. — Bebê Chiclete deveria
ter estado lá, deveria tê-la protegido. A coelhinha não pode lutar, ela sabe
que não pode lutar. Por que ela pensou...? — Ela parou, cruzando os
braços e balançando a cabeça.
Eu não disse nada enquanto me ajoelhei aos pés de Ayanna e
segurei a corda amarrada em seus tornozelos. Lágrimas encheram meus
olhos. Tio A estava cumprindo sua promessa de tirar tudo de mim.
Nós disparamos da montanha como um foguete mirando nas
estrelas. Lá fora, o céu brilhava nas bordas, passando de um rosa rosado
acima de Isihlangu para uma mancha vermelha raivosa no horizonte
ocidental. O rasgo no céu havia se espalhado como uma rachadura no

4
penteado da cultura afro que consiste em duas mechas torcidas para formar uma trança.
para-brisa e fervia as terras abaixo com seu brilho. Apresse-se, então, e
nos tire de nossa miséria, eu disse silenciosamente para o haint.
Quando o Velho Familiar se endireitou, ouvi Thandiwe dizer atrás
de mim:
— Ancestrais, ajudem-nos.
A encosta da montanha abaixo do Escudo estava em ruínas. Cada
torre sentinela foi destruída. Fragmentos pretos brilhantes pontilhavam a
terra, piscando para nós enquanto voávamos acima. Fissuras profundas
corriam por metros, como se os monstros de ferro tivessem descarregado
sua fúria na própria terra.
Thandiwe assobiou de dor. Eu estava prestes a ir consolá-la quando
Grande John me chamou da frente do pássaro.
— Tristan, venha aqui? — Sua voz parecia calma. Tipo, muito
calma.
Eu me levantei e dei outra olhada ao redor. Thandiwe, lamentando
sua casa. Bebê Chiclete, sofrendo pela amiga. Cacau e Ayanna tentando
sobreviver. Todo mundo lutando para se agarrar a algo precioso,
correndo o risco de perdê-lo para sempre.
— O que está errado? — perguntei, cuidadosamente passando por
Ayanna e indo para Grande John.
— Duas coisas. — Ele limpou a garganta e falou em voz baixa. —
Ayanna está enfraquecendo rápido. Nada do que estou fazendo está
ajudando, garoto, com certeza não está. Estou tentando, mas acho que
não tenho magia para isso.
Enfraquecendo rápido. Suas palavras me deram um soco na
garganta e eu não consegui falar.
Grande John olhou para o sopé das montanhas.
— Ela não vai chegar à Terra Média, Tristan. Assim não. Mas…
Algo em sua voz atraiu meus olhos para os dele.
— Mas pode haver alguém, algumas pessoas, naquela cidade
alkeana brilhante lá.
Eu segui seu dedo enquanto ele apontava para o norte e oeste.
— Você quer dizer a Crescente Dourada?
— É essa mesmo. Conheço algumas pessoas que têm uma
conjuração mais forte do que eu. Pode ser que salvem nossa piloto se
pudermos levá-la a tempo.
Eu mordi meu lábio.
— Íamos ver Nyame de qualquer maneira. — Expliquei nosso plano
de pedir ao deus do céu que consertasse a Caixa de Histórias. Então eu
o estudei. — Você disse "duas coisas". Qual é a segunda?
Ele se agachou ao lado de Ayanna e apontou para a bolsa de magia
que colocara em seu peito.
— Como eu disse, isso não está fazendo muito. É para manter seu
espírito perto de seu corpo, ajudá-la a lutar contra qualquer veneno que
aquelas criaturas de metal colocaram em sua alma. Mas ela precisa de
mais, ela precisa da sua ajuda.
— O que eu posso fazer?
Ele deu um tapinha em um local ao lado de Ayanna.
— Sente-se um pouco. Fale com ela. Você tem o dom do deus
aranha, garoto. Pode ser que você possa alcançá-la onde a bolsa de
magia não pode.
— Você quer que eu conte uma história a ela? Que tipo?
— Basta falar com ela. E não importa muito para mim. Fale com a
alma dela, distraia-a da dor.
Falar com a alma dela. Certo.
Mas eu me sentei e balancei a cabeça.
— Farei o meu melhor.
Ele bateu no meu ombro e avançou para guiar o Velho Familiar.
Eu sentei lá, de pernas cruzadas nas costas de um corvo gigante,
olhando para a forma inconsciente da garota que estava me apoiando
desde o início. Sem perguntas, bem, muitas perguntas, mas nunca sobre
se ela deveria me ajudar.
O que dizer?
O que ele...? O que ele...? Eu cerrei meus dentes, forçando o nome
do meu melhor amigo de volta na minha cabeça. Eddie. O que Eddie diria
se estivesse aqui?
Eddie iria...
Ele…
Um sorriso lento cruzou meu rosto. Eddie se apresentaria.
Alke rolou embaixo de nós enquanto eu reunia minhas palavras. Os
picos enevoados de Isihlangu ocasionalmente apareciam à vista. O vento
empurrava e puxava os twists de Ayanna. Coloquei um solto atrás da
orelha dela e limpei a garganta.
— Ei. Sou... sou eu. — Respirei fundo. Eu não poderia perder outro
amigo. Eu simplesmente não conseguiria. — Grande John disse que
você... que você ainda está aí, que eu deveria falar contigo, como se você
pudesse me ouvir. Porque você pode me ouvir. Então... acho que vou
falar.
O Velho Familiar subia e descia a cada batida poderosa de suas
asas. O movimento para cima e para baixo me lembrou de um navio
lutando contra a corrente. Deveria ter me deixado nauseado e tenso como
normalmente deixa, mas meu medo por Ayanna superou meu medo de
altura.
— Você me perguntou por que... lá atrás... por que eu sempre
procuro uma chance de ser um herói. Bem… — eu inalei, sugando o
máximo de ar que pude, em seguida, soltei com pressa. — A verdade é
que a única vez que eu deveria ter salvado alguém, entrei em pânico.
Eu… estraguei tudo e ele… ele morreu. E isso me assombra. Essa falha
me assombra todas as noites.
Tio A achava que ele era inteligente. O haint me deixou com a única
memória que eu mais odiava. A memória da morte de Eddie. Bem, todas
as memórias têm um propósito… O que são memórias, se não histórias
que contamos a nós mesmos, certo?
— Estávamos voltando de uma viagem de campo ao museu —
continuei. — Em Chicago, no meio do inverno, as estradas estavam um
pouco congeladas. Estávamos tão perto de voltar para a escola, acho que
estávamos a apenas alguns quarteirões de distância, quando passamos
por uma ponte e batemos em um pedaço de chão com gelo. O ônibus...
o ônibus girou cento e oitenta graus e nós escorregamos para a outra
pista, bem no caminho de um caminhão.
Senti alguém se movendo ao meu lado no Velho Familiar, mas
naquele momento eu só pude ver flocos de neve escorrendo por uma
janela quebrada e luzes vermelhas piscando contra um céu cinza.
— O impacto quebrou a traseira do ônibus, onde estávamos
sentados. Sempre nos sentávamos no fundo para podermos bater nosso
papo de nerd sem que ninguém nos olhasse estranho. A porta de saída
de emergência foi arrombada, o chão estava rachado e o escapamento
estava entrando, dificultando a respiração. Mas eu pude ver... eu vi que
o ônibus estava pendurado na beira da ponte...
— Todas as crianças estavam berrando e eu ficava ouvindo adultos
gritarem: “Esperem, nós vamos receber ajuda, esperem.”
— Eddie estava no canto de trás, preso entre dois assentos, lutando
e não conseguindo se libertar. Ele me pediu para salvá-lo. “Tristan, puxe-
me para fora. Tristan. Tristan.” Eu ainda ouço sua voz. Ainda vejo sua
mão estendendo-se para mim. Não me mexi. Eu estava tão assustado.
Estava com medo de cair, de me afogar na água abaixo. Eu não queria
morrer. Não queria morrer, e isso é tudo que eu conseguia pensar, que
eu não queria morrer. E Eddie me chamava, e eu não queria morrer.
Lágrimas rolavam pelo meu rosto agora, e respirei fundo,
estremecendo. Eu finalmente olhei para cima.
Todos se agacharam por perto. Thandiwe com Bebê Chiclete no
ombro e Grande John segurando uma Cacau inconsciente.
— Que grande herói, certo? — Eu disse.
— Tristan, não foi… — ele começou, mas eu o interrompi.
— Não me venha com esse papo. Não mesmo. Vocês adultos são
rápidos para dizer algo assim. “Ah, não foi sua culpa.” Não minta para
mim, Grande John. Dê-me isso, pelo menos.
O silêncio seguiu o desabafo e me concentrei em minha respiração.
Dentro e fora. Dentro e fora.
Grande John sentou-se e colocou Cacau no colo. Uma pequena
bolsa pendurada em seu pescoço — mais do seu remédio de magia. Ele
suspirou e virou-se para mim.
— Tudo bem. Acho que posso pelo menos ser honesto, com certeza
posso. Você poderia ter salvado seu amigo? Talvez sim. Mas esse talvez
não vai mudar nada. Você não pode viver sua vida com a dor sussurrando
em seu ouvido, puxando você para um lado e para outro. Mas também
não pode enfiá-la em uma gaveta dentro de você. Não, você tem que
sentir a tristeza e conversar com ela. Escutá-la. Aceitá-la. A dor é a
maneira que o corpo diz que está curando, então você tem que deixá-lo
curar.
Dei de ombros.
— Isso é o que o Sr. Richardson diz. “Dê um tempo, deixe que se
resolva naturalmente.” Mas quanto tempo é necessário? — Peguei uma
pena preta brilhante que caiu das costas do Velho Familiar. — Eddie era
meu melhor amigo, e eu sinto falta dele, e andar por aí com essa dor...
bem, dói.
Thandiwe falou.
— Os anciões têm um ditado. Demais é o mesmo que não o
suficiente.
— O que isso significa?
Bebê Chiclete jogou seiva em mim.
— Significa ficar triste, mas não muito triste.
— Ok, mas...
— Bebê Chiclete não teve tempo de levar você a todos os lugares,
Língua Solta. Este é um dos grandes mistérios da vida. Um quebra-
cabeça. Caramba, pode até ser uma daquelas coisas ouriço. Como se
chamam? Equidnas, isso mesmo.
Eu a encarei.
— Você quer dizer um enigma?
— Por que você sempre corrige alguém?
— A questão é — Grande John interrompeu com um fantasma de
um sorriso, — você deveria lamentar seu amigo. Mas lembre-se de viver
sua vida como ela é agora, e não como teria sido. Nunca se esqueça,
mas aceite. Entendeu?
Eu concordei. Eu achava que entendia.
— Ei — chamou Thandiwe. Ela apontou para a asa esquerda, onde
uma lasca brilhante de terra laranja-dourada apareceu. — Chegamos.
HAVIA ALGO DE ERRADO.
A fenda flamejante no céu cobriu a Crescente Dourada com um
brilho laranja. Chamas fantasmagóricas dançaram nos belos palácios sob
as asas do Velho Familiar, de alguma forma liberando o calor real. A terra
de Nyame havia se transformado em uma sauna gigante e o suor
gotejava na minha testa.
Mas não era só isso.
Havia uma... sensação no ar de que algo estava à espreita, nos
observando e nos seguindo quando chegamos. Aquela sensação familiar
da Floresta Afogada e dos meus sonhos.
Eles estavam aqui.
Tio A e o Maafa.
Eu não fui o único que percebeu. Grande John agarrou sua bolsa
de magia e franziu a testa, Thandiwe segurou seu kierie à postos, e Bebê
Chiclete... bem, Bebê Chiclete era ela mesma.
— Não foi assim que Bebê Chiclete deixou o lugar! Você vê? É por
isso que Bebê Chiclete não pode ter coisas boas. Visitas vêm e
ARRUINAM TUDO!
Nós voamos sobre a cidade vazia. As torres de marfim, agora
vermelhas como uma beterraba refletindo a fenda flamejante no céu,
erguiam-se altas e furiosas. As piscinas azuis cristalinas ferviam e
fumegavam, e uma névoa espessa serpenteava pelas largas avenidas e
ruas revestidas de mármore.
O corvo gigante pousou perto de uma floresta familiar com a cerca
dourada e o portão ao redor. Os olhos de Bebê Chiclete se arregalaram
e ela se aproximou de mim.
— Me diz uma coisa — ela murmurou —, este não é o lugar com
aqueles assobios assustadores e para onde você fugiu como um...?
— Grande John — eu disse apressadamente —, como isso vai
ajudar Ayanna? A cidade está vazia, pelo que ouvi.
Grande John saiu das costas do Velho Familiar. Seu rosto se
contraiu, como se ele estivesse prestes a fazer algo que os adultos
achavam desconfortáveis, como desentupir a privada ou se desculpar
com uma criança. Ele ajeitou o colete, alisou a frente da calça e pigarreou.
— Você pode trazer Ayanna? Talvez eu precise ter minhas mãos
livres.
Ele franziu a testa para o portão em arco, então bufou para as folhas
douradas desintegradas em uma pilha ao lado.
Bebê Chiclete perguntou a ele nervosamente:
— Você, hm, você conhece este lugar?
— Sim — ele murmurou. — Eu estudei com... eles, por muitos anos.
Antes... Bem, antes.
Eu me agachei e levantei Ayanna suavemente.
— Tristan?
O sussurro foi tão fraco que quase o perdi. Mas quando a cabeça
de Ayanna se moveu e olhei para baixo para ver seus olhos abertos,
enrugados de confusão, parei de me mover.
— Bem aqui. Eu estou bem aqui. Estamos recebendo ajuda, você
vai ficar de pé gritando comigo logo logo. Apenas espere.
— Tristan — ela murmurou novamente, e então seus olhos se
fecharam.
— Ayanna?
Assim que desci do Velho Familiar com ela em meus braços, o
corvo gigante grasnou e saiu disparado, desaparecendo nas sombras.
Minha voz saiu pela rua enquanto eu dizia aos outros:
— Ela acordou. Ela falou, mas agora...
O rosto de Grande John ficou preocupado.
— Vamos, precisamos nos apressar.
A rua de mármore ecoou com nossos passos, e a névoa enrolando
em volta de nossas cinturas era a única outra coisa se movendo enquanto
caminhávamos para o portão. Grande John ergueu uma sobrancelha
para a estátua com a mordaça de goma ainda cobrindo a boca, e Bebê
Chiclete e eu nos entreolhamos. Há um momento para a honestidade e
um momento para se concentrar nas questões importantes que
possivelmente ameaçam a todos em Alke.
Cruzamos a soleira e, como antes, o assobio começou. Thandiwe
não parava de olhar por cima dos ombros dela enquanto caminhava, e
Bebê Chiclete se escondeu no meu capuz.
— Olha quem é o gato assustado agora — eu disse.
— Faça isso pela nossa equipe — ela sussurrou em meu ouvido.
— Bebê Chiclete é bonita demais para se meter em encrenca.
Grande John nos conduziu até o pé da grande árvore de sicômoro
e, mais uma vez, fiquei pasmo com seu enorme tamanho. Isso me
lembrou da Árvore do Poder lá na Terra Média, com suas raízes
retorcidas e galhos parecidos com telhados. Paramos em um buraco
entre as raízes e Grande John me surpreendeu. Ele se ajoelhou, colocou
as mãos nas coxas e começou a assobiar.
— O que ele está fazendo? — Thandiwe sussurrou. — Ele vai nos
fazer ser pegos!
Os galhos da árvore começaram a farfalhar e as folhas flutuaram
ao nosso redor, como se alguém — ou um bando de alguéns — estivesse
descendo. Os misteriosos assobios se intensificaram, e Grande John fez
uma pausa e começou a assobiar novamente.
— Acho que — eu disse, começando a entender —, esse é o ponto.
Escutem. Eles estão conversando. Bem, sinalizando um ao outro.
— Quem são eles?
Uma pequena sombra saiu de trás do tronco e, no brilho de fogo do
céu, vi uma pequena criatura parecida com uma fada. De repente, muitas
coisas se encaixaram.
Os mentores de Grande John em conjuração e enraizamento.
Um palácio na floresta.
O assobio parou e Grande John nos disse:
— Acho que isso pode ser um pouco estranho, mas isso é...
— A mmoatia — eu interrompi. — Quero dizer uma aboatia, um dos
Mmoatia.
Grande John fez uma pausa.
— Sim. Como...? Não, deixe-me adivinhar. Aquela sua vózinha.
Thandiwe olhou entre nós, confusa.
— O que é uma aboatia?
— Uma fada da floresta — respondi.
A aboatia tinha um nariz comprido e pele marrom que ondulava
como um riacho na floresta. Suas tranças grossas tocavam o chão e seus
olhos penetrantes me seguiram enquanto eu respirei fundo e avancei
cautelosamente. Ajoelhei-me na frente dela, ainda segurando Ayanna, e
olhei para Grande John. — Minha vózinha me disse que os Mmoatia são
os guardiões da cura. Doenças e enfermidades são seu domínio, e eles
ensinarão curas para aqueles que consideram dignos.
Lembrei-me de mais, mas não achei que seria uma boa ideia dizer
isso em voz alta. Nyame encarregou Anansi de capturar um dos Mmoatia
para satisfazer seu preço pela Caixa de História. Para pegar a fada,
Anansi usou Bebê Chiclete. (Isso foi na época em que ela estava em
silêncio, acredite ou não.) A aboatia ficou presa à bonequinha e —
whoosh — Anansi levou os dois para o deus do céu.
Não era de se admirar que Bebê Chiclete estivesse se escondendo
agora.
Grande John acenou com a cabeça.
— Eles concordaram em ajudar. Mas... apenas Ayanna. Ninguém
mais pode ficar. Parece que eles tiveram um problema recente com
intrusos indesejáveis.
Seus olhos brilharam para mim e de repente meu tênis parecia
incrivelmente fascinante. Mas Bebê Chiclete sussurrou em meu capuz.
— E quanto à Cacau? — ela sussurrou. — Ela também está
machucada!
Grande John assobiou com a fada por alguns minutos, depois
acenou com a cabeça.
— Ela pode ficar também. Mas agora devemos ir. Os outros estão
ficando agitados, e você não quer irritar Mmoatia.
— É bom mesmo — Bebê Chiclete murmurou.
— O quê? — perguntou Grande John.
— Nada! — Eu respondi rapidamente. Coloquei Ayanna em um
terreno plano, coberto de grama. Arrepios subiram em seus braços com
a brisa da meia-noite e, após um breve momento de hesitação, tirei meu
moletom (“Ei!” Bebê Chiclete exclamou ao cair) e o coloquei sobre ela.
— Eu vou voltar — sussurrei para Ayanna. — Então, não se atreva
a ir a lugar nenhum.
Eu queria fazer perguntas à aboatia, pedir a Grande John para
traduzir…. Ayanna ficaria bem? Eles poderiam ajudá-la? Ela estava
inconsciente de novo, e isso estava me rasgando por dentro.
Primeiro Eddie, depois minhas memórias dele e agora Ayanna? Era
tudo demais.
Mais sombras dançaram sob a árvore e o assobio aumentou
novamente. Bebê Chiclete dançou nervosamente no lugar. Uma mão
pousou no meu ombro e Grande John se levantou.
— Está na hora, Tristan — disse ele. — Tenho que levar essa caixa
para Nyame.
— Sim, vamos logo! — sibilou Bebê Chiclete, puxando meu braço.
Eu balancei a cabeça e me levantei.
A aboatia inclinou a cabeça para os amuletos pendurados no meu
pulso, visíveis agora que as mangas do meu moletom não os escondiam.
Assobiou, e Grande John acenou com a cabeça e assobiou de volta.
Então ele se virou para mim.
— Estenda o braço — ele ordenou.
— Por quê? — eu perguntei, mesmo enquanto fazia isso. A fada se
aproximou e tentei não olhar enquanto ela pulava para um lado e para o
outro, olhando para os amuletos. Assobiou e Grande John coçou o
queixo. A fada curvou-se e ele curvou-se em resposta.
— Vamos, crianças — disse ele, dirigindo-se ao portão.
— O que foi aquilo? — Thandiwe perguntou enquanto ela e eu o
seguíamos. Bebê Chiclete estava em meu ombro, uma mão pegajosa em
minha cabeça para se equilibrar.
— Acontece — Grande John respondeu, — que, apesar do insulto
final de Anansi, os portadores de sua marca são bem-vindos sob os
ramos da Mmoatia. — Ele encontrou meus olhos e sorriu. — Parece que
eles gostaram de você, garoto. Você deve encontrar o caminho de volta
aqui em algum momento para ver o porquê. Os favores das fadas são
uma coisa poderosa, com certeza.
Eu definitivamente planejava voltar — por Ayanna e Cacau.
Bebê Chiclete afagou minha cabeça e sussurrou:
— Não espere que a Bebê Chiclete vá com você. Não mesmo.
Paramos do lado de fora dos portões e recuperamos a Caixa de
Histórias de onde o Velho Familiar a havia deixado. Grande John olhou
para a fenda flamejante piscando no céu.
— O tempo está ficando escasso. A fenda quase atingiu o
continente. Temos que nos apressar.
— O palácio de Nyame é por aqui — eu disse. Apontei para os
marcadores de trilha que Cacau havia deixado durante nossa última visita
aqui, sentindo um puxão dolorido. Pelo menos ela e Ayanna estavam em
boas mãos agora. — Vamos consertar essa Caixa de Histórias.
— ,

HÁ UM PONTO EM QUE fico tão nervoso que não consigo


distinguir minhas emoções. Estou com raiva, triste ou com medo? É tudo
de uma vez ou nenhuma das opções acima? O Sr. Richardson disse que,
quando me sinto assim, devo agarrar uma emoção como uma corda e me
puxar de volta ao momento em que ela me atingiu pela primeira vez.
Refazer meus passos. Fazer um trabalho de detetive mental.
Enquanto seguíamos pela rua silenciosa até o portal cintilante de
Nyame, eu segui meus sentimentos confusos e crus de volta aos seus
primórdios. Havia raiva de Eddie por me deixar. Estresse por Ayanna e
Cacau serem feridas. Medo de que as coisas piorem ainda mais e de eu
não poder voltar para casa. Frustração com todo mundo me dizendo: Vire
homem, ou Vai ficar tudo bem, ou Vai socar alguma coisa, porque vai
fazer você se sentir melhor.
Quando chegamos à grande praça e paramos em frente ao portal
imponente, minhas mãos tremiam e meu coração batia forte.
— Você está bem? — Thandiwe perguntou.
Eu não tinha certeza do que sairia da minha boca, então apenas
balancei a cabeça.
Grande John olhou em volta inquieto.
— Algo não parece certo.
— O quê? Bebê Chiclete não vê nada.
— Não, está... no ar. — Ele olhou para mim. — Você sente isso
também? O ritmo, o vento, está tudo errado. Esse buraco no céu está
virando o mundo do avesso.
Ah, sim, mais uma emoção que esqueci.
Culpa.
Grande John estava certo. O ritmo elétrico, a batida do bumbo, as
palavras da terra que eu havia me acostumado a ouvir ao fundo — tudo
tinha desaparecido, deixando apenas um zunido murmurante, como alto-
falantes aumentados no máximo, sem nenhuma música tocando. Como
um raio prestes a cair.
— Há uma tempestade se aproximando — eu disse, mantendo
minha voz baixa. — Consigo sentir. Precisamos nos apressar.
— Sim. — Grande John olhou em volta mais uma vez, depois
verificou o céu. — Sim, você está certo mesmo.
Corremos pelo portão e descemos o caminho para o palácio do
deus do céu. Eu senti os olhos dourados das estátuas em mim
novamente, mas desta vez seu olhar era mais avaliativo do que
ameaçador. A Caixa de Histórias parecia mais pesada quando eu a
passei por eles, e quando chegamos à estátua final, a velha rainha que
nos salvou dos chefões, eu juro que a vi piscar.
— Ela acabou de...? — Bebê Chiclete sussurrou em meu ombro e
eu assenti.
— Acho que sim.
O céu em chamas estalou no alto quando passamos em um
rompante pela porta gigante do palácio e deslizamos até parar no
corredor de Nyame. Leopardo parado no meio de uma lambida de pata,
Píton levantou sua enorme cabeça do chão de pedra e o deus do céu
sentou-se melancolicamente no trono.
— Bem — disse Nyame, seus olhos cintilando quase tão brilhantes
quanto a fenda no céu. — O não-herói retorna. O ingrato, o egoísta, o
rejeitador de presentes. Veio reclamar mais um pouco?
Seus olhos se moveram para Bebê Chiclete e suavizaram, depois
para Thandiwe e Grande John, onde permaneceram.
— E você mudou sua equipe. Interessante. Isso é uma piora ou uma
melhora, jovem Tristan?
Grande John tinha as duas mãos nos bolsos, mas pude ver a raiva
em sua mandíbula quando ele falou com os lábios apertados.
— Seu deus do céu parece chateado — disse ele. — Todo esse
ouro e ninguém para impressionar.
Nyame levantou do trono e desceu as escadas da plataforma.
— Cuidado com a língua, vagabundo. Você está aqui porque eu
permito.
— Sente-se e conte o seu dinheiro, meu velho — disse Grande John
com um sorriso de escárnio. — Você não está assustando ninguém aqui.
O leopardo rosnou, um estrondo como um trovão em uma floresta,
e a enorme besta rondou. Grande John sorriu, um sorriso largo e fácil que
eu estava começando a suspeitar que significava o oposto dos bons
tempos que viriam.
— Diga ao seu gatinho para se comportar antes de eu mandá-lo
para fora para perseguir o próprio rabo — O sorriso desapareceu e a
sombra de Grande John começou a se esticar e crescer. — Depois de eu
removê-lo.
Os olhos de Nyame começaram a brilhar e eu suspirei e me
coloquei entre os dois. Honestamente, os adultos são os piores.
Hipócritas faça-o-que-eu-digo-não-o-que-faço. Eddie e minhas memórias
estavam lá fora em algum lugar, e esses dois estavam tendo um concurso
de cuspidela.
— Vejo que você está se sentindo melhor do que da última vez em
que estivemos aqui — eu disse, largando a Caixa de Histórias na frente
do deus do céu. Nyame fez uma pausa, carrancudo com a interrupção,
então congelou.
— Isso é… ? — ele perguntou, estendendo um braço trêmulo, e eu
assenti.
Ele traçou um dedo sobre a tampa lascada e entortada, depois
deixou sua mão cair. Os símbolos gravados em seus lados brilharam
brevemente, como se eles se lembrassem de sua antiga glória, antes de
desaparecerem de volta às sombras desgastadas.
— Foi esvaziada — ele sussurrou.
— Anansi fez isso — eu disse.
O deus do céu olhou para cima, seus olhos transbordando com as
tristezas de mil finais felizes perdidos.
Eu levantei minha pulseira de adinkra.
— É a única coisa que faz sentido. Encontramos suas anotações e
os monstros de ferro que ele estava pesquisando. Ele usava a Caixa de
Histórias para atraí-los, como isca. Mas algo deu errado. Houve um
acidente, uma luta… Acho que ele acidentalmente a drenou de suas
histórias.
Nyame pegou a Caixa de Histórias e apertou-a contra o peito.
— Anansi… — ele repetiu, olhando fixamente para uma cachoeira
do outro lado da sala.
Ele convocou o pedestal debaixo do chão e colocou a Caixa de
Histórias suavemente em cima. Então, se apoiou no suporte, de repente
parecendo velho e cansado.
— Mas onde estão as histórias agora? — Thandiwe perguntou. —
E por que o Tecelão se escondeu? — Ela olhou entre mim e Nyame. —
Quando Anansi nos deu a caixa, você nem tinha aberto o céu com um
soco ainda. Os monstros de ferro ainda estavam espalhados e fracos.
Estremeci com o lembrete de que a maior parte disso era minha
culpa.
— Não sei, mas pretendo perguntar quando o vir.
— Então, você ainda pretende continuar com isso? — Perguntou
Nyame.
— Nós precisamos fazer isso. Quando eu quebrei a Árvore-Garrafa
e criei essa bagunça, algo caiu neste mundo junto com Bebê Chiclete e
eu, um haint. Eu sei o que ele quer agora. Ele quer a Caixa de Histórias
para se fortalecer.
Grande John apertou a fivela do cinto e franziu a testa.
— Você continua dizendo ele, não isso. Esse seu supervilão tem
um nome?
— Quando o vi, ele me disse para chamá-lo de Tio A.
Nyame estreitou os olhos.
— Tio. TIO? Você está relacionado à criatura que persegue meu
povo? — A suspeita em seu tom me fez estremecer, mas me endireitei e
balancei a cabeça.
— Não, claro que não! É a ideia dele de uma piada doentia e
perversa! E ele está vindo atrás de nós. Atrás de mim. E ele está trazendo
o Maafa com ele.
Nyame se endireitou.
— Aqui?
— Dê uma boa olhada no céu, Deus do Céu — Grande John
zombou.
As pontas dos punhos de Nyame começaram a brilhar
intensamente e antes que as coisas piorassem, eu tive que intervir
novamente.
— Já chega! Monstros de ferro estão voltando aqui, e eles são
apenas a primeira onda. De acordo com o Amagqirha da Crista, pode
haver uma grande guerra. — Eu olhei para Thandiwe. — Ela me disse
que os anciãos também sentiram isso.
Thandiwe parecia perturbada.
— Então, o que fazemos?
Eu mantive meus olhos em Nyame.
— Precisamos que você restaure a Caixa de Histórias. Então
podemos atrair Anansi e convencê-lo a fechar o buraco no céu. Isso
enfraquecerá os monstros de ferro o suficiente para que possamos
destruí-los.
— E esse Tio A? — Perguntou Nyame.
Grande John se aproximou de mim.
— Vamos lidar com ele, o menino e eu. Juntos.
Eu sorri tristemente para ele.
— Vai ser preciso mais do que apenas você, eu e o Velho Familiar.
Ou até mesmo John Henry e a Srta. Sarah e Srta. Rose.
Ele enrijeceu.
— Eu não vou lutar com...
— Não há outra maneira — interrompi suavemente. Eu me virei
para Nyame. — Teremos que trabalhar juntos. Povo Médio e alkeanos.
Nyame e Grande John se entreolharam e o deus do céu bufou. Foi
uma coisa muito humana, agora que penso nisso. Como dois boxeadores
que acabaram de terminar uma luta empatada, ambos sabendo que
lutaram em um combate clássico.
— Sim, veremos — Grande John murmurou, e revirei os olhos.
— Então, dá para consertar a Caixa de Histórias? — Thandiwe
perguntou a Nyame.
Ele franziu os lábios e encolheu os ombros.
— Eu posso, embora não consiga ver o que isso vai fazer de bom.
A trapaça de Anansi pode acabar sendo o fim de todos nós.
— Traição do seu próprio povo — murmurou Bebê Chiclete.
De todas as coisas embaraçosas que saíram da boca daquela
boneca, essa pode ter sido a pior.
Nyame suspirou e se plantou na frente da plataforma. Agarrou a
borda do pedestal, falou algumas palavras baixinho, e este se levantou e
começou a girar devagar com a Caixa de Histórias em cima. Ele
murmurou mais encantamentos enquanto estendia a mão para o ar e
tirava coisas que não tenho certeza se posso descrever, embora vou
tentar.
Ele preencheu as rachaduras na madeira com o orgulho de um pai
e a crença de uma mãe. Entrelaçou raios de sol moribundos e uma lufada
de ar fresco em tiras de marfim, que mandou enrolar nas laterais da caixa
e, em seguida, puxou-as com força para endireitar as tábuas torcidas. O
brilho de um rio foi moldado no lugar na tampa, e ele acrescentou o brilho
de uma gema à trava. Eu ouvi risadas enquanto ele reforçava os cantos
com alegria. Finalmente, ele delineou a parte superior e as laterais da
caixa com filigrana de ouro e deu um passo para trás.
Nyame soprou suavemente na Caixa de Histórias e, como um
artista que tira aparas de uma escultura, revelou sua brilhante obra-prima.
— Santo… — Grande John suspirou.
— Meu santo pêssego — eu disse.
Bebê Chiclete bateu palmas.
A caixa de ouro e marfim era quase bonita demais para se olhar, e
quanto mais eu olhava para ela, mais era atraído por ela. Bem dentro de
mim, ouvi o poder que Nyame invocou, e eu...
Grande John agarrou meu pulso.
— Calma aí.
Eu fiz uma careta.
— O que...? — Comecei, depois parei. Comecei a andar para frente
sem perceber e estava a centímetros de arrancar a Caixa de Histórias do
pedestal.
Eu engoli e dei três passos gigantes para trás.
— Não me admira que todo mundo a queira.
Nyame parecia orgulhoso.
— Eu faço um bom trabalho.
— Sim, sim — disse Bebê Chiclete, cruzando os braços. — Bebê
Chiclete vai te dar um troféu. Agora, onde está Anansi? A Bebê Chiclete
tem algumas perguntas que precisam ser respondidas, rápido, logo e
depressa.
Nyame olhou para ela por um segundo, então balançou a cabeça e
se dirigiu para a porta dos jardins do telhado. O pedestal flutuante com a
Caixa de Histórias em cima o seguia, ainda girando. Bebê Chiclete fez
uma careta para as costas do deus do céu e todos nós o seguimos.
Nos jardins do andar de cima, Nyame instalou o pedestal perto da
borda frontal do telhado do palácio, com vista para o porto e a baía. O
deus do céu estudou sua localização por vários segundos e fez alguns
pequenos ajustes.
Thandiwe olhou para mim e encolhi os ombros com impaciência.
Eu queria que isso acabasse. Queria Cacau de volta conosco. Eu queria
verificar Ayanna, para ver se ela havia sido curada.
O mundo pode ter estado com problemas, mas amigos são amigos
e eu os queria por perto.
— Tristan — Nyame chamou. Ele apontou para a Caixa de
Histórias. — Está na hora. Abra.
Eu balancei a cabeça, em seguida, limpei as palmas das mãos no
meu short.
Era isso.
O momento pelo qual batalhamos, lutamos, choramos e
trabalhamos tanto.
Bebê Chiclete afagou minha cabeça e Thandiwe me saudou com o
punho fechado. Grande John sorriu e piscou. Respirei fundo e entrei na
frente do pedestal.
— Encontre o fio — disse Nyame antes de recuar.
O fio.
A história comum que todos nós compartilhamos, que passa de
cidade em cidade, de país em país, de mundo em mundo. A história que
o tio de todos quer contar repetidas vezes. A história contada no
bebedouro. A história contada em torno da fogueira. A história contada
na hora de dormir, seja em Chicago ou no Alabama, na Crescente
Dourada ou na Terra Média.
Eu fechei meus olhos.
Música.
Sons de tambor.
Palmas batendo.
Risada.
Chamados.
Respostas.
E lá, por baixo de tudo, pendurado por um fio prateado de
antecipação infantil, eu vi.
— Digamos que houve uma terra onde o Povo já viveu. Uma terra
de histórias, sonhos, heróis e deuses. Uma terra nascida de dor e alegria,
pois todas as histórias contêm as duas coisas. Digamos que esta terra se
chamasse... Alke.
O ritmo se juntou sob minha pele e minhas palmas coçaram com a
necessidade de criar, de moldar. Peguei o fio com as duas mãos e abri
os olhos. A Caixa de Histórias ardia com uma luz tão forte que queimou
minha visão e deixou pontos flutuantes de cor. Ela brilhava como um farol,
um farol de esperança e alegria.
Thandiwe engasgou-se.
O pedestal sob a Caixa de Histórias se transformou em um pilar de
luz, e os símbolos ganharam vida dentro dele. Em rastros de tinta de
cobre guiados por uma mão invisível, os símbolos foram aplicados ao
magnífico baú em homenagem aos deuses da Crescente Dourada. Seus
adinkras foram borrados de ouro-avermelhado a branco deslumbrante,
enquanto abaixo deles cenas de outra época eram representadas:
As pessoas dançavam em círculo ao redor de uma caixa dourada
brilhante, enquanto um homem com olhos dourados as observava.
Uma aranha teceu uma teia de seda que se transformou em
palavras, e homens e mulheres usando a teia de aranha adinkra
coletaram as palavras e marcharam.
Um grupo de pessoas, incluindo uma aranha e um ser com olhos
brilhantes, enfrentou uma criatura assustadora emergindo do mar, com
as mãos estendidas, impedindo o mal de avançar.
Essa última imagem não era tão brilhante quanto as outras, e isso
me incomodou um pouco, mas aí o esplendor de toda a Caixa de Histórias
me arrebatou.
Ela era gloriosa.
Bela.
Surpreendente.
Mas…
— Onde está Anansi? — Bebê Chiclete perguntou. Ela caminhou
ao redor, olhando nos arbustos, e mergulhou nas cachoeiras. — Onde
ele está?
Pude sentir a energia saindo da Caixa de Histórias em ondas.
Nyame também podia sentir, eu sabia, porque o adinkra nas bainhas de
suas vestes brilhou com uma luz dourada, e seus olhos fizeram o mesmo.
E Grande John podia sentir — sua sombra se estendia pelo telhado sobre
flores e estátuas.
Então, onde estava Anansi?
Nyame virou-se repentinamente para o oeste e olhou para o
oceano. Ele ficou ali, congelado, por vários momentos.
— Algo está errado — sussurrou. Ele se virou para mim. — Feche
a caixa rápido, agora!
Um rugido alto soou no palácio abaixo. Estremeci, cortando minha
ligação com a Caixa de Histórias. O leopardo rugiu de novo e de novo e
Grande John franziu a testa. De repente, ele também ficou tenso ao olhar
para o oceano. Sem dizer uma palavra, se retorceu em sua sombra com
uma rajada de vento e, no instante seguinte, decolou para o céu nas
costas do Velho Familiar. O gigante corvo sombrio grasnou enquanto eles
voavam acima de nós.
— O que você vê? — Nyame chamou.
— Uma onda ardente, a maior que já vi! — Grande John gritou de
volta. — Está derrubando barcos como se fossem penas, com certeza.
— Uma onda… — Nyame murmurou. Ele se virou para mim. —
Tristan...
Mas eu não estava prestando atenção. Meus olhos estavam
grudados no porto, onde um tsunami carregando colunas de fogo estava
vindo em nossa direção. Barcos e iates enormes colidiam uns com os
outros com ruídos que pareciam canhões e tiros.
— O que está acontecendo? — Thandiwe gritou. Bebê Chiclete
subiu no meu ombro para olhar e engasgou.
Antes que eu pudesse responder, algo surgiu do mar e de meus
pesadelos também. Uma nave dilapidada, maior e mais horripilante do
que qualquer nave óssea, dividiu a superfície, ficando cada vez maior.
Seus mastros estavam despedaçados e suas velas cinzentas sujas
pendiam moles e rasgadas. Buracos de tamanhos diferentes pontilhavam
o casco e a água do mar em chamas jorrou como lava. As figuras se
moveram no convés.
Algemados.
Centenas deles.
E com eles veio aquela sensação familiar de terror sufocante. O
peso de anos, décadas, séculos de ódio e violência — tudo se juntou no
ar e pressionou meus ombros. O fedor de morte e agonia, de podridão e
decadência, passou por mim. Eu conhecia esses sentimentos. Conhecia
aquela presença. Estive dentro daquele navio. Tio A estava naquela
coisa.
O que significava que o navio era...
— O Maafa — sussurrei.
— AQUELE É O MAAFA?
Thandiwe agarrou com força seu antepassado, transformando-o em
escudo com uma das mãos e apontou para o enorme navio com a outra.
Ele vomitou fogo e algemados enquanto cortava as ondas ardentes.
Qualquer coisa em seu caminho foi esmagada sob seu casco ou
carbonizada além do reconhecimento quando entrou na baía. Névoa
cinzenta e fumaça preta seguiram em seu rastro, enquanto destroços
esmagados flutuavam na frente dele.
Nyame se virou para mim em fúria.
— Você disse que meu povo ainda vivia naquela coisa. Olha só!
Diga-me como qualquer coisa poderia sobreviver nisso!
— Eu os vi! — Protestei, mas uma sensação de afundamento
cresceu na boca do meu estômago.
Como alguma coisa poderia viver naquilo?
O deus do céu se virou com desgosto e caminhou até a borda do
telhado do palácio.
O leviatã de fogo e ferro abriu caminho para o porto raso. A torre
dourada estremeceu enquanto barco após barco danificado era jogado
contra sua base.
Nyame esbravejou, suas vestes balançando ao vento salpicado de
cinzas.
— Primeiro meu povo. Agora minha terra? Eu não posso permitir
isso — O deus do céu apontou para a Caixa de Histórias. — Fizemos
exatamente o que esse seu tio queria. As feras virão buscá-lo e não
devemos permitir que o levem. Caso contrário, isso — ele gesticulou para
a baía que queimava lentamente — será apenas o começo. — Seus olhos
perfuraram os meus. — Seu mundo será o próximo.
E com essa declaração totalmente não ameaçadora, Nyame
desceu do telhado. Quando ele sumiu de vista, um clarão de luz brilhante
explodiu e riscou o céu como um míssil. Ele fez um arco alto — tão alto
que parecia um segundo sol, ou o início de uma segunda fenda — antes
de cair atrás de um aglomerado de palácios. Eu o perdi de vista por um
segundo, mas a onda de quinze metros que correu em direção ao navio
invasor, apagando incêndios e afogando algemados, me disse que ele
havia pousado no porto.
E foi porque meu olhar seguiu o caminho do voo de Nyame que
percebi um grupo de rostos familiares.
Bebê Chiclete também os viu.
— Olhem! — ela gritou. — É John Henry! E a Srta. Sarah e Srta.
Rose! Eles conseguiram sair!
Thandiwe sorriu.
— A Terra Média vive, Tristan. Eles vivem.
Meus joelhos ficaram fracos, mas foi uma sensação boa, como se
eu tivesse acabado de ser declarado o vencedor de uma partida.
John Henry atravessou a baía, tirando os destroços do caminho
com um golpe de seu martelo brilhante. Ele segurava uma corda na outra
mão e puxava várias jangadas cheias de pessoas e animais. No ar acima,
a Srta. Sarah e a Srta. Rose carregavam uma grande cesta de refugiados
entre elas enquanto voavam para a costa. Eu não vi Brer, mas o resto foi
um colírio para os olhos.
— Eles resgataram o Povo Médio — eu disse. — John Henry
entendeu minha mensagem.
Thandiwe olhou para mim.
— Você mandou uma mensagem? Quando?
— Quando Grande John me levou... É difícil explicar, mas eu
mandei.
Ela parecia cética, mas em vez de me questionar mais, apontou
com o punho de sua kierie.
— Olha, não somos os únicos que os avistamos.
Um grupo de algemados estava nadando pela baía em direção ao
povo médio. Eles pareciam tubarões enquanto cruzavam os destroços
em chamas, silenciosos e invisíveis.
Bebê Chiclete bateu com o punho na outra mão.
— Eles não vão conseguir.
Thandiwe colocou seu antepassado no chão e pisou nele, depois
olhou para mim e ergueu uma sobrancelha.
— Eu posso alcançá-los. Você pode proteger a Caixa de Histórias?
— Posso, mas como você vai chegar a tempo? Eu pensei que seu
antepassado apenas...
— Você pensa demais nas coisas erradas — disse Thandiwe. —
Você sabe por que os chamamos de antepassados? Porque nossos
ancestrais estão sempre presentes, nos erguendo e nos carregando para
frente, e nos protegendo quando estamos vulneráveis. Não se preocupe
comigo, preocupe-se em fazer a sua parte. Tem certeza que pode
aguentar?
Fiz um balanço da cena — as chamas, os algemados e o Maafa e
o povo médio fugindo de todos eles.
— Posso aguentar — eu disse. — Quando você alcançá-los, envie
Brer se você o ver, um coelho gigante com cicatrizes, de fala bem sagaz.
Mas leve o resto deles para a floresta Mmoatia, para Ayanna e Cacau. As
fadas irão protegê-los.
Thandiwe acenou com a cabeça e, sem outra palavra, saltou do
telhado enquanto colocava o antepassado sob seus pés. Ela pousou em
um suporte curvo de marfim e montou nele como um skatista arranhando
um corrimão. A princesa acabou na praça abaixo com toda a força, e ela
desceu e contornou a larga rua pavimentada, usando seu kierie como
leme. Logo ela estava fora de vista e eu suspirei.
— A menina tem habilidades — admitiu Bebê Chiclete. — Bebê
Chiclete ensinou-a bem.
Revirei os olhos e os protegi quando uma rajada de vento jogou
poeira e cinzas em meu rosto. Grande John ergueu-se nas costas do
Velho Familiar enquanto o corvo das sombras grasnava e batia asas
acima de nós.
— Tristan, você tem companhia chegando! — ele gritou. — Acho
que você pode querer se preparar.
— O quê? Onde?
— Peguei algumas daquelas moscas venenosas vindo do sul e
algemados do norte. Devem ter escapado na confusão. Este velho corvo
cuidará dos insetos, você pode lidar com aqueles monstros de corrente?
De fato, uma nuvem de poeira varreu em direção ao palácio de
Nyame, e os sons fracos de guinchos e chocalhos carregados sobre o
rugido do caos na baía.
Engoli em seco e assenti. Eu só precisava segurá-los até que Brer
chegasse. Seja lá quando isso seria.
— Sim, eu cuido disso.
Grande John estudou a mim e Bebê Chiclete, depois acenou com
a cabeça.
— Acho que você pode precisar disso — disse. Ele jogou no chão
um pedaço de metal cintilante, e Bebê Chiclete o agarrou no ar. — Todos
aqueles outros deuses lhe dando proteções — ele disse. — Posso muito
bem fazer a minha parte, com certeza.
Eu arranquei o pingente das mãos pegajosas de Bebê Chiclete. O
adinkra era duas espadas cruzadas com orifícios nas lâminas e cabos, e
pulsava com luz negra.
— O que é isso? — Eu perguntei.
Grande John sorriu.
— A akofena. As espadas da guerra. Símbolo de coragem e
bravura. Para quando você precisar defender vários lugares ao mesmo
tempo.
O Velho Familiar voou com força no ar.
— Tome cuidado agora, ouviu? — Grande John chamou. — Não vá
morrer, você e eu temos que conversar — E com isso, Grande John, o
Conquistador, voou para o céu em seu corvo gigante, piando e gritando
enquanto cortava a fumaça e as chamas para enfrentar o enxame de
moscas que corriam em nossa direção.
Assim que coloquei a adinkra em minha pulseira, quatro luvas de
boxe pretas como a noite brilharam à minha vista. Quando fechei os
punhos, um par de luvas flutuou na altura dos ombros de cada lado de
mim, e o segundo par pairou perto da minha cintura. Eu agora tinha seis
punhos prontos para golpear alguns monstros de ferro. Quando relaxei
minhas mãos, as luvas desapareceram.
Eu ri.
— Parece que nós vamos fazer boxe de sombra! — Chamei de volta
para Bebê Chiclete.
Ela soltou um grito de alegria e deu uma estrelinha pelos meus
ombros.
— Cai dentro! — ela gritou. — Ninguém está com medo! A Bebê
Chiclete tem duas mãos ansiosas para negociar! Esse restaurante está
aberto e pronto para servir! Recebam sua educação de graça, seus
cabeças-duras, Bebê Chiclete é uma destruidora de oportunidades
iguais!
O tumulto de algemados chocou-se contra a base do palácio, e
então o tempo para palavras acabou.

Uma luta é uma coisa paralisante.


Quando chegou a hora da minha primeira luta de boxe, pensei que
estava preparado. Quer dizer, eu treinei desde sempre, parecia. Soquei
o saco. Corri pelas ruas. Fiz tudo o que meu pai e vovô me mandaram.
Eu deveria vencer.
Mas no ringue, uma vez que eu estava dentro das cordas e todo
mundo estava fora, exceto o garoto que eu tive que enfrentar, toda aquela
prática desapareceu. Eu tinha duas luvas grossas, botas desconfortáveis
e o desejo de estar em qualquer outro lugar. Quem eu estava
enganando? Eu não era um boxeador. Eu simplesmente acompanhei,
porque isso é o que uma criança deve fazer, certo? Deixar seus pais
felizes?
Meu oponente me bateu nos quatro cantos do ringue.
Da primeira partida até a última, tudo aconteceu rápido demais. Eu
não conseguia acompanhar. Minha guarda estava muito lenta, meus pés
estavam muito lentos, meu tudo estava lento para caramba.
Mas agora…
Agora eu tinha um propósito, o que me deu toda a energia de que
precisava. Eu era o Velho Rawlins. Eu não ia perder... não hoje, idiotas.
— Cuidado!
O aviso de Bebê Chiclete veio bem a tempo — uma coleira
enferrujada se fechou a centímetros do meu pescoço enquanto eu me
afastava.
— Tome essa seiva e dê o fora, seu besta! — Bebê Chiclete girou
no ar, jogando sua munição pegajosa nos algemados que se
amontoavam sobre o telhado. — Bebê Chiclete sempre carregando você.
O pingente akofena formigou e minhas luvas noturnas surgiram. Um
soco e um gancho de direita e um trio de algemados da cor de crostas
de cinza caíram pela borda em pedaços. Arrisquei um olhar para trás —
a Caixa de Histórias ainda estava lá no pedestal — e então me virei para
encarar outro grupo de criaturas de metal gritando.
Nós lutamos assim, Bebê Chiclete e eu, pelo que pareceu uma
eternidade. Onda após onda de algemados invadiram os jardins do
telhado, e ainda assim, de alguma forma, nós os seguramos. Bebê
Chiclete era um terror vivo. Se ela não estava dançando sobre as cabeças
de seus oponentes, estava caindo em seus corpos de arame,
depositando armadilhas pegajosas que os enraizavam no local. O que
me deixou em uma limpeza de rebatidas.
Pow pow
Meus punhos estavam por toda parte.
Pow pow
Punhos negros em luvas negras dando poder negro dois socos de
cada vez.
Pow pow
Finalmente, depois que o último grupo de algemados foi repelido,
tivemos um momento de descanso. Olhei para a água e tentei encontrar
todos, para ver como estavam.
O Velho Familiar mergulhou e girou, lançando moscas-marca no ar
como se não estivessem se movendo, o príncipe que virou escravo que
virou deus de pé no topo e balançando seu machado como uma foice em
um campo de trigo.
Nyame, como um clarão de sol que saltou de um ponto a outro,
enviou monstros de ferro voando para a baía com rajadas de energia
incandescente. Eu não conseguia olhar por muito tempo, ou ficaria
temporariamente cego. O deus do céu lutou com a fúria de estrelas
explodindo e, como um deus solitário, foi o alvo da maioria dos monstros
de ferro.
Mas os refugiados do Povo Médio também lutavam por seu próprio
direito de viver, embora estivessem longe de casa. John Henry, com a
corda da jangada enrolada na cintura para que ele pudesse usar as duas
mãos, balançou o martelo como se estivesse novamente perfurando uma
montanha. Esquerda e direita, para cima e para baixo, o martelo caiu
sobre algemados com o estrondo de metal contra metal. Sem floreios,
apenas um ritmo constante.
Srta. Sarah e srta. Rose circularam e mergulharam de cima,
esfolando algemados alternadamente de forma semelhante a chicotes.
Elas perseguiam e hostilizavam monstros de ferro como falcões
espalhando ratos. Como resultado dos esforços de todos, o grupo fez seu
caminho pelas ruas sinuosas da Crescente Dourada desimpedido.
Mas, por mais que tentasse, não consegui ver Brer em lugar
nenhum.
Em vez disso, Thandiwe liderava os retardatários do Povo Médio.
Eu não sei onde ela os encontrou, ou como os convenceu a segui-la, mas
a garota guerreira da Crista atacava algemados com determinação
implacável. Ela estava no chão, seu antepassado enrolado em suas
costas, o que liberou sua lança para prender os inimigos no chão
enquanto seu kierie os martelava até deixá-los sem sentido.
Para onde quer que eu olhasse, algemados e moscas-marca
estavam sendo destruídos.
No entanto, apesar de nosso progresso, mais e mais deles estavam
sendo despejados do Maafa. O suprimento parecia infinito.
E não era só isso.
O navio havia chegado ao porto e tropas pesadas emergiam de seu
convés em chamas. Chefões pularam nas ondas, seguidos por várias
bestas de casco. Eles mergulharam por águas escaldantes e escombros
e arrastaram-se pesadamente até a costa como forças especiais de
pesadelo.
— Droga — Bebê Chiclete disse, sentada no meu ombro. — Só...
droga.
— Eu sei. — Os reforços empurraram Nyame para trás, mesmo
quando ele os explodiu para a esquerda e para a direita, enquanto outros
caíam do convés do Maafa. De repente, meus amigos deixaram de
defender sua posição e passaram a recuar.
E ainda não havia sinal de Brer.
— Vamos, Coelho — eu murmurei. — Se apresse!
— Tristan, olhe!
Um grupo de monstros de ferro interrompeu a luta no porto e
perseguiu o povo médio. Dois chefões e uma besta de casco trovejaram
rua acima, e meu coração despencou. Se eles alcançassem, todos
sofreriam, deuses ou não.
As bestas de casco restantes se inclinaram para trás e arrotaram
uma massa de moscas-marca. Gritos encheram o ar quando uma nuvem
de carvão de insetos de metal disparou no ar. Grande John e o Velho
Familiar foram rapidamente cercados.
Um grito estridente de dor atraiu minha atenção para longe. Eu me
virei, com o coração na garganta, quando peguei um vislumbre de uma
forma escura caindo do céu, penas esvoaçando como neve negra.
Srta. Rose.
Ela sumiu de vista do lado de fora dos portões do palácio de Nyame.
— Não! — Eu sussurrei.
John Henry berrou de dor também, e seu martelo caiu no chão
como uma árvore tombando. Ele recuou na curva da rua, sua cabeça era
a única coisa que eu pude ver por um momento, o resto dele obscurecido
por árvores floridas e telhados cobertos de ouro.
Srta. Sarah seguia logo atrás, a luta esquecida quando um gemido
deixou seus lábios. Mais gritos de dor e confusão aumentaram enquanto
o resto do povo médio entrava em pânico.
Um brilho de metal piscou no canto do meu olho, perto do palácio
da floresta Mmoatia. Algo esperava nas árvores, bem no local em que
John Henry e os outros corriam.
Uma emboscada!
Eu precisava avisá-los. De alguma forma, eu precisava arrastar os
monstros de ferro para longe da Srta. Rose e fazer com que os outros
abandonassem a emboscada. Precisava liberar um caminho para Grande
John para que ele pudesse se conectar com os outros e resgatar o povo
médio.
Era hora de uma distração.
Algo em que todos, de algemados a bestas de casco, se
concentrariam.
Eu precisava da Caixa de Histórias.
O tesouro restaurado repousava na coluna de marfim, os símbolos
de ouro rosa quase desbotados. Estava fechado, mas eu ainda podia
sentir o fio das histórias lá dentro. Meus pés me carregaram por conta
própria, e vi cenas douradas brilhando no topo do peito.
Espera um pouco.
Um grupo de cenas, elas mostraram...
Eu me inclinei mais perto.
— Santo pêssego.
Uma figura em frente a um grupo sentado, uma caixa amarrada às
costas. A mesma figura, com os braços abertos, ainda usando a caixa,
mas desta vez ela estava aberta. Símbolos flutuando para dentro e
símbolos flutuando para fora. E, finalmente, a figura se afastando, a
multidão acenando, a caixa em suas costas agora fechada.
Anansesem não apenas contavam histórias, eles as coletavam.
Eu andei ao redor da caixa, forçando-me a me mover lentamente,
apesar de cada desejo de correr, de me apressar e salvar meus amigos.
E quando cheguei ao painel traseiro, onde havia dois conjuntos de linhas
douradas, parei.
Eles carregavam as histórias de pessoa para pessoa.
— Eles as carregavam — eu disse, uma ideia surgindo na minha
cabeça. — Aqui vai nada. — Concentrando-me, procurei o ritmo do fio da
história dentro e falei a frase com a qual vózinha começava cada uma de
suas histórias.
Essas eram as palavras do Anansesem, pronunciadas ao viajar de
aldeia em aldeia para divulgar a notícia.
— Deixe-me dar um pouco de verdade e espero que volte para mim.
Todo o ruído parou.
Os ventos morreram, as ondas se acalmaram e todos os monstros
de ferro — desde a mosca-marca aos chefões — soltaram um grito
áspero e barulhento e avançaram em direção ao palácio de Nyame.
Na minha direção.
Mas continuei focado no espetáculo bem na minha frente.
As linhas douradas da caixa se iluminaram e se expandiram até que
duas tiras se estendessem do baú brilhante. Estendi a mão e as agarrei,
levantando a Caixa de Histórias do pedestal. Passei um braço por uma,
depois pela outra, e balancei a cabeça maravilhado enquanto a caixa se
esticava, mudava e se acomodava nas minhas costas.
Mudava dependendo de quem a carregava.
Olhei por cima do ombro e bufei para a mochila dourada e preta que
eu estava usando agora, com zíperes dourados e um leve zumbido
passando por ela. Estava parcialmente aberta, e o barulho de uma
história incompleta enviou arrepios pela minha espinha e desceu até a
ponta dos meus dedos. Adinkra decorou as alças — o símbolo de Nyame
à esquerda e o de Anansi à direita — e eu as apertei, nervoso como uma
criança em seu primeiro dia de aula.
— O que nós fazemos? — Bebê Chiclete perguntou.
Olhei para ela, depois para a Caixa de Histórias, e lambi os lábios.
O Tio A queria a Caixa de Histórias? Então, nós íamos trazer a Caixa de
Histórias para ele.
— Bebê Chiclete, você não vai gostar disso.
Poucos minutos depois, desci as escadas, com a Caixa de História
nas costas, para fazer minha primeira apresentação oficial como
Anansesem para o público mais perigoso que eu poderia imaginar.
Saí do palácio e entrei no pátio para enfrentar um mar de
algemados. Eles estremeceram quando me aproximei, então se
separaram como mágica. Meus olhos estavam fixos em frente, embora
eu pudesse ouvi-los se fechando atrás de mim, impedindo qualquer
recuo. Mas fugir era a última coisa em minha mente.
Eu tinha um compromisso marcado.
FOI A CAMINHADA MAIS LONGA da minha vida.
Imagine ser chamado para ir à frente da classe para resolver um
problema, mas o quadro branco está a um quilômetro de distância. Ou
subir ao palco do auditório em uma assembléia escolar para fazer um
discurso, e se você errar, eles podem arrastá-lo para fora de lá, para
nunca mais ser visto. Ou sua mãe vem buscá-lo mais cedo e te pega
fazendo palhaçadas no fundo da sala de aula, e agora você tem que
passar por todos os seus amigos enquanto ela olha para você com aquele
olhar de Ah, é mesmo?
Pois é.
Na verdade, imagine todas essas três coisas acontecendo ao
mesmo tempo.
Jogue um pouco de terror, um pouco de náusea e um pouco de
Santo Deus, como vou sobreviver a isso, e você está quase lá.
Não olhei para a esquerda ou direita, nem mesmo quando passei
pelo bosque de Mmoatia. Nem mesmo quando passei por John Henry
lutando contra vários chefões. Nem mesmo quando passei por uma Srta.
Sarah chorando baixinho, o corpo mole e imóvel da Srta. Rose deitado
em seus braços. Não, eu não encontrei os olhos de ninguém quando
coloquei um pé à frente do outro, seguindo a rua em curva até que a torre
de ouro amassada do porto emergisse da baía na minha frente.
E na frente dele, Nyame.
Centenas de algemados destruídos jaziam em montes ao redor
dele, como um forte feito de inimigos derrotados, e ainda assim várias
centenas de outros vivos o cercavam. Quando me aproximei, suas
cabeças giraram como se eu fosse um ímã, e o deus no meio levantou a
cabeça e lançou um olhar cortante para mim.
Seus olhos queimavam como mil carvões em brasa, e se olhar
pudesse matar... O que estou dizendo? Sua aparência provavelmente
poderia matar. Pelo que eu sabia, ele estava diminuindo meus anos de
aposentadoria.
— Você não sabe o que está fazendo — ele rosnou.
— É isso — eu atirei de volta — ou todo mundo será arrastado para
aquele navio da morte ali. Estou fazendo a única coisa que posso.
Ele balançou sua cabeça.
— Você está condenando a todos nós. — E me deu as costas.
Cerrei meus punhos, mas os monstros de ferro ao meu redor
começaram a se aproximar cada vez mais. No entanto, eles não estavam
atacando. Era como se estivessem me incentivando. Eu lancei meu olhar
para Nyame, então, com uma dúzia de algemados atrás, desci para a
costa, onde uma coleção de pranchas podres amarradas com cordas
inchadas e cobertas de algas esperavam.
Minha enferrujada guarda de honra me conduziu até a jangada
improvisada.
Virei-me, dizendo:
— De jeito nenhum. — Então dei meio passo para trás quando doze
algemados começaram a tilintar, como cascavéis de metal. — Tudo bem,
estou indo.
Pisei na jangada e uma onda de tristeza fez um nó na minha
garganta. A jangada de Ayanna estava em algum lugar na Crista. Perdida
para sempre, provavelmente. Eu balancei minha cabeça e respirei fundo.
Em frente, pensei. Preciso seguir em frente.
Eu não tinha um pedaço de pau ou um remo para impulsionar a
jangada, mas a coisa podre se mexeu sozinha, flutuando lentamente no
início, depois ganhando velocidade. Os destroços bateram nas laterais e
mais de uma explosão de chamas irrompeu da água, fazendo-me pular a
cada vez. O vapor pairava sobre o mar fervente e um rugido baixo
espreitava ao fundo. A fenda no céu, diretamente acima e estendendo-se
até o horizonte, sufocava tudo em um calor denso que tornava a
respiração uma luta.
O Maafa espreitava perto da costa, atarracado e feio na parte rasa
como um leviatã doente que foi levado para a baía. Tinha o cheiro que
parecia ter e parecia o cheiro que tinha — sujo, coberto de crustáceos,
com os restos podres de peixes presos entre as tábuas estilhaçadas de
seu casco e emitindo gases, do tipo que permanece no fundo da sua
garganta depois que você sai do posto de gasolina.
Meus olhos e meu estômago queriam vomitar.
A jangada seguia sua guia invisível cada vez mais longe da costa,
longe da segurança — onde quer que fosse. Aproximei-me cada vez
mais, até que o Maafa pairou sobre mim e continuei flutuando. Eu
engasguei quando senti o cheiro da crosta preto-esverdeada que revestia
o casco, com seu cheiro de vegetais velhos e da graxa especial do
Alabama que vózinha sempre passava em meus cortes. Algemados,
presos contra o lado, se contorciam fracamente na água.
Finalmente, cheguei a uma fenda irregular no casco e, enquanto a
jangada deslizava por dentro, água fedorenta escorria pelo meu pescoço.
Um ambiente familiar se materializou na escuridão.
Duas tochas.
Três degraus.
Uma longa passagem envolta em escuridão.
A jangada parou e eu agarrei as alças da Caixa de Histórias (Caixa
de Histórias? Mochila de Histórias? Eu não tinha resolvido isso ainda) e
subi as escadas. As pranchas de madeira encharcadas do convés
rangiam e se curvavam sob meus pés. Minha respiração ecoou em meus
ouvidos.
Eu inalei, tentando não sentir o cheiro do ar podre, e depois o soltei.
E foi então que o navio falou.
— Pensei que eu tinha dito a você que histórias são magia
poderosa?
Eu congelo. A voz veio da escuridão. Mas não era o Tio A, como
nos meus pesadelos.
— Bem, meu garoto? Bela bagunça em que você se meteu.
Espere um minuto.
Espere. Um. Minuto.
Eu conhecia aquela voz. Mas a última vez que ouvi ela, o dono
estava me dizendo...
— Você pelo menos me deu um bom final?
— Brer Raposa? É você?
Uma risada sibilante de tosse ecoou ao meu redor.
— Parece que sim. Acho que esses bigodes velhos têm um último
trabalho a fazer.
Eu dei um passo à frente, depois outro. A escuridão não
desapareceu tanto quanto partiu ao meu redor. A passagem ficou cada
vez mais estreita e, quando me virei, pude ver as tochas perto do buraco
em que entrei.
— Estou aqui para falar com o Maafa.
As paredes gemeram e o convés se moveu. As tábuas se
retorceram e se realinharam, e joguei minhas mãos para manter o
equilíbrio, quase caindo quando as tábuas cederam ao meu toque. Eu
senti algo macio e peludo. E quente. Me certifiquei de que minhas pernas
estavam firmes, então olhei para trás. Minha mão tinha empurrado a
madeira encharcada, e por baixo...
— Meu santo pêssego!
Um rosto.
Não, dezenas de rostos. Alguns eu reconheci — Tarrypin, Sis Crow
— e outros que não. Essas eram as vítimas, aquelas que os monstros de
ferro haviam arrebatado. Foram todos enfiados nas anteparas e conveses
do Maafa.
Eu pulei para trás de horror... e seus olhos me seguiram. Eles
estavam vivos, mas por pouco.
— Não é bonito, certo? — Brer Raposa disse em um tom tenso.
Afastei meus olhos das pessoas que mal respiravam.
— Vim negociar. Você pode falar isso para ele? Vim negociar! —
eu gritei.
— Tem certeza de que sabe o que está fazendo?
— Eu tenho. Agora dá pra falar?
— Ele já sabe. Isto...
A voz de Brer Raposa foi cortada e eu fiquei no silêncio escuro por
vários segundos.
— BRER? BRER RAPOSA!
— Ainda aqui... apenas... traduzindo. — Ele parecia estar com dor
e eu apertei as alças da Caixa de Histórias. Ele ficou preso por minha
causa, e agora ele, e os outros, estavam sofrendo.
Assim que fiquei preocupado e comecei a gritar de novo, as
pranchas encharcadas do convés acima da minha cabeça descascaram
como uma banana e Brer Raposa caiu. Seus membros estavam presos
em correntes, e um estranho brilho laranja encheu seus olhos.
— Qual é a barganha? — ele disse, e eu vacilei.
Essa não era a voz de Brer Raposa. Era mais profunda, mais
sombria, como madeira rangendo e ondas quebrando. Era liberdade
negada. Era uma dor silenciosa.
Era o Maafa.
— Você acha que tem algo que queremos? — O velho cruel
perguntou através de Brer Raposa. — Você?
Era estranho — e assustador — ver o movimento da boca de Brer
Raposa, mas ouvir a voz assustadora do navio. Mas eu tive que superar
o medo. Tudo dependia desse momento. Todos dependiam de mim.
Obriguei-me a começar a falar novamente.
— Você está carregando algo dentro de você — eu disse.
— Carregamos muitas coisas. — As correntes que prendiam Brer
Raposa forçaram suas pernas a andar ao meu redor como uma marionete
grotesca. — Os vivos. Os moribundos. O medo que une os dois. É o que
fazemos.
— Sim, mas você também carrega um haint, e ele está usando
você. Ele está usando você para chegar a mim e a todos os outros em
Alke, para que possa se tornar mais poderoso até mesmo do que você.
— IMPOSSÍVEL! — O Maafa forçou Brer Raposa a rosnar na minha
cara, e eu estendi meus braços para me equilibrar enquanto o navio subia
e descia na água.
— É verdade! — eu gritei.
As correntes que prendiam Brer Raposa ficaram tensas e ele foi
içado para o convés superior.
Antes que eu pudesse reagir, as pranchas na antepara à minha
direita se separaram e Tarrypin — sua concha amarrada em correntes —
foi levado para fora. Seus olhos estavam brilhando laranja também, e ele
falava com a mesma voz ancestral do Maafa.
— Entãoo, temos um espírito a bordo. O que...?
— Ele está envenenando você. — Corri um grande risco
interrompendo, mas o tempo estava se esgotando. Não havia como saber
o que estava acontecendo lá fora. — E está pegando as histórias que
seus monstros caçam e acumulando-as, ficando mais forte. Em breve,
ele assumirá o controle e fará de você uma vítima.
O possuído Tarrypin balançou a cabeça enrugada.
— Sua história não nos impressiona. Mesmo se tal clandestino
existisse, ele nunca poderia superar nosso poder. Nós vamos...
— Sim, e pode, com isso. — Eu tirei a mochila e ela se transformou
na Caixa de Histórias dourada. Eu a estendi.
Houve uma pausa momentânea e, em seguida, Tarrypin foi puxado
de volta para a antepara. A uma curta distância no corredor, o deque se
abriu como um alçapão e uma adolescente saiu, caminhando com leveza,
apesar das algemas em seus tornozelos.
— Netta? — Eu sussurrei. — Não.
Mas a garota que conheci na Terra Média não levantou seus olhos
brilhantes. Em vez disso, eles permaneceram presos à Caixa de
Histórias.
— Você carrega as palavras dos deuses — disse o Maafa. — Você
é... Anansesem. — Pela primeira vez, ouvi uma nota de preocupação na
voz.
— Sim — disse. — E como eu disse, vim para fazer uma barganha.
Eu podia sentir a consideração do Maafa no silêncio que se seguiu.
Quando falou em seguida, o navio estava quase pensativo:
— Por que não deveríamos simplesmente pegar o tesouro do
amaldiçoado deus do céu e governar as terras como quisermos?
Eu estava preparado para isso.
— Porque você não iria governar por muito tempo. O haint
infestando em você se tornaria muito poderoso até mesmo para você
lutar, e ele o destruiria. Mas há outra maneira. — Hesitei, então inalei e
soltei um suspiro profundo. — Vou contar a sua história.
O navio inteiro parou. O rangido, o farfalhar, o tilintar das correntes
— tudo ficou em silêncio enquanto o Maafa registrava minhas palavras.
Então:
— Você contaria... a nossa história?
Eu assenti. Era um risco e muitas pessoas em Alke não gostariam,
mas tinha que ser feito.
— As pessoas não falam mais do Maafa. Eles silenciam qualquer
menção a você. As crianças não sabem o seu nome. Em breve você será
totalmente apagado das histórias de Alke.
Coloquei a caixa no chão. As imagens nas laterais, incluindo a de
Anansi e Nyame enfrentando o Maafa, mal eram visíveis. Enquanto os
olhos de Netta continuavam na Caixa de Histórias, fechei os olhos e me
concentrei no conto de Maafa.
O Maafa é dor, John Henry havia dito. Ele veio aqui com o primeiro
de nós. A tristeza para nossa alegria.
Tambores bateram em meus ouvidos e as pontas dos meus dedos
formigaram. Abri os olhos a tempo de ver a Caixa de Histórias brilhando
e projetando imagens na parede. Um leviatã preto como tinta saltou para
frente ao longo das pranchas, apenas para ser encontrado por um grupo
de seres familiares: um homem gigante com um martelo brilhante, duas
sombras altas com asas em chamas, um homem com olhos dourados e
uma aranha agarrada a uma linha de seda cintilante. Todos eles se
chocaram com a besta sem forma, eventualmente lançando-a de volta na
escuridão abaixo.
A Caixa de Histórias brilhou incandescente no escuro antes de se
desvanecer em um brilho opaco, e um suspiro pareceu se instalar em
todo o casco do antigo navio.
Depois de vários segundos, Netta ergueu seus olhos brilhantes
para mim.
— Você contaria essa história?
Eu levantei meu queixo.
— Eu contaria a história de como todos os deuses da Terra Média
e Alke se uniram para derrotar um oponente poderoso. Sim, eu contaria
essa história.
O segredo aberto do Maafa vinha me incomodando durante toda a
minha estada aqui, e foi preciso algo que Grande John disse para me
fazer entender. Você não deve tentar se esconder de sua dor. Você não
deve fugir dela, encobrir, fingir que nunca aconteceu. Isso é o que John
Henry e Nyame e todos os outros deuses tentaram fazer com o Maafa.
Isso é o que tentei fazer com Eddie. Tio A pensou que me machucaria
tirando todas as minhas boas lembranças do meu melhor amigo, mas ele
só me ajudou a enfrentar meus sentimentos.
Como Anansesem, era meu trabalho levar as histórias da terra para
seu povo. Todas as histórias. Se ignorássemos o passado, como
aprenderíamos com ele?
Esperei pela decisão do Maafa.
A luz da Caixa de Histórias diminuiu e a passagem pareceu se
alargar um pouco. O alçapão do convés desapareceu e as pranchas da
antepara se endireitaram. Netta, ainda possuída pelo Maafa, ergueu os
dois braços.
— Voltamos ao nosso descanso, e você contará nossa história?
— E — acrescentei —, vou até mesmo me livrar desse haint para
você. Dois por um. Pra você ver como eu sou bonzinho.
Netta acenou com a cabeça e deu um passo para o lado. Duas
tábuas na parede se separaram como se fossem feitas de borracha, e a
garota desapareceu na escuridão.
Algo farfalhou no andar superior e a voz de Brer Raposa soou acima
de mim.
— Eu não sei como ou por que, ou o que você disse, mas ele
concordou. Você tem que ter cuidado, porém, meu garoto. Desde que
você cumpra a sua parte na barganha, assim que você livrar o navio do
haint, o Maafa voltará ao fundo do mar. E se acontecer de você não
conseguir escapar a tempo, você e a Caixa de Histórias irão descer para
o fundo junto com ele.
Sua voz foi cortada e eu balancei a cabeça severamente.
— Eu entendo.
— Eu sei que você entende, meu garoto, sei que entende. Perdoe
uma velha raposa por sua preocupação. Anime-se, você consegue fazer
isso. — Sua voz começou a sumir e eu me impedi de correr para a parede
para implorar que ele ficasse e me ajudasse. Uma última risada flutuou
no ar. — Parece que a esperança vive, afinal.
— Espere! — Eu gritei. — Vocês, todos vocês, vão voltar?
Silêncio.
Então:
— Acho que alguns vão. Mas gosto de como minha história
terminou, meu garoto. E estou cansado... muito, muito cansado. Acho que
vou descansar um pouco.
— Raposa — eu chamei. — RAPOSA!
E então não havia nada além de mim e a passagem vazia, uma
porta indefinida esperando no final. Algo rolou pela minha bochecha, mas
não me incomodei com isso. Quer fosse a água salgada do mar ou a
minha, não ajudaria com o que viria a seguir. Coloquei a Caixa de
Histórias de volta nos ombros e comecei a andar antes que o medo me
convencesse do contrário.
Fiz uma barganha com o Maafa.
Agora era hora de lidar com o Tio A.
— BEM, ENTRE, TRISTAN, não seja tímido. Você está deixando
todo o calor sair.
Demorou alguns batimentos cardíacos — vários batimentos
cardíacos fortes — antes que meus olhos se ajustassem à escuridão. A
passagem estava escura, mas esta sala estava duas sombras abaixo do
preto da meia-noite.
A estrutura espelhava minha visão. Lá, no canto, havia barris
empilhados até o convés. Os sacos retangulares de pano, suas letras
pretas desbotadas ilegíveis no escuro. E montes, e quero dizer montes,
de branco...
— Algodão — eu disse, espantado.
— Garoto esperto. Garoto inteligente, inteligente. É por isso que
gosto de você, quero ajudá-lo.
Eu não vi o haint no começo. Algodão estava espalhado pelo chão,
empilhado nos cantos e saindo de vários pacotes manchados e abertos.
Mas lá, no monte mais alto no canto mais distante, estava a figura do que
costumava ser um homem.
Tio A.
Tio Algodão.
Pelo que pude ver, ele era estiloso. Usava um par de sapatos
elegantes de couro envernizado polido, meias sociais de seda, calças
vincadas e tinha uma corrente de relógio de bolso pendurada no bolso.
Mas isso é tudo que eu consegui ver. A metade superior dele estava sob
uma pilha branca de algodão encharcado. A única coisa aparecendo
acima da cintura era o lado esquerdo do rosto — acinzentado, pálido e
com bolhas nos lábios. Seus olhos, azuis como a baía lá fora, abriram-se
e o canto de sua boca se enrugou em um sorriso.
— Olhe só, olhe só. Olha o que o gato trouxe. Eu me levantaria,
mas... bem, estou um pouco indisposto. — Ele riu, uma risada rouca que
irritou meus ouvidos como garfos arranhando pratos. — Bem, entre,
entre, não seja tímido. Temos muito o que conversar, não temos?
Eu o estudei.
Este foi o arquiteto de quase tudo de ruim que aconteceu na Terra
Média e Alke. Aquele que incitou os navios de ossos, os monstros de
ferro, as bestas de casco, as moscas-marca. O mal por trás dos
sequestros de pessoas e animais e da pilhagem de suas casas. Por
causa dele, Ayanna estava sofrendo, talvez até...
Ele me observou estudá-lo, mas quando apertei as alças em meus
ombros, seus olhos se fixaram em minha mochila e um olhar suspeito
cruzou seu rosto.
— O que você tem aí?
Por um segundo, meu coração bateu forte no peito como os
tambores de guerra na Crista. Eu disfarcei, no entanto, e me aproximei.
Só um pouco.
— Eu trouxe o que você queria. Agora me dê minhas memórias.
— Eu disse para você me trazer a Caixa de Histórias, não uma
mochila esfarrapada! Cadê? — Exigiu Tio Algodão.
— Bem aqui — eu disse, dando um tapinha na minha mochila. —
Onde está meu diário? Onde estão minhas memórias? — Minha voz
estava grossa e falar era difícil. Meu peito não parava de arfar e minhas
palmas estavam suando.
Ele me olhou e riu.
— Direto ao ponto. Ok. Eu gosto disso. Sem ficar de gracinha em
torno do assunto. Bem, meu garoto...
— Eu não... sou... seu... garoto — eu disse, respirando com
dificuldade após cada palavra.
Sua sobrancelha se ergueu.
— Ok, então, ok. Não há necessidade de grosseria. Pensei que
fosse melhor do que isso. Você é melhor do que isso, sei disso. Você e
eu somos iguais. Determinados. Focados. Com um propósito. Eu entendo
o que você está passando, acredite em mim. Ter algo arrancado.
Rasgado de você. A solidão. O vazio.
Eu fechei meus olhos com força.
— Me. Dá. Meu. Diário.
— Ok. Ok. Tudo que você precisa está bem ali.
Eu abri meus olhos para ver que ele havia se mexido ligeiramente,
para que seu rosto apontasse para o canto à minha direita. Avistei uma
porta, sua metade inferior coberta por raízes grossas e trepadeiras
espinhosas, e meu ânimo afundou.
— Como vou entrar aí?
Eu nunca vi uma meia-cara parecer mais arrependida.
— Tristan, Tristan. Eu te disse, você tem que confiar em mim. O que
você perdeu está naquela sala, além daquele emaranhado, e posso levá-
lo até lá. Eu disse que poderia ajudar, e irei, acredite em mim. Mas eu
não posso fazer nada assim. — Seu olho olhou para seu torso enterrado
antes de me fixar com um olhar suplicante. — Você precisa me ajudar se
quiser que eu faça o mesmo. Eu te disse. Liberte-me e posso libertar
todos.
— Libertar você… — eu repeti.
Tio Algodão fez uma careta, uma torção cruel no rosto.
— Minha própria culpa, de fato. Este mundo é construído com base
no poder da história, garoto. Parece que minha história está entrelaçada
com este palácio da morte flutuante. Algodão e o Maafa.
— Ganância e escravidão — sussurrei.
Algodão se mexeu, um movimento que percebi ser um encolher de
ombros.
— Natureza da besta. Engraçado, certo? Você me libertou, apenas
para eu acabar emaranhado em algo ainda mais forte.
Seus olhos pálidos se voltaram para a Caixa de Histórias. Eu dei
um passo para trás.
— Mas com isso... Ahhh sim, com isso, eu poderia reescrever minha
própria história. Você foi de idiota a campeão. Imagine o que eu poderia
me tornar. As lendas. A história! É a única maneira — disse ele. Algo
farfalhou na montanha de algodão e uma mão murcha, com unhas pretas
e afiadas, ergueu-se debilmente da penugem branca. — Me dê. Deixe-
me te ajudar.
Eu hesitei.
— Deixe-me te ajudar — ele sussurrou novamente, e a exigência
insistente invadiu meu cérebro.
Tirei a mochila e a segurei na mão direita.
— E você vai me dar minhas memórias e o diário? Agora mesmo?
Um rosnado ondulou em seu rosto antes de desvanecer e um
sorriso aparecer.
— Claro, Tristan, com certeza, assim que você me libertar, eu
entrego para você. Você terá o que deseja. Todas as suas histórias, cada
uma delas. Caramba, aqui estão alguns lembretes para você começar,
apenas para que você saiba que estou falando sério.
Ele respirou fundo e soprou suavemente o algodão à sua frente.
Pequenos fios brancos, quase invisíveis no escuro, flutuaram em minha
direção como uma nuvem. Eu recuei, mas os fios me consumiram.
Congelei de medo, sentindo uma sensação de formigamento que
começou no centro da minha espinha e se moveu para cima, aumentando
em força conforme avançava, até minha testa zumbir.
O rosto sorridente de Eddie surgiu em minha mente. Nós dois,
sentados à mesa, repassando nosso projeto de inglês.
Eddie na loja da esquina.
Eddie segurando a bolsa pesada para salvar sua vida enquanto eu
jogava ganchos e socos certeiros. As memórias tomaram conta de mim
e eu senti meses de estresse vazando dos meus ombros.
— E agora... — A sobrancelha solitária do haint enterrado estava
arqueada novamente, e isso me trouxe de volta ao presente como um
jato de água gelada no rosto. A adinkra de Anansi queimou quente contra
meu pulso, e eu mexi nela e na conta do Amagqirha.
— Um acordo é um acordo, Tristan.
Eu balancei a cabeça, engoli, então dei um passo à frente e
coloquei a mochila em sua mão esticada. Ele se atrapalhou com ela,
então agarrou uma alça e apertou com força. Ele inalou, depois exalou, e
a pele de seu rosto pareceu ondular.
— Ajude-me — ele exigiu. — Ajude-me a sair daqui.
Era isso.
Uma vez que ele estivesse livre, tudo ficaria por um fio. Rezei para
ter pensado nesse plano o suficiente enquanto me aproximava. Eu tirei
punhados de algodão encharcado dele, como areia molhada na praia. As
fibras encharcadas pesavam uma tonelada e grudaram em meus dedos
enquanto eu tentava jogar fora as pilhas. Lentamente, um corpo começou
a emergir da bagunça.
Uma cabeça com cabelos grisalhos pegajosos penteados para trás,
bem perto do crânio.
Dentes de um branco brilhante — tão brancos que pareciam falsos,
exceto pelo único dente de ouro no fundo.
E ele estava tão magro que parecia apenas ser pele e osso.
Usava um paletó combinando e, por baixo, uma camisa de colarinho
engomada e rígida.
Tio Algodão abraçou a Caixa de Histórias com força. Diante dos
meus olhos, seu rosto perdeu as rugas, alisando-se para parecer o de um
homem muito mais jovem, e o algodão... Todo o algodão da sala começou
a tremer. Lentamente no início, mas logo cada bola branca suja quicou e
saltou como se fosse um terremoto. Elas rolaram no chão e caíram das
pilhas nos cantos, subindo rapidamente até onde Tio Algodão estava
deitado com os olhos fechados, um suspiro pesado escapando de seus
lábios. Elas saltaram para baixo em seu colarinho, enrolaram em suas
mangas e pernas de calça, até mesmo em suas meias.
Logo todo o algodão da sala havia sumido. Ele encheu suas roupas
como palha em um espantalho.
Tudo o que restou foram as raízes espinhosas cavando na parte
inferior da porta para o próximo compartimento.
Eu tinha que fazer com que ele removesse também, ou esse plano
estava perdido.
— Me ajude a levantar.
Sua voz, mais forte e confiante, chamou minha atenção e eu estendi
um braço. Suas mãos pareciam garras de couro enquanto deslizavam em
volta do meu pulso como algemas. Mas ele era leve — tão leve que me
surpreendeu. Algodão escorregou das mangas de sua jaqueta e dos
punhos da calça antes de ser puxado de volta para dentro como um ioiô
em um cordão. Ele ajeitou o cabelo e manteve o lado direito do rosto
voltado para longe de mim, embora seu olho esquerdo tenha rolado para
mim e piscado.
— Ahhh. Você não sabe como é boooooom ficar livre daquela
prisão. Preso como um porco antes da hora do jantar, juro. E isso… —
Ele segurou a Caixa de Histórias pelas duas alças e parou de falar
enquanto o tesouro mágico lentamente se transformava em um baú. Ele
deu uma risadinha, e a risadinha se transformou em uma risada, que
cresceu em uma gargalhada calorosa que soou úmida e solta.
— Ha-haaaaa, olha isso. Rapaz, vou te contar, eu tô sentindo esse
poder. Consigo sentir isso tão bem quanto a chuva. Urrul! Vamos dar uma
festa para nós!
Ele se atrapalhou com a tampa, tentando soltar a trava. Ela
manteve-se firme e seu sorriso desapareceu lentamente enquanto ele
tentava abrir a Caixa de Histórias repetidas vezes. Ele resmungou,
praguejou, jogou-a no chão e puxou com as duas mãos. Ele olhou para
cima e eu estremeci — o lado direito de seu rosto, até e ao redor da órbita
do olho direito, era uma massa de caules de videira e algodão picado.
Sua órbita ocular brilhou e ele rosnou.
— Por que isso não abre?
Lambi meus lábios.
— Porque só eu posso abri-la.
— Bem, então abra, garoto! Não tenho tempo para seus jogos!
A porta atrás dele ainda estava coberta de raízes. Respirei fundo e
balancei a cabeça.
— Não.
— Não? — Ele latiu a palavra tão violentamente que minhas mãos
estavam para cima e meus punhos cerrados antes que eu percebesse.
Seus dentes estavam à mostra e suas unhas em forma de garras de
repente se tornaram mais longas e afiadas, como garras. Elas cresceram
e cresceram, torcendo-se e virando-se para mim, e tarde demais percebi
que eram galhos delgados, brotos finos que coçavam como ganchos
farpados. Eles serpentearam em volta do meu pulso e braço, cavando em
minha pele, e Tio Algodão se inclinou para perto.
— Não? — ele repetiu.
— Não… — empurrei as palavras entre os dentes — antes de você
me dar meu diário. Como você disse.
Ele parecia pronto para cuspir. Talvez pior. Os galhos se apertaram
em volta do meu pulso, como prova do que eles podiam fazer, e então se
afrouxaram o suficiente para que eu pudesse falar sem estremecer.
Marcas vermelhas cruzavam meu braço esquerdo.
Tio Algodão engoliu qualquer xingamento pendurado em sua
língua, e de repente o sorriso suave e polido estava de volta.
— Ok, então, ok. Claro, você está certo. Preciso ajudar. Mas eu
tenho que ter certeza de que você está falando sério. Preciso saber que
posso confiar em você, Tristan. Vou ter que confiar em você quando
sairmos. Viemos a este mundo juntos, e se formos lá como um time e
você mostrar a eles que estou aqui para ajudar, para ser um salvador...
caramba, não há como nos parar. Eu serei um herói. É isso que eles estão
procurando, certo? Um herói para vir trotando e resgatá-los de si
mesmos? Bem, aqui estou.
Ele se envaideceu, ao mesmo tempo em que os estrondos do
Maafa batendo contra a Crescente Dourada sacudiam a sala. Seu olho
azul se estreitou, um olhar calculista entrando nele, e os galhos de
algodão começaram a me apertar novamente enquanto ele ficava ainda
mais animado.
— Talvez eles possam me dar as chaves da cidade. Quero dizer,
olhe para você, eles te deram todos esses amuletos divinos e você é
apenas um menino com algumas histórias. O escolhido de Anansi. Ha! —
Ele zombou. — Espere até que apareça um verdadeiro contador de
histórias, um fiador de palavras, um tecelão de verdade. Eles vão
esquecer tudo sobre aquela aranha e sua pequena ninhada.
Ele congelou quando um pensamento o atingiu.
— Eles podem até me fazer rei.
Sua órbita ocular incrustada de algodão se fixou em mim, e o terror
tomou conta de mim com tanta força que eu não conseguia respirar.
— Sim. Rei Algodão. Tem uma boa sonoridade, não é, garoto?
Um estrondo de trovão retumbou à distância. Tambores e gritos
ecoaram em meus ouvidos.
Minha boca se moveu, uma, duas, três vezes, antes que algo
parecido com uma palavra rastejasse para fora dela.
— S-sim.
— Ah, não se preocupe, o Rei Algodão cuidará de seus amigos.
Você poderia ser meu pupilo, meu herdeiro legítimo. Jogue suas cartas
da maneira certa e você poderá ter seu próprio pequeno palácio aqui.
Escolha o que quiser, estão todos vazios.
Ele gargalhou e deu um tapa no joelho.
— Minhas... memórias… — eu engasguei passando pela dor
pulsante em meu braço.
— Certo, certo. Estou indo rápido demais. Bem, vá em frente,
Tristan, pegue as histórias do seu amiguinho e vamos acabar com essa
invasão. Você e eu temos alguns planos a fazer.
Seu olho direito ficou branco brilhante quando ele estufou o peito
estreito, respirou fundo e soprou um jato de ar cheio de caroço de algodão
na porta. As trepadeiras rastejando ao redor do compartimento
murcharam e descascaram, como flores murchando sob o sol escaldante.
Logo não sobrou nada além de pequenas pilhas de sujeira espalhadas
no convés de madeira rangendo. A dor em meu braço diminuiu conforme
os galhos se soltaram e recuaram para suas unhas.
Tio Algodão sorriu radiante.
— Feliz?
As memórias voltaram à minha mente como se uma comporta
tivesse sido aberta. Algodão observou, em seguida, apontou para a porta
recém-aberta. Dentro do compartimento semelhante a uma cela, um livro
marrom estava encostado na parede.
O diário de Eddie.
Um estrondo agourento sacudiu o convés quando cruzei os poucos
metros para pegar o pequeno livro. A capa de couro estava empenada e
as páginas manchadas de água, mas sabe de uma coisa? Eu não me
importei. Era de Eddie, era meu e eu o tinha mais uma vez.
O convés estremeceu novamente e o Tio Algodão olhou em volta
com o cenho franzido.
— Agora, o que deixou esse pedaço de lixo em pé de guerra?
Um pequeno sorriso cruzou meu rosto. O Maafa estava cumprindo
sua promessa. Eu tirei as ramificações do Tio Algodão do casco e agora
o navio estava se preparando para retornar ao fundo do mar, onde
pertencia.
Uma fenda apareceu no convés entre duas tábuas e a água
começou a borbulhar. Eu recuei. O tempo estava se esgotando. Virei-me
para atravessar a passagem, apenas para encontrar o Tio Algodão
parado na minha frente, a caixa de histórias estendida, um brilho estranho
em seu olho azul.
— Você não está pensando em passar a perna em mim, está?
Tristan? Não, você não faria isso. Você é um homem de honra! Como
eu... cumpri minha parte da barganha. Você tem seu livrinho. Agora é
hora de você abrir a Caixa de Histórias.
Uma seção de casco quebrado atrás dele com um estalo alto, e
água do mar verde começou a jorrar para dentro.
— Abra! — Gritou o Tio A.
Eu vacilei.
— Está bem, está bem. — Respirei fundo, em seguida, peguei a
Caixa de Histórias, puxando o fio que conectava contos de todo o mundo,
e a tampa se abriu, derramando uma luz dourada brilhante na sala
inundada.
Tio A começou a rir. O som áspero ficava cada vez mais alto
enquanto o Maafa se desmanchava em torno de mim e do haint.
— Sim! Simmmmmmm! Espere... O que...?
Ele inclinou a cabeça para mais perto da Caixa de Histórias,
levantando-a até o rosto e, em seguida, recuou quando uma rajada rápida
de bolas de seiva voou e acertou-o nos olhos.
— Ouvi dizer que você estava procurando essas mãos — gritou
uma voz fina de dentro da Caixa de Histórias. — Bem, aqui estão elas, e
a Bebê Chiclete vai te dar elas de graça. Ataque de seiva!
A pequena tagarela saiu da Caixa de Histórias, a luz se apagando
dela como raios de brilho. Bebê Chiclete pulou em cima da cabeça do
haint e disparou bola de seiva após bola de seiva em seu rosto, até ele
estar usando uma máscara pegajosa de âmbar escuro.
— A volta da seiva, cabeça de agulha! Não chame isso de volta da
goma!
Tio A grunhiu enquanto lutava contra o peso da seiva sendo
absorvida por seu eu felpudo.
— Isso é por Cacau! E isso é por Ayanna! E isso por ter coragem
de atirar pedras no trono, idiota! Você não é bom, cabeça de cardo com
boca farinhenta e cara de dente-de-leão!
— Bebê Chiclete — gritei —, vamos embora!
— Seu melequento!
— Bebê Chiclete!
Ela o chutou na cabeça mais uma vez para garantir, e esse último
esforço fez o haint cair para trás na água, subindo ao redor de nossos
pés. Quando ele caiu, peguei a Caixa de Histórias de suas mãos. Depois
que se transformou na mochila preta e dourada, coloquei e Bebê Chiclete
subiu por cima.
— Tristan! — Tio A se contorceu na água, seu algodão ficando
ainda mais pesado agora, e cuspiu seiva de sua boca. — Não me deixe
assim, garoto! Eu te ajudei! Nenhum daqueles caras aí levantou um dedo
por você antes de mim! Eu fiz de você o que você é, garoto, não me deixe!
Outro estalo de lascas ecoou como um tiro no fundo do Maafa, e o
navio se inclinou, levantando-me mais alto enquanto o Tio Algodão
deslizava para o outro lado. A água desceu correndo pelo corredor. Não
tinha como sair pela maneira como entramos. Isso deixava o
compartimento para trás, onde o diário de Eddie estava escondido, e eu
corri em direção a ele. Talvez houvesse uma escotilha que eu pudesse...
— Tristan! — A falta de emoção na voz do Tio A forçou minha
cabeça antes que eu pudesse me conter. Sua cabeça estava virada em
minha direção, seus olhos ainda cobertos de seiva. A parede mais
próxima a ele se separou lentamente. — Você sabe que isso não acabou,
certo? Eu vou te encontrar, garoto. Eu vou te encontrar e...
O mar invadiu, espumante e furioso, carregando pranchas
quebradas e algemados moles, e expulsou o haint no meio da ameaça.
A água ainda não havia chegado ao quartinho, mas eu podia sentir
o navio afundando. Bebê Chiclete subiu em meu ombro.
— Precisamos nos mover, Língua Solta, e rápido.
— Sim — eu disse, olhando para o redemoinho. — Você tem razão.
E entrei na próxima sala assim que o convés superior caiu com uma
colisão estrondosa.
— HM… — BEBÊ CHICLETE SUSSURROU quando a porta se
fechou atrás de nós. — Não era nisso que eu estava pensando quando
disse que precisávamos escapar.
Não pude responder, embora concordasse.
O interior de um ônibus escolar estendeu-se à nossa frente.
— Já era hora de você aparecer, nimrod — alguém disse na
retaguarda. Um menino magro, vestindo uma camiseta do Malcolm X e
usando um corte de cabelo feito em casa, sentou-se de onde antes estava
esparramado ao lado de um buraco na lateral do ônibus. — Você está
mais lento do que uma lesma.
— Você conhece esse cara? — Bebê Chiclete perguntou.
Eu abri e fechei minha boca várias vezes, sem palavras. Como?
Meu pulso formigou e eu levantei a pulseira de adinkra e encarei a cordão
de prata. Comungue com os espíritos, a profeta havia dito.
Respirei fundo e limpei a garganta.
— Ele é... era... meu melhor amigo.
Eddie ainda parecia... com Eddie. Baixo e magro. Ele até parecia
real — ele estendeu o punho enquanto eu me aproximava, agarrando as
costas verdes muito realistas dos bancos, e depois de alguns segundos
eu o levantei, olhando para ele quando nossos nós dos dedos se
conectaram.
— O Algodão se foi? — ele perguntou.
— Sim — eu disse. — Sim, ele se foi. Por enquanto.
— Tente conter sua empolgação, cara. — Eddie empurrou os
óculos para cima do nariz. — Eu ouvi o barulho daqui. Parece que vocês
fizeram um estrago nele. Os heróis em seus quadrinhos ficariam
orgulhosos.
Bebê Chiclete espiou por cima do meu ombro.
— Bebê Chiclete que fez o estrago, seu nerd fantasma. Respeite a
seiva ou ganhe uns tapas.
Revirei os olhos, mas Eddie bufou. Eu podia ver o assento através
dele, e isso me surpreendeu. Isso não era um sonho ou uma visão ou
mesmo uma história pela qual fui sugado. Meu melhor amigo estava
sentado bem ali, sorrindo para mim. Mas ele estava morto.
— É estranho, né?
— Sim. — Sentei-me no assento em frente a ele, ainda um pouco
chocado. — Sim, acho que sim.
— Pode crer.
A névoa rolou em torno de nossos tornozelos, encheu as primeiras
fileiras e obscureceu as janelas. Se eu não olhasse em volta, se
mantivesse meus olhos fixos em Eddie, poderia imaginar que estava de
volta a Chicago.
Mas eu não estava.
— Onde estamos? — Eu perguntei.
Eddie recostou-se no banco surrado e traçou um nome que havia
sido rabiscado no vinil com marcador preto. Finalmente, ele suspirou e
tirou os óculos, limpando-os na camisa. Engraçado que ele ainda
precisasse deles.
— Ainda estamos dentro.
— Dentro?
— Dentro do Maafa. — Ele colocou os óculos de volta e balançou
os punhos nos joelhos enquanto batia os pés. Esse era Eddie. A menos
que ele estivesse lendo, ele simplesmente não conseguia ficar parado. —
O Algodão, desde que ele chegou, está alimentando suas histórias para
este navio. Você pode acreditar nisso? Ele estava usando suas histórias,
e as histórias da vózinha, como uma forma de rastreá-lo. Cada vez que
você fazia a coisa de Anansi, ele ouvia e enviava aqueles monstros de
corrente atrás de você.
Afundei de volta no assento, sentindo meu estômago embrulhado.
Ayanna estava certa. Eles estavam me seguindo. Eu levei os monstros
de ferro para a Terra Média, para a Crescente Dourada, para Isihlangu.
Todo mundo sofreu porque...
— Ah, pare de se lamentar — interrompeu Eddie. Ele balançou a
cabeça. — Nada disso é sua culpa. O Maafa e os monstros já estavam
aqui. Algodão foi quem os mexeu, não você. Bem, socar a Árvore-Garrafa
foi muito ruim. E isso o libertou, então, se estou sendo técnico, é tudo
culpa sua.
— Puxa, obrigado — eu murmurei, e ele sorriu por um segundo,
antes de suspirar e roer as unhas.
— O quê? — Eu perguntei.
— O que, o quê?
— Você só roe as unhas quando está nervoso.
Eddie olhou para suas unhas.
— Mesmo morto, não consigo parar de fazer isso.
— Então, o que está acontecendo?
Ele não disse nada por alguns momentos, então suspirou.
— É isso, Tristan.
Eu fiz uma careta.
— O que você quer dizer?
— Quero dizer, é isso. Depois que você for embora, o show acaba.
Não vamos mais… não vamos mais nos falar.
As implicações do que ele estava dizendo lentamente me
ocorreram, e foi como se alguém tivesse arrancado meu coração.
Novamente.
— Mas, mas…
Eddie balançou a cabeça.
— Só estou aqui porque o Algodão me manteve aqui e você
precisava de ajuda. Agora que você o separou do Maafa, vou pegar esse
ônibus até o final da rota.
Eu abracei seu diário no meu peito e ele sorriu.
— Anime-se, cara, você é um herói! Comemore! As pessoas vão
querer que você venha e conte histórias. Enquanto você estiver fazendo
isso, coloque minhas histórias em mais alguns ouvidos por aí. Me torne
famoso, Anansesem. Eu quero ser a próxima pessoa a se tornar uma
lenda depois de morrer. Serei como Tupac e Sócrates, Tupacrates!
Ele bateu palmas e explodiu em sua risada sibilante e nasal, aquela
que era super contagiosa. De fato, comecei a rir também enquanto ele
continuava rindo. Até Bebê Chiclete riu em meu ouvido.
— Bebê Chiclete gosta dele. Pergunte a ele sobre as medidas de
pré-caixão.
Eu revirei meus olhos.
Eddie parou de rir e suspirou. Ele olhou para o relógio e empurrou
os óculos para cima novamente.
— Tudo bem, cara, é hora de ir.
— Você?
— Não, você. Esta é a sua parada.
Tentei olhar para fora das janelas, mas não consegui ver nada além
da névoa. Eddie apontou para a porta da frente do ônibus.
— Tens que ir por ali. E ei, quando você estiver saindo, verifique
todas as pessoas que o Maafa colocou no convés e no porão de carga.
Eles vão precisar de ajuda para chegar à costa.
Me levantei e agarrei o topo do assento, tentando descobrir como
dizer o que eu queria dizer.
Eddie sendo Eddie, ele simplesmente foi em frente e disse.
— Eu vou sentir sua falta também. — Ele sorriu. — Talvez eu volte
e assombre seus dados de vinte lados. Eles são muito azarados para
você.
Ele estendeu o punho novamente e, com um pequeno sorriso meu,
eu o bati.
Com Bebê Chiclete nos ombros, andei de costas em direção à
frente do ônibus, mantendo-o à vista. Eu fixei essa imagem dele em
minha mente — o idiota sorridente, usando óculos, que sempre me
protegeu, não importa o que acontecesse. Esse é o Eddie que escolhi
lembrar.
— Ah, ei, Tristan, quase esqueci. — O chamado de Eddie me parou
no meio de um pensamento sentimental.
— O que foi?
Ele sorriu, mais largo e mais conspiratório, e meus olhos se
arregalaram.
— Não, não diga isso… — Eu avisei.
Impossivelmente, o sorriso ficou ainda mais largo.
— Eddie...
— Olhe na próxima sala! Você está falando com a pessoa errada!
— Ele gritou, e então ele e suas gargalhadas foram engolidos pela névoa.
Suspirei e olhei para frente.
Senti Bebê Chiclete se virar para olhar para trás.
— E Bebê Chiclete achava você esquisito. Não admira que vocês
fossem amigos.
— Sim — eu disse, saindo pela porta do ônibus. — Não admira.

Nós nos encontramos em um compartimento diferente, onde a água


chegava aos meus tornozelos e eu tinha que me agachar para evitar bater
com a cabeça no convés superior. O espaço sem janelas em que
entramos era do tamanho do refeitório da minha escola, mas não era feito
para pessoas altas. Isso ou ninguém nunca ficou de pé aqui. A antepara
e o convés eram todos feitos de tábuas ásperas e escuras. Fragmentos
de caixotes de madeira e barris estavam empilhados em diferentes
cantos, junto com correntes de metal enferrujadas.
— Onde estamos? — Bebê Chiclete perguntou.
— Talvez um porão de carga? Ainda no Maafa, pelo menos.
Estávamos sussurrando. Não sei por que, mas não queria chamar
mais atenção para nós do que o necessário. A área parecia
contaminada... como se a qualquer segundo cem haints tão malvados
quanto Algodão fossem surgir da floresta e puxar nossas almas para
algum lugar doloroso.
Um caroço escuro estava em uma plataforma saindo da parede
oposta. Ao lado dela havia uma porta, com faixas de ferro e trancada.
Bebê Chiclete apontou para o caroço.
— O que é isso, Bebê Chiclete não gosta, o que é?
Algo tocou minha perna e eu pulei de susto, batendo com a cabeça
no teto.
— Ai!
— Cuidado! — Bebê Chiclete gritou, escorregando para se sentar
em cima da mochila. — Você está tentando matar a Bebê Chiclete?
— Desculpa. — Coloquei minha mão sobre o coração. Água
espirrou em meus tornozelos e eu chutei algo viscoso. — Parece que o
navio está inundando.
— Bem, mexa-se. Bebê Chiclete não está gostando muito deste
lugar.
— Eu também não. Acho que sei que tipo de carga foi realizada
aqui.
— Ah sim? O quê?
— Pessoas.
Mas, em vez de ir para a porta, me inclinei em direção à forma
escura.
— Não, tolo, não vá em direção à armadilha misteriosa e
possivelmente mortal! Vá para a porta! Ah, pelo amor de...
— Eddie disse que encontraríamos algo aqui — murmurei enquanto
os cabelos ao longo da minha nuca começaram a se arrepiar. — Isso
levará apenas um segundo.
— Bem, está começando a ficar muito molhado, e a Bebê Chiclete
tomou banho no mês passado, então não demore uma eternidade.
Parei a poucos metros de distância da forma escura.
Bebê Chiclete espiou por cima do meu ombro.
— O que é? Outro amigo fantasma?
— Não — eu disse severamente, quando um interruptor de luz
acendeu na minha cabeça. Eu tinha uma resposta, mas que trouxe mais
perguntas junto. — Você vai ter que voltar para a caixa, no entanto.
Preciso carregá-lo nos ombros.
Bebê Chiclete olhou para mim confusa.
— Carregar quem?
Eu balancei minha cabeça, com raiva demais para falar. Era hora
de um último confronto.
QUANDO O MAAFA DISSE QUE ESTAVA voltando das
profundezas do Mar Flamejante, estava falando sério. Poucos minutos
depois de sair da porta do compartimento de carga e pisar em um grande
pedaço de madeira flutuante, observei o navio gigante afundar diante dos
meus olhos. Os sobreviventes ao meu redor — pessoas e animais que
haviam ficado presos em algumas tábuas — celebravam fracamente
enquanto se agarravam a seus próprios pedaços de destroços e
chutavam em direção à costa. A fenda gigante no céu banhou as praias
e o litoral da Crescente Dourada em um incêndio laranja-avermelhado.
Os incêndios no mar haviam se apagado, mas parecia que a cidade de
Nyame estava queimando mais forte do que nunca, e as cúpulas
douradas e torres de marfim brilhantes refletiam toda aquela luz de volta
para a baía.
De volta à sepultura aquosa de Maafa.
E de volta para mim, surfando entre os destroços flutuantes, furioso
como nunca.
O exército de monstros de ferro havia desaparecido junto com o
Maafa. Qualquer que fosse a energia malévola que os alimentava, foi
desligada e eles se separaram em chuvas estridentes de confetes
enferrujados. Seus restos caíram como cinzas na areia, na superfície da
água, em tudo. Alguns me pegaram, mas eu não conseguia reunir energia
para me importar.
Meu sangue estava fervendo.
Eu deveria ter sentido algum alívio, alguma felicidade — os
monstros de ferro haviam partido. Estavam acabados. Não estariam
caçando o povo médio ou Alkeans novamente.
Mas não — tudo o que senti foi raiva.
Corpos moles espalhados pela praia — mais cativos libertados do
casco e convés do Maafa. Eles tossiam e engasgavam enquanto se
sentavam sonolentos e confusos. Alguns eu reconheci. Outros, disse
Bebê Chiclete, estavam desaparecidos há meses.
— Lá está o Velho Wilkins! Ele saiu para pegar um pouco de açúcar
e nunca voltou para casa.
— Hmm — eu grunhi.
— E olhe! É um dos sobrinhos de Sis Crow. Aquele cérebro de pena
deve algum dinheiro a Bebê Chiclete.
— Hm.
— NÃO PENSE QUE A BEBÊ ESQUECEU, SEU BICO MOLENGA!
NÃO HÁ MONSTRO DE FERRO QUE PEGUE SUA CARTEIRA!
MELHOR QUITAR O QUE VOCÊ DEVE A BEBÊ CHICLETE!
Meu coração se elevou ao ver John Henry se erguendo sobre todos
enquanto fazia uma contagem de cabeças.
Thandiwe acenou com sua kierie para mim.
Nyame, cercado por Leopardo e Píton, avaliava os danos do porto.
Muitas pessoas ficaram feridas. A Srta. Sarah segurava a Srta.
Rose, cuja asa direita estava enfaixada ao seu lado. As duas sorriram
para mim, embora os olhos da Srta. Sarah voltassem para sua parceira
com preocupação de vez em quando. Até John Henry segurava seu
ombro direito onde sua camisa tinha sido rasgada e uma bandagem de
folhas estava enrolada no lugar.
Mas…
Alkeanos ainda estavam de um lado, e o povo médio do outro.
Mesmo depois de tudo isso, a desconfiança ainda estava lá. Se qualquer
coisa, desde os clarões sendo atirados na areia, os murmúrios e o
zumbido de tensão, parecia que as coisas só tinham piorado.
Por minha causa, sim. Por causa de minhas ações. Eu tinha que
assumir isso.
Mas alguém mentiu para mim.
Alguém me enviou para roubar a Caixa de Histórias de Nyame. A
missão havia semeado ainda mais desconfiança entre o Povo Médio e os
alkeanos, dividindo-os em um momento em que, se trabalhassem juntos,
poderiam ter impedido o Maafa antes que ele se tornasse tão forte. Antes
que os espinhos do Algodão cavassem tão fundo. E, assim como o haint,
essa pessoa queria a Caixa de Histórias por seu poder.
Mas a Caixa de Histórias estava vazia e inútil, e havia apenas duas
maneiras de recarregá-la.
A primeira era roubando contos deste mundo e do meu, qualquer
um que conseguisse colocar em suas mãos de ladrão. É por isso que ele
enviou Bebê Chiclete para roubar o diário de Eddie.
A segunda? Um Anansesem.
Tudo isso apenas para que ele recebesse toda a glória e poder.
Como John Henry e Grande John me disseram, as histórias
alimentavam os deuses e heróis em Alke.
Eu olhei quando alguém abriu caminho passando por John Henry e
ficou com os braços cruzados sobre o peito.
Antes de me aproximar dele, escondi o pacote que carregava atrás
de uma duna de areia. Murmurei com o canto da boca:
— Bebê Chiclete, aqui está o que vamos fazer… — Então eu afastei
minhas mãos e caminhei até a multidão reunida.
— Tristan! — John Henry explodiu. — Não sei o que você fez, mas
estou me preparando para dar um tapa nas suas costas até amanhã,
garoto. Você salvou todos nós!
— E olha só quem está melhor — disse Thandiwe. — Os Mmoatias
trabalharam sem parar para ajudá-las a se recuperarem. — A guerreira
balançou a cabeça. — Ainda não tenho certeza de que tipo de antídoto
usaram…
Ayanna mancou para frente, segurando uma Cacau de olhos
brilhantes. Ayanna me deu um tapa na cabeça, embora pelo menos desta
vez ela estivesse fraca.
— Eu disse para você ter cuidado, garoto voador, para não começar
uma guerra. — Ela sorriu quando disse isso, no entanto.
Eu dei a ela um abraço gentil com um braço e sorri, mas não durou
muito.
Ela percebeu e me deu uma cotovelada.
— O que está errado?
Eu não respondi, porque naquele momento Nyame avançou, suas
vestes douradas absorvendo a luz e espalhando-a pela praia como um
milhão de pedaços de vidro. Ele parecia melhor do que eu jamais o tinha
visto, embora as marcas deixadas pela coroa da mosca-marca não
tenham desaparecido completamente.
— Muito bem, jovem Strong — disse Nyame. — Vocês...
— Bem, beije meu pulso, aposto que você acha que é gostoso
agora! — Grande John interrompeu em voz alta enquanto se aproximava
para me dar os parabéns. Não pude deixar de notar que ele ainda
segurava seu machado. Nyame também percebeu e seus olhos dourados
se estreitaram. Leopardo rosnou e Grande John fungou.
— Ronrone para mim de novo, gatinho, e vou vestir você em breve.
Leopardo agachou-se, pronto para atacar, e o machado de Grande
John ganhou vida.
— Já chega! — eu gritei.
— Sim, já basta — outra voz se juntou.
Tentei não cerrar os dentes enquanto Brer Coelho pulava para
frente e colocava uma pata no meu ombro. Foi difícil.
Tipo, muito difícil.
Mas eu precisava ganhar tempo.
— O menino aqui — continuou Brer, — agiu bem, apesar dos
muitos, muitos, muitos erros que abordaremos mais tarde. Um dos quais
— ele disse, contraindo seus bigodes para mim — foi não seguir as
instruções que foram dadas. Parece que me lembro de ter instruído você
a trazer a Caixa de Histórias direto para a Terra Média. Hmm? Não foi?
Acredito que sim, se minha memória não me falha e, ao contrário de
alguém que conheço, ela sempre me serve corretamente.
A repreensão sarcástica esfregou cada um dos meus nervos da
maneira errada. Mas eu não fiquei com raiva — ou com mais raiva.
Eu apenas esperei.
Brer continuou.
— Se você tivesse apenas feito o que eu pedi, parte dessa violência
desnecessária poderia ter sido evitada. — O coelho gigante estremeceu
antes de alisar os bigodes para baixo e endireitar as orelhas. — Não
importa. Lições aprendidas, tenho certeza. Não podemos ficar todos
calmos e frios sob pressão, podemos? Não, não responda, era uma
pergunta retórica. Receio que estávamos certos, você simplesmente não
tem o que é preciso para ser o herói que une Alke, meu jovem. Tão triste.
De verdade. Estou arrasado.
Ele tentou torcer a boca em uma expressão desapontada, mas
acabou parecendo um sorriso malicioso.
— Agora, se você gentilmente me entregar a Caixa de Histórias,
vou começar a consertar essa bagunça que você causou com aquele seu
temperamento.
Ele estendeu a pata e resisti ao impulso de afastá-la com um tapa.
Em vez disso, eu recuei.
— O que você está fazendo? Vamos, garoto, não é hora para
brincadeiras.
Uma pequena forma escura rodou pela areia atrás dele, e eu tentei
não olhar para Bebê Chiclete enquanto ela subia no ombro de John
Henry. O gigante estremeceu de surpresa e relaxou ao ver quem era. Ele
abriu a boca, mas Bebê Chiclete o silenciou e sussurrou em seu ouvido.
Ela mostrou a ele a pulseira adinkra brilhante de Nyame, que piscou sob
o brilho vermelho do buraco no céu, e então o pressionou contra sua
têmpora.
— Este não é um assunto para brincadeirinhas, Tristan — disse
Brer. — Entregue a Caixa de Histórias!
Ele se lançou para frente para agarrar as alças da minha mochila,
mas eu pulei para a esquerda para colocar um pouco de espaço entre
nós. Brer tentou novamente, e eu me abaixei, deixando-o agarrando o ar.
Meu pai ficaria orgulhoso da minha agilidade.
— Olhe aqui, sua criança mimada — ele ofegou.
Estendi a mochila e o provoquei.
— É isso que você quer?
Ele olhou para mim.
— Maldição, garoto! Você irritaria um herói? Você é mais tolo do
que eu pensava. Dê-me isso, ou Deus me ajude, eu vou...
— Você vai o quê? — eu provoquei.
A essa altura, Bebê Chiclete havia saltado de John Henry — que
ficou pasmo com o que acabara de saber — para Grande John, e agora
ela caiu para onde a Srta. Sarah e a Srta. Rose estavam sentadas. Eu
precisava que ela se apressasse e chegasse aos alkeanos. Eles também
precisavam ver isso.
— Você vai o quê? Bater o pé no chão com essas patinhas de novo?
Vá em frente. O Arvoredo se foi, lembra? Qualquer magia que houvesse
nesses espinhos foi queimada quando os monstros de ferro atacaram.
Brer parou de me perseguir por um segundo para recuperar o
fôlego.
— Por causa... de você — disse ele, ofegante. — Você fez isso!
Sua raiva infantil, seus acessos de raiva, sua incessante… — ele se
lançou para frente novamente, mas eu estava pronto para isso —
necessidade de atenção. Seu pirralho! Seu pirralho mimado!
Bebê Chiclete finalmente alcançou Thandiwe e Nyame. A carranca
da guerreira da Crista se transformou em um suspiro quando a boneca
tocou a adinkra na lateral de sua cabeça. Em seguida, a pequena
acrobata girou no ar para pousar em cima do cabelo afro cinza dourado
de Nyame. Honestamente, eu estava mais preocupado com o deus do
céu. Às vezes, as pessoas mais próximas nos enganam por mais tempo.
Como Bebê Chiclete disse antes, traição do seu próprio povo.
A bonequinha me deu um dedão positivo5 (Arrrgh, agora ela me fez
fazer trocadilhos ruins!) e eu respirei fundo.
— Você quer isso? — eu gritei. Balancei a Caixa de Histórias e
empinei para trás até que eu estava no topo da duna onde havia deixado
meu pacote. — Você quer? Bem, venha e pegue!
Eu dei mais um passo para trás e fingi perder o equilíbrio. Brer sorriu
e mergulhou para frente.
— Aha! — ele gritou.
Eu girei e ele agarrou o ar, caindo e rolando pela duna, parando
bem ao lado da criatura que eu puxei do aperto do Maafa.
— Gaaaaah! — ele gritou, cuspindo areia da boca. — Eu estou farto
de...
Eu sorri quando ele ficou cara a cara com sua imagem no espelho.
Isso mesmo — era um coelho.
Um coelho magro, encharcado e inconsciente, com pelo
emaranhado.
Resgatamos Brer dos porões do Maafa. O verdadeiro Brer Coelho.
O que significava que o coelho com quem todos estávamos
conversando, aquele que bolou os planos, aquele em que todos
confiamos, era ninguém menos que...
— Anansi! — Nyame gritou.

5
ele quis dizer thumbs up, mas trocou o thumbs por gum para fazer a graça
O DEUS DISFARÇADO gritou e cambaleou para trás. Ele
escorregou em um pedaço de barril quebrado e escorregou pela duna,
pousando em sua cauda de coelho falsa em uma piscina de maré. Ele
congelou quando os outros se reuniram ao meu lado, suas expressões
variando de confusa a enojada e furiosa.
— Qual o significado disso? — Perguntou Nyame.
Ayanna balançou a cabeça.
— Como você pôde?
— Esse tempo todo, você nos fez acreditar que tinha ido embora —
cuspiu Thandiwe. Sua kierie foi erguida, e ela desviou o olhar a segundos
de descer correndo a encosta para bater no impostor abaixo até ele se
tornar um pouco honesto.
John Henry apoiou-se no martelo com o braço bom.
— Nós confiamos em você.
— E você nos enganou que nem patinhos — disse Grande John. —
Claro que sim.
— Vejam bem — começou o disfarçado Anansi, levantando-se e
tirando o pó da areia de seu disfarce peludo —, seja lá o que aquela
malandra desonesta disse a todos vocês...
Nyame deu um passo à frente novamente e as palavras morreram.
O deus do céu parecia o sol na terra. Tudo ao seu redor
empalideceu em comparação com suas vestes brilhantes, e seu olhar
dourado ameaçou derreter Anansi em uma poça. Até John Henry o
observou com cautela.
E Bebê Chiclete montou na cabeça de Nyame como uma princesa
em uma carruagem, minha pulseira de adinkra pendurada em sua mão.
— Sabe — eu disse —, da última vez que estive aqui, o deus do
céu me fez um amuleto. Um adinkra. Se bem me lembro, ele foi feito da
luz e do ar.
— Não consigo ver como isso é relevante — murmurou o deus
trapaceiro, mas não se mexeu.
— Ah, é relevante, com certeza. Veja, aquele encanto era especial.
O que poderia fazer mesmo? Ah sim. Enquanto eu o usasse, poderia ver
através de qualquer ilusão. Muito útil, certo?
O impostor revirou os olhos, balancei a cabeça e continuei.
— Você estava lá quando o verdadeiro Brer Coelho foi levado por
monstros de ferro. Antes de dar um soco na Árvore-Garrafa, devo
acrescentar. Então você não pode atribuir tudo isso a mim.
Ele começou a protestar, mas falei sobre ele.
— Você e Brer estavam tentando descobrir como construir uma
Caixa de Histórias quando os monstros chegaram. Eles foram atraídos
pelas histórias que você ganhou de Nyame e capturaram Brer.
Parei por um minuto, imaginando como aquela cena havia
acontecido, com Anansi protegendo apenas a si mesmo. Isso me deixou
ainda mais irritado.
— Você escondeu a Caixa de Histórias quebrada de Nyame na
Crista para protegê-la — continuei. — Mas em vez de avisar a todos e
prepará-los, você se escondeu em uma roupa de coelho como um idiota.
Como um covarde.
— Estranho ouvir essa palavra de um menino que deixou seu amigo
para morrer — o impostor rosnou.
Uma semana antes, esse comentário teria me enviado voando duna
abaixo, pronto para lutar.
Até um dia atrás, talvez.
Mas não mais.
Agora, essas palavras saíram de mim como gotas de água do mar.
Eu sorri e dei de ombros, mas minhas acusações foram duras, pontuadas
por um dedo apontando.
— Mas então, quando eu criei o rasgo entre nossos mundos, você
estava preso! Encurralado! Você precisava de um novo plano, então usou
o Labirinto para manter o controle sobre todos. Você nos enviou atrás da
Caixa de Histórias, a Caixa de Histórias que você já havia drenado, não
para tornar as coisas melhores, mas porque ainda queria sua magia.
Você ainda achava que poderia consertar tudo por conta própria.
Eu balancei minha cabeça, enojado com o egoísmo de Anansi.
— Você nos fez passar por tudo isso para satisfazer sua ganância,
embora soubesse que isso só pioraria as coisas entre os alkeanos e os
Médios. Você já é um deus, mas isso não era o suficiente para você. Você
também tinha que ser o único contador de histórias. Não é verdade?
Silêncio.
Uma mão caiu no meu ombro e eu terminei minha declaração final,
fechando minhas mãos em punhos. Nyame acenou com a cabeça para
mim, então se virou para o deus amuado abaixo de nós.
— Revele-se — disse ele.
Uma palavra.
O poder nela jogou o impostor de volta na areia.
— O que você está… ?
— Revele-se.
De repente, senti a necessidade de admitir todos os meus erros.
As vezes que menti, as vezes que levei doces para casa depois da
escola…
Naquela vez em que disse à mamãe que estava saindo para correr,
mas em vez disso me sentei em um banco de parque e li os últimos
lançamentos de quadrinhos.
E eu não fui o único.
— Bebê Chiclete confessa! — A pequena tagarela caiu da cabeça
de Nyame e desabou na areia, batendo com os punhos. — Bebê Chiclete
foi quem comeu o biscoito grande! Ela sabia que era de John Henry, mas
era fofo e amanteigado e...
— Basta! — Nyame disse, e ele se virou para o impostor, que se
contorceu furiosamente na praia. — Eu não vou dizer isso de novo.
— Garoto inteligente. — A voz vinda do corpo trêmulo e
estremecido parecia distorcida. Como alguém falando com o nariz
entupido. Ou com a mão na boca. — Menino inteligente, inteligente.
Enganando o enganador. Muito bem.
Mesmo com todas as minhas suspeitas e suposições e até mesmo
com a ajuda de adinkra quando Bebê Chiclete me devolveu a pulseira,
eu não estava preparado para o homem alto, magro, de pernas finas e
pele marrom escura que pisou para fora do disfarce peludo que ele estava
usando desde que os monstros de ferro apareceram pela primeira vez.
Ele usava calças que iam bem acima dos tornozelos e uma camiseta
cortada, e seus dedos dos pés descalços balançavam na areia. Seus
olhos brilhavam maliciosamente e ele exibia um sorriso contagiante. Uma
brisa inconstante de repente levantou a areia ao nosso redor.
— Então — disse Anansi —, e agora?

Acontece que existem algumas consequências muito graves para


os deuses que não se importam com seu povo. Nyame fez com que Kumi,
a estátua dourada, conduzisse o Tecelão de volta ao palácio, onde o
julgamento seria proferido. O resto de nós escoltou os doentes e feridos
até a floresta das fadas, onde esperávamos que os mmoatia
concordassem em ajudá-los.
No caminho, descobri que a Terra Média estava um desastre. A
Srta. Sarah — entre olhares preocupados para a Srta. Rose, que agora
estava sendo carregada em uma maca — nos disse que os monstros de
ferro haviam destruído o Arvoredo, e a Floresta Afundada era uma
bagunça fedorenta e pantanosa. Bem, ainda mais fedorenta e pantanosa
do que o normal, eu acho.
— O pessoal deixou tudo para trás, apenas largou e correu para
nós quando ouviram sua mensagem para chegar à Crescente Dourada.
Carregamos alguns deles aqui em uma cesta, e foi o voo mais assustador
que eu já vi. Mas eu faria de novo se fosse necessário. — Ela dobrou
suas asas em volta de mim em um abraço gigante de penas, e eu
aguentei. — Não há como dizer como será quando voltarmos para a Terra
Média. Mas vamos voltar lá...
Srta. Rose abriu um olho.
— Porque o lar ainda é nosso lar — ela concluiu.
Sua parceira a calou, e Bebê Chiclete e eu deixamos as duas com
os mmoatia. Ayanna se recusou a ficar na enfermaria e nos acompanhou,
junto com Thandiwe, ao palácio de Nyame.
— O que você acha que vai acontecer com Anansi? — Ayanna
perguntou.
Seu cabelo estava meio trançado, meio afro encaracolado, e fiquei
tentado a tocá-lo. Em vez disso, tracei a costura no diário de Eddie no
meu bolso. Seu peso familiar era um alívio tão grande que eu sempre
batia levemente nele para ter certeza de que ainda estava lá.
— Eu não sei. Como você pune um deus? Ei, você, sem
sobremesa?
Thandiwe bufou.
— Não é provável. Faça-o trabalhar, isso é o que os mais velhos
diriam.
Caminhamos devagar, certificando-nos de que Ayanna não se
esforçasse demais. Eu ainda podia ver algumas das marcas revestindo
sua pele, e a visão ainda me deixava com raiva. Ela me pegou olhando
para ela pela centésima vez e deu um tapa no meu braço.
— Estou bem, menino voador. Pare de me tratar como um bebê.
— Quem é um bebê? — Bebê Chiclete saltou da minha mochila da
Caixa de Histórias, onde ela se sentira em casa. Ela estava tentando
arrumar o cabelo para que combinasse com o de Ayanna. — Vocês falam
demais. Se apressem! Bebê Chiclete quer ver Nyame dar com o pé na...
— Ei, ei — eu disse. — Olha essa língua.
— Não me cale. Bebê Chiclete ia dizer teia de Anansi! Você sempre
cala alguém. Bebê Chiclete devia botar o pé na sua cara grande. — Ela
se levantou e começou a pular na minha cabeça. — Viu? Está. Gostando.
Disso?
— Vou levá-la de volta às mmoatias — avisei.
Ela deslizou para o meu ombro, onde se sentou bufando.
— Você está sempre ameaçando as pessoas.
Chegamos ao palácio de Nyame para ver estátuas animadas
barrando as portas gigantes. O líder semicerrou os olhos para mim antes
de se afastar com um breve aceno de cabeça. Eu balancei a cabeça de
volta e Ayanna ergueu a sobrancelha.
— Tome cuidado, sua cabeça não pode ficar muito maior.
Bebê Chiclete e Thandiwe riram, e eu não pude responder, porque
estávamos no saguão da recepção. Nyame e Anansi se encararam, o
deus do céu em seu trono e o Tecelão em pé na frente do estrado, as
mãos ainda nos bolsos. Leopardo balançou o rabo e Píton sibilou quando
entramos, mas os dois mantiveram os olhos fixos em Anansi.
Nyame nos reconheceu.
— Boa. Na hora certa.
Ah, não.
Eu estreitei meus olhos com desconfiança.
— O que isso significa?
Ayanna respirou fundo com a minha falta de respeito ao deus, mas
eu e o grande deus ensolarado estávamos de boa.
Eu esperava que sim.
Nyame apenas apontou para Anansi.
— Eu determinei uma punição condizente com seu comportamento
decepcionante.
— Não cobrir a boca enquanto tosse é decepcionante — eu disse.
— O que ele fez parece um pouco pior.
— Ele está bem aqui — disse Anansi com um suspiro.
— E ele pode ficar de pé enquanto os adultos conversam — rebati.
Ele ainda tinha a mesma atitude sarcástica de quando personificou Brer,
e isso não me irritou menos.
Anansi apenas sorriu, no entanto.
— Se vocês dois terminaram — Nyame disse naquele tom cansado
que seus pais usam quando você e seus irmãos estão discutindo —,
talvez possamos prosseguir? Anansi, tecelão de contos e truques, as
punições por seus crimes são as seguintes:
— Primeiro, você vai interromper imediatamente sua pesquisa nas
histórias de outros mundos e entregar todo e qualquer resultado para
mim. Dois, você vai viajar com o jovem Tristan e seguir suas instruções
ao pé da letra para consertar o rasgo no céu.
Eu sorri e Anansi gemeu. Isso seria divertido.
Mas Nyame não parou por aí.
— Em adendo ao Segundo, assim que o rasgo for consertado, você
acompanhará o jovem Tristan em seu mundo para ajudar na conclusão
de seu projeto de história, que foi tão rudemente interrompido por seus
esforços para roubar histórias de outros reinos, por um período de não
menos do que vinte dias, como Tristan achar adequado.
Eu engasguei com o ar de surpresa.
— Ele vai ficar comigo?
— Eu vou ficar com ele? — Então Anansi ganhou um olhar
pensativo. — Na verdade, isso poderia ser...
— Sinto muito — interrompeu Nyame, e agora foi a vez dele ter um
brilho nos olhos. — Eu não terminei. Você irá acompanhar o jovem
Tristan, mas não sou tolo o suficiente para ainda confiar em você. Não,
você vai precisar de... restrições.
Todos olharam confusos quando o deus do céu começou a puxar a
luz dos sempre presentes raios de sol que irradiavam das claraboias e
janelas. Ele se mexeu em um pedaço de uma nuvem flutuante próxima e,
em seguida, soprou a mistura brilhante na direção de Anansi. O deus-
aranha tentou se esquivar, mas o feitiço o segurou rápido, e um
redemoinho dourado começou a girar em torno dele. Logo ele se perdeu
de vista por trás de uma nuvem funil de luz do sol e magia.
— Tristan, a Caixa de Histórias — ordenou Nyame.
Eu encolhi os ombros e entreguei-a. Nyame pegou, jogou fora uma
Bebê Chiclete que protestava, que havia entrado para tirar uma soneca e
então, antes que alguém pudesse impedi-lo, jogou a Caixa de Histórias
no ciclone giratório.
— Espere! — Anansi gritou. — Ok, olha, eu sei que fiz algumas
coisas que não deveria, Ai! Isso dói! Mas podemos resolver isso. — Sua
cabeça apareceu na nuvem enquanto ele lutava para se libertar, e
Ayanna engasgou. Também tentei não recuar.
Seu rosto ficou borrado ao mudar entre o de um homem magro e
com covinhas e o de uma tarântula com joias. Ambas as faces imploraram
ao deus do céu.
— De verdade! Deixe-me… Ei, meus pés! Deixe-me consertar isso.
Eu posso… Ai! Engatilhar alguns…. Eeep! Isso pinica. Feitiços e deixar
tudo em ordem!
Seus apelos caíram em ouvidos surdos, e Anansi se virou para mim
quando o feitiço de Nyame o puxou de volta para dentro da nuvem funil.
— Olha, garoto, começamos com o pé errado. Eu tenho oito deles!
Coisa fácil de fazer. Olhe, observe! Não posso substituí-los! Por que não
lhe dou um livro de rabiscos ainda melhor?
Eu cruzei meus braços e o encarei. Anansi continuou a implorar,
mesmo enquanto desaparecia. Finalmente, depois de mais algumas
voltas, a luz do sol cintilante se dissipou, não deixando nada para trás,
exceto...
— Isso é um celular? — eu perguntei.
Nyame acenou para ele.
— O feitiço decidiu como Anansi poderia servir melhor em seu, ah,
novo papel. — Seus olhos dourados me fixaram no lugar. — Como um
Anansesem carregou a Caixa de Histórias para o coração do mal, contra
minha vontade...
Comecei a explicar, mas ele me interrompeu.
— … Contra minha vontade, salvando assim a todos nós, talvez
seja hora da Caixa de Histórias ser carregada por um Anansesem mais
uma vez. Pegue, Tristan, e deixe as histórias do seu mundo preenchê-la.
Use Anansi como achar melhor. Lembre-se, porém, você agora é
responsável por suas ações. Vocês dois terão que lidar com quaisquer
consequências resultantes disso.
Aproximei-me e peguei o celular. Ele tinha uma capinha preta
brilhante e, na parte de trás, uma aranha dourada estendia todas as oito
pernas nas direções cardeais. Eu o liguei e uma aranha rastejou pelo
meio da tela.
— Isso é humilhante — reclamou o mini Anansi. Sua voz saiu
metálica e eu sorri. — Eu me sinto preso!
— Bom — eu disse e coloquei o telefone no bolso de trás.
— Condenado a existir no escuro, perto de uma bunda. Excelente.
— Melhor do que agir como um…
— Rapazes — disse Nyame, franzindo a testa — vão. Vão embora
antes que eu me arrependa disso. E, Tristan… — Ele inclinou sua cabeça
marrom-dourada. — Obrigado. Você fez mais por Alke em poucos dias
do que muitos fizeram em anos. Você sempre será bem-vindo aqui. Só...
da próxima vez, tente não trazer nenhum amigo da Árvore-Garrafa com
você, hein? — Ele me fixou com um olhar de Ou então e o segurou. —
Agora, xô. Tenham uma boa viagem.
Corei e murmurei um adeus, depois saí correndo dali.
Bebê Chiclete subiu correndo e trotou ao meu lado como Ayanna,
Thandiwe — com Cacau nos braços — e eu saí do palácio.
— Bebê Chiclete não inveja você, Língua Solta. Ter que carregar
algo tão pequeno e chato? Não parece nada divertido.
Eu dei um tapinha na cabeça dela.
— Já estou acostumado a isso.
Voltamos para a floresta das mmoatias. Ayanna estava mancando
visivelmente, então, para distraí-la, eu pratiquei contar a ela a história do
Maafa. Afinal, uma promessa era uma promessa. Quando alcançamos os
portões, nós dois paramos. Bebê Chiclete olhou entre nós, então subiu
ao lado de Cacau nos braços de Thandiwe.
— Sim... bem... talvez sua cabeça não seja tão grande quanto Bebê
Chiclete pensava que era. Então… Bebê Chiclete odeia despedidas.
Certo, Cacau?
A coelhinha mexeu as orelhas.
— Tchau, Tristan! Você tem que voltar para que possa ver minha
cerimônia de iniciação na Sociedade do Labirinto.
Eu suspirei.
— Fala sério!
— Sim, sim! Eles vão me tornar um membro pleno assim que a
Terra Média for reconstruída.
Eu sorri. Coisas boas acontecendo com as melhores pessoas (ou
coelhos, neste caso) é o melhor sentimento do mundo.
Bebê Chiclete deu um suspiro exagerado.
— Chega de palavras sentimentais, ou Bebê Chiclete vai começar
a chorar, e ninguém quer isso. Vamos, você da Crista, leve-nos para
irmos atrás de algumas fadas.
Thandiwe riu, depois deu um passo à frente e me deu o aperto de
mão mais firme que já recebi.
— Adeus, Tristan. Vou contar sua história para os mais velhos. E
você será recebido em Isihlangu de braços abertos a qualquer momento.
— Até mais, garota guerreira — eu disse com um sorriso. — Ou
devo dizer, minha prin... Ai! — Esfreguei meu braço onde ela me deu um
soco e acenei enquanto ela, Cacau e Bebê Chiclete decolavam para o
palácio da floresta frondosa.
Ayanna se remexeu e então, antes que eu pudesse dizer qualquer
coisa, me abraçou com força. Eu a abracei de volta, e então ela recuou.
Ela olhou para o chão quando disse:
— Você até que é legal.
Eu fiz uma careta.
— Só isso?
— Sim. Bem, não. Aqui está o seu moletom. Eu… obrigada.
Peguei o moletom amarrotado e levantei uma sobrancelha.
— Só isso? Isso é tudo que você quer me dizer?
Ela cerrou o punho e o balançou.
— Você precisa de mais animação?
— Tudo bem, tudo bem. — Tentei pensar em algo para dizer, algo
legal para encerrar o adeus, e depois encolhi os ombros. Por que não?
— Gaaaaah.
Uma risada balbuciante escapou antes que Ayanna pudesse detê-
la e ela revirou os olhos.
— Tchau, garoto voador.
Eu sorri e vi quando ela saiu mancando para descansar um pouco,
e então era só eu.
— Isso foi fofo.
Ah. É verdade.
Não era só eu.
— Cale a boca, telefone — eu murmurei e me dirigi para o porto.
Deuses.
Irritantes para caramba.
JOHN HENRY E GRANDE JOHN esperaram por mim na praia.
John Henry estava com o macacão enrolado até os joelhos enquanto
estava na água, martelando uma ponte feita com os destroços de iates
elegantes. Grande John ficou olhando para ele, mastigando
ruidosamente uma maçã. Os dois juntos pareciam tios jogando conversa
fora em uma reunião de família. John Henry era todo trabalho, focado e
determinado, enquanto Grande John... bem, não havia como defini-lo.
— Certifique-se de prender as pranchas bem seguras, está me
ouvindo? — disse Grande John. — A última coisa que precisamos é de
alguém caindo no caminho para casa. Ah, oi, Tristan. — Ele colocou sua
maçã meio comida no bolso. — Terminou as coisas com o Sr. Altíssimo
e Poderoso lá em cima?
Olhei de volta para o palácio de Nyame no alto das ruas curvas da
cidade.
— Sim, acho que sim.
Grande John murmurou algo e John Henry franziu a testa.
— Olhe aqui, não há necessidade dessa espécie de linguagem. Não
na frente do menino!
— O que você está fazendo? — Perguntei a John Henry,
caminhando até a linha d'água.
— O velho Cabeça de Martelo decidiu construir uma ponte da Terra
Média para Alke — disse Grande John com uma fala arrastada. — Ele
acha que pode nos deixar bem juntinhos, acha mesmo.
John Henry coçou o queixo e suspirou.
— Vai levar algum tempo para a Terra Média se acertar novamente.
Com Brer, o verdadeiro Brer, estando sem condições. O velho Nyame
disse que poderíamos ficar aqui enquanto isso. Não sei se esta ponte
ajudará a unir os alkeanos e os Médios, mas acho que é um começo.
Grande John resmungou e olhou para mim.
— E então? Que tipo de repressão leve nosso amigo deus-aranha
recebeu? Um tempo no cantinho do castigo e uma conversa dura?
Peguei o telefone Anansi e expliquei a punição de Nyame. John
Henry assobiou, e até Grande John pareceu impressionado ao dizer:
— Ele está preso aí? Hmph. Bem, talvez aquele cara Nyame tenha
um pouco mais nele do que eu pensava. Mas como essa coisinha pode
ajudar você a consertar a fenda? E se Anansi estiver aí, como ele vai
fazer você subir no céu?
Fiz uma pausa, minha boca congelada no meio da resposta.
— Esta é uma boa pergunta.
John Henry riu enquanto voltava a martelar.
Grande John balançou a cabeça.
— Eu sabia. Os alkeanos não podem abotoar as calças sem dez
manuais de instruções. Claro que eles deixam para nós descobrir as
partes difíceis.
Ele assobiou, e o Velho Familiar grasnou e desacelerou no ar. O
corvo das sombras bagunçou meu capuz e eu esfreguei seu bico antes
de subir a bordo.
John Henry ergueu uma sobrancelha.
— Vejo que você superou o medo de altura.
Ah. Verdade.
O corvo realmente planejava voar.
Eu cambaleei em meus pés e engoli várias vezes.
— Na verdade, não, mas obrigado por me lembrar. Eu vou só...
fechar meus olhos.
A risada de John Henry criou ondas em todas as direções enquanto
ele agarrava sua barriga. Ele enxugou uma lágrima do olho e se
aproximou para estender a mão gigante.
— Garoto, eu juro, vou sentir falta das suas piadas. Só cuidado,
ouviu?
Eu apertei sua mão, estremeci quando ele quase a esmagou, então
sorri.
— Quando eu voltar, vou trazer alguns pôsteres de Ali. E Sugar Ray
Leonard também!
— Estou ansioso por isso.
Ele recuou e Grande John saltou a bordo. O Velho Familiar crocitou
duas vezes e então decolamos, batendo as asas em um círculo gigante
e tempestuoso enquanto aumentávamos a velocidade e subíamos cada
vez mais alto.
Enquanto Alke recuava abaixo de mim, eu a estudei. A Crescente
Dourada brilhava como uma joia e, atrás dela, a Crista se erguia, uma
parede protegendo um tesouro. Além das montanhas, colinas verdes e
desertos marrons e lagos azuis se reuniam em um mosaico de beleza.
Eu podia ouvir Alke me chamando, cantando a música que conectava a
terra com seu povo.
— Te vejo mais tarde — eu sussurrei.
Fora do abraço protetor da baía, o Mar Flamejante cintilava como
brasas fracas. Eu não vi nenhum navio de ossos. Eles haviam afundado
com o Maafa também?
Uma massa de terra enevoada ergueu-se do mar enquanto
voávamos mais alto. Era a Terra Média, a maior parte oculta sob a névoa
espessa como nuvens de tempestade. Jurei voltar a ela algum dia, nem
que seja para vê-la restaurada de volta à casa que meus amigos
precisavam que fosse.
— Não deixe seu rosto muito mal-humorado — disse Grande John,
como se pudesse ler minha mente. Droga, ele era um deus,
provavelmente poderia. Ele sorriu e se virou para considerar a Terra
Média também. — Você irá vê-la de novo. Vai ficar nova em folha, com
certeza vai.
Subimos ainda mais alto, e logo o rugido da fenda ardente no céu
encheu meus ouvidos. Parecia ondas batendo contra penhascos, como
oito semi-caminhões passando ao mesmo tempo, como uma rajada
gigante de vento que continuava soprando e soprando.
— Segure firme agora! — Grande John gritou.
Eu protegi meus olhos enquanto o Velho Familiar disparava através
das chamas vermelho-sangue. O calor pressionou cada centímetro da
minha pele — uma explosão seca tão quente que meu suor evaporou
antes de sair, e ainda assim o corvo das sombras o fez com pouco
esforço. Ajuda quando você tem penas feitas de escuridão. Nós evitamos
chamas e giramos entre as cinzas ardentes, e ainda ficava cada vez mais
quente, até que eu pensei que isso era um grande erro, eu não aguentava
mais, nós derreteríamos antes...
— Chegamos! — gritou Grande John.
Nós saltamos para fora, disparando alto nas copas das árvores de
uma paisagem familiar. O ar frio correu contra meu rosto enquanto
arqueavamos acima dos galhos, e a floresta tinha cheiro de chuva em
terra recém-escavada. Era noite e, exceto pelas estrelas acima, o buraco
em chamas no chão perto da Árvore-Garrafa era a única luz em
quilômetros.
O Velho Familiar pousou a seis metros de distância na clareira e eu
saltei. Grande John deu uma olhada em volta, impressionado.
— Esta é sua casa, garoto?
Eu sorri.
— Pode crer. Alabama, você está no país do Strong agora.
Grande John tirou um chapéu imaginário e sorriu de volta.
— Bem, olhe de quem as calças decidiram crescer. Meu perdão,
Sr. Strong.
— Se vocês dois já terminaram, podemos acabar logo com essa
provação ridícula? — A voz fina de Anansi interrompeu, cheia de
impaciência. — Alguns de nós têm trabalho a fazer, e não envolve
tagarelice como caipiras.
Grande John olhou para o telefone quando o tirei.
— Aposto que meu machado pode cortar isso pela metade. — Ele
subiu de volta no Velho Familiar e me deu um aceno casual. — Avise-me
se precisar que eu faça isso, ouviu?
— Eu vou — eu gritei de volta.
— E não dê um sumiço! Aquelas pessoas em casa não são tão
divertidas quanto você. Aposto que podemos criar a quantidade certa de
problemas, podemos sim! — Ele acenou novamente, e o Velho Familiar
disparou no ar antes de dobrar suas asas com força e mergulhar no
buraco.
E assim, eu estava...
— Finalmente — Anansi resmungou. — Vamos terminar isso.
Suspirei. Ele acabava com a graça todas as vezes. Mas antes que
eu voltasse, um pensamento me ocorreu.
— Que dia é hoje? Brer, você, disse que havia algum efeito de
tempo entre Alke e este mundo.
— Sim, sim — o deus-aranha disse impacientemente. — Dilatação
do tempo. Quando o equilíbrio é perturbado, como quando há um buraco
em chamas entre os reinos, não há como controlar a passagem do tempo.
Não que eu espere que você entenda isso. Basicamente, o rasgo criou
um efeito de salto, onde um minuto aqui é quase três dias ali. Seu Grande
John e seu amigo emplumado voltarão para descobrir que quase uma
semana se passou.
Eu verifiquei o telefone. Com certeza, era a mesma noite em que
eu saí.
— Eu sei que é um assunto complexo, e com certeza vou repassar
os detalhes meticulosos mais tarde, depois de limparmos a bagunça que
você fez, mas agora...
Eu revirei meus olhos.
— Tudo bem. O que eu faço?
— Não sei, não consigo ver a maldita coisa. Esta é a sua criação
infernal. Dá um jeito!
Eu segurei o telefone e o estudei. A tela piscou e Anansi sentou-se
em sua forma humana, encostado na beirada. Vários ícones de
aplicativos apareceram acima de sua cabeça e eu levantei uma
sobrancelha enquanto recitava seus nomes.
— Contos de Anansi, Pesquisa na Teia, ha-ha , porque você é uma
aranha, Alke Maps, Escute e Relaxe Tristan-Não-Clique-Nisso-A-Menos-
Que-Você-Estiver-Muito-Entediado… — Meu dedo pairou sobre aquele
por um segundo, até que localizei mais um no canto superior direito. —
Ah, o que é isso? SpiderCam?
Toquei no ícone e a câmera do telefone preencheu a tela. Anansi
gritou de surpresa quando o buraco em chamas apareceu perto de onde
ele estava sentado. Ele se levantou, intrigado. Caminhou ao redor da tela,
estudando o rasgo enquanto eu apontei a lente da câmera do telefone ao
redor da clareira.
— Espere — ele comandou. — Aponte seu feitiço de projeção aqui
novamente.
— É uma câmera — murmurei.
— Aponte o feitiço da câmera bem aqui, então. Sim. Hmm. Eu me
pergunto…
Ele caminhou até o rasgo e puxou um fio prateado do nada. Suas
mãos se moveram em um borrão e o canto inferior do corte em chamas
se fechou.
— Uau. — Eu suspirei. Mudei o telefone para ver o chão com meus
próprios olhos e, com certeza, o buraco ficou menor. — O que é isso?
Isso é incrível.
— Por favor, mantenha o feitiço da câmera parado — Anansi
disparou, — e é seda de deus, não que eu espere que você saiba sobre
essas coisas. — Ele voltou ao trabalho e eu observei o chão, ao invés do
telefone, enquanto um fio quase invisível puxava as bordas do buraco
com uma baforada de fumaça. Antes que eu pudesse pensar em algo
astuto para dizer em resposta, a fenda sumiu. Um monte de terra
enrugada era a única evidência do portal entre os reinos.
— Pronto, tudo feito.
Eu caminhei pela floresta das Árvore-Garrafa, pasmo apesar do tom
presunçoso de Anansi. Diga o que quiser sobre a atitude dele, o deus-
aranha tinha habilidades. Todo esse problema. Toda a violência, o medo,
a dor. Se ao menos Anansi tivesse...
Uma brisa farfalhou as árvores e as garrafas nos galhos tilintaram
umas nas outras. Eu fiz uma careta para o galho que uma vez segurou a
grande garrafa azul.
A garrafa do Algodão.
Os cacos quebrados ainda estavam no chão, e o pensamento dele
voltando para me aterrorizar enviou um arrepio pelas minhas costas. Eu
teria que substituir aquela garrafa e rápido. Talvez vózinha tenha um
pouco mais.
O vento assobiou suavemente, parecendo satisfeito.
— Bem, venha, garoto, me acompanhe por este seu país das
maravilhas rústico. — Apesar das palavras, Anansi parecia irritado. —
Vinte dias não podem acabar rápido o suficiente.
Pensei nisso quando comecei a andar de volta pela floresta. Desta
vez, as árvores quase pareciam se abrir diante de mim, como se
estivessem sendo respeitosas. Mas isso era bobagem. Certo?
— Na verdade, isso não é exatamente preciso — eu disse.
Suspeita encheu a voz de Anansi.
— E o que isso quer dizer? Você ouviu o deus do céu assim como
eu. Ele disse...
— Ele disse — interrompi alegremente, — “uma duração não
inferior a vinte dias... como Tristan achar adequado”. — Enfatizei a última
parte quando entramos na estrada de terra que levava de volta à casa do
meu avô e vózinha.
Anansi ficou em silêncio.
Então:
— Aquele malvado, sorrateiro, de testa brilhante, olhos de latão...
Eu ri enquanto Anansi continuava a fumegar por todo o caminho.
A borda do céu começou a clarear conforme a manhã rastejava na
fazenda da família Strong, apenas o suficiente para dar para ler um
pouco.
Algo que Nyame disse quando confinou o deus trapaceiro que ainda
reclamava. Deixe as histórias de seu mundo preenchê-la mais uma vez,
ele disse.
Bem, eu sabia exatamente por onde começar.
Peguei o diário de Eddie. Estava amassado e desgastado e tão
valioso quanto o telefone mágico que segurei ao lado dele. Abri o
aplicativo Escute e Relaxe e sorri quando um botão chamado RECORD
apareceu. Eu pressionei e limpei minha garganta, então abri a primeira
página do diário.
— Antes, as pessoas não tinham histórias…

Então aí está.
A história da fita.
A história de como eu passei doze rodadas com um espírito maligno
e venci.
Pare a luta, juiz, ele não quer isso comigo.
Eu continuaria a analogia, mas, na verdade, eu tinha muitas
pessoas (e deuses e criaturas e uma coisa de boneca irritante) me dando
apoio.
Não fiz isso sozinho.
E se a pulseira adinkra formigando no meu pulso fosse confiável,
eu precisaria do meu pessoal novamente me apoiando em breve.
Mas tudo bem.
Estou pronto.
Posso fazer mais doze rodadas.
Porque no final da luta?
Eu ainda estarei de pé.
Ainda socando.
Ainda forte.
Meu nome é Tristan Strong e tenho uma história para contar.

Você também pode gostar