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Cinema na Palma da Mão: o Potencial Cinematográfico dos

Smartphones1

Cinema Films in the Palm of Your Hand: The Cinematic


Potential of Smartphones
2
Vanessa Guimarães Lauria Callado

Resumo: O foco desta pesquisa é a utilização da câmera de smartphones para a realização de


filmes, relacionando transformação tecnológica a mudanças de significado prático e cultural da
produção cinematográfica. Investiga-se a extensão, as mudanças e as validações da utilização
de smartphones para a produção cinematográfica, além de se analisar outras possibilidades e
potenciais do aparelho por meio de uma abordagem crítica.

Palavras-Chave: Smartphones, Cinematografia móvel, Transformação tecnológica, Dispositivo.

Abstract: The focus of this research is the use of smartphone cameras for filmmaking, correlating
technological transformation with practical and cultural shifts in cinematic production meaning.
The study investigates the extent, changes, and validations of smartphone utilization in
filmmaking, in addition to analyzing other possibilities and potentials of the device through a
critical approach.

Keywords: Smartphones, Mobile Cinematography, Technological Transformation, Device.

Introdução

Com a popularização dos smartphones e a evolução das câmeras presentes neles, cada

vez mais pessoas têm utilizado seus celulares para produzir conteúdo audiovisual, incluindo

conteúdos mais elaborados como filmes e afins. A hipótese desta pesquisa é a de que o uso de

celulares na realização cinematográfica tem se tornado uma opção para a produção de filmes

independentes, visto que esses aparelhos disponibilizam recursos e ferramentas de edição que,

antes eram complexos e dispendiosos e ficavam restritos a ambientes profissionais.

Este trabalho tem como objetivo analisar as possibilidades e potenciais do aparelho

smartphone por meio de uma abordagem crítica, buscando compreender se essa nova realidade

pode de fato proporcionar acesso mais democrático a realização audiovisual, especialmente para

a produção cinematográfica, e investigar a validação da utilização das câmeras de smartphones

para a produção de filmes de cinema.

1
Trabalho apresentado no XXVI Encontro SOCINE na sessão: CI 22 - Audiovisual e democratização no
Brasil
2 Doutoranda do PPGCOM da UERJ. Mestre em Criação e Produção de Conteúdos digitais/ Audiovisual da

ECO-UFRJ. Professora/Coordenadora pós-graduação da CAL. lauria.vanessa@gmail.com


Para isso, busca-se desenvolver uma análise crítica sobre o uso da câmera do

smartphone no fazer cinematográfico a partir de uma perspectiva fenomenológica, realizando

uma análise dos filmes de Steven Soderberg, Unsane (2018) e Sean Baker, Tangerine (2015),

livremente inspirada no método de análise fílmica proposta por Jacques Aumont e Michel Marie

(2004). Assim, entende-se que não existe método universal de análise de filmes e por isso cada

análise deve ser feita por critérios pautados pelo analista a partir da obra em questão.

O Dispositivo Smartphone: Onipresença e Transformação do Espaço/Tempo

Primeiramente devemos levar em conta que o mundo atual é extensamente invadido

pelo smartphone e necessitamos investigar como os seres humanos interagem com ele a fim de

entender melhor o funcionamento do dispositivo. Uma das características mais marcantes da

nossa era é a crescente onipresença de telas nas mais diversas experiências humanas.

Enquanto as telas de televisão e computador invadiram espaços domésticos e de trabalho ao

longo das últimas décadas, a chegada dos smartphones trouxe um novo nível de acesso às telas.

Elas agora não necessitam mais de um espaço apropriado para serem acessadas, estão

disponíveis a qualquer hora, em qualquer lugar. De fato, o sucesso do dispositivo smartphone

não é baseado apenas na utilidade das aplicações que ele viabiliza, se baseia também na

capacidade de estar presente na vida cotidiana dos seus usuários. O celular “assume o papel do

dispositivo capaz de transformar um não lugar em um lugar, na medida em que conecta o usuário

e permite que ele participe de acontecimentos, independentemente de onde estiver localizado”

(CHAGAS, 2019, pg.26).

Deleuze (1996) argumentava que os dispositivos não apenas controlam e moldam os

indivíduos, mas também podem ser usados como ferramentas para resistência e transformação

social. Assim, o dispositivo pode ser entendido como um conjunto de forças que atuam de

maneira complexa e que podem ser usadas tanto para o controle quanto para a libertação.

Com uma visão menos otimista, Foucault levantou uma questão que é destacada por

Agamben (2009) ao afirmar que os dispositivos têm sempre função estratégica e são usados

como táticas de guerra. São utilizados com vistas a submeter alguém a algum poder por meio

de táticas de poder. Funcionam dentro de uma relação de poder e dentro de uma relação de

saber, se forjam no cruzamento dessas relações.


Na constituição da relação indivíduo e sociedade, na atualidade e para o futuro, parece

que há uma relação intrínseca com as tecnologias cotidianas que coloca em evidência a

mudança da constituição da subjetividade na contemporaneidade e a mudança das relações de

saber e poder. “Temos assim duas grandes classes, os seres viventes (ou as substâncias) e os

dispositivos. E entre os dois, como terceiros, estão os sujeitos. Chamo sujeito o que resulta da

relação e, por assim dizer, do corpo a corpo entre os viventes e os dispositivos” (AGAMBEN,

2009, pg.41)

Embora o avanço dessa tecnologia possa, sem dúvida, facilitar uma infinidade de ações,

é sua capacidade de intervir em todas as dimensões da vida que lhe confere uma importante

capacidade de moldar gestos e comportamentos daqueles que se permitem aderir (BURSZTYN,

2016). A evolução da comunicação sem fio é a mais rápida já registrada na história em termos

de tecnologias de informação e comunicação (CASTELLS, 2007). Neste contexto, os

smartphones estão realizando uma profunda transformação do mundo e da experiência do

mundo e produzem novas categorias de experiência, ou acabam por transformar a experiência

de acordo com suas próprias categorias (BURSZTYN, 2016).

O smartphone é um dispositivo de convergência de mídias e sua grande vantagem está

na mobilidade. Onde quer que o usuário vá, seu smartphone pode ir com ele. Além disso os

investimentos em aprimoramentos da tecnologia não param. Se por um lado algumas iniciativas

discutem os desafios que ainda precisam ser superados para permitir uma implantação mais

ampla de tecnologias emergentes, incluindo a necessidade de mais investimentos em

infraestrutura e a necessidade de novas regulamentações e políticas públicas que possam

incentivar a adoção dessas tecnologias, por outro cria-se no imaginário coletivo uma

necessidade de estar se atualizando o tempo todo. Sensações como a obsolescência perceptiva

e a obsolescência programada, são forjadas pela indústria como tática para impulsionar as

vendas e aumentar os lucros e atingem os consumidores que costumam sempre se sentir

defasados.

A Experiência do Cinema

Segundo Jaques Aumont (2012), o dispositivo cinema é composto por vários elementos

interconectados que criam a experiência de assistir a um filme. Esses elementos incluem não
apenas o filme em si, mas também a sala de cinema, a tela, o projetor, o som e a relação do

espectador com todos esses elementos. O cinema compõe uma complexa rede de produção de

sentido. Seu desenvolvimento e suas transformações se dão junto com as transformações da

modernidade.

O dispositivo cinema é um conceito muito usado, que aparece em meados dos anos de

1970, com teóricos franceses como Jean-Louis Baudry e Cristian Metz, numa proposta de pensar

a existência de uma ideologização vinculada aos aparelhos de base e definir como fica a

condição do espectador de cinema. Para Baudry (1974), o dispositivo cinema é um sistema de

representação que cria a ilusão de que o espectador está vendo algo que é real e objetivo. Ele

argumenta que a relação do espectador com a tela do cinema é semelhante à relação com um

espelho, onde o espectador se identifica com a imagem refletida na tela. Para o autor, o

dispositivo cinema funciona como uma forma de controle social que molda a visão do espectador

e o leva a aceitar as normas e valores que estão implícitos na imagem apresentada na tela.

Ismail Xavier (1984), afirma que Baudry lança um “ataque radical que compromete o

próprio aparato técnico do cinema” (XAVIER, 1984, pg.14) e vai mais além colocando o próprio

cinema em questão. Por outro lado, Christian Metz (2014) enfatiza a natureza linguística do

cinema e argumenta que o dispositivo cinema é composto por uma série de convenções

simbólicas que permitem que o filme seja compreendido pelo espectador. Também argumenta

que o dispositivo cinema é parte de um sistema cultural mais amplo e que o significado do filme

está enraizado nas convenções sociais e históricas em que foi produzido.

A primeira problematização do dispositivo cinema se dá já na década de 1920. Desde

então muitas obras cinematográficas fogem ao esquema da forma cinema e reinventam o

dispositivo, seja procurando um espaço fora da tela, seja produzindo novas relações com o

espectador, seja abandonando a sala escura e ocupando outros espaços etc. De fato, o cinema

sempre dependeu do suporte técnico para existir. Sua técnica de produção é parte condicionante

de sua existência. Pode-se dizer assim, que mudanças no suporte acarretam mudanças

estéticas e éticas.

O Encontro Intermídia
Nesse encontro do smartfone com o cinema, surgem diferentes possibilidades de

interações gerando desdobramentos diversos. O papel da câmera e das imagens geradas pelo

smartphone podem variar bastante de uma obra para outra. Existem filmes que são construídos

a partir de arquivos audiovisuais gerados por imagens já feitas com as câmeras de um

smartphone. Em outros, a tela do celular pode representar o próprio ambiente narrativo,

mostrando a vida através da tela, recurso conhecido como “screenlife”. Uma outra possibilidade

é a realização do cinema vertical, proposta em que se altera a proporção do quadro o que

acarreta uma adaptação da linguagem para esta diferente perspectiva. Para esta pesquisa

interessa o uso da câmera do smartphone como dispositivo técnico gerador de imagens para a

realização de obras cinematográficas.

Em 2011, o curta-metragem Night Fishing dirigido, produzido, escrito pelo diretor sul-

coreano Park Chan-Wok, ganhou o prêmio Urso de Ouro na categoria Curta-metragem no

Festival Internacional de Cinema de Berlim. Foi o primeiro curta metragem do mundo, gravado

com um iPhone (4), exibido numa tela de cinema. Desde então muitos filmes captados com

celular passaram por telas de cinema.

O longa-metragem Tangerine do diretor estadunidense Sean Backer causou uma

comoção ao ser exibido no Sundance Film Festival, em 2015, quando, ao final da última cena,

surgiu o letreiro revelando ao público ter sido o filme gravado exclusivamente com as câmeras

do smartphone da Apple, Iphone 5S. Quinta obra cinematográfica de Sean Baker, Tangerine foi

o primeiro filme do diretor a ser gravado com as câmeras de aparelhos celulares. Com orçamento

de apenas aproximadamente 100 mil dólares, o filme se apresenta como uma comédia dramática

que aborda a realidade de prostitutas transgênero em uma área pouco revelada de Los Angeles.

O elenco principal é composto por duas transexuais que nunca haviam atuado profissionalmente

e que ajudaram na confecção do roteiro. A lojinha de donuts, principal locação do filme,

costumava ser de fato um ponto informal de encontro e prostituição de mulheres trans de Los

Angeles. Por sua temática, o filme não conseguia investimentos.

Segundo Sean Baker a decisão de filmar Tangerine veio bem antes da decisão de gravar

com Iphone. “Filmar com Iphone foi uma ideia que surgiu porque estávamos trabalhando no

orçamento e vendo como íamos fazer isso com o orçamento limitado que tínhamos (BAKER,

2016, on-line). O diretor também afirmou que já tinha o projeto há muito tempo e já estava sem
filmar havia quase cinco anos. Percebeu que era crucial que fizesse o filme naquele momento

ou cairia num limbo do qual seria difícil de sair.

Os filmes curta-metragem do diretor francês Michel Gondry, Detour (2017), A Dozen

eggs (2021), e um novo filme também curta-metragem, do diretor sul coreano Park Chan-Wook,

Life is but Dream3 (2022), também foram gravados por meio da câmera do smartphone da Apple.

Diferentemente de Sean Baker, Gondry e Chan-Wook tiveram seus filmes financiados pela

empresa. De olho num mercado emergente, onde os cineastas independentes precisam se

reinventar para contar suas histórias no contexto do século XXI, a Apple passou a investir na

veiculação da imagem do seu smartphone como câmera para se fazer cinema. Em suas versões

atuais, as câmeras dos smartphones vêm com variados controles, comandos e lentes, que

buscam gerar recursos próximos aos de uma câmera de cinema.

O longa metragem Unsane levou o cineasta Steven Soderbergh de volta as telas do

cinema. Soderbergh havia desistido de fazer cinema devido a seus questionamentos com

relação ao esquema das grandes indústrias, mas no festival de Berlim em 2018, apresentou o

filme Unsane, gravado de maneira idependente, com a câmera de um Iphone 7 plus e kits de

lentes da marca Moment 4. Sobre a realização do filme com o smartphone, o cineasta afirma

achar “que esse é o futuro. Qualquer um que vá ver este filme que não tenha ideia da história

por trás da produção não terá ideia de que foi filmado no telefone. Isso não faz parte do conceito”

(SODERBERGH, 2018, on-line). Na mesma entrevista, o cineasta declara que faria novos filmes

com o celular, o que de fato fez. O filme seguinte do cineasta, High Flying Bird (2019), disponível

na rede de streaming, Netflix, foi inteiramente gravado com um iPhone 8 e alguns acessórios.

Desafios e Oportunidades

Percebe-se que para a realização de um filme não basta ter um aparelho celular com

uma boa câmera, é necessário ter o conhecimento da parte técnica junto a uma gama de

conhecimentos específicos sobre a linguagem audiovisual.

3
https://www.youtube.com/watch?v=HnzKqxtnWDY
4 Empresa especializada em venda de equipamentos para câmera de celular. Disponível em:
https://www.shopmoment.com/about
Além da sensibilidade artística e da afinidade com a linguagem também é necessário

conhecer as condições que o equipamento oferece, como a resolução da câmera e a qualidade

do áudio, saber utilizar as ferramentas e aplicativos disponíveis para melhorar o desempenho da

câmera. Além disso, é preciso ter um roteiro, saber planejar a produção, dispor de elenco,

locações e figurinos, e ter apuro com a iluminação e enquadramento das cenas. Apesar dos

desafios, o cinema com celular, por reduzir consideravelmente o orçamento de uma obra, tem

se mostrado uma alternativa viável e criativa para cineastas realizarem filmes.

Com a ampla variedade de produtos audiovisuais criados com a câmera de um

smartphone, filmes para o cinema já são uma realidade incorporada aos modos de produção,

tanto como uma escolha estética quanto como uma alternativa econômica. A máxima de Glauber

Rocha, "uma câmera na mão e uma ideia na cabeça", se aplica a este momento, especialmente

quando se considera a possibilidade de experimentar novas estéticas e maneiras de produção

que se ajustam à falta de recursos e podem transformar um problema em uma oportunidade de

criação.

Referências

AGAMBEN, Giorgio. O que é contemporâneo? E outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009.

BAKER, Sean. Filmcourage.com. 2016. Disponível: http://filmcourage.com/?s=Sean+Baker


Acesso: 19/01/2024

BAUDRY, Jean-Louis. Cinema: efeitos ideológicos produzidos pelo aparelho de base. IN:
XAVIER, I. Org. A experiência do cinema. Rio de Janeiro: Edições Graal: Embrafilme, 1983.

BURSZTYN, Gabriel. A experiência fotográfica da cidade na era dos smartphones: ser e agir em
um espaço-tempo híbrido. Tese (Doutorado). Université de Paris 8 – Vincennes, Saint-Denis.
Paris, 2016.

CASTELLS, Manuel. Communication, power and counter-power in the network


society. International journal of communication, v. 1, n. 1, p. 29, 2007.

CHAGAS, Adriano. A imagem portátil: celulares e audiovisual. Curitiba: Appris, 2019.

DELEUZE, Gilles. O mistério de Ariana. Lisboa: Ed. Vega – Passagens, 1996.

MACHADO, Arlindo. Cinema e arte contemporânea. Revista eletrônica Z Cultural [s/d].


Disponível em: http://revistazcultural.pacc.ufrj.br/cinema-e-arte-contemporanea-de-arlindo-
machado/ Acesso em: 23/02/2023

METZ, Christian. A significação no cinema. São Paulo: Perspectiva, 2014.


SODERBERGH, Steven. Indiewire.com. 2018. Disponível:
https://www.indiewire.com/features/general/steven-soderbergh-interview-sundance-iphone-
unsane-1201921769/ Acesso: 19/01/2024

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