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Para Mônica
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O rumor das distâncias atravessadas
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JEANNE MARIE GAGNEBIN
cidade; fiquei imóvel, temendo, por um único movimento, parar aquilo que aconte-
cia em mim e que não entendia, e me apegando sempre a este pedaço de pão mo-
lhado que parecia produzir tantas maravilhas, quando, de repente, as paredes trê-
mulas de minha memória cederam, e foram os verões passados na casa de campo,
de que fale,i que irromperam na minha consciência, com suas manhãs, [...]).4
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sozinho na escuridão, o cenário estritamente necessário (como esses que se vêem in-
dicados no princípio das antigas peças, para as representações na província), ao
drama do meu deitar; como se Combray consistisse apenas em dois andares ligados
por uma estreita escada, e como se nunca fosse mais que sete horas da noite. Na
verdade, poderia responder, a quem me perguntasse, que Combray compreendia ou-
tras coisas mais e existia em outras horas. Mas como o que eu então recordasse me
seria fornecido unicamente pela memória voluntária, a memória da inteligência, e
como as informações que ela nos dá sobre o passado não conservam nada deste,
nunca me teria lembrado de pensar no restante de Combray. Na verdade, tudo isso
estava morto para mim.
Morto para sempre? Era possível.
Há muito de caso em tudo isso, e um segundo caso, o de nossa morte,
não nos permite muitas vezes esperar por muito tempo os favores do primeiro.
Acho muito razoável a crença céltica de que as almas daqueles a quem
perdemos se acham cativas nalgum ser inferior, num animal, um vegetal, uma coisa
inanimada, efetivamente perdidas para nós até o dia, que para muitos nunca che-
ga, em que nos sucede passar perto da árvore, entrar na posse do objeto que lhe ser-
ve de prisão. Então elas palpitam, nos chamam, e, logo que as reconhecemos, está
quebrado o encanto. Libertadas por nós, venceram a morte e voltam a viver co-
nosco.
É assim com o nosso passado. Trabalho perdido procurar evocá-lo, todos
os esforços da nossa inteligência permanecem inúteis. Está ele oculto, fora do seu
domínio e do seu alcance, nalgum objeto material (na sensação que nos daria esse
objeto material) que nós nem suspeitamos. Esse objeto, só do acaso depende que o
encontremos antes de morrer, ou que não o encontremos nunca.6
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Assim é que eu deveria ter escrito, dizia consigo. Meus últimos livros
são demasiados secos, teria sido preciso passar várias camadas de tinta, tornar a
minha frase preciosa em si mesma, como este panozinho de muro.7
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Diz a variante:
Si c’est souvent le hasard (j’entends par là des circonstances que notre vo-
lonté n’a point préparées, au moins en vue du résultat qu’elles auront) qui amène
dans notre esprit un objet nouveau, c’est un hasard plus rare, un hasard sélectionné
et soumis à des conditions de production difficiles, après des épreuves éliminatoires,
qui raménent dans l’esprit un objet possédé autrefois par lui et qui était sorti de
lui. Je trouve très raisonnable la croyance celtique [...] etc. 10
Se é muitas vezes o acaso (entendo por isso circunstâncias que nossa von-
tade não preparou, pelo menos em vista do resultado que terão) que traz para nos-
so espírito um objeto novo, é um acaso mais raro, um acaso selecionado e submeti-
do a condições de produção difíceis, depois de provas eliminatórias que levam de
volta ao espírito um objeto outrora possuído por ele e que dele tinha saído. Acho
muito razoável a crença céltica [...] etc.
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D’où avait pu me venir cette puissante joie? Je sentais qu’elle était liée
au goût du thé et du gâteau, mais qu’elle le dépassait infiniment, ne devait pas être
de même nature. D’où venait-elle? Que signifiait-elle? Où l’appréhender? Je bois
une seconde gorgée où je ne trouve rien de plus que dans la première, une troisième
qui m’apporte un peu moins que la seconde. Il est temps que je m’arrête, la vertu
du breuvage semble diminuer. Il est clair que la vérité que je cherche n’est pas en
lui, mais en moi. Il l’y a éveillée, mais ne la connaît pas, et ne peut que répéter in-
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définiment, avec de moins en moins de force, ce même témoignage que je ne sais pas
interpréter et que je veux au moins lui redemander et retrouver intact, à ma dispo-
sition, tout à l’heure, pour un éclaircissement décisif. Je pose ma tasse et me tourne
vers mon esprit. C’est à lui de trouver la vérité. Mais comment? Grave incertitude,
toutes les fois que l’esprit se sent dépassé par lui-même; quand lui, le chercheur, est
tout ensemble le pays obscur oú il doit chercher et où tout son bagage ne lui sera de
rien. Chercher? Pas seulement: créer. Il est en face de quelque chose qui n’est pas
encore et que seul il peut réaliser, puis faire entrer dans sa lumière.
De onde me teria vindo aquela poderosa alegria? Senti que estava ligada
ao gosto do chá e do bolo, mas que o ultrapassava infinitamente e que não devia
ser da mesma natureza. De onde vinha? Que significava? Onde apreendê-la? Bebo
um segundo gole em que não encontro nada a mais que no primeiro, um terceiro
que me traz um pouco menos que o segundo. É tempo de parar, parece que está
diminuindo a virtude da bebida. É claro que a verdade que procuro não está nela,
mas em mim. A bebida a despertou, mas não a conhece, e só o que pode fazer é
repetir indefinidamente, cada vez com menos força, esse mesmo testemunho que não
sei interpretar e que quero tornar a solicitar - lhe daqui a um instante e encontrar
intacto à minha disposição, para um esclarecimento decisivo. Deponho a taça e vol-
to-me para o meu espírito. É a ele que compete achar a verdade. Mas como? Gra-
ve incerteza, todas as vezes em que o espírito se sente ultrapassado por si mesmo,
quando ele, o explorador, é ao mesmo tempo o país obscuro a explorar e onde todo
o seu equipamento de nada lhe servirá. Explorar? Não apenas explorar; criar.
Está em face de qualquer coisa que ainda não existe e a que só ele pode dar reali-
dade e fazer entrar na sua luz.11
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Chercher? Pas seulement: créer. Il est en face de quelque chose qui n’est
pas encore et que seul il peut réaliser, puis faire entrer dans sa lumière.
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Corrigindo a tradução:
Procurar? Não apenas procurar: criar. Ele está diante de algo que ain-
da não é e que somente ele pode realizar e, depois, fazer ingressar em sua luz.
E para que nada quebre o impulso com que ele [o espírito] vai procurar
captá-la [a sensação fugitiva], afasto todo obstáculo, toda idéia estranha, abrigo
meus ouvidos e minha atenção contra os barulhos da peça vizinha.15
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Mas sentindo que meu espírito se fatiga sem resultado, forço-o, pelo con-
trário, a aceitar essa distração que lhe recusava, a pensar em outra coisa, a refazer-
se antes de uma tentativa suprema.16
Puis une deuxième fois, je fais le vide devant lui [mon esprit], je remets
en face de lui la saveur encore récente de cette première gorgée et je sens tressaillir en
moi quelque chose qui se déplace, voudrait s’élever, quelque chose qu’on aurait dé-
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sancré, à une grande profondeur; je ne sais ce que c’est, mais cela remonte lente-
ment; j’éprouve la resistance et j’entends la rumeur des distances traversées.
Depois, por segunda vez, faço o vácuo diante dele [meu espírito], torno a
apresentar-lhe o sabor ainda recente daquele primeiro gole e sinto estremecer em
mim algo que se desloca, que se desejaria elevar-se, algo que teria ido desancorado,
a uma grande profundeza; não sei o que é, mas aquilo sobe lentamente; experimen-
to a resistência e ouço o rumor das distâncias atravessadas.17
Essa frase nos ajuda a entender por que o romance não termina
aqui, como um leitor incauto esperaria, nesse momento imediatamente
seguinte do reconhecimento da lembrança e da alegria por ela trazida.
Paul Ricoeur ressalta que a tentação de reduzir Em Busca do Tempo Perdido
à busca e à descrição de experiências específicas, do tipo “madeleine”,
que essa tentação de redução constitui a grande armadilha na qual tanto
o leitor como inclusive o autor perigam cair. Como descrever essa arma-
dilha? Segundo Ricoeur,18 é a “armadilha de uma resposta curta demais,
que seria simplesmente a resposta da memória involuntária”. Podemos
acrescentar: é porque Proust percebeu a insuficiência dessa resposta que
ele conseguiu passar do romance impressionista (Jean Santeuil) e da cena
de reconhecimento tão rápida, no prefácio de Contre Saint-Beuve, à escri-
tura de uma obra verdadeira e inconfundível, a Em Busca do Tempo Perdido.
Se a busca, continua Ricoeur, só fosse “a busca de revivências similares,
das quais se deve, no mínimo, dizer que não requerem o labor de ne-
nhuma arte”, o livro poderia terminar aqui. Mas ele seria uma criação
menor, agradável e bem escrita (talvez como os livros de Bergotte), sem
mais. Só se tornou uma obra de arte, isto é, uma criação que tem a ver
com a verdade, porque se confronta com as dificuldades dessas revivên-
cias felizes, porque toma a sério a presença da resistência e do esqueci-
mento, em última instância a presença do tempo e da morte. A elabora-
ção estética e reflexiva, descrita nos parágrafos anteriores no seu duplo
movimento de concentração e de distração, é imprescindível justamente
porque não há reencontro imediato com o passado, mas sim sua lenta
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Et dès que j’eus reconnu le goût du morceau de madeleine trempé dans le tilleul que me
donnait ma tante (quoique je ne susse pas encore et dusse remettre à bien plus tard de découvrir pour-
quoi ce souvenir me rendait si heureux), aussitôt la vieille maison grise [...] e, traduzido: E mal
reconheci o gosto do pedaço de madalena molhado em chá que minha tia me dava (embora ainda não
soubesse, e tivesse de deixar para muito mais tarde tal averiguação, por que motivo aquela lembrança
me tornava tão feliz), eis que a velha casa cinzenta[...].19
Notas
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2 Marcel Proust, A la recherche du temps perdu, nota I da p. 46, Edition Pléiade de Jean-
Yves Tadié, Paris: Gallimard, 1987, vol. I, p. 1123.
3 Cf. as análises de W. Benjamin a esse respeito em Sobre Alguns Temas em Baudelaire, vol.
Pensadores, Ed. Abril, em particular os capítulos 10 e 11.
4 Marcel Proust, Contre Saint-Beuve, Gallimard, Collection Folio, 1954, p. 44.
5 Julia Kristeva, Le temps sensible. Proust et l’expérience littéraire, cap. 1, Gallimard, 1994.
6 Marcel Proust, op. cit., pp. 43/44. Trad. de Mário Quintana, No Caminho de Swann,
Porto Alegre: Ed. Globo, 1981, pp. 44/45.
7 Marcel Proust, A la recherche du temps perdu, La prisonnière, Ed. Pléiade, 1987, vol. III,
pp. 692/693. Trad. de Manuel Bandeira e Lourdes Sousa de Alencar, A Prisioneira, Por-
to Alegre: Ed. Globo, 1983, vol. 5, pp. 157/158.
8 Idem.
9 Cf. a distinção de Deleuze entre signos sensíveis e signos artísticos em Proust et les
signes, Paris: PUF, 1964. Trad. de Roberto Machado, Proust e os Signos, Rio de Janeiro:
Forense, 1987.
10 Cf. variante da ed. da Pléiade, vol. I, op. cit., p. 1122.
11 Ed. Pléiade, op. cit., vol. I, pp. 44/45. Trad. Globo, vol. I, op. cit., p. 45/46.
12 Santo Agostinho, Confissões, livro X, cap. 8, 15, Ed. Abril, Pensadores.
13 M. Proust, Du côté de chez Swann, op. cit., p. 46. Trad., No Caminho de Swann, op. cit., p.
46.
14 Idem, ibidem.
15 M. Proust, Du côté de chez Swann, op. cit., p. 45. Trad., No Caminho de Swann, op. cit., p.
46.
16 Idem, ibidem.
17 Idem, ibidem (trad. modificada).
18 Paul Ricoeur, Temps et Récit, vol. II, La configuration dans le récit de fiction, Ed. Seuil,
1984, pp. 202 ss.
19 M. Proust, Du côté de chez Swann, op. cit., p. 47. Trad., No Caminho de Swann, op. cit., p.
47 (trad. modificada).
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