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PERNAMBUCO

Aniversário do Recife e
de Olinda: relembre a
Guerra dos Mascates,
que separou 'cidades-
irmãs', e veja histórias
de comerciantes
atuais
Nesta terça-feira (12), capital pernambucana
comemora 487 anos; e a Marim dos Caetés,
489. O g1 recorda disputa de poder entre
comerciantes e senhores de engenho no século
18.

Por Artur Ferraz, Iris Costa, g1 PE

12/03/2024 05h02 · Atualizado há 2 horas

Vista do Recife a partir de Olinda, atual e antiga capitais de


Pernambuco — Foto: Reprodução/TV Globo

Recife e Olinda comemoram,


respectivamente, 487 e 489 anos nesta
terça-feira (12). Chamadas de “cidades-
irmãs” por serem vizinhas e fazerem
aniversário na mesma data, nem
sempre tiveram uma convivência pacífica.
Há mais de três séculos, quando o Brasil
era uma colônia de Portugal, elas
rivalizavam entre si e protagonizaram um
conflito armado que se estendeu por mais
de um ano: a Guerra dos Mascates.

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Entre 1710 e 1711, a atual e a antiga


capital pernambucana travaram uma
guerra. O conflito foi causado a partir de
uma disputa de poder entre os ricos
comerciantes portugueses que atuavam
na zona portuária do Recife e os senhores
de engenho que, da Cidade Alta de Olinda,
governavam todo o território da então
capitania de Pernambuco.

No entanto, não é bem verdade dizer que


as duas cidades entraram em confronto, já
que, até então, elas eram uma só. E foi a
partir da Guerra dos Mascates que as
“irmãs” começaram a se separar.

“Os olindenses pegaram em


armas e invadiram o Recife. E
ficaram alguns meses nessa
contenda, os recifenses
tentando se proteger das
investidas dos olindenses”,
contou o professor de
história Ricardo Gomes.

A Guerra dos Mascates foi um conflito


movido por elites locais que tinha como
pano de fundo um forte preconceito
social.

“Os olindenses, menosprezando os


comerciantes portugueses do Recife, os
chamavam de ‘mascates’. E ‘mascate’ seria
o quê? Camelô, ambulante. E os
comerciantes do Recife devolviam esse
caráter pejorativo, chamando os
olindenses de ‘pé-rapados’, sinônimo de
ser pobre, de ser ‘liso’, como se diz na
linguagem pernambucana”, disse Ricardo
Gomes.

Sabe por que Recife e Olinda fazem


aniversário na mesma data? Conheça
a história do Foral de 1537

Saiba mais

Vizinhas e rivais
Até aqueles primeiros anos do século 18, o
Recife era uma área urbana que,
oficialmente, pertencia a Olinda. Embora já
existisse como povoado, ao menos, desde
1537, foi somente em 1709 que o Recife se
tornou uma vila. Essa mudança de status
desencadeou a guerra no ano seguinte.

Para entender melhor como tudo isso


aconteceu, é preciso voltar um pouco no
tempo, mais precisamente cerca de 50
anos antes, quando os holandeses
ocupavam parte do Nordeste brasileiro,
conforme explicou ao g1 Ricardo Gomes.

“Nesse tempo em que os holandeses


estiveram aqui, Recife prosperou muito.
Era uma das cidades mais modernas do
mundo. Aparecia nos mapas como ponto
importante do comércio internacional.
Aquela parte do Recife Antigo foi
modernizada, não para Pernambuco, mas
para o bem-estar deles [dos holandeses]”,
afirmou o historiador.

Após a expulsão dos holandeses em 1654,


muitos senhores de engenho que tinham
saído de Pernambuco voltaram para
Olinda. Mas, ao retornarem, encontraram
uma situação muito diferente da que
tinham deixado, com a economia
açucareira em decadência frente à
concorrência com as Antilhas e um Recife
mais moderno e comercial, habitado por
comerciantes de origem portuguesa.

Ainda de acordo com Ricardo Gomes,


esses ricos comerciantes mantinham uma
relação bem próxima com os
governadores da época e, assim,
conseguiram convencer Portugal a elevar
o Recife à condição de vila, o que foi feito
no dia 19 de novembro de 1709 por meio
de uma Carta Régia. A medida desagradou
à aristocracia olindense.

“Recife teria sua própria Câmara


Municipal. (...) Os olindenses ficaram
desesperados porque, o governo
português dando ao Recife a condição de
vila, Recife não teria mais que pagar
impostos. Então, Olinda ia perder uma
arrecadação muito grande”, afirmou o
professor de história.

Além disso, havia um descontentamento


com os valores dos empréstimos
concedidos pelos comerciantes do Recife
aos aristocratas de Olinda, que, muitas
vezes, tinham seus produtos confiscados
quando não pagavam as dívidas.

Ruínas da antiga Câmara de Olinda, localizadas em frente ao


Mercado da Ribeira — Foto: Reprodução/Google Street View

Atentado, grito pela república


e repressão
De acordo com Ricardo Gomes, o estopim
da guerra se deu em fevereiro de 1710,
quando o então governador de
Pernambuco, Sebastião de Castro e
Caldas, sofreu um atentado à bala e fugiu
para a Bahia, abrindo caminho para uma
tumultuada disputa pela sucessão.

"Os olindenses se reuniram e


resolveram botar um
interino, que seria um bispo
chamado Dom Manoel Alves
da Costa. E não houve
consenso. O bispo disse que
não tinha condições de
gerenciar o problema e
entregou o governo a uma
junta. E não houve aceitação,
principalmente no Recife.
Nesse meio-tempo, uma vez
que o Recife já tinha se
preparado e organizado a
Câmara Municipal, os
olindenses pegaram em
armas e invadiram o Recife",
contou.

Todo o resto do ano foi marcado por


embates entre tropas ligadas aos dois
grupos nos arredores do que hoje é o
Bairro do Recife.

No meio do conflito, em 10 de novembro,


um vereador de Olinda, o aristocrata e
militar Bernardo Vieira de Melo, teria
defendido, numa sessão na Câmara da
cidade, a proclamação de uma república,
em Pernambuco, aos moldes da cidade
italiana de Veneza. Por conta do episódio,
conhecido como Grito de República, a
data é feriado na cidade.

"Quem primeiro sugeriu, no Brasil, uma


república teria sido Olinda, porque lá
estava esse vereador (...). Mas nem todos
os historiadores aceitam que isso tenha
acontecido. Por uma razão muito simples:
na ata de reunião da assembleia em
Olinda, está faltando a folha desse dia.
Não existe a folha com o registro da
sessão em que você poderia encontrar
que o secretário teria escrito dizendo que
o vereador sugeriu que proclamássemos
uma república", explicou Ricardo Gomes.

Verdade ou não, o governo português,


temendo que o confronto pudesse
resultar num movimento de insurreição,
resolveu intervir, nomeando, para o
governo de Pernambuco, o aristocrata
Félix José Machado de Mendonça.

"Ele mobiliza suas tropas, faz a repressão e


prende os líderes radicais, que são levados
a Lisboa e morrem por lá. Os moderados
são perdoados aqui. Um desses presos é
Bernardo Vieira de Melo", afirmou.

Após a Guerra dos Mascates, o Recife


garantiu a autonomia política, mantendo a
própria Câmara Municipal e consolidando
seu grau de influência na região. Com a
economia açucareira em declínio, Olinda
foi perdendo o posto de principal centro
urbano da capitania à medida que a vila
portuária ao lado crescia a passos largos,
tornando-se cidade em 1823, e, apenas
quatro anos depois, a capital de
Pernambuco.

Para o professor, a Guerra dos Mascates


foi "uma briga de cachorro grande".

"Não foi o povo que fez essa


revolta. Quem faz essa
revolta são pessoas que têm
interesses econômicos
consideráveis. Quem está do
lado de Olinda são homens
ricos. (...) E, no Recife, eram
homens ricos também. O
povo entra por outra
situação, para tomar partido
porque mora naquele lugar,
mas não porque estava
lutando pelos mesmos
interesses dos 'mascates' do
Recife ou da aristocracia
açucareira de Olinda",
comentou.

Novos centros e os mascates

Comerciantes contam como se sentem ao trabalhar no Centro


do Recife

No aspecto econômico, o grande polo do


poder em Pernambuco, o comércio do
Recife, ficou nas mãos de portugueses e
descendentes. E, ao longo das décadas, o
Centro da nova capital se consolidou como
símbolo de prosperidade até entrar
também em decadência na segunda
metade do século 20, quando o dinheiro
passou a circular em outros lugares e a
descentralização de serviços comerciais,
como os shopping centers, impulsionou o
crescimento de bairros mais distantes.

Nessa imersão ao passado, o g1 foi até o


Centro do Recife e conversou com alguns
comerciantes, os verdadeiros mascates
que ficaram para trás entre as inúmeras
reviravoltas políticas e econômicas
ocorridas na cidade ao longo do tempo
(veja vídeo acima).

Um deles é Euclides Francisco de Moura,


de 70 anos, que trabalha como ambulante
na Avenida Dantas Barreto, no bairro de
São José. Natural de Panelas, no Agreste
do estado, o vendedor, que é conhecido
como Evandro, chegou ao local no início
dos anos 1970, quando a via sequer tinha
sido construída e parte dela ainda era
chamada de Rua Augusta.

"Eu vim na fase de uns 14 para 15 anos.


Meu irmão morava aqui e me trouxe para
morar com ele. Aqui eu fiquei, até hoje. Eu
nem lembro mais tudo que eu trabalhei,
foi muita coisa. Desde pirralho que eu
trabalho vendendo negócio na rua. De
tudo já vendi, menos droga. Vendia
confeito, vendia laranja…", contou o
vendedor.

Para Evandro, o Centro da capital


pernambucana se transformou muito nos
últimos anos. "A gente era livre, brincava,
corria, não tinha essas pancadarias, não
tinha nada. Sabe o que era que tinha?
Cinema. A gente ia para o cinema, mas
como era menor [de idade], levava puxão
de orelha. Na hora, os guardas puxavam, a
gente corria para outro. A vida era assim",
descreveu o comerciante.

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Kleber Mendonça Filho

Com 58 anos de idade e duas décadas


consertando utensílios domésticos em São
José, Ivelson Rodolfo da Silva, ou Dino das
Panelas, também assistiu ao esvaziamento
do Centro. Nascido na Zona Norte do
Recife, o empreendedor cresceu em
Olinda, mas decidiu trabalhar na capital
porque, na época, não tinha outras
pessoas que oferecessem o mesmo
serviço.

"No subúrbio, tem muito


‘curioso’, que dizia que
consertava e não conserta, e
aqui eu conserto mesmo,
levo as coisas a sério. [...] Teve
uma queda muito grande [de
movimento]. Teve uma
queda, acho que de uns 50%.
Desde que começou a
pandemia [da Covid-19] que
tudo ficou diferente. Caiu
tudo. Lojas fecharam, gente
que saiu do ramo", contou
Dino.

Mesmo sem essa memória, as gerações


mais novas que chegam ao Centro do
Recife também sentem essa falta de
liberdade. Morador do Alto do Mandu, na
Zona Norte da cidade, o barbeiro José Igor
Ferreira, de 24 anos, trabalha há nove
meses no camelódromo da Dantas
Barreto, em meio à violência e à falta de
investimentos em infraestrutura.

"Eu gosto de estar aqui,


apesar de todos esses pontos
negativos. Eu gosto porque a
gente se diverte. A gente
trabalha de uma forma
agradável... Mesmo com essa
criminalidade, que é um
pouco alta, a galera que
trabalha aqui consegue [ter]
um ambiente muito
saudável. Mas o que eu quero
mesmo é sair daqui. Quero
montar uma barbearia
maior, com mais pessoas
trabalhando para mim. É só
questão de tempo para as
coisas fluírem", declarou José
Igor.

Euclides Francisco de Moura trabalha como ambulante na


Avenida Dantas Barreto, no Centro do Recife, há 50 anos —
Foto: Iris Costa/g1

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