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Há Palavras que Nos Beijam

Há palavras que nos beijam

Como se tivessem boca.

Palavras de amor, de esperança,

De imenso amor, de esperança louca.

Palavras nuas que beijas

Quando a noite perde o rosto;

Palavras que se recusam

Aos muros do teu desgosto.

De repente coloridas

Entre palavras sem cor,

Esperadas inesperadas

Como a poesia ou o amor.

(O nome de quem se ama

Letra a letra revelado

No mármore distraído

No papel abandonado)

Palavras que nos transportam

Aonde a noite é mais forte,

Ao silêncio dos amantes

Abraçados contra a morte.

Alexandre O'Neill, in 'No Reino da Dinamarca'


A Palavra Mágica
Certa palavra dorme na sombra

de um livro raro.

Como desencantá-la?

É a senha da vida

a senha do mundo.

Vou procurá-la.

Vou procurá-la a vida inteira

no mundo todo.

Se tarda o encontro, se não a encontro,

não desanimo,

procuro sempre.

Procuro sempre, e minha procura

ficará sendo

minha palavra.

Carlos Drummond de Andrade, in 'Discurso da Primavera'

Certas Palavras

Certas palavras não podem ser ditas

em qualquer lugar e hora qualquer.

Estritamente reservadas

para companheiros de confiança,

devem ser sacralmente pronunciadas

em tom muito especial


lá onde a polícia dos adultos

não adivinha nem alcança.

Entretanto são palavras simples:

definem

partes do corpo, movimentos, actos

do viver que só os grandes se permitem

e a nós é defendido por sentença

dos séculos.

E tudo é proibido. Então, falamos.

Carlos Drummond de Andrade, in 'Boitempo'


Com Palavras
Com palavras me ergo em cada dia!

Com palavras lavo, nas manhãs, o rosto

e saio para a rua.

Com palavras - inaudíveis - grito

para rasgar os risos que nos cercam.

Ah!, de palavras estamos todos cheios.

Possuímos arquivos, sabemo-las de cor

em quatro ou cinco línguas.

Tomamo-las à noite em comprimidos

para dormir o cansaço.

As palavras embrulham-se na língua.

As mais puras transformam-se, violáceas,

roxas de silêncio. De que servem

asfixiadas em saliva, prisioneiras?

Possuímos, das palavras, as mais belas;

as que seivam o amor, a liberdade...

Engulo-as perguntando-me se um dia

as poderei navegar; se alguma vez

dilatarei o pulmão que as encerra.

Atravessa-nos um rio de palavras:

Com elas eu me deito, me levanto,

e faltam-me palavras para contar...

Egito Gonçalves, in 'Antologia Poética'


Com Fúria e Raiva
Com fúria e raiva acuso o demagogo

E o seu capitalismo das palavras

Pois é preciso saber que a palavra é sagrada

Que de longe muito longe um povo a trouxe

E nela pôs sua alma confiada

De longe muito longe desde o início

O homem soube de si pela palavra

E nomeou a pedra a flor a água

E tudo emergiu porque ele disse

Com fúria e raiva acuso o demagogo

Que se promove à sombra da palavra

E da palavra faz poder e jogo

E transforma as palavras em moeda

Como se fez com o trigo e com a terra

Sophia de Mello Breyner Andresen, in "O Nome das Coisas"


Certas Palavras
Certas palavras não podem ser ditas

em qualquer lugar e hora qualquer.

Estritamente reservadas

para companheiros de confiança,

devem ser sacralmente pronunciadas

em tom muito especial

lá onde a polícia dos adultos

não adivinha nem alcança.

Entretanto são palavras simples:

definem

partes do corpo, movimentos, actos

do viver que só os grandes se permitem

e a nós é defendido por sentença

dos séculos.

E tudo é proibido. Então, falamos.

Carlos Drummond de Andrade, in 'Boitempo'


A Palavra
Já não quero dicionários

consultados em vão.

Quero só a palavra

que nunca estará neles

nem se pode inventar.

Que resumiria o mundo

e o substituiria.

Mais sol do que o sol,

dentro da qual vivêssemos

todos em comunhão,

mudos,

saboreando-a.

Carlos Drummond de Andrade, in 'A Paixão Medida'


A Palavra

Eleva-se entre a espuma, verde e cristalina

e a alegria aviva-se em redonda ressonância.

O seu olhar é um sonho porque é um sopro indivisível

que reconhece e inventa a pluralidade delicada.

Ao longe e ao perto o horizonte treme entre os seus cílios.

Ela encanta-se. Adere, coincide com o ser mesmo

da coisa nomeada. O rosto da terra se renova.

Ela aflui em círculos desagregando, construindo.

Um ouvido desperta no ouvido, uma língua na língua.

Sobre si enrola o anel nupcial do universo.

O gérmen amadurece no seu corpo nascente.

Nas palavras que diz pulsa o desejo do mundo.

Move-se aqui e agora entre contornos vivos.

Ignora, esquece, sabe, vive ao nível do universo.

Na sua simplicidade terrestre há um ardor soberano.

António Ramos Rosa, in "Volante Verde"


Exactidão

Levam as frases sentido

que uma cadência lhes dá:

sentido do não-vivido

a que fica reduzido

o que, escolhido, não há.

Do imo do poder ser,

onde o não-sido se arrasta,

ouvi cadências crescer:

vaga música de ter,

na vida, quanto não basta -

quanto um sentido se entenda,

que nem verdade ou mentira.

(Que o que dele se aprenda

é como cobarde venda

para que a luz nos não fira.

Luz sem luz, brilho da treva

que tudo no fundo é;

e a certeza que se eleva

do fundo da própria treva,

de exacta que seja, é.)

Levam justiça consigo


as palavras que dissermos.

Por quanto sentido antigo,

nelas ficou por castigo

o futuro que tivermos.

Levam as frases sentido

que uma cadência lhes dá.

É justo, injusto - o escolhido?

Como quereis que, vivido,

ele não seja o que será?

Jorge de Sena, in 'Post-Scriptum'


Segunda Nota Explicativa

Se uma palavra toca noutra ou mesmo sem tocar

lhe queda próxima, põem-se as duas

a dedilhar lembranças na ária

da carne azada.

Passa-se isto

na poesia dos poetas e na linguagem

da rua. Os ganhos

são mútuos e ficam mal lembrados

ou julgados inconvenientes se

pouco prosados ultrapassam

a discreta função de fundo

musical na paisagem ambiente.

Ganham em sentidos o que perdem

em concisão. Para que servem os muros

que nos cercam senão para dar ganas

de os saldar?

Júlio Pomar, in "TRATAdoDITOeFEITO"

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