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Raphael folheava o livro que Alice havia lhe dado de aniversário.

Era um livro antigo,


muito mais antigo que a idade dele e dela somado. Apesar de sua capa de couro já estar um
tanto surrada, o interior estava muito bem conservado para um livro daquela idade. Tratava-
se de uma coletânea de contos populares alemães, um dos assuntos preferidos dele. Quando
Brunilda estava prestes a ser salva, ele decidiu fazer uma pausa em sua leitura. Deixou o livro
na mesa ao lado da poltrona e se levantou. Esticou-se em frente à lareira, aproveitando um
pouco de seu calor.

Do lado de fora da janela, ventava e chovia muito, como de costume no inverno


daquela região. Atrás de si, Helena ainda tocava a canção que compusera no piano. Era uma
melodia suave e soava bem nas paredes da biblioteca, dava ao ambiente um tom calmente.
Raphael foi até perto de sua irmã e tocou o seu ombro. Ela respondeu seu gesto com um
sorriso doce, porém, não parou de tocar até que a música chegasse ao seu fim. Raphael a
esperou.

"Então, irmão, está se sentindo melhor?". Ela pôs a mão em sua testa, tentando sentir
a sua temperatura. Ele afastou sua mão, revirando os olhos.

"Eu estou bem, eu já disse. Foi só um resfriado. O chá que o Bernardo fez me ajudou
bastante", ele sorriu e passou a mão na cabeça da irmã, implicando com ela.

Ela suspirou e afastou sua mão com um tapa, levantando-se do banco do piano.

"Eu já disse o quanto eu odeio quando você faz isso?", ela disse ajeitando o cabelo.
"Eu fiquei a manhã inteira ajeitando o meu cabelo para hoje a noite."

Ela foi até o espelho, com certa mágoa no rosto.

"D-desculpa, eu não sabia, Lena...", ele foi atrás dela preocupado como sempre.

Assim que ele se aproximou tentando ampará-la, notou um sorriso na face da irmã.
Ela se virou rindo.

"Você é tão bobo, Raphael! Você acha mesmo que eu estaria com cabelo pronto desde
de manhã para a festa mais importante do ano?", ela tentou conter o riso levando a mão à
boca. "Adoro ver você preocupado assim. Você devia tentar desenvolver um senso de humor
maior do que o de um pedra". Ela riu dando tapinhas na face do irmão.

Raphael demorou para compreender toda a situação, mas quando percebeu que era
tudo brincadeira não ficou nada feliz. Fechou o rosto e cruzou os braços.
"Ah, vamos. Para com isso!", ela passou um dos braços por baixo do dele e o guiou
até o corredor. "Você tem que aprender a brincar, irmãozinho. Nem tudo na vida são
responsabilidades e estudos".

"Bom, deveria ser... Afinal, estamos aqui para isso, é pra isso que serve a Academia",
ele disse ainda emburrado.

O piso de madeira do corredor rangia enquanto os dois se deslocavam até a escadaria


de madeira. O enorme lustre que pendia do teto balançava suavemente, acompanhando o
uivado do vento que transpassava brechas das janelas de vitral que revestiam a entrada da
Moradia.

"Meu deus! Quem deixou as janelas abertas? Está uma ventania lá fora!", ela
exclamou antes de soltar o seu braço e se adiantar em direção aos vitrais e da porta principal.
Seus passos faziam muito barulho quando enquanto ela corria escada abaixo.

Por que ela sempre usa salto? Até dentro de casa. Acho que o dormitório todo deve
ter ouvido. Ele pensou.

Helena tentou fechar o vitral enquanto Raphael ainda descia a escada, observando os
quadros dos diretores pregados nas paredes. Ele sempre ficava impressionado com a minúcia
de detalhes daquelas pinturas, às vezes ele tinha a impressão que eles ainda os observavam do
outro lado.

O metal da janela rangia mas não parecia ceder. Ela tentou bater nas extremidades
com a base do punho, mas de nada adiantou. Sempre sem muita paciência, sua irmã já estava
ficando irritada. Raphael sabia que ela sempre colocava uma mecha do cabelo atrás da orelha
quando ficava.

"Você quer que eu tent...", Raphael foi interrompido.

Num zumbido que durou menos de um segundo, Leonardo apareceu atrás de Helena
com um sorriso no rosto. Raphael saltou do chão com o susto. Sua irmã começou a rir da
situação juntamente com seu amigo.

"Mas que droga, Leo! Eu odeio quando você faz isso!", Raphael exclamou irritado,
empurrado o ombro de Leonardo.

Os dois ainda continuavam a rir juntos.


"Mas se você gostasse não teria graça alguma fazer, Rapha", Leonardo deu um soco
de leve em seu rosto. Raphael afastou sua mão, novamente com a cara fechada.

"Bom, já que você está aqui, poderia ser útil e me ajudar a fechar a droga da janela,
não é mesmo?", Helena apontou para o vitral que não fechava.

Leonardo anuiu com um sorriso estampado em seu rosto. Raphael notou que ele abrira
a sua mão e parecia estar se concentrando. Quando seu braço começou a tremer, ele pôde ver
uma espécie de bola de ar se formando na palma da mão de seu amigo. Leonardo fez um
movimento como de chicoteio e a bola saiu de sua mão e atingiu o vitral, fazendo com que
este fechasse de uma vez só com um estrondo. A bola de ar se desfez e provocou uma
pequena ventania no ambiente. Helena ficou boquiaberta, impressionada com a habilidade do
amigo.

"Leo... Eu não sabia que você já conseguia fazer esse tipo de coisa! Que demais", ela
levou a mão à boca enquanto observava de perto o vitral agora fechado, impressionada.

Leonardo cruzou os braços e assumiu uma pose orgulhosa.

"Eu aprendi isso semana passada com o meu instrutor. Bem útil, não?", ele riu.

"Você poderia ter quebrado o vitral. E além do mais, você deveria parar de usar suas
habilidades fora das aulas. Você sabe como a Abigail odeia quando nós fazemos isso, ela
nunca...", Raphael foi interrompido novamente. Dessa vez com a porta da sala de estar que se
fechou atrás deles.

"... Aprovaria?", a voz de Abigail ressoou atrás deles. Os três se viraram


imediatamente.

"Diretora...", os três disseram juntos, abaixando de leve as cabeças.

A diretora da Academia andou até os três alunos lentamente. Se alguém a visse na rua
diria que se tratava de uma senhora de idade que ainda vestia roupas antiquadas de sua época,
porém, Abigail era uma poderosa feiticeira e uma das poucas a fazer parte do Conselho de
Magia do país. Seu cabelo cinzento estava arrumando de forma que as suas mechas
cacheadas formavam um coque esmeradamente arrumado. Seu blazer de veludo verde
combinava com os brincos de esmeralda e com os seus olhos que brilhavam com a luz do
lustre. Ela parou próximo ao vitral e o encarou por alguns momentos. Era a representação de
um Hierofante.
"Esses vitrais decoram a Moradia desde a fundação desta Academia. Além disso,
fazem parte do revestimento desta construção e, portanto, constituem a parede mágica que
nos protege de forças maléficas e nos oculta dos olhos de curiosos", a diretora deixou de
olhar o vidro e agora fitava os estudantes. "É muita imprudência tratá-lo de maneira tão rude,
ainda mais usando suas habilidades em lugar indevido", ela completou.

Todos eles estavam de cabeça baixa temendo que seus olhares desagradassem ainda
mais a feiticeira. Leonardo se adiantou:

"Eu peço desculpas, diretora. Sei que agi errado, prometo não fazer novamente...".

"E realmente não o deve!", Abigail respondeu de forma ríspida, assumindo uma
postura ofensiva. "O que você imagina que aconteceria se todos nessa Academia usassem
suas habilidades quando bem entendem? Existem regras, senhor Monteiro, e regras devem ser
seguidas...".

Ele abaixou a cabeça novamente e murmurou:

"Sim, senhora".

A diretora suspirou e ajeitou o seu blazer, dando tapinhas na base de sua saia preta.
Ela agora encarava os três com um olhar reprovador.

"Vocês também devem saber que existem punições para aqueles que quebram as
regras", ela fez uma pausa e se virou para Leonardo. "Senhor Monteiro, por sua
irresponsabilidade em manipular os seus poderes sem a coordenação de um instrutor, quero
você na minha sala na segunda-feira. Faremos leituras e exercícios sobre as regras de nossa
academia".

Leonardo balançou a cabeça e encarou a diretora.

"Não será possível, diretora. Não nesse dia. O meu instrutor prometeu que nesse dia
eu passaria a etapa de meu treinamento e...", ela o interrompeu levantando a palma da mão.

"Eu avisarei o professor Henrique do motivo de sua falta. Sei que ele entenderá", ela
deixou escapar um sorriso no canto de seu rosto. "Bom, vou me retirar agora. Espero que se
comportem como feiticeiros da Academia daqui por diante. Nos vemos mais tarde no Salão
Maior"

A diretora fez uma longa pausa e suspirou, relaxando os ombros.


"Eu não esperava isso de você, Leonardo. Estou realmente decepcionada. Espero que
não se repita"

Ela andou até o porta guarda-chuvas e pegou o preto com a alça de madeira. Abriu a
porta da Moradia e sem encará-los novamente bateu a pesada porta. Os três amigos se
olharam. Leonardo estava vermelho de raiva. Raphael sabia que ele estava esperando e se
esforçando por essa oportunidade há meses. Helena tentou confortá-lo.

"Leo, está tudo bem. Nós podemos conversar com ela depois. Você sabe que ela age
assim nos momentos de raiva e depois se arrepende...", ela tentou passar a mão no cabelo do
amigo para tentar acalmá-lo, mas ele se afastou.

"Eu sou um idiota. No que eu estava pensando? Eu estraguei tudo pra consertar a
merda de um vitral emperrado...", ele bateu de leve no vidro frio.

"Fica calmo, cara. A gente pode resolver isso conversando, a Helena está certa. E
além do mais, hoje não é dia de preocupação. Esperamos o ano todo pela festa do Solstício e
a Helena ficou o mês todo planejando e fazendo tudo pra isso dar certo", Raphael deu
tapinhas nas costas do amigo.

Leonardo sacudiu a cabeça.

"Vocês não entendem, não é? Eu dei duro para conseguir fazer o instrutor me passar
de nível e agora estraguei tudo por essa porcaria", ele suspirou. "Eu vou pro meu quarto".

Ele deu as costas para os amigos e seguiu pelo corredor na lateral da escadaria em
direção aos dormitórios. Helena foi atrás dele.

"Espera aí, Leo! Você tem que se arrumar para a comemoração! Falta menos de duas
horas para todo mundo estar lá e..."

"Me deixa em paz, Lê", ele balançou a mão no ar. "Eu sei o que estou fazendo"

Quando Leonardo começou a descer as escadas, alguém começou a descer do segundo


andar. Era Alice.

"Mas que barulheira é essa? Dá pra ouvir vocês lá de cima. O que houve?", ela lançou
um olhar de preocupação para todos.

"Não é nada, Alice. O Leo usou as habilidades dele e a Diretora castigou ele", Helena
deu de ombros.
Alice esbugalhou os olhos:

"Abigail esteve aqui? O que a diretora estava fazendo na Moradia?"

"Eu sei lá? Essa morcega aparece em tudo quanto é lugar... Me dá arrepios, às vezes",
Helena foi abraçar a amiga.

"Sorte sua que ela não possui o dom da telepatia... Você já estaria expulsa", Alice
sorriu.

"Meninas, com licença. Vou atrás do Leo...", Raphael disse enquanto se adiantava
para o corredor.

Raphael seguiu o longo corredor ao lado da escadaria que levava até o dormitório
masculino da Moradia. Enquanto andava por cima do longo tapete persa que revestia o chão
de madeira, lembrou de quanto tempo já tinha feito esse mesmo caminho até o quarto que os
dois dividiam desde quando eram crianças. Enquanto a maioria dos alunos passava as férias
em casa com seus parentes, Leonardo sempre ficava na Academia.

O motivo para tal situação era de que os pais de Leonardo o tinham abandonado ainda
bebê nas portas da Academia. Como a identidade dos pais era desconhecida e a criança
precisava de cuidados, Abigail decidiu cuidar do bebê e ser a responsável por sua criação e
educação dali por diante. Leonardo nunca falava sobre isso e nenhum outro aluno ousava
tocar muito no assunto também.

Leo...

Ele sempre recusava quando Raphael e sua irmã lhe convidavam a passar as férias em
sua casa. Talvez o ambiente familiar não lhe fizesse bem. Raphael sempre soube o quanto ele
ficava sozinho, principalmente durante as férias. Esse foi um dos motivos dele se aproximar e
se tornar seu amigo. Ele odiava vê-lo daquele jeito e, sempre que podia, passava parte das
férias na Academia para não deixá-lo só.

Ele chegou até o quarto número três e bateu na porta de mogno esculpido. Ouviu uma
resposta fraca vinda de dentro.

"Entra...", era a voz de Leonardo.

Ele abriu a porta devagar e entrou no aposento. Leonardo estava sentado na cama,
com a cabeça baixa apoiada nos braços.
"Leo...", ele sentou do lado do amigo e passou o braço pelos seus ombros.

O amigo, contudo, se desvencilhou do abraço e se afastou.

"Você não precisa ficar assim, poxa...", Raphael continuou ignorando o seu
afastamento. "Você sabe o quanto ela gosta de pegar no seu pé e como você consegue
amolecer o coração dela quando quer."

Raphael notou que o ombro de seu amigo agora balançava e podia ouvir murmúrios e
barulhos que lhe remetiam a alguém chorando.

Ele está chorando?

"Leo, você está chorando? Cara, você não acha que você está exagerando um pou..."

Leonardo levantou a cabeça e desabou na cama de tanto rir. Raphael o encarou em


silêncio, confuso. Quando conseguiu pegar fôlego novamente, Leonardo levantou e ainda
sorrindo olhou para ele:

"Rapha, você realmente acha que eu faria essa cena toda?", ele começou a rir
novamente. "Como vocês são burros... Eu não acredito que vocês caíram mesmo nessa!".

Raphael ainda não entendia o que se passava e franziu o cenho.

"Não entendi foi nada..."

Leonardo deu um soco no ombro de Raphael e sorriu.

"Eu fiz isso pra poder falar contigo antes da festa. Você e a Helena não desgrudam
nunca, precisava ficar a sós contigo...", Leonardo disse agora mais sério do que antes.

O rosto de Raphael enrubesceu.

"O-o que foi? Pode falar...", Raphael gaguejou apreensivo.

Leonardo se virou e debruçou sobre a cama como se quisesse alcançar algo embaixo
dela. Quando retornou a posição inicial, tinha uma caixa nas mãos. Uma fita marrom estava
amarrada de forma grosseira, envolvendo o pacote cinza.

"Você sabe como eu sou péssimo com fitas...", Leonardo passou a mão nas costas de
sua cabeça, embaraçado.

Raphael deu um sorriso pateta olhando pelo canto de olho para seu amigo.
"Ah, um sorriso! Vindo de você isso é raro... E bom, eu acho", Leonardo riu.

Raphael desfez o laço e abriu a caixa. Tirou o papel de arroz que embrulhava o que
parecia ser um livro.

"Você não achou mesmo que eu ia esquecer do seu aniversário, não é?", Leonardo
bateu em seu ombro. "Espero que você goste. Tive que trabalhar pra Abigail por três semanas
pra conseguir"

Quando afastou o papel de arroz, Raphael se deparou com uma capa de couro
decorada com estrelas de metal dourado. Ao abrir o livro pôde ler o seu título escrito em
letras garrafais: ORIGENS DA CIÊNCIA SAGRADA – A HISTÓRIA DA MAGIA.

"Leo, como você... Esse livro é muito caro. Você não deveria ter feito isso...",
Raphael estava boquiaberto, olhou para Leonardo emocionado,

Leonardo por sua vez fez que não com o dedo.

"Nada disso, sem reclamações. Você merece. Não é todo dia que um aprendiz do fogo
faz dezenove anos", Leonardo sorriu, debochado como sempre.

"Leo, eu não sei como te agradecer... Eu estava atrás dele faz tempo. Só você
mesmo... Muito obrigado!", Raphael abraçou o amigo com o livro ainda em sua mão.

Leonardo, de início, ficou sem reação. Porém, devolveu o abraço.

"Afeição? Demonstrando sentimentos? Quem é você e o que você fez com o


Raphael?", Leonardo disse ainda abraçando o amigo.

Raphael o soltou e riu de forma cínica.

"Sei lá, vai que você é um inquisidor que escondeu o corpo do Rapha no armário e
tomou sua aparência?"

Raphael revirou os olhos.

"Claro, e eu ultrapassei as barreiras mágicas sem ser detectado ou desintegrado pelos


Guardiões...", um sorriso debochado estampava o rosto de Raphael.

"Nossa, como você é chato. Não dá pra brincar que você já banca uma Enciclopédia",
Leonardo desatou a rir com a cara de irritado que Raphael fez ao ouvi-lo.

O celular de Raphael vibrou em seu bolso. Uma nova mensagem. Era Helena.
Onde vcs estão? Preciso de vcs aqui no salão. Vcs tem meia hora!

"Quem é?", Leonardo perguntou já em pé mexendo em seu armário.

"É a Lê. Ela vai nos queimar em praça pública se não estiver prontos em meia hora...",
ele guardou o celular.

Leonardo tirou a jaqueta e se virou para o amigo.

"Está bom assim?"

Raphael suspirou.

"Você sabe o que significa esporte fino?"

"Sei... É óbvio que sei", Leonardo deu os ombros.

"Teremos uma longa meia hora pela frente..."

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