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mais amplo e muito mais complexo, pois exige o
aprofundamento do estudo da relação entre esco
la e processo produtivo. Já essa relação perpassa o
cotidiano escolar e caracteriza tanto o corpo dis
cente quanto o docente. A situação vigente levan
NOTURNO
ta questionamentos que exigem reflexões mais
aprofundadas. Exige ponderar se aceitamos como
normal a relação trabalho diurno-escolarizacão
noturna, tal como se vem dando há muitos anos
em nossa realidade escolar, ou se aceitamos o
desafio de tentar superar essa situação repensando
e reavaliando a concepção de trabalho produtivo
em nossa formação social
lealdade e ilusão
ISBN 85-249-0149-7
/BCORT€Z
9 788524 901492 CDITORfl
Coleção
Questões da Nossa Época
Volume 27
Célia PezzolodeCarvalho
CORTESIA DO I
EDITOR |
ENSINO
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
NOTURNO
Ensino noturno : realidade e ilusão / Célia
Pezzolo de Carvalho. - 7. ed. - São Paulo : Cortez,
1994. - (Coleção questões da nossa época ; v. 27).
Bibliografia.
ISBN 85-249-0149-7
Nota:
5. BEISIEGEL, 1974.
1. A EXPANSÃO DO ENSINO MÉDIO EM toral: pequenas localidades do interior e bairros peri
SÃO PAULO féricos nas grandes cidades. Em tais locais a reivin
dicação era mais intensa, seja pela inexistência de
Durante muitos anos o Estado de São Paulo contou escolas nas imediações, seja porque a situação econô
com três ginásios estaduais, criados simultaneamente mica da população não permitia a matrícula em escolas
pela Lei n° 88 de 08.09.1892 e instalados nas cidades particulares. Durante a XXXII Reunião Anual da SBPC,
de São Paulo, Campinas e Ribeirão Preto. A partir da em julho de 1980, Sposito, M. P. fez uma Comunicação
década de trinta, a população paulista passou a pleitear na qual relatava resultados parciais de uma pesquisa
a criação de maior número de ginásios mantidos pelo a respeito das vinculações entre expansão da educação
Estado, pois a rede de ensino secundário era quase popular e populismo na década de 50. Verificou, através
exclusivamente constituída por entidades privadas, lei da análise das atas das associações de amigos de bairro,
gas ou confessionais. da periferia de São Paulo, que uma das reivindicações
A descoberta da escola como meio de ascensão mais constantes era a instalação de ginásios. E tais
social aumentando a procura por ingresso em escolas reivindicações só logravam atendimento quando con
de nível médio, a industrialização crescente e o interesse tavam com o apoio de algum vereador ou candidato
de políticos que se utilizaram da reivindicação educa a cargo político. Tais ginásios eram sempre instalados
cional como forma de atrair a clientela eleitoral, foram à noite em prédios de grupos escolares, o que deixa
alguns dos fatores que tornaram o ambiente propício entrever a realidade, ou seja, a falta de interesse do
à multiplicação dos ginásios, que se acelerou na década Estado em prover de maneira eficiente às reivindicações
populares.
de cinqüenta.
Até 1940, havia em São Paulo apenas 40 ginásios Beisiegel admite que, embora a expansão possa ser
oficiais, sendo 3 na capital e 37 no interior. Em 1950, explicada a partir das transformações sociais que fizeram
o total subiu para 155, sendo 12 na capital e 143 no do ginásio um objeto de reivindicação nas diferentes
interior. No período de 1953 a 1958, anos pré-eleitorais localidades, a maneira pela qual se deu a expansão
e eleitorais, esse número subiu para 359, sendo 65 na foi determinada primordialmente por interesses políti-
co-eleitorais. Como o atendimento das reivindicações
capital e 294 no interior. E em 1969, havia 406, sendo
representava, para “os políticos” interessados apenas
84 na capital e 322 no interior.
em sua eleição, o fim do processo, foram afastadas
Estudos de Beisiegel e Pereira6 sugerem que a
as preocupações relativas à eficiência da rede escolar
expansão da rede de escolas secundárias foi dirigida
e as relativas à adequação dos modelos de escolas às
por interesses estranhos à educação. No ensino público,
novas condições sociais e econômicas do Estado.
a localização de novas escolas foi certamente orientada
Uma das características dessa expansão consistiu no
para as regiões que garantiam maior rendimento elei
aproveitamento de prédios de grupos escolares para a
instalação de ginásios noturnos. Esse recurso de emer
6. BEISIEGEL, 1964 e PEREIRA, 1969. gência, empregado para o aumento da capacidade de
matrícula, já que não havia disponibilidade de verbas do grupo pensavam e agiam como donos da escola,
para a construção de prédios, principalmente na capital, do prédio e de tudo o que ele abrigava.”
cristalizou-se como definitivo, e a maioria dos ginásios
Como observa Pereira, a partir de uma concepção
permaneceu muito tempo em instalações precárias.
patrimonialista, o ginásio passava a ser visto como
Em 1959, a situação dos prédios de escolas estaduais intruso e seus professores, funcionários e alunos, como
de ensino secundário e normal era a seguinte: havia presenças indesejáveis, criando graves problemas ad
267 (67,77%) prédios de alvenaria de propriedade ministrativos e impedindo, inclusive, o bom andamento
pública especialmente construídos para o ensino secun dos trabalhos pedagógicos. Muitas vezes os ginásios
dário e desses, apenas 14 se localizavam na capital. eram obrigados a manter em uma mesma sala a Di
O total de prédios de grupo escolar ou de outra retoria, a Secretaria e a Sala de Professores; não
instituição, onde funcionavam escolas secundárias, era dispunha do uso da Biblioteca, do Laboratório, do
de 127 (32,23%), notando-se que 70, correspondendo local para recreação e até de número suficiente de
a 55% desse total, se localizavam na capital. salas de aula, dada a delimitação “territorial” rígida,
A situação material da rede de escolas secundárias imposta pelo outro estabelecimento escolar.
nos municípios do interior era relativamente satisfatória, Esse “preconceito” contra o ginásio talvez tenha
pois, submetido a pressões constantes das populações uma de suas explicações no fato de que a clientela
interioranas, em geral prestigiadas pelos representantes era constituída, em geral, por trabalhadores-estudantes,
políticos locais -na Assembléia Legislativa, o governo de faixa etária superior à dos alunos do grupo escolar
estadual localizou nos pequenos municípios a grande e sendo os alunos do noturno responsabilizados por
maioria das construções destinadas ao ensino secundário todos os estragos materiais e possíveis depredações do
oficial. Essa medida, adotada sem nenhum planejamento prédio.
prévio, ocasionou a construção de ginásios em locali Percebe-se que a expansão do ensino secundário se
dades cuja taxa populacional não justificava a criação deu, em São Paulo pelo menos, a partir da instalação
de escolas. Em decorrência verificaram-se, portanto, de ginásios no período noturno. Em um primeiro
vagas ociosas em muitas cidades do interior e falta momento, obedeceu a uma necessidade de aproveita
de vagas em cidades maiores. mento do espaço, já que não havia possibilidade de
A instalação dos ginásios em prédios de grupos construção de prédios próprios, principalmente na pe
escolares, mesmo funcionando à noite, em período em riferia das cidades maiores. Porém, funcionando à noite,
que o curso primário não o utilizava, não garantia o nos bairros mais carentes, era quase inevitável que a
acesso a todas as dependências do estabelecimento. clientela já estivesse engajada, no período diurno, em
atividade produtiva regular. Dessa maneira, a escola
“Freqüentemente, havia desentendimentos entre a rização no período noturno ficou caracterizada como
direção do grupo escolar e a direção do ginásio, já a oportunidade educacional “reservada” para os que
que, em geral, diretor, professores e funcionários necessitavam combinar estudo e trabalho assalariado.
2. ALGUNS ESTUDOS tanto das escolas públicas quanto das particulares. Com
dados dessa mesma pesquisa, ela analisa as desigual
O desenvolvimento do ensino médio, na década de dades no acesso à Educação (GOUVEIA, 1967, p. 32-43)
sessenta, suscitou várias pesquisas, sendo uma das e verifica que são apenas os cursos noturnos que
maiores a realizada por Gouveia e Havighurst. Tanto apresentam uma proporção maior de alunos de origem
o trabalho de Gouveia como os que dele derivaram, operária. Percebe também que, embora o Estado man
adotaram como linha de pesquisa verificar tenha cursos noturnos para atender aos estudantes que
precisam trabalhar durante o dia, o tipo de curso
“a relação entre ‘economia e educação’ no contexto oferecido e as intenções ou as possibilidades desses
da sociedade brasileira de nossos dias”. estudantes não coincidem.
Por essa razão, houve maior preocupação em descrever Ao vigorar, na época, a diversificação de ramos no
a situação sócio-econômica dos alunos do que em ensino médio, o trabalhador-estudante só poderia “pre
analisar o ensino ministrado. ferir” os cursos que oferecessem perspectivas ocupa-
O trabalho surgiu de um convênio firmado em 1963 cionais mais imediatas, como os cursos comerciais.
entre o Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos, o Dada a escassez de vagas e os critérios de < admissão
Ministério de Educação e Cultura e o Centro de nas escolas públicas, restava para a maioria desses
Educação Comparada da Universidade de Chicago, alunos o período noturno das escolas particulares. Como
objetivando realizar estudos sobre a educação de nível expressa Gouveia,
médio em diferentes regiões do Brasil. Congregou um
número grande de pesquisadores nos cinco centros “as pressões sociais e políticas que se encontram
estudados (São Paulo, Rio Grande do Sul, Pernambuco, por detrás dos padrões de expansão têm mantido
Ceará e Pará), procurando descrever e explicar os os filhos de operários, ou fora do ensino médio,
aspectos principais desse nível de ensino e sua clientela. ou concentrados em cursos comerciais, ou secundá
Deu origem a diversos trabalhos, sendo que em quase rios, de segunda categoria”.
todos há considerações sobre o curso noturno, encarado
sempre como uma situação problemática.7 Anos mais tarde a autora, retomando o mesmo tema,
“a desigualdade de oportunidades educacionais”, com
Com um estilo descritivo, Gouveia sugere que parando os dados de 1963 com dados colhidos em
1976, constata algumas mudanças. Mostra, por exemplo,
“alunos com histórico de repetência, especialmente
que houve elevação da taxa de sobrevivência escolar
no secundário, são mais freqüentes nos cursos no
e aumento da representatividade das camadas populares
turnos do que nos diurnos”,
nos níveis de Io e 2o graus de ensino. No entanto,
permanece marcada discriminação verificada principal
7. DIAS, 1967. mente na composição social da clientela, conforme os
horários de funcionamento dos cursos. Tanto nos es Não há nenhuma alusão a períodos; apenas, no
tabelecimentos públicos como nos particulares, os alunos Capítulo II, “Do horário e regime de trabalho”, artigo
dos cursos noturnos são, em sua maioria, de origem 58, lê-se:
mais modesta do que os alunos do período diurno. Ou
seja, o período noturno é reservado para “os filhos de “o horário de trabalho dos servidores da escola,
observadas a legislação em vigor e as normas bai
trabalhadores manuais, sendo eles mesmos já trabalha
dores regulares”.8 xadas pela administração superior, é fixado de acordo
com as necessidades do ensino, atendidas as pecu
A partir dos estudos citados, vemos que a situação liaridades da escola e conveniência da administra
dos cursos noturnos a nível de Io grau, seja quanto à ção”.
organização escolar, seja quanto ao tipo de clientela
que atende, não sofreu grandes alterações desde a sua Talvez a alusão ao curso noturno esteja nos termos
instalação. Continua sendo o lugar de escolarização “necessidades do ensino, atendidas as peculiaridades
dos que não podem ter o “privilégio” de dedicar-se da escola”.
apenas ao estudo. No Capítulo III, “Da Transferência”, entre os itens
enumerados que permitem transferência até o final do
3o bimestre, estão: “necessidade de trabalho” e “pro
3. A LEITURA DA LEGISLAÇÃO ESCOLAR blemas econômicos”, que certamente caracterizam a
necessidade de freqüentar o período noturno, na mesma
escola ou em outra que o ofereça. Porém, no regimento
O exame da legislação escolar evidencia, realmente,
não há nenhuma referência mais explícita.
que se passou a exigir prova de exercício de atividade
A nível estadual, a Lei n° 10.038/68, que “dispõe
remunerada para a matrícula nos cursos noturnos, exi
sobre a organização do Sistema de Ensino do Estado
gência não existente no início do funcionamento do de São Paulo”, sistematiza, na Seção IV, “Dos Cursos
período noturno. em Funcionamento Noturno”, dois artigos, nos quais
A leitura da legislação escolar de Io grau talvez se lê:
auxilie a esclarecer o funcionamento e a existência
dos cursos noturnos. “Ressalvada a inexistência de vagas em curso diurno
correspondente, não será admitido à matrícula, em
A fim de situar o ensino de Io grau noturno no
ciclo ginasial de funcionamento noturno, o candidato
contexto da legislação escolar vigente, procuramos ana que não tiver idade mínima de 14 (catorze) anos
lisar o Regimento Comum das Escolas de Primeiro completos ou a completar até o dia 30 de junho e
Grau, que rege tanto a Escola “Cássio Ramos” como não apresentar prova de exercício regular de atividade
todos os estabelecimentos congêneres. diurna remunerada” (Artigo 46, páragrafo único).
Na literatura consultada e nas entrevistas realizadas,
8. GOUVEIA, 1978, p. 61-68. não encontramos casos de necessidade de matrícula à
noite por falta de vagas no diurno. São muitas as A prova de estar trabalhando é a fotocópia da página
escolas que mantêm os cursos de 5a a 8a série somente do contrato de trabalho na Carteira Profissional, con
no período da manhã e da noite, restando à tarde forme normas da legislação escolar. Porém, como de
muitas salas ociosas. Fica bem claro, no estatuto legal, clarou uma das diretoras entrevistadas:
que o período da noite é reservado para os que
trabalham durante o dia. Neste sentido é a entrevista “...quando iniciei como Diretora, quis cumprir direito
com o pessoal administrativo da Escola “Cássio Ramos”: a legislação e solicitei aos alunos que trabalhavam
que trouxessem a Carteira Profissional. No dia se
“O da manhã é o mais selecionado. Os que se guinte, um empresário das imediações, em cuja
matriculam nesse período são aqueles que ‘fecharam fábrica vários alunos trabalhavam, procurou-me para
nota’ no final de novembro e inícios de dezembro. dizer da impossibilidade de registrar os menores.
São os primeiros a se matricularem. Os da tarde Caso fosse imprescindível assinar a carteira, despe
são os que ficaram em mais provas ou quando não diría os meninos, já que realmente tinha muitos
há mais vagas de manhã, à noite, é sempre por problemas com eles e era quase um favor empre
necessidade de trabalhar de dia”. E em entrevista gá-los. Assim, passei a fazer como os demais di
com uma aluna: “O período da manhã é para os retores: aceitar um atestado em papel timbrado, que
riquinhos; o da noite é para os necessitados”. poderá ser fornecido também para alunos que não
No artigo 47, ao tratar dos currículos, dispõe que trabalham mas são parentes ou conhecidos dos donos
há modificação só no que se refere “a necessária de empresas.”
adaptação com base no número de dias letivos e de Ainda:
horas de ensino”. Na realidade, a adaptação atual é
só a diminuição de cinco minutos na duração de cada “não é exigência, mas recomenda-se a idade mínima
hora-aula, apesar de haver portaria ministerial de 1965 de 14 anos para a freqüência aos cursos noturnos.
recomendando diminuição das horas diárias de trabalho Para a matrícula com idade inferior o candidato
escolar nos cursos noturnos e a ampliação no número deve apresentar comprovante de atividade remune
de dias letivos. rada durante o dia, ou impedimento grave. A reco
A nível federal há algumas indicações: mendação é aplicável apenas ao Sistema Federal,
cabendo aos CEEs legislar sobre o assunto como
“a matrícula dos alunos em cursos noturnos só será lhes parecer” (Parecer CFE n° 132/62, de 4/7/62).
aceita para candidatos com idade mínima de 14
anos, casos especiais só serão aceitos se não houver Vê-se que não há exigência estrita para que a idade
outro estabelecimento que ofereça as mesmas opor mínima seja 14 anos. De acordo com a “idade escolar”,
tunidades ou se o candidato fizer prova de atividade um aluno poderá cursar a 5a série com 10 ou 11 anos;
remunerada, ou de impedimento grave para cursar se “fizer prova de atividade remunerada” ou se houver
as escolas diurnas” (Portaria Ministerial n° 31, de “impedimento grave”, poderá cursar escola noturna
25/4/62). mesmo com essa idade. O critério é flexível e obscuro.
noite por falta de vagas no diurno. São muitas as A prova de estar trabalhando é a fotocópia da página
escolas que mantêm os cursos de 5a a 8a série somente do contrato de trabalho na Carteira Profissional, con
no período da manhã e da noite, restando à tarde forme normas da legislação escolar. Porém, como de
muitas salas ociosas. Fica bem claro, no estatuto legal, clarou uma das diretoras entrevistadas:
que o período da noite é reservado para os que
trabalham durante o dia. Neste sentido é a entrevista “...quando iniciei como Diretora, quis cumprir direito
com o pessoal administrativo da Escola “Cássio Ramos”: a legislação e solicitei aos alunos que trabalhavam
que trouxessem a Carteira Profissional. No dia se
“O da manhã é o mais selecionado. Os que se guinte, um empresário das imediações, em cuja
matriculam nesse período são aqueles que ‘fecharam fábrica vários alunos trabalhavam, procurou-me para
nota’ no final de novembro e inícios de dezembro. dizer da impossibilidade de registrar os menores.
São os primeiros a se matricularem. Os da tarde Caso fosse imprescindível assinar a carteira, despe
são os que ficaram em mais provas ou quando não diría os meninos, já que realmente tinha muitos
há mais vagas de manhã, à noite, é sempre por problemas com eles e era quase um favor empre
necessidade de trabalhar de dia”. E em entrevista gá-los. Assim, passei a fazer como os demais di
com uma aluna: “O período da manhã é para os retores: aceitar um atestado em papel timbrado, que
riquinhos; o da noite é para os necessitados”. poderá ser fornecido também para alunos que não
No artigo 47, ao tratar dos currículos, dispõe que trabalham mas são parentes ou conhecidos dos donos
há modificação só no que se refere “a necessária de empresas.”
adaptação com base no número de dias letivos e de Ainda:
horas de ensino”. Na realidade, a adaptação atual é
só a diminuição de cinco minutos na duração de cada “não é exigência, mas recomenda-se a idade mínima
hora-aula, apesar de haver portaria ministerial de 1965 de 14 anos para a freqüência aos cursos noturnos.
recomendando diminuição das horas diárias de trabalho Para a matrícula com idade inferior o candidato
escolar nos cursos noturnos e a ampliação no número deve apresentar comprovante de atividade remune
de dias letivos. rada durante o dia, ou impedimento grave. A reco
A nível federal há algumas indicações: mendação é aplicável apenas ao Sistema Federal,
cabendo aos CEEs legislar sobre o assunto como
“a matrícula dos alunos em cursos noturnos só será lhes parecer” (Parecer CFE n° 132/62, de 4/7/62).
aceita para candidatos com idade mínima de 14
anos, casos especiais só serão aceitos se não houver Vê-se que não há exigência estrita para que a idade
outro estabelecimento que ofereça as mesmas opor mínima seja 14 anos. De acordo com a “idade escolar”,
tunidades ou se o candidato fizer prova de atividade um aluno poderá cursar a 5a série com 10 ou 11 anos;
remunerada, ou de impedimento grave para cursar se “fizer prova de atividade remunerada” ou se houver
as escolas diurnas” (Portaria Ministerial n° 31, de “impedimento grave”, poderá cursar escola noturna
25/4/62). mesmo com essa idade. O critério é flexível e obscuro.
noite por falta de vagas no diurno. São muitas as A prova de estar trabalhando é a fotocópia da página
escolas que mantêm os cursos de 5a a 8a série somente do contrato de trabalho na Carteira Profissional, con
no período da manhã e da noite, restando à tarde forme normas da legislação escolar. Porém, como de
muitas salas ociosas. Fica bem claro, no estatuto legal, clarou uma das diretoras entrevistadas:
que o período da noite é reservado para os que
trabalham durante o dia. Neste sentido é a entrevista “...quando iniciei como Diretora, quis cumprir direito
com o pessoal administrativo da Escola “Cássio Ramos”: a legislação e solicitei aos alunos que trabalhavam
que trouxessem a Carteira Profissional. No dia se
“O da manhã é o mais selecionado. Os que se guinte, um empresário das imediações, em cuja
matriculam nesse período são aqueles que ‘fecharam fábrica vários alunos trabalhavam, procurou-me para
nota’ no final de novembro e inícios de dezembro. dizer da impossibilidade de registrar os menores.
São os primeiros a se matricularem. Os da tarde Caso fosse imprescindível assinar a carteira, despe
são os que ficaram em mais provas ou quando não diría os meninos, já que realmente tinha muitos
há mais vagas de manhã, à noite, é sempre por problemas com eles e era quase um favor empre
necessidade de trabalhar de dia”. E em entrevista gá-los. Assim, passei a fazer como os demais di
com uma aluna: “O período da manhã é para os retores: aceitar um atestado em papel timbrado, que
riquinhos; o da noite é para os necessitados”. poderá ser fornecido também para alunos que não
No artigo 47, ao tratar dos currículos, dispõe que trabalham mas são parentes ou conhecidos dos donos
há modificação só no que se refere “a necessária de empresas.”
adaptação com base no número de dias letivos e de Ainda:
horas de ensino”. Na realidade, a adaptação atual é
só a diminuição de cinco minutos na duração de cada “não é exigência, mas recomenda-se a idade mínima
hora-aula, apesar de haver portaria ministerial de 1965 de 14 anos para a freqüência aos cursos noturnos.
recomendando diminuição das horas diárias de trabalho Para a matrícula com idade inferior o candidato
escolar nos cursos noturnos e a ampliação no número deve apresentar comprovante de atividade remune
de dias letivos. rada durante o dia, ou impedimento grave. A reco
A nível federal há algumas indicações: mendação é aplicável apenas ao Sistema Federal,
cabendo aos CEEs legislar sobre o assunto como
“a matrícula dos alunos em cursos noturnos só será lhes parecer” (Parecer CFE n° 132/62, de 4/7/62).
aceita para candidatos com idade mínima de 14
anos, casos especiais só serão aceitos se não houver Vê-se que não há exigência estrita para que a idade
outro estabelecimento que ofereça as mesmas opor mínima seja 14 anos. De acordo com a “idade escolar”,
tunidades ou se o candidato fizer prova de atividade um aluno poderá cursar a 5a série com 10 ou 11 anos;
remunerada, ou de impedimento grave para cursar se “fizer prova de atividade remunerada” ou se houver
as escolas diurnas” (Portaria Ministerial n° 31, de “impedimento grave”, poderá cursar escola noturna
25/4/62). mesmo com essa idade. O critério é flexível e obscuro.
Não se sabe exatamente o que é impedimento grave, Esclarecendo mais,
se é ou não da parte da escola. Quanto ao comprovante
de atividade remunerada, nem sempre é possível exigir “...o curso secundário visa a uma educação de caráter
do aluno Carteira Profissional assinada. Porém, liberar geral, sem destinação profissional específica”
o aluno para o curso noturno é colocá-lo em uma e é onde se encontra a maior proporção de alunos que
situação que pode representar sérios riscos para sua ingressará nos cursos superiores. Quanto aos cursos
“formação”, se considerarmos o artigo 2o do Regula técnicos, tanto no primeiro como no segundo ciclo,
mento das escolas estaduais de Io grau: “formação da são cursados, em geral, “por estudantes de origem
criança e do pré-adolescente visando ao desenvolvi manual ou equivalente, em proporção significativamente
mento de suas potencialidades”, pois obriga-o a um maior do que o secundário ou o normal”.9
prolongamento da jornada de trabalho. Ao mesmo A partir da Lei de Diretrizes e Bases n° 5692/71,
tempo, reconhece-se, oficialmente, a existência de um
que acopla o antigo curso primário e o ginasial, foram
contingente de alunos com idade inferior a 14 anos
suprimidas do ensino de primeiro grau as diferenças
que só pode estudar combinando trabalho e escola.
curriculares representadas pelos antigos ramos do ensino
Tal como se apresenta, a partir do próprio estatuto
médio, mas continuou a persistir uma segregação re
legal, a escola de Io grau não é nem elementar —
lacionada com a origem social, indicada pela distri
como sugere o nome “primeiro” — nem é comum a
buição dos alunos pelos cursos públicos e particulares,
todos, pois se prevê um período, um horário especial,
diurnos (manhã e tarde) e noturnos.10
para os alunos que trabalham de dia. Essa “oportuni
dade” que pode parecer como uma concessão do sistema Dessa maneira, a unificação formal do currículo não
aos meninos e jovens que precisam trabalhar antes de assegura a equalização das oportunidades educacionais,
completarem a escolaridade “obrigatória”, esconde e pois aulas no período diurno e aulas no período noturno,
revela uma atitude discriminatória que persiste mesmo após uma jornada de trabalho, configuram duas situações
através das reformas sucessivas da legislação escolar, bem diversas e expressam a divisão em classes sociais
como veremos. que se reproduz no interior do ambiente escolar.
De acordo com a LDB n° 4024 de 20/12/61, o A escolha, portanto, do horário de freqüência não
ensino médio era ministrado em dois ciclos, o ginasial parece ser aleatória, mas realizada em função da posição
e o colegial, abrangendo os cursos secundários, técnicos que o estudante ocupa no processo produtivo. O aluno
e o de formação de professores para o ensino primário. dos cursos noturnos só é aluno porque trabalha. E pelo
Os cursos técnicos estavam subdivididos em ramos: fato de estar trabalhando ou procurando trabalho que
comercial, industrial e agrícola. ele se matricula na escola.
“Diferem os ramos... quanto à origem sócio-econô-
mica da clientela a que preponderantemente aten 9. GOUVEIA & HAVIGHURST, 1969, p. 60-6.
dem.” 10. GOUVEIA, 1978, p. 61-8.
Isto é, pelo fato de pertencer a determinada fração Capítulo III
de classe, é que necessita trabalhar em idade de
escolarização obrigatória e, portanto, só lhe resta ma
tricular-se à noite. O UNIVERSO ESCOLAR
A partir dos dados referentes ao início do funcio
namento dos cursos noturnos e do estudo da legislação
escolar — onde se reconhece a existência desses cursos
e sua destinação —, nota-se que nada foi realmente
pensado para adaptá-lo às condições específicas dessa Ao se referir às dificuldades do período noturno,
clientela, nem para aproveitar a experiência vivida era comum professores e funcionários dizerem: “é um
desses alunos. problema do menor” ou mais drasticamente: “é caso
da Febem”.
Os estudos citados nas páginas anteriores comprovam Uma das professoras, que tem longa prática de
o pequeno rendimento desses cursos e alguns de seus magistério, assim se expressa:
problemas. Eles, não obstante, continuam a ser mantidos
e estão em expansão. “...a rigidez de controle, traduzida pelas portas fe
chadas, intolerância de atrasos, vigilância contínua
Justificar a continuidade em virtude da existência das entradas e saídas, é justificada, principalmente,
de um contingente de alunos que, por trabalharem de pela presença de ‘desocupados’ que rodeiam a escola.
dia, só podem cursar à noite, parece-nos tautológico. Esses desocupados são jovens, também alunos de
Interessa saber quais os motivos que levam o Estado cursos noturnos de outras escolas, que vão visitar
a escolarizar esse contingente de trabalhadores-estudan- os amigos, a fim de melhor aproveitar a válvula
tes, além de assegurar o cumprimento formal da obri de escape que é a escola noturna, para o aluno que
gatoriedade de escolarização a nível de Io grau. tenta combinar trabalho e escola.”
Talvez o exame das condições da prática escolar É interessante notar que Woortmann,11 analisando
nos esclareça mais a respeito dos objetivos do funcio a população estudantil do ensino médio de Salvador,
namento de tais cursos. nos anos 60, utiliza a mesma expressão. O período
noturno desempenharia
“uma função de ‘válvula de escape’ de tensões
sociais, desenvolvida pela sociedade de classes, sem
Do que se depreende da visão docente, as diferenças “...trabalho há 17 anos como servente de escola e
há seis que trabalho também à noite. Acho que o
maiores entre os períodos noturno e diurno residiriam
governo sai perdendo com o período noturno. Devia
no fato de os alunos trabalharem.
era fechar. Gasta esse mundo de luz, paga profes
“Quem trabalha merece compaixão, tolerância, por sores, serventes, para uns 300 alunos e nem metade
isso existem os cursos noturnos, para atender aos passa de ano. A senhora vai ver, de agosto em
mais necessitados.” diante os alunos começam a desistir. Quando co
meçam as notas baixas, eles desistem. Chegam
A escola funciona como assistência social, aspecto que cansados e não aprendem nada. Veja, tem menino
ficou muito claro nos depoimentos de professores e com 13 anos estudando de noite. Não dá. Fica
diretores também de outras escolas. dormindo e não aproveita nada. O ensino noturno
Em geral os professores declaram que têm “boa é o mais sacrificado. Os alunos vêm procurar um
vontade” com os alunos do noturno, mas não sabem futuro melhor, mas é um futuro mais sacrificado.
Eles trabalham de dia e não podem aproveitar o “...acho que à noite eles (os professores) não podem
tempo na escola. Ou fazem muita bagunça ou dor forçar, porque geralmente todo mundo do noturno
mem.” trabalha de dia. Geralmente os professores dão aulas
de manhã até a tarde. Quando chega de noite, o
Invoca sua longa experiência da prática escolar para que eles tinham para dar, já deram de manhã e de
sugerir que não é um bom negócio, em termos eco tarde. Já chegam esgotados e não têm aquela con
nômicos, a manutenção do noturno em tais condições. dição, aquela vontade, para dar aquela aula bem
Reconhece que os alunos têm intenção de aproveitar, dada para os alunos. Assim, dá aula porque tem
mas não conseguem por uma impossibilidade externa que dar... Então...”.
à escola.
Quanto aos alunos, a simples indagação “Há quanto Angela, balconista, tem opinião semelhante:
tempo você estuda à noite?” já desencadeava uma “...no noturno, a turma não tem tempo de fazer a
descrição-reflexão sobre as dificuldades do estudo e lição, precisa fazer na classe. O professor também
sua diferenciação com o diurno. Rosa, de 14 anos, tem menor interesse para explicar. Acho que se
industriária, fala: ensina menos de noite do que de dia.”
“Os professores avaliam pouco à noite porque a Percebe-se, a partir dos depoimentos, por vezes
gente já trabalha. Então não dão tarefa, porque não longos, que os alunos consideram o período noturno
temos condição de fazer. Mas diferença de matéria, como o mais fraco, não só pelas condições dos alunos
acho que não tem. Eles diminuem a tarefa para mas também dos professores. Como se a escola estivesse
fazer em casa e também tiram cinco minutos das condenada a render menos à noite.
horas de aula, para sair mais cedo, por causa do
Para os alunos, a eficiência da escola residiría na
horário dos ônibus.”
“transmissão” de um número maior de conhecimentos
Alguns chegam a duvidar se realmente as coisas se e na exigência de mais tarefas e lições. Tal critério,
passam assim ou se é impressão dos professores, como restringindo-se ao conteúdo atual do ensino, traduz as
expõe Alfredo, de 17 anos, 8a série: intenções da ideologia dominante assimiladas por eles.
Passando ao histórico de sua vida escolar, os alunos
“...eles acham que os alunos que estudam de noite deixam bem claro a relação entre estudo noturno e
não têm tempo de estudar, então de noite é bem reprovação, contrariando as afirmações dos professores
mais fácil. Porque de dia eles dão lição para casa, e deles próprios de que a avaliação é menos rigorosa.
exercícios, pesquisa. E de noite é difícil eles darem Júlio, de 17 anos, comenta:
exercícios etc.” “...estudo à noite desde os onze anos. Estudei um
ano sem trabalhar, na 5a série, procurando serviço.
No entanto, os alunos lembram as dificuldades ad Com doze anos comecei a trabalhar num supermer
vindas do próprio professor: cado. Fiz a 5a série, a 6a, depois a 6a novamente,
Eles trabalham de dia e não podem aproveitar o “...acho que à noite eles (os professores) não podem
tempo na escola. Ou fazem muita bagunça ou dor forçar, porque geralmente todo mundo do noturno
mem.” trabalha de dia. Geralmente os professores dão aulas
de manhã até a tarde. Quando chega de noite, o
Invoca sua longa experiência da prática escolar para que eles tinham para dar, já deram de manhã e de
sugerir que não é um bom negócio, em termos eco tarde. Já chegam esgotados e não têm aquela con
nômicos, a manutenção do noturno em tais condições. dição, aquela vontade, para dar aquela aula bem
Reconhece que os alunos têm intenção de aproveitar, dada para os alunos. Assim, dá aula porque tem
mas não conseguem por uma impossibilidade externa que dar... Então...”.
à escola.
Quanto aos alunos, a simples indagação “Há quanto Ângela, balconista, tem opinião semelhante:
tempo você estuda à noite?” já desencadeava uma “...no noturno, a turma não tem tempo de fazer a
descrição-reflexão sobre as dificuldades do estudo e lição, precisa fazer na classe. O professor também
sua diferenciação com o diurno. Rosa, de 14 anos, tem menor interesse para explicar. Acho que se
industriária, fala: ensina menos de noite do que de dia.”
“Os professores avaliam pouco à noite porque a Percebe-se, a partir dos depoimentos, por vezes
gente já trabalha. Então não dão tarefa, porque não longos, que os alunos consideram o período noturno
temos condição de fazer. Mas diferença de matéria, como o mais fraco, não só pelas condições dos alunos
acho que não tem. Eles diminuem a tarefa para mas também dos professores. Como se a escola estivesse
fazer em casa e também tiram cinco minutos das condenada a render menos à noite.
horas de aula, para sair mais cedo, por causa do Para os alunos, a eficiência da escola residiría na
horário dos ônibus.” “transmissão” de um número maior de conhecimentos
Alguns chegam a duvidar se realmente as coisas se e na exigência de mais tarefas e lições. Tal critério,
passam assim ou se é impressão dos professores, como restringindo-se ao conteúdo atual do ensino, traduz as
expõe Alfredo, de 17 anos, 8a série: intenções da ideologia dominante assimiladas por eles.
Passando ao histórico de sua vida escolar, os alunos
“...eles acham que os alunos que estudam de noite deixam bem claro a relação entre estudo noturno e
não têm tempo de estudar, então de noite é bem reprovação, contrariando as afirmações dos professores
mais fácil. Porque de dia eles dão lição para casa, e deles próprios de que a avaliação é menos rigorosa.
exercícios, pesquisa. E de noite é difícil eles darem Júlio, de 17 anos, comenta:
exercícios etc.” “...estudo à noite desde os onze anos. Estudei um
ano sem trabalhar, na 5a série, procurando serviço.
No entanto, os alunos lembram as dificuldades ad Com doze anos comecei a trabalhar num supermer
vindas do próprio professor: cado. Fiz a 5a série, a 6a, depois a 6a novamente,
mais uma vez a 6a, depois a 7a, estou na 8a agora. Os alunos concordam que o ensino realmente é reduzido.
Reprovei três vezes a sexta. A primeira vez foi por Quanto à avaliação, ambos, professores e alunos, con
bagunça, reconheço, não gostava de nada. A segunda cordam que ela é mais branda. Os alunos, no entanto,
foi injustiça, o professor de desenho não topava são reprovados em massa e continuamente. O que
eu.” alunos e professores não chegam a compreender cla
Seu depoimento é reforçado pelo de Alceu:
ramente é que o curso é ‘fraco’ por motivos que
extrapolam a dinâmica interna da escola e não cons
“Comecei a estudar aos sete anos, e à noite, a partir tituem característica exclusiva dos cursos que funcionam
da 7a série. Depois que passei para a noite foi só à noite. E porque não percebem, continuam a se portar
bomba. Levei uma bomba atrás da outra. Repeti a como vítimas, já que tanto os que ensinam como os
7a série duas vezes. Estou repetindo a oitava pela que são ensinados sentem a inutilidade do tempo e do
terceira vez” (20 anos, escritório). esforço dispendidos.
O período noturno, portanto, é reservado ao aluno
A experiência de José Mário é semelhante: que trabalha, sendo essa a maior diferenciação entre
“Faz três anos que estudo à noite. Estou já três os períodos. Mas essa “atenção especial” que, no
anos na 5a série. No ano passado não agüentei mais entanto, não evita a exclusão do aluno, pois parece
estudar, parei no meio do ano, estava cansado por ser este, afinal, o sentido último das reprovações con
falta de costume, eram os primeiros anos que es tínuas, encobre e revela uma atitude discriminatória.
tudava de noite. Agora acostumei” (15 anos, trabalha No caso da deficiência física, já está provado pela
em chácara). literatura específica que, salvo nos casos extremos,
discriminar é acomodar, ou seja, ministrar um atendi
Mas nem sempre são só fracassos, como lembra mento sempre protetor é convidar à acomodação e à
Vai ter: superação. Poder-se-ia afirmar que o fato de invocar
“Comecei a estudar com sete anos. Nunca fui re sempre essa condição para justificar dificuldades ou
provado ainda. Quando passei para o noturno, senti deficiências de aprendizagem dos “alunos-que-traba-
diferença. Quase perdi o ano, não encontro tempo Iham” encobre também uma atitude discriminatória que,
para estudar” (13 anos, 8a série, office-boy). de certa forma, incentiva a acomodação, e que tenta
esquecer que o marco divisor é, na realidade, a dife
Tentando fazer uma reflexão sobre os depoimentos renciação em classes sociais.
dos que integram o curso noturno, nota-se que há uma O aluno, condicionado pelo que ouve dos professores,
ambigüidade nos discursos, característica da expressão assimila bem o papel de necessitado. Essa postura
do senso comum. O período noturno é considerado tende a vincular a aprovação escolar com o apoio
pelos professores como um curso “fraco”. Há profes recebido, estabelecendo quase que como norma a “in
sores que disseram textualmente que alunos do diurno capacidade” do aluno que trabalha. É fabricada uma
pedem para estudar à noite “porque se estuda menos”. incapacidade intelectual, reafirmando a função seletiva
da escola, fundada em critérios técnicos (educacionais) trabalhando traria benefícios para o estudo, por instaurar
e não em critérios sociais.13 um movimento de ruptura-continuidade, possibilitando
Deixa-se de levar em conta as condições em que maior compreensão da própria realidade.
se realiza a alternância trabalho-escola, como se todo O discurso dos alunos, comentando sua situação
trabalho assalariado tornasse impossível o desenvolvi escolar e o dos professores e funcionários referindo-se
mento intelectual. A questão, porém, parece ser outra. ao período noturno, aponta para uma presumível “in
Somente numa organização social onde o conceito de ferioridade” do trabalhador-estudante, privilegiando o
trabalho tenha sido alterado trará como conseqüência trabalho intelectual e deixando transparecer um dos
forte associação do ensino com o trabalho, possibilitando aspectos da ideologia “na escola”, ou seja, a educação
que crianças, jovens e professores se dediquem às duas escolar como veículo de transmissão de valores ideo
atividades concomitantemente. O trabalho assalariado lógicos dominantes.
seria então realizado integrando a escolarização, e não Em síntese, ensina-se menos à noite, exige-se menos
como se dá entre nós, onde ele é elemento indispensável e reprova-se mais, e o fundamento dessas constatações
de subsistência da família das classes trabalhadoras, será evidenciado com os discursos dos alunos a respeito
ocupando todas as horas do dia.14 Se bem que em do cotidiano escolar, da significação do conteúdo escolar
e da representação que fazem da figura do professor.
situação histórica diversa, Marx, já em 1848, sugere
a necessidade da relação entre escolarização e processo
produtivo, tema retomado na “Crítica ao Programa de
Gotha” e a que nos referiremos mais adiante. Em
nossos dias, porém dentro de um contexto social di
ferente do nosso, temos o exemplo de Cuba. Florestan
Fernandes (1979, p. 154-64), analisando diversos es
tudos sobre Cuba, mostra que o elemento principal do
novo quadro educacional consiste na associação entre
ensino e trabalho, em todos os níveis de ensino e tipos
de escola. Os estudantes podem dedicar metade do dia
aos estudos e metade ao trabalho. Sobre o mesmo
assunto, escreve também Gillete (1977, p. 99-100),
mostrando como é possível haver conciliação entre
trabalho produtivo e escolarização. O fato de estar
Humilhado por não conseguir sucessos nas atividades “a professora N. já entra xingando, gritando. Até
escolares, entrou em um processo de “perder a inteli que é bom. Assim ninguém faz desordem na aula
gência”. A escola não era para ele, não conseguia dela.”
acompanhar o ritmo escolar, apesar de que, desde os
Por outro lado, essa mesma disciplina, excluindo
10 anos, já conseguia ajudar na manutenção da casa.
o aluno, leva-o a introjetar o motivo da exclusão.
Deixar os estudos representou, certamente, uma liber
Os alunos do curso noturno, atribuem, na sua maioria,
tação, ficou “inteligente de novo”.
as culpas dos fracassos a si mesmos: culpam o
Como afirma Foucault:
trabalho diário que os cansa muito, acusam-se de
“a penalidade perpétua que atravessa todos os pontos dormir, de não prestar atenção, de não estudar.
e controla todos os instantes das instituições disci Poucos são os que percebem que a escola não é
plinares, compara, diferencia, hierarquiza, homoge para eles. Daí talvez a tendência em esvaziar a
neiza, exclui. Em uma palavra, ela normaliza” (1977, prática escolar:
p. 163).
“minha noite na escola é a melhor hora que passo,
Essa obrigação do cumprimento dos horários, da pois somente na escola é que tenho oportunidade
atenção dos estudos, das práticas exatas dos deveres, de aprender mais e de ver a pessoa que gosto.”
exerce uma pressão sobre os alunos, mesmo quando
não é continuamente cobrada, como acontece nos cursos Ou ainda, como relata Joana, atendente de consultório:
noturnos.
“fico ansiosa para chegar a hora da escola, porque
“Como eu estudo à noite, os professores maneram me encontro com meu namorado, mas também adoro
nas lições. Mas eu gostaria que fosse mais puxado, estudar.”
para eu já me adaptar ao clima de universidade.”
Misturam os motivos, percebem que precisam dizer
A ausência de mais rigor é sentida pelos alunos, que gostam do estudo, porém querem deixar claro que
provocando, como vimos acima, confissão espontânea o período de aulas é agradável, porque existem outros
ou queixa, porque percebem que dessa forma estão elementos que o tornam suportável, pois parecem saber
Conversando com a mãe e os irmãos de um aluno sendo excluídos. Se não se importam com eles, é um
que havia desistido de estudar depois de ter sido mau sinal. A escola
reprovado por três anos consecutivos à noite, ouvimos
esta apreciação: “tem que ter disciplina, com esse professor que
entrou agora, a gente vai para a frente, ele é severo,
“depois que Mauro deixou de estudar, ficou mais não deixa ninguém brincar, reprova quem não es
inteligente. Agora ele conversa de novo, discute tuda”.
com a gente, não é mais burro como quando estu
dava.” Elogiam o que à primeira vista não pareceria elogiável:
Humilhado por não conseguir sucessos nas atividades “a professora N. já entra xingando, gritando. Até
escolares, entrou em um processo de “perder a inteli que é bom. Assim ninguém faz desordem na aula
gência”. A escola não era para ele, não conseguia dela.”
acompanhar o ritmo escolar, apesar de que, desde os Por outro lado, essa mesma disciplina, excluindo
10 anos, já conseguia ajudar na manutenção da casa. o aluno, leva-o a introjetar o motivo da exclusão.
Deixar os estudos representou, certamente, uma liber Os alunos do curso noturno, atribuem, na sua maioria,
tação, ficou “inteligente de novo”.
as culpas dos fracassos a si mesmos: culpam o
Como afirma Foucault: trabalho diário que os cansa muito, acusam-se de
“a penalidade perpétua que atravessa todos os pontos dormir, de não prestar atenção, de não estudar.
e controla todos os instantes das instituições disci Poucos são os que percebem que a escola não é
plinares, compara, diferencia, hierarquiza, homoge para eles. Daí talvez a tendência em esvaziar a
neiza, exclui. Em uma palavra, ela normaliza” (1977, prática escolar:
p. 163).
“minha noite na escola é a melhor hora que passo,
Essa obrigação do cumprimento dos horários, da pois somente na escola é que tenho oportunidade
atenção dos estudos, das práticas exatas dos deveres, de aprender mais e de ver a pessoa que gosto.”
exerce uma pressão sobre os alunos, mesmo quando
não é continuamente cobrada, como acontece nos cursos Ou ainda, como relata Joana, atendente de consultório:
noturnos. “fico ansiosa para chegar a hora da escola, porque
“Como eu estudo à noite, os professores maneram me encontro com meu namorado, mas também adoro
nas lições. Mas eu gostaria que fosse mais puxado, estudar.”
para eu já me adaptar ao clima de universidade.” Misturam os motivos, percebem que precisam dizer
A ausência de mais rigor é sentida pelos alunos, que gostam do estudo, porém querem deixar claro que
provocando, como vimos acima, confissão espontânea o período de aulas é agradável, porque existem outros
ou queixa, porque percebem que dessa forma estão elementos que o tornam suportável, pois parecem saber
que só pelo estudo não compensaria, já que realmente lugar de encontro de amigos, de namorar, de esquecer
não estudam. por algumas horas, nas “noites magníficas”, a crueza
Fica evidente que, se suportam as dificuldades da do dia-a-dia. Nenhum aluno referiu-se espontaneamente
freqüência às aulas, é unicamente porque ainda pro ao que se aprende na escola e de que forma se aprende,
curam acreditar que questões que, por isso, foram exploradas nas entrevistas.
O fato de não se referirem ao tema aprendizagem-ensino,
“na escola é que pretendo melhorar a minha vida. talvez revele que a escola não é procurada priotaria-
Porque a pessoa que não estuda é muito difícil mente para realizar tal função.
imaginar o futuro.” Da mesma forma que atua como “válvula de escape”,
Essa, talvez, a chave da insistência em continuar es ela atua como elemento de despolitização. E nisso
tudando apesar de tudo e a mágoa quando não con também que a escola se revela capitalista, diminuindo
seguem progredir na escola: é o lugar onde preparam a capacidade de organização dos trabalhadores. Sob a
“os homens de amanhã”. Alguns alunos, no entanto, aparência de um local agradável, mas funcionando ao
dizem claramente: “por mim, prefiro a hora da saída”. mesmo tempo como centro de preocupações, pois fre-
Esses relatos coincidem com o comentário de uma qüentá-la significa sempre uma ocupação a mais, a
pessoa da administração: “à noite, a escola é o reino escola, tal como está estruturada hoje, auxilia o processo
do faz de conta”. Outra funcionária desabafou: de despolitização das classes subalternas.
Nesse contexto, o trabalho pedagógico é visto como Reconhecem no professor um trabalhador, uma pes
uma violência: soa que precisa lutar para viver, como expõe Afonso,
16 anos, operário em fábrica de calçados:
“...é difícil dar aulas. Tem aluno malcriado, mas a
professora vem para dar aula e não para ensinar “acho que todo mundo tem o direito de lutar pelos
educação.” direitos. Como no caso dos professores. Eles acham
que estão ganhando pouco, então eles têm que lutar.
“Como disse a professora L., é necessário dar edu Concordo que eles precisem lutar pelos direitos
cação para os alunos, em lugar de dar matéria.” deles. Mas não acho certo o negócio de repor aulas.
E os professores estão exigentes agora. Voltaram
Os alunos percebem que uma das funções da escola
um pouco revoltados, não tiveram todo o aumento
é “tomar conta” e, portanto, certa dose de energia é
necessária. que queriam. No ano passado teve greve também,
quando começaram as aulas, os professores come
Dessa forma, a queixa sobre a conduta do professor
çaram a soltar matéria e matéria em cima de nós.
não só é anulada como convertida em uma atitude de
Então foi um aperto medonho. Estavam soltando
benfeitoria:
matéria e exigindo na prova. Tinha 45 alunos na
“...por exemplo, a gente está conversando na aula minha classe e passaram só 10 alunos, todos na 8a
e ele diz ‘fica quieto, cala a boca’. Isso daí já é série, no último ano. Foi um prejuízo. Eu também
um fato de ajudar. Porque se ele está falando é repeti.”
para alertar você. O professor falando já está dando O professor luta como eles próprios lutam, traba
educação e ajudando a gente.”
lhando de dia e de noite, o que lhes fornece a ilusão
Os alunos oscilam entre aceitar a imagem do pro de que podem ser iguais e por isso tentam apoiá-los
fessor transmitida pela instituição escolar e familiar e na reivindicação. Porém, não há uma aliança entre os
a imagem que é construída a partir da prática escolar. dois grupos. Os alunos pensam que, colaborando, ficam
do lado do professor, mas esquecem que o lugar do mais, apesar de notarem “não ganham tão pouco assim,
professor é na frente da classe e não sabem conciliar a maioria tem carro”, é porque sabem que a qualidade
o apoio que pretendem dar, com o prejuízo que recai da mercadoria depende do que se paga por ela,
sobre eles, a parte mais fraca. Precisam esticar o tempo,
para abarcar a reposição, e ainda correm o risco de “...agora, se eles não ganharem o suficiente, vão
serem reprovados. chegar lá na classe, é lógico, e ensinar a matéria,
mas sem se dedicarem muito. Precisa dar muitas
Analisando o papel do exame nas instituições dis aulas e ainda mais de noite.”
ciplinares, Foucault nos diz que, na escola, o exame
não se contenta em sancionar um aprendizado. É um Talvez repitam o que os próprios professores falaram
dos seus fatores permanentes e o sustenta segundo um em classe, em momentos de inquietação, ou talvez
ritual de poder constantemente renovado. porque, engajados no trabalho assalariado, os alunos
percebem que à maior remuneração correspondem me
“O exame é, na escola, uma verdadeira e constante lhores serviços e generalizam para o caso da escola.
troca de saberes: garante a passagem dos conheci A referência “a maioria dos professores tem carro”,
mentos do mestre ao aluno, mas retira do aluno que pode significar uma alusão à diferença de classe
um saber destinado e reservado ao mestre.”16
social, é esporádica. A maioria dos alunos reconhece
Função essa que os alunos suspeitam quando se referem que o professor deve ganhar mais, mas porque “ele
aos professores que “soltam matéria e exigem na prova” luta como nós” e principalmente porque:
e com isso manifestam seu poder. Com o exame, o “os professores geralmente estudaram muito e ainda
professor qualifica, classifica e pune, estabelecendo estão estudando para poder dar aula para a gente.
distâncias entre o espaço docente e o discente. Eles se esforçaram para ter aquele serviço e precisam
Alguns alunos tentam apoiar os mestres: procuram ganhar mais. Eles estudaram muito, estudam ainda
compreender o porquê da reposição, explicam, argu e vão continuar a estudar.”
mentam, mas acabam percebendo que os prejudicados
realmente são eles, os alunos. Comparando a profissão de professor com a de
médico (observação que surgiu dada a proximidade
De maneira geral, percebem que é o professor quem
dos dois movimentos grevistas), dizem:
detém a autoridade e não há diálogo possível. Se
algumas vezes o discurso dos alunos tenta justificar “os professores queriam ganhar mais do que um
as atitudes dos professores quase equiparando as duas médico. Um médico deve ganhar mais do que um
situações, aflora sempre a contradição maior entre o professor, porque ele lida mais com o povo do que
que possui o saber-poder e o que não o possui. Se o professor. A responsabilidade é maior. E acho
concordam com o fato de que o professor deve ganhar que estudaram mais.”
Adotam as imposições da hierarquia escolar que
16. FOUCAULT, 1977, p. 165-6. classifica os indivíduos de acordo com o número de
anos de estudo e as aptidões em assimilar conheci em que conseguem raciocinar dentro de outros parâ
mentos, sem referências às classes sociais. Comparti metros que não os escolares, reconhecem que a ordem
lham a idéia de que a competência dada pelo estudo estabelecida deveria ser outra.
é que determina sempre os lugares das pessoas na Porém, internalizaram perfeitamente a concepção de
hieraquia social, formulação que encobre a realidade que o trabalho não pode ser visto como um dos
das diferenças de classe. caminhos para o saber. O saber e sua decorrência, o
Porém há momentos em que deixam transparecer a poder, pertencem aos que detêm o conhecimento ad
própria experiência: quirido através dos meios instituídos socialmente: os
“Acho que todo serviço é importante. Falar que um bancos escolares e os livros.
tem mais valor do que o outro, a gente fala, mas Estudo e trabalho poderiam ser realizados ao mesmo
um depende do outro. Não adianta ficar dizendo tempo, ambos com igual conotação, como reflete Mauro,
que um é mais importante e coisa e tal. O professor, de 15 anos:
seu serviço é importante. Mas um lixeiro, parece “Eu acho que eles deveriam ganhar mais. Eles
que o dele não é, nem estudou. Mas se ele deixar passam uma vida, quase uma vida, dentro de uma
de trabalhar? A greve dos lixeiros não durou nem escola, estudando, aprendendo, sacrificando até o
dois dias.”
trabalho deles, pois muitos não podem trabalhar por
José Álvaro, de 18 anos, que trabalha em escritório causa da Faculdade. Devem ganhar o que merecem
de indústria, conseguiu perceber que o discurso da pelo estudo. Vejo isso, de deixar de trabalhar en
competência pelo estudo é falso e pode encobrir uma quanto estuda, pelo meu irmão. Ele está-se formando
outra realidade. A importância de um trabalho é medida agora em engenharia civil (em Escola Pública).
por outros critérios que não os divulgados, já que Quando começou na Faculdade, ele teve que parar
interessa pensar que a diferenciação é gerada pela de trabalhar. Não dava mais para levar o trabalho
maior ou menor escolarização e pelas aptidões, pois e a Faculdade juntos. O meu pai teve que sustentar
repugna ao profissional liberal e à ideologia dominante ele, por uns anos. Só agora ele recebe alguma coisa,
em geral admitir que um trabalhador possa ter acesso porque está fazendo estágio e já dá para viver, e
ao pensamento crítico e elaborado. a gente não precisa mais sustentar ele. Acho que
Discutindo o papel da escola em face da hierarquia a gente deveria poder estudar e trabalhar, para
social, Lautier comenta que ninguém ter que sustentar a gente. Mas isso depende
“essa classificação individual é possível na lógica do grau de estudo, tem Faculdade que não tem hora
escolar, porque é estabelecida em um espaço ho vaga. Aí não dá para trabalhar, mas deveria poder”.
mogêneo: a referência ao conflito de classes é Esse menino, que trabalha em fábrica desde treze
esvaziada e permanece unicamente o reconhecimento anos, revela um dos preços da “democratização” do
das aptidões individuais” (1978, p. 196). ensino, da escola “até para os operários”, no modo de
Os trabalhadores-estudantes, no entanto, já ocupam produção capitalista. E possível que o diploma de
outro espaço, o do trabalho assalariado e, nos momentos engenharia civil, em escola oficial, seja atribuído ao
estudo e à capacidade individual, mas que seja con lutar para conseguir solucioná-los, não se acomodar,
seguido através de uma depredação da força de trabalho não aceitar. Como, porém, estão submetidos à lógica
dos irmãos. Aliás, constatamos várias vezes que a escolar, esta informa sempre o raciocínio:
família se organiza para que um dos membros possa “se esses professores se formaram, lutaram, como
estudar com mais afinco. a gente está fazendo aqui, foi para receber certinho
Percebem, também, que o movimeno grevista ultra o pagamento e não para fazer como o governo está
passa a mera categoria profissional e que o problema fazendo.”
da reivindicação tem outras raízes:
Nota-se aqui um retorno à idéia de que o pagamento
“...acho que esse negócio de greve está vindo tudo
é retribuído pelos estudos, pelo esforço individual, pelo
por causa do governo. Se o governo não aumentasse
tanto a gasolina... pois ele aumenta a gasolina cinco “merecimento”.
vezes por ano e o salário só aumenta uma vez. Concluindo, podemos dizer que, no período inicial
Quer dizer, não tem condições. O povo está-se das entrevistas, os alunos pouco falavam de relevante
apertando. Chega uma hora que não dá, aí eles sobre o professor, eram apenas elogios sem maior
querem aumento e são obrigados a fazer greve para significação, como “são legais”, ou críticas como “muito
ter esse aumento. Tem muita gente que está sentindo chatos”, “brutos” etc. Porém, depois da interrupção
o aperto, é metalúrgico, é motorista, até médico e motivada pela greve que coincidiu com movimentos
professor.” grevistas de outras categorias profissionais, o discurso
modificou-se.
A luta agora não é só para “ganhar o que merecem Em frente de uma situação concreta em que aparecia
pelos anos de estudo”, como parecia nas entrevistas claramente a condição do professor-trabalhador junto
anteriores à greve, mas para sobreviver. Todos precisam
a outras categorias profissionais, já que todos reivin
ser aumentados, até quem estudou. A situação é geral
dicavam melhores salários e melhores condições de
e a luta não é de uma categoria nem por um só
motivo: trabalho, surgiram elementos para que os alunos pu
dessem modificar a imagem anterior do professor de
“A greve foi porque o governo que entrou agora é tentor do saber e distante dos alunos. As críticas às
só para fazer ponto e não está solucionando nenhum atitudes agressivas dos professores, à falta de interesse
problema, como o dos metalúrgicos, o dos professores nas aulas e o autoritarismo, começaram a ser mais
estaduais, nem nada... essa greve foi provocada explicitados e mesmo questionados, já que o professor
porque o governo não queria aumentar os professores. surgiu aos olhos deles como um trabalhador que também
Mas mesmo assim eles lutaram, só que o governo luta e reivindica. Mas, se em um momento pareceu
não quis dar o aumento.” que o contato com uma situação concreta possibilitou
O governo é personalizado, a culpa é dele que não visão mais clara das relações selvagens que caracterizam
resolve os problemas do povo. No discurso aparece a o mundo do trabalho, continuaram a afirmar que me
percepção de contradição: a responsabilidade é do lhores salários devem ser atribuídos a quem tem maior
governo, por não resolver os problemas, mas deve-se escolarização.
Os elementos de interpretação da realidade ditados tivem a instauração de uma atitude organizativa entre
pelo senso comum e pela prática cotidiana de traba- os alunos que são os destinatários de sua ação edu
Ihador-estudante — como o aluno que se referiu à cacional.1819 , .
greve dos lixeiros ou os que perceberam que, apesar Deixa-se, assim, de aproveitar um espaço aberto
dos anos de estudo, os professores não conseguiram propício para a politização. Caberia ao professor sis
aumento significativo de salários — poderiam, se con tematizar os conceitos herdados da tradição ou veicu
venientemente elaborados pelos professores, levar a um lados pela concepção hegemônica e acolhidos sem
desmascaramento da realidade escolar. crítica, elevando o senso comum a uma concepção
Porém, tal mudança implicaria que o lugar do coerente e orgânica da realidade. Essa superação do
professor ficasse vazio, que o professor aceitasse trocar senso comum só pode ser realizada a partir da sua
o falso diálogo professor-aluno, que não existe nas negação e da sua conservação, exigindo, portanto, no
condições atuais de contradição entre autoridade do limite, certa identificação com os elementos de expli
professor-submissão do aluno, pelo diálogo do aluno cação fornecidos pelo próprio senso comum.
Considerando-se que o atual professor de 1 e 2
“com o pensamento, com a cultura corporificada nas
graus é cada vez mais emergente de estratos socio-
obras e práticas sociais e transmitidas pela linguagem
econômicos e baixos, permitindo alguma identificação
e pelos gestos do professor”.17
também com a clientela junto à qual atua nos cursos
Os últimos movimentos reivindicatórios dos profes noturnos, pode-se pensar que, devidamente organizado,
sores seguiram o mesmo esquema dos anteriores, no ele possa trabalhar no sentido de confrontar, junto com
sentido de que relacionaram a melhoria de salários a os alunos, a realidade na qual ele viver. Porém, o mais
melhores condições de ensino. Parece que o professor freqüente é o professor assimilar os padrões e aspirações
se esquece de que está inserido no processo produtivo, pequeno-burgueses, desejoso de ascensão social, de
ainda que de produção intelectual. E como tal, não há prestígio e de conformar-se cada vez mais com a sociedade
por que relacionar salário melhor com melhoria na de consumo. Transmite, assim, apenas a ideologia do
qualidade do produto que “fabrica”. Não se vê um Estado e da sociedade capitalista, e os únicos momentos
movimento operário que realize tal raciocínio. Na medida de crítica que surgem o transformam em censor.
em que o professor não consegue estabelecer o valor A volta às aulas, após o período de greve, todavia,
de sua hora de trabalho, não consegue discutir obje significou apenas uma retomada violenta da função
tivamente o problema do salário e, ao mesmo tempo, autoritária de professor expressa pelo “jogar matéria
não consegue organizar-se de modo satisfatório, a fim e reprovar, comandada pelas exigências curriculares e
de questionar, dentro de sua categoria profissional, as sancionada pela administração escolar.
condições em que vive e exerce sua profissão. Faltando
tal sistematização e tal questionamento organizado,
dificilmente conseguirá ter comportamentos que incen-
18. MASCELANI, 1980, p. 123-131.
17. CHAUI, 1980a, p. 24-39. 19. SAVIANI, 1980, p. 9-14.
Capítulo V para sua condição de estudante, e desejam dar impressão
de certo diletantismo:
“...é assim. No começo eu não precisava de jeito
ESCOLA E PROCESSO nenhum. Aí, comecei a trabalhar. Meus pais se
PRODUTIVO acostumaram com isso e eu também. Agora, se
parar de trabalhar, meu pai, que já está acostumado,
vai dar uma forçada para eu continuar trabalhando.”
1. A REPRESENTAÇÃO DO TRABALHO É possível que, sentindo-se discriminados no am
biente escolar, considerem a condição de “trabalhar
Freqüentemente os alunos consideravam o trabalho por necessidade” como depreciativa. Mais de uma
como iniciativa puramente pessoal: vez os alunos disseram que “os professores têm pena
de nós porque a gente trabalha o dia todo”; e os
“meu irmão começou a trabalhar. Como eu vi que professores, ao se referirem às dificuldades com o
ele tinha sempre um dinheirinho no fim do mês, ensino, empregavam os termos “os coitados”, “os pobres
fíquei morrendo de vontade de trabalhar também. dos alunos”. Essa atitude paternalista, encobrindo uma
Meu pai não queria deixar, mas eu insisti. Aí, tive depreciação do trabalho manual, talvez motive a ênfase
que passar para a noite, por causa do serviço. Isso que os alunos colocam no caráter voluntário do trabalho
tudo foi por minha vontade”. como se o fato de trabalhar por vontade própria anulasse
a condição de violência da relação salarial, violência
Parece que o aluno vê o trabalho como imagem de que no entanto é vislumbrada:
liberdade, de independência “...trabalho porque quero.
Minha mãe não queria que eu trabalhasse”. “...acho que no trabalho a gente faz uma coisa
forçada. Na escola não. A gente faz porque está
E interessante considerar aqui o comentário de Ha- ciente do que está fazendo, é uma coisa que está
bermas (1975, p. 317), a respeito da crítica da ideologia nos ajudando. O trabalho é pela parte financeira, a
burguesa realizada por Marx na forma de crítica da gente precisa para quebrar os galhos, para os gastos.
economia política: Mas não é uma coisa que a gente está aprendendo
como na escola.”
“...sua teoria do valor do trabalho destruiu a aparência
da liberdade, na qual a relação de violência social, Estabeleceu uma separação entre as duas atividades:
subjacente à relação do trabalho assalariado torna a escolha entre trabalhar ou não, pode ser voluntária,
ra-se irreconhecível pela instituição jurídica do livre mas estudar é atividade mais pessoal, é mais do que
contrato de trabalho”. isso, é quase um bem pessoal:
De modo geral, relutam em admitir que o trabalho “mas aqui na escola, eu trabalho, eu estudo, só para
é condição necessária para a subsistência da família e mim. Mas no meu serviço não. É para mim e para
o bem de meu patrão. Porque se eu não trabalho, exploração e que a gente é explorado mas a gente
atrasa o serviço dele e ele fica prejudicado com precisa viver. Não tem outro jeito.”
isso. E eu fico prejudicado também, posso levar
bronca e enfim ele pode me mandar embora.” A questão da exploração é assim colocada:
Ainda que de maneira ambígua, há nítida idéia de “...por exemplo, eu tenho quatro caminhões e contrato
que o trabalho é realizado pelo empregado mas não quatro pessoas para guiarem. Carrego cada caminhão
é dele, e sim do patrão. A única “liberdade” possível com mercadoria que vale muito. Cada viagem sig
aparece na escolha do trabalho, depois há a submissão, nifica para mim um tanto, posso investir em caderneta
por medo de perder o emprego. Ao mesmo tempo, há de poupança e coisa e tal. Fico no meu escritório
certa relutância em admitir essa servidão, essa venda controlando esse dinheiro e os meus empregados
“livre” de força de trabalho: na estrada, ganhando esse dinheiro para mim. Isso
é exploração.”
“na escola eu trabalho para mim e no serviço eu
Agora se entende mais por que uma aluna se referiu
trabalho para os outros, para o meu patrão, para
ao trabalho como “uma coisa forçada”, os empregados
um monte de gente, inclusive para mim. Sirvo a
ganham para o patrão, são pagos mas é para enriquecer
todos. Mas na escola é essencialmente para mim.”
o patrão e também para poderem sobreviver. O trabalho
Talvez essa ênfase em idealizar o estudo na escola do patrão é caracterizado como de controle, e o dos
como um bem pessoal, “é essencialmente para mim”, empregados como serviço-para-o-patrão. E nessa ex
sirva para preservar um espaço pessoal. Pelo menos ploração, o próprio empregado, em determinado mo
na escola eles podem ser eles mesmos: mento, quase se identifica com o patrão, por estar
dentro do processo:
“eu trabalho porque eu preciso ajudar minha família,
para comprar alimentos, roupas e outras coisas que “...o patrão cobra bem mais caro do que pagou pela
são úteis, e eu estudo porque é uma atividade que mercadoria. O empregado recebe uma comissão,
serve para desenvolver os seres; eu me esforço além do salário, pelas vendas que faz. Então precisa
bastante na escola para ter um futuro melhor”. usar de muita garra para vender bastante. E sabe
que vai cobrar mais do que a mercadoria vale. O
O trabalho, portanto, é visto como atividade concreta vendedor, então, também explora o freguês. E é
que permite aquisição de mercadorias e se contrapõe explorado pelo patrão. Entra na onda, sem querer.”
ao estudo que é caracterizado quase misticamente como
podendo “desenvolver os seres”. E isso porque a na Por esse motivo é que o “mundo do trabalho é um
tureza do trabalho está clara para eles: mundo de exploração”, todos participam da exploração,
mesmo os explorados parecem auxiliar no processo de
“falou em trabalho, falou em exploração. A gente exploração. É bem possível que seja por isso que
sabe que o mundo do trabalho é um mundo de encontramos, tantas vezes, justificativas pelo fato de
trabalharem. Trabalham porque querem ou porque pre trabalhando e participa dessa ordem “já sente as coisas
cisam ajudar a família, porque precisam viver, mas como devem ser”, e não percebe que, na sociedade
estão sabendo que o trabalho deles ultrapassa o simples dividida em classes, cada indivíduo existe como membro
fazer, tem uma dimensão maior do que o estudo porque de uma classe determinada e, portanto, as formas de
faz parte de uma engrenagem que desconhecem, da pensamento são carregadas da ideologia apropriada por
qual, no entanto, participam e na qual colaboram, uma classe ou por fração de classe.
mesmo sem seu pleno consentimento. Parece que trabalhar e estudar, nessas condições,
Os alunos chegam a ter um conhecimento da situação acarreta ausência quase completa de queixas diretas
concreta do trabalho no modo de produção capitalista, com relação aos salários. No decorrer da conversa
ou seja, captam, ainda que de maneira fragmentária, alegavam sempre falta de recursos, “não vou ter dinheiro
a contradição básica entre capital e trabalho, mas esse para continuar estudando” ou então “se tivesse dinheiro
conhecimento a que chegaram a partir da prática social fazia supletivo”. Alguns alunos fazem “bicos” para
não é veiculado na escola: complementar o salário:
“...quem estuda e trabalha fica mais responsável. “...tenho um amigo ourives, quando preciso de algum
Sabe o preço das coisas, dá valor ao que seu pai dinheiro extra, trabalho com ele algumas noites, e
faz por você. Agora eu sei o quanto custa conseguir então não venho à escola”; “...aos domingos vou
as coisas.” “...mudei muito quando comecei a tra carpir uma roça na fazenda do patrão, para tirar
balhar, agora eu sei como as coisas são, quanto um pouco mais.”
custa.”
Quanto ao salário, as colocações se faziam, em geral,
Permanece a valorização do tipo “o trabalho dignifica de maneira indireta, como se viu nos trechos acima,
o homem” que, por ser generalizante, não leva em porque consideram o serviço em que estão como
conta a historicidade das relações de produção. Apesar provisório, como condição, para muitos, de se manterem
de viverem relações opressoras e de exploração, con como estudantes:
tinuam presos a uma visão do trabalho como força
“moralizadora”: “...estou usando o emprego como local de trabalho,
para ter um dinheiro meu. Mais para frente quero
“...tem uma parte boa, também, uma pessoa que sair porque não é um emprego que dá futuro (fábrica
fica parada em casa, tem mais possibilidade de se de sapatos). Quero casar e coisa e tal e esse emprego
extraviar, de seguir maus exemplos, porque está não dá. Gosto de mecânica. Quero ver se eu esforço
sem fazer nada e vai com más companhias. Mas e se consigo um estudo de mecânica, se desse mais
quem está no emprego já está mais encaminhado. ainda, queria era fazer engenharia mecânica”.
Já sente as coisas como devem ser.”
O trabalho atual é que garante o estudo, pois sem ele
Através dessa ótica, o trabalho é a condição natural não têm condições de arcar com despesas mesmo
do homem, há uma ordenação das coisas e quem está mínimas.
Por outro lado, consideravam o seu salário melhor até as 11 horas da manhã. E depois do almoço,
que o de seus pais e alguns de seus irmãos mais brinco até a tarde e à noite vou dormir para descansar
velhos, pois “trabalho nisso só enquanto estudo, depois e trabalhar depois o dia inteiro e à noite vir para
arrumo coisa melhor”. A perspectiva de melhoria de a escola estudar.”
salário, através do estudo, parece acomodar o aluno à O que caracteriza a vida é o trabalho: é ele que
situação salarial, já que a provisoriedade do pequeno fixa os limites do estudo, do lazer e do descanso.
ganho é quase lembrada como justificativa. Se bem As redações em geral começam e terminam com a
que ao responderem a respeito da continuação ou não referência ao trabalho acompanhado sempre de “can
dos estudos, não sabem dizer se o que ganham permitirá sativo, cansado” e a menção à rotina “começa tudo
ir além do 2o grau. Daí a procura de cursos profis de novo”. Muitos insistem em dizer que “a minha vida
sionalizantes, objetivando poder ganhar melhor depois começa na segunda-feira” relacionando fortemente a
de tais cursos e então continuar para “ter diploma”, o realidade existencial com as atividades assalariadas.
que significa para eles fazer um curso universitário. Paulo Roberto, 14 anos, fala:
Pois “é na escola que pretendo melhorar a minha
vida”. “...começa na segunda-feira. Levanto às 6,30 e vou
para o trabalho... a semana toda faço esses serviços
de boy e só quando chega sábado e domingo eu
2. O COTIDIANO DO TRABALHO vou ao cinema e posso descansar”.
Essa luta contínua tem uma finalidade “tenho que
Trabalho e escola se interligam de tal modo na trabalhar muito para no fim da vida ser um homem
vida desses meninos que é, por assim dizer, impossível de futuro”. E esse futuro é a escola quem vai garantir,
falar de um sem lembrar do outro, não porque se como já vimos. Daí esforçar-se por combinar as duas
completem, mas porque constituem o cotidiano sofrido. atividades.
Tentamos, entretanto, analisar a vida de trabalho, pro Ainda assim, a escola parece intervir no cotidiano
curando indagar em que consiste e das condições em do trabalho: “acho que as coisas são muito difíceis de
que se realiza.20 combinar uma com a outra. Geralmente tem um trabalho
Luiz Carlos, de 13 anos, escreve: de escola para fazer, uma prova, você fica lá no serviço
“Minha vida é assim: trabalho a semana inteira sem e pensa, preciso fazer aquilo, de que jeito eu faço?”
A escola não é continuação ou complemento do trabalho,
descansar. No domingo levanto cedo para estudar
mas atividade que cria problemas.
São dificuldades que os meninos tentam contornar
20. Nesse capítulo, além das entrevistas e questionários, utilizamos de divesas maneiras:
também redações dos alunos de 5a série, sob o tema “Como é
minha vida”. Essas redações foram solicitadas como tarefa normal,
“muitas vezes eu faço escondido. Eu ponho a caixa
em classe, da professora de Português, que as colocou a nossa na frente da mesa, me escondo atrás e faço a lição,
disposição. lá mesmo.”
A condição de trabalhador-estudante não pode trans O tempo passa a ser o vigilante contínuo, os horários
parecer claramente. As tarefas escolares são inseridas do trabalho e da escola são os guardiões das demais
de modo “escondido” no cotidiano do trabalho, como atividades desses meninos. Esse autoritarismo que passa
uma das únicas alternativas de poder “levar as duas a ser natural, que entra na rotina, é uma forma sutil
coisas juntas”. Conforme o tipo de trabalho, é mais de violência que não chega a ser percebida como tal.
simples: “quando não tenho freguês, pego o livro ou Procurando aprofundar a reflexão sobre a violência
o caderno, passo a limpo lá”, sabendo, no entanto, nos dias de hoje, Chaui (1980, p. 16-24) nos diz que,
que “uma coisa atrapalha a outra. Às vezes não atra
palha. Mas se a gente vai pensar direito, atrapalha “de maneira vaga e genérica definimos a violência
sim”. A aluna fica em dúvida, talvez por respeito à como um processo pelo qual um indivíduo (humano
escola, já que está correspondendo no ambiente escolar; ou não) é transformado em coisa... Definida a
mas conclui que realmente atrapalha exercer as duas violência como um processo de redução de um
atividades ao mesmo tempo, não havendo um horário sujeito à condição de coisa, visamos a retirá-la do
estipulado ou uma aprovação tácita de que é possível contexto que a define como transgressão de leis e
atender às duas concomitantemente. É preciso uma pensar nestas leis como portadoras de violência.”
“técnica”, um sabedoria quase, para poder trabalhar e
Nesse sentido, tanto o universo do trabalho quanto
estudar.
o escolar estão carregados de violência, de regulamentos,
“E preciso saber dividir o meu tempo. Se não prescrições, promessas que condicionam um agir.
souber, não dá. Uso minha hora de almoço.” O tempo Há promessas de benefícios: “estudar ajuda para ter
não é deles. Ou “roubam”, usando o tempo do trabalho
um cargo maior na vida” ou “estudando tem um futuro
ou usam as outras horas, que é a do almoço, do sono,
melhor” ou ainda “com o estudo a gente entrosa melhor
do lazer. “O único dia da gente é o domingo e precisa
na sociedade de nível mais alto” e mais concretamente
fazer a lição, copiar, estudar. Nem dá para descansar.”
“a gente pode ganhar mais, ter um emprego mais
Há uma corrida contra o relógio: “acordo às 6 certo”. Promessas que constituem outra forma de vio
horas, entro às 7 no serviço, saio às 11, começo às lência, invisível, que circula no interior das relações
12,15, paro às 15 para o café. Recomeço às 15,15 e sociais capitalistas, já que não são dadas aos trabalha
saio às 18. Chego de volta do trabalho e preciso chegar dores, em geral, as condições para sua realização.
à escola às 7,10”. Gravam até os minutos, o tempo
Produzem assim uma submissão interiorizada, que não
está tomado inteiramente de tal modo que, nas respostas
questiona, não procura outras soluções, apenas se queixa:
aos questionários, 50% dos alunos, ao descreverem o
cotidiano do trabalho, quase só relataram os horários. “Levanto todos os dias às 6 horas para entrar no
A preocupação em anotar os horários, quando a serviço às 7 horas. O trabalho não é dos piores,
solicitação era relatar as atividades diárias, deixa en mas a firma é uma bomba, muito regulamento. Para
trever um tipo de violência a que são submetidos, o estudar é muito difícil, porque tenho uma hora para
horário, que é uma forma de autoritarismo difuso. vir para a escola, e se chegar 10 minutos atrasado,
já não entra. Quando tenho que estudar para prova, 3. RELEMBRANDO A SITUAÇÃO LEGAL DO
passos as noites em claro para ter um rendimento TRABALHO DO MENOR
satisfatório.”
A utilização do trabalho infantil vem sendo uma
A condição de trabalhador-estudante obriga a dimi
nuir as horas de sono: constante na história do desenvolvimento econômico,
não apenas em nosso país. A nível internacional, vimos
“Meu trabalho é muito cansativo porque eu durmo a pesquisa realizada pelo Comitê da Liga Internacional
apenas 6 horas por dia e quando acordo é com o Anti-Escravagista, denunciando o trabalho de meninas
corpo doendo, mas tenho de trabalhar para poder na indústria manufatureira de tapetes de Marrocos.
estudar.” Crianças a partir de sete anos, meninas trabalhando
de oito a dez horas diárias, em ambientes insalubres,
Não descreve o trabalho, apenas o qualifica como com alimentação insuficiente, remuneração insignifi
“muito cansativo”, por causa da relação “trabalhar para cante e sem possibilidade de acesso à escola (JOUVIN,
poder estudar”.
1979, p. 967ss). No Brasil, entre outras pesquisas,
Em geral começaram a trabalhar muito cedo, exer vimos a publicada pela Associação Brasileira de Pre
ceram várias atividades, às vezes no mesmo setor venção de Acidentes, relatando a situação de menores
econômico e quase sempre as que exigem pouca ou
de oito a dezesseis anos, que trabalham em fábricas
nenhuma qualificação anterior.
de vidro, expostos a condições completamente inacei
O mais comum é ficar em “serviços gerais”, inclusive táveis do ponto de vista de higiene e segurança do
porque, não tendo função fixa, o salário é menor e a
trabalho (Jornal de Prevenção de Acidentes, 1979). Na
“versatilidade” é funcional para a firma.
pré-história da legislação trabalhista brasileira, ainda
Em alguns casos, conseguem preparar-se para o na década de 20, os documentos questionando o Código
emprego, não por meio da escolarização regular —
de Menores, em discussão pelo empresariado nacional,
pois esta vai resolver o problema “no futuro” — mas
por meio de cursos de datilografia, realizados com mostram o enorme prejuízo que as indústrias sofreriam
dificuldade porque são sempre pagos. Como ocorreu com uma regulamentação que reduzisse as horas de
com Adelina, de 14 anos, cujas irmãs já trabalhavam, trabalho do menor, limitasse a idade e proibisse o
o que facilitou e permitiu que ela se preparasse antes. trabalho noturno, pois nessa época cerca de 60% de
Mas assim mesmo, começou cedo: todo o operariado engajado na fiação de algodão, no
Rio de Janeiro e em São Paulo, era constituído de
“Trabalho com minha irmã em consultório de pe menores.21 No entanto, a partir dessa época foi esta
diatria. Bato a máquina, atendo telefone. Trabalho belecida a proibição do trabalho noturno aos menores
os dois períodos. Comecei aos 13 anos. Aprendi de 18 anos e proibido todo e qualquer trabalho aos
datilografia no final do ano passado. Estudava da
tilografia de dia e à noite aqui. Aprendi datilografia
para arrumar emprego.” 21. GOMES, 1978, mimeo., p. 274-302.
menores de 14 anos. A CLT de 1943 acrescenta a A introdução dessa categoria, que está bem definida
proibição de contratação dos serviços de menores em nos textos legais e que exige um contrato de apren
condições insalubres e perigosas. A Constituição de dizagem por tempo determinado, constitui, no entanto,
1946 ampliou as vantagens aos menores proibindo um veio através do qual o empregador continua a
diferenças salariais para um mesmo trabalho, por motivo pagar salários inferiores, forjando uma aprendizagem
de idade e manteve a idade mínima de 14 anos. que não existe. Mais da metade dos menores pesquisados
A partir de 1967, surgem as maiores modificações recebem menos do que o salário mínimo e exercem
na legislação de proteção aos menores trabalhadores, funções que não comportam aprendizado prévio, como
que, na realidade, irão aumentar a exploração do tra boy, balconista, entregador.
balho infantil. Há redução da idade mínima para 12
Em São Paulo, a População Economicamente Ativa
anos e instituição do salário do menor, contribuindo
PEA, de 10 a 14 anos, conforme dados da PNAD/1976,
assim para o arrocho salarial que já estava em vigor
do IBGE, apontava 297.013 menores trabalhando e 12.771
na época e foi uma das bases do “milagre” 1968-1973.
procurando trabalho, o que representa, com relação ao
A legislação vigente considera “menor” o trabalhador total da PEA, respectivamente 3,44% e 7,74%.
de 12 a 18 anos (artigo 402). Ressalta que o trabalho
Vê-se, portanto, que existe uma discrepância na
dos menores de 12 a 14 anos está sujeito à garantia
legislação brasileira ao classificar o ensino como gratuito
de freqüência à escola que assegure a formação do
e obrigatório entre 7 e 14 anos e permitir o ingresso
menor em nível primário e restrito a serviços de
natureza leve, que não sejam nocivos à sua saúde e no mercado de trabalho com 12 anos, sendo que a
desenvolvimento normal. prática comum é iniciar o trabalho antes mesmo desta
idade. Um dos indicadores dessa prática é fornecido
Com a publicação da Lei 6.068/74, modificou-se pelo formulário do Censo de 1980: indaga-se quantas
apenas formalmente a situação do menor trabalhador. pessoas estão trabalhando, na faixa etária de 5 a mais
Até então, os empregadores eram obrigados a manter anos...
em seu serviço um número de trabalhadores menores
de 18 anos, não inferior a 5% nem superior a 10% O fato de a criança trabalhar não constitui um mal
no quadro de funções compatíveis com o trabalho do em si. Ainda que em condições históricas diversas,
menor. Pagavam-se 50% do Salário Mínimo Regional Marx, na “Crítica ao Programa de Gotha”, enfatizava:
aos de idade entre 14 e 16 anos e 75% aos de faixa “a proibição geral do trabalho infantil é incompatível
etária de 16 a 18 anos. Com a implantação dessa lei, com a existência da grande indústria e, portanto,
fica a critério do empregador a admissão de menores um piedoso desejo, porém nada mais (...) regula
em número que achar conveniente e é abolida a mentada severamente a jornada de trabalho segundo
diferenciação entre o salário mínimo de adulto e o de as diferentes idades e aplicando as demais medidas
menor, exceto nos casos em que o menor é aprendiz. preventivas para a proteção das crianças, a combi
nação do trabalho produtivo com o ensino, desde 4.1. A AVALIAÇÃO DA APRENDIZAGEM:
uma tenra idade, é um dos poderosos meios de NA ESCOLA E NO TRABALHO
transformação da sociedade atual.”22
A análise do cotidiano de trabalho dos trabalhado- O trabalhador-estudante não tem ilusão alguma quan
res-estudantes procurou evidenciar que não há uma to ao que vai aprender na escola. Sabe que precisa
“combinação” possível entre trabalho e ensino. O tra passar por ela, como pré-requisito para conseguir ocu
balho produtivo condiciona as demais atividades desses pações regulares e estáveis, já que “no trabalho exigem
meninos, norteando inclusive a necessidade de estudar, o estudo para entrar, mas lá dentro não precisa”. As
mas de forma oprimente e “não libertadora”. práticas escolares são seguidas e temidas, mas eles
sabem exatamente o que elas valem. Veja-se, por
exemplo, a contraposição entre o sistema de avaliação
da aprendizagem utilizado na escola e o vigente no
4. A ESCOLA E A REPRODUÇÃO DO trabalho:
TRABALHADOR
“...sei que ele aprendeu se ele consegue executar
O caráter de classe da escola capitalista revela-se, bem, por exemplo, se ele aprende a lixar (é o meu
principalmente, na separação que ela reforça entre serviço), direito. Na escola é pelas provas” (Décio,
trabalho manual e trabalho intelectual, separando os 15 anos, fábrica).
trabalhadores da escola e os estudantes da produção.23 “...quando ele entrou, o rapaz que trabalha comigo
O capitalismo de hoje não recusa o direito à escola, não sabia nada. Aí, expliquei, ele foi vendo fazer
pois o acesso está aparentemente mais aberto aos e foi fazendo, foi aprendendo. Na escola, quando
operários e seus filhos; porém recusa o direito de o o professor, depois de explicar, dá uma prova e a
trabalhador dialogar a partir de sua prática social, gente acerta. Pela prova é que se sabe se a gente
igualando-o como aluno, sem considerar seu estatuto aprendeu ou não” (Jorge, 14 anos, indústria de
de trabalhador. Analisando o modo pelo qual se con cortinas).
figura para os alunos do curso noturno a prática da
avaliação da aprendizagem e da disciplina, percebe-se A avaliação é completamente diferenciada nos dois
que é através dessas práticas que a escola, exercendo ambientes. A prova da “aprendizagem” no trabalho é
sua função autoritária, qualifica a mão-de-obra, e, ao verificar se sabe fazer e na escola, verificar se sabe
mesmo tempo, distribui diferentemente o saber. dizer. Fazendo certo, aprendeu. Dizendo certo, nem
sempre:
“Sei que aprendeu assim, como aconteceu comigo.
O rapaz me ensinou e saiu. Depois me deu um
22. MARX. Obras Escolhidas, vol. 2, p. 224. tempo e voltou para ver se eu já estava fazendo
23. LETTIERI, 1973, p. 229-47. certo. Eu estava fazendo certo, então aprendi. Mas
eu não me lembro do que aprendí no ano passado. A “nota boa” pode resultar também da cola (prática
A professora de Geografia deu uma aula da 5a série, comum entre os estudantes) que solapa a possível
outro dia. Eu não lembrava nada. Do serviço, não seriedade do trabalho escolar e sugere que, se o interesse
esqueci nada. Na escola, acho que não cheguei a é a “devolução” dos conhecimentos, pouco importa a
aprender muito. Já colei muito nas provas. Se tivesse forma dessa devolução.
aprendido, não precisava colar” (José Mário, 20 Os próprios alunos justificam o fato de não conse
anos, indústria). guirem aprender, considerando que a professora atende
a muitos de uma só vez, atende o grupo, não pode
O sistema de exame separa os que sabem, exclui, dar atenção individualizada:
cria categorias e, pela atribuição de notas, mantém
viva a necessidade de aprovação por parte de outro; “se eu for ensinar a uma colega de trabalho, fico
é pelo julgamento da prova que se sabe se o aluno junto até ver se ela consegue fazer direito sozinha.
Mas na escola a professora não pode ficar explicando
aprendeu ou não. Ele fica dependendo do juízo do
para cada um e ver se cada um aprendeu. E muita
professor, da opinião que este emitir; mas que pode gente. Ela dá chamada oral, dá prova, para ver se
não corresponder ao que o aluno realmente aprendeu: aprendeu.”
“...porque muita gente sai sem saber nada. O que eu
quero é escola. É isso. Eu, por exemplo, fechei em “...os professores dizem sempre, a responsabilidade
Inglês. Se a senhora me mandar na lousa, não faço é sua, de aprender ou não. Os patrões também. Mas
nada...” é diferente. No serviço é outra coisa, não sei dizer.”
Justificam continuamente que, por trabalharem, não Ao constatarem o suposto interesse maior do patrão,
podem render na escola, mas deixam claro que realmente estabelecem a comparação:
o que desejam é passar pela escola. O que importa
“...a professora S. diz que ganha o mesmo se o
nela é apenas a nota, é passar de ano, é a negação
aluno aprende ou se não aprende. Para ela tanto
do que se passa no mundo do trabalho: faz. Ela está para ensinar. Aprender é caso do
“...sei que aprendeu quando é capaz de fazer a aluno.”
tarefa bem feita. Na escola é pelas notas que tira. Porém,
Se tirar nota alta é porque aprendeu.”
“...meu patrão me ajuda bastante, ele me explica
“Eu fico junto e vejo se ela aprendeu a fazer como tudo. Parece que ele faz questão que eu aprenda.
eu faço. Se ela faz igual, aprendeu. Na escola é Nunca me machuquei nas máquinas, devo isto ao
pela nota, é pela prova que a gente sabe se o aluno meu patrão. Ele explica para ter cuidado, para não
aprendeu, pela nota. Mas a gente também tira nota facilitar. Ele é legal. Às vezes fico pensando que
boa quando cola. Já colei muito. Já esqueci quase ele devia fazer eu trabalhar e pronto. Mas ele se
tudo que aprendi no ano passado.” preocupa comigo. Agora, os professores também são
bacanas. Mas eles não esquentam se eu aprendo ou esforçar. Na escola, o professor, o diretor, conforme,
não. Eles acham que a responsabilidade tem que dá uma repreensão, suspende, chama os pais. Se os
vir de mim e não deles. E olhe, a firma é grande, pais não resolvem nada, e se o caso for sério, de
são 140 empregados, quase que não tem acidente. disciplina, expulsa os alunos.”
Eu tive, uma vez, arranquei a unha com a furadeira,
mas foi coisa pouca” (rapaz, 17 anos, indústria de O interesse e a solicitude no trabalho têm um limite,
móveis). que é o limite da produção. “Se errar muito, manda
embora.” Mas a escola tem outro discurso, que parece
A preocupação desse marceneiro em explicar a cuidar da pessoa: chama os pais e só expulsa em casos
solicitude do patrão trai sua decepção por não encontrar de falta de disciplina (já que o jubilamento só atinge,
uma atitude semelhante no professor. Fica implícito por enquanto, os cursos superiores...). Repreende, dá
que o interesse do industrial está em obter uma boa ponto negativo, reprova, mas podem continuar na escola,
produção e em evitar aborrecimentos, sabendo ou in até que um dia eles próprios, os alunos, desistam
tuindo que a força de trabalho é mercadoria, do mesmo porque ‘eu não tinha cabeça para estudar’.
modo que o produto de sua fábrica. No trabalho, procuram ajudar-se uns aos outros,
porque se o serviço não satisfizer as exigências do
“Para o capital, o trabalhador não constitui uma patrão, serão despedidos, mas não podem ter essa
condição de produção, mas apenas o trabalho o é. mesma atitude na escola. Ajudar significa passar cola.
Se este puder ser executado pela maquinaria ou, Falar é função só do professor. Aceitam a exigência
mesmo, pela água, pelo ar, tanto melhor. E o capital da ordem, da disciplina, mas se irritam com o fato
se apropria não do trabalhador, mas de seu trabalho de que na escola não podem falar. O “instrumento de
e não diretamente, mas por meio de troca.”24
produção” na escola é a palavra, oral ou escrita, mas
Os meninos verbalizam que o importante é sua é o professor que detém esse meio. Aos alunos cumpre
capacidade de trabalhar e não a pessoa deles, como “agüentar um professor que fala sem parar” e que é
o comentário desse menino de 14 anos: causa de desânimo “...e você fica desatento por falta
de coragem de ficar ouvindo tanta explicação.” A
“No trabalho, se eu erro, o chefe vai lá e me ensina presença passiva na escola e a falta de interesse pela
de novo, ele me fala para fazer certo. Se errar atuação do professor provocam esta confissão de Pedro:
muito, dá ‘gancho’ (manda embora). Na escola, levo
ponto negativo, repreensão da professora, isto aí. O “Sinceramente, eu prefiro ir ao serviço trabalhar do
chefe tenta ensinar de novo, muda para um serviço que vir ao ginásio. Tanto que todo dia a professora
mais fácil. E se não der jeito mesmo, manda embora. me chama a atenção porque eu começo a ficar
Todo mundo pode ir bem no serviço, é só se distraído, a largar a matéria de lado e fazer outra
coisa, lendo gibi, conversando com o colega de
lado. Não dá vontade de ficar assistindo à aula,
24. MARX, 19756, p. 93. ficar prestando atenção. São interessantes as coisas,
mas aula a gente nem quer saber. No serviço tem Dessa forma, entende-se que o aluno se sinta menos
que prestar atenção. Se for trabalho com máquina, subordinado na relação trabalho-patrão do que na relação
como eu, se ficar distraído, pode pegar um dedo, estudante-escola. Pois:
machucar. Se não prestar atenção à aula, o que “eu já sei tudo o que preciso fazer; às vezes o
acontece? Na hora nada, mas no fim do ano acontece, chefe chega e diz: hoje eu preciso que você faça
tem que fazer a mesma série outra vez.” isto e aquilo. Eu já sei. E pronto. Mas, na escola,
A ênfase em prestar atenção na escola tomba no as ordens mudam muito.”
vazio, não se sabe por que os professores exigem, em Apesar de termos indagado sempre e de diversas
contraposição com a situação do trabalho produtivo, maneiras, não conseguimos saber que ordens mudam
onde a desatenção se reveste de um sentido preciso: na escola. Os alunos relataram mais ou menos as
pode causar dano físico, “pegar um dedo, machucar”, mesmas proibições ou ordens, como
ou provocar uma punição temida, “ser despedido”.
“não pode fumar, não pode entrar sem avental, não
pode ler livro junto com o colega, cada um tem
4.2. A DISCIPLINA E A LIBERDADE que ter o seu livro; se chegar depois das 7 horas
e 10 minutos não entra mais” etc.
Ao falar sobre o trabalho, o aluno fala de algo com E continuavam afirmando que “na escola é diferente,
que convive várias horas por dia e que é a atividade as ordens mudam sempre”. O que, talvez, se explique
responsável pela sua manutenção, atividade que conhece por outra ótica, “na escola todos mandam; o diretor,
bem e lhe permite certa liberdade de ação: o professor, a orientadora, o inspetor de alunos, o
servente, todos dedam a gente”. É provável que a
“eu sei fazer tudo o que mandam lá”; “quando entra expressão “as ordens mudam sempre” seja a constatação
um empregado novo, sou eu quem vou ensinar de que a interpretação das ordens é modificada, já que
como arquiva a nota fiscal etc.” todos mandam na escola. A autoridade é múltipla e
Mas, ao falar da escola, ele está se expressando a fragmentada.
respeito de uma atividade na qual ele é um dependente, Além disso, é em certo sentido ludibriável:
um subalterno. “No trabalho, se eu precisar de dispensa, é só com
autorização do médico. Aqui eu digo que estou com
“Eles (na escola) não respeitam a responsabilidade dor de dente, e pronto. Peço para sair e deixam.”
da gente, estão sempre mandando.” “Lá (no trabalho)
a gente fica o dia todo sozinho embaixo de um Talvez essa aparência de contradição — pois a
trator, e tudo bem. Aqui, precisa ficar quatro horas escola aparece ora autoritária, ora condescendente —
prestando atenção a um professor que fica falando reforce o caráter autoritário, porque confunde o aluno.
na frente da gente o tempo todo e pedindo silêncio.” Ele não sabe ao certo onde está pisando.
“Nos dois exigem, na escola tem que ter disciplina, concretiza e se dissimula ao mesmo tempo, pela venda
no trabalho também, senão o patrão... mas aqui na periódica de si mesmo, pela ficção do contrato livre,
escola exigem mais de mim. Exigem mais, mas não pela troca de patrões. No trabalho, entra-se através de
exigem nada. Aqui não tenho a liberdade que tenho um contrato “livre” para fazer um serviço e ganhar.
lá no serviço. Lá sou mais livre.”
Procuraram livremente esse trabalho que proverá sua
Aparentemente as imposições são as mesmas para subsistência, dando-lhe uma aparente independência
as duas atividades, pois, ao descreverem a rotina do econômica diante da família e dos outros jovens que
trabalho, os alunos se referem à intransigência nos não trabalham. Percebem a autoridade como “regra do
horários, às proibições. Além disso, o ritmo de trabalho jogo”, o mesmo não acontecendo na escola. Ou porque
é pesado, sem tréguas, em geral durante oito horas talvez não percebam a razão das ordens, ou pela
com uma hora para almoço ou até menos e não raro mudança dos atores, já que ‘todos mandam’ ou pela
precisam dar horas-extras — mas, ao estabelecerem repetição cansativa das ordens, ou ainda pela falta de
comparação, dizem que se sentem mais livres nas consistência, ‘mandam sempre’. A hierarquia autoritária
atividades produtivas. O relato de José A., 16 anos, no trabalho é predeterminada. Ao entrar, o trabalhador
talvez esclareça um pouco essa afirmação: já sabe a quem deve obedecer, conforme a estrutura
interna do serviço, ao diretor ou ao patrão, ao gerente
“Se você entrou em um serviço, você já sabe que
ou aos sócios, ao chefe de seção, ao empregado com
entrou para ficar debaixo de ordens porque é isto
mais prática. De acordo com o porte e o tipo de
aí. Você entra, você ganha. Eles mandam você
estabelecimento há maior ou menor número de pessoas
trabalhar para ganhar. Eles não vão pagar a uma
na escala hierárquica, mas são sempre os mesmos e
pessoa que não faz o serviço. Então, no começo
ficam bastante em cima. Depois, eles vêem se o para ordens determinadas e praticamente imutáveis e
cara é bom ou ruim, aí eles sabem como agir. No cuja ‘lógica’ dá para se apreendida. Na escola, mudam
serviço tem que fazer, querendo ou não querendo. as pessoas que mandam e tem-se a impressão de que
E no ginásio, não. Se você não quer fazer alguma as ordens também mudam, apesar de as atividades
coisa, você diz que não está se sentindo bem e serem sempre iguais, como no trabalho:
pede para ir embora e vai para casa. No serviço, “No serviço, faço todos os dias a mesma coisa, é
você tem que fazer, certinho, eles não estão te só pegar e fazer. Mas no ginásio, como sou mais
obrigando. Mas você foi contratado para isto. Se distraído, é preciso mandar sempre. As ordens da
você não fizer, eles te mandam embora.” escola também são sempre as mesmas, mas repetem
A autoridade no serviço é aceita porque houve um toda hora.
contrato. Quando entrou, ele sabia que “iria ficar No serviço, as ordens não mudam, e eles não ficam
debaixo de ordens”. A liberdade que os alunos julgam repetindo. Na escola dão mais ordens porque você
reconhecer na relação empregado-empregador talvez fica desatento e então eles precisam falar mais
seja, na realidade, uma servidão econômica que se vezes.”
Voltam a refletir sobre a “liberdade” nos dois am representa também um papel positivo ao aumentar a
bientes: utilidade possível dos indivíduos. Evocando a gênese
das práticas disciplinares, mostra que nas oficinas, sem
“No serviço tem mais liberdade. Porque se eu pegar deixar de ser uma maneira de fazer aceitar os regu
firme no serviço, a gente faz logo tudo o que tem lamentos e as autoridades, impedir os roubos e a
e depois fica conversando com os colegas. Tem dissipação, elas tendem a fazer crescer as aptidões, as
menos liberdade na escola. Eles mandam prestar
velocidades, os rendimentos e, portanto, os lucros. Nas
muita atenção à aula. Precisa ficar quieto e nunca
escolas, a disciplina terá como finalidade “fortificar,
pode conversar. Agora, no serviço, não. Pode con
versar um pouco, sempre fazendo o serviço” (Gabriel, desenvolver o corpo, dispor para qualquer trabalho
16 anos, fábrica de sapatos). mecânico no futuro, dar uma capacidade de visão
rápida e global, uma mão firme e hábitos rápidos”.
O ambiente autoritário da escola é que os habitua Enfim, os hábitos disciplinares “funcionam cada vez
a se moverem com “mais liberdade” no ambiente de mais como técnicas que fabricam indivíduos úteis”.25
trabalho. Acostumados na escola, desde os primeiros É possível que essa “utilidade” se tenha cristalizado
anos de vida, a ser submetidos a regras e ao respeito no condicionamento de que “é preciso estudar”, o que
a elas, adquirem o hábito de obedecer à autoridade, faz da escola um pré-requisito freqüentemente imposto
do professor, do patrão, do Estado. Alguns conseguiram pelos empregadores e pelos pais.
captar essa característica da instituição escolar: um dos
alunos contou-nos que no próximo mês iria ser trans João, 13 anos, boy, esclarece:
ferido para o escritório da loja onde trabalha. Ao “...se eu não estivesse estudando, eu não podería
indagarmos se era pelo fato de seu adiantamento nos trabalhar, mas se estivesse muito apertado, eles
estudos (está na 8a série), disse: procuravam outro que aceitasse.”
“não é bem assim. O chefe me explicou que a Às vezes é a família que exige estudo, como relata
gente ser obediente é bom. Com todo mundo: não Ivo, 15 anos, operário:
responder, não maltratar ninguém, falar ‘Sim, Se
nhor’ para os mais velhos. É muito importante. Eu “se eu não estivesse estudando não podería trabalhar
sempre fui assim, mas a escola ajudou muito. Eles porque meu pai não ia deixar. Ele não quer que
fizeram umas perguntas de matemática, de contas, eu pare de estudar. Mas no trabalho não perguntaram
e eu me saí bem. Mas só em ensinar educação a nada dos estudos”.
escola ensina mais ainda. Se a gente está conver
sando, e o professor fala ‘cala a boca’, isso daí já Os próprios empregadores, outras vezes, estimulam
é educar.” o estudo, como nos conta Gláucio, 16 anos:
Analisando o papel da disciplina, Foucault considera
que, ao lado do aspecto negativo das proibições, ela 25. FOUCAULT, 1977, p. 185.
“eu quis parar de estudar, mas meu patrão disse A escola é, assim, um campo privilegiado do exercício
que depois eu ia me arrepender, aí continuei.” do poder coercitivo estatal, o que não significa que
ela seja mais importante do que a família ou o sistema
A relação entre só trabalhar se estiver estudando, de saúde, para a reprodução dos trabalhadores. Um
o que acontece com os meninos mais novos, não é colapso nessas duas organizações colocaria em perigo
percebida como decorrente da obrigatoriedade de es essa reprodução, mais imediatamente do que se as
tudar, mas é vista como quase solicitude. Nenhum escolas fechassem.
aluno ouvira falar na obrigatoriedade que os respon
A família e o sistema de saúde são elementos
sáveis, pais e patrões, têm de assegurar a escolarização indispensáveis para a reprodução física do trabalhador,
primária aos menores. Respondiam: “...acho que não porém a escola se solidariza com eles na medida em
tem nada que obrigue, não”. Ou então, “se o pai não que auxilia a interiorização dos objetivos de “progresso”
quiser, o filho depende dele, o filho não estuda”. e de “moral”. Como interessa à ideologia dominante
Todos tinham ouvido falar de legislação trabalhista que sejam tomados como universais e imprescindíveis
e sabiam das determinações principais, como obrigação à ordem social, é preciso haver um controle rigoroso
de registrar os funcionários, pagar horas extras, pagar do sistema educacional, controle que, sob a aparência
férias, recolher para o Instituto e em geral sabiam de relativa autonomia na produção de sua própria
também que estavam sendo lesados nesses seus direitos. hierarquia escolar, legitima o papel da escola na for
Porém ignoravam que a educação gratuita fundamental mação da hierarquia social e ocupacional.
é garantida pela Constituição e que cabe aos respon Além dessa “cooperação” na reprodução física do
sáveis pelos menores assegurar tal direito. trabalhador, por meio da interiorização das normas
Aprofundando a análise dessa obrigatoriedade, Lau- essenciais, a escola desempenha uma tríplice tarefa na
tier nota que ela concretiza e dissimula o controle reprodução do trabalhador. Tendo em vista a evolução
estatal sobre a escola. É através dela que o Estado da divisão social do trabalho, das técnicas de produção
age direta e rapidamente visando assegurar e controlar e dos modos de controle no interior mesmo do processo
a relação salarial e o processo de produção, já que de trabalho, o trabalhador a ser reproduzido hoje é o
a “gênese da escola, no sistema capitalista, só pode trabalhador como membro do trabalhador coletivo.
ser interpretada com referência ao problema da entra A escola cumpre essa tarefa dotando-o de condições
da do trabalhador no processo de produção” (1978, para que possa aprender no processo produtivo e não
p. 125ss). tanto para lhe proporcionar uma qualificação específica.
Continuando seu raciocínio, Lautier argumenta que Em seguida, a escola deve reproduzir o trabalhador
não há lei que obrigue a se casar ou a se hospitalizar como vendedor de sua força de trabalho, ou seja,
(em condições comuns), mas a obrigação de escolari controlar a produção de um contingente de empregados,
zar-se é legal e generalizada. Nenhuma lei fixa a subempregados e desempregados, como exigência es
maneira pela qual se deva consumir os alimentos, mas trutural da sociedade capitalista. Pode-se supor que um
os currículos mínimos são fixados pelos órgãos oficiais. dos mecanismos de controle seja a avaliação da apren
dizagem. O aluno só sabe se aprendeu, no limite, Essa longa citação de um dos feitores da educação
mediado pela autoridade do professor. E a nota, é a nacional retrata com perfeição os objetivos da escola-
palavra da hierarquia escolar consagrada nos diplomas rização no modo de produção capitalista, ou seja, a
que têm maior ou menor peso na entrada do processo reprodução do trabalhador que o sistema necessita
produtivo, conforme o tipo de escola, o tipo de curso (“tornar o potencial humano da nação rapidamente
realizado etc. mobilizável para o crescimento econômico e a segu
Finalmente, deve reproduzi-lo como indivíduo so rança”), a inculcação de comportamentos que traduz a
cializado, apto a fazer parte ativa da sociedade de ideologia dominante (“criar nos indivíduos um senso
consumo, capaz de votar, de utilizar-se dos serviços mais agudo de ‘disciplina, eficiência, ordem e preci
públicos. são”’). Note-se ainda que, reduzindo a produção cultural
A título de ilustração do que acabamos de expor, ao rádio e a TV, sugere que a escola contribua para
podemos dar a palavra a Chagas (1978, p. 108), um despolitizar a classe trabalhadora, já que sabemos qual
dos responsáveis pelos estatutos legais educacionais o nível dos meios de comunicação e o controle con
pós 64, membro do Conselho Federal de Educação, dicionador exercido por meio deles.
discurso que deixa entrever a intenção de controle Se pensarmos que “o mínimo de educação popular”,
estatal sobre a escola e a existência dessas três tarefas: a que Chagas se refere, é a defesa da reforma de Io
e 2o graus tal como a conhecemos e tal como é
“A exigência geral de um mínimo de educação vivenciada pelos alunos, cujas experiências escolares
popular que não se o limite ao adestramento nas relatamos, podemos supor que a escola está cumprindo
técnicas básicas de ler, escrever e contar é um fator seus objetivos, ou seja, mediando a reprodução do
essencial de progresso. Além de tornar o potencial trabalhador que melhor se ajuste às relações capitalistas
humano da nação rapidamente mobilizável para o de produção.
crescimento econômico e a segurança, cria nos Em conclusão, podemos dizer que a sistematização
indivíduos um senso mais agudo de ‘disciplina, do discurso sobre a avaliação da aprendizagem e a
eficiência, ordem e precisão’; melhora a produtivi cobrança da disciplina na prática escolar deixa entrever
dade, eleva o quadro geral de higiene e saúde a relação da escola nesse processo mais amplo tornando
públicas; aumenta a fiscalização indireta do consumo, os alunos aptos a aprenderem no processo produtivo
aperfeiçoando por essa forma a qualidade da pro e a suportarem bem as injunções disciplinares desse
dução; faz crescer a clientela indispensável ao in processo.
cremento das ciências, das letras e das artes; eleva,
em conseqüência, o nível da ‘produção cultural’,
sobretudo em áreas que disso carecem, como o
rádio e a televisão; prepara ao uso inteligente das
horas de lazer que tendem a ampliar-se e assim por
diante.”
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CÉLIA PEZZOLO DE CARVALHO é docente da
USP — campus de Ribeirão Preto, Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras, Departamento de Psicologia
e Educação. Trabalha no Laboratório de Ensino de
Ciências (LEC) dessa faculdade, com formação conti
nuada de professores. Organizou o Caderno CEDES
n° 16, “O Ensino Noturno: Conquista, Problema ou
Solução?”. Autora de diversos artigos sobre o ensino
noturno e formação de professores, sempre no contexto
da história da escola. Tem Mestrado (UFSCar/SP) e
Doutorado (UNICAMP/SP) em Educação.