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I coberta de técnicas didáticas ou de pro-


Céfcfezzota de Carvalho
__/ vidências administrativas que melhorem
ou até reformem os cursos noturnos. O problema é

ENSINO
mais amplo e muito mais complexo, pois exige o
aprofundamento do estudo da relação entre esco­
la e processo produtivo. Já essa relação perpassa o
cotidiano escolar e caracteriza tanto o corpo dis­
cente quanto o docente. A situação vigente levan­

NOTURNO
ta questionamentos que exigem reflexões mais
aprofundadas. Exige ponderar se aceitamos como
normal a relação trabalho diurno-escolarizacão
noturna, tal como se vem dando há muitos anos
em nossa realidade escolar, ou se aceitamos o
desafio de tentar superar essa situação repensando
e reavaliando a concepção de trabalho produtivo
em nossa formação social
lealdade e ilusão

ISBN 85-249-0149-7

/BCORT€Z
9 788524 901492 CDITORfl
Coleção
Questões da Nossa Época
Volume 27
Célia PezzolodeCarvalho
CORTESIA DO I
EDITOR |

ENSINO
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Carvalho, Célia Pezzolo de

NOTURNO
Ensino noturno : realidade e ilusão / Célia
Pezzolo de Carvalho. - 7. ed. - São Paulo : Cortez,
1994. - (Coleção questões da nossa época ; v. 27).

Bibliografia.
ISBN 85-249-0149-7

1. Escolas noturnas - Brasil I. Título.


realidade e ilusão
93-3256 CDD-374.881 7: edição

índices para catálogo sistemático:

1. Brasil: Escolas noturnas : Educação 374.881

Nota:

Este texto, até sua 6a edição, integrou a Coleção Polêmicas do


Nosso Tempo, sendo então publicado em co-edição com outra editora,
sob a coordenação do seguinte Conselho Editorial: Antonio Joaquim
QUESTÕES
DA NOSSA ÉPOCA
Severino, Casemiro dos Reis Filho, Dermeval Saviani, Gilberta S.
de Martino Januzzi, Joel Martins, Maurício Tragtenberg, Moacir
Gadotti, Miguel de La Puente de Miranda e Walter Garcia. A partir CORTEZ
desta, passa a ser editado pela Coleção Questões da Nossa Época,
em uma nova seqüência de edições da Cortez Editora. © EDITORA
ENSINO NUTURNO: realidade e ilusão
Célia Pezzolo de Carvalho

Capa: Carlos Clémen


Revisão: Irene Ikishi
Composição: Dany Editora Ltda. SUMARIO
Coordenação editorial: Danilo A. Q. Morales
Apresentação ........................................................ 7
Prefácio................................................................. 10
Introdução.............................................................. 12

CAPÍTULO I • Pontos de partida...................... 17


CAPÍTULO II • Contribuição para um histórico
dos cursos noturnos......................................... 27
1. A expansão do ensino médio em São Paulo 28
2. Alguns estudos ................................................... 32
3. A leitura da legislação escolar ....................... 34
CAPÍTULO III • O universo escolar .................... 41
1. Organização da Escola “Cássio Ramos” .... 42
2. Quem são os alunos........................................... 45
3. Diferenciação dos períodos e hierarquias sociais 49
CAPÍTULO IV • A prática escolar .................... 58
1. O cotidiano escolar.......................................... 58
2. O conteúdo da aprendizagem ......................... 67
Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou duplicada
sem autorização expressa da autora e do editor. 3. Quem é o professor ....................................... 75
CAPÍTULO V • Escola e processo produtivo . . 86
© 1993 by Autora 1. A representação do trabalho............................ 86
2. O cotidiano do trabalho .................................. 92
Direitos para esta edição 3. Relembrando a situação legal do trabalho do
menor .............................................................. 97
CORTEZ EDITORA 4. A escola e a reprodução do trabalhador .... 100
Rua Bartira, 387 - Tel.: (011) 864-0111
05009-000 - São Paulo - SP
Bibliografia.............................................................. 116
Impresso no Brasil - março de 1994 Indicações bibliográficas.......................................... 119
Apresentação

À escassez de dados estatísticos referentes ao ensino


noturno e ao diminuto número de pesquisas e textos
sobre o tema na época da primeira edição do livro
(junho, 1984), contrapõe-se hoje a rotina de apresentação
quase obrigatória de índices de matrícula, aprovação/re-
provação/evasão, diferenciando e caracterizando os pe­
ríodos letivos, confirmando o “noturno” como “problema”.
No entanto, a qualidade que esses dados apresentam
é aparente, os dados giram em falso pois a metodologia
que os produziu nem sempre é transparente. E não
conseguem atingir o cerne do problema do ensino
noturno que é a relação escola-trabalho. Contrapõe-se
também ao aumento de trabalhos de investigação, teses,
artigos, livros, muitos deles gerados nas universidades
e no contexto de programas de pós-graduação, por
professores e estudantes preocupados com a condição
de trabalhador/estudante do aluno dos cursos noturnos.
É inegável que, na última década, houve progressos
na construção do saber sobre escola e nesse contexto
a questão da escolarização no período noturno passou
a ser mais estudada, pesquisada, divulgada. Essa pro­
dução de conhecimento fundamentou, ainda que não
de maneira explícita, propostas para “melhoria” do
ensino, tanto em grupos de professores como de órgãos
oficiais — Secretarias de Educação de Estados e de
Municípios, principalmente nos Estados de São Paulo,
Paraná, Pernambuco, Bahia, entre outros. Centrando
Ao professor Olavo de Carvalho, no Estado de São Paulo, verifica-se que oito propostas
meu pai, foram elaboradas nos últimos dez anos, sendo que
cuja presença está muito viva apenas uma foi realmente implantada em algumas
nestas páginas. escolas pelo período de dois anos (1983/1985). A
maioria das propostas se refere quase que exclusiva­ volvidas essa taxa de atividade é mínima. No Brasil
mente a medidas estruturais e organizacionais, sem se a sua inserção no mundo do trabalho — formal e
deterem na elaboração de um projeto que concretize informal — tem se dado precocemente, prejudicando
o objetivo fundamental de examinar as possíveis tra­ e até impedindo a entrada na escola.
jetórias do ensinar/aprender no período noturno da A criança e o adolescente são o consenso único e
escola pública. É essa a questão fundamental: quais vital em torno do qual é possível delinear projetos de
são as condições para o ensino e a aprendizagem construção da cidadania. Sem eles chegaremos ao nada
quando o aluno é uma criança, um jovem, um adulto como povo. Se, dada a contingência histórica, admi­
já inserido no mundo do trabalho, como força produtiva, timos, temporariamente, que haja escolarização noturna
tendo na escola um dos únicos canais para a ciência, para uma infância e juventude que trabalha, a diferen­
a tecnologia e a cultura? Quais são as condições de ciação estabelecida pelo trabalho e condições de vida,
uma nova concepção de qualidade de ensino que precisa atuar como marca de identidade, apontando
responda às expectativas educacionais, sociais, políticas para mudanças imprescindíveis que realmente assegurem
da classe trabalhadora? uma qualidade de educação compatível com o exercício
O aumento da produção de conhecimento sobre o da cidadania.
período noturno da escola não assegura uma compreen­ A sétima edição deste livro evidencia que tem
são clara dos objetivos de uma escola para o traba­ havido preocupação com a escolarização dos alunos
lhador-estudante que possa reverter o processo de en­ trabalhadores. A reflexão decorrente do estudo dessa
sino. Há um “cotidiano” da escola noturna que trans­ realidade é passo importante e imprescindível na longa
forma a diferença em desigualdade geradora de difi­ trajetória de construção de um projeto político que
culdades na aprendizagem e considera o trabalho manual trabalhe também, a partir da escola, o novo processo
como empecilho para a prática teórica. Esse preconceito de construção da democracia e cidadania.
raramente reconhecido como tal pelos professores em­
perra o relacionamento entre o saber produtivo pela Célia Pezzolo de Carvalho
escola e o saber produzido pelo exercício de uma Ribeirão Preto, dezembro de 1993.
prática profissional.
O conhecimento sobre a situação dos alunos traba­
lhadores e sobre as tentativas de reformulação do
período noturno produzem um saber que pode e precisa
ser incorporado à escola visando construir um cotidiano
diverso do cotidiano fundado no senso comum e que
se constitui na rotina escolar repetida sem análise.
A análise da participação de crianças e adolescentes
no mercado de trabalho revela o nível de desenvolvi­
mento do país, sendo que nas economias mais desen­
Prefácio Não foi esse o caminho teórico e metodológico
escolhido pela autora. Célia Carvalho não se pretende
proprietária de seu objeto de análise, da sua “tribo”,
A realidade escolar presente no ensino de primeiro a Escola Estadual de Primeiro Grau “Cássio Ramos”,
e segundo grau sempre foi marcada por um conjunto em Ribeirão Preto. Como uma antropóloga que expe­
de discussões institucionais que, na maioria dos casos, rimenta, pela primeira vez, o contato com um grupo
nunca atentaram para o fato de que as possíveis soluções indígena, e que sofre na pele a diferença, desvenda
a serem equacionadas teriam que passar necessariamente através da observação direta, de entrevistas, questio­
pela análise da relação escola/processo produtivo, pois nários com alunos e professores a prática escolar em
seria redundante afirmar que as relações sociais de seu conjunto. Os professores expressam suas repre­
produção imprimem seu carimbo na prática escolar sentações da escola e do mundo, os trabalhadores-es­
que envolve tanto professor como alunos em sua tudantes revelam o mundo contraditório em que vivem,
vivência cotidiana. exprimem suas incertezas e revelam suas esperanças,
Se pensarmos no ensino noturno, esse cotidiano vai vivendo talvez um cotidiano menos massacrante do
apresentar um conjunto de características singulares, que o das oito horas diárias em que desgastam sua
pois recebe um alunado que já está inserido na produção força de trabalho. São “noites magníficas”, “bastante
capitalista e que chega à escola já esgotado pelas lides divertidas”, segundo alguns dos depoimentos, mas o
do trabalho que o explora e avilta. Resultado disso, é que é ruim mesmo “é ter de dormir depois das onze”,
o grande índice de evasões, reprovações, desistências, para enfrentar a rotina do dia seguinte.
fato que contribui para a formação de um contingente Ao procurar a articulação entre processo escolar e
de força de trabalho cada vez mais desqualificado, processo produtivo, a autora insere o “seu” objeto na
pois o que se aprende na escola nada tem a ver com trama institucional que permeia a forma capitalista de
o que se vive no mundo do capital. produzir e alerta aos responsáveis pela política educa­
Nesse cenário de crescentes desigualdades, a pesquisa cional no País, e particularmente do Estado, que soluções
de Célia Pezzolo de Carvalho procurou desvendar a tecnocráticas são inúteis e que o desempenho demo­
decantada “funcionalidade” da realidade escolar, op­ crático implica na redefinição do papel da escola
tando por um estudo de caso, numa nítida metodologia noturna — e não apenas dela — e no esforço incessante
antropológica, que procura desvendar no singular o de construção de uma produção social menos prenhe
conjunto de contradições que caracterizam a sociedade das grandes desigualdades atuais, mais participativa,
mais ampla. Sem dúvida, a abordagem qualitativa tem menos autoritária.
seus problemas, na medida em que pode ser tentada
a ver no uno, apenas um conjunto de padrões diferentes, Edgard de Assis Carvalho
de atores diferentes que exercitam suas práticas e que
nelas se afirmam. São Paulo, abril de 1984
O que está em jogo, portanto, não é a descoberta
Introdução de técnicas didáticas ou de providências administrativas
que melhorem ou até reformem os cursos noturnos. O
problema é mais amplo e muito mais complexo, pois
Este texto foi escrito como fruto de antiga e ainda exige o aprofundamento do estudo da relação entre
presente preocupação minha acerca da realidade social escola e processo produtivo, já que essa relação perpassa
do ensino noturno no Brasil. Apesar da escassez de o cotidiano escolar e caracteriza tanto o corpo discente
dados estatísticos, é possível perceber que grande parte quanto o docente. A situação vigente levanta questio­
da população estudantil brasileira, nos diferentes graus namentos que exigem reflexões mais aprofundadas.
de ensino, só se escolariza dada a existência do período Exige ponderar se aceitamos como normal a relação
noturno, e que são altos os índices de evasão e trabalho diurno-escolarização noturna tal como se vem
repetência, principalmente no tocante ao primeiro grau. dando há muitos anos em nossa realidade escolar. Ou
Nossa realidade é esta: as escolas estaduais estão se aceitamos o desafio de tentar superar essa situação
programadas para funcionar no período diurno, mas repensando e reavaliando a concepção de trabalho
no Estado de São Paulo, 30% dos que cursam o Io produtivo em nossa formação social.
grau freqüentam o período noturno, e dos 35% dos
No momento em que publicamos este texto, multi­
jovens entre 14 e 18 anos que cursam o 2o grau 60%
plicam-se estudos e reuniões dos órgãos decisórios de
o fazem à noite. Duas evidências aparecem e nos
nossa educação, sobre o curso noturno, principalmente
desafiam: grande parte da nossa infância e juventude
no âmbito estadual, procurando soluções que visem
só estuda porque tenta “combinar” trabalho e estudo,
atenuar as dificuldades de freqüência, permanência e
e uma parcela, talvez maior, não consegue estudar
aproveitamento. Entre as sugestões, algumas são drás­
porque necessita dedicar-se integralmente ao trabalho.
ticas, como a que acena para a transformação de todos
As poucas análises realizadas apontam insatisfações
os cursos regulares noturnos de primeiro e segundo
quanto ao aproveitamento dos estudos, à disciplina e
graus em supletivos, a exemplo do que, infelizmente,
às condições gerais de ensino. Mas nenhuma se detém
já está ocorrendo no Rio de Janeiro e no Rio Grande
em conhecer melhor a especificidade desses cursos: o
atendimento ao estudante-trabalhador. O aluno matri­ do Sul. Tal providência contribuirá para elitizar cada
culado no período noturno, na sua grande maioria, já vez mais o ensino, deixando como única oportunidade
está engajado em trabalho assalariado durante o dia, escolar para as classes mais pobres um ensino “resu­
quase sempre em turno de oito horas. O estudo à noite mido”, “condensado”, que dificilmente colocará o tra­
parece representar um prolongamento da jornada de balhador em face dos conteúdos de conhecimento cien­
trabalho, por mais quatro a cinco horas, tanto para o tífico necessários para sua organização e desenvolvi­
aluno, como, muitas vezes, para o professor. E o mento autônomo. Outras sugestões oferecem alternativas
trabalho precoce desses alunos decorre da necessidade mais concretas, como o “Projeto Noturno”, que a
de sobrevivência das famílias das classes trabalhadoras Secretaria de Educação de São Paulo está implantando
no momento social que atravessamos. em 115 escolas estaduais (uma em cada Delegacia de
Ensino), na forma de projeto-piloto a fim de testar as Tentativas de modificar a situação problemática dos
formas administrativas, didáticas e pedagógicas que cursos noturnos, por meio de medidas administrativas
deverão tomar as reformas a serem posteriormente ou didáticas, como diminuição do horário das aulas,
ampliadas para toda a rede estadual de Io e 2o graus. aumento do número de anos letivos, dosagem dos
A pesquisa ora publicada, originariamente apresen­ conteúdos curriculares, não alteraram a constituição
tada como dissertação de Mestrado na Universidade básica da escola, e isto porque essas mudanças não
Federal de São Carlos, procurou qualificar a escola tocam no ponto fundamental. Enquanto a condição de
noturna e ouvir a representação que dela fazem os trabalhador-estudante não for questionada pela escola,
envolvidos nesse tipo de ensino. Esperamos que essa a situação não terá possibilidade de ser transformada,
voz seja ouvida e suscite reflexões que auxiliem a se bem que não basta que só a escola realize esse
solução dos problemas desse período escolar, de maneira questionamento. E o próprio conceito de trabalho que
que beneficie todos os sujeitos dessa modalidade de precisa ser reformulado.
ensino.
Sem o diálogo entre o trabalhador e o conteúdo
Ao iniciarmos a pesquisa, pretendíamos questionar
real da aprendizagem, sem o diálogo entre a prática
as condições reais de funcionamento dos cursos no­
profissional e a prática escolar, não haverá possibilidade
turnos, as razões de sua existência, as relações entre
escola e atividade produtiva, principalmente quando o de que o conhecimento adquirido através do cotidiano
aluno já é um trabalhador. profissional seja reelaborado a partir da prática escolar.
Sem esse diálogo, dificilmente se conseguirá que o
As análises das observações sistemáticas e dos dis­
cursos dos entrevistados, se não forneceram respostas trabalhador conheça os meios de superação de sua
definitivas, apontaram algumas conclusões provisórias. condição social e os limites e possibilidades que lhe
são impostos pela sociedade mais ampla.
Quanto às condições de funcionamento da escola
noturna, viu-se que, desde a sua instalação, o período As razões da existência dos cursos noturnos, bem
noturno foi “reservado” ao trabalhador-estudante e sem­ como as de seu funcionamento, precisam ser procuradas
pre considerado um período em que o estudo é “mais fora da escola, já que o trabalho dos meninos e sua
sacrificado”. Parece ser evidente não só através dos escolarização à noite fazem parte da presente trajetória
dados desta investigação, mas também de outras pes­ de vida da família das classes trabalhadoras. O trabalho
quisas citadas no texto, que o aproveitamento da es­ infantil é necessário para a reprodução social da família,
colarização é reduzido, e que não há condições de se e essa necessidade não pode ser satisfeita com soluções
exigir maior empenho por parte de pessoas que traba­ acadêmicas ou burocráticas. Apesar da quase impossi­
lham de dia. bilidade de conciliar as duas atividades, os meninos
Nesse sentido, a diferenciação entre os períodos, persistem, ignorando os sucessivos fracassos escolares,
percebida por todos os integrantes da escola, e justi­ embalados pela crença de que a escolarização poderá
ficada pelo fato de que “os alunos já trabalham”, melhorar suas condições profissionais e, portanto, de
funciona, na prática, como atitude discriminatória. sobrevivência.
A respeito das relações entre escola e processo Capítulo I
produtivo, há muito o que estudar ainda. Poder-se-ia
afirmar que, pela rotina escolar, a força de trabalho é
preparada para ser “livre” ofertante no mundo da PONTOS DE PARTIDA
mercadoria. Os alunos saem da escola sem uma qua­
lificação específica, técnica, mas preparados para apren­
derem no processo produtivo e para aceitar (no caso Ao fazer a clássica “revisão bibliográfica” a que a
dos alunos dos cursos noturnos) uma colocação inferior maioria dos pesquisadores se obriga, encontrei dois
na hierarquia salarial, pois freqüentando cursos “fracos”, autores, Lautier e Tortajada (1978), pouco conhecidos
foram alunos “fracos”, terão um salário “fraco”. Mas, entre nós, preocupados com a escola como instituição
ao mesmo tempo, acreditam que, se continuarem es­ que, mais do que representar papel relevante como
tudando, poderão alcançar um futuro melhor. A nível transmissora de conhecimentos, participa, ao mesmo
individual, essa formulação ideológica colabora para a tempo, tanto da reprodução do trabalhador como do
reprodução da força de trabalho e auxilia a reprodução empregador. Coexistem, portanto, na Escola, forças
do trabalhador coletivo. Essa “cooperação” na repro­ contraditórias. Sua proposta aparentemente igualitária
dução da força de trabalho é realizada não só através não é utilizada igualmente por todos os que nela se
do que ela ensina, mas também através do que ela matriculam. Instituição complexa, cuja freqüência é
deixa de ensinar. Da ótica da escola, o que ela ensina obrigatória até determinada idade e por um período
será materializado no diploma, que nem sempre é de tempo determinado, aparentemente “formadora de
prova de que se aprendeu realmente, mas condição bons cidadãos”, mas suas funções escondem armadilhas.
para ocupar posições na hierarquia salarial. E o que Muitos estudos têm sido realizados, por diversas orien­
não ensina é materializado na inculcação de atitudes tações metodológicas, chegando a diferentes conclusões,
disciplinadas e submissas que são essenciais para a mas a gênese da escola e todas as implicações de seu
reprodução das condições gerais do processo de pro­ funcionamento para o homem de hoje ainda não estão
dução social. suficientemente analisadas. Entre os estudos, os mais
Em síntese, a escola não paira acima do Estado conhecidos entre nós são os realizados por duas duplas
nem acima dos que a fazem de dentro, no dia-a-dia, de autores: Bourdieu e Passeron (1970), Baudelot e
dos que a “produzem” diariamente através da prática Establet (1975 e 1977).1 Penso que, apesar de produ­
zidos a partir de análises concretas de funcionamento
escolar no espaço pedagógico. Mantendo vivo o ques­
da escola na França, tais trabalhos fornecem argumen­
tionamento, e atentos à contradição que a escola ali­
tações que nos parecem válidas, para nossa realidade,
menta e reproduz, talvez seja possível despertar em
cada pessoa a condição de educador, do educador que
se educa e que educa a partir do compromisso assumido 1. BOURDIEU & PASSERON, 1975; BAUDELOT & ESTA­
com a realidade histórica em que vive. BLET, 1976, 1979 e LAUTIER & TORTAJADA, 1978.
desde que se deixe de lado tanto a terminologia como “divisão social do trabalho que espera os indivíduos
a especificidade do sistema escolar francês. à saída do processo de escolarização já estava
determinada nos seus mecanismos, desde o início
As reflexões de Lautier e Tortajada muito me au­ desse processo” (1976, p. 123).
xiliaram no questionamento e interpretação da realidade
do ensino noturno e me refiro a eles sempre que A escola é quase exclusivamente um “aparelho de
necessário. distribuição” dos indivíduos em categorias sociais pre­
Discutidas e utilizadas como fundamento de vários determinadas. Favorece os já favorecidos, exclui, repele
estudos brasileiros na área da educação, as análises de e desvaloriza os já desfavorecidos. Esse “aparelho de
distribuição” oculta sua natureza, apresentando-se como
Bourdieu, Passeron, Baudelot e Establet procuraram
tecnicamente determinado. Dessa forma, a divisão social
mostrar que o objetivo da democratização do ensino,
do trabalho determina a divisão da escola em duas
tão difundido nas últimas décadas pelos discursos go­ rede de ensino que levam à reprodução do proletariado
vernamentais, pela legislação de ensino e pelos meios e à reprodução da burguesia em redes distintas.2
de comunicação, não foi atingido, embora continue a Apesar de partirem de pressupostos diferentes e
ser apresentado como fundamental. Nos estudos de utilizarem métodos de análise diversos, os dois estudos
Bourdieu e Passeron, transparece a idéia de que a se assemelham. Para Bordieu e Passeron é a hierarquia
reprodução das classes sociais se dá quase que meca­ escolar, confirmando a hierarquia cultural, de origem
nicamente através da escola, mas influenciada pelo familiar, que reproduz a divisão social do trabalho.
“Capital Cultural” que o aluno traz de sua família, Para Baudelot e Establet é a divisão social do trabalho
criando um habitus próprio de cada classe social que que determina a divisão em redes escolares. Concordam
a escola se encarregará de reproduzir inevitavelmente. com a existência de uma quase propensão da burguesia
A teoria da violência simbólica, que funda tais análises, a se reproduzir através da inculcação ideológico-cultural,
explica a arbitrariedade da ação pedagógica que impõe transmitida inexoravelmente quer pela família quer pela
conteúdos previamente selecionados. escola.
Assim, a escola, ao receber alunos das classes Esses estudos sofreram várias críticas, mas para o
âmbito deste trabalho, limitar-nos-emos a algumas,
populares, relega-os a instituições e carreiras escolares
formuladas por Lautier e Tortajada (1978, p. 154-57).
encerradas em um destino escolar previamente traçado.
No que diz respeito ao conceito de classe empregado
Em decorrência, a desigualdade social estaria transfor­ pelos quatro autores, as classes são definidas, por eles,
mada, a partir das práticas pedagógicas, em desigualdade fora do processo de produção. Assim Baudelot e Es­
propriamente escolar, ou seja, a desigualdade de nível tablet, ao utilizarem dados estatísticos referentes à
ou de realização escolar esconde e consagra uma origem “social” dos pais dos alunos, não levam em
desigualdade de oportunidades de acesso aos graus
mais elevados de ensino. Baudelot e Establet partem
2. LAUTIER & TORTAJADA, 1978, p. 174.
da hipótese de que a
conta os lugares reais que os pais ocupam nas relações O fato de que a produção de mercadorias se constitui
de produção. Criticando a “mecanicidade das duas em um empreendimento coletivo, mas ao mesmo tempo
teorias”, Lautier argumenta que elas esqueceram as dividido em trabalhos concretos diferentes, é que de­
lutas sociais e políticas que, através de sua historicidade, termina a função da escola e o tipo de qualificação
constituíram a escola a partir também das reivindicações que ela produz. Essa qualificação não consiste em uma
populares. Sugere a necessidade de se elaborar uma preparação técnica específica, mas em uma treinabili-
“história da escola” que mostre essa inter-relação, que dade regular. O futuro trabalhador sai da escola dotado
é nítida pelo menos para o caso francês. Cita casos de conhecimentos e habilidades que só se tornarão
concretos em que a burguesia tomou medidas de caráter qualificação quando aplicadas ao processo de trabalho,
eduçacional atendendo a reivindicações do proletariado, ou seja, a
inclusive no caso da formação das redes de ensino
diferenciadas. “qualificação é a relação do trabalhador com o
Nesse sentido, a escola, se não se insere no contexto processo de trabalho, relação essa que é determinada
da luta de classes, reproduz o sistema. Porém, dentro socialmente”34
das próprias condições de contradição do modo de
O trabalhador, no caso principalmente do operário da
produção capitalista, cria espaços para resistência e
grande indústria, não possui propriamente técnicas mas
superação. As reformas educacionais não brotam do
rudimentos de técnicas que só serão aplicadas dentro
interior da escola nem saem exclusivamente do poder
de uma relação de submissão ao capital. A força de
estatal, mas são também discutidas ao nível das relações
trabalho de cada trabalhador individual não tem um
entre as classes sociais em seu conjunto, não dependendo
valor pré-constituído, já que a hieraquização dos salários
apenas das determinações das classes dominantes.
não depende apenas da qualificação individual mas
Segundo esses dois autores, também da posição do trabalhador no processo produ­
“a Gênese da escola só pode ser interpretada quando tivo.
em referência ao problema da entrada do trabalhador Na linha desse raciocínio, a escola situa-se como
no processo de produção”. instituição que contribui para a reprodução do traba­
lhador à medida que prepara a força de trabalho para
Chama a atenção para o fato de que, no capitalismo, ser “livre”, ofertante no mundo da mercadoria.
interessa a reprodução do trabalhador coletivo e não As críticas às análises de Boudieu-Passeron e de
do conjunto de indivíduos trabalhadores. A construção Baudelot-Establet, bem como a exposição de Lautier-
de uma teoria da escola, na qual a escola é vista como Tortajada, mostram que pode ser funcional para o
reproduzindo socialmente a força de trabalho, deve sistema capitalista que se continue a colocar como
partir da concepção da unidade do trabalhador coletivo. central a dimensão do papel ideológico da escola ou

3. LAUTIER & TORTAJADA, 1978, p. 125.


4. LAUTIER & TORTAJADA, 1978, p. 183.
a reprodução quase que mecânica das classes sociais e jovens que se esforçavam para combinar trabalho
e do sistema. Estudos centrados basicamente em uma exaustivo diurno com estudo à noite, sentimos a ne­
análise ideológica ou na inexorabilidade dos mecanis­ cessidade de sistematizar a relação entre vida escolar
mos de reprodução deixam de perceber quais as relações envida de trabalho dos trabalhadores-estudantes, a fim
reais entre escola e processo produtivo desconhecendo, de perceber, além das aparências, os motivos da exis­
assim, os mecanismos concretos de exploração e as tência dos cursos noturnos e suas condições reais de
possibilidades de libertação da classe trabalhadora. funcionamento.
Tomamos como referencial empírico a Escola Es­
tadual de Primeiro Grau “Cássio Ramos” (nome fictício),
A PESQUISA em Ribeirão Preto, Estado de São Paulo.
Funcionando em bairro que abriga pequenas indús­
Tendo presente tais linhas de análise, esta pesquisa trias (fábricas de sapatos, de fivelas, de confecções,
não se prende estritamente ao estudo da dimensão de equipamentos para autos), estabelecimentos comer­
ideológica da escola ou do seu papel de reprodutora ciais de pequeno porte (lojas, boutiques, farmácias,
do sistema. Tomando alunos da escola noturna como supermercados) e residências, a “Cássio Ramos” teve,
sujeitos da pesquisa, procura conhecer representações desde o seu início, clientela certa para o período
dos trabalhadores-estudantes, com o objetivo de entender noturno, pois nos pequenos estabelecimentos é grande
um pouco mais as conexões reais entre escola e o número de trabalhadores de menor idade; por outro
processo produtivo. Estabelece como ponto de partida lado, às empregadas domésticas só resta o período da
a observação e depoimentos de um grupo de meninos noite para estudar e, como quase não há cursos su­
e meninas que estudam à noite, aspirando a um “futuro pletivos gratuitos, a única solução é matricular-se nos
melhor”, e que trabalham oito e dez horas durante o cursos regulares, mesmo estando em faixa etária mais
dia, a fim de ajudar a família no provimento da sua elevada.
subsistência. Esta temática não foi propriamente esco­ A coleta de dados realizou-se de setembro de 1978
lhida mas, de certa forma, imposta pela vivência da a junho de 1979, basicamente através da observação
situação do trabalhador-estudante de frações de classe direta e sistemática, aplicação de questionários entre
de Recife e de São Paulo, durante vários anos de os alunos, realização de entrevistas com alunos matri­
trabalho em instituições ligadas à escolarização de culados e desistentes, pessoal administrativo e docente
crianças e jovens que tentavam combinar trabalho e da Escola “Cássio Ramos”. Tivemos acesso, ainda, às
estudo, como a Organização de Auxílio Fraterno, en­ redações dos alunos de 5a série, colocadas à nossa
tidade assistencial que se ocupa com a educação de disposição pela professora de Português.
menores vendedores ambulantes e da Campanha Na­ Consultamos também os prontuários dos alunos,
cional de Escolas da Comunidade, que mantém escolas arquivos e atas da Secretaria da Escola, dados estatís­
noturnas de Io e 2o graus, para jovens que trabalham. ticos escolares na Delegacia Regional e na Secretaria
Após vários anos de prática profissional junto a menores de Educação. Mantivemos contatos com diretores de
dizer, uma reflexão, um pensar sobre, principalmente
nas entrevistas em grupos, onde as opiniões eram
Capítulo II
questionadas pelos companheiros.
A fonte básica de informações foi o discurso dos CONTRIBUIÇÃO PARA UM
alunos e integrantes dos cursos noturnos apreendido
através dos questionários e entrevistas. O eixo refe­ HISTÓRICO DOS CURSOS
rencial do processo de interpretação do material colhido NOTURNOS
foi o conteúdo desses discursos com a incorporação
das informações contidas nas fontes primárias e se­
cundárias consultadas.
Por esse motivo, por utilizar básica e preferencial­ As primeiras classes noturnas datam dos tempos do
Império. Há referências ao ensino primário de adoles­
mente tais discursos, o texto apresenta-se com duas
centes e adultos analfabetos ao longo de toda a legis­
características principais: retrata o senso comum e é
lação escolar do Império, das Províncias, e mais tarde
repetitivo. Ao retratar o senso comum, corre o risco
dos Estados. Registros de 1870-1880 dão conta de
de atribuir critério de verdade ao discurso “popular”, algumas características desse tipo de ensino: “aos que
que sabemos ser expressão de hegemonia da classe a idade e a necessidade de trabalhar não permitem
dominante, mas, ao mesmo tempo, é espaço de ela­ freqüentar cursos diurnos”, servem “ao homem do povo
boração da prática transformadora. que vive do salário”, funcionam em locais improvisados
A utilização constante de tais discursos serviu à ou cedidos, seus professores recebem apenas uma pe­
intenção explícita de qualificar o mundo do trabalha- quena gratificação para se encarregar dessas aulas.
dor-estudante e sua pauperização crescente, visando Poucos anos após sua instalação, notou-se que as
oferecer dados para o questionamento e a reflexão de escolas noturnas não estavam produzindo “os resultados
aspectos contraditórios do ensino de Io grau, gerados esperados” e que a freqüência, grande no início das
no contexto da escola brasileira de hoje. matrículas, diminuía sensivelmente no decorrer do ano
letivo. Porém, tais cursos continuaram a ser criados,
“pois ainda assim não convém desistir deles”.5 Tais
notas documentam como a gênese dos cursos noturnos
está associada ao atendimento ao jovem e adulto anal­
fabeto, já engajado em atividades produtivas e que não
pode freqüentar escola na “época certa”.
— A criação de cursos noturnos para atender à
continuação dos estudos é mais recente e são esses
cursos que nos interessam no momento.

5. BEISIEGEL, 1974.
1. A EXPANSÃO DO ENSINO MÉDIO EM toral: pequenas localidades do interior e bairros peri­
SÃO PAULO féricos nas grandes cidades. Em tais locais a reivin­
dicação era mais intensa, seja pela inexistência de
Durante muitos anos o Estado de São Paulo contou escolas nas imediações, seja porque a situação econô­
com três ginásios estaduais, criados simultaneamente mica da população não permitia a matrícula em escolas
pela Lei n° 88 de 08.09.1892 e instalados nas cidades particulares. Durante a XXXII Reunião Anual da SBPC,
de São Paulo, Campinas e Ribeirão Preto. A partir da em julho de 1980, Sposito, M. P. fez uma Comunicação
década de trinta, a população paulista passou a pleitear na qual relatava resultados parciais de uma pesquisa
a criação de maior número de ginásios mantidos pelo a respeito das vinculações entre expansão da educação
Estado, pois a rede de ensino secundário era quase popular e populismo na década de 50. Verificou, através
exclusivamente constituída por entidades privadas, lei­ da análise das atas das associações de amigos de bairro,
gas ou confessionais. da periferia de São Paulo, que uma das reivindicações
A descoberta da escola como meio de ascensão mais constantes era a instalação de ginásios. E tais
social aumentando a procura por ingresso em escolas reivindicações só logravam atendimento quando con­
de nível médio, a industrialização crescente e o interesse tavam com o apoio de algum vereador ou candidato
de políticos que se utilizaram da reivindicação educa­ a cargo político. Tais ginásios eram sempre instalados
cional como forma de atrair a clientela eleitoral, foram à noite em prédios de grupos escolares, o que deixa
alguns dos fatores que tornaram o ambiente propício entrever a realidade, ou seja, a falta de interesse do
à multiplicação dos ginásios, que se acelerou na década Estado em prover de maneira eficiente às reivindicações
populares.
de cinqüenta.
Até 1940, havia em São Paulo apenas 40 ginásios Beisiegel admite que, embora a expansão possa ser
oficiais, sendo 3 na capital e 37 no interior. Em 1950, explicada a partir das transformações sociais que fizeram
o total subiu para 155, sendo 12 na capital e 143 no do ginásio um objeto de reivindicação nas diferentes
interior. No período de 1953 a 1958, anos pré-eleitorais localidades, a maneira pela qual se deu a expansão
e eleitorais, esse número subiu para 359, sendo 65 na foi determinada primordialmente por interesses políti-
co-eleitorais. Como o atendimento das reivindicações
capital e 294 no interior. E em 1969, havia 406, sendo
representava, para “os políticos” interessados apenas
84 na capital e 322 no interior.
em sua eleição, o fim do processo, foram afastadas
Estudos de Beisiegel e Pereira6 sugerem que a
as preocupações relativas à eficiência da rede escolar
expansão da rede de escolas secundárias foi dirigida
e as relativas à adequação dos modelos de escolas às
por interesses estranhos à educação. No ensino público,
novas condições sociais e econômicas do Estado.
a localização de novas escolas foi certamente orientada
Uma das características dessa expansão consistiu no
para as regiões que garantiam maior rendimento elei­
aproveitamento de prédios de grupos escolares para a
instalação de ginásios noturnos. Esse recurso de emer­
6. BEISIEGEL, 1964 e PEREIRA, 1969. gência, empregado para o aumento da capacidade de
matrícula, já que não havia disponibilidade de verbas do grupo pensavam e agiam como donos da escola,
para a construção de prédios, principalmente na capital, do prédio e de tudo o que ele abrigava.”
cristalizou-se como definitivo, e a maioria dos ginásios
Como observa Pereira, a partir de uma concepção
permaneceu muito tempo em instalações precárias.
patrimonialista, o ginásio passava a ser visto como
Em 1959, a situação dos prédios de escolas estaduais intruso e seus professores, funcionários e alunos, como
de ensino secundário e normal era a seguinte: havia presenças indesejáveis, criando graves problemas ad­
267 (67,77%) prédios de alvenaria de propriedade ministrativos e impedindo, inclusive, o bom andamento
pública especialmente construídos para o ensino secun­ dos trabalhos pedagógicos. Muitas vezes os ginásios
dário e desses, apenas 14 se localizavam na capital. eram obrigados a manter em uma mesma sala a Di­
O total de prédios de grupo escolar ou de outra retoria, a Secretaria e a Sala de Professores; não
instituição, onde funcionavam escolas secundárias, era dispunha do uso da Biblioteca, do Laboratório, do
de 127 (32,23%), notando-se que 70, correspondendo local para recreação e até de número suficiente de
a 55% desse total, se localizavam na capital. salas de aula, dada a delimitação “territorial” rígida,
A situação material da rede de escolas secundárias imposta pelo outro estabelecimento escolar.
nos municípios do interior era relativamente satisfatória, Esse “preconceito” contra o ginásio talvez tenha
pois, submetido a pressões constantes das populações uma de suas explicações no fato de que a clientela
interioranas, em geral prestigiadas pelos representantes era constituída, em geral, por trabalhadores-estudantes,
políticos locais -na Assembléia Legislativa, o governo de faixa etária superior à dos alunos do grupo escolar
estadual localizou nos pequenos municípios a grande e sendo os alunos do noturno responsabilizados por
maioria das construções destinadas ao ensino secundário todos os estragos materiais e possíveis depredações do
oficial. Essa medida, adotada sem nenhum planejamento prédio.
prévio, ocasionou a construção de ginásios em locali­ Percebe-se que a expansão do ensino secundário se
dades cuja taxa populacional não justificava a criação deu, em São Paulo pelo menos, a partir da instalação
de escolas. Em decorrência verificaram-se, portanto, de ginásios no período noturno. Em um primeiro
vagas ociosas em muitas cidades do interior e falta momento, obedeceu a uma necessidade de aproveita­
de vagas em cidades maiores. mento do espaço, já que não havia possibilidade de
A instalação dos ginásios em prédios de grupos construção de prédios próprios, principalmente na pe­
escolares, mesmo funcionando à noite, em período em riferia das cidades maiores. Porém, funcionando à noite,
que o curso primário não o utilizava, não garantia o nos bairros mais carentes, era quase inevitável que a
acesso a todas as dependências do estabelecimento. clientela já estivesse engajada, no período diurno, em
atividade produtiva regular. Dessa maneira, a escola­
“Freqüentemente, havia desentendimentos entre a rização no período noturno ficou caracterizada como
direção do grupo escolar e a direção do ginásio, já a oportunidade educacional “reservada” para os que
que, em geral, diretor, professores e funcionários necessitavam combinar estudo e trabalho assalariado.
2. ALGUNS ESTUDOS tanto das escolas públicas quanto das particulares. Com
dados dessa mesma pesquisa, ela analisa as desigual­
O desenvolvimento do ensino médio, na década de dades no acesso à Educação (GOUVEIA, 1967, p. 32-43)
sessenta, suscitou várias pesquisas, sendo uma das e verifica que são apenas os cursos noturnos que
maiores a realizada por Gouveia e Havighurst. Tanto apresentam uma proporção maior de alunos de origem
o trabalho de Gouveia como os que dele derivaram, operária. Percebe também que, embora o Estado man­
adotaram como linha de pesquisa verificar tenha cursos noturnos para atender aos estudantes que
precisam trabalhar durante o dia, o tipo de curso
“a relação entre ‘economia e educação’ no contexto oferecido e as intenções ou as possibilidades desses
da sociedade brasileira de nossos dias”. estudantes não coincidem.
Por essa razão, houve maior preocupação em descrever Ao vigorar, na época, a diversificação de ramos no
a situação sócio-econômica dos alunos do que em ensino médio, o trabalhador-estudante só poderia “pre­
analisar o ensino ministrado. ferir” os cursos que oferecessem perspectivas ocupa-
O trabalho surgiu de um convênio firmado em 1963 cionais mais imediatas, como os cursos comerciais.
entre o Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos, o Dada a escassez de vagas e os critérios de < admissão
Ministério de Educação e Cultura e o Centro de nas escolas públicas, restava para a maioria desses
Educação Comparada da Universidade de Chicago, alunos o período noturno das escolas particulares. Como
objetivando realizar estudos sobre a educação de nível expressa Gouveia,
médio em diferentes regiões do Brasil. Congregou um
número grande de pesquisadores nos cinco centros “as pressões sociais e políticas que se encontram
estudados (São Paulo, Rio Grande do Sul, Pernambuco, por detrás dos padrões de expansão têm mantido
Ceará e Pará), procurando descrever e explicar os os filhos de operários, ou fora do ensino médio,
aspectos principais desse nível de ensino e sua clientela. ou concentrados em cursos comerciais, ou secundá­
Deu origem a diversos trabalhos, sendo que em quase rios, de segunda categoria”.
todos há considerações sobre o curso noturno, encarado
sempre como uma situação problemática.7 Anos mais tarde a autora, retomando o mesmo tema,
“a desigualdade de oportunidades educacionais”, com­
Com um estilo descritivo, Gouveia sugere que parando os dados de 1963 com dados colhidos em
1976, constata algumas mudanças. Mostra, por exemplo,
“alunos com histórico de repetência, especialmente
que houve elevação da taxa de sobrevivência escolar
no secundário, são mais freqüentes nos cursos no­
e aumento da representatividade das camadas populares
turnos do que nos diurnos”,
nos níveis de Io e 2o graus de ensino. No entanto,
permanece marcada discriminação verificada principal­
7. DIAS, 1967. mente na composição social da clientela, conforme os
horários de funcionamento dos cursos. Tanto nos es­ Não há nenhuma alusão a períodos; apenas, no
tabelecimentos públicos como nos particulares, os alunos Capítulo II, “Do horário e regime de trabalho”, artigo
dos cursos noturnos são, em sua maioria, de origem 58, lê-se:
mais modesta do que os alunos do período diurno. Ou
seja, o período noturno é reservado para “os filhos de “o horário de trabalho dos servidores da escola,
observadas a legislação em vigor e as normas bai­
trabalhadores manuais, sendo eles mesmos já trabalha­
dores regulares”.8 xadas pela administração superior, é fixado de acordo
com as necessidades do ensino, atendidas as pecu­
A partir dos estudos citados, vemos que a situação liaridades da escola e conveniência da administra­
dos cursos noturnos a nível de Io grau, seja quanto à ção”.
organização escolar, seja quanto ao tipo de clientela
que atende, não sofreu grandes alterações desde a sua Talvez a alusão ao curso noturno esteja nos termos
instalação. Continua sendo o lugar de escolarização “necessidades do ensino, atendidas as peculiaridades
dos que não podem ter o “privilégio” de dedicar-se da escola”.
apenas ao estudo. No Capítulo III, “Da Transferência”, entre os itens
enumerados que permitem transferência até o final do
3o bimestre, estão: “necessidade de trabalho” e “pro­
3. A LEITURA DA LEGISLAÇÃO ESCOLAR blemas econômicos”, que certamente caracterizam a
necessidade de freqüentar o período noturno, na mesma
escola ou em outra que o ofereça. Porém, no regimento
O exame da legislação escolar evidencia, realmente,
não há nenhuma referência mais explícita.
que se passou a exigir prova de exercício de atividade
A nível estadual, a Lei n° 10.038/68, que “dispõe
remunerada para a matrícula nos cursos noturnos, exi­
sobre a organização do Sistema de Ensino do Estado
gência não existente no início do funcionamento do de São Paulo”, sistematiza, na Seção IV, “Dos Cursos
período noturno. em Funcionamento Noturno”, dois artigos, nos quais
A leitura da legislação escolar de Io grau talvez se lê:
auxilie a esclarecer o funcionamento e a existência
dos cursos noturnos. “Ressalvada a inexistência de vagas em curso diurno
correspondente, não será admitido à matrícula, em
A fim de situar o ensino de Io grau noturno no
ciclo ginasial de funcionamento noturno, o candidato
contexto da legislação escolar vigente, procuramos ana­ que não tiver idade mínima de 14 (catorze) anos
lisar o Regimento Comum das Escolas de Primeiro completos ou a completar até o dia 30 de junho e
Grau, que rege tanto a Escola “Cássio Ramos” como não apresentar prova de exercício regular de atividade
todos os estabelecimentos congêneres. diurna remunerada” (Artigo 46, páragrafo único).
Na literatura consultada e nas entrevistas realizadas,
8. GOUVEIA, 1978, p. 61-68. não encontramos casos de necessidade de matrícula à
noite por falta de vagas no diurno. São muitas as A prova de estar trabalhando é a fotocópia da página
escolas que mantêm os cursos de 5a a 8a série somente do contrato de trabalho na Carteira Profissional, con­
no período da manhã e da noite, restando à tarde forme normas da legislação escolar. Porém, como de­
muitas salas ociosas. Fica bem claro, no estatuto legal, clarou uma das diretoras entrevistadas:
que o período da noite é reservado para os que
trabalham durante o dia. Neste sentido é a entrevista “...quando iniciei como Diretora, quis cumprir direito
com o pessoal administrativo da Escola “Cássio Ramos”: a legislação e solicitei aos alunos que trabalhavam
que trouxessem a Carteira Profissional. No dia se­
“O da manhã é o mais selecionado. Os que se guinte, um empresário das imediações, em cuja
matriculam nesse período são aqueles que ‘fecharam fábrica vários alunos trabalhavam, procurou-me para
nota’ no final de novembro e inícios de dezembro. dizer da impossibilidade de registrar os menores.
São os primeiros a se matricularem. Os da tarde Caso fosse imprescindível assinar a carteira, despe­
são os que ficaram em mais provas ou quando não diría os meninos, já que realmente tinha muitos
há mais vagas de manhã, à noite, é sempre por problemas com eles e era quase um favor empre­
necessidade de trabalhar de dia”. E em entrevista gá-los. Assim, passei a fazer como os demais di­
com uma aluna: “O período da manhã é para os retores: aceitar um atestado em papel timbrado, que
riquinhos; o da noite é para os necessitados”. poderá ser fornecido também para alunos que não
No artigo 47, ao tratar dos currículos, dispõe que trabalham mas são parentes ou conhecidos dos donos
há modificação só no que se refere “a necessária de empresas.”
adaptação com base no número de dias letivos e de Ainda:
horas de ensino”. Na realidade, a adaptação atual é
só a diminuição de cinco minutos na duração de cada “não é exigência, mas recomenda-se a idade mínima
hora-aula, apesar de haver portaria ministerial de 1965 de 14 anos para a freqüência aos cursos noturnos.
recomendando diminuição das horas diárias de trabalho Para a matrícula com idade inferior o candidato
escolar nos cursos noturnos e a ampliação no número deve apresentar comprovante de atividade remune­
de dias letivos. rada durante o dia, ou impedimento grave. A reco­
A nível federal há algumas indicações: mendação é aplicável apenas ao Sistema Federal,
cabendo aos CEEs legislar sobre o assunto como
“a matrícula dos alunos em cursos noturnos só será lhes parecer” (Parecer CFE n° 132/62, de 4/7/62).
aceita para candidatos com idade mínima de 14
anos, casos especiais só serão aceitos se não houver Vê-se que não há exigência estrita para que a idade
outro estabelecimento que ofereça as mesmas opor­ mínima seja 14 anos. De acordo com a “idade escolar”,
tunidades ou se o candidato fizer prova de atividade um aluno poderá cursar a 5a série com 10 ou 11 anos;
remunerada, ou de impedimento grave para cursar se “fizer prova de atividade remunerada” ou se houver
as escolas diurnas” (Portaria Ministerial n° 31, de “impedimento grave”, poderá cursar escola noturna
25/4/62). mesmo com essa idade. O critério é flexível e obscuro.
noite por falta de vagas no diurno. São muitas as A prova de estar trabalhando é a fotocópia da página
escolas que mantêm os cursos de 5a a 8a série somente do contrato de trabalho na Carteira Profissional, con­
no período da manhã e da noite, restando à tarde forme normas da legislação escolar. Porém, como de­
muitas salas ociosas. Fica bem claro, no estatuto legal, clarou uma das diretoras entrevistadas:
que o período da noite é reservado para os que
trabalham durante o dia. Neste sentido é a entrevista “...quando iniciei como Diretora, quis cumprir direito
com o pessoal administrativo da Escola “Cássio Ramos”: a legislação e solicitei aos alunos que trabalhavam
que trouxessem a Carteira Profissional. No dia se­
“O da manhã é o mais selecionado. Os que se guinte, um empresário das imediações, em cuja
matriculam nesse período são aqueles que ‘fecharam fábrica vários alunos trabalhavam, procurou-me para
nota’ no final de novembro e inícios de dezembro. dizer da impossibilidade de registrar os menores.
São os primeiros a se matricularem. Os da tarde Caso fosse imprescindível assinar a carteira, despe­
são os que ficaram em mais provas ou quando não diría os meninos, já que realmente tinha muitos
há mais vagas de manhã, à noite, é sempre por problemas com eles e era quase um favor empre­
necessidade de trabalhar de dia”. E em entrevista gá-los. Assim, passei a fazer como os demais di­
com uma aluna: “O período da manhã é para os retores: aceitar um atestado em papel timbrado, que
riquinhos; o da noite é para os necessitados”. poderá ser fornecido também para alunos que não
No artigo 47, ao tratar dos currículos, dispõe que trabalham mas são parentes ou conhecidos dos donos
há modificação só no que se refere “a necessária de empresas.”
adaptação com base no número de dias letivos e de Ainda:
horas de ensino”. Na realidade, a adaptação atual é
só a diminuição de cinco minutos na duração de cada “não é exigência, mas recomenda-se a idade mínima
hora-aula, apesar de haver portaria ministerial de 1965 de 14 anos para a freqüência aos cursos noturnos.
recomendando diminuição das horas diárias de trabalho Para a matrícula com idade inferior o candidato
escolar nos cursos noturnos e a ampliação no número deve apresentar comprovante de atividade remune­
de dias letivos. rada durante o dia, ou impedimento grave. A reco­
A nível federal há algumas indicações: mendação é aplicável apenas ao Sistema Federal,
cabendo aos CEEs legislar sobre o assunto como
“a matrícula dos alunos em cursos noturnos só será lhes parecer” (Parecer CFE n° 132/62, de 4/7/62).
aceita para candidatos com idade mínima de 14
anos, casos especiais só serão aceitos se não houver Vê-se que não há exigência estrita para que a idade
outro estabelecimento que ofereça as mesmas opor­ mínima seja 14 anos. De acordo com a “idade escolar”,
tunidades ou se o candidato fizer prova de atividade um aluno poderá cursar a 5a série com 10 ou 11 anos;
remunerada, ou de impedimento grave para cursar se “fizer prova de atividade remunerada” ou se houver
as escolas diurnas” (Portaria Ministerial n° 31, de “impedimento grave”, poderá cursar escola noturna
25/4/62). mesmo com essa idade. O critério é flexível e obscuro.
noite por falta de vagas no diurno. São muitas as A prova de estar trabalhando é a fotocópia da página
escolas que mantêm os cursos de 5a a 8a série somente do contrato de trabalho na Carteira Profissional, con­
no período da manhã e da noite, restando à tarde forme normas da legislação escolar. Porém, como de­
muitas salas ociosas. Fica bem claro, no estatuto legal, clarou uma das diretoras entrevistadas:
que o período da noite é reservado para os que
trabalham durante o dia. Neste sentido é a entrevista “...quando iniciei como Diretora, quis cumprir direito
com o pessoal administrativo da Escola “Cássio Ramos”: a legislação e solicitei aos alunos que trabalhavam
que trouxessem a Carteira Profissional. No dia se­
“O da manhã é o mais selecionado. Os que se guinte, um empresário das imediações, em cuja
matriculam nesse período são aqueles que ‘fecharam fábrica vários alunos trabalhavam, procurou-me para
nota’ no final de novembro e inícios de dezembro. dizer da impossibilidade de registrar os menores.
São os primeiros a se matricularem. Os da tarde Caso fosse imprescindível assinar a carteira, despe­
são os que ficaram em mais provas ou quando não diría os meninos, já que realmente tinha muitos
há mais vagas de manhã, à noite, é sempre por problemas com eles e era quase um favor empre­
necessidade de trabalhar de dia”. E em entrevista gá-los. Assim, passei a fazer como os demais di­
com uma aluna: “O período da manhã é para os retores: aceitar um atestado em papel timbrado, que
riquinhos; o da noite é para os necessitados”. poderá ser fornecido também para alunos que não
No artigo 47, ao tratar dos currículos, dispõe que trabalham mas são parentes ou conhecidos dos donos
há modificação só no que se refere “a necessária de empresas.”
adaptação com base no número de dias letivos e de Ainda:
horas de ensino”. Na realidade, a adaptação atual é
só a diminuição de cinco minutos na duração de cada “não é exigência, mas recomenda-se a idade mínima
hora-aula, apesar de haver portaria ministerial de 1965 de 14 anos para a freqüência aos cursos noturnos.
recomendando diminuição das horas diárias de trabalho Para a matrícula com idade inferior o candidato
escolar nos cursos noturnos e a ampliação no número deve apresentar comprovante de atividade remune­
de dias letivos. rada durante o dia, ou impedimento grave. A reco­
A nível federal há algumas indicações: mendação é aplicável apenas ao Sistema Federal,
cabendo aos CEEs legislar sobre o assunto como
“a matrícula dos alunos em cursos noturnos só será lhes parecer” (Parecer CFE n° 132/62, de 4/7/62).
aceita para candidatos com idade mínima de 14
anos, casos especiais só serão aceitos se não houver Vê-se que não há exigência estrita para que a idade
outro estabelecimento que ofereça as mesmas opor­ mínima seja 14 anos. De acordo com a “idade escolar”,
tunidades ou se o candidato fizer prova de atividade um aluno poderá cursar a 5a série com 10 ou 11 anos;
remunerada, ou de impedimento grave para cursar se “fizer prova de atividade remunerada” ou se houver
as escolas diurnas” (Portaria Ministerial n° 31, de “impedimento grave”, poderá cursar escola noturna
25/4/62). mesmo com essa idade. O critério é flexível e obscuro.
Não se sabe exatamente o que é impedimento grave, Esclarecendo mais,
se é ou não da parte da escola. Quanto ao comprovante
de atividade remunerada, nem sempre é possível exigir “...o curso secundário visa a uma educação de caráter
do aluno Carteira Profissional assinada. Porém, liberar geral, sem destinação profissional específica”
o aluno para o curso noturno é colocá-lo em uma e é onde se encontra a maior proporção de alunos que
situação que pode representar sérios riscos para sua ingressará nos cursos superiores. Quanto aos cursos
“formação”, se considerarmos o artigo 2o do Regula­ técnicos, tanto no primeiro como no segundo ciclo,
mento das escolas estaduais de Io grau: “formação da são cursados, em geral, “por estudantes de origem
criança e do pré-adolescente visando ao desenvolvi­ manual ou equivalente, em proporção significativamente
mento de suas potencialidades”, pois obriga-o a um maior do que o secundário ou o normal”.9
prolongamento da jornada de trabalho. Ao mesmo A partir da Lei de Diretrizes e Bases n° 5692/71,
tempo, reconhece-se, oficialmente, a existência de um
que acopla o antigo curso primário e o ginasial, foram
contingente de alunos com idade inferior a 14 anos
suprimidas do ensino de primeiro grau as diferenças
que só pode estudar combinando trabalho e escola.
curriculares representadas pelos antigos ramos do ensino
Tal como se apresenta, a partir do próprio estatuto
médio, mas continuou a persistir uma segregação re­
legal, a escola de Io grau não é nem elementar —
lacionada com a origem social, indicada pela distri­
como sugere o nome “primeiro” — nem é comum a
buição dos alunos pelos cursos públicos e particulares,
todos, pois se prevê um período, um horário especial,
diurnos (manhã e tarde) e noturnos.10
para os alunos que trabalham de dia. Essa “oportuni­
dade” que pode parecer como uma concessão do sistema Dessa maneira, a unificação formal do currículo não
aos meninos e jovens que precisam trabalhar antes de assegura a equalização das oportunidades educacionais,
completarem a escolaridade “obrigatória”, esconde e pois aulas no período diurno e aulas no período noturno,
revela uma atitude discriminatória que persiste mesmo após uma jornada de trabalho, configuram duas situações
através das reformas sucessivas da legislação escolar, bem diversas e expressam a divisão em classes sociais
como veremos. que se reproduz no interior do ambiente escolar.
De acordo com a LDB n° 4024 de 20/12/61, o A escolha, portanto, do horário de freqüência não
ensino médio era ministrado em dois ciclos, o ginasial parece ser aleatória, mas realizada em função da posição
e o colegial, abrangendo os cursos secundários, técnicos que o estudante ocupa no processo produtivo. O aluno
e o de formação de professores para o ensino primário. dos cursos noturnos só é aluno porque trabalha. E pelo
Os cursos técnicos estavam subdivididos em ramos: fato de estar trabalhando ou procurando trabalho que
comercial, industrial e agrícola. ele se matricula na escola.
“Diferem os ramos... quanto à origem sócio-econô-
mica da clientela a que preponderantemente aten­ 9. GOUVEIA & HAVIGHURST, 1969, p. 60-6.
dem.” 10. GOUVEIA, 1978, p. 61-8.
Isto é, pelo fato de pertencer a determinada fração Capítulo III
de classe, é que necessita trabalhar em idade de
escolarização obrigatória e, portanto, só lhe resta ma­
tricular-se à noite. O UNIVERSO ESCOLAR
A partir dos dados referentes ao início do funcio­
namento dos cursos noturnos e do estudo da legislação
escolar — onde se reconhece a existência desses cursos
e sua destinação —, nota-se que nada foi realmente
pensado para adaptá-lo às condições específicas dessa Ao se referir às dificuldades do período noturno,
clientela, nem para aproveitar a experiência vivida era comum professores e funcionários dizerem: “é um
desses alunos. problema do menor” ou mais drasticamente: “é caso
da Febem”.
Os estudos citados nas páginas anteriores comprovam Uma das professoras, que tem longa prática de
o pequeno rendimento desses cursos e alguns de seus magistério, assim se expressa:
problemas. Eles, não obstante, continuam a ser mantidos
e estão em expansão. “...a rigidez de controle, traduzida pelas portas fe­
chadas, intolerância de atrasos, vigilância contínua
Justificar a continuidade em virtude da existência das entradas e saídas, é justificada, principalmente,
de um contingente de alunos que, por trabalharem de pela presença de ‘desocupados’ que rodeiam a escola.
dia, só podem cursar à noite, parece-nos tautológico. Esses desocupados são jovens, também alunos de
Interessa saber quais os motivos que levam o Estado cursos noturnos de outras escolas, que vão visitar
a escolarizar esse contingente de trabalhadores-estudan- os amigos, a fim de melhor aproveitar a válvula
tes, além de assegurar o cumprimento formal da obri­ de escape que é a escola noturna, para o aluno que
gatoriedade de escolarização a nível de Io grau. tenta combinar trabalho e escola.”

Talvez o exame das condições da prática escolar É interessante notar que Woortmann,11 analisando
nos esclareça mais a respeito dos objetivos do funcio­ a população estudantil do ensino médio de Salvador,
namento de tais cursos. nos anos 60, utiliza a mesma expressão. O período
noturno desempenharia
“uma função de ‘válvula de escape’ de tensões
sociais, desenvolvida pela sociedade de classes, sem

11. WOORTMANN, 1969, p. 426.


prejuízo das exigências do mercado de trabalho, sores (dos quais apenas dois homens). Quase todas as
cujo peso recai sobre as chamadas classes trabalha­ noites está presente a Diretora do Centro Cívico; o
doras”. orientador educacional poucas vezes vai à noite.
Quanto aos professores, “levam uma vida igual à
dos alunos”. Dão aulas nos dois períodos e muitas
1. ORGANIZAÇÃO DA ESCOLA “CÁSSIO
vezes, ainda à noite. Daí, a grande dificuldade da
RAMOS” direção de organizar o horário do período noturno, por
que os professores relutam em aceitar a atribuição das
No período noturno da “Cássio Ramos” é o assistente últimas aulas. E muito comum a ocorrência de licenças
de direção quem responde pela escola, pois de acordo durante o semestre, ocasionando mudanças de profes­
com as normas regimentais, uma das atribuições do sores. O fato é tão corriqueiro que, quando iniciamos
assistente é “responder pela direção da escola no horário nossos contatos, ao passar os questionários nas classes,
que lhe for confiado”. Em geral, o diretor “visita” o os alunos indagaram se éramos a nova professora, que
período noturno uma ou duas vezes por semana, quase matéria íamos dar, que professor trocou etc. No decorrer
sempre na ausência do assistente e apenas por algumas das entrevistas, os alunos apontaram diversas vezes o
horas. “rodízio” de professores, responsabilizando freqüente-
Os alunos do período noturno mal sabem o nome mente a mudança de professores pelas reprovações
da diretora e consideram sua presença como meramente sofridas. Assim:
formal, já que os problemas só podem ser tratados
com a auxiliar, que é quem, na verdade, dirige o “...no ano passado houve muitos casos de professores
período noturno. Essa prática, adotada geralmente em que tiraram licença e ficaram afastados até o fim
todas as escolas públicas de Io e 2o graus, que funcionam do ano. Muita troca de professores. E isso atrasou
também à noite, configura uma divisão administrativa muito as matérias.”
entre os períodos, isolando de certa forma o noturno E outra aluna:
dos demais períodos.
Trabalham, ainda, no período noturno uma auxiliar “...Fui reprovada novamente em Matemática. No
de secretaria, uma professora readaptada,12 que cuida ano passado trocou três vezes de professor de Ma­
da Biblioteca e auxilia nos serviços de secretaria: uma temática, não deu para levar.”
inspetora de alunos (que acumula, durante o dia, as
funções de servente); um zelador, vinte e dois profes­ E ainda:
“muda muito de professor. No ano passado tivemos
12. “Professora readaptada” é uma professora que não pode quatro substitutas, só de Ciências. Foram umas três
assumir sala de aula por algum problema especial, em geral de professoras por matéria. Não dá nem para saber os
saúde, e a ela é atribuída outra atividade, não docente, compatível nomes e já mudam. Este ano (março) ainda não
com sua função anterior. começou a troca.”
O problema da troca de professores é uma constante condições de dar aulas, pelo cansaço que representa
em todas as EEPG, dado, principalmente, o número dar aulas, no mesmo dia, em diversas escolas, com­
reduzido de professores efetivos. A maioria é ACT, provando a observação dos alunos: “os professores são
ou seja, Admitido por Contrato Temporário, para dar como nós, também chegam cansados”.
aulas no caso de existência de aulas excedentes. Uma
das possibilidades de haver aulas excendentes é quando
a unidade escolar tem poucos professores efetivos. 2. QUEM SÃO OS ALUNOS
Cada professor efetivo pode dar um mínimo de 18
horas-aula semanais e um máximo de 44. Quando há Passando a caracterizar a escola através de sua
um número maior de aulas e poucos efetivos, o ex­ clientela, pudemos observar que, desde a sua instalação,
cedente das aulas vai para a “seção de atribuição de em 1976, a população noturna representa 20% do total
aulas”, realizada semanalmente nas Delegacias Regio­ de matrículas. Quanto à distribuição das séries, no
nais de Ensino. Essa escolha é feita de acordo com período noturno, há maior número de alunos nas séries
o número de pontos de cada professor. Assim os mais adiantadas, o que se explica tanto pelo alto índice
professores com maior titulação ou maior tempo de de reprovações, quanto pela necessidade de combinar
serviço, escolhem as aulas dos períodos da manhã e trabalho e estudo à medida que a idade é maior. Outro
da tarde, restando para o noturno aqueles com menor motivo é a volta à escola como exigência formal do
número de pontos. Poderia haver uma compensação próprio emprego, principalmente no setor terciário.
pelo fato mesmo de que os professores que lecionam Ao tomarmos contato com a escola, em setembro
à noite são em geral os que tem menor titulação e de 1978, apenas 171 alunos freqüentavam as aulas no
menor tempo de serviço: é possível que estejam menos período noturno, sendo que as matrículas iniciais, em
‘contaminados’ pela estrutura escolar e por isso mais março, somavam 286 alunos. Exceto 16 que solicitaram
disponíveis para apreender e discutir o universo dos transferência, os restantes 99 desistiram de estudar.
trabalhadores-estudantes. Mas, na realidade, tais pro­ Dos 171 que encontramos em setembro, 167 respon­
fessores são quase sempre recém-formados pelas escolas deram aos questionários e participaram das entrevistas.
particulares noturnas de Ribeirão Preto ou das imedia­ São esses, portanto, que constituem a população do
ções, nas quais se depararam, quase sempre, com as período noturno, para efeito desta pesquisa.
mesmas dificuldades que seus alunos atualmente en­ Quanto à faixa etária, 10 alunos têm menos de 14
frentam, seja em decorrência da problemática “conci­ anos, idade essa tida como regular para a matrícula
liação” entre trabalho e escola, seja pelo nível de nos cursos noturnos. Por outro lado, a maioria, um
ensino ministrado em muitas dessas escolas. total de 146 alunos (87,4%) está na faixa dos 14 aos
Ocorre, freqüentemente, que para completar sua 18 anos, sendo que 58 (34,7%) cursam a última série.
“quota” de aulas, o professor precisa dar aulas até em Esse fato nos leva a cogitar das razões pelas quais
sete ou oito escolas. E comum, portanto, que o professor esses alunos cursam o ensino regular em lugar de o
do período noturno falte muitas vezes ou chegue sem fazerem através do Ensino Supletivo que permite aos
alunos com idade igual ou superior a 14 anos, que pago ao credencialismo que atinge os requisitos de
estiverem trabalhando, cursar as últimas séries do seleção das empresas.
Io grau em cursos que possibilitarão a conclusão dos A respeito do grupo na faixa etária de 12 a 14
estudos em menor tempo (quatro semestres letivos). anos, convém lembrar que a Consolidação das Leis
Grande parte dos alunos poderia estar matriculada em do Trabalho, no seu artitgo 403, determina que “é
cursos supletivos, dada a faixa etária, e, dessa maneira, proibido o trabalho do menor de 12 anos” e no
concluir mais rapidamente os estudos. Aliás, nas en­ parágrafo único do mesmo artigo estabelece que o
trevistas, muitos demonstraram essa aspiração, como trabalho de menores de 12 a 14 anos fica sujeito à
Rosa, 19 anos, 7a série: “garantia de freqüência à escola que assegure sua
formação ao menos em nível primário”. Nas entrevistas
“...quando entrei lá (escritório de auto-escola), ele
com o pessoal administrativo, soubemos que em 1977,
(o patrão) perguntou se eu tinha ginásio e eu disse
que não. Porém ele aceitou, gostou do meu serviço, dado o grande número de alunos dessa faixa etária,
mas pediu para eu fazer o supletivo. Mas não deu. que perdiam o ano por faltas devidas ao trabalho,
Não consegui vaga no Municipal e particular não tentou-se conseguir que as empresas, atendendo a essa
dava para pagar.” determinação legal, liberassem esses operários a tempo,
a fim de não perderem o horário da entrada na escola
Roberto, aluno desistente, que com 17 anos cursava a e, também, que não fossem atribuídas horas-extras
6a série, assim se expressou: “...logo que eu tiver um noturnas a eles, pelo mesmo motivo. Formalmente o
ganho melhor, faço o supletivo”. Os mais velhos, se pedido foi aceito, mas conforme depoimentos dos alunos
pudessem, gostariam de cursar escola paga “para fazer à direção da escola, eles corriam o risco de ser
mais depressa”, “porque na particular é três p: ‘papai despedidos, caso insistissem em assegurar o horário e
pagou passou’”. Nenhum dos alunos manifestou pre­ a liberação de horas-extras. Nas entrevistas, muitos dos
ferência pelos cursos mais extensos por assegurarem alunos retidos ou desistentes alegaram como principal
maior aprendizagem ou recusa ao supletivo por abre­ motivo a dificuldade de conciliação dos horários.
viarem essa aprendizagem. Cursariam perfeitamente o Quanto ao perfil ocupacional do grupo, nota-se que
supletivo, caso tivessem possibilidade financeira para a maioria dos matriculados realmente trabalha, sendo
obterem o diploma mais depressa. que os não assalariados, conforme soubemos através
Nesse sentido, manifestam um “conhecimento” do das entrevistas, também participam da reprodução da
que é, atualmente, o Ensino Supletivo. Pesquisas rea­ família ainda que de forma indireta, pois permitem o
lizadas na PUC-RJ e na UnB, sobre as características trabalho assalariado de outros membros da unidade
dos candidatos e seu desempenho nos cursos supletivos familiar. Há uma preferência pelo setor terciário, ex­
de Io e 2o graus, mostram que tais cursos se configuram pressa verbalmente nos repetidos contatos, que e explicável
como um “encurtamento de caminhos”, sendo o objetivo dada a característica do mercado de trabalho de Ribeirão
principal a obtenção do certificado de conclusão, tributo Preto. Muitos pretendem, mediante a escolarização,
conseguir empregos melhores em escritórios, firmas Na época da pesquisa, o problema de reprovações
comerciais ou atingir profissões liberais. foi divulgado na imprensa local, numa entrevista con­
Verificamos, ainda, que há grande mobilidade de cedida pela própria administração da Escola “Cássio
um setor para outro, havendo casos de alguns alunos Ramos”. Disse a Diretora:
que transitaram pelos três, principalmente aqueles cujos “...a reprovação é um prejuízo enorme para todos.
pais residiam em zona rural anteriormente. Apenas três Saem lesados o aluno, a escola e o Estado e pode
alunos estavam, no momento, trabalhando no setor causar, com um alto número como o deste ano,
primário, casos em que os pais arrendavam chácaras falta de vagas para o próximo ano letivo. É como
nas imediações da cidade, em zona periférica. uma grande empresa, toda a sucata representa pre­
Quanto à idade dos alunos, em geral começaram a juízo”.
trabalhar muito cedo, sendo que 55% dos alunos ini­
ciaram antes da idade legal (de 7 a 13 anos). Nota-se Temendo não ter sido muito clara, acrescenta: “no
também que é maior a proporção de meninos mais nosso caso, o aluno retido é uma sucata”.
novos em relação às meninas.
A relação nominal dos empregos deixa entrever que
a maioria das ocupações não exige qualificação espe­ 3. DIFERENCIAÇÃO DOS PERÍODOS E
cífica, e sabe-se que os que trabalham em escritório HIERARQUIAS SOCIAIS
estão realizando serviços gerais ou são office-boys. Dos
149 trabalhadores-estudantes, apenas 51 (34,2%) são Nas páginas anteriores, delineamos o perfil dos
operários e nas entrevistas soubemos que desses apenas alunos do curso noturno em suas características prin­
um (que é tecelão especializado) tencionava continuar cipais. Veremos agora qual a opinião que os professores,
trabalhando em fábrica. A aspiração dos demais consistia a administração e os próprios alunos têm sobre esse
em sair do setor secundário e ingressar no terciário período e como o diferenciam dos demais.
através da escolarização. Todos trabalham no mínimo
“Não se sabe se os alunos que estudam à noite
oito horas diárias, sendo muito comum realizarem horas
realmente trabalham. Supõe-se que sim, porque eles
de trabalho extras, principalmente nos finais dos meses
trazem o atestado. Então, exige-se menos deles. Não
e do ano, o que coincide, muitas vezes, com a época
dou trabalho para fazer em casa. Dou exercícios,
das provas escolares. preparo a prova, faço estudar, tudo em classe.”
Quanto ao aproveitamento escolar, nota-se que no
período diurno, de um total de 665 alunos, houve 47% “Chega-se à classe do noturno com o espírito pre­
de aprovações, 30% de recuperações e 23% de reten­ parado para encontrar alunos mais atrasados, de pior
ções. No período noturno, de um total de 285 alunos, disciplina. Não se sabe se eles são todos assim ou
20% foram promovidos, 30% ficaram em recuperação se em parte já há uma predisposição nossa e dos
e 50% retidos. Percebe-se a diferença entre as duas alunos, pois os alunos que estudam à noite já sabem
situações: no noturno há o dobro de reprovações. que o estudo é mais fraco. Tenho alunos do período
da manhã que pedem para estudar à noite para como agir, como se vê na exposição ingênua de uma
estudarem menos.” das professoras:
“Sou mais condescendente com os alunos da noite. “...como os alunos não podem fazer lição em casa,
Se avaliasse da mesma maneira que os da manhã, pois não têm tempo, passo tarefa para fazer em
por exemplo, a classe inteira seria reprovada.” classe. Se fizerem sozinhos, a classe fica muito
quieta, silêncio completo porque todos dormem. Se
Nesses depoimentos de professores insiste-se nos fizerem em grupo ninguém dorme, porém o barulho
mesmos elementos, adjetivando negativamente os alunos fica muito grande e prejudica as classes vizinhas.”
e justificando a conduta mais “generosa” do professor.
Alguns, inclusive, quase identificavam o lecionar à O depoimento da administração é semelhante ao
noite como uma boa ação: dos professores. Presenciamos uma diretora lembrar ao
porteiro “pode deixar o Fábio entrar atrasado. Coitado,
“...são mais difíceis, mais revoltados, custam para ele é pedreiro”. As funcionárias da secretaria comen­
aprender, faltam muito, fazem muito barulho. Mas taram que “à noite o período é mais sossegado, o
é melhor lecionar à noite porque esses alunos são barulho no recreio é menor, ‘coitados, até que eles
os mais necessitados. São os que mais precisam e são bons’”, não levando em conta que, sendo menor
os que menos recebem. Recebem menos, mas não o número de alunos e em geral de faixa etária maior
por culpa dos professores: os professores sabem que
do que os do diurno, seria normal que o barulho não
não podem exigir dos alunos porque eles não têm
fosse tão grande. Mas a explicação entra no clima de
tempo nem disposição física para fazer as lições.
condescendência.
Por isso, saem da escola sem saber nada. Pensam
que o estudo vai servir para um futuro melhor, mas As opiniões dos serventes talvez revelem um co­
estão iludidos, pois não aprendem nada.” nhecimento mais profundo da situação desses meninos:

Do que se depreende da visão docente, as diferenças “...trabalho há 17 anos como servente de escola e
há seis que trabalho também à noite. Acho que o
maiores entre os períodos noturno e diurno residiriam
governo sai perdendo com o período noturno. Devia
no fato de os alunos trabalharem.
era fechar. Gasta esse mundo de luz, paga profes­
“Quem trabalha merece compaixão, tolerância, por sores, serventes, para uns 300 alunos e nem metade
isso existem os cursos noturnos, para atender aos passa de ano. A senhora vai ver, de agosto em
mais necessitados.” diante os alunos começam a desistir. Quando co­
meçam as notas baixas, eles desistem. Chegam
A escola funciona como assistência social, aspecto que cansados e não aprendem nada. Veja, tem menino
ficou muito claro nos depoimentos de professores e com 13 anos estudando de noite. Não dá. Fica
diretores também de outras escolas. dormindo e não aproveita nada. O ensino noturno
Em geral os professores declaram que têm “boa é o mais sacrificado. Os alunos vêm procurar um
vontade” com os alunos do noturno, mas não sabem futuro melhor, mas é um futuro mais sacrificado.
Eles trabalham de dia e não podem aproveitar o “...acho que à noite eles (os professores) não podem
tempo na escola. Ou fazem muita bagunça ou dor­ forçar, porque geralmente todo mundo do noturno
mem.” trabalha de dia. Geralmente os professores dão aulas
de manhã até a tarde. Quando chega de noite, o
Invoca sua longa experiência da prática escolar para que eles tinham para dar, já deram de manhã e de
sugerir que não é um bom negócio, em termos eco­ tarde. Já chegam esgotados e não têm aquela con­
nômicos, a manutenção do noturno em tais condições. dição, aquela vontade, para dar aquela aula bem
Reconhece que os alunos têm intenção de aproveitar, dada para os alunos. Assim, dá aula porque tem
mas não conseguem por uma impossibilidade externa que dar... Então...”.
à escola.
Quanto aos alunos, a simples indagação “Há quanto Angela, balconista, tem opinião semelhante:
tempo você estuda à noite?” já desencadeava uma “...no noturno, a turma não tem tempo de fazer a
descrição-reflexão sobre as dificuldades do estudo e lição, precisa fazer na classe. O professor também
sua diferenciação com o diurno. Rosa, de 14 anos, tem menor interesse para explicar. Acho que se
industriária, fala: ensina menos de noite do que de dia.”
“Os professores avaliam pouco à noite porque a Percebe-se, a partir dos depoimentos, por vezes
gente já trabalha. Então não dão tarefa, porque não longos, que os alunos consideram o período noturno
temos condição de fazer. Mas diferença de matéria, como o mais fraco, não só pelas condições dos alunos
acho que não tem. Eles diminuem a tarefa para mas também dos professores. Como se a escola estivesse
fazer em casa e também tiram cinco minutos das condenada a render menos à noite.
horas de aula, para sair mais cedo, por causa do
Para os alunos, a eficiência da escola residiría na
horário dos ônibus.”
“transmissão” de um número maior de conhecimentos
Alguns chegam a duvidar se realmente as coisas se e na exigência de mais tarefas e lições. Tal critério,
passam assim ou se é impressão dos professores, como restringindo-se ao conteúdo atual do ensino, traduz as
expõe Alfredo, de 17 anos, 8a série: intenções da ideologia dominante assimiladas por eles.
Passando ao histórico de sua vida escolar, os alunos
“...eles acham que os alunos que estudam de noite deixam bem claro a relação entre estudo noturno e
não têm tempo de estudar, então de noite é bem reprovação, contrariando as afirmações dos professores
mais fácil. Porque de dia eles dão lição para casa, e deles próprios de que a avaliação é menos rigorosa.
exercícios, pesquisa. E de noite é difícil eles darem Júlio, de 17 anos, comenta:
exercícios etc.” “...estudo à noite desde os onze anos. Estudei um
ano sem trabalhar, na 5a série, procurando serviço.
No entanto, os alunos lembram as dificuldades ad­ Com doze anos comecei a trabalhar num supermer­
vindas do próprio professor: cado. Fiz a 5a série, a 6a, depois a 6a novamente,
Eles trabalham de dia e não podem aproveitar o “...acho que à noite eles (os professores) não podem
tempo na escola. Ou fazem muita bagunça ou dor­ forçar, porque geralmente todo mundo do noturno
mem.” trabalha de dia. Geralmente os professores dão aulas
de manhã até a tarde. Quando chega de noite, o
Invoca sua longa experiência da prática escolar para que eles tinham para dar, já deram de manhã e de
sugerir que não é um bom negócio, em termos eco­ tarde. Já chegam esgotados e não têm aquela con­
nômicos, a manutenção do noturno em tais condições. dição, aquela vontade, para dar aquela aula bem
Reconhece que os alunos têm intenção de aproveitar, dada para os alunos. Assim, dá aula porque tem
mas não conseguem por uma impossibilidade externa que dar... Então...”.
à escola.
Quanto aos alunos, a simples indagação “Há quanto Ângela, balconista, tem opinião semelhante:
tempo você estuda à noite?” já desencadeava uma “...no noturno, a turma não tem tempo de fazer a
descrição-reflexão sobre as dificuldades do estudo e lição, precisa fazer na classe. O professor também
sua diferenciação com o diurno. Rosa, de 14 anos, tem menor interesse para explicar. Acho que se
industriária, fala: ensina menos de noite do que de dia.”
“Os professores avaliam pouco à noite porque a Percebe-se, a partir dos depoimentos, por vezes
gente já trabalha. Então não dão tarefa, porque não longos, que os alunos consideram o período noturno
temos condição de fazer. Mas diferença de matéria, como o mais fraco, não só pelas condições dos alunos
acho que não tem. Eles diminuem a tarefa para mas também dos professores. Como se a escola estivesse
fazer em casa e também tiram cinco minutos das condenada a render menos à noite.
horas de aula, para sair mais cedo, por causa do Para os alunos, a eficiência da escola residiría na
horário dos ônibus.” “transmissão” de um número maior de conhecimentos
Alguns chegam a duvidar se realmente as coisas se e na exigência de mais tarefas e lições. Tal critério,
passam assim ou se é impressão dos professores, como restringindo-se ao conteúdo atual do ensino, traduz as
expõe Alfredo, de 17 anos, 8a série: intenções da ideologia dominante assimiladas por eles.
Passando ao histórico de sua vida escolar, os alunos
“...eles acham que os alunos que estudam de noite deixam bem claro a relação entre estudo noturno e
não têm tempo de estudar, então de noite é bem reprovação, contrariando as afirmações dos professores
mais fácil. Porque de dia eles dão lição para casa, e deles próprios de que a avaliação é menos rigorosa.
exercícios, pesquisa. E de noite é difícil eles darem Júlio, de 17 anos, comenta:
exercícios etc.” “...estudo à noite desde os onze anos. Estudei um
ano sem trabalhar, na 5a série, procurando serviço.
No entanto, os alunos lembram as dificuldades ad­ Com doze anos comecei a trabalhar num supermer­
vindas do próprio professor: cado. Fiz a 5a série, a 6a, depois a 6a novamente,
mais uma vez a 6a, depois a 7a, estou na 8a agora. Os alunos concordam que o ensino realmente é reduzido.
Reprovei três vezes a sexta. A primeira vez foi por Quanto à avaliação, ambos, professores e alunos, con­
bagunça, reconheço, não gostava de nada. A segunda cordam que ela é mais branda. Os alunos, no entanto,
foi injustiça, o professor de desenho não topava são reprovados em massa e continuamente. O que
eu.” alunos e professores não chegam a compreender cla­
Seu depoimento é reforçado pelo de Alceu:
ramente é que o curso é ‘fraco’ por motivos que
extrapolam a dinâmica interna da escola e não cons­
“Comecei a estudar aos sete anos, e à noite, a partir tituem característica exclusiva dos cursos que funcionam
da 7a série. Depois que passei para a noite foi só à noite. E porque não percebem, continuam a se portar
bomba. Levei uma bomba atrás da outra. Repeti a como vítimas, já que tanto os que ensinam como os
7a série duas vezes. Estou repetindo a oitava pela que são ensinados sentem a inutilidade do tempo e do
terceira vez” (20 anos, escritório). esforço dispendidos.
O período noturno, portanto, é reservado ao aluno
A experiência de José Mário é semelhante: que trabalha, sendo essa a maior diferenciação entre
“Faz três anos que estudo à noite. Estou já três os períodos. Mas essa “atenção especial” que, no
anos na 5a série. No ano passado não agüentei mais entanto, não evita a exclusão do aluno, pois parece
estudar, parei no meio do ano, estava cansado por ser este, afinal, o sentido último das reprovações con­
falta de costume, eram os primeiros anos que es­ tínuas, encobre e revela uma atitude discriminatória.
tudava de noite. Agora acostumei” (15 anos, trabalha No caso da deficiência física, já está provado pela
em chácara). literatura específica que, salvo nos casos extremos,
discriminar é acomodar, ou seja, ministrar um atendi­
Mas nem sempre são só fracassos, como lembra mento sempre protetor é convidar à acomodação e à
Vai ter: superação. Poder-se-ia afirmar que o fato de invocar
“Comecei a estudar com sete anos. Nunca fui re­ sempre essa condição para justificar dificuldades ou
provado ainda. Quando passei para o noturno, senti deficiências de aprendizagem dos “alunos-que-traba-
diferença. Quase perdi o ano, não encontro tempo Iham” encobre também uma atitude discriminatória que,
para estudar” (13 anos, 8a série, office-boy). de certa forma, incentiva a acomodação, e que tenta
esquecer que o marco divisor é, na realidade, a dife­
Tentando fazer uma reflexão sobre os depoimentos renciação em classes sociais.
dos que integram o curso noturno, nota-se que há uma O aluno, condicionado pelo que ouve dos professores,
ambigüidade nos discursos, característica da expressão assimila bem o papel de necessitado. Essa postura
do senso comum. O período noturno é considerado tende a vincular a aprovação escolar com o apoio
pelos professores como um curso “fraco”. Há profes­ recebido, estabelecendo quase que como norma a “in­
sores que disseram textualmente que alunos do diurno capacidade” do aluno que trabalha. É fabricada uma
pedem para estudar à noite “porque se estuda menos”. incapacidade intelectual, reafirmando a função seletiva
da escola, fundada em critérios técnicos (educacionais) trabalhando traria benefícios para o estudo, por instaurar
e não em critérios sociais.13 um movimento de ruptura-continuidade, possibilitando
Deixa-se de levar em conta as condições em que maior compreensão da própria realidade.
se realiza a alternância trabalho-escola, como se todo O discurso dos alunos, comentando sua situação
trabalho assalariado tornasse impossível o desenvolvi­ escolar e o dos professores e funcionários referindo-se
mento intelectual. A questão, porém, parece ser outra. ao período noturno, aponta para uma presumível “in­
Somente numa organização social onde o conceito de ferioridade” do trabalhador-estudante, privilegiando o
trabalho tenha sido alterado trará como conseqüência trabalho intelectual e deixando transparecer um dos
forte associação do ensino com o trabalho, possibilitando aspectos da ideologia “na escola”, ou seja, a educação
que crianças, jovens e professores se dediquem às duas escolar como veículo de transmissão de valores ideo­
atividades concomitantemente. O trabalho assalariado lógicos dominantes.
seria então realizado integrando a escolarização, e não Em síntese, ensina-se menos à noite, exige-se menos
como se dá entre nós, onde ele é elemento indispensável e reprova-se mais, e o fundamento dessas constatações
de subsistência da família das classes trabalhadoras, será evidenciado com os discursos dos alunos a respeito
ocupando todas as horas do dia.14 Se bem que em do cotidiano escolar, da significação do conteúdo escolar
e da representação que fazem da figura do professor.
situação histórica diversa, Marx, já em 1848, sugere
a necessidade da relação entre escolarização e processo
produtivo, tema retomado na “Crítica ao Programa de
Gotha” e a que nos referiremos mais adiante. Em
nossos dias, porém dentro de um contexto social di­
ferente do nosso, temos o exemplo de Cuba. Florestan
Fernandes (1979, p. 154-64), analisando diversos es­
tudos sobre Cuba, mostra que o elemento principal do
novo quadro educacional consiste na associação entre
ensino e trabalho, em todos os níveis de ensino e tipos
de escola. Os estudantes podem dedicar metade do dia
aos estudos e metade ao trabalho. Sobre o mesmo
assunto, escreve também Gillete (1977, p. 99-100),
mostrando como é possível haver conciliação entre
trabalho produtivo e escolarização. O fato de estar

13. LAUTIER & TORTAJADA, 1978, p. 186-9.


14. MARX & ENGELS. Manifesto Comunista. Obras Escolhidas,
v. I, p. 37.
da escola, fundada em critérios técnicos (educacionais) trabalhando traria benefícios para o estudo, por instaurar
e não em critérios sociais.13 um movimento de ruptura-continuidade, possibilitando
Deixa-se de levar em conta as condições em que maior compreensão da própria realidade.
se realiza a alternância trabalho-escola, como se todo O discurso dos alunos, comentando sua situação
trabalho assalariado tornasse impossível o desenvolvi­ escolar e o dos professores e funcionários referindo-se
mento intelectual. A questão, porém, parece ser outra. ao período noturno, aponta para uma presumível “in­
Somente numa organização social onde o conceito de ferioridade” do trabalhador-estudante, privilegiando o
trabalho tenha sido alterado trará como conseqüência trabalho intelectual e deixando transparecer um dos
forte associação do ensino com o trabalho, possibilitando aspectos da ideologia “na escola”, ou seja, a educação
que crianças, jovens e professores se dediquem às duas escolar como veículo de transmissão de valores ideo­
atividades concomitantemente. O trabalho assalariado lógicos dominantes.
seria então realizado integrando a escolarização, e não Em síntese, ensina-se menos à noite, exige-se menos
e reprova-se mais, e o fundamento dessas constatações
como se dá entre nós, onde ele é elemento indispensável
será evidenciado com os discursos dos alunos a respeito
de subsistência da família das classes trabalhadoras,
do cotidiano escolar, da significação do conteúdo escolar
ocupando todas as horas do dia.14 Se bem que em
e da representação que fazem da figura do professor.
situação histórica diversa, Marx, já em 1848, sugere
a necessidade da relação entre escolarização e processo
produtivo, tema retomado na “Crítica ao Programa de
Gotha” e a que nos referiremos mais adiante. Em
nossos dias, porém dentro de um contexto social di­
ferente do nosso, temos o exemplo de Cuba. Florestan
Fernandes (1979, p. 154-64), analisando diversos es­
tudos sobre Cuba, mostra que o elemento principal do
novo quadro educacional consiste na associação entre
ensino e trabalho, em todos os níveis de ensino e tipos
de escola. Os estudantes podem dedicar metade do dia
aos estudos e metade ao trabalho. Sobre o mesmo
assunto, escreve também Gillete (1977, p. 99-100),
mostrando como é possível haver conciliação entre
trabalho produtivo e escolarização. O fato de estar

13. LAUTIER & TORTAJADA, 1978, p. 186-9.


14. MARX & ENGELS. Manifesto Comunista. Obras Escolhidas,
v. I, p. 37.
Capítulo IV de sua prática escolar, pois apesar do cansaço e das
reprovações, continuam estudando, ano após ano.
Essa aceitação assume forma fatalista, pois não
A PRÁTICA ESCOLAR questiona as dificuldades, sendo transformada por alguns
alunos:
“...são noites magníficas, cada dia uma amizade
1. O COTIDIANO ESCOLAR nova, enfim são noites não só magníficas, mas
também importantíssimas.”
Ao analisarmos os questionários aplicados, consta­
Empregada doméstica, talvez o fato de ser considerada
tamos grande dificuldade no relato do dia-a-dia escolar:
“não há muito o que descrever. Eu venho, assisto às estudante a faça sentir-se mais “igual” aos outros do
aulas e vou embora”. que na casa dos patrões. Como ela, outras domésticas
transformam a escola em fonte de alegria:
Nenhum aluno descreveu ordenadamente a rotina
escolar; quase todos teceram comentários, queixas, e “...é bastante divertido e legal. Os professores são
justificativas a respeito da dificuldade em combinar bacanas e compreensíveis, com exceção de alguns.”
trabalho e escola, porém a tônica geral era aceitar a
obrigação de assistir às aulas. Mesmo quando não gostam de estudar, idealizam
uma convivência e é esse convívio que faz gostar da
Para muitos, a situação escolar é vista como escola:
“minha noite é muito cansativa porque eu mal acabo “...ah, é uma delícia. Gostar de estudar eu não gosto
de chegar do trabalho e antes de jantar já tenho (ninguém gosta, penso) mas acho legal, professores
de ir estudar”; ou então “é cansativa, chego na legais e amigos maravilhosos.”
escola indisposta, sem coragem de estudar, porque
em geral trabalho demais, mas vale a pena e é Há alguns que valorizam o período noturno:
bacana porque eu me esforço para poder ser alguém
“...sempre gostei de estudar à noite, acho que aprendo
na vida”.
melhor as coisas e também gosto demais de meus
A situação precisa ser aceita, tal como se apresenta: colegas de escola”. Ou mesmo: “...vou muito bem
“cansada sim, mas o que posso fazer, preciso ser nas matérias (bem até demais) e com isso eu posso
alguém na vida”. ensinar aos outros colegas que necessitam de ajuda.”
A atitude tomada, em geral, é valorizar o esforço, Em várias respostas, parecem tentar minimizar o
ligando-o a um objetivo que poderá, talvez, modificar esforço através de uma resignação alegre. Ouvindo-os
a situação de vida. Apegam-se aos quase provérbios e sabendo das condições desfavoráveis que enfrentam,
do tipo “quem estuda tem o futuro na mão”, repetindo-os é possível supor que tais atitudes encubram uma atitude
freqüentemente e não se detém muito nos inconvenientes de defesa. Para evitar humilhações, preferem dizer que
gostam do período noturno, dos professores, das aulas, poder, Foucault sugere que “o tempo penetra o corpo”
e que até conseguem auxiliar os mais necessitados. (1977, p. 138). O controle disciplinar não visa apenas
Por outro lado, é possível que as representações aos horários das atividades, mas abarca o modo de
positivas a respeito da convivência e da amizade des­ executá-las, a posição do corpo, os movimentos. Marisa,
frutada no período noturno retratem uma situação real operária de 14 anos, lamenta-se:
e não permaneçam totalmente ao nível da idealização. “às vezes falto à aula pelo cansaço, por esforçar
A escola, herdeira da tradição liberal e albergando a as vistas e outras partes do corpo, a noite torna-se
missão de ‘redentora da humanidade’ através da edu­ muito difícil.”
cação ‘libertadora’, talvez possa significar um local
mais aprazível para os alunos do que o trabalho ou A disciplina parece ultrapassar o âmbito escolar e
os seus próprios lares. atingir o indivíduo inteiro.
O problema, para a maioria, não reside na escola: Os alunos percebem ainda que seus problemas não
são levados em consideração e não há um referencial
“a minha noite na escola não tem nenhum problema. comum, porém atribuem tanto a falta de interesse como
O que acho ruim é ter de dormir depois das onze as dificuldades que enfrentam à atuação de alguns
horas e levantar antes das seis.” professores ou à sistemática do ensino:
A escola “é boa, os professores legais, os colegas “Os professores falam muito, quem trabalha de dia
bacanas”, tudo é perfeito, porém “só não é ótimo vem com a cabeça cheia problemas que traz de
porque estudo à noite”. seus próprios trabalhos e precisa agüentar cinco
Estudar à noite significa quase sempre deixar de aulas. Não é fácil.”
jantar e abreviar o período de sono, o que talvez
motive o fato de que na maioria das descrições os Nota-se a existência de uma quase impossibilidade
alunos enfatizaram os horários de saída. Alguns dos de enfrentar as aulas à noite. O trabalho solicita muito
relatos dão idéia dessa fragmentação do tempo, pois dos alunos, e eles não encontram na escola “o mundo
registraram até os minutos: de sabedoria” que esperavam. Ao contrário, identificam
quase uma hostilidade inerente à vida escolar, que
“...entro às sete e dez da noite, às nove e quinze exige ficar à dispossição dos professores “que falam
saio para o recreio, depois entro às vinte e uma e sem parar”.
quarenta e saio às vinte e três horas e vou para Esses desabafos, que tentam resguardar as disposições
casa dormir.” dos alunos, contrastam com outros relatos que, inte­
riorizando as dificuldades inerentes à escola, atribuem
Para muitos, descrever o cotidiano escolar significou a si os fracassos, como o faz Rogério, de 14 anos:
enunciar a seqüência minuciosa dos horários desde o
primeiro sinal de entrada até a saída, deixando entrever “o aproveitamento geral é pouco, porque eu estando
o grau de submissão ao tempo, ao relógio. Analisando cansado, por mais que me esforce, o curso de
o controle das atividades como uma das estratégias do aprendizagem aproveitado por mim é fraco.”
Para esse menino, da 7a série, atrasado em relação Assim, alguns alunos se sentiam obrigados a dizer
à idade escolar “normal”, o pequeno aproveitamento “não respondo para o professor” como atestado de sua
está colado ao cansaço que não consegue superar. conduta ou prova de boa vontade. E quando confes­
Quando se solicita que descreva o cotidiano escolar, savam terem infringido a disciplina, logo reconheciam
apenas comenta a quase impossibilidade de realizar as a falta. Encontramos, inclusive, algumas listas, como
duas atividades ao mesmo tempo. de “pecados”:
Não havendo solução, o jeito é conformar-se e
aceitar os resultados, mesmo não sendo muito satisfa­ “...venho sempre às aulas, procuro ser disciplinado,
tório: mas masco chicletes, faço as lições na aula, converso
com os colegas, não estudo para as provas.”
“...não consigo entender direito os professores, eles
explicam muito rápido e não tenho tempo de estudar, Essa preocupação de não infringir a disciplina, de
mas está dando para passar.” se acusarem espontaneamente dos fracassos e das fra­
O que realmente interessa é conseguir passar de quezas, as queixas repetidas a respeito do cansaço, do
ano, apesar da certeza de que estão aprendendo muito sacrifício imposto ao corpo, deixam entrever o tempo
pouco. Parece que suspeitam de que a função da escola da escola como um tempo de provação. Para alguns,
é principalmente essa, passar o aluno ou reprová-lo, é possível fugir à realidade e “inventar” como em
sendo secundário se o aluno aprende ou não. Tentam conto de fadas, “noites magníficas”, “noites divertidas”;
“prestar atenção nas aulas”, mas a condição física pesa mas, à medida que se avança na interpretação do
muito, “quando não dá, eu durmo na carteira. Nas material, comparando com as entrevistas, as conversas,
primeiras aulas eu ainda presto atenção, mas nas últimas as visitas em casa, vai se consolidando a certeza de
eu começo a ficar com sono e não consigo mais nada”. que a nossa escola de hoje é uma escola disciplinadora.
É como se pedissem desculpas: Parece que há uma assimilação do medo. O aluno
aprende a ser dócil, a obedecer sempre. Se não conseguir
“procuro atuar com o máximo respeito, mas quase
aprovação é por culpa sua, por não ter estudado o
sempre cochilo nas últimas aulas.”
suficiente, não importando em que condições se realiza
Outras descrições se prenderam apenas às ações dos a escolaridade. Em nenhum momento percebemos a
alunos, relatando inclusive aquelas consideradas indis­ existência de um questionamento a respeito das con­
ciplinadas: dições que a escola oferece ou das limitações causadas
pela própria estrutura administrativa e curricular. Ou­
“...às vezes apronto umas, entro numa de desrespeito
aos professores, que são muito bons e atenciosos.” vimos lamentos, queixas, frutos da simples constatação,
mas faltou superar a simples observação e construir
Apesar de relatos que mostravam professores impa­ uma crítica objetiva da situação, o que só poderia
cientes, gritando com os alunos, indiferentes às difi­ acontecer se houvesse aproveitamento do espaço pe­
culdades, o consenso é de que o “professor é bom”. dagógico nesse sentido.
Conversando com a mãe e os irmãos de um aluno sendo excluídos. Se não se importam com eles, é um
que havia desistido de estudar depois de ter sido mau sinal. A escola
reprovado por três anos consecutivos à noite, ouvimos
esta apreciação: “tem que ter disciplina, com esse professor que
entrou agora, a gente vai para a frente, ele é severo,
“depois que Mauro deixou de estudar, ficou mais não deixa ninguém brincar, reprova quem não es­
inteligente. Agora ele conversa de novo, discute tuda”.
com a gente, não é mais burro como quando estu­
dava.” Elogiam o que à primeira vista não parecería elogiável:

Humilhado por não conseguir sucessos nas atividades “a professora N. já entra xingando, gritando. Até
escolares, entrou em um processo de “perder a inteli­ que é bom. Assim ninguém faz desordem na aula
gência”. A escola não era para ele, não conseguia dela.”
acompanhar o ritmo escolar, apesar de que, desde os
Por outro lado, essa mesma disciplina, excluindo
10 anos, já conseguia ajudar na manutenção da casa.
o aluno, leva-o a introjetar o motivo da exclusão.
Deixar os estudos representou, certamente, uma liber­
Os alunos do curso noturno, atribuem, na sua maioria,
tação, ficou “inteligente de novo”.
as culpas dos fracassos a si mesmos: culpam o
Como afirma Foucault:
trabalho diário que os cansa muito, acusam-se de
“a penalidade perpétua que atravessa todos os pontos dormir, de não prestar atenção, de não estudar.
e controla todos os instantes das instituições disci­ Poucos são os que percebem que a escola não é
plinares, compara, diferencia, hierarquiza, homoge­ para eles. Daí talvez a tendência em esvaziar a
neiza, exclui. Em uma palavra, ela normaliza” (1977, prática escolar:
p. 163).
“minha noite na escola é a melhor hora que passo,
Essa obrigação do cumprimento dos horários, da pois somente na escola é que tenho oportunidade
atenção dos estudos, das práticas exatas dos deveres, de aprender mais e de ver a pessoa que gosto.”
exerce uma pressão sobre os alunos, mesmo quando
não é continuamente cobrada, como acontece nos cursos Ou ainda, como relata Joana, atendente de consultório:
noturnos.
“fico ansiosa para chegar a hora da escola, porque
“Como eu estudo à noite, os professores maneram me encontro com meu namorado, mas também adoro
nas lições. Mas eu gostaria que fosse mais puxado, estudar.”
para eu já me adaptar ao clima de universidade.”
Misturam os motivos, percebem que precisam dizer
A ausência de mais rigor é sentida pelos alunos, que gostam do estudo, porém querem deixar claro que
provocando, como vimos acima, confissão espontânea o período de aulas é agradável, porque existem outros
ou queixa, porque percebem que dessa forma estão elementos que o tornam suportável, pois parecem saber
Conversando com a mãe e os irmãos de um aluno sendo excluídos. Se não se importam com eles, é um
que havia desistido de estudar depois de ter sido mau sinal. A escola
reprovado por três anos consecutivos à noite, ouvimos
esta apreciação: “tem que ter disciplina, com esse professor que
entrou agora, a gente vai para a frente, ele é severo,
“depois que Mauro deixou de estudar, ficou mais não deixa ninguém brincar, reprova quem não es­
inteligente. Agora ele conversa de novo, discute tuda”.
com a gente, não é mais burro como quando estu­
dava.” Elogiam o que à primeira vista não pareceria elogiável:

Humilhado por não conseguir sucessos nas atividades “a professora N. já entra xingando, gritando. Até
escolares, entrou em um processo de “perder a inteli­ que é bom. Assim ninguém faz desordem na aula
gência”. A escola não era para ele, não conseguia dela.”
acompanhar o ritmo escolar, apesar de que, desde os Por outro lado, essa mesma disciplina, excluindo
10 anos, já conseguia ajudar na manutenção da casa. o aluno, leva-o a introjetar o motivo da exclusão.
Deixar os estudos representou, certamente, uma liber­ Os alunos do curso noturno, atribuem, na sua maioria,
tação, ficou “inteligente de novo”.
as culpas dos fracassos a si mesmos: culpam o
Como afirma Foucault: trabalho diário que os cansa muito, acusam-se de
“a penalidade perpétua que atravessa todos os pontos dormir, de não prestar atenção, de não estudar.
e controla todos os instantes das instituições disci­ Poucos são os que percebem que a escola não é
plinares, compara, diferencia, hierarquiza, homoge­ para eles. Daí talvez a tendência em esvaziar a
neiza, exclui. Em uma palavra, ela normaliza” (1977, prática escolar:
p. 163).
“minha noite na escola é a melhor hora que passo,
Essa obrigação do cumprimento dos horários, da pois somente na escola é que tenho oportunidade
atenção dos estudos, das práticas exatas dos deveres, de aprender mais e de ver a pessoa que gosto.”
exerce uma pressão sobre os alunos, mesmo quando
não é continuamente cobrada, como acontece nos cursos Ou ainda, como relata Joana, atendente de consultório:
noturnos. “fico ansiosa para chegar a hora da escola, porque
“Como eu estudo à noite, os professores maneram me encontro com meu namorado, mas também adoro
nas lições. Mas eu gostaria que fosse mais puxado, estudar.”
para eu já me adaptar ao clima de universidade.” Misturam os motivos, percebem que precisam dizer
A ausência de mais rigor é sentida pelos alunos, que gostam do estudo, porém querem deixar claro que
provocando, como vimos acima, confissão espontânea o período de aulas é agradável, porque existem outros
ou queixa, porque percebem que dessa forma estão elementos que o tornam suportável, pois parecem saber
que só pelo estudo não compensaria, já que realmente lugar de encontro de amigos, de namorar, de esquecer
não estudam. por algumas horas, nas “noites magníficas”, a crueza
Fica evidente que, se suportam as dificuldades da do dia-a-dia. Nenhum aluno referiu-se espontaneamente
freqüência às aulas, é unicamente porque ainda pro­ ao que se aprende na escola e de que forma se aprende,
curam acreditar que questões que, por isso, foram exploradas nas entrevistas.
O fato de não se referirem ao tema aprendizagem-ensino,
“na escola é que pretendo melhorar a minha vida. talvez revele que a escola não é procurada priotaria-
Porque a pessoa que não estuda é muito difícil mente para realizar tal função.
imaginar o futuro.” Da mesma forma que atua como “válvula de escape”,
Essa, talvez, a chave da insistência em continuar es­ ela atua como elemento de despolitização. E nisso
tudando apesar de tudo e a mágoa quando não con­ também que a escola se revela capitalista, diminuindo
seguem progredir na escola: é o lugar onde preparam a capacidade de organização dos trabalhadores. Sob a
“os homens de amanhã”. Alguns alunos, no entanto, aparência de um local agradável, mas funcionando ao
dizem claramente: “por mim, prefiro a hora da saída”. mesmo tempo como centro de preocupações, pois fre-
Esses relatos coincidem com o comentário de uma qüentá-la significa sempre uma ocupação a mais, a
pessoa da administração: “à noite, a escola é o reino escola, tal como está estruturada hoje, auxilia o processo
do faz de conta”. Outra funcionária desabafou: de despolitização das classes subalternas.

“como acreditar em uma educação que tem como


uma de suas premissas aceitar as fraudes e mascarar 2. O CONTEÚDO DA APRENDIZAGEM
a realidade? Seja no caso de atestados para estudar
à noite, seja para a dispensa das aulas de Educação A freqüência à escola noturna representa um esforço
Física, ou para justificar faltas, a escola sabe que tanto para os alunos como para os demais componentes
pactua com mentiras, mentiras que às vezes ela da instituição escolar, como vimos nas páginas ante­
mesma exige sejam ditas.” riores. Tentando avaliar de modo mais substantivo o
problema, procuramos indagar a opinião dos alunos
Percebemos certo mal-estar entre os funcionários ao sobre o conteúdo do currículo escolar e a forma pela
aceitar atestados de faltas que sabiam não corresponder qual ele é desenvolvido.
à realidade, ao dispensar alunos anotando no prontuário: Nas entrevistas encaminhamos o assunto, solicitando
“está com gripe”, quando sabiam que era para assistir sugestões para uma possível reformulação tanto do
a uma partida de futebol, ou ao último capítulo da currículo quanto da maneira de ensinar.
novela. Como eles, funcionários, explicaram: “se a João Carlos, de 18 anos, que trabalha em escritório
gente não deixar sair, eles fogem, pulam o alambrado de indústria, sugere:
e é pior” e “se a gente for colocar o motivo verdadeiro,
fica feio”. A escola funciona como “válvula de escape”, “...em vez de darem essa aula de música ou de
segundo um dos professores; e conforme os alunos, é Educação para o Trabalho, que não estão servindo
para nada, só servindo para montar horário, eles um teatro. Trazia todo mundo, por exemplo, na aula
podiam colocar uma que servisse. Substituir as que de música e fazia um teatro. Então o período da
não têm utilidade. Ou então, na aula de música, manhã vinha e era um jeito de os períodos se
ensinar a tocar um instrumento. Se tivesse oportu­ conhecerem. E a aula ficava melhor.”
nidade, gostaria de tocar aquelas caixinhas de fan­
farra.” Mesmo os alunos que necessitam concluir o ginásio
por exigências do trabalho — como Ivonete, que parou
O aluno percebe a artificialidade do currículo, que de estudar aos 13 anos, “porque não tinha inteligência”,
só serve “para montar o horário” e que revela o caráter mas retornou cinco anos depois porque “eles exigiram,
ideológico do conteúdo do ensino.
lá na linha de montagem, que eu tivesse estudo” —
Comentando a artificialidade dos currículos, Snyders sugerem conteúdos não acadêmicos, talvez desconfiando
(1974, p. 194ss) lembra que “a chave de uma pedagogia de que esses a escola não vá mesmo ensinar, posto
é sua relação para com a realidade contemporânea”. que nem leituras solicitam:
Essa coerência pedagógica torna-se impossível, na me­
dida em que o capitalismo é agente de uma pauperização “bom, gostaria de que eles dessem aula de pintura,
crescente. Uma sociedade dividida em classes antagô­ mexer com tintas. Isso eles deveríam pôr no Colégio.
nicas, na qual há exploração sistemática do povo, não É uma das coisas que deveríam pôr aqui. Porque
pode confessar seus objetivos reais, reconhecer ou o resto... tem biblioteca, que usava no ano passado.
permitir o descobrimento do que realmente é. Está Mas este ano acho que não vamos usar. Na minha
condenada a camuflar o que faz e o que é, sob fórmulas classe ainda não pediram livros” (18 anos, 7a série,
tão vãs que não podem adquirir realidade nem aos fábrica).
olhos dos professores nem dos alunos.
Em seus depoimentos, os alunos gostariam de que É possível que o acesso aos livros, que teoricamente
a escola pelo menos ensinasse aquilo a que se propõe: está aberto aos alunos alfabetizados, necessite, aos
“a gente tinha que aprender algum instrumento”, já olhos dos alunos, de um estímulo dos professores a
que estão ensinando música. Se o que está sendo fim de ser realmente desfrutado. Por outro lado, a
ensinado não tem relação com a realidade — muitas observação da aluna pode revelar que, para ela, o fato
vezes a única utilidade seria propiciar a continuação de não se exigir leitura significa ensinar menos. Talvez
dos estudos a nível de 2o grau ou superiores, nem não consiga perceber que não é o maior ou menor
sempre acessíveis a eles — preferem então atividades volume de leitura que implicará “adquirir mais estudo”,
que possam ser vividas já. mas sim a oportunidade que a escola ofereça ou não
Roberto, de 16 anos, que trabalha em laboratório, para a organização e sistematização dos elementos de
propõe: interpretação da realidade que a vida cotidiana de
trabalho permite, mas que não se dá espontaneamente.
“eles deveríam fazer assim: o período da manhã Notamos também que desconfiam da existência de
não faz nada de noite. Então eles deveríam fazer controle, através das matérias ensinadas: “vai ter aula
para nada, só servindo para montar horário, eles um teatro. Trazia todo mundo, por exemplo, na aula
podiam colocar uma que servisse. Substituir as que de música e fazia um teatro. Então o período da
não têm utilidade. Ou então, na aula de música, manhã vinha e era um jeito de os períodos se
ensinar a tocar um instrumento. Se tivesse oportu­ conhecerem. E a aula ficava melhor.”
nidade, gostaria de tocar aquelas caixinhas de fan­
farra.” Mesmo os alunos que necessitam concluir o ginásio
por exigências do trabalho — como Ivonete, que parou
O aluno percebe a artificialidade do currículo, que
só serve para montar o horário” e que revela o caráter de estudar aos 13 anos, “porque não tinha inteligência”,
ideológico do conteúdo do ensino. mas retornou cinco anos depois porque “eles exigiram,
lá na linha de montagem, que eu tivesse estudo” —
Comentando a artificialidade dos currículos, Snyders
(1974, p. 194ss) lembra que “a chave de uma pedagogia sugerem conteúdos não acadêmicos, talvez desconfiando
é sua relação para com a realidade contemporânea”. de que esses a escola não vá mesmo ensinar, posto
Essa coerência pedagógica torna-se impossível, na me­ que nem leituras solicitam:
dida em que o capitalismo é agente de uma pauperização “bom, gostaria de que eles dessem aula de pintura,
crescente. Uma sociedade dividida em classes antagô­ mexer com tintas. Isso eles deveríam pôr no Colégio.
nicas, na qual há exploração sistemática do povo, não É uma das coisas que deveríam pôr aqui. Porque
pode confessar seus objetivos reais, reconhecer ou o resto... tem biblioteca, que usava no ano passado.
permitir o descobrimento do que realmente é. Está Mas este ano acho que não vamos usar. Na minha
condenada a camuflar o que faz e o que é, sob fórmulas classe ainda não pediram livros” (18 anos, 7a série,
tão vãs que não podem adquirir realidade nem aos fábrica).
olhos dos professores nem dos alunos.
Em seus depoimentos, os alunos gostariam de que É possível que o acesso aos livros, que teoricamente
a escola pelo menos ensinasse aquilo a que se propõe: está aberto aos alunos alfabetizados, necessite, aos
a gente tinha que aprender algum instrumento”, já olhos dos alunos, de um estímulo dos professores a
que estão ensinando música. Se o que está sendo fim de ser realmente desfrutado. Por outro lado, a
ensinado não tem relação com a realidade — muitas observação da aluna pode revelar que, para ela, o fato
vezes a única utilidade seria propiciar a continuação de não se exigir leitura significa ensinar menos. Talvez
dos estudos a nível de 2o grau ou superiores, nem não consiga perceber que não é o maior ou menor
sempre acessíveis a eles — preferem então atividades volume de leitura que implicará “adquirir mais estudo”,
que possam ser vividas já. mas sim a oportunidade que a escola ofereça ou não
Roberto, de 16 anos, que trabalha em laboratório, para a organização e sistematização dos elementos de
propõe: interpretação da realidade que a vida cotidiana de
trabalho permite, mas que não se dá espontaneamente.
eles deveríam fazer assim: o período da manhã Notamos também que desconfiam da existência de
não faz nada de noite. Então eles deveríam fazer controle, através das matérias ensinadas: “vai ter aula
de Educação para o Trabalho. É matéria nova, que “não deixam a gente usar; durante as aulas não dá.
puseram. Acho que é para saber o que eles fazem no Quando falta algum professor, a gente pede para
serviço, porque a gente já está trabalhando, então...”. bater uma bola, mas só com o professor de Física
Entre os alunos entrevistados, nenhum soube explicar (Educação Física), e ele não vem à noite. E aos
em que consistia essa disciplina, nem mesmo os que sábados também não pode.”
já a cursavam.
O Conselho Estadual de Educação assim a define: Não percebem que a quadra não é para eles, os da
noite, mas apenas para os que vêm de dia e que
“componente curricular da parte de Formação Es­ participam das aulas de Educação Física, dos torneios
pecial, tratada como atividade, com os objetivos de e campeonatos. Os alunos que trabalham mais de seis
sondagem de aptidões e iniciação para o trabalho” horas por dia são isentos dessas aulas e como o esporte
(Parecer CEE n° 1016/77). está mais ligado a essa disciplina, também o jogo
A introdução dessas aulas podería significar uma atitude como lazer está fora do alcance deles. Mas a exclusão
de coerência para com a realidade, uma vez que a é camuflada na aparência de que eles mesmos se
maior parte dos alunos trabalha, principalmente nos excluem:
cursos noturnos. Porém não são apresentados aos alunos “...fizeram o campo, bonito, grande. Porém não
problemas com que se deparem na vida cotidiana, nem deixam a gente jogar. Quer dizer, tem Coordenador
se questiona o estatuto do trabalhador, nem se toca de Esportes. Este ano é a diretora do Centro Cívico.
na desigualdade que é vivida pelos alunos-trabalhadores. É tudo muito bem feito, vai nas classes, fala, explica,
E entende-se que a escola não o faça, particularmente todos concordam. Mas, na hora de desenvolver, vira
no quadro das relações capitalistas de produção, pois bagunça. Não tem quem olhe e então não dá para
se o fizer, estará utilizando o espaço pedagógico para
jogar.”
instaurar o questionamento e, portanto, a aprendizagem
da “desobediência civil”, típica de uma atitude politi- Alguns alunos sugeriram outros conteúdos:
zadora.
Compreende-se, então, por que os alunos sugeriram “acho que sexo. Tem palestra, todo ano. Mas separa
que se ensinasse teatro, música, pintura, atividades que rapaz de moça. Não deveria ser assim. Deveria ser
o retiram momentaneamente da tensão do trabalho e todos juntos, mais bem explicado, deixar conversar,
que permitem o lazer disfarçado que habitualmente falar, perguntar. Não um papo por cima, como
não têm condições de exercitar ou talvez a busca do fazem.”
prazer ou ainda a possibilidade de descobrir uma Conversando mais a respeito de como, segundo
potencialidade artística. entendem, deveria ser o ensino sobre sexualidade,
Quanto a jogos e esporte, mais de um aluno apontou vimos que o que mais os preocupa são problemas de
o fato de que há uma quadra de esportes na escola, relacionamento, dificuldades de compreensão, não só
grande, com iluminação boa, mas entre rapaz e moça, mas também problemas familiares,
com pais e irmãos. Alguns incluíam em “sexo” con­ queixavam alegando que “os professores ficam muito
versas mais pessoais, discussão de problemas, sempre tempo aí na frente, falando, falando, até dá sono”,
em conjunto, “já que as aulas são mistas, por que solicitamos sugestões. Luísa, 17 anos, comenta:
essas têm que ser separadas?” Outros comentaram,
“às vezes, professor fala, fala e quando ele sai da
“é um médico que vem dar a palestra. Mas poderia aula a gente pergunta aos colegas se entenderam
ser o professor, a professora, na sala de aula mesmo.” alguma coisa, ninguém entendeu nada, ninguém sabe
nada. Acho que se o professor chegar e disser
Como “até na televisão se fala nisso”, a escola
‘amanhã você vai dar aula no meu lugar, estude
também encampa o tema, mas o trata impessoalmente.
isto e aquilo’, aí o aluno vai ter que aprender.”
Os alunos, no entanto, esperavam que
Discutindo a proposta, Antonio Carlos sugere:
“abordasse os assuntos claramente. Tem certas coisas
que a gente descobre que até o corpo estranha. “também acho que o aluno deveria dar aula. E o
Poderia ter um psicólogo aqui, para atender a gente, professor seria um ajudante. O aluno dando aula e
uma vez por mês. Às vezes a gente tem problemas o professor corrigindo, o aluno iria aprender mais.
e ninguém para conversar. Com pai e mãe, não Não ficaria parado. O aluno não tem atenção total
dá.” na aula. Conversa com um colega, com outro e no
Poucos alunos se referiram às matérias propriamente fim não sabe de nada.”
escolares. Para Celso, operário desde 14 anos: Nas discussões, percebemos que o aluno tem ilusão
“Português é bom, Ciências e História também, para de que vai aprender na escola e que se não está
quem tem certeza de que vai continuar estudando aprendendo é porque o sistema de ensinar está errado
depois. Para esses é bom. Mas para nós, que às ou os professores não são suficientemente enérgicos,
vezes não temos condições de estudar mais, tem ou então, porque os alunos não prestam atenção.
muita coisa que a gente aprende por aprender. Não O que os alunos não conseguem ver é que a relação
vai precisar. Como na Matemática, tem certas coisas pedagógica, tal como a conhecemos, é inevitavelmente
que é útil, mas muitas não são.” uma relação entre desiguais: os alunos e os professores,
os adultos e os jovens, os que estudam e os que
A maioria das sugestões, todavia, quanto a novas estudam-trabalham. Condicionados, os alunos reafirmam
disciplinas, visam a conteúdos de lazer. E isso talvez a necessidade de uma relação autoritária, mesmo quando
se explique pelo fato de que na vida deles quase não propõe inovações: “...acho que o aluno deveria dar
há espaço para outras atividades além das indispensáveis aulas e o professor ser um ajudante”. A relação per­
para a sobrevivência. sistiría, ainda mais que o professor, apesar de catego­
Continuando na tentativa de saber a representação rizado “ajudante”, teria a função de corrigir. As ino­
que os alunos fazem da escola, perguntamos a respeito vações sugeridas, principalmente referentes à didática,
da maneira de dar aulas. Já que quase todos se manteriam intacta a relação autoritária, reproduzindo-a.
com pais e irmãos. Alguns incluíam em “sexo” con­ queixavam alegando que “os professores ficam muito
versas mais pessoais, discussão de problemas, sempre tempo aí na frente, falando, falando, até dá sono”,
em conjunto, “já que as aulas são mistas, por que solicitamos sugestões. Luísa, 17 anos, comenta:
essas têm que ser separadas?” Outros comentaram,
“às vezes, professor fala, fala e quando ele sai da
“é um médico que vem dar a palestra. Mas poderia aula a gente pergunta aos colegas se entenderam
ser o professor, a professora, na sala de aula mesmo.” alguma coisa, ninguém entendeu nada, ninguém sabe
nada. Acho que se o professor chegar e disser
Como “até na televisão se fala nisso”, a escola
‘amanhã você vai dar aula no meu lugar, estude
também encampa o tema, mas o trata impessoalmente.
isto e aquilo’, aí o aluno vai ter que aprender.”
Os alunos, no entanto, esperavam que
Discutindo a proposta, Antonio Carlos sugere:
“abordasse os assuntos claramente. Tem certas coisas
que a gente descobre que até o corpo estranha. “também acho que o aluno deveria dar aula. E o
Poderia ter um psicólogo aqui, para atender a gente, professor seria um ajudante. O aluno dando aula e
uma vez por mês. Às vezes a gente tem problemas o professor corrigindo, o aluno iria aprender mais.
e ninguém para conversar. Com pai e mãe, não Não ficaria parado. O aluno não tem atenção total
dá.” na aula. Conversa com um colega, com outro e no
Poucos alunos se referiram às matérias propriamente fim não sabe de nada.”
escolares. Para Celso, operário desde 14 anos: Nas discussões, percebemos que o aluno tem ilusão
de que vai aprender na escola e que se não está
“Português é bom, Ciências e História também, para
quem tem certeza de que vai continuar estudando aprendendo é porque o sistema de ensinar está errado
depois. Para esses é bom. Mas para nós, que às ou os professores não são suficientemente enérgicos,
vezes não temos condições de estudar mais, tem ou então, porque os alunos não prestam atenção.
muita coisa que a gente aprende por aprender. Não O que os alunos não conseguem ver é que a relação
vai precisar. Como na Matemática, tem certas coisas pedagógica, tal como a conhecemos, é inevitavelmente
que é útil, mas muitas não são.” uma relação entre desiguais: os alunos e os professores,
os adultos e os jovens, os que estudam e os que
A maioria das sugestões, todavia, quanto a novas estudam-trabalham. Condicionados, os alunos reafirmam
disciplinas, visam a conteúdos de lazer. E isso talvez a necessidade de uma relação autoritária, mesmo quando
se explique pelo fato de que na vida deles quase não propõe inovações: “...acho que o aluno deveria dar
há espaço para outras atividades além das indispensáveis aulas e o professor ser um ajudante”. A relação per­
para a sobrevivência. sistiría, ainda mais que o professor, apesar de catego­
Continuando na tentativa de saber a representação rizado “ajudante”, teria a função de corrigir. As ino­
que os alunos fazem da escola, perguntamos a respeito vações sugeridas, principalmente referentes à didática,
da maneira de dar aulas. Já que quase todos se manteriam intacta a relação autoritária, reproduzindo-a.
Quando se possibilita ao aluno discutir a situação Na escola, interessa transmitir não só o conteúdo de
pedagógica da qual é sujeito, ele não consegue des- uma aprendizagem como também o modo de trans­
vencilhar-se do modelo autoritário. É interessante, nesse missão dessa aprendizagem. Dessa maneira, continua
sentido, uma reflexão sobre a função crítica de uma Lautier:
reavaliação da didática, pois a escola tem-se limitado,
“as técnicas na escola estão indissoluvelmente ligadas
em geral, a ser organizadora do consenso.15 Mesmo
à sua realização, caracterizada pela ausência de
quando ela se propõe a começar a ensinar “a partir controle por parte do trabalhador” (1978, p. 192-4).
do aluno”, parte de um dado histórico-social admitido
por hipótese como natural. Mesmo quando movida pela O essencial na escola é a aprendizagem da disciplina,
psicologia, detém-se nas “diferenças individuais”, e o adquirida ao ficar horas no mesmo lugar, ouvindo as
campo de conhecimentos que constrói sobre os alunos mesmas coisas ditas pelas mesmas pessoas, recebendo
é utilizado para discriminá-los. conteúdos desvinculados da experiência diária e deter­
Para os meninos, no entanto, a escola pode ser minados por uma autoridade hierarquicamente superior.
melhorada, se não ficar em descompasso com a “vida” Essa inadequação entre técnicas transmitidas pela escola
como expõe Severino, 15 anos, que trabalha em fábrica: e técnicas utilizadas, pode perpetuar-se, como realmente
se perpetua, apesar das reformas educacionais e refor­
“...em vez de dar tanta matéria, deveria ensinar mulações curriculares, porque o processo de trabalho
como viver lá fora, no serviço. Não só matéria, é efetivamente um processo de aprendizagem. Não se
matéria. Mas cursos. Noções de mecânica, por exem­ aprende na escola porque o lugar de aprender é no
plo, assim a gente saía da escola e ia direto para trabalho. À escola compete ensinar as atitudes neces­
uma especialização no trabalho.” sárias a essa aprendizagem, e isso parece que ela está
realizando, conforme os depoimentos dos alunos acima
Mas esse “esquecimento” do mundo do trabalho transcritos.
que parece atravessar o universo escolar talvez tenha
um significado específico. Procurando aprofundar o
conhecimento das relações entre escola e processo 3. QUEM É O PROFESSOR
produtivo, Lautier levanta a hipótese de que a inade­
quação entre os conhecimentos recebidos e os conhe­ É sobre a figura do professor que os alunos mais
cimentos utilizados seja falavam ao mencionar as dificuldades da vida escolar.
Poucos alunos retinham a idéia do professor como
“o produto das contradições entre os dois aspectos
portador de uma missão: “desde pequeninha a gente
do processo de trabalho: disciplina e aprendizado
vem com a idéia de que a professora é nossa segunda
de um lado, utilização das técnicas do outro”.
mãe”.
A maioria queixava-se das atitudes intempestivas e
15. ALBERTI, 1975, p. 16. até agressivas:
“a professora V. joga matéria em cima da gente. Um fato concreto, a greve dos professores ocorrida
A gente vai pedir explicação, é ‘burra’, ‘tapada’, enquanto realizávamos as entrevistas (Io semestre de
esses nomes.” Ou então, “...também teve professor 1979), proporcionou mais elementos para perceberem
que já me xingou. Tem professor nervoso. O pro­ que a relação professor-aluno é realmente assimétrica
fessor Z. grita com o colégio todo, não é só com e sem diálogo. Nesse sentido, explica Domingos, bal­
a nossa classe.” conista:
Tais atitudes eram justificadas: “...quando eles estavam em greve, pediam para os
alunos não virem à aula. E a gente não vinha. E
“acho que tudo isso acontece porque eles já vêm
por que agora eles querem que a gente venha à
cansados, são como nós, cansados do trabalho do
dia.” aula no sábado? Acho isto errado.”

Nesse contexto, o trabalho pedagógico é visto como Reconhecem no professor um trabalhador, uma pes­
uma violência: soa que precisa lutar para viver, como expõe Afonso,
16 anos, operário em fábrica de calçados:
“...é difícil dar aulas. Tem aluno malcriado, mas a
professora vem para dar aula e não para ensinar “acho que todo mundo tem o direito de lutar pelos
educação.” direitos. Como no caso dos professores. Eles acham
que estão ganhando pouco, então eles têm que lutar.
“Como disse a professora L., é necessário dar edu­ Concordo que eles precisem lutar pelos direitos
cação para os alunos, em lugar de dar matéria.” deles. Mas não acho certo o negócio de repor aulas.
E os professores estão exigentes agora. Voltaram
Os alunos percebem que uma das funções da escola
um pouco revoltados, não tiveram todo o aumento
é “tomar conta” e, portanto, certa dose de energia é
necessária. que queriam. No ano passado teve greve também,
quando começaram as aulas, os professores come­
Dessa forma, a queixa sobre a conduta do professor
çaram a soltar matéria e matéria em cima de nós.
não só é anulada como convertida em uma atitude de
Então foi um aperto medonho. Estavam soltando
benfeitoria:
matéria e exigindo na prova. Tinha 45 alunos na
“...por exemplo, a gente está conversando na aula minha classe e passaram só 10 alunos, todos na 8a
e ele diz ‘fica quieto, cala a boca’. Isso daí já é série, no último ano. Foi um prejuízo. Eu também
um fato de ajudar. Porque se ele está falando é repeti.”
para alertar você. O professor falando já está dando O professor luta como eles próprios lutam, traba­
educação e ajudando a gente.”
lhando de dia e de noite, o que lhes fornece a ilusão
Os alunos oscilam entre aceitar a imagem do pro­ de que podem ser iguais e por isso tentam apoiá-los
fessor transmitida pela instituição escolar e familiar e na reivindicação. Porém, não há uma aliança entre os
a imagem que é construída a partir da prática escolar. dois grupos. Os alunos pensam que, colaborando, ficam
do lado do professor, mas esquecem que o lugar do mais, apesar de notarem “não ganham tão pouco assim,
professor é na frente da classe e não sabem conciliar a maioria tem carro”, é porque sabem que a qualidade
o apoio que pretendem dar, com o prejuízo que recai da mercadoria depende do que se paga por ela,
sobre eles, a parte mais fraca. Precisam esticar o tempo,
para abarcar a reposição, e ainda correm o risco de “...agora, se eles não ganharem o suficiente, vão
serem reprovados. chegar lá na classe, é lógico, e ensinar a matéria,
mas sem se dedicarem muito. Precisa dar muitas
Analisando o papel do exame nas instituições dis­ aulas e ainda mais de noite.”
ciplinares, Foucault nos diz que, na escola, o exame
não se contenta em sancionar um aprendizado. É um Talvez repitam o que os próprios professores falaram
dos seus fatores permanentes e o sustenta segundo um em classe, em momentos de inquietação, ou talvez
ritual de poder constantemente renovado. porque, engajados no trabalho assalariado, os alunos
percebem que à maior remuneração correspondem me­
“O exame é, na escola, uma verdadeira e constante lhores serviços e generalizam para o caso da escola.
troca de saberes: garante a passagem dos conheci­ A referência “a maioria dos professores tem carro”,
mentos do mestre ao aluno, mas retira do aluno que pode significar uma alusão à diferença de classe
um saber destinado e reservado ao mestre.”16
social, é esporádica. A maioria dos alunos reconhece
Função essa que os alunos suspeitam quando se referem que o professor deve ganhar mais, mas porque “ele
aos professores que “soltam matéria e exigem na prova” luta como nós” e principalmente porque:
e com isso manifestam seu poder. Com o exame, o “os professores geralmente estudaram muito e ainda
professor qualifica, classifica e pune, estabelecendo estão estudando para poder dar aula para a gente.
distâncias entre o espaço docente e o discente. Eles se esforçaram para ter aquele serviço e precisam
Alguns alunos tentam apoiar os mestres: procuram ganhar mais. Eles estudaram muito, estudam ainda
compreender o porquê da reposição, explicam, argu­ e vão continuar a estudar.”
mentam, mas acabam percebendo que os prejudicados
realmente são eles, os alunos. Comparando a profissão de professor com a de
médico (observação que surgiu dada a proximidade
De maneira geral, percebem que é o professor quem
dos dois movimentos grevistas), dizem:
detém a autoridade e não há diálogo possível. Se
algumas vezes o discurso dos alunos tenta justificar “os professores queriam ganhar mais do que um
as atitudes dos professores quase equiparando as duas médico. Um médico deve ganhar mais do que um
situações, aflora sempre a contradição maior entre o professor, porque ele lida mais com o povo do que
que possui o saber-poder e o que não o possui. Se o professor. A responsabilidade é maior. E acho
concordam com o fato de que o professor deve ganhar que estudaram mais.”
Adotam as imposições da hierarquia escolar que
16. FOUCAULT, 1977, p. 165-6. classifica os indivíduos de acordo com o número de
anos de estudo e as aptidões em assimilar conheci­ em que conseguem raciocinar dentro de outros parâ­
mentos, sem referências às classes sociais. Comparti­ metros que não os escolares, reconhecem que a ordem
lham a idéia de que a competência dada pelo estudo estabelecida deveria ser outra.
é que determina sempre os lugares das pessoas na Porém, internalizaram perfeitamente a concepção de
hieraquia social, formulação que encobre a realidade que o trabalho não pode ser visto como um dos
das diferenças de classe. caminhos para o saber. O saber e sua decorrência, o
Porém há momentos em que deixam transparecer a poder, pertencem aos que detêm o conhecimento ad­
própria experiência: quirido através dos meios instituídos socialmente: os
“Acho que todo serviço é importante. Falar que um bancos escolares e os livros.
tem mais valor do que o outro, a gente fala, mas Estudo e trabalho poderiam ser realizados ao mesmo
um depende do outro. Não adianta ficar dizendo tempo, ambos com igual conotação, como reflete Mauro,
que um é mais importante e coisa e tal. O professor, de 15 anos:
seu serviço é importante. Mas um lixeiro, parece “Eu acho que eles deveriam ganhar mais. Eles
que o dele não é, nem estudou. Mas se ele deixar passam uma vida, quase uma vida, dentro de uma
de trabalhar? A greve dos lixeiros não durou nem escola, estudando, aprendendo, sacrificando até o
dois dias.”
trabalho deles, pois muitos não podem trabalhar por
José Álvaro, de 18 anos, que trabalha em escritório causa da Faculdade. Devem ganhar o que merecem
de indústria, conseguiu perceber que o discurso da pelo estudo. Vejo isso, de deixar de trabalhar en­
competência pelo estudo é falso e pode encobrir uma quanto estuda, pelo meu irmão. Ele está-se formando
outra realidade. A importância de um trabalho é medida agora em engenharia civil (em Escola Pública).
por outros critérios que não os divulgados, já que Quando começou na Faculdade, ele teve que parar
interessa pensar que a diferenciação é gerada pela de trabalhar. Não dava mais para levar o trabalho
maior ou menor escolarização e pelas aptidões, pois e a Faculdade juntos. O meu pai teve que sustentar
repugna ao profissional liberal e à ideologia dominante ele, por uns anos. Só agora ele recebe alguma coisa,
em geral admitir que um trabalhador possa ter acesso porque está fazendo estágio e já dá para viver, e
ao pensamento crítico e elaborado. a gente não precisa mais sustentar ele. Acho que
Discutindo o papel da escola em face da hierarquia a gente deveria poder estudar e trabalhar, para
social, Lautier comenta que ninguém ter que sustentar a gente. Mas isso depende
“essa classificação individual é possível na lógica do grau de estudo, tem Faculdade que não tem hora
escolar, porque é estabelecida em um espaço ho­ vaga. Aí não dá para trabalhar, mas deveria poder”.
mogêneo: a referência ao conflito de classes é Esse menino, que trabalha em fábrica desde treze
esvaziada e permanece unicamente o reconhecimento anos, revela um dos preços da “democratização” do
das aptidões individuais” (1978, p. 196). ensino, da escola “até para os operários”, no modo de
Os trabalhadores-estudantes, no entanto, já ocupam produção capitalista. E possível que o diploma de
outro espaço, o do trabalho assalariado e, nos momentos engenharia civil, em escola oficial, seja atribuído ao
estudo e à capacidade individual, mas que seja con­ lutar para conseguir solucioná-los, não se acomodar,
seguido através de uma depredação da força de trabalho não aceitar. Como, porém, estão submetidos à lógica
dos irmãos. Aliás, constatamos várias vezes que a escolar, esta informa sempre o raciocínio:
família se organiza para que um dos membros possa “se esses professores se formaram, lutaram, como
estudar com mais afinco. a gente está fazendo aqui, foi para receber certinho
Percebem, também, que o movimeno grevista ultra­ o pagamento e não para fazer como o governo está
passa a mera categoria profissional e que o problema fazendo.”
da reivindicação tem outras raízes:
Nota-se aqui um retorno à idéia de que o pagamento
“...acho que esse negócio de greve está vindo tudo
é retribuído pelos estudos, pelo esforço individual, pelo
por causa do governo. Se o governo não aumentasse
tanto a gasolina... pois ele aumenta a gasolina cinco “merecimento”.
vezes por ano e o salário só aumenta uma vez. Concluindo, podemos dizer que, no período inicial
Quer dizer, não tem condições. O povo está-se das entrevistas, os alunos pouco falavam de relevante
apertando. Chega uma hora que não dá, aí eles sobre o professor, eram apenas elogios sem maior
querem aumento e são obrigados a fazer greve para significação, como “são legais”, ou críticas como “muito
ter esse aumento. Tem muita gente que está sentindo chatos”, “brutos” etc. Porém, depois da interrupção
o aperto, é metalúrgico, é motorista, até médico e motivada pela greve que coincidiu com movimentos
professor.” grevistas de outras categorias profissionais, o discurso
modificou-se.
A luta agora não é só para “ganhar o que merecem Em frente de uma situação concreta em que aparecia
pelos anos de estudo”, como parecia nas entrevistas claramente a condição do professor-trabalhador junto
anteriores à greve, mas para sobreviver. Todos precisam
a outras categorias profissionais, já que todos reivin­
ser aumentados, até quem estudou. A situação é geral
dicavam melhores salários e melhores condições de
e a luta não é de uma categoria nem por um só
motivo: trabalho, surgiram elementos para que os alunos pu­
dessem modificar a imagem anterior do professor de­
“A greve foi porque o governo que entrou agora é tentor do saber e distante dos alunos. As críticas às
só para fazer ponto e não está solucionando nenhum atitudes agressivas dos professores, à falta de interesse
problema, como o dos metalúrgicos, o dos professores nas aulas e o autoritarismo, começaram a ser mais
estaduais, nem nada... essa greve foi provocada explicitados e mesmo questionados, já que o professor
porque o governo não queria aumentar os professores. surgiu aos olhos deles como um trabalhador que também
Mas mesmo assim eles lutaram, só que o governo luta e reivindica. Mas, se em um momento pareceu
não quis dar o aumento.” que o contato com uma situação concreta possibilitou
O governo é personalizado, a culpa é dele que não visão mais clara das relações selvagens que caracterizam
resolve os problemas do povo. No discurso aparece a o mundo do trabalho, continuaram a afirmar que me­
percepção de contradição: a responsabilidade é do lhores salários devem ser atribuídos a quem tem maior
governo, por não resolver os problemas, mas deve-se escolarização.
Os elementos de interpretação da realidade ditados tivem a instauração de uma atitude organizativa entre
pelo senso comum e pela prática cotidiana de traba- os alunos que são os destinatários de sua ação edu­
Ihador-estudante — como o aluno que se referiu à cacional.1819 , .
greve dos lixeiros ou os que perceberam que, apesar Deixa-se, assim, de aproveitar um espaço aberto
dos anos de estudo, os professores não conseguiram propício para a politização. Caberia ao professor sis­
aumento significativo de salários — poderiam, se con­ tematizar os conceitos herdados da tradição ou veicu­
venientemente elaborados pelos professores, levar a um lados pela concepção hegemônica e acolhidos sem
desmascaramento da realidade escolar. crítica, elevando o senso comum a uma concepção
Porém, tal mudança implicaria que o lugar do coerente e orgânica da realidade. Essa superação do
professor ficasse vazio, que o professor aceitasse trocar senso comum só pode ser realizada a partir da sua
o falso diálogo professor-aluno, que não existe nas negação e da sua conservação, exigindo, portanto, no
condições atuais de contradição entre autoridade do limite, certa identificação com os elementos de expli­
professor-submissão do aluno, pelo diálogo do aluno cação fornecidos pelo próprio senso comum.
Considerando-se que o atual professor de 1 e 2
“com o pensamento, com a cultura corporificada nas
graus é cada vez mais emergente de estratos socio-
obras e práticas sociais e transmitidas pela linguagem
econômicos e baixos, permitindo alguma identificação
e pelos gestos do professor”.17
também com a clientela junto à qual atua nos cursos
Os últimos movimentos reivindicatórios dos profes­ noturnos, pode-se pensar que, devidamente organizado,
sores seguiram o mesmo esquema dos anteriores, no ele possa trabalhar no sentido de confrontar, junto com
sentido de que relacionaram a melhoria de salários a os alunos, a realidade na qual ele viver. Porém, o mais
melhores condições de ensino. Parece que o professor freqüente é o professor assimilar os padrões e aspirações
se esquece de que está inserido no processo produtivo, pequeno-burgueses, desejoso de ascensão social, de
ainda que de produção intelectual. E como tal, não há prestígio e de conformar-se cada vez mais com a sociedade
por que relacionar salário melhor com melhoria na de consumo. Transmite, assim, apenas a ideologia do
qualidade do produto que “fabrica”. Não se vê um Estado e da sociedade capitalista, e os únicos momentos
movimento operário que realize tal raciocínio. Na medida de crítica que surgem o transformam em censor.
em que o professor não consegue estabelecer o valor A volta às aulas, após o período de greve, todavia,
de sua hora de trabalho, não consegue discutir obje­ significou apenas uma retomada violenta da função
tivamente o problema do salário e, ao mesmo tempo, autoritária de professor expressa pelo “jogar matéria
não consegue organizar-se de modo satisfatório, a fim e reprovar, comandada pelas exigências curriculares e
de questionar, dentro de sua categoria profissional, as sancionada pela administração escolar.
condições em que vive e exerce sua profissão. Faltando
tal sistematização e tal questionamento organizado,
dificilmente conseguirá ter comportamentos que incen-
18. MASCELANI, 1980, p. 123-131.
17. CHAUI, 1980a, p. 24-39. 19. SAVIANI, 1980, p. 9-14.
Capítulo V para sua condição de estudante, e desejam dar impressão
de certo diletantismo:
“...é assim. No começo eu não precisava de jeito
ESCOLA E PROCESSO nenhum. Aí, comecei a trabalhar. Meus pais se
PRODUTIVO acostumaram com isso e eu também. Agora, se
parar de trabalhar, meu pai, que já está acostumado,
vai dar uma forçada para eu continuar trabalhando.”
1. A REPRESENTAÇÃO DO TRABALHO É possível que, sentindo-se discriminados no am­
biente escolar, considerem a condição de “trabalhar
Freqüentemente os alunos consideravam o trabalho por necessidade” como depreciativa. Mais de uma
como iniciativa puramente pessoal: vez os alunos disseram que “os professores têm pena
de nós porque a gente trabalha o dia todo”; e os
“meu irmão começou a trabalhar. Como eu vi que professores, ao se referirem às dificuldades com o
ele tinha sempre um dinheirinho no fim do mês, ensino, empregavam os termos “os coitados”, “os pobres
fíquei morrendo de vontade de trabalhar também. dos alunos”. Essa atitude paternalista, encobrindo uma
Meu pai não queria deixar, mas eu insisti. Aí, tive depreciação do trabalho manual, talvez motive a ênfase
que passar para a noite, por causa do serviço. Isso que os alunos colocam no caráter voluntário do trabalho
tudo foi por minha vontade”. como se o fato de trabalhar por vontade própria anulasse
a condição de violência da relação salarial, violência
Parece que o aluno vê o trabalho como imagem de que no entanto é vislumbrada:
liberdade, de independência “...trabalho porque quero.
Minha mãe não queria que eu trabalhasse”. “...acho que no trabalho a gente faz uma coisa
forçada. Na escola não. A gente faz porque está
E interessante considerar aqui o comentário de Ha- ciente do que está fazendo, é uma coisa que está
bermas (1975, p. 317), a respeito da crítica da ideologia nos ajudando. O trabalho é pela parte financeira, a
burguesa realizada por Marx na forma de crítica da gente precisa para quebrar os galhos, para os gastos.
economia política: Mas não é uma coisa que a gente está aprendendo
como na escola.”
“...sua teoria do valor do trabalho destruiu a aparência
da liberdade, na qual a relação de violência social, Estabeleceu uma separação entre as duas atividades:
subjacente à relação do trabalho assalariado torna­ a escolha entre trabalhar ou não, pode ser voluntária,
ra-se irreconhecível pela instituição jurídica do livre mas estudar é atividade mais pessoal, é mais do que
contrato de trabalho”. isso, é quase um bem pessoal:
De modo geral, relutam em admitir que o trabalho “mas aqui na escola, eu trabalho, eu estudo, só para
é condição necessária para a subsistência da família e mim. Mas no meu serviço não. É para mim e para
o bem de meu patrão. Porque se eu não trabalho, exploração e que a gente é explorado mas a gente
atrasa o serviço dele e ele fica prejudicado com precisa viver. Não tem outro jeito.”
isso. E eu fico prejudicado também, posso levar
bronca e enfim ele pode me mandar embora.” A questão da exploração é assim colocada:

Ainda que de maneira ambígua, há nítida idéia de “...por exemplo, eu tenho quatro caminhões e contrato
que o trabalho é realizado pelo empregado mas não quatro pessoas para guiarem. Carrego cada caminhão
é dele, e sim do patrão. A única “liberdade” possível com mercadoria que vale muito. Cada viagem sig­
aparece na escolha do trabalho, depois há a submissão, nifica para mim um tanto, posso investir em caderneta
por medo de perder o emprego. Ao mesmo tempo, há de poupança e coisa e tal. Fico no meu escritório
certa relutância em admitir essa servidão, essa venda controlando esse dinheiro e os meus empregados
“livre” de força de trabalho: na estrada, ganhando esse dinheiro para mim. Isso
é exploração.”
“na escola eu trabalho para mim e no serviço eu
Agora se entende mais por que uma aluna se referiu
trabalho para os outros, para o meu patrão, para
ao trabalho como “uma coisa forçada”, os empregados
um monte de gente, inclusive para mim. Sirvo a
ganham para o patrão, são pagos mas é para enriquecer
todos. Mas na escola é essencialmente para mim.”
o patrão e também para poderem sobreviver. O trabalho
Talvez essa ênfase em idealizar o estudo na escola do patrão é caracterizado como de controle, e o dos
como um bem pessoal, “é essencialmente para mim”, empregados como serviço-para-o-patrão. E nessa ex­
sirva para preservar um espaço pessoal. Pelo menos ploração, o próprio empregado, em determinado mo­
na escola eles podem ser eles mesmos: mento, quase se identifica com o patrão, por estar
dentro do processo:
“eu trabalho porque eu preciso ajudar minha família,
para comprar alimentos, roupas e outras coisas que “...o patrão cobra bem mais caro do que pagou pela
são úteis, e eu estudo porque é uma atividade que mercadoria. O empregado recebe uma comissão,
serve para desenvolver os seres; eu me esforço além do salário, pelas vendas que faz. Então precisa
bastante na escola para ter um futuro melhor”. usar de muita garra para vender bastante. E sabe
que vai cobrar mais do que a mercadoria vale. O
O trabalho, portanto, é visto como atividade concreta vendedor, então, também explora o freguês. E é
que permite aquisição de mercadorias e se contrapõe explorado pelo patrão. Entra na onda, sem querer.”
ao estudo que é caracterizado quase misticamente como
podendo “desenvolver os seres”. E isso porque a na­ Por esse motivo é que o “mundo do trabalho é um
tureza do trabalho está clara para eles: mundo de exploração”, todos participam da exploração,
mesmo os explorados parecem auxiliar no processo de
“falou em trabalho, falou em exploração. A gente exploração. É bem possível que seja por isso que
sabe que o mundo do trabalho é um mundo de encontramos, tantas vezes, justificativas pelo fato de
trabalharem. Trabalham porque querem ou porque pre­ trabalhando e participa dessa ordem “já sente as coisas
cisam ajudar a família, porque precisam viver, mas como devem ser”, e não percebe que, na sociedade
estão sabendo que o trabalho deles ultrapassa o simples dividida em classes, cada indivíduo existe como membro
fazer, tem uma dimensão maior do que o estudo porque de uma classe determinada e, portanto, as formas de
faz parte de uma engrenagem que desconhecem, da pensamento são carregadas da ideologia apropriada por
qual, no entanto, participam e na qual colaboram, uma classe ou por fração de classe.
mesmo sem seu pleno consentimento. Parece que trabalhar e estudar, nessas condições,
Os alunos chegam a ter um conhecimento da situação acarreta ausência quase completa de queixas diretas
concreta do trabalho no modo de produção capitalista, com relação aos salários. No decorrer da conversa
ou seja, captam, ainda que de maneira fragmentária, alegavam sempre falta de recursos, “não vou ter dinheiro
a contradição básica entre capital e trabalho, mas esse para continuar estudando” ou então “se tivesse dinheiro
conhecimento a que chegaram a partir da prática social fazia supletivo”. Alguns alunos fazem “bicos” para
não é veiculado na escola: complementar o salário:
“...quem estuda e trabalha fica mais responsável. “...tenho um amigo ourives, quando preciso de algum
Sabe o preço das coisas, dá valor ao que seu pai dinheiro extra, trabalho com ele algumas noites, e
faz por você. Agora eu sei o quanto custa conseguir então não venho à escola”; “...aos domingos vou
as coisas.” “...mudei muito quando comecei a tra­ carpir uma roça na fazenda do patrão, para tirar
balhar, agora eu sei como as coisas são, quanto um pouco mais.”
custa.”
Quanto ao salário, as colocações se faziam, em geral,
Permanece a valorização do tipo “o trabalho dignifica de maneira indireta, como se viu nos trechos acima,
o homem” que, por ser generalizante, não leva em porque consideram o serviço em que estão como
conta a historicidade das relações de produção. Apesar provisório, como condição, para muitos, de se manterem
de viverem relações opressoras e de exploração, con­ como estudantes:
tinuam presos a uma visão do trabalho como força
“moralizadora”: “...estou usando o emprego como local de trabalho,
para ter um dinheiro meu. Mais para frente quero
“...tem uma parte boa, também, uma pessoa que sair porque não é um emprego que dá futuro (fábrica
fica parada em casa, tem mais possibilidade de se de sapatos). Quero casar e coisa e tal e esse emprego
extraviar, de seguir maus exemplos, porque está não dá. Gosto de mecânica. Quero ver se eu esforço
sem fazer nada e vai com más companhias. Mas e se consigo um estudo de mecânica, se desse mais
quem está no emprego já está mais encaminhado. ainda, queria era fazer engenharia mecânica”.
Já sente as coisas como devem ser.”
O trabalho atual é que garante o estudo, pois sem ele
Através dessa ótica, o trabalho é a condição natural não têm condições de arcar com despesas mesmo
do homem, há uma ordenação das coisas e quem está mínimas.
Por outro lado, consideravam o seu salário melhor até as 11 horas da manhã. E depois do almoço,
que o de seus pais e alguns de seus irmãos mais brinco até a tarde e à noite vou dormir para descansar
velhos, pois “trabalho nisso só enquanto estudo, depois e trabalhar depois o dia inteiro e à noite vir para
arrumo coisa melhor”. A perspectiva de melhoria de a escola estudar.”
salário, através do estudo, parece acomodar o aluno à O que caracteriza a vida é o trabalho: é ele que
situação salarial, já que a provisoriedade do pequeno fixa os limites do estudo, do lazer e do descanso.
ganho é quase lembrada como justificativa. Se bem As redações em geral começam e terminam com a
que ao responderem a respeito da continuação ou não referência ao trabalho acompanhado sempre de “can­
dos estudos, não sabem dizer se o que ganham permitirá sativo, cansado” e a menção à rotina “começa tudo
ir além do 2o grau. Daí a procura de cursos profis­ de novo”. Muitos insistem em dizer que “a minha vida
sionalizantes, objetivando poder ganhar melhor depois começa na segunda-feira” relacionando fortemente a
de tais cursos e então continuar para “ter diploma”, o realidade existencial com as atividades assalariadas.
que significa para eles fazer um curso universitário. Paulo Roberto, 14 anos, fala:
Pois “é na escola que pretendo melhorar a minha
vida”. “...começa na segunda-feira. Levanto às 6,30 e vou
para o trabalho... a semana toda faço esses serviços
de boy e só quando chega sábado e domingo eu
2. O COTIDIANO DO TRABALHO vou ao cinema e posso descansar”.
Essa luta contínua tem uma finalidade “tenho que
Trabalho e escola se interligam de tal modo na trabalhar muito para no fim da vida ser um homem
vida desses meninos que é, por assim dizer, impossível de futuro”. E esse futuro é a escola quem vai garantir,
falar de um sem lembrar do outro, não porque se como já vimos. Daí esforçar-se por combinar as duas
completem, mas porque constituem o cotidiano sofrido. atividades.
Tentamos, entretanto, analisar a vida de trabalho, pro­ Ainda assim, a escola parece intervir no cotidiano
curando indagar em que consiste e das condições em do trabalho: “acho que as coisas são muito difíceis de
que se realiza.20 combinar uma com a outra. Geralmente tem um trabalho
Luiz Carlos, de 13 anos, escreve: de escola para fazer, uma prova, você fica lá no serviço
“Minha vida é assim: trabalho a semana inteira sem e pensa, preciso fazer aquilo, de que jeito eu faço?”
A escola não é continuação ou complemento do trabalho,
descansar. No domingo levanto cedo para estudar
mas atividade que cria problemas.
São dificuldades que os meninos tentam contornar
20. Nesse capítulo, além das entrevistas e questionários, utilizamos de divesas maneiras:
também redações dos alunos de 5a série, sob o tema “Como é
minha vida”. Essas redações foram solicitadas como tarefa normal,
“muitas vezes eu faço escondido. Eu ponho a caixa
em classe, da professora de Português, que as colocou a nossa na frente da mesa, me escondo atrás e faço a lição,
disposição. lá mesmo.”
A condição de trabalhador-estudante não pode trans­ O tempo passa a ser o vigilante contínuo, os horários
parecer claramente. As tarefas escolares são inseridas do trabalho e da escola são os guardiões das demais
de modo “escondido” no cotidiano do trabalho, como atividades desses meninos. Esse autoritarismo que passa
uma das únicas alternativas de poder “levar as duas a ser natural, que entra na rotina, é uma forma sutil
coisas juntas”. Conforme o tipo de trabalho, é mais de violência que não chega a ser percebida como tal.
simples: “quando não tenho freguês, pego o livro ou Procurando aprofundar a reflexão sobre a violência
o caderno, passo a limpo lá”, sabendo, no entanto, nos dias de hoje, Chaui (1980, p. 16-24) nos diz que,
que “uma coisa atrapalha a outra. Às vezes não atra­
palha. Mas se a gente vai pensar direito, atrapalha “de maneira vaga e genérica definimos a violência
sim”. A aluna fica em dúvida, talvez por respeito à como um processo pelo qual um indivíduo (humano
escola, já que está correspondendo no ambiente escolar; ou não) é transformado em coisa... Definida a
mas conclui que realmente atrapalha exercer as duas violência como um processo de redução de um
atividades ao mesmo tempo, não havendo um horário sujeito à condição de coisa, visamos a retirá-la do
estipulado ou uma aprovação tácita de que é possível contexto que a define como transgressão de leis e
atender às duas concomitantemente. É preciso uma pensar nestas leis como portadoras de violência.”
“técnica”, um sabedoria quase, para poder trabalhar e
Nesse sentido, tanto o universo do trabalho quanto
estudar.
o escolar estão carregados de violência, de regulamentos,
“E preciso saber dividir o meu tempo. Se não prescrições, promessas que condicionam um agir.
souber, não dá. Uso minha hora de almoço.” O tempo Há promessas de benefícios: “estudar ajuda para ter
não é deles. Ou “roubam”, usando o tempo do trabalho
um cargo maior na vida” ou “estudando tem um futuro
ou usam as outras horas, que é a do almoço, do sono,
melhor” ou ainda “com o estudo a gente entrosa melhor
do lazer. “O único dia da gente é o domingo e precisa
na sociedade de nível mais alto” e mais concretamente
fazer a lição, copiar, estudar. Nem dá para descansar.”
“a gente pode ganhar mais, ter um emprego mais
Há uma corrida contra o relógio: “acordo às 6 certo”. Promessas que constituem outra forma de vio­
horas, entro às 7 no serviço, saio às 11, começo às lência, invisível, que circula no interior das relações
12,15, paro às 15 para o café. Recomeço às 15,15 e sociais capitalistas, já que não são dadas aos trabalha­
saio às 18. Chego de volta do trabalho e preciso chegar dores, em geral, as condições para sua realização.
à escola às 7,10”. Gravam até os minutos, o tempo
Produzem assim uma submissão interiorizada, que não
está tomado inteiramente de tal modo que, nas respostas
questiona, não procura outras soluções, apenas se queixa:
aos questionários, 50% dos alunos, ao descreverem o
cotidiano do trabalho, quase só relataram os horários. “Levanto todos os dias às 6 horas para entrar no
A preocupação em anotar os horários, quando a serviço às 7 horas. O trabalho não é dos piores,
solicitação era relatar as atividades diárias, deixa en­ mas a firma é uma bomba, muito regulamento. Para
trever um tipo de violência a que são submetidos, o estudar é muito difícil, porque tenho uma hora para
horário, que é uma forma de autoritarismo difuso. vir para a escola, e se chegar 10 minutos atrasado,
já não entra. Quando tenho que estudar para prova, 3. RELEMBRANDO A SITUAÇÃO LEGAL DO
passos as noites em claro para ter um rendimento TRABALHO DO MENOR
satisfatório.”
A utilização do trabalho infantil vem sendo uma
A condição de trabalhador-estudante obriga a dimi­
nuir as horas de sono: constante na história do desenvolvimento econômico,
não apenas em nosso país. A nível internacional, vimos
“Meu trabalho é muito cansativo porque eu durmo a pesquisa realizada pelo Comitê da Liga Internacional
apenas 6 horas por dia e quando acordo é com o Anti-Escravagista, denunciando o trabalho de meninas
corpo doendo, mas tenho de trabalhar para poder na indústria manufatureira de tapetes de Marrocos.
estudar.” Crianças a partir de sete anos, meninas trabalhando
de oito a dez horas diárias, em ambientes insalubres,
Não descreve o trabalho, apenas o qualifica como com alimentação insuficiente, remuneração insignifi­
“muito cansativo”, por causa da relação “trabalhar para cante e sem possibilidade de acesso à escola (JOUVIN,
poder estudar”.
1979, p. 967ss). No Brasil, entre outras pesquisas,
Em geral começaram a trabalhar muito cedo, exer­ vimos a publicada pela Associação Brasileira de Pre­
ceram várias atividades, às vezes no mesmo setor venção de Acidentes, relatando a situação de menores
econômico e quase sempre as que exigem pouca ou
de oito a dezesseis anos, que trabalham em fábricas
nenhuma qualificação anterior.
de vidro, expostos a condições completamente inacei­
O mais comum é ficar em “serviços gerais”, inclusive táveis do ponto de vista de higiene e segurança do
porque, não tendo função fixa, o salário é menor e a
trabalho (Jornal de Prevenção de Acidentes, 1979). Na
“versatilidade” é funcional para a firma.
pré-história da legislação trabalhista brasileira, ainda
Em alguns casos, conseguem preparar-se para o na década de 20, os documentos questionando o Código
emprego, não por meio da escolarização regular —
de Menores, em discussão pelo empresariado nacional,
pois esta vai resolver o problema “no futuro” — mas
por meio de cursos de datilografia, realizados com mostram o enorme prejuízo que as indústrias sofreriam
dificuldade porque são sempre pagos. Como ocorreu com uma regulamentação que reduzisse as horas de
com Adelina, de 14 anos, cujas irmãs já trabalhavam, trabalho do menor, limitasse a idade e proibisse o
o que facilitou e permitiu que ela se preparasse antes. trabalho noturno, pois nessa época cerca de 60% de
Mas assim mesmo, começou cedo: todo o operariado engajado na fiação de algodão, no
Rio de Janeiro e em São Paulo, era constituído de
“Trabalho com minha irmã em consultório de pe­ menores.21 No entanto, a partir dessa época foi esta­
diatria. Bato a máquina, atendo telefone. Trabalho belecida a proibição do trabalho noturno aos menores
os dois períodos. Comecei aos 13 anos. Aprendi de 18 anos e proibido todo e qualquer trabalho aos
datilografia no final do ano passado. Estudava da­
tilografia de dia e à noite aqui. Aprendi datilografia
para arrumar emprego.” 21. GOMES, 1978, mimeo., p. 274-302.
menores de 14 anos. A CLT de 1943 acrescenta a A introdução dessa categoria, que está bem definida
proibição de contratação dos serviços de menores em nos textos legais e que exige um contrato de apren­
condições insalubres e perigosas. A Constituição de dizagem por tempo determinado, constitui, no entanto,
1946 ampliou as vantagens aos menores proibindo um veio através do qual o empregador continua a
diferenças salariais para um mesmo trabalho, por motivo pagar salários inferiores, forjando uma aprendizagem
de idade e manteve a idade mínima de 14 anos. que não existe. Mais da metade dos menores pesquisados
A partir de 1967, surgem as maiores modificações recebem menos do que o salário mínimo e exercem
na legislação de proteção aos menores trabalhadores, funções que não comportam aprendizado prévio, como
que, na realidade, irão aumentar a exploração do tra­ boy, balconista, entregador.
balho infantil. Há redução da idade mínima para 12
Em São Paulo, a População Economicamente Ativa
anos e instituição do salário do menor, contribuindo
PEA, de 10 a 14 anos, conforme dados da PNAD/1976,
assim para o arrocho salarial que já estava em vigor
do IBGE, apontava 297.013 menores trabalhando e 12.771
na época e foi uma das bases do “milagre” 1968-1973.
procurando trabalho, o que representa, com relação ao
A legislação vigente considera “menor” o trabalhador total da PEA, respectivamente 3,44% e 7,74%.
de 12 a 18 anos (artigo 402). Ressalta que o trabalho
Vê-se, portanto, que existe uma discrepância na
dos menores de 12 a 14 anos está sujeito à garantia
legislação brasileira ao classificar o ensino como gratuito
de freqüência à escola que assegure a formação do
e obrigatório entre 7 e 14 anos e permitir o ingresso
menor em nível primário e restrito a serviços de
natureza leve, que não sejam nocivos à sua saúde e no mercado de trabalho com 12 anos, sendo que a
desenvolvimento normal. prática comum é iniciar o trabalho antes mesmo desta
idade. Um dos indicadores dessa prática é fornecido
Com a publicação da Lei 6.068/74, modificou-se pelo formulário do Censo de 1980: indaga-se quantas
apenas formalmente a situação do menor trabalhador. pessoas estão trabalhando, na faixa etária de 5 a mais
Até então, os empregadores eram obrigados a manter anos...
em seu serviço um número de trabalhadores menores
de 18 anos, não inferior a 5% nem superior a 10% O fato de a criança trabalhar não constitui um mal
no quadro de funções compatíveis com o trabalho do em si. Ainda que em condições históricas diversas,
menor. Pagavam-se 50% do Salário Mínimo Regional Marx, na “Crítica ao Programa de Gotha”, enfatizava:
aos de idade entre 14 e 16 anos e 75% aos de faixa “a proibição geral do trabalho infantil é incompatível
etária de 16 a 18 anos. Com a implantação dessa lei, com a existência da grande indústria e, portanto,
fica a critério do empregador a admissão de menores um piedoso desejo, porém nada mais (...) regula­
em número que achar conveniente e é abolida a mentada severamente a jornada de trabalho segundo
diferenciação entre o salário mínimo de adulto e o de as diferentes idades e aplicando as demais medidas
menor, exceto nos casos em que o menor é aprendiz. preventivas para a proteção das crianças, a combi­
nação do trabalho produtivo com o ensino, desde 4.1. A AVALIAÇÃO DA APRENDIZAGEM:
uma tenra idade, é um dos poderosos meios de NA ESCOLA E NO TRABALHO
transformação da sociedade atual.”22
A análise do cotidiano de trabalho dos trabalhado- O trabalhador-estudante não tem ilusão alguma quan­
res-estudantes procurou evidenciar que não há uma to ao que vai aprender na escola. Sabe que precisa
“combinação” possível entre trabalho e ensino. O tra­ passar por ela, como pré-requisito para conseguir ocu­
balho produtivo condiciona as demais atividades desses pações regulares e estáveis, já que “no trabalho exigem
meninos, norteando inclusive a necessidade de estudar, o estudo para entrar, mas lá dentro não precisa”. As
mas de forma oprimente e “não libertadora”. práticas escolares são seguidas e temidas, mas eles
sabem exatamente o que elas valem. Veja-se, por
exemplo, a contraposição entre o sistema de avaliação
da aprendizagem utilizado na escola e o vigente no
4. A ESCOLA E A REPRODUÇÃO DO trabalho:
TRABALHADOR
“...sei que ele aprendeu se ele consegue executar
O caráter de classe da escola capitalista revela-se, bem, por exemplo, se ele aprende a lixar (é o meu
principalmente, na separação que ela reforça entre serviço), direito. Na escola é pelas provas” (Décio,
trabalho manual e trabalho intelectual, separando os 15 anos, fábrica).
trabalhadores da escola e os estudantes da produção.23 “...quando ele entrou, o rapaz que trabalha comigo
O capitalismo de hoje não recusa o direito à escola, não sabia nada. Aí, expliquei, ele foi vendo fazer
pois o acesso está aparentemente mais aberto aos e foi fazendo, foi aprendendo. Na escola, quando
operários e seus filhos; porém recusa o direito de o o professor, depois de explicar, dá uma prova e a
trabalhador dialogar a partir de sua prática social, gente acerta. Pela prova é que se sabe se a gente
igualando-o como aluno, sem considerar seu estatuto aprendeu ou não” (Jorge, 14 anos, indústria de
de trabalhador. Analisando o modo pelo qual se con­ cortinas).
figura para os alunos do curso noturno a prática da
avaliação da aprendizagem e da disciplina, percebe-se A avaliação é completamente diferenciada nos dois
que é através dessas práticas que a escola, exercendo ambientes. A prova da “aprendizagem” no trabalho é
sua função autoritária, qualifica a mão-de-obra, e, ao verificar se sabe fazer e na escola, verificar se sabe
mesmo tempo, distribui diferentemente o saber. dizer. Fazendo certo, aprendeu. Dizendo certo, nem
sempre:
“Sei que aprendeu assim, como aconteceu comigo.
O rapaz me ensinou e saiu. Depois me deu um
22. MARX. Obras Escolhidas, vol. 2, p. 224. tempo e voltou para ver se eu já estava fazendo
23. LETTIERI, 1973, p. 229-47. certo. Eu estava fazendo certo, então aprendi. Mas
eu não me lembro do que aprendí no ano passado. A “nota boa” pode resultar também da cola (prática
A professora de Geografia deu uma aula da 5a série, comum entre os estudantes) que solapa a possível
outro dia. Eu não lembrava nada. Do serviço, não seriedade do trabalho escolar e sugere que, se o interesse
esqueci nada. Na escola, acho que não cheguei a é a “devolução” dos conhecimentos, pouco importa a
aprender muito. Já colei muito nas provas. Se tivesse forma dessa devolução.
aprendido, não precisava colar” (José Mário, 20 Os próprios alunos justificam o fato de não conse­
anos, indústria). guirem aprender, considerando que a professora atende
a muitos de uma só vez, atende o grupo, não pode
O sistema de exame separa os que sabem, exclui, dar atenção individualizada:
cria categorias e, pela atribuição de notas, mantém
viva a necessidade de aprovação por parte de outro; “se eu for ensinar a uma colega de trabalho, fico
é pelo julgamento da prova que se sabe se o aluno junto até ver se ela consegue fazer direito sozinha.
Mas na escola a professora não pode ficar explicando
aprendeu ou não. Ele fica dependendo do juízo do
para cada um e ver se cada um aprendeu. E muita
professor, da opinião que este emitir; mas que pode gente. Ela dá chamada oral, dá prova, para ver se
não corresponder ao que o aluno realmente aprendeu: aprendeu.”
“...porque muita gente sai sem saber nada. O que eu
quero é escola. É isso. Eu, por exemplo, fechei em “...os professores dizem sempre, a responsabilidade
Inglês. Se a senhora me mandar na lousa, não faço é sua, de aprender ou não. Os patrões também. Mas
nada...” é diferente. No serviço é outra coisa, não sei dizer.”
Justificam continuamente que, por trabalharem, não Ao constatarem o suposto interesse maior do patrão,
podem render na escola, mas deixam claro que realmente estabelecem a comparação:
o que desejam é passar pela escola. O que importa
“...a professora S. diz que ganha o mesmo se o
nela é apenas a nota, é passar de ano, é a negação
aluno aprende ou se não aprende. Para ela tanto
do que se passa no mundo do trabalho: faz. Ela está para ensinar. Aprender é caso do
“...sei que aprendeu quando é capaz de fazer a aluno.”
tarefa bem feita. Na escola é pelas notas que tira. Porém,
Se tirar nota alta é porque aprendeu.”
“...meu patrão me ajuda bastante, ele me explica
“Eu fico junto e vejo se ela aprendeu a fazer como tudo. Parece que ele faz questão que eu aprenda.
eu faço. Se ela faz igual, aprendeu. Na escola é Nunca me machuquei nas máquinas, devo isto ao
pela nota, é pela prova que a gente sabe se o aluno meu patrão. Ele explica para ter cuidado, para não
aprendeu, pela nota. Mas a gente também tira nota facilitar. Ele é legal. Às vezes fico pensando que
boa quando cola. Já colei muito. Já esqueci quase ele devia fazer eu trabalhar e pronto. Mas ele se
tudo que aprendi no ano passado.” preocupa comigo. Agora, os professores também são
bacanas. Mas eles não esquentam se eu aprendo ou esforçar. Na escola, o professor, o diretor, conforme,
não. Eles acham que a responsabilidade tem que dá uma repreensão, suspende, chama os pais. Se os
vir de mim e não deles. E olhe, a firma é grande, pais não resolvem nada, e se o caso for sério, de
são 140 empregados, quase que não tem acidente. disciplina, expulsa os alunos.”
Eu tive, uma vez, arranquei a unha com a furadeira,
mas foi coisa pouca” (rapaz, 17 anos, indústria de O interesse e a solicitude no trabalho têm um limite,
móveis). que é o limite da produção. “Se errar muito, manda
embora.” Mas a escola tem outro discurso, que parece
A preocupação desse marceneiro em explicar a cuidar da pessoa: chama os pais e só expulsa em casos
solicitude do patrão trai sua decepção por não encontrar de falta de disciplina (já que o jubilamento só atinge,
uma atitude semelhante no professor. Fica implícito por enquanto, os cursos superiores...). Repreende, dá
que o interesse do industrial está em obter uma boa ponto negativo, reprova, mas podem continuar na escola,
produção e em evitar aborrecimentos, sabendo ou in­ até que um dia eles próprios, os alunos, desistam
tuindo que a força de trabalho é mercadoria, do mesmo porque ‘eu não tinha cabeça para estudar’.
modo que o produto de sua fábrica. No trabalho, procuram ajudar-se uns aos outros,
porque se o serviço não satisfizer as exigências do
“Para o capital, o trabalhador não constitui uma patrão, serão despedidos, mas não podem ter essa
condição de produção, mas apenas o trabalho o é. mesma atitude na escola. Ajudar significa passar cola.
Se este puder ser executado pela maquinaria ou, Falar é função só do professor. Aceitam a exigência
mesmo, pela água, pelo ar, tanto melhor. E o capital da ordem, da disciplina, mas se irritam com o fato
se apropria não do trabalhador, mas de seu trabalho de que na escola não podem falar. O “instrumento de
e não diretamente, mas por meio de troca.”24
produção” na escola é a palavra, oral ou escrita, mas
Os meninos verbalizam que o importante é sua é o professor que detém esse meio. Aos alunos cumpre
capacidade de trabalhar e não a pessoa deles, como “agüentar um professor que fala sem parar” e que é
o comentário desse menino de 14 anos: causa de desânimo “...e você fica desatento por falta
de coragem de ficar ouvindo tanta explicação.” A
“No trabalho, se eu erro, o chefe vai lá e me ensina presença passiva na escola e a falta de interesse pela
de novo, ele me fala para fazer certo. Se errar atuação do professor provocam esta confissão de Pedro:
muito, dá ‘gancho’ (manda embora). Na escola, levo
ponto negativo, repreensão da professora, isto aí. O “Sinceramente, eu prefiro ir ao serviço trabalhar do
chefe tenta ensinar de novo, muda para um serviço que vir ao ginásio. Tanto que todo dia a professora
mais fácil. E se não der jeito mesmo, manda embora. me chama a atenção porque eu começo a ficar
Todo mundo pode ir bem no serviço, é só se distraído, a largar a matéria de lado e fazer outra
coisa, lendo gibi, conversando com o colega de
lado. Não dá vontade de ficar assistindo à aula,
24. MARX, 19756, p. 93. ficar prestando atenção. São interessantes as coisas,
mas aula a gente nem quer saber. No serviço tem Dessa forma, entende-se que o aluno se sinta menos
que prestar atenção. Se for trabalho com máquina, subordinado na relação trabalho-patrão do que na relação
como eu, se ficar distraído, pode pegar um dedo, estudante-escola. Pois:
machucar. Se não prestar atenção à aula, o que “eu já sei tudo o que preciso fazer; às vezes o
acontece? Na hora nada, mas no fim do ano acontece, chefe chega e diz: hoje eu preciso que você faça
tem que fazer a mesma série outra vez.” isto e aquilo. Eu já sei. E pronto. Mas, na escola,
A ênfase em prestar atenção na escola tomba no as ordens mudam muito.”
vazio, não se sabe por que os professores exigem, em Apesar de termos indagado sempre e de diversas
contraposição com a situação do trabalho produtivo, maneiras, não conseguimos saber que ordens mudam
onde a desatenção se reveste de um sentido preciso: na escola. Os alunos relataram mais ou menos as
pode causar dano físico, “pegar um dedo, machucar”, mesmas proibições ou ordens, como
ou provocar uma punição temida, “ser despedido”.
“não pode fumar, não pode entrar sem avental, não
pode ler livro junto com o colega, cada um tem
4.2. A DISCIPLINA E A LIBERDADE que ter o seu livro; se chegar depois das 7 horas
e 10 minutos não entra mais” etc.
Ao falar sobre o trabalho, o aluno fala de algo com E continuavam afirmando que “na escola é diferente,
que convive várias horas por dia e que é a atividade as ordens mudam sempre”. O que, talvez, se explique
responsável pela sua manutenção, atividade que conhece por outra ótica, “na escola todos mandam; o diretor,
bem e lhe permite certa liberdade de ação: o professor, a orientadora, o inspetor de alunos, o
servente, todos dedam a gente”. É provável que a
“eu sei fazer tudo o que mandam lá”; “quando entra expressão “as ordens mudam sempre” seja a constatação
um empregado novo, sou eu quem vou ensinar de que a interpretação das ordens é modificada, já que
como arquiva a nota fiscal etc.” todos mandam na escola. A autoridade é múltipla e
Mas, ao falar da escola, ele está se expressando a fragmentada.
respeito de uma atividade na qual ele é um dependente, Além disso, é em certo sentido ludibriável:
um subalterno. “No trabalho, se eu precisar de dispensa, é só com
autorização do médico. Aqui eu digo que estou com
“Eles (na escola) não respeitam a responsabilidade dor de dente, e pronto. Peço para sair e deixam.”
da gente, estão sempre mandando.” “Lá (no trabalho)
a gente fica o dia todo sozinho embaixo de um Talvez essa aparência de contradição — pois a
trator, e tudo bem. Aqui, precisa ficar quatro horas escola aparece ora autoritária, ora condescendente —
prestando atenção a um professor que fica falando reforce o caráter autoritário, porque confunde o aluno.
na frente da gente o tempo todo e pedindo silêncio.” Ele não sabe ao certo onde está pisando.
“Nos dois exigem, na escola tem que ter disciplina, concretiza e se dissimula ao mesmo tempo, pela venda
no trabalho também, senão o patrão... mas aqui na periódica de si mesmo, pela ficção do contrato livre,
escola exigem mais de mim. Exigem mais, mas não pela troca de patrões. No trabalho, entra-se através de
exigem nada. Aqui não tenho a liberdade que tenho um contrato “livre” para fazer um serviço e ganhar.
lá no serviço. Lá sou mais livre.”
Procuraram livremente esse trabalho que proverá sua
Aparentemente as imposições são as mesmas para subsistência, dando-lhe uma aparente independência
as duas atividades, pois, ao descreverem a rotina do econômica diante da família e dos outros jovens que
trabalho, os alunos se referem à intransigência nos não trabalham. Percebem a autoridade como “regra do
horários, às proibições. Além disso, o ritmo de trabalho jogo”, o mesmo não acontecendo na escola. Ou porque
é pesado, sem tréguas, em geral durante oito horas talvez não percebam a razão das ordens, ou pela
com uma hora para almoço ou até menos e não raro mudança dos atores, já que ‘todos mandam’ ou pela
precisam dar horas-extras — mas, ao estabelecerem repetição cansativa das ordens, ou ainda pela falta de
comparação, dizem que se sentem mais livres nas consistência, ‘mandam sempre’. A hierarquia autoritária
atividades produtivas. O relato de José A., 16 anos, no trabalho é predeterminada. Ao entrar, o trabalhador
talvez esclareça um pouco essa afirmação: já sabe a quem deve obedecer, conforme a estrutura
interna do serviço, ao diretor ou ao patrão, ao gerente
“Se você entrou em um serviço, você já sabe que
ou aos sócios, ao chefe de seção, ao empregado com
entrou para ficar debaixo de ordens porque é isto
mais prática. De acordo com o porte e o tipo de
aí. Você entra, você ganha. Eles mandam você
estabelecimento há maior ou menor número de pessoas
trabalhar para ganhar. Eles não vão pagar a uma
na escala hierárquica, mas são sempre os mesmos e
pessoa que não faz o serviço. Então, no começo
ficam bastante em cima. Depois, eles vêem se o para ordens determinadas e praticamente imutáveis e
cara é bom ou ruim, aí eles sabem como agir. No cuja ‘lógica’ dá para se apreendida. Na escola, mudam
serviço tem que fazer, querendo ou não querendo. as pessoas que mandam e tem-se a impressão de que
E no ginásio, não. Se você não quer fazer alguma as ordens também mudam, apesar de as atividades
coisa, você diz que não está se sentindo bem e serem sempre iguais, como no trabalho:
pede para ir embora e vai para casa. No serviço, “No serviço, faço todos os dias a mesma coisa, é
você tem que fazer, certinho, eles não estão te só pegar e fazer. Mas no ginásio, como sou mais
obrigando. Mas você foi contratado para isto. Se distraído, é preciso mandar sempre. As ordens da
você não fizer, eles te mandam embora.” escola também são sempre as mesmas, mas repetem
A autoridade no serviço é aceita porque houve um toda hora.
contrato. Quando entrou, ele sabia que “iria ficar No serviço, as ordens não mudam, e eles não ficam
debaixo de ordens”. A liberdade que os alunos julgam repetindo. Na escola dão mais ordens porque você
reconhecer na relação empregado-empregador talvez fica desatento e então eles precisam falar mais
seja, na realidade, uma servidão econômica que se vezes.”
Voltam a refletir sobre a “liberdade” nos dois am­ representa também um papel positivo ao aumentar a
bientes: utilidade possível dos indivíduos. Evocando a gênese
das práticas disciplinares, mostra que nas oficinas, sem
“No serviço tem mais liberdade. Porque se eu pegar deixar de ser uma maneira de fazer aceitar os regu­
firme no serviço, a gente faz logo tudo o que tem lamentos e as autoridades, impedir os roubos e a
e depois fica conversando com os colegas. Tem dissipação, elas tendem a fazer crescer as aptidões, as
menos liberdade na escola. Eles mandam prestar
velocidades, os rendimentos e, portanto, os lucros. Nas
muita atenção à aula. Precisa ficar quieto e nunca
escolas, a disciplina terá como finalidade “fortificar,
pode conversar. Agora, no serviço, não. Pode con­
versar um pouco, sempre fazendo o serviço” (Gabriel, desenvolver o corpo, dispor para qualquer trabalho
16 anos, fábrica de sapatos). mecânico no futuro, dar uma capacidade de visão
rápida e global, uma mão firme e hábitos rápidos”.
O ambiente autoritário da escola é que os habitua Enfim, os hábitos disciplinares “funcionam cada vez
a se moverem com “mais liberdade” no ambiente de mais como técnicas que fabricam indivíduos úteis”.25
trabalho. Acostumados na escola, desde os primeiros É possível que essa “utilidade” se tenha cristalizado
anos de vida, a ser submetidos a regras e ao respeito no condicionamento de que “é preciso estudar”, o que
a elas, adquirem o hábito de obedecer à autoridade, faz da escola um pré-requisito freqüentemente imposto
do professor, do patrão, do Estado. Alguns conseguiram pelos empregadores e pelos pais.
captar essa característica da instituição escolar: um dos
alunos contou-nos que no próximo mês iria ser trans­ João, 13 anos, boy, esclarece:
ferido para o escritório da loja onde trabalha. Ao “...se eu não estivesse estudando, eu não podería
indagarmos se era pelo fato de seu adiantamento nos trabalhar, mas se estivesse muito apertado, eles
estudos (está na 8a série), disse: procuravam outro que aceitasse.”
“não é bem assim. O chefe me explicou que a Às vezes é a família que exige estudo, como relata
gente ser obediente é bom. Com todo mundo: não Ivo, 15 anos, operário:
responder, não maltratar ninguém, falar ‘Sim, Se­
nhor’ para os mais velhos. É muito importante. Eu “se eu não estivesse estudando não podería trabalhar
sempre fui assim, mas a escola ajudou muito. Eles porque meu pai não ia deixar. Ele não quer que
fizeram umas perguntas de matemática, de contas, eu pare de estudar. Mas no trabalho não perguntaram
e eu me saí bem. Mas só em ensinar educação a nada dos estudos”.
escola ensina mais ainda. Se a gente está conver­
sando, e o professor fala ‘cala a boca’, isso daí já Os próprios empregadores, outras vezes, estimulam
é educar.” o estudo, como nos conta Gláucio, 16 anos:
Analisando o papel da disciplina, Foucault considera
que, ao lado do aspecto negativo das proibições, ela 25. FOUCAULT, 1977, p. 185.
“eu quis parar de estudar, mas meu patrão disse A escola é, assim, um campo privilegiado do exercício
que depois eu ia me arrepender, aí continuei.” do poder coercitivo estatal, o que não significa que
ela seja mais importante do que a família ou o sistema
A relação entre só trabalhar se estiver estudando, de saúde, para a reprodução dos trabalhadores. Um
o que acontece com os meninos mais novos, não é colapso nessas duas organizações colocaria em perigo
percebida como decorrente da obrigatoriedade de es­ essa reprodução, mais imediatamente do que se as
tudar, mas é vista como quase solicitude. Nenhum escolas fechassem.
aluno ouvira falar na obrigatoriedade que os respon­
A família e o sistema de saúde são elementos
sáveis, pais e patrões, têm de assegurar a escolarização indispensáveis para a reprodução física do trabalhador,
primária aos menores. Respondiam: “...acho que não porém a escola se solidariza com eles na medida em
tem nada que obrigue, não”. Ou então, “se o pai não que auxilia a interiorização dos objetivos de “progresso”
quiser, o filho depende dele, o filho não estuda”. e de “moral”. Como interessa à ideologia dominante
Todos tinham ouvido falar de legislação trabalhista que sejam tomados como universais e imprescindíveis
e sabiam das determinações principais, como obrigação à ordem social, é preciso haver um controle rigoroso
de registrar os funcionários, pagar horas extras, pagar do sistema educacional, controle que, sob a aparência
férias, recolher para o Instituto e em geral sabiam de relativa autonomia na produção de sua própria
também que estavam sendo lesados nesses seus direitos. hierarquia escolar, legitima o papel da escola na for­
Porém ignoravam que a educação gratuita fundamental mação da hierarquia social e ocupacional.
é garantida pela Constituição e que cabe aos respon­ Além dessa “cooperação” na reprodução física do
sáveis pelos menores assegurar tal direito. trabalhador, por meio da interiorização das normas
Aprofundando a análise dessa obrigatoriedade, Lau- essenciais, a escola desempenha uma tríplice tarefa na
tier nota que ela concretiza e dissimula o controle reprodução do trabalhador. Tendo em vista a evolução
estatal sobre a escola. É através dela que o Estado da divisão social do trabalho, das técnicas de produção
age direta e rapidamente visando assegurar e controlar e dos modos de controle no interior mesmo do processo
a relação salarial e o processo de produção, já que de trabalho, o trabalhador a ser reproduzido hoje é o
a “gênese da escola, no sistema capitalista, só pode trabalhador como membro do trabalhador coletivo.
ser interpretada com referência ao problema da entra­ A escola cumpre essa tarefa dotando-o de condições
da do trabalhador no processo de produção” (1978, para que possa aprender no processo produtivo e não
p. 125ss). tanto para lhe proporcionar uma qualificação específica.
Continuando seu raciocínio, Lautier argumenta que Em seguida, a escola deve reproduzir o trabalhador
não há lei que obrigue a se casar ou a se hospitalizar como vendedor de sua força de trabalho, ou seja,
(em condições comuns), mas a obrigação de escolari­ controlar a produção de um contingente de empregados,
zar-se é legal e generalizada. Nenhuma lei fixa a subempregados e desempregados, como exigência es­
maneira pela qual se deva consumir os alimentos, mas trutural da sociedade capitalista. Pode-se supor que um
os currículos mínimos são fixados pelos órgãos oficiais. dos mecanismos de controle seja a avaliação da apren­
dizagem. O aluno só sabe se aprendeu, no limite, Essa longa citação de um dos feitores da educação
mediado pela autoridade do professor. E a nota, é a nacional retrata com perfeição os objetivos da escola-
palavra da hierarquia escolar consagrada nos diplomas rização no modo de produção capitalista, ou seja, a
que têm maior ou menor peso na entrada do processo reprodução do trabalhador que o sistema necessita
produtivo, conforme o tipo de escola, o tipo de curso (“tornar o potencial humano da nação rapidamente
realizado etc. mobilizável para o crescimento econômico e a segu­
Finalmente, deve reproduzi-lo como indivíduo so­ rança”), a inculcação de comportamentos que traduz a
cializado, apto a fazer parte ativa da sociedade de ideologia dominante (“criar nos indivíduos um senso
consumo, capaz de votar, de utilizar-se dos serviços mais agudo de ‘disciplina, eficiência, ordem e preci­
públicos. são”’). Note-se ainda que, reduzindo a produção cultural
A título de ilustração do que acabamos de expor, ao rádio e a TV, sugere que a escola contribua para
podemos dar a palavra a Chagas (1978, p. 108), um despolitizar a classe trabalhadora, já que sabemos qual
dos responsáveis pelos estatutos legais educacionais o nível dos meios de comunicação e o controle con­
pós 64, membro do Conselho Federal de Educação, dicionador exercido por meio deles.
discurso que deixa entrever a intenção de controle Se pensarmos que “o mínimo de educação popular”,
estatal sobre a escola e a existência dessas três tarefas: a que Chagas se refere, é a defesa da reforma de Io
e 2o graus tal como a conhecemos e tal como é
“A exigência geral de um mínimo de educação vivenciada pelos alunos, cujas experiências escolares
popular que não se o limite ao adestramento nas relatamos, podemos supor que a escola está cumprindo
técnicas básicas de ler, escrever e contar é um fator seus objetivos, ou seja, mediando a reprodução do
essencial de progresso. Além de tornar o potencial trabalhador que melhor se ajuste às relações capitalistas
humano da nação rapidamente mobilizável para o de produção.
crescimento econômico e a segurança, cria nos Em conclusão, podemos dizer que a sistematização
indivíduos um senso mais agudo de ‘disciplina, do discurso sobre a avaliação da aprendizagem e a
eficiência, ordem e precisão’; melhora a produtivi­ cobrança da disciplina na prática escolar deixa entrever
dade, eleva o quadro geral de higiene e saúde a relação da escola nesse processo mais amplo tornando
públicas; aumenta a fiscalização indireta do consumo, os alunos aptos a aprenderem no processo produtivo
aperfeiçoando por essa forma a qualidade da pro­ e a suportarem bem as injunções disciplinares desse
dução; faz crescer a clientela indispensável ao in­ processo.
cremento das ciências, das letras e das artes; eleva,
em conseqüência, o nível da ‘produção cultural’,
sobretudo em áreas que disso carecem, como o
rádio e a televisão; prepara ao uso inteligente das
horas de lazer que tendem a ampliar-se e assim por
diante.”
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CÉLIA PEZZOLO DE CARVALHO é docente da
USP — campus de Ribeirão Preto, Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras, Departamento de Psicologia
e Educação. Trabalha no Laboratório de Ensino de
Ciências (LEC) dessa faculdade, com formação conti­
nuada de professores. Organizou o Caderno CEDES
n° 16, “O Ensino Noturno: Conquista, Problema ou
Solução?”. Autora de diversos artigos sobre o ensino
noturno e formação de professores, sempre no contexto
da história da escola. Tem Mestrado (UFSCar/SP) e
Doutorado (UNICAMP/SP) em Educação.

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