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Ficha Técnica
Capítulo Um - FRANNY
Capítulo Dois - HAYES
Capítulo Três - FRANNY
Capítulo Quatro - HAYES
Capítulo Cinco - FRANNY
Capítulo Seis - HAYES
Capítulo Sete - FRANNY
Capítulo Oito - HAYES
Capítulo Nove - FRANNY
Capítulo Dez - HAYES
Capítulo Onze - FRANNY
Capítulo Doze - HAYES
Capítulo Treze - FRANNY
Capítulo Catorze - HAYES
Capítulo Quinze - FRANNY
Capítulo Dezasseis - HAYES
Capítulo Dezassete - FRANNY
Capítulo Dezoito - HAYES
Capítulo Dezanove - FRANNY
Capítulo Vinte - HAYES
Capítulo Vinte e Um - FRANNY
Capítulo Vinte e Dois - HAYES
Capítulo Vinte e Três - FRANNY
Capítulo Vinte e Quatro - HAYES
Capítulo Vinte e Cinco - FRANNY
Capítulo Vinte e Seis - HAYES
Capítulo Vinte e Sete - FRANNY
Capítulo Vinte e Oito - HAYES
Capítulo Vinte e Nove - FRANNY
Agradecimentos
Kate Spencer
NOVA IORQUE
NUM MINUTO
Tradução
Ana David
Para o Anthony, que compõe metade da minha
história de amor em Nova Iorque. E para a Teresa
e a Sarah, que compõem a outra.
CAPÍTULO UM
FRANNY
Ver quem chegava ao trabalho mais cedo era uma competição amigável e
silenciosa entre mim e a Eleanor. Tínhamos criado a Arbor Financial
Partners há três anos, ambos cheios de entusiasmo e idealistas depois de
ficarmos esgotados em Wall Street. Tínhamos o objetivo de chegar às 6h30,
sempre com copos gigantes de café na mão, olhos brilhantes e
determinados. Claro, a competição era divertida, mas eu gostava mais do
ritual. A rotina acalmava-me. Concedia-me a adrenalina que me permitia
dar o pontapé inicial no meu dia.
Esta manhã, porém, decidi prolongar a minha corrida mais alguns
quilómetros e, portanto, estava atrasado, ia chegar às 7h34. Quando passei
pelo gabinete da Eleanor, ela olhou para o relógio e dirigiu-me um sorriso
de autossatisfação através do vidro que a separava do open space do
escritório. Ela estava cheia de garra esta manhã: óculos de tartaruga, mãos
em movimento. Estava a fazer o que sabia melhor, a tratar de cinquenta
coisas ao mesmo tempo, e por isso teclava no computador ao mesmo tempo
que falava com alguém ao telefone, os auriculares sem fios posicionados
precariamente sobre os aros dourados. Eu acenei-lhe, e ela fez-me sinal para
entrar.
– Hã-hã – dizia quando eu entrei, os braços cruzados. – Sim, sim, estou a
ouvir-te.
Fui até onde ela tinha pendurado umas fotografias emolduradas de todas
as referências na imprensa à nossa empresa, e ajustei as molduras que
estavam um pouco tortas: o Wall Street Journal, o Financial Times. A
Forbes até nos colocou na sua lista dos 30 Melhores Abaixo dos 30 há dois
anos, anunciando que éramos «um fundo que investe com compaixão e doa
1% dos seus lucros a grupos ambientais em todo o mundo. Eles estão a
colocar de lado o estilo finantial bro1 por algo melhor: o benfeitor
financeiro». A Eleanor emoldurou a capa e o artigo no meu aniversário; fiz
trinta anos exatamente dezassete dias depois do artigo sair.
– Obrigada, Luis – disse ela. – Vou pedir ao Tyler para o enviar até sexta-
feira.
Ela deu um toque no auricular para terminar a chamada.
– Abrir um escritório em Seattle vai ser um pesadelo – declarou, e eu
assenti, já resignado com o stresse que significaria a expansão da nossa
empresa. – Vamos precisar que surjam rapidamente investidores se
quisermos ter alguma hipótese de expansão.
Apontei para uma pilha de fotografias encostadas à parede atrás dela.
– Já tiraste estas?
A Eleanor considerava-se uma fotógrafa amadora, mas o seu trabalho era
impressionante. As fotografias que tirara durante a excursão de surf que
fizera sozinha na Costa Rica há alguns anos adicionavam uma vibração
relaxante a um espaço que muitas vezes podia ficar tenso quando os
negócios estavam prestes a ser feitos – ou desfeitos.
– Vamos mudar de escritórios em tipo, três meses – disse ela com
naturalidade. – Podemos muito bem começar a empacotar.
Além de tentar abrir uma filial inteiramente nova na Costa Oeste, a
Eleanor e eu estávamos a mudar as nossas instalações em Nova Iorque para
um espaço maior e mais luminoso no centro da cidade, para acomodar a
nossa equipa em constante expansão. Era emocionante e aterrorizante ao
mesmo tempo, uma declaração ousada do crescimento que estávamos a
experienciar.
O pensamento de todo o sucesso que tivemos nos últimos anos fez o meu
estômago revirar-se. Uma coisa era ter sucesso sozinho, ou apenas ao lado
da Eleanor. Mas agora éramos responsáveis por uma empresa inteira,
pessoas com hipotecas, famílias e pagamentos de carro. Eu raramente
duvidava de mim mesmo, mas quando isso acontecia, era porque estava
preocupado com a possibilidade de dececionar a nossa equipa.
– Tenho algo para ti – disse ela, os seus olhos inexpressivos. Enfiou a
mão dentro da carteira de couro e tirou um exemplar dobrado do New York
Post. Apertou-o com as mãos, achatando-o sobre a mesa e folheando
algumas páginas até encontrar o que estava à procura. «Salva no metro!»
Ela leu a manchete em voz alta. «Desastre da moda leva a romance com
homem misterioso no Q.»
Ela olhou para mim novamente, como se estivesse a ver um animal
selvagem em carne e osso pela primeira vez.
– Não ias mencionar que deste uma de Hayes, o cavaleiro corajoso ontem
no metro?
Tirei-lhe o jornal da mão e pus-me a coçar a parte de trás do pescoço.
– Achas realmente que sou eu? Pode ser qualquer um. – Foi uma terrível
tentativa para encobrir o caso.
– Não te faças de tolo comigo. – A Eleanor recostou-se na cadeira com
um suspiro exagerado, colocando os pés em cima da secretária e cruzando-
os. Lentamente, de forma intencional entrelaçou as mãos e estalou os dedos.
Ela sabia que eu odiava aquele som. Enquanto as suas mãos ondulavam
para a frente e para trás, a luz do sol que vinha da Fifty-Seventh Street
conectava-se com o enorme anel de noivado de diamante no seu dedo,
criando uma espiral de luz na sua secretária.
– O que eu acho – disse, enunciando as palavras enquanto dobrava os
dedos – é que ontem de manhã estavas a ir para o centro da cidade para o
novo espaço. Mas o que eu sei é que embora normalmente te apresentes
como um rabugento…
– Vá lá – protestei.
– Na tua essência, és uma pessoa simpática que quer ajudar quando
alguém está com problemas.
– Bem, obrigado pelo elogio – respondi bruscamente, cruzando os braços.
– Sim senhor, estou impressionada. – Bateu palmas na minha direção. – O
teu lado de escoteiro raramente aparece em público.
– O quê? – Endireitei os ombros, tentando relaxar. – Salvei ou não um
pássaro na faculdade e deixei-o viver no meu quarto durante duas semanas?
– É verdade – respondeu ela a rir. A Eleanor testemunhara isso em
primeira mão. – Vês, eu conheço o verdadeiro tu que nem toda a gente
consegue ver – disse com um sorriso afetuoso, e era verdade. Eu deixei-a
dormir no sofá do meu quarto durante uma semana depois da namorada a
ter deixado, e ela estar demasiado deprimida para dormir no seu próprio
quarto, e conduzi cinco horas até Boston há uns anos, quando a sua irmã foi
atropelada por um carro. E mesmo que ela e o seu noivo, Henry, pudessem
facilmente pagar a alguém para tomar conta da gata, ela ainda me pedia
para alimentar a Luna quando eles estavam fora, e eu sempre aceitei. Ela
conhecia esse meu lado, aquele que muitas vezes estava oculto atrás das
coisas mais óbvias e brilhantes que eu apresentava ao mundo. Era bom ter
uma amiga que me conhecia tão bem. Exceto neste momento.
– Além disso – disse ela com um sorriso malicioso –, o Tyler contou-me
que chegaste ontem de manhã sem casaco.
O Tyler era o nosso assistente, recém-saído da faculdade, e muito astuto.
Ele dominou o trabalho num dia e conhecia cada movimento executado
neste lugar. É claro que me viu sem o meu casaco e fez uma anotação
mental desse facto.
– Olha, não foi nada de mais – admiti. – E definitivamente não foi um ato
romântico.
A Eleanor franziu a testa, e olhou para mim.
– Eu não te perguntei se foi romântico.
Fiz-lhe um gesto de indiferença.
– Tudo o que aconteceu foi que o vestido de uma mulher ficou preso na
porta e rasgou-se nas costas… acreditas nisso? Por isso deixei-a usar o meu
casaco. – Cruzei os braços na defensiva outra vez. – Não sabia que isto iria
chegar ao New York Post.
– Então não tens problema com o facto de as pessoas saberem que és tu
nesta fotografia? – questionou.
– Não, claro. Não é nada de especial, mas pelo amor de Deus, para de me
incomodar com isso, por favor. Tenho trabalho para fazer.
– OK, ainda bem, porque a New York News ligou a convidar-te para o
programa matinal deles, e eu disse que sim.
Ela proferiu as palavras com o dobro da sua velocidade normal.
Fiquei de queixo caído.
– Desculpa. O que acabaste de dizer?
– O Tyler disse que uma produtora enviou um e-mail para a conta geral.
Eu disse-lhe para mo reencaminhar.
– Tu disseste que recebeste uma chamada.
– Bem, primeiro respondi ao e-mail da produtora. Depois ela ligou. Eles
também identificaram a mulher.
Eu abanei a cabeça.
– Então liga de volta a dizer que não, Eleanor. Este tipo de coisa é a tua
especialidade, não a minha. Tu é que fizeste o Ted Talk. – Senti a ansiedade
a rastejar pela minha pele. – Tu, mais do que ninguém, deverias saber que
não tenho habilidade para falar à frente de uma multidão. A televisão em
direto será um desastre.
– É uma coisa de cinco minutos, Hayes. Tu dizes olá, ela diz olá, tu ris-te,
respondes a algumas perguntas. Piscas os olhos e está feito. – Ela disse isto
como se estivesse a ensinar uma criança a atar os sapatos.
– Acho que nunca vi a New York News na minha vida – afirmei, dando
voltas à cabeça durante um momento por causa de uma vez em que vi
qualquer coisa na estação local de notícias por cabo. ESPN, sim. CNN, com
certeza. Mas NYN? Talvez por causa do tempo, uma vez.
– Bem, não sabes o que perdes. O Pete Killian é um ícone de Nova
Iorque. – Ela suspirou, colocando a mão no coração. – Uma lenda. Ao nível
da Estátua da Liberdade, do Empire State Building de pessoas…
– OK, já percebi – disse, exasperado. – Já percebi. Mas ainda me parece
algo excruciante.
– Oh, Hayes, vá lá. Vai correr bem. – Ela gesticulou na minha direção. –
Além disso, o Paul acha que é uma boa ideia. Para promover o negócio. Eu
coloquei-o a par disto tudo.
Paul, o publicitário que contratámos após ser publicada a lista da Forbes.
Claro.
– Estamos a pagar-lhe muito dinheiro para simplesmente ignorá-lo, Hayes
– disse ela com a sua voz calma e firme.
– Está bem – disse a contragosto. – Pelo negócio. Só isso.
Saí, fui até ao meu gabinete e tentei pensar na videoconferência que teria
lugar em apenas alguns minutos. Mas em vez disso, os meus pensamentos
voltaram para a mulher do metro.
O pensamento de vê-la novamente agitou as minhas entranhas como um
martini, deixou-me excitado, tonto, nervoso. Mas o mais frustrante é que
não conseguia resolver a equação, não conseguia perceber por que motivo
ela estava a fazer-me sentir assim. Eu precisava de desanuviar a cabeça,
acalmar, reorganizar o meu cérebro para poder concentrar-me no dia que
tinha pela frente.
Durante uma fração de segundo, pensei em sair do escritório, empurrar as
portas de vidro e ir para o ar pesado da primavera para dar uma volta ao
quarteirão. Em vez disso, sentei-me, respirei fundo e fiz o que fazia melhor:
comecei a trabalhar.
1 Termo utilizado para definir alguém que trabalha em Wall Street, confiante, privilegiado e cujo
único objetivo é trabalhar e ganhar cada vez mais dinheiro, apesar de interiormente ser inseguro e
estar sempre a tentar compensar as suas falhas. (N. da T.)
CAPÍTULO TRÊS
FRANNY
– P orque é que concordei em fazer isto outra vez? – perguntei à Cleo, que
estava inclinada sobre uma mesa dobrável de plástico montada no canto do
camarim da NYN, a espalhar queijo creme num bagel com tudo. – Não
apareço na TV desde que fui entrevistada pelo noticiário local quando
estava no 3.º ano, sobre a razão da piza estilo New Haven ser a melhor da
América. E eu passei o tempo todo com uma migalha debaixo do nariz, e
durante o resto do 1.º ciclo, as crianças chamaram-me «Ranhosa». Devia ter
sido um presságio ou algo assim.
– Como é que eu ainda não tinha ouvido esta história? – perguntou a Cleo
com uma gargalhada. – Isso é hilariante.
– Porque foi traumatizante, e eu tentei fazer tudo o que estava ao meu
alcance para a esquecer. E, claro, a minha mãe enviou-me uma mensagem
sobre esta história hoje.
Uau, querida, a tua primeira vez na televisão desde o 3.º ano! Boa sorte!,
foi o que ela me escreveu na mensagem de hoje cedo, seguido de Como é
que está a correr a procura de emprego? Ainda não passou uma semana, e
eu já sinto a sua preocupação materna a pairar sobre mim, o que sempre me
deixou stressada, com medo que de alguma forma, a esteja a dececionar.
A opinião da minha mãe e do meu padrasto tinha sido sempre que o
melhor tipo de trabalho é aquele que é bem remunerado, não aquele que
preenche a tua alma. Só o facto de eu ter prosseguido uma carreira criativa
sempre os deixara nervosos, e embora tentassem não demonstrar essa
ansiedade, eu ainda me recordava vividamente dos dois sentados à mesa da
cozinha, os dentes cerrados, quando descrevi mais um estágio mal pago.
Talvez eles se preocupassem dessa forma porque eu era filha única.
Contudo, eu tinha um monte de amigos que eram filhos únicos, e nenhum
deles parecia sentir que a sua existência servia apenas para fazer os seus
pais felizes.
O meu trabalho na Spayce cumpria todos os requisitos deles, e talvez por
causa disso eu me tenha acomodado. Pagavam bem. Era estável. Ainda
assim, se eu enviasse uma mensagem à minha mãe a dizer que ia abandonar
todos os meus sonhos de design de interior para me tornar contabilista, ela
ficaria feliz. Para ela as coisas práticas prevaleciam sempre, não importava
o que fosse, e eu odiava sentir-me como se estivesse a caminho de a
desiludir e também provar que ela tinha razão.
– Bem, olha, estás a fazer isto porque ela disse que era uma boa ideia. – A
Cleo apontou com a cabeça para a Lola, que estava entalada no canto do
sofá onde eu estava empoleirada, a espreitar para o seu iPhone.
– A Lola disse que devias vir, porque é ridículo alguém poder tirar uma
fotografia tua no metro e inventar uma história sobre isso como se fosse
algum tipo de filme – disse a Lola num tom de censura. Ela levantou os
olhos na direção da Cleo com um olhar divertido.
A Cleo assentiu com a cabeça.
– E para te dar o controlo sobre a tua própria narrativa. Recupera o teu
poder. Que é uma via que aprecio muito.
– Eu ainda gostava de poder processar a pessoa que publicou isto –
afirmei eu com um suspiro de resignação.
– Claro que gostavas. – A Cleo ficou imediatamente envaidecida em
modo erudito. – Mas tu não tens realmente nenhum recurso legal aqui.
Como já discutimos.
– Só tens de ir lá, definir o registo certo, agradecer, e largar o microfone,
Fran – disse a Lola, fazendo uma pausa no scroll infinito no telemóvel. –
Entras e sais, fácil. Tu consegues.
Expirei, sentindo-me um pouco mais à vontade. Nas últimas quarenta e
oito horas, tínhamos discutido o meu «acidente do rasgão» até à exaustão.
Isso é o que a Teen Vogue lhe chamara. Chamei-lhe humilhante, sem
possibilidade de desaparecer tão cedo.
– Tens razão. Eu consigo fazer isto. – Dei alguns passos, como se
movendo o meu corpo pudesse acabar com os nervos.
– Também disseste que querias ver o Sexy de Fato em carne e osso outra
vez – lembrou a Cleo, entre sorrisos.
– Para agradecer! – protestei. – Só isso.
– Oh, vá lá, todos nós queremos ver o Sexy de Fato em pessoa – disse a
Cleo com um sorriso. – Olha, às vezes, o universo providencia, na forma de
um gajo bom.
A Lola encolheu os ombros.
– OK, ela tem razão nisto.
Entrelacei as mãos, torcendo os dedos.
– Vê-lo outra vez parece ser uma péssima ideia agora. Especialmente em
frente, não sei, de uma multidão de pessoas?
Os olhos da Cleo seguiram-me enquanto eu não parava quieta no
camarim – sentada, em pé, sem saber o que fazer com o meu corpo.
– Devias comer alguma coisa – disse ela.
– O quê, e vomitar em cima dele depois de já ter limpo ranho na camisa
dele? – exclamei, alisando o vestido, um velho básico vermelho comprado
na Zara, há alguns anos. – Tenho a certeza de que ele iria adorar.
Alguém bateu à porta do camarim, e a Eliza, a produtora responsável pelo
meu segmento, entrou, com a Priya, a maquilhadora profissional que tinha
maquilhado o meu rosto uma hora antes, ao seu lado.
– Ei, só para lhe dar um pré-aviso de dez minutos – disse a Eliza com
naturalidade, como se aparecer na TV fosse a coisa mais normal do mundo.
Ela era uma daquelas pessoas que falam contigo, mas estão sempre
ocupadas a olhar para outra coisa. A Priya fez um sorriso doce e começou a
passar pó no meu nariz com um pincel gigante.
– Nós vamos colocar o casaco no palco, à direita da sua cadeira, para que
lho possa dar quando ele surgir – disse a Eliza, consultando algo no seu
bloco de notas.
– E alguém vai dizer-me quando, tipo, lho dou? – perguntei, transferindo
o peso de um pé para o outro nervosamente. Eu não tinha mencionado isso
à Eliza, nem tão-pouco à Lola ou à Cleo, mas colocara uma nota de
agradecimento dentro do bolso da frente do casaco. Nada de muito
elaborado, mas no caso de eu ser incapaz de me expressar claramente na
TV, queria ter a certeza de que agradecia como deve ser. Porque se deixasse
de lado a estranheza da situação, tudo o que restava era gratidão e, para ser
honesta, a memória persistente do seu toque, que enviava choques elétricos
através do meu corpo cada vez que pensava nisso.
– O Pete faz-lhe um sinal com uma pergunta – respondeu a Eliza antes de
sair rapidamente do camarim.
A Priya agarrou na bolsa gigante que estava presa à sua anca e esguichou
o meu cabelo deliberadamente com laca.
– Tudo pronto, querida. – Ela piscou-me o olho e seguiu a Eliza para fora
do camarim.
– Prometam-me – disse, virando-me para a Lola e a Cleo – que vamos
beber umas mimosas depois disto, aconteça o que acontecer.
– Fran, eu liguei a dizer que estava doente por ti – disse a Lola,
oferecendo-me um sorriso carinhoso. – Tens de levar comigo quer queiras
quer não. Além disso, no pior cenário, podemos falar sobre a mulher linda
que conheci na casa de banho há pouco. Eu já andei a espreitar o seu Insta.
– És incrível, sabes disso? – A Cleo abanou a cabeça para a Lola, mas ela
também estava a sorrir. Esta era a Lola: confiante, descaradamente corajosa,
pronta para namoriscar mesmo enquanto faz xixi.
– A Maria, a minha assistente, está a tratar da preparação do seminário –
assegurou a Cleo. – A primeira rodada é por minha conta.
– Adoro-vos, malta – disse eu, o meu coração acelerado.
– E nós vamos começar a pensar sobre o teu novo plano de vida – disse a
Lola, esticando a mão para tirar algo da sua mala. – Comprei-vos um
presente que podemos fazer juntas mais tarde.
Ela passou-me uma pequena caixa branca para mim e uma para a Cleo.
– Um Kit DNADiscovery? – perguntei, lendo a letra preta delicada na
frente.
Ela assentiu, omnisciente.
– Lembras-te quando disseste na outra noite que sentias que perder o
emprego era como perder a tua identidade? Bem, agora podes ficar a
conhecer mais sobre o resto de ti. E nós vamos fazer isso contigo. Vai ser
divertido!
Ela expôs isto com um encolher de ombros, como se cuspir para dentro
de um frasco ao lado das amigas fosse uma típica atividade para criar laços
afetivos, como uma noite a jogar bilhar.
– Eu tenho a certeza de que já sei os meus resultados – disse a Cleo com
um tom de escárnio. Os seus quatro avós emigraram da Coreia.
– E eu vou ser, tipo, noventa e nove por cento Ashkenazi – disse a Lola a
rir. – Mas nunca se sabe! Um dos meus estagiários descobriu um par de
primos do qual não tinha conhecimento.
O meu estômago agitou-se diante da ideia de investigar a minha
ascendência. Havia algumas coisas acerca das quais simplesmente não se
falava na minha família, sendo a primeira delas o meu pai biológico.
– Ou podemos apenas focar-nos no facto de que ela é uma Sagitário com
a lua em Aquário e ascendente em Leão, e fazer o seu mapa astral – disse a
Cleo, que ontem tinha-me pedido diligentemente a hora exata e o local do
meu nascimento.
Os meus pensamentos foram interrompidos por alguém a bater à porta.
– Estamos prontos para ti – disse a Eliza com um aceno da mão para a
frente. – O Pete vai liderar a entrevista, mas a Jenna, a nossa repórter de
trânsito também vai estar no palco. Ela noticia os atrasos do metro, por isso
é uma ligação perfeita.
Apertei as mãos no peito, virando-me para as minhas amigas.
– E se ele me achar esquisita? – Baixei a voz na esperança de que a Eliza
não me ouvisse.
– Primeiro, não vai – disse a Cleo, firme e reconfortante. – Segundo, que
importa?
– Terceiro – a Lola bateu o dedo indicador no queixo, semicerrando os
olhos a pensar –, importas-te com isso?
O mar rodopiante de nervos no meu estômago disse que sim – sim,
importava-me. Eu queria que este desconhecido gostasse de mim, que
soubesse que havia mais em mim do que o suor, a confusão que conheceu
no metro. Mas não havia tempo para ter esta conversa agora. Em vez disso,
cruzei os dedos médio e indicador para formar o símbolo de boa sorte e
lancei às minhas amigas um último olhar, abrindo os lábios.
– Os meus dentes estão bem? – perguntei-lhes.
– Sempre – disse a Cleo, radiante, como se estivesse a tentar transportar
todo o amor que sentia por mim para o meu corpo.
– Lembra-te, és uma filha da mãe destemida – disse a Lola, confiante.
– Já me conheces? – perguntei com uma gargalhada, soprando-lhes um
beijo enquanto seguia a Eliza para fora do camarim.
*
As luzes do estúdio da NYN ofuscavam tanto que quase não via nada
quando a entrevista começou. O meu estômago estava nos joelhos, que
transpiravam inexplicavelmente. Eu não parava de ajeitar o cabelo atrás da
orelha, com os nervos, apesar de estar firmemente preso com laca. Por
outras palavras, eu estava uma pilha de nervos.
– A nossa convidada de hoje teve uma semana complicada – disse o Pete
com um sorriso caloroso. Ele estava sentado num banquinho ao lado da
Jenna, que assentiu com a cabeça, o rabo de cavalo castanho a balançar de
um lado para o outro. – Tornar-se viral na Internet de um momento para o
outro deve ter sido um choque. Franny, conte-nos, nas suas próprias
palavras, como foi para si.
– OK, bem, em primeiro lugar, obrigado por me receberem! – Deixei
escapar uma risada nervosa e sorri um pouco de mais pelo que pareceu uma
eternidade.
Acalma-te, Franny. Respirei fundo, numa tentativa de descontrair.
– Então, sim! – A minha voz estava num tom mais alto do que o normal,
e eu aclarei a garganta antes de falar novamente. – Fui despedida do meu
trabalho naquela manhã. Fazia design de interiores.
Arqueei as costas um pouco, sentando-me direita de uma forma estranha.
Excelente. Parecia rígida? Será que dava a impressão de estar a esforçar-me
muito?
– Houve cortes no orçamento, e fui dispensada, o que foi um golpe para o
meu ego e a minha conta bancária.
O Pete riu simpaticamente, o seu riso era reconfortante. Eu respirei fundo
e acomodei-me no meu banquinho, os nervos começavam a desaparecer. Eu
conseguia fazer isto.
– E então, como se isso já não fosse suficiente, o meu vestido ficou preso
na porta do metro e rasgou-se – continuei, e desta vez dei uma risada mais
normal. – Mesmo para os padrões de Nova Iorque, foi uma espécie de
desastre.
– E um desconhecido aproximou-se para a ajudar – disse o Pete,
incentivando-me.
– Sim – respondi. – Outro passageiro no metro muito gentilmente
ofereceu-me o seu casaco para eu vestir.
– O casaco do fato dele! – acrescentou a Jenna com um sorriso grande,
brilhante.
– Sim, o que foi muito gentil da parte dele, porque não me estava a
apetecer mostrar o rabo a toda a cidade durante o meu trajeto do metro até
casa. Não que eu tenha algo contra rabos! Os rabos são lindos. – Santo
Deus, as palavras simplesmente continuavam a sair da minha boca sem o
meu cérebro as aprovar primeiro. – Só quero, sabe, manter o meu rabo
privado, por agora.
– Isso é compreensível! – disse a Jenna, e acenou-me de forma
entusiástica, o que também criou uma entusiástica sacudidela do seu rabo
de cavalo.
– Muitas pessoas intervieram para ajudar, mas foi o casaco que salvou o
dia. E é por isso que estou aqui, realmente. Para agradecer. E, claro, para
devolver o casaco.
O Pete desviou a sua atenção de mim e passou para a câmara diretamente
à frente dele.
– Bem, vamos trazer o seu salvador, Hayes Montgomery III, e ficar a
conhecer a sua versão da história.
Claro que um homem que se vestia como se tivesse saído de um catálogo
da Brooks Brothers tinha um apelido que parecia um nome próprio. Mas o
«III» adicionado ao final foi surpreendente. Que elegante.
Pelo canto do olho, vi um produtor com um auricular a fazer sinal para o
banco vazio ao meu lado. A nossa interação no metro tinha sido tão confusa
– literalmente, pois os meus olhos estiveram cheios de lágrimas o tempo
todo – que não o tinha visto muito bem. Mas agora parecia que ele estava a
andar na minha direção em câmara lenta. E, uau, era muito homem para
processar.
Ele era mais alto do que me lembrava, e magro, com um ar distante tão
frio como o azul do seu fato feito à medida, o que acentuava os ângulos do
seu corpo. Dirigi-lhe um sorriso rasgado, mas recebi apenas um aceno de
cabeça em troca. Sentou-se, e observei-o a puxar as calças para cima na
altura dos tornozelos. As meias em azul-marinho eram matizadas com um
padrão de globos terrestres. Ah. O Sr. Sexy de Fato, Terceiro era um
excêntrico um bocado esquisito? Eu certamente esperava que sim.
– O Hayes é um reconhecido pioneiro no país no campo do investimento
socialmente responsável. – O Pete bateu com os cartões de notas contra o
seu joelho. – Belo currículo, Hayes!
– Obrigado – disse ele com uma risada modesta, o seu sorriso revelando
umas covinhas. – Estamos muito orgulhosos do trabalho que fazemos.
Senti uma onda de nervos a crescer no meu peito. Este tipo não era
apenas agradável ao olhar, era uma espécie de combinação sobre-humana
de feiticeiro das finanças salvador da Terra e benfeitor do metro. Acho que
isso explicava as meias.
A Jenna inclinou-se para a frente, toda ela sorrisos confiantes e tons
suaves.
– Hayes, a maioria de nós apanha o metro todos os dias sem estabelecer
contacto visual com as outras pessoas. – Ela continuou: – O que o inspirou
a estender uma mão amiga ou, neste caso, o casaco para a Franny?
Lembrei-me de que estava na TV e forcei um sorriso. Isto estava quase a
acabar. Eu conseguia aguentar mais alguns minutos. Só precisava de
silenciar as campainhas de alarme a tocar «Ele deve estar a pensar que és
um autêntico desastre» repetidamente no meu cérebro. Procurei algo no
qual me focar, e a minha mente viajou de volta no tempo para o momento
em que os dedos dele pressionavam a minha anca nua, e como até mesmo
naquele momento frenético isso tinha desencadeado algo mais em mim.
Algo que se assemelhava muito a desejo.
O Hayes pigarreou.
– Eu só vi alguém em apuros e ofereci-me para ajudar.
A Jenna devolveu-lhe um sorriso radioso e de adoração.
– Um verdadeiro cavaleiro num brilhante fato de armadura vem para o
resgate – disse ela a rir, enquanto o Pete deu uma gargalhada ao lado dela.
– Eu realmente agradeço muito que o Se… – felizmente percebi antes que
as palavras «Sexy de Fato» saíssem da minha boca. – Que o Hayes
interviesse para me ajudar.
– E agora são conhecidos na Internet como «SubwayQTs» – disse o Pete
com um sorriso ávido.
– Sim, mas isso não poderia estar mais longe da verdade – interrompi
rapidamente. A última coisa de que precisava era que o Sexy de Fato
pensasse que eu estava a suspirar por ele como uma donzela em perigo.
O Hayes virou-se para mim, os olhos semicerrados. Por um breve
segundo, pensei que ele parecia ter ficado irritado com o meu comentário,
mas depois concordou.
– Exatamente – disse. – Nós nem sequer nos conhecemos.
– Não somos mesmo «QTs» – acrescentei, abanando a cabeça. – E não é
uma boa ideia alguém inventar toda uma história sobre nós assim. Eu
agradeço a sua ajuda. Mas a pessoa que nos tirou estas fotografias, e os
repórteres que escreveram todas as notícias, inventaram este romance
ridículo entre nós. Como se ele aparecesse e me resgatasse e nos
apaixonássemos em dois segundos.
O Hayes cruzou e descruzou as pernas compridas, e quando olhei para o
seu rosto, as suas faces estavam rosadas.
– Hayes, concorda? – perguntou o Pete, inclinando-se para a frente.
– Sim. É completamente inaceitável colocar online fotografias de pessoas
sem o seu conhecimento.
– E a Franny precisava de ajuda? – perguntou a Jenna.
– Pelo que vi, sim – disse isto com indiferença, cruzando os braços à
frente do peito e mexendo-se no banco. O duplo sentido, intencional ou não,
foi recebido com grandes risadas do Pete e da Jenna, e as faces de Hayes
coraram ainda mais ficando num tom mais profundo de rosa. Ele lançou-me
um olhar constrangedor e rapidamente desviou os olhos.
Rangi os dentes num sorriso tenso.
– Como eu disse, havia outras pessoas a tentar ajudar também – opinei.
Eu estava grata pelo que o Sexy de Fato tinha feito, mas a mensagem que
eles estavam a martelar lá para casa, a de que eu estava desesperada por
obter a ajuda deste tipo, era bastante irritante. – Uma mulher ofereceu-me o
seu gancho de cabelo, o que provavelmente teria funcionado.
O Hayes ergueu as sobrancelhas, o rubor de antes tinha desaparecido e
fora substituído por um sorriso arrogante. Ele estava a rir. A rir de mim, do
que eu tinha dito.
– Eu vi… – disse, os olhos encontrando os meus. – E acho que um
gancho de cabelo não teria resolvido o problema.
E de repente a minha gratidão desapareceu. Quem é que este tipo pensava
que era, afinal?
– A vossa história foi seguida por centenas de milhares de pessoas online
que tinham a certeza de terem visto faíscas a voar entre vocês os dois –
disse a Jenna.
– Isso é muito lisonjeiro – comecei.
– Tenho a certeza de que Ms. Doyle é muito simpática – disse o Hayes, a
voz baixa e firme. – Mas nós… Eu… tenho a certeza de que ela não faz o
meu tipo.
Os meus olhos tentaram rolar e sair da cabeça. Não faço o seu tipo? Que
tipo de troll arrogante diz uma coisa destas à frente de milhões de pessoas
na TV?
– Nem eu seria o dela, tão-pouco. Era o que eu queria dizer. – Ele tentou,
sem sucesso, compensar o golpe baixo que tinha acabado de arremessar
contra mim. – Quaisquer faíscas que as pessoas viram foram todas
inventadas pela pessoa que colocou as fotografias online.
– Bem, vamos deixar o nosso público decidir se estão a ver faíscas hoje!
Franny – disse o Pete, mudando o teor da conversa –, o que se segue para
si?
– Procurar um emprego, presumo? – A Jenna inclinou-se para a frente,
animada com a mudança de tópico. Certamente não quis que isto soasse de
forma depreciativa, mas só a questão fez-me sentir pequena, uma pequena
poça ao lado da cascata do sucesso do Hayes. E então lá estava a minha
mãe, a enviar-me mensagens sobre empregos quando mal tinha ficado
desempregada. Eu odiava a mistura de síndrome de impostor e medo de
desiludir as pessoas, que estava a produzir-se dentro de mim. Então abri a
boca.
– Na verdade, eu comecei o meu próprio negócio! – A minha voz era
alegre, o sorriso rasgado nos lábios como se estes pudessem tocar as minhas
orelhas. – Eu sempre quis estabelecer-me por conta própria. Adoro
envolver-me em todas as fases da conceção de um espaço. Ajudar as
pessoas a perceber que a sua decoração pode realmente ser um grande
reflexo de quem são e do que amam.
– Menina! – As mãos da Jenna ergueram-se, com a surpresa. – Isso é
fantástico!
– Obrigada – disse eu, e por um momento senti-me arrojada e
autoconfiante, como se estivesse realmente a fazer isso e não a afirmar uma
mentira na TV. – Acabei agora um trabalho de uma casa de banho pelo qual
fiquei obcecada. É incrível o que um papel de parede pode fazer para
transformar uma divisão, especialmente uma que é usada principalmente
para… vocês sabem.
Graças a Deus, de alguma forma, consegui deter-me antes de dizer
«cocó» ao vivo na TV.
– Então, qual é o seu site? – perguntou a Jenna, muito animada. – Onde
podemos encontrá-la?
– Hum. – O meu cérebro bloqueou, frenético. Porque eu não tinha um
site. Eu não tinha clientes, nem um negócio. A casa de banho com o grande
papel de parede foi um trabalho que tinha feito para o James há mais de três
anos.
Engoli em seco. O que diabo tinha acabado de fazer?
– FrannyDoyle… – Estava à procura de algo. Nada. – Design… ponto
com. – Belo trabalho, Franny. Muito criativo.
O Pete assentiu em jeito de felicitação.
– Bom, nós gostaríamos de obter a opinião de alguém que a conhece bem,
e por isso temos uma convidada especial para nos dizer o que pensa a
propósito do vosso bonito encontro no metro.
Ele fez sinal para um ecrã que estava pendurado por cima.
– Juntando-se a nós ao vivo por satélite está a mãe da Franny, Diane.
– Oh, grande merda – murmurei com os dentes cerrados.
– Olá, querida – disse a minha mãe com um aceno, o seu cabelo grisalho
preso para trás com uma bandolete larga azul. – Vocês os dois ficam muito
bem juntos.
Ela estava na sua cozinha, revestida com o mesmo papel de parede floral
que tinha desde que eu estava no 2.º ciclo.
– Olá, mãe! – disse eu com uma careta, tentando não deixar transparecer
no rosto o horror que sentia. Pelo canto do olho, olhei de relance para o
Hayes, que estava a olhar para mim com uma cara simpática.
A Jenna virou-se para a imagem pixelizada gigante da minha mãe.
– Deve estar tão orgulhosa da Franny, a começar o seu próprio negócio
depois de tudo isto, e a encontrar o sucesso logo no início.
– Estou. Ela é a minha única filha, e eu preocupo-me sempre, porque é
isso que as mães fazem. Portanto, esta é uma grande notícia. O seu próprio
negócio! – A alegria era evidente na sua voz. O alívio também.
– E o que acha, Diane, eles não ficam tão bem juntos? – perguntou o Pete,
os dentes brancos a reluzir.
– Eu aprovo! – disse a minha mãe, juntando as mãos. – A Franny não traz
um namorado cá a casa desde a faculdade, por isso adoraria receber um
amigo cavalheiro em qualquer altura.
Era oficial. Eu ia morrer aqui, ao vivo na TV, no meio do estúdio da
NYN. Causa de morte: humilhação. Eu tinha a certeza de que o Hayes
estava a rir tal como o Pete e a Jenna, mas quando olhei para ele, só me fez
um pequeno sorriso.
– Obrigado, Diane. – O Pete acenou para ela no ecrã, e então ele e a Jenna
voltaram a sua atenção para nós novamente.
– Hayes – disse o Pete –, tentámos que os seus pais se juntassem a nós,
mas eles estão inacessíveis. Aparentemente, estão a fazer um cruzeiro num
rio europeu.
Posso jurar que os seus ombros relaxaram visivelmente com esta notícia.
– Bem, queríamos dar a estes dois a oportunidade de ver se será possível
uma verdadeira ligação amorosa. – A Jenna moveu-se para enfrentar a
câmara diretamente, anunciando isto para o público em casa. – Então,
construímos o nosso próprio espaço romântico aqui no estúdio. – Ela
apontou para uma área um pouco afastada do palco em que eu ainda não
reparara. Tinham posto uma mesa de café, com chávenas e um pequeno
vaso de flores.
O Hayes não respondeu de imediato; limitou-se a piscar os olhos, e por
um momento, vi o que parecia ser um olhar de puro horror no seu rosto. E
eu estava lá com ele. A última coisa que eu queria fazer era passar mais
tempo na TV, na experiência mais estranha da minha vida com o Hayes
Montgomery III.
– Porque é que vocês os dois não se sentam no nosso Café NYC, cortesia
do nosso patrocinador Folger, e ficam a conhecer-se um pouco?
O Hayes estava a sorrir, mas era o tipo de sorriso que se faz para disfarçar
um esgar. A Eliza não tinha mencionado nada sobre um falso encontro
quando me assegurou que a entrevista seria uma coisa rápida. A forma
como ele piscou os olhos em resposta foi uma denúncia: Também não tinha
sido informado sobre isto.
– Olhem, tal como ele disse, eu não sou o seu tipo. – Deixei o meu
sarcasmo entranhar durante um segundo, mas forcei uma risada para que as
pessoas achassem que eu estava totalmente bem com o que ele tinha dito.
Mesmo que não estivesse. – Eu realmente só vim aqui para devolver o
casaco e dizer obrigada – declarei, retirando-o do manequim sem rosto
posicionado ao meu lado. – Eu até o lavei a seco. Para eliminar as lágrimas.
Entreguei-lhe o casaco, os meus braços rígidos, e ele pegou nele com um
olhar relutante no rosto.
– Que esta seja uma lição para todos os cavalheiros que existem – disse o
Pete conscientemente. – Ou qualquer um que use um fato! Poderiam ser
senhoras também. Se quiser encontrar um bom partido, dê-lhes
simplesmente o seu casaco. Eu estou a tomar notas. Uma jogada subtil,
Hayes. – Ele inclinou-se para a frente e a brincar deu-lhe uma cotovelada,
como se estivessem a partilhar uma piada privada.
– Isso não corresponde ao que eu estava a tentar… – começou o Hayes,
sendo interrompido pela Jenna, que sabiamente pareceu sentir que estava na
hora de mudar de rumo.
– Bem, isto é simplesmente maravilhoso – disse ela. – Tudo bem então,
SubwayQts, vamos deixá-los ir ao que interessa! Hayes, Franny, muito,
muito obrigado por terem vindo. – Voltaremos após o intervalo, com a
previsão do tempo nas Ones, e algumas tendências da moda para o verão a
um preço que não arruinará a sua conta bancária.
– Passamos à publicidade! – gritou o realizador, e de repente entraram no
estúdio pessoas a correr.
O sorriso da Jenna desapareceu no segundo em que as câmaras foram
desligadas.
– Meu Deus, isto foi estranho – murmurou para o Pete, mas ainda alto o
suficiente para eu ouvir. E ela tinha razão. Tudo o que eu conseguia
recordar dos últimos cinco minutos, foi o Sexy de Fato essencialmente a
depreciar-me ao vivo na TV, o rosto gigante da minha mãe, e eu a mentir
sobre ter o meu próprio negócio. Querido Deus, porque disse eu isso?
Mas antes que pudesse desmaiar devido ao pânico, a Eliza apareceu e
colocou um braço no meu ombro, orientando-me na direção do «café». A
Priya caminhava ao nosso lado preocupada com uma onda de cabelo que
continuava a cair na minha cara.
– Ei, não me disse nada sobre isto de nos «conhecermos um ao outro» –
disse eu a Eliza. – Não que eu negasse um café, mas pensei que isto seria
uma coisa rápida.
– Mudança de última hora – disse ela friamente, puxando o micro preso à
gola do meu vestido para o desligar. – Os vossos micros vão ficar
desligados, por isso iremos filmar-vos de vez em quando no próximo
segmento.
– E estamos ao vivo em três, dois… – As câmaras estavam em mim e no
Hayes enquanto nos sentávamos um diante do outro, chávenas de café
quente à nossa frente. Esperei que ele dissesse alguma coisa, qualquer
coisa, mas ele apenas olhou para mim e para a mesa.
– Então – disse eu a brincar –, vens cá muitas vezes?
Ele fez o que soou como uma risada genuína.
– Oh, sim, todas as manhãs. Eu sou um cliente regular. Eles sabem o que
eu costumo pedir e tudo. Um macchiato de caramelo sem açúcar com dois
shots de expresso e chantilly. Vês? – Ele pegou na chávena e mostrou-ma.
Era café simples, mas eu mantive o tom.
– Impressionante – disse eu, as sobrancelhas erguidas.
Então ele levou-o à boca, bebendo um pequeno trago.
– Humm – gemeu, com todo o prazer. – Exatamente como eu gosto.
– Então – disse eu enquanto pegava no pequeno pote de natas e despejava
metade para dentro da minha chávena. – Eu não sou o teu tipo? – Não é que
eu precisasse de mais nenhuma confirmação deste facto, mas novamente a
minha boca movia-se mais depressa do que o meu cérebro.
– Olha – retorquiu, e o seu tom já não era de brincadeira. – Isso não era o
que eu estava a tentar dizer. Às vezes as palavras ficam emaranhadas no
meu cérebro, se isso faz sentido.
Fazia sentido. Muito sentido, para ser honesta. Eu sentia exatamente o
mesmo. Tanto é assim que tinha inventado um negócio na TV em direto.
Mas não ia dar mais nenhuma satisfação a este tipo hoje.
Fiz uma pausa propositada, simplesmente para espicaçá-lo um pouco
mais.
– Nada de mais. Acontece-me todos os dias. São águas passadas.
Fiz um gesto de indiferença e vi os olhos dele a dispararem de mim para a
mesa, e, de novo para mim. Eram tão escuros e tão bonitos. Não do tipo
brilhante que povoavam os romances que costumava tirar às escondidas das
prateleiras da minha avó Elsie no 2.º ciclo, livros que mais tarde embalei e
levei para o lar de idosos para onde ela teve de se mudar. Livros dos quais
tive de me desfazer no ano passado, quando ela morreu. Os seus olhos eram
escuros e turvos como o oceano no inverno. Sempre que se moviam, as suas
espessas pestanas pretas varriam-nos de uma forma hipnótica, rítmica,
como se estivessem a tentar fazer com que eu esquecesse o que tinha
acabado de acontecer.
– O que eu quis dizer era que acho que não sou o teu tipo. Eu não… –
passou os dedos pelo cabelo – … tenho jeito com as palavras, digamos.
Trabalho em finanças. Lido com dados e números. Nem sempre sei como
expressar o que sinto. Eu queria dizer que… – Ele estava à procura. – Eu
normalmente não saio com mulheres como tu.
Ergui as mãos.
– A sério? – Ri. – Só estás a piorar as coisas! Não viste a minha mãe ali, a
dizer ao mundo inteiro que eu não levava um namorado lá a casa há quase
dez anos? Eu não estou a ter um bom dia.
– Não. – Ele agitou as mãos à frente do peito. – Quero dizer, eu não
engato mulheres no metro.
Como era possível que um homem assim bonito também fosse tão
socialmente inepto?
– Bem, onde é que engatas as mulheres, então? – Bebi um gole do meu
café, segurando a chávena com os lábios enquanto engolia. Estava quente, o
que era reconfortante. – Na Bolsa de Valores?
Ele riu disto, e acenou com a cabeça como se dissesse: «Apanhaste-me».
– Bem, eu nunca serei apanhada a namorar um finance-bro, por isso… –
Cruzei e descruzei as pernas, que ainda estavam suadas, debaixo da mesa,
pontapeando-lhe a canela enquanto o fazia. – Desculpa – disse eu. – Por te
ter dado um pontapé. Não sobre o comentário do finance-bro…
Ele fez sinal com a mão, que era magra e musculada, como aceitação do
meu pedido de desculpas. As mãos podiam ser musculadas? Eu nunca tinha
sequer pensado nisso antes, mas as dele eram definitivamente musculadas.
E novamente, recordei a sensação das suas mãos nas minhas costas quando
se apoiou em mim no metro. Agora foi a minha vez de corar.
– Eu pareço-te um bro? – Ele inclinou-se para a frente na cadeira, a testa
franzida, mas não zangado. Parecia genuinamente curioso em relação ao
que eu pensava sobre ele.
– Quero dizer, usas fatos para ir trabalhar, estás numa lista da Forbes,
tens um apelido que é um nome próprio. Eu estou apenas a supor, mas
provavelmente também jogaste lacrosse na secundária e licenciaste-te numa
faculdade Ivy League.
– Futebol – respondeu ele, erguendo uma daquelas sobrancelhas
maravilhosamente exuberantes. – E definitivamente não andei numa Ivy.
– Ai sim? Onde andaste?
– Stanford. E Cal para a pós-graduação.
Eu ergui as mãos em sinal de derrota, deixando-as cair no colo. Estas
faculdades podiam não ser Ivy League, mas com certeza eram igualmente
difíceis de entrar. Estaria a falar a sério?
– Olha, vamos apenas fingir que esta coisa toda nunca aconteceu, OK? –
Eu deitei mais um pouco de café na minha chávena, e em seguida, outro
pedaço generoso de natas. – Quero dizer, não estás errado. Isto – gesticulei
entre nós – nunca vai acontecer.
Ele assentiu com a cabeça, embora um leve rubor revelasse embaraço, e
desviou o olhar enquanto respondia.
– Acho que podemos concordar que a rapariga que pensou que éramos
QTs é uma completa idiota.
– Ah, completamente. Não somos material QT. – Recostei-me na cadeira
e olhei para o local onde uma adolescente desfilava uma espécie de vestido
de verão para o Pete e a Jenna.
– Lamento que tenhas sido demitida do teu trabalho. – A sua voz estava
mais suave, quase gentil. – Mas é ótimo que já tenhas começado o teu
próprio negócio.
– Sim, eu sou assim! – disse, reunindo uma falsa confiança. – Sempre
pronta para a próxima aventura. Estou animada por… seguir em frente por
conta própria. Ver como é trabalhar para mim mesma.
– Então, decoras espaços? Compras móveis para as pessoas?
– Não exatamente – respondi, e pela primeira vez hoje senti um
entusiasmo genuíno no meu peito. Adorava falar sobre design de interiores.
– Isso é o que toda a gente pensa, mas é mais do que simplesmente decorar.
É sobre criar experiências. Captar, expressar e inspirar emoções dentro de
um ambiente.
Ele anuiu.
– A minha mãe há anos que tenta que eu contrate alguém para decorar o
meu apartamento. Ela diz que lhe falta personalidade.
– Deixa-me adivinhar. – Estudei-o, olhando para o seu rosto, o fato, a leve
ondulação do seu cabelo como faria com o traçado de uma casa. – Sofá de
pele. Provavelmente caro. Mesa de apoio. Modernista, elegante, preta.
Nenhuma cómoda no quarto. Lençóis de cores neutras. Tens intenção de
pendurar arte nas paredes, mas ainda não o fizeste e, sejamos honestos,
provavelmente nunca o farás.
Ele encolheu os ombros e tomou um gole da sua chávena e, em seguida,
ergueu-a na minha direção, um brinde às minhas habilidades.
– És boa – disse ele. – Aposto que os teus serviços já são muito
procurados.
Eu apenas assenti com a cabeça, fingindo que ele tinha razão.
– É por isso que faço o que faço, e que tu fazes o que quer que faças.
Ele limpou a garganta.
– Leste algum bom livro ultimamente?
Eu inclinei a minha cabeça para o lado.
– Porquê? Precisas de uma recomendação?
Ele encolheu os ombros.
– Só estava curioso para saber o que gostas de ler.
Pensei durante um momento e depois animei-me.
– Ooooh, gostas de seitas?
Ele pareceu muito confuso com esta pergunta.
– Porque é que alguém gostaria de seitas?
– Não, no sentido de te juntares a elas – expliquei. – Ler sobre elas.
Ele abanou a cabeça, lançando-me outro olhar perplexo.
– Certo, tudo bem. – Soltei um suspiro, desistindo da recomendação do
livro sobre seitas. – Qual foi a última coisa que leste?
– Um livro chamado A Arte de Fazer Acontecer – respondeu ele. – É
sobre produtividade. As pessoas estão obcecadas com este livro. Há
imensos encontros e aulas a que podes ir sobre este assunto. Eu almocei
com um cliente na outra semana que me disse que este método mudou o seu
cérebro.
– Então é… – Fiz-lhe um gesto com a mão, para que ele terminasse a
minha frase, mas ele não aproveitou a deixa. Tudo bem. – Uma seita.
O Hayes sorriu-me e depois abanou a cabeça, como se não soubesse bem
o que pensar de mim. O sentimento era mútuo.
Ficámos um pouco em silêncio.
– Franny é diminutivo de Frances? – perguntou, e eu tive de admitir que a
sua estranheza era meio sedutora.
– Não. – Torci o nariz. – Embora toda a gente pense que é. É Francesca.
– Francesca – repetiu ele. – Gosto.
Eu abanei a cabeça.
– Eu sou Franny, a menos que sejas a minha avó, que está morta, ou a
minha mãe quando está chateada comigo. O meu padrasto chama-me
Franny-Bananny, o que eu odiava quando estava na escola secundária.
– Talvez eu te possa chamar Francesca-Bananesca – brincou ele.
– Ah, sim, isso soa muito bem. – Assenti com a cabeça. – Seria incrível
gritado durante o sexo.
Oh, meu Deus. Estas palavras realmente saíram da minha boca, e não
havia como suprimi-las. Evitei os seus olhos, deixando o horror tomar conta
de mim enquanto me forçava a fixar uma câmara instalada no canto, como
se fosse a coisa mais interessante que já tinha visto. Parecia que havia
passado uma hora quando me virei para encará-lo, esperando que ele
estivesse a evitar o meu olhar. Em vez disso, ele apenas sorriu e olhou
diretamente para mim, de uma forma tão íntima que tive de desviar o olhar
novamente. E é claro que o facto de não conseguir suster o seu olhar só me
fez sentir ainda mais constrangida, e o meu cérebro começou a zumbir com
o desejo de mover o corpo.
Bebi o resto do café, mas de alguma forma a chávena falhou os lábios e o
café escorreu pelo meu queixo e para cima do vestido. Antes de eu perceber
o que estava a acontecer, o Hayes inclinou-se para a frente com o seu
guardanapo, mas quando tentou passar-mo, o seu cotovelo derrubou o pote
das natas, que rolou para cima do meu colo e depois estilhaçou-se no chão.
– Oh, meu Deus, lamento muito – disse ele, pegando no meu guardanapo
e limpando a mesa freneticamente enquanto as natas pingavam na minha
perna.
– Por favor, não leves a mal… – Suspirei enquanto limpava o café que já
tinha ensopado o meu vestido. – Mas este é definitivamente o pior primeiro
encontro que já tive.
*
– O que é isto? – A Eleanor ficou a olhar para a pasta que deixei na sua
mesa. Era o dia seguinte ao fim de semana prolongado, quase 8h00, mas já
estávamos a trabalhar em alta velocidade.
– Uma lista de possíveis designers. Algumas imagens do seu trabalho. Há
uma mulher fantástica que fez o novo escritório da Tesla.
– Olha para ti, a entrar em ação. – Ela deu-lhes uma vista de olhos e
acenou para mim em aprovação. – Nada mal.
Recebi o elogio dela com um encolher de ombros.
– Tive algum tempo livre este fim de semana. – Tempo livre, sem
planos… a mesma coisa.
– E agora preciso que me faças outra coisa. – O seu sorriso era perverso,
brilhante. Ela estava a desfrutar disto. – Tens de ter um encontro com a
colega de trabalho do Henry, a Serena.
Quando ela tinha dito que me queria arranjar um encontro, eu não ficara
com a ideia que tinha querido dizer imediatamente.
– E submeter outra vítima inocente à minha maneira de ser? – zombei,
sacudindo a cabeça.
– Oh, meu Deus – resmungou ela com um revirar de olhos. – Já tínhamos
concordado que foste um idiota com a Franny.
– Na TV em direto – acrescentei. Sim, isto continuava a incomodar-me.
– Hayes, isso é passado. Está na hora de lidar com isso e seguir em frente
– retorquiu ela, como se isso fosse uma coisa fácil de fazer.
Mas o meu cérebro não estava a deixar-me seguir em frente. Em vez
disso, reproduzia essa memória uma e outra vez, ainda.
– Não precisa de ser um romance – continuou ela, a sua voz a mudar para
o modo life-coach, animada e confiante. – Torna-te amigo dela, tanto me
faz. Precisas de ver outras pessoas além… tu sabes.
Ela gesticulou amplamente, acenando com a mão no ar como se estivesse
a apresentar o nosso escritório como um prémio num concurso.
– De ti – disse eu, a minha voz monótona. Não estava com vontade de
entrar na brincadeira.
– E da Perrine, sim. – O seu olhar mudou de brincalhão para gentil. – Eu
não estou a querer ser uma chata, tu sabes – disse ela, empurrando para trás
a sua cadeira para olhar bem para mim. – Tu és meu amigo. Posso
preocupar-me, sabendo que estás sentado sozinho no teu apartamento todas
as noites.
– Eu não estou preocupado – protestei, mas ela tinha razão.
– Tu sabes o que eu quero dizer – disse ela, e eu sabia. – E olha, tu sabes
que eu adoro fazer de casamenteira, e mantive a minha boca fechada desde
que tu e a Angie terminaram. Isso já foi há uns setecentos anos.
– Três – corrigi.
– Tanto faz – disse ela, acenando para mim.
Suspirei.
– Tudo bem. – Talvez fosse bom conhecer alguém. Eu tinha basicamente
recorrido a aplicações de encontros no ano passado, e não tinha conseguido
chegar ao quinto encontro com ninguém que conhecera.
– Ela é uma grande corredora, como tu, e está a treinar para a Maratona
de Nova Iorque. – Os seus olhos iluminaram-se, animados com a
possibilidade. – Ela gosta muito do seu trabalho e faz voluntariado. Uma
verdadeira personalidade tipo A. Ela é incrível. Também é gira e loura. É
tipo a tua mulher perfeita.
Aparentemente, eu tinha dado a todos na minha vida a impressão de que
só namorava com mulheres louras. Mas ainda assim, ela parecia
interessante e atraente de uma forma que acalmou o meu cérebro em
turbilhão.
– Um encontro – disse eu.
– Não fiques muito animado, amigo.
As suas palavras eram divertidas, mas eu tomei-as como um desafio. OK,
tudo bem, disse a mim mesmo. Aceito.
CAPÍTULO CINCO
FRANNY
Q ue tal?
Uma selfie da Lola com um vestido preto curto e botins de salto alto
surgia imediatamente após o seu texto. O cabelo louro oxigenado estava
penteado para trás, os lábios pintados de um vermelho-vivo e convidativo.
Uma estrela do rock.
A Cleo respondeu com um emoji com corações nos olhos antes de eu
poder terminar de escrever a minha resposta, que foi um curto e incisivo
SIMMMM. E estava a falar a sério. A Lola parecia uma bomba sexual. Mas
ela sempre pareceu uma bomba sexual, mesmo quando estava no meu sofá
com a camisola da NYU e o rímel de um dia, a beber uma Gatorade e a
comer um bagel de ovo e queijo depois de uma noite de farra.
Sempre que a provocávamos – em parte por ciúmes – dizendo que ela
parecia sexy, independentemente do que fazia ou vestia, ela apenas dizia,
«Sou Escorpião», com um encolher de ombros. A Cleo ajudou-a a fazer o
seu mapa astral há alguns anos, e agora essa era a sua desculpa para tudo.
Demasiado dramática? Escorpião. Rápida a esticar um dedo aos táxis que
passam com o semáforo amarelo? Escorpião. A amiga mais feroz e leal do
planeta, que também guarda rancor como ninguém? Escorpião, querida.
Portanto, sim, não era nenhuma surpresa que ela deslumbrasse num
primeiro encontro.
Nada mais justo, para dizer a verdade. Foi assim que a minha mãe sempre
abordou a informação que me deu, especialmente quando se tratava da
identidade do meu pai biológico. «Conheci-o numa festa com fogueira, na
praia», dissera ela quando a pressionei pela primeira vez, por volta dos
meus doze anos. «Ele estava de visita à família, era de fora da cidade. Só
nos conhecíamos há uma semana.»
Ela criara-me sozinha até conhecer o meu padrasto, Jim, no trabalho,
quando eu tinha quatro anos. Aos seis, ele era um elemento permanente na
minha vida, e casaram-se quando eu tinha oito anos. O Jim era calmo e de
confiança, como um farol, e completou a nossa pequena unidade familiar.
Ainda assim, eu sempre fora a excêntrica, que preenchia as paredes do
meu quarto com fotografias de moda antigas a preto e branco, que recolhia
livros de arte das vendas de garagem, que boicotara o caminho acessível da
UConn para a indutora de dívidas NYU. Estava constantemente a desviar-
me do rumo daquilo que se esperava de mim.
Assim, embora estes resultados dos testes de ADN que se aproximavam
parecessem uma intrusão no passado da minha mãe, também pareciam um
potencial acesso ao meu próprio passado. Verifiquei novamente o meu e-
mail. Nada.
Já conhecemos essa pessoa?, perguntei, mudando de assunto, tentando
sacar alguma informação.
Não!, foi tudo o que disse.
Bem, pelo menos algo de bom saiu daquele pesadelo, escrevi de volta,
encolhendo-me ao recordar o olhar do Hayes quando tinha feito aquela
piada de sexo estúpida.
A Cleo entrou na conversa com um GIF do Kevin do The Office a rir.
Também não era surpresa nenhuma que a Lola era um pouco tímida com
os detalhes. Ela era geralmente muito reservada sobre a sua vida sexual, e
sobre o seu dia a dia em geral. Alimentava-se do facto das outras pessoas
serem como livros abertos – e tinha feito carreira à custa disso –, mas
partilhar o drama de outra pessoa permitia-lhe esconder a sua vida.
OK, então vocês vão safar-me se este encontro for um fiasco? escreveu ela.
Vou encontrar-me com ela no Firefly às 7.
Sim. O ponto final no fim da resposta da Cleo deu a entender a sua
irritação. «Dah», parecia dizer.
Todas nós sabemos o que fazer!, acrescentei.
Eis como funcionava o nosso código de amigas: Primeiro, enviávamos
uma mensagem de texto umas às outras com os locais dos nossos encontros,
porque a segurança vinha sempre em primeiro lugar, obviamente. Depois
ficávamos a par dos acontecimentos pós-encontro, normalmente apenas
para comentar os níveis de constrangimento que se seguiam, com a
ocasional história dos pormenores sórdidos à mistura. E se as coisas
corressem mal, safávamo-nos sempre com uma mensagem de texto ou um
telefonema, ou os dois.
No tempo em que vivíamos todas juntas, deslizávamos para um
compartimento no bar pouco recomendável ao fundo da rua onde
morávamos num quarto andar sem elevador, pedíamos uma rodada de shots
de tequila, e partilhávamos os detalhes horríveis sobre o que tinha corrido
horrivelmente mal. O que – para ser sincera –, acontecia muito nos
primeiros encontros. Ao longo dos anos, chegámos ao ponto de nos irmos
certificar pessoalmente, espreitando em bares e clubes, cafés e parques, só
para termos a certeza de que estava tudo bem. Afinal, era isto que definia
uma amizade.
Vou dar aulas até às 9, verifico o telemóvel no intervalo, escreveu a Cleo.
Estou prestes a conhecer o Grant e o Nate no Soho: redecorar quarto para
bebé, escrevi de volta. Ia encontrar-me com o colega de trabalho da Lola e
o seu marido no Café Gitane, um pequeno café na Prince Street. Ela tinha-
me posto em contacto com eles por e-mail, porque estavam à procura de
alguém para decorar um quarto para o seu novo bebé. Era a minha primeira
verdadeira reunião de trabalho depois de ter sido despedida, e estava
entusiasmada com esta oportunidade.
Bem, se não tiverem notícias minhas dentro de uma hora ou duas, enviem
os cães de guarda, respondeu a Lola.
Enviei-lhe um GIF de um golden retriever a cheirar um cupcake, e ela fez
like com um coração, e depois ficou em silêncio.
*
Acho que ela está a poucos quarteirões de onde eu estou. Vou passar
lá no meu caminho para o metro.
De: DNADiscovery.com
Assunto: Os seus resultados chegaram!
Oh, meu Deus – disse eu em voz alta, abrindo o e-mail com os dedos
nervosos e frenéticos.
Olá,
Eu sei que esta é uma mensagem muito estranha para receber por
aqui. Sou a tua meia-irmã, que vive em Itália. O nosso pai morreu em
1993, pouco tempo depois de ter regressado da América. Na altura, eu
tinha dois anos. Ele nunca se casou com a minha mãe, e houve sempre
rumores de outros filhos. Agora vivo e trabalho em Milão, mas cresci
em Sorrento, não muito longe de onde o nosso pai é, e estudei e
trabalhei em Londres depois da universidade. Trabalho em design de
interiores e arquitetura. Tenho a minha própria empresa e trabalho em
todo o mundo. Também descobri alguns primos que não sabia que
existiam através deste site. Gostaria de contactar contigo quando
estiveres preparada.
Atenciosamente,
Anna Farina
Voltei a ler.
E novamente.
E depois mais uma vez, como se ao fazê-lo as palavras pudessem
desaparecer. Mas não desapareceram. Arrastei-me para a cama para me
sentar, as calças agora à volta dos tornozelos, e escrevi o seu nome no
Google, redigindo-o mal três vezes porque os meus dedos estavam muito
trémulos.
Efetivamente, surgiu uma ligação à sua empresa de design, um orgasmo
visual de casas modernas e espaços angulosos e elegantes. O meu coração
disparou, latejando no meu corpo todo.
Mal conhecia os detalhes da existência do meu pai, e ele estava tão
distante da minha vida que nunca pareceu inteiramente real. A maior parte
das vezes, parecia que a minha mãe tinha sido engravidada por um fantasma
que depois optou por não me assombrar. E nunca pensei que ele poderia ter
tido outros filhos. Pessoas que podiam parecer-se comigo. Agirem como eu.
Perceberem-me. Esta nova tomada de consciência tinha-me deixado incapaz
de agir, tinha as mãos paralisadas, agarradas ao meu telemóvel.
E embora parecesse ridículo admitir, eu nunca tinha sequer considerado
que isto pudesse acontecer. Tinha sido sempre mais fácil não dar ao meu pai
a devida importância, arrumar a ideia dele numa prateleira e deixá-lo
ganhar pó. Mas claro que ele tinha sido uma pessoa real, com uma vida, e
uma família, e com pessoas que se preocupavam com ele. E filhos. Ele
tinha filhos. Mais do que apenas eu.
E estava morto. Morto. Este pensamento devastou-me, de uma forma que
parecia totalmente inesperada. Porque é que fiquei triste com a morte de
alguém que eu nem sequer tinha conhecido? Senti-me dominada por uma
sensação muito estranha no meu peito, uma enorme angústia. Depois
pestanejei e percebi porquê: Estava prestes a chorar.
Em pânico, fiz a única coisa que fazia sentido na minha cabeça. Vesti as
calças, enfiei as sapatilhas, agarrei no saco, e corri para fora do meu
apartamento.
– Cleo! – gritei para o telemóvel assim que ela atendeu. Eu sabia que ela
estaria acordada; ela acordava sempre cedo para meditar e verificar os e-
mails antes do trabalho.
– Grande merda! O que é que se passa? – Conseguia ouvi-la entrar em
modo de emergência para amigas através do telemóvel.
– Acho que estou a ter um ataque de ansiedade. Ou será um ataque de
pânico? Qual é o nome que se dá quando o coração parece que está a bater
na cabeça? – Desci a rua em direção ao metro, a andar rápido.
– O que é que aconteceu?
– Aquela coisa do teste de ADN que fizemos? Acabei de receber o
resultado do meu. Tenho a merda de uma meia-irmã. – As palavras saíam-
me da boca a duas vezes a sua velocidade normal.
Ela soltou um:
– Que cena.
– Em Itália. Eu não sou meio italo-americana. Sou meio italiana-italiana.
A senhora que estava à porta da lavandaria olhou-me com uma expressão
estranha enquanto eu passava, ainda a gritar.
– Uau, a tua mãe foi engravidada por um italiano. É assim mesmo, Diane.
– Cleo! Ele está morto. – Senti novamente aquele aperto no peito, a
rastejar outra vez pela minha garganta acima.
– Oh, meu Deus – ela arfou. – Muito bem, olha, onde estás? Consigo
ouvir sons do exterior.
– Vou para uma aula de spinning! Já a paguei, e não quero desperdiçar o
dinheiro.
– Franny, o quê? Podes ficar onde estás e eu vou ter contigo? Não
precisas de ir a uma aula de spinning neste preciso momento.
– Vou para aquele lugar em Atlantic. Preciso de expulsar esta energia a
pedalar.
– A que horas começa a aula? – perguntou ela, a sua respiração
repentinamente agitada, como se estivesse a correr.
Afastei o telemóvel do meu ouvido para verificar o relógio.
– Trinta minutos.
– OK. Estou a caminho.
– O quê? A sério? – gritei enquanto atravessava a rua a pé. Mas o outro
lado da linha estava em silêncio.
*
– H ayes!
Alguns dias mais tarde, a Serena cumprimentou-me no passeio à porta de
um bar no centro da cidade de que eu nunca tinha ouvido falar até ela me
enviar uma mensagem com o nome e a morada. Parecia muito mais alta do
que eu, embora eu tivesse mais alguns centímetros. Claro, ela estava de
saltos altos, mas era a sua confiança elétrica que parecia elevá-la até ao céu.
Ah, e as calças de ganga justas também não lhe ficavam nada mal.
– Ei. – Inclinei-me para lhe dar um abraço e pousei os lábios na sua face.
– É bom ver-te outra vez.
Ela riu-se, embora eu não tivesse a intenção de ser engraçado.
– Está uma cena lá dentro. Espero que não te importes.
– Claro que não – disse eu, sem saber o que estaria implícito numa
«cena». Era apenas uma quarta-feira à noite. – Esta é a festa da tua amiga
da república?
A Serena assentiu. Ela convidou-me no último fim de semana durante a
nossa corrida, e eu estava à espera de uma reunião tranquila, alguns amigos.
– A Hayley reservou o espaço todo para o seu aniversário – disse ela,
chegando à porta. – Nunca vi ninguém esforçar-se tanto para o seu
vigésimo nono aniversário, mas estou entusiasmada.
Subimos os degraus e passámos pela porta gigante em arco, onde no alto
flutuavam balões dourados gigantes que formavam a palavra HAYLEY. No
interior, mesmo a seguir à porta da frente havia um mural com o nome da
Hayley impresso em rosa e preto, com logotipos de marcas por toda a parte.
As pessoas posavam para fotografias à sua frente, abraçando e fazendo
sinais de paz para um tipo barbudo entediado que fotografava com uma
câmara.
– Vamos tirar uma fotografia à frente do painel de publicidade! –
Gesticulou ela em direção ao mural com o nome.
A Serena puxou-me para a frente e fez sinal ao fotógrafo para nos
fotografar. Ela inclinou-se ao meu lado, queixo curvado para a direita, as
ancas projetadas em direção à câmara, cotovelo arqueado. Fiz a cara que
faço sempre. No 2.º ciclo decidira que sorrir fazia-me parecer ridículo nas
fotografias, e por isso evitava a todo custo sorrir no segundo em que uma
câmara disparava. Depois de algumas fotografias juntos, ela afastou-se de
mim e inclinou o corpo na direção oposta.
– Derek, preciso de uma para o Insta – exclamou, como se fosse a coisa
mais óbvia do mundo.
Braços no ar, perna direita levantada para trás, sorriso rasgado e manteve-
se nessa posição pelo que pareceu um minuto, um guindaste a pousar
silenciosamente à beira da água. Era a mesma pose que tinha feito na
semana passada no parque, a sua SerenaStyle. Era suposto ser uma pose
feliz e alegre, mas algo nela era rígido e planeado, o oposto de espontâneo.
Isso fez-me pensar na Franny e no seu sorvete italiano, e no modo como ela
não se importou quando deixou cair um bocado em cima dela.
Após uma série de flashes, Serena ressuscitou e aproximou-se do
fotógrafo.
– Podes enviar-me essas fotos? – interrogou ela enquanto eu permanecia
desajeitadamente a alguns metros de distância à frente do mural, a examinar
as marcas que patrocinaram esta festa de aniversário. Uma empresa de
vodca que reconheci, uma aplicação de encontros. Alguma marca de CBD
específica para mulheres.
Minutos depois, já com as fotografias, a Serena agarrou no meu braço
outra vez, guiando-me para a festa. A música competia com conversas
gritadas sobre taças de champanhe. No canto, um par de mulheres tatuadas
costurava nomes de pessoas em camisolas com capuz, lembranças da festa
desta noite. Parecia haver uma máquina de algodão doce em algum lugar, a
julgar pela quantidade de pessoas que estavam a comer, que competia com
o sushi enrolado à mão como sendo a refeição da noite.
A última festa de aniversário a que tinha ido foi uma reunião íntima no
pátio do restaurante vegano favorito da Eleanor em West Village. Isto
parecia um baile.
No entanto, a Serena movia-se sem esforço pela sala, apresentando-me às
pessoas, tocando no meu braço constantemente, incluindo-me em
conversas, falando comigo. Tive a sensação de que ela estava a exibir-me.
Era algo que deveria ter afagado o meu ego, ter-me feito sentir bem. Mas
nada disso aconteceu.
– Esta é a Dominique!
– O Hayes gere uma das mais importantes empresas de finanças
ambientais da cidade!
– Nós estagiámos juntas na Vogue!
– O Wall Street Journal fez um perfil completo sobre ele!
– Acreditas que ela tem apenas vinte e dois anos e já está a fotografar em
Paris?
– Sim, nós corremos todo o circuito do Central Park juntos. Foi tão
divertido!
Após quarenta e cinco minutos de apresentações aos gritos, sorrisos
forçados e acenos de cabeça intermináveis, pedi licença e retirei-me para
apanhar ar. Agarrei no telemóvel e enviei uma mensagem à Perrine. Queres
ir dar uma volta? Acho que vou sair desta festa mais cedo.
A resposta da Perrine surgiu assim que regressei ao bar para encontrar a
Serena. Não estás num encontro?
E depois: Jantar com Lola às 9, posso passar por aí daqui a pouco.
Respondi com um emoji de polegar para cima.
– Hayes! – A Serena fez-me sinal de um sofá onde estava ao lado de um
bando de modelos de pernas compridas.
– Olha! – Inclinei-me para ela, e ela passou a mão pelo meu braço,
sorrindo. Quando a sua mão alcançou o meu pulso, eu levantei a mão,
entrelaçando os nossos dedos. Uma pontada de culpa atingiu o meu
estômago, eu deveria querer ficar, mas o meu desejo de sair dali era
avassalador. – Eu vou-me embora. Tenho uma reunião amanhã de manhã
cedo.
– Lamento que isto tenha acabado um zoo – disse ela com um olhar
sinceramente pesaroso no rosto. – Talvez possamos fazer algo só nós dois
em breve? Eu poderia até fazer o jantar para ti. Na minha casa ou na tua.
– Ia adorar – respondi, embora parecesse mais como se estivesse a dizer e
a fazer aquilo que se esperava de mim. Eu gostava desta sensação de ser
desejado, e a Serena era charmosa e carinhosa, e uma pessoa divertida. Mas
sempre que estava com ela, parecia que ficava à espera que se revelasse
algum sentimento, como um convidado de uma festa que estava
absurdamente atrasado.
Ela deu-me um pequeno beijo nos lábios, suave e quente, e eu retribuí
pressionando os meus, tentando sentir a conexão que tinha tanta certeza de
que deveria estar lá.
– Regressa a casa em segurança.
*
Franny Doyle
917-555-5535
CAPÍTULO ONZE
FRANNY
Após transpirar na viagem de metro, saí para a sauna que era o centro de
Manhattan em meados de julho. A Cleo e a Lola já estavam à minha espera
na esquina da Fifty-Ninth com a Fifth, sentadas à beira da fonte. A Cleo
trazia uma manta gigante já velha debaixo do braço e estava a usar a outra
mão para abanar o rosto. Acenei-lhes e ergui o saco que trouxera, com as
minhas contribuições para o banquete: húmus, batatas fritas e azeitonas do
Sahadi’s de Brooklyn. A Lola levou as mãos à boca quando me viu,
gritando U-hu!
– Aqui está ela finalmente! – exclamou a Lola enquanto eu caminhava até
elas. – A nossa rainha de Brooklyn.
– Eu nunca irei morar em Manhattan. Esqueçam – brinquei, há muito
habituada a esta provocação sobre o meu bairro de eleição. – Não quero
saber o quão irritantes são os comboios ao fim de semana.
– Vamos? – disse a Cleo, espreguiçando-se. Seguimos o caminho sinuoso
até ao parque, que estava exuberante e verde. Só estando à sombra das
árvores é que se tinha a sensação de estarem menos graus do que no resto
da cidade. Caminhámos pela rua, até Sheep Meadow, onde planeávamos
deitar-nos em cima da relva, petiscar e ficar juntas até anoitecer.
Estávamos na passadeira da Sixty-Fifth Street, prestes a entrar na relva,
quando um relâmpago louro passou por nós a correr. Ela parou a alguns
metros de distância e virou a cabeça. Correu de volta até nós, acenando com
as duas mãos animadamente.
– Ena, pá – ouvi a Lola dizer baixinho. Estávamos cara a cara com a
Serena, a mulher que conheci no escritório do Hayes. A mulher com quem
ele andava a «passar tempo».
– Franny! – exclamou ela. Estava agora mesmo à nossa frente, em calções
de corrida pretos e uma camisola de alças curta, a única coisa que alguém
poderia usar neste dia terrivelmente quente enquanto se exercitava. – Serena
– disse ela, apontando para o peito, o seu sorriso tão grande que poderia
bloquear o sol. – Ando com o Hayes?
A Cleo soltou um pequeno «Uau» baixinho enquanto o meu coração batia
tão alto que eu tinha certeza que toda a cidade conseguia ouvi-lo sobre o
barulho do trânsito e das sirenes que nos rodeavam.
– Olá – disse eu com um gesto educado. – Prazer em rever-te.
– Eu sabia que eras tu! Como está a ir o escritório? – Ela disse isto com
um sorriso no rosto enquanto corria no lugar.
– Bem – respondi, enquanto tentava processar o que estava a acontecer. –
Está quase pronto.
– Bom, mal posso esperar para ver – disse ela, levando a mão à testa, que
parecia ter menos suor do que a minha, apesar de ela estar a correr. – Talvez
possamos conversar um dia destes? Estou a pensar em redecorar o meu
espaço.
– Claro – disse eu. – O Hayes tem os meus contactos. – Sorri, colocando
o meu ar profissional.
– Maravilhoso! – Ela ainda estava a saltar na ponta dos pés. – OK, lá vou
eu.
– OK! – disse eu, combinando com a vitalidade na sua voz, acenando-lhe
enquanto ela se afastava.
– Ela é ainda mais sexy pessoalmente – disse a Lola com admiração.
Olhei para ela, que encolheu os ombros.
– O quê? É verdade. E também é o pior tipo de pessoa sexy.
– Ai sim? – perguntei. – Que tipo de pessoa é esse?
– Uma que é boa – disse a Lola, como se estivesse a revelar uma espécie
de verdade universal. – Parece-me genuinamente boa.
Assim que encontrámos um pedaço de relva livre e nos acomodámos em
cima da manta da Cleo, a Lola pegou no telemóvel e abriu a página da
Serena no Instagram. Mais de cem mil pessoas seguiam cada movimento
seu, o que incluía um vídeo dela a correr que deve ter sido feito em algum
momento hoje.
A Cleo espreitou e depois passou-o para mim.
– Eu nunca ouvi falar dela – exclamou, antes de pegar num pouco de
salame e dar uma dentada.
A Lola olhou para ela.
– Clee, eu adoro-te, mas o teu conhecimento sobre cultura pop não é o
mais impressionante.
– Então! – protestou a Cleo.
– Cita cinco microinfluenciadores – respondeu a Lola, e a Cleo deu uma
risada resignada.
– OK, tudo bem – disse ela. – Tens razão.
Comemos em silêncio durante um bocado, observando as pessoas.
Finalmente, depois de abrir uma lata de vinho e beber alguns goles, eu disse
a coisa que estava a atormentar-me imenso.
– Digamos que eu sinta alguma coisa pelo Hayes – disse, e ambas se
viraram para mim enquanto eu roía uma unha, nervosa por estar a revelar
isto ao mundo.
– Mm-hmm? – disse a Cleo, sobrancelhas erguidas em expectativa.
– Porque é que ele sequer consideraria sair comigo quando já está a
namorar com ela? – disse, desajeitadamente, enquanto franzia o rosto com
vergonha. – Eu sei, eu sei, pareço ter doze anos. Mas ela é… – Qual era a
palavra que eu queria usar? Linda? Realizada? Perfeita?
– De mais? – completou a Cleo.
– Sim! – disse. – É tão difícil estar perto de alguém assim, que é de mais,
quando estou sempre a sentir que não sou suficiente. E antes que digam
qualquer coisa – ergui a mão –, eu sei que sou suficiente. Eu sei que sou
bonita, inteligente e talentosa, e uma cozinheira razoavelmente boa, e todas
as outras coisas boas que vão enunciar. Mas sabem o que quero dizer. Às
vezes não conseguimos deixar de nos comparar com alguém assim.
– Como é a citação? A comparação é a ladra da alegria? – A Lola
semicerrou os olhos, a pensar.
– Algo desse género – disse eu. – E é verdade! É tão idiota. Mas não
consigo evitar.
A Cleo tocou carinhosamente na minha coxa.
– É totalmente normal pensares assim, mas tenta lembrar-te que ela
provavelmente está a comparar-se contigo também.
Revirei os olhos, o que só deixou a Cleo irritada.
– Estou a falar a sério, Fran!
Apontei para o meu cabelo, que estava a ficar descontroladamente frisado
com a humidade.
– Oh, a sério? – Achas que ela está com ciúmes deste desastre na minha
cabeça?
A Cleo riu-se e depois preparou uma pequena sanduíche com queijo e
salame.
– Tu és todas as coisas que disseste que és, e muito mais.
– Cem por cento de acordo – disse a Lola, como se não houvesse outra
resposta. – E se sentes que tens um fraquinho pelo Hayes, aposto contigo
que ele também sente algo por ti. Ele não é um exclusivo dela. – Atirou
uma uva para dentro da boca. – Às vezes consigo sacar informações à
Perrine – continuou com um sorriso tímido antes que eu pudesse questioná-
la sobre como sabia tal coisa.
– Se ele está interessado em mim, porque é que se despediu num e-mail
com um Tudo de bom? – interroguei-as.
– Toda a gente sabe que Tudo de bom é a despedida que se usa quando
não se quer que a pessoa de quem se gosta saiba que se gosta dela –
respondeu a Lola, como se fosse óbvio. – Especialmente alguém com quem
se está a trabalhar.
A Cleo riu-se.
– Oh, meu Deus, tens razão. Sempre que quero curtir com alguém,
certifico-me sempre de que os meus e-mails são superformais, para parecer
que não estou interessada.
– Com que frequência isto acontece contigo? – perguntei-lhe, realmente
curiosa.
– Não sei, conheci um monte de advogados giros! – disse ela na
defensiva.
– Se ele assinou o e-mail com um Tudo de bom – disse a Lola com
confiança –, o que ele quer dizer é «não consigo parar de pensar em cobrir-
te de beijos.
– Especialmente entre as pernas – acrescentou a Cleo, e a Lola morreu de
riso.
Cobri o rosto com as mãos e ri-me.
– OK – disse eu enquanto fechei as mãos em punhos e pressionei-os no
queixo.
– Então o que é que significa eu ter-lhe enviado um e-mail hoje e ter-me
despedido com um Não vejo a hora de falarmos!
– Oh, miúda – disse a Lola com um aceno de cabeça. – Isso significa que
estás mesmo apaixonada.
CAPÍTULO DEZASSEIS
HAYES
F ui ter com a Cleo o mais rápido que pude, para lhe contar os
pormenores do meu último encontro com o Hayes. Encontrei-a ao lado
dos seus irmãos, Sam e Wes, gémeos idênticos, que estavam num círculo de
foliões à beira da pista de dança. O Sam tinha o cabelo mais comprido e
penteado para trás, e o Wes nunca ia a lugar nenhum sem os seus óculos
escuros e grossos, por isso era fácil distingui-los.
A Cleo estava elegante e clássica como sempre: o cabelo liso e sedoso, e
o vestido de manga curta, justo, em azul-marinho, modelava cada curva do
seu corpo. Ela escolheu-o porque era impossível de manchar e podia usar o
seu sutiã normal com ele – no qual colocara um cristal para a deixar calma
durante a noite. Mesmo no seu deslumbrante traje de gala, a Cleo era
pragmática e transcendental, como sempre.
– Aí estás tu! – disse ela, passando um braço à volta da minha cintura. Os
seus irmãos cumprimentaram-me com acenos tímidos de universitários.
– Preciso de falar contigo – sussurrei ao seu ouvido, mas antes que
conseguisse continuar, a mãe dela puxou-me para um abraço.
– Franny! – disse a Miriam enquanto me beijava na face. – Deixa-me
apresentar-te a todos. Os gémeos já conheces, é claro. – Fiz um aceno na
direção do Sam e do Wes, que eram veteranos em Brown e na Universidade
da Virgínia, respetivamente, e começavam a parecer adultos de verdade
vestidos com smokings.
– Franny, o Sam vai começar um estágio aqui na cidade em breve e está a
tentar subarrendar um espaço, se souberes de alguma coisa diz – continuou
a Miriam. – Ele não quer viver comigo. Imagina.
– Mãe, tu sabes que eu te adoro mesmo que não queira ser o teu colega de
quarto – respondeu o Sam com um sorriso tímido. O Wes agarrou-o pelo
ombro e os dois seguiram na direção do bar. A Miriam voltou-se para mim
e para a Cleo.
– A Franny é uma designer de interiores que acaba de lançar o seu
próprio negócio – anunciou ela ao grupo. – E é incrivelmente talentosa.
A Miriam dirigiu-me um sorriso orgulhoso, e a minha postura endireitou-
se sob o seu olhar. Ela sempre me tratou e à Lola como filhas, acolhendo-
nos na família Kim e em sua casa como jovens universitárias desajeitadas
de Nova Iorque. Os Kim moravam no norte da cidade, em Rye, e nós
chegámos a ir para casa dela várias vezes ao longo dos anos.
A Cleo tinha-a informado sobre o meu novo negócio e a minha
necessidade de arranjar clientes, e agora ela começara a apontar para o
grupo, indicando nomes e cargos, que tentei reter.
Uma mulher chamada Ellen, com uns óculos cravejados de cristal e um
martini numa mão, inclinou-se para me cumprimentar.
– Eu vi-a na New York News – disse ela propositadamente. – Conheci o
meu marido quando estava a apanhar o metro A na Forty-Second Street. Ele
pisou acidentalmente no calcanhar do meu sapato (um mocassim atroz;
afinal, eram os anos setenta) e atirou-o para os trilhos do metro. Amarrou a
sua camisola à volta do meu pé para que eu conseguisse chegar a casa, e o
resto é história.
– Oh, meu Deus! – A mulher de cabelo prateado ao lado dela que se
apresentou como «Catherine Ratcliffe, mas toda a gente me chama Duffy»
riu-se. – Eu não fazia ideia de que o Bobby era tão romântico.
A Duffy então inclinou-se para o grupo, o rosto pronto para coscuvilhar.
– Eu e o meu primeiro marido conhecemo-nos na secundária. – Isto foi
dito com um revirar de olhos, e o grupo riu-se. – Mas conheci o Ray, o
número quatro, num encontro a quatro. Fomos com outras pessoas, mas
voltámos para casa juntos.
A troca de histórias continuou – histórias de primeiros olhares, beijos
ébrios e aniversários sem brilho – até que, de repente, a Ellen empurrou os
óculos para cima no nariz e estendeu a mão para agarrar o meu braço por
entre o grupo.
– O seu homem está aqui – disse ela, a boca arredondada em júbilo. – O
do metro.
A Cleo virou a cabeça e depois voltou-se para mim.
– Oh, meu Deus, Franny – murmurou no meu ouvido. – O Hayes está
aqui. Tipo, mesmo atrás de ti.
Girei para fora do alcance dela para observar e, realmente, o Hayes estava
a andar na nossa direção.
– Olá, outra vez – disse ele, oferecendo-me um pequeno sorriso enquanto
brincava com a manga do casaco.
– Olá – disse eu, sentindo a mesma vertigem nervosa a borbulhar no meu
estômago que surgiu quando pousei os olhos nele há pouco.
Ele virou-se para a Cleo.
– Acho que ainda não nos conhecemos. Hayes Montgomery.
Ela apertou-lhe a mão estendida.
– Cleo Kim. Prazer em conhecer-te. Ouvi falar muito de ti. Obviamente.
Ah, e esta é a minha mãe, Miriam Kim.
O Hayes cumprimentou a Miriam educadamente, mas antes que ela
pudesse responder, a Ellen interrompeu.
– Sou uma fã – disse ela, num sorriso cheio de dentes e charme. – É tão
bom ver que vocês os dois são realmente um casal.
O Hayes olhou para mim, passou a mão pelo cabelo e sorriu para a Ellen.
– Ah, bem, eu detesto desapontá-la, mas a Franny e eu estamos apenas a
trabalhar juntos, na verdade. Ela está a decorar as novas instalações da
minha empresa.
Isto gerou muito alarido. Ele riu-se e olhou para mim, um rubor a
aparecer na sua pele linda e lisa.
– Franny, eu, ah, queria saber se te apetece dançar quando a banda
recomeçar.
Os seus olhos, escuros e sérios, olhavam diretamente para mim. Para
dentro de mim.
– Oh! Oh. – O meu cérebro girou como uma roda gigante.
– Foi assim que o meu segundo marido e eu nos conhecemos. – Ouvi a
Duffy dizer à Miriam. – Numa gala como esta. Dançámos a noite toda.
Depois ele trocou-me por uma das sócias do seu escritório de advocacia.
– Claro – respondi, esforçando-me por permanecer calma e tranquila. –
Isso seria divertido.
– Volto dentro de alguns minutos, então – disse ele enquanto puxava a
ponta do seu colarinho.
– OK. – Assenti, expirando enquanto sorria. O meu coração estava
acelerado.
Assim que ele se afastou, virei-me para a Cleo.
– Era o que eu queria dizer-te há pouco. Eu vi o Hayes na mesa de leilões
e ele disse-me que a Serena terminou com ele hoje à noite.
A Cleo apertou-me o braço nu, os lábios apertados, a suster um sorriso.
– Mas isso é emocionante – disse ela.
– É? – perguntei, o meu cérebro acelerado a esmiuçar os encontros desta
noite com o Hayes até agora. – Talvez ele esteja apenas a ser educado.
– Ah, Franny. – A Cleo deu-me uma palmadinha na ponta do nariz com o
dedo indicador. – Às vezes, és muito ignorante.
– Desculpa, uma vez cheguei muito perto de me classificar para o College
Jeopardy!
– É por isso que é tão adorável quando estás assim tão intensa. – A Cleo
inclinou a cabeça e dirigiu-me um olhar amoroso. – Franny, já não
discutimos isto no parque no outro dia? Todas as provas estão mesmo à tua
frente. Une os pontos, por favor.
Ela fez uma pausa por um instante, olhando para mim com expectativa.
– Ele está interessado em ti. Não tenho razão?
Ela estendeu a conversa ao grupo, estavam todos a observar-nos, com um
aceno de mão.
As minhas entranhas retorceram-se.
– Hum, não, não está.
– Confia em mim. Dá para perceber que sim – disse a Miriam, assentindo
para a filha.
– Mrs. Kim, eu trabalho para ele agora. O Hayes está apenas a ser
educado.
– Então, passam muito tempo juntos – disse a Ellen. – Estão a conhecer-
se um ao outro.
– A falar sobre mesas e candeeiros – esclareci.
– E ele deve achar isso muito interessante, porque acabou de a convidar
para dançar. – A Duffy entrou na conversa, com as mãos arranjadas
cobertas de diamantes cuidadosamente cruzadas sob o queixo. – Prepare-se,
querida. Ele vem aí.
*
A pista de dança tremeluzia, iluminada num tom de azul-escuro e a luz
suave das velas. Eu sabia que mais tarde naquela noite – pelo menos de
acordo com a Cleo – as coisas iriam ficar agitadas, com esta multidão de
CEO de fundos especulativos e banqueiros a dançar depois da meia-noite.
Mas eram apenas 21h00, talvez um pouco depois disso, e a banda estava a
tocar uma música suave tipo jazz, algo que se ouviria num café à hora de
um brunch. À minha volta, os casais dançavam mais juntos do que eu me
tinha apercebido do lado de fora. Não sei o que pensei que faríamos quando
concordei com isto – um número coreografado ao estilo dos anos de 1980?
–, mas não era dançar de rosto colado.
A mão do Hayes pressionou suavemente a parte inferior das minhas
costas, guiando-me através dos casais a conversar, muito juntinhos e grupos
de amigos a rir ao redor da sala, até chegarmos à beira da pista de dança.
Ele aproximou-se para dizer alguma coisa, mas a sua voz mal se ouvia
sobre o ruído da música.
– Queres conduzir?
Virei-me para olhar para ele e fui recebida com o sorriso mais malicioso
que já tinha visto no seu rosto. Espetei-lhe um dedo no ombro em
retaliação.
– Normalmente, sim, mas não faço a menor ideia de como fazer isso.
Começava a sentir algum pânico. Eu não conseguia lembrar-me da última
vez que tinha dançado um slow com alguém. No 2.º ciclo? No 9.º ano,
talvez? Claro, dançava em casamentos e em bares ou festas quando bebia
uma ou duas doses de tequila. Mas dançar mesmo, com a mão na de outra
pessoa, o braço à volta da minha cintura? Não havia uma única memória
disso na minha mente.
– Suponho que a tua mãe não te obrigou a dançar danças de salão na cave
de uma igreja no 5.º ano? – interrogou o Hayes com uma risada suave.
– Credo, não – disse eu a rir. – No 5.º ano, só me obrigavam a cortar a
relva.
– Bem, eu podia ensinar-te os passos mais simples – disse ele, agarrando
na minha mão –, ou – ele pousou a outra mão firmemente na curva das
minhas costas – podíamos apenas mover-nos, Miss Doyle – disse ele, e as
suas palavras borbulharam dentro de mim como se fossem um champanhe
verbal.
Eu nunca o ouvira dizer o meu apelido, e ouvi-lo nos seus lábios aqueceu-
me de dentro para fora, a sua voz rica e baixa. Ele mordeu o lábio inferior
enquanto olhava para mim – sem sorrir, a fitar-me. Os meus olhos
moveram-se da sua boca para o queixo, depois de volta para os olhos, que
ainda me fitavam. O meu corpo parecia uma slinky, uma mola maluca,
enroscada apertada, prestes a ser solta.
– Hayes?
– Sim? – Lá estava aquele sorriso suave outra vez, e aproximou-se mais
de mim.
– Achas que haverá uma altura em que as pessoas vão deixar de nos
reconhecer por causa do nosso momento muito desagradável no metro?
Ele afastou-se um pouco e olhou-me com perplexidade.
– Não o achei muito desagradável.
Eu abanei a cabeça.
– Isso é porque as tuas roupas não te traíram à frente do mundo inteiro.
– É verdade – disse ele com uma risada. – E há aqui um razoável número
de pessoas com mais de sessenta anos, por isso temos claramente alguns fãs
da New York News à espreita. Contudo, eles provavelmente não sabem o
que é o Instagram.
Estávamos tão próximos um do outro que eu conseguia sentir as suas
palavras a pousar na parte sensível do meu pescoço, logo abaixo da orelha.
Estava a ouvi-lo, mas também estava a imaginar como seria se os seus
lábios se aproximassem um pouco mais, até estarem pressionados contra a
minha pele.
– Se te serve de consolo – continuou ele – estou feliz por isso ter
acontecido. Quero dizer, por razões puramente egoístas, é claro. Fizeste um
ótimo trabalho no escritório. És literalmente uma boia de salvação.
– Obrigada – agradeci, radiante. Eu estava genuinamente orgulhosa de
como tudo estava a ficar. – Tem sido divertido.
– E a Perrine não teria conhecido a Lola. Eu nunca a vi tão feliz.
Eu assenti com a cabeça.
– A Lola também – exclamei.
– Não que eu retire algum prazer do que passaste no metro – disse ele. –
Mas isso também significa que posso dançar contigo esta noite.
Eu tive de desviar o olhar para o chão. Porque as palavras dele
arrebataram-me e reviraram tudo, e receava que ele pudesse vislumbrar isso
no meu rosto.
– Bem, a verdade é que – brinquei – fico melhor com este vestido do que
com o teu casaco.
Ele riu-se e descontraiu contra o meu corpo, e eu estava tão consumida
por aquela sensação que nem reparei que a música tinha mudado. E
novamente, minutos depois, começou a tocar outra. Lentamente, a cada
mudança de música, os nossos corpos aproximavam-se cada vez mais, até
que a sua respiração era um leve sopro na minha nuca, a minha face
pressionada suavemente contra a curva quente do seu ombro.
Eu estava plenamente consciente de como todas as células do meu corpo
se iluminavam contra o dele, e a sensação dos nossos corpos tão próximos
fez-me recuar no tempo, apenas alguns meses atrás, quando bati com as
mãos contra o seu peito, enquanto o metro balançava. Como me pareceu
seguro e firme, uma parede reconfortante onde me apoiar enquanto o
mundo ao meu redor girava no seu eixo. E agora senti isso de novo, as
coisas de repente a mudarem, e ainda assim aqui estava ele – algo estável a
que me agarrar. E assustou-me o facto de eu não me querer soltar.
*
– Por favor, não me olhes assim – disse para a Eleanor enquanto o nosso
Lyft parou no trânsito na Eighth Avenue.
– Desculpa, desculpa – disse ela, bebendo um gole de água com gás. –
Pareces estranhamente agitado hoje. Estás nervoso com a festa, ou porque a
Franny vai estar lá?
– Como é que sabes que eu estou nervoso? – retorqui, embora ela tivesse,
obviamente, razão. Eu estava nervoso com tudo, para dizer a verdade. Mas
especialmente por ir ver a Franny.
– Bem, eu convidei a Serena, para o caso de quereres dar-lhe com os pés
numa festa que tu estás a organizar – disse ela, com um brilho diabólico nos
olhos.
– Honestamente, não contaria com isso – afirmei, sabendo muito bem que
ela estava a brincar. – Além disso, as coisas ficaram bem entre nós. Na
verdade, eu convidei-a, mas ela está fora da cidade.
– Muito corajoso – disse a Eleanor com um olhar de admiração.
Saímos do carro mesmo à frente do nosso novo edifício, deslizando pelo
hall de entrada e subimos até ao quarto andar, onde o Tyler estava a dar
indicações às pessoas que carregavam as bandejas de carnes frias e queijo
que tínhamos encomendado de um pequeno negócio de buffet em Brooklyn.
– Uau – disse a Eleanor enquanto circulava pelo espaço. – Isto está
fantástico.
– Estou inclinado a concordar – declarou o Tyler, no modo organizador de
festas, bloco de notas na mão enquanto pairava sobre um prato cheio de
frutas e legumes organizados como as cores de um arco-íris.
Os membros da nossa equipa começaram a chegar, recém-saídos da pré-
festa que tivera lugar num bar ao fundo da rua. Os repórteres da Vogue e da
Architectural Digest também chegaram ao mesmo tempo que os fotógrafos
da revista New York e da Vanity Fair.
Pelo canto do olho, vi a Perrine e a Lola a entrar, de mãos dadas. E atrás
delas, a Franny, de lábios vermelhos, cabelo por todo o lado, braços
cruzados, rosto radiante. Vestia um género de macacão verde-oliva que
soube instintivamente que a Eleanor iria adorar. Fui ter com elas, de cerveja
na mão, tentando não parecer tão nervoso como me sentia por dentro. Eu
estava animado por vê-la, mas ainda não sabia como expressar isso, ou se
deveria sequer fazê-lo.
– Hayes-y! – gritou a Perrine quando me aproximei, que era a última
coisa que eu queria que ela me chamasse à frente da mulher em que não
conseguia parar de pensar.
– Perrine – respondi quando ela me agarrou com as duas mãos para me
dar um abraço. – Por favor, não me chames isso em público – murmurei
enquanto me inclinava.
Ela apenas riu.
– Olá, Lola – exclamei quando também se aproximou para me dar um
abraço. Parece que agora eu dava abraços.
– Hayes – disse ela, dando-me um leve beijo na face.
– Olá! – exclamou a Franny por detrás da Lola com um aceno.
– Franny, olá! – Inclinei-me para a frente e depois dei um passo atrás,
sem saber exatamente como cumprimentá-la. Devia abraçá-la também?
Seria de mais? Ou seria estranho se abraçasse toda a gente e ela não? Não
conseguia perceber qual seria o movimento certo. Por isso ficámos
simplesmente ali, a olhar um para o outro.
– Estou tão feliz que tu… – comecei, ao mesmo tempo que ela disse:
– Está incrível…
– Tu primeiro. – Fiz um leve gesto com a mão.
– Disse à Lola o quanto tens trabalhado para esta noite – disse ela com
um pequeno sorriso. – E está fantástico.
Eu abanei a cabeça.
– Nós literalmente nem estaríamos aqui se não fosse por ti, por isso…
– Bem, está ótimo – interveio a Lola, com um olhar de soslaio para a
Franny.
– Obrigado – respondi. – Estou feliz por terem vindo. – Olhei de relance
na direção da Franny. Ela estava radiante enquanto observava o espaço,
com as mãos nas ancas. Esta noite pertencia-lhe tanto quanto à Eleanor e a
mim.
– Bem, vamos deixar-te socializar – disse a Perrine. E com um revirar de
olhos cúmplice para a Lola e a Franny, murmurou sarcasticamente. – A
coisa que ele mais gosta de fazer.
A Franny lançou-me um olhar divertido e depois virou-se e seguiu-as até
ao bar.
A Eleanor aproximou-se e arrastou-me para um canto para uma conversa
de meia hora com alguns investidores bem conhecidos da área ambiental.
Tentei manter-me atento à nossa conversa enquanto também observava a
Franny pelo canto do olho: a Franny a tomar uma bebida e depois outra. A
Franny a pegar em dois miniburguers de cogumelos e a passar um para a
Lola com um sorriso. A Franny a conversar com o Tyler e a acenar com a
cabeça enquanto ele apontava para as diferentes partes do arranjo floral
gigante em cima da nova mesa de receção. A Franny.
*
Uma hora depois, ela estava ao meu lado, a conversar com a repórter da
Vogue.
– Vocês os dois têm uma história incrível – disse a repórter para o seu
iPhone, uma mulher chamada Alicia, com o cabelo rosa curto. – Podiam
contar-nos como se conheceram?
– O Hayes ajudou-me a sair de uma situação complicada no metro –
retorquiu a Franny, olhando para mim com um sorriso. – Então, era natural
que eu retribuísse o seu favor.
– Vamos apenas dizer que esbarrámos um no outro – disse eu, radiante.
Cada movimento que eu fazia parecia muito exagerado, muito óbvio, muito
esclarecedor do facto de que a Franny ocupava um lugar permanente no
meu cérebro. Tentei controlar isso durante muito tempo, por não querer
parecer tolo, ou insensato, ou muito interessado nela. Mas agora era
exatamente isso que queria fazer. Queria ser óbvio, deixar claro, não só para
a Franny, ou para mim, mas para o mundo: eu gostava dela.
– Certo – assentiu a Franny. – Gosto mais assim.
– E quando ficámos sem o nosso designer de interiores inicial em cima da
hora, a Franny pareceu uma escolha natural. Ela abraçou o projeto e deu
forma a este lugar em pouco tempo.
– Honestamente, este era um espaço de sonho para trabalhar. Quero dizer,
veja bem isto. – A Franny gesticulou com a mão e os olhos da jornalista
seguiram-na. – E o Hayes e a Eleanor facilitaram muito o processo. – Ela
disse isto ao mesmo tempo que dava uma palmadinha divertida nas minhas
costas, e quando retirou a mão eu queria agarrá-la e colocá-la de novo lá.
Ao contrário da nossa última entrevista juntos, esta foi simples. Divertida.
Passámos de totalmente fora de sintonia para nos sentirmos completamente
em sintonia. Eu nunca me senti assim com outra pessoa, e não estava pronto
para abdicar disso.
Mais tarde, a Eleanor e eu estávamos junto às janelas, a observar o
espaço.
– Devíamos tentar tirar uma fotografia com a Franny também. – A voz da
Eleanor estava no meu ouvido enquanto acenava para o fotógrafo da Vanity
Fair, que gesticulava para nós.
– Sim, eu estava a pensar que deveríamos agarrá-la.
– Mmm sim. – Ela assentiu. – Deve ser por isso que não paras de olhar
para ela.
A Eleanor semicerrou os olhos, um olhar intencional e cortante. Antes de
conseguir ripostar algo inteligente, o fotógrafo estava junto de nós, a
arrastar-nos para uma luz melhor.
– OK, olha – afirmei entre dentes enquanto sorriamos para a câmara. – Se
eu te contar tudo, prometes ser simpática só desta vez?
– Claro – disse ela, olhando para a frente enquanto o fotógrafo terminava
de fotografar, e depois serpenteava de volta para a multidão.
Virei-me para a Eleanor novamente.
– Eu gosto dela – disse eu enquanto mexia no colarinho da camisa, que
parecia ter encolhido dois tamanhos ao longo desta conversa.
– É isso? Gostas dela?
– Eu gosto dela e estou a pensar em convidá-la para jantar agora que ela
deixou de trabalhar para nós, sim.
– Bem podes exibir o teu charme e inteligência, porque eu acho que ela
está prestes a sair pela porta.
Segui o olhar da Eleanor pela sala, até onde a Franny estava a abraçar a
Lola.
– Merda – murmurei baixinho.
– Diz-lhe que queremos tirar uma fotografia com ela! – gritou a Eleanor
atrás de mim.
Abri caminho através da multidão enquanto observava a Franny
desaparecer em direção aos elevadores. Saí para a entrada, tentando andar
rápido o suficiente para alcançá-la, mas sem parecer um esquisito a correr
na sua própria festa. Mas quando lá cheguei, ela tinha desaparecido. Apertei
o botão, mas o elevador estava parado no primeiro andar e não parecia estar
a mover-se. Por sorte, tinha andado pelo prédio umas semanas antes e sabia
que a escada estava sempre destrancada para o caso de incêndio. Corri até
lá.
Quatro lanços depois, abri a porta diretamente para a rua. Podia ver os
seus caracóis, a balançar apenas a seis metros à minha frente. Tão perto.
– Franny! – gritei, colocando as mãos em concha no rosto para amplificar
a voz. Ela virou-se, olhando à volta enquanto tentava determinar de onde
vinha a voz. Fiz-lhe um sinal e, em seguida, corri devagar para onde ela
estava.
– Ei – disse ela, com um olhar confuso no rosto.
– Ia buscar-te para uma fotografia para a Architectural Digest – disse. –
Mas tinhas ido embora.
– Ah, não te preocupes. Fiz questão de falar com eles – disse ela. – Eles já
tiraram algumas fotografias.
– Oh – exclamei, tentando afastar a deceção da minha voz. – Boa.
Ela prendeu o cabelo atrás das orelhas.
– É só que eu não consigo fazer de falsa extrovertida durante muito tempo
– disse ela. – Podes não acreditar, mas por baixo disto – ela fez sinal com a
mão para cima e para baixo ao longo do seu corpo – esconde-se uma
introvertida secreta.
– Bem, eu sou apenas um introvertido direto, por isso entendo. – Apertei
a nuca com a mão.
– O espaço está incrível, Hayes – disse ela. – Estou muito feliz por ter
feito parte disto.
– Posso chamar-te um Lyft? – perguntei-lhe, sem saber o que dizer mais.
– Ou uma bicicleta?
– Eu vou a pé até ao metro – respondeu ela, o rosto brilhante. – Embora,
se quiseres, podes emprestar-me o teu casaco por via das dúvidas.
Eu ri-me. Gostava que pudéssemos fazer piadas com isto tudo agora, que
qualquer estranheza embaraçosa que pairasse sobre o nosso encontro inicial
se tenha transformado em algo relaxado, divertido. Íntimo, até.
E, contudo, neste momento, eu ainda não sabia o que dizer a seguir. Tudo
o que eu sabia era que não queria que ela se fosse embora. Eu queria fazer
qualquer coisa para que esta noite se prolongasse, para mantê-la aqui,
iluminada pela luz dos carros que passavam e pelos edifícios. Ela era toda
cor, uma pintura tão adorável que não conseguia parar de admirar.
– Bem – disse ela, ajustando a mala pendurada no ombro. – Boa noite –
concluiu sorrindo com doçura e erguendo as sobrancelhas – Hayes-y.
– Boa noite, Francesca – retorqui, cruzando os braços presunçosamente
sobre o peito.
Ela olhou para mim, sobrancelhas ainda erguidas, e soltou uma risada.
– O que é? – perguntei.
– Eu não estava à espera de Francesca – disse ela. – Surpreendeste-me.
– Bem, espero que não seja a última vez – disse eu, gaguejando
ligeiramente. – Que te tenha surpreendido. Ou que me tenhas surpreendido.
Ou que nos surpreendemos um ao outro? Não sei aonde vou com isto. –
Não conseguia encontrar as palavras certas para lhe dizer.
– Boa noite, Hayes – disse ela com um último sorriso. Fiquei ali enquanto
ela descia a West Thirteenth Street, perdendo-a para a cidade de Nova
Iorque mais uma vez.
Sentindo o peso da sua ausência no fundo do meu peito, virei-me para o
edifício e voltei para a festa. Ainda tinha pelo menos uma hora de trabalho.
Deixei a mão roçar a borda do edifício, sentindo o cimento frio contra as
pontas dos meus dedos. Qualquer coisa para me trazer de volta à realidade.
Assim que alcancei as portas que abriam para o hall de entrada, senti
alguém a tocar-me no ombro. Virei-me e vi a Franny, ligeiramente sem
fôlego. Ela expirou enquanto se aproximava, e ficámos frente a frente.
– Surpresa – disse ela, ainda sem fôlego.
Franzi a testa meio confuso e abri a boca para responder. Mas antes que
eu pudesse dizer uma palavra, os lábios dela ali estavam, macios contra os
meus, permanecendo pelo que pareceram anos ou uma fração de segundo –
era difícil dizer. O tempo também não parou, mas acelerou para a frente,
atirou-me para o espaço e de volta à Terra novamente. As pontas dos seus
dedos roçaram a minha cara, e a sensação da sua pele contra a minha
provocou-me um curto-circuito na cabeça. Agarrei o seu rosto, os caracóis
delicados a roçar os meus dedos.
Antes que o meu cérebro conseguisse acompanhar o meu corpo e
processar o que estava a acontecer, ela inclinou-se para trás com um grande
sorriso, os olhos a brilhar com algo selvagem. E sem uma palavra, correu
pela rua abaixo e noite adentro, deixando-me estupefacto.
CAPÍTULO DEZANOVE
FRANNY
– E spera, desculpa. Preciso que repitas essa história outra vez – exclamou
a Cleo do sofá, onde estava estendida, pauzinhos numa mão, embalagem de
bolinhos de massa na outra. – Disseste «Surpresa», e depois beijaste-o?
Eu enterrei o rosto nas mãos. Tinham passado vinte e quatro horas desde
que tomara a decisão de correr de volta e beijar o Hayes. Tinha sido rápido,
um vislumbre de pele, um salto do coração. Tão rápido que quase parecia
fruto da minha imaginação. Mas aconteceu. Eu fizera isso, e não tinha
deixado de pensar nisso desde então, com uma estranha mistura de horror e
emoção. Horror porque… – e se ele estivesse horrorizado? E emoção
porque, bem… foi emocionante. E entre todos os pensamentos de pânico,
estava a imaginar como seria voltar a fazê-lo.
A Lola guinchou e pontapeou-me com os pés descalços num movimento
sucessivo, como um gato a ser esfregado na barriga.
– Eu tinha bebido dois copos de prosecco – murmurei. – Vocês sabem que
o vinho espumante é um dos meus maiores inimigos.
– Oh, não culpes a bebida – disse a Lola. – Nós as duas já te vimos
mesmo tocada, e esta não foi uma dessas noites. Lembras-te do Halloween
em que nos vestimos todas de Spice Girls e tu curtiste com aquele Greg de
Wall Street naquela festa no loft do Gowanus?
A Cleo ergueu a cabeça.
– Oh, meu Deus, Lo, e tu que entupiste a sanita naquele after-party?
– OK, esqueçam que eu disse alguma coisa. – A Lola fez uma careta. –
Além disso, isto é sobre a Franny. A Franny a beijar o Hayes.
– Aaaah, e a gostar! – disparou a Cleo. – Lembram-se quando ela pensava
que ele era um idiota?
– Acho que ela disse «parvo» – exclamou a Lola, molhando um bolinho
de massa no molho de soja e vinagre. – Nunca acreditei. Tu ficaste
encantada no segundo em que ele te emprestou o casaco no metro.
A Cleo concordou do sofá.
– Uau, vocês são muito perspicazes – respondi sarcasticamente. – A sério.
Eu preciso de ligar para ele, certo? E garantir que ele percebe que foi
apenas uma coisa acidental de impulso?
Nenhuma das minhas amigas disse nada. Em vez disso, cada uma olhou
de relance para a outra.
– Eu consigo vê-las a olharem uma para a outra. Sabem disso, certo? –
Acenei as mãos para elas. – Estou literalmente a dois metros de distância de
vocês.
Olhei para o telemóvel pelo que parecia ser a quingentésima vez hoje. Até
agora, a única pessoa de quem tinha tido notícias fora a minha mãe, que me
enviou fotografias de possíveis arranjos florais para o chá de bebé da Ruby
no próximo fim de semana. Ignorei-a.
– Vou estar com a Perrine amanhã para fazermos ioga e irmos jantar –
disse a Lola. – Podia pedir-lhe para tentar obter algumas informações dele.
– Não! – disse eu e a Cleo ao mesmo tempo. A Lola riu-se.
– Grandes mentes – disse, inclinando-me para dar uma pequena
palmadinha na perna da Cleo.
– Esta grande mente está pronta para aquele Advil que me prometeste
antes – gemeu ela. – Odeio a minha menstruação.
– Honestamente, é uma maravilha que os nossos ciclos não estejam
sincronizados – disse a Lola.
– Bem, eu tomo a pílula, por isso precisam todas de se sincronizar
comigo – respondi, com um dedo apontado para o meu peito.
– Ei – disse a Lola, sentando-se. – Era suposto sairmos para jantar na
sexta-feira, lembram-se? Para que possam as duas conhecer melhor a
Perrine? O Hayes vai lá estar.
Oh, merda, certo. Ela já mencionara isto numa mensagem, e eu dissera
que sim. Agora o seu rosto estava tão ansioso que era óbvio que isto
significava muito para ela.
– Ainda vens, certo? Mesmo que as coisas com o Hayes estejam
estranhas?
– Claro – garanti-lhe. Levantei-me do chão e arrastei os pés até à casa de
banho, vasculhando a gaveta que dizia a mim mesma que precisava de
organizar. Finalmente, encontrei o frasco gigante de ibuprofeno genérico
enfiado ao lado do secador de cabelo e de uma caixa de tampões orgânicos.
Voltei para a sala, com o frasco na mão, quando reparei nas minhas duas
amigas sentadas de costas direitas e ligeiramente tensas.
– O que é? – perguntei.
– Vê o teu telemóvel – disse a Cleo rapidamente. – Recebeste uma
mensagem.
Olhei de relance para o meu telemóvel no chão, o estômago quase na
garganta. Olhei de novo para as minhas amigas, que me encaravam com
expectativa.
– Vocês leram, não foi?
– A mensagem estava toda ali, no ecrã. – A Lola franziu o rosto
desculpando-se.
– Legalmente, estamos bem, porque o texto revelou-se perante nós – disse
a Cleo com naturalidade.
– Não uses a tua licenciatura em Direito contra mim! – Abaixei-me e
peguei no telemóvel do chão, pressionando o botão home para ativar o ecrã.
E ram 17h30, e o Sol ainda estava alto no céu. A minha mente devia estar
focada noutro lugar. Era suposto ir a Seattle dentro de uns dias, para
uma grande reunião de apresentação com possíveis investidores.
Precisávamos deles para desenvolver a empresa, e a Eleanor, uma
extraordinária vendedora, ia ficar em Nova Iorque por ordem do seu
médico. Cabia-me a mim tratar da apresentação oral e deixá-los
entusiasmados com a ideia de trabalharem connosco. Além disso, tínhamos
planeado várias visitas a possíveis espaços de escritório, juntamente com
reuniões com analistas, as primeiras pessoas que contrataríamos para
adicionar à nossa nova equipa.
Mas apesar de toda a loucura no trabalho, eu só pensava na Franny.
Tinham passado cinco dias desde que ela terminara as coisas, e antes de eu
sequer ter a hipótese de convidá-la para sair, seis desde que me beijara no
passeio, e aproximadamente noventa e oito por cento dessas horas passei
acordado a rever os nossos encontros na minha cabeça, reimaginando a
curva suave das suas costas sob a minha mão, o roçar do seu cabelo contra
o meu queixo, o calor da sua mão envolvida na minha.
Eu estava tão nervoso ao telefone com ela naquele dia que não consegui
dizer as palavras que queria dizer: gosto de ti. Estou feliz por me teres
beijado. Eu quero fazer isto de novo e de novo e de novo. Talvez o meu
silêncio a tenha afastado. Ou talvez ela não quisesse ter nada de romântico
comigo.
De qualquer forma, era algo que consumia tudo, esta vontade de apenas
colocar os olhos nela novamente, rebobinar as coisas para o início, começar
tudo de novo, antes da gala e do beijo. Regressaria ao momento em que ela
entrou na minha carruagem do metro. Afastá-la-ia da porta para que o seu
vestido não se rasgasse. Dar-lhe-ia o meu número, convidá-la-ia para uma
refeição como deve ser.
Mas também queria respeitar os desejos da Franny. Ela estava apenas a
começar o seu negócio; tinha de se focar em coisas importantes. Eu entendi.
E talvez o beijo dela fosse apenas uma coisa do momento, a mistura de
álcool, a festa e a energia da noite.
No entanto, eu ainda não tinha sido capaz de deixar de pensar nela, e a
agitação que sentia por ir vê-la esta noite estava a acelerar o meu coração.
Eu ainda queria desfrutar da sua luz, de qualquer maneira que conseguisse.
Talvez isso me tornasse ganancioso, mas preferia ter um pouco da Franny
do que nada.
Saber que estava prestes a vê-la fez-me andar mais depressa, e
ziguezagueei por West Village e o SoHo num instante até chegar à frente do
pequeno restaurante mexicano para o jantar para o qual a Perrine me
convidou com a justificação de «conhecerem-se uns aos outros».
– Hayes. – Virei-me rapidamente, preocupado que se demorasse mais
tempo, a voz e a pessoa a quem ela pertencia desaparecesse. Pisquei os
olhos só para ter a certeza, mas ela estava de pé à minha frente, as mãos
apoiadas nas ancas, uma das quais se projetava levemente. Vestia um
vestido floral azul-claro fluido que ondulava à sua volta. Parecia uma
criança contrariada, e eu adorei.
– Olá. – Tentei parecer casual e como um amigo, e não como alguém que
estivera ansiosamente a antecipar este momento durante a semana toda. –
Também estás adiantada, hein?
– Não recebeste uma mensagem? – disse ela, a testa franzida como se
estivesse a tentar montar um puzzle. – A Lola disse que ela e a Perrine
tinham de cancelar o jantar. Algo sobre as duas estarem com uma
intoxicação alimentar.
Eu assenti com a cabeça.
– Estou a ver.
– E depois a Cleo também foi convenientemente arrastada para alguma
emergência no trabalho.
– Hã-hã. – Eu assenti com a cabeça novamente e retirei o telemóvel do
bolso. De facto, tinha uma mensagem da Perrine. Desculpa pela mensagem
de última hora, mas estou doente e preciso de cancelar o jantar, era tudo o
que dizia. Levantei o telemóvel para a Franny ver.
– Uau. A tua prima é tão esperta como as minhas melhores amigas? –
perguntou ela, um olhar de incredulidade no rosto.
– Aparentemente – disse eu, ainda a juntar as peças. – Armaram-nos uma
cilada.
– Oh, grande momento. – A princípio, pensei que ela estivesse chateada,
mas então a cabeça da Franny inclinou-se para trás, e a risada mais linda e
ruidosa saiu dos seus lábios, que estavam delineados com aquele seu batom
de cor vermelha incrível. Só aquele som de pura alegria dela acendeu uma
faísca dentro de mim, e eu não pude deixar de sorrir.
– Estou honestamente impressionado – disse eu, passando as mãos pelo
cabelo. – Este não é o estilo da Perrine. Ela é muito menos óbvia a forçar as
pessoas a…
Estarem juntas, é o que eu queria dizer. Mas interrompi-me. Tínhamos
ambos concordado que esta coisa entre nós não ia a lugar nenhum, e a
última coisa que eu queria fazer era parecer que não tinha entendido a
mensagem.
– Oh, bem, isto é um clássico da Lola, por isso é melhor habituares-te. –
Ela disse isto com um sorriso afetuoso, e percebi o quanto adorava as suas
amigas. Era outra coisa que eu gostava nela.
Houve uma pausa, e naquele breve momento de silêncio, ocorreu-me. Eu
cometera um erro ao tentar convencer-me de que não queria que isto fosse
mais longe. Estava desesperado pela Franny. E gostava muito de como me
sentia sempre que estava perto dela. Como se o meu cérebro estivesse de
férias e todo o meu corpo fosse aquecido pelo sol.
– OK, então… – Ela fez um pequeno aceno de cabeça, como se estivesse
prestes a ir embora. Esta era a minha última hipótese.
– Espera – disse, a minha garganta de repente seca como areia. – Quando
falámos no fim de semana passado – as palavras ressoaram, cruas e
honestas – eu deveria ter-te dito como me sentia. Gosto de ti. Não consegui
deixar de pensar no nosso beijo.
A Franny ficou a olhar para mim.
– Deixa-me tentar outra vez – exclamei, clareando a garganta. – Em
primeiro lugar, respeito os teus limites profissionais e o teu espaço pessoal,
e honrá-los-ei totalmente. Mas gostava de ter sido mais sincero contigo
sobre como me senti depois de nos termos beijado. Eu queria que isso
acontecesse, e estou tão feliz por ter acontecido.
– Eu também estou feliz por ter acontecido – disse a Franny devagar, os
olhos fixos no meu rosto. – Eu só pensei que talvez te tivesse interpretado
mal, ou a situação. Não tinha a certeza.
Abanei a cabeça.
– Não interpretaste mal nada. E desculpa, devia ter-te dito como me sinto.
Só vim aqui esta noite porque queria ver-te. Espero que ainda possamos ser
amigos.
Ela assentiu, os seus olhos à procura dos meus.
– Mas também não te importarias se fôssemos mais do que amigos?
Eu ri-me. Parecia que os meus sentimentos eram tão óbvios que estavam
tatuados na minha testa. Claramente, precisava de aprender a expressá-los
em voz alta.
– Sim – disse com firmeza. – Sim.
Aproximei-me dela e vi como o seu peito descia e subia com a respiração,
enquanto passava os dentes, lentamente, sobre o lábio inferior. Eu conhecia-
a há tempo suficiente para saber que o seu cérebro estava a mil, a processar
cinquenta coisas diferentes que podia dizer-me, todas elas capazes de me
atravessar num segundo. Tudo o que ela me disse, independentemente de
serem as palavras mais bonitas ou as mais incisivas, queimou-me nas veias
como veneno. Ela era o meu veneno, para o bem e para o mal.
E depois vi. Aquela coisa que acontecia no seu rosto sempre que se
desenhava um sorriso. Sentia-me ridículo só de pensar nisso, mas não havia
outra maneira de descrevê-lo. Ela brilhava.
– Vamos tomar uma bebida? – disse ela finalmente.
– Ia adorar – disse eu. Era um alívio proferir estas palavras, expressar os
sentimentos.
– Não queres ir para casa e correr quinze quilómetros? – Ela estava a
provocar-me agora, e a sensação era incrível.
– Posso fazer isso amanhã de manhã. Posso até fazer isso de ressaca. –
Soltei um suspiro, deixei a língua correr sobre o meu lábio inferior.
– Eu acho que tu nem ficas de ressaca – disse ela, passando a mão
suavemente pela minha face e pelo meu queixo. Pelas suas palavras, ficou
claro que pretendia que fosse uma piada, mas o tom da sua voz era mais
baixo do que o normal, sério. – Às vezes, pareces sobre-humano.
– Eu juro-te que não sou sobre-humano. Apenas excessivamente
meticuloso e viciado na rotina. – Tentei dizer isto a brincar, mas senti-me
estranhamente constrangido. – Estou a assumir que ainda existe uma
reserva de jantar para o nosso grupo. Claramente, as nossas amigas estavam
à espera que a usássemos.
Ela piscou-me os olhos e depois, as suas pupilas arregalaram-se,
brilhantes. Algo no seu rosto atingiu um lugar tão profundo no meu íntimo
que eu não sabia que existia até muito recentemente. Ergui as mãos, sem
saber o que estava a fazer até que elas encontraram as dela, e ela
aproximou-as do peito, os seus dedos entrelaçados nos meus.
– OK, então – disse ela enquanto me puxava para mais perto. – Vamos
para aquela mesa.
CAPÍTULO VINTE E UM
FRANNY
A lívio. Tudo o que senti foi alívio. Que sensação estranha e inebriante.
Porque tinha eu resistido a isto desde o início? Era quente e fácil,
como o ar de verão lá fora. A primeira margarita desceu pela garganta
como uma ostra, suave e rápida e sem pensar. Pela segunda bebida, que
veio com o nosso jantar, as faces do Hayes estavam reluzentes e vermelhas,
a ponta da sua barriga da perna a descansar entre as minhas pernas debaixo
da mesa. Parecia elétrico e ousado, uma quebra das regras. Eram apenas as
nossas pernas, e o facto de se tocarem era totalmente classificado como G.
Mas sentir o contacto da perna dele por baixo do tampo de mármore
cinzento da mesa do café, enquanto as nossas mãos descansavam
castamente por cima, parecia mais erótico e obsceno do que qualquer coisa
que já tinha feito antes.
– Eu nunca vi o Grease. – O Hayes torceu o nariz, envergonhado.
Estávamos a trocar histórias, pequenos factos relacionados connosco e
com as nossas famílias. Alguns minutos antes, ele perguntara-me: «Qual é a
coisa que toda a gente fez, menos tu?»
Até agora tínhamos o seu «Eu nunca joguei golfe, mesmo que pareça que
sim» e eu ultrapassei-o com um «Eu nunca estive no Disney World e não
quero lá ir».
E agora, esta revelação horrível.
– O Grease – arquejei, com um horror exagerado – é um clássico.
Ele encolheu os ombros e bebeu um gole de cerveja.
– Eu sou um monstro, que queres que te diga.
– Conheces alguma das músicas pelo menos? – perguntei, realmente
horrorizada.
– Qualquer coisa summer romance, qualquer coisa at the high school
dance? – inventou ele, mexendo-se ligeiramente na cadeira, a dançar, numa
tentativa totalmente fracassada de cantar «Summer Nights». A visão dele
assim, com o botão de cima da camisa desabotoado, o cabelo ligeiramente
despenteado, a ponta de suor na testa, a ser tão descarada e
inconscientemente tolo, fez o meu coração saltar. Eu desatei a rir.
– Oh, meu Deus – disse eu entre risos histéricos. – És um desastre.
O Hayes também se contorcia, o sorriso mais rasgado que já vira. Ele
revelava um rosto inteiramente novo, um que era brilhante e juvenil. Isto
obrigou-me a um segundo olhar, como quando vemos alguém na rua que
pensamos que conhecemos e depois percebermos que não era essa pessoa.
Exceto que neste caso, ainda era ele.
– Provavelmente é por isso que o meu casamento acabou – disse ele,
agitando a sua bebida.
Eu fitei-o, espantada.
– Desculpa – disse ele. – Humor muito negro? TMI?
– Não, de forma alguma. – Estendi a mão sobre a mesa, e apertei-lhe o
braço. – Eu sei que estás a brincar, mas eu realmente não acho que sejas um
desastre.
Ele sorriu.
– Desde que o meu casamento acabou, a Perrine está constantemente a
tentar analisar o motivo por que os meus relacionamentos nunca duram
muito tempo. Cérebro de médica.
Passei um dedo pelo fundo do meu copo, onde a base encontrava a
madeira quente e manchada da mesa.
– E o que é que a médica concluiu?
O Hayes mexeu-se desconfortavelmente na cadeira e colocou um braço
sobre o peito, alongando-o com o outro.
– Ah, tu sabes, um diagnóstico que envolve a necessidade de me abrir,
trabalhar menos, tentar ser mais vulnerável.
– Bem – disse eu com desdém. – Ela é apenas uma cirurgiã. O que sabe
ela?
E com isto, o Hayes bufou e deu uma gargalhada tão forte que o casal
atrás de nós virou a cabeça para nos lançar um olhar de desaprovação.
Olhámos um para o outro com os olhos arregalados, zombando dos nossos
vizinhos, e ficámos sentados em silêncio durante um momento, a beber.
– E o que é que tu achas? – perguntei baixinho.
Ele ficou em silêncio durante um minuto, a olhar por cima do meu ombro
e depois novamente para mim.
– Depois do meu divórcio passei muito tempo a pensar que simplesmente
não fui feito para relacionamentos sérios. Mas ultimamente, tenho dado
conta que isso acontecia porque estava com as pessoas erradas. Claro que
sou parcialmente responsável por as coisas não correrem bem. Mas estou a
aprender a não ser tão duro comigo próprio em relação a isto.
– Foi isso que aconteceu com a Serena? – Mantive uma cara simpática
enquanto lhe perguntava isto, mas por dentro ainda sentia aqueles nervos de
não ser boa o suficiente.
– Oh, sim – assentiu ele – Nós não tínhamos nada a ver. Mas o que
percebi é que às vezes podes sentir-te mais seguro estando com a pessoa
errada do que encontrar alguém com quem realmente te sintas bem.
Ele olhou para mim e depois desviou o olhar, bebendo outro gole de
cerveja. Graças a Deus que ele não conseguia ver como o meu coração
troava no meu peito. Ele apontou o copo para mim.
– Esta foi muito séria. É a tua vez.
– OK, não faças julgamentos – afirmei. – Nunca comi gelato.
– Tu és meia italiana. – O Hayes olhou para mim intrigado, as
sobrancelhas franzidas. – Como é isso possível?
– Quando eu era criança, preferia picolés a gelado. Sorvete italiano,
lembras-te?
– Mas gelato. – Ele ainda estava horrorizado. – Nem uma vez?
– Não. – Eu abanei a cabeça. – Mas a família da minha mãe é irlandesa!
O Hayes inclinou o copo e bebeu o resto da cerveja.
– Vamos – disse ele, empurrando a sua cadeira para trás e pegando no
cartão de crédito que o empregado tinha deixado sobre a mesa.
Eu olhei para ele.
– Vais obrigar-me a ir comer gelato, não é? – Senti um sorriso a
esgueirar-se por trás dos meus lábios franzidos.
– Isto é urgente, Franny – disse o Hayes, cruzando os braços e olhando-
me de soslaio. – Estas são as tuas raízes! Não podes ser italiana e nunca ter
comido gelato. Isso é basicamente o mesmo que nunca ter comido piza.
– Tu nem sequer és italiano. – Lancei-lhe um olhar atrevido e
depreciativo. – Quem fez de ti uma autoridade sobre o que eu devo comer?
Ele inclinou a cabeça na minha direção, como se estivesse a tentar
descobrir se eu estava a falar a sério. Quando finalmente lhe mostrei a
língua, ele riu novamente, aquela gargalhada relaxada ainda tão
desconhecida para mim que me fazia sorrir sempre.
– Espera um segundo – disse eu, recostando-me na cadeira para fazer o
meu melhor olhar analítico. – Tu nunca comes açúcar. Qual é a ideia?
– Eu disse-te. – Ele estendeu a mão, e eu agarrei-a, deixando-o levantar-
me da cadeira. – Eu só gosto de guardar a sobremesa para ocasiões
especiais.
Ele apertou-me a mão e depois largou-a, e enquanto enfiava a carteira no
bolso de trás, assimilei as suas palavras. Ele esperava por uma ocasião
especial. Por mim.
Quinze minutos depois, estávamos numa fila dentro de uma padaria
italiana repleta de pequenas mesas de madeira e filas de biscoitos
perfeitamente alinhados atrás do balcão de vidro, um cheiro doce a flutuar
no ar. Homens idosos com chapéus de papel branco e aventais trabalhavam
rapidamente atrás do balcão, com expressões sérias nos rostos. O Hayes
olhou para mim com expectativa.
– Então? – perguntou, as sobrancelhas erguidas, as mãos abertas para o
espaço à nossa volta.
– Adoro – suspirei, dedicando um minuto a inspirar a mistura de
sobremesas doces com o cheiro persistente de café expresso.
Ele sorriu, revelando aquelas covinhas que faziam todo o seu rosto
brilhar.
– E – disse eu – tinha a certeza de que me ias arrastar para aquela
gelataria da moda em Ludlow, por isso estou agradavelmente surpreendida.
Ele estendeu a mão para um high five e eu em vez de bater na palma da
sua mão, estendi a minha e entrelacei os meus dedos nos dele. Talvez fosse
apenas coragem resultante da bebida outra vez. Mas o álcool estava a
desaparecer, e esse desejo que eu sentia de puxá-lo cada vez para mais perto
de mim parecia aumentar. As suas faces estavam ruborizadas, percebi, o
tom rosa a espalhar-se pelas suas covinhas. Mas se estava nervoso, não
deixou transparecer.
Os seus olhos seguiram as nossas mãos conforme as baixei entre nós e
inclinei-me para tocar o meu ombro no dele.
– Obrigada – sussurrei. As nossas cabeças estavam tão perto que eu podia
sentir o cheiro dele na sua camisa, aquela mistura amadeirada de champô,
desodorizante, roupa limpa, loção pós-barba: a vida de todos os dias. Era
um cheiro que nenhuma garrafa poderia conter. Era puramente ele, um
aroma que tinha flutuado por mim tantas vezes, mas que só agora parecia
permear o ar ao meu redor.
Uns minutos mais tarde, estávamos do lado de fora, copos de gelato na
mão e uma pequena caixa de biscoitos pignoli quentes na minha mala.
– Vamos caminhar? – perguntou, e eu assenti com a cabeça entre
colheradas nas duas bolas de pistácio e chocolate, empilhadas no copo.
– Não vais perguntar-me o que acho do meu primeiro gelato? – perguntei,
a brincar com a colher na minha boca.
– Não, estou bastante confiante de que já o adoras – disse ele. Empurrei o
meu ombro para o seu lado, mas não disse mais nada. Ele tinha razão, é
claro. Ele parecia ter sempre razão. Idiota.
*
Querida Franny,
–Anna
E stava a andar na corda bamba entre não querer que esta noite chegasse
ao fim e não querer que a Franny percebesse que eu não queria que esta
noite acabasse. Preocupava-me com o que ela pensava de mim, mais do que
queria admitir, e a ideia de parecer demasiado apressado ou desesperado, ou
chato – ou algo assim –, aterrorizava-me e levava-me a subjugar o meu
entusiasmo. Mas era quase meia-noite, e estávamos na Front Street, a tirar
fatias bem quentes de piza para fora de uma caixa e a enfiá-las na boca.
Tinha sido a vez da Franny ficar a suspirar de horror quando lhe disse que
nunca tinha ido ao Grimaldi’s.
– Deste-me um sermão por nunca ter atravessado a ponte de Brooklyn a
pé, e mesmo assim tens a audácia de dizer que nunca provaste a melhor piza
da cidade, que fica sob a ponte? Devias ter vergonha.
O seu horror foi merecido, mas compensei-a ao comer três fatias sem
hesitar. A fila em frente do Grimaldi’s tinha diminuído, e um dos
cozinheiros veio até à janela atrás de nós e virou a placa para FECHADO.
Racionalmente, eu sabia que deveria sentir-me exausto. As últimas horas
tinham sido preenchidas com comida, álcool e passeios. Mas eu estava
cheio de energia. Parecia que sempre que olhava para a Franny, o meu
corpo entrava em combustão espontânea ou disparava no ar.
Ela tirou a caixa agora vazia da minha mão sem dizer uma palavra e foi
até ao ecoponto azul na esquina, a familiaridade deste gesto enviou um
zumbido do meu coração para o meu estômago.
– Então – disse ela –, eu devia ir para casa.
Ocultei a minha deceção e assenti com a cabeça, abrindo a boca para
concordar com ela, talvez demasiado ansioso, que obviamente estava na
hora desta noite acabar.
– Queres acompanhar-me? – interrogou ela, interrompendo-me antes que
eu começasse a falar. Os meus olhos dispararam para os dela, que estavam
mais abertos do que o normal. – Não é longe daqui. Cinco minutos, no
máximo.
– Sim! – Eu soei muito ansioso. Controla-te, Hayes. – Sim, claro.
Cruzei e descruzei os braços e, em seguida, enfiei as mãos nos bolsos.
Desde quando é que as minhas mãos se tornaram tão desajeitadas?
– Mas, por favor, lembra-te de que eu vou continuar a dificultar-te a vida
por nunca teres atravessado a ponte de Brooklyn até hoje à noite – disse eu.
– É justo – disse ela, dando-me o braço. – Mas não estás feliz por eu ter
esperado para fazer isso contigo pela primeira vez? – perguntei.
Estava.
A Franny guiou-nos pela Everit, até virar à esquerda na Cranberry Street.
– A sério? – disse eu quando passámos pela placa da rua. – Cranberry
Street? Um nome tão peculiar que devia estar num filme.
– E está num filme. – Ela virou-se e olhou-me de forma sedutora.
Eu abanei a cabeça.
– Não faço ideia de qual seja.
– Hayes – disse ela, irritada, mas a sorrir. – Vamos. Falei no Grease, mas
este é um clássico da cidade de Nova Iorque.
– Hum… – Tentei mesmo pensar em algo. – Sozinho em Casa 2?
– Santo Deus, Hayes! – Ela soltou-me o braço e correu para o meio da
rua. – Quem sou eu?
Começou a andar para trás e para a frente, a pontapear o ar com o pé
direito.
– Uma Rockette? – perguntei, genuinamente perplexo. – Este é
literalmente o meu melhor palpite.
Correu de volta para mim, fitando-me.
– Hayes – disse ela, com um sorriso malicioso. – Para com isso.
Encolhi os ombros.
– Eu estou mesmo a tentar, mas agora fiquei confuso.
– Oh, meu Deus, Hayes, preciso que venhas comigo.
Ela agarrou-me na mão e arrastou-me em direção a uma casa em madeira
azul-claro com um portão branco alinhado com a rua, e degraus pontilhados
de vasos de flores, que terminavam numa porta em vermelho-vivo.
– É esta a tua casa? – interroguei, maravilhado por parecer extremamente
agradável.
– Sim.
– Deves viver na única casa em Nova Iorque que tem uma cerca branca.
Ela tirou os olhos da sua mala, onde procurava o que presumi serem as
chaves de casa.
– Eu sei. É absurdamente perfeito, e nunca poderei mudar, mesmo que
não devesse estar a pagar tanto de renda agora – disse ela, colocando a
chave na fechadura do apartamento da cave, a porta a abrir-se.
– Anda – disse ela, conduzindo-me.
Eu estaria a mentir se dissesse que não tinha imaginado o apartamento da
Franny muitas vezes. Há semanas, vi-a a cuidar de plantas de forma tão
delicada, a suspirar por causa de candeeiros, e a olhar durante horas para
paredes vazias, o seu cérebro a criar de uma maneira que o meu nunca
poderia compreender. Eu via tudo em listas e colunas, números e equações.
Mas a Franny via o mundo em formas e cores.
Ainda assim, não estava à espera de ver um espaço tão luminoso,
especialmente um tão pequeno e cheio de cor. O seu apartamento era
praticamente do tamanho do meu novo gabinete. Segui-a enquanto ela
entrava e deixava cair a mala em cima de um sofá macio que parecia ocupar
toda a parede. Na janela de sacada, havia uma mesa cheia de livros rodeada
por plantas que certamente clamavam por toda a luz que devia derramar-se
ali todas as manhãs. Aproximei-me e pude ver os títulos: Rothko, Kahlo, um
intitulado simplesmente Uffizi Gallery. É claro que ela devorava livros de
arte.
No canto, havia uma majestosa, mas despretensiosa cadeira de couro
desbotada, ao lado de uma lareira coberta de luzes reluzentes suaves e
pequenos vasos de plantas suculentas. Baixei-me para examinar a lareira, e
descobri uma pequena televisão de ecrã plano lá dentro, escondida atrás de
uma tela dourada.
– Colocaste a TV dentro da lareira? – perguntei, maravilhado com a sua
engenhosidade.
Ela encolheu os ombros.
– Era o lugar mais fácil para colocá-la. Quando está por trás da tela, nem
te apercebes dela, e quando quero um fogo, procuro um no YouTube.
A cozinha era pequena, mas impecável – bancadas em madeira, um
pequeno lava-louça branco. Até mesmo o frigorífico parecia ter metade do
tamanho normal. Uma mesa de bar estava aninhada no canto com apenas
duas cadeiras, e por cima havia um pequeno jarro com tulipas brancas.
– A casa de banho? – perguntei.
– Aqui – disse ela, fazendo-me sinal para a seguir. A poucos passos
depois de passarmos a cozinha havia uma pequena casa de banho, com um
espaço que mal dava para uma pessoa. – Isto é tecnicamente um estúdio,
mas eu coloquei esta cortina, para que a cama ficasse num espaço um pouco
à parte.
A sala de estar era uma coisa, mas ver o seu quarto era algo íntimo,
pessoal, como bater à porta de uma casa e alguém vir abrir de pijama. Ela
abriu a cortina, revelando um recanto tão brilhante e acolhedor como o resto
da casa – uma cama coberta por um edredão estampado em azul, almofadas
amarelas, uma pequena mesa de cabeceira com uma lâmpada e um vaso
com uma suculenta. Um livro repousava na borda, e eu aproximei-me para
espreitar. Nora Ephron. Sorri. Tínhamos passado a noite a ver quem
suplantava o outro em relação a Nova Iorque, mas o livro de Ephron
impulsionou a Franny para o primeiro lugar.
A casa de banho: azulejo preto e branco. Olhei de relance para o espelho
enquanto lavava as mãos no pequeno lavatório. O que diabo estava eu a
fazer aqui, perto da 1h00? O que eu queria fazer – arrastar a Franny para a
cama e nunca mais de lá sair – debatia-se com o que eu sentia que devia
fazer – dizer boa-noite, pôr a cabeça lá fora, e chamar um carro para
regressar a Manhattan. Ir correr. Talvez ir ao escritório amanhã, preparar a
viagem a Seattle, ensaiar a minha apresentação oral.
Voltar ao normal.
Mas ao deslocar-me pelo apartamento da Franny, fui imediatamente
atingido pelo aroma a pipocas. Pipocas? Ela estava de pé junto do fogão,
descalça, a sacudir pipocas acabadas de fazer para uma tigela de vidro
grande.
– Cerveja? Água? – interrogou por cima do ombro.
– Hum, pode ser água.
Ela pegou em dois copos e passou-os para mim.
– A água está num jarro dentro do frigorífico – disse.
Lá se foi a minha grande saída.
– Sim, claro. E depois disso provavelmente regresso à cidade – exclamei,
admirando como ela, para nova-iorquina e solteira, tinha tanta comida no
frigorífico. E não eram recipientes de comida pronta – iogurtes suíços
empilhados e recipientes de vidro com legumes cortados.
– Boa tentativa, Terceiro – disse ela, virando-se para me passar a tigela. –
Eu tenho mais uma coisa para te ensinar antes de te ires embora.
Ela fez sinal com a cabeça na direção do sofá, movendo-se primeiro para
recolher a tela da lareira, e depois instalou-se a um canto, enroscando as
pernas debaixo dela e agarrando o controlo remoto que estava em cima da
mesa junto à janela de sacada. Segui-a, sentando-me do outro lado do sofá,
colocando as nossas bebidas e as pipocas em cima de uma pilha de livros de
receitas italianas que estavam no chão em frente ao sofá. Ligou a TV e
clicou no controlo remoto determinada até encontrar o que estava à procura.
– OK, vou dar-te uma última hipótese – disse ela, fitando-me. – Diz-me
que viste o Feitiço da Lua.
– Francesca Doyle – afirmei. – Perdoa-me, mas não vi.
– E tiveste a audácia de me dar sermões sobre a minha cultura, sem nunca
teres visto aquela que é possivelmente a maior história de amor de Nova
Iorque de todos os tempos? Estou sinceramente ofendida.
– Eu pensei que SubwayQTs era a maior história de amor de Nova Iorque
de todos os tempos. – Disse isto como uma piada, mas conforme as palavras
saíam da minha boca senti que foi tudo menos engraçada. Eram honestas e
verdadeiras.
– Nós estamos em segundo lugar mas muito próximo – disse ela com um
sorriso, passando a mão pelos caracóis. – Tens de acordar cedo amanhã de
manhã? – perguntou ela, apontando o controlo remoto para mim.
Eu abanei a cabeça. Tinha combinado ir correr com a Perrine às sete, mas
cancelara por mensagem quando a Franny se inclinara sobre a ponte a olhar
para East River. Não que eu soubesse que a noite iria acabar aqui, comigo
no seu sofá, tentando não mostrar o quão nervoso estava. Mas algo dentro
de mim tinha esperança de que a noite se prolongasse para sempre. E por
isso cancelara os planos que normalmente nunca cancelava simplesmente
baseado nessa sensação. Por causa de um talvez. Por causa de um e se.
Porque havia uma possibilidade acerca desta noite.
– Boa – disse ela. – Vamos ver o Feitiço da Lua.
– Feitiço da Lua – disse eu, a minha mente a esforçar-se por situar o
filme. – Com a Cher?
– Sim, com a Cher. Que outro Feitiço da Lua é que existe? – Ela agarrou
num punhado de pipocas e atirou algumas na minha direção.
– Ei! – Repeli-as defensivamente. – Alinho. Mas o que é que eu não estou
a perceber aqui?
Os olhos da Franny semicerraram-se.
– Hayes…
– O que é! – disse eu com uma risada.
– Esta não é apenas a representação mais importante de italo-americanos
num filme, como também ocorre nesta exata rua.
– Cranberry Street.
– Oh, meu Deus, sim, Cranberry Street. Porque é que às vezes és tão
lento?
Houve algo em mim que se contraiu quando ela me chamou lento, esse
receio de que talvez eu estivesse a interpretar mal as coisas. Mas depois ela
franziu o nariz e sorriu enquanto se estendeu na minha direção e recostou-se
nas almofadas do sofá, a tigela de pipocas entre nós. Tentei virar a atenção
para a TV quando ela carregou em PLAY, mas os meus olhos continuavam a
trair-me e a fixar-se nela. Cada inclinação para tirar pipocas aproximava-
nos mais, até que ela finalmente colocou a taça no chão, enfiou uma
almofada sob a cabeça, e deitou-se de modo que o seu cabelo roçava a
minha coxa.
Será que ela sentia que eu estava tenso? Que as células do meu corpo
enviavam sinais para aquele ponto na minha perna para se acalmar? Eu mal
conseguia manter a compostura, pensando se deveria simplesmente
perguntar: «O que eu acho que está a acontecer entre nós está realmente a
acontecer?» Ou simplesmente curvar-me e pressionar a minha boca contra
a dela, sem dizer uma palavra. Em vez disso, a Franny mexeu-se, olhou
para mim com um sorriso, e, em seguida, agarrou-me na mão que repousava
sobre as costas do sofá, tensa e elétrica, e trouxe-a para baixo para envolvê-
la na sua, os dedos entrelaçados nos meus.
Eu esperava que isso me afetasse, mas em vez disso os meus ombros
relaxaram. A sensação da minha mão na dela acalmou-me, como a sensação
de um pano frio pressionado contra a minha testa febril em miúdo.
Conseguia respirar novamente. Tracei círculos lentos na sua pele com o
polegar. Tudo no meu corpo abrandou, como se dissesse: É aqui que deves
estar. Fica.
E depois, para minha própria surpresa, imergi no filme que se desenrolava
diante de nós. Percebi por que razão era intoxicante ver a Cher e o Nicolas
Cage a gritar um com o outro por causa do amor. Era espalhafatoso e
apaixonado e revoltado, mas também era honesto e puro, e assistir aos seus
avanços e recuos fez-me pensar na Franny e em mim. Era complicado, mas
fazia muito sentido. Nós fazíamos sentido. A meio do filme, inclinei-me
para dizer à Franny, mas ela estava dobrada sobre si mesma e adormecera.
Eram quase 3h00 quando o filme terminou. A Franny ainda estava a
dormir no sofá, os nossos copos estavam vazios e havia pipocas dizimadas
no chão, as nossas mãos ainda entrelaçadas. Uma das suas pernas estava
estendida, e eu olhava mais do que gostaria de admitir para a curva da
barriga da perna, a sua pele suave. Sentia-me delirante, exausto, mas ainda
bem desperto. Desprendi com cuidado os nossos dedos e deslizei para cima
e para fora do sofá lentamente para não a acordar. Havia um cobertor de
malha cinzento estendido sobre a parte de trás do sofá, e coloquei-o por
cima da Franny. Peguei nos nossos copos e na tigela de pipocas, e levei-os
para a cozinha, deslizando os pés descalços ao longo do soalho velho para
não a acordar com o som da madeira a ranger.
Vê-la a dormir pareceu-me algo estranhamente íntimo e também
silenciosamente reconfortante, mas, depois, talvez um pouco estranho. Será
que eu ainda devia estar aqui? Olhei para a porta da frente; não havia
nenhuma maneira de trancá-la do lado de fora, por isso se saísse agora eu ia
deixar a porta aberta para o mundo. Ponderei o meu plano enquanto
enxaguava os copos e a tigela, colocando-os no escorredor da louça. Era
estranho se ficasse, mas deixá-la aqui com a porta destrancada
simplesmente não era uma opção.
Era isso. Eu ia ficar. Tirei o casaco e dobrei-o sobre uma cadeira. Depois
peguei numa almofada do sofá para colocar debaixo da cabeça, e deitei-me
de costas, o meu corpo no chão ao lado de onde a Franny dormia, morta
para o mundo. Fechei os olhos e pensei no Feitiço da Lua, e o que significa
lembrar que é possível apaixonarmo-nos.
*
– Hayes? – Houve uma voz, e uma mão quente, e algo duro contra as
minhas costas. Mantive os olhos fechados, determinado a continuar a
dormir.
– Hayes. – A voz era firme agora, a mão também, pressionando o meu
peito com um abanão.
– Mmm.
– Estás a dormir no chão da minha sala?
A voz acordou-me. Adormecera, e esquecera-me que tinha decidido
deitar-me até a Franny acordar para eu poder sair dali com ela a trancar a
porta em segurança atrás de mim.
– Ei, sim. – Abri os olhos e vi o rosto da Franny a espreitar da beira do
sofá, iluminada pela luz do sol.
– O que estás a fazer aí em baixo? – Ela inclinou-se e despenteou-me o
cabelo suavemente, afastando-o da minha testa.
Estiquei os braços para cima. Merda, as minhas costas estavam a dar cabo
de mim.
– Adormeceste durante o filme e eu não quis ir embora, porque a tua
porta só fica trancada com a chave. Decidi ficar até acordares.
Forcei-me a sentar. A longa e sinuosa noite finalmente atingiu-me. Tinha
dores quando me mexia. A Franny inclinou-se sobre os cotovelos e depois
virou-se para observar as suas pernas antes de voltar a olhar para mim.
– Tapaste-me com um cobertor?
Eu assenti com a cabeça.
– E ficaste aqui no chão em vez de me acordares e me fazeres trancar a
porta atrás de ti. Ou ires dormir para a minha cama.
– Sim. – Passei a mão pelo cabelo, que estava espetado em todos os
ângulos. Essas ideias nem me passaram pela cabeça. Bastou a menção da
sua cama para eu despertar, imaginando-nos nela. Sem dormir. Meu Deus,
senti-me ridículo.
– São – ela semicerrou os olhos para o relógio no seu braço – dez e vinte
e quatro.
– Não durmo até tão tarde desde a faculdade – disse, torcendo-me para
estalar as costas. – Normalmente por esta hora já corri dez quilómetros e
adiantei imenso trabalho.
– És uma máquina medonha – disse ela com uma risada.
– Desculpa ter acabado por ficar aqui. Eu vou para casa.
– OK, ou – a mão da Franny estava de repente em cima de mim, no meu
ombro, a tocar na ponta da minha camisa – podes ficar.
CAPÍTULO VINTE E TRÊS
FRANNY
Franny:
Franny: Sim, que conveniente vocês não terem ido ao jantar ontem à
noite. Belo plano.
Franny: Eu odeio-vos.
Franny:
Franny:
CAPÍTULO VINTE E QUATRO
HAYES
O Jim vem buscar-me para me levar de novo para o hospital. Acho que
vai ser uma longa recuperação, mas ela vai ficar bem.
Que nojo, Fran, não. Ele mal sabe como lavar a sua própria roupa.
Franny O QUÊ?!
Anna,
Tem sido uma semana louca por aqui. A minha mãe está no hospital
depois de ter tido um ataque cardíaco, o que foi horrível e assustador,
embora ela esteja bem. Ainda estou a tentar descobrir o que fazer
para ter a carreira que ambiciono em design de interiores.
Além de tudo isto, conheci uma pessoa. Um tipo. Un uomo. (Estou a
tentar aprender italiano!) Ele não é igual a ninguém com quem já
namorei, e terminei as coisas da pior maneira possível. Espero que
não te importes que desabafe tudo contigo, mas é bom contar a
alguém. Além disso, és italiana. Vocês todos sabem alguma coisa
sobre o amor, certo?
Eu nunca tive uma irmã, ou irmãos. Mas saber que existes está
realmente a trazer-me algum conforto esta noite. Espero que possamos
conversar mais em breve e, quem sabe, até nos encontrarmos um dia.
Com amor,
Franny (a tua irmã!)
CAPÍTULO VINTE E SEIS
HAYES
Caro Desconhecido,
Sua,
Franny Doyle
Ela tinha estado aqui o tempo todo, sabia o que eu precisava de ouvir. E,
meu Deus, como gostava de saber como lhe dizer: Fi-lo porque assim que a
vi, soube que ela era alguém que eu queria ter por perto. Não consegui
evitar.
E depois, tal como naquele momento no metro, eu sabia o que tinha de
fazer. Corri para a sala, abri o meu portátil, e redigi um e-mail em segundos.
OK.
N unca estive tão nervosa na minha vida antes de ver alguém pela
primeira vez, e nós nem sequer nos íamos encontrar cara a cara. Mas
durante dias, andei em pânico, com os nervos à flor da pele. Depois,
finalmente chegou o dia, e eu passei horas a preparar-me. Lavei o cabelo e
depilei as pernas, e passei uns bons quinze minutos a tentar delinear um
olho de gato com eye-liner antes de desistir e limpar tudo, esperando que as
manchas na pálpebra não fossem muito percetíveis. Depois troquei de
camisa três vezes, apenas para acabar com a primeira que vesti. E agora não
havia mais nada a fazer além de pegar no meu telemóvel.
– Franny?
Aquele rosto, a voz: era estranha e ao mesmo tempo tão familiar, tudo ao
mesmo tempo. Isso fez o meu coração disparar do meu peito para o céu,
soltando fogos de artifício.
– Olá! – disse eu com a voz a falhar. Ia chorar? A resposta surgiu num
instante, lágrimas a escorrer pelo meu rosto. Peguei num lenço de papel da
caixa em cima da mesa do Jim e enxuguei os cantos dos olhos. – Não posso
acreditar que és realmente tu.
Ali, no ecrã, estava a minha meia-irmã.
Ela soltou algo que soou como uma risada e um grito.
– Não posso acreditar que és real! – disse ela, o seu sotaque italiano
acrescentava uma melodia a cada palavra.
Olhámos uma para a outra nos nossos ecrãs, a sorrir. O seu cabelo era
comprido, mas encaracolado como o meu. Os nossos olhos eram diferentes;
os dela eram castanho-escuros e mais largos. Mas os nossos narizes
inclinavam-se levemente, e ao vê-la sentia-me confortável, como chegar a
casa à noite e haver uma luz acesa.
– Como está a tua mãe? – perguntou ela, e eu pude ver a preocupação no
seu rosto.
– Muito melhor. Obrigada por perguntares. – Expirei, descontraindo-me
um pouco. – Estou tão contente por te ver – disse eu. – Tenho andado tão
nervosa.
– Eu também – disse ela. E como ela era linda quando sorria. – Estava
preocupada com o que pensarias de mim.
– O quê? – Eu inclinei-me para trás surpreendida. – Tenho imensa
admiração por ti, e tudo o que fizeste. Acompanho o teu Instagram e tens
feito um trabalho incrível.
– Ah, bem – disse ela, puxando um caracol para baixo e soltando-o de
seguida, depois repetiu o gesto. – Um cliente acabou de me dispensar de um
grande trabalho, mas não vou colocar isso na Internet.
– Credo – gritei, um pouco alto de mais. – Isso é ridículo. Tu és tão
talentosa!
Ela encolheu os ombros.
– Fico feliz por pensares assim, porque eu preciso de me convencer na
maior parte do tempo.
Acomodei-me na cadeira, as minhas costas relaxaram.
– Eu sei o que queres dizer – exclamei. – Sou exatamente assim. – Talvez
seja genético, pensei.
– Bem, diz-me o que se passa com o trabalho – disse ela. – Talvez todos
os meus erros te possam ajudar.
Meia hora depois, após combinarmos um data para conversarmos de
novo, fui até à sala de estar onde a minha mãe estava enfiada debaixo de um
cobertor, a ver HGTV. Ela saíra do hospital há quase um mês, mas ainda
não estava totalmente recuperada.
O Jim tinha ido à mercearia, e eu sentei-me na extremidade oposta do
sofá, passando um braço em torno dos seus pés enfiados numas meias.
– Percebi que estavas lá dentro, a rir – disse ela, voltando o seu olhar para
mim. – Estavas a falar com as meninas?
Ela referia-se à Lola e à Cleo, e eu apenas assenti.
– Sim – disse, mas depois percebi que era agora ou nunca. – Na verdade,
não. – O meu estômago borbulhou com os nervos. Era agora. – Eu estava a
conversar com uma mulher em Itália que conheci num desses sites de teste
de ADN.
Os nossos olhos encontraram-se, e eu pude ver no seu rosto que ela sabia
o que eu estava prestes a dizer.
– Na primavera fiz um desses testes, apenas por diversão. Mas encontrei
uma meia-irmã, do lado do meu pai biológico.
– Ah, Franny. – O seu rosto estava sem expressão, e tudo o que eu
conseguia pensar era que a desiludira mais uma vez. – Eu estou tão feliz por
ti.
Olhei para ela.
– Estás? – Isto não era o que eu esperava que ela dissesse.
– Eu sempre quis que tivesses irmãos – disse ela, um sorriso hesitante a
surgir no seu rosto. – E que soubesses mais sobre esse lado da tua família.
Sempre me senti culpada por nunca ter podido falar muito sobre o teu pai
biológico. Eu praticamente não tinha informação para te dar. Nós não
conversámos muito.
Ela disse isto com uma risada, e naquele momento eu podia imaginá-la,
jovem e apaixonada, arrebatada por um homem bonito com cabelo preto e
grosso.
– Tu nunca me contaste nada sobre ele – afirmei. – E eu tinha sempre
muito medo de perguntar.
– É difícil falar sobre isso – disse ela quando se inclinou para a frente e
pegou na minha mão, apertando-a. – Sabes, era uma época diferente. É um
assunto que me traz muita vergonha, eu acho. E preocupação. Preocupo-me
muito por não ter feito tudo da forma mais correta para ti.
Isto era o máximo que já faláramos sobre o meu pai biológico, a relação
deles e os sentimentos da minha mãe sobre tudo isso. Era um território novo
para nós, e parecia cruel e assustador. Mas também parecia absolutamente
certo.
– Ele já não está vivo – disse-lhe baixinho. Dar-lhe esta notícia foi
inesperadamente esmagador. Dizer isto em voz alta não só tornava a sua
morte real; tornava-o real também.
– Ah, Franny – disse ela, com a voz embargada. Ela deslizou as pernas
para fora do sofá e sentou-se ao meu lado, pondo o braço em volta do meu
ombro. – Eu sinto muito.
– Eu também – disse eu, engasgada. Eu nunca teria a hipótese de o
conhecer, essa pessoa que era parte de mim. Era uma perda que eu ainda
estava a processar. – Obrigada por não estares zangada – continuei,
apoiando-me nela, sentindo o seu calor.
– Franny, como poderia eu zangar-me contigo? – Ela sorriu para mim, um
olhar de puro amor.
O meu corpo relaxou um pouquinho.
– Estou com medo que descubras algo que possa magoar-te ou desiludir-
te? Claro. Eu sou a tua mãe. – Ela disse isto com um encolher de ombros,
como se fosse a resposta óbvia para tudo. – Sempre me preocupei com isso.
Mas, não, eu não estou zangada.
– Eu vou ficar bem – disse eu, engolindo o nó na minha garganta.
– Eu sei que vais. – Ela inclinou-se para a frente e deu uma palmadinha
na minha mão. – Olha como te saíste bem desde que perdeste o emprego.
Sabes que não precisas de ficar aqui por minha causa, certo? Estou a
recuperar, e tu devias voltar às tuas coisas.
E com isto, comecei a chorar. Não eram lágrimas silenciosas, como as
que chorei quando vi a Anna alguns minutos antes. E não era o tipo de
choro abundante e confuso, como o que o Hayes vira naquele dia no metro.
Este era como um tsunâmi, um grito do peito arfante, do corpo inteiro,
que explodiu sem aviso prévio.
– Franny? – perguntou ela, virando-se para olhar para mim, a sua voz
alarmada. – O que está a acontecer?
– Eu estraguei tudo. – A minha voz saiu como um lamento, e apertei o
rosto nas mãos. – Tentei começar o meu próprio negócio e fiz aquele
trabalho, o que foi incrível. Mas não tenho trabalhos suficientes para pagar
as contas e a renda.
– Mas eu pensei que tinhas dito na TV…
– Não era verdade. Saiu-me. Eu estava envergonhada e nervosa, e só
queria que todos pensassem que estava bem. Eu queria que tu pensasses
isso. – As palavras brotavam de mim. – Eu não quero que penses que sou
um fracasso. Eu sei que já te preocupas com o facto de eu não ter uma
carreira mais estável.
Ela levou a sua mão livre ao meu queixo, erguendo o meu rosto até que
os nossos olhos se encontraram.
– Francesca Marie Doyle – A sua voz era firme. – Passei os últimos trinta
anos a admirar-te.
Eu funguei e limpei o nariz na manga, e olhei para ela confusa.
– Por vezes, também intimidada – disse ela enquanto movia a mão para
colocar uma mecha de cabelo atrás da minha orelha.
Certamente, pensei, ela estava a brincar. Mas o seu rosto estava
completamente sério.
– Nada em mim é intimidante – disse eu, com o peito a arfar.
– Nada em ti é intimidante – disse ela, a rir. – Fran, tu sabes exatamente
quem és desde o dia em que saíste de mim. Trabalhaste durante a
secundária para poderes pagar as tuas próprias aulas de arte, e depois
quando entraste na NYU estavas determinada a ir, mesmo que todos,
inclusive eu, te dissessem que seria mais fácil ir para a UConn e viver em
casa. Mudaste-te para Nova Iorque aos dezoito anos e nunca olhaste para
trás. Escolheste uma carreira pela qual eras apaixonada e fizeste com que
funcionasse. Construíste uma vida para ti, que adoras, e sabes exatamente
quem és. Isto é algo que a maioria de nós não pode dizer. Por isso, sim, às
vezes és intimidante, da melhor maneira possível. E eu adoro isso. Estou tão
orgulhosa de ti.
Respirei fundo e expirei pela boca, acalmando-me.
– Mas estás sempre tão preocupada comigo.
– Eu preocupo-me se estás feliz. Eu preocupo-me que estejas a ser muito
exigente contigo mesma. Eu preocupo-me que não estejas a dormir o
suficiente.
Soltei uma pequena risada com isso.
– Mas nunca me preocupo contigo, Franny, não mesmo. No mínimo,
preocupo-me com quem se meter no teu caminho. Eu sei que sou apenas a
tua mãe, mas sempre me pareceste imparável. No dia em que parares de
fazer exatamente o que queres com a tua vida, é quando me preocuparei.
Porque isso seria um fracasso. Não teu, mas meu, enquanto tua mãe.
– É difícil para mim afastar este sentimento de que eu só quero deixar-te
orgulhosa – disse. – E se não deixar, que estraguei tudo. – Eu nunca tinha
sido tão honesta com ela antes, e foi incrível e aterrorizante, tudo de uma
vez. Puxei para baixo as mangas da minha camisola e enxuguei os olhos
com elas.
– Franny, a única pessoa que precisas de deixar orgulhosa és tu mesma.
Não te preocupes comigo. Eu estarei sempre orgulhosa de ti, não importa o
que aconteça.
As suas palavras afastaram as lágrimas a alta velocidade. Era impossível
sentir orgulho de mim mesma quando magoei o Hayes e estraguei tudo
entre nós.
– Eu menti-te sobre ter uma enxaqueca naquela manhã. No dia do chá de
bebé. Desculpa.
– Oh, querida, está tudo bem. Eu nunca te agradeci por tudo o que tens
feito a ajudar-me. – Ela entrelaçou os dedos nos meus, colocou a outra mão
em cima da minha.
– E eu menti por causa de um tipo – disse eu, deixando finalmente as
palavras saírem, a minha voz rouca de tanto chorar. – Aquele do metro.
– Hayes Montgomery III? – perguntou ela, e eu fiquei tão surpreendida
por ela dizer o seu nome completo que me ri.
– Tu sabes o seu nome completo? – disse, ainda chocada por ter ouvido
isso sair da sua boca.
– Eu configurei um alerta do Google para ele. – Ela disse isto como se
fosse óbvio. – Tenho um para ti também.
Abanei a cabeça perante isto. Que manobra de mãe.
– Eu estraguei tudo. – Soltei um suspiro cansado, e ela passou a mão pelo
meu cabelo, tão gentilmente, como fazia quando eu era pequena. – Entrei
em pânico por causa, bem, de tudo… o teu ataque cardíaco, por sentir que
não estava a conseguir arranjar trabalho, o quanto gostava dele. Disse-lhe
coisas que não foram especialmente simpáticas. Eu sei que disseste que
devia estar orgulhosa de mim mesma, mas não estou orgulhosa da forma
como o tratei.
– Bem, o que te deixaria orgulhosa, então? – perguntou ela, ainda a passar
a mão suavemente pela minha cabeça.
Eu pensei durante um momento.
– Pedir desculpa – disse eu. – Estou em dívida com ele.
– Bem, eu acho que é um ótimo plano. – Ela deu-me um beijo na testa,
ainda a segurar-me junto a si.
– Eu gosto mesmo dele, mãe – afirmei. Eu podia sentir a força do desejo
por ele no meu corpo. Isso não me abandonara. Mesmo que o nosso
relacionamento tivesse terminado, os meus sentimentos não.
– Eu sei, querida – sussurrou ela suavemente no meu ouvido. – Eu sei. Eu
sei.
*
Mais tarde naquela noite, enquanto lavava a louça, ouvi uma conversa
abafada vinda da sala. Então, o Jim chamou:
– Franny-Bananny! – Eu arrastei-me para lá, com as luvas de látex ainda
colocadas, e sentei-me na sua velha poltrona esfarrapada.
– Sim – disse eu. – O que se passa?
– Podes tirar o caixote da reciclagem do alpendre e levá-lo para a
entrada? – perguntou.
– Claro – respondi, saltando do sofá. Atravessei a cozinha, atirei as luvas
para dentro do lava-louça, e abri a porta, saindo para o alpendre que eles
tinham acrescentado depois de eu ir para a faculdade. Ali, sentadas no sofá
de vime da minha mãe, estavam a Lola e a Cleo.
– Oh, meu Deus! – gritei quando elas correram na minha direção para me
abraçarem. – Estou a alucinar?
– Querias – disse a Lola, a rir. – Mas nós somos muito reais.
– Como é que chegaram até aqui? – perguntei, afastando-me para admirá-
las.
– É bizarro – disse a Cleo, tirando o casaco de couro com um sorriso –,
mas existem umas coisas chamadas comboios.
Eu bufei.
– Oh, meu Deus, como é possível que tenhas ficado mais sarcástica.
– Temos algumas coisas importantes para te contar – disse a Lola. – E,
sinceramente, estamos as duas cansadas de te enviar mensagens de texto.
Sentimos falta de ver o teu rosto.
– OK. – Sentei-me no sofá de dois lugares que estava posicionado em
frente ao outro sofá. Eu estava tão animada por vê-las que não conseguia
impedir o meu corpo de se mover para cima e para baixo levemente. – O
que é?
– Tu primeiro – disse a Cleo para a Lola, cujo rosto se abriu num largo
sorriso. A Cleo apertou as mãos à frente do rosto, tonta.
– A Cleo já sabe – disse a Lola.
– O que está a acontecer? – perguntei, nervosa. Ela estava de alguma
forma grávida? Olhei para a T-shirt dos Van Halen que ela estava a vestir e
tentei ver se havia algum tipo de protuberância.
Ela estendeu a mão esquerda, que estava no colo, e acenou para mim.
Logo abaixo de umas unhas pintadas de azul-escuro havia um anel de ouro
com um diamante negro gigante no centro, ladeado por diamantes brancos
menores.
– Caramba – disse eu, tentando processar o que estava a ver.
– Estou noiva! – gritou ela, numa oitava excitada que a sua voz raramente
atingia.
– Com – eu ainda estava a tentar entender isto – a Perrine?
Ela assentiu, radiante.
– Eu fiz o pedido.
– Ai meu Deus, Lola! – Levantei-me e fui ao seu encontro, e ela
levantou-se para me receber com um abraço. – Estou tão feliz por ti.
Soltei-a e agarrei a sua mão.
– Além disso, caramba, essa pedra é enorme.
– Era da avó dela – respondeu. – Ela disse que estava à espera do
momento certo para me propor, mas eu adiantei-me.
– Cum caraças. É tão bonito. – Os meus olhos imediatamente
transbordaram de lágrimas, pelo que parecia ser a quinquagésima vez hoje.
– Oh, meu Deus, é claro que estou a chorar outra vez. – Estendi a mão para
a mesa de apoio para pegar num lenço de papel. – Foi um longo dia –
expliquei.
– OK, bem, espero que isto não te faça chorar – disse a Cleo enquanto se
inclinava para a frente, para retirar alguma coisa da sua mala. – Acabou de
sair.
Ela passou-me uma cópia do Architectural Digest sobre a mesa. Na capa
havia uma fotografia da Eleanor, num longo vestido preto e sapatilhas
vermelhas, empoleirada na sua mesa. O Hayes estava de braços cruzados ao
lado dela. Mesmo esta versão minúscula dele, tão estoica e séria, fez
disparar uma pontada de saudade no meu coração.
– Eu estava a morrer de vontade de ver isto – disse eu com reverência. O
artigo da revista, sim. Mas também o rosto do Hayes. Tinha saudades.
– Precisas de ler o artigo – disse a Cleo, pegando na revista e folheando
as páginas antes de passá-la de volta para mim. – Especificamente… – Ela
tocou num parágrafo, perto do final da página.
Examinei o início, que era principalmente um resumo dos negócios do
Hayes e da Eleanor, e a história do espaço do escritório, que originalmente
era uma antiga fábrica de curtumes. E depois segui o dedo da Cleo para
isto:
Eu não tinha relógio nem telemóvel para controlar o tempo, mas parecia
que o metro avançava lentamente de Brooklyn para a cidade. Era fim de
semana, por isso parava em todas as estações, e a sensação de calma que se
tinha instalado em mim na loja de bagels havia desaparecido há muito
tempo. Eu estava agora um desastre completo: uma confusão de pés a
balançar, a roer as unhas, mangas torcidas. O Hayes também estava
apaixonado por mim, e agora cada segundo que não estávamos juntos era
uma completa perda de tempo.
O metro entrou na estação de Rockefeller Center, e eu corri assim que as
portas se abriram. Subi as escadas a correr, passei pelas lojas que se
alinhavam nos corredores da estação, e depois encontrei-me do lado de fora,
na esquina da Sixth Avenue com a Fifty-First Street.
– Raios! – Esquivei-me através da multidão de pessoas que já
monopolizavam o passeio. Dois quarteirões sem fôlego depois, eu estava
perto do estúdio da NYN. Demorei um minuto a recuperar o fôlego, mãos
nos joelhos, ofegante ao lado de um poste de iluminação. Olhei ao redor
enquanto o mundo se movia rapidamente por mim. Eu ri-me, em voz alta,
com o ridículo disto tudo. Seria impossível encontrá-lo no meio deste caos.
Olhei para baixo. Na minha saída frenética da loja de bagels, espalhara
queijo creme na parte da frente da camisola.
Claro.
O meu grande plano de encontrar o Hayes quando ele saísse da NYN
estava a ser rapidamente arruinado pela realidade. Virei a esquina para
caminhar pela rua, passando pelas multidões e pelas lojas que vendiam
produtos turísticos, em direção ao centro do Plaza.
De repente senti-me incrivelmente estúpida. O que é que eu estava a
pensar, correndo para aqui a cheirar a bagel com o MetroCard de um
desconhecido na mão?
Eu tinha de voltar para Brooklyn, onde pelo menos poderia tomar banho e
passar um pouco de rímel e depilar as pernas, e depois ligar-lhe e ir ter ao
apartamento dele e despir-me imediatamente e subir para cima dele. Este
era um plano muito melhor.
Saí de toda aquela loucura de turistas e fui pela Fifth Avenue, até à Grand
Central Station. O átrio principal estava calmo para uma manhã de sábado.
O espaço lembrava-me sempre uma biblioteca, com as suas janelas gigantes
de vidro e o teto celestial em arco.
Andava pelo chão de mármore, em direção ao longo corredor que levava
às linhas do metro, quando alguém alguns passos à minha frente deixou cair
um maço de dinheiro. Corri para apanhá-lo e levantei a cabeça para
perceber para que lado ele tinha ido.
– Desculpe – gritei, mas sendo Nova Iorque, ninguém se virou. – Ei! –
disse, correndo um pouco para dar uma pancadinha no ombro do
desconhecido. Movi-me tão rápido que não consegui processar a forma do
homem, o corpo comprido, o cabelo grosso. Mas no segundo em que lhe
toquei, eu soube, mesmo antes de ele se virar.
Era o Hayes.
Ele parou tão abruptamente que eu ainda estava em movimento, e
cambaleei contra o seu peito, a minha cabeça a bater-lhe no ombro e o meu
pé direito a pisar com força o seu sapato.
– Au – resmungou, dando um passo atrás, a sua mão no meu cotovelo. –
Minha senhora, está b… Oh, meu Deus.
Ele inclinou a cabeça para conseguir ver o meu rosto sob o chapéu.
– Franny?
– Deixaste cair algum dinheiro. – Foram as primeiras palavras que saíram
da minha boca quando abri a mão.
– O que estás a fazer aqui? – perguntou ele incrédulo.
– Eu vi-te na TV – expliquei, como se fosse a coisa mais óbvia do
mundo. – Fui ao Rockefeller Center para ir ter contigo.
– Mas estamos na Grand Central – disse ele, as suas sobrancelhas ainda
interrogativas, rosto perplexo.
– Eu sei. Não consegui encontrar-te, por isso agora ia a caminho de casa.
Mas aqui estás tu. – Ficámos ali durante um segundo, ainda. – Espera –
disse eu, apercebendo-me de algo. – Senhora? Eu pareço assim tão velha?
Ele riu-se, como se não conseguisse acreditar no que eu estava a dizer.
– Eu estava a tentar ser educado, tu assustaste-me.
– Como é que achas que me sinto? Eu estava tranquilamente a comer
quando surgiste na TV na loja de bagels!
Foi então que percebi que a sua mão ainda estava no meu braço, e
aproximei-me dele, desesperada por poder respirá-lo.
– Franny – disse ele, segurando o meu rosto com a mão livre. – Queres
voltar e acabar de comer o teu bagel ?
A boca dele mudou para um sorriso brincalhão, e eu bati-lhe no ombro e
depois deixei a minha mão mover-se lentamente pelo seu peito.
– Não, seu idiota. Eu só quero estar aqui, contigo.
Ele sorriu, e depois os seus longos braços envolveram-me, pressionando-
me contra ele, quente e firme, o seu queixo a descansar em cima da minha
cabeça. Estendi os braços à sua volta e abracei-o.
– Gosto do teu casaco – murmurei no seu peito. – Gucci? – brinquei.
– Não, algo novo. Birch and Fole.
Não reconheci o nome.
– O que é isso? – perguntei, afastando-me para olhar para ele.
– Uma empresa de roupas sustentável e inclusiva de género com foco em
práticas éticas – disse ele, beijando o topo da minha cabeça. – Achei fixe.
– Uau, eu nunca pensei que veria o dia em que não vestisses um fato de
marca por medida.
– Bem, eu conheci uma mulher – a voz do Hayes era suave e baixa – e
estou a tentar impressioná-la.
– Aposto que ela gosta de ti, independentemente do que vestes – disse eu,
inclinando a cabeça para sorrir para ele.
– Bem, isso é bom, porque ela vai sair muito com ele, e ele gosta
principalmente de usar camisolas velhas da faculdade.
– E se ela gostar mais dele quando está nu? – questionei, gostando deste
jogo que estávamos a jogar.
– Eu acho que eles podem arranjar uma solução – respondeu ele com um
aceno da cabeça.
– Boa – disse eu.
Estendi a mão para o seu rosto e esfreguei o meu polegar na sua barba
macia. Ele inclinou-se e beijou-me suavemente, deixando os dentes roçarem
a borda dos meus lábios.
– Hayes – murmurei enquanto me preparava para lhe beijar o rosto, e
depois o pescoço.
– Sim? – Ele deslizou os braços em volta da minha cintura.
Eu afastei-me e olhei para ele.
– Eu amo-te.
– Eu também te amo, Franny.
– O que fazemos agora? – perguntei.
– Eu não tenho nenhum plano – disse ele, alcançando a minha mão, e
apertando-a. – Ias para Brooklyn? – perguntou, os seus olhos a estudarem-
me.
Eu assenti com a cabeça.
– Vens comigo? – disse eu. – É estranho perguntar isso?
Ele abanou a cabeça, o seu rosto tão sério que derreteu o meu coração.
– Não é nada estranho.
Descemos os degraus até ao metro, passámos os nossos MetroCard pelo
torniquete.
– Um idoso muito querido deu-me o seu MetroCard esta manhã para que
eu pudesse vir ter contigo – exclamei enquanto o guardava de volta no
bolso. – Talvez seja o meu amuleto da sorte.
A plataforma estava em silêncio, a correria do fim de semana ainda estava
para acontecer. Perto dali algumas pessoas circulavam, perscrutando os
carris à espera do metro. Ao longe, um saxofone gemeu. Era Nova Iorque
na sua forma mais pura, despretensiosa, pacífica e bem desperta.
– Eu reproduzi o momento em que nos encontrámos tantas vezes – disse
ele, o seu polegar a desenhar pequenos círculos no topo da minha mão. –
Teria agido de forma diferente se pudesse voltar e fazer tudo de novo.
– Tipo, como? – perguntei, genuinamente curiosa.
– Ter-me-ia apresentado, para começar – disse ele. – Achei-te tão bonita.
– Eu achei-te – encolhi os ombros, fiz uma cara de tédio – apenas OK.
Mas pus-te a alcunha de Sexy de Fato.
Ele riu-se e puxou-me para perto dele, beliscando o meu pescoço na
brincadeira.
– Tive tantas saudades tuas – disse ele, os lábios pressionando a minha
pele.
– Eu sei que já te disse ontem à noite – respondi –, mas vou dizer de
novo: desculpa por me ter afastado e desculpa por ter deixado de falar
contigo.
Ele inclinou-se para trás e levou a mão ao meu queixo, inclinando a
minha cabeça para que os nossos olhos se encontrassem.
– Mas não deixaste. Encontrei o teu bilhete no meu bolso, depois de as
coisas terminarem entre nós. Era exatamente o que eu precisava de ouvir de
ti, no momento exato.
O metro do centro da cidade interrompeu-nos, passando a rugir até parar.
Juntos, passámos as portas e sentámo-nos. A carruagem estava praticamente
vazia.
– Penso em ti sempre que entro no metro. O dia em que nos conhecemos.
E tudo o que aconteceu depois. – Ele passou o braço em volta do meu
ombro, e eu encostei-me a ele, tão forte e quente.
– Vamos fazer isso outra vez – disse eu, sorrindo com a ideia a
desabrochar na minha cabeça.
– O que queres dizer? – Ele fez um olhar cético, um que eu aprendi a
conhecer e a amar. Era o olhar que ele fazia quando o seu cérebro estava a
trabalhar, a analisar, a procurar uma lógica. Era um olhar tão característico
do Hayes que o meu coração doía de amor por ele, por ser exatamente e
perfeitamente igual a si mesmo.
– Conhecer-nos. – Passei a mão pela sua coxa, apertando-a. – Vamos
fazer as coisas como deve ser desta vez.
O Hayes riu-se enquanto passava a mão pelo cabelo.
– OK.
– Franny Doyle – disse eu. Estendi a mão e o Hayes apertou-a. – Acabei
de ser demitida, estou-me a passar, e acho que é muito bonito, mesmo que
não consiga admitir isso durante algum tempo.
– Hayes Montgomery III. Embora eu deixe de lado o «III», porque é
pretensioso e embaraçoso. Acho-a encantadora e linda, o que também me
irrita, porque gosto de estar no controlo das minhas emoções e de tudo o
resto.
– Prazer em conhecê-lo. – Mantivemos as mãos unidas, embora
tivéssemos parado de as agitar. – Devíamos sair juntos um dia destes. O que
faz na próxima semana?
O Hayes fez uma pausa, o seu sorriso a diminuir ligeiramente.
– Na verdade – ele susteve o seu olhar no meu –, eu estava a pensar em ir
a Itália.
– Espera, o quê?
– Lembras-te do leilão silencioso, no Museu de História Natural? As
férias em Itália de que não tiravas os olhos?
– Licitaste? – perguntei.
Ele assentiu.
– E ganhei – afirmou ele, e depois virou-se para olhar para mim. – Quero
dizer, tecnicamente, nós ganhámos.
Eu fiz um olhar inquiridor.
– O que queres dizer?
– Eu tinha planeado oferecer-te – explicou ele, esfregando o polegar ao
longo da minha palma, a sua mão ainda na minha. – Mas quando nós…
quando deixámos de nos falar, parecia absurdo despejar uma coisa destas
para cima de ti. Mas… – Ele olhou para mim, hesitante. – Mas podíamos ir
quando quisesses.
Eu fiquei apenas a olhar para ele, a boca entreaberta num sorriso
perplexo.
– Tens de saber – disse ele, passando a outra mão sobre a minha coxa –
que no fundo eu sou pateticamente romântico e piegas, certo?
– Eu realmente gosto disso em ti – exclamei, e dei-lhe um pequeno beijo
no queixo.
– De qualquer forma, os bilhetes são teus, e podes fazer o que quiseres
com eles, é claro. Mas disseste-me quando nos conhecemos que me devias
uma. Talvez eu possa finalmente cobrar isso.
– Acho que podemos dar um jeito – provoquei. – Mas preciso de te
avisar, que vou adormecer no teu ombro no avião. E eu babo-me.
– Não te preocupes – disse ele, com aquele sorriso juvenil que fazia o
meu corpo inteiro vibrar. – Eu já sei isso sobre ti, e não me importo. Gosto
de ti na mesma.
Ele ergueu a mão e virou o meu chapéu para trás.
– Estás linda com isto – disse ele, batendo na pala antes de se inclinar
para me beijar, os seus lábios macios e urgentes. – Também queria fazer isto
da primeira vez que nos encontrámos.
As portas do metro abriram-se na paragem seguinte, e olhámos os dois
para cima. Não estávamos a ir em direção a Brooklyn. No nosso torpor,
devemos ter ido para a plataforma errada. Estávamos num metro em direção
à zona residencial.
– Franny – disse ele, apontando para a placa da estação enquanto as
portas se fechavam –, este não é o metro certo. Estamos a ir na direção
errada.
Eu ri-me e olhei para ele, pegando-lhe na mão e levando-a aos meus
lábios para um beijo.
– Bem, vamos lá, então – disse eu. – E vejamos aonde nos leva.
AGRADECIMENTOS