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Ficha Técnica

Título: Nova Iorque Num Minuto


Título original: In a New York Minute
Autor: Kate Spencer
Tradução: Ana David
Revisão: Maria da Graça Samagaio
Capa: Hachette Book Group, Inc.
Adaptação da capa: Filomena Gaspar
Design da capa: Holly Ovenden
Imagem da capa: Ana San José
ISBN: 9789892354378

Edições ASA II, S.A.


uma editora do grupo Leya
Rua Cidade de Córdova, n.º 2
2610-038 Alfragide – Portugal
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Fax. (+351) 21 427 22 01

© 2022, Kate Spencer


© 2022, Edições ASA II, S.A.
Publicado por acordo com a autora, representada por
Baror International, Inc., Armonk, Nova Iorque, EUA.
Todos os direitos reservados de acordo com a legislação em vigor.
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Índice

Capa
Ficha Técnica
Capítulo Um - FRANNY
Capítulo Dois - HAYES
Capítulo Três - FRANNY
Capítulo Quatro - HAYES
Capítulo Cinco - FRANNY
Capítulo Seis - HAYES
Capítulo Sete - FRANNY
Capítulo Oito - HAYES
Capítulo Nove - FRANNY
Capítulo Dez - HAYES
Capítulo Onze - FRANNY
Capítulo Doze - HAYES
Capítulo Treze - FRANNY
Capítulo Catorze - HAYES
Capítulo Quinze - FRANNY
Capítulo Dezasseis - HAYES
Capítulo Dezassete - FRANNY
Capítulo Dezoito - HAYES
Capítulo Dezanove - FRANNY
Capítulo Vinte - HAYES
Capítulo Vinte e Um - FRANNY
Capítulo Vinte e Dois - HAYES
Capítulo Vinte e Três - FRANNY
Capítulo Vinte e Quatro - HAYES
Capítulo Vinte e Cinco - FRANNY
Capítulo Vinte e Seis - HAYES
Capítulo Vinte e Sete - FRANNY
Capítulo Vinte e Oito - HAYES
Capítulo Vinte e Nove - FRANNY
Agradecimentos
Kate Spencer

NOVA IORQUE
NUM MINUTO

Tradução
Ana David
Para o Anthony, que compõe metade da minha
história de amor em Nova Iorque. E para a Teresa
e a Sarah, que compõem a outra.
CAPÍTULO UM
FRANNY

N inguém planeia começar o dia a ser despedido.


Ninguém bebe a sua primeira gota de café e pensa, Hoje é o dia em
que depois de passar os meus quinze minutos a verificar os e-mails da
manhã e a redigir uma resposta para aquela cliente chata, a Melinda, vou
receber uma notificação no Slack a dizer-me para ir à sala de conferências
principal para uma «conversa importante».
Ninguém imagina que a startup de design de interiores super bem-
sucedida para a qual trabalha – aquela que fez uma repentina contratação
em massa há quatro anos, que mantém os frigoríficos cheios de sumos
orgânicos prensados a frio, que tem pufes em todas as salas de conferência,
e organiza happy hours semanais no terraço – ia dispensar metade dos seus
funcionários no espaço de quarenta e cinco minutos.
Ninguém se atreve a sequer considerar que o dinheiro dos investidores de
risco que entrara, fundos ilimitados que incutiram uma sensação exagerada
de possibilidades e segurança e permitira que o fundador de vinte e seis
anos aumentasse a equipa de vinte e sete para setenta e quatro pessoas no
espaço de um ano (e comprasse um Maserati vermelho-cereja pelo
caminho), seria mal gerido pela equipa de topo, e desaparecesse por
completo, sem mais nem menos.
Ou pelo menos, eu não.
Na verdade, parecia impossível que as mesmas pessoas que outrora me
tinham falado com entusiasmo sobre o seu critério de quatro semanas de
férias para todos os funcionários, mesmo para os principiantes, estariam um
dia sentados à minha frente em cadeiras modernas multicoloridas de
meados do século (que, para ser sincera, eu nunca escolheria para um
cliente), com copos gigantes da Starbucks diante de mim, a proferir estas
palavras:
– Lamentamos muito, Franny. Valorizamos muito todas as tuas
contribuições para a Spayce. Mas precisamos de consolidar a equipa digital
e de design. Até no marketing vamos cortar. Isto é apenas parte do trabalho
de uma start-up. Sabes como é. Crescemos demasiado depressa e agora
precisamos de reduzir a nossa dimensão.
Eu devia saber que quando se trabalha para uma empresa que promete
«destabilizar» as coisas, podem estar a referir-se à tua vida.
A promoção que me prometeram estar mesmo ao virar da esquina – há
mais de um ano – nunca chegou. Em vez disso, tinha sido demitida sem
cerimónias, tudo isto antes das 10h00. Senti-me como se tivesse sido
abandonada por alguém que pensei estar prestes a ajoelhar-se e a pedir-me
em casamento.
Voltei para a enorme mesa de trabalho branca e brilhante que partilhava
com outros seis designers júnior, em choque, as lágrimas a picar os cantos
dos meus olhos. O aperto espalhou-se pelo meu peito, o pânico instalou-se
no meu corpo. De repente, o meu cérebro era uma lista de números e
tópicos, a passar num ecrã na minha cabeça.
Empréstimos estudantis.
Conta telefónica.
Comida.
Aqueles Vans Checkerboard personalizados nos quais gastara mais de
cem dólares numa madrugada na semana passada, enquanto fazia terapia
de compras.
Renda.
O meu apartamento era «acessível» segundo os padrões de Nova Iorque,
mas tendo em conta o meu salário ainda representava um sacrifício, uma
despesa que eu justificava com o facto de gostar tanto do espaço.
Minúsculo, sim, e ocasionalmente visitado por uma ou duas baratas. Mas
era todo meu.
E, obviamente, tinha planeado abater parte da minha dívida do cartão de
crédito e pagar a viagem que fiz a Miami há três anos, onde pedi uma
garrafa de vinho de trezentos dólares ao jantar, por acidente, e fiquei com
demasiada vergonha para dizer ao empregado de mesa que me tinha
enganado.
Havia colocado todas as minhas esperanças e sonhos para este ano no
vision board que fiz juntamente com as minhas duas melhores amigas, a
Cleo e a Lola, e um monte de bagels da Russ & Daughters, numa manhã de
domingo em janeiro. Uma promoção no trabalho, liberdade financeira, uma
bolsa vintage preta Chanel feita de pele suave e macia com uma alça de
corrente dourada. Ficar desempregada definitivamente não era um desses
sonhos. E ainda não tinha aquela bolsa Chanel. Pelo menos agora podia
afirmar com toda a certeza que os vision boards são uma treta completa.
Doug, o chefe de TI, rondara a nossa mesa coletiva com uma expressão
estranha, enquanto desconectava os nossos computadores com alguns
rápidos cliques. A Melinda nunca iria receber uma resposta minha acerca
do sofá de veludo vermelho brilhante que procurei para a sua sala de estar
em Austin. O facto de ela ir ficar irritada à espera da minha resposta era o
único ponto positivo que consegui encontrar neste dia horrível.
No centro do escritório encontrava-se agora um monte de caixas de
cartão, espalhadas em cima dos sofás rosa-choque, que serviam como
espaço para as reuniões matinais da nossa equipa de design. Ramona, a
minha colega calma, introvertida e brilhante que aos fins de semana fazia
esculturas em papel machê em tamanho real, no seu estúdio de arte em
Queens, estava à minha frente, a choramingar enquanto colocava algumas
das coisas da sua secretária dentro de uma caixa.
– Ramona – disse-lhe, quando os nossos olhares se cruzaram. – Lamento
imenso.
Ela enxugou os olhos à parte de trás da sua manga e sorriu entre lágrimas.
– Ainda não disse a ninguém, mas estou grávida.
Fiquei boquiaberta.
– Meu Deus.
Ela assentiu com a cabeça.
– E o Chris… – Ela emocionou-se novamente ao dizer o nome do
namorado. – Acabou de se demitir do trabalho para poder frequentar a
escola culinária a tempo inteiro. Estamos tão lixados.
O meu estômago contorceu-se, com aquela sensação de estar prestes a
vomitar ao pensar em como é que eles iam conseguir comprar tudo o que é
necessário para um bebé.
– Isto é tão lixado – disse eu. – O meu empréstimo de estudante já é um
pesadelo. Não sei como é que vou conseguir pagá-lo agora.
As conversas à nossa volta eram murmuradas ou sussurradas, mas o
pânico era palpável. A maioria do pessoal do escritório tinha menos de
trinta anos, e agora quase metade de nós estava desempregado, enviados
para a selva do mercado de trabalho nova-iorquino, com uma qualquer
indemnização que nos fosse dada. Passei quatro anos a trabalhar numa
empresa que talvez nem sempre me tivesse estimulado criativamente, mas
que pagava bem, e os meus colegas eram divertidos e de fácil convivência
durante nove horas por dia.
E agora, tal como eu, viram-se reduzidos a enfiar o que restava do tempo
que passaram na Spayce dentro de uma caixa de cartão de quarenta
centímetros. Um prémio de cristal em forma de cubo para Melhor Start-Up
de Design Digital. Uma estatueta de uma pequena tartaruga verde que o
meu colega Raphael me trouxe quando regressou do México. A fotografia
emoldurada de Keanu Reeves que alguém tinha deixado na minha mesa
como uma piada do dia das mentiras. A garrafa de água de aço inoxidável
da marca que todos na empresa tinham recebido no passado Dia da Terra.
Os últimos quatro anos da minha vida, empacotados em dez minutos,
prontos para serem transportados no metro para casa.
Com a minha mala vintage com brilhantes num ombro e o meu saco de
pano da Spayce que ainda continha o meu almoço de restos de massa no
outro, agarrei na caixa, murmurei algumas despedidas em silêncio, e dirigi-
me para o elevador, onde pressionei o botão de chamada azul-néon com o
joelho.
Estávamos a meio de uma onda de calor em Nova Iorque, um daqueles
períodos estranhíssimos em que a temperatura sobe de quinze para trinta e
dois graus em pleno mês de maio. Às 7h30, apenas há algumas horas, um
vestido esvoaçante de seda azul-esverdeada de manga cava (a minha melhor
amiga Cleo chama-lhe o meu «vestido de folhos jeitoso») combinado com
botas Converse pretas, pareceu-me uma escolha de roupa perfeitamente
razoável.
Mas arfar ao longo de três quarteirões através da Times Square enquanto
carregava toda esta porcaria transformou-me num emaranhado de sacos e
roupas, axilas húmidas e gotas de suor agarradas aos caracóis. E uma bolha
estava a formar-se no meu calcanhar direito.
Depois do que me pareceu uma hora à procura, encontrei o meu
MetroCard e passei-o no grande torniquete de metal na estação. Quando
finalmente consegui descer um lanço de escadas e contornava a parede
humana de pessoas ainda atrasadas para o trabalho, eu estava em ebulição,
uma lástima de nervos. Caminhei em direção ao metro 2/3 que vai para o
centro, sendo saudada com um sinal nas escadas que declarava NÃO HÁ
METRO PARA O CENTRO NESTA ESTAÇÃO DEVIDO A OBRAS.
Tudo o que hoje podia possivelmente correr mal estava a acontecer.
Mudei de direção, resmungando palavrões, e dirigi-me ao metro Q. Este
levava-me pelo menos até Brooklyn, e depois podia ir no 2/3 a partir de
Atlantic, o que ia ser uma treta. Meu Deus, eu só queria chegar a casa.
Enquanto tentava recuperar o fôlego, inspirei o fedor pungente do metro,
libertado no momento em que o ar quente desceu sobre a nossa bela mas
fedorenta cidade.
– Oh, meu Deus – resmunguei, enquanto sustinha a náusea.
E foi aí que ouvi: o guinchar de travões, um sinal de que o meu metro
estava a chegar à plataforma, que estava a um lanço de escadas de distância.
Atrevi-me a respirar pelo nariz – urgh!, tudo cheirava a urina – e saí a
correr, as bugigangas dentro da minha caixa a saltar a cada passo. Cheguei
às escadas e vislumbrei o brilho prateado da carruagem do metro. Ainda
estava na estação.
Ding ding, anunciaram as portas do metro. Qualquer nova-iorquino
conhecia o significado daquele som. Estava na hora de correr.
– Não, não, não! – gritei, e corri para a plataforma mesmo quando as
portas estavam, piedosamente, a abrir novamente. O metro estava
embaciado, mas através das janelas arranhadas, conseguia perceber que
estava a abarrotar – corpos colados uns aos outros. Toda uma barricada
humana por detrás daquelas portas.
– Com licença – suspirei, encaixando-me entre uma senhora idosa com
um carrinho de compras, que se arrastava para o meio da carruagem, e um
homem gigante, alto e magro, vestido de fato.
– Desculpe. Obrigada – disse eu, inclinando-me de lado para caber entre
eles. Não havia forma de me encolher com esta caixa estúpida nos braços.
Mas mesmo assim, estava lá dentro, com poucos centímetros de espaço. E
estava finalmente a caminho de casa para fugir a esta maldita manhã.
À medida que o metro avançava, suspirei de alívio e encostei-me às
portas da carruagem. Com o braço direito a segurar a borda da caixa,
alcancei a minha bolsa com o braço esquerdo, na esperança de agarrar no
telemóvel, para poder enviar uma mensagem à Cleo e à Lola com as minhas
notícias. Mesmo quando os meus dedos roçaram o plástico duro da capa do
meu telemóvel senti um puxão firme atrás de mim.
– Mas que raio? – murmurei, tentando trocar de posição novamente. Mas
não conseguia mexer-me. Era como se algo me tivesse prendido às portas
da carruagem, fixando-me no lugar. Dei um passo em frente, e sem querer
apoiei o meu peso contra uma senhora grávida que estava agarrada a um
corrimão para se equilibrar. Porque é que ninguém lhe ofereceu um lugar?,
pensei enquanto pedia desculpa por ter esbarrado contra ela. O meu cérebro
estava dividido entre preocupar-se com ela e tentar perceber porque é que
não me conseguia mexer, quando, de repente, os meus ouvidos captaram
outra coisa:
O som do meu vestido a rasgar-se nas costas.
O meu ritmo cardíaco aumentou, tocando o seu próprio cântico de Oh,
meu Deus, Oh, meu Deus. O meu vestido – o meu lindo vestido de seda
suave, feito em Brooklyn, que custou uma pequena fortuna esbanjada na
Alter em Williamsburg – tinha ficado preso nas portas do metro e rasgara-se
mesmo pela costura abaixo, desde a parte de trás do meu pescoço até depois
do rabo. O meu «vestido de folhos jeitoso» era agora uma trapalhada
jeitosa.
– Oh, meu Deus – disse eu em voz alta.
Os nova-iorquinos são peritos na arte de não ficarem especados a olhar,
mas se se atrevem a entrar no teu espaço pessoal os seus olhos
transformam-se em lasers que te podem incinerar ao entrar em contacto.
Infelizmente, ninguém perto de mim tinha o seu espaço pessoal a salvo,
enquanto eu tentava freneticamente agarrar na parte de trás do meu vestido
com a mão livre para mantê-lo fechado. Inicialmente, bati com o cotovelo
no braço de alguém, sendo recebida com um «Jesus Cristo» do skater a
quem pertencia o braço.
– Peço desculpa! – Ao dar um passo em frente para me reposicionar, pisei
o pé de alguém.
– Cuidado – sibilou uma mulher, vestida com roupa sofisticada, mas
prática e confortável, enquanto recuava.
– Desculpe! – guinchei novamente. Meu Deus, doíam-me os braços.
Passei a caixa para o meu lado esquerdo e encostei-me o máximo possível
contra a porta, na esperança de poder ganhar algum tempo antes da próxima
paragem. Mas quando agarrei o tecido junto ao rabo para mantê-lo fechado,
o vestido começou a escorregar dos ombros.
Será que é possível rir e chorar ao mesmo tempo? Porque exatamente
quando lágrimas quentes e grandes me picavam o canto dos olhos, soltei
uma gargalhada. Que dia.
– Está bem? – perguntou a mulher grávida, com um olhar genuinamente
preocupado.
– O meu vestido. – Gesticulei em direção às costas. Quando o fiz, a alça
do ombro direito escorregou por completo.
– Oh, não – disse ela, horrorizada.
– Eu sei – respondi, o pânico evidente na oitava da minha voz. – Estou a
ter um dia completamente horrível, e em poucos minutos, quando as portas
se abrirem, vou estar com o rabo à mostra na estação. – Bastava um piscar
de olhos para que as lágrimas começassem a escorrer-me pela cara abaixo.
Tudo de horrível que me tinha acontecido estava a transbordar no lugar
mais público possível.
Antes que a pudesse impedir, a mulher grávida gritou para a multidão de
passageiros:
– Alguém tem um alfinete? – A sua voz era alta o suficiente para alarmar
quase todos os que estavam por perto. – Alfinete de ama? Alguém?
Algumas pessoas olharam para cima e, a seguir, para baixo para os seus
telemóveis. Uma rapariga de camisola com capuz da NYU, o cabelo num
coque gigante na cabeça, olhou para mim com um sorriso simpático. A
mulher idosa começou a vasculhar a sua bolsa gigante.
– Está tudo bem. Eu estou bem – tentei assegurar-lhe, apesar de estar
obviamente mal. Encostei-me contra a porta enquanto avançávamos aos
solavancos em direção à próxima estação.
– Aqui tem, querida! – A mulher mais velha fez-me sinal, e a grávida
estendeu-lhe a mão. – Não é um alfinete, mas pode ser que ajude.
Quando a mulher grávida deu um passo atrás na minha direção, abriu a
palma da mão e revelou um pequeno gancho de cabelo.
– Quer que tente fechar o vestido com isto? – perguntou, com uma
expressão cética no rosto. Mas antes que eu pudesse dizer que não, uma
voz, profunda e calma, ressoou no meio do ruído do metro.
– Tome.
Era o homem gigante de fato ao meu lado, só que agora vestia apenas
uma camisa branca imaculada e uma gravata azul, os seus ombros estavam
mesmo em frente do meu campo de visão. O seu casaco azul-marinho
pendia-lhe cuidadosamente da mão.
– Tome – disse ele novamente, claramente perplexo com a minha
incapacidade de entender o que ele queria exatamente que eu fizesse com o
casaco.
Olhei para cima para o encarar.
Mesmo no meu estado de Oh, meu Deus, a parte de trás do meu vestido
rasgou-se completamente, e estou a usar aquela tanga que tenho e que
nunca uso, porque as tangas são terrivelmente desconfortáveis, mas decidi
não lavar roupa ontem à noite, então aqui estou eu, e como se não
bastasse, acabei de ser despedida do trabalho e ainda tenho pelo menos
mais cinco anos de empréstimos estudantis para pagar, pude reparar que
ele era bonito. O tipo de desconhecido com boa aparência que te faz pensar
Ena quando passas por eles na rua.
Eu soube logo pela forma confiante e segura de si como ele se
comportava – ombros para trás, queixo ligeiramente inclinado para o céu –
e pelo corte oblíquo do seu maxilar e cabelo castanho grosso, que este era
um homem que nunca conhecera uma fase estranha. Enquanto todos nós
estávamos no 7.º ano a andar por aí com borbulhas infetadas e aparelhos
nos dentes (tive de dormir com um capacete, por amor de Deus), ele
atravessou essa fase sem qualquer dificuldade, todo ele músculos, pele
impecável e sedosa, maçãs do rosto invejáveis e pestanas escuras, desde o
dia que nasceu.
E depois, os seus olhos, severos e sérios, mas grandes e muito bonitos. À
primeira vista, pareciam castanhos, mas após um segundo olhar, percebi que
eram tão escuros que quase combinavam com o azul-marinho do seu fato.
Tinha o corpo de um corredor ou de um ciclista ou – dei-me conta – de um
triatleta. Conseguia imaginá-lo agora num daqueles fatos de corrida
apertados, os músculos a pulsar contra a licra, não se importando com o
facto de toda a gente no mundo poder ver todos os ângulos e curvas do seu
corpo perfeitamente esculpido.
– Por favor. – A voz dele cambiava entre o tom preocupado e irritado, e
uma ligeira ruga na testa enfatizava-o. – Tome. – Até as suas sobrancelhas
eram perfeitas, bem arranjadas, embora ele parecesse demasiado cool para
as depilar com cera.
– O quê? – perguntei, com a voz tremida. – Quer que fique com o seu
casaco?
Ele assentiu e fez um ligeiro sorriso.
– Sim.
E depois pestanejou, mantendo os olhos fechados um segundo a mais,
exibindo aquelas pestanas, do tipo que as mulheres reverenciavam, tanto
com inveja como com admiração.
– Tenho mais cinco iguais a este em casa. – Ele disse isto com firmeza,
como se fosse uma coisa óbvia. – Precisa mais dele do que eu.
Mais cinco? Se eu não estivesse seminua no metro a viver o meu pior
pesadelo, faria alguma piada acerca de vender o casaco chique dele para
pagar a renda. Mas, em vez disso, cerrei os lábios, que tinha pintado com
batom duradouro vermelho-brilhante umas horas antes. Foi uma tentativa
de aliviar o aperto que sentia na garganta, mas não surtiu efeito. Esta manhã
miserável estava a escoar de mim em soluços violentos.
– Isso é muito simpático da sua parte. Obrigada. – Funguei, agora estava
com o nariz entupido. Santo Deus, porque é que o ranho tem de fazer parte
do choro? Eu já parecia uma preguiça recém-nascida sempre que chorava, e
o nariz a pingar só piorava a situação. – Mas não posso aceitar. O seu
casaco. Como é que eu faria. Para devolvê-lo? – A minha respiração estava
instável, e as palavras saíam engasgadas.
Antes que ele pudesse responder, o metro deu um solavanco, eu tropecei,
e o meu braço esquerdo ergueu-se instintivamente para me impedir de cair.
Estendi-o para me agarrar a um corrimão, mas não havia nenhum e em vez
disso caí de cara contra ele, a minha bochecha esquerda esmagada contra o
seu peito, quente e firme. O braço que eu tinha estendido para agarrar o
corrimão deslizou antes para o lado do seu corpo e coloquei-o à volta dele,
só para ter algo a que me agarrar, os meus dedos agarravam-se à camisa
dele como a um volante. O solavanco fez com que o meu vestido se agitasse
atrás de mim. Ele deu um passo atrás para se equilibrar, e a mão dele
pousou no meu rabo, onde o meu vestido estava rasgado, os seus dedos
firmes na minha pele.
– Oh, meu Deus, peço imensa desculpa – ouvi-o dizer de algum lado.
Algo sobre a pressão suave da mão dele, quente e breve na minha pele nua,
era tanto eletrizante como reconfortante, tudo ao mesmo tempo. Estivemos
assim pelo que pareceram minutos: dois desconhecidos abraçados
desajeitadamente, a minha bochecha ainda encostada ao peito dele, tão
perto que se prestasse atenção provavelmente ouviria o bater do seu
coração.
– Não faz mal – balbuciei eu no alívio fresco da sua camisa.
Ele retirou a mão e colocou-a no teto da carruagem do metro.
– Desculpe – disse ele, dando um pequeno passo atrás, afastando a mão
como se a tivesse queimado. – Foi sem querer. Peço desculpa.
Depois olhou para baixo, primeiro para mim, e depois para a sua camisa,
onde os meus olhos tinham deixado duas manchas molhadas. E mesmo por
baixo delas – meu Deus – estava um vestígio de ranho. De repente, ser
despedida já não parecia a pior coisa que me aconteceu hoje.
Afastei-me dele e a mulher grávida olhou-me de forma compreensiva
quando choquei contra ela acidentalmente. Outra vez.
– Eu aceitava – disse ela, enquanto eu murmurava outro pedido de
desculpas. – A menos que queira isto – apontou para o gancho que tinha na
mão.
A voz do maquinista crepitou no altifalante quando o metro parou
lentamente no túnel.
– Senhoras e senhores, estamos aqui parados enquanto aguardamos que
uma composição saia da estação à nossa frente.
– OK, está bem – Assenti ao desconhecido do metro. – Agradeço imenso.
Ele segurou o casaco à minha frente pela gola, como os homens faziam
nos seus encontros, nos filmes a preto e branco que eu e a minha avó
costumávamos ver. Com cuidado, envolveu os meus ombros, ajeitando-o
ligeiramente para que o meu corpo ficasse aconchegado, a face dele
perigosamente perto de roçar o topo da minha cabeça. Suspirei de alívio,
pois já não estava a mostrar o rabo à cidade inteira. Quando o fiz, senti o
cheiro do perfume dele, persistente na gola. Aparentemente, o pescoço
deste homem cheirava a uma tarde passada com livros antigos empilhados
em prateleiras de madeira enquanto a chuva gelada batia na janela, com
notas de pinheiro picante e de lareira com chamas quentes e brasas
oscilantes. Era inebriante e delicioso, calmo e obscuro.
Alguém me deu um lenço, e eu assoei-me a ele até ficar demasiado
encharcado para ser usado.
– Acabei de ser despedida – choraminguei. – E agora isto. – Gesticulei
com a cabeça, como se conseguisse apontar para o meu vestido com a testa.
– Está a ser uma péssima manhã.
Ele sorriu-me e assentiu com a cabeça, mas não disse nada.
Enfiei o lenço no bolso do seu casaco e reparei num pequeno esgar no
rosto dele.
– Vou mandar limpá-lo na lavandaria e devolvo-lhe o mais rápido que
puder.
Ele abanou a cabeça.
– Não é preciso, a sério. Além disso, acho que precisa mais dele do que
eu.
Eu concordei. Ele tinha razão. Não queria andar de metro até Brooklyn e
depois andar a pé durante doze minutos até ao meu apartamento com as
costas do vestido completamente rasgadas.
– Fico mesmo agradecida – disse eu, e podia sentir os soluços a pairar na
parte de trás da minha garganta, prontos para voltar a qualquer momento.
Cerrei os dentes e respirei, acalmando-me, forçando as lágrimas a voltarem
para dentro. – Isto é pior do que a vez em que fiz xixi nas cuecas de tanto
me rir no exterior do Cherry Tavern e tive de comprar uma camisola em
Saint Marks para pôr em volta da cintura.
– Desculpe, o quê? – Ele parecia genuinamente confuso. – Fez xixi nas
cuecas?
Era um mau hábito, um tique, o que eu tinha. As outras pessoas pelo
menos só roíam as unhas ou mexiam no cabelo. Tento mudar de conversa
com humor.
– Esqueça. De qualquer forma, estou mesmo agradecida. Literalmente
salvou-me a vida.
Mas ele não se riu; mal sorriu. Em vez disso, franziu a testa em resposta,
as maçãs do rosto coradas e brilhantes. A boca formava uma linha reta, e
quando ele desviou o olhar, reparei na ponta da língua a percorrer o lábio
inferior.
Meu Deus, quem me dera que a Cleo e a Lola estivessem aqui para
testemunhar isto. Despedida. Humilhada no meio da carruagem inteira.
Nádegas nuas à frente do mundo. Para rematar, um homem lindo veio em
meu socorro – um homem lindo que claramente não ficou impressionado
com a minha capacidade de rasgar uma peça de roupa inteira sem sequer
usar as mãos.
Um dia, isto daria uma história incrível, narrada entre gargalhadas e
canecas de cerveja. O tipo de história que vale uma declaração de «Isto vai
fazer parte do meu brinde de casamento para ti», que é o maior elogio que
podemos fazer aos momentos embaraçosos que partilhávamos juntas. Eu
tinha literalmente acabado de perder o meu emprego e a minha roupa, e a
minha dignidade não estava muito longe disso.
Pensar nas minhas amigas acalmou-me, e a minha respiração estabilizou
um pouco. Inspira, expira. A carruagem deu um solavanco para a frente
novamente e seguiu para a estação de Canal Street, no coração de
Manhattan. Concentrei-me na Cleo e na Lola e imaginei o nome que
iríamos dar a este tipo quando lhes contasse a história. Sexy de Fato. Ele era
definitivamente Sexy de Fato. Talvez não fosse a melhor expressão.
Certamente, não era muito original. Mas ia direto ao assunto e era fácil de
memorizar. Ele era sexy e usava fato. Assunto encerrado.
Olhei para trás na direção dele, para o homem anteriormente conhecido
como Desconhecido do Metro, enquanto se inclinava para pegar numa pasta
de couro que tinha colocado entre os pés. Era em couro castanho, liso e
polido, mas parecia vintage. Muito apreciada, até. Nunca tinha conhecido
ninguém com menos de sessenta anos que andasse a passear o raio de uma
pasta, mas pensando bem, eu não costumava andar com homens que
vestissem fatos para ir trabalhar.
Quando o metro parou e as portas se abriram, o Sexy de Fato acenou-me
de forma educada.
– Bem, boa sorte – disse ele – Com tudo.
Fiquei tão atordoada com toda a experiência que demorei um pouco a
perceber que ele ia sair.
– Ei! – gritei quando ele já estava na plataforma. Ele virou a cabeça na
minha direção, e os nossos olhos voltaram a encontrar-se. – Obrigada! A
sério. Fico a dever-te uma! – Ele abanou a cabeça e acenou-me
ligeiramente, um pequeno adeus de um desconhecido que apareceu e me
salvou, a mim e ao meu rabo, sem sequer pestanejar.
– Desculpa por ter chorado na tua camisa! – gritei de novo, mas ele nem
se virou. E então, o Sexy de Fato desapareceu, engolido pela multidão que
se empurrava para fora da carruagem.
*

De volta à segurança do meu pequeno apartamento em Brooklyn, pousei


a caixa na bancada da cozinha e larguei a mala e o saco no chão, antes de
tirar o casaco do Sexy de Fato dos ombros. Segurei-o em frente a mim,
examinando-o com ceticismo. Não tinha encontrado nada nos bolsos além
do meu lenço amachucado (sim, eu verifiquei a caminho de casa), e
parecia-me ou novinho em folha ou impecavelmente cuidado. O meu dedo
tocou a ponta de uma etiqueta costurada ao longo da gola. Gucci. Uau. Esta
era agora oficialmente a melhor peça de roupa que eu possuía.
Pendurei-o num cabide dentro do armário, despi o meu vestido agora
arruinado e deixei-me cair em cima da cama. Estava dolorosamente
exausta. Estou a ter o pior dia da minha vida, escrevi, numa mensagem para
as minhas amigas. Tragam bagels pf.
A Lola respondeu imediatamente. Já vou, reunião, mando mensagem
assim que conseguir. Sabia que isto significava que podia não ouvir nada
dela durante horas. Quando o teu trabalho é publicar na Internet as últimas
novidades de celebridades, escrever sobre o último divórcio ou escândalo
acaba por ser mais importante do que responder às mensagens das tuas
amigas. Mas a Lola é leal; mesmo que não consiga responder na hora,
nunca deixa de aparecer quando preciso da sua presença.
Um minuto depois, o meu telemóvel tocou. Clico no botão verde e o rosto
da Cleo apareceu, ligeiramente escondido por detrás de um copo gigante de
café erguido nos seus lábios.
– Estás bem? – perguntou ela enquanto bebia um gole.
– Não vais acreditar no que me aconteceu hoje de manhã – disse eu, antes
de a cumprimentar, indo direta ao assunto. – A Spayce despediu-me.
– Que chatice, Fran. Isso é horrível! – Arregalou os olhos por detrás dos
seus óculos vintage modelo olho de gato em armação de tartaruga que eu a
tinha ajudado a escolher na Fabulous Fanny’s em East Village, há umas
semanas.
– Pensava que estavas prestes a ser promovida.
– Pois, também eu. Mas calma, essa nem é a pior parte. Quando estava no
metro a caminho de casa o meu vestido rasgou-se completamente. Metade
de Manhattan viu o meu rabo.
– O quê?! – A Cleo fez uma careta, franzindo o nariz, horrorizada. –
Espera. Calma, estou quase no escritório. – Vi os ângulos no meu ecrã
mudarem enquanto ela equilibrava o telemóvel e o copo de café para fechar
a porta atrás de si. – OK – disse, enquanto o seu rosto voltava a estar
visível. – Agora já ninguém vai ouvir-te falar sobre o teu rabo.
A Cleo colocou um fio do seu cabelo preto liso atrás da orelha, o que só
fez o seu corte bob invertido parecer ainda mais chique. Ela era advogada
na Legal Aid Society e também trabalhava como professora adjunta em
Fordham. A Lola e eu gostávamos de a provocar, dizendo que todos os seus
alunos estavam obviamente apaixonados por ela, mas ela ignorava-nos
sempre, dirigindo-nos apenas um olhar assassino. Isso não impediu a Lola
de lhe fazer uma serenata com Hot for Teacher na nossa última noite de
karaoke no Winnie’s, há alguns meses.
– Não me mates – disse ela, recolocando os óculos que lhe escorregavam
do nariz –, mas tenho, tipo, apenas cinco minutos até começar um
seminário. Portanto, conta-me a versão rápida, e eu vou para aí assim que
conseguir.
Contei-lhe a história da minha viagem de metro, a caixa estúpida do
trabalho, a senhora grávida sem lugar, as minhas axilas suadas, e, é claro,
ele.
– Uau – disse a Cleo. – Sabes o que eu penso sobre a estupidez que é o
cavalheirismo.
Eu efetivamente sabia o que ela pensava.
– E tenho a certeza de que ficarias perfeitamente bem sem a ajuda dele –
continuou ela.
Assenti com a cabeça.
– Mas – acrescentou –, há qualquer coisa nisto que é muito sensual.
Quero dizer, quem é que desvia os olhos do telemóvel quando está no metro
sequer? Quanto mais ir em socorro de alguém?
– E dar-me isto – acrescentei – É Gucci.
A Cleo assobiou.
– Céus – disse ela, prolongando a palavra para criar efeito.
– Pois. Talvez o casaco seja um amuleto de má sorte e ele esteja a usar-
me para se livrar dele – brinquei, enquanto cobria o corpo com o edredão.
– Bem, o que quer que seja, deves poder vendê-lo na Poshmark por uma
pequena fortuna.
– Vou ter de o fazer quando a minha indemnização acabar. Só tenho oito
semanas.
– Pensaremos numa solução. – Podia ouvir o cérebro da Cleo a trabalhar
do outro lado da linha – E olha, Fran, talvez seja melhor assim, já estavas
farta de trabalhar lá há tanto tempo.
– Sim – disse eu. – Mas o que diz sobre mim o facto de ter sido
despedida? Se calhar fui terrível no trabalho durante este tempo todo e não
fazia ideia.
– Franny, os despedimentos acontecem. Tu decoraste o meu apartamento
todo, portanto tenho provas concretas de que és incrível no que fazes.
– Tinhas de dizer isso – afirmei – Tudo o que fiz foi arranjar-te melhores
almofadas. Qualquer um pode fazer isso.
Eu estava a brincar, claro. Mas havia uma voz insegura e familiar na
minha cabeça que se perguntava se não era esta a verdade.
– Além do mais – continuei –, o salário era ótimo. A estabilidade. Os
snacks de graça. O salário.
– Eu sei – disse ela. – E não estou a dizer que nada acontece por acaso…
– Estás sim! – interrompi-a. A Cleo tem cérebro de advogada, mas o
coração é o de quem acredita na magia do mundo à nossa volta, das coisas
que não conseguimos ver. Os vision boards foram ideia dela.
– Ouve, o que estou a tentar dizer é que se calhar ser despedida é uma
dádiva. Acho que te ouvi falar milhares de vezes como estavas farta de
sentir que nunca fazias nada de muito importante na Spayce. Nunca chegar
a visitar as divisões que projetavas, colocar cadeiras no sítio certo, dispor as
coisas exatamente da forma que querias.
A Cleo tinha razão. Eu queixei-me disto. Muitas vezes.
– Tu percebes o que quero dizer – continuou ela. – Agora podes perder a
cabeça e fazer as coisas à tua maneira.
– Agora estás só a citar Laverne e Shirley – disse eu. Já há muito tempo
que tinha afastado do pensamento a fantasia de ter uma carreira definida
nos meus termos, algo que preenchesse tanto a minha alma criativa como a
minha conta bancária. Já me tinha conformado com o facto de que o mundo
laboral seria sempre apenas isto, o meu caminho para a sobrevivência, um
meio para um fim. Tinha sido assim para a minha mãe e para o Jim, o meu
padrasto, e eles eram bastante felizes. Não havia vergonha em trabalhar só
por trabalhar e fazer o que se ama em paralelo. Ou, pelo menos, foi isso que
disse a mim mesma para justificar a minha escolha de carreira até ao
momento.
A Cleo riu-se ao telemóvel.
– Vais tornar os teus sonhos em realidade – cantarolou ela. E depois,
despedindo-se rapidamente, desligou, e deixou-me a recordar os sonhos que
me fizeram vir viver para Nova Iorque em primeiro lugar, perguntando a
mim mesma se tinha mesmo alguma coisa para mostrar.
*

Há uma lista interminável de coisas que alguém pode fazer depois de


ficar desempregada: dar um soco numa parede, meditar, procurar emprego,
embebedar-se. Eu adormeci. Nem sequer estava de forma consciente a
tentar adormecer, mas nalgum momento entre mensagens e conversas no
WhatsApp com os meus ex-colegas de trabalho igualmente desempregados,
apaguei-me por completo. Duas horas depois, o meu telemóvel acordou-me,
com o ding ding ding das notificações de mensagem, a sacudir-me do sono.
Peguei no telemóvel. Tinha treze mensagens não lidas da Lola, sendo a
mais recente: Fran estás bem? Estou aqui! Deixa-me entrar! Tirei o roupão
desbotado do cabide e corri em direção à porta.
– Olá – disse eu, sem fôlego enquanto abria a porta – Desculpa.
Adormeci.
A Lola, com o seu cabelo louro oxigenado e eyeliner esborratado em toda
a sua glória, empurrou um saco de papel gigante castanho contra mim.
Ainda estava quente ao toque.
– Trouxe bagels – disse ela, num tom sério. Esta era a nossa Lola. Trazia
sempre bagels.
– Lamento muito que tenhas tido um dia tão horrível – disse ela enquanto
tirava os botins pretos e fechava a porta.
– Eu sei. Despedida. – Pousei os bagels no fogão. O meu espaço na
bancada ainda estava ocupado com a caixa das lembranças do trabalho.
– Sim. Isso é chato. Mas o teu vestido, e o tipo no metro – disse,
puxando-me para um abraço.
– A Cleo contou-te? – perguntei, deixando-a abraçar-me com força. – Ele
parecia uma estrela de cinema e eu basicamente assoei-me à camisa dele.
Sou péssima nas primeiras impressões.
– A Cleo? – A Lola afastou-se do nosso abraço, segurando-me a um
braço de distância. – Não falei com ela. Ela ainda está naquele seminário
estúpido de direito ambiental que dura todo o maldito dia.
– Ah, desculpa. Devo ter-me esquecido de que te contei do meu pesadelo
no metro.
– Franny. – Ela olhou para mim de forma peculiar, como que a analisar-
me. – Não leste as minhas mensagens?
O meu cérebro fervilhou enquanto tentava lembrar-me.
– Não sei. Porquê?
Ela revirou os olhos, claramente aborrecida por eu não ter lido as
mensagens dela.
– OK, então hoje no trabalho, temos estado a acompanhar uma story do
Instagram que se está a tornar microviral – disse ela. Ser editora adjunta do
site LookingGlass focado em pop culture significava que ela estava sempre
a «acompanhar» coisas (quem deixou de seguir quem nas redes sociais;
quem pôs um like na fotografia de quem; que estrelas do TikTok é que estão
juntas) e a procurar rumores e fofocas enviados anonimamente para ela via
DM e e-mail – E eu acho que és tu.
– O que é que queres dizer com «achas que sou eu»? – perguntei, a minha
voz a assumir um ligeiro tom de pânico.
– Quer dizer, eu… sei que és tu. Tens aquela mala vintage estranha,
aquela cheia de brilhantes em forma de flores. O teu saco da Spayce
também. Além disso, eu reconheceria essa cara bonita em qualquer lado.
Bem como o teu rabo. – Ela sorriu, para tentar aliviar a tensão. Não
resultou.
– Fotografias?! – Eu estava cem por cento histérica. Já nem sequer era
humana; era um pássaro muito barulhento dentro de um corpo humano.
– Estás tu e um gajo absurdamente sexy com uma gravata azul, que
parece estar a inclinar-se para te apertar o rabo. A cheirar o teu cabelo –
disse ela. – E tu estás, tipo, a abraçá-lo completamente. É classificado como
PG, mas muito escaldante. Alguém publicou tudo com fotografias. E
também o transformou em GIF, o que tenho de admitir que foi genial.
Fiquei perplexa, com um olhar horrorizado, de boca aberta.
Ela continuou.
– Vocês estavam a namoriscar. As tuas mãos estavam por todo o lado, a
esfregar-lhe o peito. E depois ele inclina-se para um abraço, ou talvez um
beijo, não consegui perceber bem. Ele beijou-te?
– O quê? – guinchei eu, correndo para a minha cama para pegar no
telemóvel – O metro parou de repente, e eu caí para cima dele, e ele perdeu
o equilíbrio. Claro que não nos beijámos, Lo. Nem nos esfregámos. Nem
nos abraçámos e esfregámos. Porque é que eu faria uma coisas dessas com
um desconhecido que acabara literalmente de conhecer no metro?
A minha voz era agora um grunhido. Tinha passado de pássaro a puma
num instante.
A Lola ergueu as sobrancelhas e mordeu o lábio inferior.
– Sei lá, por diversão?
Virei-me e acenei-lhe os dois dedos do meio na sua cara.
– Oh, Fran, estou só a brincar. Claro que acredito em ti. – A Lola sentou-
se ao meu lado, na ponta da cama. – Mas também passei uns dez minutos a
olhar para as fotografias de alguém que se parece exatamente contigo a
chorar nos braços de um gajo lindo enquanto ele envolvia os teus ombros
com o seu casaco.
O meu estômago já não se revirava. Estava morto. Martelei os dedos no
telemóvel, os meus dedos estavam a ser demasiado lentos para acompanhar
o que o meu cérebro queria fazer. Encontrei as mensagens dela, dizendo-me
de forma delicada que possivelmente eu estava prestes a tornar-me uma
sensação da Internet, com os screenshots para o provar.
– Merda. – Atirei o telemóvel para o lado. Levantei-me quase de
imediato. Sentei-me outra vez. Não fazia a menor ideia do que fazer com o
meu corpo, para além de correr para a casa de banho e vomitar.
– Uma rapariga publicou tudo nas stories do Instagram dela – disse ela.
– Quero vê-las – exigi.
A Lola franziu os lábios, suspirou e com relutância pegou no meu
telemóvel, desbloqueou-o, e começou a escrever.
– Como é que sabes a minha password ? – perguntei eu.
– Disseste-ma uma vez na faculdade, quando estavas bêbada e querias
que eu te encomendasse uma piza – respondeu ela, como se esta fosse a
razão mais óbvia do mundo. – Se calhar devias mudá-la pelo menos uma
vez por década.
Quando me devolveu o telemóvel, as minhas mãos tremiam. Ali estava
eu, no meu próprio ecrã, num highlight do Instagram intitulado SubwayQTs.
Disse as palavras devagar, em voz alta.
– É isso que vos estão a chamar – disse ela objetivamente. – SubwayQTs.
– O quê?! – Voltei a ficar histérica aos berros.
– QTs, como «cuties», e porque estavam no metro Q – disse ela,
explicando com uma voz excessivamente cuidadosa. – É um trocadilho.
– Lola, eu percebi o raio do trocadilho! – gritei. – Eu só… Não foi isso
que aconteceu. O meu vestido rasgou-se, e este tipo no metro insistiu para
que eu ficasse com o casaco dele, que, já agora, acontece ser Gucci. E ele
estava, tipo, estranhamente indiferente a tudo isto, e eu fiquei sem saber
sequer o nome dele, e ele não o quer de volta, por isso fiquei com o casaco.
– Ahhhh. Bem, isso faz muito mais sentido – disse a Lola com um
sorriso. Ela estava a achar piada.
– O teu sarcasmo não está a ajudar.
Olhei de novo para o telemóvel e cliquei na story. Alguém que tinha
estado perto de nós no metro tinha – oh, meu Deus – tirado uma série de
fotografias minhas, claramente em pânico, suada e lavada em lágrimas.
OMG esta pobrezinha acabou de ficar com o vestido preso na porta do metro
Q, escreveu ela por cima de uma fotografia minha desfocada, de boca
aberta, com uma data de emojis de cara chocada e a chorar.
Fiz scroll para avançar. Procurem sempre por ajudantes, estava escrito
numa fotografia da mulher grávida inclinada sobre mim, enquanto me
oferecia o gancho de cabelo. Um GIF de Mr. Rogers a acenar no canto
superior direito. Credo, isto era humilhante.
Gajo super sexy veio salvar o dia!!!, legendava uma fotografia dele
debruçado sobre mim com o casaco na mão. Noutra, estou a sorrir para ele
no meio de lágrimas – não me lembro de sorrir – e, na verdade, parece que
estamos a ter uma conversa íntima.
– Cum caraças, não foi isto que aconteceu. – Lancei um olhar de pânico à
Lola, e ela instintivamente colocou o braço à minha volta. – Tipo, de todo.
Quer dizer, mais ou menos, mas quero só salientar que não era a minha
intenção tocar no Sexy de Fato. Caí para cima dele porque o metro deu um
solavanco! E ele deu-me o casaco porque o meu vestido se rasgou, o que,
sinceramente, foi um salva-vidas.
– Sexy de Fato? – repetiu a Lola com uma gargalhada.
Cruzei os braços e bufei.
– Ele precisava de uma alcunha. – expliquei eu.
– Está bem – Ela inclinou a cabeça, de forma exagerada. – É um bocado
literal a mais para o meu gosto, mas dou-te um Bom pelo esforço.
Levantei-me e caminhei ao longo da cama, que não era muito mais
pequena do que o meu quarto inteiro. Em termos nova-iorquinos, o meu
apartamento qualificava-se como um júnior de apenas um quarto, uma
forma honrada de se dizer que era um estúdio com um recanto onde se
podia enfiar uma cama de tamanho normal – uma queen, com um
bocadinho de sorte. Eu tinha conseguido meter ali uma queen, com uma
mesa de cabeceira ao lado. Fazer com que a mobília resulte em espaços
minúsculos é o meu superpoder.
– De quem é o Instagram?
– De uma rapariga que anda na NYU. Mas isto está a ser partilhado em
todo o lado. E as stories iam desaparecer, mas ela adicionou-as aos
highlights, e também publicou uma fotografia vossa no feed dela.
Sinceramente, fiquei surpreendida. Quer dizer, o feed, é tipo, sagrado.
A Lola abanou a cabeça, com o seu lado de cromo da área digital em
evidência.
– Eu genuinamente não consigo perceber a forma como esta geração usa
as redes sociais – continuou ela, em reprovação, como se fosse uma avó e
não alguém que tinha e letra de uma música dos One Direction tatuada nas
costas por causa de um jogo de verdade ou consequência feito no ano
passado.
– Podemos contactar a rapariga que publicou isto tudo? – inquiri,
tentando elaborar um plano de ataque para a remoção imediata das
fotografias. – Preciso que isto desapareça.
– É assim, eu já lhe enviei uma DM. Mas basta procurar o hashtag
#SubwayQTs, que aparecem logo todos os posts sobre ti. Estão a ser
partilhados.
– Há um hashtag? – disse eu, com a voz a oscilar algures entre o pânico e
o horror.
– Tu és um hashtag. Isto não é necessariamente uma coisa má. Talvez te
ajude a encontrar um novo emprego? – Ela era agora uma vendedora astuta,
com um discurso de vendas.
– Oh, sim, porque é isso que todos procuram num novo colaborador –
sibilei eu.
– Os influencers fazem montes de dinheiro, Fran. – A voz da Lola ganhou
o tom de uma professora. – Devias ver o que os concorrentes do The
Bachelor fazem só com as contas do Instagram.
Ignorei a sua palestra sobre «Fazer dinheiro com as redes sociais 101».
– Estás bem? – perguntou a Lola, mas eu estava demasiado atordoada
para responder. Cliquei novamente nas fotografias. Havia uma da minha
cara pressionada contra o peito dele. E apesar de ter esbarrado nele de
forma tão desajeitada, na imagem parecia que eu estava deliberadamente a
aconchegar-me a ele, apoiada sobre ele, a sorrir para ele, a desfrutar dele.
Um GIF gigante de um cartoon com olhos de coração piscava no canto
inferior direito do ecrã. PF QUE ISTO SEJA UMA HISTÓRIA DE AMOR NO
METRO!!!!!, gritava a legenda em rosa-choque.
Cliquei outra vez, e ali estava eu com a mão no peito dele, mas agora
estava a contemplá-lo, derretida. Estou a ver 2 pessoas a apaixonarem-se no
metro e estou oficialmente morta, escreveu ela. Na fotografia seguinte, estou
com o casaco vestido ao lado dele, com um coração desenhado à mão sobre
as nossas figuras. #SubwayQTs para sempre, escreveu ela em letras cor-de-
rosa a negrito.
Por último, uma minha a gritar «Obrigada» enquanto ele saía da
carruagem. Tenho a certeza de que trocaram números e vão viver felizes para
sempre, escreveu ela, o fundo da fotografia coberto com um mar de emojis
de corações. E novamente, o hashtag. Meu Deus. Trocar números? Eu
espalhei ranho por cima do tipo, e ele praticamente fugiu do metro para se
afastar de mim. Mas a Lola não estava errada; nas fotografias, parecia que
estávamos muito, muito apaixonados.
Voltei a clicar e vi uma série de screenshots de mensagens que a rapariga
da NYU tinha recebido de pessoas que estavam a acompanhar a história.
Vocês adoraram os #SubwayQTs! Escreveu ela triunfantemente. Cliquei no
hashtag, e haviam imensas pessoas a partilhar a história, comentando sobre
o #SubwayQTs com emojis de corações, emojis com cara de choro, e até um
emoji de beringela. Quer dizer, claro que ele era alto, mas por favor.
Quando me fartei, cliquei de novo na conta da rapariga, que tinha sido
atualizada enquanto eu pesquisava o hashtag. A última imagem era agora
um ecrã preto com OMG O NY POST ACABOU DE ME LIGAR PARA FALAR
SOBRE O SUBWAYQTSSSSS!!!!!!!!!! Escrito num texto gigante a vermelho.
A hora indicava que tinha sido publicado há três minutos.
– Urgh!, o The Post – resmungou a Lola enquanto espreitava por cima do
meu ombro – Eles adoram coisas deste género.
Assim que ela falou, o meu telemóvel tocou.
– Deixa ir para o voice mail – aconselhou ela, a sua voz sinistra. – E põe o
telemóvel em silêncio.
Porra.
Não demorou muito até me encontrarem. Afinal de contas, tal como toda
a gente da minha idade, tenho deixado migalhas da minha identidade na
Internet desde os meus treze anos. Quando me fartei de ouvir o voice mail
de um repórter do New York Post, abri o meu e-mail, onde encontrei
mensagens da Refinary29, da Cosmopolitan, do BuzzFeed, do Daily Mail e
da Bustle. Foi fácil de identificar, tanto o meu Instagram como o meu
Twitter eram públicos, e ambos tinham a Spayce nas biografias. Alguém
descobriu o meu perfil no LinkedIn e usou a fotografia para confirmar que
eu era, de facto, muito provavelmente uma parte dos SubwayQTs.
O dono do casaco ainda era anónimo. Isto porque, obviamente, ele era um
daqueles tipos «Não estou nas redes sociais», demasiado ocupado a ajudar
pessoas pela cidade fora, um Clark Kent que não se dava ao trabalho de
trocar de fato. No entanto, não se preocupem. Alguém tinha descoberto a
marca e modelo exatos do casaco e tinha metido o link no Instagram, com
toda a informação sobre onde o adquirir.
A Cleo chegou depois da sua aula com duas garrafas de vinho na mão, eu
vesti um fato de treino, e instalámo-nos no meu sofá de veludo azul para
discutir sobre como lidar com a minha recente fama. Enquanto falávamos, o
BuzzFeed publicou «SubwayQTs, a História de Amor Que Não Sabíamos
Que Precisávamos, Mas Sem a Qual Não Podemos Viver». Mudei a minha
conta do Instagram para privada, apaguei a minha página do Twitter já
morta e desativei o Facebook. Abrimos a segunda garrafa de vinho.
– Prometo que tudo isto acabará em breve – disse a Lola de forma
tranquilizadora, sentada no chão do meu minúsculo apartamento nas
gigantes almofadas douradas que se dobravam como cadeiras. – Dentro de
uma semana já ninguém se vai lembrar disto.
Ela estava a usar um dos meus livros de capa dura sobre Arte
Renascentista Italiana como base para um prato de bolachas e queijo. A
minha cabeça estava no colo da Cleo, que me afagava gentilmente o cabelo,
passando os seus dedos ao longo do meu couro cabeludo como se pudesse
massajar a minha infâmia até ela desaparecer.
– É tão humilhante – lamentei, virando-me de costas e pressionando a
palma da mão contra a testa.
– Qual das partes? – perguntou a Cleo.
– Hum, todas? – respondi eu, de forma retórica, como se fosse óbvio.
– Mas a sério, o que é que te está realmente a incomodar? – insistiu ela,
mudando para o modo advogada. – É teres sido despedida, o facto do teu
rabo ter estado totalmente à mostra ou a slow dance com o Sexy de Fato?
– Obviamente o facto de ter sido despedida – respondi honestamente.
Estou sem trabalho, e era praticamente chapa ganha chapa gasta. Estou
lixada. – Eu sei que é só um trabalho, mas sinto que também era uma parte
muito grande da minha identidade. De quem eu sou. E vocês sabem que eu
me debato com estas cenas.
Ao longo dos anos, a Cleo e a Lola ouviram-me enquanto eu lidava com
as dificuldades de não saber muita coisa sobre o meu pai biológico. Ele era
uma identidade indefinida, um tema tenso com a minha mãe, captado numa
fotografia que mantinha na gaveta da mesa de cabeceira. Durante toda a
vida, sempre senti que metade de mim existia nas sombras.
– Para além disso – comecei, e vi a Cleo erguer uma sobrancelha na
direção da Lola –, sim. O Sexy de Fato. Não tem graça ser-se
completamente humilhado em público, muito menos à frente de alguém que
num contexto normal eu estaria a comer com os olhos. Ainda por cima eu
contei-lhe daquela vez em que fiz xixi nas cuecas no exterior do Cherry
Tavern.
A Cleo suspirou. Ela tinha lá estado e viu aquilo acontecer ao vivo.
– Quer dizer, vocês conheceram todos os gajos com quem namorei nos
últimos dez anos. Nenhum deles era do nível atraente «ando com uma
pasta».
– O Nick Artista de Grafíti era atraente – disse a Lola.
– O Nick que emoldurou uma fotografia de si próprio e ma deu como
presente no Dia dos Namorados?
– Ah, sim, esqueci-me dessa parte. – Os lábios da Lola curvaram-se num
riso constrangido.
– E depois houve o Aaron Alpinista – disse a Cleo – Lembras-te que no
apartamento que ele partilhava com o Jasper, a cama dele estava na
cozinha?
A Cleo namorou com o Jasper intermitentemente nos nossos vinte e
poucos anos, e o Aaron Alpinista foi o colega de casa dele durante alguns
meses, até ter regressado ao Colorado para a temporada de ski. A cama dele
estava tão perto do fogão que uma vez umas das almofadas pegou fogo
enquanto ele estava a cozinhar Kraft Macaroni & Cheese. Apesar de tudo,
ele tinha um bom rabo.
– Ele disse-me, com todas as letras, que não queria uma relação exclusiva
enquanto o seu pénis ainda estava dentro de mim.
– Definitivamente que não era atraente ao nível «ando com uma pasta» –
disse a Cleo.
Sentei-me, arrastando-me para trás contra o outro lado do sofá e
aconcheguei os joelhos no meu peito.
– Só gostava de lhe poder agradecer, percebem?
– E pedir-lhe o número – disse a Lola.
Agarrei numa almofada e arremessei-a contra ela em resposta.
Não era a aparência dele que me tinha chamado a atenção. Algo sobre ele
ter-me visto no meu estado mais vulnerável e não me ter virado as costas,
antes pelo contrário, ter-se oferecido para me ajudar, era humilhante e
excitante, ao mesmo tempo. Para o bem e para o mal, ele vira o meu
verdadeiro eu, e algo na sua expressão naquele momento disse-me que o
sabia. E embora o mundo inteiro pudesse agora ver o que tinha acontecido
entre nós, também tinha sido algo que só nós dois partilhámos.
– Lo. – A Cleo interveio na conversa, ao sentir a minha vontade de mudar
de assunto. – Tinha dito à Franny que a íamos ajudar a arranjar um plano de
trabalho. – A única coisa de que a Cleo gostava mais do que de elaborar um
plano era pô-lo em prática.
A Lola endireitou-se, de ouvidos bem atentos. Inclinou-se para a frente
em antecipação.
– O meu plano é comer um pacote gigante de batatas fritas com sal e
vinagre e ver todos os episódios de Lei e Ordem durante uma semana –
disse-lhes eu. – Vou sobreviver com a indemnização, candidatar-me ao
máximo de empregos possível, e com sorte talvez consiga arranjar alguma
coisa.
– Ou podes usar estes quinze segundos de fama a teu favor – disse a Cleo
sem rodeios.
– Simmmm. – A Lola bateu palmas, saltando da cadeira como se fosse
uma criança. – Vá lá, tu sempre quiseste fazer os teus próprios trabalhos de
design. Lembras-te de quando foste contratada pela Spayce? Estavas
convencida de que só ias ficar durante um ano e depois saías e ias trabalhar
por conta própria.
– Exato, ficaste lá tempo a mais – disse a Cleo. E depois, ao perceber que
tinha ultrapassado os limites, murmurou: – Desculpa. Tu percebeste o que
eu quis dizer.
– Era um bom trabalho. – Puxei com os dedos o canto da meia, onde o
algodão estava mais gasto. – Tive sorte. E só fiz, tipo, uns cinco trabalhos
como freelance.
– E todos ficaram incríveis – disse a Cleo com segurança. – Eu estava na
festa de inauguração da casa do Patrick e do James, lembras-te? Estava tudo
perfeito. O James literalmente chorou com aquele papel de parede francês
que escolheste para a casa de banho deles.
– O James estava bêbado – lembrei-a.
Ela ignorou-me.
– Tenho a certeza de que ele te escreveria uma ótima crítica. Fazia
algumas recomendações. Ele conhece, tipo, todos os ricos armados em
artistas da cidade.
– Franny, Franny, Franny – aclamou a Lola, agitando os punhos ao ritmo
das suas palavras. – Fico tão feliz por ti.
– Também eu – disse a Cleo, satisfeita consigo mesma. – Se te ajudarmos
a encontrar alguns clientes, podes pelo menos pensar nisso?
– Oh, meu Deus, vocês as duas são de mais – resmunguei.
– Desculpa, não tenho culpa que sejamos as tuas maiores fãs – disse a
Cleo, num tom de voz falso-defensivo.
– Sim, tarde de mais porque eu já criei o FrannyIsFuckingAwesome.com,
e o nosso clube de fãs tem, tipo, mil milhões de membros – acrescentou a
Lola, com uma petulância extra.
– Quem, vocês as duas e a minha mãe?
– Sim – respondeu a Cleo. – E o Sexy de Fato.
– Oh, meu Deus, o Sexy de Fato. Ele está provavelmente algures a viver
uma boa vida, na sua casa em Upper East Side, a comer caviar com a sua
mulher modelo igualmente sexy.
– E os seus quinze golden retrievers perfeitos – acrescentou a Cleo, a rir.
– E o seu cozinheiro, que ele soletra com um u em vez de o. – A Lola fez
uma pausa para dar um efeito cómico, de braços estendidos – Perceberam?
– Meu Deus, Lola. – Enterrei a cara nas mãos, em parte constrangida, em
parte divertida. – Tens exatamente o mesmo sentido de humor que o Jim.
O meu padrasto era estoico, mas ria-se sempre de piadas parvas,
especialmente quando eram ligeiramente obscenas.
A Cleo levantou-se e espreguiçou-se.
– Tenho de ir andando para casa. Tenho uma videoconferência amanhã às
oito da manhã, antes de ir dar aulas, e nesta vou intervir. Não posso
simplesmente ficar calada e dormir.
Já passava das 21h00, o que, há dez anos, teria sido a hora a que
estávamos a sair para ir a um bar qualquer. Mas esta noite, o trabalho
chamava, as responsabilidades pairavam no fundo dos nossos cérebros.
Exceto para mim, pensei eu, entusiasmada com o lado positivo de todo este
dia de merda: Tenho a oportunidade de dormir até tarde amanhã.
– Eu vou contigo – disse a Lola, bocejando enquanto se levantava.
– Eu também – intrometi-me rapidamente, e ambas se viraram para olhar
para mim. Encolhi os ombros. – Só preciso de ir apanhar um pouco de ar
fresco.
Depois de uma ronda de idas à casa de banho, saímos do meu
apartamento, para o pequeno vestíbulo e depois para a rua. Todos os
quarteirões do meu bairro de Brooklyn Heights estavam repletos de árvores
enormes de onde brotavam folhas verde-claras. Em contraste com as casas
de tijolos e as ruas de pedra, a cor quase brilhava. A estação de metro ficava
apenas a alguns quarteirões de distância, e enquanto caminhávamos,
falámos sobre o resto da nossa semana, a possibilidade de nos encontrarmos
no fim de semana, e a colega de trabalho da Lola que tinha acabado de
adotar, de entre todas as coisas, uma tartaruga.
Depois de me despedir delas com abraços, voltei para casa e forcei-me a
não olhar para o telemóvel no caminho até lá. Durante os primeiros passos,
pareceu-me impossível, mas depois notei que a minha respiração abrandou,
o meu peito descomprimiu e os músculos no fundo das minhas costas
relaxaram, só um bocadinho. Fixei a atenção noutra coisa qualquer: os sítios
onde as raízes das árvores tinham irrompido pela calçada agora rachada, as
lâmpadas de gás antigas que tremeluziam no exterior de algumas das casas
austeras do bairro, os narcisos que de repente pareciam estar por todo o
lado. Pela primeira vez hoje, sentia-me bem. Normal. Eu ia ficar bem.
A alguns passos da minha porta da frente, peguei no telemóvel sem
pensar, força do hábito. Havia notificações em todo o lado. Tinha
mensagens de texto de repórteres do Daily News e da NYN. No meu e-mail,
mensagens de um produtor da CNN, e de um jornal alemão qualquer, cujo
nome não consegui entender bem. E uma mensagem da Lola – não me
surpreende que os jornais britânicos te adorem – com um link para o Daily
Mail.
– Cum caraças – disse eu em voz alta enquanto fiquei ali de boca aberta, a
olhar para o telemóvel. O pior encontro do mundo tinha-se transformado
numa comédia romântica adorável de que todos estavam a falar.
E eu era a personagem principal.
CAPÍTULO DOIS
HAYES

1 3H07. A minha prima Perrine estava exatamente sete minutos atrasada


para o nosso almoço quinzenal. Sem tempo livre para desperdiçar,
esperei por ela no passeio enquanto verificava e-mails de trabalho no meu
telemóvel, digitando respostas de uma palavra e arquivando cada
mensagem na pasta apropriada até que a minha caixa de entrada voltasse a
zeros. Os meus ombros relaxaram um pouco no segundo em que o último e-
mail foi eliminado, para logo se contraírem novamente quando um alerta de
uma chamada agendada para as 14h30 apareceu no ecrã.
– Ei – disse a Perrine a ofegar como alguém que tinha acabado de correr
três quarteirões, tocando no meu braço. Fiz-lhe O Olhar, sim, ela batizou-o
assim nos tempos da secundária, e inclinei-me para lhe dar um abraço. O
olhar era parte reprovador, parte exasperação, parte adoração. Eu e a Perrine
oscilamos sempre entre rir e ficar irritados um com o outro. – A reunião de
equipa atrasou-se – disse ela com um encolher de ombros enquanto
fazíamos fila no Greener Things atrás de todos os outros nova-iorquinos
famintos que trabalhavam no centro de Manhattan. Ela nunca se desculpava
pelo trabalho, e eu nunca esperava que o fizesse. «Eu literalmente salvo
vidas, Hayes», dissera-me uma vez quando protestei por estar atrasada para
um pequeno-almoço que tínhamos marcado. Depois disso, mantive a minha
boca fechada.
– Bem, o meu dia tem sido infernal, por isso não te preocupes com isso.
Contei as pessoas à nossa frente, fazendo os cálculos na minha cabeça
enquanto tentava descobrir quanto tempo poderia estar na fila, mais os
minutos gastos a comer, e depois a caminhada de volta ao escritório.
Cinquenta e dois minutos pelo menos, o que ficava mesmo em cima da hora
para a reunião via telefone que eu tinha agendado acerca da possibilidade
de expandirmos o negócio com a abertura de um escritório em Seattle.
Além disso, eu ia sair mais cedo do trabalho hoje à noite para ir a um jantar
em honra do que fizéramos no ano passado ao revolucionar o espaço de
investimento ambiental. E havia uma corrida de dez quilómetros anotada no
meu calendário para as 5h45 de amanhã, que eu nunca falhava. Respirei
fundo, tentando reajustar-me e lembrar-me de que o tempo em família
também era importante.
– Deixa-me adivinhar: outro artigo no New York Times? A fazer muito
dinheiro? – A Perrine era tão altruísta, gentil e dolorosamente educada que
a maioria das pessoas não tinha ideia do quão sarcástica realmente era.
Sorte a minha, eu tinha um lugar reservado na primeira fila para as suas
muitas contradições durante toda a minha vida. – A propósito, onde está o
teu casaco? Alguém te desafiou a sair do escritório sem ele?
Também não lhe escapava nada. Fiz-lhe um resumo da minha estranha
manhã no metro em algumas frases curtas. Quando terminei, o seu rosto
passou de impressionado a totalmente perplexo.
– Espera, explica lá isso novamente. – Ela tinha parado de brincar com o
crachá de identificação do hospital que lhe pendia da bata para olhar para
mim, a cabeça inclinada para o lado. – O vestido dela ficou preso nas portas
do metro e rasgou-se? Meu Deus, que pesadelo. É como ficares com a
braguilha aberta à frente de toda a turma na escola, mas um milhão de vezes
pior. Lembras-te quando…
– Por favor, não – interrompi antes que ela continuasse com a história em
que eu recebi o Prémio Sénior em Matemática à frente de toda a nossa
escola com um bocado de papel higiénico a sair da parte de trás das minhas
calças. Ela contara a história com todos os pormenores humilhantes durante
o seu brinde no jantar de ensaio do meu casamento. Eu não precisava de
ouvir isso novamente.
– OK, então se eu estou a perceber bem, tu deste-lhe o teu casaco. A uma
desconhecida?
– Eu contei-te – respondi, enquanto a fila avançava mais um centímetro. –
Eu só estava a tentar ajudar. Não foi nada de especial.
Abanei a cabeça, exasperado, e interrompi para pedir o almoço,
finalmente – rúcula, beterraba, pepino, tempeh grelhado, vinagrete de
limão. O homem que trabalhava atrás do balcão assentiu com a cabeça. Era
a mesma coisa que eu pedia todos os dias.
– Sabes, devias mesmo experimentar outra coisa – brincou a Perrine,
batendo-me com uma ementa. – Grão-de-bico ou abacate. Ou, oh, eu sei,
talvez acrescentar um pouco de queijo. Isso seria ousado.
Apenas fiz um rápido sorriso. A provocação era a mesma desde que
éramos crianças, porque, bem, acho que não mudei muito. A minha mãe
dizia carinhosamente que eu era «peculiar»; a Perrine chamava-me «diva
exigente». Aparentemente, eu era uma pessoa difícil.
Nunca me sentira inseguro sobre a minha personalidade até ler os
documentos que me foram entregues pelo advogado da minha ex-mulher.
Incompatível. Esse tinha sido o motivo do divórcio para a Angie, e a
palavra assombrara-me secretamente nos últimos três anos, à espreita atrás
de mim sempre que iniciava uma conversa ou considerava um primeiro
encontro. Incompatível. Esta era a etiqueta que usava todos os dias agora,
enfiada no meu casaco como um lenço de bolso. Mesmo, imagino, estando
o meu casaco agora nas costas de uma desconhecida.
Paguei as nossas saladas, deixei uma nota de dez dólares no pote das
gorjetas e segui a Perrine até uma mesa perto da janela.
– Então, o quê, deixaste-a ficar com ele? – perguntou, enfiando uma
garfada de verduras na boca.
Eu assenti com a cabeça, polvilhando apenas a quantidade certa de sal na
palma da minha mão antes de deitá-lo na salada.
– Para mim, isso soa-me a uma explicação muito simplista sobre o
casaco. – Ela fez uma pausa para ver o efeito das suas palavras, desesperada
para que eu reconhecesse a sua piada. – Percebeste? Uma explicação
mesmo à homem?
– Sim, percebi. És mesmo hilariante. – Atirei-lhe um guardanapo à
cabeça. Ele pousou na sua testa e ficou ali por um instante antes de ela o
tirar e o colocar no colo. Eu estendi a minha mão para um high five, e ela
retribuiu a contragosto.
– E deixa-me adivinhar a marca… Armani?
Este era um tema clássico de provocação entre nós, e a nossa família
alargada, embora eu lhes lembrasse constantemente que sempre preferi ter
uma coisa cara e bem feita, em vez de uma tonelada de coisas mais baratas
que não duravam muito tempo. Especialmente quando se considera o
impacto no meio ambiente. Mas acima de tudo, eu só gostava de coisas
duradouras. Razão pela qual o meu casamento de curta duração também era
outra piada entre o clã Montgomery. Por sorte, a Perrine não foi por aí –
ainda.
– Gucci – respondi antes de dar outra dentada. – Da sua linha sustentável
que saiu há alguns anos.
– Deste um casaco Gucci a um estranha? – A sua boca ficou suspensa
entre um esgar e um sorriso.
– É só um casaco.
– Mas… – Perrine fixou-me. – Porquê?
– Porque era a coisa certa a fazer. – Pressionei os lábios numa linha reta.
Eu não estava habituado a isto, o estranho e autoconsciente desconforto que
acompanhava o facto de ter de me explicar. – E – acrescentei –, era a coisa
educada a fazer.
Isto calaria a Perrine. As minhas ações eram quase sempre inequívocas,
feitas com precisão e razão. Eram decisões fáceis de explicar. Mas era
muito mais difícil justificar um ato aleatório de bondade para com uma
desconhecida.
O problema era que não sentira a mulher do metro como uma
desconhecida. Algo nela parecia-me profundamente familiar, como vestir
uma velha camisola preferida. Reparei nisso imediatamente, quando ela
entrou, antes do fiasco do seu vestido. E depois não conseguia deixar de
olhar para ela, a forma como os caracóis do seu cabelo lhe tocavam a testa,
os lábios delicados como um laço perfeitamente atado. Mas os seus olhos
estavam tão tristes, como uma criança cujo cão acabou de morrer.
O que eu sentira não era sexual, não exatamente. Era apenas um
sentimento, e isso baralhou o meu cérebro. Como quando vemos um
desconhecido e não conseguimos deixar de olhar para ele, e queremos saber
o que está a acontecer na sua cabeça naquele exato segundo. E então,
quando o vestido dela se rasgou, e a sua expressão mudou para horror, bem,
eu não conseguiria evitar a vontade de ajudá-la mesmo se tivesse tentado. E
aquele sentimento incontrolável e inexplicável irritou-me imenso.
– Mas ela era bonita? – perguntou a Perrine, interrompendo o meu
pensamento.
– Quero dizer – encolhi os ombros –, claro. Mas não é como se eu
estivesse a tentar convidá-la para sair.
A mulher do metro não se assemelhava em nada com as mulheres que eu
namorei antes ou depois da Angie, ou ao que a minha mãe chamava o meu
«exército de ex-namoradas louras», uma observação que fizera no verão
passado, enquanto partilhava as suas opiniões sobre o estado da minha vida
amorosa (ou falta dela).
– O Hayes protesta de mais, acho eu.
– Não estava!
– Tudo bem – disse a Perrine, semicerrando os olhos e esquecendo a
coisa. Mas eu sabia que os pensamentos continuavam a remoer na sua
cabeça. A Perrine era calculista e curiosa como um gato. Nada lhe
escapava. Literalmente, nada. Era o que fazia dela uma cirurgiã incrível.
Mas era também o que a tornava uma chata.
Agora o meu cérebro estava a funcionar bem, e recordava os brincos
compridos da mulher do metro, e os seus lábios brilhantes, e a forma como
o seu cabelo preto curto e ondulado emoldurava os ângulos do seu rosto na
medida certa. Como é que a Perrine lhe chamou quando cortou o cabelo
curto alguns anos atrás? Um bob? O primeiro pensamento que me veio à
mente quando me virei e vi a mulher a lutar freneticamente com o seu
vestido foi como as minhas mãos se encaixariam perfeitamente nos seus
caracóis. Abanei a cabeça para remover o pensamento do meu cérebro,
rodei o pescoço algumas vezes para aliviar a tensão que se tinha
estabelecido ali. Tudo sobre o dia de hoje era para esquecer.
Eu ia esquecer.
A Perrine observou-me com curiosidade enquanto eu tentava eliminar do
pensamento aquela mulher.
– Olha – exclamei –, vi um problema e tentei ajudar a resolvê-lo. –
Apertei os lábios num sorriso, inclinei a cabeça para o lado. – É o que eu
faço melhor.
Sacudi a falsa sujidade do meu ombro, e a Perrine revirou os olhos em
resposta.
– És tão idiota – disse a rir.
– Eu sei. Sou mesmo – respondi.
– O que é que eles disseram no trabalho quando chegaste sem casaco? –
perguntou, picando um pimento com o garfo.
– Nada – respondi, limpando a boca ao guardanapo de papel que enfiara
no colarinho da camisa. – Nós não temos um código de vestuário formal, tu
sabes. Então, mesmo sem o meu casaco, eu ainda sou a pessoa mais bem
vestida de lá. Além disso, a Eleanor é a única que ainda vem com tretas
sobre o que eu visto, e ela hoje não veio trabalhar.
Eu também tinha feito uma oração silenciosa de agradecimento por isso,
porque uma história sobre eu ajudar uma mulher bonita no metro seria um
chamariz para ela. Ela nunca iria esquecer.
A Perrine riu-se disso.
– A Eleanor tem razão.
– O quê? – perguntei. – Não tenho culpa de me ter habituado a usar fato
para ir trabalhar todos os dias. Além disso, é bastante mais fácil. É a minha
farda. O Steve Jobs também usava farda. O Obama. A Hillary Clinton…
– OK, OK, já entendi. – A sua voz estava cheia de sarcasmo. – Estás na
mesma categoria que o Barack Obama.
– Obrigado – respondi, cruzando os braços com uma satisfação
presunçosa. – Além disso, não terias intercedido e tentado ajudar? Ajudar as
pessoas é a tua cena.
– É verdade – assentiu com hesitação. – Mas… e por favor, não leves a
mal, tu normalmente não percebes o estado emocional das outras pessoas.
– De que maneira devo aceitar isso? – perguntei, fazendo-lhe um olhar
ofendido.
– Eu não estou a dizer que não és uma pessoa simpática! – Ela ergueu a
voz para mostrar o seu ponto de vista, e eu sorri-lhe para que percebesse
que não me sentia ofendido. – Só estou surpreendida por teres desviado os
olhos do teu e-mail. Ou que não tenhas feito uma análise de custos da
situação primeiro.
Isto fez-me rir, porque ela tinha razão. Eu tendia a entrar no território da
calculadora humana, ignorando as emoções em busca de dados, razão e
lógica. E não conseguia explicar completamente por que razão o fiz, porque
é que desta vez o meu coração e instinto dominaram o meu cérebro sem a
minha permissão.
– Então, mais alguma coisa? – perguntou, e eu encolhi os ombros,
tentando agir como se não houvesse mais nada a dizer.
– Esta é a história – afirmei enquanto recolhia o meu lixo.
Não lhe contei sobre a sensação da pele da mulher nos meus dedos:
quente como um passeio no verão. Ou sobre a forma como a sua boca
mudou para um pequeno formato de O quando a sua expiração penetrava as
minhas entranhas. Também não mencionei a história sobre ela ter feito xixi.
Eu definitivamente deixei isso de lado.
Sabia normalmente o que tinha de ser feito. Era raro entender as coisas
mal. Mas naquele instante no metro, talvez o tenha feito, e o meu erro de
cálculo estava a incomodar-me. Talvez tenha exagerado, presumido que ela
precisava de ajuda quando estava bem por sua conta. Mas ela estava tão
chateada. E gritara «Obrigada» já eu saíra do metro. Eu tinha reproduzido
tudo um bilião de vezes na minha cabeça, a pensar se fizera a coisa certa.
Não importa. Eu tinha de esquecer este assunto. Não precisava que me
devolvesse o casaco, e já era passado, juntamente com os seus caracóis
perfeitos e o vestido rasgado e aquela caixa de cartão que trazia nas mãos.
A beleza de viver numa cidade de oito milhões de pessoas é que eu nunca
mais a veria.
*

Ver quem chegava ao trabalho mais cedo era uma competição amigável e
silenciosa entre mim e a Eleanor. Tínhamos criado a Arbor Financial
Partners há três anos, ambos cheios de entusiasmo e idealistas depois de
ficarmos esgotados em Wall Street. Tínhamos o objetivo de chegar às 6h30,
sempre com copos gigantes de café na mão, olhos brilhantes e
determinados. Claro, a competição era divertida, mas eu gostava mais do
ritual. A rotina acalmava-me. Concedia-me a adrenalina que me permitia
dar o pontapé inicial no meu dia.
Esta manhã, porém, decidi prolongar a minha corrida mais alguns
quilómetros e, portanto, estava atrasado, ia chegar às 7h34. Quando passei
pelo gabinete da Eleanor, ela olhou para o relógio e dirigiu-me um sorriso
de autossatisfação através do vidro que a separava do open space do
escritório. Ela estava cheia de garra esta manhã: óculos de tartaruga, mãos
em movimento. Estava a fazer o que sabia melhor, a tratar de cinquenta
coisas ao mesmo tempo, e por isso teclava no computador ao mesmo tempo
que falava com alguém ao telefone, os auriculares sem fios posicionados
precariamente sobre os aros dourados. Eu acenei-lhe, e ela fez-me sinal para
entrar.
– Hã-hã – dizia quando eu entrei, os braços cruzados. – Sim, sim, estou a
ouvir-te.
Fui até onde ela tinha pendurado umas fotografias emolduradas de todas
as referências na imprensa à nossa empresa, e ajustei as molduras que
estavam um pouco tortas: o Wall Street Journal, o Financial Times. A
Forbes até nos colocou na sua lista dos 30 Melhores Abaixo dos 30 há dois
anos, anunciando que éramos «um fundo que investe com compaixão e doa
1% dos seus lucros a grupos ambientais em todo o mundo. Eles estão a
colocar de lado o estilo finantial bro1 por algo melhor: o benfeitor
financeiro». A Eleanor emoldurou a capa e o artigo no meu aniversário; fiz
trinta anos exatamente dezassete dias depois do artigo sair.
– Obrigada, Luis – disse ela. – Vou pedir ao Tyler para o enviar até sexta-
feira.
Ela deu um toque no auricular para terminar a chamada.
– Abrir um escritório em Seattle vai ser um pesadelo – declarou, e eu
assenti, já resignado com o stresse que significaria a expansão da nossa
empresa. – Vamos precisar que surjam rapidamente investidores se
quisermos ter alguma hipótese de expansão.
Apontei para uma pilha de fotografias encostadas à parede atrás dela.
– Já tiraste estas?
A Eleanor considerava-se uma fotógrafa amadora, mas o seu trabalho era
impressionante. As fotografias que tirara durante a excursão de surf que
fizera sozinha na Costa Rica há alguns anos adicionavam uma vibração
relaxante a um espaço que muitas vezes podia ficar tenso quando os
negócios estavam prestes a ser feitos – ou desfeitos.
– Vamos mudar de escritórios em tipo, três meses – disse ela com
naturalidade. – Podemos muito bem começar a empacotar.
Além de tentar abrir uma filial inteiramente nova na Costa Oeste, a
Eleanor e eu estávamos a mudar as nossas instalações em Nova Iorque para
um espaço maior e mais luminoso no centro da cidade, para acomodar a
nossa equipa em constante expansão. Era emocionante e aterrorizante ao
mesmo tempo, uma declaração ousada do crescimento que estávamos a
experienciar.
O pensamento de todo o sucesso que tivemos nos últimos anos fez o meu
estômago revirar-se. Uma coisa era ter sucesso sozinho, ou apenas ao lado
da Eleanor. Mas agora éramos responsáveis por uma empresa inteira,
pessoas com hipotecas, famílias e pagamentos de carro. Eu raramente
duvidava de mim mesmo, mas quando isso acontecia, era porque estava
preocupado com a possibilidade de dececionar a nossa equipa.
– Tenho algo para ti – disse ela, os seus olhos inexpressivos. Enfiou a
mão dentro da carteira de couro e tirou um exemplar dobrado do New York
Post. Apertou-o com as mãos, achatando-o sobre a mesa e folheando
algumas páginas até encontrar o que estava à procura. «Salva no metro!»
Ela leu a manchete em voz alta. «Desastre da moda leva a romance com
homem misterioso no Q.»
Ela olhou para mim novamente, como se estivesse a ver um animal
selvagem em carne e osso pela primeira vez.
– Não ias mencionar que deste uma de Hayes, o cavaleiro corajoso ontem
no metro?
Tirei-lhe o jornal da mão e pus-me a coçar a parte de trás do pescoço.
– Achas realmente que sou eu? Pode ser qualquer um. – Foi uma terrível
tentativa para encobrir o caso.
– Não te faças de tolo comigo. – A Eleanor recostou-se na cadeira com
um suspiro exagerado, colocando os pés em cima da secretária e cruzando-
os. Lentamente, de forma intencional entrelaçou as mãos e estalou os dedos.
Ela sabia que eu odiava aquele som. Enquanto as suas mãos ondulavam
para a frente e para trás, a luz do sol que vinha da Fifty-Seventh Street
conectava-se com o enorme anel de noivado de diamante no seu dedo,
criando uma espiral de luz na sua secretária.
– O que eu acho – disse, enunciando as palavras enquanto dobrava os
dedos – é que ontem de manhã estavas a ir para o centro da cidade para o
novo espaço. Mas o que eu sei é que embora normalmente te apresentes
como um rabugento…
– Vá lá – protestei.
– Na tua essência, és uma pessoa simpática que quer ajudar quando
alguém está com problemas.
– Bem, obrigado pelo elogio – respondi bruscamente, cruzando os braços.
– Sim senhor, estou impressionada. – Bateu palmas na minha direção. – O
teu lado de escoteiro raramente aparece em público.
– O quê? – Endireitei os ombros, tentando relaxar. – Salvei ou não um
pássaro na faculdade e deixei-o viver no meu quarto durante duas semanas?
– É verdade – respondeu ela a rir. A Eleanor testemunhara isso em
primeira mão. – Vês, eu conheço o verdadeiro tu que nem toda a gente
consegue ver – disse com um sorriso afetuoso, e era verdade. Eu deixei-a
dormir no sofá do meu quarto durante uma semana depois da namorada a
ter deixado, e ela estar demasiado deprimida para dormir no seu próprio
quarto, e conduzi cinco horas até Boston há uns anos, quando a sua irmã foi
atropelada por um carro. E mesmo que ela e o seu noivo, Henry, pudessem
facilmente pagar a alguém para tomar conta da gata, ela ainda me pedia
para alimentar a Luna quando eles estavam fora, e eu sempre aceitei. Ela
conhecia esse meu lado, aquele que muitas vezes estava oculto atrás das
coisas mais óbvias e brilhantes que eu apresentava ao mundo. Era bom ter
uma amiga que me conhecia tão bem. Exceto neste momento.
– Além disso – disse ela com um sorriso malicioso –, o Tyler contou-me
que chegaste ontem de manhã sem casaco.
O Tyler era o nosso assistente, recém-saído da faculdade, e muito astuto.
Ele dominou o trabalho num dia e conhecia cada movimento executado
neste lugar. É claro que me viu sem o meu casaco e fez uma anotação
mental desse facto.
– Olha, não foi nada de mais – admiti. – E definitivamente não foi um ato
romântico.
A Eleanor franziu a testa, e olhou para mim.
– Eu não te perguntei se foi romântico.
Fiz-lhe um gesto de indiferença.
– Tudo o que aconteceu foi que o vestido de uma mulher ficou preso na
porta e rasgou-se nas costas… acreditas nisso? Por isso deixei-a usar o meu
casaco. – Cruzei os braços na defensiva outra vez. – Não sabia que isto iria
chegar ao New York Post.
– Então não tens problema com o facto de as pessoas saberem que és tu
nesta fotografia? – questionou.
– Não, claro. Não é nada de especial, mas pelo amor de Deus, para de me
incomodar com isso, por favor. Tenho trabalho para fazer.
– OK, ainda bem, porque a New York News ligou a convidar-te para o
programa matinal deles, e eu disse que sim.
Ela proferiu as palavras com o dobro da sua velocidade normal.
Fiquei de queixo caído.
– Desculpa. O que acabaste de dizer?
– O Tyler disse que uma produtora enviou um e-mail para a conta geral.
Eu disse-lhe para mo reencaminhar.
– Tu disseste que recebeste uma chamada.
– Bem, primeiro respondi ao e-mail da produtora. Depois ela ligou. Eles
também identificaram a mulher.
Eu abanei a cabeça.
– Então liga de volta a dizer que não, Eleanor. Este tipo de coisa é a tua
especialidade, não a minha. Tu é que fizeste o Ted Talk. – Senti a ansiedade
a rastejar pela minha pele. – Tu, mais do que ninguém, deverias saber que
não tenho habilidade para falar à frente de uma multidão. A televisão em
direto será um desastre.
– É uma coisa de cinco minutos, Hayes. Tu dizes olá, ela diz olá, tu ris-te,
respondes a algumas perguntas. Piscas os olhos e está feito. – Ela disse isto
como se estivesse a ensinar uma criança a atar os sapatos.
– Acho que nunca vi a New York News na minha vida – afirmei, dando
voltas à cabeça durante um momento por causa de uma vez em que vi
qualquer coisa na estação local de notícias por cabo. ESPN, sim. CNN, com
certeza. Mas NYN? Talvez por causa do tempo, uma vez.
– Bem, não sabes o que perdes. O Pete Killian é um ícone de Nova
Iorque. – Ela suspirou, colocando a mão no coração. – Uma lenda. Ao nível
da Estátua da Liberdade, do Empire State Building de pessoas…
– OK, já percebi – disse, exasperado. – Já percebi. Mas ainda me parece
algo excruciante.
– Oh, Hayes, vá lá. Vai correr bem. – Ela gesticulou na minha direção. –
Além disso, o Paul acha que é uma boa ideia. Para promover o negócio. Eu
coloquei-o a par disto tudo.
Paul, o publicitário que contratámos após ser publicada a lista da Forbes.
Claro.
– Estamos a pagar-lhe muito dinheiro para simplesmente ignorá-lo, Hayes
– disse ela com a sua voz calma e firme.
– Está bem – disse a contragosto. – Pelo negócio. Só isso.
Saí, fui até ao meu gabinete e tentei pensar na videoconferência que teria
lugar em apenas alguns minutos. Mas em vez disso, os meus pensamentos
voltaram para a mulher do metro.
O pensamento de vê-la novamente agitou as minhas entranhas como um
martini, deixou-me excitado, tonto, nervoso. Mas o mais frustrante é que
não conseguia resolver a equação, não conseguia perceber por que motivo
ela estava a fazer-me sentir assim. Eu precisava de desanuviar a cabeça,
acalmar, reorganizar o meu cérebro para poder concentrar-me no dia que
tinha pela frente.
Durante uma fração de segundo, pensei em sair do escritório, empurrar as
portas de vidro e ir para o ar pesado da primavera para dar uma volta ao
quarteirão. Em vez disso, sentei-me, respirei fundo e fiz o que fazia melhor:
comecei a trabalhar.

1 Termo utilizado para definir alguém que trabalha em Wall Street, confiante, privilegiado e cujo
único objetivo é trabalhar e ganhar cada vez mais dinheiro, apesar de interiormente ser inseguro e
estar sempre a tentar compensar as suas falhas. (N. da T.)
CAPÍTULO TRÊS
FRANNY

– P orque é que concordei em fazer isto outra vez? – perguntei à Cleo, que
estava inclinada sobre uma mesa dobrável de plástico montada no canto do
camarim da NYN, a espalhar queijo creme num bagel com tudo. – Não
apareço na TV desde que fui entrevistada pelo noticiário local quando
estava no 3.º ano, sobre a razão da piza estilo New Haven ser a melhor da
América. E eu passei o tempo todo com uma migalha debaixo do nariz, e
durante o resto do 1.º ciclo, as crianças chamaram-me «Ranhosa». Devia ter
sido um presságio ou algo assim.
– Como é que eu ainda não tinha ouvido esta história? – perguntou a Cleo
com uma gargalhada. – Isso é hilariante.
– Porque foi traumatizante, e eu tentei fazer tudo o que estava ao meu
alcance para a esquecer. E, claro, a minha mãe enviou-me uma mensagem
sobre esta história hoje.
Uau, querida, a tua primeira vez na televisão desde o 3.º ano! Boa sorte!,
foi o que ela me escreveu na mensagem de hoje cedo, seguido de Como é
que está a correr a procura de emprego? Ainda não passou uma semana, e
eu já sinto a sua preocupação materna a pairar sobre mim, o que sempre me
deixou stressada, com medo que de alguma forma, a esteja a dececionar.
A opinião da minha mãe e do meu padrasto tinha sido sempre que o
melhor tipo de trabalho é aquele que é bem remunerado, não aquele que
preenche a tua alma. Só o facto de eu ter prosseguido uma carreira criativa
sempre os deixara nervosos, e embora tentassem não demonstrar essa
ansiedade, eu ainda me recordava vividamente dos dois sentados à mesa da
cozinha, os dentes cerrados, quando descrevi mais um estágio mal pago.
Talvez eles se preocupassem dessa forma porque eu era filha única.
Contudo, eu tinha um monte de amigos que eram filhos únicos, e nenhum
deles parecia sentir que a sua existência servia apenas para fazer os seus
pais felizes.
O meu trabalho na Spayce cumpria todos os requisitos deles, e talvez por
causa disso eu me tenha acomodado. Pagavam bem. Era estável. Ainda
assim, se eu enviasse uma mensagem à minha mãe a dizer que ia abandonar
todos os meus sonhos de design de interior para me tornar contabilista, ela
ficaria feliz. Para ela as coisas práticas prevaleciam sempre, não importava
o que fosse, e eu odiava sentir-me como se estivesse a caminho de a
desiludir e também provar que ela tinha razão.
– Bem, olha, estás a fazer isto porque ela disse que era uma boa ideia. – A
Cleo apontou com a cabeça para a Lola, que estava entalada no canto do
sofá onde eu estava empoleirada, a espreitar para o seu iPhone.
– A Lola disse que devias vir, porque é ridículo alguém poder tirar uma
fotografia tua no metro e inventar uma história sobre isso como se fosse
algum tipo de filme – disse a Lola num tom de censura. Ela levantou os
olhos na direção da Cleo com um olhar divertido.
A Cleo assentiu com a cabeça.
– E para te dar o controlo sobre a tua própria narrativa. Recupera o teu
poder. Que é uma via que aprecio muito.
– Eu ainda gostava de poder processar a pessoa que publicou isto –
afirmei eu com um suspiro de resignação.
– Claro que gostavas. – A Cleo ficou imediatamente envaidecida em
modo erudito. – Mas tu não tens realmente nenhum recurso legal aqui.
Como já discutimos.
– Só tens de ir lá, definir o registo certo, agradecer, e largar o microfone,
Fran – disse a Lola, fazendo uma pausa no scroll infinito no telemóvel. –
Entras e sais, fácil. Tu consegues.
Expirei, sentindo-me um pouco mais à vontade. Nas últimas quarenta e
oito horas, tínhamos discutido o meu «acidente do rasgão» até à exaustão.
Isso é o que a Teen Vogue lhe chamara. Chamei-lhe humilhante, sem
possibilidade de desaparecer tão cedo.
– Tens razão. Eu consigo fazer isto. – Dei alguns passos, como se
movendo o meu corpo pudesse acabar com os nervos.
– Também disseste que querias ver o Sexy de Fato em carne e osso outra
vez – lembrou a Cleo, entre sorrisos.
– Para agradecer! – protestei. – Só isso.
– Oh, vá lá, todos nós queremos ver o Sexy de Fato em pessoa – disse a
Cleo com um sorriso. – Olha, às vezes, o universo providencia, na forma de
um gajo bom.
A Lola encolheu os ombros.
– OK, ela tem razão nisto.
Entrelacei as mãos, torcendo os dedos.
– Vê-lo outra vez parece ser uma péssima ideia agora. Especialmente em
frente, não sei, de uma multidão de pessoas?
Os olhos da Cleo seguiram-me enquanto eu não parava quieta no
camarim – sentada, em pé, sem saber o que fazer com o meu corpo.
– Devias comer alguma coisa – disse ela.
– O quê, e vomitar em cima dele depois de já ter limpo ranho na camisa
dele? – exclamei, alisando o vestido, um velho básico vermelho comprado
na Zara, há alguns anos. – Tenho a certeza de que ele iria adorar.
Alguém bateu à porta do camarim, e a Eliza, a produtora responsável pelo
meu segmento, entrou, com a Priya, a maquilhadora profissional que tinha
maquilhado o meu rosto uma hora antes, ao seu lado.
– Ei, só para lhe dar um pré-aviso de dez minutos – disse a Eliza com
naturalidade, como se aparecer na TV fosse a coisa mais normal do mundo.
Ela era uma daquelas pessoas que falam contigo, mas estão sempre
ocupadas a olhar para outra coisa. A Priya fez um sorriso doce e começou a
passar pó no meu nariz com um pincel gigante.
– Nós vamos colocar o casaco no palco, à direita da sua cadeira, para que
lho possa dar quando ele surgir – disse a Eliza, consultando algo no seu
bloco de notas.
– E alguém vai dizer-me quando, tipo, lho dou? – perguntei, transferindo
o peso de um pé para o outro nervosamente. Eu não tinha mencionado isso
à Eliza, nem tão-pouco à Lola ou à Cleo, mas colocara uma nota de
agradecimento dentro do bolso da frente do casaco. Nada de muito
elaborado, mas no caso de eu ser incapaz de me expressar claramente na
TV, queria ter a certeza de que agradecia como deve ser. Porque se deixasse
de lado a estranheza da situação, tudo o que restava era gratidão e, para ser
honesta, a memória persistente do seu toque, que enviava choques elétricos
através do meu corpo cada vez que pensava nisso.
– O Pete faz-lhe um sinal com uma pergunta – respondeu a Eliza antes de
sair rapidamente do camarim.
A Priya agarrou na bolsa gigante que estava presa à sua anca e esguichou
o meu cabelo deliberadamente com laca.
– Tudo pronto, querida. – Ela piscou-me o olho e seguiu a Eliza para fora
do camarim.
– Prometam-me – disse, virando-me para a Lola e a Cleo – que vamos
beber umas mimosas depois disto, aconteça o que acontecer.
– Fran, eu liguei a dizer que estava doente por ti – disse a Lola,
oferecendo-me um sorriso carinhoso. – Tens de levar comigo quer queiras
quer não. Além disso, no pior cenário, podemos falar sobre a mulher linda
que conheci na casa de banho há pouco. Eu já andei a espreitar o seu Insta.
– És incrível, sabes disso? – A Cleo abanou a cabeça para a Lola, mas ela
também estava a sorrir. Esta era a Lola: confiante, descaradamente corajosa,
pronta para namoriscar mesmo enquanto faz xixi.
– A Maria, a minha assistente, está a tratar da preparação do seminário –
assegurou a Cleo. – A primeira rodada é por minha conta.
– Adoro-vos, malta – disse eu, o meu coração acelerado.
– E nós vamos começar a pensar sobre o teu novo plano de vida – disse a
Lola, esticando a mão para tirar algo da sua mala. – Comprei-vos um
presente que podemos fazer juntas mais tarde.
Ela passou-me uma pequena caixa branca para mim e uma para a Cleo.
– Um Kit DNADiscovery? – perguntei, lendo a letra preta delicada na
frente.
Ela assentiu, omnisciente.
– Lembras-te quando disseste na outra noite que sentias que perder o
emprego era como perder a tua identidade? Bem, agora podes ficar a
conhecer mais sobre o resto de ti. E nós vamos fazer isso contigo. Vai ser
divertido!
Ela expôs isto com um encolher de ombros, como se cuspir para dentro
de um frasco ao lado das amigas fosse uma típica atividade para criar laços
afetivos, como uma noite a jogar bilhar.
– Eu tenho a certeza de que já sei os meus resultados – disse a Cleo com
um tom de escárnio. Os seus quatro avós emigraram da Coreia.
– E eu vou ser, tipo, noventa e nove por cento Ashkenazi – disse a Lola a
rir. – Mas nunca se sabe! Um dos meus estagiários descobriu um par de
primos do qual não tinha conhecimento.
O meu estômago agitou-se diante da ideia de investigar a minha
ascendência. Havia algumas coisas acerca das quais simplesmente não se
falava na minha família, sendo a primeira delas o meu pai biológico.
– Ou podemos apenas focar-nos no facto de que ela é uma Sagitário com
a lua em Aquário e ascendente em Leão, e fazer o seu mapa astral – disse a
Cleo, que ontem tinha-me pedido diligentemente a hora exata e o local do
meu nascimento.
Os meus pensamentos foram interrompidos por alguém a bater à porta.
– Estamos prontos para ti – disse a Eliza com um aceno da mão para a
frente. – O Pete vai liderar a entrevista, mas a Jenna, a nossa repórter de
trânsito também vai estar no palco. Ela noticia os atrasos do metro, por isso
é uma ligação perfeita.
Apertei as mãos no peito, virando-me para as minhas amigas.
– E se ele me achar esquisita? – Baixei a voz na esperança de que a Eliza
não me ouvisse.
– Primeiro, não vai – disse a Cleo, firme e reconfortante. – Segundo, que
importa?
– Terceiro – a Lola bateu o dedo indicador no queixo, semicerrando os
olhos a pensar –, importas-te com isso?
O mar rodopiante de nervos no meu estômago disse que sim – sim,
importava-me. Eu queria que este desconhecido gostasse de mim, que
soubesse que havia mais em mim do que o suor, a confusão que conheceu
no metro. Mas não havia tempo para ter esta conversa agora. Em vez disso,
cruzei os dedos médio e indicador para formar o símbolo de boa sorte e
lancei às minhas amigas um último olhar, abrindo os lábios.
– Os meus dentes estão bem? – perguntei-lhes.
– Sempre – disse a Cleo, radiante, como se estivesse a tentar transportar
todo o amor que sentia por mim para o meu corpo.
– Lembra-te, és uma filha da mãe destemida – disse a Lola, confiante.
– Já me conheces? – perguntei com uma gargalhada, soprando-lhes um
beijo enquanto seguia a Eliza para fora do camarim.
*

As luzes do estúdio da NYN ofuscavam tanto que quase não via nada
quando a entrevista começou. O meu estômago estava nos joelhos, que
transpiravam inexplicavelmente. Eu não parava de ajeitar o cabelo atrás da
orelha, com os nervos, apesar de estar firmemente preso com laca. Por
outras palavras, eu estava uma pilha de nervos.
– A nossa convidada de hoje teve uma semana complicada – disse o Pete
com um sorriso caloroso. Ele estava sentado num banquinho ao lado da
Jenna, que assentiu com a cabeça, o rabo de cavalo castanho a balançar de
um lado para o outro. – Tornar-se viral na Internet de um momento para o
outro deve ter sido um choque. Franny, conte-nos, nas suas próprias
palavras, como foi para si.
– OK, bem, em primeiro lugar, obrigado por me receberem! – Deixei
escapar uma risada nervosa e sorri um pouco de mais pelo que pareceu uma
eternidade.
Acalma-te, Franny. Respirei fundo, numa tentativa de descontrair.
– Então, sim! – A minha voz estava num tom mais alto do que o normal,
e eu aclarei a garganta antes de falar novamente. – Fui despedida do meu
trabalho naquela manhã. Fazia design de interiores.
Arqueei as costas um pouco, sentando-me direita de uma forma estranha.
Excelente. Parecia rígida? Será que dava a impressão de estar a esforçar-me
muito?
– Houve cortes no orçamento, e fui dispensada, o que foi um golpe para o
meu ego e a minha conta bancária.
O Pete riu simpaticamente, o seu riso era reconfortante. Eu respirei fundo
e acomodei-me no meu banquinho, os nervos começavam a desaparecer. Eu
conseguia fazer isto.
– E então, como se isso já não fosse suficiente, o meu vestido ficou preso
na porta do metro e rasgou-se – continuei, e desta vez dei uma risada mais
normal. – Mesmo para os padrões de Nova Iorque, foi uma espécie de
desastre.
– E um desconhecido aproximou-se para a ajudar – disse o Pete,
incentivando-me.
– Sim – respondi. – Outro passageiro no metro muito gentilmente
ofereceu-me o seu casaco para eu vestir.
– O casaco do fato dele! – acrescentou a Jenna com um sorriso grande,
brilhante.
– Sim, o que foi muito gentil da parte dele, porque não me estava a
apetecer mostrar o rabo a toda a cidade durante o meu trajeto do metro até
casa. Não que eu tenha algo contra rabos! Os rabos são lindos. – Santo
Deus, as palavras simplesmente continuavam a sair da minha boca sem o
meu cérebro as aprovar primeiro. – Só quero, sabe, manter o meu rabo
privado, por agora.
– Isso é compreensível! – disse a Jenna, e acenou-me de forma
entusiástica, o que também criou uma entusiástica sacudidela do seu rabo
de cavalo.
– Muitas pessoas intervieram para ajudar, mas foi o casaco que salvou o
dia. E é por isso que estou aqui, realmente. Para agradecer. E, claro, para
devolver o casaco.
O Pete desviou a sua atenção de mim e passou para a câmara diretamente
à frente dele.
– Bem, vamos trazer o seu salvador, Hayes Montgomery III, e ficar a
conhecer a sua versão da história.
Claro que um homem que se vestia como se tivesse saído de um catálogo
da Brooks Brothers tinha um apelido que parecia um nome próprio. Mas o
«III» adicionado ao final foi surpreendente. Que elegante.
Pelo canto do olho, vi um produtor com um auricular a fazer sinal para o
banco vazio ao meu lado. A nossa interação no metro tinha sido tão confusa
– literalmente, pois os meus olhos estiveram cheios de lágrimas o tempo
todo – que não o tinha visto muito bem. Mas agora parecia que ele estava a
andar na minha direção em câmara lenta. E, uau, era muito homem para
processar.
Ele era mais alto do que me lembrava, e magro, com um ar distante tão
frio como o azul do seu fato feito à medida, o que acentuava os ângulos do
seu corpo. Dirigi-lhe um sorriso rasgado, mas recebi apenas um aceno de
cabeça em troca. Sentou-se, e observei-o a puxar as calças para cima na
altura dos tornozelos. As meias em azul-marinho eram matizadas com um
padrão de globos terrestres. Ah. O Sr. Sexy de Fato, Terceiro era um
excêntrico um bocado esquisito? Eu certamente esperava que sim.
– O Hayes é um reconhecido pioneiro no país no campo do investimento
socialmente responsável. – O Pete bateu com os cartões de notas contra o
seu joelho. – Belo currículo, Hayes!
– Obrigado – disse ele com uma risada modesta, o seu sorriso revelando
umas covinhas. – Estamos muito orgulhosos do trabalho que fazemos.
Senti uma onda de nervos a crescer no meu peito. Este tipo não era
apenas agradável ao olhar, era uma espécie de combinação sobre-humana
de feiticeiro das finanças salvador da Terra e benfeitor do metro. Acho que
isso explicava as meias.
A Jenna inclinou-se para a frente, toda ela sorrisos confiantes e tons
suaves.
– Hayes, a maioria de nós apanha o metro todos os dias sem estabelecer
contacto visual com as outras pessoas. – Ela continuou: – O que o inspirou
a estender uma mão amiga ou, neste caso, o casaco para a Franny?
Lembrei-me de que estava na TV e forcei um sorriso. Isto estava quase a
acabar. Eu conseguia aguentar mais alguns minutos. Só precisava de
silenciar as campainhas de alarme a tocar «Ele deve estar a pensar que és
um autêntico desastre» repetidamente no meu cérebro. Procurei algo no
qual me focar, e a minha mente viajou de volta no tempo para o momento
em que os dedos dele pressionavam a minha anca nua, e como até mesmo
naquele momento frenético isso tinha desencadeado algo mais em mim.
Algo que se assemelhava muito a desejo.
O Hayes pigarreou.
– Eu só vi alguém em apuros e ofereci-me para ajudar.
A Jenna devolveu-lhe um sorriso radioso e de adoração.
– Um verdadeiro cavaleiro num brilhante fato de armadura vem para o
resgate – disse ela a rir, enquanto o Pete deu uma gargalhada ao lado dela.
– Eu realmente agradeço muito que o Se… – felizmente percebi antes que
as palavras «Sexy de Fato» saíssem da minha boca. – Que o Hayes
interviesse para me ajudar.
– E agora são conhecidos na Internet como «SubwayQTs» – disse o Pete
com um sorriso ávido.
– Sim, mas isso não poderia estar mais longe da verdade – interrompi
rapidamente. A última coisa de que precisava era que o Sexy de Fato
pensasse que eu estava a suspirar por ele como uma donzela em perigo.
O Hayes virou-se para mim, os olhos semicerrados. Por um breve
segundo, pensei que ele parecia ter ficado irritado com o meu comentário,
mas depois concordou.
– Exatamente – disse. – Nós nem sequer nos conhecemos.
– Não somos mesmo «QTs» – acrescentei, abanando a cabeça. – E não é
uma boa ideia alguém inventar toda uma história sobre nós assim. Eu
agradeço a sua ajuda. Mas a pessoa que nos tirou estas fotografias, e os
repórteres que escreveram todas as notícias, inventaram este romance
ridículo entre nós. Como se ele aparecesse e me resgatasse e nos
apaixonássemos em dois segundos.
O Hayes cruzou e descruzou as pernas compridas, e quando olhei para o
seu rosto, as suas faces estavam rosadas.
– Hayes, concorda? – perguntou o Pete, inclinando-se para a frente.
– Sim. É completamente inaceitável colocar online fotografias de pessoas
sem o seu conhecimento.
– E a Franny precisava de ajuda? – perguntou a Jenna.
– Pelo que vi, sim – disse isto com indiferença, cruzando os braços à
frente do peito e mexendo-se no banco. O duplo sentido, intencional ou não,
foi recebido com grandes risadas do Pete e da Jenna, e as faces de Hayes
coraram ainda mais ficando num tom mais profundo de rosa. Ele lançou-me
um olhar constrangedor e rapidamente desviou os olhos.
Rangi os dentes num sorriso tenso.
– Como eu disse, havia outras pessoas a tentar ajudar também – opinei.
Eu estava grata pelo que o Sexy de Fato tinha feito, mas a mensagem que
eles estavam a martelar lá para casa, a de que eu estava desesperada por
obter a ajuda deste tipo, era bastante irritante. – Uma mulher ofereceu-me o
seu gancho de cabelo, o que provavelmente teria funcionado.
O Hayes ergueu as sobrancelhas, o rubor de antes tinha desaparecido e
fora substituído por um sorriso arrogante. Ele estava a rir. A rir de mim, do
que eu tinha dito.
– Eu vi… – disse, os olhos encontrando os meus. – E acho que um
gancho de cabelo não teria resolvido o problema.
E de repente a minha gratidão desapareceu. Quem é que este tipo pensava
que era, afinal?
– A vossa história foi seguida por centenas de milhares de pessoas online
que tinham a certeza de terem visto faíscas a voar entre vocês os dois –
disse a Jenna.
– Isso é muito lisonjeiro – comecei.
– Tenho a certeza de que Ms. Doyle é muito simpática – disse o Hayes, a
voz baixa e firme. – Mas nós… Eu… tenho a certeza de que ela não faz o
meu tipo.
Os meus olhos tentaram rolar e sair da cabeça. Não faço o seu tipo? Que
tipo de troll arrogante diz uma coisa destas à frente de milhões de pessoas
na TV?
– Nem eu seria o dela, tão-pouco. Era o que eu queria dizer. – Ele tentou,
sem sucesso, compensar o golpe baixo que tinha acabado de arremessar
contra mim. – Quaisquer faíscas que as pessoas viram foram todas
inventadas pela pessoa que colocou as fotografias online.
– Bem, vamos deixar o nosso público decidir se estão a ver faíscas hoje!
Franny – disse o Pete, mudando o teor da conversa –, o que se segue para
si?
– Procurar um emprego, presumo? – A Jenna inclinou-se para a frente,
animada com a mudança de tópico. Certamente não quis que isto soasse de
forma depreciativa, mas só a questão fez-me sentir pequena, uma pequena
poça ao lado da cascata do sucesso do Hayes. E então lá estava a minha
mãe, a enviar-me mensagens sobre empregos quando mal tinha ficado
desempregada. Eu odiava a mistura de síndrome de impostor e medo de
desiludir as pessoas, que estava a produzir-se dentro de mim. Então abri a
boca.
– Na verdade, eu comecei o meu próprio negócio! – A minha voz era
alegre, o sorriso rasgado nos lábios como se estes pudessem tocar as minhas
orelhas. – Eu sempre quis estabelecer-me por conta própria. Adoro
envolver-me em todas as fases da conceção de um espaço. Ajudar as
pessoas a perceber que a sua decoração pode realmente ser um grande
reflexo de quem são e do que amam.
– Menina! – As mãos da Jenna ergueram-se, com a surpresa. – Isso é
fantástico!
– Obrigada – disse eu, e por um momento senti-me arrojada e
autoconfiante, como se estivesse realmente a fazer isso e não a afirmar uma
mentira na TV. – Acabei agora um trabalho de uma casa de banho pelo qual
fiquei obcecada. É incrível o que um papel de parede pode fazer para
transformar uma divisão, especialmente uma que é usada principalmente
para… vocês sabem.
Graças a Deus, de alguma forma, consegui deter-me antes de dizer
«cocó» ao vivo na TV.
– Então, qual é o seu site? – perguntou a Jenna, muito animada. – Onde
podemos encontrá-la?
– Hum. – O meu cérebro bloqueou, frenético. Porque eu não tinha um
site. Eu não tinha clientes, nem um negócio. A casa de banho com o grande
papel de parede foi um trabalho que tinha feito para o James há mais de três
anos.
Engoli em seco. O que diabo tinha acabado de fazer?
– FrannyDoyle… – Estava à procura de algo. Nada. – Design… ponto
com. – Belo trabalho, Franny. Muito criativo.
O Pete assentiu em jeito de felicitação.
– Bom, nós gostaríamos de obter a opinião de alguém que a conhece bem,
e por isso temos uma convidada especial para nos dizer o que pensa a
propósito do vosso bonito encontro no metro.
Ele fez sinal para um ecrã que estava pendurado por cima.
– Juntando-se a nós ao vivo por satélite está a mãe da Franny, Diane.
– Oh, grande merda – murmurei com os dentes cerrados.
– Olá, querida – disse a minha mãe com um aceno, o seu cabelo grisalho
preso para trás com uma bandolete larga azul. – Vocês os dois ficam muito
bem juntos.
Ela estava na sua cozinha, revestida com o mesmo papel de parede floral
que tinha desde que eu estava no 2.º ciclo.
– Olá, mãe! – disse eu com uma careta, tentando não deixar transparecer
no rosto o horror que sentia. Pelo canto do olho, olhei de relance para o
Hayes, que estava a olhar para mim com uma cara simpática.
A Jenna virou-se para a imagem pixelizada gigante da minha mãe.
– Deve estar tão orgulhosa da Franny, a começar o seu próprio negócio
depois de tudo isto, e a encontrar o sucesso logo no início.
– Estou. Ela é a minha única filha, e eu preocupo-me sempre, porque é
isso que as mães fazem. Portanto, esta é uma grande notícia. O seu próprio
negócio! – A alegria era evidente na sua voz. O alívio também.
– E o que acha, Diane, eles não ficam tão bem juntos? – perguntou o Pete,
os dentes brancos a reluzir.
– Eu aprovo! – disse a minha mãe, juntando as mãos. – A Franny não traz
um namorado cá a casa desde a faculdade, por isso adoraria receber um
amigo cavalheiro em qualquer altura.
Era oficial. Eu ia morrer aqui, ao vivo na TV, no meio do estúdio da
NYN. Causa de morte: humilhação. Eu tinha a certeza de que o Hayes
estava a rir tal como o Pete e a Jenna, mas quando olhei para ele, só me fez
um pequeno sorriso.
– Obrigado, Diane. – O Pete acenou para ela no ecrã, e então ele e a Jenna
voltaram a sua atenção para nós novamente.
– Hayes – disse o Pete –, tentámos que os seus pais se juntassem a nós,
mas eles estão inacessíveis. Aparentemente, estão a fazer um cruzeiro num
rio europeu.
Posso jurar que os seus ombros relaxaram visivelmente com esta notícia.
– Bem, queríamos dar a estes dois a oportunidade de ver se será possível
uma verdadeira ligação amorosa. – A Jenna moveu-se para enfrentar a
câmara diretamente, anunciando isto para o público em casa. – Então,
construímos o nosso próprio espaço romântico aqui no estúdio. – Ela
apontou para uma área um pouco afastada do palco em que eu ainda não
reparara. Tinham posto uma mesa de café, com chávenas e um pequeno
vaso de flores.
O Hayes não respondeu de imediato; limitou-se a piscar os olhos, e por
um momento, vi o que parecia ser um olhar de puro horror no seu rosto. E
eu estava lá com ele. A última coisa que eu queria fazer era passar mais
tempo na TV, na experiência mais estranha da minha vida com o Hayes
Montgomery III.
– Porque é que vocês os dois não se sentam no nosso Café NYC, cortesia
do nosso patrocinador Folger, e ficam a conhecer-se um pouco?
O Hayes estava a sorrir, mas era o tipo de sorriso que se faz para disfarçar
um esgar. A Eliza não tinha mencionado nada sobre um falso encontro
quando me assegurou que a entrevista seria uma coisa rápida. A forma
como ele piscou os olhos em resposta foi uma denúncia: Também não tinha
sido informado sobre isto.
– Olhem, tal como ele disse, eu não sou o seu tipo. – Deixei o meu
sarcasmo entranhar durante um segundo, mas forcei uma risada para que as
pessoas achassem que eu estava totalmente bem com o que ele tinha dito.
Mesmo que não estivesse. – Eu realmente só vim aqui para devolver o
casaco e dizer obrigada – declarei, retirando-o do manequim sem rosto
posicionado ao meu lado. – Eu até o lavei a seco. Para eliminar as lágrimas.
Entreguei-lhe o casaco, os meus braços rígidos, e ele pegou nele com um
olhar relutante no rosto.
– Que esta seja uma lição para todos os cavalheiros que existem – disse o
Pete conscientemente. – Ou qualquer um que use um fato! Poderiam ser
senhoras também. Se quiser encontrar um bom partido, dê-lhes
simplesmente o seu casaco. Eu estou a tomar notas. Uma jogada subtil,
Hayes. – Ele inclinou-se para a frente e a brincar deu-lhe uma cotovelada,
como se estivessem a partilhar uma piada privada.
– Isso não corresponde ao que eu estava a tentar… – começou o Hayes,
sendo interrompido pela Jenna, que sabiamente pareceu sentir que estava na
hora de mudar de rumo.
– Bem, isto é simplesmente maravilhoso – disse ela. – Tudo bem então,
SubwayQts, vamos deixá-los ir ao que interessa! Hayes, Franny, muito,
muito obrigado por terem vindo. – Voltaremos após o intervalo, com a
previsão do tempo nas Ones, e algumas tendências da moda para o verão a
um preço que não arruinará a sua conta bancária.
– Passamos à publicidade! – gritou o realizador, e de repente entraram no
estúdio pessoas a correr.
O sorriso da Jenna desapareceu no segundo em que as câmaras foram
desligadas.
– Meu Deus, isto foi estranho – murmurou para o Pete, mas ainda alto o
suficiente para eu ouvir. E ela tinha razão. Tudo o que eu conseguia
recordar dos últimos cinco minutos, foi o Sexy de Fato essencialmente a
depreciar-me ao vivo na TV, o rosto gigante da minha mãe, e eu a mentir
sobre ter o meu próprio negócio. Querido Deus, porque disse eu isso?
Mas antes que pudesse desmaiar devido ao pânico, a Eliza apareceu e
colocou um braço no meu ombro, orientando-me na direção do «café». A
Priya caminhava ao nosso lado preocupada com uma onda de cabelo que
continuava a cair na minha cara.
– Ei, não me disse nada sobre isto de nos «conhecermos um ao outro» –
disse eu a Eliza. – Não que eu negasse um café, mas pensei que isto seria
uma coisa rápida.
– Mudança de última hora – disse ela friamente, puxando o micro preso à
gola do meu vestido para o desligar. – Os vossos micros vão ficar
desligados, por isso iremos filmar-vos de vez em quando no próximo
segmento.
– E estamos ao vivo em três, dois… – As câmaras estavam em mim e no
Hayes enquanto nos sentávamos um diante do outro, chávenas de café
quente à nossa frente. Esperei que ele dissesse alguma coisa, qualquer
coisa, mas ele apenas olhou para mim e para a mesa.
– Então – disse eu a brincar –, vens cá muitas vezes?
Ele fez o que soou como uma risada genuína.
– Oh, sim, todas as manhãs. Eu sou um cliente regular. Eles sabem o que
eu costumo pedir e tudo. Um macchiato de caramelo sem açúcar com dois
shots de expresso e chantilly. Vês? – Ele pegou na chávena e mostrou-ma.
Era café simples, mas eu mantive o tom.
– Impressionante – disse eu, as sobrancelhas erguidas.
Então ele levou-o à boca, bebendo um pequeno trago.
– Humm – gemeu, com todo o prazer. – Exatamente como eu gosto.
– Então – disse eu enquanto pegava no pequeno pote de natas e despejava
metade para dentro da minha chávena. – Eu não sou o teu tipo? – Não é que
eu precisasse de mais nenhuma confirmação deste facto, mas novamente a
minha boca movia-se mais depressa do que o meu cérebro.
– Olha – retorquiu, e o seu tom já não era de brincadeira. – Isso não era o
que eu estava a tentar dizer. Às vezes as palavras ficam emaranhadas no
meu cérebro, se isso faz sentido.
Fazia sentido. Muito sentido, para ser honesta. Eu sentia exatamente o
mesmo. Tanto é assim que tinha inventado um negócio na TV em direto.
Mas não ia dar mais nenhuma satisfação a este tipo hoje.
Fiz uma pausa propositada, simplesmente para espicaçá-lo um pouco
mais.
– Nada de mais. Acontece-me todos os dias. São águas passadas.
Fiz um gesto de indiferença e vi os olhos dele a dispararem de mim para a
mesa, e, de novo para mim. Eram tão escuros e tão bonitos. Não do tipo
brilhante que povoavam os romances que costumava tirar às escondidas das
prateleiras da minha avó Elsie no 2.º ciclo, livros que mais tarde embalei e
levei para o lar de idosos para onde ela teve de se mudar. Livros dos quais
tive de me desfazer no ano passado, quando ela morreu. Os seus olhos eram
escuros e turvos como o oceano no inverno. Sempre que se moviam, as suas
espessas pestanas pretas varriam-nos de uma forma hipnótica, rítmica,
como se estivessem a tentar fazer com que eu esquecesse o que tinha
acabado de acontecer.
– O que eu quis dizer era que acho que não sou o teu tipo. Eu não… –
passou os dedos pelo cabelo – … tenho jeito com as palavras, digamos.
Trabalho em finanças. Lido com dados e números. Nem sempre sei como
expressar o que sinto. Eu queria dizer que… – Ele estava à procura. – Eu
normalmente não saio com mulheres como tu.
Ergui as mãos.
– A sério? – Ri. – Só estás a piorar as coisas! Não viste a minha mãe ali, a
dizer ao mundo inteiro que eu não levava um namorado lá a casa há quase
dez anos? Eu não estou a ter um bom dia.
– Não. – Ele agitou as mãos à frente do peito. – Quero dizer, eu não
engato mulheres no metro.
Como era possível que um homem assim bonito também fosse tão
socialmente inepto?
– Bem, onde é que engatas as mulheres, então? – Bebi um gole do meu
café, segurando a chávena com os lábios enquanto engolia. Estava quente, o
que era reconfortante. – Na Bolsa de Valores?
Ele riu disto, e acenou com a cabeça como se dissesse: «Apanhaste-me».
– Bem, eu nunca serei apanhada a namorar um finance-bro, por isso… –
Cruzei e descruzei as pernas, que ainda estavam suadas, debaixo da mesa,
pontapeando-lhe a canela enquanto o fazia. – Desculpa – disse eu. – Por te
ter dado um pontapé. Não sobre o comentário do finance-bro…
Ele fez sinal com a mão, que era magra e musculada, como aceitação do
meu pedido de desculpas. As mãos podiam ser musculadas? Eu nunca tinha
sequer pensado nisso antes, mas as dele eram definitivamente musculadas.
E novamente, recordei a sensação das suas mãos nas minhas costas quando
se apoiou em mim no metro. Agora foi a minha vez de corar.
– Eu pareço-te um bro? – Ele inclinou-se para a frente na cadeira, a testa
franzida, mas não zangado. Parecia genuinamente curioso em relação ao
que eu pensava sobre ele.
– Quero dizer, usas fatos para ir trabalhar, estás numa lista da Forbes,
tens um apelido que é um nome próprio. Eu estou apenas a supor, mas
provavelmente também jogaste lacrosse na secundária e licenciaste-te numa
faculdade Ivy League.
– Futebol – respondeu ele, erguendo uma daquelas sobrancelhas
maravilhosamente exuberantes. – E definitivamente não andei numa Ivy.
– Ai sim? Onde andaste?
– Stanford. E Cal para a pós-graduação.
Eu ergui as mãos em sinal de derrota, deixando-as cair no colo. Estas
faculdades podiam não ser Ivy League, mas com certeza eram igualmente
difíceis de entrar. Estaria a falar a sério?
– Olha, vamos apenas fingir que esta coisa toda nunca aconteceu, OK? –
Eu deitei mais um pouco de café na minha chávena, e em seguida, outro
pedaço generoso de natas. – Quero dizer, não estás errado. Isto – gesticulei
entre nós – nunca vai acontecer.
Ele assentiu com a cabeça, embora um leve rubor revelasse embaraço, e
desviou o olhar enquanto respondia.
– Acho que podemos concordar que a rapariga que pensou que éramos
QTs é uma completa idiota.
– Ah, completamente. Não somos material QT. – Recostei-me na cadeira
e olhei para o local onde uma adolescente desfilava uma espécie de vestido
de verão para o Pete e a Jenna.
– Lamento que tenhas sido demitida do teu trabalho. – A sua voz estava
mais suave, quase gentil. – Mas é ótimo que já tenhas começado o teu
próprio negócio.
– Sim, eu sou assim! – disse, reunindo uma falsa confiança. – Sempre
pronta para a próxima aventura. Estou animada por… seguir em frente por
conta própria. Ver como é trabalhar para mim mesma.
– Então, decoras espaços? Compras móveis para as pessoas?
– Não exatamente – respondi, e pela primeira vez hoje senti um
entusiasmo genuíno no meu peito. Adorava falar sobre design de interiores.
– Isso é o que toda a gente pensa, mas é mais do que simplesmente decorar.
É sobre criar experiências. Captar, expressar e inspirar emoções dentro de
um ambiente.
Ele anuiu.
– A minha mãe há anos que tenta que eu contrate alguém para decorar o
meu apartamento. Ela diz que lhe falta personalidade.
– Deixa-me adivinhar. – Estudei-o, olhando para o seu rosto, o fato, a leve
ondulação do seu cabelo como faria com o traçado de uma casa. – Sofá de
pele. Provavelmente caro. Mesa de apoio. Modernista, elegante, preta.
Nenhuma cómoda no quarto. Lençóis de cores neutras. Tens intenção de
pendurar arte nas paredes, mas ainda não o fizeste e, sejamos honestos,
provavelmente nunca o farás.
Ele encolheu os ombros e tomou um gole da sua chávena e, em seguida,
ergueu-a na minha direção, um brinde às minhas habilidades.
– És boa – disse ele. – Aposto que os teus serviços já são muito
procurados.
Eu apenas assenti com a cabeça, fingindo que ele tinha razão.
– É por isso que faço o que faço, e que tu fazes o que quer que faças.
Ele limpou a garganta.
– Leste algum bom livro ultimamente?
Eu inclinei a minha cabeça para o lado.
– Porquê? Precisas de uma recomendação?
Ele encolheu os ombros.
– Só estava curioso para saber o que gostas de ler.
Pensei durante um momento e depois animei-me.
– Ooooh, gostas de seitas?
Ele pareceu muito confuso com esta pergunta.
– Porque é que alguém gostaria de seitas?
– Não, no sentido de te juntares a elas – expliquei. – Ler sobre elas.
Ele abanou a cabeça, lançando-me outro olhar perplexo.
– Certo, tudo bem. – Soltei um suspiro, desistindo da recomendação do
livro sobre seitas. – Qual foi a última coisa que leste?
– Um livro chamado A Arte de Fazer Acontecer – respondeu ele. – É
sobre produtividade. As pessoas estão obcecadas com este livro. Há
imensos encontros e aulas a que podes ir sobre este assunto. Eu almocei
com um cliente na outra semana que me disse que este método mudou o seu
cérebro.
– Então é… – Fiz-lhe um gesto com a mão, para que ele terminasse a
minha frase, mas ele não aproveitou a deixa. Tudo bem. – Uma seita.
O Hayes sorriu-me e depois abanou a cabeça, como se não soubesse bem
o que pensar de mim. O sentimento era mútuo.
Ficámos um pouco em silêncio.
– Franny é diminutivo de Frances? – perguntou, e eu tive de admitir que a
sua estranheza era meio sedutora.
– Não. – Torci o nariz. – Embora toda a gente pense que é. É Francesca.
– Francesca – repetiu ele. – Gosto.
Eu abanei a cabeça.
– Eu sou Franny, a menos que sejas a minha avó, que está morta, ou a
minha mãe quando está chateada comigo. O meu padrasto chama-me
Franny-Bananny, o que eu odiava quando estava na escola secundária.
– Talvez eu te possa chamar Francesca-Bananesca – brincou ele.
– Ah, sim, isso soa muito bem. – Assenti com a cabeça. – Seria incrível
gritado durante o sexo.
Oh, meu Deus. Estas palavras realmente saíram da minha boca, e não
havia como suprimi-las. Evitei os seus olhos, deixando o horror tomar conta
de mim enquanto me forçava a fixar uma câmara instalada no canto, como
se fosse a coisa mais interessante que já tinha visto. Parecia que havia
passado uma hora quando me virei para encará-lo, esperando que ele
estivesse a evitar o meu olhar. Em vez disso, ele apenas sorriu e olhou
diretamente para mim, de uma forma tão íntima que tive de desviar o olhar
novamente. E é claro que o facto de não conseguir suster o seu olhar só me
fez sentir ainda mais constrangida, e o meu cérebro começou a zumbir com
o desejo de mover o corpo.
Bebi o resto do café, mas de alguma forma a chávena falhou os lábios e o
café escorreu pelo meu queixo e para cima do vestido. Antes de eu perceber
o que estava a acontecer, o Hayes inclinou-se para a frente com o seu
guardanapo, mas quando tentou passar-mo, o seu cotovelo derrubou o pote
das natas, que rolou para cima do meu colo e depois estilhaçou-se no chão.
– Oh, meu Deus, lamento muito – disse ele, pegando no meu guardanapo
e limpando a mesa freneticamente enquanto as natas pingavam na minha
perna.
– Por favor, não leves a mal… – Suspirei enquanto limpava o café que já
tinha ensopado o meu vestido. – Mas este é definitivamente o pior primeiro
encontro que já tive.
*

Quando finalmente acabou, a Eliza encaminhou-me para fora do palco e


para o camarim. Eu atirei-me para o sofá, ansiosa por me esconder. Assim
que ela saiu, apontei um dedo médio na sua direção.
– Minha – disse a Lola, passando as mãos pelo cabelo amarelo-branco –,
isto foi um espetáculo de merda.
A Cleo fez um olhar severo na sua direção.
– Lo…
– Desculpa, mas foi mesmo. A tua mãe? – Ela fez um esgar, a boca
apertada.
A Cleo a contragosto concordou com a cabeça.
– OK, sim. A Lola tem razão. Isto foi duro.
– Tens sorte que o domínio FrannyDoyleDesign.com estava disponível –
acrescentou a Lola.
– Nós comprámos-te a URL – disse a Cleo, sentando-se ao meu lado.
– Vocês as duas são incríveis. – Fiz uma pausa para respirar, deixando o
cérebro processar a loucura da manhã. – Estou a tentar não me passar, mas
não estou a conseguir.
– Como raio saiu aquilo da tua boca? – A Lola parecia estar a tentar não
rir.
– Eu não sei! – Pressionei as palmas das mãos na minha testa. – Só queria
passar a ideia de que tinha tudo controlado.
– Eu não posso acreditar que eles vos fizeram ficar ali sentados durante
quinze minutos a fingir um encontro – disse a Cleo, incrédula.
– Confia em mim, foi ainda mais estranho do que parecia na TV. – Enfiei
o meu rosto numa almofada. – Eu disse ao Hayes que este foi o pior
primeiro encontro que já tive. Acontece que ele é uma espécie de idiota.
– Ai! – disse a Lola com uma careta. – Mas falando a sério, como pode
ele ser tão atraente e tão estranho ao mesmo tempo? Ele foi tão imbecil.
– Será que ele é tímido? Ou estava tão nervoso quanto eu? – atirei. – Ou
talvez tenha sido criado por lobos numa mansão elegante.
– Bingo – declarou a Cleo abanando o dedo. – Eles disseram que os seus
pais estavam num cruzeiro. Parece uma farsa.
– Em sua defesa, devo dizer que fiz uma piada muito idiota sobre sexo e
depois entornei café por cima de mim mesma – disse eu enquanto me
sentava e ajustava o vestido. – Não que eu estivesse no meu melhor durante
o nosso falso encontro.
– Bem, felizmente nunca mais terás de o ver – disse a Cleo, pondo um
braço em volta do meu ombro.
Senti uma estranha pontada de deceção quando ela disse isso, mas
ignorei-a rapidamente.
– Graças a Deus – disse com um grunhido. – Porque o meu histórico com
este tipo é uma desgraça.
A Lola inclinou-se sobre a mesa e passou queijo creme num bagel de
sésamo.
– Estiveste muito bem, Fran – disse ela, dando uma grande dentada
enquanto voltava para a cadeira em que estava sentada. – Ele foi terrível.
– Termina isso, e depois vamos – implorei. – E nunca mais falamos desta
manhã.
– Oh, vamos falar sobre isto de novo – disse a Cleo com uma risada. –
Tipo, todos os dias para o resto da tua vida.
– Pois vamos. Desculpa. – A Lola assentiu com um aceno exagerado da
cabeça. – Na verdade vou abordar este assunto sempre que tiver uma
hipótese. – Ela endireitou-se para ficar mais alta, abrindo o peito, fingindo
conversar com um desconhecido. – O que foi? Adoras ver a New York
News? Já te contei sobre aquela vez em que um tipo idiota disse à minha
amiga incrível que ela não era o tipo dele no programa da manhã?
– És hilariante – respondi.
A Cleo levantou-se e inclinou-se sobre mim, dando um beijo no topo da
minha cabeça.
– Tu és definitivamente o nosso tipo.
– Na verdade, és exatamente o meu tipo – disse a Lola de forma
tranquilizadora. – E, olha, não tinhas um macaco na cara desta vez. Isso é
definitivamente uma melhoria.
– Eu disse-te, não era um macaco! – afirmei com uma risada. – Era uma
migalha.
Ergui-me do sofá, agarrei na minha mala e coloquei-a por cima do ombro.
– OK, vamos lá.
A Lola deu-me o braço.
– Hora de brindar à Franny Doyle Design!
A Cleo tirou outro bagel da mesa e colocou-o dentro da mala.
– Esperta – disse eu, soltando-me da Lola por um segundo para fazer o
mesmo.
A Cleo aconchegou-se do meu outro lado, e saímos de braços dados,
ocupando o máximo de espaço que conseguíamos enquanto caminhávamos
pelo longo corredor. Quando saímos para o caos do centro da cidade em
plena hora de maior movimento da manhã, a Lola esticou os braços para o
céu, depois pousou um no meu pescoço enquanto caminhávamos, puxando-
me para perto de si.
– Ei, Fran, já te dissemos que te amamos?
A Cleo, que já estava ao telemóvel a tratar de trabalho, ergueu os olhos
em concordância.
– Grande momento. Quem precisa de um SubwayQT quando nos tem a
nós?
Senti-me inundada de amor por elas, as minhas pessoas preferidas, a
minha família não consanguínea.
– Também vos amo, suas idiotas.
CAPÍTULO QUATRO
HAYES

– Q ueres as boas ou as más notícias primeiro?


A Eleanor de alguma forma conseguiu pronunciar as palavras com a boca
cheia de papas de aveia. Eu estava a cortar um pacote de molho quente com
uma tesoura. Normalmente fazíamos a nossa reunião semanal por volta das
16h00, mas estávamos numa sexta-feira antes de um fim de semana
prolongado, e por isso antecipámos para a manhã.
– Que tipo de pergunta é essa? – questionei, despejando o molho quente
por cima do meu wrap de omelete só de claras. – Sabes que eu sou o tipo de
pessoa que prefere sempre as más notícias primeiro.
Gostava de pensar que era melhor presumir que o copo estava meio vazio,
porque seria uma boa surpresa se descobrisse que poderia estar meio cheio.
Esta lógica tinha enlouquecido a Angie. «Onde está a alegria nisso?»,
dissera ela uma vez, exasperada durante um passeio de carro a Montauk
para um fim de semana prolongado com os meus pais. Eu estava a queixar-
me prematuramente, supondo já que seria uma banhada de férias. «Desta
forma – expliquei com naturalidade –, vou apreciar mais se não for uma
porcaria.»
Acabei por perceber que, por essa altura, quase tudo o que eu fazia
deixava a Angie louca, a minha obsessão pelo trabalho estava no topo da
sua lista. Não me passou despercebido o facto de que esta memória estava a
infiltrar-se no meu cérebro durante uma reunião de trabalho matinal.
– As boas notícias, então! – disse a Eleanor enquanto polvilhava um
pacote de açúcar mascavado na sua aveia. – Eu pedi ao Tyler para compilar
todos os pedidos de informações que recebemos desde a tua adorável
aparição na New York News. – Ela girou na cadeira para enfrentar o
computador, clicando no teclado. – De acordo com a contagem dele,
tivemos – ela percorreu uma folha Excel – vinte e seis, no total. Agora,
garantidamente, pelo menos dez foram propostas de casamento ou algum
outro tipo de proposta.
– Bem, acho que é melhor isso do que as pessoas me chamarem idiota –
disse eu, com uma pitada de alívio.
– Ah, seu tolinho. – Ela girou a cadeira na minha direção, um olhar
excessivamente simpático no rosto, usando-o para causar impacto. –
Tivemos muitos desses também. Pedi ao Tyler para não os incluir neste
documento. – A Eleanor estendeu a mão para me dar uma palmadinha na
cabeça, mas eu afastei-lhe a mão e baixei-me antes que ela pudesse chegar
até mim.
– Eu realmente agi como um idiota, hein? – Inclinei-me para a frente para
apoiar os cotovelos nos joelhos. Nos últimos dias, estive a relembrar a
minha conversa com a Franny, o que era algo que raramente fazia, mesmo
depois de uma terrível reunião de negócios.
– Eu definitivamente já te vi em melhores momentos – disse a Eleanor
com uma risada cheia de afeto.
– Graças a Deus que o áudio do nosso encontro de café não foi gravado –
disse eu com um suspiro. Normalmente não fico a matutar nas coisas, e isto
começava a irritar-me, o não conseguir libertar-me dos sentimentos
estranhos que os nossos quinze minutos de fama tinham despertado. – Foi
tão desconfortável. Perguntei-lhe que livros lia.
– E? – perguntou a Eleanor.
– Não sei. Ela disse algo a propósito de um livro sobre seitas, e eu fiquei
pasmado – respondi.
A Eleanor encolheu-se, os ombros quase nas orelhas.
– Adoro livros sobre seitas – disse ela, e, embora a sua resposta não me
surpreendesse, eu ainda estava a ter dificuldade em entender a Franny e as
seitas. O facto de estar a tentar entender era preocupante por si só.
– Bem, então, devias ir a um encontro de café televisionado com ela –
respondi, o sarcasmo evidente no meu tom.
– Pois devia – afirmou ela enquanto bebia uma lata de água com gás. –
Podemos falar sobre papel de parede. Ela parece supersimpática.
Definitivamente o meu tipo.
A Eleanor ergueu as sobrancelhas para mim, esperando a minha reação.
Em vez disso, apenas dei uma dentada gigante na minha comida, não lhe
dando a satisfação de me irritar.
– Talvez apenas precises de ir a um encontro de verdade – sugeriu. –
Como um limpa-palato.
Eu abanei a cabeça.
– Não consigo lidar agora com aplicações de encontros.
– Deixa-me então tratar disso. – Ela ficou animada com a ideia, um
sorriso no rosto. – Vai ser divertido. Tenho algumas amigas simpáticas e
giras que ainda não conheceste.
A ideia de mudar parecia atraente. Precisava de me livrar deste
sentimento estranho e inquieto, e rapidamente.
– Vamos a isso – respondi. A Eleanor apreciava um desafio. – Faz o teu
melhor.
Comemos em silêncio durante um minuto até que percebi que não
tínhamos falado sobre as suas más notícias.
– Ei – disse eu com a boca cheia de comida. – Qual era a outra coisa?
A Eleanor suspirou, um olhar resignado no rosto. Isso não era um bom
sinal.
– O Damien Yi acabou de nos deixar.
O meu estômago contraiu-se.
– O que queres dizer com «nos deixar»?
– Ele foi contratado para decorar o novo apartamento de uma celebridade
em Londres – explicou ela, claramente irritada.
– Mas nós tínhamos um contrato. – Eu mantive a voz calma, firme.
Mesmo quando as notícias eram indutoras de pânico, eu nunca entrava em
pânico. Pelo menos não o fazia à frente de outras pessoas. Mas o meu
cérebro já estava em sobrecarga, a trabalhar a todo vapor para tentar
descobrir como poderíamos resolver isto.
– Pois tínhamos, mas a nova oferta era competitiva e a favor dele.
Tínhamos uma cláusula de cancelamento no contrato, por isso vamos
receber o nosso dinheiro de volta, se isso serve de algum consolo.
– Porra. – Passei a mão pelo cabelo. Tínhamos definido abrir as novas
instalações na primeira semana de agosto, e já tínhamos adiado a mudança
cinco meses porque o arquiteto precisava de mais tempo.
Com toda a perturbação da mudança iminente, deixámos a maior parte
dos membros da nossa pequena equipa trabalhar a partir de casa, mas o
escritório era o coração da nossa operação, e eu estava ansioso por receber
todos de volta pessoalmente no nosso novo espaço. As obras já tinham sido
concluídas, e tínhamos programado um telefonema esta semana com o
Damien, o queridinho do mundo do design sustentável, para tratar de
móveis e datas de entrega. Tudo deveria culminar numa festa de
inauguração do nosso novo escritório, que destacaria o nosso compromisso
com a sustentabilidade, incluindo as secretárias que usamos.
– Eu não fiz nada, porque ele é alguém com quem vamos querer trabalhar
no futuro – explicou a Eleanor de forma pragmática.
– Entendo isso – disse eu –, mas já tivemos a reunião inicial. Ele disse
que esta semana ia fazer a escolha de todo o material a entregar. É mesmo
uma grande chatice.
A Eleanor deu outra dentada e assentiu com a cabeça, batendo os dedos
contra os lábios enquanto pensava.
– Conseguimos resolver isto – disse eu, tentando reunir alguma confiança
cega. Afinal, era isto que eu e a Eleanor fazíamos melhor: resolver
problemas, pôr água na fervura, enfrentar uma crise e abraçá-la até ao fim
sem que ninguém se apercebesse. Mas a saída de Damien era um enorme, e
inesperado, desafio e deitou por terra toda a nossa organização e
programação.
A minha mente recordou aquilo que a Franny dissera enquanto estávamos
sentados frente a frente, o café a fumegar naquelas chávenas idiotas da
marca NYN: Trata-se de criar experiências. Pensei, apenas por breves
segundos, como resolveria ela este desafio. Ela disse, contudo, que estava
cheia de trabalho, por isso estava fora de questão. Além disso, eu tinha-a
insultado na TV. Não só à frente de metade da cidade de Nova Iorque, mas
também da sua mãe. Com certeza ela não iria querer falar comigo de novo,
muito menos trabalhar comigo. Tentei encaminhar a minha mente noutra
direção, mas sem sucesso, imaginando como o cabelo dela estaria neste
exato segundo. Se estava preso atrás de uma orelha ou a cair-lhe sobre os
olhos.
– Ah, totalmente – disse a Eleanor, arrancando-me dos meus
pensamentos. – Nós simplesmente não temos muito tempo. Especialmente
se também estivermos a tentar resolver a logística do escritório da Costa
Oeste. Mas já falei com o Paul, pois ele conhece todos os designers de
interiores da cidade.
Precisávamos que o Paul tratasse disso. A lista de convidados da festa
incluía as pessoas mais importantes do mundo financeiro e ambiental,
pessoas que queríamos – não, precisávamos – de impressionar. Se não
resolvêssemos isto, iríamos parecer amadores, o que não seria bom para os
nossos negócios ou para os nossos resultados financeiros. Ou para os meus
níveis de stresse, aliás.
De repente, a ideia de um cocktail pareceu algo essencial.
– Olha, tu e o Henry não querem vir tomar uma bebida hoje à noite? –
perguntei à Eleanor.
– Vou para Montauk, lembras-te? – respondeu, um olhar complacente no
rosto. – Vou ter com o Henry ao Jitney depois do almoço.
A Eleanor voltou para o seu computador, abrindo a caixa de entrada.
– Vais estar com a Perrine este fim de semana? – A pergunta era casual,
mas eu sabia o que ela queria: a Eleanor estava à procura de informações.
– Acho que sim – respondi, sem tirar os olhos do ecrã do meu telemóvel.
A Perrine ia estar de serviço durante todo o fim de semana. Mas talvez
pudéssemos estar juntos. Portanto, em teoria, não era uma mentira.
– Ei! – Ela fez uma pausa para olhar para mim enquanto se levantava e
começou a empilhar o lixo na sua mesa. – Porque não tiras o resto do dia de
folga? Dar a ti mesmo uma pequena pausa para relaxar?
– Não acabámos de estabelecer que temos uma tonelada de merdas para
fazer? – Inclinei-me para trás na minha cadeira, os braços cruzados.
– Sim, mas a cidade inteira vai fechar hoje à uma hora para o fim de
semana prolongado. Precisas de um dia inteiro de folga, mas eu sei que não
te vais permitir isso, por isso tira pelo menos algumas horas.
– Vou pensar nisso – disse eu para acalmá-la enquanto ela pegava num
frasco de Tums que tinha colocado na sua mesa no início desta semana e
abria a tampa, colocando dois comprimidos rosa-pálido na boca.
– Uma tarde para relaxar, Hayes – disse ela, e percebi que estava
aborrecida por eu estar a resistir.
Encolhi os ombros.
– Estou acordado desde as cinco. Já fiz todo o meu relaxamento. – Tinha
feito a minha corrida. Tomado duche. Percorrido todas as aplicações das
redes sociais no meu telemóvel.
Não me restava mais nada a não ser trabalhar.
– Eu sei, mas… – Ela abanou a cabeça com irritação. – Uma tarde! A
empresa pode sobreviver sem ti durante uma tarde, juro.
Ela tinha razão. O problema era que eu não conseguia sobreviver sem o
trabalho. Tinha percebido isso graças às quatro sessões de terapia que fizera
depois que a Angie e eu nos separáramos. Ela culpou a minha carreira, e as
horas que eu lhe dedicava, como a razão da nossa relação ter estagnado,
esgotado.
Eu nunca neguei isso; eu queria que as coisas funcionassem entre nós
mais do que queria ter razão em relação à situação. Mas ela também
dedicava longas horas a uma carreira que adorava. Talvez fosse mais fácil
para ela culpar o trabalho do que dizer-me a dura verdade, que despontou
mais tarde: ela já não estava apaixonada por mim e questionava-se se
alguma vez tinha mesmo estado apaixonada por mim.
E por isso, voltei a virar-me para o trabalho quando a minha relação
desmoronou e passou a ser tratada pelas mãos de advogados. Eu deixei de
fazer terapia, porque estava muito ocupado no escritório. Concentrei-me em
transformar a Arbor em algo maior do que imaginávamos originalmente.
Sem o meu trabalho e esta empresa, sentia-me sem propósito e entediado. A
Eleanor também sabia isto sobre mim. É por isso que ela tinha deixado de
me pressionar.
– Mas olha – disse eu, com as mãos à frente do peito como se dissesse
«Tcharan!». – Não pus gravata hoje. Isto não conta para alguma coisa?
Ela riu, mas não me respondeu, escolhendo em vez disso concentrar-se no
seu computador e tomar um gole gigante da sua seltzer.
– Ei. – Aclarei a garganta enquanto me levantava para pôr a minha
embalagem de comida no lixo. – Achas que deveria entrar em contacto com
a Franny e pedir-lhe desculpa por ter sido tão estranho na New York News?
– De que se trata, exatamente? – A Eleanor olhou para mim e franziu a
boca para o lado, o seu sinal revelador de que o cérebro estava a
congeminar alguma coisa.
– Estou a sentir-me um idiota desde que fiz aqueles comentários
estúpidos na TV. – Esfreguei a mão ao longo da nuca. – E claramente fui, se
as pessoas nos enviaram e-mails sobre isso.
Eu, na verdade, não queria reviver a nossa estranha conversa na televisão
novamente, mas também não tinha sido capaz de a esquecer.
– Desculpa por te ter pressionado a fazer isso – disse ela, um olhar
arrependido no rosto. – Mas não acho que tenha sido assim tão mau.
– Confia em mim, fui mesmo… – Soltei um suspiro, tentando descobrir
as melhores palavras para me descrever. Em vez disso, disse: – Sabes…
como posso ser.
– Pois sei. Orgulhoso e teimoso e ocasionalmente um idiota quando se
trata de expressar qualquer coisa que se assemelhe a uma emoção. – Ela
inclinou-se para a frente e apertou o meu braço.
Bem. É melhor deixar que a Eleanor encontre todas as palavras. Abri a
boca para protestar, mas ela interrompeu-me.
– Mas também sei como és realmente gentil, Hayes – continuou. – E sei
que esta coisa toda acabou por ser um erro, mas lembra-te de que começou
contigo a fazer algo simpático.
– Se bem me lembro, tu e a Perrine concordaram que eu agi, e cito, como
um «chauvinista típico».
– Bem, sim, isso também, talvez – disse ela. – Mas na tua essência és
bom, Hayes Montgomery. Eu sei que és, e nunca te esqueças disso.
Ela sorriu, um dos seus raros sorrisos sérios.
– Talvez ela conheça alguém – disse a Eleanor, o seu cérebro mudando o
chip para o modo de trabalho. – Para o nosso espaço. Ela é uma designer.
Certamente tem contactos.
Virou-se para o computador, mas voltou a cabeça para mim quase de
imediato.
– Ou! – Ela acenou com o dedo indicador para sinalizar que tinha
acabado de ter uma ideia brilhante. – Nós poderíamos simplesmente
contratá-la – disse ela. – O dinheiro é melhor do que um pedido de
desculpas, certo? Além disso, pode ser giro trabalhar com uma designer em
ascensão.
– Estás louca? – Apertei um pouco mais a mão à volta da minha chávena
de café. – Perguntei-te se deveria enviar-lhe um pedido de desculpas rápido,
não contratá-la.
A Eleanor encolheu os ombros.
– Como preferires.
Mais tarde, muito depois da Eleanor ter agarrado na sua mochila de lona e
saído apressada do escritório, caminhei até casa, o ar abafado, mas um
pouco frio, a cidade já vazia. Tracei o meu fim de semana na cabeça:
trabalhar, correr, trabalhar. O Central Park estaria tranquilo, o que seria
bom. Talvez pudesse finalmente pendurar alguma arte. (A Franny tinha
razão sobre a falta de personalidade do meu apartamento.) Assistir à série
Yankees-Red Sox. Podia encomendar comida. Podia estar com a Perrine.
Havia muito que fazer. E sempre disse a mim mesmo que o silêncio não
me incomodava, achava que tinha sido feito para ser independente, que da
solidão brotavam ideias e inovação. Tinha aceitado isto como consequência
de um casamento fracassado. Era o que merecia, mais que não fosse, por
não ter percebido que as coisas tinham descarrilado até ser tarde de mais
para salvar a nossa relação.
Mas recentemente, o silêncio da minha vida estava a começar a parecer
demasiado. Eu tinha pessoas que me amavam e a quem eu também amava,
mas sempre que chegava a casa, a um apartamento vazio, no final do dia, a
solidão que sussurrava nas minhas costas transformava-se num rugido.
Talvez, raciocinei, enquanto virava no Central Park West, fora isso que
tinha sido tão emocionante, tão enlouquecedor naquela manhã algumas
semanas atrás no metro. E porque, apesar de ter dito um monte de coisas
idiotas à Franny na nossa entrevista, não conseguia deixar de pensar nela.
Tinha sido uma descarga de algo frustrante e emocionante ao mesmo
tempo. Durante um segundo, a minha vida tinha vibrado. E eu gostei desse
sentimento. Gostara muito.
*

– O que é isto? – A Eleanor ficou a olhar para a pasta que deixei na sua
mesa. Era o dia seguinte ao fim de semana prolongado, quase 8h00, mas já
estávamos a trabalhar em alta velocidade.
– Uma lista de possíveis designers. Algumas imagens do seu trabalho. Há
uma mulher fantástica que fez o novo escritório da Tesla.
– Olha para ti, a entrar em ação. – Ela deu-lhes uma vista de olhos e
acenou para mim em aprovação. – Nada mal.
Recebi o elogio dela com um encolher de ombros.
– Tive algum tempo livre este fim de semana. – Tempo livre, sem
planos… a mesma coisa.
– E agora preciso que me faças outra coisa. – O seu sorriso era perverso,
brilhante. Ela estava a desfrutar disto. – Tens de ter um encontro com a
colega de trabalho do Henry, a Serena.
Quando ela tinha dito que me queria arranjar um encontro, eu não ficara
com a ideia que tinha querido dizer imediatamente.
– E submeter outra vítima inocente à minha maneira de ser? – zombei,
sacudindo a cabeça.
– Oh, meu Deus – resmungou ela com um revirar de olhos. – Já tínhamos
concordado que foste um idiota com a Franny.
– Na TV em direto – acrescentei. Sim, isto continuava a incomodar-me.
– Hayes, isso é passado. Está na hora de lidar com isso e seguir em frente
– retorquiu ela, como se isso fosse uma coisa fácil de fazer.
Mas o meu cérebro não estava a deixar-me seguir em frente. Em vez
disso, reproduzia essa memória uma e outra vez, ainda.
– Não precisa de ser um romance – continuou ela, a sua voz a mudar para
o modo life-coach, animada e confiante. – Torna-te amigo dela, tanto me
faz. Precisas de ver outras pessoas além… tu sabes.
Ela gesticulou amplamente, acenando com a mão no ar como se estivesse
a apresentar o nosso escritório como um prémio num concurso.
– De ti – disse eu, a minha voz monótona. Não estava com vontade de
entrar na brincadeira.
– E da Perrine, sim. – O seu olhar mudou de brincalhão para gentil. – Eu
não estou a querer ser uma chata, tu sabes – disse ela, empurrando para trás
a sua cadeira para olhar bem para mim. – Tu és meu amigo. Posso
preocupar-me, sabendo que estás sentado sozinho no teu apartamento todas
as noites.
– Eu não estou preocupado – protestei, mas ela tinha razão.
– Tu sabes o que eu quero dizer – disse ela, e eu sabia. – E olha, tu sabes
que eu adoro fazer de casamenteira, e mantive a minha boca fechada desde
que tu e a Angie terminaram. Isso já foi há uns setecentos anos.
– Três – corrigi.
– Tanto faz – disse ela, acenando para mim.
Suspirei.
– Tudo bem. – Talvez fosse bom conhecer alguém. Eu tinha basicamente
recorrido a aplicações de encontros no ano passado, e não tinha conseguido
chegar ao quinto encontro com ninguém que conhecera.
– Ela é uma grande corredora, como tu, e está a treinar para a Maratona
de Nova Iorque. – Os seus olhos iluminaram-se, animados com a
possibilidade. – Ela gosta muito do seu trabalho e faz voluntariado. Uma
verdadeira personalidade tipo A. Ela é incrível. Também é gira e loura. É
tipo a tua mulher perfeita.
Aparentemente, eu tinha dado a todos na minha vida a impressão de que
só namorava com mulheres louras. Mas ainda assim, ela parecia
interessante e atraente de uma forma que acalmou o meu cérebro em
turbilhão.
– Um encontro – disse eu.
– Não fiques muito animado, amigo.
As suas palavras eram divertidas, mas eu tomei-as como um desafio. OK,
tudo bem, disse a mim mesmo. Aceito.
CAPÍTULO CINCO
FRANNY

Q ue tal?
Uma selfie da Lola com um vestido preto curto e botins de salto alto
surgia imediatamente após o seu texto. O cabelo louro oxigenado estava
penteado para trás, os lábios pintados de um vermelho-vivo e convidativo.
Uma estrela do rock.
A Cleo respondeu com um emoji com corações nos olhos antes de eu
poder terminar de escrever a minha resposta, que foi um curto e incisivo
SIMMMM. E estava a falar a sério. A Lola parecia uma bomba sexual. Mas
ela sempre pareceu uma bomba sexual, mesmo quando estava no meu sofá
com a camisola da NYU e o rímel de um dia, a beber uma Gatorade e a
comer um bagel de ovo e queijo depois de uma noite de farra.
Sempre que a provocávamos – em parte por ciúmes – dizendo que ela
parecia sexy, independentemente do que fazia ou vestia, ela apenas dizia,
«Sou Escorpião», com um encolher de ombros. A Cleo ajudou-a a fazer o
seu mapa astral há alguns anos, e agora essa era a sua desculpa para tudo.
Demasiado dramática? Escorpião. Rápida a esticar um dedo aos táxis que
passam com o semáforo amarelo? Escorpião. A amiga mais feroz e leal do
planeta, que também guarda rancor como ninguém? Escorpião, querida.
Portanto, sim, não era nenhuma surpresa que ela deslumbrasse num
primeiro encontro.

Também pareço 4% francesa? De acordo com os resultados dos meus


testes de ADN, sou très chic.
Todas nós cuspimos nos pequenos recipientes de ADN no brunch depois
da minha aparição na NYN, e a Lola tinha-os enviado pelo correio. Foi
espantosamente fácil; algumas semanas depois de receber a amostra, a
empresa enviava um e-mail com os resultados do ADN, as predisposições
de saúde e quaisquer ligações a familiares que possam estar na sua base de
dados. Os resultados da Cleo tinham chegado há alguns dias, e como era de
esperar, ela era toda coreana. A Lola tinha acabado de receber um e-mail e
aparentemente tinha algo de francesa e agora aproveitava isso quando valia
a pena.
Ainda não recebi nada, escrevi eu.
Já disseste à tua mãe?, perguntou a Cleo.

Não. Estou a agir com ela na base do estritamente necessário.

Nada mais justo, para dizer a verdade. Foi assim que a minha mãe sempre
abordou a informação que me deu, especialmente quando se tratava da
identidade do meu pai biológico. «Conheci-o numa festa com fogueira, na
praia», dissera ela quando a pressionei pela primeira vez, por volta dos
meus doze anos. «Ele estava de visita à família, era de fora da cidade. Só
nos conhecíamos há uma semana.»
Ela criara-me sozinha até conhecer o meu padrasto, Jim, no trabalho,
quando eu tinha quatro anos. Aos seis, ele era um elemento permanente na
minha vida, e casaram-se quando eu tinha oito anos. O Jim era calmo e de
confiança, como um farol, e completou a nossa pequena unidade familiar.
Ainda assim, eu sempre fora a excêntrica, que preenchia as paredes do
meu quarto com fotografias de moda antigas a preto e branco, que recolhia
livros de arte das vendas de garagem, que boicotara o caminho acessível da
UConn para a indutora de dívidas NYU. Estava constantemente a desviar-
me do rumo daquilo que se esperava de mim.
Assim, embora estes resultados dos testes de ADN que se aproximavam
parecessem uma intrusão no passado da minha mãe, também pareciam um
potencial acesso ao meu próprio passado. Verifiquei novamente o meu e-
mail. Nada.
Já conhecemos essa pessoa?, perguntei, mudando de assunto, tentando
sacar alguma informação.
Não!, foi tudo o que disse.
Bem, pelo menos algo de bom saiu daquele pesadelo, escrevi de volta,
encolhendo-me ao recordar o olhar do Hayes quando tinha feito aquela
piada de sexo estúpida.
A Cleo entrou na conversa com um GIF do Kevin do The Office a rir.
Também não era surpresa nenhuma que a Lola era um pouco tímida com
os detalhes. Ela era geralmente muito reservada sobre a sua vida sexual, e
sobre o seu dia a dia em geral. Alimentava-se do facto das outras pessoas
serem como livros abertos – e tinha feito carreira à custa disso –, mas
partilhar o drama de outra pessoa permitia-lhe esconder a sua vida.
OK, então vocês vão safar-me se este encontro for um fiasco? escreveu ela.
Vou encontrar-me com ela no Firefly às 7.
Sim. O ponto final no fim da resposta da Cleo deu a entender a sua
irritação. «Dah», parecia dizer.
Todas nós sabemos o que fazer!, acrescentei.
Eis como funcionava o nosso código de amigas: Primeiro, enviávamos
uma mensagem de texto umas às outras com os locais dos nossos encontros,
porque a segurança vinha sempre em primeiro lugar, obviamente. Depois
ficávamos a par dos acontecimentos pós-encontro, normalmente apenas
para comentar os níveis de constrangimento que se seguiam, com a
ocasional história dos pormenores sórdidos à mistura. E se as coisas
corressem mal, safávamo-nos sempre com uma mensagem de texto ou um
telefonema, ou os dois.
No tempo em que vivíamos todas juntas, deslizávamos para um
compartimento no bar pouco recomendável ao fundo da rua onde
morávamos num quarto andar sem elevador, pedíamos uma rodada de shots
de tequila, e partilhávamos os detalhes horríveis sobre o que tinha corrido
horrivelmente mal. O que – para ser sincera –, acontecia muito nos
primeiros encontros. Ao longo dos anos, chegámos ao ponto de nos irmos
certificar pessoalmente, espreitando em bares e clubes, cafés e parques, só
para termos a certeza de que estava tudo bem. Afinal, era isto que definia
uma amizade.
Vou dar aulas até às 9, verifico o telemóvel no intervalo, escreveu a Cleo.
Estou prestes a conhecer o Grant e o Nate no Soho: redecorar quarto para
bebé, escrevi de volta. Ia encontrar-me com o colega de trabalho da Lola e
o seu marido no Café Gitane, um pequeno café na Prince Street. Ela tinha-
me posto em contacto com eles por e-mail, porque estavam à procura de
alguém para decorar um quarto para o seu novo bebé. Era a minha primeira
verdadeira reunião de trabalho depois de ter sido despedida, e estava
entusiasmada com esta oportunidade.
Bem, se não tiverem notícias minhas dentro de uma hora ou duas, enviem
os cães de guarda, respondeu a Lola.
Enviei-lhe um GIF de um golden retriever a cheirar um cupcake, e ela fez
like com um coração, e depois ficou em silêncio.
*

O Café Gitane estava tranquilo às 17h00, antes de a corrida para o jantar


começar a sério. Era um lugar minúsculo, e estávamos agora juntos numa
pequena mesa redonda mesmo ao lado da janela da frente. O braço do Nate
estava à volta do Grant enquanto ele bebia um cappuccino.
– Estou tão animada com a possibilidade de trabalharmos juntos. – Movi-
me na cadeira de madeira, tentando parecer alguém que já tinha tido
reuniões como esta um milhão de vezes. – Estou a imaginar algo alegre e
colorido, mas minimalista. Penso que nos poderíamos divertir muito a
brincar com as cores e as formas, o que pode ser tanto infantil como muito
chique. E possivelmente adicionar um mural de algum tipo.
O Nate e o Grant gostaram da ideia, e foi fantástico obter um feedback
positivo instantaneamente. Na Spayce, recebíamos um pedido de um cliente
através da nossa aplicação, fazíamos um contacto por e-mail ou chat, e
depois criávamos um moodboard com links para artigos e alguns projetos.
Esta seria finalmente uma oportunidade de moldar um espaço com as
minhas próprias mãos, do princípio ao fim.
– Então, a nossa portadora gestacional acaba o tempo daqui a dois meses
– disse o Grant, empurrando os óculos com aros dourados para a ponta do
nariz. – Não é muito tempo, especialmente porque sabemos que estás cheia
de trabalho.
O Nate deslizou a sua mão livre sobre a mesa para tocar no meu pulso de
forma brincalhona.
– Vimos-te na New York News – disse ele com um sorriso no rosto.
O Grant revirou olhos.
– O Nate é obcecado com as notícias locais – explicou ele. – Aquele tipo
que te deu o casaco era uma rica peça, não era?
– Pois era. – Forcei uma gargalhada. – Bem, a boa notícia é que tenho
agora alguma disponibilidade na minha agenda – disse eu, inchando o peito.
Recebera alguns pedidos através do site que as minhas amigas tinham
criado para mim, e um deles resultara numa consulta telefónica que parecia
promissora. Mas esta era a minha primeira verdadeira reunião, o início
efetivo da Franny Doyle Design. Não queria parecer muito desesperada por
trabalho, mas precisava de um pontapé de saída. Algo que provasse a mim
própria que talvez conseguisse realmente fazer isto. E, mais importante
ainda, algo que entrasse na minha conta bancária.
O Nate inclinou-se para a frente com o queixo apoiado na mão.
– E achas que sabes o que é preciso para o quarto de um bebé? –
perguntou ele. – Sei que não tens filhos, mas já alguma vez decoraste
espaços para crianças?
– Não, mas gosto de pensar que eu própria ainda sou uma criança –
respondi. – Por isso, embora nunca tenha exatamente decorado um quarto
de uma criança, tento abordar tudo com o coração de uma criança. – Eu
expirei e sorri, mas senti uma ligeira sensação estranha. Tinha dado uma
resposta de treta, e não podia dizer que tinha feito muito para os
impressionar.
– Ótimo – disse o Grant com um rápido aceno de cabeça. – Vamos então
falar sobre isto. Quero ouvir mais sobre esta tua ideia do mural.
Uma hora mais tarde, estávamos a despedir-nos com um abraço. Para
além do meu ridículo discurso de «coração de uma criança», a reunião tinha
corrido tão bem quanto poderia esperar.
– Vou enviar-vos o meu orçamento e contrato, e podemos começar a
partir daí – disse-lhes antes de seguirmos em direções diferentes.
Não tive pressa, e aproveitei o tempo para desfrutar de cada pequena
coisa que via no caminho para o metro: Os pais a balançar uma criança
pequena entre eles, braço com braço. O empregado de mesa do restaurante
da esquina a carregar uma caixa gigante de limões pela porta da frente. A
janela aberta do apartamento do segundo andar por cima de mim. Nova
Iorque era uma possibilidade esta noite.
O meu telemóvel zumbiu na minha mala. Um e-mail do meu senhorio, a
agradecer-me por eu lhe ter enviado o meu mais recente pagamento de
renda dentro do prazo. Analisei as suas palavras até que os meus olhos
pararam na última frase. «Temos de aumentar a sua renda em cem dólares a
partir do próximo mês.»
E, num instante, tudo voltou a parecer impossível.
Piza. Esta era a única solução apropriada para o final deste dia. Além
disso, eu podia dar-me a esse luxo, pelo menos por agora. Virei na Mott
Street e percorri o caminho até à Spring, virando à direita para o meu lugar
preferido na cidade, o Famous Ben’s.
Vinte minutos depois, estava frente a frente com duas fatias perfeitas de
piza com molho de vodca – cobertas com parmesão em pó e flocos de
pimenta vermelha – e um copo de cerveja sem álcool gelada. Era o Céu.
Coloquei o telemóvel ao lado dos pratos de papel, para que pudesse fazer
scroll e comer ao mesmo tempo, e ataquei a comida. Surgiu uma mensagem
da Cleo no exato momento em que abri o Instagram. Alguma notícia da
Lola?
Não, respondi. Deve ser um encontro escaldante. Olhei para a hora no
meu telemóvel. Tinham passado quase noventa minutos desde que o seu
encontro começara. A Lola não passava tanto tempo sem tocar no
telemóvel, muito menos sem enviar mensagens de texto.
Devemos preocupar-nos?, perguntou a Cleo.

Acho que ela está a poucos quarteirões de onde eu estou. Vou passar
lá no meu caminho para o metro.

A Cleo respondeu com uma fila de emojis de polegares para cima, e eu


passei para o meu feed do Instagram. Percorri as fotografias de um cão
recém-adotado, um bullet journal meticulosamente desenhado por alguém,
e um slideshow da renovação de uma casa com demasiadas portas
deslizantes. Nada neste desfile de imagens sem sentido era reconfortante
esta noite. Como é que conhecia tantas pessoas em relacionamentos
amorosos, com dinheiro suficiente para comprar casas lindas, que por acaso
também ficavam impossivelmente bem em chapéus de abas largas?
Passei para a página de pesquisa e escrevi o nome Hayes Montgomery.
Apareceu uma conta privada. Provavelmente era melhor não conseguir
vislumbrar em primeira mão a sua vida perfeita e deslumbrante. Isto só me
faria sentir pior. E além disso, porque é que eu ainda estava fixada no Sexy
de Fato? Eu precisava de tirar este tipo da minha mente.
A minha pele arrepiou-se com a tentação da insegurança, o desejo de
ouvir aquela voz na minha cabeça que gostava de me dizer que não
conseguia conquistar a carreira que queria, que não poderia concretizá-la
em Nova Iorque, que nunca poderia ficar bem com chapéus de aba larga. Eu
no fundo sabia que aquela voz estava a mentir – embora talvez não sobre o
chapéu – e que não me fazia bem nenhum acreditar nela. Mas, por vezes, a
insegurança era um caminho mais fácil de seguir do que a confiança cega.
Quando estava a olhar para o telemóvel, surgiu uma mensagem da minha
mãe: Pensei que talvez gostasses de saber que o Jeremy e a mulher estão à
espera do seu primeiro bebé! Uma menina. Vi a mãe dele no Stop & Shop.
Beijinhos, Mãe.
Mas eu não queria saber, de facto, se o meu namorado da secundária e a
sua mulher iam ter um filho enquanto eu estava sentada sozinha,
desempregada, a comer a única refeição fora que podia realisticamente
pagar. Não respondi.
Fatias acabadas, cerveja sem álcool bebida, contas do Instagram
silenciadas, casa de banho visitada, procurei no meu telemóvel o bar onde
estava a Lola e percebi que estava ainda mais perto do que pensava.
Passava por ele um milhão de vezes quando trabalhava no SoHo, na loja
Anthropologie na West Broadway, logo após a saída da faculdade. Cinco
quarteirões suados mais tarde, e eu estava parada à entrada. Sem janelas
para eu espreitar. Raios.
Do exterior, parecia um velho bar normal, mas quando abri a porta
revelou-se um daqueles locais feitos à medida para os primeiros encontros.
Veludo vermelho revestia os compartimentos e os bancos do bar. As
prateleiras atrás do bar em madeira escura brilhavam com garrafas de licor.
Parecia aconchegante, romântico e escuro. Não havia maneira de se poder
estar neste lugar sem curtir com alguém.
Fui até ao bar, onde uma mulher tatuada de cabelo preto curto estava
lentamente a tirar a rolha de uma garrafa. Ao meu lado, estava um casal
encostado um ao outro, os joelhos a tocarem-se, e demorei um segundo a
recordar a última vez que tinha tido um encontro. Acontecera há mais de
quatro meses, com um tipo que conheci numa noite de Trivial num bar no
centro da cidade com alguns amigos do trabalho. Bebemos uns copos em
East Village, curtimos num banco no Tompkins Square Park, e combinámos
um jantar na semana seguinte. Enviou-me uma mensagem três dias depois a
cancelar, porque ia voltar a viver com a sua ex-namorada.
– Apenas uma água tónica com lima – disse eu, e o barman acenou com a
cabeça, indiferente. Deixei dez dólares em cima do balcão e observei os
compartimentos, mas não vi a Lola em lado nenhum. A área da frente
estendia-se para o que parecia ser um espaço ainda mais íntimo, as paredes
forradas com velas cintilantes. Peguei na bebida e entrei na escuridão,
passando pelas casas de banho, enquanto o lamento de Morrissey saía de
um altifalante algures. Fiquei ali imóvel por um segundo, enquanto deixava
os olhos ajustarem-se à escuridão.
Depois, as formas das pessoas transformaram-se em humanos reais, e eu
vi-a, enfiada num canto, toda resplandecente e loura contra o veludo
vermelho-sangue do compartimento. A sua mão repousava suavemente
sobre a coxa de uma mulher de cabelo escuro com um longo rabo de cavalo,
cujas covinhas eram suficientemente brilhantes para serem vistas mesmo à
luz turva e suave. Ela estava debruçada sobre a Lola, com os lábios a dançar
perigosamente perto do pescoço, naquele ponto onde até uma respiração
parece um convite para mais alguma coisa.
Os meus olhos repousaram sobre elas apenas durante alguns segundos,
mas foi o tempo suficiente para que uma estranha dor se abrisse no meu
peito. A sua intimidade era erótica, elétrica, e algo que eu não sentia há
muito tempo. A Lola estava em apuros, mas não do tipo que exigia uma
intervenção da melhor amiga. Virei-me para voltar para o bar, tirando o
telemóvel da minha mala para enviar uma mensagem de texto à Cleo, mas
não tinha sinal. Estúpida masmorra sexy de vinho, pessoas atraentes e
romance.
Caminhei em direção ao corredor, bebida nos lábios, o toque de
melancolia a brincar no meu estômago. E depois – pumba. Dei um
encontrão no corpo de alguém, a minha água tónica a salpicar para cima de
nós os dois.
– Oh, meu Deus, peço… – Olhei para cima para pedir desculpa, e os
olhos que me fitavam eram familiares.
Fiquei demasiado surpreendida para conseguir dizer «desculpa». O Sexy
de Fato Hayes Montgomery III, mesmo à minha frente. Que tipo de piada
cruel é que o universo me pregou esta noite?
Ele piscou os olhos uma vez. Abri a boca para dizer algo como «Olá» ou
«Que diabo estás aqui a fazer?», mas em vez disso, apenas me ri.
– Olá – disse ele, mordendo o lábio inferior enquanto os seus olhos me
observavam, intrigado.
– Estás aqui! – Consegui guinchar, ainda a rir. Esta noite. Abanei a
cabeça.
– Estavas à minha espera? – perguntou ele com um sorriso, olhando para
baixo para a enorme mancha molhada que se infiltrava na sua camisa e
depois ergueu o olhar para encontrar o meu.
– Oh, meu Deus – exclamei eu novamente, acenando uma mão para onde
ele estava agora a enxugar o peito com um guardanapo de papel. – Peço
desculpa por… isto. Só não estava à espera…
– De voltar a ver-me? – O seu olhar era duro, e as bordas dos lábios a
formar o mais pequeno indício de um sorriso, o que parecia mais sinistro do
que doce.
– Bem. Sim. – Ri-me quando o disse, porque era verdade. Olhei de
relance para a mancha e reparei que desta vez ele não estava enfiado num
fato justo feito à medida. Em vez disso, vestia uma T-shirt cinzenta
matizada que estava húmida em todo o peito, em pontos onde a minha
bebida não tinha salpicado. – Porque é que não estás de fato?
Eu podia jurar que, na escuridão, ele corou.
– Eu não visto só fatos.
– Estás sempre com um quando te vejo. Isso é, tipo, a tua imagem de
marca, certo? – Ele estava de alguma forma ainda mais bonito vestido de
forma casual; não que eu alguma vez lhe dissesse isso.
– Eu tenho outras coisas. – Ele passou a parte de trás da mão pelos lábios.
– Saí para correr e decidi passar por cá para ver como está a minha…
– Desculpem! – Fomos interrompidos por uma mulher de cabelo louro
curto que estava inclinada para trás na cadeira, a fazer-nos sinal da sua
mesa. – Eu conheço-vos. Aos dois!
Tentei situá-la, lembrar-me de todas as pessoas com quem tinha
frequentado aulas na faculdade, ou talvez tivesse conhecido durante um
estágio algures. Será que trabalhei com ela na Spayce?
– SubwayQTs! – A mulher ao seu lado uniu as mãos enquanto gritava,
descobrindo-o nesse momento.
– Oh, meu Deus – gritou o terceiro membro do seu grupo. – Oh, meu
Deus! Eu segui a coisa toda!
Ela ergueu o telemóvel e tirou uma fotografia nossa.
– Posso tirar uma fotografia convosco? – perguntou a loura, e antes que
qualquer um de nós conseguisse responder, ela tinha passado o telemóvel à
amiga e saído do seu lugar. Enfiou-se entre nós, colocou um braço à volta
da minha cintura, e torceu o corpo para o lado para obter o que eu presumi
ser o seu melhor ângulo. Sentia o cheiro do vinho no seu hálito enquanto ela
sorria.
Olhei de relance para o Hayes, que não estava a olhar para a câmara. Em
vez disso, o seu olhar estava direcionado para o local onde a Lola estava
sentada no canto.
– Hayes? – Ouvi uma voz dizer ao mesmo tempo que a mulher que
segurava o telemóvel dizia: – Olha para aqui!
Fiquei imóvel com um sorriso forçado no rosto, em modo de pose.
– OK – disse a mulher atrás da câmara, devolvendo o telemóvel à amiga
para inspeção fotográfica e aprovação. Relaxando, virei-me para ver o que o
Hayes tinha estado a observar. Ele ainda estava a olhar na direção da
morena de cara doce sentada no canto com a Lola. A que tinha as covinhas
que brilhavam. Covinhas como as dele. Algures no meu cérebro, soou um
sinal de aviso: Alguma coisa não batia certo.
– Hayes – disse a voz novamente, e agora podia ver que vinha da
companhia da Lola.
Desviei o olhar do Hayes para a mulher de cabelo castanho e depois para
a Lola, que me devolveu o olhar com um «Que diabo estás aqui a fazer?».
Tentei responder apenas com os olhos, mas foi difícil dizer «Regra do
primeiro encontro! Estava só a ver como estavas!», apenas com expressões
faciais.
Encarei o Hayes, que estava a olhar para mim, perplexo.
– Conheces a Perrine? – perguntou ele.
– Hã? Não, eu…
– A minha prima – disse ele, como se fosse a coisa mais óbvia do mundo.
E depois, de repente, era.
– Penso que a tua prima está num encontro com a minha melhor amiga –
continuei. Elas estavam agora a vir na nossa direção, por entre as mesas à
luz das velas para chegar até nós. Raios.
– O quê? – Ele engoliu, a sua voz incrédula.
– Não sei bem porque estás aqui – disse eu –, mas eu fui definitivamente
apanhada a espiá-las no primeiro encontro delas.
– Oh, meu Deus, ele nem sequer está a olhar para a câmara – interrompeu
a loura bêbada, inspecionando o seu telemóvel. – Importam-se que tiremos
outra muito rapidamente?
– Desculpe, mas temos de ir cumprimentar as nossas amigas – respondi, e
agarrei o Hayes pelo braço, que estava quente e firme debaixo da minha
mão. Conduzi-o até onde a Lola e a sua prima estavam, a poucos metros de
distância.
– Franny – disse a Lola quando me aproximei, com um ar irritado e
divertido ao mesmo tempo.
– Olá – Abanei as pontas dos dedos numa onda e depois sorri para a
prima do Hayes. Ela estendeu a mão para apertar a minha. As unhas dela
eram curtas e estavam pintadas com um branco puro, da mesma cor dos
brincos de pérola que lhe adornavam os lóbulos das orelhas.
– Perrine – disse ela, apresentando-se, a sua voz calma e suave. – Vejo
que encontraste o meu primo. Outra vez.
Virei-me e pelo canto do olho vi-o, grande e ao meu lado.
– Ele gosta de me vigiar sempre que saio com desconhecidos. É muito
amável, e também totalmente detestável e protetor. – Sorriu-me, e eu gostei
dela imediatamente. – Ele é assim.
– Desculpem, como é que vocês as duas…? – Olhei para elas como se
estivesse a tentar resolver um puzzle de duas mil peças, tentando descobrir a
sua ligação. – Espera, Lo, esta é a mulher que conheceste na casa de banho
da New York News?
– Desculpa, o quê? – disse o Hayes, parecendo um pai ingénuo ao
descobrir o que é o TikTok pela primeira vez.
As duas pareciam de repente envergonhadas.
– Esbarrámos uma na outra antes do vosso segmento – respondeu a
Perrine, oferecendo um sorriso ao Hayes.
– Antes de nós partilharmos aquela chávena de café memorável – disse eu
ao Hayes, que ainda estava a processar o que se desenrolava perante nós.
– Dei de caras com as suas DM – acrescentou a Lola com um sorriso
malicioso, como se fosse a coisa mais natural do mundo para fazer.
– Quando é que percebeste isto? – perguntou o Hayes à sua prima. Ele
estava a mastigar a pequena palhinha vermelha que deve ter vindo
juntamente com a sua bebida. Eu observei o seu dedo comprido e
bronzeado a bater no copo, logo abaixo da rodela de lima que estava na
borda. Água com gás no copo. Tínhamos pedido a mesma coisa.
– Logo que chegámos aqui, fez-se luz – disse a Lola, inclinando-se para
junto da Perrine, os seus ombros a tocar-se.
– Levou-nos um segundo a perceber – acrescentou a Perrine. –
Concordámos que se decidíssemos sair novamente, dir-vos-íamos primeiro
aos dois.
– E decidimos sair outra vez – disse a Lola. – Por isso acho que estamos a
dizer-vos agora.
Bem, esta era uma reviravolta de eventos. Abri a boca para me despedir e
deixá-las regressar ao que estavam a fazer quando fui interrompida pela
Lola.
– Espera – disse ela, os seus olhos a passar de arrependidos para
desconfiados. – Porque é que estás aqui?
– Disse à Cleo que vinha espreitar. Não fazia ideia de que estava a
acontecer isto.
A Lola tirou o telemóvel da sua mala.
– Não tenho sinal – disse ela, virando o ecrã para mim.
– Está bem. Divirtam-se, vocês as duas – disse eu, dando à Lola um
último olhar de «Ena pá».
– Sim, divirtam-se – disse o Hayes, ao meu lado, o que me fez rir. Tenho
a certeza de que fariam mais do que isso. – Vamos deixar-vos em paz.
A sua mão sempre tão suave repousava nas minhas costas, um ligeiro
empurrão em direção à porta que durou apenas um segundo – por isso quase
não a sentia lá. Mas naquele instante, parecia dolorosamente familiar e
chocantemente novo. O seu toque enviou uma onda de excitação através do
meu corpo tão forte que as réplicas fizeram ricochete no meu estômago
enquanto saíamos do bar e entrávamos juntos nos braços da cidade.
CAPÍTULO SEIS
HAYES

L á fora, o sol já se fora há muito tempo, mas a cidade ainda estava


reluzente, iluminada contra o pano de fundo do céu noturno. A boca da
Franny estava semiaberta enquanto ela procurava alguma coisa na sua mala.
– Bem – disse ela, a sua atenção estava focada em encontrar o que quer
que fosse que procurava. – Não era assim que esperava passar a minha
noite.
Toquei no bolso para ter a certeza de que a minha chave e o cartão de
crédito ainda lá estavam. Captei o seu olhar, e pela primeira vez desde que
nos encontrámos no metro naquela manhã de maio, observei-os como deve
ser. De algum modo, embora fossem de um verde incrível, estavam
iluminados, brilhantes e elétricos.
– Eu também não – disse eu concordando. Olhei para o relógio; este
pequeno desvio tinha-me roubado vinte minutos da corrida. – Então, a tua
melhor amiga… – comecei, sem saber exatamente o que ia perguntar.
– Quero dizer – disse ela, e a sua boca abriu-se num sorriso confuso –,
mas que raio?
– Bem, parece que elas não tinham estabelecido a ligação até…
– Até começarem a curtir? – disse ela, rindo.
Eu fiquei ali, de mão no pescoço, ainda ligeiramente atordoado com toda
a situação.
– De todas as mulheres de Nova Iorque, ela escolhe a tua prima. Numa
casa de banho. A tua prima.
Ela parecia surpreendida, mas também como se esta fosse a melhor
notícia que tinha ouvido durante todo o dia.
– Por vezes esta cidade é mágica.
As minhas sobrancelhas ergueram-se enquanto passava uma mão no
cabelo. Ainda molhado de suor.
– Nova Iorque é apenas uma pequena cidade com muita gente.
– Didion? – interrogou ela, um olhar de satisfação no rosto.
– Didion? – perguntei. – Não. Eu acabei de inventar isto.
– Uau, impressionante. Devias considerar mudar de carreira. – Ela olhou-
me de relance e depois deitou a língua de fora.
– Que gira – disse eu com algum sarcasmo, mas também era verdade. Ela
era gira.
– Desculpa, eu só… – disse ela; depois o seu tom mudou para algo mais
sério. – O dia de hoje tornou-se deprimente. Embora ver a tua cara quando
descobriste o que se passava ali atrás, o tenha melhorado.
E com isto, ela animou-se de novo.
– Ai, sim? – perguntei. – Que cara tinha eu? – Eu estava genuinamente
curioso.
Ela abriu a boca num grande e horrorizado O e mexeu os olhos para um
lado e para o outro. Ela parecia absurda, como aquele relógio de parede em
forma de gato, com os olhos em movimento, que a Perrine tinha na sua
cozinha. Ri-me, não só da cara ridícula que ela fazia, mas da forma como
fazia tudo tão à vontade. Não estava habituado a estar perto de alguém
como ela, uma pessoa que brilhava tanto que parecia que a sua energia
podia contagiar-te, apenas um pouco.
A sua boca transformou-se num sorriso.
– Eu devia voltar para Brooklyn – disse ela.
– Onde é que vives? – perguntei.
– Brooklyn Heights. Vou a pé até à linha N do metro.
– Deixa-me – comecei, e então reformulei o que queria dizer depois de
ela me chamar a atenção, de sobrancelhas erguidas. – Posso acompanhar-te?
– perguntei eu. – Vou para a zona residencial.
– Está bem – disse ela, assentindo com a cabeça juntamente com as
sílabas, os lábios pressionados um contra o outro.
Caminhámos juntos em silêncio durante metade do quarteirão. Tentei
evitar o seu olhar, mantendo os olhos no verde exuberante das árvores,
concentrando-me nos sons contagiantes que vinham dos cafés ao ar livre:
risos e tinidos de bebidas. Normalmente, adorava a cidade de Nova Iorque
quando deixava entrever o verão. Mas os meus pensamentos passaram
rapidamente para o meu apartamento vazio e estéril, e tentei pensar noutra
coisa. Estava prestes a perguntar-lhe como corria o trabalho quando ela
parou de repente e ofegou.
– O quê é? – perguntei-lhe, olhando em volta, genuinamente confuso.
– Sorvete italiano – disse ela, como se fosse a coisa mais óbvia do
mundo, apontando para a carrinha branca de comida estacionada na
esquina. – Isto é exatamente o que eu preciso esta noite. Se vou ficar falida,
vou fazê-lo com um sorvete italiano.
Ela começou a dirigir-se para a carrinha.
– Não precisas de esperar – acrescentou ela. – Mas eu vou buscar um.
Eu queria esperar, já que isso significaria estar mais tempo com ela.
– Não me importo – disse eu, embora não me conseguisse lembrar da
última vez que tinha comido um sorvete ou um Popsicle de uma verdadeira
carrinha de gelados, muito menos um italiano. Segundo ciclo?
– Queres alguma coisa? – perguntou ela, retirando aquela mala gigante do
ombro e abrindo um bolso lateral para tirar uma pequena carteira de pele.
Abanei a cabeça.
– Estou bem – assegurei-lhe eu.
– Porque não? – questionou ela, levantando os olhos, insinuando um
revirar de olhos. – Oh, não. És keto? Uma daquelas pessoas esquisitas que
não ingere açúcar?
– Definitivamente não sou keto – respondi, com um tom defensivo na
voz. – Apenas guardo o açúcar para ocasiões especiais.
– Hayes – ela levou a mão ao peito, fingindo um gesto dramático –, estás
a sugerir que saber que a tua prima estava num encontro com a minha
melhor amiga não é uma ocasião especial?
– Eu aviso-te quando a ocasião for mesmo especial – respondi, rindo da
sua atuação.
– Tu é que perdes – disse ela com um encolher de ombros.
– Ou ganho, uma vez que não vou torturar o meu corpo com uma
substância cancerígena que é propositadamente fabricada para ser viciante –
exclamei eu a brincar, sabendo instintivamente que isto a iria provocar.
– Oh, meu Deus. – Ela fez um esgar exagerado. – Tu és pior do que eu me
lembrava.
Eu ri-me. Ela era linda, especialmente quando estava a brincar. Pelo
menos, eu esperava que ela estivesse a brincar.
Dei um passo atrás enquanto ela fazia o pedido, observando-a enquanto
conversava com o homem mais velho de bigode que se debruçava da janela
da carrinha. Ela entregou-lhe o dinheiro, e momentos depois ele passou-lhe
um copo impregnado de vermelho e amarelo, as bolas já a derreterem juntas
no calor da noite. Ela pegou numa pequena colher de madeira e mergulhou-
a no sorvete sem hesitar.
– Mmm. – Os seus olhos desapareceram por um segundo, revirando em
êxtase. Ela era tão… simples. Não… Discreta. Não… Elegante. Era isso.
Mesmo quando estava ali a devorar um copo de gelado. Sarcástica também,
e cheia de emoções, cores e pensamentos, que pareciam transbordar, sem
restrições. Mas acima de tudo, elegante.
Por alguma razão, a minha mente divagou para os castiçais de estanho
que a minha avó Beverly tinha no centro da mesa da sua sala de jantar. A
avó Beverly era conhecida na nossa família pela sua extravagância, o único
membro exagerado da nossa família habitualmente reservada de um modo
deliberado. Ela gostava dos seus óculos enormes e das suas joias ainda
maiores, pedaços de gemas e pedras em bruto, recolhidas de todos os cantos
do mundo. E a sua casa combinava com as suas roupas, todas as cores e
vidro e flores e arte.
Mas ali, no centro de uma antiga mesa de jantar para doze pessoas,
rodeada de arte pintada pelos seus netos e um quadro de Keith Haring que
tenho a certeza que valia mais do que toda a minha empresa, estavam dois
pequenos castiçais de estanho. E embora ela alterasse constantemente a
decoração da sua casa, aqueles malditos castiçais nunca saíam do mesmo
sítio. Perguntei-lhe porquê uma vez, quando andava na secundária, e a
ajudava a retirar os pratos de cima da mesa na véspera de Natal. «Porque»,
respondera ela com naturalidade, «eles são as coisas mais bonitas desta casa
toda.»
A voz da Franny arrancou-me das minhas memórias de infância e trouxe-
me de volta para o presente.
– A minha avó Elsie costumava comprar-me o melhor sorvete italiano
numa pequena padaria em New Haven, perto da sua casa – disse ela,
recordando com um sorriso. – Como se fosse feito em casa. Limões frescos
e tudo. É uma das minhas primeiras recordações, comer sorvete italiano
numa cadeira de praia de plástico no seu quintal.
– E que tal é este comparado com esse? – perguntei eu.
– É delicioso – disse ela entre as colheres. – Mas nem sequer se compara.
Ela encheu uma colher e levou-a à boca, mas o seu timing falhou por um
segundo, e parte pingou para o vestido.
– Oh, meu Deus – disse ela. Assumi que ia ficar chateada por causa da
porcaria, mas em vez disso olhou para baixo e depois para cima para mim, e
soltou uma gargalhada, limpando-se com o pequeno guardanapo que o tipo
dos gelados lhe tinha dado.
– A minha avó cozia os brócolos em demasia e servia-os com demasiado
sal – disse-lhe. A avó Beverly tinha sido uma cozinheira manifestamente
horrível. – Teria gostado mais de ir a casa da tua família.
– Bem, o meu avô também tinha coelhos no quintal e transformava-os em
guisado de coelho. Por isso, se conseguisses sobreviver à matança do
coelho, serias convenientemente recompensado com um sorvete italiano.
Fiz um esgar.
– Como é que ele…?
Ela moveu-se com a mão que segurava a colher, torcendo-a bruscamente
enquanto fazia um som de clique com a língua.
– Partia-lhes o pescoço, sem uma pitada de remorso.
Ri-me de incredulidade.
– Cresceste em New Haven?
– West Haven, mas relativamente perto.
– Sou de lá perto – disse eu.
– Deixa-me adivinhar – afirmou ela, parando para me encarar com olhos
conhecedores. – Greenwich.
Deixei escapar uma pequena gargalhada.
– Westport – corrigi.
– Vai dar ao mesmo.
Assenti com a cabeça, concordando. Ela não estava errada. Brancos,
protestantes, abastados, convencidos, arrogantes e muitos clubes de campo.
As cidades ao longo da Gold Coast do Connecticut eram uma e a mesma
coisa.
– Então – olhei para ela –, porque é que o teu dia não foi muito bom?
– Oh, meu Deus, por onde hei de começar? – lamentou-se ela.
– Pelo início? – respondi, e ela deu uma grande gargalhada. Tinha o tipo
de gargalhada contagiante que nos fazia querer participar em qualquer piada
que contasse. Eu sorri-lhe e senti-me relaxado, o que foi estranho, porque
nem sequer me tinha apercebido do quão tenso estava.
– OK, então – ela raspou o fundo do seu copo de sorvete italiano e
mergulhou a colher na boca uma última vez –, tive uma reunião sobre um
possível trabalho de design. Um quarto de bebé.
– Parece algo que podes fazer durante o sono – disse eu, tentando fazer
um elogio.
Ela dirigiu-me um olhar confuso, com as sobrancelhas erguidas, enquanto
parava junto a um caixote do lixo para deitar fora a colher e o copo.
– Não, na verdade pode ser uma coisa muito importante.
– Apenas supus que já estavas atolada de trabalho. – Ótimo. Tinha-a
insultado novamente.
– Pois… – Ela fez uma pausa. – Mas este trabalho do quarto para um
bebé será uma grande conquista para mim. Por isso, estou nervosa. E
depois, logo após esta reunião, recebi um e-mail do meu senhorio a
aumentar-me a renda.
A sua voz estava agora mais alta, agitada.
– Ena. – Levei as mãos ao peito numa dor fingida.
– Exatamente – disse ela, os braços abertos em concordância.
– Bem, eu acredito em ti – disse eu com convicção. – Vais conseguir o
trabalho, e vais resolver a história da renda.
Ela olhou para mim com uma expressão de perplexidade.
– É assim tão esquisito dizer isto? – perguntei.
Claro que era esquisito. Era demasiado precipitado. Mais uma vez, estava
a atrapalhar-me junto desta mulher. Nunca dizia coisas deste tipo à Perrine,
muito menos a pessoas que não conhecia.
Parei na passadeira enquanto os carros passavam, e quando me virei para
olhar para a Franny ela estava a sorrir. Ufa.
– Quero dizer, sim, porque mal me conheces – disse ela. – Mas também é
realmente o que eu precisava de ouvir neste momento. Portanto, não, não é.
E obrigada.
E depois, as luzes verdes bulbosas que assinalavam a estação de metro N
e R estavam à nossa frente. Descemos os degraus lado a lado.
– Vais para a zona residencial? – perguntou ela.
– Sim. – Não fora uma mentira. Não exatamente. Eu vivia na zona
residencial da cidade, mas tinha planeado voltar para casa a correr. Era
estranho não ser sincero com ela, mas queria mesmo continuar a nossa
conversa.
– Olha, na verdade, tenho andado para te contactar sobre uma coisa.
– OK. – Ela já tinha o seu MetroCard na mão. – O que se passa? – Ela
semicerrou os olhos. – Há algo de errado com o teu casaco do fato?
– O quê? Não. – Eu tinha-o pendurado no fundo do closet depois de ela
mo ter entregado e não tocara nele desde então. – O casaco está bem.
Ela fez o gesto de limpar suor da testa com um sorriso e depois deixou
cair a mão, enquanto olhava para mim com expectativa.
As palavras estavam presas na minha boca. O meu cérebro tentou forçá-
las a sair, como se estivesse a bater o fundo de um frasco de ketchup.
– Queria pedir-te desculpa se fui esquisito, quando fizemos a entrevista.
Quero dizer, eu estava esquisito. Não é se. Eu estava. E pelo que disse sobre
aquilo de não fazeres o meu tipo. Apenas me senti muito deslocado, e as
minhas palavras baralharam-se todas. Por isso, sinto muito.
Ela observou-me, sugando as bochechas, transformando a testa franzida
numa expressão carrancuda. Quando o meu estômago já começava a
retorcer-se com os nervos, o seu rosto desabrochou num sorriso.
– Estamos bem – disse ela finalmente, dando um empurrão no meu
ombro de forma divertida.
– Sim? – O meu rosto corou de alívio.
– Claro que sim. Toda aquela manhã foi estranha. – Ela brincava com o
seu MetroCard nas mãos. – Bem, para alguns de nós obviamente que não
foi. – Ela arregalou os olhos e passou uma mão pelo cabelo, prendendo-o
atrás da orelha. Era mais curto do que eu me lembrava. Mais escuro
também.
Percebi que estava a olhá-la fixamente, e pisquei os olhos para organizar
as ideias.
– Oh, queres dizer a minha prima e a…
– Lola – acrescentou ela.
– Lola, certo. Sim, elas só o tornaram mais estranho.
Ela riu-se disso, o que pareceu uma vitória.
– Bem, aceito o teu pedido de desculpas de novo. – Ela inclinou-se para
mim e apertou-me suavemente o ombro. – E espero que tenhas uma ótima
vida.
Foi uma coisa engraçada de se dizer, no entanto a sua voz foi
completamente sincera.
– Espero que também tenhas uma ótima vida, Franny. E uma boa noite.
E depois, com uma passagem do seu MetroCard, ela transpôs o
torniquete, perdida de novo para a cidade que ma tinha dado.
*

Na manhã seguinte, continuava a pensar na Franny, e reproduzia a nossa


conversa na minha mente, analisando-a e ficando obcecado. Não conseguia
deixar de pensar nela, e isso era estranho. Mesmo o trabalho não me distraía
como normalmente acontecia. Por isso, enviei uma mensagem de texto à
Serena e perguntei-lhe se podíamos antecipar o nosso primeiro encontro
alguns dias e encontrar-nos hoje depois do trabalho. Tínhamos falado por
breves momentos ao telefone na semana passada, apresentando-nos e
fazendo planos para nos encontrarmos pessoalmente. Falar com a Serena
tinha sido fácil e amigável, o que era exatamente o que eu precisava agora
para acabar com esta sensação de desequilíbrio que a Franny tinha
despertado em mim.
Tínhamos planeado uma corrida pelo Central Park, o que era
completamente diferente da minha habitual rotina de primeiros encontros
para tomar um café ou um cocktail. Senti uma ligeira sensação de culpa por
estar a usar um encontro com a Serena como forma de afastar da minha
mente pensamentos sobre outra pessoa, mas assim que começámos a correr,
fiquei convencido de que tinha sido uma boa decisão. Ela era extrovertida e
fazia a maior parte da conversa, mas também parecia gostar genuinamente
da corrida e ria-se das minhas piadas estúpidas sobre corridas.
– Sou responsável por compreender as tendências da moda, escolher joias
e acessórios para sessões de fotografias e entrevistas, explorar o mercado
para saber o que deveria estar na revista todos os meses – disse a Serena, o
rabo de cavalo louro a balançar graciosamente nas suas costas.
– Uau, eu não tinha a menor ideia do que fazia um editor de acessórios –
suspirei, tentando não deixar transparecer que estava sem fôlego. Ela estava
a treinar para uma corrida no próximo fim de semana, o que significava que
estava a tentar manter os seus quilómetros abaixo dos oito minutos cada. Eu
era um tipo de nove minutos, e estava definitivamente a tentar aguentar o
seu ritmo.
– Também concebo sessões de fotografias.
– Isso parece ser muita coisa para fazer além de treinares para a maratona
– admirei-me.
– Bem, isto não é tudo. Também faço parte do comité para uma gala de
beneficência a decorrer no Museu de História Natural, em agosto. Todas as
receitas vão para a investigação da ALS. A minha cunhada foi
diagnosticada no ano passado.
– Meu Deus, lamento muito saber isso.
– Tenho tendência para canalizar a minha dor para a produtividade.
Provavelmente tenho personalidade do tipo A – disse ela com uma pequena
gargalhada, embora o seu rosto insinuasse tristeza. – Será que a Eleanor
mencionou isto?
A Eleanor tinha, de facto, mencionado isso. Mas ela também tinha dito
que a Serena trabalhou de perto com o grupo do seu noivo Henry na revista
e que ele também a achava «muito simpática», o que era um aval tão bom
como qualquer outro. E fiel à promessa da Eleanor, ela era «gira». Bonita,
mesmo – com os braços e as pernas bronzeados, maçãs do rosto definidas e
olhos azul-claros.
A Serena era facilmente alguém por quem eu normalmente me sentiria
atraído, e podia perceber perfeitamente porque é que a Eleanor pensou que
ela seria uma combinação perfeita. Então, porque é que eu não sentia
absolutamente nenhuma faísca? Era provavelmente o trabalho e o stresse
provocado pela saída do Damien, refleti. Havia muita coisa a acontecer.
– Tens de vir – continuou ela. – Já enviámos os convites formais, mas
envio-te a informação por e-mail e faço-te chegar um.
Quase dez quilómetros mais tarde, inclinámo-nos sobre uma ponte junto à
Sixty-Fourth Street, para alongar. As minhas barrigas das pernas latejavam,
os braços doíam, mas mesmo assim sentia-me bem. A Serena era amável e
conversadora, e fez-me rir uma ou duas vezes. A nossa conversa era fácil e
afável. Agradável, mesmo. Isto tinha sido agradável. Perfeitamente
agradável.
– Oh! – disse ela, retirando o seu telemóvel preso à volta dos bíceps. –
Quase que me esquecia. Importas-te que eu tire uma fotografia nossa para o
meu Instagram?
– Oh, meu Deus, não sei – disse eu. – Não tenho exatamente o melhor
histórico no Instagram.
– Eu vi. – Ela riu-se intencionalmente. – Mas as redes sociais e a
influência são literalmente o meu trabalho.
Ela abriu o telemóvel e começou a fazer scrolling no feed.
– Tenho de fotografar os meus looks todos os dias. Tenho este hashtag
chamado #SerenaStyle, e basicamente tornou-se toda uma cena.
– Como assim? – perguntei. Não que não soubesse como o Instagram
funcionava, mas apercebi-me de que as pessoas usavam a frase «toda uma
cena» para descrever, bem, muitas coisas muito diferentes.
– Eu só tenho esta pose específica, e agora as pessoas copiam-na e fazem
as suas próprias fotografias SerenaStyle. Olha.
E, efetivamente, havia fotografia atrás de fotografia de pessoas a saltar no
ar, todas com ela identificada.
– Vá lá. – Ela acenou-me com um enorme sorriso. – Vai estar apenas nas
minhas stories. Apenas uma fotografia das nossas sapatilhas.
Ela tirou a fotografia e guardou o telemóvel; depois inclinou-se para a
frente para fazer um alongamento, cruzando as pernas e dobrando-se pela
cintura, deixando as mãos tocar no chão.
– Queres ir tomar uma bebida? – perguntou ela, não se virando para olhar
para mim. – Conheço um lugar que tem hambúrgueres fantásticos e cerveja
barata.
– Sim, claro. – Cruzei um braço em frente ao meu peito para o alongar.
Podia ir jantar, e estava genuinamente interessado em conhecê-la melhor.
Ela ergueu-se e sorriu-me, e eu sorri-lhe de volta, porque após semanas
sem me sentir eu próprio, parecia que estava finalmente de regresso ao
velho Hayes.
CAPÍTULO SETE
FRANNY

O meu despertador tocou na manhã seguinte, arrancando-me de um sonho.


Estava na Florida, a andar de mota com o Hayes, e também trabalhava num
circo. Era ridículo, mas tudo tinha feito sentido enquanto dormia. E a
sensação dos meus braços à volta da sua cintura musculada através da T-
shirt, tinha sido incrivelmente real. Praguejei ao arrancar a venda dos olhos,
louca por já não poder sentir o seu corpo contra o meu.
Como de costume, alcancei o telemóvel assim que os meus olhos se
abriram, e vi uma notificação de que tinha recebido um novo e-mail durante
a noite. Do circo, talvez?
Não, não era do circo.

De: DNADiscovery.com
Assunto: Os seus resultados chegaram!

Oh, meu Deus – disse eu em voz alta, abrindo o e-mail com os dedos
nervosos e frenéticos.

Olá, Francesca Doyle! Os seus resultados estão aqui. Faça o login


abaixo para descobrir a sua ascendência, explorar a sua história de
saúde, e descobrir as suas raízes.

Cliquei, e o site apareceu, as minhas informações de login guardadas e


prontas para este preciso momento.
Bem-vinda, Francesca! Você é:
10% Escocesa
40% Irlandesa
50% Italiana do Sul

Bem, dah, queria dizer. Fiquei imediatamente desiludida. Eu já sabia que


o lado da família da minha mãe era irlandês; eu conseguia rasteá-la várias
gerações para trás. A minha avó até sabia o nome da aldeia que a sua
família tinha deixado para trás quando emigraram para os EUA. A parte do
sul da Itália era interessante, acho eu, mas havia milhares de italo-
americanos ao redor de New Haven. Se o meu pai biológico estivesse lá de
férias de visita à família, as hipóteses eram de ele também ter uma parte
italiana, tal como a maioria dos miúdos com quem eu tinha ido à escola
quando era criança.
A minha mãe dissera-me o nome do meu pai biológico, Carmine (outra
razão pela qual eu sempre presumi que ele fosse italo-americano), mas
como sabia que ela não queria falar sobre ele, tinha sempre deixado o
assunto em paz. E talvez tenha sido melhor assim, de qualquer forma.
Porque misturado com a desilusão estava o alívio de não ter de lidar com o
medo de magoar a minha mãe, ao investigar o seu passado. Só isto superava
sempre o meu desejo de saber exatamente de onde herdara metade do meu
ADN, mesmo que isso pudesse explicar porque me tinha sentido sempre
como uma estranha na minha própria família.
Claro, eles amavam-me incondicionalmente, mas isso não significava que
me compreendessem bem. Sempre fora um pouco mais alta, um pouco mais
emotiva, um pouco mais criativa do que todos os outros. Sentia-me confusa
e isolada sabendo exatamente quem eu era, mas também nunca me sentia
suficientemente boa. Porém, independentemente dos meus problemas, não
queria que a minha mãe sentisse que não era suficiente para mim, ou que
ela e o Jim pensassem que eu não gostava deles e que não estava grata por
tudo o que tinham feito por mim.
Contudo, eu sempre existira um pouco afastada das suas vidas. Era
simplesmente assim; não partilhávamos sentimentos profundos, grandes
emoções, coisas difíceis. E o meu pai biológico entrava diretamente nesta
última categoria.
Quando o segundo e-mail chegou cerca de trinta minutos mais tarde, com
o assunto «Olá da tua meia-irmã» e um link para a minha caixa de entrada
DNADiscovery, o meu primeiro instinto foi assumir que se tratava de spam.
Reencaminhei um screenshot para a Lola e a Cleo. Isto é falso, certo?
Alguém a enganar-me por alguma razão? escrevi.
Mas depois a Cleo respondeu imediatamente a dizer Parece-me
verdadeiro, e a Lola acrescentou, Eu disse-vos que isto aconteceu à minha
colega de trabalho! Sempre que há uma correspondência de ADN, eles
avisam as pessoas.
Voltei a ler o assunto, e disse: «Estás a brincar comigo?» em voz alta no
meu apartamento vazio. Estava a meio de me preparar para uma aula de
spinning. Fiquei ali de pé, com as calças à volta dos joelhos, e cliquei no
link para a mensagem, que se abriu no site do DNADiscovery.

Olá,

Eu sei que esta é uma mensagem muito estranha para receber por
aqui. Sou a tua meia-irmã, que vive em Itália. O nosso pai morreu em
1993, pouco tempo depois de ter regressado da América. Na altura, eu
tinha dois anos. Ele nunca se casou com a minha mãe, e houve sempre
rumores de outros filhos. Agora vivo e trabalho em Milão, mas cresci
em Sorrento, não muito longe de onde o nosso pai é, e estudei e
trabalhei em Londres depois da universidade. Trabalho em design de
interiores e arquitetura. Tenho a minha própria empresa e trabalho em
todo o mundo. Também descobri alguns primos que não sabia que
existiam através deste site. Gostaria de contactar contigo quando
estiveres preparada.

Atenciosamente,
Anna Farina

Voltei a ler.
E novamente.
E depois mais uma vez, como se ao fazê-lo as palavras pudessem
desaparecer. Mas não desapareceram. Arrastei-me para a cama para me
sentar, as calças agora à volta dos tornozelos, e escrevi o seu nome no
Google, redigindo-o mal três vezes porque os meus dedos estavam muito
trémulos.
Efetivamente, surgiu uma ligação à sua empresa de design, um orgasmo
visual de casas modernas e espaços angulosos e elegantes. O meu coração
disparou, latejando no meu corpo todo.
Mal conhecia os detalhes da existência do meu pai, e ele estava tão
distante da minha vida que nunca pareceu inteiramente real. A maior parte
das vezes, parecia que a minha mãe tinha sido engravidada por um fantasma
que depois optou por não me assombrar. E nunca pensei que ele poderia ter
tido outros filhos. Pessoas que podiam parecer-se comigo. Agirem como eu.
Perceberem-me. Esta nova tomada de consciência tinha-me deixado incapaz
de agir, tinha as mãos paralisadas, agarradas ao meu telemóvel.
E embora parecesse ridículo admitir, eu nunca tinha sequer considerado
que isto pudesse acontecer. Tinha sido sempre mais fácil não dar ao meu pai
a devida importância, arrumar a ideia dele numa prateleira e deixá-lo
ganhar pó. Mas claro que ele tinha sido uma pessoa real, com uma vida, e
uma família, e com pessoas que se preocupavam com ele. E filhos. Ele
tinha filhos. Mais do que apenas eu.
E estava morto. Morto. Este pensamento devastou-me, de uma forma que
parecia totalmente inesperada. Porque é que fiquei triste com a morte de
alguém que eu nem sequer tinha conhecido? Senti-me dominada por uma
sensação muito estranha no meu peito, uma enorme angústia. Depois
pestanejei e percebi porquê: Estava prestes a chorar.
Em pânico, fiz a única coisa que fazia sentido na minha cabeça. Vesti as
calças, enfiei as sapatilhas, agarrei no saco, e corri para fora do meu
apartamento.
– Cleo! – gritei para o telemóvel assim que ela atendeu. Eu sabia que ela
estaria acordada; ela acordava sempre cedo para meditar e verificar os e-
mails antes do trabalho.
– Grande merda! O que é que se passa? – Conseguia ouvi-la entrar em
modo de emergência para amigas através do telemóvel.
– Acho que estou a ter um ataque de ansiedade. Ou será um ataque de
pânico? Qual é o nome que se dá quando o coração parece que está a bater
na cabeça? – Desci a rua em direção ao metro, a andar rápido.
– O que é que aconteceu?
– Aquela coisa do teste de ADN que fizemos? Acabei de receber o
resultado do meu. Tenho a merda de uma meia-irmã. – As palavras saíam-
me da boca a duas vezes a sua velocidade normal.
Ela soltou um:
– Que cena.
– Em Itália. Eu não sou meio italo-americana. Sou meio italiana-italiana.
A senhora que estava à porta da lavandaria olhou-me com uma expressão
estranha enquanto eu passava, ainda a gritar.
– Uau, a tua mãe foi engravidada por um italiano. É assim mesmo, Diane.
– Cleo! Ele está morto. – Senti novamente aquele aperto no peito, a
rastejar outra vez pela minha garganta acima.
– Oh, meu Deus – ela arfou. – Muito bem, olha, onde estás? Consigo
ouvir sons do exterior.
– Vou para uma aula de spinning! Já a paguei, e não quero desperdiçar o
dinheiro.
– Franny, o quê? Podes ficar onde estás e eu vou ter contigo? Não
precisas de ir a uma aula de spinning neste preciso momento.
– Vou para aquele lugar em Atlantic. Preciso de expulsar esta energia a
pedalar.
– A que horas começa a aula? – perguntou ela, a sua respiração
repentinamente agitada, como se estivesse a correr.
Afastei o telemóvel do meu ouvido para verificar o relógio.
– Trinta minutos.
– OK. Estou a caminho.
– O quê? A sério? – gritei enquanto atravessava a rua a pé. Mas o outro
lado da linha estava em silêncio.
*

Vinte e sete minutos depois, eu tinha as sapatilhas nos pedais de uma


bicicleta, o Jay-Z a bombar de um altifalante demasiado alto para uma aula
às 8h00. Aqui, nesta sala escura cheia de bicicletas e desconhecidos suados,
conseguia evitar a realidade inquietante que me aguardava. Eu não tinha
apenas novas informações genéticas para assimilar.
Eu tinha uma irmã. E um pai que nunca iria conhecer.
Já estava a respirar com dificuldade e ainda só permanecia sentada na
bicicleta, mal mexendo as pernas. O pânico continuava presente. O meu
plano de pedalar para expulsar tudo começava a parecer-me absurdo,
inclinei a cabeça para o guiador e fiquei a observar a pequena mulher de
leggings às riscas aos saltos na bicicleta ao meu lado.
– Desculpe, importa-se de trocar de bicicleta?
Era a Cleo. Eu reconheceria esta voz determinada em qualquer lugar.
– Estava à espera de ficar ao lado da minha amiga – continuou ela, a falar
com a mulher ao meu lado. – Ela está a passar por um terrível caso de
intoxicação alimentar, e eu quero ter a certeza de que não desmaia na aula.
Ou vomita.
– Claro – disse a mulher, olhando-me com desconfiança. – Em que
bicicleta estava? – A Cleo apontou para a fila atrás de nós.
– Agradeço-lhe imenso – exclamou a Cleo, antes de virar a sua atenção
para mim. – Olá. – A sua voz baixou, o rosto mostrou a sua preocupação.
– Não acredito que estás aqui neste momento. – Abanei a cabeça,
perplexa.
– Tu conheces-me. Adoro fazer o impossível acontecer. – Ela ergueu uma
sobrancelha, sempre tão confiante. – Gostei do desafio, para ser sincera.
Apanhei um táxi e corri dois quarteirões.
– Bom dia, pessoallll! – A voz da instrutora crepitava através do
altifalante. Ela entrou a balançar os punhos, tatuagens sobre os bíceps, o
cabelo castanho-avermelhado tão saltitante como o seu estado de espírito. –
Antes de começarmos, quero que se apresentem aos vossos vizinhos de
ambos os lados!
Ela aumentou o volume numa música da Rihanna enquanto as pessoas na
sala começaram a conversar. Rapidamente, cumprimentei um homem ao
meu lado. «Andy!», gritou ele em saudação. Eu assenti com a cabeça e fiz
um pequeno sorriso e voltei para a minha amiga.
– Olá, eu sou a Cleo – disse ela novamente em voz alta enquanto me
virava, enunciando cada palavra sobre a música. – Estou aqui para evitar
que a minha melhor amiga se passe muito!
– Muito bem, pessoal, aumentem a vossa resistência cinco voltas! – A
voz da instrutora retumbava. – E vamos preparar-nos para dar tudo através
destas colinas!
A turma irrompeu em aplausos. Aparentemente, todos tinham tomado
banho em Red Bull esta manhã.
– Então! – A Cleo inclinou-se na minha direção para que eu conseguisse
ouvir. – Vai correr tudo bem!
– Não sabes isso! – sussurrei, já exausta da subida. – Isto muda tudo.
Tenho uma família inteira que nem sequer conhecia. Que a minha mãe
desconhece. É uma loucura.
– Até à terceira posição! – gritou a instrutora. Ergui-me nas pernas, com
as mãos a alcançar a frente do guiador. A Cleo ficou sentada na bicicleta, o
suor a formar-se ao longo da linha do cabelo.
– Tenho de contar à minha mãe. – Demorei um minuto a pronunciar as
palavras. – Sinto que lhe devo isso.
– Não, não deves! Podes dizer-lhe o que quiseres e quando quiseres –
gritou a Cleo. – Esta é a tua jornada.
– Por favor não voltes a usar essa palavra perto de mim – disse eu com
uma gargalhada, e a Cleo sorriu. Claramente, ela tinha estado a tentar
animar-me, e tinha funcionado.
– Nem sei se quero responder – gritei, tentando ser ouvida por cima da
música. – É muita coisa.
O Andy ansioso, ao meu lado, fez-me um olhar que dizia Por favor, cala-
te e pressionou um dedo nos lábios.
A Cleo murmurou a palavra «Idiota», e eu deixei escapar uma
gargalhada.
– Lembrem-se, nós somos uma matilha – gritou a nossa instrutora de
cima da sua bicicleta, na frente da sala. – Pedalamos como se fossemos um!
– Olha, o que quer que decidas fazer – gritou a Cleo, a oscilar com as
flexões no guiador – estou aqui para ti. E a Lola também, obviamente.
Ela fez uma pausa por um instante.
– Meu Deus, isto é terrível – disse ela com uma gargalhada quando a
instrutora anunciou que era altura de pegar em pesos para o exercício de
braços.
Eu acenei em concordância, e em nome dos meus quadríceps, que
estavam muito zangados.
– Não acredito mesmo que estás aqui. Quando foi a última vez que tiveste
uma aula de spinning?
– A última vez? Hum, aquela única vez que vim contigo.
– Isso foi há quase um ano, Clee. – Comecei a rir tanto que quase deixei
cair os meus pesos.
A Cleo continuava a praguejar quando, minutos mais tarde, estávamos do
lado de fora do estúdio de spinning, a sorver água.
– Devia ter ficado na cama e tentado voltar a adormecer – resmunguei. –
Estava a ter um sonho muito estranho em que andava de mota com… –
Interrompi-me. Não queria contar à Cleo sobre o meu sonho com o Hayes.
Tinha sido totalmente classificado para todas as audiências, mas ao mesmo
tempo foi tão erótico.
– Com quem? – perguntou ela, a garrafa de água nos lábios.
Fui apanhada.
– Não te rias – disse eu finalmente, e ela concordou. – Com o Hayes.
– Ooooh. – Ela comprimiu os lábios e fez uma pequena dança sensual
com os ombros. – Alguém tem o Sexy de Fato no cérebro. Foi um sonho
sexual? Na mota?
– Não! – insisti. – Só andámos de mota. – Esqueci-me propositadamente
de acrescentar como me tinha deixado excitada.
– OK, bem, ouve, por mais que eu queira ouvir sobre a tua viagem com o
Hayes, tenho de ir para casa e preparar-me para o trabalho. Podes telefonar-
me em qualquer altura para falar sobre isto da tua irmã, está bem? E sobre o
teu pai também. Sabes que eu sei o que é perder um pai.
O pai da Cleo tinha morrido quando ela andava no secundário, e isso
tinha-a afetado de uma maneira que eu sei nem sequer poder começar a
compreender. Apertei os lábios.
– E se eu for… – A minha voz parou. Sentia-me demasiado embaraçada
para dizer em voz alta.
– E se tu fores o quê? – perguntou ela, passando as mãos pelo cabelo
molhado de suor enquanto me olhava de forma expectante.
– Uma desilusão? Ela descobre que esta irmã que está toda entusiasmada
por conhecer é uma americana estranha e desempregada?
– Está bem, Franny. – A Cleo colocou as mãos sobre os meus ombros,
tinha um olhar severo no rosto. – Quero validar os teus sentimentos ao
mesmo tempo que te recordo que fales gentilmente de ti mesma, como se
estivesses a falar de uma amiga.
– Muito bem. – Eu revirei os olhos com um suspiro. – Mas ela é arquiteta
e designer. Ela faz o que eu faço, mas, tipo, de verdade.
– Tu não és o Coelho Velveteen, querida. – A Cleo deixou cair os braços
e empurrou-me suavemente para a frente. – Eu prometo-te, tu já és muito
real.
CAPÍTULO OITO
HAYES

S ábado à noite, apareci no apartamento da Eleanor e do Henry para


jantar e levei uma garrafa de vinho e, por incrível que pareça, uma
caixa gigante de bolachas de água e sal. Esta última não fora ideia minha; a
Eleanor tinha-me enviado uma mensagem de texto quando eu estava a sair
de casa, a pedir-me para levar uma caixa, e assim parei no Gristedes.
Bati à porta, e o Henry veio receber-me de avental, com uma espátula
coberta de molho de tomate numa mão.
– HM Três – disse ele com um sorriso malicioso, agarrando-me pelo
braço e puxando-me para dentro para um abraço.
Ele era a única pessoa que me chamava assim. Raios, ele era a única
pessoa que eu deixaria que me chamasse assim. Tinha sido uma das
primeiras coisas que lhe saíra da boca quando nos conhecemos. A Eleanor
começara a falar com ele numa festa de Halloween com demasiada gente,
num loft no centro da cidade. O Henry tinha-se vestido de Han Solo, e ela
de Princesa Leia, e a combinação de roupa deles conquistara a Eleanor num
instante. Depois de terem passado duas horas juntos a conversar num canto,
eu aparecera para dizer olá. A Angie tinha-se vestido como um ato falhado
de Freud nessa noite, uma camisa de dormir branca com palavras como ego
e complexo de Édipo escritas nela. Eu tinha-me vestido de… bem, de mim
próprio.
– Hayes – dissera eu nessa noite, estendendo a minha mão.
– Montgomery III – acrescentara a Eleanor, com uma excitação nervosa a
dançar-lhe na voz. Os antigos namorados e namoradas da Eleanor tinham
todos sido céticos em relação a mim, certos de que havia algo de suspeito
entre nós quando eles não estavam por perto. Mas o Henry não parecera
perturbado com a nossa amizade.
– HM Três – dissera ele, apertando firmemente a minha mão, os olhos
brilhantes de excitação e licor. O Henry era confiante, simpático com todos,
sem medo de nada e de tudo. E a sua pronúncia só o fazia parecer mais
sofisticado. Nascera em Hong Kong e tinha crescido no Reino Unido, antes
de se mudar para os Estados Unidos para a faculdade, o Henry exalava
sofisticação sem o mais pequeno vestígio de idiotice. Ele era um verdadeiro
unicórnio.
– Trouxeste as minhas bolachas? – perguntou a Eleanor da sala de estar.
– Sim – disse eu, franzindo a testa quando dei com ela enfiada no sofá em
posição fetal. – Estás doente?
Voltei-me para o Henry, que estava ao meu lado, agarrado a uma luva de
forno, com um sorriso estúpido no rosto.
– Ela está bem? – perguntei-lhe, a minha preocupação a aumentar.
– Hayes, meu idiota – gemeu a Eleanor, sem levantar a cabeça. – Estou
grávida.
– Oh, meu Deus, El. – Fiquei de queixo caído com o choque. – Isso é…
isso é…
– É uma surpresa, é o que é – disse ela, abrindo a embalagem das
bolachas. – Mas uma boa surpresa.
O Henry soltou um pequeno grito de entusiasmo ao meu lado. O sorriso
no seu rosto poderia ter-se estendido até às extremidades de Manhattan,
grande como era.
– Isso é espantoso. Parabéns. – Inclinei-me para a abraçar e dei-lhe um
beijo na face. Isto pareceu-me monumental, excitante de uma forma que eu
nunca tinha sentido antes. – Sempre quis mudar de carreira e tornar-me
baby-sitter, por isso…
– Não, por favor. – Ela abanou a cabeça. – Além disso, precisamos de ti
para tomar conta de gatos. A Luna pode ficar com ciúmes.
– Já disseste aos teus pais? – perguntei, atirando-me para cima da
poltrona em frente dela.
– Ainda não. Ainda é cedo – acrescentou –, por isso não estamos a contar
a muita gente. Devias sentir-te muito honrado por estares num grupo tão
exclusivo.
Eu ergui um punho fechado para mostrar o meu entusiasmo. Mas a minha
mente também estava a percorrer tudo o que tinha acontecido a Eleanor este
ano. A nossa grande mudança, possíveis novos clientes, organização do
casamento com o Henry. E agora, um bebé. A sua vida estava a seguir em
frente, a concluir etapas que eu pensava já ter atingido. Senti uma pontada
de inveja e tristeza misturadas com a alegria.
– Parabéns, meu – disse eu ao Henry enquanto ele me pedia para o seguir
até à cozinha. – Vais ser o pai mais fixe da vizinhança.
O Henry riu-se e depois fez uma pausa para pensar.
– Sim, talvez tenhas mesmo razão. – Ele tirou-me o vinho das mãos, e
colocou-o em cima do balcão ao lado de um escorredor gigante. – Mudança
de menu esta noite. A Eleanor não suporta a ideia de frango neste momento,
por isso estou a fazer esparguete, com um belo molho de arrabbiata para
nós. O dela vai ser simples.
– Sabes que eu consigo ouvir-te, chef ! – gritou a Eleanor da sala de estar,
a apenas alguns metros de distância.
– Vou abrir isto – disse o Henry, tirando um saca-rolhas de uma gaveta. –
Importas-te de levar isto à minha adorável noiva?
Ele passou-me um copo de líquido púrpura.
– Gatorade – murmurou, baixando a voz. – É o único sabor que consegue
aguentar.
– Mais uma vez, consigo ouvir-te – disse a Eleanor. – A gravidez deu-me
náuseas sem fim, mas também me concedeu uma audição supersónica.
– Amo-te! – respondeu o Henry, voltando-se para a panela borbulhante
que estava no fogão.
Entrei na sala de estar, de Gatorade na mão.
– Hayes – gemeu ela, agora deitada de costas com uma pilha de bolachas
no estômago. – Desculpa ter engravidado mesmo antes da nossa grande
mudança de instalações.
– Como te atreves – exclamei secamente com um sorriso. – Estás de
quanto tempo?
– Quase oito semanas. O vómito começou há apenas alguns dias. – Ela
sentiu uma náusea enquanto falava.
– Eleanor – disse eu, a minha voz suave enquanto me sentava de novo. –
Isto é mais importante. As coisas do trabalho vão resolver-se.
Disse estas palavras tanto para mim como para ela. Iríamos resolver.
Resolvíamos sempre. Mas mesmo assim sentia uma pequena onda de
nervosismo no meu estômago.
– Eu sei – disse ela, inclinando a cabeça para mim com um sorriso. – E
estou entusiasmada.
– Pela nossa mudança, ou pelo bebé?
– Oh meu Deus, odeio-te. – Ela atirou-me uma bolacha para provar o seu
ponto de vista. Pu-la na boca.
– Será que isto muda, por completo, os vossos planos de casamento? –
Tinham falado pela primeira vez de um casamento com destino quando
ficaram noivos. Algo sobre o seu local de férias favorito numa praia remota
em Sayulita.
– Sim, ou antecipamos a data ou adiamos. Fazemos algo mais pequeno,
talvez. E definitivamente em Nova Iorque.
– Bem, serás a primeira pessoa na Arbor a experimentar a nossa política
de licença parental – disse eu.
– Seis meses! – aplaudiu ela, levantando os punhos triunfantemente.
Quando eu e a Eleanor nos sentámos juntos num Starbucks em Chelsea, há
quatro anos, para trocarmos ideias sobre como seria a nossa própria
empresa, uma das primeiras coisas que decidimos foi que queríamos dar aos
funcionários muito tempo livre para grandes mudanças na vida, totalmente
remunerado. Senti uma excitação ao perceber que tínhamos realmente
conseguido, e depois uma angústia, perguntando-me se alguma vez iria
usufruir eu próprio disso.
– Oh, e ouve esta. – Ela baixou o tom de voz. – O Henry ofereceu-se para
tirar toda a sua porcaria de gamer do escritório para se fazer lá o quarto do
bebé. – O Henry era conhecido por ficar até altas horas a gritar, de
auscultadores, enquanto jogava Call of Duty. Isto era marcante.
– Sabes que mais – disse eu, antes de me conseguir deter. – A Franny
podia decorá-lo. Ela estava a contar-me acerca de uma reunião que teve
com potenciais clientes para decorar o seu quarto de bebé.
A Eleanor repetiu lentamente as minhas palavras.
– Ela estava… a contar-te…?
– Encontrámo-nos na outra noite. – Revirei os olhos, tentando descartar a
coisa como se não fosse nada de especial. – Acompanhei-a até ao metro.
– Uau. – Ela fez uma careta, assentindo com a cabeça. – Isso é um bocado
romântico, sabes.
– Foi totalmente inocente – insisti.
– E não me contaste nada sobre isso? – perguntou ela, olhando-me
inquisitivamente. Quase como se soubesse que eu não o tinha mencionado
de propósito. – Vocês os dois seguem-se um ao outro pela cidade, à espera
de esbarrarem um com o outro?
– Acho que sim – murmurei. – A melhor amiga dela estava num encontro
com a Perrine, e encontrámo-nos.
Ela sentou-se, boquiaberta.
– Hayes Montgomery III, tens obviamente muito para me contar.
Fiz-lhe um resumo o mais curto possível e depois tentei mudar de
assunto, contando-lhe os pormenores do meu encontro com a Serena, até à
fotografia das nossas sapatilhas.
– Muito bem, uma fotografia no Instagram é algo importante – disse a
Eleanor intencionalmente, olhando para a fotografia no seu telemóvel.
– Ela disse que uma fotografia nas suas stories não era nada de especial –
afirmei eu sem hesitar, tranquilamente. Um especialista do Instagram,
mesmo. Afinal, eu é que tinha uma história viral para contar. – Desaparece
após vinte e quatro horas.
– Hayes, pareces o meu pai – repreendeu ela, acabando com a minha
felicidade. – As pessoas vão reparar que ela te identificou. E ela guardou-a
nos seus highlights, para que qualquer pessoa a possa ver em qualquer
momento.
– Mas são literalmente apenas as minhas sapatilhas. Porque é que alguém
se importaria?
A minha conta de Instagram tinha um total de três fotografias. Uma
pixelizada do Empire State Building que tirei em 2011 e filtrada dentro de
um centímetro da sua vida, outra da Angie a abraçar o cão dos meus pais
em frente da árvore de Natal deles mesmo antes de ficarmos noivos, e uma
que tirei no final de uma caminhada que fiz no Vermont há uns anos. E era
uma conta privada. Era, muito possivelmente, a conta menos ativa do site.
– As pessoas leem nas entrelinhas do que veem online, Hayes. Não posso
acreditar que ainda estou a explicar-te isto depois de tudo. – Ela lançou-me
um olhar exasperado e mudou de posição, colocando as bolachas ao seu
lado no sofá e balançando as pernas para se sentar de pernas cruzadas em
cima das almofadas. – Mas gostas dela? – perguntou, fazendo-me um
sorriso tímido. – Está a correr bem?
– Sim – disse eu, tentando reunir algum entusiasmo. – Vamos correr de
novo amanhã, e ela convidou-me para uma festa qualquer.
– Parece que estás a descrever uma ida ao dentista – provocou ela.
– Estou entusiasmado, juro – retorqui. E era verdade. Eu gostava da
Serena, e era fácil estar perto dela. Confortável, até.
– Bem, não é para mudar de assunto – disse ela –, mas tenho outra
má/boa notícia para ti.
Inclinei-me para a frente, cotovelos nos joelhos.
– Não acabaste de me dar boas notícias? – Apontei-lhe para a barriga.
Ela agitou os dedos indicadores para trás e para a frente, enquanto movia
os ombros e dançava no sofá.
– Há mais!
Bati palmas, preso ao meu destino.
– Conta-me tudo.
– O Paul preparou alguma imprensa para nós, e é incrível. – Ela estava
muito entusiasmada.
Ergui as sobrancelhas, indiferente, não querendo dar-lhe a satisfação de
ficar com vantagem sobre mim.
– Então? – disse eu, finalmente.
– A Vogue vai cobrir a festa de inauguração, enviando um fotógrafo e um
jornalista. E a Architectural Digest quer fazer um tour virtual ao novo
espaço e um artigo na revista. Que tal? – gritou com alegria, balançando as
mãos novamente.
– Uau – respondi. – Isso é ótimo.
– Incrível – disse ela.
– Bem, isto é fantástico – disse eu, já sem tentar parecer indiferente. –
São meios de comunicação importantes. O que pode haver de mal nisso?
– Os dezoito designers de interiores que o Tyler contactou? – Ela
encostou-se ao sofá, resignada, e eu sabia aonde isto ia dar. Sentia um nó no
estômago.
– Oh, não – disse eu, colocando a mão na nuca, inquieto.
– Oh, sim. – Tinha passado de extasiada a desanimada num instante. –
Todos cheios de trabalho. Portanto, precisamos de arranjar uma solução nas
próximas quarenta e oito horas, ou a Vogue estará a fotografar-nos num
espaço vazio.
CAPÍTULO NOVE
FRANNY

U m dia após a grande revelação do ADN, eu estava aconchegada no


canto do meu sofá, com o portátil pousado nas coxas, a carregar
números numa aplicação de orçamentos na tentativa de planear o resto do
ano. Fizera uma pausa alguns minutos antes e espalhara uma máscara de
lama verde em todo o rosto, como se os cuidados com a pele pudessem de
alguma forma resolver os meus problemas. Tudo o que fez foi tornar tão
rígido o meu rosto que mal conseguia mover os lábios, o que dificultava
muito comer os Wheat Thins e as fatias de cheddar que trouxera da cozinha.
Estendi a mão para pegar num biscoito, e o prato, que estava
precariamente empoleirado na borda do sofá, começou a deslizar em
direção ao chão. Merda. Agarrei-o mesmo a tempo, e mais uma vez fiquei
admirada com a forma como o prato combinava não só com o ambiente,
mas também com as cores vivas e alegres que utilizei para decorar o meu
apartamento. Era cerâmica vintage, parte de um conjunto comprado num
site e enviado para mim de uma pequena loja de artigos em segunda mão de
San Francisco. Eu andara obcecada durante meses por encontrar estes
pratos: majólica italiana pintada à mão, coberta de penas de pavão laranja
brilhante que espiralavam para fora. Foram caros, mas eu dera a desculpa
de serem um presente de aniversário para mim mesma, e sempre que
pegava num deles sentia um prazer e uma admiração sem fim devido à sua
beleza.
O que é que a minha meia-irmã acharia destes pratos? perguntei-me.
Gostaria deles? Deixei cair a cabeça na almofada e soltei um gemido baixo.
Eu ainda não lhe tinha respondido, apesar de andar a pesquisá-la no Google
sem parar.
No Instagram, a empresa de design da Anna tinha quase sessenta mil
seguidores. Encontrei fotografias dela na Semana da Moda de Milão em
toda a Internet, equilibrando-se nos saltos como se os pés não lhe doessem.
Era como olhar para fotografias disformes de mim mesma num espelho de
casa de diversões. Pele morena, cabelo escuro encaracolado, as mesmas
sobrancelhas sérias. Apenas a viver uma vida muito mais glamorosa,
realizada e mais bem-vestida.
Forcei o cérebro a regressar às coisas do trabalho, mas isso só me fez
sentir náuseas de ansiedade. Sempre que tentava sentar-me e pensar sobre o
que seria necessário para realmente trabalhar para mim mesma – o
orçamento, as horas, o dinheiro que eu precisaria de ganhar para pagar as
contas, os clientes que precisaria de ter para conseguir esse dinheiro – era
dominada pela síndrome do impostor, que só tinha piorado desde que soube
da minha doppelgänger italiana mais fixe e bem-sucedida. Este era o
buraco escuro e sinistro de insegurança em que eu caí no instante em que a
dúvida bateu à minha porta.
Não que este fosse um sentimento novo, é claro. Eu era boa a descartá-lo
na maioria das vezes, mas ser despedida era como um tapete de boas-
vindas, convidando-o a aparecer sempre que quisesse. Ele penetrava na
minha mente quando a minha cabeça tocava na almofada, sentava-se à
minha frente na pequena mesa de cozinha enquanto eu tomava o pequeno-
almoço.
Este maldito dia. A mensagem da Lola apareceu enquanto eu andava de
um lado para o outro no meu apartamento, a pensar, e respondi-lhe com um
GIF do Daniel Radclyffe a gritar «AJUDA-ME» e voltei ao meu ritmo,
traçando a minha trajetória de negócios na cabeça.
O meu telemóvel tocou novamente. A dar aulas até às 9, escreveu a Cleo.
McManus depois?
Era um dos nossos bares preferidos. A minha mente focou-se no estado
do meu orçamento. Tenho um orçamento apertado estes dias, escrevi,
terminando com uma cara triste.
Telhado então?, escreveu a Lola.
O telhado da Cleo era um ponto de encontro nosso desde os vinte e
poucos anos. Não que fosse fácil de lá chegar. Envolvia rastejar pela escada
de incêndio do seu quarto andar sem elevador em Lower East Side e depois
subir uma escada curta, mas instável. Tornáramo-nos muito boas ao longo
dos anos a fazer malabarismos com garrafas, sacos de comida e cadeiras de
praia numa mão enquanto subíamos com a ajuda da outra mão.
TELHAAAAADO, respondeu a Lola.
– Bem, isto está resolvido – disse eu para as paredes do meu apartamento.
Enviei um emoji com o polegar para cima, mesmo quando surgiu uma
notificação de e-mail no meu telemóvel. Cliquei na notificação para abri-la,
e era do colega de trabalho da Lola, o Grant. Sustive a respiração; esta era a
resposta de que eu estava à espera, a minha salvação criativa e financeira,
uma corda para me puxar de volta para os confortos seguros da minha
antiga vida. Os meus olhos percorreram as palavras no ecrã.
«Adorámos conhecer-te, Franny», dizia o e-mail. «Mas decidimos
escolher um designer que também é pai, para realmente capitalizar a sua
experiência. Muito obrigado pelo teu tempo e pela consulta atenciosa.
Esperamos que os nossos caminhos se voltem a cruzar em breve!
Porra. O meu coração ficou apertado. Agora o que diabo iria fazer?
*

Horas depois, estávamos estendidas em cima de toalhas que também


serviam de mantas de piquenique. O telhado era cinzento e sombrio,
coberto de cocó de pássaro e folhas. Não havia nada de bom nisso, além de
nos dar a oportunidade de ar fresco e uma vista incrível da ponte de
Williamsburg. Para nós, isso era o suficiente.
Enquanto a Cleo e a Lola bebiam de latas de cerveja Pacifico, eu bebia da
minha garrafa de água de metal. Rodávamos uma embalagem de Pirate’s
Booty entre nós. Tecnicamente, era uma refeição grátis. Aplaudi a minha
frugalidade sem me deixar ficar muito deprimida por ter trinta anos e comer
bolinhos de cheddar branco ao jantar porque estava apavorada que o
negócio que ainda nem tinha começado oficialmente estivesse condenado a
correr mal. Não que eu fosse abordar isso esta noite. Eu precisava deste
tempo com as minhas amigas para descomprimir, esquecer por um
momento que estava tramada. Além disso, elas já se preocupavam o
suficiente comigo.
– Franny? – disse a Cleo. – Estás bem?
E… esse era o problema com as boas amigas – elas sabem sempre quando
se passa alguma coisa, mesmo quando não lhes contas.
– Eu não consegui aquele trabalho do quarto do bebé. Com o Grant. –
Forcei um sorriso pequeno e triste, numa tentativa de agir como se estivesse
bem.
– Não! – A Lola engasgou-se quando a Cleo se inclinou para apertar o
meu braço.
– Eu estava a contar com isso para… bem, acho que para tudo – disse eu
lentamente. – E realmente preciso de pensar em como vou arranjar alguns
clientes este ano, se quiser… vocês sabem.
Elas fitaram-me.
– Se quiseres o quê? – perguntou a Lola.
– Começar de facto o meu próprio negócio. – Suspirei. – Não ficar sem
dinheiro e falhar totalmente e humilhar-me à frente de todos os que
conheço. Manter o meu apartamento e não ter de voltar para casa da minha
mãe.
– Franny… – A voz da Cleo estava calma, o seu lado prudente e
pragmático a entrar em ação. – Tu acabaste de decidir fazer isso. Não
coloques tanta pressão em ti mesma logo desde o início.
– Sim – concordou a Lola com a cabeça. – Assim vais programar-te para
o fracasso. – Ela esticou-se para tocar os dedos dos pés, pensando. – E,
honestamente, o que estás a fazer é muito corajoso.
– Obrigada – respondi. – Mas a coragem não paga a renda, sabem? Eu
fiquei com os contactos dos meus antigos clientes da Spayce, mas talvez
tenha sido ingénua ao pensar que poderia simplesmente trabalhar por conta
própria.
A Cleo passou-me a embalagem de Pirate’s Booty, e eu remexi lá dentro.
– Só te dou um conselho, fica atenta a pessoas ricas com muito dinheiro e
que querem gastar tudo em tapetes turcos tecidos à mão, OK?
– Esses são basicamente o único tipo de pessoas que eu conheço, por
isso… – brincou a Lola enquanto esticava as pernas para a frente,
abanando-as. – Mas, olha, a sério, Fran. – Ela olhou para mim. – Passaste
por um momento bizarro recentemente. Vai com calma contigo mesma.
A Cleo assentiu.
– O trabalho. A tua irmã. O teu pai biológico. É muita coisa.
– E – a Lola entrou na conversa – sabes que nós podemos sempre ajudar-
te a descobrir o que dizer à…
– Anna – acrescentei enquanto a Cleo lhe lançava um olhar.
– Certo – assentiu a Lola. – Se decidires responder-lhe.
– Ainda não, mas estou a tratar disso.
Eu não tinha mais energia para investigar a Caixa de Sentimentos
Desagradáveis da Franny. Rápido, Franny, uma mudança de assunto, disse
a mim mesma.
– As coisas estão tão loucas que eu nem vos contei sobre o meu passeio
até ao metro com o Hayes na outra noite. – Eu acenei isto à frente delas
como se fosse uma cenoura.
À menção do seu nome, ambas pararam o que estavam a fazer para olhar
para mim. Por um rápido segundo, ficaram paralisadas com aquele olhar
chocado que fazes a um amigo que segura um petisco suculento durante
muito tempo.
– O que é que disseste? – perguntou a Lola com a boca cheia de Pirate’s
Booty.
– O Hayes acompanhou-me até ao metro na outra noite, depois de termos
andado a fazer de espiões no teu encontro.
– E?! – gesticulou a Cleo para que eu continuasse, espalhando cerveja
pela camisa enquanto o fazia. – Raios – murmurou para si mesma,
enxugando com a ponta da toalha em que estava sentada. – Não posso
acreditar que ainda não nos tinhas contado sobre isso!
– Não tínhamos todas concordado que a minha vida descarrilara?
Esqueci-me! – Levantei as mãos na defensiva.
– Ah, continua, por favor – disse a Lola num ridículo sotaque britânico
falso.
– Eu não sei. Foi bom – disse com sinceridade. – Ele cresceu mais ou
menos perto de mim. Conversámos sobre as nossas famílias. Ah, e vejam
só… ele desculpou-se por ter sido tão estranho durante a entrevista.
– E o que é que tu disseste? – incentivou-me a Lola.
– Eu deixei-o safar-se. Ele parecia muito sincero. Foi querido. Não parece
tão horrível como pensava inicialmente.
– Então foi basicamente um encontro – disse a Cleo com entusiasmo.
– Foi uma caminhada de dez minutos! – protestei.
– Eu já tive encontros que não duraram tanto tempo – troçou a Lola.
– Ele lembrou-te que não és o tipo dele? – perguntou a Cleo, deslizando
para a frente para se sentar mais perto.
– Sim, como é que o Sr. Cheio de Dinheiro te encantou desta vez? – A
Lola entrou na conversa enquanto procurava migalhas no fundo da
embalagem de Pirate’s Booty.
– Olha, eu sei que isto parece loucura, mas ele é agradável.
Eu esperava algum tipo de piada parva de pelo menos uma delas, mas
limitaram-se a fitar-me.
– O quê é? – disse eu, olhando para elas.
– Tens um fraquinho pelo Sexy de Fato. – A Cleo disse as palavras como
se estivesse a descobrir a solução de um enigma, e deu um pequeno suspiro
no final, para dramatizar. – Também tiveste aquele sonho da moto, lembras-
te?
– Eu só disse que ele era agradável! Porque ele é agradável! O que há de
errado em eu achar que ele é agradável? – A minha voz subiu um pouco de
tom.
– Tu acabaste de dizer «agradável» três vezes seguidas. – A Lola também
estava a usar a voz de solucionadora de enigmas, lenta e estudiosa.
– E então? – Eu acenei para elas na defensiva. – Posso achar que ele é
agradável se quiser.
– Hum hum, com certeza. – A Cleo ergueu uma sobrancelha mostrando
ceticismo. – Agradável. É tudo. Simplesmente agradável.
– Eu apoio totalmente a ideia de teres um fraquinho pelo Sexy de Fato –
disse a Lola. – Assim podemos ter um encontro a quatro.
– Oh, meu Deus, podes parar? Nós não vamos ter um encontro a quatro,
porque eu não estou a sair com ele – insisti, bebendo um gole de água.
– Mas aposto que irias, se ele te convidasse para sair – continuou a Cleo,
a rir. – E dariam um beijo agradável no final da noite.
– Sim, imagino que sim. – A Lola inclinou a cabeça, pensativa. – Achas
que ele é agradável no sexo?
– Ooooh sim, o Sexy de Fato seria muito agradável contigo, Fran – disse
a Cleo, e agora eu estava a rir com ela e a Lola. E mesmo que a atenção
ainda estivesse centrada em mim, a conversa era leve e fácil, o que era bom.
Continuei a rir, esperando que nenhuma das duas detetasse a verdade: que,
no fundo, eu estava a morrer de medo de tudo o que estava a acontecer na
minha vida.
CAPÍTULO DEZ
HAYES

– H ayes!
Alguns dias mais tarde, a Serena cumprimentou-me no passeio à porta de
um bar no centro da cidade de que eu nunca tinha ouvido falar até ela me
enviar uma mensagem com o nome e a morada. Parecia muito mais alta do
que eu, embora eu tivesse mais alguns centímetros. Claro, ela estava de
saltos altos, mas era a sua confiança elétrica que parecia elevá-la até ao céu.
Ah, e as calças de ganga justas também não lhe ficavam nada mal.
– Ei. – Inclinei-me para lhe dar um abraço e pousei os lábios na sua face.
– É bom ver-te outra vez.
Ela riu-se, embora eu não tivesse a intenção de ser engraçado.
– Está uma cena lá dentro. Espero que não te importes.
– Claro que não – disse eu, sem saber o que estaria implícito numa
«cena». Era apenas uma quarta-feira à noite. – Esta é a festa da tua amiga
da república?
A Serena assentiu. Ela convidou-me no último fim de semana durante a
nossa corrida, e eu estava à espera de uma reunião tranquila, alguns amigos.
– A Hayley reservou o espaço todo para o seu aniversário – disse ela,
chegando à porta. – Nunca vi ninguém esforçar-se tanto para o seu
vigésimo nono aniversário, mas estou entusiasmada.
Subimos os degraus e passámos pela porta gigante em arco, onde no alto
flutuavam balões dourados gigantes que formavam a palavra HAYLEY. No
interior, mesmo a seguir à porta da frente havia um mural com o nome da
Hayley impresso em rosa e preto, com logotipos de marcas por toda a parte.
As pessoas posavam para fotografias à sua frente, abraçando e fazendo
sinais de paz para um tipo barbudo entediado que fotografava com uma
câmara.
– Vamos tirar uma fotografia à frente do painel de publicidade! –
Gesticulou ela em direção ao mural com o nome.
A Serena puxou-me para a frente e fez sinal ao fotógrafo para nos
fotografar. Ela inclinou-se ao meu lado, queixo curvado para a direita, as
ancas projetadas em direção à câmara, cotovelo arqueado. Fiz a cara que
faço sempre. No 2.º ciclo decidira que sorrir fazia-me parecer ridículo nas
fotografias, e por isso evitava a todo custo sorrir no segundo em que uma
câmara disparava. Depois de algumas fotografias juntos, ela afastou-se de
mim e inclinou o corpo na direção oposta.
– Derek, preciso de uma para o Insta – exclamou, como se fosse a coisa
mais óbvia do mundo.
Braços no ar, perna direita levantada para trás, sorriso rasgado e manteve-
se nessa posição pelo que pareceu um minuto, um guindaste a pousar
silenciosamente à beira da água. Era a mesma pose que tinha feito na
semana passada no parque, a sua SerenaStyle. Era suposto ser uma pose
feliz e alegre, mas algo nela era rígido e planeado, o oposto de espontâneo.
Isso fez-me pensar na Franny e no seu sorvete italiano, e no modo como ela
não se importou quando deixou cair um bocado em cima dela.
Após uma série de flashes, Serena ressuscitou e aproximou-se do
fotógrafo.
– Podes enviar-me essas fotos? – interrogou ela enquanto eu permanecia
desajeitadamente a alguns metros de distância à frente do mural, a examinar
as marcas que patrocinaram esta festa de aniversário. Uma empresa de
vodca que reconheci, uma aplicação de encontros. Alguma marca de CBD
específica para mulheres.
Minutos depois, já com as fotografias, a Serena agarrou no meu braço
outra vez, guiando-me para a festa. A música competia com conversas
gritadas sobre taças de champanhe. No canto, um par de mulheres tatuadas
costurava nomes de pessoas em camisolas com capuz, lembranças da festa
desta noite. Parecia haver uma máquina de algodão doce em algum lugar, a
julgar pela quantidade de pessoas que estavam a comer, que competia com
o sushi enrolado à mão como sendo a refeição da noite.
A última festa de aniversário a que tinha ido foi uma reunião íntima no
pátio do restaurante vegano favorito da Eleanor em West Village. Isto
parecia um baile.
No entanto, a Serena movia-se sem esforço pela sala, apresentando-me às
pessoas, tocando no meu braço constantemente, incluindo-me em
conversas, falando comigo. Tive a sensação de que ela estava a exibir-me.
Era algo que deveria ter afagado o meu ego, ter-me feito sentir bem. Mas
nada disso aconteceu.
– Esta é a Dominique!
– O Hayes gere uma das mais importantes empresas de finanças
ambientais da cidade!
– Nós estagiámos juntas na Vogue!
– O Wall Street Journal fez um perfil completo sobre ele!
– Acreditas que ela tem apenas vinte e dois anos e já está a fotografar em
Paris?
– Sim, nós corremos todo o circuito do Central Park juntos. Foi tão
divertido!
Após quarenta e cinco minutos de apresentações aos gritos, sorrisos
forçados e acenos de cabeça intermináveis, pedi licença e retirei-me para
apanhar ar. Agarrei no telemóvel e enviei uma mensagem à Perrine. Queres
ir dar uma volta? Acho que vou sair desta festa mais cedo.
A resposta da Perrine surgiu assim que regressei ao bar para encontrar a
Serena. Não estás num encontro?
E depois: Jantar com Lola às 9, posso passar por aí daqui a pouco.
Respondi com um emoji de polegar para cima.
– Hayes! – A Serena fez-me sinal de um sofá onde estava ao lado de um
bando de modelos de pernas compridas.
– Olha! – Inclinei-me para ela, e ela passou a mão pelo meu braço,
sorrindo. Quando a sua mão alcançou o meu pulso, eu levantei a mão,
entrelaçando os nossos dedos. Uma pontada de culpa atingiu o meu
estômago, eu deveria querer ficar, mas o meu desejo de sair dali era
avassalador. – Eu vou-me embora. Tenho uma reunião amanhã de manhã
cedo.
– Lamento que isto tenha acabado um zoo – disse ela com um olhar
sinceramente pesaroso no rosto. – Talvez possamos fazer algo só nós dois
em breve? Eu poderia até fazer o jantar para ti. Na minha casa ou na tua.
– Ia adorar – respondi, embora parecesse mais como se estivesse a dizer e
a fazer aquilo que se esperava de mim. Eu gostava desta sensação de ser
desejado, e a Serena era charmosa e carinhosa, e uma pessoa divertida. Mas
sempre que estava com ela, parecia que ficava à espera que se revelasse
algum sentimento, como um convidado de uma festa que estava
absurdamente atrasado.
Ela deu-me um pequeno beijo nos lábios, suave e quente, e eu retribuí
pressionando os meus, tentando sentir a conexão que tinha tanta certeza de
que deveria estar lá.
– Regressa a casa em segurança.
*

A Perrine inclinou-se no balcão enquanto eu colocava no micro-ondas


uma das minhas refeições entregues em casa. Salmão com crosta de farinha
de amêndoa sobre feijão verde. Perfeitamente adequado. Possivelmente até
bom.
– Parece uma escolha estranha para um encontro – disse ela, pensativa. –
Quem é que convida um tipo que acabou de conhecer para a grande festa de
aniversário de uma amiga?
– Bem, em sua defesa, ela fez com que parecesse mais uma reunião
casual. Talvez não soubesse que iria ser tão grande?
– Ou talvez seja apenas a noção do que é uma reunião casual para ela.
Encolhi os ombros.
– Quero dizer, conviver e sair é parte do trabalho dela. Por isso ela deve
gostar.
A Perrine espreitou enquanto eu tirava o recipiente do micro-ondas, o
vapor a subir enquanto eu misturava os legumes com um garfo.
– Deveria haver uma lei contra peixe aquecido no micro-ondas – disse ela
com uma careta.
Por sorte, a campainha interrompeu a sua crítica culinária e ela correu
para a porta.
– Ei – disse ela do corredor. – Há problema se a Lola subir? – Se ela
estava nervosa por nós dois nos encontrarmos novamente, não foi o que
pareceu. Eu também tentei não estar.
– Claro que não – disse, levando a coisa com naturalidade. Peguei numa
toalha de papel e numa lata de água com gás e fui para a sala sentar-me no
sofá com o prato equilibrado nos joelhos.
Ouvi a Perrine e a Lola a cumprimentarem-se no corredor, as vozes
abafadas, mas carinhosas. Passos, e depois a entrarem na sala de estar.
– Lola – exclamei, com a boca cheia. Levantei-me, colocando o meu
prato em cima da mesa de apoio. – É um prazer ver-te.
Estendi-lhe a mão, e ela agarrou-a.
– Olá – disse ela, olhando-me diretamente nos olhos. – Gosto de te ver
novamente.
Eu olhei de relance para a Perrine, que estava a observar a Lola com tanta
paixão, com os olhos arregalados que era impossível não perceber. Eu
assistira aos namoros da Perrine durante quase quinze anos, e nunca a tinha
visto revelar as suas emoções de forma tão transparente.
– O Hayes e eu estávamos a falar sobre o encontro estranho dele de hoje à
noite – disse a Perrine, recostando-se na poltrona no canto. – Parece justo
incluir-te, já que ele testemunhou o nosso primeiro encontro.
– Ah, eu já vi no Instagram. Acompanho a Serena e a sua equipa há anos.
– A Lola empoleirou-se na beira da poltrona, com a mão na nuca da
Perrine. – Ficaste bem – disse ela, deitando-me uma olhadela.
– Hum – Isto apanhou-me desprevenido, e eu podia sentir o calor a subir
para o rosto. – Obrigado.
Pensei, por um momento, se ela transmitiria essa informação à sua
melhor amiga. E depois aquela lembrança de novo: da Franny e do sorvete
italiano e a sua risada despreocupada como se nada importasse.
– Como eu estava a dizer – continuei, tentando concentrar-me –, não foi
estranho. – Eu semicerrei os olhos para a minha prima. – Se fosse estranho,
ela ter-se-ia oferecido para me fazer um jantar?
– Ooooh – disse a Lola em apoio, enquanto a Perrine replicou:
– Aqui? Tu não tens uma mesa de jantar.
– Podemos comer na sala de estar – respondi eu na defensiva. – Ou então
na casa dela.
– Já trouxeste alguém aqui?
– A Perrine – disse, a minha voz um pouco mais cortante agora. Eu não
estava com vontade de discutir a minha vida sexual com a minha prima,
muito menos com a nova namorada dela, cuja única impressão que tinha de
mim era como um esquisito tarado por encontros que dizia coisas como «Tu
não és o meu tipo» a pessoas na TV em direto.
– Não te preocupes, Hayes, nada me choca – disse a Lola com um sorriso.
– Eu leio sobre celebridades que fazem coisas bizarras o dia todo.
– Então, tudo bem. Sim, eu já trouxe mulheres para aqui – afirmei com
um pequeno sorriso. – E jantar não é uma coisa chocante.
– Hayes, eu já estive literalmente dentro de uma morgue, e até mesmo lá
existe mais ambiente do que neste lugar. – A Perrine entrou na conversa. –
Eu disse-te que poderia vir cá pendurar coisas para ti.
Ela estava a agir como se fosse a minha mãe, ou uma irmã mais velha,
embora eu fosse mais velho do que ela. Às vezes eu tolerava isso. Até
gostava. Hoje não.
– Sim, bem, este apartamento é a menor das minhas preocupações.
Precisamos de encontrar alguém para fazer a decoração do nosso novo
escritório.
– Eu pensei que já tinham arranjado alguém – disse ela, cruzando os
braços enquanto me interrogava.
– E tínhamos, mas depois ele arranjou um trabalho melhor e maior. E
agora estamos com um problema. E o nosso agente publicitário acabou de
nos arranjar duas grandes coberturas de imprensa, ambas ligadas ao design
e à inauguração do novo espaço.
– Oh, meu Deus – A Lola interrompeu-me, o que provavelmente foi o
melhor de qualquer maneira, já que a Perrine e eu estávamos à beira de uma
das nossas pequenas questiúnculas de irmãos.
Ambos nos virámos para olhar para ela.
– Esperem, desculpem – disse ela, abanando a cabeça. – Eu tive o que
penso ser uma ideia incrível e depois percebi que provavelmente não é.
– O quê? – A Perrine e eu dissemos exatamente ao mesmo tempo.
– OK, bem, acho que vocês sabem que a Franny é designer de interiores.
– Ela disse isto como uma vendedora, lançando lentamente um argumento
antes da grande venda.
– A Franny-do-metro, essa Franny? – perguntei, mesmo sabendo
exatamente de quem estava a falar. Ouvir o nome dela fez os cabelos da
minha nuca se eriçarem.
– Sim, essa Franny. Por oposição a todas as outras Frannys que ambos
conhecemos. – Acho que nunca conheci ninguém tão sarcástico, e estar no
lado recetor era um pouco aterrorizante e também estranhamente agradável
ao mesmo tempo.
– Certo – disse eu. – E agora ela lançou o seu próprio negócio com novos
clientes, e a ir muito bem e com uma agenda cheia durante meses.
A Lola mexeu-se um pouco.
– Mas penso que ela tem alguma disponibilidade.
– Ooooh – disse a Perrine, rapidamente calando-se quando eu lhe fiz O
Olhar.
– Ela é realmente talentosa. Dotada. – A Lola fez uma pausa. – E pelo
que ouvi, vocês os dois deram-se bem na outra noite, então já não há
ressentimentos ou algo assim com que se devam preocupar.
Ressentimentos? Excelente. Simplesmente fantástico. Eu podia sentir o
meu rosto a ficar mais ruborizado a cada minuto que passava.
– Eu não acho…
A Lola ergueu a mão para me interromper.
– A decisão é tua. Claro.
A Perrine olhou para a Lola e depois para mim.
– Acho que contratar a Franny faz todo o sentido. Tu decididamente
precisas de ajuda, Hayes-y – declarou a Perrine, usando a minha alcunha de
infância. – Pensa nisso.
A Lola sorriu.
– Parece-me que estás numa situação tramada, e a Franny definitivamente
poderia resolver-te a situação. Ela já fez interiores de empresas. É
basicamente a praia dela. Pelo que ela é conhecida.
– Bem – disse eu –, nós precisamos mesmo de alguém que resolva as
coisas agora.
A Perrine bufou, e eu fitei-a.
– Tudo bem – disse ela, virando-se para dar um puxão no braço da Lola. –
Nós temos de ir. Estou faminta.
– Foi bom ver-te, Hayes – disse a Lola, sorrindo para mim como se
tivesse o meu número de telefone, embora nos tivéssemos acabado de
conhecer.
– A ti também – respondi enquanto as acompanhava até à porta. Quando
saíram, deitei-me no sofá, esticando as pernas, com o controlo remoto na
mão, e cliquei na ESPN para assistir a algo estúpido.
Pensei por um momento na Serena, a sua mão na minha, as suas palavras
sedutoras. Mas num segundo ela desapareceu, substituída pela ideia de ver a
Franny outra vez. E, de repente, a notificação de uma mensagem de texto
apareceu no meu telemóvel. Deslizei para as mensagens e olhei para o ecrã.
Era a Perrine. Dizia simplesmente: É pegar ou largar.
E então, antes que o meu cérebro pudesse processar completamente o que
ela queria dizer com aquilo, um cartão de contacto surgiu.

Franny Doyle
917-555-5535
CAPÍTULO ONZE
FRANNY

A cidade já estava bem acordada quando cheguei à frente do prédio da Cleo


às 9h00 de sábado. Estou aqui, escrevi numa mensagem, e depois sentei-me
no alpendre até ela sair pela porta da frente, o cabelo ainda molhado do
duche.
– Vamos lá! – exclamou, com demasiada energia para uma manhã de fim
de semana. Estávamos a ir para o centro da cidade para procurar algo para
eu usar no baile de gala que a mãe dela copresidia durante o verão, porque
as lojas de segunda mão em Upper East Side eram sempre reabastecidas nas
manhãs de sábado. Era isso ou alugar um vestido. Mas gostei da ideia de
algo só meu – vintage, intemporal e, o mais importante, barato.
O plano era eu ir com a Cleo, tentar conhecer a equipa de design que
produziu o evento e conversar com as senhoras sofisticadas da cidade, ver
se elas me contratariam para decorar uma das suas muitas casas de banho.
A Cleo tinha até envolvido a sua mãe nisto, e Mrs. Kim, tal como a filha,
adorava fazer o impossível acontecer.
Mal havíamos chegado à Houston Street quando o meu telemóvel tocou.
– Franny, olá, é o Hayes Montgomery. Do metro.
– O Hayes que odeia açúcar? – disse eu sem pensar, e a Cleo ficou
boquiaberta quando ouviu o nome dele.
Ela enfiou o braço no meu e inclinou-se para tentar ouvir a conversa. Dei-
lhe um empurrão a brincar.
Ouvi-o soltar uma gargalhada nervosa.
– Sim, sou eu. O Hayes que odeia açúcar.
Parámos em frente ao café preferido da Cleo para ela ir buscar os cafés
americanos para começar o dia. Caminhei pelo passeio enquanto ela me
atirava um beijo e entrava.
– Bem, recentemente aconteceu-me uma coisa sui generis – continuou
ele. – O designer de interiores que contratámos para decorar as nossas
novas instalações deixou-nos e precisamos de alguém para fazer o trabalho
o mais rápido possível. Foi um grande fiasco.
– Urgh!, isso é terrível – respondi, encolhendo-me perante o pesadelo
com que ele deveria estar a lidar. – Lamento muito saber isso.
– Eu sei que estás com imenso trabalho, mas a Lola esteve na minha casa
ontem à noite com a Perrine, a minha prima…
– Sim, eu lembro-me dela – disse com uma risada.
– Exato. – Ouvi-o rir baixinho. – Bem, ela mencionou que poderias ter
alguma disponibilidade na tua agenda, e eu queria saber se estarias
interessada em reunir para falar desta situação.
– Bem, isso… – Fiz uma pausa por um minuto, enquanto processava
tudo. – Não era isso que eu estava à espera que dissesses. – Alívio, alegria,
nervosismo: um monte de sentimentos explodiu dentro de mim de uma só
vez.
– Isso é uma coisa má? Eu sei que é uma reviravolta insanamente rápida,
por isso se já tens muito…
– Iria adorar poder apresentar-vos algumas ideias – disse eu calmamente,
tentando não parecer muito ansiosa. Mas por dentro gritava: «Sim! Sim!
Sim!» A minha indemnização da Spayce estava prestes a acabar em
algumas semanas. Meu Deus, como eu precisava disto. – Posso reunir algo
para vocês em quarenta e oito horas.
– A sério? – Ele parecia surpreendido e aliviado.
Eu assenti com a cabeça com confiança, embora ele não me pudesse ver.
– Cem por cento.
– Uau. OK, obrigado. Podes enviar-me por SMS o teu e-mail, e eu depois
trato disto então?
– Claro. – Eu estava aos pulos nos meus Vans, incapaz de controlar a
excitação. – Ah. E, Hayes…
– Sim?
– Desculpa por ter feito aquele comentário do açúcar – disse. – Espero
não te ter ofendido.
– Eu posso jurar-te que como coisas doces – respondeu ele. Havia um
tom de brincadeira na sua voz que não existia antes, um leve ronronar que
era inegavelmente sexy. – Ocasionalmente.
– Vou acreditar quando vir – disse, a sorrir.
– OK, bem, vamos ter de comer uma sobremesa juntos um dia destes.
– Ia adorar! – Urgh!! Eu soava demasiado animada. Diminui o tom,
Franny. Diminui o tom. – Ia ser divertido.
– OK. Bem, vou enviar-te uma mensagem de texto com essa informação.
– A voz do Hayes mudou. O Sr. Só Trabalho estava de volta. – Obrigado
por considerares esta proposta.
– Não, obrigada tu. Agradeço teres pensado em mim.
Tudo o que dizia parecia estranho e sedutor, saindo dos meus lábios antes
mesmo de eu me dar conta do que estava a dizer.
– Para o trabalho – acrescentei.
– Claro. Falamos em breve.
Desligámos no momento em que a Cleo estava a sair pela porta com dois
copos de café na mão.
– Então? Como está a tua paixoneta? – perguntou, passando-me um copo.
Não me incomodei a corrigi-la.
– Está bom – respondi. – Ele quer contratar-me? Será? Para fazer a
decoração dos novos escritórios.
– Uau! – A boca dela descaiu um pouco.
– E adivinha quem lhe disse que eu poderia ter disponibilidade –
acrescentei, prolongando o mistério.
A Cleo inclinou a cabeça, confusa.
– Não faço ideia.
– A Lola.
– Oh, meu Deus, ela anda sempre com algum esquema – disse a Cleo
com o que só poderia ser descrito como um revirar de olhos amoroso.
– Então, agora tenho quarenta e oito horas para improvisar alguma coisa.
– Dizer isto em voz alta fez com que se tornasse real, e o meu estômago
retorceu-se com os nervos.
– Fran! – Era tudo o que ela precisava de dizer. Eu podia ouvir cada
pedacinho de entusiasmo que ela sentia por mim apenas pela forma como
gritou o meu nome. – Isto é fantástico. Certifica-te apenas de que o
Mercúrio não esteja retrógrado quando assinares o contrato.
Eu ri-me.
– Ainda não existe um contrato, Clee. Não te preocupes.
– E pensa só no tempo a sós que vais passar com o teu Sexy de Fato –
brincou.
– Oh, meu Deus, vá lá – respondi, mas, oh, eu estava a pensar nisso.
Nisso, e na forma como o som da voz dele fazia os meus joelhos
cederem, como quando a minha mãe me levou ao topo do Rockefeller
Center era eu criança. Eu não pensava apenas que o Hayes Montgomery era
agradável. Eu estava a aproximar-me do território da paixoneta, tal como a
Cleo tinha sugerido. Ou talvez já estivesse lá.
– Seria incrível se conseguisse este contrato – disse eu, antes de beber um
gole, sorrindo enquanto imaginava o que um trabalho como este poderia
fazer por mim. Não só serviria para divulgar o meu trabalho de design, mas
também daria para o que eu mais precisava: pagar as contas.
– Ah, vais conseguir. Não tenho dúvidas – afirmou a Cleo, como se não
houvesse outra opção. – Vamos despachar-nos e encontrar uma roupa para
poderes começar a trabalhar.
Além disso, só de pensar em mim e no Hayes juntos era ridículo. Esta era
uma daquelas paixões completamente inatingíveis que nunca levavam a
lugar nenhum, mas sugavam todo o tempo e energia. Um possível trabalho
era muito mais importante do que um tipo giro. Eu ia conseguir isto, decidi,
determinada. O Hayes e os seus olhos encantadores que se lixem.
*

Cheguei ao novo edifício do Hayes e da Eleanor quinze minutos mais


cedo. Tinha planeado ter tempo para retocar o batom e verificar o meu
documento de apresentação, tentar relaxar e estar calma quando eles
chegassem. Em vez disso, o Hayes já estava lá, à minha espera.
– Olá, Franny – cumprimentou ele com um aceno.
Tentei olhar para ele de relance sem que ele se apercebesse. Estava
vestido quase igual a quando nos conhecemos, azul-marinho da cabeça aos
pés, com uma camisa azul-clara por baixo do casaco. O aspeto das suas
roupas só destacava ainda mais os traços do seu rosto, e essa combinação
fazia com que a minha nuca ficasse quente, uma sauna feita apenas de
nervos… e feromonas. Quando olhei para cima, os seus olhos encontraram
os meus, mas ele desviou o olhar de imediato, tão distante como sempre.
– Olá – respondi enquanto ele abria a porta do edifício para eu entrar. –
Uau – exclamei, olhando ao redor do átrio. – Isto é fantástico. – Era mais do
que fantástico; era elegante e sofisticado, uma mistura moderna de madeira,
metal e enormes janelas que iam do chão ao teto. Sem mencionar o facto de
que ficava mesmo no meio de West Village, a quarteirões do rio Hudson.
Tentei conter a minha admiração e manter-me serena.
– Por aqui – disse ele inclinando a cabeça enquanto me conduzia até aos
elevadores. – Como estás? – perguntou educadamente quando ficámos de
frente um para o outro enquanto subíamos.
Será que ele estava nervoso? Parecia pouco provável. Mas por que outra
razão estaria a agir como se nos estivéssemos a encontrar pela primeira
vez?
Depois lembrei-me do que ele tinha dito naquela noite em que fomos
juntos até ao metro: «Eu senti-me muito deslocado.»
O Hayes era estranho. Algo que eu interpretei como arrogância no início.
Mas agora que já sabia, até era encantador.
– Bem, obrigada – respondi. – Eu estou…
Felizmente, as portas abriram-se naquele momento, salvando-me de mim
mesma.
– Uau.
Entrar no espaço foi como mergulhar no oceano com os olhos abertos
pela primeira vez. Era vasto, brilhante e bonito. A luz cobria o chão,
iluminando tudo através de uma parede gigante de janelas industriais
voltadas para o Hudson.
– Hayes. – Virei-me para ele, de boca aberta, a voz cheia de alegria. – Isto
é muito à frente. – Fui incapaz de esconder o meu entusiasmo. Não havia
nenhuma razão para tentar parecer serena. Eu poderia ter sido mais efusiva:
os tetos altos, as vigas expostas, o tijolo patente. Estava intocado, sem
marcas, uma tela de sonho que deixou o meu cérebro criativo em ânsias
pelo que parecia ser a primeira vez numa eternidade. Aquele espaço estar
ali vazio era uma vergonha para a sua bela estrutura. Ansiava por ser
acariciado e amado, envolto em arte e cor e preenchido de vida.
– Sim, é fixe – disse ele, com as mãos nos bolsos, a observar-me.
– Fixe? – repeti, horrorizada por ele ter escolhido uma palavra tão comum
e chata para descrever algo tão bonito como isto. – É como dizer que
LeBron James não está mal no basquetebol. Este lugar é um sonho.
Curvei-me para tocar no chão – madeira de verdade, provavelmente
original. Suspirei de prazer.
– Este chão é uma maravilha. Estou sinceramente atraída por ele.
Ele soltou um «Hã!», e eu olhei para ele, a sorrir.
– Eu não estou a brincar – insisti. – Eu sairia com este chão.
Caminhei até às janelas e ele seguiu-me alguns passos atrás. A vista
prolongava-se até Nova Jersey e depois rio abaixo, em direção à Estátua da
Liberdade, imóvel e estoica.
– É estranho… consigo ver o meu antigo apartamento daqui. – Ele
apontou para o sul em direção a Tribeca.
– Porque é que te mudaste? – perguntei, genuinamente curiosa. Teriam de
me arrastar para me tirarem de um apartamento junto ao rio.
– A minha ex-mulher ficou com ele depois do divórcio.
Ex-mulher. Bem, isto era interessante. Hayes Montgomery tinha um
passado. Ele fora casado. Imaginá-lo a dançar com a noiva na pista de
dança, radiante num smoking, a instalar-se numa casa, a comprar pratos e
talheres, provocou algo em mim que eu não conseguia identificar. Talvez
ciúme, possivelmente tristeza. Provavelmente um pouco de ambos.
Virei-me para encará-lo, assumindo que ele estaria de costas para mim,
mas em vez disso o seu olhar encontrou o meu, intensamente, as faces
coradas. Eu apenas assenti com a cabeça. Não julgava ninguém por relações
terminadas, e queria ter a certeza de que ele percebia isso.
– E vocês eram os proprietários? – interroguei, virando-me para apreciar
a vista.
– Sim – disse ele com naturalidade. Outra dica interessante. Um passado
e dinheiro. Quer dizer, acho que já tinha percebido isso pela maneira como
lançara um casaco de seiscentos dólares nas minhas costas como se fosse
um lenço de papel, mas ainda assim. Recordar que este tipo era alguém
afetava-me. Ele tinha um negócio de sucesso, uma conta bancária
confortável; até o facto de ter uma ex-mulher parecia uma conquista. Como
se tivesse algo para exibir por toda a vida que tinha tido.
Tudo isto fez-me sentir desconfortavelmente pequena, sem muito para
mostrar de mim mesma.
Ele fez sinal para que eu me sentasse numa das cadeiras dobráveis de
plástico que tinham sido colocadas à volta de uma mesa maior situada junto
à entrada, uma área de receção improvisada. Sentei-me devagar e
equilibrei-me na beira da cadeira, dolorosamente consciente dos seus olhos
postos em mim. Porque eram uns olhos lindos, e também porque eu
precisava de o impressionar e assegurar este trabalho. Peguei no portátil, e
abri um documento para tomar notas. Tentei limpar discretamente as palmas
das mãos suadas às calças de ganga antes de voltar a minha atenção para
ele.
– A Eleanor acabou de me enviar uma mensagem. A consulta do médico
dela atrasou-se, mas está a caminho – disse ele, olhando por cima do seu
telemóvel.
– Queres esperar por ela para começarmos? – questionei, os meus dedos
no teclado, as costas direitas. A minha avó fez sempre questão de corrigir a
minha postura, e agora eu fazia isso por mim mesma sempre que estava
nervosa.
– Acho que podemos começar.
Eu concordei com a cabeça e sentei-me mais direita.
– Nós adorámos a tua proposta – disse ele, cruzando as pernas. Elas eram
tão longas que eu fiquei impressionada que ele conseguisse sentar-se
confortavelmente nestas cadeiras bambas. – Se puder ser, gostaríamos de
dar início ao processo.
Pressionei os lábios para suprimir o sorriso que estava a formar-se no
meu rosto.
– Conta comigo – confirmei.
– Sim, desde que estejas interessada e tenhas tempo. – Ele estava a
observar-me, o seu olhar direto e claro, mas inexpressivo. Pensei em como
a sua voz estava baixa, quando me disse: «Eu como coisas doces.» Talvez
eu tivesse imaginado a brincadeira. Ele tinha estado a namoriscar, ou eu
estava a projetar, procurando coisas que não estavam realmente lá?
Afastei os pensamentos. Era melhor não deixar o meu cérebro vaguear
pelo território da fantasia com ele e a sua voz profunda, os seus fatos
extravagantes e o seu escritório com chão de madeira perfeito. O importante
é que ele tinha acabado de me oferecer um trabalho, algo de que eu
precisava desesperadamente.
– Eu consigo fazer com que isto resulte – afirmei eu, tentando manter a
calma. Eu vira o orçamento deles na proposta que ele me enviara. Só este
trabalho poderia sustentar-me durante meses.
– Mas primeiro, tenho algumas perguntas que gosto de fazer a todos os
meus clientes, para me ajudar a entender melhor as suas necessidades –
continuei na minha melhor voz profissional.
O Hayes assentiu.
– Então – disse, tentando não me concentrar no quão bonito ele estava
sentado ali à luz do sol, ou como o seu comportamento era tão sério que
quase não combinava com o quão bonito era o seu rosto. E depois lembrei-
me de que ele tinha anunciado ao mundo que eu não era o tipo dele. – De
que modo te queres sentir quando entrares no teu gabinete?
O Hayes ficou pensativo durante um momento.
– Sabes a sensação de quando te deitas numa cama feita com lençóis
superlimpos e que também são incrivelmente macios?
Eu assenti com a cabeça. Esta era uma das minhas coisas preferidas no
mundo, e era surpreendentemente doce, vindo de alguém que geralmente
parecia tão calado e reservado.
– Eu quero isso – continuou. – Um lugar simples. Onde possa ser eu
mesmo. Onde possa relaxar e concentrar-me no trabalho.
Tinha uma postura reta, um lápis recém-afiado. Ele raramente parecia à
vontade no seu próprio corpo, e ainda assim era óbvio que procurava
conforto neste novo espaço. Havia alguma coisa nesta revelação que fez
palpitar o meu coração.
– E como queres que as outras pessoas se sintam quando entrarem aqui?
Enrugou a testa quando olhou para mim.
– Outras pessoas?
– Sim. Tu sabes, colegas, clientes, amigos, namoradas.
Eu disse a palavra tão depressa que mal proferi as duas sílabas. Se o seu
rosto estava ruborizado antes, agora estava definitivamente vermelho, um
tomate de verão pronto a rebentar.
– Gostarias de ter um encontro comigo no meu gabinete? Ajudar-me a
arquivar alguns documentos? – perguntou.
Oh, meu Deus, será que ele estava a namoriscar? Ou estava irritado? Era
muito difícil entender. Havia algo nas suas palavras que pareciam sempre
tão deliberadas, afiadas, arremessadas para pousarem diretamente dentro de
mim.
Então ele ergueu as sobrancelhas e deu-me a resposta: Namoriscar. Estava
definitivamente a namoriscar. Houve aquela vibração novamente.
– Desculpa. Eu não estava a querer intrometer-me na tua vida pessoal –
declarei, recuando para evitar encorajar aquele sentimento primaveril no
meu peito. Recompõe-te, Franny. Tu precisas deste trabalho. Sê
profissional! – Mas os nossos espaços contam uma história… não só para
nós, mas para qualquer um que entre neles.
– Eu estava a brincar – respondeu ele, com um sorriso tímido. – Eu, ah,
acho que quero que as outras pessoas entrem aqui e… tenham uma noção
de quem eu sou.
– E quem és tu exatamente? – Inclinei-me para a frente na minha cadeira,
genuinamente curiosa.
Antes que ele pudesse responder, o elevador tocou, o som a cortar
qualquer tensão que esta conversa estava a criar entre nós. As portas
abriram-se e saiu de lá o género de mulher que me fazia olhar duas vezes
quando passava na rua: pele morena cálida, caracóis largos invejáveis,
óculos de tartaruga gigantes, batom vermelho matador. Tomei uma nota
mental para lhe perguntar quem fazia aquela cor de batom. Eu precisava
dela. A Cleo e a Lola precisavam dela. Raios, todas as mulheres precisavam
de um vermelho tão incrível.
Vestia um macacão de seda preto e umas socas pretas altíssimas, mas a
simplicidade de tudo isso fazia-a parecer incrivelmente elegante. Numa
mão, segurava um saco de bolachas; uma mala pendia da outra. Eu queria
ser a sua melhor amiga, e nem a conhecia.
– Eleanor Lewis – disse ela, radiosa e calma. – Sócia do Hayes. Odeio o
termo «esposa do trabalho», mas isso é essencialmente o que eu sou.
– Prazer em conhecer-te. – O seu aperto de mão era firme e quente.
– Ele disse-te que esta ideia foi inicialmente minha, certo? – inquiriu,
inclinando-se conspiratoriamente. – Eu não quero que ele receba todo o
crédito por contratar-te.
Eu ri-me; gostei dela instantaneamente.
O Hayes levantou-se e ofereceu-lhe o seu lugar.
– Eu ia dar-te todo o crédito, El – disse ele.
Ela não ligou e enfiou as bolachas dentro da mala gigante – uma pele
creme e macia – e procurou lá dentro, retirando uma imagem de uma
ecografia, empurrando-a para o Hayes.
– Olha para este rostinho fofo alienígena.
O rosto do Hayes iluminou-se de uma maneira que eu nunca tinha visto.
Emoção e alegria genuínas passaram por todo o seu corpo de uma só vez.
Sobrancelhas relaxadas, queixo descomprimido, ombros para trás.
– Merda, El – disse, retirando a imagem da mão dela. A sorrir. – Olha
para isto. Lindo.
– É melhor que este miúdo seja um génio e receba uma Bolsa MacArthur,
tendo em conta o que me faz vomitar. Por falar nisso, tenho de fazer uma
pausa para comer uma bolacha.
Ficou claro naquele instante o quanto eles gostavam um do outro. Sorri e
dei-lhe os parabéns, e – depois de uma pausa, para a Eleanor comer
bolachas – percorremos todo o escritório.
– OK, então o objetivo para o plano de piso aberto e espaço de trabalho
comum é torná-lo confortável, mas não se sobrepor – afirmei eu enquanto a
Eleanor e o Hayes seguiam atrás de mim. – Valorizamos a estética natural
do edifício, as janelas, a luz, a madeira, mas adicionando elementos que o
tornam mais convidativo, para que vocês se sintam bem assim que
entrarem. E também os vossos funcionários e clientes.
Olhei para trás para aferir a resposta deles. A Eleanor assentiu pensativa.
O rosto do Hayes era ilegível; era impossível saber se ele odiava tudo o que
eu estava a dizer ou se estava só a processar tudo. Mas então os nossos
olhos cruzaram-se e, em vez de os desviar de mim, ele sorriu, sobrancelhas
erguidas, o tipo de rosto que alguém faz para dizer «Gosto. Estou
impressionado. Muito bem.»
Isto despertou algo dentro de mim, elevou a minha confiança.
– O Hayes e eu tivemos a oportunidade de conversar um pouco sobre o
seu próprio gabinete e, Eleanor, adoraria falar contigo sobre o teu espaço. –
Eu indiquei o caminho até ao gabinete do canto que o Hayes sinalizara
como sendo dela.
– A única coisa que quero são as minhas fotografias penduradas em
algum lugar – disse ela.
– És fotógrafa? – perguntei, imaginando se esta mulher iria ficar ainda
mais impactante.
– Amadora – respondeu –, mas muito entusiasmada. E gosto de pensar
que sou razoável.
Ela foi até à parede, passando a mão sobre as saliências do tijolo
vermelho.
– Eu fotografo principalmente surfistas – disse ela. – O oceano. Cidades
costeiras.
– Então, água, natureza – disse, enquanto pensava.
– Tudo isso. Sempre que estou perto da água, sinto que estou no meu
elemento.
– Queres dizer mais do que quando estás a dirigir uma reunião do
conselho? – provocou Hayes atrás de mim.
A Eleanor bufou.
– Já chega, obrigada – disse ela, esticando-lhe o dedo antes de se voltar
para mim. – O Hayes gosta de parecer muito duro, mas chora quando vê
filmes da Pixar.
– Ei, só no Up-Altamente – exclamou ele na defensiva. Depois disse para
mim, com um encolher de ombros. – Quando a mulher morre.
Ele virou-se, com as mãos nos bolsos, mas não antes de eu ver o leve
toque de cor nas suas faces. Reparei nisso sobre ele agora; ele parecia
impassível, mas por dentro espreitava sempre algo mais caloroso. Se
estivesse a olhar para mim, ter-me-ia visto a sorrir na sua direção.
A Eleanor e eu seguimo-lo até à zona principal.
– Acho que podemos criar um espaço sofisticado e convidativo que
também seja muito orgânico – disse eu.
– Confio em ti – disse a Eleanor. – Ah, e gostaria de fazer deste gabinete
vazio um lugar para os pais. Preciso de um lugar para usar o meu extrator
de leite.
– Claro – disse eu, animada com a ideia. – Um lugar para o peito
descansar.
Oh, meu Deus. Cerrei os dentes, encolhendo-me perante a minha
capacidade de falar sempre de mais.
– Desculpa, disse o que não queria.
A Eleanor riu.
– Na verdade, tens razão. – O seu olhar era de aprovação. – Por falar
nisso, preciso de chegar a casa antes que tenha de me deitar no chão aqui.
Prazer em conhecer-te, Franny. Obrigada por tratares disto.
Ela inclinou-se na minha direção, agarrando o meu cotovelo de forma
afetuosa.
– Por cuidares de nós – disse ela.
– Eu agradeço pela oportunidade, de verdade. – Fiz um sorriso rasgado
que instantaneamente me pareceu demasiado ansioso, mas já era tarde para
reprimi-lo.
O Hayes acompanhou-a até ao elevador, falando sobre um cliente que
estava a encher a sua caixa de e-mail hoje. Eu regressei ao meu computador,
para tirar notas sobre as nossas conversas.
E lá estava ele de novo, a clarear a garganta para me interromper.
– Há outra coisa que quero mostrar-te.
Segui-o até uma porta que ele tinha apontado antes, e quando a abriu,
tudo mudou.
Quando moras em Nova Iorque, sentes algo mágico sempre que sobes os
degraus do metro, passas pela porta giratória do teu edifício de escritórios
no final de um longo dia, abres uma janela para deixar entrar o perfume
primaveril das flores. Há uma fração de segundo em que a cidade te atinge,
te cumprimenta, te beija docemente. É um sobressalto e um choque, e
depois segues em frente. Mas há uma parte de ti, algures, que fica sempre
maravilhado com isso.
Pôr os pés neste terraço foi assim: uma inspiração de ar, um momento de
espanto.
– Uau! – Foi tudo o que eu disse, levando a mão aos olhos para protegê-
los do pôr do sol laranja acima do horizonte de Jersey City. – Isto também é
vosso?
Ele assentiu com a cabeça, e eu podia ver nos vincos dos seus olhos, que
mesmo ali fora ainda eram de uma cor demasiado escura para decifrar: ele
estava maravilhado com tudo isto também.
– Podemos usar?
Ele aquiesceu.
– Devíamos, certo?
– Sim. Isto é incrível.
– Não temos orçamento para isto, por isso teremos de refrear os custos –
disse ele.
Não tinha muito espaço, nem era especialmente bonito – apenas o
cimento bruto de um terraço e, em seguida, um parapeito que ficava logo
acima da minha cintura. Mas na cidade, o espaço ao ar livre era mais
valioso do que ouro. O escritório deles era lindo, mas isto era um jackpot.
– Isso não deve ser muito difícil. Vou apresentar algumas ideias de baixo
custo para ti e a Eleanor considerarem. – Senti um alvoroço no meu peito de
pura excitação. – E vamos levar isto para a frente.
De volta para dentro, o Hayes pairava a alguns metros de distância
enquanto eu arrumava a minha mala.
– Gostei das tuas sugestões – disse ele, erguendo os olhos do telemóvel –
para o meu gabinete. O meu gosto é muito simples, e às vezes fico
preocupado a pensar que não tenho nenhum. Mas talvez tenha.
Existia uma questão oculta por detrás da sua afirmação, que deixava
transparecer alguma insegurança. Seria possível que por baixo dos seus
elegantes fatos o Hayes ainda estivesse a descobrir quem era?
– Claro que tens. És minimalista. Discreto.
Observei-o, uma obra de arte pendurada num museu que eu não entendia
muito bem, mas não podia deixar de querer entender.
– Não há nada de simples num fato bem feito, por exemplo.
Estar naquele terraço no centro da cidade fez-me sentir invencível,
destemida. Dei um passo na sua direção e puxei-lhe a lapela do fato.
– Quero dizer, esta coisa é o mais simples possível e ainda assim é
impecavelmente trabalhada. Então, talvez seja este o teu gosto.
Ele piscou os olhos, e eu podia jurar que estava a estudar-me. Dei um
passo para trás, imediatamente mortificada, e tentei corrigir a conversa.
– O que quero dizer é… – Procurei as palavras certas. – Talvez sejas mais
interessante do que pensas.
E quando tinha a certeza de que tinha arruinado tudo com a minha
tagarelice, o Hayes sorriu-me.
– Talvez – disse enquanto passava as mãos pelas ancas – tu também.
CAPÍTULO DOZE
HAYES

A Perrine e eu mantivemos um bom ritmo esta noite. Estivemos a correr


para norte pelo lado leste do Central Park, contornando ciclistas, famílias
com carrinhos de bebé, turistas lentos. Teria preferido correr em silêncio,
mas a Perrine queria ficar a par da situação com a Serena.
– Ela convidou-me para o tal baile de gala que esteve a ajudar a organizar
– bufei entre respirações compassadas. Era sobre a Serena que estávamos a
falar, mas de repente eu estava a pensar na Franny e no que ela vestiria num
baile de gala. Ela estava de calças de ganga no outro dia quando nos
reunimos no escritório, e com uma delicada camisola de alças preta, e
quando se riu ela… bloqueei o pensamento na minha mente, voltando um
pouco atrás. O escritório. Estávamos a trabalhar juntos agora. Eu tinha de
ser profissional.
– Já se envolveram? – perguntou a Perrine, sem fôlego. Ah, certo, a
Serena. A mulher com quem andava a sair.
– Beijámo-nos. Só isso. É estranho? Sinceramente, sinto que já nem sei
como se namora.
Não é que vivesse como um celibatário desde que me separei da Angie.
Eu tentei todas as aplicações de encontros imagináveis. Mas nenhum
relacionamento resultou. Fracassaram todos após os primeiros encontros, ou
foram puramente físicos por um instante antes de um de nós acabar tudo. E
nunca quis nada de sério, de qualquer maneira, sobretudo logo após o
divórcio. Mas agora algo em mim estava recetivo a isso.
Ela encolheu os braços enquanto corria.
– Acho que não. O que é que ainda é considerado estranho hoje em dia,
afinal? Eu conheci a Lola numa casa de banho.
Continuámos a correr na escuridão, o parque a pulsar ao nosso redor. O
som de um concerto vinha do lado sul, e as bicicletas passavam a zunir com
a eficiência e a velocidade de um beija-flor.
– E, olha, eu entendo que agora é mais fácil ter um relacionamento
casual. – A voz dela estava mais baixa, mais hesitante. – Com o trabalho a
ser o que é. Mas não há problema em querer conhecer alguém primeiro.
Para criar uma ligação.
Mas a palavra ligação só me fez pensar novamente na Franny e na
estranha energia elétrica que senti passar entre nós. Sempre que estava perto
dela, parecia que as palavras ficavam presas na minha boca e saíam todas
baralhadas, e ainda assim continuava a querer estar mais perto dela.
– A Serena é fantástica – disse, um lembrete para mim mesmo mais do
que qualquer coisa. – O trabalho dela também é frenético, por isso
entendemo-nos. Temos muito em comum.
– Isso é incrível – disse a Perrine, lançando-me um sorriso enquanto
continuávamos a correr.
– E as coisas com a Lola, estão a correr bem? – perguntei, ansioso para
tirar os holofotes de cima de mim.
– Muito bem – Ela olhou para mim com os olhos gigantes, iluminados
pelos postes de luz que pontilhavam a East Drive. – Isto é, estamos a
namorar há pouco mais de um mês, mas eu realmente gosto dela. Acho que
estou a apaixonar-me por ela, honestamente.
Antes que pudesse responder, ela perguntou:
– Uma corrida até à Eighty-Sixth Street?
E estávamos a acabar, perseguindo aquele último pedaço de endorfinas, a
última ação de um longo dia.
A Perrine correu até ao Reservoir, parou na beira e curvou-se para
recuperar o fôlego, com as mãos nas ancas.
– Uau, Perr – declarei quando a alcancei. – Isso é incrível.
– Pois é. – Ela sentou-se na relva, com as pernas à chinês. – Mas também
sinto que é algo simples. É estranho, sabes? Tipo, de repente percebes que
podes estar apaixonado, e então tudo parece fácil.
– Sim – respondi, esticando um braço para cima, agarrando o cotovelo
com a mão oposta. Revi as suas palavras na minha cabeça. Será que eu
sabia isto? Houve um tempo com a Angie, um momento no início, em que
pensei: «É isto. Isto é estar apaixonado.» Mas a nossa relação nunca foi
fácil, para nenhum de nós. Talvez a Angie tivesse razão: talvez nunca
tenhamos estado apaixonados. E se isso fosse verdade, o que raio dizia
sobre mim?
– Contaste-lhe? – perguntei, não querendo deter-me em mais uma
possível falha no meu carácter.
Ela abanou a cabeça.
– Vou contar, mas neste momento prefiro guardar isto só para mim.
Sentei-me ao seu lado, esticando as pernas sem entusiasmo e colhendo
folhas de relva que se me espetavam nas canelas. Eu não queria pensar no
meu casamento a desmoronar-se, porque tudo caiu diretamente sobre os
meus ombros. E depois teria de enfrentar a insegurança que ainda me
restava, que talvez eu não estivesse destinado a ter uma relação com
ninguém.
*

Algumas noites depois, andava de um lado para o outro no novo espaço


do escritório, a aguardar pela chegada da Franny. Foi um alívio saber que
tínhamos uma designer a trabalhar connosco e que as coisas estavam
novamente no bom caminho. Nas últimas quarenta e oito horas, ela enviou
uma enxurrada de e-mails para mim e para a Eleanor – equipamentos de
iluminação para aprovar, algumas fontes diferentes de madeira
reaproveitada para verificar, um artigo sobre as melhores cadeiras
ergonómicas. E, em seguida, um esboço de duas páginas sobre jardins no
terraço e os benefícios de um espaço verde dentro de um ambiente de
trabalho.
Ela desenhou à mão uma planta de design simples, com vasos, uma
pequena área de estar e uma longa mesa estilo industrial com bancos.
Utilizar o espaço ao ar livre dessa maneira era uma ideia tão óbvia e
brilhante que quando me enviou uma mensagem pela primeira vez, fiquei
envergonhado por não ter pensado nisso primeiro.
Esta noite, ela saiu do elevador como um ponto de exclamação.
– Hayes! – gritou, com uma caixa gigante na mão. Um homem das
entregas da loja de ferragens empurrava uma grande palete de madeira e
sacos de terra atrás dela. Não olhes para as pernas dela, disse a mim
mesmo, porque elas estavam nuas e longas e tentadoras em calções de
ganga curtos. Voltei a minha atenção para as suas mãos, apertadas ao redor
da caixa. Este era um local seguro para pousar o meu olhar. As unhas eram
de um vermelho-cereja brilhante. Eu nunca tinha reparado que as pintava, e
os meus olhos dispararam para elas instantaneamente, e depois seguiram os
seus dedos longos e finos até ao pulso, que era curvo e liso e…
– Ei – disse ela enquanto se aproximava.
– Queres que pegue nisso? – perguntei, estendendo a mão.
– Não – respondeu, pronunciando a palavra como se eu a tivesse
ofendido. – Eu sei que a primeira vez que me viste a segurar numa caixa eu
estava um caos, mas eu consigo.
Ela examinou-me enquanto passava em direção à porta que levava ao
terraço. Dei alguns passos rápidos para passar à sua frente e segurei a porta
para mantê-la aberta.
– Vieste assim vestido? – perguntou ela.
– Sim, porquê? – Correra para casa antes de vir para cá e trocara as
roupas de trabalho por uma camisa branca de algodão e umas calças de
ganga que a Eleanor e o Henry me convenceram a comprar, mas eu mal
usava. Faziam-me parecer mais fixe e calmo do que realmente era, o que a
Eleanor insistiu que era «uma coisa boa».
– Uma camisa branca? Nós vamos literalmente mexer em sacos de terra.
– Eu posso lidar com um pouco de sujidade – respondi enquanto a seguia
pela porta. Inspirei profundamente quando passei por ela, e depois apercebi-
me. Jesus Cristo, Hayes. Controla-te.
Dei uma gorjeta ao homem das entregas, que tinha deixado tudo o mais
próximo possível do terraço. Depois segui a Franny lá para fora,
desabotoando o botão de cima da minha camisa.
– Luzes decorativas solares? – perguntei eu, pegando num recipiente da
caixa que ela abrira.
– Obviamente – respondeu ela, com um sorriso. – Vamos prendê-las a
uma estaca na floreira e amarrá-las ao parapeito. Tens de ter iluminação
ambiente aqui!
Uma das alças da sua camisola descaiu do seu ombro enquanto ela
arrastava um saco de terra para o lado oposto do terraço, e
inconscientemente ela estendeu a mão e enfiou-a sob a alça do sutiã. Eu não
conseguia parar de observar cada pequeno detalhe dos seus movimentos, e
como tudo nela parecia fácil e descontraído.
– OK, então viste as fotografias da mesa que te enviei? Toda a madeira é
reaproveitada.
Eu assenti com a cabeça.
– Adorei.
– Ótimo, então essa vai ficar aqui. – Ela deu uns passos para a frente,
delineando a forma de uma longa mesa retangular com os seus passos. –
Dois bancos corridos. Podes ter reuniões ou almoçar aqui, ou as pessoas
podem simplesmente vir para aqui para fazer uma pausa. Duas
espreguiçadeiras. – Acenou para o pequeno canto. – E depois a área do
jardim.
Ela virou-se para mim para avaliar a minha reação ao seu plano, um
sorriso gigante no rosto. A sua excitação era tão palpável que transbordava
dela. Eu nunca tinha percebido que apenas a ideia de colocar uma mesa e
cadeiras em algum lugar poderia ativar alguém assim, mas, novamente, eu
nunca tinha conhecido alguém como a Franny. A simples visão dela
misturava os impulsos elétricos no meu cérebro, como se fossem
incorporados num copo, fazendo o cocktail mais inebriante de todos.
– Então, o que achas? – perguntou, o seu rosto corado.
– Conta comigo – respondi. – Diz-me apenas o que fazer, e eu farei.
– Não tens problema em eu andar aqui a dar-te ordens? – perguntou, as
sobrancelhas erguidas em tom de brincadeira.
– Por que outra razão estou aqui? – Esfreguei as mãos e depois fiquei a
pensar se parecia ridículo e coloquei-as nos bolsos de trás. – Estou pronto
para trabalhar.
– Uau! – Ela ergueu as mãos em triunfo, atirando a cabeça para trás
enquanto ria, os caracóis a balançar. – OK, bem, a primeira coisa que
preciso que faças é arrastar esses sacos grandes de terra até aqui e empilhá-
los no canto para que fiquem o mais perto possível das floreiras.
Fiz uma rápida saudação e dirigi-me para os sacos enquanto ela
desembalava o jardim vertical hidropónico de alfaces. O crepúsculo
instalou-se à nossa volta. Quando o último saco foi empilhado no canto,
passei o braço pela testa e voltei para onde ela estava a montar uma
gigantesca torre branca que continha cerca de uma dúzia de bolsos para
plantas.
– OK, estou pronto para a minha próxima tarefa – disse, admirando a sua
concentração na tarefa que tinha pela frente.
– Uau, nunca imaginei que serias um aluno tão aplicado. – Ela pressionou
os lábios como se estivesse a pensar enquanto olhava para mim.
– A minha professora é exigente, mas eu gosto dela – afirmei, e quando
ela se riu disso, senti-me como se tivesse ganho um prémio.
– Bem, recebes um Excelente por bajulação – exclamou ela enquanto
fazia sinal para eu a seguir. – Vamos fazer as mudas juntos.
Fomos até à porta, onde fileiras de rebentos aparentemente idênticos
estavam alinhados uns ao lado dos outros.
– São todas iguais? – perguntei.
– Como é que te atreves a insultar estas lindas plantas dessa maneira –
disse ela enquanto se abaixava para pegar numa. – Existem cinco tipos
diferentes de vegetais aqui. – Ela começou a apontar para cada um. –
Alface-romana, rúcula, alface lisa, vermelha, little gem. Além de
manjericão, coentro, hortelã e salsa.
– Estou impressionado – brinquei, e ela virou-se, mas não antes de eu
conseguir captar um pequeno sorriso nos seus lábios.
– Devias de estar – respondeu, mas a sua voz era baixa e não estava a
olhar para mim. E depois percebi. Poderia ela estar a sentir a mesma atração
que eu sentia quando ela estava por perto? Parecia impossível. Ela era a luz
do sol, e eu era… Bem, eu já não tinha a certeza de quem era, além de um
tipo que passava muito tempo a olhar para o abismo de luz azul do seu
portátil.
Depois ela ficou ao meu lado, a ensinar-me como fazer as mudas, a
professora e o aluno.
– OK, é fácil – explicou ela, enquanto olhava para mim para se certificar
de que eu estava a acompanhar o processo. Eu estava, claro, mas também
estava distraído porque o odor do cabelo dela parecia o oceano no inverno,
fresco, salgado e limpo.
– Aqui, segura isto. – Ela colocou gentilmente uma planta, nas minhas
mãos, retirando-a de um pequeno monte de terra. Apertou as suas mãos à
volta das minhas para que se fechassem ao redor da planta, e depois sorriu.
As suas mãos estavam quentes e macias, e eu queria que elas ficassem ali o
resto da noite. Em vez disso, ela virou os seus grandes olhos para mim. –
Tudo bem? – perguntou.
Tudo que eu podia fazer era assentir.
– OK. Empurra apenas a terra para o lado assim. – Ela alcançou a floreira
e fez um pequeno buraco. – E depois enfias a plantinha aqui dentro e
garantes que a terra cobre o suficiente para ela ficar firme.
– Onde é que aprendeste isto tudo, afinal? – perguntei, genuinamente
impressionado.
Ela encolheu os ombros como se não fosse nada de especial.
– O meu padrasto gosta muito de jardinagem. De vez em quando eu
prestava atenção. – Ela deu-me uma palmadinha nas costas e depois
começou a trabalhar, agarrando em mais alfaces bebés para plantar.
Minutos depois, exclamou:
– Oh, meu Deus, Hayes!
– Sim? – disse eu, confuso com o que poderia ser tão urgente.
– Esqueci-me de te contar a melhor parte. – Ela estava a espreitar à volta
da floreira e parecia uma criança numa festa de aniversário prestes a
devorar um cupcake. – Eu trouxe-vos uma caixa de compostagem!
Antes que eu pudesse responder, ela acrescentou:
– Duas, na verdade. Uma linda e elegante para a cozinha, vais adorar, e
depois um compostor de minhocas aqui para fora.
– Acho que nunca vi ninguém tão animado por causa de minhocas. –
Coloquei as mãos nas ancas e observei enquanto ela se apressava a sair do
terraço cheia de alegria.
– Bem, claramente nunca saíste com ninguém que adora minhocas tanto
quanto eu – disse ela, como se fosse a coisa mais óbvia do mundo. – Elas
são o segredo para um jardim de sucesso.
A Franny sorriu, um sorriso largo, resplandecente. Depois o seu olhar
baixou, e estalou a língua em desaprovação.
– Oh, não – disse, dando um passo na minha direção.
– O que foi? – perguntei.
A sua expressão era de preocupação genuína.
– Eu disse-te que branco era uma má ideia.
Ela inclinou-se para a frente e observou uma mancha de sujidade na
minha camisa, mesmo por cima do meu coração. Bateu ao de leve com a
mão, limpando-a até que tudo o que sobrou foi a sombra de uma mancha.
– Pronto – disse, olhando para mim. – Muito melhor. – Mas não se
afastou.
Lá estava aquela sensação outra vez. E desta vez não dava para confundir.
Havia um campo de forças elétrico e energético a crepitar entre nós. De
repente, parecia que aquilo que tantas pessoas aleatórias na Internet
insistiam que havia entre nós poderia realmente existir. Era sedução?
Atração? Eu não conseguia dar-lhe um nome, mas sentia-o.
O som do meu telemóvel a tocar cortou o momento, como alguém a partir
um copo num restaurante.
– Desculpa – disse. Dei um passo atrás e tropecei em duas das tábuas de
madeira que tínhamos trazido para as floreiras. Elas caíram, com um grande
estrondo quando atingiram o chão. A Franny ficou ali a olhar para mim
enquanto eu tirava o telemóvel do bolso de trás das calças, ao mesmo tempo
aborrecido com a interrupção e aliviado por ter uma desculpa para me
afastar.
Pressionei o botão e o rosto da Serena apareceu no ecrã.
– Serena? – inquiri, perplexo.
– Olá! Estava aqui perto, e então pensei em passar por aí. Surpreender-te
com o jantar. A Eleanor disse-me que estavas no teu novo escritório e deu-
me a morada.
A Serena sabia que a inauguração era muito importante para mim, e não
fiquei surpreendido por ela querer conhecer o espaço. Foi gentil da parte
dela ter tempo para vir até aqui, mas tudo o que eu conseguia pensar era em
como me senti desapontado por o tempo a sós com a Franny ter acabado.
– Um segundo. Vou descer e encontramo-nos na porta da frente. –
Desculpa. – Virei-me para a Franny. – Esta mulher, com quem eu… – A
mulher com quem eu o quê? Com quem namoro? Com quem saio? – passo
algum tempo decidiu aparecer.
– Uau, então vais ter um encontro no escritório. – Ela fez um sorriso
exageradamente chocado.
– Ah, eu… – Fiquei com as palavras presas. – Isto não é… isso. Eu não
faria isso.
– Hayes, estou a brincar. – As suas palavras eram alegres, mas a sua voz
estava estranha. A eletricidade vibrante que fluía entre nós estava agora
extinta, desapareceu por completo. Talvez eu tivesse imaginado tudo.
– Já está na hora de me ir embora, de qualquer maneira – disse ela, e
virou-se em direção à porta que conduzia ao escritório.
A nossa viagem de elevador até ao hall foi feita em silêncio.
Quando chegámos à porta da frente do prédio, um novo tipo de campo de
forças entrou.
– Ei! – A Serena vestia roupa de corrida, mas ainda assim estava
impecavelmente arranjada, num top curto e leggings. Na mão tinha uma
caixa rosa gigante. – Tacos – disse ela, os olhos a brilhar. – Do meu amigo
que acabou de abrir um novo espaço no centro da cidade. Sem glúten, claro.
– Serena, esta é a Franny. Ela é a responsável pelo…
– Oh, meu Deus, és a rapariga do vestido! Do metro! – A Serena passou a
caixa para as minhas mãos e inclinou-se para a frente para abraçar a Franny.
– És uma lenda.
A Franny riu-se enquanto olhava para mim por cima do ombro da Serena,
lançando-me um olhar perplexo.
Afastando-se, a Serena lançou-me um olhar.
– Eu não sabia que vocês os dois eram amigos na vida real.
– Oh, não somos – interrompeu a Franny, um pouco rápido de mais.
– É uma longa história – respondi. – Mas a versão curta é que a Franny é
designer de interiores e começou a trabalhar connosco há pouco tempo para
decorar as nossas novas instalações.
A Serena assentiu, completamente imperturbável.
– Muito prazer em conhecer-te, Franny – disse ela, mostrando os dentes
branqueados.
– Igualmente – afirmou a Franny, olhando para Serena, depois para mim,
e de novo para a Serena, tentando ligar os pontos. – OK, bem – fez um
pequeno aceno na nossa direção, e a sua voz mudou para um tom
anormalmente alegre –, divirtam-se, vocês os dois!
– Vem mostrar-me o teu novo escritório – disse a Serena, arrastando-me
de volta para o elevador. – E temos de tirar uma fotografia desses tacos para
o Instagram antes de os comer.
CAPÍTULO TREZE
FRANNY

O meu telemóvel tocou quando eu estava a meio de várias tarefas, muitos


separadores abertos no ecrã do meu computador. Num, estava a confirmar
as minhas encomendas para o escritório do Hayes e da Eleanor. A mudança
teria lugar daqui a um mês, e todas as encomendas eram urgentes. Depois
tinha de responder à Anna, o que comecei a fazer, sem nunca chegar a
enviar o e-mail. Mantinha o texto no Google Docs, mas na maioria das
vezes apenas ficava a olhar para ele. E depois tinha alguns separadores
abertos com assuntos financeiros: conta bancária, saldo do cartão de
crédito, empréstimos estudantis. Já tinha estado a olhar para eles, mas
naturalmente, os saldos ainda continuavam por pagar.
– Olá, mãe – exclamei, colocando o telemóvel entre a orelha e o ombro
para poder continuar a trabalhar.
– Olá, querida. – A sua voz surgiu do outro lado com interferências; eles
tinham um péssimo serviço lá em casa. – Estava só a ligar para saber como
estão as coisas.
– Está tudo bem por aqui – respondi, fugindo ao assunto. Tecnicamente,
as coisas estavam bem. Tinha vestido roupa interior limpa e conseguira
beber pelo menos um copo de água até agora. Isto contava para alguma
coisa, certo?
– Eu estava mesmo a dizer à Marianne que andas muito assoberbada –
disse ela.
Ah, a Marianne, a sua melhor amiga desde a escola secundária. Elas
pareciam passar a maior parte do tempo a falar sobre o que os filhos
andavam a fazer. A filha da Marianne, Ruby, um ano mais nova do que eu,
trabalhava como enfermeira na ala pediátrica do hospital local e estava
grávida do seu segundo filho. Além disso, ela e o marido moravam a dez
minutos da Marianne.
Pela bitola da minha mãe, a Ruby ganhava-me sempre. Mesmo quando
éramos crianças, parecia que estávamos sempre a competir, a sua agenda de
desporto escolar muito ativa em comparação com o tempo que eu passava a
rabiscar cadernos. Desnecessário será dizer que passámos a nossa infância
em grupos de amigos muito diferentes e nunca tínhamos muito a dizer uma
à outra quando as nossas mães reuniam as famílias.
– Estou a trabalhar na inauguração de um grande escritório agora –
declarei, fornecendo-lhe informações que, esperava, serenariam a sua
preocupação. – Vou enviar-vos fotografias quando estiver tudo pronto.
– Ia adorar – disse ela. – Querida, eu queria saber se tens tempo para me
ajudares a planear o chá de bebé da Ruby. Estou a organizá-lo, mas tu sabes
que não percebo nada de decoração. Achei que talvez pudesses enviar-me
algumas ideias, fazer uma daquelas coisas do Pinterest com o que eu
deveria comprar. E depois viesses ajudar-me a decorar a casa. É num
domingo.
Revirei os olhos. A última coisa para a qual tinha tempo era para montar
um moodboard para um chá de bebé, muito menos apanhar o comboio para
a casa deles para passar um dia inteiro a arrastar mesas de plástico. Mas ela
era minha mãe, e eu não conseguia libertar-me da sensação de que
dececioná-la seria pior do que dizer sim.
– OK, sim. Claro – respondi. Dizer sim parecia uma boa maneira de
restabelecer o equilíbrio cósmico por ainda não lhe ter contado nada sobre a
existência da Anna.
Uma mensagem de texto interrompeu-nos, e eu olhei para o telemóvel
para ver o que era. Estou oficialmente numa relação séria!, escreveu a Lola,
seguido por uma série de emojis de rostos em choque.
– Mãe, é uma coisa de trabalho, preciso de responder – menti. Lá se vai o
equilíbrio cósmico, creio eu.
– Tudo bem, querida. Tchau.
Ufa. Esta foi fácil. De volta à Lola. Enviei uma fila de emojis de ponto de
exclamação vermelho-vivo. Para qualquer outra pessoa, uma relação séria
podia não ter grande importância. Mas tratava-se da Lola, que sempre se
apoiou na sua reputação de alguém que nunca assentou, que preferia
terminar as coisas antes delas ficarem sérias, que não suportava a sensação
de estar presa. Para ela, declarar-se orgulhosamente fora do mercado
significava alguma coisa.
Isso é incrível!, respondeu a Cleo segundos depois. Quem diria que a Fran
ter esbarrado num tipo giro e esquisito no metro TE arranjaria uma namorada
LOL
Sem sequer pensar – digitei Ele não é esquisito e depois deixei o meu
dedo a pairar sobre a pequena seta azul que enviaria a mensagem às minhas
amigas. Eu tinha tendência para evitar conflitos; preferia acalmar o barco
do que agitar as águas. Mas algo sobre a frase «tipo giro esquisito» irritou-
me. Quero dizer, claro, ele era um pouco estranho. E, sim, usava gravata
noventa e cinco por cento das vezes e recusava-se a comer açúcar. Mas o
Hayes que também fiquei a conhecer era gentil e espirituoso, calmo e
atencioso. Eu gostava dessas coisas, e gostava delas o suficiente para
finalmente clicar em ENVIAR. Que se lixe o conflito.
*

Apanhei o metro de volta para a cidade na tarde de quinta-feira para


finalizar as medições das persianas que estávamos a instalar. O Hayes e a
Eleanor tinham-me dado um conjunto extra de chaves do escritório, bem
como o código do alarme, para que eu pudesse ir e vir conforme necessário.
Ontem, tinha lá estado cedo com o meu café, para supervisionar o eletricista
que estava a tratar do sistema elétrico. Finalmente, estava a fazer o trabalho
prático com o qual tinha sonhado, entusiasmada com tudo.
– Olá? – disse, mesmo sabendo que não estava lá ninguém, sentindo-me
ao mesmo tempo aliviada e desiludida por não ir ver o Hayes hoje. No
interior, o escritório estava iluminado pelo sol, e as palmeiras altas que
tinham sido colocadas na zona da receção lançavam sombras em forma de
relâmpagos pelo chão. O espaço já tinha a energia relaxante de um spa, e a
minha respiração acalmou-se de imediato. Mas o silêncio foi interrompido
pelo som de alguém a andar no piso de madeira, e o Hayes emergiu do seu
gabinete, em calças de fato cinzento-claro com uma camisa de colarinho
branco. Sem gravata ou casaco à vista.
– Olá, Franny – Ele passou a mão pelo cabelo invejavelmente grosso.
– Olá – disse eu, alisando a frente das minhas jardineiras amarrotadas. De
repente, senti o suor na minha testa, o odor corporal a cobrir as minhas
axilas. Prendi o cabelo atrás da orelha e desejei desesperadamente ter-me
lembrado de colocar um pouco de brilho nos lábios antes de entrar no
edifício. – Não estava à esperava que estivesses aqui.
– Desculpa, tive um dia cheio de reuniões. Precisava de sair do escritório
– respondeu ele, deslizando as mãos pelos bolsos e sorrindo. – Estava
exausto. Para além deste novo escritório e da festa, estamos a pensar na
estratégia para abrir um escritório na Costa Oeste, em Seattle. Tudo isto a
juntar a todos os nossos outros trabalhos.
– Então saíste do escritório e vieste para… o teu escritório? – inquiri,
provocando-o.
Ele encolheu os ombros com um riso tímido, baixo e rouco que me
atingiu de uma forma que ressoava a desejo, incendiando partes do meu
corpo que ansiavam por serem tocadas. Enfiei o polegar entre os dentes e
mordi-o, respirando fundo. Não ajudou.
– OK, entendi – disse eu, não querendo que ele se sentisse constrangido
com as minhas brincadeiras. – Quando preciso de pensar, vou à lavandaria
ao fundo da rua onde moro.
Ele olhou para mim desconfiado.
– A sério – insisti. – É um hábito que ficou da faculdade. Eu agora até
tenho uma máquina de lavar roupa e de secar na minha casa, mas o facto de
estar em público a ver as roupas a andar à volta. Não sei. – Encolhi os
ombros. – Ajuda-me a acalmar a mente. Especialmente se estou stressada
ou com raiva de alguma coisa.
– Bem, da próxima vez que te irritar, vou certificar-me de deixar as
minhas roupas sujas contigo – exclamou ele enquanto dobrava as mangas
da camisa para cima.
– Quero dizer, já não fizeste mais ou menos isso uma vez? – provoquei.
Os nossos olhos encontraram-se quando ele, surpreendido, soltou uma
gargalhada. Eu adorava o facto de podermos brincar assim; ele gostava de
fazer comentários para me provocar, mas também sabia encaixar os meus. E
dei-me conta de que conversar com o Hayes era divertido. Tão divertido, na
verdade, que eu tinha esquecido o motivo que me levara a estar ali.
– Bem… – Fiz uma pausa. – Vou só medir as janelas para finalizarmos as
persianas.
Estás aqui para trabalhar, Franny, recordei-me a mim mesma. E ele
namora com uma loura escultural. Tens de deixá-lo ir.
– Claro. Não quero atrapalhar – disse ele com um breve aceno da cabeça.
Estávamos de volta às figuras recortadas em papel, dois bonecos de papel a
dançar um à volta do outro. Provavelmente era melhor assim, raciocinei.
Isto era trabalho, nada mais. Mas não pude deixar de odiar o silêncio que se
instalou depois das nossas gargalhadas.
Fiz-lhe um pequeno aceno e caminhei em direção às janelas infinitas que
me saudavam, filtrando a luz do fim da tarde. Olhei de relance para trás e
vi-o sentado no chão do seu gabinete, encostado à parede, pernas compridas
cruzadas à sua frente, portátil em cima das coxas. A sua atenção era intensa,
singular, direta, e vê-lo a fitar o computador lembrou-me o quanto gostava
quando essa atenção estava em mim.
Coloquei os auriculares sem fio e comecei a medir, a fotografar, e ia
espreitando de vez em quando o meu iPad, para consultar os moodboards
que fizera. A luz deslocou-se no chão de madeira por baixo de mim, as
sombras a desaparecer enquanto o Sol se punha no céu. Entrei no ritmo,
sentada no chão a trabalhar, tão envolvida no que estava a fazer que, quando
senti uma mão no ombro, gritei assustada e puxei um auricular da orelha,
atirando-o ao chão.
– Ei! – Foi tudo o que ouvi atrás de mim. Virei-me e lá em cima, como o
Sol, estava o Hayes.
– Desculpa, apanhaste-me de surpresa. – Abanei os ombros, aquela
adrenalina repentina ainda a fluir pelo meu corpo. – Estava absorvida no
meu trabalho.
– Já percebi – disse ele, e depois riu-se. – Pensei que estavas prestes a
dar-me um pontapé.
– Talvez mais tarde – respondi, sorrindo.
– Vais fazer mais alguma coisa no terraço hoje? – perguntou. – Queria
saber se precisavas de ajuda.
Na verdade, eu tinha planeado voltar amanhã de manhã para trabalhar
mais na área do jardim. Mas as mãos extras agora iam dar jeito, refleti. Até
fazia sentido. Ou talvez a parte lasciva e ávida do meu cérebro tenha
interferido e dominado o meu lobo frontal. De qualquer forma, sem hesitar,
exclamei:
– Achas que aguentas mais outra sessão de trabalho comigo no comando?
Ele olhou-me com confiança.
– Acho que aguento mais uma.
– Certo, ótimo. Vem ter comigo lá acima daqui a meia hora –afirmei, com
um sorriso no rosto.
Ele assentiu, mas antes que pudesse responder, o telemóvel dele tocou.
– Desculpa – referiu enquanto caminhava em direção ao seu gabinete,
fechando a porta atrás de si. Através do vidro, observei enquanto ele andava
e falava, de modo profissional. Agora que eu sabia como ele podia ser
engraçado, gostava quando ficava sério, focado, intenso.
Ele olhou para cima e captou o meu olhar, acenando-me com a mão. Fiz
um sorriso forçado e acenei de volta. Oh, meu Deus, ele estava a atirar-se a
mim? Em algum momento, desde que nos encontrámos no metro até hoje,
as coisas tinham-se tornado mais fáceis entre nós. Ele tinha sido tão frio e
distante naquele dia no metro, mais ainda durante a nossa entrevista na TV.
Ele literalmente declarou que não fazíamos o género um do outro. E está a
namorar alguém, zuniu o meu cérebro, voltando a ser lógico e factual.
Éramos dois desconhecidos de diferentes cantos da cidade, que não
estavam destinados a conhecer-se, muito menos a apreciar a companhia um
do outro. Mas isso tudo mudou, e de alguma forma não me apercebi do
momento em que as coisas tinham mudado. E agora era tarde de mais:
gostava dele, e não conseguia controlar isso. Ao sair pela porta do terraço,
senti um baque de tristeza. Era ridículo, mas iria ter saudades de o ver
quando isto acabasse.
Soltei um suspiro e sacudi os ombros outra vez, como se isso de alguma
forma pudesse libertar-me destes sentimentos que se agitavam dentro de
mim. Está na hora de te concentrares no trabalho, Fran. Respirei fundo
novamente e comecei a trabalhar.
Eu e o Jim tínhamos colocado, há dois verões, floreiras no jardim dele, e
a memória muscular reacendeu-se no segundo em que agarrei no
berbequim. Em vez de deixar a minha mente pensar em todas as razões
pelas quais não me deveria sentir atraída pelo Sexy de Fato, e todas as
razões pelas quais ele quase de certeza não gostava de mim, concentrei-me
em unir as pequenas tábuas de madeira.
Quase exatamente trinta minutos depois, o Hayes apareceu.
– Olá. – Virei-me e deparei com ele atrás de mim, os olhos expectantes.
– Olá – disse eu no momento em que o meu estômago fez um ronco
estranho. – Pronto para começar a plantar na terra? – Fiz um gesto para o
canto onde duas floreiras estavam agora totalmente construídas. – Só
precisamos de alinhá-las, e depois ficam prontas.
Ele assentiu.
– Ia encomendar alguma comida. Apetece-te alguma coisa?
O seu olhar era ilegível, o rosto inexpressivo e imóvel, mas depois
transformou-se num sorriso rasgado, submergindo-me numa onda lasciva.
A sua boca era tão bonita, e cada vez que me sorria imaginava como seria
ter os seus lábios contra os meus.
– Estou com tanta fome que literalmente comeria um pouco desta terra
agora – disse, agarrada ao estômago.
– Bem, não precisas de fazer isso. Posso abrir o menu no telemóvel.
Eu abanei a cabeça.
– Como o que tu comeres.
– Não queres escolher? – interrogou, mas novamente eu abanei a cabeça.
– Surpreende-me – respondi. – Quero voltar ao trabalho. Estou a falar a
sério, eu como qualquer coisa. – Sorri-lhe e, surpreendentemente, ele não
argumentou.
Tínhamos acabado de pressionar as sementes de rabanete e de cenoura no
solo quando o seu telemóvel tocou na mesa recém-montada.
– Graças a Deus – murmurou, e depois apressou-se a ir até à porta.
Minutos depois, voltou com um saco de plástico branco cheio de caixas. –
Surpresa – exclamou ele, divertido.
Limpei as mãos às jardineiras e fui até onde ele estava a colocar tudo
ordenadamente numa fila em cima da mesa nova. Duas caixas de papel
gigantes, pacotes de ketchup, guardanapos. Deslizando para o banco ao lado
dele, abri o canto de uma caixa.
– Não acredito – exclamei quando o cheiro a batatas fritas gordurosas e
quentes atingiu o meu rosto. Estavam empilhadas ao lado do maior e mais
crocante queijo grelhado que já tinha visto. Perfeito. – Pensei que não
comias, tipo, nada que te fizesse mal.
Ele encolheu os ombros.
– Estava com vontade.
– Eu estou sempre com vontade de comer um queijo grelhado, por isso
obrigada – disse, começando a comer. Comemos em silêncio durante algum
tempo, e perto das 19h00, as luzes solares que eu tinha pendurado
acenderam-se, e de repente o nosso pequeno terraço foi banhado por um
brilho do outro mundo. Ergui o rosto para olhar para cima e, ao fazê-lo, o
Hayes fez o mesmo, a sorrir.
– Esta é realmente a refeição perfeita para esta vista – disse, enquanto
espremia dois pacotes de ketchup por cima das minhas batatas fritas.
Ele franziu o sobrolho.
– Terias preferido outra coisa? – perguntou, claramente preocupado.
– Não – assegurei-lhe. – Estou a falar a sério. Uma sanduíche de queijo
grelhado e batatas fritas não tem tanta reputação em Nova Iorque como um
bagel ou uma piza, mas é Nova Iorque até à sua essência.
– Mas piza é o melhor, certo? Concordamos?
Quando eu assenti com a cabeça, ele disse:
– Bom, porque eu ia pôr-te na rua se dissesses que não. Especialmente
porque estou a assumir que és italiana.
Eu semicerrei os olhos.
– Como é que sabes isso?
– O teu nome é Francesca – respondeu, como se isso fosse óbvio. – E a
tua obsessão por sorvete italiano.
– Ah, bem, sim. O lado do meu pai é italiano. – Eu mordisquei uma
batata frita e tentei não demonstrar o quão feliz me sentia por ele estar a
tentar conhecer-me.
– Affascinante – divagou.
– Exibicionista. – Sorri para ele. Gostei de como a sua voz soou em
italiano, melódica e baixa.
– Eu estudei em Bolonha e Milão – disse ele. – Já não me lembro bem do
italiano, exceto quando preciso de pedir comida.
Milão. A palavra atingiu-me no peito. Era onde a minha irmã morava.
Trabalhava. O Hayes também esteve lá. Pensei em contar-lhe, descarregar
nele essa nova parte de mim. Mas sempre que pensava em contar a alguém
sobre o que tinha descoberto, isso tornava as coisas demasiado reais.
– Bem, esse é o momento mais importante – respondi. – Provavelmente
falas mais do que eu.
– O teu pai nunca te ensinou nada?
– Eu não conheci o meu pai. Portanto…
E agora o meu pai está morto, pensei, e nunca terei essa hipótese. Engoli
em seco, tentando desprender o nó que tinha acabado de se instalar na
minha garganta.
O Hayes assentiu com a cabeça, e percebi que estava à espera que eu
prosseguisse.
– Na verdade, nunca o conheci, nem o seu lado da família. Fui para a
faculdade de arte e design, por isso não tive aulas de línguas. E na minha
escola só havia aulas de espanhol e francês. – Dei outra dentada na
sanduíche, mastigando por um momento. – Mas consigo entender um
pouco, agora. Através de umas aplicações de línguas.
Tirei um guardanapo da mesa e comecei a esfarrapá-lo lentamente.
– De qualquer forma…
– Bem, o italiano é sobrevalorizado. – Ele fez um sorriso caloroso. – Tão
valorizado que nem sei como dizer isso em italiano.
Eu ri-me e voltei a comer. E depois ocorreu-me – ele estava a ir ao meu
ritmo, a dar-me espaço para desabafar se quisesse. Isto era algo novo. Eu
estava habituada a ir ao encontro das expectativas das pessoas, a fazer as
coisas por obrigação. Mas não tinha de fazer isso com ele. Ele não estava a
tentar chegar a lado nenhum com a conversa, a não ser aonde eu queria
chegar. E isso por si só fez-me querer continuar a falar.
– Ouve isto – disse eu. – A minha mãe e o meu pai biológico tiveram
basicamente um caso de uma noite, e ela nunca mais o viu, mas engravidou.
Tão clichê, eu sei. Mas eu nunca soube muito sobre ele.
Não houve um suspiro, nem choque ou alguma piada estranha. Em vez
disso, ele apenas se aproximou mais de mim.
– Isso deve ter sido difícil – disse ele. – Para ti.
– Sim, acho que foi. Quero dizer, foi por isso que acabei a fazer terapia
uns anos depois.
Como sempre, tentei aliviar o clima com uma piada, mas ele apenas
aquiesceu pensativo. Quando me desloquei no banco, o guardanapo com
que estava a brincar voou para o chão, e baixei-me para o agarrar no
momento em que o Hayes fez um movimento no mesmo sentido. As nossas
cabeças colidiram como dois jogadores de futebol a querer agarrar a bola, e
ouviu-se um baque.
– Ai – dissemos ao mesmo tempo.
Sentei-me, agarrada à testa, mesmo quando o Hayes se inclinou para
mim, com o meu guardanapo rasgado na mão.
– Estás bem? – perguntou, pressionando suavemente os dedos indicador e
médio na minha testa.
Eu assustei-me com o seu toque, e ele retirou a mão rapidamente, mas
manteve os olhos em mim. Tinham uma expressão de preocupação e
carinho, assim como o seu toque também o tinha demonstrado. Engoli em
seco, e disse com um sorriso.
– Sim, sim. Estou bem. E tu?
– Apenas uma leve concussão – disse ele, a sorrir enquanto esfregava a
testa.
Entregou-me o guardanapo, e eu coloquei-o no colo.
– De qualquer forma – continuei –, fiz um desses testes de ADN
recentemente. Na brincadeira, com as minhas amigas. E fiquei a saber que
sou italiana e irlandesa, com um pouco de escocesa à mistura. Foi fixe
descobrir isso, mas nada de especial. Mas depois alguém me rasteou através
da aplicação e enviou-me uma mensagem.
– Quem? – Franziu a testa quando deu uma dentada na sua sanduíche,
ouvindo atentamente.
– Aparentemente, tenho uma meia-irmã em Itália. Em Milão, na verdade.
– Uau. Isso é incrível.
– Eu sei! – disse, a minha voz a subir de tom. – É de loucos. E
honestamente, há uma parte disso que é incrível, se é que faz sentido. Mas
também me assustou, e eu ainda não lhe respondi.
Ele concordou, dando-me espaço para falar.
– Ela também me disse que o meu… o nosso pai morreu há muito tempo.
E só de saber isso senti-me realmente…
Engoli em seco, ainda a tentar compreender os meus sentimentos nesse
instante.
– É intenso – acabei por dizer. – E triste. É realmente triste.
– Eu realmente sinto muito pela tua perda – disse ele em voz baixa.
Eu nunca tinha pensado nisso assim: uma perda. A palavra atingiu-me
profundamente.
– Durante toda a minha vida, um lado de quem eu sou foi literalmente um
espaço em branco – continuei. – E isso pode atrapalhar o teu crescimento,
quando não sabes inteiramente de quem vens. Especialmente… – Eu nunca
tinha dito esta parte em voz alta. – Especialmente quando sempre fui mais
ou menos a esquisita da minha família. Tu sabes… – Fiz um sinal com as
mãos para mim mesma, como se isso explicasse tudo, e o Hayes apenas se
riu.
– Eu não sei. A mim, pareces-me muito normal.
– Obrigada. – Tirei um chapéu imaginário para ele. – Mas eu sou a
esquisita tagarela e artística que deixou a cidade natal e se mudou para
Nova Iorque. A minha mãe e o meu padrasto conheceram-se no banco em
que trabalhavam, e reformaram-se há alguns anos desse mesmo trabalho. A
ideia deles de uma noite divertida é sentarem-se nas suas poltronas
reclináveis iguais a verem o CSI.
– Espera, isso parece-me uma noite divertida – objetou o Hayes, e depois
trincou uma batata frita.
– É verdade – disse eu. – Mas percebes o que quero dizer.
– Sim – disse pensativo. – Percebo.
– E a parte louca é – acrescentei – que acho que esta irmã também pode
ser uma esquisita artística. Só que muito bem-sucedida. Então, sinto-me
intimidada com isso, mas também estou a morrer de vontade de saber como
ela é, e como o meu pai era, e se…
O Hayes deixou que me calasse, e depois terminou o meu pensamento
por mim.
– E se és como eles.
Eu assenti com a cabeça e senti-me irritada com a facilidade com que ele
me compreendeu. Eu estava a tentar desesperadamente não gostar deste
tipo, e ele teve de entender exatamente o que eu estava a tentar dizer.
– Mas há uma parte de mim que se preocupa… e se eu não for como eles?
E depois? Vai ser como se eu não me encaixasse em lugar nenhum.
Voltei a atenção para a comida, passando uma batata frita pelo montinho
de ketchup que fiz à minha frente. Eu não queria que ele visse que os meus
olhos se encheram de lágrimas.
O Hayes ficou calado por um momento, a pensar.
– Queres ouvir o que eu acho? – perguntou com cautela, como se
estivesse a tentar tirar-me uma farpa sem me magoar. Eu concordei.
– Não precisas de lhe responder, só porque ela é da família. A família é
aquela que fazemos, não aquela em que nascemos. Pelo menos para mim.
Bebi um gole da minha água, enquanto ouvia.
– E talvez, em vez disto se revelar algo novo sobre ti, pode ajudar-te a
conectares-te com o que sempre soubeste sobre ti mesma o tempo todo.
Bem, isto foi… profundo. Não era o que eu estava à espera. Quase
parecia que ele sabia do que estava a falar. Mas isso era ridículo. O Hayes
era o tipo de pessoa que claramente tinha tudo planeado. Mas talvez eu
estivesse enganada. Talvez ele ainda também estivesse a aprender.
– Obrigada, Hayes. Eu devia pagar-te por esta sessão de terapia – disse a
brincar.
– Qualquer escolha que fizeres será a correta – disse ele
intencionalmente, como se já tivesse dito a mesma coisa a si mesmo. – E se
acabares por ir a Itália para conhecê-la, eu posso ensinar-te como se diz
«SubwayQTs» em italiano.
Soltei uma gargalhada, o que foi um alívio tão grande que o sorriso
permaneceu no meu rosto muito depois de ter parado de rir. Quando
terminámos de comer, nenhum de nós fez um esforço para se mover, apesar
da escuridão começar a instalar-se. Em vez disso, ficámos em silêncio
enquanto o Sol desaparecia e a cidade acordava para a noite. Pela primeira
vez desde que recebi a mensagem da Anna, sentia-me calma,
independentemente daquilo que decidisse fazer a seguir. Mas o meu coração
ainda estava acelerado. Porque outra coisa tinha ficado assustadoramente
clara para mim esta noite: Eu estava completamente apaixonada pelo Hayes
Montgomery III.
CAPÍTULO CATORZE
HAYES

– F izeste isto tudo? – Eu provavelmente devia ter começado por dizer


algo mais cortês, mas o banquete à minha frente era demasiado incrível para
o meu cérebro acompanhar a boca. Por sorte, a Serena riu-se, com uma taça
de vinho branco na mão enquanto me fazia sinal para entrar, uma refeição
vegana digna de um restaurante disposta na longa mesa de jantar branca ao
lado da cozinha.
– Fiz, sim! – respondeu, completamente imperturbável pela minha
entrada desajeitada.
– Eu trouxe vinho tinto – disse, erguendo a garrafa nas mãos. – Desculpa.
– Perfeito para depois do jantar – respondeu com uma piscadela de olhos
sedutora.
– Obrigado por me teres convidado – afirmei enquanto ela tirava o vinho
das minhas mãos e entrava na cozinha. Fiquei ali durante um momento, a
avaliar o cenário. Velas acesas. A Serena num top branco de renda com os
ombros descobertos e calças de ganga rasgadas, pés descalços. Casual, sim.
Mas também descontroladamente sexy, da maneira mais intencional
possível.
Tudo com a Serena, até aos mínimos detalhes, era deliberado. E esta
noite, eu sabia que tudo estava feito para mim, mas isso só me fez sentir
tenso, stressado. Era o oposto de como me sentira com a Franny durante o
jantar algumas noites atrás, e não conseguia deixar de pensar nisso. Eu
estava aqui num encontro romântico e íntimo. Mas o lugar em que queria
realmente estar era de volta ao terraço do meu escritório, rodeado de terra
para floreiras e material de compostagem, com a Franny e os seus lindos
caracóis, olhos brilhantes e gargalhadas.
– Eu estava só a dar uma vista de olhos na distribuição das pessoas pelas
mesas para a gala – disse ela, passando a mão pelo meu colarinho,
interrompendo os meus pensamentos. – Coloquei-nos num grupo divertido.
– Eu gosto de diversão – disse, forçando um sorriso no rosto.
– Bem, graças a Deus – afirmou ela, dando um passo atrás para pegar
noutra taça de vinho de cima do balcão, e passando-ma. – O meu ex-
namorado era um desmancha-prazeres, e eu ainda estou a aprender a aceitar
que não há problema em viver exatamente como quero.
Ela disse isto determinada, sem hesitação, e fez sinal para que me
sentasse à mesa, diante de uma deliciosa salada de beterraba.
– Posso perguntar-te porque é que tu e o teu ex-namorado se separaram?
– inquiri, deslizando na cadeira e servindo-lhe mais vinho.
Ela fez-me sinal que não queria.
– Por favor, Hayes, sou um livro aberto. Eu partilhei a minha última
consulta de microagulhamento num direto do Facebook.
– Isso é uma coisa no rosto? – perguntei enquanto ela se aproximava para
tocarmos os copos num brinde.
Ela aquiesceu.
– De qualquer forma, terminei com ele quando percebi que gostava mais
da ideia de nós do que de nós mesmos. Sabes o que quero dizer?
– Sim, acho que sim – respondi, bebendo um gole de vinho. As suas
palavras atingiram-me inesperadamente, quase como se ela estivesse a olhar
para dentro do meu cérebro e pudesse ver o que eu estava a pensar, era
exatamente assim que eu me sentia em relação a nós os dois.
– Nós ficávamos lindamente juntos. Fazíamos todas as coisas certas. Mas
quando estávamos sozinhos não tínhamos nada para dizer um ao outro.
Nunca era simples. E eu estava entediada. E detesto estar entediada.
Ela olhou diretamente para mim e, em pânico, soltei:
– Vamos plantar alface no nosso novo escritório. – O que foi a coisa mais
errada de se dizer naquele momento. Mas eu precisava de me livrar da
sensação que estava a formar-se em mim.
Eu andava tão obcecado com a ideia de ser «incompatível» nas relações
que nunca parei um segundo para pensar sobre o que realmente significava
relacionar-me com alguém. Eu queria que fosse simples, como a Serena
tinha dito. Mas mais do que tudo, não queria sentir-me entediado. Ansiava
pela emoção, pela paixão e por todos os momentos bons, é claro. No
entanto, também queria estar com alguém nos momentos maus e sombrios e
difíceis. Eu procurava uma montanha-russa, uma relação que me deixasse a
ansiar por mais, sempre pronto para repetir. Mas conseguiria lidar com isso?
E conseguiria ser isso para outra pessoa? Não tinha a certeza, e bebi um
gole gigante de vinho, concentrando-me na história da Serena sobre o seu
último treino, colocando de lado as perguntas em que preferia não pensar.
Uma hora depois, saciados e levemente tontos, a Serena e eu estávamos
um ao lado do outro junto do lava-louça. Eu passava por água; ela colocava
dentro da máquina de lavar louça. Fechei a torneira quando terminámos, e a
Serena pôs uma cápsula de detergente na máquina e fechou a porta com a
anca – como uma espécie de estrela de cinema –, antes de apertar alguns
botões e colocar a máquina em funcionamento. Colocou de modo casual a
mão no meu pescoço, as unhas a arranhar suavemente a minha nuca.
– Então – disse ela, num tom de voz baixo, que nunca lhe tinha ouvido, o
rosto tentadoramente perto do meu –, o que fazemos agora?
*

– Espera, tiveste um bom jantar, que ela preparou. E começaram a beijar-


se na cozinha. E depois, como estava a correr bem, entraste em pânico e
foste embora?
A Perrine disse as palavras com a boca cheia de alface.
Soltei um longo suspiro. Tinha estado a rever o encontro com a Serena na
minha cabeça desde que saíra do apartamento dela na noite passada.
– OK, em primeiro lugar, eu não chamaria a isso «pânico» –disse,
fazendo-lhe O Olhar. – Foi realmente bom. Só que ontem à noite percebi
que ela não é a pessoa com quem eu queria estar. E quando tive noção
disso, soube que não podia ficar. Por isso, quando ela me convidou para
irmos para o seu quarto, eu disse-lhe que tinha de ir para casa.
Não mencionei à Perrine que a Franny também esteve nos meus
pensamentos o tempo todo, e tinha comparado cada movimento que a
Serena fez com ela. Não conseguia deixar de pensar na maneira como a
Franny me fizera rir na outra noite no meu escritório – de mim próprio e do
mundo. E como então, mais tarde, a nossa conversa mudara para coisas
profundamente pessoais. Eu nunca me sentia entediado quando estava com
ela. Na verdade, eu não conseguia pensar em mais nada quando ela estava
por perto. E também, aparentemente, quando ela não estava.
– Porque disseste que tinhas uma consulta médica.
Assenti com a cabeça.
– Numa manhã de domingo.
– Não é algo impossível! – protestei.
– Hayes, eu sou médica. A maioria de nós fica em casa aos domingos, a
menos que estejamos de serviço.
Inclinei a cabeça para trás. Talvez olhar para o teto me salvasse. Eu não
sabia bem como explicar isto à Perrine, que raramente me incentivava a
namorar, mas que ainda tinha dificuldade em esconder o seu desejo de que
eu «encontrasse alguém». O encontro tinha sido bom. Ótimo, mesmo. Só
que a sensação que eu esperava sentir – aumento da pulsação, um tremor de
excitação, um dilúvio de nervos – nunca aconteceu.
Só a visão da Franny a trabalhar no chão com os seus fones cravava as
garras em algo animalesco e puro dentro de mim: a vontade de confessar
todos os meus sentimentos, de sentir o peso dela em cima de mim, mesmo
ali naquele chão de madeira. E como esse sentimento nunca se materializou
com a Serena, não parecia correto da minha parte permanecer ali.
– Então preferias que eu tivesse dormido com alguém de quem não gosto
completamente?
– Não! Não, não estou a dizer isso. E não estou a querer criticar-te.
Queria apenas perceber o que aconteceu.
Médicos malucos. Sempre a tentar resolver as coisas.
– Acho que fiquei a pensar no quanto gostei de jantar com a Franny na
outra noite. E como o jantar com a Serena não foi assim.
Os olhos da Perrine transformaram-se em raios laser, apontados à minha
cabeça.
– Não me contaste que jantaste com a Franny.
Espera, não tinha contado?
– Sim, contei. – Cruzei os braços à frente do peito.
A Perrine abanou a cabeça, claramente satisfeita por ter conseguido obter
esta informação.
– Jantámos no novo escritório da Arbor. – Tentei fazer soar como se não
fosse nada de especial.
– Como um encontro? – O tom alto da sua voz comunicou-me que a
Perrine achava mesmo que isto era importante.
– Ela estava a trabalhar! – Porque é que de repente me senti na defensiva?
– Foste tu que planeaste isto tudo, lembras-te? – continuei. – Ela está a
tratar das coisas no nosso escritório. E por acaso eu estava lá e ia
encomendar comida, então perguntei-lhe se ela também queria.
– Hum, hum – murmurou a Perrine, erguendo as sobrancelhas,
desconfiada. Eu ignorei-a e remexi a minha salada.
– Vou com a Serena ao evento da gala dela no sábado. – A minha voz era
resignada. – Então, talvez depois disso eu deva terminar as coisas.
– Hum, tu gostas de outra pessoa. Precisas mesmo de terminar as coisas.
– Ela disse isto como se também quisesse acrescentar «seu idiota», mas
conteve-se.
– Mesmo que eu gostasse da Franny – a Perrine revirou os olhos
enquanto eu dizia isto –, não tenho a certeza que ela esteja interessada em
mim. Não sei nada sobre o tipo de pessoas com quem ela namorou.
Provavelmente são todos, tipo, artistas de grafíti ou músicos famosos.
Ela estudou-me, um olhar divertido no rosto.
– Qual é que achas que é o tipo dela?
– Não sei, gente fixe? – Imaginei a Franny com skaters e artistas,
bateristas punk e poetas mal-humorados. Espíritos livres que poderiam
acompanhar toda a magia que fluía do seu cérebro.
– Tu és fixe – disse a Perrine, e depois riu-se para si mesma. – Posso
perguntar à Lola qual é o tipo de homem da Franny. Dar-te algumas dicas.
– Oh, meu Deus, Perrine, por favor, não digas nada à Lola. – O meu
coração acelerou, em pânico.
– Hayes, tu és um homem adulto. De que tens tanto medo? – perguntou.
De tudo, queria retorquir.
Mas em vez disso, respondi:
– De nada. – E deixei as coisas por ali.
CAPÍTULO QUINZE
FRANNY

E ra suposto estar a tratar dos últimos acertos necessários para o novo


escritório da Arbor, mas, em vez disso, estava debruçada sobre o meu
portátil, a resolver problemas de uma nova e exigente cliente. A minha mãe.
Desde que pedira a minha ajuda para tratar da decoração do chá de bebé,
que estava a organizar, ela invadiu a minha caixa de correio eletrónico com
e-mails ininterruptos de uma só linha da sua conta da AOL.
19 pessoas responderam, dizia um.
Vou alugar três mesas redondas, será suficiente?, dizia outro.
Espera, querida, emenda isso, são 18 pessoas. A Donna acabou de
cancelar porque precisa de ir comprar vestidos de noiva com o Morgan.
Beijos Mãe, chegou à minha caixa de entrada apenas há alguns minutos. Eu
não fazia ideia de quem era a Donna, muito menos o Morgan, mas eles
tinham acabado de arruinar a encomenda que estava a fazer de cadeiras
dobráveis, por isso agora odiava-os, claro.
Ajudá-la a planear uma reunião informal na sua casa incluía agora
procurar onde alugar mesas, cadeiras e talheres suficientes para vinte
pessoas, um toldo para cobrir o seu quintal, decorações, um refrigerador e
lembranças. O que eu pensei que seria um quadro do Pinterest rapidamente
elaborado transformou-se numa folha de cálculo Excel que ocupava toda o
ecrã do meu portátil, e um dia inteiro no meu calendário agora reservado
para ajudar a minha mãe a dar uma festa para uma mulher de quem eu nem
gostava. Conseguia pensar em oito milhões de outras coisas que preferia
fazer num domingo.
O meu alerta de e-mail soou. Achas que conseguias passar no Costco
antes do chá para ir buscar o bolo e as bebidas? Podes levar o meu carro.
Eu estava mesmo farta dos e-mails e agarrei no telemóvel.
– Mãe – disse quando ela atendeu depois de um toque.
– Olá, querida, é sobre o Costco? Devias comprar uns aperitivos para
levares de volta para a cidade também, é claro – disse ela, e a gentil oferta
liquefez a maior parte do aborrecimento que sentia a acumular-se no meu
peito, mesmo que eu mal pudesse trazer alguma coisa do Costco outra vez
para a cidade, muito menos que coubesse no meu apartamento.
– Sim, posso ir ao Costco – disse, a minha voz animada numa tentativa de
mascarar a minha relutância. A única coisa que me incomodava mais do
que a quantidade de trabalho que isto acabou por me dar era o facto de não
ter sido honesta e simplesmente não lhe ter dito logo que não. Eu concordei
com isto para a fazer feliz, mas o resultado foi eu ficar infeliz. – Vou tentar
chegar lá às dez, desde que me possas ir buscar à estação de comboio.
– Estou muito animada por ir ver-te querida – disse ela. – Sabes que
podes ficar para o jantar, e passares cá a noite também, se quiseres.
– Eu agradeço, mãe, mas acho que tenho de voltar para a cidade. –
Inclinei-me no sofá, o cabelo colado na nuca. Embora o ar-condicionado
estivesse no máximo, ainda estava abafado e quente dentro de casa.
Podíamos pensar que o calor do verão me deixaria cansada, letárgica, mas
em vez disso sentia-me nervosa, e muito desconfortável.
Desde que o Hayes e eu conversámos no terraço do seu novo escritório,
que eu queria ligar-lhe, enviar-lhe uma mensagem, qualquer coisa que nos
obrigasse a falar, a vermo-nos. Em vez disso, trocámos alguns e-mails
educados com a Eleanor e o assistente deles, o Tyler, sobre a logística do
edifício e a entrega de um frigorífico para a cozinha do escritório.
Passei muito tempo a analisar o e-mail mais recente, que ele assinou com
Tudo de bom, Hayes, que me provocou um turbilhão de sentimentos. Nada
era pior do que receber um e-mail da pessoa que não sai da tua cabeça e ela
terminar com um Tudo de bom. Não acreditava que ele terminasse os seus
e-mails para a Serena com um Tudo de bom. Ela provavelmente recebia
algo como Desesperado pelo teu toque, ou um GIF de um vulcão em
erupção. Como devia ser, refleti. Eles namoram – ela merecia todos os GIF
de insinuações sexuais do mundo. Mas eu ainda ansiava em silêncio pelo
Hayes, e não havia nada remotamente sedutor num Tudo de bom, e isso fez-
me pensar se tudo o que eu tinha sentido entre nós estava apenas na minha
cabeça.
– OK, miúda – disse a minha mãe. – Um bom resto de dia.
– OK. Para ti também – afirmei, sentindo-me culpada pelo alívio que
senti quando desliguei o telemóvel. Espreguicei-me no sofá, soltei um
gemido alto. Há alguns dias que não via o Hayes, e agora cada interação
mágica e sedutora que tínhamos começava a parecer aquele sonho da mota
– pura ficção, criada pelo meu cérebro.
O meu telemóvel deu sinal novamente, mas desta vez era um texto da
Lola, uma fotografia do banquete que ela preparou para o nosso piquenique
hoje mais tarde. Brie, bolachas, salame, uvas, latas de vinho. Olhei para o
relógio. Estava quase na hora de ir para a cidade ter com as minhas amigas.
Isto era exatamente o que eu precisava.
*

Após transpirar na viagem de metro, saí para a sauna que era o centro de
Manhattan em meados de julho. A Cleo e a Lola já estavam à minha espera
na esquina da Fifty-Ninth com a Fifth, sentadas à beira da fonte. A Cleo
trazia uma manta gigante já velha debaixo do braço e estava a usar a outra
mão para abanar o rosto. Acenei-lhes e ergui o saco que trouxera, com as
minhas contribuições para o banquete: húmus, batatas fritas e azeitonas do
Sahadi’s de Brooklyn. A Lola levou as mãos à boca quando me viu,
gritando U-hu!
– Aqui está ela finalmente! – exclamou a Lola enquanto eu caminhava até
elas. – A nossa rainha de Brooklyn.
– Eu nunca irei morar em Manhattan. Esqueçam – brinquei, há muito
habituada a esta provocação sobre o meu bairro de eleição. – Não quero
saber o quão irritantes são os comboios ao fim de semana.
– Vamos? – disse a Cleo, espreguiçando-se. Seguimos o caminho sinuoso
até ao parque, que estava exuberante e verde. Só estando à sombra das
árvores é que se tinha a sensação de estarem menos graus do que no resto
da cidade. Caminhámos pela rua, até Sheep Meadow, onde planeávamos
deitar-nos em cima da relva, petiscar e ficar juntas até anoitecer.
Estávamos na passadeira da Sixty-Fifth Street, prestes a entrar na relva,
quando um relâmpago louro passou por nós a correr. Ela parou a alguns
metros de distância e virou a cabeça. Correu de volta até nós, acenando com
as duas mãos animadamente.
– Ena, pá – ouvi a Lola dizer baixinho. Estávamos cara a cara com a
Serena, a mulher que conheci no escritório do Hayes. A mulher com quem
ele andava a «passar tempo».
– Franny! – exclamou ela. Estava agora mesmo à nossa frente, em calções
de corrida pretos e uma camisola de alças curta, a única coisa que alguém
poderia usar neste dia terrivelmente quente enquanto se exercitava. – Serena
– disse ela, apontando para o peito, o seu sorriso tão grande que poderia
bloquear o sol. – Ando com o Hayes?
A Cleo soltou um pequeno «Uau» baixinho enquanto o meu coração batia
tão alto que eu tinha certeza que toda a cidade conseguia ouvi-lo sobre o
barulho do trânsito e das sirenes que nos rodeavam.
– Olá – disse eu com um gesto educado. – Prazer em rever-te.
– Eu sabia que eras tu! Como está a ir o escritório? – Ela disse isto com
um sorriso no rosto enquanto corria no lugar.
– Bem – respondi, enquanto tentava processar o que estava a acontecer. –
Está quase pronto.
– Bom, mal posso esperar para ver – disse ela, levando a mão à testa, que
parecia ter menos suor do que a minha, apesar de ela estar a correr. – Talvez
possamos conversar um dia destes? Estou a pensar em redecorar o meu
espaço.
– Claro – disse eu. – O Hayes tem os meus contactos. – Sorri, colocando
o meu ar profissional.
– Maravilhoso! – Ela ainda estava a saltar na ponta dos pés. – OK, lá vou
eu.
– OK! – disse eu, combinando com a vitalidade na sua voz, acenando-lhe
enquanto ela se afastava.
– Ela é ainda mais sexy pessoalmente – disse a Lola com admiração.
Olhei para ela, que encolheu os ombros.
– O quê? É verdade. E também é o pior tipo de pessoa sexy.
– Ai sim? – perguntei. – Que tipo de pessoa é esse?
– Uma que é boa – disse a Lola, como se estivesse a revelar uma espécie
de verdade universal. – Parece-me genuinamente boa.
Assim que encontrámos um pedaço de relva livre e nos acomodámos em
cima da manta da Cleo, a Lola pegou no telemóvel e abriu a página da
Serena no Instagram. Mais de cem mil pessoas seguiam cada movimento
seu, o que incluía um vídeo dela a correr que deve ter sido feito em algum
momento hoje.
A Cleo espreitou e depois passou-o para mim.
– Eu nunca ouvi falar dela – exclamou, antes de pegar num pouco de
salame e dar uma dentada.
A Lola olhou para ela.
– Clee, eu adoro-te, mas o teu conhecimento sobre cultura pop não é o
mais impressionante.
– Então! – protestou a Cleo.
– Cita cinco microinfluenciadores – respondeu a Lola, e a Cleo deu uma
risada resignada.
– OK, tudo bem – disse ela. – Tens razão.
Comemos em silêncio durante um bocado, observando as pessoas.
Finalmente, depois de abrir uma lata de vinho e beber alguns goles, eu disse
a coisa que estava a atormentar-me imenso.
– Digamos que eu sinta alguma coisa pelo Hayes – disse, e ambas se
viraram para mim enquanto eu roía uma unha, nervosa por estar a revelar
isto ao mundo.
– Mm-hmm? – disse a Cleo, sobrancelhas erguidas em expectativa.
– Porque é que ele sequer consideraria sair comigo quando já está a
namorar com ela? – disse, desajeitadamente, enquanto franzia o rosto com
vergonha. – Eu sei, eu sei, pareço ter doze anos. Mas ela é… – Qual era a
palavra que eu queria usar? Linda? Realizada? Perfeita?
– De mais? – completou a Cleo.
– Sim! – disse. – É tão difícil estar perto de alguém assim, que é de mais,
quando estou sempre a sentir que não sou suficiente. E antes que digam
qualquer coisa – ergui a mão –, eu sei que sou suficiente. Eu sei que sou
bonita, inteligente e talentosa, e uma cozinheira razoavelmente boa, e todas
as outras coisas boas que vão enunciar. Mas sabem o que quero dizer. Às
vezes não conseguimos deixar de nos comparar com alguém assim.
– Como é a citação? A comparação é a ladra da alegria? – A Lola
semicerrou os olhos, a pensar.
– Algo desse género – disse eu. – E é verdade! É tão idiota. Mas não
consigo evitar.
A Cleo tocou carinhosamente na minha coxa.
– É totalmente normal pensares assim, mas tenta lembrar-te que ela
provavelmente está a comparar-se contigo também.
Revirei os olhos, o que só deixou a Cleo irritada.
– Estou a falar a sério, Fran!
Apontei para o meu cabelo, que estava a ficar descontroladamente frisado
com a humidade.
– Oh, a sério? – Achas que ela está com ciúmes deste desastre na minha
cabeça?
A Cleo riu-se e depois preparou uma pequena sanduíche com queijo e
salame.
– Tu és todas as coisas que disseste que és, e muito mais.
– Cem por cento de acordo – disse a Lola, como se não houvesse outra
resposta. – E se sentes que tens um fraquinho pelo Hayes, aposto contigo
que ele também sente algo por ti. Ele não é um exclusivo dela. – Atirou
uma uva para dentro da boca. – Às vezes consigo sacar informações à
Perrine – continuou com um sorriso tímido antes que eu pudesse questioná-
la sobre como sabia tal coisa.
– Se ele está interessado em mim, porque é que se despediu num e-mail
com um Tudo de bom? – interroguei-as.
– Toda a gente sabe que Tudo de bom é a despedida que se usa quando
não se quer que a pessoa de quem se gosta saiba que se gosta dela –
respondeu a Lola, como se fosse óbvio. – Especialmente alguém com quem
se está a trabalhar.
A Cleo riu-se.
– Oh, meu Deus, tens razão. Sempre que quero curtir com alguém,
certifico-me sempre de que os meus e-mails são superformais, para parecer
que não estou interessada.
– Com que frequência isto acontece contigo? – perguntei-lhe, realmente
curiosa.
– Não sei, conheci um monte de advogados giros! – disse ela na
defensiva.
– Se ele assinou o e-mail com um Tudo de bom – disse a Lola com
confiança –, o que ele quer dizer é «não consigo parar de pensar em cobrir-
te de beijos.
– Especialmente entre as pernas – acrescentou a Cleo, e a Lola morreu de
riso.
Cobri o rosto com as mãos e ri-me.
– OK – disse eu enquanto fechei as mãos em punhos e pressionei-os no
queixo.
– Então o que é que significa eu ter-lhe enviado um e-mail hoje e ter-me
despedido com um Não vejo a hora de falarmos!
– Oh, miúda – disse a Lola com um aceno de cabeça. – Isso significa que
estás mesmo apaixonada.
CAPÍTULO DEZASSEIS
HAYES

N o dia seguinte, no escritório, atirei o meu dossiê enorme onde


delineara a festa de inauguração para cima da secretária da Eleanor.
– Bem, olha para ti – disse ela baixando os óculos para me observar com
aprovação. Enquanto bebia um gole de um copo de ginger ale, abriu o
dossiê, os seus olhos a percorrer a primeira página.
– O Tyler fez quase tudo – sejamos honestos. – Deslizei na cadeira,
abrindo o portátil. – Aquele DJ famoso de quem é amigo concordou em
colocar música durante algumas horas por metade do valor que cobra
normalmente. O Tyler conhece toda a gente.
– O tipo que reside em Estocolmo? – perguntou a Eleanor, legitimamente
impressionada.
– Esse mesmo – respondi com um aceno de cabeça.
– Talvez o Tyler deva ser COO – brincou a Eleanor.
– É melhor irmos com calma – disse eu. – Concordei com tudo.
Verifiquei duas vezes o orçamento. E contratei a empresa de catering que a
Serena recomendou.
A Eleanor bateu palmas.
– Ah, e a Citi Bike vai oferecer a todos um código de desconto para
usarem na deslocação para a festa.
– Enaaa – disse a Eleanor, parecendo animada.
– Eu sabia que ias gostar disso. – Senti-me um pouco presunçoso.
– Então, se a Serena te deu o contacto da sua empresa de catering
preferida, as coisas devem estar a ficar sérias – brincou ela, à procura de
informações.
– Tenho de me ir preparar para a chamada com o Luis sobre o espaço que
ele nos encontrou em Seattle – disse eu, grato por ter esta desculpa e assim
evitar falar sobre a minha vida romântica. Especialmente porque decidi,
depois da minha conversa com a Perrine, que precisava de terminar as
coisas com a Serena. E eu não queria fazer isso antes do grande evento dela.
Ela andava a trabalhar na gala há meses, e eu sabia que para ela era mais do
que apenas uma festa; era algo pessoal. Não conseguia decidir qual era a
atitude mais detestável – terminar antes do evento, ou logo a seguir.
Sentei-me à secretária para enviar um rápido e-mail, mas, em vez disso,
peguei no telemóvel e dei por mim com o dedo a pairar sobre o nome da
Franny.

Olá Franny, Só queria saber se vais precisar de passar no escritório


em alguma altura esta semana.

Cliquei em ENVIAR antes que pudesse impedi-lo.


A resposta dela foi imediata. Não, está tudo bem! Estou à espera da
encomenda final das plantas para os vossos escritórios principais e hall de
entrada. Ela colocou um emoji de polegar para cima completamente
benigno no final.
Espreitei para dentro do gabinete da Eleanor outra vez.
– Ei – disse eu.
– Sim? – Ela ergueu os olhos do computador.
– Queres ir almoçar? – perguntei. – Está tão agradável lá fora. Podíamos
ir comer no parque.
Ela inclinou a cabeça para me estudar.
– Tu estás bem?
– Claro. Porquê? – Cruzei os braços, impacientemente à espera da
resposta dela.
– Tu – ela apontou um dedo com a unha arranjada na minha direção –
nunca fazes pausas para o almoço.
– O que queres dizer? Eu almoço com a Perrine, tipo, duas vezes por mês.
Oh. Foi isso que ela quis dizer. Ela ergueu as palmas das mãos para mim.
– Vês?
– OK, bem, eu vou almoçar fora hoje – disse. – Talvez demore uma hora
inteira.
– Estou impressionada! E alinho. – A Eleanor sorriu, claramente
divertida. – Podes contar-me tudo sobre o teu jantar com a Serena. Pelo que
ela disse ao Henry, parece que está interessada em ti.
O meu estômago contraiu-se só de pensar em voltar a mergulhar nos
meus sentimentos e descobrir como lidar com eles. Parecia muito mais fácil
focar-me apenas na festa de inauguração e nos planos do escritório de
Seattle do que decidir o que fazer sobre acabar as coisas com a Serena. Não
porque estivesse preocupado em acabar tudo, mas porque, assim que o
fizesse, teria de lidar com os meus sentimentos pela Franny.
*

Os degraus do Museu de História Natural estavam iluminados como um


farol, fotógrafos a gritar a plenos pulmões para pessoas que eu não conhecia
para se virarem para um lado e moverem-se para o outro. Dei o meu nome à
pessoa da imprensa que geria a lista de convidados, que gritou algo para um
auricular. Minutos depois, a Serena estava a deslizar na minha direção, com
um vestido vermelho decotado, o cabelo liso e longo num rabo de cavalo
pelas costas.
– Achava que não era possível ficares ainda mais bonito, mas aqui estás
tu de smoking – disse ela, unindo as suas mãos às minhas e inclinando-se
para me dar um beijo na face.
– Tu estás deslumbrante – disse eu ao seu ouvido. Era a verdade absoluta.
Não era apenas o vestido; a Serena era magnética.
O tapete vermelho era mais ruidoso do que eu esperava. Mais brilhante
também. O clique das câmaras e os pedidos furiosamente gritados dos
fotógrafos criavam uma cacofonia esmagadora de ruídos.
– Por aqui, por favor, Serena!
E depois acabou, e a Serena conduziu-me até à entrada do museu. Mas
em vez de seguir o fluxo de pessoas em direção ao Hall of Ocean Life, ela
puxou-me para o lado, para as sombras de um pilar de mármore gigante.
– Ouve – disse ela, apertando a minha mão –, eu agradeço-te muito por
teres vindo esta noite, e não quero tornar as coisas constrangedoras.
Semicerrei os olhos, a minha mente a laborar rapidamente, tentando
perceber o rumo da conversa.
– Mas acho que tu e eu provavelmente somos melhores como amigos. –
Ela olhou para mim, e aguardou uma resposta. – E acho que tu também
deves sentir-te da mesma maneira?
Eu sentia-me de facto da mesma maneira. Exatamente da mesmo
maneira. Mas este anúncio, aqui, não era o que eu estava à espera.
– Na verdade, concordo contigo. Sim – disse, processando a minha
surpresa. – Eu acho-te incrível, mas não estou… – Não estou aqui, queria
dizer. Mesmo quando estou contigo, na minha cabeça estou sempre com
outra pessoa.
– A sentir isso? – acrescentou ela, a sorrir.
Sorri-lhe também, apreciando a sua franqueza.
– Acho que essa é uma maneira de pôr a questão.
– Olha. – Ela colocou a mão no meu braço. – Eu não quero desperdiçar o
teu tempo, ou o meu, se isto não estiver a funcionar. E estava a pensar em
como te ia apresentar aos meus amigos esta noite, e percebi que não me
parecia correto dizer «namorado». E isso fez-me pensar.
Eu assenti com a cabeça.
– Que tal «um tipo com quem o teu colega de trabalho arranjou um
encontro e não deu muito certo»?
– Isso soa-me bem. – Ela soltou a mão e suspirou. Embora a conversa
fosse isenta de drama, ainda era embaraçosa. Eu desloquei o peso de uma
perna para a outra, e de repente os meus sapatos pareciam ser demasiado
pequenos.
Ela pressionou os lábios, o rosto sério.
– Desculpa se fiz com que esta noite se tornasse desconfortável para ti.
Entenderia totalmente se te quisesses ir embora.
– Não é, não quero. Eu realmente agradeço a tua honestidade. – Passei a
mão pelo cabelo e expirei.
– És um bom tipo, sabias? – Ela inclinou a cabeça, fez um sorriso gentil.
Eu encolhi os ombros e sorri.
– É o smoking.
– Bem, ainda estamos sentados juntos, por isso – enlaçou o seu braço no
meu –, vamos?
Enquanto caminhávamos pelo corredor, passámos por pequenas
exposições montadas ao longo do caminho: um pedaço gigante de jade
numa caixa de vidro, alguns fósseis imortalizados em pedra. Mas nada
poderia preparar alguém para o momento em que se entra no Hall of Ocean
Life, que era um lugar deslumbrante e alucinante a qualquer hora do dia. As
paredes estavam repletas de peças, mas o verdadeiro destaque era a baleia
azul em tamanho natural que pendia do teto da sala enorme, pairando sobre
todos e tudo por baixo.
O convívio ao jantar com os amigos da Serena foi tranquilo, e ela
reservou a pista de dança para um grupo de amigos assim que a banda
começou. Decidi ir espreitar o leilão silencioso no fundo da sala e vagueei
lentamente, passando por descrições tentadoras de cabanas no Vermont,
viagens de uma semana para degustação de vinhos no sul de França, um
Jeep Cherokee novinho em folha. Finalmente, parei à frente de uma lista de
uma vila toscana e um passeio pelo sul de Itália. A Franny devia conhecer a
Itália um dia, disse a mim mesmo. Ela devia experimentar esse seu lado,
em primeira mão.
Estava tão distraído a pensar nela a rodar massa com um garfo e a sorrir
para mim com um copo de Chianti que quase não ouvi o som de alguém a
suspirar melancolicamente ao meu lado. Pressenti algo nesse som, e virei a
cabeça para a esquerda. Tive de piscar os olhos para ter a certeza de que ela
não era uma ilusão, que os meus olhos não estavam a tornar ainda mais
estranha esta noite já de si estranha. Mas a escuridão abriu-se outra vez para
a luz e ela ainda lá estava.
A Franny. Sempre a aparecer quando eu menos esperava.
Ela reparou em mim, a cabeça inclinada um pouco para trás,
surpreendida.
– Hayes.
– Olá.
– Se vens para me salvar de mais um problema desastroso com a minha
roupa, vais ficar muito desapontado. Este vestido está basicamente colado.
– Os seus lábios vermelhos desenharam um ligeiro sorriso. Engoli em seco
e tentei parecer mais calmo do que me sentia.
– Bem, estamos os dois com sorte, então – disse eu, também a sorrir. – Só
tenho um smoking e gostava de o manter.
Brinquei com o meu laço e tentei subtilmente apreciar a Franny, da
cabeça aos pés. Ela estava a vestir um elegante vestido preto sem alças com
um corpete de cetim em cor marfim. Era elegante e intemporal, um colar
delicado como único adorno. O cabelo, a emoldurar-lhe o rosto, estava
preso com dois pequenos ganchos com pérolas, e os seus olhos pareciam
ainda mais brilhantes do que o normal.
– A mãe da Cleo, uma das minhas melhores amigas, é uma das
copresidentes da gala. Desde que o pai da Cleo morreu vítima de ELA, há
treze anos – contou ela, mesmo que eu ainda não lhe tivesse perguntado por
que motivo estava ali.
Eu assenti com a cabeça, e ela continuou, a falar rapidamente.
– É desta forma que a mãe dela consegui lidar com a situação, acho.
Tentando ajudar as pessoas.
– Isso faz muito sentido – afirmei, tentando parecer calmo. A última coisa
que eu queria era que ela percebesse como eu estava nervoso. Admitir à
Perrine o que eu sentia em relação à Franny significava que estes
pensamentos estavam agora expostos ao mundo, vivos. E isso parecia
aterrorizante.
– Vim também para estabelecer uma «rede de contactos». – Ela disse isso
desenhando aspas no ar. – Em princípio a mãe da Cleo vai apresentar-me a
algumas pessoas sofisticadas. – Moveu as sobrancelhas ao dizer isto. – E
talvez até à equipa que fez a decoração para o evento.
– Bem, espero que te consigas divertir um pouco também – disse, antes
de olhar de relance para a vila toscana. – O que estamos a licitar esta noite?
– Nós não estamos a licitar nada, porque acabámos de começar o nosso
próprio negócio e precisamos de ganhar dinheiro, e não de gastar, e também
não somos tão abastados como o resto destes tipos ricos da zona alta da
cidade – zombou a Franny, concluindo com um sorriso rasgado que fez o
meu coração saltar.
– Mas se estivéssemos a licitar… – Inclinei-me, não cedendo. – Itália?
Ela pousou os lábios na borda da sua taça de champanhe.
– Itália definitivamente. – Pensou durante um momento. – Eu sempre
quis ir lá, mas agora mais do que nunca, sabes?
Eu assenti, e olhámos um para o outro.
– Espero que vás lá um dia – disse eu finalmente. – Bem, hum… Vou
deixar-te voltar ao trabalho.
– Espera – disse ela, a sua mão de repente no meu pulso. – O que estás a
fazer aqui?
– Ah. – Eu nem sabia por onde começar. – Bem, sabes aquela mulher com
quem andava a sair?
– Aquela bonita que trouxe os tacos? – Eu não tinha a certeza se era o
meu cérebro a pregar-me partidas, mas podia jurar que havia um tom
mordaz na sua voz quando ela disse isto.
Soltei uma risada.
– Sim, essa. Ela está num dos comités do evento.
– Boa. Na verdade, eu encontrei-a no Central Park no outro dia. – A
Franny assentiu com a cabeça, um sorriso educado no rosto. – Este mundo é
pequeno.
– Ela também terminou comigo no segundo em que cheguei aqui –
exclamei, inclinando-me para ela com um sorriso, as mãos nos bolsos.
– Não acredito! – Desta vez, o braço da Franny voou para o meu peito,
dando-me um pequeno empurrão. – Oh, meu Deus, como é possível?
– Não é tão escandaloso como parece – respondi com uma pequena
risada. – Foi uma coisa de mútuo acordo. Mas, sim, ela acabou com as
coisas.
E então reparei: a mão dela ainda estava no meu peito. Quase
instintivamente, estendi a mão e cobri-a com a minha, segurando-a ali antes
que o meu cérebro acordasse. Ao perceber o que estava a fazer deixei cair o
meu braço para o lado outra vez.
– Bem, lamento, mesmo que não tenha sido muito importante. – Ela
cruzou os braços à frente do peito, depois deixou-os cair e apertou as mãos.
– Eu namorei um tipo uma vez que me disse que não pretendia ser
monogâmico enquanto estávamos… – Os seus olhos desviaram-se para os
meus e depois piscou-os, reconsiderando. – Tu sabes o quê, não importa.
– O quê? – perguntei. Eu gostava da forma como ela fazia isto, expelia
demasiada informação e depois tentava recuar. O seu cérebro e o seu
coração estavam sempre tão abertos, para que todos vissem. Eu morria de
vontade de saber o que ela estava prestes a dizer.
Ela abanou a cabeça.
– É TMI2. E eu já te contei demasiadas coisas sobre mim.
– Referes-te à história de Saint Marks? – inquiri, rindo ao recordar tudo o
que ela tinha dito naquela manhã no metro.
Ela gentilmente bateu na testa com a palma da mão.
– Eu esperava sinceramente que tivesses eliminado isso da tua memória.
– Nunca – disse eu. – De qualquer forma, vou deixar que regresses ao que
estavas a fazer, que não era a licitar coisas.
Mas ela não se moveu. Em vez disso, ficámos parados a olhar um para o
outro.
Continuei a falar, sem saber o que fazer a seguir.
– E vejo-te na próxima semana, certo?
Será que soei demasiado otimista? Demasiado ansioso? Não sabia como
conciliar os sentimentos que crepitavam dentro de mim, misturados com a
necessidade de os ocultar dela, para que não me considerasse desesperado
ou aborrecido. Ou talvez ela já tenha pensado nessas coisas. Era possível
que não gostasse da minha companhia. O meu cérebro estava a mil.
Mas então ela sorriu.
– Com certeza.

21 Too much information: demasiada informação. (N. da T.)


CAPÍTULO DEZASSETE
FRANNY

F ui ter com a Cleo o mais rápido que pude, para lhe contar os
pormenores do meu último encontro com o Hayes. Encontrei-a ao lado
dos seus irmãos, Sam e Wes, gémeos idênticos, que estavam num círculo de
foliões à beira da pista de dança. O Sam tinha o cabelo mais comprido e
penteado para trás, e o Wes nunca ia a lugar nenhum sem os seus óculos
escuros e grossos, por isso era fácil distingui-los.
A Cleo estava elegante e clássica como sempre: o cabelo liso e sedoso, e
o vestido de manga curta, justo, em azul-marinho, modelava cada curva do
seu corpo. Ela escolheu-o porque era impossível de manchar e podia usar o
seu sutiã normal com ele – no qual colocara um cristal para a deixar calma
durante a noite. Mesmo no seu deslumbrante traje de gala, a Cleo era
pragmática e transcendental, como sempre.
– Aí estás tu! – disse ela, passando um braço à volta da minha cintura. Os
seus irmãos cumprimentaram-me com acenos tímidos de universitários.
– Preciso de falar contigo – sussurrei ao seu ouvido, mas antes que
conseguisse continuar, a mãe dela puxou-me para um abraço.
– Franny! – disse a Miriam enquanto me beijava na face. – Deixa-me
apresentar-te a todos. Os gémeos já conheces, é claro. – Fiz um aceno na
direção do Sam e do Wes, que eram veteranos em Brown e na Universidade
da Virgínia, respetivamente, e começavam a parecer adultos de verdade
vestidos com smokings.
– Franny, o Sam vai começar um estágio aqui na cidade em breve e está a
tentar subarrendar um espaço, se souberes de alguma coisa diz – continuou
a Miriam. – Ele não quer viver comigo. Imagina.
– Mãe, tu sabes que eu te adoro mesmo que não queira ser o teu colega de
quarto – respondeu o Sam com um sorriso tímido. O Wes agarrou-o pelo
ombro e os dois seguiram na direção do bar. A Miriam voltou-se para mim
e para a Cleo.
– A Franny é uma designer de interiores que acaba de lançar o seu
próprio negócio – anunciou ela ao grupo. – E é incrivelmente talentosa.
A Miriam dirigiu-me um sorriso orgulhoso, e a minha postura endireitou-
se sob o seu olhar. Ela sempre me tratou e à Lola como filhas, acolhendo-
nos na família Kim e em sua casa como jovens universitárias desajeitadas
de Nova Iorque. Os Kim moravam no norte da cidade, em Rye, e nós
chegámos a ir para casa dela várias vezes ao longo dos anos.
A Cleo tinha-a informado sobre o meu novo negócio e a minha
necessidade de arranjar clientes, e agora ela começara a apontar para o
grupo, indicando nomes e cargos, que tentei reter.
Uma mulher chamada Ellen, com uns óculos cravejados de cristal e um
martini numa mão, inclinou-se para me cumprimentar.
– Eu vi-a na New York News – disse ela propositadamente. – Conheci o
meu marido quando estava a apanhar o metro A na Forty-Second Street. Ele
pisou acidentalmente no calcanhar do meu sapato (um mocassim atroz;
afinal, eram os anos setenta) e atirou-o para os trilhos do metro. Amarrou a
sua camisola à volta do meu pé para que eu conseguisse chegar a casa, e o
resto é história.
– Oh, meu Deus! – A mulher de cabelo prateado ao lado dela que se
apresentou como «Catherine Ratcliffe, mas toda a gente me chama Duffy»
riu-se. – Eu não fazia ideia de que o Bobby era tão romântico.
A Duffy então inclinou-se para o grupo, o rosto pronto para coscuvilhar.
– Eu e o meu primeiro marido conhecemo-nos na secundária. – Isto foi
dito com um revirar de olhos, e o grupo riu-se. – Mas conheci o Ray, o
número quatro, num encontro a quatro. Fomos com outras pessoas, mas
voltámos para casa juntos.
A troca de histórias continuou – histórias de primeiros olhares, beijos
ébrios e aniversários sem brilho – até que, de repente, a Ellen empurrou os
óculos para cima no nariz e estendeu a mão para agarrar o meu braço por
entre o grupo.
– O seu homem está aqui – disse ela, a boca arredondada em júbilo. – O
do metro.
A Cleo virou a cabeça e depois voltou-se para mim.
– Oh, meu Deus, Franny – murmurou no meu ouvido. – O Hayes está
aqui. Tipo, mesmo atrás de ti.
Girei para fora do alcance dela para observar e, realmente, o Hayes estava
a andar na nossa direção.
– Olá, outra vez – disse ele, oferecendo-me um pequeno sorriso enquanto
brincava com a manga do casaco.
– Olá – disse eu, sentindo a mesma vertigem nervosa a borbulhar no meu
estômago que surgiu quando pousei os olhos nele há pouco.
Ele virou-se para a Cleo.
– Acho que ainda não nos conhecemos. Hayes Montgomery.
Ela apertou-lhe a mão estendida.
– Cleo Kim. Prazer em conhecer-te. Ouvi falar muito de ti. Obviamente.
Ah, e esta é a minha mãe, Miriam Kim.
O Hayes cumprimentou a Miriam educadamente, mas antes que ela
pudesse responder, a Ellen interrompeu.
– Sou uma fã – disse ela, num sorriso cheio de dentes e charme. – É tão
bom ver que vocês os dois são realmente um casal.
O Hayes olhou para mim, passou a mão pelo cabelo e sorriu para a Ellen.
– Ah, bem, eu detesto desapontá-la, mas a Franny e eu estamos apenas a
trabalhar juntos, na verdade. Ela está a decorar as novas instalações da
minha empresa.
Isto gerou muito alarido. Ele riu-se e olhou para mim, um rubor a
aparecer na sua pele linda e lisa.
– Franny, eu, ah, queria saber se te apetece dançar quando a banda
recomeçar.
Os seus olhos, escuros e sérios, olhavam diretamente para mim. Para
dentro de mim.
– Oh! Oh. – O meu cérebro girou como uma roda gigante.
– Foi assim que o meu segundo marido e eu nos conhecemos. – Ouvi a
Duffy dizer à Miriam. – Numa gala como esta. Dançámos a noite toda.
Depois ele trocou-me por uma das sócias do seu escritório de advocacia.
– Claro – respondi, esforçando-me por permanecer calma e tranquila. –
Isso seria divertido.
– Volto dentro de alguns minutos, então – disse ele enquanto puxava a
ponta do seu colarinho.
– OK. – Assenti, expirando enquanto sorria. O meu coração estava
acelerado.
Assim que ele se afastou, virei-me para a Cleo.
– Era o que eu queria dizer-te há pouco. Eu vi o Hayes na mesa de leilões
e ele disse-me que a Serena terminou com ele hoje à noite.
A Cleo apertou-me o braço nu, os lábios apertados, a suster um sorriso.
– Mas isso é emocionante – disse ela.
– É? – perguntei, o meu cérebro acelerado a esmiuçar os encontros desta
noite com o Hayes até agora. – Talvez ele esteja apenas a ser educado.
– Ah, Franny. – A Cleo deu-me uma palmadinha na ponta do nariz com o
dedo indicador. – Às vezes, és muito ignorante.
– Desculpa, uma vez cheguei muito perto de me classificar para o College
Jeopardy!
– É por isso que é tão adorável quando estás assim tão intensa. – A Cleo
inclinou a cabeça e dirigiu-me um olhar amoroso. – Franny, já não
discutimos isto no parque no outro dia? Todas as provas estão mesmo à tua
frente. Une os pontos, por favor.
Ela fez uma pausa por um instante, olhando para mim com expectativa.
– Ele está interessado em ti. Não tenho razão?
Ela estendeu a conversa ao grupo, estavam todos a observar-nos, com um
aceno de mão.
As minhas entranhas retorceram-se.
– Hum, não, não está.
– Confia em mim. Dá para perceber que sim – disse a Miriam, assentindo
para a filha.
– Mrs. Kim, eu trabalho para ele agora. O Hayes está apenas a ser
educado.
– Então, passam muito tempo juntos – disse a Ellen. – Estão a conhecer-
se um ao outro.
– A falar sobre mesas e candeeiros – esclareci.
– E ele deve achar isso muito interessante, porque acabou de a convidar
para dançar. – A Duffy entrou na conversa, com as mãos arranjadas
cobertas de diamantes cuidadosamente cruzadas sob o queixo. – Prepare-se,
querida. Ele vem aí.
*
A pista de dança tremeluzia, iluminada num tom de azul-escuro e a luz
suave das velas. Eu sabia que mais tarde naquela noite – pelo menos de
acordo com a Cleo – as coisas iriam ficar agitadas, com esta multidão de
CEO de fundos especulativos e banqueiros a dançar depois da meia-noite.
Mas eram apenas 21h00, talvez um pouco depois disso, e a banda estava a
tocar uma música suave tipo jazz, algo que se ouviria num café à hora de
um brunch. À minha volta, os casais dançavam mais juntos do que eu me
tinha apercebido do lado de fora. Não sei o que pensei que faríamos quando
concordei com isto – um número coreografado ao estilo dos anos de 1980?
–, mas não era dançar de rosto colado.
A mão do Hayes pressionou suavemente a parte inferior das minhas
costas, guiando-me através dos casais a conversar, muito juntinhos e grupos
de amigos a rir ao redor da sala, até chegarmos à beira da pista de dança.
Ele aproximou-se para dizer alguma coisa, mas a sua voz mal se ouvia
sobre o ruído da música.
– Queres conduzir?
Virei-me para olhar para ele e fui recebida com o sorriso mais malicioso
que já tinha visto no seu rosto. Espetei-lhe um dedo no ombro em
retaliação.
– Normalmente, sim, mas não faço a menor ideia de como fazer isso.
Começava a sentir algum pânico. Eu não conseguia lembrar-me da última
vez que tinha dançado um slow com alguém. No 2.º ciclo? No 9.º ano,
talvez? Claro, dançava em casamentos e em bares ou festas quando bebia
uma ou duas doses de tequila. Mas dançar mesmo, com a mão na de outra
pessoa, o braço à volta da minha cintura? Não havia uma única memória
disso na minha mente.
– Suponho que a tua mãe não te obrigou a dançar danças de salão na cave
de uma igreja no 5.º ano? – interrogou o Hayes com uma risada suave.
– Credo, não – disse eu a rir. – No 5.º ano, só me obrigavam a cortar a
relva.
– Bem, eu podia ensinar-te os passos mais simples – disse ele, agarrando
na minha mão –, ou – ele pousou a outra mão firmemente na curva das
minhas costas – podíamos apenas mover-nos, Miss Doyle – disse ele, e as
suas palavras borbulharam dentro de mim como se fossem um champanhe
verbal.
Eu nunca o ouvira dizer o meu apelido, e ouvi-lo nos seus lábios aqueceu-
me de dentro para fora, a sua voz rica e baixa. Ele mordeu o lábio inferior
enquanto olhava para mim – sem sorrir, a fitar-me. Os meus olhos
moveram-se da sua boca para o queixo, depois de volta para os olhos, que
ainda me fitavam. O meu corpo parecia uma slinky, uma mola maluca,
enroscada apertada, prestes a ser solta.
– Hayes?
– Sim? – Lá estava aquele sorriso suave outra vez, e aproximou-se mais
de mim.
– Achas que haverá uma altura em que as pessoas vão deixar de nos
reconhecer por causa do nosso momento muito desagradável no metro?
Ele afastou-se um pouco e olhou-me com perplexidade.
– Não o achei muito desagradável.
Eu abanei a cabeça.
– Isso é porque as tuas roupas não te traíram à frente do mundo inteiro.
– É verdade – disse ele com uma risada. – E há aqui um razoável número
de pessoas com mais de sessenta anos, por isso temos claramente alguns fãs
da New York News à espreita. Contudo, eles provavelmente não sabem o
que é o Instagram.
Estávamos tão próximos um do outro que eu conseguia sentir as suas
palavras a pousar na parte sensível do meu pescoço, logo abaixo da orelha.
Estava a ouvi-lo, mas também estava a imaginar como seria se os seus
lábios se aproximassem um pouco mais, até estarem pressionados contra a
minha pele.
– Se te serve de consolo – continuou ele – estou feliz por isso ter
acontecido. Quero dizer, por razões puramente egoístas, é claro. Fizeste um
ótimo trabalho no escritório. És literalmente uma boia de salvação.
– Obrigada – agradeci, radiante. Eu estava genuinamente orgulhosa de
como tudo estava a ficar. – Tem sido divertido.
– E a Perrine não teria conhecido a Lola. Eu nunca a vi tão feliz.
Eu assenti com a cabeça.
– A Lola também – exclamei.
– Não que eu retire algum prazer do que passaste no metro – disse ele. –
Mas isso também significa que posso dançar contigo esta noite.
Eu tive de desviar o olhar para o chão. Porque as palavras dele
arrebataram-me e reviraram tudo, e receava que ele pudesse vislumbrar isso
no meu rosto.
– Bem, a verdade é que – brinquei – fico melhor com este vestido do que
com o teu casaco.
Ele riu-se e descontraiu contra o meu corpo, e eu estava tão consumida
por aquela sensação que nem reparei que a música tinha mudado. E
novamente, minutos depois, começou a tocar outra. Lentamente, a cada
mudança de música, os nossos corpos aproximavam-se cada vez mais, até
que a sua respiração era um leve sopro na minha nuca, a minha face
pressionada suavemente contra a curva quente do seu ombro.
Eu estava plenamente consciente de como todas as células do meu corpo
se iluminavam contra o dele, e a sensação dos nossos corpos tão próximos
fez-me recuar no tempo, apenas alguns meses atrás, quando bati com as
mãos contra o seu peito, enquanto o metro balançava. Como me pareceu
seguro e firme, uma parede reconfortante onde me apoiar enquanto o
mundo ao meu redor girava no seu eixo. E agora senti isso de novo, as
coisas de repente a mudarem, e ainda assim aqui estava ele – algo estável a
que me agarrar. E assustou-me o facto de eu não me querer soltar.
*

Acordei no domingo de manhã com o corpo em chamas, o rastilho


acendera-se na noite anterior com a sensação da respiração do Hayes no
meu pescoço. Não conseguia ultrapassar a sensação dos músculos dele
através do seu smoking, e a ideia de como seria o toque daquela pele firme e
lisa contra o meu corpo sem roupas entre nós estava a torturar-me. Enfiei-
me debaixo das cobertas da minha cama, uma chávena de café por perto, e
reencenei cada momento, tentando recordar o brilho nos olhos do Hayes, a
sugestão ocasional das suas covinhas, o calor do seu corpo. E, depois, para
além disto tudo, as palavras da Cleo soavam como uma música em
repetição: «Ele está interessado em ti.»
A mão dele. Era ao que eu regressava sempre. A mão dele nas minhas
costas, o primeiro local em que eu o senti tocar-me, naquele momento no
metro. Ele tinha-a deixado ali, imóvel e firme, durante a maior parte do
tempo em que estivemos a dançar. Mesmo através do cetim do meu vestido,
conseguia senti-la ali, como se estivéssemos pele com pele. Mas houve um
momento em que ele começou a traçar pequenos círculos nas minhas
costas, e parecia tão descontroladamente erótico, como se a sua mão
estivesse entre as minhas pernas e não a passar pelo local onde eu tinha uma
pequena borboleta tatuada em azul-claro feita há dez verões.
Cerrei os olhos e abri-os bem, disposta a sair da minha fantasia. Tinha
uma série de mensagens da Lola e da Cleo por responder no meu telemóvel.
A Cleo recapitulou a noite de ontem e contou-nos sobre o belo estudante de
doutoramento da Columbia que conheceu numa festa mais tarde. Enviei
uma série de emojis de polegar para cima e de corações e, em seguida, pus o
telemóvel de lado. Havia outra coisa que eu precisava de fazer.
Inclinando-me sobre a ponta da cama, peguei no computador que estava
no chão e liguei-o. Já tinham passado semanas desde que aquela mensagem
da minha meia-irmã chegara à minha caixa de correio eletrónico. Não sabia
bem o que tinha acontecido ontem à noite que me impregnara de coragem,
mas cliquei na caixa de resposta por baixo da sua mensagem e finalmente
comecei a escrever.
A minha resposta foi curta, mas levei quase uma hora para escrever o que
queria dizer e clicar em ENVIAR. Eu esperava que o facto de responder à sua
mensagem me trouxesse algum sentimento de alívio, ou calma, mas em vez
disso senti-me totalmente aterrorizada. E se fui longe de mais? Muito
carente? Pouco simpática? E se ela decidisse não responder? Dera
finalmente o passo para me conectar com esta pessoa, que por sua vez me
conectaria com partes de mim que sempre foram um mistério. E agora
estava atormentada com a possibilidade da rejeição, a pensar que poderia
não chegar a conhecer este lado de mim mesma.
Alguém quer comer piza? Ramen? Algo simples e barato? Tenho uma
novidade sobre a irmã, disse numa mensagem para a Lola e a Cleo. Podia
matar dois coelhos com uma só cajadada hoje à noite: encher o meu
estômago e informá-las que respondera à Anna.
Estou com a Perrine!, respondeu a Lola. Remarcamos? Novidades sobre
irmã aqui?
Trabalho de inferno, foi tudo o que a Cleo escreveu. Remarca, pf, e quero
saber tudo.
Antes de responder, o meu alerta de e-mail deu sinal e passei num
instante para a minha caixa de entrada, assumindo que a Anna tinha
recebido a minha mensagem e respondido rapidamente. Em vez disso, o
meu coração saltou. Tinha uma mensagem do Hayes.
F–
Só para confirmar o prazo de entrega do frigorífico. Posso estar lá
para o receber, sem problema.

Não tinha nada de erótico, ou sedutor, ou sexy. Nenhuma menção em


relação à noite passada, ao facto de termos dançado, à forma como os
nossos corpos pareciam gravitar de forma natural à volta um do outro
sempre que estávamos juntos.
Fiquei furiosa. Um robô poderia ter escrito esta mensagem. Eu estava tão
irritada que nem reparei na forma como ele terminara o e-mail na primeira
leitura. Mas assim que o fiz, era tudo o que via.

Não vejo a hora de voltarmos a falar.


–H
CAPÍTULO DEZOITO
HAYES

E stava em pé de tronco nu na casa de banho, depois do duche, a tentar


barbear-me enquanto também olhava para o telemóvel, à espera que
chegasse outra mensagem da Franny. Andávamos a trocar mensagens de
texto, o que, estranhamente, parecia ainda mais íntimo do que vê-la
pessoalmente, e basicamente colei o telemóvel à mão para estar sempre
pronto quando outra mensagem chegasse. Normalmente, tentava ter algum
tempo livre sem dispositivos. Dormia sempre sem o telemóvel no quarto –
não havia muito equilíbrio entre a minha vida profissional e a pessoal além
disso, embora tentasse –, mas nas últimas noites ia para a cama com o
telemóvel na mão, ansioso por ver o que ela tinha escrito.
Estava a deslizar a lâmina pelo rosto quando o telemóvel vibrou, e movi a
mão tão rapidamente que fiz um corte no queixo.
– Ai! – encolhi-me. Mas isso não me impediu de agarrar o telemóvel com
a outra mão.
Então, deixa-me adivinhar, dizia a mensagem dela. Estás a decidir entre um
fato e… um fato para vestires esta noite.
Respondi com uma série de emojis, um rosto com a língua de fora e
depois 100, para completar. Ela tinha toda a razão. Passei um lenço de papel
pelo corte no rosto e depois escrevi.
Aviso, vão estar alguns repórteres na festa, escrevi numa mensagem para
ela. Talvez possamos divulgar o teu negócio.
Viste-me numa entrevista, respondeu ela. Tens a certeza de que é uma boa
ideia? LOL
Enviei um daqueles emojis a chorar de rir, mas depois de enviá-lo
pareceu-me um bocado infantil e embaraçoso. Será que ela ia pensar que
era estúpido? Urgh!, eu andava angustiado com as coisas mais estúpidas
estes dias. Alguma notícia da tua irmã?
Ainda não, mas é justo. Demorei semanas para lhe responder.
Andávamos a trocar histórias sobre as coisas que nos mantinham
acordados à noite – para ela, era a irmã. Nunca mencionou coisas de
trabalho, embora eu assumisse sempre que ela andava ocupada com o seu
próximo projeto. Para mim, a ansiedade por causa desta festa de
inauguração tinha andado a stressar-me durante toda a semana, encimada
pelos nervos devido às entrevistas que tínhamos agendado e a preocupação
de que pudesse ser um desastre social absoluto. E depois havia a minha
iminente viagem a Seattle, e o stresse de tentar expandir o nosso negócio
para a costa oposta.
A única coisa com que não andava nervoso era o nosso escritório em si. A
Franny tinha delineado um espaço acolhedor e convidativo. Mais
importante, parecido connosco. Nunca tinha pensado em como odiava as
paredes cinzentas do nosso antigo espaço, mas agora elas pareciam-me frias
e opressivas, e mal podia esperar para estar sempre neste novo mundo de
madeira, tijolo e luz. E a melhor parte de tudo, pelo menos na minha
opinião, era o jardim e o espaço exterior. Não era apenas uma parte do
escritório; era um espaço que eu partilhei só com a Franny. Ia sentir falta de
vê-la lá fora, a rir, com as mãos na terra, a dizer-me o que fazer. Estava a
preparar-me para me despedir dela, e depois dei-me conta de que talvez não
tivesse de o fazer.
*

– Por favor, não me olhes assim – disse para a Eleanor enquanto o nosso
Lyft parou no trânsito na Eighth Avenue.
– Desculpa, desculpa – disse ela, bebendo um gole de água com gás. –
Pareces estranhamente agitado hoje. Estás nervoso com a festa, ou porque a
Franny vai estar lá?
– Como é que sabes que eu estou nervoso? – retorqui, embora ela tivesse,
obviamente, razão. Eu estava nervoso com tudo, para dizer a verdade. Mas
especialmente por ir ver a Franny.
– Bem, eu convidei a Serena, para o caso de quereres dar-lhe com os pés
numa festa que tu estás a organizar – disse ela, com um brilho diabólico nos
olhos.
– Honestamente, não contaria com isso – afirmei, sabendo muito bem que
ela estava a brincar. – Além disso, as coisas ficaram bem entre nós. Na
verdade, eu convidei-a, mas ela está fora da cidade.
– Muito corajoso – disse a Eleanor com um olhar de admiração.
Saímos do carro mesmo à frente do nosso novo edifício, deslizando pelo
hall de entrada e subimos até ao quarto andar, onde o Tyler estava a dar
indicações às pessoas que carregavam as bandejas de carnes frias e queijo
que tínhamos encomendado de um pequeno negócio de buffet em Brooklyn.
– Uau – disse a Eleanor enquanto circulava pelo espaço. – Isto está
fantástico.
– Estou inclinado a concordar – declarou o Tyler, no modo organizador de
festas, bloco de notas na mão enquanto pairava sobre um prato cheio de
frutas e legumes organizados como as cores de um arco-íris.
Os membros da nossa equipa começaram a chegar, recém-saídos da pré-
festa que tivera lugar num bar ao fundo da rua. Os repórteres da Vogue e da
Architectural Digest também chegaram ao mesmo tempo que os fotógrafos
da revista New York e da Vanity Fair.
Pelo canto do olho, vi a Perrine e a Lola a entrar, de mãos dadas. E atrás
delas, a Franny, de lábios vermelhos, cabelo por todo o lado, braços
cruzados, rosto radiante. Vestia um género de macacão verde-oliva que
soube instintivamente que a Eleanor iria adorar. Fui ter com elas, de cerveja
na mão, tentando não parecer tão nervoso como me sentia por dentro. Eu
estava animado por vê-la, mas ainda não sabia como expressar isso, ou se
deveria sequer fazê-lo.
– Hayes-y! – gritou a Perrine quando me aproximei, que era a última
coisa que eu queria que ela me chamasse à frente da mulher em que não
conseguia parar de pensar.
– Perrine – respondi quando ela me agarrou com as duas mãos para me
dar um abraço. – Por favor, não me chames isso em público – murmurei
enquanto me inclinava.
Ela apenas riu.
– Olá, Lola – exclamei quando também se aproximou para me dar um
abraço. Parece que agora eu dava abraços.
– Hayes – disse ela, dando-me um leve beijo na face.
– Olá! – exclamou a Franny por detrás da Lola com um aceno.
– Franny, olá! – Inclinei-me para a frente e depois dei um passo atrás,
sem saber exatamente como cumprimentá-la. Devia abraçá-la também?
Seria de mais? Ou seria estranho se abraçasse toda a gente e ela não? Não
conseguia perceber qual seria o movimento certo. Por isso ficámos
simplesmente ali, a olhar um para o outro.
– Estou tão feliz que tu… – comecei, ao mesmo tempo que ela disse:
– Está incrível…
– Tu primeiro. – Fiz um leve gesto com a mão.
– Disse à Lola o quanto tens trabalhado para esta noite – disse ela com
um pequeno sorriso. – E está fantástico.
Eu abanei a cabeça.
– Nós literalmente nem estaríamos aqui se não fosse por ti, por isso…
– Bem, está ótimo – interveio a Lola, com um olhar de soslaio para a
Franny.
– Obrigado – respondi. – Estou feliz por terem vindo. – Olhei de relance
na direção da Franny. Ela estava radiante enquanto observava o espaço,
com as mãos nas ancas. Esta noite pertencia-lhe tanto quanto à Eleanor e a
mim.
– Bem, vamos deixar-te socializar – disse a Perrine. E com um revirar de
olhos cúmplice para a Lola e a Franny, murmurou sarcasticamente. – A
coisa que ele mais gosta de fazer.
A Franny lançou-me um olhar divertido e depois virou-se e seguiu-as até
ao bar.
A Eleanor aproximou-se e arrastou-me para um canto para uma conversa
de meia hora com alguns investidores bem conhecidos da área ambiental.
Tentei manter-me atento à nossa conversa enquanto também observava a
Franny pelo canto do olho: a Franny a tomar uma bebida e depois outra. A
Franny a pegar em dois miniburguers de cogumelos e a passar um para a
Lola com um sorriso. A Franny a conversar com o Tyler e a acenar com a
cabeça enquanto ele apontava para as diferentes partes do arranjo floral
gigante em cima da nova mesa de receção. A Franny.
*

Uma hora depois, ela estava ao meu lado, a conversar com a repórter da
Vogue.
– Vocês os dois têm uma história incrível – disse a repórter para o seu
iPhone, uma mulher chamada Alicia, com o cabelo rosa curto. – Podiam
contar-nos como se conheceram?
– O Hayes ajudou-me a sair de uma situação complicada no metro –
retorquiu a Franny, olhando para mim com um sorriso. – Então, era natural
que eu retribuísse o seu favor.
– Vamos apenas dizer que esbarrámos um no outro – disse eu, radiante.
Cada movimento que eu fazia parecia muito exagerado, muito óbvio, muito
esclarecedor do facto de que a Franny ocupava um lugar permanente no
meu cérebro. Tentei controlar isso durante muito tempo, por não querer
parecer tolo, ou insensato, ou muito interessado nela. Mas agora era
exatamente isso que queria fazer. Queria ser óbvio, deixar claro, não só para
a Franny, ou para mim, mas para o mundo: eu gostava dela.
– Certo – assentiu a Franny. – Gosto mais assim.
– E quando ficámos sem o nosso designer de interiores inicial em cima da
hora, a Franny pareceu uma escolha natural. Ela abraçou o projeto e deu
forma a este lugar em pouco tempo.
– Honestamente, este era um espaço de sonho para trabalhar. Quero dizer,
veja bem isto. – A Franny gesticulou com a mão e os olhos da jornalista
seguiram-na. – E o Hayes e a Eleanor facilitaram muito o processo. – Ela
disse isto ao mesmo tempo que dava uma palmadinha divertida nas minhas
costas, e quando retirou a mão eu queria agarrá-la e colocá-la de novo lá.
Ao contrário da nossa última entrevista juntos, esta foi simples. Divertida.
Passámos de totalmente fora de sintonia para nos sentirmos completamente
em sintonia. Eu nunca me senti assim com outra pessoa, e não estava pronto
para abdicar disso.
Mais tarde, a Eleanor e eu estávamos junto às janelas, a observar o
espaço.
– Devíamos tentar tirar uma fotografia com a Franny também. – A voz da
Eleanor estava no meu ouvido enquanto acenava para o fotógrafo da Vanity
Fair, que gesticulava para nós.
– Sim, eu estava a pensar que deveríamos agarrá-la.
– Mmm sim. – Ela assentiu. – Deve ser por isso que não paras de olhar
para ela.
A Eleanor semicerrou os olhos, um olhar intencional e cortante. Antes de
conseguir ripostar algo inteligente, o fotógrafo estava junto de nós, a
arrastar-nos para uma luz melhor.
– OK, olha – afirmei entre dentes enquanto sorriamos para a câmara. – Se
eu te contar tudo, prometes ser simpática só desta vez?
– Claro – disse ela, olhando para a frente enquanto o fotógrafo terminava
de fotografar, e depois serpenteava de volta para a multidão.
Virei-me para a Eleanor novamente.
– Eu gosto dela – disse eu enquanto mexia no colarinho da camisa, que
parecia ter encolhido dois tamanhos ao longo desta conversa.
– É isso? Gostas dela?
– Eu gosto dela e estou a pensar em convidá-la para jantar agora que ela
deixou de trabalhar para nós, sim.
– Bem podes exibir o teu charme e inteligência, porque eu acho que ela
está prestes a sair pela porta.
Segui o olhar da Eleanor pela sala, até onde a Franny estava a abraçar a
Lola.
– Merda – murmurei baixinho.
– Diz-lhe que queremos tirar uma fotografia com ela! – gritou a Eleanor
atrás de mim.
Abri caminho através da multidão enquanto observava a Franny
desaparecer em direção aos elevadores. Saí para a entrada, tentando andar
rápido o suficiente para alcançá-la, mas sem parecer um esquisito a correr
na sua própria festa. Mas quando lá cheguei, ela tinha desaparecido. Apertei
o botão, mas o elevador estava parado no primeiro andar e não parecia estar
a mover-se. Por sorte, tinha andado pelo prédio umas semanas antes e sabia
que a escada estava sempre destrancada para o caso de incêndio. Corri até
lá.
Quatro lanços depois, abri a porta diretamente para a rua. Podia ver os
seus caracóis, a balançar apenas a seis metros à minha frente. Tão perto.
– Franny! – gritei, colocando as mãos em concha no rosto para amplificar
a voz. Ela virou-se, olhando à volta enquanto tentava determinar de onde
vinha a voz. Fiz-lhe um sinal e, em seguida, corri devagar para onde ela
estava.
– Ei – disse ela, com um olhar confuso no rosto.
– Ia buscar-te para uma fotografia para a Architectural Digest – disse. –
Mas tinhas ido embora.
– Ah, não te preocupes. Fiz questão de falar com eles – disse ela. – Eles já
tiraram algumas fotografias.
– Oh – exclamei, tentando afastar a deceção da minha voz. – Boa.
Ela prendeu o cabelo atrás das orelhas.
– É só que eu não consigo fazer de falsa extrovertida durante muito tempo
– disse ela. – Podes não acreditar, mas por baixo disto – ela fez sinal com a
mão para cima e para baixo ao longo do seu corpo – esconde-se uma
introvertida secreta.
– Bem, eu sou apenas um introvertido direto, por isso entendo. – Apertei
a nuca com a mão.
– O espaço está incrível, Hayes – disse ela. – Estou muito feliz por ter
feito parte disto.
– Posso chamar-te um Lyft? – perguntei-lhe, sem saber o que dizer mais.
– Ou uma bicicleta?
– Eu vou a pé até ao metro – respondeu ela, o rosto brilhante. – Embora,
se quiseres, podes emprestar-me o teu casaco por via das dúvidas.
Eu ri-me. Gostava que pudéssemos fazer piadas com isto tudo agora, que
qualquer estranheza embaraçosa que pairasse sobre o nosso encontro inicial
se tenha transformado em algo relaxado, divertido. Íntimo, até.
E, contudo, neste momento, eu ainda não sabia o que dizer a seguir. Tudo
o que eu sabia era que não queria que ela se fosse embora. Eu queria fazer
qualquer coisa para que esta noite se prolongasse, para mantê-la aqui,
iluminada pela luz dos carros que passavam e pelos edifícios. Ela era toda
cor, uma pintura tão adorável que não conseguia parar de admirar.
– Bem – disse ela, ajustando a mala pendurada no ombro. – Boa noite –
concluiu sorrindo com doçura e erguendo as sobrancelhas – Hayes-y.
– Boa noite, Francesca – retorqui, cruzando os braços presunçosamente
sobre o peito.
Ela olhou para mim, sobrancelhas ainda erguidas, e soltou uma risada.
– O que é? – perguntei.
– Eu não estava à espera de Francesca – disse ela. – Surpreendeste-me.
– Bem, espero que não seja a última vez – disse eu, gaguejando
ligeiramente. – Que te tenha surpreendido. Ou que me tenhas surpreendido.
Ou que nos surpreendemos um ao outro? Não sei aonde vou com isto. –
Não conseguia encontrar as palavras certas para lhe dizer.
– Boa noite, Hayes – disse ela com um último sorriso. Fiquei ali enquanto
ela descia a West Thirteenth Street, perdendo-a para a cidade de Nova
Iorque mais uma vez.
Sentindo o peso da sua ausência no fundo do meu peito, virei-me para o
edifício e voltei para a festa. Ainda tinha pelo menos uma hora de trabalho.
Deixei a mão roçar a borda do edifício, sentindo o cimento frio contra as
pontas dos meus dedos. Qualquer coisa para me trazer de volta à realidade.
Assim que alcancei as portas que abriam para o hall de entrada, senti
alguém a tocar-me no ombro. Virei-me e vi a Franny, ligeiramente sem
fôlego. Ela expirou enquanto se aproximava, e ficámos frente a frente.
– Surpresa – disse ela, ainda sem fôlego.
Franzi a testa meio confuso e abri a boca para responder. Mas antes que
eu pudesse dizer uma palavra, os lábios dela ali estavam, macios contra os
meus, permanecendo pelo que pareceram anos ou uma fração de segundo –
era difícil dizer. O tempo também não parou, mas acelerou para a frente,
atirou-me para o espaço e de volta à Terra novamente. As pontas dos seus
dedos roçaram a minha cara, e a sensação da sua pele contra a minha
provocou-me um curto-circuito na cabeça. Agarrei o seu rosto, os caracóis
delicados a roçar os meus dedos.
Antes que o meu cérebro conseguisse acompanhar o meu corpo e
processar o que estava a acontecer, ela inclinou-se para trás com um grande
sorriso, os olhos a brilhar com algo selvagem. E sem uma palavra, correu
pela rua abaixo e noite adentro, deixando-me estupefacto.
CAPÍTULO DEZANOVE
FRANNY

– E spera, desculpa. Preciso que repitas essa história outra vez – exclamou
a Cleo do sofá, onde estava estendida, pauzinhos numa mão, embalagem de
bolinhos de massa na outra. – Disseste «Surpresa», e depois beijaste-o?
Eu enterrei o rosto nas mãos. Tinham passado vinte e quatro horas desde
que tomara a decisão de correr de volta e beijar o Hayes. Tinha sido rápido,
um vislumbre de pele, um salto do coração. Tão rápido que quase parecia
fruto da minha imaginação. Mas aconteceu. Eu fizera isso, e não tinha
deixado de pensar nisso desde então, com uma estranha mistura de horror e
emoção. Horror porque… – e se ele estivesse horrorizado? E emoção
porque, bem… foi emocionante. E entre todos os pensamentos de pânico,
estava a imaginar como seria voltar a fazê-lo.
A Lola guinchou e pontapeou-me com os pés descalços num movimento
sucessivo, como um gato a ser esfregado na barriga.
– Eu tinha bebido dois copos de prosecco – murmurei. – Vocês sabem que
o vinho espumante é um dos meus maiores inimigos.
– Oh, não culpes a bebida – disse a Lola. – Nós as duas já te vimos
mesmo tocada, e esta não foi uma dessas noites. Lembras-te do Halloween
em que nos vestimos todas de Spice Girls e tu curtiste com aquele Greg de
Wall Street naquela festa no loft do Gowanus?
A Cleo ergueu a cabeça.
– Oh, meu Deus, Lo, e tu que entupiste a sanita naquele after-party?
– OK, esqueçam que eu disse alguma coisa. – A Lola fez uma careta. –
Além disso, isto é sobre a Franny. A Franny a beijar o Hayes.
– Aaaah, e a gostar! – disparou a Cleo. – Lembram-se quando ela pensava
que ele era um idiota?
– Acho que ela disse «parvo» – exclamou a Lola, molhando um bolinho
de massa no molho de soja e vinagre. – Nunca acreditei. Tu ficaste
encantada no segundo em que ele te emprestou o casaco no metro.
A Cleo concordou do sofá.
– Uau, vocês são muito perspicazes – respondi sarcasticamente. – A sério.
Eu preciso de ligar para ele, certo? E garantir que ele percebe que foi
apenas uma coisa acidental de impulso?
Nenhuma das minhas amigas disse nada. Em vez disso, cada uma olhou
de relance para a outra.
– Eu consigo vê-las a olharem uma para a outra. Sabem disso, certo? –
Acenei as mãos para elas. – Estou literalmente a dois metros de distância de
vocês.
Olhei para o telemóvel pelo que parecia ser a quingentésima vez hoje. Até
agora, a única pessoa de quem tinha tido notícias fora a minha mãe, que me
enviou fotografias de possíveis arranjos florais para o chá de bebé da Ruby
no próximo fim de semana. Ignorei-a.
– Vou estar com a Perrine amanhã para fazermos ioga e irmos jantar –
disse a Lola. – Podia pedir-lhe para tentar obter algumas informações dele.
– Não! – disse eu e a Cleo ao mesmo tempo. A Lola riu-se.
– Grandes mentes – disse, inclinando-me para dar uma pequena
palmadinha na perna da Cleo.
– Esta grande mente está pronta para aquele Advil que me prometeste
antes – gemeu ela. – Odeio a minha menstruação.
– Honestamente, é uma maravilha que os nossos ciclos não estejam
sincronizados – disse a Lola.
– Bem, eu tomo a pílula, por isso precisam todas de se sincronizar
comigo – respondi, com um dedo apontado para o meu peito.
– Ei – disse a Lola, sentando-se. – Era suposto sairmos para jantar na
sexta-feira, lembram-se? Para que possam as duas conhecer melhor a
Perrine? O Hayes vai lá estar.
Oh, merda, certo. Ela já mencionara isto numa mensagem, e eu dissera
que sim. Agora o seu rosto estava tão ansioso que era óbvio que isto
significava muito para ela.
– Ainda vens, certo? Mesmo que as coisas com o Hayes estejam
estranhas?
– Claro – garanti-lhe. Levantei-me do chão e arrastei os pés até à casa de
banho, vasculhando a gaveta que dizia a mim mesma que precisava de
organizar. Finalmente, encontrei o frasco gigante de ibuprofeno genérico
enfiado ao lado do secador de cabelo e de uma caixa de tampões orgânicos.
Voltei para a sala, com o frasco na mão, quando reparei nas minhas duas
amigas sentadas de costas direitas e ligeiramente tensas.
– O que é? – perguntei.
– Vê o teu telemóvel – disse a Cleo rapidamente. – Recebeste uma
mensagem.
Olhei de relance para o meu telemóvel no chão, o estômago quase na
garganta. Olhei de novo para as minhas amigas, que me encaravam com
expectativa.
– Vocês leram, não foi?
– A mensagem estava toda ali, no ecrã. – A Lola franziu o rosto
desculpando-se.
– Legalmente, estamos bem, porque o texto revelou-se perante nós – disse
a Cleo com naturalidade.
– Não uses a tua licenciatura em Direito contra mim! – Abaixei-me e
peguei no telemóvel do chão, pressionando o botão home para ativar o ecrã.

Francesca, olá. Podemos conversar?

Fiquei a fitar o ecrã, elaborando a minha resposta na cabeça. Até agora,


tudo o que eu tinha era um «Sim». De repente, apareceu outra mensagem.

Caso não seja óbvio, utilizei «Francesca» porque tu comentaste que


eu usei o teu nome completo ontem à noite. Acho que sou eu a tentar ser
engraçado ou talvez até charmoso, mas não sou particularmente bom
nisso.

O meu rosto ficou vermelho, como uma placa de fogão no máximo.


Segundos depois, isto:

Vou parar agora.


Eu sorri, uma pequena risada que escapou dos meus lábios.
– Ai, meu Deus, o que é? – interrogou a Lola, a sua voz misturada com o
tipo de urgência que só uma melhor amiga que te ajuda com uma troca de
mensagens de texto pós-beijo pode possuir.
– Ele é de alguma forma ainda mais desajeitado com mensagens de texto,
o que é estranhamente encantador.
A Cleo recostou-se novamente nas almofadas atrás dela.
– É como se por ser tão bonito nunca tivesse de aprender competências
sociais.
Bebi um gole de água.
– Só estou preocupada por nos ter colocado aos dois numa posição
estranha. E, tipo, eu, a beijar o meu primeiro cliente. – Abanei a cabeça,
frustrada comigo mesma. Não conseguia perceber o que queria.
– Estou um bocado confusa – disse a Lola piscando os olhos. – Posso
dizer o que penso?
A Cleo deu-lhe um pontapé na brincadeira.
– Não! – repreendeu ela.
A Lola bufou.
– Está bem. Mas tu às vezes facilitas muito, Fran!
– Não, mas a sério. – Franzi o nariz, pensando nas coisas. – Abri o meu
próprio negócio. Não preciso de andar a beijar os meus clientes,
especialmente o primeiro. Eu devia usá-lo para referências, não o seu corpo.
– Isso é verdade – refletiu a Cleo. – Mas em tua defesa, tu conheceste-o
fora do trabalho. De uma forma totalmente aleatória e também cliché-ao-
ponto-de-ser-absurdamente-romântica. Por isso é justo que isto tenha
acontecido.
– Estou apenas a duvidar de tudo agora – disse eu, a roer uma unha, cheia
de nervos.
– E tecnicamente, já deixaste de trabalhar para ele. A festa foi ontem à
noite. – A Cleo inclinou-se para a frente, e eu conseguia perceber que ela
estava animada com esta solução. Resolver as coisas não era apenas a sua
especialidade; deixava-a eufórica.
Eu assenti com a cabeça.
– Estou só à espera do meu pagamento final.
– Então tens aí a solução. Desde que ambos concordem em seguir em
frente com algum tipo de relacionamento físico, estás safa. Tu podes, de
facto, usá-lo pelo seu corpo.
– Concordo – disse a Lola batendo palmas lentamente. A Cleo curvou-se
da maneira mais exagerada possível.
– Então, posso dizer a minha piada sobre posições estranhas agora? –
perguntou a Lola.
– Não! – gritou a Cleo, atirando-lhe uma almofada, que se desviou e foi
cair atrás dela.
O meu telemóvel soou outra vez, e saltámos as três. Olhei para baixo, à
espera de mais mensagens do Hayes. Em vez disso, era um número que não
reconheci.

Olá Franny, é a Serena!!! O Hayes deu-me o teu número. Eu gostava


muito de falar contigo para discutir a possibilidade de trabalharmos
juntas. Mudei-me há alguns meses e o meu apartamento precisa de uma
grande volta. Vivo num T2 junto ao Gramercy Park. Xoxoxo

– Ena, pá – exclamei com um grande suspiro, e li a mensagem em voz


alta para as minhas amigas. Ela morava numa das zonas mais exclusivas da
cidade, onde os residentes recebiam a chave de um parque privado.
– Uau, é como se ela tivesse um sexto sentido – divagou a Cleo.
– Isto é de loucos – disse eu, um desconforto a instalar-se nos meus ossos.
– E agora, vou andar com o tipo com quem ela namorava e depois vou
também decorar o apartamento dela?
– Sim. – A Lola olhou-me, confusa. – É exatamente isso que vai
acontecer.
– Não. – Abanei a cabeça. – Devo ficar na lista de namoradas do Hayes
Montgomery a seguir a esta mulher? Uma mulher sexy que pode dar-se ao
luxo de morar em Gramercy Park? Eu nunca deveria tê-lo beijado.
– Tenho a certeza de que o dinheiro vem da família. Ninguém da nossa
idade poderia pagar isso sozinho – retorquiu a Lola a resmungar, com um
revirar de olhos enquanto a Cleo me lançou um olhar sério.
– Franny, por favor, não fiques a comparar-te com ela outra vez – disse a
Cleo enquanto se aproximava. – Ele convidou-te a ti para dançar na gala,
lembras-te?
– Sim, depois de ela ter terminado com ele! Fui provavelmente alguém
que serviu para ele superar a sua desilusão amorosa. – Fechei os olhos para
pensar por um minuto. O meu rosto estava quente. Eu sentia-me tão tola.
– Se gostei de o ter beijado? Sim – disse finalmente. – Mas parece um
erro. E tenho de ser a minha própria chefe aqui, e a chefe Franny está a
dizer que uma relação cliente/designer é proibida.
– Mas um relacionamento Hayes/Franny não é – exclamou a Lola, com as
mãos no ar, como se fosse óbvio.
– Eu sei que não podemos dizer-te o que fazer… – disse a Cleo.
– Pois não – interrompi.
– Mas acho que é um erro não seguires em frente com ele – terminou ela.
A Lola concordou com a cabeça.
– Além disso, nós nunca chegámos a organizar um encontro a quatro –
declarou ela fazendo beicinho.
– Obviamente, deves fazer o que achares melhor – disse a Cleo,
parecendo resignada. – E nós vamos apoiar-te, independentemente do que
decidires.
– Ótimo – respondi, cruzando os braços à frente do peito. – Vou cortar o
mal pela raiz agora.
– Podemos pelo menos ajudar-te a elaborar a mensagem para ele? –
perguntou a Lola.
– Obviamente – retorqui, e reunimo-nos à volta do meu telemóvel.
Quarenta e oito minutos depois, cliquei em ENVIAR.

Olá! Fico feliz por falarmos pelo telefone, ou podemos encontrar-nos


amanhã em algum lugar, se quiseres tomar um café. Brooklyn Bridge
Park?

Passei quinze minutos a decidir se respondia ao seu comentário sobre ser


charmoso, mas decidi não o fazer. Era melhor definir este limite agora.
Mesmo que fosse fofo. E encantador. O que era.
Raios.
Alguns minutos depois, o meu telemóvel tocou: Era o Hayes.
– Oh, meu Deus, é ele – sussurrei para as minhas amigas.
– Ooooh, diacho – murmurou a Lola enquanto agarrava no recipiente de
panquecas de cebolinho ao mesmo tempo que a Cleo dizia:
– Porque estás a sussurrar?
Fiz-lhes sinal com a mão para se calarem.
– Olá – disse, tentando parecer despreocupada e como se não tivesse
passado quase uma hora a escrever um texto de duas frases com a ajuda das
minhas melhores amigas.
– Franny, olá – exclamou o Hayes, e a sua voz gentil atingiu
instantaneamente um ponto fraco dentro de mim.
– Olá – disse eu novamente.
– Pensei que seria mais simples pelo telefone.
– Claro – respondi, a minha voz mais animada. Mas senti uma pontada de
deceção por não poder vê-lo pessoalmente, o que não era nada do que eu
queria estar a sentir. Tentei ignorar. Agora não.
– Hayes, olha. Lamento muito por ter sido tão pouco profissional ontem à
noite.
Oh, meu Deus, soei ridícula. E ele soou… calado.
– É só que – afirmei rapidamente, desesperada para preencher o silêncio
horrível e humilhante – acho que devo continuar a ser profissional contigo
por enquanto, se isso faz sentido.
– Oh – disse ele, como se estivesse a tentar solucionar um puzzle. E
então: – Claro. Eu entendo perfeitamente. – O seu tom mudou rapidamente.
Agora ele estava no seu modo profissional.
Estaria aliviado? Não consegui perceber.
– Só porque, tu sabes, estou a tentar concentrar-me no trabalho e negócios
– acrescentei.
– Sim, é perfeitamente aceitável. E eu também. O trabalho e… isso tudo.
– Ah, tudo bem. Obrigada pela compreensão.
Ficámos ambos em silêncio, e quando ele não disse nada, eu acrescentei:
– Boa conversa.
Ouvi-o a rir, e estremeci. Porque digo sempre as coisas mais estranhas?
– Boa conversa, realmente.
– OK. Bem, tchau, Hayes.
Desliguei antes de ver como ele iria decidir dizer o meu nome.
– Urgh!, isto foi tão estranho – gemi, deixando a cabeça cair no meu colo.
– Eu realmente acabei de dizer «Boa conversa»?
A Lola ergueu-se do chão e apertou o meu joelho.
– Acontece aos melhores. Lembras-te da Gabi? Quando terminei com ela,
disse-lhe: «Continua a lutar pelo que é justo.»
– Bem, tanto faz – disse eu, a minha voz trémula. – Pelo menos isto já
acabou.
Pelo canto do olho, vi a Lola lançar um olhar para a Cleo, mas nenhuma
delas disse uma palavra.
Mais tarde, muito depois de elas terem ido embora, recordei o beijo da
noite passada, só mais uma vez. A sensação do seu fato nas minhas mãos, a
calma que senti por estar apenas encostada a ele, o momento em que me
virei para correr de volta para beijá-lo, suave e rápido, mas com uma
urgência inegável. Pensar nisto deixou-me assim durante toda a noite, a
analisar e a duvidar da minha decisão. A última coisa de que me lembro de
ter pensado enquanto adormecia era que tinha cometido um grande erro.
CAPÍTULO VINTE
HAYES

E ram 17h30, e o Sol ainda estava alto no céu. A minha mente devia estar
focada noutro lugar. Era suposto ir a Seattle dentro de uns dias, para
uma grande reunião de apresentação com possíveis investidores.
Precisávamos deles para desenvolver a empresa, e a Eleanor, uma
extraordinária vendedora, ia ficar em Nova Iorque por ordem do seu
médico. Cabia-me a mim tratar da apresentação oral e deixá-los
entusiasmados com a ideia de trabalharem connosco. Além disso, tínhamos
planeado várias visitas a possíveis espaços de escritório, juntamente com
reuniões com analistas, as primeiras pessoas que contrataríamos para
adicionar à nossa nova equipa.
Mas apesar de toda a loucura no trabalho, eu só pensava na Franny.
Tinham passado cinco dias desde que ela terminara as coisas, e antes de eu
sequer ter a hipótese de convidá-la para sair, seis desde que me beijara no
passeio, e aproximadamente noventa e oito por cento dessas horas passei
acordado a rever os nossos encontros na minha cabeça, reimaginando a
curva suave das suas costas sob a minha mão, o roçar do seu cabelo contra
o meu queixo, o calor da sua mão envolvida na minha.
Eu estava tão nervoso ao telefone com ela naquele dia que não consegui
dizer as palavras que queria dizer: gosto de ti. Estou feliz por me teres
beijado. Eu quero fazer isto de novo e de novo e de novo. Talvez o meu
silêncio a tenha afastado. Ou talvez ela não quisesse ter nada de romântico
comigo.
De qualquer forma, era algo que consumia tudo, esta vontade de apenas
colocar os olhos nela novamente, rebobinar as coisas para o início, começar
tudo de novo, antes da gala e do beijo. Regressaria ao momento em que ela
entrou na minha carruagem do metro. Afastá-la-ia da porta para que o seu
vestido não se rasgasse. Dar-lhe-ia o meu número, convidá-la-ia para uma
refeição como deve ser.
Mas também queria respeitar os desejos da Franny. Ela estava apenas a
começar o seu negócio; tinha de se focar em coisas importantes. Eu entendi.
E talvez o beijo dela fosse apenas uma coisa do momento, a mistura de
álcool, a festa e a energia da noite.
No entanto, eu ainda não tinha sido capaz de deixar de pensar nela, e a
agitação que sentia por ir vê-la esta noite estava a acelerar o meu coração.
Eu ainda queria desfrutar da sua luz, de qualquer maneira que conseguisse.
Talvez isso me tornasse ganancioso, mas preferia ter um pouco da Franny
do que nada.
Saber que estava prestes a vê-la fez-me andar mais depressa, e
ziguezagueei por West Village e o SoHo num instante até chegar à frente do
pequeno restaurante mexicano para o jantar para o qual a Perrine me
convidou com a justificação de «conhecerem-se uns aos outros».
– Hayes. – Virei-me rapidamente, preocupado que se demorasse mais
tempo, a voz e a pessoa a quem ela pertencia desaparecesse. Pisquei os
olhos só para ter a certeza, mas ela estava de pé à minha frente, as mãos
apoiadas nas ancas, uma das quais se projetava levemente. Vestia um
vestido floral azul-claro fluido que ondulava à sua volta. Parecia uma
criança contrariada, e eu adorei.
– Olá. – Tentei parecer casual e como um amigo, e não como alguém que
estivera ansiosamente a antecipar este momento durante a semana toda. –
Também estás adiantada, hein?
– Não recebeste uma mensagem? – disse ela, a testa franzida como se
estivesse a tentar montar um puzzle. – A Lola disse que ela e a Perrine
tinham de cancelar o jantar. Algo sobre as duas estarem com uma
intoxicação alimentar.
Eu assenti com a cabeça.
– Estou a ver.
– E depois a Cleo também foi convenientemente arrastada para alguma
emergência no trabalho.
– Hã-hã. – Eu assenti com a cabeça novamente e retirei o telemóvel do
bolso. De facto, tinha uma mensagem da Perrine. Desculpa pela mensagem
de última hora, mas estou doente e preciso de cancelar o jantar, era tudo o
que dizia. Levantei o telemóvel para a Franny ver.
– Uau. A tua prima é tão esperta como as minhas melhores amigas? –
perguntou ela, um olhar de incredulidade no rosto.
– Aparentemente – disse eu, ainda a juntar as peças. – Armaram-nos uma
cilada.
– Oh, grande momento. – A princípio, pensei que ela estivesse chateada,
mas então a cabeça da Franny inclinou-se para trás, e a risada mais linda e
ruidosa saiu dos seus lábios, que estavam delineados com aquele seu batom
de cor vermelha incrível. Só aquele som de pura alegria dela acendeu uma
faísca dentro de mim, e eu não pude deixar de sorrir.
– Estou honestamente impressionado – disse eu, passando as mãos pelo
cabelo. – Este não é o estilo da Perrine. Ela é muito menos óbvia a forçar as
pessoas a…
Estarem juntas, é o que eu queria dizer. Mas interrompi-me. Tínhamos
ambos concordado que esta coisa entre nós não ia a lugar nenhum, e a
última coisa que eu queria fazer era parecer que não tinha entendido a
mensagem.
– Oh, bem, isto é um clássico da Lola, por isso é melhor habituares-te. –
Ela disse isto com um sorriso afetuoso, e percebi o quanto adorava as suas
amigas. Era outra coisa que eu gostava nela.
Houve uma pausa, e naquele breve momento de silêncio, ocorreu-me. Eu
cometera um erro ao tentar convencer-me de que não queria que isto fosse
mais longe. Estava desesperado pela Franny. E gostava muito de como me
sentia sempre que estava perto dela. Como se o meu cérebro estivesse de
férias e todo o meu corpo fosse aquecido pelo sol.
– OK, então… – Ela fez um pequeno aceno de cabeça, como se estivesse
prestes a ir embora. Esta era a minha última hipótese.
– Espera – disse, a minha garganta de repente seca como areia. – Quando
falámos no fim de semana passado – as palavras ressoaram, cruas e
honestas – eu deveria ter-te dito como me sentia. Gosto de ti. Não consegui
deixar de pensar no nosso beijo.
A Franny ficou a olhar para mim.
– Deixa-me tentar outra vez – exclamei, clareando a garganta. – Em
primeiro lugar, respeito os teus limites profissionais e o teu espaço pessoal,
e honrá-los-ei totalmente. Mas gostava de ter sido mais sincero contigo
sobre como me senti depois de nos termos beijado. Eu queria que isso
acontecesse, e estou tão feliz por ter acontecido.
– Eu também estou feliz por ter acontecido – disse a Franny devagar, os
olhos fixos no meu rosto. – Eu só pensei que talvez te tivesse interpretado
mal, ou a situação. Não tinha a certeza.
Abanei a cabeça.
– Não interpretaste mal nada. E desculpa, devia ter-te dito como me sinto.
Só vim aqui esta noite porque queria ver-te. Espero que ainda possamos ser
amigos.
Ela assentiu, os seus olhos à procura dos meus.
– Mas também não te importarias se fôssemos mais do que amigos?
Eu ri-me. Parecia que os meus sentimentos eram tão óbvios que estavam
tatuados na minha testa. Claramente, precisava de aprender a expressá-los
em voz alta.
– Sim – disse com firmeza. – Sim.
Aproximei-me dela e vi como o seu peito descia e subia com a respiração,
enquanto passava os dentes, lentamente, sobre o lábio inferior. Eu conhecia-
a há tempo suficiente para saber que o seu cérebro estava a mil, a processar
cinquenta coisas diferentes que podia dizer-me, todas elas capazes de me
atravessar num segundo. Tudo o que ela me disse, independentemente de
serem as palavras mais bonitas ou as mais incisivas, queimou-me nas veias
como veneno. Ela era o meu veneno, para o bem e para o mal.
E depois vi. Aquela coisa que acontecia no seu rosto sempre que se
desenhava um sorriso. Sentia-me ridículo só de pensar nisso, mas não havia
outra maneira de descrevê-lo. Ela brilhava.
– Vamos tomar uma bebida? – disse ela finalmente.
– Ia adorar – disse eu. Era um alívio proferir estas palavras, expressar os
sentimentos.
– Não queres ir para casa e correr quinze quilómetros? – Ela estava a
provocar-me agora, e a sensação era incrível.
– Posso fazer isso amanhã de manhã. Posso até fazer isso de ressaca. –
Soltei um suspiro, deixei a língua correr sobre o meu lábio inferior.
– Eu acho que tu nem ficas de ressaca – disse ela, passando a mão
suavemente pela minha face e pelo meu queixo. Pelas suas palavras, ficou
claro que pretendia que fosse uma piada, mas o tom da sua voz era mais
baixo do que o normal, sério. – Às vezes, pareces sobre-humano.
– Eu juro-te que não sou sobre-humano. Apenas excessivamente
meticuloso e viciado na rotina. – Tentei dizer isto a brincar, mas senti-me
estranhamente constrangido. – Estou a assumir que ainda existe uma
reserva de jantar para o nosso grupo. Claramente, as nossas amigas estavam
à espera que a usássemos.
Ela piscou-me os olhos e depois, as suas pupilas arregalaram-se,
brilhantes. Algo no seu rosto atingiu um lugar tão profundo no meu íntimo
que eu não sabia que existia até muito recentemente. Ergui as mãos, sem
saber o que estava a fazer até que elas encontraram as dela, e ela
aproximou-as do peito, os seus dedos entrelaçados nos meus.
– OK, então – disse ela enquanto me puxava para mais perto. – Vamos
para aquela mesa.
CAPÍTULO VINTE E UM
FRANNY

A lívio. Tudo o que senti foi alívio. Que sensação estranha e inebriante.
Porque tinha eu resistido a isto desde o início? Era quente e fácil,
como o ar de verão lá fora. A primeira margarita desceu pela garganta
como uma ostra, suave e rápida e sem pensar. Pela segunda bebida, que
veio com o nosso jantar, as faces do Hayes estavam reluzentes e vermelhas,
a ponta da sua barriga da perna a descansar entre as minhas pernas debaixo
da mesa. Parecia elétrico e ousado, uma quebra das regras. Eram apenas as
nossas pernas, e o facto de se tocarem era totalmente classificado como G.
Mas sentir o contacto da perna dele por baixo do tampo de mármore
cinzento da mesa do café, enquanto as nossas mãos descansavam
castamente por cima, parecia mais erótico e obsceno do que qualquer coisa
que já tinha feito antes.
– Eu nunca vi o Grease. – O Hayes torceu o nariz, envergonhado.
Estávamos a trocar histórias, pequenos factos relacionados connosco e
com as nossas famílias. Alguns minutos antes, ele perguntara-me: «Qual é a
coisa que toda a gente fez, menos tu?»
Até agora tínhamos o seu «Eu nunca joguei golfe, mesmo que pareça que
sim» e eu ultrapassei-o com um «Eu nunca estive no Disney World e não
quero lá ir».
E agora, esta revelação horrível.
– O Grease – arquejei, com um horror exagerado – é um clássico.
Ele encolheu os ombros e bebeu um gole de cerveja.
– Eu sou um monstro, que queres que te diga.
– Conheces alguma das músicas pelo menos? – perguntei, realmente
horrorizada.
– Qualquer coisa summer romance, qualquer coisa at the high school
dance? – inventou ele, mexendo-se ligeiramente na cadeira, a dançar, numa
tentativa totalmente fracassada de cantar «Summer Nights». A visão dele
assim, com o botão de cima da camisa desabotoado, o cabelo ligeiramente
despenteado, a ponta de suor na testa, a ser tão descarada e
inconscientemente tolo, fez o meu coração saltar. Eu desatei a rir.
– Oh, meu Deus – disse eu entre risos histéricos. – És um desastre.
O Hayes também se contorcia, o sorriso mais rasgado que já vira. Ele
revelava um rosto inteiramente novo, um que era brilhante e juvenil. Isto
obrigou-me a um segundo olhar, como quando vemos alguém na rua que
pensamos que conhecemos e depois percebermos que não era essa pessoa.
Exceto que neste caso, ainda era ele.
– Provavelmente é por isso que o meu casamento acabou – disse ele,
agitando a sua bebida.
Eu fitei-o, espantada.
– Desculpa – disse ele. – Humor muito negro? TMI?
– Não, de forma alguma. – Estendi a mão sobre a mesa, e apertei-lhe o
braço. – Eu sei que estás a brincar, mas eu realmente não acho que sejas um
desastre.
Ele sorriu.
– Desde que o meu casamento acabou, a Perrine está constantemente a
tentar analisar o motivo por que os meus relacionamentos nunca duram
muito tempo. Cérebro de médica.
Passei um dedo pelo fundo do meu copo, onde a base encontrava a
madeira quente e manchada da mesa.
– E o que é que a médica concluiu?
O Hayes mexeu-se desconfortavelmente na cadeira e colocou um braço
sobre o peito, alongando-o com o outro.
– Ah, tu sabes, um diagnóstico que envolve a necessidade de me abrir,
trabalhar menos, tentar ser mais vulnerável.
– Bem – disse eu com desdém. – Ela é apenas uma cirurgiã. O que sabe
ela?
E com isto, o Hayes bufou e deu uma gargalhada tão forte que o casal
atrás de nós virou a cabeça para nos lançar um olhar de desaprovação.
Olhámos um para o outro com os olhos arregalados, zombando dos nossos
vizinhos, e ficámos sentados em silêncio durante um momento, a beber.
– E o que é que tu achas? – perguntei baixinho.
Ele ficou em silêncio durante um minuto, a olhar por cima do meu ombro
e depois novamente para mim.
– Depois do meu divórcio passei muito tempo a pensar que simplesmente
não fui feito para relacionamentos sérios. Mas ultimamente, tenho dado
conta que isso acontecia porque estava com as pessoas erradas. Claro que
sou parcialmente responsável por as coisas não correrem bem. Mas estou a
aprender a não ser tão duro comigo próprio em relação a isto.
– Foi isso que aconteceu com a Serena? – Mantive uma cara simpática
enquanto lhe perguntava isto, mas por dentro ainda sentia aqueles nervos de
não ser boa o suficiente.
– Oh, sim – assentiu ele – Nós não tínhamos nada a ver. Mas o que
percebi é que às vezes podes sentir-te mais seguro estando com a pessoa
errada do que encontrar alguém com quem realmente te sintas bem.
Ele olhou para mim e depois desviou o olhar, bebendo outro gole de
cerveja. Graças a Deus que ele não conseguia ver como o meu coração
troava no meu peito. Ele apontou o copo para mim.
– Esta foi muito séria. É a tua vez.
– OK, não faças julgamentos – afirmei. – Nunca comi gelato.
– Tu és meia italiana. – O Hayes olhou para mim intrigado, as
sobrancelhas franzidas. – Como é isso possível?
– Quando eu era criança, preferia picolés a gelado. Sorvete italiano,
lembras-te?
– Mas gelato. – Ele ainda estava horrorizado. – Nem uma vez?
– Não. – Eu abanei a cabeça. – Mas a família da minha mãe é irlandesa!
O Hayes inclinou o copo e bebeu o resto da cerveja.
– Vamos – disse ele, empurrando a sua cadeira para trás e pegando no
cartão de crédito que o empregado tinha deixado sobre a mesa.
Eu olhei para ele.
– Vais obrigar-me a ir comer gelato, não é? – Senti um sorriso a
esgueirar-se por trás dos meus lábios franzidos.
– Isto é urgente, Franny – disse o Hayes, cruzando os braços e olhando-
me de soslaio. – Estas são as tuas raízes! Não podes ser italiana e nunca ter
comido gelato. Isso é basicamente o mesmo que nunca ter comido piza.
– Tu nem sequer és italiano. – Lancei-lhe um olhar atrevido e
depreciativo. – Quem fez de ti uma autoridade sobre o que eu devo comer?
Ele inclinou a cabeça na minha direção, como se estivesse a tentar
descobrir se eu estava a falar a sério. Quando finalmente lhe mostrei a
língua, ele riu novamente, aquela gargalhada relaxada ainda tão
desconhecida para mim que me fazia sorrir sempre.
– Espera um segundo – disse eu, recostando-me na cadeira para fazer o
meu melhor olhar analítico. – Tu nunca comes açúcar. Qual é a ideia?
– Eu disse-te. – Ele estendeu a mão, e eu agarrei-a, deixando-o levantar-
me da cadeira. – Eu só gosto de guardar a sobremesa para ocasiões
especiais.
Ele apertou-me a mão e depois largou-a, e enquanto enfiava a carteira no
bolso de trás, assimilei as suas palavras. Ele esperava por uma ocasião
especial. Por mim.
Quinze minutos depois, estávamos numa fila dentro de uma padaria
italiana repleta de pequenas mesas de madeira e filas de biscoitos
perfeitamente alinhados atrás do balcão de vidro, um cheiro doce a flutuar
no ar. Homens idosos com chapéus de papel branco e aventais trabalhavam
rapidamente atrás do balcão, com expressões sérias nos rostos. O Hayes
olhou para mim com expectativa.
– Então? – perguntou, as sobrancelhas erguidas, as mãos abertas para o
espaço à nossa volta.
– Adoro – suspirei, dedicando um minuto a inspirar a mistura de
sobremesas doces com o cheiro persistente de café expresso.
Ele sorriu, revelando aquelas covinhas que faziam todo o seu rosto
brilhar.
– E – disse eu – tinha a certeza de que me ias arrastar para aquela
gelataria da moda em Ludlow, por isso estou agradavelmente surpreendida.
Ele estendeu a mão para um high five e eu em vez de bater na palma da
sua mão, estendi a minha e entrelacei os meus dedos nos dele. Talvez fosse
apenas coragem resultante da bebida outra vez. Mas o álcool estava a
desaparecer, e esse desejo que eu sentia de puxá-lo cada vez para mais perto
de mim parecia aumentar. As suas faces estavam ruborizadas, percebi, o
tom rosa a espalhar-se pelas suas covinhas. Mas se estava nervoso, não
deixou transparecer.
Os seus olhos seguiram as nossas mãos conforme as baixei entre nós e
inclinei-me para tocar o meu ombro no dele.
– Obrigada – sussurrei. As nossas cabeças estavam tão perto que eu podia
sentir o cheiro dele na sua camisa, aquela mistura amadeirada de champô,
desodorizante, roupa limpa, loção pós-barba: a vida de todos os dias. Era
um cheiro que nenhuma garrafa poderia conter. Era puramente ele, um
aroma que tinha flutuado por mim tantas vezes, mas que só agora parecia
permear o ar ao meu redor.
Uns minutos mais tarde, estávamos do lado de fora, copos de gelato na
mão e uma pequena caixa de biscoitos pignoli quentes na minha mala.
– Vamos caminhar? – perguntou, e eu assenti com a cabeça entre
colheradas nas duas bolas de pistácio e chocolate, empilhadas no copo.
– Não vais perguntar-me o que acho do meu primeiro gelato? – perguntei,
a brincar com a colher na minha boca.
– Não, estou bastante confiante de que já o adoras – disse ele. Empurrei o
meu ombro para o seu lado, mas não disse mais nada. Ele tinha razão, é
claro. Ele parecia ter sempre razão. Idiota.
*

Entrámos no centro de Nova Iorque, passámos por parques iluminados,


por jogos de futebol noturnos e cafés a transbordar de casais e grupos a
desfrutar da magia de uma noite quente na cidade. Esta era a minha hora
preferida do dia em Nova Iorque, as horas antes da meia-noite, quando
todos na cidade ressurgem depois do trabalho, e de uma semana de stresse,
para comemorar a sexta-feira na escuridão. De alguma forma, a cidade
parecia ainda mais brilhante e movimentada à noite, cheia de energia, uma
gigantesca onda de vida com cafeína. Antes que percebêssemos, estávamos
em frente à Câmara.
– Este é o meu edifício preferido em toda a cidade. – A voz de Hayes
estava cheia de reverência.
– Estava à espera de algo mais moderno, ou minimalista, vindo de ti –
refleti. – Eficiente em termos energéticos. Painéis solares. Devo continuar?
– Não, obrigado. Já provaste o teu ponto.
Ele deu alguns passos à frente.
– Muito seriamente, porém – disse ele – noutra vida, quase me tornei
arquiteto, e quando estava a decidir se abandonava ou não a minha carreira
financeira e me candidatava à pós-graduação, costumava vir aqui sentar-me
no parque apenas para observar.
Ele apontou para os pináculos do edifício; pareciam dedos que
mergulhavam na escuridão do céu noturno.
– Adoro o facto de este edifício ser uma relíquia que parece durar
enquanto tudo à sua volta muda – acrescentou. – Para mim, esta dicotomia
representa Nova Iorque, em poucas palavras. Tudo muda e, de alguma
forma, tudo permanece igual.
Tentei ver o que ele via; era lindo, claro, mas só era mágico para ele. Não
me importei. Não disse isso em voz alta, mas esta era a minha Nova Iorque
em poucas palavras: aquelas coisas especiais que partilhamos apenas
connosco, os tesouros cujo brilho só nós podemos ver. As esquinas banais
ou os cafés sem nome que possuíam mundos próprios.
– O que fazias depois de ficares sentado a olhar para um edifício? –
perguntei.
– Corria toda a extensão da ponte de Brooklyn e voltava, e depois corria
até ao meu antigo apartamento em East Village. – Ele riu. – Tive muito
stresse para queimar naquele ano.
Eu assenti com a cabeça.
– Fixe.
– Franny. – Ele riu-se e fez um olhar de descrença. – Não me digas.
– Já passei lá muitas vezes de carro! – exclamei, sabendo exatamente
aonde ele queria chegar.
– Mas tu – ele abanou a cabeça, exasperado – nunca a atravessaste a pé.
Encolhi os ombros e fiz uma careta.
– É algo muito turístico.
– Meu Deus. – Ele passou os dedos pelo cabelo. – E vives aqui há nove,
dez anos?
– Doze – confessei com uma careta. – Se contar com a faculdade.
– Doze?! – Ele ergueu as mãos para mim e ficou de boca aberta.
– Vais ficar realmente horrorizado com isto, mas o meu apartamento dista
apenas alguns quarteirões da ponte.
– Franny, não! – Eu nunca o vira tão animado, e isso fez-me sorrir.
– Olha, eu atravessei a ponte Williamsburg de bicicleta uma vez –
declarei, erguendo as minhas mãos na defensiva. – Estive no Cloisters. Sei
onde comer a melhor salada de peixe branco da cidade. Não sou um
verdadeiro monstro.
– OK, bem, tens mais meia hora?
– Eu tenho a noite toda – respondi, os meus olhos brilhantes, as minhas
palavras obviamente sedutoras. Demorei um segundo para tentar lembrar-
me de meses atrás, quando ele me pareceu tão arrogante e repugnante
naquele programa matinal da NYN. Como é que este lado dele não se
tornou evidente desde o início? O meu cérebro esforçou-se por recordar
exatamente o que tinha achado tão horrível nele.
– Perfeito – disse ele, puxando-me pelo pulso. – Vamos lá.
Atravessámos a Fulton Street até ao passeio que nos levava ao início da
ponte. Embora fossem quase onze horas, havia pessoas em bandos à nossa
frente, a aproveitar o calor interminável do dia. As tábuas de madeira do
passadiço estendiam-se pelo que parecia uma eternidade, com o ocasional
ciclista a acelerar entre a multidão daquela maneira descomplicada que
apenas um nova-iorquino em cima de uma bicicleta possui.
Subimos, subimos, subimos, os edifícios ao redor da orla de Manhattan a
erguerem-se ao nosso encontro. Quanto mais caminhávamos, mais perto a
Estátua da Liberdade parecia estar, quase como se estivesse a espreitar ao
virar da esquina, saindo para nos cumprimentar. À nossa esquerda, um
metro da linha Q atravessava a ponte de Manhattan. Embora a cidade
parecesse uma sopa quente, uma brisa fresca passou por nós, e os sons das
pessoas à nossa volta criavam uma cacofonia calmante de ruído branco. Era
estranhamente meditativo, e eu perguntei-me se o Hayes também sentia
isso. Após cerca de quinze minutos de caminhada e ziguezagueando entre a
multidão, em silêncio, ele pousou a mão no meu ombro.
– Queres sentar-te por um segundo? – perguntou.
Eu concordei e segui-o em direção a um banco que estava,
milagrosamente, vazio. Mesmo estando com uns Converse, os meus pés
estavam estafados e soube-me bem estar sentada. À nossa frente, uma
adolescente com uns ténis de plataforma posava com os braços esticados
por cima da cabeça, a saltar no ar, enquanto a sua mãe tirava uma
fotografia. «Deixa ver?», perguntou ela, tirando o telemóvel da mão da
mãe. Demorei um segundo a registar, mas então percebi exatamente o que
ela estava a fazer: a pose da Serena, aquela com o hashtag, que os seus
seguidores imitavam.
Ao pensar na Serena, regressaram todos os sentimentos de insegurança
habituais aos quais costumava agarrar-me, mas o meu coração deteve-se e
descartou-os. A Cleo, naquele dia em que encontrámos a Serena no Central
Park, dissera algo como «Tu és todas essas coisas e muito mais». Era
verdade, e estava na altura de me permitir acreditar nisso.
Olhando para o porto à nossa frente, senti uma estranha sensação de
calma tomar conta de mim. Muitos dos últimos meses foram cheios de
tensão e, ainda assim, neste momento, eu estava em paz. Estava à procura
do meu telemóvel dentro da mala para tirar uma fotografia da ponte quando
reparei que tinha um novo e-mail. Abri-o, só para ter a certeza de que não
era algo relacionado com o trabalho. Quando vi quem era o remetente,
arquejei.
– O que é? – O Hayes mexeu-se no banco para olhar para mim.
Fiquei ali sentada a ler em silêncio durante um segundo.
– A minha meia-irmã em Itália respondeu-me – disse eu finalmente, ainda
sem tirar os olhos do telemóvel, onde estava a reler cada palavra. – Oh, meu
Deus. – Agarrei o braço dele animada, como se fosse a Lola ou a Cleo. –
Ela também enviou algumas fotografias.
A expressão no rosto do Hayes era totalmente paciente.
– Queres partilhar o que ela disse?
Passei-lhe o telemóvel para que ele pudesse ler.

Querida Franny,

Que maravilha trabalharmos as duas em design. Estamos ligadas


para além do nosso ADN, ao que parece. Desculpa o atraso na
resposta. Tenho andado a viajar em trabalho. Gostavas de marcar
uma hora para conversarmos via videoconferência? O meu inglês é
muito melhor falado do que escrito. Anexei uma fotografia recente e
uma outra de quando eu era bebé, com o nosso pai e a nossa avó,
Giuseppa. Ela tem oitenta e oito anos e ainda vive na aldeia deles.

–Anna

– Uau – disse ele, devolvendo-me o telemóvel. – Como é que te sentes?


– Bem – respondi, e quase dava para sentir os meus ombros
descontraírem, relaxando pela primeira vez desde há uma eternidade. –
Muito bem, na verdade. Abro as fotografias?
– Claro – disse ele com entusiasmo. – Quero dizer, se quiseres, então
deves. Claro.
Cliquei no primeiro anexo, e um rosto apareceu, olhos escuros sorridentes
e caracóis como os meus, só que mais compridos. O Hayes inclinou-se
sobre o meu ombro.
– É estranho – murmurou. – É óbvio que são parentes. Mas ainda assim.
Eu sempre presumi que o meu cabelo vinha do meu pai biológico, porque
todos os outros membros da minha família tinham cabelo castanho fino.
Mas ver, e saber de verdade, era completamente diferente. A certeza
acalmou algo dentro de mim.
A fotografia seguinte tinha grão e era mais difícil de perceber, mas havia
uma mulher mais velha e baixa, com um lenço na cabeça, e um olhar
austero fixo na câmara. Ao lado dela estava um homem mais alto, com um
sorriso rasgado e cabelo preto grosso, mais comprido dos lados, um leve
mullet. Nos seus braços estava um bebé minúsculo, com o mesmo cabelo
escuro.
– A minha avó está com uma cara inexpressiva – brinquei, apesar do meu
coração acelerado.
– Parece que ela não atura tretas de ninguém – respondeu ele. – Lembra-
me alguém que conheço.
Ele disse isto dando-me uma cotovelada divertida, e eu senti uma onda de
autoconfiança.
– Gostava de poder conhecê-la. – As palavras ficaram-me presas na
garganta. Eu sabia que conhecer mais pormenores sobre a minha família
recém-descoberta seria algo intenso, mas ainda não estava preparada para a
emoção que despertou dentro de mim.
– Tens de ir a Itália – disse ele como se fosse algo que eu pudesse fazer
amanhã.
– Um dia – concordei. Embora eu nunca mais lhe tivesse falado disso,
tanto quanto sabia o Hayes ainda tinha a impressão de que o meu negócio
estava a prosperar, uma história de sucesso imediato. Eu sabia que acabaria
por ter de ser honesta com ele acerca disso. Mas, por agora, esta noite era
demasiado boa para estragar com os meus problemas de dinheiro.
– Pelo menos posso dizer à minha irmã que finalmente comi gelato, para
que ela não fique totalmente envergonhada de mim – afirmei.
– Tenho a certeza de que ela vai ficar muito impressionada – disse ele,
uma leveza na sua voz que combinava com o sorriso no rosto. – Já contaste
à tua mãe?
Abanei a cabeça.
– Eu não sei como ela vai lidar com isto. Com tudo isto – afirmei,
pensando nas outras coisas que lhe tinha escondido ultimamente. – Vou
estar com ela este fim de semana, mas não acho que seja o momento certo
para lhe contar.
Aconcheguei-me a ele, tão quente e convidativo. Podia sentir o peso do
que se estava a desenrolar entre nós, o reconhecimento tácito de que isto –
isto – era qualquer coisa. Éramos pessoas que partilhavam coisas, coisas
íntimas, mais profundas do que apenas beijos. Todas as minhas
preocupações, inseguranças e pensamentos de não ser boa o suficiente, de
repente pareciam tão sem sentido agora. Porque eu sabia que não havia
nada que se pudesse comparar a isto.
– Eu sei que é uma loucura nunca ter estado aqui – disse. – Mas,
honestamente, é exatamente isto que eu adoro nesta cidade. Podermos viver
aqui durante anos sem ter experienciado tudo. Que ainda existem surpresas.
Que ela ainda é…
Calei-me, à procura da palavra certa.
– Mágica? – sugeriu ele.
– Sim! – Dei-lhe uma palmada na perna, e ele riu-se. A sua nova resposta
que eu mais gostava de lhe arrancar.
O Hayes soltou um suspiro, esticando os braços até ficarem estendidos
atrás de nós, pousados na borda do banco e também suavemente contra os
meus ombros. Pele quente em pele quente no ar quente. O paraíso.
– Meu Deus, eu adoro esta cidade estúpida. – Inclinei a cabeça para trás,
ligando-me a ele com um toque muito suave, embora parecesse que estava a
ligar-me a uma tomada.
– Eu também – disse ele com um aceno de cabeça.
– Estamos a fazer aquela coisa? – perguntei-lhe, puxando os joelhos em
direção ao meu peito. – Estamos a ser turistas na nossa própria cidade?
– Claro que estamos – refletiu ele. – Mas acho que é bom olhar para cima
e não dar isto tudo como garantido de vez em quando. – Ele gesticulou com
a mão livre, acenando como um mágico para a cidade, o rio e o horizonte
que se estendia à nossa frente. Eu sabia exatamente o que ele queria dizer –
Nova Iorque pode ser avassaladora e envolvente, mas às vezes,
frequentemente, passamos por ela sem realmente a ver.
E então os seus dedos pressionaram o meu pescoço muito ao de leve,
como se dissesse «Isto também». O que enviou um choque para partes do
meu corpo que muitas vezes esquecia que existiam; conseguia sentir os
tendões das barrigas das pernas a ganharem vida. Atrevi-me a olhar para a
minha direita e captei um vislumbre dos seus olhos a enrugarem-se num
sorriso enquanto olhava em frente. Ele continuava a encontrar novas
maneiras de me enlouquecer, e eu não me importava com isso. Nem um
pouco.
CAPÍTULO VINTE E DOIS
HAYES

E stava a andar na corda bamba entre não querer que esta noite chegasse
ao fim e não querer que a Franny percebesse que eu não queria que esta
noite acabasse. Preocupava-me com o que ela pensava de mim, mais do que
queria admitir, e a ideia de parecer demasiado apressado ou desesperado, ou
chato – ou algo assim –, aterrorizava-me e levava-me a subjugar o meu
entusiasmo. Mas era quase meia-noite, e estávamos na Front Street, a tirar
fatias bem quentes de piza para fora de uma caixa e a enfiá-las na boca.
Tinha sido a vez da Franny ficar a suspirar de horror quando lhe disse que
nunca tinha ido ao Grimaldi’s.
– Deste-me um sermão por nunca ter atravessado a ponte de Brooklyn a
pé, e mesmo assim tens a audácia de dizer que nunca provaste a melhor piza
da cidade, que fica sob a ponte? Devias ter vergonha.
O seu horror foi merecido, mas compensei-a ao comer três fatias sem
hesitar. A fila em frente do Grimaldi’s tinha diminuído, e um dos
cozinheiros veio até à janela atrás de nós e virou a placa para FECHADO.
Racionalmente, eu sabia que deveria sentir-me exausto. As últimas horas
tinham sido preenchidas com comida, álcool e passeios. Mas eu estava
cheio de energia. Parecia que sempre que olhava para a Franny, o meu
corpo entrava em combustão espontânea ou disparava no ar.
Ela tirou a caixa agora vazia da minha mão sem dizer uma palavra e foi
até ao ecoponto azul na esquina, a familiaridade deste gesto enviou um
zumbido do meu coração para o meu estômago.
– Então – disse ela –, eu devia ir para casa.
Ocultei a minha deceção e assenti com a cabeça, abrindo a boca para
concordar com ela, talvez demasiado ansioso, que obviamente estava na
hora desta noite acabar.
– Queres acompanhar-me? – interrogou ela, interrompendo-me antes que
eu começasse a falar. Os meus olhos dispararam para os dela, que estavam
mais abertos do que o normal. – Não é longe daqui. Cinco minutos, no
máximo.
– Sim! – Eu soei muito ansioso. Controla-te, Hayes. – Sim, claro.
Cruzei e descruzei os braços e, em seguida, enfiei as mãos nos bolsos.
Desde quando é que as minhas mãos se tornaram tão desajeitadas?
– Mas, por favor, lembra-te de que eu vou continuar a dificultar-te a vida
por nunca teres atravessado a ponte de Brooklyn até hoje à noite – disse eu.
– É justo – disse ela, dando-me o braço. – Mas não estás feliz por eu ter
esperado para fazer isso contigo pela primeira vez? – perguntei.
Estava.
A Franny guiou-nos pela Everit, até virar à esquerda na Cranberry Street.
– A sério? – disse eu quando passámos pela placa da rua. – Cranberry
Street? Um nome tão peculiar que devia estar num filme.
– E está num filme. – Ela virou-se e olhou-me de forma sedutora.
Eu abanei a cabeça.
– Não faço ideia de qual seja.
– Hayes – disse ela, irritada, mas a sorrir. – Vamos. Falei no Grease, mas
este é um clássico da cidade de Nova Iorque.
– Hum… – Tentei mesmo pensar em algo. – Sozinho em Casa 2?
– Santo Deus, Hayes! – Ela soltou-me o braço e correu para o meio da
rua. – Quem sou eu?
Começou a andar para trás e para a frente, a pontapear o ar com o pé
direito.
– Uma Rockette? – perguntei, genuinamente perplexo. – Este é
literalmente o meu melhor palpite.
Correu de volta para mim, fitando-me.
– Hayes – disse ela, com um sorriso malicioso. – Para com isso.
Encolhi os ombros.
– Eu estou mesmo a tentar, mas agora fiquei confuso.
– Oh, meu Deus, Hayes, preciso que venhas comigo.
Ela agarrou-me na mão e arrastou-me em direção a uma casa em madeira
azul-claro com um portão branco alinhado com a rua, e degraus pontilhados
de vasos de flores, que terminavam numa porta em vermelho-vivo.
– É esta a tua casa? – interroguei, maravilhado por parecer extremamente
agradável.
– Sim.
– Deves viver na única casa em Nova Iorque que tem uma cerca branca.
Ela tirou os olhos da sua mala, onde procurava o que presumi serem as
chaves de casa.
– Eu sei. É absurdamente perfeito, e nunca poderei mudar, mesmo que
não devesse estar a pagar tanto de renda agora – disse ela, colocando a
chave na fechadura do apartamento da cave, a porta a abrir-se.
– Anda – disse ela, conduzindo-me.
Eu estaria a mentir se dissesse que não tinha imaginado o apartamento da
Franny muitas vezes. Há semanas, vi-a a cuidar de plantas de forma tão
delicada, a suspirar por causa de candeeiros, e a olhar durante horas para
paredes vazias, o seu cérebro a criar de uma maneira que o meu nunca
poderia compreender. Eu via tudo em listas e colunas, números e equações.
Mas a Franny via o mundo em formas e cores.
Ainda assim, não estava à espera de ver um espaço tão luminoso,
especialmente um tão pequeno e cheio de cor. O seu apartamento era
praticamente do tamanho do meu novo gabinete. Segui-a enquanto ela
entrava e deixava cair a mala em cima de um sofá macio que parecia ocupar
toda a parede. Na janela de sacada, havia uma mesa cheia de livros rodeada
por plantas que certamente clamavam por toda a luz que devia derramar-se
ali todas as manhãs. Aproximei-me e pude ver os títulos: Rothko, Kahlo, um
intitulado simplesmente Uffizi Gallery. É claro que ela devorava livros de
arte.
No canto, havia uma majestosa, mas despretensiosa cadeira de couro
desbotada, ao lado de uma lareira coberta de luzes reluzentes suaves e
pequenos vasos de plantas suculentas. Baixei-me para examinar a lareira, e
descobri uma pequena televisão de ecrã plano lá dentro, escondida atrás de
uma tela dourada.
– Colocaste a TV dentro da lareira? – perguntei, maravilhado com a sua
engenhosidade.
Ela encolheu os ombros.
– Era o lugar mais fácil para colocá-la. Quando está por trás da tela, nem
te apercebes dela, e quando quero um fogo, procuro um no YouTube.
A cozinha era pequena, mas impecável – bancadas em madeira, um
pequeno lava-louça branco. Até mesmo o frigorífico parecia ter metade do
tamanho normal. Uma mesa de bar estava aninhada no canto com apenas
duas cadeiras, e por cima havia um pequeno jarro com tulipas brancas.
– A casa de banho? – perguntei.
– Aqui – disse ela, fazendo-me sinal para a seguir. A poucos passos
depois de passarmos a cozinha havia uma pequena casa de banho, com um
espaço que mal dava para uma pessoa. – Isto é tecnicamente um estúdio,
mas eu coloquei esta cortina, para que a cama ficasse num espaço um pouco
à parte.
A sala de estar era uma coisa, mas ver o seu quarto era algo íntimo,
pessoal, como bater à porta de uma casa e alguém vir abrir de pijama. Ela
abriu a cortina, revelando um recanto tão brilhante e acolhedor como o resto
da casa – uma cama coberta por um edredão estampado em azul, almofadas
amarelas, uma pequena mesa de cabeceira com uma lâmpada e um vaso
com uma suculenta. Um livro repousava na borda, e eu aproximei-me para
espreitar. Nora Ephron. Sorri. Tínhamos passado a noite a ver quem
suplantava o outro em relação a Nova Iorque, mas o livro de Ephron
impulsionou a Franny para o primeiro lugar.
A casa de banho: azulejo preto e branco. Olhei de relance para o espelho
enquanto lavava as mãos no pequeno lavatório. O que diabo estava eu a
fazer aqui, perto da 1h00? O que eu queria fazer – arrastar a Franny para a
cama e nunca mais de lá sair – debatia-se com o que eu sentia que devia
fazer – dizer boa-noite, pôr a cabeça lá fora, e chamar um carro para
regressar a Manhattan. Ir correr. Talvez ir ao escritório amanhã, preparar a
viagem a Seattle, ensaiar a minha apresentação oral.
Voltar ao normal.
Mas ao deslocar-me pelo apartamento da Franny, fui imediatamente
atingido pelo aroma a pipocas. Pipocas? Ela estava de pé junto do fogão,
descalça, a sacudir pipocas acabadas de fazer para uma tigela de vidro
grande.
– Cerveja? Água? – interrogou por cima do ombro.
– Hum, pode ser água.
Ela pegou em dois copos e passou-os para mim.
– A água está num jarro dentro do frigorífico – disse.
Lá se foi a minha grande saída.
– Sim, claro. E depois disso provavelmente regresso à cidade – exclamei,
admirando como ela, para nova-iorquina e solteira, tinha tanta comida no
frigorífico. E não eram recipientes de comida pronta – iogurtes suíços
empilhados e recipientes de vidro com legumes cortados.
– Boa tentativa, Terceiro – disse ela, virando-se para me passar a tigela. –
Eu tenho mais uma coisa para te ensinar antes de te ires embora.
Ela fez sinal com a cabeça na direção do sofá, movendo-se primeiro para
recolher a tela da lareira, e depois instalou-se a um canto, enroscando as
pernas debaixo dela e agarrando o controlo remoto que estava em cima da
mesa junto à janela de sacada. Segui-a, sentando-me do outro lado do sofá,
colocando as nossas bebidas e as pipocas em cima de uma pilha de livros de
receitas italianas que estavam no chão em frente ao sofá. Ligou a TV e
clicou no controlo remoto determinada até encontrar o que estava à procura.
– OK, vou dar-te uma última hipótese – disse ela, fitando-me. – Diz-me
que viste o Feitiço da Lua.
– Francesca Doyle – afirmei. – Perdoa-me, mas não vi.
– E tiveste a audácia de me dar sermões sobre a minha cultura, sem nunca
teres visto aquela que é possivelmente a maior história de amor de Nova
Iorque de todos os tempos? Estou sinceramente ofendida.
– Eu pensei que SubwayQTs era a maior história de amor de Nova Iorque
de todos os tempos. – Disse isto como uma piada, mas conforme as palavras
saíam da minha boca senti que foi tudo menos engraçada. Eram honestas e
verdadeiras.
– Nós estamos em segundo lugar mas muito próximo – disse ela com um
sorriso, passando a mão pelos caracóis. – Tens de acordar cedo amanhã de
manhã? – perguntou ela, apontando o controlo remoto para mim.
Eu abanei a cabeça. Tinha combinado ir correr com a Perrine às sete, mas
cancelara por mensagem quando a Franny se inclinara sobre a ponte a olhar
para East River. Não que eu soubesse que a noite iria acabar aqui, comigo
no seu sofá, tentando não mostrar o quão nervoso estava. Mas algo dentro
de mim tinha esperança de que a noite se prolongasse para sempre. E por
isso cancelara os planos que normalmente nunca cancelava simplesmente
baseado nessa sensação. Por causa de um talvez. Por causa de um e se.
Porque havia uma possibilidade acerca desta noite.
– Boa – disse ela. – Vamos ver o Feitiço da Lua.
– Feitiço da Lua – disse eu, a minha mente a esforçar-se por situar o
filme. – Com a Cher?
– Sim, com a Cher. Que outro Feitiço da Lua é que existe? – Ela agarrou
num punhado de pipocas e atirou algumas na minha direção.
– Ei! – Repeli-as defensivamente. – Alinho. Mas o que é que eu não estou
a perceber aqui?
Os olhos da Franny semicerraram-se.
– Hayes…
– O que é! – disse eu com uma risada.
– Esta não é apenas a representação mais importante de italo-americanos
num filme, como também ocorre nesta exata rua.
– Cranberry Street.
– Oh, meu Deus, sim, Cranberry Street. Porque é que às vezes és tão
lento?
Houve algo em mim que se contraiu quando ela me chamou lento, esse
receio de que talvez eu estivesse a interpretar mal as coisas. Mas depois ela
franziu o nariz e sorriu enquanto se estendeu na minha direção e recostou-se
nas almofadas do sofá, a tigela de pipocas entre nós. Tentei virar a atenção
para a TV quando ela carregou em PLAY, mas os meus olhos continuavam a
trair-me e a fixar-se nela. Cada inclinação para tirar pipocas aproximava-
nos mais, até que ela finalmente colocou a taça no chão, enfiou uma
almofada sob a cabeça, e deitou-se de modo que o seu cabelo roçava a
minha coxa.
Será que ela sentia que eu estava tenso? Que as células do meu corpo
enviavam sinais para aquele ponto na minha perna para se acalmar? Eu mal
conseguia manter a compostura, pensando se deveria simplesmente
perguntar: «O que eu acho que está a acontecer entre nós está realmente a
acontecer?» Ou simplesmente curvar-me e pressionar a minha boca contra
a dela, sem dizer uma palavra. Em vez disso, a Franny mexeu-se, olhou
para mim com um sorriso, e, em seguida, agarrou-me na mão que repousava
sobre as costas do sofá, tensa e elétrica, e trouxe-a para baixo para envolvê-
la na sua, os dedos entrelaçados nos meus.
Eu esperava que isso me afetasse, mas em vez disso os meus ombros
relaxaram. A sensação da minha mão na dela acalmou-me, como a sensação
de um pano frio pressionado contra a minha testa febril em miúdo.
Conseguia respirar novamente. Tracei círculos lentos na sua pele com o
polegar. Tudo no meu corpo abrandou, como se dissesse: É aqui que deves
estar. Fica.
E depois, para minha própria surpresa, imergi no filme que se desenrolava
diante de nós. Percebi por que razão era intoxicante ver a Cher e o Nicolas
Cage a gritar um com o outro por causa do amor. Era espalhafatoso e
apaixonado e revoltado, mas também era honesto e puro, e assistir aos seus
avanços e recuos fez-me pensar na Franny e em mim. Era complicado, mas
fazia muito sentido. Nós fazíamos sentido. A meio do filme, inclinei-me
para dizer à Franny, mas ela estava dobrada sobre si mesma e adormecera.
Eram quase 3h00 quando o filme terminou. A Franny ainda estava a
dormir no sofá, os nossos copos estavam vazios e havia pipocas dizimadas
no chão, as nossas mãos ainda entrelaçadas. Uma das suas pernas estava
estendida, e eu olhava mais do que gostaria de admitir para a curva da
barriga da perna, a sua pele suave. Sentia-me delirante, exausto, mas ainda
bem desperto. Desprendi com cuidado os nossos dedos e deslizei para cima
e para fora do sofá lentamente para não a acordar. Havia um cobertor de
malha cinzento estendido sobre a parte de trás do sofá, e coloquei-o por
cima da Franny. Peguei nos nossos copos e na tigela de pipocas, e levei-os
para a cozinha, deslizando os pés descalços ao longo do soalho velho para
não a acordar com o som da madeira a ranger.
Vê-la a dormir pareceu-me algo estranhamente íntimo e também
silenciosamente reconfortante, mas, depois, talvez um pouco estranho. Será
que eu ainda devia estar aqui? Olhei para a porta da frente; não havia
nenhuma maneira de trancá-la do lado de fora, por isso se saísse agora eu ia
deixar a porta aberta para o mundo. Ponderei o meu plano enquanto
enxaguava os copos e a tigela, colocando-os no escorredor da louça. Era
estranho se ficasse, mas deixá-la aqui com a porta destrancada
simplesmente não era uma opção.
Era isso. Eu ia ficar. Tirei o casaco e dobrei-o sobre uma cadeira. Depois
peguei numa almofada do sofá para colocar debaixo da cabeça, e deitei-me
de costas, o meu corpo no chão ao lado de onde a Franny dormia, morta
para o mundo. Fechei os olhos e pensei no Feitiço da Lua, e o que significa
lembrar que é possível apaixonarmo-nos.
*
– Hayes? – Houve uma voz, e uma mão quente, e algo duro contra as
minhas costas. Mantive os olhos fechados, determinado a continuar a
dormir.
– Hayes. – A voz era firme agora, a mão também, pressionando o meu
peito com um abanão.
– Mmm.
– Estás a dormir no chão da minha sala?
A voz acordou-me. Adormecera, e esquecera-me que tinha decidido
deitar-me até a Franny acordar para eu poder sair dali com ela a trancar a
porta em segurança atrás de mim.
– Ei, sim. – Abri os olhos e vi o rosto da Franny a espreitar da beira do
sofá, iluminada pela luz do sol.
– O que estás a fazer aí em baixo? – Ela inclinou-se e despenteou-me o
cabelo suavemente, afastando-o da minha testa.
Estiquei os braços para cima. Merda, as minhas costas estavam a dar cabo
de mim.
– Adormeceste durante o filme e eu não quis ir embora, porque a tua
porta só fica trancada com a chave. Decidi ficar até acordares.
Forcei-me a sentar. A longa e sinuosa noite finalmente atingiu-me. Tinha
dores quando me mexia. A Franny inclinou-se sobre os cotovelos e depois
virou-se para observar as suas pernas antes de voltar a olhar para mim.
– Tapaste-me com um cobertor?
Eu assenti com a cabeça.
– E ficaste aqui no chão em vez de me acordares e me fazeres trancar a
porta atrás de ti. Ou ires dormir para a minha cama.
– Sim. – Passei a mão pelo cabelo, que estava espetado em todos os
ângulos. Essas ideias nem me passaram pela cabeça. Bastou a menção da
sua cama para eu despertar, imaginando-nos nela. Sem dormir. Meu Deus,
senti-me ridículo.
– São – ela semicerrou os olhos para o relógio no seu braço – dez e vinte
e quatro.
– Não durmo até tão tarde desde a faculdade – disse, torcendo-me para
estalar as costas. – Normalmente por esta hora já corri dez quilómetros e
adiantei imenso trabalho.
– És uma máquina medonha – disse ela com uma risada.
– Desculpa ter acabado por ficar aqui. Eu vou para casa.
– OK, ou – a mão da Franny estava de repente em cima de mim, no meu
ombro, a tocar na ponta da minha camisa – podes ficar.
CAPÍTULO VINTE E TRÊS
FRANNY

– F ico. – A voz do Hayes denotava insegurança, e o seu tom fez-me


perceber a gravidade do que acabei de sugerir. Foi por esse motivo que
continuei a prolongar a nossa noite, uma e outra vez. Eu não queria que o
nosso tempo juntos acabasse. Eu não estava pronta para ele ir embora;
queria a sua mão na minha por mais algum tempo.
– Sim – disse eu. – Podíamos tomar café, ir ao mercado de produtores.
Aproveitar o dia?
E então dei-me conta: eu estava a empatar. Estava a protelar porque sabia
onde é que isto iria acabar. E, meu Deus, gostava de vacilar neste ponto,
naquele momento em que estás amarrado e imóvel na borda, prestes a saltar
do avião. Esta sensação, por vezes, era melhor do que a queda real.
– Café – disse ele. – E bagels?
– Ah, bagels com toda a certeza.
Tirei umas calças de ganga e um top da minha gaveta e arrastei-me para a
casa de banho, onde limpei o rosto com uma toalhita para retirar a
maquilhagem e escovei os dentes. Olhei-me no espelho e lembrei-me de
como, apenas há alguns dias, dissera ao Hayes que não queria que
acontecesse algo entre nós. Percebi agora que estava com medo, e tinha
sido mais fácil pôr um ponto final nas coisas do que efetivamente dizer sim
ao que desejava. Não sei se foi o gelato, ou o luar, ou a magia da ponte de
Brooklyn, mas em algum lugar sobre o East River eu decidi: talvez, para
variar, fosse bom escolher exatamente o que eu queria. E o que eu queria
era o Hayes.
– Prometo-te que vale a pena a caminhada até à Court Street por estes
bagels – disse enquanto caminhávamos pela Henry Street, passando pelas
lojas de bagel menos dignas que ficavam mais perto do meu apartamento.
– Estás a tentar suplantar-me em Nova Iorque pelo segundo dia
consecutivo? – brincou ele, unindo descontraidamente os seus dedos aos
meus, fazendo a minha cabeça girar.
– Não estou sempre, Hayes? Ainda não percebeste isso?
Mais tarde, após termos devorado bagels suficientes (ovo e queijo para
mim, queijo creme e salmão fumado para ele), caminhámos em direção ao
mercado dos produtores com copos de café gigantes na mão. O ar ainda
estava um pouco frio e húmido, o céu nublado baixo e pesado com nuvens
cinzentas.
– Importas-te que leve algumas coisas para esta semana?
– Claro que não – disse o Hayes entre goles de café.
– Se tiveres de ir… – comecei. Não sabia bem como tinha começado este
tempo juntos, e definitivamente não sabia quando ia terminar.
– Franny, o meu dia está em aberto.
– E o trabalho? E as corridas de dez quilómetros? – perguntei, sentindo-
me consciente de que talvez ele tivesse coisas melhores para fazer.
– Essas coisas podem esperar. Nada pode ser melhor do que passar tempo
contigo.
Ele mordeu o lábio, sorrindo para mim. Era sempre assim tão romântico?
Tão suave e gentil, tão íntimo com os seus sentimentos? Algo nele havia
mudado. Durante a noite? Ou ao longo dos meses? Será que o Hayes
romântico esteve secretamente lá o tempo todo?
– Quando é que ficaste tão sereno? – perguntei tocando-lhe no braço. Ele
agarrou a minha mão e puxou-me em direção a uma mesa cheia de fetos.
Eu exagerei, como habitualmente, mas ainda consegui ficar dentro do
orçamento, trazendo framboesas e três quilos de pêssegos, e um recipiente
de cavatelli fresca, o tipo de massa que tanto gostava. Por mais que
estivesse a tentar economizar, era aqui que eu gostava de esbanjar. O Hayes
ofereceu-se para me ajudar a carregar as compras até casa e regressámos
pela Montague Street, para ver as montras ao longo do caminho.
Senti a primeira gota quando virámos na Hicks Street.
– Oh-oh – murmurou o Hayes assim que eu olhei para ele para lhe
perguntar se também sentira.
– Chuva?
– Acho que estamos prestes a ficar molhados.
– Será que é melhor correr? – perguntei, e um trovão retumbou em
resposta. Ainda tínhamos cerca de seis quarteirões pela frente.
– Consegues correr com os sacos das compras nas mãos? – perguntou ele.
– Posso tentar! – Mas no segundo em que o disse, parecia que tinham
ficado dez quilos mais pesados.
– Vamos avançando, então – disse o Hayes, voltando àquela pessoa
estranhamente calma e serena que eu sabia que ele era, imperturbável com
tudo. – Vamos molhar-nos quer corramos ou caminhemos. É inevitável. Já
está a acontecer. Acho que temos de aceitar isso.
As suas palavras ficaram a pairar entre nós enquanto atravessávamos
Pierrepont, quando o nosso silêncio foi quebrado por outro estrondo de um
trovão. Os céus abriram-se sobre nós e cobriram-nos por inteiro.
Eu gritei de tanto rir, e o Hayes ergueu os braços, com os sacos na mão.
Aceitando. Eram momentos como este que eu gostaria que se tornassem
virais, quando a alegria é tão pura e absoluta que simplesmente sai de nós
sem pensar.
Não valia a pena correr até casa, e por isso maravilhámo-nos com tudo: a
absoluta inundação à nossa volta, o crepitar do céu, a maneira como todos
os outros pareciam correr na tentativa de se protegerem. Mas ele tinha
razão. Não valia a pena tentar evitar o inevitável. Podias procurar abrigo,
mas não podias evitar a torrente. Mais cedo ou mais tarde acabarias por te
render à chuva.
À frente do meu apartamento, tirei as chaves de dentro da minha mala de
lona – encharcada como um trapo usado – e destranquei a porta, tirando os
sapatos.
– Caramba – disse eu, atirando os sacos para o chão.
– Pelo menos não preciso de tomar banho hoje – disse ele enquanto
pousava com cuidado os três sacos que estava a segurar e fechava a porta
atrás dele.
– Não, isto equivaleu a uma semana de banhos – disse eu, a sorrir.
Ele olhou para mim, também a sorrir, os seus olhos a examinar o meu
rosto.
– Estás encharcada – disse ele, a sua voz grave e baixa. Eu assenti com a
cabeça, peguei num pano da louça seco do balcão e dei um passo em
direção a ele. Parecia que o espaço entre nós ia explodir: outra chuva
torrencial, trovões sem fim, o crepitar ardente da luz.
Agarrei o rosto dele com as mãos, segurando-lhe o queixo com uma e
enxugando a testa molhada com a outra. Ele inclinou-se para a frente,
agarrando a minha cintura, as suas mãos firmes sobre as minhas ancas.
Suspirei, e toda a sensação no meu corpo acelerou onde as suas mãos me
seguravam, tão firmes, que se eu ficasse coxa, ele ainda conseguiria
segurar-me. Era tudo o que eu aprendi a gostar no Hayes num simples gesto
– o seu desejo constante de resolver as coisas, ajudar, manter a calma. A
todo o custo.
Havia um milhão de palavras que eu poderia dizer neste momento. Eu
podia fazer uma piada engraçada sobre o tempo, ou agradecer-lhe por ter
carregado todos aqueles alimentos, ou comentar sobre as suas roupas, mas
antes que eu pudesse abrir a boca, ali estava ele, os seus lábios nos meus.
Hayes Montgomery estava a beijar-me intensamente.
Atirei o pano da louça por cima do ombro, sem me importar onde caiu. O
meu cérebro foi para as compras por um segundo – Devo tirá-las do saco?
São perecíveis? – antes de me repreender por sequer pensar em fazer outra
coisa para além disto, neste momento. Isto era urgente, importante e, Céus,
o seu cabelo molhado sabia bem nas minhas mãos. A noite passada fora
tímida e exploratória, uma tentativa de introdução ao que poderia suceder.
Mas isto era frenético, necessário, desesperado. Eu empurrei-o para a frente
com o meu corpo.
– Temos de tirar estas roupas molhadas – murmurei entre beijos.
– Não tenho nada para vestir.
Os lábios dele colados no meu queixo, os dentes a roçarem o meu
pescoço, o meu ombro.
– Eu não quero que vistas nada. – Senti os seus dentes a beliscar com
mais força o meu pescoço em jeito de resposta, seguido pelo mais suave dos
beijos. Ele levou-me para a cozinha, guiando-me até o meu corpo ficar
encostado à bancada. As suas mãos moveram-se das minhas ancas para a
parte de trás das coxas, e levantou-me de uma só vez para a borda. Eu pus
as pernas ao redor das suas ancas, e ele chegou-se para mim, respondendo à
pressão do meu corpo contra o dele.
– Está tudo bem, Francesca? – perguntou, e eu quase implodi ali mesmo
ao ouvir a forma como o meu nome saiu da sua boca.
– Está tudo bem. Seria ainda melhor se fôssemos para a minha cama.
Isto era tudo o que ele precisava de ouvir. Levantou-me do balcão, os
meus braços em volta do seu pescoço, a minha boca também, o seu corpo a
cambalear para a frente.
– Cuidado com a cabeça – disse ele de forma protetora enquanto me
carregava pelo pequeno corredor.
Pôs-me no chão, e as suas mãos roçaram a borda do meu top. Depois ele
levantou-o e tirou-o. Tentei fazer o mesmo com a camisa dele, mas estava
molhada e pesada, e ficou presa na sua cabeça. Ele estendeu a mão para me
ajudar, e começámos os dois a rir. Agarrei nas minhas calças de ganga, mas
a chuva tinha-as colado ao corpo, e puxá-las para baixo exigia a força de
todos os músculos dos meus braços. Eu desabei na cama, as calças
enroladas nos joelhos.
– Hayes – exclamei. – Vou dizer-te uma coisa incrivelmente pouco sexy
agora, e espero que isso não dê cabo do ambiente.
– Qualquer coisa – disse ele. O seu rosto estava recetivo e paciente, e eu
soube naquele momento que não havia nada que eu pudesse dizer a este
homem que ele achasse desconfortável ou embaraçoso. Ele tinha visto a
minha espontaneidade desde a primeira vez que nos encontrámos, e ainda
estava aqui.
Além disso, o seu peito. Que raio, o seu peito. Eu tinha-me perguntado o
que estava por debaixo de todas aquelas camisas impecáveis. E ali estava a
resposta: músculos tensos e pelos escuros e macios, pele lisa. Se o peito do
Hayes já era a minha morte, talvez eu não vivesse o suficiente para vê-lo
totalmente nu.
– As minhas calças estão presas – disse eu, fazendo sinal para os meus
tornozelos. – Consegues, sabes, arrancá-las?
– Esta é a tua versão de conversas picantes, Franny? – Ele sorriu para
mim. Porra, ele era o máximo quando namoriscava.
Inclinei-me para trás na cama e levantei as pernas, e o Hayes tirou-me as
calças de ganga com um movimento rápido. As suas caíram mais
facilmente no chão, e ele pontapeou-as para o lado e depois subiu para cima
de mim, deslizando um joelho ao lado da minha anca.
– Olha – disse eu, olhando para ele, o seu cabelo húmido a cair para a
frente e a tocar na minha testa.
– Sim – respondeu ele, mantendo o meu olhar.
– As nossas roupas interiores também estão molhadas. Provavelmente
deveríamos tirá-las.
Ele assentiu solenemente.
– Eu ia detestar molhar a tua cama – exclamou ele. Juntos, deslizámos
para trás, as nossas cabeças nas almofadas, a sua mão a traçar uma linha
pelo meu braço, pelas minhas costas. Ele desabotoou o meu sutiã com um
movimento dos dedos.
– Uau – disse eu, tirando as alças dos meus ombros. – Só com uma mão.
– Eu sou bom com as mãos – disse ele, um sorriso torto a crescer no seu
rosto.
– Oh, meu Deus, quem és tu? – Eu ri-me ao mesmo tempo que lhe dava
um beijo na boca.
– Tramaste-me com essa – disse ele. – Mas também é verdade.
Eu puxei-lhe os boxers para baixo, depois deixei que ele os deslizasse
pelas pernas enquanto eu levantava as ancas e tirava as minhas próprias
cuecas lentamente, sabendo que os seus olhos estavam postos em cada
movimento que eu fazia.
Ele passou a mão pela barriga da minha perna e pela minha coxa, dando-
me beijos suaves na barriga.
– Tenho preservativos na gaveta – disse eu, indo direta à questão.
Ele olhou para mim, recuando, os nossos rostos afogueados.
– Estás bem com isto?
– É a melhor coisa que me aconteceu em muito tempo. – Coloquei uma
mão no seu rosto. – Mas se quiseres, podemos ir mais devagar. Fazer uma
pausa. Ir buscar um café ao Café New York.
– Oh, meu Deus – gemeu ele, lembrando-se do nosso desajeitado
encontro de café na NYN. – Por ti, iria. – Ele riu-se enquanto me beijava
suavemente, deixando a boca passar dos meus lábios para a minha testa,
para o meu pescoço e depois para o meu ombro. – O que achas – disse ele, a
voz ofegante – que aquela rapariga que nos tirou aquelas fotografias no
metro diria se nos pudesse ver agora?
– Acho que ficaria satisfeita por ver que tinha razão. – Eu movi as ancas
contra ele, a pressão do seu corpo, um puxão que fui incapaz de resistir. –
Que afinal podemos ser os QTs do metro.
– Posso chamar-te de «minha QT», Franny? – perguntou-me o Hayes
enquanto passava tão gentilmente a língua pelo meu mamilo, e os dentes
pelo meu peito de uma forma que fez com que todos os pelos do meu corpo
se eriçassem.
– Desde que, depois disto, prometas nunca mais dizer essa palavra –
exclamei, antes de soltar um gemido.
– Eu prometo – disse ele, movendo a boca para o outro seio, a língua
quente na minha pele, o meu corpo frio e cheio de desejo no segundo em
que o deixou. – Tu prometes?
– Sim. – Eu prometer-lhe-ia qualquer coisa desde que isso significasse
que ele nunca, nunca iria parar.
*

Franny: O que é que vocês fariam se eu dissesse que acabei de ter


três orgasmos.

Cleo: Com uma pessoa real ou com o teu vibrador?

Franny: Não foi só com uma pessoa real. Com o HAYES.

Cleo: Cala a boca!

Franny:

Lola: omgomg EU SABIA QUE ISTO IA ACONTECER

Franny: Sim, que conveniente vocês não terem ido ao jantar ontem à
noite. Belo plano.

Lola: MAS FUNCIONOU

Franny: Não contes à Perrine!

Cleo: Posso dizer ao tipo do Bumble que estou prestes a encontrar


para tomar um café?

Franny: Eu odeio-vos.

Lola: Vai pôr gelo na vagina, Fran!

Lola: Cleo, reporta-nos.


Cleo: Eu aviso-te se ele me parecer do tipo que pode ir aos três
orgasmos

Franny:

Franny:
CAPÍTULO VINTE E QUATRO
HAYES

Q uando abri os olhos de novo, estava sozinho na cama da Franny. O seu


quarto estava escuro, a chuva ainda caía lá fora. Sentei-me,
expulsando o sono dos olhos. O relógio na mesa de cabeceira marcava
18h03.
Espreitei sobre a borda da cama, mas as minhas roupas não estavam em
lugar algum. Havia, no entanto, uma T-shirt dobrada e um par de calças
pendurados precariamente na mesa de cabeceira ao meu lado com um post-
it em cima. «As tuas roupas estão a secar. Veste-me», dizia.
Estava a enfiar a T-shirt pela cabeça quando ouvi o piso de madeira a
ranger.
– Olá. – Era a Franny. Ainda molhada, mas desta vez do banho. Estava
enrolada numa toalha cor creme, o cabelo a cair em cachos ao redor do
rosto.
– Olá – disse eu. – Obrigado pelas roupas.
– Achei que ias ficar bem com a T-shirt da Dave Matthews Band do meu
namorado da secundária e no meu maior par de calças de flanela. – Ela
piscou os olhos, passando por mim até à sua cómoda. – Espero que não haja
problema por colocar as tuas coisas na máquina de secar roupa. Eu li as
etiquetas, é tudo lavável na máquina.
– Claro – respondi, observando-a da cama enquanto ela vestia umas
calças de fato treino e uma camisa de riscas de manga comprida.
O apito de uma chaleira soou na cozinha.
– Já volto.
Balancei as pernas sobre a cama, deslizando para dentro das calças.
Ficavam um pouco curtas, mas serviam. Espreguicei-me, o corpo a doer da
melhor maneira possível. Ainda estava demasiado baralhado para conseguir
processar bem o que tinha acontecido esta tarde. Quero dizer, sim, sexo. E
mais sexo. Mas também palavras proferidas. Partes do corpo tocadas.
Gemidos e suspiros e promessas de coisas.
Segui o seu rasto até à cozinha, onde ela estava diante de duas canecas
fumegantes. As compras que tínhamos feito hoje cedo ainda estavam
espalhadas no balcão: couve chinesa e pepinos, e tomates tão suculentos
que pareciam balões de água prestes a explodir, um recipiente de massa
fresca e alguns pretzels enrolados à mão.
– Obrigado. – Agarrei numa caneca e encostei-me ao balcão, observando-
a a organizar tudo e a arrumar.
– Então… – comecei.
Ela olhou para mim, um pequeno sorriso no rosto.
– Queres sair hoje à noite? – perguntei exatamente ao mesmo tempo que
ela disse:
– Queres ficar para o jantar?
Ela riu-se.
– Sim, vamos sair. Desde que envolva comer um pouco desta comida.
– Aceito. – Soprei o chá, inspirando o seu aroma intenso a menta. – O que
estavas a pensar fazer?
– Bem, tenho massa fresca, tomate, manjericão, queijo de cabra e um
pouco de rúcula, e aquela baguete que te fiz trazer para casa.
– Não está ensopada? – interroguei.
– Acho que podemos arranjar uma solução – disse ela, pressionando
timidamente a sua crosta.
– Que som incrível. Diz-me por onde começar, e serei o teu sous-chef.
A Franny arranjou-me uma tábua de cortar e uma faca afiada, e comecei a
cortar os tomates em cubos pequenos e a atirá-los para dentro de uma tigela
grande. Ao meu lado, ela lavou a rúcula e o manjericão, passando-me este
último para picar em pedacinhos e adicionar ao tomate.
Com os dois a trabalhar juntos, não demorou muito para que estivéssemos
a colocar os pratos na mesa, uma tigela cheia de massa fresca com um
molho de tomate entre nós. A Franny preparara uma salada de rúcula com
limão e azeite, partira o pão em pedaços pequenos e torrara-o para ficar
crocante. Deitou um pouco de vinho numa jarro e tirou dois pequenos potes
de geleia de um armário. Lá fora, ainda estava a chover. A Franny desligou
o ar condicionado e abriu as janelas, deixando entrar o ar fresco e o cheiro
doce da chuva no cimento.
– Está realmente frio lá fora – disse ela. – O ar sabe bem.
Os sons da cidade entravam pela janela enquanto nos sentávamos para
comer. O nosso jantar foi simples e intenso, cheio de grandes sabores. Mas
também foi tranquilo, com gracejos fáceis sobre as nossas atividades
habituais de fim de semana. A Franny gostava de ler e de passear pelo
Prospect Park; eu costumava correr e limpar, e ver muito basebol. Eram
coisas que fazíamos sozinhos, coisas que de repente pareciam muito mais
atraentes quando as imaginávamos na companhia de outra pessoa. Ela
falou-me sobre o chá de bebé para que foi arrastada a planear com a mãe, as
intermináveis mensagens que recebia dela há semanas. Resumi-lhe a minha
viagem a Seattle e as primeiras conversas sobre talvez abrir um escritório
em San Diego.
Mais tarde, enquanto eu lavava a louça, a Franny aconchegou-se de novo
no canto do sofá, o computador portátil aberto e a oscilar precariamente na
ponta do braço do sofá enquanto respondia ao último e-mail da Anna. Eu
gostava de vê-la assim, vulnerável, relaxada. Parecia algo natural, como se
fizéssemos isto todos os fins de semana. E se fizéssemos isto todos os fins
de semana?, perguntei-me. E se às vezes eu fosse a Brooklyn, ou ela
levasse as suas coisas para a cidade e caminhássemos ao longo do High
Line ou nos sentássemos perto da fonte no Lincoln Center e observássemos
as pessoas a entrar na ópera. Não tinha deixado de imaginar como seria
partilhar os momentos calmos da minha vida com outra pessoa outra vez.
Mas pareciam imediatamente mais radiosos ao imaginar a Franny comigo.
Quando terminei, estava escuro lá fora; a noite de alguma forma
apoderara-se de nós, surpreendeu-nos com a escuridão. Não que eu hoje
estivesse a tomar atenção a outra coisa para além da Franny. Arrastei-me
para o sofá, sentando-me muito mais perto dela do que na noite passada. Ela
fechou o portátil e colocou-o no chão, passando a mão pela minha coxa.
– Antes mesmo de sugerires que está na hora de ires embora quero que
saibas que adoraria que ficasses. Aqui. E não é só porque quero obrigar-te a
assistir a mais filmes dos anos oitenta comigo.
– Isso quer dizer que não vamos ver 16 Primaveras? – Dei-lhe um beijo
casto no pescoço, no local onde se unia com o queixo.
– Quero dizer, esse filme é extremamente problemático pelos padrões de
hoje, por isso não. E não estou com vontade de assistir ao Grease, por mais
vergonhoso que seja não o teres visto.
– O que devemos fazer então?
A Franny virou-se para olhar para mim, colocando as mãos espalmadas
no meu peito.
– Tenho uma longa lista de ideias, se estiveres disposto a ouvi-las.
Ela enfiou os dedos no cós das minhas calças, raspando as unhas
suavemente ao longo da minha pele. Com um movimento rápido, passou de
sentada ao meu lado para montada no meu colo, as suas mãos agora em
volta das minhas ancas. Deu um beijo delicado no meu rosto e, em seguida,
passou os lábios pela minha orelha, depois pelo meu pescoço.
Instintivamente, apertei-a contra mim, colocando os braços em volta das
suas costas, e soltei um longo suspiro no seu pescoço, resistindo à vontade
de levantá-la e carregá-la para a cama – ou, melhor ainda, para a bancada da
cozinha.
– Estou a ouvir – disse eu. As palavras saíram ásperas, como pneus no
cascalho.
– Bem, a coisa mais importante a saber – disse ela – é que cada uma delas
envolve ficares completamente nu.
*

Na manhã seguinte, acordei de novo na cama da Franny. Mas desta vez,


não estava a apertar uma almofada. Estava a abraçá-la. Ela estava deitada
sobre o meu peito, com o rosto em cima de mim, um braço sobre o meu
estômago. Os meus braços estavam à volta dela como se ela fosse uma
manta protetora.
– Franny? – A minha voz era um sussurro rouco. Não obtive resposta. Ela
dormia, e eu fiquei ali, sem fazer nada para além de desfrutar da sensação
do seu corpo pressionado contra o meu, a sua pele nua contra os meus
dedos, a sua respiração ritmada a embalar-me para um lugar calmo e
meditativo.
Eu não estava habituado a ficar quieto, a entregar os meus sentidos ao que
estava a acontecer no presente. Normalmente, acordava antes do alarme
tocar, agarrava no telemóvel antes mesmo de os meus olhos estarem
abertos. Verificava e-mails. Devorava notícias. Pagava contas. Mas aqui, na
cama da Franny, nem sabia onde estava o telemóvel. E não queria saltar da
cama, queimar a adrenalina, começar o dia. Sentia-me perfeitamente
satisfeito, talvez pela primeira vez desde sempre.
A Franny despertou e inclinou-se para me fitar.
– Ei – disse ela, esfregando os olhos.
– Bom dia – disse eu suavemente, passando um dedo pelo nariz dela.
Ela virou-se para olhar para o telemóvel e gemeu quando viu a hora.
– Eu não quero nada apanhar o comboio para o Connecticut hoje.
– Hora do chá de bebé? – perguntei, tentando evitar que ela percebesse a
deceção na minha voz.
Ela assentiu e deslizou ao meu lado, a cabeça pousada no meu ombro.
– Podemos sair amanhã à noite? Eu podia ir ter contigo?
– O meu voo para Seattle é às seis e quinze da manhã de amanhã. Estou
de volta na quinta-feira à noite.
– Nããão – gemeu ela.
– Podias ficar na minha casa esta noite? – sugeri, determinado a encontrar
uma solução.
– Acho que não volto para a cidade antes das dez horas. – Ela passou a
mão pelo meu peito, depois de uma anca à outra, e eu respirei fundo.
A Franny riu-se. Ela sabia exatamente o que estava a fazer comigo. De
repente, sentou-se direita.
– Que se lixe – disse ela. – Eu não vou.
– Não ias ajudar a tua mãe? – perguntei.
– Chiu. – Ela pressionou um dedo contra os meus lábios. – Por favor, não
me digas nada sobre isso.
Agarrou no telemóvel, e enquanto escrevia uma mensagem para a mãe, eu
dediquei-me a beijar as suas omoplatas.
– Feito – disse ela, virando-se para passar os braços à volta do meu
pescoço, movendo-se para me montar. – Disse à minha mãe que estava com
uma enxaqueca. Mas não lhe disse que a minha enxaqueca era linda, e
estava nua na minha cama.
Ela puxou-me para si, beijando-me profundamente, e cada pensamento na
minha mente converteu-se em pó.
Mais tarde, fizemos juntos panquecas, enquanto a rádio tocava no
telemóvel da Franny, e cobrimos algumas com as framboesas que
trouxemos ontem para casa à chuva. Sentámo-nos à sua pequena mesa, a
passar páginas do New York Times de domingo um para o outro enquanto
comíamos em silêncio. Foi dolorosamente íntimo, e ressoou em mim tão
profundamente como deslizar ao lado dela nu na cama. O sexo era uma
coisa, mas o conforto, encontrar contentamento no silêncio, era outra
completamente diferente. As nossas ações eram lentas como o nosso dia:
lemos, bebemos, comemos descontraidamente. O silêncio foi interrompido
quando a Franny me deu um toque com o pé e perguntou:
– Vou ter de lutar contigo pelas palavras cruzadas?
Suspirei dramaticamente, entregando-lhe a revista a contragosto.
– OK, tudo bem, partilhamos. – Ela deu um beijo na minha testa enquanto
se levantava e retirava dois lápis de um copo que estava na pequena
prateleira perto da janela.
Tentou entregar-me um, e eu afastei-o.
– Achas mesmo que eu faço as palavras cruzadas com um lápis, Franny?
É a caneta ou nada.
– Uau, essa é a coisa mais sexy que alguém já me disse. – Ela inclinou-se
e beijou-me antes de voltar para tirar uma caneta. Depois estendemo-nos no
sofá e passámos a meia hora seguinte a rabiscar e a pensar.
– Bem, acabámos isto muito mais depressa do que quando faço sozinha –
disse a Franny, olhando para o nosso trabalho concluído.
– Estou orgulhoso de nós. – Inclinei-me para a frente para um high five. –
Quem diria que faríamos uma equipa tão boa. Vou ser honesto, às vezes
salto os domingos, porque são muito difíceis para mim.
– Uau, o Hayes tem uma fraqueza! E eu aqui a pensar que eras um
autêntico cromo.
Revirei os olhos, mas a sua opinião emocionou-me. Mesmo que fosse
dito com ironia, havia algo na sua voz que me dizia que também achava que
era verdade. Só um pouco.
– Estou feliz por ter ficado aqui contigo – disse ela, colocando as pernas
sobre as minhas. – Já faz um tempo desde que fiz algo que queria fazer, só a
pensar em mim.
– Eu também. – Tomei o rosto dela na minha mão, beijando-o
suavemente. Afastei-me devagar. – A tua mãe ficou zangada?
Ela encolheu os ombros.
– Eu não tive notícias dela, mas tem estado a entreter vinte mulheres
muito ruidosas o dia todo. Provavelmente foi para a cama logo a seguir.
– Ei, que horas são? – perguntei-lhe, inclinando-me para espreitar o seu
relógio.
– Quase seis. Uau. – Ela ergueu as sobrancelhas para mim. Estávamos
agora quase há quarenta e oito horas juntos, e tínhamos estado a evitar tocar
em certos assuntos o tempo todo: Como ia terminar este fim de semana? E
quando? E, o mais importante, o que significava isto tudo?
Levantei-me e espreguicei-me, dobrando a cintura até as minhas mãos
tocarem os pés, enfeitados com um par de meias grossas dos Knicks que a
Franny me tinha emprestado esta manhã.
– Então, talvez devesse voltar para o meu apartamento – comecei, mesmo
que não quisesse que o nosso tempo juntos terminasse. – Tenho a caixa de
entrada de e-mail para verificar e o relatório de um cliente que tenho
andado a adiar desde o jantar de sexta-feira, e preciso de estudar os
candidatos que vou entrevistar esta semana. E tenho de fazer as malas.
– Bem, isso não será difícil para ti – disse ela, puxando o lóbulo da minha
orelha com um sorriso. – Basta embalares todos os teus fatos.
– Má – provoquei, dando-lhe uma cotovelada enquanto ela guinchava.
– E se… – Eu hesitei e depois obriguei-me a perguntar. – E se esta noite
ficasses na minha casa? Levavas o teu portátil, algumas roupas. Podíamos
encomendar comida e trabalhar juntos.
Assim que as palavras saíram da minha boca, comecei a duvidar de mim
mesmo, mas ela sorriu.
– OK – responde ela com um aceno de cabeça, apanhando o jornal do
chão. – Só preciso de alguns minutos para me organizar.
– Claro – disse eu.
– Só para que fique claro – disse ela enquanto se levantava –, estás a
gostar deste fim de semana tanto quanto eu?
As suas palavras eliminaram todos os nervos com que me tinha debatido.
Levantei-me para ir ao seu encontro, e as minhas mãos roçaram no seu
queixo, brincando com o cabelo que lhe caía nas orelhas.
– Mais – prometi, inclinando-me para outro beijo. – A sério.
Olhámo-nos, e percebi que ela estava a tentar confirmar se eu estava a ser
sincero. Satisfeita, sorriu e esgueirou-se das minhas mãos.
– Deixa-me apenas reunir as minhas coisas.
Pus-me a arrumar as coisas do nosso pequeno-almoço, a levar os pratos
para o lava-louça, a reciclar o jornal, a enxaguar as chávenas de café. Sorri
enquanto fazia isto, maravilhado com o quão estranhos os eventos dos
últimos meses tinham sido. Sempre pensei que a ideia de destino, do
universo, da magia da vida, fosse uma completa treta. Mas aqui estava eu, a
lavar a marca de batom de uma caneca que pertencia à desconhecida que
um dia entrou na minha carruagem do metro. A vida pode não ser mágica,
mas com certeza era incrível.
– Espera, diz isso outra vez? – A voz da Franny trespassou os meus
pensamentos, o tom um pouco mais alto do que o normal. Urgente. –
Acalma-te. Eu não consigo entender-te.
Ela estava a falar comigo? Espreitei para o corredor, o pano da louça na
mão. A Franny andava de um lado para o outro à frente da cama, o
telemóvel encostado ao ouvido.
– Quando é que isso aconteceu? – Uma pausa. – Oh, Deus, tudo bem.
Estou aí assim que puder.
Ela estava pálida e deixou-se cair no chão, encostando as costas à cama e
agarrando-se aos joelhos.
– Era o meu padrasto – disse ela, a voz tensa e baixa. – A minha mãe
sofreu um ataque cardíaco esta manhã, e está no hospital.
– Ah, não, Franny. – Eu caí de joelhos para encará-la.
– Ele disse que ela vomitou enquanto montava as mesas no quintal, e todo
o seu lado esquerdo lhe doía, então levou-a para as urgências. Foi detetado
precocemente, o que é uma sorte. A enfermeira disse-lhe que eles chamam
a este tipo de ataque cardíaco de «fazedor de viúvos».
Eu apertei as suas mãos nas minhas, acariciei-lhe os dedos com os meus
polegares. O seu rosto estava calmo, estoico, e percebi então que ela
poderia estar em choque.
– Era suposto eu estar lá. – A sua voz denotava dor. – Ela poderia ter
morrido.
Eu ajudei-a a sentar-se na cama, a minha mão nas suas costas.
– Podes levar-me até ao comboio? – A sua voz era praticamente um
sussurro. – Preciso de ir para lá.
– Claro – disse eu, assentindo com a cabeça de forma tranquilizadora. –
Fica aqui. Deixa-me resolver isto.
Levantei-me, corri para a cozinha, peguei numa chávena do escorredor da
louça e enchi-a com água. Ela ainda estava na cama quando lha entreguei.
– Obrigada. – Fez um pequeno sorriso, e o meu coração comprimiu-se.
Quando estava prestes a procurar informações sobre o comboio para New
Haven, tive uma ideia. Abri o Google. Com certeza, havia um daqueles
sites de aluguer de carros de curta duração aqui perto.
– Ei. – Estendi-lhe a mão, e ela aceitou-a, deixando-me puxá-la para ficar
de pé. – Eu levo-te obviamente ao comboio se preferires. Mas seria muito
fácil para mim alugar um carro e levar-te até lá. Ficaria muito feliz em fazer
isso. Se quiseres.
Quarenta e cinco minutos depois, eu estava ao volante de um Zipcar, a
Franny silenciosa no banco ao meu lado. Estava habituado a que as coisas
fossem agitadas sempre que estava junto dela. Havia sempre alguma coisa:
lágrimas, risos, entusiasmo, informação, energia, ousadia, novas ideias. Mas
ela estava estranhamente contida: sem chorar, ou enviar mensagens de
texto, ou comentar a minha condução. Apenas os braços em volta dos
joelhos, o rosto virado para a janela.
– Queres ouvir música? – perguntei. Ela limitou-se a abanar a cabeça, por
isso continuei a conduzir em silêncio.
Não falámos novamente até metade da nossa viagem, quando ela se virou
para me olhar, a sua voz baixa.
– Eu sinto-me tão mal.
– Franny – olhei para ela rapidamente, tentando manter os olhos na
estrada –, o que queres dizer com isso?
– Eu menti à minha mãe – disse ela, a voz embargada. – Só porque não
queria ajudá-la com o estúpido chá de bebé. Que coisa terrível para lhe
fazer.
Eu não disse nada. Apenas escutei.
Ela suspirou.
– Eu nem lhe contei sobre a Anna – disse ela com uma fungadela, e eu
sabia que ela estava a chorar. – E agora talvez nem tenha hipótese de lhe
contar.
Estendi a mão para a pousar no seu joelho.
– Este tempo todo, estive obcecada com um pai morto e uma irmã que
provavelmente nunca conhecerei. E depois abandonei a família que tenho
realmente.
– Sinto muito, Franny – disse eu, apertando-lhe a perna suavemente. –
Deve ser muito difícil. Mas acho que todos podem ter espaço no teu
coração.
Encolhi-me um pouco por isto poder soar um pouco piroso, mas a
verdade é que acreditava nisso com todo o coração.
– Não queres enviar uma mensagem às tuas amigas? – perguntei. –
Informá-las do que está a acontecer?
– Não. – Ela abanou a cabeça. – Não tenho energia para isso agora. Fá-lo-
ei quando chegar ao hospital.
Ela ficou calada novamente. Lá fora, o céu estava escuro. Eram quase
22h00 agora.
– Estou feliz por estares aqui – disse ela pressionando levemente a sua
mão contra a minha. Mudei a posição da mão, virando-a para que ficasse de
frente para a palma dela, e deslizei os meus dedos pelos dela.
– Eu também – respondi. – E estou aqui enquanto precisares.
Ficámos assim durante o resto da viagem, as mãos unidas. E fiquei
maravilhado com o facto de que, mesmo no meio deste momento muito
difícil, estar com a Franny era o único lugar onde queria estar.
CAPÍTULO VINTE E CINCO
FRANNY

A minha mãe costumava dizer que sabia que eu estava realmente


aborrecida com alguma coisa quando ficava calada. Perguntei-me, enquanto
o Connecticut passava na escuridão, se o Hayes tinha percebido isso esta
noite. Eu mal consegui encontrar as palavras que combinavam com a dor,
pânico e vergonha que dominavam os meus pensamentos.
Não tinha sequer coragem de contar à Lola e à Cleo o que estava a
acontecer. Sempre que olhava para o telemóvel para lhes enviar uma
mensagem a dizer que a minha mãe estava no hospital, que tinha sido
internada durante a noite, e provavelmente iria ficar mais tempo, não
conseguia. Não porque achasse que elas não conseguissem lidar com isso;
elas andariam sobre fogo se eu lhes pedisse, apenas para me apoiarem. Mas
escrever as palavras tornava tudo muito real.
A voz do Hayes cortou a escuridão.
– Chegámos – anunciou ele. – Deixa-me ajudar-te a sair, e depois vou
estacionar e encontramo-nos lá dentro.
Eu assenti com a cabeça e abri a porta, sem olhar para trás enquanto a
fechava.
Quando cheguei ao balcão de informações, uma mulher de olhos gentis
encaminhou-me para a unidade de recuperação. Enviei uma mensagem para
o Jim a dizer que estava a caminho, e ele foi ter comigo ao átrio,
cumprimentando-me com um abraço rápido quando saí do elevador.
– Não precisavas de fazer este caminho todo até aqui – disse ele
rispidamente. Os seus olhos estavam vermelhos e inchados, e parecia que
não dormia há uma semana.
– Eu sei – respondi. – Mas para mim é importante estar aqui. Além disso,
precisas de alguém para te trazer café.
O Jim despenteou o meu cabelo depois de eu dizer isto, um gesto que eu
sabia que significava Obrigado, amo-te, estou feliz por estares aqui. Ele e a
minha mãe não eram particularmente bons a expressar os seus sentimentos,
e o Jim falava mais através de gestos e atos de bondade do que através de
palavras. Demorei anos a perceber isso, para aceitar que eu era a única de
nós os três que precisava de verbalizar… bem, tudo.
– Como está a mãe? – perguntei, tentando manter as lágrimas sob
controlo.
– A descansar – disse ele. – Mas está acordada se quiseres vê-la.
Eu segui-o por um longo corredor, iluminado por uma luz amarela opaca.
O som das máquinas hospitalares a apitar e a tocar à nossa volta
misturavam-se para formar uma melodia deprimente.
Entrámos num quarto banal, onde a minha mãe estava recostada numa
cama de hospital, o seu cabelo castanho-acinzentado pela altura dos ombros
espalhado sobre as almofadas brancas. A pele estava pálida, e tinha um
cateter no braço.
– Francesca Marie – disse ela. A sua voz estava rouca, mas calma, e eu
podia sentir a deceção no tom. – O que estás a fazer aqui? Tu estás doente.
– Mãe, sofreste um ataque cardíaco – exclamei eu, a culpa a tomar conta
de mim da cabeça aos pés. Arrastei uma cadeira de plástico cinzenta para o
lado da sua cama enquanto o Jim se sentava na poltrona no canto do quarto.
– Pensavas realmente que eu não viria no segundo em que soube?
Ela sorriu ao ouvir isso, e os seus olhos luziram com o brilho das
lágrimas, embora nenhuma delas tenha transbordado e descido pelo seu
rosto. Ela era uma mestra a conter o choro.
– Eu disse ao Jim para não te incomodar para que pudesses dormir e curar
a tua enxaqueca.
– Eu estou bem, mãe – resmunguei.
Precisava de esclarecer tudo com ela em breve, mas agora não era o
momento. Ela estendeu uma mão pálida, e eu agarrei-a com as minhas. O
seu olhar passou de afetuoso a curioso num instante, as sobrancelhas
ergueram-se no seu rosto cansado.
– Como é que chegaste até aqui?
– Um amigo trouxe-me – respondi.
– Quem? – perguntou ela, a mão ainda na minha.
– O Hayes.
– O teu namorado do metro? – Ela mexeu-se contra as almofadas,
elevando-se um pouco. – Franny, isso é emocionante.
Ela estava a sorrir, mas tudo o que conseguia ver era a sua palidez.
– Mãe, ele é apenas um amigo. Por favor, acalma-te. Não quero que faças
nada que piore o teu estado.
– Oh, por favor, Franny, eu vou ficar bem – repreendeu-me.
Uma mulher mais velha de cabelo preto curto, que vestia uma farda de
enfermeira, entrou no quarto, empurrando uma grande máquina num
carrinho.
– Olá, Diane – disse ela. – Preciso de si por um momento para
observarmos os sinais vitais, e depois tem de se manter calma.
– Vou esperar lá fora, OK? – disse eu.
A minha mãe concordou.
– Amo-te, mãe. – Todos os músculos da minha garganta ficaram presos
com estas palavras.
– Eu também te amo, querida.
Contive as lágrimas até chegar ao corredor. Todo este dia tinha sido de
mais. Demasiado sentimento, demasiada dúvida, demasiado medo.
Encontrei a sala de espera e desabei num sofá rosa puído. Telemóvel na
mão, abri as mensagens de texto.
Uma do Hayes. Estou cá em baixo, se precisares de mim, era tudo o que
dizia.
Abri a minha conversa com a Cleo e a Lola. Desculpem por esta
mensagem muito tardia, mas estou no CT com a minha mãe, ela teve um
ataque cardíaco. Vai ficar bem, acho. No hospital.
As suas respostas chegaram quase de imediato, mas fechei o telemóvel e
pu-lo em modo NÃO PERTURBAR. Eu não tinha energia para isto agora.
Apanhei o elevador para o átrio, mas o Hayes não estava em lugar
nenhum.
Olhei em volta durante um momento, e depois ouvi-o. Ele estava lá fora,
ao telemóvel.
– Vou precisar de reagendar, Eleanor – estava ele a dizer enquanto eu saía
pelas portas automáticas, a sua voz firme. – Ainda estou no hospital e não
quero deixá-la assim.
Uma pausa. Ele andava de um lado para o outro, e eu estava do lado de
fora da porta, a ouvir.
– Oh, meu Deus, não. Não precisas de ir. – Ele estava agitado e veemente,
uma visão que eu nunca tinha visto antes. – Vou adiar tudo para a próxima
semana. Não vou viajar agora de maneira nenhuma.
Cruzámos olhares, ele fez-me um aceno rápido e depois baixou a cabeça,
a ouvir.
– A reunião de investidores vai ter de ser cancelada. Sim. Sim. Eu sei que
é mau. Estou-me nas tintas.
Ele soltou um suspiro. Parecia exausto. Ficou em silêncio outra vez, e eu
comecei a sentir-me mal, de verdade, tinha a cabeça a latejar. Ele estava a
alterar todos os seus compromissos de trabalho por minha causa. Isso era
horrível.
Dei um passo na sua direção, agarrando-lhe o braço. Ele afastou o
telemóvel.
– Está tudo bem? – perguntou, um olhar preocupado a espalhar-se no
rosto. – A tua mãe?
– Não canceles a tua viagem de trabalho por minha causa. – A minha voz
estava mais decidida do que eu esperava. Eu parecia zangada. Eu estava
zangada.
Voltou-se para o telemóvel.
– Olha, já te ligo – disse ele, e depois virou toda a sua atenção para mim.
– Franny, o que se passa?
– Eu não posso ser a razão pela qual não vais a Seattle. – Cruzei os braços
sobre o peito.
– Tu não podes decidir isso – exclamou, imitando-me. – Não vou viajar
agora de forma alguma. E prefiro estar aqui contigo.
– Eu não posso deixar-te fazer isto – afirmei, abanando a cabeça para ele.
Porque é que ele estava a ser tão teimoso? – Não podes cancelar uma
reunião de investidores que afeta toda a tua empresa só por minha causa.
– Franny – disse ele, com um olhar duro. – Em primeiro lugar, posso
fazer o que bem entender.
Eu abri a boca, pronta para discutir com ele, mas ele falou antes que eu
pudesse dizer uma palavra…
– Olha… – Fez uma pausa, os seus olhos a percorrer o meu rosto. – Eu
dei cabo da minha última relação por causa do trabalho. E… – suspirou,
erguendo a mão e enfiando-a na nuca – eu realmente não quero que isso
aconteça de novo.
– Bem, então acabo eu. O que quer que haja entre nós, acaba agora. – A
minha voz tinha ficado mais alta, ruidosa. Eu estava quase a gritar. – Eu
preciso de estar aqui para apoiar a minha mãe – continuei. – Eu ignorei-a e
menti-lhe, só para poder ficar na cama e dormir contigo, e vê o que
aconteceu. Quase a perdi hoje.
– O facto de estarmos juntos não fez com que a tua mãe sofresse um
ataque cardíaco. – A sua voz estava calma, mas fria. – Tu disseste que
querias ficar comigo.
– Bem, oxalá não tivesse ficado – disse eu. – Fui estúpida por pensar que
podíamos ter uma relação. Mas não somos nada parecidos.
Ele estremeceu. As minhas palavras tinham causado algum efeito – algo
que eu não entendia muito bem, mas sabia que o tinha magoado.
Ergui as mãos em desespero. Eu ia esclarecer as coisas.
– E ainda preciso de perceber o que diabo estou a fazer com a minha
carreira e o meu negócio, quando não tenho trabalhos agendados e nenhum
dinheiro a entrar.
Os seus olhos esquadrinharam o meu rosto, tentando encontrar algures
uma fresta que o elucidasse.
– Pensei que o teu negócio estava a ir bem. Tens andado a recusar
pessoas. Disseste tu. Naquela entrevista…
– Eu inventei isso. – O meu corpo inteiro cedeu, tanto de exaustão como
de alívio por finalmente ser completamente honesta. – Eles estavam a dizer
que tinhas muito sucesso, e eu apenas… Eu não sei, disse que também era
bem-sucedida de forma irrefletida. Eu estava demasiado envergonhada para
te contar que tinha inventado tudo.
– Então, o teu trabalho…
– Não estou atolada de clientes, não. Tu e a Eleanor foram efetivamente o
meu único cliente até agora. Ainda estou a tentar construir o meu negócio, a
estabelecer ligações, a tentar arranjar os trabalhos que conseguir. É por isso
que disse à Serena que estaria disponível para trabalhar com ela. – A minha
voz falhou quando proferi o nome dela, e ele parecia confuso. Não era o
único. – É por isso que nunca deveria ter-te beijado!
O Hayes não disse nada. Em vez disso, caminhou até um banco onde
estavam dois copos de café, pegou num e abriu a tampa de plástico,
bebendo um gole enorme. Voltou a pousá-lo, e virou-se para olhar para
mim.
– Eu não sabia se querias descafeinado ou normal, por isso trouxe os dois
– disse ele, apontando para os copos. Odiava-o por estar a ser gentil neste
momento.
– Eu não sei o que fiz que te levasse a pensar que não podias dizer-me a
verdade – disse ele finalmente. – Mas se é isso que queres, tudo bem. O
mais importante é estares com a tua mãe.
Pressionei os lábios, sentindo-me zangada e desafiadora.
– E tens razão. – Ele olhou fixamente para mim por algum tempo. – Não
somos nada parecidos. Eu deveria ter percebido isso mais cedo.
«– Obrigada por tudo hoje – disse eu, cambaleando um pouco. O meu
corpo inteiro estava dormente. – Eu devo-te uma.»
Um lampejo de reconhecimento registado no seu rosto. Pensei que ele iria
dizer algo, mas em vez disso debruçou-se sobre mim e deu-me um beijo no
topo da cabeça.
– Um dia, Franny – disse ele, arrastando as palavras – vou cobrar-te isso.
Ele ficou ali durante um momento, uma pausa que parecia interminável, e
quase esperava que ele despisse o seu casaco e o colocasse sobre os meus
ombros, tal como fez quando nos conhecemos. Mas, em vez disso, virou-se
sem olhar para mim, enfiou as mãos nos bolsos e afastou-se, iluminado
pelas luzes do estacionamento.
*

Eu tinha acabado de acordar quando uma entrega gigantesca de bagels do


Zabar’s chegou a casa dos meus pais. Rasguei o pacote como um animal.
Mal tinha comido desde ontem à tarde e, de repente, parecia que tudo o que
correra mal na minha vida poderia ser resolvido com um bagel, queijo
creme e salmão fumado. Li o cartão. «Comida = amor», dizia. «xx, Lola e
Perrine.»
Uau. Eu sabia que a Lola e a Perrine eram monogâmicas, sérias até, mas
agora estavam num nível de namoro em que ofereciam um simpático cesto
de comida em conjunto. Enviei uma mensagem à Cleo de imediato.
Acabei de receber um cesto de presente do Zabar’s da Lola e da PERRINE,
escrevi.
!!!!!!, respondeu a Cleo. Espera, mais importante, Franny como está a tua
mãe?

O Jim vem buscar-me para me levar de novo para o hospital. Acho que
vai ser uma longa recuperação, mas ela vai ficar bem.

Uma série de emojis de coração. Graças a Deus.


Fiz uma pausa antes de escrever a próxima coisa que queria dizer. Fiquei
acordada a noite toda a pensar nisso, a agonizar sobre como poderia
realmente ajudar a minha mãe. Enviei uma mensagem para a Cleo com a
minha solução.

Vou ficar aqui algum tempo para ajudar.

Tu és uma boa filha, respondeu ela.


O teu irmão podia ficar em minha casa durante um mês enquanto eu estiver
aqui, respondi.

Que nojo, Fran, não. Ele mal sabe como lavar a sua própria roupa.

Eu ri-me, embora ela provavelmente tivesse razão.


Estou a falar a sério, escrevi. Dava-me jeito esse dinheiro, e assim podia
ficar aqui e ajudar a minha mãe. Também acabei com o Hayes ontem à noite,
embora só estivéssemos juntos por 24 horas. Foi mau.
Eu não tinha energia para escrever mais nada.

Franny O QUÊ?!

Eu ligo-te hoje à noite, prometo, respondi, mas tenho de ir tratar de coisas


da mãe xoxo.
*

Mais tarde, deitada na minha velha cama de solteira, pensei no que


significava estar em casa. Enquanto crescia, senti-me sempre deslocada.
Com a minha mãe e o Jim. Na minha casa. Na minha pele. Mas mudar-me
para Nova Iorque, conhecer a Lola e a Cleo, descobrir o mundo da arte e do
design, criar o meu próprio lar no meu pequeno apartamento – estas coisas
mostraram-me o que realmente significava fazer parte de algo. E então o
Hayes apareceu na minha vida, e foi uma coisa inteiramente nova e
totalmente familiar, tudo ao mesmo tempo. E todas estas coisas juntas
formavam o lugar em que eu queria estar mais do que tudo no mundo.
Mas eu não estava lá, aonde pertencia. Eu estava aqui, a olhar para o teto
lascado da minha casa de infância. Acomodei-me, tentando ficar
confortável. Virei-me, e na estante ao meu lado havia uma fotografia minha
emoldurada de quando era criança, cabelo comprido e emaranhado, sentada
ao colo da minha avó, a minha mãe sentada ao nosso lado, a sua mão na
minha barriga. Estamos todas a sorrir, e os nossos sorrisos parecem quase
idênticos, um fio a ligar as três. Deixei escapar um suspiro, senti as
lágrimas a voltar aos meus olhos. Mesmo que isto não fosse um lar, este
lugar, esta casa, esta família, eles ainda eram parte de mim. E talvez, à
minha maneira, eu também pertencesse aqui.
Mas ainda faltava uma peça, a flutuar lá fora, pronta para que eu a
agarrasse. Se eu alguma vez me conhecesse verdadeiramente, precisava de
conhecer tudo. E então peguei no telemóvel que estava no chão, abri o e-
mail e comecei a escrever.

Anna,

Tem sido uma semana louca por aqui. A minha mãe está no hospital
depois de ter tido um ataque cardíaco, o que foi horrível e assustador,
embora ela esteja bem. Ainda estou a tentar descobrir o que fazer
para ter a carreira que ambiciono em design de interiores.
Além de tudo isto, conheci uma pessoa. Um tipo. Un uomo. (Estou a
tentar aprender italiano!) Ele não é igual a ninguém com quem já
namorei, e terminei as coisas da pior maneira possível. Espero que
não te importes que desabafe tudo contigo, mas é bom contar a
alguém. Além disso, és italiana. Vocês todos sabem alguma coisa
sobre o amor, certo?
Eu nunca tive uma irmã, ou irmãos. Mas saber que existes está
realmente a trazer-me algum conforto esta noite. Espero que possamos
conversar mais em breve e, quem sabe, até nos encontrarmos um dia.

Com amor,
Franny (a tua irmã!)
CAPÍTULO VINTE E SEIS
HAYES

A Eleanor estava com a mão na barriga arredondada, os olhos seguiam-me


como feixes de laser quando eu entrei no seu novo gabinete e fechei a
porta. Ela tinha-me enviado uma mensagem, Vem cá, assim que eu chegara.
– Já sei o que vais perguntar, mas eu não quero falar sobre isso. – A
minha voz estava rouca, efeito de não conseguir dormir. Era impossível
evitar o contacto visual com ela, mas poderia, pelo menos, evitar a
conversa.
– Oh, mas vamos falar sobre isso. – Ela tinha aquele tom sério, o que
significava uma coisa: não iria desistir facilmente.
Acenei com as mãos em sinal de derrota. Sentei-me na cadeira em frente
à sua secretária. Eu esperava que a forma como as coisas tinham terminado
com a Franny me turvasse, me entorpecesse, me colocasse numa concha.
Em vez disso, tudo parecia intensificado, muito reluzente, os meus sentidos
a explodir. Eu podia sentir cada fio de cabelo na minha cabeça, cada fibra
do algodão em contacto com a minha pele. Perder a Franny só me tinha
tornado mais consciente de tudo o que acontecia à minha volta, tudo sem
ela.
– Então, no sábado enviaste-me uma mensagem e basicamente disseste-
me que tinhas uma namorada. – Ela inclinou-se para a frente, o cotovelo na
secretária, e o queixo apoiado na mão.
Suspirei.
– Eu nunca usei essa palavra.
– Mas aposto que querias – respondeu, a voz omnisciente.
– E? – respondi, impaciente.
– E, depois, na noite passada ligas-me de um hospital no meio do
Connecticut e dizes-me que não podes viajar para Seattle por causa dela.
– Sim – respondi, como se não tivesse feito disso uma crise em que a
obrigara a sair da cama e a lidar com isto a meio da noite.
– E agora estás aqui horas mais tarde, no escritório, e vais para Seattle
esta noite.
A Eleanor cruzou os braços sobre a secretária e olhou diretamente para
mim.
– Então vais dizer-me o que aconteceu, ou vou ter de adivinhar?
– Não há nada para adivinhar. Parecíamos prestes a ter algo, e agora não
temos, é isso.
– Prestes a ter algo. – Ela repetiu as minhas palavras.
– Nem mesmo algo, realmente. – Eu não conseguia dizer se estavam cem
graus ou dez cá dentro. Estava a suar e a congelar, e remexia-me na cadeira.
– Então, ias cancelar uma semana inteira de reuniões importantes por
causa de um «nem mesmo algo»? – Ela estava a ser difícil, mas o seu tom
era gentil. A Eleanor estava a tratar-me com toda a delicadeza, o que
significava que percebia que eu estava mal, por muito que tentasse
esconder.
Ignorei-a.
– Queres ouvir a apresentação oral mais uma vez? Só parto daqui a
algumas horas.
– Oh, não faças isso, Hayes. – A Eleanor dirigiu-me um olhar triste. – Tu
não podes simplesmente mudar de assunto. Eu conheço-te o suficiente para
saber quando as coisas são mais do que «talvez algo».
Eu suspirei e encolhi os ombros.
– Eu não estou pronto para falar sobre isso, El.
– Bem, finalmente, dizes uma coisa que realmente sentes. – Ela olhou-me
de novo, por um momento, e depois o seu rosto ficou suave. – Sinto muito,
Hayes.
– Eu também – admiti, o que me pareceu muito natural, muito honesto. –
Mas foi uma má ideia para começar. Nós não fazemos sentido juntos. É
melhor assim.
– E o que é melhor? Estares sozinho e infeliz? Um palerma connosco por
causa disso?
Eu limitei-me a suspirar e a cruzar e descruzar as pernas. Estava exausto.
– Desculpa. Eu não quis dizer… – Ela girou na cadeira enquanto pensava.
– O que eu quis dizer é que, eu gosto de ti e dela. Juntos.
– Mmm? – Fingi desinteresse, mas estava realmente curioso para
perceber aonde ela queria chegar com isto. Ela mal nos tinha visto juntos. E
a Eleanor nunca expressou qualquer tipo de lealdade para com ninguém
com quem eu tivesse saído, mesmo quando era uma das suas próprias
amigas. Ela, obviamente, ficara do meu «lado» durante o meu divórcio, mas
mesmo quando eu estava a resolver as coisas com a Angie ela nunca disse
uma palavra negativa sobre ela. Pronunciar-se a favor da Franny, parecia
um abandono da sua postura neutra habitual.
– Vales-te quase sempre de certas… qualidades da tua personalidade. Tu
sabes o que eu estou a dizer. O… lado austero. Protetor, analítico. Mas
sempre que te via com a Franny, ou te ouvia falar dela, todos os teus lados
ocultos de que eu ainda gosto mais apareciam sempre.
– E que lados são esses? – perguntei, inclinando-me para a frente.
– És infalivelmente gentil e generoso. Espontâneo, quando queres. E,
ouso até dizer, engraçado.
– Não me achaste engraçado quando gritaste comigo ontem à noite sobre
estragar esta reunião de apresentação – disse eu, conseguindo fazer um
sorriso sarcástico.
– Meu Deus, e também mal-humorado como tudo.
No início, não respondi. Queria fazer o que sempre fiz antes da Franny
entrar em cena. Concentrar-me. Bloquear tudo. Ser sugado pela luz azul do
meu computador.
Em vez disso, recostei-me na cadeira e pressionei as mãos contra a testa.
– Eu gostava mesmo dela. – A minha voz era calma. – Mas terminou.
– Nunca nada está realmente terminado, Hayes. – Ela olhou para mim
com simpatia. – Tu só tens de descobrir como ressuscitar isso.
*

À medida que a semana passava, e passou a duas, três, e depois quatro, ia


tendo a certeza de que as coisas tinham mesmo acabado. As estações foram
mudando, setembro estava a florir como só esse mês podia, as folhas ainda
agarradas às árvores em toda a sua glória verde, arrancando os últimos
vestígios de luz antes da escuridão do inverno se instalar em breve. A
Perrine ligara. A Eleanor e o Henry tinham-me convidado para jantar. Eu
comprei uma coisa chamada DockATot da sua lista para o chá de bebé que
iria ocorrer no próximo mês. Instalámo-nos no nosso novo escritório, e
começámos a planear a nossa próxima rodada de angariação de recursos.
Com os investidores do nosso lado, contratei três pessoas para o nosso novo
espaço em Seattle, e tínhamos pedido ao Tyler para inaugurar o novo
escritório lá no início do próximo ano. Corria oito quilómetros quase todos
os dias, e depois, nove. Dez. Onze.
O tempo passou. Mas a Franny não respondeu às minhas mensagens de
texto, ou às minhas mensagens de voz. Talvez fosse melhor assim; eu não
tinha a certeza se saberia o que dizer se ela atendesse ou me respondesse. E
ainda assim continuava a pensar nela: o que estaria a fazer, se estava feliz,
se iria ver o seu sorriso outra vez. Mas era em casa, no meu apartamento,
que eu tinha mais saudades dela. E um dia, a sua voz surgiu na minha
cabeça. Eu conseguia ouvi-la, clara e nítida, a adivinhar com precisão todas
as coisas que eu tinha no meu apartamento e como estava tão pouco
decorado. Então, dediquei-me a isso.
Pendurei uma fotografia que a Eleanor me oferecera de surfistas a
apanhar uma onda em Montauk e uma pintura que a minha avó fez quando
eu era pequeno, uma aguarela do seu jardim em agosto. Encomendei uma
mesa de jantar depois de andar a pesquisar no arquivo que a Franny tinha
reunido de todos os fornecedores que usara para o nosso escritório.
Chegava dentro de dois meses e era do mesmo fornecedor de madeira
sustentável do norte do estado que ela tinha usado para todas as nossas
secretárias. Eu pesquisei no Google «plantas de interior que são difíceis de
matar» e fiz uma lista. Lentamente, o meu espaço começou a parecer-se
mais comigo, mais como um lugar que desejava partilhar com as pessoas,
mesmo que a pessoa que eu queria que estivesse lá mais do que tudo tivesse
desaparecido.
Uma noite no fim de semana do Dia do Trabalhador, depois de uma
corrida de quase dezasseis quilómetros à volta do Central Park, estava no
meu closet depois de tomar banho, à procura de umas camisolas para vestir
por cima dos boxers e da T-shirt. E lá estava: o meu casaco. O casaco.
Tinha ali ficado pendurado, intocado desde que a Franny sem cerimónia mo
devolveu naquele programa matinal gravado há tantos meses. Limpo a seco
e engomado, lenço de bolso impecavelmente dobrado. Achava que dava
azar usá-lo novamente, por isso tinha-o deixado ali, comprimido entre a
parede e outro casaco azul-marinho, uma relíquia do momento em que a
minha vida tinha perdido o rumo, ou talvez, o momento que pusera a minha
vida no rumo certo. Eu já não tinha a certeza.
Peguei nele, retirei-o do cabide e segurei-o à minha frente, pensando na
Franny pelo que parecia ser a milionésima vez. Levei-o ao nariz, esperando
sentir algum indício dela, mas tudo o que restava era o leve cheiro a
produtos químicos. De repente, conscientemente, coloquei o casaco de volta
no cabide, e retirei o lenço do bolso para o guardar na minha gaveta
juntamente com os outros. Quando o fiz, um pequeno pedaço de papel
dobrado caiu ao chão.

Caro Desconhecido,

Caso hoje não tenha a hipótese de dizer isto de forma adequada:


obrigada. Eu não sei por que razão fez isto, mas estava lá para me
ajudar quando eu mais precisava, e realmente agradeço-lhe por isso.
(Por favor, esqueça a história que lhe contei sobre fazer xixi nas
cuecas.)

Sua,
Franny Doyle

Ela tinha estado aqui o tempo todo, sabia o que eu precisava de ouvir. E,
meu Deus, como gostava de saber como lhe dizer: Fi-lo porque assim que a
vi, soube que ela era alguém que eu queria ter por perto. Não consegui
evitar.
E depois, tal como naquele momento no metro, eu sabia o que tinha de
fazer. Corri para a sala, abri o meu portátil, e redigi um e-mail em segundos.

Sei que as coisas estão estranhas, mas gostava muito que


conversássemos. Podemos encontrar-nos para tomar um café?

Cliquei em ENVIAR antes de ter tempo para reconsiderar as minhas


palavras. Espreitei alguns resultados de basebol, verifiquei o Twitter, e ia
para desligar o computador, quando reparei que a resposta tinha chegado,
poucos minutos após eu ter enviado a mensagem.

OK.

E, em seguida, um minuto depois, um segundo e-mail.

Diz um lugar, estarei lá.


*

– Tenho de dizer que isto foi inesperado.


A Lola recostou-se na cadeira, com os dedos à volta do seu copo de café.
Estava a sorrir, o seu cabelo louro-branco despenteado. Ao lado dela, a Cleo
estava sentada com o queixo apoiado na mão, observando-me através dos
óculos. Também estava a sorrir, mas isso não eliminava o meu nervosismo.
– Agradeço por se terem encontrado comigo. – Eu brincava com a tampa
de silicone do meu copo. – E prometo não tomar muito do vosso tempo. –
Mordi o lábio superior. Soltei um suspiro. – OK, bem. A primeira coisa que
eu queria dizer-vos é que me preocupo muito com ela.
– Estás a pedir-nos a mão da Franny? – disse a Lola com uma risada.
– Não. Eu sei que a Franny não quer uma relação comigo, e entendo isso.
– Sentei-me um pouco mais direito, colocando a minha expressão
profissional no rosto. – Eu só queria saber como ela está. Ter a certeza de
que ela está bem.
– Ela está bem – disse a Lola. – A aguentar-se.
– É simpático quereres saber dela – disse a Cleo com um sorriso amável,
seguido por um gole de chá. – Eu acho que tem sido um mês difícil, mas a
mãe dela parece estar muito melhor.
– Isso é bom. Estou muito feliz por saber isso.
A Cleo pousou o seu copo e olhou diretamente para mim.
– E tu, como é que estás?
Encolhi os ombros.
– Ocupado com trabalho. Estamos a expandir-nos para Seattle, e talvez
San Diego, ou outro lugar na Califórnia. É emocionante.
– O que eu queria saber é como te sentes em relação à Franny. – A Cleo
olhou para mim como se conseguisse ler os meus pensamentos. A Lola
concordou com a cabeça e depois também dirigiu a sua atenção para mim.
Senti um aperto no estômago.
– A Franny não quer ter nada a ver comigo, e eu respeito isso. Não posso
mudar o que ela sente. Não é o meu papel.
– Meu Deus, para alguém tão inteligente, às vezes és um bocado burro. –
A Lola revirou os olhos, mas estava a olhar para mim com carinho. –
Confia em mim, ela definitivamente quer «ter algo a ver contigo».
Disse estas últimas palavras enquanto desenhava aspas no ar. Um
sentimento dentro de mim encheu-se de esperança, mas eu afastei-o.
– O que eu quero dizer é que sei que acabámos – disse eu. – Mas ainda
me preocupo com ela. É por isso que vos contactei.
– E porque queres que gostemos de ti – disse a Cleo. A sua voz era tão
suave que quase mascarou o efeito da sua afirmação.
– Bem, sim. – Pisquei os olhos, enervado. Ela desconcertara-me. – Sim,
quero.
Aclarei a garganta e continuei.
– Não podes deixar de querer que os amigos da pessoa pela qual… a
pessoa pela qual estás interessado gostem de ti. Mesmo que isso não te leve
a lugar nenhum. – Eu bebi um gole do meu café, tentando não transparecer
como me sentia constrangido por admitir isto perante elas. – E também
porque acho que são as duas fixes.
– Ah – disse a Cleo, dando um gole na sua bebida.
– E tu namoras com a Perrine. – Apontei para a Lola. – Por isso é
importante para mim conhecer-te e ser teu amigo.
O rosto da Lola suavizou-se instantaneamente quando eu mencionei a
Perrine.
– Ela sabe sobre isto? – perguntei.
Ela acenou com a mão entre nós.
– Não. Vou dizer-lhe. Mas primeiro queria falar contigo.
A Lola moveu-se na cadeira e inclinou-se na minha direção.
– Enquanto estamos aqui – disse ela – há algo que eu queria perguntar-te.
Preciso da tua ajuda com uma coisa.
– OK – disse eu, grato por não ser o centro da atenção. – Diz-me o que
precisas.
A Lola inclinou-se para a frente na cadeira, deslizando as mãos sobre a
mesa.
– Quero pedir a Perrine em casamento, e preciso que me ajudes a fazê-lo.
– Caramba – exclamei. Definitivamente não era isto o que eu estava à
espera que ela dissesse. A Cleo soltou um grito e bateu palmas com
emoção.
– S-Sim – gaguejei. – Uau. Claro que alinho.
– Boa. – O sorriso da Lola era grande e malicioso, e ela afastou o cabelo
louro descolorado do rosto antes de aproximar a sua mão sobre a mesa para
apertar a minha. – Só para que saibas, eu realmente queria que saíssemos
num encontro a quatro.
Eu ri melancolicamente perante isso.
– Isso teria sido divertido – concordei.
– Quem sabe – opinou a Cleo. – Talvez tenhas essa hipótese.
CAPÍTULO VINTE E SETE
FRANNY

N unca estive tão nervosa na minha vida antes de ver alguém pela
primeira vez, e nós nem sequer nos íamos encontrar cara a cara. Mas
durante dias, andei em pânico, com os nervos à flor da pele. Depois,
finalmente chegou o dia, e eu passei horas a preparar-me. Lavei o cabelo e
depilei as pernas, e passei uns bons quinze minutos a tentar delinear um
olho de gato com eye-liner antes de desistir e limpar tudo, esperando que as
manchas na pálpebra não fossem muito percetíveis. Depois troquei de
camisa três vezes, apenas para acabar com a primeira que vesti. E agora não
havia mais nada a fazer além de pegar no meu telemóvel.
– Franny?
Aquele rosto, a voz: era estranha e ao mesmo tempo tão familiar, tudo ao
mesmo tempo. Isso fez o meu coração disparar do meu peito para o céu,
soltando fogos de artifício.
– Olá! – disse eu com a voz a falhar. Ia chorar? A resposta surgiu num
instante, lágrimas a escorrer pelo meu rosto. Peguei num lenço de papel da
caixa em cima da mesa do Jim e enxuguei os cantos dos olhos. – Não posso
acreditar que és realmente tu.
Ali, no ecrã, estava a minha meia-irmã.
Ela soltou algo que soou como uma risada e um grito.
– Não posso acreditar que és real! – disse ela, o seu sotaque italiano
acrescentava uma melodia a cada palavra.
Olhámos uma para a outra nos nossos ecrãs, a sorrir. O seu cabelo era
comprido, mas encaracolado como o meu. Os nossos olhos eram diferentes;
os dela eram castanho-escuros e mais largos. Mas os nossos narizes
inclinavam-se levemente, e ao vê-la sentia-me confortável, como chegar a
casa à noite e haver uma luz acesa.
– Como está a tua mãe? – perguntou ela, e eu pude ver a preocupação no
seu rosto.
– Muito melhor. Obrigada por perguntares. – Expirei, descontraindo-me
um pouco. – Estou tão contente por te ver – disse eu. – Tenho andado tão
nervosa.
– Eu também – disse ela. E como ela era linda quando sorria. – Estava
preocupada com o que pensarias de mim.
– O quê? – Eu inclinei-me para trás surpreendida. – Tenho imensa
admiração por ti, e tudo o que fizeste. Acompanho o teu Instagram e tens
feito um trabalho incrível.
– Ah, bem – disse ela, puxando um caracol para baixo e soltando-o de
seguida, depois repetiu o gesto. – Um cliente acabou de me dispensar de um
grande trabalho, mas não vou colocar isso na Internet.
– Credo – gritei, um pouco alto de mais. – Isso é ridículo. Tu és tão
talentosa!
Ela encolheu os ombros.
– Fico feliz por pensares assim, porque eu preciso de me convencer na
maior parte do tempo.
Acomodei-me na cadeira, as minhas costas relaxaram.
– Eu sei o que queres dizer – exclamei. – Sou exatamente assim. – Talvez
seja genético, pensei.
– Bem, diz-me o que se passa com o trabalho – disse ela. – Talvez todos
os meus erros te possam ajudar.
Meia hora depois, após combinarmos um data para conversarmos de
novo, fui até à sala de estar onde a minha mãe estava enfiada debaixo de um
cobertor, a ver HGTV. Ela saíra do hospital há quase um mês, mas ainda
não estava totalmente recuperada.
O Jim tinha ido à mercearia, e eu sentei-me na extremidade oposta do
sofá, passando um braço em torno dos seus pés enfiados numas meias.
– Percebi que estavas lá dentro, a rir – disse ela, voltando o seu olhar para
mim. – Estavas a falar com as meninas?
Ela referia-se à Lola e à Cleo, e eu apenas assenti.
– Sim – disse, mas depois percebi que era agora ou nunca. – Na verdade,
não. – O meu estômago borbulhou com os nervos. Era agora. – Eu estava a
conversar com uma mulher em Itália que conheci num desses sites de teste
de ADN.
Os nossos olhos encontraram-se, e eu pude ver no seu rosto que ela sabia
o que eu estava prestes a dizer.
– Na primavera fiz um desses testes, apenas por diversão. Mas encontrei
uma meia-irmã, do lado do meu pai biológico.
– Ah, Franny. – O seu rosto estava sem expressão, e tudo o que eu
conseguia pensar era que a desiludira mais uma vez. – Eu estou tão feliz por
ti.
Olhei para ela.
– Estás? – Isto não era o que eu esperava que ela dissesse.
– Eu sempre quis que tivesses irmãos – disse ela, um sorriso hesitante a
surgir no seu rosto. – E que soubesses mais sobre esse lado da tua família.
Sempre me senti culpada por nunca ter podido falar muito sobre o teu pai
biológico. Eu praticamente não tinha informação para te dar. Nós não
conversámos muito.
Ela disse isto com uma risada, e naquele momento eu podia imaginá-la,
jovem e apaixonada, arrebatada por um homem bonito com cabelo preto e
grosso.
– Tu nunca me contaste nada sobre ele – afirmei. – E eu tinha sempre
muito medo de perguntar.
– É difícil falar sobre isso – disse ela quando se inclinou para a frente e
pegou na minha mão, apertando-a. – Sabes, era uma época diferente. É um
assunto que me traz muita vergonha, eu acho. E preocupação. Preocupo-me
muito por não ter feito tudo da forma mais correta para ti.
Isto era o máximo que já faláramos sobre o meu pai biológico, a relação
deles e os sentimentos da minha mãe sobre tudo isso. Era um território novo
para nós, e parecia cruel e assustador. Mas também parecia absolutamente
certo.
– Ele já não está vivo – disse-lhe baixinho. Dar-lhe esta notícia foi
inesperadamente esmagador. Dizer isto em voz alta não só tornava a sua
morte real; tornava-o real também.
– Ah, Franny – disse ela, com a voz embargada. Ela deslizou as pernas
para fora do sofá e sentou-se ao meu lado, pondo o braço em volta do meu
ombro. – Eu sinto muito.
– Eu também – disse eu, engasgada. Eu nunca teria a hipótese de o
conhecer, essa pessoa que era parte de mim. Era uma perda que eu ainda
estava a processar. – Obrigada por não estares zangada – continuei,
apoiando-me nela, sentindo o seu calor.
– Franny, como poderia eu zangar-me contigo? – Ela sorriu para mim, um
olhar de puro amor.
O meu corpo relaxou um pouquinho.
– Estou com medo que descubras algo que possa magoar-te ou desiludir-
te? Claro. Eu sou a tua mãe. – Ela disse isto com um encolher de ombros,
como se fosse a resposta óbvia para tudo. – Sempre me preocupei com isso.
Mas, não, eu não estou zangada.
– Eu vou ficar bem – disse eu, engolindo o nó na minha garganta.
– Eu sei que vais. – Ela inclinou-se para a frente e deu uma palmadinha
na minha mão. – Olha como te saíste bem desde que perdeste o emprego.
Sabes que não precisas de ficar aqui por minha causa, certo? Estou a
recuperar, e tu devias voltar às tuas coisas.
E com isto, comecei a chorar. Não eram lágrimas silenciosas, como as
que chorei quando vi a Anna alguns minutos antes. E não era o tipo de
choro abundante e confuso, como o que o Hayes vira naquele dia no metro.
Este era como um tsunâmi, um grito do peito arfante, do corpo inteiro,
que explodiu sem aviso prévio.
– Franny? – perguntou ela, virando-se para olhar para mim, a sua voz
alarmada. – O que está a acontecer?
– Eu estraguei tudo. – A minha voz saiu como um lamento, e apertei o
rosto nas mãos. – Tentei começar o meu próprio negócio e fiz aquele
trabalho, o que foi incrível. Mas não tenho trabalhos suficientes para pagar
as contas e a renda.
– Mas eu pensei que tinhas dito na TV…
– Não era verdade. Saiu-me. Eu estava envergonhada e nervosa, e só
queria que todos pensassem que estava bem. Eu queria que tu pensasses
isso. – As palavras brotavam de mim. – Eu não quero que penses que sou
um fracasso. Eu sei que já te preocupas com o facto de eu não ter uma
carreira mais estável.
Ela levou a sua mão livre ao meu queixo, erguendo o meu rosto até que
os nossos olhos se encontraram.
– Francesca Marie Doyle – A sua voz era firme. – Passei os últimos trinta
anos a admirar-te.
Eu funguei e limpei o nariz na manga, e olhei para ela confusa.
– Por vezes, também intimidada – disse ela enquanto movia a mão para
colocar uma mecha de cabelo atrás da minha orelha.
Certamente, pensei, ela estava a brincar. Mas o seu rosto estava
completamente sério.
– Nada em mim é intimidante – disse eu, com o peito a arfar.
– Nada em ti é intimidante – disse ela, a rir. – Fran, tu sabes exatamente
quem és desde o dia em que saíste de mim. Trabalhaste durante a
secundária para poderes pagar as tuas próprias aulas de arte, e depois
quando entraste na NYU estavas determinada a ir, mesmo que todos,
inclusive eu, te dissessem que seria mais fácil ir para a UConn e viver em
casa. Mudaste-te para Nova Iorque aos dezoito anos e nunca olhaste para
trás. Escolheste uma carreira pela qual eras apaixonada e fizeste com que
funcionasse. Construíste uma vida para ti, que adoras, e sabes exatamente
quem és. Isto é algo que a maioria de nós não pode dizer. Por isso, sim, às
vezes és intimidante, da melhor maneira possível. E eu adoro isso. Estou tão
orgulhosa de ti.
Respirei fundo e expirei pela boca, acalmando-me.
– Mas estás sempre tão preocupada comigo.
– Eu preocupo-me se estás feliz. Eu preocupo-me que estejas a ser muito
exigente contigo mesma. Eu preocupo-me que não estejas a dormir o
suficiente.
Soltei uma pequena risada com isso.
– Mas nunca me preocupo contigo, Franny, não mesmo. No mínimo,
preocupo-me com quem se meter no teu caminho. Eu sei que sou apenas a
tua mãe, mas sempre me pareceste imparável. No dia em que parares de
fazer exatamente o que queres com a tua vida, é quando me preocuparei.
Porque isso seria um fracasso. Não teu, mas meu, enquanto tua mãe.
– É difícil para mim afastar este sentimento de que eu só quero deixar-te
orgulhosa – disse. – E se não deixar, que estraguei tudo. – Eu nunca tinha
sido tão honesta com ela antes, e foi incrível e aterrorizante, tudo de uma
vez. Puxei para baixo as mangas da minha camisola e enxuguei os olhos
com elas.
– Franny, a única pessoa que precisas de deixar orgulhosa és tu mesma.
Não te preocupes comigo. Eu estarei sempre orgulhosa de ti, não importa o
que aconteça.
As suas palavras afastaram as lágrimas a alta velocidade. Era impossível
sentir orgulho de mim mesma quando magoei o Hayes e estraguei tudo
entre nós.
– Eu menti-te sobre ter uma enxaqueca naquela manhã. No dia do chá de
bebé. Desculpa.
– Oh, querida, está tudo bem. Eu nunca te agradeci por tudo o que tens
feito a ajudar-me. – Ela entrelaçou os dedos nos meus, colocou a outra mão
em cima da minha.
– E eu menti por causa de um tipo – disse eu, deixando finalmente as
palavras saírem, a minha voz rouca de tanto chorar. – Aquele do metro.
– Hayes Montgomery III? – perguntou ela, e eu fiquei tão surpreendida
por ela dizer o seu nome completo que me ri.
– Tu sabes o seu nome completo? – disse, ainda chocada por ter ouvido
isso sair da sua boca.
– Eu configurei um alerta do Google para ele. – Ela disse isto como se
fosse óbvio. – Tenho um para ti também.
Abanei a cabeça perante isto. Que manobra de mãe.
– Eu estraguei tudo. – Soltei um suspiro cansado, e ela passou a mão pelo
meu cabelo, tão gentilmente, como fazia quando eu era pequena. – Entrei
em pânico por causa, bem, de tudo… o teu ataque cardíaco, por sentir que
não estava a conseguir arranjar trabalho, o quanto gostava dele. Disse-lhe
coisas que não foram especialmente simpáticas. Eu sei que disseste que
devia estar orgulhosa de mim mesma, mas não estou orgulhosa da forma
como o tratei.
– Bem, o que te deixaria orgulhosa, então? – perguntou ela, ainda a passar
a mão suavemente pela minha cabeça.
Eu pensei durante um momento.
– Pedir desculpa – disse eu. – Estou em dívida com ele.
– Bem, eu acho que é um ótimo plano. – Ela deu-me um beijo na testa,
ainda a segurar-me junto a si.
– Eu gosto mesmo dele, mãe – afirmei. Eu podia sentir a força do desejo
por ele no meu corpo. Isso não me abandonara. Mesmo que o nosso
relacionamento tivesse terminado, os meus sentimentos não.
– Eu sei, querida – sussurrou ela suavemente no meu ouvido. – Eu sei. Eu
sei.
*

Mais tarde naquela noite, enquanto lavava a louça, ouvi uma conversa
abafada vinda da sala. Então, o Jim chamou:
– Franny-Bananny! – Eu arrastei-me para lá, com as luvas de látex ainda
colocadas, e sentei-me na sua velha poltrona esfarrapada.
– Sim – disse eu. – O que se passa?
– Podes tirar o caixote da reciclagem do alpendre e levá-lo para a
entrada? – perguntou.
– Claro – respondi, saltando do sofá. Atravessei a cozinha, atirei as luvas
para dentro do lava-louça, e abri a porta, saindo para o alpendre que eles
tinham acrescentado depois de eu ir para a faculdade. Ali, sentadas no sofá
de vime da minha mãe, estavam a Lola e a Cleo.
– Oh, meu Deus! – gritei quando elas correram na minha direção para me
abraçarem. – Estou a alucinar?
– Querias – disse a Lola, a rir. – Mas nós somos muito reais.
– Como é que chegaram até aqui? – perguntei, afastando-me para admirá-
las.
– É bizarro – disse a Cleo, tirando o casaco de couro com um sorriso –,
mas existem umas coisas chamadas comboios.
Eu bufei.
– Oh, meu Deus, como é possível que tenhas ficado mais sarcástica.
– Temos algumas coisas importantes para te contar – disse a Lola. – E,
sinceramente, estamos as duas cansadas de te enviar mensagens de texto.
Sentimos falta de ver o teu rosto.
– OK. – Sentei-me no sofá de dois lugares que estava posicionado em
frente ao outro sofá. Eu estava tão animada por vê-las que não conseguia
impedir o meu corpo de se mover para cima e para baixo levemente. – O
que é?
– Tu primeiro – disse a Cleo para a Lola, cujo rosto se abriu num largo
sorriso. A Cleo apertou as mãos à frente do rosto, tonta.
– A Cleo já sabe – disse a Lola.
– O que está a acontecer? – perguntei, nervosa. Ela estava de alguma
forma grávida? Olhei para a T-shirt dos Van Halen que ela estava a vestir e
tentei ver se havia algum tipo de protuberância.
Ela estendeu a mão esquerda, que estava no colo, e acenou para mim.
Logo abaixo de umas unhas pintadas de azul-escuro havia um anel de ouro
com um diamante negro gigante no centro, ladeado por diamantes brancos
menores.
– Caramba – disse eu, tentando processar o que estava a ver.
– Estou noiva! – gritou ela, numa oitava excitada que a sua voz raramente
atingia.
– Com – eu ainda estava a tentar entender isto – a Perrine?
Ela assentiu, radiante.
– Eu fiz o pedido.
– Ai meu Deus, Lola! – Levantei-me e fui ao seu encontro, e ela
levantou-se para me receber com um abraço. – Estou tão feliz por ti.
Soltei-a e agarrei a sua mão.
– Além disso, caramba, essa pedra é enorme.
– Era da avó dela – respondeu. – Ela disse que estava à espera do
momento certo para me propor, mas eu adiantei-me.
– Cum caraças. É tão bonito. – Os meus olhos imediatamente
transbordaram de lágrimas, pelo que parecia ser a quinquagésima vez hoje.
– Oh, meu Deus, é claro que estou a chorar outra vez. – Estendi a mão para
a mesa de apoio para pegar num lenço de papel. – Foi um longo dia –
expliquei.
– OK, bem, espero que isto não te faça chorar – disse a Cleo enquanto se
inclinava para a frente, para retirar alguma coisa da sua mala. – Acabou de
sair.
Ela passou-me uma cópia do Architectural Digest sobre a mesa. Na capa
havia uma fotografia da Eleanor, num longo vestido preto e sapatilhas
vermelhas, empoleirada na sua mesa. O Hayes estava de braços cruzados ao
lado dela. Mesmo esta versão minúscula dele, tão estoica e séria, fez
disparar uma pontada de saudade no meu coração.
– Eu estava a morrer de vontade de ver isto – disse eu com reverência. O
artigo da revista, sim. Mas também o rosto do Hayes. Tinha saudades.
– Precisas de ler o artigo – disse a Cleo, pegando na revista e folheando
as páginas antes de passá-la de volta para mim. – Especificamente… – Ela
tocou num parágrafo, perto do final da página.
Examinei o início, que era principalmente um resumo dos negócios do
Hayes e da Eleanor, e a história do espaço do escritório, que originalmente
era uma antiga fábrica de curtumes. E depois segui o dedo da Cleo para
isto:

O uso de elementos orgânicos por Franny Doyle para destacar o


antigo espaço industrial baseou-se em materiais reaproveitados, luz
natural e cores que acalmam quem entra, proporcionando um
descanso não apenas da cidade, mas também do ambiente muitas
vezes monótono ou do design exagerado dos modernos centros
financeiros de hoje. «A sua visão e execução foram essenciais para
criar um espaço de trabalho que representa a essência e a alma da
Arbor», disse Montgomery ao AD. Ela representa o futuro do design
sustentável.

– Uau. – Olhei de volta para as minhas amigas, tentando parecer calma e


serena. – Isto é muito bom.
Mas por dentro, os meus pensamentos estavam a avançar a grande
velocidade. Tinha saudades do Hayes e daquele seu lado formal quando
dizia coisas enfadonhas como «visão e execução». Mas sentia mais
saudades ainda do outro lado dele: o ouvinte paciente, o par atencioso, o
idiota dolorosamente engraçado.
Tinha saudades de tudo nele. Muitas.
Além disso, caramba, este artigo era muito importante. Este era o tipo de
imprensa que realmente se traduzia em empregos. Eu poderia colocar esta
citação na primeira página do meu site, entrar em contacto com alguns dos
meus antigos clientes de design da Spayce e partilhar o artigo. O meu
cérebro estava a fazer planos de trabalho pelo que parecia ser a primeira vez
numa eternidade. O entusiasmo estava a tomar conta do meu corpo outra
vez. Eu tinha adorado decorar o escritório da Arbor e não estava pronta para
desistir desta sensação. Queria-a de volta.
– Os amigos da minha mãe estão as pedir os teus dados de contacto –
disse a Cleo animadamente.
– A sério? – perguntei. Todas estas boas notícias pareciam surreais.
– Sim, todos eles estão obcecados por ti desde a festa de gala, e agora que
viram o teu trabalho, estão em pulgas. Só queria ter a certeza de que estava
tudo bem antes de lhes dar o teu número de telefone. Eu sei que tens coisas
a acontecer com a tua mãe.
– Sim, oh, meu Deus, está mais do que bem. – Olhei para as minhas
amigas com um sorriso estúpido no rosto. – Isso seria incrível.
– Amiga, senti a tua falta – disse a Lola, sorrindo-me.
– Eu também senti a tua falta. Das duas. – Eu queria prendê-las com os
meus braços e não as deixar ir embora. – Quando é que têm de voltar para a
cidade?
– O nosso comboio parte dentro de algumas horas – disse a Lola, olhando
para o telemóvel para ver a hora. – Pensámos que poderíamos ficar aqui e
incomodar-te um pouco.
Isso era ótimo. Mas o que eu realmente queria, mais do que tudo, era
voltar para a minha casa em Brooklyn. Eu queria colocar toda a energia
para fazer o meu negócio avançar e encontrar as palavras certas para
expressar ao Hayes o quanto estava arrependida em relação à forma como
as coisas terminaram entre nós. Eu estava pronta para me orgulhar de mim
mesma.
– Ou… – disse às minhas amigas, um plano bem visível na minha mente.
– Podiam ajudar-me a fazer as malas?
*

– Uau, Franny, compraste diamantes verdadeiros? – balbuciou a Lola, a


um centímetro do meu rosto, estendendo a mão para tocar o pequeno brinco
que pontilhava o lóbulo da minha orelha. Estávamos no meu apartamento, a
brindar ao meu regresso à cidade. Eu ainda andava com o orçamento
apertado, mas para comemorar esta mudança que comecei a sentir em mim
mesma, este próximo passo em frente, permiti-me um pequeno luxo.
– Eu só queria fazer algo para comemorar – disse, enxotando-a. – Não
foram assim tão caros. Era isso ou fazer franja.
– Oh, fizeste definitivamente a escolha certa – disse ela, inclinando-se
para me dar um abraço. – Estou tão orgulhosa de ti.
– Também estou orgulhosa de mim – disse eu. Na semana passada,
escreveram sobre mim no site da Town & Country, com uma apresentação
de slides sobre o meu trabalho de decoração de uma sala de jogos focada
em arte para uma casa de verão em Sag Harbor. A casa pertencia à sobrinha
da Duffy, uma das mulheres que conheci na gala graças à mãe da Cleo. E na
semana seguinte, tive a minha primeira reunião com a Serena sobre a
redecoração do seu apartamento inteiro, na qual ela parecia muito animada
em ultrapassar o orçamento. Quando vi os pequenos brincos de diamante na
Catbird, uma joalharia que eu adorava em Williamsburg, depois do brunch
do último fim de semana, pareceu-me um sinal. Um luxo que eu não só
queria, como podia pagar. Algo só para mim.
– Espera, não te mexas… tens um pouco de rímel por baixo do olho. – A
Lola estava a examinar o meu rosto com a seriedade de um investigador
forense. – Ah, não, é só uma pestana.
Ela pressionou um dedo contra a pele macia sob o meu olho e retirou a
pestana que ficou presa no topo do seu dedo indicador.
– Pede um desejo – disse ela, segurando a mão diretamente à frente da
minha boca. Detive-me por um momento, considerando as minhas opções.
Franny Doyle Design estava a começar a tomar forma. A Lola estava noiva.
E a Anna e eu andávamos a conversar por videochamada semanalmente,
conhecendo mais uma sobre a outra e as nossas vidas paralelas. Nós até
estávamos a trocar conselhos de carreira, partilhando dicas de trabalho e
histórias de clientes horríveis. Tudo estava no seu devido lugar.
Bem, quase tudo. Eu inspirei e deixei escapar um suspiro. Nas últimas
semanas, escrevi e-mails ao Hayes que nunca cheguei a enviar, comecei e
apaguei mensagens de texto e ensaiei com as minhas amigas a melhor
forma de lhe pedir desculpa. Mas nada me parecia bem. E sempre que me
sentia com coragem suficiente para premir ENVIAR, entrava em pânico ou
duvidava de mim mesma – e das minhas palavras. Mas esta noite iríamos
estar na mesma sala juntos, e eu não podia adiar mais. Prometi a mim
mesma que, quando tivesse hipótese, contaria ao Hayes exatamente o que
sentia: eu tinha estragado tudo. Estava arrependida. E daria tudo para tentar
outra vez.
Isto não significava que já não estava com medo. Eu agora sabia que iria
sempre sentir dúvidas e medo, que duvidaria de mim mesma outra vez. Mas
eu também era a Franny Doyle. Eu era, como o Hayes me dissera uma vez,
uma mulher que não aceitava tretas de ninguém, e isso incluía-me a mim
mesma.
A Cleo saiu da casa de banho, com a maquilhagem perfeita. Bati palmas
em aprovação. Ela respondeu com uma reverência curta.
– Devemos abrir o champanhe antes de sairmos?
A Lola correu até ao frigorífico e tirou a garrafa de Dom Pérignon,
presente de noivado do seu chefe.
Passou a garrafa à Cleo, a especialista em abrir garrafas de champanhe do
grupo. Gritámos quando a rolha estourou, rindo de nós mesmas enquanto a
Cleo enchia os copos de vinho com champanhe. Normalmente, todas nós
teríamos taças de champanhe. Mas hoje não.
A Cleo deu o pontapé de saída.
– Um brinde, à última pessoa que qualquer uma de nós pensou que se
casaria primeiro.
– Ei! – protestou a Lola quando a Cleo lhe fez um olhar compreensivo. –
Quero dizer, ninguém está mais surpreendida do que eu – admitiu ela com
um sorriso.
– Estamos tão felizes por ti, Lo – continuou a Cleo, a sua voz agora séria.
– Estamos mesmo, e amamos-te mais do que tudo no mundo – disse eu. –
À Lola e ao amor.
– E à amizade – acrescentou a Lola, levantando o copo. – A nós.
CAPÍTULO VINTE E OITO
HAYES

A Lola e a Perrine tinham reservado o piso inteiro do Adelphi and


Willoughby, um novo restaurante badalado em Brooklyn. Quando entrei,
dirigi-me ao bar – todo revestido a mármore branco iluminado com velas
votivas – e pedi um uísque duplo com gelo, algo para acalmar os meus
nervos.
Quando a Perrine e a Lola me pediram para fazer um brinde na sua festa
de noivado, eu aceitara imediatamente. Foram necessários três rascunhos
diferentes e alguma ajuda da Eleanor, mas finalmente cheguei a algo que
parecia pessoal. Eu só esperava ser capaz de proferir as palavras à frente de
todas estas pessoas.
À frente da Franny.
Tentei afastar o pensamento dela da minha mente enquanto caminhava
em direção à sala cheia, embora estivesse a olhar para cada rosto que
passava para ver se era ela. Não que eu não gostasse de pensar nela. Eu
visitava-a na minha mente quase todas as noites, lembrando como apenas o
toque do seu corpo me fazia doer de desejo, a sua pele macia sob as minhas
mãos enquanto estas tentavam percorrer cada centímetro dela. Imaginei
como seria dormir ao seu lado numa noite normal de trabalho, para acordar
com ela no dia seguinte, fazendo as nossas rotinas matinais, juntos.
Mas esta noite era da Perrine e da Lola, e o seu amor. Estava na hora de
colocar o meu ar decidido. Então, retirei um copo de água com gás de uma
bandeja de bebidas e caminhei até onde a Eleanor e o Henry estavam a
conversar com alguns médicos amigos da Perrine.
– Ei – disse eu enquanto eles abriam o seu círculo para me incluir. – Eu
trouxe isto para ti, caso estejas com sede.
– Já viram este tipo? – disse a Eleanor, tirando o copo de água da minha
mão com um sorriso de adoração. – O melhor sócio do mundo.
Ela virou-se para mim enquanto o Henry entretinha o grupo com uma
história sobre a vez em que partiu a perna enquanto esquiava com a Perrine,
a Eleanor e eu.
– Estás bonito – disse ela, olhando para a minha roupa.
– Obrigado – disse eu, passando as mãos ao redor da gola e ajustando-a. –
Na verdade, comprei-o para esta noite. Ficarias horrorizada se soubesses
quantos fatos experimentei tentando escolher o certo.
– Oh, eu posso imaginar – brincou ela. – Estás a tentar impressionar
alguém?
– Sim, estou – respondi com um aceno de cabeça. O meu fato era do tom
mais escuro de verde-floresta e lembrou-me imediatamente os olhos da
Franny. Combinei-o com uma camisa branca sem gravata. Tinha pensado
muito sobre isto.
– Assumi que sim, mas é bom ouvir-te admitir isso – disse ela, e então
ergueu o copo. – Um brinde a ti, Hayes Montgomery. Espero que recuperes
a rapariga.
Assim que os nossos copos se tocaram, vi os olhos da Eleanor a ficarem
animados com algo por cima do meu ombro.
– E agora é a tua oportunidade – disse ela, apontando discretamente com
o queixo. – Atrás e à tua direita.
Virei-me lentamente e lá estava ela, a apenas seis metros de distância.
Estava ao lado da Cleo, a rir de algo que alguém estava a dizer. Eu só
conseguia vê-la de perfil, mas mesmo de lado ela era linda, um vestido de
seda preto abraçando-a em todos os lugares certos.
Voltei-me para a Eleanor, que se limitou a inclinar a cabeça na direção da
Franny com um firme «Vai!». Era uma ordem. Mas antes que eu pudesse
dar um passo em direção a ela, um tilintar de copos soou ao redor da sala.
Todos se viraram para a frente do bar, onde a Lola e a Perrine estavam, os
braços em volta uma da outra, tão seguras e confiantes do seu amor e da
vida futura juntas. Eu sabia que isso significava que era hora do meu brinde,
por isso apressei-me em direção a elas enquanto a multidão explodia em
aplausos – as futuras noivas estavam a beijar-se – e cheguei ao lado delas
quando o barman se inclinou para me entregar um microfone.
A multidão acalmou-se, eu respirei fundo e depois expirei lentamente, tal
como a aplicação de meditação no meu telemóvel me instruiu a fazer. De
seguida, ergui o meu copo.
– É uma honra fazer parte da celebração desta noite e oferecer um brinde
às futuras noivas – disse ao microfone. Respirei fundo e devagar, e depois
bebi um gole de uísque. Senti-me um pouco melhor. – Sou primo da
Perrine, Hayes, embora para mim ela seja mais como uma irmã. Crescer
juntos significou que me habituei a tê-la por perto e, honestamente, tomei a
Perrine e todas as suas incríveis qualidades como garantidas. Vocês sabem,
coisas como o seu sentido de humor sarcástico, como ela sempre se oferece
para nos levar ao aeroporto, e como ela de alguma forma consegue queimar
cada saco de pipocas que coloca no micro-ondas.
Isto fez a multidão rir, e eu sorri, mexendo-me um pouco. Eu estava a
entrar na onda, e começava a sentir-me bem. Enquanto falava, procurei na
multidão o rosto da Franny, mas não o encontrei.
– Mas a única coisa que eu nunca dei como garantida é a sua capacidade
de amar. Ela é gentil e generosa, e dá tudo de si às pessoas que ama. E com
ninguém isso é mais evidente do que quando ela está com a Lola.
Houve um «ahh» coletivo da multidão, e então a sala tilintou novamente
com o som de pessoas a bater nos copos com os talheres. As futuras noivas
beijaram-se outra vez, e todos responderam com aplausos. Eu ergui o meu
copo na direção delas, e a multidão imitou-me. Se parássemos para fazer
isto a cada poucos segundos, estaríamos todos bêbados no final do meu
brinde. Prossegui.
– E, Lola, tem sido muito divertido conhecer-te não só como noiva da
Perrine, mas também como amiga.
A Lola esticou o lábio inferior e pressionou a mão no coração,
murmurando um «Obrigada» para mim.
– Há uma fala no filme Feitiço da Lua – fiz uma pausa, nervoso com esta
parte do meu discurso – que uma pessoa muito inteligente uma vez me disse
que é «a maior história de amor de Nova Iorque de todos os tempos».
Enquanto falava, procurei novamente a Franny na multidão, mas não
consegui encontrá-la em lado nenhum.
– O personagem de Nicolas Cage diz: «O amor não melhora as coisas,
arruína tudo. Parte o nosso coração. Cria uma desordem geral. Nós não
estamos aqui para fazer tudo perfeito. Os flocos de neve são perfeitos. As
estrelas são perfeitas. Nós não.» Bem, vocês, Perrine e Lola, estão tão perto
da perfeição quanto um casal pode almejar. Então, vamos todos brindar ao
amor, por mais confuso e imperfeito que possa ser.
E naquele momento, enquanto todos à nossa volta erguiam os copos e
brindavam, avistei a Franny lá atrás. Os seus olhos encontraram os meus, e
eu sustentei o seu olhar, tentei transportar tudo o que sentia por ela através
da sala com aquele olhar. Meu Deus, ela era tão bonita.
Pisquei os olhos e desviei o olhar, dando um passo atrás e esbarrando na
Lola.
– Bom trabalho, futuro primo. – Ela inclinou-se para um abraço. – Quase
me fizeste chorar. Quase.
– Eu vou assumir que isso é um elogio – provoquei.
Ela assentiu com a cabeça e deu-me uma palmadinha afetuosa no ombro
antes de se voltar para a Perrine, o que significava que eu poderia continuar
a tentar estabelecer contacto visual com a Franny. Olhei para onde ela
estava parada, mas ela já se tinha ido embora. Vasculhei a sala em pânico e
vi-a a abraçar a Cleo antes de caminhar em direção à porta. Raios.
Passei pelo grupo de convidados, sorrindo e acenando para as pessoas
enquanto tentava não ir contra ninguém e andava o mais rápido que podia
num restaurante mal iluminado. Quando consegui passar pelo balcão da
entrada, a Franny já tinha saído há muito tempo, e eu preparei-me para a
deceção que se seguiria. Abri a porta de vidro e saí para o passeio.
E ali, sob a luz da rua, ela estava parada, de costas para mim, a saltitar.
Dei alguns passos para me aproximar, e ouvi-a a falar. Por um segundo,
pensei que poderia estar ao telemóvel, mas então percebi que estava a falar
sozinha.
– Franny? – disse eu timidamente, ainda sem saber o que ela estava a
fazer.
Ela virou-se, com a boca aberta.
– Oh, meu Deus – disse ela quando me viu, e o seu rosto parecia um
pouco horrorizado. – Ouviste o que eu estava a dizer?
– Não – respondi, e o facto de vê-la de novo fez com que me fosse difícil
formar palavras. – Olha.
– Olha. – Ela expirou, e depois disse com uma voz trémula: – Eu quero
simplesmente dizer isto.
As suas mãos estavam fechadas ao lado do corpo, e ela olhou-me
diretamente nos olhos.
– Desculpa – disse ela, com uma inclinação do queixo. – Desculpa. O que
fizeste por mim quando a minha mãe sofreu o ataque cardíaco, levar-me ao
hospital para eu poder ficar com ela quando tinhas tanta coisa para fazer, foi
tão simpático da tua parte, e eu em vez de agradecer, ataquei-te e disse-te
um monte de coisas que não queria dizer.
Clareei a garganta, passei a mão pela nuca. Procurei palavras na minha
cabeça, mas não encontrei nada.
– Olha – disse ela, movendo as mãos para mantê-las juntas à frente do
peito. – Eu estava realmente com medo, de tudo. A minha mãe, encontrar a
minha irmã, perder o meu pai biológico, começar o meu próprio negócio, e
os meus sentimentos por ti. Eu realmente deixei que tudo isto atrapalhasse
tantas coisas, e estou a esforçar-me muito para não o fazer de novo. Além
disso, foi muito mau da minha parte não responder às tuas mensagens. Não
tenho outra desculpa, para além de que estava com medo e de ser uma
idiota.
– Tu não és uma idiota – disse eu, tentando acompanhar as palavras que
lhe saíam da boca em alta velocidade.
– Ocasionalmente, eu posso ser uma idiota – exclamou ela, e eu soltei
uma pequena risada com isso, porque era algo que a Franny diria, e, ah,
como eu sentia falta dela. – Então – disse ela, soltando um suspiro –, eu só
vou dizer isto. Amo-te. Estou apaixonada por ti.
As palavras espalharam-se no ar, rodearam-me, fazendo com que não
conseguisse mexer-me.
– Tu deixas-me louca de todas as melhores maneiras possíveis, e passar
os últimos dois meses sem ti foi o período mais miserável da minha vida.
Sinto falta de falar contigo e de como às vezes dizes as coisas mais
engraçadas.
O seu tom de voz era alto e enfático, e pelo canto do olho vi uma mulher
a passear o cão que parou para ouvir a nossa conversa. Que parou para ver a
Franny enquanto ela me dizia que me amava.
– Sinto falta de falar contigo também – foi tudo o que eu consegui dizer.
Havia tanta coisa que queria dizer que estava enredado num nó dentro da
minha mente. Procurei um fio para puxar, para arrancar as palavras que
pudessem realmente representar o modo como me sentia. Mas também
existia algum pânico à mistura; a Franny sabia sempre exatamente o que
dizer. E se a minha resposta fosse insípida?
– És engraçado, sabes? – perguntou ela, acenando com as mãos para mim,
o cabelo a balançar levemente enquanto falava. – E és um ótimo ouvinte, e
és gentil. Eu adoro a forma como as tuas bochechas fazem isso. – Ela
gesticulou em direção ao meu rosto, e eu estendi a mão para tocar as minhas
bochechas, como se houvesse algo nelas. – Quando estás nervoso ou a
pensar. Ou ambas as coisas. Além disso, és estupidamente sexy. Eu sei que
é superficial, mas não consigo evitar. És simplesmente sexy, é um facto. E
beijas bem.
Ela parou de falar e susteve a respiração.
– E, pronto – afirmou ela, a sua voz a acalmar-se um pouco. – Acho que é
tudo.
Cada músculo do meu corpo parecia tenso, esticado como um elástico
prestes a quebrar. Eu tinha de lhe dizer. Tinha de encontrar coragem para
expressar os meus sentimentos ao mundo, assim como ela fizera. Mas, em
vez disso, senti-me bloqueado, como se tivesse sido plantado ali, no
cimento.
– Não tens de dizer nada – disse ela. – E não tens de aceitar as minhas
desculpas. Eu só quero que saibas que sinto muito, e que te amo, e que
gostaria que nunca te tivesse excluído da minha vida como fiz. Mas estou
tão feliz por te ter conhecido, Hayes. Mesmo que isso exigisse que as
minhas roupas me caíssem literalmente do corpo em público. Eu faria tudo
outra vez só para te conhecer.
Dei um passo para me aproximar de onde ela estava, pensando que
poderia abraçá-la. Mas em vez disso, enfiei as mãos nos bolsos.
– Eu não sei o que dizer – gaguejei, finalmente encontrando algumas
palavras, embora fossem todas erradas.
– Tudo bem. – A sua voz falhou, mas ela estava a sorrir. O seu rosto
estava a brilhar como eu nunca tinha visto, como uma moeda novinha em
folha. – Tenho de ir.
– Espera, o quê? – Pisquei os olhos, tentando processar tudo o que estava
a acontecer naquele instante. Mas antes que eu pudesse dizer mais alguma
coisa, ela disparou, correndo pelo quarteirão e virando a esquina para a
escuridão da cidade. E com ela foi a oportunidade de lhe dizer a única coisa
que queria dizer mais do que tudo: Eu também te amo.
CAPÍTULO VINTE E NOVE
FRANNY

É engraçado como, justamente quando pensas que sabes o que o teu


cérebro vai fazer, ele vai e faz o oposto. Achei que ia passar a noite às
voltas na cama, a repetir na minha cabeça o meu encontro com o Hayes
uma e outra vez. Em vez disso, no segundo em que cheguei em casa,
aterrei. Tirei o vestido e fui para a cama sem escovar os dentes. Saí da festa
imediatamente depois de termos falado, tão excitada e exaltada por causa da
adrenalina de lhe dizer a verdade e me desculpar, que o meu corpo
simplesmente correu para o metro. Mas assim que cheguei a casa, algo
dentro de mim acionou o botão OFF e eu apaguei-me antes mesmo das dez
horas.
E quando acordei às 5h00 com um sobressalto, não senti um pingo de
arrependimento pelo que lhe tinha dito. Não havia nada para retirar, ou
refazer e alterar. Quem diria que seria tão libertador ser sincera e direta, não
apenas com o Hayes, mas comigo mesma?
O seu silêncio, porém, tinha doído. Eu queria que ele se tivesse colocado
de joelhos, declarasse a sua adoração por mim, dissesse todas as coisas que
eu precisava de ouvir. Em vez disso, ele ficou apenas ali. Talvez não se
sentisse da maneira que eu queria, e acho que estava na hora de aceitar isso.
Mas mesmo que a sua reação me tenha magoado, eu fiz exatamente o que
queria fazer, e sentia-me absolutamente em paz com tudo. Isso não
significava que não estava desesperadamente triste sem ele, e as suas piadas
chocantemente engraçadas e a sua adorável palermice e a forma como
beijara o meu pescoço no escuro como se fosse algo de valor, e não apenas
uma massa estranha de pele que ligava o meu corpo à cabeça. Eu sentia
falta de tudo nele. Mas também sabia que ia ficar bem. E saber isso era
bom.
Às seis, percebi que não seria capaz de voltar a adormecer de forma
alguma. Então, vesti umas leggings, um sutiã desportivo e uma camisola
gigante da NYU que tinha uma mancha de café na frente e que deveria ter
ido para a lavandaria em vez de estar no meu corpo. Peguei numa nota de
dez dólares, nos meus óculos escuros e na chave, coloquei protetor solar no
rosto e um chapéu na cabeça e saí para caminhar. Estava fresco, e o Sol
ainda estava a nascer. Não tinha o telemóvel para me orientar; deixara-o em
casa para poder aclarar as ideias: sem música, sem mensagens para amigos,
sem GPS. Apenas eu.
Mas uma hora e meia depois, a dar passo após passo após passo, algo se
tornou óbvio: toda esta lucidez, honestidade e o ter-me expressado tinham-
me deixado com muita, muita fome.
Acabei em Carroll Gardens e dei comigo numa loja de bagels a que nunca
tinha ido. Agarrei num bagel com tudo e num café e sentei-me na pequena
área de refeições. No canto estava um pai a fazer caretas para o filho
risonho, e à minha frente estava sentado um casal de idosos a mastigar
bialys. Por cima, havia uma TV que passava publicidade, o volume baixo.
Mastiguei devagar e observei; era estranho não ter o meu telemóvel para
olhar. De repente, o programa matinal da NYN estava no ecrã, e os meus
velhos amigos Pete e Jenna. A minha aparição na TV fora há tanto tempo
que eu agora quase não conseguia acreditar que tinha acontecido. Mas ainda
me lembrava de tudo em pormenor, desde o som do meu vestido a rasgar
até à primeira vez que os meus olhos cruzaram os dele, até ao momento em
que pontapeei a perna dele nervosamente por baixo da mesa no nosso
encontro de café ao vivo. E agora as nossas vidas estavam intrinsecamente
ligadas, por causa de um pequeno momento que desencadeou uma cadeia
de eventos como fogos de artifício.
Eu estava tão submersa nas minhas memórias que demorei um segundo a
perceber que o Hayes estava agora no ecrã por cima de mim. Hayes.
– Desculpe! – Gritei para a adolescente que trabalhava atrás do balcão. –
Pode aumentar o som da TV, por favor?
Ela deslizou um controlo remoto pelo balcão, e eu agarrei-o,
pressionando o botão de volume até a voz do Pete ficar audível.
– … antigo convidado de que talvez se lembrem de um momento que se
tornou viral na primavera passada, quando ele apareceu para ajudar uma
mulher cujo vestido se tinha rasgado no metro.
O Hayes sorriu, e apareceu uma fotografia, que preenchia todo o ecrã, de
nós sentados um ao lado do outro durante a entrevista.
– Esta sou eu! – disse eu em voz alta, sem pensar. Todos se viraram para
olhar.
– A sério? – disse o homem mais velho, ajustando o boné como se isso o
ajudasse a ver melhor.
– Sim – respondi, um pouco na defensiva. – Só que ali eu tinha muita
maquilhagem. E estava sem chapéu.
– Hayes – continuou a Jenna. – Entrou em contacto com a nossa
produtora ontem à noite, para pedir ajuda, e sorte a sua, tivemos uma
desistência e por isso podemos recebê-lo esta manhã. Então, diga-nos o que
precisa do nosso público.
Ele aclarou a garganta, e notei que tinha as mãos apertadas no colo.
Parecia nervoso, como uma criança num concurso de ortografia, e o meu
coração compadeceu-se dele.
– Bem, a mulher que mencionou, a Franny, que eu conheci no metro… –
começou ele. – Na verdade, demo-nos bem. E ontem à noite, ela disse-me
que me amava.
– Que emocionante! – A Jenna cerrou as mãos em punhos e gritou de
contentamento. Gritou.
– Bem, honestamente, como ela bem sabe, muitas vezes fico bloqueado.
E por isso não tive a oportunidade de lhe dizer como me sentia.
– Que é? – perguntou o Pete, incitando-o com a mão.
– Bem, eu estou apaixonado por ela – afirmou ele.
Eu levei as mãos ao rosto. Atrás de mim, a adolescente no balcão disse:
– Espere, ele está a falar de si?
O Hayes continuou.
– E deveria ter-lhe dito no segundo em que o percebi, mas vocês sabem
como é quando o cérebro é mais lento do que o coração.
A Jenna derreteu-se com isto. Até o rosto do Pete se suavizou com um
sorriso tolo.
– Bem, então, quando ela me disse ontem à noite, eu paralisei – continuou
ele. – E é por isso que entrei em contacto com a vossa produtora, a Eliza.
Juntaram-nos no vosso programa uma vez, por isso espero que talvez o
possam fazer acontecer outra vez. Acho que percebi, que a melhor maneira
de dizer à Franny que a amo é dizê-lo ao mundo inteiro.
A Jenna apertou um cartão de notas contra o peito.
– As pessoas fazem coisas loucas por amor – disse ela.
O Hayes assentiu.
– Acho que sim.
A câmara voltou para o Pete e a Jenna, e desta forma, o Hayes
desapareceu.
– Oh, meu Deus! – disse a idosa perto de mim, limpando os lábios com
um guardanapo. – Você tem de encontrar este jovem.
O pai no canto estava a apontar para mim e depois para a TV, explicando
ao filho o que acabara de acontecer. Atrás do balcão, mais duas empregadas
juntaram-se à primeira e estavam a olhar para mim.
Eu senti-me surpreendentemente calma. Muito calma. Estava em choque.
Amor-choque. Eu precisava de ir ter com o Hayes.
– Eu não… Eu não sei onde ele está – gaguejei. – Além disso, gastei todo
o meu dinheiro no pequeno-almoço. Não tenho o suficiente para um
MetroCard.
– Bem, se ele está na New York News, está no Rockefeller Center – disse
o pai, ainda a brincar com o filho no colo. – Vá lá.
O idoso inclinou-se para a frente na cadeira, e tirou uma carteira do bolso
de trás.
– Tome – disse ele, entregando-me um MetroCard amarelo. – Eu tenho
sempre um comigo com pelo menos dez viagens, por precaução.
– Eu não devia aceitar, mas vou fazê-lo – disse, apertando-o contra o
peito. – Muito obrigada.
– Ele é giro! – gritou a mulher dele para mim enquanto eu corria para a
porta. – Vá atrás dele.
E lá fui eu, fazer exatamente isso.
*

Eu não tinha relógio nem telemóvel para controlar o tempo, mas parecia
que o metro avançava lentamente de Brooklyn para a cidade. Era fim de
semana, por isso parava em todas as estações, e a sensação de calma que se
tinha instalado em mim na loja de bagels havia desaparecido há muito
tempo. Eu estava agora um desastre completo: uma confusão de pés a
balançar, a roer as unhas, mangas torcidas. O Hayes também estava
apaixonado por mim, e agora cada segundo que não estávamos juntos era
uma completa perda de tempo.
O metro entrou na estação de Rockefeller Center, e eu corri assim que as
portas se abriram. Subi as escadas a correr, passei pelas lojas que se
alinhavam nos corredores da estação, e depois encontrei-me do lado de fora,
na esquina da Sixth Avenue com a Fifty-First Street.
– Raios! – Esquivei-me através da multidão de pessoas que já
monopolizavam o passeio. Dois quarteirões sem fôlego depois, eu estava
perto do estúdio da NYN. Demorei um minuto a recuperar o fôlego, mãos
nos joelhos, ofegante ao lado de um poste de iluminação. Olhei ao redor
enquanto o mundo se movia rapidamente por mim. Eu ri-me, em voz alta,
com o ridículo disto tudo. Seria impossível encontrá-lo no meio deste caos.
Olhei para baixo. Na minha saída frenética da loja de bagels, espalhara
queijo creme na parte da frente da camisola.
Claro.
O meu grande plano de encontrar o Hayes quando ele saísse da NYN
estava a ser rapidamente arruinado pela realidade. Virei a esquina para
caminhar pela rua, passando pelas multidões e pelas lojas que vendiam
produtos turísticos, em direção ao centro do Plaza.
De repente senti-me incrivelmente estúpida. O que é que eu estava a
pensar, correndo para aqui a cheirar a bagel com o MetroCard de um
desconhecido na mão?
Eu tinha de voltar para Brooklyn, onde pelo menos poderia tomar banho e
passar um pouco de rímel e depilar as pernas, e depois ligar-lhe e ir ter ao
apartamento dele e despir-me imediatamente e subir para cima dele. Este
era um plano muito melhor.
Saí de toda aquela loucura de turistas e fui pela Fifth Avenue, até à Grand
Central Station. O átrio principal estava calmo para uma manhã de sábado.
O espaço lembrava-me sempre uma biblioteca, com as suas janelas gigantes
de vidro e o teto celestial em arco.
Andava pelo chão de mármore, em direção ao longo corredor que levava
às linhas do metro, quando alguém alguns passos à minha frente deixou cair
um maço de dinheiro. Corri para apanhá-lo e levantei a cabeça para
perceber para que lado ele tinha ido.
– Desculpe – gritei, mas sendo Nova Iorque, ninguém se virou. – Ei! –
disse, correndo um pouco para dar uma pancadinha no ombro do
desconhecido. Movi-me tão rápido que não consegui processar a forma do
homem, o corpo comprido, o cabelo grosso. Mas no segundo em que lhe
toquei, eu soube, mesmo antes de ele se virar.
Era o Hayes.
Ele parou tão abruptamente que eu ainda estava em movimento, e
cambaleei contra o seu peito, a minha cabeça a bater-lhe no ombro e o meu
pé direito a pisar com força o seu sapato.
– Au – resmungou, dando um passo atrás, a sua mão no meu cotovelo. –
Minha senhora, está b… Oh, meu Deus.
Ele inclinou a cabeça para conseguir ver o meu rosto sob o chapéu.
– Franny?
– Deixaste cair algum dinheiro. – Foram as primeiras palavras que saíram
da minha boca quando abri a mão.
– O que estás a fazer aqui? – perguntou ele incrédulo.
– Eu vi-te na TV – expliquei, como se fosse a coisa mais óbvia do
mundo. – Fui ao Rockefeller Center para ir ter contigo.
– Mas estamos na Grand Central – disse ele, as suas sobrancelhas ainda
interrogativas, rosto perplexo.
– Eu sei. Não consegui encontrar-te, por isso agora ia a caminho de casa.
Mas aqui estás tu. – Ficámos ali durante um segundo, ainda. – Espera –
disse eu, apercebendo-me de algo. – Senhora? Eu pareço assim tão velha?
Ele riu-se, como se não conseguisse acreditar no que eu estava a dizer.
– Eu estava a tentar ser educado, tu assustaste-me.
– Como é que achas que me sinto? Eu estava tranquilamente a comer
quando surgiste na TV na loja de bagels!
Foi então que percebi que a sua mão ainda estava no meu braço, e
aproximei-me dele, desesperada por poder respirá-lo.
– Franny – disse ele, segurando o meu rosto com a mão livre. – Queres
voltar e acabar de comer o teu bagel ?
A boca dele mudou para um sorriso brincalhão, e eu bati-lhe no ombro e
depois deixei a minha mão mover-se lentamente pelo seu peito.
– Não, seu idiota. Eu só quero estar aqui, contigo.
Ele sorriu, e depois os seus longos braços envolveram-me, pressionando-
me contra ele, quente e firme, o seu queixo a descansar em cima da minha
cabeça. Estendi os braços à sua volta e abracei-o.
– Gosto do teu casaco – murmurei no seu peito. – Gucci? – brinquei.
– Não, algo novo. Birch and Fole.
Não reconheci o nome.
– O que é isso? – perguntei, afastando-me para olhar para ele.
– Uma empresa de roupas sustentável e inclusiva de género com foco em
práticas éticas – disse ele, beijando o topo da minha cabeça. – Achei fixe.
– Uau, eu nunca pensei que veria o dia em que não vestisses um fato de
marca por medida.
– Bem, eu conheci uma mulher – a voz do Hayes era suave e baixa – e
estou a tentar impressioná-la.
– Aposto que ela gosta de ti, independentemente do que vestes – disse eu,
inclinando a cabeça para sorrir para ele.
– Bem, isso é bom, porque ela vai sair muito com ele, e ele gosta
principalmente de usar camisolas velhas da faculdade.
– E se ela gostar mais dele quando está nu? – questionei, gostando deste
jogo que estávamos a jogar.
– Eu acho que eles podem arranjar uma solução – respondeu ele com um
aceno da cabeça.
– Boa – disse eu.
Estendi a mão para o seu rosto e esfreguei o meu polegar na sua barba
macia. Ele inclinou-se e beijou-me suavemente, deixando os dentes roçarem
a borda dos meus lábios.
– Hayes – murmurei enquanto me preparava para lhe beijar o rosto, e
depois o pescoço.
– Sim? – Ele deslizou os braços em volta da minha cintura.
Eu afastei-me e olhei para ele.
– Eu amo-te.
– Eu também te amo, Franny.
– O que fazemos agora? – perguntei.
– Eu não tenho nenhum plano – disse ele, alcançando a minha mão, e
apertando-a. – Ias para Brooklyn? – perguntou, os seus olhos a estudarem-
me.
Eu assenti com a cabeça.
– Vens comigo? – disse eu. – É estranho perguntar isso?
Ele abanou a cabeça, o seu rosto tão sério que derreteu o meu coração.
– Não é nada estranho.
Descemos os degraus até ao metro, passámos os nossos MetroCard pelo
torniquete.
– Um idoso muito querido deu-me o seu MetroCard esta manhã para que
eu pudesse vir ter contigo – exclamei enquanto o guardava de volta no
bolso. – Talvez seja o meu amuleto da sorte.
A plataforma estava em silêncio, a correria do fim de semana ainda estava
para acontecer. Perto dali algumas pessoas circulavam, perscrutando os
carris à espera do metro. Ao longe, um saxofone gemeu. Era Nova Iorque
na sua forma mais pura, despretensiosa, pacífica e bem desperta.
– Eu reproduzi o momento em que nos encontrámos tantas vezes – disse
ele, o seu polegar a desenhar pequenos círculos no topo da minha mão. –
Teria agido de forma diferente se pudesse voltar e fazer tudo de novo.
– Tipo, como? – perguntei, genuinamente curiosa.
– Ter-me-ia apresentado, para começar – disse ele. – Achei-te tão bonita.
– Eu achei-te – encolhi os ombros, fiz uma cara de tédio – apenas OK.
Mas pus-te a alcunha de Sexy de Fato.
Ele riu-se e puxou-me para perto dele, beliscando o meu pescoço na
brincadeira.
– Tive tantas saudades tuas – disse ele, os lábios pressionando a minha
pele.
– Eu sei que já te disse ontem à noite – respondi –, mas vou dizer de
novo: desculpa por me ter afastado e desculpa por ter deixado de falar
contigo.
Ele inclinou-se para trás e levou a mão ao meu queixo, inclinando a
minha cabeça para que os nossos olhos se encontrassem.
– Mas não deixaste. Encontrei o teu bilhete no meu bolso, depois de as
coisas terminarem entre nós. Era exatamente o que eu precisava de ouvir de
ti, no momento exato.
O metro do centro da cidade interrompeu-nos, passando a rugir até parar.
Juntos, passámos as portas e sentámo-nos. A carruagem estava praticamente
vazia.
– Penso em ti sempre que entro no metro. O dia em que nos conhecemos.
E tudo o que aconteceu depois. – Ele passou o braço em volta do meu
ombro, e eu encostei-me a ele, tão forte e quente.
– Vamos fazer isso outra vez – disse eu, sorrindo com a ideia a
desabrochar na minha cabeça.
– O que queres dizer? – Ele fez um olhar cético, um que eu aprendi a
conhecer e a amar. Era o olhar que ele fazia quando o seu cérebro estava a
trabalhar, a analisar, a procurar uma lógica. Era um olhar tão característico
do Hayes que o meu coração doía de amor por ele, por ser exatamente e
perfeitamente igual a si mesmo.
– Conhecer-nos. – Passei a mão pela sua coxa, apertando-a. – Vamos
fazer as coisas como deve ser desta vez.
O Hayes riu-se enquanto passava a mão pelo cabelo.
– OK.
– Franny Doyle – disse eu. Estendi a mão e o Hayes apertou-a. – Acabei
de ser demitida, estou-me a passar, e acho que é muito bonito, mesmo que
não consiga admitir isso durante algum tempo.
– Hayes Montgomery III. Embora eu deixe de lado o «III», porque é
pretensioso e embaraçoso. Acho-a encantadora e linda, o que também me
irrita, porque gosto de estar no controlo das minhas emoções e de tudo o
resto.
– Prazer em conhecê-lo. – Mantivemos as mãos unidas, embora
tivéssemos parado de as agitar. – Devíamos sair juntos um dia destes. O que
faz na próxima semana?
O Hayes fez uma pausa, o seu sorriso a diminuir ligeiramente.
– Na verdade – ele susteve o seu olhar no meu –, eu estava a pensar em ir
a Itália.
– Espera, o quê?
– Lembras-te do leilão silencioso, no Museu de História Natural? As
férias em Itália de que não tiravas os olhos?
– Licitaste? – perguntei.
Ele assentiu.
– E ganhei – afirmou ele, e depois virou-se para olhar para mim. – Quero
dizer, tecnicamente, nós ganhámos.
Eu fiz um olhar inquiridor.
– O que queres dizer?
– Eu tinha planeado oferecer-te – explicou ele, esfregando o polegar ao
longo da minha palma, a sua mão ainda na minha. – Mas quando nós…
quando deixámos de nos falar, parecia absurdo despejar uma coisa destas
para cima de ti. Mas… – Ele olhou para mim, hesitante. – Mas podíamos ir
quando quisesses.
Eu fiquei apenas a olhar para ele, a boca entreaberta num sorriso
perplexo.
– Tens de saber – disse ele, passando a outra mão sobre a minha coxa –
que no fundo eu sou pateticamente romântico e piegas, certo?
– Eu realmente gosto disso em ti – exclamei, e dei-lhe um pequeno beijo
no queixo.
– De qualquer forma, os bilhetes são teus, e podes fazer o que quiseres
com eles, é claro. Mas disseste-me quando nos conhecemos que me devias
uma. Talvez eu possa finalmente cobrar isso.
– Acho que podemos dar um jeito – provoquei. – Mas preciso de te
avisar, que vou adormecer no teu ombro no avião. E eu babo-me.
– Não te preocupes – disse ele, com aquele sorriso juvenil que fazia o
meu corpo inteiro vibrar. – Eu já sei isso sobre ti, e não me importo. Gosto
de ti na mesma.
Ele ergueu a mão e virou o meu chapéu para trás.
– Estás linda com isto – disse ele, batendo na pala antes de se inclinar
para me beijar, os seus lábios macios e urgentes. – Também queria fazer isto
da primeira vez que nos encontrámos.
As portas do metro abriram-se na paragem seguinte, e olhámos os dois
para cima. Não estávamos a ir em direção a Brooklyn. No nosso torpor,
devemos ter ido para a plataforma errada. Estávamos num metro em direção
à zona residencial.
– Franny – disse ele, apontando para a placa da estação enquanto as
portas se fechavam –, este não é o metro certo. Estamos a ir na direção
errada.
Eu ri-me e olhei para ele, pegando-lhe na mão e levando-a aos meus
lábios para um beijo.
– Bem, vamos lá, então – disse eu. – E vejamos aonde nos leva.
AGRADECIMENTOS

Quero primeiro agradecer a todas as pessoas que vão diretamente para os


Agradecimentos antes de ler um livro. Eu compreendo-as. Também sou
assim. Bem-vindo, e obrigada por estar aqui.
Nada disto seria possível sem Holly Root, que é verdadeiramente um dos
seres humanos mais fantásticos da Terra e uma agente incrível para
começar. Tenho muita sorte por poder contar com ela. Muito obrigada a
toda a equipa da Root Literary por tudo o que fazem, e um agradecimento
especial a Alyssa Moore, por estar a par de tudo.
A minha editora, Amy Pierpont, é uma brilhante feiticeira das palavras
que deu asas a este livro. Estou muito grata pela sua orientação e apoio
atenciosos durante todo este processo, e sou uma pessoa melhor por causa
disso. E este livro também!
Estelle Hallick, obrigada por estar a bordo desde o primeiro dia e por tudo
o que fez para partilhar este livro com o mundo.
Tenho muita sorte e gratidão por trabalhar com a talentosa equipa da
Forever, incluindo Sam Brody, Daniela Medina, Carolyn Kurek e a revisora
de texto Elizabeth Johnson.
Kate Sweeney, Annie Sklaver-Orenstein, Bridget Maloney-Sinclair, Joy
Engel, Gwen Mesco, Eirene Donahue, Emily Barth Isler e Tanya Doyle-
Gradet leram vários rascunhos deste livro. Obrigada pelas vossas notas,
feedback, (estou a falar de ti, Gwen!) e claque. Significa muito para mim.
A proeza editorial de Heather Lazare ajudou a moldar este livro de forma
significativa.
Kristin Dwyer tem sido uma luz orientadora durante todo este processo.
Laine Hammer partilhou uma visão inestimável que me permitiu criar as
experiências de vida da Franny de uma maneira mais autêntica.
Doree Shafrir, obrigada por ler um rascunho deste livro e me assegurar
carinhosamente que, na verdade, fazia sentido. É uma parceira de negócios
e amiga maravilhosa e responderei com prazer à pergunta «O que mais
gosta em Doree?», até ao fim dos tempos.
Samee Junio, Sam Reed, Sara Robillard – obrigada por tudo o que vocês
fazem para manter o nosso podcast a funcionar, especialmente durante
todos os prazos dos livros.
Para toda a comunidade de ouvintes do Forever35: Vocês todos são
efetivamente os melhores. São como uma família para mim, e estou muito
grata por todo o amor que expressaram durante este processo.
Obrigada ao The Pile por estar lá, sempre, e por escrever! Escrever!
Escrever! Pelo apoio e generosidade sempre que o procurava com uma
pergunta ou preocupação. Eu não conseguiria ter terminado este livro sem
isso.
Este livro não teria sido escrito sem a música de Phoebe Bridgers e Katie
Crutchfield que me ajudou a sobreviver a infinitas revisões. O dom que os
músicos concedem aos escritores stressados com prazos é incomparável, e
sou grata por isso.
Grata ao Phish, só porque sim.
À minha maravilhosa família alargada de Spencers, Brightons e Kings –
tive muita sorte no departamento da família. Obrigada por torcerem sempre
por mim.
O vínculo entre a Franny, a Lola e a Cleo é inspirado nas muitos amigas
infinitamente amorosas e incansavelmente solidárias que tenho a sorte de
ter. Roommate, Biggie, Little One, Goober, Rocky e Ater – vocês
mantiveram-me à tona especialmente nos momentos mais difíceis. Todas as
minhas melhores gargalhadas estão convosco.
Teresa Christiansen e Sarah Plimpton, este livro não existiria sem vocês e
todas as memórias que construímos juntas. Sister Liberty para sempre.
Eleanor e Lydia King, vocês fazem o meu mundo girar. Eu amo-vos mais
do que bagels com queijo creme de cebolinho e pepinos e tomates fatiados.
Anthony King, apoias-me incondicionalmente desde o dia em que me
convidaste para jantar num ridículo restaurante alemão em East Side. Estou
tão feliz por ter aceitado o convite.
E para a cidade viva e pulsante de Nova Iorque: eu não seria nada sem ti.
És impossível para se viver mas é impossível viver longe de ti. Vou amar-te
para sempre.

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