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UM REFÚGIO
PARA A VIDA
Dedicado à memória de Paul e Adrienne Cote.
A minha maravilhosa família. Já sinto saudades vossas.
AGRADECIMENTOS
Quando acabo um dos meus romances, dou por mim a pensar nas pessoas
que me ajudaram ao longo do caminho. Como sempre, a lista começa com a
minha mulher, Cathy, que não só tolerou as minhas alterações de humor
motivadas pela criatividade, como também passou por um ano muito difícil,
durante o qual perdeu os pais. Cathy, amo-te e gostaria que tivesse havido
algo que pudesse ter feito para suavizar a dor que sentes. Estou solidário com
a tua perda.
Também quero agradecer aos meus filhos – Miles, Ryan, Landon, Lexie e
Savannah. O Miles está para fora na faculdade e as duas mais novas estão no
terceiro ano do ensino básico, e acompanhar o crescimento deles é sempre
fonte de grande alegria.
A minha agente, Theresa Park, merece sempre o meu agradecimento por
tudo o que faz para me ajudar a escrever as minhas melhores histórias. Tenho
sorte por trabalharmos juntos.
O mesmo posso dizer de Jamie Raab, a minha editora. Ela ensinou-me
muito sobre a arte de escrever, e estou muito grato por a ter na minha vida.
Denise DiNovi, minha amiga em Hollywood e produtora de vários dos
meus filmes, é uma fonte de alegria e amizade há anos. Obrigado por tudo o
que fizeste por mim.
David Young, diretor-geral do Hachette Book Group, é inteligente e uma
ótima pessoa. Obrigado por tolerar os meus constantes atrasos na entrega dos
manuscritos.
Howie Sanders e Keya Khayatian, os meus agentes cinematográficos,
trabalham comigo há anos e devo muito do meu sucesso ao trabalho duro que
executam.
Jennifer Romanello, a minha relações públicas na Grand Central
Publishing, trabalhou comigo em todos os livros que escrevi e sou um
sortudo por tudo o que ela faz.
Edna Farley, a minha outra relações públicas, é profissional e esforçada e
faz um excelente trabalho para garantir que as minhas viagens corram sem
problemas. Obrigado.
Scott Schimer, o meu advogado na indústria do entretenimento, não é
apenas um amigo, é também um negociador excecional quando é necessário
analisar os detalhes dos meus contratos. Sinto-me honrado por trabalhar
contigo.
Abby Koons e Emily Sweet, duas aliadas no Park Literary Group, merecem
os meus agradecimentos por tudo o que fazem com as editoras estrangeiras
que publicam os meus livros, o meu website e quaisquer contratos que
chegam até mim. Vocês são o máximo.
Marty Bowen e Wyck Godfrey, que fizeram um ótimo trabalho na
produção de Juntos ao Luar, merecem o meu agradecimento pelo vosso
esforço. Eu gostei muito de ver o cuidado que tiveram com o projeto.
Da mesma forma, foi ótimo trabalhar com Adam Shankman e Jennifer
Gibgot, produtores de A Melodia do Adeus. Obrigado por tudo o que fizeram.
E nquanto Katie circulava por entre as mesas, uma brisa vinda do Atlântico
acariciou-lhe o cabelo. Com três pratos na mão esquerda e outro na
direita, ela usava uns jeans e uma T-shirt com a frase: Ivan’s: Experimente o
nosso peixe, peça linguado. Levou os pratos a quatro homens que usavam
polos; o que estava mais perto dela fitou-a e sorriu. Embora tentasse dar a
impressão de que era apenas um rapaz simpático, Katie percebeu que ele
continuou a observá-la enquanto ela se afastava da mesa. Melody tinha
mencionado que os homens eram de Wilmington e que estavam à procura de
locais para serem usados num filme.
Pegou num jarro de chá gelado e voltou a encher-lhes os copos antes de
regressar à copa. Observou a paisagem. Era final de abril, a temperatura
estava perto da ideal e o céu estendia-se, azul, até ao horizonte. Perante ela, o
canal intracosteiro apresentava-se calmo apesar da brisa e parecia espelhar a
cor do céu. Um bando de gaivotas estava empoleirado no corrimão que
circundava o restaurante, à espera de disparar por entre as mesas se alguém
deixasse cair um pedaço de comida no chão.
Ivan Smith, o proprietário, odiava-as. Chamava-lhes ratos com asas e já
patrulhara a área do corrimão com um desentupidor em punho, tentando
espantá-las. Melody tinha dito ao ouvido de Katie que estava mais
preocupada com o lugar de onde viera o desentupidor do que com as
gaivotas. Katie não comentou.
Começou a preparar outro bule de chá, enquanto limpava o balcão. Pouco
depois, sentiu alguém a tocar-lhe no ombro. Virou-se e viu que era a filha de
Ivan, Eileen, uma rapariga bonita de 19 anos, com o cabelo apanhado num
rabo de cavalo. Ela estava a trabalhar em part-time no restaurante como
rececionista.
– Katie, podes ir atender outra mesa?
Katie olhou em redor do restaurante e observou as mesas. – Claro que sim
– respondeu.
Eileen desceu as escadas. Katie conseguia ouvir fragmentos de conversas
vindos das mesas próximas. As pessoas falavam sobre amigos, família, o
tempo ou pescarias. Numa mesa ao canto do salão, viu duas pessoas a fechar
as ementas. Aproximou-se e anotou o pedido, mas não ficou junto à mesa a
fazer conversa com os clientes, como era habitual acontecer com Melody.
Katie não era muito boa a meter conversa, mas compensava isso com
eficiência e simpatia. E os clientes pareciam não se importar.
Trabalhava no restaurante desde o início de março. Ivan contratara-a numa
tarde fria, em que o céu estava limpo e apresentava um tom azul-turquesa.
Quando disse que poderia começar a trabalhar na segunda-feira seguinte,
Katie teve de se esforçar para não chorar à frente dele. Esperou até estar
longe do restaurante, a caminho de casa, para se esvair em lágrimas. Naquela
altura, não tinha dinheiro nenhum e não comia há dois dias.
Katie percorreu o salão, enchendo copos com água e chá gelado antes de
regressar à cozinha. Ricky, um dos cozinheiros, piscou-lhe o olho, como
sempre fazia. Há dois dias, convidara-a para sair, mas Katie dissera que não
queria envolver-se com ninguém que trabalhasse no restaurante. Ficou com a
impressão de que ele iria tentar de novo em breve e esperou que os seus
instintos estivessem errados.
– Duvido que o movimento vá diminuir hoje – comentou Ricky. Era louro
e esguio, talvez um ou dois anos mais novo do que ela, e ainda morava em
casa dos pais. – Sempre que acho que vamos ter um momento para respirar o
restaurante volta a encher.
– Está um belo dia.
– Mas porque é que estas pessoas vêm para aqui? Num dia como este,
deveriam estar na praia ou a pescar. E é exatamente isso que eu vou fazer
quando sair.
– É uma ótima ideia.
– Mais logo queres que te leve a casa?
Ele oferecia-se para a levar a casa pelo menos duas vezes por semana.
– Obrigada, mas não é preciso. Eu não moro assim tão longe daqui.
– Não custa nada. Teria muito prazer em levar-te – insistiu ele. – Faz-me
bem caminhar.
Ela entregou-lhe a folha dos pedidos e Ricky pregou-a no quadro,
juntamente com os outros. Katie pegou num dos pedidos, foi até à sua zona
do restaurante e serviu os clientes.
O Ivan’s era uma instituição local, um restaurante que estava aberto há
quase trinta anos. Desde que ali começara a trabalhar, Katie identificara os
clientes habituais e, ao atravessar o salão, o seu olhar incidia nas pessoas que
ainda não conhecia. Casais a namoriscar, outros ignorando-se mutuamente.
Famílias. Ninguém naquele lugar parecia estar deslocado, e ninguém
procurara informar-se a respeito dela. Mesmo assim, havia alturas em que as
suas mãos começavam a tremer, daí continuar a dormir com uma luz acesa.
O seu cabelo curto, de um tom castanho-avermelhado, era pintado na
bancada da cozinha da pequena casa que arrendara. Como não usava
maquilhagem, tinha a noção de que o seu rosto, aos poucos, acabaria por se
bronzear ligeiramente, talvez um pouco de mais, e então lembrou a si mesma
que precisava de comprar protetor solar. No entanto, depois de pagar a renda
e as contas da casa, não sobrava muito dinheiro para artigos supérfluos. Até
mesmo o protetor solar iria estrangular as suas finanças. O emprego no Ivan’s
era bom e sentia-se grata por trabalhar ali, mas a comida que o restaurante
servia não era cara – e isso significava que as gorjetas que recebia não eram
as melhores. Por causa da sua dieta habitual, composta por feijão com arroz,
massa e papas de aveia, perdera peso nos últimos quatro meses. Conseguia
sentir as costelas por baixo da T-shirt e, até há algumas semanas, tivera
olheiras profundas, as quais imaginava que nunca desapareceriam do rosto.
– Acho que aqueles tipos estão a olhar para ti – disse Melody, com um
meneio de cabeça em direção à mesa dos quatro homens do estúdio de
cinema. – Especialmente o de cabelo castanho. O mais bonito da mesa.
– Ah – comentou Katie. E começou a preparar outra cafeteira de café.
Qualquer coisa que dissesse a Melody certamente cairia nos ouvidos das
outras pessoas. Por isso, era raro Katie conversar com ela.
– O que foi? Não o achas bonito?
– Não prestei muita atenção.
– Como é que podes não prestar atenção quando um homem é bonito? –
perguntou Melody, incrédula, olhando para ela.
– Não sei.
Tal como Ricky, Melody era dois anos mais nova do que Katie; teria cerca
de 25 anos. Ruiva, de olhos verdes e sem papas na língua, namorava com um
tipo chamado Steve, que fazia entregas para uma loja de materiais de
construção e restauro do outro lado da cidade. Como todos os outros
funcionários do restaurante, ela nascera e crescera em Southport, que
descrevia como um paraíso para crianças, famílias e idosos, mas o lugar mais
deprimente do mundo para pessoas solteiras. Pelo menos uma vez por
semana dizia a Katie que gostaria de se mudar para Wilmington, que tinha
bares, discotecas e muito mais lojas. Melody parecia saber tudo sobre toda a
gente. Katie às vezes pensava que a verdadeira profissão da colega era a
coscuvilhice.
– Ouvi dizer que o Ricky te convidou para sair, mas que recusaste – disse
ela, mudando de assunto.
– Não gosto de me envolver com pessoas do trabalho – respondeu Katie,
fingindo-se absorta na organização das bandejas dos talheres.
– Podíamos sair os quatro. O Ricky e o Steve saem para pescar juntos.
Katie pensou se Ricky estaria realmente interessado nela ou se tudo aquilo
era ideia de Melody. Talvez as duas coisas. À noite, após o fecho do
restaurante, quase todos os funcionários ficavam lá mais algum tempo, a
conversar e a beber cerveja. Com a exceção de Katie, todos trabalhavam no
Ivan’s há anos.
– Não me parece boa ideia – comentou Katie.
– Porquê?
– Em tempos, tive uma experiência má – revelou ela. – Quero dizer,
namorei com um tipo que trabalhava no mesmo sítio que eu. E, desde então,
assumi como regra não voltar a fazer o mesmo.
Melody revirou os olhos antes de partir em direção a uma das suas mesas.
Katie entregou duas contas e recolheu os pratos vazios. Manteve-se ocupada,
como sempre fazia, tentando ser eficiente e invisível. Sem levantar a cabeça,
verificava se a copa estava a brilhar. Aquilo fazia com que o seu dia passasse
mais rápido. Não namoriscou com o homem do estúdio, que, ao sair, nem
olhou para trás.
Katie trabalhava ao almoço e ao jantar. Quando o dia dava o lugar à noite,
gostava de observar o céu a passar do azul para o cinzento e depois para o
laranja e o amarelo, na extremidade ocidental do mundo. Ao pôr do sol, a
água reluzia e os veleiros cruzavam as águas, empurrados pela brisa. As
agulhas dos pinheiros pareciam brilhar. Assim que o sol se punha no
horizonte, Ivan ligava os aquecedores a gás e as espirais de metal começavam
a resplandecer como abóboras de Halloween, com os seus rostos caricatos.
Katie já sentia o rosto a ficar um pouco queimado pelo sol, e as ondas de
calor que saíam dos aquecedores faziam a sua pele arder.
Abby e Big Dave substituíam Melody e Ricky no turno da noite. Abby
estava no último ano do ensino secundário e ria-se bastante e Big Dave
preparava os jantares no Ivan’s há quase vinte anos. Casado, com dois filhos
e uma tatuagem de escorpião no antebraço direito, pesava quase 140 quilos e,
na cozinha, tinha sempre o rosto a brilhar. Costumava dar alcunhas
carinhosas a todos, e chamava-lhe Katie Kat. O movimento ao jantar durou
até às nove da noite. Quando as coisas começaram a ficar mais calmas, Katie
limpou e fechou a copa. Ajudou os lavadores de pratos a levar a louça para a
máquina enquanto os clientes das suas últimas mesas terminavam o jantar.
Uma delas estava ocupada por um casal jovem, e ela viu as alianças nos
dedos deles quando deram as mãos por cima da mesa. Eram bonitos e
pareciam felizes, o que fez com que Katie tivesse uma sensação de déjà-vu.
Há já muito tempo ela fora como eles, ainda que momentaneamente. Ou
pensou que tinha sido, porque agora sabia que esse momento não passara de
uma ilusão. Katie desviou os olhos do casal feliz, desejando poder apagar
definitivamente a sua memória para nunca mais voltar a ter aquela sensação.
2
N a manhã seguinte, Katie foi até ao alpendre de sua casa com uma
chávena de café na mão, sentindo as tábuas do chão a ranger sob os seus
pés, e apoiou-se no parapeito. Haviam brotado lírios no meio da relva alta
que cobria um canteiro de flores, e ela ergueu a chávena, apreciando o aroma
enquanto beberricava.
Gostava daquele lugar. Southport era diferente de Boston, de Filadélfia e
também de Atlantic City, com os seus incessantes ruídos de trânsito, odores e
pessoas a correr pelos passeios. Além disso, fora a primeira vez na vida que
encontrara um lugar que podia considerar seu. A casa não era grande, mas era
sua e discreta, e isso bastava-lhe. Era uma de duas construções idênticas
localizadas no fim de uma ruela de gravilha, antigas cabanas de caçadores
com paredes de madeira construídas no meio de um grupo de pinheiros e
carvalhos na orla de uma floresta que se estendia até ao litoral. A sala e a
cozinha eram pequenas e o quarto não tinha armários embutidos, mas a casa
já estava mobilada, incluindo cadeiras de baloiço na varanda, e a renda até
não era cara. O lugar não estava a cair aos bocados, mas estava revestido por
uma camada de pó em virtude dos muitos anos que permanecera fechado. O
proprietário oferecera-se para comprar os produtos de limpeza e manutenção
se Katie se prestasse a dar um jeito na casa. Desde que se mudara para lá,
Katie passava uma boa parte do seu tempo livre ajoelhada no chão ou em pé
em cima de cadeiras a fazer precisamente isso. Esfregou os azulejos e as
louças da casa de banho até que tudo estivesse a brilhar; lavou o teto com um
pano húmido e limpou as janelas com vinagre. Katie passou horas ajoelhada
na cozinha, a tentar remover a ferrugem e o lixo acumulados no chão de
linóleo. Tapou os buracos da parede com estuque e depois lixou tudo até que
a superfície ficasse lisa. Chegou até mesmo a pintar as paredes da cozinha
num tom alegre de amarelo e os armários com tinta branca brilhante. O seu
quarto agora tinha paredes num tom azul-claro, a sala de estar era bege e, na
semana anterior, colocara uma nova capa sobre o sofá, que fez com que
parecesse novo em folha.
Com a maior parte do trabalho já concluído, Katie gostava agora de se
sentar no alpendre, durante a tarde, a ler os livros que ia buscar à biblioteca.
Além do café, a leitura era o único luxo que se permitia, já que não tinha
televisão, rádio, telemóvel, micro-ondas, carro, e todos os seus pertences
cabiam numa única mala. Tinha 27 anos, não tinha amigos e já há algum
tempo que deixara de ser uma mulher loura de cabelo comprido. Mudara-se
para aquele lugar praticamente sem nada e, alguns meses depois, ainda pouco
tinha. Guardava metade das gorjetas que ganhava e todas as noites dobrava as
notas e colocava-as numa lata de café, que deixava escondida sob uma tábua
do chão, junto ao alpendre. O dinheiro serviria para uma emergência e ela
preferia passar fome a ter de usá-lo. Só o facto de saber que a lata estava ali,
fazia com que conseguisse respirar um pouco melhor, pois tinha o passado
sempre à espreita e este poderia regressar a qualquer momento. Um passado
que percorria o mundo à procura dela, e ela tinha noção que, a cada dia que
passava, a sua raiva ia crescendo.
– Bom dia. Você deve ser a Katie – chamou uma voz, interrompendo-lhe os
pensamentos.
Katie voltou-se. No alpendre abaulado da casa vizinha, viu uma mulher
com uma cabeleira castanha despenteada a acenar-lhe com a mão. Parecia ter
mais de 30 anos e usava uns jeans, com uma camisa com as mangas
arregaçadas até os cotovelos. Um par de óculos de sol repousava sobre os
cachos emaranhados na cabeça dela. Segurava nas mãos um pequeno tapete e
parecia estar a pensar se deveria sacudi-lo para tirar o pó, mas finalmente
pousou-o e aproximou-se de Katie. Ao caminhar, ostentava a energia e a
tranquilidade de alguém habituado a fazer exercício.
– O Irv Benson disse-me que seríamos vizinhas.
O dono das casas, pensou Katie. – Não sabia que viria alguém morar para
aqui.
– Acho que ele também não sabia. Quase caiu da cadeira quando lhe disse
que ficaria com a casa. – Naquele momento, já tinha chegado ao alpendre de
Katie, e estendeu a mão. – Os meus amigos chamam-me Jo.
– É um prazer – disse Katie, cumprimentando-a.
– Dá para acreditar neste tempo? Está uma maravilha, não acha?
– Está uma bela manhã – concordou Katie, apoiando o peso do corpo na
outra perna. – Quando é que se mudou?
– Ontem à tarde. E, por ironia do destino, passei praticamente a noite toda a
espirrar. Acho que o Benson juntou todo o pó que conseguiu encontrar para o
guardar na minha casa. Não iria acreditar na sujidade que há lá dentro.
Katie apontou para a porta da sua própria casa com um movimento da
cabeça. – A minha casa também estava assim.
– Mas nem parece. Desculpe, mas não pude deixar de espreitar pelas suas
janelas quando estava na cozinha. A sua casa é clara e alegre. Por outro lado,
o lugar que eu arrendei é uma masmorra empoeirada e cheia de aranhas.
– Mr. Benson deixou-me pintá-la.
– Não duvido disso. Desde que eu faça o trabalho todo, aposto que Mr.
Benson também me deixará pintar a casa. A propriedade dele fica limpa e
bonita e o trabalho é todo meu – disse ela, com um sorriso forçado. – Já mora
aqui há muito tempo?
Katie cruzou os braços, sentindo o sol da manhã começar a aquecer-lhe o
rosto. – Há quase dois meses.
– Não sei se vou aguentar tanto tempo. Se continuar a espirrar como na
noite passada, a minha cabeça provavelmente vai explodir. – Jo pegou nos
óculos escuros e começou a limpar as lentes com o tecido da camisa. – E o
que é que está a achar de Southport? É um mundo completamente à parte,
não é?
– Como assim?
– Você não parece ser daqui. Imagino que tenha vindo de lá de cima do
norte.
Katie demorou uns segundos a assentir com a cabeça.
– Foi o que pensei. Leva o seu tempo até que as pessoas se habituem a
Southport. Sempre gostei muito deste lugar. Tenho um lugar especial no meu
coração para as cidades pequenas.
– Nasceu aqui?
– Cresci aqui, depois saí, mas acabei por regressar. É sempre assim, não é?
Além disso, é difícil encontrar casas tão cheias de pó como a minha noutras
cidades.
Katie sorriu e, por um momento, nenhuma das duas proferiu palavra. Jo
pareceu satisfeita por ficar à frente dela, à espera que ela desse o passo
seguinte. Katie bebeu um gole do seu café, olhando na direção das árvores, e
lembrou-se da boa educação que recebeu.
– Aceita um café? Acabei de o fazer.
Jo voltou a colocar os óculos de sol sobre a cabeça, prendendo-os entre os
cabelos. – Sabe, estava à espera que me dissesse isso. Adoraria tomar um
café. As minhas coisas de cozinha ainda estão encaixotadas e tenho o carro
na oficina. Nem imagina como é complicado passar o dia inteiro sem cafeína.
Graças ao excelente tempo que se fazia sentir, naquele domingo a loja tinha
mais movimento do que era habitual. Quando Alex abriu a porta, às sete da
manhã, já havia três barcos ancorados na doca à espera que fosse ligada a
bomba de gasolina. Como já era habitual, os donos dos barcos, ao pagarem a
gasolina, aproveitavam para comprar petiscos, bebidas e sacos de gelo para
levar para bordo. Roger – que, como sempre, estava de serviço à
churrasqueira – não teve um minuto de folga desde que colocou o avental, e
as mesas estavam cheias de gente a comer salsichas panadas e cheeseburgers
e a pedir informações sobre as movimentações da bolsa.
Por norma, Alex ficava na caixa registadora até ao meio-dia, altura em que
passava as rédeas a Joyce. Tal como Roger, Joyce era uma funcionária que
facilitava imenso o trabalho de gerir a loja. Joyce, que tinha trabalhado no
tribunal até se reformar, veio «de brinde» com a loja, por assim dizer. O
sogro de Alex contratara-a há dez anos e agora, mesmo tendo já 70 anos, ela
não dava qualquer sinal de pretender levar uma vida mais tranquila. O seu
marido tinha morrido há uns anos, os filhos mudaram-se para outras cidades e
ela tratava os clientes como se fossem a sua verdadeira família. Joyce já fazia
parte da loja, como qualquer artigo presente nas prateleiras.
Além disso, ela compreendia a necessidade de Alex de passar tempo com
os filhos, longe da loja, e não se incomodava com o facto de ter de trabalhar
aos domingos. Assim que chegava, ia imediatamente para trás do balcão onde
estava a caixa registadora e dizia a Alex para ir para casa. Mais parecia a
dona do lugar do que uma das funcionárias. Joyce também era a babysitter de
serviço, a única pessoa a quem ele confiava as crianças caso tivesse de sair da
cidade. Não era algo que acontecia com frequência – sucedera apenas duas
vezes nos últimos dois ou três anos, quando ele foi encontrar-se com um
velho amigo dos tempos do exército em Raleigh –, mas Alex reconhecia que
Joyce fora uma das melhores coisas que já lhe acontecera na vida. Quando
precisava dela, estava sempre pronta para ajudar.
Enquanto esperava pela chegada de Joyce, Alex deu uma volta pela loja, a
verificar as prateleiras. O sistema informatizado era ótimo para gerir o
inventário, mas ele sabia que filas e filas de números nem sempre relatavam
toda a história. Às vezes achava que teria uma noção melhor do que precisava
ser reposto se olhasse realmente para as prateleiras para verificar o que tinha
sido vendido no dia anterior. O sucesso de um estabelecimento exigia que as
mercadorias fossem repostas o mais rapidamente possível, e aquilo
significava que, uma vez por outra, tinha de disponibilizar artigos que
nenhuma outra loja oferecia. Tinha compotas e geleias caseiras, temperos em
pó feitos com base em «receitas secretas», que davam mais sabor às carnes de
vaca e de porco, e uma boa variedade de frutas e vegetais enlatados de
produção local. Até mesmo as pessoas que faziam compras regularmente em
supermercados como o Food Lion ou o Piggly Wiggly iam frequentemente
dar uma vista de olhos à loja de Alex para comprar os produtos especiais que
ele fazia questão de comercializar.
Ainda mais do que o volume de vendas de um artigo, gostava de saber em
que alturas se vendiam determinados produtos, algo que não aparecia
necessariamente no registo geral de contas. Alex percebera, por exemplo, que
o pão para cachorro-quente vendia muito bem aos fins de semana, mas
raramente saía das prateleiras durante a semana; com o pão tradicional
passava-se o contrário. Ao tomar consciência disso, tratou de manter esse
produto em stock para quando aumentava a procura, e assim as vendas
cresceram. Não era muito, mas o dinheiro extra ajudava-o a manter a sua
pequena loja a dar lucro numa época em que as grandes cadeias de lojas e
supermercados afastavam a maioria das pequenas empresas locais do
mercado.
Enquanto examinava as prateleiras, começou a imaginar o que iria fazer
com as crianças naquela tarde, e decidiu levá-las a dar um passeio de
bicicleta. Carly sempre gostara de colocar as crianças num carrinho
especialmente concebido para ser ligado à sua bicicleta para as levar a
passear pela cidade. Mas um passeio desse tipo não bastava para ocupar toda
a tarde. Talvez eles pudessem ir de bicicleta até ao parque... talvez isso lhes
agradasse.
Depois de deitar uma rápida olhadela na direção da porta da frente para ter
a certeza de que não ia entrar ninguém na loja, correu até à divisão que servia
como armazém na parte de trás da loja e colocou a cabeça do lado de fora de
uma janela. Josh estava a pescar no ancoradouro, a coisa que ele mais gostava
de fazer na vida. Alex não gostava de o deixar ali fora sozinho – não tinha
dúvidas de que algumas pessoas o considerariam um péssimo pai por permitir
que aquilo acontecesse –, mas Josh nunca saía do campo de visão das
câmaras de segurança e Alex podia vê-lo no monitor ao lado da caixa
registadora. Era uma das regras da família e Josh sempre a respeitara.
Kristen, como de costume, estava sentada na sua mesinha atrás do balcão da
caixa registadora. Tinha separado as roupinhas da boneca em pilhas
diferentes e parecia satisfeita apenas por lhe mudar a roupa. Sempre que
terminava, olhava para Alex com uma expressão alegre e inocente, e
perguntava ao pai se ele achava que a boneca continuava bonita. Como se
fosse possível a Alex dizer que não.
Miúdas. Eram capazes de amolecer os corações mais empedernidos.
Alex estava a organizar alguns dos frascos de condimentos quando ouviu
soar a campainha que tocava sempre que um cliente abria a porta.
Levantando a cabeça por cima das prateleiras, viu Katie entrar na loja.
– Olá, Miss Katie – disse Kristen, aparecendo por detrás da caixa
registadora. – Gostas das roupas que vesti à minha boneca?
Do lugar onde estava, ele mal conseguia ver a cabeça de Kristen por cima
do balcão, mas ela tinha nas mãos... Vanessa? Rebecca? Qualquer que fosse o
nome da boneca de cabelo castanho, levantara-a bem o alto para que Katie a
pudesse ver.
– Está linda, Kristen – respondeu Katie. – Esse vestido é novo?
– Não, já o tenho há algum tempo. Mas ela não o tem usado.
– Como é que se chama?
– Vanessa – respondeu.
Vanessa, pensou Alex. Quando mais tarde elogiasse Vanessa, pareceria um
pai bem mais atencioso.
– Foste tu que lhe deste esse nome?
– Não, ela já veio com o nome. Podes ajudar-me a calçar-lhe as botas? Não
consigo puxá-las até aos joelhos.
Alex ficou a olhar enquanto Kristen entregou a boneca a Katie e quando
esta começou a calçar-lhe as botas de plástico flexível. Por experiência
própria, Alex sabia que era mais difícil do que parecia. Uma miúda não seria
capaz de puxar as botas de maneira a que encaixassem. Quando lhe calhou a
ele, teve algumas dificuldades em fazê-lo, mas, de algum modo, Katie fez
com que tudo parecesse extremamente fácil. Ela devolveu a boneca e
perguntou:
– O que te parece?
– Está linda. Achas que ficava bem de casaco?
– Não está assim tanto frio lá fora.
– Eu sei, mas a Vanessa às vezes é meio friorenta. Acho que ela vai
precisar de um casaco.
A cabeça de Kristen desapareceu por detrás do balcão para voltar a
aparecer logo a seguir. – Qual é que fica melhor? O azul ou o roxo?
Katie levou um dedo à boca, analisando seriamente os casacos. – Acho que
o roxo fica melhor.
Kristen assentiu. – Também me pareceu. Obrigada.
Katie sorriu antes de desviar o olhar, e Alex concentrou a sua atenção nas
mercadorias antes que ela percebesse que ele a observava. Pelo canto do
olho, viu Katie a pegar numa pequena cesta de compras antes de se deslocar
para outro corredor.
Alex regressou ao balcão da caixa registadora. Quando ela o viu, ele
acenou amigavelmente. – Bom dia – cumprimentou-a.
– Olá – respondeu ela enquanto tentava prender uma madeixa de cabelo
atrás da orelha, mas sem sucesso, pois era curta de mais para se aguentar no
lugar. – Só preciso de umas coisinhas.
– Avise-me se não conseguir encontrar alguma coisa de que precise. Às
vezes trocam os produtos de lugar.
Ela assentiu com a cabeça antes de continuar a percorrer o corredor.
Quando Alex assumiu o seu posto atrás da caixa registadora, espreitou
rapidamente para o monitor. Josh estava a pescar no mesmo lugar enquanto
um barco se aproximava lentamente do cais.
– O que é que achas, papá? – perguntou Kristen puxando-lhe pelas calças
com uma mão e segurando a boneca com a outra.
– Oh, está linda – comentou Alex, agachando-se ao lado dela. – E também
gosto bastante do casaco. A Vanessa é friorenta, não é?
– É, sim. Mas ela disse-me que quer brincar no baloiço, por isso
provavelmente vai ter de mudar de roupa.
– É uma ótima ideia. Talvez dê para ir ao parque depois do almoço. Se
também quiseres brincar no baloiço – propôs Alex.
– Eu não quero brincar no baloiço. É a Vanessa que quer. E é só a fazer de
conta, papá.
– Ah, tudo bem – disse ele, levantando-se. Lá se vai o passeio no parque,
pensou.
Perdida no seu próprio mundo, Kristen começou a despir de novo a boneca.
Alex espreitou para o monitor para ver onde Josh estava, no preciso momento
em que entrou na loja um adolescente, vestindo apenas uns calções.
Entregou-lhe um maço de notas.
– Para a bomba de gasolina do cais – indicou, antes de sair rapidamente.
Alex registou a compra da gasolina e acionou a bomba enquanto Katie se
aproximou da caixa registadora. Os mesmos artigos de sempre, além de um
protetor solar. Quando ela olhou por cima do balcão para ver Kristen, Alex
apercebeu-se da mudança da cor dos olhos dela.
– Encontrou tudo o que precisava?
– Sim, obrigada.
Ele começou a guardar as compras dela num saco.
– O meu livro favorito de Dickens é o Grandes Esperanças – disse ele,
tentando parecer simpático enquanto colocava os produtos no saco. – E o
seu?
Em vez de responder imediatamente, ela pareceu ter ficado assustada por
ele se ter lembrado de ela ter dito que gostava de Dickens.
– Um Conto de Duas Cidades – respondeu ela, em voz baixa.
– Também gostei desse, mas é uma história triste.
– Sim. Por isso é que gosto dela.
Como sabia que ela regressaria a pé para casa, colocou as compras dentro
de outro saco.
– Calculo que, dado que já conhece a minha filha, cabe agora a mim
apresentar-me. Chamo-me é Alex. Alex Wheatley.
– Ela chama-se Miss Katie – informou Kristen por detrás dele. – Mas já te
tinha dito, não te lembras?
Alex olhou para Kristen por cima do ombro. Quando se voltou para Katie,
ela estava a sorrir enquanto lhe pagava.
– Apenas Katie – disse ela.
– Prazer em conhecê-la, Katie. – Ele tocou nas teclas e a gaveta da caixa
abriu-se com um tinido. – Calculo que more aqui perto.
Ela não chegou a responder. Em vez disso, quando Alex olhou para cima,
verificou que os olhos dela estavam arregalados de medo. Virando-se para
trás, percebeu o que ela vira no monitor atrás dele: Josh tinha caído à água,
ainda vestido, e debatia-se, agitando os braços em pânico. Alex sentiu um
aperto na garganta e reagiu por instinto. Saiu a correr de detrás do balcão,
percorreu a loja e o armazém a correr. Abriu intempestivamente a porta,
embateu numa caixa de toalhetes de papel, derrubando-a no chão, mas não
diminuiu o passo.
Escancarou violentamente a porta dos fundos e sentiu a adrenalina a
percorrer-lhe o corpo enquanto saltava por cima de uns arbustos, encurtando
o caminho até ao ancoradouro. Chegou a toda a velocidade à estrutura de
madeira. Quando tomou impulso e saltou, Alex conseguiu ver Josh na água, a
agitar os braços.
Com o coração a bater desalmadamente no peito, Alex voou pelo ar e
atingiu a água bem perto do lugar onde Josh estava. A profundidade não era
grande – menos de dois metros, estimou – e, ao sentir os pés a tocarem no
fundo lamacento, afundou-se até os tornozelos. Debateu-se para regressar à
superfície e sentiu a pressão nos seus braços quando os estendeu para pegar
em Josh.
– Pronto, já te agarrei! – gritou. – Já te agarrei!
Mas Josh estava a debater-se e a tossir, sem conseguir recuperar o fôlego.
Alex teve de se esforçar para o controlar enquanto o trouxe de volta para a
parte mais rasa da água. Depois, com um esforço tremendo, levou Josh para a
margem coberta pela relva, já com várias alternativas a correrem-lhe pela
mente: massagem cardíaca, respiração boca a boca, ou tentar obrigar Josh a
expelir a água que tinha engolido. Alex tentou fazer com que o filho se
deitasse de costas, mas a criança resistiu. Debatia-se e tossia, e, embora
ambos ainda estivessem dominados pelo pânico, aquela reação significava
que Josh ficaria bem.
Alex não saberia dizer quanto tempo levou – talvez apenas alguns
segundos, mas parecia ter demorado bem mais –, até que Josh, ao tossir,
cuspisse finalmente um jato de água e recuperasse o fôlego. Respirou fundo e
voltou a tossir; inalou mais uma vez e tossiu novamente, embora, desta vez,
mais parecesse que estava a aclarar a garganta. Inspirou mais algumas vezes,
ainda tomado pelo pânico, e foi só então que o rapaz pareceu ter-se
apercebido do que tinha acontecido.
Ergueu os braços para o pai e Alex abraçou-o com força. Josh começou a
chorar, com os ombros a tremer. Alex sentiu o estômago a revirar-se ao
pensar no que poderia ter acontecido. E se ele não se tivesse apercebido de
que Katie estava a olhar para o monitor? E se tivesse decorrido mais um
minuto? As respostas àquelas perguntas levaram-no a tremer tanto quanto
Josh. Depois de alguns minutos, o choro de Josh começou a diminuir e ele
disse as primeiras palavras desde que Alex o tirara da água.
– Desculpa, pai – disse, entre soluços.
– Desculpa-me tu também – sussurrou Alex. Manteve-se abraçado ao filho,
temendo que, caso o soltasse, de algum modo o tempo começasse a
retroceder, levando a que aquilo acontecesse de novo, desta vez com um
resultado diferente.
Quando finalmente conseguiu afrouxar os braços em redor de Josh, Alex
viu que havia um grupo de pessoas a olhar para eles do outro lado da loja.
Roger estava lá, assim como os clientes que estavam a comer perto da
churrasqueira. Outros dois clientes esticavam os pescoços, provavelmente
recém-chegados. E, é claro, Kristen também lá estava. De repente voltou a
sentir-se um pai terrível, pois percebeu que a sua menina chorava, apavorada
e a precisar dele, mesmo estando aninhada nos braços de Katie.
Alex só percebeu o que sucedera depois de ele e Josh terem vestido roupas
secas. Roger tinha preparado hambúrgueres e batatas fritas para as crianças e
estavam todos sentados numa mesa junto à churrasqueira, embora nenhum
deles estivesse com o menor apetite.
– A linha do meu anzol enroscou-se no barco quando ele estava a sair do
cais e eu não queria perder a minha cana de pesca. Achei que a linha ia
rebentar, mas ela puxou-me e caí e engoli muita água. Não conseguia respirar
e parecia que tinha alguma coisa a puxar-me para baixo – explicou Josh,
hesitando por um momento. – Acho que deixei cair a cana ao rio.
Kristen estava sentada ao lado dele, com os olhos ainda vermelhos e
inchados. Pedira a Katie que ficasse um pouco com ela, e esta permanecia ao
seu lado, ainda a segurar-lhe na mão.
– Está tudo bem. Daqui a um bocado vou até lá e, se não conseguir
encontrá-la, arranjamos-te uma nova. Mas se isso voltar a acontecer, larga a
cana, está bem?
Josh respirou fundo e assentiu com a cabeça.
– Desculpa.
– Foi um acidente – disse Alex, para o tranquilizar.
– Mas assim nunca mais me deixas pescar.
E arriscar-me novamente a perder-te?, pensou Alex. De maneira
nenhuma. Mas limitou-se a dizer:
– Conversamos sobre isso mais tarde.
– E se eu prometer que da próxima vez largo a cana?
– Como disse, vamos conversar sobre isso mais tarde. Agora, porque é que
não comes alguma coisa?
– Não tenho fome.
– Eu sei. Mas está na hora do almoço e precisas de comer.
Josh pegou numa batata frita e mordeu um pequeno pedaço, mastigando-o
mecanicamente. Kristen fez o mesmo. À mesa, ela imitava quase sempre os
gestos de Josh. Aquilo era o bastante para irritar Josh, mas ele não pareceu ter
qualquer energia para protestar.
Alex virou-se para Katie. Engoliu em seco, sentindo-se repentinamente
nervoso. – Posso falar consigo por um minuto?
Ela levantou-se da mesa e ele encaminhou-a para longe das crianças.
Quando se afastaram o suficiente para que os filhos não pudessem ouvi-lo,
ele aclarou a garganta. – Quero agradecer-lhe pelo que fez.
– Eu não fiz nada – protestou ela.
– Fez, sim. Se não estivesse a olhar para o monitor, eu nunca iria saber o
que estava a acontecer. Talvez não lhe tivesse deitado a mão a tempo – disse
Alex. Calou-se por uns momentos. – E obrigado por cuidar da Kristen. Ela é
a coisa mais doce e carinhosa do mundo, mas é bastante sensível. Fico feliz
por não a ter deixado sozinha. Mesmo quando tivemos de subir para trocar de
roupa.
– Fiz o que qualquer pessoa faria – insistiu Katie. No silêncio que se
seguiu, ela percebeu repentinamente quão próxima estava de Alex e recuou
um pequeno passo. – Olhe, acho que está na hora de eu ir.
– Espere – disse Alex, que se dirigiu aos frigoríficos no fundo da loja. –
Gosta de vinho?
Ela abanou a cabeça. – Às vezes, mas...
Antes que pudesse concluir a frase, ele virou-se e abriu a porta, retirando
uma garrafa de chardonnay. – Por favor, gostaria que aceitasse. É um
excelente vinho. Sei que não imaginaria encontrar aqui uma boa garrafa de
vinho, mas, quando estive no exército, fiz um amigo que me ensinou a
apreciar. Apesar de ser amador, considero-o um especialista, e é ele que
escolhe os vinhos que eu vendo. Tenho certeza de que vai gostar.
– Não é necessário.
– É o mínimo que posso fazer – disse ele, mostrando um sorriso. – É uma
forma de lhe agradecer.
Pela primeira vez desde que se conheceram, ela olhou-o nos olhos e não
desviou o olhar. – Está bem – disse ela, por fim.
Depois de pegar nas suas compras, Katie saiu da loja. Alex voltou para a
mesa. Após um pouco mais de persuasão, Josh e Kristen terminaram o
almoço, enquanto Alex foi até ao cais procurar a cana de pesca. Quando
regressou, Joyce já estava a pôr o avental e Alex pôde levar as crianças a dar
um passeio de bicicleta. Depois, entraram todos no carro e foram até
Wilmington, onde viram um filme e comeram piza, as velhas e fiáveis
atividades quando é necessário passar tempo com crianças. O sol já se tinha
posto e eles estavam cansados quando voltaram para casa. Assim, depois de
um banho e de vestirem os pijamas, Alex deitou-se na cama no meio dos dois
durante uma hora, lendo-lhes histórias, até finalmente apagar as luzes.
Na sala de estar, ligou a televisão e percorreu os canais durante algum
tempo, mas não lhe apetecia ver nada. Em vez disso, voltou a pensar em Josh.
Embora soubesse que o seu filho estava em segurança no quarto, sentiu um
arrepio, o mesmo medo que sentira antes. A mesma sensação de fracasso.
Estava a dar o seu melhor e não havia ninguém que pudesse amar os seus
filhos mais do que ele. Mesmo assim, não conseguiu deixar de pensar que, de
algum modo, aquilo não seria suficiente.
Mais tarde, muito tempo depois de Josh e Kristen terem adormecido, Alex
foi até a cozinha e tirou uma cerveja do frigorífico. Bebeu-a vagarosamente
no sofá. As lembranças do dia permaneciam vivas na sua mente, mas, desta
vez, estava a pensar na sua filha e na maneira como ela se agarrara a Katie, o
seu pequeno rosto enterrado no pescoço dela. A última vez que vira algo
semelhante fora quando Carly ainda estava viva.
4
As suas recordações estavam a vir à tona. Lembrou-se dos pais. Não dos
tempos difíceis, mas das épocas boas, quando a mãe fazia ovos com bacon e
o aroma invadia a casa, e ela via o pai a andar de mansinho pela cozinha e a
aproximar-se da mulher. Ele afastava-lhe os cabelos e beijava-lhe o pescoço,
fazendo-a rir. Katie recordou que, certa vez, o pai levara-as a Gettysburg. Ele
pegara-lhe na mão enquanto caminhavam e ainda conseguia lembrar-se da
rara sensação de força e gentileza do toque dele. O seu pai era alto e tinha
ombros largos, com cabelo castanho-escuro. E tinha também uma tatuagem
da marinha no braço. Tinha servido num navio de guerra durante quatro anos,
viajando para lugares como o Japão, a Coreia e Singapura, embora não
falasse muito sobre esses tempos.
Já a mãe era pequena, loura e uma vez tinha participado num concurso de
beleza, tendo terminado em terceiro lugar. Adorava flores e estava sempre a
plantar bolbos em vasos que colocava na parte da frente da casa na
primavera. Tulipas, narcisos, begónias e violetas, todas aquelas flores
explodiam em cores tão vivas que quase faziam os olhos de Katie doer.
Quando eles se mudavam, os vasos eram colocados no banco de trás do carro
e presos com os cintos de segurança. Frequentemente, quando limpava a
casa, a mãe cantarolava, entoando melodias da sua infância. Algumas eram
canções polacas e Katie escondia-se noutra divisão para as escutar, tentando
compreender as palavras.
O vinho que Jo e Katie estavam a beber tinha toques de carvalho e damasco
e era delicioso. Katie terminou a sua caneca e Jo serviu-lhe outra. Quando
uma traça começou a dançar à volta da lâmpada, batendo as asas de maneira
vigorosa e confusa, as duas começaram a rir. Katie cortou mais cubinhos de
queijo e colocou mais bolachas no prato. Conversaram sobre filmes e livros,
e Jo soltou um gritinho de prazer quando Katie revelou que o seu filme
favorito era Do Céu Caiu Uma Estrela, pois era também o seu preferido.
Quando era pequena, Katie lembrava-se de pedir à mãe para comprar uma
sineta, de modo a poder ajudar os anjos a obterem as suas asas. Katie
terminou a segunda caneca de vinho, sentindo-se leve como uma pena numa
brisa de verão.
Jo fez poucas perguntas. Em vez disso, as duas mantiveram a conversa à
volta de assuntos superficiais, e Katie voltou a sentir-se feliz, ali na
companhia de Jo. Quando o luar prateado iluminou o mundo para lá da
janela, as duas foram até ao alpendre. Katie percebeu que estava a cambalear
um pouco e segurou-se ao corrimão. Elas degustaram o vinho enquanto as
nuvens continuaram a abrir e, de repente, o céu estava pontilhado de estrelas.
Katie apontou para a constelação da Ursa Maior e para a Estrela Polar, as
únicas cujo nome sabia, mas Jo começou a identificar dezenas de outras.
Katie olhou fixamente para o céu, maravilhada, encantada com o
conhecimento que a amiga tinha sobre as constelações, até que percebeu
quais eram os nomes que Jo estava a enumerar. – Aquela ali é conhecida por
Bugs Bunny e, do outro lado, logo acima daquele pinheiro, dá para ver a
constelação de Daffy Duck. – Quando Katie finalmente se deu conta de que
Jo sabia tanto de constelações quanto ela própria, Jo desatou a rir como uma
criança endiabrada.
De volta à cozinha, Katie serviu-se do que restava do vinho e bebeu outro
trago. Sentiu o líquido quente a descer-lhe pela garganta, o que a fez sentir-se
um pouco zonza. A traça continuava a esvoaçar ao redor da lâmpada, embora,
quando ela tentava focar o olhar, parecesse haver duas. Katie sentia-se feliz e
segura e pensou novamente no quanto aquela noite estava a ser agradável.
Tinha uma amiga, uma amiga a sério, alguém que se ria e fazia piadas com as
estrelas, e não sabia se havia de rir ou chorar por causa daquilo. Já há muito
tempo que não vivia nada tão tranquilo e natural.
– Está tudo bem? – perguntou Jo.
– Estou ótima – respondeu Katie. – Estava só a pensar... Fiquei muito feliz
por teres vindo.
Jo fitou-a com mais atenção. – Acho que exageraste no vinho.
– E eu acho que tens razão – concordou Katie.
– Então está bem. O que é que queres fazer? Já que obviamente estás um
pouco bêbeda e pronta para te divertires.
– Não sei do que estás falar.
– Queres fazer alguma coisa em especial? Ir até a cidade, procurar um lugar
porreiro para nos divertirmos?
Katie abanou a cabeça. – Não.
– Não queres conhecer outras pessoas?
– Estou melhor sozinha.
Jo deslizou a ponta do dedo pela beira da caneca antes de dizer algo. –
Bem, podes confiar no que te digo: ninguém está melhor sozinho.
– Eu estou.
Jo pensou na resposta de Katie antes de se inclinar em direção a ela. – Quer
dizer então que, se partirmos do princípio de que tens comida, casa, roupas e
tudo o mais que precisas para sobreviver, preferirias ficar isolada numa ilha
deserta, no meio do nada, totalmente sozinha, para sempre, para o resto da
vida? Sê franca.
Katie pestanejou, tentando focar os olhos em Jo. – Por que razão é que não
seria franca?
– Porque toda a gente mente. É necessário, para se viver em sociedade. Não
me leves mal, eu acredito mesmo que é necessário. A última coisa que uma
pessoa pode querer é viver numa sociedade onde prevalece a honestidade
total. Consegues imaginar uma conversa desse tipo? «És gorda e baixa», diria
uma pessoa, e a outra poderia responder: «Eu sei. E tu cheiras mal.» As
coisas não iriam funcionar. As pessoas mentem por omissão, e isso está
sempre a acontecer. As pessoas contam sempre a maior parte da história... e
aprendi que a parte que deixam por contar é sempre a mais importante. As
pessoas escondem a verdade porque têm medo.
Com as palavras de Jo, Katie sentiu algo a tocar o seu coração. De repente,
até mesmo respirar se tornou difícil. – Estás a falar de mim? – perguntou,
com a voz embargada.
– Não sei. Estou?
Katie sentiu-se empalidecer, mas, antes que pudesse responder, Jo exibiu
um sorriso. – Na verdade, estava a falar sobre o dia que tive hoje. Eu disse
que foi um dia complicado, não disse? Bem, o que acabei de te dizer é parte
do problema. É frustrante quando as pessoas se recusam a contar a verdade.
Afinal, como é que eu posso ajudá-las se insistem em esconder certas coisas?
Se eu não consigo entender realmente o que se passa?
Katie sentiu algo a contorcer-se e a apertar-se no seu peito. – Talvez elas
queiram falar do assunto, mas sabem que não há nada que possas fazer para
as ajudar – sussurrou.
– Há sempre alguma coisa que eu possa fazer.
Sob a luz do luar que entrava pela janela da cozinha, a pele de Jo pareceu
reluzir num tom branco, e Katie teve a sensação de que ela não era o tipo de
pessoa que costumava expor-se ao sol. O vinho fez a cozinha girar e as
paredes moverem-se. Katie sentiu as lágrimas a começarem a formar-se nos
seus olhos e tudo o que pôde fazer foi pestanejar para as conter. Sentiu a boca
ficar seca.
– Nem sempre – murmurou Katie. Virou a cara para a janela. Do lado de
fora, a lua pairava por cima das árvores. Katie engoliu em seco, sentindo-se
como se estivesse a observar-se a si própria, do outro lado da cozinha.
Conseguia ver-se sentada à mesa com Jo, e, quando começou a falar, a voz
que ouviu não parecia realmente a sua. – Eu tinha uma amiga. O casamento
dela era horrível, e ela não conseguia falar com ninguém. Ele costumava
bater-lhe, e ela disse-lhe que se aquilo voltasse a acontecer, iria embora. Ele
jurou que nunca mais o faria e ela acreditou. Mas as coisas pioraram muito
depois disso. Por exemplo, quando o jantar dele estava frio ou quando ela
revelava ter conversado com um dos vizinhos que estava a passear o cão. Ela
só tinha conversado com o rapaz, mas, naquela noite, o marido atirou-a
contra um espelho.
Katie olhou para o chão. O linóleo estava a descolar-se do chão nos cantos
da cozinha, mas ela não sabia como o arranjar. Já tentara colá-lo, mas não
tivera sucesso. Os cantos tinham voltado a enrolar-se.
– Ele pedia sempre desculpa e às vezes chegava até a chorar por causa das
pisaduras que causara nos braços, nas pernas ou nas costas dela. Dizia que
odiava ter feito aquilo, mas, logo a seguir, dizia-lhe que ela merecera tudo o
que acontecera. Que, se fosse mais cuidadosa, nada daquilo teria acontecido.
Que, se prestasse atenção ao que fazia, ou se não fosse tão imbecil, ele não
teria perdido a paciência. Ela tentou mudar. Esforçou-se para tentar ser uma
esposa melhor e fazer as coisas como ele queria. Mas nada era suficiente,
nunca.
Katie sentiu a pressão das lágrimas por detrás dos olhos e, embora tentasse
novamente contê-las, sentiu-as a escorrer pela face. Jo estava imóvel do outro
lado da mesa, observando-a.
– E como ela o amava! No começo, ele era muito carinhoso com ela. Fazia
com que ela se sentisse segura. Na noite em que se conheceram, ela estava a
trabalhar. Quando terminou o seu turno, dois homens seguiram-na. Quando
dobrou a esquina, um deles agarrou-a e cobriu-lhe a boca com a mão. Por
mais que ela tentasse libertar-se, os homens eram muito mais fortes e ela não
sabia o que iria acontecer-lhe, mas o seu futuro marido vinha logo atrás e
bateu na nuca de um dos agressores, e ele caiu ao chão. A seguir, agarrou o
outro e atirou-o contra a parede. Estava tudo terminado. Ele ajudou-a a
levantar-se e levou-a a casa. No dia seguinte, levou-a a tomar café. Era
amável e tratava-a como a uma princesa, e assim foi até à lua de mel.
Katie tinha noção que não deveria contar nada daquilo a Jo, mas não
conseguiu evitar. – A minha amiga tentou fugir duas vezes. Uma vez, acabou
por voltar para casa, porque não tinha nenhum outro lugar para onde pudesse
ir. E, na segunda vez que fugiu, realmente pensou que estivesse livre. Mas o
marido procurou-a por toda parte e arrastou-a de volta para casa. Lá,
espancou-a e encostou-lhe uma pistola à cabeça, dizendo que, se fugisse outra
vez, a mataria. E mataria qualquer homem de quem ela gostasse. E ela
acreditou nele, porque, naquela altura, já sabia que se tratava de um louco.
Mas estava presa. Ele nunca lhe dava dinheiro, nunca permitia que saísse de
casa. Ele passava de carro em frente à casa deles durante o horário de
trabalho apenas para se certificar de que ela estava lá. Verificava os registos
dos telefonemas e ligava-lhe a toda a hora. E não permitia que tirasse a carta
de condução. Certa vez, quando acordou a meio da noite, a minha amiga
percebeu que ele estava em pé ao lado da cama, a olhar fixamente para ela.
Estava a beber e com a pistola de novo na mão. Ela estava amedrontada de
mais para dizer algo mais que não fosse pedir-lhe que voltasse para a cama.
Mas foi naquele momento que percebeu que, se ficasse ali, o marido iria
certamente matá-la.
Katie limpou os olhos e os dedos ficaram húmidos com as lágrimas. Mal
conseguia respirar, mas as palavras continuavam a transbordar. – A minha
amiga começou a roubar dinheiro da carteira dele. Nunca mais do que um
dólar ou dois, porque, de outra forma, ele acabaria por perceber. Ele
costumava deixar a carteira numa gaveta trancada à chave durante a noite,
mas às vezes esquecia-se. Levou muito tempo até que ela conseguisse juntar
todo o dinheiro de que precisava para fugir. Porque era aquilo que precisava
de fazer. Fugir. Tinha de ir para um lugar onde ele nunca a encontrasse,
porque sabia que o marido nunca desistiria de a procurar. E ela não podia
contar nada a ninguém, porque não tinha mais família e a polícia não faria
nada. Se ele suspeitasse de qualquer coisa, certamente que a mataria. Assim,
ela roubou e guardou o pouco dinheiro que podia e encontrou moedas entre
as almofadas do sofá e na máquina de lavar roupa. Escondeu o dinheiro num
saco de plástico por baixo de um vaso de flores, mas, sempre que ele ia lá
fora, tinha a certeza de que ele acabaria por encontrar o dinheiro. Demorou
muito tempo a juntar a quantia de que precisava, porque queria ir para um
lugar bem longe, um lugar onde ele nunca conseguiria encontrá-la. Para
poder recomeçar a sua vida.
Katie nem se apercebeu de quando aquilo sucedera, mas Jo estava a pegar-
lhe na mão. E ela já não tinha a sensação de estar a observar-se do outro lado
da cozinha. Era capaz de sentir o sal das lágrimas nos lábios e imaginou que
sua alma estivesse a escorrer para fora do seu corpo. Queria dormir,
desesperadamente.
No silêncio, Jo manteve o seu olhar fixo no dela. – A tua amiga tem muita
coragem – disse ela, em voz baixa.
– Não. A minha amiga passa o tempo todo cheia de medo.
– Ter coragem é exatamente isso. Se não fosse assim, não precisaria de
coragem para suplantar o medo que sente. Eu admiro o que ela fez – disse Jo,
apertando-lhe levemente a mão. – E acho que iria gostar muito dessa tua
amiga. Fico feliz por me teres falado dela.
Katie desviou o olhar, sentindo-se completamente esgotada. – Acho que
não te devia ter contado isto.
Jo encolheu os ombros. – Não me preocuparia assim tanto. Uma coisa que
hás de aprender a meu respeito é que sou muito boa no que toca a guardar
segredos. Especialmente segredos de pessoas que não conheço, está bem?
Katie assentiu com a cabeça. – Está bem.
Jo ficou com Katie durante mais uma hora, mas conduziu a conversa para
assuntos menos dolorosos. Katie falou sobre seu trabalho no Ivan’s e sobre
alguns clientes que estava a começar a conhecer. Jo questionou-a sobre a
melhor maneira de tirar a camada de tinta que ficava debaixo das unhas
depois de pintar as paredes. Sem mais vinho para beber, a tontura que Katie
sentira começou a desaparecer, deixando apenas o cansaço. Jo também
começou a bocejar e finalmente levantaram-se da mesa. Jo ajudou Katie a
arrumar e limpar a cozinha, embora não houvesse muito a fazer além de lavar
dois pratos. Katie acompanhou-a até à porta. Jo deteve-se quando saiu para o
alpendre. – Acho que tivemos visitas – disse.
– Do que é que estás a falar?
– Está uma bicicleta encostada à tua árvore.
Katie seguiu-a até ao exterior. Apesar do brilho amarelado da luz do
alpendre, o ambiente estava escuro e os contornos dos pinheiros ao longe
lembraram a Katie o contorno irregular de um buraco negro. Pirilampos
imitavam as estrelas, a piscar e a brilhar, e Katie semicerrou os olhos para ver
melhor, percebendo que Jo tinha razão.
– De quem será essa bicicleta? – perguntou Katie.
– Não sei.
– Ouviste alguém a chegar?
– Não. Mas acho que alguém a deixou aqui para ti. Estás a ver? Aquilo à
volta do guiador não é um laço?
Katie inclinou-se para a frente, distinguindo o laçarote. Uma bicicleta de
senhora. Tinha uma cestinha de metal de cada lado da roda de trás e outra
instalada em frente ao guiador. Havia também uma corrente enrolada em
redor do selim, com a chave no cadeado.
– Quem me daria uma bicicleta?
– Porque é que estás sempre a fazer-me essas perguntas? Não faço a
mínima ideia do que está a acontecer.
Katie e Jo desceram as escadas para a rua. Embora a maior parte das poças
já tivesse secado, esvaindo-se pelo solo arenoso, a relva permanecia bastante
húmida por causa da chuva, e encharcou as biqueiras dos sapatos de Katie
quando ela atravessou o jardim. Tocou na bicicleta e depois no laço,
deslizando os dedos pela sua superfície como faria um vendedor de tapetes.
Debaixo do laço, estava um cartão e Katie pegou nele.
– Foi o Alex – disse ela, num tom de espanto.
– O Alex, da loja? Ou outro Alex?
– O da loja.
– O que diz o cartão?
Katie abanou a cabeça, tentando compreender as palavras antes de o passar
a Jo para que esta o lesse. Calculei que gostasse dela.
Jo bateu com os dedos no cartão. – Acho que isso significa que ele está tão
interessado em ti como tu estás interessada nele.
– Não estou interessada nele!
– É claro que não – disse Jo, piscando o olho. – Porque é que haverias de
estar?
8
A lex estava a varrer o chão junto aos frigoríficos quando Katie entrou na
loja. Ele calculou ela aparecesse bem cedo para falarem da bicicleta.
Depois de encostar o cabo da vassoura ao vidro, enfiou a camisa por dentro
das calças e passou a mão pelo cabelo. Kristen passara a manhã inteira à
espera que Katie chegasse e levantou-se da mesa antes mesmo que a porta se
fechasse.
– Olá, Miss Katie – disse Kristen. – Viste a bicicleta?
– Vi sim, obrigada. É por causa dela que estou aqui.
– Esforçamo-nos bastante a trabalhar nela.
– Foi um excelente trabalho. O teu pai está por aqui?
– Sim, está mesmo ali – disse Kristen, apontando. – Ele já aí vem.
Alex fixou o olhar em Katie quando ela se voltou.
– Olá, Katie – cumprimentou-a.
Quando se aproximou, ela cruzou os braços. – Podemos conversar lá fora
por um minuto?
Ele detetou a frieza na voz dela e percebeu que estava a esforçar-se imenso
por não demonstrar a sua raiva à frente de Kristen.
– É claro – disse, abrindo a porta. Seguiu-a até ao exterior e deu por si a
admirar os contornos do corpo de Katie enquanto ela se dirigiu até ao lugar
onde tinha encostado a bicicleta.
Detendo-se ao lado da bicicleta, ela virou-se para o encarar. Na cesta da
frente estava o guarda-chuva que ele lhe emprestara na véspera. Ela
tamborilou no selim, com uma expressão séria no rosto. – Posso perguntar o
que significa isto?
– Gostou dela?
– Porque é que me comprou uma bicicleta?
– Eu não a comprei para si – disse ele.
Katie pestanejou, com uma expressão confusa. – Mas o seu bilhete...
Alex encolheu os ombros. – Esteve no arrumo durante os últimos dois
anos, a acumular pó. Acredite em mim. A última coisa que eu faria seria
comprar-lhe uma bicicleta.
Os olhos dela passaram a demonstrar indignação. – Não é disso que eu
estou a falar! Está sempre a dar-me coisas e isso tem de parar. Eu não quero
nada seu. Não preciso de um guarda-chuva, nem de legumes, nem de vinho.
E não preciso de uma bicicleta.
– Então dê a bicicleta a alguém – disse ele, encolhendo de novo os ombros
–, porque eu também não a quero.
Katie ficou em silêncio e Alex viu a confusão dar lugar à frustração e,
finalmente, à frivolidade. Por fim, ela abanou a cabeça e virou-se para se ir
embora. Antes que pudesse dar um passo, ele aclarou a garganta. – Antes de
ir embora, poderia ter a gentileza de ouvir o que tenho a dizer?
Katie virou a cabeça e olhou para Alex por cima do ombro. – Não quero
saber.
– Talvez não queira, mas é importante para mim.
Ela manteve os olhos fixos nos dele, vacilando, até finalmente cederem.
Quando suspirou, ele apontou para um banco de madeira em frente à loja.
Alex colocara ali o banco na brincadeira, enfiado entre a máquina de gelo e
algumas botijas de gás, sabendo que ninguém gostaria de se sentar lá. Quem é
que quereria sentar-se virado para o estacionamento e para a estrada logo a
seguir? Mesmo assim, para sua surpresa, havia várias pessoas a sentarem-se
naquele banco, quase todos os dias. A única razão pela qual o banco ainda
estava vazio naquele momento era por ser muito cedo.
Katie hesitou um pouco antes de se sentar e Alex entrelaçou os dedos sobre
o colo.
– Não estava a mentir quanto ao facto de a bicicleta estar a acumular pó nos
últimos dois anos. Ela pertencia à minha esposa – explicou Alex. – Ela
adorava a bicicleta e usava-a muitas vezes. Uma vez, chegou a ir de
Southport a Wilmington, mas, é claro, quando lá chegou, estava exausta e eu
tive de ir buscá-la de carro. E não havia ninguém para tomar conta da loja.
Tive de fechar literalmente as portas durante duas horas. – Fez uma pausa
para inspirar. – Foi a última vez que andou nela. Naquela noite, teve a
primeira convulsão e eu tive de a levar a correr ao hospital. Depois disso,
ficou cada vez pior e nunca mais andou de bicicleta. Deixei a bicicleta no
arrumo, mas sempre que a vejo, não consigo evitar pensar naquela noite
horrível – disse, alisando a camisa. – Eu sei que já devia ter-me livrado dela,
mas não queria dá-la a alguém que a iria usar apenas uma ou duas vezes e
que depois a encostaria a um canto. Queria que ela ficasse com alguém que
gostasse dela tanto quanto a minha mulher gostava. Alguém que realmente a
usasse. Essa seria a vontade da minha esposa. Se a tivesse conhecido, iria
entender. Far-me-ia um grande favor.
Quando Katie falou, a sua voz estava embargada. – Não posso ficar com a
bicicleta da sua esposa.
– Quer dizer que ainda pretende devolvê-la?
Quando ela assentiu com a cabeça, ele inclinou-se para frente e apoiou os
cotovelos nos joelhos. – A Katie e eu somos muito mais parecidos do que
imagina. Se eu estivesse na sua situação, faria exatamente a mesma coisa.
Não quer sentir que deve algo a alguém. Quer provar que pode cuidar de si
mesma sem depender de mais ninguém, não é?
Ela abriu a boca para responder, mas não disse nada. No meio do silêncio
que se gerou, ele prosseguiu.
– Eu era exatamente assim quando a minha mulher morreu. E fui assim
durante muito tempo. As pessoas vinham até à loja e muitas delas diziam que
eu poderia telefonar se precisasse de alguma coisa. A maioria sabia que não
tenho família por perto e todas tinham ótimas intenções, mas nunca telefonei
a ninguém. Simplesmente porque aquilo não tinha nada que ver com minha
maneira de ser. Mesmo se quisesse alguma coisa, não saberia como pedir. E,
mesmo assim, na maior parte das vezes, nem sabia exatamente o que queria.
Tudo o que sabia era que tinha chegado ao fim da linha e, para continuar com
a metáfora, por muito tempo mal consegui agarrar-me a ela. Veja a minha
situação. Assim de repente, tive de tomar conta de duas crianças pequenas e
também da loja. Os meus filhos eram bastante mais novos e precisavam de
mais atenção naquela altura do que precisam agora. Até que um dia, apareceu
a Joyce. – Fitou-a. – Já a conheceu? Uma senhora idosa que trabalha algumas
tardes por semana, incluindo aos domingos, e que conversa com toda a
gente? O Josh e a Kristen adoram-na.
– Acho que não.
– Não tem importância. Seja como for, ela apareceu uma tarde, por volta
das cinco horas, e disse-me que tomava conta das crianças, para eu poder ir
passar uma semana à praia. Ela já tinha encontrado um lugar para eu ficar e
disse que não aceitaria um «não» como resposta porque, na opinião dela, eu
estava inevitavelmente destinado a ter um colapso nervoso.
Alex colocou os dedos na ponte do nariz, tentando reprimir as memórias
daqueles dias. – No início, aquilo irritou-me. Afinal, são meus filhos, certo?
E que tipo de pai seria eu para levar as pessoas a pensarem que não daria
conta do recado? Mas a Joyce fez algo diferente. Não me disse para telefonar
se precisasse de alguma coisa. Ela sabia o que eu estava a passar e fez o que
entendeu ser correto. No dia seguinte, eu estava a caminho da praia. E a
Joyce tinha razão. Nos primeiros dois dias, ainda estava em frangalhos. Mas,
passados alguns dias, saí para dar umas longas caminhadas, li alguns livros,
dormi até tarde. E, quando voltei, percebi que me sentia mais relaxado, de
uma maneira como já há muito não me sentia...
Alex deixou as palavras pairarem no ar, sentindo o peso do escrutínio de
Katie.
– Não sei porque é que me está a contar isso.
Ele virou-se para ela. – Nós os dois sabemos que, se eu lhe tivesse
perguntado se queria a bicicleta, a Katie teria dito «não». Assim, tal como a
Joyce fez comigo, fui em frente e fiz o que fiz, porque era a coisa certa a
fazer. Porque eu aprendi que não há problema em aceitar um pouco de ajuda
de vez em quando – concluiu Alex, olhando para a bicicleta. – Fique com ela.
Não tenho outro uso para lhe dar e a Katie tem de admitir que a bicicleta
facilitaria muito as suas deslocações para o trabalho.
Demorou alguns segundos até Alex perceber que os ombros dela estavam
descontraídos. Ela virou-se para ele com um sorriso forçado. – Ensaiou esse
discurso todo, não foi?
– É claro que ensaiei – disse ele, tentando mostrar um ar envergonhado. –
Mas vai ficar com ela?
Katie hesitou. – Bem, acho que uma bicicleta pode ser efetivamente uma
ajuda – admitiu, finalmente. – Obrigada.
Durante um longo momento, nenhum dos dois falou. Enquanto lhe
observava o perfil, Alex reparou mais uma vez em como ela era bonita,
embora percebesse que Katie provavelmente não achava que isso fosse
verdade. E esse facto servia apenas para a tornar ainda mais atraente.
– De nada – disse ele.
– Mas chega de presentes, OK? Já fez mais do que o suficiente por mim.
– De acordo – disse ele, voltando a olhar para a bicicleta. – Está em boas
condições? Foi fácil andar nela? Pergunto isso por causa das cestinhas.
– Não tive problemas. Porquê?
– Porque a Kristen e o Josh ajudaram-me a instalá-las ontem. Um daqueles
projetos ótimos para um dia de chuva. Foi a Kristen que as escolheu. Ah, e,
para que saiba, ela também achou que seria boa ideia colocar punhos
brilhantes no guiador, mas aí eu disse-lhe que isso já seria de mais.
– Não me importaria de ter punhos brilhantes.
Alex riu-se. – Vou dizer disso à Kristen.
Katie hesitou. – Está a fazer um ótimo trabalho, sabia? Em relação aos seus
filhos.
– Obrigado.
– Estou a ser sincera. Sei que não está a ser fácil.
– A vida é mesmo assim. Na maior parte das vezes, nada é fácil. Temos
simplesmente de tentar fazer o melhor que pudermos. Compreende o que
quero dizer?
– Sim, acho sim – respondeu ela.
A porta da loja abriu-se e, quando Alex se inclinou para frente, viu Josh a
esquadrinhar o estacionamento e Kristen logo atrás dele. Com os seus cabelos
e olhos castanhos, Josh era muito parecido com a mãe. O rapaz tinha o cabelo
desgrenhado e Alex percebeu que devia ter acabado de se levantar da cama.
– Estamos aqui, meninos.
Josh coçou a cabeça enquanto caminhou na direção deles. Kristen exibiu
um sorriso, acenando a Katie.
– Pai? – perguntou Josh.
– Sim, o que foi?
– Queríamos saber se hoje vamos mesmo à praia. Prometeste que nos
levavas.
– Bem, é esse o plano para hoje.
– E vamos levar o grelhador?
– É claro que vamos.
– Então tudo bem – disse ele, esfregando o nariz. – Olá, Miss Katie.
Katie acenou a Josh e a Kristen.
– Gostaste da bicicleta? – perguntou Kristen.
– Gostei, sim. Obrigada.
– Tive de ajudar o meu pai a arranjá-la – informou Josh. – Ele não é muito
bom com ferramentas.
Katie fitou Alex com um sorriso afetado. – Ele não me disse nada disso.
– Não faz mal. Eu sabia o que tinha a fazer. Mas ele teve de me ajudar com
a nova câmara de ar.
Kristen fixou os olhos em Katie. – Vens connosco para a praia?
Katie endireitou-se no banco de madeira. – Acho que não.
– Porquê? – perguntou Kristen.
– Provavelmente porque vai trabalhar – explicou Alex.
– Na verdade, não – disse ela. – Mas preciso de tratar de umas coisas em
casa.
– Então podias vir connosco – pediu Kristen. – Vai ser muito divertido!
– Este é um momento para ti e para tua família – insistiu ela. – Não quero
atrapalhar.
– Mas não vais atrapalhar. E vai ser muito divertido. Podes ver-me a nadar.
Anda lá, por favor! – implorou Kristen.
Alex permaneceu em silêncio, para não a pressionar mais. Presumiu que
Katie recusaria, mas, para sua surpresa, ela acabou por concordar com um
leve meneio da cabeça. E respondeu com uma voz suave.
– Está bem – disse ela, por fim.
9
P ouco tempo depois, Katie trouxe Kristen a tremer de frio e Josh bastante
animado de regresso à toalha que Alex tinha estendido na areia. A grelha
estava montada e os pedaços de carvão já estavam em brasa.
Alex abriu a última das cadeiras de praia sobre a toalha e observou
enquanto eles se aproximavam.
– Como é que estava a água, meninos?
– Ótima! – respondeu Josh. O seu cabelo, parcialmente seco, espetara-se e
apontava em todas as direções. – Quando é que o almoço está pronto?
Alex espreitou para as brasas. – Daqui a uns vinte minutos.
– Será que eu e a Kristen podemos voltar para a água?
– Vocês acabaram de sair da água. Porque é que não descansam por uns
minutos?
– Não é para nadar, é para fazer castelos de areia – explicou ele.
Alex percebeu que Kristen estava a bater os dentes.
– Têm a certeza de que querem fazer isso? Vocês estão roxos de frio.
Kristen assentiu veementemente com a cabeça. – Eu estou bem – disse ela,
ainda a tremer. – E a praia foi feita para construirmos castelos de areia.
– Tudo bem, tudo bem. Mas vistam as T-shirts, então. E fiquem onde eu
possa ver-vos – disse ele, apontando com o dedo.
– Eu sei, pai – disse Josh, com um suspiro. – Já não sou uma criança.
Alex abriu um saco de viagem e ajudou Josh e Kristen a vestirem as T-
shirts. Quando terminou, Josh pegou noutra saca cheia de brinquedos de
plástico e saiu disparado, parando a poucos passos da água. Kristen seguiu-o.
– Não é assim tão mau. Desde que me levante às seis da manhã e não me
deite antes da meia-noite, é fácil dar conta do recado.
Ela riu-se, descontraída. – Acha que as brasas já estão no ponto?
– Vou verificar – disse ele. Depois de pousar a garrafa na areia, levantou-se
da cadeira e foi ao grelhador. Os pedaços de carvão estavam brancos e o calor
erguia-se em ondas tremeluzentes. – A Katie tem um sentido de oportunidade
impecável – disse ele. Alex colocou as costeletas e os hambúrgueres na
grelha enquanto Katie foi à mala térmica para trazer uma quantidade
interminável de objetos para a mesa: taças de plástico com salada de batata e
cenoura, picles, salada de feijão-verde, fruta fatiada, dois pacotes de batatas
fritas, queijo fatiado, além de molhos e temperos diversos. Ela abanou a
cabeça à medida que organizava tudo, pensando se Alex se esquecera de que
os seus filhos ainda eram pequenos. Havia mais comida ali do que no armário
da cabana onde ela morava, em Southport.
Alex tratou das costeletas e dos hambúrgueres na grelha, acrescentando por
fim as salsichas do cachorro-quente. Ao cozinhar, deu por si a olhar para as
pernas de Katie enquanto ela andava em redor da mesa, mais uma vez
apercebendo-se do quanto era atraente.
Ela pareceu perceber que ele a observava.
– O que foi?
– Nada – disse ele.
– O Alex estava a pensar em alguma coisa.
Ele suspirou. – Estou feliz por ter vindo connosco – disse, finalmente. –
Porque estou a gostar bastante.
D epois de saírem da água, Kristen disse que estava com frio e Alex levou-
a à casa de banho para vestir roupas secas. Katie ficou com Josh na
manta, a admirar o brilho do sol nas ondas enquanto ele fazia pequenos
montes de areia.
– Ei, queres ajudar-me a lançar o papagaio? – perguntou Josh, de repente.
– Acho que não ia ser capaz. Nunca lancei papagaios.
– É fácil – insistiu ele, procurando entre a pilha de brinquedos que Alex
levara, até que retirou um pequeno papagaio. – Eu ensino-te. Vamos.
Josh desatou a correr pela praia abaixo e Katie correu alguns passos antes
de voltar a caminhar, em passos ligeiros. Quando chegou junto de Josh, ele já
tinha começado a desenrolar a linha e passou-lhe o papagaio para as mãos. –
Segura bem alto, por cima da cabeça.
Ela seguiu as instruções dele, à medida que Josh começou a afastar-se
lentamente, desenrolando a linha com bastante desenvoltura.
– Estás pronta? – gritou ele, quando finalmente parou. – Quando eu
começar a correr e gritar, larga o papagaio!
– Estou pronta! – gritou ela em resposta.
Josh começou a correr e, quando Katie sentiu a linha a ficar tensa, ouviu-o
gritar e largou de imediato o papagaio. Ela não sabia se o vento estaria
suficientemente forte, mas em poucos segundos o papagaio disparou na
direção do céu. Josh parou de correr e virou-se. Enquanto ela caminhava na
sua direção, ele deixou a linha correr ainda mais.
Quando se colocou ao lado do rapaz, protegeu os olhos do sol ao observar o
papagaio a subir cada vez mais. Mesmo àquela distância era bem visível o
símbolo do Batman, preto e amarelo.
– Sou muito bom a lançar papagaios – disse ele, olhando para o céu. –
Porque é que nunca tinhas lançado nenhum?
– Não sei. Mas não era uma coisa que eu fizesse em criança.
– Devias experimentar. É divertido.
Josh continuou a olhar para cima, o seu rosto refletindo toda a sua
concentração. Pela primeira vez, Katie percebeu como Josh e Kristen eram
parecidos.
– Gostas de ir à escola? Andas no infantário, não é?
– Ah, a escola não é má. Gosto mais do recreio. Eu e os meus amigos
fazemos corridas e coisas do género.
É claro, pensou ela. Desde que chegaram à praia ele não parou de se mexer
nem por um minuto. – E gostas da tua professora?
– Ela é muito fixe e é parecida com o meu pai. Não grita com os alunos.
– O teu pai não grita?
– Não – disse ele, cheio de convicção.
– E como é que faz quando se zanga?
– O meu pai não se zanga.
Katie observou Josh atentamente, perguntando-se se ele estaria a ser
sincero, antes de perceber que o rapaz era incapaz de mentir.
– Tens muitos amigos? – perguntou ele.
– Nem por isso, porquê?
– O meu pai diz que és amiga dele. Foi por isso que te trouxe à praia.
– Quando é que ele te disse isso?
– Quando estávamos no meio das ondas.
– E o que mais é que ele disse?
– Perguntou se não tínhamos ficado incomodados por teres vindo.
– E ficaram?
– Claro que não – disse ele, encolhendo os ombros. – Toda a gente precisa
de amigos, e a praia é um lugar muito divertido.
Não havia como contestar aquilo. – Tens toda a razão – disse ela.
– A minha mãe costumava vir até aqui connosco, sabes?
– A sério?
– Sim, mas ela morreu.
– Eu sei. E lamento muito que isso tenha acontecido. Deve ser muito
difícil. Imagino que tenhas muitas saudades dela.
Ele assentiu com a cabeça e, por momentos, pareceu simultaneamente mais
velho e mais novo do que realmente era. – O meu pai às vezes fica triste. Ele
acha que não percebo, mas dá para perceber.
– Acho que eu também ficaria triste – disse Katie.
Josh permaneceu em silêncio enquanto pensava na resposta dela. –
Obrigado por me ajudares com o papagaio – acabou por dizer.
Não levou muito tempo a Katie para admitir que a bicicleta fora uma
dádiva divina. Além de poder ir a casa no intervalo entre os turnos nos dias
em que trabalhava dois períodos no restaurante, sentiu que, pela primeira vez,
poderia realmente começar a explorar a cidade. E foi exatamente o que fez.
Na terça-feira, visitou duas lojas de antiguidades, apreciou aguarelas de
paisagens marítimas que estavam expostas numa galeria de arte e pedalou
através de alguns dos bairros de Southport, admirando os amplos alpendres e
os pórticos que adornavam as casas perto da costa. Na quarta, foi até à
biblioteca e passou algumas horas a examinar as estantes, lendo as badanas
dos livros e enchendo as cestinhas da bicicleta com os romances que
despertaram o seu interesse.
No entanto, à noite, enquanto lia na cama os livros que tinha requisitado, às
vezes dava por si desconcentrada da leitura e a permitir que a imagem de
Alex povoasse os seus pensamentos. Ao revisitar as memórias da época em
que vivia em Altoona, percebeu que Alex lhe fazia lembrar o pai da sua
amiga Callie. No décimo ano do ensino secundário, Callie morara ao fundo
da rua dela e, embora não se conhecessem muito bem – Callie era dois anos
mais nova –, Katie lembrava-se de se sentar nos degraus do seu alpendre
todos os sábados de manhã. Certo como um relógio, o pai de Callie abria a
porta da garagem, assobiando uma música enquanto tirava a máquina da
relva e a posicionava num dos cantos do jardim. Tinha orgulho no seu jardim
– era provavelmente o mais bem tratado da vizinhança – e ela ficava a
observá-lo enquanto ele passava o aparelho sobre a relva com uma precisão
militar. De vez em quando, ele parava para afastar da frente da máquina um
ramo caído, e, naqueles momentos, limpava o rosto com um lenço que
guardava no bolso de trás dos calções. Quando terminava, apoiava-se no capô
do carro que deixava estacionado à frente da garagem e saboreava um copo
de limonada que a mulher invariavelmente lhe levava. Às vezes, ela
encostava-se ao carro ao lado do marido, e Katie sorria enquanto o observava
a tocar na anca da mulher quando lhe queria chamar a atenção.
Havia um quê de satisfação na maneira como ele bebia a limonada e tocava
na esposa que levava Katie a pensar que aquele homem estava satisfeito com
a vida que tinha e que todos os seus sonhos, de alguma forma, se tinham
realizado. Enquanto o observava, era frequente Katie tentar imaginar como
seria a sua vida se tivesse nascido naquela família.
Alex ostentava aquele mesmo ar de satisfação quando os seus filhos
estavam por perto. De alguma forma, não só conseguira superar a tragédia de
perder a mulher, como também lograra fazê-lo com força suficiente para
ajudar os filhos a superar igualmente aquela perda. Quando falou sobre a
falecida esposa, Katie tentou perceber se a voz dele revelava tristeza ou
autocomiseração, mas não detetou nenhum desses sentimentos. É claro que
havia pena e uma pontada de solidão ao falar dela, mas, simultaneamente,
falou da mulher a Katie sem que esta sentisse que estava a comparar ambas.
Ele pareceu aceitá-la tal como era e, mesmo que ela não soubesse exatamente
quando tal sucedera, percebeu que se sentia atraída por ele.
Mas, mesmo pondo tudo isso de parte, os sentimentos dela eram bastante
complexos. Katie não baixava a guarda para deixar alguém aproximar-se
desde a época em que morara em Atlantic City, e a experiência acabara por
revelar-se um pesadelo. Contudo, por mais que tentasse permanecer distante,
parecia que sempre que via Alex algo acontecia para fazer com que os dois se
aproximassem. Às vezes por acidente, como no dia em que Josh caiu ao rio e
ela ficou com Kristen. Outras vezes, até parecia obra do destino. Como no dia
em que desabou a tempestade. Ou quando Kristen saiu da loja e lhe implorou
para que fosse à praia com a família. Quanto mais tempo ela passava ao lado
de Alex, mais sentia que ele sabia muito mais do que deixava transparecer, e
aquilo assustava-a. Fazia com que se sentisse despida e vulnerável e esse era
um dos motivos pelos quais evitara ir à loja dele durante toda a semana.
Precisava de tempo para pensar, tempo para decidir o que faria a respeito
daquela situação, se é que faria alguma coisa.
Infelizmente, acabou por passar demasiado tempo a lembrar-se da maneira
como as rugas de expressão no canto dos olhos de Alex se juntavam quando
ele sorria, ou dos movimentos graciosos que ele fizera ao sair do mar. Pensou
em Kristen a procurar a mão do pai e a total confiança que Katie viu naquele
simples gesto. Jo dissera desde logo que Alex era um bom homem, o tipo de
homem que faz as coisas certas e, embora Katie não pudesse dizer que o
conhecesse bem, o instinto dizia-lhe que era um homem em quem podia
confiar. Que, não importava o que lhe dissesse, iria apoiá-la, guardaria os
seus segredos e nunca usaria o que sabia para magoá-la.
Eram ideias irracionais e ilógicas, que iam contra tudo o que prometera a si
mesma quando se mudara para Southport. Mas Katie percebeu que desejava
que ele a conhecesse melhor. Queria que ele a entendesse, porque tinha a
estranha sensação de que Alex era o tipo de homem pelo qual poderia
apaixonar-se, mesmo que não quisesse.
14
C açar borboletas.
A ideia surgira na sua mente mal despertara na manhã de sábado,
antes mesmo de descer até à loja para abrir as portas ao público.
Estranhamente, enquanto pensou no que poderia fazer para entreter os filhos
nesse dia, lembrou-se de um projeto que fizera quando estava no segundo ano
do ciclo. A professora pedira aos alunos que fizessem uma coleção de
insetos. A sua memória regressou a uma tarde em que estava a correr num
relvado durante o recreio da escola, à procura de insetos aos quais pudesse
deitar a mão, desde abelhões a gafanhotos. Tinha a certeza de que Josh e
Kristen iriam gostar de fazer aquilo e, sentindo-se orgulhoso de si próprio por
ter pensado em algo interessante e original para ocupar uma tarde do fim de
semana, remexeu nas redes de pesca que tinha na loja, escolhendo três com o
tamanho apropriado.
Quando apresentou a ideia às crianças à hora do almoço, elas não ficaram
muito entusiasmadas.
– Não quero magoar nenhuma borboleta. Eu gosto delas – protestou
Kristen.
– Nós não vamos magoá-las. Depois podemos soltá-las.
– Então, porque é que precisamos de as apanhar?
– Porque é divertido.
– Não me parece que seja divertido. A mim, parece-me uma maldade.
Alex abriu a boca para responder, mas não soube exatamente o que dizer.
Josh deu outra dentada na sua tosta de queijo.
– O dia está muito quente, pai – fez notar, falando enquanto mastigava.
– Está bem. Podemos ir nadar no riacho depois de caçar as borboletas. E
mastiga com a boca fechada.
Josh engoliu. – E porque é que não vamos já nadar no riacho?
– Porque vamos sair para caçar borboletas.
– Não podemos ir ao cinema em vez de fazer isso?
– Isso! Vamos ao cinema!
Às vezes, Alex achava que ser pai era uma experiência exasperante.
– O dia está lindo e não vamos passá-lo metidos num cinema. Vamos sair
para caçar borboletas. E isso não é tudo: vocês os dois vão gostar do passeio,
entenderam?
Depois do almoço, Alex levou-os até um campo nos arredores da cidade
que estava repleto de flores silvestres. Entregou-lhes as redes que usariam
para caçar as borboletas e ordenou-lhes que começassem, observando
enquanto Josh arrastava a sua rede atrás de si e Kristen segurava a sua contra
o corpo, de um modo parecido com o que fazia com as bonecas.
Alex resolveu deitar mãos à obra e correu à frente deles, com a sua rede a
postos. Mais à frente, a esvoaçar por entre as flores, avistou dúzias de
borboletas. Quando lá chegou, girou a rede em arco, capturando uma.
Agachando-se, começou a manipular a rede cuidadosamente, permitindo que
o laranja e o castanho das asas da borboleta ficassem à mostra.
– Uau! – disse ele, tentando demonstrar o máximo de entusiasmo que
conseguiu. – Apanhei uma!
Numa questão de segundos, Josh e Kristen vieram a correr e espreitaram
por cima do ombro dele.
– Cuidado com ela, pai – avisou Kristen.
– Não te preocupes, querida. Olha como as cores são bonitas.
Os dois aproximaram-se ainda mais.
– Que fixe! – gritou Josh para, no momento seguinte, desatar a correr por
entre as flores a agitar vigorosamente a sua rede.
Kristen continuou a observar a borboleta. – De que espécie é?
– É uma hespéria – informou Alex. – Mas não sei ao certo de que tipo.
– Acho que está assustada.
– Tenho certeza de que ela está bem. Mas vou soltá-la.
Ela assentiu e Alex virou cuidadosamente a rede do avesso. De volta ao ar
livre, a borboleta prendeu-se à rede antes de sair de novo a voar. Os olhos de
Kristen arregalaram-se, maravilhados.
– Ajudas-me a apanhar uma?
– Com todo o gosto.
Passaram um pouco mais de uma hora a correr por entre as flores e
capturaram oito tipos diferentes de borboletas, incluindo uma junónia,
embora a maioria fossem hespérias. Quando terminaram, os rostos das
crianças estavam rubros e encharcados em suor, e Alex levou-os a comer um
gelado antes de irem para o riacho que passava atrás de casa. Os três foram
até ao cais e saltaram juntos para a água – Josh e Kristen com coletes salva-
vidas – e flutuaram ao sabor de corrente tranquila. Era um dia como muitos
que Alex tinha passado na sua infância. Quando saíram da água, ficou
satisfeito ao perceber que, com exceção do passeio até à praia, aquele fora o
melhor fim de semana que tiveram em muito tempo.
Mas foi cansativo também. Mais tarde, depois de as crianças já terem
tomado banho, quiseram ver um filme. Alex colocou o DVD de Regresso a
Casa, um filme que já tinham visto dezenas de vezes, mas que estavam
sempre dispostos a ver de novo. Da cozinha, ele conseguia vê-los no sofá,
ambos sem moverem um músculo que fosse, a olhar para a televisão daquela
forma absorta típica de crianças exaustas.
Alex limpou a bancada da cozinha e colocou os pratos sujos na máquina de
lavar a louça. A seguir, pôs um monte de roupa suja na máquina, arrumou a
sala de estar e limpou a casa de banho das crianças antes de finalmente se
sentar ao lado delas no sofá, por alguns momentos. Josh estava enroscado
num dos cantos do sofá e Kristen no outro. Quando o filme terminou, Alex
sentiu as suas próprias pálpebras a começarem a pesar. Depois de trabalhar na
loja, brincar com os filhos e limpar a casa, era bom poder simplesmente
relaxar por alguns momentos.
O som da voz de Josh despertou-o abruptamente.
– Ei, pai?
– Sim?
– O que temos para o jantar? Estou a morrer de fome.
No dia seguinte, Katie entrou na loja cerca de meia hora depois de Alex
abrir as portas ao público.
– Veio cedo – disse Alex, surpreendido.
– Levantei-me cedo e pensei que poderia aproveitar para fazer as minhas
compras antes das outras coisas que preciso de fazer hoje.
– O movimento no restaurante diminuiu ontem à noite?
– Só passado um bom bocado. Mas estamos com falta de pessoal esta
semana. Uma funcionária teve de viajar para ir ao casamento da irmã e outra
ligou a dizer que estava doente. Está uma confusão.
– Eu percebi. Mas a comida estava ótima, apesar de o serviço ter demorado
um pouco.
Quando ela o fitou com uma expressão irada, ele riu-se. – Isso é por ter
gozado comigo ontem à noite – realçou Alex, abanando a cabeça. – Chamou-
me velho. Vou revelar-lhe a verdade, o meu cabelo ficou grisalho antes de eu
fazer trinta anos.
– Acho que se preocupa de mais com isso – disse ela, tentando retribuir a
provocação. – Mas acredite em mim. Fica-lhe bem. Dá-lhe um certo ar de
respeitabilidade.
– E isso é bom ou mau?
Ela sorriu sem responder e logo a seguir pegou num cesto de compras.
Enquanto o retirava da pilha, ouviu-o a aclarar a garganta.
– Vai trabalhar tanto esta semana como trabalhou na semana passada?
– Não, nem tanto.
– E no próximo fim de semana?
Katie refletiu por uns momentos. – Estou de folga no sábado. Porquê?
Ele apoiou as mãos no balcão antes de a olhar nos olhos. – Porque estava a
pensar se gostaria de ir jantar comigo. Só nós os dois, desta vez. Sem os
miúdos.
Katie sabia que ela e Alex tinham chegado a uma encruzilhada, daquelas
que mudaria tudo entre eles. Mas, simultaneamente, fora essa a razão que a
levara a ir tão cedo à loja. Queria descobrir se estava enganada em relação à
expressão que vira nos olhos dele na noite anterior, porque foi a primeira vez
que percebeu, com toda a certeza, que queria que ele a convidasse.
Todavia, no meio ao silêncio Alex pareceu não compreender o que ela
estava a pensar. – Deixe lá. Não é assim tão importante.
Katie continuou a fitá-lo nos olhos. – Sim, eu adoraria jantar consigo. Mas
com uma condição.
– E qual seria essa condição?
– Já fez tantas coisas por mim que desta vez gostaria de poder fazer algo
por si. E que tal se eu preparasse o jantar? Em minha casa.
Ele sorriu, aliviado. – Vai ser perfeito.
15
Arrastando-se para fora da cama, Katie bocejou e depois foi até à cozinha
para preparar uma cafeteira de café antes de ir ao alpendre, semicerrando os
olhos devido ao brilho do sol. Olhou para a casa de Jo e viu que a amiga
estava no alpendre, de martelo em punho, pronta para mais uma martelada. Jo
viu então que Katie tinha saído de casa e pousou o martelo. – Espero não te
ter acordado.
– Acordaste, sim, mas não há problema. Já passou da hora de eu me
levantar. O que é que estás a fazer?
– Estou a tentar evitar que esta veneziana se solte da parede. Quando
cheguei ontem à noite a casa, estava a começar a soltar-se e não tive dúvidas
de que cairia a meio da noite. E, é claro, pensar que a veneziana podia
acordar-me a qualquer momento se caísse ao chão fez com que demorasse
bastante a adormecer.
– Precisas de ajuda?
– Não, já estou quase a acabar.
– E um café, aceitas?
– Um café parece-me ótima ideia. Daqui a uns minutos estou aí.
Katie regressou ao quarto e trocou o pijama por uns calções e uma T-shirt.
Lavou os dentes e escovou o cabelo o suficiente para o desembaraçar. Por
entre as frestas da janela viu que Jo se dirigia a sua casa e foi abrir a porta da
entrada.
– A tua casa está a ficar muito bonita! Adorei os tapetes e os quadros que
escolheste.
Katie encolheu os ombros, com um sorriso.
– Bem, acho que começo a habituar-me a considerar Southport o meu lar.
Pensei que estava na hora de começar a transformar esta casa num lugar mais
permanente.
– Está realmente ótima. Parece que estás finalmente a começar a criar
raízes.
– E a tua casa? Como é que está?
– Está a ficar melhor. Quando estiver pronta, convido-te para ires lá ver.
– Por onde é que andaste? Já há algum tempo que não te vejo.
Jo fez um gesto indicando que aquilo não era assim tão incomum. – Estive
fora da cidade alguns dias, em trabalho, e depois fui visitar uma pessoa no
fim de semana passado. Desde então, estive a trabalhar. Sabes como é.
– Também trabalhei bastante. Tive de fazer vários turnos no restaurante nos
últimos dias.
– E vais trabalhar hoje à noite?
Katie beberricou o seu café.
– Não. Convidei uma pessoa para vir cá jantar.
Os olhos de Jo iluminaram-se. – Queres que adivinhe quem é essa pessoa?
– Já sabes quem é – disse Katie, tentando evitar enrubescer.
– Ah, eu sabia! – disse Jo. – Que bom. Fico muito feliz por ti. Já escolheste
o que vais vestir?
– Ainda não.
– Bem, independentemente da escolha, tenho a certeza de que vais ficar
linda. Vais ser tu a cozinhar?
– Podes não acreditar, mas até sou uma boa cozinheira.
– E o que é que vais preparar?
Quando Katie lhe contou, Jo ergueu uma sobrancelha.
– Parece uma delícia – comentou. – Vai ser muito bom, estou feliz por ti.
Por vocês os dois, na verdade. Estás entusiasmada?
– É apenas um jantar.
– O que significa que não vais ter problemas depois em contar-me tudo o
que acontecer, não é?
– Acho que precisas de arranjar outro passatempo.
– Provavelmente. Mas, neste momento, estou a divertir-me bastante com a
tua vida, já que a minha vida amorosa quase não existe nesta fase. Uma
rapariga precisa de sonhar, não achas?
Coube agora a Alex olhar para ela. Katie estava com o olhar perdido,
fitando um ponto para lá da ruela de gravilha, na direção do campo relvado
que havia em frente.
– Está tudo bem? – perguntou ele.
Ela levou o seu tempo a responder. – Estava apenas a pensar que me sinto
muito contente por o Alex estar aqui. Nem me conhece...
– Acho que a conheço suficientemente bem.
Katie não disse nada. Alex observou-a quando ela baixou o olhar.
– Acha que me conhece – disse ela, num sussurro. – Mas, na verdade, não
conhece.
Alex sentiu que Katie estava com medo de dizer mais. Por entre o silêncio,
ele ouvia as tábuas do alpendre a ranger enquanto se movimentava para frente
e para trás na cadeira de baloiço. – E que tal se eu lhe disser o que acho que
sei a seu respeito e a Katie diz-me se estou certo ou errado? Podemos fazer
assim?
Ela assentiu com a cabeça, cerrando os lábios. Quando Alex prosseguiu, a
sua voz era suave.
– Eu acho que a Katie é inteligente e encantadora, e que é uma pessoa de
bom coração. Eu sei que, quando quer, sabe arranjar-se para ficar ainda mais
bela do que qualquer pessoa que eu já tenha conhecido. É independente, tem
um bom sentido de humor e demonstra uma paciência incrível para lidar com
crianças. Tem razão quando diz que não conheço pormenores específicos
sobre o seu passado, mas não imagino que sejam assim tão importantes, a
menos que me queira falar deles. Toda a gente tem um passado, mas não
passa disso mesmo, do passado. Pode-se aprender com ele, mas não se pode
mudá-lo. A pessoa que eu conheço é aquela que eu quero conhecer ainda
melhor.
Enquanto ele falou, Katie esboçou um sorriso débil. – Fala como se tudo
fosse muito simples.
– E pode ser.
Ela rodou o copo entre os dedos, segurando-o pelo pé, enquanto ponderava
naquelas palavras. – E se o passado não for realmente passado? E se ainda
estiver a acontecer?
Alex continuou a fitá-la, sustendo o olhar. – Tem medo... que ele a
encontre?
Katie titubeou. – Como disse?
– A Katie ouviu o que eu disse – prosseguiu Alex. Manteve a voz firme e
tranquila, num tom quase coloquial, algo que aprendera enquanto trabalhara
no DIC. – Imagino que já tenha sido casada. E que talvez o seu ex-marido
esteja a tentar descobrir o seu paradeiro.
Katie sentiu-se paralisar e os seus olhos arregalaram-se. De repente, sentiu
dificuldade em respirar e levantou-se da cadeira de um salto, derramando o
que restava do vinho. Recuou um passo, afastando-se de Alex, olhando-o
fixamente e sentindo o rosto empalidecer.
– Como é que sabe isso tudo sobre mim? Quem é que lhe contou? –
perguntou ela, com a mente a laborar a alta velocidade, tentando descobrir o
que sucedera. Alex não poderia estar ao corrente. Não era possível. Ela não
tinha contado a ninguém.
Com exceção de Jo.
Perceber aquilo foi o suficiente para lhe tirar o fôlego e ela olhou para a
casa que ficava ao lado da sua. A sua vizinha traíra-a, pensou ela. A sua
amiga traíra-a...
Tão rapidamente quanto os pensamentos corriam pela mente de Katie,
também o cérebro de Alex estava a trabalhar freneticamente. Ele apercebeu-
se do medo na expressão dela, mas já vira aquilo antes. Inúmeras vezes. E
sabia que estava na altura de parar com os jogos e com as dissimulações se
pretendessem seguir em frente.
– Ninguém me contou nada – garantiu Alex. – Mas a sua reação mostra que
estou certo. De qualquer forma, isso não tem importância. Não conheço essa
pessoa, Katie. Se quiser falar-me do seu passado, estou disposto a ouvi-la e a
ajudar de qualquer maneira que esteja ao meu alcance, mas não lhe vou
perguntar nada sobre o assunto. E se não quiser contar, também não há
problema. Como lhe disse, não conheço a pessoa em causa. A Katie deve ter
bons motivos para querer guardar segredo, o que significa que eu também
não vou contar nada a ninguém. Não importa o que aconteça entre nós. Se
quiser inventar um novo passado para si, esteja à vontade. Dar-lhe-ei toda a
cobertura e confirmarei cada palavra que disser. Pode confiar em mim.
Katie olhou para Alex enquanto ele falava, sentindo-se confusa,
amedrontada e enraivecida, mas ouvindo atentamente cada palavra.
– Mas... como?
– Aprendi a perceber coisas que outras pessoas deixam passar. Houve uma
época na minha vida em que não fazia mais nada. E a Katie não é a primeira
mulher que conheço nessa situação.
Katie continuou a olhar para ele, ainda imersa em pensamentos. – Quando
esteve no exército – concluiu ela.
Ele assentiu, sem desviar o olhar. Finalmente, levantou-se da cadeira e deu
um passo cauteloso em direção a ela. – Posso servir-lhe mais um copo de
vinho?
Ainda envolvida num turbilhão de emoções, não conseguiu responder, mas
quando Alex estendeu a mão para pegar no seu copo, ela permitiu. A porta do
alpendre abriu-se com um rangido e fechou-se atrás dele, deixando-a sozinha.
– Alex... eu...
Ele abanou a cabeça. – Não precisa de dizer nada que...
Katie não o deixou concluir a frase.
– Mas eu quero dizer uma coisa, está bem?
Ela estava ao lado da mesa, com os olhos a brilhar devido a uma emoção
desconhecida. – Eu também tive uma noite maravilhosa. E sei onde isso vai
levar-nos e não quero que fique magoado – disse, exalando o ar e
preparando-se para as palavras que teria de proferir a seguir. – Não posso
prometer nada. Não posso dizer onde estarei amanhã, ou mesmo daqui a um
ano. Quando fugi pela primeira vez, pensei que conseguiria deixar tudo para
trás e recomeçar a minha vida do zero. Limitar-me-ia a viver a minha vida e
faria de conta que nada se tinha passado. Mas como é que isso é possível?
Acha que me conhece, mas nem eu sei se me conheço a mim própria. E por
mais que saiba algumas coisas a meu respeito, há muitas outras que não sabe.
Alex sentiu algo a desmoronar-se dentro de si. – Quer dizer que não quer
voltar a estar comigo?
– Não – disse ela, abanando a cabeça com veemência. – Estou a dizer isto
porque quero voltar a vê-lo, sim. E isso assusta-me, porque, no fundo do meu
coração, sei que merece alguém melhor. Merece alguém em quem possa
confiar. Alguém com quem os seus filhos possam contar. Como eu disse, há
certas coisas sobre mim que desconhece.
– Essas coisas não me interessam – insistiu Alex.
– Como é que pode dizer uma coisa dessas?
No silêncio que se seguiu àquela pergunta, Alex ouviu o ruído surdo do
motor do frigorífico. Pela janela, reparou que a lua surgira no céu e iluminava
o alto das copas das árvores.
– Porque eu conheço-me – disse ele, percebendo finalmente que estava
apaixonado por ela. Amava a Katie que conhecia e também amava a Katie
que não tivera a oportunidade de conhecer. Ergueu-se da cadeira e
aproximou-se dela.
– Alex... isto não pode...
– Katie – sussurrou ele e, por momentos, nenhum dos dois se moveu. Alex
finalmente pousou a mão na anca de Katie e puxou-a para si. Katie libertou o
ar, como se estivesse a livrar-se de um fardo que transportava há muito sobre
os ombros. E, quando ela o conseguiu olhar nos olhos, foi como se de repente
se tornasse fácil imaginar que os seus medos eram insignificantes. Que Alex
a amaria, independentemente do que ela dissesse. Que ele era o tipo de
homem que já a amava e que a amaria para sempre.
E foi naquele preciso momento que ela percebeu que também o amava.
Assim, Katie permitiu-se a tocar-lhe e a apoiar o rosto no peito dele. Sentiu
os dois corpos a tocarem-se e percebeu quando Alex lhe acariciou o cabelo
com a mão. O toque revelou-se suave e gentil, diferente de tudo o que ela
sentira até então, e observou, encantada, quando ele fechou os olhos. Alex
inclinou a cabeça e os rostos deles aproximaram-se. Quando os seus lábios
finalmente se encontraram, ela sentiu o gosto do vinho na língua dele. Katie
entregou-se a Alex, permitindo que ele a beijasse na cara e no pescoço,
arqueando as costas para trás e deliciando-se com a sensação. Sentiu a
humidade dos lábios dele quando lhe tocaram na pele, e colocou os braços à
volta do pescoço dele.
É isto que se sente quando se ama de verdade, pensou ela, e quando esse
amor é recíproco. Katie começou a sentir as lágrimas a formarem-se nos seus
olhos. Pestanejou, para tentar dominá-las, mas já não havia nada a fazer.
Katie amava-o e desejava-o. Mais do que isso, queria que Alex amasse a
verdadeira Katie, com todos os seus defeitos e segredos. Queria que ele
soubesse toda a verdade.
Beijaram-se demoradamente na cozinha, envolvidos em abraços apertados.
As mãos de Alex deslizaram pelas costas e pelo cabelo de Katie. Ela
arrepiou-se ao sentir a barba dele nas suas faces. Quando ele deslizou os
dedos pela pele do braço de Katie, ela sentiu uma torrente de calor líquido a
percorrer-lhe o corpo.
– Eu quero muito estar contigo, mas não posso – sussurrou ela, finalmente,
com a esperança de que aquilo não o deixasse zangado.
– Está tudo bem – sussurrou ele. – Eu duvido que esta noite possa tornar-se
ainda mais maravilhosa do que já foi até aqui.
– Mas estás desiludido.
Alex afastou uma madeixa do cabelo que caía sobre o rosto de Katie.
– Não me parece que seja possível desiludires-me.
Ela engoliu em seco, tentando afastar os seus temores.
– Há uma coisa que tens de saber a meu respeito – sussurrou ela.
– Seja lá o que for, tenho certeza de que consigo compreender.
Ela voltou a encostar-se a ele.
– Não posso passar a noite contigo – sussurrou. – E nunca poderemos
casar-nos. – Suspirou. – Eu sou casada.
– Eu sei – sussurrou ele.
– E não te importas?
– Não é uma situação perfeita. Mas, acredita em mim, também não sou
perfeito, por isso, talvez seja melhor vivermos um dia de cada vez. E, quando
estiveres pronta, quando te sentires efetivamente à vontade, cá estarei à tua
espera. – Alex tocou com um dedo no rosto de Katie. – Amo-te, Katie.
Talvez não estejas preparada para dizer agora essas palavras. Talvez nunca
venhas a estar. Mas isso não muda o que sinto por ti.
– Alex...
– Não precisas de dizer nada, Katie.
– Posso explicar? – perguntou ela, finalmente afastando-se.
Ele não fez questão de esconder a sua curiosidade.
– Eu quero contar-te uma coisa. Quero contar-te a minha história.
2 Feriado norte-americano dedicado aos soldados mortos em combate e que se celebra na última
segunda-feira de maio. (N. da T.)
17
A neve caía com mais intensidade quando Kevin Tierney estacionou o carro
na rampa de entrada de casa. Havia sacos de compras no banco de trás e
Kevin pegou em três antes de se dirigir à porta. Não abrira a boca no percurso
entre o salão e o supermercado e falou pouco com Katie durante as compras.
Em vez disso, andou ao lado dela conforme a esposa examinava as prateleiras
à procura de promoções e tentava esquecer o telefone que trazia no bolso.
Eles não tinham muito dinheiro e Kevin ficaria irritado se ela gastasse
demasiado. As prestações da hipoteca da casa levavam quase metade do
salário dele e as despesas do cartão de crédito subtraíam mais uma boa
porção. Na maioria das vezes, precisavam de comer em casa, mas Kevin
gostava de refeições como as que eram servidas em restaurantes, com um
prato principal e dois acompanhamentos, ocasionalmente com uma salada.
Recusava-se a comer sobras de refeições anteriores e era difícil adequar o
orçamento às exigências dele. Katie tinha de planear cuidadosamente as
ementas diárias, além de recortar os cupões promocionais que apareciam no
jornal. Quando Kevin pagou as compras, ela entregou-lhe o troco do salão de
cabeleireiro, assim como o recibo. Ele contou o dinheiro para se certificar de
que tudo estava em ordem.
Em casa, Katie esfregou os braços para se manter aquecida. A casa era
velha e o ar frio entrava pelas frestas das janelas e pela frincha debaixo da
porta da entrada. O chão da casa de banho era tão frio que fazia os pés
doerem, mas Kevin queixava-se do preço do gasóleo usado para aquecer a
casa e nunca deixava que Katie ajustasse o termóstato para uma temperatura
mais agradável. Quando ele estava a trabalhar, ela usava uma sweatshirt e
chinelos; mas, quando Kevin estava em casa, queria que ela se vestisse de
forma sensual.
Kevin pousou os sacos das compras em cima da mesa da cozinha. Katie
deixou os seus sacos logo ao lado enquanto Kevin foi ao frigorífico. Abriu-o
e tirou uma garrafa de vodka e alguns cubos de gelo. Colocou o gelo num
copo e despejou a vodka. Só parou de se servir quando o copo ficou
praticamente cheio. Deixando-a sozinha, foi para a sala de estar e Katie ouviu
os sons da televisão, ligada no canal ESPN, de desporto. O comentador
desportivo estava a falar da equipa Patriots, dos play-offs e das possibilidades
de vencerem mais uma Super Bowl. No ano anterior, Kevin fora ao estádio
assistir a um jogo dos Patriots. Ele era fã da equipa desde criança.
Katie tirou o casaco e enfiou a mão no bolso. Calculou que dispusesse de
alguns minutos e esperou que fossem suficientes. Depois de espreitar para a
sala para ver o que Kevin estava a fazer, apressou-se a regressar à cozinha.
No armário sob a bancada havia uma caixa de esfregões de lavar a louça.
Escondeu o telefone no fundo da caixa e tapou-o com os esfregões. Fechou
cuidadosamente a porta do armário antes de pegar no casaco, na esperança de
que o seu rosto não se mostrasse pálido e rezando para que ele não a tivesse
visto. Respirou fundo para ganhar força, colocou o casaco no braço e
atravessou a sala de estar para o guardar no armário que havia no hall de
entrada. A sala pareceu esticar-se conforme ela a atravessou, como uma
divisão vista através dos reflexos de uma casa de espelhos num parque de
diversões, mas tentou ignorar aquela sensação. Katie sabia que Kevin era
capaz de adivinhar os seus pensamentos, de lhe ler a mente e perceber o que
ela fizera, mas ele não desviou sua atenção da televisão. Só sentiu a
respiração voltar ao normal quando regressou à cozinha.
Começou a guardar as compras, sentindo-se ainda algo zonza, mas sabendo
que tinha de agir com naturalidade. Kevin gostava da casa limpa e arrumada,
especialmente a cozinha e as casas de banho. Katie guardou o queijo e os
ovos nos respetivos compartimentos no frigorífico. Tirou os legumes velhos
da gaveta e limpou-a com um pano antes de lá colocar os novos. Depois,
pegou em algumas vagens de feijão-verde e numa dúzia de batatas vermelhas
que estavam numa cesta no chão da despensa. Deixou um pepino no balcão,
com um pé de alface e um tomate, para fazer uma salada. Para o jantar
daquela noite, iria preparar costeletas marinadas.
Katie deixara as costeletas a marinar no molho desde o dia anterior: vinho
tinto, sumo de laranja, sumo de toranja, sal e pimenta. A acidez dos sumos
servia para amaciar a carne e dar-lhe mais sabor. Estava numa caçarola na
parte de baixo do frigorífico.
Arrumou o resto das compras, colocando os produtos mais antigos à frente,
e dobrou os sacos de plástico, guardando-os sob o lava-louça. Retirou uma
faca da gaveta. A tábua de cortar carnes estava debaixo da torradeira e Katie
pô-la ao lado do fogão. Cortou as batatas ao meio, apenas o bastante para o
jantar dos dois. A seguir, untou uma assadeira com óleo, ligou o forno e
temperou as batatas com salsa, sal, pimenta e alho. Aqueles ingredientes
iriam ao forno antes das costeletas e Katie teria de os aquecer mais tarde. A
carne tinha de ser grelhada.
Kevin apreciava que os ingredientes da sua salada fossem cortados em
pedaços bem pequenos, com porções de queijo azul, croutons e tempero
italiano. Ela cortou o tomate ao meio e um quarto do pepino antes de
envolver o resto em película aderente para guardar outra vez no frigorífico.
Ao abrir a porta, percebeu que Kevin estava na cozinha atrás dela, apoiado na
ombreira da porta que dava para a sala de jantar. Ele bebeu demoradamente,
terminando a vodka e continuando a observá-la, com a sua presença a
dominar o ambiente.
Ele não sabia que ela saíra do cabeleireiro, fez questão de realçar a si
própria. Não sabia que tinha comprado um telemóvel. Ele teria dito alguma
coisa. Teria feito algo.
– Vamos ter costeletas para o jantar? – acabou por perguntar.
Katie fechou a porta do frigorífico e continuou a movimentar-se na
cozinha, tentando parecer ocupada e tentando refrear os seus receios. – Sim –
respondeu. – Acabei de ligar o forno, por isso ainda vai demorar alguns
minutos. Preciso de pôr as batatas a assar antes.
Kevin fitou-a fixamente.
– O teu cabelo está bonito.
– Obrigada. A cabeleireira trabalhou bem.
Katie regressou à tábua. Começou a cortar o tomate, tirando uma longa
fatia.
– Nada de pedaços grandes – disse ele, meneando a cabeça na direção
dela.
– Eu sei – respondeu Katie. Sorriu quando ele se dirigiu de novo ao
congelador. Ouviu o tinir dos cubos de gelo no copo dele.
– Conversaste sobre o quê no cabeleireiro?
– Nada de especial. As coisas de sempre. Já sabes como são as
cabeleireiras, sempre a tentar fazer conversa.
Ele agitou o copo. Ela ouviu os cubos de gelo a bater contra o vidro.
– Falaste de mim?
– Não – disse ela.
Ela sabia que Kevin não teria apreciado isso e ele assentiu com a cabeça.
Ele tirou outra vez a garrafa de vodka do frigorífico e pousou-a ao lado do
copo, sobre a mesa, antes de se colocar atrás dela. Deteve-se e espreitou por
cima do ombro de Katie enquanto ela picava o tomate. Bocados pequenos,
nada que fosse maior do que uma ervilha. Era capaz de sentir a respiração de
Kevin na sua nuca e tentou não gemer quando ele colocou as mãos nas suas
ancas. Sabendo o que deveria fazer, ela pousou a faca na bancada e virou-se
na direção dele, envolvendo o pescoço do marido com os braços. Beijou-o,
colocando a língua na boca dele, sabendo que era isso o que ele queria, e não
viu a estalada a vir até sentir o ardor na face. Queimava. Quente e vermelho.
Doloroso. Como picadas de abelha.
– Fizeste-me perder a tarde toda! – gritou ele, agarrando-lhe os braços com
força, apertando-os. A sua boca estava retorcida e os olhos vermelhos,
injetados de sangue. Ela sentiu o cheiro a álcool no hálito dele e foi atingida
por algumas gotas de saliva. – Era o meu único dia de folga e escolhes logo
hoje para ir cortar o cabelo no centro da cidade! E depois ainda quiseste ir ao
supermercado!
Ela tentou libertar-se dele, afastar-se, até que Kevin finalmente a largou.
Ele abanou a cabeça. Tinha o músculo do queixo a latejar. – Não te passou
pela cabeça que a única coisa que eu queria hoje era descontrair um pouco?
Aproveitar para descansar no meu único dia de folga?
– Desculpa – disse ela, com a mão no rosto. Não referiu que lhe perguntara
duas vezes naquela mesma semana se haveria algum problema com aqueles
planos. Ou que fora Kevin que a obrigara a ir a outro cabeleireiro porque não
queria que ela fizesse amizade com ninguém. Não queria que ninguém
soubesse da vida que tinham.
– Desculpa – disse ele, imitando o tom de voz de Katie. Olhou para ela
antes de abanar outra vez a cabeça. – Por amor de Deus. Será assim tão difícil
pensares em mais alguém além de ti?
Estendeu o braço, tentando agarrá-la, e ela virou-se, para tentar escapar. Ele
estava preparado para aquela reação e não havia para onde ir. O golpe foi
rápido e vigoroso, com o punho a mover-se como um pistão, atacando a
região lombar das costas de Katie. Ela arquejou, sentindo a visão escurecer,
sentindo-se como se tivesse sido esfaqueada. Tombou no chão com os rins a
arder, a dor a irradiar pelas pernas e pela coluna. O mundo estava a rodopiar
e, quando tentou levantar-se, o movimento só serviu para piorar a sensação.
– És sempre muito egoísta! – acusou ele, curvando-se por cima dela.
Ela não disse nada. Não conseguiu dizer nada. Não conseguiu sequer
respirar. Mordeu o lábio para não gritar e imaginou se iria urinar sangue no
dia seguinte. A dor era como uma lâmina, dilacerando-lhe os nervos, mas não
iria chorar. Isso só serviria para deixar Kevin ainda mais furioso.
Ele permaneceu ali de pé ao lado dela e depois suspirou, com uma
expressão de puro desprezo. Foi à mesa e pegou no copo vazio e na garrafa
de vodka antes de sair da cozinha.
Katie levou quase um minuto a reunir a força necessária para se levantar.
Quando começou a cortar de novo os legumes, tinha as mãos a tremer. A
cozinha estava gelada e a dor nas costas era muito intensa, latejando a cada
batida do coração. Na semana anterior, ele atingira-a com tanta força no
estômago que ela passara o resto da noite a vomitar. Katie caíra ao chão e
Kevin agarrara-a pelo pulso para fazer com que se levantasse novamente. Os
hematomas no pulso tinham o formato dos dedos dele. Vestígios do inferno.
Escorreram-lhe lágrimas pelo rosto e ela sentiu dificuldade em manter-se
de pé, apoiando o seu peso ora numa perna, ora na outra, para tentar afastar a
dor enquanto acabava de picar o tomate. Fez o mesmo com o pepino. Pedaços
pequenos. A alface, também, cortada e picada. Tal como ele queria. Katie
enxugou as lágrimas com as costas da mão e dirigiu-se lentamente ao
frigorífico. De lá, tirou uma embalagem de queijo azul e depois pegou nos
croutons, que estavam no armário.
Na sala de estar, ele tinha aumentado outra vez o volume da televisão.
O forno estava na temperatura certa. Katie colocou a assadeira no forno e
ajustou o cronómetro. Quando o calor lhe atingiu o rosto, percebeu que ainda
tinha a pele a arder, mas duvidava que a estalada tivesse deixado qualquer
marca. Ele sabia exatamente a força que precisava de aplicar. Ela
questionava-se onde ele teria aprendido aquilo, se era algo que todos os
homens saberiam, ou mesmo se haveria aulas secretas, com instrutores
especializados em ensinar esse tipo de coisas. Ou se aquela seria apenas uma
característica típica de Kevin.
A dor nas costas começara finalmente a diminuir de intensidade. Já
conseguia respirar normalmente. O vento entrava pelas frestas da janela e o
céu assumira uma cor cinzenta e escura. A neve batia suavemente no vidro.
Katie olhou discretamente em direção à sala, onde viu Kevin sentado no sofá,
e apoiou-se na bancada. Tirou um dos sapatos e esfregou os dedos dos pés,
tentando fazer o sangue fluir, tentando aquecê-los. Fez o mesmo com o outro
pé antes de voltar a calçar os sapatos. Lavou e cortou o feijão-verde e colocou
um pouco de azeite na frigideira. Começaria a refogá-lo quando as costeletas
estivessem na grelha. Tentou não pensar no telefone que estava debaixo da
bancada.
Estava a tirar a assadeira do forno quando Kevin regressou à cozinha. Ele
estava com o copo na mão e já bebera metade do seu conteúdo. Tinha os
olhos vidrados. Já bebera quatro ou cinco copos, ela não sabia ao certo. Katie
colocou a assadeira no forno.
– Só mais um bocadinho – disse ela, falando num tom neutro e fingindo
que nada acontecera. Já aprendera que, se demonstrasse irritação ou mágoa,
isso serviria apenas para o enfurecer. – Tenho de acabar de preparar as
costeletas e depois o jantar fica pronto.
– Olha, desculpa – disse ele, ligeiramente a cambalear.
Ela sorriu. – Está tudo bem. Sei que as últimas semanas foram
complicadas. Tens trabalhado de mais.
– Os teus jeans são novos? – As palavras saíram arrastadas pela boca dele.
– Não. Já há algum tempo que não uso estas calças.
– Ficam-te bem.
– Obrigada – respondeu ela.
Kevin deu um passo na direção dela. – Tu és linda. Sabes que te amo, não
sabes?
– Sei, sim.
– Não gosto de te bater, mas, às vezes, não pensas nas coisas que fazes.
Ela assentiu, desviando o olhar, tentando pensar em algo para fazer,
precisando de se ocupar, até se lembrar que precisava de colocar os pratos e
os talheres na mesa. Aproveitou e dirigiu-se ao armário que ficava ao lado do
lava-louça.
Kevin aproximou-se por trás dela enquanto Katie tirava os pratos e fez com
que ela se virasse na sua direção, puxando-a para junto de si. Ela inalou antes
de dar um suspiro de felicidade, porque sabia que Kevin queria que ela
respondesse aos seus carinhos com aqueles sons.
– Também tens de dizer que me amas – sussurrou ele. Kevin beijou-lhe o
rosto e ela colocou os seus braços em volta dele. Katie sentiu-o a encostar-se
ao seu corpo, sabia o que ele queria.
– Eu amo-te – disse ela.
A mão de Kevin deslizou até ao seu seio. Ela esperou que ele o apertasse,
mas nada disso aconteceu. Em vez disso, acariciou-a suavemente. Apesar de
tudo o que acontecera, o seu mamilo começou a ficar intumescido e ela
detestava quando aquilo acontecia. Mas não conseguia evitar. O hálito de
Kevin estava quente. E com cheiro a álcool.
– Meu Deus, és linda. Sempre foste linda, desde a primeira vez que te vi –
disse ele, pressionando o seu corpo contra o dela, e ela conseguia sentir a
excitação dele. – Vamos deixar as costeletas para depois. O jantar pode
esperar um pouco.
– Pensei que estivesses com fome – comentou Katie, tentando fazer com
que aquilo parecesse uma leve provocação.
– Agora, estou com fome de outra coisa – sussurrou Kevin. Ele desabotoou
a blusa dela e abriu-a, antes de levar as mãos aos botões dos jeans.
– Aqui não – disse ela, afastando o rosto do dele, mas deixando que ele
continuasse a beijá-la. – Vamos para o quarto.
– E que tal se o fizéssemos na mesa? Ou na bancada?
– Por favor, querido – murmurou ela, com a cabeça arqueada para trás
enquanto ele a beijava no pescoço. – Não é nada romântico.
– Mas sabe bem – disse ele.
– E se alguém nos vir pela janela?
– Não te sabes divertir – acusou ele.
– Por favor? – disse ela, novamente. – Não queres fazer isso por mim?
Sabes que me excita muito mais fazê-lo na cama.
Ele beijou-a mais uma vez, fazendo as mãos deslizar até ao sutiã. Abriu o
fecho que prendia a peça na parte da frente. Kevin não gostava de sutiãs com
fecho na parte de trás. Ela sentiu nos seios o ar frio da cozinha; viu o desejo
no rosto de Kevin quando ele os fitou. Ele lambeu os lábios antes de a levar
para o quarto.
Assim que lá chegaram, ele pareceu estar possuído por uma energia
animalesca, puxando os jeans de Katie até às ancas e depois até aos
tornozelos. Apertou-lhe os seios com força e ela mordeu o lábio para não
gritar antes de chegarem à cama. Ela gemeu e arfou, gritando o nome de
Kevin, sabendo que era isso aquilo que ele desejava, pois não queria que ele
se zangasse, porque não queria ser esbofeteada, socada ou pontapeada,
porque não queria que Kevin descobrisse o telemóvel. Katie ainda sentia a
dor lancinante nos rins e transformou os seus gritos em gemidos, dizendo as
coisas que ele queria que dissesse, excitando-o até que o corpo dele
começasse a mover-se em espasmos. Quando tudo terminou, levantou-se da
cama, vestiu-se e beijou-o antes de voltar à cozinha para terminar de preparar
o jantar.
Kevin regressou à sala de estar e bebeu mais vodka antes de se sentar à
mesa. Falou-lhe do seu trabalho e depois foi ver um pouco mais de televisão
enquanto ela arrumava a cozinha. Depois, quis que ela se sentasse ao seu lado
para verem televisão, até que finalmente chegou a hora de ir dormir.
No quarto, ao fim de poucos minutos ele já estava a ressonar, sem se
aperceber das lágrimas silenciosas de Katie, sem se aperceber do ódio que ela
sentia por ele, ou do ódio que sentia por si mesma. Sem saber do dinheiro que
ela andava a guardar há quase um ano, ou da tinta para o cabelo que ela
colocara discretamente no carrinho de supermercado há um mês e que
escondera atrás do armário, sem fazer a menor ideia do telemóvel escondido
no armário sob a bancada da cozinha. Sem imaginar que, dentro de alguns
dias, se tudo corresse como ela esperava, ele nunca mais voltaria a vê-la ou a
agredi-la.
19
3 Candeeiro judaico de sete velas usado durante o período de festas. Cada vela simboliza um dos dias
da criação do universo. (N. da T.)
21
A lex ficou com Katie até depois da meia-noite, escutando-a enquanto ela
contou a história da sua vida. Quando ela se sentiu cansada de mais para
continuar a falar, ele colocou os braços em volta dela e despediu-se com um
beijo de boa-noite. No caminho de regresso a casa, pensou consigo mesmo
que nunca conhecera alguém com tanta coragem, com tanta força e tão
expedita.
Os dois passaram juntos uma grande parte das duas semanas seguintes,
pelo menos tanto quanto lhes foi possível. Descontando as horas de trabalho
de Alex na loja e os turnos de Katie no Ivan’s, isso resumiu-se a umas poucas
horas por dia, mas ele ansiava pelas visitas a casa dela com uma expectativa
que não sentia há anos. Às vezes, Kristen e Josh acompanhavam-no a casa de
Katie. Outras vezes, Joyce arrastava-o pela porta da loja fora com uma
piscadela de olho, pedindo-lhe que se divertisse.
Raramente estavam juntos em casa de Alex e, quando isso acontecia, eram
ocasiões breves. Ele queria acreditar que aquilo acontecia por causa das
crianças, por ele não querer apressar as coisas. No entanto, percebeu que
também assim era por causa de Carly. Embora soubesse que amava Katie – e
a cada dia que passava estava mais seguro quanto a isso – não tinha a certeza
de estar efetivamente preparado. Katie pareceu compreender a sua relutância,
não dando mostras de ficar incomodada, quanto mais não fosse por ser mais
fácil ficarem a sós em casa dela.
De qualquer forma, ainda não tinham feito amor. Embora ele desse
frequentemente por si a imaginar como isso seria maravilhoso, especialmente
antes de adormecer, tinha a noção de que Katie não estava preparada. Os dois
pareciam compreender que isso representaria uma mudança no
relacionamento, uma espécie de estabilidade ambicionada. Por enquanto,
bastava-lhe poder beijá-la, poder sentir os braços dela à sua volta. Adorava o
aroma do champô de jasmim nos cabelos dela e o modo como as mãos se
encaixavam perfeitamente; o modo como cada toque transportava uma
expectativa deliciosa, como se cada um deles se estivesse a guardar para o
outro. Alex não dormira com ninguém desde que a mulher morrera. Ainda
assim, pareceu-lhe que durante todo aquele tempo esteve à espera de Katie,
mesmo sem o saber.
Ele apreciava mostrar-lhe as redondezas. Passearam pela orla da praia, em
frente às casas históricas, a observar a arquitetura, e houve um fim de semana
em que ele a levou ao Orton Plantation Gardens, onde passearam por entre
milhares de roseiras em flor. Depois, foram almoçar a um pequeno
restaurante com vista para o mar, em Caswell Beach, onde ficaram de mãos
dadas por cima da mesa, como dois adolescentes.
Desde a noite em que jantaram pela primeira vez em casa de Katie, ela
nunca mais abordou o seu passado e Alex também não tocou no assunto.
Sabia que ela ainda estava a esforçar-se por assimilar tudo aquilo: o que ela já
lhe contara e o que ainda havia por contar; saber se podia confiar nele ou não;
não ter a real noção da importância de ela ainda ser casada; e, acima de tudo,
o que aconteceria se Kevin a descobrisse ali. Quando Alex se apercebia de
que ela estava triste por pensar nessas questões, recordava-lhe, gentilmente,
que, independentemente do que acontecesse, o seu segredo estaria seguro
com ele. Nunca contaria nada a ninguém.
Ao olhar para ela, Alex às vezes sentia-se assolado por uma raiva quase
incontrolável em relação a Kevin Tierney. Aqueles instintos masculinos de
agredir e torturar uma mulher eram-lhe tão estranhos quanto a capacidade de
respirar debaixo de água ou voar. Mais do que qualquer outra coisa, ele
queria vingança. Queria justiça. Queria que Kevin passasse pela mesma
angústia e pelo mesmo terror que infligira a Katie, as infindáveis sessões de
castigos físicos cruéis. No tempo que passou no exército, matara um homem,
um soldado que tomara uma dose excessiva de metanfetaminas e que,
armado, estava a ameaçar um refém. O homem era perigoso e estava
descontrolado. Quando a oportunidade surgiu, Alex premiu o gatilho sem
hesitar. A morte dera um significado novo ao seu trabalho, e, no seu coração,
compreendera que havia momentos em que a violência era necessária para
salvar vidas. Se Kevin algum dia aparecesse, Alex sabia que protegeria Katie
a qualquer custo. No exército, percebera que havia pessoas que levavam o
bem ao mundo e pessoas que viviam para o destruir. No seu entender, a
decisão de proteger uma mulher inocente como Katie de um psicopata como
Kevin era tão nítida como a diferença entre o preto e o branco – uma escolha
simples.
Na maior parte dos dias, o espectro da vida anterior de Katie não os
assombrava e passavam as horas juntos, numa intimidade descontraída e
crescente. Katie tinha um talento natural para lidar com crianças – fosse para
ajudar Kristen a alimentar os patos de uma lagoa próxima ou brincar à
apanhada com Josh, parecia nunca ter dificuldade em entrosar-se com eles,
agindo de acordo com cada situação: a brincar, a confortar, a fazer barulho ou
em silêncio. Ao agir daquela forma, parecia-se imenso com Carly e Alex
imaginou que, de algum modo, Katie era o tipo de mulher que a sua esposa
em tempos mencionara.
Nas últimas semanas de vida de Carly, Alex manteve-se inabalável à sua
cabeceira. Embora ela passasse a maior parte do tempo a dormir, ele tinha
medo de perder os momentos em que Carly estava consciente, por muito
breves que fossem. Naquela época, o lado esquerdo do corpo de Carly estava
quase totalmente paralisado, e ela tinha dificuldades em falar. Mas, uma vez,
durante um breve período de lucidez imediatamente antes de amanhecer, ela
estendeu a mão para lhe tocar.
– Quero que faças uma coisa por mim – dissera, com um certo esforço,
humedecendo os lábios ressequidos com a língua. A sua voz era rouca, pois
era raro falar.
– Tudo o que quiseres.
– Eu quero... que sejas feliz.
Naquele momento, ele reparou no fantasma do seu antigo sorriso. O sorriso
confiante e pleno de vida que o cativara no momento em que se conheceram.
– Eu sou feliz.
Carly abanara levemente a cabeça. – Estou a referir-me ao futuro –
explicara. Os seus olhos brilhavam com a intensidade de carvões em brasa,
naquele rosto marcado pela luta contra a doença. – Ambos sabemos daquilo
que estou a falar.
– Não estou a perceber.
Ela ignorara aquela resposta. – Casar-me contigo... estar contigo e ter filhos
contigo... foram as melhores coisas que já fiz. És o melhor homem que eu já
conheci.
Ele sentiu um nó na garganta. – Também sinto o mesmo em relação a ti.
– Eu sei – respondera ela. – E é por isso que me é tão difícil. Porque sei que
falhei perante ti.
– Não falhaste – dissera ele, interrompendo-a.
Carly tinha uma expressão triste no rosto. – Eu amo-te, Alex, e amo os
nossos filhos – realçara, sussurrando. – E ficaria muito triste se nunca mais
conseguisses voltar a ser feliz.
– Carly, eu...
– Quero que conheças outra mulher – dissera ela, esforçando-se para tomar
fôlego. O seu peito arfava devido ao esforço. – Quero que ela seja inteligente
e gentil... E quero que te apaixones por ela, porque não mereces passar o
resto da tua vida sozinho.
Alex não conseguiu falar e mal a via por entre as lágrimas.
– As crianças vão precisar de uma mãe. – Aos ouvidos dele, pareceu-lhe
que Carly estava a implorar. – Alguém que ame os nossos filhos tanto quanto
eu os amo, alguém que pense neles como se fossem seus.
– Porque é que estás a dizer essas coisas?
– Porque tenho de acreditar que é possível – respondera ela, os seus dedos
magros agarrando-se ao braço de Alex com uma intensidade que roçava o
desespero. – É a única coisa que me resta.
Regressando ao presente, e ao ver Katie a correr atrás de Josh e Kristen no
relvado na margem da lagoa, Alex sentiu uma pontada agridoce, ao pensar
que o último desejo de Carly poderia finalmente ser realizado.
Katie gostava imenso de Alex, mais do que seria aconselhável. Sabia que
estava a trilhar um caminho perigoso. Contar-lhe sobre o seu passado
parecera-lhe a atitude certa e revelar-lhe os seus segredos de alguma forma
libertara-a daquele fardo esmagador. Mas, na manhã seguinte àquele primeiro
jantar, ficou paralisada pela ansiedade face ao que fizera. Alex tinha sido uma
espécie de detetive, afinal de contas; aquilo provavelmente significaria que
poderia fazer um ou dois telefonemas, independentemente do que lhe
dissesse. Conversaria com alguém, e essa pessoa conversaria com outra, até
que, após algum tempo, Kevin ficaria ao corrente de tudo. Ela não lhe contara
que Kevin tinha uma capacidade quase sobrenatural para ligar informações
aparentemente desconexas; não mencionara que, quando um suspeito se
tornava um fugitivo, Kevin sabia quase sempre onde encontrá-lo. O simples
facto de pensar no que tinha feito, deixava-lhe o estômago às voltas.
No entanto, gradualmente, durante as duas semanas seguintes, sentiu os
seus medos a desaparecerem. Em vez de colocar mais perguntas quando
estavam sozinhos, Alex agia como se as revelações de Katie não estivessem
diretamente ligadas às suas vidas em Southport. Os dias decorreram com uma
espontaneidade tranquila, sem o incómodo causado pelas sombras da sua vida
passada. Ela não conseguia evitar – confiava em Alex. Quando se beijavam, o
que acontecia com uma frequência surpreendente, havia momentos em que
sentia os joelhos a tremer, e estava a revelar-se cada vez mais difícil travar o
desejo de pegar na mão dele e arrastá-lo para o quarto.
No sábado, duas semanas após o primeiro beijo, estavam no alpendre de
casa dela. Alex tinha os braços em volta do corpo de Katie e os lábios
pressionados contra os dela. As crianças estavam numa festa de piscina em
casa de um dos colegas de turma de Josh. Mais tarde, Alex e Katie iriam
levar os dois a passear e a um churrasco na praia, mas, durante as próximas
horas, estariam a sós.
Quando finalmente conseguiram afastar-se, Katie suspirou. – Precisas
mesmo de parar com isso.
– Parar com o quê?
– Sabes muito bem o que estás a fazer.
– Não consigo evitar.
Conheço muito bem essa sensação, pensou Katie.
– Sabes do que é que gosto em ti?
– Do meu corpo?
– Sim. Também gosto disso – disse ela, rindo-se. – Mas há outra coisa.
Fazes com que me sinta especial.
– E és especial – referiu ele.
– Estou a falar a sério – disse ela. – Mas isso leva-me a pensar por que
razão nunca encontraste outra pessoa depois de a tua mulher ter morrido.
– Não andava à procura. Mas, mesmo que houvesse outra pessoa, teria de a
despachar para poder ficar contigo.
– Isso não é nada simpático – disse ela, espetando-lhe o dedo nas costelas.
– Mas é verdade. Acredites ou não, sou seletivo.
– Sim, imagino. Só sais com mulheres com traumas emocionais.
– Tu não és do tipo traumatizado. És uma mulher corajosa. Uma
sobrevivente. E isso, para ser sincero, é muito sexy.
– Acho que estás a elogiar-me com a esperança que te arranque a roupa
aqui e agora.
– Está a resultar?
– Está lá perto – admitiu ela, e o som do riso de Alex recordou-lhe de novo
o quanto ele a amava.
– Estou muito feliz por teres vindo morar para Southport.
– Ah, sim... – Por breve momentos, ela pareceu desaparecer dentro de si
mesma.
– O que foi? – perguntou Alex, estudando-lhe o rosto, repentinamente em
estado de alerta.
Ela abanou a cabeça. – Foi por pouco... – suspirou, colocando os braços em
volta do corpo de Alex ao recordar a ocasião. – Quase não conseguia cá
chegar.
22
Erin chegou a Filadélfia ao final da tarde. Estava frio, mas não nevava. Os
passageiros desembarcaram do autocarro e ela deixou-se ficar para trás, à
espera que todos saíssem. Na casa de banho, tirou a mochila de debaixo da
roupa, foi para a sala de espera e sentou-se num dos bancos. Tinha o
estômago a roncar. Pegou num pedaço de queijo e comeu-o com alguns
biscoitos. Sabia que teria de fazer aquela comida durar e guardou o resto
outra vez na mochila, mesmo estando com fome. Finalmente, depois de
comprar um mapa da cidade, saiu da central de camionagem.
O terminal rodoviário não ficava numa zona perigosa de Filadélfia. Viu o
centro de congressos e o Trocadero Theater. Sentiu-se segura, mas ao mesmo
tempo também constatou que nunca teria condições de pagar um quarto de
hotel naquela área. O mapa indicava que estava junto ao bairro de Chinatown
e, sem um plano melhor, dirigiu-se para lá.
Três horas mais tarde, encontrou finalmente um lugar para dormir. O lugar
era imundo e cheirava a fumo de cigarro, e o seu quarto mal tinha espaço para
a pequena cama que lá tinham enfiado. Não havia candeeiro, apenas uma
lâmpada pendurada no teto, e todos os quartos partilhavam a mesma casa de
banho, ao fundo do corredor. As paredes eram cinzentas e estavam
manchadas pela humidade. Nos quartos vizinhos, dava para ouvir as pessoas
a conversar num idioma que ela não conseguia entender. Mesmo assim, o
dinheiro de que dispunha não lhe permitira ir para outro lugar. A quantia era
suficiente para passar três noites ali, ou quatro, se conseguisse sobreviver
com a pouca comida que levara de casa.
Sentou-se na beira da cama, a tremer, com medo daquele lugar, com medo
do futuro e com a mente num turbilhão. Tinha de ir à casa de banho, mas não
queria sair do quarto. Tentou convencer-se a si própria de que seria uma
aventura e que tudo acabaria bem. Por mais estranho que parecesse, Erin
começou a questionar-se se sair de casa teria sido um erro. Tentou não pensar
na sua cozinha, no seu quarto e em todas as coisas que deixara para trás.
Sabia que podia comprar um bilhete de regresso a Boston e chegar a casa
antes que Kevin se apercebesse que fugira. Mas agora tinha o cabelo curto e
castanho, e isso não saberia como explicar.
Do lado de fora, o sol já desaparecera, mas as luzes da rua iluminavam o
quarto através da janela suja. Ouviu o som de buzinas e olhou para a rua. No
exterior, todas as fachadas tinham nomes escritos com caracteres chineses e
algumas das lojas ainda estavam abertas. Dava para ouvir algumas das
conversas que vinham dos cantos mais escuros e havia sacos de plástico
cheios de lixo empilhados nas calçadas. Estava numa cidade que não
conhecia, cercada por estranhos. Pensou que, afinal, talvez não conseguisse
libertar-se. Que não seria suficientemente forte. Daí a três dias, não teria um
lugar onde dormir a menos que conseguisse encontrar um emprego. Se
vendesse as suas joias talvez pudesse pagar mais uma noite no hotel, mas, e
depois? O que faria?
Sentiu-se muito cansada e tinha as costas ainda a latejar. Deitou-se e o sono
surgiu quase imediatamente. Kevin telefonou-lhe mais tarde e o toque do
telefone despertou-a. Necessitou de toda a sua força e concentração para falar
com uma voz firme, para evitar que ele descobrisse a sua fuga. Mesmo assim,
soou tão cansada quanto realmente estava, levando Kevin a acreditar que
estava na cama do casal. Depois de ele desligar, adormeceu em poucos
minutos.
De manhã, ouviu pessoas a andar pelo corredor, dirigindo-se à casa de
banho. Duas mulheres chinesas estavam em frente aos lavatórios. O
revestimento da parede estava coberto por bolor verde e havia papel higiénico
molhado no chão. A porta do cubículo não tinha tranca e ela teve de a segurar
com a mão.
De regresso ao quarto, tomou um pequeno-almoço composto por queijo e
biscoitos. Pensou em tomar um banho, mas percebeu que se esquecera de
levar champô e sabonete, pelo que não seria possível. Trocou de roupa e
escovou os dentes e o cabelo. A seguir, guardou as suas roupas de novo na
mochila, pois não queria deixá-las no quarto, e passou a alça pelo ombro.
Desceu as escadas e reparou que na receção permanecia o mesmo funcionário
que lhe entregara a chave do quarto. Calculou que ele nunca saísse de trás do
balcão. Pagou mais uma noite e pediu-lhe que mantivesse o quarto reservado.
No exterior, o céu estava azul e as ruas secas. Constatou que a dor nas
costas praticamente desaparecera. Estava frio, mas não tanto quanto em
Boston e, apesar dos seus receios, percebeu que estava a sorrir. Fez questão
de recordar a si própria que conseguira. Kevin estava a centenas de
quilómetros de distância e não sabia do paradeiro dela. Ele ligaria mais uma
ou duas vezes. Depois, ela deitaria o telefone fora e nunca mais teria de voltar
a falar com ele.
Erin empinou a cabeça e respirou o ar gelado. Achou o dia revigorante,
cheio de possibilidades. Iria encontrar um emprego naquele mesmo dia. Hoje,
decidiu, iria começar a viver o resto da sua vida.
Já fugira duas vezes antes e gostava de pensar que aprendera com os erros.
A primeira vez aconteceu pouco antes de completar um ano de casamento,
depois de Kevin lhe bater enquanto ela se agachou num canto do quarto. As
contas da casa tinham chegado e Kevin ficou irritado por ela ter mexido no
termóstato para aquecer a casa. Quando finalmente parou de agredi-la, pegou
nas chaves do carro e saiu de casa para comprar mais bebidas. Sem pensar no
que estava fazer, ela pegou no casaco e saiu de casa, percorrendo as ruas a
coxear. Horas depois, por entre fiapos de neve e sem ter para onde ir,
telefonou-lhe e ele foi buscá-la.
Na ocasião seguinte, Erin chegou até Atlantic City antes de ele a encontrar.
Retirara dinheiro da carteira de Kevin e comprara um bilhete de autocarro,
mas ele encontrou-a menos de uma hora depois de Erin chegar ao seu
destino. Kevin percorreu a estrada a alta velocidade, sabendo que ela correria
para o único lugar onde ainda tinha amigos. Algemou-a ao banco de trás do
carro antes de voltar para casa. No caminho, parou o carro ao lado de um
prédio de escritórios abandonado e bateu-lhe outra vez. Mais tarde, naquela
noite, surgiu a arma.
Depois daquele episódio, ele criou-lhe mais obstáculos à fuga. Deixava o
dinheiro fechado e começou a verificar obsessivamente o seu paradeiro. Ela
sabia que ele tomaria atitudes extremas para a encontrar. Por mais louco que
fosse, Kevin era também persistente e metódico e o seu instinto raramente
falhava. Iria descobrir que ela estava em Filadélfia e iria encontrá-la. Erin
estava provisoriamente em vantagem, mas, sem dinheiro para recomeçar a
vida em qualquer outro lugar, tudo o que lhe restava fazer era olhar por cima
do ombro, mas apenas por um breve período. A sua estadia em Filadélfia
seria curta.
Ao fim de três dias, encontrou emprego como empregada de mesa para
servir cocktails. Inventou um nome e um número de segurança social. Ao fim
de algum tempo, os dados seriam verificados, mas nessa altura ela já teria
partido. Encontrou outro quarto para alugar na zona mais distante de
Chinatown. Assim, trabalhou durante duas semanas, acumulando o dinheiro
das gorjetas enquanto procurava outro emprego. Quando encontrou, deixou o
emprego de empregada de mesa sem se incomodar em levantar o salário. Não
valeria a pena. Sem uma identidade válida, não conseguiria descontar o
cheque. Trabalhou durante mais três semanas num pequeno restaurante e
mudou-se para outro hotel, que alugava quartos à semana. Embora estivesse
numa zona mais perigosa da cidade, o quarto era mais caro, mas tinha uma
casa de banho privativa com água quente. Valia a pena, mesmo que fosse
apenas para ter um pouco de privacidade e um lugar onde pudesse deixar as
suas coisas. Erin juntara algumas centenas de dólares em gorjetas, mais do
que tinha quando saiu de Dorchester, mas ainda não era o suficiente para
recomeçar a sua vida. Abandonou de novo o emprego sem levantar o salário,
sem se dar sequer ao trabalho de apresentar a demissão. Encontrou outro
emprego alguns dias depois, novamente a trabalhar num restaurante. No novo
emprego, disse ao gerente que se chamava Erica.
As constantes mudanças de emprego e de hotel levaram-na a manter-se
vigilante e foi nessa altura, apenas quatro dias depois de ter começado, que,
ao dobrar uma esquina a caminho do trabalho, viu um carro que, de algum
modo, lhe pareceu estranho. Ela deteve-se.
Mesmo passado tanto tempo, ainda não sabia explicar o que lhe despertara
a atenção, além do facto de o carro estar limpo o suficiente para refletir os
raios do sol matinal. Ao olhar para o carro, viu movimento no banco do
condutor. O motor não estava ligado e pareceu-lhe estranho ver alguém
dentro de um veículo sem o aquecimento ligado numa manhã fria. Sabia que
as únicas pessoas que faziam aquilo eram as que estavam à espera de alguém.
Ou à procura de alguém.
Kevin.
Erin percebeu que era ele. Percebeu isso com uma certeza que a
surpreendeu a si mesma. Deu meia-volta e dobrou de novo esquina,
regressando pelo mesmo caminho por onde viera, rezando para que ele não a
tivesse visto pelo espelho retrovisor. Assim que o carro desapareceu do seu
campo de visão, desatou a correr de volta ao hotel, com o coração aos pulos.
Já há anos que não corria assim tão depressa, mas todas as caminhadas que
fizera nas últimas semanas tinham-lhe fortalecido as pernas e por isso foi
bastante rápida. Um quarteirão. Dois. Três. Olhou constantemente por cima
do ombro, mas Kevin não a seguiu.
Isso não interessava. Ele sabia que ela estava ali. Sabia onde ela trabalhava.
Iria saber se ela não aparecesse para trabalhar. Dentro de poucas horas,
descobriria o lugar onde ela estava a morar. De volta ao quarto, pôs as suas
coisas na mochila e saiu pela porta em poucos minutos. Começou a dirigir-se
à central de camionagem. Mesmo assim, levaria imenso tempo até lá chegar.
Uma hora de caminhada, talvez mais, e ela não dispunha de tanto tempo.
Seria o primeiro lugar onde ele iria quando percebesse que não aparecera no
restaurante. Dando meia-volta, regressou ao hotel e pediu ao rececionista que
lhe chamasse um táxi. O veículo chegou dez minutos depois. Os dez minutos
mais longos da sua vida.
Na central de camionagem, examinou freneticamente os horários e
escolheu um que iria para Nova Iorque e que sairia dali a meia hora.
Escondeu-se na casa de banho das mulheres até à hora de embarcar. Quando
entrou no autocarro, deixou-se afundar no seu assento. O autocarro chegou
rapidamente a Nova Iorque. Mais uma vez, examinou os horários e comprou
um bilhete para Omaha.
No início da noite, desembarcou algures no estado do Ohio. Dormiu no
terminal e na manhã seguinte foi a pé a uma bomba de gasolina à beira da
estrada, onde conheceu um homem que ia fazer uma entrega em Wilmington,
na Carolina do Norte.
Uns dias mais tarde, depois de vender as suas joias, chegou a Southport e
encontrou a cabana. Depois de pagar o primeiro mês de renda, não lhe
sobrara dinheiro para comprar comida.
23
Filadélfia. Ela já podia ter saído de lá e ido para outro lugar, mas era a
única pista que Kevin tinha. Além disso, sabia que ela não tinha muito
dinheiro.
Colocou algumas roupas numa mala e viajou de carro até Filadélfia.
Estacionou na central de camionagem e tentou pensar como Erin. Ele era um
bom detetive e sabia que, se conseguisse pensar como ela, conseguiria
encontrá-la. Kevin aprendera que as pessoas são previsíveis.
O autocarro chegara uns minutos antes das quatro da tarde e ele foi até à
central, e pôs-se a olhar de um lado para o outro. Ela estivera naquele mesmo
lugar há uns dias, pensou, e imaginou o que poderia fazer numa cidade
estranha, sem dinheiro, nem amigos e nem ter para onde ir. Moedas e notas
de um dólar não a levariam longe, especialmente depois de comprar um
bilhete de autocarro. Ele lembrou-se de que o tempo estava frio e que
escureceria depressa. Ela não ia querer ir a pé até muito longe e precisaria de
um lugar para ficar. Um lugar que aceitasse pagamento em dinheiro. Mas
onde? Não aqui, neste bairro. Era caro de mais. Para onde é que ela iria? Não
se arriscaria a perder-se ou a andar na direção errada. Isso implicava que
provavelmente teria consultado uma lista telefónica. Regressou ao terminal e
pesquisou os hotéis que apareciam na lista telefónica. Percebeu que eram
imensas páginas. Ela teria escolhido um, mas, e a seguir? Teria de ir a pé até
lá. E, para o fazer, precisaria de um mapa.
Foi até à loja de conveniência da central e comprou um mapa. Mostrou a
fotografia ao empregado, mas ele abanou negativamente com a cabeça. Disse
que não estava a trabalhar naquela terça. Mas Kevin sentiu que estava na
pista certa. Ela só poderia ter feito aquilo. Desdobrou o mapa e localizou o
terminal. Ficava muito perto de Chinatown e calculou que ela se tivesse
dirigido para lá.
Kevin regressou ao carro e percorreu as ruas de Chinatown e, mais uma
vez, o seu instinto indicou-lhe que ele estava certo. Bebeu a sua vodka e
percorreu as ruas a pé, começando pelas lojas mais próximas da central de
camionagem. Mostrou a foto dela a várias pessoas. Ninguém sabia de nada,
mas percebeu que algumas delas estavam a mentir. Encontrou quartos
baratos, lugares onde ele nunca a levaria, lugares sujos com lençóis sujos,
geridos por homens que não falavam muito bem inglês e que só aceitavam
pagamentos em dinheiro. Kevin deixava implícito que Erin correria perigo
caso não a conseguisse encontrar. Encontrou o primeiro lugar onde ela se
hospedou, mas o proprietário não sabia para onde se mudara depois. Kevin
encostou o cano da arma à cabeça do proprietário, mas, mesmo a chorar, o
homem não conseguiu dar-lhe mais informações.
Tendo de regressar ao trabalho na segunda-feira seguinte, ficou furioso por
Erin o ter ludibriado. Mas, no outro fim de semana, voltou a Filadélfia. E no
seguinte. Expandiu a busca, mas esbarrava no problema de haver muitos
lugares onde procurar e ele ser apenas um. Nem toda gente confiava num
polícia de fora.
Mas ele era paciente e metódico e continuou a fazer as suas viagens até
Filadélfia, tirando para isso dias de folga. Passou mais um fim de semana.
Ampliou a busca, sabendo que ela precisaria de dinheiro vivo. Procurou em
bares, restaurantes e cafés. Investigaria todos aqueles estabelecimentos, de
toda a cidade, se fosse preciso. Finalmente, na semana a seguir ao Dia dos
Namorados, conversou com uma empregada de mesa chamada Tracy, que lhe
disse que Erin estava a trabalhar num restaurante, mas dando pelo nome de
Erica. O nome dela constava da escala do dia seguinte. A empregada de mesa
confiou nele porque Kevin era detetive e chegou mesmo a atirar-se a ele,
dando-lhe o seu número de telefone antes de ele ir embora.
Kevin alugou um carro e na manhã seguinte, antes do nascer do sol,
esperou a um quarteirão de distância do restaurante. Os funcionários
entravam no restaurante por uma porta lateral, que dava para uma viela. Ele
bebeu a vodka que tinha no copo de esferovite e ficou sentado no carro, a
vigiar a rua enquanto esperava por ela. Passado algum tempo, viu o dono do
restaurante, Tracy e outra mulher a entrarem na viela. Contudo, Erin não
apareceu naquele dia e também não foi trabalhar no dia seguinte. Ninguém
sabia onde ela morava. Ela nem sequer regressou para ir buscar o seu
vencimento.
Ele acabou por descobrir onde ela estava a morar. Ficava perto do
restaurante e era um hotel rasca. O dono, que só aceitava pagamento em
dinheiro, não sabia de nada, exceto que Erin saíra no dia anterior e que depois
tinha voltado e saído mais uma vez, sempre com pressa. Kevin revistou o
quarto dela, mas não encontrou nada e, quando finalmente correu para a
central de camionagem, havia apenas mulheres a trabalhar nas bilheteiras.
Nenhuma delas se lembrava de Erin. Os autocarros que tinham partido nas
duas últimas horas, tinham saído em direção ao norte, sul, leste e oeste, para
todos os cantos do país.
Ela havia desaparecido de novo. Dentro do carro, Kevin gritou e deu socos
no volante até os punhos ficarem inchados e roxos com pisaduras.
Ele amava-a e ela amava-o. Ela tinha de regressar para casa, porque ele não
conseguia encontrá-la. Ela poderia viver de novo a sua vida feliz e
despreocupada e ele não iria bater-lhe, dar-lhe socos ou esbofeteá-la, nem
sequer pontapeá-la se ela entrasse pela porta da frente, porque sempre fora
um bom marido. Ele amava-a e ela amava-o. E ele lembrou-se de que, no dia
em que a pedira em casamento, ela recordara a noite em que se encontraram
no exterior do casino, quando os homens a seguiram. Homens perigosos. Ele
impediu que lhe fizessem mal naquela noite e, na manhã seguinte, passearam
junto à praia. Ele levou-a a tomar café. Erin aceitou sem reticências o pedido
de casamento. Ela amava-o, foi o que disse. Com ele, sentia-se segura.
Segura. Foi a palavra que ela usou. Segura.
25
A terceira semana de junho foi composta por uma série de gloriosos dias de
verão. A temperatura subia durante a tarde, trazendo consigo uma
humidade suficientemente densa para tornar o ar mais pesado e embaciar o
contorno do horizonte. Logo a seguir, como que por magia, formavam-se
várias nuvens escuras, e trovoadas violentas descarregavam chuvas
torrenciais. Mesmo assim, nunca eram muito prolongadas, deixando para trás
apenas folhas encharcadas nas árvores e uma camada de névoa perto do chão.
– É claro – disse Alex a Katie, mal ela fez o seu pedido. Ela percebeu que
ele ficou surpreendido, mas também parecia sentir-se entusiasmado. –
Quando é que queres começar?
– Que tal hoje mesmo? Se tiveres tempo – sugeriu ela.
Alex espreitou para o interior da loja. Havia apenas uma pessoa a comer na
área da churrasqueira e Roger estava apoiado no balcão, a conversar com o
cliente. – Ei, Roger. Importas-te de tratar da caixa por uma hora?
– Sem problemas, chefe – disse Roger. E ficou onde estava. Alex sabia que
ele não iria até à parte da frente da loja a menos que fosse necessário. Numa
manhã comum de um dia de semana, depois da correria inicial do pequeno-
almoço, não esperava ter muitas pessoas no estabelecimento, pelo que Alex
não se importou. Saiu de trás da caixa registadora.
– Estás pronta?
– Acho que não – disse ela, abraçando-se a si própria, nervosa. – Mas é
uma coisa que tenho de aprender a fazer.
Saíram da loja e foram até ao jipe de Alex. Ao entrar na viatura, sentiu que
Alex estava a observá-la.
– De onde é que veio essa vontade repentina de aprender a conduzir? –
perguntou ele. – Já te fartaste da bicicleta? – disse, provocando-a.
– A bicicleta é ótima para as coisas de que preciso. Mas quero tirar a carta
de condução.
Ele pegou nas chaves do carro e deteve-se. Voltou-se para ela e, ao
observá-la, ela apercebeu-se de um vislumbre do investigador que Alex em
tempos fora. Ele estava alerta e Katie compreendeu a sua cautela. – Aprender
a conduzir é apenas uma parte do processo. Para ter a carta, o estado exige
identificação. Uma certidão de nascimento, cartão de segurança social, coisas
como essas.
– Eu sei – disse ela.
Alex escolheu cuidadosamente as suas palavras. – Esse tipo de informações
pode ser rastreado. Se obtiveres a carta de condução, as pessoas podem
conseguir encontrar-te.
– Já estou a usar outro número de segurança social, um que não está ligado
à minha verdadeira identidade – informou ela. – Se o Kevin tivesse
conhecimento disso, já saberia onde estou. E se vou ficar em Southport, é
uma coisa que preciso de aprender.
Alex abanou a cabeça. – Katie...
Ela inclinou-se e beijou-o na face.
– Está tudo bem. O meu nome não é Katie, lembras-te?
Alex percorreu a curva do rosto dela com o dedo. – Para mim, serás sempre
a Katie.
Ela sorriu. – Tenho um segredo para te contar. O meu cabelo não é
castanho. Na verdade, sou loura.
Alex recostou-se no assento, processando aquela nova informação. – Tens
a certeza que me queres contar isso?
– Calculo que, um dia, ias acabar por descobrir. Quem sabe? Talvez um dia
eu volte a ser loura.
– Porque é que estás a fazer isto? A querer aprender a conduzir e dar-me
todas essas informações?
– Disseste que podia confiar em ti – lembrou ela, com um encolher de
ombros. – E eu acredito no que disseste.
– E é só por isso?
– Sim. Sinto-me como se pudesse contar-te o que quer que fosse.
Alex olhou para a sua mão e para a dela, que estavam entrelaçadas sobre o
apoio para o braço, antes de fitar Katie nos olhos.
– Então vou direto ao assunto. Tens a certeza de que os teus documentos
serão aceites? Não podem ser cópias, precisam de ser os originais.
– Eu sei – disse ela.
Alex percebeu que não seria adequado perguntar mais nada. Colocou a
chave na ignição, mas não ligou o motor.
– O que foi? – perguntou ela.
– Já que queres aprender a conduzir, talvez seja melhor começarmos de
imediato. – Ele abriu a porta e saiu do carro. – Vamos ver como te
desembaraças ao volante.
Os dois trocaram de lugar. Assim que Katie se sentou no lugar do condutor,
Alex ensinou-lhe as coisas básicas: os pedais do acelerador e do travão, como
engatar e trocar as mudanças, piscas, faróis, além dos limpa-para-brisas e dos
indicadores do painel. Era sempre melhor começar pelo início.
– Estás pronta?
– Acho que sim – disse ela, concentrando-se.
– Como este carro tem mudanças automáticas, só vais usar um pé. Ele vai
alternar entre o acelerador e o travão. Percebeste?
– Sim – disse ela, deixando o pé esquerdo mais perto da porta.
– Agora, trava e liga o motor. Quando estiveres pronta, engata a marcha-
atrás. Não uses o acelerador. Em vez disso, vai soltando o travão com
cuidado. Depois, vira o volante para sair do lugar de estacionamento, sempre
com o pé sobre o travão, com uma pressão leve.
Ela fez exatamente como Alex indicou e tirou o carro do lugar,
cautelosamente, antes de ele começar a dar-lhe indicações sobre a forma de
sair do parque de estacionamento. Pela primeira vez, ela hesitou. – Tens a
certeza que queres que eu conduza na estrada?
– Se houvesse muito trânsito, diria não. Se tivesses 16 anos, também diria
não. Mas acho que tens condições de o fazer e estou aqui para ajudar. Estás
pronta? Vais virar à direita e vamos seguir essa rua até à próxima curva.
Depois, viramos novamente à direita. Quero que sintas o carro.
Passaram quase uma hora a conduzir por estradas rurais. Tal como a
maioria dos principiantes, ela teve problemas ao curvar, fazendo-o demasiado
por dentro umas vezes enquanto noutras foi até à berma. Também levou
algum tempo até se habituar a estacionar, mas, com exceção dessas
dificuldades, desembaraçou-se melhor do que qualquer um deles esperaria.
Quando estavam perto de terminar a aula, Alex fez com que ela estacionasse
numa das ruas do centro da cidade. Apontou para uma pequena cafeteria.
– Pensei que gostarias de celebrar. Saíste-te muito bem.
– Não sei. Não me senti como se realmente soubesse o que estava a fazer.
– Isso vem com o tempo. Quanto mais conduzires, mais natural te vai
parecer.
– Posso conduzir amanhã outra vez? – perguntou ela.
– É claro que sim. Mas podemos fazer isso de manhã? Agora que acabaram
as aulas do Josh, ele e a Kristen passam as manhãs num clube com atividades
para crianças. Regressam a casa por volta do meio-dia.
– De manhã é perfeito – disse ela. – Achas mesmo que conduzi bem?
– Provavelmente, com mais uns dias de treino, conseguirias passar no
exame prático. É claro que também precisas de passar no exame escrito, mas
para isso basta estudar um pouco.
Katie estendeu os braços e abraçou-o espontaneamente.
– Obrigada por fazeres tudo isto por mim.
Ele correspondeu ao abraço. – Fico feliz por ajudar. Mesmo que não tenhas
um carro, é algo que provavelmente deverias saber. Porque é que não...
– Aprendi a conduzir quando era mais nova? – completou ela, com um
encolher de ombros. – Quando era adolescente, a nossa família só tinha um
carro e geralmente o meu pai ficava o dia todo com ele. Mesmo que eu
tivesse carta de condução, não poderia conduzir, e, assim, nunca me pareceu
algo muito importante. Depois de sair de casa, não tive condições de comprar
um carro e, mais uma vez, não me importei muito com isso. Mais tarde,
quando me casei, o Kevin não queria que eu tivesse o meu próprio carro. –
Ela voltou-se para ele. – E aqui estou eu. Uma ciclista de 27 anos.
– Tens 27 anos?
– Já sabias.
– Na verdade, não sabia.
– E depois?
– Achei que já tivesses uns 30.
Ela deu-lhe uma leve sapatada no braço. – Só por isso, vais ter de me
comprar um croissant.
– Parece-me justo. E, já que estás numa de revelar segredos, gostaria de
ouvir a história sobre como conseguiste finalmente escapar.
Ela hesitou por um breve momento. – Está bem.
K atie tirou a carta de condução na segunda semana de julho. Nos dias que
precederam o exame, Alex levou-a regularmente a conduzir. Apesar de
alguns deslizes, passou com uma pontuação quase perfeita. O documento
chegou pelo correio passados uns dias e, quando Katie abriu o envelope,
sentiu uma forte tontura. Havia uma fotografia sua ao lado de um nome que
ela nunca imaginou que teria, mas, de acordo com o estado da Carolina do
Norte, era tão real como qualquer outra pessoa que residia no estado.
Naquela noite, Alex levou-a a jantar em Wilmington. Depois, os dois
passearam de mão dada pelas ruas do centro da cidade, a olhar para as
montras. De vez em quando, ela apercebia-se que Alex a fitava com
admiração.
– O que foi? – acabou por perguntar.
– Estava a pensar que o nome Erin não combina contigo. Katie encaixa
muito melhor.
– É melhor que seja assim. Esse é o meu nome e eu tenho uma carta de
condução para o provar.
– Eu sei que tens. Agora, só te falta um carro.
– Para que é que eu precisaria de um carro? – questionou, encolhendo os
ombros. – A cidade é pequena e eu tenho uma bicicleta. E, quando chove, há
um homem que está disposto a levar-me onde quer que eu precise de ir. É
quase como ter um motorista particular.
– Ai sim?
– Pois é. E tenho a certeza de que, se eu pedisse, ele até me emprestaria o
carro dele. Ele praticamente vem comer à minha mão.
Alex ergueu uma sobrancelha.
– Não me parece uma atitude muito masculina da parte dele.
– Ah, ele é ótimo – disse ela, provocando. – De início, parecia um pouco
desesperado, a oferecer-me aqueles produtos todos. Mas, ao fim de algum
tempo, habituei-me a isso.
– Tens um coração de ouro.
– É claro que tenho – disse ela. – Sou mesmo um caso raro.
Alex riu-se. – Parece-me que estás finalmente a sair do casulo onde te
escondeste e estou a começar a perceber quem é a verdadeira Katie.
Ela deu alguns passos em silêncio. – Tu conheces o meu verdadeiro eu –
afirmou, parando para o olhar nos olhos. – Mais do que qualquer outra
pessoa.
– Eu sei – disse ele, puxando-a para a abraçar. – E acho que é por isso que,
de alguma forma, fomos feitos um para o outro.
Embora a loja estivesse tão movimentada como era habitual, Alex resolveu
tirar férias. Era a primeira vez em alguns anos que o fazia e passou a maioria
das tardes com Katie e os filhos, aproveitando os dias ociosos do verão de
uma maneira que não fazia desde criança. Pescou com Josh, construiu casas
de bonecas com Kristen e levou Katie a um festival de jazz em Myrtle Beach.
Durante as noites em que os pirilampos enchiam os jardins das casas, eles
saíam para os apanhar com redes e guardá-los em frascos de vidro. Depois,
ficavam a observar o luzir dos insetos com uma mistura de espanto e
fascinação, até que Alex finalmente abria a tampa para os soltar.
Passearam de bicicleta e foram ao cinema e, nas noites em que Katie não
trabalhava, Alex gostava de acender o churrasco. As crianças comiam e
depois nadavam no riacho até ao sol se pôr. Depois de os filhos tomarem
banho e se deitarem, Alex e Katie sentavam-se no pequeno ancoradouro atrás
da casa, com as pernas a balançar sobre a água, enquanto a lua cruzava
lentamente o céu. Bebiam vinho e conversavam sobre trivialidades, e Alex
começou a apreciar bastante aqueles momentos tranquilos a dois.
Kristen adorava especialmente ter Katie por perto. Quando os quatro
caminhavam juntos, não era raro que Kristen procurasse a mão de Katie;
quando caía no chão do parque infantil, era na direção dela que corria.
Embora o seu coração se alegrasse ao ver aquilo, Alex sentia também uma
pontada de tristeza, ao recordar que, por muito que se esforçasse, nunca
poderia ser tudo o que a sua filha precisava. Mesmo assim, quando Kristen
foi a correr ter com ele e lhe perguntou se Miss Katie poderia levá-la às
compras, Alex foi incapaz de dizer não. Embora fizesse questão de a levar a
comprar o que fosse necessário uma ou duas vezes por ano, geralmente
encarava aqueles passeios mais como uma obrigação de pai do que como
uma oportunidade para se divertir. Em contrapartida, Katie parecia deliciada
com a ideia. Depois de lhe dar algum dinheiro, Alex entregou-lhe as chaves
do jipe e acenou quando elas saíram do estacionamento.
Por mais que a presença de Katie alegrasse Kristen, os sentimentos de Josh
não eram tão óbvios. No dia anterior, Alex fora buscá-lo a uma festa a casa
de um amigo, e o filho não trocou qualquer palavra com o pai ou com Katie
durante o resto da noite. Naquele dia, ainda de manhã, também se mostrou
mais reservado do que de costume. Alex sabia que alguma coisa o
incomodava e sugeriu que os dois pegassem nas respetivas canas de pesca,
precisamente na altura em que começou a escurecer. As sombras começaram
a estender-se sobre a água escura e o riacho estava tranquilo, um espelho
enegrecido a refletir as nuvens que cruzavam lentamente o céu. Pescaram
durante cerca de uma hora, enquanto o céu se tingia de violeta para depois
adquirir um tom índigo. As iscas e os anzóis criavam ondulações em forma
de anéis quando se mexiam na superfície da água. Josh continuava
estranhamente silencioso. Noutra altura, aquele teria sido um momento de
tranquilidade, mas Alex tinha a sensação incómoda de que se passava algo de
errado. Quando estava prestes a questionar Josh sobre o assunto, o seu filho
virou-se para ele.
– Pai?
– Sim?
– Ainda pensas na mãe?
– A toda a hora – respondeu.
Josh assentiu. – Eu também penso nela.
– Ainda bem. Ela amava-te imenso. E pensas em quê?
– Lembro-me de quando ela nos fez bolachas. Deixou-me pôr a cobertura.
– Eu lembro-me disso. Ficaste com a cara coberta de glacé rosa. Ela tirou-
te uma fotografia. Ainda está colada na porta do frigorífico.
– Acho que é por isso que me lembro – disse ele, apoiando a cana de pesca
no colo. – Sentes saudades dela?
– É claro que sinto. Eu amava-a muito – disse Alex, olhando Josh nos
olhos. – O que é que se passa, Josh?
– Ontem, na festa... – Josh esfregou o nariz, hesitando.
– O que é que aconteceu?
– A maioria das mães ficou lá o tempo todo. A conversar e coisa e tal.
– Eu teria ficado, se quisesses.
Josh baixou os olhos e, por entre o silêncio, ele entendeu onde o filho
queria chegar. – Eu também devia ter ficado por lá, não é? Uma reunião entre
pais e filhos – disse, mais em tom de afirmação do que de interrogação. –
Mas não quiseste pedir-me isso porque seria o único pai ali, no meio de
várias mães, não é?
Josh assentiu novamente, com um olhar de culpa. – Não quero que fiques
zangado comigo.
Alex colocou o braço em volta do filho.
– Não estou zangado.
– De certeza?
– Absoluta. Nunca ficaria zangado contigo por causa disso.
– Achas que a mãe teria ido? Se ela ainda estivesse aqui?
– É claro que sim. Ela não perderia a festa por nada deste mundo.
Do outro lado do riacho, uma tainha saltou e a leve ondulação começou a
vir na direção de Josh e Alex.
– O que fazes quando sais com a Miss Katie? – perguntou ele.
Alex remexeu-se ligeiramente. – Mais ou menos as mesmas coisas que
fizemos hoje na praia. Comemos, conversamos e, às vezes, vamos dar um
passeio.
– Tens passado bastante tempo com ela, ultimamente.
– É verdade.
Josh pensou naquilo.
– E conversam sobre o quê?
– Sobre coisas comuns – disse Alex, inclinando a cabeça. – E também
falamos sobre ti e a tua irmã.
– E o que é que dizem?
– Falamos do quanto gostamos de passar tempo convosco e sobre as boas
notas que estás a ter na escola, ou sobre como manténs o quarto limpo e
organizado.
– Vais falar-lhe de eu não te ter dito que deverias ter ficado na festa?
– Queres que lhe conte?
– Não – respondeu.
– Então, não conto.
– Prometes? Porque não quero que ela se chateie comigo.
Alex levantou os dedos. – Palavra de escuteiro. Mas, para que fiques mais
descansado, ela não iria zangar-se contigo, mesmo que eu lhe contasse. Ela
acha-te um excelente rapaz.
Josh sentou-se com as costas muito direitas e começou a recolher a sua
linha. – Que bom. Eu também gosto muito dela.
A conversa com Josh tirou o sono a Alex naquela noite. Ele deu por si a
observar o retrato de Carly no seu quarto, enquanto bebia a sua terceira
cerveja da noite. Kristen e Katie tinham regressado a casa animadas e cheias
de energia e mostraram a Alex as roupas que compraram.
Surpreendentemente, Katie devolvera quase metade do dinheiro que ele lhe
dera, dizendo apenas que tinha um talento nato para encontrar peças em
promoção. Alex sentara-se no sofá e a sua filha vestiu e desfilou um modelo
que comprara para logo a seguir desaparecer no seu quarto e voltar com um
conjunto totalmente diferente. Até mesmo Josh, que geralmente não ligaria
nem um pouco àquilo, deixou a sua Nintendo de lado. Quando Kristen saiu da
sala, ele aproximou-se de Katie.
– Também me podes levar às compras? – pediu, quase sussurrando. –
Preciso de umas camisas novas e de outras coisas.
Depois, Alex ligou para um restaurante chinês e pediu que lhe entregassem
comida em casa. Sentaram-se à mesa, comeram e riram. A dada altura, Katie
tirou uma pulseira de couro da carteira e olhou para Josh.
– Achei esta pulseira muito bonita – dissera, entregando-a a Josh.
A surpresa dele transformou-se em satisfação quando a colocou no pulso; e
Alex percebeu como os olhos de Josh se fixaram continuamente em Katie
durante o resto da noite.
Ironicamente, era em momentos como aquele que Alex mais sentia
saudades de Carly. Embora ela nunca tivesse vivido noites em família como
aquela – as crianças eram muito novas quando ela morreu –, conseguia
facilmente imaginá-la à mesa.
Talvez tivesse sido esse o motivo que o deixara com insónias, mesmo
depois de Katie ter regressado a casa e Kristen e Josh terem recolhido aos
seus quartos para dormir. Afastando os lençóis, foi ao armário e abriu o cofre
que lá instalara há alguns anos. Guardava ali documentos importantes
relativos a finanças e seguros, empilhados ao lado de tesouros do seu
casamento. Eram objetos que Carly juntara: fotos da lua de mel, um trevo de
quatro folhas que tinham encontrado nas férias em Vancouver, o ramo de
begónias e lírios que ela usara no casamento, imagens de ecografias de Josh e
Kristen quando eles ainda estavam no seu ventre, as roupas que cada um
deles vestia no dia em que saíram da maternidade. Negativos de fotografias e
discos com fotos digitais que registavam os anos que passaram juntos.
Aqueles objetos estavam carregados de significado e recordações e, desde a
morte de Carly, Alex não acrescentara nada ao cofre, exceto as cartas que a
sua esposa lhe escrevera. Uma delas estava endereçada a ele. A outra, como
não tinha qualquer nome no envelope, permanecia fechada e ele não se
atrevera a abri-la; afinal de contas, uma promessa tinha de ser honrada.
Pegou na carta que já lera uma centena de vezes e deixou a outra no cofre.
Desconhecera completamente a existência daquelas cartas até que ela lhe
entregou os envelopes pouco menos de uma semana antes de morrer. À
época, Carly passava os dias acamada e só conseguia engolir líquidos.
Quando ele a levava à casa de banho, parecia muito leve, como se, de algum
modo, tivesse sido esvaziada. Nas poucas horas em que a esposa conseguia
ficar acordada, Alex estava ao seu lado. Geralmente, voltava a dormir após
alguns minutos e ele olhava-a demoradamente, temendo afastar-se, na
eventualidade de ela precisar de alguma coisa, e ao mesmo tempo receoso de
permanecer por perto, sem querer interromper o seu repouso. No dia em que
ela lhe deu os envelopes, ele viu que tinham sido colocados sob os
cobertores, aparecendo como que por magia. Mais tarde, Alex soube que
Carly as escrevera dois meses antes e que fora a sua sogra a guardá-las.
Agora, abriu o envelope e tirou a carta, já bastante manuseada. Estava
escrita em papel amarelo pautado. Aproximando-a do nariz, ainda conseguiu
identificar o perfume que Carly usava sempre. Lembrou-se da surpresa que
sentiu na ocasião e da maneira como os olhos da esposa imploraram para que
ele entendesse.
– Queres que leia primeiro esta? – lembrou-se de ter perguntado. Apontou
para o envelope que tinha o seu nome e ela assentiu levemente. Carly
descontraiu-se e a sua cabeça afundou-se nas almofadas, enquanto ele tirou a
carta de dentro do envelope.
Kevin sentiu o sangue a subir-lhe ao rosto. – Isso é ridículo. Sabes que ela
está a mentir, certo?
Ele esperava que Bill concordasse de imediato, que dissesse que sabia que
os Assuntos Internos iriam ilibá-lo. Mas Bill não o fez. Em vez disso, o seu
chefe limitou-se a inclinar-se para a frente.
– O que é que lhe disseste exatamente? Palavra por palavra.
– Eu não lhe disse nada. Perguntei à mulher o que tinha acontecido, subi as
escadas e prendi o vizinho, depois de ele ter admitido ser o autor do disparo.
Algemei-o e comecei a levá-lo pelas escadas. Quando dei por mim, ela já
estava a saltar para cima dele.
Bill escutou-o em silêncio, com o olhar fixo em Kevin. – Nunca lhe falaste
de pecados? – acabou por perguntar.
– Não.
– Nunca chegaste a dizer estas palavras: «A vingança é minha, e irei
retaliar, disse o Senhor».
– Não.
– Nada disto te soa familiar?
Kevin sentiu a fúria crescer dentro de si, mas esforçou-se por se controlar.
– Nada. São mentiras. Já sabes como é essa gente. Ela provavelmente quer
processar o município para receber uma indemnização enorme.
Os músculos do maxilar de Bill estavam tensos e ele levou o seu tempo até
voltar a falar. – Bebeste antes de conversar com a mulher?
– Não sei onde é que ela foi buscar essa ideia. Não. Eu não faço isso. Eu
não faria isso. Sabes que estou limpo. Sou um bom detetive – defendeu-se
Kevin, levantando as mãos, quase cego com a dor de cabeça latejante. –
Então, Bill. Trabalhamos juntos há anos.
– É por isso que estou a conversar contigo, em vez de pura e simplesmente
te demitir. Nos últimos meses, Kevin, não tens sido o mesmo. E tenho ouvido
os rumores.
– Que rumores?
– Que chegas bêbedo ao trabalho.
– Não é verdade.
– Quer dizer, então, que se te fizer o teste do balão, o resultado vai dar
negativo, certo?
Kevin sentia o coração a martelar no peito. Sabia mentir e era bom nisso,
mas tinha de manter a voz firme. – Olha, ontem à noite fiquei acordado até
tarde com um amigo e estivemos a beber. Pode ser que ainda haja vestígios
de álcool no meu sangue, mas não estou bêbedo. E não bebi antes de vir
trabalhar hoje de manhã. Nem no dia em que o miúdo foi morto. Ou em
qualquer outro dia.
Bill olhava fixamente para ele. – Diz-me o que se passa com a Erin.
– Já te disse. Ela está a ajudar uma amiga em Manchester. Ainda há umas
semanas fomos a Cape Cod.
– Disseste ao Coffey que estiveste num restaurante em Provincetown com a
Erin, mas esse sítio fechou há seis meses. Também não há qualquer registo
em teu nome no hotel que mencionaste. E ninguém vê ou sabe da Erin há
meses.
Kevin sentiu o sangue a subir-lhe à cabeça e aquilo só piorou o latejar. –
Andaste a investigar-me?
– Já há algum tempo que andas a beber durante o horário de serviço e tens
andado a mentir-me
– Eu não...
– Para de me mentir! – gritou o capitão, de súbito. – Daqui sinto o cheiro
do teu hálito! – Tinha os olhos a faiscar de raiva. – E, a partir deste momento,
estás suspenso das tuas funções. É melhor ligares ao teu representante no
sindicato antes de falares com os Assuntos Internos. Deixa a tua arma e o
distintivo na minha mesa e vai para casa.
– Por quanto tempo? – logrou Kevin perguntar.
– De momento, a suspensão é o menor dos teus problemas.
– Para tua informação, eu não disse nada àquela mulher.
– Eles ouviram-te! – gritou Bill. – O teu parceiro, o paramédico, os
investigadores que inspecionaram o local do crime, o namorado dela. – Bill
calou-se, tentando acalmar-se. – Todos ouviram o que disseste – insistiu, com
determinação.
De repente, Kevin sentiu o mundo a desabar por debaixo dos seus pés. E
sabia que a culpa era toda de Erin.
29
– Andas a espiar-nos?
– É claro – disse Jo, com uma careta. – Como é que achas que me
entretenho? Por aqui não se passa nada de interessante – acrescentou, antes
de ficar em silêncio por um momento. – É amor genuíno, não é?
Katie concordou com a cabeça. – E também amo os miúdos.
– Fico muito feliz com isso – comentou Jo, juntando as mãos como se
estivesse a rezar.
Katie também se deixou ficar em silêncio por uns momentos. – Conheceste
a mulher dele?
– Sim – respondeu Jo.
Katie deixou o seu olhar vaguear pela rua. – E como é que ela era? Quero
dizer... o Alex já me falou dela e eu faço uma ideia de como poderia ser,
mas...
Jo não a deixou terminar a frase. – De acordo com o que me lembro, era
muito parecida contigo. E eu digo isso de forma positiva. Ela amava o Alex e
amava os miúdos. Eram o que havia de mais importante na vida dela. E isso é
tudo o que precisas de saber em relação a ela.
– Achas que ela gostaria de mim?
– Sim – respondeu Jo. – Tenho a certeza de que te adoraria.
30
– Estás muito calada esta noite. Está tudo bem? – perguntou Alex.
Ela preparara um guisado de atum para o jantar e Alex estava a ajudá-la a
lavar os pratos. As crianças estavam na sala de estar, ambas a brincar com
jogos eletrónicos. Ela ouvia os bips sobre o som da torneira.
– Morreu uma amiga – contou, entregando-lhe um prato para secar. – Já
sabia que ia acontecer, mas, mesmo assim, é triste.
– É sempre triste quando acontece algo do género – concordou ele. –
Lamento imenso. – Alex tinha noção de que não era adequado fazer mais
perguntas sobre o assunto. Em vez disso, aguardou em silêncio, à espera que
ela dissesse algo mais.
Todavia, Katie lavou outro copo e mudou de assunto. – Quanto tempo
achas que a tempestade vai durar? – quis saber.
– Já não deve durar muito. Porquê?
– Estava a pensar se a chuva vai obrigar a encerrar o parque de diversões.
Ou se o voo da filha da Joyce será cancelado.
Ele olhou pela janela. – Acho que não vai haver problemas. A tempestade
já está a dissipar-se. Tenho quase a certeza de que vai perder a força.
– Mesmo a tempo.
– É claro. A natureza não se atreveria a interferir nos planos dos
organizadores do parque de diversões. Ou nos planos da Joyce.
Ela sorriu. – Quanto tempo vais demorar a levá-la até Raleigh para receber
a filha?
– Provavelmente quatro ou cinco horas. Raleigh não é um lugar muito à
mão.
– Porque é que ela não apanha um voo para Wilmington? Ou simplesmente
aluga um carro?
– Não sei. Não perguntei o motivo, mas imagino que seja para poupar
dinheiro.
– Sabes que estás a agir bem, certo? A ajudar a Joyce dessa maneira.
Alex encolheu os ombros, como se não fosse nada de especial. – Amanhã
vais divertir-te.
– No parque de diversões ou em tua casa com os miúdos?
– Nos dois sítios. E, se me pedires com carinho, até te compro um gelado
frito.
– Gelado frito? Parece nojento.
– Na verdade, é bem bom.
– As pessoas por aqui só comem fritos?
– Se algo pode ser frito, as pessoas encontram uma maneira de o fazer. No
ano passado, havia até uma banca que vendia manteiga frita.
Ela quase se engasgou. – Estás a brincar.
– Não estou. Parece horrível, mas as pessoas formavam filas para comprar.
É como fazer fila para ter um ataque cardíaco.
Katie lavou e enxaguou o último copo e passou-o a Alex. – Achas que os
miúdos gostaram do jantar que eu preparei? A Kristen não comeu muito.
– A Kristen nunca come muito. Mas o mais importante foi que eu gostei.
Achei delicioso.
Ela abanou a cabeça. – Quem é que quer saber dos miúdos, não é? Desde
que estejas feliz...
– Ah, desculpa. No fundo, sou um narcisista.
Katie passou o esfregão num prato e enxaguou-o. – Estou ansiosa por
passar a noite em tua casa.
– Porquê?
– Porque estamos sempre aqui e não lá. Não me leves a mal; eu entendo
que isso é o mais certo a fazer por causa dos teus filhos. – E também por
causa da Carly, pensou, embora não o tenha dito. – Vou ter a oportunidade
de ver como vives.
Alex pegou no prato. – Já estiveste em minha casa.
– Sim, mas nunca fiquei mais do que uns minutos e, mesmo assim, apenas
na cozinha e na sala de estar. Não tive hipótese de espiar o teu quarto ou
bisbilhotar o armário da tua casa de banho.
– Não te atreverias a fazer isso – disse Alex, fingindo-se escandalizado.
– Talvez me atrevesse, se tivesse uma hipótese.
Ele limpou o prato e guardou-o no armário. – Podes passar o tempo que
quiseres no meu quarto.
Ela riu-se. – Isso são tretas típicas dos homens.
– Estou apenas a dizer que não me importaria. E está à vontade para
vasculhares também o armário da minha casa de banho. Não tenho segredos.
– Isso é o que tu dizes – contrapôs ela, provocando-o. – Falas como alguém
que oculta vários segredos.
– Não relativos a mim.
Ela concordou, com uma expressão séria no rosto. – Não em relação a ti.
Lavou mais dois pratos e passou-lhos, sentindo uma onda de satisfação a
apoderar-se de si enquanto observava Alex a limpá-los e a guardá-los.
Ele aclarou a garganta.
– Posso perguntar uma coisa? Não quero que me leves a mal, mas estou
curioso – disse.
– É claro.
Alex usou o pano que tinha na mão, limpando alguma louça e ganhando
tempo. – Queria saber se pensaste no que te disse no fim de semana passado.
No estacionamento, depois do rodeo dos macacos.
– Disseste várias coisas – comentou ela, à cautela.
– Não te lembras? Disseste-me que a Erin não poderia casar, mas que a
Katie provavelmente poderia.
Katie sentiu o corpo a ficar tenso, não tanto por se lembrar da conversa,
mas principalmente pela seriedade do tom de voz de Alex. – Lembro –
respondeu, esforçando-se por parecer despreocupada. – Acho que disse que
teria de encontrar o homem certo.
Ao ouvir aquelas palavras, os lábios de Alex contraíram-se, como se não
tivesse a certeza se deveria continuar. – Eu só queria saber se pensaste no
caso. Em relação à possibilidade de nos casarmos daqui a algum tempo.
A água ainda estava quente quando ela começou a lavar os talheres. –
Primeiro, terias de pedir a minha mão.
– E se eu a pedisse?
Ela encontrou um garfo e esfregou-o. – Eu acho que te diria que te amo.
– Mas aceitarias?
Ela hesitou. – Não quero casar outra vez.
– Não queres ou achas que não serias capaz?
– Qual é a diferença? – A expressão dela permaneceu firme e desafiadora.
– Tu sabes que eu ainda sou casada. A bigamia é ilegal.
– Tu já não és a Erin. És a Katie. Como tu mesma disseste, a tua carta de
condução confirma isso mesmo.
– Mas eu também não sou a Katie! – protestou ela, antes de se virar para
Alex. – Não percebes? Eu roubei esse nome a um casal de quem eu gostava!
Pessoas que confiavam em mim – explicou, olhando fixamente para ele,
voltando a sentir a tensão que a atormentara durante o dia e recordando com
intensidade renovada a gentileza e a compaixão de Gladys, a sua fuga e os
anos de pesadelo que vivera com Kevin. – Porque é que não podes aceitar as
coisas tal como elas são? Porque é que tens de me pressionar tanto para ser a
pessoa que queres que eu seja em vez de me deixares ser a pessoa que sou?
Ele retraiu-se. – Eu amo-te tal como és.
– Mas estás a impor condições!
– Não estou nada!
– Estás sim! – insistiu ela. Sabia que estava a levantar a voz, mas não
conseguiu evitar. – Tens uma ideia fixa sobre o que queres da tua vida e estás
a tentar fazer com que eu me encaixe nessa ideia!
– Não é nada disso – protestou Alex. – Eu só te fiz uma pergunta.
– Mas queres uma resposta concreta! Queres a resposta correta e, se não
conseguires obtê-la, vais tentar convencer-me a fazer o que queres. Como se
eu devesse fazer o que tu queres! Como se eu devesse fazer tudo o que tu
queres!
Pela primeira vez desde que se conheceram, Alex lançou-lhe um olhar
duro. – Não faças isso – aconselhou.
– Fazer o quê? Dizer a verdade? Dizer-te como me sinto? Porquê? O que é
que vais fazer? Vai bater-me? Estás à vontade.
Alex encolheu-se, como se ela lhe tivesse dado um estalo. Katie teve a
perceção de que as suas palavras tinham atingido o alvo. Contudo, em vez de
se irritar, Alex pousou o pano da louça na bancada e recuou um passo. – Não
sei o que é que se passa, mas peço desculpa por ter tocado nesse assunto. Não
foi minha intenção colocar-te entre a espada e a parede ou tentar convencer-te
a fazer o que quer que fosse. Estava apenas a tentar conversar.
Esperou que ela dissesse alguma coisa, mas Katie permaneceu em silêncio.
Abanando a cabeça, virou-se para sair da cozinha, antes de se deter. –
Obrigado pelo jantar – murmurou ele.
Na sala de estar, ela ouviu-o dizer às crianças que estava a ficar tarde e
ouviu a porta da frente a abrir-se com um rangido. Alex fechou a porta
calmamente atrás de si e a casa ficou repentinamente em silêncio, e Katie
sozinha com os seus pensamentos.
32
Katie permaneceu sentada nos degraus por mais alguns minutos antes de
voltar para dentro de casa. Tomou um banho e preparou um café. Mas Jo
tinha razão – estava demasiado calor para beber aquilo. Assim, vestiu uns
calções e calçou umas sandálias antes de contornar a casa para ir buscar a sua
bicicleta.
Apesar da chuva recente, a rua de gravilha já estava a secar e Katie
conseguiu pedalar sem gastar muita energia. E ainda bem. Não fazia ideia de
como Jo conseguira correr com aquela temperatura, mesmo que ainda fosse
bastante cedo. Aparentemente, todos estavam a tentar escapar ao calor.
Normalmente, haveria esquilos ou pássaros, mas, quando entrou na estrada
principal, não notou qualquer movimento. Na estrada, o trânsito estava
tranquilo. Alguns carros passaram rapidamente por ela, deixando nuvens de
fumo para trás. Katie continuou a pedalar em frente e, ao contornar uma
curva, avistou a loja. Já havia meia dúzia de carros parados no
estacionamento. Clientes habituais que iam lá comer biscoitos.
A conversa com Jo ajudara, pensou ela. Pelo menos um pouco. Ainda
estava ansiosa, mas a sensação já tinha menos que ver com os Feldman ou
outras memórias dolorosas do que com as coisas que ia dizer a Alex. E,
principalmente, com a eventual reação dele. Pedalou até à parte da frente da
loja. Alguns homens mais velhos estavam sentados nos bancos, abanando-se
para suavizar o calor. Passou por eles e foi até à porta. Joyce estava atrás da
caixa registadora, a calcular o valor das compras de um cliente, e sorriu-lhe.
– Bom dia, Katie – cumprimentou.
Katie deitou uma rápida olhadela à loja. – O Alex está por aqui?
– Está lá em cima com as crianças. Já conheces o caminho, certo? As
escadas lá fora nas traseiras?
Ela saiu da loja e deu a volta à casa. No ancoradouro, havia vários barcos
em fila, à espera para abastecer.
Ao chegar à porta, hesitou por uns momentos antes de bater. Do lado de
dentro, ouviu passos a aproximarem-se. Quando a porta se abriu, deu com
Alex à sua frente.
Ela esforçou-se por sorrir. – Olá – disse.
Ele assentiu, com uma expressão imperscrutável. Katie aclarou a garganta.
A Carolina do Norte era um lugar feio. Uma faixa de asfalto entalada entre
extensões monótonas de pinheiros e colinas ondulantes. Ao longo da
estrada, viam-se aglomerados de atrelados e roullotes, pequenas propriedades
agrícolas e celeiros apodrecidos cobertos de trepadeiras. Kevin saiu de uma
via interestadual e entrou noutra, rumo a Wilmington, e bebeu mais um
pouco de vodka para espantar o tédio.
Ao cruzar a paisagem sempre igual, pensou em Erin. Pensou no que faria
quando a encontrasse. Esperava que estivesse em casa quando chegasse, mas,
mesmo que estivesse a trabalhar, seria apenas uma questão de tempo até que
regressasse a casa.
A estrada passava ao largo de cidades sem qualquer atrativo e com nomes
desinteressantes. Às dez horas da manhã chegou a Wilmington. Atravessou a
cidade e virou para uma pequena estrada rural. Continuou a rumar a sul, com
o sol a bater forte na janela do condutor. Colocou a arma no colo e depois
passou-a outra vez para o assento do passageiro, e continuou a conduzir.
E, finalmente, chegou lá, à cidade onde ela estava a viver. Southport.
Kevin acordou duas horas mais tarde, com o corpo ensopado em suor e o
estômago a doer devido às cólicas. Os sonhos que teve, induzidos pelo calor,
foram vívidos e intensos e teve dificuldade em lembrar-se de onde estava.
Sentia a cabeça prestes a abrir-se ao meio. Saiu do quarto a cambalear e
dirigiu-se à cozinha, saciando a sede diretamente da torneira. Sentia-se tonto
e fraco e ainda mais cansado do que quando se deitara para dormir.
Mas não podia demorar-se. Nem sequer devia ter dormido. Foi ao quarto e
arranjou a cama para que Erin não percebesse que ele ali estivera. Já ia a sair
da casa quando se lembrou do guisado de atum que vira no frigorífico. Estava
esfomeado e lembrou-se que já há meses que ela não lhe preparava o jantar.
Deveriam estar uns 40 graus dentro naquela cabana abafada. Quando abriu
o frigorífico, permaneceu bastante tempo em frente ao aparelho, a sentir o ar
gelado que saía de lá de dentro. Pegou na caçarola do atum e revirou as
gavetas até encontrar um garfo. Retirou a película aderente que cobria a
caçarola, comeu um pedaço e depois outro. Aquilo não ajudou a suavizar a
forte dor de cabeça que sentia, mas acalmou-lhe o estômago e as cólicas
começaram a diminuir de intensidade. Poderia ter comido tudo, mas ingeriu
apenas mais um pedaço antes de colocar a caçarola de volta no frigorífico.
Erin não poderia perceber que ele ali estivera.
Lavou o garfo, limpou-o e guardou-o novamente na gaveta. Alisou o pano
da louça e deu uma derradeira olhadela à cama, certificando-se de que estava
igual ao que encontrara quando entrara na casa. Satisfeito, saiu da casa e
voltou para a rua de gravilha, encaminhando-se para a loja de conveniência.
O tejadilho do carro queimava ao toque e, quando abriu a porta, pareceu-
lhe estar a entrar numa fornalha. Não havia ninguém no estacionamento.
Estava demasiado calor para ficar ao ar livre. Tudo parecia ferver, sem que
houvesse qualquer nuvem no céu e sem que uma brisa soprasse. Por amor de
Deus, como é que alguém pode querer viver aqui?
Na loja, pegou numa garrafa de água e bebeu-a toda enquanto estava junto
aos frigoríficos. Pagou pela garrafa vazia e a idosa deitou-a fora. Ela
perguntou-lhe se tinha gostado do parque de diversões. Kevin respondeu
afirmativamente à velha bisbilhoteira. De regresso ao carro, bebeu mais
vodka sem se importar com o facto de a bebida estar à mesma temperatura
que uma chávena de café. Desde que aquilo diminuísse a dor que sentia, não
fazia diferença. Estava demasiado calor para pensar, e ele já poderia estar a
caminho de Dorchester, se Erin estivesse em casa. Talvez quando levasse
Erin de volta e Bill percebesse como estavam felizes, ele o deixasse regressar
ao trabalho. Era um bom detetive e o capitão precisava dele.
Enquanto bebia, a dor que latejava nas suas têmporas começou a diminuir
de intensidade, mas ele começou a ver em duplicado tudo o que o rodeava.
Precisava de manter a mente desperta, mas a dor e o calor estavam a fazer-lhe
mal e ele não sabia o que fazer.
Ligou o carro e entrou na estrada principal, dirigindo-se à baixa de
Southport. Havia várias ruas encerradas e ele perdeu a conta das vezes que
teve de se desviar do caminho até encontrar um lugar para estacionar.
Quilómetros e quilómetros sem uma única sombra; apenas um calor
sufocante e infernal. Tinha a sensação de que ia vomitar.
Pensou em Erin e onde ela poderia estar. No Ivan’s? No parque de
diversões? Devia ter ligado a perguntar se ela iria trabalhar. Devia ter-se
hospedado em algum hotel na noite anterior. Não havia motivo para pressas,
porque ela não estava em casa. Mas ele só se apercebera disso depois de
invadir a casa onde ela morava. E ficou furioso ao pensar que ela
provavelmente estaria a rir-se também daquilo. A rir-se sem parar do pobre
Kevin Tierney enquanto o traía com outro homem.
Trocou de camisa e enfiou a arma por dentro dos jeans, caminhando em
direção à orla do rio. Sabia que o Ivan’s ficava naquela zona, pois pesquisara
a localização do restaurante no computador. Seria demasiado arriscado ir até
lá, por isso chegou a dar meia-volta duas vezes. Mas tinha de a encontrar.
Estivera na casa onde ela morava e sentira o cheiro dela nos lençóis. Mas
aquilo não fora o suficiente.
Havia multidões por toda a parte. As ruas evocaram-lhe uma feira agrícola,
mas sem os porcos, os cavalos e as vacas. Comprou um cachorro-quente e
tentou comê-lo, mas o seu estômago revoltou-se e acabou por deitar quase
tudo ao lixo. Ao caminhar por entre as pessoas, viu a orla do rio ao longe e,
logo à frente, a fachada do Ivan’s. Avançou vagarosamente por entre toda
aquela gente. Sentiu a boca completamente seca quando chegou à porta do
restaurante. O Ivan’s estava lotado e havia uma fila de pessoas à espera de
mesa. Deveria ter levado um chapéu e óculos escuros, mas não conseguia
pensar direito. Sabia que ela o reconheceria imediatamente. Mesmo assim,
encaminhou-se para a porta e entrou.
Viu uma empregada de mesa, mas não se tratava de Erin. Olhou em volta, e
viu outra, mas também não era Erin. A rececionista era jovem e estava
atarefada, a tentar encontrar a melhor maneira de acomodar um grupo de
clientes. O ambiente estava barulhento – pessoas a conversar, talheres a bater
nos pratos, copos a serem recolhidos em bacias e levados para a cozinha para
serem lavados. Muito ruído, muita confusão, a sua dor de cabeça não passava
e agora também sentia o estômago a arder.
– A Erin está a trabalhar hoje? – perguntou ele à rececionista, levantando a
voz para que ela o ouvisse no meio de todo aquele ruído.
Ela fitou-o, confusa. – Quem?
– Katie – disse ele. – Eu quis dizer Katie Feldman.
– Não – gritou a rececionista, em resposta. – Ela está de folga. Mas amanhã
trabalha – informou, com um meneio de cabeça em direção às janelas. –
Provavelmente, anda lá fora, no meio de toda aquela gente. Acho que a vi
passar aqui em frente hoje de manhã.
Kevin voltou-se e saiu, esbarrando nas pessoas enquanto se afastava,
ignorando tudo aquilo. No exterior, dirigiu-se a um vendedor ambulante.
Comprou um boné de basebol e um par de óculos escuros baratos. E retomou
a caminhada.
A roda gigante girava sem parar. Alex e Josh estavam num assento e
Kristen e Katie noutro, a sentir o vento quente a bater nos seus rostos. Katie
colocou o braço em volta de Kristen, sabendo que, apesar do sorriso que a
menina tinha no rosto, ela estava nervosa com a altura. Enquanto a roda
gigante girava, levando o assento até ao ponto mais alto, revelando uma vista
panorâmica da cidade, Katie percebeu que, embora também não estivesse
muito animada com a altura, estava mais preocupada com a estrutura da
diversão. Aquela coisa parecia ter sido montada com arame e clipes de papel,
mesmo tendo passado por uma inspeção municipal naquela manhã.
Questionava-se se Alex realmente dissera a verdade sobre a inspeção, ou se
a ouvira sequer comentar sobre a possibilidade de a diversão ser perigosa. No
entanto, era tarde de mais para se preocupar com aquilo, calculou Katie.
Assim, procurou distrair-se olhando para a multidão de pessoas que enchia as
ruas. Da parte da tarde, o parque de diversões recebeu ainda mais visitantes,
mas, descontando os desportos aquáticos, não havia muita coisa para fazer
em Southport. Era uma cidade pequena e tranquila e ela calculou que um
evento daqueles seria o mais importante do ano.
A roda gigante abrandou a velocidade e parou, deixando-os suspensos no ar
enquanto os primeiros passageiros saíam e outros entravam nos lugares que
acabavam de ficar desocupados. Girou mais alguns momentos e Katie
começou a observar a multidão mais atentamente. Kristen parecia estar mais
relaxada, e fazia o mesmo.
Katie reconheceu um casal a comer gelados, eram frequentadores habituais
do Ivan’s, e imaginou quantos outros haveria por perto. Os seus olhos
começaram a desviar-se de um grupo para outro e, por algum motivo,
lembrou-se de que costumava fazer o mesmo quando começara a trabalhar no
restaurante. Quando ainda vigiava a sua envolvência, atenta à presença de
Kevin.
Kevin passou pelas bancas de venda que estavam dos dois lados da rua, a
vaguear e a tentar pensar como Erin. Devia ter perguntado à rececionista do
restaurante se vira Erin com um homem, pois sabia que não iria ao parque de
diversões sozinha. Era difícil ter em mente que ela agora tinha cabelo curto e
castanho, pois cortara-o e tingira-o. Devia ter pedido uma cópia da carta de
condução de Erin ao polícia pedófilo da outra esquadra, mas não estava a
pensar direito quando entrou em contacto com ele. Mas isso já não tinha
importância, porque sabia onde ela morava e iria lá regressar.
Sentiu a arma na cintura. Era uma sensação desconfortável, pois o metal
irritava-lhe a pele. O boné de basebol provocava-lhe muito calor,
especialmente porque era apertado e pressionava-lhe a cabeça; parecia prestes
a explodir.
Ele avançou por entre grupos de pessoas e filas que se formavam. Entre
peças de artesanato. Pinhas decoradas, vidros coloridos em molduras e
espanta-espíritos. Brinquedos de madeira à moda antiga. As pessoas
enfartavam-se de comida: pretzels, gelados, nachos e bolos de canela. Viu
carrinhos de bebé e recordou de novo que Erin queria ter um filho. Decidiu
que lhe daria um. Menina ou menino, não importava; mesmo assim, preferia
que fosse um menino, porque as meninas eram egoístas e não apreciariam a
vida que ele lhes daria. As meninas eram assim mesmo.
As pessoas conversavam e sussurravam à sua volta e ele achou que
algumas estavam a olhar diretamente para ele, tal como Coffey e Ramirez
faziam. Ignorou-as, concentrando-se na sua busca. Famílias. Adolescentes de
braço dado. Um rapaz que usava um sombrero. Dois funcionários do parque
encostados a um poste, a fumar. Magros e cheios de tatuagens, com dentes
cariados. Provavelmente drogados, com extensos cadastros. Teve um mau
pressentimento em relação a eles. Era um bom detetive e sabia como analisar
as pessoas, por isso não confiou neles. Mas nenhum dos dois reagiu à
passagem de Kevin. Desviou-se para a direita e para a esquerda, avançando
com determinação por entre a multidão e estudando os rostos das pessoas.
Parou quando passou vagarosamente à sua frente um casal de obesos, a
comer salsichas panadas, com os rostos vermelhos e inchados. Detestava
gordos. Achava-os fracos e indisciplinados. Pessoas que passavam a vida a
reclamar por causa da tensão arterial, da diabetes e de problemas cardíacos e
que não paravam de se queixar do custo dos medicamentos, mas que não
faziam o menor esforço por comer menos. Erin sempre fora magra, mas os
seus seios eram grandes e agora ela andava por ali, com outro homem. Um
homem que a acariciava e que tocava nos seus seios à noite, e aquele
pensamento fez com que se sentisse a arder por dentro. Odiava-a. Mas ele
também a queria. Amava-a. Era difícil distinguir aqueles sentimentos na sua
cabeça. Bebera em excesso e o calor estava abrasador. Por que diabos ela
tinha ido parar a um lugar tão infernal?
Andou por entre as diversões do parque e deu por si perto da roda gigante.
Aproximou-se, esbarrando num homem que usava uma camisola sem
mangas, ignorando os resmungos dele face à sua falta de modos. Olhou para
os assentos da roda gigante, passando os olhos por cada rosto. Erin não estava
ali, nem na fila.
Seguiu em frente, caminhando sob o calor no meio das pessoas gordas, à
procura do vulto esguio de Erin e do homem que lhe tocava nos seios à noite.
A cada passo, pensava na sua Glock.
Erin não estava nas chávenas giratórias, nem no labirinto de espelhos, nem
no comboio fantasma. Ele vigiou as atrações junto da fila dos bilhetes,
tentando misturar-se com a multidão, querendo vê-la antes que ela se
apercebesse da sua presença. Estava numa posição vantajosa, pois sabia que
ela ali estava, enquanto Erin não fazia a menor ideia da presença dele. Às
vezes, as pessoas tinham sorte e aconteciam coisas estranhas. Recordou o dia
em que conversou com Karen Feldman, quando ela revelou o segredo de
Erin.
Desejou não ter deixado a vodka no carro. Ali por perto não parecia haver
qualquer lugar onde pudesse comprar mais, nenhum bar à vista. Nem sequer
um quiosque que vendesse cerveja. Não era bebida que apreciasse, mas teria
comprado uma garrafa se não tivesse outra escolha. O cheiro da comida
provocou-lhe náuseas e fome ao mesmo tempo, e sentiu o suor a ensopar-lhe
a camisa, manchas escuras começando a aparecer nas costas e nas axilas.
Passou pelos jogos de azar, geridos por vigaristas. Desperdício de dinheiro,
pois eram feitos de maneira a que o dono nunca perdesse muito. Mesmo
assim, vários idiotas faziam fila para jogar. Procurou por entre os rostos.
Nada de Erin.
Encaminhou-se até às outras diversões. Havia crianças a brincar nos
carrinhos de choque, pessoas agitadas na fila. Do outro lado, estavam as
cadeiras suspensas e dirigiu-se para lá. Contornou as pessoas, à procura de
um ângulo melhor para observar o lugar.
Regressou ao carro. A cadela tinha de estar em algum lado. Ela iria assistir
quando o homem grisalho morresse. Iria ver todos a morrer. A arder no
inferno, a arder, todos eles. Com cuidado, entrou no carro e arrancou. Fez
marcha-atrás e bateu numa árvore quando tentava fazer inversão de marcha.
Logo a seguir, por entre protestos, acelerou com força para sair dali, fazendo
voar a gravilha que cobria a rua.
A noite não demoraria a cair. Ela seguira naquela direção, teria de estar por
perto. Crianças daquela idade não aguentariam pedalar por tanto tempo.
Cinco ou seis quilómetros, talvez sete. Ele passara por todas as ruas daquela
zona, olhara para cada casa. Nenhuma bicicleta à vista. Poderiam estar dentro
de alguma garagem ou estacionadas nalgum quintal. Ele esperaria e ela, a
dada altura, acabaria por voltar para casa. Naquela noite. Amanhã. Amanhã à
noite. Enfiaria a arma na boca de Erin, apontaria para os seus seios. «Diz-me
quem é ele», exigiria Kevin. «Só quero conversar com ele.» Encontraria o
homem grisalho para lhe mostrar o que acontece aos homens que dormem
com as esposas dos outros.
Sentiu-se como se já não dormisse nem comesse há semanas. Não
conseguia entender porque é que estava escuro e começou a imaginar o que
estaria a acontecer. Não se lembrava exatamente de quando ali chegara.
Lembrou-se de ver Erin, lembrou-se de tentar segui-la e de conduzir, mas não
tinha a certeza sequer de onde estava.
Uma loja apareceu à sua direita, um lugar parecido com uma casa com um
alpendre em frente. «Gasolina e comida», dizia uma placa. Lembrava-se
daquele lugar, mas não sabia há quanto tempo lá estivera. Diminuiu
involuntariamente a velocidade do carro. Precisava de comer, precisava de
dormir. Precisava de encontrar um lugar para passar a noite. Sentiu o
estômago a revirar-se. Pegou na garrafa, colocou o gargalo na boca e engoliu
o líquido, sentindo a garganta a queimar, sentindo o alívio que a vodka lhe
trazia. Mas, assim que largou a garrafa, o seu estômago revirou-se em mais
um espasmo.
Entrou no estacionamento, esforçando-se por não vomitar a bebida,
sentindo a boca a encher-se de saliva. O tempo estava a esgotar-se. Pisou com
força nos travões e o carro derrapou antes de parar em frente à loja. Desceu
de um salto. Foi até à frente do carro e vomitou na escuridão. O corpo tremia,
as pernas estavam bambas. O estômago estava a ponto de lhe sair pela boca.
O fígado também. Tudo o que tinha dentro de si. Percebeu que, de algum
modo, ainda estava com a garrafa nas mãos, não a largara. Respirou fundo e
bebeu, usando a vodka para limpar o sabor amargo que tinha na boca,
engolindo depois o líquido. Terminou mais uma garrafa.
E precisamente ali, como se estivesse no meio de um sonho, viu quatro
bicicletas encostadas lado a lado, nas sombras escuras atrás da casa.
39
Ele não conseguiu perceber porque é que ela estava a lutar. Mal conseguia
respirar por causa da dor. Ela nunca lhe batera antes, nunca lhe arranhara os
olhos, nem o pontapeara nem mordera. Não estava a comportar-se como sua
esposa e o seu cabelo estava castanho. Mas a voz era a mesma de Erin...
Cambaleou, tentando persegui-la, levantando a arma, apontando, mas havia
duas Erins e as duas estavam a fugir.
Premiu o gatilho.
Katie respirou fundo ao ouvir o disparo, esperando pela dor lancinante, mas
não sentiu nada. Continuou a correr e, repentinamente, constatou que ele
falhara. Correu aos ziguezagues, pela esquerda e pela direita, ainda no
estacionamento, numa busca desesperada por algum tipo de abrigo. Mas não
havia nada.
A dor na mão era algo muito mais forte do que qualquer coisa que ele
alguma vez sentira e a perda de sangue também lhe causava uma forte
tontura. Nada mais parecia valer a pena e a sua mão já não servia para nada.
Ouvia sirenes a aproximarem-se, mas esperaria por Erin em sua casa. Sabia
que ela regressaria a casa hoje ou amanhã.
Estacionou o carro atrás da outra cabana, a que parecia abandonada.
Estranhamente, viu Amber em pé atrás de uma árvore. Ela perguntava a
Kevin se ele gostaria de lhe pagar uma bebida, mas a sua imagem
desapareceu imediatamente. Ele lembrou-se de ter limpado a casa e cortado a
relva, mas nunca soubera lavar roupa. E agora Erin dizia que se chamava
Katie.
Não tinha nada para beber e estava a ficar muito cansado. As calças
estavam manchadas de sangue e percebeu que os seus dedos e o braço
também estavam a sangrar, mas não conseguiu lembrar-se do que provocara
aquilo. Queria muito poder dormir. Precisava de descansar por alguns
momentos, porque a polícia iria começar a procurá-lo. Precisaria de estar
alerta quando eles se aproximassem.
O mundo à sua volta estava a ficar distante e enevoado, como se o visse
através de um telescópio virado ao contrário. Ouviu as árvores a balançar
para a frente e para trás, mas, em vez de uma brisa, só conseguia sentir o ar
quente do verão. Começou a tremer, mas estava igualmente a suar.
Demasiado sangue a escorrer-lhe pelas mãos e pelo braço, sem parar.
Precisava de descansar. Já não se aguentava acordado. Os seus olhos
começaram a fechar-se.
– Eu amava-te! – soluçou ela, lutando com cada grama de raiva e força que
ainda lhe restavam. Kevin sentiu algo a dissipar-se e teve um momento de
lucidez.
– Então nunca me deverias ter abandonado – sussurrou ele, o hálito quente
com o cheiro do álcool. Puxou o gatilho e a arma disparou com um alto
estampido, e foi então que percebeu que tudo estava prestes a terminar. Erin
iria morrer, porque ele lhe disse que a encontraria e a mataria se ela voltasse a
fugir. E mataria qualquer homem que a amasse.
Mas, estranhamente, Erin não caiu, nem sequer gemeu. Em vez disso, ela
simplesmente olhou para ele com os seus olhos castanho-esverdeados,
ferozes, sem pestanejar.
Nesse momento, Kevin sentiu algo. Algo a arder no seu abdómen, fogo. A
sua perna esquerda fraquejou e ele tentou aguentar-se em pé, mas o corpo já
não respondia aos seus comandos. Tombou no alpendre, cobrindo a barriga
com a mão.
– Volta comigo para casa – sussurrou ele. – Por favor.
O sangue jorrava do ferimento, passando por entre os seus dedos. Acima
dele, Erin aparecia e desaparecia. O seu cabelo ficava louro e depois voltava
a ficar castanho. Ele viu-a na lua de mel, usando um biquíni, antes de se
esquecer dos óculos escuros na piscina. E era tão bonita que Kevin não
conseguia entender por que quis casar-se consigo.
Linda. Ela sempre foi linda, pensou ele. E voltou a sentir-se cansado. A sua
respiração tornou-se arrastada e ele começou a sentir frio. Muito frio.
Começou a tremer. Expirou mais uma vez, com um som parecido com aquele
que se esvai de um pneu furado. O peito deixou de se mover. Os seus olhos
estavam abertos e arregalados, um olhar de incompreensão.
Katie estava de pé ao lado dele, a tremer enquanto o olhava fixamente.
Não, pensou ela. Nunca irei contigo. Nunca quis regressar.
Mas Kevin não sabia o que ela estava a pensar, porque estava morto. E ela
percebeu que, finalmente, tudo terminara.
41
Ela fez-lhe um resumo sucinto das últimas doze horas, mas, a meio da
história, viu que os olhos dele se fecharam. Quando acordou novamente mais
tarde, ele esquecera-se de algumas partes do que ela lhe contara. Assim, Katie
repetiu a história, tentando soar calma e descontraída.
Joyce apareceu com Josh e Kristen e, embora não fosse permitida a
presença de crianças nos cuidados intensivos, o médico autorizou que
visitassem o pai por alguns minutos. Kristen levara-lhe um desenho de um
homem numa cama de hospital, com as palavras «As melhoras, pai» escritas
no topo da página. Josh ofereceu-lhe uma revista especializada em pesca.
Com o avançar do dia, Alex ficou mais lúcido. À tarde, deixou de
adormecer e acordar sucessivamente. Embora se queixasse de uma tremenda
dor de cabeça, tinha recuperado mais ou menos a memória. A sua voz já
estava mais forte e, quando disse à enfermeira que tinha fome, Katie mostrou
um sorriso de alívio, finalmente segura de que ele ficaria bem.
Alex teve alta no dia seguinte e o xerife foi a casa de Joyce recolher os seus
depoimentos formais. Revelou que o nível de álcool na corrente sanguínea de
Kevin estava tão alto que ele praticamente se envenenara a si próprio.
Combinado com a perda de sangue que sofrera, era incrível o facto de se ter
mantido consciente e com um certo grau de lucidez durante a noite. Katie não
fez comentários, mas não deixou de pensar que eles não conheciam Kevin
nem compreendiam os demónios que o espicaçavam.
Depois de o xerife ter ido embora, ela foi lá fora e deixou-se banhar pela
luz do sol, a tentar ordenar o que lhe ia na alma. Embora tivesse relatado os
eventos daquela noite ao xerife, Katie não lhe contou tudo. Também não
contou tudo a Alex – como poderia, quando as coisas nem sequer a ela
faziam sentido? Não lhes contou que, nos momentos seguintes à morte de
Kevin, quando correu para perto de Alex, chorara por ambos os homens.
Parecia impossível que, mesmo ao reviver o terror daquelas últimas horas
com Kevin, também se lembrasse dos raros momentos de felicidade que
tiveram juntos; como se riam das situações que haviam partilhado ou como se
recostavam tranquilamente no sofá.
Ela não sabia como reconciliar essas partes do seu passado com o horror
que vivera nessa noite. Mas havia outra coisa. Algo que não entendia. Katie
ficou na casa de Joyce porque tinha medo de voltar para a sua casa.
Katie parou de ler e olhou para a carta nas suas mãos, incapaz de absorver
aquelas palavras. Respirando fundo, releu aquela frase: durante a maior parte
da minha vida, os meus amigos chamaram-me Jo...
Ela agarrou as páginas com força, finalmente desvelando a memória que se
esforçara por recuperar. De repente, deu por si de novo no quarto de Alex na
noite do incêndio. Sentiu a dor nos braços e nas costas quando atirou a
cadeira de baloiço pela janela, sentiu a onda de pânico quando envolveu Josh
e Kristen com o edredão, imediatamente antes de ouvir o som das rachadelas
atrás de si. Com uma nitidez absoluta, lembrou-se de girar sobre os
calcanhares e de ver o retrato que estava pendurado na parede, o retrato da
esposa de Alex. Na noite do incêndio, ela estava confusa, com os nervos à
flor da pele no meio do inferno de fumo e medo.
Mas ela vira aquele rosto. Sim, havia até mesmo dado um passo na direção
do retrato para observar melhor.
Parece-se muito com a Jo, lembrou-se de ter pensado na ocasião, mesmo
que a sua mente não tivesse condições de processar a informação. Mas agora,
sentada no alpendre sob um céu que escurecia aos poucos, teve a certeza de
que estava errada. Errada a respeito de tudo. Levantou os olhos para olhar de
novo para a casa de Jo.
Katie percebeu repentinamente que a esposa de Alex se parecia com Jo
porque realmente era Jo. Espontaneamente, recordou outro momento, na
primeira manhã em que Jo fora a sua casa.
Os meus amigos chamam-me Jo, dissera ela, ao apresentar-se.
Oh, meu Deus.
Katie empalideceu.
...Jo...
Percebeu, de repente, que não imaginara Jo. Não fora a sua imaginação que
a criara.
Jo estivera ali; e Katie sentiu um nó na garganta. Não por não acreditar,
mas porque finalmente compreendera que a sua amiga Jo – a sua única
verdadeira amiga, a sua sábia conselheira, a pessoa que a apoiava e a quem
confiava os seus segredos – nunca mais voltaria. Elas nunca mais voltariam a
tomar café, nunca mais dividiriam uma garrafa de vinho, nunca mais
conversariam no alpendre. Ela nunca mais voltaria a ouvir o som do riso de
Jo ou observaria a maneira que ela tinha de arquear as sobrancelhas. Ela
nunca mais ouviria Jo queixar-se de ter de fazer trabalhos pesados... então
começou a chorar, lamentando a perda da maravilhosa amiga que nunca
tivera a oportunidade de conhecer em vida.
Katie não sabia ao certo quanto tempo decorrera até ser capaz de voltar a
ler. Estava a escurecer e, com um suspiro, levantou-se e abriu a porta da
frente. Dentro da casa, sentou-se à mesa da cozinha. Lembrava-se de, uma
vez, Jo se ter sentado na cadeira em frente à sua e, por algum motivo que não
conseguia explicar, sentiu que começava a descontrair-se.
Tudo bem, pensou ela consigo mesma. Estou pronta para ouvir o que me
tens a dizer.
Da sua amiga,
Carly Jo