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Ficha Técnica

Título: UM REFÚGIO PARA A VIDA


Título original: SAFE HAVEN
Autor: Nicholas Sparks
Tradução: Margarida Rapazote
Revisão: Salvador Guerra
Capa: Maria Manuel Lacerda
Imagem da capa: Shutterstock
Fotografia do autor: 2018, James Quantz Jr.
ISBN: 9789892346069

Edições ASA II, S.A.


uma editora do Grupo LeYa
R. Cidade de Córdova, n.º 2
2160-038 Alfragide – Portugal
Tel.: (+351) 214 272 200
Fax: (+351) 214 272 201

© 2010, Nicholas Sparks


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ser reproduzida, distribuída ou transmitida de qualquer forma ou por qualquer meio, ou armazenada numa base de
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© 2019, Edições ASA II, S.A.
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Este livro segue o Novo Acordo Ortográfico de 1990.


NICHOLAS SPARKS

UM REFÚGIO
PARA A VIDA
Dedicado à memória de Paul e Adrienne Cote.
A minha maravilhosa família. Já sinto saudades vossas.
AGRADECIMENTOS

Quando acabo um dos meus romances, dou por mim a pensar nas pessoas
que me ajudaram ao longo do caminho. Como sempre, a lista começa com a
minha mulher, Cathy, que não só tolerou as minhas alterações de humor
motivadas pela criatividade, como também passou por um ano muito difícil,
durante o qual perdeu os pais. Cathy, amo-te e gostaria que tivesse havido
algo que pudesse ter feito para suavizar a dor que sentes. Estou solidário com
a tua perda.
Também quero agradecer aos meus filhos – Miles, Ryan, Landon, Lexie e
Savannah. O Miles está para fora na faculdade e as duas mais novas estão no
terceiro ano do ensino básico, e acompanhar o crescimento deles é sempre
fonte de grande alegria.
A minha agente, Theresa Park, merece sempre o meu agradecimento por
tudo o que faz para me ajudar a escrever as minhas melhores histórias. Tenho
sorte por trabalharmos juntos.
O mesmo posso dizer de Jamie Raab, a minha editora. Ela ensinou-me
muito sobre a arte de escrever, e estou muito grato por a ter na minha vida.
Denise DiNovi, minha amiga em Hollywood e produtora de vários dos
meus filmes, é uma fonte de alegria e amizade há anos. Obrigado por tudo o
que fizeste por mim.
David Young, diretor-geral do Hachette Book Group, é inteligente e uma
ótima pessoa. Obrigado por tolerar os meus constantes atrasos na entrega dos
manuscritos.
Howie Sanders e Keya Khayatian, os meus agentes cinematográficos,
trabalham comigo há anos e devo muito do meu sucesso ao trabalho duro que
executam.
Jennifer Romanello, a minha relações públicas na Grand Central
Publishing, trabalhou comigo em todos os livros que escrevi e sou um
sortudo por tudo o que ela faz.
Edna Farley, a minha outra relações públicas, é profissional e esforçada e
faz um excelente trabalho para garantir que as minhas viagens corram sem
problemas. Obrigado.
Scott Schimer, o meu advogado na indústria do entretenimento, não é
apenas um amigo, é também um negociador excecional quando é necessário
analisar os detalhes dos meus contratos. Sinto-me honrado por trabalhar
contigo.
Abby Koons e Emily Sweet, duas aliadas no Park Literary Group, merecem
os meus agradecimentos por tudo o que fazem com as editoras estrangeiras
que publicam os meus livros, o meu website e quaisquer contratos que
chegam até mim. Vocês são o máximo.
Marty Bowen e Wyck Godfrey, que fizeram um ótimo trabalho na
produção de Juntos ao Luar, merecem o meu agradecimento pelo vosso
esforço. Eu gostei muito de ver o cuidado que tiveram com o projeto.
Da mesma forma, foi ótimo trabalhar com Adam Shankman e Jennifer
Gibgot, produtores de A Melodia do Adeus. Obrigado por tudo o que fizeram.

Courtenay Valenti, Ryan Kavanaugh, Tucker Tooley, Mark Johnson, Lynn


Harris e Lorenzo Bonaventura – todos eles mostraram uma enorme paixão
pelos filmes inspirados nos meus romances, e quero agradecer-lhes por tudo
o que fizeram.
Agradeço também a Sharon Krassney, Flag e à equipa de editores e leitores
que passaram noites a trabalhar para que este livro ficasse pronto para ser
impresso.
Jeff Van Wie, meu parceiro argumentista em A Melodia do Adeus, merece
o meu agradecimento pelo seu forte entusiasmo e esforço na elaboração de
argumentos, assim como pela sua amizade.
1

E nquanto Katie circulava por entre as mesas, uma brisa vinda do Atlântico
acariciou-lhe o cabelo. Com três pratos na mão esquerda e outro na
direita, ela usava uns jeans e uma T-shirt com a frase: Ivan’s: Experimente o
nosso peixe, peça linguado. Levou os pratos a quatro homens que usavam
polos; o que estava mais perto dela fitou-a e sorriu. Embora tentasse dar a
impressão de que era apenas um rapaz simpático, Katie percebeu que ele
continuou a observá-la enquanto ela se afastava da mesa. Melody tinha
mencionado que os homens eram de Wilmington e que estavam à procura de
locais para serem usados num filme.
Pegou num jarro de chá gelado e voltou a encher-lhes os copos antes de
regressar à copa. Observou a paisagem. Era final de abril, a temperatura
estava perto da ideal e o céu estendia-se, azul, até ao horizonte. Perante ela, o
canal intracosteiro apresentava-se calmo apesar da brisa e parecia espelhar a
cor do céu. Um bando de gaivotas estava empoleirado no corrimão que
circundava o restaurante, à espera de disparar por entre as mesas se alguém
deixasse cair um pedaço de comida no chão.
Ivan Smith, o proprietário, odiava-as. Chamava-lhes ratos com asas e já
patrulhara a área do corrimão com um desentupidor em punho, tentando
espantá-las. Melody tinha dito ao ouvido de Katie que estava mais
preocupada com o lugar de onde viera o desentupidor do que com as
gaivotas. Katie não comentou.
Começou a preparar outro bule de chá, enquanto limpava o balcão. Pouco
depois, sentiu alguém a tocar-lhe no ombro. Virou-se e viu que era a filha de
Ivan, Eileen, uma rapariga bonita de 19 anos, com o cabelo apanhado num
rabo de cavalo. Ela estava a trabalhar em part-time no restaurante como
rececionista.
– Katie, podes ir atender outra mesa?
Katie olhou em redor do restaurante e observou as mesas. – Claro que sim
– respondeu.
Eileen desceu as escadas. Katie conseguia ouvir fragmentos de conversas
vindos das mesas próximas. As pessoas falavam sobre amigos, família, o
tempo ou pescarias. Numa mesa ao canto do salão, viu duas pessoas a fechar
as ementas. Aproximou-se e anotou o pedido, mas não ficou junto à mesa a
fazer conversa com os clientes, como era habitual acontecer com Melody.
Katie não era muito boa a meter conversa, mas compensava isso com
eficiência e simpatia. E os clientes pareciam não se importar.
Trabalhava no restaurante desde o início de março. Ivan contratara-a numa
tarde fria, em que o céu estava limpo e apresentava um tom azul-turquesa.
Quando disse que poderia começar a trabalhar na segunda-feira seguinte,
Katie teve de se esforçar para não chorar à frente dele. Esperou até estar
longe do restaurante, a caminho de casa, para se esvair em lágrimas. Naquela
altura, não tinha dinheiro nenhum e não comia há dois dias.
Katie percorreu o salão, enchendo copos com água e chá gelado antes de
regressar à cozinha. Ricky, um dos cozinheiros, piscou-lhe o olho, como
sempre fazia. Há dois dias, convidara-a para sair, mas Katie dissera que não
queria envolver-se com ninguém que trabalhasse no restaurante. Ficou com a
impressão de que ele iria tentar de novo em breve e esperou que os seus
instintos estivessem errados.
– Duvido que o movimento vá diminuir hoje – comentou Ricky. Era louro
e esguio, talvez um ou dois anos mais novo do que ela, e ainda morava em
casa dos pais. – Sempre que acho que vamos ter um momento para respirar o
restaurante volta a encher.
– Está um belo dia.
– Mas porque é que estas pessoas vêm para aqui? Num dia como este,
deveriam estar na praia ou a pescar. E é exatamente isso que eu vou fazer
quando sair.
– É uma ótima ideia.
– Mais logo queres que te leve a casa?
Ele oferecia-se para a levar a casa pelo menos duas vezes por semana.
– Obrigada, mas não é preciso. Eu não moro assim tão longe daqui.
– Não custa nada. Teria muito prazer em levar-te – insistiu ele. – Faz-me
bem caminhar.
Ela entregou-lhe a folha dos pedidos e Ricky pregou-a no quadro,
juntamente com os outros. Katie pegou num dos pedidos, foi até à sua zona
do restaurante e serviu os clientes.
O Ivan’s era uma instituição local, um restaurante que estava aberto há
quase trinta anos. Desde que ali começara a trabalhar, Katie identificara os
clientes habituais e, ao atravessar o salão, o seu olhar incidia nas pessoas que
ainda não conhecia. Casais a namoriscar, outros ignorando-se mutuamente.
Famílias. Ninguém naquele lugar parecia estar deslocado, e ninguém
procurara informar-se a respeito dela. Mesmo assim, havia alturas em que as
suas mãos começavam a tremer, daí continuar a dormir com uma luz acesa.
O seu cabelo curto, de um tom castanho-avermelhado, era pintado na
bancada da cozinha da pequena casa que arrendara. Como não usava
maquilhagem, tinha a noção de que o seu rosto, aos poucos, acabaria por se
bronzear ligeiramente, talvez um pouco de mais, e então lembrou a si mesma
que precisava de comprar protetor solar. No entanto, depois de pagar a renda
e as contas da casa, não sobrava muito dinheiro para artigos supérfluos. Até
mesmo o protetor solar iria estrangular as suas finanças. O emprego no Ivan’s
era bom e sentia-se grata por trabalhar ali, mas a comida que o restaurante
servia não era cara – e isso significava que as gorjetas que recebia não eram
as melhores. Por causa da sua dieta habitual, composta por feijão com arroz,
massa e papas de aveia, perdera peso nos últimos quatro meses. Conseguia
sentir as costelas por baixo da T-shirt e, até há algumas semanas, tivera
olheiras profundas, as quais imaginava que nunca desapareceriam do rosto.
– Acho que aqueles tipos estão a olhar para ti – disse Melody, com um
meneio de cabeça em direção à mesa dos quatro homens do estúdio de
cinema. – Especialmente o de cabelo castanho. O mais bonito da mesa.
– Ah – comentou Katie. E começou a preparar outra cafeteira de café.
Qualquer coisa que dissesse a Melody certamente cairia nos ouvidos das
outras pessoas. Por isso, era raro Katie conversar com ela.
– O que foi? Não o achas bonito?
– Não prestei muita atenção.
– Como é que podes não prestar atenção quando um homem é bonito? –
perguntou Melody, incrédula, olhando para ela.
– Não sei.
Tal como Ricky, Melody era dois anos mais nova do que Katie; teria cerca
de 25 anos. Ruiva, de olhos verdes e sem papas na língua, namorava com um
tipo chamado Steve, que fazia entregas para uma loja de materiais de
construção e restauro do outro lado da cidade. Como todos os outros
funcionários do restaurante, ela nascera e crescera em Southport, que
descrevia como um paraíso para crianças, famílias e idosos, mas o lugar mais
deprimente do mundo para pessoas solteiras. Pelo menos uma vez por
semana dizia a Katie que gostaria de se mudar para Wilmington, que tinha
bares, discotecas e muito mais lojas. Melody parecia saber tudo sobre toda a
gente. Katie às vezes pensava que a verdadeira profissão da colega era a
coscuvilhice.
– Ouvi dizer que o Ricky te convidou para sair, mas que recusaste – disse
ela, mudando de assunto.
– Não gosto de me envolver com pessoas do trabalho – respondeu Katie,
fingindo-se absorta na organização das bandejas dos talheres.
– Podíamos sair os quatro. O Ricky e o Steve saem para pescar juntos.
Katie pensou se Ricky estaria realmente interessado nela ou se tudo aquilo
era ideia de Melody. Talvez as duas coisas. À noite, após o fecho do
restaurante, quase todos os funcionários ficavam lá mais algum tempo, a
conversar e a beber cerveja. Com a exceção de Katie, todos trabalhavam no
Ivan’s há anos.
– Não me parece boa ideia – comentou Katie.
– Porquê?
– Em tempos, tive uma experiência má – revelou ela. – Quero dizer,
namorei com um tipo que trabalhava no mesmo sítio que eu. E, desde então,
assumi como regra não voltar a fazer o mesmo.
Melody revirou os olhos antes de partir em direção a uma das suas mesas.
Katie entregou duas contas e recolheu os pratos vazios. Manteve-se ocupada,
como sempre fazia, tentando ser eficiente e invisível. Sem levantar a cabeça,
verificava se a copa estava a brilhar. Aquilo fazia com que o seu dia passasse
mais rápido. Não namoriscou com o homem do estúdio, que, ao sair, nem
olhou para trás.
Katie trabalhava ao almoço e ao jantar. Quando o dia dava o lugar à noite,
gostava de observar o céu a passar do azul para o cinzento e depois para o
laranja e o amarelo, na extremidade ocidental do mundo. Ao pôr do sol, a
água reluzia e os veleiros cruzavam as águas, empurrados pela brisa. As
agulhas dos pinheiros pareciam brilhar. Assim que o sol se punha no
horizonte, Ivan ligava os aquecedores a gás e as espirais de metal começavam
a resplandecer como abóboras de Halloween, com os seus rostos caricatos.
Katie já sentia o rosto a ficar um pouco queimado pelo sol, e as ondas de
calor que saíam dos aquecedores faziam a sua pele arder.
Abby e Big Dave substituíam Melody e Ricky no turno da noite. Abby
estava no último ano do ensino secundário e ria-se bastante e Big Dave
preparava os jantares no Ivan’s há quase vinte anos. Casado, com dois filhos
e uma tatuagem de escorpião no antebraço direito, pesava quase 140 quilos e,
na cozinha, tinha sempre o rosto a brilhar. Costumava dar alcunhas
carinhosas a todos, e chamava-lhe Katie Kat. O movimento ao jantar durou
até às nove da noite. Quando as coisas começaram a ficar mais calmas, Katie
limpou e fechou a copa. Ajudou os lavadores de pratos a levar a louça para a
máquina enquanto os clientes das suas últimas mesas terminavam o jantar.
Uma delas estava ocupada por um casal jovem, e ela viu as alianças nos
dedos deles quando deram as mãos por cima da mesa. Eram bonitos e
pareciam felizes, o que fez com que Katie tivesse uma sensação de déjà-vu.
Há já muito tempo ela fora como eles, ainda que momentaneamente. Ou
pensou que tinha sido, porque agora sabia que esse momento não passara de
uma ilusão. Katie desviou os olhos do casal feliz, desejando poder apagar
definitivamente a sua memória para nunca mais voltar a ter aquela sensação.
2

N a manhã seguinte, Katie foi até ao alpendre de sua casa com uma
chávena de café na mão, sentindo as tábuas do chão a ranger sob os seus
pés, e apoiou-se no parapeito. Haviam brotado lírios no meio da relva alta
que cobria um canteiro de flores, e ela ergueu a chávena, apreciando o aroma
enquanto beberricava.
Gostava daquele lugar. Southport era diferente de Boston, de Filadélfia e
também de Atlantic City, com os seus incessantes ruídos de trânsito, odores e
pessoas a correr pelos passeios. Além disso, fora a primeira vez na vida que
encontrara um lugar que podia considerar seu. A casa não era grande, mas era
sua e discreta, e isso bastava-lhe. Era uma de duas construções idênticas
localizadas no fim de uma ruela de gravilha, antigas cabanas de caçadores
com paredes de madeira construídas no meio de um grupo de pinheiros e
carvalhos na orla de uma floresta que se estendia até ao litoral. A sala e a
cozinha eram pequenas e o quarto não tinha armários embutidos, mas a casa
já estava mobilada, incluindo cadeiras de baloiço na varanda, e a renda até
não era cara. O lugar não estava a cair aos bocados, mas estava revestido por
uma camada de pó em virtude dos muitos anos que permanecera fechado. O
proprietário oferecera-se para comprar os produtos de limpeza e manutenção
se Katie se prestasse a dar um jeito na casa. Desde que se mudara para lá,
Katie passava uma boa parte do seu tempo livre ajoelhada no chão ou em pé
em cima de cadeiras a fazer precisamente isso. Esfregou os azulejos e as
louças da casa de banho até que tudo estivesse a brilhar; lavou o teto com um
pano húmido e limpou as janelas com vinagre. Katie passou horas ajoelhada
na cozinha, a tentar remover a ferrugem e o lixo acumulados no chão de
linóleo. Tapou os buracos da parede com estuque e depois lixou tudo até que
a superfície ficasse lisa. Chegou até mesmo a pintar as paredes da cozinha
num tom alegre de amarelo e os armários com tinta branca brilhante. O seu
quarto agora tinha paredes num tom azul-claro, a sala de estar era bege e, na
semana anterior, colocara uma nova capa sobre o sofá, que fez com que
parecesse novo em folha.
Com a maior parte do trabalho já concluído, Katie gostava agora de se
sentar no alpendre, durante a tarde, a ler os livros que ia buscar à biblioteca.
Além do café, a leitura era o único luxo que se permitia, já que não tinha
televisão, rádio, telemóvel, micro-ondas, carro, e todos os seus pertences
cabiam numa única mala. Tinha 27 anos, não tinha amigos e já há algum
tempo que deixara de ser uma mulher loura de cabelo comprido. Mudara-se
para aquele lugar praticamente sem nada e, alguns meses depois, ainda pouco
tinha. Guardava metade das gorjetas que ganhava e todas as noites dobrava as
notas e colocava-as numa lata de café, que deixava escondida sob uma tábua
do chão, junto ao alpendre. O dinheiro serviria para uma emergência e ela
preferia passar fome a ter de usá-lo. Só o facto de saber que a lata estava ali,
fazia com que conseguisse respirar um pouco melhor, pois tinha o passado
sempre à espreita e este poderia regressar a qualquer momento. Um passado
que percorria o mundo à procura dela, e ela tinha noção que, a cada dia que
passava, a sua raiva ia crescendo.
– Bom dia. Você deve ser a Katie – chamou uma voz, interrompendo-lhe os
pensamentos.
Katie voltou-se. No alpendre abaulado da casa vizinha, viu uma mulher
com uma cabeleira castanha despenteada a acenar-lhe com a mão. Parecia ter
mais de 30 anos e usava uns jeans, com uma camisa com as mangas
arregaçadas até os cotovelos. Um par de óculos de sol repousava sobre os
cachos emaranhados na cabeça dela. Segurava nas mãos um pequeno tapete e
parecia estar a pensar se deveria sacudi-lo para tirar o pó, mas finalmente
pousou-o e aproximou-se de Katie. Ao caminhar, ostentava a energia e a
tranquilidade de alguém habituado a fazer exercício.
– O Irv Benson disse-me que seríamos vizinhas.
O dono das casas, pensou Katie. – Não sabia que viria alguém morar para
aqui.
– Acho que ele também não sabia. Quase caiu da cadeira quando lhe disse
que ficaria com a casa. – Naquele momento, já tinha chegado ao alpendre de
Katie, e estendeu a mão. – Os meus amigos chamam-me Jo.
– É um prazer – disse Katie, cumprimentando-a.
– Dá para acreditar neste tempo? Está uma maravilha, não acha?
– Está uma bela manhã – concordou Katie, apoiando o peso do corpo na
outra perna. – Quando é que se mudou?
– Ontem à tarde. E, por ironia do destino, passei praticamente a noite toda a
espirrar. Acho que o Benson juntou todo o pó que conseguiu encontrar para o
guardar na minha casa. Não iria acreditar na sujidade que há lá dentro.
Katie apontou para a porta da sua própria casa com um movimento da
cabeça. – A minha casa também estava assim.
– Mas nem parece. Desculpe, mas não pude deixar de espreitar pelas suas
janelas quando estava na cozinha. A sua casa é clara e alegre. Por outro lado,
o lugar que eu arrendei é uma masmorra empoeirada e cheia de aranhas.
– Mr. Benson deixou-me pintá-la.
– Não duvido disso. Desde que eu faça o trabalho todo, aposto que Mr.
Benson também me deixará pintar a casa. A propriedade dele fica limpa e
bonita e o trabalho é todo meu – disse ela, com um sorriso forçado. – Já mora
aqui há muito tempo?
Katie cruzou os braços, sentindo o sol da manhã começar a aquecer-lhe o
rosto. – Há quase dois meses.
– Não sei se vou aguentar tanto tempo. Se continuar a espirrar como na
noite passada, a minha cabeça provavelmente vai explodir. – Jo pegou nos
óculos escuros e começou a limpar as lentes com o tecido da camisa. – E o
que é que está a achar de Southport? É um mundo completamente à parte,
não é?
– Como assim?
– Você não parece ser daqui. Imagino que tenha vindo de lá de cima do
norte.
Katie demorou uns segundos a assentir com a cabeça.
– Foi o que pensei. Leva o seu tempo até que as pessoas se habituem a
Southport. Sempre gostei muito deste lugar. Tenho um lugar especial no meu
coração para as cidades pequenas.
– Nasceu aqui?
– Cresci aqui, depois saí, mas acabei por regressar. É sempre assim, não é?
Além disso, é difícil encontrar casas tão cheias de pó como a minha noutras
cidades.
Katie sorriu e, por um momento, nenhuma das duas proferiu palavra. Jo
pareceu satisfeita por ficar à frente dela, à espera que ela desse o passo
seguinte. Katie bebeu um gole do seu café, olhando na direção das árvores, e
lembrou-se da boa educação que recebeu.
– Aceita um café? Acabei de o fazer.
Jo voltou a colocar os óculos de sol sobre a cabeça, prendendo-os entre os
cabelos. – Sabe, estava à espera que me dissesse isso. Adoraria tomar um
café. As minhas coisas de cozinha ainda estão encaixotadas e tenho o carro
na oficina. Nem imagina como é complicado passar o dia inteiro sem cafeína.

– É, deve ser bastante difícil.


– Bem, para que saiba, eu sou uma verdadeira viciada em café.
Especialmente em dias como hoje, em que preciso de desencaixotar as
minhas coisas. Já disse que detesto desencaixotar?
– Acho que não.
– Olhe, provavelmente é a pior coisa que existe. Tentar descobrir onde
colocar cada coisa, bater com os joelhos enquanto se anda no meio das
tralhas... Mas não se preocupe, não sou o tipo de vizinha que pede ajuda para
organizar a casa. Por outro lado, uma chávena de café...
– Entre – disse Katie, convidando-a. – Só não repare na mobília. Já cá
estava quase tudo quando me mudei.
Depois de atravessar a cozinha, Katie tirou uma chávena do armário e
encheu-a até cima. Passou-a a Jo. – Lamento, mas não tenho natas nem
açúcar.
– Não é necessário – disse Jo, pegando na chávena. Soprou o café antes de
beber um gole. – Bem... é oficial – anunciou ela –, você passou a ser a minha
melhor amiga no mundo inteiro. Este café está delicioso!
– Ainda bem que gostou.
– O Benson disse-me que trabalha no Ivan’s.
– Sou empregada de mesa.
– O Big Dave ainda trabalha lá? – Jo prosseguiu depois de Katie assentir
com a cabeça. – Ele já lá está desde que eu andava no secundário. O Dave
ainda dá alcunhas carinhosas a toda a gente?
– Sim – disse Katie.
– E a Melody? Ainda continuar a fazer comentários quando acha um
cliente bonito?
– Inflexivelmente.
– E o Ricky? Continua a fazer-se a todas as novas empregadas?
Jo riu-se quando viu Katie a assentir de novo com a cabeça.
– Aquilo continua sempre igual.
– Já lá trabalhou?
– Não, mas Southport é uma cidade pequena e o Ivan’s é uma instituição.
Além disso, quanto mais tempo viver neste lugar, mais depressa vai perceber
que aqui não há segredos. Todos sabem da vida de todos e algumas pessoas...
como a Melody, por exemplo... transformaram a coscuvilhice numa forma de
arte. Antigamente, isso deixava-me louca. É claro, metade das pessoas que
aqui moram são iguaizinhas a ela. Não há muita coisa para fazer em
Southport, além de coscuvilhar sobre a vida dos outros.
– Mas ainda assim regressou.
Jo encolheu os ombros.
– Sim, regressei. O que é que hei de dizer? Talvez goste de loucos. – Bebeu
mais um pouco de café e apontou para a janela. – Sabe, durante todo o tempo
que cá vivi, nem me apercebi da existência destas casas.
– O dono disse que eram cabanas de caça. Faziam parte de uma plantação,
até que ele as transformou em casas para arrendar.
Jo abanou a cabeça. – Não consigo acreditar que se mudou para cá.
– Mas você também se mudou para cá – argumentou Katie.
– Sim, mas isso só me passou pela cabeça depois de saber que não seria a
única mulher a morar no fim de uma rua de gravilha, no meio de nenhures.
Isto é assim para o isolado.
Foi exatamente por isso que quis viver aqui, pensou Katie para si mesma. –
Não é mau. Acho que já me habituei.
– Espero também conseguir habituar-me – disse Jo, soprando o café para o
arrefecer. – E então, o que é que a trouxe a Southport? Tenho a certeza de que
não foi a pensar numa carreira de sucesso no Ivan’s. Tem família por cá?
Pais? Irmãos ou irmãs?
– Não – respondeu Katie. – Sou só eu.
– Veio por causa de um namorado?
– Não.
– Então simplesmente... mudou-se para cá?
– Sim.
– E porque o fez?
Katie não respondeu. Já Ivan, Melody e Ricky lhe tinham feito as mesmas
perguntas. Sabia que, por detrás daquelas perguntas, não havia outros
motivos ou intenções, apenas uma curiosidade natural. Mesmo assim, nunca
sabia bem o que responder, além da verdade.
– Eu queria um lugar onde pudesse recomeçar a vida.
Jo bebeu outro gole de café, aparentemente a interiorizar a resposta dela.
Mas, para surpresa de Katie, não fez mais perguntas. Limitou-se a assentir
com a cabeça.
– Acho que isso faz bastante sentido. Às vezes, começar de novo é
exatamente aquilo de que uma pessoa precisa. E eu acho que é algo
admirável. Muitas pessoas não têm a coragem necessária para fazer algo do
género.
– Acha?
– Tenho a certeza – disse ela. – E então, que planos tem para hoje? O que é
que vai fazer enquanto eu estiver para ali a bufar e a reclamar da vida, a
desempacotar e a limpar tudo até ficar com as mãos em carne viva?
– Mais logo vou trabalhar. Mas, além disso, pouca coisa. Preciso de ir ao
supermercado fazer umas compras.
– Vai ao Fisher’s ou vai mesmo à cidade?
– Vou só ao Fisher’s.
– Já esteve com o dono? Aquele homem de cabelo grisalho?
Katie assentiu com a cabeça. – Uma ou duas vezes.
Jo terminou o café e colocou a chávena no lava-louça antes de soltar um
suspiro. – Certo, certo – disse ela, sem grande entusiasmo. – Já chega de
adiar as coisas. Se não começar agora, nunca mais vou acabar de arrumar a
casa. Deseje-me sorte.
– Boa sorte.
Jo acenou levemente. – Gostei de a conhecer, Katie.

Espreitando pela janela da cozinha, Katie viu Jo a sacudir o tapete que


havia pousado antes. Parecera-lhe bastante simpática, mas Katie não sabia se
estava preparada para ter uma vizinha. Embora fosse bom ter alguém com
quem conversar de vez em quando, habituara-se a estar sozinha.
Mesmo assim, sabia que viver numa cidade pequena implicaria que o seu
isolamento autoimposto não duraria para sempre. Tinha de sair para ir
trabalhar, fazer compras e andar pela cidade; alguns dos clientes do
restaurante já a reconheciam. Além disso, tinha de admitir que apreciara
conversar com Jo. Por algum motivo, sentia que Jo era algo mais do que
aquilo que deixava transparecer. Algo que a tornava digna de confiança,
mesmo que não soubesse explicar o quê. Também era solteira e isso
definitivamente contava a seu favor. Katie não queria imaginar como teria
reagido se tivesse sido um homem a instalar-se na casa ao lado, e questionou-
se por que nunca havia considerado tal possibilidade.
De regresso ao lava-louça, lavou as chávenas de café e depois arrumou-as
no armário. Aquele gesto era-lhe bastante familiar – guardar duas chávenas
depois do café da manhã –, e por momentos sentiu-se subjugada pela vida
que deixara para trás. As mãos começaram a tremer-lhe. Pressionando uma
contra a outra, respirou fundo algumas vezes, até conseguir acalmar-se. Dois
meses antes não teria sido capaz de o fazer. Mesmo há duas semanas, pouco
lograria fazer para travar aqueles tremores involuntários. Apesar de Katie se
sentir feliz por conseguir evitar que os ataques de ansiedade a dominassem,
isso também significava que estava a sentir-se confortável naquele lugar, o
que a assustava. Afinal, sentir-se confortável significava que poderia baixar
as suas defesas, e nunca poderia permitir que isso acontecesse.
Mesmo assim, Katie estava satisfeita por ter ido parar a Southport. Era uma
pequena cidade histórica com alguns milhares de habitantes, localizada na foz
do rio Cape Fear, exatamente onde ele se encontrava com o canal
intracosteiro. Era um lugar com passeios, árvores frondosas e flores que
brotavam do solo arenoso. Havia musgo espanhol a pender dos galhos e
trepadeiras que se enrolavam em troncos de árvores encarquilhados. Tinha
visto crianças a andar de bicicleta e a jogar à bola pelas ruas, e ficou
maravilhada com a quantidade de igrejas que havia na cidade; praticamente
uma em cada esquina. Grilos e rãs cantavam ao cair da tarde, e pensou de
novo como aquela cidade parecia ser o lugar indicado para ela, pois, desde o
começo, sentia-se segura, como se houvesse algo ali que a chamasse,
prometendo-lhe abrigo.
Katie calçou o seu único par de sapatilhas, umas Converse velhas. As
gavetas da cómoda estavam quase vazias e praticamente não havia comida na
cozinha, mas, quando saiu de casa para encarar o sol que brilhava no exterior
e se dirigiu ao supermercado, pensou: Esta é a minha casa. Respirando fundo
e sentindo no ar o perfume dos jacintos e de relva acabada de cortar, percebeu
que já há anos não se sentia assim tão feliz.
3

O cabelo dele começara a ficar grisalho pouco depois de completar vinte


anos, o que provocara alguns comentários e piadas por parte dos seus
amigos. Além disso, a mudança não fora gradual, com alguns fios aqui e ali a
adquirir tons prateados. Em vez disso, em janeiro ele tinha a cabeça coberta
por cabelo negro, e, em janeiro do ano seguinte, apenas uns poucos fios
negros ainda resistiam. Os seus dois irmãos mais velhos não tiveram o
mesmo destino, embora ambos tivessem ganhado alguns fios brancos nas
suíças nos últimos anos. Nem a sua mãe nem o seu pai foram capazes de
explicar aquilo; tanto quanto sabiam, Alex Wheatley era uma anomalia nos
dois ramos da família.
Estranhamente, aquilo não o incomodava minimamente. No exército,
chegou a suspeitar que o cabelo grisalho o ajudara a subir na carreira.
Trabalhava na Divisão de Investigação Criminal, ou DIC, que tinha bases na
Alemanha e na Geórgia, e passara dez anos a investigar crimes militares,
desde soldados que desertavam até casos de assaltos, violência doméstica,
violações e até mesmo assassínios. Fora promovido várias vezes, até se
retirar, aos 32 anos, com a patente de major.
Depois de atingir os seus objetivos e concluir a carreira no exército,
mudou-se para Southport, a cidade natal da sua esposa. Eram recém-casados
e o primeiro filho estava a caminho. Embora a sua ideia inicial fosse procurar
emprego na polícia ou noutra instituição das forças de segurança, o sogro
propôs-lhe que comprasse o negócio da família.
Era uma loja de estilo antigo que vendia artigos rurais, frutas, verduras,
compotas e outras conservas. O imóvel fora construído com tábuas brancas,
venezianas azuis e alguns bancos do lado de fora; era o tipo de
estabelecimento que tivera os seus dias de glória há vários anos, mas que
praticamente deixara de existir. A família ocupava o andar de cima. Uma
magnólia enorme projetava a sua sombra sobre um dos lados da casa, mais à
frente havia um carvalho. Apenas metade do parque de estacionamento era
em asfalto, enquanto a outra metade era em cascalho – e, mesmo assim,
quase nunca havia lugares vagos. O sogro tinha inaugurado a loja antes do
nascimento de Carly, quando em redor quase só havia quintas e pastagens.
Mesmo assim, orgulhava-se de entender as pessoas e queria manter
armazenada qualquer coisa de que viessem a precisar, o que resultava num
lugar que chegava a ser desorganizado devido ao excesso de produtos. Alex
era da mesma opinião e mantinha a loja praticamente igual. Cinco ou seis
corredores ofereciam frutas, verduras e produtos de higiene pessoal;
frigoríficos ao fundo da loja transbordavam com todo o tipo de bebidas,
desde refrigerantes e água até cerveja e vinho, e, tal como em qualquer outra
loja de conveniência, havia várias prateleiras de aperitivos, doces e diversos
tipos de comida de plástico que as pessoas compram quando estão junto à
caixa. Mas era aí que as semelhanças acabavam. Também havia inúmeros
equipamentos para pesca nas prateleiras, isco vivo e um outro balcão com um
grelhador manuseado por Roger Thompson, que já trabalhara em Wall Street
e que se mudara para Southport em busca de uma vida mais tranquila. Ao
lado da churrasqueira, onde se podia comprar hambúrgueres, sanduíches,
cachorros-quentes e outras delícias, havia algumas mesas e cadeiras. Havia
também DVD para alugar, vários tipos de munições, capas impermeáveis e
guarda-chuvas, além de uma pequena seleção de best-sellers e clássicos da
literatura. Além disso, a loja vendia velas de automóvel, correias para motor e
bidões de gasolina, e Alex tinha nas traseiras uma máquina para fazer cópias
de chaves. Ele tinha três bombas de gasolina para os carros e outra no
ancoradouro, caso algum barco precisasse de encher o depósito – o único
lugar onde era possível fazê-lo fora da marina. Vários frascos de pickles,
sacos de amendoim cozido e cestas de legumes frescos cobriam o balcão.
Surpreendentemente, não era difícil manter a loja abastecida. Alguns
produtos tinham muita saída, outros não. Tal como o sogro, Alex percebia
aquilo de que as pessoas precisavam assim que entravam na loja. Percebia e
lembrava-se sempre de coisas que passavam ao lado de outras pessoas, uma
característica que o auxiliara imenso nos anos em que tinha servido no DIC.
Hoje em dia, passava bastante tempo a examinar ou a experimentar as
mercadorias em stock, para tentar acompanhar as alterações de gosto da
clientela.
Alex nunca se imaginara a fazer algo do género, mas não se arrependeu da
decisão tomada. Assim, pelo menos podia tomar contas das crianças. Josh
estava na escola, mas Kristen só começaria as aulas quando o outono
chegasse. Portanto, ela passava os dias com ele na loja. Ele instalou uma
pequena área recreativa atrás da caixa registadora, onde a sua filha,
inteligente e comunicativa, parecia sentir-se mais feliz. Embora tivesse
apenas cinco anos, ela sabia como usar a caixa e calcular os trocos, e subia a
um banquinho para chegar às teclas. Alex entretinha-se sempre com as
expressões nos rostos dos estranhos quando ela começava a calcular o valor
das mercadorias.
Mesmo assim, não era a infância ideal para uma menina, ainda que ela não
tivesse condições de se aperceber. Para ser honesto consigo próprio, Alex
tinha de admitir que tratar das crianças e da loja esgotava todas as suas
forças. Às vezes, achava-se incapaz de dar conta do recado – preparar o
almoço de Josh e deixá-lo na escola, preencher os formulários com as
encomendas aos fornecedores, reunir-se com os vendedores e atender os
clientes, tudo enquanto tentava manter Kristen entretida. E aquilo era só o
início. Ele esforçava-se bastante por fazer coisas de que seus filhos
gostassem, como andar de bicicleta, lançar papagaios e pescar com Josh, mas
Kristen gostava mesmo era de brincar com bonecas, desenhar e fazer
trabalhos manuais. E nem mesmo quando finalmente conseguia deitar as
crianças conseguia relaxar, porque havia sempre mais qualquer coisa para
fazer. Na verdade Alex já nem sabia qual era o significado da palavra
«relaxar».
Depois de as crianças se deitarem, passava o resto dos serões sozinho.
Embora aparentemente conhecesse quase todas as pessoas da cidade, na
realidade não tinha muitos amigos. Os casais a casa de quem ele e Carly às
vezes iam jantar e com quem estavam quando eram convidados para
churrascos, tinham-se afastado lenta e inexoravelmente. Em parte por sua
culpa – trabalhar na loja e criar os filhos ocupava-lhe a maior parte do tempo
–, mas, às vezes, ele tinha a sensação de que a sua presença deixava os outros
casais desconfortáveis, como se os lembrasse de que a vida era imprevisível e
assustadora e que bastava uma pequena coisa para de repente tudo começar a
correr mal.
Era uma vida cansativa e, às vezes, solitária, mas ele mantinha-se
concentrado em Josh e Kristen. Embora com menos frequência do que antes,
ambos continuavam a ter pesadelos, desde que Carly morrera. Quando
acordavam a meio da noite, a chorar inconsolavelmente, pegava-lhes ao colo
e sussurrava-lhes ao ouvido que ia ficar tudo bem. Até as crianças
conseguirem finalmente adormecer. No início, todos tinham ido a consultas
com uma psicóloga. As crianças faziam desenhos e falavam sobre o que
sentiam. Não pareceu ajudar tanto quanto ele esperava. Os pesadelos
continuaram durante quase um ano. De vez em quando, ao pintar com Kristen
ou ao pescar com Josh, os seus filhos ficavam parados e ele sabia que sentiam
saudades da mãe. Kristen chegava a mencionar isso com uma voz parecida
com a de um bebé, trémula e incerta, enquanto as lágrimas lhe escorriam pelo
rosto. Quando isso acontecia, Alex conseguia ouvir o seu próprio coração a
estilhaçar-se, pois tinha noção de que não havia nada que pudesse fazer ou
dizer para melhorar a situação. A psicóloga garantira-lhe que as crianças
eram fortes e que, desde que soubessem que eram amadas, os pesadelos iriam
tornar-se cada vez menos frequentes. O tempo provou que a psicóloga estava
certa, mas agora Alex tinha de enfrentar outro tipo de perda – algo que lhe
feria de igual modo o coração. Ele sabia que as crianças estavam a melhorar
porque as recordações que tinham da mãe estavam a desaparecer lentamente.
Eram muito novos quando a perderam – tinham quatro e três anos – o que
significava que, um dia, a mãe se tornaria, para eles, mais um conceito do que
uma pessoa. Era inevitável, claro, mas a Alex não parecia correto que nunca
se lembrassem do riso de Carly, ou do carinho com que ela os segurava nos
braços quando eram bebés, ou que nunca soubessem o quanto ela os amara.
Ele nunca fora muito adepto da fotografia. Era sempre Carly quem pegava
na máquina, e, dessa forma, havia dúzias de fotografias com Alex e as
crianças. Apenas algumas incluíam Carly. Embora ele fizesse questão de
folhear o álbum com Josh e Kristen enquanto lhes falava da mãe, Alex
começava a suspeitar que as histórias estavam a tornar-se exatamente isso:
histórias. As emoções que acompanhavam aquelas imagens eram como
castelos de areia a serem levados pela maré, dissolvendo-se lentamente na
água do mar. O mesmo se estava a passar com o retrato de Carly pendurado
no seu quarto. No primeiro aniversário do casamento, ele contratou um
fotógrafo, apesar dos protestos. Sentiu-se feliz por ter feito aquilo. Na
fotografia, ela estava com um ar lindo e independente, a mulher forte que
havia conquistado o seu coração. À noite, depois de os filhos irem para a
cama, ele passava ocasionalmente longos momentos a olhar para a imagem
da mulher, num turbilhão de emoções. Mas Josh e Kristen mal se apercebiam
da existência daquela fotografia.
Alex pensava frequentemente nela e sentia saudades do companheirismo
que existira entre eles e da amizade que fora o alicerce do casamento. E
quando se atrevia a ser honesto consigo mesmo, sabia que desejava ter tudo
aquilo de volta. Sentia-se muito sozinho, embora o deixasse incomodado ter
de o admitir. Durante vários meses, depois de ela ter partido, não conseguiu
sequer imaginar-se com outra pessoa, e nem encarava a possibilidade de
voltar a amar alguém. Mesmo depois de decorrido um ano, esse era o tipo de
pensamento que se forçava a afastar da mente. A dor ainda era muito recente,
e as lembranças dos dias vividos com Carly eram demasiado intensas. Ao fim
de alguns meses, levou as crianças ao aquário da cidade e, quando estavam
em frente ao tanque dos tubarões, começou a conversar com uma mulher
jovem e atraente que estava ao seu lado. Tal como ele, a mulher também
tinha levado os filhos e, tal como ele, também não usava aliança no dedo. Os
filhos dela tinham a mesma idade de Josh e Kristen, e, enquanto as quatro
crianças estavam distraídas a apontar para os peixes, ela riu-se de algo que ele
disse, o que fez Alex sentir uma pontada de atração – algo que o fez recordar
aquilo que um dia sentira. Pouco depois, a conversa terminou e os dois
seguiram direções opostas. Mesmo assim, quando estavam a sair do aquário,
ele voltou a vê-la. Ela acenou-lhe e, durante um instante, ele pensou em ir ter
com ela para lhe pedir o número do telefone. Mas não chegou a fazê-lo e,
logo a seguir, ela entrou no carro e saiu do parque de estacionamento. Alex
nunca mais voltou a vê-la.
Naquela noite, esperou ser assolado por uma onda de remorsos e
arrependimento, mas, estranhamente, tal não aconteceu. E o que fez no
aquário também não lhe pareceu errado. Em vez disso, pareceu-lhe algo...
normal. Algo que não era excitante, nem alarmante, mas normal e, de certa
maneira, percebeu que estava a começar a superar o que havia acontecido. É
claro, aquilo não significava que estivesse pronto para mergulhar de cabeça
na vida de solteiro. Se acontecesse, tudo bem. E se não acontecesse?
Calculou que só pensaria em atravessar aquela ponte quando lá chegasse.
Estava disposto a esperar até encontrar a pessoa certa, alguém que não só
trouxesse a alegria de volta à sua vida, mas que amasse os seus filhos tanto
quanto ele os amava. Sabia, no entanto, que, naquela cidade, eram ínfimas as
hipóteses de encontrar uma pessoa nessas condições. Southport era pequena
de mais. Quase todas as pessoas que ele conhecia estavam casadas,
reformadas ou a frequentar alguma das escolas locais. Não havia muitas
mulheres solteiras na cidade, especialmente mulheres que aceitassem os
filhos que ele já tinha. E, claro, esse era o pormenor que dificultava tudo. Ele
poderia sentir-se sozinho, carente e a desejar companhia, mas não estava
disposto a sacrificar o bem-estar dos filhos para obter tudo isso. Eles já
tinham passado por muito e seriam sempre a prioridade na vida de Alex.
Mesmo assim... ainda havia uma possibilidade, imaginou. Outra mulher
despertara o seu interesse, embora ele não soubesse quase nada a seu
respeito, exceto que era solteira. Ela ia à loja dele uma ou duas vezes por
semana, desde o início de março. Da primeira vez que a viu, ela estava muito
magra e pálida, esquelética de meter dó. Numa situação normal, não olharia
duas vezes para ela. As pessoas que passavam pela cidade iam
frequentemente à loja comprar refrigerantes, gasolina ou comida de plástico;
raramente voltava a vê-las. Mas aquela mulher não queria nada disso. Em vez
disso, mantinha a cabeça baixa enquanto andava pelos corredores de verduras
e legumes, como se tentasse passar despercebida, como um fantasma com
forma humana. Infelizmente, para ela, aquilo não resultava. Era atraente de
mais para passar despercebida. Ainda não devia ter feito 30 anos, calculou
ele, e o cabelo castanho tinha um corte irregular pelos ombros. Não usava
maquilhagem, tinha as maçãs do rosto proeminentes e os seus olhos grandes e
arredondados conferiam-lhe uma aparência elegante, embora algo frágil.
Quando chegou à caixa registadora, percebeu que, de perto, era ainda mais
bonita do que ele havia reparado enquanto percorrera os corredores. Tinha
olhos de um castanho-esverdeado salpicado com tons dourados, e o seu
sorriso, fugaz e irrefletido, desapareceu tão rapidamente quanto surgiu. Ela
não colocou nada no balcão além do estritamente necessário: café, arroz,
papas de aveia, massa, manteiga de amendoim e alguns artigos de higiene
pessoal. Ele pressentiu que, se entabulasse conversa, iria deixá-la
desconfortável, e preferiu fazer as contas em silêncio. Enquanto se ocupava
com os preços, ouviu-a falar pela primeira vez.
– Não tem feijões secos?
– Lamento. Não costumo ter esse tipo de produtos em stock – respondeu
ele.
Enquanto guardava as compras dela num saco, viu-a a olhar pela janela,
distraidamente, enquanto mordia o lábio inferior. Por algum motivo, teve a
estranha sensação de que estaria prestes a chorar.
Ele aclarou a garganta. – Se é algo de que vai precisar regularmente, posso
falar com meus fornecedores e encomendar alguns pacotes aqui para a loja.
Preciso apenas de saber de que tipo prefere.
– Não quero incomodar – disse ela. Quando falou, a sua voz não passou de
um sussurro.
Ela pagou a conta com notas de baixo valor e, depois de pegar no saco, saiu
da loja. Para surpresa de Alex, continuou a andar depois de sair do parque de
estacionamento, e só naquele momento é que ele percebeu que ela não tinha
ido de carro. Aquilo só serviu para espicaçar a sua curiosidade.
Na semana seguinte, já havia feijões na loja. Alex encomendara três tipos:
feijão-branco, feijão-vermelho e feijão-manteiga, embora apenas uma
embalagem de cada. Quando ela regressou, ele fez questão de mencionar que
os feijões estavam na prateleira inferior, no canto, ao lado do arroz. Ela levou
os três pacotes até à caixa registadora e perguntou se ele tinha uma cebola.
Alex apontou para um pequeno saco de cebolas que estava numa cesta ao
lado da porta, mas ela abanou a cabeça. – Só preciso de uma – murmurou,
quase como se pedisse desculpa, com um sorriso hesitante. As mãos dela
tremiam enquanto contava as notas e, mais uma vez, foi embora a pé. Desde
então, passou a haver sempre feijões na loja, passou a haver sempre uma
cebola para ser vendida individualmente e, nas semanas que se seguiram
àquelas duas primeiras visitas, ela acabou por tornar-se numa espécie de
cliente habitual. Embora ainda não falasse muito, com o passar do tempo
começou a parecer menos frágil e menos nervosa. As olheiras estavam a
desaparecer gradualmente e chegara a ganhar um pouco de cor graças a uns
quantos dias soalheiros. Também ganhou um pouco de peso – não muito, mas
o suficiente para suavizar as suas feições delicadas. Também a sua voz se
fortaleceu e, embora isso não revelasse qualquer sinal de que estaria
interessada nele, aquela rapariga já conseguia olhá-lo nos olhos por mais
alguns momentos antes de finalmente virar a cara. Não tinham avançado
muito além de frases como «Encontrou tudo o que precisava?» e «Sim,
obrigada», mas, em vez de fugir da loja como um veado perseguido por
caçadores, ela às vezes circulava mais tempo por entre os corredores e até
começara a conversar com Kristen quando as duas estavam sozinhas. Foi a
primeira vez que ele a viu a baixar as defesas. A sua atitude tranquila e a
expressão sincera revelaram que tinha afeto por crianças, o que o levou a
pensar de imediato que vislumbrara a mulher que em tempos fora e que
poderia voltar a ser, dependendo das circunstâncias. Da mesma forma,
Kristen pareceu ter visto algo de diferente naquela mulher, já que, depois de
ela sair, a sua filha disse-lhe que tinha uma nova amiga e que ela se chamava
Miss Katie.
No entanto, isso não significava que ela se sentia confortável na presença
de Alex. Na semana anterior, depois de ter conversado despreocupadamente
com Kristen, ele viu-a a ler as contracapas dos romances que havia na loja.
Não comprou nenhum e, quando Alex lhe perguntou casualmente se
procurava algum autor em particular, reparou num lampejo do velho
nervosismo. Compreendeu que não a deveria ter deixado perceber que a
observara.
– Deixe lá – disse ele, acrescentando rapidamente: – Não é importante.
No entanto, ao sair, ela parou por um momento, com o saco de compras
pendurado no braço. Deu meia-volta na direção dele e murmurou:
– Eu gosto de Dickens.
Dito aquilo, abriu a porta e partiu a pé pela rua.
Desde então, ele começou a pensar nela cada vez mais frequentemente, mas
eram pensamentos vagos, cercados por mistério e tingidos pelo desejo de a
conhecer melhor. Não que ele soubesse como fazer aquilo. Além do ano em
que cortejou Carly, nunca fora muito bom no jogo da sedução. Na faculdade,
entre o tempo que dedicava à natação e às aulas, tinha poucas oportunidades
para sair com raparigas. Enquanto esteve no exército, dedicou-se totalmente à
sua carreira, trabalhando bastante e sendo transferido de uma base para outra
a cada promoção que recebia. Embora tivesse saído com algumas mulheres,
na sua maioria eram romances efémeros, que começavam e terminavam no
quarto. Às vezes, olhando em retrospetiva para a sua vida, mal reconhecia o
homem que costumara ser – e sabia que Carly fora a responsável por tal
mudança. Sim, às vezes era difícil reconhecer-se a si próprio, e, sim, sentia-se
sozinho. Alex tinha saudades da mulher e, embora nunca o tivesse confessado
a ninguém, ainda havia momentos em que podia jurar que sentia a presença
dela por perto, a cuidar dele e a fazer tudo para que se sentisse bem.

Graças ao excelente tempo que se fazia sentir, naquele domingo a loja tinha
mais movimento do que era habitual. Quando Alex abriu a porta, às sete da
manhã, já havia três barcos ancorados na doca à espera que fosse ligada a
bomba de gasolina. Como já era habitual, os donos dos barcos, ao pagarem a
gasolina, aproveitavam para comprar petiscos, bebidas e sacos de gelo para
levar para bordo. Roger – que, como sempre, estava de serviço à
churrasqueira – não teve um minuto de folga desde que colocou o avental, e
as mesas estavam cheias de gente a comer salsichas panadas e cheeseburgers
e a pedir informações sobre as movimentações da bolsa.
Por norma, Alex ficava na caixa registadora até ao meio-dia, altura em que
passava as rédeas a Joyce. Tal como Roger, Joyce era uma funcionária que
facilitava imenso o trabalho de gerir a loja. Joyce, que tinha trabalhado no
tribunal até se reformar, veio «de brinde» com a loja, por assim dizer. O
sogro de Alex contratara-a há dez anos e agora, mesmo tendo já 70 anos, ela
não dava qualquer sinal de pretender levar uma vida mais tranquila. O seu
marido tinha morrido há uns anos, os filhos mudaram-se para outras cidades e
ela tratava os clientes como se fossem a sua verdadeira família. Joyce já fazia
parte da loja, como qualquer artigo presente nas prateleiras.
Além disso, ela compreendia a necessidade de Alex de passar tempo com
os filhos, longe da loja, e não se incomodava com o facto de ter de trabalhar
aos domingos. Assim que chegava, ia imediatamente para trás do balcão onde
estava a caixa registadora e dizia a Alex para ir para casa. Mais parecia a
dona do lugar do que uma das funcionárias. Joyce também era a babysitter de
serviço, a única pessoa a quem ele confiava as crianças caso tivesse de sair da
cidade. Não era algo que acontecia com frequência – sucedera apenas duas
vezes nos últimos dois ou três anos, quando ele foi encontrar-se com um
velho amigo dos tempos do exército em Raleigh –, mas Alex reconhecia que
Joyce fora uma das melhores coisas que já lhe acontecera na vida. Quando
precisava dela, estava sempre pronta para ajudar.
Enquanto esperava pela chegada de Joyce, Alex deu uma volta pela loja, a
verificar as prateleiras. O sistema informatizado era ótimo para gerir o
inventário, mas ele sabia que filas e filas de números nem sempre relatavam
toda a história. Às vezes achava que teria uma noção melhor do que precisava
ser reposto se olhasse realmente para as prateleiras para verificar o que tinha
sido vendido no dia anterior. O sucesso de um estabelecimento exigia que as
mercadorias fossem repostas o mais rapidamente possível, e aquilo
significava que, uma vez por outra, tinha de disponibilizar artigos que
nenhuma outra loja oferecia. Tinha compotas e geleias caseiras, temperos em
pó feitos com base em «receitas secretas», que davam mais sabor às carnes de
vaca e de porco, e uma boa variedade de frutas e vegetais enlatados de
produção local. Até mesmo as pessoas que faziam compras regularmente em
supermercados como o Food Lion ou o Piggly Wiggly iam frequentemente
dar uma vista de olhos à loja de Alex para comprar os produtos especiais que
ele fazia questão de comercializar.
Ainda mais do que o volume de vendas de um artigo, gostava de saber em
que alturas se vendiam determinados produtos, algo que não aparecia
necessariamente no registo geral de contas. Alex percebera, por exemplo, que
o pão para cachorro-quente vendia muito bem aos fins de semana, mas
raramente saía das prateleiras durante a semana; com o pão tradicional
passava-se o contrário. Ao tomar consciência disso, tratou de manter esse
produto em stock para quando aumentava a procura, e assim as vendas
cresceram. Não era muito, mas o dinheiro extra ajudava-o a manter a sua
pequena loja a dar lucro numa época em que as grandes cadeias de lojas e
supermercados afastavam a maioria das pequenas empresas locais do
mercado.
Enquanto examinava as prateleiras, começou a imaginar o que iria fazer
com as crianças naquela tarde, e decidiu levá-las a dar um passeio de
bicicleta. Carly sempre gostara de colocar as crianças num carrinho
especialmente concebido para ser ligado à sua bicicleta para as levar a
passear pela cidade. Mas um passeio desse tipo não bastava para ocupar toda
a tarde. Talvez eles pudessem ir de bicicleta até ao parque... talvez isso lhes
agradasse.
Depois de deitar uma rápida olhadela na direção da porta da frente para ter
a certeza de que não ia entrar ninguém na loja, correu até à divisão que servia
como armazém na parte de trás da loja e colocou a cabeça do lado de fora de
uma janela. Josh estava a pescar no ancoradouro, a coisa que ele mais gostava
de fazer na vida. Alex não gostava de o deixar ali fora sozinho – não tinha
dúvidas de que algumas pessoas o considerariam um péssimo pai por permitir
que aquilo acontecesse –, mas Josh nunca saía do campo de visão das
câmaras de segurança e Alex podia vê-lo no monitor ao lado da caixa
registadora. Era uma das regras da família e Josh sempre a respeitara.
Kristen, como de costume, estava sentada na sua mesinha atrás do balcão da
caixa registadora. Tinha separado as roupinhas da boneca em pilhas
diferentes e parecia satisfeita apenas por lhe mudar a roupa. Sempre que
terminava, olhava para Alex com uma expressão alegre e inocente, e
perguntava ao pai se ele achava que a boneca continuava bonita. Como se
fosse possível a Alex dizer que não.
Miúdas. Eram capazes de amolecer os corações mais empedernidos.
Alex estava a organizar alguns dos frascos de condimentos quando ouviu
soar a campainha que tocava sempre que um cliente abria a porta.
Levantando a cabeça por cima das prateleiras, viu Katie entrar na loja.
– Olá, Miss Katie – disse Kristen, aparecendo por detrás da caixa
registadora. – Gostas das roupas que vesti à minha boneca?
Do lugar onde estava, ele mal conseguia ver a cabeça de Kristen por cima
do balcão, mas ela tinha nas mãos... Vanessa? Rebecca? Qualquer que fosse o
nome da boneca de cabelo castanho, levantara-a bem o alto para que Katie a
pudesse ver.
– Está linda, Kristen – respondeu Katie. – Esse vestido é novo?
– Não, já o tenho há algum tempo. Mas ela não o tem usado.
– Como é que se chama?
– Vanessa – respondeu.
Vanessa, pensou Alex. Quando mais tarde elogiasse Vanessa, pareceria um
pai bem mais atencioso.
– Foste tu que lhe deste esse nome?
– Não, ela já veio com o nome. Podes ajudar-me a calçar-lhe as botas? Não
consigo puxá-las até aos joelhos.
Alex ficou a olhar enquanto Kristen entregou a boneca a Katie e quando
esta começou a calçar-lhe as botas de plástico flexível. Por experiência
própria, Alex sabia que era mais difícil do que parecia. Uma miúda não seria
capaz de puxar as botas de maneira a que encaixassem. Quando lhe calhou a
ele, teve algumas dificuldades em fazê-lo, mas, de algum modo, Katie fez
com que tudo parecesse extremamente fácil. Ela devolveu a boneca e
perguntou:
– O que te parece?
– Está linda. Achas que ficava bem de casaco?
– Não está assim tanto frio lá fora.
– Eu sei, mas a Vanessa às vezes é meio friorenta. Acho que ela vai
precisar de um casaco.
A cabeça de Kristen desapareceu por detrás do balcão para voltar a
aparecer logo a seguir. – Qual é que fica melhor? O azul ou o roxo?
Katie levou um dedo à boca, analisando seriamente os casacos. – Acho que
o roxo fica melhor.
Kristen assentiu. – Também me pareceu. Obrigada.
Katie sorriu antes de desviar o olhar, e Alex concentrou a sua atenção nas
mercadorias antes que ela percebesse que ele a observava. Pelo canto do
olho, viu Katie a pegar numa pequena cesta de compras antes de se deslocar
para outro corredor.
Alex regressou ao balcão da caixa registadora. Quando ela o viu, ele
acenou amigavelmente. – Bom dia – cumprimentou-a.
– Olá – respondeu ela enquanto tentava prender uma madeixa de cabelo
atrás da orelha, mas sem sucesso, pois era curta de mais para se aguentar no
lugar. – Só preciso de umas coisinhas.
– Avise-me se não conseguir encontrar alguma coisa de que precise. Às
vezes trocam os produtos de lugar.
Ela assentiu com a cabeça antes de continuar a percorrer o corredor.
Quando Alex assumiu o seu posto atrás da caixa registadora, espreitou
rapidamente para o monitor. Josh estava a pescar no mesmo lugar enquanto
um barco se aproximava lentamente do cais.
– O que é que achas, papá? – perguntou Kristen puxando-lhe pelas calças
com uma mão e segurando a boneca com a outra.
– Oh, está linda – comentou Alex, agachando-se ao lado dela. – E também
gosto bastante do casaco. A Vanessa é friorenta, não é?
– É, sim. Mas ela disse-me que quer brincar no baloiço, por isso
provavelmente vai ter de mudar de roupa.
– É uma ótima ideia. Talvez dê para ir ao parque depois do almoço. Se
também quiseres brincar no baloiço – propôs Alex.
– Eu não quero brincar no baloiço. É a Vanessa que quer. E é só a fazer de
conta, papá.
– Ah, tudo bem – disse ele, levantando-se. Lá se vai o passeio no parque,
pensou.
Perdida no seu próprio mundo, Kristen começou a despir de novo a boneca.
Alex espreitou para o monitor para ver onde Josh estava, no preciso momento
em que entrou na loja um adolescente, vestindo apenas uns calções.
Entregou-lhe um maço de notas.
– Para a bomba de gasolina do cais – indicou, antes de sair rapidamente.
Alex registou a compra da gasolina e acionou a bomba enquanto Katie se
aproximou da caixa registadora. Os mesmos artigos de sempre, além de um
protetor solar. Quando ela olhou por cima do balcão para ver Kristen, Alex
apercebeu-se da mudança da cor dos olhos dela.
– Encontrou tudo o que precisava?
– Sim, obrigada.
Ele começou a guardar as compras dela num saco.
– O meu livro favorito de Dickens é o Grandes Esperanças – disse ele,
tentando parecer simpático enquanto colocava os produtos no saco. – E o
seu?
Em vez de responder imediatamente, ela pareceu ter ficado assustada por
ele se ter lembrado de ela ter dito que gostava de Dickens.
– Um Conto de Duas Cidades – respondeu ela, em voz baixa.
– Também gostei desse, mas é uma história triste.
– Sim. Por isso é que gosto dela.
Como sabia que ela regressaria a pé para casa, colocou as compras dentro
de outro saco.
– Calculo que, dado que já conhece a minha filha, cabe agora a mim
apresentar-me. Chamo-me é Alex. Alex Wheatley.
– Ela chama-se Miss Katie – informou Kristen por detrás dele. – Mas já te
tinha dito, não te lembras?
Alex olhou para Kristen por cima do ombro. Quando se voltou para Katie,
ela estava a sorrir enquanto lhe pagava.
– Apenas Katie – disse ela.
– Prazer em conhecê-la, Katie. – Ele tocou nas teclas e a gaveta da caixa
abriu-se com um tinido. – Calculo que more aqui perto.
Ela não chegou a responder. Em vez disso, quando Alex olhou para cima,
verificou que os olhos dela estavam arregalados de medo. Virando-se para
trás, percebeu o que ela vira no monitor atrás dele: Josh tinha caído à água,
ainda vestido, e debatia-se, agitando os braços em pânico. Alex sentiu um
aperto na garganta e reagiu por instinto. Saiu a correr de detrás do balcão,
percorreu a loja e o armazém a correr. Abriu intempestivamente a porta,
embateu numa caixa de toalhetes de papel, derrubando-a no chão, mas não
diminuiu o passo.
Escancarou violentamente a porta dos fundos e sentiu a adrenalina a
percorrer-lhe o corpo enquanto saltava por cima de uns arbustos, encurtando
o caminho até ao ancoradouro. Chegou a toda a velocidade à estrutura de
madeira. Quando tomou impulso e saltou, Alex conseguiu ver Josh na água, a
agitar os braços.
Com o coração a bater desalmadamente no peito, Alex voou pelo ar e
atingiu a água bem perto do lugar onde Josh estava. A profundidade não era
grande – menos de dois metros, estimou – e, ao sentir os pés a tocarem no
fundo lamacento, afundou-se até os tornozelos. Debateu-se para regressar à
superfície e sentiu a pressão nos seus braços quando os estendeu para pegar
em Josh.
– Pronto, já te agarrei! – gritou. – Já te agarrei!
Mas Josh estava a debater-se e a tossir, sem conseguir recuperar o fôlego.
Alex teve de se esforçar para o controlar enquanto o trouxe de volta para a
parte mais rasa da água. Depois, com um esforço tremendo, levou Josh para a
margem coberta pela relva, já com várias alternativas a correrem-lhe pela
mente: massagem cardíaca, respiração boca a boca, ou tentar obrigar Josh a
expelir a água que tinha engolido. Alex tentou fazer com que o filho se
deitasse de costas, mas a criança resistiu. Debatia-se e tossia, e, embora
ambos ainda estivessem dominados pelo pânico, aquela reação significava
que Josh ficaria bem.
Alex não saberia dizer quanto tempo levou – talvez apenas alguns
segundos, mas parecia ter demorado bem mais –, até que Josh, ao tossir,
cuspisse finalmente um jato de água e recuperasse o fôlego. Respirou fundo e
voltou a tossir; inalou mais uma vez e tossiu novamente, embora, desta vez,
mais parecesse que estava a aclarar a garganta. Inspirou mais algumas vezes,
ainda tomado pelo pânico, e foi só então que o rapaz pareceu ter-se
apercebido do que tinha acontecido.
Ergueu os braços para o pai e Alex abraçou-o com força. Josh começou a
chorar, com os ombros a tremer. Alex sentiu o estômago a revirar-se ao
pensar no que poderia ter acontecido. E se ele não se tivesse apercebido de
que Katie estava a olhar para o monitor? E se tivesse decorrido mais um
minuto? As respostas àquelas perguntas levaram-no a tremer tanto quanto
Josh. Depois de alguns minutos, o choro de Josh começou a diminuir e ele
disse as primeiras palavras desde que Alex o tirara da água.
– Desculpa, pai – disse, entre soluços.
– Desculpa-me tu também – sussurrou Alex. Manteve-se abraçado ao filho,
temendo que, caso o soltasse, de algum modo o tempo começasse a
retroceder, levando a que aquilo acontecesse de novo, desta vez com um
resultado diferente.
Quando finalmente conseguiu afrouxar os braços em redor de Josh, Alex
viu que havia um grupo de pessoas a olhar para eles do outro lado da loja.
Roger estava lá, assim como os clientes que estavam a comer perto da
churrasqueira. Outros dois clientes esticavam os pescoços, provavelmente
recém-chegados. E, é claro, Kristen também lá estava. De repente voltou a
sentir-se um pai terrível, pois percebeu que a sua menina chorava, apavorada
e a precisar dele, mesmo estando aninhada nos braços de Katie.

Alex só percebeu o que sucedera depois de ele e Josh terem vestido roupas
secas. Roger tinha preparado hambúrgueres e batatas fritas para as crianças e
estavam todos sentados numa mesa junto à churrasqueira, embora nenhum
deles estivesse com o menor apetite.
– A linha do meu anzol enroscou-se no barco quando ele estava a sair do
cais e eu não queria perder a minha cana de pesca. Achei que a linha ia
rebentar, mas ela puxou-me e caí e engoli muita água. Não conseguia respirar
e parecia que tinha alguma coisa a puxar-me para baixo – explicou Josh,
hesitando por um momento. – Acho que deixei cair a cana ao rio.
Kristen estava sentada ao lado dele, com os olhos ainda vermelhos e
inchados. Pedira a Katie que ficasse um pouco com ela, e esta permanecia ao
seu lado, ainda a segurar-lhe na mão.
– Está tudo bem. Daqui a um bocado vou até lá e, se não conseguir
encontrá-la, arranjamos-te uma nova. Mas se isso voltar a acontecer, larga a
cana, está bem?
Josh respirou fundo e assentiu com a cabeça.
– Desculpa.
– Foi um acidente – disse Alex, para o tranquilizar.
– Mas assim nunca mais me deixas pescar.
E arriscar-me novamente a perder-te?, pensou Alex. De maneira
nenhuma. Mas limitou-se a dizer:
– Conversamos sobre isso mais tarde.
– E se eu prometer que da próxima vez largo a cana?
– Como disse, vamos conversar sobre isso mais tarde. Agora, porque é que
não comes alguma coisa?
– Não tenho fome.
– Eu sei. Mas está na hora do almoço e precisas de comer.
Josh pegou numa batata frita e mordeu um pequeno pedaço, mastigando-o
mecanicamente. Kristen fez o mesmo. À mesa, ela imitava quase sempre os
gestos de Josh. Aquilo era o bastante para irritar Josh, mas ele não pareceu ter
qualquer energia para protestar.
Alex virou-se para Katie. Engoliu em seco, sentindo-se repentinamente
nervoso. – Posso falar consigo por um minuto?
Ela levantou-se da mesa e ele encaminhou-a para longe das crianças.
Quando se afastaram o suficiente para que os filhos não pudessem ouvi-lo,
ele aclarou a garganta. – Quero agradecer-lhe pelo que fez.
– Eu não fiz nada – protestou ela.
– Fez, sim. Se não estivesse a olhar para o monitor, eu nunca iria saber o
que estava a acontecer. Talvez não lhe tivesse deitado a mão a tempo – disse
Alex. Calou-se por uns momentos. – E obrigado por cuidar da Kristen. Ela é
a coisa mais doce e carinhosa do mundo, mas é bastante sensível. Fico feliz
por não a ter deixado sozinha. Mesmo quando tivemos de subir para trocar de
roupa.
– Fiz o que qualquer pessoa faria – insistiu Katie. No silêncio que se
seguiu, ela percebeu repentinamente quão próxima estava de Alex e recuou
um pequeno passo. – Olhe, acho que está na hora de eu ir.
– Espere – disse Alex, que se dirigiu aos frigoríficos no fundo da loja. –
Gosta de vinho?
Ela abanou a cabeça. – Às vezes, mas...
Antes que pudesse concluir a frase, ele virou-se e abriu a porta, retirando
uma garrafa de chardonnay. – Por favor, gostaria que aceitasse. É um
excelente vinho. Sei que não imaginaria encontrar aqui uma boa garrafa de
vinho, mas, quando estive no exército, fiz um amigo que me ensinou a
apreciar. Apesar de ser amador, considero-o um especialista, e é ele que
escolhe os vinhos que eu vendo. Tenho certeza de que vai gostar.
– Não é necessário.
– É o mínimo que posso fazer – disse ele, mostrando um sorriso. – É uma
forma de lhe agradecer.
Pela primeira vez desde que se conheceram, ela olhou-o nos olhos e não
desviou o olhar. – Está bem – disse ela, por fim.
Depois de pegar nas suas compras, Katie saiu da loja. Alex voltou para a
mesa. Após um pouco mais de persuasão, Josh e Kristen terminaram o
almoço, enquanto Alex foi até ao cais procurar a cana de pesca. Quando
regressou, Joyce já estava a pôr o avental e Alex pôde levar as crianças a dar
um passeio de bicicleta. Depois, entraram todos no carro e foram até
Wilmington, onde viram um filme e comeram piza, as velhas e fiáveis
atividades quando é necessário passar tempo com crianças. O sol já se tinha
posto e eles estavam cansados quando voltaram para casa. Assim, depois de
um banho e de vestirem os pijamas, Alex deitou-se na cama no meio dos dois
durante uma hora, lendo-lhes histórias, até finalmente apagar as luzes.
Na sala de estar, ligou a televisão e percorreu os canais durante algum
tempo, mas não lhe apetecia ver nada. Em vez disso, voltou a pensar em Josh.
Embora soubesse que o seu filho estava em segurança no quarto, sentiu um
arrepio, o mesmo medo que sentira antes. A mesma sensação de fracasso.
Estava a dar o seu melhor e não havia ninguém que pudesse amar os seus
filhos mais do que ele. Mesmo assim, não conseguiu deixar de pensar que, de
algum modo, aquilo não seria suficiente.
Mais tarde, muito tempo depois de Josh e Kristen terem adormecido, Alex
foi até a cozinha e tirou uma cerveja do frigorífico. Bebeu-a vagarosamente
no sofá. As lembranças do dia permaneciam vivas na sua mente, mas, desta
vez, estava a pensar na sua filha e na maneira como ela se agarrara a Katie, o
seu pequeno rosto enterrado no pescoço dela. A última vez que vira algo
semelhante fora quando Carly ainda estava viva.
4

A bril deu lugar a maio e os dias sucederam-se uns aos outros. O


movimento no restaurante cresceu de forma percetível e a reserva de
dinheiro na lata de café de Katie também cresceu de forma proporcional e
reconfortante. Katie já não sentia os mesmos acessos de pânico ao pensar na
possibilidade de não ter dinheiro caso precisasse de abandonar a casa.
Mesmo depois de pagar a renda, as contas e as despesas com comida,
percebeu que, pela primeira vez em anos, sobrava algum dinheiro. Não
muito, mas o bastante para se sentir livre e leve. Na sexta-feira de manhã,
deteve-se em frente Anne Jean’s, uma loja de roupas usadas. Katie levou
grande parte da manhã a apreciar as roupas que estavam à venda e comprou
dois pares de sapatos, dois pares de calças, uns calções, três T-shirts elegantes
e algumas blusas, a maioria das quais eram de marca e com aspeto de novas.
Katie não deixava de se espantar com o facto de algumas mulheres terem
tantas peças boas de roupa a ponto de poderem doar algumas que
provavelmente teriam custado pequenas fortunas em lojas de marca.
Jo estava a pendurar um espanta-espíritos no alpendre quando Katie chegou
a casa. Não tinham conversado muito desde aquele primeiro encontro. O
trabalho de Jo, qualquer que ele fosse, parecia mantê-la ocupada, e Katie
fazia o máximo de turnos possíveis no restaurante. À noite, reparava que as
luzes da casa de Jo ficavam acesas, mas era tarde de mais para ir até lá. Além
disso, Jo também não tinha passado o fim de semana anterior em casa.
– Já não conversamos há uns tempos, hein? – disse Jo, com um aceno. Deu
um toque no espanta-espíritos, fazendo-o tinir antes de atravessar o jardim.
Katie chegou ao seu alpendre e pousou os sacos no chão. – Por onde é que
andou?
Jo encolheu os ombros. – Sabe como é que são as coisas. A trabalhar até
tarde à noite, a acordar bem cedo de manhã, indo aqui e ali. Há momentos em
que me sinto como se estivesse a ser puxada em todas as direções – disse ela,
apontando para as cadeiras de baloiço. – Importa-se? Preciso parar um pouco.
Passei a manhã a limpar a casa e acabei de pendurar aquela coisa. Gosto do
som que faz.
– Esteja à vontade – disse Katie.
Jo sentou-se e rodou os ombros, tentando relaxar. – Está a ficar bronzeada.
Tem ido à praia?
– Não. Fiz alguns turnos extra nas últimas semanas e trabalhei no exterior –
disse Katie, afastando uma das cadeiras e abrindo espaço para poder esticar
as pernas.
– Sol e água... o que mais há ali? Trabalhar no Ivan’s deve ser muito
parecido com uma temporada de férias.
Katie riu-se. – Não é bem assim. E a Jo, o que é que tem feito?
– Ultimamente, para mim nada de sol nem diversão – disse Jo, olhando
para os sacos de compras. – Eu queria ter vindo mais cedo para tomar outro
café, mas a Katie já tinha saído.
– Fui às compras.
– Estou a ver. Encontrou alguma coisa interessante?
– Acho que sim – confessou Katie.
– Bem, não fique aí sentada. Mostre-me o que comprou.
– Tem a certeza de que quer ver?
Jo riu-se. – Eu moro numa cabana na ponta de uma rua de gravilha que fica
em pleno fim do mundo e passei a manhã a lavar e a secar os armários. Que
outras opções tenho para me divertir?
Katie tirou uns jeans do saco e passou-os a Jo, que pegou neles, para os
observar atentamente.
– Uau! – disse ela. – Provavelmente encontrou estas calças na Anna Jean’s.
Adoro aquela loja.
– Como é que sabe que comprei isto na Anna Jean’s?
– Porque não há outra loja na cidade que venda roupas tão boas. Isto veio
do armário de alguém. Provavelmente de alguma mulher rica. Grande parte
das coisas daquela loja são praticamente novas.
Pousando os jeans no colo, Jo deslizou os dedos sobre o bordado dos
bolsos de trás. – Os detalhes são maravilhosos, gostei muito dos desenhos –
disse ela, olhando para os sacos. – E que mais comprou?
Katie passou-lhe as peças uma a uma, divertindo-se com o entusiasmo de
Jo em relação a todas. Quando o saco ficou vazio, Jo suspirou. – Bem, agora
estou oficialmente a morrer de inveja. E deixe-me adivinhar: não sobrou nada
parecido com isso na loja, não é?
Katie encolheu os ombros, sentindo-se repentinamente acanhada. –
Desculpe. Passei lá um bom bocado a escolher.
– Bem, não há problema. Escolheu muito bem. Estas roupas são
verdadeiros tesouros.
Katie olhou para a casa de Jo. – E como estão as coisas por ali? Já começou
as pinturas?
– Ainda não.
– O trabalho está a ocupá-la muito?
Jo fez uma careta. – A verdade é que, depois de desencaixotar as minhas
coisas e de limpar a casa de cima a baixo, acho que esgotei a minha energia.
Mas sinto-me feliz por ser sua amiga, pois isso significa que ainda posso vir
até sua casa, que é alegre e colorida.
– Pode vir a qualquer hora.
– Obrigada, isso significa muito para mim. Mas Mr. Benson, aquele
homem malvado, amanhã vai trazer algumas latas de tinta. Acho que isso
explica porque estou aqui. Estou quase em pânico só de pensar que vou
passar o fim de semana com tinta a pingar-me na roupa.
– Não é assim tão mau. Até passa depressa.
– Está a ver estas mãos? – perguntou Jo, exibindo as palmas. – Foram feitas
para acariciar homens bonitos, para serem adornadas com unhas bonitas e
anéis de diamantes. Não foram feitas para segurar rolos de pintar, para
ficarem manchadas de tinta ou para fazer outros tipos de trabalhos braçais.
Katie deu uma risadinha. – Quer que a ajude?
– Nem pensar. Sou especialista em deixar as coisas para depois, mas a
última coisa que quero é que pense que sou incompetente. Porque sou muito
boa no que faço.
Um bando de andorinhas abandonou as árvores, movendo-se num ritmo
quase musical. O baloiço das cadeiras fazia com que as tábuas do alpendre
rangessem levemente.
– O que é que a Jo faz exatamente?
– Faço acompanhamento psicológico, por assim dizer.
– No ensino secundário?
Jo abanou negativamente a cabeça.
– Não. Em situações de luto e perda.
– Ah – disse Katie, que parou por uns momentos para pensar. – Não sei
bem do que se trata.
Jo encolheu os ombros. – Vou a casa das pessoas e tento ajudá-las. Por
norma, isso acontece quando morre alguém muito querido – explicou. Após
uma pausa, a sua voz tornou-se mais suave. – As pessoas reagem de maneiras
muito diferentes, e o meu trabalho é descobrir o modo de as ajudar a aceitar o
que aconteceu. Aliás, detesto essa palavra, pois nunca conheci ninguém que
realmente estivesse disposto a aceitar os factos. Mas, basicamente, é isso que
eu faço. Afinal, independentemente de quão difícil seja, a aceitação ajuda as
pessoas a seguir em frente com as suas vidas. Mas, às vezes...
Ela deixou a frase no ar. No silêncio que se impôs, arrancou um pedaço da
tinta da cadeira de baloiço, que estava a descascar. – Às vezes, quando estou
a tratar de alguém, acabam por surgir outros problemas. E é nisso que tenho
trabalhado ultimamente. Em geral, as pessoas também precisam de outros
tipos de ajuda.
– Parece ser um belo trabalho.
– E é. Mesmo que tenha as suas dificuldades – concluiu ela, virando-se
para Katie. – E a Katie, o que é que me conta?
– Já sabe que trabalho no Ivan’s.
– Mas não me contou mais nada sobre si.
– Não há muito mais a dizer – contestou Katie, desejando que a conversa
não enveredasse por aquele rumo.
– É claro que há. Todos têm uma história – comentou Jo, antes de fazer
uma pequena pausa. – Por exemplo, qual foi o verdadeiro motivo que a
trouxe a Southport?
– Já lhe disse. Queria um lugar onde pudesse recomeçar a vida – insistiu
Katie.
Jo pareceu percebê-la imediatamente enquanto absorveu aquela resposta. –
Tudo bem – disse, pouco depois, sem rancor na voz. – Tem razão. Não é nada
comigo.
– Não foi isso que eu disse.
– Foi, sim. Disse-o com gentileza. E respeito a sua resposta, porque
efetivamente tem razão: realmente, não é nada comigo. Mas, só para que
saiba, quando diz que quer recomeçar a sua vida, a conselheira que há em
mim questiona-se quanto ao que a levou a sentir a necessidade de recomeçar.
E, mais importante do que isso, o que é que deixou para trás.
Katie sentiu uma tensão crescente nos ombros. Apercebendo-se do
desconforto dela, Jo prosseguiu.
– E se fizermos assim – propôs, de modo muito gentil. – Esqueça que eu fiz
a pergunta. Mas não esqueça que, se algum dia quiser conversar a esse
respeito, estarei aqui para a ajudar. Sou uma boa ouvinte, especialmente
quando os meus amigos precisam. E, acredite ou não, conversar, às vezes,
ajuda bastante.
– E se eu, simplesmente, não puder conversar sobre o assunto? – disse
Katie, num sussurro involuntário.
– E que tal se ignorar o facto de eu trabalhar como terapeuta? Somos
apenas amigas, e as amigas podem conversar sobre qualquer coisa. Como o
lugar onde nasceu, ou algo que a deixava feliz em criança.
– E que importância é que isso tem?
– Não tem realmente grande importância. E é exatamente por isso que
estou a conversar consigo. Não tem de dizer nada que não queira
efetivamente dizer.
Katie absorveu as palavras de Jo antes de a fitar com os olhos
semicerrados. – Você é muito boa no que faz, não é?
– Faço por isso – concordou Jo.
Katie entrelaçou os dedos sobre o colo. – Tudo bem. Eu nasci em Altoona
– contou.
Jo recostou-se na cadeira de baloiço. – Nunca lá estive. É um sítio bonito?
– É uma daquelas velhas cidades construídas em volta da estação de
comboios. Já deve ter visto algum lugar assim. Uma cidade pequena, cheia de
pessoas boas e trabalhadoras que estão apenas a tentar melhorar as suas vidas.
Era um lugar bonito, especialmente durante o outono, quando as folhas
começavam a mudar de cor. Eu achava que não poderia haver no mundo
nenhum lugar mais bonito do que aquele. – Katie baixou os olhos, parecendo
algo perdida nas suas memórias. – Tinha uma amiga chamada Emily e nós
costumávamos pôr moedas na linha do comboio. Depois do comboio passar,
andávamos ali à volta dos carris para tentar encontrá-las, e ficávamos sempre
espantadas ao constatar que o peso do comboio apagava sempre as marcas de
cunhagem das moedas. Às vezes, as moedas ainda estavam quentes. Lembro-
me de uma vez quase ter queimado os dedos. Quando penso na minha
infância, é quase sempre para recordar pequenos momentos agradáveis como
este.
Katie encolheu os ombros, mas Jo permaneceu em silêncio, permitindo que
ela prosseguisse. – De qualquer forma, foi lá que estudei, sempre na mesma
escola. Foi lá que concluí o secundário, mas acho que, naquela época... não
sei... acho que estava farta daquilo tudo, compreende? Da vida numa cidade
pequena, onde todos os fins de semana eram iguais. As mesmas pessoas a
irem sempre às mesmas festas, sempre os mesmos rapazes a beber cerveja na
parte de trás das pick-ups. Eu queria mais, mas não consegui ir para a
faculdade. Resumindo, acabei por ir parar a Atlantic City. Trabalhei lá
durante algum tempo, mudei-me algumas vezes e agora, passados uns anos,
aqui estou.
– Noutra cidade pequena, onde é sempre tudo igual.
Katie abanou a cabeça. – Esta cidade é diferente. Faz com que me sinta...
Ao ver que Katie hesitava, Jo terminou a frase por ela.
– Segura?
Quando o olhar assustado de Katie se cruzou com o dela, Jo parecia
perplexa. – Não é assim tão difícil de perceber. Como a Katie disse, a sua
ideia é recomeçar. E que lugar melhor para o fazer do que este, onde nada
acontece? – Fez uma pequena pausa. – Bem, não é sempre assim. Ouvi dizer
que houve uma certa animação na semana passada. Quando foi à loja de
conveniência.
– Soube disso?
– Vivemos numa cidade pequena. É impossível não ouvir os comentários.
O que é que se passou?
– Foi assustador. Eu estava a conversar com o Alex e, quando vi no
monitor o que estava a acontecer, acho que ele percebeu tudo pela minha
expressão. Desatou de imediato a correr. Passou por mim e atravessou a loja
como um raio. A Kristen olhou para o monitor e entrou em pânico. Eu peguei
nela ao colo e fui atrás do pai. Quando cheguei às traseiras da loja, o Alex já
tinha tirado o Josh da água. Foi um alívio ver que ele estava bem.
– Também acho – disse Jo, assentindo. – O que é que acha da Kristen? Não
é a criança mais linda e doce do mundo?
– Ela chama-me de Miss Katie.
– Adoro aquela menina – disse Jo, erguendo os joelhos para os apertar
junto ao peito. – Mas não me surpreende que vocês se tenham dado bem.
Nem o facto de ela ter corrido para os seus braços quando se sentiu assustada.

– Porque é que diz isso?


– É uma criança muito sensível e inteligente. Ela sabe que a Katie tem bom
coração.
Katie esboçou uma expressão cética. – Talvez estivesse apenas com medo
por causa do que se estava a passar com o irmão. Quando o pai dela desatou a
correr, eu era a única pessoa que estava na loja.
– Não se menospreze. Como eu disse, ela é sensível e consegue perceber
essas coisas – retorquiu Jo. – E o que é que se passou com o Alex? Depois do
que aconteceu?
– Ele ainda estava um pouco abalado, mas, apesar do susto, parecia estar
bem.
– Desde então, já conversou com ele outra vez?
Katie voltou a encolher os ombros, como se nada daquilo fosse muito
importante. – Nem por isso. Ele é sempre simpático quando vou à loja e tem
sempre os produtos de que eu preciso, mas nada mais do que isso.
– Ele é muito bom no que faz – disse Jo, segura de si.
– Fala como se o conhecesse muito bem.
Jo balouçou-se na sua cadeira. – Acho que o conheço bem, sim.
Katie esperou que ela prosseguisse, mas Jo permaneceu em silêncio.
– Quer falar sobre o assunto? – perguntou Katie, inocentemente. – Afinal
de contas, conversar até pode ajudar, especialmente se for com uma amiga.
Os olhos de Jo brilharam. – Sabe, sempre suspeitei que a Katie fosse muito
mais astuta do que deixa transparecer. Está a atirar-me à cara as minhas
próprias palavras. Devia ter vergonha.
Katie sorriu, mas não disse nada, tal como Jo havia feito com ela. E,
surpreendentemente, a estratégia funcionou.
– Não sei bem o que possa dizer – acrescentou Jo. – Mas posso dizer-lhe
que ele é um bom homem. É o tipo de pessoa com quem pode contar para
fazer o que está certo. É possível ver isso no amor que ele sente pelos filhos.
Katie cerrou momentaneamente os lábios. – Já se passou alguma coisa
entre vocês?
Jo pareceu escolher meticulosamente as palavras. – Sim, mas não da
maneira que está a imaginar. E, para que as coisas fiquem bem claras, isso já
foi há bastante tempo e cada um prosseguiu com a sua vida.
Katie não conseguiu entender a resposta, mas não quis insistir no assunto. –
A propósito, qual é a história dele? Imagino que seja divorciado.
– É melhor ser a Katie a perguntar-lhe.
– Eu? E porque haveria de querer perguntar-lhe isso?
– Porque me perguntou a mim – explicou Jo, erguendo uma sobrancelha. –
O que significa, claramente, que está interessada nele.
– Não estou interessada nele.
– Então, porque é que quer saber coisas a respeito dele?
Katie franziu o sobrolho. – Para uma amiga, está a sair-me muito
manipuladora.
Jo encolheu os ombros. – Eu limito-me a dizer às pessoas aquilo que elas já
sabem, mas que têm medo de admitir a si próprias.
Katie matutou no assunto. – Para que as coisas fiquem bem claras, estou
oficialmente a retirar a minha oferta de a ajudar a pintar a sua casa.
– Mas já me disse que ia fazê-lo.
– Eu sei, mas ainda assim retiro a oferta.
Jo soltou uma gargalhada. – Tudo bem – disse. – Ei, o que é que vai fazer
hoje à noite?
– Daqui a pouco vou trabalhar. Na verdade, acho que já está na hora de
começar a preparar-me.
– E amanhã à noite? Também trabalha?
– Não. Estou de folga este fim de semana.
– Então, o que é que acha de eu trazer uma garrafa de vinho? Estou a
precisar de beber um bom vinho e não quero ter de inalar o cheiro da tinta
fresca mais tempo do que o necessário. O que lhe parece?
– Parece-me muito bem.
– Ótimo – disse Jo, levantando-se da cadeira de baloiço. – Então estamos
combinadas.
5

A manhã de sábado apresentou-se com um céu azul, mas as nuvens não


demoraram a formar-se. Cinzentas e pesadas, rodopiaram e giraram ao
sabor de um vento cada vez mais intenso. A temperatura começou a baixar e,
quando Katie saiu de casa, teve de vestir uma sweatshirt. A loja ficava a
cerca de três quilómetros de sua casa, um percurso de aproximadamente meia
hora em passo vigoroso, e ela sabia que teria de se despachar se não quisesse
ser apanhada pela chuva.
Katie chegou à estrada principal no momento em que ouviu o ribombar dos
trovões. Estugou o passo, sentindo o ar a ficar mais denso à sua volta. Um
camião passou a grande velocidade, levantando uma nuvem de pó atrás de si,
e depois Katie avançou pelo caminho arenoso. O ar cheirava a maresia. Lá no
alto, um falcão de cauda vermelha batia intermitentemente as asas, ao sabor
das correntes de ar ascendentes e testando a força do vento.
O ritmo constante dos seus passos permitiu a Katie deixar vaguear os seus
pensamentos, e ela deu por si a refletir sobre a conversa com Jo. Não as
histórias que ela tinha contado, mas algumas das coisas que dissera a respeito
de Alex. Concluiu que Jo não sabia do que estava a falar. Enquanto Katie
estava simplesmente a tentar conversar, Jo havia distorcido as suas palavras,
transformando-as em algo que não era realmente verdadeiro. Alex parecera-
lhe, sem dúvida, boa pessoa e, como disse Jo, Kristen era muito doce e
meiga; mas não estava interessada nele. Mal o conhecia. Desde que Josh
caíra ao rio, eles mal tinham conversado, e a última coisa que ela queria era
envolver-se num relacionamento, fosse de que tipo fosse.
Mas por que razão é que ela tinha a sensação de que Jo estava a tentar
juntá-los?
Não sabia ao certo, mas, para ser sincera, não era algo que lhe interessasse.
Estava feliz por receber Jo em sua casa naquela noite. Duas amigas a partilhar
uma garrafa de vinho... não era algo assim tão especial, sabia-o. Outras
pessoas, outras mulheres, faziam aquele tipo de coisa a toda a hora. Katie
franziu a testa. Tudo bem, talvez não fosse a toda a hora, mas a maioria
provavelmente saberia que o poderiam fazer se o desejassem, e supunha que
seria essa a diferença entre ela própria e as outras pessoas. Há quanto tempo é
que não fazia algo que parecesse normal?
Desde a infância, admitiu Katie a si mesma. Desde os tempos em que
punha moedas nos carris. Mas ela não revelara a Jo toda a verdade. Não
contara que ia até à linha do comboio para escapar às discussões dos pais, às
vozes arrastadas que se insultavam mutuamente. Não contou a Jo que, mais
do que uma vez, ficara no meio do fogo cruzado e que, aos doze anos, fora
atingida por um globo de vidro que o pai lançara contra a mãe. O objeto
provocou-lhe um corte na cabeça que sangrou durante várias horas, mas nem
a mãe nem o pai demonstraram qualquer interesse em levá-la ao hospital.
Não revelou a Jo que o seu pai era cruel quando estava bêbedo, ou que nunca
convidara qualquer pessoa, nem mesmo Emily, para visitar a sua casa. Ou
que não conseguira ir para a faculdade porque os pais achavam que era um
desperdício de tempo e dinheiro. Ou que eles a expulsaram de casa no dia em
que ela concluiu o ensino secundário.
Pensou que talvez pudesse contar aquilo a Jo. Ou talvez não contasse. Não
era assim tão importante. O que é que interessava que a sua infância não
tivesse sido feliz? Sim, os pais eram alcoólicos e passavam a vida
desempregados, mas, ignorando o incidente com o globo de vidro, nunca
chegaram a magoá-la. É verdade que nunca lhe ofereceram um carro nem
teve festas de aniversário, mas nunca foi para a cama sem jantar. E, quando o
outono chegava, independentemente da situação financeira da família, ela
tinha sempre roupas novas para ir para a escola. Talvez o seu pai não fosse o
melhor homem do mundo, mas não ia até ao quarto dela na calada da noite
para lhe fazer coisas horríveis – coisas que, sabia ela, haviam acontecido a
algumas amigas. Aos 18 anos, não se considerara uma pessoa traumatizada.
Talvez um pouco dececionada por não ter frequentado a universidade e
nervosa por ter de encontrar sozinha o seu rumo no mundo, mas não
irremediavelmente traumatizada. E fora bem-sucedida. As coisas não
correram assim tão mal em Atlantic City. Conhecera alguns bons rapazes e
ainda se lembrava de mais de uma noite que passara a rir e a conversar com
os amigos do trabalho.
Não, insistiu ela consigo mesma. A sua infância não tinha definido a sua
vida, nem tinha algo que ver com a razão pela qual se mudara para Southport
e, embora Jo fosse aquilo, na cidade, que mais se aproximava de uma amiga,
não sabia absolutamente nada sobre sua vida. Ninguém sabia.

– Olá, Miss Katie – disse Kristen, ainda sentada na sua mesinha de


desenho. Naquele dia não havia nenhuma boneca. Em vez disso, estava
curvada sobre um livro de colorir, com lápis de cera nas mãos, a pintar uma
imagem de unicórnios sob um arco-íris.
– Olá, Kristen. Como é que estás?
– Estou bem. – Kristen levantou os olhos do livro de pintar e olhou para
Katie. – Porque é que vens sempre a pé para cá?
Katie ponderou a pergunta por momentos e depois contornou o balcão,
agachando-se para ficar à mesma altura do que Kristen. – Porque não tenho
carro.
– Porquê?
Porque não tenho carta, pensou Katie. E mesmo que tivesse, não teria
dinheiro para comprar ou sustentar um carro. – Bem, vamos fazer assim.
Vou pensar em comprar um, OK?
– OK – disse ela. E estendeu o livro de pintar a Katie. – Gostas do meu
desenho?
– Está bonito. Estás a fazer um ótimo trabalho.
– Obrigada. Quando acabar esta folha é para ti.
– Não é preciso, obrigada.
– Eu sei – disse ela, com uma autoconfiança encantadora. – Mas eu quero
que fiques com ela. Podes pô-la na porta do frigorífico.
Katie sorriu e levantou-se. – Era exatamente nisso que estava a pensar.
– Precisas de ajuda com as compras?
– Acho que hoje consigo tratar disso sozinha. Assim, podes acabar as
pinturas.
– Está bem – concordou Kristen.
Ao pegar numa cesta para as compras, Katie reparou que Alex estava a
aproximar-se. Ele acenou-lhe e, embora não fizesse sentido, ela teve a
sensação de que aquela era a primeira vez que o via verdadeiramente.
Embora o seu cabelo fosse grisalho, tinha poucas rugas de expressão em volta
dos olhos, que, de algum modo, realçavam a aura de vitalidade que dele
emanava. Os ombros dele eram mais largos do que a cintura, e ela teve a
impressão de que Alex era um homem que não exagerava na comida nem na
bebida.
– Olá, Katie, como está?
– Estou bem. E o Alex?
– Tudo bem – disse ele, com um amplo sorriso. – Ainda bem que a vejo.
Queria mostrar-lhe uma coisa. – Alex apontou para o monitor e ela viu que
Josh estava sentado no cais atrás da loja, com a sua cana de pesca.
– Deixou-o voltar a pescar? – perguntou ela.
– Está a ver o colete que ele está a usar?
Ela aproximou-se do monitor, estreitando os olhos.
– Um colete salva-vidas?
– Custou a encontrar um que lhe servisse e que não fosse quente de mais,
mas este é perfeito. E, para dizer a verdade, não tive escolha. Não imagina
como ele estava triste por não poder pescar. Até perdi a conta às vezes que
ele me implorou para que o deixasse voltar para o ancoradouro. Já não
conseguia aguentar aquilo, então pensei que esta seria uma boa solução.
– Ele não se importa de usar o colete?
– É uma das novas regras da casa. Ou usa o colete ou nada de pescaria.
Mas não me parece que se importe.
– E ele pesca alguma coisa?
– Não tanto quanto gostaria, mas, às vezes, apanha uns peixes, sim.
– E vocês comem-nos?
– Às vezes. Mas o Josh por norma atira-os de novo para a água. Não se
importa de pescar o mesmo peixe várias vezes.
– Ainda bem que encontrou uma solução.
– Um pai mais previdente teria pensado nisso antes de acontecer um
acidente.
Pela primeira vez, ela olhou para ele. – Tenho a impressão de que o Alex é
um ótimo pai.
Os olhares deles encontraram-se e ambos se observaram por uns
momentos, antes de ela se obrigar a desviar o rosto. Alex, sentindo o
desconforto dela, começou a mexer nas coisas que estavam atrás do balcão.
– Tenho uma coisa para si – anunciou, tirando um saco de trás da caixa
registadora e colocando-o sobre o balcão. – Há uma pequena quinta que me
fornece alguns produtos e eles têm uma estufa. Conseguem cultivar algumas
coisas fora de época. Ontem, trouxeram alguns legumes frescos. Tomates,
pepinos e vários tipos de abóboras. Talvez queira experimentar. A minha
mulher jura que são os melhores que já provou.
– A sua mulher?
Ele abanou a cabeça. – Ah, desculpe. Às vezes, ainda faço isto. Estava a
referir-me à minha falecida esposa. Ela morreu há uns anos.
– Lamento – murmurou ela, enquanto a sua mente repassava a conversa
com Jo.
Qual é a história dele?
Seria melhor ser a Katie a perguntar-lhe. Aquela fora a resposta de Jo.
Era óbvio que Jo sabia que a esposa dele tinha morrido, mas não dissera
nada sobre o assunto. Estranho.
Alex não se apercebeu de que a mente de Katie se pusera a vaguear. –
Obrigado – disse ele, com a voz um pouco estrangulada. – Era uma ótima
pessoa. Tenho a certeza de que teria gostado dela – acrescentou. Uma
expressão nostálgica cruzou-lhe o rosto. – De qualquer forma, ela sempre
elogiou aquele lugar. Eles trabalham com produtos biológicos e a família
ainda colhe os legumes à mão. Por norma, os produtos deles desaparecem
mal chegam, mas reservei alguns para si, se quiser experimentá-los –
comentou, sorrindo. – Além disso, a Katie é vegetariana, não é? Os
vegetarianos adoram estes legumes. Garanto.
Katie olhou para ele, semicerrando os olhos. – O que o leva a pensar que
sou vegetariana?
– Não é?
– Não.
– Acho que me enganei, então – disse ele, enfiando as mãos nos bolsos.
– Tudo bem. Já me acusaram de coisas piores.
– Duvido muito.
Não duvide, pensou ela. – Bem, acho que vou levar os legumes. Obrigada.
6

E nquanto Katie fazias as suas compras, Alex tentou manter-se ocupado,


observando-a pelo canto do olho. Organizou os objetos que estavam em
cima do balcão, deu uma espreitadela ao monitor para ver como estava Josh,
examinou o desenho de Kristen e voltou a organizar as coisas no balcão,
tentando dar a ideia de que estava ocupado.
Ela mudara nas últimas semanas. A pele estava a ficar levemente
bronzeada e tinha um brilho rejuvenescido. Também parecia menos insegura
quando estava perto dele, e o que acabara de acontecer era um dos melhores
exemplos. Não, aquela conversa cintilante não despertara qualquer chama
entre os dois, mas era um começo, não era?
Mas o começo de quê?
Desde o início, Alex sentira que Katie tinha problemas, e a sua resposta
instintiva fora querer ajudar. E, é claro, ela era bonita, apesar do corte de
cabelo que não combinava com o seu rosto e das roupas que não valorizavam
o seu corpo. Mas fora a maneira como ela confortara Kristen no dia em que
Josh caiu à água que tocara verdadeiramente o seu coração. E, mais do que
isso, a reação de Kristen às atitudes de Katie. Ela procurou a proteção de
Katie como uma criança procura o colo da mãe.
Aquilo fez com que sentisse um nó na garganta, lembrando-o de que sentia
a falta de uma esposa com a mesma intensidade que os filhos sentiam a falta
de uma mãe. Alex sabia que eles estavam a sofrer, e tentava compensar da
melhor maneira que podia. Mesmo assim, só quando viu Katie e Kristen
juntas é que percebeu que a tristeza era apenas uma parcela daquilo que eles
sentiam. A solidão dos seus filhos era um reflexo da sua.
Ficou preocupado por não ter percebido aquilo antes.
Katie representava um certo mistério para ele. Havia um elemento que
faltava, algo que o incomodava. Estava observá-la, questionando-se sobre
quem ela realmente era e o que a trouxera até Southport.
Ela estava em frente a um dos frigoríficos, algo que nunca tinha feito antes,
a observar os produtos atrás da porta de vidro. Tinha uma expressão séria no
rosto, como se estivesse a tentar decidir o que comprar. Alex percebeu que os
dedos da mão direita dela estavam a movimentar-se em volta do anular da
mão esquerda, a brincar com um anel ausente. O gesto lembrou-lhe algo
familiar e que havia esquecido há bastante tempo.
Tratava-se de um hábito, um tique de que ele se apercebeu durante os anos
em que trabalhou no DIC e que às vezes observava em mulheres cujos rostos
estavam desfigurados ou tinham hematomas. Elas costumavam sentar-se de
frente para ele, a tocar compulsivamente nas alianças de casamento, como se
fossem algemas que as prendiam aos maridos. Geralmente, negavam
agressões por parte dos maridos e, nas raras ocasiões em que admitiam a
verdade, insistiam que não fora culpa deles. Diziam ter provocado a ira dos
maridos. Diziam que tinham queimado o jantar, que não tinham lavado a
roupa ou que eles tinham bebido. E, invariavelmente, essas mulheres juravam
que era a primeira vez que aquilo lhes acontecia e que não queriam apresentar
queixa porque nesse caso a carreira dos maridos seria arruinada. Todos
sabiam que o exército agia com rigor contra maridos agressivos.
Algumas, no entanto, eram diferentes, pelo menos de início. Insistiam em
apresentar queixa. Ele começava a elaborar o seu relatório e ouvia-as a
questionarem por que razão a burocracia e a papelada eram mais importantes
do que prender um homem que batia na mulher. Ou mais importantes do que
fazer cumprir a lei. Ele ainda assim redigia o relatório e lia-o para que elas
ouvissem as suas próprias palavras antes de lhes pedir que assinassem o
documento. Às vezes, era naquele momento que perdiam a coragem e Alex
vislumbrava a mulher aterrorizada por debaixo da superfície enraivecida.
Muitas acabavam por não assinar o relatório, e mesmo aquelas que o faziam
mudavam de opinião rapidamente quando os maridos eram intimados para
serem interrogados. Aqueles casos seguiam em frente, independentemente do
que a esposa dissesse. E depois, quando elas não compareciam para
testemunhar, poucas punições eram efetivamente aplicadas. Alex acabou por
compreender que apenas aquelas que insistiam em manter as queixas a nível
oficial conseguiam realmente livrar-se dos abusos, porque a vida que
levavam era como uma prisão, mesmo que a maioria daquelas mulheres não o
admitisse.
No entanto, havia outra maneira de escapar ao horror daquelas vidas,
embora, durante toda a sua carreira, Alex só tivesse conhecido um caso de
uma mulher que chegasse a esse ponto. Ele entrevistara a mulher uma vez e
ela seguiu a mesma rotina da maioria das outras, negando as agressões e
culpando-se a si mesma pelo sucedido. Entretanto, cerca de dois meses
depois, ele soube que ela fugira. Não regressara para a sua família nem fora
para casa de um amigo, escondera-se sim noutra parte do mundo, um lugar
onde nem mesmo o seu marido conseguiria encontrá-la. O marido,
enlouquecido de raiva depois da fuga da mulher, explodira após uma noite de
copos e agredira um dos guardas da base onde servia, deixando-o coberto de
sangue. Foi enviado para Leavenworth1, e Alex lembrava-se de ter sorrido
com satisfação quando soube do desfecho do caso. E, quando se lembrou da
esposa daquele homem, sorriu novamente, pensando: Bem feito.
Agora, ao observar Katie a brincar com uma aliança que já não estava no
seu dedo, sentiu os seus antigos instintos de detetive a entrarem de novo em
funcionamento. Houve em tempos um marido, pensou ele; o marido dela era
o elemento em falta. Talvez ainda fosse casada, ou talvez não. Mesmo assim,
Alex tinha um pressentimento inabalável de que Katie ainda o temia.

O céu explodiu quando ela estava a pegar num pacote de biscoitos.


Relâmpagos cortaram o céu e alguns segundos depois um trovão ressoou pelo
ar, antes de finalmente se reduzir a um ruído grave e constante. Josh veio a
correr para dentro da loja antes que a chuva começasse a cair, trazendo a sua
caixa de iscas e anzóis e a cana de pesca. Tinha a cara enrubescida e estava a
arfar como um corredor que cruzara a meta.
– Olá, pai.
Alex olhou para cima.
– Pescaste alguma coisa?
– Só aquele bagre. O mesmo que eu estou sempre a pescar.
– Encontramo-nos daqui a pouco para irmos almoçar, OK?
Josh regressou ao armazém e Alex ouviu-o a subir os degraus até à casa.
Do lado de fora, a chuva começou a cair com força e as rajadas de vento
faziam a água bater nas janelas. Os ramos das árvores dobravam-se por causa
do vento, que soprava cada vez mais forte. O céu escuro reluzia com os
relâmpagos e um trovão rugiu no ar, suficientemente forte para fazer as
janelas tremerem. Do outro lado da loja, Alex viu Katie gemer, com o rosto
contorcido numa expressão de espanto e medo. Ele imaginou se em tempos
seria assim que o marido a via.
A porta da loja abriu-se e entrou um homem a correr, encharcando as
tábuas do chão. Sacudiu as mangas e cumprimentou Alex com um aceno de
cabeça antes de se dirigir à churrasqueira.
Katie virou-se para a prateleira das bolachas. Alex não tinha uma variedade
muito grande em stock, apenas os pacotes tradicionais de Ritz e Saltines, os
únicos que os clientes compravam regularmente. Ela pegou num pacote de
Ritz. Depois de pegar nos produtos que geralmente costumava comprar,
levou-os para a caixa registadora. Quando Alex terminou de fazer as contas e
colocar as compras nos sacos de plástico, apontou para o saco que assentara
no balcão quando Katie chegara.
– Não se esqueça dos seus legumes.
Ela olhou para o total na caixa registadora. – Tem a certeza que me está a
cobrar o preço certo?
– É claro que tenho.
– O total não é superior ao que costumo pagar pelas minhas compras.
– Fiz um desconto, pela apresentação do produto.
Ela fez uma expressão séria, sem saber se acreditava no que ele dizia, até
finalmente levar a mão ao interior do saco. Pegou num tomate e cheirou-o.
– O cheiro é ótimo.
– Comi alguns desses ontem à noite. São ótimos com uma pitada de sal e os
pepinos não precisam de nenhum condimento.
Ela concordou com a cabeça, mas o seu olhar estava fixo na porta. O vento
atirava a água da chuva contra a porta em rajadas furiosas. A porta abriu-se
com um rangido e a água debateu-se para entrar na loja. O mundo para lá do
vidro não passava de uma mancha difusa.
As pessoas aguardavam junto à churrasqueira. Alex podia ouvi-las a
resmungar consigo mesmas, a dizer algo sobre esperar que a tempestade
passasse.
Katie inspirou fundo e pegou nos sacos.
– Miss Katie! – gritou Kristen, quase como se estivesse em pânico.
Levantou-se, agitando a folha de papel que tinha pintado, já destacada do
livro. – Ias esquecer-te do teu desenho.
Katie estendeu a mão para pegar no desenho, sorrindo enquanto observava
a imagem. Alex sentiu-se como se – pelo menos por um instante – o resto do
mundo não tivesse qualquer importância.
– Está lindo – murmurou ela. – Mal posso esperar para o pôr na porta do
frigorífico.
– Vou pintar outro para levares, da próxima vez que cá vieres.
– Adoraria – disse Katie.
Kristen sorriu antes de voltar a sentar-se na sua mesa. Katie enrolou o
desenho, certificando-se de que não o amassaria, e colocou-o cuidadosamente
no saco. Raios e trovões voltaram a rugir, quase simultaneamente desta vez.
A chuva martelava o chão e o estacionamento parecia um mar de poças. O
céu estava mais escuro do que o céu antes da madrugada.
– Sabe quando é que passa o temporal? – perguntou ela.
– Ouvi no noticiário que iria durar o dia todo – respondeu Alex.
Ela voltou a olhar pelo vidro da porta. Enquanto decidia o que fazer, tocou
novamente o anel que já não estava no dedo. No meio daquele silêncio,
Kristen puxou a camisa do pai.
– Podias levar a Miss Kristen a casa – disse ela. – Ela não tem carro e está a
chover muito.
Alex olhou para Katie, sabendo que ela ouvira o que Kristen dissera. –
Quer boleia para casa?
Katie abanou a cabeça, indicando que não. – Não precisa de se incomodar,
está tudo bem.
– Mas e o teu desenho? Vai ficar todo molhado – alegou Kristen.
Constatando que Katie não respondeu ao argumento da menina, Alex saiu de
trás da caixa registadora.
– Vamos lá – disse ele, fazendo um movimento com a cabeça na direção da
porta. – Não há motivos para ficar encharcada. O meu carro está nas traseiras.

– Não quero incomodar...


– Não é incómodo nenhum – disse Alex, apalpando o bolso para pegar nas
chaves do carro antes de agarrar nos sacos de Katie. – Deixe que eu levo –
disse, pegando-lhes. – Kristen, meu amor, sobes e dizes ao Josh que volto
dentro de dez minutos?
– Claro, pai.
– Roger? Dá uma olhadela nas crianças e na loja por um momento, por
favor.
– Claro, sem problemas – disse ele, com um aceno.
Alex apontou para as traseiras da loja. – Vamos?
Saíram a correr na direção do jipe, empunhando guarda-chuvas que se
curvavam com a força da ventania e do aguaceiro que teimava em cair. Os
relâmpagos continuavam a riscar o céu, iluminando as nuvens. Quando se
acomodaram nos assentos, Katie passou a mão pelo vidro para o
desembaciar.
– Quando saí de casa, não achei que o tempo fosse ficar assim.
– Ninguém acha, até chegar a tempestade. Muitas vezes, na previsão do
tempo, dizem que «o céu vai desabar», mas quando cai uma chuva realmente
forte, as pessoas estão desprevenidas. Se não for tão mau quanto a televisão
previu, reclamamos. Se for pior do que esperávamos, reclamamos. Se for tão
mau quanto esperávamos, aproveitamos para reclamar também, porque as
previsões geralmente não acertam e não podíamos adivinhar desta vez que
estariam corretas. É apenas mais uma razão para as pessoas reclamarem.
– Como aquelas pessoas ao pé da churrasqueira?
Ele assentiu, exibindo um sorriso. – Mas é boa gente. Na sua maioria, são
pessoas trabalhadoras, honestas e simpáticas. Se eu pedisse, qualquer um dos
que ali estavam poderia tomar conta da loja e tenho a certeza de que não
faltaria nem um cêntimo no fecho da caixa. Nesta cidade, é assim que
funciona. No fundo, as pessoas sabem que, numa cidade pequena como esta,
todos precisamos uns dos outros. É ótimo saber disso. E olhe que demorei
algum tempo a habituar-me à ideia.
– Não é daqui?
– Não. A minha mulher é que era. Eu nasci em Spokane. Quando me mudei
para cá, lembro-me de pensar que nunca conseguiria morar num lugar como
este. Afinal, não passa de uma cidade pequena no Sul dos Estados Unidos,
um lugar que não quer saber o que pensa o resto do mundo. Demora o seu
tempo a uma pessoa habituar-se. Mesmo assim, ao fim de um certo tempo,
começa-se a sentir um certo carinho pelo lugar. Esta cidade ajuda-me a
manter-me focado naquilo que é importante.
– E o que é que é importante? – questionou Katie, num tom suave.
Ele encolheu os ombros. – Isso depende de cada um, não é? Mas, nesta fase
da minha vida, o que importa são os meus filhos. Esta cidade é o lar deles, e
depois do que passaram, só precisam de estabilidade. A Kristen precisa de
um lugar para pintar os seus desenhos e vestir as suas bonecas. O Josh precisa
de um lugar para pescar, e os dois precisam de saber que estou por perto
sempre que for necessário. Esta cidade e a loja tornam tudo isso possível. E,
neste momento, é exatamente o que eu quero. É o que eu preciso. – Ele ficou
em silêncio, sentindo-se culpado por ter falado tanto. – Ah, não perguntei...
Qual é o caminho?
– Siga em frente e entre numa rua de gravilha. Fica logo a seguir à curva.
– A rua de gravilha junto à quinta?
Katie assentiu com a cabeça. – Essa mesma.
– Nem sabia que aquela rua levava a algum lado – disse ele, franzindo a
testa. – É uma boa caminhada. Imagino que sejam quase três quilómetros.
– Não é assim tão mau – retorquiu ela.
– Talvez, quando o tempo está bom. Mas, num dia como hoje, teria de vir a
nado para casa. Com esta chuva, não dá para vir a pé. E ia estragar o desenho
da Kristen.
Ele reparou num sorriso fugaz quando mencionou o nome de Kristen, mas
Katie não disse nada.
– Alguém comentou que a Katie trabalha no Ivan’s – disse Alex.
Katie assentiu. – Sim, desde março.
– E então, que tal?
– Não é mau. É apenas um emprego, mas o dono do restaurante trata-me
bem.
– O Ivan?
– Conhece-o?
– Quem é que não conhece o Ivan? Sabia que, todos os anos, quando chega
o outono, ele se veste como um general do exército confederado para celebrar
a famosa Batalha de Southport? Quando o general Sherman queimou a
cidade? É ótimo ver a encenação dele... Só que nunca houve uma Batalha de
Southport durante a Guerra Civil. Southport nem tinha esse nome naquela
época, chamava-se Smithville. E Sherman nunca esteve a menos de 150
quilómetros daqui.
– A sério? – perguntou Katie.
– Não me interprete mal. Eu gosto do Ivan, ele é uma ótima pessoa, além
de o restaurante ser um dos lugares mais tradicionais da cidade. A Kristen e o
Josh adoram os bolinhos fritos de lá e o Ivan recebe-nos sempre muito bem.
Mas acho que já percebi o que o motiva. A família dele veio da Rússia, na
década de 1950. Ele foi a primeira pessoa da família a nascer em solo
americano. Provavelmente, nenhum dos parentes dele alguma vez ouviu falar
da Guerra Civil. Mas o Ivan passa um fim de semana inteiro a apontar a
espada e a gritar ordens aos soldados, bem no meio da rua, em frente ao
tribunal.
– Como é que nunca ouvi falar disso?
– Porque não é um assunto que agrade às pessoas da cidade. É meio...
excêntrico, percebe? Até mesmo as pessoas daqui, aquelas que realmente
gostam dele, tentam ignorá-lo. Veem o Ivan a brandir a espada no meio da
cidade e dão meia-volta, dizendo coisas como, Já viu como estão bonitos os
crisântemos ao lado do tribunal?
Katie sorriu pela primeira vez desde que entrou no carro. – Não sei se
acredito em si.
– Não faz mal. Se ainda cá estiver em outubro, vai ver com os seus próprios
olhos. Mas eu insisto, não me interprete mal. Ele é bom homem e o
restaurante é ótimo. Quando passamos o dia na praia, a seguir vamos quase
sempre até lá para comer alguma coisa. Da próxima vez que lá formos,
perguntamos por si.
Ela hesitou. – Está bem.
– Ela gosta de si – disse Alex. – A Kristen.
– Eu também gosto dela. É muito alegre e muito senhora do seu nariz.
– Vou-lhe dizer. Obrigado.
– Quantos anos é que ela tem?
– Cinco. Quando o outono chegar, e ela começar a ir para a escola, não sei
o que vou fazer. A loja vai ficar muito silenciosa.
– Vai sentir falta dela – observou Katie.
Alex assentiu. – Vou sim, e muito. Eu sei que ela vai gostar de ir à escola,
mas gosto de tê-la por perto.
Enquanto ele falou, a chuva continuou a fustigar as janelas do carro. O céu
iluminava-se por entre os relâmpagos e clarões, como uma luz
estroboscópica, acompanhados por um ribombar constante.
Katie olhou pela janela do lado do passageiro, perdida nos seus
pensamentos. Alex aguardou, consciente, de algum modo, que ela quebraria o
silêncio.
– Durante quanto tempo esteve casado? – perguntou ela, por fim.
– Cinco anos. E, antes disso, tínhamos namorado um ano. Conheci-a
quando estava na base de Fort Briggs.
– Esteve no exército?
– Sim, durante 10 anos. Foi uma boa experiência e não me arrependo de me
ter alistado. Assim como não me arrependo de me ter desligado da vida
militar.
Katie apontou para lá do para-brisas. – É ali que se vira para a minha rua –
indicou.
Alex entrou na viela e abrandou. O piso de gravilha da rua estava alagado
devido à chuvada e a água saltava à altura do para-brisas. Enquanto se
concentrava em conduzir o carro por entre as inúmeras poças que se haviam
formado, Alex percebeu, repentinamente, que aquela era a primeira vez que
estava sozinho num carro com uma mulher ao seu lado desde que a esposa
morrera.
– Em qual delas é que mora? – perguntou ele, estreitando os olhos para ver
o contorno das duas cabanas.
– Na da direita – disse Katie.
Ele estacionou o mais perto que conseguiu da entrada. – Eu levo-lhe as
compras à porta.
– Não precisa de se incomodar.
– Ah, a Katie não sabe como os meus pais me criaram – disse ele, saindo
do carro antes que ela pudesse reclamar. Pegou nos sacos e correu para o
alpendre. Quando os pousou no chão e começou a sacudir os braços para se
secar, Katie já estava a correr na sua direção, segurando com firmeza o
guarda-chuva que ele lhe emprestara.
– Obrigada – disse ela em voz alta, tentando suplantar o barulho da chuva.
Quando lhe devolveu o guarda-chuva, ele abanou a cabeça. – Fique com
ele por algum tempo. Ou para sempre. Não tem importância. A Katie anda
bastante a pé, por isso vai precisar dele.
– Eu posso pagar... – ia ela a dizer.
– Não se preocupe.
– Mas é um artigo da loja.
– Como eu disse, não se preocupe com isso. Mas, se não achar correto,
acertamos contas da próxima vez que for à loja.
– Alex, estou a falar a sério e...
Ele interrompeu-a. – A Katie é uma boa cliente e eu gosto de ajudar os
meus clientes.
Ela demorou algum tempo a responder. – Obrigada – disse, finalmente. Os
seus olhos, agora de um tom verde-escuro, estavam fixos nos dele. – E
obrigada por me trazer a casa.
Ele sorriu. – Sempre que precisar.

O que fazer com as crianças? Era a pergunta recorrente e de resposta


impossível que ele precisava de enfrentar todos os fins de semana; como de
costume, não tinha a menor ideia de como ocupar os filhos naquele fim de
semana.
Com a tempestade a abater-se furiosamente, sem qualquer sinal de que
fosse diminuir de intensidade, qualquer atividade ao ar livre estava fora de
questão. Poderia levá-los ao cinema, mas não havia nenhum filme em cartaz
que pudesse interessar a ambos. Poderia simplesmente deixá-los a divertirem-
se sozinhos por algum tempo. Sabia que muitos pais o faziam. No entanto, os
seus filhos ainda eram pequenos, novos de mais para serem deixados
totalmente a sós. Além disso, já passavam muito tempo sozinhos, a
improvisar formas de se entreterem, porque Alex ficava várias horas por dia
ocupado com a loja. Ele estava a ponderar todas as opções enquanto
preparava tostas com queijo, mas percebeu de imediato que a sua mente
insistia em pensar em Katie. Embora ela estivesse obviamente a esforçar-se
por passar despercebida, ele sabia que isso seria quase impossível numa
cidade como Southport. Ela era bonita de mais para ser confundida com as
pessoas da terra, e quando percebessem que ela não tinha carro e que ia
sempre a pé para todo lado, seria inevitável que começassem a comentar o
assunto. E não tardariam a surgir as perguntas sobre o seu passado.
Alex não queria que isso acontecesse. Não por alguma motivação egoísta,
mas porque ela tinha o direito de viver a vida do modo que quisesse,
especialmente por ter sido essa a razão que a levara a Southport. Uma vida
normal, de prazeres simples. O tipo de vida que a maior parte das pessoas
nem percebia que existia: poder ir a qualquer lugar que quisesse, a qualquer
hora e morar numa casa onde se sentisse segura. Mas ela também precisava
de um meio de transporte.
– Ei, crianças – disse ele, colocando as tostas em dois pratos. – Tive uma
ideia. Vamos fazer uma coisa pela Miss Katie.
– Vamos! – concordou Kristen.
Josh, sempre descontraído, concordou com um movimento de cabeça.
1 Base do exército norte-americano no estado do Kansas, onde há uma prisão de máxima segurança e
um centro disciplinar. (N. da T.)
7

O vento e a chuva rasgavam o céu escuro da Carolina do Norte, lançando


verdadeiros rios contra as janelas da cozinha. Um pouco mais cedo,
durante a tarde, enquanto Katie lavava a roupa no lava-louça, e já depois de
ter colado o desenho de Kristen no frigorífico com fita-cola, tinha começado
a pingar água do teto da sala de estar. Ela tinha colocado um tacho sob a
goteira e já o esvaziara por duas vezes. Na manhã seguinte, iria ligar a
Benson, mas duvidava que ele fosse reparar imediatamente o buraco, se é que
algum dia iria tratar do problema.
Na cozinha, cortou um pedaço de queijo cheddar em cubinhos,
mordiscando alguns deles enquanto trabalhava. Num prato de plástico
amarelo havia algumas bolachas e fatias de tomate e pepino, embora não os
tivesse conseguido ordenar do modo que planeara. Nada que ela fizesse
ficava como imaginara. Na casa em que morava antes de se mudar para
Southport, tinha uma bela tábua de frios e uma faca de prata para queijos com
um pássaro cardeal entalhado, além de um conjunto completo de copos de
vinho. Tinha também uma mesa de jantar em cerejeira e cortinas de renda nas
janelas; porém, aqui, nesta casa, a mesa era bamba e as cadeiras eram
diferentes umas das outras. Além disso, ela e Jo teriam de beber o vinho em
canecas. Por mais horrível que a sua outra vida fosse, ela gostava de
organizar tudo aquilo que compunha o seu lar. No entanto, tal como tudo o
que deixara para trás, encarava agora esses objetos como um grupo de
inimigos que havia passado para o outro lado da barricada.
Pela janela, viu uma das luzes da casa de Jo a apagar-se. Katie foi até à
porta da frente. Ao abrir, viu Jo a andar por entre as poças a caminho do
alpendre, com um guarda-chuva numa mão e uma garrafa de vinho na outra.
Com mais duas passadas, chegou ao alpendre e a sua capa amarela para
chuva estava toda encharcada.
– Agora sei o que sentiu Noé. Dá para acreditar numa tempestade como
esta? A minha cozinha está cheia de poças de água.
Katie apontou para a casa, por cima do ombro. – A minha goteira está na
sala.
– Lar, doce lar, não é mesmo? Aqui está – disse Jo, entregando a garrafa de
vinho. – Conforme prometido. Acredite em mim, estou mesmo a precisar.
– Teve um dia difícil?
– Nem imagina quanto.
– Entre.
– Deixe-me pendurar a minha capa aqui fora, ou então vai ter duas poças na
sua sala de estar – disse ela, desenvencilhando-se do impermeável amarelo. –
Mesmo morando aqui ao lado, fiquei toda ensopada.
Jo largou a capa e o guarda-chuva sobre a cadeira de baloiço e entrou na
casa logo atrás de Katie. As duas foram juntas até à cozinha.
Katie pousou a garrafa de vinho na bancada. Enquanto Jo observava o que
havia na mesa, Katie abriu a gaveta ao lado do frigorífico e tirou um canivete
suíço enferrujado, levantando o saca-rolhas.
– Estes aperitivos parecem estar deliciosos. Estou esfomeada, não comi
nada o dia inteiro.
– Sirva-se, fique à vontade. Conseguiu terminar a pintura?
– Bem, consegui terminar a sala. Mas não fiz muito mais do que isso e o
dia não foi dos melhores.
– O que é que se passou?
– Eu depois conto. Primeiro, preciso de vinho. E a Katie? Fez alguma coisa
interessante?
– Nada de mais. Fui até a loja de conveniência, limpei a casa, lavei roupa.
Jo instalou-se à mesa e pegou numa das bolachas.
– Por outras palavras, material para o seu livro de memórias.
Katie riu-se enquanto rodava o saca-rolhas. – Ah, sim, claro. Experiências
incríveis.
– Quer ajuda com a rolha? – perguntou Jo.
– Acho que consegui.
– Ótimo – disse Jo, com um sorriso afetado. – É que eu sou a visita e
espero ser bem tratada.
Katie encaixou a garrafa entre as pernas e a rolha saiu com um estampido.
– Mas agora, falando a sério, obrigada por me receber – suspirou Jo. – Não
imagina quanto eu ansiava por este momento.
– A sério?
– Não faça isso.
– Não faço o quê? – perguntou Katie.
– Não se finja surpreendida por eu ter vindo até aqui. Ou por querer
reforçar a nossa amizade com uma garrafa de vinho. Amigos são para essas
coisas – disse ela, levantando uma sobrancelha. – Ah, e já que tocamos no
assunto, antes que comece a questionar-se se somos mesmo amigas e o que
sabemos realmente uma da outra, confie em mim quando eu digo que a
considero uma amiga. De maneira sincera e absoluta. – Deixou que aquelas
palavras causassem o seu efeito antes de prosseguir. – Bem, que tal um pouco
de vinho agora?

Ao início da noite, a tempestade finalmente perdeu algum do seu vigor, e


Katie abriu a janela da cozinha. A temperatura baixara drasticamente e o ar
estava frio e límpido. Enquanto se formava uma ligeira névoa que cobria o
chão, as nuvens carregadas passavam em frente à lua, trazendo porções
equivalentes de luz e sombra. As folhas tingiam-se de prateado, depois de
negro e novamente de prateado ao reluzirem na brisa noturna.
Katie distraiu-se e deixou-se levar pelo vinho, pela brisa e pelo riso fácil de
Jo. Deu por si a saborear cada dentada que dava nas bolachas amanteigadas e
no queijo de gosto forte e pungente, lembrando-se de uma época em que
passara fome. Houve um tempo em que fora magra como um ramo de roseira.

As suas recordações estavam a vir à tona. Lembrou-se dos pais. Não dos
tempos difíceis, mas das épocas boas, quando a mãe fazia ovos com bacon e
o aroma invadia a casa, e ela via o pai a andar de mansinho pela cozinha e a
aproximar-se da mulher. Ele afastava-lhe os cabelos e beijava-lhe o pescoço,
fazendo-a rir. Katie recordou que, certa vez, o pai levara-as a Gettysburg. Ele
pegara-lhe na mão enquanto caminhavam e ainda conseguia lembrar-se da
rara sensação de força e gentileza do toque dele. O seu pai era alto e tinha
ombros largos, com cabelo castanho-escuro. E tinha também uma tatuagem
da marinha no braço. Tinha servido num navio de guerra durante quatro anos,
viajando para lugares como o Japão, a Coreia e Singapura, embora não
falasse muito sobre esses tempos.
Já a mãe era pequena, loura e uma vez tinha participado num concurso de
beleza, tendo terminado em terceiro lugar. Adorava flores e estava sempre a
plantar bolbos em vasos que colocava na parte da frente da casa na
primavera. Tulipas, narcisos, begónias e violetas, todas aquelas flores
explodiam em cores tão vivas que quase faziam os olhos de Katie doer.
Quando eles se mudavam, os vasos eram colocados no banco de trás do carro
e presos com os cintos de segurança. Frequentemente, quando limpava a
casa, a mãe cantarolava, entoando melodias da sua infância. Algumas eram
canções polacas e Katie escondia-se noutra divisão para as escutar, tentando
compreender as palavras.
O vinho que Jo e Katie estavam a beber tinha toques de carvalho e damasco
e era delicioso. Katie terminou a sua caneca e Jo serviu-lhe outra. Quando
uma traça começou a dançar à volta da lâmpada, batendo as asas de maneira
vigorosa e confusa, as duas começaram a rir. Katie cortou mais cubinhos de
queijo e colocou mais bolachas no prato. Conversaram sobre filmes e livros,
e Jo soltou um gritinho de prazer quando Katie revelou que o seu filme
favorito era Do Céu Caiu Uma Estrela, pois era também o seu preferido.
Quando era pequena, Katie lembrava-se de pedir à mãe para comprar uma
sineta, de modo a poder ajudar os anjos a obterem as suas asas. Katie
terminou a segunda caneca de vinho, sentindo-se leve como uma pena numa
brisa de verão.
Jo fez poucas perguntas. Em vez disso, as duas mantiveram a conversa à
volta de assuntos superficiais, e Katie voltou a sentir-se feliz, ali na
companhia de Jo. Quando o luar prateado iluminou o mundo para lá da
janela, as duas foram até ao alpendre. Katie percebeu que estava a cambalear
um pouco e segurou-se ao corrimão. Elas degustaram o vinho enquanto as
nuvens continuaram a abrir e, de repente, o céu estava pontilhado de estrelas.
Katie apontou para a constelação da Ursa Maior e para a Estrela Polar, as
únicas cujo nome sabia, mas Jo começou a identificar dezenas de outras.
Katie olhou fixamente para o céu, maravilhada, encantada com o
conhecimento que a amiga tinha sobre as constelações, até que percebeu
quais eram os nomes que Jo estava a enumerar. – Aquela ali é conhecida por
Bugs Bunny e, do outro lado, logo acima daquele pinheiro, dá para ver a
constelação de Daffy Duck. – Quando Katie finalmente se deu conta de que
Jo sabia tanto de constelações quanto ela própria, Jo desatou a rir como uma
criança endiabrada.
De volta à cozinha, Katie serviu-se do que restava do vinho e bebeu outro
trago. Sentiu o líquido quente a descer-lhe pela garganta, o que a fez sentir-se
um pouco zonza. A traça continuava a esvoaçar ao redor da lâmpada, embora,
quando ela tentava focar o olhar, parecesse haver duas. Katie sentia-se feliz e
segura e pensou novamente no quanto aquela noite estava a ser agradável.
Tinha uma amiga, uma amiga a sério, alguém que se ria e fazia piadas com as
estrelas, e não sabia se havia de rir ou chorar por causa daquilo. Já há muito
tempo que não vivia nada tão tranquilo e natural.
– Está tudo bem? – perguntou Jo.
– Estou ótima – respondeu Katie. – Estava só a pensar... Fiquei muito feliz
por teres vindo.
Jo fitou-a com mais atenção. – Acho que exageraste no vinho.
– E eu acho que tens razão – concordou Katie.
– Então está bem. O que é que queres fazer? Já que obviamente estás um
pouco bêbeda e pronta para te divertires.
– Não sei do que estás falar.
– Queres fazer alguma coisa em especial? Ir até a cidade, procurar um lugar
porreiro para nos divertirmos?
Katie abanou a cabeça. – Não.
– Não queres conhecer outras pessoas?
– Estou melhor sozinha.
Jo deslizou a ponta do dedo pela beira da caneca antes de dizer algo. –
Bem, podes confiar no que te digo: ninguém está melhor sozinho.
– Eu estou.
Jo pensou na resposta de Katie antes de se inclinar em direção a ela. – Quer
dizer então que, se partirmos do princípio de que tens comida, casa, roupas e
tudo o mais que precisas para sobreviver, preferirias ficar isolada numa ilha
deserta, no meio do nada, totalmente sozinha, para sempre, para o resto da
vida? Sê franca.
Katie pestanejou, tentando focar os olhos em Jo. – Por que razão é que não
seria franca?
– Porque toda a gente mente. É necessário, para se viver em sociedade. Não
me leves mal, eu acredito mesmo que é necessário. A última coisa que uma
pessoa pode querer é viver numa sociedade onde prevalece a honestidade
total. Consegues imaginar uma conversa desse tipo? «És gorda e baixa», diria
uma pessoa, e a outra poderia responder: «Eu sei. E tu cheiras mal.» As
coisas não iriam funcionar. As pessoas mentem por omissão, e isso está
sempre a acontecer. As pessoas contam sempre a maior parte da história... e
aprendi que a parte que deixam por contar é sempre a mais importante. As
pessoas escondem a verdade porque têm medo.
Com as palavras de Jo, Katie sentiu algo a tocar o seu coração. De repente,
até mesmo respirar se tornou difícil. – Estás a falar de mim? – perguntou,
com a voz embargada.
– Não sei. Estou?
Katie sentiu-se empalidecer, mas, antes que pudesse responder, Jo exibiu
um sorriso. – Na verdade, estava a falar sobre o dia que tive hoje. Eu disse
que foi um dia complicado, não disse? Bem, o que acabei de te dizer é parte
do problema. É frustrante quando as pessoas se recusam a contar a verdade.
Afinal, como é que eu posso ajudá-las se insistem em esconder certas coisas?
Se eu não consigo entender realmente o que se passa?
Katie sentiu algo a contorcer-se e a apertar-se no seu peito. – Talvez elas
queiram falar do assunto, mas sabem que não há nada que possas fazer para
as ajudar – sussurrou.
– Há sempre alguma coisa que eu possa fazer.
Sob a luz do luar que entrava pela janela da cozinha, a pele de Jo pareceu
reluzir num tom branco, e Katie teve a sensação de que ela não era o tipo de
pessoa que costumava expor-se ao sol. O vinho fez a cozinha girar e as
paredes moverem-se. Katie sentiu as lágrimas a começarem a formar-se nos
seus olhos e tudo o que pôde fazer foi pestanejar para as conter. Sentiu a boca
ficar seca.
– Nem sempre – murmurou Katie. Virou a cara para a janela. Do lado de
fora, a lua pairava por cima das árvores. Katie engoliu em seco, sentindo-se
como se estivesse a observar-se a si própria, do outro lado da cozinha.
Conseguia ver-se sentada à mesa com Jo, e, quando começou a falar, a voz
que ouviu não parecia realmente a sua. – Eu tinha uma amiga. O casamento
dela era horrível, e ela não conseguia falar com ninguém. Ele costumava
bater-lhe, e ela disse-lhe que se aquilo voltasse a acontecer, iria embora. Ele
jurou que nunca mais o faria e ela acreditou. Mas as coisas pioraram muito
depois disso. Por exemplo, quando o jantar dele estava frio ou quando ela
revelava ter conversado com um dos vizinhos que estava a passear o cão. Ela
só tinha conversado com o rapaz, mas, naquela noite, o marido atirou-a
contra um espelho.
Katie olhou para o chão. O linóleo estava a descolar-se do chão nos cantos
da cozinha, mas ela não sabia como o arranjar. Já tentara colá-lo, mas não
tivera sucesso. Os cantos tinham voltado a enrolar-se.
– Ele pedia sempre desculpa e às vezes chegava até a chorar por causa das
pisaduras que causara nos braços, nas pernas ou nas costas dela. Dizia que
odiava ter feito aquilo, mas, logo a seguir, dizia-lhe que ela merecera tudo o
que acontecera. Que, se fosse mais cuidadosa, nada daquilo teria acontecido.
Que, se prestasse atenção ao que fazia, ou se não fosse tão imbecil, ele não
teria perdido a paciência. Ela tentou mudar. Esforçou-se para tentar ser uma
esposa melhor e fazer as coisas como ele queria. Mas nada era suficiente,
nunca.
Katie sentiu a pressão das lágrimas por detrás dos olhos e, embora tentasse
novamente contê-las, sentiu-as a escorrer pela face. Jo estava imóvel do outro
lado da mesa, observando-a.
– E como ela o amava! No começo, ele era muito carinhoso com ela. Fazia
com que ela se sentisse segura. Na noite em que se conheceram, ela estava a
trabalhar. Quando terminou o seu turno, dois homens seguiram-na. Quando
dobrou a esquina, um deles agarrou-a e cobriu-lhe a boca com a mão. Por
mais que ela tentasse libertar-se, os homens eram muito mais fortes e ela não
sabia o que iria acontecer-lhe, mas o seu futuro marido vinha logo atrás e
bateu na nuca de um dos agressores, e ele caiu ao chão. A seguir, agarrou o
outro e atirou-o contra a parede. Estava tudo terminado. Ele ajudou-a a
levantar-se e levou-a a casa. No dia seguinte, levou-a a tomar café. Era
amável e tratava-a como a uma princesa, e assim foi até à lua de mel.
Katie tinha noção que não deveria contar nada daquilo a Jo, mas não
conseguiu evitar. – A minha amiga tentou fugir duas vezes. Uma vez, acabou
por voltar para casa, porque não tinha nenhum outro lugar para onde pudesse
ir. E, na segunda vez que fugiu, realmente pensou que estivesse livre. Mas o
marido procurou-a por toda parte e arrastou-a de volta para casa. Lá,
espancou-a e encostou-lhe uma pistola à cabeça, dizendo que, se fugisse outra
vez, a mataria. E mataria qualquer homem de quem ela gostasse. E ela
acreditou nele, porque, naquela altura, já sabia que se tratava de um louco.
Mas estava presa. Ele nunca lhe dava dinheiro, nunca permitia que saísse de
casa. Ele passava de carro em frente à casa deles durante o horário de
trabalho apenas para se certificar de que ela estava lá. Verificava os registos
dos telefonemas e ligava-lhe a toda a hora. E não permitia que tirasse a carta
de condução. Certa vez, quando acordou a meio da noite, a minha amiga
percebeu que ele estava em pé ao lado da cama, a olhar fixamente para ela.
Estava a beber e com a pistola de novo na mão. Ela estava amedrontada de
mais para dizer algo mais que não fosse pedir-lhe que voltasse para a cama.
Mas foi naquele momento que percebeu que, se ficasse ali, o marido iria
certamente matá-la.
Katie limpou os olhos e os dedos ficaram húmidos com as lágrimas. Mal
conseguia respirar, mas as palavras continuavam a transbordar. – A minha
amiga começou a roubar dinheiro da carteira dele. Nunca mais do que um
dólar ou dois, porque, de outra forma, ele acabaria por perceber. Ele
costumava deixar a carteira numa gaveta trancada à chave durante a noite,
mas às vezes esquecia-se. Levou muito tempo até que ela conseguisse juntar
todo o dinheiro de que precisava para fugir. Porque era aquilo que precisava
de fazer. Fugir. Tinha de ir para um lugar onde ele nunca a encontrasse,
porque sabia que o marido nunca desistiria de a procurar. E ela não podia
contar nada a ninguém, porque não tinha mais família e a polícia não faria
nada. Se ele suspeitasse de qualquer coisa, certamente que a mataria. Assim,
ela roubou e guardou o pouco dinheiro que podia e encontrou moedas entre
as almofadas do sofá e na máquina de lavar roupa. Escondeu o dinheiro num
saco de plástico por baixo de um vaso de flores, mas, sempre que ele ia lá
fora, tinha a certeza de que ele acabaria por encontrar o dinheiro. Demorou
muito tempo a juntar a quantia de que precisava, porque queria ir para um
lugar bem longe, um lugar onde ele nunca conseguiria encontrá-la. Para
poder recomeçar a sua vida.
Katie nem se apercebeu de quando aquilo sucedera, mas Jo estava a pegar-
lhe na mão. E ela já não tinha a sensação de estar a observar-se do outro lado
da cozinha. Era capaz de sentir o sal das lágrimas nos lábios e imaginou que
sua alma estivesse a escorrer para fora do seu corpo. Queria dormir,
desesperadamente.
No silêncio, Jo manteve o seu olhar fixo no dela. – A tua amiga tem muita
coragem – disse ela, em voz baixa.
– Não. A minha amiga passa o tempo todo cheia de medo.
– Ter coragem é exatamente isso. Se não fosse assim, não precisaria de
coragem para suplantar o medo que sente. Eu admiro o que ela fez – disse Jo,
apertando-lhe levemente a mão. – E acho que iria gostar muito dessa tua
amiga. Fico feliz por me teres falado dela.
Katie desviou o olhar, sentindo-se completamente esgotada. – Acho que
não te devia ter contado isto.
Jo encolheu os ombros. – Não me preocuparia assim tanto. Uma coisa que
hás de aprender a meu respeito é que sou muito boa no que toca a guardar
segredos. Especialmente segredos de pessoas que não conheço, está bem?
Katie assentiu com a cabeça. – Está bem.

Jo ficou com Katie durante mais uma hora, mas conduziu a conversa para
assuntos menos dolorosos. Katie falou sobre seu trabalho no Ivan’s e sobre
alguns clientes que estava a começar a conhecer. Jo questionou-a sobre a
melhor maneira de tirar a camada de tinta que ficava debaixo das unhas
depois de pintar as paredes. Sem mais vinho para beber, a tontura que Katie
sentira começou a desaparecer, deixando apenas o cansaço. Jo também
começou a bocejar e finalmente levantaram-se da mesa. Jo ajudou Katie a
arrumar e limpar a cozinha, embora não houvesse muito a fazer além de lavar
dois pratos. Katie acompanhou-a até à porta. Jo deteve-se quando saiu para o
alpendre. – Acho que tivemos visitas – disse.
– Do que é que estás a falar?
– Está uma bicicleta encostada à tua árvore.
Katie seguiu-a até ao exterior. Apesar do brilho amarelado da luz do
alpendre, o ambiente estava escuro e os contornos dos pinheiros ao longe
lembraram a Katie o contorno irregular de um buraco negro. Pirilampos
imitavam as estrelas, a piscar e a brilhar, e Katie semicerrou os olhos para ver
melhor, percebendo que Jo tinha razão.
– De quem será essa bicicleta? – perguntou Katie.
– Não sei.
– Ouviste alguém a chegar?
– Não. Mas acho que alguém a deixou aqui para ti. Estás a ver? Aquilo à
volta do guiador não é um laço?
Katie inclinou-se para a frente, distinguindo o laçarote. Uma bicicleta de
senhora. Tinha uma cestinha de metal de cada lado da roda de trás e outra
instalada em frente ao guiador. Havia também uma corrente enrolada em
redor do selim, com a chave no cadeado.
– Quem me daria uma bicicleta?
– Porque é que estás sempre a fazer-me essas perguntas? Não faço a
mínima ideia do que está a acontecer.
Katie e Jo desceram as escadas para a rua. Embora a maior parte das poças
já tivesse secado, esvaindo-se pelo solo arenoso, a relva permanecia bastante
húmida por causa da chuva, e encharcou as biqueiras dos sapatos de Katie
quando ela atravessou o jardim. Tocou na bicicleta e depois no laço,
deslizando os dedos pela sua superfície como faria um vendedor de tapetes.
Debaixo do laço, estava um cartão e Katie pegou nele.
– Foi o Alex – disse ela, num tom de espanto.
– O Alex, da loja? Ou outro Alex?
– O da loja.
– O que diz o cartão?
Katie abanou a cabeça, tentando compreender as palavras antes de o passar
a Jo para que esta o lesse. Calculei que gostasse dela.
Jo bateu com os dedos no cartão. – Acho que isso significa que ele está tão
interessado em ti como tu estás interessada nele.
– Não estou interessada nele!
– É claro que não – disse Jo, piscando o olho. – Porque é que haverias de
estar?
8

A lex estava a varrer o chão junto aos frigoríficos quando Katie entrou na
loja. Ele calculou ela aparecesse bem cedo para falarem da bicicleta.
Depois de encostar o cabo da vassoura ao vidro, enfiou a camisa por dentro
das calças e passou a mão pelo cabelo. Kristen passara a manhã inteira à
espera que Katie chegasse e levantou-se da mesa antes mesmo que a porta se
fechasse.
– Olá, Miss Katie – disse Kristen. – Viste a bicicleta?
– Vi sim, obrigada. É por causa dela que estou aqui.
– Esforçamo-nos bastante a trabalhar nela.
– Foi um excelente trabalho. O teu pai está por aqui?
– Sim, está mesmo ali – disse Kristen, apontando. – Ele já aí vem.
Alex fixou o olhar em Katie quando ela se voltou.
– Olá, Katie – cumprimentou-a.
Quando se aproximou, ela cruzou os braços. – Podemos conversar lá fora
por um minuto?
Ele detetou a frieza na voz dela e percebeu que estava a esforçar-se imenso
por não demonstrar a sua raiva à frente de Kristen.
– É claro – disse, abrindo a porta. Seguiu-a até ao exterior e deu por si a
admirar os contornos do corpo de Katie enquanto ela se dirigiu até ao lugar
onde tinha encostado a bicicleta.
Detendo-se ao lado da bicicleta, ela virou-se para o encarar. Na cesta da
frente estava o guarda-chuva que ele lhe emprestara na véspera. Ela
tamborilou no selim, com uma expressão séria no rosto. – Posso perguntar o
que significa isto?
– Gostou dela?
– Porque é que me comprou uma bicicleta?
– Eu não a comprei para si – disse ele.
Katie pestanejou, com uma expressão confusa. – Mas o seu bilhete...
Alex encolheu os ombros. – Esteve no arrumo durante os últimos dois
anos, a acumular pó. Acredite em mim. A última coisa que eu faria seria
comprar-lhe uma bicicleta.
Os olhos dela passaram a demonstrar indignação. – Não é disso que eu
estou a falar! Está sempre a dar-me coisas e isso tem de parar. Eu não quero
nada seu. Não preciso de um guarda-chuva, nem de legumes, nem de vinho.
E não preciso de uma bicicleta.
– Então dê a bicicleta a alguém – disse ele, encolhendo de novo os ombros
–, porque eu também não a quero.
Katie ficou em silêncio e Alex viu a confusão dar lugar à frustração e,
finalmente, à frivolidade. Por fim, ela abanou a cabeça e virou-se para se ir
embora. Antes que pudesse dar um passo, ele aclarou a garganta. – Antes de
ir embora, poderia ter a gentileza de ouvir o que tenho a dizer?
Katie virou a cabeça e olhou para Alex por cima do ombro. – Não quero
saber.
– Talvez não queira, mas é importante para mim.
Ela manteve os olhos fixos nos dele, vacilando, até finalmente cederem.
Quando suspirou, ele apontou para um banco de madeira em frente à loja.
Alex colocara ali o banco na brincadeira, enfiado entre a máquina de gelo e
algumas botijas de gás, sabendo que ninguém gostaria de se sentar lá. Quem é
que quereria sentar-se virado para o estacionamento e para a estrada logo a
seguir? Mesmo assim, para sua surpresa, havia várias pessoas a sentarem-se
naquele banco, quase todos os dias. A única razão pela qual o banco ainda
estava vazio naquele momento era por ser muito cedo.
Katie hesitou um pouco antes de se sentar e Alex entrelaçou os dedos sobre
o colo.
– Não estava a mentir quanto ao facto de a bicicleta estar a acumular pó nos
últimos dois anos. Ela pertencia à minha esposa – explicou Alex. – Ela
adorava a bicicleta e usava-a muitas vezes. Uma vez, chegou a ir de
Southport a Wilmington, mas, é claro, quando lá chegou, estava exausta e eu
tive de ir buscá-la de carro. E não havia ninguém para tomar conta da loja.
Tive de fechar literalmente as portas durante duas horas. – Fez uma pausa
para inspirar. – Foi a última vez que andou nela. Naquela noite, teve a
primeira convulsão e eu tive de a levar a correr ao hospital. Depois disso,
ficou cada vez pior e nunca mais andou de bicicleta. Deixei a bicicleta no
arrumo, mas sempre que a vejo, não consigo evitar pensar naquela noite
horrível – disse, alisando a camisa. – Eu sei que já devia ter-me livrado dela,
mas não queria dá-la a alguém que a iria usar apenas uma ou duas vezes e
que depois a encostaria a um canto. Queria que ela ficasse com alguém que
gostasse dela tanto quanto a minha mulher gostava. Alguém que realmente a
usasse. Essa seria a vontade da minha esposa. Se a tivesse conhecido, iria
entender. Far-me-ia um grande favor.
Quando Katie falou, a sua voz estava embargada. – Não posso ficar com a
bicicleta da sua esposa.
– Quer dizer que ainda pretende devolvê-la?
Quando ela assentiu com a cabeça, ele inclinou-se para frente e apoiou os
cotovelos nos joelhos. – A Katie e eu somos muito mais parecidos do que
imagina. Se eu estivesse na sua situação, faria exatamente a mesma coisa.
Não quer sentir que deve algo a alguém. Quer provar que pode cuidar de si
mesma sem depender de mais ninguém, não é?
Ela abriu a boca para responder, mas não disse nada. No meio do silêncio
que se gerou, ele prosseguiu.
– Eu era exatamente assim quando a minha mulher morreu. E fui assim
durante muito tempo. As pessoas vinham até à loja e muitas delas diziam que
eu poderia telefonar se precisasse de alguma coisa. A maioria sabia que não
tenho família por perto e todas tinham ótimas intenções, mas nunca telefonei
a ninguém. Simplesmente porque aquilo não tinha nada que ver com minha
maneira de ser. Mesmo se quisesse alguma coisa, não saberia como pedir. E,
mesmo assim, na maior parte das vezes, nem sabia exatamente o que queria.
Tudo o que sabia era que tinha chegado ao fim da linha e, para continuar com
a metáfora, por muito tempo mal consegui agarrar-me a ela. Veja a minha
situação. Assim de repente, tive de tomar conta de duas crianças pequenas e
também da loja. Os meus filhos eram bastante mais novos e precisavam de
mais atenção naquela altura do que precisam agora. Até que um dia, apareceu
a Joyce. – Fitou-a. – Já a conheceu? Uma senhora idosa que trabalha algumas
tardes por semana, incluindo aos domingos, e que conversa com toda a
gente? O Josh e a Kristen adoram-na.
– Acho que não.
– Não tem importância. Seja como for, ela apareceu uma tarde, por volta
das cinco horas, e disse-me que tomava conta das crianças, para eu poder ir
passar uma semana à praia. Ela já tinha encontrado um lugar para eu ficar e
disse que não aceitaria um «não» como resposta porque, na opinião dela, eu
estava inevitavelmente destinado a ter um colapso nervoso.
Alex colocou os dedos na ponte do nariz, tentando reprimir as memórias
daqueles dias. – No início, aquilo irritou-me. Afinal, são meus filhos, certo?
E que tipo de pai seria eu para levar as pessoas a pensarem que não daria
conta do recado? Mas a Joyce fez algo diferente. Não me disse para telefonar
se precisasse de alguma coisa. Ela sabia o que eu estava a passar e fez o que
entendeu ser correto. No dia seguinte, eu estava a caminho da praia. E a
Joyce tinha razão. Nos primeiros dois dias, ainda estava em frangalhos. Mas,
passados alguns dias, saí para dar umas longas caminhadas, li alguns livros,
dormi até tarde. E, quando voltei, percebi que me sentia mais relaxado, de
uma maneira como já há muito não me sentia...
Alex deixou as palavras pairarem no ar, sentindo o peso do escrutínio de
Katie.
– Não sei porque é que me está a contar isso.
Ele virou-se para ela. – Nós os dois sabemos que, se eu lhe tivesse
perguntado se queria a bicicleta, a Katie teria dito «não». Assim, tal como a
Joyce fez comigo, fui em frente e fiz o que fiz, porque era a coisa certa a
fazer. Porque eu aprendi que não há problema em aceitar um pouco de ajuda
de vez em quando – concluiu Alex, olhando para a bicicleta. – Fique com ela.
Não tenho outro uso para lhe dar e a Katie tem de admitir que a bicicleta
facilitaria muito as suas deslocações para o trabalho.
Demorou alguns segundos até Alex perceber que os ombros dela estavam
descontraídos. Ela virou-se para ele com um sorriso forçado. – Ensaiou esse
discurso todo, não foi?
– É claro que ensaiei – disse ele, tentando mostrar um ar envergonhado. –
Mas vai ficar com ela?
Katie hesitou. – Bem, acho que uma bicicleta pode ser efetivamente uma
ajuda – admitiu, finalmente. – Obrigada.
Durante um longo momento, nenhum dos dois falou. Enquanto lhe
observava o perfil, Alex reparou mais uma vez em como ela era bonita,
embora percebesse que Katie provavelmente não achava que isso fosse
verdade. E esse facto servia apenas para a tornar ainda mais atraente.
– De nada – disse ele.
– Mas chega de presentes, OK? Já fez mais do que o suficiente por mim.
– De acordo – disse ele, voltando a olhar para a bicicleta. – Está em boas
condições? Foi fácil andar nela? Pergunto isso por causa das cestinhas.
– Não tive problemas. Porquê?
– Porque a Kristen e o Josh ajudaram-me a instalá-las ontem. Um daqueles
projetos ótimos para um dia de chuva. Foi a Kristen que as escolheu. Ah, e,
para que saiba, ela também achou que seria boa ideia colocar punhos
brilhantes no guiador, mas aí eu disse-lhe que isso já seria de mais.
– Não me importaria de ter punhos brilhantes.
Alex riu-se. – Vou dizer disso à Kristen.
Katie hesitou. – Está a fazer um ótimo trabalho, sabia? Em relação aos seus
filhos.
– Obrigado.
– Estou a ser sincera. Sei que não está a ser fácil.
– A vida é mesmo assim. Na maior parte das vezes, nada é fácil. Temos
simplesmente de tentar fazer o melhor que pudermos. Compreende o que
quero dizer?
– Sim, acho sim – respondeu ela.
A porta da loja abriu-se e, quando Alex se inclinou para frente, viu Josh a
esquadrinhar o estacionamento e Kristen logo atrás dele. Com os seus cabelos
e olhos castanhos, Josh era muito parecido com a mãe. O rapaz tinha o cabelo
desgrenhado e Alex percebeu que devia ter acabado de se levantar da cama.
– Estamos aqui, meninos.
Josh coçou a cabeça enquanto caminhou na direção deles. Kristen exibiu
um sorriso, acenando a Katie.
– Pai? – perguntou Josh.
– Sim, o que foi?
– Queríamos saber se hoje vamos mesmo à praia. Prometeste que nos
levavas.
– Bem, é esse o plano para hoje.
– E vamos levar o grelhador?
– É claro que vamos.
– Então tudo bem – disse ele, esfregando o nariz. – Olá, Miss Katie.
Katie acenou a Josh e a Kristen.
– Gostaste da bicicleta? – perguntou Kristen.
– Gostei, sim. Obrigada.
– Tive de ajudar o meu pai a arranjá-la – informou Josh. – Ele não é muito
bom com ferramentas.
Katie fitou Alex com um sorriso afetado. – Ele não me disse nada disso.
– Não faz mal. Eu sabia o que tinha a fazer. Mas ele teve de me ajudar com
a nova câmara de ar.
Kristen fixou os olhos em Katie. – Vens connosco para a praia?
Katie endireitou-se no banco de madeira. – Acho que não.
– Porquê? – perguntou Kristen.
– Provavelmente porque vai trabalhar – explicou Alex.
– Na verdade, não – disse ela. – Mas preciso de tratar de umas coisas em
casa.
– Então podias vir connosco – pediu Kristen. – Vai ser muito divertido!
– Este é um momento para ti e para tua família – insistiu ela. – Não quero
atrapalhar.
– Mas não vais atrapalhar. E vai ser muito divertido. Podes ver-me a nadar.
Anda lá, por favor! – implorou Kristen.
Alex permaneceu em silêncio, para não a pressionar mais. Presumiu que
Katie recusaria, mas, para sua surpresa, ela acabou por concordar com um
leve meneio da cabeça. E respondeu com uma voz suave.
– Está bem – disse ela, por fim.
9

D epois de regressar da loja, Katie pousou a bicicleta nas traseiras da casa


e entrou para trocar de roupa. Não tinha fato de banho, mas, mesmo que
tivesse, não usaria um. Por mais que fosse natural uma rapariga apresentar-se
em frente a estranhos com peças parecidas com roupa interior, não se sentiria
confortável vestindo algo desse tipo perante Alex num passeio com os filhos
dele. Aliás, na verdade, nem que as crianças não estivessem presentes.
Embora tentasse resistir àquele pensamento, Katie tinha de admitir que ele
lhe despertava a curiosidade. Não por causa das coisas que tinha feito por ela,
por muito que a tocassem. Tinha mais que ver com a maneira triste com que
às vezes ele sorria, a expressão no rosto dele ao falar sobre a falecida esposa,
ou a maneira como tratava os filhos. Notava-se em Alex uma solidão que ele
não conseguia disfarçar, e ela sabia que, de certa forma, era muito parecida
com a solidão que também sentia.
Tinha a noção de que Alex estava interessado nela. E Katie era
suficientemente experiente para reconhecer situações em que os homens a
achavam atraente; o empregado da mercearia a falar de mais, um estranho a
olhar para ela ou um empregado num restaurante que se dirigia mais vezes do
que o necessário até à mesa onde ela estivesse. Com o tempo, aprendeu a
fingir que não se apercebia do interesse desses homens; antigamente, ela
mostrava um óbvio desdém, porque sabia o que aconteceria se não o fizesse.
Assim que chegassem a casa. Assim que estivessem sozinhos.
Mas essa era uma vida passada, recordou Katie. Abriu as gavetas e retirou
um conjunto de calções e sandálias que tinha comprado na Anna Jean’s. Na
noite anterior tinha estado a beber vinho com uma amiga e agora iria para a
praia com Alex e a família. Eram coisas comuns de uma vida comum. O
conceito pareceu-lhe estranho, como se estivesse a aprender os hábitos e
costumes de uma terra estranha, o que fez com que se sentisse, ao mesmo
tempo, invulgarmente encantada e desconfiada.
Assim que acabou de se vestir, Katie viu o jipe de Alex a percorrer a rua de
gravilha e respirou fundo quando ele estacionou à frente de sua casa. Agora
ou nunca, pensou ela ao sair para o alpendre.
– Tens de pôr o cinto de segurança, Miss Katie – disse Kristen atrás dela. –
O meu pai não liga o carro enquanto não o prenderes.
Alex olhou para ela, como se quisesse dizer: Está pronta? Katie brindou-o
com o seu melhor sorriso.
– Bem, vamos lá – disse ela.

Chegaram em menos de uma hora à cidade costeira de Long Beach, com as


suas casas de madeira e vistas maravilhosas para o mar. Alex estacionou o
carro num pequeno parque de estacionamento junto às dunas; alguns tufos de
erva alta agitavam-se com a permanente brisa marítima. Katie saiu do carro e
olhou para o mar, respirando fundo.
As crianças saíram do carro e percorreram a correr o caminho que
serpenteava por entre as dunas.
– Vou ver como está a água, pai! – gritou Josh, com os óculos e o tubo de
mergulhador nas mãos.
– Eu também! – acrescentou Kristen, seguindo o irmão.
Alex estava atarefado a descarregar coisas na traseira do jipe. – Esperem aí
– gritou ele. – Vamos com calma, está bem?
Josh suspirou e a sua impaciência era bem visível enquanto apoiava o peso
do corpo ora num pé, ora no outro. Alex começou a retirar a mala térmica da
viatura.
– Precisa de ajuda? – perguntou Katie.
Alex abanou a cabeça. – Eu desenrasco-me com estas coisas. Mas, se não
se importar de aplicar o protetor solar nos miúdos e ficar de olho neles por
uns minutos, já seria uma boa ajuda. Eu sei que este lugar os deixa demasiado
animados para ficarem quietos.
– Está bem – disse ela, virando-se para Kristen e Josh. – Vocês estão
prontos?
Alex passou os minutos seguintes a tirar as coisas do jipe e a armar uma
pequena tenda perto da mesa de piquenique mais próxima da duna, onde a
maré alta não os alcançaria. Embora houvesse outras famílias, a praia estava
praticamente deserta e poderiam ficar tranquilos naquela zona. Katie tinha
tirado as sandálias e estava à beira da água enquanto as crianças brincavam
na rebentação. Tinha os braços cruzados e, mesmo àquela distância, ele
apercebeu-se de uma rara expressão de felicidade no seu rosto.
Alex colocou duas toalhas sobre os ombros e foi ter com Katie. – É difícil
acreditar que ainda ontem tivemos uma tempestade tão forte.
Ela virou-se ao ouvir o som da voz dele. – Já me tinha esquecido do quanto
sentia a falta do mar.
– Já há muito tempo que não vinha à praia?
– Há demasiado tempo – esclareceu ela, enquanto escutava o ritmo suave
das ondas a desfazerem-se na praia.
Josh corria na direção das ondas e depois regressava à praia, enquanto
Kristen estava agachada na areia, à procura de conchas.
– Imagino que às vezes deva ser muito difícil ter de tratar e de educar os
seus filhos sozinho – observou Katie.
Alex hesitou, ponderando na pergunta. Quando falou, sua voz demonstrou
um tom gentil. – Na maior parte das vezes não é assim tão mau. O nosso
quotidiano acaba por entrar no seu próprio ritmo, percebe? É quando fazemos
coisas como estas, quando saímos do ritmo normal, que as coisas se tornam
algo frustrantes. – Deu um leve pontapé na areia, enterrando o pé até meio. –
Quando a minha mulher e eu falávamos de ter um terceiro filho, ela tentava
alertar-me que essa terceira criança iria alterar por completo a nossa rotina.
Se fosse um jogo de basquetebol, seria como passar de uma marcação homem
a homem para uma marcação à zona. Ela costumava dizer que não tinha a
certeza se eu conseguiria aguentar. Mesmo assim, aqui estou eu, a fazer
marcação à zona, todos os dias... – deixou a frase no ar, abanando a cabeça. –
Desculpe. Não deveria ter dito isto.
– Não deveria ter dito o quê?
– Parece que sempre que converso consigo acabo a falar sobre a minha
mulher.
Pela primeira vez, ela virou-se de frente para ele. – E por que razão não
haveria falar sobre a sua mulher?
Ele empurrou um monte de areia para frente e para trás com o pé, alisando
o buraco que tinha feito. – Porque não quero que pense que não sei falar
sobre outra coisa. Ou que tudo o que faço é viver no passado.
– Amava-a muito, não é?
– Sim – respondeu ele.
– E ela era uma parte muito importante da sua vida, além de ser a mãe dos
seus dois filhos, certo?
– Certo.
– Então não há problema nenhum em falar dela – disse Katie. – Ela faz
parte daquilo que o Alex é.
Alex sorriu-lhe, agradecido, mas não lhe ocorreu mais nada para dizer.
Katie pareceu ler-lhe a mente e perguntou num tom amável:
– Como é que se conheceram?
– Conhecemo-nos num bar, por estranho que possa parecer. Ela tinha saído
com umas amigas para celebrar o aniversário de alguém. O lugar estava
quente e cheio de gente, havia pouca luz, a música estava alta e ela... Bem,
ela simplesmente destacou-se do resto. Todas as amigas dela estavam um
pouco descontroladas e era óbvio que estavam a divertir-se bastante, mas ela
parecia estar calma.
– Aposto que também era muito bonita.
– Nem é preciso dizer quanto – comentou ele. – Assim, engolindo o meu
nervosismo, fui ter com ela e recorri a todo os encantos possíveis e
imaginários.
Quando terminou a frase, apercebeu-se do sorriso presente nos cantos dos
lábios dela.
– E então? – perguntou Katie.
– Mesmo assim, levei três horas até conseguir que ela me dissesse o nome e
me desse o número de telefone.
Katie riu-se. – Ah, deixe-me adivinhar. Ligou-lhe no dia seguinte, não é? E
convidou-a para sair?
– Como é que sabe?
– Parece ser o tipo de homem que faria exatamente isso.
– Fala como se já tivesse passado por isso muitas vezes.
Ela encolheu os ombros, permitindo que o gesto fosse interpretado da
maneira que ele quisesse. – E o que é que aconteceu depois?
– Porque é que está tão interessada em saber?
– Não sei – reconheceu Katie. – Mas efetivamente estou.
Alex observou-a atentamente por uns momentos. – Tudo bem. Como já
sabe, convidei-a para almoçar e depois passámos o resto da tarde a conversar.
No final da semana seguinte, eu disse-lhe que um dia iríamos casar.
– Está a brincar.
– Sei que parece uma loucura. Pode acreditar em mim, ela também achou
que eu estava louco. Mesmo assim... Eu simplesmente sabia que aquilo iria
acontecer. Ela era inteligente e gentil. Nós tínhamos muitas coisas em comum
e queríamos as mesmas coisas da vida. Ela ria-se muito e também me fazia
rir. Sinceramente, entre mim e ela, acho que a sorte grande me saiu a mim.
As ondas continuaram a rebentar na praia, chegando a cobrir os tornozelos
de Alex e Katie.
– Provavelmente, ela achou o mesmo.
– Isso só aconteceu porque consegui enganá-la – disse Alex, irónico.
– Duvido que tenha sido assim.
– Isso é porque também estou a conseguir enganá-la a si.
Katie riu-se. – Não me parece que seja verdade.
– Está a dizer isso só porque somos amigos.
– Acha que somos amigos?
– Sim – disse ele, com os olhos fixos nos dela. – A Katie não acha?
Pela expressão no rosto dela, Alex percebeu que a ideia a apanhara de
surpresa. Mas, antes que ela pudesse responder, Kristen veio a correr até
junto deles, salpicando água com os seus passos e trazendo um punhado de
conchas nas mãos.
– Miss Katie! – gritou ela. – Achei umas conchinhas muito bonitas!
Katie curvou-se um pouco. – Podes mostrar-me?
Kristen estendeu as mãos, soltando as conchas na mão de Katie antes de se
virar na direção de Alex. – Pai, podemos começar a fazer o churrasco? Estou
a morrer de fome!
– É claro, querida – disse ele, dando alguns passos em direção à praia,
observando enquanto o filho mergulhava por entre as ondas. Quando Josh
regressou à superfície, Alex colocou as mãos em redor da boca. – Ei, Josh? –
gritou. – Vou começar acender o carvão. Porque é que não vens até aqui?
– Agora? – gritou Josh em resposta.
– É só por um bocado.
Mesmo àquela distância, ele viu os ombros de Josh baixarem devido ao
desânimo. Katie também deve ter percebido, pois falou de imediato.
– Eu posso ficar aqui, se quiser – disse ela.
– De certeza?
– Fico aqui a ver as conchas que a Kristen me está a mostrar.
Alex assentiu com a cabeça e voltou a sua atenção para Josh. – Miss Katie
fica a tomar conta de vocês. Por isso, não te afastes!
– Está bem! – prometeu ele, a sorrir.
10

P ouco tempo depois, Katie trouxe Kristen a tremer de frio e Josh bastante
animado de regresso à toalha que Alex tinha estendido na areia. A grelha
estava montada e os pedaços de carvão já estavam em brasa.
Alex abriu a última das cadeiras de praia sobre a toalha e observou
enquanto eles se aproximavam.
– Como é que estava a água, meninos?
– Ótima! – respondeu Josh. O seu cabelo, parcialmente seco, espetara-se e
apontava em todas as direções. – Quando é que o almoço está pronto?
Alex espreitou para as brasas. – Daqui a uns vinte minutos.
– Será que eu e a Kristen podemos voltar para a água?
– Vocês acabaram de sair da água. Porque é que não descansam por uns
minutos?
– Não é para nadar, é para fazer castelos de areia – explicou ele.
Alex percebeu que Kristen estava a bater os dentes.
– Têm a certeza de que querem fazer isso? Vocês estão roxos de frio.
Kristen assentiu veementemente com a cabeça. – Eu estou bem – disse ela,
ainda a tremer. – E a praia foi feita para construirmos castelos de areia.
– Tudo bem, tudo bem. Mas vistam as T-shirts, então. E fiquem onde eu
possa ver-vos – disse ele, apontando com o dedo.
– Eu sei, pai – disse Josh, com um suspiro. – Já não sou uma criança.
Alex abriu um saco de viagem e ajudou Josh e Kristen a vestirem as T-
shirts. Quando terminou, Josh pegou noutra saca cheia de brinquedos de
plástico e saiu disparado, parando a poucos passos da água. Kristen seguiu-o.

– Quer que vá até lá para ficar com eles?


Alex abanou a cabeça. – Não, eles ficam bem. Já estão habituados a esta
parte, quando eu trato do almoço. Sabem que devem ficar longe da água.
Dirigindo-se à mala térmica, agachou-se e abriu a tampa. – Também está a
ficar com fome? – perguntou ele.
– Um pouco – disse Katie, antes de perceber que não tinha comido nada
desde o queijo e o vinho partilhados com Jo na noite anterior. Apercebeu-se
de imediato do seu estômago a roncar e cruzou os braços em frente à barriga.

– Ótimo, porque estou faminto. – Enquanto Alex procurava bebidas na


mala térmica, Katie reparou nos músculos definidos dos antebraços dele. –
Estava a pensar em assar salsichas para o Josh, um cheeseburguer para a
Kristen e costeletas para si e para mim. – Alex retirou a carnes do meio do
gelo e depois inclinou-se por cima do grelhador, para soprar as brasas.
– Posso ajudar em alguma coisa?
– Importa-se de colocar a toalha na mesa? Está dentro da caixa.
– Claro que não – disse Katie. Tirou um dos sacos de gelo da mala térmica
e ficou a olhar, boquiaberta. – O Alex trouxe comida suficiente para meia
dúzia de famílias – comentou.
– Pois é. Com as crianças, penso sempre que é melhor trazer coisas a mais
em vez de deixar que falte algo, pois nunca sei exatamente o que é que eles
vão querer comer. Não imagina quantas vezes viemos até aqui e percebi que
me esquecera de alguma coisa. E quando isso acontecia, tinha de os pôr outra
vez no jipe e ir a correr para a loja. Então quis evitar que isso acontecesse
hoje.
Katie abriu a toalha de plástico e, seguindo as instruções de Alex, prendeu
os cantos com os pisa-papéis que ele se lembrara de levar.
– Pronto. E agora? Quer que eu ponha os pratos e os talheres na mesa?
– Ainda faltam uns minutos. Quanto a si não sei, mas eu estou pronto para
uma cerveja – disse ele. Enfiando a mão na mala térmica, tirou uma garrafa.
– Acho que vou preferir um refrigerante.
– Coca-Cola light? – perguntou ele, com a mão de novo na caixa.
– Perfeito.
Quando Alex entregou a lata a Katie, a sua mão roçou ao de leve na dela,
embora ela não estivesse certa de ele ter percebido.
Alex apontou para as cadeiras. – Quer sentar-se?
Ela hesitou um pouco antes de se sentar ao lado dele. Quando Alex abriu as
cadeiras sobre a areia, deixou uma boa distância entre as mesmas, de modo a
que eles não se tocassem acidentalmente. Alex arrancou a cápsula da sua
cerveja e bebeu uma golada. – Não há nada melhor do que uma cerveja
gelada num dia quente na praia.
Ela sorriu, um pouco desconcertada por estar sozinha com ele. – Vou
acreditar nas suas palavras.
– Não gosta de cerveja?
A mente de Katie viajou no tempo, lembrando-se do seu pai e das latas
vazias de Pabst Blue Ribbon que por norma atafulhavam o chão, empilhadas
descuidadamente ao lado do cadeirão onde costumava sentar-se. – Nem por
isso – admitiu ela.
– Só aprecia vinho, então?
Katie demorou um momento até se lembrar que Alex lhe oferecera uma
garrafa. – Na verdade, ontem à noite bebi um pouco de vinho, com minha
vizinha.
– A sério? Que bom.
Ela tentou encontrar um assunto mais seguro. – O Alex disse-me que era de
Spokane?
Ele esticou as pernas, descontraindo-se e colocando um tornozelo sobre o
outro. – Nascido e criado lá. Morei sempre na mesma casa, até ao dia em que
fui para a faculdade – revelou, olhando-a de lado. – Andei na Universidade
de Washington. Força, Huskies.
Ela sorriu.
– Os seus pais ainda lá moram?
– Sim.
– Então deve ser difícil para eles virem visitar os netos.
– Calculo que sim.
Algo no tom de voz dele chamou a atenção de Katie.
– Calcula?
– Eles não são o tipo de avós que fazem visitas, mesmo que morassem mais
perto. Só viram as crianças uma ou duas vezes. A primeira foi quando a
Kristen nasceu e a segunda foi no funeral – disse ele, abanando a cabeça. –
Não me peça para explicar – continuou. – Os meus pais não têm qualquer
interesse pelas crianças e o máximo que fazem é mandar postais nos
aniversários ou presentes no Natal. Eles preferem viajar ou fazer qualquer
outra coisa.
– A sério?
– O que é que eu posso fazer? Além disso, não posso dizer que comigo
fossem muito diferentes, mesmo sendo eu filho único. A primeira vez que os
meus pais foram visitar-me quando eu estava na faculdade foi no dia da
formatura. Embora eu nadasse suficientemente bem para obter uma bolsa de
estudos integral, eles só por duas vezes me viram competir. Mesmo que eu
fosse vizinho deles, duvido que quisessem ver as crianças. Essa é uma das
razões que me levou a instalar-me aqui. Afinal, seria indiferente estar perto
ou longe deles, não é?
– E os outros avós?
Alex arranhou o rótulo da garrafa de cerveja. – Com eles, a situação é um
pouco mais complicada. Têm mais duas filhas que se mudaram para a Flórida
e, depois de me venderem a loja, também se mudaram para lá. Vêm visitar-
nos por alguns dias, geralmente uma ou duas vezes por ano, mas, mesmo
assim, é difícil de mais para eles. Além do mais, recusam-se a ficar lá em
casa, porque acho que faz com que se lembrem da Carly. Provavelmente,
serão recordações em excesso.
– Resumindo e concluindo, o Alex acabou por ficar sozinho.
– Pelo contrário – disse ele, olhando para as crianças. – Eu tenho-os a eles,
lembra-se?
– Mesmo assim, deve ser difícil. Gerir a loja, criar e cuidar dos seus filhos.

– Não é assim tão mau. Desde que me levante às seis da manhã e não me
deite antes da meia-noite, é fácil dar conta do recado.
Ela riu-se, descontraída. – Acha que as brasas já estão no ponto?
– Vou verificar – disse ele. Depois de pousar a garrafa na areia, levantou-se
da cadeira e foi ao grelhador. Os pedaços de carvão estavam brancos e o calor
erguia-se em ondas tremeluzentes. – A Katie tem um sentido de oportunidade
impecável – disse ele. Alex colocou as costeletas e os hambúrgueres na
grelha enquanto Katie foi à mala térmica para trazer uma quantidade
interminável de objetos para a mesa: taças de plástico com salada de batata e
cenoura, picles, salada de feijão-verde, fruta fatiada, dois pacotes de batatas
fritas, queijo fatiado, além de molhos e temperos diversos. Ela abanou a
cabeça à medida que organizava tudo, pensando se Alex se esquecera de que
os seus filhos ainda eram pequenos. Havia mais comida ali do que no armário
da cabana onde ela morava, em Southport.
Alex tratou das costeletas e dos hambúrgueres na grelha, acrescentando por
fim as salsichas do cachorro-quente. Ao cozinhar, deu por si a olhar para as
pernas de Katie enquanto ela andava em redor da mesa, mais uma vez
apercebendo-se do quanto era atraente.
Ela pareceu perceber que ele a observava.
– O que foi?
– Nada – disse ele.
– O Alex estava a pensar em alguma coisa.
Ele suspirou. – Estou feliz por ter vindo connosco – disse, finalmente. –
Porque estou a gostar bastante.

Enquanto Alex andou de volta do grelhador, os dois conversaram tranquila


e descontraidamente. Ele explicou a Katie os pormenores relativos à gestão
de uma loja de conveniência. Contou também como os seus sogros tinham
iniciado o negócio e descreveu alguns dos clientes habituais com afeto,
outros que podiam ser definidos como excêntricos e Katie interrogou-se
silenciosamente se ela própria teria sido incluída naquele grupo caso Alex
tivesse levado outra pessoa à praia.
Não que aquilo tivesse qualquer importância. Quanto mais ele falava, mais
ela percebia que era o tipo de homem que tentava descobrir o que cada
pessoa tinha de melhor – o tipo de homem que não gostava de se lamentar.
Tentou imaginar como seria ele quando era mais novo, e gradualmente fez
com que a conversa enveredasse por essa direção. Alex falou sobre a sua
infância e adolescência em Spokane, sobre os fins de semana ociosos em que
costumava andar de bicicleta pela Centennial Trail com os amigos. Contou
que, quando descobriu a natação, o desporto rapidamente se tornou uma
obsessão. Alex nadava quatro ou cinco horas por dia e tinha o desejo de
participar nos Jogos Olímpicos. Entretanto, fez uma rutura muscular no
ombro no seu segundo ano da faculdade e isso pôs fim ao sonho. Falou
também sobre as festas que frequentou durante a faculdade e dos amigos que
fez, admitindo que quase todas aquelas amizades se foram distanciando aos
poucos, até perder o contacto com os colegas por completo. Enquanto falou,
Katie percebeu que ele não parecia acrescentar ou diminuir pontos aos factos
relativos ao seu passado, além de não parecer preocupado com o que os
outros pensariam dele.
Ela conseguiu distinguir o que restava do atleta de elite que Alex havia
sido, apercebendo-se dos seus movimentos fluidos e graciosos e da maneira
tranquila com que sorria, como se estivesse habituado a vitórias e derrotas.
Quando acabou de falar, ela temeu que ele a questionasse sobre o seu
passado, mas Alex pareceu pressentir que aquilo a deixaria desconfortável.
Em vez disso, preferiu começar a contar outra história.
Quando a comida ficou pronta, ele chamou as crianças, que vieram a
correr. Os dois estavam cobertos de areia e Alex manteve-os afastados
enquanto os limpou. À medida que o observava, Katie constatava que Alex
era um pai muito melhor do que ele próprio imaginava. Ótimo em tudo aquilo
que efetivamente importava.
Quando as crianças chegaram à mesa, a conversa mudou de rumo. Katie
ouviu-os a conversarem sobre o castelo de areia que tinham construído e
sobre um dos programas do Disney Channel que ambos gostavam de ver.
Quando mencionaram em voz alta os doces que comeriam mais tarde –
marshmallows, tabletes de chocolate e bolachas, aquecidos até que
estivessem quase a derreter –, tornou-se claro que Alex criara tradições
especiais e divertidas para aquelas crianças. Ele era diferente dos homens que
ela conhecera no passado, diferente de qualquer pessoa que conhecera em
toda a sua vida. Conforme a conversa prosseguiu, quaisquer vestígios do
nervosismo que pudesse sentir começaram a desaparecer.
A comida estava deliciosa, uma mudança muito bem-vinda em relação à
sua recente dieta austera. O céu permaneceu limpo, a imensidão azul
quebrada apenas quando alguma ave marinha ocasionalmente passava a voar
por perto. A brisa soprava tranquila, suave o bastante para os manter frescos,
e o ritmo constante das ondas ajudava a manter a sensação de calma e
tranquilidade.
Quando acabaram de comer, Josh e Kristen ajudaram a limpar a mesa e a
guardar o que sobrara. Alguns artigos que não se estragariam – o frasco de
picles e as batatas fritas – foram deixados em cima da mesa. As crianças
queriam brincar com as pranchas de body-board e, depois de Alex lhes voltar
a aplicar protetor solar, também tirou a camisa e seguiu-os até às ondas.
Katie levou a sua cadeira até junto da água e passou a hora seguinte a
observar Alex a ajudar os filhos a deslizarem pela rebentação, posicionando
um e depois o outro para que pudessem aproveitar as ondas que chegavam.
Ficou maravilhada com o jeito que ele tinha para fazer com que cada um dos
filhos se sentisse o centro das atenções. Havia um carinho no modo como ele
os tratava, uma dose de paciência que ela não achava que fosse realmente
possível encontrar num pai. À medida que a tarde avançava e começaram a
formar-se nuvens, Katie percebeu que estava a sorrir, a pensar que, pela
primeira vez em muitos anos, se sentia completamente descontraída. E aquilo
não era tudo. Ela sabia que estava a divertir-se tanto quanto as crianças.
11

D epois de saírem da água, Kristen disse que estava com frio e Alex levou-
a à casa de banho para vestir roupas secas. Katie ficou com Josh na
manta, a admirar o brilho do sol nas ondas enquanto ele fazia pequenos
montes de areia.
– Ei, queres ajudar-me a lançar o papagaio? – perguntou Josh, de repente.
– Acho que não ia ser capaz. Nunca lancei papagaios.
– É fácil – insistiu ele, procurando entre a pilha de brinquedos que Alex
levara, até que retirou um pequeno papagaio. – Eu ensino-te. Vamos.
Josh desatou a correr pela praia abaixo e Katie correu alguns passos antes
de voltar a caminhar, em passos ligeiros. Quando chegou junto de Josh, ele já
tinha começado a desenrolar a linha e passou-lhe o papagaio para as mãos. –
Segura bem alto, por cima da cabeça.
Ela seguiu as instruções dele, à medida que Josh começou a afastar-se
lentamente, desenrolando a linha com bastante desenvoltura.
– Estás pronta? – gritou ele, quando finalmente parou. – Quando eu
começar a correr e gritar, larga o papagaio!
– Estou pronta! – gritou ela em resposta.
Josh começou a correr e, quando Katie sentiu a linha a ficar tensa, ouviu-o
gritar e largou de imediato o papagaio. Ela não sabia se o vento estaria
suficientemente forte, mas em poucos segundos o papagaio disparou na
direção do céu. Josh parou de correr e virou-se. Enquanto ela caminhava na
sua direção, ele deixou a linha correr ainda mais.
Quando se colocou ao lado do rapaz, protegeu os olhos do sol ao observar o
papagaio a subir cada vez mais. Mesmo àquela distância era bem visível o
símbolo do Batman, preto e amarelo.
– Sou muito bom a lançar papagaios – disse ele, olhando para o céu. –
Porque é que nunca tinhas lançado nenhum?
– Não sei. Mas não era uma coisa que eu fizesse em criança.
– Devias experimentar. É divertido.
Josh continuou a olhar para cima, o seu rosto refletindo toda a sua
concentração. Pela primeira vez, Katie percebeu como Josh e Kristen eram
parecidos.
– Gostas de ir à escola? Andas no infantário, não é?
– Ah, a escola não é má. Gosto mais do recreio. Eu e os meus amigos
fazemos corridas e coisas do género.
É claro, pensou ela. Desde que chegaram à praia ele não parou de se mexer
nem por um minuto. – E gostas da tua professora?
– Ela é muito fixe e é parecida com o meu pai. Não grita com os alunos.
– O teu pai não grita?
– Não – disse ele, cheio de convicção.
– E como é que faz quando se zanga?
– O meu pai não se zanga.
Katie observou Josh atentamente, perguntando-se se ele estaria a ser
sincero, antes de perceber que o rapaz era incapaz de mentir.
– Tens muitos amigos? – perguntou ele.
– Nem por isso, porquê?
– O meu pai diz que és amiga dele. Foi por isso que te trouxe à praia.
– Quando é que ele te disse isso?
– Quando estávamos no meio das ondas.
– E o que mais é que ele disse?
– Perguntou se não tínhamos ficado incomodados por teres vindo.
– E ficaram?
– Claro que não – disse ele, encolhendo os ombros. – Toda a gente precisa
de amigos, e a praia é um lugar muito divertido.
Não havia como contestar aquilo. – Tens toda a razão – disse ela.
– A minha mãe costumava vir até aqui connosco, sabes?
– A sério?
– Sim, mas ela morreu.
– Eu sei. E lamento muito que isso tenha acontecido. Deve ser muito
difícil. Imagino que tenhas muitas saudades dela.
Ele assentiu com a cabeça e, por momentos, pareceu simultaneamente mais
velho e mais novo do que realmente era. – O meu pai às vezes fica triste. Ele
acha que não percebo, mas dá para perceber.
– Acho que eu também ficaria triste – disse Katie.
Josh permaneceu em silêncio enquanto pensava na resposta dela. –
Obrigado por me ajudares com o papagaio – acabou por dizer.

– Parece que vocês estão a divertir-se bastante – observou Alex.


Depois de Kristen ter trocado de roupa, Alex ajudou-a a lançar o papagaio,
após o que foi até junto de Katie, que estava sentada na areia molhada. Katie
conseguia sentir o cabelo a esvoaçar lentamente ao sabor da brisa.
– Ele é um querido. E mais comunicativo do que eu achava que seria.
Alex observou os filhos a brincarem com os papagaios e Katie teve a
sensação de que os olhos dele não perdiam um pormenor que fosse.
– Então é isto que faz ao fim de semana, depois de sair da loja. Sai para se
divertir com os seus filhos.
– Sempre. Acho isso muito importante.
– Mesmo que os seus pais não tenham achado o mesmo?
Ele hesitou. – Essa seria uma resposta fácil, não é? Admitir que me senti
prejudicado e jurar a mim mesmo que seria diferente? Parece uma boa ideia,
mas não sei se as coisas funcionam exatamente assim. A verdade é que passo
o meu tempo com eles porque gosto. Eu gosto deles. E gosto de os ver
crescer, quero fazer parte desse processo.
Ao ouvir a resposta de Alex, Katie percebeu que estava recordar a sua
própria infância, tentando, sem êxito, imaginar se a sua mãe ou o seu pai
pensariam de modo semelhante.
– Porque é que se alistou no exército assim que se formou?
– Naquela altura, achei que era a coisa certa a fazer. Queria um desafio
novo, queria experimentar algo diferente e alistar-me era uma boa desculpa
para sair de Washington. Com a exceção de uma meia dúzia de competições
de natação, nunca saí realmente do estado onde nasci.
– Chegou a...?
Vendo que deixou a frase suspensa, ele terminou-a por ela. – Combater?
Não, eu não era esse tipo de soldado. Na faculdade, formei-me em Direito
Criminal e fui designado para o DIC.
– O que é isso?
Quando Alex explicou o significado da sigla, ela virou-se para ele.
– É como a polícia?
Ele assentiu.
– Eu era detetive – revelou ele.
Katie não disse nada. Em vez disso, virou abruptamente a cara, e a sua
expressão foi-se fechando como um portão de aço.
– Disse alguma coisa errada? – perguntou ele.
Ela abanou a cabeça sem responder. Alex fitou-a, tentando perceber o que
poderia estar errado. As suas suspeitas a respeito do passado dela saltaram-
lhe quase de imediato à mente.
– O que é que se passa, Katie?
– Nada – insistiu ela. No entanto, assim que proferiu aquelas palavras, Alex
soube que ela não estava a dizer a verdade. Noutro lugar e noutra altura,
provavelmente teria aproveitado para colocar mais perguntas. Mas, em vez
disso, deixou o assunto morrer ali.
– Não precisamos de falar sobre isso – disse ele, num tom tranquilo. – E,
além disso, não tenho mais nada que ver com o exército nem com o DIC.
Acredite em mim quando digo que me sinto muito mais feliz a gerir uma loja
de conveniência.
Ela assentiu com a cabeça, mas Alex reparou em alguns resquícios de
ansiedade. Compreendeu que Katie precisava de espaço, mesmo não sabendo
a razão. Apontou por cima do ombro com o polegar. – Olhe, preciso de deitar
mais carvão na grelha. Se as crianças não tiverem os seus doces, vou passar o
mês a ouvir reclamações. Não demoro.
– Claro – disse ela, fingindo-se despreocupada. Quando ele se afastou,
Katie respirou aliviada, sentindo que conseguira escapar. Ele era uma espécie
de polícia, pensou, enquanto tentava dizer a si mesma que aquilo não tinha
importância. Mesmo assim, demorou quase um minuto a tentar controlar a
respiração até voltar a sentir-se de novo segura. Kristen e Josh permaneciam
nos mesmos lugares, embora Kristen se tivesse baixado para examinar outra
concha, ignorando o seu papagaio, que voava para longe.
Ela ouviu Alex a aproximar-se.
– Eu disse que não demorava. Depois da sobremesa, estava a pensar em
arrumar as coisas e ir para casa. Gostaria de ficar até o pôr do sol, mas o Josh
tem escola amanhã cedo.
– Quando quiser ir, por mim está bem – disse ela, cruzando os braços.
Apercebendo-se dos ombros rígidos e da tensão na voz de Katie, Alex
franziu as sobrancelhas. – Não sei o que foi que lhe disse que a incomodou
tanto, mas peço desculpa – disse, após uns momentos. – Quero apenas que
saiba que estou aqui se quiser conversar sobre o assunto.
Ela assentiu com a cabeça sem responder e, embora Alex esperasse que ela
dissesse algo, Katie não abriu a boca.
– É assim que as coisas vão ser entre nós? – perguntou ele.
– O que é que quer dizer com isso?
– Parece que, de repente, estou a pisar terreno minado enquanto
conversamos, mas desconheço o motivo.
– Eu até lhe diria, mas não posso – revelou Katie. Falou num tom tão baixo
que quase foi abafado pelo ruído das ondas.
– Pode pelo menos dizer-me o que foi que eu disse? Ou o que foi que eu
fiz?
Ela virou-se para ele. – O Alex não disse nem fez nada de errado. Mas,
neste momento, não posso dizer nada além disso, está bem?
Ele observou-a demoradamente. – Tudo bem, então. Desde que ainda esteja
a divertir-se.
Ela precisou de esforçar-se um pouco, mas finalmente conseguiu mostrar
um sorriso. – Este foi o melhor dia que já tive em muito, muito tempo. Na
verdade, o melhor fim de semana.
– Ainda está zangada por causa da bicicleta, não é? – perguntou ele,
estreitando os olhos e fingindo-se desconfiado. Apesar de toda a tensão que
sentia, Katie riu-se.
– É claro que estou. Vou levar muito tempo até recuperar desse choque –
disse ela, fingindo-se zangada.
Fitando o horizonte, Alex pareceu aliviado.
– Posso perguntar-lhe uma coisa? – pediu Katie, mais uma vez assumindo
uma postura séria. – Não precisa de responder, se não quiser.
– Pode perguntar o que quiser – disse ele.
– O que é que aconteceu à sua mulher? Disse que ela teve uma convulsão,
mas não me disse o que a deixou doente.
Ele suspirou, como se soubesse desde sempre que ela colocaria aquela
pergunta. Ainda assim, teve de se manter firme para responder. – Ela teve um
tumor cerebral – explicou, pausadamente. – Ou, para ser mais exato, teve três
tipos diferentes de tumores no cérebro. Eu na época não sabia, mas os
médicos dizem que não é assim tão invulgar. Havia um que estava a
desenvolver-se lentamente, que é o tipo de tumor que todos conhecem; era do
tamanho de um ovo e os cirurgiões conseguiram removê-lo quase
completamente. Mas os outros não eram tão simples. Eram tumores que
crescem e se espalham como se fossem patas de aranha e não havia como
tirá-los sem remover parte do cérebro dela. Também eram agressivos. Os
médicos fizeram o melhor que puderam, mas quando saíram da sala de
operações e disseram que tinham procedido de acordo com o que era
possível, percebi exatamente o que queriam dizer.
– Não consigo imaginar como será ouvir uma notícia dessas – comentou
Katie, olhando para a areia.
– Eu admito que foi difícil conseguir acreditar naquilo. Foi muito...
inesperado. Afinal, na semana anterior, éramos uma família normal e, na
seguinte, ela estava a morrer e não havia nada que pudesse fazer para impedir
que isso acontecesse.
A alguns metros, Kristen e Josh ainda estavam ocupados com os seus
papagaios, mas Katie percebeu que Alex mal os conseguia ver.
– Depois da cirurgia, ela levou umas semanas até voltar a andar e a agir
normalmente, e eu queria acreditar que tudo estava bem. Entretanto, semana
após semana, comecei a aperceber-me das mudanças, por mínimas que
fossem. O lado esquerdo do corpo dela começou a enfraquecer e ela dormia
por períodos cada vez mais longos. Foi difícil, mas a pior parte para mim foi
perceber que começou a afastar-se das crianças. Como se não quisesse que se
lembrassem dela nos dias em que estava doente; ela queria que se
lembrassem dela do modo que costumava ser. – Alex parou e finalmente
abanou a cabeça. – Desculpe. Não devia ter contado isto. Ela era uma ótima
mãe. Afinal, veja no que se tornaram os nossos filhos.
– Acho que o pai também tem algo que ver com isso.
– Eu esforço-me. Mas, grande parte do tempo, sinto-me como se não
soubesse bem o que estou a fazer. É como se estivesse a fingir, ou a fazer
tudo sem qualquer critério.
– Acho que todos os pais se sentem assim.
Alex virou-se para a encarar. – Os seus também?
Ela hesitou. – Acho que os meus pais fizeram o melhor que podiam –
respondeu Katie.
Não era propriamente um elogio, mas era a verdade.
– Ainda mantém contacto com eles?
– Eles morreram num acidente de carro quando eu tinha dezanove anos.
Ele fitou-a com atenção. – Lamento imenso.
– Foi difícil – confessou Katie.
– Tem irmãos ou irmãs?
– Não – respondeu ela, virando-se para o mar. – Sou filha única.

Uns minutos depois, Alex ajudou as crianças a recolherem os papagaios e


voltaram para a zona de piquenique. As brasas ainda não estavam no ponto e
Alex aproveitou o tempo para tirar a areia das pranchas e sacudir as toalhas
antes de pegar no que precisava para assar os doces na grelha.
Kristen e Josh guardaram a maior parte das suas coisas e Katie colocou o
que restou da comida na mala térmica, enquanto Alex começou a levar tudo
de volta para o jipe. Quando terminou, só sobrara uma manta e quatro
cadeiras. As crianças dispuseram as toalhas em círculo enquanto Alex
distribuiu espetos longos e o saco de marshmallows. Agitado devido ao
entusiasmo, Josh rasgou o saco plástico, despejando um pequeno monte sobre
a manta.
Seguindo o exemplo das crianças, Katie enfiou três marshmallows no seu
espeto e, ao lado de Alex, Josh e Kristen, pôs-se de pé junto ao churrasco, a
girar o espeto entre os dedos à medida que a camada exterior dos doces se
derretia e mudava de cor para um castanho caramelizado. Katie aproximou
demasiado os seus doces das brasas e dois marshmallows pegaram fogo, mas
Alex soprou imediatamente até se apagarem.
Quando ficaram prontos, Alex ajudou os filhos a terminar a preparação dos
doces: chocolate quente por cima de uma bolacha, seguido pelos
marshmallows e depois mais uma bolacha no topo. Era uma sobremesa doce
e pegajosa, e era a melhor coisa que Katie já comera na vida.
Sentada entre as crianças, percebeu que Alex estava a esforçar-se para não
deixar que as suas bolachas se esfarelassem, e acabou por se lambuzar todo.
Quando usou os dedos para limpar a boca, só piorou a situação. As crianças
acharam aquilo hilariante e Katie também não conseguiu evitar uma risada.
Ao mesmo tempo, sentiu uma onda inesperada e repentina de esperança.
Apesar da tragédia que tinha vivido, aquela família parecia ser feliz. Era
aquilo que uma família que se ama fazia quando estavam todos juntos. Para
eles, não passava de um dia normal de um fim de semana normal, mas, para
Katie, era uma espécie de revelação: perceber que, após tantos anos, era
possível haver momentos felizes como aquele. E que talvez, um dia, ela
tivesse a possibilidade de viver dias parecidos com aquele.
12

–E depois, o que é que aconteceu?


Jo estava sentada à mesa em frente a Katie, na cozinha pintada em tons
de amarelo, iluminada apenas pela lâmpada sobre o fogão. Depois de Katie
ter regressado, Jo bateu-lhe à porta, com o cabelo todo salpicado de tinta.
Katie tratou de preparar uma cafeteira de café e havia duas chávenas sobre a
mesa.
– Nada de mais. Assim que acabámos de comer os doces, demos um
passeio pela praia, entrámos no carro e voltámos para casa.
– Ele acompanhou-te até à porta de casa?
– Sim.
– Convidaste-o para entrar?
– Ele tinha de levar as crianças para casa.
– Deste-lhe um beijo de boa-noite?
– É claro que não.
– Porquê?
– Não ouviste o que eu disse? Ele levou os filhos à praia e convidou-me
para ir com eles. Não foi um encontro romântico.
Jo ergueu a sua chávena de café.
– Pois a mim, pareceu-me um encontro romântico.
– Foi um dia em família.
Jo meditou na resposta. – Parece também que passaram um bom bocado a
conversar.
Katie recostou-se na sua cadeira. – Acho que querias que fosse um
encontro.
– E porque é que eu haveria de querer isso?
– Não sei. Mas desde que nos conhecemos, de cada vez que conversamos,
fazes questão de falar dele. É como se estivesses a tentar... não sei. Como se
estivesses a tentar fazer com que eu reparasse nele.
Jo agitou o conteúdo da sua chávena antes de a pousar de novo na mesa.
– E reparaste?
Katie ergueu as mãos. – Está a ver o que eu quero dizer?
Jo riu-se antes de abanar a cabeça. – Está bem. E se for assim? – Hesitou
antes de prosseguir. – Já conheci muita gente e, com o passar do tempo,
desenvolvi instintos nos quais aprendi a confiar. Como nós as duas sabemos,
o Alex é uma ótima pessoa. E quando te conheci, Katie, fiquei com a mesma
impressão. E não fiz nada além de te provocar em relação a ele. Não te
arrastei até à loja nem vos forcei a apresentarem-se. Também não estava por
perto quando ele te convidou para ir à praia, um convite que aceitaste com
todo o gosto.
– A Kristen pediu-me para ir...
– Eu sei, já me contaste – disse Jo, erguendo uma sobrancelha. – E eu tenho
a certeza de que esse foi o único argumento que te convenceu a aceitar o
convite.
Katie fez uma careta. – Tens a mania de distorcer as coisas.
Jo voltou rir-se. – Já te passou pela cabeça que estou a fazer isto porque
senti inveja de ti? Oh, não por teres saído com o Alex, mas por teres ido à
praia num dia perfeito como hoje, enquanto eu estava enfiada em casa a
pintar as paredes pelo segundo dia consecutivo. Nunca mais quero pegar num
rolo de pintar no resto da minha vida. Tenho os braços e os ombros bastante
doridos.
Katie levantou-se e foi até à bancada. Serviu-se de mais uma chávena de
café e ergueu a cafeteira, oferecendo-o a Jo. – Queres mais?
– Não, obrigada. Preciso de dormir esta noite e cafeína em excesso pode
atrapalhar. Acho que vou ligar para o restaurante chinês e pedir que me
tragam alguma coisa para jantar. Também queres?
– Não estou com fome – disse Katie. – Hoje comi de mais.
– Não me parece que isso seja possível. O que apanhaste foi sol a mais. A
cor fica-te bem, mesmo que daqui a alguns anos isso te traga umas rugas
extra.
Katie fez outro esgar. – Obrigada por me lembrares.
– Os amigos são para essas coisas – realçou Jo, levantando-se e
espreguiçando-se. – A noite passada foi ótima, ainda que tenha de admitir
que hoje de manhã paguei bem caro.
– Foi divertido – concordou Katie.
Jo deu alguns passos antes de se virar. – Ah, esqueci-me de perguntar. Vais
ficar com a bicicleta?
– Sim – respondeu ela.
Jo matutou no assunto. – É uma boa ideia.
– O que é que queres dizer com isso?
– Acho apenas que não precisas de devolvê-la. Obviamente precisas de um
meio de transporte e ele queria que ficasses com ela. Por que razão haverias
de devolvê-la? – Jo encolheu os ombros. – O teu problema é que andas
sempre à procura de significados ou segundas intenções nas ações e nas
palavras dos outros.
– Tal como a minha amiga manipuladora?
– Achas mesmo que sou manipuladora?
Katie refletiu por uns momentos. – Talvez sejas um pouco, sim.
Jo sorriu. – E no trabalho, como é que está a tua agenda esta semana? Vais
trabalhar muito?
Katie assentiu com a cabeça. – Seis noites e três dias.
Jo fez um esgar. – Bolas.
– Não faz mal. Preciso do dinheiro e já estou habituada.
– E, claro, tiveste um excelente fim de semana.
Katie sopesou aquelas palavras. – É... tive, sim.
13

O s dias seguintes decorreram sem grandes novidades, o que serviu apenas


para que parecessem a Alex mais longos do que o habitual. Não falara
com Katie desde que a deixara em casa na noite de domingo. Não era algo
completamente inesperado, pois sabia que ela iria trabalhar bastante naquela
semana; no entanto, mais do que uma vez deu por si a sair da loja e a
espreitar pela estrada na direção da casa dela, sentindo-se vagamente
dececionado por não a ver.
Foi o bastante para derrubar a ilusão que ele tinha de a ter encantado de tal
maneira que ela não conseguiria resistir à tentação de ir à loja para o ver.
Mesmo assim, ficou surpreendido com o entusiasmo quase adolescente que
sentia só de pensar em revê-la, mesmo que Katie não partilhasse desse
sentimento. Imaginava-a na praia, com o cabelo castanho a balouçar ao sabor
do vento, as feições delicadas do rosto dela e olhos que pareciam mudar de
cor sempre que a via. Aos poucos, com o avançar do dia, ela conseguira
relaxar e Alex teve a sensação de que o passeio na praia havia, de algum
modo, suavizado a resistência dela.
Não era apenas o passado de Katie que o intrigava, mas também todas as
outras coisas que não sabia a seu respeito. Tentou imaginar, por exemplo, que
tipo de música ela gostaria de ouvir ou qual a primeira coisa em que pensava
quando acordava de manhã, ou se já teria ido assistir a um jogo de basebol.
Questionava-se se ela dormiria de barriga para cima ou de lado e, se tivesse
a oportunidade de escolher, se preferiria tomar duche ou banho de imersão.
Quanto mais pensava nela, mais curioso ficava.
Desejava que ela lhe confiasse os detalhes do seu passado, não porque ele
tivesse a ilusão de que poderia salvá-la de algum modo, ou sentisse que ela
precisava de ser salva, mas porque revelar-lhe a verdade significava abrir
uma porta para o futuro. Significava que poderiam ter uma conversa
genuína.
Na quinta-feira, Alex estava a ponderar se deveria ir ou não a casa de
Katie. A sua vontade era fazê-lo e até pegou nas chaves do carro, mas acabou
por desistir da ideia porque não sabia o que dizer quando lá chegasse.
Também não imaginava qual seria a reação de Katie. Será que iria sorrir? Ou
seria dominada pelo nervosismo? Iria convidá-lo a entrar ou iria mandá-lo
embora? Por mais que tentasse imaginar o que aconteceria, não conseguiu, e
assim acabou por pousar as chaves do carro.
Era complicado. Mas, mais uma vez, acabou por recordar a si próprio que
ela era uma mulher misteriosa.

Não levou muito tempo a Katie para admitir que a bicicleta fora uma
dádiva divina. Além de poder ir a casa no intervalo entre os turnos nos dias
em que trabalhava dois períodos no restaurante, sentiu que, pela primeira vez,
poderia realmente começar a explorar a cidade. E foi exatamente o que fez.
Na terça-feira, visitou duas lojas de antiguidades, apreciou aguarelas de
paisagens marítimas que estavam expostas numa galeria de arte e pedalou
através de alguns dos bairros de Southport, admirando os amplos alpendres e
os pórticos que adornavam as casas perto da costa. Na quarta, foi até à
biblioteca e passou algumas horas a examinar as estantes, lendo as badanas
dos livros e enchendo as cestinhas da bicicleta com os romances que
despertaram o seu interesse.
No entanto, à noite, enquanto lia na cama os livros que tinha requisitado, às
vezes dava por si desconcentrada da leitura e a permitir que a imagem de
Alex povoasse os seus pensamentos. Ao revisitar as memórias da época em
que vivia em Altoona, percebeu que Alex lhe fazia lembrar o pai da sua
amiga Callie. No décimo ano do ensino secundário, Callie morara ao fundo
da rua dela e, embora não se conhecessem muito bem – Callie era dois anos
mais nova –, Katie lembrava-se de se sentar nos degraus do seu alpendre
todos os sábados de manhã. Certo como um relógio, o pai de Callie abria a
porta da garagem, assobiando uma música enquanto tirava a máquina da
relva e a posicionava num dos cantos do jardim. Tinha orgulho no seu jardim
– era provavelmente o mais bem tratado da vizinhança – e ela ficava a
observá-lo enquanto ele passava o aparelho sobre a relva com uma precisão
militar. De vez em quando, ele parava para afastar da frente da máquina um
ramo caído, e, naqueles momentos, limpava o rosto com um lenço que
guardava no bolso de trás dos calções. Quando terminava, apoiava-se no capô
do carro que deixava estacionado à frente da garagem e saboreava um copo
de limonada que a mulher invariavelmente lhe levava. Às vezes, ela
encostava-se ao carro ao lado do marido, e Katie sorria enquanto o observava
a tocar na anca da mulher quando lhe queria chamar a atenção.
Havia um quê de satisfação na maneira como ele bebia a limonada e tocava
na esposa que levava Katie a pensar que aquele homem estava satisfeito com
a vida que tinha e que todos os seus sonhos, de alguma forma, se tinham
realizado. Enquanto o observava, era frequente Katie tentar imaginar como
seria a sua vida se tivesse nascido naquela família.
Alex ostentava aquele mesmo ar de satisfação quando os seus filhos
estavam por perto. De alguma forma, não só conseguira superar a tragédia de
perder a mulher, como também lograra fazê-lo com força suficiente para
ajudar os filhos a superar igualmente aquela perda. Quando falou sobre a
falecida esposa, Katie tentou perceber se a voz dele revelava tristeza ou
autocomiseração, mas não detetou nenhum desses sentimentos. É claro que
havia pena e uma pontada de solidão ao falar dela, mas, simultaneamente,
falou da mulher a Katie sem que esta sentisse que estava a comparar ambas.
Ele pareceu aceitá-la tal como era e, mesmo que ela não soubesse exatamente
quando tal sucedera, percebeu que se sentia atraída por ele.
Mas, mesmo pondo tudo isso de parte, os sentimentos dela eram bastante
complexos. Katie não baixava a guarda para deixar alguém aproximar-se
desde a época em que morara em Atlantic City, e a experiência acabara por
revelar-se um pesadelo. Contudo, por mais que tentasse permanecer distante,
parecia que sempre que via Alex algo acontecia para fazer com que os dois se
aproximassem. Às vezes por acidente, como no dia em que Josh caiu ao rio e
ela ficou com Kristen. Outras vezes, até parecia obra do destino. Como no dia
em que desabou a tempestade. Ou quando Kristen saiu da loja e lhe implorou
para que fosse à praia com a família. Quanto mais tempo ela passava ao lado
de Alex, mais sentia que ele sabia muito mais do que deixava transparecer, e
aquilo assustava-a. Fazia com que se sentisse despida e vulnerável e esse era
um dos motivos pelos quais evitara ir à loja dele durante toda a semana.
Precisava de tempo para pensar, tempo para decidir o que faria a respeito
daquela situação, se é que faria alguma coisa.
Infelizmente, acabou por passar demasiado tempo a lembrar-se da maneira
como as rugas de expressão no canto dos olhos de Alex se juntavam quando
ele sorria, ou dos movimentos graciosos que ele fizera ao sair do mar. Pensou
em Kristen a procurar a mão do pai e a total confiança que Katie viu naquele
simples gesto. Jo dissera desde logo que Alex era um bom homem, o tipo de
homem que faz as coisas certas e, embora Katie não pudesse dizer que o
conhecesse bem, o instinto dizia-lhe que era um homem em quem podia
confiar. Que, não importava o que lhe dissesse, iria apoiá-la, guardaria os
seus segredos e nunca usaria o que sabia para magoá-la.
Eram ideias irracionais e ilógicas, que iam contra tudo o que prometera a si
mesma quando se mudara para Southport. Mas Katie percebeu que desejava
que ele a conhecesse melhor. Queria que ele a entendesse, porque tinha a
estranha sensação de que Alex era o tipo de homem pelo qual poderia
apaixonar-se, mesmo que não quisesse.
14

C açar borboletas.
A ideia surgira na sua mente mal despertara na manhã de sábado,
antes mesmo de descer até à loja para abrir as portas ao público.
Estranhamente, enquanto pensou no que poderia fazer para entreter os filhos
nesse dia, lembrou-se de um projeto que fizera quando estava no segundo ano
do ciclo. A professora pedira aos alunos que fizessem uma coleção de
insetos. A sua memória regressou a uma tarde em que estava a correr num
relvado durante o recreio da escola, à procura de insetos aos quais pudesse
deitar a mão, desde abelhões a gafanhotos. Tinha a certeza de que Josh e
Kristen iriam gostar de fazer aquilo e, sentindo-se orgulhoso de si próprio por
ter pensado em algo interessante e original para ocupar uma tarde do fim de
semana, remexeu nas redes de pesca que tinha na loja, escolhendo três com o
tamanho apropriado.
Quando apresentou a ideia às crianças à hora do almoço, elas não ficaram
muito entusiasmadas.
– Não quero magoar nenhuma borboleta. Eu gosto delas – protestou
Kristen.
– Nós não vamos magoá-las. Depois podemos soltá-las.
– Então, porque é que precisamos de as apanhar?
– Porque é divertido.
– Não me parece que seja divertido. A mim, parece-me uma maldade.
Alex abriu a boca para responder, mas não soube exatamente o que dizer.
Josh deu outra dentada na sua tosta de queijo.
– O dia está muito quente, pai – fez notar, falando enquanto mastigava.
– Está bem. Podemos ir nadar no riacho depois de caçar as borboletas. E
mastiga com a boca fechada.
Josh engoliu. – E porque é que não vamos já nadar no riacho?
– Porque vamos sair para caçar borboletas.
– Não podemos ir ao cinema em vez de fazer isso?
– Isso! Vamos ao cinema!
Às vezes, Alex achava que ser pai era uma experiência exasperante.
– O dia está lindo e não vamos passá-lo metidos num cinema. Vamos sair
para caçar borboletas. E isso não é tudo: vocês os dois vão gostar do passeio,
entenderam?
Depois do almoço, Alex levou-os até um campo nos arredores da cidade
que estava repleto de flores silvestres. Entregou-lhes as redes que usariam
para caçar as borboletas e ordenou-lhes que começassem, observando
enquanto Josh arrastava a sua rede atrás de si e Kristen segurava a sua contra
o corpo, de um modo parecido com o que fazia com as bonecas.
Alex resolveu deitar mãos à obra e correu à frente deles, com a sua rede a
postos. Mais à frente, a esvoaçar por entre as flores, avistou dúzias de
borboletas. Quando lá chegou, girou a rede em arco, capturando uma.
Agachando-se, começou a manipular a rede cuidadosamente, permitindo que
o laranja e o castanho das asas da borboleta ficassem à mostra.
– Uau! – disse ele, tentando demonstrar o máximo de entusiasmo que
conseguiu. – Apanhei uma!
Numa questão de segundos, Josh e Kristen vieram a correr e espreitaram
por cima do ombro dele.
– Cuidado com ela, pai – avisou Kristen.
– Não te preocupes, querida. Olha como as cores são bonitas.
Os dois aproximaram-se ainda mais.
– Que fixe! – gritou Josh para, no momento seguinte, desatar a correr por
entre as flores a agitar vigorosamente a sua rede.
Kristen continuou a observar a borboleta. – De que espécie é?
– É uma hespéria – informou Alex. – Mas não sei ao certo de que tipo.
– Acho que está assustada.
– Tenho certeza de que ela está bem. Mas vou soltá-la.
Ela assentiu e Alex virou cuidadosamente a rede do avesso. De volta ao ar
livre, a borboleta prendeu-se à rede antes de sair de novo a voar. Os olhos de
Kristen arregalaram-se, maravilhados.
– Ajudas-me a apanhar uma?
– Com todo o gosto.
Passaram um pouco mais de uma hora a correr por entre as flores e
capturaram oito tipos diferentes de borboletas, incluindo uma junónia,
embora a maioria fossem hespérias. Quando terminaram, os rostos das
crianças estavam rubros e encharcados em suor, e Alex levou-os a comer um
gelado antes de irem para o riacho que passava atrás de casa. Os três foram
até ao cais e saltaram juntos para a água – Josh e Kristen com coletes salva-
vidas – e flutuaram ao sabor de corrente tranquila. Era um dia como muitos
que Alex tinha passado na sua infância. Quando saíram da água, ficou
satisfeito ao perceber que, com exceção do passeio até à praia, aquele fora o
melhor fim de semana que tiveram em muito tempo.
Mas foi cansativo também. Mais tarde, depois de as crianças já terem
tomado banho, quiseram ver um filme. Alex colocou o DVD de Regresso a
Casa, um filme que já tinham visto dezenas de vezes, mas que estavam
sempre dispostos a ver de novo. Da cozinha, ele conseguia vê-los no sofá,
ambos sem moverem um músculo que fosse, a olhar para a televisão daquela
forma absorta típica de crianças exaustas.
Alex limpou a bancada da cozinha e colocou os pratos sujos na máquina de
lavar a louça. A seguir, pôs um monte de roupa suja na máquina, arrumou a
sala de estar e limpou a casa de banho das crianças antes de finalmente se
sentar ao lado delas no sofá, por alguns momentos. Josh estava enroscado
num dos cantos do sofá e Kristen no outro. Quando o filme terminou, Alex
sentiu as suas próprias pálpebras a começarem a pesar. Depois de trabalhar na
loja, brincar com os filhos e limpar a casa, era bom poder simplesmente
relaxar por alguns momentos.
O som da voz de Josh despertou-o abruptamente.
– Ei, pai?
– Sim?
– O que temos para o jantar? Estou a morrer de fome.

Na copa do restaurante, Katie espreitou para a esplanada e depois voltou-se


outra vez para trás, a observar Alex e as crianças a acompanharem a
rececionista até uma mesa ao ar livre que ficava perto da cerca. Kristen sorriu
e acenou assim que viu Katie, hesitando apenas por um segundo antes de
correr por entre as mesas até chegar junto dela. Katie curvou-se quando a
miúda lançou os braços em volta do seu pescoço.
– Quisemos fazer uma surpresa! – disse Kristen.
– Bem, e conseguiram. O que vieram aqui fazer?
– O meu pai hoje não quis fazer-nos o jantar.
– Não quis?
– Disse que estava cansado de mais.
– É, mas a história não acaba aí – anunciou Alex. – Acredite no que lhe
digo.
Katie não se apercebera da aproximação dele, e endireitou-se.
– Ah, olá – disse ela, sentindo, contrariada, o rosto a corar.
– Como é que vão as coisas? – perguntou Alex.
– Bem – respondeu ela, sentindo-se algo nervosa. – Ocupada, como pode
ver.
– Parece estar mesmo muito ocupada. Tivemos de esperar para que nos
arranjassem uma mesa na zona onde está a servir.
– Esteve assim o dia todo.
– Bem, não vamos atrapalhá-la mais. Anda, Kristen, vamos para a mesa.
Falamos daqui a pouco, ou quando vier anotar os nossos pedidos.
– Tchau, Miss Katie – disse Kristen, acenando outra vez.
Katie ficou a observá-los enquanto se dirigiram até à mesa, sentindo-se
estranhamente feliz com aquela visita. Viu Alex a abrir a ementa e a inclinar-
se para a frente para ajudar Kristen a segurar a sua, e, por momentos, desejou
estar sentada à mesa com eles.
Ajeitou o uniforme e olhou para o seu reflexo na cafeteira de aço inox. Não
conseguiu ver muito, apenas uma imagem difusa. Mas foi o bastante para
fazer com que passasse a mão pelo cabelo. Depois de verificar rapidamente
se não tinha nódoas na blusa – não haveria nada que pudesse fazer quanto a
isso, mas ainda assim quis certificar-se – foi à mesa a que Alex e as crianças
estavam sentados.
– Olá, meninos – disse ela, dirigindo-se a Josh e Kristen. – Ouvi dizer que
o vosso pai hoje não quis fazer o jantar.
Kristen soltou uma risadinha, mas Josh limitou-se a assentir com a cabeça.
– Ele disse que estava cansado.
– Foi o que ouvi dizer – respondeu Katie.
Alex revirou os olhos. – Queimado pelos meus próprios filhos. Não posso
acreditar.
– Eu nunca te faria isso pai – disse Kristen, muito séria.
– Obrigado, querida.
Katie sorriu. – Querem beber alguma coisa?
Pediram chá gelado e uma cesta de bolinhos fritos. Katie trouxe as bebidas
para a mesa e, à medida que se afastava, sentiu que os olhos de Alex a
acompanhavam. Lutou contra o impulso de olhar para ele por cima do ombro,
embora quisesse desesperadamente fazê-lo. Nos minutos seguintes, Katie
anotou pedidos e recolheu pratos de outras mesas. Trouxe duas bandejas com
refeições até outra mesa e, finalmente, veio trazer a cesta de bolinhos fritos.
– Tenham cuidado, ainda estão muito quentes.
– É melhor comê-los enquanto ainda estão quentes – disse Josh, levando a
mão à cesta. Kristen também pegou num bolinho.
– Hoje fomos caçar borboletas – contou ela.
– A sério?
– Sim. Mas não as magoámos. Soltámo-las depois de as apanhar.
– Parece ter sido muito divertido. Gostaram do passeio?
– Foi ótimo! Apanhei aí umas cem borboletas, acho eu. E depois fomos
nadar – revelou Josh.
– Deve ter sido mesmo muito bom. Não me admira que o vosso pai esteja
cansado.
– Eu não estou cansado – disse Josh.
– Eu também não – disse Kristen, logo a seguir.
– Talvez não, mas, mesmo assim, hoje vão os dois para a cama cedo. O
vosso pobre e velho pai precisa de dormir – disse Alex.
Katie abanou a cabeça. – Não seja tão duro consigo mesmo – disse ela. – O
Alex não é pobre.
Ele levou um momento até perceber que ela estava a brincar, e riu-se. Foi
suficientemente alto para que as pessoas da mesa ao lado percebessem, mas
Alex não pareceu importar-se.
– Venho até aqui para descontrair e desfrutar do meu jantar e a empregada
ainda me goza.
– A vida é dura.
– Nem me diga. Quando der por ela, vai dizer-me para escolher algo do
menu infantil, para não engordar mais.
– Bem, eu não ia dizer nada – comentou Katie olhando para a barriga de
Alex.
Ele-se riu outra vez e quando voltou a fitá-la, ela apercebeu-se de um brilho
diferente no seu olhar, fazendo recordar a Katie que Alex a achava atraente.
– Bem, acho que já decidimos o que vamos pedir – disse ele.
– O que é que vos posso trazer?
Alex ditou os pedidos e Katie anotou-os. Ela manteve o contacto visual
antes de deixar a mesa e levar o pedido para a cozinha. Enquanto continuou a
trabalhar na sua área – mal saía alguém entrava logo mais gente no
restaurante para ocupar as mesas – ela arranjou diversos pretextos para ir até
junto de Alex. Regressou para encher os copos de água e de chá gelado,
recolheu a cesta quando os bolinhos acabaram e levou outro garfo a Josh
quando ele deixou o seu cair ao chão. Conversou tranquilamente com Alex e
as crianças, aproveitando cada momento até lhes trazer o jantar.
Mais tarde, depois de terminarem, Katie recolheu os pratos e trouxe a
conta. Naquele momento, o sol já estava a pôr-se e Kristen começou a
bocejar. O movimento no restaurante pareceu ficar cada vez mais intenso. Ela
teve tempo apenas para uma despedida rápida enquanto as crianças desceram
as escadas, mas, quando Alex hesitou, Katie teve a impressão de que ele iria
convidá-la para sair. Não sabia como lidaria com tal situação, porém, antes
que ele conseguisse dizer alguma coisa, um dos clientes de Katie virou uma
cerveja. O cliente levantou-se da mesa rápido de mais, esbarrando nela, e
acabaram por cair mais dois copos. Alex deu um passo atrás, sentindo que o
momento não era apropriado, e sabendo que ela teria de voltar ao trabalho.
– Até breve – disse ele, acenando e seguindo as crianças.

No dia seguinte, Katie entrou na loja cerca de meia hora depois de Alex
abrir as portas ao público.
– Veio cedo – disse Alex, surpreendido.
– Levantei-me cedo e pensei que poderia aproveitar para fazer as minhas
compras antes das outras coisas que preciso de fazer hoje.
– O movimento no restaurante diminuiu ontem à noite?
– Só passado um bom bocado. Mas estamos com falta de pessoal esta
semana. Uma funcionária teve de viajar para ir ao casamento da irmã e outra
ligou a dizer que estava doente. Está uma confusão.
– Eu percebi. Mas a comida estava ótima, apesar de o serviço ter demorado
um pouco.
Quando ela o fitou com uma expressão irada, ele riu-se. – Isso é por ter
gozado comigo ontem à noite – realçou Alex, abanando a cabeça. – Chamou-
me velho. Vou revelar-lhe a verdade, o meu cabelo ficou grisalho antes de eu
fazer trinta anos.
– Acho que se preocupa de mais com isso – disse ela, tentando retribuir a
provocação. – Mas acredite em mim. Fica-lhe bem. Dá-lhe um certo ar de
respeitabilidade.
– E isso é bom ou mau?
Ela sorriu sem responder e logo a seguir pegou num cesto de compras.
Enquanto o retirava da pilha, ouviu-o a aclarar a garganta.
– Vai trabalhar tanto esta semana como trabalhou na semana passada?
– Não, nem tanto.
– E no próximo fim de semana?
Katie refletiu por uns momentos. – Estou de folga no sábado. Porquê?
Ele apoiou as mãos no balcão antes de a olhar nos olhos. – Porque estava a
pensar se gostaria de ir jantar comigo. Só nós os dois, desta vez. Sem os
miúdos.
Katie sabia que ela e Alex tinham chegado a uma encruzilhada, daquelas
que mudaria tudo entre eles. Mas, simultaneamente, fora essa a razão que a
levara a ir tão cedo à loja. Queria descobrir se estava enganada em relação à
expressão que vira nos olhos dele na noite anterior, porque foi a primeira vez
que percebeu, com toda a certeza, que queria que ele a convidasse.
Todavia, no meio ao silêncio Alex pareceu não compreender o que ela
estava a pensar. – Deixe lá. Não é assim tão importante.
Katie continuou a fitá-lo nos olhos. – Sim, eu adoraria jantar consigo. Mas
com uma condição.
– E qual seria essa condição?
– Já fez tantas coisas por mim que desta vez gostaria de poder fazer algo
por si. E que tal se eu preparasse o jantar? Em minha casa.
Ele sorriu, aliviado. – Vai ser perfeito.
15

N o sábado, Katie acordou mais tarde do que o habitual. Tinha passado os


últimos dias a percorrer lojas, freneticamente, a comprar coisas e a
decorar a sua casa. Uma nova cortina de renda para a janela da sala de estar,
alguns quadros não muito caros para as paredes, uns quantos pequenos
tapetes e uma toalha e copos de vinho para o jantar que iria preparar. Na noite
de sexta-feira trabalhara até de madrugada, a colocar enchimento nas capas
de almofada que tinha comprado e fazendo uma derradeira limpeza à casa.
Apesar de o sol brilhar por entre as frinchas da janela, iluminando a sua cama
com riscas de luz, Katie só acordou quando ouviu o barulho de alguém a
martelar. Ao espreitar para o relógio, percebeu que já passava das nove horas.

Arrastando-se para fora da cama, Katie bocejou e depois foi até à cozinha
para preparar uma cafeteira de café antes de ir ao alpendre, semicerrando os
olhos devido ao brilho do sol. Olhou para a casa de Jo e viu que a amiga
estava no alpendre, de martelo em punho, pronta para mais uma martelada. Jo
viu então que Katie tinha saído de casa e pousou o martelo. – Espero não te
ter acordado.
– Acordaste, sim, mas não há problema. Já passou da hora de eu me
levantar. O que é que estás a fazer?
– Estou a tentar evitar que esta veneziana se solte da parede. Quando
cheguei ontem à noite a casa, estava a começar a soltar-se e não tive dúvidas
de que cairia a meio da noite. E, é claro, pensar que a veneziana podia
acordar-me a qualquer momento se caísse ao chão fez com que demorasse
bastante a adormecer.
– Precisas de ajuda?
– Não, já estou quase a acabar.
– E um café, aceitas?
– Um café parece-me ótima ideia. Daqui a uns minutos estou aí.
Katie regressou ao quarto e trocou o pijama por uns calções e uma T-shirt.
Lavou os dentes e escovou o cabelo o suficiente para o desembaraçar. Por
entre as frestas da janela viu que Jo se dirigia a sua casa e foi abrir a porta da
entrada.
– A tua casa está a ficar muito bonita! Adorei os tapetes e os quadros que
escolheste.
Katie encolheu os ombros, com um sorriso.
– Bem, acho que começo a habituar-me a considerar Southport o meu lar.
Pensei que estava na hora de começar a transformar esta casa num lugar mais
permanente.
– Está realmente ótima. Parece que estás finalmente a começar a criar
raízes.
– E a tua casa? Como é que está?
– Está a ficar melhor. Quando estiver pronta, convido-te para ires lá ver.
– Por onde é que andaste? Já há algum tempo que não te vejo.
Jo fez um gesto indicando que aquilo não era assim tão incomum. – Estive
fora da cidade alguns dias, em trabalho, e depois fui visitar uma pessoa no
fim de semana passado. Desde então, estive a trabalhar. Sabes como é.
– Também trabalhei bastante. Tive de fazer vários turnos no restaurante nos
últimos dias.
– E vais trabalhar hoje à noite?
Katie beberricou o seu café.
– Não. Convidei uma pessoa para vir cá jantar.
Os olhos de Jo iluminaram-se. – Queres que adivinhe quem é essa pessoa?
– Já sabes quem é – disse Katie, tentando evitar enrubescer.
– Ah, eu sabia! – disse Jo. – Que bom. Fico muito feliz por ti. Já escolheste
o que vais vestir?
– Ainda não.
– Bem, independentemente da escolha, tenho a certeza de que vais ficar
linda. Vais ser tu a cozinhar?
– Podes não acreditar, mas até sou uma boa cozinheira.
– E o que é que vais preparar?
Quando Katie lhe contou, Jo ergueu uma sobrancelha.
– Parece uma delícia – comentou. – Vai ser muito bom, estou feliz por ti.
Por vocês os dois, na verdade. Estás entusiasmada?
– É apenas um jantar.
– O que significa que não vais ter problemas depois em contar-me tudo o
que acontecer, não é?
– Acho que precisas de arranjar outro passatempo.
– Provavelmente. Mas, neste momento, estou a divertir-me bastante com a
tua vida, já que a minha vida amorosa quase não existe nesta fase. Uma
rapariga precisa de sonhar, não achas?

A primeira paragem de Katie foi no cabeleireiro. Ali, uma jovem chamada


Brittany cortou-lhe o cabelo e fez-lhe um belo penteado, passando o tempo
todo a conversar. Do outro lado da rua ficava a única boutique para mulheres
de Southport e Katie passou por lá logo a seguir. Embora já tivesse passado
em frente à loja umas quantas vezes, ao pedalar pela cidade, nunca lá entrara.
Era uma daquelas lojas em que nunca achou que quereria, ou precisaria, de
entrar, mas, quando começou a ver os artigos, até teve surpresas agradáveis.
Não só as peças eram interessantes, como também os preços. Pelo menos as
que estavam em promoção. Foi nessas que Katie concentrou a sua atenção.
Estar sozinha numa loja de roupa como aquela para fazer compras foi uma
experiência intrigante. Há muito tempo que não fazia algo assim e, ao
experimentar as diferentes peças de roupa na cabina de provas, sentiu-se
muito mais livre do que nos últimos anos.
Comprou duas peças que estavam em promoção, incluindo uma blusa bege,
com apliques de contas e bordados, que ficava justa ao corpo e que tinha um
decote generoso, mas sem ser exagerado. Também encontrou uma bela saia
de verão estampada que combinava perfeitamente com a blusa. A saia era um
pouco mais comprida do que ela queria, mas Katie sabia que podia fazer-lhe
um arranjo. Depois de pagar, avançou mais uns passos e entrou naquela que
sabia ser a única sapataria da cidade, onde escolheu um par de sandálias.
Novamente, Katie aproveitou o facto de as sandálias estarem em promoção
para se decidir a investir um pouco mais. Sem gastar em excesso, é claro.
Embora fazer compras a deixasse ansiosa, lembrou-se das gorjetas dos
últimos dias, que tinham sido generosas.
De lá, dirigiu-se à farmácia para comprar mais algumas coisas e finalmente
montou na bicicleta para atravessar a cidade e ir ao supermercado. Não se
apressou e aproveitou para andar tranquilamente por entre os corredores de
prateleiras, sentindo as suas velhas e dolorosas memórias a tentarem voltar
para a atormentar – mas, desta vez, sem sucesso.
Quando terminou, pedalou de regresso a casa e começou os preparativos
para o jantar. Katie iria fazer camarões recheados com carne de caranguejo,
salteados em manteiga e alho. Teve de puxar pela cabeça para se lembrar da
receita, mas, como já a tinha preparado várias vezes ao longo dos anos,
estava confiante de que não se esqueceria de nada. Para acompanhamento,
optou por pimentos recheados e pão de milho. Para as entradas, pedaços de
queijo brie enrolados em tiras de bacon, cobertos com molho de framboesa.
Já há algum tempo que não preparava uma refeição tão elaborada, mas
Katie sempre gostara de recortar receitas que encontrava em revistas. O gosto
pela culinária era a única coisa que tinha em comum com a mãe, com quem
partilhou algumas vezes esse interesse.
Katie passou o resto da tarde ocupada com a cozinha. Misturou os
ingredientes para o pão de milho e colocou-o no forno, depois preparou os
demais ingredientes para rechear os pimentos e colocou-os no frigorífico com
os pedaços de queijo brie enrolados em bacon. Quando o pão de milho ficou
pronto, deixou-o na bancada para arrefecer, enquanto começou a preparar o
molho de framboesas. Não era nada muito complicado – açúcar, framboesas e
água – mas, quando terminou, a cozinha estava com um cheiro maravilhoso.
O molho também foi para o frigorífico. O resto poderia esperar até mais
tarde.
No quarto, encurtou um dedo acima dos joelhos a saia que tinha comprado
e depois deu uma última vista de olhos à casa para ter a certeza de que tudo
estava no seu devido lugar. Finalmente, começou a despir-se.
Quando entrou no duche, Katie pensou em Alex. Visualizou o seu sorriso
tranquilo e a maneira graciosa como se movia, e a memória acendeu-lhe uma
leve chama no estômago. Embora não o pretendesse fazer, imaginou se ele
estaria a tomar banho no mesmo momento que ela. Havia algo de erótico
naquele pensamento, a promessa de algo novo e estimulante. Era apenas um
jantar, fez questão de lembrar a si própria; ainda assim, sabia que não estava a
ser completamente sincera.
Havia outra força em ação, algo cuja existência ela andava a tentar negar.
Sentia-se atraída por ele, mais do que gostaria de admitir. E, quando saiu do
duche, já sabia que teria de ter cuidado. Alex era o tipo de homem pelo qual
poderia apaixonar-se e aquela ideia assustava-a. Não estava pronta para algo
desse género. Pelo menos, não para já.
E, logo a seguir, ouviu outro sussurro no fundo da sua mente, este a afirmar
que afinal talvez estivesse.
Depois de se secar, hidratou a pele com uma loção corporal de cheiro
adocicado, vestiu as roupas novas e calçou as sandálias antes de aplicar a
maquilhagem que comprara na farmácia. Não precisou de muito, apenas um
toque de batom, rímel e um pouco de sombra para os olhos. Escovou o cabelo
e finalizou com um par de brincos compridos que tinha comprado por
impulso. Ao terminar, afastou-se do espelho.
Estou pronta, pensou consigo mesma. É tudo que eu tenho. Virou-se para
um lado e depois para o outro, ajustando a blusa até finalmente mostrar um
sorriso. Já há muito tempo que não se achava assim tão bonita.
Embora o sol finalmente tivesse cruzado o céu e brilhasse a poente, a casa
ainda estava quente e Katie abriu as janelas da cozinha. A brisa leve bastou
para refrescá-la enquanto preparava a mesa. No início da semana, quando
estava a sair da loja, Alex perguntara-lhe se poderia levar uma garrafa de
vinho. Portanto, Katie colocou dois copos na mesa. No centro, instalou uma
vela e, quando deu um passo atrás para admirar a mesa, ouviu o som de um
motor a aproximar-se. Percebeu pelo relógio que Alex chegara à hora
combinada.
Katie respirou fundo, tentando acalmar os nervos. A seguir, depois de
atravessar a sala e abrir a porta, saiu para a varanda. Com uns jeans e uma
camisa azul com as mangas dobradas até aos cotovelos, Alex estava ao lado
da porta do carro, inclinado lá para dentro, nitidamente a tentar pegar em
algo. O seu cabelo ainda estava um pouco molhado junto ao pescoço.
Alex tirou duas garrafas de vinho e voltou-se. Quando a viu, sentiu-se
como que paralisado, com uma expressão de pura incredulidade no rosto. De
pé, ela estava cercada pelos últimos raios do pôr do sol, perfeitamente
radiante. E, por um momento, tudo o que ele fez foi olhar fixamente para ela.

O assombro de Alex era evidente e Katie permitiu que aquela sensação se


apoderasse dela, pois queria que perdurasse para sempre.
– Conseguiu vir – disse ela.
O som da voz de Katie foi o suficiente para quebrar o feitiço, mas Alex
continuou a olhar para ela. Sabia que deveria dizer algo inteligente ou bem-
humorado para quebrar a tensão. No entanto, deu por si a pensar: Estou
tramado, muito tramado.
Ele não percebeu ao certo quando é que aquilo aconteceu, nem sequer
quando começou. Talvez tivesse sido na manhã em que viu Kristen nos
braços de Katie depois de Josh ter caído ao rio, ou na tarde de chuva em que
ele a levara a casa, ou até mesmo no domingo que passaram na praia. Tudo o
que Alex sabia, com toda a certeza, era que, ali e naquele momento, estava
perdidamente apaixonando por aquela mulher e que esperava que ela sentisse
o mesmo por ele.
Após uns momentos, finalmente conseguiu aclarar a garganta. – É... Acho
que sim.
16

O céu do início da noite era um prisma de cores quando Katie conduziu


Alex pela modesta sala de estar em direção à cozinha.
– Não sei o que acha disto, mas gostaria muito de abrir o vinho agora –
disse ela.
– É uma boa ideia. Não sabia o que a Katie ia preparar, então trouxe uma
garrafa de sauvignon blanc e também um zinfandel. Tem preferência por
algum deles?
– Vou deixar que seja o Alex a escolher – disse ela.
Na cozinha, ela encostou-se à bancada, cruzando as pernas, enquanto Alex
preparava o saca-rolhas para abrir a garrafa. Pela primeira vez, ele pareceu
estar mais nervoso do que ela. Com uma série de movimentos rápidos, abriu a
garrafa de sauvignon blanc. Katie colocou os copos na bancada ao lado dele,
consciente de como estavam próximos um do outro.
– Já o devia ter dito assim que cheguei, mas a Katie está linda.
– Obrigada – respondeu ela.
Ele serviu um pouco do vinho, pousou a garrafa sobre a bancada e entregou
o copo a Katie. Quando ela lhe pegou, Alex sentiu o cheiro do creme para o
corpo com aroma de coco.
– Acho que vai gostar do vinho. Pelo menos, é o que eu espero.
– Tenho a certeza de que vou adorar – disse Katie, levantando o copo. – À
nossa – propôs, tocando no copo de Alex com o seu.
Ela bebeu um gole, sentindo-se extraordinariamente feliz com tudo aquilo:
a sua própria aparência, o sabor do vinho, o aroma suave do molho de
framboesas que ainda perfumava o ar, a maneira como Alex olhava para ela,
esforçando-se por não parecer indiscreto.
– Gostaria de se sentar no alpendre? – sugeriu ela.
Ele assentiu. Depois de transporem a porta, sentaram-se nas cadeiras de
baloiço. No ar que arrefecia lentamente, os grilos começaram a cantar, dando
as boas-vindas à noite que chegava.
Katie saboreou o vinho, apreciando o toque frutado que a bebida deixava
na língua. – E como é que estão a Kristen e o Josh?
– Estão bem. Levei-os ao cinema.
– Mas o dia estava tão bonito hoje, perfeito para uma atividade ao ar livre.
– Eu sei. Mas com o Memorial Day2 na segunda-feira, acho que ainda vai
ser possível fazer qualquer coisa ao ar livre nos próximos dias.
– A loja abre no feriado?
– Claro que sim. É um dos dias mais movimentados do ano, pois toda a
gente quer passar o feriado na praia. Devo trabalhar até à uma da tarde.
– É uma pena. Mas também vou ter de trabalhar no feriado.
– Talvez eu e as crianças possamos aparecer no restaurante para a
incomodar.
– Vocês não me incomodaram nada quando lá estiveram – disse Katie,
olhando para Alex por cima do seu copo de vinho. – Bem, as crianças não me
incomodaram, na verdade. Mas eu lembro-me de o Alex ter reclamado por
causa da qualidade do serviço.
– Os velhos não sabem fazer outra coisa que não seja reclamar – retorquiu
ele.
Ela riu-se, fazendo balançar a cadeira. – Quando não vou trabalhar, gosto
de me sentar aqui a ler. Este sítio é muito tranquilo, sabia? Às vezes parece
que sou a única pessoa num raio de alguns quilómetros.
– Mas a Katie é a única pessoa que mora aqui nas redondezas. Vive
praticamente no meio do mato – brincou Alex.
Katie deu-lhe uma palmada amigável no ombro. – Veja lá o que diz. Gosto
bastante da minha casinha.
– E tem razões para isso. Está bem melhor do que eu imaginei que estaria.
É muito acolhedora.
– Ainda não está como eu quero, mas hei de lá chegar. Estou sempre a
fazer melhorias. E o melhor de tudo, é que é minha e ninguém ma pode tirar.

Coube agora a Alex olhar para ela. Katie estava com o olhar perdido,
fitando um ponto para lá da ruela de gravilha, na direção do campo relvado
que havia em frente.
– Está tudo bem? – perguntou ele.
Ela levou o seu tempo a responder. – Estava apenas a pensar que me sinto
muito contente por o Alex estar aqui. Nem me conhece...
– Acho que a conheço suficientemente bem.
Katie não disse nada. Alex observou-a quando ela baixou o olhar.
– Acha que me conhece – disse ela, num sussurro. – Mas, na verdade, não
conhece.
Alex sentiu que Katie estava com medo de dizer mais. Por entre o silêncio,
ele ouvia as tábuas do alpendre a ranger enquanto se movimentava para frente
e para trás na cadeira de baloiço. – E que tal se eu lhe disser o que acho que
sei a seu respeito e a Katie diz-me se estou certo ou errado? Podemos fazer
assim?
Ela assentiu com a cabeça, cerrando os lábios. Quando Alex prosseguiu, a
sua voz era suave.
– Eu acho que a Katie é inteligente e encantadora, e que é uma pessoa de
bom coração. Eu sei que, quando quer, sabe arranjar-se para ficar ainda mais
bela do que qualquer pessoa que eu já tenha conhecido. É independente, tem
um bom sentido de humor e demonstra uma paciência incrível para lidar com
crianças. Tem razão quando diz que não conheço pormenores específicos
sobre o seu passado, mas não imagino que sejam assim tão importantes, a
menos que me queira falar deles. Toda a gente tem um passado, mas não
passa disso mesmo, do passado. Pode-se aprender com ele, mas não se pode
mudá-lo. A pessoa que eu conheço é aquela que eu quero conhecer ainda
melhor.
Enquanto ele falou, Katie esboçou um sorriso débil. – Fala como se tudo
fosse muito simples.
– E pode ser.
Ela rodou o copo entre os dedos, segurando-o pelo pé, enquanto ponderava
naquelas palavras. – E se o passado não for realmente passado? E se ainda
estiver a acontecer?
Alex continuou a fitá-la, sustendo o olhar. – Tem medo... que ele a
encontre?
Katie titubeou. – Como disse?
– A Katie ouviu o que eu disse – prosseguiu Alex. Manteve a voz firme e
tranquila, num tom quase coloquial, algo que aprendera enquanto trabalhara
no DIC. – Imagino que já tenha sido casada. E que talvez o seu ex-marido
esteja a tentar descobrir o seu paradeiro.
Katie sentiu-se paralisar e os seus olhos arregalaram-se. De repente, sentiu
dificuldade em respirar e levantou-se da cadeira de um salto, derramando o
que restava do vinho. Recuou um passo, afastando-se de Alex, olhando-o
fixamente e sentindo o rosto empalidecer.
– Como é que sabe isso tudo sobre mim? Quem é que lhe contou? –
perguntou ela, com a mente a laborar a alta velocidade, tentando descobrir o
que sucedera. Alex não poderia estar ao corrente. Não era possível. Ela não
tinha contado a ninguém.
Com exceção de Jo.
Perceber aquilo foi o suficiente para lhe tirar o fôlego e ela olhou para a
casa que ficava ao lado da sua. A sua vizinha traíra-a, pensou ela. A sua
amiga traíra-a...
Tão rapidamente quanto os pensamentos corriam pela mente de Katie,
também o cérebro de Alex estava a trabalhar freneticamente. Ele apercebeu-
se do medo na expressão dela, mas já vira aquilo antes. Inúmeras vezes. E
sabia que estava na altura de parar com os jogos e com as dissimulações se
pretendessem seguir em frente.
– Ninguém me contou nada – garantiu Alex. – Mas a sua reação mostra que
estou certo. De qualquer forma, isso não tem importância. Não conheço essa
pessoa, Katie. Se quiser falar-me do seu passado, estou disposto a ouvi-la e a
ajudar de qualquer maneira que esteja ao meu alcance, mas não lhe vou
perguntar nada sobre o assunto. E se não quiser contar, também não há
problema. Como lhe disse, não conheço a pessoa em causa. A Katie deve ter
bons motivos para querer guardar segredo, o que significa que eu também
não vou contar nada a ninguém. Não importa o que aconteça entre nós. Se
quiser inventar um novo passado para si, esteja à vontade. Dar-lhe-ei toda a
cobertura e confirmarei cada palavra que disser. Pode confiar em mim.
Katie olhou para Alex enquanto ele falava, sentindo-se confusa,
amedrontada e enraivecida, mas ouvindo atentamente cada palavra.
– Mas... como?
– Aprendi a perceber coisas que outras pessoas deixam passar. Houve uma
época na minha vida em que não fazia mais nada. E a Katie não é a primeira
mulher que conheço nessa situação.
Katie continuou a olhar para ele, ainda imersa em pensamentos. – Quando
esteve no exército – concluiu ela.
Ele assentiu, sem desviar o olhar. Finalmente, levantou-se da cadeira e deu
um passo cauteloso em direção a ela. – Posso servir-lhe mais um copo de
vinho?
Ainda envolvida num turbilhão de emoções, não conseguiu responder, mas
quando Alex estendeu a mão para pegar no seu copo, ela permitiu. A porta do
alpendre abriu-se com um rangido e fechou-se atrás dele, deixando-a sozinha.

Katie dirigiu-se até ao parapeito, lutando contra o caos que dominava os


seus pensamentos. Resistiu ao ímpeto de fazer as malas, pegar na lata de café
cheia de dinheiro e abandonar a cidade assim que pudesse.
Mas o que é que iria fazer? Se Alex conseguira descobrir a verdade
limitando-se a observar, então seria possível que outra pessoa fizesse o
mesmo. E, por uma obra qualquer do destino, talvez essa outra pessoa não
fosse gentil como Alex.
Atrás dela, Katie ouviu a porta a ranger de novo. Alex saiu para o alpendre
e foi até ao parapeito, pousando o copo à frente dela.
– Já pôs a ideia de parte?
– Que ideia?
– De fugir para um lugar desconhecido assim que puder?
Katie virou-se para ele, chocada.
Alex ergueu as mãos, mostrando-lhe as palmas. – No que mais poderia
estar a pensar? Mas, para que conste, a minha curiosidade deve-se apenas ao
facto de começar a ficar com fome. Seria horrível se fugisse antes do nosso
jantar.
Ela demorou alguns segundos a perceber que ele estava a brincar. Embora
não acreditasse que fosse possível, considerando os últimos minutos da sua
conversa com Alex, Katie percebeu que estava a sorrir, aliviada.
– Ainda vamos jantar, não se preocupe – disse ela.
– E amanhã?
Em vez de responder, ela pegou no copo de vinho. – Quero que me conte
como é que descobriu.
– Não foi uma única coisa em particular – referiu Alex, mencionando a
seguir algumas das coisas de que se apercebera com o decorrer dos dias. – A
maioria das pessoas não conseguiria juntar as peças.
Katie olhava para o fundo do copo. – Mas o Alex conseguiu.
– Não deu para evitar. É automático, para mim.
Ela pensou naquela resposta.
– Isso significa que já sabia há algum tempo. Ou que, pelo menos,
desconfiava.
– Sim – admitiu ele.
– E foi por isso que nunca fez perguntas sobre o meu passado.
– Exatamente – completou ele.
– E mesmo assim queria sair comigo.
A expressão no rosto de Alex era séria. – Eu quero sair consigo desde o dia
em que a vi pela primeira vez. Simplesmente tive de esperar até que estivesse
pronta.
Com os últimos raios de sol a desaparecerem no horizonte e o crepúsculo a
aproximar-se, o céu azul e sem nuvens ganhava tons de um violeta pálido.
Ficaram junto ao parapeito do alpendre e Alex observou a brisa suave, vinda
do sul, a agitar alguns fios do cabelo de Katie. A pele dela ganhou tons de
dourado e laranja, como um pêssego; ele reparou no levantar e baixar suave
do peito dela ao respirar. O olhar dela estava perdido na distância, e tinha
uma expressão ilegível; Alex sentiu um aperto no peito só de imaginar o que
ela estaria a pensar.
– Não respondeu à minha pergunta – disse ele, finalmente, quebrando o
silêncio.
Katie permaneceu imóvel por uns momentos, antes de permitir que se
formasse um sorriso tímido no seu rosto.
– Acho que vou continuar em Southport por mais algum tempo, se é isso
que quer saber – respondeu ela.
Alex inspirou o perfume que emanava dela. – Sabe que pode confiar em
mim.
Katie inclinou-se e apoiou a cabeça no peito de Alex, sentindo a força
daquele homem quando ele a envolveu num abraço. – Acho que não tenho
escolha, não é?

Regressaram à cozinha poucos minutos depois. Katie pousou o copo de


vinho na bancada e ocupou-se com os preparativos para o jantar, colocando
as entradas e os pimentos recheados no forno. Ainda a recuperar do choque
que sentira quando Alex revelara pormenores tão certeiros sobre o seu
passado, sentiu-se grata por ter alguma coisa com que se ocupar. Era difícil
compreender que ele ainda quisesse desfrutar da sua companhia naquela
noite. E, mais importante ainda, que ela quisesse passar a noite com ele. No
fundo do seu coração, não tinha a certeza se merecia ser feliz e também não
acreditava que fosse digna de ter alguém que parecia tão... normal.
Aquele era o segredo obscuro associado ao seu passado. Não o facto de ter
sido vítima de violência – de alguma forma, achava que merecia o que lhe
sucedera, simplesmente por ter permitido que tudo aquilo acontecesse.
Mesmo agora, ainda se envergonhava. Havia momentos em que se sentia
incrivelmente feia, como se as cicatrizes do passado fossem visíveis para
todos.
Mas, naquele momento e naquele lugar, o seu passado importava menos do
que antes, porque, de algum modo, Katie suspeitava que Alex entendia a
vergonha que ela sentia. Assim como aceitava aquele sentimento.
Ela tirou do frigorífico o molho de framboesa que preparara durante a tarde
e começou a despejá-lo com uma colher numa pequena caçarola para voltar a
aquecê-lo. Não demorou muito e, depois de o pôr de lado, tirou do forno os
pedaços de queijo brie enrolados em bacon, cobriu-os com o molho e levou-
os para a mesa. Lembrando-se do vinho que ainda estava na bancada, pegou
na garrafa e sentou-se à mesa com Alex.
– Isso é só para começar. Os pimentos ainda vão demorar um pouco.
Ele inclinou-se na direção da travessa. – O cheiro é maravilhoso. Serviu-se
de um dos pedaços de queijo e levou-o à boca. – Uau – comentou.
– É bom, não é? – disse Katie, sorrindo.
– Maravilhoso. Onde é que aprendeu a cozinhar assim?
– Eu tinha um amigo que era cozinheiro. Ele disse-me que estas entradas
conseguem deliciar qualquer pessoa.
Alex cortou outro pedaço.
– Fico feliz por ter decidido ficar em Southport. Acho que consigo
imaginar-me a comer frequentemente este queijo com molho de framboesa,
mesmo que tenha de trocar as mercadorias da minha loja por um prato assim.

– A receita não é complicada.


– Pois, mas nunca me viu cozinhar. Sou muito bom a preparar pratos que as
crianças gostam, mas, se for necessário confecionar algo mais elaborado,
simplesmente não consigo.
Alex pegou no seu copo de vinho e beberricou mais um pouco. – Acho que
o queijo combina melhor com o vinho tinto. Importa-se que eu abra a outra
garrafa?
– De maneira nenhuma.
Ele levantou-se e foi até à bancada da cozinha. Abriu o zinfandel enquanto
Katie foi ao armário buscar mais dois copos. Alex encheu-os e passou um a
Katie. Os dois estavam suficientemente perto um do outro para que os seus
corpos quase se tocassem, e Alex teve de se debater contra o desejo de puxá-
la para si e abraçá-la. Em vez disso, aclarou a garganta.
– Queria dizer-lhe uma coisa, mas não quero que me interprete mal.
Ela hesitou. – Porque é que tenho a impressão de que não vou gostar do
que me quer dizer?
– Só queria dizer-lhe o quão ansioso estava para que esta noite chegasse.
Passei a semana toda a pensar nisso.
– Porque é que achou que eu poderia interpretar isso mal?
– Não sei. Talvez por ser mulher? Por dar a ideia de eu estar desesperado, e
porque não há mulher que goste de homens desesperados?
Pela primeira vez naquela noite, ela riu-se de forma tranquila, sem
nervosismos. – Eu não o acho um homem desesperado. Tenho a impressão de
que, às vezes, fica sobrecarregado por causa das crianças e da loja, mas não é
do tipo de me ligar todos os dias.
– Só não o faço porque a Katie não tem telefone. Mas, mesmo assim,
queria que soubesse que tudo isto significa muito para mim. Não tenho muita
experiência neste tipo de coisas.
– Jantares?
– Não. Encontros. Já lá vão uns tempos.
Bem-vindo ao clube, pensou ela consigo mesma. Mas, de qualquer maneira,
aquilo fez com que se sentisse bem. – Vamos comer – disse, convidando-o a
regressar à mesa. – É melhor comê-los enquanto ainda estão quentes.
Assim que terminaram as entradas, Katie levantou-se da mesa e foi ao
forno, dando uma olhadela rápida aos pimentos antes de pegar na caçarola
que tinha usado antes. Juntou os ingredientes para o molho do prato principal
e começou a prepará-lo, enquanto salteava os camarões noutra panela.
Quando os camarões ficaram prontos, o molho também já estava finalizado.
Katie colocou um pimento em cada prato e acrescentou os camarões. Depois
de colocar o ambiente a meia-luz, acendeu a vela que colocara no centro da
mesa. O aroma a manteiga e alho e a luz que tremeluzia contra a parede
fizeram com que a velha cozinha parecesse praticamente nova e o ambiente
se tornasse prometedor.
Alex e Katie jantaram e conversaram. No exterior, as estrelas saíram dos
seus esconderijos. Alex elogiou a refeição mais do que uma vez, dizendo que
nunca tinha provado nada melhor. Conforme a vela ia ardendo e a garrafa de
vinho se esvaziava, Katie revelou alguns pormenores do seu passado, como a
vida que teve em Altoona em criança e na juventude. Embora não tivesse
revelado a Jo todos os detalhes sobre os seus pais, a Alex ela contou tudo,
sem quaisquer reservas: as mudanças constantes, o alcoolismo dos pais e o
facto de ter tido de sobreviver sozinha a partir dos 18 anos. Alex permaneceu
em silêncio durante todo o relato, escutando sem a julgar. Mesmo assim, ela
não soube bem o que pensar em relação ao que ele acharia do seu passado.
Quando finalmente parou de falar, começou a imaginar se não teria falado de
mais sobre si mesma. No entanto, foi nesse momento que ele pousou a mão
sobre a dela. Embora não conseguisse fitar Alex nos olhos, os dois deram as
mãos por cima da mesa. Nenhum deles se sentiu disposto a quebrar a magia
daquele toque, como se fossem as duas únicas pessoas que restavam no
mundo.
– Acho que é melhor eu começar a arrumar a cozinha – disse Katie, após
algum tempo, quebrando por fim o encanto.
Afastou-se da mesa. Alex ouviu os pés da cadeira de Katie a arrastarem no
chão e percebeu que aquele momento terminara. Tudo o que ele queria era
poder senti-lo de novo.
– Quero que saiba que esta noite, para mim, foi maravilhosa – começou ele.

– Alex... eu...
Ele abanou a cabeça. – Não precisa de dizer nada que...
Katie não o deixou concluir a frase.
– Mas eu quero dizer uma coisa, está bem?
Ela estava ao lado da mesa, com os olhos a brilhar devido a uma emoção
desconhecida. – Eu também tive uma noite maravilhosa. E sei onde isso vai
levar-nos e não quero que fique magoado – disse, exalando o ar e
preparando-se para as palavras que teria de proferir a seguir. – Não posso
prometer nada. Não posso dizer onde estarei amanhã, ou mesmo daqui a um
ano. Quando fugi pela primeira vez, pensei que conseguiria deixar tudo para
trás e recomeçar a minha vida do zero. Limitar-me-ia a viver a minha vida e
faria de conta que nada se tinha passado. Mas como é que isso é possível?
Acha que me conhece, mas nem eu sei se me conheço a mim própria. E por
mais que saiba algumas coisas a meu respeito, há muitas outras que não sabe.
Alex sentiu algo a desmoronar-se dentro de si. – Quer dizer que não quer
voltar a estar comigo?
– Não – disse ela, abanando a cabeça com veemência. – Estou a dizer isto
porque quero voltar a vê-lo, sim. E isso assusta-me, porque, no fundo do meu
coração, sei que merece alguém melhor. Merece alguém em quem possa
confiar. Alguém com quem os seus filhos possam contar. Como eu disse, há
certas coisas sobre mim que desconhece.
– Essas coisas não me interessam – insistiu Alex.
– Como é que pode dizer uma coisa dessas?
No silêncio que se seguiu àquela pergunta, Alex ouviu o ruído surdo do
motor do frigorífico. Pela janela, reparou que a lua surgira no céu e iluminava
o alto das copas das árvores.
– Porque eu conheço-me – disse ele, percebendo finalmente que estava
apaixonado por ela. Amava a Katie que conhecia e também amava a Katie
que não tivera a oportunidade de conhecer. Ergueu-se da cadeira e
aproximou-se dela.
– Alex... isto não pode...
– Katie – sussurrou ele e, por momentos, nenhum dos dois se moveu. Alex
finalmente pousou a mão na anca de Katie e puxou-a para si. Katie libertou o
ar, como se estivesse a livrar-se de um fardo que transportava há muito sobre
os ombros. E, quando ela o conseguiu olhar nos olhos, foi como se de repente
se tornasse fácil imaginar que os seus medos eram insignificantes. Que Alex
a amaria, independentemente do que ela dissesse. Que ele era o tipo de
homem que já a amava e que a amaria para sempre.
E foi naquele preciso momento que ela percebeu que também o amava.
Assim, Katie permitiu-se a tocar-lhe e a apoiar o rosto no peito dele. Sentiu
os dois corpos a tocarem-se e percebeu quando Alex lhe acariciou o cabelo
com a mão. O toque revelou-se suave e gentil, diferente de tudo o que ela
sentira até então, e observou, encantada, quando ele fechou os olhos. Alex
inclinou a cabeça e os rostos deles aproximaram-se. Quando os seus lábios
finalmente se encontraram, ela sentiu o gosto do vinho na língua dele. Katie
entregou-se a Alex, permitindo que ele a beijasse na cara e no pescoço,
arqueando as costas para trás e deliciando-se com a sensação. Sentiu a
humidade dos lábios dele quando lhe tocaram na pele, e colocou os braços à
volta do pescoço dele.
É isto que se sente quando se ama de verdade, pensou ela, e quando esse
amor é recíproco. Katie começou a sentir as lágrimas a formarem-se nos seus
olhos. Pestanejou, para tentar dominá-las, mas já não havia nada a fazer.
Katie amava-o e desejava-o. Mais do que isso, queria que Alex amasse a
verdadeira Katie, com todos os seus defeitos e segredos. Queria que ele
soubesse toda a verdade.
Beijaram-se demoradamente na cozinha, envolvidos em abraços apertados.
As mãos de Alex deslizaram pelas costas e pelo cabelo de Katie. Ela
arrepiou-se ao sentir a barba dele nas suas faces. Quando ele deslizou os
dedos pela pele do braço de Katie, ela sentiu uma torrente de calor líquido a
percorrer-lhe o corpo.
– Eu quero muito estar contigo, mas não posso – sussurrou ela, finalmente,
com a esperança de que aquilo não o deixasse zangado.
– Está tudo bem – sussurrou ele. – Eu duvido que esta noite possa tornar-se
ainda mais maravilhosa do que já foi até aqui.
– Mas estás desiludido.
Alex afastou uma madeixa do cabelo que caía sobre o rosto de Katie.
– Não me parece que seja possível desiludires-me.
Ela engoliu em seco, tentando afastar os seus temores.
– Há uma coisa que tens de saber a meu respeito – sussurrou ela.
– Seja lá o que for, tenho certeza de que consigo compreender.
Ela voltou a encostar-se a ele.
– Não posso passar a noite contigo – sussurrou. – E nunca poderemos
casar-nos. – Suspirou. – Eu sou casada.
– Eu sei – sussurrou ele.
– E não te importas?
– Não é uma situação perfeita. Mas, acredita em mim, também não sou
perfeito, por isso, talvez seja melhor vivermos um dia de cada vez. E, quando
estiveres pronta, quando te sentires efetivamente à vontade, cá estarei à tua
espera. – Alex tocou com um dedo no rosto de Katie. – Amo-te, Katie.
Talvez não estejas preparada para dizer agora essas palavras. Talvez nunca
venhas a estar. Mas isso não muda o que sinto por ti.
– Alex...
– Não precisas de dizer nada, Katie.
– Posso explicar? – perguntou ela, finalmente afastando-se.
Ele não fez questão de esconder a sua curiosidade.
– Eu quero contar-te uma coisa. Quero contar-te a minha história.

2 Feriado norte-americano dedicado aos soldados mortos em combate e que se celebra na última
segunda-feira de maio. (N. da T.)
17

T rês dias antes de Katie abandonar a Nova Inglaterra, um vento gelado,


típico do início de janeiro, fez com que os flocos de neve congelassem, e
ela teve de baixar a cabeça enquanto se encaminhava para o salão de
cabeleireiro. Os seus longos cabelos louros esvoaçaram ao vento, fazendo
com que sentisse as picadas do gelo quando os flocos chocavam contra o seu
rosto. Calçava sapatos de salto alto, não botas, e os seus pés já estavam a
congelar. Atrás dela, Kevin estava no carro, sentado ao volante, a observá-la.
Embora ela não se tivesse virado para olhar para ele, ouviu o ruído do motor
e sabia que os lábios dele formavam uma fina linha horizontal, com os
músculos tensos.
A multidão que enchia aquela zona da cidade durante o Natal já
desaparecera das ruas. De um dos lados do salão estava a loja Radio Shack,
especializada em material eletrónico, e, do outro, uma loja de animais. As
duas lojas estavam vazias. Quando Katie ia entrar no salão, o vento fez com
que a porta se abrisse violentamente, e ela teve de se esforçar para a fechar. O
ar gelado seguiu-a até ao interior e os ombros do seu casaco estavam cobertos
por uma fina camada de neve. Tirou as luvas e o casaco, virando-se ao fazê-
lo. Acenou na direção de Kevin para se despedir e sorriu. Ele gostava que ela
lhe sorrisse.
Ela tinha uma marcação para as duas horas com uma mulher chamada
Rachel. A maioria das cadeiras já estava ocupada e Katie não sabia para onde
deveria dirigir-se. Era a primeira vez que ia àquele salão e sentia-se algo
desconfortável. Nenhuma das cabeleireiras parecia ter mais de trinta anos e a
maioria delas tinha penteados arrojados, com madeixas azuis ou vermelhas.
Pouco depois, foi abordada por uma rapariga com cerca de 25 anos,
bronzeada e com alguns piercings, além de uma tatuagem no pescoço.
– Tem marcação para as duas horas? Cortar e pintar?
Katie assentiu afirmativamente com a cabeça.
– Sou a Rachel. Venha comigo.
Rachel espreitou por cima do ombro. – Lá fora está bastante frio, não está?
Quase morri antes de cá chegar. Eles obrigam-nos a deixar o carro na parte
mais afastada do estacionamento. Detesto isso, mas não há nada que possa
fazer.
– Está mesmo muito frio – concordou Katie.
Rachel encaminhou-a para uma cadeira perto do canto do salão. Era uma
cadeira forrada com vinil roxo e o chão do salão era em mosaicos pretos. Um
lugar para pessoas mais jovens, pensou Katie. Mulheres solteiras que
queriam dar nas vistas. Não era para mulheres casadas com cabelo louro.
Katie estava inquieta, sentindo-se agitada à medida que Rachel cobria as suas
roupas com uma bata. Mexeu os dedos dos pés, tentando aquecê-los.
– É nova aqui na zona? – perguntou Rachel.
– Moro em Dorchester – respondeu.
– Fica um bocado fora de caminho. Alguém lhe indicou este salão?
Katie passara em frente ao salão duas semanas antes, quando Kevin a
levara às compras, mas não foi isso que respondeu. Em vez disso, limitou-se
a negar com a cabeça.
– Bem, então acho que tive sorte em ter atendido o telefone – comentou
Rachel, com um sorriso. – Que tipo de pintura pretende?
Katie detestava olhar-se ao espelho, mas não tinha escolha. Tinha de
conseguir fazer aquilo, e da maneira correta. Era a sua única hipótese. Estava
uma fotografia colada ao espelho, mesmo à sua frente, mostrando Rachel e
um rapaz que Katie presumiu ser o namorado dela. Ele tinha mais piercings
do que ela e o cabelo à moicano. Por baixo da bata, Katie apertou as mãos.
– Quero algo que pareça natural, como umas madeixas escuras, que fiquem
bem no inverno. E trate também das raízes, para que não destoem.
Rachel assentiu, olhando para o reflexo de Katie no espelho. – Quer que o
tom geral fique da mesma cor? Mais claro ou mais escuro? O cabelo, não as
madeixas.
– Mais ou menos a mesma cor.
– Podemos usar a touca de papel de alumínio?
– Sim – respondeu Katie.
– Então vai ser fácil – garantiu Rachel. – Dê-me uns minutos para preparar
as minhas coisas. Eu volto já.
Katie assentiu com a cabeça. Ao seu lado, viu uma mulher recostada num
lavatório, acompanhada por outra cabeleireira. Ouviu a água a correr e o
murmúrio geral das conversas que vinha das outras cadeiras do salão. Dos
altifalantes, saía uma música suave.
Rachel regressou com a touca de alumínio e com as tintas. Perto da cadeira,
misturou os produtos, certificando-se de que a consistência estava correta.
– Há quanto tempo mora em Dorchester?
– Quatro anos.
– E onde morava antes?
– Na Pensilvânia – respondeu Katie. – Vivia em Atlantic City antes de me
mudar para cá.
– Aquele homem que a trouxe é o seu marido?
– Sim.
– Tem um belo carro. Vi quando lhe disse adeus. Qual é o modelo? Um
Mustang?
Katie assentiu de novo, mas não respondeu. Rachel trabalhou por algum
tempo em silêncio, aplicando a tinta e ajustando a touca.
– Há quanto tempo estão casados? – perguntou Rachel, enquanto aplicava a
tinta e envolvia com a touca uma madeixa mais rebelde do cabelo de Katie.
– Quatro anos.
– Foi por isso que se mudou para Dorchester, certo?
– Sim.
Rachel prosseguiu com a sua conversa.
– E o que é que faz? Em que é que trabalha?
Katie olhou em frente, tentando não ver o seu reflexo no espelho,
desejando ser outra pessoa. Poderia ficar ali cerca de uma hora e meia antes
que Kevin regressasse para a ir buscar e rezou para que ele não chegasse mais
cedo.
– Eu não trabalho – respondeu.
– Acho que ficaria maluca se não tivesse um emprego. Não é que seja fácil
aguentá-lo, é claro. E o que é que fazia antes de casar?
– Era empregada de mesa e servia cocktails.
– Num dos casinos?
Katie assentiu com a cabeça.
– Foi lá que conheceu o seu marido?
– Sim – respondeu Katie.
– E o que é que ele foi fazer, enquanto está aqui a arranjar o cabelo?
Provavelmente está nalgum bar, pensou Katie. – Não sei.
– E porque é que não veio até aqui de carro? Como eu disse, Dorchester
fica um bocado longe daqui.
– Não tenho carta. O meu marido leva-me sempre que eu preciso de ir a
algum lado.
– Não sei o que faria sem o meu carro. Não é nada de especial, mas vou
onde preciso com ele. Detestaria ter de depender de outra pessoa para me
deslocar.
Katie conseguiu sentir o perfume no ar. O aquecedor sob o balcão começou
a fazer barulho. – Nunca aprendi a conduzir.
Rachel encolheu os ombros enquanto ajustou outro pedaço da touca de
alumínio no cabelo de Katie. – Não é difícil. Pratique um pouco, faça o
exame e quando der por ela já anda a conduzir pelas ruas.
Katie olhou para Rachel no espelho. Rachel parecia saber o que estava a
fazer, mas ainda era jovem e estava no início da vida, e, ao fitá-la, Katie
desejou que fosse mais velha e mais experiente. E aquilo pareceu-lhe
estranho, pois na verdade ela própria seria apenas uns anos mais velha do que
Rachel. Mas Katie sentia-se velha.
– Tem filhos?
– Não.
Talvez a rapariga tivesse percebido que dissera algo de errado, pois nos
minutos seguintes trabalhou em silêncio. A touca de alumínio fez com que
Katie parecesse que tinha antenas na cabeça, como um alienígena. Rachel
finalmente encaminhou-a para outra cadeira. Ligou uma das lâmpadas de
calor.
– Volto daqui a uns minutos para ver como está, OK?
Rachel afastou-se, na direção de outra cabeleireira. Elas começaram a
conversar, mas o murmúrio generalizado no salão tornou impossível
compreender o que estavam a dizer. Katie olhou para o relógio na parede.
Kevin regressaria em menos de uma hora. O tempo estava a passar rápido.
Rápido de mais.
Rachel regressou e verificou o seu cabelo.
– Mais um bocado – comentou, após o que foi de novo conversar com a
colega, gesticulando com as mãos. Animada, jovem e despreocupada. Feliz.
Decorreram mais alguns minutos. Uma dúzia deles. Katie tentou não olhar
fixamente para o relógio. Finalmente, chegou a hora e Rachel removeu a
touca de alumínio antes de levar Katie até ao lavatório. Katie sentou-se e
recostou-se, sentindo a toalha no pescoço. Rachel abriu a torneira e Katie
sentiu a água fria no rosto. A jovem cabeleireira massajou-lhe o cabelo com o
champô e enxaguou; posteriormente, aplicou amaciador e voltou a enxaguar.

– Agora, vamos fazer um belo corte.


Ao regressar à cadeira, Katie achou que o seu cabelo estava bem, mas era
difícil saber com certeza por estar molhado. Tinha de estar exatamente como
queria, ou Kevin perceberia. Rachel penteou o cabelo de Katie,
desembaraçando os fios. Ainda faltavam quarenta minutos.
Rachel olhou para o reflexo de Katie no espelho. – Por onde quer que
corte?
– Cuidado para não cortar de mais – alertou Katie. – Tire apenas as pontas.
O meu marido gosta dele comprido.
– Vai querer algum penteado diferente? Tenho uma revista de penteados, se
quiser experimentar algo novo.
– Gostaria do mesmo penteado que tinha quando cheguei.
– Sem problemas.
Katie observou enquanto Rachel lhe penteou o cabelo, passando os dedos
pelas madeixas para depois as cortar com a tesoura. Primeiro atrás, depois
dos lados. E, finalmente, na parte de cima da cabeça. Rachel arranjou algures
uma pastilha elástica e começou a mascá-la, com o queixo a mover-se para
cima e para baixo enquanto trabalhava.
– Está bom assim?
– Sim, acho que já é o suficiente.
Rachel pegou no secador de cabelo e numa escova de enrolar. Fez deslizar
a escova pelo cabelo de Katie, que ouvia o ruído do secador bem alto.
– De quanto em quanto tempo é que trata o cabelo? – perguntou Rachel,
tentando encetar conversa.
– Uma vez por mês – respondeu Katie. – Mas às vezes só corto.
– O seu cabelo é muito bonito.
– Obrigada – disse Katie.
Rachel continuou a trabalhar. Katie pediu que lhe fizesse alguns pequenos
caracóis e Rachel pegou no ferro de encaracolar. Levou alguns minutos até
que o aparelho aquecesse. Ainda restavam cerca de vinte minutos. Rachel
enrolou e escovou o cabelo de Katie até se dar por satisfeita e observou a sua
cliente no espelho.
– Está bom assim?
Katie examinou a cor e o penteado. – Está perfeito.
– Espreite a parte de trás – disse Rachel.
Ela girou a cadeira de Katie e passou-lhe um espelho. Katie olhou para o
reflexo duplo e assentiu afirmativamente com a cabeça.
– Então, acho que está pronto – disse Rachel.
– Quanto lhe devo?
Rachel indicou o valor e Katie tirou o dinheiro da carteira, incluindo a
gorjeta. – Pode dar-me um recibo?
– É claro. Venha comigo à caixa.
A rapariga preparou o recibo e entregou-o a Katie. Kevin iria verificá-lo e
pediria o troco quando ela regressasse ao carro, pelo que Katie pediu a Rachel
que incluísse a gorjeta no recibo. Olhou para o relógio. Doze minutos.
Kevin ainda não regressara e o coração de Katie estava a bater
intensamente enquanto vestia o casaco e calçava as luvas.
Ela saiu do salão enquanto Rachel ainda conversava com ela. Na loja ao
lado, a Radio Shack, pediu ao empregado que lhe mostrasse um telemóvel
descartável e um cartão com vinte horas de chamadas. Sentiu uma vertigem
ao proferir aquelas palavras, pois sabia que, depois daquilo, não seria
possível voltar atrás.
O empregado mostrou-lhe um modelo que estava debaixo do balcão e
começou a dar-lhe os pormenores do aparelho à medida que explicava o seu
funcionamento. Ela tinha mais dinheiro na carteira, escondido num pacote de
pensos higiénicos, pois sabia que Kevin nunca iria procurar nada ali. Katie
pegou no dinheiro e pousou as notas amarrotadas em cima do balcão. O
relógio continuava a contar os segundos e ela olhou de novo para o
estacionamento. Estava a começar a sentir-se um pouco zonza e com a boca
seca.
O rapaz da loja demorou uma eternidade para conseguir ligar para o
telemóvel novo de Katie. Embora fosse pagar o aparelho em dinheiro, o
funcionário pediu-lhe o nome, morada e código postal. Não havia qualquer
motivo para aquilo. Era ridículo. Só queria pagar e sair dali. Contou até dez e
o rapaz ainda estava a anotar os dados. Na rua, o semáforo ficou vermelho.
Havia carros à espera. Imaginou que Kevin poderia estar ali, pronto para
passar em frente à loja. Não sabia se ele conseguiria vê-la a sair da loja de
artigos eletrónicos. Sentiu dificuldade em respirar.
Tentou abrir a embalagem plástica, mas revelou-se impossível. Grande de
mais para caber na carteira que trazia, grande de mais para caber no bolso do
casaco. Pediu ao empregado que lhe emprestasse uma tesoura e ele gastou um
minuto precioso à procura de uma. Ela queria gritar, ordenar-lhe que se
apressasse, porque Kevin iria chegar a qualquer momento. Em vez disso,
virou-se para olhar pela janela.
Quando conseguiu tirar o telemóvel da embalagem, enfiou-o no bolso do
casaco, com o cartão pré-pago. O rapaz perguntou se queria um saco, mas
Katie já tinha saído porta fora sem responder. O telefone parecia um bloco de
chumbo no bolso do casaco, e a neve e o gelo no passeio fizeram com que
fosse difícil manter o equilíbrio.
Katie abriu a porta do salão de beleza e entrou. Despiu o casaco e as luvas e
esperou ao lado da caixa. Trinta segundos depois, viu o carro de Kevin a
aproximar-se pela rua, até chegar perto do salão.
Sacudiu rapidamente a neve que se acumulara no casaco e, naquele
momento, viu Rachel a dirigir-se a si. Sentiu uma onda de pânico ao imaginar
que Kevin poderia ter percebido. Concentrou-se, tentando manter o controlo
e agir naturalmente.
– Esqueceu-se de alguma coisa? – perguntou Rachel.
Katie libertou o fôlego. – Ia esperar lá fora, mas está muito frio – explicou.
– E, além disso, também percebi que não fiquei com o seu cartão.
O rosto de Rachel pareceu iluminar-se. – Oh, é claro. Espere um pouco –
disse ela, indo até à sua cadeira e retirando um cartão de uma das gavetas do
balcão. Katie sabia que Kevin a estava a observar do carro, mas fingiu não
reparar.
Rachel regressou e entregou o seu cartão a Katie. – Por norma, não trabalho
aos domingos e às segundas-feiras – disse ela.
Katie assentiu. – Eu ligo quando precisar dos seus serviços.
Por trás dela, ouviu a porta do salão a abrir-se e viu Kevin à sua espera à
entrada. Geralmente ele não entrava naquele tipo de lugares e ela sentiu o
coração a acelerar. Voltou a vestir o casaco, tentando controlar o tremor nas
mãos. Até que, finalmente, se virou e sorriu.
18

A neve caía com mais intensidade quando Kevin Tierney estacionou o carro
na rampa de entrada de casa. Havia sacos de compras no banco de trás e
Kevin pegou em três antes de se dirigir à porta. Não abrira a boca no percurso
entre o salão e o supermercado e falou pouco com Katie durante as compras.
Em vez disso, andou ao lado dela conforme a esposa examinava as prateleiras
à procura de promoções e tentava esquecer o telefone que trazia no bolso.
Eles não tinham muito dinheiro e Kevin ficaria irritado se ela gastasse
demasiado. As prestações da hipoteca da casa levavam quase metade do
salário dele e as despesas do cartão de crédito subtraíam mais uma boa
porção. Na maioria das vezes, precisavam de comer em casa, mas Kevin
gostava de refeições como as que eram servidas em restaurantes, com um
prato principal e dois acompanhamentos, ocasionalmente com uma salada.
Recusava-se a comer sobras de refeições anteriores e era difícil adequar o
orçamento às exigências dele. Katie tinha de planear cuidadosamente as
ementas diárias, além de recortar os cupões promocionais que apareciam no
jornal. Quando Kevin pagou as compras, ela entregou-lhe o troco do salão de
cabeleireiro, assim como o recibo. Ele contou o dinheiro para se certificar de
que tudo estava em ordem.
Em casa, Katie esfregou os braços para se manter aquecida. A casa era
velha e o ar frio entrava pelas frestas das janelas e pela frincha debaixo da
porta da entrada. O chão da casa de banho era tão frio que fazia os pés
doerem, mas Kevin queixava-se do preço do gasóleo usado para aquecer a
casa e nunca deixava que Katie ajustasse o termóstato para uma temperatura
mais agradável. Quando ele estava a trabalhar, ela usava uma sweatshirt e
chinelos; mas, quando Kevin estava em casa, queria que ela se vestisse de
forma sensual.
Kevin pousou os sacos das compras em cima da mesa da cozinha. Katie
deixou os seus sacos logo ao lado enquanto Kevin foi ao frigorífico. Abriu-o
e tirou uma garrafa de vodka e alguns cubos de gelo. Colocou o gelo num
copo e despejou a vodka. Só parou de se servir quando o copo ficou
praticamente cheio. Deixando-a sozinha, foi para a sala de estar e Katie ouviu
os sons da televisão, ligada no canal ESPN, de desporto. O comentador
desportivo estava a falar da equipa Patriots, dos play-offs e das possibilidades
de vencerem mais uma Super Bowl. No ano anterior, Kevin fora ao estádio
assistir a um jogo dos Patriots. Ele era fã da equipa desde criança.
Katie tirou o casaco e enfiou a mão no bolso. Calculou que dispusesse de
alguns minutos e esperou que fossem suficientes. Depois de espreitar para a
sala para ver o que Kevin estava a fazer, apressou-se a regressar à cozinha.
No armário sob a bancada havia uma caixa de esfregões de lavar a louça.
Escondeu o telefone no fundo da caixa e tapou-o com os esfregões. Fechou
cuidadosamente a porta do armário antes de pegar no casaco, na esperança de
que o seu rosto não se mostrasse pálido e rezando para que ele não a tivesse
visto. Respirou fundo para ganhar força, colocou o casaco no braço e
atravessou a sala de estar para o guardar no armário que havia no hall de
entrada. A sala pareceu esticar-se conforme ela a atravessou, como uma
divisão vista através dos reflexos de uma casa de espelhos num parque de
diversões, mas tentou ignorar aquela sensação. Katie sabia que Kevin era
capaz de adivinhar os seus pensamentos, de lhe ler a mente e perceber o que
ela fizera, mas ele não desviou sua atenção da televisão. Só sentiu a
respiração voltar ao normal quando regressou à cozinha.
Começou a guardar as compras, sentindo-se ainda algo zonza, mas sabendo
que tinha de agir com naturalidade. Kevin gostava da casa limpa e arrumada,
especialmente a cozinha e as casas de banho. Katie guardou o queijo e os
ovos nos respetivos compartimentos no frigorífico. Tirou os legumes velhos
da gaveta e limpou-a com um pano antes de lá colocar os novos. Depois,
pegou em algumas vagens de feijão-verde e numa dúzia de batatas vermelhas
que estavam numa cesta no chão da despensa. Deixou um pepino no balcão,
com um pé de alface e um tomate, para fazer uma salada. Para o jantar
daquela noite, iria preparar costeletas marinadas.
Katie deixara as costeletas a marinar no molho desde o dia anterior: vinho
tinto, sumo de laranja, sumo de toranja, sal e pimenta. A acidez dos sumos
servia para amaciar a carne e dar-lhe mais sabor. Estava numa caçarola na
parte de baixo do frigorífico.
Arrumou o resto das compras, colocando os produtos mais antigos à frente,
e dobrou os sacos de plástico, guardando-os sob o lava-louça. Retirou uma
faca da gaveta. A tábua de cortar carnes estava debaixo da torradeira e Katie
pô-la ao lado do fogão. Cortou as batatas ao meio, apenas o bastante para o
jantar dos dois. A seguir, untou uma assadeira com óleo, ligou o forno e
temperou as batatas com salsa, sal, pimenta e alho. Aqueles ingredientes
iriam ao forno antes das costeletas e Katie teria de os aquecer mais tarde. A
carne tinha de ser grelhada.
Kevin apreciava que os ingredientes da sua salada fossem cortados em
pedaços bem pequenos, com porções de queijo azul, croutons e tempero
italiano. Ela cortou o tomate ao meio e um quarto do pepino antes de
envolver o resto em película aderente para guardar outra vez no frigorífico.
Ao abrir a porta, percebeu que Kevin estava na cozinha atrás dela, apoiado na
ombreira da porta que dava para a sala de jantar. Ele bebeu demoradamente,
terminando a vodka e continuando a observá-la, com a sua presença a
dominar o ambiente.
Ele não sabia que ela saíra do cabeleireiro, fez questão de realçar a si
própria. Não sabia que tinha comprado um telemóvel. Ele teria dito alguma
coisa. Teria feito algo.
– Vamos ter costeletas para o jantar? – acabou por perguntar.
Katie fechou a porta do frigorífico e continuou a movimentar-se na
cozinha, tentando parecer ocupada e tentando refrear os seus receios. – Sim –
respondeu. – Acabei de ligar o forno, por isso ainda vai demorar alguns
minutos. Preciso de pôr as batatas a assar antes.
Kevin fitou-a fixamente.
– O teu cabelo está bonito.
– Obrigada. A cabeleireira trabalhou bem.
Katie regressou à tábua. Começou a cortar o tomate, tirando uma longa
fatia.
– Nada de pedaços grandes – disse ele, meneando a cabeça na direção
dela.
– Eu sei – respondeu Katie. Sorriu quando ele se dirigiu de novo ao
congelador. Ouviu o tinir dos cubos de gelo no copo dele.
– Conversaste sobre o quê no cabeleireiro?
– Nada de especial. As coisas de sempre. Já sabes como são as
cabeleireiras, sempre a tentar fazer conversa.
Ele agitou o copo. Ela ouviu os cubos de gelo a bater contra o vidro.
– Falaste de mim?
– Não – disse ela.
Ela sabia que Kevin não teria apreciado isso e ele assentiu com a cabeça.
Ele tirou outra vez a garrafa de vodka do frigorífico e pousou-a ao lado do
copo, sobre a mesa, antes de se colocar atrás dela. Deteve-se e espreitou por
cima do ombro de Katie enquanto ela picava o tomate. Bocados pequenos,
nada que fosse maior do que uma ervilha. Era capaz de sentir a respiração de
Kevin na sua nuca e tentou não gemer quando ele colocou as mãos nas suas
ancas. Sabendo o que deveria fazer, ela pousou a faca na bancada e virou-se
na direção dele, envolvendo o pescoço do marido com os braços. Beijou-o,
colocando a língua na boca dele, sabendo que era isso o que ele queria, e não
viu a estalada a vir até sentir o ardor na face. Queimava. Quente e vermelho.
Doloroso. Como picadas de abelha.
– Fizeste-me perder a tarde toda! – gritou ele, agarrando-lhe os braços com
força, apertando-os. A sua boca estava retorcida e os olhos vermelhos,
injetados de sangue. Ela sentiu o cheiro a álcool no hálito dele e foi atingida
por algumas gotas de saliva. – Era o meu único dia de folga e escolhes logo
hoje para ir cortar o cabelo no centro da cidade! E depois ainda quiseste ir ao
supermercado!
Ela tentou libertar-se dele, afastar-se, até que Kevin finalmente a largou.
Ele abanou a cabeça. Tinha o músculo do queixo a latejar. – Não te passou
pela cabeça que a única coisa que eu queria hoje era descontrair um pouco?
Aproveitar para descansar no meu único dia de folga?
– Desculpa – disse ela, com a mão no rosto. Não referiu que lhe perguntara
duas vezes naquela mesma semana se haveria algum problema com aqueles
planos. Ou que fora Kevin que a obrigara a ir a outro cabeleireiro porque não
queria que ela fizesse amizade com ninguém. Não queria que ninguém
soubesse da vida que tinham.
– Desculpa – disse ele, imitando o tom de voz de Katie. Olhou para ela
antes de abanar outra vez a cabeça. – Por amor de Deus. Será assim tão difícil
pensares em mais alguém além de ti?
Estendeu o braço, tentando agarrá-la, e ela virou-se, para tentar escapar. Ele
estava preparado para aquela reação e não havia para onde ir. O golpe foi
rápido e vigoroso, com o punho a mover-se como um pistão, atacando a
região lombar das costas de Katie. Ela arquejou, sentindo a visão escurecer,
sentindo-se como se tivesse sido esfaqueada. Tombou no chão com os rins a
arder, a dor a irradiar pelas pernas e pela coluna. O mundo estava a rodopiar
e, quando tentou levantar-se, o movimento só serviu para piorar a sensação.
– És sempre muito egoísta! – acusou ele, curvando-se por cima dela.
Ela não disse nada. Não conseguiu dizer nada. Não conseguiu sequer
respirar. Mordeu o lábio para não gritar e imaginou se iria urinar sangue no
dia seguinte. A dor era como uma lâmina, dilacerando-lhe os nervos, mas não
iria chorar. Isso só serviria para deixar Kevin ainda mais furioso.
Ele permaneceu ali de pé ao lado dela e depois suspirou, com uma
expressão de puro desprezo. Foi à mesa e pegou no copo vazio e na garrafa
de vodka antes de sair da cozinha.
Katie levou quase um minuto a reunir a força necessária para se levantar.
Quando começou a cortar de novo os legumes, tinha as mãos a tremer. A
cozinha estava gelada e a dor nas costas era muito intensa, latejando a cada
batida do coração. Na semana anterior, ele atingira-a com tanta força no
estômago que ela passara o resto da noite a vomitar. Katie caíra ao chão e
Kevin agarrara-a pelo pulso para fazer com que se levantasse novamente. Os
hematomas no pulso tinham o formato dos dedos dele. Vestígios do inferno.
Escorreram-lhe lágrimas pelo rosto e ela sentiu dificuldade em manter-se
de pé, apoiando o seu peso ora numa perna, ora na outra, para tentar afastar a
dor enquanto acabava de picar o tomate. Fez o mesmo com o pepino. Pedaços
pequenos. A alface, também, cortada e picada. Tal como ele queria. Katie
enxugou as lágrimas com as costas da mão e dirigiu-se lentamente ao
frigorífico. De lá, tirou uma embalagem de queijo azul e depois pegou nos
croutons, que estavam no armário.
Na sala de estar, ele tinha aumentado outra vez o volume da televisão.
O forno estava na temperatura certa. Katie colocou a assadeira no forno e
ajustou o cronómetro. Quando o calor lhe atingiu o rosto, percebeu que ainda
tinha a pele a arder, mas duvidava que a estalada tivesse deixado qualquer
marca. Ele sabia exatamente a força que precisava de aplicar. Ela
questionava-se onde ele teria aprendido aquilo, se era algo que todos os
homens saberiam, ou mesmo se haveria aulas secretas, com instrutores
especializados em ensinar esse tipo de coisas. Ou se aquela seria apenas uma
característica típica de Kevin.
A dor nas costas começara finalmente a diminuir de intensidade. Já
conseguia respirar normalmente. O vento entrava pelas frestas da janela e o
céu assumira uma cor cinzenta e escura. A neve batia suavemente no vidro.
Katie olhou discretamente em direção à sala, onde viu Kevin sentado no sofá,
e apoiou-se na bancada. Tirou um dos sapatos e esfregou os dedos dos pés,
tentando fazer o sangue fluir, tentando aquecê-los. Fez o mesmo com o outro
pé antes de voltar a calçar os sapatos. Lavou e cortou o feijão-verde e colocou
um pouco de azeite na frigideira. Começaria a refogá-lo quando as costeletas
estivessem na grelha. Tentou não pensar no telefone que estava debaixo da
bancada.
Estava a tirar a assadeira do forno quando Kevin regressou à cozinha. Ele
estava com o copo na mão e já bebera metade do seu conteúdo. Tinha os
olhos vidrados. Já bebera quatro ou cinco copos, ela não sabia ao certo. Katie
colocou a assadeira no forno.
– Só mais um bocadinho – disse ela, falando num tom neutro e fingindo
que nada acontecera. Já aprendera que, se demonstrasse irritação ou mágoa,
isso serviria apenas para o enfurecer. – Tenho de acabar de preparar as
costeletas e depois o jantar fica pronto.
– Olha, desculpa – disse ele, ligeiramente a cambalear.
Ela sorriu. – Está tudo bem. Sei que as últimas semanas foram
complicadas. Tens trabalhado de mais.
– Os teus jeans são novos? – As palavras saíram arrastadas pela boca dele.
– Não. Já há algum tempo que não uso estas calças.
– Ficam-te bem.
– Obrigada – respondeu ela.
Kevin deu um passo na direção dela. – Tu és linda. Sabes que te amo, não
sabes?
– Sei, sim.
– Não gosto de te bater, mas, às vezes, não pensas nas coisas que fazes.
Ela assentiu, desviando o olhar, tentando pensar em algo para fazer,
precisando de se ocupar, até se lembrar que precisava de colocar os pratos e
os talheres na mesa. Aproveitou e dirigiu-se ao armário que ficava ao lado do
lava-louça.
Kevin aproximou-se por trás dela enquanto Katie tirava os pratos e fez com
que ela se virasse na sua direção, puxando-a para junto de si. Ela inalou antes
de dar um suspiro de felicidade, porque sabia que Kevin queria que ela
respondesse aos seus carinhos com aqueles sons.
– Também tens de dizer que me amas – sussurrou ele. Kevin beijou-lhe o
rosto e ela colocou os seus braços em volta dele. Katie sentiu-o a encostar-se
ao seu corpo, sabia o que ele queria.
– Eu amo-te – disse ela.
A mão de Kevin deslizou até ao seu seio. Ela esperou que ele o apertasse,
mas nada disso aconteceu. Em vez disso, acariciou-a suavemente. Apesar de
tudo o que acontecera, o seu mamilo começou a ficar intumescido e ela
detestava quando aquilo acontecia. Mas não conseguia evitar. O hálito de
Kevin estava quente. E com cheiro a álcool.
– Meu Deus, és linda. Sempre foste linda, desde a primeira vez que te vi –
disse ele, pressionando o seu corpo contra o dela, e ela conseguia sentir a
excitação dele. – Vamos deixar as costeletas para depois. O jantar pode
esperar um pouco.
– Pensei que estivesses com fome – comentou Katie, tentando fazer com
que aquilo parecesse uma leve provocação.
– Agora, estou com fome de outra coisa – sussurrou Kevin. Ele desabotoou
a blusa dela e abriu-a, antes de levar as mãos aos botões dos jeans.
– Aqui não – disse ela, afastando o rosto do dele, mas deixando que ele
continuasse a beijá-la. – Vamos para o quarto.
– E que tal se o fizéssemos na mesa? Ou na bancada?
– Por favor, querido – murmurou ela, com a cabeça arqueada para trás
enquanto ele a beijava no pescoço. – Não é nada romântico.
– Mas sabe bem – disse ele.
– E se alguém nos vir pela janela?
– Não te sabes divertir – acusou ele.
– Por favor? – disse ela, novamente. – Não queres fazer isso por mim?
Sabes que me excita muito mais fazê-lo na cama.
Ele beijou-a mais uma vez, fazendo as mãos deslizar até ao sutiã. Abriu o
fecho que prendia a peça na parte da frente. Kevin não gostava de sutiãs com
fecho na parte de trás. Ela sentiu nos seios o ar frio da cozinha; viu o desejo
no rosto de Kevin quando ele os fitou. Ele lambeu os lábios antes de a levar
para o quarto.
Assim que lá chegaram, ele pareceu estar possuído por uma energia
animalesca, puxando os jeans de Katie até às ancas e depois até aos
tornozelos. Apertou-lhe os seios com força e ela mordeu o lábio para não
gritar antes de chegarem à cama. Ela gemeu e arfou, gritando o nome de
Kevin, sabendo que era isso aquilo que ele desejava, pois não queria que ele
se zangasse, porque não queria ser esbofeteada, socada ou pontapeada,
porque não queria que Kevin descobrisse o telemóvel. Katie ainda sentia a
dor lancinante nos rins e transformou os seus gritos em gemidos, dizendo as
coisas que ele queria que dissesse, excitando-o até que o corpo dele
começasse a mover-se em espasmos. Quando tudo terminou, levantou-se da
cama, vestiu-se e beijou-o antes de voltar à cozinha para terminar de preparar
o jantar.
Kevin regressou à sala de estar e bebeu mais vodka antes de se sentar à
mesa. Falou-lhe do seu trabalho e depois foi ver um pouco mais de televisão
enquanto ela arrumava a cozinha. Depois, quis que ela se sentasse ao seu lado
para verem televisão, até que finalmente chegou a hora de ir dormir.
No quarto, ao fim de poucos minutos ele já estava a ressonar, sem se
aperceber das lágrimas silenciosas de Katie, sem se aperceber do ódio que ela
sentia por ele, ou do ódio que sentia por si mesma. Sem saber do dinheiro que
ela andava a guardar há quase um ano, ou da tinta para o cabelo que ela
colocara discretamente no carrinho de supermercado há um mês e que
escondera atrás do armário, sem fazer a menor ideia do telemóvel escondido
no armário sob a bancada da cozinha. Sem imaginar que, dentro de alguns
dias, se tudo corresse como ela esperava, ele nunca mais voltaria a vê-la ou a
agredi-la.
19

K atie estava sentada ao lado de Alex no alpendre e o céu lá no alto era


uma imensidão negra cravejada de pontos brilhantes. Durante meses,
tentara bloquear as memórias mais específicas, concentrando-se apenas no
medo que deixara para trás. Não queria lembrar-se de Kevin, não queria
pensar nele. Queria apagá-lo totalmente da sua vida, fingir que ele nunca
existira. Mas ele estaria sempre lá.
Alex permaneceu em silêncio durante todo o relato, com a sua cadeira a
formar um ângulo com a de Katie. Ela contou a sua história por entre
lágrimas, embora ele duvidasse que ela soubesse que estava a chorar. Katie
contou-lhe tudo sem qualquer ponta de emoção, quase num estado de transe,
como se os eventos tivessem acontecido a outra pessoa. Ele sentiu um nó no
estômago quando Katie parou de falar.
Ela não conseguiu olhá-lo nos olhos enquanto falava. Ele já antes escutara
versões da mesma história, mas daquela vez era diferente. Katie não era
simplesmente uma vítima, era sua amiga, a mulher por quem se apaixonara.
Alex afastou uma madeixa do cabelo que caía à frente do rosto dela.
Quando lhe tocou, ela encolheu-se instintivamente antes de se descontrair.
Ele ouviu-a suspirar, cansada. Cansada de falar. Cansada do passado.
– Agiste bem ao fugir daquela vida – disse ele. O seu tom de voz era suave
e compreensivo.
Ela demorou algum tempo a responder. – Eu sei – disse.
– Não tens culpa de nada.
Katie fitou a escuridão. – Tenho, sim. Eu escolhi-o, lembras-te? Eu casei-
me com ele. Deixei que aquilo acontecesse uma vez, e outra vez a seguir, e
depois já era demasiado tarde. Continuei a cozinhar para ele e a limpar a casa.
Ia para a cama com ele sempre que ele queria e fazia tudo o que ele queria.
Fiz com que pensasse que eu adorava aquela vida.
– Fizeste o que tinhas a fazer para sobreviver – realçou ele, com uma voz
firme.
Ela voltou a cair no silêncio. Os grilos estavam a cantar e os gafanhotos a
zunir por entre as árvores. – Nunca pensei que pudesse acontecer uma coisa
assim. O meu pai era alcoólico, mas não era violento. Eu era tão... fraca. Nem
sei porque é que permiti que isso acontecesse.
Alex falou num tom suave. – Porque houve um tempo em que o amaste.
Porque acreditaste no teu marido quando ele prometeu que aquilo não
voltaria a acontecer. Porque ele se tornou cada vez mais violento e
controlador, de forma gradual, levando-te a pensar que iria mudar, até que
finalmente percebeste que isso nunca aconteceria.
Ao escutar aquelas palavras, ela respirou fundo e baixou a cabeça, os
ombros movendo-se para cima e para baixo. O som da angústia dela fez com
que a garganta de Alex se contraísse devido à raiva face à vida que ela vivera
e devido à tristeza de saber que ela ainda vivia com aquilo dentro de si.
Sentiu vontade de abraçá-la, mas sabia que, naquele momento, estava a
respeitar os limites dela. Katie estava frágil e vulnerável. Chegara ao seu
limite.
Decorreram alguns minutos até Katie conseguir finalmente parar de chorar.
Tinha os olhos vermelhos e inchados. – Desculpa ter-te contado tudo isto.
Não o devia ter feito – disse, com a voz ainda embargada.
– Ainda bem que contaste.
– Só o fiz porque já sabias.
– Eu compreendo.
– Mas não precisavas de saber os pormenores sobre as coisas que tive de
fazer.
– Não te preocupes com isso.
– Odeio-o – disse ela. – Mas também me odeio a mim própria. Tentei
explicar-te que é melhor eu ficar sozinha. Não sou a pessoa que pensas que
sou. Não sou a mulher que pensas conhecer.
Ela estava prestes a começar a chorar de novo, até que ele finalmente se
levantou. Puxando-a pela mão, deu a entender que queria que ela se
levantasse. Katie obedeceu, mas sem conseguir olhar para ele. Alex esforçou-
se por suprimir a raiva que sentia pelo marido dela e manteve a voz num tom
suave.
– Ouve o que tenho para te dizer – sussurrou. Com um dedo, ergueu o
queixo de Katie. Ela de início resistiu, até que finalmente cedeu e o fitou nos
olhos. Ele prosseguiu. – Não há nada que possas dizer-me que altere o que
sinto por ti. Nada. Porque tu não és assim. Nunca foste. És a mulher que eu
conheço. És a mulher que eu amo.
Katie fitou-o atentamente, querendo acreditar nele, sabendo que, de algum
modo, ele estaria a dizer a verdade. E sentiu algo ceder dentro de si. Ainda
assim...
– Mas...
– Nada de «mas», porque nada disso é importante. Encaras-te como alguém
que não conseguiu fugir do que o destino lhe reservou. Mas eu vejo uma
mulher corajosa que escapou. Vês-te como alguém que deveria sentir-se
envergonhada ou culpada por ter permitido que aquilo acontecesse. Eu vejo
uma mulher bonita e gentil, que deveria sentir orgulho por ter impedido que
aquilo voltasse a acontecer. Nem todas as mulheres têm força para fazer o
que fizeste. É isso o que eu vejo agora e é isso que eu sempre vi quando
olhava para ti.
Ela sorriu. – Acho que estás a precisar de óculos.
– Não te deixes enganar pelos cabelos grisalhos. Os meus olhos ainda estão
perfeitos.
Ele inclinou-se na direção dela, cautelosamente, certificando-se, antes de a
beijar, de que tudo estava bem. Foi um beijo curto e suave. Carinhoso. – Só
me sinto triste por teres passado por tudo isso.
– Ainda estou a passar.
– Achas que ele ainda anda à tua procura?
– Tenho a certeza que sim. E nunca vai parar – disse ela, antes de fazer
uma pausa. – Há algo de errado nele. Ele é... louco.
Alex refletiu sobre aquele comentário. – Sei que não deveria fazer esta
pergunta, mas já pensaste em avisar a polícia?
Ela baixou os ombros. – Sim. Eu liguei uma vez.
– E eles não fizeram nada?
– Foram a minha casa e conversaram comigo. E convenceram-me de que
seria melhor não apresentar queixa.
Alex matutou sobre o assunto.
– Isso não faz sentido.
– A mim fez bastante sentido – disse ela, encolhendo os ombros. – O Kevin
avisou-me de que não serviria de nada chamar a polícia.
– Como podia ele saber?
Ela suspirou, pensando que era melhor contar tudo de uma vez. – Porque
ele é polícia – revelou, finalmente. Olhou para cima, para Alex. – Ele é
detetive no departamento de polícia de Boston. E ele não me tratava por
Katie. – Os seus olhos revelaram todo o seu desespero. – Tratava-me por
Erin.
20

N o Memorial Day, centenas de quilómetros mais a norte, Kevin Tierney


estava no jardim das traseiras de uma casa em Dorchester, envergando
os calções e a camisa havaiana que comprara quando fora com Erin para
Oahu na lua de mel.
– A Erin foi para Manchester – contou ele.
Bill Robinson, o seu capitão, virou os hambúrgueres na grelha.
– Outra vez?
– Eu já te disse que uma amiga dela está com cancro, não te lembras? Ela
acha que precisa de lá estar para tratar da amiga.
– O cancro é uma doença terrível – comentou Bill. – E como é que a Erin
está a encarar a situação?
– Está tudo bem. Mas dá para perceber que está cansada. É difícil uma
pessoa habituar-se à rotina das viagens.
– Imagino. A Emily teve de fazer uma coisa do género quando a irmã
contraiu lúpus. Passou dois meses em Burlington, em pleno inverno, enfiada
num apartamento pequeno. As duas ficaram loucas. A irmã acabou por fazer
as malas à Emily e colocou-as à porta do apartamento, dizendo que ficaria
melhor sozinha. Não a censuro por isso, é claro.
Kevin bebeu um trago da sua cerveja e, como era aquilo que se esperava
que ele fizesse, sorriu. Emily era a esposa de Bill e estavam casados há quase
trinta anos. Bill gostava de dizer às pessoas que tinham sido os seis anos mais
felizes da sua vida. Todos os polícias e funcionários da esquadra já tinham
ouvido aquela piada cerca de cinquenta vezes nos últimos oito anos e a maior
parte dessas pessoas estava lá naquele momento. Bill oferecia um churrasco
todos os anos no Memorial Day, não apenas por considerar isso uma
obrigação, mas também porque o seu irmão trabalhava numa distribuidora de
cerveja e grande parte do lote era consumido naquelas ocasiões. Maridos,
mulheres, namorados, namoradas e crianças estavam reunidos em grupos.
Alguns na cozinha, outros no pátio. Quatro detetives estavam a tentar acertar
com ferraduras num pino de metal espetado no chão, fazendo levantar a areia
em redor do alvo.
– Quando ela regressar, porque é que não a trazes cá para jantar? A Emily
perguntou por ela. A menos, é claro, que queiram recuperar o tempo perdido
– acrescentou Bill, piscando o olho.
Kevin começou a perguntar-se se aquela oferta seria genuína. Em dias
como aquele, Bill gostava de fingir que era apenas um homem comum, em
vez do capitão. Mas ele era duro. Inteligente. Mais político do que polícia. –
Eu digo-lhe.
– Quando é que ela partiu?
– Hoje de manhã. Já lá deve ter chegado.
Bill pressionou um dos hambúrgueres com a espátula, fazendo com que o
suco da carne escorresse. Ele não percebe nada de churrascos, pensou
Kevin. Sem o suco, o hambúrguer teria o mesmo sabor que uma pedra – seco,
insípido e duro. Intragável. – Estava aqui pensar no caso Ashley Henderson –
disse Bill, mudando de assunto. – Acho que finalmente vamos conseguir
fazer uma acusação formal. Trabalhaste bem.
– Já não era sem tempo. Pareceu-me que eles já estavam fartos daquela
situação há algum tempo – disse Kevin.
– A mim também. Mas eu não sou o procurador – disse Bill, pressionando
outro hambúrguer, arruinando-o. – Também quero falar contigo a respeito do
Terry.
Terry Canton fora o parceiro de Kevin durante os últimos três anos, mas
sofrera um ataque cardíaco em dezembro e estava afastado do trabalho desde
então. Kevin passara todo aquele tempo a trabalhar sozinho.
– O que é que aconteceu?
– Ele não vai regressar. Fiquei a saber hoje de manhã. Os médicos que o
tratam recomendaram que ele se aposentasse e ele decidiu seguir o conselho.
Decidiu que vinte anos já bastaram, e tem a pensão à espera dele.
– E o que é que isso implica para mim?
Bill encolheu os ombros. – Vamos arranjar-te um novo parceiro, mas não
podemos fazer isso imediatamente, já que o município está com as verbas
congeladas. Talvez quando o novo orçamento municipal for aprovado.
– «Talvez» ou «provavelmente»?
– Vais ter um novo parceiro. Mas provavelmente não antes de julho.
Lamento que assim seja. Sei o que isso significa, que vais ter de trabalhar
mais, mas não há nada que eu possa fazer. Vou tentar manter a tua carga de
trabalho num nível suportável.
– Obrigado.
Um grupo de crianças andava a correr pelo pátio, com os rostos sujos. Duas
mulheres saíram da casa trazendo taças de batatas fritas e provavelmente
estariam a coscuvilhar. Kevin detestava coscuvilhices. Bill apontou com a
espátula para uma mesa. – Traz aquela travessa, por favor. Acho que estes já
estão quase prontos.
Kevin pegou na travessa. Era a mesma que tinha sido usada para levar os
hambúrgueres crus para a grelha e reparou nas manchas de gordura e nos
pedaços de carne crua. Era nojento. Erin teria trazido uma travessa limpa,
uma que não tivesse restos de carne crua ou gordura. Kevin colocou a
travessa ao lado da grelha.
– Preciso de outra cerveja – disse Kevin, erguendo a sua garrafa. –
Também queres outra?
Bill negou com a cabeça e estragou mais um hambúrguer. – Ainda não
acabei de beber a minha. De qualquer forma, obrigado.
Kevin dirigiu-se à casa, sentindo nos dedos a gordura da travessa.
– Ei – gritou Bill, atrás dele. Kevin voltou-se. – A mala térmica com as
cervejas está do outro lado, esqueceste-te? – disse, apontando para um dos
cantos do pátio.
– Eu sei. Mas quero lavar as mãos antes do jantar.
– Despacha-te. Quando levar a travessa para a mesa, vai ser cada um por
si.
Kevin parou antes de chegar à porta dos fundos para limpar os pés no
tapete. Na cozinha, circundou um grupo de mulheres que conversavam
animadamente para chegar ao lava-louça. Lavou as mãos duas vezes, usando
bastante sabão. Pela janela, viu Bill a colocar a travessa de salsichas e
hambúrgueres na mesa de piquenique, ao lado dos pães, condimentos e taças
de batatas fritas. Não demorou muito para que as moscas sentissem o cheiro e
se amontoassem por cima da travessa, a zumbir sobre a comida e a pousar
nos hambúrgueres. As pessoas pareciam não se importar, pois formaram
instantaneamente uma fila.
Limitaram-se a espantar as moscas e a colocar os hambúrgueres nos
respetivos pratos, fingindo que elas nem sequer existiam.
Hambúrgueres mal confecionados e uma nuvem de moscas.
Ele e Erin fariam tudo de outra maneira. Ele não pressionaria os
hambúrgueres com a espátula e Erin teria deixado os condimentos, batatas
fritas e picles na cozinha para que as pessoas pudessem servir-se lá, onde
tudo estava limpo. As moscas eram animais asquerosos, os hambúrgueres
estavam duros como pedras e ele não iria comê-los. Ficava enjoado só de
pensar nessa possibilidade.
Esperou que a travessa estivesse vazia para regressar para junto da grelha e
foi até à mesa, fingindo-se dececionado.
– Eu avisei que iam desaparecer rapidamente – comentou Bill. – Mas a
Emily deixou uma travessa no frigorífico, por isso a segunda rodada não
tarda nada. Porque não me arranjas uma cerveja enquanto eu vou lá buscar os
hambúrgueres?
– Claro – disse Kevin.
Quando o lote seguinte de hambúrgueres ficou pronto, Kevin serviu-se e
elogiou Bill, dizendo-lhe que estavam com um aspeto fantástico. Havia uma
nuvem de moscas à sua volta, os hambúrgueres estavam outra vezes
ressequidos e, quando Bill se virou, Kevin despejou a comida no caixote do
lixo que ficava ao lado da casa. Disse a Bill que os hambúrgueres estavam
deliciosos.
Deixou-se ficar ali por mais umas horas. Aproveitou para conversar com
Coffey e Ramirez. Eram detetives como ele, só que comiam os hambúrgueres
sem se importar com as moscas em volta. Kevin não queria ser o primeiro a ir
embora, nem mesmo o segundo. O capitão gostava de se sentir como um dos
rapazes e ele não queria ofendê-lo. Não gostava de Coffey nem de Ramirez.
Às vezes, quando Kevin estava por perto, Coffey e Ramirez paravam de
conversar. Kevin sabia que era o assunto da conversa deles, que falavam a
seu respeito nas suas costas. Intriguistas.
Mas Kevin era um bom detetive e tinha consciência disso. Bill também o
sabia, assim como Coffey e Ramirez. Ele trabalhava na divisão de homicídios
e sabia como abordar testemunhas e suspeitos. Sabia qual era o momento
certo para colocar perguntas e o momento para escutar; sabia quando as
pessoas mentiam e colocava assassinos atrás das grades porque a Bíblia dizia
Não matarás e Kevin acreditava em Deus e estava fazer o trabalho do Senhor
ao enviar os culpados para a cadeia.
Já em casa, Kevin atravessou a sala de estar. Resistiu ao desejo de chamar
por Erin. Se Erin ali estivesse, já teria limpado o pó da prateleira do fogão de
sala, organizado as revistas na mesinha ao lado do sofá e tirado a garrafa de
vodka vazia do sofá. Se Erin estivesse ali, as cortinas estariam abertas, os
pratos estariam lavados e guardados e o jantar estaria à espera dele na mesa.
E ela teria sorrido para ele e perguntado como fora o seu dia. Depois, fariam
amor, porque ele a amava e ela o amava também.
No andar de cima, no quarto, abriu a porta do armário. Ainda conseguia
sentir um resquício do perfume dela, aquele que lhe oferecera no Natal. Vira-
a a levantar uma aba de papel com uma amostra daquele perfume numa das
suas revistas e reparou que ela sorriu ao cheirá-lo. Quando Erin foi para a
cama, Kevin rasgou a página da revista e guardou-a na carteira, para saber
exatamente que perfume deveria comprar. Recordava-se do modo carinhoso
como ela aplicara um pouco atrás de cada orelha e nos pulsos quando a levara
a jantar fora na noite de passagem de ano e de como ela estava bonita com o
seu vestido elegante. No restaurante, Kevin apercebera-se que outros homens,
mesmo os que estavam acompanhados, tinham olhado para ela enquanto ele e
Erin atravessavam o salão até chegarem à sua mesa. Depois, regressaram a
casa e fizeram amor na altura em que entrou o ano novo.
O vestido ainda lá estava, pendurado no mesmo lugar, fazendo regressar
aquelas memórias. Ele tinha tirado o vestido do cabide na semana anterior e
chorado enquanto o segurava, sentado na beira da cama.
Ouviu lá fora o som constante dos grilos, mas isso não serviu para o
acalmar. Embora o feriado supostamente servisse para relaxar, sentiu-se
cansado. Foi contrariado ao churrasco, pois não queria responder às
perguntas sobre Erin, nem queria mentir. Não porque as mentiras o
incomodassem, mas porque era difícil manter a ilusão de que Erin não o
abandonara. Inventara uma história que repetia há meses: que Erin lhe
telefonava todas as noites; que regressara a casa por uns dias, mas que voltara
logo a New Hampshire; que a amiga estava a fazer quimioterapia e que
precisava da ajuda dela. Sabia que não conseguiria manter aquela história
indefinidamente e que não tardaria a que a desculpa de ajudar uma amiga se
tornasse repetitiva e que as pessoas começassem a questionar-se porque
nunca viam Erin na igreja, no supermercado ou mesmo no bairro onde
morava. Iriam perguntar também por quanto tempo mais iria ela ficar ao lado
da amiga. As pessoas começariam a falar às escondidas e a dizer coisas
como: «A Erin deve ter abandonado o Kevin», ou «Acho que o casamento
deles não era assim tão perfeito como parecia». Pensar naquilo provocou-lhe
um aperto no estômago e lembrou-se que não tinha comido.
Não havia muita coisa no frigorífico. Erin deixava sempre o frigorífico
cheio com peru, presunto, mostarda de Dijon e pão de centeio fresco, mas a
sua única escolha agora era aquecer o bife à moda mongol que comprara no
restaurante chinês há alguns dias. Na prateleira inferior, viu manchas de
comida e teve outra vez vontade de chorar, porque aquilo lembrou-lhe os
gritos de Erin e o barulho da cabeça dela a embater na esquina da mesa
quando a empurrara pela cozinha. Esbofeteara-a e pontapeara-a porque
encontrara manchas de comida no frigorífico e questionava-se agora por que
razão uma coisa tão simples o deixara tão furioso.
Kevin foi para a cama e deitou-se. Quando deu por isso, já era meia-noite e
o bairro que via pela janela do quarto estava tranquilo. Do outro lado da rua,
viu uma luz acesa na casa dos Feldman. Ele não gostava dos Feldman.
Diferente dos outros vizinhos, Larry Feldman nunca o cumprimentava se
estivesse cada um no seu jardim. Se Gladys, a esposa dele, o visse na rua,
virava costas e voltava a entrar em casa. Eles já tinham mais de 60 anos e
eram o tipo de pessoas que corria para fora de casa para protestar com alguma
criança que pisasse o relvado para recuperar um disco ou uma bola de
basebol que lá tivesse caído. E, apesar de serem judeus, decoravam a casa
com iluminações de Natal e colocavam a menorah3 na janela, durante o
período de festas. As atitudes deles deixavam-no desconcertado e Kevin não
os considerava bons vizinhos.
Kevin regressou à cama, mas não conseguiu dormir. Quando a manhã
chegou, com a luz do sol a entrar pela janela, teve consciência de que nada
mudara na vida das outras pessoas. Apenas a sua vida estava diferente. O seu
irmão, Michael, e a esposa, Nadine, estariam a preparar os filhos para irem à
escola, antes de saírem para os seus próprios empregos no Boston College. O
seu pai e a sua mãe provavelmente estariam ler a edição do dia do Globe
enquanto tomavam o café da manhã. Teriam sido cometidos crimes e haveria
testemunhas na esquadra. Coffey e Ramirez deveriam estar a coscuvilhar
sobre ele.
Tomou um duche e, para o pequeno-almoço, comeu uma torrada
acompanhada por um copo de vodka. Na esquadra, foi chamado para
investigar um assassínio. O corpo de uma mulher de vinte e poucos anos,
provavelmente uma prostituta, tinha sido encontrado numa lixeira. Fora
esfaqueada até à morte. Kevin passou a manhã a conversar com pessoas que
estavam por perto quando o corpo foi encontrado, enquanto eram recolhidas
provas. Quando terminou as entrevistas, regressou à esquadra para elaborar o
relatório enquanto os dados ainda estavam frescos na sua memória. Era um
bom detetive.
A esquadra estava bastante movimentada, era o primeiro dia da semana
após um fim de semana prolongado. O mundo enlouquecera. Os detetives
conversavam ao telefone, redigindo relatórios nas suas mesas, conversando
com testemunhas e escutando as vítimas a falar do que lhes sucedera.
Barulho. Atividade. Pessoas a ir e a vir. Telefones a tocar. Kevin dirigiu-se à
sua secretária, uma das quatro que ficavam no meio da sala. Pela porta aberta,
Bill acenou-lhe, mas não saiu do gabinete. Ramirez e Coffey estavam nas
suas mesas, sentados de frente para ele.
– Está tudo bem? – perguntou Coffey. Coffey já tinha ultrapassado os 40
anos, tinha excesso de peso e era calvo. – Estás com um aspeto horrível.
– Não dormi muito bem – disse Kevin.
– Eu também não durmo bem sem a Janet. Quando é que a Erin regressa?
Kevin manteve uma expressão impassível. – No próximo fim de semana.
Tenho alguns dias de folga e decidimos ir a Cape Cod. Já há alguns anos que
não vamos lá.
– A sério? A minha mãe vive lá. E para que lugar de Cape Cod é que vão?
– Provincetown.
– É onde ela mora. Vocês vão adorar. Sempre que posso vou lá. E onde vão
ficar?
Kevin estranhou o facto de Coffey estar a fazer tantas perguntas.
– Não sei ainda – respondeu, finalmente. – É a Erin que está a tratar de
tudo.
Dirigiu-se à cafeteira e serviu-se de uma chávena, embora não quisesse
realmente beber café. Teria de descobrir o nome de um hotel e de alguns
restaurantes. Se Coffey fizesse perguntas sobre o assunto, saberia o que dizer.

Os seus dias seguiam sempre a mesma rotina. Trabalhava, falava com as


testemunhas e finalmente regressava a casa. O seu trabalho era stressante e
queria descansar depois do expediente, mas tudo estava diferente em sua
casa, e não conseguia libertar-se do trabalho. Em tempos, chegou a acreditar
que se habituaria a ver vítimas de assassínios, mas os seus rostos lívidos e
sem vida ficavam gravados na sua memória. E, às vezes, as vítimas
apareciam-lhe durante o sono.
Kevin não gostava de voltar para casa. Quando terminava o dia, já não
tinha uma bela esposa para o receber. Erin saíra de casa em janeiro. Agora, a
sua casa estava suja e desorganizada e ele tinha de lavar as próprias roupas.
Entre outras coisas, não sabia como usar a máquina de lavar e, da primeira
vez que o tentou fazer, colocou detergente em excesso e as roupas ficaram
manchadas e rijas. Já não havia refeições caseiras ou velas na mesa. Em vez
disso, comprava comida num restaurante antes de voltar para casa e comia no
sofá. Às vezes, ligava a televisão. Erin gostava de ver o HGTV, canal
especializado em assuntos de casa e jardim da TV por cabo. Assim, Kevin via
frequentemente esse canal e, quando o fazia, o vazio que sentia dentro de si
revelava-se quase insuportável.
Depois de voltar do trabalho, não se preocupava em guardar a arma no
estojo que tinha no armário. Dentro do estojo, havia uma outra Glock, para
uso pessoal. Erin tinha medo de armas, mesmo antes do dia em que ele lhe
encostara a Glock à cabeça e ameaçara matá-la se voltasse a fugir. Ela gritou
e chorou enquanto ele jurou que mataria qualquer homem com quem ela
dormisse, qualquer homem de quem ela gostasse. Tinha sido muito estúpida
ao fazer aquilo e Kevin ficou tão furioso por ela ter fugido de casa que exigiu
saber o nome do homem que a ajudara, para poder matá-lo. Mas Erin gritou,
chorou e implorou pela vida, jurando que não havia nenhum homem
envolvido. Kevin acreditou nela, pois Erin era a sua esposa. Eles fizeram os
seus votos diante de Deus e da família, e a Bíblia diz: Não cometerás
adultério. Mesmo naquela altura, ele não acreditara que Erin lhe fora infiel.
Nunca acreditou que outro homem estivesse envolvido. Quando estavam
casados, fazia questão de se certificar disso. Ligava para casa algumas vezes
durante o dia, sempre em horários diferentes, e nunca a deixava ir ao
supermercado, ao cabeleireiro ou à biblioteca sozinha. Ela não tinha carro,
nem mesmo carta de condução e Kevin passava em frente a casa sempre que
estivesse por perto, apenas para ter a certeza de que ela lá estava. Erin não o
abandonara com vontade de cometer adultério. Ela saíra de casa porque
estava cansada de ser pontapeada, socada e empurrada pelas escadas que
davam para a cave. Kevin sabia que não deveria ter feito aquelas coisas.
Sempre se sentira culpado por isso e pedira sempre desculpa. Mesmo assim,
ela não quisera saber.
Não era motivo para Erin ter fugido de casa. Ele ficou com o coração
desfeito, porque a amava mais do que tudo no mundo e sempre tratara bem
dela. Comprou-lhe uma casa, um frigorífico, uma máquina de lavar e outra de
secar e móveis novos. A casa costumava estar sempre limpa, mas agora o
lava-louça estava cheio de pratos sujos e o cesto da roupa a transbordar.
Ele sabia que devia limpar a casa, mas não conseguia reunir a energia
necessária para o fazer. Em vez disso, foi à cozinha e tirou uma garrafa de
vodka do frigorífico. Ainda restavam quatro garrafas; há uma semana, havia
doze. Tinha a noção de que estava a beber de mais. Sabia que deveria
alimentar-se melhor e parar de beber, mas tudo o que queria fazer era abrir a
garrafa, sentar-se no sofá e beber. Kevin gostava de vodka porque não o
deixava com mau hálito de manhã e assim ninguém perceberia que ele estava
de ressaca.
Encheu um copo de vodka, bebeu-o e depois serviu-se de novo antes de
caminhar pela casa vazia. Doía-lhe o coração porque Erin não estava ali e, se
de repente ela aparecesse à porta da casa, ele sabia que iria pedir desculpas
por lhe ter batido. Resolveriam os seus problemas e depois fariam amor no
quarto. Ele queria abraçá-la e sussurrar-lhe quanto a adorava, mas sabia que
ela não ia voltar. Mesmo amando-a tanto, às vezes Erin deixava-o muito
irritado. Não ficava bem uma esposa simplesmente abandonar a casa onde
morava. Uma esposa não deixava o seu casamento para trás. Queria espancá-
la, pontapeá-la, esbofeteá-la e puxar-lhe os cabelos por fazer algo tão cruel.
Por ser tão egoísta. Queria mostrar-lhe que era inútil tentar fugir.
Bebeu o terceiro e o quarto copos de vodka.
A casa estava uma desordem. Havia uma caixa vazia de piza no chão da
sala e o caixilho da porta da casa de banho estava rachado, com farpas de
madeira à mostra. A porta já não fechava direito. Tinha dado um pontapé na
porta num dia em que ela se trancou na casa de banho, a tentar fugir dele.
Agarrara-a pelo cabelo enquanto a agrediu com murros na cozinha. Ela
correu para a casa de banho. Ele perseguiu-a pela casa e enfiou o pé na porta.
Mas, agora, mal conseguia lembrar-se do motivo pelo qual tinham discutido.
Kevin não conseguia lembrar-se muito bem do que sucedera naquela noite.
Não se lembrava de ter partido dois dedos da mão dela, embora fosse óbvio
que aquilo tinha sido obra sua. Durante uma semana não a deixou ir ao
hospital, enquanto os hematomas na cara dela não puderam ser disfarçados
pela maquilhagem. Erin passou a semana a cozinhar e a limpar a casa apenas
com uma das mãos. Ele ofereceu-lhe flores, desculpou-se e prometeu-lhe que
nada daquilo voltaria a acontecer. Quando a tala de gesso foi retirada, Kevin
levou-a a Boston para jantar no restaurante Petroni’s. Custou uma fortuna e
ele sorriu-lhe quando estavam sentados à mesa. Depois do jantar, foram ao
cinema e, no caminho para casa, pensou no quanto a amava e em como era
feliz por ter uma pessoa como Erin como esposa.

3 Candeeiro judaico de sete velas usado durante o período de festas. Cada vela simboliza um dos dias
da criação do universo. (N. da T.)
21

A lex ficou com Katie até depois da meia-noite, escutando-a enquanto ela
contou a história da sua vida. Quando ela se sentiu cansada de mais para
continuar a falar, ele colocou os braços em volta dela e despediu-se com um
beijo de boa-noite. No caminho de regresso a casa, pensou consigo mesmo
que nunca conhecera alguém com tanta coragem, com tanta força e tão
expedita.
Os dois passaram juntos uma grande parte das duas semanas seguintes,
pelo menos tanto quanto lhes foi possível. Descontando as horas de trabalho
de Alex na loja e os turnos de Katie no Ivan’s, isso resumiu-se a umas poucas
horas por dia, mas ele ansiava pelas visitas a casa dela com uma expectativa
que não sentia há anos. Às vezes, Kristen e Josh acompanhavam-no a casa de
Katie. Outras vezes, Joyce arrastava-o pela porta da loja fora com uma
piscadela de olho, pedindo-lhe que se divertisse.
Raramente estavam juntos em casa de Alex e, quando isso acontecia, eram
ocasiões breves. Ele queria acreditar que aquilo acontecia por causa das
crianças, por ele não querer apressar as coisas. No entanto, percebeu que
também assim era por causa de Carly. Embora soubesse que amava Katie – e
a cada dia que passava estava mais seguro quanto a isso – não tinha a certeza
de estar efetivamente preparado. Katie pareceu compreender a sua relutância,
não dando mostras de ficar incomodada, quanto mais não fosse por ser mais
fácil ficarem a sós em casa dela.
De qualquer forma, ainda não tinham feito amor. Embora ele desse
frequentemente por si a imaginar como isso seria maravilhoso, especialmente
antes de adormecer, tinha a noção de que Katie não estava preparada. Os dois
pareciam compreender que isso representaria uma mudança no
relacionamento, uma espécie de estabilidade ambicionada. Por enquanto,
bastava-lhe poder beijá-la, poder sentir os braços dela à sua volta. Adorava o
aroma do champô de jasmim nos cabelos dela e o modo como as mãos se
encaixavam perfeitamente; o modo como cada toque transportava uma
expectativa deliciosa, como se cada um deles se estivesse a guardar para o
outro. Alex não dormira com ninguém desde que a mulher morrera. Ainda
assim, pareceu-lhe que durante todo aquele tempo esteve à espera de Katie,
mesmo sem o saber.
Ele apreciava mostrar-lhe as redondezas. Passearam pela orla da praia, em
frente às casas históricas, a observar a arquitetura, e houve um fim de semana
em que ele a levou ao Orton Plantation Gardens, onde passearam por entre
milhares de roseiras em flor. Depois, foram almoçar a um pequeno
restaurante com vista para o mar, em Caswell Beach, onde ficaram de mãos
dadas por cima da mesa, como dois adolescentes.
Desde a noite em que jantaram pela primeira vez em casa de Katie, ela
nunca mais abordou o seu passado e Alex também não tocou no assunto.
Sabia que ela ainda estava a esforçar-se por assimilar tudo aquilo: o que ela já
lhe contara e o que ainda havia por contar; saber se podia confiar nele ou não;
não ter a real noção da importância de ela ainda ser casada; e, acima de tudo,
o que aconteceria se Kevin a descobrisse ali. Quando Alex se apercebia de
que ela estava triste por pensar nessas questões, recordava-lhe, gentilmente,
que, independentemente do que acontecesse, o seu segredo estaria seguro
com ele. Nunca contaria nada a ninguém.
Ao olhar para ela, Alex às vezes sentia-se assolado por uma raiva quase
incontrolável em relação a Kevin Tierney. Aqueles instintos masculinos de
agredir e torturar uma mulher eram-lhe tão estranhos quanto a capacidade de
respirar debaixo de água ou voar. Mais do que qualquer outra coisa, ele
queria vingança. Queria justiça. Queria que Kevin passasse pela mesma
angústia e pelo mesmo terror que infligira a Katie, as infindáveis sessões de
castigos físicos cruéis. No tempo que passou no exército, matara um homem,
um soldado que tomara uma dose excessiva de metanfetaminas e que,
armado, estava a ameaçar um refém. O homem era perigoso e estava
descontrolado. Quando a oportunidade surgiu, Alex premiu o gatilho sem
hesitar. A morte dera um significado novo ao seu trabalho, e, no seu coração,
compreendera que havia momentos em que a violência era necessária para
salvar vidas. Se Kevin algum dia aparecesse, Alex sabia que protegeria Katie
a qualquer custo. No exército, percebera que havia pessoas que levavam o
bem ao mundo e pessoas que viviam para o destruir. No seu entender, a
decisão de proteger uma mulher inocente como Katie de um psicopata como
Kevin era tão nítida como a diferença entre o preto e o branco – uma escolha
simples.
Na maior parte dos dias, o espectro da vida anterior de Katie não os
assombrava e passavam as horas juntos, numa intimidade descontraída e
crescente. Katie tinha um talento natural para lidar com crianças – fosse para
ajudar Kristen a alimentar os patos de uma lagoa próxima ou brincar à
apanhada com Josh, parecia nunca ter dificuldade em entrosar-se com eles,
agindo de acordo com cada situação: a brincar, a confortar, a fazer barulho ou
em silêncio. Ao agir daquela forma, parecia-se imenso com Carly e Alex
imaginou que, de algum modo, Katie era o tipo de mulher que a sua esposa
em tempos mencionara.
Nas últimas semanas de vida de Carly, Alex manteve-se inabalável à sua
cabeceira. Embora ela passasse a maior parte do tempo a dormir, ele tinha
medo de perder os momentos em que Carly estava consciente, por muito
breves que fossem. Naquela época, o lado esquerdo do corpo de Carly estava
quase totalmente paralisado, e ela tinha dificuldades em falar. Mas, uma vez,
durante um breve período de lucidez imediatamente antes de amanhecer, ela
estendeu a mão para lhe tocar.
– Quero que faças uma coisa por mim – dissera, com um certo esforço,
humedecendo os lábios ressequidos com a língua. A sua voz era rouca, pois
era raro falar.
– Tudo o que quiseres.
– Eu quero... que sejas feliz.
Naquele momento, ele reparou no fantasma do seu antigo sorriso. O sorriso
confiante e pleno de vida que o cativara no momento em que se conheceram.

– Eu sou feliz.
Carly abanara levemente a cabeça. – Estou a referir-me ao futuro –
explicara. Os seus olhos brilhavam com a intensidade de carvões em brasa,
naquele rosto marcado pela luta contra a doença. – Ambos sabemos daquilo
que estou a falar.
– Não estou a perceber.
Ela ignorara aquela resposta. – Casar-me contigo... estar contigo e ter filhos
contigo... foram as melhores coisas que já fiz. És o melhor homem que eu já
conheci.
Ele sentiu um nó na garganta. – Também sinto o mesmo em relação a ti.
– Eu sei – respondera ela. – E é por isso que me é tão difícil. Porque sei que
falhei perante ti.
– Não falhaste – dissera ele, interrompendo-a.
Carly tinha uma expressão triste no rosto. – Eu amo-te, Alex, e amo os
nossos filhos – realçara, sussurrando. – E ficaria muito triste se nunca mais
conseguisses voltar a ser feliz.
– Carly, eu...
– Quero que conheças outra mulher – dissera ela, esforçando-se para tomar
fôlego. O seu peito arfava devido ao esforço. – Quero que ela seja inteligente
e gentil... E quero que te apaixones por ela, porque não mereces passar o
resto da tua vida sozinho.
Alex não conseguiu falar e mal a via por entre as lágrimas.
– As crianças vão precisar de uma mãe. – Aos ouvidos dele, pareceu-lhe
que Carly estava a implorar. – Alguém que ame os nossos filhos tanto quanto
eu os amo, alguém que pense neles como se fossem seus.
– Porque é que estás a dizer essas coisas?
– Porque tenho de acreditar que é possível – respondera ela, os seus dedos
magros agarrando-se ao braço de Alex com uma intensidade que roçava o
desespero. – É a única coisa que me resta.
Regressando ao presente, e ao ver Katie a correr atrás de Josh e Kristen no
relvado na margem da lagoa, Alex sentiu uma pontada agridoce, ao pensar
que o último desejo de Carly poderia finalmente ser realizado.

Katie gostava imenso de Alex, mais do que seria aconselhável. Sabia que
estava a trilhar um caminho perigoso. Contar-lhe sobre o seu passado
parecera-lhe a atitude certa e revelar-lhe os seus segredos de alguma forma
libertara-a daquele fardo esmagador. Mas, na manhã seguinte àquele primeiro
jantar, ficou paralisada pela ansiedade face ao que fizera. Alex tinha sido uma
espécie de detetive, afinal de contas; aquilo provavelmente significaria que
poderia fazer um ou dois telefonemas, independentemente do que lhe
dissesse. Conversaria com alguém, e essa pessoa conversaria com outra, até
que, após algum tempo, Kevin ficaria ao corrente de tudo. Ela não lhe contara
que Kevin tinha uma capacidade quase sobrenatural para ligar informações
aparentemente desconexas; não mencionara que, quando um suspeito se
tornava um fugitivo, Kevin sabia quase sempre onde encontrá-lo. O simples
facto de pensar no que tinha feito, deixava-lhe o estômago às voltas.
No entanto, gradualmente, durante as duas semanas seguintes, sentiu os
seus medos a desaparecerem. Em vez de colocar mais perguntas quando
estavam sozinhos, Alex agia como se as revelações de Katie não estivessem
diretamente ligadas às suas vidas em Southport. Os dias decorreram com uma
espontaneidade tranquila, sem o incómodo causado pelas sombras da sua vida
passada. Ela não conseguia evitar – confiava em Alex. Quando se beijavam, o
que acontecia com uma frequência surpreendente, havia momentos em que
sentia os joelhos a tremer, e estava a revelar-se cada vez mais difícil travar o
desejo de pegar na mão dele e arrastá-lo para o quarto.
No sábado, duas semanas após o primeiro beijo, estavam no alpendre de
casa dela. Alex tinha os braços em volta do corpo de Katie e os lábios
pressionados contra os dela. As crianças estavam numa festa de piscina em
casa de um dos colegas de turma de Josh. Mais tarde, Alex e Katie iriam
levar os dois a passear e a um churrasco na praia, mas, durante as próximas
horas, estariam a sós.
Quando finalmente conseguiram afastar-se, Katie suspirou. – Precisas
mesmo de parar com isso.
– Parar com o quê?
– Sabes muito bem o que estás a fazer.
– Não consigo evitar.
Conheço muito bem essa sensação, pensou Katie.
– Sabes do que é que gosto em ti?
– Do meu corpo?
– Sim. Também gosto disso – disse ela, rindo-se. – Mas há outra coisa.
Fazes com que me sinta especial.
– E és especial – referiu ele.
– Estou a falar a sério – disse ela. – Mas isso leva-me a pensar por que
razão nunca encontraste outra pessoa depois de a tua mulher ter morrido.
– Não andava à procura. Mas, mesmo que houvesse outra pessoa, teria de a
despachar para poder ficar contigo.
– Isso não é nada simpático – disse ela, espetando-lhe o dedo nas costelas.
– Mas é verdade. Acredites ou não, sou seletivo.
– Sim, imagino. Só sais com mulheres com traumas emocionais.
– Tu não és do tipo traumatizado. És uma mulher corajosa. Uma
sobrevivente. E isso, para ser sincero, é muito sexy.
– Acho que estás a elogiar-me com a esperança que te arranque a roupa
aqui e agora.
– Está a resultar?
– Está lá perto – admitiu ela, e o som do riso de Alex recordou-lhe de novo
o quanto ele a amava.
– Estou muito feliz por teres vindo morar para Southport.
– Ah, sim... – Por breve momentos, ela pareceu desaparecer dentro de si
mesma.
– O que foi? – perguntou Alex, estudando-lhe o rosto, repentinamente em
estado de alerta.
Ela abanou a cabeça. – Foi por pouco... – suspirou, colocando os braços em
volta do corpo de Alex ao recordar a ocasião. – Quase não conseguia cá
chegar.
22

A neve cobria os jardins de Dorchester, formando uma camada cintilante


sobre o mundo do lado de fora da janela da casa onde ela morava. O céu
de janeiro, cinzento na véspera, transformara-se num azul gelado e a
temperatura estava abaixo de zero.
Era uma manhã de domingo, o dia a seguir à sua ida ao cabeleireiro. Ela
olhou para a sanita para ver se havia algum sinal de sangue, certa de que vira
algo depois de urinar. O seu rim ainda latejava e a dor irradiava dos ombros
até às barrigas das pernas. Por causa das dores esteve várias horas sem
dormir, enquanto Kevin ressonava ao seu lado, mas, felizmente, não era tão
grave quanto poderia ter sido. Depois de fechar a porta do quarto atrás de si,
Erin coxeou até à cozinha, lembrando a si própria que, dentro de um ou dois
dias, tudo aquilo estaria terminado. Mas precisava de ter cuidado para não
levantar suspeitas a Kevin. Tinha de fazer as coisas da maneira correta. Se
ignorasse a sova que ele lhe infligira na noite anterior, Kevin ficaria
desconfiado. Se ela se afastasse de mais, também ficaria desconfiado. Depois
de quatro anos naquele inferno, Erin aprendera as regras do jogo.
Kevin teria de ir trabalhar ao meio-dia, apesar de ser domingo, e ela sabia
que não tardaria a acordar. A casa estava fria e por isso vestiu uma camisola
por cima do pijama. De manhã, isso era algo que por norma não incomodava
Kevin, porque a ressaca deixava-o demasiado letárgico para tomar qualquer
atitude. Ela começou a preparar o pequeno-almoço e pôs o leite e o açúcar na
mesa, juntamente com a manteiga e a compota. Colocou os talheres dele na
mesa e um copo de água fresca ao lado do garfo. Depois, pôs duas fatias de
pão de forma na torradeira, embora ainda não tivesse ligado o aparelho.
Deixou três ovos sobre a bancada, onde poderia deitar-lhes rapidamente a
mão. A seguir, colocou seis fatias de bacon na frigideira. Já estavam a
crepitar e a chiar quando Kevin chegou à cozinha. Sentou-se à mesa e bebeu
água enquanto ela lhe trazia a chávena de café.
– Dormi como uma pedra. A que horas fomos para a cama?
– Por volta das dez, acho eu – respondeu ela. Pousou o café ao lado do
copo vazio. – Não era tarde. Tens trabalhado de mais e sei que andas
cansado.
Os olhos de Kevin estavam vermelhos. – Desculpa aquilo que fiz ontem à
noite. Não queria ter feito aquilo. Ultimamente tenho andado a trabalhar sob
muita pressão. Desde que o Terry sofreu o ataque cardíaco que estou a
trabalhar a dobrar, e o caso Preston arranca esta semana.
– Está tudo bem – disse ela, ainda a sentir o cheiro do álcool no hálito de
Kevin. – O teu pequeno-almoço fica já pronto.
No fogão, virou as fatias de bacon com um garfo e salpicou gordura quente
para o braço, fazendo com que esquecesse temporariamente a dor nas costas.
Quando o bacon ficou estaladiço, colocou quatro fatias no prato de Kevin e
duas no seu. Escorreu a gordura e guardou-a numa lata de sopa, limpou a
frigideira com um toalhete de papel e voltou a untá-la com óleo. Tinha de ser
rápida para que o bacon não arrefecesse. Ligou a torradeira e partiu os ovos.
Kevin gostava dos seus ovos fritos com a gema intacta, e Erin aprendera a
prepará-los na perfeição. A frigideira ainda estava quente e os ovos não
demoraram a ficar prontos. Virou-os na frigideira uma vez antes de colocar
dois no prato dele e um no seu. A torrada saltou, já pronta, e ela pôs as duas
fatias no prato dele.
Erin sentou-se à frente de Kevin, pois ele gostava de tomar o pequeno-
almoço acompanhado. Ele barrou manteiga na torrada e acrescentou a
compota de uva antes partir os ovos com o garfo. A gema escorreu pelo prato
como sangue amarelado e ele molhou a torrada nos ovos antes de comê-los.
– O que é que vais fazer hoje? – quis ele saber. Kevin usou o garfo para
cortar mais um pedaço do ovo. Mastigou.
– Estava a pensar em lavar as janelas e a roupa – disse ela.
– Acho que os lençóis também precisam de uma boa lavagem, não é?
Depois de nos termos divertido neles a noite passada – disse ele, mexendo as
sobrancelhas. Tinha o cabelo desalinhado, com fios a apontar em todas as
direções, assim como um pedaço de ovo colado no canto da boca.
Ela tentou não demonstrar a repugnância que sentia. Em vez disso, mudou
o rumo à conversa.
– Achas que vais conseguir mandar para a prisão os culpados no caso
Preston?
Ele inclinou-se para trás e rodou os ombros antes de voltar a debruçar-se
sobre o prato. – Vai depender do procurador. O Higgins é bom nisso, mas
nunca se sabe. O Preston tem um advogado esperto e ele vai tentar distorcer
os factos a seu favor.
– De certeza que vai correr tudo bem. És mais inteligente do que ele.
– Veremos. Detesto que o julgamento seja em Marlborough. O Higgins
quer preparar-me na terça-feira à noite para testemunhar, depois do
encerramento do tribunal.
Erin já sabia disso e assentiu afirmativamente com a cabeça. O caso
Preston teve uma ampla repercussão na comunicação social e o julgamento
começaria na segunda-feira, em Marlborough, e não em Boston. Lorraine
Preston supostamente teria contratado um homem para matar o marido. Além
de Douglas Preston ser um milionário que geria fundos de investimentos,
também a esposa era uma celebridade social, envolvida no apoio a
instituições filantrópicas que iam desde museus a orquestras sinfónicas e
escolas de bairros carenciados. A exposição do caso antes do julgamento fora
impressionante. Todos os dias, sem exceção, um ou dois artigos eram
publicados na primeira página dos jornais e eram exibidas longas reportagens
nos noticiários televisivos. Grandes quantias de dinheiro, práticas sexuais
bizarras, drogas, traição, infidelidade, assassínios e um filho ilegítimo. Por
causa do todo o aparato em volta do caso, o julgamento fora transferido para
Marlborough. Kevin fora um entre os vários agentes destacados para a
investigação e todos teriam de testemunhar na quarta-feira. Tal como toda a
gente, Erin acompanhou as notícias, mas, ocasionalmente, perguntava alguns
pormenores a Kevin sobre o desenrolar do caso.
– Sabes do que é que vais precisar quando saíres do tribunal? – perguntou
ela. – De um passeio à noite para relaxar. Podíamos ir jantar fora. Vais estar
de folga na sexta-feira, não é?
– Já fizemos isso na passagem de ano – resmungou Kevin, molhando
novamente a torrada na gema que espalhara no prato. Tinha restos de
compota nos dedos.
– Se não quiseres sair, posso preparar alguma coisa especial aqui em casa.
O que quiseres. Podemos beber vinho e talvez acender a lareira, e posso
vestir alguma coisa sexy para ti. Podemos fazer algo romântico. – Ele ergueu
os olhos do seu prato enquanto ela falava. – É assim: estou aberta ao que
quiseres – continuou, com uma voz doce. – Precisas de descansar. Não gosto
quando trabalhas assim tanto. Até parece que estão à espera que resolvas
todos os casos que há na cidade.
Ele tamborilou o garfo no prato, observando-a.
– Porque é que estás assim, toda meiga e carinhosa? O que é que se passa?
Insistindo consigo própria para dar seguimento à encenação, ela levantou-
se da mesa.
– Olha, esquece, está bem? – Ela pegou no seu prato e o garfo embateu
nele, caindo sobre a mesa e depois no chão. – Estava a tentar demonstrar o
meu apoio porque vais ter de sair da cidade, mas, se não gostaste das minhas
ideias, está tudo bem. Depois decides o que queres fazer e quando tiveres
tempo diz-me.
Erin dirigiu-se rapidamente até ao lava-louça, batendo pesadamente com os
pés, e abriu a torneira com força. Sabia que o tinha surpreendido e podia
senti-lo a hesitar entre a raiva e a confusão. Esfregou as mãos debaixo do jato
de água e depois levou-as à cara. A seguir, inspirou o ar em golfadas rápidas,
escondendo o rosto e fazendo um som estrangulado. E mexeu levemente os
ombros.
– Estás a chorar? – perguntou ele. Ela ouviu-o a arrastar a cadeira para trás,
para se levantar. – Por que raio estás a chorar?
Ela falou propositadamente aos soluços, esforçando-se por simular uma
voz embargada. – Já não sei o que hei de fazer. Não sei o que queres. Eu sei
como este caso é grande e importante, e toda a pressão que estás a sentir...
Ao sentir a aproximação dele, Erin soluçou ao proferir as derradeiras
palavras. Quando sentiu o toque dele, estremeceu.
– Ei, está tudo bem – disse ele, a contragosto. – Não é preciso chorar.
Ela virou-se para ele com os olhos fechados, encostando o rosto ao peito de
Kevin. – Eu só te quero fazer feliz – disse com a voz trémula, antes de secar a
cara húmida na camisa dele.
– Vamos pensar em alguma coisa, está bem? Vamos ter um ótimo fim de
semana, prometo. Para esquecer o que aconteceu ontem à noite.
Erin cingiu-o com os braços, abraçando-o e soluçando. Inspirou mais uma
vez, inalando profundamente. – Desculpa por tudo isto. Sei que logo hoje não
precisavas de ouvir isto. Este ataque de nervos que tive por causa de uma
coisa insignificante. Já tens muito com que te preocupar.
– Vou conseguir dar conta de tudo – garantiu ele.
Kevin inclinou a cabeça e Erin ergueu-se para beijá-lo, ainda com os olhos
fechados. Quando se afastou, ela limpou a cara com os dedos e abraçou-o de
novo. Quando ele a puxou para si, Erin sentiu que Kevin estava a ficar
excitado. Sabia que a sua vulnerabilidade o excitava.
– Ainda temos algum tempo antes de eu ter de sair para o trabalho – disse
ele.
– Preciso de arrumar a cozinha.
– Podes tratar disso depois – disse ele.

Alguns minutos mais tarde, com Kevin a movimentar-se em cima dela,


Erin produziu os sons que ele desejava ouvir enquanto olhava pela janela do
quarto e pensava noutras coisas.
Aprendera a odiar o inverno, com aquele frio insuportável e um jardim que
ficava coberto por uma espessa camada de neve, porque não podia sair de
casa. Kevin não gostava de deixá-la andar pela vizinhança, mas permitia que
tratasse dos canteiros de flores no quintal, pois havia uma cerca em redor do
terreno que lhe dava privacidade. Na primavera, Erin plantava flores em
vasos e legumes num pequeno canteiro ao lado da garagem, onde o sol
brilhava com força, longe da sombra das árvores. No outono, vestia uma
camisola de lã e lia livros que trazia da biblioteca enquanto as folhas secas e
quebradiças cobriam o quintal. Mas o inverno fazia com que a sua vida se
transformasse numa prisão – fria, cinzenta e triste. Um tormento. Passava
vários dias sem pôr os pés fora de casa, porque nunca sabia quando é que
Kevin apareceria de surpresa. Erin só sabia o nome de um casal de vizinhos,
os Feldman, que viviam do outro lado da rua. No primeiro ano de casados,
Kevin raramente a agredira e, algumas vezes, ela saíra para fazer caminhadas
sem que ele a acompanhasse. Os Feldman, um casal mais velho, gostavam de
tratar do jardim e, no primeiro ano em que ela ali morara, parara
frequentemente para conversar com eles. Kevin tentou gradualmente acabar
com aquelas visitas amigáveis. Agora, só visitava os Feldman quando sabia
que Kevin estava ocupado com o trabalho e quando sabia que não poderia
telefonar-lhe. Certificava-se de que nenhum outro vizinho a estava a observar
antes de atravessar a rua a correr para bater à porta deles. Sentia-se como uma
espia quando os visitava. Eles mostravam-lhe fotos das filhas, tiradas em
diferentes épocas da vida. Uma morrera e a outra mudara-se para longe, e
Erin achava-os tão solitários quanto ela. No verão, preparava tartes de
mirtilos para os Feldman e depois passava o resto da tarde a limpar a farinha
espalhada pela cozinha, para que Kevin não desconfiasse.
Assim que Kevin saiu para o trabalho, ela limpou as janelas e colocou
lençóis limpos na cama. Passou o aspirador e limpou a cozinha. Enquanto
trabalhava, aproveitou para experimentar disfarçar a voz, praticando para
falar com um tom mais grave, de modo a que pudesse soar como a voz de um
homem. Tentou não pensar no telemóvel que deixara a carregar durante a
noite escondido debaixo da bancada. Mesmo sabendo que poderia nunca mais
ter uma hipótese tão boa, ainda estava aterrorizada, pois havia muitas coisas
que poderiam correr mal.
Preparou o pequeno-almoço de Kevin na manhã de segunda-feira, como
sempre fizera. Quatro fatias de bacon, ovos fritos num ponto intermédio e
duas torradas. Ele estava mal-humorado e distraído e leu o jornal sem
conversar muito. Antes de sair de casa, vestiu um sobretudo por cima do fato
e ela disse-lhe que ia tomar um banho.
– Deve ser ótimo acordar todos os dias a saber que se pode fazer tudo o que
se quiser, à hora que se quiser.
– O que é que queres para o jantar? – perguntou ela, fingindo não ter
ouvido o que ele disse.
Ele pensou na pergunta. – Lasanha e pão de alho. E uma salada para
acompanhar – respondeu.
Quando Kevin saiu, ela pôs-se em frente à janela, a observar o carro dele a
afastar-se até chegar à esquina. Assim que ele virou, ela dirigiu-se ao
telefone, sentindo-se levemente zonza ao pensar no que iria acontecer a
seguir. Quando ligou para a companhia telefónica, foi transferida para o
serviço de atendimento ao cliente. Passaram cinco ou seis minutos. Kevin
levaria uns vinte minutos a chegar ao trabalho e, sem dúvida, ligaria para casa
assim que lá chegasse. Ela ainda tinha tempo. Finalmente, um assistente
começou a falar com ela e perguntou-lhe os dados. Nome, morada e o nome
de solteira da mãe de Kevin. A conta do telefone estava em nome de Kevin e
ela recitou as informações na voz grave que praticara anteriormente. Aquela
voz não era parecida com a de Kevin, talvez nem sequer soasse masculina,
mas o assistente estava com pressa e não percebeu.
– Gostaria de ativar um serviço de transferência de chamadas nesta linha
telefónica. Será possível? – perguntou ela.
– Tem de pagar uma taxa extra para esse serviço, mas inclui chamadas em
espera e correio de voz. Custa apenas...
– Está ótimo – disse ela, interrompendo o assistente. – Mas seria possível
ativar o serviço hoje?
– Sim – disse o homem.
Ela ouviu-o a digitar algo no computador. Demorou um certo tempo até ele
voltar a falar. Informou-a de que a taxa extra apareceria na próxima fatura, a
enviar na semana seguinte, mas que seria cobrado o valor mensal total, apesar
de o serviço estar a ser contratado naquele dia. Erin disse-lhe que não haveria
problema. Ele pediu mais algumas informações e depois informou que
poderia começar a usar de imediato o serviço. A conversa levara dezoito
minutos a ser concluída. Kevin telefonou-lhe da esquadra três minutos
depois.

Logo a seguir ao telefonema de Kevin, ela ligou para o Super Shuttle, um


serviço de transporte especializado em levar pessoas ao aeroporto e à central
de camionagem. Fez uma reserva para o dia seguinte. Depois, com o
telemóvel na mão, finalmente ativou-o. Ligou para um cinema da cidade que
tinha uma mensagem gravada com a programação dos filmes, para ter a
certeza de que o aparelho estava a funcionar. A seguir, ativou o serviço de
transferência de chamadas no telefone fixo, programando-o para que
quaisquer chamadas fossem transferidas para o número do cinema. Para testar
o esquema, usou o telemóvel para ligar para o telefone fixo. Tinha o coração
aos pulos quando o aparelho tocou. Ao segundo toque, a chamada foi
transferida e ela ouviu a gravação com a programação do cinema. Sentiu algo
a libertar-se dentro do peito e tinha as mãos a tremer quando desligou o
telemóvel e o voltou a colocar na caixa de esfregões. Voltou a reprogramar o
telefone fixo.
Quarenta minutos depois, Kevin voltou a ligar. Erin passou o resto da tarde
num estado de torpor, trabalhando sem parar para que a sua cabeça não
tivesse tempo de se preocupar. Passou duas das camisas de Kevin e foi buscar
o saco de proteção do fato e a mala que estavam guardados na garagem. A
seguir, escolheu um par de meias limpas e engraxou um par de sapatos pretos
dele. Passou a escova para tirar pelos do fato, o preto, que usava sempre que
tinha de comparecer em tribunal, e pegou em três gravatas para que ele
escolhesse a que iria querer usar. Esfregou o chão da casa de banho e os
rodapés com vinagre até ficarem a brilhar. Depois, tirou com cuidado o pó de
cada peça de louça do armário onde guardava as porcelanas e começou a
preparar a lasanha. Ferveu a massa e fez um molho à bolonhesa, alternando
as camadas com fatias de queijo. Pincelou quatro fatias de pão italiano com
manteiga, alho e orégãos e picou todos os ingredientes necessários para a
salada. Por fim, tomou um banho e vestiu-se de forma sexy. Às cinco da
tarde, Erin colocou a lasanha no forno.
Quando Kevin chegou a casa, o jantar estava pronto. Ele comeu a lasanha e
falou sobre como tinha sido o seu dia. Quando pediu para repetir o prato, ela
levantou-se da mesa e trouxe-lhe uma segunda porção. Depois do jantar, ele
bebeu vodka enquanto assistia a repetições de Seinfeld e O Rei do Bairro. A
seguir, assistiu ao jogo de basquetebol entre os Boston Celtics e os Minnesota
Timberwolves e ela sentou-se ao seu lado. Ele adormeceu em frente à
televisão e ela foi para o quarto. Deitou-se na cama, a olhar para o teto, até
que Kevin acordou e foi a cambalear para a cama, tombando sobre o colchão.
Adormeceu de imediato, com um braço por cima dela, e o barulho do seu
ressonar soou como um alarme.
Na manhã de terça-feira, como de costume, Erin preparou o pequeno-
almoço de Kevin. Ele guardou as roupas e os artigos de higiene pessoal na
mala e estava pronto para ir para Marlborough. Depois, levou as coisas para o
carro e regressou à porta da frente, onde ela estava. E beijou-a.
– Regresso amanhã à noite – disse ele.
– Vou ter saudades – disse ela, encostando a cabeça ao ombro dele e
pousando-lhe os braços em volta do pescoço.
– Acho que devo chegar por volta das oito.
– Vou fazer alguma coisa que dê para aquecer quando chegares a casa. E
que tal se for chili?
– Acho que como antes de regressar a casa.
– De certeza? Vais mesmo querer comer comida de plástico? Não te faz
nada bem.
– Logo se vê – disse ele.
– Seja como for, vou preparar o chili. Caso mudes de ideias.
Kevin beijou-a enquanto ela o abraçava.
– Eu ligo mais tarde – disse ele, deslizando as mãos pelas costas dela,
acariciando-a.
– Eu sei – respondeu Erin.
Na casa de banho, Erin despiu-se e colocou as roupas sobre a sanita e
depois enrolou o tapete. Forrara o lavatório com um saco de lixo e, nua,
olhou-se ao espelho. Deslizou os dedos pelos hematomas que tinha nas
costelas e no pulso. As costelas estavam salientes e as olheiras davam ao seu
rosto um aspeto quase cadavérico. Foi tomada por uma onda de fúria
misturada com tristeza, à medida que imaginou como Kevin chamaria o seu
nome ao entrar pela porta da frente, ao voltar da viagem. Iria chamá-la pelo
nome e iria até à cozinha. Iria procurá-la no quarto. Verificaria também a
garagem, o alpendre das traseiras e a cave. «Onde é que estás?», perguntaria
ele. «O que temos para o jantar?»
Com a tesoura, começou a cortar ferozmente o seu próprio cabelo. Dez
centímetros de cabelo louro caíram no saco de lixo. Pegou noutra madeixa,
usando os dedos para a puxar, dizendo a si mesma para medir o
comprimento, e cortou de novo. Sentiu um intenso aperto no peito.
– Odeio-te! – sibilou, com a voz trémula. – Sempre a bater-me e a
humilhar-me! – Cortou mais madeixas do cabelo, com os olhos a encherem-
se de lágrimas de fúria. – Bateste-me porque tive de fazer compras! – Caíram
mais cabelos no lavatório. Tentou conter-se para conseguir igualar as pontas.
– Levaste-me a roubar dinheiro da tua carteira e pontapeaste-me por estares
bêbedo!
Já estava a tremer. As suas mãos vacilaram. Madeixas de diferentes
tamanhos acumulavam-se aos seus pés. – Fizeste com que tivesse de me
esconder! Bateste-me com tanta força que até vomitei!
Cortou novamente com a tesoura. – Eu amava-te! – disse, entre soluços. –
Prometeste nunca mais me bater e acreditei em ti! Quis acreditar em ti! – Erin
cortava o cabelo e chorava. Quando o seu cabelo ficou com um comprimento
uniforme, tirou a tinta que escondera atrás do lavatório. Castanho-escuro. A
seguir, entrou no duche e molhou o cabelo. Virou o frasco e começou a
aplicar a tinta no couro cabeludo. Ficou em pé em frente ao espelho e chorou
incontrolavelmente enquanto a nova cor se fixava ao cabelo. No final do
processo, entrou novamente no duche e passou-o de novo por água. Lavou-o
com champô e amaciador, e postou-se novamente em frente ao espelho.
Cuidadosamente, aplicou o rímel nas sobrancelhas, escurecendo-as. Aplicou
também creme bronzeador na pele, escurecendo-a. Vestiu uns jeans e uma
camisola e fitou-se ao espelho.
Viu uma estranha, morena e de cabelos curtos, a olhar para si.
Limpou a casa de banho com bastante cuidado, certificando-se de que
nenhum fio de cabelo ficava na base do duche ou no chão. Outras madeixas
foram parar ao saco de lixo, assim como a embalagem da tinta para o cabelo.
Esfregou o lavatório e o balcão da casa de banho e fechou o saco de lixo.
Finalmente, deitou colírio nos olhos, tentando apagar os vestígios das
lágrimas.
Erin tinha de se despachar. Guardou as suas coisas numa mochila. Três
pares de jeans, duas camisolas, blusas. Cuecas e sutiãs. Meias. Escova e pasta
de dentes. Uma escova para o cabelo. Rímel para as sobrancelhas. As poucas
joias que possuía. Queijo, biscoitos, nozes e uvas-passas. Um garfo e uma
faca. Foi até ao alpendre dos fundos e pegou no dinheiro que deixara
escondido debaixo do vaso de flores. Pegou também no telemóvel que estava
na cozinha. E, finalmente, a identificação que precisava para começar uma
nova vida – documentos que tinha roubado de pessoas que confiavam nela.
Sentiu ódio de si mesma por ter roubado e sabia que aquilo era errado, mas
não teve outra escolha. Rezou e pediu a Deus que a perdoasse, pois já era
tarde de mais para voltar atrás.
Ensaiara mentalmente a situação milhares de vezes e despachou-se. A
maioria dos vizinhos já saíra para o trabalho. Não queria que ninguém a visse
a sair de casa, não queria que ninguém a reconhecesse.
Erin pôs um chapéu e vestiu o casaco, assim como um cachecol e luvas.
Depois, enfiou a mochila debaixo da camisola, apertando-a e enrolando-a até
que assumisse um formato arredondado. Até que parecesse estar grávida.
Vestiu também o sobretudo por cima da roupa. A peça era suficientemente
grande para cobrir a barriga falsa. Olhou-se mais uma vez ao espelho. Cabelo
curto e escuro. Pele cor de cobre. Grávida. Colocou um par de óculos escuros
e, ao sair pela porta, ligou o telemóvel e programou o telefone fixo de casa
para transferir as chamadas. Erin saiu pelo portão lateral, seguindo por entre a
sua casa e a do vizinho ao longo da cerca, e colocou o saco de lixo no
contentor da residência ao lado. Sabia que o casal que morava ali saíra para
trabalhar e que não estava ninguém em casa. Com os vizinhos das traseiras a
rotina era semelhante. Assim, atravessou o quintal dos vizinhos e seguiu
junto à parede lateral, finalmente chegando ao passeio da rua, que estava
coberto por uma fina camada de gelo.
A neve voltara a cair. Sabia que, no dia seguinte, as suas pegadas já teriam
desaparecido. Precisava de caminhar ao longo de seis quarteirões, mas não
duvidava de que o conseguiria fazer. Manteve a cabeça baixa ao andar,
tentando ignorar o vento cortante, sentindo-se zonza, livre e aterrorizada,
tudo ao mesmo tempo. Sabia que, na noite do dia seguinte, Kevin andaria
pela casa, a chamar por si, e não a encontraria, porque ela já não estaria lá. E,
nessa mesma noite, ele iniciaria a sua caçada.

Flocos de neve riscavam o ar enquanto Katie esperava no cruzamento, em


frente à porta de um restaurante. Ao longe, viu a carrinha azul do Super
Shuttle a dobrar a esquina e o seu coração bateu mais forte no peito. Naquele
preciso momento, ouviu o telemóvel a tocar.
Erin perdeu a cor. Os carros passavam em alta velocidade à sua frente, com
os pneus a fazer ruído ao esmagarem a neve acumulada na rua. Ao longe, a
carrinha mudou de faixa, aproximando-se do lado da rua onde ela estava. Ela
tinha de atender; não havia outra hipótese que não fosse atender o telefone.
Mas a carrinha estava a aproximar-se e havia muito ruído na rua. Se
atendesse, Kevin perceberia que estava fora de casa. Perceberia que o
abandonara.
O telefone tocou pela terceira vez. A carrinha azul parou num sinal
vermelho. A um quarteirão de distância.
Ela voltou-se, entrando no restaurante. Os sons estavam abafados, mas
ainda eram percetíveis – uma sinfonia de pratos a bater uns contra os outros e
pessoas a conversar. Mais à frente estava o balcão da rececionista, onde um
homem pedia que o conduzissem a uma mesa. Erin sentiu o estômago em
convulsão. Tapou o bocal do telefone com uma das mãos e olhou pela janela,
rezando silenciosamente para que ele não conseguisse ouvir o bulício que
havia à sua volta. Sentiu as pernas a tremer enquanto pressionou o botão e
atendeu a chamada.
– Porque é que demoraste tanto a atender? – quis saber Kevin.
– Eu estava no duche. O que é que se passa?
– Ainda faltam dez minutos para me chamarem. E tu, como estás?
– Estou bem – respondeu ela.
Ele hesitou. – A tua voz está estranha. Passa-se alguma coisa de errado com
o telefone?
A um quarteirão de distância, acendeu-se a luz verde no semáforo. A
carrinha do Super Shuttle aproximou-se do passeio, com o pisca a indicar que
iria estacionar. Atrás dela, as pessoas do restaurante tinham ficado
surpreendentemente silenciosas. – Não sei. Mas estou a ouvir-te muito bem –
respondeu ela. – Provavelmente a rede de telemóvel é má aí onde estás.
Como é que correu a viagem?
– Depois de sair da cidade, não foi má. Mas em alguns sítios ainda há gelo
a cobrir a faixa de rodagem.
– Isso não parece ser muito bom. Tem cuidado.
– Eu estou bem – disse ele.
– Eu sei – disse ela.
A carrinha tinha estacionado ao lado do passeio, com o motorista a esticar
o pescoço, à procura dela.
– Detesto ter de fazer isto, mas não queres ligar-me daqui a uns minutos?
Ainda estou com o cabelo cheio de amaciador e preciso de passá-lo por água.

– Tudo bem. Ligo daqui a uns minutos – resmungou ele.


– Amo-te.
– Também te amo.
Ela deixou que fosse Kevin a desligar antes de pressionar o botão para
terminar a chamada no telemóvel. A seguir, saiu do restaurante e correu para
a carrinha. Ao chegar à central de camionagem, comprou um bilhete para
Filadélfia, detestando a atitude do homem que lho vendeu, que insistia em
tentar encetar conversa.
Em vez de esperar no terminal, atravessou a rua para tomar o pequeno-
almoço. O dinheiro para a carrinha e para o bilhete de autocarro tinham
levado mais de metade do que ela guardara durante o ano, mas estava cheia
de fome. Pediu panquecas, salsichas e leite. Alguém se esquecera de um
jornal em cima da mesa e ela obrigou-se a lê-lo. Kevin ligou para Erin
enquanto ela comia. Quando ele mencionou outra vez que a voz dela estava
estranha, ela disse que poderia ser por causa do nevão.
Vinte minutos depois, entrou no autocarro. Uma senhora idosa apontou
para a barriga falsa enquanto ela passava pelo corredor.
– Quanto tempo falta até o parto?
– Um mês.
– É o primeiro?
– Sim – respondeu ela, mas a sua boca estava tão seca que lhe era difícil
manter a conversa. Continuou pela coxia do autocarro e sentou-se num dos
últimos lugares. Havia pessoas sentadas à sua frente e também atrás. Do
outro lado, estava um jovem casal. Adolescentes, um deitado por cima do
outro, a ouvir música. As cabeças balançavam para cima e para baixo. Erin
olhou pela janela enquanto o autocarro saía do terminal e tudo aquilo lhe
pareceu um sonho. Na estrada, Boston começou a ficar cada vez menor ao
longe, cinzenta e fria. Doíam-lhe as costas à medida que o autocarro
avançava, percorrendo quilómetros e quilómetros. A neve continuou a cair e
os pneus dos carros espalhavam a neve suja ao passarem pelo autocarro.
Desejou poder conversar com alguém. Queria contar a alguém que estava a
fugir porque o marido lhe batia e que não podia chamar a polícia porque ele
era agente. Queria contar a alguém que não tinha muito dinheiro e que nunca
mais poderia usar o seu próprio nome. Se o fizesse, ele iria encontrá-la e
arrastá-la de volta para casa. E voltaria a bater-lhe, mas então por certo não
pararia. Queria contar a alguém que estava aterrorizada porque não sabia
onde dormir naquela noite ou o que fazer para conseguir comer quando o seu
dinheiro acabasse.
Erin sentiu o ar frio na janela enquanto o autocarro passava por outras
cidades. O trânsito na estrada diminuiu, mas pouco tempo depois voltou a
intensificar-se. Ela não sabia o que fazer a seguir. Os seus planos terminavam
no autocarro e não havia ninguém a quem pudesse ligar para pedir ajuda.
Estava sozinha e não tinha nada além das coisas que levava consigo.
Uma hora antes de chegar a Filadélfia, o telemóvel tocou novamente. Ela
cobriu o bocal com a mão e conversou com Kevin. Antes de desligar, ele
prometeu ligar novamente antes de ir para a cama.

Erin chegou a Filadélfia ao final da tarde. Estava frio, mas não nevava. Os
passageiros desembarcaram do autocarro e ela deixou-se ficar para trás, à
espera que todos saíssem. Na casa de banho, tirou a mochila de debaixo da
roupa, foi para a sala de espera e sentou-se num dos bancos. Tinha o
estômago a roncar. Pegou num pedaço de queijo e comeu-o com alguns
biscoitos. Sabia que teria de fazer aquela comida durar e guardou o resto
outra vez na mochila, mesmo estando com fome. Finalmente, depois de
comprar um mapa da cidade, saiu da central de camionagem.
O terminal rodoviário não ficava numa zona perigosa de Filadélfia. Viu o
centro de congressos e o Trocadero Theater. Sentiu-se segura, mas ao mesmo
tempo também constatou que nunca teria condições de pagar um quarto de
hotel naquela área. O mapa indicava que estava junto ao bairro de Chinatown
e, sem um plano melhor, dirigiu-se para lá.
Três horas mais tarde, encontrou finalmente um lugar para dormir. O lugar
era imundo e cheirava a fumo de cigarro, e o seu quarto mal tinha espaço para
a pequena cama que lá tinham enfiado. Não havia candeeiro, apenas uma
lâmpada pendurada no teto, e todos os quartos partilhavam a mesma casa de
banho, ao fundo do corredor. As paredes eram cinzentas e estavam
manchadas pela humidade. Nos quartos vizinhos, dava para ouvir as pessoas
a conversar num idioma que ela não conseguia entender. Mesmo assim, o
dinheiro de que dispunha não lhe permitira ir para outro lugar. A quantia era
suficiente para passar três noites ali, ou quatro, se conseguisse sobreviver
com a pouca comida que levara de casa.
Sentou-se na beira da cama, a tremer, com medo daquele lugar, com medo
do futuro e com a mente num turbilhão. Tinha de ir à casa de banho, mas não
queria sair do quarto. Tentou convencer-se a si própria de que seria uma
aventura e que tudo acabaria bem. Por mais estranho que parecesse, Erin
começou a questionar-se se sair de casa teria sido um erro. Tentou não pensar
na sua cozinha, no seu quarto e em todas as coisas que deixara para trás.
Sabia que podia comprar um bilhete de regresso a Boston e chegar a casa
antes que Kevin se apercebesse que fugira. Mas agora tinha o cabelo curto e
castanho, e isso não saberia como explicar.
Do lado de fora, o sol já desaparecera, mas as luzes da rua iluminavam o
quarto através da janela suja. Ouviu o som de buzinas e olhou para a rua. No
exterior, todas as fachadas tinham nomes escritos com caracteres chineses e
algumas das lojas ainda estavam abertas. Dava para ouvir algumas das
conversas que vinham dos cantos mais escuros e havia sacos de plástico
cheios de lixo empilhados nas calçadas. Estava numa cidade que não
conhecia, cercada por estranhos. Pensou que, afinal, talvez não conseguisse
libertar-se. Que não seria suficientemente forte. Daí a três dias, não teria um
lugar onde dormir a menos que conseguisse encontrar um emprego. Se
vendesse as suas joias talvez pudesse pagar mais uma noite no hotel, mas, e
depois? O que faria?
Sentiu-se muito cansada e tinha as costas ainda a latejar. Deitou-se e o sono
surgiu quase imediatamente. Kevin telefonou-lhe mais tarde e o toque do
telefone despertou-a. Necessitou de toda a sua força e concentração para falar
com uma voz firme, para evitar que ele descobrisse a sua fuga. Mesmo assim,
soou tão cansada quanto realmente estava, levando Kevin a acreditar que
estava na cama do casal. Depois de ele desligar, adormeceu em poucos
minutos.
De manhã, ouviu pessoas a andar pelo corredor, dirigindo-se à casa de
banho. Duas mulheres chinesas estavam em frente aos lavatórios. O
revestimento da parede estava coberto por bolor verde e havia papel higiénico
molhado no chão. A porta do cubículo não tinha tranca e ela teve de a segurar
com a mão.
De regresso ao quarto, tomou um pequeno-almoço composto por queijo e
biscoitos. Pensou em tomar um banho, mas percebeu que se esquecera de
levar champô e sabonete, pelo que não seria possível. Trocou de roupa e
escovou os dentes e o cabelo. A seguir, guardou as suas roupas de novo na
mochila, pois não queria deixá-las no quarto, e passou a alça pelo ombro.
Desceu as escadas e reparou que na receção permanecia o mesmo funcionário
que lhe entregara a chave do quarto. Calculou que ele nunca saísse de trás do
balcão. Pagou mais uma noite e pediu-lhe que mantivesse o quarto reservado.

No exterior, o céu estava azul e as ruas secas. Constatou que a dor nas
costas praticamente desaparecera. Estava frio, mas não tanto quanto em
Boston e, apesar dos seus receios, percebeu que estava a sorrir. Fez questão
de recordar a si própria que conseguira. Kevin estava a centenas de
quilómetros de distância e não sabia do paradeiro dela. Ele ligaria mais uma
ou duas vezes. Depois, ela deitaria o telefone fora e nunca mais teria de voltar
a falar com ele.
Erin empinou a cabeça e respirou o ar gelado. Achou o dia revigorante,
cheio de possibilidades. Iria encontrar um emprego naquele mesmo dia. Hoje,
decidiu, iria começar a viver o resto da sua vida.

Já fugira duas vezes antes e gostava de pensar que aprendera com os erros.
A primeira vez aconteceu pouco antes de completar um ano de casamento,
depois de Kevin lhe bater enquanto ela se agachou num canto do quarto. As
contas da casa tinham chegado e Kevin ficou irritado por ela ter mexido no
termóstato para aquecer a casa. Quando finalmente parou de agredi-la, pegou
nas chaves do carro e saiu de casa para comprar mais bebidas. Sem pensar no
que estava fazer, ela pegou no casaco e saiu de casa, percorrendo as ruas a
coxear. Horas depois, por entre fiapos de neve e sem ter para onde ir,
telefonou-lhe e ele foi buscá-la.
Na ocasião seguinte, Erin chegou até Atlantic City antes de ele a encontrar.
Retirara dinheiro da carteira de Kevin e comprara um bilhete de autocarro,
mas ele encontrou-a menos de uma hora depois de Erin chegar ao seu
destino. Kevin percorreu a estrada a alta velocidade, sabendo que ela correria
para o único lugar onde ainda tinha amigos. Algemou-a ao banco de trás do
carro antes de voltar para casa. No caminho, parou o carro ao lado de um
prédio de escritórios abandonado e bateu-lhe outra vez. Mais tarde, naquela
noite, surgiu a arma.
Depois daquele episódio, ele criou-lhe mais obstáculos à fuga. Deixava o
dinheiro fechado e começou a verificar obsessivamente o seu paradeiro. Ela
sabia que ele tomaria atitudes extremas para a encontrar. Por mais louco que
fosse, Kevin era também persistente e metódico e o seu instinto raramente
falhava. Iria descobrir que ela estava em Filadélfia e iria encontrá-la. Erin
estava provisoriamente em vantagem, mas, sem dinheiro para recomeçar a
vida em qualquer outro lugar, tudo o que lhe restava fazer era olhar por cima
do ombro, mas apenas por um breve período. A sua estadia em Filadélfia
seria curta.
Ao fim de três dias, encontrou emprego como empregada de mesa para
servir cocktails. Inventou um nome e um número de segurança social. Ao fim
de algum tempo, os dados seriam verificados, mas nessa altura ela já teria
partido. Encontrou outro quarto para alugar na zona mais distante de
Chinatown. Assim, trabalhou durante duas semanas, acumulando o dinheiro
das gorjetas enquanto procurava outro emprego. Quando encontrou, deixou o
emprego de empregada de mesa sem se incomodar em levantar o salário. Não
valeria a pena. Sem uma identidade válida, não conseguiria descontar o
cheque. Trabalhou durante mais três semanas num pequeno restaurante e
mudou-se para outro hotel, que alugava quartos à semana. Embora estivesse
numa zona mais perigosa da cidade, o quarto era mais caro, mas tinha uma
casa de banho privativa com água quente. Valia a pena, mesmo que fosse
apenas para ter um pouco de privacidade e um lugar onde pudesse deixar as
suas coisas. Erin juntara algumas centenas de dólares em gorjetas, mais do
que tinha quando saiu de Dorchester, mas ainda não era o suficiente para
recomeçar a sua vida. Abandonou de novo o emprego sem levantar o salário,
sem se dar sequer ao trabalho de apresentar a demissão. Encontrou outro
emprego alguns dias depois, novamente a trabalhar num restaurante. No novo
emprego, disse ao gerente que se chamava Erica.
As constantes mudanças de emprego e de hotel levaram-na a manter-se
vigilante e foi nessa altura, apenas quatro dias depois de ter começado, que,
ao dobrar uma esquina a caminho do trabalho, viu um carro que, de algum
modo, lhe pareceu estranho. Ela deteve-se.
Mesmo passado tanto tempo, ainda não sabia explicar o que lhe despertara
a atenção, além do facto de o carro estar limpo o suficiente para refletir os
raios do sol matinal. Ao olhar para o carro, viu movimento no banco do
condutor. O motor não estava ligado e pareceu-lhe estranho ver alguém
dentro de um veículo sem o aquecimento ligado numa manhã fria. Sabia que
as únicas pessoas que faziam aquilo eram as que estavam à espera de alguém.

Ou à procura de alguém.
Kevin.
Erin percebeu que era ele. Percebeu isso com uma certeza que a
surpreendeu a si mesma. Deu meia-volta e dobrou de novo esquina,
regressando pelo mesmo caminho por onde viera, rezando para que ele não a
tivesse visto pelo espelho retrovisor. Assim que o carro desapareceu do seu
campo de visão, desatou a correr de volta ao hotel, com o coração aos pulos.
Já há anos que não corria assim tão depressa, mas todas as caminhadas que
fizera nas últimas semanas tinham-lhe fortalecido as pernas e por isso foi
bastante rápida. Um quarteirão. Dois. Três. Olhou constantemente por cima
do ombro, mas Kevin não a seguiu.
Isso não interessava. Ele sabia que ela estava ali. Sabia onde ela trabalhava.
Iria saber se ela não aparecesse para trabalhar. Dentro de poucas horas,
descobriria o lugar onde ela estava a morar. De volta ao quarto, pôs as suas
coisas na mochila e saiu pela porta em poucos minutos. Começou a dirigir-se
à central de camionagem. Mesmo assim, levaria imenso tempo até lá chegar.
Uma hora de caminhada, talvez mais, e ela não dispunha de tanto tempo.
Seria o primeiro lugar onde ele iria quando percebesse que não aparecera no
restaurante. Dando meia-volta, regressou ao hotel e pediu ao rececionista que
lhe chamasse um táxi. O veículo chegou dez minutos depois. Os dez minutos
mais longos da sua vida.
Na central de camionagem, examinou freneticamente os horários e
escolheu um que iria para Nova Iorque e que sairia dali a meia hora.
Escondeu-se na casa de banho das mulheres até à hora de embarcar. Quando
entrou no autocarro, deixou-se afundar no seu assento. O autocarro chegou
rapidamente a Nova Iorque. Mais uma vez, examinou os horários e comprou
um bilhete para Omaha.
No início da noite, desembarcou algures no estado do Ohio. Dormiu no
terminal e na manhã seguinte foi a pé a uma bomba de gasolina à beira da
estrada, onde conheceu um homem que ia fazer uma entrega em Wilmington,
na Carolina do Norte.
Uns dias mais tarde, depois de vender as suas joias, chegou a Southport e
encontrou a cabana. Depois de pagar o primeiro mês de renda, não lhe
sobrara dinheiro para comprar comida.
23

E m meados de junho, Katie estava a sair do Ivan’s após uma noite de


grande movimento quando se apercebeu de um vulto familiar junto à
porta.
– Olá – disse Jo, acenando. Estava sob o candeeiro onde Katie prendera a
sua bicicleta.
– Olá! O que andas aqui a fazer? – perguntou Katie, inclinando-se para
abraçar a amiga. Nunca se deparara com Jo na cidade e vê-la longe de casa
pareceu-lhe, de certa forma, um pouco estranho.
– Vim à tua procura. Desapareceste.
– Poderia dizer o mesmo a teu respeito.
– Eu estive suficiente perto para saber que tu e o Alex estão juntos há umas
semanas – disse ela, piscando o olho. – Mas, como amiga, nunca me pareceu
que fosse correto meter-me na tua vida. Imaginei que vocês os dois
precisassem de algum tempo a sós.
Katie sentiu-se a enrubescer, contra a sua vontade. – E como é que sabias
que eu estava aqui?
– Não sabia. Mas as luzes de tua casa estão apagadas e resolvi arriscar –
explicou Jo, encolhendo os ombros. Apontou por cima do ombro. – Tens
alguma coisa para fazer? Gostavas de ir beber um copo antes de regressar a
casa? – Apercebendo-se da hesitação de Katie, insistiu. – Sei que é tarde. É
só um copo, prometo. Depois, deixo-te dormir em paz.
– Um copo, seja – concordou Katie.
Poucos minutos depois, entraram num pub, um dos lugares preferidos dos
habitantes de Southport. As paredes eram revestidas a madeira escura,
marcada pelas décadas de uso, com um comprido espelho atrás do balcão do
bar. O lugar estava sossegado naquela noite. Havia apenas algumas mesas
ocupadas e as duas mulheres sentaram-se numa que estava ao fundo da sala.
Como aparentemente não havia empregados, Katie pediu dois copos de vinho
ao balcão e levou-os para a mesa.
– Obrigada – disse Jo, pegando no copo. – Da próxima vez, pago eu –
acrescentou, recostando-se no assento. – Então, tu e o Alex estão juntos?
– Queres mesmo que eu fale disso? – perguntou Katie.
– Bem, como a minha vida amorosa está um caos, tenho de me contentar
em saber que estás feliz com a tua. Parece mesmo que as coisas te estão a
correr bem. Quantas vezes é que ele foi a tua casa? Duas ou três vezes na
semana passada? E outras tantas na semana anterior?
Na verdade, foram mais, pensou Katie. – Mais ou menos.
Jo pegou no seu copo pelo pé e girou-o entre os dedos. – Estou a ver.
– Estás a ver o quê?
– Se não te conhecesse, seria levada a pensar que esse teu relacionamento
está a tornar-se algo sério – comentou, erguendo uma sobrancelha.
– Ainda estamos a conhecer-nos – arriscou Katie, sem saber onde Jo queria
chegar com aquelas perguntas.
– É assim que começam todos os relacionamentos. Ele gosta de ti, tu gostas
dele. E, a partir daí, as coisas evoluem naturalmente.
– Foi para isso que me foste esperar à porta do trabalho? Para saberes todos
os pormenores? – Katie tentou não parecer desesperada.
– Todos os pormenores, não, apenas os mais importantes.
Katie revirou os olhos. – Em vez disso, e que tal falarmos da tua vida
amorosa?
– Porquê? Queres ficar deprimida?
– Quando foi a última vez que saíste com alguém?
– Um encontro dos bons? Ou um encontro sem nada de especial?
– Um dos bons.
Jo hesitou. – Diria que já lá vão pelo menos uns dois anos.
– E o que é que aconteceu?
Jo molhou a ponta do dedo no vinho e depois fê-la deslizar pela beira do
copo, o que gerou um som suave. Finalmente, ergueu os olhos.
– É difícil encontrar um homem bom e gentil – disse ela, suspirando. –
Nem toda a gente tem a sorte que tu tiveste.
Katie não soube como responder àquela frase. Assim, limitou-se a tocar na
mão de Jo com a sua.
– A sério, o que é que se passa? – perguntou ela, gentilmente. – Porque é
que vieste até aqui para conversar comigo?
Jo olhou em volta do bar, que estava praticamente vazio, como se tentasse
encontrar inspiração no ambiente envolvente. – Já alguma vez te sentaste e
começaste a pensar no sentido de tudo isto? Se a vida é sempre assim, ou se
há algo maior lá fora? Ou se estavas destinada a ter algo melhor?
– Acho que já toda a gente passou por isso – respondeu Katie, cada vez
mais curiosa.
– Quando eu era pequena, costumava fazer de conta que era uma princesa.
Uma princesa boa, que fazia sempre o que estava certo e com o poder de
melhorar a vida das pessoas para que, no final, elas vivessem felizes para
sempre.
Katie assentiu levemente com a cabeça. Lembrava-se de imaginar a mesma
coisa em criança, mas ainda não percebera onde Jo pretendia chegar com
aquela conversa. Assim, permaneceu em silêncio.
– Acho que é por isso que tenho o meu atual emprego. Quando comecei,
queria apenas poder ajudar. Via as pessoas que estavam a lutar contra a perda
de alguém que amavam – um pai, um filho, um amigo – e o meu coração
transbordava de compaixão. Tentei fazer tudo o que estava ao meu alcance
para melhorar a situação dessas pessoas. Mas, com o passar do tempo,
comecei a perceber que só conseguiria ajudar até um certo ponto. E também
que, a partir desse ponto, as pessoas que estavam a sofrer precisavam de
querer dar um passo em frente. O primeiro passo, aquela faísca motivadora,
tem de vir de dentro delas. E, quando isso acontece, é como se uma porta
para o inesperado se abrisse.
Katie respirou fundo, tentando compreender o sentido das palavras de Jo. –
Não estou perceber o que me queres dizer.
Jo rodou o copo, estudando o pequeno redemoinho que se formara no
vinho. Pela primeira vez, assumiu um tom muito sério. – Estou a falar de ti e
do Alex.
Katie não conseguiu disfarçar a sua surpresa.
– De mim e do Alex?
– Sim – disse ela, assentindo com a cabeça. – Ele falou-te da morte da
mulher, não foi? Sobre como foi difícil para ele e para os filhos superarem
aquela perda?
Katie olhou fixamente para Jo, sentindo-se de repente desconfortável. –
Sim... – ia a dizer.
– Então tem cuidado com eles – disse Jo, com a voz séria. – Com todos
eles. Cuidado para não os magoar.
No silêncio desconfortável que se seguiu àquelas palavras, Katie lembrou-
se da primeira conversa que as duas tiveram a respeito de Alex.
Já se passou alguma coisa entre vocês?, lembrava-se de ter perguntado a
Jo. Sim, mas não da maneira que estará a imaginar, respondera ela. E, para
que as coisas fiquem bem claras, isso já foi há bastante tempo e cada um
prosseguiu com a sua vida.
Na altura em que tiveram aquela conversa, presumira que aquilo
significava que ela e Alex tinham andado juntos no passado, mas agora...
Ficou chocada com quão óbvio aquilo era. A psicóloga que Alex
mencionara, a pessoa que ajudou as crianças e que o aconselhou depois da
morte de Carly fora Jo. Katie endireitou-se no seu lugar.
– Trabalhaste com o Alex e as crianças, não foi? Depois de a Carly ter
morrido?
– Prefiro não falar sobre isso – respondeu Jo. O seu tom de voz era calmo e
calculado. Exatamente como o de uma psicóloga. – O que te posso dizer é
que... todos são muito importantes para mim. E, se não estiveres a pensar
seriamente em partilhar o teu futuro com eles, acho que seria melhor
terminares com tudo agora. Antes que seja tarde de mais.
Katie sentiu-se empalidecer. Parecia inapropriado – talvez até mesmo
presunçoso – que Jo abordasse o assunto.
– Na verdade, não acho que isso seja da tua conta – disse ela, com a voz
estrangulada.
Jo deu razão a Katie com um leve aceno de cabeça. – Tens razão. Isso não
é da minha conta e eu estou a passar certos limites com esta conversa. Mas
realmente acho que eles passaram por um período muito difícil e que
sofreram de mais. E a última coisa que quero é que se apeguem a alguém que
não tenha a intenção de continuar a viver em Southport. Talvez me esteja a
preocupar com a possibilidade de o passado nem sempre ficar no passado e
que possas optar por partir, independentemente da tristeza que deixes para
trás.
Katie ficou sem palavras. Aquela conversa era totalmente inesperada,
totalmente desconfortável. E as palavras de Jo tinham deixado as suas
emoções num turbilhão.
Jo prosseguiu, mesmo apercebendo-se do desconforto de Katie. – O amor
não significa nada se não estiveres disposta a assumir um compromisso e não
podes pensar apenas no que queres. Tens de pensar também no que ele quer.
Não só agora, como também no futuro. – Continuou a olhar fixamente para
Katie, à sua frente. – Estás preparada para ser uma esposa para o Alex e uma
mãe para os filhos dele? Porque é isso que o Alex quer. Talvez não agora,
mas no futuro vai ser. E se não estiveres disposta a comprometer-te, se
pretenderes apenas brincar com os sentimentos dele e com os das crianças,
então não és a pessoa que ele precisa de ter ao seu lado.
Antes que Katie pudesse dizer qualquer coisa, Jo levantou-se da mesa, sem
parar de falar. – Pode ter sido errado da minha parte dizer-te isto tudo e agora
se calhar já não poderemos ser amigas. Mas não me sentiria bem comigo
mesma se não dissesse tudo isto abertamente. Como disse desde o início, ele
é um bom homem. Um homem raro. Ele ama profundamente e nunca deixa
de amar.
– Ela deixou que Katie absorvesse aquelas palavras antes de a sua
expressão se suavizar repentinamente. – Acho que és igual a ele. Mesmo
assim, queria lembrar-te que, se gostas dele, tens de estar disposta a
comprometeres-te. Independentemente do que possa acontecer no futuro.
Independentemente de qualquer medo que tenhas.
A seguir, voltou-se e saiu do bar, deixando Katie sentada à mesa, num
silêncio estupefacto. Só quando se levantou para sair é que percebeu que Jo
não tocara no vinho.
24

K evin Tierney não foi a Provincetown naquele fim de semana, ao


contrário do que dissera a Coffey e a Ramirez. Em vez disso, ficou em
casa com as cortinas fechadas, a pensar em como estivera perto de a
encontrar em Filadélfia.
Não teria conseguido segui-la até tão longe se não fosse por um erro que
ela cometera durante a fuga, ao ir até à central de camionagem. Ele sabia que
aquele era o único meio de transporte que ela poderia usar. Os bilhetes eram
baratos e não era necessária identificação e, embora não tivesse a certeza de
quanto dinheiro ela lhe roubara, sabia que não podia ter sido muito. Desde o
dia em que se casaram que controlava o dinheiro. Obrigava-a sempre a
guardar todos os recibos e a devolver-lhe o troco de qualquer coisa que
comprasse. Entretanto, depois de ela ter fugido pela segunda vez, também
começara a fechar a sua carteira no estojo onde guardava as armas, antes de
se deitar para dormir. Mesmo assim, às vezes adormecia no sofá e imaginou
que, nessas ocasiões, ela lhe tirasse a carteira do bolso e lhe roubasse o
dinheiro. Imaginou-a a rir-se em silêncio quando fazia aquilo e como, pela
manhã, lhe preparava o pequeno-almoço e fingia não ter feito nada de mal.
Ela sorria e beijava-o, mas, por dentro, estava a rir-se. A rir-se dele. Roubara-
o e ele sabia que aquilo era errado, pois a Bíblia diz: Não roubarás.
No escuro, mordeu o lábio, lembrando-se da esperança que tivera nos
primeiros dias, imaginando que ela fosse voltar. Estava a nevar e ela não
poderia ter ido longe. Da primeira vez que Erin fugira, a noite também estava
impiedosamente fria e ela telefonara-lhe após algumas horas, pedindo-lhe que
fosse buscá-la, pois não tinha nenhum lugar para onde pudesse ir. Quando
chegou a casa, desculpou-se pelo que fizera e Kevin preparou-lhe uma
chávena de chocolate quente enquanto ela estava sentada no sofá, a tremer de
frio. Trouxe-lhe um cobertor e observou-a enquanto ela se cobriu, a tentar
aquecer-se. Ela sorriu-lhe e ele retribuiu o sorriso. Quando ela parou de
tremer, ele atravessou a sala e esbofeteou-a até a ouvir chorar. Ao acordar
para trabalhar de manhã, Erin já tinha limpado o chocolate quente que
derramara no chão, embora ainda houvesse uma mancha na carpete, que ela
nunca conseguiu remover por completo. E, volta e meia, irritava-o ver aquela
mancha.
Na noite em que percebeu que ela desaparecera, em janeiro passado, Kevin
bebera dois copos de vodka enquanto esperou que ela voltasse, mas o telefone
não tocou e a porta da frente permaneceu fechada. Sabia que ela não tinha
partido há muito tempo. Tinham conversado menos de uma hora antes e ela
dissera-lhe que estava a preparar o jantar. Mas não havia nenhum jantar no
fogão. Nenhum sinal dela na casa, na cave ou na garagem. Foi ao alpendre e
procurou pegadas na neve, mas era óbvio que Erin não saíra pela porta da
frente. A neve no quintal também não tinha qualquer pegada ou sinal
suspeito, pelo que também não fora por aquela porta que ela saíra. Era como
se ela tivesse simplesmente flutuado para longe, ou desaparecido no ar. E
aquilo significava que deveria estar em casa... só que não estava.
Dois copos de vodka e meia hora depois Kevin já estava possuído pela
fúria. Foi nessa altura que abriu um buraco na porta do quarto com um soco.
Saiu de casa e bateu com força na porta dos vizinhos, perguntando se tinham
percebido quando ela saíra, mas nenhum deles soube responder. Entrou no
carro e conduziu freneticamente pelas ruas do bairro, à procura de rastos que
ela pudesse ter deixado, tentando entender como é que conseguira sair de
casa sem deixar qualquer pista. Imaginou que ela talvez tivesse duas horas de
vantagem, mas, como estaria a pé, e com a neve a cair, não poderia ter ido
longe. A menos que alguém a tivesse ido buscar. Alguém de quem ela
gostasse. Um homem.
Socou o volante, com o rosto contorcido pela fúria. A zona comercial da
cidade ficava a seis quarteirões de distância. Ele passou por várias lojas,
mostrando uma foto de Erin que tinha na carteira e perguntando às pessoas se
a tinham visto. Ninguém respondeu afirmativamente. Disse que ela poderia
estar acompanhada por um homem, mas, mesmo assim, as respostas
negativas continuaram. Os homens que ele abordou foram incisivos. «Uma
loira bonita como ela? Teria reparado, especialmente numa noite como esta»,
diziam.
Kevin regressou ao carro e percorreu todas as ruas e estradas num raio de
oito quilómetros de casa, duas ou três vezes, antes de finalmente desistir.
Eram três horas da manhã e a casa estava vazia. Depois de mais uma vodka,
começou a chorar e não parou até adormecer. De manhã, quando acordou,
teve um novo acesso de fúria. Com um martelo, destruiu os vasos de flores
que Erin tinha no quintal. Resfolegando, ligou para a esquadra e disse que
não podia ir trabalhar, pois estava doente. Depois, sentou-se no sofá e tentou
desvendar de que maneira ela fugira. Era certo que tivera alguma ajuda.
Alguém a teria levado para algum lugar. Alguém que ela conhecia. Algum
amigo de Atlantic City? Altoona? Era possível, supôs ele, embora verificasse
cuidadosamente as contas de telefone todos os meses. Ela nunca fizera
nenhuma chamada para longe. Seria então alguém que morasse em
Dorchester. Mas quem? Ela nunca ia a lado nenhum e nunca conversava com
ninguém. Ele nunca permitiu.
Foi para a cozinha e estava a servir-se de mais um copo de vodka quando
ouviu o telefone tocar. Foi disparado atender, à espera que fosse Erin. No
entanto, estranhamente, o telefone tocou apenas uma vez e, quando atendeu,
ouviu um som de uma chamada a ser estabelecida. Olhou para o aparelho, a
tentar perceber o que se estava a passar.
Como é que ela conseguira escapar? Alguma coisa lhe tinha passado ao
lado. Mesmo se alguém que morasse na cidade a tivesse ajudado, como é que
teria chegado até à rua sem deixar pegadas na neve? Olhou pela janela,
tentando reconstruir a sequência de eventos. Havia ali algo que não
encaixava, embora não conseguisse identificar o que era. Virou-se de costas
para a janela e deu por si a concentrar-se no telefone. Foi então que as peças
finalmente se encaixaram e ele pegou no telemóvel. Ligou para o telefone
fixo e ouviu-o tocar uma vez. O telemóvel continuou a chamar. Quando
pegou no auscultador do aparelho fixo, escutou um som de ligação em curso
e percebeu que ela transferira as chamadas para outro telemóvel. E aquilo
significava que não estava em casa quando ele lhe telefonara na noite
anterior, além de explicar por que razão a ligação estava má nos dois dias
anteriores. E, é claro, a falta de pegadas na neve. Kevin percebeu então que
Erin já não estava em casa desde a manhã de terça-feira.

Na central de camionagem, ela cometeu um erro, mas que nunca


conseguiria evitar. Deveria ter comprado o bilhete a uma funcionária, e não a
um homem. Erin era bonita e os homens nunca esqueciam uma mulher
bonita. Não importava se tivesse o cabelo comprido e louro ou curto e
castanho. Também não importava que fingisse estar grávida.
Ele foi à central de camionagem. Mostrou o seu distintivo e uma fotografia
maior da esposa. Nas primeiras duas vezes em que ele ali estivera, nenhum
dos funcionários que vendiam bilhetes a reconhecera. Na terceira vez, no
entanto, um deles hesitou e disse que poderia tê-la visto, a não ser pelo facto
de ter o cabelo curto e castanho e também por estar grávida.
Kevin regressou a casa e encontrou uma fotografia de Erin no computador.
Usou o Photoshop para alterar a cor do cabelo, de louro para castanho.
Depois, «cortou-o». Telefonou novamente para a esquadra na sexta-feira e
informou que estava doente. «É ela», confirmou o homem da bilheteira, e
Kevin sentiu uma onda de energia a apoderar-se de si. Erin pensou que era
mais esperta do que ele, mas, na verdade, era estúpida e descuidada, e
cometera um erro. Ele tirou alguns dias de folga na semana seguinte e
continuou a rondar a central de camionagem, mostrando a nova fotografia aos
motoristas dos autocarros. Aparecia pela manhã e ia embora muito tarde, pois
os motoristas estavam sempre a chegar e a sair. Tinha duas garrafas de vodka
no carro. Servia-se num copo de esferovite e bebia com uma palhinha.
No sábado, onze dias depois de Erin ter saído de casa, encontrou o
motorista. Ele a levara-a até Filadélfia e disse que se lembrava dela porque a
mulher era bonita e estava grávida e também porque não levava bagagem.

Filadélfia. Ela já podia ter saído de lá e ido para outro lugar, mas era a
única pista que Kevin tinha. Além disso, sabia que ela não tinha muito
dinheiro.
Colocou algumas roupas numa mala e viajou de carro até Filadélfia.
Estacionou na central de camionagem e tentou pensar como Erin. Ele era um
bom detetive e sabia que, se conseguisse pensar como ela, conseguiria
encontrá-la. Kevin aprendera que as pessoas são previsíveis.
O autocarro chegara uns minutos antes das quatro da tarde e ele foi até à
central, e pôs-se a olhar de um lado para o outro. Ela estivera naquele mesmo
lugar há uns dias, pensou, e imaginou o que poderia fazer numa cidade
estranha, sem dinheiro, nem amigos e nem ter para onde ir. Moedas e notas
de um dólar não a levariam longe, especialmente depois de comprar um
bilhete de autocarro. Ele lembrou-se de que o tempo estava frio e que
escureceria depressa. Ela não ia querer ir a pé até muito longe e precisaria de
um lugar para ficar. Um lugar que aceitasse pagamento em dinheiro. Mas
onde? Não aqui, neste bairro. Era caro de mais. Para onde é que ela iria? Não
se arriscaria a perder-se ou a andar na direção errada. Isso implicava que
provavelmente teria consultado uma lista telefónica. Regressou ao terminal e
pesquisou os hotéis que apareciam na lista telefónica. Percebeu que eram
imensas páginas. Ela teria escolhido um, mas, e a seguir? Teria de ir a pé até
lá. E, para o fazer, precisaria de um mapa.
Foi até à loja de conveniência da central e comprou um mapa. Mostrou a
fotografia ao empregado, mas ele abanou negativamente com a cabeça. Disse
que não estava a trabalhar naquela terça. Mas Kevin sentiu que estava na
pista certa. Ela só poderia ter feito aquilo. Desdobrou o mapa e localizou o
terminal. Ficava muito perto de Chinatown e calculou que ela se tivesse
dirigido para lá.
Kevin regressou ao carro e percorreu as ruas de Chinatown e, mais uma
vez, o seu instinto indicou-lhe que ele estava certo. Bebeu a sua vodka e
percorreu as ruas a pé, começando pelas lojas mais próximas da central de
camionagem. Mostrou a foto dela a várias pessoas. Ninguém sabia de nada,
mas percebeu que algumas delas estavam a mentir. Encontrou quartos
baratos, lugares onde ele nunca a levaria, lugares sujos com lençóis sujos,
geridos por homens que não falavam muito bem inglês e que só aceitavam
pagamentos em dinheiro. Kevin deixava implícito que Erin correria perigo
caso não a conseguisse encontrar. Encontrou o primeiro lugar onde ela se
hospedou, mas o proprietário não sabia para onde se mudara depois. Kevin
encostou o cano da arma à cabeça do proprietário, mas, mesmo a chorar, o
homem não conseguiu dar-lhe mais informações.
Tendo de regressar ao trabalho na segunda-feira seguinte, ficou furioso por
Erin o ter ludibriado. Mas, no outro fim de semana, voltou a Filadélfia. E no
seguinte. Expandiu a busca, mas esbarrava no problema de haver muitos
lugares onde procurar e ele ser apenas um. Nem toda gente confiava num
polícia de fora.
Mas ele era paciente e metódico e continuou a fazer as suas viagens até
Filadélfia, tirando para isso dias de folga. Passou mais um fim de semana.
Ampliou a busca, sabendo que ela precisaria de dinheiro vivo. Procurou em
bares, restaurantes e cafés. Investigaria todos aqueles estabelecimentos, de
toda a cidade, se fosse preciso. Finalmente, na semana a seguir ao Dia dos
Namorados, conversou com uma empregada de mesa chamada Tracy, que lhe
disse que Erin estava a trabalhar num restaurante, mas dando pelo nome de
Erica. O nome dela constava da escala do dia seguinte. A empregada de mesa
confiou nele porque Kevin era detetive e chegou mesmo a atirar-se a ele,
dando-lhe o seu número de telefone antes de ele ir embora.
Kevin alugou um carro e na manhã seguinte, antes do nascer do sol,
esperou a um quarteirão de distância do restaurante. Os funcionários
entravam no restaurante por uma porta lateral, que dava para uma viela. Ele
bebeu a vodka que tinha no copo de esferovite e ficou sentado no carro, a
vigiar a rua enquanto esperava por ela. Passado algum tempo, viu o dono do
restaurante, Tracy e outra mulher a entrarem na viela. Contudo, Erin não
apareceu naquele dia e também não foi trabalhar no dia seguinte. Ninguém
sabia onde ela morava. Ela nem sequer regressou para ir buscar o seu
vencimento.
Ele acabou por descobrir onde ela estava a morar. Ficava perto do
restaurante e era um hotel rasca. O dono, que só aceitava pagamento em
dinheiro, não sabia de nada, exceto que Erin saíra no dia anterior e que depois
tinha voltado e saído mais uma vez, sempre com pressa. Kevin revistou o
quarto dela, mas não encontrou nada e, quando finalmente correu para a
central de camionagem, havia apenas mulheres a trabalhar nas bilheteiras.
Nenhuma delas se lembrava de Erin. Os autocarros que tinham partido nas
duas últimas horas, tinham saído em direção ao norte, sul, leste e oeste, para
todos os cantos do país.
Ela havia desaparecido de novo. Dentro do carro, Kevin gritou e deu socos
no volante até os punhos ficarem inchados e roxos com pisaduras.

Nos meses seguintes ao desaparecimento de Erin, a dor que ele sentia


cresceu e tornou-se mais venenosa e devastadora, espalhando-se como um
cancro a cada dia que passava. Regressara a Filadélfia e interrogara os
motoristas dos autocarros nas semanas que se seguiram, mas não obtivera
muito mais informações. Acabou por descobrir que Erin partira para Nova
Iorque, mas, depois isso, o rasto dela desaparecera. Demasiados autocarros,
demasiados motoristas, demasiados passageiros; já tinham decorrido
demasiados dias. Demasiadas opções. Erin poderia estar em qualquer lugar e
ele ficou atormentado com a ideia de ela ter desaparecido de vez. Tinha
acessos de fúria e partia coisas. Chorava antes de dormir. Estava assoberbado
pelo desespero e às vezes achava que estava a enlouquecer.
Não era justo. Ele amara-a desde que conversaram pela primeira vez em
Atlantic City. E eles eram felizes, não eram? Logo depois de se casarem, ela
cantarolava sozinha enquanto aplicava maquilhagem. Ele costumava levá-la à
biblioteca e ela saía de lá com oito ou dez livros. Às vezes, Erin lia alguns
trechos em voz alta para ele, e ele ouvia aquela voz e observava a maneira
como ela se apoiava no balcão e pensava consigo mesmo que era a mulher
mais bonita do mundo.
Ele fora um bom marido. Comprara a casa que ela escolhera, as cortinas e a
mobília que ela quisera, mesmo que mal tivesse condições para pagar por
tudo aquilo. Depois de se casarem, ele costumava comprar flores na rua
quando regressava a casa e Erin colocava-as numa jarra em cima da mesa
com algumas velas e jantavam em clima de romance. Às vezes, chegavam até
a fazer amor na cozinha, com as costas dela encostadas à bancada.
Ele nunca a obrigou a trabalhar e ela nunca percebeu a vida confortável que
tinha. Não entendia os sacrifícios que ele fazia pelo casal. Erin era uma
mulher mimada e egoísta e aquilo deixava-o extremamente irritado, pois ela
não compreendia como a sua vida era fácil. Só tinha de limpar a casa e
preparar uma refeição e depois podia passar o resto do dia a ler os livros
idiotas que trazia da biblioteca, a ver televisão ou a dormir, sem nunca ter de
se preocupar com contas, com as prestações da hipoteca ou com as pessoas
que falavam mal dos outros pelas costas. Nunca teve sequer de ver os rostos
de pessoas que foram assassinadas. Ele não lhe falava de nada daquilo porque
a amava, mas nada importou. Nunca lhe falou sobre as crianças que eram
queimadas com ferros de passar a roupa ou atiradas de algum telhado; nunca
falou sobre as mulheres esfaqueadas em vielas e lançadas para algum
contentor de lixo. Nunca lhe falou das ocasiões em que teve de raspar o
sangue dos sapatos antes de entrar no carro e que, quando olhava os
assassinos nos olhos, sabia estar frente a frente com o mal, porque a Bíblia
diz que Matar uma pessoa é matar um ser vivo concebido à imagem de Deus.

Ele amava-a e ela amava-o. Ela tinha de regressar para casa, porque ele não
conseguia encontrá-la. Ela poderia viver de novo a sua vida feliz e
despreocupada e ele não iria bater-lhe, dar-lhe socos ou esbofeteá-la, nem
sequer pontapeá-la se ela entrasse pela porta da frente, porque sempre fora
um bom marido. Ele amava-a e ela amava-o. E ele lembrou-se de que, no dia
em que a pedira em casamento, ela recordara a noite em que se encontraram
no exterior do casino, quando os homens a seguiram. Homens perigosos. Ele
impediu que lhe fizessem mal naquela noite e, na manhã seguinte, passearam
junto à praia. Ele levou-a a tomar café. Erin aceitou sem reticências o pedido
de casamento. Ela amava-o, foi o que disse. Com ele, sentia-se segura.
Segura. Foi a palavra que ela usou. Segura.
25

A terceira semana de junho foi composta por uma série de gloriosos dias de
verão. A temperatura subia durante a tarde, trazendo consigo uma
humidade suficientemente densa para tornar o ar mais pesado e embaciar o
contorno do horizonte. Logo a seguir, como que por magia, formavam-se
várias nuvens escuras, e trovoadas violentas descarregavam chuvas
torrenciais. Mesmo assim, nunca eram muito prolongadas, deixando para trás
apenas folhas encharcadas nas árvores e uma camada de névoa perto do chão.

Katie continuava com as suas longas jornadas de trabalho no restaurante.


Sentia-se cansada ao pedalar de volta a casa e, pela manhã, sentia
frequentemente as pernas e os pés doridos. Guardava metade do dinheiro que
recebia de gorjeta na lata de café, notando que ela estava quase cheia, perto
de transbordar. Tinha mais dinheiro do que imaginara ser capaz de guardar,
mais do que o bastante para fugir, se precisasse. Pela primeira vez, perguntou
a si mesma se teria necessidade de guardar mais.
Ao comer lentamente o pequeno-almoço, olhou para a casa de Jo pela
janela da cozinha. Não conversava com Jo desde que ela a encontrara à saída
do restaurante e, na noite passada, quando voltara para casa, Katie vira as
luzes da sala e da cozinha de Jo acesas. Ao início da manhã, ouviu o barulho
do motor do carro dela e o veículo a passar por cima da terra e do cascalho da
viela ao sair de casa. Não sabia o que dizer à amiga, ou mesmo se lhe queria
dizer algo. Não conseguia sequer decidir-se se estava zangada ou irritada com
o que ela fizera. Jo gostava de Alex e das crianças; preocupava-se com eles e
expressara as suas preocupações a Katie. Era difícil encontrar qualquer
malícia nas coisas que ela havia feito.
Alex iria visitá-la mais tarde. As suas visitas haviam-se tornado rotineiras
e, quando estavam juntos, lembrava-se constantemente de todas as razões
pelas quais se apaixonara por ele. Alex aceitava os seus silêncios ocasionais e
variações de humor e tratava-a com uma gentileza que a surpreendia e
emocionava. No entanto, desde a noite em que conversara com Jo,
imaginava, constantemente, que poderia estar a ser injusta com ele. O que
aconteceria, por exemplo, se Kevin aparecesse? Como é que Alex e as
crianças reagiriam se ela desaparecesse para nunca mais voltar? Estaria
disposta a deixar todos para trás e nunca mais voltar a conversar com eles?
Detestava as questões que Jo levantara porque não se sentia pronta para
enfrentá-las. Não imaginas aquilo por que já passei, foi o que teve vontade
de dizer quando dispôs de tempo para pensar no assunto. Não imaginas como
é realmente o meu marido. Mesmo assim, sabia que nenhum daqueles
argumentos resolveria o problema.
Deixando a louça do pequeno-almoço no lava-louça, vagueou pela casa, a
pensar no quanto as coisas haviam mudado durante os últimos meses. Não
possuía quase nada, mas sentia como se tivesse mais do que alguma vez
tivera. Sentiu-se amada pela primeira vez em anos. Nunca teve filhos, mas
dava por si a pensar e a preocupar-se com Kristen e Josh nos momentos mais
inesperados. Sabia que não poderia prever o futuro, mas, mesmo assim,
apercebeu-se, de forma repentina e incontestável, que seria inconcebível
deixar para trás esta nova realidade. O que é que Jo lhe dissera um dia? Eu
limito-me a dizer às pessoas aquilo que elas já sabem, mas que têm medo de
admitir a si próprias. Refletindo sobre aquelas palavras, Katie soube
exatamente o que tinha a fazer.

– É claro – disse Alex a Katie, mal ela fez o seu pedido. Ela percebeu que
ele ficou surpreendido, mas também parecia sentir-se entusiasmado. –
Quando é que queres começar?
– Que tal hoje mesmo? Se tiveres tempo – sugeriu ela.
Alex espreitou para o interior da loja. Havia apenas uma pessoa a comer na
área da churrasqueira e Roger estava apoiado no balcão, a conversar com o
cliente. – Ei, Roger. Importas-te de tratar da caixa por uma hora?
– Sem problemas, chefe – disse Roger. E ficou onde estava. Alex sabia que
ele não iria até à parte da frente da loja a menos que fosse necessário. Numa
manhã comum de um dia de semana, depois da correria inicial do pequeno-
almoço, não esperava ter muitas pessoas no estabelecimento, pelo que Alex
não se importou. Saiu de trás da caixa registadora.
– Estás pronta?
– Acho que não – disse ela, abraçando-se a si própria, nervosa. – Mas é
uma coisa que tenho de aprender a fazer.
Saíram da loja e foram até ao jipe de Alex. Ao entrar na viatura, sentiu que
Alex estava a observá-la.
– De onde é que veio essa vontade repentina de aprender a conduzir? –
perguntou ele. – Já te fartaste da bicicleta? – disse, provocando-a.
– A bicicleta é ótima para as coisas de que preciso. Mas quero tirar a carta
de condução.
Ele pegou nas chaves do carro e deteve-se. Voltou-se para ela e, ao
observá-la, ela apercebeu-se de um vislumbre do investigador que Alex em
tempos fora. Ele estava alerta e Katie compreendeu a sua cautela. – Aprender
a conduzir é apenas uma parte do processo. Para ter a carta, o estado exige
identificação. Uma certidão de nascimento, cartão de segurança social, coisas
como essas.
– Eu sei – disse ela.
Alex escolheu cuidadosamente as suas palavras. – Esse tipo de informações
pode ser rastreado. Se obtiveres a carta de condução, as pessoas podem
conseguir encontrar-te.
– Já estou a usar outro número de segurança social, um que não está ligado
à minha verdadeira identidade – informou ela. – Se o Kevin tivesse
conhecimento disso, já saberia onde estou. E se vou ficar em Southport, é
uma coisa que preciso de aprender.
Alex abanou a cabeça. – Katie...
Ela inclinou-se e beijou-o na face.
– Está tudo bem. O meu nome não é Katie, lembras-te?
Alex percorreu a curva do rosto dela com o dedo. – Para mim, serás sempre
a Katie.
Ela sorriu. – Tenho um segredo para te contar. O meu cabelo não é
castanho. Na verdade, sou loura.
Alex recostou-se no assento, processando aquela nova informação. – Tens
a certeza que me queres contar isso?
– Calculo que, um dia, ias acabar por descobrir. Quem sabe? Talvez um dia
eu volte a ser loura.
– Porque é que estás a fazer isto? A querer aprender a conduzir e dar-me
todas essas informações?
– Disseste que podia confiar em ti – lembrou ela, com um encolher de
ombros. – E eu acredito no que disseste.
– E é só por isso?
– Sim. Sinto-me como se pudesse contar-te o que quer que fosse.
Alex olhou para a sua mão e para a dela, que estavam entrelaçadas sobre o
apoio para o braço, antes de fitar Katie nos olhos.
– Então vou direto ao assunto. Tens a certeza de que os teus documentos
serão aceites? Não podem ser cópias, precisam de ser os originais.
– Eu sei – disse ela.
Alex percebeu que não seria adequado perguntar mais nada. Colocou a
chave na ignição, mas não ligou o motor.
– O que foi? – perguntou ela.
– Já que queres aprender a conduzir, talvez seja melhor começarmos de
imediato. – Ele abriu a porta e saiu do carro. – Vamos ver como te
desembaraças ao volante.
Os dois trocaram de lugar. Assim que Katie se sentou no lugar do condutor,
Alex ensinou-lhe as coisas básicas: os pedais do acelerador e do travão, como
engatar e trocar as mudanças, piscas, faróis, além dos limpa-para-brisas e dos
indicadores do painel. Era sempre melhor começar pelo início.
– Estás pronta?
– Acho que sim – disse ela, concentrando-se.
– Como este carro tem mudanças automáticas, só vais usar um pé. Ele vai
alternar entre o acelerador e o travão. Percebeste?
– Sim – disse ela, deixando o pé esquerdo mais perto da porta.
– Agora, trava e liga o motor. Quando estiveres pronta, engata a marcha-
atrás. Não uses o acelerador. Em vez disso, vai soltando o travão com
cuidado. Depois, vira o volante para sair do lugar de estacionamento, sempre
com o pé sobre o travão, com uma pressão leve.
Ela fez exatamente como Alex indicou e tirou o carro do lugar,
cautelosamente, antes de ele começar a dar-lhe indicações sobre a forma de
sair do parque de estacionamento. Pela primeira vez, ela hesitou. – Tens a
certeza que queres que eu conduza na estrada?
– Se houvesse muito trânsito, diria não. Se tivesses 16 anos, também diria
não. Mas acho que tens condições de o fazer e estou aqui para ajudar. Estás
pronta? Vais virar à direita e vamos seguir essa rua até à próxima curva.
Depois, viramos novamente à direita. Quero que sintas o carro.
Passaram quase uma hora a conduzir por estradas rurais. Tal como a
maioria dos principiantes, ela teve problemas ao curvar, fazendo-o demasiado
por dentro umas vezes enquanto noutras foi até à berma. Também levou
algum tempo até se habituar a estacionar, mas, com exceção dessas
dificuldades, desembaraçou-se melhor do que qualquer um deles esperaria.
Quando estavam perto de terminar a aula, Alex fez com que ela estacionasse
numa das ruas do centro da cidade. Apontou para uma pequena cafeteria.
– Pensei que gostarias de celebrar. Saíste-te muito bem.
– Não sei. Não me senti como se realmente soubesse o que estava a fazer.
– Isso vem com o tempo. Quanto mais conduzires, mais natural te vai
parecer.
– Posso conduzir amanhã outra vez? – perguntou ela.
– É claro que sim. Mas podemos fazer isso de manhã? Agora que acabaram
as aulas do Josh, ele e a Kristen passam as manhãs num clube com atividades
para crianças. Regressam a casa por volta do meio-dia.
– De manhã é perfeito – disse ela. – Achas mesmo que conduzi bem?
– Provavelmente, com mais uns dias de treino, conseguirias passar no
exame prático. É claro que também precisas de passar no exame escrito, mas
para isso basta estudar um pouco.
Katie estendeu os braços e abraçou-o espontaneamente.
– Obrigada por fazeres tudo isto por mim.
Ele correspondeu ao abraço. – Fico feliz por ajudar. Mesmo que não tenhas
um carro, é algo que provavelmente deverias saber. Porque é que não...
– Aprendi a conduzir quando era mais nova? – completou ela, com um
encolher de ombros. – Quando era adolescente, a nossa família só tinha um
carro e geralmente o meu pai ficava o dia todo com ele. Mesmo que eu
tivesse carta de condução, não poderia conduzir, e, assim, nunca me pareceu
algo muito importante. Depois de sair de casa, não tive condições de comprar
um carro e, mais uma vez, não me importei muito com isso. Mais tarde,
quando me casei, o Kevin não queria que eu tivesse o meu próprio carro. –
Ela voltou-se para ele. – E aqui estou eu. Uma ciclista de 27 anos.
– Tens 27 anos?
– Já sabias.
– Na verdade, não sabia.
– E depois?
– Achei que já tivesses uns 30.
Ela deu-lhe uma leve sapatada no braço. – Só por isso, vais ter de me
comprar um croissant.
– Parece-me justo. E, já que estás numa de revelar segredos, gostaria de
ouvir a história sobre como conseguiste finalmente escapar.
Ela hesitou por um breve momento. – Está bem.

Numa pequena mesa no exterior da cafeteria, Katie relatou a história da sua


fuga – as ligações telefónicas redirecionadas, a viagem para Filadélfia, as
trocas constantes de emprego e os hotéis rascas em que viveu, até à viagem
para Southport. Ao contrário da primeira vez, foi capaz de descrever as suas
experiências tranquilamente, como se estivesse a falar sobre outra pessoa.
Quando terminou, Alex abanou a cabeça.
– O que foi?
– Estava só a tentar imaginar como te terás sentido depois de desligar
quando o Kevin ligou pela última vez. Quando ele ainda pensava que estavas
em casa. Aposto que te sentiste aliviada.
– Senti, sim. Mas também estava aterrorizada. E, naquela altura, ainda não
tinha emprego e não sabia o que ia fazer.
– Mas conseguiste.
– Sim... consegui – disse ela, com o olhar fixo num ponto distante. – Mas
não era o tipo de vida que tinha imaginado para mim.
O tom de voz de Alex revelou-se gentil. – Não tenho a certeza se alguém
alguma vez teve a vida que sempre imaginou. O que podemos fazer é tentar
agir de modo a que tudo aconteça da melhor maneira possível. Mesmo
quando parece impossível.
Katie sabia que ele estava a falar de si próprio, tanto quanto estava a falar
por ela, e, durante um longo momento, nenhum deles disse nada.
– Amo-te – sussurrou ele, por fim.
Ela inclinou-se para a frente e tocou-lhe no rosto.
– Eu sei. Eu também te amo.
26

N o fim de junho, os jardins e os canteiros floridos de Dorchester, que


brilhavam com as cores vibrantes da primavera, estavam a começar a
murchar; as flores assumiam um tom castanho e retorciam-se sobre a terra. A
humidade do ar era cada vez mais intensa e as vielas na área central de
Boston começavam a cheirar a comida podre, urina e mofo. Kevin disse a
Coffey e a Ramirez que ele e Erin iriam passar o fim de semana em casa, a
ver filmes e a tratar do jardim. Coffey fizera-lhe perguntas sobre a viagem a
Provincetown e Kevin mentira, falando sobre o hotel onde se haviam
hospedado e alguns dos restaurantes que haviam visitado. Coffey referiu que
já visitara todos aqueles lugares e perguntou se Kevin provara o bolo salgado
de carne de caranguejo de um deles. Kevin disse que não, mas que pediria da
próxima vez.
Erin desaparecera, mas Kevin continuava a procurá-la por toda a parte. Não
conseguia evitar. Quando conduzia pelas ruas de Boston e via um relance de
louro ou dourado nos ombros de alguma mulher, sentia um nó na garganta.
Procurava um nariz delicado, uns olhos verdes e uma maneira graciosa de
andar. Às vezes, ficava do lado de fora da confeitaria a fazer de conta que
estava à espera dela.
Já a deveria ter encontrado, mesmo tendo ela escapado em Filadélfia. As
pessoas deixavam pistas. Os documentos deixavam rasto. Em Filadélfia, ela
usara um nome e um número de segurança social falsos, mas aquilo não
poderia durar para sempre. A menos que estivesse disposta a continuar a
viver em hotéis baratos e a trocar de emprego a cada semana. Até aquela
altura, porém, ela não usara o seu próprio número de segurança social. Um
oficial de outra esquadra, com contactos importantes, verificou isso a seu
pedido. Aquele oficial era a única pessoa que sabia do desaparecimento de
Erin, mas manteve a boca fechada porque Kevin também sabia que ele tinha
um caso com uma rapariga menor de idade, que trabalhava como babysitter
dos seus filhos. Kevin sentia-se imundo sempre que tinha de conversar com
ele, porque o polícia era um pervertido e deveria estar na cadeia. Afinal, a
Bíblia diz: Que não haja imoralidade sexual entre vós. Mas, naquele
momento, Kevin precisava dele para poder encontrar a sua esposa e trazê-la
de volta para casa. Marido e mulher devem ficar juntos, porque fizeram os
seus votos perante Deus e a família.
Tivera a certeza de que a encontraria em março. Estava certo de que ela
apareceria em abril. Teve um forte pressentimento de que o nome dela
surgiria em maio, mas a casa continuava vazia. Agora, junho chegara e os
seus pensamentos andavam perdidos e, às vezes, essa era a única coisa a que
podia deitar a mão para aguentar a rotina do dia a dia. Era-lhe difícil
concentrar-se e a vodka já não parecia ajudar tanto. Teve de mentir a Coffey e
a Ramirez e afastar-se deles enquanto os dois faziam comentários maldosos
nas suas costas.
De uma coisa ele estava certo: ela já não estava em movimento. Não iria
andar eternamente a mudar-se de um lugar para outro, ou de um emprego
para outro. Não era o perfil dela. Gostava de coisas bonitas e queria tê-las à
sua volta. E isso significava que Erin deveria estar a usar a identidade de
outra pessoa. A menos que estivesse disposta a viver constantemente em
fuga, precisava de uma certidão de nascimento real e de um número de
segurança social válido. Hoje em dia, os empregadores exigem identificação,
mas onde e como poderia ter conseguido assumir a identidade de outra
pessoa? Kevin sabia que a maneira mais comum era encontrar alguém de
idade similar que tivesse morrido recentemente e, daí por diante, assumir a
identidade do morto. A primeira parte era plausível, pois, apesar de tudo, Erin
continuara a fazer visitas frequentes à biblioteca. Não lhe era difícil imaginá-
la a examinar os obituários nos arquivos de microfilme, à procura de um
nome que pudesse roubar. Ela urdira planos e artimanhas na biblioteca
enquanto fingia procurar livros nas estantes e tratara dessas coisas mesmo
depois de Kevin a ter levado até lá no seu horário de trabalho. Dava-lhe
carinho e gentilezas e ela retribuía com aquela traição. Ficou furioso ao
pensar em como Erin se riria dele enquanto fazia esse tipo de coisas.
Imaginar aquilo enfureceu-o de tal maneira que pegou num martelo e
estilhaçou o serviço de pratos e chávenas de porcelana chinesa que haviam
recebido como presente de casamento. Depois de se acalmar, conseguiu
concentrar-se no que tinha de fazer. Em março e abril, Kevin passara horas na
biblioteca, tal como ela teria feito, tentando encontrar a nova identidade que
Erin estaria a usar. Mas, mesmo que encontrasse o nome, como é que ela teria
obtido os documentos? Onde é que estaria agora? E porque é que não voltara
para casa?
Aquelas eram as perguntas que o atormentavam e, às vezes, tudo era tão
confuso que ele não conseguia parar de chorar. Sentia muitas saudades,
queria que ela voltasse para casa e detestava ficar sozinho. No entanto,
noutras vezes, pensar que Erin o abandonara fazia com que Kevin pensasse
no quanto ela era egoísta e tudo o que pretendia era matá-la.

Julho chegou e com ele o tempo quente como as baforadas de um dragão:


quente, húmido e com um horizonte que tremeluzia como uma miragem
quando visto ao longe. O fim de semana do feriado da Independência passara
e outra semana começara. O aparelho de ar condicionado tinha avariado e
Kevin não chamara o técnico para o consertar. De manhã, quando ia para o
trabalho, sentia sempre dores de cabeça. Por tentativa e erro, descobriu que a
vodka funcionava melhor do que os comprimidos de Tylenol, mas a dor
continuava lá, fazendo as suas têmporas latejarem. Deixou de ir à biblioteca.
Coffey e Ramirez perguntaram-lhe mais do que uma vez pela esposa. Kevin
disse que ela estava bem, mas nada mais além disso. E mudou de assunto.
Passou a ter um novo parceiro, Todd Vannerty, recém-promovido, que não se
importava em deixar que Kevin fizesse a maior parte das perguntas quando
falava com as testemunhas e as vítimas; algo que agradava ao próprio Kevin.

Kevin ensinou-lhe que, quase sempre, a vítima conhecia o assassino. Mas


nem sempre de maneira óbvia. No final da sua primeira semana de trabalho
juntos, foram chamados a um apartamento a menos de três quarteirões da
esquadra, onde encontraram um rapaz de dez anos que morrera atingido por
uma bala. O atirador chegara recentemente da Grécia e estava a celebrar a
vitória da seleção grega num jogo de futebol quando disparou a arma para o
chão. A bala atravessou o teto do apartamento de baixo e matou o rapaz, que
estava a comer uma fatia de piza. A bala perfurou-lhe o cimo da cabeça e ele
tombou para frente, batendo com a cara na piza. Quando viram o rapaz, a
testa estava coberta de queijo e molho de tomate. A mãe do menino gritou e
chorou durante duas horas e tentou agredir o grego na escadaria, quando este
estava a ser levado para o exterior do prédio, algemado. Ela acabou por se
desequilibrar e rebolou pela escada abaixo, e os polícias tiveram de chamar
uma ambulância.
Kevin e Todd foram para um bar depois do expediente, e este último tentou
fingir que conseguia esquecer o sucedido. Entretanto, bebeu três cervejas em
menos de quinze minutos. Disse a Kevin que tinha sido reprovado na
primeira vez em que prestara provas para ser promovido a detetive, antes de
finalmente conseguir passar à segunda. Kevin bebeu vodka, mas, como Todd
estava com ele, pediu ao barman que acrescentasse um pouco de sumo de
mirtilo.
Era um bar frequentado por polícias. Muitos polícias, preços baixos, pouca
iluminação e mulheres que gostavam de se envolver com aquele tipo de
homens. O barman deixava as pessoas fumarem, mesmo que fosse ilegal,
porque a maioria dos fumadores eram polícias. Todd não era casado e já
estivera naquele bar várias vezes. Kevin nunca estivera ali antes e não tinha a
certeza se gostava do lugar. Mesmo assim, não queria voltar para casa.
Todd foi à casa de banho e, quando voltou, inclinou-se na direção de
Kevin.
– Acho que aquelas duas no canto do bar estão a olhar para nós.
Kevin virou-se. Tal como ele, as mulheres pareciam ter cerca de trinta
anos. A morena percebeu que ele a fitou, antes de se voltar para a sua amiga
ruiva.
– É uma pena seres casado, hein? Elas são bem bonitas.
Pareciam envelhecidas, pensou Kevin. Não eram como Erin, que tinha a
pele sedosa e cheirava a limão e menta, o perfume que ele lhe dera de
presente no Natal.
– Vai até lá falar com elas, se quiseres.
– Acho que vou mesmo – disse Todd.
Pediu outra cerveja e, a sorrir, encaminhou-se até ao local onde as duas
estavam. Provavelmente disse algo imbecil, mas foi o bastante para fazer as
duas mulheres rirem. Kevin pediu uma vodka dupla, sem sumo de mirtilo, e
viu o reflexo delas pelo espelho que ficava atrás do balcão do bar. Os olhos
da morena encontraram os seus no reflexo e ele não desviou o olhar. Dez
minutos depois, ela aproximou-se e sentou-se no tamborete que Todd ocupara
uns minutos antes.
– Hoje não te apetece conhecer ninguém? – perguntou a morena.
– Não sou lá muito bom a fazer conversa.
A morena pareceu sopesar aquelas palavras. – Chamo-me Amber –
anunciou.
– Kevin – respondeu ele e, novamente, não soube o que dizer. Bebeu um
trago da sua bebida, pensando que parecia saber praticamente a água.
A morena inclinou-se na direção dele. Cheirava a almíscar, bem diferente
do cheiro a limão e menta. – O Todd disse que vocês trabalham com
homicídios.
– É verdade.
– É um trabalho difícil?
– Às vezes – disse ele. Terminou a bebida e levantou o copo. O barman
trouxe-lhe outro.
– E tu? O que é que fazes?
– Eu giro o escritório da confeitaria do meu irmão. Ele faz doces e produtos
para restaurantes.
– Parece interessante.
Ela exibiu um sorriso cínico. – Não parece, não, mas ajuda a pagar as
contas – disse. O branco dos dentes dela brilhou por entre a escuridão. –
Nunca te vi por aqui.
– Foi o Todd que me trouxe cá.
Ela olhou na direção de Todd. – Eu já o vi algumas vezes. Atira-se a tudo o
que use saia e que ainda respire. E acho que nem será essencial que esteja
realmente a respirar. A minha amiga adora este lugar, mas geralmente não
suporto este bar. Ela obriga-me a vir aqui.
Kevin assentiu com a cabeça e remexeu-se no assento. Questionou-se se
Coffey e Ramirez iriam àquele lugar.
– Estou a incomodar-te? – perguntou ela. – Posso deixar-te em paz, se
quiseres.
– Não, não estás a incomodar.
Ela sacudiu o cabelo e Kevin reparou que era mais bonita do que imaginara
a princípio.
– Queres oferecer-me uma bebida? – sugeriu ela.
– O que é queres beber?
– Um cosmopolitan – disse ela, e Kevin fez um sinal ao barman. O
cosmopolitan chegou.
– Não sou muito bom nisto – admitiu Kevin.
– Não és bom no quê?
– Nisto.
– Estamos só a conversar – disse ela. – E estás a ir muito bem.
– Sou casado.
Ela sorriu. – Eu sei. Vi a tua aliança.
– Isso incomoda-te?
– Como disse, estamos só a conversar.
Ela deslizou o dedo pelo copo e ele viu a humidade a concentrar-se na
ponta. – A tua mulher sabe que estás aqui? – perguntou.
– A minha mulher está para fora. Uma amiga dela está doente e ela foi até
lá ajudá-la.
– E então, achaste que seria boa ideia ir a alguns bares? Conhecer
mulheres?
– Não sou esse tipo de homem. Eu amo a minha mulher – referiu Kevin.
– E deves amá-la. Afinal, casaste com ela.
Apetecia-lhe outra vodka dupla, mas não queria pedi-la em voz alta na
presença de Amber, porque já o fizera antes. Em vez disso, como se pudesse
ler a sua mente, ela fez um sinal ao barman e ele serviu outra rodada. Kevin
bebeu uma grande golada, ainda a pensar que a bebida estava aguada.
– Incomoda-te? – perguntou ela.
– Não há problema – disse ele.
Ela olhou para ele, com uma expressão sensual. – Eu se fosse a ti não
contava à tua mulher que vieste aqui.
– Porquê? – perguntou ele.
– Porque és bonito de mais para um lugar como este. Nunca se sabe quem é
que se vai fazer a ti.
– Estás a fazer-te a mim?
Ela demorou um pouco a responder. – Ficavas ofendido se eu dissesse que
sim?
Ele girou o copo lentamente sobre o balcão. – Não – respondeu. – Isso não
me ofende.

Depois de beber e namoriscar durante cerca de duas horas, os dois foram


para o apartamento de Amber. Ela percebeu que ele preferia ser discreto, e
então deu-lhe a sua morada. Depois de Amber e a amiga saírem, Kevin ficara
no bar com Todd por mais meia hora, antes de dizer ao parceiro que tinha de
voltar para casa e telefonar a Erin. Ao conduzir, apercebeu-se do mundo a
ficar baço nos limites do seu campo de visão. Os seus pensamentos estavam
confusos e desordenados e ele sabia que estava a conduzir descuidadamente
pelas ruas, mas era um bom polícia. Mesmo que fosse parado, não seria
preso, porque os polícias não se prendem uns aos outros. Além disso, que
problema havia em beber uns copos?
Amber morava num apartamento a alguns quarteirões do bar. Ele bateu à
porta e quando a porta se abriu, ela não vestia nada por baixo do lençol
enrolado no corpo. Ele beijou-a e levou-a para o quarto, sentindo os dedos
dela a desabotoar a sua camisa. Colocou-a na cama, despiu-se e apagou as
luzes, porque não queria lembrar-se de que estava a trair a sua esposa. O
adultério era um pecado e, agora que ali estava, Kevin não queria fazer sexo
com ela, mas tinha bebido. O mundo parecia estar desfocado. E Amber não
tinha nada vestido, além de um lençol. Tudo era confuso de mais.
Ela não era como Erin. O seu corpo era diferente, as suas formas eram
diferentes e o seu cheiro era diferente. Era um cheiro adocicado, quase
animalesco. As mãos dela moviam-se de mais e tudo o que Kevin fazia com
Amber era novo. Ele não gostava daquilo, mas não conseguia parar. Ouviu
Amber chamar o seu nome, dizer palavrões. Kevin quis mandá-la calar a boca
para que pudesse pensar em Erin, mas era difícil concentrar-se. Tudo era
confuso de mais.
Apertou os braços dela e ouviu-a a gemer e, depois, a dizer:
– Com tanta força, não!
Kevin suavizou o aperto, mas logo a seguir voltou a infligir mais força
sobre os braços de Amber, porque era o que lhe apetecia fazer. Dessa vez, ela
não disse nada. Ele pensou em Erin, imaginou onde ela poderia estar, se
estaria bem e voltou a sentir imensas saudades dela.
Não devia ter batido em Erin, porque ela era doce, gentil e carinhosa e não
merecia ser espancada ou pontapeada. Kevin era culpado pela fuga de Erin.
Fora ele quem a afastara, mesmo amando-a. Procurara-a e não conseguira
encontrá-la. Esteve em Filadélfia à procura dela. E agora estava com uma
mulher chamada Amber, que não sabia o que fazer com as mãos e que fazia
ruídos estranhos. Tudo parecia estar errado.
Quando terminaram, ele não quis ficar em casa dela. Assim, levantou-se da
cama e começou a vestir-se. Ela acendeu o candeeiro ao lado da cama e
sentou-se. Ao olhar para ela, Kevin recordou que não se tratava de Erin e de
repente sentiu o estômago em convulsão. A Bíblia diz: O homem que comete
adultério é um verdadeiro louco, pois destrói a sua própria alma.
Tinha de se afastar de Amber. Não percebeu o que o levara ali e, ao olhar
para ela, o seu estômago contorceu-se.
– Sentes-te bem? –perguntou ela.
– Não devia estar aqui – respondeu ele. – Não devia ter vindo.
– Acho que agora é tarde para pensar nisso.
– Tenho de ir embora.
– Vais sair assim? Sem mais nem menos?
– Sou casado – recordou.
– Eu sei – disse ela, com um sorriso cansado. – E não há nenhum problema.

– É claro que há – contrapôs.


Depois de se vestir, deixou o apartamento e desceu as escadas a correr até à
rua, onde entrou no carro. Conduziu a grande velocidade, mas sem fazer
curvas perigosas. A culpa que sentia funcionou como um forte tónico para os
seus sentidos. Regressou a casa e viu uma luz acesa no lar dos Feldman.
Sabia que eles iriam espreitar pela janela quando estacionasse. Os Feldman
eram maus vizinhos. Nunca o cumprimentavam e diziam às crianças para não
pisarem a relva. Eles perceberiam o que ele fizera, pois eram pessoas más e
ele fizera algo de mau. Eram farinha do mesmo saco e iriam perceber.
Quando entrou, Kevin estava a precisar de uma bebida. Mesmo assim, só
de pensar em vodka, sentiu-se enjoado. Estava inquieto. Traíra a esposa e a
Bíblia dizia: A vergonha nunca será apagada. Violara um dos mandamentos
de Deus, quebrara os votos que fizera a Erin e sabia que a verdade viria ao de
cima. Amber sabia, Todd sabia e os Feldman também sabiam. Acabariam por
contar a alguém, que contaria a outra pessoa, até a história chegar aos
ouvidos de Erin. Andou de um lado para outro na sala de estar, com a
respiração acelerada porque sabia que não conseguiria explicar aquilo de uma
maneira que Erin entendesse. Era sua esposa e nunca lhe perdoaria. Ficaria
furiosa e ele teria de dormir no sofá. De manhã, olharia para ele, dececionada,
pois era um pecador, e nunca mais voltaria a confiar nele. Estremeceu,
sentindo náuseas. Dormira com outra mulher e a Bíblia dizia: Não te envolvas
com pecado sexual, impureza, luxúria e desejos vergonhosos. Era tudo muito
confuso. Queria parar de pensar, mas não era capaz. Queria beber, mas não
era capaz. E tinha a sensação de que Erin apareceria repentinamente à porta
de casa.
A casa estava suja e desarrumada e a sua querida esposa perceberia o que
ele fizera. Mesmo que os seus pensamentos estivessem confusos, sabia que
aquelas duas coisas estavam ligadas. Andou freneticamente pela sala, de um
lado para o outro. Imundície e traição andavam de mãos dadas, porque trair
era uma coisa imunda. Erin saberia que ele a traíra, porque a casa estava suja
e as duas coisas estavam associadas. De repente, parou de andar pela sala e
correu para a cozinha. Lá, encontrou um saco de lixo debaixo do lava-louça.
Na sala, ajoelhou-se e rastejou pela divisão, enchendo o saco com as
embalagens vazias de comida, as revistas velhas, os talheres de plástico, as
garrafas de vodka vazias e as caixas de piza. Já passava da meia-noite e na
manhã seguinte não iria trabalhar. Assim, Kevin ficou acordado a limpar a
casa, a lavar os pratos e a passar o aspirador que comprara para Erin. Limpou
a casa para que ela não descobrisse o que ele havia feito. Imundície e traição
andavam de mãos dadas. Colocou a roupa suja na máquina de lavar e, quando
as peças ficaram lavadas, pô-las a secar. A seguir, dobrou-as e guardou-as,
enquanto outra leva de roupa enchia a máquina. O sol nasceu e ele tirou as
almofadas do sofá, passando o aspirador por baixo delas até que
desaparecessem todas as migalhas. Enquanto trabalhava, olhava pela janela,
sabendo que Erin poderia chegar a casa a qualquer momento. Esfregou a
sanita, limpou as manchas de comida do frigorífico e lavou o chão da
cozinha. O alvorecer transformou-se em manhã e a manhã já avançava rumo
à hora do almoço. Kevin lavou os lençóis, abriu as cortinas e tirou o pó da
moldura da fotografia do seu casamento. Aproveitou também para aparar o
relvado e deitou a relva cortada no caixote do lixo. Quando terminou, saiu
para fazer compras. Comprou peru, presunto, mostarda de Dijon e pão de
centeio fresco na padaria. Comprou flores e colocou-as na mesa. Acrescentou
ainda umas velas. Ao terminar, estava ofegante. Serviu-se de um copo grande
de vodka bem fresca e sentou-se na cozinha à espera de Erin. Ficou feliz
porque limpara a casa e aquilo significava que Erin nunca saberia o que ele
fizera. Teriam o tipo de casamento que ele sempre desejara. Confiariam um
no outro e seriam felizes. Ele iria amá-la para sempre e nunca iria traí-la.
Afinal, porque é que haveria de fazer algo tão desprezível?
27

K atie tirou a carta de condução na segunda semana de julho. Nos dias que
precederam o exame, Alex levou-a regularmente a conduzir. Apesar de
alguns deslizes, passou com uma pontuação quase perfeita. O documento
chegou pelo correio passados uns dias e, quando Katie abriu o envelope,
sentiu uma forte tontura. Havia uma fotografia sua ao lado de um nome que
ela nunca imaginou que teria, mas, de acordo com o estado da Carolina do
Norte, era tão real como qualquer outra pessoa que residia no estado.
Naquela noite, Alex levou-a a jantar em Wilmington. Depois, os dois
passearam de mão dada pelas ruas do centro da cidade, a olhar para as
montras. De vez em quando, ela apercebia-se que Alex a fitava com
admiração.
– O que foi? – acabou por perguntar.
– Estava a pensar que o nome Erin não combina contigo. Katie encaixa
muito melhor.
– É melhor que seja assim. Esse é o meu nome e eu tenho uma carta de
condução para o provar.
– Eu sei que tens. Agora, só te falta um carro.
– Para que é que eu precisaria de um carro? – questionou, encolhendo os
ombros. – A cidade é pequena e eu tenho uma bicicleta. E, quando chove, há
um homem que está disposto a levar-me onde quer que eu precise de ir. É
quase como ter um motorista particular.
– Ai sim?
– Pois é. E tenho a certeza de que, se eu pedisse, ele até me emprestaria o
carro dele. Ele praticamente vem comer à minha mão.
Alex ergueu uma sobrancelha.
– Não me parece uma atitude muito masculina da parte dele.
– Ah, ele é ótimo – disse ela, provocando. – De início, parecia um pouco
desesperado, a oferecer-me aqueles produtos todos. Mas, ao fim de algum
tempo, habituei-me a isso.
– Tens um coração de ouro.
– É claro que tenho – disse ela. – Sou mesmo um caso raro.
Alex riu-se. – Parece-me que estás finalmente a sair do casulo onde te
escondeste e estou a começar a perceber quem é a verdadeira Katie.
Ela deu alguns passos em silêncio. – Tu conheces o meu verdadeiro eu –
afirmou, parando para o olhar nos olhos. – Mais do que qualquer outra
pessoa.
– Eu sei – disse ele, puxando-a para a abraçar. – E acho que é por isso que,
de alguma forma, fomos feitos um para o outro.

Embora a loja estivesse tão movimentada como era habitual, Alex resolveu
tirar férias. Era a primeira vez em alguns anos que o fazia e passou a maioria
das tardes com Katie e os filhos, aproveitando os dias ociosos do verão de
uma maneira que não fazia desde criança. Pescou com Josh, construiu casas
de bonecas com Kristen e levou Katie a um festival de jazz em Myrtle Beach.
Durante as noites em que os pirilampos enchiam os jardins das casas, eles
saíam para os apanhar com redes e guardá-los em frascos de vidro. Depois,
ficavam a observar o luzir dos insetos com uma mistura de espanto e
fascinação, até que Alex finalmente abria a tampa para os soltar.
Passearam de bicicleta e foram ao cinema e, nas noites em que Katie não
trabalhava, Alex gostava de acender o churrasco. As crianças comiam e
depois nadavam no riacho até ao sol se pôr. Depois de os filhos tomarem
banho e se deitarem, Alex e Katie sentavam-se no pequeno ancoradouro atrás
da casa, com as pernas a balançar sobre a água, enquanto a lua cruzava
lentamente o céu. Bebiam vinho e conversavam sobre trivialidades, e Alex
começou a apreciar bastante aqueles momentos tranquilos a dois.
Kristen adorava especialmente ter Katie por perto. Quando os quatro
caminhavam juntos, não era raro que Kristen procurasse a mão de Katie;
quando caía no chão do parque infantil, era na direção dela que corria.
Embora o seu coração se alegrasse ao ver aquilo, Alex sentia também uma
pontada de tristeza, ao recordar que, por muito que se esforçasse, nunca
poderia ser tudo o que a sua filha precisava. Mesmo assim, quando Kristen
foi a correr ter com ele e lhe perguntou se Miss Katie poderia levá-la às
compras, Alex foi incapaz de dizer não. Embora fizesse questão de a levar a
comprar o que fosse necessário uma ou duas vezes por ano, geralmente
encarava aqueles passeios mais como uma obrigação de pai do que como
uma oportunidade para se divertir. Em contrapartida, Katie parecia deliciada
com a ideia. Depois de lhe dar algum dinheiro, Alex entregou-lhe as chaves
do jipe e acenou quando elas saíram do estacionamento.
Por mais que a presença de Katie alegrasse Kristen, os sentimentos de Josh
não eram tão óbvios. No dia anterior, Alex fora buscá-lo a uma festa a casa
de um amigo, e o filho não trocou qualquer palavra com o pai ou com Katie
durante o resto da noite. Naquele dia, ainda de manhã, também se mostrou
mais reservado do que de costume. Alex sabia que alguma coisa o
incomodava e sugeriu que os dois pegassem nas respetivas canas de pesca,
precisamente na altura em que começou a escurecer. As sombras começaram
a estender-se sobre a água escura e o riacho estava tranquilo, um espelho
enegrecido a refletir as nuvens que cruzavam lentamente o céu. Pescaram
durante cerca de uma hora, enquanto o céu se tingia de violeta para depois
adquirir um tom índigo. As iscas e os anzóis criavam ondulações em forma
de anéis quando se mexiam na superfície da água. Josh continuava
estranhamente silencioso. Noutra altura, aquele teria sido um momento de
tranquilidade, mas Alex tinha a sensação incómoda de que se passava algo de
errado. Quando estava prestes a questionar Josh sobre o assunto, o seu filho
virou-se para ele.
– Pai?
– Sim?
– Ainda pensas na mãe?
– A toda a hora – respondeu.
Josh assentiu. – Eu também penso nela.
– Ainda bem. Ela amava-te imenso. E pensas em quê?
– Lembro-me de quando ela nos fez bolachas. Deixou-me pôr a cobertura.
– Eu lembro-me disso. Ficaste com a cara coberta de glacé rosa. Ela tirou-
te uma fotografia. Ainda está colada na porta do frigorífico.
– Acho que é por isso que me lembro – disse ele, apoiando a cana de pesca
no colo. – Sentes saudades dela?
– É claro que sinto. Eu amava-a muito – disse Alex, olhando Josh nos
olhos. – O que é que se passa, Josh?
– Ontem, na festa... – Josh esfregou o nariz, hesitando.
– O que é que aconteceu?
– A maioria das mães ficou lá o tempo todo. A conversar e coisa e tal.
– Eu teria ficado, se quisesses.
Josh baixou os olhos e, por entre o silêncio, ele entendeu onde o filho
queria chegar. – Eu também devia ter ficado por lá, não é? Uma reunião entre
pais e filhos – disse, mais em tom de afirmação do que de interrogação. –
Mas não quiseste pedir-me isso porque seria o único pai ali, no meio de
várias mães, não é?
Josh assentiu novamente, com um olhar de culpa. – Não quero que fiques
zangado comigo.
Alex colocou o braço em volta do filho.
– Não estou zangado.
– De certeza?
– Absoluta. Nunca ficaria zangado contigo por causa disso.
– Achas que a mãe teria ido? Se ela ainda estivesse aqui?
– É claro que sim. Ela não perderia a festa por nada deste mundo.
Do outro lado do riacho, uma tainha saltou e a leve ondulação começou a
vir na direção de Josh e Alex.
– O que fazes quando sais com a Miss Katie? – perguntou ele.
Alex remexeu-se ligeiramente. – Mais ou menos as mesmas coisas que
fizemos hoje na praia. Comemos, conversamos e, às vezes, vamos dar um
passeio.
– Tens passado bastante tempo com ela, ultimamente.
– É verdade.
Josh pensou naquilo.
– E conversam sobre o quê?
– Sobre coisas comuns – disse Alex, inclinando a cabeça. – E também
falamos sobre ti e a tua irmã.
– E o que é que dizem?
– Falamos do quanto gostamos de passar tempo convosco e sobre as boas
notas que estás a ter na escola, ou sobre como manténs o quarto limpo e
organizado.
– Vais falar-lhe de eu não te ter dito que deverias ter ficado na festa?
– Queres que lhe conte?
– Não – respondeu.
– Então, não conto.
– Prometes? Porque não quero que ela se chateie comigo.
Alex levantou os dedos. – Palavra de escuteiro. Mas, para que fiques mais
descansado, ela não iria zangar-se contigo, mesmo que eu lhe contasse. Ela
acha-te um excelente rapaz.
Josh sentou-se com as costas muito direitas e começou a recolher a sua
linha. – Que bom. Eu também gosto muito dela.

A conversa com Josh tirou o sono a Alex naquela noite. Ele deu por si a
observar o retrato de Carly no seu quarto, enquanto bebia a sua terceira
cerveja da noite. Kristen e Katie tinham regressado a casa animadas e cheias
de energia e mostraram a Alex as roupas que compraram.
Surpreendentemente, Katie devolvera quase metade do dinheiro que ele lhe
dera, dizendo apenas que tinha um talento nato para encontrar peças em
promoção. Alex sentara-se no sofá e a sua filha vestiu e desfilou um modelo
que comprara para logo a seguir desaparecer no seu quarto e voltar com um
conjunto totalmente diferente. Até mesmo Josh, que geralmente não ligaria
nem um pouco àquilo, deixou a sua Nintendo de lado. Quando Kristen saiu da
sala, ele aproximou-se de Katie.
– Também me podes levar às compras? – pediu, quase sussurrando. –
Preciso de umas camisas novas e de outras coisas.
Depois, Alex ligou para um restaurante chinês e pediu que lhe entregassem
comida em casa. Sentaram-se à mesa, comeram e riram. A dada altura, Katie
tirou uma pulseira de couro da carteira e olhou para Josh.
– Achei esta pulseira muito bonita – dissera, entregando-a a Josh.
A surpresa dele transformou-se em satisfação quando a colocou no pulso; e
Alex percebeu como os olhos de Josh se fixaram continuamente em Katie
durante o resto da noite.
Ironicamente, era em momentos como aquele que Alex mais sentia
saudades de Carly. Embora ela nunca tivesse vivido noites em família como
aquela – as crianças eram muito novas quando ela morreu –, conseguia
facilmente imaginá-la à mesa.
Talvez tivesse sido esse o motivo que o deixara com insónias, mesmo
depois de Katie ter regressado a casa e Kristen e Josh terem recolhido aos
seus quartos para dormir. Afastando os lençóis, foi ao armário e abriu o cofre
que lá instalara há alguns anos. Guardava ali documentos importantes
relativos a finanças e seguros, empilhados ao lado de tesouros do seu
casamento. Eram objetos que Carly juntara: fotos da lua de mel, um trevo de
quatro folhas que tinham encontrado nas férias em Vancouver, o ramo de
begónias e lírios que ela usara no casamento, imagens de ecografias de Josh e
Kristen quando eles ainda estavam no seu ventre, as roupas que cada um
deles vestia no dia em que saíram da maternidade. Negativos de fotografias e
discos com fotos digitais que registavam os anos que passaram juntos.
Aqueles objetos estavam carregados de significado e recordações e, desde a
morte de Carly, Alex não acrescentara nada ao cofre, exceto as cartas que a
sua esposa lhe escrevera. Uma delas estava endereçada a ele. A outra, como
não tinha qualquer nome no envelope, permanecia fechada e ele não se
atrevera a abri-la; afinal de contas, uma promessa tinha de ser honrada.
Pegou na carta que já lera uma centena de vezes e deixou a outra no cofre.
Desconhecera completamente a existência daquelas cartas até que ela lhe
entregou os envelopes pouco menos de uma semana antes de morrer. À
época, Carly passava os dias acamada e só conseguia engolir líquidos.
Quando ele a levava à casa de banho, parecia muito leve, como se, de algum
modo, tivesse sido esvaziada. Nas poucas horas em que a esposa conseguia
ficar acordada, Alex estava ao seu lado. Geralmente, voltava a dormir após
alguns minutos e ele olhava-a demoradamente, temendo afastar-se, na
eventualidade de ela precisar de alguma coisa, e ao mesmo tempo receoso de
permanecer por perto, sem querer interromper o seu repouso. No dia em que
ela lhe deu os envelopes, ele viu que tinham sido colocados sob os
cobertores, aparecendo como que por magia. Mais tarde, Alex soube que
Carly as escrevera dois meses antes e que fora a sua sogra a guardá-las.
Agora, abriu o envelope e tirou a carta, já bastante manuseada. Estava
escrita em papel amarelo pautado. Aproximando-a do nariz, ainda conseguiu
identificar o perfume que Carly usava sempre. Lembrou-se da surpresa que
sentiu na ocasião e da maneira como os olhos da esposa imploraram para que
ele entendesse.
– Queres que leia primeiro esta? – lembrou-se de ter perguntado. Apontou
para o envelope que tinha o seu nome e ela assentiu levemente. Carly
descontraiu-se e a sua cabeça afundou-se nas almofadas, enquanto ele tirou a
carta de dentro do envelope.

Meu querido Alex,


Há sonhos que nos visitam e que nos deixam com uma sensação de
plenitude quando acordamos, há sonhos que fazem com que valha a
pena viver a vida. Tu, meu querido e doce marido, és esse sonho e
entristece-me ter de colocar em palavras o que sinto por ti.
Escrevo esta carta agora, enquanto ainda tenho forças e, mesmo
assim, não sei bem como dizer o que pretendo. Não sou escritora e as
palavras parecem-me, neste momento, muito inadequadas. Como posso
descrever quanto te amo? Será mesmo possível descrever um amor
assim? Não sei, mas, enquanto estou aqui, sentada, com a caneta na
mão, sei que tenho de tentar.
Eu sei que gostas de contar a história de como me fiz de difícil
quando nos conhecemos, mas, quando penso na ocasião em que nos
conhecemos, acho que percebi naquela noite que era nosso destino
ficarmos juntos. Lembro-me claramente daquela noite, assim como me
lembro da sensação exata da tua mão a tocar na minha e de cada
detalhe daquela tarde nublada na praia, quando te ajoelhaste e me
pediste em casamento. Até entrares na minha vida, nunca percebera
quanto algumas coisas me faziam falta. Nunca soubera que um toque
podia ter tanto significado, ou que uma expressão facial pudesse ser
tão eloquente; nunca me dera conta de que um beijo poderia
literalmente tirar-me o fôlego. És, e sempre foste, tudo aquilo que
sempre quis num marido. És gentil, forte, carinhoso e inteligente; dás-
me alegria, e, como pai, és melhor do que imaginas ser. Tens talento
para lidar com crianças, um modo de fazer com que elas confiem em ti
e eu não sou capaz de expressar a alegria que sinto quando te vejo com
os nossos filhos nos braços enquanto adormecem.
A minha vida é infinitamente melhor contigo ao meu lado. E é isso
que torna tudo tão difícil; é por isso que não consigo encontrar as
palavras de que preciso. Assusta-me pensar que tudo vai acabar em
breve. Não sinto medo apenas por mim – sinto medo também por ti e
pelos nossos filhos. Sinto o meu coração a despedaçar-se por saber que
vos vou causar tanta dor. Eu não sei o que fazer para melhorar isso.
Posso apenas lembrar-te das razões pelas quais me apaixonei por ti
desde o início. Também quero expressar a minha tristeza por te
magoar, assim como aos nossos lindos filhos. Dói muito pensar que o
teu amor por mim também será a fonte de tanta angústia.
Mas eu realmente acredito que, embora o amor possa ferir, ele
também é capaz de curar... E é por isso que escrevi uma outra carta.
Por favor, não a leias. Não a escrevi para ti, nem para as nossas
famílias, nem mesmo para os nossos amigos. Duvido muito que eu ou tu
já conheçamos a mulher que deverá receber a outra carta. Entende
isto: aquela carta deve ser entregue à mulher que te vai curar, aquela
que fará com que voltes a sentir-te completo.
Eu sei que, neste momento, não consegues imaginar algo assim. Pode
levar meses, pode levar anos, mas, ao fim de algum tempo, vais
entregar essa carta a outra mulher. Confia no teu instinto, assim como
eu fiz na noite em que te aproximaste de mim pela primeira vez.
Saberás o momento e o local para fazeres o que te peço, tal como
saberás quem é a mulher que merece lê-la. E, quando souberes quem é
essa pessoa, confia nestas palavras: Em algum lugar, de algum modo,
estarei a sorrir e feliz por vocês os dois.
Com amor,
Carly

Depois de reler a carta, Alex colocou-a de novo no envelope e guardou-a


no cofre. Do lado de fora da janela, o céu estava cheio de nuvens iluminadas
pelo luar, brilhando com uma incandescência quase sobrenatural. Ele olhou
para cima, pensando em Carly e em Katie. Carly disse-lhe para confiar no seu
instinto; disse-lhe que saberia o que fazer com a carta.
E, repentinamente, percebeu que Carly tinha razão. Pelo menos, em parte
das suas afirmações. Ele sabia que queria entregar a carta a Katie. Mas ainda
não tinha a certeza se ela estava preparada para a receber.
28

–E i, Kevin – chamou Bill, acenando-lhe. – Podes vir um instante ao


meu gabinete?
Kevin estava praticamente a chegar à sua secretária e Coffey e Ramirez
tinham-no seguido com o olhar. O seu novo parceiro, Todd, já estava na sua
própria mesa e sorriu-lhe debilmente, mas a expressão desapareceu antes
mesmo de ele virar de repente a cara.
Tinha a cabeça a latejar. Não queria falar com Bill logo pela manhã, mas
não estava preocupado. Tinha talento para lidar com testemunhas e vítimas,
sabia quando os criminosos estavam a mentir, efetuava várias detenções e os
culpados eram condenados.
Bill fez um gesto para que ele se sentasse. Embora Kevin não desejasse
sentar-se, acomodou-se na cadeira e começou a questionar-se silenciosamente
sobre o que levara Bill a pedir-lhe tal coisa, pois ficava sempre de pé quando
falava com o capitão. A dor nas têmporas era infernal, como se alguém lhe
tivesse enfiado um lápis na cabeça e, por momentos, Bill limitou-se a olhar
fixamente para ele. Até que finalmente se levantou, fechou a porta do
gabinete e sentou-se na beira da secretária.
– Como é estão as coisas, Kevin?
– Está tudo bem – respondeu ele. Queria fechar os olhos para aliviar a dor,
mas percebeu que Bill o observava atentamente. – O que é que se passa? –
Bill cruzou os braços. – Chamei-te aqui para te dizer que recebemos uma
queixa a teu respeito.
– Que tipo de queixa?
– O assunto é sério, Kevin. Os Assuntos Internos estão envolvidos e, a
partir de agora, estás suspenso das tuas funções. Vais ser investigado.
As palavras pareceram misturar-se umas nas outras. Nada daquilo fazia
sentido. Pelo menos, não de início. Entretanto, quando se concentrou,
percebeu a expressão de Bill e desejou não ter acordado com aquela dor de
cabeça. Desejou também não precisar de beber tanta vodka.
– Do que é que estás a falar?
Bill pegou em alguns papéis que tinha em cima da mesa. – O assassínio de
Gates. O rapaz que foi alvejado por uma bala que atravessou o teto do
apartamento, lembras-te? No início do mês?
– Sim, lembro-me. Tinha a cara coberta de molho de piza.
– Desculpa?
Kevin pestanejou.
– O rapaz. Encontrámo-lo assim. Foi horrível. O Todd ficou muito abalado.

Bill franziu o sobrolho. – Foi chamada uma ambulância – disse.


Kevin inspirou, depois exalou, concentrando-se.
– Foi para a mãe do rapaz – prosseguiu Kevin. – Estava com os nervos em
franja, obviamente, e quis deitar a mão ao grego que tinha disparado a bala.
Eles envolveram-se numa luta e ela caiu pela escada abaixo. Chamámos a
ambulância imediatamente. Tanto quanto sei, ela foi levada para o hospital.
Bill continuou a olhar fixamente para ele antes de finalmente pousar as
folhas em cima da mesa. – Falaste com ela antes disso tudo acontecer, não
foi?
– Eu tentei... Mas ela estava histérica. Tentei acalmá-la, mas passou-se da
cabeça. O que mais há para dizer? Está tudo no relatório.
Bill voltou a pegar nos papéis que estavam na sua mesa. – Eu vi o que
escreveste. Mas a mulher alega que lhe disseste para empurrar o suspeito para
que ele caísse pelas escadas.
– O quê?
Bill leu as páginas que tinha em mãos. – Ela alega que estavas a falar sobre
Deus e que lhe disseste, e vou citar: «O homem é um pecador e merece ser
punido, porque a Bíblia diz: Não matarás». Consta do depoimento que
também lhe disseste que o tipo iria ficar em liberdade condicional, mesmo
tendo matado o filho dela. Assim, ela deveria fazer justiça com as próprias
mãos. Porque os malfeitores merecem ser punidos. Lembras-te de dizer isso?

Kevin sentiu o sangue a subir-lhe ao rosto. – Isso é ridículo. Sabes que ela
está a mentir, certo?
Ele esperava que Bill concordasse de imediato, que dissesse que sabia que
os Assuntos Internos iriam ilibá-lo. Mas Bill não o fez. Em vez disso, o seu
chefe limitou-se a inclinar-se para a frente.
– O que é que lhe disseste exatamente? Palavra por palavra.
– Eu não lhe disse nada. Perguntei à mulher o que tinha acontecido, subi as
escadas e prendi o vizinho, depois de ele ter admitido ser o autor do disparo.
Algemei-o e comecei a levá-lo pelas escadas. Quando dei por mim, ela já
estava a saltar para cima dele.
Bill escutou-o em silêncio, com o olhar fixo em Kevin. – Nunca lhe falaste
de pecados? – acabou por perguntar.
– Não.
– Nunca chegaste a dizer estas palavras: «A vingança é minha, e irei
retaliar, disse o Senhor».
– Não.
– Nada disto te soa familiar?
Kevin sentiu a fúria crescer dentro de si, mas esforçou-se por se controlar.
– Nada. São mentiras. Já sabes como é essa gente. Ela provavelmente quer
processar o município para receber uma indemnização enorme.
Os músculos do maxilar de Bill estavam tensos e ele levou o seu tempo até
voltar a falar. – Bebeste antes de conversar com a mulher?
– Não sei onde é que ela foi buscar essa ideia. Não. Eu não faço isso. Eu
não faria isso. Sabes que estou limpo. Sou um bom detetive – defendeu-se
Kevin, levantando as mãos, quase cego com a dor de cabeça latejante. –
Então, Bill. Trabalhamos juntos há anos.
– É por isso que estou a conversar contigo, em vez de pura e simplesmente
te demitir. Nos últimos meses, Kevin, não tens sido o mesmo. E tenho ouvido
os rumores.
– Que rumores?
– Que chegas bêbedo ao trabalho.
– Não é verdade.
– Quer dizer, então, que se te fizer o teste do balão, o resultado vai dar
negativo, certo?
Kevin sentia o coração a martelar no peito. Sabia mentir e era bom nisso,
mas tinha de manter a voz firme. – Olha, ontem à noite fiquei acordado até
tarde com um amigo e estivemos a beber. Pode ser que ainda haja vestígios
de álcool no meu sangue, mas não estou bêbedo. E não bebi antes de vir
trabalhar hoje de manhã. Nem no dia em que o miúdo foi morto. Ou em
qualquer outro dia.
Bill olhava fixamente para ele. – Diz-me o que se passa com a Erin.
– Já te disse. Ela está a ajudar uma amiga em Manchester. Ainda há umas
semanas fomos a Cape Cod.
– Disseste ao Coffey que estiveste num restaurante em Provincetown com a
Erin, mas esse sítio fechou há seis meses. Também não há qualquer registo
em teu nome no hotel que mencionaste. E ninguém vê ou sabe da Erin há
meses.
Kevin sentiu o sangue a subir-lhe à cabeça e aquilo só piorou o latejar. –
Andaste a investigar-me?
– Já há algum tempo que andas a beber durante o horário de serviço e tens
andado a mentir-me
– Eu não...
– Para de me mentir! – gritou o capitão, de súbito. – Daqui sinto o cheiro
do teu hálito! – Tinha os olhos a faiscar de raiva. – E, a partir deste momento,
estás suspenso das tuas funções. É melhor ligares ao teu representante no
sindicato antes de falares com os Assuntos Internos. Deixa a tua arma e o
distintivo na minha mesa e vai para casa.
– Por quanto tempo? – logrou Kevin perguntar.
– De momento, a suspensão é o menor dos teus problemas.
– Para tua informação, eu não disse nada àquela mulher.
– Eles ouviram-te! – gritou Bill. – O teu parceiro, o paramédico, os
investigadores que inspecionaram o local do crime, o namorado dela. – Bill
calou-se, tentando acalmar-se. – Todos ouviram o que disseste – insistiu, com
determinação.
De repente, Kevin sentiu o mundo a desabar por debaixo dos seus pés. E
sabia que a culpa era toda de Erin.
29

O mês de agosto chegou e, embora Alex e Katie estivessem a apreciar os


dias quentes e vagarosos que passavam juntos, as crianças começavam a
ficar aborrecidas. Com a pretensão de fazer algo diferente, Alex levou Katie e
as crianças a verem o rodeo de macacos em Wilmington. Katie não acreditou
quando percebeu que o espetáculo fazia jus ao nome: macacos, vestidos com
roupas de cowboy, montavam cães e reuniam rebanhos de carneiros durante
quase uma hora, antes de um show de fogo de artifício quase tão espetacular
quanto os do 4 de Julho. Ao saírem, Katie virou-se para ele com um sorriso.
– Acho que foi a coisa mais maluca que já vi – disse ela, abanando a
cabeça.
– Provavelmente achavas que nós, aqui nos estados do Sul, não tínhamos
cultura.
Ela riu-se. – Como é que alguém se lembrou de uma coisa destas?
– Não faço ideia, mas ainda bem que ouvi falar disto. Eles vão permanecer
na cidade apenas por alguns dias – disse Alex, enquanto procurava o jipe no
parque de estacionamento.
– É difícil imaginar como a minha vida seria vazia se eu nunca tivesse visto
macacos montados em cães.
– Os miúdos gostaram! – protestou Alex.
– Os miúdos adoraram – concordou Katie. – Mas não sei se os macacos
gostaram. Não me pareceram muito felizes.
Alex estreitou os olhos. – Não sei se consigo dizer se um macaco está feliz
ou não.
– É exatamente o que eu quero dizer – retorquiu ela.
– Ei, não tenho culpa se ainda falta um mês até recomeçarem as aulas do
Josh e da Kristen. E estou sem ideias sobre atividades para eles.
– Não precisam de fazer alguma coisa especial todos os dias.
– Eu sei. E não fazem. Mas também não quero que passem o dia todo a ver
televisão.
– Os teus filhos não veem assim tanta televisão.
– Isso só é assim porque eu os trouxe para ver o rodeo dos macacos.
– E na próxima semana?
– Vai ser fácil. Está para chegar um daqueles parques de diversões
ambulantes.
Ela sorriu. – As diversões desses parques deixam-me sempre enjoada.
– Seja como for, os miúdos adoram. Mas isso lembra-me outra coisa. Vais
ter de trabalhar no próximo sábado?
– Não sei ainda. Porquê?
– Gostaria que viesses connosco ao parque.
– Queres que eu fique enjoada?
– Se não quiseres, não precisas de andar nas diversões. Mas queria pedir-te
um favor.
– E que favor é esse?
– Que tomasses conta dos miúdos no sábado à noite. A filha da Joyce vai
chegar ao aeroporto de Raleigh e ela pediu-me se eu podia lá levá-la para a
receber. A Joyce não gosta de conduzir à noite.
– Será um prazer tomar conta deles.
– Vais ter de ficar em minha casa, para que eles se deitem a uma hora
adequada.
Katie olhou para ele. – Em tua casa? Eu nunca passo muito tempo em tua
casa.
– Bem, eu... – Alex não soube o que dizer a seguir e ela sorriu.
– Não te preocupes. Vai ser divertido. Talvez dê para ver um filme e fazer
pipocas.
Ele caminhou em silêncio por uns momentos até que perguntou:
– Pretendes ter filhos?
Katie hesitou. – Não tenho a certeza – respondeu, por fim. – Nunca pensei
muito nisso.
– Nunca?
Ela abanou a cabeça. – Quando morava em Atlantic City, eu era demasiado
jovem. Quando estava com o Kevin, não suportava a ideia de ter filhos e, nos
últimos meses, tenho andado com a cabeça ocupada com outras coisas.
– Mas, e se pensasses no assunto? – insistiu ele.
– Mesmo assim, ainda não sei. Acho que dependeria de muitas coisas.
– Como o quê?
– Como a questão de me casar, por exemplo. E, como sabes, não posso
casar.
– A Erin é que não poderia casar – salientou ele. – Mas a Katie
provavelmente poderia. Ela tem carta de condução, lembras-te?
Katie avançou uns quantos passos em silêncio. – Talvez até possa, mas não
faria isso até encontrar o homem certo.
Alex riu-se e passou o braço em volta dela. – Sei que trabalhar no Ivan’s
era exatamente o que precisavas quando chegaste a Southport, mas... já
pensaste em fazer qualquer outra coisa?
– Como o quê?
– Não sei. Regressar à universidade, formares-te, encontrar um emprego de
que realmente gostes.
– E o que é que te leva a pensar que eu não gosto de servir à mesa num
restaurante?
Ele encolheu os ombros.
– Estava apenas curioso em saber outra coisa que te pudesse interessar.
– Quando era mais nova, assim como todas as outras raparigas que eu
conhecia, adorava animais e imaginava que um dia seria veterinária. Mas
agora não estou disposta a voltar a estudar para isso. Levaria demasiado
tempo.
– Há outras maneiras de trabalhar com animais. Podias treinar os macacos
de rodeo, por exemplo.
– Não me parece. Ainda não sei se os macacos gostam de fazer isso.
– Tens um carinho especial por aqueles macacos, não é?
– E quem não teria? Aliás, quem raio teve essa ideia?
– Corrige-me se eu estiver errado, mas acho que te ouvi rir.
– Não queria fazer com que vocês se sentissem mal.
Ele riu-se de novo e puxou-a para mais perto de si. Mais à frente, Josh e
Kristen já estavam encostados ao jipe. Ela sabia que eles provavelmente
adormeceriam antes de chegarem a Southport.
– Não chegaste a responder à minha pergunta – realçou Alex. – Quando
perguntei o que gostarias de fazer com a tua vida.
– Talvez os meus sonhos não sejam assim tão complicados. Talvez eu ache
que um emprego é simplesmente um emprego.
– E o que é que isso significa?
– Que talvez não queira ser definida por aquilo que faço. Que talvez queira
ser definida por quem sou.
Ele matutou naquela resposta.
– Certo. E quem é que queres ser?
– Queres mesmo saber?
– Se não quisesse, não perguntava.
Ela parou e olhou-o nos olhos. – Gostaria de ser esposa e mãe – revelou,
por fim, Katie.
Alex franziu o sobrolho. – Disseste que não tinhas a certeza quanto a ter
filhos...
Inclinando a cabeça e parecendo ainda mais bela do que ele alguma vez a
vira, perguntou:
– E o que é que isso tem que ver com alguma coisa?

As crianças adormeceram antes de Alex chegar à estrada principal. A


viagem de regresso a casa não seria demorada, talvez meia hora. Mesmo
assim, nem Alex nem Katie queriam arriscar-se a acordar as crianças com a
sua conversa. Em vez disso, contentaram-se em permanecer de mãos dadas,
em silêncio, durante o percurso até Southport.
Quando Alex estacionou o carro em frente a casa de Katie, ela viu que Jo
estava sentada nos degraus do alpendre, como se estivesse à espera dela. Na
escuridão, Katie não percebeu se Alex a reconhecera, mas, naquele exato
momento, Kristen mexeu-se no banco de trás e ele virou-se no assento para
verificar se ela acordara. Katie inclinou-se e beijou-o.
– Acho que é melhor eu ir conversar com ela – sussurrou Katie.
– Com quem? Com a Kristen?
– Com a minha vizinha – disse Katie, com um sorriso, apontando com o
dedo por cima do ombro. – Ou, melhor dizendo, talvez ela queira conversar
comigo.
Alex assentiu com a cabeça.
– Está bem – disse ele, olhando para o alpendre de Jo e de novo para Katie.
– Diverti-me imenso esta noite.
– Eu também.
Alex beijou-a antes que ela abrisse a porta e, quando ligou o motor e partiu
para casa, Katie encaminhou-se para a casa da sua vizinha. Jo sorriu e acenou
e Katie sentiu a tensão amenizar-se um pouco. Já não conversavam desde
aquela noite no bar e, quando ela se aproximou, Jo ergueu-se e dirigiu-se ao
guarda-corpos do alpendre.
– Antes de mais, queria pedir desculpa pela maneira como falei contigo –
disse ela, sem delongas. – Fiz algo que não devia. Estava errada e isso não
vai acontecer outra vez.
Katie subiu as escadas até ao alpendre e sentou-se, esboçando um gesto
para que Jo se sentasse ao seu lado, no último degrau. – Está tudo bem. Não
fiquei zangada.
– Ainda me sinto horrível por ter feito aquilo – disse Jo. Os remorsos dela
eram evidentes. – Não sei o que é que me deu.
– Eu sei – disse Katie. – É óbvio. Gostas deles. E queres que estejam bem.
– Ainda assim, não devia ter falado contigo naqueles termos. Foi por isso
que me afastei um pouco. Aquilo envergonhou-me e eu sabia que nunca me
perdoarias.
Katie tocou-lhe no braço. – Agradeço o pedido de desculpas, mas não é
necessário. Na verdade, fizeste com que eu percebesse algumas coisas
importantes sobre mim mesma.
– A sério?
Katie assentiu com a cabeça. – E, para que saibas, acho que vou continuar a
viver em Southport por algum tempo.
– Há dias vi-te a conduzir.
– É difícil acreditar, não é? Ainda não me sinto totalmente confortável ao
volante.
– Isso não vai demorar a acontecer. E é melhor do que andar de bicicleta.
– Eu ainda pedalo todos os dias – referiu Katie. – Não tenho meios para
comprar um carro.
– Eu diria para usares o meu se quisesses, mas voltou para a oficina.
Aquela coisa há de ter sempre um problema ou outro. Provavelmente, ficaria
mais bem servida com uma bicicleta.
– Cuidado com o que desejas.
– Agora já pareces eu a falar – referiu Jo, olhando para a rua. – Estou feliz
por ti e pelo Alex. E pelos miúdos também. Sabes que lhes fazes bem?
– Como é que sabes?
– Porque vejo a maneira que ele olha para ti. E a maneira como tu olhas
para todos eles.
– Nós passamos bastante tempo juntos – disse Katie, esquivando-se.
Jo abanou a cabeça. – É mais do que isso. Vocês os dois parecem estar
apaixonados – referiu, mudando de posição no degrau sob o olhar
constrangido de Katie. – Tudo bem, eu admito. Mesmo que não me tenhas
visto, vamos dizer que vi como vocês os dois se beijam quando se despedem.

– Andas a espiar-nos?
– É claro – disse Jo, com uma careta. – Como é que achas que me
entretenho? Por aqui não se passa nada de interessante – acrescentou, antes
de ficar em silêncio por um momento. – É amor genuíno, não é?
Katie concordou com a cabeça. – E também amo os miúdos.
– Fico muito feliz com isso – comentou Jo, juntando as mãos como se
estivesse a rezar.
Katie também se deixou ficar em silêncio por uns momentos. – Conheceste
a mulher dele?
– Sim – respondeu Jo.
Katie deixou o seu olhar vaguear pela rua. – E como é que ela era? Quero
dizer... o Alex já me falou dela e eu faço uma ideia de como poderia ser,
mas...
Jo não a deixou terminar a frase. – De acordo com o que me lembro, era
muito parecida contigo. E eu digo isso de forma positiva. Ela amava o Alex e
amava os miúdos. Eram o que havia de mais importante na vida dela. E isso é
tudo o que precisas de saber em relação a ela.
– Achas que ela gostaria de mim?
– Sim – respondeu Jo. – Tenho a certeza de que te adoraria.
30

E ra agosto e o ambiente em Boston estava sufocante.


Kevin lembrava-se vagamente de ver a ambulância no exterior da casa
dos Feldman, mas não pensou muito no caso. Os Feldman eram maus
vizinhos e ele não queria saber deles. Só quando viu os carros estacionados
dos dois lados da rua é que deu conta de que Gladys Feldman morrera. Kevin
tinha sido suspenso por duas semanas e não gostava de ver carros
estacionados em frente à sua casa, mas as pessoas tinham ido ali para o
funeral e ele não tinha força para lhes pedir que os tirassem.
Desde que fora suspenso, deixara de tomar banho com tanta frequência e
estava sentado no alpendre, a beber vodka diretamente da garrafa e a observar
as pessoas a entrar e a sair de casa dos Feldman. Sabia que o funeral teria
lugar à tarde e as pessoas estavam reunidas naquela casa porque iriam juntas
à cerimónia, em grupo. Sempre que havia um funeral as pessoas juntavam-se,
como um grupo de gansos.
Não tinha conversado com Bill, Coffey, Ramirez, Todd, Amber, nem
mesmo com os seus pais. Como não tinha fome, não havia caixas de piza no
chão da sala de estar nem sobras de comida chinesa no frigorífico. A vodka
bastava-lhe e ele bebeu até a casa dos Feldman se transformar numa mancha
difusa. Do outro lado da rua, viu uma mulher a sair da casa para fumar um
cigarro. Usava um vestido preto e Kevin questionou-se se ela teria noção de
que os Feldman gritavam com as crianças da vizinhança.
Observou a mulher porque não queria ver o canal sobre casa e jardim na
televisão. Erin costumava assistir aos programas daquele canal, mas ela tinha
fugido para Filadélfia, passara a chamar-se Erica e depois desaparecera. Ele
tinha sido suspenso do seu emprego, mas, antes disso, era um bom detetive.
A mulher de preto acabou de fumar o cigarro e deixou-o cair na relva,
pisando-o. Deu uma olhadela para a rua e avistou-o, sentado no seu alpendre.
Hesitou antes de atravessar a rua até onde ele estava. Ele não a conhecia.
Nunca a vira antes. Kevin não sabia o que ela queria, mas largou a garrafa de
vodka e desceu os degraus do alpendre. Ela parou no passeio em frente.
– É o Kevin Tierney? – perguntou ela.
– Sim – respondeu ele, e a sua voz soou estranha. Era a primeira vez em
vários dias que falava.
– Chamo-me Karen Feldman – explicou. – Os meus pais, Larry e Gladys
Feldman, moram na casa do outro lado da rua.
Ela parou por uns momentos, mas Kevin não disse nada. Ela prosseguiu. –
Eu estava a pensar se a Erin tem planos de ir ao funeral.
– A Erin? – disse ele, finalmente.
– Sim. Os meus pais adoravam quando ela os visitava. Ela costumava
fazer-lhes tartes e às vezes ajudava-os a limpar a casa, especialmente depois
de a minha mãe ter começado a ficar doente. Cancro do pulmão. Foi horrível
– disse ela, abanando a cabeça. – A Erin está em casa? Tinha esperança de a
ver. O funeral começa às duas horas.
– Não, ela não está cá. Foi a Manchester para ajudar uma amiga que está
doente – explicou ele.
– Oh... está bem. É uma pena. Desculpe ter incomodado.
A mente de Kevin começou a clarear e ele percebeu que Karen estava
prestes a voltar para a casa dos pais.
– Lamento a sua perda. Contei à Erin o que aconteceu e ela ficou triste por
não poder estar presente. Receberam as flores?
– Oh, provavelmente sim. Não verifiquei. A funerária está cheia de flores.
– Não faz mal. Gostava que a Erin pudesse estar aqui – respondeu Kevin.
– Eu também. Sempre quis conhecê-la. A minha mãe dizia que a Erin lhe
recordava a Katie.
– A Katie?
– A minha irmã mais nova. Ela morreu há seis anos.
– Lamento imenso.
– Eu também. Todos nós sentimos a falta dela, especialmente a minha mãe.
É por isso que ela se dava tão bem com a Erin. Elas até fisicamente são
parecidas. Tinham a mesma idade e outras características em comum. – Se
Karen se apercebeu da expressão ausente de Kevin, não deu mostras disso. –
A minha mãe costumava mostrar à Erin o álbum de recortes que fez com as
lembranças da Katie... Ela sempre foi muito paciente com minha mãe. A Erin
é uma mulher doce e meiga. Você é um homem cheio de sorte.
Kevin forçou-se a sorrir. – Sim, eu sei.
Ele era um bom detetive, mas, na realidade, às vezes as respostas
apareciam num golpe de sorte. Novas provas surgiam, uma testemunha
desconhecida apresentava-se, uma câmara de vigilância na rua captava uma
matrícula de carro. Neste caso, ele conversara com uma mulher vestida de
preto chamada Karen Feldman, que atravessou a rua numa manhã em que ele
estava a beber e lhe falou sobre a sua irmã que falecera.
Embora ainda lhe doesse a cabeça, despejou o resto da garrafa de vodka
pelo ralo do lavatório e pensou em Erin e nos Feldman. Erin conhecia-os e
visitava-os, embora nunca tivesse mencionado que ia a casa deles. Kevin
telefonava-lhe e passava em casa em momentos inesperados e ela estava
sempre em casa. Fosse como fosse, ele nunca descobriu. Ela nunca lhe
contou nada e, quando ele se queixava do facto de os Feldman serem maus
vizinhos, Erin nunca proferiu uma palavra.
Erin tinha um segredo.
A sua mente estava mais limpa do que alguma vez estivera nos últimos
tempos. Entrou no duche, tomou banho e vestiu um fato preto. Preparou uma
sanduíche de fiambre e peito de peru, temperou com mostarda de Dijon e
comeu-a. A seguir, fez outra e também a comeu. A rua estava cheia de carros
e ele observou o movimento das pessoas que entravam e saíam da casa.
Karen saiu da casa para fumar outro cigarro. Enquanto esperava, Kevin
enfiou um pequeno bloco de notas e uma caneta no bolso.
À tarde, as pessoas começaram a entrar nos seus carros. Ele ouviu os
motores a serem ligados e, uma a uma, as viaturas começaram a afastar-se. Já
passava da uma hora da tarde e estavam a encaminhar-se para a cerimónia.
Levou quinze minutos até que todos saíssem e Larry Feldman fosse ajudado
por Karen a ir até ao carro. Ela sentou-se no banco do condutor e desceu a
rua, até que finalmente não havia mais nenhum carro na via ou em frente à
casa.
Kevin esperou outros dez minutos, certificando-se de que todos tinham
partido antes de finalmente sair pela porta da frente. Atravessou o relvado e
dirigiu-se a casa dos Feldman. Não se apressou nem tentou esconder as suas
ações. Percebeu que vários vizinhos tinham ido ao funeral e aqueles que não
foram iriam lembrar-se apenas de mais uma pessoa de fato preto. Foi até à
porta da frente e constatou que estava trancada, mas tinha estado muita gente
na casa. Deu a volta e foi até ao quintal das traseiras. Lá, encontrou outra
porta, destrancada. Entrou na casa.
Estava tudo em silêncio. Ele parou, tentando identificar o som de vozes ou
passos, mas não escutou nada. Havia copos de plástico sobre a bancada e
pratos de comida na mesa. Caminhou pela casa. Tinha tempo, mas, como não
sabia quanto, decidiu começar pela sala de estar. Abriu e fechou portas de
armários, deixando tudo como estava. Procurou na cozinha e no quarto e
finalmente foi ao escritório. Havia livros nas estantes, uma poltrona e um
televisor. Num dos cantos, viu um pequeno armário de arquivo.
Foi até lá e abriu-o. Examinou rapidamente as etiquetas de cada pasta.
Encontrou uma com a etiqueta «Katie» e retirou-a. Abriu-a e examinou o que
havia lá dentro. Havia um artigo de jornal – ela afogara-se depois de
caminhar sobre o gelo quebradiço numa lagoa que ficava nas imediações – e
fotografias tiradas nos tempos de escola. Na fotografia da formatura, era
bastante parecida com Erin. No fundo da pasta, encontrou um envelope.
Abriu-o e viu que continha um velho boletim escolar. Na frente do envelope
havia um número de segurança social e Kevin copiou-o para o bloco de notas
que tinha no bolso. Não encontrou o cartão da segurança social, mas tinha o
número. A certidão de nascimento era uma cópia, embora estivesse enrugada
e gasta, como se alguém a tivesse amassado e depois tentado alisá-la de novo.

Como já tinha o que precisava, abandonou o local. Assim que chegou a


casa, ligou para o polícia da outra esquadra, aquele que dormia com a
babysitter dos filhos. No dia seguinte, recebeu uma chamada de volta.
Katie Feldman tinha tirado recentemente a carta de condução e nos registos
constava um endereço em Southport, na Carolina do Norte.
Kevin desligou o telefone sem proferir palavra, sabendo que a encontrara.
Erin.
31

O que restava de uma tempestade tropical abateu-se sobre Southport, com a


chuva a cair durante a maior parte da tarde e da noite. Katie trabalhou no
turno do almoço, mas o mau tempo espantou boa parte da clientela do
restaurante, o que levou Ivan a deixá-la sair mais cedo. Ela levara o jipe de
Alex emprestado e, depois de passar uma hora na biblioteca, foi à loja para o
entregar. Quando Alex a levou a casa, Katie convidou-o para regressar mais
tarde para jantar com as crianças.
Passou a tarde inteira inquieta. Queria acreditar que tinha algo que ver com
o mau tempo, mas, ao observar a tempestade pela janela da cozinha, ao ver os
ramos das árvores a dobrarem-se ao vento e a chuva a cair em lençóis de
água, percebeu que aquela sensação estava relacionada com a apreensão que
sentia ao verificar que tudo na sua vida parecia estar a correr bem de mais. A
sua relação com Alex e as tardes que passava com as crianças preenchiam um
vazio que ela não dera conta que existia. No entanto, Katie aprendera há
muito tempo que as coisas boas não duravam para sempre. A alegria era tão
efémera como uma estrela cadente a cruzar o céu, uma luz que pode apagar-
se a qualquer momento.
Mais cedo, naquele mesmo dia, lera alguns artigos da edição online do The
Boston Globe num dos computadores da biblioteca e soube da morte de
Gladys Feldman, anunciada no obituário. Sabia que Gladys estava doente e,
antes de fugir de casa, soube que estava numa fase terminal de cancro.
Embora verificasse os obituários de Boston regularmente, a descrição
lacónica sobre a vida dela e os entes queridos que havia deixado atingiram-na
com uma força inesperada.
Katie nunca quisera roubar a identificação dos arquivos dos Feldman. Não
tinha sequer ponderado essa possibilidade até um dia Gladys abrir a pasta
para lhe mostrar a fotografia da formatura da sua filha Katie. Viu a certidão
de nascimento e o cartão com o número da segurança social ao lado da
fotografia e foi então que percebeu que era a sua oportunidade. Na sua visita
seguinte à casa dos Feldman, pediu licença para usar a casa de banho, mas,
em vez disso, foi ao arquivo. Mais tarde, enquanto comia uma tarte de
mirtilos com eles, os documentos pareciam queimá-la dentro do bolso. Uma
semana depois, após tirar uma cópia da certidão de nascimento na biblioteca,
dobrá-la e amassá-la para que parecesse antiga, colocou o documento de
novo no arquivo. Teria feito o mesmo com o cartão da segurança social, mas
não conseguiu obter uma reprodução muito boa. Assim, esperava que,
quando percebessem que o cartão não estava ali, imaginassem que se perdera
ou fora parar a outro sítio.
Recordou a si própria que Kevin nunca descobriria o que ela havia feito.
Ele não gostava dos Feldman e o sentimento era recíproco. Ela suspeitava
que os Feldman sabiam que ele a agredia. Percebia aquilo nos olhos deles, na
maneira como a observavam quando atravessava a rua a correr para os visitar,
no modo como fingiam não notar os hematomas nos seus braços ou na
expressão séria do rosto deles sempre que falava em Kevin. Queria pensar
que eles compreenderiam as razões pelas quais teve de fazer aquilo, que
gostariam que ela ficasse com a identificação, porque sabiam que ela
precisava daqueles documentos e desejariam que escapasse.
Os Feldman eram as únicas pessoas de Dorchester de quem Katie sentia
saudades e imaginou como estaria Larry a sentir-se. Foram seus amigos
quando não tinha mais ninguém com quem conversar. Queria dizer a Larry
que lamentava a perda de Gladys. Queria chorar ao lado dele, falar sobre
Gladys e dizer-lhe que, graças a eles, a sua vida melhorara. Queria contar a
Larry que encontrara um homem que a amava e que, pela primeira vez em
vários anos, se sentia feliz. Mas não faria nada. Em vez disso, limitou-se a ir
ao alpendre de casa e, com os olhos cheios de lágrimas, observou enquanto a
tempestade arrancava as folhas das árvores.

– Estás muito calada esta noite. Está tudo bem? – perguntou Alex.
Ela preparara um guisado de atum para o jantar e Alex estava a ajudá-la a
lavar os pratos. As crianças estavam na sala de estar, ambas a brincar com
jogos eletrónicos. Ela ouvia os bips sobre o som da torneira.
– Morreu uma amiga – contou, entregando-lhe um prato para secar. – Já
sabia que ia acontecer, mas, mesmo assim, é triste.
– É sempre triste quando acontece algo do género – concordou ele. –
Lamento imenso. – Alex tinha noção de que não era adequado fazer mais
perguntas sobre o assunto. Em vez disso, aguardou em silêncio, à espera que
ela dissesse algo mais.
Todavia, Katie lavou outro copo e mudou de assunto. – Quanto tempo
achas que a tempestade vai durar? – quis saber.
– Já não deve durar muito. Porquê?
– Estava a pensar se a chuva vai obrigar a encerrar o parque de diversões.
Ou se o voo da filha da Joyce será cancelado.
Ele olhou pela janela. – Acho que não vai haver problemas. A tempestade
já está a dissipar-se. Tenho quase a certeza de que vai perder a força.
– Mesmo a tempo.
– É claro. A natureza não se atreveria a interferir nos planos dos
organizadores do parque de diversões. Ou nos planos da Joyce.
Ela sorriu. – Quanto tempo vais demorar a levá-la até Raleigh para receber
a filha?
– Provavelmente quatro ou cinco horas. Raleigh não é um lugar muito à
mão.
– Porque é que ela não apanha um voo para Wilmington? Ou simplesmente
aluga um carro?
– Não sei. Não perguntei o motivo, mas imagino que seja para poupar
dinheiro.
– Sabes que estás a agir bem, certo? A ajudar a Joyce dessa maneira.
Alex encolheu os ombros, como se não fosse nada de especial. – Amanhã
vais divertir-te.
– No parque de diversões ou em tua casa com os miúdos?
– Nos dois sítios. E, se me pedires com carinho, até te compro um gelado
frito.
– Gelado frito? Parece nojento.
– Na verdade, é bem bom.
– As pessoas por aqui só comem fritos?
– Se algo pode ser frito, as pessoas encontram uma maneira de o fazer. No
ano passado, havia até uma banca que vendia manteiga frita.
Ela quase se engasgou. – Estás a brincar.
– Não estou. Parece horrível, mas as pessoas formavam filas para comprar.
É como fazer fila para ter um ataque cardíaco.
Katie lavou e enxaguou o último copo e passou-o a Alex. – Achas que os
miúdos gostaram do jantar que eu preparei? A Kristen não comeu muito.
– A Kristen nunca come muito. Mas o mais importante foi que eu gostei.
Achei delicioso.
Ela abanou a cabeça. – Quem é que quer saber dos miúdos, não é? Desde
que estejas feliz...
– Ah, desculpa. No fundo, sou um narcisista.
Katie passou o esfregão num prato e enxaguou-o. – Estou ansiosa por
passar a noite em tua casa.
– Porquê?
– Porque estamos sempre aqui e não lá. Não me leves a mal; eu entendo
que isso é o mais certo a fazer por causa dos teus filhos. – E também por
causa da Carly, pensou, embora não o tenha dito. – Vou ter a oportunidade
de ver como vives.
Alex pegou no prato. – Já estiveste em minha casa.
– Sim, mas nunca fiquei mais do que uns minutos e, mesmo assim, apenas
na cozinha e na sala de estar. Não tive hipótese de espiar o teu quarto ou
bisbilhotar o armário da tua casa de banho.
– Não te atreverias a fazer isso – disse Alex, fingindo-se escandalizado.
– Talvez me atrevesse, se tivesse uma hipótese.
Ele limpou o prato e guardou-o no armário. – Podes passar o tempo que
quiseres no meu quarto.
Ela riu-se. – Isso são tretas típicas dos homens.
– Estou apenas a dizer que não me importaria. E está à vontade para
vasculhares também o armário da minha casa de banho. Não tenho segredos.
– Isso é o que tu dizes – contrapôs ela, provocando-o. – Falas como alguém
que oculta vários segredos.
– Não relativos a mim.
Ela concordou, com uma expressão séria no rosto. – Não em relação a ti.
Lavou mais dois pratos e passou-lhos, sentindo uma onda de satisfação a
apoderar-se de si enquanto observava Alex a limpá-los e a guardá-los.
Ele aclarou a garganta.
– Posso perguntar uma coisa? Não quero que me leves a mal, mas estou
curioso – disse.
– É claro.
Alex usou o pano que tinha na mão, limpando alguma louça e ganhando
tempo. – Queria saber se pensaste no que te disse no fim de semana passado.
No estacionamento, depois do rodeo dos macacos.
– Disseste várias coisas – comentou ela, à cautela.
– Não te lembras? Disseste-me que a Erin não poderia casar, mas que a
Katie provavelmente poderia.
Katie sentiu o corpo a ficar tenso, não tanto por se lembrar da conversa,
mas principalmente pela seriedade do tom de voz de Alex. – Lembro –
respondeu, esforçando-se por parecer despreocupada. – Acho que disse que
teria de encontrar o homem certo.
Ao ouvir aquelas palavras, os lábios de Alex contraíram-se, como se não
tivesse a certeza se deveria continuar. – Eu só queria saber se pensaste no
caso. Em relação à possibilidade de nos casarmos daqui a algum tempo.
A água ainda estava quente quando ela começou a lavar os talheres. –
Primeiro, terias de pedir a minha mão.
– E se eu a pedisse?
Ela encontrou um garfo e esfregou-o. – Eu acho que te diria que te amo.
– Mas aceitarias?
Ela hesitou. – Não quero casar outra vez.
– Não queres ou achas que não serias capaz?
– Qual é a diferença? – A expressão dela permaneceu firme e desafiadora.
– Tu sabes que eu ainda sou casada. A bigamia é ilegal.
– Tu já não és a Erin. És a Katie. Como tu mesma disseste, a tua carta de
condução confirma isso mesmo.
– Mas eu também não sou a Katie! – protestou ela, antes de se virar para
Alex. – Não percebes? Eu roubei esse nome a um casal de quem eu gostava!
Pessoas que confiavam em mim – explicou, olhando fixamente para ele,
voltando a sentir a tensão que a atormentara durante o dia e recordando com
intensidade renovada a gentileza e a compaixão de Gladys, a sua fuga e os
anos de pesadelo que vivera com Kevin. – Porque é que não podes aceitar as
coisas tal como elas são? Porque é que tens de me pressionar tanto para ser a
pessoa que queres que eu seja em vez de me deixares ser a pessoa que sou?
Ele retraiu-se. – Eu amo-te tal como és.
– Mas estás a impor condições!
– Não estou nada!
– Estás sim! – insistiu ela. Sabia que estava a levantar a voz, mas não
conseguiu evitar. – Tens uma ideia fixa sobre o que queres da tua vida e estás
a tentar fazer com que eu me encaixe nessa ideia!
– Não é nada disso – protestou Alex. – Eu só te fiz uma pergunta.
– Mas queres uma resposta concreta! Queres a resposta correta e, se não
conseguires obtê-la, vais tentar convencer-me a fazer o que queres. Como se
eu devesse fazer o que tu queres! Como se eu devesse fazer tudo o que tu
queres!
Pela primeira vez desde que se conheceram, Alex lançou-lhe um olhar
duro. – Não faças isso – aconselhou.
– Fazer o quê? Dizer a verdade? Dizer-te como me sinto? Porquê? O que é
que vais fazer? Vai bater-me? Estás à vontade.
Alex encolheu-se, como se ela lhe tivesse dado um estalo. Katie teve a
perceção de que as suas palavras tinham atingido o alvo. Contudo, em vez de
se irritar, Alex pousou o pano da louça na bancada e recuou um passo. – Não
sei o que é que se passa, mas peço desculpa por ter tocado nesse assunto. Não
foi minha intenção colocar-te entre a espada e a parede ou tentar convencer-te
a fazer o que quer que fosse. Estava apenas a tentar conversar.
Esperou que ela dissesse alguma coisa, mas Katie permaneceu em silêncio.
Abanando a cabeça, virou-se para sair da cozinha, antes de se deter. –
Obrigado pelo jantar – murmurou ele.
Na sala de estar, ela ouviu-o dizer às crianças que estava a ficar tarde e
ouviu a porta da frente a abrir-se com um rangido. Alex fechou a porta
calmamente atrás de si e a casa ficou repentinamente em silêncio, e Katie
sozinha com os seus pensamentos.
32

K evin tinha dificuldade em manter-se entre as linhas da estrada. Queria


manter a mente desperta, mas a cabeça começara a latejar e sentiu um
aperto no estômago, o que o levou a parar numa loja de bebidas para comprar
uma garrafa de vodka. A bebida ajudou a aliviar a dor e, ao sorver o líquido
por uma palhinha, só conseguiu pensar em Erin e no facto de ela ter alterado
o seu nome para Katie.
A estrada interestadual era, aos seus olhos, uma mancha difusa. Os faróis
dos carros, duas fontes de luz branca que lhe picavam a vista, cresciam de
intensidade conforme se aproximavam no sentido oposto e desapareciam
rapidamente ao passarem por ele. Um a seguir ao outro. Milhares. Pessoas a
viajar e a fazer coisas. Kevin dirigia-se para sul, rumo ao estado da Carolina
do Norte, ao encontro da sua esposa. Deixou Massachusetts, atravessou
Rhode Island e Connecticut, Nova Iorque e Nova Jérsia. A lua subiu,
alaranjada e furiosa antes de ficar branca, e atravessou o céu enegrecido
acima dele. As estrelas também pontilhavam o céu.
Um vento quente soprava pela janela aberta e Kevin segurou firmemente o
volante. Os seus pensamentos eram um verdadeiro puzzle de peças que não
encaixavam. Aquela cadela abandonara-o. Abandonara o seu casamento,
deixara-o para trás a apodrecer, e acreditava que era mais esperta do que ele.
No entanto, descobriu-a. Karen Feldman atravessara a rua e ele percebeu que
Erin tinha um segredo. Mas isso acabara. Ele sabia onde Erin morava, sabia
onde ela estava escondida. A sua morada estava sarrabiscada num pedaço de
papel no banco do passageiro, debaixo da pistola Glock que trouxera de casa.
No banco de trás, estava um saco de viagem com roupas, algemas e fita-
adesiva. Ao sair da cidade, passou numa caixa multibanco e levantou
algumas centenas de dólares. Queria bater no rosto de Erin até lhe partir todos
os ossos, deixando no seu lugar apenas uma massa feia e ensanguentada.
Queria beijá-la, abraçá-la e implorar-lhe que voltasse para casa. Encheu o
depósito do carro perto de Filadélfia e lembrou-se de como a seguira até ali.
Ela fê-lo passar por palhaço levando uma vida secreta que ele nem
imaginava. Visitando os Feldman, cozinhando e limpando a casa para eles
enquanto conspirava, fazia planos e mentia. Sobre o que mais teria mentido?
Era o que ele se perguntava. Outro homem? Talvez não naquela época, mas
agora provavelmente haveria algum. A beijá-la. A acariciá-la. A tirar-lhe as
roupas. A rir-se dele. Àquela hora deviam estar na cama. Ela e o homem.
Ambos a rirem-se dele nas suas costas. Eu mostrei-lhe como era, não foi?,
diria ela, rindo-se. O Kevin nem percebeu o que estava a acontecer.
Pensar naquilo deixava-o louco, furioso. Kevin já estava na estrada há
horas, mas continuou a conduzir. Bebia vodka e pestanejava rapidamente
para clarear a visão. Não ultrapassou o limite de velocidade. Não queria ser
mandado parar por um polícia da brigada de trânsito. Especialmente tendo
uma arma no banco do passageiro, mesmo ao seu lado. Ela tinha medo de
armas e sempre lhe pedira para trancar a arma no estojo, no fim do dia de
trabalho. Ele fazia sempre o que ela pedia.
Mas não bastava. Comprou-lhe uma casa, móveis e roupas bonitas, levava-
a à biblioteca e ao cabeleireiro e, mesmo assim, não bastou. Quem poderia
entender? Seria assim tão difícil limpar a casa e preparar o jantar? Kevin
nunca lhe quis bater. Só o fazia quando não tinha mais nenhuma escolha.
Quando ela era estúpida, descuidada ou egoísta. Ela é que o obrigara a fazer
tudo aquilo.
O motor continuou a roncar, um ruído estável nos seus ouvidos. Erin já
tinha carta de condução e era empregada de mesa num restaurante chamado
Ivan’s. Antes de sair, ele passou algum tempo na Internet e fez alguns
telefonemas. Não foi difícil encontrá-la, porque a cidade era pequena.
Conseguiu descobrir onde ela trabalhava em menos de vinte minutos. Tudo o
que teve de fazer foi marcar o número e perguntar se Katie estava lá. Ao
quarto telefonema, alguém respondeu que sim. Ele desligou sem dizer
qualquer palavra. Ela achou que podia esconder-se para sempre, mas ele era
um bom detetive e encontrara-a. Estou a chegar, pensou. Sei onde moras e
onde trabalhas. Desta vez não me escapas.
Passou por painéis publicitários e saídas para outras estradas e, no
Delaware, a chuva começou a cair. Fechou a janela e sentiu o vento a
empurrar o carro lateralmente. Um camião à sua frente estava a ziguezaguear
na faixa de rodagem, com as rodas do atrelado a pisarem os traços da via.
Ligou os limpa-para-brisas e a sua visão melhorou. Mas a chuva começou a
cair ainda com mais intensidade e ele dobrou-se sobre o volante,
semicerrando os olhos para ver para lá das manchas luminosas dos faróis que
vinham na direção oposta. A sua respiração começou a embaciar o vidro e ele
ligou o desembaciador. Conduziria a noite inteira e encontraria Erin pela
manhã do dia seguinte. Iria levá-la para casa e recomeçariam de novo a vida
deles. Marido e mulher, a viver juntos, tal como mandam as regras. Felizes.
Eles eram felizes. Costumavam fazer coisas divertidas juntos. Ele
lembrava-se de, logo depois de casarem, ter ido com Erin, aos fins de
semana, visitar casas que estavam à venda. Ela sentia-se feliz por poder
comprar uma casa e ele ouvia-a a falar com os vendedores de imóveis, a sua
voz a ressoar como música nas habitações vazias. Erin gostava de se demorar
pelos quartos e Kevin sabia que estava a decidir onde colocar os móveis.
Quando encontraram a casa em Dorchester, ele percebeu, pelo brilho dos
olhos dela, que era aquela a escolhida. Naquela noite, deitada na cama, ela
traçou pequenos círculos com os dedos no peito dele enquanto lhe implorou
que fizesse uma oferta. Ele lembrou-se de ter pensado que faria qualquer
coisa que ela quisesse, pois amava-a.
Exceto ter filhos. Erin dizia que queria ter filhos, que queria constituir uma
família. Durante o primeiro ano do casamento, estava sempre a falar disso.
Ele tentou ignorá-la. Não desejava dizer que lhe desagradava a ideia de a ver
gorda e inchada, que as mulheres grávidas eram feias, que não queria ouvi-la
a reclamar por estar cansada ou por ter os pés inchados. Não queria um bebé
a gritar e a chorar quando regressasse a casa do trabalho. Não queria que ela
ficasse com o rosto inchado e o corpo flácido, ou ouvi-la a perguntar se o seu
rabo estava a ficar gordo de mais. Kevin casou-se com ela porque queria uma
esposa, não uma mãe. Mas ela insistia em falar daquilo, não se cansava de
abordar o assunto. Até que ele, finalmente, lhe deu uma bofetada e mandou-a
fechar a boca. Depois daquele dia, ela nunca mais falou sobre ter filhos.
Entretanto, ele agora questionava-se se deveria ter dado a Erin o que ela
queria. Ela não o teria abandonado se tivesse um filho. Não seria capaz de
fugir se houvesse uma criança. Nesse caso, ela nunca mais seria capaz de
fugir.
Ele decidiu então que iriam ter um filho. Os três viveriam em Dorchester e
ele trabalharia como detetive de polícia. À noite, voltaria para casa para
encontrar a sua linda esposa e, quando as pessoas os vissem no
supermercado, todos ficariam encantados, dizendo «são uma família
tipicamente americana».
Pensou se o cabelo dela já estaria novamente louro. Esperava que estivesse
comprido para poder deslizar os seus dedos nele. Ela gostava quando Kevin
fazia isso, e sussurrava-lhe, dizendo as palavras que ele gostava, excitando-o.
Mas aquilo não era real, não se ela estivesse a planear abandoná-lo. Erin
mentira. Mentira durante todo aquele tempo. Semanas. Meses, talvez. Furtou
coisas dos Feldman, o telemóvel, o dinheiro que lhe tirava da carteira. A
conspirar e a fazer planos; e ele não fazia ideia do que ela estava a preparar.
E, agora, havia outro homem a dormir na sua cama. A passar-lhe os dedos
pelos cabelos, a ouvi-la gemer, a sentir as suas mãos no corpo dele. Kevin
mordeu o lábio e sentiu o sabor de sangue, odiando-a. Queria socá-la e
pontapeá-la, queria atirá-la pelas escadas. Sorveu mais um trago da garrafa
que estava ao seu lado, para tirar o gosto metálico que lhe ficara na boca.
Ela conseguira enganá-lo por ser bonita. Tudo em Erin era belo. Os seios,
os lábios, até mesmo a curva das suas costas. No casino, em Atlantic City,
quando se encontraram pela primeira vez, achou que ela era a mulher mais
linda que alguma vez vira e, durante os quatro anos do seu casamento, nada
disso mudara. Erin sabia que Kevin a desejava e aproveitava-se disso. Vestia-
se de maneira sexy. Arranjava o cabelo. Usava lingerie de renda. Tudo aquilo
levou a que ele baixasse a guarda, a que ele pensasse que ela o amava.
Mas ela não o amava. Nem sequer queria saber dele. Não se importava com
os vasos de flores partidos, nem com os pratos de porcelana estilhaçados, não
se importava com o facto de ele ter sido suspenso do trabalho e não se
importava por ele chorar sozinho, na cama, todas as noites antes de dormir,
desde que ela partira. Não se importava que a vida de Kevin estivesse a
despedaçar-se. Tudo o que importava eram as coisas que ela queria. Mas ela
sempre fora egoísta e agora estava a rir-se dele. Há meses que se ria e só
pensava em si mesma. Ele amava-a e odiava-a e não conseguiu saber ao certo
o que sentia por ela. Sentiu as lágrimas começarem a formar-se e piscou os
olhos para que não lhe escorressem pelo rosto.
Delaware. Maryland. Os arredores de Washington D. C. Virgínia. Horas
perdidas numa noite interminável. De início, choveu intensamente mas aos
poucos a chuva dissipou-se. Ele parou perto de Richmond quando o dia
começou a raiar e pediu o pequeno-almoço. Dois ovos, quatro fatias de
bacon, torrada de pão de trigo. Bebeu três chávenas de café. Colocou mais
gasolina no carro e regressou à estrada interestadual. Entrou na Carolina do
Norte sob um céu azul. Havia insetos esmagados contra o para-brisas do
carro e as suas costas começaram a doer. Pôs os óculos escuros para não ter
de semicerrar os olhos e a barba começou a fazer comichão.
Estou a chegar, Erin, pensou ele. Não tarda nada estou aí.
33

K atie acordou exausta. Passara um bom bocado a virar-se de um lado para


o outro na cama, sem conseguir dormir, a recordar as coisas horríveis
que dissera a Alex. Não sabia porque havia feito aquilo. É certo que ficara
abalada com a situação dos Feldman, mas, por pior que fosse, não conseguia
lembrar-se de como se iniciara a discussão. Ou melhor: lembrava-se, mas
aquilo não fazia sentido. Sabia que ele não estava a pressioná-la nem a tentar
forçá-la a fazer algo que ainda não se sentia pronta para fazer. Sabia que ele
não era minimamente parecido com Kevin, em nenhum aspeto. O que foi
mesmo que ela lhe dissera?
O que é que vais fazer? Vai bater-me? Estás à vontade.
O que é que a levou a dizer uma coisa daquelas? Só conseguiu adormecer
depois das duas horas da manhã, quando o vento e a chuva começaram a
abrandar. Depois do sol nascer, o céu apresentou-se limpo e era possível
ouvir o canto dos pássaros por entre as árvores. Ao chegar ao alpendre,
reparou nos efeitos da tempestade: ramos partidos a cobrir a rua, folhas e
pinhas espalhadas desde o jardim até ao meio da rua. O ar já estava denso por
causa da humidade. Iria ser um dia escaldante, provavelmente o mais quente
do verão. Pensou consigo mesma que deveria dizer a Alex para não deixar as
crianças muito tempo ao sol, antes de se dar conta de que talvez ele não
quisesse que ela os acompanhasse. Talvez ainda estivesse irritado com ela.
Talvez, não, corrigiu-se. Era quase certo que ainda estaria zangado com ela.
E magoado também. Alex não deixara sequer que as crianças se despedissem
dela na noite anterior.
Sentou-se nos degraus do alpendre e olhou para a casa de Jo, imaginando
se a sua vizinha já estaria acordada. Ainda era cedo. Provavelmente,
demasiado cedo para bater à porta. Não sabia o que lhe diria, nem se seria
correto abordar o assunto. Não contaria o que dissera a Alex – eram
memórias que gostaria de poder apagar por completo –, mas talvez Jo
pudesse ajudá-la a entender a ansiedade que sentia. Depois de Alex ter ido
embora, sentira uma tensão nos músculos dos ombros e, à noite, pela primeira
vez em várias semanas, preferira dormir com a luz do quarto acesa.
O seu instinto dizia-lhe que se passava algo de errado, mas não conseguia
saber exatamente o que era, embora os seus pensamentos não conseguissem
afastar-se dos Feldman. De Gladys. Das mudanças inevitáveis na casa. O que
aconteceria se alguém notasse que as informações relativas a Katie haviam
desaparecido? Só de pensar naquilo sentiu o estômago a revirar-se.
– Vai ficar tudo bem – ouviu ela, de repente. Voltando-se, viu Jo em pé, no
primeiro degrau da escada, calçada com as sapatilhas de corrida. Tinha o
rosto corado e a T-shirt empapada em suor.
– De onde é que saíste?
– Fui dar uma corrida – informou Jo. – Estava a tentar evitar o calor, mas,
obviamente, não resultou. O dia está tão húmido e abafado que mal dava para
respirar e achei que ia morrer com uma insolação. Mesmo assim, acho que
estou melhor do que tu, pois pareces-me muito triste.
Subiu os degraus e Katie abriu espaço para que ela se sentasse ao seu lado.

– O Alex e eu discutimos ontem à noite.


– E então?
– Eu disse-lhe coisas horríveis.
– Pediste desculpa?
– Não – respondeu Katie. – Ele foi embora antes que eu pudesse fazê-lo.
Devia ter pedido desculpa, mas não pedi. E agora...
– O que foi? Achas que é tarde de mais? – perguntou Jo, apertando
levemente o joelho de Katie. – Nunca é tarde de mais para fazer o que está
certo. Vai até lá e conversa com ele.
Katie hesitou. A sua ansiedade era notória. – E se ele não me perdoar?
– Então ele não é quem tu pensaste que fosse.
Ela levantou os joelhos até ao peito e apoiou o queixo neles. Jo descolou o
tecido da T-shirt da pele, tentando abanar-se antes de prosseguir. – É claro
que ele te perdoa. Tens noção disso, não é? Pode estar zangado e se calhar
magoaste-o, mas ele é um bom homem. – Jo sorriu. – Além disso, todos os
casais precisam de umas discussões feias de vez em quando. Apenas para
provar que o relacionamento é suficientemente forte para sobreviver.
– Isso parece conversa de psicólogo.
– Na realidade é. Mas é verdade. Relacionamentos longos, os únicos que
realmente importam, são aqueles que conseguem resistir aos altos e baixos. E
tu ainda estás a pensar em ter um relacionamento duradouro, não é verdade?
– Sim – respondeu Katie, assentindo. – Estou. E tens razão. Obrigada.
Jo deu uma palmadinha na perna de Katie e piscou-lhe o olho ao levantar-
se para descer os degraus. – As amigas são para estas coisas, certo?
Katie também se levantou. – Queres um café? Vou preparar uma cafeteira.
– Hoje não. O dia está excessivamente quente. Preciso é de um copo de
água gelada e de um duche frio. Sinto-me como se estivesse a derreter.
– Vais ao parque de diversões, hoje?
– Talvez. Ainda não decidi. Mas, se for, eu procuro-te – prometeu Jo. –
Agora vai a casa do Alex e faz o que tens a fazer, antes que mudes de ideias.

Katie permaneceu sentada nos degraus por mais alguns minutos antes de
voltar para dentro de casa. Tomou um banho e preparou um café. Mas Jo
tinha razão – estava demasiado calor para beber aquilo. Assim, vestiu uns
calções e calçou umas sandálias antes de contornar a casa para ir buscar a sua
bicicleta.
Apesar da chuva recente, a rua de gravilha já estava a secar e Katie
conseguiu pedalar sem gastar muita energia. E ainda bem. Não fazia ideia de
como Jo conseguira correr com aquela temperatura, mesmo que ainda fosse
bastante cedo. Aparentemente, todos estavam a tentar escapar ao calor.
Normalmente, haveria esquilos ou pássaros, mas, quando entrou na estrada
principal, não notou qualquer movimento. Na estrada, o trânsito estava
tranquilo. Alguns carros passaram rapidamente por ela, deixando nuvens de
fumo para trás. Katie continuou a pedalar em frente e, ao contornar uma
curva, avistou a loja. Já havia meia dúzia de carros parados no
estacionamento. Clientes habituais que iam lá comer biscoitos.
A conversa com Jo ajudara, pensou ela. Pelo menos um pouco. Ainda
estava ansiosa, mas a sensação já tinha menos que ver com os Feldman ou
outras memórias dolorosas do que com as coisas que ia dizer a Alex. E,
principalmente, com a eventual reação dele. Pedalou até à parte da frente da
loja. Alguns homens mais velhos estavam sentados nos bancos, abanando-se
para suavizar o calor. Passou por eles e foi até à porta. Joyce estava atrás da
caixa registadora, a calcular o valor das compras de um cliente, e sorriu-lhe.
– Bom dia, Katie – cumprimentou.
Katie deitou uma rápida olhadela à loja. – O Alex está por aqui?
– Está lá em cima com as crianças. Já conheces o caminho, certo? As
escadas lá fora nas traseiras?
Ela saiu da loja e deu a volta à casa. No ancoradouro, havia vários barcos
em fila, à espera para abastecer.
Ao chegar à porta, hesitou por uns momentos antes de bater. Do lado de
dentro, ouviu passos a aproximarem-se. Quando a porta se abriu, deu com
Alex à sua frente.
Ela esforçou-se por sorrir. – Olá – disse.
Ele assentiu, com uma expressão imperscrutável. Katie aclarou a garganta.

– Queria pedir-te desculpa pelo que disse. Eu estava enganada.


A expressão no rosto de Alex permaneceu neutra. – Tudo bem. Obrigado
pelas desculpas.
Por momentos, nenhum dos dois falou e Katie sentiu um desejo repentino
de não ter ido até ali. – Eu posso ir embora, se quiseres. Só preciso de saber
se ainda queres que tome conta dos miúdos hoje à noite.
Ele voltou a não abrir a boca e, no meio daquele silêncio, Katie abanou a
cabeça. Quando se virou para ir embora, ouviu-o a dar um passo na sua
direção. – Katie... espera – disse ele, virando a cabeça para olhar para as
crianças por cima do ombro, antes de fechar a porta atrás de si.
– Aquilo que disseste ontem à noite... – começou. Alex, hesitante, deixou a
frase morrer no ar.
– Eu falei sem pensar – disse ela, com a voz suave. – Não sei o que me deu.
Estava preocupada com outras coisas e descarreguei em ti.
– Admito que aquilo me deixou incomodado. Não tanto as tuas palavras,
mas o facto de achares que eu seria capaz de... fazer aquilo.
– Eu não acho que fosses capaz de fazer algo do género. Nunca pensaria
isso de ti.
Ele pareceu absorver aquelas palavras, mas Katie sabia que Alex ainda
tinha algo mais a dizer.
– Quero que saibas que dou muito valor ao que existe entre nós e, mais do
que qualquer coisa, quero que te sintas confortável. Seja lá o que for que isso
implique. Desculpa se te fiz sentir entre a espada e a parede. Não era isso que
estava a tentar fazer.
– Ah, estavas, estavas – disse ela, com um sorriso cúmplice. – Pelo menos
um pouco. Mas está tudo bem. Afinal, quem sabe o que o futuro nos reserva,
não é? Como hoje à noite, por exemplo.
– Porquê? O que é que vai acontecer hoje à noite?
Ela apoiou-se na ombreira da porta. – Bem, depois de os miúdos
adormecerem e, dependendo da hora a que regressares, pode ser tarde de
mais para eu voltar para casa de bicicleta. Talvez me encontres deitada na tua
cama...
Quando Alex percebeu que Katie não estava a brincar, levou a mão ao
queixo, fingindo estar a matutar no assunto. – Isso seria um dilema.
– Por outro lado, pode ser que não haja muito trânsito e queiras chegar
suficientemente cedo para me levar a casa.
– Por norma, costumo conduzir com segurança. Não gosto de andar em
correrias na estrada.
Apoiando-se agora no peito dele, sussurrou ao ouvido de Alex. – És muito
consciencioso.
– É, tento ser – sussurrou ele, antes que os seus lábios tocassem nos dela.
Quando se afastou, percebeu que havia uma meia dúzia de donos de barcos a
olhar para eles. Mas Alex não quis saber. – Quanto tempo é que levaste a
ensaiar esse discurso?
– Eu não ensaiei. As palavras simplesmente brotaram de dentro de mim.
Ele ainda sentia o beijo. – Já tomaste o pequeno-almoço?
– Não.
– Queres comer cereais comigo e com os miúdos? Antes de irmos para o
parque de diversões?
– Comer cereais convosco deve ser uma delícia.
34

A Carolina do Norte era um lugar feio. Uma faixa de asfalto entalada entre
extensões monótonas de pinheiros e colinas ondulantes. Ao longo da
estrada, viam-se aglomerados de atrelados e roullotes, pequenas propriedades
agrícolas e celeiros apodrecidos cobertos de trepadeiras. Kevin saiu de uma
via interestadual e entrou noutra, rumo a Wilmington, e bebeu mais um
pouco de vodka para espantar o tédio.
Ao cruzar a paisagem sempre igual, pensou em Erin. Pensou no que faria
quando a encontrasse. Esperava que estivesse em casa quando chegasse, mas,
mesmo que estivesse a trabalhar, seria apenas uma questão de tempo até que
regressasse a casa.
A estrada passava ao largo de cidades sem qualquer atrativo e com nomes
desinteressantes. Às dez horas da manhã chegou a Wilmington. Atravessou a
cidade e virou para uma pequena estrada rural. Continuou a rumar a sul, com
o sol a bater forte na janela do condutor. Colocou a arma no colo e depois
passou-a outra vez para o assento do passageiro, e continuou a conduzir.
E, finalmente, chegou lá, à cidade onde ela estava a viver. Southport.

Kevin atravessou vagarosamente a cidade, tendo de fazer um desvio por


causa de um parque de diversões itinerante, e de vez em quando consultou o
itinerário que imprimira no computador antes de sair de casa. Retirou uma
camisa de dentro da mala de viagem e colocou-a sobre a pistola, para a
esconder.
Southport era uma cidade pequena, com casas limpas e bem cuidadas.
Algumas tinham uma arquitetura típica do Sul dos Estados Unidos, com
alpendres amplos, magnólias e bandeiras americanas a tremular em mastros.
Outras recordavam-lhe as casas da região de Nova Inglaterra. Havia mansões
em frente ao mar. O sol refletia-se na água, visível por entre as casas, e o dia
estava quente como o inferno. Parecia uma sauna.
Alguns minutos depois, encontrou a viela de cascalho onde ela morava. À
esquerda, mais adiante, havia uma loja de conveniência e ele parou lá para
abastecer o carro e comprar uma lata de Red Bull. Ficou na fila atrás de um
homem que estava a comprar carvão e líquido para o isqueiro. Entregou o
dinheiro à idosa da caixa. Ela sorriu e agradeceu, comentando, como era
típico das pessoas da sua idade, sempre indiscretas, que nunca o vira por ali
antes. Kevin disse-lhe que estava ali por causa do parque de diversões.
Ao voltar para a estrada, sentiu a pulsação a acelerar ao dar conta de que já
não estava longe do seu destino. Contornou uma curva e diminuiu a
velocidade do carro. Avistou ao longe uma ruela de gravilha. As folhas que
imprimira indicavam-lhe que deveria virar para entrar naquela rua, mas
seguiu em frente. Se Erin estivesse em casa, reconheceria imediatamente o
carro e Kevin não queria que isso acontecesse. Pelo menos enquanto não
tivesse tudo pronto.
Deu meia-volta com o carro, à procura de um lugar discreto para
estacionar. Foi difícil de encontrar. Talvez no estacionamento da loja de
conveniência, mas será que alguém iria reparar se lá estacionasse? Voltou a
passar pela loja, examinando a área. As árvores que ladeavam a estrada
poderiam servir-lhe de cobertura, ou talvez não. Não queria arriscar-se a
levantar as suspeitas a alguém que estivesse a passar pela estrada e visse um
carro abandonado junto ao arvoredo.
A cafeína fazia com que suas mãos tremessem e ele mudou para a vodka,
para acalmar os nervos. Por amor de Deus, era impossível encontrar um lugar
para esconder o carro. Que raio de lugar era aquele? Deu outra vez meia-
volta, já irritado. Não deveria ser tão complicado e deveria ter alugado um
carro. No entanto, não o fizera e agora não conseguia encontrar uma maneira
de se aproximar o suficiente da casa de Erin sem levantar suspeitas.
A loja era a sua única opção e regressou ao estacionamento, parando ao
lado da casa. Ficava a quase um quilómetro e meio de distância da casa de
Erin, mas Kevin não sabia mais o que fazer. Ficou a remoer naquilo por um
bom bocado, antes de desligar o motor. Quando abriu a porta, foi envolvido
por uma onda de calor. Esvaziou o saco de viagem, atirando as roupas para o
banco de trás, e colocou lá dentro a pistola, as cordas, as algemas e a fita
adesiva, além de mais uma garrafa de vodka. Colocou o saco ao ombro e deu
uma olhadela em volta. Ninguém o observava. Calculou que poderia deixar
ali o carro por uma hora ou duas antes que alguém desconfiasse.
Kevin afastou-se do estacionamento e seguia pela berma da estrada quando
sentiu uma súbita dor de cabeça. O calor era insuportável. Como se tivesse
vida. Caminhou pela estrada, olhando fixamente para os condutores que
passavam por ele. Não viu Erin nem qualquer outra mulher com cabelo
castanho.
Chegou à rua de gravilha e percorreu-a. A via, empoeirada e cheia de
buracos, parecia não levar a lugar nenhum, até que ele, finalmente, depois de
percorrer mais uns quinhentos metros, avistou duas cabanas pequenas. Sentiu
o coração a acelerar. Erin vivia numa delas. Kevin foi para um dos lados da
rua, caminhando junto às árvores, tentando esconder-se. Contou que
houvesse alguma sombra, mas o sol estava alto e o calor fustigava-o. Tinha a
camisa ensopada e suor a escorrer-lhe pelo rosto, deixando o seu cabelo numa
lástima. Tinha a cabeça a latejar e parou para beber, sorvendo a vodka
diretamente da garrafa.
Vistas de longe, nenhuma das casas parecia estar ocupada. Que diabo,
nenhuma delas parecia sequer habitável. Não eram nada parecidas com a casa
deles em Dorchester, com suas venezianas, mísulas decorativas e a porta da
entrada vermelha. Na cabana mais próxima, a tinta estava a descascar e os
cantos das tábuas a apodrecer. Seguindo em frente, observou as janelas, à
procura de sinais de movimento. Não se apercebeu de nada.
Não sabia em qual das cabanas ela vivia. Parou para as observar mais de
perto. As duas eram horríveis, mas uma delas parecia praticamente
abandonada. Dirigiu-se à que estava em melhores condições, tentando
esquivar-se à janela.
Demorara trinta minutos a chegar até lá, desde a loja de conveniência.
Quando surpreendesse Erin, sabia que ela tentaria escapar. Talvez tentasse,
até, lutar. Iria amarrá-la e tapar-lhe a boca com fita adesiva, para depois ir
buscar o carro. Quando regressasse, colocaria Erin na bagageira, onde ficaria
até que estivessem muito longe da cidade.
Chegou à parede lateral da casa e encostou-se. Aguçou os ouvidos,
tentando ouvir algum som, portas a abrirem-se, água a correr ou talheres a
bater nos pratos, mas não escutou nada. Ainda lhe doía a cabeça e continuava
com sede. O calor ainda o fustigava e tinha a camisa encharcada. Respirava
com sofreguidão, mas já estava muito perto de Erin. Pensou novamente no
modo como ela o abandonara e como não se importara quando ele chorou.
Rira-se nas suas costas. Ela e o homem com quem estava, quem quer que ele
fosse. Havia um homem, disso Kevin não duvidava. Ela não poderia ter feito
tudo aquilo sozinha.
Espreitou para as traseiras da casa, mas não viu nada. Aproximou-se
lentamente, atento. À sua frente havia uma pequena janela. Decidiu arriscar e
olhou para o interior. As luzes estavam apagadas e o interior estava limpo e
organizado, com um pano da louça pendurado sobre o lava-louça.
Aproximou-se silenciosamente da porta e girou a maçaneta. Estava
destrancada.
Sustendo a respiração, abriu a porta e entrou na casa, parando de novo para
tentar ouvir algum ruído, mas não aconteceu nada. Atravessou a cozinha e foi
até à sala. Depois, ao quarto e à casa de banho. Disse um palavrão, ao
perceber que ela não estava em casa.
Isto, claro, partindo do princípio de que aquela era a casa certa. No quarto,
viu uma cómoda e abriu a gaveta de cima. Encontrando uma pilha de cuecas,
remexeu nelas e esfregou-as entre o indicador e o polegar, mas Erin já
desaparecera há tanto tempo que não conseguia lembrar-se se seriam as
mesmas que ela vestira quando ainda estavam juntos. Não reconheceu as
outras roupas, mas eram do tamanho dela.
Reconheceu o champô e o amaciador, assim como a pasta de dentes. Na
cozinha, revirou as gavetas, abrindo uma por uma até encontrar uma conta de
eletricidade. Estava endereçada a Katie Feldman e então ele apoiou-se no
armário da cozinha, olhando fixamente para o nome, sentindo-se satisfeito.
O único problema era que Erin não estava ali e ele não sabia quando
regressaria. Estava consciente de que definitivamente não poderia deixar o
carro na loja, mas, ao mesmo tempo, sentia-se exausto. Queria dormir,
precisava de dormir. Conduzira durante toda a noite e tinha a cabeça a latejar.
Instintivamente, dirigiu-se ao quarto dela. Ela tinha feito a cama e, quando
puxou as cobertas, sentiu o cheiro de Erin nos lençóis. Arrastou-se sobre a
cama, respirando fundo, inspirando o aroma dela. Sentiu as lágrimas a
encherem-lhe os olhos ao perceber quantas saudades sentia dela, quanto a
amava e como poderiam ter sido felizes se ela não fosse tão egoísta. Não
conseguia permanecer acordado e disse a si mesmo que dormiria apenas por
alguns minutos. Não por muito tempo. Apenas o suficiente para que, quando
ela voltasse, naquela noite, a sua mente estivesse alerta e ele não cometesse
erros. Ele e Erin poderiam voltar a ser marido e mulher.
35

A lex, Katie e as crianças foram de bicicleta ao parque de diversões,


porque seria praticamente impossível estacionar no centro da cidade. Da
mesma forma, seria ainda pior tentar regressar a casa quando os carros
estivessem a sair do estacionamento.
Havia bancas de venda de artesanato dos dois lados da rua e o ar estava
denso com o aroma a cachorros-quentes, hambúrgueres, pipocas e algodão-
doce. No palco principal, uma banda tocava uma versão de Little Deuce
Coupe, dos Beach Boys. Havia corridas de sacos e uma faixa a anunciar um
campeonato que premiaria a pessoa capaz de comer naquela tarde a maior
quantidade de melancias. Também havia jogos de azar, além de outras
diversões, como acertar com dardos em balões, arremessar argolas a gargalos
de garrafas, acertar três vezes com uma bola de basquetebol num cesto para
ganhar um peluche. A roda gigante, do outro lado do parque, erguia-se acima
de tudo, atraindo as famílias como se fosse um farol.
Alex ficou na fila para comprar bilhetes e Katie foi com as crianças na
direção dos carrinhos de choque e dos carrosséis. Havia longas filas por todo
o lado. Mães e pais agarrados às mãos das crianças enquanto os adolescentes
andavam em grupos. O ar estava preenchido pelo barulho dos geradores e
pelos ruídos metálicos oriundos das diversões do parque, que giravam sem
parar.
O cavalo mais alto do mundo podia ser visto por um dólar. Outro dólar
dava acesso à tenda ao lado, que abrigava o cavalo mais pequeno do mundo.
Póneis cansados e esbaforidos andavam em círculos, amarrados a uma roda,
com as cabeças baixas.
As crianças estavam animadas e queriam ir a todas as atrações. Alex gastou
uma pequena fortuna a comprar bilhetes, que se esgotaram rapidamente, pois
cada uma das diversões custava três a quatro dólares. O custo acumulado
raiava o absurdo e Alex tentou fazer com que eles durassem bastante,
insistindo para que os filhos participassem noutras atividades.
Viram um homem a fazer malabarismos com pinos de bowling e vibraram
com um cão capaz de percorrer uma corda bamba. Comeram piza ao almoço
num dos restaurantes das imediações e ouviram uma banda country a tocar
algumas canções. Depois, assistiram a uma corrida de jet-ski no rio Cape Fear
antes de regressarem ao parque de diversões. Kristen comeu algodão-doce e
Josh fez uma tatuagem temporária.
E assim decorreram as horas, num misto de calor, de barulho e de prazeres
típicos de uma cidade pequena.

Kevin acordou duas horas mais tarde, com o corpo ensopado em suor e o
estômago a doer devido às cólicas. Os sonhos que teve, induzidos pelo calor,
foram vívidos e intensos e teve dificuldade em lembrar-se de onde estava.
Sentia a cabeça prestes a abrir-se ao meio. Saiu do quarto a cambalear e
dirigiu-se à cozinha, saciando a sede diretamente da torneira. Sentia-se tonto
e fraco e ainda mais cansado do que quando se deitara para dormir.
Mas não podia demorar-se. Nem sequer devia ter dormido. Foi ao quarto e
arranjou a cama para que Erin não percebesse que ele ali estivera. Já ia a sair
da casa quando se lembrou do guisado de atum que vira no frigorífico. Estava
esfomeado e lembrou-se que já há meses que ela não lhe preparava o jantar.
Deveriam estar uns 40 graus dentro naquela cabana abafada. Quando abriu
o frigorífico, permaneceu bastante tempo em frente ao aparelho, a sentir o ar
gelado que saía de lá de dentro. Pegou na caçarola do atum e revirou as
gavetas até encontrar um garfo. Retirou a película aderente que cobria a
caçarola, comeu um pedaço e depois outro. Aquilo não ajudou a suavizar a
forte dor de cabeça que sentia, mas acalmou-lhe o estômago e as cólicas
começaram a diminuir de intensidade. Poderia ter comido tudo, mas ingeriu
apenas mais um pedaço antes de colocar a caçarola de volta no frigorífico.
Erin não poderia perceber que ele ali estivera.
Lavou o garfo, limpou-o e guardou-o novamente na gaveta. Alisou o pano
da louça e deu uma derradeira olhadela à cama, certificando-se de que estava
igual ao que encontrara quando entrara na casa. Satisfeito, saiu da casa e
voltou para a rua de gravilha, encaminhando-se para a loja de conveniência.
O tejadilho do carro queimava ao toque e, quando abriu a porta, pareceu-
lhe estar a entrar numa fornalha. Não havia ninguém no estacionamento.
Estava demasiado calor para ficar ao ar livre. Tudo parecia ferver, sem que
houvesse qualquer nuvem no céu e sem que uma brisa soprasse. Por amor de
Deus, como é que alguém pode querer viver aqui?
Na loja, pegou numa garrafa de água e bebeu-a toda enquanto estava junto
aos frigoríficos. Pagou pela garrafa vazia e a idosa deitou-a fora. Ela
perguntou-lhe se tinha gostado do parque de diversões. Kevin respondeu
afirmativamente à velha bisbilhoteira. De regresso ao carro, bebeu mais
vodka sem se importar com o facto de a bebida estar à mesma temperatura
que uma chávena de café. Desde que aquilo diminuísse a dor que sentia, não
fazia diferença. Estava demasiado calor para pensar, e ele já poderia estar a
caminho de Dorchester, se Erin estivesse em casa. Talvez quando levasse
Erin de volta e Bill percebesse como estavam felizes, ele o deixasse regressar
ao trabalho. Era um bom detetive e o capitão precisava dele.
Enquanto bebia, a dor que latejava nas suas têmporas começou a diminuir
de intensidade, mas ele começou a ver em duplicado tudo o que o rodeava.
Precisava de manter a mente desperta, mas a dor e o calor estavam a fazer-lhe
mal e ele não sabia o que fazer.
Ligou o carro e entrou na estrada principal, dirigindo-se à baixa de
Southport. Havia várias ruas encerradas e ele perdeu a conta das vezes que
teve de se desviar do caminho até encontrar um lugar para estacionar.
Quilómetros e quilómetros sem uma única sombra; apenas um calor
sufocante e infernal. Tinha a sensação de que ia vomitar.
Pensou em Erin e onde ela poderia estar. No Ivan’s? No parque de
diversões? Devia ter ligado a perguntar se ela iria trabalhar. Devia ter-se
hospedado em algum hotel na noite anterior. Não havia motivo para pressas,
porque ela não estava em casa. Mas ele só se apercebera disso depois de
invadir a casa onde ela morava. E ficou furioso ao pensar que ela
provavelmente estaria a rir-se também daquilo. A rir-se sem parar do pobre
Kevin Tierney enquanto o traía com outro homem.
Trocou de camisa e enfiou a arma por dentro dos jeans, caminhando em
direção à orla do rio. Sabia que o Ivan’s ficava naquela zona, pois pesquisara
a localização do restaurante no computador. Seria demasiado arriscado ir até
lá, por isso chegou a dar meia-volta duas vezes. Mas tinha de a encontrar.
Estivera na casa onde ela morava e sentira o cheiro dela nos lençóis. Mas
aquilo não fora o suficiente.
Havia multidões por toda a parte. As ruas evocaram-lhe uma feira agrícola,
mas sem os porcos, os cavalos e as vacas. Comprou um cachorro-quente e
tentou comê-lo, mas o seu estômago revoltou-se e acabou por deitar quase
tudo ao lixo. Ao caminhar por entre as pessoas, viu a orla do rio ao longe e,
logo à frente, a fachada do Ivan’s. Avançou vagarosamente por entre toda
aquela gente. Sentiu a boca completamente seca quando chegou à porta do
restaurante. O Ivan’s estava lotado e havia uma fila de pessoas à espera de
mesa. Deveria ter levado um chapéu e óculos escuros, mas não conseguia
pensar direito. Sabia que ela o reconheceria imediatamente. Mesmo assim,
encaminhou-se para a porta e entrou.
Viu uma empregada de mesa, mas não se tratava de Erin. Olhou em volta, e
viu outra, mas também não era Erin. A rececionista era jovem e estava
atarefada, a tentar encontrar a melhor maneira de acomodar um grupo de
clientes. O ambiente estava barulhento – pessoas a conversar, talheres a bater
nos pratos, copos a serem recolhidos em bacias e levados para a cozinha para
serem lavados. Muito ruído, muita confusão, a sua dor de cabeça não passava
e agora também sentia o estômago a arder.
– A Erin está a trabalhar hoje? – perguntou ele à rececionista, levantando a
voz para que ela o ouvisse no meio de todo aquele ruído.
Ela fitou-o, confusa. – Quem?
– Katie – disse ele. – Eu quis dizer Katie Feldman.
– Não – gritou a rececionista, em resposta. – Ela está de folga. Mas amanhã
trabalha – informou, com um meneio de cabeça em direção às janelas. –
Provavelmente, anda lá fora, no meio de toda aquela gente. Acho que a vi
passar aqui em frente hoje de manhã.
Kevin voltou-se e saiu, esbarrando nas pessoas enquanto se afastava,
ignorando tudo aquilo. No exterior, dirigiu-se a um vendedor ambulante.
Comprou um boné de basebol e um par de óculos escuros baratos. E retomou
a caminhada.

A roda gigante girava sem parar. Alex e Josh estavam num assento e
Kristen e Katie noutro, a sentir o vento quente a bater nos seus rostos. Katie
colocou o braço em volta de Kristen, sabendo que, apesar do sorriso que a
menina tinha no rosto, ela estava nervosa com a altura. Enquanto a roda
gigante girava, levando o assento até ao ponto mais alto, revelando uma vista
panorâmica da cidade, Katie percebeu que, embora também não estivesse
muito animada com a altura, estava mais preocupada com a estrutura da
diversão. Aquela coisa parecia ter sido montada com arame e clipes de papel,
mesmo tendo passado por uma inspeção municipal naquela manhã.
Questionava-se se Alex realmente dissera a verdade sobre a inspeção, ou se
a ouvira sequer comentar sobre a possibilidade de a diversão ser perigosa. No
entanto, era tarde de mais para se preocupar com aquilo, calculou Katie.
Assim, procurou distrair-se olhando para a multidão de pessoas que enchia as
ruas. Da parte da tarde, o parque de diversões recebeu ainda mais visitantes,
mas, descontando os desportos aquáticos, não havia muita coisa para fazer
em Southport. Era uma cidade pequena e tranquila e ela calculou que um
evento daqueles seria o mais importante do ano.
A roda gigante abrandou a velocidade e parou, deixando-os suspensos no ar
enquanto os primeiros passageiros saíam e outros entravam nos lugares que
acabavam de ficar desocupados. Girou mais alguns momentos e Katie
começou a observar a multidão mais atentamente. Kristen parecia estar mais
relaxada, e fazia o mesmo.
Katie reconheceu um casal a comer gelados, eram frequentadores habituais
do Ivan’s, e imaginou quantos outros haveria por perto. Os seus olhos
começaram a desviar-se de um grupo para outro e, por algum motivo,
lembrou-se de que costumava fazer o mesmo quando começara a trabalhar no
restaurante. Quando ainda vigiava a sua envolvência, atenta à presença de
Kevin.

Kevin passou pelas bancas de venda que estavam dos dois lados da rua, a
vaguear e a tentar pensar como Erin. Devia ter perguntado à rececionista do
restaurante se vira Erin com um homem, pois sabia que não iria ao parque de
diversões sozinha. Era difícil ter em mente que ela agora tinha cabelo curto e
castanho, pois cortara-o e tingira-o. Devia ter pedido uma cópia da carta de
condução de Erin ao polícia pedófilo da outra esquadra, mas não estava a
pensar direito quando entrou em contacto com ele. Mas isso já não tinha
importância, porque sabia onde ela morava e iria lá regressar.
Sentiu a arma na cintura. Era uma sensação desconfortável, pois o metal
irritava-lhe a pele. O boné de basebol provocava-lhe muito calor,
especialmente porque era apertado e pressionava-lhe a cabeça; parecia prestes
a explodir.
Ele avançou por entre grupos de pessoas e filas que se formavam. Entre
peças de artesanato. Pinhas decoradas, vidros coloridos em molduras e
espanta-espíritos. Brinquedos de madeira à moda antiga. As pessoas
enfartavam-se de comida: pretzels, gelados, nachos e bolos de canela. Viu
carrinhos de bebé e recordou de novo que Erin queria ter um filho. Decidiu
que lhe daria um. Menina ou menino, não importava; mesmo assim, preferia
que fosse um menino, porque as meninas eram egoístas e não apreciariam a
vida que ele lhes daria. As meninas eram assim mesmo.
As pessoas conversavam e sussurravam à sua volta e ele achou que
algumas estavam a olhar diretamente para ele, tal como Coffey e Ramirez
faziam. Ignorou-as, concentrando-se na sua busca. Famílias. Adolescentes de
braço dado. Um rapaz que usava um sombrero. Dois funcionários do parque
encostados a um poste, a fumar. Magros e cheios de tatuagens, com dentes
cariados. Provavelmente drogados, com extensos cadastros. Teve um mau
pressentimento em relação a eles. Era um bom detetive e sabia como analisar
as pessoas, por isso não confiou neles. Mas nenhum dos dois reagiu à
passagem de Kevin. Desviou-se para a direita e para a esquerda, avançando
com determinação por entre a multidão e estudando os rostos das pessoas.
Parou quando passou vagarosamente à sua frente um casal de obesos, a
comer salsichas panadas, com os rostos vermelhos e inchados. Detestava
gordos. Achava-os fracos e indisciplinados. Pessoas que passavam a vida a
reclamar por causa da tensão arterial, da diabetes e de problemas cardíacos e
que não paravam de se queixar do custo dos medicamentos, mas que não
faziam o menor esforço por comer menos. Erin sempre fora magra, mas os
seus seios eram grandes e agora ela andava por ali, com outro homem. Um
homem que a acariciava e que tocava nos seus seios à noite, e aquele
pensamento fez com que se sentisse a arder por dentro. Odiava-a. Mas ele
também a queria. Amava-a. Era difícil distinguir aqueles sentimentos na sua
cabeça. Bebera em excesso e o calor estava abrasador. Por que diabos ela
tinha ido parar a um lugar tão infernal?
Andou por entre as diversões do parque e deu por si perto da roda gigante.
Aproximou-se, esbarrando num homem que usava uma camisola sem
mangas, ignorando os resmungos dele face à sua falta de modos. Olhou para
os assentos da roda gigante, passando os olhos por cada rosto. Erin não estava
ali, nem na fila.
Seguiu em frente, caminhando sob o calor no meio das pessoas gordas, à
procura do vulto esguio de Erin e do homem que lhe tocava nos seios à noite.
A cada passo, pensava na sua Glock.

As cadeiras suspensas, a girar no sentido dos ponteiros do relógio, fizeram


sucesso entre as crianças. Tinham andado naquela diversão por duas vezes,
de manhã, e, depois de saírem da roda gigante, Kristen e Josh imploraram
para lá regressarem. Só tinham sobrado uns quantos bilhetes e Alex
concordou, explicando que, depois daquela volta, teriam de ir para casa. Ele
queria regressar a tempo de tomar um banho, jantar e talvez descansar um
pouco antes de ir para Raleigh.
Apesar dos seus esforços, não conseguiu deixar de pensar na excitante
sugestão que Katie lhe fizera. Ela parecia capaz de lhe ler os pensamentos.
Alex apanhou-a várias vezes ao longo do dia a olhá-lo fixamente, com um
leve sorriso provocante nos lábios.
Agora ela estava ao seu lado, a sorrir para as crianças. Aproximou-se dela,
colocando-lhe o braço em volta da cintura, e sentiu-a a inclinar-se contra o
seu corpo. Não disse nada. Não havia necessidade de palavras. Katie também
não disse nada. Em vez disso, inclinou a cabeça, pousando-a sobre o ombro
de Alex. E ele teve a sensação de que nada no mundo poderia ser melhor do
que aquilo.

Erin não estava nas chávenas giratórias, nem no labirinto de espelhos, nem
no comboio fantasma. Ele vigiou as atrações junto da fila dos bilhetes,
tentando misturar-se com a multidão, querendo vê-la antes que ela se
apercebesse da sua presença. Estava numa posição vantajosa, pois sabia que
ela ali estava, enquanto Erin não fazia a menor ideia da presença dele. Às
vezes, as pessoas tinham sorte e aconteciam coisas estranhas. Recordou o dia
em que conversou com Karen Feldman, quando ela revelou o segredo de
Erin.
Desejou não ter deixado a vodka no carro. Ali por perto não parecia haver
qualquer lugar onde pudesse comprar mais, nenhum bar à vista. Nem sequer
um quiosque que vendesse cerveja. Não era bebida que apreciasse, mas teria
comprado uma garrafa se não tivesse outra escolha. O cheiro da comida
provocou-lhe náuseas e fome ao mesmo tempo, e sentiu o suor a ensopar-lhe
a camisa, manchas escuras começando a aparecer nas costas e nas axilas.
Passou pelos jogos de azar, geridos por vigaristas. Desperdício de dinheiro,
pois eram feitos de maneira a que o dono nunca perdesse muito. Mesmo
assim, vários idiotas faziam fila para jogar. Procurou por entre os rostos.
Nada de Erin.
Encaminhou-se até às outras diversões. Havia crianças a brincar nos
carrinhos de choque, pessoas agitadas na fila. Do outro lado, estavam as
cadeiras suspensas e dirigiu-se para lá. Contornou as pessoas, à procura de
um ângulo melhor para observar o lugar.

As cadeiras começaram a perder velocidade, mas Kristen e Josh ainda


sorriam, alegres. Alex acertara quando decidira ir embora depois daquele
último passeio; o calor deixara Katie exausta e seria bom poder refrescar-se
um pouco. Se havia uma coisa má na cabana onde morava – bem, na verdade,
havia mais do que apenas uma coisa má, imaginou Katie – era não ter ar
condicionado. Ela habituara-se a deixar as janelas abertas à noite, mas aquilo
não era grande ajuda. As cadeiras pararam e Josh desapertou o cinto de
segurança antes de descer. Kristen demorou um pouco mais até conseguir
desenvencilhar-se, mas, pouco depois, as duas crianças já estavam a correr na
direção de Katie e do pai.

Kevin viu as cadeiras a diminuírem de velocidade até pararem por


completo e um bando de crianças desceu de lá, mas não era ali que a sua
atenção estava focada. Em vez disso, tentou observar os adultos aglomerados
em volta da vedação da diversão.
Continuou a caminhar, com os olhos a incidirem sucessivamente em todas
as mulheres. Louras ou morenas, não importava. Procurou o corpo magro de
Erin. Do lugar onde estava, Kevin não conseguia ver os rostos das pessoas
diretamente à sua frente; mudou então de posição. Em poucos segundos,
quando as crianças chegassem à saída, todos voltariam a espalhar-se pelo
parque.
Caminhou rapidamente. Havia uma família à sua frente, com bilhetes na
mão, a decidir onde iriam a seguir, a discutir no meio à confusão. Idiotas.
Kevin contornou-os, semicerrando os olhos para observar os rostos perto das
cadeiras.
Só havia uma mulher magra. Uma morena de cabelo curto, parada ao lado
de um homem de cabelo grisalho, que colocara o braço ao redor da cintura
dela. Era inconfundível. As mesmas pernas compridas, o mesmo rosto, os
mesmos braços esbeltos.
Erin.
36

A lex e Katie caminharam de mão dada em direção ao Ivan’s,


acompanhados pelas crianças. Tinham deixado as bicicletas perto da
porta das traseiras, onde Katie geralmente trancava a sua quando ia trabalhar.
Quando saíram, Alex comprou água para Josh e Kristen antes de seguirem
para casa.
– Gostaram do dia, meninos? – perguntou Alex, agachando-se para
destrancar as bicicletas.
– O dia foi ótimo, pai – respondeu Kristen, com o rosto ruborizado pelo
calor.
Josh limpou a boca ao braço. – Podemos voltar amanhã?
– Talvez – disse Alex, tentando esquivar-se à pergunta.
– Por favor, pai. Eu quero andar outra vez nas cadeiras.
Quando todos os cadeados estavam abertos, Alex colocou as correntes por
cima do ombro. – Vamos ver – disse.
O toldo que ficava atrás do restaurante ainda projetava alguma sombra, mas
continuava o calor intenso. Depois de, ao olhar pelas janelas, perceber que o
restaurante estava lotado, Katie sentiu-se feliz por ter tirado o dia de folga,
mesmo que tivesse de trabalhar dois turnos no dia seguinte e na segunda-
feira. Valera a pena. O dia foi bom e ela iria descansar e ver um filme com as
crianças enquanto Alex estivesse fora, à noite. E, mais tarde, quando ele
voltasse...
– O que foi? – perguntou Alex.
– Nada.
– Estavas a olhar para mim como se fosses devorar-me.
– Estava com a cabeça noutro lugar – explicou, piscando o olho. – Acho
que o calor me está a fazer mal.
– Ah, claro – disse ele, assentindo. – Como se eu não soubesse.
– Quero apenas lembrar-te que há ouvidos jovens neste momento a prestar
atenção ao que dizemos, por isso, tem cuidado com o que vais dizer – alertou
ela, beijando-o antes de lhe tocar afetuosamente no peito.
Nenhum dos dois reparou no homem com um boné de basebol e óculos
escuros que os observava junto à entrada do restaurante vizinho.
Kevin sentiu-se atordoado ao observar Erin e o homem de cabelo grisalho a
beijarem-se, observando o modo como Erin se insinuava a ele. Viu como ela
acariciou o cabelo do rapaz que estava junto deles. Observou o homem
grisalho a dar-lhe uma palmada no traseiro quando as crianças não estavam a
olhar. E Erin – a sua esposa – estava a adorar a situação. A deliciar-se. A
encorajar aquilo. Traindo-o com a sua nova família, como se Kevin e o seu
casamento nunca tivessem existido.
Montaram nas suas bicicletas e começaram a pedalar, dando a volta ao
restaurante e afastando-se de Kevin. Erin pedalava ao lado do homem
grisalho. Estava de calções e sandálias, expondo as pernas, mostrando a sua
sensualidade a outra pessoa.
Kevin seguiu-os. O cabelo dela era louro e comprido, esvoaçante... Mas, a
seguir, ele pestanejou e ele estava de novo curto e castanho. Fazendo de conta
que não era Erin a passear de bicicleta com a sua nova família, a beijar outro
homem, a sorrir, a sorrir despreocupada. Aquilo não era real, disse a si
mesmo. Não passava de um sonho. De um pesadelo. Do outro lado da rua, no
ancoradouro, os barcos atracados balançavam sobre a água enquanto as
bicicletas os deixavam para trás.
Dobrou a esquina. Eles iam a pedalar e Kevin seguia a pé, mas iam devagar
para que a miúda conseguisse acompanhá-los. Ele aproximou-se e ficou
suficientemente perto para ouvir o riso de Erin, numa demonstração de
felicidade. Levou a mão à cintura e pegou na Glock, mas a seguir colocou-a
dentro da camisa, pressionando-a contra a pele. Tirou o boné de basebol e
usou-o para esconder a arma das pessoas que passavam por ele.
Os seus pensamentos ricocheteavam como bolas de snooker numa partida
disputada a alta velocidade, batendo umas nas outras, de um lado para o
outro, em todas as direções. Erin mentia, traía, conspirava e planeava. Fugira
e encontrara um amante. Falava e ria pelas suas costas. Sussurrava ao ouvido
do homem de cabelo grisalho, dizendo coisas sujas, sentindo as mãos daquele
homem nos seus seios, arfando. Fingindo que não era casada, ignorando tudo
o que ele fizera por ela, todos os sacrifícios, ter raspado sangue das solas dos
sapatos, Coffey e Ramirez sempre a coscuvilharem a seu respeito, as moscas
a zumbir em volta dos hambúrgueres, porque ela fugira e obrigara-o a ir
sozinha ao churrasco e não pudera dizer a Bill, o capitão, que não era apenas
mais um dos rapazes, como todos os outros. E ali estava ela, a pedalar
tranquilamente, com o cabelo curto e pintado, linda como sempre, sem pensar
sequer no seu marido. Sem nunca se importar com ele. Esquecendo-se dele e
do casamento para poder viver com o homem grisalho, acariciando o seu
peito e beijando-o com uma expressão sonhadora no rosto. Indo a parques de
diversões, andando de bicicleta. Ela provavelmente cantarolava no chuveiro
enquanto ele chorava e se lembrava do perfume que lhe comprara no Natal.
Ela não queria saber de nada daquilo, porque era egoísta e pensava que podia
deitar o casamento fora como se fosse uma caixa de piza vazia.
Inconscientemente, Kevin acelerou o passo. A multidão nas ruas fazia com
que tivessem de pedalar mais devagar e ele sabia que bastava erguer a arma e
matá-la. Levou o dedo ao gatilho e soltou a patilha de segurança, porque a
Bíblia dizia: Honrai o casamento acima de tudo, e não permitais que a cama
seja maculada, mas percebeu que, se o fizesse, também teria de matar o
homem de cabelo grisalho. Poderia matá-lo à frente de Erin. Tudo o que tinha
a fazer era premir o gatilho. Contudo, era praticamente impossível atingir
alvos em movimento àquela distância com uma Glock, e havia pessoas por
toda parte. Iriam ver a arma e gritar. Seria quase impossível disparar um tiro
certeiro. Tirou o dedo do gatilho.
– Para de atirar com a tua bicicleta para cima da tua irmã! – ordenou o
homem grisalho, mais à frente, a sua voz quase perdida na distância. Mas as
suas palavras eram reais e Kevin imaginou as coisas sujas que ele diria a
Erin. Sentiu a raiva a crescer dentro de si. E então, de repente, as crianças
viraram numa esquina e foram seguidas por Erin e pelo homem grisalho.
Kevin parou, a respirar com dificuldade e sentindo-se maldisposto.
Enquanto ela fazia a curva, ele viu-a de perfil sob a intensa luz do sol e
pensou novamente em como era linda. Erin evocava-lhe sempre uma flor
delicada, bonita e bastante refinada. Lembrou-se de a salvar de ser violada
por uns brutamontes depois de sair do casino e de como ela costumava dizer-
lhe que se sentia segura quando estava ao seu lado. Nem mesmo aquilo
bastara para impedir que o abandonasse.
Gradualmente, começou a ouvir as vozes das pessoas que passavam por
ele. Conversando sobre coisas sem importância, sem se dirigirem a qualquer
lugar importante, mas aquilo trouxe-o de volta à realidade. Começou a correr,
tentando alcançar a esquina onde eles viraram, e cada passo levou-o a sentir
que ia vomitar sob aquele sol inclemente. Tinha a palma da mão transpirada,
encharcada em redor da arma. Chegou à esquina e começou a procurá-los.
Não havia ninguém à vista. Entretanto, dois quarteirões à frente, umas
barreiras bloqueavam a rua por causa do parque de diversões. Deviam ter
virado na esquina logo antes do obstáculo. Não havia outra alternativa.
Pensou que teriam virado à direita, o único caminho para sair do centro da
cidade.
Precisava de fazer uma escolha. Persegui-los a pé e arriscar-se a ser visto,
ou voltar a correr para o carro e tentar segui-los com o veículo. Tentou pensar
como Erin e imaginou que voltariam para a casa do homem grisalho. A casa
de Erin era pequena de mais, quente de mais para os quatro, e ela preferiria ir
para um lar bonito, cheio de móveis caros, porque acreditava que merecia
uma vida assim.
Estava na hora de escolher. Segui-los a pé ou de carro. Endireitou-se,
pestanejando e tentando pensar, mas estava demasiado calor e tudo se
apresentava confuso de mais. Tinha a cabeça a latejar e a única coisa em que
conseguia pensar era em Erin a dormir com um homem grisalho. Aquela
imagem fez com que sentisse o estômago em convulsão.
Ela provavelmente vestia lingerie rendada e dançava para ele, sussurrava
palavras que o excitavam. Implorava-lhe para que a deixasse dar-lhe prazer,
para que, em troca, pudesse morar na sua casa cheia de coisas elegantes.
Tornara-se uma prostituta, a vender a alma em troca de uma vida de luxo.
Vendendo-se a troco de pérolas e caviar. Provavelmente, estaria a viver numa
mansão, depois do homem grisalho a ter levado a jantar em restaurantes
finos.
Sentiu-se enjoado ao imaginar tudo aquilo. Magoado e traído. A fúria
ajudou a clarear os seus pensamentos e percebeu que estava parado enquanto
eles se afastavam cada vez mais. O seu carro estava a alguns quarteirões de
distância, mas ele virou-se e desatou a correr. No parque de diversões, correu
rapidamente por entre as pessoas, empurrando-as para que saíssem do seu
caminho, ignorando os gritos e protestos.
– Saiam da frente! Saiam da frente! – gritou Kevin, e algumas pessoas
afastaram-se enquanto outras foram empurradas.
Chegou a um lugar onde não havia tanta gente e teve de parar para vomitar
ao lado de uma boca de incêndio. Dois adolescentes riram-se dele e Kevin
sentiu vontade de disparar sobre ambos. No entanto, depois de limpar a boca,
simplesmente sacou da arma e apontou-a aos dois, que se calaram de
imediato.
Cambaleando, sentiu como se uma estaca de metal lhe estivesse a
atravessar o cérebro. Estocada e dor, estocada e dor. Cada maldito passo que
dava traduzia-se numa estocada e dor e Erin provavelmente estaria a dizer ao
homem de cabelo grisalho as coisas que fariam na cama. Estaria a falar de
Kevin ao homem e a rir-se, sussurrando, «O Kevin nunca conseguiu dar-me
prazer como tu dás», mesmo que aquilo não fosse verdade.
Levou uma eternidade até chegar ao carro. Quando o alcançou, o veículo
estava quente como um forno. O calor açoitou-o em baforadas e o volante
parecia ferver ao toque. Maldito inferno. Erin decidiu viver no meio do
inferno. Arrancou com o carro e abriu as janelas, dando meia-volta em
direção ao parque de diversões e buzinando para afastar as pessoas que
enchiam a rua.
De novo os desvios. Barreiras. Queria passar por cima delas, desfazê-las
em pedaços, mas mesmo naquele lugar havia polícia, e seria preso. Polícias
estúpidos, gordos e preguiçosos. Polícias típicos de filmes de comédia.
Idiotas. Nenhum deles era um bom detetive, mas tinham armas e distintivos.
Kevin entrou pelas ruas laterais, para tentar retomar a direção para onde Erin
seguia. Erin e o seu amante. Os dois adúlteros, e a Bíblia dizia: Aquele que
olhar com desejo uma mulher cometeu adultério no seu coração.
Pessoas por toda a parte. A atravessar desordenadamente a rua. Obrigando-
o a parar. Debruçou-se por cima do volante, esforçando-se para ver pelo para-
brisas, até que conseguiu avistá-los, finalmente. Quatro figuras minúsculas ao
longe. Estavam logo atrás de outra barreira, seguindo na direção da rua que
levava à casa dela. Havia um polícia na esquina, outro idiota, gordo e
preguiçoso.
Ele acelerou e o carro avançou, apenas para se deter quando um homem
repentinamente lhe apareceu à frente, socando a tampa do capô. Um
campónio com cabelo curto à frente e comprido atrás, uma T-shirt com
caveiras e cheio de tatuagens. Esposa gorda e filhos sujos. Uns falhados,
todos eles.
– Olhe por onde anda! – gritou o campónio.
Mentalmente, Kevin disparou sobre todos, bang bang bang bang, mas
forçou-se a não reagir. O polícia na esquina estava a observá-lo. Bang,
pensou ele mais uma vez. Fez uma curva, acelerando. Virou à esquerda e
acelerou de novo. Mais uma curva à esquerda. Outra barreira à sua frente.
Kevin fez outra vez meia-volta, tomou a direita e depois virou à esquerda no
quarteirão seguinte.
Mais barreiras. Estava preso num labirinto, como um rato de laboratório. A
cidade conspirava contra ele enquanto Erin fugia. Engatou a marcha-atrás e
acelerou com força. Encontrou a rua onde já estivera e virou para depois
seguir até ao cruzamento seguinte. Agora, tinha de estar perto. Virou à
esquerda e viu uma fila de carros adiante, seguindo na direção que ele queria.
Virou e entrou na via, forçando o seu carro a passar entre duas camionetas.
Queria acelerar, mas revelou-se impossível. Carros e camionetas ocupavam
a estrada à sua frente, alguns com autocolantes da bandeira dos estados
confederados nos para-choques e outros com suportes para armas de fogo no
tejadilho. Campónios. As pessoas nas ruas impediam o avanço dos carros,
todas caminhando como se estes não existissem. Elas andavam ao seu lado,
movendo-se mais rápido do que ele. Pessoas gordas ainda a comer.
Provavelmente passaram o dia a comer e agora atrapalhavam o trânsito
enquanto Erin se distanciava cada vez mais. O carro dele avançou mais uns
metros e parou. Inúmeras vezes. Kevin sentiu vontade de gritar, mas havia
gente por toda parte. Se ele não tivesse cuidado, alguém acabaria por dizer
alguma coisa e o polícia gordo e preguiçoso viria investigar. Iria lembrar-se
da matrícula do carro de Kevin, uma matrícula de outro estado, e
provavelmente prendê-lo-ia de imediato, simplesmente por não viver na
cidade.
Avançou e parou, vezes sem conta. O seu progresso podia ser medido em
centímetros, até que chegou à esquina. Achou que aquele cruzamento iria
aliviar o fluxo do trânsito, mas não foi o que aconteceu. Mais à frente, Erin e
o homem de cabelo grisalho tinham desaparecido. Havia apenas uma longa
fila de carros e carrinhas à sua frente numa estrada que não levava a lugar
nenhum, mas, ao mesmo tempo, a todos os lugares. Tudo em simultâneo.
37

H avia uma dúzia de carros estacionados em frente à loja quando Katie


levou as crianças pelas escadas em direção a casa. Josh e Kristen
reclamaram durante todo o trajeto, queixando-se de que as suas pernas
estavam cansadas, mas Alex ignorou aquilo, lembrando-os periodicamente de
que estavam a chegar. Quando a estratégia deixou de funcionar, ele
simplesmente comentou que também estava a ficar cansado e que não queria
ouvir nem mais uma palavra sobre o assunto.
As reclamações terminaram quando chegaram à loja. Alex deixou que se
servissem de gelados e garrafas de Gatorade antes de subirem para casa e o
ar frio do ar condicionado, que sentiram mal a porta se abriu, revelou-se
incrivelmente refrescante. Alex levou Katie até à cozinha e ela observou-o a
molhar a cara e o pescoço na torneira do lava-louça. Na sala, as crianças já
estavam deitadas no sofá, com a televisão ligada.
– Desculpa – disse ele –, há dez minutos achei que ia morrer.
– Não disseste nada.
– É porque sou um tipo duro – disse ele, enchendo o peito de ar. Tirou dois
copos do armário e colocou cubos de gelo neles, antes de se servir com a
água que estava num jarro no frigorífico.
– Também és uma excelente atriz – disse ele, passando-lhe um dos copos. –
Parece uma sauna, lá fora.
– Não consigo acreditar que ainda está tanta gente no parque de diversões –
referiu ela, bebendo um gole.
– Sempre me questionei por que razão não trocam a data para maio ou
outubro, quando está mais fresco. De qualquer modo, parece que as pessoas
vão ao parque, independentemente da temperatura.
Katie olhou para o relógio de parede. – A que horas tens de sair?
– Daqui a uma hora, mais ou menos. Mas provavelmente regresso antes das
onze.
Cinco horas, pensou ela. – Queres que prepare alguma coisa especial para
o jantar dos miúdos?
– Eles gostam de massa. A Kristen gosta da dela com manteiga e o Josh
gosta de molho à marinara. Há um frasco de molho no frigorífico. Eles
passaram o dia a comer no parque, por isso não devem ter muita fome.
– A que horas é que se deitam?
– À hora que mandares. Sempre antes das dez, mas, às vezes, por volta das
oito. Manda-os para a cama quando achares apropriado.
Ela encostou o copo de água gelada ao rosto e deu uma olhadela à cozinha.
Até então não passara muito tempo em casa de Alex, mas, agora que ali
estava, percebia os resquícios de um toque feminino. Toques simples – as
costuras da cortina feitas com linha vermelha, os pratos e as chávenas de
porcelana expostos num armário envidraçado e os versos da Bíblia pintados
em azulejos perto do forno. A casa estava cheia de provas da vida de Alex
com outra mulher, mas, para sua surpresa, aquilo não a incomodou.
– Vou tomar um duche. Importas-te de ficar sozinha por alguns minutos? –
perguntou Alex.
– É claro que não – respondeu. – Posso bisbilhotar a cozinha e pensar no
que vou fazer para o jantar?
– A massa está naquele armário – disse ele, apontando. – Olha, quando eu
acabar, se quiseres que te leve a casa para tomares banho e trocares de roupa,
podemos fazer isso. Ou podes tomar um banho aqui mesmo. É como
preferires.
Ela fez uma pose sensual. – Isso é um convite?
Os olhos de Alex arregalaram-se e ele olhou rapidamente na direção das
crianças.
– Eu estava a brincar – esclareceu ela, a rir-se. – Tomo um duche depois de
saíres.
– Queres ir buscar uma muda de roupa antes? Caso contrário, podes pegar
numa das minhas T-shirts e numas calças de fato de treino... As calças
provavelmente vão ficar largas, mas é só ajustar o cordão na cintura.
De algum modo, a ideia de vestir as roupas dele pareceu-lhe algo
tremendamente sexy. – Não te preocupes – descansou-o –, não sou assim tão
esquisita no que toca a escolher o que vou vestir. Só vou ver um filme com os
miúdos, lembras-te?
Alex bebeu a sua água antes de pousar o copo na bancada. Inclinou-se para
a beijar e depois foi para o quarto. Quando ele saiu, Katie voltou-se para a
janela da cozinha. Fitou a estrada que passava em frente à casa, sentindo uma
ansiedade indefinível a tomar conta de si. Sentira o mesmo naquela manhã e
calculou que fosse um resquício da discussão que tivera com Alex na noite
anterior. Entretanto, deu por si pensar de novo nos Feldman. E em Kevin.
Pensara nele quando estava na roda gigante. Ao observar as pessoas, sabia
que não estava a procurar clientes habituais do restaurante. Realmente não
estava. Estava sim à procura de Kevin. Acreditando, por alguma razão
inexplicável, que ele poderia estar no meio da multidão. Pensando que ele
estaria lá.
Mas tudo não passava de uma paranoia sua. Não havia qualquer hipótese de
ele saber onde ela estava, nenhuma hipótese de saber a sua identidade. Era
impossível, garantiu a si mesma. Kevin nunca conseguiria ligá-la à filha dos
Feldman; ele nem sequer conversava com eles. Mesmo assim, por que razão
passara ela o dia todo a sentir como se alguém a estivesse a seguir, mesmo
quando saíram do parque de diversões?
Não tinha poderes paranormais e nem sequer acreditava nessas coisas. Mas
acreditava que o subconsciente tinha a capacidade de juntar peças quando o
consciente as deixava passar. No entanto, ali na cozinha de Alex, continuava
sem conseguir unir as peças, que permaneciam sem qualquer tipo de forma
definida ou ordem; e, depois de observar uma dúzia de carros a passar na
estrada em frente, virou-se finalmente para trás. Provavelmente, seriam
apenas os seus velhos medos a insistirem em aparecer.
Abanou a cabeça e pensou em Alex no chuveiro. A ideia de tomar banho
com ele fez com que sentisse uma onda de calor dentro de si. E, de qualquer
maneira, não era assim tão simples, mesmo que as crianças não estivessem
por perto. Mesmo que Alex pensasse nela como Katie, Erin ainda era casada
com Kevin. Desejou poder ser outra mulher, uma mulher que pudesse
simplesmente entregar-se nos braços do seu amado sem qualquer hesitação.
Afinal, fora Kevin a quebrar todas as regras do casamento quando levantou
os punhos para a agredir pela primeira vez. Quando Deus olhasse dentro do
seu coração, Katie sabia que Ele concordaria que o que ela estava a fazer não
era pecado. Concordaria, certo?
Ela suspirou. Alex... Era a única coisa em que conseguia pensar agora. Mais
tarde, seria a única coisa em que conseguiria pensar. Ele amava-a e desejava-
a. E, mais do que qualquer coisa, ela queria mostrar-lhe que sentia o mesmo
por ele. Queria sentir o corpo dele encostado ao seu, queria-o por inteiro, pelo
tempo que ele desejasse. Para sempre.
Katie obrigou-se a parar de se imaginar com Alex, a parar de pensar no que
iria acontecer. Abanou a cabeça para espantar aqueles pensamentos e foi para
a sala de estar, sentando-se no sofá ao lado de Josh. Eles estavam a assistir a
um programa do canal Disney que ela não conhecia. Pouco depois, olhou
para o relógio e percebeu que só tinham passado dez minutos. Parecera-lhe
uma hora.
Depois de sair do banho, Alex preparou uma sanduíche e sentou-se ao lado
dela no sofá, a comer. Cheirava a limpo e as pontas do cabelo ainda estavam
húmidas, aderindo à sua pele de uma maneira que fazia com que Katie
sentisse vontade de passar lá os seus lábios. As crianças, com os olhos
colados ao ecrã, ignoraram-nos por completo, mesmo depois de Alex ter
pousado o prato na mesa e ter começado a tocar na coxa dela com a ponta dos
dedos.
– Estás linda – sussurrou-lhe Alex ao ouvido.
– Estou horrível – ripostou, tentando ignorar a linha de fogo que lhe
queimava a pele. – Ainda nem sequer tomei banho.
Quando chegou a hora de Alex ir embora, ele beijou as crianças na sala de
estar. Ela seguiu-o até à porta. Quando a beijou para se despedir, deixou que
a mão percorresse o corpo dela, bem abaixo da linha de cintura, sentindo os
lábios macios dela nos seus. Obviamente apaixonado, obviamente desejando-
a, certificando-se de que ela percebia com que intensidade. Estava a levá-la à
loucura e parecia estar a apreciar.
– Até logo – disse ele, afastando-se.
– Conduz com cuidado – sussurrou ela. – Não te preocupes com as
crianças.
Quando ouviu os passos de Alex a descer as escadas, encostou-se à porta
para inspirar fundo, recuperando o fôlego. Meu Deus, pensou ela. Com ou
sem votos de matrimónio, com ou sem culpa, constatou que, mesmo que ele
não estivesse com disposição, ela definitivamente estaria.
Voltou a olhar para o relógio, certa de que aquelas seriam as cinco horas
mais longas da sua vida.
38

–Q ue desgraça! – não parava de repetir Kevin. – Desgraça!


Estava a conduzir há horas. Parou para comprar quatro garrafas de
vodka num supermercado. Uma delas já ia a meio e, ao volante, via tudo a
dobrar, a menos que estreitasse os olhos, fechando um deles.
Andava à procura de bicicletas. Quatro, incluindo uma com cestinhas. Na
situação em que se encontrava, era como procurar uma agulha num palheiro.
Subia por uma rua e descia por outra, tarde fora e com a noite a chegar.
Olhava de um lado para o outro. Sabia onde ela morava, sabia que, mais cedo
ou mais tarde, ela regressaria a casa. Mas, naquele preciso momento, o
homem de cabelo grisalho estava algures com Erin, a rir-se dele, dizendo-lhe
ao ouvido: «Sou muito melhor do que o Kevin, querida».
Gritou palavrões dentro do carro, enquanto socava o volante. Destravou e
travou várias vezes a patilha de segurança da arma, enquanto imaginou Erin a
beijar o homem grisalho, e o braço dele a envolver a cintura dela. Lembrou-
se do quanto ela parecera estar feliz, a achar que enganara o marido. Traindo-
o. A gemer e a murmurar debaixo do seu amante, enquanto ele ofegava.
Kevin mal conseguia ver, debatendo-se contra a visão turva apenas com um
olho. Um carro aproximou-se dele por trás à medida que percorria as ruas do
bairro, seguindo-o de perto e depois dando sinais de luzes. Ele diminuiu a
velocidade do carro e encostou, pegando na pistola. Detestava pessoas
grosseiras, daquelas que achavam que eram as donas da rua. Bang.
O entardecer transformou as ruas num labirinto de sombras, fazendo com
que fosse difícil identificar os contornos esguios das bicicletas. Quando
passou de novo pela rua de gravilha, Kevin decidiu fazer meia-volta para
mais uma visita à casa de Erin. Parou o carro mal viu a casa dela e saiu. Um
falcão voava em círculos no céu e ele ouviu as cigarras a cantar, mas, de
maneira geral, o lugar parecia deserto. Começou a encaminhar-se para a casa,
mas, ainda ao longe, viu que não havia nenhuma bicicleta encostada. Nem
nenhuma luz acesa. Mesmo assim, ainda não tinha escurecido e ele foi até à
porta das traseiras. Destrancada, tal como antes.
Ela não estava em casa e Kevin imaginou que Erin ainda não passara por lá
desde que ele lá fora, mais cedo. Se assim fosse, teria aberto as janelas,
tomado um copo de água, ou até mesmo um banho. Nada. Saiu pela porta dos
fundos, olhando para a casa do lado. Estava em péssimas condições.
Provavelmente abandonada. Isso era bom. Mesmo assim, o facto de Erin não
estar em casa significava que ela estava com o homem de cabelo grisalho,
que tinha ido até casa dele. Traindo, fingindo que não era casada.
Esquecendo-se da casa que Kevin lhe comprara.
Tinha a cabeça a latejar ao mesmo ritmo das batidas do coração, como uma
faca a apunhalá-lo sucessivamente. Punhalada. Punhalada. Punhalada. Foi-lhe
muito difícil concentrar-se enquanto fechou a porta atrás de si. Por amor de
Deus, estava mais fresco fora de casa do que no interior. Ela vivia numa
sauna, transpirando com um homem de cabelo grisalho. Eles estavam juntos
naquele preciso momento, algures, na cama, com os corpos entrelaçados.
Coffey e Ramirez estariam a rir-se daquilo, a dar palmadas nas coxas,
divertindo-se às custas do seu sofrimento. «Será que também posso ir para a
cama com ela?», diria Coffey a Ramirez. «Ah, tu não sabes? Ela dormiu com
metade da esquadra enquanto o Kevin estava a trabalhar. Toda a gente sabe»,
responderia Ramirez. Bill acenaria do seu escritório, com os documentos da
suspensão na mão. «Eu também dormi com ela, todas as terças, durante um
ano. Ela é uma fera na cama. Diz cada coisa mais porca.»
Regressou ao carro aos tropeções, com o dedo no gatilho da pistola. Eram
todos uns sacanas. Kevin odiava-os. Imaginou-se a entrar na esquadra e a
descarregar a Glock, esvaziando o carregador, para eles verem como era.
Mostrando a toda gente como era. Incluindo a Erin.
Parou e curvou-se para fora da janela, vomitando de novo. Sentiu o
estômago dorido devido às cólicas, uma sensação de que havia algo a corroê-
lo por dentro, como um animal preso dentro do seu corpo, que tentava rasgar-
lhe a carne com as garras para se libertar. Vomitou outra vez e depois
arquejou em seco. O mundo girou quando tentou levantar-se. O carro estava
perto e ele cambaleou até lá. Pegou na vodka e bebeu, tentando pensar como
Erin, mas olhou em volta e viu que estava num churrasco, a segurar num
hambúrguer coberto de moscas enquanto todos lhe apontavam o dedo e riam.

Regressou ao carro. A cadela tinha de estar em algum lado. Ela iria assistir
quando o homem grisalho morresse. Iria ver todos a morrer. A arder no
inferno, a arder, todos eles. Com cuidado, entrou no carro e arrancou. Fez
marcha-atrás e bateu numa árvore quando tentava fazer inversão de marcha.
Logo a seguir, por entre protestos, acelerou com força para sair dali, fazendo
voar a gravilha que cobria a rua.
A noite não demoraria a cair. Ela seguira naquela direção, teria de estar por
perto. Crianças daquela idade não aguentariam pedalar por tanto tempo.
Cinco ou seis quilómetros, talvez sete. Ele passara por todas as ruas daquela
zona, olhara para cada casa. Nenhuma bicicleta à vista. Poderiam estar dentro
de alguma garagem ou estacionadas nalgum quintal. Ele esperaria e ela, a
dada altura, acabaria por voltar para casa. Naquela noite. Amanhã. Amanhã à
noite. Enfiaria a arma na boca de Erin, apontaria para os seus seios. «Diz-me
quem é ele», exigiria Kevin. «Só quero conversar com ele.» Encontraria o
homem grisalho para lhe mostrar o que acontece aos homens que dormem
com as esposas dos outros.
Sentiu-se como se já não dormisse nem comesse há semanas. Não
conseguia entender porque é que estava escuro e começou a imaginar o que
estaria a acontecer. Não se lembrava exatamente de quando ali chegara.
Lembrou-se de ver Erin, lembrou-se de tentar segui-la e de conduzir, mas não
tinha a certeza sequer de onde estava.
Uma loja apareceu à sua direita, um lugar parecido com uma casa com um
alpendre em frente. «Gasolina e comida», dizia uma placa. Lembrava-se
daquele lugar, mas não sabia há quanto tempo lá estivera. Diminuiu
involuntariamente a velocidade do carro. Precisava de comer, precisava de
dormir. Precisava de encontrar um lugar para passar a noite. Sentiu o
estômago a revirar-se. Pegou na garrafa, colocou o gargalo na boca e engoliu
o líquido, sentindo a garganta a queimar, sentindo o alívio que a vodka lhe
trazia. Mas, assim que largou a garrafa, o seu estômago revirou-se em mais
um espasmo.
Entrou no estacionamento, esforçando-se por não vomitar a bebida,
sentindo a boca a encher-se de saliva. O tempo estava a esgotar-se. Pisou com
força nos travões e o carro derrapou antes de parar em frente à loja. Desceu
de um salto. Foi até à frente do carro e vomitou na escuridão. O corpo tremia,
as pernas estavam bambas. O estômago estava a ponto de lhe sair pela boca.
O fígado também. Tudo o que tinha dentro de si. Percebeu que, de algum
modo, ainda estava com a garrafa nas mãos, não a largara. Respirou fundo e
bebeu, usando a vodka para limpar o sabor amargo que tinha na boca,
engolindo depois o líquido. Terminou mais uma garrafa.
E precisamente ali, como se estivesse no meio de um sonho, viu quatro
bicicletas encostadas lado a lado, nas sombras escuras atrás da casa.
39

K atie obrigou as crianças a tomarem banho antes de vestirem o pijama.


Depois, ela própria entrou no chuveiro, permanecendo sob os jatos de
água e desfrutando da sensação deliciosa do champô e do sabonete a limpar-
lhe o sal do corpo depois de um dia ao sol.
Preparou a massa das crianças e, depois do jantar, estudaram a coleção de
DVD, tentando encontrar um filme que os dois quisessem ver, até que
finalmente concordaram em ver À Procura de Nemo. Sentou-se entre Josh e
Kristen no sofá, com uma taça de pipocas no colo e as pequenas mãos deles a
irem lá automaticamente, de ambos os lados. Trazia vestidas umas calças de
fato de treino confortáveis que Alex deixara em cima da cama e uma T-shirt
velha da equipa de futebol americano Carolina Panthers. Estava sentada com
as pernas cruzadas no sofá enquanto assistiam ao filme, sentindo-se relaxada
pela primeira vez naquele dia.
No exterior, o céu tingia-se de várias tonalidades diferentes, quase como
num espetáculo de fogo de artifício. As cores vibrantes do arco-íris
esmaeceram em tons pastel antes de finalmente darem lugar ao azul-
acinzentado do crepúsculo e ao azul-índigo da noite. As estrelas começaram a
tremeluzir no céu enquanto as últimas ondas de calor subiam do chão.
Com o decorrer do filme, Kristen começou a bocejar, mas sempre que a
personagem Dory aparecia no ecrã, a menina dizia: «Ela é a minha preferida,
mas não me lembro porquê!» Do outro lado do sofá, Josh esforçava-se por se
manter desperto. Quando o filme acabou e Katie se inclinou para desligar o
DVD, Josh levantou a cabeça e apoiou-a no sofá. Como era grande de mais,
ela não conseguiu levá-lo ao colo, pelo que lhe tocou no ombro, dizendo-lhe
que era hora de ir para a cama. Ele resmungou e reclamou antes de se sentar.
Bocejou e levantou-se e, com Katie ao seu lado, cambaleou até ao quarto.
Deitou-se sem reclamar e ela deu-lhe um beijo de boa-noite. Sem saber se ele
preferia dormir com o candeeiro ligado, acendeu a luz do corredor e deixou a
porta entreaberta.
Tratou de Kristen a seguir. Ela pediu a Katie que se deitasse ao seu lado
por alguns minutos. Esta assim fez, olhando para o teto, sentindo o calor e o
cansaço do dia a começar a sugar-lhe a energia. A menina adormeceu de
imediato e Katie teve de esforçar-se para conseguir manter-se acordada antes
de sair do quarto em bicos de pés.
Depois, aproveitou para limpar o que sobrara do jantar e esvaziou a taça de
pipocas. Olhando pela sala de estar, reparou nas provas da presença das
crianças por toda a parte: uma pilha de puzzles numa estante, um cesto de
brinquedos no canto da sala e sofás revestidos em couro, admiravelmente à
prova de derramamento de líquidos. Observou também a decoração da
divisão: um relógio antigo, que precisava que alguém lhe desse corda todos
os dias, um conjunto antigo de enciclopédias numa estante ao lado do sofá,
uma jarra de cristal sobre a mesa ao lado da janela. Nas paredes, fotografias a
preto e branco de antigos celeiros usados para armazenar tabaco. Eram uma
coisa típica do Sul dos Estados Unidos e ela lembrava-se de ter visto várias
daquelas paisagens rústicas ao viajar pela Carolina do Norte.
Havia também vestígios da vida caótica de Alex: uma mancha vermelha no
tapete em frente ao sofá, marcas e ranhuras no chão de madeira, poeira
acumulada nos rodapés. Mesmo assim, ao observar os detalhes da casa, não
conseguiu deixar de sorrir, porque todas aquelas coisas refletiam a pessoa que
Alex era. Um pai solteiro, a dar o seu melhor para manter uma casa
organizada, mesmo que não conseguisse fazer tudo com perfeição. A casa era
um espelho da vida dele e ela gostava daquela sensação tranquila e
confortável.
Katie apagou as luzes e deixou-se cair no sofá. Pegou no telecomando e
começou a procurar algo interessante nos canais da TV por cabo, algo que
não exigisse muita concentração. Já eram quase dez horas e Alex ainda
levaria uma hora a chegar. Deitou-se no sofá e começou a ver um programa
no canal Discovery, um programa sobre vulcões. Apercebeu-se de um reflexo
no ecrã da televisão e esticou-se para desligar o candeeiro na mesinha de
canto, deixando a sala mais escura. Melhor assim.
Viu alguns minutos do programa, quase sem notar que, sempre que piscava
os olhos, estes fechavam-se por uma fração de segundo mais longa do que a
anterior. A sua respiração ficou mais lenta e ela começou a afundar-se entre
as almofadas. As imagens começaram a correr pela sua mente. Incoerentes a
princípio. Imagens das diversões do parque, a vista do alto da roda gigante.
Pessoas em grupos aleatórios, jovens e velhos, adolescentes e casais.
Famílias. E, algures ao longe, um homem de óculos escuros e boné de
basebol a caminhar por entre a multidão, movendo-se com um objetivo em
mente antes que ela o perdesse de vista. Katie reconheceu alguns aspetos: o
modo de caminhar, o contorno do queixo, a maneira como movia os braços.
Estava quase a dormir agora, a descontrair-se e a recordar. As imagens
começaram a ficar desfocadas, o som da televisão mais baixo. Descontraiu-se
ainda mais e sua mente insistiu em recordar-se da vista do alto da roda
gigante. E, é claro, do homem que avistara, um homem que se movia como
um caçador na floresta, à procura da sua presa.
40

K evin olhou fixamente para as janelas do primeiro andar, enquanto bebia


lentamente da sua garrafa de vodka, a terceira naquele dia. Ninguém
olhou para ele mais do que uma vez. Estava em pé no ancoradouro atrás da
casa; trocara de roupa e trazia vestida uma camisa preta de manga comprida e
uns jeans escuros. Apenas o seu rosto era visível, mas ele estava parado sob a
sombra de um cipreste, escondido atrás do tronco. A observar as janelas, a
observar as luzes, à procura de algum sinal de Erin.
Durante um longo período, nada aconteceu. Ele bebeu, determinado a
esvaziar a garrafa. Estavam sempre a entrar e a sair pessoas da loja,
recorrendo frequentemente ao cartão de crédito para pagar o combustível.
Muito movimento, mesmo ali, no meio do nada. Dirigiu-se a uma das paredes
laterais da loja, olhando para cima, para as janelas. Reconheceu o brilho azul
e oscilante de um aparelho de televisão. Os quatro, a ver TV, comportando-se
como uma família feliz. Ou talvez as crianças já estivessem a dormir,
cansadas depois do passeio no parque de diversões. Talvez na sala estivesse
apenas Erin e o homem grisalho, a rebolar no sofá, a trocar beijos e carícias
enquanto Meg Ryan ou Julia Roberts se apaixonavam por alguém no ecrã.
Tudo lhe doía. Ele estava cansado e o estômago não parava de se revirar.
Poderia ter subido as escadas e arrombado a porta com um pontapé, poderia
já ter matado os dois uma dúzia de vezes, e o seu desejo era pôr fim àquilo,
mas havia pessoas na loja. Carros no estacionamento. Empurrara o seu carro
até um lugar sob a árvore nas traseiras da loja, para que não fosse visto por
quem passasse por ali. Queria apontar a Glock e premir o gatilho, queria
observá-los enquanto morriam, mas também queria deitar-se e dormir. Nunca
se sentira tão cansado na vida e, quando acordasse, queria encontrar Erin ao
seu lado, sonhando que ela nunca o abandonara.
Algum tempo depois, viu a silhueta dela na janela, viu-a a sorrir enquanto
se virava e soube que ela estava a pensar no homem grisalho. A pensar em
sexo, e a Bíblia dizia: Aqueles que se entregarem à fornicação e aos prazeres
da carne serão punidos de maneira exemplar, sofrendo a vingança do fogo
eterno.
Ele era um anjo do Senhor. Erin pecara, e a Bíblia dizia: Que ela seja
atormentada com o fogo e a luz sagrada na presença dos anjos.
Na Bíblia o fogo marcava sempre presença, pois purificava e condenava, e
Kevin entendia aquilo. O fogo era poderoso, a arma dos anjos. Ele bebeu os
últimos goles de vodka que restavam na garrafa e chutou-a para debaixo de
uns arbustos. Um carro estacionou ao lado da bomba de gasolina e um
homem saiu do veículo. Inseriu o cartão de crédito na bomba e começou a
abastecer o carro. A placa ao lado da bomba informava que era proibido
fumar, pois a gasolina era inflamável. Dentro da loja havia combustível de
isqueiro para acender o carvão. Kevin lembrava-se do homem que estava à
sua frente na fila da caixa, com uma lata de combustível na mão.
Fogo.

Alex remexeu-se no assento do carro e ajustou as mãos ao volante,


tentando encontrar uma posição confortável. Joyce e a filha estavam no
banco de trás e não pararam de falar desde o momento em que entraram no
carro.
O relógio no painel mostrava que estava a ficar tarde. As crianças já
estariam na cama, ou a prepararem-se para dormir, e ele sentiu-se aliviado ao
pensar nisso. Já bebera uma garrafa de água, mas ainda tinha sede e estava a
pensar se deveria parar novamente. Tinha a certeza de que Joyce e a filha não
se importariam, mas não queria parar. Queria apenas voltar rapidamente para
casa.
Ao conduzir, sentiu a sua mente a vaguear. Pensou em Josh e Kristen,
pensou em Katie e relembrou alguns dos momentos que passara com Carly.
Tentou imaginar o que Carly diria a respeito de Katie e se gostaria que a sua
carta lhe fosse entregue. Lembrou-se do dia em que vira Katie a ajudar
Kristen a vestir a boneca e lembrou-se de como estava bonita na noite em que
lhe preparara o jantar. Saber que ela o esperava em sua casa fez com que
sentisse o desejo de pisar fundo no acelerador.
Do outro lado da estrada, pontos brilhantes de luz apareciam no horizonte,
ficando maiores, os faróis dos carros que seguiam em sentido contrário.
Maiores e mais brilhantes, até que passavam por ele. No espelho retrovisor,
luzes vermelhas afastavam-se até desaparecerem ao longe.
Um clarão brilhou a sul, fazendo com que o céu se iluminasse por alguns
instantes. Passou por uma casa rural à direita da estrada, com as luzes acesas
no andar térreo. Ultrapassou um camião com matrícula do estado da Virgínia
e rodou os ombros, tentando aliviar a fadiga que sentia. Passou pela placa que
indicava os quilómetros em falta até chegar a Wilmington e suspirou. Ainda
tinha um longo caminho pela frente.

As pálpebras de Katie agitavam-se enquanto sonhava. O seu subconsciente


estava a trabalhar ferozmente. Pedaços, partes e fragmentos a tentarem ligar-
se uns aos outros. O sonho acabou. Alguns minutos depois, ela levantou os
joelhos e virou-se, deitando-se de lado, quase despertando. A sua respiração
voltou a ficar mais lenta.

Às dez da noite, o estacionamento estava praticamente vazio. Faltava


pouco para que a loja fechasse e Kevin deu a volta à casa, indo até à porta da
loja, estreitando os olhos quando a luz à entrada lhe iluminou o rosto. Estava
um homem de avental na caixa. Kevin lembrava-se vagamente dele, mas não
sabia de onde. O avental do homem era branco, com o nome «Roger» escrito
do lado direito. Kevin passou pela caixa registadora, esforçando-se por
balbuciar as palavras. – Fiquei sem gasolina na estrada.
– Os bidões de gasolina estão junto à parede do fundo – respondeu Roger,
sem levantar os olhos. Quando finalmente o fez, pestanejou. – Sente-se bem?
– Estou apenas cansado – respondeu Kevin, já no corredor, tentando não
atrair as atenções, mas ciente de que o homem o observava. A Glock estava
na sua cintura e tudo o que Roger tinha de fazer era meter-se na sua própria
vida. Ao fundo da loja, Kevin viu três bidões de plástico de 18 litros e pegou
em dois deles. A seguir, levou-os à caixa e deixou dinheiro sobre o balcão.
– Pago depois de encher – disse ele.
No exterior, encheu um dos bidões com gasolina, observando enquanto os
números giravam na bomba. Encheu o segundo e voltou para dentro da loja.
Roger fitou-o. Hesitou na hora de lhe entregar o troco.
– É muita gasolina para carregar sozinho.
– A Erin vai precisar.
– Quem é a Erin?
Kevin piscou os olhos. – Posso pagar a maldita gasolina ou não?
– Tem a certeza de que está em condições de conduzir?
– Hoje senti-me mal – resmungou Kevin. – Passei o dia a vomitar.
Não teve a certeza se Roger acreditou nele. Decorrido um momento, Roger
pegou no dinheiro e entregou-lhe o troco. Kevin deixara os bidões junto às
bombas de gasolina e foi lá buscá-los. Pareceu-lhe que estava a levantar dois
bidões de chumbo. Fez força e sentiu o estômago a revirar-se, com uma dor a
pulsar entre as orelhas. Rumou à estrada, deixando para trás as luzes da loja.
No escuro, escondeu os dois bidões no meio da erva na beira da estrada.
Depois, deu a volta e dirigiu-se às traseiras da loja, onde esperou que Roger a
fechasse, que as luzes se apagassem, que todos estivessem a dormir no andar
de cima. Pegou noutra garrafa de vodka que estava no carro e bebeu uma
golada.

Em Wilmington, Alex começou a animar-se, ao tomar consciência de que


estava a chegar a casa. Não demoraria muito, talvez uma meia hora até entrar
em Southport. Levaria mais alguns minutos para deixar Joyce e a filha em
casa e depois poderia finalmente descansar.
Imaginou se encontraria Katie à espera dele na sala de estar ou se a
encontraria na sua cama, como ela insinuara.
Era o tipo de coisas que Carly costumava fazer. Poderiam estar a falar
sobre a loja ou sobre a possibilidade de os pais dela estarem a gostar de viver
na Flórida, quando, sem qualquer motivo aparente, ela diria que se sentia
aborrecida e perguntaria se ele queria ir para o quarto para se divertir um
pouco.
Olhou mais uma vez para o relógio. Dez e quinze. Katie estava à espera.
Ao lado da estrada, Alex vislumbrou seis ou sete veados paralisados sobre a
relva, com os olhos a refletir a luz dos faróis, a brilhar como se algo
sobrenatural estivesse a acontecer. Como se estivessem amedrontados.

Kevin viu as luzes fluorescentes instaladas sobre as bombas de gasolina a


apagarem-se. As luzes da loja apagaram-se logo a seguir. Do lugar onde
estava escondido, avistou Roger a trancar a porta. Este deu um puxão na
maçaneta, certificando-se de que estava fechada em segurança e depois virou-
se. Encaminhou-se para uma pick-up castanha estacionada no canto mais
distante do estacionamento e entrou no veículo.
O motor ligou-se com um rangido. Uma das correias estava solta. Roger
aumentou a rotação do motor, acendeu os faróis e engatou primeira. Deu a
volta para entrar na estrada e dirigiu-se ao centro da cidade.
Kevin esperou cinco minutos, para ter a certeza de que Roger não daria
meia-volta. A estrada em frente à loja ficou completamente silenciosa.
Nenhum carro ou carrinha vindo de qualquer direção. Correu até aos arbustos
onde escondera os bidões. Observou de novo a estrada. Levou um dos bidões
até às traseiras da loja. Fez o mesmo com o segundo bidão, colocando-os ao
lado de latas de lixo a abarrotar com comida apodrecida. O mau cheiro era
insuportável.
No andar de cima, a televisão continuava a banhar uma das janelas com
uma luz azul. Não havia outras luzes acesas na casa e ele sabia que os dois
estavam nus. Sentiu a raiva crescer dentro de si. Agora, pensou. Quando
estendeu a mão para pegar nos bidões de gasolina, viu que havia quatro ao
seu lado. Fechou um dos olhos e passaram a ser de novo apenas dois.
Tropeçou ao dar um passo e quase caiu para a frente, desequilibrando-se e
agitando os braços enquanto tentava agarrar-se ao canto da parede. Não
conseguiu e tombou no chão, batendo com a cabeça no cascalho. Viu estrelas
e faíscas, sentiu uma dor dilacerante. Tornou-se difícil respirar. Tentou
levantar-se e caiu outra vez. Rebolou no chão, deitado, e sentiu o cascalho
nas costas. Olhou fixamente para as estrelas.
Não estava bêbedo, porque nunca ficava bêbedo, mas havia algo de errado.
Luzes cintilantes giravam e giravam, presas num redemoinho cada vez mais
veloz. Fechou os olhos com força, mas intensificou-se ainda mais a sensação
de que tudo estava a girar. Rebolou no chão e ficou deitado de lado,
vomitando no cascalho. Alguém lhe terá dado algum tipo de droga, porque
passara o dia inteiro sem beber praticamente nada e nunca na sua vida se
sentira tão mal.
Tateou às cegas, para tentar encontrar o caixote do lixo. Agarrou-se à
tampa e tentou usá-la para se equilibrar, mas puxou com muita força. A
tampa soltou-se e um saco de lixo desprendeu-se, caindo no chão com um
barulho ensurdecedor.
No andar de cima, Katie acordou agitada, ouvindo o som de alguma coisa a
cair com estrondo. Estava perdida no seu sonho e demorou um instante até
que os seus olhos se abrissem. Um pouco atordoada, tentou prestar atenção
ao ruído, mas não entendeu por que o fez, pois não tinha a certeza se havia
sonhado com o barulho ou não. Mas não se passava nada. Voltou a deitar-se,
permitindo-se adormecer outra vez e o sonho prosseguiu do ponto onde tinha
ficado. Ela estava no parque de diversões, na roda gigante, mas já não era
Kristen quem estava sentada ao seu lado.
Era Jo.

Kevin conseguiu finalmente levantar-se sem voltar a cair. Não conseguia


perceber o que se estava a passar consigo. Concentrou-se e tentou recuperar o
fôlego, inspirando, expirando, inspirando, expirando. Viu os bidões de
gasolina e avançou na direção deles, quase caindo novamente durante o curto
trajeto.
Mas não caiu. Pegou num bidão e depois andou em passos lentos e
trôpegos na direção das escadas na parte de trás da casa. Estendeu o braço
para se segurar ao corrimão, mas a sua mão não tocou em nada. Tentou mais
uma vez. Finalmente, sentiu a mão a pegar em algo sólido. Puxou o bidão de
gasolina escada acima, em direção à porta. Parecia que estava a escalar uma
montanha, levando um peso de uma tonelada nas mãos. Por fim, alcançou o
último degrau, arfando, e agachou-se para remover a tampa. O fluxo de
sangue encheu-lhe a cabeça, deixando-o estonteado, mas apoiou-se no bidão
para não cair de novo. Levou o seu tempo até conseguir abrir a tampa, porque
esta teimava em escorregar-lhe por entre os dedos.
Quando o abriu, pegou no recipiente e encharcou o patamar que dava para
a entrada da casa, lançando a gasolina contra a porta. A cada movimento, o
bidão ficava mais leve, com a gasolina a espalhar-se em arcos, encharcando a
parede. Estava a ficar mais fácil. Despejou o líquido de um lado para o outro,
tentando atingir os dois lados da estrutura. Começou a descer as escadas,
molhando tudo o que estava à sua volta. O cheiro da gasolina deixava-o
enjoado, mas não parou.
Não restava muita gasolina no bidão quando ele chegou ao chão, e
aproveitou para descansar. Estava a respirar com dificuldade, o vapor da
gasolina de novo a provocar-lhe náuseas, mas começou a mover-se
novamente, com um propósito. Determinado. Atirou o bidão vazio para longe
e pegou no outro. Não conseguiu atirar a gasolina para as partes mais altas da
parede, mas fez o que era possível. Encharcou um lado e depois o outro.
Acima dele, a janela ainda brilhava com a luz proveniente da televisão, mas
estava tudo em silêncio.
Kevin despejou todo o conteúdo do bidão do outro lado da casa e foi aí que
percebeu que não tinha mais combustível para a parte da frente. Olhou para a
estrada; não vinha nenhum carro, nenhum movimento em ambas as direções.
No andar de cima, Erin e o homem de cabelo grisalho estavam nus, a rirem
dele. Erin fugiu de casa e ele quase a encontrou em Filadélfia, mas naquela
época ela dizia chamar-se Erica, não Erin, e agora fingia que o seu nome era
Katie.
Ficou parado em frente à loja, a pensar nas janelas. Talvez houvesse algum
alarme, talvez não. Não quis saber. Precisava de combustível de isqueiro, de
óleo para motor, terebentina, qualquer coisa que queimasse com facilidade.
Quando partisse a janela, não disporia de muito tempo.
Golpeou a janela com o cotovelo, estilhaçando o vidro, mas não ouviu
nenhum alarme. Retirou os pedaços de vidro e praticamente nem chegou a
sentir os dedos cortados e a sangrar. Mais estilhaços de vidro e algumas
partes da janela começaram a desfazer-se. Achou que a abertura era
suficientemente grande para a poder atravessar, mas o braço ficou preso
numa ponta longa e afiada. Puxou o braço e a carne rasgou-se. Mas não podia
parar. O sangue escorreu, misturando-se com o dos cortes nos dedos.
Os frigoríficos ao fundo da loja ainda estavam iluminados e percorreu o
corredor, imaginando se as caixas de cereais queimariam com facilidade ou
se os pacotes de pão seriam inflamáveis. Ou DVD. Encontrou o carvão e o
combustível de isqueiro – apenas duas latas, não havia muito. Não era
suficiente. Piscou os olhos, olhando em volta e tentando encontrar alguma
outra coisa. Viu a churrasqueira e a grelha de hambúrgueres do outro lado da
loja.
Gás natural. Propano.
Aproximou-se da zona de refeições e parou em frente à grelha. Acendeu
um dos bicos de gás e depois outro. Provavelmente, haveria algures uma
válvula, mas não sabia onde estava e não tinha tempo para a procurar, porque
poderia aparecer alguém e Coffey e Ramirez estavam a falar dele, rindo-se e
perguntando se tinha comido o bolo de carne de caranguejo em
Provincetown.
O avental de Roger estava pousado numa prateleira e Kevin lançou-o para
as chamas. Abriu a lata de combustível de isqueiro que tinha na mão e
espalhou o conteúdo nas beiras da grelha. O sangue deixou a lata
escorregadia e ele questionou-se de onde viria todo aquele sangue. Saltou
para cima do balcão e borrifou um pouco do líquido no teto antes de voltar
para o chão. Fez um trilho de líquido na frente da loja e percebeu que o
avental tinha começado a arder. Esvaziou a lata e deitou-a ao chão. Abriu a
segunda lata e apertou-a, lançando esguichos de combustível de isqueiro na
direção do teto. As chamas do avental começaram a espalhar-se pelo teto e
pelas paredes. Foi até à caixa registadora, procurou um isqueiro e achou um
monte deles numa caixa de plástico ao lado dos cigarros. Apertou a lata de
combustível e espalhou o líquido sobre a caixa registadora e sobre a pequena
mesa que havia atrás dela. Esvaziou a lata e cambaleou em direção à janela
que estilhaçara uns minutos antes. Atravessou-a para sair, pisando os cacos,
ouvindo-os a partir sob os seus pés. Ao lado da casa, acendeu o isqueiro e
encostou-o à parede encharcada em gasolina, observando a madeira a pegar
fogo. Nas traseiras, ateou fogo aos degraus da escada e as chamas elevaram-
se rapidamente, alcançando a porta e espalhando-se pelo telhado. A seguir, a
outra parede lateral.
O fogo ergueu-se por toda a parte. O exterior da casa tremeluzia com as
chamas. Erin era uma pecadora, o seu amante era um pecador, e a Bíblia
dizia: Sofrerão o castigo da destruição eterna.
Ele afastou-se, observando o fogo a começar a consumir a casa, esfregou o
rosto e deixou um rasto de sangue. Banhado pela luz alaranjada das chamas,
Kevin parecia um monstro.

No seu sonho, Jo não estava a sorrir ao lado de Katie na roda gigante.


Parecia procurar algo ou alguém na multidão mais abaixo, com uma
expressão de grande concentração.
Ali, disse ela, apontando. Logo ali. Consegues vê-lo?
O que é que estás aqui a fazer? Onde é que está a Kristen?
Ela está a dormir. Mas tens de te lembrar, e já.
Katie olhou, mas havia demasiada gente, demasiado movimento.
Onde?, perguntou ela. Não consigo ver nada.
Ele está aqui, informou Jo.
Quem?
Tu sabes quem.
No seu sonho, a roda gigante parou repentinamente de girar, com um ruído
alto e estridente, como o de um vidro a estilhaçar-se, e pareceu assinalar uma
mudança. As cores do parque de diversões começaram a esmorecer e o
cenário mais abaixo a dissolver-se numa névoa que não estava ali antes.
Como se o mundo estivesse lentamente a ser apagado, e, de repente, ficou
tudo escuro. Ela foi cercada por uma escuridão impenetrável, interrompida
apenas por algumas centelhas estranhas na periferia do seu campo de visão e
pelo som de uma pessoa a falar. Katie ouviu a voz de Jo, quase como um
sussurro.
Estás sentir o cheiro?
Katie inspirou o ar, ainda perdida no meio da escuridão. Abriu os olhos.
Estranhamente, sentiu-os a arder e tentou olhar em volta para ver o que se
passava. A televisão ainda estava ligada, e percebeu então que adormecera no
sofá. As recordações do sonho já estavam a dissolver-se, mas ouviu as
palavras de Jo claramente dentro da sua cabeça:
Estás a sentir o cheiro?
Katie respirou fundo à medida que moveu o corpo para se sentar no sofá e
imediatamente começou a tossir. Levou apenas um instante a perceber que a
sala estava cheia de fumo. Levantou-se do sofá num pulo.
Não há fumo sem fogo e já era capaz de ver as chamas do lado de fora da
janela, a dançarem e a contorcerem-se em tons de laranja. A porta estava a
arder e o fumo entrava pela cozinha em nuvens espessas. Ouviu um estrondo,
um som parecido com o de um comboio, e o barulho de madeira a crepitar e a
rachar, e a sua mente absorveu todas aquelas informações ao mesmo tempo.
Oh, meu Deus. As crianças.
Foi a correr na direção do corredor, amedrontada ao ver o fumo que saía
dos dois quartos em grossas nuvens negras. A primeira porta era a do quarto
de Josh, e Katie correu para o seu interior, agitando os braços para afastar o
fumo.
– Josh! Acorda! A casa está a arder! Precisamos de sair daqui!
Ele estava prestes a reclamar, mas ela puxou-o para que se levantasse,
impedindo-o de falar. – Rápido! – gritou.
Josh começou imediatamente a tossir, com o corpo curvado enquanto ela o
arrastava para fora do quarto. O corredor era uma muralha impenetrável de
fumo, mas mesmo assim Katie correu para a frente, puxando Josh logo atrás
de si. Apalpando a parede, encontrou a ombreira da porta do quarto de
Kristen, do outro lado do corredor.
Não estava tão mal quanto o quarto de Josh, mas ela sentiu o calor enorme
que se formava atrás deles. Josh continuava a tossir, respirando com
dificuldade, lutando para se aguentar em pé e ela sabia que não poderia soltar
a mão do rapazinho. Correu para a cama de Kristen e agitou-a, puxando-a
para fora das cobertas com a outra mão.
O rugido do fogo era tão intenso que Katie mal conseguia ouvir o som da
sua própria voz. Ao tentar retirar as crianças da casa, meio a carregá-las e
meio a arrastá-las, viu um brilho alaranjado, quase invisível por entre o fumo,
na entrada do corredor. As chamas estavam a tomar as paredes e o teto e
avançavam na direção deles. Katie não tinha tempo para pensar, apenas para
agir. Virou-se e empurrou as crianças de volta pelo corredor, em direção ao
quarto de Alex, onde não havia tanto fumo.
Correu para o quarto, acendendo a luz. Ainda funcionava. A cama de Alex
ficava encostada a uma das paredes e havia uma cómoda na parede oposta.
Logo em frente havia uma cadeira de baloiço e janelas que, por sorte, ainda
não haviam sido tocadas pelo fogo. Fechou a porta com força atrás de si.
Assolada pelos espasmos da tosse, avançou tropegamente, arrastando Josh
e Kristen. Ambos choravam no meio de fortes acessos de tosse. Ela tentou
libertar-se deles para abrir a janela do quarto, mas Kristen e Josh estavam
agarrados a ela.
– Eu preciso de abrir a janela! – gritou Katie, sacudindo-se para se libertar.
– É a única saída!
Em pânico, Josh e Kristen não entendiam o que ela dizia, mas Katie não
tinha tempo para explicar. Desesperada, puxou com força o puxador da janela
à moda antiga e tentou abrir o vidro. Este não se moveu. Olhando mais de
perto, Katie percebeu que o puxador tinha uma camada de tinta que o
impedia de se abrir. Alguém aplicara aquela camada de tinta há já vários
anos. Não sabia o que fazer, mas a imagem de duas crianças a olharem
diretamente nos seus olhos, tomadas pelo terror, clareou as suas ideias. Olhou
ao redor, procurando desesperadamente algo que pudesse servir, até que
finalmente pegou na cadeira de baloiço.
Era pesada, mas, de algum modo, Katie conseguiu levantá-la acima dos
ombros e lançá-la com toda a sua força na direção da janela. O vidro estalou,
mas não partiu. Ela tentou mais uma vez, chorando, com um último esforço
impulsionado pela adrenalina e pelo medo e, desta vez, a cadeira de baloiço
atravessou o vidro e aterrou no toldo que havia mais abaixo. Movendo-se
rapidamente, Katie correu até à cama e arrancou o edredão que a cobria.
Enrolou-o em volta de Josh e Kristen e começou a empurrá-los na direção da
janela.
Um forte ruído de vigas a rachar ecoou atrás dela, ao mesmo tempo que
uma parte da parede se cobriu de chamas, com o fogo a atingir e a espalhar-se
pelo teto. Katie virou-se em pânico, parando por um momento ao reparar no
retrato pendurado na parede. Olhou fixamente para a fotografia, percebendo
de imediato que aquela era a esposa de Alex, pois não poderia ser mais
ninguém. Pestanejou, pensando tratar-se de uma ilusão, uma distorção criada
pelo fumo e pelo medo. Deu um passo involuntário na direção do rosto que
lhe era estranhamente familiar quando ouviu um estrondo logo acima da
cabeça. O teto começava a ceder.
Girando sobre os calcanhares, forçou o corpo contra a janela, com os
braços ao redor das crianças e rezando para que o edredão os protegesse dos
cacos. A queda pareceu durar uma eternidade. Katie tentou girar enquanto
caíam, de modo a que as crianças ficassem por cima dela. As suas costas
atingiram o toldo com um baque surdo. Não foi uma queda muito grande,
talvez cerca de um metro e meio; mesmo assim, o impacto tirou-lhe o fôlego
antes de a dor a atingir em ondas.
Josh e Kristen estavam a soluçar de medo, chorando e tossindo. Mas
estavam vivos. Ela piscou os olhos, tentando não desmaiar, certa de que
fraturara a coluna. Mas percebeu que isso não acontecera; mexeu uma perna e
depois a outra. Abanou a cabeça para clarear a visão. Josh e Kristen
agitavam-se por cima dela, tentando livrar-se do edredão. Mais acima,
línguas de fogo começaram a sair pela janela partida do quarto. Já havia
chamas por toda a parte, cobrindo todas as superfícies da casa e ela sabia que
lhes restavam apenas alguns segundos de vida. A menos que conseguisse
encontrar forças para se mover.
Depois de deixar Joyce e a filha em casa, Alex apercebeu-se do brilho
alaranjado no céu, logo acima do contorno enegrecido das copas das árvores
nos arredores da cidade. Não tinha visto aquilo quando entrara na cidade e
percorrera as ruas até casa de Joyce. No entanto, naquele momento, ao seguir
naquela direção, franziu as sobrancelhas. Algo dentro de si lhe dizia que
havia perigo pela frente e refletiu apenas uns segundos antes de pisar a fundo
no acelerador.

Josh e Kristen já estavam sentados quando Katie rebolou de lado. O chão


ficava a cerca de três metros do toldo, mas ela tinha de arriscar. O tempo
estava a esgotar-se. Josh continuava a chorar, mas não protestou quando
Katie explicou rapidamente o que iria acontecer a seguir. Ela pegou-lhe pelos
braços, tentando manter a voz firme.
– Vou baixar-te o mais que puder, mas depois vais ter de saltar.
Ele assentiu, aparentemente ainda em choque, e ela rapidamente se arrastou
para a beira, levando Josh consigo. O toldo já estava a balançar, com o fogo a
tomar rapidamente as suas colunas de sustentação. Josh aproximou-se da
beira, deixando as pernas suspensas por um momento, segurando-se, com
Katie a deslizar de bruços em direção a ele. Ao baixá-lo... sentiu uma dor
imensa nos braços. Pouco mais de um metro, não mais do que isso. Josh não
cairia de uma altura muito grande e provavelmente as suas pernas
absorveriam o impacto.
Ela soltou-o quando algumas vigas do telhado cederam, fazendo a casa
estremecer.
A tremer, Kristen foi a gatinhar até junto de Katie.
– Anda, querida. É a tua vez agora. Dá-me a tua mão – disse Katie, com
uma expressão urgente nos olhos.
Repetiu o procedimento com a menina, sustendo o fôlego quando a soltou.
Um momento depois, os dois estavam em pé no chão, a olharem fixamente
para ela. Estavam à espera de Katie.
– Corram! – gritou ela. – Afastem-se daqui!
As suas palavras foram engolidas por outro acesso de tosse e Katie sabia
que tinha de agir. Agarrou a beira do toldo e deixou uma das pernas a
balançar, suspensa, e depois a outra. Ficou pendurada apenas por um instante
antes de as suas mãos fraquejarem.
Embateu no chão e sentiu os joelhos a dobrarem antes do seu corpo rolar
até à entrada da loja. Sentiu uma dor atroz nas pernas, mas precisava de levar
as crianças para um lugar seguro. Dirigiu-se apressadamente até eles, dando-
lhes a mão e puxando-os para longe.
O fogo dançava pela estrutura, saltando, cuspindo chamas em direção ao
céu. As árvores mais próximas também estavam a pegar fogo, com os ramos
mais altos a brilharem como fogo de artifício. Ouviu-se um forte estrondo,
alto o suficiente para deixar os seus ouvidos a zumbir. Olhando rapidamente
por cima do ombro, viu as paredes da casa a desabarem. Seguiu-se o som
ensurdecedor de uma explosão e Katie e as crianças foram derrubadas pelo
impacto da deslocação de ar quente.
Quando os três conseguiram recuperar o fôlego e se voltaram para olhar, a
loja já se transformara num gigantesco cone de fogo. Mas eles tinham
conseguido salvar-se. Katie puxou Josh e Kristen para perto de si. Os dois
choravam baixinho. Colocou os braços em redor deles e beijou-os na cabeça.

– Agora, vocês estão bem – sussurrou ela. – Agora, estão seguros.


Foi só quando apareceu uma sombra à sua frente que Katie percebeu que
estava enganada.
Era ele, como uma miragem ameaçadora, com uma pistola empunhada.
Kevin.

No jipe, Alex pisou fundo no acelerador, ficando mais preocupado a cada


segundo que passava. Embora o fogo ainda estivesse longe para poder ter a
certeza quanto à sua localização, sentiu o estômago às voltas. Não havia
muitas habitações naquela direção. A maioria eram algumas propriedades
rurais isoladas. E, é claro, a sua loja.
Inclinou-se sobre o volante, como se aquilo pudesse forçar o carro a ganhar
velocidade. Depressa.

Katie teve dificuldade em entender o que estava a ver.


– Onde é que ele está? – perguntou Kevin, com uma voz rouca. As palavras
foram proferidas de forma atabalhoada, mas ela reconheceu aquela voz,
mesmo com o rosto dele parcialmente oculto pelas sombras. As chamas
ardiam por trás dele e o rosto estava coberto de fuligem e sangue. Também
havia manchas na camisa de algo que ela imaginou tratar-se de sangue. Na
mão, a Glock reluzia, como se tivesse sido imersa num barril de óleo.
Ele está aqui, dissera Jo no sonho de Katie.
Quem?
Tu sabes quem.
Kevin levantou a arma, apontando-a à cabeça dela. – Eu só quero conversar
com ele, Erin.
Katie levantou-se. Kristen e Josh agarraram-se a ela, com o medo
estampado nos rostos. Os olhos de Kevin tinham uma expressão animalesca e
os seus movimentos eram irregulares. Avançou um passo na direção deles,
quase perdendo o equilíbrio. A arma balançava para a frente e para trás. Sem
firmeza. Ela percebeu que ele estava pronto para os matar a todos. Já tentara
matá-los com o fogo. Mas estava bêbedo, muito bêbedo. Mais do que em
qualquer ocasião em que já tivesse bebido. Estava descontrolado, além de
qualquer possibilidade de argumentação.
Tinha de tirar as crianças dali, tinha de lhes dar uma hipótese de fuga.
– Olá, Kevin – disse ela, ronronando. Forçou-se a sorrir. – Para que é essa
arma? Vieste buscar-me? Está tudo bem contigo, querido?
Kevin piscou os olhos. Aquela voz, suave, sedutora, doce. Ele gostava
quando ela lhe falava assim e achou que estava a sonhar. Mas não era um
sonho. Erin estava bem à sua frente. Ela sorriu e avançou um passo. – Eu
amo-te, Kevin. Eu sempre soube que virias.
Ele olhou-a fixamente. Havia duas Erin à sua frente e depois apenas uma.
Kevin tinha dito às pessoas que ela estava em Manchester, a cuidar de uma
amiga doente, mas não havia nenhuma pegada na neve. As suas chamadas
foram transferidas para outro número, um rapaz fora baleado e tinha molho
de tomate na testa. E agora Erin estava ali, a dizer que o amava.
Mais perto, pensou Katie. Só mais um pouco. Ela avançou mais um passo,
empurrando as crianças para trás de si.
– Podes levar-me a casa? – A voz dela era suplicante, implorava como Erin
costumava fazer, mas o cabelo estava curto e castanho e ela estava a
aproximar-se. Ele não percebeu porque é que ela não estava amedrontada.
Queria premir o gatilho, mas amava-a. Se ao menos conseguisse fazer com
que a sua cabeça parasse de latejar...
De repente, Katie precipitou-se para a frente, desviando o cano da arma
para outra direção. A pistola disparou, com o som de um estampido violento,
mas ela continuou a avançar, agarrada ao pulso de Kevin, sem o soltar.
Kristen começou a gritar.
– Fujam! – gritou Katie por cima do ombro. – Josh, tira a Kristen daqui,
foge! Ele tem uma arma! Vão para longe e escondam-se!
O pânico na voz de Katie fez com que Josh se desse conta do perigo.
Agarrou a mão de Kristen e desatou a correr para longe. Foram em direção à
estrada, correndo para a casa de Katie. Fugindo para se salvarem.
– Sua vadia! – gritou Kevin, tentando libertar o braço.
Katie baixou a cabeça e mordeu com toda a força que tinha e Kevin soltou
um grito feroz. Tentando desenvencilhar-se do braço, atingiu a cabeça dela
com o outro punho. Instantaneamente, ela viu lampejos de luz branca a
aproximarem-se. Mordeu de novo, desta vez com os dentes a encontrarem o
polegar de Kevin, e ele gritou, largando a arma. A arma caiu ao chão com um
ruído e ele voltou a socar Katie, atingindo-a numa das maçãs do rosto,
lançando-a ao chão.
Kevin deu-lhe um pontapé nas costas e o corpo de Katie arqueou-se com a
dor. Mas ela continuou a mover-se, agora em pânico, impulsionada pela
certeza de que ele queria matar todos, incluindo as crianças. Tinha de lhes dar
tempo para fugir. Ficou de quatro e começou a gatinhar, movendo-se
rapidamente, ganhando velocidade. Finalmente, conseguiu levantar-se e
desatou a correr como uma atleta de velocidade.
Correu o mais rápido que conseguiu, forçando-se a avançar para longe, mas
sentiu o corpo de Kevin a chocar contra o seu por trás e deu por si novamente
deitada no chão, sem fôlego. Ele agarrou-a pelos cabelos e bateu-lhe de novo
na cara. Agarrou um dos braços de Katie e tentou torcê-lo para trás das costas
dela, mas estava desequilibrado e ela conseguiu virar-se. Levantando uma das
mãos, arranhou-lhe o rosto, atingindo um dos olhos e cravando-lhe as unhas
com força.
Lutando pela sua vida, a adrenalina correu-lhe pelos braços e pernas.
Lutando por todas as vezes em que não o conseguira fazer. Lutando para dar
às crianças tempo de fugirem e se esconderem. Gritando, chamando-lhe
nomes, odiando-o, recusando-se a permitir que ele a agredisse mais uma vez.
Kevin tentou agarrar os dedos de Katie, cambaleando sem equilíbrio, e ela
aproveitou a oportunidade para se desenvencilhar dele. Sentiu-o a tentar
agarrar as suas pernas, mas não conseguiu pegar-lhe com força suficiente e
Katie soltou uma perna. Levantando o joelho até ao queixo, pontapeou-o com
toda a sua força, deixando-o atordoado quando o seu pé o atingiu em cheio no
queixo. Pontapeou-o de novo, observando-o desta vez a cair de lado, com as
mãos a tentarem em vão agarrar-se a alguma coisa.
Katie conseguiu levantar-se precipitadamente e começou a correr mais uma
vez, mas Kevin não demorou a levantar-se. A alguns metros de distância, ela
viu a pistola. E correu na direção dela.

Alex conduziu imprudentemente, rezando pela segurança de Kristen, Josh e


Katie, sussurrando os seus nomes em pânico.
Passou pela via de gravilha e fez a curva. O seu estômago revirou-se ao
constatar que a sua premonição se tornara realidade. À sua frente, viu o
quadro completo, como se fosse um retrato do inferno. Apercebeu-se de
movimento na beira da estrada, mais à frente. Duas figuras pequenas, com
pijamas brancos. Josh e Kristen. Travou a fundo. Antes mesmo de o jipe se
imobilizar por completo, já ele tinha saltado da viatura para correr na direção
deles. Os seus filhos gritavam pelo seu nome enquanto corriam e ele baixou-
se para os cingir nos braços.
– Vocês estão bem – murmurou ele, várias vezes, segurando-os firmemente
contra o seu corpo. – Vocês estão bem, vocês estão bem.
De início, Kristen e Josh choravam e soluçavam e Alex não entendeu o que
eles diziam, pois não estavam a falar do incêndio. Estavam a chorar por causa
de um homem com uma arma, dizendo que a Miss Katie estava a lutar com
ele. E, repentinamente, Alex percebeu, sem qualquer sombra de dúvida, o que
acontecera.
Enfiou-os no jipe e deu a volta, acelerando em direção à casa de Katie
enquanto os seus dedos vasculhavam os números gravados no telemóvel.
Uma Joyce assustada atendeu a chamada ao segundo toque e Alex disse-lhe
para pedir à filha que a levasse a casa de Katie imediatamente, que era uma
emergência, e que ela deveria ligar para a polícia. A seguir, desligou. A
gravilha voou quando ele parou o carro em frente à casa de Katie.
Deixou as crianças ali e disse-lhes que corressem para dentro, que ele
estaria de volta assim que pudesse. Contou os segundos enquanto dava meia-
volta e acelerou em direção à loja, rezando para que não fosse tarde de mais.
Rezando para que Katie ainda estivesse viva.

Kevin viu a arma no mesmo instante em que Katie e saltou em direção à


pistola, conseguindo alcançá-la. Pegou na arma e apontou-a a Katie,
enraivecido. Agarrou-a pelos cabelos e encostou o cano da arma à sua cabeça
enquanto a arrastava pelo estacionamento. – Abandonaste-me, não é? Não me
podes abandonar!
Atrás da loja, debaixo de uma árvore, ela viu o carro dele, com a matrícula
do estado do Massachusetts. O calor do fogo castigava o rosto de Katie,
chamuscando os pelos dos seus braços. Kevin vociferava com ela, com uma
voz confusa e rouca.
– És a minha mulher!
Ao longe, ela ouviu o som de sirenes, mas pareciam estar demasiado
distantes. Quando chegaram ao carro, ela tentou de novo dar luta. Kevin
pegou-lhe pela cabeça e bateu com ela no capô. Ela quase desmaiou com o
impacto. Ele abriu a bagageira e tentou empurrá-la lá para dentro. Katie
conseguiu virar-se e desferir-lhe uma violenta joelhada na virilha. Ouviu-o a
arfar e sentiu que as mãos dele por momentos afrouxaram o aperto.
Katie empurrou-o às cegas, livrando-se do aperto das mãos dele e começou
a correr pela sua vida. Sabia que a bala viria. Sabia que estava prestes a
morrer.

Ele não conseguiu perceber porque é que ela estava a lutar. Mal conseguia
respirar por causa da dor. Ela nunca lhe batera antes, nunca lhe arranhara os
olhos, nem o pontapeara nem mordera. Não estava a comportar-se como sua
esposa e o seu cabelo estava castanho. Mas a voz era a mesma de Erin...
Cambaleou, tentando persegui-la, levantando a arma, apontando, mas havia
duas Erins e as duas estavam a fugir.
Premiu o gatilho.

Katie respirou fundo ao ouvir o disparo, esperando pela dor lancinante, mas
não sentiu nada. Continuou a correr e, repentinamente, constatou que ele
falhara. Correu aos ziguezagues, pela esquerda e pela direita, ainda no
estacionamento, numa busca desesperada por algum tipo de abrigo. Mas não
havia nada.

Kevin cambaleou, tentando persegui-la, com as mãos escorregadias devido


ao sangue, o dedo a escorregar no gatilho. Sentiu-se prestes a vomitar de
novo. Ela estava a distanciar-se, indo de um lado para o outro e ele não
conseguia mantê-la à vista. Estava a tentar fugir, mas não faria isso. Era sua
esposa. Ele ia levá-la para casa porque a amava e depois iria abatê-la a tiro
porque a odiava.

Katie viu os faróis de uma viatura a percorrer a estrada a grande


velocidade, como se fosse um carro de corrida. Ela queria chegar lá, fazer
sinal ao carro para parar, mas sabia que não conseguiria chegar à estrada a
tempo. Para sua surpresa, o carro começou a diminuir a velocidade e ela
reconheceu o jipe quando ele virou para entrar no estacionamento. Percebeu
que Alex estava ao volante.
Passou por ela, acelerando em direção a Kevin.
As sirenes estavam aproximar-se. Havia pessoas a caminho e ela sentiu
uma pontada de esperança.

Kevin viu o jipe a aproximar-se e levantou a arma. Começou a disparar,


mas o jipe insistiu em seguir na sua direção. Saltou para se desviar quando o
jipe passou a toda velocidade, mas o veículo atingiu-o na mão, quebrando
todos os ossos e lançando a pistola para algum lugar na escuridão. Kevin
gritou de dor, instintivamente protegendo a mão conforme o jipe se afastava,
passando pela carcaça carbonizada da loja, derrapando sobre o cascalho e
embatendo de frente no depósito de ferramentas.
Ouviu sirenes ao longe. Queria ir atrás de Erin, mas seria preso se ficasse
ali. O medo tomou conta dele e Kevin começou a mancar em direção ao seu
carro, sabendo que tinha de sair dali e pensando em como tudo correra tão
mal.
Katie viu Kevin a sair apressadamente do estacionamento em direção à
estrada, lançando pedras pelo ar. Virando-se, viu que o jipe de Alex estava
com a frente encaixada no depósito de ferramentas, com o motor ainda a
funcionar, e correu até lá. O fogo lançava a sua luz sobre a traseira do carro e
Katie sentiu o pânico a consumi-la, rezando para que Alex aparecesse.
Estava a aproximar-se do carro quando o seu pé atingiu uma coisa dura,
fazendo com que tropeçasse. Percebendo que quase havia pisado a pistola,
pegou nela e voltou a encaminhar-se para o carro. Mais adiante, a porta do
carro entreabriu-se, mas estava bloqueada por destroços. Ela sentiu uma onda
de alívio ao perceber que Alex estava vivo, mas, ao mesmo tempo, lembrou-
se de que Josh e Kristen tinham desaparecido.
– Alex! – gritou ela ao chegar à traseira do jipe, que desatou socar. – Tens
de sair daí! As crianças estão na estrada, precisamos de encontrá-las!
A porta ainda estava presa, mas ele conseguiu abrir a janela. Quando se
inclinou para fora, viu que tinha a testa a sangrar e que ele falava com uma
voz fraca.
– Eles estão bem... levei-os para tua casa...
Ela sentiu o corpo a gelar. – Oh, meu Deus... – conseguiu dizer, numa voz
embargada, pensando Não, não, não... – Sai daí depressa! – disse ela,
socando a traseira do carro. – Sai daí! O Kevin fugiu! – Katie escutou o medo
puro na sua própria voz. – Ele foi na direção da minha casa!

A dor na mão era algo muito mais forte do que qualquer coisa que ele
alguma vez sentira e a perda de sangue também lhe causava uma forte
tontura. Nada mais parecia valer a pena e a sua mão já não servia para nada.
Ouvia sirenes a aproximarem-se, mas esperaria por Erin em sua casa. Sabia
que ela regressaria a casa hoje ou amanhã.
Estacionou o carro atrás da outra cabana, a que parecia abandonada.
Estranhamente, viu Amber em pé atrás de uma árvore. Ela perguntava a
Kevin se ele gostaria de lhe pagar uma bebida, mas a sua imagem
desapareceu imediatamente. Ele lembrou-se de ter limpado a casa e cortado a
relva, mas nunca soubera lavar roupa. E agora Erin dizia que se chamava
Katie.
Não tinha nada para beber e estava a ficar muito cansado. As calças
estavam manchadas de sangue e percebeu que os seus dedos e o braço
também estavam a sangrar, mas não conseguiu lembrar-se do que provocara
aquilo. Queria muito poder dormir. Precisava de descansar por alguns
momentos, porque a polícia iria começar a procurá-lo. Precisaria de estar
alerta quando eles se aproximassem.
O mundo à sua volta estava a ficar distante e enevoado, como se o visse
através de um telescópio virado ao contrário. Ouviu as árvores a balançar
para a frente e para trás, mas, em vez de uma brisa, só conseguia sentir o ar
quente do verão. Começou a tremer, mas estava igualmente a suar.
Demasiado sangue a escorrer-lhe pelas mãos e pelo braço, sem parar.
Precisava de descansar. Já não se aguentava acordado. Os seus olhos
começaram a fechar-se.

Alex engatou a marcha-atrás e acelerou, ouvindo os pneus girarem no


cascalho, mas o jipe não saiu do lugar. A sua mente trabalhava a toda
velocidade, sabendo que Josh e Kristen estavam em perigo.
Tirou o pé do acelerador, acionou a tração às quatro rodas e tentou mais
uma vez. Desta vez o jipe começou a mover-se. Os espelhos retrovisores
foram arrancados, os destroços do depósito arranharam e amassaram a chapa.
O jipe desprendeu-se com um último impulso. Katie puxou inutilmente a
porta do lado do passageiro até que Alex se virou e deu um pontapé, abrindo-
a. Katie saltou lá para dentro.
Alex deu meia-volta com o jipe e acelerou com força, chegando à estrada
no momento em que os carros dos bombeiros se aproximavam. Nenhum
deles proferiu palavra enquanto ele avançou a grande velocidade. Alex nunca
sentira tanto medo em toda a sua vida.
Depois da curva, a rua de gravilha. Entrou na viela com uma forte guinada,
quase derrapando. A traseira do jipe dançou sobre a gravilha e ele acelerou de
novo. Mais à frente, viu as cabanas, com as luzes acesas nas janelas da casa
de Katie. Nenhum sinal do carro de Kevin e ele exalou o ar, antes de perceber
que tinha estado a suster a respiração.

Kevin escutou o som de um motor a aproximar-se pela rua de gravilha e


acordou sobressaltado.
A polícia, pensou ele, e automaticamente levou a mão destroçada à arma.
Gritou de dor e confusão, constatando que a pistola não estava lá. Deixara-a
no banco do passageiro, mas não estava lá agora e nada daquilo fazia sentido.

Desceu do carro e olhou na direção de onde vinha o barulho. O jipe


aproximou-se, aquele que estava no estacionamento da loja, aquele que quase
o matou. A viatura parou e Erin saiu de lá de dentro. De início, não conseguiu
acreditar na sua sorte, mas logo depois lembrou-se de que ela morava ali e
que fora isso que o levara lá.
A sua outra mão, a que ainda estava boa, tremeu imenso quando ele abriu a
bagageira e retirou de lá o pé de cabra. Viu Erin e o seu amante a correrem
em direção ao alpendre. Cambaleando e mancando, dirigiu-se à casa, sem
querer e sem conseguir parar. Erin era a sua esposa, ele amava-a e o homem
grisalho tinha de morrer.

Alex parou em frente à casa, derrapando sobre a gravilha, e os dois


saltaram do carro em simultâneo, correndo para a porta e chamando pelas
crianças. Katie ainda tinha a arma na mão. Chegaram à porta no momento em
que Josh a abriu e, assim que viu o filho, Alex deu-lhe um abraço. Kristen
saiu de detrás do sofá e correu na direção deles. Alex abriu os braços para a
abraçar também, agarrando-a com facilidade quando ela saltou.
Katie parara poucos passos depois de passar pela porta, observando a cena
com lágrimas de alívio nos olhos. Kristen estendeu-lhe os braços e Katie
aproximou-se, aceitando o abraço da menina com um sentimento cego de
felicidade.
Perdidos na emoção do encontro, nenhum deles percebeu quando Kevin
apareceu à entrada, com o pé de cabra nas mãos, elevado acima da cabeça.
Bateu com força, fazendo com que Alex desabasse no chão e as crianças
caíssem de costas, horrorizadas e chocadas.

Kevin ouviu com satisfação o baque do pé de cabra e sentiu a vibração a


percorrer-lhe o braço. O homem de cabelo grisalho estava deitado no chão e
Erin gritava.
Naquele instante, Alex e as crianças eram tudo o que importava para ela.
Katie correu instintivamente na direção de Kevin, empurrando-o para fora da
casa. Só havia dois degraus, mas bastou. Kevin caiu de costas sobre o chão de
terra.
Katie virou-se. – Tranquem a porta! – gritou, e daquela vez Kristen foi a
primeira a agir, enquanto Katie ainda gritava.
O pé de cabra caíra da mão de Kevin e ele tentava rebolar pelo chão e
levantar-se. Katie levantou a arma, apontando-a a Kevin quando este
finalmente se pôs de pé. Ele cambaleou, quase perdendo o equilíbrio, com o
rosto pálido como o de um cadáver. Não parecia estar a ver direito e Katie
sentiu os seus olhos a encherem-se de lágrimas.
– Eu amava-te – disse ela. – Eu casei-me contigo porque te amava.
Ele pensou que era Erin, mas o cabelo estava curto e escuro e Erin era
loura. Lançou um pé para a frente e quase voltou a cair. Porque é que ela
estava a dizer-lhe aquilo?
– Porque é que começaste a bater-me? – gritou ela, chorando. – Nunca
percebi porque é que não conseguias parar, mesmo quando prometias. – A
mão tremia-lhe e a arma pareceu-lhe pesada como chumbo. – Bateste-me na
nossa lua de mel porque eu deixei os meus óculos escuros na piscina...
Era a voz de Erin e ele pensou se estaria a sonhar.
– Eu amo-te – balbuciou ele. – Sempre te amei. Não sei porque é que me
abandonaste.
Ela sentia os soluços a intensificarem-se no seu peito, sufocando-a. As
palavras saíram aos borbotões, irrefreáveis e sem sentido, resultado de anos
de sofrimento. – Não me deixavas conduzir nem ter amigos, escondias o
dinheiro e obrigavas-me a implorar por ele. Eu quero saber o que te levou a
pensar que podias fazer isso comigo. Eu era a tua esposa e amava-te!
Kevin mal se aguentava de pé. O sangue escorria-lhe pelos dedos e braços
e pingava no chão, deixando tudo escorregadio. Queria conversar com Erin,
queria encontrá-la, mas aquilo não era real. Ele dormia, com Erin ao seu lado
na cama, e eles estavam em Dorchester. Os seus pensamentos baralharam-se
e ele viu-se num apartamento sujo com uma mulher a chorar.
– Havia molho de tomate na testa do rapaz – murmurou ele, cambaleando
para a frente. – No rapaz que levou um tiro, mas a mãe caiu pelas escadas e
nós prendemos o grego.
Katie não percebeu nada do que ele dizia, não entendeu qual era a intenção
dele. Odiava-o com uma raiva acumulada ao longo de anos. – Eu cozinhei
para ti, limpei a casa para ti e nada disso importou! Tudo o que fazias era
beber e bater-me!
O corpo de Kevin balançava, como se estivesse prestes a tombar. As suas
palavras eram confusas, atropelavam-se umas às outras, eram ininteligíveis. –
Não havia pegadas na neve. Mas os vasos de flores estão partidos.
– Devias ter-me deixado partir! Não me devias ter seguido até aqui. Porque
é que não conseguiste simplesmente deixar-me partir? Nunca me amaste!
Kevin lançou-se na direção dela, tentando apanhar a arma, tirá-la das mãos
de Katie. Mas estava sem forças e ela conseguiu manter o pulso firme. Ele
tentou agarrá-la, mas gritou de dor quando a sua mão ferida lhe bateu no
braço. Agindo por instinto, tentou atingi-la com o ombro e empurrou-a contra
a parede da casa. Precisava de lhe tirar a arma e apontar a pistola à cabeça de
Erin. Ele olhava-a com olhos arregalados e cheios de ódio, puxando-a para si,
tentando agarrar a arma com a mão que ainda estava boa, aplicando o seu
peso contra ela.
Sentiu o cano da arma a tocar nas pontas dos seus dedos e instintivamente
agarrou o metal à procura do gatilho. Tentou empurrar a arma na direção
dela, mas a pistola moveu-se na direção errada e passou a apontar para baixo.

– Eu amava-te! – soluçou ela, lutando com cada grama de raiva e força que
ainda lhe restavam. Kevin sentiu algo a dissipar-se e teve um momento de
lucidez.
– Então nunca me deverias ter abandonado – sussurrou ele, o hálito quente
com o cheiro do álcool. Puxou o gatilho e a arma disparou com um alto
estampido, e foi então que percebeu que tudo estava prestes a terminar. Erin
iria morrer, porque ele lhe disse que a encontraria e a mataria se ela voltasse a
fugir. E mataria qualquer homem que a amasse.
Mas, estranhamente, Erin não caiu, nem sequer gemeu. Em vez disso, ela
simplesmente olhou para ele com os seus olhos castanho-esverdeados,
ferozes, sem pestanejar.
Nesse momento, Kevin sentiu algo. Algo a arder no seu abdómen, fogo. A
sua perna esquerda fraquejou e ele tentou aguentar-se em pé, mas o corpo já
não respondia aos seus comandos. Tombou no alpendre, cobrindo a barriga
com a mão.
– Volta comigo para casa – sussurrou ele. – Por favor.
O sangue jorrava do ferimento, passando por entre os seus dedos. Acima
dele, Erin aparecia e desaparecia. O seu cabelo ficava louro e depois voltava
a ficar castanho. Ele viu-a na lua de mel, usando um biquíni, antes de se
esquecer dos óculos escuros na piscina. E era tão bonita que Kevin não
conseguia entender por que quis casar-se consigo.
Linda. Ela sempre foi linda, pensou ele. E voltou a sentir-se cansado. A sua
respiração tornou-se arrastada e ele começou a sentir frio. Muito frio.
Começou a tremer. Expirou mais uma vez, com um som parecido com aquele
que se esvai de um pneu furado. O peito deixou de se mover. Os seus olhos
estavam abertos e arregalados, um olhar de incompreensão.
Katie estava de pé ao lado dele, a tremer enquanto o olhava fixamente.
Não, pensou ela. Nunca irei contigo. Nunca quis regressar.
Mas Kevin não sabia o que ela estava a pensar, porque estava morto. E ela
percebeu que, finalmente, tudo terminara.
41

O hospital manteve Katie em observação durante quase toda a noite antes de


lhe dar alta. Depois, ela permaneceu na sala de espera do hospital. Não
estava disposta a sair dali até ter a certeza de que Alex estava bem.
A pancada de Kevin quase rachara o crânio a Alex e ele mantinha-se
inconsciente. A luz da manhã iluminou as janelas estreitas e retangulares da
sala de espera. Enfermeiras e médicos trocavam de turno e a sala começou a
encher-se de gente: uma criança com febre, um homem com dificuldades de
respiração. Uma mulher grávida e o marido, ambos em pânico, entraram a
correr pela porta. Sempre que ouvia a voz de um dos médicos, ela levantava
os olhos, na esperança de ser chamada para ver Alex.
O seu rosto e braços estavam cheios de hematomas e tinha o joelho
inchado, quase com o dobro do tamanho normal. Entretanto, após os exames
necessários e os raios X, o médico de serviço limitara-se a dar-lhe bolsas de
gelo para os hematomas e Tylenol para a dor. Era o mesmo médico que
estava a tratar de Alex, mas ele disse a Katie que não era possível prever com
certeza quando é que Alex despertaria, acrescentando que as TAC eram
inconclusivas. – Ferimentos na cabeça podem ser sérios – afirmara o médico.
– Com sorte, saberemos mais daqui a umas horas.
Ela não conseguia pensar, não conseguia comer, não conseguia dormir, não
conseguia parar de se preocupar. Joyce levara as crianças do hospital para sua
casa e Katie esperava que não tivessem pesadelos. Esperava que os eventos
da noite passada não lhes causassem pesadelos para toda a vida. Esperava que
Alex recuperasse completamente. Rezava para que aquilo acontecesse.
Tinha medo de fechar os olhos. Sempre que o fazia, Kevin reaparecia.
Katie via as manchas de sangue no seu rosto e na sua camisa, os seus olhos
ensandecidos. Ele lograra encontrá-la. Fora a Southport para a arrastar de
volta para casa ou para a matar e quase conseguiu. Numa única noite,
destruiu a frágil ilusão de segurança que Katie conseguira construir desde que
chegara à cidade.
As visões horríveis de Kevin voltavam a cada momento, repetindo-se
infinitamente, com variações, e às vezes mudando por completo. Houve
momentos em que ela se viu a sangrar e a morrer no alpendre, olhando para
cima, fitando os olhos do homem que odiava. Nessas alturas, apalpava
instintivamente a barriga, procurando ferimentos que não existiam. Mas
regressava ao hospital, sentada e à espera sob as lâmpadas fluorescentes.
Estava preocupada com Kristen e Josh. Não tardaria nada e chegariam ao
hospital; Joyce iria trazê-los para visitarem o pai. Ela questionava-se se as
crianças a odiariam por tudo o que sucedera e aquele pensamento fez com
que as lágrimas ardessem nos seus olhos. Cobriu o rosto com as mãos,
desejando poder enfiar-se num buraco profundo, tão profundo que ninguém a
encontraria. Tão profundo que Kevin nunca conseguiria encontrá-la, pensou
Katie, para logo se lembrar de que o vira a morrer no alpendre. As palavras
«ele está morto» ecoavam como um mantra ao qual ela não podia escapar.
– Katie?
Ela levantou a cara e viu o médico que estava a tratar de Alex.
– Posso levá-la até ele agora – revelou o médico. – Acordou há dez
minutos. Ainda está nos cuidados intensivos, pelo que a Katie não poderá
ficar lá muito tempo. Ele quer vê-la.
– Ele está bem?
– Neste momento ele está bem, apesar da situação. Levou um golpe muito
forte.
Coxeando um pouco, ela seguiu o médico, andando pelos corredores até ao
quarto de Alex. Respirou fundo e endireitou-se antes de entrar, dizendo a si
mesma que não iria chorar.
A unidade de cuidados intensivos estava cheia de máquinas e luzes a
piscar. Alex estava numa cama num canto, com a cabeça envolta em
ligaduras. Ele virou-se quando ela entrou no quarto, com os olhos
semicerrados. Um monitor soltava bips regularmente ao seu lado. Katie
caminhou até à cama e pegou na mão dele.
– Como é que estão os miúdos? – sussurrou ele. As palavras saíram
lentamente, com um certo esforço.
– Estão bem. Neste momento estão com a Joyce. Ela levou-os para a casa
dela.
Um sorriso ligeiro e quase impercetível surgiu nos lábios de Alex. – E tu?
– Estou bem – disse ela, assentindo.
– Amo-te – disse ele.
Katie esforçou-se ao máximo para não se desfazer de novo em lágrimas. –
Também te amo, Alex.
Ele debateu-se para não fechar os olhos, sem conseguir focar o olhar. – O
que é que aconteceu?

Ela fez-lhe um resumo sucinto das últimas doze horas, mas, a meio da
história, viu que os olhos dele se fecharam. Quando acordou novamente mais
tarde, ele esquecera-se de algumas partes do que ela lhe contara. Assim, Katie
repetiu a história, tentando soar calma e descontraída.
Joyce apareceu com Josh e Kristen e, embora não fosse permitida a
presença de crianças nos cuidados intensivos, o médico autorizou que
visitassem o pai por alguns minutos. Kristen levara-lhe um desenho de um
homem numa cama de hospital, com as palavras «As melhoras, pai» escritas
no topo da página. Josh ofereceu-lhe uma revista especializada em pesca.
Com o avançar do dia, Alex ficou mais lúcido. À tarde, deixou de
adormecer e acordar sucessivamente. Embora se queixasse de uma tremenda
dor de cabeça, tinha recuperado mais ou menos a memória. A sua voz já
estava mais forte e, quando disse à enfermeira que tinha fome, Katie mostrou
um sorriso de alívio, finalmente segura de que ele ficaria bem.

Alex teve alta no dia seguinte e o xerife foi a casa de Joyce recolher os seus
depoimentos formais. Revelou que o nível de álcool na corrente sanguínea de
Kevin estava tão alto que ele praticamente se envenenara a si próprio.
Combinado com a perda de sangue que sofrera, era incrível o facto de se ter
mantido consciente e com um certo grau de lucidez durante a noite. Katie não
fez comentários, mas não deixou de pensar que eles não conheciam Kevin
nem compreendiam os demónios que o espicaçavam.
Depois de o xerife ter ido embora, ela foi lá fora e deixou-se banhar pela
luz do sol, a tentar ordenar o que lhe ia na alma. Embora tivesse relatado os
eventos daquela noite ao xerife, Katie não lhe contou tudo. Também não
contou tudo a Alex – como poderia, quando as coisas nem sequer a ela
faziam sentido? Não lhes contou que, nos momentos seguintes à morte de
Kevin, quando correu para perto de Alex, chorara por ambos os homens.
Parecia impossível que, mesmo ao reviver o terror daquelas últimas horas
com Kevin, também se lembrasse dos raros momentos de felicidade que
tiveram juntos; como se riam das situações que haviam partilhado ou como se
recostavam tranquilamente no sofá.
Ela não sabia como reconciliar essas partes do seu passado com o horror
que vivera nessa noite. Mas havia outra coisa. Algo que não entendia. Katie
ficou na casa de Joyce porque tinha medo de voltar para a sua casa.

Mais tarde, naquele mesmo dia, Alex e Katie estavam no estacionamento, a


olhar para os escombros carbonizados do que restava da loja. Aqui e ali, ela
conseguia reconhecer alguns objetos: o sofá, queimado pela metade,
inclinado sobre o cascalho; uma prateleira usada para guardar comida; uma
banheira enegrecida pelo fogo.
Alguns bombeiros revistavam os escombros. Alex pediu-lhes que
procurassem o cofre que ele instalara dentro do armário. Ele tinha retirado as
ligaduras da cabeça e Katie conseguia ver o ponto onde os médicos haviam
rapado o cabelo para aplicar a sutura. Estava inchado e tingido de preto e
roxo.
– Lamento – disse Katie. – Por tudo.
Alex abanou a cabeça. – Não tens culpa de nada. Não foste tu que fizeste
isto.
– Mas o Kevin veio atrás de mim.
– Eu sei – disse Alex, permanecendo em silêncio por um momento. – A
Kristen e o Josh contaram-me como os ajudaste a fugir de casa. O Josh disse
que, depois de agarrares o braço do Kevin, lhes disseste para fugirem. Disse
que o distraíste. Queria agradecer-te por isso.
Katie fechou os olhos. – Não me podes agradecer por isso. Se lhes
acontecesse alguma coisa, eu não suportaria viver com isso dentro de mim.
Ele assentiu com a cabeça, mas não conseguiu olhar para ela. Katie deu um
pontapé numa pequena pilha de cinzas que se formara no estacionamento. –
O que é que vais fazer agora? Em relação à loja?
– Acho que a vou reconstruir.
– E onde vais morar?
– Ainda não sei. Vamos ficar na casa da Joyce por uns tempos, mas vou
tentar encontrar um lugar tranquilo, um lugar com uma vista agradável.
Como não posso trabalhar, vou tentar aproveitar o meu tempo livre.
Katie sentiu-se enjoada. – Nem consigo imaginar como te estás a sentir.
– Anestesiado. Triste pelas crianças. Chocado.
– Também sentes raiva?
– Não. Não sinto raiva.
– Mas perdeste tudo.
– Não perdi tudo – disse ele. – Não perdi as coisas importantes. Os meus
filhos estão em segurança. Tu estás em segurança. É isso que me importa.
Isto tudo – continuou, apontando para os destroços da loja –, não passa de
prejuízo material. A maior parte pode ser substituída. Só vai levar algum
tempo. – Quando terminou de falar, semicerrou os olhos, olhando em direção
a algo no meio dos destroços. – Espera aqui um bocado.
Alex dirigiu-se a um monte de escombros calcinados e retirou uma cana de
pesca que estava enfiada entre as tábuas de madeira enegrecidas. Estava
coberta de fuligem, mas não parecia danificada. Pela primeira vez desde que
chegaram, Alex sorriu.
– O Josh vai ficar feliz com isto – comentou. – Gostava de encontrar uma
das bonecas da Kristen.
Katie cruzou os braços, sentindo as lágrimas a encherem-lhe os olhos.
– Eu vou comprar uma boneca nova para ela.
– Não precisas de fazer isso. Eu tenho um bom seguro.
– Mas eu quero. Nada disto teria acontecido se eu não tivesse entrado na
tua vida.
Alex olhou para ela. – Eu sabia no que estava a meter-me quando te
convidei para sair.
– Mas não poderias esperar que acontecesse uma coisa assim.
– Não – admitiu ele. – Nada como o que aconteceu. Mas vai ficar tudo
bem.
– Como é que podes dizer uma coisa dessas?
– Porque é verdade. Nós sobrevivemos, e é isso que importa.
Ele estendeu a mão, à procura da de Katie, e ela sentiu os dedos a
entrelaçarem-se. – Ainda não tive a oportunidade de dizer que lamento.
– Lamentas o quê?
– A tua perda.
Ela sabia que se referia a Kevin e não soube o que responder. Ele parecia
entender que ela, simultaneamente, amava e odiava o marido. – Nunca
desejei que ele morresse – começou ela. – Só queria que me deixasse em
paz.
– Eu sei.
Ela virou-se para ele, expectante. – Será que vamos ficar bem? Depois de
tudo o que se passou?
– Acho que isso depende de ti.
– De mim?
– Os meus sentimentos não mudaram. Eu ainda te amo, mas precisas de
descobrir se os teus sentimentos ainda são os mesmos.
– Eles não mudaram em nada.
– Então vamos encontrar uma maneira de superar tudo isto juntos, porque
eu sei que quero passar o resto da minha vida contigo.
Antes que ela pudesse responder, um dos bombeiros chamou-os e eles
viraram-se na direção do homem. Ele estava a fazer força para retirar um
objeto dos escombros e, quando se levantou, tinha um pequeno cofre nas
mãos.
– Achas que está estragado?
– Provavelmente não. É à prova de fogo. Foi por isso que o comprei.
– E o que é que tem dentro?
– Alguns documentos importantes. Alguns discos com fotos e negativos.
Coisas que eu queria proteger.
– Fico feliz por o terem encontrado.
– Eu também – disse Alex. – Porque há algo dentro do cofre que preciso de
te entregar.
42

D epois de deixar Alex em casa de Joyce, Katie finalmente encaminhou o


jipe de volta para sua casa. Não queria realmente lá regressar, mas sabia
que não podia adiar o inevitável. Mesmo que não pretendesse ficar ali por
muito tempo, precisava de pegar em alguns dos seus pertences.
A poeira levantou-se do cascalho e ela sentiu as ondulações da rua até
estacionar em frente à casa. Ficou sentada no jipe – amassado e riscado, mas
ainda a funcionar bem – e olhou para a porta, lembrando-se de como Kevin
sangrara até à morte no seu alpendre, com o olhar fixo no rosto dela.
Katie não queria ver as manchas de sangue. Tinha medo de se lembrar, ao
abrir a porta, da expressão de dor de Alex quando Kevin o atingira com o pé
de cabra. Ela praticamente podia ouvir o choro histérico de Kristen e Josh
enquanto se agarravam ao pai. Não se sentia preparada para reviver tudo
aquilo.
Em vez disso, dirigiu-se à casa de Jo. Nas suas mãos, tinha a carta que Alex
lhe entregara. Quando lhe perguntou porque escrevera uma carta, ele abanou
a cabeça.
– Não fui eu que a escrevi – explicou. Katie fitou-o, confusa. – Vais
entender quando leres o que está escrito.
Quando se aproximou da casa de Jo, sentiu os resquícios de uma memória a
ganharem vida. Algo sucedera na noite do incêndio. Algo que ela havia visto,
mas que não conseguia lembrar-se realmente. Quando sentia que estava quase
a identificar a sensação, a recordação parecia escapar-se de novo. Abrandou o
passo conforme se aproximou da casa da sua vizinha, com uma expressão
confusa estampada no rosto.
Havia teias de aranha na janela e uma das venezianas caíra na relva,
despedaçando-se com o impacto. O corrimão da varanda estava partido e era
possível ver algumas ervas daninhas a brotarem por entre as tábuas. Os seus
olhos buscavam todos os detalhes, mas ela não conseguiu processar a cena
que tinha diante de si: uma maçaneta enferrujada, a pender do seu encaixe na
porta; uma grossa camada de sujidade nas janelas, como se não fossem
limpas há anos.
Não havia cortinas...
Não havia tapete...
Não havia espanta-espíritos...
Ela hesitou, tentando entender o que estava a ver. Sentiu-se estranha e,
curiosamente, sem qualquer peso, como se estivesse a sonhar acordada.
Quanto mais se aproximava, mais a casa parecia envelhecer e apodrecer
perante os seus olhos.
Katie pestanejou e percebeu que a porta tinha uma rachadela a meio, com
uma ripa de madeira pregada transversalmente, fixando-a ao caixilho da
porta, já a desfazer-se.
Pestanejou outra vez e viu que uma parte da parede, num dos cantos
superiores, apodrecera, deixando um buraco irregular.
Pestanejou uma terceira vez e percebeu que a parte inferior da janela estava
rachada e o vidro partido. O chão estava coberto de cacos.
Katie subiu os degraus da varanda, sem conseguir conter-se. Espreitou
pelas janelas, observando o interior da cabana escura.
Pó, móveis partidos, pilhas de lixo. Nada estava pintado, nada estava
limpo. Com um sobressalto, Katie recuou um passo, voltando à varanda,
quase tropeçando no degrau estragado. Não. Não era possível. Simplesmente
não era possível. O que sucedera a Jo e a todas as melhorias que ela fizera na
pequena cabana? Katie viu Jo pendurar o espanta-espíritos. Jo foi a casa de
Katie, queixando-se por ter de pintar e limpar. Tomaram café, beberam vinho
e comeram queijo; Jo fez comentários maliciosos sobre a bicicleta. Jo
encontrou-a depois do trabalho e elas foram a um bar. A empregada viu-as
juntas. Katie pediu vinho para as duas...
Mas Jo não tocou no seu copo de vinho, lembrou-se.
Katie massajou as têmporas. A sua mente estava a trabalhar a uma
velocidade alucinante, à procura de respostas. Recordou que Jo estava
sentada nos degraus quando Alex a trouxera a casa. Até mesmo Alex a vira
ali...
Será que realmente a vira?
Katie afastou-se da casa decrépita. Jo era real. Não era possível ser apenas
um produto da sua imaginação. Ela não a havia criado.
Mas a Jo gostava de tudo o que fazias; bebia exatamente o mesmo café que
tu preparavas, gostava das roupas que tu compravas e as opiniões dela sobre
os funcionários do Ivan’s eram um reflexo das tuas.
Dúzias de pequenos pormenores rapidamente começaram a encher a mente
de Katie e as vozes digladiavam-se na sua cabeça.
Ela morava aqui!
Então, porque é que a cabana está ao abandono?
Observámos juntas as estrelas!
Olhaste sozinha para as estrelas, por isso é que ainda não sabes os nomes
delas.
Bebemos vinho em minha casa!
Bebeste a garrafa inteira sozinha. Foi por isso que ficaste tão
desorientada.
Foi ela que me falou de Alex! Ela queria que ficássemos juntos!
Ela nunca mencionou o nome dele até o saberes. E estavas interessada
nele desde o início.
Ela foi a psicóloga que ajudou as crianças!
Essa foi a desculpa que usaste para nunca falar dela ao Alex.
Mas...
Mas...
Mas...
Uma a uma, as respostas surgiram tão rapidamente quanto Katie conseguia
pensar nelas. O motivo pelo qual ela nunca soubera o sobrenome de Jo, ou
por que razão nunca a vira a conduzir um carro... a razão pela qual Jo nunca a
convidara para entrar ou aceitara a sua ajuda para pintar a casa... como Jo
conseguira aparecer inesperadamente ao lado de Katie usando roupas de
desporto... Katie sentiu algo a ceder dentro de si quando todas as peças do
puzzle encaixaram. Repentinamente, percebeu tudo. Jo nunca chegara a
existir.
43

S entindo-se como se ainda estivesse a sonhar, Katie voltou à sua casa em


passos hesitantes. Sentou-se na cadeira de baloiço e olhou
demoradamente para a casa de Jo, considerando a possibilidade de ter
enlouquecido por completo.
Ela sabia que a criação de amigos imaginários era comum entre crianças,
mas ela não era uma criança. Sim, estava sob um forte stress quando chegou
a Southport. Sozinha e sem amigos, a fugir, sempre a olhar por cima do
ombro, aterrorizada pela possibilidade de Kevin a encontrar. Quem não
sentiria a pressão dessa ansiedade? Mas será que aquilo bastara para criar um
alter ego? Talvez alguns psiquiatras dissessem que sim, mas ela não tinha
tanta certeza.
Só que Katie não queria acreditar naquilo. Não podia acreditar, porque lhe
pareceu tão... real. Lembrava-se daquelas conversas, ainda se recordava das
expressões de Jo, ainda ouvia o som da sua risada. As memórias que tinha de
Jo eram tão reais quanto as suas memórias de Alex. Claro, provavelmente ele
também não era real. Provavelmente a sua mente também o criara. Assim
como Kristen e Josh. Ela provavelmente estava amarrada a alguma cama num
manicómio, perdida num mundo completamente criado pela sua mente.
Abanou a cabeça, frustrada, confusa, e mesmo assim...
Havia outra coisa que a perturbava. Algo que não conseguia realmente
identificar. Estava a esquecer-se de uma coisa. Algo importante.
Por mais que tentasse, não era capaz de discernir aquilo. Os eventos dos
últimos dias deixaram-na exausta e abalada. Ela olhou para o céu. O
crepúsculo começava a espalhar-se e a temperatura a baixar. Perto das
árvores, uma névoa começou a formar-se.
Desviando o olhar da casa de Jo – sempre fora assim que se referira àquele
lugar, independente do estado de espírito que isso implicasse –, Katie
examinou a carta. Não havia nenhuma palavra ou nome escrito do lado de
fora do envelope.
Havia algo de assustador naquela carta lacrada, embora ela não soubesse o
que era. Talvez fosse a expressão de Alex quando lhe entregara o envelope.
De alguma forma, ela sabia que aquilo não era apenas sério, como também
importante para ele. E Katie questionou-se porque é que ele não abordara o
assunto.
Ela não sabia, mas em breve escureceria e o seu tempo estava a esgotar-se.
Rodando o envelope nos dedos, abriu o lacre. Sob a luz cada vez mais débil,
deslizou o dedo por cima do papel amarelo antes de desdobrar as páginas.
Finalmente, começou a ler.

À mulher que o meu marido ama.


Se acha estranho ler estas palavras, por favor, acredite em mim quando
digo que a sensação que tenho ao escrevê-las é tão estranha quanto a que
sente ao lê-las. Por outro lado, nenhum aspeto desta carta me parece
normal. Há tantas coisas que quero dizer, tantas coisas que lhe quero contar
e, quando decidi escrever esta carta, tudo parecia estar claro na minha
mente. Agora, contudo, percebo que estou confusa e não sei por onde devo
começar.
Acho que posso começar por dizer isto: passei a acreditar que, na vida de
cada um, há um momento inegável de mudança; um conjunto de
circunstâncias que, repentinamente, faz com que tudo se transforme. Para
mim, este momento ocorreu quando conheci o Alex. Embora eu não saiba
quando ou onde você está a ler esta carta, sei que isso significa que ele a
ama. Também significa que ele quer partilhar a sua vida consigo e, se não
houver nada mais, pelo menos nós teremos isso em comum.
O meu nome, como provavelmente já sabe, é Carly. Contudo, durante a
maior parte da minha vida, os meus amigos chamaram-me Jo...

Katie parou de ler e olhou para a carta nas suas mãos, incapaz de absorver
aquelas palavras. Respirando fundo, releu aquela frase: durante a maior parte
da minha vida, os meus amigos chamaram-me Jo...
Ela agarrou as páginas com força, finalmente desvelando a memória que se
esforçara por recuperar. De repente, deu por si de novo no quarto de Alex na
noite do incêndio. Sentiu a dor nos braços e nas costas quando atirou a
cadeira de baloiço pela janela, sentiu a onda de pânico quando envolveu Josh
e Kristen com o edredão, imediatamente antes de ouvir o som das rachadelas
atrás de si. Com uma nitidez absoluta, lembrou-se de girar sobre os
calcanhares e de ver o retrato que estava pendurado na parede, o retrato da
esposa de Alex. Na noite do incêndio, ela estava confusa, com os nervos à
flor da pele no meio do inferno de fumo e medo.
Mas ela vira aquele rosto. Sim, havia até mesmo dado um passo na direção
do retrato para observar melhor.
Parece-se muito com a Jo, lembrou-se de ter pensado na ocasião, mesmo
que a sua mente não tivesse condições de processar a informação. Mas agora,
sentada no alpendre sob um céu que escurecia aos poucos, teve a certeza de
que estava errada. Errada a respeito de tudo. Levantou os olhos para olhar de
novo para a casa de Jo.
Katie percebeu repentinamente que a esposa de Alex se parecia com Jo
porque realmente era Jo. Espontaneamente, recordou outro momento, na
primeira manhã em que Jo fora a sua casa.
Os meus amigos chamam-me Jo, dissera ela, ao apresentar-se.
Oh, meu Deus.
Katie empalideceu.
...Jo...
Percebeu, de repente, que não imaginara Jo. Não fora a sua imaginação que
a criara.
Jo estivera ali; e Katie sentiu um nó na garganta. Não por não acreditar,
mas porque finalmente compreendera que a sua amiga Jo – a sua única
verdadeira amiga, a sua sábia conselheira, a pessoa que a apoiava e a quem
confiava os seus segredos – nunca mais voltaria. Elas nunca mais voltariam a
tomar café, nunca mais dividiriam uma garrafa de vinho, nunca mais
conversariam no alpendre. Ela nunca mais voltaria a ouvir o som do riso de
Jo ou observaria a maneira que ela tinha de arquear as sobrancelhas. Ela
nunca mais ouviria Jo queixar-se de ter de fazer trabalhos pesados... então
começou a chorar, lamentando a perda da maravilhosa amiga que nunca
tivera a oportunidade de conhecer em vida.

Katie não sabia ao certo quanto tempo decorrera até ser capaz de voltar a
ler. Estava a escurecer e, com um suspiro, levantou-se e abriu a porta da
frente. Dentro da casa, sentou-se à mesa da cozinha. Lembrava-se de, uma
vez, Jo se ter sentado na cadeira em frente à sua e, por algum motivo que não
conseguia explicar, sentiu que começava a descontrair-se.
Tudo bem, pensou ela consigo mesma. Estou pronta para ouvir o que me
tens a dizer.

...durante a maior parte da minha vida, os meus amigos trataram-me


Jo. Por favor, esteja à vontade para me tratar por qualquer um dos
nomes. E, para que se sinta melhor, saiba que eu já a considero uma
amiga. Espero que, no final desta carta, sinta o mesmo em relação a
mim.
Morrer é uma coisa estranha e não vou aborrecê-la com os
pormenores. Posso ainda ter algumas semanas, ou talvez meses de
vida. Embora eu saiba que isso é um cliché, a verdade é que muitas das
coisas que eu acreditei serem importantes deixaram de o ser. Já não
leio o jornal, não me importo com o mercado de ações nem me
preocupo se vai chover durante as minhas férias. Em vez disso, dou por
mim a refletir sobre os momentos essenciais da minha vida. Penso no
Alex e em como ele estava bonito no dia em que nos casámos. Lembro-
me do orgulho e do cansaço que senti quando peguei no Josh e na
Kristen. Eles eram bebés lindos. Eu costumava deitá-los no meu colo e
olhar para eles enquanto dormiam. Era capaz de ficar horas assim,
simplesmente a olhar para eles, a tentar descobrir se tinham herdado o
meu nariz ou o do Alex, os olhos dele ou os meus. Às vezes, enquanto
estavam a sonhar, as mãozinhas deles fechavam-se em volta do meu
dedo, e lembro-me de pensar que nunca sentira uma forma de alegria
tão pura.
Foi apenas quando tive filhos que realmente compreendi o
significado do amor. Não me entenda mal. Amo o Alex com todo o meu
coração, mas é diferente do amor que eu sinto pelo Josh e pela Kristen.
Não sei como explicar e não sei se preciso. Tudo o que sei é que,
apesar da minha doença, me sinto abençoada, porque pude conviver
com ambos. Vivi uma vida plena e feliz e senti o tipo de amor que
muitas pessoas nunca conhecerão.
Mas a minha condição assusta-me. Tento demonstrar coragem
quando o Alex está por perto e as crianças ainda são muito novas para
entender o que realmente está a acontecer. Nos momentos tranquilos
em que estou sozinha, as lágrimas vêm-me rapidamente aos olhos e eu,
às vezes, questiono-me se algum dia irão parar. Embora saiba que não
deveria, dou por mim a pensar no facto de que nunca vou levar os meus
filhos à escola, ou que nunca vou ter outra possibilidade de observar a
alegria deles na manhã de Natal. Nunca terei a oportunidade de ajudar
a Kristen a escolher um vestido para o baile de finalistas, nunca vou
assistir aos jogos de basebol em que o Josh vai participar. Há muitas
coisas que nunca verei ou farei com eles e, às vezes, desespero,
pensando que nunca serei nada além de uma memória distante quando
chegar a época em que eles decidirem casar.
Como é que vou poder dizer-lhes que os amo se não estarei mais
aqui?
E o Alex. Ele é o meu sonho e o meu companheiro, o meu amante e o
meu amigo. Ele é um pai dedicado. Porém, mais do que isso, ele é o
meu marido ideal. Não posso descrever o conforto que sinto quando me
abraça, ou quanto anseio por poder deitar-me ao lado dele, à noite. Há
uma inabalável humanidade nele, uma fé na bondade da vida e eu sinto
o meu coração a partir-se quando imagino que ele ficará sozinho. Foi
por isso que eu lhe pedi que lhe entregasse esta carta; penso que é uma
maneira de fazê-lo manter a promessa que me fez quando disse que iria
voltar a encontrar alguém especial – alguém que o ame e alguém que
ele possa amar. Ele precisa disso.
Fui abençoada por passar cinco anos casada com ele. Agora, a
minha vida está quase terminada e você vai assumir o meu lugar. Vai
tornar-se a esposa que vai envelhecer ao lado do Alex e vai tornar-se a
única mãe que os meus filhos irão conhecer. Não pode imaginar como
é terrível estar deitada numa cama, olhar para a minha família, saber
dessas coisas e perceber que não posso fazer nada para mudar essa
situação.
É aqui que você entra. Eu quero que faça uma coisa por mim.
Se ama o Alex agora, então ame-o para sempre. Faça-o rir
novamente e valorize os momentos que passarem juntos. Saiam para
caminhar juntos, saiam para pedalar nas vossas bicicletas,
aconcheguem-se juntos no sofá e assistam a filmes sob um cobertor.
Prepare-lhe o pequeno-almoço, mas não o mime. Deixe que ele também
lhe prepare o pequeno-almoço, para que ele demonstre que você é
especial. Beije-o e faça amor com ele, e considere-se uma pessoa de
sorte por o ter encontrado. Ele é o tipo de homem que vai provar que
você está certa.
Eu também quero que ame os meus filhos da mesma forma que eu os
amo. Ajude-os a fazer os trabalhos de casa. Beije os seus joelhos e
cotovelos magoados quando eles caírem. Passe a mão pelos cabelos
deles e garanta-lhes que conseguirão fazer qualquer coisa e que basta
esforçarem-se para tal. Coloque-os na cama à noite e ajude-os com as
suas orações. Faça o almoço que eles levarão para a escola e apoie-os
com as suas amizades. Adore-os, ria-se com eles, ajude-os a crescer e a
transformarem-se em adultos gentis e independentes. O amor que lhes
der será retribuído e multiplicado por dez com o tempo. Eles
aprenderão a fazer isso com o Alex.
Por favor, imploro-lhe. Faça essas coisas por mim. Afinal, agora eles
são a sua família, e não a minha. Não sinto ciúmes ou raiva por me
substituir; como já mencionei, considero-a uma amiga. Você trouxe a
felicidade ao meu marido e aos meus filhos e eu gostaria de poder estar
por perto para lhe agradecer pessoalmente. Em vez disso, a única coisa
que posso fazer é assegurar que você terá minha gratidão eterna.
Se o Alex a escolheu, então quero acreditar que eu também a escolhi.

Da sua amiga,
Carly Jo

Quando Katie acabou de ler a carta, limpou as lágrimas e passou o dedo


pelas páginas antes de voltar a guardá-las no envelope. Sentou-se em silêncio,
pensando nas palavras que Jo escrevera, sabendo de imediato que faria
exatamente o que ela pedira. Não por causa da carta, pensou, mas porque
sabia que, de alguma maneira inexplicável, fora Jo quem a estimulara
gentilmente a dar uma oportunidade a Alex.
Ela sorriu. – Obrigada por confiares em mim – sussurrou, e soube que Jo
sempre estivera certa, desde o início. Apaixonara-se por Alex e pelas crianças
e já sabia que não era capaz de imaginar o seu futuro sem a presença deles.
Está na hora de ir para casa, pensou ela. Está na hora de ires ver a tua
família.
No exterior da cabana, a lua era um disco branco e brilhante que a guiou
quando se dirigiu ao jipe. Antes de entrar, no entanto, deitou uma última
olhadela por cima do ombro em direção à casa de Jo.
As luzes estavam acesas e as janelas da cabana brilhavam com uma
luminosidade amarela. Na cozinha pintada, ela viu Jo em pé ao lado da
janela. Embora estivesse longe de mais para perceber algo mais além daquilo,
Katie teve a impressão de que ela lhe sorria. Jo levantou a mão num aceno
amistoso e Katie lembrou-se mais uma vez de que o amor é capaz de alcançar
o impossível.
Contudo, quando Katie pestanejou, a cabana ficou novamente às escuras.
Não havia nenhuma luz acesa e Jo desaparecera, mas achou que conseguia
ouvir as palavras da carta a serem levadas pela brisa suave que soprava.
Se o Alex a escolheu, então quero acreditar que eu também a escolhi.
Katie sorriu e virou-se, sabendo que aquilo não era uma ilusão ou algo
criado pela sua imaginação. Ela sabia o que tinha visto.
Ela sabia no que acreditava.

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