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(ECHOES)
amadas.
elas sabem que podem contar uma com a outra. Nos momentos difíceis
sentem uma voz, uma voz que as une e lhes dá força para co ntinuar.
Aos meus queridos filhos, todos tão infinitamente preciosos para mim,
cada um deles tão especial: Beatrix, Trevor, Todd, Nick, Sam, Victoria,
Vanessa, Maxx e Zara.
Mamã d. s.
ANNE FRANK
TALMUDE
CAPÍTULO 1
Para ela, estudar era muito mais importante do que encontrar um noivo. O
pai dizia sempre que ela era a filha perfeita. O único momento em que
haviam discutido fora quando ela insistira em que queria freqüentar a
universidade, como os irmãos. O pai tinha considerado a idéia ridícula.
Embora ele próprio fosse um homem aberto e culto, não achava que uma
mulher necessitasse desse nível educacional. Respondeu-lhe que tinha a
certeza de que, dentro em pouco, ela estaria casada e a cuidar do marido e
dos filhos. Não precisava ir para a universidade e não lho permitira.
dois filhos no exército. Aqueles dias que haviam partilhado na Suíça fora
uma pausa reconfortante, tanto para os pais como para os filhos.
Quando se deixou ficar para trás dos outros, caminhando devagar junto ao
lago, Ulm abrandou o passo e veio pôr-se ao lado dela. Tratava-a sempre
com um espírito protetor, talvez por ser sete anos mais velhos. Beata sabia
que ele respeitava a sua natureza delicada e sensível.
Nessa altura, a mãe e a irmã iam muito mais à frente a conversar sobre
moda e sobre os homens que Brigitte achara elegantes nas festas da
semana anterior. Os homens da família falavam dos únicos assuntos que
lhes interessavam os quais, à época, eram a guerra e os negócios.
E, recentemente, Jacob dissera por várias vezes que já era tempo de Ulm
se casar. A única coisa que Jacob esperava dos filhos, ou, na verdade, de
todos os do seu círculo mais próximo, era que lhe obedecessem. Esperou o
mesmo da mulher e ela nunca o desiludira. Tão-pouco os filhos, à exceção
de Horst, que andara a protelar a ida para o trabalho, quando ingressou no
exército. Nesse momento, a última coisa que ele tinha em mente era casar-
se.
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casar-se Beata dizia muitas vezes que, se alguma vez casasse, esperava
que fosse com um professor e não necessariamente com um banqueiro.
Tornava-se impensável fazer uma declaração dessas ao pai, embora o
tivesse confessado com freqüência à mãe e à irmã. A posição de Brigitte
diferia por completo. O elegante e jovem amigo de Horst, em que andava
de olho, era tão superficial como ela e proveniente de uma família
bancária de igual importância. Jacob tencionava encontrar-se com o pai do
rapaz em Setembro para discutir o assunto, embora Brigitte não o soubesse
Contudo, até a data, ainda não aparecera um pretendente para Beata, nem
ela, na realidade, o desejava. Só raras vezes conversava com alguémnas
festas Acompanhava obedientemente os pais, vestida com a roupa que a
mãe lhe escolhia. Era sempre delicada para com os anfitriões, mas ficava
muito aliviada quando chegava a hora de regressar a casa. Contrariamente
a Brigitte, que tinha de ser arrast ada, queixando-se de que ainda era
demasiado cedo para abandonar a festa e porque é que a família tinha de
ser tão soturna e aborrecida? Horst concordava em absoluto com a irmã, e
sempre fora assim. Beata e Ulm eram os sérios
Ele era o único que se esforçava a sério por conversar com ela e conhecer-
lhe o pensamento. Horst e Brigitte estavam demasiado ocupados com
brincadeiras e diversões para perderem tempo a falar de assuntos mais
eruditos com a irmã
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Quem observasse Ulm e Beata no seu passeio junto ao lago, não lhes
encontraria qualquer parecença familiar. Os irmãos e a irmã eram a cópia
do pai, todos louros, altos, de olhos azuis e traços delicados. Beata saíra à
mãe, contrastando totalmente com eles.
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O que é isto? inquiriu com uma expressão severa ao ver o que ela estava a
ler. Na altura, tinha dezasseis anos e sentia-se fascinada com a leitura. Já
lera, antes, muita coisa do Velho Testamento.
Gostava tanto que não tivesses de voltar para a guerra declarou Beata
tristemente, conversando com Ulm enquanto prosseguiam o passeio.
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Os outros haviam retrocedido e agora, ela e Ulm, iam muito mais à frente,
em vez de se deixarem ficar para trás.
Também detesto a ideia de voltar, mas acho que a guerra acabará em breve
sorriu-lhe, tranquilo, sem acreditar nas palavras, só que era o tipo de coisa
que se dizia às mulheres. Ou, pelo menos, ele dizia. Vou conseguir
novamente licença no Natal.
Beata assentiu com a cabeça, pensando que o Natal parecia estar a uma
eternidade de distância, incapaz de suportar a ideia de como seria terrível,
caso lhe acontecesse alguma coisa. Adorava-o para lá do que lhe
expressava por palavras. Também gostava muito de Horst, mas ele mais
parecia o estúpido de um irmão mais novo do que um irmão mais velho.
Adorava arreliá-la e punha-a sempre a rir. O que ela e Ulm partilhavam era
diferente. Os dois continuaram a conversar agradavelmente durante todo o
caminho de regresso ao hotel e, nessa noite, partilharam um último jantar,
antes de os rapazes se irem embora no dia seguinte. Como era hábito,
Horst divertiu-os imenso com as suas imitações de todos os que haviam
conhecido e com as suas escandalosas histórias sobre os amigos.
Uma tarde, Brigitte e Monika foram às compras. Beata disse que ficaria no
hotel, pois tinha uma dor de cabeça. Era, de facto, mentira, mas achava
cansativo ir às compras com as duas. Brigitte experimentava tudo nas
lojas, mandando vir vestidos, chapéus e sapatos. Impressionada pelo seu
bom gosto e arguto sentido da moda, a mãe cedia sempre. Depois de
esgotarem as modistas, as sapatarias e as luvarias requintadas, faziam a
ronda pelas joalharias. Beata sabia que não regressariam antes do jantar e
sentiu-se contente por ficar sentada no jardim, a ler, ao sol.
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Beata notou que ele era extremamente bonito. Alto, louro, com os olhos da
cor dos dela, uns braços compridos e fortes e ombros atléticos. Agarrava-a
com firmeza pelo braço, enquanto lhe falava, e ela apercebeu-se de que
tinha o chapéu um pouco de lado, devido ao choque. Endireitou-o, ao
mesmo tempo que o examinava discretamente. Parecia um pouco mais
velho do que o seu irmão mais velho. Vestia umas calças brancas com um
blazer azul-escuro, uma gravata azul-marinho e um bonito chapéu de
palha que lhe dava um ar desenvolto.
Obrigada. Estou bem. Foi parvoíce minha. Não o ouvi a tempo de afastar-
me do seu caminho. Receio ser o único responsável. Sente-se bem? E o seu
tornozelo? interessou-se, parecendo simpático e bondoso.
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A minha intenção era apenas passar por si, sem a perturbar. Devia ter dito
algo, ou avisá-la, mas estava a milhões de quilómetros de distância, a
pensar nesta maldita guerra. É uma coisa horrível. Parecia perturbado
quando pronunciou as palavras e se recostou nas costas do banco, enquanto
ela
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fadas e extremamente simpático. Não tinha um ar arrogante ou
pretensioso. Assemelhava-se a um dos amigos de Ulm, embora fosse
muito mais bem- parecido.
Não, nada disso respondeu com honestidade, ao mesmo tempo que o fitava
nos olhos. Sou alemã acrescentou, quase à espera de que ele saltasse do
banco e lhe dissesse que odiava os alemães. Afinal, eram inimigos de
guerra e não fazia ideia de como ele reagiria à sua confissão.
Causou tudo isto? É culpada por esta guerra horrível, mademoiselle? Devo
irritar-me consigo? inquiriu, soltando uma gargalhada, que ela imitou.
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Seria mesmo. O meu irmão mais velho acha que tudo estará acabado
dentro em pouco.
Antoine jamais teria adivinhado que ela era alemã. Estava fascinado com a
sua beleza e nunca lhe ocorreu, mesmo depois
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Não, não aprendeu, ou se é esse o caso, é muito mais esperta do que eu.
Estudei inglês no liceu, ou pelo menos assim o dizem, mas não falo uma
palavra. E o meu alemão é uma vergonha. Não tenho o seu dom. Amaioria
dos franceses não o têm. Falamos francês e pouco mais. Partimos do
princípio de que todo o mundo aprenderá francês para poder comunicar
connosco; ainda bem que o fez. Também fala inglês? Algo lhe segredava
que sim. Embora não se conhecessem e a timidez dela não lhe passasse
despercebida, parecia uma rapariga muito inteligente e espantosamente à
vontade. Ela própria se surpreendia por se sentir tão bem na companhia
dele. Embora se tratasse de um estranho, inspirava- lhe segurança.
Falo inglês anuiu, embora não tão bem como francês. Continua a estudar?
quis saber, pois ela parecia-lhe jovem. Antoine tinha trinta e dois anos,
mais doze do que Beata.
Porque não? reagiu ele, após o que se reteve com um sorriso. Percebo.
Acha que deve casar-se e ter filhos. Não precisa de ir para a universidade.
Estou certo?
Cada vez ele lhe recordava mais Ulm. Beata sentia-se como se ela e
Antoine fossem velhos amigos e ele também parecia estar à vontade ao
seu lado. Sentia-se capaz de lhe falar com a maior honestidade, o que era
raro em si, pois mostrava-se, por regra, extremamente tímida com os
homens.
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Não estou muito segura. O casamento deles foi combinado e eles acham
bem. Também querem que os meus irmãos se casem.
Vinte e três e vinte e sete anos. Umdeles é bastante sério e o outro só quer
divertir-se e é um pouco rebelde respondeu, com um pequeno sorriso.
É cinco anos mais novo. Tem vinte e sete, como o seu irmão mais velho e
eu sou um velhote de trinta e dois anos. Os meus pais consideram-me uma
causa perdida.
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e tinha a sensação de que ele sentia o mesmo no que lhe dizia respeito.
Não, não sou casado respondeu, com um brilho divertido no olhar. Pensei
nisso uma ou duas vezes, mas nunca achei que fosse a atitude certa, apesar
de uma grande pressão por parte da minha família, porque sou o mais
velho. Mas prefiro estar só, em vez de cometer o erro de casar com a
pessoa errada. Concordo replicou, assentindo com a cabeça e parecendo
espantosamente determinada.
Por alguns momentos, achou-a quase infantil, mas noutros, em que lhe
dirigiu a palavra, era óbvio que se tratava de uma jovem com ideias muito
definidas, como sobre o casamento e a ida para a universidade.
E o que achou? Não posso afirmar que a li, exceptuando uns extractos, na
sua maioria em casamentos e funerais. Passo a maior parte do tempo a
ocupar-me dos cavalos e ajudo o meu pai a gerir a nossa propriedade. A
terra é o meu grande amor.
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Nunca estive lá, mas deve ser bonita, já que a ama tanto.
Em Colónia.
Nenhum homem com quem casasse iria tolerar que ela fizesse algo do
género, pois teria de cuidar dele e dos filhos.
Talvez o seja, um dia. Suponho que tudo depende de com quem casar ou se
o fizer. Também tem irmãs, ou apenas irmãos?
Tenho uma irmã mais nova, Brigitte, com dezassete anos. Adora ir a
festas, dançar, arranjar-se e mal consegue esperar pelo casamento. Está
sempre a dizer-me que sou um tédio respondeu Beata com um sorriso
malicioso que o levou a desejar abraçá-la, embora ainda não tivessem sido
devidamente apresentados. Sentiu-se de repente tão satisfeito por quase a
ter derrubado! A situação começava a parecer-lhe um rasgo de sorte e
achava que Beata pensava o mesmo.
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Talvez a sua mãe e a sua irmã se nos queiram juntar ao almoço? sugeriu,
esperançado
Não fazia tenção de baixar os braços. Nesta altura, uma guerra parecia-lhe
um obstáculo demasiado insignificante para que deixasse escapar uma
jovem mulher tão maravilhosa e encantadora. Vou perguntar-lhes
prometeu Beata num tom calmo. Contudo, sabia que faria mais do que
perguntar. Estava
pronta a lutar como um tigre para o ver de novo e receava que isso fosse
necessário. Sabia que aos olhos da mãe, ele teria duas características em
desfavor, a sua nacionalidade e a sua fé.
a continuação da sua amizade, ou o que quer que isto fosse Beata não
achava que ele estivesse a cortejá-la e só esperava que pudessem ser
amigos Não se atrevia a imaginar mais.
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Tenho a certeza de que a sua mãe ficará impressionada. Vai contar-lhe que
a empurrei para a lama, ou apenas que a atirei ao lago, para ter o prazer de
a ajudar depois?
Beata riu-se como uma criança ante aquelas sugestões. Antoine há anos
que não se sentia tão feliz. Podia, pelo menos, dizer-lhe que lhe agarrei no
braço e a impedi de cair, embora tivesse, de facto, tentado derrubá-la
quando a ultrapassei com tanta pressa. Contudo, já não lamentava aquele
pequeno incidente que se virara a seu favor. E podia ter a decência de
contar à sua mãe que me apresentei devidamente.
Talvez o faça.
Acha que seria horrível dizer-lhe que é suíço? Antoine hesitou, depois
assentiu com a cabeça. Percebia
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Não permitiria que algo se erguesse entre ambos e ela sentiu-se totalmente
protegida ao fitá- lo. Eram quase estranhos um para o outro e, no entanto,
Beata sabia que já confiava em Antoine. Algo fantástico e maravilhoso
acontecera entre eles, nessa tarde.
Telefono-lhe esta noite prometeu Antoine num tom meigo, quando ela
entrou no elevador e se virou na sua direcção, no momento em que o
ascensorista fechou as portas.
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CAPÍTULO 2
Para sua grande mágoa, Beata não estava preparada para a reacção da mãe,
quando, ao chegarem a casa, lhe mencionou casualmente o almoço com
Antoine. Explicou-lhe que se tinham conhecido no hotel à hora do chá,
conversado um pouco e que Antoine sugerira que almoçassem todos no dia
seguinte. Não teve coragem de falar num almoço a sós com Antoine. A
mãe já parecia suficientemente horrorizada assim.
Que idade tem ele? E o que está a fazer aqui em vez de estar na guerra?
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Está de passagem, tal como nós. Veio ver a família, porque o avô acabou
de morrer.
Lamento que assim seja replicou Monika num tom sóbrio e talvez se trate
de um homem perfeitamente decente, mas é um completo estranho. Não
lhe fomos devidamente apresentadas por alguém que nos conheça, ou a
ele, e não iremos almoçar juntos.
Antoine de Vallerand.
Os olhos da mãe procuraram os dela e não os largaram durante um longo
momento. Interrogou- se sobre se Beata o conhecera antes, mas não notou
nada de falso. Ela era apenas jovem, inconsciente e ingénua.
E é crime ser nobre? retorquiu Beata num tom um pouco mordaz, mas
fitando a mãe com um olhar triste, o que a preocupou ainda mais.
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Como é ele? perguntou Brigitte, exibindo uma nova mala de camurça preta
e um bonito par de luvas brancas compridas. É bonito?
Na verdade, tanto quanto sabia, ele tinha mais cinco anos do que o irmão.
Era a terceira mentira que contara para o proteger e à amizade que
desabrochava entre ambos. Passar tempo com Antoine parecia-lhe valer a
pena. Queria vê-lo novamente, mesmo que fosse na presença da mãe e da
irmã, se nada mais pudesse fazer. Apenas queria passar um pouco mais de
tempo com ele. Quem sabia quando se voltariam a encontrar.
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que fossem as suas filhas, nenhuma das suas amigas cristãs alguma vez
sugerira apresentá-las aos seus filhos. Neste caso, como em todos os
outros, os adultos eram melhores juizes. E Monika manteve-se firme e
intransigente. Jacob tê-la-ia morto e com razão, se assim não fosse.
Não compreendo o que achas que pode acontecer ao almoço. Afinal, ele
não é um assassino objectou Beata, queixosa.
Beata era demasiado liberal nas suas ideias, embora, por norma, se
mostrasse obediente, bem-comportada e fosse motivo de orgulho para os
pais. Monika decidiu, pois, falar com Jacob sobre o assunto, quando
regressassem. Sabia que o marido tinha vários partidos respeitáveis e ricos
em mente, incluindo o dono de um banco rival. Tinha praticamente idade
para ser pai de Beata, mas Monika concordava com o marido, como em
tudo o mais, que um homem mais velho, inteligente e rico lhe serviria na
perfeição.
Embora ainda nova, Beata era uma rapariga muito grave, por isso um
jovem não lhe conviria tanto. Contudo, o que quer que pudesse ter mais a
favor dele, o factor mais importante, aos olhos dos pais, residia em que
devia professar a mesma fé. Qualquer outra possibilidade estava fora de
questão. E o jovem nobre que as convidara para almoçar enquadrava- se
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Então, o que é que se passou mesmo com esse homem, hoje? perguntou
Brigitte, parecendo provocante, vestida com a roupa interior cor de
pêssego e rendas beje, que a mãe lhe comprara nesse dia. Monika achara-a
um pouco ousada, mas não havia qualquer mal em fazer-lhe a vontade. De
qualquer maneira, ninguém a veria, excepto a irmã e a mãe. Ele beijou- te?
Brigitte era tão bonita, que quase parecia um anjo. Beata sentia-se sempre
um rato ao lado dela e detestava o seu cabelo escuro. Não queria mal a
Brigitte por isso, só desejava parecer-se mais com a irmã, que tinha umas
formas muito mais
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voluptuosas do que Beata. Junto à irmã mais nova, ela parecia uma miúda.
E Brigitte sabia aparentemente muito mais sobre os homens. Falava-lhes
mais vezes do que Beata e adorava troçar deles e enlouquecê- los. Beata
sentia-se muito melhor e mais à vontade na companhia de mulheres.
Brigitte flartava ousadamente, sendo perita em torturar os ho mens.
Estava de mau humor. Teria de dizer a Antoine que não podia vê-lo,
quando ele telefonasse. Sabia, com plena certeza, que não havia forma de
convencer a mãe a almoçarem todos e muito menos apenas os dois.
Claro que não. Nem sequer o conheço. Apenas gostei de conversar com
ele.
Não devias falar com os homens sobre essas coisas. Eles não gostam.
Acharão que és estranha observou com a melhor das intenções à irmã mais
velha, o que ainda deprimiu mais Beata.
Brigitte era sabida para a sua idade, com base no instinto, se não na
experiência.
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- É provavelmente o que farei anuiu, sem estar muito certa de que lhe
interessasse.
A maioria dos jovens que conhecia nas festas parecia-lhe ridícula. Beata
adorava, por exemplo, o irmão, mas preferia morrer a casar-se com um
homem como Horst. Teria tolerado um homem como Ulm, mas a
perspectiva de se casar com alguém do seu meio não lhe agradava muito,
ou mesmo nada. Todos lhe pareciam horríveis, monótonos e
frequentemente imaturos e superficiais. Antoine era diferente. Mais sério
e profundo do que a maioria dos homens que conhecia, protector e sincero.
Nunca sentira por ninguém, passadas umas horas, o mesmo que sentia por
ele. Não que isso a levasse a algum lado. E não fazia ideia do que ele
sentia a seu respeito. Não possuía os instintos de Brigitte nem a sua
sabedoria a lidar com os homens. Brigitte poderia ter-lhe dito, sem hesitar,
que Antoine estava louco por ela, mas não os vira juntos. Embora lhe
tivesse parecido bem-intencionado. O convite para almoçar era um sinal
de que existia algum interesse ali, mas não disse nada a Beata. A irmã
mais velha não estava visivelmente na disposição de continuar a discutir o
assunto.
Eram três mulheres muito bonitas que o chefe sentou à mesa. Beata
continuou muito quieta depois de terem encomendado o jantar, enquanto
Brigitte e a mãe falavam das compras que haviam feito nessa tarde. A mãe
contou-lhe que tinham visto alguns vestidos que lhe ficariam bem, mas a
jovem não se mostrou interessada.
É uma pena que não possas vestir-te com livros troçou Brigitte. Irias
divertir-te muito mais nas lojas.
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Para quê ter esse trabalho quando se pode comprá-la nas lojas?
Uma vez, fizera um belo vestido de noite de cetim verde como presente de
aniversário para a mãe, e Monika mostrara-se surpreendida com a
perfeição. Teria feito outro para Brigitte, mas a irmã dizia sempre que
detestava roupas feitas em casa. Pareciam-lhe patéticas. Em vez disso,
Beata costurou, por vezes, para a irmã a roupa interior de cetim e enfeites
que ela adorava, num arco-íris colorido.
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Antoine não fez qualquer tentativa para apresentar as duas mães por saber
que criaria problemas, dado Beata desejar que ele reivindicasse a sua
nacionalidade suíça. Não podia, assim, apresentar Monika à sua mãe,
contentando-se em ir ter com aquela e com a encantadora Brigitte, que o
fitava incrédula. Ele mal a olhou, tratando-a como a criança que ela era e
não como a mulher que ansiava por ser, o que conquistou a aprovação de
Monika. Antoine tinha uns modos impecáveis e era, sem dúvida, um
homem educado e não um conquistador barato, como receara.
Está muito bem, obrigada, monsieur. Foi muito gentil respondeu Beata,
corando.
De nada. C’était la moindre dês choses... era o mínimo que podia fazer.
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Também a mim.
”Só que muito mais bonito”, pensou sem o dizer, enquanto cortava
calmamente a carne e rezava para que ninguém lhe ouvisse o bater
acelerado do coração.
Antoine portara-se na perfeição, não que tal interessasse. O que quer que
sentiam um pelo outro não os levaria a lado nenhum, mas, pelo menos,
podia vê-lo. De qualquer maneira, uma vez mais. Seria uma bela
recordação que levaria consigo. O elegante e jovem homem que conhecera
em Genebra. Beata tinha a certeza de que todos os que conhecesse depois
ficariam a perder por comparação com ele, durante anos. Já se resignara à
situação e imaginou-se como solteira para o resto da vida, enquanto
jantava. O seu pecado mais imperdoável residia no facto de não ser judeu.
Para já nem falar no facto de que também não era suíço. Tratava-se de um
beco sem saída.
Nesse caso, foi simpático em convidar-te para tomar chá. E a nós para
almoçarmos, amanhã. Beata apercebeu-se de que a mãe também ficara
momentaneamente
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encantada com ele. Tornava-se difícil que assim não fosse. Antoine era tão
elegante e tão simpático para todos, e Beata sentiu-se intimamente
satisfeita por ele ter ignorado Brigitte. Todos os outros homens que Beata
conhecia quase desmaiavam aos pés da irmã. Contudo, ele não pareceu
impressionado. Estava encantado com Beata, embora também não o
tivesse mostrado. Actuara de uma forma perfeitamente normal e amistosa,
tal como Ulm, e fora por esse motivo que Monika aceitara o seu convite
para almoçar. Não era decididamente um conquistador barato como
temera, mas respeitável e agradável. Beata não falou mais no assunto,
enquanto as três acabavam de jantar. Nem sequer olhou na direcção dele,
quando saíram do terraço, e ele não fez mais nenhuma tentativa de lhes
falar. Não era, de forma alguma, o que Monika havia suspeitado ou
temido. O próprio Jacob não podia desaprovar. O encontro casual fora
obviamente inofensivo.
Oh, Deus do céu, Beata! Ele é um espanto! sussurrou à irmã mais velha, de
olhos arregalados. E está doido por ti. Vocês os dois enganaram
completamente a mamã!
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Beata riu-se ante a sábia e mundana análise da situação feita pela irmã.
Contudo, esta era muito mais sofisticada em relação ao mundo e aos
homens do que Beata. Tinha um bom instinto. Melhor do que a sua tímida
e séria irmã.
Não, Brigitte vincou. Ele não é judeu. Apenas podemos ser amigos.
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É verdade anuiu Brigitte num tom triste. Mas, pelo menos, podes flartar
com ele. Precisas de praticar.
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CAPÍTULO 3
Antoine e Beata sentiram um enorme alívio quando, por fim, se viram sós
e caminharam quilómetros junto ao lago. Desta vez, quando pararam,
sentaram-se numa estreita faixa da praia, em cima da areia e com os pés
dentro de água, conversando sobre milhares de coisas. Partilhavam,
aparentemente, gostos e opiniões semelhantes sobre quase tudo.
Obrigada por nos ter levado a almoçar. Foi muito simpático para com a
minha mãe e a Brigitte. Por favor! Elas trataram-me da melhor maneira,
embora tenha a certeza de que a sua irmã irá despedaçar o coração de
muitos homens. Espero que a casem depressa.
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Sentiu-se um pouco maldosa por isso, mas estava contente. Ela está mais
ou menos apaixonada por um dos amigos do Horst, e o meu pai vai falar
brevemente com o pai dele. Estou certa de que ficará noiva antes do fim
do ano.
Espero que não. Não o farei. Acho que nunca casarei respondeu
tranquilamente e as palavras saíram-lhe num tom convicto.
Porque não?
Para sempre é muito tempo, Beata. Vai querer ter filhos e assim deve ser.
Talvez um dia conheça alguém por quem se apaixone. Tem apenas vinte
anos e toda uma vida pela frente.
Eu tenho uma guerra em que lutar. Quem sabe quais de nós irão
sobreviver? Os homens caem como moscas nos campos de batalha. No
preciso momento em que disse a frase pensou nos irmãos dela e lamentou
tê-lo feito. Estou certo de que acabaremos por sair dela, mas é difícil
pensar no futuro. Também sempre achei que ficaria solteiro. Acho que
nunca me apaixonei declarou honestamente, fitando-a, mas as palavras
seguintes surpreenderam-na quase tanto a ela quanto a ele... até a conhecer.
Seguiu-se um silêncio depois de ele falar, e Beata não fazia ideia do que
responder. Apenas sabia que também estava
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apaixonada por ele. apesar de terem acabado de se conhecer. Oque Antoine
dissera era uma loucura, o que sentiam também, mas era a verdade e nada
podiam fazer a esse respeito. Era impossível, e ambos o sabiam, mas, de
qualquer maneira, ele dissera- o.
Sou judia explodiu Beata. Nunca poderei casar consigo acrescentou com
os olhos cheios de lágrimas. Ele agarrou-lhe na mão.
Durante o dia inteiro, Antoine fantasiara casar com ela. Era um sonho
louco para ambos, mas não podia negar o que sentia. Levara trinta e dois
anos a encontrá-la e ainda não queria perdê-la. Ou nunca, se pudesse evitá-
lo. Contudo, erguiam-se, sem dúvida, obstáculos no caminho deles. Seria,
na melhor das hipóteses, difícil. A sua própria família ficaria
escandalizada. Ele era Comte de Vallerand, um conde, e ainda nem sequer
lho dissera. Estava certo de que não teria importância para ela. O que os
atraíra um ao outro era muito mais profundo do que a fé, títulos, posição
ou nascimento. Antoine amava tudo nela, o que dizia e o que sentia, a
forma como encarava o mundo e era assim que também ela o amava.
Sentiam- se atraídos um pelo outro pelos motivos certos, mas a fé e as
nacionalidades de ambos, as crenças e as famílias iriam conspirar para que
se mantivessem separados. O segredo consistia em não permitir que
ganhassem, se lhes fosse possível. Era o que se veria.
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Também o amo.
Quero que saibas que te amo, caso me aconteça alguma coisa, quando
voltar. Quero que saibas que este homem te ama e te amará até ao dia em
que mo rrer.
Espero que seja daqui a muito tempo desejou ela, num tom solene,
referindo-se a ”amá-la até ao dia em que morresse”.
Engendraram um plano para se verem mais tarde, nessa noite. Beata disse-
lhe que Brigitte dormia como uma pedra e não daria pela sua saída.
Encontrar-se-iam no jardim, à meia-noite, só para falarem. Era arriscado,
se a mãe descobrisse, mas Beata garantiu que, se a mãe ou Brigitte ainda
estivessem a pé, não apareceria. Ele suplicou-lhe que fosse prudente e
sensata, embora o que estavam a fazer fosse tudo menos isso. Por um
qualquer milagre, Beata conseguiu esgueirar-se nessa noite e em todas as
que se lhe seguiram. Durante três semanas deram longos passeios,
tomaram chá e encontravam-se quando a noite ia adiantada. Quando ele
partiu de Genebra, pouco antes dela, estavam profundamente
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Também te amo respondeu ela no mesmo tom e entre soluços, após o que
se afastou e se meteu na cama do quarto que partilhava com Brigitte.
Duas horas mais tarde, ainda acordada, viu uma carta a deslizar por baixo
da porta. Levantou- se para lhe pegar, mas quando abriu cautelosamente a
porta, ele já se fora embora. A carta dizia-lhe o que já sabia, quanto a
amava e que um dia seria dele. Dobrou-a com todo o cuidado e meteu-a na
gaveta onde guardava as luvas. Não teve coragem de destruí-la, embora
soubesse que o deveria fazer por uma questão de segurança. Contudo, dado
ser muito mais alta do que a irmã mais velha, Brigitte nunca calçava as
luvas de Beata, portanto sabia que a carta estaria a salvo. Beata não fazia
ideia do que iria acontecer agora. Apenas sabia que o amava e tudo o que
estava
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ao seu alcance naquele momento era rezar para que ele se mantivesse vivo.
O seu coração pertencia- lhe. Por um qualquer milagre, Beata tinha
conseguido ocultar de Brigitte tudo o que ac ontecera, insistindo em que
ela e Antoine eram apenas amigos. Brigitte ficou desiludida com a notícia
e, de início, desconfiou, mas acabou por acreditar na irmã. Beata não
mostrou qualquer sinal do amor ou da paixão que sentia por Antoine e
nada lhe confessou. Havia coisas demasiadas em jogo. Não podia confiar
em ninguém quanto ao seu futuro, à excepção do próprio Antoine, tal
como ele confiava nela. A mãe achava simpático que ela tivesse feito um
amigo e disse que esperava voltar a vê-lo, quando algum dia regressassem.
Sabia que, enquanto houvesse guerra, Jacob desejaria voltar de novo à
Suíça, para ter alguma paz.
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encontrado o indivíduo certo. Este não seria a sua primeira escolha, mas,
ao proceder a uma análise mais cuidada, concluiu que o homem que
escolhera era o marido ideal para a filha. Tratava-se de um viúvo, sem
filhos, de uma excelente família e uma enorme fortuna pessoal.
Jacob desejara alguém mais velho e mais estável para Beata do que o
elegante e bonito jovem que arranjara para Briggite, que podia revelar-se
inconstante, pois ainda era imaturo e irresponsável, decididamente
mimado, embora Jacob simpatizasse com ele. Contudo, Brigitte adorava-o.
O marido que Jacob escolhera para a sua filha mais velha era um homem
ponderado e muito inteligente. Sem ser bonito, também não era feio,
embora começasse a ficar calvo. Era alto e corpulento, tinha quarenta e
dois anos, mas Jacob sabia que ele a respeitaria. O homem em questão
respondeu que seria uma honra ficar noivo de uma jovem tão bonita. A
mulher morrera há cinco anos, vítima de uma doença prolongada, e ele não
pensara em voltar a casar-se. Era uma pessoa calma, que detestava a vida
social da mesma maneira que Beata, desejando apenas um lar tranquilo.
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Nessa noite sentira-se preocupada com Antoine; há dias que não tinha
notícias dele, até receber a carta que mencionava o ataque das forças
alemãs às francesas, em Verdun. Mal conseguia pensar noutra coisa
durante todo o jantar; por fim, declarou que tinha uma dor de cabeça e
abandonou a sala depois da sobremesa, sem se despedir. Achou mais
discreto desaparecer pura e simplesmente. Em seguida, o futuro noivo
perguntou a Jacob quando tencionavam dizer-lhe e este prometeu que o
faria dentro de dias. Queria que ela fosse tão feliz quanto Brigitte, e este
era, sem dúvida, o homem que lhe convinha. O futuro marido da filha até
partilhava a sua paixão pelos filósofos gregos, tendo tentado discuti-los
com ela ao jantar, mas Beata mostrara-se distraída e distante, limitando-se
a assentir com a cabeça ante o que ele dizia. Não escutara uma única
palavra dele desde a sopa à sobremesa. Era como se pairasse algures no
espaço, incapaz de descer à terra. O seu futuro noivo achou-a uma jovem
modesta e encantadoramente discreta. Beata estava de muito melhor
humor quando o pai se cruzou com ela no corredor, no dia seguinte.
Acabara de receber outra carta de Antoine, que voltara a garantir-lhe estar
bem e loucamente apaixonado por ela, como sempre. Tinham passado uns
dias infernais próximo de Verdun, mas estava vivo e bem, embora exausto
e faminto. As condições que descrevia eram de pesadelo, mas o mero facto
de saber que ele estava vivo chegou para lhe elevar imensamente o moral,
e o pai ficou encantado ao vê-la tão feliz, quando lhe
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O pai pareceu chocado ante esta descrição excessivamente gráfica das suas
expectativas e resolveu que seria a mãe a
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falar com ela. Fez mais uma tentativa para chamar a filha à razão.
Esperara que ela ficasse satisfeita e não furiosa.
- disse. Ele é o homem certo para ti. As jovens da tua idade fazem uma
ideia romântica do amor, que não corresponde à realidade. O que precisas
é de um companheiro para a vida, que partilhe os teus interesses, seja
responsável e te respeite. O resto virá a seu tempo, Beata. Garanto-te. És
muito mais sensata do que a tua irmã e precisas de um homem que seja tão
sensato e prático como tu. Não precisas de um jovem tonto com uma cara
bonita. Precisas de um homem que te proteja e zele pela tua sobrevivência
e a dos teus filhos, um homem com quem possas contar e conversar. É isso
o casamento, Beata, e não o romance e as festas. Não queres, nem precisas
dessas coisas. Prefiro um homem destes para ti concluiu quase
severamente, enquanto ela lhe deitava um olhar furibundo, do outro lado
da sala.
Então, durma o papá com ele. Não deixarei que me toque. Não amo este
homem e não casarei com ele, só porque o diz. Não serei vendida como
escrava a um estranho, qual cabeça de gado, papá. Não pode fazer-me isto.
Não tolero que me fales nesses termos ripostou Jacob, tremendo de raiva.
O que querias que fizesse? Deixar que vivesses aqui como uma velha
solteirona para o resto da vida? O que te acontecerá quando a tua mãe e eu
morrermos e ficares desprotegida? Este homem cuidará de ti, Beata. É do
que precisas. Não podes ficar aí sentada à espera que um belo príncipe te
descubra e te leve com ele, um príncipe que seja tão intelectual como tu,
tão sério e tão fascinado pelos livros e os estudos como tu. Talvez
preferisses um professor universitário, mas esse não estaria em condições
de dar-te a vida a que estás habituada e mereces. Este homem tem meios
idênticos àqueles em que foste criada. Deves aos teus futuros filhos
casares-te com alguém como ele, Beata, não com um artista ou um escritor
famintos que te deixarão a morrer tuberculosa em qualquer mansarda.
Deves ser realista e casar com o homem que escolhi para ti. A tua mãe e
eu sabemos o
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Prefiro morrer retorquiu ela, sem desfitar o pai e dando a sensação de que
nunca falara tão a sério. Jacob nunca a vira tão furiosa e determinada e, ao
examiná-la, uma dúvida atravessou-lhe a mente.
Beata decidira ser honesta com o pai. Sentia que não lhe restava outra
escolha. Este momento chegara mais depressa do que desejara ou esperara
e apenas podia rezar para que o pai se mostrasse razoável e justo com ela.
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O pai tinha razão, como em tantas outras vezes. Beata sentiu que todo o
corpo lhe tremia de medo, quando lhe respondeu:
Então, porque é que mantiveste tudo isto em segredo, Beata? O que estás a
esconder-me? rugiu com uma tal força que Monika o ouviu no andar de
cima.
Ele é católico e francês sussurrou Beata, ao mesmo tempo que o pai emitia
um som semelhante ao de um leão ferid o.
Foi tão horrível, que ela recuou vários passos, enquanto o pai avançava na
sua direcção, sem pensar. Só parou quando chegou junto dela e lhe agarrou
no frágil corpo com as duas mãos. Sacudiu-a com tal força pelos ombros
que os dentes bateram uns contra os outros, quando lhe gritou em pleno
rosto:
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Não podia desistir de Antoine, nem casar com o homem que o pai
escolhera. Pouco importava o que ele lhe fizesse.
Beata manteve-se ajoelhada durante muito tempo, num pranto, até que, por
fim, a mãe apareceu, também ela a chorar. Ajoelhou-se ao lado da filha,
com o coração despedaçado ante o que acabara de ouvir.
Como pudeste fazer isto, Beata? Tens de esquecê-lo... Sei que é um bom
homem, mas não podes casar-te com um francês, sobretudo com esta
terrível guerra entre os nossos povos. E muito menos casar com um
católico. O teu pai escreverá o teu nome no livro dos mortos da família
pronunciou Monika, desesperada ante a expressão do rosto da filha.
De qualquer maneira, morrerei, se não casar com ele, mamã. Amo-o. Não
posso casar com aquele homem horrível.
Sabia que ele não era horrível, mas era velho aos seus olhos e não era
Antoine. Vou dizer ao teu pai que o informe. Mas nunca poderás casar com
Antoine. Prometemos casar um com o outro depois da guerra.
Tens de dizer-lhe que é impossível. Não podes negar tudo o que és.
Posso costurar... Podia ser modista, professora, o que tiver de ser. O papá
não tem o direito de fazer-me isto.
Contudo, ambas sabiam que o faria. Ele podia fazer o que quisesse e
dissera-lhe que, se casasse com um cristão, morreria para eles. Monika
acreditava no marido e não conseguia suportar a ideia de não voltar a ver
Beata. Era um preço demasiado elevado a pagar por uma simples história
de amor.
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Nunca recusou, soluçando nos braços da mãe. Jacob não era estúpido.
Nessa tarde, informou Rolf Hoffman que Beata era jovem, inocente e
parecia recear as... obrigações físicas... do casamento e
não estava seguro que a filha estivesse pronta para casar com alguém. Não
queria iludir o homem, nem contar-lhe toda a verdade. Disse-lhe que,
talvez, após um prolongado namoro e de se conhecerem um ao outro, ela
se sentisse mais à vontade com tudo o que o casamento acarretava.
Nessa noite, Beata não desceu para jantar e Jacob não a viu durante vários
dias. Segundo a mãe, a filha não saíra da cama. Beata escrevera uma carta
a Antoine, contando-lhe o sucedido. Disse que o pai jamais concordaria
com o casamento deles, mas ela estava disposta a casar com ele, quer
depois da guerra ou antes, o que ele achasse melhor. Contudo, deixara de
sentir-se à vontade na sua casa em Colónia. Sabia que o pai continuaria a
tentar obrigá-la a casar com Rolf. Também sabia que decorreriam algumas
semanas antes de receber uma resposta de Antoine, mas estava preparada
para esperar.
Não teve notícias dele durante dois meses. Corria o mês de Maio quando,
por fim, recebeu uma carta dele. Durante todo esse tempo, vivera no terror
de que tivesse sido ferido ou morto ou que, ao saber da raiva do pai dela,
decidisse recuar e não voltar a escrever-lhe. A primeira hipótese era a
correcta. Antoine fora ferido há um mês e estava num hospital em Yvetot,
na costa da Normandia. Quase perdera um
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braço, mas garantia que em breve estaria bem. Acrescentava que quando
ela recebesse a carta, já estaria em casa, em Dordogne, e falaria à sua
família sobre o casamento deles. Não regressaria à Frente, nem tão-pouco
à guerra. Contudo, repetia várias vezes que estava bem e a amava muito,
muito.
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Nessa altura não, mas agora sim. Haviam posto a alma a nu em seis meses
de cartas e, mesmo em Genebra, passadas três semanas, ambos tinham tido
a certeza. Pode não fazer sentido para ti, mas sei que a minha atitude está
certa.
Esta ideia, que não a abandonara nos últimos dois meses, fazia com que
Beata se sentisse doente. Espero que ele não me faça tal coisa respondeu
com a voz estrangulada.
A ideia de nunca mais ver a mãe, os irmãos, o pai e até mesmo Brigitte era
inconcebível, mas também o era abdicar do homem que amava. Não podia
fazê-lo. E, mesmo que o pai a banisse no início, esperava que algum dia
cedesse. Não acreditava que pudesse perder a família, ao passo que, se
perdesse Antoine, seria para sempre.
E se o papá levar a dele por diante e nos proibir de te vermos? insistiu
Brigitte, que queria forçar Beata a tomar consciência do risco que corria.
O que farias?
Esperava até que ele mudasse de opinião respondeu Beata num tom triste.
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acabe por perdoar-te se não casares com Rolf, mas não se casares com o
teu francês. Ele não é digno desse sacrifício, Beata. Ninguém o é. Brigitte
sentia-se feliz por contar com a aprovação dos pais e jamais teria tido a
coragem e a audácia de agir como a irmã. Só te peço que não faças nada
que possa perturbar a família antes do meu casamento concluiu, na falta de
mais argumentos
Antoine ficara tão indignado com esta reacção, que já estava na Suíça à
espera dela, quando lhe escreveu. Propunha-lhe que ficassem lá até ao
final da guerra caso Beata ainda quisesse casar com ele, sabendo o que o
afastamento das famílias significaria para ambos. O primo dissera-lhe que
podiam ficar na casa dele e ajudá-lo e à mulher na herdade. Antoine não
lhe escondeu que não ia ser fácil, pois, uma vez separados das famílias,
ficariam sem dinheiro. Os primos tinham muito pouco de seu e os dois
viveriam da caridade deles e trabalhariam para pagar a subsistência
Antoine sentia-se preparado, mas acrescentava que compreenderia e não
ficaria a querer-lhe mal se ela decidisse que deixar a família por ele era
algo por demais difícil. Escrevia ainda que continuaria a amá-la,
independentemente da sua decisão. Sabia que a jovem estaria a sacrificar
tudo o que amava, tudo o que lhe era importante e familiar, caso decidisse
casar com ele. A decisão final pertencia- lhe
O que emocionou Beata foi Antoine já ter feito o mesmo sacrifício por ela.
Abandonara a família em Dordogne, com a proibição de nunca mais voltar.
Encontrava-se ferido
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O drama ocorreu dois dias após a cerimónia, quando o pai pediu a Beata
que lhe garantisse que Antoine desaparecera da sua vida para sempre. Os
irmãos já haviam regressado às respectivas companhias e Brigitte partira
em lua-de-mel. Sabendo que Antoine a esperava na Suíça, Beata recusou
fazer essa promessa ao pai. Monika tentou acalmá-los, mas em vão. Por
fim, Jacob declarou-lhe que se não renunciasse ao ”seu” católico, devia ir
juntar-se-lhe, mas consciente de que jamais poderia voltar. Ele e a mãe
fariam o shiva por ela a vigília destinada aos mortos pois, no que lhes
dizia respeito, a filha estaria morta após deixar a casa. Acrescentou que
jamais deveria contactá-los. Mostrou-se tão intransigente e furioso com
ela, que Beata tomou uma decisão.
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Após ter batalhado durante horas com o pai e de lhe haver suplicado que
fosse mais sensato e aceitasse conhecer Antoine, regressou ao quarto,
vencida. Encheu duas pequenas malas com tudo o que achava poder ser-
lhe útil na herdade da Suíça, bem como fotografias da família. Depois,
fechou as malas, lavada em lágrimas, e pousou-as na entrada, onde a mãe a
esperava, soluçando.
Não faças isso, Beata., ele nunca mais te deixará voltar. Vais lamentar isto
para o resto da vida. Era a primeira vez que via o marido tão enraivecido.
Não queria perder a filha, mas, aparentemente, nada podia fazer para
impedir esta tragédia. Vais arrepender-te a vida inteira.
Eu sei, mas nunca amarei outro homem senão Antoine. Não quero perdê-lo
respondeu Beata num tom grave, pensando que também não queria perder
a família. Vais escrever-me, mamã?
Ele não vai deixar-me ler as tuas cartas replicou Monika, esforçando-se
por abraçar Beata o máximo de tempo possível. Oh, minha querida!... Sê
feliz com esse homem... Espero que ele cuide bem de ti... Espero também
que te mereça. Oh, minha querida. Nunca mais te verei!
Foi a primeira vez que Beata o achou velho. Até essa altura,
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tinha-o encarado como alguém jovem, o que já não era o caso. Jacob
estava prestes a perder a sua querida filha, aquela de quem se sentia mais
orgulhoso, e a última que ainda estava em casa.
A tua mãe e eu faremos o shiva por ti esta noite. Que Deus te perdoe pelo
teu acto.
Esperou três horas pelo comboio para Lausana. Teria mais do que tempo
para voltar atrás na sua decisão, mas estava convencida, no mais fundo de
si, que o seu futuro era com Antoine. Este renunciara a tudo por ela e,
embora ignorasse o que o futuro lhes reservava, sabia, desde o primeiro
dia, que ele era o seu destino. Desde Setembro que não o via, mas Antoine
fazia parte dela; pertencia-lhe, tal como os pais pertenciam um ao outro ou
Brigitte pertencia ao homem que acabava de desposar. Todos deviam
seguir o seu destino e, talvez um dia, com sorte, ela voltasse a vê-los. De
momento, era este o seu caminho. Achava inconcebível que o pai se
mantivesse eternamente agarrado à sua posição. Acabaria por ceder
qualquer dia.
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Beata estava tranquila quando subiu para o comboio, nessa tarde. Não
cessou de chorar durante uma grande parte da viagem, até acabar por
adormecer. A senhora de idade que partilhava a sua carruagem, sabendo
que ela devia descer em Lausana, acordou-a quando o comboio parou e
Beata agradeceu- lhe. Contudo, ao ver-se sozinha no cais, sentiu-se órfã.
Não tinha a certeza de que virias. Receei que... Era pedir-te tanto...
As lágrimas corriam pelas faces de ambos, à medida que Antoine lhe dizia
quanto a amava. Ela fitou-o com um misto de temor e de respeito.
Doravante, Antoine era o seu marido, o seu presente e o seu futuro, o pai
dos filhos que teriam em comum. Era tudo para ela, e ela para ele, e pouco
importava o que teriam de enfrentar, desde que se conservassem juntos.
Por mais doloroso que fosse ter abandonado a família, sabia que tomara a
decisão certa.
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CAPÍTULO 4
A herdade dos primos de Antoine primava pela modéstia, mas os terrenos
à volta eram magníficos e a casa acolhedora e sem pretensões. Havia dois
quartinhos contíguos, num dos quais tinham criado os três filhos. Há
muito que estes tinham partido para a cidade, pois nenhum quisera ficar a
trabalhar na herdade. Havia também uma grande cozinha confortável e
uma sala de estar reservada aos domingos, mas que ninguém utilizava.
Beata calculou que rondassem mais ou menos a idade dos pais, embora
quando lhes falou percebesse que eram, na realidade, mais velhos. A vida
de dura labuta, mas saudável, que tinham levado fizera-lhes bem E,
naqueles tempos difíceis, o porto de abrigo que haviam oferecido ao
jovem casal assemelhava-se a uma dádiva do céu. Antoine estava disposto
a fazer tudo o que pudesse para ajudá- los, em troca da sua hospitalidade,
mas estava limitado devido ao braço ferido.
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músculos e os nervos do braço esquerdo e a ferida ainda não cicatrizara.
Os médicos haviam dito a Antoine que, eventualmente, ele poderia voltar
a usá-lo, mas não até que ponto. E, visivelmente, nunca seria como dantes.
Nada mudava o que Beata sentia por ele, que, por sorte, era dextro.
Antoine e ela ainda não tinham tido tempo de discutir o assunto. Era tudo
uma novidade e precisavam de decidir tanta coisa! Ainda se encontrava
sob o choque dos seus últimos dias em Colónia. Nessa noite, o casal falou
dos seus projectos até tarde. Antoine improvisara uma cama para si no
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Vão casar-se pelo civil ou pela igreja? perguntou o funcionário como mera
rotina e Antoine virou-se para Beata, com um ar desconcertado.
Esta questão não lhes ocorrera. Antoine pensara simplesmente numa breve
cerimónia na maire. Sem outra família à excepção dos Zuber, e, dadas as
circunstâncias, o seu casamento seria apenas um acto oficial que lhes
permitiria legitimar a sua união para viverem juntos e em paz. Não haveria
qualquer cerimónia religiosa, nem recepção, nem festa depois. Tratava-se
apenas de uma formalidade para que se tornassem marido e mulher. Como
e onde se casariam e quem o faria eram perguntas que nem sequer lhes
haviam cruzado a mente. Quando o funcionário lhes dirigiu a pergunta,
Antoine fitou hesitante a sua futura mulher E, ao saírem para o sol de
Verão, Antoine estreitou a cintura de Beata com o braço direito e beijou-a
meigamente. A jovem fitou-o com um sorriso nos lábios e uma expressão
muito calma.
Dentro de quinze dias estaremos casados pronunciou com ternura
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Não tinha pensado no assunto. Não podemos ser casados por um rabino,
pois, para isso, terias de converter-te. Terias de estudar as Escrituras
Sagradas, o que poderia levar anos respondeu Beata, sensata. Duas
semanas de espera já lhes parecia uma eternidade. Nenhum deles estava
disposto a aguardar
anos para se casarem, sobretudo agora que viviam juntos e sob o mesmo
tecto. Antoine ficara acordado quase toda a noite, incapaz de dormir,
sabendo que ela estava ao lado, na cama que ambos iriam partilhar. Depois
de tudo por que haviam passado juntos, ansiava por torná-la sua.
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Antoine explicara-lhe que era francês e Beata alemã, que ele fora ferido na
guerra e que não tinham família, exceptuando os primos em cuja casa
moravam. Vincara ainda que Beata chegara da Alemanha no dia anterior e
desejavam regularizar a situação para não terem de viver em pecado.
Pedira ao padre que os ajudasse, e este acedera. Faria tudo o que pudesse.
Pareciam honestos e tinham claramente boas intenções, caso contrário não
viriam ao seu encontro.
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para a sua conversão. Por regra, prefiro que isso dure muitos meses, a fim
de ter a certeza de que tudo foi bem compreendido antes do baptismo.
Contudo, neste caso, acho que podemos andar mais rapidame nte. Por seu
lado, estudará e eu ensinar-lhe-ei tudo o que precisa de saber. Trata-se de
um passo importante na sua vida, mais importante ainda do que o
casamento. É algo maravilhoso abraçar a fé de Cristo!
Nesse caso, terá de esperar até se sentir respondeu o padre, num tom
bondoso. Só pode casar- se com um católico, se se converter.
Além disso, Beata achava que seria demasiado pedir-lhe isso. Sentia que
só lhe restava converter-se para casar com Antoine e ver a sua união
abençoada aos olhos de uma religião, neste caso a dele. Enquanto escutava
o padre, sentiu que era esse o seu desejo. A Bíblia sempre a intrigara.
Gostava das histórias que falavam de Jesus e os santos fascinavam-na.
Talvez fosse um sinal. E, embora não conhecesse outra religião, Beata
nunca tivera a certeza de estar profundamente
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Era o que parecia mais lógico a Beata, que nunca se sentira tão
profundamente ligada à religião judaica como os pais. Frequentava a
sinagoga para lhes agradar e porque era essa a tradição. Pelo contrário,
sempre se sentira intrigada e fascinada pela Bíblia e estava convencida de
que, após o casamento com Antoine, desenvolveria, a seu tempo, um elo
com o catolicismo. Assim o esperava.
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quando Antoine lhes explicara que Beata era judia. Aos seus olhos, a
conversão de Beata constituía uma magnífica prova de amor, o que se
apressou a comunicar à jovem, quando ficaram a arrumar a cozinha e os
homens se levantaram da mesa.
Tudo isto deve parecer-lhe muito estranho declarou Maria, num tom de
compaixão.
Não, não é estranho respondeu Beata, num tom calmo. É apenas diferente.
Não estou habituada a estar longe da minha família.
Sentia uma falta terrível da mãe, sem esquecer que ela e a irmã sempre
haviam sido inseparáve is, mas com o casamento de Brigitte e a mudança
dela para Berlim, tudo teria sido diferente de qualquer maneira. O que
mais a desgostava eram as circunstâncias dramáticas em que se apartara
da família.
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Para Beata, isso ainda constituía uma ferida aberta, e Maria não tinha
dificuldade em imaginar que assim se manteria por muito tempo. Esperava
que as duas famílias acabassem por recuperar a sensatez e lhes
perdoassem as escolhas feitas. Antoine e Beata eram dois jovens
encantadores, mas Maria sabia que sofreriam no futuro, caso as famílias
não os aceitassem. Entretanto, Walther e ela sentiam-se encantados com o
seu papel de substitutos dos pais. Além de que tê-los ali era igualmente
uma bênção.
Beata corou, sem saber o que responder. Ignorava se era possível controlar
este tipo de assunto e sempre achara que uma criança nascia quando Deus
o decidia. Ignorava também se havia algum meio de impedir ou controlar
as gravidezes além de que não conhecia Maria o suficiente para lhe
perguntar.
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juntamente com os cumprimentos dos Zuber. Até o fez rir quando lhe
contou como fora aprender a mungir uma vaca. Beata ria, aliás, todas as
manhãs, pensando em Brigitte a tentar uma experiência semelhante. A
única coisa que a entristecia profundamente era a saudade da mãe. E o pai
também lhe faltava, apesar da sua posição inflexível face ao seu
casamento. Preocupava-se também com os irmãos. O facto de se encontrar
longe de casa e de ter partido sob a raiva do pai, não punha em causa o seu
amor por eles. Nem sequer lhes tinha raiva; sentia-lhes simplesmente a
falta. Confiara a questão ao padre André e este ficara impressionado com a
sua bondade e capacidade de perdão. Beata parecia não estar ressentida,
apesar de, no fundo, eles a terem expulso. Uma tarde, o padre fez-lhe o
mais belo cumprimento ao dizer-lhe que, se ela não tivesse nascido numa
outra religião e não estivesse à beira de casar, daria uma freira fantástica.
Antoine não se sentiu tão emocionado como ela pelo elogio, quando Beata
lho repetiu nessa noite.
Deus do céu! Espero que não esteja a tentar recrutar-te! Tenho outros
planos para ti retorquiu, dando súbita mostra de uma enorme
possessividade.
Também o espero, mas foi, mesmo assim, gentil da parte dele disse Beata,
lisonjeada com as palavras do velho padre e Maria concordou.
Pouco me interessa que seja ou não delicado prosseguiu Antoine no
mesmo tom desaprovador e parecendo nervoso. Não quero freiras na
minha família. Sempre achei que levavam uma vida triste. As pessoas
foram feitas para casar e ter filhos.
Talvez nem todas. Algumas pessoas não são feitas para o casamento ou
para terem filhos discordou Beata, francamente.
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Continuo a lamentar que não queira ser freira zombou o padre André.
Acho que, com um pouco mais de estudo e sobretudo tempo para descobrir
a sua vocação, teria sido fantástica acrescentou.
Então, fico satisfeito por apenas a ter tido duas semanas retorquiu Antoine,
nervoso.
A ideia de perder a jovem esposa por quem tanto lutara para o convento
horrorizava-o, apesar de saber que o padre não era mal- intencionado.
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Maria, que ainda não o vira, esperava algo simples e talvez um tanto
desajeitado, pois, na sua opinião, pouco podia fazer-se com duas toalhas
antigas. Não fazia ideia do talento de Beata, nem da sua habilidade com a
agulha.
Antoine ignorava porque é que ela recolhia tão cedo ao quarto todas as
noites e achava que se sentia simplesmente exausta pelo rigor dos
trabalhos da herdade. A própria Maria ignorava que Beata passara mais do
que uma noite a coser até de manhã e, mesmo assim, cumprira as suas
obrigações no dia seguinte, sem ter dormido, a fim de poder terminar o
vestido a tempo. O vestido de casamento era o mais bonito que ela alguma
vez costurara, digno de uma colecção parisiense; se o tivesse feito de
cetim e seda em vez de renda fina, estaria à altura de um casamento
importante, como considerava que o seu era. Apesar da fragilidade do fino
tecido de linho, era um vestido divino, mais adaptado a esta igreja simples
na montanha, do que o seria um mais elaborado.
Fi-lo com as toalhas que me deu. Há duas semanas que ando a costurá-lo
todas as noites. 79
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Incrível! Eu nem com dois anos de trabalho conseguiria fazer algo assim!
retorquiu Maria, que nunca vira nada que pudesse comparar-se àquele
vestido. Beata assemelhava-se a uma princesa de um conto de fadas.
Estava uma noiva lindíssima. Quem lhe ensinou a costurar assim? quis
saber.
Ninguém. Dá-me prazer. Costurava muito para a minha mãe e para a
minha irmã e sempre preferi fazer os meus] próprios vestidos, em vez de
comprá- los.
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não queria assustá-la. Sabia que era um grande passo na sua vida e
desejava que tudo se passasse pelo melhor. Não havia pressa, contudo
nenhum deles tinha fome. Ao pôr do Sol, estavam sentados na sala a
beijarem-se, enquanto o champanhe começava a produzir efeito e tanto
Antoine como Beata deixaram de conseguir resistir. Há onze meses que
aguardavam este momento, desde que se tinham conhecido em Agosto do
ano anterior. O incidente junto ao lago parecia-lhes muito distante. Agora,
estavam casados. Era tudo o que tinham sonhado e desejado desde o
primeiro dia.
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Com as mãos trémulas, ela pôs-se, pelo seu lado, a despi-lo. Ignorava o
que estava a fazer ou o que Antoine esperava dela. As vagas noções sobre
o acto amoroso vinham de Brigitte, que sempre se interessara mais do que
ela sobre o que se passava, ou era suposto passar-se, entre os sexos. Beata
aproximou-se simplesmente dele com a sua inocência e amor e, quando
Antoine a tomou nos braços e começou a fazer amor, terno e atento, ela
descobriu uma paixão e plenitude com que nunca sonhara. Depois de fazer
amor, ele deitou-se ao seu lado e tomou-a nos braços, traçando
meigamente com os dedos os contornos do seu corpo. Nessa noite falaram
durante horas, voltaram a fazer amor e, desta vez, foi ainda melhor.
Achas que fizemos um bebé, esta noite? perguntou Beata, enquanto roía
alegremente um osso de galinha. Imagino que é assim, excepto se não me
tiveres mostrado tudo.
Se quiseres esperar, há coisas que podemos fazer, depois desta noite, para
impedir que isso aconteça demasiado cedo.
Pelo seu lado, Antoine não se importaria nada se fosse o caso, mas não
queria pressioná-la. Se ela não quisesse engravidar
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já, estava disposto a esperar, pois a única coisa que contava aos seus olhos
era torná-la feliz para o resto da vida.
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CAPÍTULO 5
Ainda é muito recente retorquiu ele num tom meigo. Dá-lhes tempo. Podes
voltar a escrever- lhes daqui a uns meses. Até lá, as coisas terão acalmado.
Ele próprio não escrevera aos pais. Ainda continuava furioso ante a
posição que tinham tomado e não sentia qualquer desejo de contactar com
o irmão. Contudo, era mais velho do que Beata e muito mais ressentido do
que ela.
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Sim, mas espere até ter a certeza antes de dizer ao seu marido.
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Maria achava que não valia a pena preocupar Antoine inutilmente ou dar-
lhe falsas esperanças. Sabia que os homens tinham reacções estranhas a
este género de notícia e mais valia dizer-lhes depois de se ter a certeza
Beata saiu, de sorriso nos lábios, para mungir as vacas, mas à tarde estava
tão cansada que regressou a casa, após cumprir as suas tarefas, e dormiu
duas horas antes do jantar
Está óptima. Só apanhou um pouco de sol, pois andou todo o dia lá fora a
colher fruta para mim respondeu Maria, discreta quanto às náuseas e as
sestas de Beata, mas considerando-a mesmo assim uma trabalhadora
incansável e uma ajuda preciosa
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Não era o que queria dizer replicou, troçando da sua própria patetice,
embora me sinta encantado com a ideia de me refrescar a memória,
Madame de Vallerand. Adorava pronunciar o seu novo nome e ela também
achava que lhe ficava bem. Apenas queria saber quando e como o
soubeste? Tens a certeza? Quando é que vai nascer?
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muito elegante de uma manta escocesa que Walther lhe oferecera. A futura
mamã parecia jovem, bonita e saudável. Quando ia ao domingo à igreja, o
padre André ficava sempre feliz ao vê- la.
Beata garantia-lhe que não estava nervosa. Maria dera à luz três filhos na
sua casa, fora a França para estar com uma das filhas quando ela tivera o
bebé e ajudara muitas amigas. Embora não fosse diplomada, era uma
parteira experiente e as duas mulheres saberiam como agir ou, pelo menos,
era o que Beata dizia. Não queria inquietar Antoine, mas confessou várias
vezes a Maria que tinha um medo horrível. Nada sabia de partos e quanto
mais a barriga lhe crescia, mais angustiada se sentia.
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não era uma camponesa, embora entrasse no jogo. Fora educada no luxo e,
tanto quanto sabia, nunca apanhara uma constipação sem que fosse
imediatamente vista por um médico. Agora, ele pedia-lhe que desse à luz o
filho deles numa pequena herdade dos Alpes, sem a ajuda de uma
enfermeira ou de um médico.
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Beata não queria dizer-lhe que estava com dores desde a véspera.
Primeiro, não ligara importância, pensando que se tratava de uma
indigestão, mas agora as costas doíam-lhe horrivelmente. Quando Antoine
se levantou uma hora mais tarde, ele e Walther tinham muito trabalho
nesse dia e haviam planeado começar cedo, Beata acabara de adormecer.
Ainda passava pelo sono quando Antoine saiu de casa, enquanto Maria se
afadigava na cozinha.
Por fim, ao sair do quarto duas horas mais tarde, Beata parecia assustada e
foi ter com Maria à cozinha.
Passa mesmo anuiu Maria com um sorriso alegre. Faz hoje nove meses!
Acho que alguém aqui vai ter um bebé!
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Mal a jovem se deitara o olhar traía toda a ansiedade e medo que lhe iam
na alma, Maria foi buscar toalhas e lençóis velhos que pusera de lado para
o parto, juntamente com algumas panelas e bacias.
Está tudo bem, Beata. Tudo bem. Volto num segundo. Maria correu até à
cozinha, pegou numa das panelas e começou a aquecer água. Agarrou, em
seguida, nas toalhas e lençóis e precipitou-se até à cama onde Beata estava
deitada, com uma expressão confundida. A segunda contracção produziu-
se no momento em que Maria atravessava a ombreira da porta e, desta vez,
Beata uivou aterrorizada, ao mesmo tempo que estendia os braços para a
mulher mais velha. Esta agarrou-lhe nas mãos e disse-lhe que não fizesse
força demasiado cedo; ainda tinham um longo caminho a percorrer, antes
de o bebé estar pronto. Se Beata fizesse força demasiado cedo, iria fatigar-
se rapidamente.
Beata deixou que Maria a examinasse, mas o bebé ainda não estava
visível. As contracções da véspera haviam iniciado o processo, mas ainda
restava o verdadeiro trabalho. Maria calculou que faltavam várias horas,
antes que Beata pudesse segurar o bebé nos braços. Esperava apenas que
fosse fácil para a jovem. Por vezes, quando o parto era rápido, a dor podia
ser pior, mas, pelo menos, não durava. Contudo, no caso de Beata, dado
tratar-se da primeira gravidez e o bebé ser grande, Maria desconfiava que
iria prolongar- se.
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Não achava que ele devesse estar presente, mas Antoine entrara
imediatamente no quarto e envolvera a mulher num terno abraço .
Antoine... Não posso... não posso... Tenho tantas dores. gemeu Beata,
tentando recuperar o fôlego entre duas contracções.
Era o responsável por toda aquela situação e recusava deixar que ela a
enfrentasse sozinha. Tratava-se de uma reacção invulgar aos olhos de
Maria, mas Beata parecia um pouco mais calma por tê- lo a seu lado.
Quando as contracções regressaram, ela esforçou-se por não gritar,
enquanto Antoine observava o ventre retesado ao máximo. Ao tocar-lhe,
verificou que estava duro como uma pedra. Maria ausentou-se uns
instantes para ir ter com Walther à cozinha. Antoine pediu-lhe que o
prevenisse de que ficaria junto de Beata até ao nascimento do bebé. Maria
regressou rapidamente com uma
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Expressava-se num tom tão firme que Beata lhe obedeceu. Maria via a
cabeça do bebé a sair e entrar a cada contracção e sabia que, se
demorassem muito, iriam perdê- lo.
Pediu a Antoine que agarrasse a mulher pelos ombros e disse a Beata que
se apoiasse contra os pés da cama. Ao cabo de esforços sobre-humanos e
gritos dilacerantes, metade da cabeça do bebé apareceu finalmente e Maria
ordenou a Beata que continuasse a fazer força. De súbito, um vagido
encheu o quarto. Beata continuava a gritar, mas fitou Antoine estupefacta,
ao ouvir o bebé. Maria disse-lhe que fizesse ainda mais força; desta vez,
apareceram os ombros e, por fim, todo o bebé, coberto de sangue e
chorando a plenos pulmões. Era uma menina.
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Lamento disse-lhe com um ar aflito. Lamento que tenha sido tão doloroso
para ti acrescentou, enquanto ela apertava o bebé de encontro ao peito.
Mantinham-se deitados lado a lado a falar com a sua pequena filha. Foi
então que Maria sugeriu a Antoine que fosse jantar qualquer coisa e beber
um brande. Já eram nove horas e ela queria estar à vontade para limpar
Beata, o bebé, a cama e o quarto. Quando o convidou a voltar uma hora
depois, Antoine ficou surpreendido com a paz que reinava na divisão.
Beata repousava em lençóis lavados, com os cabelos escovados, o rosto
lavado, e a menina dormia nos seus braços. A cena de terror a que assistira
durante toda a tarde havia desaparecido completamente. Dirigiu um
sorriso de gratidão a Maria.
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Vocês é que são. Os dois replicou Maria. Tenho muito orgulho em si,
Antoine. A vossa filha pesa quase cinco quilos.
Maria anunciou o facto com tanto orgulho como se ela própria tivesse
posto a criança no mundo o que, para seu alívio, não era o caso, pois nunca
vira uma mãe, sobretudo com a constituição física de Beata, dar à luz um
bebé tão grande. Tinha havido, sem dúvida, um ou dois momentos em que
sentira receio de perdê-los, mas absteve-se de falar no assunto.
Como vão chamar-lhe? acrescentou Maria, que nunca vira uns pais tão
orgulhosos. Quanto a Walther espreitou da ombreira da porta e sorriu ao
jovem casal com o bebé nos braços.
Gosto e acho que lhe fica bem. É uma bela menina, merece usar um nome
especial. Amadea de Vallerand respondeu, experimentando dizê-lo. Beata
sorriu.
Acho que ela está de acordo concluiu Beata que parecera ter recuperado as
cores e estar pronta a valsar pelo quarto. Amadea! pronunciou, fitando a
filha recém-nascida e depois o marido, com um sorriso nos lábios.
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fosse eternamente.
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CAPÍTULO 6
Pelo seu lado, Beata não fora mais bem-sucedida. As cartas que enviara
aos pais haviam sido devolvidas, como as primeiras. E obteve o mesmo
resultado quando escreveu a Brigitte. Por vezes, interrogava-se sobre se
também ela tivera um filho. Quanto a si, nada tinha contra o facto de
voltar a ser mãe, e o casal não tomava qualquer precaução. Estava, aliás,
surpreendida por não se encontrar grávida, depois de o ter ficado tão
rapidamente quanto a Amadea. Contudo, de momento, sentiam-se felizes
com Amadea. Esta cirandava por todo o lado, tagarelando na sua
linguagem. Os Zuber gostavam dela como se fosse sua neta e sabiam até
que ponto lhe sentiriam a falta.
Em Fevereiro, Antoine recebeu uma carta que serviu para decidir para que
país iriam. Umdos seus amigos de Saumur, a academia equestre onde ele
se treinara para o exército,
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Antoine e Beata chegaram a Colónia no dia em que Amadea fez dois anos.
Quando se instalaram no castelo, embora tivesse ficado contente por rever
o seu velho amigo, Antoine confessou a Beata que tinha muito trabalho
para fazer ali.
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Depois disso, verificara-se outro incidente, desta vez quando Beata vira os
irmãos a saírem de um restaurante com duas mulheres, que supôs serem as
suas esposas. O seu olhar cruzara-se com o de Ulm, que a reconhecera de
imediato, mas passara ao seu lado, ignorando-a. Quanto a Horst, virara as
costas e metera-se num táxi. Chorara durante toda a noite, mas de raiva.
Com que direito agiam daquela maneira? Contudo, mais do que raiva,
sentia tristeza e a mesma perda que a invadira quando abandonara a casa
do pai para casar com Antoine. Era uma ferida que, sabia, nunca
cicatrizaria por co mpleto
Porém, o pior de tudo tinha sido no dia em que vira a mãe, há dois anos,
antes do seu encontro fortuito com Brigitte. Tendo ido à cidade fazer uma
compra com Amadea, não conseguira deixar de parar uns momentos diante
da sua antiga casa. Amadea perguntara-lhe o que estavam a fazer ali
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Sem reflectir, Beata acenara-lhe e Monika tinha-a visto. A filha
observava-a, surpreendida. Todavia, a mãe baixara a cabeça, desgostosa, e
fechara os reposteiros, sem corresponder. Para Beata, esta foi a prova de
que não lhe restava esperança e jamais voltaria a ver a mãe. Nem sequer a
presença de Amadea ao seu lado conseguira enternecer o coração da mãe,
nem dar-lhe coragem para enfrentar o marido. Para eles, Beata já não
existia. Foi com um sentimento de solidão e um vazio enorme que levou
Amadea a almoçar, apanhando, depois, o comboio de volta a casa
Uma velha amiga. Mas acho que não me reconheceu respondeu Beata,
desejando explicar que se tratava da sua mãe, mas sem se atrever.
Talvez não te tivesse visto, mamã sugerira Amadea num tom meigo e a
mãe assentira, tristemente, com a cabeça.
Tudo estava a correr muito bem, mas uma tarde, Beata, que fora ter com
Véronique para que esta experimentasse um vestido de noite, desmaiou
quando estavam no meio de uma agradável conversa. Véronique, muito
preocupada, obrigou-a a deitar-se numa chaise longue no seu quarto e,
depois, acompanhou-a a casa.
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Acho que estou a chocar algo... nada mais respondeu, omitindo-lhe que
tinha desmaiado no quarto de vestir de Véronique, durante a prova de um
vestido. Que tal a lição de Amadea? acrescentou para mudar de assunto.
Devias obrigá-la a ser mais prudente.
Aos sete anos, a filha era uma cavaleira intrépida, que adorava saltar por
cima de ribeiros e sebes, o que muito assustava a mãe.
Acho que não consigo obrigá-la ao que quer que seja respondeu Antoine
com um sorriso resignado. Parece ter ideias próprias sobre uma série de
assuntos.
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Não. Estou bem. Vou só deitar-me uns minutos. Vai ocupar-te da nossa
pequena fera.
Antoine detestava ver Beata doente. A mulher e a filha eram tudo o que
possuía neste mundo e só elas lhe interessavam na vida.
Ummédico não vai remediar nada. Esta tarde, faço uma sesta, antes que a
Amadea volte da escola, e à noite já estarei bem.
Se não fores ao médico, sou eu que te levo. Por amor de Deus, Beata! Irás
consultá-lo? Não compreendo de que é que tens medo.
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Disse que estou em plena forma... e que te amo... respondeu Beata, tão
feliz que mal conseguia dissimular o seu entusiasm o.
Achou que se tratava de uma ligeira gripe? Se assim for, minha querida,
precisas de ter cuidado avisou, preocupado, pois conheciam uma série de
pessoas que tinham morrido de gripe no Inverno anterior e era algo para
levar a sério.
Finalmente era verdade! Beata rezara tanto para que tal acontecesse!
Quando o bebé nascesse faria oito anos de diferença da irmã
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Receio que não seja possível apressar esse género de coisas sorriu Beata à
filha, que imaginava que os bebés se encomendavam no médico.
Pelo seu lado, Beata pouco se importava por ter de esperar; apenas se
sentia feliz por irem ter um filho. Teria trinta anos quando o bebé nascesse
e Antoine fizera quarenta e dois, nesse Verão. No entanto, e mais do que
tudo, Beata estava aliviada por ver a mesma felicidade na filha.
Não se escolhe. Teremos o que Deus nos enviar. Embora eu espere que seja
um rapaz por causa do teu papá especificou Beata, ternamente. Para que é
que o papá ia precisar de um rapaz? As raparigas são muito melhores.
Quero uma irmã.
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Veremos, então.
Será uma rapariga decretou Amadea e será o meu bebé. Farei tudo por ela.
De acordo? Será maravilhoso, se ajudares a tua mamã anuiu Antoine.
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O médico avisara Beata que o parto poderia ser demorado. Em oito anos, o
corpo esquecera o nascimento anterior e, na sua opinião, as mulheres que
tinham gravidezes muito espaçadas viviam, por vezes, partos tão longos,
ou ainda mais, do que da primeira vez. Tudo isto pouco contribuía para a
reconfortar, para já nem falar que não gostara da parteira, quando a
conheceu. Na verdade, apenas tinha um desejo: meter-se no primeiro
comboio com Antoine e partir ao encontro de Maria. As duas mulheres
tinham-se mantido em contacto ao longo dos anos e, ao ser informada da
gravidez, Maria escreveu a dizer quanto se sentia contente. Os Vallerand
haviam feito inúmeros planos para visitarem os Zuber, mas Antoine nunca
podia afastar-se dos estábulos e tinha, sempre muito trabalho.
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Passo o dia sentada! Acho, aliás, que descanso demasiado. Desde ontem
que me sinto muito melhor e cheia de energia.
O que se passa, Beata? Estás bem? Talvez seja melhor chamar o médico.
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horas depois. O médico tinha-a avisado que, agora, ainda podia levar mais
tempo, e ela desejava ficar o máximo de tempo possível com Antoine,
antes da chegada do médico e da parteira.
Antoine observava a mulher, que lhe suplicou para que esperasse mais um
pouco, pelo menos uns minutos, antes de chamar o médico.
Eles não querem que fiques comigo justificou, num tom angustiado.
Estarei no quarto ao lado, prometo. Tal como Maria o fizera há oito anos,
Beata pusera de lado uma pilha de lençóis velhos e toalhas. Receava que
Amadea ouvisse do seu quarto os sons horríveis que acompanhavam o
parto. Esperava que, com um pouco de sorte, a filha estivesse na escola
quando o bebé nascesse, o momento mais doloroso. Sentiu de novo duas
violentas contracções, cuja intensidade lhe pareceu diferente, desta vez;
era como se um camião a tivesse trespassado de lado a lado. Ante a
contracção seguinte, deitou um olhar assustado a Antoine.
Sei muito bem que o bebé vai nascer respondeu ele, com um ar calmo,
descontraído pela bebida. Reconhecia os sinais de que a mulher estava em
trabalho de parto, mas desta vez sabia o que esperar e não se sentia
preocupado. Vou telefonar ao médico. Onde está o número?
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Deita-te declarou num tom firme, mas sem ter a mínima ideia do que
havia de fazer.
Tudo o que se recordava era do que vira Maria fazer durante as horas
infindas que haviam antecedido o nascimento de Amadea. Não se atrevia a
deixá-la só para ir procurar o número de telefone do médico e não havia
ninguém que os ajudasse. Pensou em chamar Véronique, mas receava que
esta ainda soubesse menos do que ele. Tentou afastar-se um pouco para
pegar na agenda de moradas, mas Beata não o largou.
Tem calma, querida... Tudo correrá bem... Estou aqui... Não vou deixar-
te... garantiu, embora não soubesse o que fazer, além de manter-se ao lado
dela.
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Amo-te, Beata, mas não voltes a fazer-me isto... Não sabia como te
ajudar... Porque é que não me deixaste chamar o médico?
Pensei que o bebé só nasceria daqui a umas horas e queria estar contigo...
Desculpa. Não quis assustar- te..
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o cabelo preto de Beata, mas ainda era demasiado cedo para saber a cor
dos olhos. Parecia muito calmo e descontraído nos braços da mãe.
Ela chegou! Ela chegou! exclamou Amadea, dançando pelo quarto, antes
de vir observar a irmã de perto. Que nome vamos dar-lhe? Posso pegar
nela?
Sim, gosto.
Os pais descontraíram-se, aliviados. A filha trepou para cima da cama, ao
lado da mãe, e Beata pôs-lhe suavemente o bebé nos braços. Os olhos
encheram-se-lhe de lágrimas, ao fitá-las. Não tivera, realmente, o filho
que desejara dar a Antoine, mas sentia o coração transbordante de alegria
ante as filhas, uma loura, a outra morena. Ao erguer o rosto, Beata deparou
com Antoine que as observava da ombreira da porta, com um sorriso nos
lábios. Entreolharam-se, saboreando o momento por que esperavam há
oito anos.
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CAPÍTULO 7
Quando Daphne fez dois anos, Amadea tinha dez e não havia dúvida de
que o bebé era dela. Ocupava-se da menina o tempo todo e levava-a para
todo o lado. Era como uma boneca com quem nunca parava de brincar; e
Amadea era muito eficiente como mãe. Quando ela estava presente, Beata
não precisava de preocupar-se. Amadea só deixava a irmã quando ia para a
escola ou ao visitar o pai nos estábulos.
Aos dez anos, Amadea era uma excelente cavaleira. Já conquistara vários
prémios e sabia muito sobre cavalos. Antoine orgulhava-se dela com
razão. Adorava Beata e as suas duas filhas. Era um pai e um marido
extraordinário. Beata sabia que era, indubitavelmente, uma mulher de
sorte.
Quero ver o meu irmão declarou, com uma expressão ausente. Tudo isto já
durou tempo de mais e preciso
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tarde, quando desceu para ir buscar um biscoito à irmã, é que viu Gérard e
um dos treinadores do pai sentados na sala, com a mãe. Beata tinha o olhar
vidrado e pareceu surpreendida ao avistar Amadea. Volta lá para cima
ordenou num tom severo, que nunca usava.
Parecia-lhe que haviam passado horas quando, por fim, a mãe subiu ao
andar de cima, desfeita em lágrimas. Mal conseguia falar, quando a
abraçou e lhe disse que o pai fora atirado ao chão pelo novo cavalo.
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Além disso, tinha tanta coisa em que pensar. Este homem que tanto amara
e por quem desistira da família, que a amara e nunca a atraiçoara, já não
estava ao seu lado. Não fazia ideia para onde ir, o que fazer, ou para quem
se virar. Gérard ajudou-a o máximo que pôde e Véronique não a deixou um
único instante. A fim de que solucionasse as intermináveis formalidades
da sucessão, Gérard ofereceu-lhe a ajuda dos seus próprios advogados em
França. A fortuna que Antoine recebera do pai há umas semanas pertencia-
lhe, agora. Ele já decidira legar metade ao seu irmão Nicolas, mas o
restante era mais do que suficiente para assegurar o futuro de Beata e o das
filhas. Não se permitiriam grandes luxos, mas poderia comprar uma casa e
garantir a sua subsistência e a das filhas até ao fim da sua vida. De um
ponto de vista financeiro, não tinha com que se preocupar. Contudo,
perdera Antoine e ficara viúva aos trinta e dois anos. Amadea sabia que
jamais esqueceria o dia da morte do pai. E, em breve, teriam de abandonar
a
casa onde ela crescera. A vida delas estava prestes a sofrer mudanças
radicais que apenas a pequena Daphne, pequena de mais, ainda não podia
entender, contrariamente à mãe e à irmã que as entendiam bastante bem.
Beata tinha a sensação de que a sua vida terminara.
O título de conde passou para Nicolas, bem como as terras que lhe
estavam ligadas. Agora, o castelo pertencia-lhe. O conde Nicolas de
Vallerand era, doravante, um homem rico, como Antoine o seria, caso
tivesse vivido o suficiente sobrevivera menos de quinze dias ao pai.
Contudo, pouco importava a Beata perder o que nunca tivera. Só lhe
interessava a perda de Antoine.
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pertencia a uma grande família católica e, quando Amadea fez treze anos,
a irmã mais velha dessa amiga tornou-se freira, o que ela achou
simultaneamente misterioso e intrigante. As duas rapariguinhas falavam
muitas vezes desta vocação religiosa, e Amadea interrogava-se como é que
se obteria. Parecia-lhe algo de bom.
Foi nesse momento que o comportamento da mãe começou a surpreender
Amadea. Não só ia todos os dias à igreja, como, algumas vezes,
frequentava uma grande e imponente sinagoga, cheia de pessoas com um
ar distinto. Um dia, a mãe levou-a para o que designou de Yom Kippur.
Embora fascinada, Amadea sentiu-se também um pouco assustada, ao ver
que a mãe se sentara de olhos fixos numa mulher de idade, que pareceu
não reparar nela. Nessa mesma noite, Amadea foi encontrar a mãe a
examinar um monte de velhas fotografias, amarelecidas pelo tempo.
Quem são essas pessoas, mamã? perguntou Amadea num tom meigo.
Até então, Amadea nunca ouvira uma palavra a respeito deles. O pai
apenas lhe tinha dito que a mãe e ele eram órfãos, quando se conheceram.
Adorava que os pais lhe contassem o dia em que se tinham conhecido,
como se haviam apaixonado e como a mãe parecera bonita no dia do
casamento. Sabia que se tinham conhecido na Suíça e haviam vivido com
os primos do pai até ela fazer dois anos, mudando- se depois para a casa
onde crescera.
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a mãe não gostava de vê-la por lá; receava que lhe acontecesse qualquer
coisa, como ao pai. Por conseguinte, Amadea pusera termo a estas visitas,
embora sentisse saudades de montar.
Foi a única explicação que Amadea recebeu; quando fez quinze anos,
confiou à sua melhor amiga que a atitude da mãe a arrepiava Todavia,
Amadea não tinha dúvidas de que, desde a morte do pai há cinco anos, a
mãe nunca mais ficara normal. Era como se o choque tivesse sido
demasiado para ela, e Amadea sentia, justificadamente, que a mãe só
aspirava a juntar-se-lhe. Aos trinta e oito anos, Beata ainda era uma
mulher bonita, mas apenas esperava a morte. Amadea sabia- o.
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Quando Amadea tinha dezasseis anos Daphne apenas oito, prometera levar
a irmã à sua aula de ballet no dia do ano em que a mãe ia à sinagoga, no
Yom Kippur. Sentia-se aliviada por ter uma desculpa, pois, sem saber
porquê, aquela visita anual deprimia-a sempre. Preferia, sem dúvida,
acompanhar a mãe à igreja e, nos últimos tempos, começara a rezar para
saber se tinha vocação religiosa, como a irmã da sua amiga. Começara a
achar que sim, embora não tivesse dito uma palavra a ninguém.
Beata foi, portanto, sozinha à sinagoga, como sempre fazia, com o rosto
tapado por um véu. E, como todos os anos, viu-os. Sabia que podia ter ido
noutras alturas, mas o Yom Kippur parecia-lhe o melhor dia para pedir
perdão por ela e pela família. Avistou a mãe, que lhe pareceu mais
debilitada do que nos anos anteriores. Como por milagre, viu-se sentada
mesmo atrás dela. Se se atrevesse, podia estender a mão e tocar- lhe
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Como foi o quê? retorquiu Beata, desconcertada. Era raro falar à mesa e,
nessa noite, parecia especialmente distraída. Continuava a pensar na mãe.
Há dezassete anos que não se falavam e tanta coisa acontecera desde essa
altura, o nascimento das filhas, a morte do marido, o seu título de
condessa um título que nada significava aos seus olhos, mas que, decerto,
teria impressionado a irmã. Muitas coisas haviam mudado na sua vida.
Não era hoje o dia da tua visita anual à sinagoga? Porque é que o fazes,
mamã?
Amadea sabia que a mãe era uma intelectual e que sempre se sentira
fascinada pela religião. Talvez fosse a curiosidade religiosa ou uma atitude
de respeito por outros povos, o que a levava à sinagoga. Conhecia a
profunda devoção da mãe pela fé católica.
Porque gosto.
Beata não queria confessar à filha mais velha que ia até lá para ver a mãe e
que, naquele dia, chegara a tocar-lhe na mão. Embora Monika e ela não
tivessem trocado uma só palavra, o simples gesto de agarrar na mão da
mãe, reavivara-a. Desde a morte de Antoine que sabia, no mais íntimo de
si, que precisava de ver a mãe. Esta constituía o elo entre o passado e o
futuro, tal como Beata o era entre Monika e as suas filhas.
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Era a primeira vez que mãe e filha se falavam como adultas, a primeira
conversa séria que tinham desde há anos. Encorajada por esta
aproximação, Amadea resolveu abrir o coração à mãe. Sentia- se
impressionada pelo facto dela também conhecer Edith Stem.
Por vezes, penso que também eu gostava de ser freira. Uma vez falei do
assunto a um padre e ele respondeu que achava bem.
O teu pai não teria gostado que fosses freira. Beata recordava-se do que ele
dissera quando o padre André, que os casara, tinha comentado que ela
devia tornar-se freira. Antoine desaprovara vigorosamente esta ideia, não
só porque ia casar com ela, mas porque achava que era um desperdício
para as mulheres. Na sua opinião, as mulheres deviam casar e ter filhos.
Mais tarde devias casar e ter filhos acrescentou.
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Beata tentava fazer eco das palavras de Antoine, como se tivesse podido
falar no lugar dele o que sentia, aliás, ser seu dever, uma vez que ele já não
podia fazê- lo.
Talvez nem toda a gente seja feita para ter filhos. A irmã da Gretchen foi
para freira há três anos e sente-se feliz. Pronunciou os votos no ano
passado.
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Por tua causa? replicou Daphne, estupefacta com o que a irmã acabava de
dizer- lhe.
Aminha professora diz que os judeus têm caudas respondeu Daphne com
um ar inocente, enquanto a mãe e a irmã a fitavam, horrorizadas.
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E Beata não queria nada disso para a filha. Contudo, tinha consciência de
que, durante todos estes anos, em nada contribuíra para fazer pender o
prato da balança para o outro lado. Não tinha vida social nem amigos e não
visitava ninguém, excepto os Daubigny e, mesmo estes, raramente.
Durante onze anos, enquanto Antoine fora vivo, dedicara toda a sua vida
ao marido e às filhas. Desde a morte dele que vivia como uma reclusa e
não via forma de mudar as coisas, nem tão-pouco o desejava. Contudo,
podia, pelo menos, prestar mais atenção ao que acontecia no mundo. A
filha parecia estar muito mais informada do que ela. Beata sentia-se,
porém, inquieta com as suas posições relativas ao anti-semitismo e
esperava que ela não as expressasse na escola. No dia seguinte, quando a
filha saiu para as aulas, recomendou-lhe que tivesse cuidado: criticar os
nazis era perigoso, em qualquer idade.
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Há meses que andava a pedir a Beata que lhe fizesse um vestido para a
festa de Natal, certa de que a costura seria uma boa terapia. Mas Beata
andava a evitá-la. Desde a morte de Antoine que não tinha tocado numa
agulha, excepto, de vez em quando, para fazer algo simples para as filhas.
Deixara de ter interesse em fazer trajos de noite ou vestidos elaborados.
Além disso, já não precisava dessa ajuda financeira.
Não disse respondeu Amadea, pegando na mão de Daphne e subindo com
ela ao andar de cima, enquanto Beata se dirigia ao telefone.
Jacob saíra, mas todos sabiam que ela não tinha permissão de falar com a
filha; esta estava morta. Oh, mamã! Obrigada por ter telefonado. Estava
tão bonita na sinagoga. Não mudou nada. Decorridos dezassete anos,
ambas sabiam que tal era impossível, mas aos olhos de Beata, a mãe
permanecia a mesma.
O Antoine morreu.
A mais pequena, sim. A mais velha parece-se com o pai. Quer conhecê-las,
mamã?
Fico tão feliz! exclamou Beata, que parecia uma criança. Quando gostaria
de vir?
Que achas amanhã à tarde, para o chá? Suponho que as meninas já terão
voltado da escola a essa hora.
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Lágrimas rolavam pelas faces de Beata. Há anos que rezava para que isto
acontecesse. Operdão. A absolvição. Poder tocar novamente na mãe. Só
uma vez. Apertá-la nos seus braços. Um momento apenas. O que vais
dizer- lhes?
Ambas sabiam que Jacob nunca cederia e não existia a mínima hipótese de
que Amadea e Daphne viessem a conhecê-lo algum dia.
Jacob não tinha o direito de impor-lhe esta situação por mais tempo, nem
ela de aceitá-la ou impô-la à fi lha.
132
127
A vossa avó respondeu Beata após uma breve hesitação. As filhas abriram
muito os olhos. Julguei que estava morta observou Amadea com um ar
céptico, sem saber qual das versões era a
verdadeira.
Era muito difícil explicar tudo aquilo às filhas, nesta altura. A vida
tornara-se tão diferente! Contudo, elas tinham os olhos postos nela. Não
era fácil encontrar as palavras exactas ou explicar o que acontecera há
tanto tempo.
Beata não lhes confessou que fora na sinagoga, julgando inútil acrescentar
mais uma complicação, revelando que elas eram, em parte, judias. Apenas
serviria para as confundir ou talvez pô-las em risco, dado o ódio de Hitler
em relação aos judeus.
133
128
fez o mesmo?
Que coisa ridícula e cruel! exclamou Amadea, sentindo uma súbita pena
da mãe. Serias capaz de fazer-nos o mesmo?
Não. Mas tudo isto se passou há muito tempo, e foi uma guerra horrível.
Então, porque é que o teu pai não quis ver-te depois?
interferiu Daphne com lógica. Tal como a irmã, era uma criança
inteligente.
Deve ser um homem horrível para que toda a gente o receie a esse ponto
concluiu Amadea, sensatamente, sem imaginar como era possível tratar as
pessoas daquela forma.,
A tua mãe deve ser corajosa, se decidiu ver-nos. Achas que o teu pai vai
bater-lhe quando ela regressar a casa? inquiriu Daphne, preocupada.
134
129
Claro que não sorriu Beata. Na verdade, não lhe dirá que veio aqui. Ficaria
muito transtornado. Agora está velho e a minha mãe também. Se
soubessem como me sinto feliz por ela vir visitar-nos confessou Beata,
com as lágrimas nos olhos, o que emocionou as filhas. Tem-me feito tanta
falta. Sobretudo desde que o papá mor reu.
Sinto-me contente pela mamã com a visita da mãe dela declarou Amadea
num tom pausado. Contudo, acho que passou por uma coisa horrível.
Imagina se a mamã nos fizesse o mesmo...
Sentia uma imensa pena e compaixão pela mãe. Que perda insuportável
deveria ter sido para ela renunciar a todos os que amava por um homem.
No entanto, compreendeu subitamente que, sem esta decisão, ela e Daphne
jamais teriam visto a luz do dia.
135
130
CAPÍTULO 8
Quando a campainha da entrada soou às quatro da tarde, Beata ficou
imóvel pelo espaço de um segundo, após o que alisou o vestido e passou as
mãos pelos cabelos. Optara por um vestido preto, muito simples, e um
colar de pérolas que Antoine lhe tinha oferecido no décimo aniversário de
casamento. Estava muito pálida e com um ar sério quando abriu a porta e
quase lhe faltou a respiração ao deparar com a mãe.
136
131
Nunca soube que tinhas escrito. O papá deve tê-las devolvido sem me
dizer nada.
Foi o que pensei replicou Beata num tom triste ao recordar a caligrafia do
pai nos env elopes. Também recebi de volta as que escrevi a Brigitte. Um
dia, cruzei-me com ela na rua, mas fez de conta que não me viu. E Ulm e
Horst também.
É feliz?
Não elucidou a filha, abanando a cabeça. Beata não disse à mãe que se
havia convertido, quando casara com Antoine. Já lhe bastava saber que
Amadea e Daphne não eram judias. Contudo, Monika
137
132
Que a amo, que o papá não quis que casasse com Antoine porque ele era
francês e estávamos em guerra Disse que a família dele reagiu da mesma
maneira a meu respeito. As miúdas ficaram chocadas, mas acho que
compreenderam.
Era uma pergunta sensata para uma garota de oito anos, mas também
Amadea se interrogara a este respeito.
138
133
Mamã?
Acho que é triste que ela tenha ficado tanto tempo afastada de nós. Vê-se
que te ama muito. Também eu a amo. Sinto-me feliz por ela ter voltado e
vos ter conhecido.
Odeio o teu pai pelo que ele te fez declarou Amadea num tom gelado.
Beata assentiu com a cabeça. A filha tinha razão, mas ela não o odiava.
Aliás, nunca o odiara, embora ele lhe tivesse causado um profundo
desgosto, bem como à mãe. A sua decisão de a banir da família afectara-os
a todos, talvez a ele também, embora nunca viesse a admiti-lo. Aos seus
olhos, Beata cometera a traição suprema. Contudo, ela jamais pensara que
o seu exílio se prolongasse para o resto da vida deles. Todavia, mesmo que
o tivesse sabido, casaria de qualquer maneira com Antoine.
139
134
Não odeies ninguém aconselhou Beata, num tom calmo. O ódio exige
demasiada energia e apenas serve para envenenar o coração. Há muito que
aprendi isso.
Amadea sentou-se no sofá onde a avó estivera e tomou a mãe nos braços,
tal como Beata fizera com a sua própria mãe.
Amo-te, mamã murmurou Amadea, como Beata murmurara à sua mãe.
Era como que uma infinda cadeia de elos que ecoavam uns atrás dos
outros. Apesar do tempo, do espaço e das diferenças, tratava-se de um elo
inquebrável. A mãe provara-lho nessa tarde.
135
CAPÍTULO 9
”Não sei de que estás a falar, Monika. A nossa filha morreu em 1916”,
respondera. E a questão ficara encerrada.
Horst e Ulm estavam bem, embora uma das filhas de Ulm fosse uma
menina frágil, que adoecia com frequência e tinha problemas cardíacos.
Monika preocupava-se com ela. Durante aquelas visitas, ligou-se cada vez
mais às netas. Amadea achava que a avó era interessante e inteligente, mas
nunca lhe perdoou ter deixado que Jacob banisse a mãe. Achava uma
crueldade e distanciou-se um pouco dela por esse motivo. Contudo,
Daphne era demasiado jovem para colocar esse tipo de questão e amava
incondicionalmente a avó. Como
141
136
Uma tarde em que se encontravam sós, Monika teve uma conversa com
Beata, antes que as meninas voltassem da escola. Mostrou-se preocupada
com os documentos de Beata e com os das netas. Embora soubesse que,
agora, a filha era católica, pois há dezanove anos se tinha convertido ao
cristianismo, nascera judia e as jovens eram metade judias. Receava que
surgissem problemas, caso a situação piorasse.
Há dois anos que os judeus mais pobres, e aqueles sem poder ou
conhecimentos, tinham sido enviados para campos de trabalho. Jacob
continuava a insistir em que uma coisa daquelas nunca lhes aconteceria: os
nazis apenas deportavam os ”marginais”, pelo menos os que consideravam
como tal, a saber, condenados, criminosos, vagabundos, ciganos,
desempregados, agitadores, comunistas, radicais e todos os que não
tinham meios de subsistência.
142
137
Não me parece que os nazis causem problemas a pessoas como nós, mamã
declarou Beata num tom calmo.
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138
A única coisa que preocupava Beata quanto às suas origens judias era o
desejo de Amadea de entrar na universidade. A filha ansiava por estudar
filosofia, psicologia e literatura, como ela própria o desejara, antes que o
pai a proibisse. Agora, eram os nazis que o proibiam a Amadea
144
139
Não acreditava que a mãe pudesse ser tão estúpida. A sua atitude
recordava-lhe a do avô.
Claro que não. Eu sei replicou Beata, num tom firme. Contudo, não quero
que te mistures com esse tipo de gente. Se queres mesmo ir para a
universidade, podes esperar uns anos, até as coisas se acalmarem. De
momento, a Alemanha está demasiado agitada e não quero que corras
qualquer risco, nem mesmo indirectamente
Beata não queria falar às filhas das suas origens; era algo que não dizia
respeito a ninguém, nem mesmo a elas. Amadea e Daphne não precisavam
de saber que eram semijudias. Beata achava que quanto menos pessoas
estivessem ao corrente, mais elas estariam em segurança. Ninguém no seu
meio sabia que Beata nascera judia, e o isolamento em que Mantivera a
família tinha-lhe permitido guardar o segredo Além disso, ela e as filhas
não tinham nenhum dos traços clássicos que as pessoas atribuíam aos
judeus, muito menos
145
140
Amadea, com os seus cabelos louros e os olhos azuis. Até mesmo Beata e
Daphne, apesar dos seus cabelos pretos, correspondiam à ideia que se fazia
dos cristãos, devido aos olhos azuis e aos traços finos e delicados
146
141
ligou a prevenir Beata que não se sentia bem, mas, da segunda, não se
manifestou. Por fim, louca de inquietação, Beata resolveu-se a telefonar.
Uma voz desconhecida atendeu: era uma das empregadas. Depois de ter
ido informar-se, anunciou que a senhora Wittgenstein estava demasiado
doente para vir ao telefone.
Beata passou uma semana num tormento e ficou muito aliviada quando a
mãe voltou a aparecer na semana seguinte. Contudo, Monika parecia
muito doente. Denotava um tom de pele acinzentado e uma palidez
cadavérica; caminhava com dificuldade e tinha dificuldade em respirar.
Beata deu-lhe o braço para a conduzir à sala e ajudou-a a sentar-se. Por um
momento, Monika perdeu o fôlego, mas sentiu-se melhor depois de uma
chávena de chá.
Beata não achava que sessenta e cinco anos fosse uma idade avançada;
contudo, a mãe estava lívida e parecia doente. Numa outra situação teria
falado ao pai. Monika disse-lhe que também ele andava inquieto e que ela
iria no dia seguinte ao médico para fazer mais exames. Confessou-lhe que
não estava preocupada, mas apenas aborrecida.
Desta vez, quando a mãe se foi embora, Beata acompanhou-a pela rua, a
fim de se certificar que ela não cairia e fez sinal a um táxi. Quando vinha
visitá-la, Monika apanhava sempre um táxi, para que o motorista deles não
dissesse a Jacob onde ela estivera. Não confiava o seu segredo a ninguém
com medo que o marido a impedisse de voltar, caso descobrisse a verdade.
Jacob teria ficado enfurecido com ela; proibira-lhe que voltasse a ver
Beata e esperava que a mulher e os filhos lhe obedecessem.
Mamã, prometa-me que irá ao médico amanhã Pediu Beata ansiosa, antes
de a mãe entrar no táxi. Não
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142
Sentia-se revoltada por Beata haver sido banida há dezanove anos, qual
criminosa que era necessário punir por crimes imperdoáveis. Aos olhos de
Monika, amar significava perdoar. E Beata parecia sempre demasiado
triste. Nunca se recompusera da morte de Antoine.
Beata sentia-se sempre reconhecida à mãe pelas suas visitas, dada a sua
saúde d ebilitada.
Amo-te repetiu Monika e meteu-lhe algo na mão. A mãe subiu para o táxi,
antes que ela pudesse ver do que se tratava. Beata fechou a porta e ficou a
acenar-lhe, enquanto o veículo se afastava. Não desviou o olhar até o táxi
desaparecer no meio do trânsito e, em seguida, abriu a mão. Monika dera-
lhe o pequeno anel de diamantes que a mãe dela usara toda a vida e que, na
sua família, fora transmitido de mãe para filha ao longo das gerações.
Quando pensava nas mãos da mãe, Beata via sempre este anel. Sentiu- se
profundamente emocionada ao colocá-lo no dedo, junto à aliança. No
entanto, um súbito calafrio percorreu-lhe o corpo. Porque é que a mãe lhe
dera este anel? Estaria mais doente do que ela pensara? Talvez se sentisse
apenas preocupada. Dissera-lhe que já tivera o mesmo problema antes e
que passara. Contudo, Beata passou a noite toda angustiada.
148
143
Ao levantar-se na manhã do dia seguinte, decidiu, por impulso, telefonar à
mãe para se certificar de que estava bem e iria à consulta. Não confiava
nela, pois sabia o quanto detestava os médicos. Custava- lhe sempre
telefonar para casa dos pais e Beata só o fizera algumas vezes nos últimos
anos, mas sabia que o pai estaria no escritório. Além disso, passados
dezanove anos, nenhum dos empregados lhe conhecia a voz Marcou o
número nervosamente e reparou que as mãos lhe tremiam. Sentia-se
sempre angustiada quando ligava para lá e, desta vez, foi uma voz de
homem a atendê-la. Presumiu que se tratasse do mordomo e perguntou
pela mãe num tom profissional. Fez-se um prolongado silêncio do outro
lado da linha e, depois, ele perguntou-lhe quem estava a telefonar. Sem
saber como reagir, indicou o nome de Amadea, como o fizera antes
Oh, meu Deus! Como está ela? Para onde a levaram? quis saber Beata,
angustiada e perdendo o tom profissional
149
144
foi lá que avistou os dois irmãos, a irmã e o pai, todos, em pé, diante da
porta. Estavam acompanhados por duas mulheres que não conhecia e que
presumiu tratar-se das suas cunhadas. Aproximou-se deles com o coração
a saltar-lhe do peito. Encontrava-se a menos de um metro quando Brigitte
se virou, fitando- a, estupefacta. A irmã não pronunciou uma palavra, mas
os outros repararam na sua expressão e viraram- se, um a um, na sua
direcção. Jacob fitou-a directamente, sem dizer uma palavra, nem esboçar
um gesto. Vim ver a mamã declarou no tom aterrorizado de uma criança.
Estás morta, Beata. E a tua mãe está a morrer declarou com lágrimas nos
olhos, não pela filha, mas sim pela mulher.
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145
Não tem esse direito, papá. Quero vê-la retorquiu, lavada em lágrimas,
mas o rosto do pai manteve a mesma frieza que tivera no dia em que ela
saíra de casa.
Devias ter pensado nisso há dezanove anos. Se não te fores embora, dou
ordens para que te expulsem. Não queremos nada de ti. Nem a tua mãe.
Não tens o direito de estares aqui.
Pelo menos, Beata sabia que não era verdade. Os seus dois anos de visitas
semanais constituíam a prova. Dava graças ao céu por estes momentos
terem acontecido e a mãe haver conhecido e amado as suas filhas e elas a
avó.
Está a agir muito mal, papá. A mamã nunca lhe perdoará. Nem eu.
Desta vez, Beata sabia que o perdão era impossível, pois o pai dava
mostras de uma crueldade inaceitável.
Foste tu que agiste mal. Nunca te perdoei retorquiu ele, sem sombra de
remorso.
Amo a mamã como vos amo acrescentou. Nunca deixei de vos amar. E a
mamã também me ama, como eu a ela declarou Beata com veemência.
151
146
Beata ficou um longo momento a olhar o pai, tremendo da cabeça aos pés,
mas desafiando-o, como antes. Da primeira vez, fizera-o por Antoine e
agora fazia-o pela mãe. Sabia que era a única a ter uma tal ousadia,
embora com consciência de que o pai jamais a autorizaria a entrar no
quarto da mãe. De momento, só lhe restava ir-se embora, antes que o pai a
expulsasse. Lançou um último olhar ao pai, depois deu meia volta e
percorreu lentamente o corredor, de cabeça baixa. Ao fundo, virou-se para
os fitar uma última vez, mas eles haviam desaparecido. Tinham entrado no
quarto da mãe, sem ela.
a amaria.
147
CAPÍTULO 10
tinha de ser enterrada um dia depois da morte e assim foi. Beata seguiu-os
até ao cemitério, mantendo a distância. Ninguém sabia que ela estava ali;
era como um fantasma, observando cada um a deitar um punhado de terra
sobre o caixão, enquanto o desciam. Depois de eles se terem afastado, foi
ajoelhar- se junto à sepultura e colocou uma pequena pedra ao lado, em
sinal de respeito, segundo a tradição. Recolheu-se e, de súbito, ouviu a sua
própria voz a recitar o pai-nosso; sabia, porém, que a mãe não se teria
importado. Ficou ainda um longo momento, depois regressou a casa,
sentindo-se morta por dentro. Tão morta como o pai declarara que ela o
estava.
153
148
Nada preparara Beata para a comunicação da sua filha mais velha. Fitou-a,
estupefacta, mas Amadea mostrava-se tranquila e composta. Há meses que
esperava para dar a conhecer a sua decisão à mãe e a sua certeza reforçara-
se de dia para dia. Aquela opção nada tinha de apressado ou frívol o.
Não, não entrarás retorquiu Beata num tom que não deixava dúvidas. Não
permitirei que o faças. Teve a impressão de estar a escutar o próprio pai,
mas não podia permitir que uma coisa destas acontecesse. Até mesmo
Antoine, que era um católico fervoroso, não aprovaria.
Pela primeira vez, a voz de Amadea era a de uma adulta, firme e segura.
Pusera demasiadas questões a si própria, antes de tomar a decisão, para
que agora a assaltasse qualquer dúvida. Estava absolutamente certa de que
tinha a vocação e ninguém abalaria a sua fé, nem mesmo a mãe, que
amava. Já não se tratava da querela ligada à universidade. Estava em causa
uma mulher adulta que sabia o que queria e o que faria. Beata sentiu-se
amedrontada com o tom de voz de Amadea e com o brilho dos olhos.
Não sabes. E lembro-te que abandonaste tudo para casar com ele, porque
acreditavas no que estavas a fazer. Eu acredito na minha vocação.
154
1 49
Beata também sabia que Edith Stein se tornara o seu modelo de vida e que
também esta estava há dois anos num convento.
Não sabes do que estás a falar declarou Amadea, calmamente. Vou entrar
para o convento das Carmelitas. Já falei com as freiras. Não podes
impedir-me, mamã.
É uma ordem de clausura. Viverás como uma reclusa até ao fim da tua
vida, isolada do mundo. És uma bonita rapariga, Amadea. Podias casar e
ter filhos.
Quero ser freira insistiu ela.
Estás a querer imitar Edith Stein, mas ela tinha quarenta e dois anos
quando ingressou na ordem. Vivera uma vida e sabia o que fazia. Tu, não.
És demasiado nova para tomares uma decisão destas.
Terei muito tempo para reflectir declarou Amadea, sensatamente. São oito
anos até se pronunciarem os votos definitivos. É a vida que escolhi, mamã
concluiu sem desviar os olhos e com uma calma determinação, que
assustou a mãe.
Quero servir a Deus e esta é a melhor forma que conheço. Creio que é o
que Ele quer. Quer o unir-me a Cristo
155
150
como tu te uniste ao papá. É a Ele que quero. Tu és crente, mamã.
Frequentas a Igreja. Porque é que não compreendes? Amadea parecia
magoada por a mãe se mostrar tão infeliz, e algo nos seus olhos recordou a
Beata a sua própria mãe, quando lhe falara de Antoine. Monika sentira-se
atraiçoada pela filha, tal como ela neste momento. Beata teve a impressão
de se ter tornado tão rígida e implacável como o pai, mas, embora não
quisesse ser como ele, também não queria que a filha entrasse para o
convento. Aos seus olhos, era uma aberração.
Admiro a tua devoção replicou num tom calmo. No entanto, é uma vida
dura. Quero algo melhor do que isso: um marido que tome conta de ti,
filhos que te amem. Que será de mim e da tua irmã sem ti? acrescentou,
pensando subitamente em Daphne.
Rezarei por vós. É muito mais do que poderia fazer, se ficasse aqui. Serei
muito mais útil a rezar pelo mundo do que a assistir aos actos horríveis
que as pessoas cometem para se destruírem umas às outras e à
inacreditável maldade do Homem para com o próximo.
Beata recordava-se de ter pedido o mesmo aos pais, antes de se casar com
Antoine. Agora, Amadea pedia-lhe a bênção para seguir Cristo. Tratava-se
de uma decisão muito difícil de tomar.
Como é que isto aconteceu? Quando é que tomaste esta decisão? suspirou
Beata por entre as lágrimas.
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151
Falei com a irmã de Ella, antes de pronunciar os votos. Sempre achei que
tinha vocação, mas não estava certa. Discuti igualmente o assunto com o
nosso padre durante meses. Agora, sei que é o melhor para mim, mamã.
Tenho a certeza.
Amadea emanava uma grande beleza enquanto falava, o que fez com que o
coração de Beata se apertasse ainda mais.
Estou e pronto.
Ao fitá-la, a mãe deparou com uns olhos serenos, como os de uma santa,
mas não conseguia sentir-se feliz por ela. Aos seus olhos, tudo isto
constituía um terrível e trágico desperdício. Para Amadea era, pelo
contrário, uma dádiva. A única que desejava, juntamente com a bênção da
mãe.
Quando pensas entrar para o convento? perguntou Beata, que esperava ter
tempo de dissuadi- la. Um ano, talvez.
Na próxima semana. Não há motivo para que aguarde mais tempo. Acabei
o liceu.
157
152
com os pais, em seguida o dia atroz da sua partida para a Suíça, quando
saíra de casa, e, por fim, o momento da chegada, só então tudo fora
maravilhoso. Maravilhoso para si. Era esse o argumento essencial, o único
correcto o de que cada indivíduo vivesse o seu destino, fosse ele qual
fosse. Para ela, tinha sido Antoine. Talvez para Amadea fosse a Igreja E
por que terrível intuição lhe haviam dado aquele nome? ”Amada por Deus.
Beata desejava que Ele não a amasse tanto, a ponto de chamá-la Mas
talvez Ele o tivesse feito. Quem era ela para o saber? Quem era ela para
julgar? Que direito tinha de tentar mudar o destino da filha e tomar
decisões em seu lugar? Não tinha mais direito do que o pai, na altura.
Talvez que amar significasse aceitar sacrificar os sonhos que se tinha para
os filhos, a fim de que seguissem os seus. De manhã, Beata compreendeu
que não tinha o direito de impedir Amadea de fazer o que desejava
Não me oporei à tua decisão, porque quero que sejas feliz declarou Beata
com o coraç ão despedaçado, mas os olhos transbordando de amor pela
filha. Não quero fazer-te o que os meus pais me fizeram. Tens a minha
bênção, Amadea, porque te amo e quero a tua felicidade, seja ela qual for
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153
Foi mais difícil dar a notícia a Daphne, que se desfez em lágrimas. Não
queria que Amadea as deixasse.
Verás, sim garantiu Amadea. Podes ir visitar-me duas vezes por ano e
posso tocar-te através de uma pequena janela. Além disso, podemos
abraçar-nos muito agora e recordar-nos-emos disso durante muito tempo.
”Contudo, está longe de ser a mesma coisa”, pensou Beata. Amadea era a
alegria e a razão de vida de Daphne, tal como da sua. Desde a morte do
marido que se sentia triste e deprimida, vivendo a maior parte do tempo
recolhida sobre si própria
Também te fará bem a ti, mamã prosseguiu Amadea. Podes fazer coisas
com ela, ir ao cinema, ao parque ou ao museu. Precisas de apanhar ar.
Amadea fizera tudo isto com a irmã durante anos a fio. Beata estava
demasiado deprimida para ocupar-se dela e passava
159
154
Claro que sim, embora haja o risco de eu estar ocupada. Mas prometo
escrever-vos o mais que puder.
Era como se Amadea partisse em viagem para o resto dos seus dias. Como
se fosse para o Paraíso ou, pelo menos, a primeira etapa rumo ao mesmo.
Beata não conseguia acreditar e, aliás, não queria que assim fosse.
Tornara-se católica praticante, mas não conseguia imaginar-se a entrar
num convento. Tratava-se de uma vida terrivelmente restrita, no entanto, a
filha ardia de impaciência por iniciá- la.
160
155
uma adulta, com certezas e sem arrependimento. Tal como Beata fizera no
dia em que deixara a mãe para ir ao encontro de Antoine.
Amadea não trouxera mala. Viera apenas com a roupa que trazia no corpo
e que as carmelitas dariam aos pobres, mal as despisse. Não podia levar
nada e pronunciaria, eventualmente, votos de pobreza, castidade e
obediência, o que aceitava na totalidade. Longe de sentir-se assustada,
Amadea nunca estivera mais feliz na sua vida e tinha esta felicidade
estampada no rosto. Era a mesma expressão que Beata ostentava quando se
encontrara com Antoine na estação de caminho-de-ferro de Lausana e a
vida de ambos começara. Para Amadea também era um começo e não um
fim, como a mãe receara.
A jovem estava pronta. Abraçou mais uma vez a mãe e a irmã e depois
tocou à porta do convento. Uma jovem religiosa abriu uma pequena vigia e
depois a porta, sem se mostrar. Amadea transpôs a ombreira e desapareceu
num momento. Beata e Daphne ficaram sozinhas no passeio. Mãe e filha
entreolharam-se e depois lançaram-se nos braços uma da outra. Só
restavam as duas: uma viúva e uma rapariguinha. Doravante, Amadea
viveria a sua própria vida, uma vida que seria longe, muito longe delas.
156
CAPÍTULO 11
162
157
Está tudo bem, minha filha? perguntou num tom bondoso, após a ter
saudado com as palavras ”Paz de Cristo”, que Amadea repetiu antes de
responder:
163
158
- Partilhará uma cela com mais três irmãs prosseguiu a madre. Seguimos
um silêncio total, excepto às refeições e no recreio, onde pode falar de
assuntos da comunidade e mais nenhuns. Não terá amigas pessoais. Somos
todas amigas de Cristo
Lembre-se que Santa Teresa nos ensinou que a essência da oração não está
em pensar muito, mas em amar muito. Está aqui para amar as suas irmãs e
o mundo E se for abençoada com a vocação, tornar-se-á esposa de Cristo.,
164
159
Era uma responsabilidade e uma honra para lá de tudo o que Amadea
pudesse imaginar e o motivo da presença dela ali. Por seu lado, a jovem já
pensara no nome que desejava adoptar: irmã Teresa do Carmelo. Todavia,
naquele tempo de espera, como simples postulante, seria a irmã Amadea.
A madre informou-a de que lhe indicariam a cela nessa noite, depois do
jantar. Amadea já sabia que uma das regras da ordem era a proibição de
comer carne, salvo em caso de doença, quando um médico o julgasse
necessário. Era, porém, um sacrifício de que a jovem se sentia capaz,
como a maioria das Carmelitas que, além disso, jejuavam de 14 de
Setembro até ao dia de Páscoa. De qualquer forma, a comida nunca fora
importante para Amadea.
160
durante o jantar. Reparou que várias das mais jovens se ocupavam das
mais idosas. Algumas tinham sido trazidas para a mesa em cadeiras de
rodas e conversavam, à semelhança de avós ladeadas pelas jovens
ajudantes.
Nessa noite, quando entrou na sua cela às dez horas, conheceu as religiosas
com quem a partilharia, duas noviças e uma postulante como ela.
Acenaram com as cabeças e sorriram umas às outras, após o que apagaram
a luz para vestir as camisas de noite. Estas eram feitas de uma lã grosseira
que, apesar de haver sido lavada vezes sem conta, ainda arranhava. As
celas não eram aquecidas, as camisas provocavam uma enorme comichão,
mas era um sacrifício que faziam voluntariamente. Iam tornar-se as
esposas do Cristo crucificado, que morrera por elas na Cruz. Era o mínimo
que podiam fazer por Ele.
Nessa noite rezou demoradamente pela mãe e por Daphne, para que Deus
tomasse conta delas e as mantivesse felizes e de boa saúde. Por um breve
instante, sentiu que as lágrimas lhe subiam aos olhos, mas lembrou-se
imediatamente de que também teria de fazer penitência por isso. Esta era,
doravante, o guia da sua própria consciência e a guardiã das portas do seu
pensamento. Apenas podia permitir a entrada aos pensamentos relativos a
Cristo, como lhe explicara a madre superiora. Enquanto se deixava arrastar
lentamente pelo sono, rezando pela mãe e pela irmã, Amadea pronunciou
também uma oração pela avó que morrera há dois meses e agora se
encontrava no Paraíso.
166
161
CAPÍTULO 12
É porque não sou ”eu”. Sou uma freira respondeu Amadea com um sorriso.
Vocês estão com um ar óptimo.
168
162
Aqui, estou em casa, minha querida sorriu Amadea. Como vai a escola?
Bem disse a irmã com um ar acabrunhado.
A vida não era a mesma sem a irmã e, embora a mãe se esforçasse por
passar mais tempo com ela, ambas andavam tristes. Sem Amadea, reinava
um silêncio de morte na casa, como se lhe faltasse vida. Aquela que era a
sua razão de vida e lhes tornava os dias radiosos encontrava-se agora
dentro destas paredes.
No Verão seguinte, a irmã Teresa do Carmelo pediu para levar a cabo a sua
profissão temporária, que a ligaria à ordem através dos votos de pobreza,
castidade e obediência. E o capítulo concedeu a autorização. Faltavam-lhe
seis anos para os votos perpétuos. Contudo, decorridos apenas dois anos, a
jovem já tinha a impressão de haver sido religiosa toda a vida. Foi em
1937.
169
163
frente dos negócios judeus e ordenaram a cem mil judeus de Viena que
abandonassem o país.
Em Abril, todos os judeus da Alemanha tiveram de declarar os bens e
Beata interrogou-se em que medida tal afectaria o pai e os irmãos. Tanto
quanto sabia, eles ainda continuavam a dirigir o banco da família
Amadea meteu-se com a irmã a propósito dos rapazes, o que levou Daphne
a corar. Numa carta, a mãe tinha-lhe contado que Daphne tinha um fraco
por um rapaz do mesmo colégio e que ele também gostava dela. Daphne
era uma jovem encantadora e emanava uma inocência que tocava o
coração de Amadea. Graças à correspondência trocada, tinham conseguido
que Amadea continuasse a fazer parte da sua vida, mas custava-lhes a
acreditar que ela já se encontrava há três anos no convento.
Beata sentia que a filha se fora embora há séculos, contudo, outras vezes,
era como se apenas tivessempassado alguns meses. Continuavam a sentir-
lhe terrivelmente a falta, mas com todos os horrores que aconteciam
naquela época, Beata
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164
estava, ao mesmo tempo, aliviada por sabê-la em segurança. Ela própria
não passara por qualquer problema, nem pensava vir a passar. Aos olhos
do mundo, ela e Daphne eram católicas. Ela era uma viúva inofensiva com
uma filha pequena, que não precisava nada de oficial, não atraía as
atenções e até agora escapara às autoridades. Contudo, o mesmo não
acontecia em relação aos Wittgenstein, que eram publicamente judeus.
Beata lia diariamente os jornais em busca de informações sobre a sua
família ou o banco, a fim de saber se os nazis o haviam confiscado. Mas
até agora não vira nada.
Com a agitação que reinava nas ruas, permaneceu dois dias em casa, sem
se atrever a sair. Apanhou um táxi e mandou-o passar diante da casa dos
pais e do banco. Este estava rodeado de cordões policiais, o que
significava que tinha havido problemas; quanto à casa, todos os vidros das
janelas estavam partidos. Os dois edifícios pareciam desertos. Não fazia
ideia para onde fora a família e não ousou perguntar aos vizinhos. O
simples facto de se interessar pelo destino de judeus teria chamado a
atenção sobre si e colocá-la-ia e a Daphne em risco.
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165
Beata interrogava-se sobre o que teria acontecido aos fundos dos clientes,
caso os nazis houvessem confiscado o dinheiro, dado a maior parte dos
clientes serem judeus
Levaram-nos a todos?
Acho que sim. É o que fazem, agora Dantes não, mas creio que acabaram
por compreender que as mulheres eram tão perigosas como os homens.
Cheira-se de longe.
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para onde a família fora enviada, sem se expor; qualquer pessoa que
fizesse perguntas colocava- se em risco. Numa última tentativa, pediu ao
motorista de táxi que voltasse a passar diante da casa dos pais. O edifício
sombrio e esburacado fora saqueado. Havia móveis no passeio, peças
antigas de que a sua mãe tanto gostava...Tudo isto acontecera, obviamente,
na Noite de Cristal e já não havia ninguém. Beata reflectiu sobre se teriam
tido tempo de se esconder ou fugir. Desesperada, parou na igreja, no
caminho de regresso a casa, e falou com o padre. Explicou-lhe que
conhecera uma família judia há anos e que receava que lhe tivesse
acontecido algo durante a Noite de Cristal.
Desculpe tê-lo incomodado disse Beata. Só que tive pena quando ouvi a
notícia no banco. Se souber qualquer coisa, informe- me.
Wittgenstem. Do banco.
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O padre sabia que esta viúva era generosa e tinha uma filha pequena. Não
queria que ela tomasse qualquer atitude insensata. Além disso, era mãe de
uma carmelita e, por este motivo, ocupava um lugar especial no seu
coração.
Há uns dias que a mãe parecia nervosa, mas toda a gente andava assim. Na
escola, várias alunas tinham sido expulsas e todos haviam chorado. A
professora repreendera-as, dizendo tratar-se de judeus que não mereciam
andar na escola, o que Daphne achara horrível. Toda a gente merecia andar
na escola. Pelo menos, era o que a mãe lhe dizia.
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Sim, sim respondeu Beata, bruscamente, aliviada pelo que o padre lhe
dissera sobre a morte de uma das filhas dos Wittgenstein.
Com um pouco de sorte, toda a gente continuaria a pensar que ela estava
morta. Doravante, era apenas uma viúva católica com uma filha
adolescente e uma outra que era freira. Louvado fosse Antoine! Só que
acabo de ouvir uma história triste sobre uma família que conhecia e que
foi deportada
Aos setenta e três anos, o pai já não era novo. Amãe teria tido sessenta e
oito anos e Beata sentiu- se repentinamente grata a Deus por tê-la poupado
a isto. Pelo menos, morrera em paz, embora Beata não estivesse ao seu
lado. Contudo, não queria mal ao pai. O que acabava de acontecer-lhe e
aos seus era bem pior do que tudo o que pudessem ter-lhe feito sofrer.
Ninguém merecia tal coisa. Beata tinha medo, mas, de momento, estava
convencida de que ela e Daphne se encontravam a salvo.
Mas tu tens pena dos judeus, não tens, mamã? perguntou Daphne, fitando-
a com uns olhos inocentes.
Sim respondeu Beata com sinceridade, mas nos tempos que correm é
perigoso afirmá-lo. Olha o que acaba
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Prometo respondeu.
Esperava que a sua família ainda estivesse viva, mas, se não fosse esse o
caso, alguém tinha de rezar por ela. Disse todas as palavras de que
conseguia lembrar-se e depois manteve-se ajoelhada junto da cama, com o
rosto banhado em lágrimas. Tinham-lhe fechado as portas e o coração há
anos, declarando- a morta, mas ela continuara a amá-los. E, de súbito,
todos haviam desaparecido: Brigitte, Ulm, Horst, o seu pai. As pessoas
com quem crescera e que nunca deixara de amar. Nessa noite, Beata rezou
o shwa por eles,
CAPÍTULO 13
Até essa data, Beata viveu num estado de agitação indescritível. Ignorava
porquê, mas sentia- se impelida a contar a Amadea o que se passara. Os
recentes acontecimentos não as afectavam verdadeiramente, mas a
situação podia mudar. Amadea devia saber. Tinha esse direito. Desejava
igualmente contar a Daphne, mas esta podia deixar escapar algo no liceu;
além disso, ainda não fizera catorze anos e era demasiado jovem para
transportar o fardo de um enorme segredo. Especialmente um segredo que
podia custar vidas, inclusive a sua.
Mas, pelo menos, Amadea estava a salvo no convento e a mãe dava valor
aos seus conselhos. Beata não queria tomar estas decisões sozinha. Pensara
em partir para a Suíça, mas há muito que os primos de Antoine tinham
morrido. Não tinha outro sítio onde se alojar. Teria de alugar uma casa lá,
mas precisaria de abandonar tudo... Para quê tomar uma decisão sob a
influência do pânico? Afinal, não tinha motivo para sentir medo. Contudo,
sentia. Um medo profundo.
Amadea percebeu logo que se passava algo, quando a viu. A mãe tinha
vindo sozinha. Daphne estava nas aulas e Beata detestava privá-la de uma
visita e de uma ocasião de ver a irmã, mas não lhe restava outra escolha.
Sabia que não estava a pensar com clareza. Afinal, elas eram alemãs e ela
professava o catolicismo. Ninguém sabia quem ela era e ninguém lhe
criara problemas. Mas como ter certezas naqueles tempos? Também o pai
se devia ter julgado a salvo. Não sabia por onde começar.
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No liceu. queria falar-te a sós apressou-se a continuar, pois sabia que não
tinham muito tempo e havia tanto que dizer à filha. A minha família foi
deportada, Amadea.
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Obrigada por me ter dito. Mas não estou preocupada retorquiu Amadea
num tom calmo, fitando a mãe e beijando-lhe os dedos. E a Daphne,
mamã? quis saber, pensando subitamente no que Edith Stein, a irmã Teresa
Benedita da Cruz dissera sobre os riscos que os outros podiam correr.
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Ela não é judia, Amadea arguiu. Apenas metade e ninguém o sabe. Não
vou enviá-la desprotegida para um país estrangeiro, sabe Deus com quem
e para ficar sabe Deus onde. É demasiado perigoso para ela, que não passa
de uma criança.
Também as outras, mamã. Pessoas generosas vão acolhê-las em suas casas
e ocupar-se delas replicou Amadea, meigamente.
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Era difícil saber o que fazer, que atitude tomar. O sangue corria na
Alemanha, mas, de momento, não era o delas. Apenas quisera prevenir
Amadea, para que estivesse a par dos riscos. A filha estava em segurança
no convento, e a história de Edith Stein era muito diferente. Esta era judia,
reconhecida como tal, e ainda há bem pouco tempo fora uma radical e uma
activista. Exactamente o tipo de pessoa que os nazis procuravam: uma
agitadora, o que não era, de forma alguma, o caso de Amadea. Enquanto
mãe e filha se fitavam, absortas nos seus pensamentos, uma religiosa
bateu à porta para lhes indicar que o tempo da visita acabara.
Não escrevas à Daphne que estive aqui pediu Beata. Ficaria infelicíssima
por não ter vindo comigo. Mas precisava de falar-te a sós.
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Sim, obrigada, madre. Tenho algo a dizer-lhe que ignorava quando entrei
para o convento. A madre superiora ficou a aguardar, dando-se conta de
que se tratava de algo grave.
Nunca soube que a minha mãe não era de origem católica começou
Amadea. Disse-me, hoje, que se converteu ao catolicismo para casar com
o meu pai. Era judia. A família dela foi deportada após a Noite de Cristal.
Nunca os conheci, porque renegaram a minha mãe quando ela casou com o
meu pai e não voltaram a vê-la. Acabámos por conhecer a minha avó dois
anos antes de eu entrar para o convento, mas o meu avô nunca permitiu
que a minha mãe se encontrasse com o resto da família. Declararam-na
como morta.
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Aminha mãe diz que ninguém aparentemente possui pistas da sua história.
Nunca se registou e não tem passaporte. Os meus pais viveram três anos
na Suíça, antes de regressarem à Alemanha. Eu nasci lá. A sua certidão de
casamento indica que ela é católica e a minha certidão de nascimento
indica que ambos o eram. Contudo, sou meia judia, madre, mas nunca o
soube. Agora receio que, se ficar aqui, possa ameaçar as vossas vidas.
Era exactamente esse o motivo por que a irmã Teresa Benedita se fora
embora.
As nossas vidas não estão ameaçadas, minha filha, nem a sua. Pelo que me
diz, ninguém conhece a história da sua mãe. Ela faz tenção de ir à polícia e
declarar que é judia?
Não respondeu Amadea, abanando a cabeça. Ela leva uma vida calma e
não há motivo para que alguém o saiba.
Esconder a verdade não era honesto, mas era prático, existindo vidas em
jogo: as de Daphne, as da mãe e a dela. Talvez mesmo a das outras
religiosas. A madre superiora aparentemente não desaprovava o silêncio.
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Quando lhe escrever, diga-lhe, por favor, que lamento muito. Mas de uma
forma discreta pediu, e Amadea assentiu com a cabeça, reconhecida pela
sua bondade.
Se for essa a vontade de Deus, assim será. Contudo, ambas sabiam que
faltavam quatro anos e meio. Isto parecia uma eternidade a Amadea,
decidida a transpor a meta sem que nada se atravessasse no seu caminho.
Acabava, aliás, de superar um obstáculo significativo na última meia hora.
Mas não confunda a sua situação com a da irmã Teresa Benedita
aconselhou ainda a madre. É algo
muito diferente.
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CAPÍTULO 14
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Beata sentiu-se feliz por ver Amadea com tão bom aspecto; só este
pensamento lhe permitia aceitar a escolha da filha. A visita chegou
rapidamente ao fim, como era hábito. Antes de partir, disse à filha que vira
os Daubigny e que eles estavam bem.
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Em Abril de 1940, Amadea fez vinte e três anos e a mãe e a irmã foram
visitá-la. Daphne tinha agora quinze anos, o que até mesmo Amadea sentia
dificuldade em acreditar. Era muito bonita, praticamente a imagem da mãe
quando tinha a mesma idade.
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Sabia que era a senhora! declarou num tom vitorioso. Julguei que estava a
ver um fantasma. O seu pai disse-nos que tinha morrido na Suíça!
Desculpe... Não faço ideia... Eu... respondeu Beata como se estivesse a ser
confundida. Contudo, a mulher insistiu, convencida de a ter identificado.
Ignoro do que está a falar retorquiu friamente Beata, tremendo dos pés à
cabeça, ante a ideia de que alguém tivesse ouvido a mulher chamá-la pelo
seu nome de solteira.
Beata recordava-se, agora, de que Mina casara com o motorista do seu pai,
há uns trinta anos. Ocorreu-lhe tudo, numa vaga de pânico, consciente do
significado que este encontro poderia ter. Desculpe... declarou Beata com
um vago sorriso, tentando mostrar-se delicada, mas ansiosa por escapar,
no momento em que um táxi parou milagrosamente diante dela.
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Tudo o que podia esperar era que Mina acreditasse que se tinha enganado.
Com um pouco de sorte, esqueceria o encontro. A mulher não tinha
qualquer motivo para vir atrás dela, apenas quisera mostrar- se simpática.
Beata recordava-se de que ela era uma jovem meiga e perdidamente
apaixonada pelo motorista; quando saíra de casa, eles tinham acabado de
casar e Mina estava grávida. Devia ter ficado surpreendida ao vê-la, dado
o pai haver comunicado a morte dela a todo o pessoal. Contudo, estava
bem viva e talvez fosse esse o motivo por que Mina se mostrara tão
insistente. Contudo, nos tempos que corriam, Beata não podia permitir-se
ser identificada como uma Wittgenstem, mesmo com o risco de parecer
grosseira à sua antiga criada.
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Lamento muito, madame declarou num tom frio. Este cheque não pode ser
pago.
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sabia que ela e Daphne jamais passariam a fronteira. Além disso, já não
tinha dinheiro, além do que deixara com Gérard, o qual não queria usar,
pois talvez as filhas viessem a precisar dele mais tarde. Beata tentou
controlar o pânico, enquanto pegava em duas malas, começando a encher
uma delas
Vamos partir. Dá-me tudo o que quiseres levar e que caiba nesta mala
respondeu, continuando a fazer as malas, com mãos trémulas.
Nasci judia explicou. Converti-me para casar com o teu pai. Guardei
segredo durante todos e stes anos. Não tinha essa intenção, mas quando
começaram a perseguir os judeus, tornou-se necessário. Na semana
passada, vi uma mulher no banco que me conheceu quando eu era jovem.
Tratou-me pelo meu nome de solteira em pleno hall do banco. Quando
hoje voltei lá, tinham cancelado a minha conta. Temos de partir
imediatamente. Acho que vêm prender- nos...
Oh, mamã... Eles não podem fazer isso... exclamou Daphne com os olhos
cheios de lágrimas e de terror.
Podem, sim. Despacha-te. Faz as malas. Quero partir esta tarde ordenou
Beata desesperada, enquanto Daphne acusava o choque da notícia.
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Não sei. Ainda não pensei nisso. Talvez possamos passar uma noite em
casa dos Daubigny, se eles nos deixarem. Mas depois teremos de encontrar
outra solução.
respondeu Beata.
Estão sob prisão declarou o oficial num tom terrível. As duas acrescentou,
indicando Daphne. Como judias. O vosso banco denunciou-as. Sigam- nos.
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Beata já fizera as malas. Foi buscar a dela e disse a Daphne que trouxesse
a que haviam acabado de arrumar no quarto dela. Mas a jovem parecia
totalmente em pânico. Amãe tomou-a nos braços e apertou- a com força de
encontro ao peito.
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CAPÍTULO 15
Dois dias mais tarde, o padre da paróquia de Beata foi ao convento falar
com a madre superiora. Soubera a notícia pela criada de Beata, que fora ter
com ele lavada em lágrimas. Ela tinha saído nessa altura, mas os vizinhos
contaram-lhe tudo. Opadre achou que Amadea devia ser informada de que
a mãe e a irmã haviam sido levadas, embora desconhecesse o motivo.
Antes da visita, fizera a sua investigação e, segundo as suas fontes, Beata e
a filha tinham sido enviadas para a gare de triagem, no exterior da cidade.
Por norma, as pessoas ficavam ali durante semanas, até mesmo meses,
mas saíra um comboio de Colónia para o campo de mulheres de
Ravensbríick e meteram-nas nele. Elas já tinham partido.
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Contudo, ambas sabiam que essa situação não duraria muito. Ravensbrúck
era um campo onde faziam trabalhar as mulheres até caírem mortas como
moscas. Ninguém voltava de lá. Amadea mal conseguia respirar, ao ouvir
a notícia. Abriu a boca, mas foi incapaz de falar.
Neste momento, elas estão nas mãos de Deus sussurrou a mulher mais
velha. Só nos resta rezar por elas.
Muitos sobrevivem.
Contudo, ambas sabiam que a maior parte não sobrevivia. E não havia
nenhuma forma de saber se Beata e D aphne
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conseguiriam escapar. Daphne era tão bonita! Só Deus sabia o que podiam
fazer- lhe.
Vou pedir-lhe que nos deixe explicou esta. Temporariamente. Se ficar aqui,
poderá colocar todo o convento em risco. Quando tudo estiver acabado,
quando a vida regressar ao normal, voltará. Sei que sim. Nunca duvidei um
único segundo da sua vocação. É por esse motivo que lhe peço que parta,
porque, mesmo lá fora, onde quer que esteja, será sempre uma das nossas.
Nada mudará.
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- Para onde irei? perguntou Amadea num fio de voz. Há seis anos que não
saía do convento e não tinha nenhum sítio para onde ir.
Há uns meses, a sua mãe mandou-me uma carta com o nome de um amigo.
Telefonei-lhe há minutos. Disse-me que virá imediatamente.
Tão depressa?
No entanto, a madre superiora tinha razão. Não lhe restava outra escolha.
Fosse qual fosse o lugar ou o convento em que se refugiasse, representava
um perigo para as outras. Amava-as demasiado para lhes infligir isto.
Tinha de partir. E, como a madre superiora dissera, sabia que um dia
voltaria. O Carmelo era a sua vida e o seu lar. Estava certa de que nascera
para tornar-se carmelita e para servir a Deus.
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195
Gérard esquecera o quanto ela era bonita, e ainda o era mais neste
momento. Apesar da tristeza, o olhar emanava algo de luminoso e intenso.
Parecia iluminada por dentro, e ele compreendeu a profundidade e a força
da sua fé. Para ela, abandonar o convento era uma tragédia e uma grande
perda, juntamente com todas as outras que aguentara. Não fazia ideia de
como se adaptaria de novo ao mundo, após tantos anos. A madre superiora
partilhava a mesma inquietação. Amadea parecia em estado de choque.
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se fora embora. Não lhes devia mais nenhuma explicação, nem a daria. A
partir de então, nem ela saberia onde Amadea estava. Enquanto aguardava
o seu regresso, a comunidade rezaria por ela.
Nada lhe servia, mas pouco lhe interessava. A mãe e Daphne tinham
desaparecido onde quer que estivessem, encontravam-se agora nas mãos
do Senhor e ela estava prestes a deixar o local onde procurara refúgio há
seis anos, o lugar onde tinha vivido, trabalhado e crescido.
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CAPÍTULO 16
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preço a pagar em troca da segurança delas, o qual lhe parecia mínimo,
comparado com o que os Daubigny estavam a fazer por ela.
Até amanhã despediu-se ele num tom suave, fechando a porta à chave
atrás de si.
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Dois dias antes do Natal, Gérard parecia muito perturbado quando veio
abrir-lhe a porta e Amadea compreendeu que algo se passara. Ouvira
barulho lá fora durante todo o dia e também a agitação dos cavalos. Ele
informou-a de que a Gestapo confiscara os estábulos e a maioria dos
cavalos e que receav a viessem a fazer o mesmo com o castelo. O
Kommandant avisara que efectuaria uma visita completa ao local depois
do Natal.
De momento estavam demasiado ocupados. Contudo, os três concordaram
que Amadea deixara de estar em segurança
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Chamaria a atenção para a herdade se a conduzisse até lá, o que era preciso
evitar a qualquer custo. Deixei-te um cavalo no barracão disse ele num
tom calmo. Dirige-te para norte. Tens as indicações
Gérard queria que ela partisse antes do nascer do Sol. Ficaram os três a
discutir na penumbra, em voz baixa, no quarto de Véronique e Gérard,
para evitar que os soldados vissem as luzes acesas. Meia hora mais tarde,
acompanharam Amadea à porta e abraçaram-na uma última vez.
Véronique aconchegara-a de encontro ao peito e beijara-a como a uma
filha.
Era também um dos mais rápidos que tinha. Depois, os Daubigny abriram
a porta e Amadea saiu para o escuro. Há oito meses que não saía do castelo
e teve de enfrentar o frio e o ar gélido que lhe cortou a respiração. Dirigiu-
se a passo rápido para o barracão, abriu a porta e acariciou o cavalo, ao
mesmo tempo que ajustava a sela, com o mapa dentro do bolso.
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Não tenho.
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Quem é você?
Pensou inventar um nome, mas de que lhe serviria? Mais valia dizer a
verdade.
Visitar amigos.
Era óbvio que eles não acreditavam numa palavra da sua história e não
havia nenhum motivo para tal. Apenas rezava para que não descobrissem o
mapa da herdade, mas não esboçou qualquer movimento para o tirar do
bolso.
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dele.
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Conservaram-na no armazém durante dois dias, no meio do frio glacial e
do fedor dos corpos. O lugar cheirava a vomitado, urina, suor e
excrementos. Só lhe restava rezar. Por fim, obrigaram-nos a subir para um
comboio, sem lhes indicarem o destino. Deixara de interessar. Eles eram
meros corpos. Enquanto os soldados os empurravam para o interior, as
pessoas inundavam-nos de perguntas. Amadea mantinha- se calada e
rezava. Tentou ajudar uma mulher, que segurava um bebé ao colo, e um
homem, tão doente, que parecia moribundo. Ao olhá-los, compreendeu o
motivo da sua presença ali. Independentemente do destino que o Senhor
lhe reservava, havia sido enviada até ali para partilhar o destas pessoas e
talvez ajudá-las, nem que fosse apenas pela oração.
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CAPÍTULO 17
Olhou uma única vez para trás e avistou os corpos inertes de velhos e de
crianças que haviam ficado no comboio. Recordou-se de que uma das
mulheres, que ia ao seu lado, conservara o bebé morto nos braços durante
dois dias. Alguns dos mais velhos ficavam para trás, enquanto os guardas
lhes gritavam que avançassem.
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sentiu-se feliz por estar bem calçada. Algumas mulheres haviam perdido
os sapatos no comboio e eram obrigadas a caminhar sobre a terra gelada,
com os pés em carne viva, chorando de dor.
Dá-te por feliz! gritou um soldado, num tom de desprezo, a uma mulher de
idade que deixou de conseguir andar ao fim de dez minutos. Vais para uma
cidade modelo É mais do que mereces!
Chegaram quase uma hora depois a uma antiga fortaleza que fora
construída pelos austríacos há duzentos anos. Uma tabuleta de letras
deslavadas indicava TEREZIN em checo, mas numa outra, por baixo, lia-
se THERESIENSTADT, em alemão. Franquearam as portas da cidade
murada e receberam ordem para se colocarem em fila para a ”selecção”.
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Quando, por fim, chegou a sua vez, Amadea foi enviada para uma das
barracas com uma dúzia de outras mulheres. Havia números por cima das
portas e homens e mulheres no interior. Ela foi parar a uma área que fora,
de início, construída para acolher cinquenta soldados, abrigando agora
quinhentas pessoas. Não havia privacidade, nem espaço, calor, comida ou
roupas quentes.
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Amadea não pronunciara uma palavra quando lhe tinham indicado a sua
cama. Era jovem e robusta e tinham-lhe destinado a de cima. As pessoas
mais idosas e mais fracas haviam recebido as de baixo. Tinham-lhe tirado
as botas e usava, agora, tamancos de madeira que lhe deram juntamente
com os documentos de identidade do campo. Também lhe haviam
ordenado que tirasse o casaco de cabedal, vincando que não precisava dele,
apesar do frio glacial.
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Amadea ajudou uma mulher de idade a deitar-se e viu que havia mais três
mulheres nas camas ao lado. No barracão para onde a tinham mandado só
se viam mulheres e crianças com menos de doze anos. Os rapazes com
mais de doze anos encontravam-se noutro lado, com os homens. Alguns
dos mais novos, em particular aqueles cujas mães tinham sido mandadas
para outros campos, ou mortas, encontravam- se noutro local qualquer.
Não existia qualquer intimidade, calor ou conforto.
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Teresa respondeu Amadea, sem pensar. Era o nome que melhor lhe
correspondia. Mesmo depois dos meses passados com Gérard e Véronique,
o seu antigo nome próprio continuava a parecer- lhe estranho.
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Não. Saí do convento em Abril. Desde essa altura que estava com amigos.
És judia?
Lamento pela tua mãe sussurrou Rosa. Disseram-te para onde ias
trabalhar?
aqui, mas somos tantos e o campo é tão recente, que dizem às pessoas para
regressarem quando eles tiverem mais pessoal. É provável que te tatuem
amanhã, quando te atribuírem o trabalho.
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215
Amadea não gostava da ideia de ser tatuada, mas também tinha a certeza
de que Jesus não quisera ser crucificado. Era mais um pequeno sacrifício
que teria de fazer por Deus
cinco da manhã. Já havia fila para a água quente e as papas de aveia, mas a
espera era tão demorada que a maioria dos presos ia trabalhar de estômago
vazio. Amadea regressou ao centro de triagem da véspera para que lhe
distribuíssem um trabalho, mas também teve de aguardar na fila, durante
horas. Um guarda preveniu-a de que seria castigada se se fosse embora e
apontou-lhe uma arma ao pescoço, para vincar bem as palavras.
Permaneceu um longo momento a observá-la, antes de passar ao preso
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217
Achava Amadea mais bonita do que a maioria das presas que examinara. A
jovem parecia forte e robusta, embora fosse alta e magra.
Aqui não há tempo para essas parvoíces declarou, num tom calmo,
enquanto escrevia algo no dossiê dela. Bom. Podes trabalhar no jardim.
Mas se roubares o que quer que seja, serás fuzilada acrescentou secamente
e com uma expressão ameaçadora. Apresenta-te lá às quatro da manhã,
amanhã. Trabalharás até às sete da tarde.
À tarde, pôs-se na fila para comer e recebeu uma batata meia podre e uma
crosta de pão. Há horas que a sopa se esgotara; a mulher antes dela tivera
direito a uma cenoura. Contudo, sentiu-se reconhecida pelo que lhe deram.
Comeu à volta da parte apodrecida da batata e engoliu avidamente o
pedaço de pão. De regresso à barraca pensou nisso e censurou-se pela sua
gula e voracidade. Estava faminta, mas todos o estavam.
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Os médicos não podem fazer nada por mim replicou Rosa. Não têm
medicamentos acrescentou com um encolher de ombros e fitando Amadea
com um ar cúmplice. Vê só murmurou, tirando qualquer coisa do bolso.
mesmo uma.
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Nessa noite, Amadea deitou-se cedo para estar em forma no dia seguinte.
Contudo, era difícil adormecer com tanta gente à volta. Por vezes, nem
sequer conseguia rezar. Tentava manter a rotina do convento, como o
fizera no castelo dos Daubigny, mas lá fora mais fácil. Pelo menos, reinava
a calma quando se levantou às três e meia. Dormira vestida e,
excepcionalmente, só havia trinta pessoas na fila para a casa de banho.
Podia ir lá, antes do trabalho.
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Ah, tenho? replicou ela num tom amável, continuando a trabalhar. Nesse
dia tinham recebido ordem para plantar mais cenouras, pois as que haviam
plantado estavam a crescer bem.
A jovem colocou-se diante dele e fixou-o sem desviar os olhos, sem medo.
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Sou freira explicou simplesmente, como a dizer-lhe que não era uma
mulher e, portanto, a salvo das suas atenções.
Não é possível! exclamou, surpreendido, pois nunca vira uma religiosa tão
bonita. Na generalidade, eram mulheres vulgares.
Tenho um marido. Deus é meu marido. E todas estas pessoas são meus
filhos e Dele ripostou, abrangendo todo o jardim com um gesto. Por
momentos, ele interrogou-se sobre se a rapariga seria louca. Mas depressa
compreendeu que não, que falava a sério e tinha uma fé inabalável.
No dia seguinte, ele voltou e, sem dizer uma palavra, passou junto dela
fingindo ignorá-la, mas fazendo deslizar um pedaço de chocolate para o
seu bolso. Era um favor incrível, mas, em simultâneo, muito mau sinal,
podendo revelar- se
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Então, dá-lho tu replicou num tom severo, ao mesmo tempo que voltava a
meter-lhe o chocolate na mão e se afastava.
Tens medo de falar comigo, não tens? perguntou-lhe num tom meigo,
seguindo-a até ao sítio onde ela deixara a enxada.
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225
Não aqui observou Amadea num tom triste. Desejava acreditar que ele era
boa pessoa, mas neste sítio,
Quero ser teu amigo insistiu ele. Dera-lhe chocolate em mais duas
ocasiões, mas a jovem sabia que os favores eram perigosos. Contudo,
também não queria rejeitá-lo, o que podia revelar-se igualmente perigoso.
Não tinha a mínima experiência com homens. Vivera no convento, isolada
do mundo, desde a adolescência. Aos vinte e cinco anos era mais inocente
do que as raparigas de quinze.
Tenho uma irmã da tua idade prosseguiu num tom calmo. Às vezes, penso
nela ao olhar para ti. É casada e tem três filhos. Também tu, um dia, podias
ter filhos.
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Claro que sou. Há seis anos que estou no convento. Fazia um ano que
partira. Se tudo se tivesse processado normalmente e não se visse obrigada
a abandoná-lo, estaria a um ano dos seus votos perpétuos. Podes repensar o
assunto ripostou ele com uma expressão feliz, como se Amadea lhe tivesse
dado
um presente. Em que grau és judia? quis saber. Ela teve a impressão de que
a interrogava como se fos se sua noiva, e essa mera ideia punha-a doente.
Metade.
Não pareces.
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227
a ser morto ou deportado. Era um risco de que tinha consciência, tal como
ela. Amadea tinha, aliás, mais a perder. Pensava nisso diariamente, sempre
que ele passava ao seu lado e lhe metia pequenos presentes no bolso. Se
alguém os surpreendesse, seria fuzilada. Tratava-se de presentes
extremamente perigosos
Tem de parar com isto repreendeu-o uma tarde. Nesse dia, ele metera-lhe
vários bombons no bolso e, por muito que lhe custasse admitir, davam-lhe
energia. Nem sequer ousava partilhá-los com as crianças que visitava, com
medo de ser punida por roubo e que também elas o fossem. Os miúdos
ficariam tão excitados com os bombons que acabariam por dar com a
língua nos dentes e todos ficariam em maus lençóis. Por conseguinte,
comia-os e não dizia a ninguém. O soldado chamava-se Wilhelm.
Gostava de dar-te mais coisas disse ele com uma expressão grave. Um
casaco bem quente, sapatos bons... e uma cama quente.
234
228
Amadea concordava, mas nenhum deles podia fazer o que quer que fosse.
Não, não é. Ao fim da noite, muitas vezes não há sentinelas no portão sul.
Trancam simplesmente as portas. Se encontrares as chaves, basta abrir a
porta e fugir.
Para onde?
235
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Contudo, Wilhelm via bem mais do que isso em Amadea. Não só a achava
bonita, mas também inteligente e de uma enorme bondade. Era o tipo de
mulher que procurara toda a sua vida e encontrara- a aqui. Uma meia judia
no campo de concentração de Theresienstadt e, para cúmulo, uma freira.
e cada vez passava mais tempo com ela. Fazia-lhe a corte, mas aquele não
era o local apropriado, nem ela era a mulher indicada. Porém, deixara de
lho repetir; talvez, afinal, pudessem fugir
236
230
Esta noite.
Ela virou-se e fitou-o. Era impossível que estivesse a falar a sério. Talvez
se tratasse de uma proposta. Mas quando estava prestes a terminar o
trabalho, ele deteve-se junto dela, como que a examinar o resultado e
murmurou:
Esta noite, vão ocupar a cidade de Lidice. Fica a uns trinta quilómetros
daqui e vão precisar dos nossos homens. Vão deportar todas as mulheres,
matar todos os homens e, em seguida, incendiar a cidade inteira, como um
exemplo para os outros. Dois terços dos nossos homens partirão às oito da
noite, no máximo às nove, com os carros e os camiões. Espera-me na
entrada sul, à meia-noite. Encarrego-me da chave.
Não haverá ninguém para te abater. Segue junto aos barracões e ninguém
te verá. Se te mandarem parar, diz que vais ver os doentes.
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231
O que ele acabara de dizer era uma loucura, um plano insensato, mas se
alguma vez existira uma oportunidade, sabia que era nessa noite. Mas o
que fariam depois? Oque é que ela faria? Pouco interessava. Tinha de
tentar a sorte.
Ao regressar ao barracão, Amadea pensava no destino que aguardava os
habitantes de Lidice. Iam matar os homens, deportar as mulheres e as
crianças, incendiar a cidade. Era horrível. Contudo, também o era para ela
ficar em Theresienstadt até ao fim da guerra, ou ser transferida para outro
campo.
Há cinco meses que se encontrava ali e tivera muita sorte. Nunca ficara tão
doente como a maioria e não fora tatuada; com a permanente chegada de
novos detidos e as construções em curso, os nazis tinham demasiado que
fazer, e ela escapara pelos buracos da rede. Agora, estava prestes a escapar
pelo portão do campo. Se fossem apanhados, seria morta ou deportada
para Auschwitz e ele provavelmente fuzi lado. Tinha muito a perder, mas
talvez tivesse mais em ficar ali, onde, de qualquer maneira, se arriscava a
ser deportada para Auschwitz. Sabia que devia tentar a sorte, mesmo que a
matassem. Não podia continuar em Theresienstadt e jamais se lhes
apresentaria uma oportunidade igual. Era o momento ideal.
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Não se via ninguém; bastava-lhe percorrer uma curta distância para chegar
à entrada sul. Era inacreditável. Não havia um único soldado por perto e a
própria praça estava deserta. Wilhelm estava lá, à sua espera. Tinha a
chave na mão e mostrou-lha com um sorriso. Com um gesto rápido,
introduziu a enorme chave na fechadura, a mesma que a cidade usava há
duzentos anos. Oportão entreabriu-se com um rangido, o suficiente para
que passassem. Ele voltou a fechá-lo, trancou-o e deitou fora a chave.
Oh, meu Deus! sussurrou, ao luar. Oh, meu Deus, Wilhelm! Conseguimos!
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233
Não sejas idiota retorquiu ele, irritado. Não arrisquei a minha vida para te
ver brincar às freiras. Casarei contigo, quando voltarmos à Alemanha. Ou
antes disso. Amo- te.
Amadea sabia que não era o momento indicado para lhe destruir as ilusões
ou falar-lhe nos votos. Também o amo por ter-me ajudado, mas não como
pensa respondeu com franqueza, ao mesmo
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mas não sabia o que fazer-lhes. Supunha que a arma estava carregada, mas
não sabia como usá-la. Por fim, a jovem endireitou- se.
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CAPÍTULO 18
A floresta estava calma. Apenas se ouvia o som dos seus passos e o canto
dos pássaros nas árvores, sobre a sua cabeça. Avistou um coelho e depois
um esquilo. Dir-se-ia uma floresta encantada, e a magia residia no facto de
ela estar livre. Contudo, matara um homem para chegar ali e sabia que
nunca se perdoaria a si própria. Fora um acidente, mas devia arrepender-se
diante de Deus. Gostaria de poder falar com a madre superiora, de estar
novamente no convento com as irmãs.
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falar no campo entre os detidos checos. Ignorava se eles eram bons ou não,
se se tratava dos guerrilheiros que procurava; mesmo que fosse o caso,
podiam perfeitamente violá-la. Ignorava o que esperar da parte deles.
Obrigaram-na a levantar-se e fizeram-lhe sinal para que os seguisse.
Rodeavam-na de perto e um deles pegou na arma de Wilhelm. O grupo
avançava a passo rápido. Fatigada e fraca, Amadea tropeçava muitas vezes
e, sempre que isso acontecia, deixavam que se levantasse sozinha, para o
caso de ser um truque.
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Caminharam durante várias horas e quase não lhe dirigiram a palavra. Por
fim, Amadea avistou um acampamento na floresta. Havia cerca de vinte
homens. Dois deles empurraram-na bruscamente até um bosquedo, onde
um grupo de homens armados se sentavam a falar. Todos levantaram a
cabeça à sua chegada. Os que a tinham trazido afastaram-se e seguiu-se
um longo silêncio. Por fim, um dos homens tomou a palavra e dirigiu-se
em checo a Amadea. Amadea abanou a cabeça, em sinal de
incompreensão, depois, ele falou-lhe em alemão.
De onde vens? perguntou-lhe num alemão correcto, embora com um forte
sotaque, enquanto a observava demoradamente.
Amadea estava suja e magra, tinha cortes e arranhões por todo o corpo, os
sapatos no fio e as solas dos pés em sangue.
O homem não correspondeu. O caso era grave, pois estava muita coisa em
jogo. Para todos. És judia?
Metade. A minha mãe era uma judia alemã. O meu pai era francês e
católico. A minha mãe converteu- se.
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238
Quanto tempo estiveste em Terezin? perguntou o homem, designando a
cidade pelo nome checo. Desde Janeiro.
Falas francês?
Como?
Fluentemente.
Tens sotaque? Podes passar tanto por uma alemã como por uma francesa?
Sentiu-se fraquejar ao perceber que eles iam ajudá-la ou, pelo menos,
tentar. As perguntas eram breves, concisas e, apesar do seu ar de
camponês, o indivíduo era, na realidade, o chefe dos guerrilheiros desta
zona. Seria ele a decidir se a ajudariam ou não.
Sim respondeu Amadea. Mas com o seu físico de ariana, ela parecia alemã
e os dois sabiam que isso era uma ferramenta. O que vai fazer comigo?
Para onde vou? atreveu-se a acrescentar, fitando- o. Não sei declarou o
indivíduo, abanando a cabeça. Se és judia não podes regressar à Alemanha,
ou,
pelo menos, não podes ficar. Podíamos fazer-te passar a fronteira com
documentos falsos, mas seria arriscado. Acabavam por encontrar-te.
Também não podes ficar aqui. Todas as alemãs regressaram. As mulheres
dos oficiais aparecem, por vezes, de visita. Veremos.
Terás de ficar aqui algum tempo decidiu. Há demasiada agitação por aí.
O que aconteceu em Lidice? inquiriu num fio de voz.
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Lamento retorquiu.
O homem desviou o olhar, sem lhe revelar que o seu irmão e a família
tinham vivido no local. Não podemos tirar-te daqui durante semanas.
Talvez meses. Leva tempo a arranjar documentos. Obrigada agradeceu,
sem lhe importar quanto tempo a manteriam ali. Era melhor do que de
onde
Amadea viveu com eles na floresta até ao início de Agosto. Nessa altura
reinava um pouco mais de calma. Passava a maior parte do tempo a rezar
ou a passear numa pequena área à volta do acampamento. Outros homens
chegaram e partiram e, uma vez, viu uma mulher. Ninguém lhe falava, por
isso aproveitava os seus momentos de solidão para rezar. A floresta estava
tão calma que, às vezes, se tornava difícil acreditar que havia uma guerra.
Uma noite, semanas após a sua chegada, como soubessem que ela era de
Colónia, disseram-lhe que a cidade fora bombardeada pelos ingleses e
ficara completamente destruída. Em Theresienstadt não tinham sabido de
nada. O que os guerrilheiros diziam era impressionante; os nazis haviam
sofrido um profundo revés. Esperava que não tivesse acontecido nada aos
Daubigny; por sorte, o castelo deles ficava bastante longe da cidade e
talvez o houvessem poupado.
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Frieda Oberhoff e era uma jovem mulher de vinte e cinco anos, natural de
Munique, que viera visitar o marido, aquartelado em Praga. Ele era
Kommandant de uma pequena circunscrição da cidade e regressava com
ela a Munique, de licença. Daí, seguiriam directamente para Paris para
umas curtas férias, antes que ela voltasse a Munique e ele a Praga. Os
bilhetes de comboio pareciam verdadeiros. Uma jovem trouxe- lhe roupas
e uma mala e ajudou Amadea a vestir-se. Depois, tiraram-lhe uma
fotografia para o passaporte. Tudo estava em ordem.
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241
Conseguimos murmurou.
Ele assentiu com a cabeça e levou um dedo aos lábios. Nunca se sabia
quem podia estar à escuta. O segredo do sucesso do plano residia em
cumpri-lo rigorosamente até ao final. Começaram a falar em alemão,
discutindo os seus projectos de férias e o que Amadea desejava ver em
Paris. Ele descreveu-lhe o hotel onde ficariam e falou-lhe da mãe, que
vivia em Munique.
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- ou, pelo menos, o nome de que se servia desatou a rir e sorriu ao soldado,
enquanto lhe ordenava por entre dentes que sorrisse também. Em seguida,
a jovem voltou a adormecer, chegando a apoiar a cabeça no ombro do
homem, que a acordou ao chegarem à estação central de Munique.
Sou o seu marido riu-se ele. Podia, ao menos, tirar o chapéu e as luvas!
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Esperava que ele não levasse o embuste demasiado longe, mas não lhe
parecia esse tipo de homem. Deduzo que não é casada? inquiriu ele num
tom suave, a coberto do barulho do comboio que lhes abafava a conversa.
Bom. Nunca tinha passado a noite com uma freira declarou finalmente.
Suponho que há sempre uma primeira vez para tudo.
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Não tenciono sair de França disse ela. Amadea não concebia a ideia de
regressar à Alemanha, enquanto houvesse guerra. Na sua situação, viver
em França seria difícil, mas na Alemanha era impossível. Preferia morrer
a ser deportada, novamente, para um lugar sem dúvida pior do que da
primeira vez. Theresienstadt chegara-lhe. Não conseguia deixar de pensar
em todos os que ainda lá estavam e no que lhes aconteceria. Ter escapado e
encontrar-se neste comboio era um milagre.
Nem uma única vez. Soube desde o primeiro dia que era o meu destino.
E agora? Depois de tudo o que viu? Continua a pensar que deve estar
isolada do mundo? Há tanta coisa que pode fazer pelas pessoas, aqui.
Wolff sorriu ante estas palavras. Não tinha tenção de discutir com a jovem,
mas interrogou- se, mesmo assim, sobre se
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245
ela regressaria mesmo ao convento algum dia. Era muito bonita e tinha
muito que descobrir e apren der. Sentia-se estranho a viajar com uma
religiosa e, para ele, não parecia sê-lo. Era, pelo contrário, muito humana e
apetecível, embora parecesse não ter consciência disso, o que fazia
exactamente parte do seu encanto. Era uma mulher muito atraente e de um
tipo muito especial.
Ignoro como isso se passa respondeu no mesmo tom, com um leve sorriso.
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WolfF deixou uma gorjeta mais que generosa ao motorista que lhe
agradeceu profusamente e se afastou. Sabia que não era aconselhável
mostrar-se rude para com os alemães, sobretudo os oficiais das SS. Um
dos seus amigos fora abatido por um, há seis meses, só por lhe ter
chamado ”sale boche”.
Wolff e Amadea mandaram vir cafés pelo menos o que passava por café
naquela altura e o empregado trouxe-lhes um cesto com croissants. Dez
minutos mais tarde, juntou-se-lhes um amigo de WolfF, que lhe deu uma
palmada no ombro, visivelmente satisfeito por o ver.
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247
Ainda não sabiam muita coisa a respeito dela, à excepção de que escapara
de um campo e recebera a ajuda de guerrilheiros checos, próximo de
Praga. Estes haviam-lhes comunicado que ela precisava de refúgio em
França e que podia ser-lhes útil, sem explicarem porquê. Agora, o motivo
parecia-lhes óbvio a jovem parecia alemã e dominava igualmente o
alemão e o francês.
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Amadea abanou a cabeça. Para ele, a jovem era uma pérola rara e
detestava mandá-la embora dali. Precisavam dela em Paris.
Não especificou a Amadea que este último era igualmente chefe de uma
célula de resistentes em Marselha, onde fazia o mesmo do que o padre
Jacques, que escondia crianças judias no colégio de que era director, em
Avon. Além do irmão, conhecia inúmeros padres por toda a França que
seguiam este exemplo, por vezes, de moto próprio. Contudo, não fazia
tenção de usar esta jovem alemã como freira. Podia ser-lhes muito mais
útil de outras formas. Passava facilmente por uma alemã, mas precisava de
saber se tinha nervos para tal.
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Ante a evocação dos avós, Amadea compreendeu que Pierre e Serge eram
irmãos. Reinava uma grande actividade na cave. Imprimiam-se panfletos
com o objectivo de fazer com que os franceses saíssem do seu torpor e
soubessem a verdade sobre a guerra.
Boa sorte, irmã desejou, com um sorriso. Talvez algum dia voltemos a ver-
nos.
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Nessa noite, Amadea dormiu na cave, numa cama de campanha, enquanto
os homens conversaram até altas horas. Os seus documentos ficaram
prontos no dia seguinte. Achou-os ainda melhores do que os alemães, que
Serge disse que guardaria. Não queria que os tivesse com ela, quando
partisse em missão. Haviam falado a respeito dela durante toda a noite e,
por fim, tomara a decisão de enviá-la para Melun. A cidade situava-se a
cinquenta quilómetros a leste de Paris, e ele achava que, ali, a jovem
estaria em maior segurança. Além disso, precisavam dela no local. Os
ingleses andavam a lançar provisões e homens de pára-quedas. Seria uma
missão delicada.
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noite trabalharia para a Resistência local. Estava, aliás, previsto que ela se
encontrasse com um outro resistente no dia seguinte
Passou a noite em mais uma cama desconhecida, mas deu graças ao céu
por ter uma. Na manhã seguinte, as duas mulheres da célula parisiense
regressaram, desejando-lhe boa sorte. Como sempre lhe acontecia agora
em relação a todos, interrogou-se sobre se alguma vez as veria de novo.
Tudo na sua vida parecia transitório e imprevisível. As pessoas
desapareciam da vida umas das outras num abrir e fechar de olhos. E
quando se pronunciava uma despedida podia ser para sempre, o que era
frequentemente o caso. Contudo, toda esta gente desempenhava um
trabalho perigoso e Amadea sentia-se ansiosa por ajudá- los. Devia-lhes
muito e queria começar a pagar a sua dívida
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Pareceu-me compreender que tinha feito uma longa viagem disse ele,
olhando-a desconfiado. Amadea assentiu com a cabeça. Ainda lhe era
difícil acreditar onde se encontrava. Deixara Praga
há uns dias e o seu refúgio na floresta pouco tempo antes, para já nem
falar do stresse da viagem através da Europa com um guerrilheiro vestido
com o uniforme de oficial das SS e documentação falsa. Contudo, agora,
ela era Amélie Dumas. Jean-Yves era bretão e fora pescador antes de vir
para Melun. O casal de fazendeiros era, porém, sua família verdadeira.
Amadea sentia a cabeça andar à roda com tanta informação em
simultâneo: falsas identidades, missões verdadeiras, agentes secretos da
Resistência, e todos eles a tentarem libertar França.
Onde aterrarão?
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253
Sabe usar um rádio de ondas curtas? inquiriu, mas ela abanou a cabeça.
O que é que fazia antes? retorquiu ele com uma gargalhada. Era
manequim, actriz ou apenas uma menina mimada?
A beleza dela levava-o a supor que devia ter acertado, mas desta vez foi
ela a rir- se. Carmelita respondeu Mas se isso era supostamente um
cumprimento, agradeço-lhe muito. Duvidava que ser chamada de actriz
fosse um cumprimento a mãe certamente não o acharia Deixou o convento
antes da guerra? inquiriu ele, boquiaberto.
Não. Só quando a minha mãe e a minha irmã foram deportadas. Parti para
não pôr em risco o resto da congregação. Era a única atitude a tomar.
Amadea ainda o ignorava, mas a irmã Teresa Benedita da Cruz Edith Stem
e a sua irmã Rosa tinham sido deportadas para Auschwitz há alguns dias.
Enquanto passeava nos pomares de Melun com Jean-Yves, Edith Stem fora
gaseada e morrera
E regressará ao convento depois da guerra?
Sim respondeu Amadea, convicta, pois era a única coisa que a fazia andar
em frente.
Como pode dizer uma coisa dessas? replicou ele. Viver em reclusão assim.
Além disso, não parece uma freira.
Pareço sim insistiu num tom calmo E levamos uma vida muito activa.
Trabalhamos muito e rezamos por todos vós.
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Parecia muito mais jovem do que ela se sentia, embora, na realidade, fosse
mais velho. Depois de tudo o que vivera, sentia-se envel hecida.
Lamento muito. Tem outros irmãos e irmãs? interrogou num tom suave,
esperando que fosse o caso, mas ele abanou a cabeça.
Os meus pais estão mortos respondeu. O meu pai morreu num acidente de
pesca, quando eu era miúdo, e a minha mãe morreu no ano passado. Teve
uma pneumonia, mas não tínhamos medicamentos para a tratar.
A morte recente dos irmãos explicava a sua tristeza. Tal como ela, perdera
toda a família, à excepção do tio e da tia de Melun.
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CAPÍTULO 19
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Gostas dela, confessa declarou Georges, com um leve sorriso. Não sejas
parvo. Ela é freira resmungou Jean-Yves entre dentes. Ah, sim, retorquiu
Georges, surpreendido Não parece nada.
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Achava que seria uma pena se o fizesse e Jean-Yves era da mesma opinião.
Nas semanas seguintes, houve duas outras missões do mesmo género e três
em Setembro, com homens. O avião só aterrou num desses casos; nos
outros dois, lançaram-nos de pára-quedas. Um dos homens fez um grave
entorse no tornozelo ao tocar no solo, e tiveram de escondê-lo na herdade,
onde Amadea o tratou até se encontrar em condições de partir.
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Um pouco mais tarde, foram detidos por soldados que lhes examinaram os
documentos; um deles olhou fixamente para Amadea.
O quê?
Não. Não sejas ridículo replicou, perturbada. Assumira o tom de uma mãe
a falar com o filho e, ao sorrir, Jean-Yves mais parecia um miúdo do que
um homem que arriscava constantemente a vida pela França.
Não fujo de nada. Acredito, pelo contrário, no que faço. Adoro o convento
e adoro ser freira. 267
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Sinto tanto a sua falta... Não consigo acreditar que partiram para sempre...
a minha irmã era tão bonita... e a minha pobre mãe, sempre disposta a tudo
por nós. Nunca pensava nela... Não consigo deixar de pensar no que lhes
aconteceu... Sei que não voltarei a vê-las... Oh, Jean- Yves...
Amadea soluçou durante muito tempo nos seus braços. Era a primeira vez
que se deixava abater daquela forma. Por norma, proibia-se de pensar no
que podia ter-lhes acontecido. Ouvira contar histórias horríveis sobre
Ravensbriick. Era impensável que elas tivessem desaparecido para
sempre, mas, no íntimo, sabia que era essa a realidade.
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Eu sei... eu sei... Também penso em todas essas coisas... Sinto saudades
dos meus irmãos... Todos perdemos entes queridos. Não há ninguém que
não tenha perdido uma pessoa chegada.
Sem compreender o que lhe acontecia, Amadea viu-se submersa numa tal
onda de desespero e de paixão tão incontrolável, que não conseguia parar
de o beijar e abraçar. E, antes que qualquer deles pudesse parar ou reflectir
no que se passava, fizeram amor na camioneta. Era tudo o que ela
desejava. Era como se se tivesse transformado numa pessoa
completamente diferente do que fora durante todos estes anos.
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Detestas- me?
Ele sabia até que ponto a jovem estava segura da sua vocação, mas sempre
lhe parecera que se enganava. Era uma mulher demasiado bonita e
encantadora para se esconder num convento até ao fim dos seus dias.
Contudo, era a vida que ela lhe dissera desejar, desde que se tinham
conhecido.
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Amo-te. Não te esqueças disse, com uma expressão grave. Esta noite foi só
o início. Não foi um erro, nem um pecado. E prometo-te ir mais vezes à
missa acrescentou, sorrindo.
Desde a morte dos irmãos que não voltara à igreja por estar demasiado
irritado com Deus. Talvez seja por isso que Ele me enviou ao teu encontro,
para te trazer de volta à igreja.
No entanto, fosse qual fosse o motivo, Amadea estava tão feliz como ele.
Verificou, surpreendida, que não se sentia em falta, mas, pelo contrário,
feliz e apaixonada. Sabia que precisariam de tempo para encontrar uma
solução. Era essa uma das consequências da guer ra.
Nessa noite, deitada na cama, Amadea constatou que não tinha nenhuma
crise de consciência nem sequer de arrependimento. Por estranho que
parecesse, achava que estava certa. Interrogou-se sobre se não seria isto,
afinal, o que Deus queria para ela. Mergulhada nestes pensamentos,
adormeceu sem se dar conta.
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CAPÍTULO 20
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Era a missão mais perigosa que alguma vez tinham efectuado. Dispuseram
cuidadosamente os explosivos à volta do depósito de munições e depois,
como previsto, todos, menos Jean-Yves e Georges, regressaram a correr às
camionetas. Os dois homens sabiam que dispunham apenas de uns minutos
para pegar fogo às mechas e fugirem. Os explosivos que usavam eram
rudimentares, mas não tinham encontrado outros. Georges e Jean-Yves
ainda não haviam reaparecido, quando Amadea ouviu uma violenta
explosão e avistou um enorme fogo de artifício que iluminava o céu.
Todos se entreolharam: não havia o mínimo sinal de Georges ou Jean-
Yves.
Não vou partir! decidiu ela de dentes cerrados, mas, quando olhou para
trás, avistou uma enorme bola de fogo enquanto a segunda camioneta
arrancava.
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Todos assentiram com a cabeça, sabendo que era verdade, mas também
eles não tinham querido, de forma alguma, abandonar os dois
companheiros. A decisão dela quase lhes custara a vida, mas estavam sãos
e salvos.
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CAPÍTULO 21
Serge sentou-se e falou com ela. Disse-lhe que, doravante, lhes faltavam
demasiados efectivos para poder garantir a segurança das missões.
Não está nas tuas mãos, mas nas deles. E, se não continuares o teu
trabalho, em breve será o nosso sangue.
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Fazia um trabalho bom de mais para que desistisse de tudo; além disso, a
jovem estava de tal forma devastada pela dor que ele receava que entrasse
em depressão profunda.
Aceito declarou
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Era a missão mais fácil que desempenhara até então e, com as crianças a
dormir, podia reflectir tranquilamente. Há muito tempo que não se sentia
assim, por isso estava feliz por
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A mim respondeu Armand, que desatou a rir ao ver como ela o fitava. Pelo
menos, um dia acrescentou Entretanto, é do meu pai
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Armand fitava-a como se o rosto dela lhe fosse vagamente familiar, e ela
adivinhou o motivo: era o retrato personificado do pai. Interrogou-se sobre
qual seria a sua reacção se lhe contasse a verdade. Mas as coisas deviam
ter mudado. Afinal, estavam a ocultar crianças judias. Parecia-lhe o
cúmulo da ironia, dado o pai ter sido banido e jamais sido visto por
qualquer deles, em virtude da sua mulher ser judia.
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- É muito corajosa por ter trazido estas crianças sozinha até aqui elogiou.
Se tivesse uma filha, ignoro se a deixaria fazê-lo. Na verdade, acho que
não. Fitou Armand e, em seguida, baixou a voz, franzindo as sobrancelhas.
Também me preocupo com o meu filho acrescentou. Mas que escolha
temos nos tempos que correm?
Havia, de facto, outras escolhas, escolhas diferentes das deles e que vários
haviam feito. Cont udo, Amadea sentia-se orgulhosa da sua e da deles.
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Achava que, provavelmente, não era o caso, mas podia ter-se esquecido.
Além disso, sentada ali na sua frente, ela parecia-se incrivelmente com
Arma nd.
Nicolas era irmão do seu pai e tio dela e Armand seu primo em primeiro
grau. Seguiu-se um longo silêncio, depois, sem uma palavra, ele abraçou-a
com as lágrimas a correrem-lhe pelas faces.
Oh, minha querida... minha querida... replicou, sem conseguir dizer outra
coisa durante longos minutos, invadido pelas recordações que lhe trouxera.
Já o sabias quando vieste? acres centou, interrogando-se sobre se seria
esse o motivo que a levara a aceitar a missão.
A mamã não vos odiava garantiu Amadea. A sua própria família tratou-a
bem pior. Escreveram o nome dela no livro dos mortos e não a deixaram
ver a mãe quando esta morreu, nem assistir ao funeral. A minha avó
retomara o
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Tinham toda uma vida a recuperar e queria que Amadea lhe falasse de
todos os anos que ele não vivera com o irmão. Havia mil coisas que queria
saber.
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esmerada.
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CAPÍTULO 22
Ao longo das missões que lhe confiara, Serge criara-lhe afecto e sentia um
profundo respeito pela sua capacidade de apreciação, coragem e sangue-
frio. Queria certificar-se de que ela estava bem e queria também falar-lhe
de uma missão especial. Como sempre que se tratava de um assunto
delicado, desejava falar-lhe pessoalmente; assim, enviara-lhe uma
mensagem para que se encontrassem numa herdade vizinha.
Mal a viu, Serge reparou nas suas feições cansadas e no ar abatido. Parecia
atormentada pelas mortes de que se considerava responsável e voltou a
falar repetidamente sobre a sua
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280
Quero falar-te de uma coisa disse Serge, passados uns minutos. Preciso de
um agente em Paris para uma missão especial. Ignoro se aceitarás, mas
acho que serias a escolha ideal.
Amadea tivera uma sorte incrível, a noite das represálias em Lidice, para
conseguir evadir- se do ”campo-modelo” dos
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nazis que, nessa altura, se preparavam para exibir a sua ”Cidade para os
Judeus” à Cruz Vermelha A deportação para qualquer campo, ou mesmo
para esse, constituía, doravante, sinónimo de uma morte garantida, depois
de torturas inimagináveis. A proposta de Serge de deslocar-se a Paris no
papel de mulher de um oficial das SS parecia-lhe arriscada. Demasiado
arriscada.
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282
Nenhuma das outras agentes falava alemão tão bem como ela, nem podia
fazer-se passar por alemã. Embora algumas dominassem a língua na
perfeição, eram obviamente francesas. Amadea parecia germânica. Não só
alemã, mas ariana. Tal como o oficial britânico que, como ela, era meio
alemão, mas não judeu. A mãe era uma princesa prussiana, famosa pela
sua beleza na juventude.
Amadea sabia que já ouvira este nome e achava mesmo que o encontrara
uma vez, mas não conseguia dar um rosto ao nome. De súbito, recordou-
se. Ele já fora largado de pára-quedas e vira-o com Jean-Yves. Era Rupert
Montgomery, um dos que haviam organizado os comboios de crianças.
Sim. Já o conheci.
Ele também se recorda. Foi ele que pensou em ti. És a parceira ideal para
esta missão.
Era segunda-feira e Serge dissera que não seria antes do final da semana.
Amadea fitou-o com uma expressão atormentada. Serge sabia que estava a
pedir-lhe muito, talvez demasiado, mas a jovem estava disposta a
participar. A vitória e a liberdade não tinham preço, mesmo que fosse para
salvarem uma única vida.
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Vai com Deus disse-lhe antes de o deixar; ele assentiu com a cabeça.
Dois dias mais tarde, Amadea ouviu a mensagem que lhe era destinada:
”Teresa. Samedi”, o que significava, de facto, sexta-feira, pois as suas
operações realizavam-se sempre na véspera da data indicada. Começariam
a vigiar e espreitar a chegada do pequeno avião a partir da meia-noite e,
como sempre, deveriam agir rapidamente.
Após uma descida rápida, o avião pousou no solo e, em seguida, rolou uns
metros Antes de parar, quatro homens desceram, vestidos com roupas de
fazendeiros e gorros de lã. Menos de três minutos depois, o avião estava
de novo no ar. Tudo fora perfeito Em menos de dois minutos, os
resistentes haviam- se dispersado e regressado às suas herdades,
acompanhados dos três homens que tinham chegado com o coronel
Montgomery. Estavam encarregados de outras missões e partiriam para o
Sul de França nessa mesma noite; não voltariam a ver Montgomery antes
de regressarem a Inglaterra.
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Na maior parte das vezes, o coronel trabalhava só. Desta vez, teria
Amadea ao seu lado. Esta conduziu-o à herdade sem uma palavra, na
direcção de um antigo estábulo, nas traseiras da herdade. Ali, mostrou- lhe
um alçapão onde se esconder, se ouvisse algum barulho. Havia lençóis e
um jarro de água. Teriam de partir no dia seguinte para os arredores de
Paris, onde se encontrariam com Serge.
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Quantos filhos? quis saber Amadea, fitando-o de novo, como ele indicara.
Bastante bem. A irmã da minha mãe mudou-se para lá quando casou. Não
a conheci. Mas visitei a cidade em criança.
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Seguiram para Paris num carro que lhes tinham emprestado e, durante
todo o trajecto, falaram do que Amadea precisava de saber. Os documentos
de Montgomery eram perfeitos, tal como o seu francês. Indicavam que ele
era natural de Aries, onde leccionava. Amadea era a sua namorada. O
único soldado que os deteve fez-lhes rapidamente sinal para que
avançassem. Pareciam um casal respeitável.
Nada disso. Fi-lo por amor a Deus. Senti a vocação. Não havia qualquer
razão para que ele fizesse a pergunta,
mas ficara curioso, pois achava-a uma jovem mulher muito interessante.
É casado? perguntou Amadea, enquanto caminhavam e lhe dava o braço de
uma forma natural, como se ele lhe tivesse pedido que o fizesse. Era um
gesto a que devia habituar- se.
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Lamento disse Amadea, notando como ele ficara rígido ante a menção do a
ssunto.
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Dois dias mais tarde, chegou uma bonita mala de cabedal recheada de tudo
o que era necessário, juntamente com os passaportes e documentos, bem
como o equipamento completo de oficial das SS para Apoio. Este ficava
muito elegante com a farda que já usara muitas vezes. Fizeram as últimas
provas e tudo assentava na perfeição. Formavam um casal muito atraente.
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apagado, que nunca fora a Paris, por isso tinham a certeza de que ninguém
o conheceria, e se assim fosse, o mais provável era o par sair-se bem com
o embuste nos dois dias que precisavam
Acha que sim? respondeu com uma fleuma britânica, apesar do seu
uniforme das SS. Na minha opinião, é um presente bem pobrezinho. Acho
francamente que merece um alfinete em diamantes ou um colar de safiras
por me ter aguentado durante cinco anos. É muito fácil de contentar
- é que este género de coisas não se vê no convento replicou ela, sorrindo
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Montgomery queria levá-la a fazer compras nas lojas famosas ou, pelo
menos, dar essa ideia. A rede ia dar-lhe uma elevada soma de dinheiro
alemão que lhes permitiria viver, durante dois dias, à altura de um homem
da sua posição, casado com uma jovem e bonita mulher.
Um táxi veio buscá-los e seguiram para o hotel Crillon com duas elegantes
malas cheias de tudo o que precisariam. Os documentos encontravam-se
em ordem. Amadea estava soberbamente maquilhada e penteada.
Apanhara os compridos cabelos louros num rolo e estava elegantíssima
com a sua roupa da moda. Faziam um par fantástico quando entraram no
hotel.
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Como na noite anterior, dormiram na mesma cama, ela, com uma camisa
de noite de cetim cor de pêssego e rendas beges, ele, num pijama de seda
que lhe ficava demasiado apertado só que Amadea era a única a sabê- lo.
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”E, sobretudo, uma óptima agente”, pensou. Durante estes dois dias, a sua
colaboração fora preciosa e esperava voltar a trabalhar com a jovem. Era
muito mais dotada do que alguma vez imagina ra. A propósito, mentiu-me
disse ele, enquanto tomavam o pequeno-almoço no quarto.
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Não. Comerei quando chegarmos. Quando é que partimos?
O seu francês é fantástico. Tal como o seu inglês observou, num tom
admirativo.
Também o seu.
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Não sei se tenho nervos indicados para este tipo de trabalho. Pelo menos, a
este nível. Estava sempre à espera de que a Gestapo batesse à porta e me
deportasse.
Teria sido desagradável! retorquiu ele, com uma expressão grave. Sinto-
me contente por isso não ter acontecido.
Também eu. Sabe, sempre quis dizer-lhe quanto o admiro pelo que fez
relativamente aos comboios de crianças. Foi fantástico!
Sim, foi fantástico. Ainda bem que conseguimos tirar tantas crianças dali.
Eu próprio tenho doze em cas a.
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acabar pronunciou com uma certeza que não lhe deixou a mínima dúvida.
Por volta das vinte e três horas saíram ao encontro dos outros, no campo.
O avião chegou à hora prevista, um pouco depois da meia-noite. O coronel
partia sozinho, pois os
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Que Deus o abençoe gritou ela acima do ruído dos motores. Tenha
cuidado.
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CAPÍTULO 23
Amadea só teve notícias de Serge duas semanas antes do Natal, quando a
veio visitar. Desde o regresso de Paris que ela retomara as missões
habituais. Por duas vezes, tivera de socorrer homens ingleses que se
haviam ferido durante a descida em pára-quedas. Um deles ficara preso
numa árvore e Amadea subira lá acima para o soltar; depois cuidara dele
durante várias semanas. Toda a gente em Melun conhecia o seu heroísmo e
a sua abnegação. O homem que tirara da árvore tinha jurado voltar para a
ver no final da guerra, convencido de que ela era um anjo que lhe salvara a
vida.
Para ser honesto contigo, não me parece que devas aceitar declarou Serge
para a desencorajar. Desejaria não ter de falar-lhe desta missão, mas tinha
de transmitir-lhe a mensagem. Amadea tinha d ois dias para tomar uma
decisão.
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A jovem não tinha o mínimo desejo de aceitar, mas nos dois dias
seguintes, não conseguiu pregar olho. Só conseguia pensar nos rostos das
pessoas que conhecera em Theresienstadt. Interrogava-se sobre quantos
deles ainda estariam vivos. A mãe e a irmã em Ravensbruck. A família da
mãe em Dachau. Se ninguém aceitasse estas missões, eles ficariam lá para
sempre e todos os judeus da Alemanha e dos outros países ocupados
acabariam por morrer. Lembrou-se de algo que um dos presos de
Theresienstadt lhe dissera, um velho que morrera um mês antes de ela
fugir: ”Aquele que salva uma vida, salva a Humanidade inteira.” Era uma
frase retirada do Talmude e ela nunca a esquecera. Como poderia virar as
costas a todas estas pessoas, quando lhe era dada a oportunidade de mudar
as coisas, mesmo que isso significasse ser deportada? Era a sua
oportunidade de lutar por eles. Que outra alternativa lhe restava? Que
escolha tivera Cristo ao ser crucificado?
Nessa noite, Amadea enviou uma mensagem pelo rádio a Serge, dizendo
apenas: ”Sim. Teresa.” Sabia que ele ia compreender e passaria a
mensagem ao coronel. Recebeu as instruções no dia seguinte. Ele seria
lançado de pára-quedas nos arredores de Nancy, e ela teria de deslocar-se
até à célula do local. Os documentos e as roupas necessárias ser-lhe-iam
fornecidos lá. Desta vez, era Inverno e não teriam ”um fím-de-semana de
aniversário”, em Paris, no Crillon. Apenas um vestuário vulgar.
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Receberam os novos documentos e ele passou toda a noite a fornecer-lhe
instruções. Desta vez, era mais complicado. Amadea teria de recolher
informações e tirar fotografias. Para esse efeito, deu-lhe um a pequena
máquina fotográfica que ela escondeu num compartimento da mala de
mão. Montgomery voltara a pôr o uniforme das SS, pois tomariam o
comboio para a Alemanha, logo de manhã. Como já acontecera, ele
dirigiu-se-lhe em alemão, para não cometerem qualquer erro durante a
missão; só podiam falar esta língua, como o haviam feito em Paris.
Amadea sentiu o mesmo prazer em conversar com ele, mas os dois tinham
consciência de que esta missão se anunciava bem mais delicada do que a
anterior.
Rupert respondeu que não havia problema, pois não estavam em lua-de-
mel, o que fez rir aos três. Contudo, Amadea só ficou verdadeiramente
aliviada, quando se viram sós, no quarto. Para esta missão, os agentes da
célula haviam providenciado uma quente camisa de noite de flanela;
contrariamente à vez anterior, estavam no Inverno e a missão era muito
menos romântica e infinitamente mais perigosa. Rupert vestia a pele de
um oficial das SS que nunca existira. Oseu nome e documentos eram
totalmente falsos, tal como os dela. Haviam acordado em que ela dissesse
que era natural de Colónia, pois a maioria dos arquivos fora destruído na
altura do bombardeamento de 1942, no ano anterior. Amadea reduzia
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começou a tremer da cabeça aos pés ante a ideia das consequências que
isso poderia acarretar. Contudo, os dois homens limitaram-se a trocar
votos de boas-festas, e ela e Rupert dirigiram-se calmamente à saída.
Fizeram sinal a um táxi que os deixou diante de um pequeno café, de onde
seguiriam a pé até casa de Serge. Quando se sentaram e pediram um café,
Amadea estava pálida de morte.
Está tudo bem disse Rupert num tom calmo, fitando-a. Voltara a falar-lhe
em francês. Era um milagre que tivessem saído sãos e salvos desta missão.
Não sou decididamente talhada para isto replicou Amadea em voz baixa,
como para se desculpar. Desde manhã que se sentia nauseada e o próprio
Rupert parecia esgotado. A viagem pusera-lhes os
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Sem dúvida. Ainda estamos vivos e não fui deportada para Auschwitz
respondeu com um sorriso. Aproveite bem o Natal com os seus Kinder.
Era assim que as crianças do transporte de comboio eram chamadas pelos
pais adoptivos ingleses e por todos que as conheciam.
Amadea mergulhou nos arbustos. Não podia fazer nada por eles. Nem
sequer estava armada. Contudo, tivera tempo de ver que Rupert fora
atingido. Segundos depois, foi puxado para o avião e a po rta fechou-se
atrás dele, ao mesmo
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CAPÍTULO 24
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306
Nessa noite, deitada por terra, a fim de vigiar a passagem das sentinelas,
custava-lhe acreditar que fora religiosa. Passava o tempo a preparar armas,
montar explosivos, sabotar edifícios e a fazer o possível para desorganizar
e até mesmo destruir o inimigo que ocupava a França. Continuava a pensar
em regressar ao convento, mas, por vezes, interrogava-se sobre se as irmãs
e o Deus que amava alguma vez lhe perdoariam o que fizera. Contudo,
estava mais decidida do que nunca a prosseguir o seu trabalho. Até a
guerra acabar, sabia que não lhe restava outra escolha.
Foi a própria Amadea que, nessa noite, colocou os explosivos perto das
linhas férreas. Não era a primeira vez que o fazia e sabia que quantidade
utilizar. Como sempre, em momentos semelhantes, pensou em Jean-Yves,
e, quando acenderam a mecha, dispunha-se a fugir, no preciso momento
em que uma sentinela alemã passava vagarosamente. Sabia que o soldado
ficaria reduzido a pó no espaço de segundos, mas que, se não se mexesse, a
esperava o mesmo destino. Em vez de avançar na direcção do sítio onde
alguns dos outros se escondiam,
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Serge quer que te tiremos daqui disse-lhe suavemente um dos homens com
quem ela trabalhava há um ano e meio.
Abstiveram-se de lhe dar a entender, mas ela parecia à beira da morte. Nos
últimos dias delirara e sofrera alucinações.
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Não só fizera uma lesão da coluna, como tinha queimaduras graves nas
costas. Contudo, não sentia nada, nem mesmo a dor.
Quando o avião apareceu no céu, um jovem, que a conhecia desde que ela
chegara a França, atravessou o campo a correr para se despedir, enquanto
os outros acendiam as lanternas. Mais parecia um funeral do que uma
missão de salvamento. Um dos homens fora mesmo ao ponto de chorar,
garantindo que ela morreria antes de chegar ao seu destino. E os outros
suspeitavam que tivesse razão.
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O pessoal sabia que fora evacuada de França, mas ignorava porquê e por
quem.
Talvez respondeu a outra. Não pronunciou uma palavra desde que aqui
chegou. Nem mesmo sei que língua fala. Examinou depois atentamente o
dossiê de Amadea Este género de coisa era difícil de saber nos tempos
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Quem quer que seja, passou tempos difíceis rematou a outra enfe rmeira.
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CAPÍTULO 25
Os médicos tinham-lhe dito que era pouco provável que voltasse a andar
um dia, embora não fosse uma certeza. Mas era ”altamente improvável”,
segundo as suas palavras. Amadea achava que a perda do andar era o seu
contributo, um pequeno sacrifício para ganhar a guerra e salvar vidas
humanas. Havia milhões que não voltariam a viver, nem mesmo numa
cadeira de rodas.
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som diferente da voz se devia ao facto de ele falar inglês e não alemão ou
francês. Ergueu o rosto na sua direcção e sorriu- lhe.
Há seis meses que não se viam, desde a última missão que tinham
efectuado juntos na Alemanha, quando ele fora ferido ao sair de França.
Não tanto, como eu fiquei consigo replicou Rupert com uma expressão
grave. Ouvi dizer que fez um voo de respeito.
Nunca fui boa com explosivos observou Amadea, no mesmo tom que
algumas mulheres usam quando dizem que não são boas a fazer tartes ou
suflês.
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um tanto embaraçado.
Faço tenção de ir para o convento de Notting Hill quando tiver alta. Não
quero ser um fardo para as irmãs, mas sei que ainda posso ter utilidade.
Vou tentar melhorar a costura declarou Amadea num tom humilde,
parecendo, por um momento, uma freira.
Mais vale. Não me parece que elas gostassem que lhes fizesse explodir o
jardim. Acho que ficariam perturbadas gracejou com um sorriso.
Estava encantado por vê-la. Apesar do que havia vivido, estava com bom
aspecto e bonita como sempre. Os longos cabelos louros caíam-lhe pelas
costas e brilhavam ao s ol.
Na verdade, tenho uma proposta a fazer-lhe continuou. Confesso que não é
nada de tão excitante como uma missão na Alemanha, mas quase, e porá
os seus nervos à prova.
Para lhe falar verdade, preciso que me ajude a ocupar-me dos meus Kinder
esclareceu Rupert. Há cinco
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314
anos que estão comigo. Os pequenos já não são assim tão pequenos e
começaram a fazer disparates. Quanto aos grandes, agora são quase
adultos e causam-me todo o tipo de problemas. Passo a maior parte do
tempo em Londres e, para ser franco, preciso mesmo de alguém que os
vigie até que tudo regresse à normalidade. E, neste momento, também
preciso de alguém que me ajude a encontrar-lhes os pais, se ainda
estiverem vivos. Não é tarefa fácil para um homem sozinho ter doze filhos
concluiu num tom queixoso que fez rir Amadea, desconfiada de que ele
estava apenas a ser caridoso, mas também bondoso, como era típico da sua
personalidade.
Não está a falar a sério, pois não? retorquiu, com uma expressão estranha,
sentindo que a amizade por ele se reavivava
Confesso que sim. Adoro os meus Kinder, Amadea, mas, para lhe ser
honesto, eles estão a dar com a minha governanta em doida. A pobre tem
setenta e seis anos. Cuidou de mim quando eu era pequeno e depois dos
meus filhos. Estas crianças precisam de alguém mais jovem que as
entretenha e conserve na linha.
Receio não poder fazer nenhuma dessas coisas hoje em dia replicou a
jovem, com um olhar para a cadeira de rodas, antes de o fitar novamente.
Eles podiam atirar-me do alto de uma rocha, se não gostassem do que lhes
dissesse.
São uns miúdos adoráveis redarguiu Rupert, desta vez num tom sério.
Amadea viu que ele estava a ser sincero. Era óbvio que os amava, mas
tinha razão: uma governanta de setenta e seis anos não era indicada para
ter mão em doze crianças entregues a si próprias. Rupert passava a maior
parte do tempo fora, em missão ou em Londres, e só regressava a Sussex
no fim-de-semana. Por outro lado, Amadea sentia-se ansiosa por voltar
para o convento. A sua estada no exterior já fora demasiadamente
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315
- Não acha que as irmãs podiam dispensá-la mais uns meses? insistiu,
esperançado. Afinal, isto também faz parte do esforço da guerra. Estas
crianças são vítimas dos nazis, tal como você. Será duro para elas, depois
da guerra, quando descobrirem o que aconteceu aos pais
Por vezes, e apesar dos seus esforços, não conseguia reprimir uma certa
auto-compaixão Mas, se era esta a vontade de Deus, aceitaria. A vida já a
poupara muitas vezes e de muitas maneiras.
Fico muito satisfeito por saber que ainda não tomou providências. Temia
chegar tarde de mais. E, claro, que é muito útil tal como está. Só terá de
gritar-lhes e vou dar-lhe uma vara enorme de que pode servir-se, se quiser
gracejou, fazendo-a rir.
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Sentia-se feliz por poder ajudá-lo com os seus Kinder. Oconvento podia
esperar mais um pouco. A guerra acabaria dentro em breve e assim que as
crianças tivessem encontrado os pais e partido... O seu raciocínio
funcionava a cem à hora, enquanto falava com ele. De súbito, endireitou-
se na cadeira. Queria que escrevesse o nome de todos numa folha de papel,
antes de se ir embora, e Rupert prometeu que o faria. Sabia que conseguira
elevar-lhe o moral e passou toda a tarde ao seu lado, falando das crianças,
da
sua propriedade, dos dois dias que tinham passado em Paris e dos cinco na
Alemanha. Pareciam ter muita coisa a dizer um ao outro, e Amadea ria-se,
parecendo feliz e jovem, quando ele lhe empurrou a cadeira de rodas de
volta ao quarto. Tinham combinado que ela viajaria directamente para
Sussex dali a quatro semanas, mal os médicos lhe dessem alta. Contudo,
prometeu que, antes disso, viria vê-la várias vezes. Queria ter a certeza de
que ela estava bem, além de que a sua companhia lhe a gradava.
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CAPÍTULO 26
Rupert pedira a Amadea que, de vez em quando, lhes falasse na sua língua
materna, a fim de que pudessem comunicar com os pais quando estes
viessem buscá-los se viessem. Achava que seria bom que continuassem a
praticar o alemão. Ele chegara a tentar, mas distraía-se e acabava por se
lhes dirigir em inglês, embora o seu alemão fosse tão perfeito como o de
Amadea.
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Vais casar com ela, papá Rupert? perguntou Marta, uma miúda loura de
doze anos, magra e desengonçada.
Não, porque neste momento não o é. Era antes da guerra e voltará a sê-lo
depois.
Rupert continuava a pensar que era um desperdício, mas respeitava a
escolha de Amadea e esperava que as crianças fizessem o mesmo.
Conta-me outra vez como é que ela partiu as costas pediu Rebekka,
franzindo o sobrolho. Esqueci- me.
Ela vai trazer uma arma? inquiriu, curioso, Ernst, um rapazinho de oito
anos, com ar de estudioso, que tinha um fascínio por armas de fogo e que
Rupert já levara várias vezes à caça.
Espero bem que não! exclamou com uma risada ante esta ideia.
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Também eu, por vezes, os confundo disse Rebekka, ao mesmo tempo que,
sem qualquer aviso, saltava para o colo de Amadea.
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Bom. Não é o género de coisa que se faça numa época normal respondeu
com um ar sério, mas tratava-se de alemães, portanto era autorizado. Mas
já não o será depois da guerra. Estas coisas só podem fazer-se em tempo
de guerra.
O miúdo tinha treze anos e soubera por familiares que os pais tinham
morrido. Por vezes, molhava a cama e tinha pesadelos. Rupert contara isto
a Amadea. Ocoronel desejara que ela soubesse tudo sobre as crianças.
Acreditava na franqueza, e também queria evitar-lhe surpresas
desagradáveis. Por vezes, aquela miudagem dava-lhe vontade de arrancar
os cabelos. Doze crianças era muito, por mais encantadoras ou bem-
comportadas que fossem.
Parecia a mais meiga de todos. Gretchen era a mais bonita e Berta a mais
tímida. Os rapazes pareciam plenos de energia e não se mantinham
quietos, ansiosos por irem lá para fora jogar à bola, mas Rupert dissera-
lhes que tinham de esperar até toda a gente haver terminado.
Não, não doem respondeu Amadea com sinceridade. Por vezes, não as
sinto, outras vezes, apenas um pouco.
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Em seguida, sugeriu que fossem todos passear no parque antes que caísse a
noite. Os rapazes ficaram encantados e precipitaram-se lá para fora, a fim
de jogarem à bola.
Nunca pensei em tal coisa. Como sabia o que fazer? Arranjei um livro
respondeu Amadea com um sorriso. 328
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Sim. Imagino que não faça parte dos hábitos do convento replicou Rupert.
O que achei mais engraçado foi quando se pôs a desmanchar a cama no dia
seguinte para não despertar suspeitas comentou Amadea a rir.
Também eu.
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Duvido. É um assunto muito sério. Foi freira durante seis anos. Não me
ficaria bem tentar dissuadi- la.
Marta ficou com a sensação de que ele falava mais para si próprio do que
para ela.
Às vezes, tenho pena de não poder andar disse ela num tom triste.
Há três meses que Amadea não voltara a ver o cirurgião. Quando saíra do
hospital, o médico dissera que não podia fazer mais nada por ela. Talvez
viesse a sentir novamente as
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pernas, mas não era uma certeza e, até ao momento, não se verificara
qualquer mudança ou sinal de melhoras. Amadea só raramente abordava o
assunto; era a primeira vez que a ouvia queixar- se.
Não me parece que o médico possa fazer algo. Além de que quase não
penso nisso. As crianças não me deixam tempo para isso replicou,
dirigindo-lhe aquele olhar meigo que sempre o fazia lamentar que as
coisas não fossem diferentes. Obrigada por me ter pedido que me ocupasse
dos seus Kinder, Rupert. Amadea nunca se sentira tão feliz, à excepção dos
seus primeiros anos no convento. Adorava ser
a ”Mamadea”, quase tanto como gostara de ser a irmã Teresa. Mas sabia
que isto não duraria eternamente, pois a maioria das crianças acabaria por
encontrar o seu próprio lar, o que era o melhor para elas. Precisavam dos
seus pais. Rupert e ela eram apenas uns bons substitutos. Achava que ele
era maravilhoso com as crianças e imaginava como devia sentir a falta dos
seus próprios filhos. Havia fotografias deles por toda a casa. lan e James.
E da sua mulher, Gwyneth, escocesa de nascimento.
Não sei o que faríamos sem si. Nem sequer consigo lembrar-me como era
antes da sua c hegada replicou Rupert com sinceridade, enquanto se
sentava num banco, de onde podiam vigiar as crianças. Amadea fez rolar a
cadeira até junto dele. Parecia feliz e descontraída, com os compridos
cabelos
Sim. É verdade.
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Algo do género.
Amadea sabia que ele não podia mencionar-lhe o local para onde ia. Era
top secret. Interrogou- se sobre se iam mandá-lo para a Alemanha, França,
ou, pior ainda, para Leste. Tomava agora consciência da sorte que tivera
durante a sua estada em França; tanta gente fora morta, mas ela não,
embora tivesse estado próximo muitas vezes.
Eu não gostava que fosse retorquiu ele, bruscamente. Rupert não queria
que a jovem arriscasse mais a vida. Já
A resposta era vaga, mas Rupert não podia revelar-lhe mais. Contudo, ela
tinha a sensação de que seria por muito tempo. Manteve-se silenciosa
durante um longo momento, e depois ergueu os olhos na sua direcção.
Havia tanto para dizerem, mas era difícil para os dois.
No trajecto de volta, as crianças repararam no silêncio de Amadea e Berta
perguntou-lhe se ela estava doente.
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Quando vais voltar? quis saber Berta com uma expressão inquieta.
Não sei. Vocês têm de tomar conta uns dos outros e da Mamadea também.
Em breve estarei de volta prometeu.
Todos o beijaram antes de irem para a cama, pois dissera-lhes que já teria
partido quando se levantassem.
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a deixar.
Não é obrigada.
Rupert conhecia-a o suficiente para saber que de nada servia discutir com
ela. Beijou-a na face, e ela fez rolar a cadeira até ao quarto, sem se voltar.
Nas duas horas seguintes, Rupert manteve-se deitado no quarto, desejando
possuir a coragem e a audácia bastantes para ir ter com ela ao quarto e
tomá-la nos braços. Contudo, não o fez. Sentia um medo enorme de que, se
agisse assim, ela se tivesse ido embor a, quando regressasse. Havia laços
entre ambos que sabia deverem ser respeitados.
Depois não poderá voltar para cima. Nenhuma das crianças está levantada.
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Quando terminaram, sabiam que não havia mais nada a dizer. Chegara o
momento da partida. Amadea seguiu-o até aos degraus da frente, sob o ar
fresco de Setembro.
Tenha cuidado consigo, Amadea disse Rupert, beijando-a nas duas faces.
Rezarei por si respondeu ela, fitando-o com intensidade.
Obrigado.
Fala a sério?
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CAPÍTULO 27
Ante estas palavras, Amadea quase desmaiou, mas manteve a calma por
causa dos miúdos. Estes já tinham perdido os pais e não queria que
julgassem que também haviam perdido Rupert, não antes de existir uma
confirmação
Amadea nunca rezara com tanto fervor. Sentia-se duplamente feliz por lhe
ter dito que o amava. Pelo menos, Rupert soubera, antes de partir, e agora
sabia que também ele a amava. O que decidiriam depois, caso ele voltasse,
logo se veria. Os Serviços Secretos tinham prometido contactá-la de novo
se recebessem notícias, mas não o fizeram.
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queria cantar com os outros. Foi, então, que se virou para Amadea,
dizendo-lhe, contrariada:
Volta a tentar, mamã pediu Berta, meigamente, ao mesmo tempo que todos
lhe olhavam para o pé. Amadea conseguiu, então, bater suavemente com o
pé e mesmo mexer um pouco a perna. Estivera
tão ocupada com eles e tão preocupada com Rupert que não dera por estas
melhoras.
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o tinham dado como morto, mas pareciam não saber nada. E como
Amadea não era mulher dele, também não lhe podiam ter dito nada. Há
quase dois meses que Rupert partira e ela sabia, instintivamente, que a
missão nunca poderia durar tanto tempo. Todas as noites, imaginava que
ele estava ferido, sem ninguém saber onde se encontrava. Ou estava
algures, em qualquer campo. Ou, ainda, que os alemães tinham descoberto
que era um agente inimigo e o haviam, com toda a probabilidade, abatido.
Pensava em tudo o que podia ter-lhe acontecido, receando o pior.
Passaram mais duas semanas. Sem saber o que mais fazer para distrair as
crianças, celebrou o Chanukah com elas. Desde a sua chegada a Inglaterra
que tinham sempre festejado o Natal, mas Amadea disse que, nesse ano,
festejariam ambos. Fabricaram brinquedos de Chanukah e ensinaram a
Amadea como fazê-los girar. Também lhe ensinaram canções tradicionais.
Ficou especialmente feliz por saber que as letras hebraicas, escritas nos
brinquedos, diziam: ”Um grande milagre aconteceu aqui”. A pequena
orquestra avançava a olhos vistos, enquanto ela começou a andar com
mais segurança, embora devagar. As crianças mantinham-se de pé à sua
volta na segunda noite de Chanukah para acenderem as velas. Reinava uma
atmosfera festiva na sala; para muitos deles, o facto de verem Amadea a
acender as velas trouxe-lhes recordações agridoces do passado. De súbito,
Rebekka levantou a cabeça e soltou uma exclamação:
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Rupert sabia-o, mas nada pudera fazer. Fora difícil e angustiante até
mesmo para ele, mas a missão realizara-se com êxito.
Tinha de voltar depois do que me disseste antes de partir.
Podia parecer estranho, mas sentia que também significava algo aos seus
olhos. Imaginava a mãe, quando era miúda, a festejar também o Chanukah.
Além de que tanta gente morrera por ser judeu que era igualmente uma
forma de prestar-lhes homenagem. Ao ler as orações, tivera a sensação de
que as vozes deles a acompanha vam.
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Tens razão. Não posso anuiu a jovem, que o escutara, sem desviar o olhar.
Sei isso. Já o sabia antes de partires e por isso disse que te amava...
Sabia que, doravante, o seu lugar era ali, ao lado dele e das crianças, quer
estas ficassem ou não junto deles. Contudo, por um momento, o rosto
ensombrou-se- lhe.
Sempre pensei que regressaria ao convento acrescentou.
Tinha tanto medo que voltasses para o convento, mas não queria interferir
na tua decisão declarou Rupert, meigamente.
Amadea tivera tanta certeza de que seria freira para sempre e, afinal,
passara a pertencer-lhe de uma forma que jamais se atrevera a imaginar.
Durante estes três meses sentira muitas vezes medo de nunca mais a ver! E
ela também. No entanto, agora, depois de tudo por que haviam passado,
estavam certos de fazer a escolha certa. Tinham sofrido muito para chegar
ali, perdido os seres que amavam, encarado a morte de frente demasiadas
vezes. Tinham conquistado a sua felicidade.
Nessa noite, Rupert levou-a ao colo até ao andar de cima, pois ela ainda
não conseguia subir os degraus. Isso viria
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com o tempo. Hesitaram no patamar, mas Rupert beijou-a e depois ela
desejou-lhe boa noite, o que lhe provocou uma risada. Como Paris e a
camisa de noite cor de pêssego estavam longe! Agora, era a realidade e
ambos sabiam o que aconteceria na altura certa. Tinham toda a vida pela
frente.
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CAPÍTULO 28
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