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Danielle Steel - Ecos do Passado

(ECHOES)

A força do amor em tempos de guerra. Dos inícios do século XX aos


anos 40, Danielle Steel conta a apaixonante história de três gerações de
mulheres judias. Beata abandonou a fé para seguir o amor, a sua filha
Amadea, sem saber a sua origem, envolve-se com a Resistência
Francesa. Apesar dos conflitos e da distância liga-as uma voz. A voz de
todas as mulheres que tiveram de
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enfrentar a dureza da guerra e do conflito. Mulheres que sofreram


mas que amaram e foram

amadas.

Danielle Steel é um caso único de sucesso. A autora norte-americana criou


um estilo inconfundível. Depois de títulos como «Forças Irresistíveis» e
«O Palacete», optou neste romance pelo retrato de uma Europa atravessada
pela guerra. Dos elegantes rituais da aristocracia aos campos de morte
nazi, «Ecos do Passado» conta a história de três gerações de mulheres.

Beata Wittgenstein vivia na calma e no luxo. En quanto a guerra fazia as


suas baixas, a vida na Suíça, junto ao lago de Génova, em quase nada se
deixava perturbar pelos ecos da guerra... Até que Beata conhece um oficial
francês. A sua família, de origem judaica, não permite o casamento com
um católico mas Beata segue o seu coração... Anos mais tarde, uma das
suas filhas, sem saber da sua origem, decide tornar-se freira carmelita.
Hitler prossegue entretanto a sua campanha anti- semita e Amadea acaba
por ter de fugir do convento envolvendo-se num outro tipo de luta junta à
Resistência Francesa. Apesar das diferenças, apesar do tempo e da
distância que se entrepõem entre mãe e filha,

elas sabem que podem contar uma com a outra. Nos momentos difíceis
sentem uma voz, uma voz que as une e lhes dá força para co ntinuar.

Tradução de MARIA EMÍLIA FERROS MOURA

Título original: ECHOES

Copyright ©2004 by Danielle Steel Impresso e encadernado para Círculo


de Leitores por Printer Portuguesa

Casais de Mem Martins, Rio de Mouro em Dezembro de 2006 Número de


edição: 678 4 Depósito legal número 250810/06 Digitalização e revisão:
Fátima Tomás

Aos meus queridos filhos, todos tão infinitamente preciosos para mim,
cada um deles tão especial: Beatrix, Trevor, Todd, Nick, Sam, Victoria,
Vanessa, Maxx e Zara.

Que os ecos do vosso passado, presente e futuro sejam sempre plenos de


amor e de ternura Com todo o meu amor,

Mamã d. s.

”É espantoso que ainda não tenha abandonado todos os meus ideais.


Parecem tão absurdos e impraticáveis. Contudo, agarro-me a eles, porque,
apesar de tudo, ainda acredito que as pessoas, lá no fundo, são
verdadeiramente boas ”.

ANNE FRANK

”Aquele que salva uma vida, salva a Humanidade inteira.”

TALMUDE

CAPÍTULO 1

A pesada tarde de Verão desenrolava-se, ociosa, enquanto Beata


Wittgenstein passeava junto à s margens do lago de Genebra na companhia
dos pais. O sol estava abrasador, o ar parado e ela seguia, pensativa, atrás
deles, ao som do canto estridente das aves, a que se misturava o zunido
dos insetos. Beata e a sua irmã mais nova, Brigitte, tinham vindo passar o
Verão a Genebra com a mãe. Beata acabara de fazer vinte anos e a irmã
tinha menos três.

A Primeira Guerra Mundial começara há treze meses, no Verão anterior, e


este ano o pai quisera que passassem as férias fora da Alemanha. Corria o
fim de Agosto de 1915 e ele acabara de passar um mês com a família. Os
dois irmãos de Beata estavam no exército, mas haviam conseguido uma
semana de licença. Horst tinha vinte e três anos e era tenente no quartel-
general de Munique. Umera capitão do 105.° Regimento de Infantaria, da
13.A Divisão, ligada ao 4.° Exército. Festejara os seus vinte e sete anos
durante a semana que passou com eles em Genebra.

Ter reunido toda a família quase se assemelhava a um milagre. Com a


guerra, que dizimava todos os jovens alemães, Beata, tal como a mãe,
andava sempre preocupada com os irmãos. O pai repetia- lhe
constantemente que tudo acabaria em breve, mas era bem diferente o que
chegava aos ouvidos de Beata, sempre que ouvia a conversa do pai com os
irmãos. Os homens estavam muito mais conscientes do que as mulheres
relativamente aos problemas do futuro. A mãe nunca lhe falava da guerra,
e Brigitte preocupava-se muito mais por quase não haver jovens bonitos
com quem namorar. Desde pequena que as conversas de Brigitte giravam
todas à volta de se casar. Apaixonara-se recentemente por um dos amigos
de Horst da universidade, e Beata nutria uma forte suspeita de que a sua
bonita irmã mais nova ficaria noiva nesse Inverno.

Beata não tinha interesses ou intenções semelhantes. Sempre fora a mais


tranqüila, a mais estudiosa e a mais séria.

Para ela, estudar era muito mais importante do que encontrar um noivo. O
pai dizia sempre que ela era a filha perfeita. O único momento em que
haviam discutido fora quando ela insistira em que queria freqüentar a
universidade, como os irmãos. O pai tinha considerado a idéia ridícula.
Embora ele próprio fosse um homem aberto e culto, não achava que uma
mulher necessitasse desse nível educacional. Respondeu-lhe que tinha a
certeza de que, dentro em pouco, ela estaria casada e a cuidar do marido e
dos filhos. Não precisava ir para a universidade e não lho permitira.

Os irmãos de Beata e os amigos formavam um grupo animado; quanto à


sua irmã, era bonita e gostava de namoricar. Beata sempre se sentira
diferente deles, distante devido ao seu temperamento calmo e à paixão
pelos estudos. Num mundo perfeito, teria adorado ser professora, mas
quando o afirmava, os irmãos troçavam invariavelmente dela. Brigitte
dizia que só as raparigas pobres se tornavam professoras ou governantas, e
os irmãos acrescentavam que só as que eram feias pensavam em tal coisa.
Adoravam arreliá-la, embora Beata não fosse pobre, nem feia. O pai era
dono de um dos bancos mais importantes de Colônia, onde viviam.
Possuíam uma grande e bonita casa no bairro de Fitzengraben e Monika, a
sua mãe, era admirada não só pela beleza como pelas roupas elegantes e
jóias que usava. Tal como Beata, também ela era uma mulher terna.
Monika casara com Jacob Wittgenstein aos dezessete anos e, nos vinte e
oito anos seguintes, fora feliz ao seu lado.

O casamento havia sido arranjado pelas respectivas famílias e resultara.


Na altura, a união de ambos representara a fusão de duas fortunas
consideráveis e Jacob aumentara imensamente a deles, desde então.
Dirigia o banco com pulso de ferro e era quase um vidente no que se
referia ao negócio bancário. Tanto o futuro deles como o dos herdeiros
estava garantido. Nada nos Wittgenstein era deixado ao acaso.
Atualmente, a única fonte de incerteza e inquietação era a mesma de toda
a gente, na altura. A guerra constituía uma grande preocupação para eles,
sobretudo para Monika, com

dois filhos no exército. Aqueles dias que haviam partilhado na Suíça fora
uma pausa reconfortante, tanto para os pais como para os filhos.

Os Wittgenstein costumavam passar o Verão na Alemanha, junto ao mar,


mas, este ano, Jacob quisera afastá-los a todos do país, durante Julho e
Agosto. Chegou mesmo a falar com um dos generais no comando, que
conhecia bem, e pediu-lhe o enorme favor de conceder licença aos seus
dois filhos para que pudessem juntar-se-lhes. O general tomara todas as
disposições para aceder ao seu pedido.

Os Wittgenstein tinham a particularidade excepcional de ser uma família


judaica que desfrutava não só de uma grande fortuna como de um imenso
poder. Beata estava consciente desta realidade, mas prestava pouca atenção
à importância da família. Interessava-se muito mais pelos seus estudos. E,
embora Brigitte, por vezes, se aborrecesse com as restrições que a
ortodoxia deles lhes impunha, Beata, à sua maneira calma, era
profundamente religiosa, o que muito agradava ao pai. Quando era novo,
ele escandalizara a família ao anunciar que queria ser rabino. O pai
chamara-o à razão e, na devida altura, ele entrara no negócio bancário da
família, tal como o pai, irmãos, tios e o avô, antes dele. Tratava-se de uma
família de profundas tradições e, embora o pai de Jacob sentisse um
grande respeito pela vida dos rabinos, não fazia a mínima tenção de
sacrificar-lhe o filho. Na sua qualidade de filho obediente, Jacob foi
trabalhar no banco e casou pouco depois. Tinha agora cinqüenta anos, mais
cinco do que a mulher.

A família inteira concordou que a decisão de passar o Verão na Suíça fora


acertada. Os Wittgenstein tinham muitos amigos ali e Jacob e Monika
foram a uma série de festas acompanhadas dos filhos. Jacob conhecia toda
a gente na comunidade bancária suíça e deslocaram-se a Lausana e
Zurique a fim de visitarem amigos nestas cidades. Sempre que possível
levavam as filhas. Enquanto Horst e Ulm estiveram de licença,
desfrutaram ao máximo da companhia deles. Ulm partiria para Frente e
Horst regressaria à sua guarnição em Munique, o que parecia agradar-lhe.
Apesar de ter recebido uma educação rígida, Horst era um verdadeiro
playboy. Ele e Brigitte possuíam muito mais em comum um com o outro
do que qualquer deles com Beata.

Quando se deixou ficar para trás dos outros, caminhando devagar junto ao
lago, Ulm abrandou o passo e veio pôr-se ao lado dela. Tratava-a sempre
com um espírito protetor, talvez por ser sete anos mais velhos. Beata sabia
que ele respeitava a sua natureza delicada e sensível.

Em que pensas, Bea? Estás com um ar terrivelmente sério, para aí a


caminhares sozinha. Porque é que não te juntas a nós?

Nessa altura, a mãe e a irmã iam muito mais à frente a conversar sobre
moda e sobre os homens que Brigitte achara elegantes nas festas da
semana anterior. Os homens da família falavam dos únicos assuntos que
lhes interessavam os quais, à época, eram a guerra e os negócios.

No final do conflito, Ulm regressaria ao cargo que ocupava no banco há


quatro anos. O pai afirmava que Horst teria de deixar as diversões e
tornar-se mais sério para se lhes juntar. Horst tinha apenas vinte e dois
anos quando a guerra fora declarada no ano anterior, mas prometera ao pai
que, no final da guerra, entraria na linha.

E, recentemente, Jacob dissera por várias vezes que já era tempo de Ulm
se casar. A única coisa que Jacob esperava dos filhos, ou, na verdade, de
todos os do seu círculo mais próximo, era que lhe obedecessem. Esperou o
mesmo da mulher e ela nunca o desiludira. Tão-pouco os filhos, à exceção
de Horst, que andara a protelar a ida para o trabalho, quando ingressou no
exército. Nesse momento, a última coisa que ele tinha em mente era casar-
se.

De fato, a única que ligara importância ao assunto fora Brigitte. Beata


ainda não conhecera um homem por quem se apaixonasse. Embora achasse
que muitos dos filhos dos amigos dos seus pais eram elegantes, os mais
novos pareciam-lhe imaturos e os mais velhos assustavam-na um pouco,
pa recendo, freqüentemente, demasiado sérios. Não sentia pressa em

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casar-se Beata dizia muitas vezes que, se alguma vez casasse, esperava
que fosse com um professor e não necessariamente com um banqueiro.
Tornava-se impensável fazer uma declaração dessas ao pai, embora o
tivesse confessado com freqüência à mãe e à irmã. A posição de Brigitte
diferia por completo. O elegante e jovem amigo de Horst, em que andava
de olho, era tão superficial como ela e proveniente de uma família
bancária de igual importância. Jacob tencionava encontrar-se com o pai do
rapaz em Setembro para discutir o assunto, embora Brigitte não o soubesse

Contudo, até a data, ainda não aparecera um pretendente para Beata, nem
ela, na realidade, o desejava. Só raras vezes conversava com alguémnas
festas Acompanhava obedientemente os pais, vestida com a roupa que a
mãe lhe escolhia. Era sempre delicada para com os anfitriões, mas ficava
muito aliviada quando chegava a hora de regressar a casa. Contrariamente
a Brigitte, que tinha de ser arrast ada, queixando-se de que ainda era
demasiado cedo para abandonar a festa e porque é que a família tinha de
ser tão soturna e aborrecida? Horst concordava em absoluto com a irmã, e
sempre fora assim. Beata e Ulm eram os sérios

Divertiste-te em Genebra? perguntou Ulm a Beata, num tom meigo

Ele era o único que se esforçava a sério por conversar com ela e conhecer-
lhe o pensamento. Horst e Brigitte estavam demasiado ocupados com
brincadeiras e diversões para perderem tempo a falar de assuntos mais
eruditos com a irmã

Diverti respondeu Beata com um sorriso tímido, erguendo o rosto na sua


direcção

Embora se tratasse do irmão, Beata deslumbrava-se sempre ante a sua


beleza e bondade. Era um homem afável e parecia-se muito com o pai.
Ulm era alto, louro e atlético, como Jacob o fora na juventude. Com os
seus grandes olhos azuis, não parecia judeu. Todos sabiam, obviamente,
que o era e, no mundo social de Colónia, os Wittgenstem eram aceites
mesmo nas esferas mais altas da aristocracia. Vários

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membros das famílias Hohenlohe, Thurn e Thaxi eram, aliás, amigos de


infância de Jacob.

Os Wittgenstein tinham uma situação tão sólida e eram tão respeitados


que todas as portas se lhes abriam. Contudo, Jacob também vincara a todos
os seus filhos que, quando chegasse a altura de se casarem, os cônjuges
que trouxessem para casa teriam de ser judeus. Não estava em causa
qualquer discussão a esse respeito, nem qualquer deles pensaria sequer em
fazê-lo. Eram aceites pelo que eram e havia muitos jovens interessantes
dos dois sexos no seu círculo, que proporcionavam uma boa oportunidade
de escolha aos Wittgenstein juniores. Quando chegasse a altura de se
casarem, casariam com um deles.

Quem observasse Ulm e Beata no seu passeio junto ao lago, não lhes
encontraria qualquer parecença familiar. Os irmãos e a irmã eram a cópia
do pai, todos louros, altos, de olhos azuis e traços delicados. Beata saíra à
mãe, contrastando totalmente com eles.

Beata Wittgenstein era uma morena magra, de aspecto frágil e delicado,


cabelo preto, asa de corvo, e a pele com um tom de porcelana. O único
traço que partilhava com os outros residia nos enormes olhos azuis,
embora os tivesse mais escuros do que os dos irmãos ou de Brigitte. Os
olhos da mãe eram castanho-escuros, mas, à excepção desta pequena
diferença, Beata era igualzinha à mãe, o que secretamente deliciava o pai.
Ainda continuava tão apaixonado pela mulher depois de quase vinte e nove
anos, que, só de ver o sorriso de Beata, se recordava de quando a mãe dela
tinha a mesma idade nos primeiros anos do casamento, e a semelhança
emocionava-o sempre. Por conseguinte, tinha um enorme fraco por Beata,
e Brigitte queixava-se frequentemente de que Beata era a sua favorita.
Deixava-a fazer tudo o que ela desejava. Contudo, o que Beata desejava
era inofensivo. Os planos de Brigitte eram significativamente mais
ousados do que os da irmã mais velha. Beata contentava-se em ficar em
casa a ler ou a estudar, na verdade, até preferia. A única vez em que o pai
se aborreceu a sério com ela foi ao encontrá-la a ler uma versão da Bíblia,
de King James.

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O que é isto? inquiriu com uma expressão severa ao ver o que ela estava a
ler. Na altura, tinha dezasseis anos e sentia-se fascinada com a leitura. Já
lera, antes, muita coisa do Velho Testamento.

É interessante, papá. As histórias são maravilhosas e tem muitas coisas


que são exactamente aquilo em que acreditamos respondeu.

O pai não achara graça nenhuma e tirara-lhe o livro.


Jacob não queria que a filha lesse uma Bíblia cristã, queixara-se à mulher,
sugerindo-lhe que estivesse mais atenta às leituras dela. De facto, Beata lia
tudo a que podia deitar a mão, incluindo Aristóteles e Platão. Era uma
leitora voraz e adorava os filósofos gregos. O próprio pai via-se obrigado a
concordar que, se ela fosse um homem, teria dado um excelente erudito.
Agora, o que ele queria para ela, tal como para Ulm e mesmo para os
outros dois dentro em breve, era que se casasse. Tinha umas ideias que
pretendia explorar nesse sentido durante o Inverno, mas a guerra estragara
tudo. Muitos dos jovens q ue conheciam haviam sido mortos no ano
anterior. A incerteza do futuro era profundamente inquietante. Jacob
achava que Beata se daria bem com um homem mais velho do que ela.
Desejava um homem maduro para Beata, um homem capaz de apreciar a
inteligência e partilhar os interesses da filha. Também não se opunha a
essa ideia para Brigitte, que bem precisava de uma mão forte que a
controlasse. Embora adorasse todos os filhos, sentia um orgulho enorme
pela filha mais velha. Considerava-se um homem de sabedoria e generoso.
Era o tipo de pessoa a que os outros nunca hesitavam em recorrer. Beata
nutria um profundo amor e respeito por ele, como também pela mãe,
embora admitisse em segredo aos outros que a mãe era mais acessível e a
intimidava menos do que o pai. O pai tinha a mesma seriedade de Beata e
desaprovava frequentemente a frivolidade da sua filha mais nova.

Gostava tanto que não tivesses de voltar para a guerra declarou Beata
tristemente, conversando com Ulm enquanto prosseguiam o passeio.

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Os outros haviam retrocedido e agora, ela e Ulm, iam muito mais à frente,
em vez de se deixarem ficar para trás.

Também detesto a ideia de voltar, mas acho que a guerra acabará em breve
sorriu-lhe, tranquilo, sem acreditar nas palavras, só que era o tipo de coisa
que se dizia às mulheres. Ou, pelo menos, ele dizia. Vou conseguir
novamente licença no Natal.
Beata assentiu com a cabeça, pensando que o Natal parecia estar a uma
eternidade de distância, incapaz de suportar a ideia de como seria terrível,
caso lhe acontecesse alguma coisa. Adorava-o para lá do que lhe
expressava por palavras. Também gostava muito de Horst, mas ele mais
parecia o estúpido de um irmão mais novo do que um irmão mais velho.
Adorava arreliá-la e punha-a sempre a rir. O que ela e Ulm partilhavam era
diferente. Os dois continuaram a conversar agradavelmente durante todo o
caminho de regresso ao hotel e, nessa noite, partilharam um último jantar,
antes de os rapazes se irem embora no dia seguinte. Como era hábito,
Horst divertiu-os imenso com as suas imitações de todos os que haviam
conhecido e com as suas escandalosas histórias sobre os amigos.

Os três homens partiram no dia seguinte; as três mulheres ficaram, a fim


de passarem as três últimas semanas de férias em Genebra. Jacob queria
que elas permanecessem na Suíça o máximo de tempo possível, embora
Brigitte começasse a ficar aborrecida. Contudo, Beata e a mãe sentiam-se
muito bem ali.

Uma tarde, Brigitte e Monika foram às compras. Beata disse que ficaria no
hotel, pois tinha uma dor de cabeça. Era, de facto, mentira, mas achava
cansativo ir às compras com as duas. Brigitte experimentava tudo nas
lojas, mandando vir vestidos, chapéus e sapatos. Impressionada pelo seu
bom gosto e arguto sentido da moda, a mãe cedia sempre. Depois de
esgotarem as modistas, as sapatarias e as luvarias requintadas, faziam a
ronda pelas joalharias. Beata sabia que não regressariam antes do jantar e
sentiu-se contente por ficar sentada no jardim, a ler, ao sol.

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Depois do almoço, foi até ao lago e iniciou o mesmo percurso que


efectuavam diariamente desde que ali estavam. Fazia um pouco mais de
frio do que na véspera; ela levava um vestido de seda branca, um chapéu
para a proteger do sol e um xaile azul, da cor dos olhos, enrolado à volta
dos ombros. Cantarolava baixinho enquanto caminhava. A maioria dos
hóspedes do hotel estava a almoçar, ou na cidade, e ela tinha o caminho
todo para si, enquanto seguia de cabeça baixa, pensando nos irmãos.

De súbito, ouviu um barulho atrás dela, ergueu os olhos e sobressaltou-se


ao deparar com um homem alto e jovem, que a ultrapassou bruscamente
no caminho, sorrindo-lhe ao fazê-lo. Ele seguia na mesma direcção e
Beata ficou tão surpreendida que deu um passo para o lado, desequilibrou-
se e torceu o tornozelo. Sentiu um leve ardor nada de grave, segundo lhe
pareceu no preciso instante em que o homem estendeu rapidamente uma
das mãos, impedindo-a de cair.

Lamento. Não queria assustá-la e nem por sombras deitá-la ao chão


desculpou-se de imediato com uma expressão preocupada.

Beata notou que ele era extremamente bonito. Alto, louro, com os olhos da
cor dos dela, uns braços compridos e fortes e ombros atléticos. Agarrava-a
com firmeza pelo braço, enquanto lhe falava, e ela apercebeu-se de que
tinha o chapéu um pouco de lado, devido ao choque. Endireitou-o, ao
mesmo tempo que o examinava discretamente. Parecia um pouco mais
velho do que o seu irmão mais velho. Vestia umas calças brancas com um
blazer azul-escuro, uma gravata azul-marinho e um bonito chapéu de
palha que lhe dava um ar desenvolto.

Obrigada. Estou bem. Foi parvoíce minha. Não o ouvi a tempo de afastar-
me do seu caminho. Receio ser o único responsável. Sente-se bem? E o seu
tornozelo? interessou-se, parecendo simpático e bondoso.

Segurou-me, antes que o torcesse a sério respondeu.

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Ele falara-lhe em francês e ela respondeu na mesma língua. Aprendera


francês no liceu e aperfeiçoara- o desde essa altura. Jacob também
insistira para que os filhos aprendessem inglês e achou que deviam
igualmente falar italiano e espanhol. Beata estudara ambos, mas nunca
aperfeiçoara qualquer dos idiomas. O seu inglês era sofrível, mas falava
um francês fluente.

Quer sentar-se um momento? sugeriu ele, apontando para um banco


próximo, com uma vista tranquila do lago, parecendo relutante em soltá-
la. Comportava-se como se temesse que ela caísse, se ele afrouxasse o
firme aperto do braço.

A sério que estou bem garantiu Beata com um sorriso.

Contudo, a perspectiva de ficar sentada um momento ao lado dele


agradava-lhe. Não era o género de coisa que costumasse fazer, na verdade
nunca fizera algo semelhante, mas ele mostrava-se tão simpático e
delicado e parecia tão cheio de remorsos por causa do quase-acidente, que
sentiu pena dele. Parecia inofensivo sentar-se e conversar com ele um
minuto, antes de prosseguir o seu passeio. Não tinha pressa em regressar
ao hotel, pois sabia que a mãe e a irmã estariam ausentes durante horas.
Deixou- se conduzir até ao banco e ele sentou-se ao lado dela, mantendo
uma distância respeitosa entre ambos.

Está mesmo bem? insistiu ele, baixando os olhos para o tornozelo,


aliviado ao verificar que não parecia inchado.

Mesmo garantiu Beata, sorrindo.

A minha intenção era apenas passar por si, sem a perturbar. Devia ter dito
algo, ou avisá-la, mas estava a milhões de quilómetros de distância, a
pensar nesta maldita guerra. É uma coisa horrível. Parecia perturbado
quando pronunciou as palavras e se recostou nas costas do banco, enquanto
ela

o observava. Nunca conhecera ninguém que se parecesse um mínimo com


ele. Era como um belo príncipe saído de um conto de

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fadas e extremamente simpático. Não tinha um ar arrogante ou
pretensioso. Assemelhava-se a um dos amigos de Ulm, embora fosse
muito mais bem- parecido.

Não é, então, suíço? perguntou, interessada.

- Sou francês limitou-se a responder e quando o fez, ela franziu o sobrolho


e manteve-se silenciosa. É assim tão mau? prosseguiu. Na verdade, o meu
avô materno é suíço. É essa a razão da minha presença aqui. Ele morreu há
duas semanas e tive de vir ajudar a resolver o assunto da herança com o
meu irmão e os meus pais. Deram-me uma licença para poder fazê- lo.

Parecia muito franco e directo, sem nada de presunçoso ou


inadequadamente familiar, muito educado e aristocrata e de uma extrema
delicadeza.

Não, nada disso respondeu com honestidade, ao mesmo tempo que o fitava
nos olhos. Sou alemã acrescentou, quase à espera de que ele saltasse do
banco e lhe dissesse que odiava os alemães. Afinal, eram inimigos de
guerra e não fazia ideia de como ele reagiria à sua confissão.

Está à espera de que a culpe por causa da guerra? retorquiu ele


meigamente, sorrindo- lhe.

Ela era jovem e extremamente bonita. E, ao falar-lhe, sentiu-se tocado


pelo seu ar constrangido. Parecia uma rapariga diferente de todas as que
conhecia e, de súbito, ficou contente por quase a haver derrubad o.

Causou tudo isto? É culpada por esta guerra horrível, mademoiselle? Devo
irritar-me consigo? inquiriu, soltando uma gargalhada, que ela imitou.

Espero que não sorriu Beata. Está no exército? acrescentou, lembrando-se


que ele mencionara encontrar-se de l icença.

Na cavalaria. Frequentei a academia equestre de Saumur.


Beata sabia que era onde todos os nobres se tornavam oficiais de cavalaria
e que constituía uma prestigiada instituição.

Deve ser interessante comentou. Gostava de cavalos

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e, em pequena, andara muito a cavalo. Adorava montar com os irmãos,


sobretudo com Ulm. Horst entusiasmava-se invariavelmente e enlouquecia
o cavalo, que, por sua vez, assustava o dela. Os meus irmãos também estão
no exército acrescentou.

O companheiro fitou-a demoradamente com um ar pensativo, perdido no


azul dos seus olhos, que eram mais escuros do que os dele. Nunca tinha
visto um cabelo tão escuro em contraste com uma pele tão branca.
Assemelhava-se a uma pintura, sentada ali no banco.

Não seria fantástico que todos os conflitos entre as nações pudessem


resolver-se assim tão simplesmente, com duas pessoas sentadas num
banco, numa tarde de Verão, a contemplar um lago? Podíamos falar das
coisas e entrar num acordo, em vez desta realidade, na qual jovens morrem
em campos de batalha sugeriu, por fim.

Estas palavras fizeram-na voltar a franzir o sobrolho, pois recordaram-lhe


a vulnerabilidade dos irmãos. Respondeu:

Seria mesmo. O meu irmão mais velho acha que tudo estará acabado
dentro em pouco.

Gostaria de poder concordar retorquiu ele, delicadamente. Mas temo que,


quando se colocam armas na mão dos homens, eles não as largam
facilmente. Penso que esta guerra pode durar anos.

Espero que esteja errado discordou ela num tom calmo.


Também eu desejou e logo pareceu de novo embaraçado. Mas que
indelicadeza da minha parte! Sou Antoine de Vallerand apresentou-se,
fazendo uma vénia, e voltando a sentar- se.

Sou Beata Wittgenstein sorriu ela, pronunciando o Wcomo um V.

Como é que fala um francês tão perfeito? surpreendeu-se ele. Exprime-se


perfeitamente, sem qualquer sotaque. Quase poderia confundir-se com
uma parisiense.

Antoine jamais teria adivinhado que ela era alemã. Estava fascinado com a
sua beleza e nunca lhe ocorreu, mesmo depois

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de ouvir o nome, que ela fosse judia. Contrariamente à maioria das


pessoas da sua classe e condição, não lhe fazia qualquer diferença. Nem
sequer pensou no assunto. Tudo o que via na frente era uma jovem mulher,
bonita e inteligente.

Aprendi francês no liceu explicou Beata com um sorriso.

Não, não aprendeu, ou se é esse o caso, é muito mais esperta do que eu.
Estudei inglês no liceu, ou pelo menos assim o dizem, mas não falo uma
palavra. E o meu alemão é uma vergonha. Não tenho o seu dom. Amaioria
dos franceses não o têm. Falamos francês e pouco mais. Partimos do
princípio de que todo o mundo aprenderá francês para poder comunicar
connosco; ainda bem que o fez. Também fala inglês? Algo lhe segredava
que sim. Embora não se conhecessem e a timidez dela não lhe passasse
despercebida, parecia uma rapariga muito inteligente e espantosamente à
vontade. Ela própria se surpreendia por se sentir tão bem na companhia
dele. Embora se tratasse de um estranho, inspirava- lhe segurança.

Falo inglês anuiu, embora não tão bem como francês. Continua a estudar?
quis saber, pois ela parecia-lhe jovem. Antoine tinha trinta e dois anos,
mais doze do que Beata.

Não. Já não. Acabei os estudos respondeu a jovem, timidamente. Contudo,


leio muito. Gostaria de ter ido para a universidade, mas o meu pai não me
deixou.

Porque não? reagiu ele, após o que se reteve com um sorriso. Percebo.
Acha que deve casar-se e ter filhos. Não precisa de ir para a universidade.
Estou certo?

Sim, totalmente anuiu com os olhos a brilhar.

E não quer casar?

Cada vez ele lhe recordava mais Ulm. Beata sentia-se como se ela e
Antoine fossem velhos amigos e ele também parecia estar à vontade ao
seu lado. Sentia-se capaz de lhe falar com a maior honestidade, o que era
raro em si, pois mostrava-se, por regra, extremamente tímida com os
homens.

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Só quero casar se me apaixonar por alguém limitou-se a responder. Ele


assentiu com a cabeça. Parece-me sensato. Os seus pais concordam com
essa ideia?

Não estou muito segura. O casamento deles foi combinado e eles acham
bem. Também querem que os meus irmãos se casem.

Que idade têm os seus irmãos?

Vinte e três e vinte e sete anos. Umdeles é bastante sério e o outro só quer
divertir-se e é um pouco rebelde respondeu, com um pequeno sorriso.

Dir-se-ia o meu irmão e eu.


Que idade tem ele?

É cinco anos mais novo. Tem vinte e sete, como o seu irmão mais velho e
eu sou um velhote de trinta e dois anos. Os meus pais consideram-me uma
causa perdida.

Também ele até àquele momento pensara o mesmo.

Qual deles é você?

Como assim? repetiu, parecendo à toa por um momento, mas em seguida,


compreendeu. Ah, claro! Ele é o rebelde. Eu sou o aborrecido acrescentou,
arrependendo-se de imediato. Desculpe, não pretendi sugerir que o seu
irmão mais velho é aborrecido. Apenas sério, suponho. Sempre fui eu o
responsável e o meu irmão simplesmente não o é. Anda demasiado
ocupado a divertir-se para pensar sequer em ser responsável. Talvez tenha
razão. Eu sou muito mais calmo do que ele.

E não é casado? interessou-se Beata.

Aquele era o mais estranho dos encontros. Estavam a perguntar um ao


outro coisas que jamais teriam ousado inquirir num salão de baile, numa
sala de estar ou num jantar. Contudo, ali sentada no banco, a contemplar o
lago, parecia-lhe perfeitamente correcto perguntar-lhe tudo o que quisesse.
Ele emanava algo de encantador e decente, embora fosse um homem de
uma extrema beleza. Tanto quanto podia imaginar, era ele o rebelde e
estava a mentir-lhe, mas não lhe parecia que assim fosse. Acreditava em
cada uma das suas palavras

20

15

e tinha a sensação de que ele sentia o mesmo no que lhe dizia respeito.

Não, não sou casado respondeu, com um brilho divertido no olhar. Pensei
nisso uma ou duas vezes, mas nunca achei que fosse a atitude certa, apesar
de uma grande pressão por parte da minha família, porque sou o mais
velho. Mas prefiro estar só, em vez de cometer o erro de casar com a
pessoa errada. Concordo replicou, assentindo com a cabeça e parecendo
espantosamente determinada.

Por alguns momentos, achou-a quase infantil, mas noutros, em que lhe
dirigiu a palavra, era óbvio que se tratava de uma jovem com ideias muito
definidas, como sobre o casamento e a ida para a universidade.

O que estudaria, se a tivessem deixado ir para a universidade? perguntou,


curioso, reparando na expressão sonhadora que se reflectiu no rosto dela.

Filosofia. Os antigos gregos, acho. Religião talvez, ou a filosofia das


religiões. Uma vez, li a Bíblia do princípio ao fim.

Antoine parecia impressionado. Ela era obviamente uma jovem


inteligente, e, além disso, bonita e muito agradável.

E o que achou? Não posso afirmar que a li, exceptuando uns extractos, na
sua maioria em casamentos e funerais. Passo a maior parte do tempo a
ocupar-me dos cavalos e ajudo o meu pai a gerir a nossa propriedade. A
terra é o meu grande amor.

Gostaria de transmitir-lhe até que ponto se sentia ligado à terra. Corria-lhe


no sangue.

Acho que é o caso de muitos homens retorquiu Beata, pausadamente. Onde


é a propriedade da sua família? acrescentou, gostando da conversa que se
desenrolava entre eles e sem querer terminá- la.

Em Dordogne. É uma região onde se encontram muitos cavalos. Fica


próximo de Péngord e a pouca distância de Bordéus, se é que lhe diz
alguma coisa explicou com um brilho nos olhos que a fez compreender o
que isto significava para ele.

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Nunca estive lá, mas deve ser bonita, já que a ama tanto.

É mesmo confirmou Antoine. E em que parte da Alemanha vive?

Em Colónia.

Já estive lá recordou, parecendo agradado. Também gosto muito da


Baviera. E passei momentos fantásticos em Berlim.

É precisamente em Berlim que o meu irmão Horst desejaria viver. Claro


que é impossível. Depois da guerra, tem de voltar a Colónia e ir trabalhar
para o meu pai. Ele acha horrível, mas não lhe resta outra escolha. O meu
avô e o meu pai e os seus irmãos, e o meu irmão Ulm, todos trabalham lá,
no banco. Suponho que não é muito divertido, mas todos parecem gostar
bastante. Deve ser interessante declarou, e ele sorriu- lhe.

Beata transbordava de ideias e de interesse pelo mundo. Ao olhá-la e ao


escutá-la, Antoine estava certo de que se ela tivesse podido ir para a
universidade ou trabalhado no banco, se sairia na perfeição. Continuava
impressionado por ela ter lido a Bíblia, tão nova.

O que gosta de fazer? perguntou, curioso.

Gosto de ler e de aprender coisas respondeu com simplicidade. Também


gostaria de vir a ser uma escritora, mas isso é obviamente impossível.

Nenhum homem com quem casasse iria tolerar que ela fizesse algo do
género, pois teria de cuidar dele e dos filhos.

Talvez o seja, um dia. Suponho que tudo depende de com quem casar ou se
o fizer. Também tem irmãs, ou apenas irmãos?

Tenho uma irmã mais nova, Brigitte, com dezassete anos. Adora ir a
festas, dançar, arranjar-se e mal consegue esperar pelo casamento. Está
sempre a dizer-me que sou um tédio respondeu Beata com um sorriso
malicioso que o levou a desejar abraçá-la, embora ainda não tivessem sido
devidamente apresentados. Sentiu-se de repente tão satisfeito por quase a
ter derrubado! A situação começava a parecer-lhe um rasgo de sorte e
achava que Beata pensava o mesmo.

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17

O meu irmão considera-me muito aborrecido. Mas devo dizer-lhe que a


acho tudo menos aborrecida, Beata. Adoro falar consigo.

Também gosto de falar consigo confessou ela, timidamente.

Interrogava-se sobre se deveria regressar ao hotel. Há muito tempo que


estavam sentados no banco. Talvez mais do que deveriam. Permaneceram
em silêncio durante mais um longo momento, admirando o lago, depois
Antoine virou-se de novo para ela.

Quer que a acompanhe ao hotel? perguntou. A sua família pode estar


preocupada por sua causa. A minha mãe levou a minha irmã às compras.
Não acredito que voltem antes do jantar, mas talvez

eu deva regressar anuiu, responsável, embora lhe desagradasse ir-se


embora.

Levantaram-se, ambos relutantes e ele quis saber se o tornozelo lhe doía.


Ficou satisfeito ao ouvir que estava tudo bem e ofereceu-lhe o braço,
enquanto regressavam, devagar, ao hotel. Beata enfiou a mão no braço
dele e durante o percurso continuaram a conversar sobre uma série de
assuntos.

Ambos concordaram que, por regra, detestavam festas, mas adoravam


dançar. Antoine ficou encantado ao ouvi-la dizer que gostava de cavalos e
já participara em caçadas. Os dois gostavam de barcos e partilhavam uma
paixão pelo mar. Beata garantiu que nunca enjoava, o que ele só
dificilmente acreditou. Todavia, ela confessou que tinha medo de cães,
pois fora mordida em criança. E os dois adoravam Itália, embora ele
dissesse que também gostava muito da Alemanha, o que era algo
impossível de admitir publicamente naquela altura. A guerra e o facto de
os seus respectivos países serem actualmente inimigos não lhes parecia
importante, à medida que se iam conhecendo. Antoine tinha uma
expressão de sério desapontamento quando regressaram ao hotel.
Detestava deixá-la, embora tivesse planos para jantar com a família.
Gostaria de ter passado muito mais horas na companhia dela e estava
visivelmente a retardar a despedida, quando chegaram diante do hotel e
ficaram a olhar- se.

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Apetece-lhe um chá? sugeriu ele e os olhos dela brilharam de imediato.

Seria uma óptima ideia, obrigada.

Antoine conduziu-a até ao terraço onde serviam chá. Mulheres elegantes


estavam sentadas a conversar umas com as outras, às mesas, e viam-se
casais com um ar abastado que comiam pequenas sanduíches e
sussurravam em francês, alemão, italiano e inglês.

Partilharam um chá e, por fim, incapaz de prolongar mais o momento, ele


acompanhou-a até à entrada do hotel e deteve-se a olhá-la. Parecia-lhe
pequena e frágil, mas, na verdade, após terem conversado durante horas,
sabia, agora, que era determinada e capaz de defender as suas ideias. Tinha
opiniões sólidas sobre muitas coisas e, até ao momento, estavam de acordo
na sua maioria. E aquelas com que ele não concordava, divertiam-no. Nada
tinha de monótono. Achava-a, pelo contrário, extremamente interessante e
de uma beleza que cortava a respiração. Apenas sabia que tinha de voltar a
vê- la.

Acha que a sua mãe a deixaria almoçar comigo, amanhã? inquiriu,


esperançado e ansiando por lhe tocar na mão, mas sem se atrever. Gostaria
mesmo de tocar-lhe na face. Ela tinha uma pele deliciosa. Não sei muito
bem respondeu Beata, honestamente.

Seria difícil explicar como se tinham conhecido e também o facto de


terem passado tanto tempo juntos a conversar, sem uma dama de
companhia. Contudo, nada de especial acontecera; ele era
indiscutivelmente delicado e, sem dúvida, de boas famílias. Os pais não
poderiam levantar qualquer objecção, exceptuando o facto de ser francês,
o que, naquele momento, se revelava, na verdade, inoportuno. Mas, afinal,
estavam na Suíça. Tudo era diferente, aqui! E só porque os países de
ambos eram inimigos, tal não significava que ele fosse malformado. Não
estava, porém, muito segura de que a mãe visse as coisas por esse prisma;
na verdade, tinha quase a certeza de que não seria o caso, pois os seus
irmãos batiam-se contra os franceses e podiam ser mortos por estes a
qualquer

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19

momento. Os seus pais eram patriotas de alma e coração, mas não


propriamente famosos pelos seus espíritos abertos, como ela bem sabia e
Antoine receava. Beata também estava consciente de que se ele se
apresentasse como um pretendente, a família o rejeitaria, porque não era,
obviamente, judeu. Contudo, tais preocupações pareciam prematuras.

Talvez a sua mãe e a sua irmã se nos queiram juntar ao almoço? sugeriu,
esperançado

Não fazia tenção de baixar os braços. Nesta altura, uma guerra parecia-lhe
um obstáculo demasiado insignificante para que deixasse escapar uma
jovem mulher tão maravilhosa e encantadora. Vou perguntar-lhes
prometeu Beata num tom calmo. Contudo, sabia que faria mais do que
perguntar. Estava

pronta a lutar como um tigre para o ver de novo e receava que isso fosse
necessário. Sabia que aos olhos da mãe, ele teria duas características em
desfavor, a sua nacionalidade e a sua fé.

Devo telefonar à sua mãe e ser eu a pedir-lhe? retorquiu com uma


expressão preocupada.

Não. Eu peço decidiu Beata, abanando a cabeça Os dois estavam doravante


ligados por um pacto secreto,

a continuação da sua amizade, ou o que quer que isto fosse Beata não
achava que ele estivesse a cortejá-la e só esperava que pudessem ser
amigos Não se atrevia a imaginar mais.

Posso telefonar-lhe esta noite? inquiriu, parecendo nervoso. Ela deu-lhe o


número do quarto que partilhava com Brigitte

Esta noite jantamos no hotel

Também nós surpreendeu-se ele. Talvez nos vejamos e eu possa


apresentar-me à sua mãe e à sua irmã? Como vamos dizer que nos
conhecemos.

De súbito, pareceu preocupado. O seu encontro havia sido fortuito, mas


não inteiramente correcto. Além disso, a sua longa conversa fora, no
mínimo, invulgar.

Direi apenas que me deitou ao chão e, em seguida, me ajudou a levantar


riu-se Beata. 25

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Tenho a certeza de que a sua mãe ficará impressionada. Vai contar-lhe que
a empurrei para a lama, ou apenas que a atirei ao lago, para ter o prazer de
a ajudar depois?

Beata riu-se como uma criança ante aquelas sugestões. Antoine há anos
que não se sentia tão feliz. Podia, pelo menos, dizer-lhe que lhe agarrei no
braço e a impedi de cair, embora tivesse, de facto, tentado derrubá-la
quando a ultrapassei com tanta pressa. Contudo, já não lamentava aquele
pequeno incidente que se virara a seu favor. E podia ter a decência de
contar à sua mãe que me apresentei devidamente.

Talvez o faça.

Por um momento, Beata pareceu verdadeiramente preocupada, olhando-o


um pouco embaraçada ao sugerir:

Acha que seria horrível dizer-lhe que é suíço? Antoine hesitou, depois
assentiu com a cabeça. Percebia

que a sua nacionalidade constituía um problema para a jovem ou que esta


receava que o fosse para a mãe. Contudo, o problema maior residia em que
ele era um aristocrata francês e não um judeu, mas Beata nunca lho diria.
Acalentava a ilusão de que, dado serem apenas amigos, a mãe não
atribuiria muita importância ao facto. Que mal tinha em fazer amizade
com um cristão? Vários dos amigos do pai eram- no. Tratava-se de um
argumento que tencionava usar, caso a mãe levantasse objecções a que
almoçassem juntos.

No fundo, tenho um quarto de sangue suíço. Apenas terei de lembrar-me


de não contar em frente da sua mãe, ou corro o risco de dizer soixante-dix,
em vez de septante. Seria um deslize. Mas não me importo, se for mais
fácil para si dizer que sou suíço. É vergonhoso que isso tenha de constituir
uma saída para nós nos tempos que correm.

Na verdade, a sua própria família ficaria horrorizada que ele fizesse


amizade com uma rapariga alemã e, pior ainda, que se sentisse totalmente
atraído por ela. Naqueles dias, os alemães e os franceses não se perdiam de
amores. Contudo, não percebia porque é que ele e Beata haviam de pagar
um preço por isso. 26

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Não se preocupe, arranjaremos uma solução acrescentou num tom meigo,


enquanto ela o fitava com os enormes olhos azuis. Está tudo bem, Beata,
garanto. Seja como for, ver-nos-emos amanhã.

Não permitiria que algo se erguesse entre ambos e ela sentiu-se totalmente
protegida ao fitá- lo. Eram quase estranhos um para o outro e, no entanto,
Beata sabia que já confiava em Antoine. Algo fantástico e maravilhoso
acontecera entre eles, nessa tarde.

Telefono-lhe esta noite prometeu Antoine num tom meigo, quando ela
entrou no elevador e se virou na sua direcção, no momento em que o
ascensorista fechou as portas.

Permaneceu no mesmo sítio, fitando-a, até ela desaparecer, e Beata teve


consciência de que numa única tarde toda a sua vida mudara. Quanto a
Antoine, saiu do hotel, sorrindo intimamente.

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CAPÍTULO 2

Para sua grande mágoa, Beata não estava preparada para a reacção da mãe,
quando, ao chegarem a casa, lhe mencionou casualmente o almoço com
Antoine. Explicou-lhe que se tinham conhecido no hotel à hora do chá,
conversado um pouco e que Antoine sugerira que almoçassem todos no dia
seguinte. Não teve coragem de falar num almoço a sós com Antoine. A
mãe já parecia suficientemente horrorizada assim.

Almoçar com um perfeito desconhecido? Enlouqueceste, Beata? Não


conheces esse homem. O que é que fizeste para que ele te convidasse para
almoçar?

A mãe parecia muitíssimo desconfiada. Apenas deixara Beata sozinha


durante umas horas, e não era usual da parte dela pôr-se a conversar com
um estranho. Tratava-se, obviamente, de um sedutor qualquer que rondava
o hotel, escolhendo as suas presas entre as jovens de boas famílias.
Monika Wittgenstein não era tão inocente como a filha; sentia-se furiosa
por este homem se ter insinuado junto desta e, pior ainda, por Beata
parecer considerá-lo atraente. A situação apenas servia para provar à mãe
que ela era de uma enorme ingenuidade e ainda uma criança. Quanto a
esse Antoine, imaginava o pior. Só estava a tomar chá no terraço defendeu-
se Beata, parecendo desgostosa. A situação não se desenrolava da melhor
maneira e ignorava o que dizer a Antoine. Começámos a falar sobre nada
de especial. Ele foi muito delicado.

Que idade tem ele? E o que está a fazer aqui em vez de estar na guerra?

Ele é suíço respondeu Beata com um ar formal. Pronto, já lhe dissera!


Nunca mentia à mãe, embora Brigitte o fizesse com frequência, mas esta
era a sua primeira vez. Contudo, a perspectiva de ver Antoine valia
qualquer risco que tomasse ou qualquer consequência que isso implicasse.
Numa única tarde, ele conseguira conquistar não só a sua lealdade como o
seu coração.

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Porque é que não estava a trabalhar? O que fazia a passear-se por um


hotel? prosseguiu Monika, para quem todos os homens respeitáveis
deviam trabalhar. Não tinham tempo para parar nos hotéis à hora do chá,
de olho nas jovenzinhas.

Está de passagem, tal como nós. Veio ver a família, porque o avô acabou
de morrer.

Lamento que assim seja replicou Monika num tom sóbrio e talvez se trate
de um homem perfeitamente decente, mas é um completo estranho. Não
lhe fomos devidamente apresentadas por alguém que nos conheça, ou a
ele, e não iremos almoçar juntos.

E, como que numa reflexão tardia, inquiriu uns minutos depois:

Como é o nome dele?

Antoine de Vallerand.
Os olhos da mãe procuraram os dela e não os largaram durante um longo
momento. Interrogou- se sobre se Beata o conhecera antes, mas não notou
nada de falso. Ela era apenas jovem, inconsciente e ingénua.

É um nobre pronunciou Monika num tom pausado, mas de pesada crítica.

Nessa condição, não era um pretendente apropriado para qualquer das


filhas. Havia algumas linhas que não se pisavam, e esta era uma delas.
Beata sabia o que a mãe estava a pensar. Não precisava de expressá-lo por
palavras. Eles eram judeus. Antoine não era.

E é crime ser nobre? retorquiu Beata num tom um pouco mordaz, mas
fitando a mãe com um olhar triste, o que a preocupou ainda mais.

Já te tinhas encontrado com este homem antes?

Como resposta, Beata abanou a cabeça no momento exacto em que


Brigitte se precipitou pelo quarto adentro, com os braços cheios de
compras. Passara umas horas fantásticas nas lojas, embora achasse que as
de Colónia eram melhores. Mas, pelo menos, aqui na Suíça não sofriam
nenhum dos racionamentos da guerra. Era um alívio fazer um intervalo
nessas coisas.

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Como é ele? perguntou Brigitte, exibindo uma nova mala de camurça preta
e um bonito par de luvas brancas compridas. É bonito?

Não é isso o que está em causa ripostou Beata, dirigindo-se a ambas.


Parece apenas um homem muito simpático e convidou-nos às três para
almoçar, o que foi muito delicado e generoso.

E porque achas que o fez? inquiriu a mãe, com um olhar de censura.


Porque morre de desejo por me conhecer e à Brigitte? Claro que não.
Deseja, obviamente, passar tempo contigo. Que idade tem esse homem?
acrescentou, com todos os sentidos alerta.

Não sei. Talvez mais ou menos a de Ulm.

Na verdade, tanto quanto sabia, ele tinha mais cinco anos do que o irmão.
Era a terceira mentira que contara para o proteger e à amizade que
desabrochava entre ambos. Passar tempo com Antoine parecia-lhe valer a
pena. Queria vê-lo novamente, mesmo que fosse na presença da mãe e da
irmã, se nada mais pudesse fazer. Apenas queria passar um pouco mais de
tempo com ele. Quem sabia quando se voltariam a encontrar.

Tem demasiada idade para ti decidiu a mãe, quando, na verdade, as suas


objecções quanto a ele eram de índole totalmente diferente. Mas não
queria expressá-las a Beata.

A mãe não queria atribuir importância bastante ao convite deste homem


para que declarasse quais eram as suas verdadeiras objecções, mas Beata
conhecia-as perfeitamente. Além de se tratar de um total estranho, Antoine
não era judeu. Monika não tencionava expor as filhas a belos e elegantes
jovens de fé cristã. Jacob não lhe perdoaria, e ela concordava inteiramente
com o marido. Era inútil permitir que este novo conhecimento de Beata
avançasse mais. Nada faria para encorajar um nobre suíço cristão a
cortejar uma das suas filhas. Só a ideia era uma loucura. Algumas das suas
próprias amigas eram, de facto, cristãs, mas nunca teria apresentado os
seus filhos às filhas delas. Não valia a pena prejudicar as jovens, ou tentá-
las com algo que nunca teriam. Por mais bonitas

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que fossem as suas filhas, nenhuma das suas amigas cristãs alguma vez
sugerira apresentá-las aos seus filhos. Neste caso, como em todos os
outros, os adultos eram melhores juizes. E Monika manteve-se firme e
intransigente. Jacob tê-la-ia morto e com razão, se assim não fosse.
Não compreendo o que achas que pode acontecer ao almoço. Afinal, ele
não é um assassino objectou Beata, queixosa.

Como é que sabes? inquiriu a mãe num tom severo.

A situação não estava a agradar-lhe mesmo nada, sobretudo porque Beata


nunca reagia assim, embora por vezes lutasse por algo em que acreditava e
queria muito. Isto era apenas uma questão de teimosia por parte da filha,
pois nem sequer conhecia o homem. E, enquanto Monika estivesse ali, tal
nunca aconteceria. Era melhor pôr termo a esta história, antes mesmo que
começasse. Sabia muito bem o que Jacob esperava dela como mãe. O que
isso significava, porém, era que chegara a altura de encontrar marido para
Beata. Se, de repente, jovens nobres começassem a rodeá-la como abutres,
era a altura de ela assentar, antes que acontecesse qualquer coisa
desagradável.

Beata era demasiado liberal nas suas ideias, embora, por norma, se
mostrasse obediente, bem-comportada e fosse motivo de orgulho para os
pais. Monika decidiu, pois, falar com Jacob sobre o assunto, quando
regressassem. Sabia que o marido tinha vários partidos respeitáveis e ricos
em mente, incluindo o dono de um banco rival. Tinha praticamente idade
para ser pai de Beata, mas Monika concordava com o marido, como em
tudo o mais, que um homem mais velho, inteligente e rico lhe serviria na
perfeição.

Embora ainda nova, Beata era uma rapariga muito grave, por isso um
jovem não lhe conviria tanto. Contudo, o que quer que pudesse ter mais a
favor dele, o factor mais importante, aos olhos dos pais, residia em que
devia professar a mesma fé. Qualquer outra possibilidade estava fora de
questão. E o jovem nobre que as convidara para almoçar enquadrava- se

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nesse âmbito. Era obviamente cristão e, com mais probabilidade, católico,


dado o nome de Antoine de Vallerand. Pelo menos era suíço e não francês.
No ano anterior, Monika desenvolvera um ódio pelos franceses, desde que
a guerra fora declarada. Os franceses estavam nas trincheiras a tentar
matar os seus filhos.

Beata deixou de argumentar e não pronunciou nem mais uma palavra,


enquanto ela e Brigitte se vestiam para jantar.

Então, o que é que se passou mesmo com esse homem, hoje? perguntou
Brigitte, parecendo provocante, vestida com a roupa interior cor de
pêssego e rendas beje, que a mãe lhe comprara nesse dia. Monika achara-a
um pouco ousada, mas não havia qualquer mal em fazer-lhe a vontade. De
qualquer maneira, ninguém a veria, excepto a irmã e a mãe. Ele beijou- te?

Estás louca? retorquiu Beata, com um ar irritado e consternado. Por quem


me tomas? Além disso, ele é um cavalheiro. Fica a saber que me agarrou
no braço para impedir que eu caísse, quando foi de encontro a mim.

Foi assim que se conheceram? inquiriu Brigitte, parecendo maravilhada


com a ideia. Que romântico! Porque é que não contaste isso à mamã?
Talvez ela se sentisse grata por ele te ter impedido de caíres e de te
magoares.

Não me parece replicou Beata, calmamente. Conhecia melhor a mãe e


avaliava-a melhor do que Brigitte, que ainda era dada a acessos de fúria e
birras, o que não fazia o estilo de Beata, para dizer o mínimo. Achei que
daria um ar mais respeitável explicar que nos conhecemos a tomar chá.

Talvez tenhas razão. Sujaste-te ao cair? Teria sido embaraçoso comentou


Brigitte, ao mesmo tempo que enfiava um vestido branco de linho e
penteava os longos caracóis dourados, sob o olhar invejoso de Beata.

Brigitte era tão bonita, que quase parecia um anjo. Beata sentia-se sempre
um rato ao lado dela e detestava o seu cabelo escuro. Não queria mal a
Brigitte por isso, só desejava parecer-se mais com a irmã, que tinha umas
formas muito mais

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voluptuosas do que Beata. Junto à irmã mais nova, ela parecia uma miúda.
E Brigitte sabia aparentemente muito mais sobre os homens. Falava-lhes
mais vezes do que Beata e adorava troçar deles e enlouquecê- los. Beata
sentia-se muito melhor e mais à vontade na companhia de mulheres.
Brigitte flartava ousadamente, sendo perita em torturar os ho mens.

Não me sujei explicou Beata. Já te contei que ele me impediu de cair.

Foi simpático da parte dele. E que mais te fez?

Nada. Apenas conversámos respondeu Beata, enquanto punha um vestido


de seda vermelho que acentuava o marcado contraste entre o seu cabelo e a
pele.

Estava de mau humor. Teria de dizer a Antoine que não podia vê-lo,
quando ele telefonasse. Sabia, com plena certeza, que não havia forma de
convencer a mãe a almoçarem todos e muito menos apenas os dois.

De que é que falaram?

De filosofia, da Bíblia, da propriedade dele, da universidade, nada de


importante. Ele é muito simpático.

Oh meu Deus, Beata! exclamou Brigitte, fitando-a com o incontrolável


entusiasmo dos dezassete anos. Estás apaixonada?

Claro que não. Nem sequer o conheço. Apenas gostei de conversar com
ele.

Não devias falar com os homens sobre essas coisas. Eles não gostam.
Acharão que és estranha observou com a melhor das intenções à irmã mais
velha, o que ainda deprimiu mais Beata.

Acho que sou estranha. Não me interesso por... Procurava as palavras


exactas, a fim de não ofender

Brigitte. Não me interesso por coisas mais ”ligeiras”. Gosto de assuntos


sérios, como os antigos gregos. Devias falar sobre outras coisas. Como
festas, moda e jóias. É o que os homens querem ouvir. Caso

contrário, pensarão que és mais inteligente do que eles e assustam- se.

Brigitte era sabida para a sua idade, com base no instinto, se não na
experiência.

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- É provavelmente o que farei anuiu, sem estar muito certa de que lhe
interessasse.

A maioria dos jovens que conhecia nas festas parecia-lhe ridícula. Beata
adorava, por exemplo, o irmão, mas preferia morrer a casar-se com um
homem como Horst. Teria tolerado um homem como Ulm, mas a
perspectiva de se casar com alguém do seu meio não lhe agradava muito,
ou mesmo nada. Todos lhe pareciam horríveis, monótonos e
frequentemente imaturos e superficiais. Antoine era diferente. Mais sério
e profundo do que a maioria dos homens que conhecia, protector e sincero.
Nunca sentira por ninguém, passadas umas horas, o mesmo que sentia por
ele. Não que isso a levasse a algum lado. E não fazia ideia do que ele
sentia a seu respeito. Não possuía os instintos de Brigitte nem a sua
sabedoria a lidar com os homens. Brigitte poderia ter-lhe dito, sem hesitar,
que Antoine estava louco por ela, mas não os vira juntos. Embora lhe
tivesse parecido bem-intencionado. O convite para almoçar era um sinal
de que existia algum interesse ali, mas não disse nada a Beata. A irmã
mais velha não estava visivelmente na disposição de continuar a discutir o
assunto.

Beata conservou-se silenciosa enquanto desceram no elevador até ao piso


inferior para jantarem e, como estava uma noite quente, a mãe pediu uma
mesa no terraço. Monika exibia um vestido de seda muito elegante, azul-
marinho, com um colar de safiras e sapatos e mala no mesmo tom do
vestido. Pusera brincos de safiras e diamantes a condizer com o colar.

Eram três mulheres muito bonitas que o chefe sentou à mesa. Beata
continuou muito quieta depois de terem encomendado o jantar, enquanto
Brigitte e a mãe falavam das compras que haviam feito nessa tarde. A mãe
contou-lhe que tinham visto alguns vestidos que lhe ficariam bem, mas a
jovem não se mostrou interessada.

É uma pena que não possas vestir-te com livros troçou Brigitte. Irias
divertir-te muito mais nas lojas.

Prefiro ser eu própria a fazer a minha roupa respondeu

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Beata com simplicidade, enquanto a irmã arregalava os olhos.

Para quê ter esse trabalho quando se pode comprá-la nas lojas?

Porque assim posso ter exactamente o que quero.

E, na verdade, fora ela a costurar o bonito vestido vermelho que usava e se


lhe adequava na perfeição, moldando o corpo elegante em linhas simples.

Beata era uma costureira dotada e adorava coser desde criança. A


governanta ensinara-a, embora Monika lhe dissesse que não precisava de
fazê-lo. Contudo, Beata preferia assim. Também fizera alguns dos seus
vestidos de noite, copiando-os de revistas e desenhos que via de colecções
parisienses, as quais, agora, já não tinham à disposição. Gostava de
modificá-los e simplificá-los de forma a ficarem ao seu gosto.

Uma vez, fizera um belo vestido de noite de cetim verde como presente de
aniversário para a mãe, e Monika mostrara-se surpreendida com a
perfeição. Teria feito outro para Brigitte, mas a irmã dizia sempre que
detestava roupas feitas em casa. Pareciam-lhe patéticas. Em vez disso,
Beata costurou, por vezes, para a irmã a roupa interior de cetim e enfeites
que ela adorava, num arco-íris colorido.

As três mulheres tinham acabado de comer a sopa, quando Beata notou


que a mãe erguia o rosto e olhava para lá do ombro da filha mais velha
com uma expressão desconcertada. Beata não fazia ideia do que
acontecera e, ao virar-se, deparou com Antoine de pé, atrás dela, com um
caloroso sorriso que abrangia todo o grupo.

Madame Wittgenstein? perguntou delicadamente, ignorando as suas duas


filhas, incluindo a que o cativara nessa tarde. Parecia hipnotizado pela
mãe. Peço que me desculpe a interrupção, mas queria apresentar-me e
também pedir desculpa por ter convidado a sua filha para tomar chá esta
tarde, sem uma dama de companhia. Ela tropeçou num caminho junto ao
lago e julgo que lhe doía o tornozelo. Achei que um chá lhe faria bem. Por
favor, desculpe- me.

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Não, eu... claro... que amabilidade a sua... balbuciou, Monika, fixando


Beata de relance.

Antoine esboçou uma vénia delicada e beijou-lhe a mão. Não repetira,


correctamente, o gesto em relação a Beata, pois esta era solteira, e o beijo
na mão era uma cortesia reservada às mulheres casadas. Beata apenas
recebera uma vénia, como era apropriado. Na Alemanha, os jovens como
ele e os seus irmãos esboçavam uma vénia, tal como fizera, e batiam os
calcanhares. Contudo, tão-pouco os suíços ou os franceses o faziam agora,
nem ele o fez.

Não me apercebi que ela se magoara acrescentou Monika,


momentaneamente confusa.
Antoine virou-se, então, para Beata e quase soltou uma exclamação ao vê-
la com o vestido vermelho. Um pouco antes, o rosto iluminara-se-lhe, ao
avistá-la do outro lado da sala, e desculpara- se ante a sua mãe para vir
apresentar-se à dela.

Antoine não fez qualquer tentativa para apresentar as duas mães por saber
que criaria problemas, dado Beata desejar que ele reivindicasse a sua
nacionalidade suíça. Não podia, assim, apresentar Monika à sua mãe,
contentando-se em ir ter com aquela e com a encantadora Brigitte, que o
fitava incrédula. Ele mal a olhou, tratando-a como a criança que ela era e
não como a mulher que ansiava por ser, o que conquistou a aprovação de
Monika. Antoine tinha uns modos impecáveis e era, sem dúvida, um
homem educado e não um conquistador barato, como receara.

Como está o seu tornozelo, mademoiselle? inquiriu, preocupado.

Está muito bem, obrigada, monsieur. Foi muito gentil respondeu Beata,
corando.

De nada. C’était la moindre dês choses... era o mínimo que podia fazer.

Voltou em seguida a prestar atenção à mãe das jovens e reiterou o convite


para almoço, o que, na verdade, perturbou a mãe. Ele era tão delicado, tão
apropriadamente solícito, tão caloroso e amável, que a própria Monika não
teve coragem

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para o repelir, acabando involuntariamente por aceitar. Combinaram


encontrar-se no terraço à uma hora da tarde do dia seguinte para
almoçarem. Mal foi tomada esta disposição, ele fez mais uma vénia,
beijou novamente a mão da senhora Wittgenstein e foi juntar-se outra vez
à família, sem um único olhar para Beata. Mostrou-se totalmente correcto
e simpático. E, quando ele se afastou, Monika fitou a filha com uma
surpresa consternada.
Percebo porque é que gostas dele declarou. Faz-me lembrar o Ulm
acrescentou, o que vindo dela era um enorme elogio.

Também a mim.

”Só que muito mais bonito”, pensou sem o dizer, enquanto cortava
calmamente a carne e rezava para que ninguém lhe ouvisse o bater
acelerado do coração.

Antoine portara-se na perfeição, não que tal interessasse. O que quer que
sentiam um pelo outro não os levaria a lado nenhum, mas, pelo menos,
podia vê-lo. De qualquer maneira, uma vez mais. Seria uma bela
recordação que levaria consigo. O elegante e jovem homem que conhecera
em Genebra. Beata tinha a certeza de que todos os que conhecesse depois
ficariam a perder por comparação com ele, durante anos. Já se resignara à
situação e imaginou-se como solteira para o resto da vida, enquanto
jantava. O seu pecado mais imperdoável residia no facto de não ser judeu.
Para já nem falar no facto de que também não era suíço. Tratava-se de um
beco sem saída.

Porque é que não me contaste que magoaste o tornozelo, esta tarde?


inquiriu a mãe, parecendo preocupada, depois de ele se afastar.

Não teve importância. Ele foi de encontro a mim, quando me dirigia ao


terraço à hora do chá, depois do meu passeio junto ao lago. Acho que teve
pena de mim. Só o torci um pouco.

Nesse caso, foi simpático em convidar-te para tomar chá. E a nós para
almoçarmos, amanhã. Beata apercebeu-se de que a mãe também ficara
momentaneamente

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encantada com ele. Tornava-se difícil que assim não fosse. Antoine era tão
elegante e tão simpático para todos, e Beata sentiu-se intimamente
satisfeita por ele ter ignorado Brigitte. Todos os outros homens que Beata
conhecia quase desmaiavam aos pés da irmã. Contudo, ele não pareceu
impressionado. Estava encantado com Beata, embora também não o
tivesse mostrado. Actuara de uma forma perfeitamente normal e amistosa,
tal como Ulm, e fora por esse motivo que Monika aceitara o seu convite
para almoçar. Não era decididamente um conquistador barato como
temera, mas respeitável e agradável. Beata não falou mais no assunto,
enquanto as três acabavam de jantar. Nem sequer olhou na direcção dele,
quando saíram do terraço, e ele não fez mais nenhuma tentativa de lhes
falar. Não era, de forma alguma, o que Monika havia suspeitado ou
temido. O próprio Jacob não podia desaprovar. O encontro casual fora
obviamente inofensivo.

Apenas Brigite se mostrou mais esperta do que qualquer delas, quando as


duas irmãs chegaram ao quarto, depois de desejarem boa-noite à mãe.

Oh, Deus do céu, Beata! Ele é um espanto! sussurrou à irmã mais velha, de
olhos arregalados. E está doido por ti. Vocês os dois enganaram
completamente a mamã!

Brigitte achava tudo fantástico e já imaginava encontros clandestinos de


amantes sob o luar.

Não sejas parva ralhou Beata, enquanto tirava o vestido vermelho e o


atirava para cima de uma cadeira, desejando agora ter levado algo mais
atraente. Ao pensar nele, o vestido parecia-lhe demasiado vulgar. E
pensava o mesmo de si. Ele não está doido por mim. Nem sequer me
conhece. E não enganámos a mamã. Ele convidou-nos para almoçar e ela
aceitou. É tudo. Apenas um almoço, por favor. Está apenas a ser simpático.

És tu que estás a ser parva. Homens daqueles só te convidam para almoçar


se estiverem doidos por ti. Ele nem sequer te olhou quando se aproximou
da mesa, ou muito pouco, e isso diz tudo.

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O que estás para aí a dizer? replicou Beata, divertida.

Ora, Beata! riu-se a irmã. Não percebes absolutamente nada de homens.


Quando eles se comportam como se não significasses nada para eles, quer
dizer que estão loucamente apaixonados por ti. Mas quando se mostram
arrebatados e parecem loucos de amor, estão, por hábito, a mentir.

Beata riu-se ante a sábia e mundana análise da situação feita pela irmã.
Contudo, esta era muito mais sofisticada em relação ao mundo e aos
homens do que Beata. Tinha um bom instinto. Melhor do que a sua tímida
e séria irmã.

Isso é ridículo! exclamou Beata, rindo, mas sentindo-se no íntimo


satisfeita. Estás, portanto, a dizer-me que todos os homens que me
ignoram, como todos os que estavam naquele restaurante esta noite, estão,
afinal, loucamente apaixonados por mim? Que maravilha! E terei, sem
dúvida, que me acaut elar com os que parecem amar-me, se estão a mentir.
Que confusão, céus!

É mesmo, mas também é assim que geralmente funciona reconheceu


Brigitte. Aqueles que denotam um grande entusiasmo estão apenas a
divertir-se. Os outros, como o Antoine, são os sinceros . Sinceros como?
replicou Beata, fitando a irmã mais nova, elegantemente deitada em cima
da cama

com a roupa interior de cetim, parecendo uma jovem muito atraente.

A nível de sentimentos. Tenho a certeza de que ele se apaixonou por ti.

-Bom, não lhe valerá de muito. Voltaremos a Colónia dentro de três


semanas retorquiu Beata num tom despreocupado, enquanto tirava a roupa
interior e vestia a camisa de noite, o que a fazia parecer uma criança,
comparada com a irmã. Costurava sempre camisas de noite brancas, de
algodão, que eram as mesmas que usava desde criança. Davam-lhe
conforto e gostava delas.
Pode acontecer muita coisa em três semanas pronunciou Brigitte num tom
misterioso, enquanto Beata abanava a cabeça e se punha novamente séria.

Não, Brigitte vincou. Ele não é judeu. Apenas podemos ser amigos.

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A frase acalmou a irmã, enquanto ambas pensavam no pai.

É verdade anuiu Brigitte num tom triste. Mas, pelo menos, podes flartar
com ele. Precisas de praticar.

Sim declarou Beata pensativa, dirigindo-se à casa de banho para lavar a


cara e escovar os dentes. Suponho que sim.

Nessa noite, nenhuma delas voltou a mencionar Antoine, mas enquanto


Beata se mantinha deitada, pensando nele durante horas a fio antes de
adormecer, achava uma ironia do destino que o primeir o homem por
quem se havia sentido completamente atraída não fosse judeu. E, além
disso, era francês. Nada resultaria daquela ligação, mas, pelo menos, podia
desfrutar da companhia dele durante as próximas três semanas. Eram
quase quatro horas da manhã quando, por fim, adormeceu.

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CAPÍTULO 3

No dia seguinte, o almoço com Antoine foi absolutamente perfeito e


conforme às expectativas de Beata. Delicado, agradável, cordial,
totalmente respeitável. Deu provas de grande cortesia para com a mãe,
tratou Brigitte como uma jovenzinha e fê-las rir a todas quando troçou
dela. Era inteligente, encantador, generoso, divertido e uma companhia
maravilhosa. Para já não mencionar o facto de ser deslumbrante. Contou-
lhes histórias engraçadas sobre a sua família e descreveu a propriedade da
família como

sendo um pesadelo a nível de dirigir e manter, embora fosse óbvio que a


adorava. Nunca deixou escapar que se situava em França e não na Suíça.
No final do almoço, Monika adorava-o e não viu nada de mal em que fosse
dar um passeio com Beata. Ele não fizera quaisquer avanços românticos
durante a refeição e nada tinha de falso ou misterioso. Na opinião da mãe
de Beata, era apenas uma pessoa muito simpática, desfrutando a
companhia de três novas amigas. A mãe de Beata não tinha quaisquer
reservas ou preocupações a seu respeito.

Antoine e Beata sentiram um enorme alívio quando, por fim, se viram sós
e caminharam quilómetros junto ao lago. Desta vez, quando pararam,
sentaram-se numa estreita faixa da praia, em cima da areia e com os pés
dentro de água, conversando sobre milhares de coisas. Partilhavam,
aparentemente, gostos e opiniões semelhantes sobre quase tudo.

Obrigada por nos ter levado a almoçar. Foi muito simpático para com a
minha mãe e a Brigitte. Por favor! Elas trataram-me da melhor maneira,
embora tenha a certeza de que a sua irmã irá despedaçar o coração de
muitos homens. Espero que a casem depressa.

Assim farão garantiu Beata com um sorriso calmo. Agradara-lhe


sobretudo a maneira como ele reagira a Brigitte. Mantivera a devida
distância, tratara-a como a criança que ela era, sem demonstrar qualquer
interesse de ordem sentimental.

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Sentiu-se um pouco maldosa por isso, mas estava contente. Ela está mais
ou menos apaixonada por um dos amigos do Horst, e o meu pai vai falar
brevemente com o pai dele. Estou certa de que ficará noiva antes do fim
do ano.

E quanto a si? perguntou Antoine, parecendo preocupado, o que Beata não


notou. Vão arranjar alguém que lhe convenha?

Espero que não. Não o farei. Acho que nunca casarei respondeu
tranquilamente e as palavras saíram-lhe num tom convicto.

Porque não?

Porque não consigo imaginar-me a desejar alguém que escolherem para


mim. Só essa ideia põe- me doente. Não quero um marido que não ame,
não conheça, nem queira. Prefiro ficar só para sempr e.

Beata pronunciou as palavras com verdadeira veemência. Antoine


observou-a, sentindo-se ao mesmo tempo aliviado e triste por ela.

Para sempre é muito tempo, Beata. Vai querer ter filhos e assim deve ser.
Talvez um dia conheça alguém por quem se apaixone. Tem apenas vinte
anos e toda uma vida pela frente.

Parecia triste ao dizê-lo e, quando ela o fitou, os olhos de ambos


cruzaram-se por um longo momento antes de ela responder:

Também é o seu caso.

Eu tenho uma guerra em que lutar. Quem sabe quais de nós irão
sobreviver? Os homens caem como moscas nos campos de batalha. No
preciso momento em que disse a frase pensou nos irmãos dela e lamentou
tê-lo feito. Estou certo de que acabaremos por sair dela, mas é difícil
pensar no futuro. Também sempre achei que ficaria solteiro. Acho que
nunca me apaixonei declarou honestamente, fitando-a, mas as palavras
seguintes surpreenderam-na quase tanto a ela quanto a ele... até a conhecer.

Seguiu-se um silêncio depois de ele falar, e Beata não fazia ideia do que
responder. Apenas sabia que também estava

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apaixonada por ele. apesar de terem acabado de se conhecer. Oque Antoine
dissera era uma loucura, o que sentiam também, mas era a verdade e nada
podiam fazer a esse respeito. Era impossível, e ambos o sabiam, mas, de
qualquer maneira, ele dissera- o.

Sou judia explodiu Beata. Nunca poderei casar consigo acrescentou com
os olhos cheios de lágrimas. Ele agarrou-lhe na mão.

Não seríamos os primeiros, Beata. As pessoas casam independentemente


da sua fé.

Durante o dia inteiro, Antoine fantasiara casar com ela. Era um sonho
louco para ambos, mas não podia negar o que sentia. Levara trinta e dois
anos a encontrá-la e ainda não queria perdê-la. Ou nunca, se pudesse evitá-
lo. Contudo, erguiam-se, sem dúvida, obstáculos no caminho deles. Seria,
na melhor das hipóteses, difícil. A sua própria família ficaria
escandalizada. Ele era Comte de Vallerand, um conde, e ainda nem sequer
lho dissera. Estava certo de que não teria importância para ela. O que os
atraíra um ao outro era muito mais profundo do que a fé, títulos, posição
ou nascimento. Antoine amava tudo nela, o que dizia e o que sentia, a
forma como encarava o mundo e era assim que também ela o amava.
Sentiam- se atraídos um pelo outro pelos motivos certos, mas a fé e as
nacionalidades de ambos, as crenças e as famílias iriam conspirar para que
se mantivessem separados. O segredo consistia em não permitir que
ganhassem, se lhes fosse possível. Era o que se veria.

A minha família nunca o permitiria. O meu pai matava-me. Deserdar-me-


iam retorquiu Beata como resposta ao seu comentário sobre pessoas que se
casavam, independentemente da fé. Na sua família, nunca se ouvira falar
de tal coisa.

Talvez não, se um dia lhes explicarmos. Também a minha família ficará


consternada e precisará de tempo para se acostumar à ideia. Mas,
primeiro, há uma guerra pela frente. Se decidirmos casar, temos um longo
caminho a percorrer. Isto é apenas o começo, mas quero que saiba que a
amo. Nunca disse isto a ninguém.
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Beata assentiu com a cabeça, fitando-o com os olhos cheios de lágrimas.


Ficaram sentados lado a lado, na praia, de mãos dadas; quando voltou a
falar, fê-lo num fio de voz:

Também o amo.

Antoine virou-se na sua direcção, sorriu-lhe e, sem pronunciar uma


palavra, inclinou-se, beijou-a e abraçou-a durante longos momentos. Não
fizeram nada que não devessem fazer; ele sentia-se feliz apenas com a sua
companhia.

Quero que saibas que te amo, caso me aconteça alguma coisa, quando
voltar. Quero que saibas que este homem te ama e te amará até ao dia em
que mo rrer.

Era uma declaração importante para alguém que só a conhecia há dois


dias, mas estava a ser sincero e Beata sabia- o.

Espero que seja daqui a muito tempo desejou ela, num tom solene,
referindo-se a ”amá-la até ao dia em que morresse”.

Será garantiu ele .

Conservaram-se sentados mais uma hora e ele voltou a beijá-la, antes de


regressarem. Não queria fazer nada que a prejudicasse ou a magoasse.
Apenas desejava protegê-la e amá-la, mas o mero facto de se amarem,
colocava-os a ambos numa situação delicada. Não tinham um caminho
fácil pela frente, mas os dois encaravam-no como um destino. Era o que
sentiam, quando percorreram de volta o caminho para o hotel, de mãos
dadas.

Engendraram um plano para se verem mais tarde, nessa noite. Beata disse-
lhe que Brigitte dormia como uma pedra e não daria pela sua saída.
Encontrar-se-iam no jardim, à meia-noite, só para falarem. Era arriscado,
se a mãe descobrisse, mas Beata garantiu que, se a mãe ou Brigitte ainda
estivessem a pé, não apareceria. Ele suplicou-lhe que fosse prudente e
sensata, embora o que estavam a fazer fosse tudo menos isso. Por um
qualquer milagre, Beata conseguiu esgueirar-se nessa noite e em todas as
que se lhe seguiram. Durante três semanas deram longos passeios,
tomaram chá e encontravam-se quando a noite ia adiantada. Quando ele
partiu de Genebra, pouco antes dela, estavam profundamente

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apaixonados e haviam jurado passar o resto da vida juntos. Falariam às


respectivas famílias depois da guerra, quando quer que isso fosse.
Entretanto, ele escrever-lhe-ia. Tinha um primo em Genebra, a quem
enviaria as cartas pelo correio e ele encarregar-se-ia de as mandar a Beata,
para Colónia. Pensara em todos os pormenores, pois, caso contrário, seria
impossível fazer entrar cartas na Alemanha, vindas de França. A sua
última noite juntos foi uma tortura e ele abraçou-a durante horas. Estava
quase a nascer o dia quando Beata regressou, com o rosto banhado de
lágrimas, mas sabendo que, se o destino conspirasse para os ajudar, um dia
ficariam juntos. Supostamente, ele obteria uma licença no Natal, mas tinha
de ir a casa, em Dordogne. Enquanto a guerra durasse, não poderia ir vê-la
à Alemanha. A família dela não tinha planos para regressar novamente à
Suíça. Teriam de esperar. Contudo, não pairava a mínima dúvida no
espírito de ambos. O que haviam descoberto acontecia uma vez na vida e
valia a pena esperar. Os dois estavam totalmente seguros do que sentiam
um pelo outro.

Nunca te esqueças que te amo sussurrou-lhe Antoine, quando a jovem o


deixou no jardim. Pensarei em ti cada momento até te ver outra vez.

Também te amo respondeu ela no mesmo tom e entre soluços, após o que
se afastou e se meteu na cama do quarto que partilhava com Brigitte.
Duas horas mais tarde, ainda acordada, viu uma carta a deslizar por baixo
da porta. Levantou- se para lhe pegar, mas quando abriu cautelosamente a
porta, ele já se fora embora. A carta dizia-lhe o que já sabia, quanto a
amava e que um dia seria dele. Dobrou-a com todo o cuidado e meteu-a na
gaveta onde guardava as luvas. Não teve coragem de destruí-la, embora
soubesse que o deveria fazer por uma questão de segurança. Contudo, dado
ser muito mais alta do que a irmã mais velha, Brigitte nunca calçava as
luvas de Beata, portanto sabia que a carta estaria a salvo. Beata não fazia
ideia do que iria acontecer agora. Apenas sabia que o amava e tudo o que
estava

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ao seu alcance naquele momento era rezar para que ele se mantivesse vivo.
O seu coração pertencia- lhe. Por um qualquer milagre, Beata tinha
conseguido ocultar de Brigitte tudo o que ac ontecera, insistindo em que
ela e Antoine eram apenas amigos. Brigitte ficou desiludida com a notícia
e, de início, desconfiou, mas acabou por acreditar na irmã. Beata não
mostrou qualquer sinal do amor ou da paixão que sentia por Antoine e
nada lhe confessou. Havia coisas demasiadas em jogo. Não podia confiar
em ninguém quanto ao seu futuro, à excepção do próprio Antoine, tal
como ele confiava nela. A mãe achava simpático que ela tivesse feito um
amigo e disse que esperava voltar a vê-lo, quando algum dia regressassem.
Sabia que, enquanto houvesse guerra, Jacob desejaria voltar de novo à
Suíça, para ter alguma paz.

O regresso a Colónia, em Setembro, foi desgastante. A guerra continuava a


devastar tudo e tornava-se deprimente ouvir falar da morte dos filhos,
maridos e irmãos de pessoas conhecidas. Já tinham morrido demasiados e
Monika estava constantemente preocupada em relação aos filhos, tal como
Jacob, mas este também se preocupava com as filhas. Cumpriu a promessa
que fizera à mulher. Em Outubro, falou com o pai do amigo de Horst em
Berlim, o jovem que Brigitte achava tão atraente e, quando lhe contou, ela
ficou nas nuvens. O jovem concordara e a família dele achava que um
casamento entre as duas famílias era uma excelente ideia. Jacob concedeu
um enorme dote à sua filha mais nova e prometeu comprar-lhes uma
bonita casa em Berlim. Tal como Beata tinha previsto, Brigitte ficou noiva
no final do ano, quando fez dezoito anos.

Em tempo de paz, os pais teriam organizado um enorme baile para festejar


o noivado, mas, com a guerra, estava fora de questão. O noivado foi
anunciado e Jacob e Monika deram um grande jantar em honra dos pais
dos noivos e de uma série de amigos. Vários generais estiveram presentes,
os jovens que estavam disponíveis e de licença apareceram fardados, e
Ulm conseguiu vir, embora Horst não tivesse obtido licença.

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Contudo, foi um evento importante. A união de duas grandes famílias e de


dois belos jovens.

Brigitte apenas conseguia pensar no casamento e no vestido de noiva.


Devia casar em Junho, o que lhe parecia uma espera interminável. Era
tudo o que Brigitte tinha sonhado desde criança. Queria um marido, filhos,
festas, belos vestidos e jóias e ia ter tudo isso. Para sua felicidade, o noivo
ficou colocado em Berlim. Não corria perigo iminente, o pai conseguira-
lhe o posto de auxiliar de um general, tendo- lhe sido assegurado que o
filho não seria enviado para a frente, portanto Brigitte nada tinha a recear.
O seu casamento e o seu futuro estavam em segurança.

Beata encarava a situação com grande tranquilidade e sentia-se encantada


por ver a irmã tão feliz. Prometera fazer toda a roupa interior para o
enxoval dela e sentava-se frequentemente a coser bocados de cetim claro e
a arrastar enfeites de rendas por todo o lado. Não parecia nada incomodada
pelo facto de a irmã mais nova casar e ela não. Estava muito mais
interessada na guerra. Uma vez por semana, recebia uma carta de Antoine,
através do seu primo suíço, o que lhe garantia que ele estava vivo e bem.
Antoine estava próximo de Verdun. Beata pensava constantemente nele
enquanto costurava e relia as cartas dele milhares de vezes. A mãe
reparara numa ou duas cartas quando haviam chegado pelo correio, mas,
geralmente, Beata recebia a correspondência antes de todos os outros e
ninguém se apercebeu de quantas cartas lhe tinham escrito ou com que
frequência chegavam. Os dois jovens continuavam tão apaixonados como
sempre, preparados para esperar por uma vida juntos, até depois da guerra.
Beata já havia jurado a si própria, e também a ele, que, se alguma coisa lhe
acontecesse, não casaria com mais ninguém. Não imaginava amar outra
pessoa como o amava a ele.

Nos últimos meses, o pai reparara na tranquilidade de Beata,


interpretando-a como uma grande tristeza da sua parte frente à alegria de
Brigitte. O facto de a julgar infeliz despedaçava-lhe o coração. Foi mesmo
ao ponto de falar com vários homens que conhecia bem e, em Março, sabia
que tinha

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encontrado o indivíduo certo. Este não seria a sua primeira escolha, mas,
ao proceder a uma análise mais cuidada, concluiu que o homem que
escolhera era o marido ideal para a filha. Tratava-se de um viúvo, sem
filhos, de uma excelente família e uma enorme fortuna pessoal.

Jacob desejara alguém mais velho e mais estável para Beata do que o
elegante e bonito jovem que arranjara para Briggite, que podia revelar-se
inconstante, pois ainda era imaturo e irresponsável, decididamente
mimado, embora Jacob simpatizasse com ele. Contudo, Brigitte adorava-o.
O marido que Jacob escolhera para a sua filha mais velha era um homem
ponderado e muito inteligente. Sem ser bonito, também não era feio,
embora começasse a ficar calvo. Era alto e corpulento, tinha quarenta e
dois anos, mas Jacob sabia que ele a respeitaria. O homem em questão
respondeu que seria uma honra ficar noivo de uma jovem tão bonita. A
mulher morrera há cinco anos, vítima de uma doença prolongada, e ele não
pensara em voltar a casar-se. Era uma pessoa calma, que detestava a vida
social da mesma maneira que Beata, desejando apenas um lar tranquilo.

Jacob e Monika convidaram-no para um jantar em casa deles e insistiram


para que Beata estivesse presente. Ela não queria, pois Brigitte estava em
casa dos futuros sogros para ir a uma série de festas em Berlim e Beata
não queria participar num jantar sem ela. Contudo, sabia que teria de
aprender a ir a festas sem a irmã, depois de Brigitte se mudar para Berlim
com o marido, em Junho.

Os pais insistiram em que ela se lhes juntasse, mas ocultaram-lhe o


motivo de um tal desejo. Beata apareceu na sala de estar, muito elegante,
com um vestido de noite de veludo azul, um bonito colar de pérolas no
pescoço e pequenos diamantes nas orelhas. Não prestou atenção ao homem
com quem eles esperavam que casasse, pois nunca o vira antes, e pareceu
alheada da sua presença. Quando lhe foi apresentada, apertou-lhe
delicadamente a mão, mas afastou-se uns momentos depois, julgando que
ele era alguém do banco do pai. Sentou-se calmamente ao lado dele
durante o jantar, respondeu

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cortesmente às suas perguntas, mas tinha a mente absorta com a última


carta de Antoine que recebera nessa tarde. Não conseguia pensar em mais
nada, por isso ignorou o seu companheiro de jantar durante a maior parte
do tempo. Não ouviu uma única das suas palavras, o que ele interpretou
como timidez e achou encantador. O pretendente ficou extremamente
atraído por Beata, que mal reparou nele, não fazendo a mais pequena ideia
de que ele fora convidado por sua causa. Achou que estava sentada ao seu
lado por casualidade e não de propósito.

Nessa noite sentira-se preocupada com Antoine; há dias que não tinha
notícias dele, até receber a carta que mencionava o ataque das forças
alemãs às francesas, em Verdun. Mal conseguia pensar noutra coisa
durante todo o jantar; por fim, declarou que tinha uma dor de cabeça e
abandonou a sala depois da sobremesa, sem se despedir. Achou mais
discreto desaparecer pura e simplesmente. Em seguida, o futuro noivo
perguntou a Jacob quando tencionavam dizer-lhe e este prometeu que o
faria dentro de dias. Queria que ela fosse tão feliz quanto Brigitte, e este
era, sem dúvida, o homem que lhe convinha. O futuro marido da filha até
partilhava a sua paixão pelos filósofos gregos, tendo tentado discuti-los
com ela ao jantar, mas Beata mostrara-se distraída e distante, limitando-se
a assentir com a cabeça ante o que ele dizia. Não escutara uma única
palavra dele desde a sopa à sobremesa. Era como se pairasse algures no
espaço, incapaz de descer à terra. O seu futuro noivo achou-a uma jovem
modesta e encantadoramente discreta. Beata estava de muito melhor
humor quando o pai se cruzou com ela no corredor, no dia seguinte.
Acabara de receber outra carta de Antoine, que voltara a garantir-lhe estar
bem e loucamente apaixonado por ela, como sempre. Tinham passado uns
dias infernais próximo de Verdun, mas estava vivo e bem, embora exausto
e faminto. As condições que descrevia eram de pesadelo, mas o mero facto
de saber que ele estava vivo chegou para lhe elevar imensamente o moral,
e o pai ficou encantado ao vê-la tão feliz, quando lhe

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pediu que fosse à biblioteca falar-lhe. Perguntou-lhe se gostara do jantar


da noite anterior e a filha respondeu delicadamente que a apreciara muito.
O pai questionou-a sobre a companhia do jantar, mas ela mal pareceu
recordá-lo; depois respondeu que era um homem muito simpático e um
conversador agradável, sendo óbvio que não fazia ideia do que lhe
reservavam.

Quando o pai entrou em explicações, Beata empalideceu. Ele declarou que


o homem, que se sentara ao lado dela, em que ela mal reparara e por quem
não se sentia minimamente atraída, estava disposto a desposá-la. Na
verdade, não via qualquer razão para protelar o assunto. Preferia casar com
ela mais cedo do que mais tarde e o pai achava que um casamento
discreto, logo a seguir ao de Brigitte, talvez em Julho, seria sensato. Ou
mesmo antes, se ela quisesse, visto ser a mais velha, talvez em Maio. Não
havia necessidade de esperar. Naqueles tempos de guerra, as pessoas
casavam-se rapidamente.

Beata mantinha-se sentada, fitando o pai com uma expressão de surpresa e


horror e, de início, Jacob não se apercebeu da repulsa da filha. Esta
levantou-se de um salto, começou a andar pela sala, parecendo ansiosa e
atemorizada, e expressou-se com uma tal violência e raiva, que Jacob a
olhou, incrédulo. Não era esta a reacção que esperava dela, nem a que
desejava. Garantira ao pretendente viúvo que o casamento deles era uma
certeza e já discutira o dote com ele. Seria muito embaraçoso, se Beata
recusasse casar-se com ele. Sempre se mostrara uma filha dócil e
obediente e Jacob tinha a certeza de que não o desiludiria.

Nem sequer conheço esse homem, papá declarou com as lágrimas a


correrem-lhe pelo rosto. Tem idade suficiente para ser meu pai e não quero
casar com ele prosseguiu, desesperada. Não quero ser dada a um
desconhecido, como qualquer escrava. Se espera que partilhe a mesma
cama com ele, prefiro morrer solteira.

O pai pareceu chocado ante esta descrição excessivamente gráfica das suas
expectativas e resolveu que seria a mãe a

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falar com ela. Fez mais uma tentativa para chamar a filha à razão.
Esperara que ela ficasse satisfeita e não furiosa.

Tens de confiar no meu poder de apreciação, Beata

- disse. Ele é o homem certo para ti. As jovens da tua idade fazem uma
ideia romântica do amor, que não corresponde à realidade. O que precisas
é de um companheiro para a vida, que partilhe os teus interesses, seja
responsável e te respeite. O resto virá a seu tempo, Beata. Garanto-te. És
muito mais sensata do que a tua irmã e precisas de um homem que seja tão
sensato e prático como tu. Não precisas de um jovem tonto com uma cara
bonita. Precisas de um homem que te proteja e zele pela tua sobrevivência
e a dos teus filhos, um homem com quem possas contar e conversar. É isso
o casamento, Beata, e não o romance e as festas. Não queres, nem precisas
dessas coisas. Prefiro um homem destes para ti concluiu quase
severamente, enquanto ela lhe deitava um olhar furibundo, do outro lado
da sala.

Então, durma o papá com ele. Não deixarei que me toque. Não amo este
homem e não casarei com ele, só porque o diz. Não serei vendida como
escrava a um estranho, qual cabeça de gado, papá. Não pode fazer-me isto.

Não tolero que me fales nesses termos ripostou Jacob, tremendo de raiva.
O que querias que fizesse? Deixar que vivesses aqui como uma velha
solteirona para o resto da vida? O que te acontecerá quando a tua mãe e eu
morrermos e ficares desprotegida? Este homem cuidará de ti, Beata. É do
que precisas. Não podes ficar aí sentada à espera que um belo príncipe te
descubra e te leve com ele, um príncipe que seja tão intelectual como tu,
tão sério e tão fascinado pelos livros e os estudos como tu. Talvez
preferisses um professor universitário, mas esse não estaria em condições
de dar-te a vida a que estás habituada e mereces. Este homem tem meios
idênticos àqueles em que foste criada. Deves aos teus futuros filhos
casares-te com alguém como ele, Beata, não com um artista ou um escritor
famintos que te deixarão a morrer tuberculosa em qualquer mansarda.
Deves ser realista e casar com o homem que escolhi para ti. A tua mãe e
eu sabemos o

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que estamos a fazer. Tu és jovem, tonta e idealista. A realidade não está


nos livros que lês. A realidade é aqui e farás como eu disser.

Prefiro morrer retorquiu ela, sem desfitar o pai e dando a sensação de que
nunca falara tão a sério. Jacob nunca a vira tão furiosa e determinada e, ao
examiná-la, uma dúvida atravessou-lhe a mente.

Ao fazer-lhe uma única pergunta, a voz tremia-lhe e, pela primeira vez na


vida, receou o que pudesse ouvir:

Estás apaixonada por alguém?


Jacob não conseguia imaginar tal coisa, pois a filha nunca saía de casa,
mas o olhar dela indicou-lhe que precisava perguntar-lhe; ela hesitou antes
de responder. Sabia que tinha de contar-lhe a verdade. Não havia outra
alternativa.

Sim disse, pronunciando a palavra com uma postura calma e rígida.

Porque é que não me contaste? Jacob estava triste e pálido em simultâneo


e, mais do que isso, parecia atraiçoado. A filha permitira-lhe que
avançasse com esta charada, só por nunca lhe ter dito que havia alguém
por quem se interessava profundamente. Osuficiente para prejudicar a
escolha que ele fizera para ela, a escolha perfeita. Quem é ele? Conheço-
o? acrescentou, sentindo um arrepio a percorrer- lhe todo o corpo, como se
alguém tivesse pisado a sua sepultura.

Não, não conhece respondeu Beata, abanando a cabeça e falando


ternamente. Conheci-o na Suíça, no Verão passado.

Beata decidira ser honesta com o pai. Sentia que não lhe restava outra
escolha. Este momento chegara mais depressa do que desejara ou esperara
e apenas podia rezar para que o pai se mostrasse razoável e justo com ela.

Porque é que não me contaste? A tua mãe está ao corrente?

Não. Ninguém sabe. A mamã e a Brigitte conheceram-no, mas, nessa


altura, ele era apenas um amigo. Quero casar-me com ele quando a guerra
acabar, papá. Ele quer vir até cá e conhecê- lo.

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Então que venha.

Opai estava furioso, mas, mesmo assim, disposto a encarar a questão de


uma forma honrosa e a ser sensato com a filha, embora se sentisse
profundamente triste com ela devido a esta confissão de amor à última
hora.

Ele não pode vir falar consigo, papá. Está na Frente.

Os teus irmãos conhecem-no? Ela abanou novamente a cabeça e manteve-


se silenciosa. O que é que estás a ocultar-me sobre ele, Beata? Sinto que
há mais alguma coisa além do que me dizes.

O pai tinha razão, como em tantas outras vezes. Beata sentiu que todo o
corpo lhe tremia de medo, quando lhe respondeu:

- É de uma boa família, dona de uma vasta propriedade. É culto e


inteligente. Ele ama-me, papá, e eu amo-o! As lágrimas corriam-lhe pelo
rosto.

Então, porque é que mantiveste tudo isto em segredo, Beata? O que estás a
esconder-me? rugiu com uma tal força que Monika o ouviu no andar de
cima.

Ele é católico e francês sussurrou Beata, ao mesmo tempo que o pai emitia
um som semelhante ao de um leão ferid o.

Foi tão horrível, que ela recuou vários passos, enquanto o pai avançava na
sua direcção, sem pensar. Só parou quando chegou junto dela e lhe agarrou
no frágil corpo com as duas mãos. Sacudiu-a com tal força pelos ombros
que os dentes bateram uns contra os outros, quando lhe gritou em pleno
rosto:

Como te atreves? Como te atreves a fazer-nos uma coisa destas?! Não


casarás com um cristão, Beata. Nunca! Antes quero ver-te morta. Se o
fizeres, terás morrido para nós. Escreverei o teu nome no livro dos mortos
da família. Não voltarás a ver esse homem, compreendes? E casarás com
Rolf Hoffman no dia em que te disser. Vou informá-lo de que o acordo está
concluído. Vais dizer ao teu francês católico que não voltarás a vê-lo nem
a falar-lhe. Entendido?
Não pode fazer-me isso, papá ripostou ela, soluçando e sentindo o ar a
faltar- lhe.

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Não podia desistir de Antoine, nem casar com o homem que o pai
escolhera. Pouco importava o que ele lhe fizesse.

Posso e farei. Casarás com Hoffman daqui a um mês.

Não, papá! exclamou, caindo de joelhos, desfeita em soluços, enquanto o


pai saía de rompante da biblioteca e subia ao andar de cima.

Beata manteve-se ajoelhada durante muito tempo, num pranto, até que, por
fim, a mãe apareceu, também ela a chorar. Ajoelhou-se ao lado da filha,
com o coração despedaçado ante o que acabara de ouvir.

Como pudeste fazer isto, Beata? Tens de esquecê-lo... Sei que é um bom
homem, mas não podes casar-te com um francês, sobretudo com esta
terrível guerra entre os nossos povos. E muito menos casar com um
católico. O teu pai escreverá o teu nome no livro dos mortos da família
pronunciou Monika, desesperada ante a expressão do rosto da filha.

De qualquer maneira, morrerei, se não casar com ele, mamã. Amo-o. Não
posso casar com aquele homem horrível.

Sabia que ele não era horrível, mas era velho aos seus olhos e não era
Antoine. Vou dizer ao teu pai que o informe. Mas nunca poderás casar com
Antoine. Prometemos casar um com o outro depois da guerra.

Tens de dizer-lhe que é impossível. Não podes negar tudo o que és.

Ele ama-me como sou.

Vocês são dois jovens inconscientes. A família dele também o deserdará.


Como viveriam?

Posso costurar... Podia ser modista, professora, o que tiver de ser. O papá
não tem o direito de fazer-me isto.

Contudo, ambas sabiam que o faria. Ele podia fazer o que quisesse e
dissera-lhe que, se casasse com um cristão, morreria para eles. Monika
acreditava no marido e não conseguia suportar a ideia de não voltar a ver
Beata. Era um preço demasiado elevado a pagar por uma simples história
de amor.

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Peço-te que não o faças suplicou à filha. Obedece ao teu pai.

Nunca recusou, soluçando nos braços da mãe. Jacob não era estúpido.
Nessa tarde, informou Rolf Hoffman que Beata era jovem, inocente e
parecia recear as... obrigações físicas... do casamento e

não estava seguro que a filha estivesse pronta para casar com alguém. Não
queria iludir o homem, nem contar-lhe toda a verdade. Disse-lhe que,
talvez, após um prolongado namoro e de se conhecerem um ao outro, ela
se sentisse mais à vontade com tudo o que o casamento acarretava.

Hoffman ficou desapontado, mas respondeu que esperaria o tempo que


fosse necessário. Não tinha pressa e compreendia que ela era uma jovem
inocente. Apercebera-se da sua timidez na noite em que se conheceram. E
até mesmo uma filha obediente merecia a oportunidade de se familiarizar
com o homem que ia desposá-la e levá-la para a sua cama. No final da
conversa, Jacob agradeceu-lhe a paciência e garantiu-lhe que Beata
acederia a devido tempo.

Nessa noite, Beata não desceu para jantar e Jacob não a viu durante vários
dias. Segundo a mãe, a filha não saíra da cama. Beata escrevera uma carta
a Antoine, contando-lhe o sucedido. Disse que o pai jamais concordaria
com o casamento deles, mas ela estava disposta a casar com ele, quer
depois da guerra ou antes, o que ele achasse melhor. Contudo, deixara de
sentir-se à vontade na sua casa em Colónia. Sabia que o pai continuaria a
tentar obrigá-la a casar com Rolf. Também sabia que decorreriam algumas
semanas antes de receber uma resposta de Antoine, mas estava preparada
para esperar.

Não teve notícias dele durante dois meses. Corria o mês de Maio quando,
por fim, recebeu uma carta dele. Durante todo esse tempo, vivera no terror
de que tivesse sido ferido ou morto ou que, ao saber da raiva do pai dela,
decidisse recuar e não voltar a escrever-lhe. A primeira hipótese era a
correcta. Antoine fora ferido há um mês e estava num hospital em Yvetot,
na costa da Normandia. Quase perdera um

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braço, mas garantia que em breve estaria bem. Acrescentava que quando
ela recebesse a carta, já estaria em casa, em Dordogne, e falaria à sua
família sobre o casamento deles. Não regressaria à Frente, nem tão-pouco
à guerra. Contudo, repetia várias vezes que estava bem e a amava muito,
muito.

Beata apressou-se a responder e mandou a carta, como sempre, através do


primo dele na Suíça. Agora, só lhe restava aguardar. Antoine dissera-lhe na
carta que esperava que a família a acolhesse no seu seio e que casariam e
viveriam na sua propriedade, em Dordogne. Embora, na actual situação, ou
mesmo depois da guerra, não fosse fácil levar uma alemã para a França.
Sem mencionar as diferenças religiosas entre ambos, o que perturbaria
tanto a sua família como a dela. O casamento de um conde com uma judia
em França seria tão horrível aos olhos deles, como o casamento dela com
um católico francês aos olhos da sua comunidade, em Colónia. Não era um
caminho fácil para nenhum deles.

Depois de lhe ter escrito, Beata passava os dias tranquilamente em casa a


ajudar a mãe, mantendo-se longe do pai. Este fizera repetidas tentativas
para convencê-la a passar algum tempo com Rolf, mas Beata recusara
sempre. Declarou que nunca se casaria com ele, nem mesmo o queria ver.
Empalidecera tanto que parecia um fantasma; ao vê-la naquele estado, a
mãe sentia o coração despedaçado. Implorava-lhe a toda a hora que
obedecesse ao pai. Nenhum deles teria paz, enquanto assim não fosse.
Devido ao peso do desgosto que ela trouxera para a casa, esta
assemelhava-se a uma morgue.

Os dois irmãos tinham-lhe falado, sem resultado, quando vieram a casa de


licença. E Brigitte ficou tão furiosa, que deixou de falar-lhe. Tornara-se
insuportavelmente senhora do seu nariz com a excitação do casamento
iminente.

Como pudeste ser tão estúpida e contares ao papá, Beata?

Não queria mentir-lhe respondeu simplesmente. Contudo, desde essa


altura, Jacob ficara furioso com todos. Responsabilizava-os pela estupidez
e traição de Beata. Além disso, sentia que a filha o atraiçoara, como se ela
tivesse

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decidido apaixonar-se por um católico francês só para o humilhar. Aos


olhos dele, ela não podia ter feito nada de pior. Levaria anos a ultrapassar a
questão, mesmo que Beata concordasse em desistir de Antoine, o que, até
essa altura, não fizera.

Tu não o amas a sério declarou Brigitte com a presunção de uma jovem de


dezoito anos prestes a casar com o seu príncipe encantado. Brigitte tinha o
mundo a seus pés e sentia pena da estúpida da irmã. Achava ridículo. O
que lhe parecera romântico, durante uns dias em Genebra, deixara de fazer
se ntido. Não se joga uma vida, nem se põe a família em risco, por alguém
de um outro mundo. Estava totalmente encantada com o casamento que o
pai lhe arranjara e que lhe convinha em absoluto. Nem sequer o conheces
censurou- a.

Nessa altura não, mas agora sim. Haviam posto a alma a nu em seis meses
de cartas e, mesmo em Genebra, passadas três semanas, ambos tinham tido
a certeza. Pode não fazer sentido para ti, mas sei que a minha atitude está
certa.

Mesmo que o papá escreva o teu nome no livro dos mortos?

Esta ideia, que não a abandonara nos últimos dois meses, fazia com que
Beata se sentisse doente. Espero que ele não me faça tal coisa respondeu
com a voz estrangulada.

A ideia de nunca mais ver a mãe, os irmãos, o pai e até mesmo Brigitte era
inconcebível, mas também o era abdicar do homem que amava. Não podia
fazê-lo. E, mesmo que o pai a banisse no início, esperava que algum dia
cedesse. Não acreditava que pudesse perder a família, ao passo que, se
perdesse Antoine, seria para sempre.
E se o papá levar a dele por diante e nos proibir de te vermos? insistiu
Brigitte, que queria forçar Beata a tomar consciência do risco que corria.
O que farias?

Esperava até que ele mudasse de opinião respondeu Beata num tom triste.

Isso nunca acontecerá, se casares com um cristão. Talvez

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acabe por perdoar-te se não casares com Rolf, mas não se casares com o
teu francês. Ele não é digno desse sacrifício, Beata. Ninguém o é. Brigitte
sentia-se feliz por contar com a aprovação dos pais e jamais teria tido a
coragem e a audácia de agir como a irmã. Só te peço que não faças nada
que possa perturbar a família antes do meu casamento concluiu, na falta de
mais argumentos

Prometido declarou Beata, assentindo com a cabeça

Na semana antes do casamento recebeu notícias de Antoine. A família dele


reagira da mesma maneira que a sua. A sentença fora a de que, se ele
casasse com uma judia alemã, teria de partir. O pai declarara que Antoine
nada levaria consigo. Segundo a lei francesa, o pai não podia deserdá-lo
nem privá-lo do direito ao título quando ele morresse, mas garantira-lhe
que se Antoine casasse com Beata, ninguém da família queria voltar a vê-
lo

Antoine ficara tão indignado com esta reacção, que já estava na Suíça à
espera dela, quando lhe escreveu. Propunha-lhe que ficassem lá até ao
final da guerra caso Beata ainda quisesse casar com ele, sabendo o que o
afastamento das famílias significaria para ambos. O primo dissera-lhe que
podiam ficar na casa dele e ajudá-lo e à mulher na herdade. Antoine não
lhe escondeu que não ia ser fácil, pois, uma vez separados das famílias,
ficariam sem dinheiro. Os primos tinham muito pouco de seu e os dois
viveriam da caridade deles e trabalhariam para pagar a subsistência
Antoine sentia-se preparado, mas acrescentava que compreenderia e não
ficaria a querer-lhe mal se ela decidisse que deixar a família por ele era
algo por demais difícil. Escrevia ainda que continuaria a amá-la,
independentemente da sua decisão. Sabia que a jovem estaria a sacrificar
tudo o que amava, tudo o que lhe era importante e familiar, caso decidisse
casar com ele. A decisão final pertencia- lhe

O que emocionou Beata foi Antoine já ter feito o mesmo sacrifício por ela.
Abandonara a família em Dordogne, com a proibição de nunca mais voltar.
Encontrava-se ferido

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e sozinho na herdade do primo, na Suíça. E fizera tudo isto por ela. Os


países de ambos continuavam em guerra, embora, para Antoine, esta
tivesse terminado.

Por outro lado, se o pai autorizasse, ela desejaria um dia voltar à


Alemanha. Contudo, de momento, não parecia restar-lhes outra solução,
senão a de esperar o fim da guerra na Suíça, pensariam no resto, mais
tarde. Talvez, nessa altura, a família de Antoine tivesse amansado, embora,
na carta, ele declarasse que não havia esperança de reparar os danos. A sua
partida e a violenta disputa que a antecedera haviam sido decisivas e
amargas. Até mesmo o seu irmão, Nicholas, de quem era tão chegado, não
lhe dirigira a palavra quando ele partira, o que sentira bastante.

Na semana anterior ao casamento da irmã, Beata, consciente da gravidade


da decisão que devia tomar, pareceu ausente e atormentada. No dia do
casamento, participou no evento como num sonho. E, por ironia do
destino, Brigitte e o marido, seguindo os conselhos de Jacob que achava
tratar-se do lugar mais seguro do mundo, partiriam em lua-de-mel para a
Suíça. Passariam três semanas nos Alpes, sobre Genebra, a pouca distância
de onde Antoine a esperava, caso ela decidisse juntar-se-lhe. Beata assim o
desejava, mas prometera à irmã que não faria qualquer escândalo antes do
casamento e cumpriu a palavra.

O drama ocorreu dois dias após a cerimónia, quando o pai pediu a Beata
que lhe garantisse que Antoine desaparecera da sua vida para sempre. Os
irmãos já haviam regressado às respectivas companhias e Brigitte partira
em lua-de-mel. Sabendo que Antoine a esperava na Suíça, Beata recusou
fazer essa promessa ao pai. Monika tentou acalmá-los, mas em vão. Por
fim, Jacob declarou-lhe que se não renunciasse ao ”seu” católico, devia ir
juntar-se-lhe, mas consciente de que jamais poderia voltar. Ele e a mãe
fariam o shiva por ela a vigília destinada aos mortos pois, no que lhes
dizia respeito, a filha estaria morta após deixar a casa. Acrescentou que
jamais deveria contactá-los. Mostrou-se tão intransigente e furioso com
ela, que Beata tomou uma decisão.

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Após ter batalhado durante horas com o pai e de lhe haver suplicado que
fosse mais sensato e aceitasse conhecer Antoine, regressou ao quarto,
vencida. Encheu duas pequenas malas com tudo o que achava poder ser-
lhe útil na herdade da Suíça, bem como fotografias da família. Depois,
fechou as malas, lavada em lágrimas, e pousou-as na entrada, onde a mãe a
esperava, soluçando.

Não faças isso, Beata., ele nunca mais te deixará voltar. Vais lamentar isto
para o resto da vida. Era a primeira vez que via o marido tão enraivecido.
Não queria perder a filha, mas, aparentemente, nada podia fazer para
impedir esta tragédia. Vais arrepender-te a vida inteira.

Eu sei, mas nunca amarei outro homem senão Antoine. Não quero perdê-lo
respondeu Beata num tom grave, pensando que também não queria perder
a família. Vais escrever-me, mamã?

Monika abraçou-a com força e as lágrimas de ambas misturaram-se


quando se abraçaram. Nos seus braços, Beata sentia-se uma criança.
Contudo, o silêncio da mãe era uma resposta à sua pergunta. Quando o pai
a tivesse banido e declarado morta para todos, a mãe teria de obedecer-lhe.
Nem mesmo pela filha ultrapassaria os limites que o marido impunha a
todos. A palavra dele era uma lei aos seus olhos, como para toda a família.

Mas eu escrevo-te retomou Beata, meigamente, agarrando-se à mãe como


a criança que ainda era em muitos aspectos. Festejara os seus vinte e um
anos na Primavera.

Ele não vai deixar-me ler as tuas cartas replicou Monika, esforçando-se
por abraçar Beata o máximo de tempo possível. Oh, minha querida!... Sê
feliz com esse homem... Espero que ele cuide bem de ti... Espero também
que te mereça. Oh, minha querida. Nunca mais te verei!

Beata fechou os olhos, sem largar a mãe, enquanto o pai as observava do


alto das esca das. Decidiste, então, ires-te embora? inquiriu num tom
severo.

Foi a primeira vez que Beata o achou velho. Até essa altura,

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tinha-o encarado como alguém jovem, o que já não era o caso. Jacob
estava prestes a perder a sua querida filha, aquela de quem se sentia mais
orgulhoso, e a última que ainda estava em casa.

Sim respondeu Beata, num fio de voz. Amo-o, papá acrescentou,


desejando apertá-lo com força nos braços, mas dissuadida pelo olhar dele.

A tua mãe e eu faremos o shiva por ti esta noite. Que Deus te perdoe pelo
teu acto.

Beata não se atreveu, mas gostaria de dizer-lhe o mesmo. Beijou a mãe


uma última vez, pegou nas malas e desceu as escadas, sob o olhar de
ambos. Ouviu os soluços da mãe durante todo o percurso e quando abriu a
porta da frente. Do pai, nenhum som.
Amo-vos! declarou, virando- se.

Contudo, não obteve qualquer resposta, exceptuando os soluços da mãe.


Pegando nas malas, fechou a porta atrás de si.

Caminhou até avistar um táxi, carregada com as duas pesadas malas.


Depois de ter pedido ao motorista que a levasse à estação de caminho-de-
ferro, sentou-se no banco de trás e desfez-se em lágrimas. Ohomem não
lhe fez perguntas, quando Beata pagou a corrida. Toda a gente vivia
tragédias naquela altura e ele não queria importuná-la. Havia dores
impossíveis de partilhar.

Esperou três horas pelo comboio para Lausana. Teria mais do que tempo
para voltar atrás na sua decisão, mas estava convencida, no mais fundo de
si, que o seu futuro era com Antoine. Este renunciara a tudo por ela e,
embora ignorasse o que o futuro lhes reservava, sabia, desde o primeiro
dia, que ele era o seu destino. Desde Setembro que não o via, mas Antoine
fazia parte dela; pertencia-lhe, tal como os pais pertenciam um ao outro ou
Brigitte pertencia ao homem que acabava de desposar. Todos deviam
seguir o seu destino e, talvez um dia, com sorte, ela voltasse a vê-los. De
momento, era este o seu caminho. Achava inconcebível que o pai se
mantivesse eternamente agarrado à sua posição. Acabaria por ceder
qualquer dia.

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Beata estava tranquila quando subiu para o comboio, nessa tarde. Não
cessou de chorar durante uma grande parte da viagem, até acabar por
adormecer. A senhora de idade que partilhava a sua carruagem, sabendo
que ela devia descer em Lausana, acordou-a quando o comboio parou e
Beata agradeceu- lhe. Contudo, ao ver-se sozinha no cais, sentiu-se órfã.

Enviara um telegrama a Antoine da estação, em Colónia. De súbito,


avistou-o, a avançar ao seu encontro. Tinha o braço ao peito, fixo por uma
écharpe, mas mal chegou ao seu lado, agarrou-a com o outro braço e
apertou-a com tanta força, que mal a deixava respirar.

Não tinha a certeza de que virias. Receei que... Era pedir-te tanto...

As lágrimas corriam pelas faces de ambos, à medida que Antoine lhe dizia
quanto a amava. Ela fitou-o com um misto de temor e de respeito.
Doravante, Antoine era o seu marido, o seu presente e o seu futuro, o pai
dos filhos que teriam em comum. Era tudo para ela, e ela para ele, e pouco
importava o que teriam de enfrentar, desde que se conservassem juntos.
Por mais doloroso que fosse ter abandonado a família, sabia que tomara a
decisão certa.

Permaneceram demoradamente no cais, saboreando o momento, abraçados


um ao outro. Depois, Antoine pegou numa das malas, Beata agarrou na
outra e dirigiram-se à saída, ao encontro do primo e da mulher, que os
esperavam. Antoine tinha uma expressão radiosa quando saiu da gare e
Beata sorriu- lhe. Enquanto o primo arrumava as malas no porta-bagagens
do carro, Antoine apertou Beata de encontro ao corpo. Não se atrevera a
pensar que ela viria. Contudo, ela abandonara tudo. Instalaram-se no banco
de trás do carro e Antoine rodeou-lhe os ombros com o braço válido,
voltando a beijá-la. Não tinha palavras para expressar o que a jovem
representava aos seus olhos. Enquanto percorriam lentamente o trajecto

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para lá de Lausana, manteve-se agarrada a ele. Doravante, não podia olhar


para trás, apenas para a frente. Nessa manhã, em Colónia, o pai escrevera o
seu nome no livro dos mortos. Monika e ele haviam feito a

vigília de shiva por ela. Para a família, estava morta.

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CAPÍTULO 4
A herdade dos primos de Antoine primava pela modéstia, mas os terrenos
à volta eram magníficos e a casa acolhedora e sem pretensões. Havia dois
quartinhos contíguos, num dos quais tinham criado os três filhos. Há
muito que estes tinham partido para a cidade, pois nenhum quisera ficar a
trabalhar na herdade. Havia também uma grande cozinha confortável e
uma sala de estar reservada aos domingos, mas que ninguém utilizava.

Era tudo muito diferente da casa de Beata, em Colónia. Tratava-se de


primos afastados, pelo lado materno de Antoine, e sentiam-se encantados
por poderem ajudar o jovem casal e também agradecidos pela ajuda na
herdade. Dois rapazes, que viviam numa casinha próxima, também os
ajudavam na lavoura, na colheita e com as vacas. Nas montanhas por cima
de Lausana, tornava-se difícil imaginar que o mundo estava mergulhado
no caos. A herdade estava tão afastada da guerra quanto possível.

Os primos de Antoine, Maria e Walther Zuber, eram pessoas encantadoras,


bem-dispostas e calorosas. Embora instruídos, tinham pouco dinheiro e
haviam optado por levar uma vida modesta que os satisfazia. O resto da
família vivia em Genebra e Lausana, exceptuando os filhos que tinham
emigrado para Itália e França.

Beata calculou que rondassem mais ou menos a idade dos pais, embora
quando lhes falou percebesse que eram, na realidade, mais velhos. A vida
de dura labuta, mas saudável, que tinham levado fizera-lhes bem E,
naqueles tempos difíceis, o porto de abrigo que haviam oferecido ao
jovem casal assemelhava-se a uma dádiva do céu. Antoine estava disposto
a fazer tudo o que pudesse para ajudá- los, em troca da sua hospitalidade,
mas estava limitado devido ao braço ferido.

Na tarde em que chegaram, ao massajar o braço de Antoine, antes de


mudar-lhe o penso, Beata ficara chocada com a gravidade das lesões. Os
estilhaços tinham-lhe danificado os

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músculos e os nervos do braço esquerdo e a ferida ainda não cicatrizara.
Os médicos haviam dito a Antoine que, eventualmente, ele poderia voltar
a usá-lo, mas não até que ponto. E, visivelmente, nunca seria como dantes.
Nada mudava o que Beata sentia por ele, que, por sorte, era dextro.

Antoine oferecera-se para ajudar Walther com os cavalos, um domínio


onde era excelente, e tentaria fazer tudo o que pudesse com um único
braço válido. Beata e os dois rapazes ocupar-se-iam do restante.

Ao almoço, enquanto comiam a sopa e salsichas na cozinha, Beata propôs


cozinhar e tudo o mais que eles quisessem. Maria respondeu que lhe
ensinaria a mungir as vacas; Beata arregalou os olhos. Era a primeira vez
que punha os pés numa herdade e sabia que tinha muito que aprender. Ao
juntar-se a Antoine, não só abandonara a família e a casa onde nascera,
mas também a única vida que conhecia. Renunciara a tudo por ele, como
ele o fizera por ela. Tratava-se de um novo ponto de partida para ambos e,
sem os Zuber, não teriam sítio para onde ir, nem qualquer meio de
subsistência. Beata agradeceu-lhes vivamente e depois foi ajudar Maria a
lavar a louça. Era a sua primeira refeição não kosher e, embora não
estivesse acostumada, sabia que não lhe restava outra alternativa. A sua
vida mudara num abrir e fechar de olhos. Quando é que vão casar?
perguntou Maria com um ar maternal e interessado.

Maria preocupara-se com Beata desde que Antoine lhes escrevera a


perguntar se lhes dariam abrigo em casa deles. Walther e ela tinham-se
mostrado hospitaleiros, generosos e acedido rapidamente. Além disso,
agora que os filhos tinham emigrado, eles podiam ajudá- los.

Não sei respondeu Beata.

Antoine e ela ainda não tinham tido tempo de discutir o assunto. Era tudo
uma novidade e precisavam de decidir tanta coisa! Ainda se encontrava
sob o choque dos seus últimos dias em Colónia. Nessa noite, o casal falou
dos seus projectos até tarde. Antoine improvisara uma cama para si no

sofá da sala de estar


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e dera o quartinho a Beata. Maria aprovara esta solução. Antoine garantira


aos primos que ele e Beata casariam em breve. Maria não queria, tal como
Walther, que o jovem casal vivesse em pecado sob o seu tecto. Era algo
fora de questão. Beata e Antoine também queriam casar- se.

Antoine informara-se, mal haviam chegado, e descobrira que, na qualidade


de estrangeiros, precisavam de uma autorização especial para se casarem
na Suíça. No dia seguinte, a fim de arranjar os documentos de que
precisavam, pediu emprestada a furgoneta de Walther e dirigiu-se com
Beata à aldeia vizinha. Precisavam de passaportes, um documento que lhes
permitiria casar pelo civil e dois cidadãos suíços que se
responsabilizassem por eles e fossem testemunhas. O facto de o avô
materno de Antoine ser suíço de nada servia, pois a mãe, tal como ele, era
francesa. O funcionário que se ocupou do dossiê deles declarou que teriam
os documentos dali a duas semanas.

Vão casar-se pelo civil ou pela igreja? perguntou o funcionário como mera
rotina e Antoine virou-se para Beata, com um ar desconcertado.

Esta questão não lhes ocorrera. Antoine pensara simplesmente numa breve
cerimónia na maire. Sem outra família à excepção dos Zuber, e, dadas as
circunstâncias, o seu casamento seria apenas um acto oficial que lhes
permitiria legitimar a sua união para viverem juntos e em paz. Não haveria
qualquer cerimónia religiosa, nem recepção, nem festa depois. Tratava-se
apenas de uma formalidade para que se tornassem marido e mulher. Como
e onde se casariam e quem o faria eram perguntas que nem sequer lhes
haviam cruzado a mente. Quando o funcionário lhes dirigiu a pergunta,
Antoine fitou hesitante a sua futura mulher E, ao saírem para o sol de
Verão, Antoine estreitou a cintura de Beata com o braço direito e beijou-a
meigamente. A jovem fitou-o com um sorriso nos lábios e uma expressão
muito calma.
Dentro de quinze dias estaremos casados pronunciou com ternura

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Não era, obviamente, o casamento que imaginara em miúda, mas em todos


os outros aspectos correspondia à realização de um sonho. Antoine e ela
tinham-se conhecido há dez meses e apaixonado de imediato, agora, tudo o
que desejava era passar o resto da vida ao seu lado. Ainda não sabiam onde
iriam viver depois da guerra, nem se as famílias voltariam a acolhê-los no
seu seio. Contudo, de momento, tudo o que sabia e desejava era estar com
Antoine.

Quem queres que nos case? perguntou ele.

O funcionário fizera uma pergunta legítima. Antoine não sabia se Beata


desejava que um rabino celebrasse o casamento, embora se visse obrigado
a admitir que essa ideia o incomodava. Podiam casar- se no registo civil,
se o desejassem, mas, ao reflectir no assunto, Antoine concluiu que
preferia ser casado por um padre.

Não tinha pensado no assunto. Não podemos ser casados por um rabino,
pois, para isso, terias de converter-te. Terias de estudar as Escrituras
Sagradas, o que poderia levar anos respondeu Beata, sensata. Duas
semanas de espera já lhes parecia uma eternidade. Nenhum deles estava
disposto a aguardar

anos para se casarem, sobretudo agora que viviam juntos e sob o mesmo
tecto. Antoine ficara acordado quase toda a noite, incapaz de dormir,
sabendo que ela estava ao lado, na cama que ambos iriam partilhar. Depois
de tudo por que haviam passado juntos, ansiava por torná-la sua.

O que achavas se fosses casada por um padre? perguntou Antoine,


honestamente, sem qualquer ideia de forçá-la, embora fosse essa a sua
preferência.
Não sei. Nunca pensei no assunto. Ser apenas casada pelo registo parece-
me um pouco triste, mas não tenho a certeza da importância de sermos
casados por um rabino ou por um padre. Sempre achei que apenas existia
um Deus e não me parece que haja muita diferença entre uma igreja e uma
sinagoga.

Aos olhos de Antoine, parecia uma ideia inovadora. Contrariamente à sua


família, Beata mostrava-se muito liberal na sua maneira de pensar.

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Durante o trajecto para casa falaram no assunto, bem como na hipótese de


ela se converter ao catolicismo. A jovem possuía uma espantosa abertura
de espírito e afirmou que o faria se fosse essa a vontade dele. Acreditava
na sua fé, mas amava Antoine acima de tudo. Se o facto de converter-se ao
catolicismo permitisse que casassem mais depressa, aceitava dar esse
passo

Enquanto discutiam, Antoine parou diante de uma igrejinha por trás da


qual se erguia um presbitério. Desceu do carro, subiu os antigos degraus e
bateu à porta. Uma placa indicava que o edifício, de pedra velha e
desgastada, datava do século x. Um padre de uma certa idade, em sotaina,
veio abrir e sorriu-lhe. Trocaram umas palavras enquanto Beata esperava,
depois Antoine acenou-lhe. A jovem saiu do carro e aproximou-se
timidamente, nunca tinha falado com um padre nem sequer vira algum de
perto, apenas se cruzara com eles na rua, mas este tinha um rosto e um
olhar bondosos

O seu noivo disse-me que querem casar-se declarou, enquanto os três se


mantinham sob o sol da manhã e o ar fresco da montanha

Havia um campo de margaridas mesmo por trás deles, bem como um


velho cemitério, onde as pessoas ainda eram enterradas. Também havia
uma pequena capela nas traseiras da igreja e um poço que datava do século
iv
Sim, queremos confirmou Beata, tentando não pensar no que os pais
teriam dito se a vissem a falar com um padre

Quase esperava que um raio a fulminasse, mas sentia ao mesmo tempo


uma serenidade e um bem-estar inesperados

Não é católica, segundo o que me pareceu compreender. Nesse caso,


precisará de alguma instrução religiosa, pois presumo que queira
converter- se

Beata sentiu um nó na garganta. Era estranho ouvi-lo pronunciar aquela


palavra. Nunca pensara que algum dia fosse outra coisa que não judia, mas
também nunca julgara vir a casar com um homem como Antoine E os seus
anteriores

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estudos religiosos haviam-lhe aberto a mente a outros dogmas. Supunha


que, com o tempo e a ajuda de Antoine, o seu coração cederia. Estava
disposta a converter-se por ele.

Podíamos colocá-la nas aulas de catequese com as crianças da região


continuou o padre, mas o último grupo acabou de fazer a sua primeira
comunhão e as aulas só recomeçarão no final do Verão. Ora, julgo saber
que querem casar-se dentro de duas semanas.

O padre olhou de relance para o braço ferido de Antoine e reparou na


inocência que o rosto de Beata revelava.

Antoine explicara-lhe que era francês e Beata alemã, que ele fora ferido na
guerra e que não tinham família, exceptuando os primos em cuja casa
moravam. Vincara ainda que Beata chegara da Alemanha no dia anterior e
desejavam regularizar a situação para não terem de viver em pecado.
Pedira ao padre que os ajudasse, e este acedera. Faria tudo o que pudesse.
Pareciam honestos e tinham claramente boas intenções, caso contrário não
viriam ao seu encontro.

Porque é que não entram e falamos lá dentro? sugeriu.

Antoine e Beata seguiram-no até ao interior de uma salinha sombria.


Havia um enorme crucifixo na parede e a luz provinha das velas. Num
canto via-se um nicho com uma estátua da Virgem Maria. O padre sentou-
se a uma pequena secretária usada e Antoine puxou duas cadeiras. Mau
grado o a mbiente soturno, a presença daquele padre sorridente
descontraiu- os.

Seria possível vir ver-me uma hora, todas as tardes, Beata?

Ela esboçou um aceno de cabeça prudente, pois ainda ignorava a


quantidade de trabalho que lhe exigiriam na quinta, ou se Antoine teria
tempo de vir trazê-la de carro à igreja. Caso contrário, precisaria percorrer
um longo caminho a pé, mas estava disposta a tudo por amor.

Sim acabou por responder, um pouco intimidada, sem saber


verdadeiramente o que o padre pretendia dela.

Então, penso que poderemos estudar tudo o que é necessário

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para a sua conversão. Por regra, prefiro que isso dure muitos meses, a fim
de ter a certeza de que tudo foi bem compreendido antes do baptismo.
Contudo, neste caso, acho que podemos andar mais rapidame nte. Por seu
lado, estudará e eu ensinar-lhe-ei tudo o que precisa de saber. Trata-se de
um passo importante na sua vida, mais importante ainda do que o
casamento. É algo maravilhoso abraçar a fé de Cristo!

Sim. Eu sei sussurrou Beata.! Os olhos da jovem ressaltavam no rosto


muito branco e, ao observá-la, Antoine achou que ela nunca lhe parecera
tão bonita.

E se eu não me sentir preparada? Quero dizer, para o baptismo?


acrescentou, pronunciando a palavra com dificuldade.

Nesse caso, terá de esperar até se sentir respondeu o padre, num tom
bondoso. Só pode casar- se com um católico, se se converter.

Nem sequer mencionou uma possível conversão de Antoine ao judaísmo,


nem de um casamento civil em vez de um religioso. Aos olhos do padre,
só um casamento celebrado numa igreja católica era válido. E, pelo pouco
que ele lhe dissera nessa manhã, Beata sabia que Antoine partilhava a
mesma opinião. Converter-se era mais um passo enorme que dava por ele,
mais um sacrifício que tinha de fazer. De qualquer maneira segundo os
dois haviam concluído não era prático para ele converter-se ao judaísmo.
Os estudos necessários levariam anos e, mesmo que estivesse nessa
disposição, não havia um rabino por perto. Por todos estes motivos de
ordem prática e outros, tal conversão não faria sentido.

Além disso, Beata achava que seria demasiado pedir-lhe isso. Sentia que
só lhe restava converter-se para casar com Antoine e ver a sua união
abençoada aos olhos de uma religião, neste caso a dele. Enquanto escutava
o padre, sentiu que era esse o seu desejo. A Bíblia sempre a intrigara.
Gostava das histórias que falavam de Jesus e os santos fascinavam-na.
Talvez fosse um sinal. E, embora não conhecesse outra religião, Beata
nunca tivera a certeza de estar profundamente

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ligada ao judaísmo. Sentia-se disposta a renunciar à sua fé por Antoine e a


abraçar a religião católica. Achava que era seu dever como mulher dele.
Desde o início que o amor dos dois lhes exigia sacrifícios e a sua
conversão era mais um. Conversaram uma meia hora com o padre e Beata
prometeu voltar na tarde seguinte. Ele assegurara-lhe que dentro de duas
semanas estaria pronta para a conversão e o casamento. Acompanhou-os à
porta e ficou a acenar-lhes, enquanto se afastavam. Antoine conduzia
facilmente com a mão direita, mantendo os dedos da esquerda pousados no
volante.

Então, o que achas? perguntou Antoine. Parecia preocupado e convencido


de que estava a pedir-lhe demasiado. Se Beata recusasse converter-se, ele
entenderia e contentar-se-ia com um casamento civil. Não queria, de
forma alguma, que ela fizesse algo que fosse contra a sua crença. Não
fazia ideia da importância que a religião tinha aos olhos de Beata, nem a
que ponto cumpria as tradições judaicas. Sabia apenas que a família era
judia ortodoxa, o que explicava por que é que lhes parecia tão impensável
que a filha casasse fora da sua fé. Contudo, ignorava até que ponto Beata
era crente e que desgosto poderia sentir ao renunciar à sua fé por ele.

Acho-o um homem simpático e será interessante estudar com ele


respondeu Beata, delicadamente. Antoine sentiu-se aliviado ao constatar
que a jovem não parecia angustiada. Mostrava- se inacreditavelmente
calma ante a decisão tomada, como sempre que uma mudança ocorria na
sua vida.

O que sentes ante a ideia de te converteres? Ninguém te obriga, Beata.


Podemos casar simplesmente na mairie. Já renunciaste a demasiado por
minha causa replicou Antoine, que sentia um profundo respeito pela
jovem.

Também tu assinalou ela, honestamente, após o que se calou um longo


momento, fitando a paisagem através da janela. Creio que prefiro casar-
me pela igreja, em especial se significa muito para ti retomou, virando-se
para ele, com um brilho no olhar.

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É muito generoso da tua parte retorquiu Antoine, desejando poder tirar a


mão do volante e abraçá-la, o que, obviamente, era impossível. Amo-te,
sabes? E os nossos filhos? Queres que sejam judeus ou católicos? Caso
tudo se tivesse passado normalmente, teriam colocado este tipo de
questões ao longo dos meses, mas, dadas as circunstâncias em que se
encontravam e a distância que os separara, nunca lhes restara tempo ou
oportunidade de falar nelas. Beata reflectiu demoradamente e, em seguida,
fitou-o com uma expressão muito séria. Levara muito a peito a discussão
dessa manhã. Tratava-se de uma decisão importan tíssima.

Se eu vou tornar-me católica, e tu já o és, os nossos filhos também devem


sê-lo, não achas?

Era o que parecia mais lógico a Beata, que nunca se sentira tão
profundamente ligada à religião judaica como os pais. Frequentava a
sinagoga para lhes agradar e porque era essa a tradição. Pelo contrário,
sempre se sentira intrigada e fascinada pela Bíblia e estava convencida de
que, após o casamento com Antoine, desenvolveria, a seu tempo, um elo
com o catolicismo. Assim o esperava.

Antoine assentiu com a cabeça, reconhecido. Compreendia, agora, o


motivo da violenta oposição dos pais de Beata ao casamento deles. A
simples ideia de terem netos católicos devia surgir-lhes como um
verdadeiro pesadelo.

Tornar-se-ia muito complicado se os pais tivessem religiões diferentes


retomou Beata, embora, pelo que li, não ache que as nossas crenças
divirjam assim tanto.

Antoine estava de acordo. Ao aproximarem-se da herdade, sentiram que os


invadia paz e unidade. Logo que saiu do carro, ele rodeou-lhe a cintura
com um braço e foram almoçar com os Zuber.

Falaram a Walther e Maria sobre o encontro com o padre, a visita ao


registo civil e as lições de catequese de Beata durante as próximas duas
semanas. Ela desculpou-se por ter de se ausentar todas as tardes, mas
Maria achou que as notícias eram maravilhosas. Interrogara-se sobre o que
iriam fazer,

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quando Antoine lhes explicara que Beata era judia. Aos seus olhos, a
conversão de Beata constituía uma magnífica prova de amor, o que se
apressou a comunicar à jovem, quando ficaram a arrumar a cozinha e os
homens se levantaram da mesa.

Tudo isto deve parecer-lhe muito estranho declarou Maria, num tom de
compaixão.

Tratava-se de uma mulher maternal, com um físico generoso, sem


qualquer experiência ou interesses mundanos. Viera para a herdade quando
casara com Walther, aos dezanove anos. Ele comprara a terra dois anos
antes e esforçara-se muito. Depois, Maria tivera os filhos, trabalhara,
amava o marido e ia à igreja. Embora fosse inteligente e lesse muito,
levava uma vida muito simples, a anos-luz da grande e elegante casa onde
Beata crescera e das roupas e jóias usadas pela mãe e por Brigitte. Na
verdade, imaginá-las aqui era impossível, e Beata não conseguiu reprimir
um sorriso ao pensar como a sua vida de casada e a da irmã seriam
diferentes.

Antoine e ela não planeavam ficar eternamente na Suíça, antes desejavam


regressar a França ou à Alemanha, dependendo de qual das duas famílias
cedesse e onde estivessem as melhores oportunidades. Se não voltasse a
gerir as suas propriedades em Dordogne, Antoine ignorava o que faria.
Contudo, depois da guerra, e com todas as inevitáveis mudanças dela
resultantes, muitos outros estariam em situações idênticas, obrigados a
reconstruir uma nova vida noutros lugares. Era um novo começo para eles
e B eata sentia-se contente por estar ali.

Não, não é estranho respondeu Beata, num tom calmo. É apenas diferente.
Não estou habituada a estar longe da minha família.

Sentia uma falta terrível da mãe, sem esquecer que ela e a irmã sempre
haviam sido inseparáve is, mas com o casamento de Brigitte e a mudança
dela para Berlim, tudo teria sido diferente de qualquer maneira. O que
mais a desgostava eram as circunstâncias dramáticas em que se apartara
da família.

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Para Beata, isso ainda constituía uma ferida aberta, e Maria não tinha
dificuldade em imaginar que assim se manteria por muito tempo. Esperava
que as duas famílias acabassem por recuperar a sensatez e lhes
perdoassem as escolhas feitas. Antoine e Beata eram dois jovens
encantadores, mas Maria sabia que sofreriam no futuro, caso as famílias
não os aceitassem. Entretanto, Walther e ela sentiam-se encantados com o
seu papel de substitutos dos pais. Além de que tê-los ali era igualmente
uma bênção.

Tencionam ter filhos em breve? inquiriu Maria, curiosa.

Beata corou, sem saber o que responder. Ignorava se era possível controlar
este tipo de assunto e sempre achara que uma criança nascia quando Deus
o decidia. Ignorava também se havia algum meio de impedir ou controlar
as gravidezes além de que não conhecia Maria o suficiente para lhe
perguntar.

Acho que sim acabou por dizer, com um ar envergonhado, guardando os


pratos lavados no armário. Que seja o que Deus quiser!

Ao pronunciar as palavras, interrogou-se sobre se Brigitte também teria


filhos em breve. Não imaginava a irmã com filhos. Ela ainda era tão
criança, mesmo com dezoito anos! Aos vinte e um, nem ela própria se
sentia pronta para as responsabilidades da maternidade e do casamento.
Tinha consciência de que, com a idade de Brigitte, não seria capaz de
enfrentar tudo isso. Contudo, naquele momento, sentia- se à altura da
tarefa.

Será uma maravilha ter um bebé aqui! exclamou Maria, alegremente,


enquanto servia uma chávena de chá a cada uma.
Era raro ver os netos, pois viviam longe e tanto ela como Walther não
podiam dar-se ao luxo de abandonar a herdade. A ideia de um bebé por
perto se eles ainda estivessem a morar ali quando esse nascesse alegrava-
lhe o coração e os olhos ganharam brilho. Pelo seu lado, Beata tinha
dificuldade em conceber essa realidade. De momento, só pensava em
receber

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as suas aulas de catequese e no seu casamento dentro de quinze dias. Além


disso, ignorava o que pensar ou esperar. Asua única certeza residia no
amor que tinha por Antoine e não lamentava nada do que fizera e do que
abandonara por ele.

Maria e Walther respeitavam-na profundamente por esta lealdade. A


determinação e o encanto da jovem agradavam-lhes. Maria sentia-se cada
vez mais próxima dela, de dia para dia. O casal sempre tinha gostado
muito de Antoine, embora pouco o tivesse visto nos últimos anos, mas não
lhes custara decidir quando lhes perguntara se podiam ir para a herdade.

Maria apenas lamentava que, dadas as suas nacionalidades, não pudessem


ficar para sempre. Mais cedo ou mais tarde, depois do final da guerra, o
governo suíço pediria que saíssem. A Suíça era um país de asilo, mas
quando os países de cada um estivessem em paz e com as fronteiras
abertas, teriam de regressar à terra natal. Contudo, dada a situação após
dois anos de conflito, quem sabia quando tal aconteceria? De momento, ao
abrigo das montanhas, o jovem casal estava a salvo e em segurança.

Beata achou as aulas com o padre André absolutamente fascinantes.


Faziam-lhe lembrar o que estudara sozinha da Bíblia, embora o que ele lhe
ensinava se centrasse mais no catolicismo. Falou-lhe do calvário, da
Virgem Maria, da Santíssima Trindade, ensinou-lhe as orações e a recitar o
rosário. Explicou-lhe os sacramentos e a importância da comunhão. Beata
fazia-lhe constantes perguntas, que provavam ao padre como ela havia
reflectido no assunto. As ideias e conceitos cristãos nunca pareceram
chocá-la ou perturbá-la e assinalava-lhe, muitas vezes, intrigantes
semelhanças com a sua própria religião. Era uma jovem com um espírito
arguto, de um profundo apreço pela religião e pela filosofia e um coração
bom e generoso.

Durante as duas semanas que passaram juntos a estudar a religião, o padre


André criou uma enorme amizade pela jovem. Todos os dias, ela trazia-lhe
qualquer coisa da herdade,

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70

juntamente com os cumprimentos dos Zuber. Até o fez rir quando lhe
contou como fora aprender a mungir uma vaca. Beata ria, aliás, todas as
manhãs, pensando em Brigitte a tentar uma experiência semelhante. A
única coisa que a entristecia profundamente era a saudade da mãe. E o pai
também lhe faltava, apesar da sua posição inflexível face ao seu
casamento. Preocupava-se também com os irmãos. O facto de se encontrar
longe de casa e de ter partido sob a raiva do pai, não punha em causa o seu
amor por eles. Nem sequer lhes tinha raiva; sentia-lhes simplesmente a
falta. Confiara a questão ao padre André e este ficara impressionado com a
sua bondade e capacidade de perdão. Beata parecia não estar ressentida,
apesar de, no fundo, eles a terem expulso. Uma tarde, o padre fez-lhe o
mais belo cumprimento ao dizer-lhe que, se ela não tivesse nascido numa
outra religião e não estivesse à beira de casar, daria uma freira fantástica.
Antoine não se sentiu tão emocionado como ela pelo elogio, quando Beata
lho repetiu nessa noite.

Deus do céu! Espero que não esteja a tentar recrutar-te! Tenho outros
planos para ti retorquiu, dando súbita mostra de uma enorme
possessividade.

Também o espero, mas foi, mesmo assim, gentil da parte dele disse Beata,
lisonjeada com as palavras do velho padre e Maria concordou.
Pouco me interessa que seja ou não delicado prosseguiu Antoine no
mesmo tom desaprovador e parecendo nervoso. Não quero freiras na
minha família. Sempre achei que levavam uma vida triste. As pessoas
foram feitas para casar e ter filhos.

Talvez nem todas. Algumas pessoas não são feitas para o casamento ou
para terem filhos discordou Beata, francamente.

Ainda bem que tu és replicou Antoine, inclinando-se para a beijar, o que


provocou um sorriso em Maria.

Antoine trabalhava duramente na herdade com Walther e, nessa noite,


quando lhe substituiu o penso, antes do jantar, Beata reparou que a ferida
melhorara, embora o braço continuasse

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rígido e sem a capacidade desejada. Contudo, Antoine estava a sair-se


muito bem, mesmo com um único braço válido. Aos olhos de Beata tinha a
beleza de sempre. A jovem respondeu ao beijo com um sorriso, um pouco
embaraçada, como de cada vez que ele falava em ter filhos e lhe recordava
as novas descobertas do futuro.

Na manhã do baptismo, Maria, Antoine e Beata, a caminho da igreja,


pararam na maire. Um funcionário, com uma expressão mal-humorada,
realizou a breve cerimónia civil que constituía o preâmbulo legal ao
casamento religioso previsto para o dia seguinte. Para Beata foi uma
sensação maravilhosa, a de sair da mairíe, sabendo que, aos olhos da lei, já
era mulher de Antoine, tal como se tornaria aos de Deus, no dia seguinte.

Só Maria e Antoine acompanharam Beata à igreja para o seu baptismo.


Walther tinha demasiado trabalho na herdade. Foi uma cerimónia breve e
simples. Beata professou a sua fé e a sua lealdade à Igreja Católica, na
presença de Antoine e Maria, o seu padrinho e a sua madrinha, que
juraram em seu nome renunciar ao diabo e ajudarem-na a viver a sua fé no
futuro.

Depois do baptismo, Beata, em lágrimas, recebeu a comunhão pela


primeira vez. Tudo isto representava muito mais para ela do que esperara e
ultrapassava tudo o que experimentara no judaísmo até esse momento.
Sempre se aborrecera imensamente na sinagoga. Eram obrigados a ficar
sentados durante horas seguidas, e a segregação entre homens e mulheres
sempre lhe desagradara. O facto de não existirem mulheres rabinos
também lhe parecia muito injusto. O pai irritava-se sempre que ela
expressava esta opinião e respondia severamente que era mesmo assim.
Ficara também desiludida ao saber que não havia mulheres sacerdotes,
mas, pelo menos, havia freiras.

Também Brigitte considerava o judaísmo ortodoxo demasiado severo e


declarara que, quando se mudasse para Berlim com Heinrich, deixaria de
seguir as estritas regras alimentares ortodoxas, pois o futuro marido e a
sua família também

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não as observavam. Contudo, nunca se atrevera a fazer esta confissão aos


pais. Embora não chegasse ao ponto de considerar estas regras ridículas,
como Brigitte, havia certos aspectos do judaísmo que Beata sempre
desaprovara.

E verificou, surpreendida, que a ideia de ser católica a encantava. Era uma


outra forma de estar mais próxima e mais em harmonia com Antoine.
Achava mesmo fácil acreditar em milagres, como o da Virgem Maria e o
nascimento de Jesus. Ao sair da igreja, sentia-se diferente, mais leve,
como que transformada, brindando Antoine com um rosto radioso e um
enorme sorriso. Entre a cerimónia do casamento civil e o baptismo, fora
um dia extraordinário.

Continuo a lamentar que não queira ser freira zombou o padre André.
Acho que, com um pouco mais de estudo e sobretudo tempo para descobrir
a sua vocação, teria sido fantástica acrescentou.

Então, fico satisfeito por apenas a ter tido duas semanas retorquiu Antoine,
nervoso.

A ideia de perder a jovem esposa por quem tanto lutara para o convento
horrorizava-o, apesar de saber que o padre não era mal- intencionado.

Ao saírem da igreja, prometeram voltar no dia seguinte, para o casamento.


Tinham os documentos em ordem. O casamento civil permitia-lhes que
casassem igualmente pela igreja. À noite, depois de ter festejado o seu
baptismo com um bom jantar, Beata retirou-se cedo para o quarto. Era a
última noite que passaria só na cama e, nessa noite, ainda tinha de
trabalhar num projecto secreto.

Quando partira da Alemanha, não trouxera nada que pudesse servir-lhe de


vestido de casamento. Apenas trouxera] roupa prática, adequada ao
trabalho na herdade. Contudo, Maria oferecera-lhe duas lindíssimas
toalhas de renda, um pouco gastas pelo tempo, que lhe tinham sido dadas
pela avó. Beata não se importou nada e, sempre que não estava a estudar o
seu catecismo, a mungir vacas ou a ajudar Maria a preparar as refeições,
passava o tempo no quarto, a coser a toda a pressa.

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73

O vestido de casamento que fizera com as duas toalhas estava quase


acabado. Conseguira cortá-las de maneira a que a renda lhe tapasse o
peito, os ombros e os braços e só lhe restava tecido bastante para um
chapelinho com um véu. Além disso, como era baixa, conseguira
acrescentar uma pequena cauda. O vestido era plissado no peito, ajustava-
se perfeitamente à sua cintura fina e alargava em baixo, sendo embelezado
pela renda. Cortara todos os pedaços usados e fizera uma verdadeira obra-
prima.

Maria, que ainda não o vira, esperava algo simples e talvez um tanto
desajeitado, pois, na sua opinião, pouco podia fazer-se com duas toalhas
antigas. Não fazia ideia do talento de Beata, nem da sua habilidade com a
agulha.

Antoine concordara apresentar-se na igreja uma hora antes da cerimónia, a


fim de não se cru zar com Beata. Ela queria surpreendê-lo, quando
percorresse a nave da velha igreja de pedra para se lhe juntar no altar.

Antoine ignorava porque é que ela recolhia tão cedo ao quarto todas as
noites e achava que se sentia simplesmente exausta pelo rigor dos
trabalhos da herdade. A própria Maria ignorava que Beata passara mais do
que uma noite a coser até de manhã e, mesmo assim, cumprira as suas
obrigações no dia seguinte, sem ter dormido, a fim de poder terminar o
vestido a tempo. O vestido de casamento era o mais bonito que ela alguma
vez costurara, digno de uma colecção parisiense; se o tivesse feito de
cetim e seda em vez de renda fina, estaria à altura de um casamento
importante, como considerava que o seu era. Apesar da fragilidade do fino
tecido de linho, era um vestido divino, mais adaptado a esta igreja simples
na montanha, do que o seria um mais elaborado.

Meu Deus! exclamou Maria, sustendo a respiração, ao vê-la sair do quarto.


Onde arranjou esse vestido? Antoine levou-a a Lausana?

Claro que não riu-se Beata, encantada com o efeito produzido na


madrinha, que começara a chorar de emoção.

Fi-lo com as toalhas que me deu. Há duas semanas que ando a costurá-lo
todas as noites. 79

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Incrível! Eu nem com dois anos de trabalho conseguiria fazer algo assim!
retorquiu Maria, que nunca vira nada que pudesse comparar-se àquele
vestido. Beata assemelhava-se a uma princesa de um conto de fadas.
Estava uma noiva lindíssima. Quem lhe ensinou a costurar assim? quis
saber.
Ninguém. Dá-me prazer. Costurava muito para a minha mãe e para a
minha irmã e sempre preferi fazer os meus] próprios vestidos, em vez de
comprá- los.

Mesmo assim! Um vestido destes! elogiou Maria, obrigando Beata a rodar


sobre si própria para que pudesse admirar o véu e a cauda. Espere até que
Antoine a veja! Vai desmaiar na igreja!

Espero que não desejou Beata, sentindo-se no sétimo céu.

Também Walther ficou estupefacto ao vê-la. Ajudou a mulher a dispor


cuidadosamente o vestido e a cauda em redor de Beata, nas traseiras do
carro, e eles subiram para o banco da frente. Beata sentia-se um pouco
culpada por ter obrigado Antoine a ir a pé até à igreja, mas não quisera que
a visse antes e mantivera-se no quarto durante toda a manhã,! até ele sair.
Pensava que se não a visse, lhes traria sorte. Ainda lhe custava acreditar
que chegara o dia do casamento e desfizera-se em lágrimas enquanto se
vestia, sentindo enormemente a falta da mãe. Nunca lhe ocorrera que, um
dia, se casaria sem ela ao lado, nem o pai para a conduzir ao altar.!

Os Zuber também haviam fornecido as alianças. Eram simples e usadas.


Walther dera a Antoine a aliança do pai, que tinha guardado numa caixa e
que cabia perfeitamente no anelar da mão esquerda de Antoine. Walther
pusera-a no bolso, juntamente com a aliança da bisavó de Maria, um fino
anel em ouro, guarnecido de pequenos diamantes e tão pequena que
nenhuma mulher da família conseguira pô-lo. Servia a Beata como se
tivesse sido feito por medida. No interior da aliança estavam gravadas as
palavras Mon coeur à toi, o meu coração é teu.

Por fim, num gesto de grande generosidade, Walther e

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75

Maria dormiriam em casa de amigos nessa noite, a fim de deixarem a casa


aos jovens recém- casados. Walther pusera no frigorífico uma garrafa de
champanhe que guardara durante anos, desde o casamento do filho, e
Maria preparara-lhes um verdadeiro festim. Achava que era o mínimo que
podia fazer por eles e agira ternamente. Queria mimá-los ao máximo, pois
sabia que não era este o casamento que nenhum deles teria, caso tivessem
permanecido com as suas famílias, nos seus mundos. Apesar de tudo o que
tinham perdido, ambos sabiam que haviam ganho muito e eram um do
outro. Para Antoine e Beata, isso valia todas as riquezas do mundo,
embora fosse difícil sobretudo num dia como este deixar de pensar no que
ficara para trás.

Os habitantes da aldeia iam a sair da missa, quando Beata e os Zuber


chegaram. Antoine esperava na sacristia, como Beata lhe pedira. Ao vê-la,
as pessoas ficaram extasiadas ante a beleza da noiva e do vestido. Com os
cabelos escuros debaixo do chapelinho de renda, a pele muito branca, e os
imensos olhos azuis, Beata parecia uma princesa de conto de fadas. Nunca
tinham visto uma noiva tão bonita. O próprio padre André ficou
boquiaberto e teve de concordar que ela dava uma noiva muito mais bonita
do que uma freira. Também nunca vira uma noiva tão encantadora.

Alguns momentos mais tarde, os olhos do velho padre brilhavam de


malícia, quando conduziu Antoine ao altar, dizendo-lhe que se preparasse
para uma surpresa. Antoine não fazia a mínima ideia do significado das
palavras do padre, até o organista começar a tocar a música que escolhera
com Beata e a ver franquear a ombreira da porta pelo braço de Walther.

Beata caminhava com a graciosidade de uma jovem rainha e os pés mal


pareciam tocar no chão. Calçava o único par de sapatos de noite que
trouxera, de cetim bege com fivelas de marfim. Contudo, Antoine não
esperava um vestido daqueles. Interrogara-se sobre o que ela levaria e
agora, ao vê-la, julgou que tivesse trazido o vestido consigo, de Colónia.
Parecia ter sido feito em Paris, antes da guerra. Uma vez 81

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passado o efeito surpresa, apenas conseguia ver Beata. Mergulhou os olhos


bem fundo nos dela, enquanto as lágrimas lhe corriam pelas faces. Depois,
Maria levantou o véu de fina renda, revelando o rosto de Beata, banhado
de lágrimas de ternura e de alegria. Nem ela nem ninguém presente na
igreja alguma vez haviam visto uma jovem mulher tão bonita.

Beata voltou a chorar quando trocaram os votos; as mãos tremiam-lhe


quando Antoine lhe colocou a aliança e ela também lhe pôs a aliança no
anular esquerdo, de forma a não o magoar. Quando o padre os declarou
marido e mulher e Antoine a atraiu a si para a beijar, soube que nunca se
sentira tão feliz. Antoine só a soltou relutantemente, a fim de poderem sair
da igreja para o sol de Verão. Habitantes das herdades vizinhas tinham
ficado depois da missa para os aguardar no exterior da igreja e rever a
bonita noiva. Ninguém esqueceria a beleza de Beata nesse dia e muito
menos Antoine.

Os Zuber e o padre André foram almoçar com eles e, à tarde, Maria e


Walther foram levar o velho padre à igreja, antes de partirem para casa dos
amigos. Antoine e Beata mantiveram-se na ombreira da porta a vê-los
afastar-se. Depois, viraram-se um para o outro; estavam, finalmente, sós.
A viverem tão de perto com Walther e Maria, não lhes acontecia muitas
vezes, mas, pelo menos, partilhariam doravante o mesmo quarto.

De momento, tinham a casa para eles, o que era um magnífico presente


que o velho casal lhes oferecera. Esta noite de intimidade, na pequena
herdade, no coração dos Alpes, seria a sua única lua-de-mel, mas era tudo
o que desejavam. Apenas queriam estar juntos e sabiam que a magia desse
dia jamais se apagaria da sua memória. Àluz daquele final de tarde,
Antoine fitou Beata com amor. Esta ainda não tirara o vestido de
casamento, e ele desejou que pudesse usá-lo eternamente. A jovem passara
um tempo imenso a costurar para o pôr apenas umas horas, mas era assim
com todas as noivas. Por outro lado, poucas delas seriam capazes de criar
um vestido daqueles. Sem deixar de admirar a maneira como lhe moldava
a elegante figura, Antoine seguiu a mulher até dentro de casa.

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Sentaram-se na sala de estar e falaram tranquilamente durante algum


tempo, após o que Antoine encheu duas taças de champanhe. Havia muito
tempo que Beata não bebia excepto o pouco que levara aos lábios durante
o casamento da irmã, há umas semanas, por isso sentiu a cabeça à roda ao
primeiro gole. Ainda lhe era difícil acreditar que a vida deles mudara em
tão pouco tempo. Há um mês jamais teria imaginado que viveria numa
herdade na Suíça, casada com Antoine. Era um sonho tornado realidade
para ambos, mesmo que tivessem sido obrigados a atravessar momentos
terríveis para chegar ali. Contudo, os sofrimentos passados já pareciam
desvanecer-se e dar lugar ao mais importante: partilhar a vida com
Antoine. Passaram a tarde a falar, de mãos dadas. Não tinham pressa de
consumar o casamento e Antoine

não queria assustá-la. Sabia que era um grande passo na sua vida e
desejava que tudo se passasse pelo melhor. Não havia pressa, contudo
nenhum deles tinha fome. Ao pôr do Sol, estavam sentados na sala a
beijarem-se, enquanto o champanhe começava a produzir efeito e tanto
Antoine como Beata deixaram de conseguir resistir. Há onze meses que
aguardavam este momento, desde que se tinham conhecido em Agosto do
ano anterior. O incidente junto ao lago parecia-lhes muito distante. Agora,
estavam casados. Era tudo o que tinham sonhado e desejado desde o
primeiro dia.

Apesar do braço ferido, Antoine conseguiu erguê-la e transportá-la


meigamente até ao quarto. Pousou-a depois com suavidade em cima da
cama e começou a despi-la lentamente. Ignorava se ela queria que a visse
nua, mas a jovem não pareceu mostrar receio ante o procedimento. Uns
momentos mais tarde, Antoine colocou cuidadosamente o vestido em cima
da única cadeira do quarto, antes de lhe tirar devagar a delicada roupa
interior de cetim e renda que Beata confeccionara uns meses antes e
trouxera consigo. Enquanto o marido a observava, ela susteve a respiração.
Assemelhava-se a uma boneca de porcelana quando Antoine começou a
beijá-la suavemente.

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Com as mãos trémulas, ela pôs-se, pelo seu lado, a despi-lo. Ignorava o
que estava a fazer ou o que Antoine esperava dela. As vagas noções sobre
o acto amoroso vinham de Brigitte, que sempre se interessara mais do que
ela sobre o que se passava, ou era suposto passar-se, entre os sexos. Beata
aproximou-se simplesmente dele com a sua inocência e amor e, quando
Antoine a tomou nos braços e começou a fazer amor, terno e atento, ela
descobriu uma paixão e plenitude com que nunca sonhara. Depois de fazer
amor, ele deitou-se ao seu lado e tomou-a nos braços, traçando
meigamente com os dedos os contornos do seu corpo. Nessa noite falaram
durante horas, voltaram a fazer amor e, desta vez, foi ainda melhor.

Por fim, à meia-noite, famintos, devoraram a refeição preparada por


Maria. Antoine disse que nunca sentira tanta fome em toda a vida e Beata,
vestida com a camisa de noite que Maria lhe dera como presente de
casamento, desatou a rir. Estavam sentados à mesa da cozinha, quando
Antoine começou a beijá-la apaixonadamente. Continuando a cobri-la de
beijos, fez-lhe deslizar a camisa de noite dos ombros e admirou-lhe a
beleza, não ousando acreditar numa tal felicidade. Tão-pouco Beata. Nada
na sua noite de casamento fora uma desilusão.

Achas que fizemos um bebé, esta noite? perguntou Beata, enquanto roía
alegremente um osso de galinha. Imagino que é assim, excepto se não me
tiveres mostrado tudo.

Sentia-se repentinamente adulta, após todos os mistérios que descobrira.

É possível respondeu Antoine com um sorriso. É o que queres, Beata? Não


seria demasiado cedo? E se for? quis saber ela, intrigada.

Se quiseres esperar, há coisas que podemos fazer, depois desta noite, para
impedir que isso aconteça demasiado cedo.

Pelo seu lado, Antoine não se importaria nada se fosse o caso, mas não
queria pressioná-la. Se ela não quisesse engravidar

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já, estava disposto a esperar, pois a única coisa que contava aos seus olhos
era torná-la feliz para o resto da vida.

Não quero esperar declarou Beata, docemente, inclinando-se para o beijar.


O meu único desejo agora é ter um filho teu.

Então, vejamos o que podemos fazer para te contentar reagiu Antoine.

Levantaram a mesa, lavaram a louça, arrumaram-na e depois beberam uma


última taça de champanhe. Nessa altura, já tinham praticamente despejado
a garrafa. Em seguida, ele levou-a outra vez para a cama e voltaram a
fazer amor. Foi a noite de casamento perfeita para ambos. Quando o Sol se
ergueu por cima dos Alpes, Beata soltou um suspiro de satisfação, antes de
adormecer nos braços dele,

mais apaixonada do que alguma vez sonhara.

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CAPÍTULO 5

O casamento de Antoine e Beata permaneceu uma recordação maravilhosa


não só para eles, mas para todos os que os tinham visto nesse dia. Na
aldeia, o vestido de casamento foi motivo de conversa durante meses.
Maria ajudou Beata a guardá-lo cuidadosamente numa caixa forrada de
seda, para o proteger, onde deixou secar algumas das flores do buqué.
Após pensar no assunto durante uns dias, resolveu escrever à mãe e à irmã.
Sabia que, nessa altura, Brigitte estaria em Berlim e desejava contar- lhe
como fora o seu casamento e dizer-lhe que continuava a amá-la. Queria
dizer à mãe que estava bem, que lamentava as terríveis circunstâncias do
dia em que se viera embora e também quanto ela lhe faltara no dia do
casamento.

Duas semanas mais tarde, as cartas foram-lhe devolvidas por abrir. A de


Brigitte não trazia nenhuma inscrição especial, apenas o carimbo ”morada
desconhecida”. Indicava-lhe que a irmã, ainda que em Berlim, não se
atrevia a desobedecer ao pai. E a carta da mãe foi devolvida com a
indicação

de ”devolvida ao remetente” com a caligrafia cuidadosa do pai. Nenhum


dos dois queria qualquer contacto com ela. Ocultou as lágrimas a Antoine
durante dois dias antes de lhe contar o que acontecera.

Ainda é muito recente retorquiu ele num tom meigo. Dá-lhes tempo. Podes
voltar a escrever- lhes daqui a uns meses. Até lá, as coisas terão acalmado.

Ele próprio não escrevera aos pais. Ainda continuava furioso ante a
posição que tinham tomado e não sentia qualquer desejo de contactar com
o irmão. Contudo, era mais velho do que Beata e muito mais ressentido do
que ela.

Não conheces o meu pai replicou Beata, tristemente. Jamais me perdoará.


Disse-me que ele e a mamã fariam o shiva por mim.

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Explicou que tal significava a vigília pelos mortos, e Antoine ficou


profundamente chocado. Em seguida, acrescentou:

Só queria dar à mamã e a Brigitte a novidade do casamento e dizer-lhes


que as a mo.

Beata nunca se atreveria a escrever ao pai; mesmo assim, escrever às


mulheres da família também não a conduzira a parte alguma. Elas
respeitavam-no e temiam-no demasiado para se atreverem a desafiá-lo. Só
ela o fizera e sabia que o pai nunca lhe perdoaria, mas esperava que as
outras o fizessem. Antoine reconfortou-a o melhor que pôde. Como todos
os recém-casados, faziam amor todas as

noites. Esforçavam-se por serem discretos e não incomodarem os Zuber,


mas viviam muito próximo, tanto que Maria, uma manhã, ouviu Beata a
vomitar na casa de banho, seis semanas após o casamento.

Está bem? inquiriu, preocupada, através da porta. Os homens tinham


partido ao romper da aurora e as duas mulheres estavam sozinhas. Beata
preparava-se para ir mungir as vacas quando sentira os enjoos ao entrar na
cozinha. Dez minutos depois, a pele tinha um tom esverdeado.

Lamento desculpou-se, sentando-se. Deve ter sido qualquer coisa que


comi. Ontem, o Antoine trouxe-me todas aquelas amoras e já de noite me
senti mal. Mas não lhe disse nada para não o magoar. Tem a certeza de que
são as amoras? replicou bondosamente Maria, que não estava nada
surpreendida com a má disposição de Beata.

Sim. Acho que sim.

Em seguida, Maria fez-lhe algumas perguntas pertinentes e riu-se ante as


respostas inocentes da jovem mulher.

Se a memória não me falha, minha querida, acho que está grávida.

A sério? retorquiu Beata, surpreendida, o que provocou um largo sorriso


em Maria.

Sim, mas espere até ter a certeza antes de dizer ao seu marido.

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Maria achava que não valia a pena preocupar Antoine inutilmente ou dar-
lhe falsas esperanças. Sabia que os homens tinham reacções estranhas a
este género de notícia e mais valia dizer-lhes depois de se ter a certeza

E quando será isso?

Daqui a uma ou duas semanas, se não acontecer nada e continuar a sentir-


se enjoada

Beata saiu, de sorriso nos lábios, para mungir as vacas, mas à tarde estava
tão cansada que regressou a casa, após cumprir as suas tarefas, e dormiu
duas horas antes do jantar

A Beata está bem? perguntou Antoine a Maria, com um ar preocupado, ao


chegar

A mulher costumava mostrar-se sempre tão animada, mas nos últimos


tempos só queria dormir. Interrogava-se sobre se seria porque a mantinha
acordada até tarde a fazer amor durante a noite, mas não conseguia ficar
deitado ao lado dela sem lhe tocar

Está óptima. Só apanhou um pouco de sol, pois andou todo o dia lá fora a
colher fruta para mim respondeu Maria, discreta quanto às náuseas e as
sestas de Beata, mas considerando-a mesmo assim uma trabalhadora
incansável e uma ajuda preciosa

Ao cabo de duas semanas, Beata teve a certeza de que estava grávida.


Nada acontecera que lhe provasse o contrário e já não conseguia abotoar a
saia na cintura, para nem mencionar os constantes enjoos. Um domingo à
tarde, quando andava a passear com Antoine, ergueu o rosto na sua
direcção e sorriu- lhe misteriosamente. Ele devolveu-lhe o sorriso,
interrogando-se sobre em que é que a mulher estaria a pensar. A vida ao
lado dela era um permanente mistério, mas deliciosa

Tens o ar de uma mulher com um segredo replicou, fitando-a com orgulho,


feliz por estar casado com ela e pensando no futuro que os esperava

Tenciono partilhá-lo contigo respondeu num tom meigo, enfiando a mão


no braço de Antoine. Estava um dia fantástico e decidiram ir a pé até à
igreja, em vez de levarem o carro. Corria o final de Agosto e, segundo os
seus cálculos,

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engravidara na noite de núpcias, mas Antoine não suspeitava de nada.


Vamos ter um bebé acrescentou, fitando-o com olhos maravilhados.

Estás a falar a sério? Mas como é que isso aconteceu? perguntou,


estacando de imediato. Beata desatou a rir.

Quando regressarmos a casa, explico-te, ou talvez deva mostrar-te como


fizemos para que te recordes troçou, sempre a rir.

Não era o que queria dizer replicou, troçando da sua própria patetice,
embora me sinta encantado com a ideia de me refrescar a memória,
Madame de Vallerand. Adorava pronunciar o seu novo nome e ela também
achava que lhe ficava bem. Apenas queria saber quando e como o
soubeste? Tens a certeza? Quando é que vai nascer?

De súbito, o rosto ensombrou-se e acrescentou, preocupado:

Achas que não te faz mal andar?

Queres levar-me ao colo até casa? retorquiu Beata, troçando dele


meigamente. Sinto-me bem, à excepção de uns enjoos nos últimos tempos,
mas a Maria diz que é normal. Recordo-me de ouvir falar de raparigas que
conheço, que ficaram terrivelmente doentes durante meses e incapazes de
sair do quarto. Contudo, tinha a certeza de que, com o ambiente saudável
que os rodeava e a vida calma que levavam, os enjoos passariam
rapidamente. Já se sentia um pouco melhor. As primeiras semanas haviam
sido terríveis, mas, agora, estava tão excitada com o que se passava, que
nem pensava nisso.

Julgo que aconteceu na noite do nosso casamento prosseguiu. O que


significa que devemos ter um bonito bebé no começo de Abril. Talvez
mesmo a tempo da Páscoa.

Segundo a fé católica, era o momento da ressurreição e do renascimento, o


que parecia perfeito a Beata; além disso, poderia aproveitar o Verão para
passear o bebé, o que achava muito mais agradável do que conservá-lo
todo embrulhado em roupa e metido em casa, se nascesse no Inverno. Aos
seus olhos, a altura do nascimento era maravilhosa. Antoine estava

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doido de alegria. Obrigou-a a abrandar o passo e a caminhar mais


lentamente. Se dependesse dele, levá-la-ia aos ombros até casa. E Beata
percebeu que ele estava um tanto inquieto quando lhe perguntou se era
aconselhável que continuasse a fazer amor com ela, pois não queria
magoá-la. Beata garantiu que tudo estava bem e podiam continuar a vida
normalmente. Contudo, nos meses que se seguiram, Antoine vigiava-a
constantemente. Passava sempre que possível por casa, a fim de certificar-
se de que tudo corria bem, e substituía-a na maioria das tarefas, embora
ela insistisse em que não havia necessidade.

Não és obrigado a isso, Antoine disse-lhe, um dia. Estou bem e preciso de


fazer exercício e manter-me activa.

- O que é que percebes do assunto? Por fim, levou-a a um médico de


Lausana, apenas para se certificar de que tudo estava bem. O médico
sossegou a ambos, afirmando que tudo se desenrolava normalmente.
Muitas vezes, Beata lamentava não poder partilhar a notícia com a mãe.
Enviara-lhe mais uma carta, mas esta ainda fora devolvida mais
rapidamente. Estava, por completo, apartada dos seus . Antoine e os Zuber
e, dentro de uns meses o bebé,! eram, doravante, a sua única família.

No Natal, com quase seis meses de gravidez, Beata estava enorme; o


contraste da barriga com a sua frágil figura acentuava-lhe a gravidez. No
final de Janeiro, dir-se-ia que estava prestes a dar à luz e Antoine quase
não a deixava sair de casa. Receava que ela escorregasse no gelo ou na
neve e abortasse. À noite, gostava de deitar-se ao lado dela e sentir o bebé
aos pontapés. Embora não se importasse com o sexo da criança, Antoine
achava que era um rapaz e Beata assim o esperava devido à volumosa
barriga da mulher.
Embora estivesse de boa saúde, Beata mal se mexia agora. Ao longo dos
meses, confeccionara roupas adaptadas à sua nova silhueta e Maria ficava
estupefacta com a sua habilidade para a costura. A jovem fizera roupa a
partir de bocados vêlhos de tecido espalhados pela casa e até mesmo um
casaquinho 90

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muito elegante de uma manta escocesa que Walther lhe oferecera. A futura
mamã parecia jovem, bonita e saudável. Quando ia ao domingo à igreja, o
padre André ficava sempre feliz ao vê- la.

A maior preocupação de Antoine residia no parto. Pensara em levar Beata


para um hospital de Genebra ou de Lausana, mas não tinha dinheiro. Havia
um médico a uns cinquenta quilómetros, contudo não tinha telefone e os
Zuber também não. E quando chegasse a altura, seria impossível contactá-
lo. Ir buscá-lo de carro, levaria provavelmente demasiado tempo.

Beata garantia-lhe que não estava nervosa. Maria dera à luz três filhos na
sua casa, fora a França para estar com uma das filhas quando ela tivera o
bebé e ajudara muitas amigas. Embora não fosse diplomada, era uma
parteira experiente e as duas mulheres saberiam como agir ou, pelo menos,
era o que Beata dizia. Não queria inquietar Antoine, mas confessou várias
vezes a Maria que tinha um medo horrível. Nada sabia de partos e quanto
mais a barriga lhe crescia, mais angustiada se sentia.

O bebé só nascerá quando estiver preparada garantiu-lhe, um dia, Maria


num tom confiante. Os bebés sabem esse tipo de coisas. Não nascem, se
estiver fatigada, doente ou desgostosa, mas esperam até estar pronta a
acolhê- los.

Embora a afirmação lhe parecesse muito optimista, Beata, que conhecia a


calma e a sensatez de Maria, resolveu dar-lhe o benefício da dúvida e
acreditar nela. Nos últimos dias de Março, Beata verificou, surpreendida,
que a sua energia renascera. Uma manhã, até foi mungir as vacas. Quando
Antoine soube, ao regressar a casa, repreendeu-a severamente.
Como pudeste ser tão inconsciente! exclamou. E se uma delas te tivesse
dado um coice e atingido o bebé? Quero que fiques em casa e descanses.

Sentia-se profundamente preocupado por não poder proporcionar a Beata


um ambiente seguro e confortável, sabendo que nada do que fizesse lhe
facilitaria as coisas, pois Beata

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não era uma camponesa, embora entrasse no jogo. Fora educada no luxo e,
tanto quanto sabia, nunca apanhara uma constipação sem que fosse
imediatamente vista por um médico. Agora, ele pedia-lhe que desse à luz o
filho deles numa pequena herdade dos Alpes, sem a ajuda de uma
enfermeira ou de um médico.

Escreveu a um amigo em Genebra e pediu-lhe que lhe mandasse um livro


sobre pediatria. Começou a lê-lo às escondidas todas as noites, depois de
Beata adormecer, com a esperança de aprender algo que pudesse ajudá-la.
Todavia, à medida que o fim da gravidez se aproximava, Antoine ficou
cada vez mais nervoso, sobretudo em pânico com a ideia de que o bebé
fosse demasiado grande para a frágil estrutura de Beata. Um dos capítulos
do livro falava de cesariana, uma operação que só um médico podia
praticar, mas, mesmo nesse caso, as vidas da mãe e da criança corriam
risco. O livro referia, aliás, que a maior parte desses nascimentos
acabavam mal. Antoine não podia imaginar nada pior do que perder Beata
e também não queria perder o filho de ambos. Contudo, não conseguia
imaginar que um bebé do tamanho daquele que ela transportava pudesse
sair com êxito de uma mãe tão pequena. Quanto mais o bebé crescia, mais
pequena parecia Beata.

Na noite de 31 de Março, Antoine dormia um sono agitado quando ouviu


Beata ir à casa de banho. Ficara tão grande, que passara a usar as enormes
camisas de noite de Maria, as únicas com tamanho suficiente para ela e o
bebé. Veio deitar-se novamente uns minutos mais tarde, bocejando .
Estás bem? sussurrou Antoine, preocupado, sem querer acordar os Zuber.

Sim. Muito bem.

Dirigiu-lhe um sorriso sonolento e voltou a deitar-se de lado, pois já não


conseguia dormir de costas. O bebé estava tão pesado que ela tinha a
impressão de sufocar. Antoine pôs-lhe o braço por cima e pousou
delicadamente a mão no ventre arredondado. Como era hábito, o bebé deu
um pontapé,

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Nessa noite, Antoine não conseguiu voltar a adormecer, nem tão-pouco


Beata. Depois de ter mudado de posição várias vezes, virou-se finalmente
para Antoine, que a beijou.

Amo-te sussurrou ele.

Também te amo respondeu Beata com uma expressão radiosa, os cabelos


negros espalhados na almofada.

Emseguida, voltou-se, confessando que lhe doíam as costas, pedindo que


lhe desse uma massagem , o que ele fez de bom grado. Maravilhou-se,
como sempre, ante a elegância daquele corpo, cuja única parte
desproporcionada era o enorme ventre. Enquanto a massajava, ouviu-a
gemer, o que não era o seu género. Magoei-te? perguntou, num tom meigo.

Não... Estou bem... não é nada.

Beata não queria dizer-lhe que estava com dores desde a véspera.
Primeiro, não ligara importância, pensando que se tratava de uma
indigestão, mas agora as costas doíam-lhe horrivelmente. Quando Antoine
se levantou uma hora mais tarde, ele e Walther tinham muito trabalho
nesse dia e haviam planeado começar cedo, Beata acabara de adormecer.
Ainda passava pelo sono quando Antoine saiu de casa, enquanto Maria se
afadigava na cozinha.

Por fim, ao sair do quarto duas horas mais tarde, Beata parecia assustada e
foi ter com Maria à cozinha.

Acho que se passa alguma coisa murmurou.

Passa mesmo anuiu Maria com um sorriso alegre. Faz hoje nove meses!
Acho que alguém aqui vai ter um bebé!

Não me sinto nada bem confessou Beata.

As costas doíam-lhe terrivelmente, tinha muitas náuseas e algo no seu


ventre exercia uma enorme pressão para baixo. Continuava com as
mesmas dores lancinantes nas costas e no baixo ventre, o que em nada se
parecia com uma indigestão.

O que vai acontecer? perguntou, com um ar de criança aflita, enquanto a


mulher mais velha lhe rodeava a cintura com um braço, a fim de a
reconduzir ao quarto.

Vai pôr no mundo um bebé magnífico, Beata, é isso o que acontecerá.


Agora, quero que se deite e pense nisso.

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Mal a jovem se deitara o olhar traía toda a ansiedade e medo que lhe iam
na alma, Maria foi buscar toalhas e lençóis velhos que pusera de lado para
o parto, juntamente com algumas panelas e bacias.

Não me deixe gritou Beata.

Vou só buscar uma coisa ao armário. Volto já.


Onde está An toine?

Quando a primeira contracção séria lhe rasgou o ventre, Beata começou a


entrar em pânico. A dor apanhara-a inteiramente desprevenida, ninguém
lhe dissera que seria assim. Era como se um talhante estivesse a abrir-lhe
o ventre de lado a lado e sentia o estômago tão duro como pedra. Maria
agarrava- a para a ajudar a controlar a respiração.

Está tudo bem, Beata. Tudo bem. Volto num segundo. Maria correu até à
cozinha, pegou numa das panelas e começou a aquecer água. Agarrou, em
seguida, nas toalhas e lençóis e precipitou-se até à cama onde Beata estava
deitada, com uma expressão confundida. A segunda contracção produziu-
se no momento em que Maria atravessava a ombreira da porta e, desta vez,
Beata uivou aterrorizada, ao mesmo tempo que estendia os braços para a
mulher mais velha. Esta agarrou-lhe nas mãos e disse-lhe que não fizesse
força demasiado cedo; ainda tinham um longo caminho a percorrer, antes
de o bebé estar pronto. Se Beata fizesse força demasiado cedo, iria fatigar-
se rapidamente.

Beata deixou que Maria a examinasse, mas o bebé ainda não estava
visível. As contracções da véspera haviam iniciado o processo, mas ainda
restava o verdadeiro trabalho. Maria calculou que faltavam várias horas,
antes que Beata pudesse segurar o bebé nos braços. Esperava apenas que
fosse fácil para a jovem. Por vezes, quando o parto era rápido, a dor podia
ser pior, mas, pelo menos, não durava. Contudo, no caso de Beata, dado
tratar-se da primeira gravidez e o bebé ser grande, Maria desconfiava que
iria prolongar- se.

Com a contracção seguinte, as águas de Beata rebentaram, encharcando as


toalhas que Maria lhe pusera por baixo e à volta. Trouxe-as para a cozinha
e substituiu-as por outras

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Tal como esperava, uma vez rebentadas as águas, as contracções


aumentaram de intensidade. Durante uma hora, a jovem viveu um
verdadeiro suplício, assaltada pelas vagas dolorosas, que apenas lhe
concediam uns segundos para recuperar o fôlego.

Quando Antoine regressou para almoçar, ouviu-lhe os gritos antes mesmo


de abrir a porta e aproximou-se a correr.

Como é que é ela está? perguntou a Maria, com uma expressão


aterrorizada.

Está bem respondeu esta, num tom calmo.

Não achava que ele devesse estar presente, mas Antoine entrara
imediatamente no quarto e envolvera a mulher num terno abraço .

Minha pobre querida... o que posso fazer para ajudar- te?

Ao vê-lo, Beata começou a chorar. A jovem estava em pânico, mas Maria


tomara a firme decisão de não dar mostras da sua própria inquietação.
Apenas sabia que o bebé era grande, mas a força das contracções talvez as
ajudasse. Todavia, embora Beata sofresse como a maioria das mulheres
prestes a dar à luz, não havia sinal do bebé.

Antoine... Não posso... não posso... Tenho tantas dores. gemeu Beata,
tentando recuperar o fôlego entre duas contracções.

Vá almoçar com o Walther sugeriu Maria, mas Antoine não se mexeu.

Não. Eu fico retorquiu ele num tom firme.

Era o responsável por toda aquela situação e recusava deixar que ela a
enfrentasse sozinha. Tratava-se de uma reacção invulgar aos olhos de
Maria, mas Beata parecia um pouco mais calma por tê- lo a seu lado.
Quando as contracções regressaram, ela esforçou-se por não gritar,
enquanto Antoine observava o ventre retesado ao máximo. Ao tocar-lhe,
verificou que estava duro como uma pedra. Maria ausentou-se uns
instantes para ir ter com Walther à cozinha. Antoine pediu-lhe que o
prevenisse de que ficaria junto de Beata até ao nascimento do bebé. Maria
regressou rapidamente com uma

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toalha húmida. Contudo, não serviu de nada, pois as contracções


continuaram a dilacerar Beata.

O trabalho de parto prolongou-se durante horas, ao som dos gritos infindos


de Beata. Por fim, ao cair da noite, Maria soltou uma exclamação
vitoriosa, pois avistara finalmente a cabeça do bebé. A partir desse
momento, ele saía mais a cada contracção. Maria e Antoine encorajavam
Beata, mas esta deixara de os ouvir, sentindo-se à beira da morte.
Continuou a gritar, mal parando para tomar fôlego.

Maria pediu-lhe que empurrasse com todas as forças; o rosto de Beata


contorceu-se de dor, adquirindo um tom arroxeado, enquanto fazia força
sem resultado. Antoine estava tão perturbado com a cena, que prometeu
secretamente que nunca mais lhe faria um filho. Jamais a obrigaria a
passar por isto, se tivesse sabido. O trabalho de parto durara o dia inteiro
e, às sete da noite, Antoine sentia-se desesperado. Beata recusava
continuar a fazer força, limitando-se a estar para ali deitada, chorando e
dizendo que era incapaz.

Tem de empurrar! gritou Maria, habitualmente tão meiga. Faça força! Vá


lá! Força!

Expressava-se num tom tão firme que Beata lhe obedeceu. Maria via a
cabeça do bebé a sair e entrar a cada contracção e sabia que, se
demorassem muito, iriam perdê- lo.

Pediu a Antoine que agarrasse a mulher pelos ombros e disse a Beata que
se apoiasse contra os pés da cama. Ao cabo de esforços sobre-humanos e
gritos dilacerantes, metade da cabeça do bebé apareceu finalmente e Maria
ordenou a Beata que continuasse a fazer força. De súbito, um vagido
encheu o quarto. Beata continuava a gritar, mas fitou Antoine estupefacta,
ao ouvir o bebé. Maria disse-lhe que fizesse ainda mais força; desta vez,
apareceram os ombros e, por fim, todo o bebé, coberto de sangue e
chorando a plenos pulmões. Era uma menina.

Os lençóis à volta de Beata estavam encharcados em sangue. Maria


percebeu que ela perdera muito sangue, mas não o suficiente para que
entrasse em pânico. O bebé era enorme, como haviam suspeitado. Beata e
Antoine observaram

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Maria a cortar o cordão umbilical com mão experiente. Depois, limpou


rapidamente o bebé, embrulhou- o num lençol e estendeu-o à mãe. Com as
lágrimas a rolarem-lhe pelas faces, Antoine debruçou-se sobre as duas.
Nunca vira algo mais bonito do que a sua mulher e a filhinha juntas.

Lamento disse-lhe com um ar aflito. Lamento que tenha sido tão doloroso
para ti acrescentou, enquanto ela apertava o bebé de encontro ao peito.

Valeu a pena respondeu Beata com um sorriso e uma expressão radiosa,


apesar da fadiga que o rosto expressava. Ela é tão bonita!

Antoine tinha dificuldade em acreditar que se tratava da mesma mulher


que gritara e sofrera desde manhã, a tal ponto Beata parecia feliz e serena.

Também tu! exclamou, por fim, acariciando-lhe meigamente a face e


depois a do bebé que parecia fitá-los, como que impaciente por conhecê-
los.

Sem largar a filha, Beata deixou-se cair na almofada, esgotada. Ninguém


lhe dissera o que a esperava. Não estava de forma alguma preparada para
as dores do parto. Não compreendia porque é que ninguém a prevenira.
Agora sabia porque é que as mulheres falavam sempre deste assunto em
voz baixa. Por outro lado, se lhe tivessem falado com honestidade, talvez
lhe faltasse a coragem

Mantinham-se deitados lado a lado a falar com a sua pequena filha. Foi
então que Maria sugeriu a Antoine que fosse jantar qualquer coisa e beber
um brande. Já eram nove horas e ela queria estar à vontade para limpar
Beata, o bebé, a cama e o quarto. Quando o convidou a voltar uma hora
depois, Antoine ficou surpreendido com a paz que reinava na divisão.
Beata repousava em lençóis lavados, com os cabelos escovados, o rosto
lavado, e a menina dormia nos seus braços. A cena de terror a que assistira
durante toda a tarde havia desaparecido completamente. Dirigiu um
sorriso de gratidão a Maria.

É uma mulher extraordinária elogiou, abraçando- a.

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92

Vocês é que são. Os dois replicou Maria. Tenho muito orgulho em si,
Antoine. A vossa filha pesa quase cinco quilos.

Maria anunciou o facto com tanto orgulho como se ela própria tivesse
posto a criança no mundo o que, para seu alívio, não era o caso, pois nunca
vira uma mãe, sobretudo com a constituição física de Beata, dar à luz um
bebé tão grande. Tinha havido, sem dúvida, um ou dois momentos em que
sentira receio de perdê-los, mas absteve-se de falar no assunto.

Como vão chamar-lhe? acrescentou Maria, que nunca vira uns pais tão
orgulhosos. Quanto a Walther espreitou da ombreira da porta e sorriu ao
jovem casal com o bebé nos braços.

Beata e Antoine trocaram olhares. Há meses que andavam a discutir


nomes próprios, mas não tinham conseguido decidir-se quanto a um
feminino. Contudo, ao vê-la, Beata soube que tinham encontrado um, logo
nas primeiras sugestões.

O que te parece Amadea? perguntou a Antoine. Ele reflectiu um momento.


De início, pensara em Françoise, o nome próprio da mãe, mas devido à
maneira detestável como esta reagira ao seu casamento com Beata, deixara
de querer chamar-lhe assim. Ambos sabiam que Amadea significava
”Amada por Deus”, e Antoine tinha a certeza de que assim era.

Gosto e acho que lhe fica bem. É uma bela menina, merece usar um nome
especial. Amadea de Vallerand respondeu, experimentando dizê-lo. Beata
sorriu.

No momento em que Antoine pronunciou o nome, o bebé mexeu-se e


emitiu um som entre um suspiro e um vagido, o que lhe provocou o riso.

Acho que ela está de acordo concluiu Beata que parecera ter recuperado as
cores e estar pronta a valsar pelo quarto. Amadea! pronunciou, fitando a
filha recém-nascida e depois o marido, com um sorriso nos lábios.

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93

Nessa noite, deitado ao lado de Beata, Antoine pensou em tudo o que


haviam vivido nesse dia. E, e nquanto Beata se deixava levar pelo sono,
com a bebé ao lado dentro de um cesto, Antoine rezou uma oração de
agradecimento pelo milagre que haviam partilhado. Amadea. Amada por
Deus. Antoine esperava que o

fosse eternamente.

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CAPÍTULO 6

Amadea de Vallerand tinha dezanove meses e dez dias quando o final da


guerra foi proclamado, em 1918. Era uma menina loura, de olhos azuis,
alta para a idade, que fazia as delícias dos pais e dos Zuber. Maria sabia
que, mal a guerra acabasse, a jovem família, que vivera com eles durante
dois anos, se iria embora e teria pena quando tal acontecesse. Contudo,
eles não podiam ficar eternamente na Suíça. Mal os respectivos países se
pusessem de pé, a Suíça deixaria de oferecer-lhes asilo.

No Natal de 1918, Antoine e Beata já haviamtido discussões intermináveis


sobre se voltarem para a França ou a Alemanha. A família de Antoine
mostrava-se mais firme do que nunca de que não acolheria em Dordogne a
sua mulher judia e a filha semijudia. Haviam sido de uma cruel
brutalidade e pouco lh es interessava que Beata se tivesse convertido ao
catolicismo. Aos olhos deles, mantinha-se judia, e as portas estavam
fechadas para Antoine.

Pelo seu lado, Beata não fora mais bem-sucedida. As cartas que enviara
aos pais haviam sido devolvidas, como as primeiras. E obteve o mesmo
resultado quando escreveu a Brigitte. Por vezes, interrogava-se sobre se
também ela tivera um filho. Quanto a si, nada tinha contra o facto de
voltar a ser mãe, e o casal não tomava qualquer precaução. Estava, aliás,
surpreendida por não se encontrar grávida, depois de o ter ficado tão
rapidamente quanto a Amadea. Contudo, de momento, sentiam-se felizes
com Amadea. Esta cirandava por todo o lado, tagarelando na sua
linguagem. Os Zuber gostavam dela como se fosse sua neta e sabiam até
que ponto lhe sentiriam a falta.

Em Fevereiro, Antoine recebeu uma carta que serviu para decidir para que
país iriam. Umdos seus amigos de Saumur, a academia equestre onde ele
se treinara para o exército,

100

95

escreveu-lhe a anunciar que comprara um palácio fantástico na Alemanha,


por uma quantia irrisória, e que o mesmo possuía estábulos fantásticos,
embora em ruínas.

O amigo chamava-se Gérard Daubigny e queria restaurar o castelo. Sabia


que Antoine era um exímio cavaleiro e um conhecedor de cavalos. Por
isso, desejava que este se encarregasse dos estábulos, fizesse o que achava
necessário para os reconstruir, enchendo-os com os cavalos das melhores
castas, e, ainda, contratasse treinadores e moços de estrebaria. Gérard
ouvira falar do seu braço magoado, mas Antoine garantira-lhe que isso não
seria problema. Embora não pudesse servir-se do braço esquerdo,
adequadamente, tornara-se mais hábil com o direito o suficiente para
compensar a incapacidade do primeiro.

Por coincidência, o palácio de Gérard situava-se próximo de Colónia, e,


embora a família de Beata não tivesse mudado de opinião, Antoine achava
possível que, se vivessem próximo, eles acabassem por amolecer. Talvez, a
seu tempo, se conseguisse uma aproximação das duas famílias. Contudo,
não foi a proximidade dos Wittgenstein que influenciou Antoine. O salário
que Daubigny lhe oferecia era irrecusável, e tratava-se de um emprego que
constituía a sua paixão. Por outro lado, teriam uma bela casa na
propriedade, onde caberiam os três e talvez mais filho s.

No final de Fevereiro, Antoine aceitou a proposta e combinou com Gérard


que chegaria ao castelo no início de Abril. Dava-lhe tempo para acabar o
que tinha em curso na herdade e ajudar Walther o máximo possível antes
da sua partida. Olar que os Zuber lhes haviam oferecido, durante mais de
dois anos, tinham-lhes salvo a vida. Sem eles, Antoine e Beata não
sobreviveriam à guerra, pelo menos juntos, não casariam tão rapidamente,
nem forneceriam um tecto à filha. E agora, este trabalho na Alemanha iria
salvá- los.

Antes de partirem, Beata passou muitas noites a ensinar alemão a Antoine.


Embora os Daubigny fossem franceses, os treinadores e os rapazes de
estrebaria, bem como os operários que iam contratar, seriam todos
alemães e ele precisava de saber

101

96

a língua. Embora não muito especializado, Antoine falava] quase


correntemente o alemão, quando chegou a data da partida. Contudo,
tinham concordado há muito que cada um fàlaria a Amadea na sua língua
materna, pois queriam que a filha fosse bilingue. Mais tarde, Beata estava
decidida a que também aprendesse inglês. Se tivessem meios depois de
estarem na Alemanha, contrataria uma ama inglesa para que Amadea fosse
fluente em inglês. Ambos pensavam que era importante falar várias
línguas.

A sua situação financeira estava longe de se encontrar garantida, embora o


salário proposto a Antoine fosse considerável. Além disso, ia fazer um
trabalho que adorava e de que tinha experiência. A oportunidade que lhes
surgira era uma” bênção. Pelo seu lado, Beata pensava oferecer os seus
serviços de costura a algumas das mulheres elegantes que conhecera,
esperando que tal lhe permitisse aproximar-se da mãe.

Antoine mencionou também que Madame DaubignyJ tinha uma enorme


fortuna, sendo provavelmente com o dinheiro dela que Gérard estava a
restaurar o palácio, pois ele provinha de uma antiga família aristocrática
que já era pobre mesmo antes da guerra. A família de Véronique era muito
rica e Gérard prometera a Antoine que ele poderia comprar todos os
cavalos que quisesse. Iam começar um a nova vida.

Os Daubigny não conheciam Beata e não faziam ideia da sua proveniência.


Antoine e Beata discutiram o assunto, decidindo que seria mais simples
não lhes dizer que ela era judia. Tratava-se de uma parte da sua história e
da de ambos que queriam guardar para si, tal como as dificuldades
familiares que haviam passado antes de casarem. Sem a presença dos
Wittgenstein na sua vida, tornava-se desnecessário explicar que Beata
nascera judia, além de que ela não parecia sê-lo. Nem tão-pouco Amadea.
Era u ma menina loura, de olhos azuis, de traços perfeitos, iguais aos da
mãe. A rejeição da família ainda era uma fonte de vergonha e de tristeza
para Beata, e ela não queria que ninguém o soubesse.

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97

Os cinco choraram no dia em que os Vallerand se despediram dos Zuber. A


própria Amadea choramingou e estendeu os braços a Maria. Os Zuber
acompanharam-nos até à estação de caminho-de-ferro de Lausana. Ao
abraçá-los, os soluços de Beata redobraram, pois a cena recordou-lhe a
saída de casa dos pais, há três anos.

Antoine e Beata chegaram a Colónia no dia em que Amadea fez dois anos.
Quando se instalaram no castelo, embora tivesse ficado contente por rever
o seu velho amigo, Antoine confessou a Beata que tinha muito trabalho
para fazer ali.

O castelo fora deixado ao abandono e encontrava-se em ruínas. A família a


que pertencera durante séculos há muito que ficara sem dinheiro, e o lugar
deixara de ser habitado antes da guerra, encontrando- se, portanto, num
estado de extrema degradação. O pior eram os estábulos. Seriam precisos
meses, ou mesmo anos, para restaurá-los. Contudo, ao fim de um ou dois
meses, Antoine reconheceu que achava o trabalho excitante e que ansiava
por comprar os primeiros cavalos. Beata adorava ouvi-lo falar dos seus
projectos, quando os discutiam, à noite.

Por fim, os progressos revelaram-se mais rápidos do que o previsto. No


Natal, um exército de carpinteiros, pintores, arquitectos, operários,
pedreiros, jardineiros e vidraceiros afadigava-se à volta do castelo.
Véronique e Gérard mostravam-se intransigentes. Segundo Antoine,
Véronique estava a construir um verdadeiro palácio e, para sua grande
alegria, não olhava a despesas quanto aos estábulos. Estes eram aquecidos,
limpos, modernos e com espaço para acolher até sessenta cavalos.

Na Primavera seguinte, Antoine já estava a comprar cavalos, a preços


fabulosos, por toda a Europa. Fez numerosas viagens a Inglaterra, Escócia
e Irlanda, acompanhado de Beata. Foi ainda várias vezes a França, onde
adquiriu três magníficos cavalos de caça em Dordogne, a quinze
quilómetros do castelo onde crescera. Ao passarem diante da propriedade,
a caminho de um leilão em Périgord, Beata apercebeu-se até que ponto a
Situação o afectava. Viu-o fitar os portões tristemente. Era como se a
família de ambos tivesse morrido.

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Ela vivera a mesma experiência quando regressaram a Colónia. Um dia,


incapaz de resistir, apanhara um táxi e parando diante da sua antiga casa
Pusera-se a chorar, sabendo que os que amava continuavam a morar ali,
mas não queriam vê-la. Beata escrevera-lhes, de novo, quando haviam
voltado a Colónia, mas, como habitualmente, as cartas foram-lhe
devolvidas. O pai não cedia. Era algo com que ela e Antoine tinham
aprendido a viver, contudo a ferida ainda não havia cicatrizado.
Felizmente que ainda tinha Antoine e Amadea, embora se sentisse
desapontada com a falta de mais um bebé. A filha já tinha três anos e, mau
grado os seus esforços, Beata ainda não engravidara. Porém, levavam aqui
uma vida mais agitada do que na Suíça e, por vezes, ela interrogava-se
sobre se seria esse o problema. Mas, fosse qual fosse o motivo, Beata
começara a habituar-se à ideia de não ter mais filhos. Sentia-se feliz com
Antoine e Amadea, tinha uma bela casa, e os Daubigny não só eram
pessoas simpáticas, como grandes amigos

Antoine levou mais um ano a encher os estábulos que, agora, contavam


com oitenta e oito puros-sangues, incluindo alguns cavalos árabes. Quando
Amadea fez cinco anos, ele comprou-lhe um pónei. Apesar da sua tenra
idade, a menina era uma excelente cavaleira. E muitas vezes, os pais, que
lhe prodigalizavam todo o seu amor e atenção, levavam-na a dar longos
passeios a cavalo pelo campo. Além disso, Amadea lidava facilmente com
as línguas, tal como Beata esperara, e falava correntemente francês,
alemão e inglês. Quando fez seis anos, ingressou na escola local com os
filhos dos Daubigny

Véronique e Beata não passavam muito tempo juntas, pois andavam


sempre ocupadas, mas entendiam-se perfeitamente. Beata fazia vestidos
de noite para ela e as amigas, a preços razoáveis. Antoine e ela não eram
ricos, mas viviam bem, num ambiente agradável, graças, igualmente, à
bonita e confortável casa que os Daubigny lhes tinham dado. Antoine
gostava do que fazia e Beata sentia-se feliz por ele.

Contudo, de vez em quando, o passado ressuscitava e entristecia-a. Um dia


em que fora à cidade comprar tecido,
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99

avistara a irmã acompanhada do marido e de duas crianças pequenas, uma


das quais era da mesma idade e parecida com Amadea. Interrogara-se
sobre se viveriam em Colónia. Ao vê-la, Beata estacou, e sem um
momento de reflexão, chamou a irmã e aproximou-se. Brigitte parou um
instante, fitou-a de frente e depois girou sobre os calcanhares, dizendo
umas palavras ao marido. Em seguida, subiu rapidamente para uma
limusina que a esperava, enquanto o marido instalava os filhos ao lado
dela. A viatura arrancou um momento depois e afastaram-se sem lhe terem
dado o mínimo sinal de reconhecimento. Devastada, Beata nem sequer
teve forças para ir a loja de tecidos, apanhou directamente o comboio para
o castelo, lavada em lágrimas. Nessa noite, contou o episódio a Antoine,
que sentiu pena dela. Nenhuma das famílias cedera naqueles sete anos,
desde que se haviam casado. Eram implacáveis

Depois disso, verificara-se outro incidente, desta vez quando Beata vira os
irmãos a saírem de um restaurante com duas mulheres, que supôs serem as
suas esposas. O seu olhar cruzara-se com o de Ulm, que a reconhecera de
imediato, mas passara ao seu lado, ignorando-a. Quanto a Horst, virara as
costas e metera-se num táxi. Chorara durante toda a noite, mas de raiva.
Com que direito agiam daquela maneira? Contudo, mais do que raiva,
sentia tristeza e a mesma perda que a invadira quando abandonara a casa
do pai para casar com Antoine. Era uma ferida que, sabia, nunca
cicatrizaria por co mpleto

Porém, o pior de tudo tinha sido no dia em que vira a mãe, há dois anos,
antes do seu encontro fortuito com Brigitte. Tendo ido à cidade fazer uma
compra com Amadea, não conseguira deixar de parar uns momentos diante
da sua antiga casa. Amadea perguntara-lhe o que estavam a fazer ali

Nada, querida Só quero ver uma coisa

Conheces as pessoas que vivem naquela casa?


Fazia frio e Amadea estava com fome, mas Beata não se mexera, fixando
com uma expressão infeliz a janela do seu antigo quarto e depois a do da
mãe. De súbito, vira-a à janela.

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100
Sem reflectir, Beata acenara-lhe e Monika tinha-a visto. A filha
observava-a, surpreendida. Todavia, a mãe baixara a cabeça, desgostosa, e
fechara os reposteiros, sem corresponder. Para Beata, esta foi a prova de
que não lhe restava esperança e jamais voltaria a ver a mãe. Nem sequer a
presença de Amadea ao seu lado conseguira enternecer o coração da mãe,
nem dar-lhe coragem para enfrentar o marido. Para eles, Beata já não
existia. Foi com um sentimento de solidão e um vazio enorme que levou
Amadea a almoçar, apanhando, depois, o comboio de volta a casa

Quem era a senhora a quem disseste adeus? perguntara-lhe a filha que


notara a expressão desesperada da mãe sem saber o que significava,
excepto que esta ficara triste.

Uma velha amiga. Mas acho que não me reconheceu respondeu Beata,
desejando explicar que se tratava da sua mãe, mas sem se atrever.

Talvez não te tivesse visto, mamã sugerira Amadea num tom meigo e a
mãe assentira, tristemente, com a cabeça.

Levara algum tempo, antes de conseguir falar do assunto a Antoine. Ele


também não tivera melhor sorte com os pais e o irmão, embora, por lei,
viesse um dia a herdar o título e as terras do pai, bem como a fortuna da
família. Contudo, para Antoine e Beata o passado deixara de existir. Só
contava o presente e o futuro que teriam juntos.

Exceptuando a perda das respectivas famílias, os Vallerand levavam uma


vida agradável. Antoine e Gérard davam-se bem e os estábulos
prosperavam. De vez em quando, Antoine comprava novos cav alos para o
amigo, organizava caçadas, treinava cinco dos melhores cavalos para as
corridas e ocupava-se dos garanhões. Em breve, os estábulos Daubigny
tornaram-se famosos em toda a Europa, em grande parte devido a Antoine
que percebia muito mais de cavalos do que Gérard.

Tudo estava a correr muito bem, mas uma tarde, Beata, que fora ter com
Véronique para que esta experimentasse um vestido de noite, desmaiou
quando estavam no meio de uma agradável conversa. Véronique, muito
preocupada, obrigou-a a deitar-se numa chaise longue no seu quarto e,
depois, acompanhou-a a casa.

106

101

Ao passarem diante dos estábulos, Antoine, que dava uma lição de


equitação a Amadea, notou a extrema palidez de Beata e o seu andar
inseguro. Pediu a um dos moços de estrebaria que vigiasse a filha e saiu a
correr. Véronique não conseguia ocultar a inquietação que a tomava, mas
Beata tinha-a obrigado a prometer que não falaria do seu desmaio, a fim
de poupar Antoine. Disse que provavelmente apanhara uma gripe ou
estava com uma enxaqueca embora fossem raras nela

Sentes-te bem? inquiriu Antoine, parecendo preocupado e fitando


Véronique, que cumpriu a promessa, apesar de se sentir inquieta.

Acho que estou a chocar algo... nada mais respondeu, omitindo-lhe que
tinha desmaiado no quarto de vestir de Véronique, durante a prova de um
vestido. Que tal a lição de Amadea? acrescentou para mudar de assunto.
Devias obrigá-la a ser mais prudente.

Aos sete anos, a filha era uma cavaleira intrépida, que adorava saltar por
cima de ribeiros e sebes, o que muito assustava a mãe.

Acho que não consigo obrigá-la ao que quer que seja respondeu Antoine
com um sorriso resignado. Parece ter ideias próprias sobre uma série de
assuntos.

Amadea herdara o espírito perspicaz e curioso da mãe, mas também tinha


uma faceta ousada que inquietava os pais. Nada parecia assustá-la ou estar
fora do seu alcance, o que, aos olhos deles, constituía, em simultâneo, algo
bom e mau. Beata tinha um medo permanente de que lhe acontecesse
alguma coisa. E como filha única, davam-lhe toda a atenção e todo o amor
”talvez demasiado”, dizia às vezes para si própria. Ao cabo de sete anos,
parecia óbvio que Amadea não teria irmãos ou irmãs, o que os pais
lamentavam.
Queres que te acompanhe a casa? retomou Antoine, ainda preocupado e
sem se ter deixado distrair. Por norma, Beata tinha uma pele muito branca
e, quando se sentia mal, ficava quase transparente. Enquanto Antoine lhe
falava, Véronique notou que ela empalidecia e parecia prestes a desmaiar
de novo. 107

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Não. Estou bem. Vou só deitar-me uns minutos. Vai ocupar-te da nossa
pequena fera.

Beata deu-lhe um beijo rápido e percorreu a curta distância que a separava


de casa, com Véronique ao lado. Uns minutos mais tarde, esta ajudou-a a
deitar-se e foi-se embora.

Nessa noite, ao regressar, Antoine ficou aliviado ao constatar que a mulher


estava com melhor aspecto. Contudo, no dia seguinte, o estado de Beata
agravara-se consideravelmente, deixando- o novamente preocupado. Tinha
um tom esverdeado, enquanto preparava Amadea para a escola, e custara-
lhe muito sair da cama. Voltou à hora do almoço para ver como ela estava.

Que tal estás? inquiriu com um franzir de sobrolho, lembrando-se de que,


no Inverno anterior, tinha havido uma epidemia de gripe mortal na região.

Antoine detestava ver Beata doente. A mulher e a filha eram tudo o que
possuía neste mundo e só elas lhe interessavam na vida.

Sinto-me melhor respondeu a jovem mulher, tentando parecer animada.


Contudo, sabia que não estava a contar-lhe toda a verdade, e ele sabia- o.
Quero que vás ao médico declarou num tom firme.

Ummédico não vai remediar nada. Esta tarde, faço uma sesta, antes que a
Amadea volte da escola, e à noite já estarei bem.

Beata insistiu em preparar-lhe o almoço, colocou-o diante dele e sentou-se


a fazer-lhe companhia, mas ele notou que a mulher não comia nada. Na
verdade, Beata só queria uma coisa: que ele voltasse para os estábulos para
ela poder deitar- se.

Uma semana depois, Antoine continuava preocupado Embora a mulher


insistisse que estava bem, ele via que não era assim e sentia-se em pânico.

Se não fores ao médico, sou eu que te levo. Por amor de Deus, Beata! Irás
consultá-lo? Não compreendo de que é que tens medo.

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Contudo, a jovem mulher sabia perfeitamente de que é que tinha medo: de


ficar desiludida. Começava a suspeitar do que se passava com ela e queria
ter a certeza, antes de falar a Antoine. Por fim, acabou por ceder a ir
consultar o médico. Este confirmou as suas suspeitas e, quando Antoine
regressou, à noite, ela recebeu-o com um sorriso, embora se sentisse
terrivelmente mal.

O que disse o médico? perguntou ele, ansioso, depois de Amadea ter


subido ao andar de cima para vestir a camisa de noite.

Disse que estou em plena forma... e que te amo... respondeu Beata, tão
feliz que mal conseguia dissimular o seu entusiasm o.

Ele disse que tu me amavas? retorquiu Antoine com uma gargalhada.


Bom. É simpático da parte dele, mas isso já eu sabia. Que explicação deu
para que te tenhas sentido tão mal nos últimos dias?

Beata parecia de muito bom humor e brincalhona, quase frívola .

Nada que o tempo não cure respondeu, evasiva.

Achou que se tratava de uma ligeira gripe? Se assim for, minha querida,
precisas de ter cuidado avisou, preocupado, pois conheciam uma série de
pessoas que tinham morrido de gripe no Inverno anterior e era algo para
levar a sério.

Não, nem pensar tranquilizou-o Beata. Na verdade, trata-se de um caso


muito concreto de gravidez. Vamos ter um bebé rematou, de olhos
brilhantes.

Finalmente era verdade! Beata rezara tanto para que tal acontecesse!
Quando o bebé nascesse faria oito anos de diferença da irmã

Vamos? Antoine, tal como a mulher, há muito perdera a esperança de ver


aumentar a família, pois, embora ela tivesse engravidado rapidamente da
primeira vez, tal nunca mais se verificara. Mas que maravilhoso, minha
querida! exclamou, tão feliz como ela.

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O que é que é maravilhoso? quis saber Amadea, que acabava de aparecer


em camisa de noite. O que aconteceu?

Amadea era uma rapariguinha muito inteligente, determinada, que gostava


de participar em tudo e adorava os pais. Por um momento, Antoine receou
que ela ficasse com ciúmes. Consultou Beata com o olhar e esta assentiu
com a cabeça, dando-lhe luz verde.

A tua mãe deu-me uma excelente notícia respondeu, orgulhoso e


contentíssimo. Vais ter um irmão ou uma irmã.

A sério? retorquiu Amadea com um ar desconcertado, fitando primeiro o


pai e depois a mãe. Quando?

Antoine e Beata recearam subitamente que ela encarasse mal a situação. A


filha fora o centro de todas as atenções durante tanto tempo, que podia não
se sentir encantada com a ideia de outra criança, embora tivesse mostrado
muitas vezes o desejo de que tal acontecesse.
No próximo ano, duas semanas depois do teu aniversário. Terás oito anos
nessa altura respondeu a mãe.

Mas porque é que temos de esperar tanto tempo? comentou, parecendo


desapontada. Não podemos tê-lo, mais cedo? Pergunta ao médico, mamã.;

Receio que não seja possível apressar esse género de coisas sorriu Beata à
filha, que imaginava que os bebés se encomendavam no médico.

Pelo seu lado, Beata pouco se importava por ter de esperar; apenas se
sentia feliz por irem ter um filho. Teria trinta anos quando o bebé nascesse
e Antoine fizera quarenta e dois, nesse Verão. No entanto, e mais do que
tudo, Beata estava aliviada por ver a mesma felicidade na filha.

Pediste um rapaz ou uma rapariga? inquiriu a miúda com um ar sério.,.

Não se escolhe. Teremos o que Deus nos enviar. Embora eu espere que seja
um rapaz por causa do teu papá especificou Beata, ternamente. Para que é
que o papá ia precisar de um rapaz? As raparigas são muito melhores.
Quero uma irmã.

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Veremos, então.

Antoine e Beata entreolharam-se com ternura, depois sorriram à filha. A


Antoine pouco lhe interessava que fosse rapaz ou rapariga, desde que o
bebé nascesse de boa saúde.

Será uma rapariga decretou Amadea e será o meu bebé. Farei tudo por ela.
De acordo? Será maravilhoso, se ajudares a tua mamã anuiu Antoine.

Como vamos chamar-lhe? questionou Amadea, encarando tudo de uma


forma prática.
Teremos de pensar respondeu a mãe, cansada mas feliz. Sonhara tanto com
isto e agora acontecera finalmente quando já não esperava. Teremos de
escolher vários nomes de meninos e de meninas.

Não. Só nomes de menina objectou Amadea. E acho uma estupidez termos


de esperar tanto tempo. Beata estava grávida de quase três meses e o bebé
deveria nascer a meio de Abril. Era muito tempo

para uma criança de sete anos.

A segunda gravidez de Beata revelou-se mais difícil do que a anterior,


mas, como o médico lhe assinalou, ela tinha agora mais oito anos. Sentiu-
se mal frequentemente e, por várias vezes, nos dois últimos meses, julgou
que daria à luz. O médico pediu-lhe que fosse muito prudente. Antoine
ocupou- se dela, como era previsível, passando o máximo de tempo
possível com Amadea, a fim de aliviar a carga. Mãe e filha tricotaram
juntas pequenas toucas, cueiros e mantas e Beata costurou roupa adaptada
aos dois sexos, embora Amadea continuasse a insistir em que queria uma
irmã. A miúda estava fascinada por descobrir que um pequeno ser crescia
dentro da barriga da mãe, o que dantes nunca compreendera devidamente,
pois nenhuma mulher das que conhecia havia engravidado. Já tinha visto
mulheres naquele estado, mas julgara que eram apenas gordas; agora,
passara a imaginar que todas as mulheres um pouco fortes com que se
cruzava na rua estavam grávidas, e a mãe dizia-lhe frequentemente que
não perguntasse se era verdade.

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Beata passou o último mês de gravidez em casa. Desejou que também


agora Maria estivesse ao seu lado, mas, desta vez, seriam um médico e
uma parteira a ajudá-la. Antoine ficou aliviado, enquanto Beata lhe
confessou que se sentia desapontada. Além disso, o médico já a prevenira
de que Antoine não podia assistir. Corria o risco de se distrair, e não era
assim que exercia a profissão. Beata preferiria ter Maria e Antoine ao lado
dela, como na pequena herdade.
Escuta, meu amor. Prefiro saber-te em boas mãos. Não quero que voltes a
passar pela tortura da última vez observou Antoine. Talvez o médico
conheça alguma maneira de apressar um pouco mais as coisas.

Se a mulher esquecera o pior do parto, não era o caso de Antoine, que


ainda estremecia ante a recordação dos incessantes gritos.

O médico avisara Beata que o parto poderia ser demorado. Em oito anos, o
corpo esquecera o nascimento anterior e, na sua opinião, as mulheres que
tinham gravidezes muito espaçadas viviam, por vezes, partos tão longos,
ou ainda mais, do que da primeira vez. Tudo isto pouco contribuía para a
reconfortar, para já nem falar que não gostara da parteira, quando a
conheceu. Na verdade, apenas tinha um desejo: meter-se no primeiro
comboio com Antoine e partir ao encontro de Maria. As duas mulheres
tinham-se mantido em contacto ao longo dos anos e, ao ser informada da
gravidez, Maria escreveu a dizer quanto se sentia contente. Os Vallerand
haviam feito inúmeros planos para visitarem os Zuber, mas Antoine nunca
podia afastar-se dos estábulos e tinha, sempre muito trabalho.

Ao final de uma tarde, Beata regressou de um passeio com Amadea. Há


semanas que não se sentia tão bem, com mais energia do que nunca. Fez
bolos com a ajuda de Amadea, depois preparou um jantar mais elaborado
do que era hábito, a fim de fazer uma surpresa a Antoine. Ia a subir para se
mudar para o jantar, quando sentiu uma dor familiar no baixo ventre; há
semanas que andava com estas dores, embora não tão fortes como esta, e
resolveu ignorá-la. Mudou de

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roupa, penteou-se, pôs batom e voltou a descer à cozinha, a fim de se


certificar de que a comida não se queimava.

Quando Antoine regressou a casa, encontrou a mulher de muito bom


humor, embora parecesse bastante agitada ao jantar. Beata continuara a
sentir dores durante toda a noite, mas não as achara suficientemente fortes
para chamar o médico, nem preocupar Antoine. À mesa, Amadea queixou-
se do tempo que o bebé demorava a chegar; os pais riram-se e disseram-
lhe que tivesse paciência. Foi só depois de ter ido aconchegar a roupa à
filha, lá acima, e de descer novamente ao encontro de Antoine, que as
dores aumentaram de intensidade.

Estás bem? inquiriu, ansioso. Servira-se de um copo de brande e


agradecera-lhe o excelente jantar. Mal te sentaste a noite toda.

Passo o dia sentada! Acho, aliás, que descanso demasiado. Desde ontem
que me sinto muito melhor e cheia de energia.

Óptimo. Então, aproveita, mas sem te fatigares. O bebé não tardará a


nascer.

A pobre Amadea está farta de esperar replicou, ao mesmo tempo que


sentia uma dor aguda, mas sem querer mencioná-la ao marido.

Antoine parecia estar a apreciar este momento de descontracção, pois


andava extremamente ocupado nos estábulos, desde que tinham comprado
quatro novos garanhões. Sentado num sofá, com o copo de brande na mão,
admirava a mulher. Achava-a lindíssima, apesar da enorme barriga. De
súbito, e sem que percebesse porquê, Beata dobrou-se em duas, tamanha
foi a dor. Em seguida, a co ntracção desapareceu com a mesma rapidez
com que a atacara.

O que se passa, Beata? Estás bem? Talvez seja melhor chamar o médico.

Contudo, ambos sabiam que o nascimento ia demorar. Isto era apenas o


começo. Beata lembrou- se de que, da primeira vez, estivera assim durante
horas; o trabalho de parto só começara ao romper do dia, e Amadea só
nascera quinze

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horas depois. O médico tinha-a avisado que, agora, ainda podia levar mais
tempo, e ela desejava ficar o máximo de tempo possível com Antoine,
antes da chegada do médico e da parteira.

Vou deitar-me uns minutos declarou. De qualquer maneira, o bebé não


nascerá provavelmente antes de amanhã de manhã.

Eram dez da noite. Beata subiu lentamente a escada, seguida de Antoine.


Desatou a rir quando o marido se ofereceu para levá-la ao colo, mas
interrompeu-se bruscamente ao entrar no quarto, fulminada por uma dor
que lhe atacou os rins e o baixo ventre. Enquanto ela ofegava de dor,
Antoine deitou- a suavemente em cima da cama, interrogando-se como é
que a mulher podia ter esquecido. Contudo, ela agora lembrava-se de tudo.
Com as primeiras contracções, a recordação daquilo por que passara
reavivou- se.

Antoine observava a mulher, que lhe suplicou para que esperasse mais um
pouco, pelo menos uns minutos, antes de chamar o médico.

Eles não querem que fiques comigo justificou, num tom angustiado.

Estarei no quarto ao lado, prometo. Tal como Maria o fizera há oito anos,
Beata pusera de lado uma pilha de lençóis velhos e toalhas. Receava que
Amadea ouvisse do seu quarto os sons horríveis que acompanhavam o
parto. Esperava que, com um pouco de sorte, a filha estivesse na escola
quando o bebé nascesse, o momento mais doloroso. Sentiu de novo duas
violentas contracções, cuja intensidade lhe pareceu diferente, desta vez;
era como se um camião a tivesse trespassado de lado a lado. Ante a
contracção seguinte, deitou um olhar assustado a Antoine.

Oh, meu Deus! O bebé vai nascer...

Sei muito bem que o bebé vai nascer respondeu ele, com um ar calmo,
descontraído pela bebida. Reconhecia os sinais de que a mulher estava em
trabalho de parto, mas desta vez sabia o que esperar e não se sentia
preocupado. Vou telefonar ao médico. Onde está o número?
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Não... não estás a perceber... ofegou ela, agarrando-se-lhe. Não consigo...


não posso... o bebé vai nascer! De súbito, sem qualquer aviso, Beata soltou
um enorme gemido, ficou muito branca e depois afogueada. Estava a fazer
força. Não conseguia controlar-se. O bebé ia nascer.

Deixa de fazer força. Vais fatigar-te disse Antoine, lembrando-se das


recomendações que Maria fizera há oito anos.

Embora faltassem horas, achava melhor chamar já o médico. Contudo,


Beata agarrava-lhe a mão e não queria largá-lo. E Antoine percebeu o que
estava a acontecer. A mulher não se encontrava apenas em trabalho de
parto, estava, literalmente, a ter o filho. Não era o que esperava. Sentia-se
um pouco tonto devido ao brande, quando olhou entre as pernas dela e
avistou a cabeça do bebé a sair. Ignorava que o trabalho de parto não
começara há cinco minutos, como julgara, mas no início da tarde e que
Beata se recusara a admiti- lo.

Deita-te declarou num tom firme, mas sem ter a mínima ideia do que
havia de fazer.

Tudo o que se recordava era do que vira Maria fazer durante as horas
infindas que haviam antecedido o nascimento de Amadea. Não se atrevia a
deixá-la só para ir procurar o número de telefone do médico e não havia
ninguém que os ajudasse. Pensou em chamar Véronique, mas receava que
esta ainda soubesse menos do que ele. Tentou afastar-se um pouco para
pegar na agenda de moradas, mas Beata não o largou.

Não, Antoine... Preciso de ti... Suplico-te... Antoine... oh, não!... Deus do


céu! Que alguém me ajude!

Tem calma, querida... Tudo correrá bem... Estou aqui... Não vou deixar-
te... garantiu, embora não soubesse o que fazer, além de manter-se ao lado
dela.

Vai buscar toalhas! gritou Beata.

Antoine correu para a casa de banho e regressou com os braços cheios de


toalhas, que começou a pôr por baixo e à volta dela. Ao ver que Beata
tinha o rosto distorcido pela dor, agarrou-lhe nos ombros como fizera da
primeira vez, só que agora ela não teve de esforçar-se, pois o bebé
encarregou-se de tudo. 115

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Beata soltou um grito e, segundos depois, um pequeno rosto surgiu, de


boca aberta e emitindo um vagido. Os dois pareceram chocados ao ouvi-lo.
Antoine nunca assistira a nada de tão surpreendente. Enquanto os ombros e
depois o resto do corpo saiu, continuou a falar a Beata. Em breve, uma
menina soltou os seus primeiros gritos. Antoine pegou-lhe, pousou-a
meigamente numa toalha e estendeu-a à mãe. Inclinou-se e beijou as duas,
enquanto Beata ria por entre as lágrimas. Todo o processo demorara menos
de meia hora! Antoine ainda estava debaixo do choque quando telefonou
ao médico. Este pediu-lhe que não cortasse o cordão e esperasse a sua
chegada; morava a menos de cinco minutos do castelo e conhecia a casa
deles. Antoine sentou-se de novo junto de Beata e beijou a mãe e a filha.

Amo-te, Beata, mas não voltes a fazer-me isto... Não sabia como te
ajudar... Porque é que não me deixaste chamar o médico?

Pensei que o bebé só nasceria daqui a umas horas e queria estar contigo...
Desculpa. Não quis assustar- te..

Também ela sentira medo. Tudo acontecera tão rápidamente! Nunca


julgara que o bebé nascesse sem qualquer aviso. E, exceptuando algumas
contracções, tudo se desenrolara com uma facilidade surpreendente.

O médico chegou uns momentos depois, cortou o cordão umbilical e,


depois de as ter examinado, declarou que a mãe e filha estavam em
excelentes condições de saúde.
Como vê, meu caro, não precisou de mim. Acho que” o próximo nascerá
ainda mais depressa. Sim, mas será no hospital retorquiu Antoine, ainda
abalado, enquanto agradecia ao médico.

O médico chamou a parteira para que se ocupasse da mãe e da filha e, à


meia-noite, as duas repousavam tranquilamente na cama. Este bebé em
nada se assemelhava a Amadea. Era muito mais pequeno, o que explicava
a facilidade e a rapidez do parto. Também era mais manerinnha, parecendo
ter herdado a delicada constituição óssea da mãe, contrariamente a
Amadea, alta e elegante como o pai. O bebé também tinha

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o cabelo preto de Beata, mas ainda era demasiado cedo para saber a cor
dos olhos. Parecia muito calmo e descontraído nos braços da mãe.

De manhã, ao entrar no quarto dos pais, Amadea soltou um grito de


alegria. Não ouvira nada durante a noite, e Beata deu graças pelo sono de
chumbo da filha.

Ela chegou! Ela chegou! exclamou Amadea, dançando pelo quarto, antes
de vir observar a irmã de perto. Que nome vamos dar-lhe? Posso pegar
nela?

Na véspera, antes de adormecerem, Antoine e Beata tinham falado de


alguns nomes, mas queriam esperar até consultarem Amadea.

Que tal Daphne? sugeriu Beata.

Amadea fitou o bebé com um ar sério, reflectiu um longo momento e, por


fim, assentiu com a cabeça.

Sim, gosto.
Os pais descontraíram-se, aliviados. A filha trepou para cima da cama, ao
lado da mãe, e Beata pôs-lhe suavemente o bebé nos braços. Os olhos
encheram-se-lhe de lágrimas, ao fitá-las. Não tivera, realmente, o filho
que desejara dar a Antoine, mas sentia o coração transbordante de alegria
ante as filhas, uma loura, a outra morena. Ao erguer o rosto, Beata deparou
com Antoine que as observava da ombreira da porta, com um sorriso nos
lábios. Entreolharam-se, saboreando o momento por que esperavam há
oito anos.

Amo-te articulou em silêncio, mais apaixonada do que nunca pelo marido.

Ele esboçou um aceno de cabeça, com os olhos cheios de lágrimas. Pouco


importava o que haviam

perdido no passado, ambos tinham agora tudo o que desejavam.

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CAPÍTULO 7

Quando Daphne fez dois anos, Amadea tinha dez e não havia dúvida de
que o bebé era dela. Ocupava-se da menina o tempo todo e levava-a para
todo o lado. Era como uma boneca com quem nunca parava de brincar; e
Amadea era muito eficiente como mãe. Quando ela estava presente, Beata
não precisava de preocupar-se. Amadea só deixava a irmã quando ia para a
escola ou ao visitar o pai nos estábulos.

Aos dez anos, Amadea era uma excelente cavaleira. Já conquistara vários
prémios e sabia muito sobre cavalos. Antoine orgulhava-se dela com
razão. Adorava Beata e as suas duas filhas. Era um pai e um marido
extraordinário. Beata sabia que era, indubitavelmente, uma mulher de
sorte.

Numa tarde de Junho, dois meses depois de as filhas terem festejado os


seus aniversários, Antoine recebeu um telegrama, seguido de uma carta.
Opai morrera subitamente, sem nunca ter voltado a falar- lhe, nem
perdoado pelo crime que, aos seus olhos, ele cometera. Apesar da raiva
que o pai sentira contra ele, Antoine, na qualidade de filho mais velho,
herdara o título, as terras e a fortuna. Regressou tarde a casa, com o
telegrama na mão, e uma expressão inquieta.

Passa-se alguma coisa? perguntou Beata, que o conhecia bem.

Acabas de tornar-te condessa.

Beata demorou um momento a compreender. Sabia como Antoine tinha


sofrido por estar separado do pai. E, agora, nada mudaria a situação. Para
Antoine, era uma imensa perda.

Lamento replicou ela, meigamente. Aproximou-se do marido e abraçou-o.


Antoine apertou- a longamente de encontro ao corpo, depois suspirou e
sentou-se. O telegrama, enviado pelo notário do pai, informava que o
funeral ocorrera na semana anterior. Nem sequer os haviam prevenido.

Quero ver o meu irmão declarou, com uma expressão ausente. Tudo isto já
durou tempo de mais e preciso

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de resolver esta história. Tenho de ir a Dordogne falar com os advogados.

Doravante, tinha decisões a tomar, terras a administrar, não podia manter-


se ausente. Herdara o castelo, bem como uma fortuna substancial de que
uma pequena parte iria para o seu irmão Nicholas. Contudo, naqueles
momentos após saber a notícia, Antoine decidira que queria que o irmão
recebesse metade. O título e a propriedade eram de Antoine, mas,
contrariamente à tradição, achava que o dinheiro devia ser repartido em
partes iguais. Além disso, agora tinha o suficiente para poder mostrar-se
generoso. Amanhã terei de falar ao Gérard. Preciso de ir a França nas
próximas semanas e ignoro quanto

tempo vou ficar.


Ambos sabiam que a sua vida no castelo dos Daubigny chegara ao fim.
Haviam passado ali oito anos maravilhosos, mas, como conde de
Vallerand, Antoine tinha novas responsabilidades. Após haver sido banido
durante onze anos, chegara a altura de o filho pródigo regressar a casa. De
um dia para o outro, Beata tornara-se condessa. Eram muitas mudanças, e
Antoine sabia que lhe cabia explicar tudo a Amadea. Antes do mais,
Antoine falou com Gérard. Os dois homens tiveram uma longa conversa
ao pequeno-almoço, na manhã seguinte. Antoine aceitou ficar mais umas
semanas e, depois de ter contactado com os advogados em França,
prometeu regressar à Alemanha, no mínimo um mês, para contratar e
treinar um substituto. Sugeriu vários nomes que pareceram agradar a
Gérard, que, no entanto, se sentia devastado com o facto de perdê-lo. Há
anos que eram amigos e Antoine fizera milagres com os estáb ulos os
Daubigny tinham a criação de cavalos mais importante da Europa, entre os
quais, campeões de renome. Dois dias mais tarde, sabendo que em breve
iriam separar-se, Antoine propôs a Gérard que fossem experimentar juntos
dois novos garanhões, de forte personalidade e particularmente elegantes,
que ele acabava de comprar num leilão. Amadea ficou a vê-los afastarem-
se, lamentando não poder

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acompanhá-los, mas o pai proibira-a. Em vez disso, regressou a casa para


junto da irmã. Mais tarde, estava a brincar com ela no quarto, quando
ouviu soar a campainha da porta e ouviu a mãe mandar entrar alguém.
Contudo, Amadea não prestou atenção e continuou a brincar às bonecas
com Daphne. Só mais

tarde, quando desceu para ir buscar um biscoito à irmã, é que viu Gérard e
um dos treinadores do pai sentados na sala, com a mãe. Beata tinha o olhar
vidrado e pareceu surpreendida ao avistar Amadea. Volta lá para cima
ordenou num tom severo, que nunca usava.

Amadea ficou tão sobressaltada que obedeceu imediatamente, dando meia


volta. Mas uma vez no quarto, com a irmã, o medo invadiu-a. A garota
sentiu que algo de terrível se passara.

Parecia-lhe que haviam passado horas quando, por fim, a mãe subiu ao
andar de cima, desfeita em lágrimas. Mal conseguia falar, quando a
abraçou e lhe disse que o pai fora atirado ao chão pelo novo cavalo.

Está ferido? perguntou Amadea, em pânico. Ainda que só dispusesse de


um braço válido, o pai era um cavaleiro fora de série. Beata só conseguiu
abanar a cabeça, soluçando e necessitando de uma eternidade antes de
encontrar força para pronunciar as palavras:

O papá morreu, Amadea... O papá...

As palavras estrangularam-se-lhe na garganta e Amadea desatou a chorar


nos braços da mãe. Um pouco mais tarde, Véronique apareceu para se
ocupar das miúdas, enquanto Beata foi ver Antoine aos estábulos. Ele
quebrara o pescoço e tivera morte imediata. O homem por quem teria dado
a vida estava morto. Era uma dor quase insuportável.

O funeral foi um suplício. A igreja abarrotava de gente. Todos os que


conheciam ou tinham trabalhado com Antoine gostavam dele. Gérard
pronunciou um eloquente discurso fúnebre e Véronique, sentada ao lado de
Beata, rodeava- lhe

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os ombros com um braço. Seguiu-se uma recepção no castelo. Vestida de


luto e de mão dada com as filhas, Beata parecia um fantasma.

Além disso, tinha tanta coisa em que pensar. Este homem que tanto amara
e por quem desistira da família, que a amara e nunca a atraiçoara, já não
estava ao seu lado. Não fazia ideia para onde ir, o que fazer, ou para quem
se virar. Gérard ajudou-a o máximo que pôde e Véronique não a deixou um
único instante. A fim de que solucionasse as intermináveis formalidades
da sucessão, Gérard ofereceu-lhe a ajuda dos seus próprios advogados em
França. A fortuna que Antoine recebera do pai há umas semanas pertencia-
lhe, agora. Ele já decidira legar metade ao seu irmão Nicolas, mas o
restante era mais do que suficiente para assegurar o futuro de Beata e o das
filhas. Não se permitiriam grandes luxos, mas poderia comprar uma casa e
garantir a sua subsistência e a das filhas até ao fim da sua vida. De um
ponto de vista financeiro, não tinha com que se preocupar. Contudo,
perdera Antoine e ficara viúva aos trinta e dois anos. Amadea sabia que
jamais esqueceria o dia da morte do pai. E, em breve, teriam de abandonar
a

casa onde ela crescera. A vida delas estava prestes a sofrer mudanças
radicais que apenas a pequena Daphne, pequena de mais, ainda não podia
entender, contrariamente à mãe e à irmã que as entendiam bastante bem.
Beata tinha a sensação de que a sua vida terminara.

O título de conde passou para Nicolas, bem como as terras que lhe
estavam ligadas. Agora, o castelo pertencia-lhe. O conde Nicolas de
Vallerand era, doravante, um homem rico, como Antoine o seria, caso
tivesse vivido o suficiente sobrevivera menos de quinze dias ao pai.
Contudo, pouco importava a Beata perder o que nunca tivera. Só lhe
interessava a perda de Antoine.

Passado algum tempo, um homem com quem Antoine trabalhara e de


quem gostava, sucedeu- lhe nas estrebarias. Com a ajuda de Gérard e de
Véronique, Beata encontrou uma casa em Colónia, para onde se mudou
com as filhas durante o Verão. Recebeu uma carta fria e delicada do
cunhado

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a apresentar-lhe condolências, mas sem expressar o mínimo desejo de a


conhecer ou ver as filhas de Antoine. Beata detestava-o por ter feito sofrer
Antoine; tal como a sua própria família, também Nicolas os tratara com
crueldade. Durante todo o tempo do casamento, Beata e Antoine haviam
sido párias, tendo os Daubigny como únicos amigos. Era demasiado tarde
para que ela desejasse conhecer o cunhado e, aliás, ele não fez tal
proposta. Parecia visivelmente desejoso de manter as coisas como
estavam. Sobretudo agora que Antoine desaparecera. E Beata sentia
nitidamente que o irmão de Antoine a culpava p elo afastamento de
ambos, embora tivesse tido a decência e a delicadeza de dirigir a carta a
”Senhora Condessa”, o que ela continuava a ser. Mas para a jovem viúva,
um título jamais substituiria o defunto marido.: Beata nunca respondeu à
carta do cunhado, nem explicou a Amadea os motivos da sua cólera contra
o irmão do seu pai. Não via qualquer interesse em fazê- lo.

Durante o ano seguinte, Beata viveu na nova casa como um fantasma,


sentindo-se agradecida a Amadea por ela se ocupar a tempo inteiro da
irmãzinha. Dava-lhe banho, vestia-a, brincava com ela e passava com
Daphne todo o tempo em que não estava na escola. Amadea era para
Daphne a mãe que Beata já não poderia ser. Era como se Antoine, ao
morrer, a tivesse levado também; sem ele, Beata perdera o desejo de viver.
Por vezes, Amadea afligia-se ao ver que a mãe se tornara profundamente
religiosa. Passava a maior parte do tempo na igreja e, frequentemente, ao
voltar da escola, Amadea encontrava Daphne sozinha com a governanta,
que se limitava a abanar a cabeça quando ela lhe perguntava pela mãe. A
menina tinha apenas onze anos, mas, de um dia para o outro, tornara-se o
único membro responsável da família. Sem saber o que mais fazer,
passava algumas vezes horas na igreja, em silêncio, ao lado da mãe,
apenas para ficar com ela, era ali que Beata queria estar, era ali que se
sentia em paz. Todavia, em vez de criar horror pela igreja, Amadea ligou-
se-lhe. Adorava ir até lá com a mãe. A sua melhor amiga

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pertencia a uma grande família católica e, quando Amadea fez treze anos,
a irmã mais velha dessa amiga tornou-se freira, o que ela achou
simultaneamente misterioso e intrigante. As duas rapariguinhas falavam
muitas vezes desta vocação religiosa, e Amadea interrogava-se como é que
se obteria. Parecia-lhe algo de bom.
Foi nesse momento que o comportamento da mãe começou a surpreender
Amadea. Não só ia todos os dias à igreja, como, algumas vezes,
frequentava uma grande e imponente sinagoga, cheia de pessoas com um
ar distinto. Um dia, a mãe levou-a para o que designou de Yom Kippur.
Embora fascinada, Amadea sentiu-se também um pouco assustada, ao ver
que a mãe se sentara de olhos fixos numa mulher de idade, que pareceu
não reparar nela. Nessa mesma noite, Amadea foi encontrar a mãe a
examinar um monte de velhas fotografias, amarelecidas pelo tempo.

Quem são essas pessoas, mamã? perguntou Amadea num tom meigo.

Amava profundamente a mãe, mas há três anos que tinha a sensação de a


ter perdido; de uma certa forma, a mãe que conhecera e tanto amara tinha
desaparecido ao mesmo tempo que o pai. Desde que este morrera que não
se ouviam risos na casa, excepto quando Amadea brincava com Daphne.

São os meus pais, com os meus irmãos e a minha irmã respondeu


simplesmente Beata.

Até então, Amadea nunca ouvira uma palavra a respeito deles. O pai
apenas lhe tinha dito que a mãe e ele eram órfãos, quando se conheceram.
Adorava que os pais lhe contassem o dia em que se tinham conhecido,
como se haviam apaixonado e como a mãe parecera bonita no dia do
casamento. Sabia que se tinham conhecido na Suíça e haviam vivido com
os primos do pai até ela fazer dois anos, mudando- se depois para a casa
onde crescera.

De vez em quando, Amadea ainda ia até aos estábulos, mas montar a


cavalo entristecia-a e recordava-lhe a falta do Pai. Há muito que a mãe
vendera o seu pónei. Gérard e Véronique recebiam- na sempre
alegremente, mas ela sentia que

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a mãe não gostava de vê-la por lá; receava que lhe acontecesse qualquer
coisa, como ao pai. Por conseguinte, Amadea pusera termo a estas visitas,
embora sentisse saudades de montar.

Estão todos mortos? insistiu Amadea, fitando as fotografias.

Não respondeu a mãe, deitando-lhe um olhar estranho. Sou eu que estou


morta.

Beata não acrescentou mais nada e, ao cabo de um momento, Amadea


voltou para junto de Daphne. Aos cinco anos, esta era uma miúda muito
alegre que só tinha olhos para a irmã. Amadea era como uma mãe para ela.

Depois daquela primeira vez em que levou Amadea consigo, Beata


regressava, uma vez por ano, à sinagoga na altura do Yom Kippur, o dia do
perdão e da expiação dos pecados, o dia do julgamento de Deus. Beata
educara as filhas segundo a religião católica e acreditava profundamente
no que lhes ensinava. Mas, se continuava a ir à sinagoga uma vez por ano,
era para ver a sua família. Eles estavam lá, todos os anos, as mulheres de
um lado, os homens do outro. E levava Amadea na sua companhia.
Contudo, nunca lhe explicou o motivo, sentindo que, depois de todo este
tempo, era demasiado complicado. Antoine e ela sempre lhe haviam dito
que as respectivas famílias estavam mortas, e Beata não queria admitir
que mentira perante as filhas, nem que a mãe delas era judia.

Porque é que queres sempre ir à sinagoga? inquiriu, um dia, Amadea,


curiosa.

Acho que é interessante. Tu não?

Foi a única explicação que Amadea recebeu; quando fez quinze anos,
confiou à sua melhor amiga que a atitude da mãe a arrepiava Todavia,
Amadea não tinha dúvidas de que, desde a morte do pai há cinco anos, a
mãe nunca mais ficara normal. Era como se o choque tivesse sido
demasiado para ela, e Amadea sentia, justificadamente, que a mãe só
aspirava a juntar-se-lhe. Aos trinta e oito anos, Beata ainda era uma
mulher bonita, mas apenas esperava a morte. Amadea sabia- o.
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Quando Amadea tinha dezasseis anos Daphne apenas oito, prometera levar
a irmã à sua aula de ballet no dia do ano em que a mãe ia à sinagoga, no
Yom Kippur. Sentia-se aliviada por ter uma desculpa, pois, sem saber
porquê, aquela visita anual deprimia-a sempre. Preferia, sem dúvida,
acompanhar a mãe à igreja e, nos últimos tempos, começara a rezar para
saber se tinha vocação religiosa, como a irmã da sua amiga. Começara a
achar que sim, embora não tivesse dito uma palavra a ninguém.

Beata foi, portanto, sozinha à sinagoga, como sempre fazia, com o rosto
tapado por um véu. E, como todos os anos, viu-os. Sabia que podia ter ido
noutras alturas, mas o Yom Kippur parecia-lhe o melhor dia para pedir
perdão por ela e pela família. Avistou a mãe, que lhe pareceu mais
debilitada do que nos anos anteriores. Como por milagre, viu-se sentada
mesmo atrás dela. Se se atrevesse, podia estender a mão e tocar- lhe

De súbito, como se tivesse sentido o olhar penetrante de Beata nas suas


costas, Monika virou-se e fixou a mulher sentada atrás dela. Apenas lhe
distinguia o chapéu e o véu, mas Monika sentiu que havia algo de familiar
na figura. Antes que pudesse voltar-se de novo para a frente, Beata ergueu
o véu

Mãe e filha entreolharam-se por um longo momento, após o que Monika


assentiu com a cabeça, antes de se virar, com um ar petrificado. Estava
sentada sozinha, no meio das mulheres. Quando saíram da sinagoga, Beata
acertou o passo com o dela. Foi a primeira vez que não sentiu qualquer
reticência da parte da mãe. Monika ficara perturbada com a imensa
tristeza que lera nos olhos da filha. Quando as duas mulheres saíram da
sinagoga lado a lado, as mãos tocaram-se. Beata agarrou meigamente na
mão da mãe e apertou-a, sem que Monika se opusesse. Depois, sem uma
palavra, a mãe foi ao encontro do pai. Este ainda tinha um porte orgulhoso,
apesar de estar muito mais velho contava agora sessenta e oito anos e a
mãe sessenta e três. Beata ficou a vê-los afastarem-se da sinagoga e depois
regressou a casa, de táxi.

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Como é que foi? interessou-se Amadea nessa noite, ao jantar.

Como foi o quê? retorquiu Beata, desconcertada. Era raro falar à mesa e,
nessa noite, parecia especialmente distraída. Continuava a pensar na mãe.
Há dezassete anos que não se falavam e tanta coisa acontecera desde essa
altura, o nascimento das filhas, a morte do marido, o seu título de
condessa um título que nada significava aos seus olhos, mas que, decerto,
teria impressionado a irmã. Muitas coisas haviam mudado na sua vida.

Não era hoje o dia da tua visita anual à sinagoga? Porque é que o fazes,
mamã?

Amadea sabia que a mãe era uma intelectual e que sempre se sentira
fascinada pela religião. Talvez fosse a curiosidade religiosa ou uma atitude
de respeito por outros povos, o que a levava à sinagoga. Conhecia a
profunda devoção da mãe pela fé católica.

Porque gosto.

Beata não queria confessar à filha mais velha que ia até lá para ver a mãe e
que, naquele dia, chegara a tocar-lhe na mão. Embora Monika e ela não
tivessem trocado uma só palavra, o simples gesto de agarrar na mão da
mãe, reavivara-a. Desde a morte de Antoine que sabia, no mais íntimo de
si, que precisava de ver a mãe. Esta constituía o elo entre o passado e o
futuro, tal como Beata o era entre Monika e as suas filhas.

Acho revoltante que os judeus já não tenham o direito de estarem ligados à


imprensa ou possuírem terras. E também que alguns deles sejam enviados
para campos de trabalho comentou espontaneamente Amadea, com uma
expressão indignada.
Hitler fora nomeado chanceler em Janeiro e, desde essa época, que tinham
sido promulgadas leis contra os judeus. Beata achava a situação
degradante, como a maioria das pessoas, mas ninguém podia fazer nada
para impedi-lo. Contudo, e por uma série de motivos, a corrente anti-
semita do momento inquietava-a muito.

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E o que sabes a esse respeito? retorquiu Beata.

Muita coisa, na verdade. Assisti a várias conferências dadas por uma


mulher chamada Edith Stem. Ela afirma que as mulheres deviam
desempenhar um papel na política, na sua comunidade e na nação.
Escreveu ao Papa a condenar o anti-semitismo. Li o seu livro A Vida de
Uma Família Judia. É de origem judia, mas tornou-se recentemente freira.
Há onze anos que se converteu ao catolicismo, mas os nazis ainda a
consideram judia e proibiram-na de ensinar e de dar conferências. Vive
actualmente num convento de Carmelitas de Colónia. É uma mulher muito
famosa.

Eu sei. Li vários artigos sobre ela. Acho-a interessante.

Era a primeira vez que mãe e filha se falavam como adultas, a primeira
conversa séria que tinham desde há anos. Encorajada por esta
aproximação, Amadea resolveu abrir o coração à mãe. Sentia- se
impressionada pelo facto dela também conhecer Edith Stem.

Por vezes, penso que também eu gostava de ser freira. Uma vez falei do
assunto a um padre e ele respondeu que achava bem.

Beata observou a filha, perturbada, compreendendo, pela primeira vez


desde há seis anos, até que ponto havia negligenciado Amadea e como ela
devia sentir-se só. Além das amigas da escola, a sua única companhia em
casa era uma criança com metade da sua idade. Para Beata, este foi o
alerta de que devia prestar mais atenção à filha. Há seis anos que Antoine
desaparecera e Beata sentia-se como se tivesse partido com ele.

O teu pai não teria gostado que fosses freira. Beata recordava-se do que ele
dissera quando o padre André, que os casara, tinha comentado que ela
devia tornar-se freira. Antoine desaprovara vigorosamente esta ideia, não
só porque ia casar com ela, mas porque achava que era um desperdício
para as mulheres. Na sua opinião, as mulheres deviam casar e ter filhos.
Mais tarde devias casar e ter filhos acrescentou.

127

122

Beata tentava fazer eco das palavras de Antoine, como se tivesse podido
falar no lugar dele o que sentia, aliás, ser seu dever, uma vez que ele já não
podia fazê- lo.

Talvez nem toda a gente seja feita para ter filhos. A irmã da Gretchen foi
para freira há três anos e sente-se feliz. Pronunciou os votos no ano
passado.

Ao escutar Amadea, Beata tomou consciência de até que ponto se


encontrava longe da filha, que parecia disposta a entrar no convento mais
próximo. Apercebeu-se de que devia prestar-lhe mais atenção e falar-lhe,
não só para que levasse Daphne ao balé, ou a deixasse na escola, mas para
saber o que lhe interessava e conhecê-la melhor. Esperava que não fosse
demasiado tarde para estabelecer esse laço entre as duas. Compreendeu, de
uma forma brusca, que, desde a morte de Antoine, deixara que as coisas
acontecessem e, cada dia, se afastara mais das filhas. O seu corpo estava
presente, mas não o seu espírito. Não quero que vás a conferências como
as de Edith Stein, Amadea, nem que te juntes a organizações radicais, se é
o que tens andado a fazer. E presta atenção quando falares contra a política
de Hitler, excepto aqui.

Concordas com ele, mamã? - replicou Amadea, com uma expressão


chocada.
Não, de modo algum. Só que é perigoso ser contestatária. Mesmo na tua
idade, podes chamar as atenções e colocares-te em risco.

Beata sentiu como se o espírito finalmente se lhe desanuviasse e


conversou com Amadea de uma forma instrutiva. A filha era uma jovem
extremamente inteligente. Fazia-lhe lembrar as questões que colocara
quando tinha a idade dela, bem como a sua paixão pela filosofia e a
política. Passara horas a discutir com os irmãos e os amigos deles,
contrariamente a Amadea que não tinha ninguém com quem falar destas
coisas. À excepção dela. Amadea percebeu que a mãe estava a falar a sério
e acrescentou que se sentira revoltada com a queima de livros do mês de
Maio. Não lhe agradava nada o que via e ouvia, nem tão-pouco à mãe.

Porque é que eles queimaram livros? interferiu Daphne, parecendo


confusa.

128

123

Porque tentam assustar as pessoas e intimidá-las respondeu Amadea. E


enviam gente para campos de trabalho por serem judeus. Este ano, no dia
do meu aniversário, os nazis disseram mesmo às pessoas que não fossem a
lojas de judeus.

Por tua causa? replicou Daphne, estupefacta com o que a irmã acabava de
dizer- lhe.

Não. Foi só uma coincidência sorriu Amadea. Mas, de qualquer maneira,


uma acção maldosa.

Os judeus têm um ar diferente dos outros? interessou-se a miúda, curiosa,


e Amadea pareceu escandalizada.

Claro que não. Porque é que dizes uma coisa dessas?

Aminha professora diz que os judeus têm caudas respondeu Daphne com
um ar inocente, enquanto a mãe e a irmã a fitavam, horrorizadas.

É falso retorquiu Beata, interrogando-se sobre se não teria chegado a


altura de dizer-lhes que era judia.

Todavia, não se atreveu a fazê-lo. Há tantos anos que se tornara católica! E


algumas pessoas diziam que os nazis só atacavam judeus pobres, sem
abrigo e criminosos, não pessoas como ela e a sua família. Diziam que os
nazis apenas queriam livrar a Alemanha dos criminosos. Tinha a certeza
de que eles jamais perseguiriam judeus respeitáveis, mas não a suficiente
para confessar a verdade às filhas.

Nessa noite, a conversa à mesa foi interessante e o jantar prolongou-se por


mais tempo do que o habitual. Beata nunca se tinha apercebido do quanto
Amadea se interessava pela política, nem até que ponto ela era
independente. Também não se dera conta de que a filha se esforçava por
saber se tinha vocação religiosa, o que Beata achava mais inquietante do
que as suas tendências políticas radicais. Receava que Amadea tivesse sido
influenciada pelas conferências e os escritos de Edith Stein. Ou, pior
ainda, pelo facto de esta se haver tornado carmelita. Este tipo de coisas
podia influenciar extremam ente uma jovem, para nem falar da irmã mais
velha da sua melhor amiga.

129

124

E Beata não queria nada disso para a filha. Contudo, tinha consciência de
que, durante todos estes anos, em nada contribuíra para fazer pender o
prato da balança para o outro lado. Não tinha vida social nem amigos e não
visitava ninguém, excepto os Daubigny e, mesmo estes, raramente.
Durante onze anos, enquanto Antoine fora vivo, dedicara toda a sua vida
ao marido e às filhas. Desde a morte dele que vivia como uma reclusa e
não via forma de mudar as coisas, nem tão-pouco o desejava. Contudo,
podia, pelo menos, prestar mais atenção ao que acontecia no mundo. A
filha parecia estar muito mais informada do que ela. Beata sentia-se,
porém, inquieta com as suas posições relativas ao anti-semitismo e
esperava que ela não as expressasse na escola. No dia seguinte, quando a
filha saiu para as aulas, recomendou-lhe que tivesse cuidado: criticar os
nazis era perigoso, em qualquer idade.

Na semana seguinte, Beata voltou à sinagoga. Não queria esperar mais um


ano para ver novamente a mãe. Desta vez, sentou-se de propósito atrás
dela e não precisou de erguer o véu. A mãe reconheceu- a assim que a viu.
No fim do serviço religioso, Beata meteu-lhe na mão um pedaço de papel
com a sua morada e o número de telefone. Mal a mãe fechou a mão, Beata
desapareceu no meio da multidão e foi- se embora, sem esperar para ver o
pai. De momento, apenas podia rezar para que a mãe tivesse a coragem de
telefonar-lhe. Queria tanto vê-la, abraçá-la e falar-lhe! E, mais do que
tudo, queria que ela conhecesse as suas filhas.

Seguiram-se dois dias de uma espera angustiante; por fim, o telefone


tocou. Quis o destino que fosse Amadea a atender. Iam a levantar-se da
mesa depois do jantar e Beata acabara de propor um jogo a Daphne.
Amadea tinha notado que, há uns dias, a mãe parecia muito melhor,
fazendo esforços para participar na conversa delas e sair do longo
marasmo em que se encontrava desde a morte de Antoine.

É para ti anunciou ela.

Quem é? perguntou Beata, momentaneamente esquecida do telefonema


que aguardava e julgando tratar-se de Véronique.

130

125

Há meses que andava a pedir a Beata que lhe fizesse um vestido para a
festa de Natal, certa de que a costura seria uma boa terapia. Mas Beata
andava a evitá-la. Desde a morte de Antoine que não tinha tocado numa
agulha, excepto, de vez em quando, para fazer algo simples para as filhas.
Deixara de ter interesse em fazer trajos de noite ou vestidos elaborados.
Além disso, já não precisava dessa ajuda financeira.
Não disse respondeu Amadea, pegando na mão de Daphne e subindo com
ela ao andar de cima, enquanto Beata se dirigia ao telefone.

Está? disse Beata e sentiu um nó na garganta ao escutar a voz. Não havia


mudado.

Beata? murmurou a mãe, receosa de que alguém pudesse ouvi- la.

Jacob saíra, mas todos sabiam que ela não tinha permissão de falar com a
filha; esta estava morta. Oh, mamã! Obrigada por ter telefonado. Estava
tão bonita na sinagoga. Não mudou nada. Decorridos dezassete anos,
ambas sabiam que tal era impossível, mas aos olhos de Beata, a mãe
permanecia a mesma.

Tinhas um ar tão triste. Sentes-te bem? Estás doente?

O Antoine morreu.

Lamento muito retorquiu Monika num tom sincero. A filha parecia


devastada e fora por esse motivo que tinha telefonado. Não podia
continuar a voltar-lhe as costas, independentemente do que Jacob dissesse.
Quando?

Há seis anos. Tenho duas filhas. Amadea e Daphne.

Parecem-se contigo? inquiriu a mãe, com um sorriso.

A mais pequena, sim. A mais velha parece-se com o pai. Quer conhecê-las,
mamã?

Seguiu-se um silêncio interminável. Monika sentia-se cansada e a vida não


estava fácil naquela altura.

Sim respondeu finalmente.

Fico tão feliz! exclamou Beata, que parecia uma criança. Quando gostaria
de vir?
Que achas amanhã à tarde, para o chá? Suponho que as meninas já terão
voltado da escola a essa hora.

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126

Estaremos as três à espera.

Lágrimas rolavam pelas faces de Beata. Há anos que rezava para que isto
acontecesse. Operdão. A absolvição. Poder tocar novamente na mãe. Só
uma vez. Apertá-la nos seus braços. Um momento apenas. O que vais
dizer- lhes?

Não sei. Vou pensar no assunto esta noite.

Elas vão odiar-me, se lhes contares a verdade observou Monika


Wittgenstein, tristemente. Contudo, desejava muito voltar a ver a filha, tal
como Beata a mãe. A comunidade judaica vivia tempos difíceis. Jacob
receava que também qualquer dia lhes acontecesse algo terrível, embora
Horst e Ulm garantissem que tal era impossível. Eram cidadãos alemães e
não vulgares judeus errantes. Afirmavam que os nazis perseguiam os
criminosos e não pessoas conceituadas como eles, mas Jacob discordava.
E os dois estavam a envelhecer. Ela precisava de voltar a ver a filha.
Visceralmente. Como se o seu coração reclamasse a parte que lhe fora
arrancada.

Elas não precisam de saber a verdade. Basta-nos deitar as culpas sobre o


papá acrescentou com um sorriso.

Ambas sabiam que Jacob nunca cederia e não existia a mínima hipótese de
que Amadea e Daphne viessem a conhecê-lo algum dia.

Não se preocupe. Encontrarei qualquer maneira. Ficarão excitadíssimas


com a ideia de a ver. E, mamã... hesitou, com um nó na garganta... desejo
tanto vê- la.
Também eu respondeu Monika, parecendo tão impaciente como a filha.

Jacob não tinha o direito de impor-lhe esta situação por mais tempo, nem
ela de aceitá-la ou impô-la à fi lha.

Beata reflectiu a noite toda e, ao pequeno-almoço do dia seguinte,


anunciou às filhas que alguém desejava conhecê-las e apareceria nessa
tarde.

Quem é? perguntou Amadea com um vago interesse. Tinha um teste nesse


dia e sentia-se cansada porque ficara acordada até tarde a estudar.

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A vossa avó respondeu Beata após uma breve hesitação. As filhas abriram
muito os olhos. Julguei que estava morta observou Amadea com um ar
céptico, sem saber qual das versões era a

verdadeira.

Menti confessou Beata. Quando casei com o vosso pai, a França e a


Alemanha estavam em guerra e as pessoas sentiam muito o facto, as
nossas duas famílias inclusive. Opapá e eu conhecemo-nos na Suíça, onde
passávamos férias com os nossos pais. E o meu pai queria que eu casasse
com outro homem, alguém que eu nem sequer conhecia.

Era muito difícil explicar tudo aquilo às filhas, nesta altura. A vida
tornara-se tão diferente! Contudo, elas tinham os olhos postos nela. Não
era fácil encontrar as palavras exactas ou explicar o que acontecera há
tanto tempo.

Nenhuma das nossas famílias queria que casássemos prosseguiu, pois o


papá era francês e eu alemã. Sabíamos que tínhamos de esperar pelo final
da guerra e, mesmo assim, não era provável que eles aprovassem. Éramos
jovens e loucos; então, disse ao meu pai que casaria com o papá, quer ele o
quisesse ou não. Ele respondeu que, se o fizesse, nunca mais queria ver-
me. O vosso pai foi ferido na guerra e decidiu esperar por mim na Suíça,
em casa dos primos. Estes disseram que podíamos ficar a morar lá e casar.
Então, parti, o que foi uma decisão muito difícil de tomar, mas eu sabia
que tinha razão. Sabia que o vosso pai era um homem bom e nunca
lamentei tê-lo feito. Contudo, o meu pai nunca mais voltou a ver- me e
obrigou a minha mãe, a minha irmã e os meus irmãos a fazerem outro
tanto. Todas as minhas cartas foram devolvidas por abrir e nunca permitiu
que a minha mãe me visse ou me falasse. Cruzei-me com ela no outro dia.

Beata não lhes confessou que fora na sinagoga, julgando inútil acrescentar
mais uma complicação, revelando que elas eram, em parte, judias. Apenas
serviria para as confundir ou talvez pô-las em risco, dado o ódio de Hitler
em relação aos judeus.

133

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Dei-lhe, então, a nossa morada e o nosso número de telefone rematou. Foi


ela que ligou, ontem à noite. Quer conhecer-vos, por isso convidei-a para
vir tomar chá esta tarde.

Tudo correra com mais simplicidade do que pensara. As filhas fitavam-na


com um ar incrédulo. Como é que o teu pai pôde ser tão mau? inquiriu
Amadea, revoltada. E a família do papá também

fez o mesmo?

Sim. A família dele odiava tanto os alemães, como a minha os franceses.

Que coisa ridícula e cruel! exclamou Amadea, sentindo uma súbita pena
da mãe. Serias capaz de fazer-nos o mesmo?

Não. Mas tudo isto se passou há muito tempo, e foi uma guerra horrível.
Então, porque é que o teu pai não quis ver-te depois?

interferiu Daphne com lógica. Tal como a irmã, era uma criança
inteligente.

Porque é um velho teimoso retorquiu Amadea, num tom cheio de raiva.

Beata perdoara-lhe há muito tempo e aceitara a situação, embora tivesse


passado por vários anos de tormentos, antes de o conseguir.

E os teus irmãos e a tua irmã? prosseguiu Amadea, ainda sob o choque do


que tinha ouvido. Porque é que não querem ver- te?

Não querem desobedecer ao meu pai respondeu simplesmente Beata, sem


especificar que o pai a considerava morta e enterrada.

Deve ser um homem horrível para que toda a gente o receie a esse ponto
concluiu Amadea, sensatamente, sem imaginar como era possível tratar as
pessoas daquela forma.,

E a família do papá também acrescentou.

A tua mãe deve ser corajosa, se decidiu ver-nos. Achas que o teu pai vai
bater-lhe quando ela regressar a casa? inquiriu Daphne, preocupada.

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Claro que não sorriu Beata. Na verdade, não lhe dirá que veio aqui. Ficaria
muito transtornado. Agora está velho e a minha mãe também. Se
soubessem como me sinto feliz por ela vir visitar-nos confessou Beata,
com as lágrimas nos olhos, o que emocionou as filhas. Tem-me feito tanta
falta. Sobretudo desde que o papá mor reu.

Amadea interrogou-se subitamente sobre se as visitas anuais da mãe à


sinagoga estariam relacionadas com tudo isto. Contudo, não ousou fazer a
pergunta. A mãe já havia sofrido demasiado.

Só queria que soubessem a verdade, antes dela aparecer concluiu B eata.

A conversa ensinara-lhes muito sobre a mãe e, a caminho da escola, as


duas jovens ainda se encontravam sob o choque destas revelações
extraordinárias. Era uma impressão estranha saberem que tinham uma avó
e que nunca a haviam conhecido. E não só uma avó, mas também um avô,
uma tia e dois tios.

Sinto-me contente pela mamã com a visita da mãe dela declarou Amadea
num tom pausado. Contudo, acho que passou por uma coisa horrível.
Imagina se a mamã nos fizesse o mesmo...

Sentia uma imensa pena e compaixão pela mãe. Que perda insuportável
deveria ter sido para ela renunciar a todos os que amava por um homem.
No entanto, compreendeu subitamente que, sem esta decisão, ela e Daphne
jamais teriam visto a luz do dia.

Acho que chorava muito respondeu Daphne, impre ssionada.

Sim. Também eu anuiu Amadea com um sorriso e pegando na mão da


irmã. E acho bem que nunca faças nada de estúpido como deixares de
falar-me, se não vais ter de te haver comigo!

Prometido disse Daphne com uma gargalhada. As duas irmãs


prosseguiram o caminho, de mãos dadas,

mergulhadas nos seus pensamentos. Amadea já esquecera a hipótese de os


seus avós poderem ser judeus. Se a mãe era católica, os pais dela também
o seriam.

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CAPÍTULO 8
Quando a campainha da entrada soou às quatro da tarde, Beata ficou
imóvel pelo espaço de um segundo, após o que alisou o vestido e passou as
mãos pelos cabelos. Optara por um vestido preto, muito simples, e um
colar de pérolas que Antoine lhe tinha oferecido no décimo aniversário de
casamento. Estava muito pálida e com um ar sério quando abriu a porta e
quase lhe faltou a respiração ao deparar com a mãe.

Monika estava elegante, como sempre, com um vestido cor de púrpura


debaixo de um casaco preto e um colar de pérolas. Calçava sapatos de
camurça preta com uma bolsa a condizer. As luvas, igualmente de camurça
preta, tinham sido feitas por medida. Mergulhou o olhar no da filha e, sem
uma palavra, lançaram-se nos braços uma da outra.

Beata sentiu-se repentinamente uma jovenzinha que tivesse perdido a mãe


e voltasse a encontrá- la. Apenas desejava apertar-se de encontro a ela,
apalpar-lhe o rosto e a textura sedosa dos cabelos. A mãe continuava a
usar o perfume de sempre. E, como se tivesse sido no dia anterior,
lembrou-se do horror do dia em que partira.

No entanto, tudo isso acabara agora. Voltavam a encontrar-se, e os anos


passados eram uma mera recordação. Beata conduziu a mãe até à sala de
estar, e sentaram-se no sofá, lado a lado, com os rostos inundados de
lágrimas. Beata levou algum tempo, antes de conseguir falar.

Obrigada por ter vindo, mamã pronunciou finalmente. Tive tantas


saudades...

Mais do que conseguiria dizer ou imaginar. Veio-lhe tudo à memória,


todos os momentos em que tanto desejara que a mãe estivesse ao seu lado:
no dia do casamento, quando Amadea nascera... e Daphne... durante as
férias e os aniversários... e quando Antoine morrera. Em todos os
pequenos momentos do quotidiano. Contudo, a mãe estava ali, agora. Não
sentia raiva por todos estes anos perdidos, apenas desgosto. E, agora,
finalmente, confort o.

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131

Se soubesses o calvário que vivi confessou Monika, com o rosto banhado


de lágrimas. Prometi ao teu pai que nunca mais te veria. Receava
desobedecer-lhe, mas senti tanto a tua falta, todos os dias.

Monika jamais se recompusera do desgosto. Fora igualmente como uma


morte para ela. Devolveram-me todas as cartas declarou Beata, assoando-
se.

Nunca soube que tinhas escrito. O papá deve tê-las devolvido sem me
dizer nada.

Foi o que pensei replicou Beata num tom triste ao recordar a caligrafia do
pai nos env elopes. Também recebi de volta as que escrevi a Brigitte. Um
dia, cruzei-me com ela na rua, mas fez de conta que não me viu. E Ulm e
Horst também.

Tínhamos feito o shiva por ti explicou Monika, tristemente, lembrando-se


que esse fora o pior momento da sua vida. Jacob proibiu-nos de
pronunciarmos o teu nome. Relativamente a Brigitte, acho que ela receia
perturbar-me, por isso, prefere calar- se.

É feliz?

Divorciou-se e quer voltar a casar respondeu a mãe, abanando a cabeça.


Contudo, o papá não aprova a escolha dela. As tuas filhas são judias?
inquiriu Monika, esperançada.

Não elucidou a filha, abanando a cabeça. Beata não disse à mãe que se
havia convertido, quando casara com Antoine. Já lhe bastava saber que
Amadea e Daphne não eram judias. Contudo, Monika

surpreendeu-a com as palavras seguintes. Supôs correctamente que Beata


se convertera ao casar com Antoine:
Talvez seja melhor assim, com o que está a passar-se. Os nazis estão a
fazer coisas horríveis aos judeus. O papá afirma que não nos atingirão,
mas nunca se sabe. Nunca digas a ninguém que és judia. Se agora és cristã,
mantém-te assim, Beata. Ficarás mais segura. O que é que contaste às tuas
filhas a meu respeito? inquiriu, fitando a filha com um ar preocupado.

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Que a amo, que o papá não quis que casasse com Antoine porque ele era
francês e estávamos em guerra Disse que a família dele reagiu da mesma
maneira a meu respeito. As miúdas ficaram chocadas, mas acho que
compreenderam.

Pelo menos, na medida do possível. Era muita coisa para assimilarem de


uma só vez, mas confiava nas filhas.

Conheceste a família dele? Beata abanou a cabeça.

Como é que ele morreu?

Um acidente de cavalo. O pai tinha morrido há duas semanas. E agora sou


condessa acrescentou, com um sorriso.

Sinto-me impressionada retomou a mãe, com um brilho malicioso nos


olhos.

Nesse momento, Amadea e Daphne regressaram a casa e entraram,


cautelosamente, na sala. Fitaram a mulher que sabiam ser sua avó e
notaram o sorriso que iluminava o rosto da mãe. Beata apresentou
primeiro Amadea e depois Daphne, enquanto a mãe se conservava sentada
a observá-las, com o rosto banhado em lágrimas.

Por favor, desculpem o meu comportamento estúpido pediu, estendendo-


lhes as mãos. Sinto- me tão feliz por conhecê-las e são as duas tão bonitas!
Levou um lenço de renda aos olhos e as miúdas aproximaram-se devagar.
Daphne achava-a bonita. Amadea ardia de curiosidade por lhe perguntar
porque é que deixara que o marido tivesse sido tão mau para a mãe, mas
não se atrevia. A avó parecia-lhe muito boa pessoa.

Enquanto tomavam chá e conversavam, Amadea e Daphne acharam que


Monika lhes recordava muito a mãe, pois tinha a mesma maneira de falar.
Depois de passarem um delicioso momento juntas, Monika levantou-se e
Daphne fitou-a, curiosa.

Como devemos chamar-lhe? quis saber.

Era uma pergunta sensata para uma garota de oito anos, mas também
Amadea se interrogara a este respeito.

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Que tal ”avozinha”? propôs Monika, num tom hesitante, fitando-as.


Gostaria muito que me chamassem assim.

Amadea e Daphne assentiram com a cabeça e Monika abraçou-as antes de


se ir embora. Depois, abraçou Beata e fitou-a com uma expressão terna.

Vai voltar? inquiriu Beata, ternamente, junto à porta.

Claro respondeu a mãe. Quando quiseres. Telefono-te dentro de dias.


Prometo- te.

Beata sabia que ela manteria a palavra, pois sempre o fizera.

Obrigada, mamã agradeceu Beata, abraçando-a mais uma vez.

Amo-te, Beata sussurrou-lhe a mãe ao ouvido. Depois, beijou-a na face e


foi-se embora.
Fora uma tarde fantástica para as quatro. Após a partida da avó, Amadea
veio ao encontro da mãe, que estava sentada na sala, perdida nos seus
pensamentos.

Mamã?

Sim, querida? respondeu Beata, erguendo o rosto com um sorriso. O que


achaste?

Acho que é triste que ela tenha ficado tanto tempo afastada de nós. Vê-se
que te ama muito. Também eu a amo. Sinto-me feliz por ela ter voltado e
vos ter conhecido.

Odeio o teu pai pelo que ele te fez declarou Amadea num tom gelado.

Beata assentiu com a cabeça. A filha tinha razão, mas ela não o odiava.
Aliás, nunca o odiara, embora ele lhe tivesse causado um profundo
desgosto, bem como à mãe. A sua decisão de a banir da família afectara-os
a todos, talvez a ele também, embora nunca viesse a admiti-lo. Aos seus
olhos, Beata cometera a traição suprema. Contudo, ela jamais pensara que
o seu exílio se prolongasse para o resto da vida deles. Todavia, mesmo que
o tivesse sabido, casaria de qualquer maneira com Antoine.

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Não odeies ninguém aconselhou Beata, num tom calmo. O ódio exige
demasiada energia e apenas serve para envenenar o coração. Há muito que
aprendi isso.

Amadea assentiu com a cabeça, pressentindo que a mãe dizia a verdade. E


admirou-a ainda mais por não odiar aquele pai que, no seu lugar, ela teria
odiado.

Amadea sentou-se no sofá onde a avó estivera e tomou a mãe nos braços,
tal como Beata fizera com a sua própria mãe.
Amo-te, mamã murmurou Amadea, como Beata murmurara à sua mãe.

Era como que uma infinda cadeia de elos que ecoavam uns atrás dos
outros. Apesar do tempo, do espaço e das diferenças, tratava-se de um elo
inquebrável. A mãe provara-lho nessa tarde.

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CAPÍTULO 9

Durante os dois anos seguintes, Monika foi visitá-las todas as semanas.


Tornou-se uma tradição e um ritual com que Beata passou a contar e um
momento precioso para cada uma delas. Beata e Monika aprenderam a
conhecer-se como nunca o tinham feito quando ela era jovem. Era agora
uma mulher adulta e uma mãe, também com filhos, e as duas haviam
sofrido e reflectido muito. Monika tentara mesmo que Jacob voltasse atrás
na sua decisão dissera-lhe que tinha visto a filha na rua com duas meninas,
mas ele deitara-lhe de imediato um olhar glacial.

”Não sei de que estás a falar, Monika. A nossa filha morreu em 1916”,
respondera. E a questão ficara encerrada.

O marido tinha um coração de pedra. Monika não se atrevera a trazer de


novo o assunto à baila, contentando-se com as visitas à filha. E Beata
também. Perdera toda a esperança de rever algum dia os outros membros
da família, mas bastava-lhe ter a mãe de volta à sua vida. Sentia-se
agradecida.

Monika trouxe-lhe fotografias. Brigitte continuava bonita e estava a viver


novamente em casa com os filhos. A mãe mostrou-se preocupada com ela.
Brigitte ia a demasiadas festas, ficava na cama o dia inteiro, bebia em
excesso e não se interessava pelos filhos. Tudo o que desejava era outro
marido, mas a maioria dos homens com quem saía já eram casados.

Horst e Ulm estavam bem, embora uma das filhas de Ulm fosse uma
menina frágil, que adoecia com frequência e tinha problemas cardíacos.
Monika preocupava-se com ela. Durante aquelas visitas, ligou-se cada vez
mais às netas. Amadea achava que a avó era interessante e inteligente, mas
nunca lhe perdoou ter deixado que Jacob banisse a mãe. Achava uma
crueldade e distanciou-se um pouco dela por esse motivo. Contudo,
Daphne era demasiado jovem para colocar esse tipo de questão e amava
incondicionalmente a avó. Como

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136

não se lembrava do pai, o seu universo era, na totalidade, feminino; sentia-


se encantada por ter uma avó e, além disso, uma mãe e uma irmã.

Passava-se o mesmo com Beata. Desde a morte de Antoine e embora


continuasse bonita nunca mais olhara para outro homem. Dizia que as
recordações dos anos que vivera ao lado dele lhe bastavam para a
acompanhar até ao final da vida e não desejava mais ninguém. Em 1935,
dois anos após o início das visitas de Monika, ela fez quarenta anos e a
mãe sessenta e cinco. Tinham-se tornado um conforto uma para a outra. O
mundo começara a tornar-se um lugar assustador, embora ainda não
tivessem sido afectadas. Ainda.

Amadea indignava-se com frequência ante a crescente onda de anti-


semitismo na Alemanha. Os judeus haviam sido banidos da Frente de
Trabalho Alemã e do exército, já não tinham direito a assistência social,
nem podiam exercer a advocacia. Para Beata, todos estes indícios
deixavam antever o pior. Os próprios artistas e actores tiveram de unir-se
em sindicatos especiais e raramente encontravam trabalho. Os tempos que
viviam eram cada vez mais assustadores.

Uma tarde em que se encontravam sós, Monika teve uma conversa com
Beata, antes que as meninas voltassem da escola. Mostrou-se preocupada
com os documentos de Beata e com os das netas. Embora soubesse que,
agora, a filha era católica, pois há dezanove anos se tinha convertido ao
cristianismo, nascera judia e as jovens eram metade judias. Receava que
surgissem problemas, caso a situação piorasse.
Há dois anos que os judeus mais pobres, e aqueles sem poder ou
conhecimentos, tinham sido enviados para campos de trabalho. Jacob
continuava a insistir em que uma coisa daquelas nunca lhes aconteceria: os
nazis apenas deportavam os ”marginais”, pelo menos os que consideravam
como tal, a saber, condenados, criminosos, vagabundos, ciganos,
desempregados, agitadores, comunistas, radicais e todos os que não
tinham meios de subsistência.

Todavia, agora, de vez em quando, algumas pessoas que conheciam


vagamente eram levadas no lote. Monika tinha

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uma empregada doméstica cujo irmão fora enviado para o campo de


Dachau, com toda a família, mas tratava-se de um activista político, que
mandara imprimir panfletos contra os nazis e atraíra, portanto, a
infelicidade sobre si e a sua família. Mesmo assim, Monika andava
muitíssimo preocupada. Os judeus estavam a ser progressivamente
excluídos da sociedade activa, isolados e incomodados nas suas
actividades. Se a situação piorasse, não queria que nada acontecesse a
Beata nem às netas. E Beata também fizera as mesmas reflexões. Caso
surgissem problemas não tinham ninguém que as protegesse, nem onde se
refugiarem.

Não me parece que os nazis causem problemas a pessoas como nós, mamã
declarou Beata num tom calmo.

Beata sabia que Monika também se preocupava com a sua extrema


magreza. Sempre fora delgada, mas, nos últimos anos, quase se tornara um
fantasma; sem maquilhagem, o rosto denotava uma palidez
impressionante. Desde a morte de Antoine que só se vestia de preto e, de
um dia para o outro, envelhecera muito. Fechara as portas ao mundo; tudo
o que agora tinha na vida eram as filhas e a mãe, neste momento. E os
documentos das meninas? inquiriu, Monika, ansiosa.
De facto, não os têm. Só possuem os cartões de estudante com o nome de
”Vallerand”. Nasceram católicas, eu sou católica e a nossa paróquia
conhece-nos bem. Acho que ninguém duvidará que nasci católica. Além
disso, como viemos da Suíça, julgo que algumas pessoas nos consideram
suíÇas. Até mesmo a minha certidão de casamento com Antoine indica
que éramos ambos católicos, quando nos casámos. Há anos que o meu
passaporte caducou e as meninas nunca tiveram nenhum. Amadea era um
bebé quando regressámos à Alemanha e foi inscrita no meu. Ninguém
prestará atenção a uma viúva com duas filhas, com um título da velha
nobreza francesa. Sou conhecida em todo o lado como a condessa de
Vallerand e penso que estaremos em segurança, desde que não chamemos
a atenção sobre nós. Na verdade, preocupo-me mais contigo e a família.

143

138

Todos em Colónia conheciam os Wittgenstem e sabiam que eles eram


judeus. O facto de terem banido e declarado Beata como morta há duas
décadas podia, de certa forma, protegê-la. Foi a primeira vez que a mãe se
sentiu reconhecida a Jacob. O resto da família encontrava-se muito mais
exposta, o que era, em simultâneo, bom e mau

Os Wittgenstem achavam que os nazis não perseguiriam uma família tão


respeitável como a deles. À semelhança de muitos, estavam convencidos
de que eles só atacavam a arraia-miúda, os elos frágeis da sociedade, como
dizia Jacob. Contudo, o anti-semitismo estava na ordem do dia e os filhos
haviam- se mostrado preocupados. Horst e Ulm trabalhavam no banco do
pai que, aos setenta anos, pensava reformar-se. Nas fotografias que a mãe
lhe trouxera, parecia um homem distinto mas fatigado, e Beata receava
que a desilusão que lhe causara tivesse acentuado este envelhecimento
prematuro. Contrariamente à mãe, o pai parecia mais velho do que a sua
idade real. Pelo seu lado, Amadea recusava olhar sequer para as
fotografias do avô e Daphne achava-o assustador Ao contrário da avó

Monika trazia-lhes sempre pequenos presentes, o que as deliciava. Ao


longo dos anos, oferecera a Beata várias das suas jóias, mas nada de
importante com medo de que Jacob se apercebesse. Fingia tê- las perdido e
Jacob troçava dela pela sua negligência. Contudo, como também ele estava
a ficar cada vez mais distraído, deixara de repreendê-la tanto. Estavam
ambos a envelhecer

A única coisa que preocupava Beata quanto às suas origens judias era o
desejo de Amadea de entrar na universidade. A filha ansiava por estudar
filosofia, psicologia e literatura, como ela própria o desejara, antes que o
pai a proibisse. Agora, eram os nazis que o proibiam a Amadea

Beata sabia que, se a filha tentasse entrar na universidade, os nazis


descobririam que ela era semijudia, o que representava um risco excessivo
aos seus olhos. Amadea teria de apresentar não só a certidão de
nascimento o que não representava qualquer perigo, pois indicava que os
pais eram

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católicos na altura do seu nascimento na Suíça, mas também os


documentos quanto às origens raciais dos pais.

Antoine não constituía qualquer problema, mas as origens judias de Beata


podiam vir à superfície, facto que ela não podia deixar que acontecesse.
Mostrou-se, pois, intransigente e proibiu a Amadea que ingressasse na
universidade, sem nunca lhe explicar o motivo. A situação era demasiado
perigosa para as três e não queria correr qualquer risco. De facto, mesmo
sendo apenas metade judia, Amadea ficaria exposta a graves problemas.

Beata optou por dizer a Amadea que, em tempos conturbados, a


universidade não era um lugar seguro, sobretudo para uma mulher, pois
transbordava de radicais e comunistas, de todo o tipo de pessoas que
criavam problemas e eram enviadas para campos de trabalho pelos nazis.
Podia ser mesmo apanhada num motim, e a mãe não queria que tal
acontecesse.
É ridículo, mamã! Não sou comunista. Quero apenas estudar. Ninguém vai
mandar-me para um campo de trabalho!

Não acreditava que a mãe pudesse ser tão estúpida. A sua atitude
recordava-lhe a do avô.

Claro que não. Eu sei replicou Beata, num tom firme. Contudo, não quero
que te mistures com esse tipo de gente. Se queres mesmo ir para a
universidade, podes esperar uns anos, até as coisas se acalmarem. De
momento, a Alemanha está demasiado agitada e não quero que corras
qualquer risco, nem mesmo indirectamente

Beata não queria falar às filhas das suas origens; era algo que não dizia
respeito a ninguém, nem mesmo a elas. Amadea e Daphne não precisavam
de saber que eram semijudias. Beata achava que quanto menos pessoas
estivessem ao corrente, mais elas estariam em segurança. Ninguém no seu
meio sabia que Beata nascera judia, e o isolamento em que Mantivera a
família tinha-lhe permitido guardar o segredo Além disso, ela e as filhas
não tinham nenhum dos traços clássicos que as pessoas atribuíam aos
judeus, muito menos

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Amadea, com os seus cabelos louros e os olhos azuis. Até mesmo Beata e
Daphne, apesar dos seus cabelos pretos, correspondiam à ideia que se fazia
dos cristãos, devido aos olhos azuis e aos traços finos e delicados

Há meses que Amadea andava a discutir a questão da universidade com a


mãe. Contudo, Beata mantinha-se firme para grande alívio de Monika, que
já tinha demasiadas preocupações com os seus outros filhos judeus, aos
olhos de todos para se ver sobrecarregada com Beata e as filhas. Sem
Antoine, Beata e as meninas não tinham ninguém que as protegesse e
tomasse conta delas. Há muitos anos que Beata e Antoine tinham cortado
todos os laços familiares e, com a morte deste último, ela passara a viver
como uma reclusa. Não tinha qualquer laço, à excepção das filhas e dos
Daubigny, que via raramente. Levava uma vida muito solitária, por isso o
conflito que a opunha a Amadea, devido à universidade, revestia-se de
uma considerável importância. Mãe e filha travavam uma batalha em que
se opunham com violência, mas Beata não cedia e Amadea não tinha
forma de desobedecer-lhe, pois era a mãe que financiava os seus estudos.

Beata tinha-lhe proposto que estudasse em casa, até que as coisas se


acalmassem. Amadea acabaria o liceu em Junho, dois meses após fazer
dezoito anos. A pequena Daphne, ainda tinha vários anos de escolaridade
pela frente. Ia festejar dez anos e tanto a mãe como a irmã ainda a
consideravam um bebé. Daphne detestava quando Amadea e a mãe
discutiam, queixando-se muitas vezes à sua avó adorada. A neta achava-a
muito bonita, adorava as suas jóias e roupas elegantes. Monika deixava-a
sempre mexer na mala e brincar com os tesouros que Daphne descobria lá
dentro, como pó de arroz e batom. Deixava-a pôr as jóias dela, enquanto
estava de visita, e experimentar os chapéus. Monika apresentava a
elegância de sempre. Beata já não se importava com a aparência e Daphne
detestava os seus eternos vestidos pretos. Eram tão tristes!

O aniversário de Amadea aproximava-se quando Monika deixou de


aparecer duas semanas seguidas. Da primeira vez,

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ligou a prevenir Beata que não se sentia bem, mas, da segunda, não se
manifestou. Por fim, louca de inquietação, Beata resolveu-se a telefonar.
Uma voz desconhecida atendeu: era uma das empregadas. Depois de ter
ido informar-se, anunciou que a senhora Wittgenstein estava demasiado
doente para vir ao telefone.

Beata passou uma semana num tormento e ficou muito aliviada quando a
mãe voltou a aparecer na semana seguinte. Contudo, Monika parecia
muito doente. Denotava um tom de pele acinzentado e uma palidez
cadavérica; caminhava com dificuldade e tinha dificuldade em respirar.
Beata deu-lhe o braço para a conduzir à sala e ajudou-a a sentar-se. Por um
momento, Monika perdeu o fôlego, mas sentiu-se melhor depois de uma
chávena de chá.

O que se passa, mamã? O que diz o médico? inquiriu Beata,


profundamente inquieta.

Não é nada respondeu Monika, esforçando-se por sorrir. Tive o mesmo há


uns anos e acabou por passar. É o meu coração, acho. Sem dúvida, a
velhice. A máquina está gasta.

Beata não achava que sessenta e cinco anos fosse uma idade avançada;
contudo, a mãe estava lívida e parecia doente. Numa outra situação teria
falado ao pai. Monika disse-lhe que também ele andava inquieto e que ela
iria no dia seguinte ao médico para fazer mais exames. Confessou-lhe que
não estava preocupada, mas apenas aborrecida.

Desta vez, quando a mãe se foi embora, Beata acompanhou-a pela rua, a
fim de se certificar que ela não cairia e fez sinal a um táxi. Quando vinha
visitá-la, Monika apanhava sempre um táxi, para que o motorista deles não
dissesse a Jacob onde ela estivera. Não confiava o seu segredo a ninguém
com medo que o marido a impedisse de voltar, caso descobrisse a verdade.
Jacob teria ficado enfurecido com ela; proibira-lhe que voltasse a ver
Beata e esperava que a mulher e os filhos lhe obedecessem.

Mamã, prometa-me que irá ao médico amanhã Pediu Beata ansiosa, antes
de a mãe entrar no táxi. Não

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cometa sobretudo a idiotice de anular a consulta acrescentou, pois


conhecia a mãe.

Claro que não sorriu Monika.


Beata sentiu-se aliviada ao ver que a mãe tinha menos dificuldade em
respirar do que quando chegara. Antes de a avó se ir embora, Daphne dera-
lhe um beijo enorme e Amadea um abraço de fugida. Monika fitou
longamente a filha, antes de subir para o táxi.

Amo-te, Beata. Sê prudente e cuida de ti. Preocupo-me tanto por vossa


causa disse, com os olhos cheios de lágrimas.

Sentia-se revoltada por Beata haver sido banida há dezanove anos, qual
criminosa que era necessário punir por crimes imperdoáveis. Aos olhos de
Monika, amar significava perdoar. E Beata parecia sempre demasiado
triste. Nunca se recompusera da morte de Antoine.

Não se preocupe connosco, mamã. Tudo correrá bem. Preocupe-se consigo


disse, voltando a abraçá-la. E lembre-se de que a amo muito. Obrigada por
ter vindo.

Beata sentia-se sempre reconhecida à mãe pelas suas visitas, dada a sua
saúde d ebilitada.

Amo-te repetiu Monika e meteu-lhe algo na mão. A mãe subiu para o táxi,
antes que ela pudesse ver do que se tratava. Beata fechou a porta e ficou a
acenar-lhe, enquanto o veículo se afastava. Não desviou o olhar até o táxi
desaparecer no meio do trânsito e, em seguida, abriu a mão. Monika dera-
lhe o pequeno anel de diamantes que a mãe dela usara toda a vida e que, na
sua família, fora transmitido de mãe para filha ao longo das gerações.
Quando pensava nas mãos da mãe, Beata via sempre este anel. Sentiu- se
profundamente emocionada ao colocá-lo no dedo, junto à aliança. No
entanto, um súbito calafrio percorreu-lhe o corpo. Porque é que a mãe lhe
dera este anel? Estaria mais doente do que ela pensara? Talvez se sentisse
apenas preocupada. Dissera-lhe que já tivera o mesmo problema antes e
que passara. Contudo, Beata passou a noite toda angustiada.

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Ao levantar-se na manhã do dia seguinte, decidiu, por impulso, telefonar à
mãe para se certificar de que estava bem e iria à consulta. Não confiava
nela, pois sabia o quanto detestava os médicos. Custava- lhe sempre
telefonar para casa dos pais e Beata só o fizera algumas vezes nos últimos
anos, mas sabia que o pai estaria no escritório. Além disso, passados
dezanove anos, nenhum dos empregados lhe conhecia a voz Marcou o
número nervosamente e reparou que as mãos lhe tremiam. Sentia-se
sempre angustiada quando ligava para lá e, desta vez, foi uma voz de
homem a atendê-la. Presumiu que se tratasse do mordomo e perguntou
pela mãe num tom profissional. Fez-se um prolongado silêncio do outro
lado da linha e, depois, ele perguntou-lhe quem estava a telefonar. Sem
saber como reagir, indicou o nome de Amadea, como o fizera antes

Lamento informá-la, madame, mas a senhora Wittgenstem está no


hospital. Desmaiou a noit e passada

Oh, meu Deus! Como está ela? Para onde a levaram? quis saber Beata,
angustiada e perdendo o tom profissional

O mordomo indicou-lhe o nome do hospital, mas apenas porque ela


parecia muito emocionada e pensou que quereria mandar-lhe flores

A senhora só recebe visitas da família respondeu, todavia, para a dissuadir


de ir ao hospital Obviamente retorquiu Beata, assentindo com a cabeça

Um momento depois desligou e manteve-se sentada junto do telefone, com


o olhar perdido no vazio. Ignorava como fazê-lo, mas sabia que tinha de
ver a mãe, fosse como fosse. E se ela morresse? O pai não poderia impedi-
la de ver a mãe quando ela estava às portas da morte. Era impossível. Nem
sequer se deu ao cuidado de vestir-se devidamente. Enfiou o casaco preto
por cima do vestido preto que usava, pôs um chapéu e agarrou na mala,
antes de se precipitar para o exterior. Minutos depois, estava dentro de um
táxi, a caminho do hospital, para ver a mãe. Durante todo o trajecto, não
largou o anel que a mãe lhe oferecera no dia an terior,

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agradecendo a Deus por tê-la visto e rezando para que ela se


restabelecesse.

Quando chegou ao hospital, uma enfermeira da recepção indicou-lhe o


piso e o quarto de Monika. A mãe estava no melhor hospital de Colónia e
havia enfermeiras, médicos e gente distinta por todo o lado. Beata tomou
consciência de que as suas roupas estavam longe de serem elegantes, mas
não se importou. Apenas queria ver a mãe e estar ao lado dela. Ao sair do
elevador, seguiu pelo primeiro corredor e

foi lá que avistou os dois irmãos, a irmã e o pai, todos, em pé, diante da
porta. Estavam acompanhados por duas mulheres que não conhecia e que
presumiu tratar-se das suas cunhadas. Aproximou-se deles com o coração
a saltar-lhe do peito. Encontrava-se a menos de um metro quando Brigitte
se virou, fitando- a, estupefacta. A irmã não pronunciou uma palavra, mas
os outros repararam na sua expressão e viraram- se, um a um, na sua
direcção. Jacob fitou-a directamente, sem dizer uma palavra, nem esboçar
um gesto. Vim ver a mamã declarou no tom aterrorizado de uma criança.

Desejava estender os braços e que o pai a abraçasse de encontro ao peito.


Desejava mesmo pedir-lhe perdão. Contudo, o pai assemelhava-se a uma
estátua de mármore. O resto da família mantinha-se em silêncio, a
observá-la .

Estás morta, Beata. E a tua mãe está a morrer declarou com lágrimas nos
olhos, não pela filha, mas sim pela mulher.

Quero vê- la.

Os mortos não visitam os moribundos. Todos fizemos o shiva por ti.

Lamento. Lamento muito. Contudo, não pode impedir-me de vê-la


declarou com a voz estrangulada na garganta.

Posso e vou fazê-lo. O choque de te ver irá matá-la. Beata tomou


consciência de como devia parecer patética

com o seu velho vestido e casaco, e o chapéu de lado.

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Apenas pensara em chegar o mais rapidamente possível ao hospital e não


nas aparências. Lia a piedade nos rostos dos irmãos e da irmã, e mesmo no
das duas mulheres que os acompanhavam. Assemelhava-se àquilo em que
se tornara: uma marginal, uma pária. Jacob não lhe perguntou como é que
sabia que a mãe se encontrava no hospital. Não lhe interessava. Para ele, a
que fora sua filha estava morta, e a pessoa que se encontrava na sua frente
era uma mera estranha que não lhe interessava.

Não tem esse direito, papá. Quero vê-la retorquiu, lavada em lágrimas,
mas o rosto do pai manteve a mesma frieza que tivera no dia em que ela
saíra de casa.

Devias ter pensado nisso há dezanove anos. Se não te fores embora, dou
ordens para que te expulsem. Não queremos nada de ti. Nem a tua mãe.
Não tens o direito de estares aqui.

É a minha mãe replicou Beata, a soluçar.

Era a tua mãe. Hoje, não és nada para ela.

Pelo menos, Beata sabia que não era verdade. Os seus dois anos de visitas
semanais constituíam a prova. Dava graças ao céu por estes momentos
terem acontecido e a mãe haver conhecido e amado as suas filhas e elas a
avó.

Está a agir muito mal, papá. A mamã nunca lhe perdoará. Nem eu.

Desta vez, Beata sabia que o perdão era impossível, pois o pai dava
mostras de uma crueldade inaceitável.
Foste tu que agiste mal. Nunca te perdoei retorquiu ele, sem sombra de
remorso.

Amo-o articulou ela, meigamente. Em seguida, fitou os outros. Nenhum


deles se havia mexido nem pronunciado uma única palavra. Ulm virara as
costas e Brigitte chorava em silêncio, mas nenhum lhe estendeu a mão. E
nenhum tentou convencer o pai a deixar que Beata visse a mãe. Tinham
demasiado medo.

Amo a mamã como vos amo acrescentou. Nunca deixei de vos amar. E a
mamã também me ama, como eu a ela declarou Beata com veemência.

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Vai-te embora! ordenou o pai, cuspindo as palavras, como se a odiasse do


fundo do coração. Desaparece! gritou-lhe, apontando o dedo na direcção
de onde ela viera. Para nós estás morta e sempre estarás.

Beata ficou um longo momento a olhar o pai, tremendo da cabeça aos pés,
mas desafiando-o, como antes. Da primeira vez, fizera-o por Antoine e
agora fazia-o pela mãe. Sabia que era a única a ter uma tal ousadia,
embora com consciência de que o pai jamais a autorizaria a entrar no
quarto da mãe. De momento, só lhe restava ir-se embora, antes que o pai a
expulsasse. Lançou um último olhar ao pai, depois deu meia volta e
percorreu lentamente o corredor, de cabeça baixa. Ao fundo, virou-se para
os fitar uma última vez, mas eles haviam desaparecido. Tinham entrado no
quarto da mãe, sem ela.

Chorou quando desceu no elevador e durante todo o caminho até casa.


Telefonou para o hospital de hora a hora para se informar do estado de
saúde da mãe e, às quatro da tarde, disseram-lhe que ela morrera. Beata
desligou, com os olhos perdidos no vazio. Acabara. O seu último elo com
a família rompera-se. A mãe, que tanto amava, partira. Ainda sentia o som
da voz dela nos seus ouvidos:
”Amo-te, Beata”, dissera-lhe na véspera.

Beata apertara-a com força nos braços murmurando ”Também a amo,


mamã”. E sabia que semp re

a amaria.

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CAPÍTULO 10

No dia seguinte, Beata assistiu ao funeral da mãe, à distância. Levava um


casaco de peles, um elegante vestido preto e um bonito chapéu preto que
Antoine lhe oferecera pouco antes de morrer. Sabia que a mãe se teria
orgulhado dela. No dedo usava o anel de diamantes, que nunca mais
voltaria a tirar. Beata conservava-se imóvel, escutando as orações e
rezando. Segundo a tradição judaica, Monika

tinha de ser enterrada um dia depois da morte e assim foi. Beata seguiu-os
até ao cemitério, mantendo a distância. Ninguém sabia que ela estava ali;
era como um fantasma, observando cada um a deitar um punhado de terra
sobre o caixão, enquanto o desciam. Depois de eles se terem afastado, foi
ajoelhar- se junto à sepultura e colocou uma pequena pedra ao lado, em
sinal de respeito, segundo a tradição. Recolheu-se e, de súbito, ouviu a sua
própria voz a recitar o pai-nosso; sabia, porém, que a mãe não se teria
importado. Ficou ainda um longo momento, depois regressou a casa,
sentindo-se morta por dentro. Tão morta como o pai declarara que ela o
estava.

Quando Beata entrou em casa, Amadea fitou-a tristemente e abraçou- a.

Lamento muito, mamã disse, apertando-a com força de encontro ao peito.

Beata dera a notícia às filhas na véspera e elas tinham chorado muito.


Cada uma delas, à sua maneira, amara muito a avó, embora nutrissem
sentimentos contraditórios, particularmente Amadea, quanto à forma
como os avós haviam tratado a mãe por ela casar com o pai. Beata dava-
lhes razão, mas, apesar de tudo, amava a mãe. E até mesmo o pai. Eram e
continuariam a ser os seus pais.

Nessa noite, deitou-se cedo. Estendida em cima da cama, reflectiu em


todos os acontecimentos da sua vida e nos primeiros anos com Antoine.
Passara-se muita coisa, mas valera a pena, apesar do ele vado preço que
pagara pelo amor.

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A perda da mãe lembrava-lhe que agora não tinha mais ninguém no


mundo, excepto as filhas. O pai fora muito claro a esse respeito. Amadea e
Daphne eram o que lhe restava. Foi um mês mais tarde, em Junho, que
Amadea lhe deu a notícia que lhe despedaçou o coração. Ia perder a filha,
como perdera a mãe, só que, pelo menos, Amadea continuaria viva.

Vou entrar para o convento, mamã anunciou a jovem calmamente, na


manhã do seu último dia de aulas.

Nada preparara Beata para a comunicação da sua filha mais velha. Fitou-a,
estupefacta, mas Amadea mostrava-se tranquila e composta. Há meses que
esperava para dar a conhecer a sua decisão à mãe e a sua certeza reforçara-
se de dia para dia. Aquela opção nada tinha de apressado ou frívol o.

Não, não entrarás retorquiu Beata num tom que não deixava dúvidas. Não
permitirei que o faças. Teve a impressão de estar a escutar o próprio pai,
mas não podia permitir que uma coisa destas acontecesse. Até mesmo
Antoine, que era um católico fervoroso, não aprovaria.

Não podes impedir-me replicou a jovem.

Pela primeira vez, a voz de Amadea era a de uma adulta, firme e segura.
Pusera demasiadas questões a si própria, antes de tomar a decisão, para
que agora a assaltasse qualquer dúvida. Estava absolutamente certa de que
tinha a vocação e ninguém abalaria a sua fé, nem mesmo a mãe, que
amava. Já não se tratava da querela ligada à universidade. Estava em causa
uma mulher adulta que sabia o que queria e o que faria. Beata sentiu-se
amedrontada com o tom de voz de Amadea e com o brilho dos olhos.

O teu pai não o desejaria argumentou, esperando influenciar Amadea com


a menção do nome do pai, o que não resultou.

Não sabes. E lembro-te que abandonaste tudo para casar com ele, porque
acreditavas no que estavas a fazer. Eu acredito na minha vocação.

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Amadea expressava-se como se falasse do Santo Graal. Na verdade,


encontrara o que procurava. Depois de falar meses a fio com o seu padre,
não lhe restavam dúvidas, e isso lia-se-lhe no rosto.

Oh, meu Deus, Amadea! exclamou Beata, sentando-se pesadamente numa


cadeira e fitando a filha. És demasiado nova para uma tal certeza. Andas
aborrecida e esta ideia parece-te romântica.

Beata também sabia que Edith Stein se tornara o seu modelo de vida e que
também esta estava há dois anos num convento.

Não sabes do que estás a falar declarou Amadea, calmamente. Vou entrar
para o convento das Carmelitas. Já falei com as freiras. Não podes
impedir-me, mamã.

Afilha repetia o que já dissera, mas não se tratava do discurso de uma


criança caprichosa, mas o de uma mulher com um objectivo sagrado.

É uma ordem de clausura. Viverás como uma reclusa até ao fim da tua
vida, isolada do mundo. És uma bonita rapariga, Amadea. Podias casar e
ter filhos.
Quero ser freira insistiu ela.

Beata sentiu um calafrio a percorrer-lhe o corpo. Por sorte, Daphne estava


em casa de uma amiga e não assistia à discussão.

Estás a querer imitar Edith Stein, mas ela tinha quarenta e dois anos
quando ingressou na ordem. Vivera uma vida e sabia o que fazia. Tu, não.
És demasiado nova para tomares uma decisão destas.

Terei muito tempo para reflectir declarou Amadea, sensatamente. São oito
anos até se pronunciarem os votos definitivos. É a vida que escolhi, mamã
concluiu sem desviar os olhos e com uma calma determinação, que
assustou a mãe.

Porquê? Porquê? gemeu Beata, com o rosto banhado em lágrimas. És


jovem e bonita e tens toda uma vida pela frente. Porque é que queres fazer
isto?

Quero servir a Deus e esta é a melhor forma que conheço. Creio que é o
que Ele quer. Quer o unir-me a Cristo

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como tu te uniste ao papá. É a Ele que quero. Tu és crente, mamã.
Frequentas a Igreja. Porque é que não compreendes? Amadea parecia
magoada por a mãe se mostrar tão infeliz, e algo nos seus olhos recordou a
Beata a sua própria mãe, quando lhe falara de Antoine. Monika sentira-se
atraiçoada pela filha, tal como ela neste momento. Beata teve a impressão
de se ter tornado tão rígida e implacável como o pai, mas, embora não
quisesse ser como ele, também não queria que a filha entrasse para o
convento. Aos seus olhos, era uma aberração.

Admiro a tua devoção replicou num tom calmo. No entanto, é uma vida
dura. Quero algo melhor do que isso: um marido que tome conta de ti,
filhos que te amem. Que será de mim e da tua irmã sem ti? acrescentou,
pensando subitamente em Daphne.

Rezarei por vós. É muito mais do que poderia fazer, se ficasse aqui. Serei
muito mais útil a rezar pelo mundo do que a assistir aos actos horríveis
que as pessoas cometem para se destruírem umas às outras e à
inacreditável maldade do Homem para com o próximo.

Desde o início que Amadea se sentia profundamente consternada pelas


injustiças contra os judeus. Tal ia contra tudo aquilo em que acreditava e
às suas fortes convicções. Beata amava-a e admirava-a por isso, mas não
aceitava este terrível desperdício da filha se tornar freira, fechada num
convento, como uma prisioneira.

Vais ao menos reflectir nisso, mamã? prosseguiu Amadea. Por favor. É


tudo o que quero... Não poderás impedir-me, mas quero que me dês a tua
bênção.

Beata recordava-se de ter pedido o mesmo aos pais, antes de se casar com
Antoine. Agora, Amadea pedia-lhe a bênção para seguir Cristo. Tratava-se
de uma decisão muito difícil de tomar.

Amo-te acrescentou Amadea, meigamente, abraçando a mãe.

Como é que isto aconteceu? Quando é que tomaste esta decisão? suspirou
Beata por entre as lágrimas.
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Falei com a irmã de Ella, antes de pronunciar os votos. Sempre achei que
tinha vocação, mas não estava certa. Discuti igualmente o assunto com o
nosso padre durante meses. Agora, sei que é o melhor para mim, mamã.
Tenho a certeza.

Amadea emanava uma grande beleza enquanto falava, o que fez com que o
coração de Beata se apertasse ainda mais.

Como podes estar tão segura?

Estou e pronto.

Ao fitá-la, a mãe deparou com uns olhos serenos, como os de uma santa,
mas não conseguia sentir-se feliz por ela. Aos seus olhos, tudo isto
constituía um terrível e trágico desperdício. Para Amadea era, pelo
contrário, uma dádiva. A única que desejava, juntamente com a bênção da
mãe.

Quando pensas entrar para o convento? perguntou Beata, que esperava ter
tempo de dissuadi- la. Um ano, talvez.

Na próxima semana. Não há motivo para que aguarde mais tempo. Acabei
o liceu.

A Daphne está ao corrente? inquiriu Beata, sabendo que as suas filhas


eram muito chegadas, embora Daphne só tivesse dez anos.

Queria que fosses a primeira a saber respondeu Amadea, abanando a


cabeça. Esperava que ficasses feliz, depois de te habituares à ideia.

Acena recordava a Beata exactamente o que vivera com os pais, quando


optara por seguir Antoine. As próprias palavras que Amadea usava eram
semelhantes às suas, com a única diferença de que, ao contrário do pai, ela
não estava a ameaçar a filha. Tal como Beata fizera na altura, Amadea
pedia à mãe que reflectisse. Outrora, os pais tinham achado que o caminho
que ela escolhera era demasiado duro, e era essa exactamente a sua
opinião quanto à escolha de Amadea. Era novamente o eco do passado. A
história repetia-se, como um elo interminável.

Beata manteve-se acordada toda a noite, deitada na cama, assaltada pelos


ecos do passado, revivendo as terríveis discussões

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com os pais, em seguida o dia atroz da sua partida para a Suíça, quando
saíra de casa, e, por fim, o momento da chegada, só então tudo fora
maravilhoso. Maravilhoso para si. Era esse o argumento essencial, o único
correcto o de que cada indivíduo vivesse o seu destino, fosse ele qual
fosse. Para ela, tinha sido Antoine. Talvez para Amadea fosse a Igreja E
por que terrível intuição lhe haviam dado aquele nome? ”Amada por Deus.
Beata desejava que Ele não a amasse tanto, a ponto de chamá-la Mas
talvez Ele o tivesse feito. Quem era ela para o saber? Quem era ela para
julgar? Que direito tinha de tentar mudar o destino da filha e tomar
decisões em seu lugar? Não tinha mais direito do que o pai, na altura.
Talvez que amar significasse aceitar sacrificar os sonhos que se tinha para
os filhos, a fim de que seguissem os seus. De manhã, Beata compreendeu
que não tinha o direito de impedir Amadea de fazer o que desejava

E se a filha se enganasse, ela própria o descobriria sozinha. Pelo menos,


tinha oito anos pela frente. Podia mudar de opinião, embora Beata
soubesse que não seria o caso. Os pais também deviam ter pensado que ela
acabaria por deixar Antoine, mas eles haviam sido felizes juntos. Antoine
fora o seu destino, tal como a Igreja era o de Amadea. Nunca julgara vir a
ter uma filha freira, nem tão-pouco Antoine. Contudo, pressentia que, tal
como ela, também não a impediria. Que direito tinham de agir de outra
maneira? Tinha uma expressão devastada quando entrou no quarto de
Amadea, antes do pequeno- almoço.
Antes mesmo que a mãe falasse, compreendeu que tinha ganho a partida e
susteve a respiração

Não me oporei à tua decisão, porque quero que sejas feliz declarou Beata
com o coraç ão despedaçado, mas os olhos transbordando de amor pela
filha. Não quero fazer-te o que os meus pais me fizeram. Tens a minha
bênção, Amadea, porque te amo e quero a tua felicidade, seja ela qual for

Para Beata representava a maior dádiva e o maior sacrifício, mas


compreendia agora que ter filhos implicava precisamente

158

153

isso. As decisões mais importantes nunca eram as mais fáceis, e a


importância residia nesse facto. Obrigada, mamã... Obrigada.. Obrigada!

Os olhos de Amadea brilhavam enquanto apertava a mãe com força nos


braços. Mãe e filha nunca haviam estado tão próximas, independentemente
de quanto ou quão profundamente se amavam

Foi mais difícil dar a notícia a Daphne, que se desfez em lágrimas. Não
queria que Amadea as deixasse.

Nunca mais te veremos chorou Daphne, sentida. A Ella nunca vê a irmã.


Não a deixam. E nem sequer pode tocar-lhe ou beijá- la.

Beata sentiu um aperto no coração ante a perspectiva.

Verás, sim garantiu Amadea. Podes ir visitar-me duas vezes por ano e
posso tocar-te através de uma pequena janela. Além disso, podemos
abraçar-nos muito agora e recordar-nos-emos disso durante muito tempo.

Amadea sentia pena da irmã, mas a sua decisão manteve-se irrevogável.


Daphne mostrou- se inconsolável durante toda a semana seguinte. Embora
estivesse triste por deixá-las, Amadea parecia cada dia mais feliz, à
medida que a data de entrada no convento se aproximava.

Com a esperança de minorar o desgosto de Daphne, Beata pediu à filha


que aguardasse mais umas semanas, mas Amadea recusou.

Só vai piorar a situação, mamã disse, abanando a cabeça. Daphne vai


habituar-se E depois, tem- te a ti.

”Contudo, está longe de ser a mesma coisa”, pensou Beata. Amadea era a
alegria e a razão de vida de Daphne, tal como da sua. Desde a morte do
marido que se sentia triste e deprimida, vivendo a maior parte do tempo
recolhida sobre si própria

Também te fará bem a ti, mamã prosseguiu Amadea. Podes fazer coisas
com ela, ir ao cinema, ao parque ou ao museu. Precisas de apanhar ar.

Amadea fizera tudo isto com a irmã durante anos a fio. Beata estava
demasiado deprimida para ocupar-se dela e passava

159

154

a maior parte do tempo no quarto. Ignorava se estaria à altura da tarefa que


a esperava. Contudo, alguém teria de fazê-lo. Antoine morrera e a mãe
também. Agora, era Amadea que as deixava. Beata tinha a triste impressão
de que a filha estaria como morta, dado que nem Daphne nem ela
poderiam continuar a vê- la todos os dias, ou abraçá- la.

Poderás escrever-nos? perguntou Beata, em pânico.

Claro que sim, embora haja o risco de eu estar ocupada. Mas prometo
escrever-vos o mais que puder.

Era como se Amadea partisse em viagem para o resto dos seus dias. Como
se fosse para o Paraíso ou, pelo menos, a primeira etapa rumo ao mesmo.
Beata não conseguia acreditar e, aliás, não queria que assim fosse.
Tornara-se católica praticante, mas não conseguia imaginar-se a entrar
num convento. Tratava-se de uma vida terrivelmente restrita, no entanto, a
filha ardia de impaciência por iniciá- la.

No dia da partida, Beata e Daphne transportaram-na ao convento de carro.


Amadea levava um vestido simples, azul-escuro, e o chapéu que usava
para ir à igreja. Estava um dia soalheiro, mas Beata raramente se sentira
tão triste. Daphne chorou durante todo o trajecto, enquanto Amadea lhe
segurava na mão. Quando desceram do carro, Beata contemplou
demoradamente a filha, bebendo-a com o olhar, como que para gravar a
sua imagem no coração. Quando voltasse a vê-la, estaria e seria uma
pessoa diferente. Nunca te esqueças que te amo, quanto significas para
mim e que me sinto orgulhosa de ti declarou,

por fim. És a minha dádiva de Deus. Sê feliz e vive em paz, Amadea. E se


não te adaptares, tens todo o direito de mudar de opinião. Ninguém vai
censurar- te.

No íntimo, Beata esperava que isso acontecesse

Obrigada, mamã agradeceu Amadea num tom meigo.

A jovem tinha a certeza de que jamais mudaria de opinião. Sabia, no mais


profundo da alma, que estava a fazer a escolha certa e não lhe restava a
menor dúvida. Abraçou a mãe e apertou-a com força de encontro ao peito.
Fê-lo como

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155

uma adulta, com certezas e sem arrependimento. Tal como Beata fizera no
dia em que deixara a mãe para ir ao encontro de Antoine.

Que Deus te acompanhe murmurou ainda Amadea, num prolongar do


abraço. As lágrimas corriam pelo rosto de Beata, ao mesmo tempo que
assentia com a cabeça. Dir-se-ia que era a filha a pessoa adulta e não ela.

E a ti também murmurou, enquanto Amadea apertava a irmã nos braços e


lhe sorria.

A filha parecia triste por deixá-las, mas emanava um poderoso sentimento


de alegria e de sereni dade.

Amadea não trouxera mala. Viera apenas com a roupa que trazia no corpo
e que as carmelitas dariam aos pobres, mal as despisse. Não podia levar
nada e pronunciaria, eventualmente, votos de pobreza, castidade e
obediência, o que aceitava na totalidade. Longe de sentir-se assustada,
Amadea nunca estivera mais feliz na sua vida e tinha esta felicidade
estampada no rosto. Era a mesma expressão que Beata ostentava quando se
encontrara com Antoine na estação de caminho-de-ferro de Lausana e a
vida de ambos começara. Para Amadea também era um começo e não um
fim, como a mãe receara.

A jovem estava pronta. Abraçou mais uma vez a mãe e a irmã e depois
tocou à porta do convento. Uma jovem religiosa abriu uma pequena vigia e
depois a porta, sem se mostrar. Amadea transpôs a ombreira e desapareceu
num momento. Beata e Daphne ficaram sozinhas no passeio. Mãe e filha
entreolharam-se e depois lançaram-se nos braços uma da outra. Só
restavam as duas: uma viúva e uma rapariguinha. Doravante, Amadea
viveria a sua própria vida, uma vida que seria longe, muito longe delas.

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CAPÍTULO 11

Mal passou a porta do convento, Amadea foi conduzida directamente ao


vestiário pela jovem religiosa que lhe abrira a porta. Não pronunciou uma
palavra, mas o sorriso tranquilo e o olhar caloros o assemelhavam-se a
uma recepção. Amadea compreendeu. Havia algo de profundamente
apaziguador no facto de não ter de falar. Sentiu-se desde logo protegida e
soube que estava no lugar certo.
Afreira examinou-a, avaliou a sua silhueta delgada e elegante e estendeu-
lhe um hábito todo negro que lhe chegava aos tornozelos, bem como um
véu curto de algodão branco que lhe taparia os cabelos. Não era o hábito
da ordem, mas Amadea sabia que apenas teria o direito de usá-lo dentro de
seis meses e somente se as freiras achassem que o merecia. Poderia levar
um pouco mais de tempo, como a madre superiora lhe explicara antes de
ela ingressar, e as freiras mais velhas teriam de votar. Entretanto, a roupa
que usasse permitiria identificá-la como postulante. Quanto ao véu negro
da ordem, não o receberia sem ter pronunciado os votos perpétuos,
decorridos oito anos.

A religiosa deixou-a só para lhe permitir que trocasse toda a roupa,


inclusive a anterior. Deixara-lhe também um par de sandálias grosseiras, o
único calçado que lhe seria autorizado a partir dessa altura, com os pés
nus. A ordem das Carmelitas não usava sapatos, em sinal de pobreza.

Amadea vestiu-se com uma sensação de intensa alegria, como se estivesse


a enfiar o vestido de noiva. Sentia o mesmo do que a mãe na altura do
casamento, quando levara o vestido de linho branco feito das rendas de
umas toalhas de mesa. Era o começo de uma nova vida para Amadea, de
uma certa forma, assemelhava-se a desposar Cristo, mas os preparativos
do casamento durariam oito anos. Mal c onseguia esperar.

A religiosa voltou a aparecer uns minutos depois e tudo o que Amadea


trouxera vestido desapareceu dentro de um cesto

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157

para os pobres, incluindo os sapatos. A mãe dissera-lhe que guardaria


todas as suas coisas para a eventualidade de ela mudar de ideias. Contudo,
mais do que isso, guardava-as como se faz com a roupa e as coisas de um
filho morto, por uma questão de sentimentalismo e incapacidade de
separar-se delas. Para Amadea, elas nada significavam. A sua vida era
aqui.
Depois de vestida, foi conduzida à capela para rezar na companhia das
outras religiosas. Seguiu- se um prolongado silêncio em que as freiras, à
semelhança de todos os outros dias, fizeram o seu exame de consciência,
arrependendo-se dos pecados que tinham cometido, dos pensamentos
pouco caridosos, das pequenas invejas, da ânsia de comida, da família ou
do conforto todas essas coisas outrora consideradas importantes e de que
tinham aprendido a desligar-se. Era um bom início para Amadea que se
censurou por estar mais ligada à mãe e à irmã do que a Cristo. Ninguém
precisou explicar-lhe o objectivo deste silêncio, pois já se informara antes
a esse respeito e aproveitou-o bem.

Enquanto as outras freiras almoçavam, Amadea foi conduzida ao gabinete


da madre superiora. Nessa noite, apenas comeria ao jantar, o que
constituía o seu primeiro sacrifício. Tal como a madre superiora que
dispusera daquele tempo para lhe falar.

Está tudo bem, minha filha? perguntou num tom bondoso, após a ter
saudado com as palavras ”Paz de Cristo”, que Amadea repetiu antes de
responder:

Sim, obrigada, madre.

Estamos felizes com a sua presença entre nós.

A comunidade aumentara recentemente, segundo a madre superiora


explicou a Amadea. As vocações não faltavam, e o facto de Edith Stein se
lhes ter juntado há dois anos também não as prejudicara. Falara-se mais no
assunto do que lhe agradava, mas servira para despertar vocações. Edith
Stein tornara- se Teresa Benedita da Cruz no ano anterior e Amadea iria
eventualmente cruzar-se com ela, embora fosse proibido demonstrar o
mínimo fascínio ou admiração pessoal.

163

158

Eram uma comunidade de irmãs e não individualidades com


personalidades distintas e ideias próprias. Estavam ali para servir Cristo e
orar pelo mundo, nada mais, nada menos, segundo a madre superiora lhe
lembrou, e Amadea respondeu que compreendia

- Partilhará uma cela com mais três irmãs prosseguiu a madre. Seguimos
um silêncio total, excepto às refeições e no recreio, onde pode falar de
assuntos da comunidade e mais nenhuns. Não terá amigas pessoais. Somos
todas amigas de Cristo

Amadea assentiu com a cabeça, intimidada. A madre superiora era uma


mulher alta e magra, de olhar penetrante e um rosto bondoso. Era
impossível adivinhar-lhe a idade e teria sido impertinente fazê- lo.
Explicou ainda a Amadea que ela era a mãe que as guiava e guardava, e a
quem deviam a mesma obediência do que a Deus, que as conduzira até ali.
Ao entrar no Carmelo, Amadea entrara também numa nova família.
Doravante, mais nenhuma deveria existir para ela. Fora emprestada
durante dezoito anos a Beata, ao seu pai e a Daphne. Oseu tempo com eles
terminara e os laços deviam desaparecer, salvo através da oração e de
cartas pontuais, por caridade para com elas Podia escrever-lhes uma vez
por semana o que ela prometera à mãe, mas o trabalho e as tarefas diárias
deviam estar em primeiro lugar

Foi-lhe destinada a lavandaria e, no tempo livre, ajudaria a esfregar as


cozinhas. Se ainda lhe restasse algum tempo, trabalharia no jardim, o que
era considerado um privilégio e uma honra. A madre superiora recordou-
lhe as palavras de Santa Teresa de Ávila, segundo as quais Deus apenas se
revela no isolamento. Deveria trabalhar sozinha o máximo de tempo
possível, orar constantemente e falar apenas durante as refeições. O centro
do seu eu e da sua vida seria o sacrifício da missa

Lembre-se que Santa Teresa nos ensinou que a essência da oração não está
em pensar muito, mas em amar muito. Está aqui para amar as suas irmãs e
o mundo E se for abençoada com a vocação, tornar-se-á esposa de Cristo.,

164

159
Era uma responsabilidade e uma honra para lá de tudo o que Amadea
pudesse imaginar e o motivo da presença dela ali. Por seu lado, a jovem já
pensara no nome que desejava adoptar: irmã Teresa do Carmelo. Todavia,
naquele tempo de espera, como simples postulante, seria a irmã Amadea.
A madre informou-a de que lhe indicariam a cela nessa noite, depois do
jantar. Amadea já sabia que uma das regras da ordem era a proibição de
comer carne, salvo em caso de doença, quando um médico o julgasse
necessário. Era, porém, um sacrifício de que a jovem se sentia capaz,
como a maioria das Carmelitas que, além disso, jejuavam de 14 de
Setembro até ao dia de Páscoa. De qualquer forma, a comida nunca fora
importante para Amadea.

O almoço e o recreio tinham acabado quando a madre Teresa Maria Mater


Domini terminou a sua conversa com ela. Amadea foi juntar-se às outras
irmãs para a litania da Virgem Maria e esforçou-se por se concentrar na
oração e não nas palavras da madre superiora. Teria de assimilar muitas
coisas. Seguiu- se um tempo para a leitura, depois mandaram-na para as
cozinhas, antes do jantar. Passou a maior parte da tarde, de joelhos, a
esfregar o chão, enquanto rezava, antes de ir ajudar a preparar a refeição
da noite.

As irmãs estavam constantemente ocupadas a trabalhar e a rezar e, por


isso, o silêncio se tornava tão importante. À hora das vésperas sentia-se
esgotada, mas transbordante de felicidade, enquanto todas rezavam em
silêncio. Por fim, o Ângelus anunciou o jantar.

Amadea ainda não comera nada desde o pequeno-almoço, no qual mal


tocara, tal a sua excitação. Comeram batatas e legumes, bem como fruta
do jardim, enquanto conversavam tranquilamente. Havia uma série de
jovens com a idade de Amadea, muitas delas com vestes de postulante,
outras já com os hábitos de noviças. Algumas pareciam ainda mais novas
do que ela. As religiosas, que usavam o véu negro da ordem, pareciam-lhe
verdadeiras santas de rostos angelicais, expressões calmas e um olhar
caloroso e tranquilo. Amadea nunca se sentira tão feliz. Muitas delas
falaram-lhe delicadamente
165

160

durante o jantar. Reparou que várias das mais jovens se ocupavam das
mais idosas. Algumas tinham sido trazidas para a mesa em cadeiras de
rodas e conversavam, à semelhança de avós ladeadas pelas jovens
ajudantes.

Depois do jantar e de uma breve meia hora de recreio em que compararam


os seus tricôs e as vestes sacerdotais que confeccionavam, rezaram juntas
durante meia hora, em seguida em silêncio durante duas horas, antes de
procederem a uma oração comum e se irem deitar. Deviam levantar-se às
cinco e meia e estar na igreja às seis. Rezariam, então, durante duas horas
antes da missa às oito, a que se seguia o pequeno-almoço. Em seguida,
dedicavam-se às respectivas tarefas até ao exame de consciência diário,
seguindo-se o almoço. Os dias eram preenchidos com orações e um duro
labor, mas este ritmo não desmoralizava Amadea. Sabia o que a esperava e
era o que ela queria. ”Os seus dias e a sua vida estariam sempre
preenchidos”, dizia de si para si ”e viveria de coração alegre, no seio do
Ca rmelo.”

Nessa noite, quando entrou na sua cela às dez horas, conheceu as religiosas
com quem a partilharia, duas noviças e uma postulante como ela.
Acenaram com as cabeças e sorriram umas às outras, após o que apagaram
a luz para vestir as camisas de noite. Estas eram feitas de uma lã grosseira
que, apesar de haver sido lavada vezes sem conta, ainda arranhava. As
celas não eram aquecidas, as camisas provocavam uma enorme comichão,
mas era um sacrifício que faziam voluntariamente. Iam tornar-se as
esposas do Cristo crucificado, que morrera por elas na Cruz. Era o mínimo
que podiam fazer por Ele.

Amadea tinha a certeza de que, com o tempo, se habituaria. Por um


momento, pensou nas delicadas camisas de noite em seda e algodão que a
mãe desde sempre lhe fizera, mas logo se lembrou com a mesma rapidez
de que teria de arrepender-se por este pensamento no dia seguinte, durante
o exame de consciência. Não havia lugar para estas recordações no
convento e, sempre que lhe ocorressem, deveria arrepender-se e afastá-las
de imediato. Não tinha tempo a perder com lamentações sobre o conforto
perdido da sua antiga vida.

Nessa noite rezou demoradamente pela mãe e por Daphne, para que Deus
tomasse conta delas e as mantivesse felizes e de boa saúde. Por um breve
instante, sentiu que as lágrimas lhe subiam aos olhos, mas lembrou-se
imediatamente de que também teria de fazer penitência por isso. Esta era,
doravante, o guia da sua própria consciência e a guardiã das portas do seu
pensamento. Apenas podia permitir a entrada aos pensamentos relativos a
Cristo, como lhe explicara a madre superiora. Enquanto se deixava arrastar
lentamente pelo sono, rezando pela mãe e pela irmã, Amadea pronunciou
também uma oração pela avó que morrera há dois meses e agora se
encontrava no Paraíso.

Estendida na cama, com Daphne ao lado, que adormecera a chorar,


também Beata pensava em Monika e na filha que acabara de oferecer a
Deus. Tal como Amadea, rezou para que Ele velasse pela filha e a livrasse
de todo o mal. Depois, sem qualquer razão especial, rezou igualmente
pelos judeus.

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CAPÍTULO 12

Os dias passaram rapidamente para Amadea, cheios de preces e de


trabalho. Na maior parte do tempo foi enviada para a cozinha e a
lavandaria, embora tivesse tido a oportunidade de trabalhar uma vez no
jardim com Edith Stem. Tinham jardinado lado a lado em silêncio e
Amadea sorrira-lhe, feliz por estar junto dela. Mais tarde, nessa manhã, ao
fazer o exame de consciência, ocorrera-lhe, todavia, que não devia ter
qualquer interesse pessoal por ninguém. Desde então, passou, por
conseguinte, a evitá-la, a fim de criar distância e deixar de pensar na
admiração que sentira por ela. A irmã Teresa Benedita da Cruz era,
doravante, mais uma das irmãs e não devia representar mais nada aos seus
olhos.

Amadea recebia com regularidade cartas da mãe e de Daphne, o que lhe


permitia estar a par do que se passava no mundo. Em Setembro, as leis
raciais de Nuremberga haviam sido promulgadas, leis antijudaicas, que
dificultavam ainda mais a vida dos judeus. Para Amadea, constituía mais
ummotivo para rezar. No Natal, a mãe enviara laranjas para todo o
convento, o que foi um presente muito apreciado. Em Janeiro, Amadea
começou o seu noviciado e pôde, finalmente, vestir o sagrado hábito da
ordem do Carmelo, tendo sido para ela o dia mais importante da sua vida.
Depois, concederam-lhe autorização para receber uma breve visita da mãe
e de Daphne. Acolheu-as com um sorriso radioso através da pequena
grelha, mas a mãe desfez-se em lágrimas ao vê-la de hábito, enquanto
Daphne observava atentamente a irmã.

Não pareces tu comentou a menina com um ar solene, quase assustado.

Beata apercebeu-se imediatamente da felicidade da filha, o que lhe


despedaçou o coração.

É porque não sou ”eu”. Sou uma freira respondeu Amadea com um sorriso.
Vocês estão com um ar óptimo.

Tu também retorquiu Beata, fitando-a e abraçando-a com o olhar. i

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As três haviam passado os dedos através da pequena grelha para tentarem


tocar-se, mas revelara- se mais frustrante do que satisfatório. Beata
ansiava por ter a filha nos braços e sabia que tal seria impossível. Vais
voltar em breve para casa? inquiriu Daphne com a voz e os olhos cheios de
esperança.

Aqui, estou em casa, minha querida sorriu Amadea. Como vai a escola?
Bem disse a irmã com um ar acabrunhado.

A vida não era a mesma sem a irmã e, embora a mãe se esforçasse por
passar mais tempo com ela, ambas andavam tristes. Sem Amadea, reinava
um silêncio de morte na casa, como se lhe faltasse vida. Aquela que era a
sua razão de vida e lhes tornava os dias radiosos encontrava-se agora
dentro destas paredes.

A visita acabou rapidamente e só voltaram a ver-se muito mais tarde,


nesse ano. Daphne tinha, então, onze anos e meio. Nesse Verão, Beata
levara-a a assistir aos Jogos Olímpicos e a miúda apaixonara-se,
sobretudo, pelas provas de natação. Escrevera à irmã a descrever tudo.
Quando a visitaram outra vez, ela tornara-se a irmã Teresa do Carmelo.
Amadea de Vallerand deixara de existir.

No Verão seguinte, a irmã Teresa do Carmelo pediu para levar a cabo a sua
profissão temporária, que a ligaria à ordem através dos votos de pobreza,
castidade e obediência. E o capítulo concedeu a autorização. Faltavam-lhe
seis anos para os votos perpétuos. Contudo, decorridos apenas dois anos, a
jovem já tinha a impressão de haver sido religiosa toda a vida. Foi em
1937.

Nesse ano, as notícias do mundo tornaram-se inquietantes. Os judeus


tinham sido banidos de inúmeras profissões, como as de professor,
dentista e contabilista. Era como se o regime de Hitler tentasse expulsá-los
gradualmente da sociedade, proibindo-lhes todas as profissões. Tudo isto
deu às irmãs do Carmelo razões para orar.

Em Março do ano seguinte, 1938, as tropas nazis invadiram a Áustria e


anexaram-na à Alemanha. As SS ficaram à

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163

frente dos negócios judeus e ordenaram a cem mil judeus de Viena que
abandonassem o país.
Em Abril, todos os judeus da Alemanha tiveram de declarar os bens e
Beata interrogou-se em que medida tal afectaria o pai e os irmãos. Tanto
quanto sabia, eles ainda continuavam a dirigir o banco da família

A situação piorou marcadamente no Verão, pouco depois de Amadea ter


renovado os votos. Segundo as cartas que enviava à mãe, trabalhava agora
no jardim e à noite costurava vestes sacerdotais. Em Julho, todos os judeus
com mais de quinze anos receberam ordem para pedirem um bilhete de
identidade na polícia, que deveriam apresentar a pedido de qualquer
agente. Segundo as mesmas regras impostas aos dentistas no ano anterior,
os médicos judeus foram proibidos de exercer, embora a Alemanha se
encontrasse quase sem médicos e dentistas. Um número incalculável de
judeus, que exerciam elevados cargos, perdeu o emprego.

Beata parecia preocupada quando, no Outono, ela e Daphne visitaram


Amadea. Esta ficou estupefacta ao ver como Daphne crescera. A jovem
tinha treze anos e estava mais bonita de ano para ano. Herdara a beleza
delicada da mãe, contrariamente à irmã mais velha, muito mais alta, que
lhe sorriu, orgulhosa, através da grelha e lhe aflorou a face com um beijo.

Amadea meteu-se com a irmã a propósito dos rapazes, o que levou Daphne
a corar. Numa carta, a mãe tinha-lhe contado que Daphne tinha um fraco
por um rapaz do mesmo colégio e que ele também gostava dela. Daphne
era uma jovem encantadora e emanava uma inocência que tocava o
coração de Amadea. Graças à correspondência trocada, tinham conseguido
que Amadea continuasse a fazer parte da sua vida, mas custava-lhes a
acreditar que ela já se encontrava há três anos no convento.

Beata sentia que a filha se fora embora há séculos, contudo, outras vezes,
era como se apenas tivessempassado alguns meses. Continuavam a sentir-
lhe terrivelmente a falta, mas com todos os horrores que aconteciam
naquela época, Beata

170

164
estava, ao mesmo tempo, aliviada por sabê-la em segurança. Ela própria
não passara por qualquer problema, nem pensava vir a passar. Aos olhos
do mundo, ela e Daphne eram católicas. Ela era uma viúva inofensiva com
uma filha pequena, que não precisava nada de oficial, não atraía as
atenções e até agora escapara às autoridades. Contudo, o mesmo não
acontecia em relação aos Wittgenstein, que eram publicamente judeus.
Beata lia diariamente os jornais em busca de informações sobre a sua
família ou o banco, a fim de saber se os nazis o haviam confiscado. Mas
até agora não vira nada.

Em Outubro de 1938, dezassete mil judeus alemães de origem polaca


foram presos e reenviados para a Polónia. Seguiu-se a Noite de Cristal, de
9 para 10 de Novembro, e o mundo mudou. Joseph Goebbels organizou
uma noite de terror, em que o anti-semitismo que germinava há cinco anos
explodiu subitamente e se tornou incontrolável. Por toda a Alemanha, mil
sinagogas foram incendiadas e setenta e seis destruídas. Sete mil negócios
e lares judeus foram pilhados e devastados, cem judeus foram
assassinados e outros trinta mil presos e deportados para campos de
concentração.

Os comerciantes judeus receberam ordem para depositarem os seus


negócios nas mãos dos arianos. Num só dia, todos os alunos judeus foram
expulsos das escolas públicas. E, para culminar o acto, o regime hitleriano
indicou à comunidade judia que teria de pagar os estragos produzidos
durante a Noite de Cristal. O ódio abrasava a Alemanha. Ao saber as
notícias após esta noite de terror, Beata teve de sentar-se, em estado de
choque.

Com a agitação que reinava nas ruas, permaneceu dois dias em casa, sem
se atrever a sair. Apanhou um táxi e mandou-o passar diante da casa dos
pais e do banco. Este estava rodeado de cordões policiais, o que
significava que tinha havido problemas; quanto à casa, todos os vidros das
janelas estavam partidos. Os dois edifícios pareciam desertos. Não fazia
ideia para onde fora a família e não ousou perguntar aos vizinhos. O
simples facto de se interessar pelo destino de judeus teria chamado a
atenção sobre si e colocá-la-ia e a Daphne em risco.
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165

Foi só uma semana mais tarde que mencionou o assunto casualmente no


seu banco, cujo pessoal se compunha apenas de arianos. Declarou que se
sentia contente por ter levantado há uns anos todo o seu dinheiro do banco
dos Wittgenstem, dado o que acabava de passar-se e a situação em que
devia encontrar-se de momento.

Estão fechados informou o funcionário num tom brusco.

Beata interrogava-se sobre o que teria acontecido aos fundos dos clientes,
caso os nazis houvessem confiscado o dinheiro, dado a maior parte dos
clientes serem judeus

Não me surpreende. E o que pensa que lhes aconteceu? prosseguiu,


tentando parecer uma mera dona de casa curiosa a querer saber um pouco
mais sobre a Noite de Cristal, de que todos falavam.

O meu patrão conhecia essa família confiou o funcionário num murmúrio.


Foram deportados na quinta-feira passada.

”A véspera antes da Noite de Cristal”, pensou Beata.

Que tristeza! comentou Beata, sentindo-se à beira do desmaio, mas


resolvida a não o demonstrar. Sim, sem dúvida. Mas, afinal, são judeus.
Merecem-no. De qualquer maneira, a maioria são criminosos.
Provavelmente, estes tentaram roubar os clientes.

Beata assentiu com a cabeça e depois perguntou:

Levaram-nos a todos?

Acho que sim. É o que fazem, agora Dantes não, mas creio que acabaram
por compreender que as mulheres eram tão perigosas como os homens.
Cheira-se de longe.

Era gente importante replicou Beata, sentindo-se nauseada e pegando no


seu dinheiro.

Viera levantar um cheque, apenas para saber informações e obtivera-as:


toda a sua família tinha sido deportada.

Regozije-se por ter tirado o dinheiro do banco deles. Tê-la-iam despojado


de tudo.

Beata sorriu, agradeceu ao funcionário e saiu, sentindo o corpo rígido e


interrogando-se sobre como poderia descobrir

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para onde a família fora enviada, sem se expor; qualquer pessoa que
fizesse perguntas colocava- se em risco. Numa última tentativa, pediu ao
motorista de táxi que voltasse a passar diante da casa dos pais. O edifício
sombrio e esburacado fora saqueado. Havia móveis no passeio, peças
antigas de que a sua mãe tanto gostava...Tudo isto acontecera, obviamente,
na Noite de Cristal e já não havia ninguém. Beata reflectiu sobre se teriam
tido tempo de se esconder ou fugir. Desesperada, parou na igreja, no
caminho de regresso a casa, e falou com o padre. Explicou-lhe que
conhecera uma família judia há anos e que receava que lhe tivesse
acontecido algo durante a Noite de Cristal.

É mais do que provável, julgo declarou o padre, com uma expressão


lúgubre. Temos de rezar por eles acrescentou, consciente de que também a
sua comunidade não estava a salvo de Hitler, que não mostrava muito
respeito pela Igreja Católica.

Estava a pensar.. Acha que há qualquer maneira de saber o que lhes


aconteceu? Disseram-me que foram deportados, mas é impossível que
tenham sido todos, pelo menos as mulheres e as crianças talvez não.
Nunca se sabe replicou o padre. Vivemos uma época terrível

Desculpe tê-lo incomodado disse Beata. Só que tive pena quando ouvi a
notícia no banco. Se souber qualquer coisa, informe- me.

Qual era o nome deles?

Wittgenstem. Do banco.

O padre assentiu com a cabeça. Toda a gente em Colónia conhecia este


nome... A deportação desta família tinha um peso enorme, mas tudo agora
era possível. A Noite de Cristal abrira as portas do inferno e libertara
demónios que ultrapassavam os piores receios das pessoas. Era a
desumanidade do Homem sob a sua forma mais abominável.

Mantê-la-ei ao corrente. Conheço um padre na paróquia deles. Talvez


tenha ouvido alguma coisa, embora se trate de judeus. Esse tipo de notícia
circula rapidamente. As

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167

pessoas têm olhos, embora sintam medo de falar. Seja prudente


acrescentou, enquanto Beata se preparava para sair. Não vá até lá sozinha.

O padre sabia que esta viúva era generosa e tinha uma filha pequena. Não
queria que ela tomasse qualquer atitude insensata. Além disso, era mãe de
uma carmelita e, por este motivo, ocupava um lugar especial no seu
coração.

Na última semana de Novembro, o padre fez sinal a Beata à saída da


missa. Daphne estava distraída a falar com uma amiga e não sabia de
nada; quanto a Amadea, Beata nada lhe escrevera sobre as suas
preocupações.
Tinha razão declarou o padre em voz baixa, acertando o passo com o dela.
Levaram-nos a todos. Quem? inquiriu, parecendo distraída. Lembrava-se
de ter-lhe perguntado, mas ele estava a

mostrar-se tão misterioso, que ignorava se lhe respondia ou falava de outra


coisa.

A família que referiu. Levaram-nos a todos no dia seguinte. Toda a


família. Parece que o homem que dirigia o banco tinha uma filha e dois
filhos, e uma filha que morreu há anos. O meu amigo conhecia- o bem.
Via-o a passear frequentemente no bairro e paravam a conversar. Era um
homem simpático. Um viúvo. Levaram-nos a todos: o viúvo, os filhos e
até mesmo os netos. Ele acha que foram enviados para Dachau, mas não há
nenhum meio de saber. De qualquer maneira, já não estão lá. A casa vai
provavelmente ser dada a um oficial do Reich. Vou dizer uma oração por
eles concluiu, afastando- se. Havia actualmente muitas histórias do
género. Beata sentia-se em estado de choque e não pronunciou uma
palavra a Daphne durante todo o caminho de regresso a casa.

Estás bem, mamã? perguntou Daphne, num tom meigo.

Há uns dias que a mãe parecia nervosa, mas toda a gente andava assim. Na
escola, várias alunas tinham sido expulsas e todos haviam chorado. A
professora repreendera-as, dizendo tratar-se de judeus que não mereciam
andar na escola, o que Daphne achara horrível. Toda a gente merecia andar
na escola. Pelo menos, era o que a mãe lhe dizia.

174

168

Sim, sim respondeu Beata, bruscamente, aliviada pelo que o padre lhe
dissera sobre a morte de uma das filhas dos Wittgenstein.

Com um pouco de sorte, toda a gente continuaria a pensar que ela estava
morta. Doravante, era apenas uma viúva católica com uma filha
adolescente e uma outra que era freira. Louvado fosse Antoine! Só que
acabo de ouvir uma história triste sobre uma família que conhecia e que
foi deportada

depois da Noite de Cristal acrescentou em voz baixa.

Toda a sua família tinha desaparecido: o pai, os irmãos, a irmã e os filhos,


as cunhadas. Todos. Era inacreditável. Só Deus sabia onde se encontravam
e se sobreviveriam. Circulavam histórias monstruosas sobre os campos,
que, supostamente, eram campos de trabalho, mas onde muitos morriam.

Aos setenta e três anos, o pai já não era novo. Amãe teria tido sessenta e
oito anos e Beata sentiu- se repentinamente grata a Deus por tê-la poupado
a isto. Pelo menos, morrera em paz, embora Beata não estivesse ao seu
lado. Contudo, não queria mal ao pai. O que acabava de acontecer-lhe e
aos seus era bem pior do que tudo o que pudessem ter-lhe feito sofrer.
Ninguém merecia tal coisa. Beata tinha medo, mas, de momento, estava
convencida de que ela e Daphne se encontravam a salvo.

Que horror! exclamou Daphne, baixinho, pensando no que a mãe acabava


de contar.

Não fales disto a ninguém ordenou a mãe, ríspida. Se mostrares simpatia


para com os judeus, os nazis fazem-te mal rematou ao entrarem na
intimidade do lar.

A casa estava quente e confortável e elas encontravam-se a salvo. Era o


mais importante. Não conseguia apagar a imagem da fachada destruída da
sua antiga casa, os vidros das janelas estilhaçados e os móveis espalhados
em cima do passeio.

Mas tu tens pena dos judeus, não tens, mamã? perguntou Daphne, fitando-
a com uns olhos inocentes.

Sim respondeu Beata com sinceridade, mas nos tempos que correm é
perigoso afirmá-lo. Olha o que acaba

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de passar-se. As pessoas estão enfurecidas e confusas e já não sabem o que


fazem. Mais vale estar calado. Lembra-te disso, Daphne.

Beata fixou-a severamente e Daphne aquiesceu com um aceno de cabeça.

Prometo respondeu.

No entanto, tudo aquilo parecia-lhe cruel e terrível. Não conseguia deixar


de pensar como devia ser horrível ser judeu, perder a casa, ser levado para
longe dos pais por desconhecidos, até mesmo perdê- los. Estremeceu só de
pensar nisso. Felizmente que ela e a mãe estavam em segurança, embora
não houvesse um pai que as protegesse. Mas ninguém iria fazer-lhes mal.

Passaram a noite em silêncio, cada uma delas imersa nos seus


pensamentos. Ao entrar no quarto da mãe, Daphne ficou surpreendida ao
encontrá-la de joelhos, a rezar. Observou-a durante um minuto e depois
saiu, interrogando-se sobre se a mãe diria uma oração pela família de que
lhe falara à tarde. Desconfiou que assim era. Tinha razão, mas ignorava o
que a mãe estava realmente a fazer. Beata fazia o que nunca tinha feito
antes, mas que ouvira ao pai: o que eles haviam feito por ela, o que
nenhuma mulher ortodoxa alguma vez fizera. Estava a recitar o Kaddish, a
oração dos mortos

Esperava que a sua família ainda estivesse viva, mas, se não fosse esse o
caso, alguém tinha de rezar por ela. Disse todas as palavras de que
conseguia lembrar-se e depois manteve-se ajoelhada junto da cama, com o
rosto banhado em lágrimas. Tinham-lhe fechado as portas e o coração há
anos, declarando- a morta, mas ela continuara a amá-los. E, de súbito,
todos haviam desaparecido: Brigitte, Ulm, Horst, o seu pai. As pessoas
com quem crescera e que nunca deixara de amar. Nessa noite, Beata rezou
o shwa por eles,

tal como todos o tinham feito por ela, há muito tempo.


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CAPÍTULO 13

Na primeira semana de Dezembro, Beata telefonou à madre superiora e


pediu para visitar a filha, mencionando que era importante. A religiosa
respondeu-lhe delicadamente que teria de esperar. As freiras andavam
muito ocupadas nessa altura e precisavam de resolver uma questão interna.
Marcou uma visita a Beata para 15 de Dezembro, esperando que tudo
estivesse mais calmo, então.

Até essa data, Beata viveu num estado de agitação indescritível. Ignorava
porquê, mas sentia- se impelida a contar a Amadea o que se passara. Os
recentes acontecimentos não as afectavam verdadeiramente, mas a
situação podia mudar. Amadea devia saber. Tinha esse direito. Desejava
igualmente contar a Daphne, mas esta podia deixar escapar algo no liceu;
além disso, ainda não fizera catorze anos e era demasiado jovem para
transportar o fardo de um enorme segredo. Especialmente um segredo que
podia custar vidas, inclusive a sua.

Mas, pelo menos, Amadea estava a salvo no convento e a mãe dava valor
aos seus conselhos. Beata não queria tomar estas decisões sozinha. Pensara
em partir para a Suíça, mas há muito que os primos de Antoine tinham
morrido. Não tinha outro sítio onde se alojar. Teria de alugar uma casa lá,
mas precisaria de abandonar tudo... Para quê tomar uma decisão sob a
influência do pânico? Afinal, não tinha motivo para sentir medo. Contudo,
sentia. Um medo profundo.

Amadea percebeu logo que se passava algo, quando a viu. A mãe tinha
vindo sozinha. Daphne estava nas aulas e Beata detestava privá-la de uma
visita e de uma ocasião de ver a irmã, mas não lhe restava outra escolha.
Sabia que não estava a pensar com clareza. Afinal, elas eram alemãs e ela
professava o catolicismo. Ninguém sabia quem ela era e ninguém lhe
criara problemas. Mas como ter certezas naqueles tempos? Também o pai
se devia ter julgado a salvo. Não sabia por onde começar.

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Paz de Cristo saudou Amadea, meigamente, sorrindo à mãe

A semana anterior fora triste para as freiras. A irmã Teresa Benedita da


Cruz, Edith Stem, deixara-as há três dias, a fim de ir para um convento na
Holanda. Uma das suas amigas ajudara-a a passar a fronteira, com a sua
irmã Rosa, que também ficaria no convento. Receara prejudicar as outras
freiras. De origem judia, pedira à madre superiora que a mandasse para
longe, a fim de preservar a segurança das outras. Todas tinham ficado
tristes ao vê-la partir. Não era o que queriam, mas sabiam que não restava
outra solução, para o bem de todas. Haviam chorado muito quando ela se
fora embora e rezavam, todos os dias, por ela. O convento nem parecia o
mesmo sem o seu rosto sorridente.

Está tudo bem, mamã? perguntou em seguida. Onde está a Daphne?

No liceu. queria falar-te a sós apressou-se a continuar, pois sabia que não
tinham muito tempo e havia tanto que dizer à filha. A minha família foi
deportada, Amadea.

Que família? inquiriu a filha, surpreendida, fitando-a. Referes-te à família


da avó?

As vozes de ambas eram murmúrios e agarravam as mãos através da


grade.

Todos respondeu Beata, assentindo com a cabeça. O meu pai, a minha


irmã, os meus dois irmãos, os filhos e as minhas cunhadas prosseguiu com
os olhos cheios de lágrimas.

Lamento muito replicou Amadea, confusa Mas porquê?

Porque são judeus respondeu Beata, após uma funda inspiração. Ou


melhor, eram, pois provavelmente já estão mortos neste momento. Eu sou
judia. Converti-me para casar com o teu pai.
Não sabia disse Amadea, fitando-a compassivamente, sem aparentar
qualquer receio nem parecer entender o que tal significava, ou podia
significar para todos.

Nunca te contei, porque o teu pai e eu não achámos

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que fosse importante. Mas agora é. Muito importante. Talvez tivesse


medo... ou vergonha, não sei. Ninguém nos incomodou ou disse o que quer
que fosse e todos os meus documentos indicam que sou católica. De facto,
não tenho documentos, à excepção de um bilhete de identidade, desde a
morte do teu pai. Não há qualquer prova do meu nascimento e a tua
certidão de nascimento menciona que o teu pai e eu éramos católicos, o
que corresponde à verdade. Até mesmo a nossa certidão de casamento
indica que sou católica. Contudo, sei que a prova de que sou judia existe
algures. O meu pai disse a toda a gente que eu tinha morrido e escreveu o
meu nome no livro dos mortos. A pessoa que eu era já não existe. Renasci
ao casar com o teu pai, como cristã, como católica. Contudo, na verdade,
tu és meia judia e Daphne também. E, na opinião dos nazis, eu sou
completamente judia. Se alguma vez o descobrirem, vocês correrão
perigo. Precisava de dizer-te. Quero que estejas ao corrente para poderes
proteger- te.

”E às outras”, pensou imediatamente Amadea, reflectindo no que Edith


Stein acabara de fazer para protegê-las a todas. Contudo, Edith Stein era
uma verdadeira judia, reconhecida como tal e Amadea não. Ninguém sabia
quem ela era, nem se preocupava consigo. A própria mãe afirmava que não
existiam provas das suas origens. De qualquer maneira, sentia-se contente
por estar a par.

Obrigada por me ter dito. Mas não estou preocupada retorquiu Amadea
num tom calmo, fitando a mãe e beijando-lhe os dedos. E a Daphne,
mamã? quis saber, pensando subitamente no que Edith Stein, a irmã Teresa
Benedita da Cruz dissera sobre os riscos que os outros podiam correr.

Está em segurança comigo. Além de que é apenas uma criança.

”Mas as crianças também eram deportadas para os campos”, pensou Beata.


Com a diferença de que eram totalmente judias e Daphne não. O risco era
pouco, havia que reconhecer. E desde que ninguém viesse criar-lhes
problemas ou desenterrar

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o passado, tudo correria bem E que probabilidade havia de que o fizessem?


De momento, a ideia de ir para a Suíça pareceu-lhe extravagante. Não
tinham qualquer motivo para fugir. Ela apenas ficara perturbada por saber
o que acontecera aos outros.

Antes de partir, a irmã Teresa Benedita disse-nos uma coisa importante.


Os ingleses puseram um comboio à disposição das crianças judias para
evitar que fossem deportadas para os campos. O primeiro partiu da
Alemanha a 1 de Dezembro, mas haverá outros. Estão a mandar crianças
alemãs para Inglaterra, até que toda esta loucura termine. Mas apenas
crianças com menos de dezassete anos. Os nazis não se opuseram. É legal.
Eles só não querem crianças judias no território deles E que tal mandar a
Daphne para ter a certeza de que fica a salvo? Ela pode sempre voltar mais
tarde.

Contudo, Beata abanou imediatamente a cabeça. Não queria que a filha se


fosse embora. Não havia necessidade de a afastar. Deixá-la ficar com
estrangeiros em Inglaterra também poderia revelar- se perigoso.

Ela não é judia, Amadea arguiu. Apenas metade e ninguém o sabe. Não
vou enviá-la desprotegida para um país estrangeiro, sabe Deus com quem
e para ficar sabe Deus onde. É demasiado perigoso para ela, que não passa
de uma criança.
Também as outras, mamã. Pessoas generosas vão acolhê-las em suas casas
e ocupar-se delas replicou Amadea, meigamente.

A solução parecia-lhe razoável, mas a mãe não partilhava da mesma


opinião.

Sabes lá tu! - ripostou.

- Daphne podia perfeitamente ser violada por um desconhecido. Tudo pode


acontecer E se essas crianças caem nas mãos erradas? - É aqui que se
encontram nas mãos erradas suspirou Amadea. Contudo, talvez a mãe
tivesse razão. De momento, elas não corriam um perigo real e podiam
esperar para ver a evolução das coisas. E, se algo acontecesse, estariam
sempre a

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tempo de mandar Daphne para o estrangeiro mais tarde. Talvez a mãe


tivesse razão, talvez fosse melhor manterem-se discretas e aguardarem
que passasse a tempestade. Mais cedo ou mais tarde, tudo acabaria por
passar.

Não sei bem... retorquiu Beata, parecendo preocupada.

Era difícil saber o que fazer, que atitude tomar. O sangue corria na
Alemanha, mas, de momento, não era o delas. Apenas quisera prevenir
Amadea, para que estivesse a par dos riscos. A filha estava em segurança
no convento, e a história de Edith Stein era muito diferente. Esta era judia,
reconhecida como tal, e ainda há bem pouco tempo fora uma radical e uma
activista. Exactamente o tipo de pessoa que os nazis procuravam: uma
agitadora, o que não era, de forma alguma, o caso de Amadea. Enquanto
mãe e filha se fitavam, absortas nos seus pensamentos, uma religiosa
bateu à porta para lhes indicar que o tempo da visita acabara.

Tenho de ir, mamã.


O próximo encontro só ocorreria dali a meses.

Não escrevas à Daphne que estive aqui pediu Beata. Ficaria infelicíssima
por não ter vindo comigo. Mas precisava de falar-te a sós.

Compreendo anuiu Amadea, beijando os dedos da mãe. A jovem tinha


vinte e um anos, mas parecia muito mais velha. Beata dava-se agora conta
de que a filha amadurecera muito durante estes três anos e meio passados
no convento.

- Amo-te, mamã. Tem cuidado. Não faças nada de insensato avisou- a.

Também eu, minha querida. Gostava que ainda estivesses em casa


connosco admitiu com um sorriso triste nos lábios.

Sou feliz aqui tranquilizou-a Amadea, ao mesmo tempo que sentia um


aperto no coração.

Por vezes, a mãe e a irmã faltavam-lhe, mas continuava persuadida de que


tinha a vocação. Dali a quatro anos e meio, pronunciaria os votos
perpétuos, disso não tinha dúvida. Aliás, nunca a assaltara uma só dúvida,
desde que entrara para o convento.

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Feliz Natal, mamã desejou ainda, levantando- se.

Feliz Natal também para ti respondeu meigamente a mãe, antes de sair da


pequena cela reservada às visitas

Pouco depois, Amadea regressou ao trabalho e, durante o tempo dedicado


ao exame de consciência, reflectiu na conversa que tivera com a mãe.
Muitas coisas haviam sido ditas, mas Amadea já sabia o que tinha de fazer.
Logo a seguir ao almoço, dirigiu-se ao gabinete da madre superiora,
durante a hora do recreio, e ficou aliviada por verificar que a madre Teresa
Maria Mater Dommi estava a trabalhar. A religiosa ergueu a cabeça no
momento em que Amadea hesitava. Estava a redigir uma carta de
agradecimento à madre superiora do convento na Holanda que
correspondera ao seu pedido e acolhera a irmã Teresa Benedita da Cruz.

Sim, irmã. O que se passa?

Paz de Cristo, madre. Posso falar consigo?

A religiosa fez-lhe sinal para que entrasse e se sentasse. Amadea fechou a


porta atrás de si. Passou um momento agradável com a sua mãe, irmã?
inquiriu a madre, percebendo logo que a

jovem parecia preocupada e perturbada.

Sim, obrigada, madre. Tenho algo a dizer-lhe que ignorava quando entrei
para o convento. A madre superiora ficou a aguardar, dando-se conta de
que se tratava de algo grave.

Nunca soube que a minha mãe não era de origem católica começou
Amadea. Disse-me, hoje, que se converteu ao catolicismo para casar com
o meu pai. Era judia. A família dela foi deportada após a Noite de Cristal.
Nunca os conheci, porque renegaram a minha mãe quando ela casou com o
meu pai e não voltaram a vê-la. Acabámos por conhecer a minha avó dois
anos antes de eu entrar para o convento, mas o meu avô nunca permitiu
que a minha mãe se encontrasse com o resto da família. Declararam-na
como morta.

Ergueu os olhos para a madre superiora e respirou fundo antes de


continuar:

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Aminha mãe diz que ninguém aparentemente possui pistas da sua história.
Nunca se registou e não tem passaporte. Os meus pais viveram três anos
na Suíça, antes de regressarem à Alemanha. Eu nasci lá. A sua certidão de
casamento indica que ela é católica e a minha certidão de nascimento
indica que ambos o eram. Contudo, sou meia judia, madre, mas nunca o
soube. Agora receio que, se ficar aqui, possa ameaçar as vossas vidas.

Era exactamente esse o motivo por que a irmã Teresa Benedita se fora
embora.

As nossas vidas não estão ameaçadas, minha filha, nem a sua. Pelo que me
diz, ninguém conhece a história da sua mãe. Ela faz tenção de ir à polícia e
declarar que é judia?

Não respondeu Amadea, abanando a cabeça. Ela leva uma vida calma e
não há motivo para que alguém o saiba.

Esconder a verdade não era honesto, mas era prático, existindo vidas em
jogo: as de Daphne, as da mãe e a dela. Talvez mesmo a das outras
religiosas. A madre superiora aparentemente não desaprovava o silêncio.

A situação da irmã Teresa Benedita era totalmente diferente da sua. Ela


nasceu judia, sendo conhecida como professora e activista, antes de entrar
aqui. Atraíra muito as atenções, antes de se tornar carmelita. É uma
convertida, o que não é o seu caso, que foi criada na fé católica. Com um
pouco de sorte, ninguém descobrirá o passado da sua mãe. Se ela se
mantiver discreta, ninguém saberá nada. E se acontecer qualquer coisa,
tenho a certeza de que nos informará. Nesse caso, poderemos enviá- la
discretamente para qualquer lado. Não me agradou que todas entrassem
em pânico por causa da irmã Benedita. Não há qualquer razão para alarme
no seu caso. Quando entrou no convento era uma jovem inocente, não uma
mulher famosa, convertida e conhecida pelo seu passado. Na situação dela,
impunha- se que se fosse embora. Na sua, impõe-se que fique. Ou seja, se
quiser ficar especificou a madre superiora, fitando-a com uma expressão
interrogativa.

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Sim, é o que quero respondeu Amadea, parecendo aliviada. Contudo, temia


que me mandasse embora. E é o que farei, se alguma vez o desejar.

Seria o seu sacrifício máximo pelo bem da comunidade. O de Santa Teresa


fora a abnegação total de si própria ao serviço do Senhor.

Não, não o desejo. E irmã... prosseguiu a madre com um olhar severo,


idêntico ao de uma mãe que admoestasse uma filha é essencial que não
discuta este assunto com ninguém. Com ninguém. Manteremos isto entre
nós as duas. Sabe o que aconteceu à família da sua mãe? acrescentou,
erguendo o rosto com um olhar preocupado. Ela soube alguma coisa?

Acha que foram enviados para Dachau.

A madre superiora premiu os lábios, sem pronunciar uma palavra.


Detestava o que acontecia aos judeus, tal como todas as outras religiosas.

Quando lhe escrever, diga-lhe, por favor, que lamento muito. Mas de uma
forma discreta pediu, e Amadea assentiu com a cabeça, reconhecida pela
sua bondade.

Não quero ir-me embora, madre. Quero pronunciar os meus votos


perpétuos.

Se for essa a vontade de Deus, assim será. Contudo, ambas sabiam que
faltavam quatro anos e meio. Isto parecia uma eternidade a Amadea,
decidida a transpor a meta sem que nada se atravessasse no seu caminho.
Acabava, aliás, de superar um obstáculo significativo na última meia hora.
Mas não confunda a sua situação com a da irmã Teresa Benedita
aconselhou ainda a madre. É algo

muito diferente.

”E muito mais grave, com elevados riscos para todas as pessoas


implicadas”, pensou a madre. O que, segundo julgava, não era o caso de
Amadea.

Obrigada, madre agradeceu a jovem, antes de sair. A madre superiora


permaneceu sentada à secretária durante um longo momento,
interrogando-se sobre quantos casos

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semelhantes existiriam no convento; talvez houvesse outras religiosas na


mesma situação e não fizessem a mínima ideia disso, como Amadea. Mais
valia não saber.

Amadea sentiu-se extremamente aliviada durante o resto do dia, embora


continuasse preocupada por causa da mãe e da irmã. Contudo, talvez a mãe
estivesse certa, e a verdade sobre as suas origens nunca se desvendasse; de
qualquer maneira, não havia qualquer motivo para tal. Nessa noite, rezou
pelos membros da sua família que haviam sido deportados, talvez mesmo
mortos, e que ela nunca conhecera. Lembrou-se da época em que a mãe a
levara à sinagoga, sem que ela compreendesse o motivo. Acabara por
esquecer, mas agora, que voltava a pensar no assunto, tomou consciência
de que tinha, de certo modo, aflorado uma parte do seu passado.

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CAPÍTULO 14

Como era previsível, a perseguição aos judeus prosseguiu no ano seguinte.


Em Janeiro de 1939, Hitler pronunciou um discurso, ameaçando-os e
vincando claramente o ódio que lhes votava. Deixavam de ser cidadãos
bem-vindos no seu próprio país, pois Hitler jurou piorar as coisas para eles
e já começara. No mês seguinte, os judeus receberam ordens para
entregarem às autoridades todos os seus bens em ouro e em prata. Em
Abril, foram expulsos das suas casas e obrigados a morar em bairros
exclusivamente judeus, com a proibição de viverem ao lado de arianos.

A situação incitou os judeus a tentarem emigrar, o que estava longe de ser


fácil. Em muitos casos, os países para onde desejavam emigrar, não os
aceitavam. Precisavam de ter família ou conhecer alguém que se
responsabilizasse por eles no estrangeiro e, frequentemente, não era o
caso. Deviam ter um emprego no país de destino, obter a autorização do
governo alemão e do país para onde queriam ir, mas os seus pedidos eram,
muitas vezes, recusados por um ou os dois países. Por fim, deviam ter
dinheiro para pagar o processo e muitos não o tin ham.

Só muito poucos conseguiram preencher, com sucesso, todos os requisitos


no prazo concedido. No entanto, bastantes judeus alemães ainda insistiam
e acreditavam que tudo viria a acalmar-se, a tal ponto a realidade lhes
parecia inconcebível e insensata. Eles eram cidadãos alemães. Nada de
mau podia acontecer-lhes. Todavia, muitos já tinham sido deportados e
enviados para campos de trabalho, e os boatos que lhes chegavam eram
cada vez mais alarmantes. Pessoas morriam sob os maus tratos, má
nutrição, fadiga e de doença; outras desapareciam simplesmente, sem
deixar rasto. Os que avaliavam a gravidade da situação, estavam em
pânico. Mas deixar a Alemanha era quase impossível.

Durante todo o ano, os comboios de que Amadea falara à mãe continuaram


a transferir c rianças para Inglaterra. Os

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ingleses, com a ajuda dos quakers, organizavam a saída de crianças da


Alemanha, da Áustria e da Checoslováquia. Algumas delas eram cristãs,
mas a maioria era judia. O governo britânico concordara em acolhê-las
sem passaporte, na condição de terem menos de dezassete anos, a fim de
não colocarem em risco os empregos ingleses.

Os nazis não se opunham à operação, desde que as crianças não levassem


objectos de valor, mas apenas uma pequena mala. Vê-las partir das
estações de caminho-de-ferro, com os pais a abraçá-las pela última vez,
era de partir o coração, mas também a única garantia para estes últimos de
que os filhos estariam a salvo e longe do destino que os nazis reservavam
aos judeus. Os pais garantiam aos filhos que em breve iriam juntar-se-lhes
e, tanto uns como os outros, rezavam para que fosse verdade. Alguns deles
suplicavam aos filhos que lhes arranjassem trabalho ao chegarem a
Inglaterra, uma tarefa impossível para crianças que não tinham qualquer
forma de ajudá-los, mas que, ao mesmo tempo, sabiam que a
sobrevivência dos pais dependia delas. Apenas alguns bafejados pela sorte
o conseguiram.

Ao chegarem a Inglaterra, as crianças eram aceites por famílias de


acolhimento, encarregadas de recebê-los até que a situação se tornasse
menos perigosa para elas no seu país de origem, mas ninguém sabia
quando é que tal aconteceria. Em alguns casos, chegaram mesmo bebés

Num gesto surpreendente de caridade e humanidade, um membro da


família Rothschild acolheu vinte e oito refugiados e disponibilizou-lhes
uma casa. Embora outros não tivessem meios para serem tão generosos,
deram o seu melhor para garantirem o acolhimento e o bem-estar das
crianças; os que não encontraram pais adoptivos foram colocados em
campos e centros de acolhimento .

Do ponto de vista militar, as notícias, algumas das quais conseguiram


infiltrar-se no convento, sobretudo quando recebiam entregas do mundo
exterior, continuaram a ser inquietantes. Em Março, os nazis invadiram a
Checoslováquia e, no Verão, estavam aparentemente de olho na Polónia.

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Amadea renovou os seus votos temporários pela segunda vez, e a mãe e a


irmã visitaram-na pouco tempo depois. Não haviam tido problemas.
Ninguém lhes pedira os documentos, e Amadea sentiu-se aliviada. Daphne
tinha catorze anos, mas ainda não suspeitava do segredo da mãe.
Amadea ficou feliz ao constatar que a mãe estava com bom aspecto e
parecia calma. Contudo, ela informou-a de que o ambiente estava tenso,
com muitos judeus sem emprego, inclusive os que desempenhavam
profissões respeitáveis, e muitos tinham sido enviados para os campos de
trabalho. A expulsão dos judeus não parara e eram inúmeros homens,
mulheres e crianças os que esperavam em campos de triagem, fora da
cidade, para serem deportados.

Beata também ouvira falar dos comboios de crianças e das operações de


salvamento, mas, para ela, continuava fora de questão enviar Daphne, pois
insistia em que não havia motivo para tal. Amadea e a mãe nunca falavam
do assunto diante de Daphne, excepto para louvar o trabalho dos in gleses.

Duas das antigas amigas de Daphne já tinham partido para a Grã-Bretanha


e ela ouvira dizer que outras também partiriam muito em breve: só
estavam à espera das autorizações. A jovem disse que achava uma tristeza
que partissem sem os pais, só que, como todos concordavam, ficar na
Alemanha teria sido bem pior.

Beata sentiu-se feliz por ver Amadea com tão bom aspecto; só este
pensamento lhe permitia aceitar a escolha da filha. A visita chegou
rapidamente ao fim, como era hábito. Antes de partir, disse à filha que vira
os Daubigny e que eles estavam bem.

Duas semanas mais tarde, os nazis invadiram a Polónia e, nesse mesmo


dia, os judeus da Alemanha viram-se submetidos a um recolher
obrigatório, impondo-lhes que estivessem em casa às vinte e uma horas, e
às vinte no Inverno. Dois dias depois, a França e a Grã-Bretanha
declararam guerra à Alemanha. Nessa manhã, o último comboio de
crianças partiu de Berlim, pois, com a declaração de guerra, os ingleses já
não podiam fazer sair crianças judias do país. A operação durara

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nove meses e dois dias e permitira-lhes a evacuação de dez mil crianças.


Um milagre. Enquanto as últimas crianças abandonavam a Europa, rumo a
Inglaterra, os polacos bateram-se corajosamente contra os nazis, mas sem
resultado, tendo-se rendido ao cabo de quatro semanas. Os olhos de Beata
encheram- se de lágrimas ao ouvir as notícias de Varsóvia.

Um mês depois, os judeus de Viena receberam ordem de evacuação da


cidade e todos os judeus polacos, dos catorze aos sessenta anos, foram
enviados para trabalhos forçados. O horror prosseguia e parecia infindável.

Nesse ano, dadas as circunstâncias, o Natal foi triste, mesmo no convento,


apesar da correspondência tranquilizadora que a irmã Teresa Benedita
enviara da Holanda. A sua irmã Rosa continuava junto dela, no convento, e
as duas sentiam-se a salvo ali, embora a irmã Teresa Benedita confessasse
que tinha saudades das irmãs de Colónia, rezando diariamente por elas,
como elas o faziam por si.

Em Abril de 1940, Amadea fez vinte e três anos e a mãe e a irmã foram
visitá-la. Daphne tinha agora quinze anos, o que até mesmo Amadea sentia
dificuldade em acreditar. Era muito bonita, praticamente a imagem da mãe
quando tinha a mesma idade.

Contudo, e para horror de todos, uma semana mais tarde os nazis


invadiram a Dinamarca e a Noruega e um mês depois, em Maio,
conquistaram a Holanda, para surpresa geral, o que pôs novamente em
perigo a irmã Teresa Benedita.

Era, doravante, impossível prever a sequência dos acontecimentos. Hitler


parecia querer conquistar toda a Europa. A França foi invadida em Junho.
Amadea voltara a renovar os seus votos temporários. Faltavam-lhe três
anos para pronunciar os votos definitivos que a ligariam para sempre à
ordem. Decorridos cinco anos, continuava segura da sua fé e não
conseguia imaginar uma outra vida. Em Outubro, os nazis invadiram a
Roménia. Daphne retomara as aulas pouco tempo antes. E, em Novembro,
o gueto de Cracóvia foi selado com setenta mil judeus no interior,

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183

bem como o de Varsóvia com os seus quatrocentos mil judeus. O que


estava a acontecer era inacreditável. Contudo, apesar do que ocorria e da
política de eliminação sistemática a todos os níveis da sociedade, Beata
garantiu a Amadea, quando a visitou no Natal, que não tivera problemas.
Ninguém lhe fizera perguntas nem lhe pedira identificação.
Aparentemente, ninguém se interessava por ela. Era apenas uma viúva
católica, que vivia sozinha com a filha e se ocupava da sua vida. Numa
palavra, ignoravam-na, o que Amadea ficava sempre aliviada por saber.

Foi na Primavera de 1941, pouco depois dos dezasseis anos de Daphne e


dos vinte e quatro de Amadea, que Beata viu, junto ao guiché de um banco,
uma mulher cujo rosto lhe pareceu familiar. Observou-a demoradamente,
mas sem conseguir localizá-la. Nesse dia, Beata fora levantar uma quantia
elevada de dinheiro, o que raras vezes fazia, mas ocorrera-lhe, durante um
sonho que tivera recentemente, que podia ser uma boa ideia.

Falara do assunto com Gérard Daubigny, que se mostrara de acordo. Ela


queria deixar na posse dele algum dinheiro para as filhas, na eventualidade
de acontecer-lhe alguma coisa. Gérard não compreendia porque é que ela
não queria deixar tudo no banco, mas se isso fazia com que se sentisse
melhor, não via qualquer inconveniente. Alegrava-se por poder ajudar a
mulher do seu velho amigo. Tinha-se dado conta, tal como Véronique, de
que ela nunca se recompusera da morte de Antoine. Os últimos anos
haviam deixado marcas e, aos quarenta e seis anos, parecia ter mais dez.

Estava a planear ir ao castelo nessa tarde, a fim de entregar a Gérard o


dinheiro que queria confiar-lhe. Não era muito, mas permitiria que as
filhas superassem qualquer eventual dificuldade. Escrevera a Amadea,
informando-a de que Gérard Daubigny teria dinheiro dela, se lhe
acontecesse algo. A jovem não gostava que a mãe se mostrasse pessimista,
mas sabia que, há anos, ela se preocupava com o que lhes aconteceria se
ficasse doente ou pior, sobretudo porque Daphne ainda era muito jovem.
Com toda a insegurança

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que reinava no país, as pessoas andavam mais ansiosas, além disso,


Amadea sabia até que ponto os nazis e a evolução da guerra inquietavam a
mãe.

A mulher que Beata estivera a observar abandonou o guiché ao mesmo


tempo do que ela; as duas mulheres dirigiram-se para a saída, quase lado a
lado. Foi, então, que Beata quase desmaiou ao ouvi- la dizer: ”Miss
Wittgenstein!” Sentindo que as pernas lhe falhavam, Beata não deu
qualquer sinal de reconhecimento, saindo do edifício com um passo
rápido. Queria afastar-se dali o mais rapidamente possível, por isso fez
sinal a um táxi. Contudo, a mulher chegara junto dela e esboçava-lhe um
enorme sorriso. Foi só então que a memória se reavivou e Beata soube de
quem se tratava, apesar dos estragos causados pelo tempo. Tratava-se de
uma jovem checa que trabalhara como criada em casa dos pais, há trinta
anos. Ainda lá estava, quando Beata saíra de casa.

Sabia que era a senhora! declarou num tom vitorioso. Julguei que estava a
ver um fantasma. O seu pai disse-nos que tinha morrido na Suíça!

Desculpe... Não faço ideia... Eu... respondeu Beata como se estivesse a ser
confundida. Contudo, a mulher insistiu, convencida de a ter identificado.

Ignoro do que está a falar retorquiu friamente Beata, tremendo dos pés à
cabeça, ante a ideia de que alguém tivesse ouvido a mulher chamá-la pelo
seu nome de solteira.

Tratava-se de um nome que Beata não podia reconhecer, pois, se o fizesse,


estaria a colocar a vida em risco.

Não se recorda de mim? Mina... Trabalhei para os seus pais.

Beata recordava-se, agora, de que Mina casara com o motorista do seu pai,
há uns trinta anos. Ocorreu-lhe tudo, numa vaga de pânico, consciente do
significado que este encontro poderia ter. Desculpe... declarou Beata com
um vago sorriso, tentando mostrar-se delicada, mas ansiosa por escapar,
no momento em que um táxi parou milagrosamente diante dela.

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Sei quem a senhora é prosseguiu Mina com um ar obstinado, mas Beata


meteu-se no táxi, virando-lhe as costas

Tudo o que podia esperar era que Mina acreditasse que se tinha enganado.
Com um pouco de sorte, esqueceria o encontro. A mulher não tinha
qualquer motivo para vir atrás dela, apenas quisera mostrar- se simpática.
Beata recordava-se de que ela era uma jovem meiga e perdidamente
apaixonada pelo motorista; quando saíra de casa, eles tinham acabado de
casar e Mina estava grávida. Devia ter ficado surpreendida ao vê-la, dado
o pai haver comunicado a morte dela a todo o pessoal. Contudo, estava
bem viva e talvez fosse esse o motivo por que Mina se mostrara tão
insistente. Contudo, nos tempos que corriam, Beata não podia permitir-se
ser identificada como uma Wittgenstem, mesmo com o risco de parecer
grosseira à sua antiga criada.

No interior do táxi, Beata ficou surpreendida ao dar-se conta de que estava


toda a tremer. Fora, afinal, um daqueles encontros sem importância, mas
ouvir alguém tratá-la pelo nome de solteira no hall do banco fora
arriscado. Era um nome que não podia admitir ter-lhe pertencido. Restava-
lhe esperar que Mina esquecesse o encontro. Beata acabava de viver um
momento de pânico, mas o incidente estava encerrado, pois não admitira a
sua identidade e mantivera-se calma, apesar do pânico interior. Com um
pouco de sorte, não voltaria a ver Mina. A caminho do castelo de Gérard e
de Véronique, esforçou-se por não pensar mais no assunto, recusando
deixar-se invadir pelo pânico.

Apesar da guerra, os Daubigny tinham tido a sorte de conservar a


propriedade intacta. Há alguns anos, Gérard fora perspicaz e, tal como
Véronique, naturalizara-se alemão, embora, devido a conversas que
haviam tido, Beata soubesse que ele deplorava as acções de Hitler contra
os judeus. Gérard nunca lhe perguntou porque é que ela desejava confiar-
lhe as suas economias. Estava convencido de que se tratava de uma
excentricidade causada pela ansiedade. Ela era uma mulher só, infeliz,
com uma filha, e o seu nervosismo compreendia-se. Com a guerra e a
Europa a ferro e fogo, o mundo

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tornara-se um lugar instável e assustador. Suspeitava que Beata receasse


que os bancos abrissem falência; era a única explicação para que lhe
confiasse aquela quantia. Nessa tarde, ela entregara-lhe um envelope com
o equivalente a vinte mil dólares, o que, segundo afirmou, permitiria que
as filhas se aguentassem por uns tempos, caso lhe acontecesse algo, pelo
menos até poderem levantar o restante. Gérard garantiu- lhe que tomaria
cuidado e colocaria o dinheiro no cofre. Depois, ofereceu-lhe um chá, pois
Véronique saíra. Beata observou que os estábulos continuavam bonitos,
mas ele confiou-lhe que tinha muito menos cavalos do que quando
Antoine era vivo. Nunca encontrara ninguém que lhe chegasse aos
calcanhares, embora já tivessem passado catorze anos desde que ele
morrera. Recordaram o passado durante uns momentos, depois ele chamou
um táxi para a levar de volta à cidade.

Quando chegou, Daphne já estava em casa e muito entusiasmada com a


entrada de um novo aluno no seu liceu. O pai estava no exército na
Áustria, e Daphne confessou à mãe, com os olhos brilhantes, que o achava
bonito, fazendo-a rir. Nessa noite, jantaram as duas calmamente, quando
Daphne disse que gostaria de fazer uma visita a Amadea dentro em breve.
Há meses que não iam ao Carmelo. Amadea estava quase a renovar os seus
votos temporários pela quarta vez. Daphne acabara por aceitar a opção da
irmã de ser carmelita, contrariamente a Beata, que continuava a esperar
que ela viesse a mudar de opinião. Corria a Primavera de 1941 e faltavam
mais dois anos para que Amadea pronunciasse os votos perpétuos. Na
semana seguinte, Beata voltou ao banco, a fim de levantar dinheiro para
pequenas despesas. Queria comprar tecido para fazer alguns vestidos de
Verão para Daphne, e era mais fácil pagar em dinheiro do que em cheque.
Havia muito menos lojas de tecidos do que dantes: as duas em que
costumava fornecer-se eram geridas por judeus e há muito que estavam
fechadas. Beata reflectia no que precisava, quando o funcionário lhe
devolveu o cheque.

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Lamento muito, madame declarou num tom frio. Este cheque não pode ser
pago.

Desculpe? retorquiu, convencida de que havia indubitavelmente qualquer


engano. Claro que pode. Tenho mais do que o necessário nessa conta para
cobrir o cheque acrescentou com um sorriso e pedindo-lhe que voltasse a
verificar.

Contudo, o funcionário devolveu-lhe o cheque, sem fazer qualquer


verificação. Lera correctamente a nota de serviço. Não havia nenhum erro.
Fora o próprio gerente que redigira a nota, e ele não fazia tenção de o
enfrentar.

A sua conta foi cancelada limitou-se a declarar.

Mas isso é ridículo. Por quem?

Sentia-se aborrecida com o engano e dispunha-se a pedir para falar com o


gerente, quando algo nos olhos do indivíduo a dissuadiu.

Pelo Terceiro Reich respondeu o funcionário num tom brusco, enquanto


ela o fitava, abrindo a boca e voltando a fechá- la.

Beata meteu o cheque dentro da mala de mão, girou sobre os calcanhares e


dirigiu-se à saída o mais depressa que conseguiu. Sabia perfeitamente o
que aquilo significava: alguém a denunciara. Só conseguiu pensar em
Mina, a antiga criada dos pais. Era a única que sabia. Ou talvez a tivessem
ouvido chamar-lhe ”Miss Wittgenstem” e fossem verificar. De qualquer
maneira, tinham-lhe cancelado a conta, obviamente porque alguém sabia
que ela era judia. Nenhum outro motivo justificava o fecho de uma conta.
Só Mina sabia, embora Beata não o tivesse admitido.

Saiu rapidamente do banco, acenou a um táxi e chegou a casa cinco


minutos depois. Não tinha ideia do que devia fazer- se esperar ou partir
imediatamente Mas se partissem, para onde iriam? Beata pensou nos
Daubigny, mas não queria colocá-los em risco, apesar da simpatia de
Gérard pelos judeus. Uma coisa era sentir pena, outra totalmente diferente
era escondê-los. Contudo, talvez pudessem passar lá a noite e
aconselharem-se com Gérard. Não tinha passaporte, por isso

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sabia que ela e Daphne jamais passariam a fronteira. Além disso, já não
tinha dinheiro, além do que deixara com Gérard, o qual não queria usar,
pois talvez as filhas viessem a precisar dele mais tarde. Beata tentou
controlar o pânico, enquanto pegava em duas malas, começando a encher
uma delas

com as suas jóias e algumas roupas. Depois, dirigiu-se ao quarto de


Daphne. Estava a meter coisas na outra mala, quando a filha regressou das
aulas. Mal deparou com o rosto da mãe, soube de imediato que algo de
terrível se passava.

O que estás a fazer, mamã? perguntou, assustada. Daphne nunca vira a


mãe naquele estado. Tinha o terror estampado no rosto. Beata sempre
receara este dia e agora tinha chegado.

Vamos partir. Dá-me tudo o que quiseres levar e que caiba nesta mala
respondeu, continuando a fazer as malas, com mãos trémulas.

Porquê? O que aconteceu? Mamã... Por favor... disse Daphne, começando a


chorar sem saber porquê.
Beata virou-se e o seu olhar espelhou, de súbito, vinte e cinco anos de
sofrimento.

Nasci judia explicou. Converti-me para casar com o teu pai. Guardei
segredo durante todos e stes anos. Não tinha essa intenção, mas quando
começaram a perseguir os judeus, tornou-se necessário. Na semana
passada, vi uma mulher no banco que me conheceu quando eu era jovem.
Tratou-me pelo meu nome de solteira em pleno hall do banco. Quando
hoje voltei lá, tinham cancelado a minha conta. Temos de partir
imediatamente. Acho que vêm prender- nos...

Oh, mamã... Eles não podem fazer isso... exclamou Daphne com os olhos
cheios de lágrimas e de terror.

Podem, sim. Despacha-te. Faz as malas. Quero partir esta tarde ordenou
Beata desesperada, enquanto Daphne acusava o choque da notícia.

Para onde iremos? perguntou a jovem, enxugando os olhos e tentando


mostrar-se corajosa. 195

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Não sei. Ainda não pensei nisso. Talvez possamos passar uma noite em
casa dos Daubigny, se eles nos deixarem. Mas depois teremos de encontrar
outra solução.

Talvez passassem os próximos anos em fuga, mas era preferível a serem


apanhadas.

E porque não o convento? Não podemos ir para lá?

inquiriu Daphne, de olhos muito abertos, enquanto pegava em coisas ao


acaso e as metia na mala. Nada disto fazia sentido. Era demasiado de uma
vez só para uma jovem de dezasseis anos ou, aliás,

para qualquer pessoa. Preparavam-se para abandonar a casa, sem dúvida


para sempre, o único lar que Daphne conhecera. Vivia ali desde os dois
anos.

Não quero pôr em risco Amadea nem as outras freiras

respondeu Beata.

Ela sabe? De ti, quero dizer.

Contei-lhe tudo depois da Noite de Cristal. A minha família acabava de ser


deportada e achei que ela devia saber.

Porque é que não me contaste?

Pensei que eras demasiado jovem. Na altura, só tinhas treze anos

Nessa altura, bateram à porta. As duas entreolharam-se, aterrorizadas,


depois Beata fitou a filha com uma força inesperada.

Amo-te Não te esqueças. Só isso interessa. Aconteça o que acontecer,


temo-nos uma à outra. Desejava dizer-lhe que se escondesse, mas não
tinha a certeza de que fosse a atitude indicada. Voltaram a bater com força.
Daphne não se mexia e chorava. Era o pior dia da sua vida.

Beata tentou recompor-se e dirigiu-se à entrada. Quando abriu, viu-se


diante de dois soldados e de um oficial das SS. Era o que sempre havia
temido. Agora, queria dizer à filha que se escondesse, mas era demasiado
tarde. Aquela observava a cena da porta do quarto.

Estão sob prisão declarou o oficial num tom terrível. As duas acrescentou,
indicando Daphne. Como judias. O vosso banco denunciou-as. Sigam- nos.

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Beata tremia da cabeça aos pés e Daphne soltou um grito.


Não, Daphne! Tudo correrá bem. Virou-se para o oficial e perguntou:

Podemos levar alguma coisa connosco?

Podem levar uma mala cada uma. Vão ser deportadas.

Beata já fizera as malas. Foi buscar a dela e disse a Daphne que trouxesse
a que haviam acabado de arrumar no quarto dela. Mas a jovem parecia
totalmente em pânico. Amãe tomou-a nos braços e apertou- a com força de
encontro ao peito.

Não temos escolha. Sê corajosa pediu. E recorda-te do que te disse. Amo-


te. Temo-nos uma à outra.

Tenho tanto medo, mamã.

Basta! rugiu o oficial, ao mesmo tempo que mandava os dois soldados


agarrá- las.

Instantes depois, Daphne e Beata saíram sob escolta, com as malas na


mão, para um destino e uma sorte desconhecidos.

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CAPÍTULO 15

Dois dias mais tarde, o padre da paróquia de Beata foi ao convento falar
com a madre superiora. Soubera a notícia pela criada de Beata, que fora ter
com ele lavada em lágrimas. Ela tinha saído nessa altura, mas os vizinhos
contaram-lhe tudo. Opadre achou que Amadea devia ser informada de que
a mãe e a irmã haviam sido levadas, embora desconhecesse o motivo.
Antes da visita, fizera a sua investigação e, segundo as suas fontes, Beata e
a filha tinham sido enviadas para a gare de triagem, no exterior da cidade.
Por norma, as pessoas ficavam ali durante semanas, até mesmo meses,
mas saíra um comboio de Colónia para o campo de mulheres de
Ravensbríick e meteram-nas nele. Elas já tinham partido.

A madre superiora escutou o padre sem uma palavra e depois explicou-lhe


a importância do silêncio dele. Contudo, sabia que, dentro de muito pouco
tempo, outros ficariam ao corrente. A lguns paroquianos sabiam que
Amadea estava no Carmelo há seis anos. Tinha plena consciência de que
se tratava de uma situação muito grave e, depois de o padre se ter ido
embora, abriu uma gaveta de onde tirou uma carta e fez uma chamada
telefónica. Meses antes, Beata tinha-lhe enviado uma carta com um nome
e um número de telefone, na eventualidade de lhe acontecer algo. Sem
ceder a um pânico excessivo ou à histeria, Beata previra o pior. E agora o
pior acontecera. Era difícil acreditar que haviam sido feliz es durante tanto
tempo. Ou tão infelizes agora.

Depois de ter desligado, a madre superiora baixou a cabeça em oração e


mandou chamar Amadea que estava a trabalhar no jardim.

Sim, reverenda madre? inquiriu Amadea, com um ar surpreendido e sem


ter tido tempo de se arranjar.

Sente-se, por favor, irmã Teresa convidou a madre superiora, respirando


fundo e pedindo a Deus que a ajudasse a encontrar as palavras exactas.
Como sabe, estamos todos a atravessar tempos difíceis. E Deus faz
algumas escolhas que

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nem sempre compreendemos. Devemos simplesmente seguir o caminho


que Ele nos mostra, sem questionar as Suas decisões.

Fiz algo de errado? retorquiu Amadea, fitando-a com um ar preocupado.

De forma alguma respondeu a religiosa, estendendo o braço para prender a


mão da jovem entre as suas. Tenho muito más notícias para si. Alguém
denunciou a sua mãe. Ela e a sua irmã foram presas há dois dias e enviadas
ontem para Ravensbrúck. É tudo o que sei. Estavam bem da última vez que
foram vistas.

Contudo, ambas sabiam que essa situação não duraria muito. Ravensbrúck
era um campo onde faziam trabalhar as mulheres até caírem mortas como
moscas. Ninguém voltava de lá. Amadea mal conseguia respirar, ao ouvir
a notícia. Abriu a boca, mas foi incapaz de falar.

Lamento. Lamento muito disse a madre. Porém, agora, temos de decidir o


que fazer consigo. Quem quer que tenha denunciado a sua mãe, conhece a
sua existência. E, mesmo que não seja o caso, alguém se recordará de si.
Não quero que corra esse risco aqui.

Amadea assentiu com a cabeça e pensou imediatamente nas outras


religiosas. Mas naquele momento pensava sobretudo na mãe e na irmã, no
horror por que deviam ter passado e em como estariam assustadas. Daphne
tinha apenas dezasseis anos.

As lágrimas corriam-lhe em silêncio pelas faces, enquanto agarrava as


mãos da madre superiora. Esta levantou-se, deu a volta à secretária e
tomou-a nos braços. Amadea rompeu em soluços. Não conseguia imaginar
uma coisa daquelas. Era por demais horrível.

Neste momento, elas estão nas mãos de Deus sussurrou a mulher mais
velha. Só nos resta rezar por elas.

Não voltarei a vê-las. Oh, madre... Não consigo suportar... soluçou


Amadea.

Muitos sobrevivem.

Contudo, ambas sabiam que a maior parte não sobrevivia. E não havia
nenhuma forma de saber se Beata e D aphne

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conseguiriam escapar. Daphne era tão bonita! Só Deus sabia o que podiam
fazer- lhe.

De momento, a madre superiora pensava em Amadea. Era responsável por


ela. Enviá-la para o mesmo convento holandês onde estava a irmã Teresa
Benedita era impossível. A Holanda estava ocupada, e a presença desta
última no convento já colocava as freiras em grande risco. Estava fora de
questão um risco suplementar. Além disso, Amadea nunca conseguiria
passar a fronteira. A irmã Teresa Benedita partira para a Holanda antes da
guerra, mas a situação já não era a mesma. Não havia qualquer maneira de
fazer sair Amadea do país. Fora esse o motivo que a levara a telefonar Não
lhe restava outra escolha. O homem concordara em aparecer de imediato.

Vou fazer-lhe um pedido muito difícil retomou a madre superiora num


tom triste. É para o seu bem e para o nosso. Não tenho outra escolha.

Amadea ainda se encontrava demasiado acabrunhada pelo que acabara de


ouvir sobre a mãe e a irmã para poder aguentar mais. Contudo, assentiu
com a cabeça e virou os olhos tristes na direcção da religiosa mais velha.

Vou pedir-lhe que nos deixe explicou esta. Temporariamente. Se ficar aqui,
poderá colocar todo o convento em risco. Quando tudo estiver acabado,
quando a vida regressar ao normal, voltará. Sei que sim. Nunca duvidei um
único segundo da sua vocação. É por esse motivo que lhe peço que parta,
porque, mesmo lá fora, onde quer que esteja, será sempre uma das nossas.
Nada mudará.

Amadea já renovara quatro vezes os seus votos temporários e deveria


voltar a fazê-lo dali a dois meses. Dentro de dois anos pronunciaria os
votos perpétuos. Porém, o destino pregava-lhe mais um golpe. Perdera a
mãe e a irmã, talvez para sempre, e via-se afastada do convento. Mas, para
lá de toda a dor, sabia que era esta a melhor solução. Era um sacrifício que
podia fazer pelas suas companheiras e, como afirmava a madre superiora,
não lhe restava outra escolha. Aquiesceu com um aceno de cabeça.

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- Para onde irei? perguntou Amadea num fio de voz. Há seis anos que não
saía do convento e não tinha nenhum sítio para onde ir.

Há uns meses, a sua mãe mandou-me uma carta com o nome de um amigo.
Telefonei-lhe há minutos. Disse-me que virá imediatamente.

Tão depressa?

Amadea não precisou de perguntar para saber de quem se tratava. Era o


único amigo da mãe: Gérard Daubigny. Ela também lhe dissera que o
contactasse se acontecesse qualquer coisa. Especificara mesmo que Gérard
tinha dinheiro para ela. Contudo, também não queria pô-los em risco.
Amadea era uma ameaça para todos.

Posso despedir-me das outras?

Após um momento de hesitação, a madre superiora assentiu com a cabeça.


Impedi-la teria sido demasiado cruel, para ela e para a comunidade. Tocou,
então, o sino. Tal significava que algo de importante acontecera e que
todas deviam reunir-se no refeitório. Quando Amadea e a madre entraram,
estavam presentes todas as freiras com quem a jovem trabalhara e vivera
durante tanto tempo e que tinha amado. As mais novas e as mais velhas,
até mesmo as que se encontravam em cadeiras de rodas. A perspectiva de
deixá-las parecia insuportável.

No entanto, a madre superiora tinha razão. Não lhe restava outra escolha.
Fosse qual fosse o lugar ou o convento em que se refugiasse, representava
um perigo para as outras. Amava-as demasiado para lhes infligir isto.
Tinha de partir. E, como a madre superiora dissera, sabia que um dia
voltaria. O Carmelo era a sua vida e o seu lar. Estava certa de que nascera
para tornar-se carmelita e para servir a Deus.

Amadre Teresa Maria Mater Domini não deu qualquer explicação às


religiosas. Osimples facto de conhecerem as circunstâncias da partida de
Amadea teria constituído um perigo. Se a polícia aparecesse, elas nada
sabiam. Além de que o afastamento de Amadea ilibava o convento e, se
alguém devesse pagar, seria ela, a madre superiora, e mais ninguém.

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Amadea circulou pelas fileiras, beijou todas e murmurou ”Deus a abençoe,


irmã”. Não lhes disse mais nada, mas todas sabiam que ela ia partir, como
o haviam sabido no caso da irmã Teresa Benedita, há três anos.

Levou meia hora a despedir-se e, no momento da partida, não voltou à cela


para ir buscar as suas coisas. Viera para o Carmelo sem nada e partia da
mesma forma. Chegara a hora de regressar a um mundo que já não
compreendia e há muito não via. Um mundo onde a mãe e a irmã já não
viviam, um mundo onde ela já não tinha casa, nem bens, nem elos. Só lhe
restava o amigo do pai. Aguardava no escritório da madre superiora
quando Gérard chegou, com uma expressão grave, e a abraçou.

Lamento muito, Amadea murmurou.

Gérard tinha dificuldade em acreditar que Beata e Daphne haviam sido


presas. Dado o que ouvira dizer sobre os campos, eram poucas as hipóteses
de que sobrevivessem, mas não lhe disse nada.

O que vai ser de mim? retorquiu a jovem, enquanto ele a fitava.

Gérard esquecera o quanto ela era bonita, e ainda o era mais neste
momento. Apesar da tristeza, o olhar emanava algo de luminoso e intenso.
Parecia iluminada por dentro, e ele compreendeu a profundidade e a força
da sua fé. Para ela, abandonar o convento era uma tragédia e uma grande
perda, juntamente com todas as outras que aguentara. Não fazia ideia de
como se adaptaria de novo ao mundo, após tantos anos. A madre superiora
partilhava a mesma inquietação. Amadea parecia em estado de choque.

Falaremos disso esta noite respondeu Gérard num tom calmo.


Tinham-lhe aberto os portões do convento e estacionara o carro no recinto
do Carmelo. Para que ninguém a visse partir, quis que Amadea se deitasse
no chão do carro, tapada com um cobertor. Assim, ninguém desconfiaria
de que se afastava do convento com uma das freiras. E, se a polícia viesse
procurá- la, a madre superiora podia responder que ela

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se fora embora. Não lhes devia mais nenhuma explicação, nem a daria. A
partir de então, nem ela saberia onde Amadea estava. Enquanto aguardava
o seu regresso, a comunidade rezaria por ela.

Agora, tem de vestir-se recordou a madre superiora.

Amadea desapareceu no vestiário num abrir e fechar de olhos. Ao despir o


hábito, sentiu como se estivesse a despojar-se da pele. Sozinha na divisão,
fitou-o demoradamente, dobrado com cuidado em cima da mesa. Tinham-
lhe deixado um casaco, sapatos, um vestido, um pequeno e horrível chapéu
e roupa interior.

Nada lhe servia, mas pouco lhe interessava. A mãe e Daphne tinham
desaparecido onde quer que estivessem, encontravam-se agora nas mãos
do Senhor e ela estava prestes a deixar o local onde procurara refúgio há
seis anos, o lugar onde tinha vivido, trabalhado e crescido.

Assemelhava-se a deixar o ventre materno. Abotoou o vestido que era


demasiado curto para ela e calçou os sapatos, demasiado apertados. Depois
de ter usado sandálias durante seis anos, ter sapatos nos pés parecia-lhe
estranho. Ficou surpreendida ao constatar como estava magra; não tivera
consciência disso com o hábito vestido. Sentia-se um monstro naqueles
preparos, depois da beleza simples do hábito. Ansiava por voltar a vesti-lo
e interrogou-se sobre quanto tempo teria de ficar longe da comunidade.
Apenas podia rezar para que fosse pouco. Não tinha o mínimo desejo de
regressar ao mundo. Na verdade, faria tudo para o evitar.
Gérard esperava-a no pátio, junto ao carro, impaciente por voltar ao
castelo. Veronique aprovara a sua decisão de levar Amadea para casa
deles; era algo que deviam a velhos amigos como Antoine e Beata, mesmo
que tal ultrapassasse os limites da amizade. Estava em jogo bem mais do
que isso. Tratava-se do que era justo, e há muito que poucas coisas o eram.

As freiras haviam-regressado ao trabalho e Gérard conversava


tranquilamente com a madre superiora. Ninguém viu

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Amadea deslizar para o banco traseiro do carro e deitar-se no chão,


enquanto Gérard a tapava com uma manta de cavalo que cheirava a
estábulos uma recordação agradável para ela. Antes de se esconder, fitou a
madre superiora uma última vez.

Deus a abençoe, minha querida disse esta. Não se preocupe. Em breve


regressará. Estaremos à sua espera

Deus a abençoe, madre... Amo- a...

Também eu murmurou esta última, no momento em que Gérard a tapava


com a manta.

Ele agradeceu à religiosa e, depois, saiu devagar do pátio do convento.


Seguiu sem parar até ao castelo, olhando frequentemente pelo retrovisor.
Conduzia a uma velocidade normal, como se nada fizesse de especial. As
freiras tinham-lhe dado um cesto cheio de fruta e legumes, a fim de
justificar a sua visita ao convento, mas ninguém o seguiu. As autoridades
não iam certamente dar-se ao trabalho de procurar uma jovem noviça e,
mesmo que a polícia aparecesse para fazer perguntas, não se interessaria
muito por ela, pois não representava qualquer perigo.

Beata e Daphne também não representavam, só que uma vez denunciadas,


a Gestapo via- se obrigada a actuar. No caso de Beata, havia uma casa e
dinheiro a confiscar, mas Amadea não possuía nada à excepção da roupa
que usava no corpo e do rosário que a madre superiora lhe dera no
momento da partida.

Ao chegar ao castelo, Gérard atravessou o pátio do castelo e estacionou


nas traseiras. Era a hora do almoço e não se via ninguém. Toda a gente
estava a comer ou ocupada, quando acompanhou Amadea ao seu quarto,
onde Véronique os esperava. Ao reverem-se, as duas mulheres caíram nos
braços uma da outra, chorando por todos os que haviam perdido e por todo
o horror que acontecera.

Gérard fechou silenciosamente a porta atrás das costas. Já prevenira o


pessoal de que a mulher estava com uma enxaqueca e não deviam
incomodá-la. Os três tinham muito que falar e soluções a encontrar.

204

198

Contudo, de momento, Amadea precisava recompor-se dos choques que


havia sofrido nessa manhã. Perdera tudo. A mãe. A irmã. E o convento.
Perdera a única existência que conhecia há seis anos, bem como todas as
pessoas e referências de infância. Chorou, com o coração despedaçado, nos
braços de Véronique Daubigny.

205

199

CAPÍTULO 16

Gérard, Véronique e Amadea conversaram pela noite dentro. Esperaram


até o pessoal do méstico ter recolhido aos quartos e desceram à cozinha,
onde Véronique preparou um jantar a Amadea. Ela mal conseguiu tocar na
comida. Há seis anos que não comia carne, assim invadiu-a um total
desespero diante dos ovos com salsichas que Véronique lhe serviu. Além
disso, sentia-se despida sem o hábito. Continuava a usar as roupas que lhe
haviam dado no convento. Contudo, esse era o menor dos seus problemas.
Gérard reflectira toda a noite na situação dela. Estava plenamente de
acordo com Véronique em

que, embora não pudessem dar-lhe abrigo indefinidamente, desejavam


ocultá-la o máximo de tempo possível. Numa das torres havia uma casa de
arrumações com uma pequena janela e uma casa de banho minúscula.
Gérard estava convencido de que ninguém a procuraria ali. Amadea
poderia descer à noite até aos aposentos deles, a fim de desentorpecer as
pernas e apanhar ar.

Mas o que vos acontecerá, se me encontrarem?

Ninguém te encontrará limitou-se a responder Gérard.

De momento, não tinham um plano melhor, e ela sentia-se agradecida pela


ajuda.

Nessa noite, Amadea tomou banho na casa de banho de Véronique e ficou


sobressaltada ao contemplar a sua imagem. Há seis anos que não se olhava
ao espelho, por isso ficou surpreendida ao constatar até que ponto se
transformara: tornara-se uma mulher Os cabelos louros estavam curtos.
Ela própria os cortava todos os meses, sem olhar o que se via, mas pouco
lhe interessava. Na sua opinião, a aparência face ao mundo exterior não
tinha qualquer importância. Sabia, de alma e coração, que pert encia ao
convento. Partir para as proteger, era a dádiva que oferecia às freiras, e um
pequeno

206

200
preço a pagar em troca da segurança delas, o qual lhe parecia mínimo,
comparado com o que os Daubigny estavam a fazer por ela.

Véronique procurara no armário alguma roupa com que vestir Amadea e


encontrara uma saia azul comprida, uma blusa branca e um pullover.
Como eram quase da mesma altura, arranjou-lhe igualmente alguma roupa
interior e umas sandálias vermelhas. Amadea sentiu-se culpada por usar
aquela roupa que lhe parecia tão bonita, mas lembrou-se que devia
obedecer à madre superiora: viver no exterior, à espera de poder voltar,
sem pôr em risco a vida das companheiras. Tinha, porém, um peso no
coração quando subiu à torre na companhia de Gérard. Este retirara um
colchão de uma outra divisão e pusera-o no chão, com uma almofada e
uma pilha de cobertores.

Até amanhã despediu-se ele num tom suave, fechando a porta à chave
atrás de si.

Véronique e Gérard estavam a ser muito bons para ela, pensou,


estendendo-se no colchão. Ficou acordada durante toda a noite, a rezar
pela mãe e pela irmã. Passou o dia seguinte a rezar, como o faria no
convento. Gérard foi vê-la uma vez, para lhe levar comida e água. À noite,
abriu a porta para a levar ao quarto deles, onde ela voltou a tomar um
banho. Véronique preparara-lhe de novo o jantar.

Foi este o ritual durante todo o Verão. Em Setembro, os cabelos de


Amadea chegavam-lhe aos ombros. Voltara a parecer a adolescente que
entrara para o convento, mas um pouco mais madura. Continuava sem ter
notícias da mãe ou de Daphne. Sabia que os deportados conseguiam, por
vezes, enviar uma mensagem às famílias e aos mais próximos para os
tranquilizar, mas nenhuma delas lhe mandara o que quer que fosse. Gérard
perguntara no convento, mas não chegara qualquer correspondência para
Amadea. Por sorte, não havia sido procurada pela polícia. Desaparecera,
pura e simplesmente, e todos a haviam esquecido.

Nesse Verão, os nazis tinham invadido a Rússia. Massacres de judeus


haviam ocorrido nos países ocupados e novos
207

201

campos de concentração estavam a ser construídos e abertos. Durante uma


das suas longas conversas nocturnas, Gérard informou Amadea de que
todos os judeus da Alemanha haviam recebido ordem para usar
braçadeiras com uma estrela amarela e que, em Setembro, ocorrera uma
deportação em massa para os campos de concentração.

Há cinco meses que os Daubigny ocultavam Amadea, mas a vida no


castelo seguia o seu curso normal. Gérard e Véronique não viam qualquer
motivo para não continuar a escondê-la, embora os três soubessem que, se
fossem apanhados, seriam fuzilados ou deportados. Quando Amadea lhes
propôs ir- se embora, insistiram para que ficasse. Era um risco que
optavam correr por ela e em memória dos seus pais. Amadea sabia que
devia haver mais judeus escondidos noutros lugares e declarou que, se
fosse preciso, os encontraria. Ambos insistiram em que tal se encontrava
fora de questão À falta de outra solução, ela concordou em ficar com eles,
pois não tinha nenhum lugar para onde ir.

Passaram-se vários meses. Amadea ficou chocada, quando, uma noite,


Gérard lhe abriu a porta e a pôs ao corrente do ataque a Pearl Harbour. Os
EUA declararam guerra ao Japão e, quatro dias depois, a Hitler, como
resposta à sua própria declaração de guerra. Nessa altura, há oito meses
que Amadea não saía do castelo e era-lhe difícil acreditar que o Natal
estava à porta. Nesse ano, nada tinha a festejar, à excepção da
generosidade dos Daubigny por a deixarem ficar na casa deles.

Dois dias antes do Natal, Gérard parecia muito perturbado quando veio
abrir-lhe a porta e Amadea compreendeu que algo se passara. Ouvira
barulho lá fora durante todo o dia e também a agitação dos cavalos. Ele
informou-a de que a Gestapo confiscara os estábulos e a maioria dos
cavalos e que receav a viessem a fazer o mesmo com o castelo. O
Kommandant avisara que efectuaria uma visita completa ao local depois
do Natal.
De momento estavam demasiado ocupados. Contudo, os três concordaram
que Amadea deixara de estar em segurança

208

202

no castelo, sendo necessário encontrar-lhe outro refúgio, antes que os


alemães começassem a revistar todos os cantos. Gérard informara-se
discretamente e ouvira falar de uma herdade próxima, onde havia judeus
escondidos, num túnel. Contudo, levar Amadea para lá não seria tarefa
fácil. Até então haviam tido muita sorte, mas, com o exército alemão à
perna, ela encontrava-se de novo em grande risco. Vocês foram tão bons
para mim disse-lhes na véspera de Natal, enquanto comiam peru na
cozinha. Todos os pensamentos de Amadea estavam, porém, centrados na
mãe e na irmã e interrogava- se

sobre se ainda estariam vivas. Não recebera qualquer mensagem delas


desde que haviam sido levadas para Ravensbriick, em Abril. Por vezes, ao
chegarem aos campos, os deportados tinham permissão de envia rem um
postal, e Beata, se pudesse, teria escrito aos Daubigny para que lhe
transmitissem a mensagem, mas nada chegara.

No dia seguinte ao Natal, antes do alvorecer, Gérard abriu a porta, com


uma expressão sombria. Na véspera, o Kommandant anunciara-lhe que
fariam uma inspecção completa ao local nessa mesma manhã. Gérard
estava convencido de que ele não suspeitava de nada, mas, de manhã,
todas as portas, desde as caves ao alto das torres, estariam abertas. A
Gestapo já confiscara uma dúzia de caixas de vinho e dois barris de
aguardente.

Gérard conseguira as informações de que Amadea precisava. Sabia onde


ficava a herdade e o túnel e disse-lhe que estariam à espera dela. Estendeu-
lhe um pequeno mapa e explicou-lhe o caminho.

Como vou encontrá-los? inquiriu comuma expressão preocupada, de novo


consciente da sorte que a protegera aqui, desde Abril.
Agora, teria de arriscar. A herdade situava-se a cerca de vinte e cinco
quilómetros, mas tinha de atravessar o campo. Se fosse bem-sucedida,
ocultá-la-iam. Porém, primeiro, precisaria de escapar aos soldados que
guardavam os estábulos. Gérard declarou que era demasiado perigoso
levá-la de carro.

209

203

Chamaria a atenção para a herdade se a conduzisse até lá, o que era preciso
evitar a qualquer custo. Deixei-te um cavalo no barracão disse ele num
tom calmo. Dirige-te para norte. Tens as indicações

no mapa. Esperam-te. Quando lá chegares, poderás soltar o cavalo.

Gérard queria que ela partisse antes do nascer do Sol. Ficaram os três a
discutir na penumbra, em voz baixa, no quarto de Véronique e Gérard,
para evitar que os soldados vissem as luzes acesas. Meia hora mais tarde,
acompanharam Amadea à porta e abraçaram-na uma última vez.
Véronique aconchegara-a de encontro ao peito e beijara-a como a uma
filha.

Obrigada agradeceu Amadea, correspondendo ao abraço.

Vai o mais rapidamente que puderes pediu Gérard, abraçando-a também. O


cavalo que te deixei é seguro.

Era também um dos mais rápidos que tinha. Depois, os Daubigny abriram
a porta e Amadea saiu para o escuro. Há oito meses que não saía do castelo
e teve de enfrentar o frio e o ar gélido que lhe cortou a respiração. Dirigiu-
se a passo rápido para o barracão, abriu a porta e acariciou o cavalo, ao
mesmo tempo que ajustava a sela, com o mapa dentro do bolso.

Conduziu o cavalo até cá fora. As narinas do animal fumegavam ante o ar


frio. Não havia qualquer sentinela de guarda e Gérard dissera-lhe que
todos os soldados estavam a dormir. Não receava nada, quando deixou o
castelo. Bastava-lhe percorrer os vinte e cinco quilómetros que a
separavam da herdade, antes do nascer do Sol. Subiu facilmente para a
sela, recordando-se do tempo em que montava com o pai. Como nessa
altura, partiu a galope. Embora desse uma grande volta ao castelo, os
cavalos pressentiram- na e ouviu-os mexerem-se nos estábulos; por sorte,
nenhum dos homens pareceu dar pela sua presença. Foi uma fuga fácil e
sentiu prazer em galopar, tirando partido do seu primeiro contacto com a
liberdade. Meia hora mais tarde, consultou o mapa. Conseguiu lê- lo

210

204

facilmente ao luar e detectou o primeiro ponto de referência. A herdade


encontrava-se agora a poucos quilómetros. O céu denotava um cinzento-
pálido, mas sabia que ainda teria tempo de chegar antes do romper do dia.

Faltava-lhe apenas um quilómetro quando avistou subitamente luzes, à


esquerda. Apercebeu- se que era um carro dissimulado no meio dos
arbustos e ouviu um tiro. Por momentos, hesitou entre continuar ou dar
meia volta, mas depois, sem reflectir, esporeou o cavalo e lançou-se na
direcção da herdade, perseguida pelo carro. Estava quase a chegar, quando
se apercebeu da consequência do seu gesto. Dispunha-se a conduzir a
Gestapo directamente à herdade e não tinha hipótese de despistá-la. De
repente, um camião surgiu diante dela, ao mesmo tempo que o carro que a
perseguia, a bloqueava por trás. Tinham-na apanhado.

Alto! rugiram dois homens, enquanto o cavalo batia com os cascos no


chão sob o ar frio da noite e lançava vapor pelas narinas. Quem está aí?

Amadea manteve-se silenciosa, direita na sela, ao mesmo tempo que o


cavalo continuava a manifestar sinais de nervosismo.

Os homens iluminaram-na com uma luz forte e ficaram surpreendidos ao


verificar que se tratava de uma mulher. Ela cavalgara como um homem,
galopando a toda a brida num terreno acidentado. Um dos homens
aproximou-se. Sentiu vontade de fugir. Todavia, disparariam certamente
contra o cavalo, ou contra ela. Compreendeu, então, que nunca chegaria à
herdade e que Gérard seria informado de manhã. O pior de tudo residia em
que, pelo ferro do cavalo, saberiam que ele provinha das estrebarias
Daubigny. Acontecesse o que acontecesse não queria de forma alguma
implicar Gérard e Véronique.

Documentos! gritou-lhe o soldado, estendendo uma das mãos, enquanto


lhe apontava a arma com a outra. Documentos!

Não tenho.

211

205

Não precisara deles no convento, e não os obtivera depois de se vir


embora. Vivera afastada do mundo durante seis anos.

Quem é você?

Pensou inventar um nome, mas de que lhe serviria? Mais valia dizer a
verdade.

Amadea de Vallerand respondeu num tom claro

A quem pertence esse cavalo? inquiriram os soldados, continuando a


apontar-lhe as armas, na eventualidade de ela tentar fugir.

Ocavalo era fogoso, além de nervoso, e os homens tinham-se apercebido


de que era uma excelente cavaleira. Mesmo depois de tantos anos, não
tivera qualquer problema em dominar um dos melhores cavalos de Gérard.
O seu pai fora um bom professor.

Roubei-o respondeu, destemida, mas tremendo ante a ideia do que podiam


fazer-lhe. O meu pai trabalhava nos estábulos Daubigny. Roubei- o.
Sabia que lhe cabia proteger Gérard e Véronique a qualquer preço. Os
soldados não podiam, de forma alguma, saber que os Daubigny lho tinham
dado

Para onde vai?

Visitar amigos.

Era óbvio que eles não acreditavam numa palavra da sua história e não
havia nenhum motivo para tal. Apenas rezava para que não descobrissem o
mapa da herdade, mas não esboçou qualquer movimento para o tirar do
bolso.

Desmonte ordenaram os soldados.

Amadea saltou lestamente para o chão; um dos soldados tirou-lhe as


rédeas e segurou no cavalo, enquanto o outro lhe apontava a arma. De pé,
diante dele, interrogou-se sobre se iria matá-la e ficou surpreendida com a
própria calma. Não tinha nada a perder, à excepção da vida e essa
pertencia ao Senhor. Se Ele quisesse chamá-la, assim faria.

Os dois soldados empurraram-na bruscamente para as traseiras do carro e,


enquanto o veículo se afastava, Amadea viu que um soldado montava o
cavalo de Gérard e se afastava, tomando a direcção dos estábulos.

212

206

Quantos cavalos roubou? inquiriu o soldado que conduzia. Um outro


aparecera e seguia ao lado

dele.

Apenas este limitou-se a responder.

Amadea não tinha ar de uma ladra de cavalos, mas todos os homens


haviam notado que ela era uma cavaleira excepcional e uma bela e jovem
mulher.

Conduziram-na para uma casa nas proximidades e deixaram-na sozinha


numa pequena divisão. Ela aproveitou o momento para rasgar o mapa e
esconder os pequenos pedaços pelos cantos e debaixo do tapete. Os
soldados regressaram duas horas mais tarde, depois de pedirem
informações para Colónia . Tinham o dossiê dela, mas, mais importante, o
da mãe, agora trazido às claras desde o incidente do banco. A tua mãe era
judia cuspiram-lhe em pleno rosto. Ela e a tua irmã foram presas em Abril.

Amadea assentiu com a cabeça. Tinha a pose e a graciosidade de uma


mulher que se sabe protegida. Mantinha-se de pé, fitando-os e imaginando
que tinha o hábito vestido. Emanava algo de sublime que os próprios
soldados sentiram.

Nessa tarde, levaram-na de volta a Colónia e conduziram-na directamente


ao armazém onde os judeus aguardavam para serem deportados. Nunca
vira nem imaginara algo do género. Centenas de pessoas comprimiam-se
umas contra as outras como animais. Algumas choravam, gritavam,
empurradas contra as paredes e entre si. Várias haviam desmaiado, mas
não havia sítio para onde as levar e deixavam-nas ficar onde estavam.

Os soldados empurraram-na para o meio da multidão; continuava com as


velhas botas de montar de Véronique e as roupas que enfiara de manhã.
Interrogou-se sobre se estaria a viver o mesmo do que a mãe e Daphne,
quando as tinham prendido e levado para a estação de triagem e, em
seguida, metido no comboio para Ravensbriick.

Amadea limitou-se a ficar ali de pé, rezando e interrogando-se sobre para


onde a levariam. Ninguém lhe dissera uma palavra e, ao entrar no
armazém, tornara-se um corpo entre outros, mais uma judia para ser
deportada.

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207
Conservaram-na no armazém durante dois dias, no meio do frio glacial e
do fedor dos corpos. O lugar cheirava a vomitado, urina, suor e
excrementos. Só lhe restava rezar. Por fim, obrigaram-nos a subir para um
comboio, sem lhes indicarem o destino. Deixara de interessar. Eles eram
meros corpos. Enquanto os soldados os empurravam para o interior, as
pessoas inundavam-nos de perguntas. Amadea mantinha- se calada e
rezava. Tentou ajudar uma mulher, que segurava um bebé ao colo, e um
homem, tão doente, que parecia moribundo. Ao olhá-los, compreendeu o
motivo da sua presença ali. Independentemente do destino que o Senhor
lhe reservava, havia sido enviada até ali para partilhar o destas pessoas e
talvez ajudá-las, nem que fosse apenas pela oração.

Lembrou-se das palavras da madre superiora no dia em que ela chegara ao


convento: quando pronunciasse os votos perpétuos, tornar-se-ia esposa do
Cristo crucificado. Estava ali, agora, para partilhar a Sua crucificação e a
deles. Quando o comboio saiu, finalmente, da estação, após dois dias, ela
estava morta de fome e de cansaço, mas na sua cabeça ressoava o eco da
voz da mãe e da madre superiora a dizerem-lhe que a amavam.

O homem que ia ao seu lado morreu ao terceiro dia, seguido do bebé da


mulher. O comboio transbordava de crianças, de velhos, de homens e de
mulheres, de mortos no meio dos vivos. E, de vez em quando, paravam,
abriam as portas, e empurravam mais pessoas para o interior. Em seguida,
o comboio retomava a sua marcha lenta através da Alemanha, rumo ao
Leste. Amadea ignorava para onde iam e tão-pouco lhe interessava.
Ninguém conhecia qual era o destino e isso deixara de ser importante.
Tinham-nos despojado da sua humanidade, os homens e as mulheres que
haviam sido já não existiam. Iam no comboio para o inferno.

214

208

CAPÍTULO 17

A 3 de Janeiro de 1942, cinco dias após terem partido de Colónia, o


comboio parou a uns sessenta quilómetros a norte de Praga, na
Checoslováquia. Amadea não fazia ideia de quantos se encontravam a
bordo com ela, mas, quando as portas se abriram, as pessoas caíram
literalmente no chão, incapazes de caminharem. Ela conseguira encontrar
um pequeno espaço, onde, por vezes, se agachava, mas teve dificuldade
em dobrar os joelhos, ao descer do vagão.

Olhou uma única vez para trás e avistou os corpos inertes de velhos e de
crianças que haviam ficado no comboio. Recordou-se de que uma das
mulheres, que ia ao seu lado, conservara o bebé morto nos braços durante
dois dias. Alguns dos mais velhos ficavam para trás, enquanto os guardas
lhes gritavam que avançassem.

Amadea notou que as tabuletas mais próximas estavam escritas em checo,


a única indicação do local onde se encontravam. A viagem fora
interminável. Algumas pessoas continuavam agarradas às malas, enquanto
formavam longas filas em obediência às ordens dos soldados. Quando não
as executavam com a rapidez exigida, eles empurravam-nas brutalmente
com as armas. Ao ver agora, atrás de si, as filas que pareciam estender-se
ao longo de quilómetros, Amadea tomou consciência de que deveria haver
vários milhares de pessoas no comboio.

A jovem encontrava-se ao lado de duas mulheres e de um homem novo.


Fitaram-se sem uma palavra e, quando começaram a andar, Amadea
começou a rezar, pensando na mãe e na irmã que haviam vivido tudo isto.
Se tinham aguentado, também ela o conseguiria. Pensou no Cristo
crucificado e nas irmãs no convento, afastando o pensamento do que ia
acontecer-lhe e aos que a rodeavam. De momento, aind a estavam vivos.
Oseu destino, fosse ele qual fosse, só ficaria selado quando chegassem ao
que os esperava. Rezou em silêncio, como o fazia há dias, por Gérard e
Véronique,

215

209

esperando que não tivessem sofrido represálias. Não existiam provas de


que a tinham escondido e esperava que tudo lhes corresse pelo melhor.
Contudo, parecia-lhe estarem a uma distância de anos- luz. Dá-me isso!
gritou um soldado, atrás dela. Queria arrancar a um homem um relógio em
ouro que escapara à busca em Colónia. Amadea e o homem ao seu lado
entreolharam-se, depois desviaram a vista. Caminharam durante uma hora.
Amadea continuava com as botas de montar de Véronique e

sentiu-se feliz por estar bem calçada. Algumas mulheres haviam perdido
os sapatos no comboio e eram obrigadas a caminhar sobre a terra gelada,
com os pés em carne viva, chorando de dor.

Dá-te por feliz! gritou um soldado, num tom de desprezo, a uma mulher de
idade que deixou de conseguir andar ao fim de dez minutos. Vais para uma
cidade modelo É mais do que mereces!

Ao ver que ela tropeçava, os dois homens que ladeavam Amadea


agarraram-na cada um deles pelo braço. Ela agradeceu-lhes e, durante os
dois quilómetros seguintes, Amadea rezou pela mulher e por todos,
inclusive por si.

Chegaram quase uma hora depois a uma antiga fortaleza que fora
construída pelos austríacos há duzentos anos. Uma tabuleta de letras
deslavadas indicava TEREZIN em checo, mas numa outra, por baixo, lia-
se THERESIENSTADT, em alemão. Franquearam as portas da cidade
murada e receberam ordem para se colocarem em fila para a ”selecção”.

As pessoas à volta deles pareciam deslocar-se livremente pelas estreitas


ruas calcetadas da cidade, que mais parecia um gueto do que uma prisão.
Havia filas intermináveis de pessoas com tigelas em ferro e utensílios de
cozinha nas mãos. Atrás deles encontrava-se um prédio com a indicação
de CAFÉ, o que a jovem achou muito estranho. Havia edifícios em
construção por todo o lado, homens que martelavam, serravam e
construíam.

Amadea apercebeu-se logo de que as pessoas não usavam fardas de presos,


mas a sua própria roupa. Theresienstadt era
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210

uma espécie de campo-modelo de prisioneiros, onde se deixava que os


judeus vivessem e se desembaraçassem. Havia duzentas casas de um andar
e catorze barracas enormes em pedra, constr uídas inicialmente para
acolher três mil pessoas. Contudo, havia mais de setenta mil judeus a
viverem lá. Na sua maioria, pareciam famintos, esgotados e sem roupas
suficientemente quentes para os proteger do frio. E para os que causavam
problemas, havia uma pequena fortaleza, a menos de um quilómetro, que
era considerada uma prisão.

Amadea esperou sete horas antes de ser ”seleccionada” e, durante todo


esse tempo, apenas tivera direito a uma tigela de flocos de aveia. Há cinco
dias que não comia. No comboio, tinham distribuído pão e água, mas ela
dera o pão às crianças e, como a água punha toda a gente doente, também
não lhe tocara. De qualquer maneira, tivera disenteria.

As pessoas que via a caminhar pelas ruas de Theresienstadt formavam


uma mistura curiosa. Várias, como soube mais tarde, tratavam-se de
idosos a quem se dissera que Theresienstadt era uma aldeia para
reformados judeus e a quem haviam mostrado catálogos para que viessem
como voluntários. Mas havia também jovens olheirentos que faziam parte
das equipas que construíam as casas. Via-se um número considerável de
crianças. Theresienstadt mais parecia um gueto do que um campo de
trabalho; o seu aspecto de cidade fortificada conferia-lhe a atmosfera de
uma aldeia. Todavia, à excepção dos soldados e dos guardas, os habitantes
pareciam extremamente fatigados. Todos tinham um olhar vazio e os
rostos cansados de pessoas que haviam sido maltratadas depois e mesmo
antes de chegarem aqui.

Quando, por fim, chegou a sua vez, Amadea foi enviada para uma das
barracas com uma dúzia de outras mulheres. Havia números por cima das
portas e homens e mulheres no interior. Ela foi parar a uma área que fora,
de início, construída para acolher cinquenta soldados, abrigando agora
quinhentas pessoas. Não havia privacidade, nem espaço, calor, comida ou
roupas quentes.

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Os próprios prisioneiros haviam construído beliches de três andares,


suficientemente próximos para que bastasse estender um braço para tocar
no vizinho. Os casais, que tinham tido a sorte de não serem separados,
partilhavam a mesma cama. As crianças encontravam-se num outro
edifício, sob o controlo de guardas e de outros prisioneiros E, no último
andar, onde a maioria das janelas não tinha vidros, encontravam-se os
doentes. Uma mulher sussurrou a Amadea que morriam diariamente de
doença e de frio. Os velhos e os doentes formavam fila, como toda a gente,
durante seis horas, a fim de conseguirem a sua ração diária, que consistia
de uma sopa aquosa e batatas podres. E havia uma casa de banho para mil
pessoas.

Amadea não pronunciara uma palavra quando lhe tinham indicado a sua
cama. Era jovem e robusta e tinham-lhe destinado a de cima. As pessoas
mais idosas e mais fracas haviam recebido as de baixo. Tinham-lhe tirado
as botas e usava, agora, tamancos de madeira que lhe deram juntamente
com os documentos de identidade do campo. Também lhe haviam
ordenado que tirasse o casaco de cabedal, vincando que não precisava dele,
apesar do frio glacial.

O acolhimento resumia-se a terror, privação e humilhação. Amadea


repetiu, mais uma vez, intimamente, que era noiva do Cristo crucificado,
devendo existir, decerto, uma razão para a sua presença aqui. Por outro
lado, duvidava que a mãe e a irmã pudessem ter aguentado uma existência
destas e sobrevivido. Forçava-se a não pensar no assunto, enquanto olhava
as pessoas à sua volta. Era noite e todos haviam regressado do trabalho,
embora ainda se vissem muitos na fila, à espera do jantar. As cozinhas
funcionavam a tempo inteiro, contudo, parecia não haver comida bastante
para alimentar t odos.

Chegaste no comboio de Colónia? perguntou-lhe uma mulher magra, com


uma tosse persistente e um número tatuado no braço. Tinha o rosto e os
cabelos sujos, as unhas partidas. Usava apenas um vestido de algodão e
tamancos e estava roxa de frio os barracões eram gelados.

Sim respondeu Amadea, esforçando-se por se sentir

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uma carmelita e não uma mulher. Tratava-se da única forma de se aguentar


e proteger- se.

A mulher interrogou-a sobre várias pessoas que poderiam encontrar-se no


comboio, mas Amadea não sabia nomes, nem conseguiu reconhecê-las,
apesar das descrições que ela lhe fez as pessoas tornavam-se
irreconhecíveis em circunstâncias do género. Alguém que entrou,
perguntou à mulher se ela consultara um médico. Muitos dos médicos e
dentistas que haviam sido proibidos de exercer estavam aqui e faziam o
possível por ajudar os companheiros, mesmo sem remédios nem
equipamento.

O campo abrira apenas há dois meses e já reinava a febre tifóide, como


alguém a avisou. Aconselharam-na a que bebesse só a sopa e não a água.
Como era inevitável, dado o número excessivo de pessoas, quase não havia
instalações sanitárias e, mesmo com o frio glacial, o fedor da divisão era
insuportável.

Amadea ajudou uma mulher de idade a deitar-se e viu que havia mais três
mulheres nas camas ao lado. No barracão para onde a tinham mandado só
se viam mulheres e crianças com menos de doze anos. Os rapazes com
mais de doze anos encontravam-se noutro lado, com os homens. Alguns
dos mais novos, em particular aqueles cujas mães tinham sido mandadas
para outros campos, ou mortas, encontravam- se noutro local qualquer.
Não existia qualquer intimidade, calor ou conforto.

Contudo, havia sempre alguém disposto a dizer uma graça e, ao longe,


Amadea ouviu música. De vez em quando, os guardas passavam pelo meio
deles, aplicando violentos pontapés a alguns, sacudindo outros, sempre de
armas em riste. Estavam constantemente à procura de contrabando ou de
objectos roubados. Alguém dissera a Amadea que roubar uma batata era
punível por morte. Se alguém desobedecesse ao regulamento era
severamente espancado. O essencial residia em não irritar os guardas, a
fim de evitar a inevitável represália que daí resultaria.

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Já comeste hoje? perguntou a mulher, que tossia. Amadea assentiu com a


cabeça e quis saber: E tu?

A jovem sentiu-se repentinamente agradecida ao Carmelo por ter imposto


o jejum como regra de vida. Contudo, o jejum do convento incluía uma
alimentação saudável, legumes e fruta do jardim, enquanto aqui as pessoas
morriam literalmente de fome. Amadea notou que algumas delas não
tinham um número tatuado no braço e interrogou-se sobre qual era a
diferença entre uns e outros. Hesitava, porém, em perguntar-lhes. Eles já
sofriam o bastante para que os incomodasse com as suas questões.

Levei quatro horas para conseguir o jantar respondeu a mulher,


especificando que a distribuição das rações começava de manhã. E,
quando chegou a minha vez, já não tinham batatas, apenas sopa, se é que
se pode chamar-se-lhe assim. Mas pouco interessa, pois, de qualquer
maneira, tenho disenteria. A comida daqui põe-nos rapidamente doentes.
Se já não estivermos. Já viste o estado alarmante das casas de banho?
Chamo-me Rosa. E tu?

Teresa respondeu Amadea, sem pensar. Era o nome que melhor lhe
correspondia. Mesmo depois dos meses passados com Gérard e Véronique,
o seu antigo nome próprio continuava a parecer- lhe estranho.

És muito bonita comentou Rosa, observando-a. Que idade tens?


Vinte e quatro anos respondeu Amadea, que faria vinte e cinco em Abril.

Como eu - retorquiu Rosa, ao mesmo tempo que Amadea tentava evitar-


lhe o olhar, pois a jovem mulher parecia ter quarenta. Mataram o meu
marido na Noite de Cristal. Estive num outro campo antes Este é melhor

Amadea não se atreveu a perguntar-lhe se tinha filhos. Para a maioria era


uma questão dolorosa, sobretudo se as crianças tivessem sido enviadas
para outro campo, ou pior, se tivessem sido mortas antes ou depois de
terem sido levadas. Os nazis só queriam as crianças que pudessem
trabalhar. As mais jovens eram inúteis.

220

214

És casada? inquiriu Rosa, estendendo as pernas magras no colchão. Tinha


um pedaço de tecido que lhe servia de manta, mas a maioria não tinha
nada.

Não, não sou respondeu Amadea, com um sorriso. Sou carmelita.

És freira? retorquiu Rosa, primeiro impressionada, depois chocada e


revoltada. - Foram buscar- te ao convento?

Não. Saí do convento em Abril. Desde essa altura que estava com amigos.

És judia?

A minha mãe era. Converteu-se... Eu nunca soube... Rosa assentiu com a


cabeça.

Levaram-na? inquiriu Rosa, suavemente.

Amadea esboçou um aceno, mas não conseguiu responder de imediato.


Agora, sabia o que a mãe e Daphne haviam passado. Teria feito o
impossível para lhes poupar essa situação, sofrido no lugar delas. Não lhe
restavam dúvidas de que estava aqui para ajudar o próximo, pouco lhe
importando dar a vida por eles. Esperava que a mãe e Daphne ainda
estivessem vivas e pudesse revê-las, qualquer dia. Contudo, antes de
partir, Gérard admitira-lhe que o silêncio da mãe e da irmã, desde Abril,
não era bom sinal. Nunca haviam recebido um postal, uma mensagem,
qualquer palavra.

Lamento pela tua mãe sussurrou Rosa. Disseram-te para onde ias
trabalhar?

Tenho de apresentar-me amanhã para a distribuição de tarefas.

Amadea interrogou-se sobre se seria nesse momento que lhe fariam a


tatuagem. Encheu-se de coragem e acabou por fazer a pergunta a Rosa,
quando estavam deitadas, lado a lado, com a proximidade bastante para
falarem em sussurro e ouvirem-se uma à outra. O barulho na divisão
murada era imenso. Tatuaram-me na gare de triagem, antes de vir para cá.
Fazem-no, supostamente, quando se chega

aqui, mas somos tantos e o campo é tão recente, que dizem às pessoas para
regressarem quando eles tiverem mais pessoal. É provável que te tatuem
amanhã, quando te atribuírem o trabalho.

221

215

Amadea não gostava da ideia de ser tatuada, mas também tinha a certeza
de que Jesus não quisera ser crucificado. Era mais um pequeno sacrifício
que teria de fazer por Deus

Depois disso, calaram-se. A maioria estava por demais debilitada, cansada


e doente para fala r, embora muitos dos mais novos se encontrassem
relativamente em forma, apesar do rude dia de trabalho e da falta de
comida. Mais tarde, nessa noite, depois da maior parte dos presos ter ido
deitar-se, fez-se ouvir o som de uma harmónica. O músico tocava algumas
árias vienenses e velhas canções alemãs que fizeram subir as lágrimas aos
olhos dos que escutavam

Amadea já ouvira dizer que havia uma companhia de ópera no campo e


vários músicos que tocavam no café, pois muitos dos detidos haviam sido
músicos, cantores ou actores antes de serem deportados. Apesar das
dificuldades, tinham tentado subir o moral uns aos outros, mas o maior
terror era o de serem deportados para outro sítio, constava que os outros
campos eram muito piores e que muitas pessoas morriam lá

Theresienstadt era, para os nazis, um campo-modelo que servia de imagem


para provar ao mundo que, apesar de desejarem os judeus excluídos da
sociedade e isolados, os tratavam com humanidade. Contudo, as pernas em
chaga, as frieiras e a disenteria, os rostos pálidos, os espancamentos ao
acaso, e as pessoas que morriam devido a estas condições de vida
indicavam um cenário muito diferente. Uma tabuleta à entrada do campo
dizia ”O trabalho dá a liberdade” Mas aqui era a morte que dava a
liberdade Deitada na cama, Amadea rezou ao som da harmónica e, tal
como no convento, acordaram-nos às

cinco da manhã. Já havia fila para a água quente e as papas de aveia, mas a
espera era tão demorada que a maioria dos presos ia trabalhar de estômago
vazio. Amadea regressou ao centro de triagem da véspera para que lhe
distribuíssem um trabalho, mas também teve de aguardar na fila, durante
horas. Um guarda preveniu-a de que seria castigada se se fosse embora e
apontou-lhe uma arma ao pescoço, para vincar bem as palavras.
Permaneceu um longo momento a observá-la, antes de passar ao preso

222

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seguinte. Pouco tempo depois, Amadea avistou três guardas a espancarem


com cacetetes um homem novo. Ele estava a fumar murmurou um velho
que se encontrava na fila atrás dela, abanando a cabeça. Fumar era um
crime punido com espancamento; no entanto, encontrar uma beata era
considerado
pelos detidos como um tesouro que se ocultava cuidadosamente, como a
comida roubada.

Quando Amadea chegou finalmente diante do oficial encarregado da


distribuição de tarefas, este parecia-lhe ter tido um dia de cão. Ergueu os
olhos, observou-a, assentiu com a cabeça e estendeu a mão para um monte
de papéis. Ao lado dele havia vários funcionários às secretárias, ocupados
a colocar selos e carimbos oficiais em tudo. Amadea estendeu-lhe os
documentos de identificação que lhe tinham dado na véspera, esforçando-
se por parecer mais calma do que se sentia. Embora estivesse pronta a
sacrificar- se pelo Deus que servia, encontrar-se diante de um oficial nazi
num campo de trabalho era uma prova terrível.

O que sabes fazer? inquiriu o homem num tom brusco.

Cabia-lhe separar os médicos, as enfermeiras, os dentistas e as pessoas


ligadas ao ramo da construção e da carpintaria, pois ser-lhes-iam úteis.
Também precisavam de engenheiros, pedreiros, cozinheiros, técnicos de
laboratório e milhares de pessoas para servirem de escravos.

Sei jardinar, cozinhar e costurar. Também posso prestar alguns cuidados de


enfermagem, embora não tenha muita prática, mas o jardim talvez seja o
meu ponto forte especificou.

Amadea ajudara frequentemente as religiosas idosas e doentes no


convento. A mãe ensinara-a a costurar, mas as freiras com quem
trabalhara no jardim diziam que ela conseguia fazer crescer qualquer tipo
de planta.

Darias uma bela esposa troçou o oficial, voltando a examiná-la. Se não


fosses judia.

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217

Achava Amadea mais bonita do que a maioria das presas que examinara. A
jovem parecia forte e robusta, embora fosse alta e magra.

Sou freira retorquiu Amadea, calmamente.

Ante aquelas palavras, ele voltou a observá-la; em seguida, verificou de


novo os seus documentos onde constava que a mãe era judia. Reparou,
porém, que ela tinha um nome francês.

A que ordem pertences? perguntou com um ar circunspecto, interrogando-


se sobre se haveria outras freiras no campo.

Sou carmelita informou com um sorriso, e ele detectou-lhe no olhar o


mesmo brilho em que outros haviam reparado. Também Rosa o detectara
na noite anterior.

Aqui não há tempo para essas parvoíces declarou, num tom calmo,
enquanto escrevia algo no dossiê dela. Bom. Podes trabalhar no jardim.
Mas se roubares o que quer que seja, serás fuzilada acrescentou secamente
e com uma expressão ameaçadora. Apresenta-te lá às quatro da manhã,
amanhã. Trabalharás até às sete da tarde.

Tratava-se de um dia de quinze horas, mas Amadea não se importava. As


pessoas à sua volta eram enviadas para outros locais, outros edifícios,
outros barracões. Interrogou-se sobre se iriam tatuá-los, mas parecia
terem-se esquecido no seu caso. Tinha a nítida impressão de que o facto de
ela ser freira o perturbara; talvez até mesmo os nazis tivessem uma
consciência, embora o que vira até aqui tornasse improvável esta hipótese.

À tarde, pôs-se na fila para comer e recebeu uma batata meia podre e uma
crosta de pão. Há horas que a sopa se esgotara; a mulher antes dela tivera
direito a uma cenoura. Contudo, sentiu-se reconhecida pelo que lhe deram.
Comeu à volta da parte apodrecida da batata e engoliu avidamente o
pedaço de pão. De regresso à barraca pensou nisso e censurou-se pela sua
gula e voracidade. Estava faminta, mas todos o estavam.

Quando entrou na barraca, Rosa já se encontrava lá, deitada no colchão. A


sua tosse piorara. Fazia um frio glacial naquele dia.
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Então? Deram-te um número?

Acho que se esqueceram respondeu Amadea, abanando a cabeça. Julgo que


o oficial ficou nervoso quando lhe disse que era freira acrescentou com um
sorriso malicioso que a fez parecer novamente uma jovenzinha. Eram
todos demasiado graves e velhos à sua volta. Devias consultar um médico
por causa dessa tosse rematou, preocupada.

Amadea enfiou os pés gelados debaixo do colchão. Só dispunha de


tamancos de madeira para os proteger e tinha as pernas nuas sob as calças
de montar, que pareciam de papel, sob a atmosfera gelada. Há mais de
uma semana que usava as mesmas calças sujas. Nessa tarde, fizera tenção
de ir à lavandaria e tentar trocar a roupa por outra lavada, mas não lhe
restara tempo.

Os médicos não podem fazer nada por mim replicou Rosa. Não têm
medicamentos acrescentou com um encolher de ombros e fitando Amadea
com um ar cúmplice. Vê só murmurou, tirando qualquer coisa do bolso.

Tratava-se de um pedacinho de maçã que parecia ter sido pisado por


milhares de pessoas, o que talvez correspondesse à realidade.

Onde arranjaste isso? sussurrou Amadea, hesitando em aceitar o pedaço


que Rosa lhe estendia, mas sentindo a saliva a formar-se na boca.

Só havia o suficiente para duas dentadas no máximo, ou

mesmo uma.

Deu-me um guarda respondeu Rosa, ao mesmo tempo que a dividia ao


meio e fazia deslizar metade para a mão de Amadea, que sabia que o roubo
de comida era punível com a morte.
As duas meteram o pedaço de maçã na boca e fecharam os olhos, à
semelhança de duas crianças saboreando um bombom.

Calaram-se durante uns minutos e, em seguida, algumas das outras presas


entraram. Pareciam exaustas e olharam-nas de relance, mas ninguém disse
nada.

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Desde que chegara ao campo, nenhum dos homens das equipas de


construção tinha importunado Amadea. Contudo, nas longas filas de
espera da tarde, ouvira algumas mulheres dizerem que haviam sido
violadas. Embora os nazis considerassem os judeus como a escumalha da
raça humana, tal não os impedia de violarem as mulheres, sempre que o
desejavam.

As outras mulheres tinham-lhe recomendado prudência. Ela era demasiado


bonita e chamava as atenções, além de que era loura e de olhos azuis,
como eles. Aconselharam-na a que se mantivesse suja, cheirasse o pior
possível e se conservasse longe dos soldados. Era o único meio de defesa,
embora nem sempre funcionasse, sobretudo à noite, quando os guardas
estavam embriagados, o que era frequente. Eles eram novos, queriam
mulheres, e havia muitos no campo. Nem mesmo os mais velhos eram
dignos de confiança

Nessa noite, Amadea deitou-se cedo para estar em forma no dia seguinte.
Contudo, era difícil adormecer com tanta gente à volta. Por vezes, nem
sequer conseguia rezar. Tentava manter a rotina do convento, como o
fizera no castelo dos Daubigny, mas lá fora mais fácil. Pelo menos, reinava
a calma quando se levantou às três e meia. Dormira vestida e,
excepcionalmente, só havia trinta pessoas na fila para a casa de banho.
Podia ir lá, antes do trabalho.

Em seguida, dirigiu-se para onde lhe disseram que se situavam os jardins.


Quando lá chegou, já havia uma centena de detidos, na sua maioria rapazes
e também algumas raparigas e mulheres mais velhas. O ar da noite era
glacial e a terra estava gelada. Todos se interrogavam sobre o que iriam
fazer, quando os guardas lhes estenderam pás. Tinham de plantar batatas.
Milhares de batatas. Era uma tarefa dura. Trabalharam oito horas seguidas
até ao meio dia Ficaram com as mãos geladas e cheias de bolhas à força de
escavarem a terra dura, enquanto os guardas circulavam pelo meio deles,
espetando-lhes os canos das armas nas costas.

Concederam-lhes, então, meia hora para comerem pão e sopa. Como


habitualmente, a sopa era rala e o pão bafiento,

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220

mas as rações um pouco maiores. Depois, regressaram ao trabalho durante


sete horas. Nessa noite, foram revistados antes de saírem dos jardins.
Roubar nos jardins era punido com espancamento ou a morte, dependendo
do humor dos guardas e da resistência do ladrão. Um guarda revistou a
roupa de Amadea, apalpou-a de alto a baixo e mandou-a abrir a boca.
Aproveitou a ocasião para lhe agarrar nos seios, mas a jovem manteve-se
calada, olhando em frente. À noite, não contou nada a Rosa, persuadida de
que esta suportara bem pior.

Na semana seguinte, Rosa foi transferida para outro barracão. Um guarda


apanhara-as várias vezes a conversar e a rir e denunciara-as, dizendo que
eram agitadoras e que tinham de ser separadas. Amadea deixou de ver
Rosa durante vários meses e quando se cruzaram de novo, Rosa não tinha
dentes. Fora apanhada a roubar um bocado de pão e um guarda partira-lhe
os dentes todos e a cana do nariz. A vida parecia tê-la abandonado. Morreu
de uma pneumonia nessa Primavera.

Amadea trabalhava duramente no jardim, fazendo o que podia, mas


tornava-se difícil obter resultados naquelas condições. Nem ela conseguia
fazer milagres com um solo gelado e ferramentas quebradas. Contudo,
plantava diariamente fileiras de batatas. E, quando chegou a Primavera,
plantou cenouras e nabos. Ansiava por plantar tomates, alface e outros
legumes, como fizera no convento, mas eram alimentos delicados de mais
para as necessidades do campo. Havia dias em que só lhe davam um nabo
e, mais do que uma vez, sentiu vontade de roubar uma batata, mas, em vez
de fazê-lo, rezou. Contudo, no conjunto, não encontrara dificuldades
especiais e os guardas deixaram-na em paz. Mostrava-lhes respeito,
mantinha-se discreta, fazia o seu trabalho e ajudava os outros presos. À
noite, começara a visitar os doentes e as pessoas de idade e, quando a
chuva não permitia que trabalhasse no jardim, ocupava-se das crianças, o
que servia sempre para elevar-lhe o moral, embora muitas delas
estivessem doentes. Eram todas tão meigas e tão corajosas que estar com
elas fazia com que se sentisse útil.

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Entretanto, verificaram-se algumas tragédias Em Fevereiro, um comboio


cheio de crianças tinha partido com destino a Chelmno. As mães haviam-
se agrupado junto aos camiões que lhes levavam os filhos para o comboio,
e algumas das que os abraçaram tempo de mais ou tentaram lutar com os
guardas foram abatidas. Todos os dias havia histórias de atrocidades
cometidas.

Em Abril, Amadea fez vinte e cinco anos. O tempo estava melhor e


transferiram-na para outro barracão, mais perto dos jardins. Com os dias
maiores, trabalhava-se mais tempo e, às vezes, só regressava para se deitar
às nove da noite. Devido às rações insuficientes e à constante disenteria,
Amadea emagrecera bastante, mas estava robusta, em virtude do seu
trabalho no jardim.

E, como algumas outras do campo, tivera a sorte de nunca ser marcada.


Haviam-se simplesmente esquecido. Os soldados pediam constantemente
para ver os seus documentos, mas nunca o número e ela tinha o cuidado de
usar camisas de mangas compridas. Os cabelos, ainda mais louros devido
ao sol, estavam mais compridos, por isso trazia-os entrançados
Todos os que a conheciam, sabiam que ela era freira; os detidos tratavam-
na com bondade e respeito, o que nem sempre acontecia com outros. As
pessoas do campo sentiam-se doentes, infelizes, e assistiam a constantes
tragédias, os guardas aterrorizavam-nas permanentemente, espancavam-
nas e, por vezes, obrigavam-nas mesmo a lutarem entre si por uma
cenoura, ou um pedaço de pão bolorento Mas na maior parte do tempo, as
pessoas mostravam-se compreensivas umas para as outras e, de vez em
quando, os próprios guardas tratavam-nas decentemente.

Em Maio, um jovem soldado foi destacado para a vigilância do jardim e


ficou fascinado com Amadea. Uma tarde, parou ao lado dela, confessou-
lhe que era natural de Munique e detestava Theresienstadt, que achava um
lugar sujo e deprimente. Desde que chegara ao campo que andava a pedir
uma transferência para Berlim.

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222

Porque é que tens sempre um ar tão feliz enquanto trabalhas? perguntou-


lhe, acendendo um cigarro.

Algumas mulheres deitaram um olhar invejoso ao cigarro, mas ele só


ofereceu uma passa a Amadea, que recusou. Nessa tarde, o seu
comandante fora-se embora mais cedo para assistir a uma reunião e os
jovens soldados aproveitaram para descontrair um pouco. Há semanas que
este esperava uma oportunidade para falar com Amadea.

Ah, tenho? replicou ela num tom amável, continuando a trabalhar. Nesse
dia tinham recebido ordem para plantar mais cenouras, pois as que haviam
plantado estavam a crescer bem.

Sim. Dás sempre a impressão de que escondes um segredo. Tens


namorado? perguntou de chofre. Alguns dos detidos mais jovens haviam-
se envolvido entre si. Era um raio de sol neste lugar sinistro. Um último
vestígio de esperança.
Não, não tenho respondeu Amadea e virou as costas. Não queria encorajá-
lo, lembrando-se dos avisos que as outras mulheres lhe haviam feito. Era
um homem novo, alto e simpático, com feições delicadas, olhos azuis e
cabelo escuro que lhe fazia lembrar a cor do da mãe. Ojovem soldado era
bastante mais alto do que Amadea e achava-a bonita com aquele cabelo
louro e os grandes olhos azuis. Suspeitava, com razão, de que ela devia ser
muito bonita, depois de cuidada. Mesmo aqui, apesar das roupas e dos
cabelos sujos, muitas mulheres continuavam bonitas, sobretudo as mais
jovens, e Amadea era, sem dúvida, uma delas.

Tinhas um namorado, antes? insistiu ele, acendendo mais um cigarro.

A mãe mandava-lhos de Munique e todos os do seu barracão o invejavam.


Trocava-os muitas vezes por favores.

Não respondeu Amadea, fechando-se mentalmente, desagradada com o


rumo da conversa. Porquê?

A jovem colocou-se diante dele e fixou-o sem desviar os olhos, sem medo.

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Sou freira explicou simplesmente, como a dizer-lhe que não era uma
mulher e, portanto, a salvo das suas atenções.

Para a maioria das pessoas tratava-se de um estatuto sagrado, e o olhar de


Amadea denotava a esperança que ele a respeitasse, mesmo aqui.

Não é possível! exclamou, surpreendido, pois nunca vira uma religiosa tão
bonita. Na generalidade, eram mulheres vulgares.

Mas sou. Sou a irmã Teresa do Carmelo confirmou, orgulhosa, enquanto


ele abanava a cabeça. Que desperdício! Nunca te arrependeste?... Quero
dizer, antes de estares aqui?
Suspeitava, e com razão, de que alguém da sua família devia ser judeu
para que estivesse aqui, pois ela não parecia cigana, nem comunista, nem
criminosa. Devia forçosamente ter sangue judeu.

Não. É uma vida maravilhosa. Um dia, regressarei ao convento.

Devias encontrar um marido e ter filhos replicou o soldado num tom


firme, como se Amadea fosse uma irmã mais nova a quem repreendesse
por qualquer parvoíce. Desta vez, ela riu- se.

Tenho um marido. Deus é meu marido. E todas estas pessoas são meus
filhos e Dele ripostou, abrangendo todo o jardim com um gesto. Por
momentos, ele interrogou-se sobre se a rapariga seria louca. Mas depressa
compreendeu que não, que falava a sério e tinha uma fé inabalável.

É uma vida estúpida resmungou entre dentes, antes de se afastar para ir


vigiar os outros detidos. Amadea viu-o novamente ao fim do dia e rezou
para que não fosse ele a revistá- la. Desagradava-lhe a forma como a
olhava.

No dia seguinte, ele voltou e, sem dizer uma palavra, passou junto dela
fingindo ignorá-la, mas fazendo deslizar um pedaço de chocolate para o
seu bolso. Era um favor incrível, mas, em simultâneo, muito mau sinal,
podendo revelar- se

230

224

perigoso. Amadea não sabia o que fazer. Seria executada se os guardas


descobrissem o chocolate, mas achava uma tremenda injustiça comê-lo,
enquanto os outros morriam de fome. Esperou até que o soldado passasse
novamente a seu lado e disse-lhe que apreciava o gesto dele, mas que
devia antes oferecê-lo a uma das crianças. Devolveu-lho, quando ninguém
estava a olhar.

Porque fizeste isso? perguntou, parecendo magoado.


Porque não está certo. Não há motivo para que eu seja tratada melhor do
que os demais. Há outros que precisam mais do que eu. Uma criança, uma
pessoa de idade ou um doente.

Então, dá-lho tu replicou num tom severo, ao mesmo tempo que voltava a
meter-lhe o chocolate na mão e se afastava.

Ambos sabiam que o chocolate ia derreter-se no bolso e que teria


problemas quando a revistassem. Então, sem saber que mais fazer, ela
comeu-o e sentiu-se culpada durante o resto da tarde, implorando a Deus
que lhe perdoasse por ser gulosa e desonesta. Contudo, o gosto delicioso
do chocolate perseguiu-a o dia inteiro e não conseguiu pensar em mais
nada até se ir embora. Quando o fez, ele sorriu-lhe e Amadea devolveu-lhe
involuntariamente o sorriso. Dir-se-ia um rapazinho malicioso, embora
fosse da sua idade. Na tarde seguinte, ele veio falar-lhe novamente e
anunciou que iam nomeá-la chefe de um grupo,

dada a qualidade do seu trabalho. Contudo, Amadea teve a impressão de


que ele fazia aquilo para obter os seus favores e colocá-la em dívida, o que
se tornava muito perigoso. Era fácil adivinhar o que o soldado pretendia e,
durante as semanas seguintes, fez o possível para evitá-lo. O tempo
começava a aquecer, quando ele voltou a parar junto dela e lhe falou.
Amadea acabava de comer a sopa e o pão e apressava-se a regressar ao
trabalho.

Tens medo de falar comigo, não tens? perguntou-lhe num tom meigo,
seguindo-a até ao sítio onde ela deixara a enxada.

Sou uma prisioneira e você um guarda respondeu,

231

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virando-se para ele. É uma situação difícil acrescentou com franqueza,


escolhendo cuidadosamente as palavras para não o ofender.
Talvez não seja tão difícil como pensas. Eu podia facilitar-te a vida, se me
deixasses. Podíamos ser amigos.

Não aqui observou Amadea num tom triste. Desejava acreditar que ele era
boa pessoa, mas neste sítio,

quem podia sabê-lo? Na véspera, partira mais um carregamento de presos.


Amadea conhecia uma das pessoas que redigiam as listas. Até ao
momento, o seu nome ainda nunca aparecera, mas tal podia acontecer a
qualquer momento. Theresienstadt parecia ser um portão de passagem
para outros campos, na sua maioria piores: Auschwitz, Bergen-Belsen ou
Chelmno. Tudo nomes que faziam gelar o coração, até mesmo o dela.

Quero ser teu amigo insistiu ele. Dera-lhe chocolate em mais duas
ocasiões, mas a jovem sabia que os favores eram perigosos. Contudo,
também não queria rejeitá-lo, o que podia revelar-se igualmente perigoso.
Não tinha a mínima experiência com homens. Vivera no convento, isolada
do mundo, desde a adolescência. Aos vinte e cinco anos era mais inocente
do que as raparigas de quinze.

Tenho uma irmã da tua idade prosseguiu num tom calmo. Às vezes, penso
nela ao olhar para ti. É casada e tem três filhos. Também tu, um dia, podias
ter filhos.

As freiras não têm filhos respondeu, com um sorriso.

Os olhos do soldado reflectiam um brilho de tristeza. Amadea desconfiava


que ele devia ter saudades do país, como a maioria dos outros militares.
Todos se embebedavam à noite para não pensarem nisso, ou talvez para
esquecerem os horrores a que assistiam diariamente; deviam sentir-se
tocados, pelo menos, alguns. Este parecia sensível.

Quando a guerra acabar, regressarei à minha ordem para fazer os votos


perpétuos acrescentou, convicta.

Ah! Então, ainda não és freira! retorquiu ele, esperançado.


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226

Claro que sou. Há seis anos que estou no convento. Fazia um ano que
partira. Se tudo se tivesse processado normalmente e não se visse obrigada
a abandoná-lo, estaria a um ano dos seus votos perpétuos. Podes repensar o
assunto ripostou ele com uma expressão feliz, como se Amadea lhe tivesse
dado

um presente. Em que grau és judia? quis saber. Ela teve a impressão de que
a interrogava como se fos se sua noiva, e essa mera ideia punha-a doente.

Metade.

Não pareces.

Parecia mais ariana do que a maioria das mulheres que o rodeavam,


inclusive a sua mãe, que tinha os cabelos negros. O pai era alto, magro e
louro como Amadea, e a irmã também. Ele herdara o cabelo escuro da mãe
e os olhos claros do pai. Contudo, Amadea não lhe parecia, de forma
alguma, judia, nem pareceria a ninguém, depois de tudo isto acabar. Sentia
um desejo enorme de protegê-la e mantê-la viva. Amadea regressou ao
trabalho e ele não voltou a dirigir-lhe a palavra. Contudo, todos os dias,

parava para conversar e metia-lhe sempre qualquer coisa no bolso: um


chocolate, um lenço, um pedacinho de carne seca, um bombom, algo que
lhe provasse as suas boas intenções. Queria que confiasse nele, que
soubesse que não era como os outros. Não iria arrastá-la para uma vereda
escura ou para trás de um arbusto para violá-la. Queria que ela o desejasse.
”Nada havia de estranho nisso”, pensava. Ajovem era bonita, visivelmente
inteligente e completamente pura, pois passara a sua vida adulta no
convento. Desejava- a como nunca desejara uma outra mulher. Tinha vinte
e seis anos e, se pudesse, levá-la-ia dali imediatamente.

Contudo, ambos precisavam de ser cautelosos. Ele arriscaria tantos


sarilhos como ela, ao tornar- se seu amigo. Talvez ninguém desaprovasse
que a violasse e sabia que alguns homens até achariam divertido, pois a
maioria já o fizera a outras prisioneiras. Mas apaixonar-se era outra
história. Arriscava- se

233

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a ser morto ou deportado. Era um risco de que tinha consciência, tal como
ela. Amadea tinha, aliás, mais a perder. Pensava nisso diariamente, sempre
que ele passava ao seu lado e lhe metia pequenos presentes no bolso. Se
alguém os surpreendesse, seria fuzilada. Tratava-se de presentes
extremamente perigosos

Tem de parar com isto repreendeu-o uma tarde. Nesse dia, ele metera-lhe
vários bombons no bolso e, por muito que lhe custasse admitir, davam-lhe
energia. Nem sequer ousava partilhá-los com as crianças que visitava, com
medo de ser punida por roubo e que também elas o fossem. Os miúdos
ficariam tão excitados com os bombons que acabariam por dar com a
língua nos dentes e todos ficariam em maus lençóis. Por conseguinte,
comia-os e não dizia a ninguém. O soldado chamava-se Wilhelm.

Gostava de dar-te mais coisas disse ele com uma expressão grave. Um
casaco bem quente, sapatos bons... e uma cama quente.

Estou bem assim respondeu Amadea e estava a ser sincera.

A jovem começava a habituar-se aos rigores do campo, como se habituara


aos do convento. Er am apenas sacrifícios que fazia pelo Cristo
crucificado e mais fáceis de aguentar desta maneira. Não conseguia,
porém, acostumar-se a ver morrer as pessoas. E havia muitas a morrerem,
de doença e de violência, também.

Constava que Theresienstadt era o menos violento dos campos,


contrariamente a Auschwitz que todos receavam; era um campo de recreio
por comparação e, supostamente, aqui morria menos gente. Os nazis
falavam mesmo em trazer autoridades até aqui para lhes mostrar este
campo-modelo e provar que os judeus eram bem tratados. Afinal, até havia
um Kqffeehaus e uma companhia de ópera. De que mais precisavam? ”De
medicamentos e comida”, pensava Amadea e Wilhelm também o sabia.

Não devias estar aqui declarou o jovem num tom triste.

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Amadea concordava, mas nenhum deles podia fazer o que quer que fosse.

Tens família em algum lado? Família cristã? prosseguiu o jovem soldado.


Ela abanou a cabeça. O meu pai morreu quando eu tinha dez anos. Era
francês, mas nunca conheci a sua família. Então, Wilhelm baixou o tom de
voz e pôs-se a falar quase num sussurro:

Há guerrilheiros checos nos montes. Estamos sempre a ouvir falar deles.


Podiam ajudar-te a escapar.

Amadea perscrutou-o, interrogando-se sobre se seria uma armadilha.


Estaria a convencê-la a fugir para que a matassem quando o tentasse?
Tratava-se de um teste? Enlouquecera? Como era possível que acreditasse
que ela conseguiria escapar?

É impossível respondeu no mesmo tom, atraída pela ideia, mas mesmo


assim desconfiada.

Não, não é. Ao fim da noite, muitas vezes não há sentinelas no portão sul.
Trancam simplesmente as portas. Se encontrares as chaves, basta abrir a
porta e fugir.

E ser fuzilada rematou ela com uma expressão grave.

Não necessariamente. Eu podia juntar-me a ti. Odeio este sítio.


Amadea fitou-o boquiaberta sem saber o que responder. O que faria, se
conseguisse escapar? Para onde iria? Não conhecia ninguém na
Checoslováquia e era impossível regressar à Alemanha. Toda a Europa
estava ocupada pelos nazis. Era uma ideia tentadora, mas impossível de
conc retizar.

Podia ir contigo acrescentou Wilhelm.

Para onde?

Os dois arriscavam-se a ver-se diante de um pelotão de fuzilamento, se


alguém os ouvisse.

Tenho de reflectir no assunto murmurou ele. Nesse momento, o


comandante apareceu e chamou- o. Amadea sentiu um medo horrível de
que ele se metesse em sarilhos por falar consigo. Contudo, o comandante
mostrou- lhe

235

229

uns documentos e desatou à gargalhada, enquanto Wilhelm sorria.


Obviamente, estava tudo bem.

No entanto, não conseguia esquecer as palavras dele. Ouvira falar de


homens que se tinham evadido, mas nunca de mulheres. Há algum tempo,
um grupo fizera-se passar por um conjunto de operários enviado a uma
prisão vizinha. Pensando que tinham recebido autorização para trabalhar
no exterior, as sentinelas não prestaram atenção e o grupo saíra
tranquilamente do campo. A maioria fora apanhada e fuzilada, mas alguns,
nas palavras de Wilhelm, tinham conseguido escapar para os montes
Amadea achava a ideia fantástica, mas implicava partir com Wilhelm, o
que lhe levantava outro problema. Não fazia tenção de tornar-se sua
amante, ou sua mulher, mesmo que a ajudasse a fugir. E, se a denunciasse,
arriscava-se a ser deportada para Auschwitz ou a ser fuzilada ali mesmo.
Não podia confiar em ninguém, nem mesmo nele, embora lhe parecesse
um homem decente e estivesse, obviamente, apaixonado por ela. Até aí,
nunca imaginara que pudesse exercer poder sobre os homens apenas pelo
seu físico.

Contudo, Wilhelm via bem mais do que isso em Amadea. Não só a achava
bonita, mas também inteligente e de uma enorme bondade. Era o tipo de
mulher que procurara toda a sua vida e encontrara- a aqui. Uma meia judia
no campo de concentração de Theresienstadt e, para cúmulo, uma freira.

Nessa noite, deitada no colchão, Amadea só conseguia pensar na fuga. Mas


o que faria depois de transpor os portões? Era um plano condenado ao
fracasso. Wilhelm falara de guerrilheiros checos nos montes, mas como
iriam encontrá-los? Agitando uma bandeira branca na noite? Não fazia
sentido. Contudo, a ideia não a abandonou nos dias seguintes. Wilhelm
mostrava-se cada vez mais bondoso

e cada vez passava mais tempo com ela. Fazia-lhe a corte, mas aquele não
era o local apropriado, nem ela era a mulher indicada. Porém, deixara de
lho repetir; talvez, afinal, pudessem fugir

236

230

juntos, como amigos. Era uma perspectiva fantástica, embora também


tivesse consciência de que não estariam a salvo em parte alguma do
mundo. Era judia e ele seria um desertor. Juntos, corriam um duplo risco.

No fim de Maio, começaram a correr boatos no campo. De início, os


presos ignoravam do que se tratava, mas os guardas falavam em voz baixa.
A27 de Maio, dois patriotas checos, treinados pelo exército britânico,
tinham sido lançados de pára-quedas nos campos, próximo de Praga, e
tentado assassinar o Grippenfuhrer Reinhard Heydrich, chefe do
protectorado da Boémia-Morávia. Ferido de morte, Heydrich falecera a 4
de Junho. As represálias nazis tinham sido terríveis: no prazo de dias,
3188 checos foram presos, dos quais
1357 fuzilados. Mais 657 morreram durante o interrogatório. Dia após dia,
no campo, esperavam-se os acontecimentos.

Na tarde de 9 de Junho, Wilhelm veio ao jardim, passou perto de Amadea


sem a fitar e pronunciou duas palavras:

Esta noite.

Ela virou-se e fitou-o. Era impossível que estivesse a falar a sério. Talvez
se tratasse de uma proposta. Mas quando estava prestes a terminar o
trabalho, ele deteve-se junto dela, como que a examinar o resultado e
murmurou:

Esta noite, vão ocupar a cidade de Lidice. Fica a uns trinta quilómetros
daqui e vão precisar dos nossos homens. Vão deportar todas as mulheres,
matar todos os homens e, em seguida, incendiar a cidade inteira, como um
exemplo para os outros. Dois terços dos nossos homens partirão às oito da
noite, no máximo às nove, com os carros e os camiões. Espera-me na
entrada sul, à meia-noite. Encarrego-me da chave.

Se alguém me vir fugir, abatem- me.

Não haverá ninguém para te abater. Segue junto aos barracões e ninguém
te verá. Se te mandarem parar, diz que vais ver os doentes.

Wilhelm dirigiu-lhe um olhar cúmplice, depois assentiu com a cabeça


como que aprovando o trabalho dela e afastou- se.

237

231

O que ele acabara de dizer era uma loucura, um plano insensato, mas se
alguma vez existira uma oportunidade, sabia que era nessa noite. Mas o
que fariam depois? Oque é que ela faria? Pouco interessava. Tinha de
tentar a sorte.
Ao regressar ao barracão, Amadea pensava no destino que aguardava os
habitantes de Lidice. Iam matar os homens, deportar as mulheres e as
crianças, incendiar a cidade. Era horrível. Contudo, também o era para ela
ficar em Theresienstadt até ao fim da guerra, ou ser transferida para outro
campo.

Há cinco meses que se encontrava ali e tivera muita sorte. Nunca ficara tão
doente como a maioria e não fora tatuada; com a permanente chegada de
novos detidos e as construções em curso, os nazis tinham demasiado que
fazer, e ela escapara pelos buracos da rede. Agora, estava prestes a escapar
pelo portão do campo. Se fossem apanhados, seria morta ou deportada
para Auschwitz e ele provavelmente fuzi lado. Tinha muito a perder, mas
talvez tivesse mais em ficar ali, onde, de qualquer maneira, se arriscava a
ser deportada para Auschwitz. Sabia que devia tentar a sorte, mesmo que a
matassem. Não podia continuar em Theresienstadt e jamais se lhes
apresentaria uma oportunidade igual. Era o momento ideal.

Nessa noite, Amadea ouviu os carros e os camiões a abandonarem o


campo. Outros também se aperceberam do facto Até mesmo os guardas
que patrulhavam os barracões eram escassos. Quase não havia soldados,
mas, afinal, Theresienstadt era um campo tranquilo, povoado de ”bons”
judeus, obedientes e trabalhadores, que construíam o que lhes ordenavam e
cumpriam as suas tarefas. Judeus que tocavam música e obedeciam aos
guardas.

A noite estava calma e, à meia-noite, Amadea levantou-se do colchão, toda


vestida. Quase todos dormiam assim. Se se tirasse a roupa, esta
desaparecia. Explicou ao guarda que ia à casa de banho e, em seguida,
visitar uma amiga doente no andar de cima, no sótão, onde se encontravam
os mais doentes. 238

232

O homem sorriu e afastou-se para a deixar passar. A jovem nunca causara


problemas e ele sabia que não era agora que ia começar; sabia também que
ela era freira e estava sempre disposta a tratar de alguém entre os idosos,
as crianças ou os doentes do campo, que eram aos milhares. Todos os
detidos sofriam de algo. Boa noite cumprimentou o guarda e prosseguiu a
ronda para o barracão seguinte.

A noite ia ser calma. Ali só havia judeus tranquilos. A melhoria do tempo


punha os presos e os guardas de bom humor. O Inverno fora rigoroso, mas
o Verão anunciava-se agradável e quente. Alguém tocava harmónica,
quando Amadea saiu. Parou primeiro na casa de banho, depois afastou-se
do aquartelamento.

Não se via ninguém; bastava-lhe percorrer uma curta distância para chegar
à entrada sul. Era inacreditável. Não havia um único soldado por perto e a
própria praça estava deserta. Wilhelm estava lá, à sua espera. Tinha a
chave na mão e mostrou-lha com um sorriso. Com um gesto rápido,
introduziu a enorme chave na fechadura, a mesma que a cidade usava há
duzentos anos. Oportão entreabriu-se com um rangido, o suficiente para
que passassem. Ele voltou a fechá-lo, trancou-o e deitou fora a chave.

Se alguém a encontrasse, os nazis pensariam que uma sentinela a deixara


cair inadvertidamente e ficariam aliviados por ninguém a ter descoberto e
aberto a porta. Wilhelm e Amadea desataram a correr como loucos. Ela
ignorava que conseguia correr tão depressa. A cada instante, a cada
segundo, esperava ouvir tiros, sentir a lâmina de uma faca nas costas. Mas
nada disso aconteceu. Apenas ouvia a sua respiração e a de Wilhelm.
Correram até à floresta próxima de Theresienstadt, onde se refugiaram
como duas crianças perdidas e sem fôlego. Tinham conseguido! Estavam a
salvo! Ela estava livre!

Oh, meu Deus! sussurrou, ao luar. Oh, meu Deus, Wilhelm! Conseguimos!

Irradiava alegria ao fitá-lo e Wilhelm sorriu-lhe. Amadea nunca vira tanto


amor nos olhos de um homem.

239

233

Amo-te, minha querida murmurou ele, abraçando- a.


Amadea interrogou-se subitamente sobre se ele fizera tudo aquilo para a
violar. Contudo, era impossível. Arriscara-se tanto como ela! Mas podia
levá-la de volta depois de a ter violado, dizendo que ela escapara e ele a
agarrara. Amadea não confiava em ninguém, por isso olhou-o com uma
exp ressão desconfiada. Wilhelm beijou-a na boca.

Wilhelm, não... Por favor... pediu, repelindo-o, ainda ofegante devido à


corrida.

Não sejas idiota retorquiu ele, irritado. Não arrisquei a minha vida para te
ver brincar às freiras. Casarei contigo, quando voltarmos à Alemanha. Ou
antes disso. Amo- te.

Amadea sabia que não era o momento indicado para lhe destruir as ilusões
ou falar-lhe nos votos. Também o amo por ter-me ajudado, mas não como
pensa respondeu com franqueza, ao mesmo

tempo que ele a apertava de encontro ao peito, acariciando-lhe os seios.


Pare, Wilhelm!

Quis afastar-se, mas o soldado agarrou-a com firmeza e tentou obrigá-la a


deitar-se. Enquanto o empurrava com todas as forças, ele perdeu o
equilíbrio, ao tropeçar na raiz de uma árvore, e caiu para trás. Soltou,
então, um grito, com uma expressão de surpresa no rosto, enquanto batia
com a cabeça no chão com um barulho surdo e estranho.

Amadea ajoelhou-se ao seu lado, chocada e horrorizada; havia sangue por


todo o lado. Não quisera feri-lo, apenas empurrá-lo, aterrorizada com o
seu ímpeto. Agora, ele tinha os olhos abertos, sem vida, e o coração
deixara de bater. Estava morto. Amadea baixou a cabeça, acabrunhada pelo
que acabara de fazer. Matara um homem. O homem que a ajudara a fugir.
Doravante, teria a morte dele a pesar-lhe na consciência. Observou-o um
momento, fechou-lhe os olhos e benzeu- se.

Em seguida, agarrou cautelosamente na arma dele, bem como no cantil de


água que ele trouxera. Encontrou também no corpo dinheiro quase
nenhum, bombons e bala s,

240

234

mas não sabia o que fazer-lhes. Supunha que a arma estava carregada, mas
não sabia como usá-la. Por fim, a jovem endireitou- se.

Obrigada articulou baixinho e mergulhou na floresta.

Ignorava para onde se dirigia e o que ia encontrar. Apenas lhe restava


continuar a andar pela floresta e rezar para que os guerrilheiros acabassem
por encontrá-la. Contudo, sabia que estes tinham muito que fazer nessa
noite. Lidice já estava a arder, quando ela se afastou, abandonando o corpo
do soldado morto sob as árvores. Nunca saberia o que ele, de facto,
planeara fazer, se tinha intenção de violá-la, se a amava verdadeiramente,
se era bom ou mau. Apenas sabia que tinha morto um homem e que, pelo
menos de momento, estava livre.

241

235

CAPÍTULO 18

Amadea permaneceu sozinha na floresta durante dois dias. Caminhava de


dia e dormia umas horas, à noite. O ar estava fresco, mas a certa altura
pareceu-lhe sentir o cheiro a fogo. Porém, a floresta estava escura e,
mesmo em pleno dia, cheia de sombras. Não fazia ideia de para onde ia,
nem se a encontrariam antes que morresse de fome, cansaço e de sede. Já
não havia água no cantil de Wilhelm. Por sorte, no segundo dia, encontrou
um riacho e, embora não soubesse se a água era potável, bebeu, segura de
que não podia ser pior do que a de Theresienstadt, estagnada em barris,
cheia de micróbios. Pelo menos, a do riacho sabia bem.

A floresta estava calma. Apenas se ouvia o som dos seus passos e o canto
dos pássaros nas árvores, sobre a sua cabeça. Avistou um coelho e depois
um esquilo. Dir-se-ia uma floresta encantada, e a magia residia no facto de
ela estar livre. Contudo, matara um homem para chegar ali e sabia que
nunca se perdoaria a si própria. Fora um acidente, mas devia arrepender-se
diante de Deus. Gostaria de poder falar com a madre superiora, de estar
novamente no convento com as irmãs.

Escondera os documentos dentro de um buraco que tapara com terra e


agora não tinha identificação. Era apenas uma alma errante, perdida na
floresta. E, como não tinha um número tatuado no braço, podia dizer o que
quisesse, quando a encontrassem. Mas seria fácil adivinhar de onde vinha,
pois assemelhava-se a todos os do campo magra, subalimentada e suja,
com os sapatos no fio.

Na noite do segundo dia estendeu-se e pensou em comer folhas,


interrogando-se sobre se seriam venenosas. Colhera amoras-silvestres que
lhe tinham provocado cólicas horríveis e mais disenteria. Sentia-se fraca,
exausta e doente. Quando a luz já desaparecia na floresta, deitou-se na
terra macia para dormir. Se os nazis a encontrassem, talvez a matassem ali
mesmo e ela achava que era um bom lugar para morrer. Em

242

236

dois dias não vira ninguém. Ignorava se a procuravam, ou se tinham dado


pela sua falta. Ela era apenas mais uma judia. Quanto aos guerrilheiros,
era óbvio que não se encontravam por perto.

Estava só na floresta e, antes de adormecer, lembrou-se de fazer as suas


orações. Rezou pela alma de Wilhelm. Pensou na tristeza da mãe e da irmã
quando fossem informadas da sua morte; depois pensou na sua própria
mãe e em Daphne. Interrogou-se sobre onde estariam e se continuariam
vivas. ”Talvez também tivessem conseguido fugir?” Sorriu ante esta ideia
e depois adormeceu.

Na manhã seguinte, um grupo de homens descobriu-a à luz que se filtrava


através das árvores. Depois de se aproximarem com passos silenciosos e
gestos entre si, um deles manteve-a no chão, enquanto outro lhe tapava a
boca para a impedir de gritar. Amadea acordou sobressaltada e com uma
expressão de terror, ante os seis homens armados que a rodeavam.

A arma de Wilhelm estava no chão, ao lado dela, mas não conseguia


chegar-lhe e, de qualquer maneira, não sabia usá-la. Um dos homens fez-
lhe sinal para que não gritasse e ela esboçou um ligeiro aceno de cabeça.
Não tinha forma de saber quem eles eram. Observaram-na um momento,
de pois largaram-na, enquanto cinco dos homens lhe apontavam as armas e
um outro lhe revistava os bolsos. Só encontraram o único bombom que lhe
restava. Era um doce alemão, por isso fitaram-na com desconfiança. Os
homens trocaram impressões sussurradas em checo, que Amadea
reconheceu por tê-lo ouvido

falar no campo entre os detidos checos. Ignorava se eles eram bons ou não,
se se tratava dos guerrilheiros que procurava; mesmo que fosse o caso,
podiam perfeitamente violá-la. Ignorava o que esperar da parte deles.
Obrigaram-na a levantar-se e fizeram-lhe sinal para que os seguisse.
Rodeavam-na de perto e um deles pegou na arma de Wilhelm. O grupo
avançava a passo rápido. Fatigada e fraca, Amadea tropeçava muitas vezes
e, sempre que isso acontecia, deixavam que se levantasse sozinha, para o
caso de ser um truque.

243

237

Caminharam durante várias horas e quase não lhe dirigiram a palavra. Por
fim, Amadea avistou um acampamento na floresta. Havia cerca de vinte
homens. Dois deles empurraram-na bruscamente até um bosquedo, onde
um grupo de homens armados se sentavam a falar. Todos levantaram a
cabeça à sua chegada. Os que a tinham trazido afastaram-se e seguiu-se
um longo silêncio. Por fim, um dos homens tomou a palavra e dirigiu-se
em checo a Amadea. Amadea abanou a cabeça, em sinal de
incompreensão, depois, ele falou-lhe em alemão.
De onde vens? perguntou-lhe num alemão correcto, embora com um forte
sotaque, enquanto a observava demoradamente.

Amadea estava suja e magra, tinha cortes e arranhões por todo o corpo, os
sapatos no fio e as solas dos pés em sangue.

Theresienstadt respondeu, fitando-o nos olhos e num tom suave. Se fossem


guerrilheiros, devia dizer-lhes a verdade, caso contrário não poderiam
ajudá-la, o que talvez, de qualquer maneira, não o fizessem.

Estavas detida? Fugiste?

Sim anuiu Amadea e assentiu com a cabeça.

Mas não tens um número retorquiu o homem, desconfiado.

De estatura elevada e cabelo louro, Amadea mais parecia uma agente


alemã. Apesar de suja e cansada, era bonita e estava visivelmente
assustada. Todavia, era corajosa e ele admirou-a por isso.

Eles nunca me tatuaram. Esqueceram-se respondeu com um leve sorriso.

O homem não correspondeu. O caso era grave, pois estava muita coisa em
jogo. Para todos. És judia?

Metade. A minha mãe era uma judia alemã. O meu pai era francês e
católico. A minha mãe converteu- se.

Onde está ela? Em Theresienstadt, também?

Mandaram-na há um ano para Ravensbruck respondeu Amadea, ao mesmo


tempo que se lhe ensombrava o olhar.

244

238
Quanto tempo estiveste em Terezin? perguntou o homem, designando a
cidade pelo nome checo. Desde Janeiro.

O homem assentiu com a cabeça e quis saber:

Falas francês?

Ela esboçou um aceno afirmativo.

Como?

Fluentemente.

Tens sotaque? Podes passar tanto por uma alemã como por uma francesa?

Sentiu-se fraquejar ao perceber que eles iam ajudá-la ou, pelo menos,
tentar. As perguntas eram breves, concisas e, apesar do seu ar de
camponês, o indivíduo era, na realidade, o chefe dos guerrilheiros desta
zona. Seria ele a decidir se a ajudariam ou não.

Sim respondeu Amadea. Mas com o seu físico de ariana, ela parecia alemã
e os dois sabiam que isso era uma ferramenta. O que vai fazer comigo?
Para onde vou? atreveu-se a acrescentar, fitando- o. Não sei declarou o
indivíduo, abanando a cabeça. Se és judia não podes regressar à Alemanha,
ou,

pelo menos, não podes ficar. Podíamos fazer-te passar a fronteira com
documentos falsos, mas seria arriscado. Acabavam por encontrar-te.
Também não podes ficar aqui. Todas as alemãs regressaram. As mulheres
dos oficiais aparecem, por vezes, de visita. Veremos.

Dirigiu algumas palavras a um dos seus homens e, passados uns minutos,


trouxeram-lhe comida. Mas Amadea tinha tanta fome que se sentia doente
e mal lhe tocou. Há seis meses que não comia uma refeição a sério.

Terás de ficar aqui algum tempo decidiu. Há demasiada agitação por aí.
O que aconteceu em Lidice? inquiriu num fio de voz.

Os olhos do homem brilharam de ódio, ao responder:

Todos os homens e os rapazes foram mortos. As mulheres foram


deportadas. Acidade foi arrasada. 245

239

Lamento retorquiu.

O homem desviou o olhar, sem lhe revelar que o seu irmão e a família
tinham vivido no local. Não podemos tirar-te daqui durante semanas.
Talvez meses. Leva tempo a arranjar documentos. Obrigada agradeceu,
sem lhe importar quanto tempo a manteriam ali. Era melhor do que de
onde

vinha. Em circunstâncias normais, tê-la-iam levado para uma casa segura,


em Praga, mas, assim, era impossível.

Amadea viveu com eles na floresta até ao início de Agosto. Nessa altura
reinava um pouco mais de calma. Passava a maior parte do tempo a rezar
ou a passear numa pequena área à volta do acampamento. Outros homens
chegaram e partiram e, uma vez, viu uma mulher. Ninguém lhe falava, por
isso aproveitava os seus momentos de solidão para rezar. A floresta estava
tão calma que, às vezes, se tornava difícil acreditar que havia uma guerra.

Uma noite, semanas após a sua chegada, como soubessem que ela era de
Colónia, disseram-lhe que a cidade fora bombardeada pelos ingleses e
ficara completamente destruída. Em Theresienstadt não tinham sabido de
nada. O que os guerrilheiros diziam era impressionante; os nazis haviam
sofrido um profundo revés. Esperava que não tivesse acontecido nada aos
Daubigny; por sorte, o castelo deles ficava bastante longe da cidade e
talvez o houvessem poupado.

Quase dois meses depois da chegada de Amadea ao acampamento, o chefe


dos guerrilheiros sentou-se ao lado dela para explicar o que se seguiria.
Não havia qualquer eco da sua evasão e achava que, para os nazis, uma
judia a mais ou a menos, pouca importância tinha. Não podia, obviamente,
saber se as autoridades do campo haviam relacionado o seu
desaparecimento e o de Wilhelm na mesma noite, ou se se preocupavam
com isso. Ela interrogou-se sobre se o teriam encontrado. Os guerrilheiros
não tinham querido ir procurar o corpo e enterrá-lo noutro sítio, pois
estava demasiado próximo do campo.

Os guerrilheiros tinham mandado fazer documentos para ela, em Praga,


que pareciam autênticos. Passara a chamar- se

246

240

Frieda Oberhoff e era uma jovem mulher de vinte e cinco anos, natural de
Munique, que viera visitar o marido, aquartelado em Praga. Ele era
Kommandant de uma pequena circunscrição da cidade e regressava com
ela a Munique, de licença. Daí, seguiriam directamente para Paris para
umas curtas férias, antes que ela voltasse a Munique e ele a Praga. Os
bilhetes de comboio pareciam verdadeiros. Uma jovem trouxe- lhe roupas
e uma mala e ajudou Amadea a vestir-se. Depois, tiraram-lhe uma
fotografia para o passaporte. Tudo estava em ordem.

Viajaria acompanhada por um jovem alemão, que já trabalhara com eles e


atravessara inúmeras vezes as fronteiras checa e polaca. Seria esta a
segunda missão do género que efectuava em França. Amadea ia encontrar-
se com ele no dia seguinte, numa casa segura, em Praga.

Quando chegou a hora da partida, a jovem não sabia como agradecer ao


chefe do grupo. Limitou- se a olhá-lo, dizendo que rezaria por ele.
Tinham-lhe salvo a vida e ofereciam-lhe uma outra. O plano residia em
que ela se juntasse a uma célula de resistentes perto de Paris, mas primeiro
tinha de atravessar a Alemanha, fazendo-se passar pela mulher do
Kommandant. No dia em que partiu, com um vestido azul-claro de Verão e
um chapéu branco, enquadrava-se perfeitamente no papel. Levava mesmo
luvas e sapatos de salto alto.
Virou-se para os olhar uma última vez antes de entrar no carro com dois
homens que a levariam à cidade. Eram ambos checoslovacos, trabalhavam
para os alemães e situavam-se acima de qualquer suspeita. Ninguém os
mandou parar nem lhes pediu identificação e, menos de uma hora após a
sua partida do acampamento, Amadea estava escondida numa cave, em
Praga. À meia-noite, chegou o homem com quem iria viajar. Alto, louro e
bem-parecido, vestia o uniforme das SS e assemelhava-se em tudo a um
oficial do Reich. Tratava-se, na realidade, de um checo que crescera na
Alemanha, falando, portanto, um alemão impecável.

Partiriam num comboio às nove da manhã. Sabiam que o comboio iria a


transbordar e os soldados na estação estariam

247

241

ocupados com a multidão. Estes últimos verificariam os documentos de


relance e nunca suspeitariam do elegante oficial das SS, que viajava com a
sua bela e jovem mulher. Umdos homens deixou-os na estação; os dois
avançaram pelo cais, fingindo uma conversa normal, ao mesmo tempo que
ele lhe ordenava em voz baixa que sorrisse.

Amadea sentia-se estranha por se ver novamente com roupas modernas de


mulher o que não lhe acontecia desde os dezoito anos bem como por viajar
na companhia de um homem. Aterrorizava-a a ideia de que alguém se
apercebesse que os seus documentos eram falsos, mas nem o controlador,
nem o soldado que observava as pessoas a subir para o comboio os
interrogaram, contentando-se em indicar-lhes o caminho, sem os fitar.
Amadea e o seu companheiro de viagem incarnavam o sonho hitleriano da
raça superior: altos, bonitos e louros, de olhos azuis. Instalaram-se numa
carruagem de primeira classe, enquanto Amadea fitava o seu pseudo
marido, de olhos muito abertos.

Conseguimos murmurou.
Ele assentiu com a cabeça e levou um dedo aos lábios. Nunca se sabia
quem podia estar à escuta. O segredo do sucesso do plano residia em
cumpri-lo rigorosamente até ao final. Começaram a falar em alemão,
discutindo os seus projectos de férias e o que Amadea desejava ver em
Paris. Ele descreveu-lhe o hotel onde ficariam e falou-lhe da mãe, que
vivia em Munique.

Quando o comboio saiu da estação, Amadea observou Praga que se


afastava lentamente. Só conseguia pensar no dia em que chegara aqui no
vagão de transporte de gado, no sofrimento e no suplício que havia
suportado, nos baldes cheios de excrementos, nas pessoas que choravam e
morriam à volta dela. Ficara de pé durante dias a fio, mas agora
encontrava-se sentada numa carruagem de primeira classe, com um
chapéu e luvas brancas, na companhia de um guerrilheiro vestido com o
uniforme das SS. Restava- lhe concluir que, por qualquer motivo, o Deus
que ela amava tão profundamente quisera que ela sobrevivesse. 248

242

A viagem até Munique demorou apenas cinco horas e decorreu sem


incidentes. Amadea dormiu durante uma parte do trajecto, mas acordou
sobressaltada ao ver um soldado alemão passar junto deles. Wolff, o
homem com quem viajava

- ou, pelo menos, o nome de que se servia desatou a rir e sorriu ao soldado,
enquanto lhe ordenava por entre dentes que sorrisse também. Em seguida,
a jovem voltou a adormecer, chegando a apoiar a cabeça no ombro do
homem, que a acordou ao chegarem à estação central de Munique.

Tinham duas horas de espera antes da correspondência de comboios. Wolff


propôs a Amadea que jantassem num restaurante da estação, pois não
tinham infelizmente tempo para irem à cidade. O casal declarou-se
impaciente por chegar a França. Com a ocupação, Paris tornara-se um
destino procurado pelos alemães. À mesa, Wolff falou-lhe com entusiasmo
das férias, mas Amadea notou que ele se mantinha vigilante. Embora
conversasse com ela descontraidamente, conservava-se de olho em tudo e
em todos. Amadea só se descontraiu quando entrou no comboio para Paris,
de novo numa carruagem de primeira classe. Tinha tanto medo que algo de
terrível acontecesse e pudessem prendê-los, que mal tocara no jantar.

Acabará por se habituar disse-lhe Wolff entre dentes, enquanto subiam


para o comboio.

Contudo, Amadea pensou que, com um pouco de sorte, não seria


necessário. Não fazia ideia de como os guerrilheiros a esconderiam, mas
viajar no meio de oficiais alemães, fingindo ser a mulher de um deles,
quase a fazia desmaiar de medo. Era quase tão assustador como na noite
em que fugira de Theresienstadt. Na altura precisara de coragem, a
situação presente exigia-lhe sangue-frio. Manteve- se rigidamente sentada
até o comboio partir. Desta vez, viajaram de noite.

Um funcionário veio abrir-lhes as camas. Quando ele se foi embora, Wolff


disse-lhe que vestisse a camisa de noite. Amadea fitou-o, com uma
expressão ch ocada.

Sou o seu marido riu-se ele. Podia, ao menos, tirar o chapéu e as luvas!

249

243

Até ela se riu com o comentário. Depois, virou-lhe as costas e enfiou a


camisa de noite, fazendo deslizar o vestido por baixo. Quando se voltou,
Wolff estava de pijama. Era um homem extremamente elegante. Nunca fiz
isto antes declarou Amadea tão atrapalhada, que Wolff lhe sorriu.

Esperava que ele não levasse o embuste demasiado longe, mas não lhe
parecia esse tipo de homem. Deduzo que não é casada? inquiriu ele num
tom suave, a coberto do barulho do comboio que lhes abafava a conversa.

De facto, não. Sou carmelita respondeu Amadea com um sorriso e, durante


um minuto, Wolff ficou paralisado de surpresa.

Bom. Nunca tinha passado a noite com uma freira declarou finalmente.
Suponho que há sempre uma primeira vez para tudo.

Ajudou Amadea a meter-se na cama e, em seguida, sentou-se no estreito


banco em frente e observou-a: religiosa ou não, era muito bonita.

Como é que foi parar a Praga? acrescentou.

Amadea hesitou um momento antes de responder. Deixara de haver


explicações simples. Tudo se tornara complicado

Theresienstadt pronunciou, especificando tudo com uma só palavra. É


casado? perguntou depois, também curiosa a respeito dele.

Wolff assentiu com a cabeça, mas ela detectou-lhe a tristeza do olhar

Fui. A minha mulher e os meus dois filhos foram mortos na Holanda


durante as represálias. Ela era judia. Nem se deram ao trabalho de deportá-
los. Abateram-nos no local. Depois, regressei a Praga. Há dois anos que
estava de volta à Checoslováquia, fazendo tudo para bloquear a
engrenagem alemã. O que fará quando chegar a Paris? acrescentou,
enquanto atravessavam a Alemanha. Chegariam a Paris de manhã. 250

244

Não faço a mínima ideia.

Era a primeira vez que vinha a França. Esperava conseguir chegar a


Dordogne, a terra do seu pai, e talvez avistar de relance o castelo da
família. Contudo, sabia que não poderia mover-se em liberdade. Os
guerrilheiros checos tinham-lhe garantido que seria escondida pela
Resistência francesa, onde esta achasse que seria mais seguro para ela,
provavelmente nos arredores de Paris. Ambos sabiam que teria de esperar,
até ver o que os outros lhe diriam quando chegasse.

Espero que tenhamos ocasião de viajar juntos novamente declarou WolfF


com um bocejo.
Tendo em conta os perigos da situação, ela achava-o de uma calma
notável, mas há dois anos que efectuava este género de missão e estava
habituado.

Não tenciono sair de França disse ela. Amadea não concebia a ideia de
regressar à Alemanha, enquanto houvesse guerra. Na sua situação, viver
em França seria difícil, mas na Alemanha era impossível. Preferia morrer
a ser deportada, novamente, para um lugar sem dúvida pior do que da
primeira vez. Theresienstadt chegara-lhe. Não conseguia deixar de pensar
em todos os que ainda lá estavam e no que lhes aconteceria. Ter escapado e
encontrar-se neste comboio era um milagre.

Regressará ao convento depois da guerra? perguntou Wolff curioso.

Claro respondeu Amadea com um sorriso.

Nunca teve dúvidas sobre a sua decisão?

Nem uma única vez. Soube desde o primeiro dia que era o meu destino.

E agora? Depois de tudo o que viu? Continua a pensar que deve estar
isolada do mundo? Há tanta coisa que pode fazer pelas pessoas, aqui.

Oh, não é assim! exclamou a jovem com um olhar surpreendido. Nós


rezamos por muita gente e há tanto que fazer!

Wolff sorriu ante estas palavras. Não tinha tenção de discutir com a jovem,
mas interrogou- se, mesmo assim, sobre se

251

245

ela regressaria mesmo ao convento algum dia. Era muito bonita e tinha
muito que descobrir e apren der. Sentia-se estranho a viajar com uma
religiosa e, para ele, não parecia sê-lo. Era, pelo contrário, muito humana e
apetecível, embora parecesse não ter consciência disso, o que fazia
exactamente parte do seu encanto. Era uma mulher muito atraente e de um
tipo muito especial.

Passou a noite deitado no seu beliche, de ouvido à escuta. O comboio


podia ser parado e revistado a qualquer momento, e ele queria estar
acordado se tal acontecesse. Levantou-se uma ou duas vezes e verificou
que Amadea dormia profun damente.

De manhã, acordou-a para que tivesse tempo de vestir-se, antes de


chegarem à estação. Também se vestiu e aguardou fora do compartimento
que ela tivesse lavado a cara, escovado os dentes e mudado de roupa. Uns
minutos depois, acompanhou-a à casa de banho e também lá, ficou à
espera. Amadea parecia muito calma quando regressaram ao
compartimento da carruagem onde colocou o chapéu e calçou as luvas.
Guardava o passaporte e os bilhetes na bolsa de mão.

Enquanto o comboio entrava na Gare de l’Est, a jovem observava


fascinada toda a actividade no cais.

Não ponha um ar assustado sussurrou-lhe Wolf antes de saírem. Imagine-


se uma turista feliz e encantada por estar aqui com o marido para umas
férias românticas.

Ignoro como isso se passa respondeu no mesmo tom, com um leve sorriso.

Finja que não é uma freira.

Isso é impossível retorquiu, sem abandonar o sorriso.

Desceram do comboio com o ar de um jovem casal feliz, cada um com a


sua mala e Amadea de braço enfiado no dele. Ninguém os mandou parar
nem interrogou. Eram dois belos arianos a caminho de umas férias em
Paris. E, fora da estação, Wolff fez sinal a um táxi.

Indicou ao motorista um café na margem esquerda, onde deviam


encontrar-se com amigos, antes de se dirigirem ao
252

246

hotel. Contudo, o homem era taciturno e, aparentemente, não compreendia


alemão. Amadea falou-lhe em francês. Embora parecesse alemã, o homem
ficou surpreendido ao ver que ela se expressava como uma francesa.

WolfF deixou uma gorjeta mais que generosa ao motorista que lhe
agradeceu profusamente e se afastou. Sabia que não era aconselhável
mostrar-se rude para com os alemães, sobretudo os oficiais das SS. Um
dos seus amigos fora abatido por um, há seis meses, só por lhe ter
chamado ”sale boche”.

Wolff e Amadea mandaram vir cafés pelo menos o que passava por café
naquela altura e o empregado trouxe-lhes um cesto com croissants. Dez
minutos mais tarde, juntou-se-lhes um amigo de WolfF, que lhe deu uma
palmada no ombro, visivelmente satisfeito por o ver.

Os dois homens disseram que se conheciam desde os bancos da escola. Na


verdade, era aquela a primeira vez que se viam, mas desempenharam bem
o seu papel. Amadea observava-os com um sorriso tímido. Wolff
apresentou-a como sua mulher e os três conversaram uns minutos, após o
que o amigo de WolfF se ofereceu para levá-los ao hotel.

Meteram-se no carro dele com as bagagens, sem que ninguém lhes


prestasse atenção. Uma vez nos arredores da capital, WolfF trocou a roupa
que trazia pela que o companheiro lhe trouxera, e o uniforme das SS
desapareceu numa mala de fundo falso. Enquanto se mudava, WolfF
parecia conversar com o condutor em código, declarando que regressaria
nessa noite.

O carro parou numa pequena casa nos arredores de Paris, em Val-de-


Marne. Era o tipo de habitação onde se vai visitar uma avó ou uma tia
viúva. Um casal de idade e com um ar simpático estava sentado na
cozinha, tomando o pequeno-almoço e lendo o jornal.
Omotorista, que se chamava Pierre, olhou-os de relance, murmurando um
breve ”Bonjour, mamie, bonjour papi” e dirigiu-se imediatamente a um
armário por trás deles. Abriu uma porta secreta no fundo do armário e
desceu por uma escada escura até à cave, seguido de WolfF e Amadea.
Levou-os até

253

247

à adega onde permaneceu uns momentos sem abrir a luz, em seguida,


empurrou uma porta disfarçada que revelou uma divisão em plena
actividade. Uma dúzia de homens e duas mulheres sentavam-se à volta de
uma mesa fabricada à mão e um outro homem estava diante de um
aparelho de rádio. A divisão era pequena, com papéis e caixas por todo o
lado, uma máquina fotográfica e malas. Dava a sensação que estavam ali
há vários dias.

Saluti dirigiu-se Pierre a um dos homens Os outros esboçaram um aceno


de cabeça.

Salut, Pierre! ouviu-se na sala e um deles perguntou se ele trouxera a


encomenda.

Pierre fez um aceno de cabeça na direcção de Amadea; era ela a


encomenda que esperavam.

Bem-vinda a Paris saudou uma das mulheres, estendendo-lhe a mão e


sorrindo. Fez boa viagem? Falara-lhe em alemão, mas Amadea respondeu-
lhe num francês impecável. Ignorávamos que sabia francês exclamou,
surpreendida.

Ainda não sabiam muita coisa a respeito dela, à excepção de que escapara
de um campo e recebera a ajuda de guerrilheiros checos, próximo de
Praga. Estes haviam-lhes comunicado que ela precisava de refúgio em
França e que podia ser-lhes útil, sem explicarem porquê. Agora, o motivo
parecia-lhes óbvio a jovem parecia alemã e dominava igualmente o
alemão e o francês.

WolfF sentou-se a um canto com dois homens e fez-lhes o relatório sobre


os últimos acontecimentos em Praga e os movimentos nazis por aqueles
lados. Falavam em voz baixa, o que não permitia a Amadea apanhar uma
só palavra

O homem que parecia liderar o grupo observou atentamente Amadea.


Nunca tinha visto uma jovem com uma aparência tão tipicamente ariana
que se expressasse facilmente em alemão e francês. Estávamos a pensar
mandá-la para uma herdade, no Sul. Tem o físico de uma ariana pura. É
judia? A minha mãe era.

254

248

E o seu número? interessou-se o homem, de olhos fixos no seu braço, pois


sabia que ela vinha de um cam po.

Amadea abanou a cabeça. Para ele, a jovem era uma pérola rara e
detestava mandá-la embora dali. Precisavam dela em Paris.

Tem nervos de aço? acrescentou com um sorriso, observando-a com um ar


pensativo.

Portou-se à altura no comboio interferiu Wolff, que os ouvira.

Em seguida, deitou um olhar afectuoso à sua companheira de viagem e


disse ainda:

Ela é uma freira. Carmelita.

Interessante! comentou o chefe da célula, fitando Amadea. A ponderação


não constitui um dos requisitos para se ser carmelita? E um bom equilíbrio
nervoso, se bem me lembro?
Como sabe isso? replicou Amadea, rindo. Mas é verdade, sim. São ambos
necessários, além de uma boa saúde.

A minha irmã entrou para uma ordem religiosa, em Touraine. As freiras


deviam estar loucas para a aceitarem. Ela é insensata e descontrolada.
Ficou dois anos e depois saiu para casar. Tenho a certeza de que se
sentiram aliviadas com a saída dela. Hoje, tem seis filhos.

O homem sorriu-lhe e Amadea sentiu-se próxima dele. Ninguém os


apresentara, mas tinha ouvido alguém tratá-lo por Serge.

Tenho um irmão que é padre declarou ainda.

Não especificou a Amadea que este último era igualmente chefe de uma
célula de resistentes em Marselha, onde fazia o mesmo do que o padre
Jacques, que escondia crianças judias no colégio de que era director, em
Avon. Além do irmão, conhecia inúmeros padres por toda a França que
seguiam este exemplo, por vezes, de moto próprio. Contudo, não fazia
tenção de usar esta jovem alemã como freira. Podia ser-lhes muito mais
útil de outras formas. Passava facilmente por uma alemã, mas precisava de
saber se tinha nervos para tal.

255

249

Vamos mantê-la aqui umas semanas prosseguiu. Ficará na cave, até os


seus documentos estarem em ordem e, depois, pode viver com os meus
avós, na casa. Será a minha prima de Chartres.

Ante a evocação dos avós, Amadea compreendeu que Pierre e Serge eram
irmãos. Reinava uma grande actividade na cave. Imprimiam-se panfletos
com o objectivo de fazer com que os franceses saíssem do seu torpor e
soubessem a verdade sobre a guerra.

Uma das mulheres tirou uma fotografia a Amadea para os seus


documentos de identidade francesa e, um pouco mais tarde, a outra foi ao
andar de cima buscar comida para Wolff e para Amadea. Depois do que
vivera em Theresienstadt, a comida agora parecia-lhe abundante em todo o
lado. E enquanto Serge continuava a interrogá-la, verificou, surpreendida,
que estava faminta. Umas horas depois, Wolff foi- se embora. Regressava
a Praga.

Antes de partir, despediu-se dela.

Boa sorte, irmã desejou, com um sorriso. Talvez algum dia voltemos a ver-
nos.

Obrigada agradeceu, triste por vê-lo ir-se embora, considerando-o um


amigo. Que Deus o abençoe e o proteja.

Tenho a certeza de que o fará replicou ele, confiante.

WolfF trocou mais umas palavras com Serge e, em seguida, partiu na


companhia de Pierre. Vestiria de novo o uniforme das SS no carro, a
caminho da estação. Amadea achava-os a todos temerários e sentia um
grande respeito por eles. Constituíam um fantástico exemplo da coragem
francesa. Embora a França se tivesse rendido aos alemães em três
semanas, havia células de resistência como esta, que lutavam por libertar
os franceses, salvar os judeus e recuperar a honra do país. Mas, acima de
tudo, salvavam vidas e faziam o seu melhor para ajudar os Aliados,
colaborando estreitamente com os ingleses. 256

250
Nessa noite, Amadea dormiu na cave, numa cama de campanha, enquanto
os homens conversaram até altas horas. Os seus documentos ficaram
prontos no dia seguinte. Achou-os ainda melhores do que os alemães, que
Serge disse que guardaria. Não queria que os tivesse com ela, quando
partisse em missão. Haviam falado a respeito dela durante toda a noite e,
por fim, tomara a decisão de enviá-la para Melun. A cidade situava-se a
cinquenta quilómetros a leste de Paris, e ele achava que, ali, a jovem
estaria em maior segurança. Além disso, precisavam dela no local. Os
ingleses andavam a lançar provisões e homens de pára-quedas. Seria uma
missão delicada.

Desta vez, os documentos mencionavam que ela era solteira, natural de


uma cidade próxima de Melun. Chamava-se Amélie Dumas. A data de
nascimento era a correcta, mas nascera em Lyon. Se a interrogassem, diria
que estudara literatura e arte na Sorbonne, antes da guerra. Serge
perguntou-lhe que nome de código desejava e ela respondeu ”Teresa”, sem
hesitar. Sabia que este nome lhe daria coragem. Ignorava o que esperavam
dela, mas estava pronta a fazer o que quer que fosse. Devia a vida a esta
gente. Nessa noite, Amadea e as duas resistentes seguiram de carro rumo a
Melun. Eram apenas três mulheres que tinham vindo passar uns dias a
Paris e regressavam às suas herdades. Mandaram-nas parar uma única vez.
Os soldados alemães examinaram os documentos, gracejaram um pouco
com elas num mau francês, piscando-lhes o olho e tentando-as com
chocolate e cigarros, antes de as deixarem partir. Não se mostraram
agressivos, apenas desejavam flartar com bonitas francesas.

A noite já tinha caído quando chegaram à herdade. O fazendeiro e a


mulher pareceram surpreendidos por ver Amadea. As outras duas
mulheres apresentaram-na e a fazendeira conduziu-a a um quartinho por
trás da cozinha. Ela deveria colaborar nos trabalhos da herdade e nas
tarefas domésticas, pois a mulher sofria muito de artrite e já não podia
ajudar o marido. Amadea teria de fazer tudo o que eles pedissem e à

257

251
noite trabalharia para a Resistência local. Estava, aliás, previsto que ela se
encontrasse com um outro resistente no dia seguinte

Os fazendeiros pareciam um casal de velhos inofensivos, mas não era o


caso. Eram extremamente corajosos e davam-se com todos os operacionais
da região. As roupas que a mulher emprestou a Amadea davam-lhe o ar de
uma rapariga do campo. Apesar da sua magreza, a jovem era robusta e
respirava saúde, como convinha à sua personagem.

Passou a noite em mais uma cama desconhecida, mas deu graças ao céu
por ter uma. Na manhã seguinte, as duas mulheres da célula parisiense
regressaram, desejando-lhe boa sorte. Como sempre lhe acontecia agora
em relação a todos, interrogou-se sobre se alguma vez as veria de novo.
Tudo na sua vida parecia transitório e imprevisível. As pessoas
desapareciam da vida umas das outras num abrir e fechar de olhos. E
quando se pronunciava uma despedida podia ser para sempre, o que era
frequentemente o caso. Contudo, toda esta gente desempenhava um
trabalho perigoso e Amadea sentia-se ansiosa por ajudá- los. Devia-lhes
muito e queria começar a pagar a sua dívida

Nessa manhã, ajudou em pequenos trabalhos na quinta. Mungiu as poucas


vacas que ainda restavam, transportou também madeira, trabalhou no
jardim, ajudou a cozinhar o almoço e lavou a louça. Trabalhava tão
incansável e seriamente como o fazia no convento, e a mulher de idade
estava- lhe reconhecida. Há anos que ninguém a ajudava tanto.

À noite, depois do jantar, o sobrinho veio visitá-los. Chamava-se Jean-


Yves. Era um rapaz alto e desengonçado, com olhos e cabelo preto,
emanando uma certa tristeza. Só tinha mais dois anos do que Amadea, mas
dava a sensação de carregar o peso do mundo sobre os ombros. O tio
serviu-lhe um copo de vinho feito por ele e ofereceu outro a Amadea, que
recusou, preferindo beber um copo de leite da vaca que mungira de manhã.

Sentou-se tranquilamente à mesa, enquanto os dois homens falavam.


Pouco depois, Jean- Yves perguntou-lhe se queria dar uma volta. Amadea
percebeu que ele era o membr o
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252

da Resistência com quem devia colaborar. Saíram, pois, para o ar quente


da noite como dois jovens desejosos de se conhecerem.

Pareceu-me compreender que tinha feito uma longa viagem disse ele,
olhando-a desconfiado. Amadea assentiu com a cabeça. Ainda lhe era
difícil acreditar onde se encontrava. Deixara Praga

há uns dias e o seu refúgio na floresta pouco tempo antes, para já nem
falar do stresse da viagem através da Europa com um guerrilheiro vestido
com o uniforme de oficial das SS e documentação falsa. Contudo, agora,
ela era Amélie Dumas. Jean-Yves era bretão e fora pescador antes de vir
para Melun. O casal de fazendeiros era, porém, sua família verdadeira.
Amadea sentia a cabeça andar à roda com tanta informação em
simultâneo: falsas identidades, missões verdadeiras, agentes secretos da
Resistência, e todos eles a tentarem libertar França.

Tenho sorte em estar aqui limitou-se a responder. Sentia-se reconhecida a


todos pelo que faziam por ela e

esperava poder retribuir-lhes a ajuda. Era melhor do que esconder-se num


túnel, algures, rezando para que os nazis não a encontrassem.

Precisamos de si aqui. Recebemos um carregamento amanhã.

De Inglaterra? perguntou em voz baixa, embora não houvesse ninguém por


perto que pudesse ouvi- los.

Jean-Yves assentiu com a cabeça.

Onde aterrarão?

Nos campos, depois de cair a noite. Previnem-nos primeiro pela rádio e


vamos ao encontro deles com lanternas. Quando aterram, só podem
permanecer no solo durante quatro minutos. Às vezes, lançam os pacotes
de pára-quedas, sem aterrarem. Depende do que trazem.

Era um trabalho perigoso, mas estavam ansiosos por efectuá-lo. Jean-Yves


era um dos líderes da célula local. Só havia uma pessoa acima dele, mas
ele era um dos melhores e o mais temerário. Fora um verdadeiro diabo nos
tempos de juventude. Enquanto caminhavam através dos pomares,
Amadea

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253

não conseguiu deixar de se interrogar de onde lhe viria aquele ar triste e


melancólico

Sabe usar um rádio de ondas curtas? inquiriu, mas ela abanou a cabeça.

Vou ensinar-lhe É bastante simples. E uma arma? Amadea abanou


novamente a cabeça

O que é que fazia antes? retorquiu ele com uma gargalhada. Era
manequim, actriz ou apenas uma menina mimada?

A beleza dela levava-o a supor que devia ter acertado, mas desta vez foi
ela a rir- se. Carmelita respondeu Mas se isso era supostamente um
cumprimento, agradeço-lhe muito. Duvidava que ser chamada de actriz
fosse um cumprimento a mãe certamente não o acharia Deixou o convento
antes da guerra? inquiriu ele, boquiaberto.

Não. Só quando a minha mãe e a minha irmã foram deportadas. Parti para
não pôr em risco o resto da congregação. Era a única atitude a tomar.

Amadea ainda o ignorava, mas a irmã Teresa Benedita da Cruz Edith Stem
e a sua irmã Rosa tinham sido deportadas para Auschwitz há alguns dias.
Enquanto passeava nos pomares de Melun com Jean-Yves, Edith Stem fora
gaseada e morrera
E regressará ao convento depois da guerra?

Sim respondeu Amadea, convicta, pois era a única coisa que a fazia andar
em frente.

Que desperdício! exclamou, fitando- a

De forma alguma. É uma vida fantástica.

Como pode dizer uma coisa dessas? replicou ele. Viver em reclusão assim.
Além disso, não parece uma freira.

Pareço sim insistiu num tom calmo E levamos uma vida muito activa.
Trabalhamos muito e rezamos por todos vós.

- Agora continua a rezar?

260

254

Obviamente. Motivos para rezar não faltam nestes tempos.

”Sobretudo pelo homem cuja morte causara ao evadir-se”, pensou. Ainda


não esquecera o rosto de Wilhelm e o sangue a escorrer da cabeça fendida.
Sabia que se sentiria eternamente responsável e teria de arrepender-se toda
a vida.

Rezará pelos meus irmãos? perguntou repentinamente Jean-Yves, parando.

Parecia muito mais jovem do que ela se sentia, embora, na realidade, fosse
mais velho. Depois de tudo o que vivera, sentia-se envel hecida.

Sim. Onde estão? interessou-se, comovida pelo pedido e decidida a rezar


por eles nessa noite. Foram mortos há duas semanas pelos nazis, em Lyon,
ao quererem proteger Moulin. Estavam com
ele.

Serge falara-lhe deste herói da Resistência.

Lamento muito. Tem outros irmãos e irmãs? interrogou num tom suave,
esperando que fosse o caso, mas ele abanou a cabeça.

Os meus pais estão mortos respondeu. O meu pai morreu num acidente de
pesca, quando eu era miúdo, e a minha mãe morreu no ano passado. Teve
uma pneumonia, mas não tínhamos medicamentos para a tratar.

A morte recente dos irmãos explicava a sua tristeza. Tal como ela, perdera
toda a família, à excepção do tio e da tia de Melun.

Aminha família também morreu disse Amadea. Ou pode ter morrido.


Aminha mãe e a minha irmã foram deportadas em Junho do ano passado.
Não se soube mais nada sobre elas. O meu pai morreu, tinha eu dez anos.
Toda a família da minha mãe foi deportada depois da Noite de Cristal.
Eram judeus. A família do meu pai renegou-o quando eles casaram, pois a
minha mãe era alemã e judia. Ele era católico e francês. Foi na Primeira
Guerra Mundial. As pessoas fazem coisas tão estúpidas! Nenhuma das
duas famílias chegou a perdoar aos meus pais.

Foram felizes juntos? quis saber Jean- Yves.

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255

Amadea sentiu-se emocionada com o seu interesse. Eram dois jovens


prestes a iniciar uma amizade em plena guerra.

Sim, muito. Amavam-se profundamente.

Acha que eles lamentaram ter desafiado as famílias?


Não, não acho. Na verdade, a minha mãe sofreu muito, quando ele morreu.
Nunca mais voltou a ser a mesma. A minha irmã tinha apenas dois anos
nessa altura. Fui sempre eu que tomei conta dela contou Amadea com os
olhos cheios de lágrimas. Há muito tempo que não falava de Daphne e
sentiu repentinamente uma imensa saudade da irmã e também da mãe.
Penso que existe muita gente como nós, gente que já não tem família.

Os meus irmãos eram gémeos especificou Jean-Yves, como se isso fosse


importante, mas para ele era

Rezarei por eles esta noite. E por si também.

Obrigado agradeceu ele, enquanto regressavam devagar à herdade.

Jean-Yves gostava da jovem mulher, que achava muito ponderada.


Também ela sofrera muito. Ainda lhe custava, porém, a acreditar que era
freira e não compreendia as suas motivações. Mas o facto parecia conferir-
lhe algo de muito profundo e tranquilo que ele apreciava. Asua presença
reconfortava-o e sentia-se em segurança ao seu lado.

Virei buscá-la amanhã à noite. Vista roupa escura. Vamos enegrecer os


rostos quando lá chegarmos. Eu trago-lhe graxa.

Obrigada agradeceu Amadea, com um sorriso. Gostei de falar consigo,


Amélie. É boa pessoa. Também o é, Jean- Yves.

Acompanhou-a até à casa da herdade e depois, enquanto regressava à


quinta onde vivia, sentiu- se contente em saber que ela estaria a rezar por
ele. Algo nela dava-lhe a impressão de que Deus a escutava.

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256

CAPÍTULO 19

Jean-Yves veio buscá-la às dez horas, na noite seguinte. Conduzia uma


camioneta velha com os faróis apagados e estava acompanhado de outro
homem, um jovem camponês, robusto, de cabelo ruivo . Jean-Yves
apresentou-o a Amélie, dizendo que se chamava Georges.

Amadea trabalhara no duro na herdade durante todo o dia, dando uma


grande ajuda à tia de Jean-Yves. Esta sentia-se agradecida e já estava na
cama com o marido, quando eles saíram de casa. N ão tinham feito
qualquer pergunta. Conheciam a rotina. O casal de idade não aludira ao
que Amadea faria nessa noite, subindo ao andar de cima, após se terem
despedido. Uns minutos depois, Amadea afastou- se com Jean-Yves.
Vestira roupa escura, como ele lhe pedira. Tomaram a direcção dos
campos, avançando sem pronunciarem uma palavra.

Quando lá chegaram, já havia mais duas camionetas estacionadas num


bosquedo. Eram, ao todo, oito homens e Amadea. Não trocaram uma
palavra. Jean-Yves estendeu à jovem um pequeno boião de graxa com que
ela escureceu o rosto. Se fossem apanhados, os rostos camuflados iriam
traí-los, mas tratava-se de uma precaução necessária.

Umruído de motor rasgou o céu e os homens dispersaram-se, a correr.


Minutos depois, acenderam as lanternas para fazerem sinais ao avião, e
Amadea avistou um pára-quedas iniciando uma lenta descida para o solo.
Não transportava nenhum homem, apenas um pacote enorme. Então, os
homens apagaram as lanternas e o avião afastou-se. Era tudo.

Quando o pára-quedas aterrou perto das árvores, precipitaram-se todos na


sua direcção. Soltaram o pacote e um deles enterrou o pára-quedas no solo
o mais rapidamente possível. Os outros ocuparam-se da carga. O pacote
estava cheio de armas e munições que eles puseram nas camionetas.
Decorridos

263

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vinte minutos, separaram-se. Amadea e os seus dois companheiros


retomaram o caminho da herdade, já sem camuflagem no rosto.
É assim que se passa declarou Jean-Yves que lhe estendera um lenço com
que se limpar.

Amadea sentira-se impressionada com a eficácia da operação. Tudo se


desenrolara com uma enorme precisão e, ao vê-los, dir-se-ia fácil.
Contudo, sabia que nem sempre era assim e que, por vezes, se davam
incidentes. Além de que, se os alemães os apanhassem, seriam fuzilados,
como um exemplo para a cidade. Este tipo de incidentes acontecia por
toda a França e fora, aliás, o que se passara com os irmãos de Jean-Yves,
por quem ela rezara na véspera, como prometera.

Eles costumam aterrar, ou largam sempre as cargas? inquiriu calmamente


Amadea, que queria saber mais sobre o seu trabalho e o que esperavam
dela.

Depende. Por vezes, lançam homens de pára-quedas. Contudo, em caso de


aterragem, têm de voltar a descolar em menos de cinco minutos e é muito
arriscado.

Não lhe era difícil imaginar

O que fazem com os homens?

Também depende. Por vezes, escondemo-los, mas, regra geral, partem


directamente em missões para os ingleses. É mais difícil conseguir que
saiam. Às vezes acontece ficarem feridos.

Depois, Jean-Yves calou-se até chegarem à herdade. Georges observava os


dois companheiros em silêncio. Meteu-se com Jean-Yves a propósito de
Amadea, quando esta desceu da camioneta. Há muito tempo que os dois se
conheciam e tinham passado por muita coisa juntos; confiavam
plenamente um no outro.

Gostas dela, confessa declarou Georges, com um leve sorriso. Não sejas
parvo. Ela é freira resmungou Jean-Yves entre dentes. Ah, sim, retorquiu
Georges, surpreendido Não parece nada.
264

258

É porque não usa o hábito.

Georges assentiu com a cabeça, impressionado, e inquir iu:

Vai regressar ao convento?

Achava que seria uma pena se o fizesse e Jean-Yves era da mesma opinião.

Pelo menos, é o que diz respondeu ele, estacionando na herdade vizinha,


onde os dois habitavam e trabalhavam como ajudantes.

Talvez possas fazê-la mudar de opinião sugeriu Georges, sorrindo, ao


descerem da camioneta. Jean-Yves não lhe respondeu. Também pensara o
mesmo.

Nesse momento, o objecto da conversa de ambos encontrava-se ajoelhada,


dando graças a Deus pela missão ter sido bem-sucedida. Por um momento,
Amadea interrogou-se sobre se estaria certo agradecer a Deus por tê-los
ajudado a receber armas destinadas a matar, mas, na medida em que não
parecia haver outra opção, esperava que Ele compreendesse. Permaneceu,
assim, um longo momento a fazer o seu exame de consciência, como no
convento, e em seguida deitou- se.

Levantou-se antes das seis para ir mungir as vacas e, quando os seus


anfitriões se levantaram, o pequeno-almoço estava pronto. Compunha-se
simplesmente de fruta, cereais e uma espécie de café, mas para Amadea
era um festim, comparado com o que tinha por hábito comer no início do
ano. Continuava a agradecer a Deus, de manhã e à noite, por ter-lhe
permitido chegar a França sã e salva. Sentada à mesa, nessa manhã, a
jovem reflectia na missão em que participara na véspera.

Nas semanas seguintes, houve duas outras missões do mesmo género e três
em Setembro, com homens. O avião só aterrou num desses casos; nos
outros dois, lançaram-nos de pára-quedas. Um dos homens fez um grave
entorse no tornozelo ao tocar no solo, e tiveram de escondê-lo na herdade,
onde Amadea o tratou até se encontrar em condições de partir.

265

259

Em Outubro, receberam a visita de soldados alemães. Andavam a


controlar as herdades e os documentos de identificação. Quando
examinaram os de Amadea, o coração da jovem quase parou, mas eles
devolveram-lhos sem qualquer comentário e prosseguiram caminho,
levando alguma fruta. Era óbvio que a tia de Jean-Yves sofria de artrite e
precisava de uma rapariga que ajudasse na herdade. E o marido também
era velho Não acharam nada fora do normal

Amadea falou nisso a Jean-Yves, quando iam a caminho de uma outra


missão. Nessa noite, recolheram mais armas e munições, bem como
rádios.

Hoje, tive um medo de morte confessou- lhe.

Também me acontece por vezes replicou Jean-Yves com franqueza.


Ninguém quer ser abatido Contudo, preferia que me matassem a voltar
para o sítio de onde vim disse Amadea.

És muito corajosa elogiou ele, fitando-a sob o luar.

Jean-Yves gostava de trabalhar com Amadea e, sobretudo, de conversar


com ela. Por vezes, aparecia na herdade apenas para conversar, pois
sentia-se só desde a morte dos irmãos. A jovem era uma companhia
agradável e tinha bom coração. Gostava de tudo nela, mas nunca lhe disse
nada. Não queria ofendê-la nem afugentá-la. Amadea falava muito do
convento; era a única vida que conhecera e de que sentia falta. Jean-Yves
gostava da sua inocência e da sua força. Ela nunca fugia às
responsabilidades e não temia correr riscos. Era igualmente tão corajosa
como qualquer dos seus homens. Todos lhe reconheciam o valor e a
respeitavam.

Amadea participou em todas as missões ao longo do Outono e até ao


Inverno. Jean-Yves ensinou- a a servir-se de um rádio e a carregar uma
arma. Ensinou-a também a disparar no campo do tio, tendo ficado
surpreendido ao constatar que ela era dotada Não tremia e tinha bons
reflexos. Além disso, possuía um coração de ouro.

Dois dias antes do Natal, ajudou-o a transportar quatro rapazinhos judeus


até Lyon. O padre Jacques prometera recebê-los, mas, por fim, não
conseguiu manter a palavra dada com receio de pôr em risco a vida das
outras crianças. Amadea

266

260

e Jean-Yves arranjaram forma de os levar a Jean Moulin, depois


regressaram sozinhos. Um dos miúdos adoecera e ela cuidara dele.

És uma mulher maravilhosa, Amélie elogiou Jean-Yves, no regresso a


Melun.

Um pouco mais tarde, foram detidos por soldados que lhes examinaram os
documentos; um deles olhou fixamente para Amadea.

É a minha namorada esclareceu Jean-Yves num tom despreocupado.

Sortudo! retorquiu o soldado com um sorriso, antes de fazer-lhes sinal


para que avançassem. Feliz Natal.

Sale boche murmurou Jean-Yves quando se afastaram. Quem me dera que


fosse verdade acrescentou depois, fitando Amadea.

Contudo, a jovem não o escutava. Pensava no rapazinho doente e esperava


que ele recuperasse rapidamente. A criança passara três meses escondida
num subterrâneo e apanhara bronquite; tinha sorte por ainda estar vivo.

O quê?

Disse que desejava que fosses realmente minha namorada.

Não. Não sejas ridículo replicou, perturbada. Assumira o tom de uma mãe
a falar com o filho e, ao sorrir, Jean-Yves mais parecia um miúdo do que
um homem que arriscava constantemente a vida pela França.

Mas é verdade. E nada tem de ridículo. Ridículo é o facto de ires fechar-te


num convento até ao fim dos teus dias. Isso sim, é uma estupidez.

Não, não é. É a vida que desejo.

Mas porquê? De que é que tens medo? De que te escondes? O que há de


tão terrível cá fora? replicou quase aos gritos, pois há meses que estava
apaixonado por ela e sentia-se frustrado. Dir-se- iam duas crianças a
brigar, enquanto regressavam a casa.

Não fujo de nada. Acredito, pelo contrário, no que faço. Adoro o convento
e adoro ser freira. 267

261

Amadea quase parecia amuada, quando cruzou os braços, como que


enfiando as mãos no hábito. Este ainda lhe faltava e sentia-se despida sem
ele.

Esta noite observei-te com as crianças, sobretudo com o miúdo doente.


Precisas de ter filhos. As mulheres são feitas para isso. Não podes renegar
esse direito.

Posso sim. Tenho outras coisas a fa zer.

Como, por exemplo? Nada tens ali, excepto o sacrifício, a solidão e as


preces.
Nunca me senti só no convento, Jean-Yves replicou Amadea num tom
calmo, suspirando em seguida. Às vezes, sinto-me muito mais só aqui.

E era verdade. Faltava-lhe a vida no convento, bem como as irmãs e a


madre superiora. Mas também a sua mãe e Daphne. Na verdade, faltavam-
lhe muitas coisas, embora se sentisse reconhecida a Deus por se encontrar
em Melun.

Também eu me sinto só confessou Jean-Yves num tom triste, virando-se


para ela.

Parou ao detectar lágrimas no rosto dela.

Ma pauvre petite disse, parando a camioneta. Desculpa. Não queria


magoar- te.

Tudo bem respondeu Amadea, mas desfez-se em pranto.

Jean-Yves tomou-a nos braços, contudo a jovem não conseguia parar de


soluçar. Tudo lhe parecia mais difícil ante a proximidade do Natal. Já fora
o mesmo no ano anterior.

Sinto tanto a sua falta... Não consigo acreditar que partiram para sempre...
a minha irmã era tão bonita... e a minha pobre mãe, sempre disposta a tudo
por nós. Nunca pensava nela... Não consigo deixar de pensar no que lhes
aconteceu... Sei que não voltarei a vê-las... Oh, Jean- Yves...

Amadea soluçou durante muito tempo nos seus braços. Era a primeira vez
que se deixava abater daquela forma. Por norma, proibia-se de pensar no
que podia ter-lhes acontecido. Ouvira contar histórias horríveis sobre
Ravensbriick. Era impensável que elas tivessem desaparecido para
sempre, mas, no íntimo, sabia que era essa a realidade.

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262
Eu sei... eu sei... Também penso em todas essas coisas... Sinto saudades
dos meus irmãos... Todos perdemos entes queridos. Não há ninguém que
não tenha perdido uma pessoa chegada.

Em seguida e, sem reflectir, beijou-a e ela correspondeu. Há meses que


andava a conter-se, há meses que se esforçava por respeitar os votos dela e
a sua opção de vida, bem como o seu desejo de regressar ao convento.
Contudo, não queria que ela se fosse embora. Queria passar o resto da vida
ao seu lado, cuidar dela e ter filhos com ela. Apenas se tinham um ao
outro. Todos aqueles de quem gostavam tinham desaparecido.
Assemelhavam-se a dois sobreviventes, à deriva num barco, num mar
tempestuoso. Subitamente abraçaram- se.

Sem compreender o que lhe acontecia, Amadea viu-se submersa numa tal
onda de desespero e de paixão tão incontrolável, que não conseguia parar
de o beijar e abraçar. E, antes que qualquer deles pudesse parar ou reflectir
no que se passava, fizeram amor na camioneta. Era tudo o que ela
desejava. Era como se se tivesse transformado numa pessoa
completamente diferente do que fora durante todos estes anos.

A guerra podia ter efeitos estranhos sobre as pessoas e transformá-las, o


que era o seu caso. Amadea esquecera os votos, as irmãs, o convento e
mesmo o seu amor por Deus. Tudo o que desejava e precisava neste
momento era de Jean-Yves e o mesmo se passava com ele. Tinham
atravessado muitas provas, sobrevivido a muitas perdas e assistido a
demasiados horrores.

Nessa noite deixaram cair a máscara. Jean-Yves conservou Amadea nos


seus braços, chorando entre os seus cabelos louros, e tudo o que a jovem
desejava era consolá-lo. Era o filho que ela não tinha e nunca teria, o único
homem que alguma vez desejara ou amara. Censurara-se muitas vezes por
este pensamento enquanto rezava no seu quarto, mas de momento apenas
desejava pertencer-lhe. Depois do amor, entreolharam-se como duas
crianças perdidas. Ele parecia angustiado.

269
263

Detestas- me?

Não a tomara pela força. Os dois queriam-se um ao outro e Amadea


oferecera-se e desejara- o. Precisavam um do outro, muito mais do que
teriam imaginado. Haviam simplesmente sofrido em demasia e, quer ou
não o reconhecessem, os acontecimentos tinham-nos afectado em excesso.

Não. Jamais poderia detestar-te. Amo-te, Jean-Yves declarou Amadea


meigamente, ao mesmo tempo que uma ínfima parte dela compreendia o
que haviam feito e perdoava aos dois.

Também eu te amo. Oh, céus! Se soubesses como te amo! O que vamos


fazer agora?

Ele sabia até que ponto a jovem estava segura da sua vocação, mas sempre
lhe parecera que se enganava. Era uma mulher demasiado bonita e
encantadora para se esconder num convento até ao fim dos seus dias.
Contudo, era a vida que ela lhe dissera desejar, desde que se tinham
conhecido.

Precisamos de decidir isso já? Ignoro se acabei de cometer um pecado


horrível, ou se era o que estava predestinado. Talvez fosse o que Deus
queria para mim! Esperemos um pouco e rezemos arguiu com sensatez,
enquanto Jean-Yves a apertava de encontro ao peito.

Amadea ignorava onde Deus queria conduzi-la, mas tinha a sensação de


que devia explorar este novo caminho. Sentia que era o certo.

Se te acontecer alguma coisa, Amélie, morrerei.

Não digas parvoíces. Esperar-te-ei no paraíso e viveremos momentos


maravilhosos, quando vieres ter comigo.

Amadea tinha os olhos cheios de lágrimas, mas sentia-se feliz ao lado


dele. Jamais conhecera uma tal felicidade. Oseu amor por Jean-Yves era
diferente do que sentia pelo convento, e era essa sensação que lhe
provocava uma alegria desconhecida. Era a primeira vez que se sentia
jovem e leve. A vida à sua volta não parecia tão sombria, nem as tragédias
tão horríveis. Era tudo o que ambos precisavam para esquecer a realidade,
pelo menos de momento.

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- Deus, como te amo! exclamou Jean-Yves com um largo sorriso, ao


mesmo tempo que ajeitavam a roupa e riam como dois adolescen tes.

Gostaria de pedir-lhe que o desposasse, mas a jovem acabava de dar um


passo enorme e não queria pressioná-la. Talvez ela tivesse razão. Era
preciso deixar que tudo seguisse o seu curso. Não tinham de decidir tudo
numa noite. Só desejava uma coisa, que Amadea se tornasse sua mulher e
a mãe dos seus filhos. Esperava que Deus estivesse de acordo e ela
abandonasse a sua intenção de regressar ao convento. Contudo, de
momento, era demasiado cedo; ambos estavam ainda sob o choque do que
se havia passado. Conversaram tranquilamente durante o caminho de
volta. Quando chegaram à herdade, ele tomou Amadea nos braços e
beijou-a, antes que descesse da camioneta.

Amo-te. Não te esqueças disse, com uma expressão grave. Esta noite foi só
o início. Não foi um erro, nem um pecado. E prometo-te ir mais vezes à
missa acrescentou, sorrindo.

Desde a morte dos irmãos que não voltara à igreja por estar demasiado
irritado com Deus. Talvez seja por isso que Ele me enviou ao teu encontro,
para te trazer de volta à igreja.

No entanto, fosse qual fosse o motivo, Amadea estava tão feliz como ele.
Verificou, surpreendida, que não se sentia em falta, mas, pelo contrário,
feliz e apaixonada. Sabia que precisariam de tempo para encontrar uma
solução. Era essa uma das consequências da guer ra.
Nessa noite, deitada na cama, Amadea constatou que não tinha nenhuma
crise de consciência nem sequer de arrependimento. Por estranho que
parecesse, achava que estava certa. Interrogou-se sobre se não seria isto,
afinal, o que Deus queria para ela. Mergulhada nestes pensamentos,
adormeceu sem se dar conta.

Na manhã seguinte, encontrou um raminho de flores junto ao celeiro, que


Jean-Yves colhera para ela antes de ir trabalhar. Deixara um pequeno
bilhete com as palavras: ”Amo-te, J.Y”. Meteu-o no bolso com um sorriso
e foi mungir as vacas que a esperavam.

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Pela primeira vez na vida, sentiu-se mulher uma impressão desconhecida


sob todos os pontos de vista. Descobria, de súbito, tudo o que sempre
rejeitara e planeara rejeitar eternamente. A sua vida acabara de sofrer uma
reviravolta e era impossível saber qual o bom caminho: aquele, ao lado de
Jean-Yves, o mais atraente, ou o que tanto significara aos seus olhos
durante muitos anos? Esperava simplesmente que, com o tempo, as
respostas chegassem e o véu se e rguesse.

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CAPÍTULO 20

Durante todo o Inverno, Amadea prosseguiu as suas missões com Jean-


Yves. Os ingleses continuaram a lançar regularmente provisões e soldados
de pára-quedas. Uma noite, estiveram a aguardar um oficial inglês que,
depois de o ajudarem a enterrar o pára-quedas, partiu rapidamente para
uma missão, vestido com a farda das SS. Jean-Yves perguntou a Amadea
se nunca ouvira falar dele. Tratava-se de Lorde Rupert Montgomery; um
dos homens que tinham organizado os comboios, graças aos quais dez mil
crianças haviam saído da Europa antes da guerra.

Pedi à minha mãe que mandasse a minha irmã a bordo de um deles


respondeu Amadea, tristemente. Mas ela estava convencida de que nunca
teríamos problemas e receava o que pudesse acontecer a Daphne, uma vez
na Grã-Bretanha. Nessa altura, a minha irmã tinha treze anos e foi
deportada aos dezasseis. É admirável o que esse homem fez por muitas
crianças.

- É um bom homem. Tive a sorte de conhecê-lo no ano passado observou


Jean-Yves, sorrindo. Desde o Natal que a ligação deles se mantinha. Jean-
Yves abordara a questão do casamento, mas Amadea ainda não estava bem
certa se Deus queria que ela regressasse ao convento. Todavia, esta
perspectiva parecia-lhe agora cada vez mais improvável. Matara um
homem, embora por acidente, e estava perdidamente apaixonada por outro.
Faziam amor, sempre que podiam. Jean-Yves não conseguia afastar-se
dela e jurou a si próprio que jamais a deixaria voltar ao convento depois da
guerra, convicto de que não era essa, certamente, a vontade de Deus. Na
sua opinião, tratava-se de uma vida contra a natureza e, além disso, estava
muito apaixonado pela jovem.

Na Primavera de 1943, Serge veio fazer-lhes uma visita e adivinhou


imediatamente o que acontecera entre Jean-Yves e Amadea, sem que eles
precisassem de contar-lhe. Ao regressar

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267

a Paris, comentou, trocista, ao seu irmão Pierre que o Carmelo acabava,


sem dúvida, de perder uma bonita e jovem freira. Contudo, ficou
igualmente muito impressionado pelo trabalho de Amadea com Jean-
Yves. Desde a chegada da jovem que todas as suas missões haviam sido
coroadas de sucesso e, segundo dizia Jean-Yves, ela era corajosa, mas
tinha sempre o cuidado de evitar riscos desnecessários aos restantes
membros da célula.
Serge e Jean-Yves tinham falado em fazer explodir um depósito de
munições alemão nos arredores de Melun, nas próximas semanas.
Contudo, Jean-Yves insistira para que Amadea não participasse na missão.
Serge achava que cabia à jovem decidir, embora compreendesse os
motivos de Jean- Yves, apaixonado por ela. Na verdade, precisavam de
Amadea, que era rápida e eficaz. Serge quase confiava mais nela do que
nos outros membros de Melun, à excepção de Jean- Yves.

Ainda continuavam a debater a questão quando Serge se foi embora.


Amadea mostrou-se de acordo com ele. Queria participar na missão com
Jean-Yves. A guerra começara a assumir novos contornos desde a rendição
dos alemães em Estalinegrado, em Fevereiro a primeira derrota do
exército hitleriano e eles, os resistentes, deviam fazer tudo para que o
mesmo também acontecesse em França A explosão deste arsenal seria,
sem dúvida, um duro golpe para os alemães.

Planearam a operação, cuidadosamente, durante várias semanas. Amadea


acabou por convencer Jean-Yves que aceitou que ela os acompanhasse,
mau grado o seu desejo de protegê-la. Na sua qualidade de líder de célula,
pertencia-lhe a decisão final. Na verdade, faltavam-lhes dois homens dois
dos melhores elementos estavam doentes

A noite ia adiantada quando Jean-Yves, Amadea, duas mulheres, Georges e


um outro homem se puseram a caminho do depósito de munições.
Levavam duas camionetas. Amadea viajava com Jean- Yves com toneladas
de explosivos escondidas nas traseiras de cada um dos veículos.

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Chegados ao local, Georges e o outro homem saltaram das camionetas e


degolaram as sentinelas.

Era a missão mais perigosa que alguma vez tinham efectuado. Dispuseram
cuidadosamente os explosivos à volta do depósito de munições e depois,
como previsto, todos, menos Jean-Yves e Georges, regressaram a correr às
camionetas. Os dois homens sabiam que dispunham apenas de uns minutos
para pegar fogo às mechas e fugirem. Os explosivos que usavam eram
rudimentares, mas não tinham encontrado outros. Georges e Jean-Yves
ainda não haviam reaparecido, quando Amadea ouviu uma violenta
explosão e avistou um enorme fogo de artifício que iluminava o céu.
Todos se entreolharam: não havia o mínimo sinal de Georges ou Jean-
Yves.

Arranca! Arranca! gritou o homem a Amadea. A jovem estava ao volante


de uma das camionetas, mas

recusava abandonar Georges e Jean-Yves. Todas as forças militares locais


chegariam a qualquer momento e, se os encontrassem, não hesitariam em
abatê-los. As duas outras mulheres esperavam Georges no segundo
veículo.

Não vou partir! decidiu ela de dentes cerrados, mas, quando olhou para
trás, avistou uma enorme bola de fogo enquanto a segunda camioneta
arrancava.

Não podemos esperar implorou o homem que estava ao seu lado,


consciente, tão bem como ela, que seriam apanhados.

- É preciso esperar replicou, ao mesmo tempo que uma série de explosões


se verificavam atrás deles e a camioneta abanava.

Oincêndio propagava-se, quando as sirenes se fizeram ouvir e, sem esperar


mais, também Amadea abandonou o local. Os dois veículos atravessaram
os campos e estacionaram, finalmente, na quinta. Amadea tremia da
cabeça aos pés. Haviam escapado por milagre; sabia que tinha esperado
demasiado, pondo em risco a vida do grupo para salvar o homem que
amava.

Os quatro que haviam escapado mantiveram-se sentados em silêncio no


escuro, ouvindo o ruído das explosões e chorando

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269

baixinho. Apenas lhes restava rezarem para que os dois companheiros


estivessem salvos, mas Amadea não conseguia ver como. Os explosivos
tinham disparado muito mais rapidamente do que o previsto, e era mais
que provável que os dois homens tivessem ficado gravemente feridos ou
morrido na explosão Lamento disse aos outros, com voz trémula.
Devíamos ter arrancado mais cedo

Todos assentiram com a cabeça, sabendo que era verdade, mas também
eles não tinham querido, de forma alguma, abandonar os dois
companheiros. A decisão dela quase lhes custara a vida, mas estavam sãos
e salvos.

Nessa noite, Amadea regressou à sua herdade ao som das explosões e


fitando o céu iluminado. Deitada na cama, rezou durante horas por Jean-
Yves. Na manhã seguinte, toda a região falava do atentado, e o exército
andava por todo o lado em busca de provas. Contudo, estas não existiam.
Os fazendeiros dedicavam-se calmamente às suas tarefas, como era hábito.
Os alemães tinham descoberto os corpos carbonizados de dois homens
impossíveis de identificar, os próprios documentos ficaram reduzidos a
cinzas. Na ausência de culpados, haviam levado quatro rapazes de uma
quinta vizinha e tinham- nos abatido como represália.

Amadea passou o dia inteiro fechada no quarto, doente de desgosto e em


choque. Não só Jean-Yves estava morto, como quatro jovens tinham sido
executados por sua culpa. Era um elevado preço a pagar pela liberdade e
pela destruição das armas que os alemães usariam para matar muitos
outros Contudo, o homem que amava morrera e sentia-se responsável pela
morte de oito pessoas Georges

e Jean-Yves, quatro jovens trabalhadores da herdade e até mesmo as duas


sentinelas alemãs que haviam degolado. Era um peso demasiado na
consciência de uma mulher que outrora desejara tornar-se esposa de Deus.
E, pela primeira vez, enquanto chorava a morte do único homem que
amara, soube que, depois da guerra, voltaria ao convento. Precisaria de
toda uma vida de orações para expiar os seus pecados.

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CAPÍTULO 21

Serge esperou três semanas antes de se deslocar de Paris a Melun. Ouvira


as notícias e estava muito satisfeito com o resultado da missão: os danos
causados pela explosão haviam prejudicado em muito os alemães.
Contudo, ficara devastado ao saber da morte de Jean-Yves. Era um dos
seus melhores homens. Além disso, queria falar com Amadea o mais
rapidamente possível.

Encontrou-a no quarto, silenciosa e aniquilada pelo desgosto. Os ingleses


tinham continuado a lançar homens e provisões de pára-quedas, mas a
jovem não participara em mais nenhuma missão depois do atentado.

Serge sentou-se e falou com ela. Disse-lhe que, doravante, lhes faltavam
demasiados efectivos para poder garantir a segurança das missões.

Não consigo disse Amadea, fitando-o com um olhar angustiado e


abanando a cabeça.

Consegues sim. Jean-Yves continuaria se tivesses sido tu a ficar no


depósito. Tens de fazê-lo por ele. Pela França.

Pouco me interessa! Tenho demasiado sangue nas mãos.

Não está nas tuas mãos, mas nas deles. E, se não continuares o teu
trabalho, em breve será o nosso sangue.

Eles mataram quatro jovens! exclamou Amadea, com uma expressão de


repulsa, pois a morte destes torturava-a tanto como a de Jean- Yves.

E matarão muitos mais, se não os detivermos. É o nosso único meio de


acção e os ingleses contam connosco. Está prevista uma missão para
breve, mas não temos tempo de treinar mais homens. E preciso de ti para
algo urgente.

O quê? perguntou ela.

Serge fitou-a e Amadea empalideceu. Ele tinha consciência de que


precisava de a pressionar para obrigá-la a lutar nov ãmente.

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Fazia um trabalho bom de mais para que desistisse de tudo; além disso, a
jovem estava de tal forma devastada pela dor que ele receava que entrasse
em depressão profunda.

Preciso que leves um rapazinho judeu e a irmã a Dordogne. Temos uma


casa segura para eles à espera.

Que idade têm? inquiriu, num tom despreocupado.

Quatro e seis anos.

O que é que ainda estão a fazer aqui? replicou, surpreendida. A maioria


das crianças judias fora deportada no ano anterior e as que restavam
viviam escondidas.

A avó escondia-as, mas morreu na semana passada. Temos de tirá-los


daqui. Estarão mais seguros em Dordogne.

E como é suposto que os leve até lá? questionou, desesperada e


completamente esgotada.

Temos documentos para eles. Os miúdos parecem-se contigo. São os dois


louros e de olhos azuis. Só a mãe era judia. Ela foi deportada e mataram o
pai
Amadea ia a responder-lhe que não o faria, mas, ao olhá-lo, lembrou-se
dos seus votos e pensou na mãe, em Daphne e em Jean-Yves. E, de súbito,
sentiu que lhes devia isto, talvez em reparação das vidas perdidas por sua
culpa. Tinha a sensação de que voltara a ser freira. Jean-Yves levara
consigo a mulher que ela fora e que jamais voltaria a ser. Contudo, a irmã
Teresa do Carmelo não podia recusar esta missão. Amadea assentiu
lentamente com a cabeça. Não lhe restava outra alternativa.

Aceito declarou

Serge ficou encantado. Empenhara-se nesta missão muito especial tanto


por ela como pelos miúdos, pois ficara preocupado com o seu estado de
espírito como Jean-Yves teria ficado. De certa maneira, Serge fazia isto
por ambos, mas também pelas duas crianças judias órfãs.

Vamos trazê-las amanhã até aqui, com os documentos delas e os teus.


Terás de esconder os de Amélie no fundo falso da mala. Os teus novos
documentos provarão que és sua mãe e vieste ver a família a Besse.

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A localidade situava-se no coração de Dordogne, a região natal do pai,


onde sempre sonhara ir. Interrogou-se sobre se veria o castelo, embora
tivesse consciência de que a esperavam coisas mais importantes a fazer.

Levarás o carro da herdade especificou Serge, sabendo que tal não


levantaria problemas ao velho casal.

Depois de ter feito os trabalhos domésticos, Amadea passou o resto do dia


a rezar no quarto. Nas últimas semanas, mal comera e tinha emagrecido.
No dia seguinte, escondeu os seus documentos de Amélie Dumas no fundo
falso da mala. Sabia que lhe dariam os outros nessa noite.

As crianças chegaram depois do jantar, acompanhadas por uma mulher da


célula parisiense. Eram miúdos adoráveis, mas pareciam aterrorizados.
”Nada de admirar”, pensou Amadea, ”depois de terem passado dois anos
escondidos numa cave e de a única parente que lhes restava no mundo
estar morta.”

Serge tinha razão: pareciam-se com ela. Ao vê-los, interrogou-se como


seriam os seus filhos, caso os tivesse tido com Jean-Yves. Não era, porém,
o momento de pensar no assunto. Sentou-se para falar um pouco com eles.
Em seguida, deram-lhes de comer e Amadea meteu-os na cama. Ela
dormiria no chão, ao lado deles. O rapazinho agarrou na mão da irmã
durante toda a noite. Ambos haviam entendido o que lhes cabia fazer.
Deviam fingir que ela era a sua mãe e tratá-la por ”mamã”, mesmo que
soldados maus os interrogassem. Prometeu-lhes que nada de mal lhes
aconteceria e, nessa noite, rezou durante muito tempo para que assim
fosse.

Na manhã seguinte, partiram logo a seguir ao pequeno-almoço no carro do


tio de Jean- Yves. Amadea sabia que podia fazer a viagem em seis ou sete
horas. Levava provisões para não ter de parar durante o trajecto. Teve de
apresentar os documentos numa única barragem. Os soldados fitaram- nos,
devolveram-lhes os documentos e fizeram sinal para que prosseguisse.

Era a missão mais fácil que desempenhara até então e, com as crianças a
dormir, podia reflectir tranquilamente. Há muito tempo que não se sentia
assim, por isso estava feliz por

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273

ter aceite aquela missão. As crianças eram adoráveis e faziam-lhe pena.


Devia levá-las até junto de um membro da Resistência, em Dordogne, que
as conduziria até um esconderijo. O homem em questão dissera que
Amadea podia passar a noite no local, para descansar da longa viagem.

Eram quatro da tarde quando chegaram a Dordogne. Ocampo apresentava-


se verde e esplendoroso, como se não houvesse guerra. Descobriu
facilmente a morada que lhe tinham indicado. Um jovem esperava-a. Era
louro e de olhos azuis, como ela e as crianças. Poderia ser o pai delas,
como ela poderia ser a mãe. Agradeceu-lhe por tê-las trazido

Deseja acompanhar-nos ou ficar aqui? perguntou em seguida.

As duas crianças pareciam aterrorizadas com a ideia de a deixarem. Era a


única pessoa que conheciam, embora há pouco tempo. Contudo, ela
tratara-os muito bem. Tentou acalmá-los, mas os dois começaram a chorar,
e ela olhou para o homem que se apresentou como Armand.

Vou também decidiu.

O indivíduo meteu-se no carro com eles e indicou-lhes o caminho.


Decorridos cinco minutos, passaram diante de um imponente castelo e
Armand pediu-lhe que entrasse no pátio.

Aqui? inquiriu Amadea, surpreendida. É aqui o vosso esconderijo?


Tratava-se de uma mansão maravilhosa, rodeada de anexos, estrebarias e
um enorme pátio. A quem pertence esta casa? acrescentou, curiosa.

Sabia que a casa de família do pai se encontrava nas redondezas, embora


não tivesse certezas quanto à localização.

A mim respondeu Armand, que desatou a rir ao ver como ela o fitava. Pelo
menos, um dia acrescentou Entretanto, é do meu pai

Ela sorriu, com uma visível admiração, olhando em redor. Desceram do


carro, enquanto as crianças observavam o castelo, maravilhadas; após dois
anos numa cave dos arredores de Paris, tinham a sensação de estarem no
paraíso. Amadea sabia que eles tinham documentos atestando a sua
descendência 280

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aristocrata. Eram supostamente parentes afastados do dono do castelo.


Uma velha governanta levou-os para jantarem, enquanto um cavalheiro
idoso e de porte distinto apareceu no cimo das escadas. Amadea pressupôs
tratar-se do pai de Armand. O cavalheiro de ar distinto apertou-lhe a mão
com uma enorme simpatia, enquanto o filho procedia às apresentações.
Tudo o que Armand conhecia a seu respeito era o nome indicado nos seus
últimos documentos, Philippine de Villiers. E foi com esta identidade que
a apresentou ao pai.

Philippine, permite que lhe apresente o meu pai? declarou Armand,


delicadamente. Conde Nicolas de Vallerand.

Amadea observou-o e detectou imediatamente a semelhança, embora o


conde fosse mais velho do que o pai a última vez que o vira. Ele tinha
quarenta e quatro anos quando morrera e teria agora sessenta. Embora se
sentisse chocada, não pronunciou palavra. Contudo, ele apercebeu-se que
algo perturbara muito a jovem. O conde convidou Amadea a passar à sala
de jantar, onde uma refeição a esperava. Ela observou a divisão sem
pronunciar uma palavra, mas o conde notou a sua tristeza.

É uma propriedade fantástica que data do século xvi e foi reconstruída


dois séculos mais tarde explicou. Receio que esteja a precisar de grandes
reparações. Mas não haverá ninguém que o faça antes do final da guerra. O
telhado está um verdadeiro passador acrescentou com um sorriso.

Armand fitava-a como se o rosto dela lhe fosse vagamente familiar, e ela
adivinhou o motivo: era o retrato personificado do pai. Interrogou-se sobre
qual seria a sua reacção se lhe contasse a verdade. Mas as coisas deviam
ter mudado. Afinal, estavam a ocultar crianças judias. Parecia-lhe o
cúmulo da ironia, dado o pai ter sido banido e jamais sido visto por
qualquer deles, em virtude da sua mulher ser judia.

Quando acabaram de jantar, o conde convidou-a a passear nos jardins que,


segundo lhe explicou, tinham sido concebidos pelo mesmo arquitecto que
desenhara os jardins de

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Versalhes. Amadea sentiu uma impressão estranha ao atravessar os


corredores e as divisões onde o seu pai crescera e, ao saírem, os olhos
encheram-se-lhe de lágrimas. Todas estas divisões deviam ter outrora
ressoado com o som da sua voz, os risos de criança e de adolescente.
Transbordavam de ecos do passado, que partilhava neste instante com
estes dois homens, embora o ignorassem

Sente-se bem? perguntou Armand, ao perceber que ela estava


profundamente emocionada com algo.

O pai dele já os esperava nos jardins. Amadea abanou a cabeça e foram ao


seu encontro.

- É muito corajosa por ter trazido estas crianças sozinha até aqui elogiou.
Se tivesse uma filha, ignoro se a deixaria fazê-lo. Na verdade, acho que
não. Fitou Armand e, em seguida, baixou a voz, franzindo as sobrancelhas.
Também me preocupo com o meu filho acrescentou. Mas que escolha
temos nos tempos que correm?

Havia, de facto, outras escolhas, escolhas diferentes das deles e que vários
haviam feito. Cont udo, Amadea sentia-se orgulhosa da sua e da deles.

Durante o seu passeio pelos jardins, outrora esplendorosos, o conde não


lhe fez nenhuma pergunta pessoal. Viviam uma época em que todos
desconfiavam uns dos outros, em que era preferível saber e dizer o menos
possível. Contudo, quando Amadea se sentou num dos velhos bancos em
mármore, gastos pelo tempo e pelos elementos, e ergueu na sua direcção
os olhos cheios de tristeza, o conde não conseguiu conter- se.

Não sei porquê declarou suavemente, mas tenho a sensação de que a


conheço e já a vi em qualquer lado. Estou errado?

Não havia ninguém por perto, à excepção de Armand. O conde estava na


casa dos cinquenta e muitos, mas não demasiado velho para estar senil.
Porém, parecia confuso, como se na sua cabeça ecoassem vozes de outros
tempos e não tivesse certezas sobre o que ouvia ou via.

Já nos conhecemos? insistiu.

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Achava que, provavelmente, não era o caso, mas podia ter-se esquecido.
Além disso, sentada ali na sua frente, ela parecia-se incrivelmente com
Arma nd.

Conheceu o meu pai respondeu docemente Amadea, sem o desfitar.

A sério? Como era o nome dele?

Antoine de Vallerand pronunciou calmamente.

Nicolas era irmão do seu pai e tio dela e Armand seu primo em primeiro
grau. Seguiu-se um longo silêncio, depois, sem uma palavra, ele abraçou-a
com as lágrimas a correrem-lhe pelas faces.

Oh, minha querida... minha querida... replicou, sem conseguir dizer outra
coisa durante longos minutos, invadido pelas recordações que lhe trouxera.
Já o sabias quando vieste? acres centou, interrogando-se sobre se seria
esse o motivo que a levara a aceitar a missão.

Não. Só quando chegámos aqui e Armand disse o seu nome. Foi um


choque, como deve imaginar confessou, rindo e chorando ao mesmo
tempo. Queria dizer algo ao jantar, mas receei que me mandasse embora.
Apetecia-me saborear o momento. O meu pai falava muitas vezes deste
lugar e da sua infância aqui.

Nunca perdoei a atitude do meu pai. Detestei-o por isso e também me


detestei por não ter tido coragem de fazer-lhe frente. Depois disso, o meu
irmão e eu tornámo-nos estranhos. Quando o nosso pai morreu, desejei
pedir a Antoine que regressasse a casa e nos perdoasse. Contudo, ele
morreu duas semanas depois. E, no ano seguinte, perdi a minha mulher.
Quis escrever à tua mãe a dar-lhe conta das minhas emoções, mas não a
conhecia e tinha a certeza de que ela nos odiava a todos.

Em vez disso, limitara-se a enviar uma carta de condolências.

A mamã não vos odiava garantiu Amadea. A sua própria família tratou-a
bem pior. Escreveram o nome dela no livro dos mortos e não a deixaram
ver a mãe quando esta morreu, nem assistir ao funeral. A minha avó
retomara o

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contacto connosco há dois anos e passámos a conhecê-la. Mas nunca me


encontrei com os outros membros da família.

Onde estão eles, agora? questionou o conde, preocupado.

Amadea respirou fundo antes de responder, com um enorme sofrimento


estampado nos olhos: Toda a família foi deportada depois da Noite de
Cristal. Alguns pensam que foram enviados para Dachau, mas ninguém
sabe ao certo. A minha mãe e a minha irmã foram deportadas para
Ravensbruck há dois anos. Desde então, nunca mais soube nada delas.

E vieste até aqui? retorquiu, confuso e horrorizado ante o que ouvira.

Armand observou atentamente esta prima que achava uma mulher


extraordinária. Filho único, nunca tivera uma irmã, mas gostaria de ter
tido uma assim. Apenas lhe restava o pai. Ambos haviam tomado a
decisão conjunta de aderirem à Resistência. Nada mais tinham, à excepção
deste castelo arruinado.

Passei cinco meses em Theresienstadt. Amigos esconderam-me, depois de


a minha mãe ser deportada. Antes disso, vivi seis anos num convento
carmelita.
Eras freira? retorquiu Armand, chocado.

Acho que ainda o sou. Atravessara um período de dúvida, mas desde a


morte de Jean- Yves reencontrara a vocação, embora nunca a tivesse
perdido. Face a circunstâncias invulgares, somente a assaltara uma leve
dúvida. Sou a irmã Teresa do Carmelo. Depois da guerra, regressarei ao
convento. Tive de partir para não colocar em risco a vida da congregação.

És fantástica! elogiou o tio, rodeando-lhe os ombros com o braço. O teu


pai sentir-se-ia muito orgulhoso de ti, se ainda vivesse. Eu sinto-me,
embora mal te conheça. Podes ficar algum tempo connosco? acrescentou
com uma certa melancolia.

Tinham toda uma vida a recuperar e queria que Amadea lhe falasse de
todos os anos que ele não vivera com o irmão. Havia mil coisas que queria
saber.

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Não me parece aconselhável retorquiu Amadea, mas com a sua permissão,


gostaria de voltar. Ficaria tristíssimo se não o fizesses retorquiu, seguro de
que a sobrinha tivera uma educação

esmerada.

Os três regressaram ao castelo e passaram o resto da noite a conversar.


Contudo, antes de partir, Amadea descansou umas horas.

No momento de partir, beijou as crianças que começaram a chorar. E tanto


ela, como Armand e Nicholas fizeram o mesmo. A jovem prometera voltar
e o tio suplicara-lhe que fosse prudente e tivesse cuidado. Quando se
afastou, fitou-os uma última vez pelo retrovisor e acenou-lhes. Passara
uma das mais belas noites da sua vida; só desejou que Jean-Yves e o pai
pudessem ter estado ali. Curiosamente, no regresso a Melun, sentiu-os
próximo dela, juntamente com a mãe e Daphne. Todos faziam parte de
uma cadeia interminável, ligando o passado, o presente e o futuro.

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CAPÍTULO 22

O trajecto de volta a Melun decorreu sem novidade. Amadea só foi


controlada uma vez pelos soldados e, embora a admirassem e tivessem
conversado uns minutos com ela, deixaram-na seguir rapidamente. O seu
encanto funcionara e eles mal tinham olhado para os documentos. Um
deles acenou-lhe, com um enorme sorriso, quando ela se afastou.

Chegou à herdade ao fim da tarde e, na semana seguinte, retomou as suas


actividades clandestinas com os outros, recuperando as cargas que os
ingleses continuavam a lançar de pára-quedas. Receberam, assim, dois
novos rádios de ondas curtas, que esconderam nas quintas dos arredores.

No fim de Setembro, Serge fez-lhes mais uma visita. Gostava de contactar


com os homens e mulheres que trabalhavam consigo, sempre que podia.
queria conhecê-los melhor, ter a certeza de que não faziam correr riscos
inúteis aos outros e se eram tão leais quanto os julgava. Possuía um sexto
sentido neste aspecto.

Desta vez desejava igualmente conversar com Amadea. Tinham-lhe dito


que a jovem andava deprimida desde a morte de Jean-Yves, continuando a
censurar-se não só pela morte dele e a de Georges, mas também pela dos
quatro jovens. Pior ainda, achava que Jean-Yves morrera como expiação
dos pecados dela.

Ao longo das missões que lhe confiara, Serge criara-lhe afecto e sentia um
profundo respeito pela sua capacidade de apreciação, coragem e sangue-
frio. Queria certificar-se de que ela estava bem e queria também falar-lhe
de uma missão especial. Como sempre que se tratava de um assunto
delicado, desejava falar-lhe pessoalmente; assim, enviara-lhe uma
mensagem para que se encontrassem numa herdade vizinha.

Mal a viu, Serge reparou nas suas feições cansadas e no ar abatido. Parecia
atormentada pelas mortes de que se considerava responsável e voltou a
falar repetidamente sobre a sua

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ansiedade de regressar ao convento, após o final da guerra. Jantaram


juntos e, durante a refeição, ela referiu-lhe as últimas cargas recebidas e
falou-lhe dos novos recrutas. Em seguida, foram passear.

Quero falar-te de uma coisa disse Serge, passados uns minutos. Preciso de
um agente em Paris para uma missão especial. Ignoro se aceitarás, mas
acho que serias a escolha ideal.

Serge fora contactado pelos Serviços Secretos ingleses no sentido de


encontrar alguém com qualidades específicas, e ela preenchia todos os
requisitos. Precisavam de uma pessoa que falasse alemão correctamente e
pudesse passar por uma distinta e sofisticada aristocrata alemã. Amadea
não só tinha o aspecto físico, como o era realmente. E tanto podia passar
por alemã como por francesa.

Queriam que desempenhasse o papel da mulher ou da amante de um


importante oficial das SS, de visita a Paris. O oficial em questão seria um
agente dos Serviços Secretos britânicos, também ele meio alemão e
fluente em francês. Precisavam do par ideal, e Amadea correspondia
exactamente ao requisito, caso aceitasse. Como sempre, seria ela a decidir.

Serge explicou-lhe a missão enquanto avançavam no escuro. Amadea


escutava-o em silêncio. Demorou muito a responder, mas ele não a
pressiono u.

Quando precisas de saber? inquiriu ela, finalmente. Amadea queria


reflectir e rezar. Sentia-se feliz no campo,
a trabalhar para a Resistência. Contudo, ir até Paris e pavonear-se diante
das SS era muito mais perigoso. Não receava ser morta pelos alemães
posicionados em Melun, durante uma missão nocturna. A única coisa que
não queria e a aterrorizava era ser novamente deportada para um campo.
Estava acima das suas forças. Sentia-se incapaz de correr esse risco. Sabia
que não teria uma segunda oportunidade de se evadir, como em
Theresienstadt; tanto quanto sabia, ninguém fugira de Auschwitz nem da
maioria de outros campos.

Amadea tivera uma sorte incrível, a noite das represálias em Lidice, para
conseguir evadir- se do ”campo-modelo” dos

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nazis que, nessa altura, se preparavam para exibir a sua ”Cidade para os
Judeus” à Cruz Vermelha A deportação para qualquer campo, ou mesmo
para esse, constituía, doravante, sinónimo de uma morte garantida, depois
de torturas inimagináveis. A proposta de Serge de deslocar-se a Paris no
papel de mulher de um oficial das SS parecia-lhe arriscada. Demasiado
arriscada.

Não temos muito tempo e tu és a nossa única oportunidade respondeu


Serge, honestamente. O agente que dirige a missão chega no final da
semana. De qualquer maneira, era minha intenção falar-te no assunto esta
noite. Ele vem com três homens.

Amadea assistira frequentemente a estas aterragens nocturnas com Jean-


Yves e Georges; um pequeno Lysander pousava menos de cinco minutos
no campo e os homens saíam do aparelho e dispersavam-se rapidamente,
enquanto o avião voltava a descolar. Eram os mesmos aviões que lhes
lançavam as munições e, às vezes, homens de pára-quedas, mas as
aterragens eram muito mais difíceis. Os aparelhos voavam de luzes
apagadas, confiando apenas nos resistentes para que os guiassem com
lanternas e os protegessem. Desde a sua chegada que Amadea nunca
assistira a qualquer acidente, embora em várias ocasiões tivessem estado
muito perto.

Deve ser alguém importante observou ela, pensativamente, ao mesmo


tempo que se interrogava sobre que agente seria e se já ouvira falar dele.

Agora, a jovem já conhecia os nomes da maior parte dos seus


colaboradores britânicos. Ouvia- lhes os nomes de código no rádio, quando
o manejava, o que acontecia de vez em quando, pois aperfeiçoara- se.
Jean-Yves fora um bom professor. E amara-a naquele breve momento que
haviam partilhado.

Sim, muito importante admitiu Serge. Pode encarregar-se sozinho da


missão, se tiver de ser, mas uma ”mulher” ajudaria muito. És tu a única
que pode fazê-lo acrescentou com franqueza.

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Nenhuma das outras agentes falava alemão tão bem como ela, nem podia
fazer-se passar por alemã. Embora algumas dominassem a língua na
perfeição, eram obviamente francesas. Amadea parecia germânica. Não só
alemã, mas ariana. Tal como o oficial britânico que, como ela, era meio
alemão, mas não judeu. A mãe era uma princesa prussiana, famosa pela
sua beleza na juventude.

Como se chama esse homem? inquiriu Amadea, curiosa e intrigada pela


missão.

O seu nome de código é Ap oio.

Amadea sabia que já ouvira este nome e achava mesmo que o encontrara
uma vez, mas não conseguia dar um rosto ao nome. De súbito, recordou-
se. Ele já fora largado de pára-quedas e vira-o com Jean-Yves. Era Rupert
Montgomery, um dos que haviam organizado os comboios de crianças.
Sim. Já o conheci.

Serge assentiu com a cabeça, pois estava ao corrente.

Ele também se recorda. Foi ele que pensou em ti. És a parceira ideal para
esta missão.

”E a personalidade ideal também”, pensou Serge. Em época de crise,


embora a jovem não desse pelo facto, tinha nervos de aço e sabia como
reagir. Todos os que haviam trabalhado com ela, eram dessa opinião.
Retomaram o caminho de volta em silêncio. Oar refrescara e o Inverno
vinha a caminho. Quando chegaram ao portão da sebe, Amadea fitou-o
com um suspiro. Devia-lhes esta missão. Talvez fosse essa a única razão
por que fora poupada tantas vezes. Para servir o Senhor sem medo do
perigo.

De acordo respondeu calmamente. Quando é que ele chega?

Mando-te uma mensagem.

Era segunda-feira e Serge dissera que não seria antes do final da semana.
Amadea fitou-o com uma expressão atormentada. Serge sabia que estava a
pedir-lhe muito, talvez demasiado, mas a jovem estava disposta a
participar. A vitória e a liberdade não tinham preço, mesmo que fosse para
salvarem uma única vida.

Ficarei à espera retorquiu.

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Serge assentiu com a cabeça. Ela causara boa impressão ao coronel


Montgomery que se lembrava do seu nome de código: Teresa Era o que
usavam nas mensagens e nas ondas curtas. Deveria, portanto, aguardar
uma mensagem que lhe fosse dirigida.
Obrigado agradeceu Serge. Ele é um homem prudente. Sabe o que faz.

Amadea aceitara a missão por causa do que Montgomery fizera pelas


crianças judias. Desejava ajudá- lo.

Serge apertou-a de encontro ao peito e, em seguida, dirigiu-se ao celeiro


onde estava alojado, enquanto Amadea regressava sozinha. Ocampo não a
atemorizava. Apesar do que ali faziam, sentia-se em segurança E os
alemães mostravam-se bastante complacentes na região, salvo em caso de
rep resálias.

Vai com Deus disse-lhe antes de o deixar; ele assentiu com a cabeça.

Dois dias mais tarde, Amadea ouviu a mensagem que lhe era destinada:
”Teresa. Samedi”, o que significava, de facto, sexta-feira, pois as suas
operações realizavam-se sempre na véspera da data indicada. Começariam
a vigiar e espreitar a chegada do pequeno avião a partir da meia-noite e,
como sempre, deveriam agir rapidamente.

Na noite de sexta-feira, Amadea estava em campo com mais sete


resistentes. Tinham-se dividido em dois grupos de quatro segurando
lanternas. Pouco depois, ouviram o motor abafado do pequeno Lysander.
Dispersaram-se e acenderam as lanternas.

Após uma descida rápida, o avião pousou no solo e, em seguida, rolou uns
metros Antes de parar, quatro homens desceram, vestidos com roupas de
fazendeiros e gorros de lã. Menos de três minutos depois, o avião estava
de novo no ar. Tudo fora perfeito Em menos de dois minutos, os
resistentes haviam- se dispersado e regressado às suas herdades,
acompanhados dos três homens que tinham chegado com o coronel
Montgomery. Estavam encarregados de outras missões e partiriam para o
Sul de França nessa mesma noite; não voltariam a ver Montgomery antes
de regressarem a Inglaterra.

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Na maior parte das vezes, o coronel trabalhava só. Desta vez, teria
Amadea ao seu lado. Esta conduziu-o à herdade sem uma palavra, na
direcção de um antigo estábulo, nas traseiras da herdade. Ali, mostrou- lhe
um alçapão onde se esconder, se ouvisse algum barulho. Havia lençóis e
um jarro de água. Teriam de partir no dia seguinte para os arredores de
Paris, onde se encontrariam com Serge.

Amadea manteve-se silenciosa face ao homem conhecido como Apoio.


Contentou-se em fitá-lo e em assentir com a cabeça, enquanto o
observava. Quando se dispôs a partir, ele murmurou: ”Obrigado”. Referia-
se não só ao alojamento e aos cobertores quentes, mas ao facto de ter
aceite a missão, pois conhecia a sua história e tinha consciência do risco
que tal representava para ela. A única coisa que ignorava era Jean-Yves, o
que nada tinha a ver com a missão. Sabia também que, na sua vida
passada, fora religiosa o que o intrigara. E que deixara o convento para
salvar a congregação.

Amadea contentou-se em assentir com a cabeça e, em seguida, voltou ao


seu quarto nas traseiras da cozinha. De manhã, levou-lhe o pequeno-
almoço. Tinha vestida a mesma roupa grosseira da véspera, mas lavara-se
e fizera a barba. A jovem sentiu-se impressionada com o resultado. Era
também tão alto como o pai dela e fora louro, só que agora começava a
ficar grisalho. Parecia andar pelos quarenta anos, mais ou menos a idade
do pai dela quando morrera, e havia uma vaga semelhança, embora o pai
fosse francês e não inglês. Percebia agora que podia passar facilmente por
alemão, pois era um perfeito exemplo da raça ariana. Ser-lhe-ia difícil
passar desapercebido em qualquer lado, excepto no meio de alemães. Nada
tinha de um francês. Quando lhe levou o pequeno-almoço, ele dirigiu-se-
lhe em alemão, que falava com tanta fluência como o francês. Amadea
respondeu em alemão estava menos à vontade em inglês e quis saber se
dormira bem.

Sim, obrigado replicou, mergulhando o olhar no dela como se procurasse


algo.

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Na verdade, precisava de conhecê-la melhor, saber a sua maneira de reagir.


Se iam passar por marido e mulher, devia conhecê-la a fundo e
compreendê-la intuitivamente, para lá das palavras.

Partimos esta tarde às quatro anunciou ela, evitando o olhar penetrante.

Não faça isso corrigiu-a.. Conhece-me. Ama-me. Não me receia. Olhe-me


de frente. Sente-se à vontade comigo. Somos casados há cinco anos.
Tivemos filhos acrescentou, desejando que ela aprendesse o papel, que o
vivesse, até se tornar uma parte integrante de si própria.

Quantos filhos? quis saber Amadea, fitando-o de novo, como ele indicara.

O que ele acabara de dizer fazia todo o sentido e a jovem compreendeu o


pretendido. Nada tinha a ver consigo. Tratava-se somente de um papel que
deviam desempenhar. E convictamente, caso quisessem permanecer vivos
O mínimo erro da sua parte ou da dele podia custar a vida. Tudo era muito
mais difícil e perigoso do que recolherem munições largadas de pára-
quedas por um avião, num campo, à meia- noite. Dois rapazes. De dois e
três anos. É a primeira vez que se afasta deles, desde que nasceram.

- é o nosso aniversário de casamento. Eu tinha trabalho a fazer para o


Reich e decidiu vir ter comigo. Vivemos em Berlim. Conhece esta cidade?
inquiriu, preocupado

Se não fosse o caso, teria de ensinar-lhe tudo: restaurantes, lojas, museus,


ruas, parques, habitantes, cinemas, com o apoio de fotografias e de mapas.

Bastante bem. A irmã da minha mãe mudou-se para lá quando casou. Não
a conheci. Mas visitei a cidade em criança.

Montgomery pareceu aliviado. Era um bom começo. Sabia que ela


provinha de Colónia. Conhecia mesmo o seu nome de solteira. E o nome
da irmã dela, bem como da data da sua deportação. Sabia ainda que escola
frequentara, antes de entrar para o convento. Havia muito pouca coisa que
desconhecesse sobre Amadea, contrariamente a esta, que apenas sabia

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o nome dele e o seu papel na organização dos comboios de crianças.


Contudo, não fez qualquer alusão ao assunto. Não estavam ali para ser
amigos, mas apenas para desempenharem um papel.

Seguiram para Paris num carro que lhes tinham emprestado e, durante
todo o trajecto, falaram do que Amadea precisava de saber. Os documentos
de Montgomery eram perfeitos, tal como o seu francês. Indicavam que ele
era natural de Aries, onde leccionava. Amadea era a sua namorada. O
único soldado que os deteve fez-lhes rapidamente sinal para que
avançassem. Pareciam um casal respeitável.

A menos de um quilómetro da casa de Serge, abandonaram o carro e


percorreram o resto do caminho a pé, sem deixarem de falar. Amadea
dispunha de três dias para aprender o papel e vestir a pele da personagem,
mas Montgomery não estava preocupado. Ela correspondia a todos os
requisitos. Aos olhos dele, só não era feita para o convento.

O que a levou a ir para o convento? inquiriu a meio caminho. Teve um


desgosto de amor? Amadea sorriu ante a pergunta. As pessoas tinham
ideias tão estranhas sobre o que levava alguém

a ingressar num convento! Era muito menos dramático do que pensavam,


sobretudo para ela que entrara tão jovem. Tinha agora vinte e seis anos, ele
quarenta e dois.

Nada disso. Fi-lo por amor a Deus. Senti a vocação. Não havia qualquer
razão para que ele fizesse a pergunta,

mas ficara curioso, pois achava-a uma jovem mulher muito interessante.
É casado? perguntou Amadea, enquanto caminhavam e lhe dava o braço de
uma forma natural, como se ele lhe tivesse pedido que o fizesse. Era um
gesto a que devia habituar- se.

Montgomery intimidava-a um pouco, mas tal como dissera, devia


aprender a sentir-se à vontade com ele. Contudo, a tarefa não era fácil,
pois, apesar das roupas grosseiras, emanava um grande carisma e Amadea
sabia de quem se tratava. Mais ou menos.

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Fui respondeu, ao aproximarem-se da casa de Serge. Avançavam num


passo concertado, o que lhe agradava. Sempre se irritara com as mulheres
que davam passinhos. De uma impaciência natural, tinha por hábito agir
bem e depressa e achava que o resto do mundo não era suficientemente
rápido para ele. Amadea, sim. A minha mulher foi vítima de um
bombardeamento aéreo, com os meus dois filhos. No início da guerra.

Lamento disse Amadea, notando como ele ficara rígido ante a menção do a
ssunto.

Todos haviam assistido ao desaparecimento de entes queridos. Tal como


ela, também ele nada tinha a perder. Seria por esse motivo que não
hesitava em arriscar a vida? Fazia-o pelo seu país e Amadea por todas as
vidas que talvez pudesse salvar, bem como pelo Cristo que, um dia, viria a
desposar, quando fizesse os votos perpétuos. Sem a guerra, deveria tê-los
pronunciado nesse Verão. Há dois anos e meio que abandonara o convento
e, todos os anos, nessa altura, renovava os seus votos espiritualmente.

Chegaram, por fim, à casa da avó de Serge, onde, há catorze meses,


Amadea chegara de Praga com WolfF. Parecia-lhe que decorrera uma
eternidade. Agora, voltava a colocar a vida em risco, com este homem.

Pararam para cumprimentar os avós de Serge e, momentos depois,


desceram as escadas dissimuladas no fundo do roupeiro. Segundos mais
tarde, viram-se na sala plena de actividade onde Amadea estivera há um
ano e que agora lhe pareceu acolhedora e familiar. Reconheceu alguns
rostos, mas havia muitos novos. Um homem estava ocupado com o rádio,
uma mulher imprimia panfletos, e outros sentavam-se à volta da mesa, a
conversar. Serge ergueu a cabeça, quando eles entraram.

Algum problema? perguntou, satisfeito por vê-los. Amadea e Montgomery


abanaram a cabeça ao mesmo tempo e riram-se. Não tinham tido muito
tempo para gracejos, nem conversas, excepto o que ele quisera saber sobre
o convento e ela sobre a sua mulher. Todas as palavras trocadas
relacionavam-se com a missão.

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Pouco tempo depois trouxeram-lhes um espesso guisado de coelho, uma


fatia de pão para cada um e uma chávena do café amargo que toda a gente
bebia. Além de nutritiva, a refeição aqueceu-os, pois o tempo arrefecera
muito. Montgomery parecia faminto, e até mesmo Amadea comeu de bom
grado o delicioso guisa do.

Depois, tiraram fotos um do outro. Isso completaria o trabalho fantástico


que se efectuava sobre os seus passaportes e documentos, autorizando-os a
viajar. Os resistentes pareciam capazes de fabricar qualquer documento.

Serge e o coronel Montgomery conversaram demoradamente num canto da


divisão, enquanto uma das mulheres tirava as medidas a Amadea para o
guarda-roupa de que ela precisaria. Ignorava como, mas os resistentes
conseguiam sempre arranjar vestidos, fatos e roupas elegantes que haviam
escondid o algures, antes da guerra. Todas as pessoas tinham pais que
outrora se vestiam bem e muitos ainda conservavam velhas arcas cheias de
tesouros. Possuíam mesmo algumas jóias e peles.

Dois dias mais tarde, chegou uma bonita mala de cabedal recheada de tudo
o que era necessário, juntamente com os passaportes e documentos, bem
como o equipamento completo de oficial das SS para Apoio. Este ficava
muito elegante com a farda que já usara muitas vezes. Fizeram as últimas
provas e tudo assentava na perfeição. Formavam um casal muito atraente.

Amadea pusera um elegante vestido de lã cinzenta que lhe lembrava um da


mãe, com um belo colar de pérolas. Ovestido, Mainbocher, parecia novo,
tal como o casaco de peles e o chapéu preto muito chique. Até haviam
conseguido encontrar-lhe sapatos alemães. A mala de crocodilo preto era
da marca Hermes, e as luvas pretas, de camurça, à sua medida. Assim
vestida, constituía a imagem perfeita da mulher distinta e requintada de
um homem influente, que o oficial encarnado por Montgomery era suposto
representar. O verdadeiro oficial de quem tirara o nome tinha morrido há
dois anos num acidente de barco, quando estava de licença. Era um
indivíduo

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apagado, que nunca fora a Paris, por isso tinham a certeza de que ninguém
o conheceria, e se assim fosse, o mais provável era o par sair-se bem com
o embuste nos dois dias que precisavam

Ocoronel Montgomery devia obter informações durante as reuniões do


Reich e eventos sociais em Paris. Amadea devia ajudá-lo e reunir, por seu
lado, informações, conversando com as mulheres dos oficiais e dançando
com os oficiais nas festas. Ocoronel Montgomery reservara um quarto no
Crillon, pois era supostamente o aniversário do seu casamento, e
encomendado champanhe e rosas para ela. Além disso, oferecera-lhe um
bonito relógio Cartier em ouro e diamantes que Amadea exibiria. Tinham
pensado em tudo ao pormenor

É muito generoso comentou Amadea, admirando o relógio

Acha que sim? respondeu com uma fleuma britânica, apesar do seu
uniforme das SS. Na minha opinião, é um presente bem pobrezinho. Acho
francamente que merece um alfinete em diamantes ou um colar de safiras
por me ter aguentado durante cinco anos. É muito fácil de contentar
- é que este género de coisas não se vê no convento replicou ela, sorrindo

Amadea pendurou cuidadosamente num cabide o vestido de lã cinzenta e


as peles que lhe recordavam a mãe. A mãe nunca tivera peles antes da
morte do pai, antes da herança dele, que chegara um pouco tarde, o pai
nunca pudera dar-se ao luxo de lhas oferecer. Depois, ela apenas comprara
um único casaco de peles e nada mais E um casaco comprido para as
filhas, quando chegaram à idade própria. Há anos que Amadea não via
peles

Talvez devesse ter-lhe oferecido um rosário? espicaçou-a o coronel

Ficaria encantada reagiu Amadea com uma gargalhada. Pensou


subitamente numa coisa que gostaria mesmo de fazer, se tivessem tempo.
Podemos ir a Notre-Dame? pediu-lhe como se estivessem realmente
casados, o que lhe agradou

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Penso que se arranja.

Montgomery queria levá-la a fazer compras nas lojas famosas ou, pelo
menos, dar essa ideia. A rede ia dar-lhe uma elevada soma de dinheiro
alemão que lhes permitiria viver, durante dois dias, à altura de um homem
da sua posição, casado com uma jovem e bonita mulher.

Sabe dançar? acrescentou subitamente, dando-se conta de que se esquecera


de interrogá-la a este respeito. Ela era tão jovem quando entrara para o
convento, que talvez nunca tivesse aprendido.

Dantes, sabia respondeu Amadea com um sorriso tímido.

Então, não dançaremos mais do que o necessário. Aminha mulher sempre


me disse que eu dançava pessimamente. Tenho a certeza de que a pisaria e
estragaria os seus belos sapatos.

Durante os três dias seguintes, continuaram a afinar as respectivas


personagens. Serge e o coronel tiveram longas reuniões. Montgomery
tinha por missão obter informações sobre as novas bombas que os nazis
estavam a construir. Devia tentar conhecer os planos da fábrica, o número
de efectivos, o lugar onde seriam armazenadas depois de prontas e quem
seria responsável pelo projecto. Ainda se encontravam numa primeira
fase, mas os ingleses já sabiam que isso teria um impacto decisivo no
curso da guerra. Naqueles dois dias, a missão de Montgomery constituía
em estabelecer contactos. Era arriscado. Se alguém o reconhecesse, isso
colocaria em perigo missões futuras. Contudo, era o único homem que
podiam mandar.

Um táxi veio buscá-los e seguiram para o hotel Crillon com duas elegantes
malas cheias de tudo o que precisariam. Os documentos encontravam-se
em ordem. Amadea estava soberbamente maquilhada e penteada.
Apanhara os compridos cabelos louros num rolo e estava elegantíssima
com a sua roupa da moda. Faziam um par fantástico quando entraram no
hotel.

297

291

Ao entrarem no quarto uns minutos mais tarde, Amadea arregalou os


olhos, bateu palmas com um ar deliciado e beijou o marido, como se tudo
aquilo fosse natural. Contudo, tinha lágrimas nos olhos quando o
empregado do hotel saiu. Nunca vira nada do género desde que entrara no
convento há oito anos e meio e tudo isto lhe recordava a mãe.

Nada disso dirigiu-se-lhe ele em alemão.

Foram a Notre-Dame, depois à Cartier, que estava a fazer um próspero


negócio com as vendas a todos estes oficiais alemães e às suas amantes.
Levou-a, depois, a almoçar ao Maxim’s e, à noite, foram a uma recepção
na sede do quartel-general alemão.
Amadea ofuscou-os com um vestido de noite de cetim branco, luvas
compridas brancas, sandálias elegantíssimas e um belo colar de diamantes.
O marido parecia extremamente orgulhoso dela, enquanto ela revoluteava
na pista de dança com a maioria dos jovens oficiais; ele próprio discutia os
novos projectos de armamento e os prazos que teria de cumprir. Obteve
todas as informações que desejava.

Na segunda noite, foram convidados para um jantar mais privado em casa


do Kommandant. Um pouco embriagada, a mulher deste último, que se
tornara muito amiga de Amadea em pouco tempo, tornou-se extremamente
indiscreta e contou-lhe tudo sobre as actividades do marido pelo menos, o
que sabia, obrigando a jovem a prometer que voltaria em breve a Paris. No
fim da refeição, o casal tornara-se a vedeta da festa. Quando regressaram
ao Crillon para a última noite, Amadea sugeriu-lhe que regressassem a
casa de Serge, mas Montgomery respondeu-lhe que tinham de levar o jogo
até ao fim e esperar até à manhã seguinte.

Como na noite anterior, dormiram na mesma cama, ela, com uma camisa
de noite de cetim cor de pêssego e rendas beges, ele, num pijama de seda
que lhe ficava demasiado apertado só que Amadea era a única a sabê- lo.

Deitados um ao lado do outro, discutiram em voz baixa o que haviam


sabido durante a noite e ela fez-lhe o relatório. Reunira informações
preciosas que muito o satisfizeram. Estavam na cama, mas poderiam estar
igualmente num gabinete,

298

292

pois a camisa de noite e o pijama não tinham qualquer significado para


ambos. Eram dois agentes em missão, executando o seu trabalho e nada
mais. Mal dormiram nessa noite, sobretudo Amadea que estava ansiosa
por deixar Paris. Estivera sempre consciente dos riscos que corriam e, por
mais luxuosas que fossem as acomodações, tinha um único desejo:
regressar à herdade, em Melun.
Não mostre tanta impaciência avisou-a, sempre em alemão. É o nosso
aniversário de casamento. Estamos em Paris e não tem vontade de se ir
embora. Adora estar aqui comigo, longe das crianças. É uma mãe
maravilhosa, mas uma mulher ainda melhor.

”E, sobretudo, uma óptima agente”, pensou. Durante estes dois dias, a sua
colaboração fora preciosa e esperava voltar a trabalhar com a jovem. Era
muito mais dotada do que alguma vez imagina ra. A propósito, mentiu-me
disse ele, enquanto tomavam o pequeno-almoço no quarto.

Nessa altura, já estavam vestidos e com a bagagem pronta. Um pouco


antes, ele amarrotara os lençóis, enquanto Amadea o fitava com um olhar
interrogativo. ”Tivemos uma noite de paixão”, explicara-lhe pelo canto da
boca, com um sorriso. Ele e Amadea haviam dormido tão distantes, quase
sem se mexerem, que os lençóis pareciam impecáveis. Quando acabou, a
cama assemelhava-se a um verdadeiro campo de batalha e ela riu- se.

Em que é que lhe menti? replicou, desconcertada. Gostava de falar alemão


com ele. Há dois anos que não voltara a falar a língua e era um pouco
como se estivesse em casa.

Dança maravilhosamente. Vi-a a revolutear na pista, flartando com os seus


pares. Fiquei com imensos ciúmes gracejou.

Flartei? repetiu, horrorizada, pois a sua única intenção fora mostrar-se


encantadora e simpática. Sim, mas apenas o necessário. Senão, teria sido
obrigado a fazer uma cena de ciúmes a que, felizmente, me poupou.
Portanto, está perdoada. E pela mentira, também.

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293

Observara-a na pista de dança uma ou duas vezes e notara a graciosidade e


ligeireza com que se movia. Sobretudo para uma carmelita.
Deixaram o hotel e seguiram de táxi para a gare. Ali, apanharam um outro
táxi, que os levou d e volta a casa de Serge e, menos de uma hora depois
da saída do Crillon, estavam na cave da casa. Mal entraram na divisão do
fundo, Amadea tirou o chapéu e sentou-se com um profundo suspiro. A
tensão dos últimos dois dias esgotara-a. Sentira-se aterrorizada, embora
sem dar a entendê-lo, salvo nos poucos minutos de descontracção vividos
ao lado dele Sobretudo em Notre- Dame.

O coronel Montgomery disse a Serge que fora a missão mais bem-


sucedida que havia realizado e que ela era fantástica. Acrescentou que
Amadea desempenhara na perfeição o seu papel de mulher de um oficial
das SS e que, além disso, reunira uma quantidade significativa de
informações. E, tal como o coronel, Serge ficou encantado

Quando regressamos? perguntou Amadea ao coronel, com um sorriso


cansado, após ter trocado as belas roupas pelas suas.

A jovem sentia-se um pouco como Cinderela à meia-noite, depois do


baile. Fora divertido usar os vestidos elegantes e ficar no Crillon, mas
tinha quase sempre em mente o risco de ser deportada. A sua vida em
Melun também comportava riscos, mas o que acabara de correr era muito
maior.

Enquanto ela se mudava, também o coronel despira o uniforme das SS,


tendo ambos devolvido os documentos a Serge. Os mesmos podiam voltar
a servir com outras fotografias e alguns retoques. Serge devolveu-lhes os
deles em nome de Amélie Dumas e do professor de Aries. Os três sabiam
que estavam a jogar um jogo perigoso, mas eram especialistas no mesmo.

Tem fome? perguntou o coronel a Amadea em voz baixa.

Amadea sorriu. Tinham-se tratado como marido e mulher naqueles dois


dias e a situação tornara- se um hábito.

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294
Não. Comerei quando chegarmos. Quando é que partimos?

Primeiro, ele quis enviar informações codificadas para Inglaterra.


Abandonaram discretamente a casa de Serge e percorreram, em sentido
inverso, a estrada de Melun, no mesmo carro emprestado. A única
diferença residia em que, agora, se sentiam perfeitamente à vontade um
com o outro, como um verdadeiro casal. Haviam partilhado a mesma cama
durante duas noites, embora como se fossem irmãos. Ainda a recordava
com a camisa de noite de cetim cor de pêssego; quanto a Amadea
lembrava-o com o pijama idiota demasiado pequeno, pois era um homem
alto e tinha dificuldade em encontrar roupas à sua medida. Fez um bom
trabalho elogiou-a, quando seguiam no carro. Um excelente trabalho.

Obrigada, coronel respondeu Amadea, nada intimidada.

Pode chamar-me Rupert. Tinham recomeçado a falar francês desde o


regresso, a fim de não cometerem o erro de usarem o alemão, caso
houvesse um controlo. Sabe que fala alemão durante o sono? acrescentou,
com um sorriso. Significa que é muito boa agente. Até mesmo no sono,
fala na língua da sua missão!

Gostei muito de falar alemão consigo confessou Amadea, ainda um pouco


desestabilizada pela passagem para o francês. Sei que é horrível dizê-lo,
dadas as circunstâncias, mas esta língua recorda-me a infância. Há muito
que não a falava.

O seu francês é fantástico. Tal como o seu inglês observou, num tom
admirativo.

Também o seu.

Ambos tinham mães alemãs, portanto nada havia de surpreendente em que


o alemão fosse a sua língua materna. A diferença residia em que ele
crescera em Inglaterra, com um pai inglês, e ela, na Alemanha, com um
pai francês.
Gostaria de voltar a trabalhar consigo declarou ele com a maior simpli
cidade.

301

295

Não sei se tenho nervos indicados para este tipo de trabalho. Pelo menos, a
este nível. Estava sempre à espera de que a Gestapo batesse à porta e me
deportasse.

Teria sido desagradável! retorquiu ele, com uma expressão grave. Sinto-
me contente por isso não ter acontecido.

Também eu. Sabe, sempre quis dizer-lhe quanto o admiro pelo que fez
relativamente aos comboios de crianças. Foi fantástico!

Sim, foi fantástico. Ainda bem que conseguimos tirar tantas crianças dali.
Eu próprio tenho doze em cas a.

Anunciou o facto, como se proporcionar um lar a doze pequenos


emigrados não fosse nada de excepcional. Todos eles tinham pais ou, pelo
menos, haviam tido no momento em que saíram da Alemanha. Aqueles,
cujos pais tivessem sobrevivido depois da guerra, partiriam, um dia, ao
seu encontro. O coronel informou-a que já decidira adoptar os que
ficassem sem família. Era um homem excepcional. Amadea apercebera-se
disso em Paris, onde, apesar da extrema tensão em que também ele se
encontrava, sempre se mantivera delicado, amável, respeitoso e atencioso.
Tal como ela, correra o risco de ser desmascarado, preso e sido
provavelmente fuzilado, se fosse descoberto.

Deve ser uma aventura ter doze crianças em casa!

É bastante divertido admitiu, com um sorriso.

O facto atenuava a perda da mulher e dos filhos. Embora não fosse o


mesmo, a presença das crianças voltava a aquecer-lhe o coração.
São crianças maravilhosas prosseguiu. Também falo alemão com elas
Tenho oito rapazes e quatro raparigas, dos cinco aos quinze anos A mais
novinha tinha apenas seis meses quando a meteram no comboio; a irmã
estava com ela. Dois dos mais velhos são gémeos. Algumas famílias de
acolhimento só aceitavam uma ou duas crianças de uma mesma família e
fizemos o possível para que os irmãos e irmãs não ficassem separados.
várias delas tiveram de ser recolocadas,

302

296

mas a maioria das colocações foi bem-sucedida. Por vezes, os meus


miúdos têm saudades dos pais, excepto a mais nova, obviamente, pois não
se lembra da família; para ela as outras crianças e eu são a única que
conheceu. É ruiva e com sardas; dir-se-ia uma raposinha rematou com um
sorriso.

Amadea notou-lhe no olhar todo o amor que tinha àquelas crianças.


Também fora certamente um bom pai para os filhos.

Chegaram a Melun pouco antes do cair da noite. A tia de Jean-Yves


preparou-lhes o jantar sem fazer perguntas, e eles também não aludiram à
sua estada em Paris. Contudo, era óbvio que ela sabia que este estrangeiro
era um agente, e um agente importante. Jantaram calmamente, falaram da
herdade e do tempo. Depois, Amadea e Rupert sentaram-se no celeiro a
conversar até chegar a hora de ele se ir embora. Parece estranho, mas
passei um belo tempo na sua companhia. Sente a falta do convento?
perguntou, sempre curioso a este respeito e intrigado sobre a
personalidade da jovem.

Amadea era tantas coisas em simultâneo: inocente, bonita, humilde,


corajosa, tímida, inteligente e desprovida de qualquer pretensão. De uma
certa forma, percebia a razão por que é que ela daria uma boa religiosa,
embora continuasse a achar que seria um terrível desperdício. Ainda a
recordava, exuberante no seu vestido de noite branco e, depois, na camisa
de cetim. Contudo, nunca se estabeleciam relações amorosas entre
agentes. Teria complicado tudo. Isto era trabalho e não diversão. Havia
vidas em risco. Sim, claro respondeu Amadea com uma expressão séria.
Sempre. Regressarei quando tudo isto

acabar pronunciou com uma certeza que não lhe deixou a mínima dúvida.

Reserve-me uma dança antes gracejou ele. Podia ensinar-me um ou dois


pass os.

Por volta das vinte e três horas saíram ao encontro dos outros, no campo.
O avião chegou à hora prevista, um pouco depois da meia-noite. O coronel
partia sozinho, pois os

303

297

três homens que o acompanhavam à chegada ainda estavam em missão. O


Lysander acabava de aterrar, quando ele se virou para Amadea e lhe
agradeceu uma vez mais.

Que Deus o abençoe gritou ela acima do ruído dos motores. Tenha
cuidado.

Você também retorquiu, tocando-lhe no braço.

Em seguida, saudou-a e saltou para o aparelho, no momento em que este


tocava no solo. Voltaram a descolar em menos de três minutos. Amadea
ficou a olhar o pequeno avião que se afastava pelo céu. Pareceu-lhe ver o
coronel a acenar-lhe. Depois virou costas e percorreu o caminho de
regresso à herdade. 304

298

CAPÍTULO 23
Amadea só teve notícias de Serge duas semanas antes do Natal, quando a
veio visitar. Desde o regresso de Paris que ela retomara as missões
habituais. Por duas vezes, tivera de socorrer homens ingleses que se
haviam ferido durante a descida em pára-quedas. Um deles ficara preso
numa árvore e Amadea subira lá acima para o soltar; depois cuidara dele
durante várias semanas. Toda a gente em Melun conhecia o seu heroísmo e
a sua abnegação. O homem que tirara da árvore tinha jurado voltar para a
ver no final da guerra, convencido de que ela era um anjo que lhe salvara a
vida.

Invadia-a uma profunda tristeza devido às recordações do Natal anterior,


passado ao lado de Jean-Yves. Mas, de momento, sentia que a sua vocação
religiosa era mais forte do que nunca; interrogava-se sobre se seria esse o
motivo por que ele tinha entrado na sua vida. Sabia que as respostas
chegariam com o tempo.

Serge vinha propor-lhe uma nova missão, a pedido do coronel


Montgomery em pessoa. Amadea era obviamente livre de aceitar, mas ele
hesitava.

A fábrica que devia produzir bombas na Alemanha avançara rapidamente,


mais rapidamente do que os ingleses tinham previsto. Montgomery
precisava das informações técnicas que não obtivera em Paris. Desejava
que Amadea voltasse a desempenhar o papel de sua mulher. Quanto a ele,
seria um outro oficial. Desta vez, o risco principal da missão residia em
que se passaria na Alemanha. Teriam de entrar e sair do país sãos e salvos,
o que não seria fácil. Os dois podiam facilmente ser mortos e, no caso de
Amadea, mesmo que não a fuzilassem, seria certamente deportada.

Para ser honesto contigo, não me parece que devas aceitar declarou Serge
para a desencorajar. Desejaria não ter de falar-lhe desta missão, mas tinha
de transmitir-lhe a mensagem. Amadea tinha d ois dias para tomar uma
decisão.

305

299
A jovem não tinha o mínimo desejo de aceitar, mas nos dois dias
seguintes, não conseguiu pregar olho. Só conseguia pensar nos rostos das
pessoas que conhecera em Theresienstadt. Interrogava-se sobre quantos
deles ainda estariam vivos. A mãe e a irmã em Ravensbruck. A família da
mãe em Dachau. Se ninguém aceitasse estas missões, eles ficariam lá para
sempre e todos os judeus da Alemanha e dos outros países ocupados
acabariam por morrer. Lembrou-se de algo que um dos presos de
Theresienstadt lhe dissera, um velho que morrera um mês antes de ela
fugir: ”Aquele que salva uma vida, salva a Humanidade inteira.” Era uma
frase retirada do Talmude e ela nunca a esquecera. Como poderia virar as
costas a todas estas pessoas, quando lhe era dada a oportunidade de mudar
as coisas, mesmo que isso significasse ser deportada? Era a sua
oportunidade de lutar por eles. Que outra alternativa lhe restava? Que
escolha tivera Cristo ao ser crucificado?

Nessa noite, Amadea enviou uma mensagem pelo rádio a Serge, dizendo
apenas: ”Sim. Teresa.” Sabia que ele ia compreender e passaria a
mensagem ao coronel. Recebeu as instruções no dia seguinte. Ele seria
lançado de pára-quedas nos arredores de Nancy, e ela teria de deslocar-se
até à célula do local. Os documentos e as roupas necessárias ser-lhe-iam
fornecidos lá. Desta vez, era Inverno e não teriam ”um fím-de-semana de
aniversário”, em Paris, no Crillon. Apenas um vestuário vulgar.

Amadea partiu a coberto do escuro da noite e chegou a Nancy de manhã. O


coronel Montgomery fora largado de pára-quedas e aterrara num campo
durante a noite.

Olá, irmã. Como tem passado? cumprimentou-a com um enorme sorriso,


mal a viu.

Muito bem, obrigada, coronel. Encantada por voltar a vê- lo.

Tinham-se saudado de uma forma respeitosa e simpática, como se fossem


velhos amigos. Ele ficara impressionado pelo facto de Amadea ter aceite a
missão, sobretudo sabendo o perigo que correria. Tivera alguns escrúpulos
em requisitar a sua colaboração, mas precisava dela e a Inglaterra também.
Sentia-se satisfeito por tê-la a seu lado.

306

300
Receberam os novos documentos e ele passou toda a noite a fornecer-lhe
instruções. Desta vez, era mais complicado. Amadea teria de recolher
informações e tirar fotografias. Para esse efeito, deu-lhe um a pequena
máquina fotográfica que ela escondeu num compartimento da mala de
mão. Montgomery voltara a pôr o uniforme das SS, pois tomariam o
comboio para a Alemanha, logo de manhã. Como já acontecera, ele
dirigiu-se-lhe em alemão, para não cometerem qualquer erro durante a
missão; só podiam falar esta língua, como o haviam feito em Paris.
Amadea sentiu o mesmo prazer em conversar com ele, mas os dois tinham
consciência de que esta missão se anunciava bem mais delicada do que a
anterior.

Quando subiram para o comboio, estavam ambos pálidos e fatigados, tal


como acontecia a muita gente neste Inverno. Conversaram, porém, bem-
dispostos, até o comboio sair da estação e, em seguida, Amadea
adormeceu, extenuada, com a cabeça apoiada no ombro do coronel. Este
último leu enquanto ela dormia e, ao acordar, a jovem parecia revigorada.

Desceram na Turíngia, hospedando-se num hotel, onde se encontravam


outros oficiais com as respectivas mulheres. Nada tinha a ver com o
Crillon, mas o quarto era simpático. O empregado da recepção desculpou-
se por terem duas camas em vez de uma cama de casal, mas o hotel estava
cheio com as mulheres dos oficiais a visitá-los na época do Natal.

Rupert respondeu que não havia problema, pois não estavam em lua-de-
mel, o que fez rir aos três. Contudo, Amadea só ficou verdadeiramente
aliviada, quando se viram sós, no quarto. Para esta missão, os agentes da
célula haviam providenciado uma quente camisa de noite de flanela;
contrariamente à vez anterior, estavam no Inverno e a missão era muito
menos romântica e infinitamente mais perigosa. Rupert vestia a pele de
um oficial das SS que nunca existira. Oseu nome e documentos eram
totalmente falsos, tal como os dela. Haviam acordado em que ela dissesse
que era natural de Colónia, pois a maioria dos arquivos fora destruído na
altura do bombardeamento de 1942, no ano anterior. Amadea reduzia

307
301

assim as hipóteses de cometer qualquer erro; a sua conversa com outros


oficiais e as suas mulheres seria mais fácil e natural.

Assistiram a dois jantares oficiais da Gestapo. Rupert passou o resto do


tempo a trabalhar. Amadea acompanhou-o uma única vez para uma visita à
fábrica que produzia bombas. Os nazis sentiam-se muito orgulhosos com o
trabalho que efectuavam. Amadea memorizou cada pormenor e à noite
passou tudo ao papel.

Aviagem desenrolou-se num estado de tensão permanente, mas, no quarto


dia, quando se deitaram, Rupert anunciou que o trabalho estava concluído;
partiriam de manhã, tudo correra bem. Contudo, Amadea passou a noite
acordada, angustiada sem saber porquê. E esta sensação manteve-se
quando subiram para o comboio, no dia seguinte. Não falou durante toda a
viagem através da Alemanha. Era como se tivesse um mau
pressentimento, mas não o mencionou a Rupert; não havia motivo para o
preocupar. Haviam concluído algo espantosamente audacioso e corajoso e
tinham consciência disso.

Até à fronteira, os controlos foram frequentes e, na última estação, dois


jovens soldados demoraram um tempo imenso a verificar os documentos.
A fronteira estava próxima, e ela tinha a certeza de que algo aconteceria.
Contudo, devolveram-lhes os documentos mais uma vez e o comboio
prosseguiu a sua marcha.

Rupert sorriu-lhe, enquanto se afastavam. De manhã, estavam de volta a


França. Iam primeiro a Paris, daí regressariam a Melun. Segundo os
documentos de Rupert, ele encontrava-se posicionado no quartel-general
de Paris. Parariam em casa de Serge, de onde Rupert enviaria as
informações por rádio para Inglaterra. Seguiriam depois para Melun, de
onde ele viajaria para o seu país. Faltava uma semana para o Natal.

Iam a sair apressadamente da gare em Paris, quando um oficial das SS


agarrou no braço de Rupert, chamando-o pelo nome que ele usava há três
meses e não pelo actual. Amadea
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302

começou a tremer da cabeça aos pés ante a ideia das consequências que
isso poderia acarretar. Contudo, os dois homens limitaram-se a trocar
votos de boas-festas, e ela e Rupert dirigiram-se calmamente à saída.
Fizeram sinal a um táxi que os deixou diante de um pequeno café, de onde
seguiriam a pé até casa de Serge. Quando se sentaram e pediram um café,
Amadea estava pálida de morte.

Está tudo bem disse Rupert num tom calmo, fitando-a. Voltara a falar-lhe
em francês. Era um milagre que tivessem saído sãos e salvos desta missão.

Não sou decididamente talhada para isto replicou Amadea em voz baixa,
como para se desculpar. Desde manhã que se sentia nauseada e o próprio
Rupert parecia esgotado. A viagem pusera-lhes os

nervos à prova, mas a missão resultara em pleno.

É muito melhor do que pensa. Talvez demasiado replicou ele.

Amadea mostrara-se tão convincente no seu papel de mulher de um oficial


das SS, que Rupert começava a recear que a jovem fizesse mais trabalho
deste género. Achava desaconselhável, pois não podia arriscar-se a sua
vida indefinidamente. Sempre dissera que tinha, pelo menos, dez vidas,
contudo, Amadea era demasiado jovem para morrer. Aos quarenta e dois
anos, sentia-se como se já tivesse vivido muito. Sem a mulher e os filhos,
não faria falta a ninguém se morresse, excepto aos seus Kinder. Só
desempenhava tudo aquilo para fazer com que os alemães pagassem a
morte da sua família e para servir o seu rei.

Depois do café, seguiram a pé até à casa de Serge, fizeram o relatório e


trocaram de documentos. Rupert usou o rádio durante várias horas, tendo o
cuidado de mudar de frequência de quinze em quinze minutos, para
impedir que os alemães os localizassem e escutassem as suas
comunicações. Antes de partir, asseguraram-se de que tudo estava em
ordem. Amadea admitiu que o seu mau pressentimento fora um absurdo. A
missão não podia ter corrido melhor.

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Nessa noite, regressaram a Melun e não chegaram muito tarde à herdade.


Como da outra vez, sentaram- se a conversar no celeiro, até à meia-noite,
depois dirigiram-se para o campo. Fazia tanto frio que o solo estava
gelado e caíam ligeiros flocos de neve. Amadea agarrou-lhe no braço para
não escorregar e ele amparou-a várias vezes; havia uma certa intimidade
nos gestos de ambos, como se fossem realmente marido e mulher, ou, pelo
menos, familiares. Enquanto aguardavam a chegada do avião num
bosquedo, Amadea mal conseguia acreditar que na noite anterior tinham
estado na Alemanha e passado lá quase uma semana. Pouco lhe interessava
que fosse Natal. Estavam vivos e era tudo o que interessava.

O Lysander chegou mais tarde do que o habitual, por volta da uma da


manhã. Fora uma longa espera sob o frio glacial. A jovem não sentia as
mãos, quando apertou as de Rupert e lhe desejou uma boa viagem e um
feliz Natal. Pela primeira vez, ele inclinou-se e deu-lhe um beijo na face.

Foi fantástica, como sempre... Espero que passe um bom Natal.

Sem dúvida. Ainda estamos vivos e não fui deportada para Auschwitz
respondeu com um sorriso. Aproveite bem o Natal com os seus Kinder.
Era assim que as crianças do transporte de comboio eram chamadas pelos
pais adoptivos ingleses e por todos que as conheciam.

Ele deu-lhe uma pequena palmada no ombro, enquanto Amadea observava


os homens a pilotar o avião. Nessa noite, não era necessária. Apenas tinha
vindo acompanhar Rupert, como uma boa esposa acompanha o marido ao
aeroporto. Acoberto das árvores, ficou a vê-lo correr para o Lysander,
quando um disparo ecoou subitamente. Ele dobrou-se por um instante, em
seguida retomou a corrida, agarrando o ombro. Ouviram-se mais disparos.
Viu dois homens caírem de lanternas na mão, com os feixes de luz
apontados para o céu.

Amadea mergulhou nos arbustos. Não podia fazer nada por eles. Nem
sequer estava armada. Contudo, tivera tempo de ver que Rupert fora
atingido. Segundos depois, foi puxado para o avião e a po rta fechou-se
atrás dele, ao mesmo

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304

tempo que o aparelho levantava voo. Os outros membros da célula tinham


fugido pelos campos, arrastando atrás deles os corpos dos dois
companheiros. Instantes depois, surgiram de todos os lados soldados
alemães. Amadea apercebeu-se de que as quintas das vizinhanças seriam
revistadas. Talvez houvesse represálias ou não, pois nenhum alemão tinha
sido morto ou ferido.

Os soldados lançaram-se na perseguição dos resistentes, enquanto Amadea


corria o mais rapidamente que as pernas lhe permitiam até à herdade.
Quando lá chegou, arrancou as roupas do corpo e meteu-se dentro da cama
em camisa de noite, esfregando as mãos e o rosto para tentar aquecê-los.
De qualquer forma, o quarto estava gelado.

Para sua grande surpresa, os soldados nunca chegaram a aparecer. Não


conseguia deixar de pensar na sorte que haviam tido, ela e Rupert, de
poderem cumprir a missão e voltar a sair da Alemanha. Recordou-se
também do pressentimento que tivera na última noite na Alemanha e
resolveu que, dora vante, passaria a confiar no seu instinto.

Os dois jovens resistentes estavam mortos; eram ambos velhos amigos de


Jean-Yves. No dia seguinte, Serge recebeu uma mensagem dos ingleses no
seu rádio de ondas curtas: o Apoio aterrara com um arranhão na asa, mas
nada de grave, e transmitia os seus agradecimentos a Teresa. Serge passou
a mensagem a Amadea. Para grande alívio de todos, o Natal decorreu
calmamente.
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305

CAPÍTULO 24

Durante o Inverno de 1943, a exterminação sistemática dos judeus


prosseguiu por toda a Europa. Em Auschwitz, perto de cinco mil pessoas
tinham sido gaseadas. Em Agosto, oitocentos e cinquenta mil foram
mortos em Treblinka e, em Outubro, duzentas e cinquenta mil em Sobibor.
Em Novembro, quarenta e dois mil judeus polacos haviam sido executados
e, em Dezembro, os judeus de Viena foram deportados para Auschwitz.
Verificavam-se, agora, deportações em massa de Theresienstadt para
Auschwitz. Todos os guetos da Europa foram arrasados.

Em Março de 1944, os nazis tinham detido setecentos e vinte e cinco mil


judeus húngaros. Em Abril, fizeram incursões em lares franceses, em
busca de crianças judias. No ano anterior, Jean Moulin, um dos chefes da
Resistência, fora preso em Lyon.

Na Primavera de 1944, Serge e os restantes membros da Resistência


estavam a par da chegada iminente dos Aliados. A questão residia quando
e com que brevidade. Os alemães não deixavam os resistentes em paz,
enquanto o plano destes era dificultar-lhes ao máximo a vida, para que não
pudessem deter os ingleses, quando estes chegasse m.

Amadea interrogou-se sobre se Rupert estava metido no plano, mas estava


certa de que sim. Há quatro meses que não tinha notícias dele, desde a
missão de ambos na Alemanha, em Dezembro. De vez em quando, pensava
nele, bem como nas suas Kinder, esperando que todas as crianças
estivessem sãs e salvas.

Em Março, participou em mais missões do que o habitual. Com a chegada


do bom tempo, os movimentos eram mais fáceis do que no Inverno. Fora
nomeada chefe do seu grupo e tomava muitas das decisões da sua célula.
Com o objectivo de pôr entraves às actividades nazis, ela e vários outros
tinham resolvido fazer explodir um comboio. As tentativas anteriores
haviam-se revelado desastrosas e ocasionado

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306

sangrentas represálias, mas as instruções de Paris eram claras: deviam


abrandar a marcha dos comboios alemães de todas as formas possíveis.
Fazer explodir o comboio e os carris a leste de Orleães pareceu- lhes boa
ideia, embora perigosa para todos.

Por pura coincidência, a operação foi marcada para a noite em que


Amadea faria vinte e sete anos. Ninguém do seu círculo sabia e ela
também não ligava nenhuma importância ao facto. Dada a situação, os
aniversários e festas haviam perdido todo o significado, além de que a
deixavam triste. Sentia-se muito mais feliz em tornar-se útil, sobretudo se
fosse para prejudicar os alemães.

Vinte pessoas deviam participar na operação, doze homens e oito


mulheres. Alguns eram resistentes locais, outros tinham vindo de células
mais distantes. Um dos homens trabalhara para Jean Moulin e abandonara
Lyon quando este fora preso. Não era de admirar que Amadea o achasse
fantasticamente treinado.

Nessa noite, deitada por terra, a fim de vigiar a passagem das sentinelas,
custava-lhe acreditar que fora religiosa. Passava o tempo a preparar armas,
montar explosivos, sabotar edifícios e a fazer o possível para desorganizar
e até mesmo destruir o inimigo que ocupava a França. Continuava a pensar
em regressar ao convento, mas, por vezes, interrogava-se sobre se as irmãs
e o Deus que amava alguma vez lhe perdoariam o que fizera. Contudo,
estava mais decidida do que nunca a prosseguir o seu trabalho. Até a
guerra acabar, sabia que não lhe restava outra escolha.

Foi a própria Amadea que, nessa noite, colocou os explosivos perto das
linhas férreas. Não era a primeira vez que o fazia e sabia que quantidade
utilizar. Como sempre, em momentos semelhantes, pensou em Jean-Yves,
e, quando acenderam a mecha, dispunha-se a fugir, no preciso momento
em que uma sentinela alemã passava vagarosamente. Sabia que o soldado
ficaria reduzido a pó no espaço de segundos, mas que, se não se mexesse, a
esperava o mesmo destino. Em vez de avançar na direcção do sítio onde
alguns dos outros se escondiam,

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307

viu-se obrigada a recuar. Começara a correr, quando se ouviu uma


primeira explosão. A sentinela teve morte imediata e Amadea foi atirada
pelos ares como uma boneca de trapos, caindo de costas, próximo dos
carris. Ficou surpreendida ao perceber que estava consciente, mas incapaz
de se mexer. O impacto na coluna vertebral fora terrív el.

Umdos homens do grupo, que assistira à cena, precipitou-se para o local


onde ela jazia, carregou- a aos ombros e correu para junto dos outros no
preciso momento em que a segunda bomba explodiu. Esta segunda
explosão foi mais violenta do que a primeira e decerto a teria morto, como
acontecera a Jean- Yves.

Em seguida, Amadea lembrava-se de ter sido transportada por alguém


durante muito tempo, sem sentir nada. Lembrava-se também de ter sido
levada num camião, com o ruído de explosões ao longe e fogo por todo o
lado. Depois disso, perdera os sentidos. Acordara dois dias mais tarde
numa quinta, no meio de pessoas desconhecidas. Haviam-na levado para
uma aldeia vizinha e ali ficara escondida. Durante a semana seguinte,
oscilou entre a consciência e a inconsciência. Dois homens da sua

célula vieram visitá-la. Pareciam preocupados e disseram que os alemães a


procuravam por todo o lado. Tinham passado pela herdade, mas os tios de
Jean-Yves afirmaram não saber onde ela se encontrava e foram
milagrosamente poupados. Mas não podia regressar. Serge enviara-lhes
uma mensagem pelo rádio de Paris, pedindo-lhes que a tirassem de lá.
Contudo, além de ter os alemães à perna, Amadea defrontava um outro
grave problema Não conseguia mexer-se, nem sequer sentar-se. Lesionara
a coluna vertebral ao cair. Sabia que, a partir de agora, se tornara um
empecilho para eles

Serge quer que te tiremos daqui disse-lhe suavemente um dos homens com
quem ela trabalhava há um ano e meio.

Abstiveram-se de lhe dar a entender, mas ela parecia à beira da morte. Nos
últimos dias delirara e sofrera alucinações.

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Não só fizera uma lesão da coluna, como tinha queimaduras graves nas
costas. Contudo, não sentia nada, nem mesmo a dor.

Para onde? inquiriu, tentando concentrar-se. Amadea sentia-se tão cansada


que tinha dificuldade em manter os olhos abertos e havia momentos em
que perdia a consciência, enquanto lhe falavam. Aproveitaram um dos
seus breves instantes de lucidez para lhe explicarem o que estava previsto.

Um avião vem buscar-te esta noite disse ram.

Não me mandem de volta para o campo... suplicou. Farei tudo o que


quiserem. Vou levantar- me. Mas todos sabiam que era impossível. O
médico que viera observá-la tinha dito que ela ficaria paralisada para toda
a vida. Se os alemães a descobrissem, nem sequer se dariam ao trabalho de
a mandar para um campo. Matá-la-iam ali mesmo. Não lhes servia para
nada, nem sequer de escrava.

Além disso, tornara-se um risco demasiado para eles continuarem a


escondê-la. Um jovem dera com a língua nos dentes e os alemães sabiam
que Amadea dirigia uma célula, ou, pelo menos, trabalhava para a
Resistência. Todos sabiam que Serge tinha razão. Só lhe restava ir-se
embora, se conseguissem tirá-la dali, o que parecia duvidoso.
Um dos Lysander viria buscá-la nessa noite, se conseguissem metê-la lá
dentro. E se ela sobrevivesse. Uma das mulheres embrulhara-a num
cobertor, ocultando-lhe o rosto. Amadea gemeu frequentemente quando a
transportaram, mas não voltou a recuperar os sentidos.

Quando o avião apareceu no céu, um jovem, que a conhecia desde que ela
chegara a França, atravessou o campo a correr para se despedir, enquanto
os outros acendiam as lanternas. Mais parecia um funeral do que uma
missão de salvamento. Um dos homens fora mesmo ao ponto de chorar,
garantindo que ela morreria antes de chegar ao seu destino. E os outros
suspeitavam que tivesse razão.

A porta do Lysander abriu-se no segundo em que tocou no solo e Amadea


foi literalmente atirada para o interior do

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aparelho, embrulhada no cobertor. Havia dois homens lá dentro e um deles


puxou-a, antes de fechar a porta. O piloto voltou a descolar
imediatamente, evitando as árvores. Em seguida, descreveu uma curva
para Oeste, na direcção de Inglaterra. Entretanto, o outro homem
destapou-lhe suavemente o rosto. Ambos sabiam que tinham vindo
evacuar um membro da Resistência francesa, mas não lhes haviam dito
mais Nem sequer sabiam como ela se chamava. Serge dera pelo rádio as
informações necessárias aos ingleses, mas os pilotos só precisavam de
saber que iam buscar alguém Mais nada.

Acho que a abanámos de mais comentou o homem sentado no chão ao lado


dela, ao mesmo tempo que lhe descobria o rosto. Não me parece que
aguente.

Amadea mal respirava e quase não tinha pulsação. O piloto manteve-se em


silêncio e prosseguiu o voo.
À chegada, os dois homens ficaram surpreendidos ao constatar que a
jovem mulher ainda estava viva. Uma ambulância esperava-a para a
conduzir ao hospital, mas quando foi observada, percebeu-se que precisava
mais do que uma simples cama. Além da lesão da coluna, tinha uma
queimadura de terceiro grau nas costas. ”É pouco provável”, escreveu o
cirurgião no relatório, depois de terem feito todo o possível por ela ”que a
jovem possa voltar a andar.”

Amadea fora hospitalizada com o nome indicado nos documentos


franceses, Amélie Dumas. Contudo, pouco tempo depois, um funcionário
dos Serviços Secretos britânicos tinha contactado o hospital e identificado
Amadea sob o seu nome de código, Teresa

Achas que é uma agente britânica? perguntou uma das enfermeiras à


colega, ao consultar o seu dossiê.

O pessoal sabia que fora evacuada de França, mas ignorava porquê e por
quem.

Talvez respondeu a outra. Não pronunciou uma palavra desde que aqui
chegou. Nem mesmo sei que língua fala. Examinou depois atentamente o
dossiê de Amadea Este género de coisa era difícil de saber nos tempos

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310

que corriam. A jovem não fazia, obviamente, parte do exército britânico e


estava em péssimas condições físicas. Podia ser uma das nossas.

Quem quer que seja, passou tempos difíceis rematou a outra enfe rmeira.

Amadea só retomou a consciência três dias depois e por um breve instante.


Ergueu um olhar inexpressivo para a enfermeira ao seu lado e, com um ar
sofredor, pronunciou uma única frase em francês: ”Sou a esposa de
Cristo.” Em seguida, desmaiou novame nte.
317

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CAPÍTULO 25

A 6 de Junho, os Aliados desembarcaram, na Normandia. Amadea não


conseguiu reter as lágrimas ao ouvir a notícia; de todos os que estavam no
hospital fora ela quem mais rezara e se debatera por este dia. Teve de
esperar pelo meio de Junho para conseguir ir até ao jardim do hospital em
cadeira de rodas.

Os médicos tinham-lhe dito que era pouco provável que voltasse a andar
um dia, embora não fosse uma certeza. Mas era ”altamente improvável”,
segundo as suas palavras. Amadea achava que a perda do andar era o seu
contributo, um pequeno sacrifício para ganhar a guerra e salvar vidas
humanas. Havia milhões que não voltariam a viver, nem mesmo numa
cadeira de rodas.

Enquanto estava sentada ao sol, com uma manta a tapar-lhe as pernas,


tomou súbita consciência de que seria uma daquelas freiras idosas de que
as mais jovens tomavam conta. Na verdade, mesmo que tivesse de rastejar,
pensava regressar ao convento, mal os médicos lhe dessem alta. Havia um
convento carmelita em Londres, em Notting Hill, e ela planeava visitá-lo,
mal pudesse sair. Contudo, segundo o seu médico, não chegara a altura. As
queimaduras ainda não haviam cicatrizado, e ela precisava de fazer
fisioterapia por causa das costas e das pernas. Não queria ser um fardo
para as outras fr eiras.

Estava sentada no jardim, de olhos fechados e com o rosto virado para o


sol, quando ouviu uma voz familiar ao seu lado. Não conseguiu localizá-la
de imediato, pois escutara-a numa outra língua. Assemelhava-se a um eco
do passado distante:

Muito bem, irmã! Desta vez, fez um trabalho extraordinário!

Abriu os olhos e avistou Rupert de pé, junto dela, com o uniforme de


oficial britânico. Pareceu- lhe estranho não o ver com o uniforme das SS.
Compreendeu, subitamente, que o

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312

som diferente da voz se devia ao facto de ele falar inglês e não alemão ou
francês. Ergueu o rosto na sua direcção e sorriu- lhe.

Constou-me que tentou destruir sozinha todo o caminho-de-ferro francês e


metade do exército alemão prosseguiu. Algo espantoso, disseram- me!

Obrigada, coronel agradeceu. O olhar de Amadea iluminara-se, pois ele


era o único amigo que via desde que fora hospitalizada. Além de que, nos
últimos tempos, tinha pesadelos horríveis sobre Theresienstadt. Piores do
que alguma vez. Então, como vai o seu ombro?

Há seis meses que não se viam, desde a última missão que tinham
efectuado juntos na Alemanha, quando ele fora ferido ao sair de França.

Dói-me um bocado com as mudanças de tempo, mas acabará por passar.

Na verdade, a bala fizera estragos, mas os médicos tinham-no tratado bem.


De qualquer maneira, saíra-se melhor do que ela. Ocirurgião com quem
tinha falado, antes de a visitar, dissera-lhe que não havia praticamente
qualquer esperança de que ela voltasse a andar, mas não queriam dar-lhe a
notícia de chofre. Acrescentara que, de momento, a jovem parecia
resignada à sua sorte. Fora um milagre ter sobrevivido. Recebi a sua
mensagem quando regressou. Obrigada. Sentia-me preocupada consigo
declarou Amadea num tom sincero, enquanto ele se sentava no banco em
frente dela.

Não tanto, como eu fiquei consigo replicou Rupert com uma expressão
grave. Ouvi dizer que fez um voo de respeito.

Nunca fui boa com explosivos observou Amadea, no mesmo tom que
algumas mulheres usam quando dizem que não são boas a fazer tartes ou
suflês.

Nesse caso, talvez fosse aconselhável não insistir sugeriu Rupert


pragmático, com um brilho malicioso no olhar.

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313

Veio pedir-me que volte à Alemanha para desempenhar o papel de sua


mulher? retorquiu ela, maliciosa. Por mais angustiante que tivesse sido,
gostara de trabalhar com Rupert. Tanto como ele com ela. Talvez pudesse
passar por sua avó, agora que estou numa cadeira de rodas acrescentou
com um ar

um tanto embaraçado.

Que disparate! Estará de pé dentro de pouco tempo. Disseram-me que vai


sair no próximo mês. Tal como prometera a Serge, mantivera-se ao
corrente do seu estado de saúde, mas esperara que ficasse melhor para a
visitar. Ela passara uns dois meses muito difíceis.

Faço tenção de ir para o convento de Notting Hill quando tiver alta. Não
quero ser um fardo para as irmãs, mas sei que ainda posso ter utilidade.
Vou tentar melhorar a costura declarou Amadea num tom humilde,
parecendo, por um momento, uma freira.

Só que Rupert conhecia-a mais profundamente.

Mais vale. Não me parece que elas gostassem que lhes fizesse explodir o
jardim. Acho que ficariam perturbadas gracejou com um sorriso.

Estava encantado por vê-la. Apesar do que havia vivido, estava com bom
aspecto e bonita como sempre. Os longos cabelos louros caíam-lhe pelas
costas e brilhavam ao s ol.
Na verdade, tenho uma proposta a fazer-lhe continuou. Confesso que não é
nada de tão excitante como uma missão na Alemanha, mas quase, e porá
os seus nervos à prova.

Amadea estava surpreendida com aquele discurso. Era-lhe difícil acreditar


que, no estado em que se encontrava, os Serviços Secretos britânicos
pudessem querer enviá-la numa missão com ele. Os seus dias de combate
na Resistência tinham acabado. Tal como a guerra, assim o esperava. Ela
lutara com todas as suas forças durante muito tempo mais do que a
maioria.

Para lhe falar verdade, preciso que me ajude a ocupar-me dos meus Kinder
esclareceu Rupert. Há cinco

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314

anos que estão comigo. Os pequenos já não são assim tão pequenos e
começaram a fazer disparates. Quanto aos grandes, agora são quase
adultos e causam-me todo o tipo de problemas. Passo a maior parte do
tempo em Londres e, para ser franco, preciso mesmo de alguém que os
vigie até que tudo regresse à normalidade. E, neste momento, também
preciso de alguém que me ajude a encontrar-lhes os pais, se ainda
estiverem vivos. Não é tarefa fácil para um homem sozinho ter doze filhos
concluiu num tom queixoso que fez rir Amadea, desconfiada de que ele
estava apenas a ser caridoso, mas também bondoso, como era típico da sua
personalidade.

Não está a falar a sério, pois não? retorquiu, com uma expressão estranha,
sentindo que a amizade por ele se reavivava

Tinham arriscado a vida juntos e haviam-se protegido mutuamente.


Embora não se conhecessem bem, criara-se um forte elo entre ambos. E
sentia-se orgulhosa do trabalho que haviam feito.

Confesso que sim. Adoro os meus Kinder, Amadea, mas, para lhe ser
honesto, eles estão a dar com a minha governanta em doida. A pobre tem
setenta e seis anos. Cuidou de mim quando eu era pequeno e depois dos
meus filhos. Estas crianças precisam de alguém mais jovem que as
entretenha e conserve na linha.

Receio não poder fazer nenhuma dessas coisas hoje em dia replicou a
jovem, com um olhar para a cadeira de rodas, antes de o fitar novamente.
Eles podiam atirar-me do alto de uma rocha, se não gostassem do que lhes
dissesse.

São uns miúdos adoráveis redarguiu Rupert, desta vez num tom sério.

Amadea viu que ele estava a ser sincero. Era óbvio que os amava, mas
tinha razão: uma governanta de setenta e seis anos não era indicada para
ter mão em doze crianças entregues a si próprias. Rupert passava a maior
parte do tempo fora, em missão ou em Londres, e só regressava a Sussex
no fim-de-semana. Por outro lado, Amadea sentia-se ansiosa por voltar
para o convento. A sua estada no exterior já fora demasiadamente

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longa e cumprira a tarefa. Chegara a altura de regressar e tentou explicar-


lho suavemente

- Não acha que as irmãs podiam dispensá-la mais uns meses? insistiu,
esperançado. Afinal, isto também faz parte do esforço da guerra. Estas
crianças são vítimas dos nazis, tal como você. Será duro para elas, depois
da guerra, quando descobrirem o que aconteceu aos pais

Amadea sentiu um aperto no coração e fitou-o com um ar hesitante; o


destino parecia conspirar para mantê-la afastada do convento. Gostaria de
perguntar a Deus o que esperava dela, mas ao ver a expressão dos olhos de
Rupert, obteve a resposta. Devia ocupar-se das suas crianças. Talvez fosse
esse o motivo por que Deus lhe enviara Rupert. O seu exílio não acabava
Contudo, depois de três anos fora do convento, achava que podia esperar
um pouco mais. Começava a pensar que teria noventa anos quando
pronunciasse os votos perpétuos, mas sabia que esse dia acabaria por
chegar. Tinha a certeza.

Na verdade, ainda não escrevi à madre superiora respondeu, fitando


Rupert. Ia fazê-lo esta semana. Acha mesmo que posso ajudá-lo? Sinto-me
inútil nesta cadeira

Por vezes, e apesar dos seus esforços, não conseguia reprimir uma certa
auto-compaixão Mas, se era esta a vontade de Deus, aceitaria. A vida já a
poupara muitas vezes e de muitas maneiras.

Fico muito satisfeito por saber que ainda não tomou providências. Temia
chegar tarde de mais. E, claro, que é muito útil tal como está. Só terá de
gritar-lhes e vou dar-lhe uma vara enorme de que pode servir-se, se quiser
gracejou, fazendo-a rir.

Quando quer que eu vá? perguntou-lhe, já entusiasmada e cheia de


esperança

Amadea sentia-se impaciente por conhecer as crianças. Ocupar-se delas


daria um novo sentido à sua vida, sobretudo devido às frequentes
ausências de Rupert. Enquanto discutiam o assunto, quase voltou a sentir-
se casada com ele, como

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316

lhe acontecera em Paris e na viagem à Alemanha, em Dezembro. Tinham


uma relação muito fora do comum. Em alguns aspectos, eram dois
estranhos entre si, noutros, os melhores amigos.

Sentia-se feliz por poder ajudá-lo com os seus Kinder. Oconvento podia
esperar mais um pouco. A guerra acabaria dentro em breve e assim que as
crianças tivessem encontrado os pais e partido... O seu raciocínio
funcionava a cem à hora, enquanto falava com ele. De súbito, endireitou-
se na cadeira. Queria que escrevesse o nome de todos numa folha de papel,
antes de se ir embora, e Rupert prometeu que o faria. Sabia que conseguira
elevar-lhe o moral e passou toda a tarde ao seu lado, falando das crianças,
da

sua propriedade, dos dois dias que tinham passado em Paris e dos cinco na
Alemanha. Pareciam ter muita coisa a dizer um ao outro, e Amadea ria-se,
parecendo feliz e jovem, quando ele lhe empurrou a cadeira de rodas de
volta ao quarto. Tinham combinado que ela viajaria directamente para
Sussex dali a quatro semanas, mal os médicos lhe dessem alta. Contudo,
prometeu que, antes disso, viria vê-la várias vezes. Queria ter a certeza de
que ela estava bem, além de que a sua companhia lhe a gradava.

À despedida, beijou-a na face. Depois de ele se ir embora, a jovem rezou


pelos seus Kinder e por ele.

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317

CAPÍTULO 26

Aviagem do hospital até à propriedade de Rupert foi difícil para Amadea.


Continuava a ter picadas na parte inferior da coluna vertebral e nas pernas,
quando ficava muito tempo na mesma posição. Mas não controlava os
membros inferiores. Ao sair do carro, quando o motorista a instalou na
cadeira de rodas, sentiu-se paralisada da cintura para baixo. Rupert
esperava-a. Chegara na véspera para falar com as crianças e pedir-lhes que
fossem delicadas e obedientes com ela. Contara-lhes como fora corajosa e
que passara cinco meses num campo de concentração, há dois anos.

Ela conheceu a minha mamã? perguntou, curiosa, uma miúda sardenta, a


quem faltavam os dentes da frente.

Não me parece disse meigamente, enquanto os gémeos atiravam bolinhas


de pão um ao outro. Vocês os dois têm de portar-se melhor quando ela
estiver aqui resmungou, tentando parecer zangado. Contudo, os dois
miúdos conheciam-no e, aparentemente, não ficaram impressionados.
Quando estava presente, todos andavam à volta dele, como cachorrinhos. E
Rebekka, a ruivinha, queria constantemente que ele a pusesse no colo e lhe
lesse uma história. Só tinha seis meses quando chegara estava agora com
seis anos e falava apenas inglês; não sabia uma palavra de alemão. Pelo
contrário, os mais velhos ainda falavam alemão.

Rupert pedira a Amadea que, de vez em quando, lhes falasse na sua língua
materna, a fim de que pudessem comunicar com os pais quando estes
viessem buscá-los se viessem. Achava que seria bom que continuassem a
praticar o alemão. Ele chegara a tentar, mas distraía-se e acabava por se
lhes dirigir em inglês, embora o seu alemão fosse tão perfeito como o de
Amadea.

Ela é encantadora e muito bonita acrescentou, orgulhoso. Vão adorá- la.

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Vais casar com ela, papá Rupert? perguntou Marta, uma miúda loura de
doze anos, magra e desengonçada.

Não respondeu. Na verdade, antes da guerra, ela era freira e regressará ao


convento, mal o con flito acabe.

Rupert sabia que só a reteria temporariamente com as suas Kinder.


Precisava mesmo da sua ajuda; não imaginava nada mais agradável do que
regressar no fim-de-semana, sabendo que Amadea e os miúdos o
esperavam em casa.

Ela era freira? questionou Friedrich, um rapazinho de dez anos, fitando-o,


preocupado. Vai usar um daqueles vestidos enormes com um chapéu
estranho?

Não, porque neste momento não o é. Era antes da guerra e voltará a sê-lo
depois.
Rupert continuava a pensar que era um desperdício, mas respeitava a
escolha de Amadea e esperava que as crianças fizessem o mesmo.

Conta-me outra vez como é que ela partiu as costas pediu Rebekka,
franzindo o sobrolho. Esqueci- me.

Fez explodir um comboio disse, como se se tratasse de algo que as pessoas


faziam todos os dias, como pôr o lixo fora de casa ou ir passear o cão.

Deve ser muito corajosa pronunciou-se Hermann, o mais velho, que


acabara de fazer dezasseis anos e começara a parecer um homenzinho.

É mesmo. Combateu na Resistência francesa durante os últimos dois anos.

Todos sabiam o que tal significava e assentiram com a cabeça.

Ela vai trazer uma arma? inquiriu, curioso, Ernst, um rapazinho de oito
anos, com ar de estudioso, que tinha um fascínio por armas de fogo e que
Rupert já levara várias vezes à caça.

Espero bem que não! exclamou com uma risada ante esta ideia.

Minutos depois, Amadea chegou. Rupert avançou ao seu encontro e


acolheu-a calorosamente, beijando-a ao de leve na face. Amadea olhou à
sua volta, impressionada. A mansão

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e a propriedade lembravam-lhe o castelo da família do seu pai, em


Dordogne. Era menos imponente do que julgara, mas de qualquer maneira
grandiosa.

Rupert empurrou a cadeira até ao salão, onde as crianças a esperavam com


as suas melhores roupas. Mrs. Hascombs pusera uma mesa enorme na
biblioteca para servir o chá. Desde a época anterior à guerra que Amadea
não via nada tão bonito. Quanto às crianças, eram todas encantadoras.
Estavam um pouco assustadas e algumas fitaram a cadeira de rodas com
preocupação.

Vamos lá ver, então... sorriu-lhes, voltando a sentir-se uma freira.

Era, por vezes, a única maneira de ficar à vontade. Imaginava que


continuava vestida com o hábito e o véu e deixava de sentir-se assaz
vulnerável e exposta aos olhares. As crianças estavam a examiná-la e a
julgá-la, mas até ali gostavam do que viam. Opapá Rupert tinha razão. Ela
era muito bonita e nada velha. Acharam-na mesmo muito jovem e
sentiram pena por causa da cadeira de rodas e das pernas.

Tu deves ser Rebekka... prosseguiu Amadea. Tu és Marta... Fnednch...


Ernst... Hermann... Josef. Gretchen... Berta... Johann... Hans...
Maximilian... e Claus.

Indicara todos os nomes correctamente e só fizera um erro muito


compreensível aos olhos deles quando confundira Johann e Josef, os
gémeos, mas não era só ela; toda a gente se enganava, até mesmo Rupert.
Todos se sentiram impressionados por ela já saber os nomes.

Também eu, por vezes, os confundo disse Rebekka, ao mesmo tempo que,
sem qualquer aviso, saltava para o colo de Amadea.

Rupert teve um momento de pânico ante a ideia de que a criança pudesse


magoá-la, mas a jovem quase nem sentira.

Estamos muito contentes por tê-la connosco exclamou Mrs. Hascombs


num tom caloroso, avançando ao seu encontro, de mão estendida.

Na verdade, a velha governanta sentia-se imensamente aliviada. Via-se em


palpos de aranha com doze crianças

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cheias de vida. Elas sabiam-no e tiravam partido da situação. Amadea não


estava certa de que conseguiria controlá-las, mas ia tentar. Achava-as
adoráveis e apaixonou-se por elas à primeira vista.

Fale-nos do comboio que fez explodir pediu Rebekka entusiasmada,


enquanto comiam scones e bebiam chá.

Rupert pareceu ligeiramente desconcertado, mas Amadea sorriu. Era óbvio


que lhes falara dela e lhes dissera, indubitavelmente, que era freira, o que
também achava apropriado.

Bom. Não é o género de coisa que se faça numa época normal respondeu
com um ar sério, mas tratava-se de alemães, portanto era autorizado. Mas
já não o será depois da guerra. Estas coisas só podem fazer-se em tempo
de guerra.

Rupert concordou, assentindo com a cabeça.

Os alemães passam o tempo a bombardear-nos e não faz mal nenhum


matá-los retorquiu Maximilian num tom violento.

O miúdo tinha treze anos e soubera por familiares que os pais tinham
morrido. Por vezes, molhava a cama e tinha pesadelos. Rupert contara isto
a Amadea. Ocoronel desejara que ela soubesse tudo sobre as crianças.
Acreditava na franqueza, e também queria evitar-lhe surpresas
desagradáveis. Por vezes, aquela miudagem dava-lhe vontade de arrancar
os cabelos. Doze crianças era muito, por mais encantadoras ou bem-
comportadas que fossem.

As pernas doem-lhe? perguntou Marta, suavemente.

Parecia a mais meiga de todos. Gretchen era a mais bonita e Berta a mais
tímida. Os rapazes pareciam plenos de energia e não se mantinham
quietos, ansiosos por irem lá para fora jogar à bola, mas Rupert dissera-
lhes que tinham de esperar até toda a gente haver terminado.
Não, não doem respondeu Amadea com sinceridade. Por vezes, não as
sinto, outras vezes, apenas um pouco.

Por outro lado, as costas provocavam-lhe dores insuportáveis, mas não


falou do assunto, nem das terríveis cicatrizes deixadas pelas queimaduras.

Acha que voltará a andar um dia? atreveu-se Berta a perguntar.

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Não sei respondeu Amadea, sorrindo com um ar tão despreocupado que


Rupert sentiu um aperto no coração. Tinha esperança que ela recuperasse o
andar. Veremos acrescentou com optimismo, encarando o destino de uma
forma filosófica.

Em seguida, sugeriu que fossem todos passear no parque antes que caísse a
noite. Os rapazes ficaram encantados e precipitaram-se lá para fora, a fim
de jogarem à bola.

É fantástica com eles comentou Rupert num tom de admiração. Mas eu


tinha a certeza. Você é exactamente o que eles precisam. Precisam de uma
mãe. Nenhum deles a tem há cinco anos e correm o risco de nunca mais a
ter. Mrs. Hascombs é mais uma avó para eles.

Em alguns casos, de facto na maioria, Amadea era demasiado jovem para


ser mãe deles. Adequava-se mais ao papel de uma irmã mais velha, mas
era também disso que eles preci savam. Recordou-se de quando Daphne
era jovem e como gostara de ser a sua irmã mais velha. Também a si lhe
faria bem.

Nessa noite, ao jantar, os miúdos falaram-lhe não só da guerra, mas


também dos seus amigos, da escola e do que gostavam de fazer. E Rebekka
encontrou o nome perfeito ao chamar-lhe ”Mamadea”. Rupert e ela
passaram a ser oficialmente ”papá Rupert” e ”Mamadea”.
Depois, os dias escoaram-se rapidamente. Rupert partia para Londres na
segunda-feira de manhã e regressava na sexta à tarde. Sempre que voltava,
mostrava-se impressionado com os resultados que Amadea obtinha com as
crianças. Sentiu-se emocionado com o que ela fizera na sexta-feira que se
seguira à sua chegada a casa deles. Preparara-lhes o sabat com o pão
challah. Acendera as velas e recitara a oração. Fora um momento
profundamente comovedor, o primeiro sabat que celebravam desde há
cinco anos. Rupert tinha os olhos cheios de lágrimas e as crianças
pareciam absortas nas recordações de tempos felizes.

Nunca pensei em tal coisa. Como sabia o que fazer? Arranjei um livro
respondeu Amadea com um sorriso. 328

322

A cerimónia também a emocionara. Algures na sua própria história, antes


de ela nascer, também haviam existido cerimónias como esta.

Sim. Imagino que não faça parte dos hábitos do convento replicou Rupert.

Amadea riu-se. Gostava da companhia dele e sentiam-se bem juntos. Ela


já se apercebera de que assim era, quando estavam em Paris. Um dia,
abordaram o assunto e Rupert evocou nostalgicamente a camisa de noite
cor de pêssego. Adorava espicaçá- la.

Se tivesse continuado a afastar-se de mim na cama, acabaria por levitar!


acrescentou.

O que achei mais engraçado foi quando se pôs a desmanchar a cama no dia
seguinte para não despertar suspeitas comentou Amadea a rir.

Tinha de preservar a minha reputação replicou ele, com um ar pomposo.

O Verão decorreu tranquilamente, sem que Amadea pensasse uma única


vez no convento. Estava demasiado ocupada a coser, ler histórias, a
brincar, a ralhar com os garotos e a secar-lhes as lágrimas. Falava alemão
aos que o desejavam e ensinava-o aos outros. Também lhes ensinava
francês, dizendo que lhes seria útil. As crianças evoluíram sob a sua
protecção, e Rupert sentia-se feliz quando regressava a casa nos fins-de-
semana.

É pena que ela seja freira lamentou-se Marta a Rupert com um ar


melancólico, numa manhã, quando estavam a tomar o pequeno- almoço.

Era domingo e Amadea fora pescar com os rapazes no lago da propriedade


a que os miúdos chamavam o ”lago Papá”.

Também acho concordou Rupert, sinceramente. Sabia, porém, quanto ela


estava determinada a regressar ao convento. Ainda que só muito raramente
falassem no caso, Amadea mantinha-se fiel à sua vocação.

Por vezes, esqueço-me admitiu Marta.

Também eu.

Achas que conseguias fazê-la mudar de opinião? inquiriu a garota, espe


rançada.

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As crianças discutiam frequentemente este assunto entre si. Gostariam que


Amadea ficasse o máximo de tempo possível.

Duvido. É um assunto muito sério. Foi freira durante seis anos. Não me
ficaria bem tentar dissuadi- la.

Marta ficou com a sensação de que ele falava mais para si próprio do que
para ela.

Acho que devias tentar.


Rupert sorriu, mas não respondeu. Também pensava assim algumas vezes.
Contudo, não se atrevia, pois tinha medo de que Amadea se zangasse e
partisse. Alguns assuntos eram sagrados. E respeitava- a muito, embora
não aprovasse o caminho que ela escolhera. Mas estava no seu direito,
quer lhe agradasse ou não. Por outro lado, Rupert não sabia como abordar
a questão. Sabia como Amadea podia mostrar- se teimosa, sobretudo
quando se tratava das suas convicções. Era uma pessoa de personalidade
vincada, que, por vezes, lhe recordava a própria mulher, embora fossem
muito diferentes.

Ao ver Amadea com os miúdos e a estranha família que formavam,


lamentava, por vezes, a falta de uma mulher ao seu lado. Mas, de uma
certa forma, a sua vida com Amadea aproximava-se muito deste quadro.
Tinham passado um Verão fantástico juntos. Antes do regresso às aulas,
decidiram fazer uma excursão a Brighton. Rupert empurrava a cadeira de
Amadea pelo caminho à beira-mar, enquanto os miúdos corriam pela areia
e brincavam. Amadea fitou tristemente a praia, mas Rupert não podia
empurrar a cadeira pela areia.

Às vezes, tenho pena de não poder andar disse ela num tom triste.

O coração de Rupert apertou-se. No entanto, ela deslocava-se rapidamente


na cadeira de rodas e não tinha qualquer problema em lidar com as
crianças.

Talvez um destes dias devêssemos regressar ao hospital e falar com o


médico sugeriu ele.

Há três meses que Amadea não voltara a ver o cirurgião. Quando saíra do
hospital, o médico dissera que não podia fazer mais nada por ela. Talvez
viesse a sentir novamente as

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pernas, mas não era uma certeza e, até ao momento, não se verificara
qualquer mudança ou sinal de melhoras. Amadea só raramente abordava o
assunto; era a primeira vez que a ouvia queixar- se.

Não me parece que o médico possa fazer algo. Além de que quase não
penso nisso. As crianças não me deixam tempo para isso replicou,
dirigindo-lhe aquele olhar meigo que sempre o fazia lamentar que as
coisas não fossem diferentes. Obrigada por me ter pedido que me ocupasse
dos seus Kinder, Rupert. Amadea nunca se sentira tão feliz, à excepção dos
seus primeiros anos no convento. Adorava ser

a ”Mamadea”, quase tanto como gostara de ser a irmã Teresa. Mas sabia
que isto não duraria eternamente, pois a maioria das crianças acabaria por
encontrar o seu próprio lar, o que era o melhor para elas. Precisavam dos
seus pais. Rupert e ela eram apenas uns bons substitutos. Achava que ele
era maravilhoso com as crianças e imaginava como devia sentir a falta dos
seus próprios filhos. Havia fotografias deles por toda a casa. lan e James.
E da sua mulher, Gwyneth, escocesa de nascimento.

Não sei o que faríamos sem si. Nem sequer consigo lembrar-me como era
antes da sua c hegada replicou Rupert com sinceridade, enquanto se
sentava num banco, de onde podiam vigiar as crianças. Amadea fez rolar a
cadeira até junto dele. Parecia feliz e descontraída, com os compridos
cabelos

louros esvoaçando ao vento. Usava-os frequentemente soltos como uma


das crianças, a que adorava escovar o cabelo, tal como a mãe lhe fizera e a
Daphne, quando eram pequenas. Era estranho como a história se repetia
constantemente de geração para geração.

Parto em missão na próxima quinta-feira anunciou Rupert, subitamente,


expelindo o ar dos pulmões.

Oh, não! protestou ela, apanhada completamente desprevenida.

Sim. É verdade.

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Rupert também não parecia nada entusiasmado. Gostava de passar os fins-


de-semana em casa com Amadea e os miúdos. Mas ainda havia uma
guerra a ganhar.

Para a Alemanha? sussurrou ela, aterrorizada. Ambos sabiam o perigo que


isso representava. E Amadea já não conseguia imaginar a vida sem ele.

Algo do género.

Amadea sabia que ele não podia mencionar-lhe o local para onde ia. Era
top secret. Interrogou- se sobre se iam mandá-lo para a Alemanha, França,
ou, pior ainda, para Leste. Tomava agora consciência da sorte que tivera
durante a sua estada em França; tanta gente fora morta, mas ela não,
embora tivesse estado próximo muitas vezes.

Gostaria de ir também desejou, quase se esquecendo da cadeira de rodas.

Era, porém, impossível. Doravante, seria apenas um fardo e não uma


ferramenta.

Eu não gostava que fosse retorquiu ele, bruscamente. Rupert não queria
que a jovem arriscasse mais a vida. Já

fizera o suficiente. E tivera sorte. Embora numa cadeira de rodas, era


fantástico estar viva.

Vou ficar preocupada garantiu Amadea, parecendo muito inquieta. Quanto


tempo estará ausente? Algum.

A resposta era vaga, mas Rupert não podia revelar-lhe mais. Contudo, ela
tinha a sensação de que seria por muito tempo. Manteve-se silenciosa
durante um longo momento, e depois ergueu os olhos na sua direcção.
Havia tanto para dizerem, mas era difícil para os dois.
No trajecto de volta, as crianças repararam no silêncio de Amadea e Berta
perguntou-lhe se ela estava doente.

Não, minha querida. Estou apenas cansada por causa do ar do mar

Todavia, Rupert e ela sabiam que o motivo era outro.

Nessa noite, deitada na cama, Amadea reflectiu demoradamente sobre a


missão e sobre Rupert. No outro extremo do corredor, Rupert fazia o
mesmo. Quando chegara, ela ficara encantada com a casa e Rupert
instalara-a no mais bonito

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dos quartos de hóspedes. Embora a jovem lhe tivesse pedido um quarto de


criada, não quisera ouvi-la. Amadea merecia aquele quarto e ponto final

Na manhã seguinte, e como sempre o fazia no início da semana, Rupert


regressou a Londres. Contrariamente a Amadea, as crianças nada sabiam
sobre a sua viagem iminente em missão, nem sobre a eventualidade de que
jamais regressasse

Pedira licença para voltar a Sussex na quarta-feira, a véspera da partida.


Nesse espaço de tempo, Amadea mostrou-se extremamente nervosa,
preocupada e de mau humor, a ponto de ter repreendido um dos miúdos,
quando este partira um vidro com uma bola de críquete. Pediu desculpa,
mas o miúdo respondeu que estava tudo bem, que a sua mãe verdadeira
gritava muito mais, o que a fez rir

Na quarta-feira, sentiu um imenso alívio quando Rupert regressou,


apressando-se a dar-lhe um beijo na face e a abraçá-lo calorosamente.
Sabia que não podia fazer-lhe perguntas. Apenas podia rezar por ele,
quando se fosse embora, e esperar que voltasse. Rupert nada mais podia
fazer do que tranquilizá- la. Evitaram, pois, falar no assunto e jantaram
com as crianças na casa de jantar que era geralmente reservada para as
ocasiões festivas. As crianças adivinharam logo que algo se passava

O papá Rupert vai partir de viagem anunciou Amadea, alegremente, mas


os miúdos leram-lhe o medo no olhar

Para matar alemães? inquiriu Hermann, parecendo encantado.

- Claro que não respondeu Amadea.

Quando vais voltar? quis saber Berta com uma expressão inquieta.

Não sei. Vocês têm de tomar conta uns dos outros e da Mamadea também.
Em breve estarei de volta prometeu.

Todos o beijaram antes de irem para a cama, pois dissera-lhes que já teria
partido quando se levantassem.

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Rupert e Amadea discutiram um pouco de tudo e de nada pela noite fora,


reconfortando-se um ao outro. Era quase dia quando, finalmente, Rupert a
transportou para o andar de cima e voltou a sentá-la na cadeira de rodas no
patamar dos respectivos quartos. Quando ele não estava, eram os mais
velhos que a ajudavam. Já terei partido quando se levantar disse ele,
tentando ocultar a tristeza que lhe provocava a ideia de

a deixar.

Não, não terá replicou ela, sorrindo. Levantar-me-ei para me despedir.

Não é obrigada.

Eu sei, mas quero.

Rupert conhecia-a o suficiente para saber que de nada servia discutir com
ela. Beijou-a na face, e ela fez rolar a cadeira até ao quarto, sem se voltar.
Nas duas horas seguintes, Rupert manteve-se deitado no quarto, desejando
possuir a coragem e a audácia bastantes para ir ter com ela ao quarto e
tomá-la nos braços. Contudo, não o fez. Sentia um medo enorme de que, se
agisse assim, ela se tivesse ido embor a, quando regressasse. Havia laços
entre ambos que sabia deverem ser respeitados.

Fiel à sua promessa, Amadea esperava-o no corredor, quando ele saiu do


quarto, pouco depois do romper do dia. Estava na cadeira de rodas com um
robe a cobrir a camisa de noite cor-de-rosa. Os longos cabelos e a cor da
camisa faziam com que parecesse uma das crianças. Rupert tinha um ar
grave e solene com o uniforme; a jovem fez-lhe a saudação militar,
provocando-lhe o riso.

Quer levar-me até lá abaixo? perguntou descontraidamente, e Rupert


hesitou.

Depois não poderá voltar para cima. Nenhuma das crianças está levantada.

De qualquer maneira, tenho coisas a fazer lá em baixo pretextou, querendo


aproveitar ao máximo a presença dele.

Rupert pegou-lhe e desceu cautelosamente as escadas, após o que foi


buscar a cadeira onde a sentou.

Amadea preparou-lhe um chá e aqueceu-lhe um scone.

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Quando terminaram, sabiam que não havia mais nada a dizer. Chegara o
momento da partida. Amadea seguiu-o até aos degraus da frente, sob o ar
fresco de Setembro.

Tenha cuidado consigo, Amadea disse Rupert, beijando-a nas duas faces.
Rezarei por si respondeu ela, fitando-o com intensidade.

Obrigado.

Rupert bem precisaria. Iam lançá-lo de pára-quedas na Alemanha e a


missão duraria, pelo menos, três semana s.

Olharam-se demoradamente, depois Rupert desceu as escadas com um


passo decidido, sem se voltar. Estava quase a entrar no carro, quando ela o
chamou. Deu meia-volta e viu-a angustiada, estendendo a mão como que
para o deter.

Rupert! Amo-o! exclamou, incapaz de reter por mais tempo as palavras e o


que sentia por ele. Rupert fitou-a como se tivesse recebido um duche de
água fria, depois voltou a subir os degraus e

parou junto dela.

Fala a sério?

Creio que... Não... Tenho a certeza.

Fitou-o, como se o mundo acabasse de desabar. Rupert sabia o que as


palavras significavam para ela, por isso um sorriso iluminou-lhe o rosto.

Vá lá. Não esteja tão triste. Também eu a amo. Discutiremos o assunto no


meu regresso... mas, entretanto, não mude de opinião.

Beijou-a na boca, fitando-a durante um longo momento. Contudo, tinha de


partir. Mal conseguia acreditar no que acontecera, e ela também não. Há
muito tempo que esta realidade existia. Sentiu- se imensamente feliz.

Tinha um sorriso nos lábios, no momento em que se afastou acenando-lhe


com o braço. Amadea enviou-lhe um último beijo. Depois, o automóvel
atravessou o portão e desapareceu na curva, enquanto ela ficava sentada na
cadeira de rodas sob o sol da manhã, rezando para que ele voltasse. O
destino desenrolara-se por si.
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CAPÍTULO 27

A ausência de Rupert pareceu interminável a Amadea. De início, sentira-se


inquieta e preocupada. Depois, dissera de si para si que tudo correria bem.
Porém, ao fim de duas semanas... três, começou a entrar em pânico. Não
fazia a mínima ideia da duração prevista da missão, mas no final de
Outubro soube que algo acontecera e, incapaz de controlar-se por mais
tempo, contactou os Serviços Secretos

Tomaram nota do nome e das coordenadas e disseram que a contactariam.


Uma semana depois, telefonou-lhe um agente. Novembro chegara. Aquele
não lhe revelou onde se encontrava Rupert, mas admitiu que ”há bastante
tempo” que não tinham notícias dele, dando a entender que o davam como
desaparecido.

Ante estas palavras, Amadea quase desmaiou, mas manteve a calma por
causa dos miúdos. Estes já tinham perdido os pais e não queria que
julgassem que também haviam perdido Rupert, não antes de existir uma
confirmação

Amadea nunca rezara com tanto fervor. Sentia-se duplamente feliz por lhe
ter dito que o amava. Pelo menos, Rupert soubera, antes de partir, e agora
sabia que também ele a amava. O que decidiriam depois, caso ele voltasse,
logo se veria. Os Serviços Secretos tinham prometido contactá-la de novo
se recebessem notícias, mas não o fizeram.

Para evitar perder totalmente o domínio da situação, resolveu distrair as


crianças. Disse-lhes que seria uma boa ideia organizarem uma orquestra.
Fariam uma surpresa ao papá Rupert quando este voltasse. Comprou-lhes
instrumentos e fê-los ensaiar, acompanhando-os ao piano. As crianças
estavam longe de serem profissionais, mas todas, inclusive ela,
divertiram-se muito; além disso, tinham um objectivo e, decorrido um
mês de ensaios, tocavam bastante bem.

Uma noite, tocavam uma canção, quando Rebekka se sentara ao colo de


Amadea, na cadeira de rodas. Estava cansada e a chuchar no dedo.
Apanhara uma constipação e não

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queria cantar com os outros. Foi, então, que se virou para Amadea,
dizendo-lhe, contrariada:

Deixa de bater com o pé, mamã. Estás a abanar-me. Amadea perscrutou-a


e, uma a uma, as crianças pararam de tocar. Só as da primeira fila tinham
escutado a observação de Rebekka, mas as outras queriam saber o que se
passava, porque é que a Mamadea ficara com aquele ar tão estranho.

Volta a tentar, mamã pediu Berta, meigamente, ao mesmo tempo que todos
lhe olhavam para o pé. Amadea conseguiu, então, bater suavemente com o
pé e mesmo mexer um pouco a perna. Estivera

tão ocupada com eles e tão preocupada com Rupert que não dera por estas
melhoras.

Consegues levantar-te? perguntou um dos gémeos.

Não sei respondeu, cautelosa, ao mesmo tempo que todos a rodeavam.

Tenta pediu Josef, estendendo-lhe a mão. Se consegues fazer explodir um


comboio, consegues andar.

Marcara um ponto a seu favor. Então, Amadea endireitou-se muito


devagar, apoiada nos braços da cadeira, deu um único passo na sua
direcção e quase caiu. Johann apanhou-a. Contudo, dera um passo!
Amadea mal conseguia acreditar, e os miúdos observavam-na, excitados.
Deu mais um passo e
depois outro. Quatro passos ao todo, antes de dizer que precisava de se
sentar; sentia-se fraca e tremia da cabeça aos pés. Mas tinha caminhado!
As lágrimas corriam-lhe pelas faces, enquanto todos riam e batiam palmas
de satisfação.

A mamã consegue andar! exclamou Marta com uma imensa alegria.

A partir desse momento, obrigaram-na a tentar todos os dias. E, enquanto


eles tocavam, ela caminhava.

No começo de Dezembro, já conseguia atravessar uma divisão, apoiada


num dos rapazes mais velhos. Os passos ainda eram inseguros, mas fazia
progressos regulares. O pior era ainda não haver novas de Rupert. Os
Serviços Secretos não

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o tinham dado como morto, mas pareciam não saber nada. E como
Amadea não era mulher dele, também não lhe podiam ter dito nada. Há
quase dois meses que Rupert partira e ela sabia, instintivamente, que a
missão nunca poderia durar tanto tempo. Todas as noites, imaginava que
ele estava ferido, sem ninguém saber onde se encontrava. Ou estava
algures, em qualquer campo. Ou, ainda, que os alemães tinham descoberto
que era um agente inimigo e o haviam, com toda a probabilidade, abatido.
Pensava em tudo o que podia ter-lhe acontecido, receando o pior.

Passaram mais duas semanas. Sem saber o que mais fazer para distrair as
crianças, celebrou o Chanukah com elas. Desde a sua chegada a Inglaterra
que tinham sempre festejado o Natal, mas Amadea disse que, nesse ano,
festejariam ambos. Fabricaram brinquedos de Chanukah e ensinaram a
Amadea como fazê-los girar. Também lhe ensinaram canções tradicionais.
Ficou especialmente feliz por saber que as letras hebraicas, escritas nos
brinquedos, diziam: ”Um grande milagre aconteceu aqui”. A pequena
orquestra avançava a olhos vistos, enquanto ela começou a andar com
mais segurança, embora devagar. As crianças mantinham-se de pé à sua
volta na segunda noite de Chanukah para acenderem as velas. Reinava uma
atmosfera festiva na sala; para muitos deles, o facto de verem Amadea a
acender as velas trouxe-lhes recordações agridoces do passado. De súbito,
Rebekka levantou a cabeça e soltou uma exclamação:

Estamos a festejar o Natal mais cedo, este ano?

Não. O Chanukah respondeu Amadea, calmamente, mas, em seguida,


também ela soltou uma exclamação.

Era Rupert. Todas as crianças começaram a gritar e correram para ele. E


Amadea imitou- as, embora vagarosamente.

Estás a andar! exclamou Rupert, com um misto de estupefacção, alegria e


incredulidade.

Além de um braço ao peito, parecia de boa saúde, embora muito magro.


Passara os últimos dois meses a atravessar metade da Alemanha a pé, mas
conseguira, por fim, chegar a uma aldeiazinha perto de Estrasburgo, onde
pudera entrar em

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contacto com a Resistência alsaciana. Os três últimos meses tinham sido


difíceis de aguentar para ambos. Por fim, abraçou- a.

Nunca acreditei que tal viesse a acontecer acrescentou, sinceramente.

Nemeu respondeu Amadea, aconchegando-se nos seus braços para


expulsar o medo que sentira de não voltar a vê-lo. Estava tão preocupada
contigo.

Rupert sabia-o, mas nada pudera fazer. Fora difícil e angustiante até
mesmo para ele, mas a missão realizara-se com êxito.
Tinha de voltar depois do que me disseste antes de partir.

Não esquecera as suas palavras. Nem ela. Precisavam de tomar decisões,


sobretudo Amadea. Papá! Temos uma orquestra! gritou Rebekka, enquanto
os outros tentavam que ela se calasse. Contudo, a surpresa já estava
estragada; mesmo assim tocaram duas peças, que Rupert aplaudiu.
Estiveram a pé até à meia-noite e contaram-lhe que Amadea celebrara o
Chanukah para eles.

Dir-se-ia que mergulhas na tua própria história espicaçou-a Rupert, depois


de as crianças se terem ido deitar.

Estavam sentados, de mão dada, diante da chaminé. Amadea tinha a


sensação de sonhar. Achei que era importante para eles preservar um
pouco da sua história replicou.

Podia parecer estranho, mas sentia que também significava algo aos seus
olhos. Imaginava a mãe, quando era miúda, a festejar também o Chanukah.
Além de que tanta gente morrera por ser judeu que era igualmente uma
forma de prestar-lhes homenagem. Ao ler as orações, tivera a sensação de
que as vozes deles a acompanha vam.

Não quero voltar a perder-te, Amadea declarou subitamente Rupert, num


tom grave. Atravessei metade da Alemanha para vir ao teu encontro.
Agora, não tens o direito de abandonar- me.

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Tens razão. Não posso anuiu a jovem, que o escutara, sem desviar o olhar.
Sei isso. Já o sabia antes de partires e por isso disse que te amava...

Sabia que, doravante, o seu lugar era ali, ao lado dele e das crianças, quer
estas ficassem ou não junto deles. Contudo, por um momento, o rosto
ensombrou-se- lhe.
Sempre pensei que regressaria ao convento acrescentou.

No entanto, tinham acontecido demasiadas coisas. Todas estas vidas, toda


esta gente que ela ajudara a eliminar, ainda que para salvar outras... De
momento, desejava estar junto de Rupert e não via nada de mal nisso. Pelo
contrário. Era a sua única escolha. Jamais poderia abandonar Rupert,
embora o convento e tudo o que significara aos seus olhos ficassem para
sempre no seu coração. Fora uma decisão difícil, mas estava satisfeita com
a escolha e também aliviada. Durante a ausência dele, soubera até que
ponto o amava.

Tinha tanto medo que voltasses para o convento, mas não queria interferir
na tua decisão declarou Rupert, meigamente.

Obrigada por teres respeitado isso murmurou, fitando-o com um olhar


pleno de amor.

Amadea tivera tanta certeza de que seria freira para sempre e, afinal,
passara a pertencer-lhe de uma forma que jamais se atrevera a imaginar.

Deixar-te-ia partir se fosse esse verdadeiramente o teu desejo e te fizesse


feliz... mas isso foi há muito tempo. Hoje, não o suportaria disse Rupert,
abraçando-a com força de encontro ao peito.

Durante estes três meses sentira muitas vezes medo de nunca mais a ver! E
ela também. No entanto, agora, depois de tudo por que haviam passado,
estavam certos de fazer a escolha certa. Tinham sofrido muito para chegar
ali, perdido os seres que amavam, encarado a morte de frente demasiadas
vezes. Tinham conquistado a sua felicidade.

Nessa noite, Rupert levou-a ao colo até ao andar de cima, pois ela ainda
não conseguia subir os degraus. Isso viria

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com o tempo. Hesitaram no patamar, mas Rupert beijou-a e depois ela
desejou-lhe boa noite, o que lhe provocou uma risada. Como Paris e a
camisa de noite cor de pêssego estavam longe! Agora, era a realidade e
ambos sabiam o que aconteceria na altura certa. Tinham toda a vida pela
frente.

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CAPÍTULO 28

Umpadre casou-os, mas um rabino abençoou-os, com todas as crianças à


volta. Eram os primeiros filhos que haviam partilhado. Sabiam agora que
muitos deles ficariam ao seu lado. Com sorte, teriam filhos dos dois,
embora Rupert jamais esquecesse os que perdera. Amadea pronunciara,
finalmente, os votos perpétuos, aqueles que o destino lhe reservara e não
os que esperava. A vida, com as suas voltas e reviravoltas, com os seus
dramas, tristezas e alegrias, conduzira-os um até ao outro. Tinham-se,
finalmente, encontrado, cercados pelos ecos de todos os entes queridos
que, outrora, haviam amado e por quem tinham sido amados.

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