Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Amor de Perdição, de Camilo Castelo Branco, cujo subtí tulo é «Memórias de uma
família», foi escrito em quinze dias, na Cadeia da Relação, no Porto. Se o tí tulo
aponta, desde logo, para um amor trágico envolvendo as personagens principais, o
subtí tulo sugere a apresentação da história da família Botelho, à qual pertence o
próprio Camilo.
Na verdade, há uma forte sugestão biográfica nesta obra, tendo em conta vários
fatores, sendo de destacar, no entanto, o parentesco existente entre o autor e a
personagem principal, Simão Botelho, irmão de Manuel, pai de Camilo. Assim, Amor
de Perdição conta a história trágica do ti o de Camilo, que o autor conheceu através
da sua ti a Rita, a irmã mais nova e preferida do protagonista que acolheu o autor
depois da morte dos pais.
A par do vínculo familiar, muitas outras afi nidades aproximam Simão de Camilo. De
facto, ambos estiveram presos na Cadeia da Relação no Porto, no seguimento de
um caso amoroso: Simão por ter assassinado Baltasar, que se interpunha entre si e
Teresa, não desisti ndo dela; Camilo por ter manti do uma relação adúltera com Ana
Plácido. Ambos se veem, de certa forma, abandonados pela família, na medida em
que Simão não tem o seu apoio por estar apaixonado pela fi lha de um inimigo do
pai, ao passo que Camilo fi ca órfão de pai e mãe muito jovem. A rebeldia juvenil é,
ainda, uma característi ca comum a ambos, já que o jovem Botelho se envolve em
confl itos em Coimbra e com a família, privilegiando companhias duvidosas,
enquanto Camilo, detentor de um temperamento também inconstante, tem várias
relações amorosas e uma vida bastante agitada no Porto. Esta rebeldia acaba por
ser aplacada pela paixão por Teresa, a amada de Simão, e Ana Plácido, a amada de
Camilo, as quais também esti veram enclausuradas: a primeira em dois conventos e
a segunda na Cadeia da Relação. Por fi m, podemos dizer que ti o e sobrinho se unem
pela predileção pelas letras: Simão estuda Humanidades em Coimbra e Camilo
torna-se escritor.
o Exemplo
«Simão António Botelho, que assim disse chamar-se, ser solteiro, e estudante na
Universidade de Coimbra, natural da cidade de Lisboa, e assistente na ocasião de
sua prisão na cidade de Viseu, idade de dezoito anos, fi lho de Domingos José
Correia Botelho e de D. Rita Preciosa Caldeirão Castelo Branco; […].»(Introdução)
A família Botelho
«Domingos José Correia Botelho de Mesquita e Meneses, fi dalgo de
linhagem e um dos mais anti gos solarengos de Vila-Real de Trás-os-Montes,
era em 1779, juiz de fora de Cascais, e nesse mesmo ano casara com uma
dama do paço, D. Rita Teresa Margarida Preciosa da Veiga Caldeirão Castelo
Branco, fi lha dum capitão de cavalos, neta de outro António de Azevedo
Castelo Branco Pereira da Silva, […].»(Capítulo I)
«Para fazer-se amar da formosa dama de D. Maria I minguavam-lhe dotes
fí sicos: Domingos Botelho era extremamente feio. Para se inculcar como
parti do conveniente a uma fi lha segunda, faltavam-lhe bens de fortuna: os
haveres dele não excediam a trinta mil cruzados em propriedades no Douro.
Os dotes de espírito não o recomendavam também […].»(Capítulo II)
«Domingos Botelho casou com D. Rita Preciosa. Rita era uma formosura, que
ainda aos cinquenta anos se podia prezar de o ser. E não ti nha outro dote
[…].» (Capítulo I)
o Exemplo
«Tínhamos nós um ti o-avô, muito velho e venerando, chamado António da Veiga.
Foi este quem fez o milagre, e foi assim: Apresentou-se a meu pai, e disse-lhe:
- Guardou-me Deus a vida até aos oitenta e três anos. Poderei viver mais dois ou
três? Isto nem já é vida; mas foi-o, e honrada, e sem mancha até agora, e já agora
há de assim acabar; meus olhos não hão de ver a desonra de sua família. Domingos
Botelho, ou tu me prometes aqui de salvar teu fi lho da forca, ou eu na tua presença
me mato. - E, dizendo isto, apontava ao pescoço uma navalha de barba. Meu pai
teve-lhe mão do braço, e disse que Simão não seria enforcado.
No dia seguinte, foi meu pai para o Porto, onde ti nha muitos amigos na Relação, e
de lá para Lisboa.»(Capítulo XII)
Já a mãe de Simão, quando age para ajudar o fi lho, fá-lo por obrigação familiar. De
facto, ela chega inclusive a senti r alguma aversão por ele, fruto do seu
temperamento inconstante e agressivo. Ora o auxiliou sem que o marido se
apercebesse, ora intercedeu diretamente por ele, ousando enfrentar Domingos
Botelho.
o Exemplo
«Desgraçado, que estás perdido! Eu não te posso valer, porque teu pai está
inexorável. Às escondidas dele é que te mando o almoço, e não sei se poderei
mandar-te o jantar! Que desti no o teu! Oxalá que ti vesses morrido ao nascer!
Morto me disseram que ti nhas nascido; mas o teu fatal desti no não quis largar a
víti ma. Para que saíste de Coimbra? A que vieste, infeliz? Agora sei que tens vivido
fora de Coimbra há quinze dias, e nunca ti veste uma palavra que dissesses a tua
mãe!»(Capítulo XII)
Relati vamente aos irmãos de Simão, o quarto fi lho da família, destacam-se Manuel
e Riti nha.
Saliente-se o facto de não ter uma relação próxima com Simão, tendo-se queixado
ao pai do comportamento deste quando ambos estudavam em Coimbra e tendo,
inclusivamente, sido tratado com indiferença quando visitou o irmão na Cadeia da
Relação, no Porto. O mesmo não se poderá dizer da relação que Simão manti nha
com Rita, a irmã mais nova, a sua predileta, a qual se tornou amiga de Teresa. Foi
por causa de um diálogo entre as duas que Domingos Botelho e Tadeu de
Albuquerque tomaram conhecimento de que os fi lhos estavam apaixonados.
«Manuel, cada vez mais aterrado das arremeti das de Simão, sai de Coimbra antes
de férias e vai a Viseu queixar-se e pedir que lhe dê seu pai outro desti no. D. Rita
quer que seu fi lho seja cadete de cavalaria. De Viseu parte para Bragança Manuel
Botelho, e justi fi ca-se nobre dos quatro costados para ser cadete.»(Capítulo I)
«Já noutro ponto deixamos dito que nunca os dois irmãos se deram, nem
esti maram; mas o infortúnio de Simão remia as culpas do génio fatal que o orfanara
de pai e mãe, e só da irmã Rita lhe deixara uma lembrança saudosa.
Foi Manuel à cadeia, e, abrindo os braços ao irmão, teve um glacial acolhimento.
Perguntou-lhe Manuel a história do seu desastre.
- Consta do processo - respondeu Simão.» (Capítulo XVI)
«As irmãs temiam-no, ti rante Rita, a mais nova, com quem ele brincava
puerilmente, e a quem obedecia, se ela lhe pedia, com meiguices de criança, que
não andasse com pessoas mecânicas.» (Capítulo I)
Tadeu de Albuquerque
Tadeu de Albuquerque, viúvo e pai de uma única fi lha, Teresa, é um fi dalgo
de Viseu que odeia a família de Simão e esse senti mento fá-lo colocar as
suas convicções de pai autoritário, egoísta e infl exível acima da felicidade da
própria fi lha.
o Exemplo
«Tadeu interrogou sua fi lha, e acreditou que foi causa à sanha de Domingos Botelho
estarem as duas meninas prati cando inocentemente, por trejeitos, em coisas de sua
idade. Desculpou o velho a criancice de Teresa, admoestando-a que não voltasse
àquela janela.
Esta mansidão do fi dalgo, cujo natural era bravio, tem a sua explicação no projeto
de casar em breve a fi lha com seu primo Baltasar Couti nho, de Castro Daire, senhor
de casa, e igualmente nobre da mesma prosápia. Cuidava o velho, presunçoso
conhecedor do coração das mulheres, que a brandura seria o mais seguro
expediente para levar a fi lha ao esquecimento daquele pueril amor a
Simão.»(Capítulo III)
Apesar de Teresa ser fi lha única e de o património lhe ser, por isso, desti nado na
íntegra, Tadeu não deixa de mencionar as qualidades de Baltasar, sublinhando o
facto de possuir um bom património, o que lhe proporcionaria um futuro estável.
o Exemplo
«- […] Teu primo é um composto de todas as virtudes; nem a qualidade de ser um
genti l moço lhe falta, como se a riqueza, a ciência e as virtudes não bastassem a
formar um marido excelente.»(Capítulo IV)
Veja-se que Teresa deveria, tendo em conta os códigos sociais vigentes na época,
obedecer cegamente a seu pai, deixando-o delinear, sem quaisquer objeções, o
caminho do seu futuro. Determinada e corajosa, a jovem, víti ma de uma sociedade
retrógrada em que era evidente a discriminação de género, ousa enfrentar o pai,
dizendo-lhe que não casará com o primo, sujeitando-se, assim, à cólera e ameaças
do progenitor. Perante este comportamento da fi lha, Tadeu age de forma
autoritária e intransigente, pondo em evidência o patriarcalismo português, que se
caracterizava por princípios rígidos, chegando ao ponto quer de impor casamentos
por conveniência, quer de colocar os fi lhos desobedientes em conventos, como
meio de punição e de correção de comportamentos.
o Exemplo
«Tadeu mudou de aspeto, e disse irado:
- Hás de casar! Quero que cases! Quero!... Quando não, amaldiçoada serás para
sempre, Teresa! Morrerás num convento! Esta casa irá para teu primo! Nenhum
infame há de aqui pôr pé nas alcati fas de meus avós. Se és uma alma vil, não me
pertences, não és minha fi lha, não podes herdar apelidos honrosos, que foram pela
primeira vez insultados pelo pai desse miserável que tu amas! Maldita sejas! Entra
nesse quarto, e espera que daí te arranquem para outro, onde não verás um raio de
Sol.»(Capítulo IV)
Alimentando a esperança de que a fi lha esqueceria o fi lho do rival, de que a chama
por Baltasar se atearia e de que a clausura nos conventos mudaria Teresa, Tadeu
esperava conseguir os seus intentos; porém, tal não sucedeu. Sem olhar a meios
para separar o jovem casal, preparou o casamento com Baltasar sem o
assenti mento da fi lha, ameaçou-a com a perda do seu património e ainda conseguiu
impedir a troca de correspondência entre ambos, punindo a mendiga que a
facilitava.
A tríade amorosa
Simão Botelho
o A personagem
«Simão, vivendo apaixonadamente a sua vida, sacrifi ca-se aos seus ideias de
fi delidade à honra e ao amor com tal entrega que acaba por morrer víti ma deles.
[…]
O primeiro traço que defi ne esta personagem é o da revolta e do desafi o às leis de
uma organização social e familiar, a cujo poder a natural rebeldia do seu caráter
não se molda.»
No início da obra, é-nos dito que Simão, com quinze anos, estuda Humanidades em
Coimbra. Bonito e com uma boa consti tuição fí sica, aparenta mais idade do que a
que realmente tem e é parecido com a mãe. Rebelde e turbulento, escolhe
companhias duvidosas, que desagradam aos pais, e é adepto dos ideais liberais.
«Os quinze anos de Simão têm aparências de vinte. É forte de compleição;
belo homem com as feições de sua mãe, e a corpulência dela; mas de todo
avesso em génio. Na plebe de Viseu é que ele escolhe amigos e
companheiros.»(Capítulo I)
«Mirabeau, Danton, Robespierre, Desmoulins, e muitos outros algozes e
márti res do grande açougue, eram nomes de soada musical aos ouvidos de
Simão. Difamá-los na sua presença era afrontarem-no a ele, e bofetada
certa, e pistolas engati lhadas à cara do difamador.»(Capítulo II)
«No espaço de três meses fez-se maravilhosa mudança nos costumes de Simão.
As companhias da ralé desprezou-as. Saía de casa raras vezes, ou só, ou com a
irmã mais nova, sua predileta. […] Em casa encerrava-se no seu quarto, e saía
quando o chamavam para a mesa. D. Rita pasmava da transfi guração, e o
marido, bem convencido dela, ao fi m de cinco meses, consenti u que seu fi lho
lhe dirigisse a palavra.»(Capítulo II)
«Simão Botelho amava. Aí está uma palavra única, explicando o que parecia
absurda reforma aos dezassete anos.»
«A mudança do estudante maravilhou a academia. Se o não viam nas aulas, em
parte nenhuma o viam. Das anti gas relações restavam-lhe apenas as dos
condiscípulos sensatos que o aconselhavam para bem, […].»(Capítulo II)
Porém, Simão conti nua a preservar, na sua personalidade, o seu lado sedento de
conservação da honra pessoal, um lado que não admite injusti ças ou ameaças,
situações que o deixam febril e com desejo de vingança. Se conseguiu refrear
alguns desses desejos e impulsos, outros foram mais fortes e ditaram a alteração na
sua história de amor, como os que o levaram a ir ao convento de Viseu e a
assassinar Baltasar.
o Exemplo
«Na véspera da sua ida para Coimbra, estava Simão Botelho despedindo-se da
suspirosa menina, quando subitamente ela foi arrancada da janela. O alucinado
moço ouviu gemidos daquela voz que, um momento antes, soluçava comovida por
lágrimas de saudade. Ferveu-lhe o sangue na cabeça; contorceu-se no seu quarto
como o ti gre contra as grades infl exíveis da jaula. Teve tentações de se matar, na
impotência de socorrê-la. As restantes horas daquela noite passou-as em raivas e
projetos de vingança.» (Capítulo II)
– Já lhe disse que não fujo – replicou o amante de Teresa, com os olhos postos
nela, que caíra desfalecida sobre as escadas da igreja.»(Capítulo X)
«Um dos vizinhos do mosteiro, que, em razão de seu ofí cio, primeiro saiu à rua,
era o meirinho geral.
E entregou as pistolas.»(Capítulo X)
«O que o salvava do suicídio não era pois esperança em Deus, nem nos homens;
era este pensamento: «Afi nal cobarde! Que bravura é morrer quando não há
esperança de vida?! A forca é um triunfo, quando se encontra ao cabo do
caminho da honra!».»(Capítulo XII)
Mais tarde, comutada a pena de morte por dez anos de cadeia em Vila Real, o
jovem, contrário às súplicas de Teresa, recusa a permuta, alegando que pretende
viver o resto dos seus dias em liberdade, ao ar livre, ao invés de defi nhar na prisão,
escolhendo, por isso, o degredo na Índia. Neste ponto, podemos concluir que Simão
foi individualista e egoísta, quando já ti nha perdido toda e qualquer esperança no
que concerne ao amor.
o Exemplo
«Não me peças que aceite dez anos de prisão. Tu não sabes o que é a liberdade
cati va dez anos! Não compreendes a tortura dos meus vinte meses. A voz única que
tenho ouvido é a da mulher piedosa que me esmola o pão de cada dia, e a do
aguazil que veio dar-me a sarcásti ca boa-nova de uma graça real, que me comuta o
morrer instantâneo da forca pelas agonias de dez anos de cárcere.»(Capítulo XIX)
Teresa de Albuquerque
«Teresa não é só a mulher por quem Simão se perdeu – ela é também a mulher que
por ele se perdeu.»
Essa maturidade e astúcia são notórias quando Teresa garanti u a Tadeu que estaria
morta para todos os homens, menos para seu pai, depois de este a ter ameaçado
com a clausura num convento, na sequência de ela ter assumido amar outro homem
e ter recusado casar com o seu primo Baltasar. A menti ra a que recorreu Teresa fez
refrear a fúria do pai.
o Exemplo
«O coração de Teresa estava menti ndo. Vão lá pedir sinceridade ao coração!
Para fi nos entendedores, o diálogo do anterior capítulo defi niu a fi lha de Tadeu de
Albuquerque.
É mulher varonil, tem força de caráter, orgulho fortalecido pelo amor, despego das
vulgares apreensões, se são apreensões a renúncia que uma fi lha faz do seu
alvedrio às imprevidentes e caprichosas vontades de seu pai. […] Não será aleive
atribuir-lhe uma pouca de astúcia, ou hipocrisia, se quiserem; perspicácia seria mais
correto dizer. Teresa adivinha que a lealdade tropeça a cada passo na estrada real
da vida, e que os melhores fi ns se ati ngem por atalhos onde não cabem a franqueza
e a sinceridade. Estes ardis são raros na idade inexperta de Teresa; […].»
(Capítulo IV)
De facto, a jovem está disposta a tudo por amor, inclusivamente a desafi ar as leis
que regem tanto a sociedade do seu tempo, como a sua família. Não seria de
esperar que rejeitasse os planos que o pai ti nha para si, nem que o ousasse
enfrentar. A ela estaria desti nada uma obediência cega, que a levaria a um
casamento imposto contra a sua vontade, por conveniência, que a levariam à
infelicidade e à convivência com um homem que não amava. Neste senti do, Teresa
mostra ter força de caráter e ser determinada. A sua obsti nação é, igualmente,
evidente, na medida em que não cede às ameaças do pai, colocando o facto de ele a
amaldiçoar, ameaçar com o convento e com o desfalque do património em segundo
plano. Esta característi ca também se evidencia quando se recusa a sair do Convento
de Monchique com Tadeu, mencionando que só sairá do local sem vida.
o Exemplo
«– Hás de casar! Quero que cases! Quero!... Quando não, amaldiçoada serás para
sempre, Teresa! Morrerás num convento! Esta casa irá para teu primo! Nenhum
infame há de aqui pôr um pé nas alcati fas de meus avós. Se és uma alma vil, não me
pertences, não és minha fi lha, não podes herdar apelidos honrosos, que foram pela
primeira vez insultados pelo pai desse miserável que tu amas! Maldita sejas! Entra
nesse quarto, e espera que daí te arranquem para outro, onde não verás um raio de
sol.Teresa ergueu-se sem lágrimas, e entrou serenamente no seu quarto.»(Capítulo
IV)
o Exemplo
«– Os nossos corações penso eu que estão unidos; agora é preciso que as nossas
casas se unam.
Teresa empalideceu, e baixou os olhos.
– Acaso lhe diria eu alguma coisa desagradável?! – prosseguiu Baltasar, rebati do
pela desfi guração de Teresa.
– Disse-me o que é impossível fazer-se – respondeu ela sem turvação. – O primo
engana-se: os nossos corações não estão unidos. Sou muito sua amiga, mas nunca
pensei em ser sua esposa, nem me lembrou que o primo pensasse em tal.»(Capítulo
III)
o A personagem
«A personagem de Mariana, caracterizada por uma profunda sensibilidade, aparece
marcada por um senti do de dignidade muito próprio, a servir também de expressiva
manifestação de amor. […]
Mariana fi cará como símbolo do amor-sacrifí cio, nascido à revelia das convenções
sociais que nem sequer por isso lhe levantam obstáculo, para se sublimar numa
autoimolação sem esperança.»
Mariana é uma jovem de 24 anos, do povo, fi lha do ferrador João da Cruz. Bonita,
mas com um rosto triste. É uma das personagens principais desta obra de Camilo.
o Exemplo
«O ferrador ti nha uma fi lha, moça de vinte e quatro anos, formas bonitas, um rosto
belo e triste.»(Capítulo V)
Estas primeiras reações de Mariana à situação de Simão deixam antever o seu amor
por ele, tal como acontece quando, ferido no ombro pelos criados de Baltasar, ele
regressa a casa do ferrador, e a jovem, habituada a tratar dos ferimentos do pai,
desmaia ao ver o estado do jovem Botelho. Na verdade, o pai de Mariana diz a
Simão para não fazer cerimónias com ela, tendo em conta a dívida de grati dão que
têm para com Domingos Botelho, porém a afeição de Mariana por Simão ultrapassa
o dever da dívida. De facto, ela já o conhecia, pois estava a beber na fonte aquando
da pancadaria em que ele esti vera envolvido.
o Exemplo
«Mariana, a fi lha de João da Cruz, quando viu seu pai pensar a chaga do braço de
Simão, perdeu os senti dos. O ferrador riu estrondosamente da fraqueza da moça, e
o académico achou estranha sensibilidade em mulher afeita a curar as feridas com
que seu pai vinha laureado de todas as feiras e romarias.»(Capítulo VIII)
Embora seja uma jovem obediente ao pai, recusa qualquer pretendente que se lhe
ofereça, mostrando que valoriza o senti mento do amor.
Ela conti nua a dar provas do seu amor pelo jovem quando sente alguma alegria por
saber que Tadeu enclausurou Teresa no convento de Viseu, ou quando combinou
com o pai oferecer as suas economias ao jovem, mostrando-se desapegada dos bens
materiais e detentora de uma generosidade discreta, ou ainda quando se
disponibiliza a ir ao convento a fi m de facilitar a troca de correspondência entre os
dois amantes, aproveitando a ajuda da sua amiga Joaquina Brito. Note-se que esta
sua leve esperança não impede que os valores do altruísmo e da abnegação falem
mais alto. Esquecendo-se de si mesma, está disposta a tudo para garanti r a
felicidade de Simão, chegando mesmo a relegar para segundo plano o seu amor-
próprio. Ela, de facto, sacrifi ca-se e anula-se em prol dos outros e da felicidade da
sua própria rival. A sua autoesti ma é abalada quando conhece Teresa e percebe
que, além de rica e nobre, ela é também belíssima.
«– O pai arrastou Teresa ao convento.
– Sempre é pati fe duma vez! – disse o ferrador, fazendo com os braços
insti nti vamente um movimento de quem aperta entre as mãos um pescoço.
Neste lance, um observador perspicaz veria luzir nos olhos de Mariana um
clarão de inocente alegria.»(Capítulo VIII)
«– Farei o que dizes, Mariana. Dá-me cá o teu dinheiro, que não vou agora
levantar a pedra da lareira para bulir no caixote dos quatrocentos mil réis.
Tanto faz um como outro: teu é ele todo. Mariana deu-se pressa em ir à arca,
donde ti rou uma bolsa de linho com dinheiro em prata, e alguns cordões, anéis
e arrecadas.»(Capítulo VIII)
No dia em que sabe que Teresa será transferida do Convento de Viseu para o de
Monchique, Mariana, adivinhando que Simão sairia ao seu encontro, fi ca a rezar e
em sofrimento, apercebendo-se o jovem de que aquela mulher era o seu anjo da
guarda. Depois deste episódio, a jovem pede a Simão que pense nela como sua
irmã, porém este compreende a imensidão do senti mento da jovem por si, pois
entende que ela o ama ao ponto de morrer por ele. Quando soube que Simão foi
condenado à forca, chegou mesmo a passar por um estado de demência. Depois da
morte do pai, a fi lha do ferrador recolheu a sua herança, vendeu as terras e
depositou o dinheiro nas mãos de Simão.
o Exemplo
«Perguntou por Mariana, e o carcereiro lhe disse que a mandava chamar. Veio João
da Cruz, e a chorar se lasti mou de perder a fi lha, porque a via delirante a falar em
forca, e a pedir que a matassem primeiro. Agudíssima foi então a dor do académico
ao compreender, como se instantaneamente lhe fulgurasse a verdade, que Mariana
o amava até ao extremo de morrer.»(Capítulo XII)
De facto, Mariana já não ti nha pretensões de voltar à aldeia. Pelo contrário, a sua
intenção era acompanhar Simão ao degredo, afi rmando que morreria quando ele
perecesse. Como havia decidido, a jovem embarca com Simão, como criada. O seu
sofrimento era tão evidente que o comandante do navio considerava que ela ti nha
o aspeto de quem já ti nha estado dez anos na Índia e passado por muitos trabalhos.
O próprio Simão tem noção de que está perante o «seu anjo da compaixão».
A fi lha de João da Cruz acaba por se suicidar quando o corpo do fi dalgo é lançado
ao mar, perdida que estava a sua razão de viver.
«Vendeu Mariana as terras e deixou a casa a sua ti a, que nascera nela, e onde
seu pai casara. Liquidada a herança, tornou para o Porto, e depositou o seu
cabedal nas mãos de Simão Botelho, dizendo que receava ser roubada na
casinha em que vivia, fronteira à Relação, na rua de S. Bento.
– Porque vendeu as suas terras, Mariana? – perguntou o preso.
– Vendi-as, porque não faço tenção de lá voltar.
– Não faz?... Para onde há de ir, Mariana, indo eu degredado? Fica no Porto?
– Não, senhor, não fico – balbuciou ela como admirada desta pergunta, à qual o
seu coração julgava ter respondido de muito.
– Pois então?!
– Vou para o degredo, se vossa senhoria me quiser na sua companhia.»(Capítulo
XVIII)
«Às três da manhã, Simão Botelho segurou entre as mãos a testa, que se lhe
abria abrasada pela febre. Não pôde ter-se sentado, e deixou cair meio corpo. A
cabeça, ao declinar, pousou no seio de Mariana.
– O Anjo da compaixão sempre comigo! – murmurou ele – Teresa foi muito mais
desgraçada...» (Conclusão)
João da Cruz
Este homem do povo, ferrador, funciona como adjuvante da relação amorosa
entre Simão e Teresa. O pai de Mariana surge na história na sequência de
Simão necessitar de uma casa próxima de Viseu em que pudesse estar de
forma anónima. Foi indicado pelo seu cunhado, o arrieiro que acompanhara
Simão.
João da Cruz sente-se na obrigação de auxiliar Simão, pelo que se depreende
que consegue ser justo e grato. De facto, o ferrador havia matado um
almocreve para se defender. Depois de três anos preso, foi o pai de Simão,
então corregedor, que o conseguiu ti rar da prisão e livrar da forca. Por outro
lado, o ferrador também ti nha uma dívida de grati dão para com Baltasar
Couti nho, que lhe havia emprestado o dinheiro suficiente para se
estabelecer como ferrador. Apesar dessa dívida de grati dão e porque o
ferrador já ti nha resti tuído todo o dinheiro ao morgado de Castro
Daire, João da Cruz não aceita o seu pedido para assassinar Simão, por
considerar que seria um ato vil.
«O paizinho de vossa senhoria chamou o meirinho geral, e mandou tomar o
meu nome. Ao outro dia fui chamado ao senhor corregedor, e contei-lhe
tudo, mostrando-lhe ainda as cicatrizes do braço. Seu pai ouviu-me, e disse-
me: «Vai-te embora, que eu farei o que puder.»(Capítulo V)
«– Foi ele que me abonou dez moedas de ouro para me estabelecer; mas
paguei-lhas, Deus louvado. Há de haver seis meses que ele me mandou
chamar a Viseu, e me disse que ti nha trinta peças para me dar, se eu lhe
fi zesse um serviço. «O que vossa senhoria quiser, fi dalgo.»
E vai ele disse-me que queria que eu ti rasse a vida a um homem. Isto buliu
cá por dentro comigo, porque, a falar a verdade, um homem que mata outro
num aperto não é matador de ofício, acho eu, não é assim?»(Capítulo V)
o Exemplo
«Eu sou um rústi co; mas, a bem dizer, estou naquela daquele que dizia que o mal
dos seus burrinhos o fi zera alveitar. Paixões, que as leve o diabo, e mais quem com
elas engorda. Por causa de uma mulher, ainda que ela seja fi lha do rei, não se há de
um homem botar a perder. Mulheres há tantas como a praga, e são como as rãs do
charco, que mergulha uma, e aparecem quatro à tona d’água. Um homem rico e
fi dalgo como vossa senhoria, onde quer topa uma com um palmo de cara como se
quer, e um dote de encher o olho. Deixe-a ir com Deus ou com a breca, que ela, se
ti ver de ser sua, à mão lhe há de vir dar, e tanto faz andar pra trás como pra diante,
é ditado dos anti gos. Olhe que isto não é medo, fi dalgo; tome senti do, que João da
Cruz sabe o que é pôr dois homens de uma feita a olhar o Sete-Estrelo, mas não
sabe o que é medo. Se o senhor quer sair à estrada e ti rar a tal pessoa ao pai, ao
primo, e a um regimento, se for necessário, eu vou montar na égua, e daqui a três
horas estou de volta com quatro homens, que são quatro dragões.»(Capítulo X)
Neste ferrador, também estão em destaque quer o orgulho na fi lha, quer a sua
generosidade. De facto, vê na sua Mariana alguém valente e destemido, com valor
superior a qualquer outra mulher. Com ela concorda, quando lhe diz que pretende
dar parte do seu dinheiro a Simão, mostrando, uma vez mais, que a dívida que
considera ter não tem preço. Tal pode, ainda, ser comprovado quando insiste em
acompanhar Simão ao convento de Viseu ou quando, depois de o fi dalgo ter matado
Baltasar, e colocando-se em perigo, se dirige ao local para o auxiliar a fugir.
o Exemplo
«– Vales tu mais, rapariga, que quantas fi dalgas tem Viseu! Pela mais pintada não
dava eu a minha égua; e, se cá viesse o Miramolim de Marrocos pedir-me a fi lha, os
diabos me levem se eu lha dava! Isto é que são mulheres, e o mais é uma
história!»(Capítulo IX)
Por fi m, esta personagem, que acaba por captar a simpati a do leitor, e que oscila
entre a sua generosidade e valenti a e a sua veia mais agressiva e criminosa, acaba
por morrer às mãos do fi lho do almocreve que havia matado dez anos antes.
A mendiga
Esta personagem pode ser considerada adjuvante da relação amorosa entre Teresa
e Simão, na medida em que facilitou a troca de correspondência entre ambos em
vários momentos da ação, sujeitando-se a percorrer vários quilómetros, a aguardar
pela resposta e, inclusivamente, a ser espancada e expulsa do convento de Viseu.
«Quando meti a o pé no estribo, viu a seu lado uma velha mendiga, estendendo-lhe
a mão aberta, como quem pede esmola, e, na palma da mão, um pequeno
papel.»(Capítulo II)
O comandante do navio
O comandante do navio, homem de bom coração e compassivo, tomando
conhecimento da triste sina de Simão, tenta auxiliá-lo e atenuar a sua dor,
mostrando-lhe a sua comoção e compreensão. Responde, ainda, às
solicitações de D. Rita Preciosa, que pretende um tratamento diferenciado
para o fi lho, o qual recebe uma quanti a de dinheiro (que não aceita).
Simão não vai acorrentado e é o único que leva uma acompanhante.
«Ao escurecer, voltou de terra o comandante, e contemplou, com os olhos
embaciados de lágrimas, o desterrado, que contemplava as primeiras estrelas,
eminentes ao mirante.»(Capítulo XX)