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BREVE BIOGRAFIA SOBRE CAMILO CASTELO BRANCO

A estrutura da obra

Amor de Perdição, cujo subtítulo é Memórias de uma família, aponta para dois níveis de ação: por
um lado, serão narrados os factos trágicos da personagem principal, Simão Botelho, que podem ser
resumidos na
simbólica frase “Amou, perdeu-se e morreu amando”; por outro, apresenta-se, em tons memorialísticos, a ge-
nealogia da família Botelho.

Foi precisamente a história do seu tio paterno que Camilo teve como missão contar, como
relata na Introdução. “Amou” (1.ª parte) / “perdeu-se” (2.ª parte) / “morreu amando” (3.ª parte).
Assim, Amor de Perdição possui uma estrutura sequencial, em gradação crescente, sem pausas (pelo
menos signifi- cativas, como a que ocorre no capítulo X, em que o narrador caracteriza a vida corrupta
do Convento de Viseu) nem desvios, até ao ponto máximo do desenlace.

Acompanhemos, então, o percurso deste amor trágico.

• Apresentação de Simão Botelho, condenado ao degredo na Índia


Introdução • Reflexões do narrador
• Diálogo com o leitor
• Apresentação da árvore genealógica da família Botelho
Capítulo I
• Caracterização de Simão aos 15 anos: rebelde estudante em Coimbra
• Liberalismo de Simão, que o leva à cadeia, em Coimbra, e ida para Viseu ao fim
de 6 meses
• Paixão por Teresa, filha de Tadeu de Albuquerque, de uma família rival da sua
Capítulos II-III • Mudança de comportamento de Simão, que se torna mais moderado e sereno
• Descoberta da relação por Tadeu de Albuquerque, que ameaça enclausurar a fi-
lha num convento e promove a aproximação de Baltasar Coutinho, seu primo
• Baltasar é recusado por Teresa, que se confessa apaixonada por Simão
• Imposição de Baltasar a Teresa, recusa desta e promessa de Tadeu de Albuquer-
Capítulo IV que de enviar a filha para um convento
• Escrita de uma missiva a Simão, na qual Teresa relata a sua situação
• Visita de Simão à sua amada, durante a noite, interrompida por Baltasar, que
prepara uma emboscada ao seu adversário
• Fuga de Simão, apesar de ferido, com a ajuda de João da Cruz e do cunhado, que
matam dois criados de Baltasar
• Refúgio de Simão em casa do mestre ferrador, que deve a sua vida a Domingos
Capítulos V-IX
Botelho, pai de Simão, enquanto Teresa é enviada para o convento em Viseu
• Carinho de Mariana, filha de João da Cruz, a tratar de Simão; Mariana apaixona-
se por ele
• Plano de Tadeu de transferir a sua filha para o convento de Monchique, no Porto,
o que leva Simão a preparar um plano para a resgatar
• Ajuda de Mariana, que se prontifica a fazer chegar uma carta de Simão a Teresa
• Ida de Simão ao convento de Viseu, onde se encontra com Baltasar, matando-o e
Capítulo X
sendo depois preso
• Abandono de Simão pela sua família, passando a contar apenas com o auxílio de
Mariana
• Condenação de Simão à forca, após sete meses de prisão, o que deixa Mariana
Capítulos XI-XX desvairada, passando a ser o seu pai o adjuvante na troca de correspondência en-
tre os dois apaixonados
• Doença de Teresa, que anseia pela morte, apesar de Simão, com quem se corres-
ponde secretamente, através de Mariana, a incitar a não desistir
• Decisão de Tadeu em trazer a filha para Viseu quando sabe do seu estado de sa-
úde frágil, mas também porque toma conhecimento de que Simão será transferido
para o Porto
• Recusa de Teresa em aceitar a vontade de seu pai
• Assassínio de João da Cruz pelo filho do almocreve que tinha matado há dez anos
• Condenação de Simão ao degredo na Índia, por dez anos, sendo que Mariana
tem intenções de o acompanhar
• Súplica vã de Teresa para que Simão não aceite o degredo e cumpra o mesmo
período na cadeia
• Partida de Simão para a Índia, na companhia de Mariana, no momento em que é
informado da morte de Teresa
• Morte de Simão passados dez dias e suicídio de Mariana, que se atira ao mar, na
Conclusão
companhia do corpo do seu amado

• Todas as citações da obra Amor de Perdição seguem a edição da Coleção Educação Literária, da Porto Editora, 2016.
Sugestão biográfica

Na Introdução, são estabelecidas as relações de semelhança entre o herói romântico e o


próprio Camilo, pois este está encarcerado no mesmo local onde o seu tio esteve, havendo
coincidência nos motivos também: um amor proibido.

Analisemos, então, os tópicos fundamentais da Introdução, de modo a entender o cruzamento


entre o título (Amor de Perdição) e o subtítulo (Memórias de uma família) da obra:

• a obra instaura-se enquanto texto ficcional baseado em factos reais a partir do título, ao mesmo
tempo que o subtítulo evidencia a sugestão de relato memorialístico e familiar verídico. Há, pois, o
desejo de conferir veracidade aos factos narrados através do recurso a documentos oficiais:

“Folheando os livros de antigos assentamentos, no cartório das cadeias da Relação do Porto, li, no das
entradas dos presos desde 1803 a 1805, a folhas 232, o seguinte:

Simão António Botelho, que assim disse chamar-se, ser solteiro, e estudante na Universidade de
Coimbra, natural da cidade de Lisboa, e assistente na ocasião de sua prisão na cidade de Viseu, idade
de dezoito anos, filho de Domingos José Correia Botelho e de D. Rita Preciosa Caldeirão Castelo Branco;
estatura ordinária, cara redonda, olhos castanhos, cabelo e barba preta, vestido com jaqueta de
baetão azul, colete de fustão pintado e calça de pano pedrês. E fiz este assento, que assinei – Filipe
Moreira Dias.

À margem esquerda deste assento está escrito:

Foi para a Índia em 17 de março de 1807.”


• a caracterização de Simão é feita através de dois processos: direta › “estatura ordinária, cara
redonda, olhos castanhos, cabelo e barba preta”, e indireta › apaixonado, vítima do amor e do destino,
sofredor, imaturo – colhendo a simpatia do narrador;

• o discurso é emotivo, pautado por enumerações exclamativas reveladoras da vida desgraçada do he-
rói;

“Dezoito anos! O arrebol dourado e escarlate da manhã da vida! As louçanias do coração que ainda não
sonha em frutos, e todo se embalsama no perfume das flores! Dezoito anos! O amor daquela idade!”

• a frase-chave é “Amou, perdeu-se, e morreu amando” que sintetiza o percurso biográfico de Simão e
revela a unidade de ação, sem desvios narrativos, precipitando-se para o desenlace;

• verifica-se a expectativa por parte do narrador de que o público-leitor se identifique com a história
narrada, partilhando consigo a dor, amargura e respeito pelos factos narrados – empatia com o leitor;

“É a história. E história assim poderá ouvi-la a olhos enxutos a mulher, a criatura mais bem formada
das branduras da piedade, a que por vezes traz consigo do céu um reflexo da divina misericórdia; essa,
a minha leitora, a carinhosa amiga de todos os infelizes, não choraria se lhe dissessem que o pobre
moço perdera honra, reabilitação, pátria, liberdade, irmãs, mãe, vida, tudo, por amor da primeira
mulher que o despertou do seu dormir de inocentes desejos?!”
• o estatuto do narrador: não participante (heterodiegético), mas sensível à história narrada e estabe-
lecendo uma relação com o leitor, que é convocado para com ele partilhar emoções.

Construção do herói romântico

Simão é o protótipo do herói romântico transgressor das regras sociais e desejoso de liberdade. Nascido em Lisbo

Contudo, este ímpeto social acalmou quando, em Viseu, conheceu Teresa de Albuquerque, o que levou à sua rege

Enquanto está em casa de João da Cruz, Simão transforma-se em poeta, sendo a carta que es- creve a Teresa, no
Para mostrar a sua verticalidade, embora tenha a hipótese de fugir ou de mentir ao juiz, nega
essa hipótese. Também revela a sua coragem ao recusar a ajuda monetária da mãe, que lhe tinha
escrito uma carta na qual mencionava o seu nascimento em circunstâncias difíceis (Cap XI).

A sua força é inabalável, mesmo quando é condenado à forca, após sete meses de cadeia,
afirmando que “A forca é a única festa do povo!” (Cap XII). É, então, transferido para a cadeia do Porto,
onde alude ao seu destino trágico em cartas dirigidas a Teresa, para além de escrever as suas reflexões.

Elogiado pelo corregedor Mourão Mosqueira, Simão vê a sua pena alterar-se para o degredo na
Índia, durante dez anos. Mais tarde, contudo, pode optar por cumprir dez anos na cadeia, perto de Te-
resa, ou a liberdade relativa do degredo. O seu génio volta a revelar-se e recusa ir para Vila Real, pelo
que no dia 10 de março de 1807 recebe ordem de embarcar, numa altura em que o estado de saúde
de Teresa se agrava. Quando embarca, no dia 17, Simão ainda avista Teresa no mirante do Convento.
No entanto, esta morre logo. Já no barco, lê uma carta muito especial da sua amada que continha os
proje- tos iniciais dos dois amantes. Doente, morre no dia 27 e o seu corpo é atirado ao mar.

Em suma, podemos concluir que Simão é uma personagem modelada, pois evidencia diferentes
comportamentos ao longo da novela, principalmente depois de ter conhecido a salvação através do
amor por Teresa, que o tornou mais ponderado, mais sereno, mais estudioso, mesmo que não tenha
abandonado as suas firmes convicções. Prefere abraçar a liberdade relativa do degredo à clausura da
prisão em Vila Real. Os seus ímpetos mais latentes foram suavizados pelo amor, mas continuou a
latejar dentro de Simão uma rebeldia que só encontra fim na morte.

Em suma, o herói romântico presente em “Amor de Perdição” ´e marcado pela excecionalidade,


pela força de sentimentos, pelo individualismo, pelo egocentrismo, pela esperança, pelo idealismo, por
um sentimento de revolta e desencanto face ao país e consequente confronto com a sociedade (insti-
tuições, regras e convenções instituídas), pela importância atribuída aos sentimentos, à honra e liber-
dade de amar e pela desilusão / frustração.

A obra como crónica da mudança social


Em diversos momentos, a obra pode ser lida enquanto anunciadora de ventos de mudança, no
que diz respeito à ordem social estabelecida. O Capítulo IV é, assim, revelador da transgressão social
presente em Amor de Perdição. A construção do retrato de Teresa apresenta uma jovem:

• perspicaz, pois percebe a hipocrisia social, que potencia a mentira, o engano, a falsidade;

• determinada em seguir o seu coração, o que a leva a opor-se a seu pai, pois prefere morrer a
casar com o seu primo;

• com grande autodomínio, visto que não chora quando o pai a amaldiçoa;

• insubmissa e desafiadora da lei paterna.

“Para finos entendedores, o diálogo do anterior capítulo definiu a filha de Tadeu de Albuquerque. É mu-
lher varonil, tem força de carácter, orgulho fortalecido pelo amor, despego das vulgares apreensões, se
são apreensões a renúncia que uma filha faz do seu alvedrio às imprevidentes e caprichosas vontades
de seu pai. […] Teresa adivinha que a lealdade tropeça a cada passo na estrada real da vida, e que os
melhores fins se atingem por atalhos onde não cabem a franqueza e a sinceridade. Estes ardis são ra-
ros na idade inexperta de Teresa; mas a mulher do romance quase nunca é trivial, e esta, de que rezam
os meus apontamentos, era distintíssima. A mim me basta, para crer em sua distinção, a celebridade
que ela veio a ganhar à conta da desgraça.”

Teresa é rebelde na forma como não segue o caminho que seu pai para si traçou, o que seria
expectável na época, e está confiante na sua crença de casar por amor – sinal da mudança dos tempos e das
convenções soci- ais da época.

A partir da leitura do capítulo IV na sua globalidade, é possível elencar alguns dos aspetos que tornam
esta obra uma crónica anunciadora da mudança social não só ao nível do matrimónio. Desta forma:

• apresenta-se uma sociedade em transformação, na qual ecoam os ideais da Revolução Francesa, de que
Simão Botelho se apresenta como defensor;

• critica-se uma sociedade retrógrada e feita de desigualdades, a começar pela insignificância social da mulher;

• denuncia-se uma sociedade repressora em diferentes quadrantes – social (através da discriminação de


géneros, como já referido); jurídico (com a corrupção da justiça, manietada pelos poderosos, como quando
Domingos Bo- telho interfere junto de um corregedor de forma a obter o perdão para o seu filho Manuel,
que tinha desertado do exército); religioso (com a tirania dos conventos); familiar (através dos casamentos
por conveniência e da auto- ridade paterna, que era inquestionável);

• apontam-se as contradições entre o ser e o parecer, com a vida dissoluta que reinava nos conventos;

• valoriza-se o papel do homem enquanto indivíduo que pugna pelos ideais da liberdade, da dignidade e da honra.

Não podemos deixar de referir que Camilo era particularmente sensível a estes aspetos, pois
também ele foi vítima de uma sociedade opressora, que limita a liberdade de ações dos indivíduos, im-
pedindo-os de atingirem a felicidade. Há, efetivamente, nesta obra um carácter revolucionário, com a
insubordinação de Teresa, que não aceita casar com quem seu pai lhe impõe. Desta forma, a Revolu-
ção Francesa é trazida para dentro da família.

Relações entre personagens

Num primeiro momento, é importante atentarmos no triângulo amoroso desta novela.


Simão
• apaixonado por Teresa e fiel aos seus princípios
Mariana
• apaixonada por Simão e cúmplice dos dois amantes
Teresa
• apaixonada por Simão e corajosa perante o seu pai

Para além deste triângulo, convém analisar as relações que se estabelecem entre estas perso-
nagens e as restantes:

Família Botelho Família Albuquerque Outras personagens


Apaixonada por Simão,
Oponente da rela- mesmo sabendo que não
Oponente da relação Tadeu
ção entre a sua é correspondida, sacrifica
Domingos entre o seu filho e Mariana o seu amor-próprio ao
de Albu- filha e Simão, visto
Botelho Te- resa, visto que o
querque que o pai deste é partir com ele para o
pai desta é seu
seu ini- migo. degredo, anulando, com a
inimigo.
morte de Simão, a sua
vida.
Jovem (15 anos),
rica herdeira e
Maternal e preocu- Teresa Protetor de Simão, por
D. Rita pada com o filho, é bonita, revela uma João da
Albu- força de carácter dí- vida de gratidão para
Preciosa in- capaz de se opor à Cruz com o pai dele, Domingos
querque excecional para a
de- cisão do marido. Bote- lho.
época, quando se
opõe às decisões de
seu pai.
Família Botelho Família Albuquerque Outras personagens
Indiferentes ao irmão,
Convencido, prepo-
sendo que apenas
Irmãos de Rita (tia que acolheu Baltasar tente e egotista, não Intermediária entre os
Couti- se conforma com o Mendiga
Simão Ca- milo após a dois amantes.
nho facto de a prima o
morte da mãe) se
ter preterido.
preocupa com
Simão.
Sensível à coragem de Si-
mão, comuta-lhe a pena
Corregedor
para o degredo, em vez
da forca.

Pelo apoio prestado a Simão, iremos agora atentar nas personagens João da Cruz e na sua filha Mariana.

João da Cruz Mariana


• Com 24 anos, bonita (até mais do que Teresa), Mari-
ana representa a jovem popular, inculta e
supersticiosa, que é derrotada por um amor não
• Embora seja uma personagem ficcionada, é a
correspondido
mais verosímil da novela
• Exemplo de abnegação e de sofrimento, a
• Homem do povo e ferrador de profissão, oscila
apaixonada de Simão vive do e para o amor, que
entre a gratidão para com o pai de Simão e a
encara como única razão da sua existência
crueldade com que mata um dos homens de
Baltasar Coutinho • Ainda que obediente ao seu pai, recusa
firmemente outros pretendentes
• Aconselha-se a leitura dos capítulos IV, V, VI, VIII,
X, XV e XVII, para completar a sua caracterização • Para ela, o amor é visto como algo sagrado, ainda
que Simão apenas sinta um amor fraterno por ela
• Desprendida dos bens terrenos, não hesita em
aban- donar tudo depois da morte de seu pai, para
acompa- nhar Simão no degredo

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