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A estrutura da obra
Amor de Perdição, cujo subtítulo é Memórias de uma família, aponta para dois níveis de ação: por
um lado, serão narrados os factos trágicos da personagem principal, Simão Botelho, que podem ser
resumidos na
simbólica frase “Amou, perdeu-se e morreu amando”; por outro, apresenta-se, em tons memorialísticos, a ge-
nealogia da família Botelho.
Foi precisamente a história do seu tio paterno que Camilo teve como missão contar, como
relata na Introdução. “Amou” (1.ª parte) / “perdeu-se” (2.ª parte) / “morreu amando” (3.ª parte).
Assim, Amor de Perdição possui uma estrutura sequencial, em gradação crescente, sem pausas (pelo
menos signifi- cativas, como a que ocorre no capítulo X, em que o narrador caracteriza a vida corrupta
do Convento de Viseu) nem desvios, até ao ponto máximo do desenlace.
• Todas as citações da obra Amor de Perdição seguem a edição da Coleção Educação Literária, da Porto Editora, 2016.
Sugestão biográfica
• a obra instaura-se enquanto texto ficcional baseado em factos reais a partir do título, ao mesmo
tempo que o subtítulo evidencia a sugestão de relato memorialístico e familiar verídico. Há, pois, o
desejo de conferir veracidade aos factos narrados através do recurso a documentos oficiais:
“Folheando os livros de antigos assentamentos, no cartório das cadeias da Relação do Porto, li, no das
entradas dos presos desde 1803 a 1805, a folhas 232, o seguinte:
Simão António Botelho, que assim disse chamar-se, ser solteiro, e estudante na Universidade de
Coimbra, natural da cidade de Lisboa, e assistente na ocasião de sua prisão na cidade de Viseu, idade
de dezoito anos, filho de Domingos José Correia Botelho e de D. Rita Preciosa Caldeirão Castelo Branco;
estatura ordinária, cara redonda, olhos castanhos, cabelo e barba preta, vestido com jaqueta de
baetão azul, colete de fustão pintado e calça de pano pedrês. E fiz este assento, que assinei – Filipe
Moreira Dias.
• o discurso é emotivo, pautado por enumerações exclamativas reveladoras da vida desgraçada do he-
rói;
“Dezoito anos! O arrebol dourado e escarlate da manhã da vida! As louçanias do coração que ainda não
sonha em frutos, e todo se embalsama no perfume das flores! Dezoito anos! O amor daquela idade!”
• a frase-chave é “Amou, perdeu-se, e morreu amando” que sintetiza o percurso biográfico de Simão e
revela a unidade de ação, sem desvios narrativos, precipitando-se para o desenlace;
• verifica-se a expectativa por parte do narrador de que o público-leitor se identifique com a história
narrada, partilhando consigo a dor, amargura e respeito pelos factos narrados – empatia com o leitor;
“É a história. E história assim poderá ouvi-la a olhos enxutos a mulher, a criatura mais bem formada
das branduras da piedade, a que por vezes traz consigo do céu um reflexo da divina misericórdia; essa,
a minha leitora, a carinhosa amiga de todos os infelizes, não choraria se lhe dissessem que o pobre
moço perdera honra, reabilitação, pátria, liberdade, irmãs, mãe, vida, tudo, por amor da primeira
mulher que o despertou do seu dormir de inocentes desejos?!”
• o estatuto do narrador: não participante (heterodiegético), mas sensível à história narrada e estabe-
lecendo uma relação com o leitor, que é convocado para com ele partilhar emoções.
Simão é o protótipo do herói romântico transgressor das regras sociais e desejoso de liberdade. Nascido em Lisbo
Contudo, este ímpeto social acalmou quando, em Viseu, conheceu Teresa de Albuquerque, o que levou à sua rege
Enquanto está em casa de João da Cruz, Simão transforma-se em poeta, sendo a carta que es- creve a Teresa, no
Para mostrar a sua verticalidade, embora tenha a hipótese de fugir ou de mentir ao juiz, nega
essa hipótese. Também revela a sua coragem ao recusar a ajuda monetária da mãe, que lhe tinha
escrito uma carta na qual mencionava o seu nascimento em circunstâncias difíceis (Cap XI).
A sua força é inabalável, mesmo quando é condenado à forca, após sete meses de cadeia,
afirmando que “A forca é a única festa do povo!” (Cap XII). É, então, transferido para a cadeia do Porto,
onde alude ao seu destino trágico em cartas dirigidas a Teresa, para além de escrever as suas reflexões.
Elogiado pelo corregedor Mourão Mosqueira, Simão vê a sua pena alterar-se para o degredo na
Índia, durante dez anos. Mais tarde, contudo, pode optar por cumprir dez anos na cadeia, perto de Te-
resa, ou a liberdade relativa do degredo. O seu génio volta a revelar-se e recusa ir para Vila Real, pelo
que no dia 10 de março de 1807 recebe ordem de embarcar, numa altura em que o estado de saúde
de Teresa se agrava. Quando embarca, no dia 17, Simão ainda avista Teresa no mirante do Convento.
No entanto, esta morre logo. Já no barco, lê uma carta muito especial da sua amada que continha os
proje- tos iniciais dos dois amantes. Doente, morre no dia 27 e o seu corpo é atirado ao mar.
Em suma, podemos concluir que Simão é uma personagem modelada, pois evidencia diferentes
comportamentos ao longo da novela, principalmente depois de ter conhecido a salvação através do
amor por Teresa, que o tornou mais ponderado, mais sereno, mais estudioso, mesmo que não tenha
abandonado as suas firmes convicções. Prefere abraçar a liberdade relativa do degredo à clausura da
prisão em Vila Real. Os seus ímpetos mais latentes foram suavizados pelo amor, mas continuou a
latejar dentro de Simão uma rebeldia que só encontra fim na morte.
• perspicaz, pois percebe a hipocrisia social, que potencia a mentira, o engano, a falsidade;
• determinada em seguir o seu coração, o que a leva a opor-se a seu pai, pois prefere morrer a
casar com o seu primo;
• com grande autodomínio, visto que não chora quando o pai a amaldiçoa;
“Para finos entendedores, o diálogo do anterior capítulo definiu a filha de Tadeu de Albuquerque. É mu-
lher varonil, tem força de carácter, orgulho fortalecido pelo amor, despego das vulgares apreensões, se
são apreensões a renúncia que uma filha faz do seu alvedrio às imprevidentes e caprichosas vontades
de seu pai. […] Teresa adivinha que a lealdade tropeça a cada passo na estrada real da vida, e que os
melhores fins se atingem por atalhos onde não cabem a franqueza e a sinceridade. Estes ardis são ra-
ros na idade inexperta de Teresa; mas a mulher do romance quase nunca é trivial, e esta, de que rezam
os meus apontamentos, era distintíssima. A mim me basta, para crer em sua distinção, a celebridade
que ela veio a ganhar à conta da desgraça.”
Teresa é rebelde na forma como não segue o caminho que seu pai para si traçou, o que seria
expectável na época, e está confiante na sua crença de casar por amor – sinal da mudança dos tempos e das
convenções soci- ais da época.
A partir da leitura do capítulo IV na sua globalidade, é possível elencar alguns dos aspetos que tornam
esta obra uma crónica anunciadora da mudança social não só ao nível do matrimónio. Desta forma:
• apresenta-se uma sociedade em transformação, na qual ecoam os ideais da Revolução Francesa, de que
Simão Botelho se apresenta como defensor;
• critica-se uma sociedade retrógrada e feita de desigualdades, a começar pela insignificância social da mulher;
• apontam-se as contradições entre o ser e o parecer, com a vida dissoluta que reinava nos conventos;
• valoriza-se o papel do homem enquanto indivíduo que pugna pelos ideais da liberdade, da dignidade e da honra.
Não podemos deixar de referir que Camilo era particularmente sensível a estes aspetos, pois
também ele foi vítima de uma sociedade opressora, que limita a liberdade de ações dos indivíduos, im-
pedindo-os de atingirem a felicidade. Há, efetivamente, nesta obra um carácter revolucionário, com a
insubordinação de Teresa, que não aceita casar com quem seu pai lhe impõe. Desta forma, a Revolu-
ção Francesa é trazida para dentro da família.
Para além deste triângulo, convém analisar as relações que se estabelecem entre estas perso-
nagens e as restantes:
Pelo apoio prestado a Simão, iremos agora atentar nas personagens João da Cruz e na sua filha Mariana.