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AMOR DE PERDIÇÃO

SUGESTÃO BIOGRÁFICA (SIMÃO E NARRADOR)


A novela Amor de Perdição foi publicada em 1862, época em que o seu autor se encontrava preso na
Cadeia da Relação do Porto, por ter raptado Ana Plácido e ter cometido adultério com ela.

Camilo Castelo Branco tem plena consciência do choque que estes acontecimentos provocaram na
sociedade da época. É por este motivo que, na introdução da obra, o narrador (que, em Amor de
Perdição, se identifica como o autor) alude à documentação consultada no cartório das cadeias da
Relação do Porto, da qual constava um assento referente a Simão Botelho, que, tendo sido encarcerado
no mesmo local, também por um amor considerado transgressivo, acabará por ser degredado para a
Índia com apenas 18 anos. O facto de o protagonista — que, na conclusão, é identificado como tio do
autor da obra — ter um percurso biográfico com pontos de contacto com o de Camilo Castelo Branco
virá conferir um maior dramatismo aos eventos narrados — o que contribuirá, de forma decisiva, para o
enorme interesse dos leitores oitocentistas por esta obra.

No entanto, além de jogar com esta coincidência a nível biográfico, o autor procurará, acima de tudo,
evidenciar a injustiça subjacente à história trágica de Simão e de Teresa. É por esta razão que o narrador
assume, desde o início, uma posição subjetiva em relação às personagens e aos eventos narrados,
sublinhando o carácter heroico dos protagonistas, que, em nome do amor, ousam enfrentar os
preconceitos absurdos das respetivas famílias, bem como a repressão que lhes é imposta por uma
sociedade em que não há lugar para a vivência dos sentimentos sublimes, mas apenas para a
mediocridade, o materialismo e a hipocrisia. Como é evidente, desta forma, Camilo procura justificar a
sua própria transgressão das normas da sociedade, mostrando que, na realidade, se tratava de uma
revolta legítima contra um meio em que a liberdade e a felicidade dos indivíduos eram sufocadas por
convenções mesquinhas.

RESUMO POR CAPÍTULOS


INTRODUÇÃO
O narrador apresenta, num primeiro momento, os motivos que o levaram à escrita da novela. Assim,
refere que encontrou na Cadeia da Relação do Porto antigos registos de entrada dos prisioneiros, onde
constava uma nota sobre a prisão de Simão Botelho. Nela, encontra algumas informações sobre o
prisioneiro, nomeadamente a filiação e fisionomia. Afirma-se nesse documento que Simão partiu para o
degredo na Índia em 17 de março de 1807.

Seguidamente, o narrador comove-se com o sofrimento do condenado, jovem de apenas 18 anos, e com
o motivo que ali o levou: o amor puro, inocente e jovem, única causa da sua perdição. Simão
protagoniza uma história tocante, que o narrador resume na frase «Amou, perdeu-se e morreu
amando». Em tom coloquial, dirige-se particularmente às leitoras, que, certamente, se comoverão com
a história do protagonista, esperando delas compaixão pelo caso de Simão, que é injusto a seus olhos. A
este propósito, dá conta ao leitor do ódio e indignação que sentiu, quando se confrontou com a história
do jovem, vítima da injustiça e da insensibilidade dos homens.

CAPÍTULO I
O narrador apresenta caricaturalmente Domingos Botelho, um fidalgo de província, avô de Camilo
Castelo Branco. Em 1779, Domingos era juiz em Cascais. Por ser pouco inteligente, deram-lhe a alcunha
de «Brocas», nome que sugere a sua rudeza. No entanto, apesar de feio, sem grandes virtudes e com
pouca fortuna, tinha a simpatia da Rainha D. Maria, de quem recebia uma pensão. Domingos Botelho
frequentava o Paço, onde conheceu D. Rita Castelo Branco, uma bonita dama com quem casou. Em
1779, foi transferido para Vila Real.

D. Rita Preciosa era uma mulher bonita. Era altiva e encarava com desdém a fidalguia de província, de
onde provinha o marido, que se esforçava por lhe agradar. Em Vila Real, Rita revelava saudades da corte
e mostrava-se desagradada com a vida de casada longe do Paço.

Deste casamento nasceram cinco filhos, dos quais Simão, o segundo. No entanto, D. Rita foi infeliz com
o marido, porque lhe desagradavam o ambiente provinciano e as condições que Domingos Botelho lhe
proporcionava, por estar habituada à vida do Paço. O facto de ser feio angustiava o juiz, que,
enciumado, via a sua mulher cada vez mais viçosa. Quando foi transferido para Lamego, o facto
desagradou de tal modo à sua esposa que D. Rita ameaçou ir com os filhos para Lisboa.

Em 1801, Domingos foi nomeado corregedor em Viseu, para onde se muda o casal. Simão regressou a
Viseu com os exames feitos, o que deixou o pai orgulhoso. Simão tem quinze anos e estuda em Coimbra,
assim como Manuel, o irmão mais velho. Este queixa-se ao pai de não poder viver com Simão, devido ao
«génio sanguinário» deste e decide ir para Bragança para se alistar como cadete.

Simão é um jovem forte, fisicamente parecido com sua mãe. No entanto, era um rapaz com propensão
para distúrbios, o que desagradava aos pais. Certo dia, nas férias em Viseu, envolveu-se num conflito
numa fonte. Aí, espancou uns criados com tanta violência que causou pânico na população e levou a
mãe a mandá-lo às escondidas para Coimbra para aguardar o perdão do pai.

CAPÍTULOS II E III
 Simão e Teresa apaixonam-se;
 Simão mudade comportamento, tornando-se mais moderado e calmo;
 Tadeu de Albuquerque, pai de Teresa, não aprova a relação da filha com Simão (devido ao ódio
entre as famílias).

CAPÍTULO IV
Por carta, Teresa conta a Simão o referido no capítulo anterior (casamento de Teresa e Baltasar). Dias
depois, Tadeu anuncia à filha que, nesse mesmo dia, casará com Baltasar. Teresa pergunta ao pai se ele
será feliz com o seu sacrifício, pedindo-lhe a seguir, arrebatadamente, que a mate, em vez de a forçar ao
casamento. Tadeu resolve então metê-la num convento e diz ao sobrinho que não pode dar-lhe Teresa,
por ela já não ser sua filha.
Baltasar pede ao tio que não enclausure Teresa e que espere a vinda de Simão a Viseu. Tadeu assim faz
e de tudo dá Teresa notícia a Simão, o qual, refervendo-lhe desta vez o sangue, resolve matar Baltasar,
ideia que todavia abandona, pois assim perderia Teresa para sempre, preso como assassino.

CAPÍTULOS V A IX
 Teresa e Simão encontram-se durante a noite; Baltasar interrompe-os e prepara uma
emboscada a Simão; este é ferido, mas foge, com a ajuda de João da Cruz (pai de Mariana), que
mata dois criados de Baltasar;
 Simão refugia-se em casa de João da Cruz; Mariana (filha de João da Cruz) trata de Simão e
apaixona-se por ele;
 Teresa é enviada para um convento em Viseu;
 Tadeu decide transferir a filha para um convento em Monchique (Porto);
 Mariana prontifica-se para fazer chegar uma carta de Simão a Teres.
CAPÍTULO X
Mariana fala no convento com Teresa, que está de partida para o Porto, e acha-a “linda como nunca vira
outra”. Teresa quer pagar-lhe o serviço com um dos seus anéis, que Mariana recusa. Simão ao saber da
partida de Teresa, quer ir vê-la, e João da Cruz, embora não aprovando a decisão, prontifica-se para lhe
arranjar um homem que o acompanhe para o rapto. A chorar, Mariana pede-lhe que não saia, porque o
coração lhe diz que não o tornará a ver. Simão insiste em sair, não aceitando a companhia de João da
Cruz, nem de ninguém. Mas a rogos do ferrador, promete não sair nessa noite, nem no dia seguinte.

Simão sai, no entanto, noite alta. Mariana, assomando a uma janela, despede-se dele…até ao Juízo Final,
e fica-se a orar pela sua salvação.

Simão chega ao convento ainda de noite. De madrugada chega a comitiva que há-de acompanhar Teresa
e na qual vem Baltasar, que Simão interpela e com luta, matando-o com um tiro à queima roupa. Os
criados cercam Simão. Surge João da Cruz e diz a Simão que fuja. Simão recusa e entrega-se à prisão,
na pessoa do meirinho geral, que lhe quer dar a fuga, o que ele de novo recusa por querer assumir a
responsabilidade plena do seu acto.

CAPÍTULOS XI A XX
 Após 7 meses de prisão, Simão é condenado à forca;
 Simão e Teresa contactam através de cartas, com a ajuda de Mariana, que serve de
intermediária;
 Teresa adoece; Tadeu decide transferi-la de novo para Viseu, mas ela não aceita a decisão;
 Simão é condenado a 10 anos de degredo; Teresa pede-lhe que não aceite o degredo e que
passe esses 10 anos na cadeia;
 Ao ser informado da morte de Teresa, Simão parte para o degreso; Mariana acompanha-o.

CONCLUSÃO
De madrugada, Simão lê, finalmente, a última carta de Teresa - uma pungente despedida. Assalta-o
febre violenta, diagnosticada como febre maligna, mortal.

Nove dias volvidos, de tormenta também no mar, Simão morre e Mariana beija-o pela primeira e última
vez. O corpo é lançado à água e, acto contínuo, Mariana faz o mesmo, morrendo abraçada ao jovem que
tanto amara em silêncio e dedicação.

A correspondência foi recolhida, a boiar na água. Assim Camilo a pôde transcrever.

RELAÇÕES ENTRE PERSONAGENS

Simão Botelho era filho do juiz Domingos Botelho e de D. Rita Preciosa. O magistrado era, no entanto,
odiado por Tadeu de Albuquerque, pai de Teresa, na medida em que, num litígio, não tomara uma
decisão favorável àquela personagem. O azedume entre as famílias adensou-se pelo facto de o
protagonista, num episódio em que espancou vários criados que se encontravam junto a uma fonte, ter
ferido também criados de Tadeu de Albuquerque.

Antes de se apaixonar por Teresa, Simão destaca-se pelo seu comportamento violento e arruaceiro. No
entanto, o amor tem nele um efeito redentor: abandona a vida boémia e passa a concentrar-se
exclusivamente nos estudos, com o objetivo de garantir uma carreira futura e o sustento da família com
que sonhava.

Contudo, o ódio entre as famílias não permite que os jovens fiquem juntos: Tadeu de Albuquerque quer
impor a sua filha o casamento com o seu primo Baltasar Coutinho. No entanto, Teresa é, tal como
Simão, profundamente corajosa e obstinada. Assim, apesar de ser uma filha afetuosa, enfrenta
abertamente o pai, recusando-se terminantemente a casar com um homem que não ama. Como
represália, Tadeu de Albuquerque decide enclausurá-la num convento.

Quando se desloca para Viseu, de modo a estar mais próximo de Teresa, o protagonista instala-se em
casa de João da Cruz, um ferrador a quem o seu pai salvara de uma sentença de morte. Esta figura do
povo, de traços marcadamente realistas (inclusivamente pelo registo popular das suas falas), funcionará
como uma figura protetora para Simão, contrastando, pela sua dimensão pragmática, com o idealismo
do herói. Com efeito, não só hospeda e aconselha Simão, como lhe salva a vida aquando da emboscada
que é preparada por Baltasar Coutinho.

Quanto a Mariana, filha de João da Cruz, a jovem revela traços característicos da mulher-anjo do
Romantismo. Com efeito, entrega-se totalmente à sua paixão por Simão sem esperar nada em troca. O
seu amor por Simão leva-a a cuidar dele com desvelo maternal, chegando a entregar-lhe, sem que ele o
saiba, as suas economias. O seu espírito de sacrifício é tão grande que acede a garantir a comunicação
entre o seu amado e Teresa. Depois de Simão ser preso, Mariana chega ao extremo de abandonar o pai,
por quem nutria grande afeto, para cuidar dele. No fim, abraça-se ao cadáver do seu amado e morre
com ele.

Apesar de Teresa também ter características da mulher-anjo — pela sua pureza, fragilidade e pela sua
capacidade ilimitada de sofrer em nome do amor —, contrasta com Mariana, na medida em que o
afastamento de Simão que lhe é imposto a converte progressivamente numa figura ideal, cuja vida se
pauta cada vez mais por uma resistência passiva ao pai e ao primo. Em contrapartida, Mariana é uma
figura bem real, que tem um papel ativo na vida de Simão. Assim, ao aperceber-se de que ela o ama, o
protagonista mostra uma intensa perturbação, por não lhe ser possível corresponder a um sentimento
vivido de forma tão nobre.

Além disso, as qualidades de Mariana são também evidenciadas pelo seu pai, que sente um enorme
orgulho pela sensatez, coragem e determinação da filha — garantindo a Simão que, caso casasse com
ela (o que se lhe afigura impossível, em virtude P. Fedotov, A proposta de casamento do major (1848).
das diferenças sociais), seria muito feliz.

O afeto entre João da Cruz e Mariana contrasta com a relação que tanto Teresa como Simão mantêm
com os seus pais.

No primeiro caso, embora Tadeu de Albuquerque ame a filha (o que é percetível pelo desgosto que
evidencia no momento em que a espera à porta do convento de Viseu para a acompanhar até ao
convento de Monchique, no Porto), sobrepõe o seu ódio mesquinho e a obsoleta noção de honra à sua
felicidade. Quanto a Teresa, o afeto que nutre pelo pai leva-a a ser uma filha dócil em tudo aquilo que é
possível — à exceção das imposições relativas ao casamento, na medida em que o amor por Simão é tão
grande que se mostra disposta a abdicar de tudo — inclusivamente da própria vida — em seu nome.
Com efeito, acabará por morrer no convento, no momento em que assiste à partida de Simão para o
exílio.

A relação de Simão com os pais nunca é pacífica. Domingos Botelho recusa-se mesmo a interceder por
ele aquando da sua prisão e condenação à forca. Apenas o faz por imposição de um dos seus parentes.
D. Rita Preciosa pede-lhe, em vão, clemência. No entanto, o narrador acrescenta que o faz não tanto por
amor ao filho, mas sobretudo para contrariar o marido. Posteriormente, muito embora manifeste
preocupação em relação a Simão, é incapaz de providenciar o seu sustento, que é garantido por
Mariana. À exceção do afeto que nutre pela irmã mais nova, Rita, Simão parece estar assim muito
isolado no contexto familiar. Não é, pois, surpreendente que o amor por Teresa se converta na questão
mais importante da sua vida. Com efeito, também o protagonista, após três anos de uma luta inglória
em nome do amor, acabará por morrer, na sequência da notícia da morte da sua amada.

O AMOR-PAIXÃO
A apologia da liberdade individual feita pelo Romantismo, associada à valorização do amor — visto
como um dos sentimentos mais importantes (senão o mais importante) na vida do Homem — leva o
amor-paixão a ser um dos temas centrais das obras deste movimento.

É efetivamente isto o que sucede em Amor de perdição: como foi referido anteriormente, o narrador
assume uma posição subjetiva — salientando o carácter absurdo do ódio entre as duas famílias, bem
como a injustiça que está subjacente às tentativas, por parte de Tadeu de Albuquerque, de impor à sua
filha um casamento com um homem que ela não amava, e que a condenaria a ser infeliz para todo o
sempre. Em contrapartida, é louvado o carácter heroico de Teresa e de Simão, que, tendo consciência
da dimensão sublime da sua paixão, estão dispostos a abdicar da liberdade e, posteriormente, até da
própria vida, em seu nome. A morte não os intimida, dado que ambos encaram o amor como um
sentimento ideal, que, caso não possa ser vivido na Terra, será concretizado no Céu. Com efeito, ambos
estão seguros do carácter eterno da sua paixão, que não se coaduna com a mesquinhez de uma
sociedade movida por valores meramente terrenos.

O amor-paixão é também vivido por Mariana, na medida em que, como foi anteriormente referido,
apesar de ter consciência de que o seu sentimento não é correspondido, acabará por dedicar toda a sua
vida a Simão. Contudo, ao contrário dos protagonistas, esta personagem, pelo seu carácter prático, ao
invés de projetar na eternidade a esperança de ser amada por Simão, tem esperança de ser
correspondida ao acompanhá-lo no exílio. O pragmatismo não torna, no entanto, o seu amor inferior ao
de Teresa: sabe que a sua vida não faz sentido sem o amado e diz friamente que, caso este morra, se
suicidará — o que efetivamente acaba por suceder.

CONSTRUÇÃO DO HERÓI ROMÂNTICO


As narrativas e os dramas escritos durante o Romantismo criam a figura do herói romântico. Em traços
gerais, podemos defini-lo como uma personagem que acredita em valores elevados e «humanos» e se
move por ideais grandes e, regra geral, inalcançáveis: o amor, a justiça, a liberdade, a construção de um
mundo melhor, etc. A grandeza do herói romântico decorre também do facto de entrar em conflito com
a sociedade, numa luta desigual, por recusar as regras e convenções que esta impõe. A rebeldia termina
geralmente em desgraça ou frustração profunda (por exemplo, Carlos de Viagens na minha terra, de
Garrett).

Simão Botelho encarna a figura do herói romântico. O protagonista de Amor de perdição dedica a vida a
um amor idealizado e sem limites, por ele enfrenta a autoridade dos pais e as regras sociais e, por não
ser possível realizá-lo, acaba por morrer. Mas a elevação de carácter da personagem reside também
noutros nobres sentimentos e atitudes que o animam: a coragem que revela nos seus atos, a
determinação, o seu conceito de honra, o respeito pelos que não são da sua condição social (como
Mariana ou João da Cruz). Por exemplo, é sem hesitação que se entrega à justiça depois de matar
Baltasar ou que, no cárcere, recusa ser tratado com privilégios.

Por outro lado, o herói romântico é uma personagem de grande vitalidade, força e complexidade
interior. Traça um grande plano para a sua vida e dedica a existência ao cumprimento desse objetivo.
Simão Botelho move-se pelo ideal do Amor (do seu amor por Teresa) e sacrifica toda a vida a esse ideal.
A sua complexidade decorre das contradições e dos conflitos interiores.

O herói romântico é também uma personagem que se define pelo seu isolamento existencial:
individualista e egocêntrico, Simão distingue-se e demarca- -se das demais personagens e existe num
mundo que é só seu e diferente do dos outros homens.

Outro traço de Simão que faz dele um herói romântico é a oposição que se estabelece entre ele e a
sociedade, oposição que evolui para um conflito. A personagem opõe-se com todas as suas forças às
convenções, regras e ideias-feitas da sociedade, mas acaba por sucumbir nesse ato rebelde e heroico.
Simão contesta desde cedo as práticas sociais e os valores hipócritas e vazios que a comunidade
defende: um falso conceito de honra, a falta de integridade e de carácter, a falência dos valores
humanos e cristãos e dos sentimentos e laços de família. Meneses e Albuquerques cultivam ódios entre
si, os privilegiados sentem-se superiores aos desfavorecidos e o verdadeiro Amor não encontra espaço
para existir nesta sociedade.

A OBRA COMO CRÓNICA DA MUDANÇA SOCIAL


Se o Amor é o tema central de Amor de perdição — e se concretiza na forma de ideal do amor ou de
amor contrariado —, outros temas e questões sociais ganham especial relevância na novela, como a
noção de honra, as falsas virtudes ou a condição da mulher no início do século XIX.

Na verdade, Amor de perdição assume-se como uma crónica da vida em sociedade e dos costumes
desta época de mudança social e política na transição do Antigo Regime (Absolutismo) para a Época
Moderna do Liberalismo.

Na narrativa encontramos dois sistemas de valores, ideias e entendimentos do mundo em confronto:


por um lado, as noções de honra, de privilégio das classes sociais dominantes, de autoridade familiar e
de (falsa) virtude cristã, associados ao Antigo Regime; e, por outro, os valores de liberdade, igualdade,
justiça social, que o Liberalismo e o Romantismo vêm reivindicar.

As questões sociais são analisadas de forma crítica em Amor de perdição. O narrador denuncia e satiriza
os valores caducos da sociedade antiga (isto é, anterior à Revolução Liberal) e os comportamentos
sociais condenáveis — sobretudo da velha nobreza e do clero —, tais como a falência da justiça, as
práticas dos membros da Igreja (recordem-se as freiras do convento onde Teresa é encerrada), a noção
de autoridade paterna (de Domingos Botelho e de Tadeu de Albuquerque), cujas contradições são
expostas perante os olhos do leitor.

De facto, Amor de perdição é bem uma obra que, sendo romântica — veja-se a forma como se
expressam as emoções e como se veiculam os valores do Liberalismo —, anuncia já a narrativa da
atualidade (Buescu, 1997: 344-350), na medida em que estuda e critica a sociedade do seu tempo, ainda
que a ação se circunscreva ao início do século XIX e a uma região do Norte do País.

LINGUAGEM, ESTILO E ESTRUTURA


O NARRADOR
O narrador é uma entidade que existe no universo da história e que relata a ação. Contudo, em casos
como o de Amor de perdição, podemos associar o narrador à figura do autor, que assume ser o sobrinho
de Simão Botelho na frase final da novela: «A última pessoa falecida, há vinte e seis anos, foi Manuel
Botelho, pai do autor deste livro.»

O narrador de Amor de perdição é não participante; ainda assim, não relata a história de forma
imparcial e neutra. Na verdade, a narração é acompanhada por juízos emitidos sobre as personagens e
sobre a sociedade. O narrador apresenta a sua opinião, tira conclusões sobre episódios da intriga e
desenvolve reflexões e críticas sobre comportamentos sociais. Não raro estas intervenções assumem a
forma de julgamentos morais.

Em vários momentos, este narrador dirige-se diretamente a um narratário, que ele designa por «a
leitora» ou «o leitor». Desta forma cúmplice, envolve os leitores na avaliação do mundo e das
personagens da intriga e veicula as ideias centrais da obra.

OS DIÁLOGOS
A linguagem de Amor de perdição é dominada por um nível de língua corrente, mas outros níveis de
língua intervêm, consoante o enunciador que produz o discurso. Se o narrador se pode exprimir num
nível mais literário e culto, as personagens recorrem a uma linguagem familiar ou até regional e popular
( lembremo-nos de João da Cruz).

Consequentemente, a par de um léxico corrente encontramos palavras de um nível culto mas também
vocábulos populares e regionais.

Dominam na novela a frase curta e a coordenação, que contribuem para conferir ritmo e vivacidade à
narração dos acontecimentos. O uso do pretérito perfeito e a escolha cuidada dos verbos servem este
mesmo fim. Note-se o efeito de antepor o verbo às restantes palavras da frase («Conseguiu ele, sempre
balanceado da fortuna, transferência para Vila Real»). Já o adjetivo é usado com moderação.

Quanto ao uso de recursos expressivos destaque-se a subtileza da ironia na crítica social veiculada pelo
narrador ou por algumas personagens. Por outro lado, a metáfora é frequentemente usada para
exprimir os sentimentos das personagens. Neste ponto, importa também chamar a atenção para a
linguagem emotiva empregue por Simão e por Teresa na expressão dos seus sentimentos, que revela
influências do Ultrarromantismo.

Os diálogos merecem uma análise. Trata-se de momentos que nos lembram cenas dramáticas (isto é,
teatrais) e que são vivos, animados e carregados de tensão. Nota-se na novela uma tentativa de
reproduzir o modo de falar das figuras populares e regionais, como sucede com João da Cruz. Mas há
também a preocupação de utilizar um discurso rico e articulado em Domingos Botelho.

Os diálogos longos, plenos de virtuosismo, servem para fazer avançar a ação: recordem-se as palavras
trocadas entre Baltasar Coutinho e Simão antes de este o matar ou as conversas de Mariana com a
freira Joaquina ou com Teresa no convento (Capítulo X).

Os diálogos são também momentos em que as personagens se expõem e, por isso, revelam-se situações
privilegiadas de caracterização direta e indireta (através de comportamentos, da linguagem, etc.). Por
esse motivo, estão em muitos casos ao serviço da crítica social.

A CONCENTRAÇÃO TEMPORAL DA AÇÃO


A ação da novela é narrada de forma linear, relatando-se os acontecimentos por ordem cronológica. Há,
no entanto, momentos de retrospetiva (analepse), em que se narram antecedentes da ação. Por
exemplo, quando, no Capítulo I, se dá conta de antecedentes da família de Simão.

Inicialmente os acontecimentos são relatados em ritmo acelerado: o Capítulo I dá conta de momentos


da história da família ao longo de quatro décadas. Os demais capítulos centram-se na vida de Simão
Botelho e nos seus amores por Teresa. Aqui, os acontecimentos espraiam-se por um período de cerca
de três anos (de 1804 a 1807). Como resultado, não há uma proporcionalidade entre o tempo
cronológico e o tempo da narrativa.

Assim, se inicialmente a narração dos acontecimentos é rápida e avança a bom ritmo o relato de vários
acontecimentos, o ritmo abranda quando se trata o conjunto de peripécias relacionadas com o amor de
Simão e Teresa e o comportamento das duas famílias. Mais adiante, perde-se a noção de tempo quando
a narração se concentra na vivência interior desse amor, que é expressa em cartas e reflexões das
personagens.

Neste último momento, encontramos uma evocação dos sentimentos e dos factos passados pelos dois
amantes. O tempo psicológico manifesta-se aqui e traduz-se nos períodos de reflexão das personagens
(quando pensam um no outro) ou na espera de correspondência.

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