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3.

Capitulo III: O mistério e a natureza da Igreja:


- O Povo de Deus
- Corpo Místico de Cristo
- Templo do Espírito Santo

➢ A Igreja é definida como mistério (LG). Esta definição é a partir da sua união com
Deus ( sua origem: Cristo= mistério).
➢ No NT é possível constatar a existência de diferentes imagens da Igreja. Ela aparece como
verdadeiro e novo povo de Deus: a Igreja aparece como verdadeiro e novo Povo de Deus, o que
implica a fé em Deus e seu Cristo Senhor e Redentor, abertura para a universalidade dos diversos
povos, caráter histórico-encarnatório, igualdade fundamental e correspondência ao apelo da vontade
de Deus. Gl 3, 1-29; 1Cor 10, 1-13

NATUREZA DA IGREJA

Apresentada a Igreja, e conhecida a sua origem divina e finalidade


transcendente, é preciso agora indagar qual é a sua entidade, aquilo que é.
Entramos, pois, num capítulo de singular beleza, e também de densidade
doutrinal notável, que é a chave para compreender corretamente aquilo a que
nos referimos quando falamos da Igreja.

O mistério da Igreja

O Mistério da Igreja é o título do primeiro capítulo da Lumem Gentium, o


documento que o Concílio Vaticano II quis dedicar ao estudo da Igreja e para o
qual reservou a categoria máxima da Constituição Dogmática. A Igreja é
precisamente isso: um mistério.
Se bem que a novelística tenha popularizado o termo “mistério” como algo
tenebroso e temido, é mais apropriado entendê-lo como algo que é difícil
conhecer e esmiuçar. A acepção deste termo por esta segunda via é a que é
aplicada à Igreja, indicando que a sua realidade transcende a instituição visível
e ultrapassa as capacidades humanas de compreender e de dizer.

“É necessário meditarmos frequentemente, para não correr o risco de nos


esquecermos, que a Igreja é um mistério grande e profundo. Nunca poderá ser
abarcado nesta terra. Se a razão tentasse explicá-lo por si só, apenas veria a
reunião de pessoas que cumprem certos preceitos e pensam de forma
parecida. Mas isso não seria a Santa Igreja... Se admitíssemos apenas esta
parte humana da Igreja, nunca a entenderíamos, porque não teríamos chegado
à porta do Mistério” (Josemaria Escrivá).

A razão do mistério da Igreja pode procurar-se neste texto do Concílio Vaticano


II: “É característico da Igreja ser, simultaneamente, humana e divina, visível e
dotada de elementos invisíveis..., presente no mundo e, contudo, peregrina,
mas de forma que o que nela é humano se deve ordenar e subordinar ao
divino, o visível ao invisível..., o presente à cidade futura que buscamos” (SC
2).
Ou então neste outro, que especifica: “A sociedade organizada
hierarquicamente, e o Corpo místico de Cristo, o agrupamento visível e a
comunidade espiritual, a Igreja terrestre e a Igreja ornada com os dons
celestes, não se devem considerar como duas entidades, mas como uma única
realidade complexa, formada pelo duplo elemento humano e divino” (LG 8).
O divino e o humano relacionam-se na Igreja como uma única “realidade
complexa”, a tal ponto que não é o próprio falar de uma mera justaposição
entre a comunidade espiritual e a instituição social. Complementam-se ambas,
são autenticamente simultâneas. Daqui deriva que o mistério da Igreja só
encontre um ponto adequado de semelhança no mistério do Verbo de Deus
encarnado. Com efeito, tal como a humanidade serviu a Jesus Cristo como
instrumento de redenção universal, analogamente, Deus serve-se dos
elementos visíveis da Igreja, como instrumento para a salvação dos homens
(Cf. LG 8).

A presença sempre fundacional de Deus na Igreja é, em suma, a razão do


mistério da mesma. A Santíssima Trindade atua na origem, na fundação e em
cada um dos momentos do desenvolvimento eclesial, e igualmente na sua
finalidade salvífica e no destino último até à instauração definitiva do Reino de
Deus. A sua atividade leva-se a cabo, de fato, sem detrimento da cooperação
necessária dos elementos humanos e visíveis da Igreja.
Assim, percebe-se bem por que é que a incorporação pessoal da Igreja deve
realizar-se mediante o batismo em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo;
ou porque é que se invoca a Santíssima Trindade no princípio de qualquer ato
litúrgico; ou por que é que a profissão de fé do Credo tem uma estrutura
trinitária, assim como o cântico do Glória.

As imagens da Igreja

Afirmar que a Igreja participa do mistério do que é divino e que, por


conseguinte, o homem é incapaz de esgotar a sua compreensão, demonstra
apenas limitação da nossa inteligência e não equivale de modo nenhum a
negar ou desvalorizar as possibilidades de conhecê-la. Para nós são
acessíveis todos os elementos terrenos da Igreja, se bem que se torne
inimaginável a sua perfeita compenetração com os celestiais, bem como o seu
exato dinamismo salvífico. Reside aqui precisamente o seu mistério.

A projeção transcendente, a insondável profundidade, ou, se prefere, a


“intuição” global da natureza da Igreja foi-nos revelada por Jesus Cristo por
meio de diferentes imagens que se completaram, tomadas de realidades
próximas do homem. Para isto Jesus empregou uma pedagogia semelhante à
das parábolas que Ele próprio utilizou para anunciar o Reino de Deus.
O Concílio Vaticano II (Cf. LG 6) recolhe da Sagrada Escritura muitas destas
imagens. Por exemplo: redil,cuja única porta é Cristo (cf. Jo 10, 1-10); rebanho
de Deus que Cristo pastoreia (cf. Jo 10, 11-15); campo e vinha que o Senhor
cultiva (cf. 1Cor 3, 9; Mt 21, 33-34); edificação de Deus cuja pedra angular é
Cristo (cf. 1Cor 3, 9; Mt 21, 42); esposa a quem Cristo ama e se entrega para a
santificar (cf. Ap 22, 2.9; Ef 5, 25-26), etc.
Ainda são mais elaboradas e descritivas as imagens alusivas a cada uma das
Pessoas divinas da Trindade: Povo de Deus, Corpo místico de Cristo e Templo
do Espírito Santo.
Mesmo correndo o risco de parecermos repetitivos, torna-se oportuna uma
advertência, antes de passarmos a explicá-las. Tal como no caso das
parábolas de Jesus, ainda que cada uma das imagens diga algo sobre a Igreja,
nem mesmo o somatório de tudo o que sugerem nos permite abranger sua
natureza exata. Tal como disse o Sínodo dos Bispos de 1985: “estas
descrições da Igreja completam-se mutuamente e devem entender-se à luz do
mistério de Cristo ou da Igreja em Cristo” (cf. RFSB II, 3).

1. O Povo de Deus

Para sublinhar a importância desta imagem da Igreja, a Constituição Lumem


Gentium utiliza-a como título do segundo capítulo, que dedica inteiramente a
explicá-la.
A imagem reporta-se e enraíza-se na eleição de Israel, o antigo povo de Deus,
com que o Senhor fez uma aliança constituindo-o em reino sacerdotal e em
nação santa (cf. Ex 19, 6). Todavia, depois da aliança definitiva estabelecida
por Cristo, a Igreja é agora o novo Povo de Deus, conforme diz São Pedro aos
batizados: “Vós sois linhagem escolhida, sacerdócio real, nação santa, seu
povo para que proclameis as grandezas d’Aquele que vos chamou das trevas
para a sua luz admirável. Aqueles que outrora não éreis povo, sois agora o
povo de Deus” (1Pd 2, 9-10).
Segundo o que descreve o Concílio Vaticano II, a Igreja enquanto Povo de
Deus:
- é um povo sacerdotal, que oferece sacrifícios de louvor a Deus e anuncia as
suas maravilhas (cf. LG 10);
- tem Cristo como cabeça;
- a cidadania adquire-se por nascimento do Espírito Santo, e traz consigo a
dignidade e a liberdade dos filhos de Deus;
- a sua lei é o novo mandamento do amor;
- a sua finalidade é dilatar cada vez mais o Reino de Deus;
- é instrumento de Cristo para a redenção de todos os homens;
- e peregrina na terra até à consumação do Reino de Deus no fim dos tempos
(cf. LG 9).
A imagem de Povo de Deus faz sobressair mais alguns elementos visíveis da
Igreja; entre eles, a comum dignidade essencial dos fiéis e o dever que
corresponde a todos de prestar culto a Deus e de contribuir para a expansão
missionária da Igreja. Os elementos invisíveis vislumbram-se na constituição do
povo pelo Pai, o governo de Cristo, e a comunhão com Deus e entre si, de
todos os concidadãos pelo Espírito Santo.
2. Corpo místico de Cristo

São Paulo, que utiliza repetidamente esta imagem, explica que “assim como
num só corpo temos muitos membros, ainda que nem todos tenham a mesma
função, assim também nós, sendo muitos, somos um só corpo em Cristo e
todos membros uns dos outros” (Rm 12, 4-5). Cristo “é a cabeça do corpo da
Igreja” (Col 1, 18).

Através da imagem de Corpo místico de Cristo, a Igreja reconhece-se como:


- Um organismo espiritual, não redutível apenas às suas estruturas visíveis;
- Animado por uma alma que é o Espírito Santo;
- Dirigido pela sua cabeça, Cristo;
- Cujos membros são os fiéis cristãos, que se unem com a cabeça e entre si
por meio do batismo e se fortalecem com a recepção da Eucaristia e dos outros
sacramentos;
- Em que cada membro realiza a sua função própria, e alguns – a hierarquia –
tarefas essenciais para o conjunto. Todo o corpo deve crescer harmonicamente
e todo ele se ressente quando qualquer dos seus membros sofre (Ibid).
Jesus e a Igreja, a cabeça e os membros do Corpo místico, constituem, numa
bela expressão de Santo Agostinho, o “Cristo total” (Santo Agostinho, Sobre a
unidade da Igreja, 4, 7).

A imagem de Corpo místico de Cristo faz sobressair mais os elementos


invisíveis da Igreja: a comunhão espiritual que, dirigida por Cristo e orientada
pelo Espírito Santo, se dá entre todos os fiéis. No entanto, apresenta a Igreja
simultaneamente como uma sociedade visível, cujos membros estão
estruturados hierarquicamente.

3. Templo do Espírito Santo

Para aplicarmos esta imagem à Igreja, encontra-se apoio na Sagrada Escritura,


embora de forma indireta. Assim, São Paulo diz aos coríntios: “Não sabeis que
sois templo de Deus e que o Espírito de Deus habita em vós?... O templo de
Deus é santo, e esse templo sois vós” (cf. 1Cor 3, 16-17).

Esta imagem, menos completa do que as anteriores, foi também menos tratada
pela teologia. Santo Agostinho torna mais ampla sua aplicação: “Deus habita
no seu templo; não apenas o Espírito Santo, mas também o Pai e o Filho... Por
isto, templo de Deus ou seja de toda a Trindade, é a santa Igreja, tanto a do
céu como a da terra” (Santo Agostinho, Enchiridion 56, 15). O Concílio
Vaticano II cita-a inúmeras vezes sem, contudo, a desenvolver (cf. LG 9, PO 1,
AG 7). E o Catecismo dedica-lhe uma epígrafe breve (cf. CIC 797-798),
reunindo vários aspectos da atividade do Espírito Santo como “alma” da Igreja.

Na realidade, isto é o que precisamente indica a imagem: a presença da


terceira Pessoa da Trindade como princípio vital, aglutinador e santificante do
Povo de Deus e Corpo místico de Cristo. Por isso, com palavras de Santo
Ireneu, “ali, onde está a Igreja, está também o Espírito de Deus; e onde está o
Espírito de Deus, está a Igreja e toda a graça” (Santo Ireneu, Adversus
haereses 3, 24, 1).

“Templo”, na sua acepção corrente, significa o edifício em que Deus “habita” e,


portanto, onde o homem O encontra e Lhe presta culto. À luz destes
significados, Templo do Espírito Santo indica igualmente que a Igreja:

- É o lar familiar da Trindade, o seu reduto predileto e mais íntimo, sede e fonte
do amor e do Dom próprios do Espírito Santo, isto é, a caridade e a
generosidade infinitas de Deus para com os homens;

- Abriga a fé segura do cristão e a esperança perene de qualquer homem;


- Tem uma tarefa fundamental de culto e serviço a Deus.

Comunhão na Igreja

“Comunhão” é uma palavra chave, noção essencial em que se decantam as


imagens anteriores. É a mais apropriada que a Igreja possui sobre si própria
(atualmente é claro, visto que sempre pode acontecer que o Espírito Santo
queira ainda enriquecer nos tempos futuros o auto-conhecimento da Igreja,
através de sucessivos aprofundamentos teológicos). Vamos apresentá-la
através de diversas citações do Magistério.

“O conceito de ‘comunhão’ é muito adequado para expressar o núcleo profundo


do mistério da Igreja”, afirma a Congregação para a Doutrina da Fé numa carta
dedicada ao seu estudo. O Sínodo dos Bispos de 1985 faz sobressair que “a
eclesiologia de comunhão é a ideia central e fundamental dos documentos do
Concílio Vaticano II”.

E João Paulo II escreve: “As imagens bíblicas com que o Concílio nos quis
iniciar na contemplação do mistério da Igreja, iluminam a realidade da Igreja-
Comunhão na sua inseparável dimensão de comunhão dos cristãos com
Cristo, e de comunhão dos cristãos entre si” (ChL 19).

“Comunhão” significa comum união, comunidade – comum unidade – de vários,


forte identificação espiritual de dois ou mais, interioridade mútua entre si. Tudo
isto implica diversidade e complementariedade, quer dizer, que seres distintos
mantêm entre si uma concordância anímica e intencional. E isso é
precisamente o mistério da comunhão na Igreja: a união dos homens, não só
com Deus (dimensão vertical), mas também entre si (dimensão horizontal).

A comunhão abrange todos os elementos da Igreja. Assim, “na sua realidade


invisível, é comunhão de cada homem com o Pai, por Cristo e no Espírito
Santo, e com os outros homens comparticipantes da natureza divina, da paixão
de Cristo, da mesma fé, do mesmo espírito. Na Igreja terrena existe uma íntima
relação entre esta comunhão invisível e a comunhão visível na doutrina dos
Apóstolos, nos sacramentos e na ordem hierárquica”.

Todos estes aspectos da comunhão eclesial podem dividir-se noutros mais


específicos. Convém que apontemos aqui três de entre eles:
- A comunhão dos santos, quer dizer, a inter-comunicação de bens salvíficos
divinos entre os fiéis da terra, e também com os do céu e os do purgatório;
- A comunhão orgânica, caracterizada pela complementariedade das diversas
vocações e condições de vida, ministérios, carismas e responsabilidades que
se dão na Igreja (cf. ChL 20);
- A comunhão missionária, que é a participação e co-responsabilidade de
todos os membros na missão que Cristo indicou à Igreja na terra (cf. ChL 32).

Uma definição da Igreja

Se definir é delimitar os traços essenciais de alguma coisa, será então possível


dizer o que é a Igreja, qual é a sua natureza? Devido às junções do Concílio
Vaticano II e dos textos posteriores do Magistério, os autores tendem a dar
uma resposta afirmativa, baseando-se precisamente na comunhão e na
sacramentalidade.

A Igreja é o sacramento da comunhão dos homens com Deus e entre si por


Cristo no Espírito Santo.
Não se pode pensar, contudo, que, com esta definição, fica desvendado o
mistério da Igreja, pois, qual é a mente humana que consegue compreender o
que é sacramentalidade de comunhão de que se fala? O elemento divino da
Igreja torna sempre imperscrutável ao homem a profundidade do seu mistério,
por muito que a definição indicada consiga delimitar, ou melhor, alcançar a
“intuição” global da sua natureza.

Chegados aqui, convém enfrentar uma dificuldade de tipo prático que a


definição dada apresenta. Referimo-nos à sua elevação teológica, que para
muitos pode parecer demasiado abstrata e inclusive afastada da realidade
eclesial visível. Como em qualquer outro ramo do saber, a solução do problema
reside em fórmulas simples, neste caso catequéticas, de apresentação da
Igreja.

As fórmulas admitem uma grande variedade, consoante for a complexidade


verbal e o maior ou menor número de elementos descritivos que se
empreguem. São úteis na medida em que se adaptam às condições
intelectuais e doutrinais dos fiéis. Ora bem, para serem válidas e verdadeiras,
têm necessariamente de conter alguma referência mais ou menos explícita à
dimensão transcendente da Igreja.

Um exemplo possível: “A Igreja é a instituição fundada por Cristo para a


salvação das almas”. Mais outras: “é o Povo de Deus (e/ou o Corpo místico de
Cristo), formado pelos batizados que professam a mesma fé em Jesus Cristo,
participam dos mesmos sacramentos e permanecem unidos ao Romano
Pontífice (ou aos legítimos pastores)”.

“Povo de Deus”, “Corpo místico de Cristo”, “salvação das almas”, são os


termos com que esses exemplos nos remetem para o mistério da Igreja. E, em
virtude de cumprirem essa condição de validade e veracidade, tais fórmulas
não só dão a conhecer de alguma maneira a natureza transcendente da Igreja,
mas também servem para marcar a diferença nítida com qualquer tipo de
instituição ou organização humana seja ela qual for.

Instituto Superior de Teologia


Eclesiologia - 2012
Prof. Pe. José Li Guozhong
I A Igreja, o Povo de Deus
1. A origem da Igreja
A Igreja de Cristo era em princípio a comunidade cristã palestinense com centro em
Jerusalém. Porém, rapidamente foram surgindo inúmeras outras igrejas particulares ou
locais, que eram verdadeiras Igrejas de Cristo.1 Não consiste, pois, a essência da Igreja
apenas em ser, pela ação do Espírito Santo, uma congregação de pessoas reunidas pela
Palavra de Deus e pela Eucaristia, em união com o pastor. Vai além disso. Trata-se de
congregação de pessoas que, pela ação do Espírito Santo, partilham a fé, a esperança
escatológica e a caridade, abertas com seus pastores à Eucaristia, e enraizadas no mundo
concreto e determinado que precisa da essência redentora da Igreja.

A história da Igreja, e a história da inteligência do que é a Igreja, começaram no Novo


Testamento. Os escritos neotestamentários dão-nos a conhecer não apenas os
condicionamentos prévios e os alicerces da história da Igreja e da inteligência do que
vem a ser a Igreja. Dão-nos já a conhecer as primeiras fases decisivas da história da
Igreja e da consciência que ela tem de si mesma, uma história complexa, que nada tem
de unilinear. Já no próprio Novo Testamento, e não apenas em fontes posteriores, é
possível constatar a existência de diferentes imagens da Igreja.

Há diferenças muito significativas entre as imagens da Igreja esboçadas em Mateus e


em Lucas; entre a imagem da Igreja do Evangelho segundo João e a das Epístolas aos
Efésios e aos Colossenses; entre essas imagens nas quatro grandes Epístolas de São
Paulo e nas epístolas pastorais que fazem parte dos escritos tardios do cânon
neotestamentário. É indubitável que as imagens da Igreja aparecem de preferência nas
grandes epístolas paulinas, ao passo que as concepções eclesiológicas em que o
ministério passa a primeiro plano se apoiam de preferência nos Atos dos Apóstolos e
nas epístolas pastorais.2

2. A Igreja como o Povo de Deus


Nos escritos do Novo Testamento, a Igreja aparece como verdadeiro e novo Povo de
Deus, o que implica a fé em Deus e seu Cristo Senhor e Redentor, abertura para a
universalidade dos diversos povos, caráter histórico-encarnatório, igualdade
fundamental e correspondência ao apelo da vontade de Deus.3 E assim como a escolha
de Israel e a pertença ao seu resto representava um privilégio, se bem que isto se tenha
dado para o serviço dos povos, assim também a escolha da Igreja é para muitos.

2.1. Do antigo ao novo Povo de Deus


O novo Israel, o Povo de Deus, estava fundado no momento mesmo em que os
discípulos de Jesus começaram a anunciar com fé não só a mensagem de Jesus, mas a
própria pessoa de Jesus como realização dessa mensagem. Exortava os concidadãos a
que, sem abandonarem Israel, se associarem a Ele e o levassem inteiramente a sério,
como no a kehal Jahwe do Fim dos Tempos, na verdadeira comunidade de salvação
do Fim dos Tempos. Mas quando a grande maioria do povo disse não à mensagem da
comunidade dos discípulos, era inevitável que, com o tempo, a comunidade se
mostrasse também tal qual era: a verdadeira e nova Ecclesia Dei, o verdadeiro e novo
Israel, o verdadeiro e novo Povo Deus, constituído de judeus e gentios.4

1
Cf. PEREIRA, Igrejas particulares e entidades que as congregam, p. 1-2.
2
Ibid.
3
Cf. KÜNG, A Igreja, V.1, p. 178.
4
Cf. Idem., A estrutura fundamental da Igreja, p.162. Cf. também Ef 2, 14-16.
2.2. Significado do nome Israel
Israel 5 significa originariamente Deus domina e é o nome da união das doze tribos de
Israel. Significa, simultaneamente, pertença a um povo e a uma religião. É por isso um
nome sagrado dos escolhidos de Iahweh reunidos para lhe prestarem culto. Depois da
queda do Reino do Norte e da deportação do ano 722, passa o nome de Israel ao que
restava do Reino do Sul e torna-se de novo designação para todo o povo; designação
que já não tem primariamente um significado político, mas é antes uma autoqualificação
do povo escolhido a que, ainda assim, só podem pertencer, agora como antes, os que
pelo sangue são membros deste povo.

A esta nova interpretação estava intimamente ligada a esperança crescente na salvação


escatológica de Deus, que restauraria o reino de Israel das doze tribos, após o exílio.
“Israel” é interpretado cada vez mais escatologicamente, à luz da restauração do Povo
de Deus no fim dos tempos.

Também no Novo Testamento se emprega o termo Israel para designar o Povo de Deus
do Antigo Testamento, no que se pode ver uma designação religiosa corrente, sem
acento especial, ou também uma exaltação do caráter específico desse povo. Nenhum
dos Evangelhos deixa entrever uma extensão do nome ao novo Povo de Deus da Igreja.

São Paulo utiliza o termo para indicar o antigo Povo de Deus, 6 embora se sentisse, em
virtude da falta de fé da maioria de seus concidadãos, diante da dolorosa necessidade de
uma distinção: a pertença pelo sangue à raça de Israel não significa ainda pertença
verdadeira ao Povo de Deus. O apóstolo qualifica, portanto, o Israel descrente “Israel
segundo a carne”, que não avança até a expressão que lhe está próxima: "Israel
segundo o Espírito".
Concluímos, então, que não se deve recusar ao antigo Povo de Deus o nome de Israel,
mesmo depois de Cristo. Igualmente o nome não deve ser retirado para simplesmente
transportar-se à Igreja do Novo Testamento, que se encontra ligada a Israel não só
histórica e exteriormente, mas com vínculo atual e intrínseco.

2. 3. Significado do Povo de Deus 7


No Antigo Testamento, encontramos duas palavras para designar Povo de Deus: goi,
correspondente a , que é geralmente usada para os povos gentios; e am que é
regularmente usada para Israel e não se emprega no sentido de população, multidão,
gente, mas no sentido de tribo, comunidade rácica. A própria escolha das palavras
exprime a peculiar dignidade de Israel: é ele o Povo de Deus 8, que por isso mesmo se
distingue dos gentios.
Com a noção de Povo de Deus estamos no cerne da fé israelita. Toda a crença israelita
se resume na seguinte afirmação: Javé é o Deus de Israel e Israel é o Povo de Javé. Este
é o sentido da missão de Moisés: “Portanto, dirás aos filhos de Israel: Eu sou Iahweh,
por meu povo e vos farei sair de debaixo das cargas do Egito, vos libertarei da sua
5
Cf. Dicionários bíblicos e teológicos, especialmente ThW II, p. 356-394.
6
Cf. Rm 9-11: São Paulo afirma que é a justificação pela fé que faz o homem justo (Abraão). Assim também a salvação
dada com o Espírito pelo amor de Deus no caso de Israel, infiel, embora tenha recebido as promessas da salvação.
7
Cf. Dicionários bíblicos e teológicos, especialmente ThW II, p. 356-394.
8
Cf. 1 Pd 2,10: "Agora sois Povo de Deus".
escravidão e vos resgatarei com mão estendida e com grandes julgamentos. Tomar-vos-
ei, e serei o vosso Deus.” 9 Este é também o sentido da revelação divina do Sinai:
“Agora, se ouvirdes a minha voz e guardardes a minha aliança, sereis para mim uma
propriedade peculiar entre todos os povos, porque toda a terra é minha. Vós sereis para
mim um reino de sacerdotes e uma nação santa”.10 Também é este o sentido da Aliança:
“Voltar-me-ei para vós e vos farei crescer e multiplicar, e confirmarei a minha aliança
convosco. Estabelecerei a minha habitação no meio de vós e não vos rejeitarei jamais.
Estarei no meio de vós, serei o vosso Deus e vós sereis o meu povo ”.11

Iahweh é o Deus de Israel e Israel é o seu Povo. Esta é a idéia central que determina os
outros escritos do Antigo Testamento. Portanto, Deus e o seu Povo pertencem um ao
outro, estão entre si ligados através da Aliança que Deus, na sua livre e poderosa graça,
firmou com este povo pequeno, diminuto, fraco e pecador. A Aliança é mais que um
tratado. Significa uma comunidade de vida. Deus concede ao seu povo vida e bênção, e
Israel deve ao Deus da Aliança honra e obediência.

Observamos que a pertença recíproca de Deus e do seu povo não se apoia, de modo
algum, em uma necessidade natural, mas na ação livre e histórica de Deus na história do
seu povo. Deus escolheu Israel por espontânea e livre vontade. Formou seu povo eleito
com amor e fidelidade. Eis os elementos constitucionais do Povo de Deus:

a) Deus o prefigura já no alvorecer da história, na eleição dos patriarcas a quem fez as


promessas;
b) Ele atua no cativeiro no Egito como condição para a transformar Israel em um povo;
c) Deus atua no estabelecimento da Aliança e na legislação do Sinai, onde o povo se
constitui Povo da Aliança;
d) Ele atua também, na apropriação da terra de Canaã, na fundação do Estado, na
fundação e condução do Reino, na sua própria presença, que é bênção, no Templo de
Sião. A atuação histórica de Deus determina a Aliança e o Culto, a Lei e o Direito, a
guerra e a paz.12

Israel porém não correspondeu ao dom gratuito. Sabemos que a história de Israel é uma
história de pecado, de fracasso, de desobediência, de queda e de infidelidade. Assim,
cai Israel cada vez mais na crise, simultaneamente política e religiosa, culminando na
queda do Estado compreendida como castigo e condenação pelos pecados do povo.13
A Israel no cativeiro os profetas anunciavam a misericórdia e a nova eleição de Deus,
que o constituirá de novo seu povo e com ele fará nova aliança, contanto que se
converta. É assim que cada vez mais o acento da pregação profética transportou-se do
presente para o futuro em que se aguardava uma nova intervenção escatológica por
parte de Iahweh. Os profetas Jeremias e Ezequiel a anunciam:
"Dar-lhes-ei um só coração, porei no seu íntimo um espírito novo:
removerei de seu corpo o coração de pedra, dar-lhes-ei um coração de
carne, a fim de que andem de acordo com os meus estatutos e guardem as

9
Cf. Ex 6,6s.
10
Cf. Ex 19,5s.
11
Cf. Lv. 26,9.11.12.
12
Cf. KÜNG, A Igreja, V.1, p.167.
13
Ibid,, p.167-168.
minhas normas e as cumpram. Então serão o meu povo e eu serei o seu
Deus".14

O que anteriormente se afigurava como posse presente torna-se agora aspiração de


promessa para o futuro. Israel, Povo de Deus, torna-se um conceito escatológico;
Iahweh tornar-se-á de novo o Deus de Israel, Israel voltará a ser o povo de Iahweh; o
Fim dos Tempos restaurará o começo dos tempos. E os israelitas serão chamados
“filhos do Deus vivo” (Os 2,1 ), “sacerdotes de Iahweh”, “ministros do nosso Deus” (Is
61,6). Serão um novo povo com um coração novo e um espírito novo. O Espírito do
Senhor será derramado sobre todo o povo ( Jl 3,1) e a circuncisão do coração tomará o
lugar da circuncisão da carne. 15 Esta expectativa escatológica da restauração do povo
de Deus rompe a estreiteza nacionalista; abre-se para a universalidade.16

No Novo Testamento  emprega-se inicialmente como na edição dos LXX. No


entanto dá-se no Novo Testamento um passo para além da edição dos LXX:  é
também usado para comunidade dos discípulos, a comunidade de Jesus Cristo. Isto
sucede não somente nos Evangelhos, mas também na restante literatura
neotestamentária. O título não é empregado em relação a Israel; é todavia ao lado de
Israel que surge um novo Povo de Deus constituído finalmente por judeus e gentios.17

2. 4 Igreja como o Povo de Deus, hoje


A Igreja é o verdadeiro povo de Deus, pois todos os que têm fé em Cristo são povo de
Deus. Todos são a estirpe eleita, o sacerdócio régio, o povo santo. Todos os membros
deste Povo de
Deus são chamados por Deus, justificados em Cristo, santificados no Espírito Santo.
Aqui se acha excluída da Igreja a clerização.

Se a Igreja é verdadeiramente o Povo de Deus, é impossível dissociar entre si Igreja e


leigos, como se os leigos não fossem, precisamente em sentido pleno, o . A
palavra  não representa, no Novo Testamento nenhuma diferenciação entre
sacerdotes (clérigos) e povo (leigos) dentro da comunidade. Mais do que isso, significa
uma pertença mútua à única comunidade de um povo. E a partir daqui expressa uma
diferenciação para fora: a separação de (todo) o Povo de Deus do não-povo, do mundo,
dos gentios. 18

É certo que dentro do Povo de Deus do Novo Testamento também existem diferenças,
das quais se voltará a falar. Há diferentes carismas, ministérios, tarefas, serviços,
funções. Entretanto, por mais importantes que sejam, estas diferenças não são marcadas
com a palavra ou  e não invalidam a igualdade fundamental deste povo.

A Igreja é o Povo de Deus, porque todos são chamados por Deus: está excluída uma
concepção individualista da Igreja. Igreja nunca é simplesmente um encontro livre de
pessoas com a mesma opinião religiosa. Igreja é sempre e em toda a parte fundamentada
14
Cf. Ez 11,19-20; 14,11; 36,26-29; 37, 23; Jr 7,23; 24,7; 30,22; 32,37-40.
15
Cf. Jr. 4, 4; Dt 30,6.
16
Cf. KÜNG, A Igreja, V.1, p. 163-169.
17
Cf. KÜNG, A Igreja, V. 1, p. 170.
18
Ibid., p. 181-182.
na prévia escolha e chamamento livre de Deus, que quer a salvação de todos os homens.
Não há Igreja sem a livre graça e amor de Deus! 19 O que resultou do conceito de Igreja,
concretizou-se aqui a partir da história da Antiga e da Nova Aliança.

Assim é também na Nova Aliança. As vocações, porém, conforme são contadas por
cada discípulo, são apelos para o serviço, do Povo de Deus escatológico, do Povo de
Deus que novamente é chamado como um todo; um todo que é “raça escolhida” (1Pd
2,9). Todo o Povo de Deus é assim constituído por "santificados" (1Pd 2,10), “Nele ele
nos escolheu antes da fundação do mundo, para sermos santos e irrepreensíveis diante
dele no amor.” 20 E Deus é livre na sua escolha. Deus e o seu povo não fizeram
Aliança um com outro no mesmo plano; é Deus quem faz com o povo a Aliança que,
como toda a vocação de Deus, é graça e dom.

É claro que a Igreja é constituída por indivíduos. Não se trata simplesmente de


indivíduos comuns, mas de indivíduos chamados, que se tornam membro da Igreja. A
Igreja é algo de essencialmente mais do que a soma de indivíduos e mais do que o
produto de um instinto gregário religioso. É o próprio Deus que reúne, em redor de si, o
seu povo, atraindo pessoas de cada povo e de cada classe, de cada cidade e de cada
aldeia. É por isso que a Igreja nunca é simplesmente uma instituição, mas é sempre a
instituição de Deus.

A Igreja é o povo de Deus. Pois todos os que são do Povo de Deus seguramente o são
através de uma decisão humana. Aqui uma hipostasiação da Igreja tem que ser excluída.
A Igreja, sempre e em toda a parte, existe somente com base na aceitação da liberdade
humana. Assim como não há nenhum povo de Deus sem a livre graça e amor de Deus,
assim também não há nenhum povo de Deus sem a fé e a obediência livres do homem
chamado; fé e obediência que têm de ser vividas sempre de novo!

Este Povo de Deus, que assim é congregado, nada tem que ver com um rebanho de
ovelhas desprovidas de vontade. Não existe, portanto, qualquer espécie de pertença
à Igreja herdada por nascimento, descendência ou tradição. Não há pertença sem a fé
pessoal. A Igreja, enquanto comunidade, é essencialmente mais do que a soma de
indivíduos. É a comunidade dos que crêem, daqueles que Deus reuniu para serem o seu
povo. Sem este povo que crê, a Igreja não existe. Somos nós a Igreja. Sem nós, fora de
nós, acima de nós não tem a Igreja existência real. É a comunidade dos crentes, idêntica
ao novo Povo de Deus, que constitui a estrutura fundamental da Igreja. 21

Instituto Superior de Teologia


Eclesiologia - 2012
Prof. Pe. José Li Guozhong

II A Igreja, o Templo do Espírito Santo

19
Cf. KÜNG, A Igreja, V. 1, p. 183.
20
Cf. Ef 1,4.
21
Cf. KÜNG, A Igreja, V. 1, p. 177-185.
A Igreja é o Povo de Deus escatológico, o Povo de Deus do Fim dos Tempos. Deus está
presente na Igreja através do seu Espírito. A Igreja torna-se então a obra e instrumento,
sinal e testemunho do Espírito de Deus que a enche. Ela é um edifício espiritual, não
que seja uma Igreja do espírito, no sentido espiritualista. Mas estas pessoas, esta
comunidade com tudo o que manifesta de humano, são templos de Deus. O Espírito
habita nela. Os que nela se encontram pelo Espírito devem viver espiritualmente.

1. A Igreja do Espírito
A comunidade singular é obra do Espírito. 22 Sabemos que esta imagem do templo
espiritual não é uma imagem ideal, usada por uma Igreja ideal. É imagem usada a
respeito da comunidade singular. É empregada relativamente à comunidade de Corinto,
por nós particularmente bem conhecida, em que os santos 23 se manifestavam
excessivamente não santos, segundo as duas epístolas paulinas dirigidas àquela
comunidade.

Justamente esta santa comunidade não santa é intitulada Templo do Espírito: “Não
sabeis que sois um templo de Deus e que o Espírito de Deus habita em vós?” (1Cor
3,16). Embora aquela Igreja precisasse ser admoestada para que vivesse segundo o
Espírito, ela existe no Espírito, ou seja, o Espírito mora nela. O poder transformador de
Deus, a sua força viva, tomou posse dela através de Cristo, apossou-se dela em toda a
sua existência e penetrou-a . Apesar de tudo o que ela tem de humano, está nela presente
e atuante o próprio Deus em Espírito, o próprio Senhor. A Igreja é o lugar da especial
presença de Cristo. Por ser o novo templo espiritual, prescinde do templo de pedra.24

A Igreja inteira é edificação do Espírito.


“Portanto, já não sois estrangeiros e adventícios, mas concidadãos dos santos
e membros da família de Deus. Estais edificados sobre o fundamento dos
Apóstolos e dos Profetas, do qual é Cristo Jesus a pedra angular. Nele bem
articulado, todo o edifício se ergue em santuário sagrado, no Senhor, e vós,
também, nele sois co-edificados para serdes uma habitação de Deus, no
Espírito.”25

A estrutura interna do edifício do Espírito encontra-se aqui exatamente descrita. Os que


constituem o fundamento deste edifício do Espírito são os enviados e constituídos
diretamente por autoridade apostólica ou por autoridade carismática e profética. São
aqueles que apresentam como fundamento a Palavra de Cristo (Cf. 1Cor 3,11). E todos
aqueles que crêem em Cristo são as pedras vivas (1Pd 2,4). Tanto os judeus como os
gentios, todos são co-edificados como morada de Deus no Espírito.26

O Espírito é aquele por cuja força e poder existe toda a construção. A Igreja é, pois, um
edifício que surgiu pela força do Espírito do Senhor e que subsiste na força e pela força
do Espírito. É o Senhor glorificado quem dá seu Espírito e, com isso, torna Igreja
aqueles que são seus. No único Espírito, em um só Corpo, todos têm acesso ao único
22
Cf. 1Cor 3,16-17
23
Cf. Ef 2, 19
24
Cf. KÜNG, A Igreja, V.1, p. 242-243.
25
Ef 2, 17-22.
26
Cf. KÜNG, op. cit., p. 244 .
Deus. Por isso, é o Espírito quem faz da Igreja uma realidade cada vez mais espiritual:
“casa, templo, construção em Espírito, ou casa espiritual”.27

Uma vez edificados os crentes, eles próprios passam a construir o edifício espiritual
(1Pd 2, 4-7). A Igreja é morada espiritual de Deus. Cristo é a pedra principal, pedra
angular, que suporta e mantém unida toda a casa. Somente através de Cristo, que vive,
são também os cristãos pedras vivas, enquanto libertados da morte. É assim que, sobre
Cristo, pedra fundamental, se edifica a Igreja com os fiéis como casa espiritual e não
como templo terreno, material. O templo é eclesial-espiritual e subsiste no Espírito,
vivificado por ele no íntimo de cada um de seus membros.

2. A Igreja e o Espírito
Quando afirmamos que a Igreja é obra do Espírito, não nos referimos apenas a uma
união entre o Espírito e a Igreja, mas acentuamos também uma não menos importante
diferença. É precisamente esta diferença que, na Sagrada Escritura, é sempre
pressuposta e, expressamente posta em evidência. É preciso que a Igreja de hoje, por
amor de sua unidade, dê a essa diferença uma importância especial.

Entre o Espírito de Deus e a Igreja há uma relação de união constitutiva e vivificadora,


não uma relação de identidade. O Espírito Santo não é a Igreja, mas sim o Espírito de
Deus. A Igreja está submetida ao Espírito de Deus. É aqui que se estabelece a liberdade
fundamental do Espírito Santo. Do mesmo modo como o Espírito não é simplesmente
do cristão ao habitar nele, assim também não é ele da Igreja.

Em nenhuma parte do Novo Testamento o Espírito Santo é tratado como Espírito da


Igreja. Ele não é doação, poder e força da Igreja, mas de Deus. É através dele que Deus
age na Igreja, se manifesta à Igreja, vem até a Igreja, fundamenta e sustenta a Igreja. 28
É ele que conduz a Igreja, mas não se faz no espírito próprio da Igreja. É por isso que
ele permanece o Espírito livre.

A Igreja somos nós. Trata-se de uma comunidade humana, de pessoas que crêem em
Cristo. Apesar de toda a ligação, não existe identidade; existe antes uma distinção
fundamental entre o Espírito de Deus e a instituição que é a Igreja.

A Igreja, como já se disse, somos nós, os justificados e sempre pecadores, comunidade


dos reunidos e sempre dependentes do perdão (communio sanctorum).Perdoados, vamos
precisar recorrer de novo ao perdão (remissio peccatorum). A contrição do retorno é a
forma de demonstrar que cremos no Espírito Santo (credo in Spiritum Sanctum). Em
contraste com isso, e em última análise, temos nossa confiança depositada na Igreja e
não em nós mesmos.29

O Espírito precede a Igreja. Ele é o princípio da existência da unidade vital da Igreja e


de toda a existência cristã. É nele que Deus cria a Igreja, e a cria sempre de novo, a
partir daqueles que crêem. “E ninguém pode dizer: ‘Jesus é Senhor’ a não ser no
27
Ibid., p. 244 .
28
Cf. LG, 4: A missão do Espírito Santo na Igreja.
29
Cf. KÜNG, A Igreja, Vol. I, p. 250-251.
Espírito Santo” (1Cor 12,3). A Igreja existe na medida em que o Espírito atua e, cada
dia, existe de novo: Emitte Spiritum tuum et creabuntur! É no Espírito que reside o
começo, a continuação e o termo. Tudo permanece nele que, na liberdade do seu poder e
força, é o Senhor supremo da Igreja.

O Espírito de Deus não pode ser limitado na sua atuação pela Igreja. Ele atua onde quer,
como quer e quando quer. Ele age não só nos cargos eclesiásticos, mas também no povo
de Deus. Ele não atua apenas na cidade santa, mas em todas as igrejas da única Igreja.
O Espírito Santo não atua apenas na Igreja Católica, mas em toda a cristandade. E não
atua apenas na cristandade mas, novamente, onde quer, em todo o mundo.30

Além disso, o Espírito de Deus não está sujeito a lei alguma; não está submetido a
qualquer outro direito, senão o direito da sua própria graça; não está sob qualquer poder,
exceto o da sua própria fidelidade. O Espírito Santo não é governado pela lei da Igreja,
pelo direito ou pelo poder da Igreja. É ele próprio quem domina soberanamente a lei da
Igreja, o direito e o poder da Igreja. A atuação de Deus, em Espírito, é realizada na
Igreja que é formada pelos crentes.31 Isto se tornará mais claro. A dimensão pneumática
da Igreja é aquilo a que chamamos a sua estrutura carismática, como veremos mais
adiante.

Instituto Superior de Teologia


Eclesiologia - 2012
Prof. Pe. José Li Guozhong

III A Igreja, o Corpo Místico de Cristo


A Igreja não é para si própria, mas para o mundo. Ela é comunidade escatológica de
salvação e templo do Espírito Santo pela comunicação dos dons do Espírito de Deus
que mantém a unidade na variedade dos seus carismas (cf. At 2,14-41; Ef 2, 11-22;
30
Cf. Jo 3, 5-8.
31
Cf. KÜNG, A Igreja, Vol. I, p. 253-256.
1Cor 3, 10-17; 12, 1-12). Ela constitui-se como Corpo de Cristo pela ação do Espírito
Santo que, mediante o Batismo, opera ou manifesta a nossa união a Cristo morto e
glorificado. 32 Pela Eucaristia, a Igreja atualiza o acontecimento salvífico da Nova
Aliança a cuja dinâmica nos quer unir.

1. Incorporados pelo Batismo


Através do Batismo o homem é integrado no acontecimento salvífico, escatológico, ou
seja, ele se entrega pessoalmente ao acontecimento salvífico. Pelo Batismo ele também
é incorporado ao Corpo Místico de Cristo que é a Igreja.33 O Batismo, com efeito, não é
um sinal mudo, mas uma palavra significativa; não é uma ação mágico-sacral, mas uma
ação proclamadora, que exige a fé. O sentido da fórmula trinitária do Batismo é que,
através de seu Espírito, Deus habita em nós. Em suas origens, o Batismo era como que
banho em espírito de mortificação para purificação da culpa do pecado e para entrar na
comunidade do Fim dos Tempos e na comunhão com o Senhor.

O Batismo implica ao mesmo tempo a metanóia e fé, mais do que simples confissão da
fé ou simples sinal da fé, que apenas testemunha a fé. Mas a fé e o Batismo têm o seu
fundamento na ação salvífica de Deus, em Cristo. O Batismo nasce da fé e a fé conduz
ao Batismo. A fé, enquanto ato de entrega total da pessoa humana e recebimento
confiante da graça, é condição do Batismo. Para que o acontecimento batismal seja uma
realidade é exigido do ser humano um ato de entrega pessoal e plena a Deus e a
aceitação ativa da sua graça, que só é possível pela própria graça de Deus.

O Batismo é a atualização salvífica em Cristo. Daí a vida nova trazida por esse
sacramento, não como algo para o futuro apenas, mas como coisa já presente. Quem
está em Cristo, já é agora “ nova criatura” (2Cor 5, 17), pelo que o Batismo pode ser
compreendido, tanto na tradição paulina 34 como na joanina (Jo 3, 3-5), como um novo
nascimento. E assim, enquanto participação na morte e ressurreição de Cristo, a
existência batismal não é um estado permanente, mas sim, um movimento em direção
da finalidade específica desse sacramento: a própria ressurreição (cf. Fl. 3, 10-14).

O Batismo nunca é um ato puramente individual, cuja ministração se passe


exclusivamente entre Cristo e o neófito. O fiel neófito era batizado perante toda a
comunidade e para comunidade. Era precisamente através do perdão dos pecados que
era recebido na comunidade dos santos. Marcado desse modo, para ser propriedade de
Jesus, torna-se então membro da comunidade resgatada pelo nome de Jesus. A
concessão do Espírito faz do neófito pedra viva no edifício espiritual, pois toma parte
na morte e ressurreição de Cristo e é incorporado na comunidade pascal dos que crêem
e amam. É por isso, que o Batismo significa entrada na comunidade. O batismo é o
seminarium ecclesiae.35

É São Paulo quem, da maneira que lhe é peculiar, aprofunda esta idéia de incorporação
na Igreja através do Batismo, na Epístola aos Gálatas. 36 Todos os que se tornaram

32
Cf. 1Cor 12,12ss.; Rm 6,3s; Gl 3, 23-28.
33
Cf. At 2,41 e 1Cor 14,12.
34
Cf. Tt 3,5; 1Pd 1,3.23.
35
Cf. KÜNG, A Igreja, Vol. I, p. 293-301.
36
Cf. Gl 3,1-23.
filhos de Deus, pela fé em Cristo, revestiram-se de Cristo, no Batismo; “ todos vós, que
fostes batizados em Cristo, vos revestistes de Cristo” (Gl 3, 27). Para a comunidade, isto
representa a experiência exaltante de constituir uma comunidade de novo tipo, em que
as diversidades naturais sejam superadas. “ Não há judeus nem gregos, não há escravo
nem livre, não há homem nem mulher; pois todos vós sois um só em Cristo Jesus”( Gl
3,28).

2 Unidos pelo Banquete do Senhor


A Ceia do Senhor é refeição comemorativa e de ação de graças. No Banquete do Senhor,
a comunidade olha sempre para trás, para o que sucedeu. É a proclamação da morte de
Jesus ressuscitado, anunciada nas quatro narrativas evangélicas “em favor” daqueles
que tomavam parte no Banquete. O fruto salvífico dessa morte é a eles destinado e
apropriado. A refeição pós-pascal nunca é um banquete fúnebre, senão de alegria.
Através dessa refeição a Igreja exprime seu reconhecimento pelos benefícios de Deus,
por tudo o que Ele fez mediante a Criação, Redenção e Santificação. 37

A Ceia do Senhor é o memorial (anamnese) da Páscoa de Cristo, a atualização e


oferecimento sacramental do seu único sacrifício. Este memorial não é somente a
lembrança dos acontecimentos do passado, pois esses acontecimentos são trazidos à
memória. Assim, a Eucaristia é também um sacrifício. Nela Cristo dá aquele mesmo
Corpo que entregou por nós na Cruz, aquele mesmo sangue que “é derramado por
muitos para remissão dos pecados”.38 É sacrifício, porque atualiza o sacrifício da Cruz,
porque é dele o memorial. Assim o sacrifício de Cristo e o sacrifício da Eucaristia são
um único sacrifício. 39

Além de ser sacrifício, a Ceia do Senhor é uma refeição de Aliança e de Comunhão. No


Banquete do Senhor a comunidade olha o que está presente. É o mesmo Jesus quem se
torna presente na refeição do Senhor. Em cada Banquete, é a Aliança de Deus com a
comunidade que é proclamada e confirmada. Na Ceia do Senhor, retoma-se na
comunidade atual a antiga Comunhão de mesa com Jesus. E a comunhão com o Senhor
glorificado é, simultaneamente, comunhão dos participantes uns com os outros. A Ceia
pós-pascal não é uma refeição de indivíduos, mas Banquete da comunidade, realizado
no amor, é um Banquete da caridade.

Essa Ceia é a antecipação do banquete escatológico do Messias, pois na refeição do


Senhor a comunidade olha sempre de novo para o futuro que está para se realizar. A
presença de Cristo, nesta refeição é a presença daquilo que está por vir. É aqui que pode
ressoar a exclamação: maranatha. 40 A Ceia pós-pascal, portanto, não é uma
comemoração de morte apenas, mas é um banquete orientado para o futuro, aberto à
esperança confiante e segura.

A Refeição do Senhor não é um dar e receber individual, mas um encontro de muitos


para verdadeira comunhão de mesa e para comunhão de oração. É momento
comunitário de oferecer, de receber e de repartir, de comer e de beber. Cada fiel é
37
Cf. Catecismo da Igreja Católica, 1360.
38
Mt, 26, 28. Cf. também Lc, 22, 19-20.
39
Cf. Catecismo da Igreja Católica, 1362-1372.
40
Cf. 1Cor 16,22; Cf. Didaché 10,6.
convidado, na comunidade, a comer e beber e em seguida apresentar súplicas,
agradecimento e louvor. Aqui uma vez mais são oportunas as palavras de São Paulo que,
numa ordem inversa, ensina que “Já que há um único pão, nós, embora muitos, somos
um só corpo, visto que todos participamos desse único pão”.41

A Refeição do Senhor é, em substância, koinonia, communio em duplo sentido:


comunhão com Cristo e comunhão dos cristãos. Os cristãos são chamados à comunhão
com o Senhor glorificado. É a ligação profunda e íntima que São Paulo exprime e que
se poderia sumarizar em expressões como: viver com Cristo,42 co-herdeiro de Cristo,43
ser crucificado com, 44 morrer com, 45 ser com-sepultado, 46 ser com-glorificado, 47 ser
com-ressuscitado,48 ser com-vivificado.49 Por isso, aqueles que participam da Refeição
do Senhor tornam-se companheiros de Cristo porque o Banquete representa Comunhão
com Cristo. É por isso mesmo que o Banquete é também comunhão dos cristãos entre si.
A ligação com Cristo leva os participantes da refeição à ligação uns com os outros: é a
communio dos cristãos uns com os outros.

Da imagem da Igreja Templo do Espírito Santo precede o conceito da Igreja


Comunhão. A imagem de Corpo de Cristo, acentua o dinamismo e a interdependência
dos membros e funções na unidade de direção, enquanto que a imagem de Povo de
Deus, realça o engajamento do novo Povo de Deus, formado ele pela fé em Cristo entre
judeus e gentios, escravos e livres, homens e mulheres,50 em igualdade fundamental
como um só rebanho em Cristo, ou seja, uma nova unidade escatológica em Cristo.51

Assim, podemos concluir que a Igreja é Corpo de Cristo, mas num sentido determinado
pelo conceito de Povo de Deus, isto é, enquanto a idéia de Povo de Deus sublinha a
categoria de tempo. Como Povo de Deus a Igreja trilha um caminho, numa imagem que
lembra a relação de continuidade fundamental que a Igreja tem com Israel, com a
Antiga Aliança. Lembra igualmente a peregrinação na fé com a universalidade dos
povos para a plenitude escatológica. A imagem de Corpo de Cristo acentua a categoria
de espaço: a ligação da Igreja com Cristo (em permanente atualidade), a Igreja
constituída, formada no acontecimento batismal da morte e ressurreição e mantida
viva, unida e dinâmica na mesa da communio ( Koinonia) pascal. A imagem do Povo de
Deus, cuja natureza nova e única é expressa pelo Corpo de Cristo, apresenta a Igreja
como uma realidade de fé, constituída por membros de todos os povos, introduzida na
história. As duas imagens iluminam-se e completam-se mutuamente.52

41
Cf. 1Cor 10,17.
42
Cf. Rm 6,8; 2Cor 7,3.
43
Cf. Rm 8,17.
44
Cf. Rm 6,6; Gl 2,19.
45
Cf. 2Cor 7,3; cf. Rm 6,8.
46
Cf. Rm 6,4; Cl 2,12.
47
Cf. Rm 8,17.
48
Cf. Cl 2,12; 3,1;Ef 2,6.
49
Cf. Cl 2,13; cf. 2,5.
50
Cf. KÜNG, A Igreja, V. I, p. 333-347.
51
Cf. PEREIRA, Igreja, Sociedade humano-divina; A Igreja, Povo de Deus; Igreja, Estrutura carismática permanente e
Igreja, Corpo de Cristo. Instituto Superior de Direito Canônico, Rio de Janeiro. Apostila. Cf. também, Gl 3,26-29; 1Cor
10, 1-13.
52
Cf. KUNG, A Igreja, V.I, p. 333-347.

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