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SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 17(1): 3-10, 2003 REGIME DE ACUMULAÇÃO FLEXÍVEL E SAÚDE DO TRABALHADOR

REGIME DE ACUMULAÇÃO FLEXÍVEL E


SAÚDE DO TRABALHADOR

MARIA BEATRIZ COSTA ABRAMIDES


MARIA DO SOCORRO REIS CABRAL

Resumo: Analisar a saúde do trabalhador exige, na contemporaneidade, a compreensão do impacto do regime


de acumulação flexível como resposta do capital e do capitalismo, seus rebatimentos nas relações de trabalho,
bem como a compreensão das respostas articuladas pelo Estado, valendo-se de reformas neoliberais. Elas têm
transferido as ações de saúde para a circunscrição do mercado, o que significa, em última instância, inserir o
Estado no campo de ação da concorrência, do capital. Com base nesse enfoque é que se estruturou a aborda-
gem do tema.
Palavras-chave: saúde do trabalhador; flexibilidade; processo de trabalho.

Abstract: Analyzing employee health care requires, in these times, an understanding of the impact of the flexible
accumulation regime as a response to capital and capitalism and how both are reflected in labor relations.
Also required is an understanding of the State’s neoliberal approach to reform, which has transferred health
care issues to the domain of the market, ultimately positioning the State in a competitive role against capital.
Key words: employee health care; flexibility; labor process.

A
nalisar o impacto do regime de acumulação fle- do, com desdobramentos e inflexões diferenciadas, a par-
xível1 na saúde do trabalhador pressupõe com- tir da década de 90, nos países industrializados do cha-
preender a crise estrutural do capital e do capi- mado Terceiro Mundo.
talismo no plano internacional em sua crise mais profun- As modificações ocorridas pela diferenciação dos pro-
da e prolongada, iniciada a partir de 1973, no epicentro cessos de trabalho na produção: fordismo, taylorismo e
do capitalismo. Essa crise estrutural cinge, em sua gêne- toyotismo, ou acumulação flexível, pressupõem, na ordem
se, a própria crise mundial do petróleo e a queda tendencial do capital, formas diferenciadas de exploração, culminan-
da taxa de lucro. Em réplica a esses fatos, o capital busca do na acumulação flexível, cujas repercussões profundas
alternativas para retomar seus níveis de acumulação, que afetam a “objetividade e subjetividade da classe-que-vive-
se expressam em novas formas de gestão e controle do do-trabalho, e, portanto, a sua forma de ser” (Antunes,
trabalho, e obtêm a ampliação da exploração da força de 1995:15).
trabalho, pela mais-valia relativa (inovação tecnológica) O fordismo, como maneira de organização do traba-
e pela mais-valia absoluta (ampliação do ritmo de traba- lho, surge em 1914, quando Henry Ford introduz a jorna-
lho). da de 8 horas a cinco dólares de recompensa para o traba-
Essas mudanças no processo produtivo têm na acumu- lho em linha de montagem, e se espraia pelo setor
lação flexível sua referência central, cujo esteio advém produtivo. Essa forma de organização desenvolve-se e
da “flexibilidade dos processos de trabalho, dos merca- consolida-se nos países capitalistas ocidentais em mea-
dos, dos produtos e padrões de consumo” (Harvey, dos da década de 70. Apresentando momentos de dife-
1995:140). Essas mudanças repercutem na reprodução renciação em seu desenvolvimento, pode-se dizer que atin-
social – esfera do Estado – que, com a implantação do ge a maturidade no período imediato ao pós-guerra,
neoliberalismo, passa a reger-se pela soberania do mer- persistindo até 1973. “O fordismo pode ser compreendi-
cado. O processo de trabalho sofre profundas modifica- do, fundamentalmente, como a forma pela qual a indús-
ções, na década de 80, nos países de capitalismo avança- tria e o processo de trabalho consolidaram-se ao longo

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deste século [...], e cujos elementos constitutivos básicos rias entre capital e trabalho, sobre a base do jogo político
eram dados pela produção em massa, através da linha de democrático” (Netto, 1994:98).
montagem e de produtos mais homogêneos; através do Durante esse processo de expansão do capitalismo, o
controle do tempo e movimentos, pelo cronômetro Estado desenvolve políticas sociais e de emprego afina-
taylorista e produção em série fordista” (Antunes, das com as exigências de produtividade e de lucratividade
1995:17). das empresas sob controle do grande capital. Essa inter-
O fordismo e o taylorismo,2 que predominaram em gran- venção regulacionista, longe de ser universal, é voltada
de parte da indústria capitalista, apresentam ainda como unilateralmente para a força de trabalho economicamente
característica “a separação entre a elaboração e a execu- ativa e inserida no sistema produtivo.
ção no processo de trabalho: fragmentação das funções, O keynesianismo, ao desenvolver políticas sociais e de
trabalho parcelar pela existência de unidades fabris con- emprego, incorpora um Estado de Regulação, de reivin-
centradas e verticalizadas e pela construção e consolida- dicações dos trabalhadores que passam a ceder ao ideário
ção do operário-massa, do trabalhador fabril” (Antunes, do pacto social fordista-keynesiano. Esse acordo confi-
1995:17). gura a derrota do movimento sindical operário, que con-
O fordismo apresenta uma separação entre gerência, solidou o terreno político para a hegemonia do pacto es-
concepção, controle e execução ante um novo tipo de re- pecificado, e consubstanciou um sindicalismo nos marcos
produção da força de trabalho, no reconhecimento explí- da institucionalidade, com garantia de um terreno seguro
cito de que produção em massa significava consumo em para o movimento do capital.
massa (Harvey, 1995). Essa forma produtiva, presente no Nos países periféricos, incluindo-se aí a América Lati-
tecido social, foi construindo uma cultura e um modo de na, e entre eles o Brasil, o Welfare State não se consoli-
vida, firmando “um esforço coletivo para criar, com velo- dou, já que suas economias encontravam-se subordinadas
cidade sem precedentes e com uma consciência sem igual ao capitalismo monopolista, ainda que tivessem um Esta-
na história, um novo tipo de homem, um novo tipo de tra- do com algum sistema de proteção social. É importante
balhador [...] um modo específico de viver, pensar e sen- frisar que, no Brasil, as políticas sociais, do período Vargas
tir a vida” ajustado à nova forma de trabalho e ao novo à Constituição de 1988, segundo Vieira, têm refletido o
processo produtivo (Gramsci apud Harvey, 1995:121). comportamento de uma classe dirigente que oscila entre a
Estruturou-se, enfim, o novo sistema de reprodução da inércia e a modernização, imposta de fora, orientado pelo
força do trabalho, um novo sistema de controle, de gerên- grande capital.
cia, uma nova psicologia, um novo tipo de sociedade de- As transformações econômicas e sociais ocorridas nos
mocrática, racionalista e capitalista. O consumo em mas- anos 70, associadas ao acirramento da concorrência mun-
sa, necessário aos padrões de acumulação fordista dial no mundo capitalista e ao emprego de novas tecnologias,
“subsumiu o tempo e o lazer” do trabalhador a certo tipo configurando o que se convencionou chamar de Terceira Re-
de controle necessário às expectativas e à racionalidade volução Industrial, contribuíram para afirmar e moldar um
da produção. novo processo de acumulação de tipo flexível.
Nesse período, o capitalismo atingiu altas taxas de ex- A acumulação flexível caracteriza-se pelo surgimento
pansão mundial. Um momento histórico de ondas largas, de setores de produção inteiramente novos, novas manei-
expansivas do capitalismo, e foi considerado “a era de ras de fornecimento de serviços financeiros, novos mer-
ouro” (E. Hobsbawm). A produção fordista e a reprodu- cados e, sobretudo, taxas altamente intensificadas de ino-
ção keynesiana tornaram-se fortes aliadas no processo vação comercial, tecnológica e organizacional. Envolve,
capitalista de desenvolvimento do pós-guerra. também, rápidas mudanças dos padrões de desenvolvimen-
A regulação e a intervenção estatal keynesiana, to desigual, tanto entre setores como entre regiões geo-
consubstanciada no Estado de bem-estar social – Welfare gráficas, criando, por exemplo, um vasto movimento no
State –, ocorre nos países centrais do capitalismo, ope- emprego do chamado “setor de serviços”, bem como con-
rando uma gestão social do sistema e concretizando “um juntos industriais completamente novos em regiões até en-
Estado com forte iniciativa no campo de políticas sociais tão subdesenvolvidas” (Harvey, 1995:140).
redistributivas e com pronunciada intervenção por servi- A acumulação flexível, com o toyotismo, torna-se para
ços e equipamentos sociais, fiador de controles tributá- o capital tanto uma forma de maior exploração quanto de
rios sobre o capital e articulador institucional de parce- maior controle sobre a força de trabalho. A reestruturação

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produtiva está baseada em aumento de produtividade, efi- concebida como o prolongamento da casa, e o debate es-
ciência, qualidade, novas formas de tecnologia e de ges- tabelece-se a fim de traçar metas e objetivos para que o
tão, efetivando-se por intermédio das inovações tecno- trabalhador possa se destacar na empresa, como forma de
lógicas. Desse processo de trabalho advém basicamente a amenizar os processos de luta da classe trabalhadora em
precarização e a desestruturação das relações clássicas de seu campo de autonomia e independência de classe. Fica
produção, de gerenciamento e de envolvimento da força óbvio o lema da Toyota: “Proteger a nossa empresa para
de trabalho. Viabilizam-se os Círculos de Controle de defender a vida”, o que expressa, de modo claro, a pers-
Qualidade (CCQs) – e o Comprometimento com a Quali- pectiva ideopolítica adotada nesse processo de trabalho
dade Total (TQC), exigindo a participação dentro da or- desenvolvido pelo capital.
dem e do universo da empresa (Antunes, 1995:16). As O “sindicato-casa” é incentivado, na condição de or-
decorrências desse processo favoreceram o processo de ganização cooptadora, para ser o interlocutor dos traba-
flexibilização do trabalho que conduziu à desregu- lhadores que são denominados pela empresa de “colabo-
lamentação de direitos sociais e trabalhistas: reduziu o radores”, e o que se confirma em todo o processo produtivo
quantitativo do operariado fabril; incrementou a tercei- é a ampliação da exploração da classe trabalhadora.
rização e a subproletarização; estimulou o trabalho pre- A desconcentração do espaço físico e a concentração
cário e parcial e ampliou o desemprego estrutural, entre de capital constituem o desafio mais intenso que o capital
outros danos trabalhistas. Pode-se apontar, ainda, o cria para a classe trabalhadora. A motivação exploradora
surgimento do operário polivalente, o aumento da produ- da atual introdução de novas tecnologias evidencia-se na
tividade, a redução do operariado fabril, o atrelamento da mobilidade do capital para regiões que oferecem o bara-
mercadoria à demanda determinada, ou seja, a manuten- teamento da força de trabalho, possibilitando, por um lado,
ção do estoque mínimo, conforme a lógica do just in time, uma maior lucratividade para a mercadoria, sob controle
que objetiva “o melhor aproveitamento possível do tem- dos oligopólios, na internacionalização da economia e do
po de produção (incluindo-se também o transporte, o con- capital, e, por outro, um aumento na exploração da classe
trole de qualidade e o estoque)” (Antunes, 1995:26), e o trabalhadora.
sistema kanban, que utiliza placas ou senhas para a repo- Uma outra decorrência que se evidencia, no caso bra-
sição de preços e de mercadorias, mantém os estoques no sileiro, é o processo de desindustrialização que vem su-
mínimo, para repô-los de acordo com a demanda, consti- cedendo em grandes centros industriais como São Paulo
tuindo ambos a substância do modelo japonês. e o ABC Paulista, com a migração das empresas para o
O mercado de trabalho passa por mudanças radicais em interior e para outros Estados que oferecem redução nos
razão do processo de acumulação flexível, com flutuações custos, liberação de impostos e força-de-trabalho mais ba-
constantes, aumento da competição, redução do poder rata e menos organizada.
aquisitivo do trabalhador e enfraquecimento do poder sin- Concretamente, porém, não se pode afirmar que tudo
dical, que começa a atuar na defensiva em razão da gran- seja toyotismo, pois o processo de desfordização encon-
de quantidade de mão-de-obra excedente (desempregados tra-se em curso. Portanto, os processos de trabalho expres-
ou subempregados, ou precarizados vinculados à econo- sam-se de forma mesclada e diferenciada em diversos paí-
mia informal), o que dissocia ainda mais os interesses da ses, acarretando o desemprego tecnológico, associado ao
classe trabalhadora. forte desemprego estrutural inerente à profunda crise do
O processo de trabalho em curso no toyotismo apre- capital.
senta uma base de sustentação ideológica que atinge não O receituário produtivo apresenta ainda como caracte-
somente a objetividade – base material da classe operária –, rísticas a complexificação e a heterogeneidade da classe
mas também sua subjetividade – sua consciência de clas- trabalhadora; o trabalho operado em equipe, apresentan-
se, sua organização e seus valores. Os CCQs e TQCs são do multiplicidade e flexibilidade de funções; e a amplia-
instrumentos diretos de propagação ideológica e de ção e diversificação das formas de exploração do traba-
cooptação dos trabalhadores. Estabelece o “envolvimento lho humano.
cooptado”, em que a subsunção do trabalho ao capital é A competitividade e a concorrência intercapitalista
superior à existente nos processos de trabalho anteriores, produz a destruição ou a precarização, sem precedentes
em que na nova lógica organizacional o trabalhador passa na era moderna, da força humana que trabalha e a degra-
a ser o controlador de si mesmo. Nos CCQs a empresa é dação crescente que destrói o meio ambiente, na relação

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metabólica do homem com a natureza no processo de pro- mediadora por excelência no plano econômico e no plano
dução de mercadorias e valorização do capital (Antunes, político, sacralizando o Estado mínimo” (Netto, 1994:75).
1998). Essa programática, consubstanciada, portanto, no Estado
mínimo e mercado máximo, é a expressão da reestruturação
PROGRAMÁTICA NEOLIBERAL EM produtiva, delineada no processo que vincula economias
CONSONÂNCIA COM A ACUMULAÇÃO nacionais e internacionais em um novo momento da mer-
FLEXÍVEL cadoria e da divisão social do trabalho, como se refere
Mota.
O processo de reestruturação do capitalismo estabele- O projeto neoliberal oriundo da estratégia internacio-
ce dois tipos de ajuste estrutural distintos, mas inerentes nal do capital estabelece uma política econômica mone-
ao movimento do capital: o primeiro ocorre na esfera da tarista com ampla privatização de empresas estatais, em
produção, mais conhecida como reestruturação produtiva que o “Estado mínimo” e o “máximo de mercado” são
(base material da sociedade), e o segundo na esfera polí- elementos constitutivos do grande capital dos oligopólios.
tica do Estado referenciado ao neoliberalismo. O neoliberalismo rege-se pela soberania do mercado.
O neoliberalismo surge após a Segunda Guerra Mun- Na América Latina sua execução dar-se-á com base em:
dial, na Europa e na América do Norte, como uma reação disciplina fiscal, estabilidade monetária, redução de gas-
contra o Estado de Regulação de bem-estar Social, sus- tos públicos, reforma tributária, liberalização financeira
tentado pela social-democracia, no modelo keynesiano. O e comercial, alteração das taxas de câmbio, investimento
texto de origem do neoliberalismo, escrito por Hayek, em direto estrangeiro, privatizações e desregulamentação.
1944, intitulava-se O caminho da servidão. De acordo com As políticas neoliberais implantadas por Reagan e
a ideologia e a teoria proposta nesse ideário neoliberal, Thatcher têm “nos social-democratas os grandes execu-
era necessário combater as raízes da crise que se origina- tores dessas políticas: Mitterrand, na França; Gonzáles,
va no poder dos sindicatos e do movimento operário, que na Espanha; Soares, em Portugal; Craxi, na Itália;
pressionavam por melhores salários, condições de vida e Papandroeou, na Grécia” (Anderson, 1995). As economias
trabalho e ampliavam os gastos sociais, assumidos pelo do Leste europeu são atingidas pelo neoliberalismo, após
Estado. Desse modo, seu propósito era o de “combater o sua derrocada, em 1989.
keynesianismo e o solidarismo reinantes e preparar as bases A primeira experiência neoliberal sistemática do mun-
de um outro tipo de capitalismo, duro e livre de regras do ocorreu no Chile, em 1973, e serviu como laboratório
para o futuro” (Anderson, 1995:10). Nesse momento, o internacional. Pinochet implementou o ideário neoliberal
ataque era dirigido diretamente ao Partido Trabalhista com dura repressão ao movimento operário e socialista
inglês. As idéias neoliberais passam, porém, ao plano da do país, instalando “uma das mais cruéis ditaduras milita-
ação programática em 1973, quando o mundo capitalista res do pós-guerra” (Anderson, 1995:19). A Bolívia tam-
enfrenta uma crise estrutural, com longa e profunda bém foi pioneira na América Latina, pois tal programa
recessão, combinando, pela primeira vez, baixas taxas de iniciou-se no ano de 1983. Nos demais países latino-ame-
crescimento com altas taxas de inflação (Anderson, 1995). ricanos, o fim dos anos 80 significou a expansão do
Margareth Thatcher, em 1979, na Inglaterra e Ronald neoliberalismo: no México, consolida-se em 1988; na
Reagan, em 1980, nos Estados Unidos, iniciam a implan- Argentina, com Menen, em 1989; na Venezuela, com
tação do neoliberalismo, possibilitando ao grande capital Peres, em 1988; e no Peru, com Fugimori, em 1990.
arquitetar um plano internacional de expansão. Na Amé- A ofensiva neoliberal no Brasil inicia-se no final do
rica Latina, sua execução mais severa inicia-se em 1989, governo Sarney e perpassa os governos Collor e Itamar,
para dar cumprimento ao Consenso de Washington3 – ago- aprofundando-se e consolidando-se com FHC (1994/
ra, aprimorado com o Dissenso de Washington, 2000 – 2002). Sua implantação vem imprimindo uma política
que responde aos ditames do FMI e do Banco Mundial e monetarista com ajustes econômicos efetivados com base
concretiza-se na abertura de novos espaços de explora- na oferta monetária, na privatização de estatais e de ser-
ção do capital privado e na disseminação da presença do viços públicos rentáveis, no corte nos gastos sociais, até
Estado na economia. com demissão de trabalhadores em serviço público, na
A programática neoliberal preconiza a concepção de transferência de renda e de patrimônio público para o se-
que “o mercado é entronizado como instância societal tor do capital privado, na quebra de monopólios com a

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entrada do capital estrangeiro, na privatização de setores destrutivo do capital, em sua estrutura orgânica meta-
estratégicos associada à internacionalização (petróleo, bólica de relação dos homens entre si e com a nature-
telecomunicações, siderurgia, mineração), na sobreva- za, em que a propriedade privada dos meios de produ-
lorização da taxa cambial, na mercantilização de políti- ção, a superexploração da força de trabalho, e o Estado
cas sociais, acompanhada da refilantropização na área da a serviço da ordem burguesa determinam um viver e
assistência, nas políticas sociais compensatórias, em subs- morrer. A força de trabalho, considerada mercadoria
tituição a políticas sociais de caráter universal; na priva- básica no processo de produção capitalista, é requerida
ção de direitos sociais (educação, saúde, previdência, as- pelo mercado, mas lhe é exigido ter a saúde necessária
sistência) e na desregulamentação de direitos sociais e para executar um processo de trabalho: “Para o capi-
trabalhistas. O neoliberalismo consubstancia o Estado tal, a saúde – entenda-se a saúde suficiente – é um sim-
mínimo para os trabalhadores e o Estado ampliado para o ples e relativizado componente da mercadoria força de
capital, em que os interesses privados sobrepõem-se aos trabalho” (Ribeiro, 1997:102). Portanto, saúde e capa-
interesses públicos, de caráter universal. cidade técnica são elementos indissociáveis da capaci-
Nessa perspectiva, a Reforma do Estado4 prevê a exis- dade de trabalho. A força de trabalho é para ser
tência de um núcleo estratégico em que se definam políti- consumida e substituída na medida de seu desgaste,
cas; um setor de atividades essenciais, compreendendo as como qualquer outro componente do processo de pro-
áreas de auditoria, fisco, segurança, arrecadação de im- dução. O trabalhador tem, por sua vez, consciência de
postos e tributos e de advocacia, etc. Nas chamadas áreas sua capacidade técnica e sabe que, para exercitá-la,
sociais o Estado concorre com o mercado, com repercus- precisa ter saúde. A relação indissociável entre saúde e
sões na política de seguridade, saúde e previdência, e nas capacidade técnica, e o processo histórico de lutas da
áreas de educação e cultura. Um quarto setor compreende classe trabalhadora pela redução da jornada de traba-
as atividades exclusivamente de mercado, com amplo pro- lho e por melhores condições de vida, possibilita am-
grama de privatização. pliar postos de trabalho bem como proteger esses dois
A política de seguridade – saúde, previdência e assis- componentes da capacidade produtiva.
tência –, com a Constituição de 1988, são definidas como A intensidade e o ritmo acelerado no trabalho e o nú-
de caráter universal e equitativas, mas, na óptica neoliberal, mero excessivo de horas na jornada são decisivos na
são redefinidas e orientadas por uma política que associa precarização da saúde do trabalhador, podendo eliminá-
publicização e privatização. lo, precocemente, do mercado. Nas condições de traba-
lho estão incluídas as atividades corporais e mentais dos
O PROCESSO SAÚDE E DOENÇA DOS trabalhadores, bem como os elementos materiais, físico-
TRABALHADORES E AS RESPOSTAS químicos, ambientais, temporais e também as relações de
ARTICULADAS DO ESTADO trabalho.
O capital, historicamente, incorpora o trabalho da mu-
A VIII Conferência Nacional de Saúde, realizada em lher, o infantil e o da juventude desde o primeiro ciclo da
Brasília-DF em 1986, expressou uma concepção ampla de Revolução Industrial, na Inglaterra, como forma de am-
saúde, entendendo-a como “a satisfação das necessidades pliar sua exploração, dilatando a margem de mais-valia, o
básicas de acesso a uma alimentação regular e nutritiva, que concorre para o barateamento do preço da força de
moradia adequada, transporte seguro, serviços de saúde e trabalho: “O valor da força de trabalho era determinado
educação eficientes, para além da simples ausência de não pelo tempo de trabalho necessário para manter indi-
doenças, a falta de uma renda mínima que assegure esses vidualmente o trabalhador adulto, mas pelo necessário à
direitos, constitui-se para uma ampla camada de trabalha- sua manutenção e a de sua família. Lançando à máquina
dores, em efetiva deterioração de suas condições de vida todos os membros da família do trabalhador no mercado
e reprodução da força de trabalho” (Mattos et al., 1995:48). de trabalho, reparte ela o valor da força de trabalho do
Compreender a saúde nessa dimensão significa homem adulto pela família inteira. Assim, desvaloriza a
entendê-la nas diversas formações sociais e na divisão força de trabalho do adulto” (Marx apud Ribeiro,
social e técnica do trabalho. No capitalismo as condi- 1997:104).
ções objetivas e subjetivas da classe trabalhadora e sua O movimento operário brasileiro desde sua origem vem
própria condição de classe são afetadas pelo caráter lutando pela garantia de uma jornada de trabalho reduzi-

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da, sem redução de salário, e obteve algumas conquistas crenças, idéias e representações sociais próprios de um
que hoje estão ameaçadas pela flexibilização dos direitos dado momento da história humana” (Dias, 1995:27).
trabalhistas, pela prevalência do acordado sobre o legis- O objeto da Saúde do Trabalhador pode ser definido
lado. como o processo de saúde e doença dos homens em sua
Outro elemento analítico a ser considerado na com- relação com o trabalho. Trabalho, no capitalismo, é en-
preensão da saúde é a relação da força de trabalho nas tendido como a subsunção do trabalhador ao capital no
diferentes ocupações requeridas pela divisão sociotécnica processo produtivo de superexploração do trabalho hu-
do trabalho nos diferentes ramos da atividade econômica. mano e extração da mais-valia, mas também compreendi-
Os componentes que caracterizam o exercício de deter- do como pólo de resistência e luta dos trabalhadores por
minada ocupação são históricos e sociais, mutáveis no melhores condições de vida e trabalho, em que a saúde é
tempo e no espaço, com conseqüências diferenciadas en- parte constitutiva desse processo.
tre essas doenças, embora, em dado processo produtivo, No Brasil, desde 1988 a Saúde do Trabalhador confi-
em certo espaço sociocupacional, possam ocorrer casos gura-se como prática institucionalizada no interior do Sis-
imediatos ou próximos de doenças recorrentes e aciden- tema Único de Saúde e do ponto de vista da luta sindical.
tes do trabalho, mas a existência desses fenômenos não A CUT organiza o Instituto de Saúde no Trabalho para
pode levar a uma neutralização do risco ou do dano, uma instrumentalizar o processo de luta e negociação dos tra-
vez que ambos inserem-se em uma temporalidade sócio- balhadores. A política relativa aos benefícios acidentários
histórica e cultural específica. foi incorporada como cobertura prestada pela Previdên-
É possível, ainda, uma terceira dimensão que pode in- cia Social, em 1969, constituindo-se no Seguro-Aciden-
fluir na condição de saúde, embora os trabalhadores te. Alterações substantivas vêm sendo realizadas no Se-
vivenciem as mesmas circunstâncias de vida e de traba- guro-Acidente, com a alteração do cálculo, com perdas
lho, dadas por sua condição de classe, exercendo funções visíveis para os trabalhadores, além de alterações na sis-
semelhantes, muitas vezes em uma mesma empresa ou temática de comunicação do acidente.
ocupação com relações de trabalho semelhantes, e que É importante ressaltar que o governo FHC, embora já
podem ou não vir a ser afetados em sua condição de saú- tenha lançado a debate público a proposta de liquidação
de individual. do Seguro-Acidente, nos marcos da Previdência Pública
A dimensão social da saúde é “abrangente e corresponde estatal, substituindo-a pela criação de Mútuas – organiza-
ao ciclo do capitalismo e às condições objetivas onde ele ção associada constituída pelo patronato e pelos trabalha-
se desenvolve. Ela se expressa nas relações sociais e de dores –, acredita-se que a pressão do próprio movimento
produção e tem a ver também com as tecnologias dos pro- sindical tem dificultado a efetivação de tal proposta.
cessos produtivos e de organização do trabalho incorpo-
rados pelas empresas. A causalidade mais ou menos apa- IMPACTOS DO REGIME DE
rente do trabalho com a ocorrência de doenças e acidentes ACUMULAÇÃO FLEXÍVEL
é apenas um modo violento e explícito de evidenciar essa
determinação” (Ribeiro, 1997:65). A reestruturação produtiva no Brasil, com a preca-
A Saúde do Trabalhador, diretamente vinculada ao pro- rização das relações de trabalho, a intensificação de rit-
cesso de relações sociais de produção, apontou para a mos, a perda de postos de trabalho e a exigência de
necessidade de uma discussão, de um debate e de uma polivalência (requisições diferenciadas na atividade
intervenção na área denominada Saúde do Trabalhador na laborativa) têm ampliado e agravado o quadro de doen-
rede pública de serviços de saúde no Brasil a partir da ças e riscos de acidentes nos espaços socioocupacionais.
década de 80, impulsionada pelas lutas e reivindicações As inovações tecnológicas, a microeletrônica, a robótica
do movimento dos trabalhadores. Portanto, a área da Saúde e a automação presente na atual fase de reprodução do
do Trabalhador surge como “uma prática social instituinte, capital no plano internacional e nacional ampliam as doen-
que se propõe a contribuir para a transformação da reali- ças relativas ao trabalho, como a LER/Dort (lesões por
dade de saúde dos trabalhadores, e por extensão a da po- esforço repetitivo e distúrbios osteomoleculares), em se-
pulação como um todo, a partir da compreensão dos pro- tores de produção individual ou de serviços, descortinando
cessos de trabalho particulares, de forma articulada com um dos frutos mais dramáticos do processo de acumula-
o consumo de bens e serviços e o conjunto de valores, ção flexível e afetando, conseqüentemente, as condições

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de trabalho e de existência desses trabalhadores em seu do risco para além das fronteiras dos espaços socioocu-
cotidiano nas diferentes esferas da vida social. Os regis- pacionais, atingindo crianças e mulheres. Outro aspecto a
tros de LER/Dort incidem com maior freqüência em algu- considerar é o do aumento da presença feminina em ativi-
mas atividades ocupacionais: digitadores, caixas de ban- dades precarizadas, com baixos salários, sem direitos
co e comércio, telefonistas, empacotadores, trabalhadores previdenciários e trabalhistas. Para as que estão inseridas,
de empresas de processamento de dados, entidades comer- formalmente, no mercado de trabalho, existe a constante
ciais e financeiras, indústria editorial e metalúrgica, entre ameaça de retirada desses direitos, como a licença-mater-
outros, e, particularmente, na área de telemarketing a LER nidade e a possibilidade de demissão no período de ges-
tem crescido em ritmo acelerado. E nos quadros clínicos tação (abandono da Convenção 103 da Organização In-
da LER/Dort, incluem-se: tenossinovite, tendinite, bursite ternacional do Trabalho).
e mionite, provocando inflamação em várias áreas dos A importação de mais tecnologia, por sua vez, tem con-
membros superiores. Esse quadro associa-se, de um lado, figurado a transferência de tecnologias obsoletas e peri-
à incorporação de novas tecnologias, máquinas digitais, gosas, causando danos ao meio ambiente e à saúde da
computadores e maquinário em geral, com a aceleração população.
do ritmo de trabalho, de modo que possa responder às As transformações profundas ocorridas nessa quadra
exigências do processo produtivo; de outro, as atividades histórica, no ambiente da internacionalização do capital e
repetitivas não qualificadas têm sido também responsá- do capitalismo em sua crise estrutural, com alterações sig-
veis por quadros de LER. nificativas no processo produtivo e na esfera do Estado,
A precarização das relações de trabalho com demis- vem destruindo conquistas sociais históricas da classe tra-
sões constantes, trabalho por tempo determinado, desem- balhadora na luta por melhores condições de vida e traba-
prego, terceirização, quarteirização, perda de direitos so- lho. Essa razão destrutiva aliena ainda mais o trabalho
ciais e trabalhistas são expressões de um conjunto de humano, apresentando um quadro de miséria e de destrui-
efeitos das relações de trabalho sobre a saúde do traba- ção da própria vida.
lhador, como estafas, fadigas, ansiedades e insegurança A relação saúde-doença é fortemente afetada nesse pro-
permanente, dores lombares e generalizadas, distúrbios cesso de barbarização da vida social pela investida do
emocionais, dentre outros. Portanto: “os males da saúde grande capital. O desafio posto para a classe trabalhadora
ocasionados pela ausência de trabalho não são somente é o de retomar seus instrumentos de luta – o partido e o
aqueles vinculados à queda do nível de qualidade de vida sindicato no âmbito da autonomia e da independência de
e, conseqüentemente, da condição geral de saúde, mas, classe. Estes, na última década, vêm sofrendo uma inflexão
também, aqueles relacionados ao sofrimento mental significativa com um giro do movimento na direção so-
advindos do sentimento de impotência individual, sensa- cial-democrata e abandono gradativo das lutas sociais em
ção de carência de sentidos da vida, ausência de normas, detrimento de acordo na esfera da institucionalidade. O
distanciamento cultural e isolamento social, que resultam grande desafio para a classe trabalhadora é a retomada
normalmente em respostas psicológicas básicas, como das lutas imediatas por direitos sociais e trabalhistas, bem
agressão, repressão, fixação (comportamentos rígidos e como sua perspectiva histórica de luta anticapitalista no
estereotipados), apatia (Lira e Weinstein apud Mattos et horizonte de uma sociedade emancipada de auto-organi-
al., 1995:49). zação dos indivíduos livremente associados, na perspec-
É importante ressaltar que no cenário produtivo brasi- tiva marxiana.
leiro convivem as novas tecnologias do processo de acu-
mulação flexível e sua forma estruturante de trabalho com
processos de trabalho fordista/taylorista clássicos, em que NOTAS
ainda predominam os acidentes de trabalho típicos – am-
1. Padrão produtivo do capitalismo caracterizado pela flexibilidade nos
putação, morte e doenças profissionais características de processos de trabalho, mercados, produtos e padrões de consumo.
ramos de produção como: silicose, asbestoses, hidrage- 2. Fordismo-taylorismo – padrão produtivo do capitalismo desenvol-
rinos, bezenismo, entre outras. vido no século passado, que tem como características: produção em
massa, produção concentrada e verticalizada, com controle de tempo
Os processos de terceirização e quarteirização têm sido e movimentos.
responsáveis pela realização de atividades produtivas no 3. É a denominação estabelecida ao conjunto de medidas e políticas
interior das residências dos trabalhadores, com expansão necessárias à implementação do projeto neoliberal no continente Lati-

9
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 17(1) 2003

no-americano, que tiveram o consenso do Fundo Monetário Internacio- MATTOS, U.A.O.; PORTO, M.F.S.; FREITAS, N.B.B. Novas
nal (FMI), do Banco Interamericano de Desenvolvimento (Bird), do tecnologias, organização do trabalho e seus impactos na saúde,
Banco Mundial e do governo norte-americano, em reunião ocorrida no meio ambiente. Saúde, Meio Ambiente e Condições de Traba-
em Washington, em 1989. lho – conteúdos básicos para uma ação sindical. São Paulo: Pu-
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10
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 17(1): 11-24, 2003 DOENÇAS DO TRABALHO: EXCLUSÃO, SEGREGAÇÃO E RELAÇÕES DE GÊNERO

DOENÇAS DO TRABALHO
exclusão, segregação e relações de gênero

CELSO AMORIM SALIM

Resumo: A partir do quadro geral dos acidentes e doenças do trabalho, analisam-se a evolução e as caracterís-
ticas sociais e demográficas das LER/Dort na RMBH nos anos 90 do século XX. Para isso, retém-se a dinâmi-
ca do mercado de trabalho e os mecanismos de exclusão e segregação que lhe são subjacentes, identificando,
ao final, da perspectiva de ocupação e gênero, situações específicas e conseqüências diferenciadas à saúde
dos trabalhadores.
Palavras-chave: doenças do trabalho; LER/Dort; segregação ocupacional por gênero.

Abstract: Using as its basis a general overview of work-related accidents and illnesses, this article analyzes
the evolution and social and demographic characteristics of the LER/Dort in the RMBH in the 1990s. To this
end, consideration is given to the dynamics of the labor market and the underlying mechanisms of exclusion
and segregation, ultimately identifying specific situations and unique consequences affecting worker health
according to occupational type.
Key words: labor-related illnesses; LER/Dort; occupational and work-type segregation.

O
crescimento das LER/Dort entre as doenças do reestruturação produtiva. E mais: sob as relações de gê-
trabalho vem sendo objeto de estudos tópicos di- nero, o seu acometimento quantitativo maior expressa-se,
versos. Todavia, mesmo pela justificativa da sobretudo, através da mulher trabalhadora, fato diretamen-
multidisciplinaridade, a maioria das análises existentes te relacionado não a uma “suposta” propensão biológica,
concentra-se basicamente em aspectos parciais ou espe- mas, como veremos, ao papel e à forma de inserção da
cíficos da etiologia da doença, reduzindo tanto aborda- mulher nas divisões social e sexual do trabalho. Por outro
gens mais amplas – inclusive em nível conceitual – quan- lado, a expansão dos casos de LER/Dort vem acarretan-
to o seu entendimento das rápidas mutações por que vem do, pelos números ascendentes de benefícios pleiteados
passando o mundo do trabalho.1 ou concedidos, fortes impactos no sistema de previdência
Abstraindo-nos de uma análise sobre as suas manifes- pública e, por conseguinte, na distribuição do ônus para o
tações clínicas, pontua-se, no entanto, que, embora não conjunto da sociedade.
sejam doenças recentes, as LER/Dort vêm, sem dúvida, Buscando a compreensão das determinações das LER/
assumindo um caráter epidêmico, sendo algumas de suas Dort no contexto da relação saúde-doença como processo
patologias crônicas e recidivas, ou seja, de terapia difícil, social resultante do desgaste do trabalho (Laurell e
porque se renovam precocemente quando da simples re- Noriega, 1989), tomamos como cenário de nosso objeto
tomada dos movimentos repetitivos, gerando uma inca- de estudo as mudanças macros ocorridas no mercado de
pacidade para a vida que não se resume apenas ao am- trabalho da Região Metropolitana de Belo Horizonte –
biente de trabalho. RMBH nos anos 90. Vale dizer que, no contexto da
Mesmo que vários fatores intervenham na formação das RMBH, a análise da evolução e das características sociais
LER/Dort, sua determinação, em última instância, perpassa e demográficas das LER/Dort, assim como das relações
pela estrutura social, relacionando-se, sobretudo, com as de exclusão social e segregação ocupacional que lhe são
mudanças em curso na organização do trabalho e secun- subjacentes, será diretamente remetida às novas condições
dariamente com as inovações tecnológicas peculiares à de organização do trabalho.

11
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 17(1) 2003

Nesse sentido, pela perspectiva sociológica e com determinação social do processo saúde-doença”, com o
base em diferentes fontes de dados, a investigação objetivo de tão-somente destacar o fio condutor do pre-
direciona-se, em especial, para a análise das LER/Dort sente estudo.
consoante quatro aspectos: primeiro, o contexto da evo-
lução das ocorrências de acidentes e doenças do traba- Mudanças na Organização Social do Trabalho
lho; segundo, a dinâmica do mercado de trabalho em
geral e na RMBH em particular, enfatizando-se os in- As novas formas de organização do trabalho associa-
fluxos do emprego e desemprego e o Setor Serviços; das ao processo de reestruturação produtiva configuram-
terceiro, o quadro das mudanças sociodemográficas em se como resposta à crise de realização capitalista ocorri-
curso; quarto, a incorporação da categoria gênero, da no modelo anterior, caracterizado pela generalização
identificando situações específicas assim como as dos princípios tayloristas-fordistas.
conseqüências diferenciadas à saúde de homens e mu- Diante do novo modelo econômico surgido nos anos
lheres. Especificamente, dados epidemiológicos do 80 nos países avançados, destacam-se, consoante Pires
Nusat2 – Núcleo de Referência em Doenças Ocupacionais (1998:45-46) “a grande importância do setor eletrônico;
da Previdência Social são arrolados na perspectiva, atra- a intensa aplicação da tecnologia digital de base micro-
vés da análise comparativa, de compreender tanto a evo- eletrônica na estrutura industrial; e os progressos nos se-
lução do perfil das LER/Dort – isto é, segundo as variá- tores da química fina, dos novos materiais, da biotec-
veis sexo, idade, escolaridade, ocupação e renda – como, nologia e da engenharia genética, beneficiados com os
em especial, os agravos resultantes da situação ocupa- progressos da informática”. E mais: contrapondo-se à ri-
cional dos trabalhadores e trabalhadoras distribuídos gidez anterior, as mudanças suportam-se “no complexo
segundo os ramos de atividade econômica e tempo nas eletrônico, e a automação integrada flexível é uma de suas
funções inerentes às ocupações no mercado de traba- características mais importantes”.
lho da RMBH. No entanto, as mudanças no processo de trabalho, so-
Importante registrar que os dados do Nusat, amplos e bretudo em formações capitalistas periféricas, caracteri-
basicamente remetidos aos casos diagnosticados de doen- zaram-se pela justaposição de formas tradicionais e ino-
ças do trabalho, a par de facultarem a perspectiva analíti- vadoras, ou seja, através do que se poderia chamar de
ca proposta, constituem, no geral, exemplo concreto de “modernização conservadora” com fortes resquícios da
como podemos redirecionar ações conjuntas para a segunda revolução industrial e tecnológica. Daí a manu-
melhoria das estatísticas e indicadores sobre a saúde do tenção e/ou revitalização dos princípios tayloristas-
trabalhador. Isso, sem dúvida, não desconsiderando a fordistas, pela desqualificação e controle autoritário da
potencialidade dos trabalhadores como rica fonte de in- força de trabalho (Braverman, 1977).
formações para o delineamento de perfis apropriados da Na realidade, a par dessas inovações tecnológicas,
trajetória recente das doenças do trabalho na RMBH, mor- advieram mudanças organizacionais que causaram impac-
mente em seu mercado formal de trabalho. Afinal, desde tos imediatos em todo o processo de trabalho. Exemplar-
a extinção do Nusat, e perante a não-realização de pes- mente, ante a verticalização das empresas, promove-se a
quisas amostrais apropriadas, a RMBH necessita de in- terceirização quando várias atividades passaram a ser
formações mais acuradas sobre a questão, apesar de sua externalizadas, possibilitando maiores trocas intersetoriais,
inquestionável emergência. a diversificação e ampliação do Setor Serviços, o
enxugamento do quadro de pessoal das grandes empre-
APORTES TEÓRICOS E METODOLÓGICOS sas, etc. Ainda na direção do aprofundamento da divisão
do trabalho social, novos segmentos, refletindo a necessi-
Diante da complexidade do tema “reestruturação pro- dade de rever custos e reduzir pessoal, indicam uma
dutiva” – no caso, englobando novo padrão tecnológico, presumível terceirização da terceirização – a chamada
mudanças organizacionais, novos valores e práticas de quarteirização – que implica o concurso de novas empre-
gestão, novo perfil do trabalhador, etc. – e suas imbricações sas para gerenciar atividades que foram terceirizadas, ou
com o processo de saúde do trabalhador em estruturas seja, “um maior enxugamento dos setores próprios da
capitalistas, serão apontados abaixo apenas alguns elemen- empresa que gerenciam o trabalho das empresas tercei-
tos teóricos atinentes ao tema “organização do trabalho e rizadas” (Pires, 1998:47).

12
DOENÇAS DO TRABALHO: EXCLUSÃO, SEGREGAÇÃO E RELAÇÕES DE GÊNERO

É claro que esses processos não se restringem ao uni- exemplo, à reprodução de baixos níveis salariais, à não-
verso fabril, avançando sobre o Setor Serviços e alteran- cobertura da seguridade social e à falta de assistência
do suas clássicas funções, relações e condições de traba- médica. Processo, hoje, que não pode ser exclusivamente
lho (Offe,1989). Todavia, mesmo ampliando a sua imputado ao setor informal do mercado de trabalho, pois,
participação na estrutura ocupacional, o Setor Serviços, em direções e graus variados, também tem avançado so-
diante dos impactos das novas tecnologias, não tem am- bre o contingente de trabalhadores registrados.
pliado suficientemente os postos de trabalho a fim de ab-
sorver o desemprego gerado em outros setores (Pochmann, Determinação Social das LER/Dort
1999).
Ao lado da redução do emprego direto e da maior Consoante Laurell e Noriega (1989), pressupõe-se que
subcontratação de trabalhadores, as novas relações de a partir da determinação histórica e social dos processos
produção e formas de gestão se traduzem em alterações de saúde e doença se torna possível analisar os impactos
tanto na organização da produção – “just in time, layout, dos ambientes de trabalho (condições materiais) e das
logística, redução do tamanho da planta, terceirização formas de organização do trabalho (condições sociais his-
e parcerias com fornecedores” – como na organização toricamente determinadas) na vida dos trabalhadores.
interna do trabalho, “com redução de hierarquia, tra- Por conseguinte, essenciais não são as características
balho em ilhas, trabalho mais qualificado no núcleo estáticas do posto de trabalho, mas os “movimentos dinâ-
estável e pouco qualificado nas atividades secundárias” micos dos elementos do processo de trabalho”. Enfim, as
(Pochmann, 1999:35-36). Paralelamente, além do causas como expressão particular da forma específica de
declínio do trabalho na produção e das mudanças no se produzir e, portanto, de trabalhar, ou melhor, de inser-
mercado e nas relações de trabalho, entre outras, des- ção na estrutura social via divisão social do trabalho, ins-
tacando-se a desregulamentação, a flexibilização e o en- tância que torna possível a análise das formas de desgaste
fraquecimento do poder sindical (Toledo, 1997), vêm das cargas de trabalho e sua relação com as doenças
ocorrendo modificações profundas na natureza, signi- ocupacionais. Isso porque “a construção teórica da rela-
ficado e conteúdo do trabalho. ção entre processo de valorização, processo de trabalho,
Mais especificamente, no processo de terceirização, cargas de trabalho e processo de desgaste confere certa
várias conseqüências podem ser apontadas. Porém, lem- capacidade de predição com relação ao que caracteriza o
brando os seus possíveis impactos na saúde do trabalha- padrão de desgaste de um determinado grupo de trabalha-
dor, destacamos as seguintes: a) segmentação e diferencia- dores” (Laurell e Noriega, 1989:110).
ção dos trabalhadores quanto às condições de trabalho – No caso das LER/Dort, a retenção do caráter social do
por exemplo, em relação ao gradiente de afastamento desde processo saúde-doença e de sua determinação possibilita,
o centro da cadeia produtiva até as diversas unidades pe- diante de suas diversas patologias, entender suas mani-
riféricas; b) por um lado, pulverização da base e enfra- festações de forma concreta, isto é, em seus aspectos
quecimento do poder sindical; por outro, flexibilização multifáticos remetidos às condições organizacionais
dos direitos trabalhistas; c) redução dos empregos diretos patogênicas. Evita-se, assim, a centralidade da análise das
e indiretos ao longo da cadeia produtiva; d) intensifica- LER/Dort nos “fatores” – pautada, por exemplo, em ex-
ção do ritmo de trabalho e aumento da pressão no am- plicações multicausais ou multifatoriais – que, via de re-
biente de trabalho. gra, reduzem, através do paradigma médico dominante,
No Brasil, particularmente nas regiões metropolitanas, as LER à condição de fenômeno biológico e individual,
tais processos se suportaram na heterogeneidade do mer- cujo diagnóstico clínico, aliás, problemático, tem sido
cado de trabalho, caracterizado pela queda do emprego objeto de grandes controvérsias. Contrapondo-se às abor-
no setor formal e expressiva elevação da ocupação no se- dagens meramente aditivas, Lima (1997:249) aponta: “en-
tor informal, que, por sua vez, inclui os “sem-carteira as- quanto as dimensões organizacionais, estruturantes essen-
sinada” e os trabalhadores “por conta própria”. Esses, ciais da situação de trabalho, forem consideradas apenas
somados aos desempregados, indicariam não apenas o grau como mais um ‘fator’ dentre outros, como acontece com
de precariedade do mercado de trabalho como, sem dúvi- as abordagens tradicionais, as LER permanecerão um pro-
da, as bases em que se assenta o próprio processo de blema incompreensível e as tentativas de sua prevenção,
precarização das condições de trabalho, atribuídos por inefetivas”.

13
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 17(1) 2003

EMPREGO E PRECARIZAÇÃO DIANTE DE já consignados.4 Isso sem desconsiderar que, paralelamente


ACIDENTES E DOENÇAS DO TRABALHO às deficiências na cobertura da fiscalização, foi – e continua
sendo – inexpressivo o aumento de cláusulas sobre saúde e
Quadro Geral condições de trabalho nos Acordos Coletivos de Trabalho
(Salim, 2001).
No último quartel do século XX, o Brasil apresentou Em outras palavras, um quadro caracterizado por dois
um quadro bastante adverso em relação tanto à expansão aspectos: por um lado, pela retração do mercado de tra-
do mercado de trabalho quanto à melhoria das condições balho; por outro, pelo avanço na deteriorização das con-
laborais daqueles que, a expensas do número crescente dições laborais daqueles cujos postos ou ocupações se
de excluídos, ali se encontravam engajados. encontram em níveis diferenciados de formalidade das
Em um contexto duplamente caracterizado pela pro- relações contratuais ou empregatícias. Situação, enfim, que
longada estagnação econômica das décadas de 80 e 90 – tem trazido importantes reflexos nas variações e tendên-
também conhecidas como “décadas perdidas” – e pela cias dos acidentes do trabalho no país.
abertura unilateral de mercado, observaram-se, além da Entrementes, paralelamente à redefinição do Setor Ser-
inevitável “exportação de empregos” para outros países, viços, ocorreram a queda dos assalariados na participa-
mudanças internas de monta na organização e nos proces- ção total da população economicamente ativa (PEA) e o
sos de trabalho, seja através da adoção de novas tecno- incremento de todo o mercado informal de trabalho. O úl-
logias, seja em nome da competitividade, por meio da ra- timo, hoje, em muitos casos, com participação majoritá-
cionalização da produção, sobretudo por mudanças ria no mercado de trabalho e indícios de saturação na ab-
organizacionais voltadas à redução de custos. Mais que a sorção de trabalhadores excluídos do setor formal,
primeira, basicamente atrelada à inovação, a última foi tida traduz-se, inexoravelmente, no maior número de trabalha-
como a principal responsável tanto pela elevação da taxa dores à margem dos direitos sociais, como o acesso à pre-
de desemprego como pela maior precarização das condi- vidência social e ao bem-estar no ambiente de trabalho,
ções de trabalho em geral, por exemplo, por subcontra- através do inalienável direito a saúde e segurança.
tações ou terceirização. De forma reflexa, as estatísticas disponíveis indicaram,
Particularmente, os anos 90 foram piores em indicado- no final da década, uma nova tendência quanto ao quadro
res do mercado de trabalho. O índice de desemprego para acidentário no país. Em 1999, pela primeira vez na histó-
aquela década foi, em média, de 6,1%. Vale dizer, por um ria laboral do país, tivemos uma maior ocorrência de aci-
lado, que a cada ano da década de 90, cerca de 570 mil dentes do trabalho no Setor Serviços. Segundo a Previ-
trabalhadores perderam seus postos, conforme atestam os dência Social, enquanto, entre 1997 e 1999, a participação
dados da Fundação IBGE. Por outro, segundo a PNAD, desse setor subiu de 38,7% para 44,6%, inversamente, a
também realizada pelo IBGE, a mera elevação do empre- participação da Indústria caiu de 49,2% para 44,2%.5 Par-
go informal e da subcontratação no total de ocupados de ticipação, inclusive, que se estende ao número de casos
41,5% para 49,4%, entre 1990 e 1997, resultou no incre- fatais, ou seja, às mortes decorrentes de acidentes do tra-
mento de 6,4 milhões de trabalhadores3 sem qualquer pro- balho. Nesse particular, destacaram-se os grupos ocupa-
teção legal, ou seja, simultaneamente sob os impactos da cionais dos ramos de atividade Serviços e Comércio e
exclusão de direitos e da precarização no ambiente de tra- Transporte e Comunicação, como destacou Waldvogel
balho. E, como vimos, o Setor Serviços, mesmo amplian- (2002). Aliás, a autora, em sua criteriosa análise, aponta
do a sua participação relativa na estrutura geral de em- a emergência de se considerarem os fatores exógenos ao
pregos, diante de sua nova inserção econômica, não tem ambiente de trabalho na detecção dos riscos intrínsecos
sido capaz de se contrapor ao desemprego ascendente, dos acidentes do trabalho, especialmente nos casos em que
especialmente nas regiões metropolitanas. os trabalhadores têm ampliado para o espaço público o
No entanto, como sorte de contradição, foi nesse contex- local de trabalho, incorporando, neste caso, novos riscos
to que emergiram propostas de flexibilização do mercado de às suas atividades laborais como, por exemplo, a violên-
trabalho voltadas à redução tanto da jornada de trabalho, por cia do cotidiano, expressa, principalmente, nas taxas de
banco de horas, como de direitos trabalhistas, por regimes homicídios, acidentes com veículos a motor, atropelamen-
jurídicos diferenciados, em que, especialmente para a pequena tos, etc. Eventos, infelizmente, muitas vezes à margem das
e média empresa, aventou-se inclusive a reversão de direitos estatísticas disponíveis sobre acidentes do trabalho.

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DOENÇAS DO TRABALHO: EXCLUSÃO, SEGREGAÇÃO E RELAÇÕES DE GÊNERO

Razão, dentre outras, que impõe a não-desconsideração apenas na cidade de São Paulo, cerca de 310 mil traba-
dos limites intrínsecos nas fontes de dados que interferem lhadores sofrem de LER/Dort, ou seja, casos realmente
na qualidade das informações sobre o quadro de saúde- diagnosticados. Isso equivale a 4% de todos os pau-
doença relacionado ao trabalho no Brasil (Salim, 1999). listanos acima de 16 anos de idade e 6% de todos os
Isso porque, basicamente referidas à infortunística dos trabalhadores da cidade. Número, aliás, muito acima dos
trabalhadores do setor formal urbano, as estatísticas ofi- 19 mil casos dessas doenças contabilizados pelo Mi-
ciais resumem-se, sobretudo, aos indicadores mínimos e nistério da Previdência no ano de 2000. 9 E mais: a
de cunho burocrático – uma vez que, no geral, o são para pesquisa da Prevler aponta que esse número pode estar
fins dos benefícios previdenciários dos trabalhadores aquém da realidade, uma vez que 4,7 milhões de traba-
registrados – dos efeitos do trabalho no quadro de aci- lhadores relataram algum sintoma decorrente dessas
dentes típicos e de trajeto, incapacidades permanentes ou doenças e 508 mil trabalhadores encontravam-se ocu-
temporárias e mortes provocadas. Exatamente por isso são pados em situações de risco, fato que pode transformá-
tidas como subestimadas, retratando apenas parcialmente los em novos portadores de LER/Dort – doença, regis-
a realidade acidentária do mercado de trabalho brasileiro. tre-se, que tem sido a responsável pelo maior número
Apesar disso, e ainda consoante dados da Previdência de afastamentos do trabalho em São Paulo.
Social, mesmo com a queda do número total de acidentes
do trabalho, incluindo aí o número absoluto de mortes, a Situação e Tendências em Belo Horizonte
proporção de acidentes graves e o número de mortes por
acidentes registrados, cresceram no tempo, ou seja, seu As variações nos indicadores demográficos, de emprego
grau de letalidade, especialmente até 1995, quando, à ex- e condições de saúde e segurança no trabalho na RMBH,
ceção de 1992, os índices foram ascendentes, voltando, apontam para uma tendência divergente ou, até, parado-
no entanto, a recrudescer ao final da década de 90. xal.
Por outro lado, inversamente à queda absoluta dos aci- Segundo o IBGE, enquanto o crescimento populacional
dentes de trabalho, ocorreu um forte crescimento das doen- decresceu de 2,5% para 1,9%, respectivamente nos perío-
ças relacionadas ao trabalho durante toda a década de 90, dos de 1980-91 e 1991-96, a PEA cresceu, em média, 0,4%
valendo aqui assinalar as mais diretamente relacionadas ao ano no último período, passando de um contingente de
às recentes mudanças na organização do trabalho, em que 1.610,4 mil para 1.642,5 mil pessoas.10 Já a taxa de de-
as LER/Dort afiguraram-se como caso emblemático. semprego, refletindo a crise econômica que se estende
De fato, como reflexo de novos riscos nos processos desde os anos 80, em elevação progressiva, saltou de 4,1%,
produtivos e nos ambientes de trabalho, houve uma forte em 1991, para 4,6%, em 1996.11
elevação nos coeficientes de doenças profissionais nos Quadro, na verdade, fortemente caracterizado pelo
anos 90.6 E isso foi mais do que sintomático, na medida movimento geral de “desassalariamento” e precarização
em que, afora outros motivos, esses coeficientes retrata- do trabalho vis-à-vis ao crescimento de ocupações no
ram um momento – mais precisamente, o final da década mercado informal de trabalho, que sozinho respondeu por
de 90 – em que se ergueu, por parte do Ministério da Pre- quase 50% de todas as ocupações no âmbito da RMBH,
vidência e Assistência Social, um verdadeiro “biombo segundo a PME.
institucional” para dificultar o diagnóstico e o reconheci- Considerando a distribuição das pessoas que trabalha-
mento de tais doenças, especialmente das LER/Dort, e, ram segundo a posição na ocupação, verificou-se, ainda
por conseguinte, a consignação de direitos aos lesionados segundo o IBGE, um decréscimo absoluto e relativo no
(Araújo, 2001).7 Por outro lado, ainda que eloqüentes, são número de trabalhadores com carteira assinada, que pas-
coeficientes que não podem ser dissociados de problemas sou de um contingente de 804,8 mil, em 1991, para 736,2
inerentes às conhecidas dificuldades de melhoria nos sis- mil, em 1996, implicando uma taxa média anual negativa
temas de notificação das doenças do trabalho em diferen- de 1,8%. Em contrapartida, o número de ocupados sem
tes contextos institucionais, ou seja, são calcados em ine- carteira assinada – isto é, não-registrados – , crescendo a
quívoca subenumeração de casos de doenças do trabalho. uma média de 3,9% ao ano, saltou, no período, de 339,5
Pesquisa recente do Instituto Nacional de Prevenção mil para 394,3 mil trabalhadores. Já a categoria dos tra-
das LER/Dort (Prevler), realizada pelo Datafolha, com balhadores “por conta própria” aumentou de 328,7 mil para
financiamento do Ministério da Saúde, 8 mostrou que, 353,8 mil indivíduos, ou seja, 1,4% ao ano. Em relação

15
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 17(1) 2003

ao total da população ocupada na RMBH, as duas últimas GRÁFICO 2

categorias representaram 42,4% e 47,7%, respectivamente, Distribuição dos Atendimentos das Doenças do Trabalho, por Diagnóstico
Minas Gerais – 1996
nos anos 1991 e 1996.
Apesar do caráter parcial das estatísticas disponíveis
sobre os agravos à saúde do trabalhador – mesmo em re-
lação à cobertura do setor formal (Salim, 2000b) –, ob-
servou-se, no âmbito da RMBH, o contraditio relaciona-
do à diminuição dos acidentes de trabalho, por um lado, e
elevação dos índices de doenças ocupacionais, por outro.
Tendência que, guardadas as devidas proporções, foi a
mesma observada para o conjunto do Estado de Minas
Gerais. Tal tendência reverteu-se a partir de 1998, quan-
do então se observou uma brusca e inusitada queda nos
registros de doenças do trabalho em relação ao conjunto
de acidentes do trabalho registrados nas publicações da
Previdência Social. Situação basicamente explicada pela
Fonte: Relatório do Nusat/INSS-MG – 1996.
imposição de novas condições para os diagnósticos clíni- (1) Perda auditiva induzida por ruído.

cos, apesar da manutenção das condições produtoras das


doenças e tibieza das ações preventivas na área no perío- A ascensão dos casos de LER/Dort nos anos 90, além
do (Gráfico 1).12 de facultar índices já caracterizados como epidêmicos,
Entre 1991 e 1996, Minas Gerais registrou, cumulati- indica, sem dúvida, a sua maior proeminência entre todas
vamente, 21.158 casos dessas doenças. Apenas em 1996 as doenças ocupacionais atendidas pelo Nusat/INSS-MG.
foram 8.010 casos, o que representou um crescimento de Aliás, essas doenças não foram apenas crescentes em
55,6% em relação ao ano anterior. Desses, um total de diagnósticos, como também se tornaram campeãs absolu-
4.587 registros, correspondendo a 57,3% do total para o tas na distribuição dos benefícios acidentários por espé-
Estado, referia-se aos municípios mais industrializados da cie diagnosticada.14
RMBH: Belo Horizonte (3.063), Contagem (1.063) e Em adição ao Gráfico 2, vale registrar que, ainda em
Betim (461).13 1996, a maior incidência das LER/Dort no rol das doen-
ças ocupacionais confirma que estão em primeiro lugar
GRÁFICO 1 tanto nos atendimentos individuais (49,2%) como nos aten-
Evolução dos Acidentes Típicos e Doenças do Trabalho dimentos coletivos (92,3%) do Nusat. Sintomaticamente,
Minas Gerais – 1990-96 mesmo nos atendimentos por ausência de doença profis-
sional, as suspeitas de LER foram as mais expressivas
(32,6%), seguidas, de longe e em ordem decrescente, pe-
las suspeitas de leucopenia (22,1%), perdas auditivas
induzidas por ruído – Pair (18,6%), asma/alergia respira-
tória (5,8%), etc.
Considerando-se todo o período 1991-96 (Tabela 2),
o incremento das LER/Dort na RMBH, estimado pela taxa
geométrica de crescimento, ocorreu a uma taxa média de
32,8% ao ano. Valor que, além de preocupante como ques-
tão de saúde pública, foi muito superior a qualquer outro
indicador sociodemográfico apresentado anteriormente.

CARACTERIZAÇÃO E ANÁLISE DAS LER/DORT

Veremos que as manifestações das LER/Dort, atendo-se


Fonte: INSS/Beat – Boletim Estatístico de Acidentes do Trabalhador, 1990-1996. aos mecanismos de exclusão social, se dão por diferencia-

16
DOENÇAS DO TRABALHO: EXCLUSÃO, SEGREGAÇÃO E RELAÇÕES DE GÊNERO

TABELA 1
Distribuição das Pessoas com LER/Dort Atendidas pelo Nusat, segundo Faixa Etária
Região Metropolitana de Belo Horizonte – 1992-98

Pessoas com LER/Dort Atendidas pelo Nusat


Faixa Etária
1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998

Total (Nos Absolutos) 328 550 554 1.160 1.703 1.373 815
Total (%) 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0
Até 20 Anos 1,2 1,5 - 0,7 1,8 0,8 1,5
20 a 29 Anos 42,4 42,2 30,9 36,8 34,1 29,6 23,9
30 a 39 Anos 36,3 37,1 43,5 37,0 37,2 39,5 36,0
40 a 49 Anos 17,1 16,5 21,8 21,7 21,8 25,3 31,4
50 ou Mais 3,0 2,7 2,9 3,7 5,2 4,7 7,1
Não-Declarado - - 0,9 0,1 0,0 0,0 0,1
Fonte: Relatório do Nusat/INSS-MG – 1992-1998.
TABELA 2

ções marcantes tanto em suas características sociodemo- Distribuição das Pessoas com LER/Dort Atendidas pelo Nusat, por Sexo
Região Metropolitana de Belo Horizonte – 1991-98
gráficas – sexo, idade, escolaridade e renda – quanto em sua
relação com os diferentes ramos de atividade econômica e a
Pessoas com LER/Dort Atendidas pelo Nusat
função desempenhada pelo lesionado na estrutura ocu-
Anos Mulheres Homens
pacional, sendo esta última decisiva na compreensão das Total
os os
N Absolutos % N Absolutos %
formas de desgaste e adoecimento do trabalhador.
Esta parte do artigo reporta-se parcialmente a traba- 1991 249 75,5 81 24,5 330
lhos anteriores do autor, em que também foram utilizados 1992 237 75,7 76 24,3 313
dados do Nusat. Dados que resultaram de consultas exaus- 1993 384 69,8 166 30,2 550
tivas em seus arquivos e relatórios disponibilizados. Par- 1994 400 72,2 154 27,8 554
te desse material, em forma de pôster, foi apresentada no 1995 830 71,6 330 28,4 1.160
VI Congresso da Abrasco (Salim, 2000a). Outra parte, de 1996 1.295 76,0 408 24,0 1.703

forma mais estruturada, foi utilizada em outro trabalho 1997 1.086 79,1 287 20,9 1.373
1998 652 80,0 163 20,0 815
(Salim, 2001), do qual reproduzimos as tabelas 1, 4 e 5,
Fonte: Relatório do Nusat/INSS-MG – 1991-1998.
na íntegra. No entanto, os demais quadros e tabelas foram
remodelados e organizados conforme o escopo deste tra-
balho,15 o qual redireciona a análise para as novas dimen- vitimados, com idades entre 20 e 39 anos, não foi inferior a
sões das LER/Dort, no que diz respeito ao seu caráter de dois terços dos casos registrados. Por outro lado, conside-
exclusão social, decorrente tanto da segregação ocupacio- rando-se toda a série estatística (Tabela 1), observou-se que,
nal como das relações de gênero que lhe são peculiares. apenas em 1994, não ocorreu qualquer registro de portador
de LER/Dort entre trabalhadores com menos de 20 anos de
Perfil Sociodemográfico idade – situação, infelizmente, não verificada nos demais anos,
quando então, mesmo de forma oscilante, constataram-se
Uma análise da estrutura etária dos trabalhadores porta- registros de casos.16
dores de LER/Dort indica uma clara predominância de ca- Quanto à distribuição dos casos por sexo, por ora des-
sos na faixa etária de 30 a 39 anos, cujas taxas, refletindo tacamos que, nos anos 90, as LER/Dort atingiram sobre-
participações extremas em dois momentos, oscilaram de maneira e de forma ascendente a mulher trabalhadora na
43,5%, em 1994, para 36,0%, em 1998. Tendo como RMBH.
referencial o intervalo de 20 a 39 anos, os percentuais na- Se no período 1991-96 responderam, em média, por
queles anos foram 74,4% e 59,9%, respectivamente. Apesar quase três quartos dos casos diagnosticados, essa relação
do relativo envelhecimento dos lesionados no tempo, até 1997 de tendência aumentou no tempo, passando de 76,0%, em
as freqüências relativas dos diagnósticos de trabalhadores 1996, para 80,0%, em 1998 (Tabela 2).

17
SÃO P AULO EM PERSPECTIVA , 17(1) 2003

Mesmo disponível apenas após 1994, a série histórica TABELA 3


de dados sobre os níveis de escolaridade do portador de Distribuição das Pessoas com LER/Dort Atendidas pelo Nusat,
segundo Escolaridade
LER/Dort apresenta uma importante inversão de tendên-
Região Metropolitana de Belo Horizonte – 1994-98
cia. Como tal pode ser considerada como um dos sinto-
mas de aprofundamento da exclusão social. Pessoas com LER/Dort Atendidas pelo Nusat
De fato, constata-se o seguinte: enquanto caiu a inci- Escolaridade
1994 1995 1996 1997 1998
dência de trabalhadores lesionados de nível superior –
passando de 22,4%, em 1994, para apenas 9,6%, em 1998 –, Total (N os Absolutos) 554 1.160 1.703 1.373 815
Total (%) 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0
aumentou o registro daqueles cuja escolaridade não ultra-
Não-Alfabetizado 0,7 0,9 1,1 0,7 2,0
passava o primeiro grau, ou seja, com menos de oito anos 1º Grau 29,4 41,6 46,2 40,4 43,7
de estudos: de 1994 a 1998, passou de 30,1% para 45,7% 2º Grau 45,5 39,7 40,2 41,2 43,9
(Tabela 3). Índices que corroboram a relevância do nível Superior 22,4 15,0 12,2 13,9 9,6
de escolaridade como elemento de peso na eficácia das Técnico 0,7 1,6 0,0 0,0 0,0
Não-Declarado 1,3 1,4 0,5 3,8 0,9
ações preventivas voltadas à minimização dos danos de
Fonte: Relatório do Nusat/INSS-MG – 1994-1998.
saúde no ambiente de trabalho.
De forma similar à escolaridade, a medição da variá-
vel salário por faixas de salários mínimos para a caracte- GRÁFICO 3
rização dos lesionados – que também passou a ser com- Distribuição dos Atendimentos de LER/Dort,
putada apenas a partir de 1994 – aponta, ao longo do por Faixa de Salários Mínimos (SM)
Região Metropolitana de Belo Horizonte – 1994-98
tempo, para a tendência de maior incidência da doença
entre os situados na base da pirâmide social – fato que
reforça o seu caráter socialmente excludente.
Na realidade, o crescimento relativo dos portadores de
LER/Dort com rendimento mensal situado entre um e dois
salários mínimos elevou-se de 11,9%, em 1994, para
29,8%, em 1998. Considerando a faixa de lesionados que
recebem até três salários mínimos, os índices foram 32,5%
e 45,2%, respectivamente. Ainda no mesmo período, as
maiores quedas observadas foram na faixa intermediária
de três a cinco salários – de 23,7% para 18,2% – e na fai-
xa dos que recebiam mais de cinco salários – de 38,1%
para 27,0%. Todavia, em relação à penúltima faixa, o ponto
de inflexão, no sentido de descenso da curva, ocorreu a
partir de 1995, quando, segundo os dados do Nusat, as
Fonte: Relatório do Nusat/INSS-MG – 1994-1998.
LER/Dort passaram a ser mais diretamente associadas aos
trabalhadores de menor renda (Gráfico 3).
ção do trabalho, o avanço da precarização e os impactos
Segundo Ramos de Atividade Econômica e Ocupações das novas tecnologias.
Conforme Tabela 4, ao final do período localizado,
Na caracterização das LER/Dort segundo ramos de ati- apenas os ramos compostos pelas instituições financeiras,
vidade e ocupações, constatou-se, de longe, uma maior comércio varejista e prestação de serviços voltados às
participação do setor Serviços no cômputo geral dos ca- empresas que, sozinhos, responderam por 39,4% dos ca-
sos diagnosticados. Situação, no entanto, que não se resu- sos de LER/Dort na RMBH. Vale lembrar que no último
me apenas aos casos de doenças de trabalho, posto que ramo estão as atividades de terceirização, como, por exem-
outras modalidades de acidentes do trabalho – típico e de plo, os serviços de vigilância, segurança e limpeza.
trajeto – também têm se estendido àquele setor. Como Em um período de seis anos, compreendido entre 1992
vimos, isso estaria relacionado a processos aparentemen- e 1998, as instituições financeiras reiteradamente conti-
te díspares, porém não-divergentes, como a reorganiza- nuaram campeãs na produção das LER/Dort.17 Também

18
DOENÇAS DO TRABALHO: EXCLUSÃO, SEGREGAÇÃO E RELAÇÕES DE GÊNERO

foi considerável o aumento na participação do comércio ocupou o primeiro lugar em todo o período 1991-1994.
varejista – supermercados e lojas de artigos variados – Na época, o segundo e terceiro lugares foram os seguin-
que, desde 1996, aproxima do índice das instituições fi- tes: telefonista e auxiliar de produção na indústria eletrô-
nanceiras. Em 1998, enquanto essas intituições responde- nica, em 1991; auxiliar administrativo e telefonista, em
ram por 13,9% dos diagnósticos de LER/Dort, o comér- 1992; auxiliar de escritório com digitação e caixa bancá-
cio varejista, que também passou pela modernização rio, em 1993; caixa bancário e auxiliar de escritório, em
tecnológica, respondeu por 12,6%, ocupando, ainda, o 1994.20
segundo e terceiro lugares nos anos de 1996 e 1997, res- Na segunda metade dos anos 90, os digitadores perde-
pectivamente 13,0% e 12,7%. ram a posição de liderança anterior. Situação explicada
Por fim, dois outros ramos de atividade devem ser des- pelas evidências de diferenciações nas condições de tra-
tacados: serviços de saúde e prestação de serviços. O pri- balho por categoria, basicamente decorrentes de ações
meiro, ironicamente por pertencer ao setor saúde, mas tam- preventivas tópicas ou, o mais provável, pela maior mo-
bém porque sofreu impactos da sua reestruturação produtiva – bilidade do trabalho, possibilitada, por exemplo, pela
como terceirização e o uso intensivo de novas tecnologias rotatividade da mão-de-obra. De qualquer forma, outras
(Pires, 1998) –, elevou sua participação na incidência das ocupações tornaram-se ou permaneceram relevantes nas
LER/Dort de 4,7%, em 1993, para 11,5%, 1998, passando manifestações das LER/Dort, como trabalhadores dos ser-
do oitavo para o quarto lugar no período.18 O segundo, atre- viços de saúde, caixas comerciários, faxineiras e traba-
lado ao processo de terceirização e expandindo-se veloz- lhadores dos serviços de limpeza, caixas bancários e es-
mente no período, destacou-se sobretudo no ano de 1998, criturários (Tabela 5).
quando, com 12,9% dos casos, representou o segundo ramo
com o maior número de trabalhadores acometidos por LER/ Sobre o Desgaste da Força de Trabalho
Dort na RMBH. Comparativamente, seu valor foi de 8,1%
em 1997 (Tabela 4).19 Como destacamos anteriormente, a exposição direta aos
Consoante tal situação, foram constatadas mudanças riscos em diferentes ambientes de trabalho determinaria,
expressivas no perfil das ocupações dos trabalhadores por- segundo a categoria das ocupações, escalas variadas no
tadores de LER/Dort atendidos e diagnosticados no Nusat. desgaste físico do trabalhador. Situação que, diante da
Inicialmente, o maior número de diagnósticos dessas qualidade e natureza dos dados acessados, aqui será ana-
doenças concentrou-se na categoria dos digitadores, que lisada apenas da perspectiva da distribuição dos casos

TABELA 4
Distribuição das Pessoas com LER/Dort Atendidas pelo Nusat, segundo Ramo de Atividade Econômica (1)
Região Metropolitana de Belo Horizonte – 1992-98

Pessoas com LER/Dort Atendidas pelo Nusat


Ramos
1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998

Total (Nos Absolutos) 328 550 554 1.160 1.703 1.373 815
Total (%) 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0 100,0
Instituições Financeiras 23,8 26,7 35,4 20,5 16,7 21,0 13,9
Serviços de Comunicação 10,7 - 6,5 - - - -
Indústria Siderúrgica e Metalúrgica 6,1 - - - - - -
Indústria de Material Elétrico e Eletrônico - 10,5 - 9,2 - - -
Serviços de Saúde - - - 11,9 10,2 10,8 -
Comércio Varejista - 8,0 - - 13,0 12,7 12,6
Serviço Administrativo de Locação de Bens Móveis - - 10,3 - - - -
Prestação de Serviços - - - - - - 12,9
Outros 59,5 54,7 47,8 58,4 60,0 55,6 60,6
Fonte: Relatório do Nusat/INSS-MG – 1992-1998.
(1) Para cada ano, estão relacionados somente os três ramos que apresentaram o maior número de casos de LER/Dort. Daí o superdimensionamento de “Outros”.

19
SÃO P AULO EM PERSPECTIVA , 17(1) 2003

TABELA 5
Distribuição das Pessoas com LER/Dort Atendidas pelo Nusat, segundo Ocupação (1)
Região Metropolitana de Belo Horizonte – 1995-98

Pessoas com LER/Dort Atendidas pelo Nusat


Ocupação
1995 1996 1997 1998
os os os os
N Absolutos % N Absolutos % N Absolutos % N Absolutos %

Total 1.160 100,0 1.703 100,0 1.373 100,0 815 100,0


Auxiliar Administrativo/Auxiliar de Escritório 119 10,3 201 11,8 143 10,4 87 10,7
Digitador - - 155 9,1 - - 47 5,8
Caixa Bancário 112 9,7 149 8,7 124 9,0 70 8,6
Faxineira/Auxiliar - - 129 7,6 154 11,2 98 12,0
Caixa Comércio - - 104 6,1 97 7,1 69 8,5
Escriturário - - - - 82 6,0 - -
Trabalhador de Serviço de Saúde 95 8,2 - - - - - -
Montador de Chicote 82 7,1 - - - - - -
Trabalhador Industrial de Material de Transporte 74 6,4 - - - - - -
Outros 678 58,4 965 56,7 773 56,3 444 54,5
Fonte: Relatório do Nusat/INSS-MG – 1995-1998.
(1) Para cada ano, estão relacionadas apenas as cinco ocupações que apresentaram o maior número de casos de LER/Dort.

TABELA 6 GRÁFICO 4
Distribuição das Pessoas com LER/Dort Atendidas pelo Nusat, Distribuição dos Atendimentos de LER/Dort, por Tempo de Função
segundo Tempo de Função Região Metropolitana de Belo Horizonte – 1994-98
Região Metropolitana de Belo Horizonte – 1994-98

Pessoas com LER/Dort Atendidas pelo Nusat


Tempo de Função
1994 1995 1996 1997 1998

Total (Nos Absolutos) 554 1.160 1.703 1.373 815


Total (%) (1) 39,5 (1) 39,2 100,0 100,0 100,0
< 6 Meses 1,1 1,4 2,1 1,9 1,3
De 7 Meses a 2 Anos 8,5 9,4 21,4 16,5 9,8
De 2 a 4 Anos 6,9 8,4 18,4 15,8 18,4
De 4 a 9 Anos 10,1 9,5 26,0 27,7 24,8
De 9 a 14 Anos 7,9 5,2 13,0 17,7 27,7
> 14 Anos 5,1 4,6 17,1 19,4 16,8
Não-Declarado 0,0 0,8 2,1 1,1 1,1
Fonte: Relatório do Nusat/INSS-MG – 1994-1998.
(1) Os dados dos relatórios estão incompletos para os anos assinalados.
Nota: Para 1994, o valor 39,5% corresponde a um total de 219 casos, assim distribuídos: 92
digitadores, 91 caixas bancários, 23 montadores de chicotes e 13 operadores de produção na in-
dústria automobilística; para 1995, o valor de 39,2% corresponde a um total de 455 casos, assim
distribuídos: 82 montadores de chicote, 112 caixas bancários, 119 auxiliares administrativos e de
escritório, 68 digitadores e 74 trabalhadores na indústria de material de transporte. Fonte: Relatório do Nusat/INSS-MG – 1994-98.

diagnosticados por tempo de ocupação ou de exercício mos de atividade variados – paralelamente à crescente
profissional em dada função. rotatividade da mão-de-obra, informatização e automação
No período focalizado, mesmo tendo diminuído os de processos.
diagnósticos de LER/Dort entre os trabalhadores com As ocorrências entre aqueles com até dois anos de tra-
pouco tempo na ocupação, observou-se, no geral, ainda balho, isto é, a partir de 1996, ainda permaneceram ele-
uma elevada proporção desses trabalhadores portadores vadas (Tabela 6): entre 1996 e 1998, os trabalhadores com
de LER/Dort, tendência que ocorreu – em graus e/ou ra- tempo de trabalho segundo os estratos de 2 a 4 e de 4 a 9

20
DOENÇAS DO TRABALHO: EXCLUSÃO, SEGREGAÇÃO E RELAÇÕES DE GÊNERO

anos de atividade laboral (Gráfico 4) representaram, em lúrgicos e siderúrgicos não-classificados, nos quais o peso
média, respectivamente, cerca de 20% e 25% dos casos relativo da participação feminina é ínfimo” (Wajnman et
diagnosticados. al., 1998:12).
Como o maior número de casos entre as mulheres não
LER/DORT E GÊNERO pode ser justificado em função da maior participação da
força de trabalho feminina naquelas ocupações mais rela-
Na Tabela 2 constatamos que as LER/Dort acomete- cionadas a tais doenças, vale lembrar que dados agrega-
ram majoritariamente a mulher trabalhadora da RMBH, dos em níveis maiores podem, inclusive, mascarar as for-
em curto espaço de tempo e de forma ascendente. mas nas quais as relações de gênero se materializam numa
Sem dúvida, os números citados, mais do que meros mesma ocupação, em que, por exemplo, a mulher acaba
suportes para indicadores quantitativos, em tese, reves- assumindo tarefas mais monótonas e repetitivas, como
tem-se de riqueza de significado, constituindo-se em observaram Cândido e Neves (1997).22
referencial ou ponto de partida para análises cujos desdo- Como as LER/Dort não são outra coisa senão reflexo
bramentos teóricos poderiam ser amplos no plano da impossibilidade de controle dos trabalhadores sobre a
interdisciplinar. Contudo, da perspectiva da análise for- própria saúde, a expressão de sua desigualdade segundo
mal, tais números não possibilitam uma adequada carac- o gênero revela seu lado trágico quanto à maior exposi-
terização das LER/Dort no contexto das relações de gê- ção e exploração da mulher como força de trabalho – si-
nero, pois seriam necessárias desagregações que não foram tuação, enfim, resultante do processo histórico de segre-
disponibilizadas pelo Nusat mas apenas os totais para gação ocupacional (Oliveira; Ariza, 1997), que, no geral,
ambos os sexos, em relação às seguintes variáveis: esco- vem imputando à mulher um conjunto diferenciado de ta-
laridade, rendimento, ramo de atividade, ocupação e tem- refas específicas, ou seja, mais repetitivas e monótonas.
po na função dos lesionados. Exatamente por isso, é essencial ir além da divisão do
Buscando superar essa lacuna, Wajnman et al. (1998) trabalho na busca de se compreender a desigualdade na
propõem, segundo sexo e grupos de base de ocupações distribuição das LER/Dort entre os trabalhadores, para
da Rais, importantes questões sobre a hipótese de situá-las no campo das relações de gênero, redefinidas,
prevalência dessas doenças entre as mulheres – no caso, por sua vez, pelas novas formas de organização do traba-
em parte, porque se referem apenas à distribuição dos casos lho, nas quais, sem dúvida, as condições de precarização
de LER/Dort via dados do Nusat até 1996. têm-se revelado particularmente mais deletérias à saúde
Desse modo, para o ano 1996, as autoras analisaram das mulheres.
dois aspectos: o efeito de composição da sobredetermi- Agravante é o fato que, no cômputo da distribuição da
nação feminina nas ocupações mais prevalentes em LER/ população assalariada na RMBH por sexo, a participação
Dort sobre a incidência diferencial por sexo21 e as tendên- da mulher tem sido marcante nas empresas com até nove
cias recentes de contratações de mulheres nas ocupações empregados, onde, não raramente, são mais problemáti-
mais prevalentes. cas as ações preventivas de saúde e segurança. Nesse seg-
No primeiro caso, mesmo que novas análises sejam mento de empresas, a participação relativa da força de
necessárias, constatou-se a predominância feminina nos trabalho feminina evoluiu de 35,6%, em 1996, para 39,0%,
casos de LER/Dort. Segundo as autoras, “os casos femi- em 1998 (Fundação João Pinheiro/Dieese/Fundação
ninos superam largamente os 50%, exceto em cinco gru- Seade, 1999:3).
pos: operadores de máquinas-ferramenta, classificadores Considerando-se a distribuição da população desem-
de correspondências, carteiros e mensageiros, trabalhado- pregada na RMBH por sexo e idade, constata-se, em 1998,
res metalúrgicos e siderúrgicos não-classificados, repara- que, entre as mulheres desempregadas, as faixas etárias
dores de equipamentos elétricos e eletrônicos e pintores e relativamente mais expressivas – isto é, de 18 a 24 anos,
decoradores de vidro e cerâmica”. Sendo assim, hipoteti- com 35,3%, e de 25 a 39 anos, com 33,5% – são pratica-
camente, por meio de estatísticas padronizadas, se os pe- mente coincidentes com aquelas em que as LER/Dort têm
sos dos sexos fossem similares, a proporção de mulheres sido mais freqüentes. Aliás, a última faixa, a mais exten-
com LER/Dort seria “sempre e muito acima dos 50%, sa, constitui a única em que o desemprego entre as mulhe-
exceto apenas nos grupos de classificadores de correspon- res é superior ao dos homens (Fundação João Pinheiro/
dência, carteiros e mensageiros e trabalhadores meta- Dieese/Fundação Seade, 1999:4). Todavia, o perfil da po-

21
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 17(1) 2003

pulação desempregada segundo o atributo sexo indica o Já as variações dos casos de LER/Dort em relação aos
seguinte: em 1998, de um contingente de 297 mil desem- ramos de atividade econômica – expressivas, sem dúvida
pregados na RMBH, 51,1% eram mulheres e 48,9% ho- – não seriam senão reflexo das mudanças ocorridas no
mens. Mais especificamente, “enquanto a taxa de desem- mercado de trabalho e, sobretudo, na organização dos
prego anual para ambos os sexos foi de 15,9% da PEA, processos de trabalho, tal como constatamos na RMBH,
18,7% das mulheres economicamente ativas encontravam- mormente em segmentos fabris e do setor Serviços que
se na situação de desemprego, contra 13,7% dos homens” sofreram impactos mais diretos na informatização e
(Fundação João Pinheiro/Dieese/Fundação Seade, 1999:3). automação. No geral, esses segmentos aprofundaram a
Ademais, a par da discriminação, que acaba dificultando subordinação do trabalho vivo ao trabalho morto, possi-
o acesso da mulher a determinadas ocupações – sobretu- bilitando um maior controle do trabalho em si, através de
do no setor industrial, o mais formalizado e protegido – , máquinas, atividades repetitivas, tarefas pouco diver-
as diferenças de rendimento entre homens e mulheres, sificadas, etc. Sendo assim, o advento dos novos proces-
mesmo com a elevação do nível de escolaridade das últi- sos se relacionaria não apenas à maior sobrecarga de tra-
mas, reforçam as desigualdades de gênero no mercado de balho originária da redução de postos e número de pessoal
trabalho. Desigualdade, indubitavelmente, que acabou empregado como também ao aviltamento das tarefas, à
refletindo no quadro geral e dinâmico das LER/Dort na intensificação do ritmo do trabalho e assim por diante.
RMBH. Nesse sentido, a própria alternância das ocupações gera-
doras de LER/Dort nos anos 90, assim como as variações
CONCLUSÕES na exposição aos riscos em ambientes de trabalho, asso-
ciadas ao desgaste decorrente do tempo no exercício da
Como citado anteriormente já indicaram elementos re- função pelo trabalhador/trabalhadora, dá conta da com-
lacionados à compreensão das determinações, dinâmica e plexidade de suas determinações sociais. Isso sem consi-
principais impactos das LER/Dort, apontaremos, como derar as intricadas questões relacionadas aos diagnósti-
conclusão, alguns aspectos mais gerais que, por serem de cos clínicos e à luta na busca por direitos dos lesionados;
alcance maior, extrapolam, digamos, o próprio espaço da luta que, para muitos, é contraponto à ameaça maior do
RMBH. Com isso, não estamos minimizando a necessi- processo de exclusão social. Processo cujos impactos na
dade de aprofundamento de alguns aspectos abordados, RMBH têm estigmatizado sobretudo trabalhadores jovens,
em especial quanto à análise mais detida de algumas variá- em sua maioria do sexo feminino, situados nos níveis mais
veis ou, em nível mais global, à verificação do suposto baixos de escolaridade e renda.
“efeito de composição da sobredeterminação feminina” Por fim, destacamos duas particularidades inerentes às
em certas ocupações e, mais especificamente, acerca das LER/Dort que, de certa forma, são convergentes ou so-
tendências e variações no tempo das contratações de mu- brepostas: a síndrome da exclusão e a questão da segre-
lheres naquelas ocupações mais prevalentes, como suge- gação por gênero.
rem Wajnman et al. (1998). A primeira, de forte impacto social, se explicaria pela
Reflexo da “reestruturação produtiva” e principalmente qualidade de vida negada, uma vez que os incapacitados
das novas formas de organização do trabalho que lhe são por essas doenças, majoritariamente jovens e mulheres,
afeitas, a epidemia de LER/Dort também se imbricaria às situando-se nas faixas etárias mais produtivas do ciclo de
pressões inerentes à maior exploração da força de traba- vida, vêem-se, pela invalidez ou aposentadoria precoce,
lho advinda tanto de novas tecnologias e situações de ris- sem o referencial de vida que a sociabilidade pelo traba-
cos como dos imperativos relacionados, por um lado, ao lho, em tese, representaria para eles ante a impossibilida-
estreitamento do mercado formal de trabalho e, por ou- de da doença ocupacional.
tro, ao alargamento do setor informal, cujas precarieda- A segunda, na perspectiva das relações de gênero, se
des reforçariam os agravos à saúde do trabalhador. No expressaria pela proporção majoritária das mulheres en-
caso, o processo de terceirização, transferindo custos e tre os portadores de LER/Dort. Fato essencialmente re-
reduzindo ainda mais as condições de trabalho, reforça- sultante dos processos de divisão social e sexual do tra-
ria esses agravos, pela possibilidade de maior rotatividade balho que, invariavelmente, têm respondido pela exclusão
dos trabalhadores, burla à legislação trabalhista e omis- social e econômica das mulheres (Oliveira; Ariza, 1997).
são à atenção com a saúde do trabalhador. Vale dizer: pela determinação da segregação por gênero

22
DOENÇAS DO TRABALHO: EXCLUSÃO, SEGREGAÇÃO E RELAÇÕES DE GÊNERO

no mercado de trabalho, a partir de situações concretas, recentemente vêm sendo acusadas de práticas irregulares que lesariam
os trabalhadores. Entre elas, a não-verificação da existência ou não de
como, por exemplo, as condições precárias do trabalho doença profissional nos acordos selados, ou seja, fecham acordos sem
feminino extradoméstico, agravadas pela segregação saber o resultado do exame médico demissional do trabalhador (Folha
de S.Paulo, 07/09/2002, Caderno B, p.14).
ocupacional e discriminação salarial das mulheres peran-
5. Conforme AEPS – Anuário Estatístico da Previdência Social, 1999.
te os homens. Em particular, a segregação ocupacional, Todavia, apesar de indicarem uma nova tendência, esses dados podem
ante a eventualidade da dupla jornada de trabalho – de- estar um pouco comprometidos pelo fato de empresas terceirizadas, mui-
tas vezes vendedoras de serviços nos ramos industriais, serem, na verda-
corrente das divisões sexuais do trabalho na família e so- de, meras prestadoras de serviços e, portanto, formalmente contabilizadas
ciedade – ampliaria a possibilidade de desgaste da força no setor Serviços. Daí a necessidade de novas pesquisas sobre o tema.
de trabalho feminino e, por conseguinte, de mudança quan- 6. Ainda não há, entre os especialistas, consenso quanto à construção
to à manifestação do gênero nas doenças do trabalho. En- de coeficientes na área. Todavia, são reveladores alguns números di-
vulgados, como, por exemplo, por Bombardi (2001:218), mostrando
fim, uma situação, como lembra Hirata (2001:111), na qual que os coeficientes de doenças profissionais no Brasil, para cada 100
“os mais atingidos são os jovens, os pouco qualificados, mil trabalhadores registrados, elevaram de 26,92, em 1990, para 155,07,
em 1998. O pico, ocorrido em 1997, foi de 196,37 casos.
do sexo feminino”, ou seja, que não pode ser dissociada
7. O autor apresenta as marchas e contramarchas relacionadas às mu-
do quadro geral em que homens e mulheres vêm sendo danças na legislação previdenciária acerca do diagnóstico das LER/
distintamente afetados pelo desemprego devido a idade, Dort. Especialmente, reporta-se à Norma Técnica de Avaliação de In-
capacidade para Fins de Benefícios Previdenciários, publicada no Diá-
qualificação profissional ou condição familiar. rio Oficial da União, em 20/08/98.
Em resumo, neste trabalho, procuramos analisar um 8. Essa pesquisa ouviu 1.072 trabalhadores com mais de 16 anos e de
quadro no qual a manifestação das doenças do trabalho – todos os ramos de atividade na cidade de São Paulo. Os entrevistados
aqui também focalizadas da ótica da exclusão social – vem foram selecionados por sexo, idade, renda e escolaridade (Folha de
S.Paulo, 07/10/2001, Caderno C).
afetando, apesar de seus matizes, trabalhadores de ambos
9. No Rio de Janeiro, pesquisa do Sindicato dos Bancários entre os
os sexos em diferentes estágios e circunstâncias de suas seus 32 mil associados revelou que praticamente 45% da categoria ti-
vidas produtivas. Infelizmente, como vimos, as estatísti- nha sintomas da doença, ou seja, cerca de 14 mil trabalhadores (Jor-
nal do Brasil, 25/03/01).
cas especializadas de que dispomos ainda não retratam as
10. A ênfase no período 1991-96 não é arbitrária, uma vez que, orien-
dimensões efetivas desse quadro senão como sorte de si- tada consoante as atualizações das principais fontes de dados do IBGE
mulacro da realidade imediata. – Censo Demográfico, PNAD e PME –, possibilita análises compara-
tivas mais acuradas, com base nos dados sociodemográficos e
epidemiológicos disponíveis para período intercensitário. Também se
refere ao período não apenas de plena atividade do Nusat como de au-
NOTAS sência de menores barreiras institucionais quanto aos diagnósticos e
reconhecimento das LER/Dort como doenças do trabalho. Ademais, o
ano de 1996 correspondeu, na década de 90, ao momento de pico dos
1. A sigla LER (lesões por esforço repetitivo), tem o seu correlato em diagnósticos e atendimentos dos casos de LER/Dort.
inglês que é RSI – Repetitive Strain Injuries. Recentemente, o gover-
no alterou sua denominação para Dort – Distúrbios Osteomusculares 11. A Pesquisa Mensal de Emprego (PME), do IBGE, privilegia a taxa
Relacionados ao Trabalho (Diário Oficial da União, de 11 de julho de de desemprego aberto em 7 dias. Metodologicamente diferente, a Pes-
1997). Como não há consenso sobre essa renomeação, e por concor- quisa de Emprego e Desemprego (PED) da Fundação Seade e Dieese
darmos que tal procedimento, ao eliminar a idéia de repetitividade, destaca, além da taxa de desemprego aberto em 30 dias, as taxas de
retira a força do nexo causal da doença com o trabalho, optamos por desemprego oculto por trabalho precário e por desalento. Segundo essa,
manter a expressão original LER. Todavia, acatando sugestões ou pro- para 1996, a taxa de desemprego na RMBH oscilou de 11,8%, em ja-
cedimentos recorrentes, optamos aqui pela utilização da sigla geminada neiro, para 10,7%, em dezembro.
LER/Dort (Araújo, 2001).
12. Cf. Araújo (2001). Ver nota 6 deste artigo. A propósito, registra-
2. Representativos, singulares e pontuais, esses dados viabilizaram gran- mos que, para todo o Estado de Minas, a partir dos dados do Anuário
de parte da nossa análise empírica. Criado em 1989, como resposta ao Estatístico da Previdência Social, foram estimados os seguintes coefi-
crescimento das doenças ocupacionais, o Nusat foi, em âmbito nacio- cientes para cada grupo de 100 mil trabalhadores registrados: 180,63,
nal, órgão único do Instituto Nacional do Seguro Social – INSS. Loca- em 1995; 134,72, em 1996; 288,55, em 1997. Interessante é que, para
lizado em Minas Gerais, suas ações, voltadas para o controle e preven- 1997, o coeficiente de Minas foi muito superior ao do Brasil, de 196,37
ção das doenças ocupacionais, propiciaram a construção de importan- casos. Veja coeficientes afins apresentados nas notas 6 e 16 deste tra-
te banco de dados, que suportaram a publicação anual de estatísticas balho.
relativas à RMBH nos anos 90. Infelizmente, sob os influxos da
“reestruturação” dos serviços públicos, o Nusat, que poderia ter servi- 13. Dados extraídos do Boletim Estatístico de Acidente do Trabalho
do de modelo para outras unidades da federação, foi, infelizmente, do INSS e reproduzidos no Relatório Anual do Nusat de 1996 – dados
extinto ao final de 1999. que diferem daqueles publicados pelo Anuário Estatístico da Previ-
dência Social, mas que, aqui, possibilitam uma análise comparativa
3. Estimativa apontada pelo economista Cláudio Dedecca, da Unicamp
das ocorrências entre municípios. Assim, considerando o período de
(Jornal do Brasil, 30/05/99).
1995-1996, observou-se o seguinte crescimento relativo das doenças:
4. Registre-se que, mesmo as Comissões de Conciliação Prévia – CCPs, 56,5%, em Belo Horizonte; 54,2%, em Contagem, -9,2%, em Betim.
criadas pela Lei Federal no 9.958, de 12/01/2000 –, com o objetivo de Outros municípios mineiros, como Uberlândia e Juiz de Fora, dois
desafogar a Justiça do Trabalho e agilizar soluções para os conflitos, importantes centros industriais, tiveram índices menores no período:

23
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 17(1) 2003

o primeiro, com 548 casos em 1996, cresceu 30,8%; o segundo, com COLETA, M.C. (Org.). Demografia da exclusão social: temas e
406 casos, teve um acréscimo de 19,7%. abordagens. Campinas: Ed. Unicamp, 2001, p.105-118.
14. Durante 1996, a procedência da clientela do Nusat foi a seguinte: IBGE. Indicadores Conjunturais: Pesquisa Mensal de Emprego. Rio
65,6% de Belo Horizonte, 25,6% da Grande Belo Horizonte e 8,8% de de Janeiro, 1991 e 1996.
outros municípios do Estado. ________ . Pesquisa Mensal de Emprego. Média Anual dos Indica-
15. Aproveitamos para agradecer enfaticamente ao estagiário de esta- dores (Série Histórica Suplementar: 1990-1996). Rio de Janeiro,
tística Antônio Padma Franco Vidal Mota por sua valiosa colaboração 1997.
e apoio de última hora nessas tarefas. LAURELL, A.C.; NORIEGA, M. Processo de produção e saúde: tra-
16. Os números absolutos para cada ano, assim como suas participa- balho e desgaste operário. São Paulo: Hucitec, 1989.
ções relativas são: em 1992, 4 (1,2%); em 1993, 8 (1,5%); em 1995, 8 LIMA, F.P.A. A organização da produção e a produção da LER. In: LIMA,
(0,7%); em 1996, 30 (1,8%); em 1997, 11 (0,8%); em 1998, 12 (1,5%). M.E.A.; ARAÚJO, J.N.G.; LIMA, F.P.A. LER: dimensões ergo-
17. Em Minas Gerais, o ramo de intermediação financeira foi o que nômicas e psicossociais. Belo Horizonte: Health, 1997, p.237-263.
apresentou, em 1995, o mais elevado coeficiente de invalidez perma- MINISTÉRIO DA PREVIDÊNCIA E ASSISTÊNCIA SOCIAL. AEPS –
nente em decorrência de acidentes de trabalho: 163,13 por 100 mil Anuário Estatístico da Previdência Social. Brasília: DIGI.N;
trabalhadores. Na seqüência, respectivamente em segundo e terceiro Dataprev, 1999.
lugares, vieram os ramos da indústria extrativa, com 145,75, e da cons-
trução, com 86,46 (apud Carneiro, 1997:85). NUSAT. Relatório anual do Núcleo de Referência em Doenças
Ocupacionais da Previdência Social. Belo Horizonte, 1991-1998.
18. Dados não mostrados na Tabela 4 devido ao critério adotado.
OFFE, C. Capitalismo desorganizado: transformações contemporâneas
19. Dados não mostrados na Tabela 4 devido ao critério adotado. do trabalho e da política. 2.ed. São Paulo: Brasiliense, 1989.
20. Uma análise mais detalhada da relação LER/Dort e ocupações, abran- OLIVEIRA, O.; ARIZA, M. División sexual del trabajo y exclusión
gendo o período 1991-96, encontra-se em Carneiro (1997:88-93). social. Revista Latino-americana de Estudos do Trabalho, ano 3,
21. Aqui as autoras lançaram mão de “proporções de casos femininos n.5, p.183-202, 1997.
padronizadas, que exprimem qual seria a proporção de casos femini- PIRES, D. Reestruturação produtiva e trabalho em saúde no Brasil.
nos de LER caso a participação de homens e mulheres na ocupação São Paulo: Annablume, 1998.
fosse a mesma (50%)” (Wajnman et al., 1998:12). POCHMANN, M. O trabalho sob fogo cruzado: exclusão, desempre-
22. Este trabalho sugere a importância de novos estudos com vistas à go e precarização final do século. São Paulo: Contexto, 1999.
testabilidade de outras hipóteses. REVISTA PROTEÇÃO. Anuário Brasileiro de Proteção. Novo Ham-
burgo: MPF Publicações Ltda., 2001 (Edição Especial).
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24
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 17(1): 25-33, 2003 TRABALHADORES, DIREITO À SAÚDE E...

TRABALHADORES, DIREITO À SAÚDE


E ORDEM SOCIAL NO BRASIL

EDUARDO NAVARRO STOTZ

Resumo: O ensaio considera a política de saúde parte essencial do processo de legitimação da ordem social
burguesa democrática. Examina a formulação dessa política no processo de redemocratização política e apon-
ta o problema da segmentação social das clientelas do sistema de saúde instituído. Assinala a solidariedade
social entre os trabalhadores como condição para a superação do problema da eqüidade na saúde.
Palavras-chave: política social; legitimação; solidariedade social.

Abstract: This essay argues that health policy is an essential legitimizing factor with regard to the bourgeois
democratic social order. It examines how policy is formulated within the political re-democratization process
and considers the social segmentation of the clients of the existing health care system. It highlights the importance
of worker solidarity in overcoming inequities in health care.
Key words: social policy; legitimization; social solidarity.

N
o início dos anos 80, em encontro com Mário das, traz como proposição implícita a máxima dividir para
Pedrosa, um intelectual de esquerda de grande reinar. As políticas sociais implementadas pelo Estado
prestígio no país e no mundo, um grupo de ami- podem ser entendidas como mecanismos destinados a
gos conversava sobre as novas perspectivas que se abriam transferir rendas – via benefícios – entre diferentes gru-
com as grandes mobilizações operárias. O regime militar pos sociais, sendo que sua função essencial é resolver a
estava em franco processo de decomposição. A uma certa questão da redistribuição da riqueza nos termos da ma-
altura da conversa, um tom sombrio perpassou a avalia- nutenção da ordem burguesa.
ção de Mário Pedrosa sobre as previsões. “As nossas clas- Não é mais desta forma e perspectiva analítica que as ciên-
ses dominantes” – advertiu – “nunca fizeram concessões cias sociais tratam do tema das políticas sociais atualmente.
realmente importantes para as classes dominadas. E sa- A abordagem da hegemonia ou dominação consensual foi,
bem por que? Porque as lutas sociais nunca redundaram ao longo do processo de redemocratização política do Bra-
em vitórias significativas, pois via de regra foram sil, abandonada e, com isso, a legitimação da ordem deixou
escamoteadas ou perdidas com golpes de Estado e implan- de conferir sentido ao estudo das políticas sociais no Brasil.
tação de regimes autoritários.” O tratamento dado ao tema das políticas sociais na literatura
Hoje, passados tantos anos, Mário já faleceu e vive- brasileira recente tendeu a se deslocar na mesma direção
mos sob um regime formalmente democrático; parece que imposta pela mudança do regime político, isto é, da expecta-
algumas concessões foram realmente feitas depois de tantas tiva da “cidadanização” das classes trabalhadoras (Fleury,
lutas. Será mesmo? 1994). Buscou-se orientar a pesquisa e a reflexão de acordo
O problema apontado por Mário Pedrosa, no início dos com um modelo interpretativo baseado na experiência dos
anos 80, remete à questão da dominação consensual de Estados de Bem-Estar Social do capitalismo avançado
classes no Brasil, ou seja, a hegemonia. A construção do (Aureliano e Draibe, 1989).
consenso, na medida em que pressupõe melhorias na po- De acordo com Liana Aureliano e Sonia Draibe (1989),
sição relativa de alguns segmentos das classes domina- a intervenção social do Estado fortaleceu, a partir de 1964,

25
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 17(1) 2003

um desenvolvimento econômico conservador e socialmen- concepção sobre as relações entre sociedade civil e Esta-
te excludente. As autoras indicam as características do do, de Antonio Gramsci, tal como formulada nas duas
sistema de proteção social brasileiro: extrema centrali- publicações brasileiras mais significativas de sua vasta
zação política e financeira no nível federal das ações so- porém fragmentada obra, os assim denominados Cader-
ciais do Governo; uma formidável fragmentação insti- nos do Cárcere.1
tucional; exclusão da participação social e política da Pode-se dizer que o referencial gramsciano constitui o
população nos processos de decisão; princípio do auto- patrimônio comum das esquerdas na época da redemo-
financiamento do investimento social; e princípio da cratização política. Um dos núcleos de pesquisa organi-
privatização. Quando examinam a política social da Nova zados na área da saúde, em meados dos anos 80, fez uma
República, as autoras assinalam como, no discurso ofi- apropriação singular do pensador e militante comunista
cial, pretendeu-se a superação do assistencialismo e da for- italiano. A “leitura” realizada por esses pesquisadores
ma tutelar de proteção, em prol de uma concepção calca- partia da preocupação com a dimensão educativa e
da nos direitos sociais de cidadania. Porém, no tocante às cognitiva em jogo nas relações entre pesquisadores, téc-
condições de efetivação do discurso, o padrão de prote- nicos e profissionais de saúde e movimentos sociais, nas
ção social do Estado autoritário não foi alterado em seus quais, pela mediação dos serviços públicos, se construía
pilares básicos, financeiros e organizacionais. um conhecimento implícito das possibilidades e limites
Entretanto, a política de saúde seria uma exceção, de- da ação dos interesses sociais. Os valores, crenças e no-
monstrando a possibilidade de outro rumo do campo da ções a respeito de direitos e deveres dos distintos sujei-
proteção social. De fato, a descentralização, a participa- tos, alvos de todo um processo de interpretação que con-
ção popular, o financiamento público e o acesso com base feria ao aprendizado e à socialização um caráter muitas
no princípio do direito, características do sistema de saú- vezes ambíguo e/ou contraditório, foram especialmente
de mais marcantes a partir de 1991, parecem reverter a destacados no relatório final da pesquisa realizada pelo
tendência dominante nas políticas sociais, apontada pelas núcleo (Valla, 1988).
autoras. Um estudo histórico das lutas sociais no processo Dentre os aspectos da apropriação dos textos grams-
de redemocratização permitiria, contudo, examinar inclu- cianos, ressalta-se em particular o entendimento de que,
sive os mesmos aspectos sob uma outra ótica que não aquela sob o capitalismo programático, há uma interpenetração
restrita à análise setorial, no plano de uma política social entre as duas esferas. Segundo o relatório: “Se a socieda-
específica, dos avanços (ou retrocessos) de certos princí- de civil compreende o conjunto de organismos que
pios. Não é irrelevante – antes o contrário – que o Conse- correspondem à função de hegemonia que a burguesia
lho Nacional de Saúde (CNS) tenha recentemente elabo- exerce em toda a sociedade, inserimos nesse conceito tanto
rado um documento para ser entregue aos candidatos à as associações de moradores em favelas, como os órgãos
Presidência da República, no qual se cobra o compromis- do Estado, nos diversos níveis e atribuições. Trata-se de
so com o investimento público na oferta de serviços. Tra- uma noção ampliada da sociedade civil. Marx compreen-
ta-se de um desafio que, nas palavras do documento, põe deu-a, na Ideologia Alemã, como a expressão das rela-
em questão a eqüidade na saúde (CNS, 2002). Desafio que ções sociais entre os homens na produção de sua vida.
traduz, a nosso ver, a questão da legitimação da ordem Gramsci ampliou esta concepção para abranger a supe-
burguesa democrática. restrutura ideológica, isto é, a organização através da qual
a classe dominante difunde a sua ideologia (organização
A APREENSÃO DE CONCEITOS DE UM CORPO escolar, imprensa, fração cultural da magistratura e do
TEÓRICO NÃO É ESPONTÂNEA E NEM FRUTO oficialato das Forças Armadas, assim como a Igreja)”.
DO PENSAMENTO ISOLADO Deve-se abrir aqui um breve parêntesis. A importância
de Antonio Gramsci, no Brasil, é contemporânea aos pri-
A reforma sanitária – processo que será examinado na meiros sinais da crise do regime militar. Em 1977, no IV
seção seguinte do texto – pode ser vista como uma refor- Congresso das Classes Produtoras, ao lado de uma posi-
ma setorial no contexto de um processo de redemo- ção favorável à desestatização da economia, vários repre-
cratização política que mobilizou quase toda a sociedade sentantes do que se convencionou a chamar de burguesia
brasileira ao longo de mais de uma década. A apreensão nacional manifestaram a defesa do retorno à democracia.
intelectual deste processo teve como eixo interpretativo a Neste mesmo ano, as manifestações de massa dos estudan-

26
TRABALHADORES, DIREITO À SAÚDE E...

tes no Rio de Janeiro e em São Paulo ampliaram o descon- co de saúde. Tratava-se, em certa medida, do resultado de
tentamento social com as limitações do regime em expres- negociações diretas entre os sindicatos de trabalhadores
sar interesses divergentes. No ano seguinte, entravam em da indústria e o patronato, no qual o atendimento pela “me-
cena os operários com uma onda de greves a partir das dicina de grupo” aparecia como uma vantagem diante das
fábricas: “O problema da legitimidade começou a tomar dificuldades de acesso dos serviços de saúde oferecidos
forma mais nítida na sociedade e a intelectualidade pelo Inamps.
‘redescobre’ Gramsci. Sua concepção sobre o Estado, ainda Uma nova compreensão das relações entre estratificação
que referida à dominação de classe, permitia pensar a nova social e papel das políticas sociais (Brunhoff, 1985)2 foi
problemática, assim como informa uma nova prática dos proposta, pioneiramente, por Regis de Castro Andrade,
intelectuais que compunham o Estado. A rede pública de que desafiou o consenso acadêmico ao formular a idéia
saúde, ensino e demais entidades estatais voltadas para as de que as modernas ditaduras requeriam mecanismos de
políticas sociais deixaram de ser vistas como espaços ex- legitimação próprios, distintos daqueles das democracias
clusivos de controle e coerção. A leitura ‘gramsciana’ per- parlamentares. Cometeu, inclusive, o “sacrilégio” de ba-
mitia pensá-los como verdadeiras ‘trincheiras’, dentro de sear-se nas idéias de Gramsci.
uma longa ‘guerra de posições’ para a conquista de No caso brasileiro, a ditadura militar teria construído,
hegemonia da sociedade. Contudo, o longo processo de por meio de políticas sociais, uma normatividade regula-
decomposição do regime militar – apresentado oficialmente dora das relações de classe entre capital e trabalho, evi-
como institucionalização, na forma geiselista e golberiana tando as conseqüências desorganizadoras do desenvolvi-
de abertura lenta e gradual – marcou-se também por certas mento capitalista selvagem no Brasil (Andrade, 1982). O
particularidades, dando lugar a uma clivagem de fileiras autor assinala que a tecnocracia privilegiava o recurso às
no movimento de oposição. A conquista de posições no políticas públicas para integrar as massas de trabalhado-
interior do aparelho de Estado, dentro de uma concepção res “com carteira”, deixando os mecanismos de mercado
crescentemente instrumental, distanciou-se, cada vez mais, operarem no que dizia respeito ao operariado das indús-
da resistência cristalizada por uma concepção de autono- trias modernas. As transferências de renda se faziam por
mia do movimento popular” (Valla, 1988). intermédio de fundos previdenciários, de modo que este
Neste contexto, qual era a leitura de Gramsci feita pe- último setor, que contribuía mais, favorecia o primeiro e
los intelectuais da área da saúde? A leitura passava por permitia inclusive a extensão de benefícios para o tercei-
Giovanni Berlinguer, que propunha a conquista de posi- ro segmento, como as empregadas domésticas e os traba-
ções do Estado por meio de avanço do movimento popu- lhadores rurais.3 Do ponto de vista dos beneficiários da
lar (Oliveira, 1989). O relatório do núcleo de pesquisa con- política social, o autor distingue três estratos: o operaria-
tém, a esse respeito, uma advertência: “a falta de um forte do do setor moderno; a massa dos assalariados “com car-
respaldo no movimento popular que, diga-se de passagem, teira”; e a massa dos trabalhadores urbanos e rurais do
não adquiriu ainda suficiente vigor e estruturação no se- setor “informal”. Esta avaliação da estratificação social
tor de saúde coloca o risco permanente de a conquista da supunha uma tendência ao assalariamento, concomitante
hegemonia transformar-se em processo de cooptação”. com o desenvolvimento industrial e a urbanização.
Entretanto, em que pese o entendimento de que o pro-
cesso de democratização do Estado implicava o reforço A REDEMOCRATIZAÇÃO E O “RESGATE DA
do papel da sociedade civil por meio de participação das DÍVIDA SOCIAL”: UMA AVALIAÇÃO DA
classes trabalhadoras representadas por seus órgãos repre- REFORMA SANITÁRIA
sentativos – chamados a participar de estruturas criadas
pelo Estado, de modo a obter um mínimo de consenso e, As eleições municipais de 1972 consagraram o Movi-
assim, legitimar a direção política que a classe dirigente mento Democrático Brasileiro – MDB – oposição legal
pretendia imprimir ao conjunto da sociedade –, não esta- ao regime militar – em 31% das 100 maiores cidades. Em
va ainda claro, para a intelectualidade acadêmica na área 1976, este percentual passou para 59% e, em 1982, para
da saúde, que o segmento mais organizado dessas classes 83%. Nesse último ano, ocorreram as eleições diretas para
– o operariado do “setor moderno” – estava, apesar da os governos estaduais, com a vitória das oposições (Par-
posição oficial de sua representação sindical nacional, tido do Movimento Democrático Brasileiro – PMDB ) em
auto-excluindo-se da participação no futuro sistema úni- São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro.

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SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 17(1) 2003

Os resultados eleitorais e os novos arranjos político- Porém, quando se consideram, do ponto de vista
institucionais que daí decorreram foram expressão de um distributivo, os precários resultados obtidos pela política
enorme movimento de massas que tomou conta do Brasil social implementada ao longo dos anos 80 e 90, avulta-se
a partir de 1977, inicialmente um movimento de estudan- a importância da reforma sanitária.
tes, representativo das classes médias, e depois movimen- A institucionalização desse processo de reforma da
tos do proletariado, numa onda de greves inédita na nossa política de saúde começou em 1981, com a participação
história. de sanitaristas no corpo técnico do Conselho Consultivo
O fim do regime militar, antecipado por aqueles resul- de Saúde Previdenciária. Nesse momento, surgiu uma pro-
tados políticos, aconteceu apenas em 1984, quando – em posta de reorganização do sistema de saúde de cunho
conseqüência da campanha das “diretas-já” – milhões de privatizante, que previa a organização de um setor priva-
pessoas foram às ruas nas principais cidades do país. A do autônomo capaz de atingir 78 milhões de pessoas, das
emenda parlamentar das eleições diretas para a Presidên- quais 70 milhões estariam vinculadas à modalidade do tipo
cia da República foi uma “pedra cantada”, pois, nas re- “convênio-empresa”. Os 40% restantes seriam cobertos
gras do jogo anteriormente impostas pelos militares, eram pelo setor público.
necessários 2/3 dos votos do Congresso para modificar a A derrota dessa proposta manifestava o enfraquecimento
Constituição, algo inviável diante da composição parla- dos interesses privados no processo institucional, mas
mentar dominante. A solução seguida foi a da eleição in- correspondia também à situação econômico-social da épo-
direta, por meio de Colégio Eleitoral. O candidato dos mi- ca. Entre 1981 e 1983, o Brasil atravessou uma forte
litares não foi apoiado pela maioria governista que, por recessão econômica e o investimento público e privado caiu
sua vez, deu origem a uma cisão partidária. Um grupo de drasticamente, mantendo-se baixo durante toda a década
parlamentares liderado por Antonio Carlos Magalhães, de 80. O impacto dessa situação desorganizou um movi-
José Sarney e Aureliano Chaves deixou então o partido mento que tinha levado à ação direta milhões de trabalha-
governista (PDS) e criou o Partido da Frente Liberal (PFL). dores. Por outro lado, essa mesma situação tornava inviável,
Este partido estabeleceu uma aliança com o PMDB, cons- naquele momento, canalizar, para um sistema privado,
tituindo a Aliança Democrática, o que tornou possível a parcelas significativas da população trabalhadora.
eleição indireta de Tancredo Neves, um político “mode- A partir de 1984, com a recuperação da economia, o
rado” do MDB, e de José Sarney, egresso do PDS. movimento sindical retomou impulso. Porém, o mecanis-
Nos anos seguintes, os movimentos populares partici- mo inflacionário em que se baseou o crescimento econô-
param de fóruns institucionais, articularam-se politicamen- mico e o estabelecimento de pisos salariais por categoria
te para influir na redefinição da ordem jurídica que con- enfraqueceram o movimento sindical. Teve início uma
solidaria a ordem democrática (Assembléia Constituinte) lenta, mas progressiva, divisão interna no movimento sin-
e apoiaram candidaturas em eleições proporcionais. Na dical, processo que levou as lideranças a um horizonte de
área da saúde, atores institucionais representaram esses negociações cada vez mais limitado às categorias profis-
movimentos, dando-lhe voz e projeto, no processo conhe- sionais. Sua posição passou a ser a de negociar a saúde
cido como reforma sanitária. nos acordos coletivos de trabalho, voltando as costas ao
É importante observar que a redemocratização política sistema público então (em parte ainda hoje) marcado por
trazia como pressuposto o chamado “resgate da dívida graves deficiências em termos de acesso e qualidade. O
social” legada pelo regime militar. A esperança de uma movimento sindical refluiu politicamente, abandonou a
redistribuição da renda fazia parte dos cálculos do proces- arena política, saiu das ruas e deslocou-se para o interior
so democrático em marcha no período. É importante assi- das instituições do Estado.
nalar também que, no começo dos anos 80, os tecnocratas Durante a década de 80, outros atores entraram em cena,
da equipe econômica sob comando de Delfim Neto prefe- como os movimentos sociais urbanos, movimentos eco-
riram evitar a adoção integral de políticas de austeridade, lógicos, de mulheres, de negros, de portadores de deficiên-
tal como propostas pelo Fundo Monetário Internacional. cias, de parentes e amigos das vítimas de trânsito, de fa-
A elevação das taxas de juros, os cortes nos gastos públi- miliares de doentes mentais e de aposentados.
cos, a abertura da economia e a flexibilidade cambial que Uma análise sociológica da reforma sanitária neste
faziam parte do receituário do FMI poderiam, se coloca- período deixa patente que os profissionais e técnicos da
dos em prática, comprometer a transição política. saúde, os professores universitários, enfim, um segmento

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TRABALHADORES, DIREITO À SAÚDE E...

das classes médias urbanas, posicionaram-se como porta- tal no Ministério da Saúde e a extinção do Inamps. Isso
vozes dos anseios das camadas mais pobres da população ocorreu a partir de 1986, com a VIII Conferência Nacio-
trabalhadora perante o aparelho de Estado encarregado da nal de Saúde, com cerca de 3.000 participantes e 1.000
provisão dos serviços públicos.4 delegados votantes. Os princípios defendidos na resolu-
A organização do “movimento sanitário” começou por ção final da Conferência foram depois consagrados na
volta de 1976,5 como um dos desdobramentos da vitória Constituição de 1988, sob o lema Saúde direito de todos,
eleitoral do MDB, do qual participou grande número de dever do Estado.
profissionais e técnicos da área da saúde vinculados ao A institucionalização do SUS começou a tomar corpo
Partido Comunista Brasileiro. Entidades civis como o nos anos 90, como resultado dos interesses criados com a
Cebes e a Abrasco tinham, segundo Sonia Fleury (1977), estratégia da unificação descentralizada do sistema de
uma influência “institucionalista” mais forte, em detrimen- saúde ao longo da década anterior; mais concretamente,
to de experiências voltadas para a redemocratização “por os interesses políticos dos secretários municipais de saú-
baixo”. De acordo com a autora, a perspectiva da de que se organizaram em Conselho Nacional, em 1987.
aglutinação das tendências renovadoras do setor saúde, O Conasems tornou-se um ator institucional de peso na
em nível profissional, era uma manifestação da política implementação da reforma sanitária porque, pelas origens,
de frente democrática ampla que estava na origem da sua ideologia e posição política, seus participantes identifi-
liderança. cavam-se com o movimento sanitarista dos anos 70 e 80.
A outra perspectiva, mais identificada com o Partido Contudo, o movimento da reforma sanitária deparou-
dos Trabalhadores e as Comunidades Eclesiais de Base, se com uma mudança radical de cenário e de perspectivas
estaria localizada em experiências de participação popu- para a política pública nos anos 90. Com a eleição de
lar6 que, aliás, tiveram um peso muito grande nos anos 70 Fernando Collor de Mello, o país entrou na “era neo-
e 80. Pode-se lembrar aqui, entre outros, dos movimentos liberal”. O principal problema vivenciado nessa década,
populares da Zona Leste, na cidade de São Paulo, do do ponto de vista da institucionalização do SUS, foi o do
Movimento Popular de Saúde (Mops), organizado princi- financiamento público.
palmente no interior do Brasil, e do Movimento de Rein- Enquanto no período compreendido entre 1987 e 1994
tegração dos Hansenianos (Morhan). o gasto público total como percentual do PIB diminuiu,
Apesar das clivagens apontadas, no movimento da re- nos anos subseqüentes ao Plano Real o problema passou
forma sanitária estava presente, de acordo com Fleury a ser o da contenção do déficit público, em razão dos acor-
(1997:26), um ideário comum,7 pautado nas seguintes di- dos assinados pelo governo de Fernando Henrique Car-
mensões: “a construção de um novo saber que evidenciasse doso com o Fundo Monetário Internacional. É por isso
as relações entre saúde e estrutura social; a ampliação da que, apesar da lenta recuperação dos valores, o orçamen-
consciência sanitária onde a Revista Saúde em Debate foi, to executado tem sempre ficado abaixo do aprovado
e continua sendo, seu veículo privilegiado; a organização (Lobato, 2000).
do movimento social, definindo espaços e estratégias de À seletividade imposta pelos mecanismos de financia-
ação política”. mento, com o recurso ao “surrado método do racionamen-
A estratégia adotada pelos atores institucionais do to” (Vianna, 1998:142), agregou-se, pela percepção das
movimento pela reforma sanitária foi basicamente a de dificuldades de acesso e baixa qualidade dos serviços, a
propor e encaminhar a unificação das instituições estatais “auto-exclusão” das classes médias e de importantes seg-
encarregadas da saúde da população e descentralizar as mentos dos trabalhadores urbanos. Assim, o sistema aca-
ações para os níveis subnacionais, em especial para os mu- bou desembocando numa espécie de “universalização
nicípios. A unificação implicava superar a medicina excludente” (Favaret e Oliveira, 1989).
previdenciária, organizada para os trabalhadores do mer- Nesse aspecto é importante questionar o suposto de que
cado formal de trabalho pelo Instituto Nacional de Assis- o problema possa estar, no que diz respeito aos trabalha-
tência Médica e Social, vinculado ao Ministério da Previ- dores, nas limitações da estrutura de articulação de inte-
dência. resses (Vianna, 1998). A negociação direta entre patrões
O período entre 1982 e 1987 foi marcado pelos confli- e empregados, depois de 1984, que substituiu a interven-
tos de implementação dessa estratégia, cuja superação ção repressiva do Estado, somente pode ser vista como
somente aconteceu com a unificação de todo o setor esta- um obstáculo à ação coletiva de caráter público, porque,

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SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 17(1) 2003

ao mesmo tempo em que e a quantidade e a qualidade dos A percepção desse programa como uma possível res-
serviços eram bastante precárias, tentativas de estabele- posta às imposições de ordem macroeconômicas decor-
cer alianças em torno de objetivos mais amplos tinham rentes dos acordos com o FMI fica sugerida no artigo de
fracassado. E onde fracassaram? Principalmente no Esta- Maria Ceci Misoczky (1995:6-7). A autora aponta para a
do de São Paulo, onde uma nova relação entre sindicatos relação entre o pacote mínimo essencial de saúde pública
e rede pública de serviços, a exemplo dos metalúrgicos e de serviços clínicos proposto pelo Banco Mundial (1993)
de Santos e químicos do ABC, estava em organização na e o modelo de atenção à saúde que é uma espécie de
segunda metade da década de 80 (Stotz e Cruz Neto, 1989). reedição da medicina pobre para pobres baseada na Aten-
Deve-se ressaltar, porém, que a auto-exclusão dos tra- ção Primária da Saúde: “Também não é difícil associar
balhadores urbanos com maior capacidade de organiza- este modelo de atenção com o modelo da medicina de fa-
ção nunca chegou a ser completa. Na verdade, a tendên- mília/comunitária. É evidente que, para oferecer o pacote
cia à universalização do acesso ao sistema público de saúde mínimo essencial, médicos especialistas, mesmo nas es-
sempre esteve em jogo, principalmente por causa do grau pecialidades básicas, são desnecessários, assim como in-
da concentração de renda vigente no país e das caracte- vestimentos na qualificação e modernização da rede de
rísticas restritivas do setor médico privado em termos de serviços. Nesta perspectiva, fazem sentido as menções do
oferta, cobertura e preços dos seguros. O problema tem Presidente FHC sobre a possibilidade de melhorar a saú-
sido a forma como o acesso acontece. As relações entre de sem aumentar o orçamento do SUS”.
os dois setores, – o privado e o público – são marcadas Qualquer sistema de saúde deve funcionar de modo a
tanto por um padrão de acesso universal quanto por uma compensar, no plano individual, problemas cuja determi-
apropriação clientelística e privada do público.8 nação ou condicionamento devem ser atribuídos às rela-
O sistema apresenta uma tendência à universalização, ções sociais opressivas e à falta de proteção social diante
marcado, porém, por fortes contradições. O Sistema Úni- delas.11 Fracassos ou limitações em cumprir esse papel
co de Saúde, instituído pela Constituição brasileira de constituem em si fatores de des-legitimação da ordem
1988, volta-se, de fato, para a maioria da população. Con- social. Então, como se deve analisar, à luz dessa proble-
tudo, ao lado desse sistema existe uma ampla clientela do mática, o movimento reformista na saúde?
setor privado autônomo, estimada em 29 milhões de usuá- Um olhar retrospectivo (Escorel, 1998) aponta para
rios (IBGE, 1998). O crescimento desse setor foi ainda as limitações de uma escolha estratégica. A autora afir-
maior nos últimos anos. A denominação sistema único de ma que os articuladores do movimento sanitarista
saúde é, portanto, uma contradição em termos. O correto priorizaram a ocupação dos “espaços públicos”, sepa-
seria chamá-lo de sistema público de saúde. rando-se do movimento popular de origem. Passaram,
É em torno das dificuldades de acesso universal ao sis- em decorrência, a sofrer as limitações das alianças im-
tema de saúde9 e do problema da segmentação social das postas pelas instituições públicas de saúde, ora trans-
clientelas que se desenrolam os capítulos do processo de formadas em locus de contra-hegemonia. Na verdade,
legitimação da ordem burguesa no Brasil. Os articuladores o argumento a favor da contra-hegemonia somente te-
do movimento sanitário, em suas diferentes vertentes, sem- ria plausibilidade, na perspectiva gramsciana de “guerra
pre tiveram essa percepção. A dimensão do déficit de co- de posições”, se amparado numa ampla e forte aliança
bertura da população e uma avaliação política da necessi- entre profissionais e técnicos do setor público e os po-
dade de expandir a oferta de serviços públicos de saúde tenciais beneficiários desse setor: os trabalhadores da
levaram os planejadores, no Ministério da Saúde, à for- cidade e do campo. Isso não aconteceu.
mulação do Programa de Saúde da Família (PSF). O pro-
grama, instituído em 1994 como uma estratégia de O MUNDO DO TRABALHO:
reorientação do modelo assistencial, teve sua imple- DESAFIOS E PERSPECTIVAS
mentação em todo o país apenas a partir de 1998, em de-
corrência dos estímulos financeiros de que passou a dis- Entretanto, cabe indagar, diante da constatação de uma
por. Apresentado como uma estratégia de reorientação do retração profunda do movimento operário e das manifes-
modelo assistencial, deve ser avaliado inicialmente como tações dos trabalhadores em geral, se ainda tem sentido
um programa de extensão da cobertura, centrado em ações falar de políticas sociais e legitimação da ordem com re-
básicas de saúde.10 ferência ao mundo do trabalho.

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Há um consenso entre os analistas de que o movimen- de envolvendo assalariados, desempregados e aposenta-


to operário-sindical está vivendo, em todo o mundo, uma dos somente obteve êxito porque foi desencadeada pela
profunda crise de identidade em virtude da ampliação da organização dos “cheminots” (ferroviários) e contou com
insegurança do e no trabalho provocada pela ofensiva in- o apoio da maioria absoluta da população (Meyer, 2001).
ternacional do “capital reestruturado” (Mattoso, 1994). E no Brasil? No mesmo ano em que os ferroviários
Fazem parte dessa ofensiva a “flexibilização” dos direi- paralisaram a França, o governo de Fernando Henrique
tos sociais, a terceirização das atividades, o desemprego Cardoso, em nome da estabilidade monetária e da ortodo-
e o subemprego que se traduzem em decréscimo no nú- xia do Plano Real, conseguiu impor uma derrota política
mero de associados, perda de prestígio e esvaziamento do aos petroleiros em greve (Lobo e Stotz, 1998). Poder-se-
papel dos sindicatos, com dificuldade maior de articular ia ver ali o início de um prolongado refluxo do movimen-
a vontade coletiva dos trabalhadores em suas respectivas to sindical. De fato, aquela greve aparece como um “pon-
bases.12 to de viragem” de um movimento que refluiu para o interior
A ação dos trabalhadores refluiu das formas mais cen- das empresas. Apenas no final da década de 90, assisti-
tralizadas de luta para o microcenário das empresas. Po- mos à primeira greve dos metalúrgicos de São Paulo e do
rém, uma vez chegada a este nível, atingiu o que Victor ABC, demonstrando também que a resistência operava por
Meyer (2001) denominou de “núcleo duro” da resistência caminhos não visíveis.13
dos trabalhadores. Porém, não estaria o sindicalismo brasileiro excessi-
Essa situação tem suscitado um questionamento quan- vamente amarrado ao atrelamento imposto pelo Estado ou,
to à centralidade da categoria trabalho para definir padrões ainda, dominado por uma tradição corporativista para vis-
de sociabilidade e de funcionamento da ordem social in- lumbrar novos horizontes, abertos a reivindicações de
clusivas sob o sistema capitalista (Offe, 1994). A diversi- cunho social e político? Isso depende. Se na sociedade a
dade e heterogeneidade das condições que se apresentam única previsão realista é a da luta, as circunstâncias sem-
no mundo do trabalho aparecem como base empírica para pre podem favorecer a emergência de lutas mais amplas,
sustentar essa argumentação. dependendo, em boa medida, da capacidade das lideran-
Navarro (1993) contesta tal perspectiva analítica da ças saberem aproveitar as circunstâncias. Um exemplo
Sociologia (e também dos economistas “regulacionistas”) disso foi a ocupação, em 1992, das dependências do Hos-
ao chamar atenção para o dado histórico da heteroge- pital Antonio Pedro pelos metalúrgicos de Niterói, em
neidade estrutural das relações e condições de trabalho protesto contra o fechamento da emergência e a ameaça
sob o capitalismo desde os seus primórdios. A classe tra- da criação de dupla porta de entrada para pacientes dos
balhadora sempre esteve estratificada por diversas cate- setores privado e público. O hospital, vinculado à Uni-
gorias, a exemplo das profissões, dos grupos étnicos e do versidade Federal Fluminense, é uma instituição de refe-
gênero. Para constatar a diversidade que marca estrutu- rência terciária de toda a região litorânea do Estado do
ralmente a classe operária, basta lembrar as páginas que Rio de Janeiro.14 Foi um evento isolado que trazia, po-
Marx consagra, em O Capital, à acumulação de capital e rém, do ponto de vista prático, um certo enfrentamento
à criação de uma superpopulação operária relativa. do corporativismo e que mostrou, de modo concreto, o
Por outro lado, a “solidariedade de classe” depende de ponto de vista operário sobre interesses mais amplos do
uma atuação política que procure preservar ou conquistar que os de uma categoria específica.
direitos sociais para o conjunto dos trabalhadores. Refor- Recentemente, jornal de grande circulação no meio
mas gerais baseadas na redistribuição de recursos entre o empresarial noticiou, com destaque, o fracasso da
capital e o trabalho – e não entre os trabalhadores com privatização do setor de saneamento básico na Bahia. A
base em fundos sociais – estimulam a unidade e contri- mobilização e a luta envolveram, de um lado, a Igreja
buem para superar a fragmentação imposta pelas formas católica e o sindicato de trabalhadores e, de outro, prefei-
do desenvolvimento atual do capitalista. tos sob a liderança de Antonio Carlos Magalhães e a
Inscritas nesse horizonte, as lutas dos trabalhadores multinacional inglesa Thames Water. No processo de
europeus contra as tentativas de reforma neoliberal no mobilização popular contra a privatização da Empresa
âmbito do Estado de Bem-Estar produziram alguns even- Baiana de Saneamento (Embasa), a maior empresa de sa-
tos de grande magnitude, a exemplo da greve dos ferroviá- neamento do Nordeste, foram recolhidas assinaturas para
rios na França, em 1995. Paralisação de grande amplitu- viabilizar projetos de lei de iniciativa popular. Em Salva-

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SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 17(1) 2003

dor, o projeto entregue à Câmara dos Vereadores contava 8. Eis como isso acontece: o SUS oferece, sob contrato, leitos e servi-
ços a planos e seguros de saúde (“dupla porta”); usuários do sistema
com 92 mil assinaturas. Com a suspensão da privatização privado utilizam a rede pública, especialmente para itens de alto custo
da Embasa, o BNDES passou a não ter mais nenhum pro- (medicamentos para Aids, clínicas especializadas) e emergência, mui-
tas vezes graças às suas influências sobre os corpos médicos das uni-
cesso de venda das 27 empresas estaduais do setor (Va- dades de saúde. Porém, não se pode deixar de observar que, quanto ao
lor,15 a 17/03/2002). atendimento ambulatorial em geral, a massa de associados aos planos
e seguros privados “desonera” a rede pública de grandes contingentes
O que esses eventos indicam é que a participação polí- de usuários.
tica dos segmentos mais organizados dos trabalhadores 9. Outra dimensão é a da desigualdade regional na oferta pública de
urbanos pode reforçar as reivindicações e aspirações da serviços. Os serviços de alta complexidade, por exemplo, concentram-
maioria dos segmentos – mais pobres e vulneráveis – das se na região Sudeste, em especial na cidade de São Paulo.

classes trabalhadoras pelo direito à saúde, expresso por 10. A importância das ações básicas de saúde é inegável diante do perfil
das causas de mortalidade proporcional da população brasileira, nas
política públicas de promoção das condições de vida, mas quais as mortes por doenças evitáveis ainda têm um peso considerá-
igualmente por cuidados aos problemas de saúde, quer vel. Porém, é impossível esquecer que, nos padrões vigentes na socie-
dade brasileira, os mais pobres morrem mais por todas as causas.
dizer, oferta adequada de serviços públicos de qualidade.
11. Para Navarro (1983), a medicina reproduz a ideologia capitalista
Trata-se de uma verdadeira agenda política a ser assumi- (liberalismo e individualismo) ao atribuir a causa das enfermidades a
da pelo movimento sindical e pelos que se consideram fatores individuais, ao mesmo tempo em que participa na alienação
característica da sociedade capitalista ao transformar os cidadãos em
herdeiros do movimento da reforma sanitária, dentro e fora usuários, em receptores de cuidado, sem controle sobre a natureza e a
de governos populares. O desafio maior do movimento definição de sua própria saúde.
organizado dos trabalhadores consiste em transformar 12. A fragmentação do mundo do trabalho é uma resultante do proces-
movimentos e lutas locais ou mesmo regionais em movi- so imediato da reestruturação industrial, isto é, da tendência à
“focalização” das empresas em seus negócios ou atividades principais.
mentos políticos, sob os termos mais amplos da seguridade A natureza econômica desse processo e sua justificativa na ideologia
(ou proteção) social. Em última análise, é o próprio perfil da livre empresa tornam mais difícil a resistência coletiva, na medida
em que o questionamento do direito de propriedade não integra a cul-
das políticas públicas e sua relação com o regime político tura e a tradição de luta do operariado, principalmente em países como
democrático que está em pauta nesta perspectiva. o Brasil.
13. Numa greve considerada legal pela Justiça do Trabalho, os
metalúrgicos das montadoras e autopeças do ABC conquistaram, em
2000, 10% de aumento salarial. A ameaça do desemprego deixou de
NOTAS ter eficácia naquele momento por conta da situação do mercado de tra-
balho no setor, indicando, provavelmente, o fim de uma fase de acu-
1. Os Cadernos foram publicados inicialmente pela Editora Civiliza- mulação de capital. Nas palavras de Maria Cristina Cacciamali, pro-
ção Brasileira, em 1968, sob os títulos de Maquiavel, a Política e o fessora de economia do trabalho da USP: “as empresas estão enxutas,
Estado Moderno e Concepção Dialética da História. não têm mais como cortar custos e, se demitirem, terão de substituir
pessoal e treinar o novo empregado” (Folha de S.Paulo, 18/11/2000,
2. A primeira edição da obra na França data de 1977.
B-6).
3. A manipulação clientelística dos eleitores, através da falsificação
dos benefícios previdenciários, foi praticada com certa freqüência pe- 14. Informações prestadas por Aluísio Gomes da Silva Junior, em 07
los partidos oficialmente permitidos pela ditadura militar, principal- de julho de 2002.
mente nas cidades do interior do país.
4. Uma análise do movimento sob a perspectiva dessas forças sociais
encontra-se em Escorel (1998).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
5. Nesse ano, surge o Cebes – Centro Brasileiro de Saúde Coletiva. Ao
lado do Cebes, grupos acadêmicos do Instituto de Medicina Social, da
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nais de saúde com pós-graduação lato sensu. – investindo em saúde. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas,
6. É interessante que a autora inscreva, nessa tendência, o movimento 1993.
de reforma psiquiátrica. BRUNHOFF, S. de. Estado e capital: uma análise da política econô-
7. É importante registrar, nesse sentido, a tradução de textos oriundos mica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1985.
da esquerda marxista nos Estados Unidos e em países da América La-
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32
TRABALHADORES, DIREITO À SAÚDE E...

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33
SÃO
ÃO PAULO EM PERSPECTIVA
AULO EM ERSPECTIVA, 17(1): 34-46, 2003
17(1) 2003

A SAÚDE DO TRABALHADOR
NA SOCIEDADE 24 HORAS

CLAUDIA ROBERTA DE CASTRO MORENO


FRIDA MARINA FISCHER
LÚCIA ROTENBERG

Resumo: Este artigo trata, em um primeiro momento, de fatores subjacentes às diferenças individuais quanto
à tolerância ao trabalho em turnos e noturno. Associadas a esses fatores, também são apresentadas caracterís-
ticas do trabalho que podem ou não favorecer a tolerância ao trabalho em turnos. Em um segundo momento,
apresenta-se medidas de intervenção que visam minimizar as dificuldades enfrentadas pelos trabalhadores
quanto à saúde e ao bem-estar orgânico e social.
Palavras-chave: trabalho em turnos; organização do trabalho; ergonomia.

Abstract: This article first addresses the underlying factors determining the varying tolerance of individuals
to swing and night shifts. Also discussed are features of specific jobs that may or may not favor the tolerance
to variable and evening shifts. The second part of this article proposed measures to improve workers’ health
and physical and social well-being.
Key words: shift work; organization of labor; ergometrics.

A
tualmente, existem no Brasil cerca de 64 milhões dados, estima-se haver cerca de 10% da população brasi-
de pessoas com 10 anos ou mais ocupadas em leira ativa que trabalha em turnos ou à noite. Acredita-se
vários tipos de trabalho, conforme dados obti- que essa porcentagem seja até maior, uma vez que o ofe-
dos pelo recenseamento realizado no ano 2000.1 Quase a recimento de serviços disponíveis muitas horas por dia,
metade dessa população (cerca de 28 milhões) trabalha durante os dias de semana e fins de semana, vêm aumen-
mais que as 44 horas semanais, previstas na Constituição tando nos últimos anos. Pode-se citar, como exemplos,
de 1988 como a jornada máxima de trabalho semanal. Para todos os serviços de telecomunicações, de processamento
que essa jornada semanal seja cumprida, parece bastante bancário, de distribuição de correspondência rápida, os
razoável supor que, pelo menos no caso de parte desses centros de compras (shopping centers, supermercados),
trabalhadores, o trabalho seja exercido além do horário hotéis, lazer (cinemas, restaurantes, academias de ginás-
diurno. Há, portanto, uma parcela da população econo- tica, clubes sociais e esportivos), serviços educacionais.
micamente ativa que, além de trabalhar mais que o núme- Em outras palavras, além dos serviços essenciais há uma
ro de horas semanais previstas em lei, ainda o faz em ho- quantidade cada vez maior de produção de bens e presta-
rário noturno. ção de serviços que funcionam ininterruptamente. Para que
Adiciona-se a essa parcela de trabalhadores os que, esses bens sejam produzidos e os serviços prestados vem
embora não trabalhem mais que 44 horas semanais, o fa- ocorrendo aumento da população que trabalha em turnos,
zem em horários não usuais e obtém-se o número de tra- em horário noturno ou em horários irregulares.
balhadores em turnos e noturnos da população brasileira. A demógrafa americana Harriet Presser (1999), ao apon-
Infelizmente, não há dados oficiais sobre o tamanho des- tar os efeitos do trabalho em turnos na sociedade, comenta
sa população em nível nacional. Em 1994, levantamento os principais fatores que influenciaram o aumento do traba-
da Fundação SEADE na área metropolitana de São Paulo lho realizado além dos tradicionais horários diurnos e nos
caracterizou como trabalhador em turnos ou noturno 8,6% fins de semana: as rápidas mudanças que ocorreram nos pro-
da população (Fischer et al., 1995). Valendo-se desses cessos tecnológicos, as características demográficas das po-

34
A SAÚDE DO TRABALHADOR NA SOCIEDADE 24 HORAS

pulações, a globalização econômica. Esse último fator levou razões técnicas e econômicas se manifestarem (Rutenfranz
a um grande incremento de atividades no setor de serviços, et al., 1989).
particularmente nas empresas que utilizam computadores em As escalas de trabalho em turnos geralmente adotadas
rede para manter seus negócios. O e-business criado com os são bastante variadas, e em uma mesma empresa pode
serviços da Internet, bem como o aumento das corporações haver várias escalas. Nas décadas de 60 e 70, escalas de
internacionais que têm escritórios e serviços em vários paí- turnos em que predominava o rodízio semanal dos horá-
ses do mundo, foi um importante passo para a expansão do rios de trabalho eram bastante freqüentes. Atualmente, em
trabalho não diurno, e em dias tradicionalmente dedicados função dos estudos realizados que evidenciaram a neces-
ao descanso semanal. sidade de redução do número de jornadas noturnas, esse
Não há, portanto, como negar a existência de uma “so- tipo de escala de turnos cede lugar às jornadas com ro-
ciedade 24 horas”, a qual depende de vasto número de dízio mais rápido com poucos dias de trabalho noturno,
trabalhadores, que estão, por sua vez, sujeitos à exposi- jornadas extensas e irregulares, e as com trabalho em horá-
ção de fatores psicossociais do trabalho que interferem rios flexíveis. Segundo Härmä (1998), os novos padrões
nos processos saúde-doença. das escalas de trabalho em turnos seguem uma tendência
Neste artigo, serão abordados alguns desses fatores, mundial decorrente da introdução de novas tecnologias
seus efeitos na saúde dos trabalhadores, assim como as de produção, das flutuações das demandas, que associa-
principais medidas de intervenção que visam minimizar das às mudanças econômicas e à globalização levariam
as dificuldades enfrentadas pelos trabalhadores quanto à as empresas a organizarem de forma mais eficiente suas
saúde e ao bem-estar orgânico e social. horas de trabalho.
Knauth (1993) analisa escalas de turnos, destacando
FATORES SUBJACENTES ÀS DIFERENÇAS várias características que devem ser consideradas para
INDIVIDUAIS QUANTO À TOLERÂNCIA AO análise. Para determinar aspectos positivos e negativos de
TRABALHO EM TURNOS E NOTURNO uma escala, é necessário avaliar, pelo menos, o seguinte:
o número de turnos consecutivos de trabalho, a duração
As condições de trabalho e a organização do trabalho de cada turno, os horários de início e final dos diversos
influenciam de forma significativa a tolerância ao traba- turnos, a direção do rodízio entre os vários turnos, a regu-
lho em turnos e noturno. Particularmente, trabalhar em laridade dos horários de trabalho, a flexibilidade do siste-
horários não diurnos pode levar os trabalhadores a ter pior ma de turnos, os horários parciais ou em turno completo,
desempenho em suas tarefas, a expô-los a maiores riscos a distribuição do tempo livre (pausas entre jornadas de
de acidentes de trabalho e, de forma mais acentuada, a trabalho em turnos).
estressores ambientais, que podem levá-los à incapacida- Os denominados “Arranjos de Horários de Trabalho
de funcional precoce. Inovadores” (Innovative Worktime Arrangements) têm
sido utilizados para ajustar o tempo operacional às neces-
Condições de Trabalho sidades da força de trabalho. Também são utilizados para
fazer frente a flutuações da produção, a ausências dos tra-
Há vários séculos, já haviam sido estabelecidas jorna- balhadores, a exigências e necessidades dos clientes. Por-
das de trabalho diurna e noturna, em especial nas ativida- tanto, setores tradicionais de serviços e administração cada
des industriais, extrativas e dos serviços de saúde. Em vez mais utilizam escalas de trabalho variáveis, aumen-
1556, o médico Georg Bauer descreve, em seu livro De tando ou reduzindo tempos de trabalho de acordo com as
Re Metallica, as dificuldades pelas quais passavam os necessidades. É cada vez mais freqüente, entre empresas
mineiros do terceiro turno (o turno da noite) (Hunter, européias, a substituição das tradicionais escalas sema-
1975). Escrito há 447 anos, este livro relata uma situação nais de trabalho por períodos de tempo determinados, em
que ainda ocorre nos dias de hoje: o trabalho noturno com- que os empregados são recrutados a trabalhar certos dias
binado com vários outros estressores ambientais. Nos tem- ou semanas de cada mês. A anualização das horas de tra-
pos atuais, as empresas empenham-se em bons resultados balho tem sido uma dessas práticas atualmente em uso na
nos custos de produção, preocupam-se com a obsoles- Europa (Hornberger, 1998).
cência técnica dos equipamentos e implantam o trabalho No Brasil, a Constituição Federal de 1988 determinou
em turnos, incluindo as jornadas noturnas, sempre que as a redução da jornada de trabalho em turnos “ininterruptos

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SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 17(1) 2003

de revezamento”, com redução diária da jornada de tra- velocidade de tecer fios em empresa da fiação de tecidos,
balho a 6 horas, ou negociação coletiva (Brasil, 1988). A freqüência de ausência de resposta a sinais de alerta em
organização temporal do trabalho em turnos e noturno maquinistas de trem e de pequenos acidentes em hospital.
causa importantes impactos no bem-estar físico, mental e Em todas elas, observa-se clara tendência a piores resul-
social dos trabalhadores. Usualmente, além desses há tados e maior número de acidentes durante a madrugada e
múltiplos outros fatores de risco presentes no ambiente no começo da tarde. Provavelmente, isso ocorreria em
de trabalho. São eles de variadas naturezas (física, quími- razão do pior desempenho durante o período noturno, que
ca, biológica e organizacional) e estão relacionados a uma estaria associado à queda ou diminuição na expressão
grande variedade de perturbações de ordem física e comportamental de alguns ritmos biológicos, com espe-
psicossocial. Muitas das dificuldades enfrentadas pelas cial ênfase ao da temperatura corporal. Esse ritmo apre-
organizações, como, problemas na administração de pes- senta valores mais baixos durante a noite, concomitante
soal, nas comunicações, na manutenção de elevados ní- ao aumento da sonolência e conseqüente queda de rendi-
veis de segurança no trabalho, somam-se às dificuldades mento de algumas funções cognitivas (Monk, 1989).
já existentes, intrínsecas ao trabalho em turnos e noturno. Usualmente, os riscos no trabalho são analisados em
Em estudo conduzido em empresa do setor gráfico em função de padrões de segurança industrial estabelecidos
São Paulo, foi observado que a concentração de solventes para o trabalho diurno. Entretanto, há demonstrações dos
no ambiente de trabalho era fator de risco adicional à saú- agravos dos efeitos mais sérios de exposições ocupacio-
de para os trabalhadores em turnos, aumentando os riscos nais durante os períodos não diurnos. As variações
de perda auditiva (Morata et al., 1997), problemas alérgi- circadianas nos efeitos tóxicos levaram vários pesquisa-
cos, respiratórios e dermatológicos, bem como o risco do dores a questionar a segurança das exposições de acordo
desenvolvimento de arritmias cardíacas. com os limites de tolerância aos agentes causadores de
Os aspectos associados ao trabalho em turnos e a se- doenças ocupacionais (Lieber, 1991).
gurança individual e pública são motivo constante de preo- Em recente estudo apresentado no XIV International
cupação, pois existem limitações causadas pelo horário Symposium on Night and Shiftwork, em Wiesensteig, Ale-
impróprio de atuação, que podem levar a graves inciden- manha (1999), pesquisadores canadenses e franceses ob-
tes e acidentes do trabalho (Akerstedt; Horne, 1995). Além servaram que os distúrbios de sono e a fadiga crônica eram
dos numerosos acidentes causados pela sonolência exces- os principais problemas diretamente relacionados ao tra-
siva de motoristas que adormecem na direção de veículos balho em turnos de 12 horas diárias em uma refinaria ca-
(Administração Nacional de Segurança nas Rodovias, nadense. A redução do número de empregados obrigava a
1999), já ocorreram grandes acidentes na indústria, como empresa a necessitar, freqüentemente, de muitas horas
os que provocaram vazamento de material radioativo de extras, o que era fator de risco adicional, especialmente
usinas nucleares (Three Mile Island nos Estados Unidos e durante o turno diurno, resultando em excessiva fadiga,
Chernobyl na Ucrânia) e as explosões em indústria quí- diminuição dos padrões de segurança e de confiabilidade
mica com vazamento de produtos tóxicos (Bophal na Ín- no trabalho (Bourdouxhe et al., 1999). Os autores con-
dia) que ocorreram de madrugada. No entanto, além do cluíram sua apresentação dizendo que não se deve anali-
trabalho noturno, as causas apontaram outros fatores sar os vários aspectos das escalas de turnos fora do con-
desencadeantes, como a falta de manutenção, procedimen- texto em que se encontram, ou seja, é necessário também
tos inseguros, e má comunicação entre os membros das avaliar que tipo de tarefas são conduzidas, quais as prin-
equipes que trabalhavam naqueles locais. cipais cargas de trabalho, quantas pessoas realizarão o
Uma das análises mais divulgadas na literatura sobre trabalho, que treinamento receberam, etc. Análises
erros/acidentes relacionados ao trabalho em turnos foi ergonômicas do trabalho auxiliam na tarefa que deve de-
publicada originalmente por Folkard e Monk (1979). Es- terminar o número de pessoas que comporão as equipes
tes autores analisaram vários trabalhos publicados que dos vários turnos de trabalho, nos distintos períodos do
revelavam distintas freqüências de respostas e erros ao dia e da noite, em cada setor da empresa.
longo do período de 24 horas; os diversos trabalhos pu- Em vários países europeus e nos Estados Unidos, in-
blicados referem-se a: velocidade de responder a chama- dústrias petroquímicas trabalham 12 horas diárias. Com
das telefônicas, freqüência nos erros de leitura de instru- essa prática, pesquisadores questionam as jornadas pro-
mentos, freqüência de adormecimento ao volante, longadas e seus efeitos nas manifestações de fadiga e nas

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A SAÚDE DO TRABALHADOR NA SOCIEDADE 24 HORAS

possíveis repercussões na segurança do trabalho (Rosa, nos. Alguns estudos demonstraram que as pessoas mais
1995). velhas preferem dormir mais cedo do que anteriormente
As causas que envolvem a fadiga no trabalho são múl- o faziam. Desse modo, as pessoas tornam-se ao longo dos
tiplas e em geral são decorrentes das associações entre as anos mais matutinas, o que pode dificultar a tolerância a
más condições de trabalho, o desencontro entre os ritmos turnos noturnos (Akerstedt; Torsvall, 1981). Segundo
biológicos e os horários de trabalho. Segundo Sallinen Wever (1981), isso poderia causar maior interferência no
(1997), a fadiga é mais freqüente durante à noite e em ho- desempenho e mais sintomas subjetivos ao trabalhar à
rários de trabalho que se iniciam muito cedo de manhã. noite. Pessoas com hábitos e preferências vespertinos sen-
Nesses últimos pode ocorrer uma privação parcial de sono tem-se ativas mais tarde, à noite, preferem levantar-se mais
por exigir que o trabalhador acorde muito cedo, dessa tarde de manhã, do que as pessoas matutinas. Os indiví-
forma reduzindo o período de repouso. Especialmente à duos com fortes tendências à vespertinidade parecem to-
noite, a privação de sono causada pelas dificuldades de lerar melhor o trabalho noturno do que os matutinos
repouso diurno e a dessincronização dos ritmos biológi- (Monk; Folkard, 1992).
cos podem reduzir significativamente os níveis de alerta Outra característica relacionada com a personalidade
dos trabalhadores e acentuar os sintomas de fadiga foi avaliada e associada com a tolerância ao trabalho em
(Akerstedt, 1996). turnos: neuroticismo e extroversão. Observou-se que in-
divíduos neuróticos e introvertidos são menos capazes de
Fatores Individuais suportar o trabalho em turnos e efeitos do jet-lag, do que
pessoas neuróticas extrovertidas (Colquhoun; Folkard,
O aumento do tempo de trabalho em turnos conduz a 1978).
uma cronificação de sintomas provocados pelo trabalho.
De acordo com alguns autores (Koller, 1983; Haider et Determinantes Sociais e
al., 1988), quanto maior o número de anos trabalhando Estratégias de Cunho Social e/ou Doméstico
em turnos, maior o número de queixas e o desenvolvimento
de patologias associadas a esse tipo de esquema de traba- Os problemas sociais vividos pelos que trabalham em
lho. Conforme afirma Costa (1998), “a idade favorece uma turnos, particularmente à noite, relacionam-se a um coti-
intolerância progressiva, pois geralmente está associada diano essencialmente diferente do restante da comunida-
à instabilidade de ritmos circadianos, distúrbios de sono, de como a distribuição temporal de suas atividades, como
depressão e um declínio na capacidade física e na saúde”. já se viu. Dependendo do esquema de turnos, podem en-
Assim, a idade é fator de risco adicional para o desenvol- frentar dificuldades de convivência com familiares e ami-
vimento de problemas de saúde e do denominado “enve- gos, além da relativa impossibilidade de participar de cur-
lhecimento funcional precoce” que pode atingir os traba- sos ou outros compromissos regulares, caminhando para
lhadores em turnos ainda em idade produtiva. Monk e o isolamento social. Diversos aspectos da vida socio-
Folkard (1992) chamam a atenção para esse problema, pois familiar podem facilitar ou dificultar seu dia-a-dia, atuan-
haverá maiores contingentes de trabalhadores em turnos do, portanto, como fatores importantes no processo de
com idades próximas aos 50 anos ou mais, no final dessa tolerância ao regime de trabalho. Nesse contexto, cabe
década. Isso foi observado em estudos realizados em em- ressaltar os papéis sociais assumidos pelos trabalhadores,
presas petroquímicas privadas no Brasil, nas quais já há seja em casa, como cônjuge, pai/mãe, filho/a ou parente,
significativo número de pessoas com larga experiência pro- seja fora do ambiente familiar, onde assumem papéis em
fissional cujas idades estão ao redor, ou acima dos 50 anos. relação aos amigos, clubes e atividades religiosas, entre
Essas pessoas, valiosas para as empresas nas quais traba- outras. Enfim, há toda uma rede de sociabilidade cujas
lham, poderão enfrentar mais dificuldades no trabalho em características tanto podem sobrecarregar o trabalhador,
turnos, especialmente se as jornadas de trabalho forem mais como, ao contrário, levá-lo a lidar melhor com o trabalho
extensas (12 horas diárias) e tiverem menos folgas sema- em turnos.
nais. O gênero tem forte influência na tolerância ao trabalho
À medida que as pessoas envelhecem modificam-se em turnos, agindo mais pelas vias sociais do que por vias
certas características dos ritmos biológicos que estão de biológicas (Härmä, 1995; Nachreiner, 1998). Entre os que
certa forma associadas à tolerância ao trabalho em tur- trabalham à noite, por exemplo, a reorganização da rotina

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SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 17(1) 2003

– com intuito de acomodar no período diurno o sono e as Outro aspecto das diferenças de gênero refere-se ao
demais atividades que compõem sua vida – é mais com- efeito da presença do cônjuge, como comenta Nachreiner
plexa para as mulheres, em função do papel tradicional- (1998) em revisão recente sobre a tolerância ao trabalho
mente atribuído a elas quanto à casa e à família. Para elas, em turnos. Segundo o autor, para as mulheres trabalhado-
a realização do trabalho doméstico é prioritário em rela- ras, a presença do cônjuge está relacionada a maior carga
ção às demandas do sono, particularmente entre as que de trabalho em casa, ao passo que para o trabalhador, a
têm filhos, como comenta Gadbois (1981) em relação a presença da esposa pode significar aspecto favorável à
enfermeiras que trabalham à noite. As exigências do tra- tolerância. Assim, estudos sobre a rotina doméstica entre
balho doméstico reduzem a disponibilidade de tempo para as esposas de trabalhadores indicam um esforço delas para
o sono doméstico (Rotenberg et al., 2001); além disso, o adaptar os horários das refeições aos turnos de trabalho
tempo dedicado ao lazer também tende a ser menor entre do marido, adiar os serviços domésticos cujo ruído possa
as trabalhadoras em turnos, quando comparadas a seus co- prejudicar seu sono diurno (Knauth; Costa, 1996) e evitar
legas do sexo masculino (Knauth; Costa, 1996). o ruído de crianças durante o dia (Bunnage, 1981). Essas
Cabe mencionar que a divisão desigual do trabalho do- precauções, que expressam o suporte doméstico por parte
méstico entre homens e mulheres nem sempre se reflete em do cônjuge, refletem a aceitação do trabalho em turnos
diferentes graus de tolerância ao trabalho em turnos. De fato, pelos membros da família (Monk; Folkard, 1985;
os estudos comparativos de homens e mulheres apresentam Wedderburn, 1993). Como ressalta Monk (1990; 1994),
resultados contraditórios. Beermann e Nachreiner (1995), por quaisquer que sejam as estratégias comportamentais dos
exemplo, não observaram diferenças quanto aos aspectos da trabalhadores para lidar com o trabalho em turnos, ape-
saúde subjetiva e a problemas psicossociais, ao passo que nas o apoio do meio social e doméstico pode garantir seu
Oginska et al. (1993) revelaram menor duração do sono e efetivo sucesso.
maior freqüência de queixas de sonolência entre trabalhado- Entre os padrões comportamentais adotados pelos tra-
res do sexo feminino. Esses dados corroboram a observação balhadores, as estratégias ativas no sentido de estruturar
de Dirkx (1991) quanto à comparação entre amostras femi- sua vida em função dos horários de trabalho contribuem
ninas e masculinas. Segundo o autor, quando se analisa variá- fortemente para os índices de tolerância (Härmä, 1993), e
veis relacionadas ao sono, os resultados são mais homogê- são descritas como commitment to nightwork, (compro-
neos do que quando se analisa outros indicadores do impacto metimento com o trabalho noturno). A expressão foi usa-
do trabalho em turnos. da por Folkard et al. (1978) ao compararem grupos de en-
O caráter social subjacente às diferenças entre homens fermeiras que trabalhavam quatro ou duas noites por
e mulheres fica particularmente evidente quando se anali- semana, tendo constatado uma tendência, entre as profis-
sa aspectos da vida familiar, como a presença de crianças sionais do primeiro grupo, a cochilar à tarde antes da pri-
em casa. Sabe-se, de longa data, que o ruído de crianças meira noite de trabalho e a apresentar um sono mais lon-
prejudica bastante o sono diurno em trabalhadores em go entre as jornadas, o que não ocorria entre as demais
turnos (Rutenfranz et al., 1989). Desse modo, ao obser- enfermeiras. Essas diferenças, que os autores atribuíram
var menor duração do sono em trabalhadores com filhos a diferentes graus de comprometimento, refletiam diferen-
(em relação aos demais), Anderson e Bremer (1987) atri- tes níveis de tolerância ao trabalho, avaliados mediante
buem o resultado ao ruído das crianças. Quanto a traba- ajuste dos ritmos circadianos de temperatura e da sensa-
lhadores do sexo feminino, a relação presença de filhos ção de mal-estar.
versus sono refere-se a atividades de cuidado, como a O grau de organização dos horários de sono e das
necessidade de interromper o sono para preparar as refei- refeições também foi observado por Adams et al. (1986),
ções (Gadbois, 1981) ou para levar ou buscar as crianças que demonstraram a adoção desses padrões como sufi-
na escola (Rotenberg, 1997), embora obviamente não se cientemente importante para superar as expectativas de
possa descartar o efeito adverso do ruído sobre o sono adaptação/tolerância baseadas no tipo cronobiológico,
das trabalhadoras. Segundo Härmä (1993), a possibilida- em traços da personalidade e em algumas característi-
de, ou não, de contar com organizações relacionadas ao cas do ciclo vigília-sono, com ênfase no caráter ativo
cuidado dos filhos é fator fundamental nas comparações das estratégias individuais. Segundo Monk e Folkard
entre trabalhadoras com e sem filhos em relação aos dis- (1985), o comprometimento em relação ao horário de
túrbios do sono e queixas sobre a fadiga. trabalho representa um dos mais potentes fatores

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A SAÚDE DO TRABALHADOR NA SOCIEDADE 24 HORAS

subjacentes às diferenças entre as pessoas quanto à to- de acordo com cada um dos turnos. Por exemplo, antes
lerância ao trabalho em turnos, mediando, inclusive os da primeira noite de trabalho, é bastante comum que as
mais evidentes, como os relacionados ao sexo/gênero pessoas durmam à noite toda, acordando pela manhã
do trabalhador, provavelmente porque as possibilida- não muito cedo, ao redor de 8 horas da manhã. Existem
des de organizar a vida tendem a diferir entre homens e trabalhadores que ainda tiram um cochilo horas antes
mulheres, como já mencionado. de iniciar o trabalho, que, em geral, tem a duração de
Um desdobramento dessa linha de investigação refe- 15 min a 1 hora. Já nas noites subseqüentes só resta ao
re-se à análise da escolha do turno de trabalho como fator trabalhador o dia para dormir. Muitos chegam em casa
de tolerância ao mesmo. Em estudo com profissionais da e dormem imediatamente, outros só vão dormir à tar-
enfermagem, Barton (1994) observou que a escolha do de. Principalmente entre os que dormem de manhã es-
trabalho noturno (geralmente em função de conveniências tão os que antecipam o sono, pois tiram um cochilo
domésticas e do adicional noturno) em oposição ao traba- poucas horas antes do início do trabalho. Dados da li-
lho em turnos como o único disponível, tende a favorecer teratura estimam em um terço o número de trabalhado-
a tolerância ao trabalho em turnos, o que foi atribuído à res que tiram um cochilo no final da tarde ou começo
maior probabilidade, entre os que trabalham à noite, de da noite (Knauth; Rutenfranz, 1981; Akerstedt, 1998).
estruturar suas vidas de forma a dar conta das dificulda- Em geral, não há ocorrência de cochilos quando os
des associadas ao horário de trabalho. operários trabalham no turno vespertino. Já com rela-
A tolerância ao trabalho em turnos também é influen- ção ao turno matutino, verifica-se que um terço dos tra-
ciada pela personalidade do indivíduo em termos rela- balhadores tira um cochilo à tarde, notadamente quan-
cionais. De acordo com Waterhouse et al. (1992), os 10% do o início do trabalho é muito cedo, e os leva a acordar
de trabalhadores que gostam do trabalho em turnos inclu- por volta das 4 horas da manhã (Akerstedt, 1998).
em diversas pessoas com hábitos solitários nas quais as Menna-Barreto et al. (1993) sugeriram que a regulari-
vantagens econômicas e o lazer diurno podem superar as dade do horário de realização do episódio de sono antes
desvantagens de um estilo de vida anormal, quando com- do trabalho seria o fator mais importante para a adapta-
parado às demais pessoas. Nessa mesma linha, parece ser ção ao trabalho. Entretanto, essa estratégia ainda causa
mais fácil lidar com o trabalho em turnos quando a reali- polêmica, pois há pelo menos um estudo em que se verifi-
zação de um hobby ou a preferência por outras atividades cou que a regularidade dos inícios dos episódios de sono
não dependem de contatos sociais (Walker, 1985). Já en- não está relacionada à adaptação psicológica de mulheres
tre os que se ressentem do desencontro social em relação que trabalham à noite (Rotenberg, 1997).
a toda a comunidade, cabe mencionar a prática de traba- Alguns autores sugeriram (Minors; Waterhouse, 1981;
lhadores em turnos alternantes de estabelecer vínculos de Minors; Waterhouse, 1983) que após a divisão das 8 ho-
amizade com os próprios colegas de turma (os que estão ras “normais” de sono em dois episódios de 4 horas cada,
trabalhando sempre nos mesmos horários que ele) para os ritmos biológicos estabilizariam-se, desde que um dos
que possam realizar atividades sociais em seus dias de episódios de sono ocorresse em um horário preesta-
folga (Walker, 1985). belecido do dia. Esse episódio de sono em horário fixo
corresponderia ao “sono âncora” (anchor sleep) e per-
O Sono em Trabalhadores em Turnos e mitiria maior tolerância dos trabalhadores ao turno no-
Estratégias Relativas ao Sono para Lidar turno. Entretanto, a dificuldade de um indivíduo, que
com os Horários de Trabalho trabalhe em um esquema de turnos alternantes, em ter
que realizar um episódio de sono com duração de 4 ho-
Diante das evidências de problemas gerados pela in- ras em horário preestabelecido pode impedir o exercí-
versão do ciclo vigília-sono e conseqüente privação do cio dessa estratégia.
sono de trabalhadores, pode-se dizer que as estratégias Outros sugeriram que para compensar a privação par-
individuais relacionadas aos hábitos de sono são essen- cial de sono, característica dos trabalhadores em turnos e
ciais para permitir a adaptação ao trabalho em turnos. noturnos, a necessidade de sono fosse suprida com a rea-
Tratando-se dos horários de realização dos episódios lização de episódios de sono (em especial cochilos) sem-
de sono em relação ao início do trabalho, é importante pre que possível, independente do horário em que eles
distinguir os diferentes horários de início do trabalho, fossem realizados (Dinges et al., 1987; Naitoh et al., 1982).

39
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 17(1) 2003

A irregularidade desses episódios de sono, porém, pode- bem se suficientemente motivadas para isso. Todavia, os
ria provocar maior dessincronização no sistema de que reduzem o sono sem estímulo suficiente para perma-
temporização do organismo. necer em vigília, sofrem de sonolência diurna.
A habilidade dos trabalhadores para cochilar, sejam Stampi (1992) sugere que a espécie humana desfruta
trabalhadores submetidos a horários regulares ou irregu- de uma habilidade endógena em adormecer várias vezes
lares de trabalho, não é a mesma para todos (Moreno, 1998; ao dia, que se expressaria em determinadas situações. Ele
Moreno et al., 2000). Essa característica também é um dos propôs o padrão polifásico de sono como estratégia
fatores individuais que influenciam a tolerância aos horá- adaptativa para situações em que os indivíduos não po-
rios de trabalho. Assim como as pessoas podem ser clas- dem dormir o quanto gostariam, como ocorre com equi-
sificadas de acordo com hábitos e preferências, pode-se pes de resgate em catástrofes como terremotos, enchen-
pensar também em “divisores do sono” (ou fragmentadores tes, etc. A proposta de Stampi é que diante de uma
do sono) e “não-divisores do sono” (ou não-fragmen- quantidade reduzida de sono, os indivíduos adaptariam-
tadores do sono, do inglês split sleepers e non-split se melhor a um padrão polifásico ou semipolifásico
sleepers). (bifásico) de sono do que ao padrão monofásico.
As necessidades de sono são bastante distintas de um Existem vários fatores que determinam se a duração
indivíduo para outro e, portanto, dormir de 7 a 8 horas a total de sono ideal para um indivíduo pode ser alcançada
cada 24 horas pode ser suficiente para um trabalhador e com a realização de um único episódio de sono (padrão
não para outro em que a necessidade de sono é maior. Isso monofásico) ou mais de um (padrão bifásico ou polifásico).
ocorre porque o padrão de duração do sono da espécie Em primeiro lugar, existe uma propensão individual que
humana apresenta frações de sono e vigília distintas entre determina a habilidade de um indivíduo em dormir em
os indivíduos. Os que dormem mais tempo são chamados diferentes horários (já citada), além disso há fatores de
de “grandes dormidores” (costumam dormir mais de 8 ordem social que determinam a necessidade de se realizar
horas) e os que passam pouco tempo dormindo são cha- vários episódios de sono. Um estudo do sono diurno em
mados de “pequenos dormidores” (dormem menos de 8 pessoas que trabalham em turno fixo-noturno revela que
horas). Logo, um pequeno dormidor, poderia ser qualifi- o percentual de trabalhadores(as) que em geral dormem
cado de grande vigilante, porque permanece mais tempo duas vezes por dia é semelhante entre homens e mulheres
em vigília do que dormindo. O mesmo raciocínio pode (44% e 40%, respectivamente), mas que a divisão do sono
ser utilizado para o grande dormidor, que poderia ser clas- em mais de um episódio apresenta, aparentemente, um
sificado de pequeno vigilante (Webb et al., 1970). Con- caráter diferente nas duas amostras (Rotenberg et al.,
clui-se, portanto, que as estratégias referentes à duração 2001). Entre as mulheres, dividir o sono está associado à
de sono dependerão das características de cada trabalha- curta duração do sono matutino e à presença de filhos de
dor, tanto em relação à habilidade de dividir o sono total até 10 anos, ao passo que entre os homens, o número de
em vários episódios, quanto em relação à duração de sono. episódios de sono/dia não se mostra associado nem à pre-
De acordo com Horne (1991), o sono poderia ser divi- sença de filhos, nem à duração do sono matutino. Poder-
dido em essencial e opcional (do inglês core and optional se-ia especular que as diferenças entre as mulheres quan-
sleep). O sono essencial ocuparia os primeiros 3 ou 4 ci- to à realização de mais de um episódio por dia são mais
clos de sono e por ser flexível poderia ser reduzido facilmente atribuídas a seu papel em relação ao cuidado
gradativamente (20-30 min por dia durante algumas se- dos filhos do que a diferenças individuais quanto aos pa-
manas). Desse modo, adultos poderiam adaptar-se a dor- drões de sono. Já entre os homens, as diferenças indivi-
mir diariamente cerca de 2 horas a menos sem que isso duais parecem mais evidentes, em função da maior possi-
provocasse sonolência diurna. No entanto, o próprio Horne bilidade de escolher os horários de sono, já que eles não
afirma que alguns indivíduos podem apresentar como es- têm atribuições durante o dia. O papel social da mulher,
trutura de sono “natural” apenas a observada no sono es- nesse caso, parece ser um fator social de extrema impor-
sencial. tância na determinação do padrão de sono, seja polifásico
Lavie (1996) discute a proposta de Horne reforçando ou monofásico, mas também na própria possibilidade de
a idéia de que não há dúvida que pessoas que dormem adotar a estratégia que possa parecer mais adequada, como
muito pouco (cerca de 4 horas por dia), pois consideram sugerem os relatos dos(as) próprios(as) trabalhadores(as)
o sono como grande perda de tempo, podem viver muito (Rotenberg et al., 2001).

40
A SAÚDE DO TRABALHADOR NA SOCIEDADE 24 HORAS

MEDIDAS DE INTERVENÇÃO dos em detrimento dos esquemas de rotação lenta, como


os que “rodam” a cada semana, por exemplo.
Nível Coletivo Além dos problemas diretamente associados ao traba-
lho noturno, deve-se considerar que os turnos matutinos
Como já se viu, o trabalho em turnos implica proble- também tendem a provocar débitos de sono, por causa da
mas inevitáveis, já que contraria princípios biológicos e redução do sono na(s) noite(s) que precede(m) a jornada
de convivência social. Nesse sentido, as medidas para li- matutina quando ela se inicia muito cedo. A afirmativa,
dar com (do inglês coping) os efeitos adversos do horário que é tanto mais verdadeira quanto mais cedo for o início
de trabalho não são propriamente soluções para esses pro- da jornada, decorre das evidências de que mesmo preci-
blemas, mas recomendações que visam minimizar as difi- sando acordar cedo no dia seguinte, as pessoas não ne-
culdades dos trabalhadores quanto à saúde e ao bem-estar cessariamente conseguem dormir muito mais cedo em fun-
psicossocial. Essas medidas incluem mudanças nos esque- ção não apenas de pressões sociais para manter-se
mas temporais de trabalho e intervenções que permitem acordada, mas também de características dos relógios bio-
aos trabalhadores lidar com o esquema de trabalho ou ten- lógicos que as impedem de pegar no sono muito mais cedo
dem a reduzir suas conseqüências. que o habitual (Folkard; Barton, 1993). Outra recomen-
As medidas mais efetivas para contrabalançar os efeitos dação refere-se ao sentido de rotação dos turnos. Os tur-
negativos do trabalho em turnos envolvem o desenho de es- nos que rodam no sentido horário, nos quais o indivíduo
quemas de trabalho. O envolvimento interativo das partes trabalha na seqüência manhã-tarde-noite, são mais ade-
envolvidas permite obter maior sucesso nas mudanças quados do ponto de vista dos ritmos biológicos do que os
organizacionais (Gartner et al., 1998; Lillqvist et al., 1997; turnos que adotam sentido anti-horário, em virtude da ten-
Smith, P.A. et al., 1998). As necessidades das empresas e os dência natural do sistema circadiano humano de adaptar-
interesses de grupos de trabalhadores em turnos devem ser se mais facilmente ao atraso de fase do que ao seu avanço
claramente discutidos entre as partes interessadas. (Monk; Folkard, 1992).
Nesse contexto, deve-se ressaltar que não há um es- No que se refere à duração dos turnos, alguns setores ado-
quema temporal “ótimo”, ou seja, cada esquema apresen- tam as “semanas curtas de trabalho ” (compressed workweeks),
ta vantagens e problemas do ponto de vista orgânico, psi- esquemas nos quais a pessoa trabalha por um período supe-
cológico ou social (Knauth, 1993). Pesquisadores da área, rior a oito horas, e que resulta em uma semana com menos
bem como entidades internacionais vinculadas à melhoria de cinco dias de trabalho. (Tepas, 1985). Esse tema tem me-
das condições de vida e trabalho – como a European recido especial atenção nos debates sobre esquemas de tra-
Foundation for the Improvement of Living and Working balho, haja vista a tendência atual de adoção de turnos de 12
Conditions – preconizam algumas recomendações ergo- ou 10 horas, em substituição aos de oito horas (Axelsson et
nômicas que visam humanizar os esquemas de turnos al., 1998; Lowden et al., 1998). As opiniões a respeito das
(Wedderburn, 1991a). vantagens e problemas decorrentes desses esquemas são con-
Uma das recomendações nessa área refere-se à mini- troversas. No entanto, os efeitos negativos sobre a fadiga têm-
mização dos turnos fixos noturnos. Caso isso não seja viá- se revelado fatores importantes em diversos estudos, como
vel, sugere-se que a seqüência de noites trabalhadas seja exibe a revisão de Smith, L. et al. (1998). Seja como for, são
a menor possível – de duas a quatro noites consecutivas necessárias pesquisas sistemáticas a longo prazo, de forma
(Knauth, 1993). O número de noites de trabalho está dire- que se avalie os efeitos desses turnos de trabalho. De acordo
tamente relacionado à velocidade de rotação dos turnos, com alguns autores, os turnos de 12 horas só devem ser co-
ou seja, o número de dias em que o indivíduo trabalha em gitados se a natureza do trabalho e da carga de trabalho fo-
determinado horário. Há certa concordância entre os au- rem ajustadas para atividades de longa duração, se o esque-
tores quanto à preferência por turnos de rotação rápida ma é planejado para minimizar o acúmulo da fadiga, se há
(Akerstedt, 1996). Levando em conta que os turnos de arranjos adequados para cobrir faltas e se não houver neces-
rotação rápida causam menos mudanças nos ritmos sidade de cumprir horas-extras (Knauth et al., 1990).
circadianos (Costa et al., 1994), provocam menor débito Como facilmente se pode perceber, não há como conci-
de sono (Williamson; Sanderson, 1986; Tepas; Mahan, liar todas as recomendações, de forma que os esquemas de
1989) e favorecem os contatos sociais dos trabalhadores turnos envolvem prós e contras cuja análise é uma empreita-
(Knauth; Schönfelder, 1990), eles devem ser incentiva- da complexa, já que a atuação de diversas variáveis devem

41
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 17(1) 2003

ser consideradas. Nesse contexto, cabe mencionar o desen- de sono, que tendem a se acumular ao longo de várias noites
volvimento de programas de computador para auxiliar nas de trabalho. A questão dos cochilos durante os turnos é
tarefas de implantação e modificação de escalas de trabalho. controvertida, tendo sido debatida durante o XIV Inter-
Com base no desenvolvimento de programas especiais, é national Symposium on Night and Shiftwork (1999).
possível planejar e construir complexas escalas de turnos que Kazutaka Kogi, renomado pesquisador do Instituto de
atendam aos diferentes setores da mesma empresa e que te- Ciência do Trabalho no Japão, defendeu a posição de que
nham incorporados critérios ergonômicos em seu desenho. os cochilos durante a noite reduzem a fadiga durante e
Modificações nas escalas de turnos devem sempre ser acom- após o turno e mantêm melhores níveis de alerta ao longo
panhadas de avaliações anteriores e posteriores às mudan- da jornada, em especial a noturna. Há, entretanto, opiniões
ças. É comum serem observadas variações na satisfação no contrárias a essa prática, como a de Donald Tepas, de
trabalho, no sono, alerta e desempenho dos trabalhadores, Connecticut, USA, pesquisador da área de trabalho em
após implantar novos tipos de turnos (Axelsson et al., 1998; turnos por várias décadas. Segundo ele, os episódios de
Smith, L. et al., 1998). sono prolongado durante o trabalho poderiam atrapalhar
De acordo com a European Foundation for the o repouso após a jornada. No entanto, os débitos crônicos
Improvement of Living and Working Conditions, um dos de sono acumulados ao longo das noites de trabalho po-
aspectos mais importantes no que tange às medidas de inter- dem vir a facilitar o sono “involuntário”.
venção refere-se à mudança de mentalidade em relação à Algumas medidas podem ser extremamente benéficas
compensação básica pelas inconveniências do trabalho no- à vida social do trabalhador, como, por exemplo, a pro-
turno (Wedderburn, 1991b). A medida tradicionalmente ado- moção, pela empresa, de atividades de lazer e esporte
tada – o pagamento extra dos trabalhadores – é considerada durante o dia. Seminários no fim de semana podem favo-
insuficiente para compensar o desgaste decorrente do esque- recer contatos com a família. No contexto da vida social
ma de trabalho. De fato, as medidas de compensação são do trabalhador, cabe ressaltar que os fins de semana li-
objeto de profundas mudanças, havendo atualmente crescente vres e esquemas de rotação rápida contribuem em muito
conscientização de que pagar um extra ao indivíduo que tra- para reduzir o isolamento social a que os trabalhadores
balha à noite não o ajuda a dormir melhor, nem a lidar me- em turnos são expostos.
lhor com eventuais problemas familiares a que ele se expõe. A realização de exames médicos periódicos em traba-
Introduzida por pesquisadores holandeses nos anos 70 lhadores em turnos é uma medida essencial, consideran-
(Thierry et al., 1975), essa abordagem diferencia a compen- do que essa é uma população sob risco. Alguns pesquisa-
sação financeira das intervenções que contribuem para re- dores enfatizam a necessidade de se ampliar a iniciativa
duzir ou amenizar o impacto dos horários de trabalho, como, recente de uma clínica (shiftwork clinics), planejada es-
por exemplo, o atendimento médico periódico aos trabalha- pecificamente para atender aos trabalhadores em turnos
dores. Como comenta Wedderburn (1991b), os méritos des- (Monk; Folkard, 1992).
se modelo residem em sua flexibilidade, ou seja, a escolha Como se viu, são várias as possibilidades de intervenção
das medidas depende da situação concreta e na ênfase dada que consideram os critérios cronobiológicos. Obviamente, a
à redução dos custos humanos e sociais por meio de medi- adoção dessas medidas envolve negociações entre emprega-
das direcionadas para cada um dos custos. dores e trabalhadores nem sempre conciliáveis. Cabe lem-
Nesse contexto, a redução da “dose” de trabalho no- brar o papel da legislação vigente no país quanto ao estímu-
turno é uma forma efetiva para reduzir os efeitos negati- lo à implementação de mudanças, como a que se espera venha
vos do trabalho noturno a que o trabalhador é exposto. O ocorrer no Brasil em função de nova legislação que estabe-
aumento no número de folgas, a aposentadoria precoce lece novas regras relacionadas a fatores de risco no trabalho
ou transferência para turnos diurnos são algumas das for- e suas conseqüências à saúde. De acordo com um decreto
mas de conseguir esse intento. Algumas dessas medidas governamental recém-publicado (Brasil, 1999), grande nú-
oferecem ao trabalhador uma oportunidade para compen- mero de agentes etiológicos de natureza ocupacional são agora
sar problemas relacionados ao sono e à realização das ta- reconhecidos pelo Ministério da Previdência Social, em con-
refas domésticas, nos casos em que não haja horas-extras sonância com a “Classificação Internacional de Doenças
ou um segundo emprego (Wedderburn, 1991b). (CID-10)”. Os esquemas de trabalho em turnos e noturno
A permissão para dormir à noite durante o turno de tra- foram reconhecidos como agentes etiológicos de problemas
balho é uma medida que visa reduzir a fadiga e o débito do ciclo vigília-sono, o que evidencia a necessidade de ava-

42
A SAÚDE DO TRABALHADOR NA SOCIEDADE 24 HORAS

liações específicas nessas populações de trabalhadores. Essa duzido pela glândula pineal, que, em geral, é liberado na
nova legislação deve induzir as empresas a realizarem primeira porção do sono noturno. O aumento dos níveis
melhorias em seus esquemas de turnos a fim de prevenir afas- de melatonina induz ao sono, logo, a alteração de seus
tamentos causados pelo trabalho em turnos e noturno, que níveis também altera os níveis de sonolência de um indi-
resultem em disputas legais. víduo. A exposição à luz intensa no final da tarde reduzi-
rá a liberação de melatonina ou atrasará sua liberação,
Nível Individual alterando os níveis de alerta durante a noite dos indiví-
duos expostos (Dijk et al., 1995). Em alguns estudos de
Como já discutido, não há apenas uma única solução campo, com o trabalhador exposto à luz intensa combina-
para o trabalho em turnos, mas uma complexa rede de fa- da com o uso de óculos escuros durante o dia (sobretudo
tores que podem ser modificados para facilitar a tolerân- no caminho do trabalho para casa pela manhã), concluiu-
cia do trabalhador ao trabalho em turnos. Além das medi- se que não há mais dúvidas que a exposição à luz intensa
das coletivas citadas no item anterior, o próprio trabalhador pode auxiliar trabalhadores em turnos a adaptar-se a no-
pode adotar algumas rotinas especiais para lidar melhor vas rotinas de sono e vigília, porém existem ainda algu-
com seus horários de trabalho. mas questões que precisam de respostas, como: qual a in-
De acordo com Monk e Folkard (1992), essas medidas tensidade e a duração mais adequada de exposição à luz
individuais dividem-se em três áreas: sono, ritmos bioló- para promover a mudança de fase nos ritmos biológicos
gicos e situação social/doméstica do trabalhador. Em re- necessária para cada tipo de turno? (Eastman et al., 1995).
lação ao sono, os autores sugerem que hábitos regulares Por esse motivo, estudos que utilizam luz intensa tanto
facilitam a tolerância ao trabalho em turnos. Rosa et al. em laboratório, quanto em campo vêm adquirindo enor-
(1990) recomendam que o trabalhador deve dormir, no me relevância nos últimos anos.
mínimo, 6 horas, mas lembram que a maioria das pessoas Considerando que, nas grandes metrópoles, vive-se cada
precisa dormir mais do que isso. Dormir em quartos si- vez mais numa sociedade 24 horas, um número crescente
lenciosos, escuros e com temperatura agradável também de pessoas depara-se com as dificuldades de trabalhar em
são recomendações feitas pelos higienistas de sono e que horários não diurnos e/ou fins de semana, o que torna re-
devem ser realizadas pelo trabalhador. levante a identificação das conseqüências do trabalho em
Com relação aos ritmos biológicos, Monk e Folkard (1992) turnos e das possibilidades de amenizar os problemas por
propõem que o cronotipo do trabalhador deve ser considera- ele causados. Este artigo objetivou apresentar as múlti-
do na escolha do tipo de esquema de trabalho. Portanto, os plas facetas dessa questão e suas possíveis soluções.
matutinos devem optar por turnos que iniciem mais cedo,
enquanto indivíduos vespertinos apresentam mais facilida-
de em adaptar-se ao trabalho noturno. Segundo esses mes- NOTAS
mos autores, o peso da situação social e doméstica em pro-
mover ou dificultar a tolerância do trabalhador ao trabalho Este artigo corresponde à adaptação do capítulo “Tolerancia al trabajo
em turnos y nocturno: uma cuestión multidimensional” (Moreno;
em turnos é bastante considerável. O apoio da família ao Fischer; Rotenberg, 2002: 253-267).
acompanhar o trabalhador em atividades sociais em seus ho- 1. Fonte: Censo Demográfico 2000, Fundação IBGE.
rários livres, bem como manter o ambiente doméstico ade-
quado a seu sono diurno, é fundamental para a adaptação
dele ao horário de trabalho. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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A exposição à luz intensa no final da tarde também pode
ADMINISTRAÇÃO NACIONAL DE SEGURANÇA NAS RODOVIAS
aumentar os níveis de alerta durante a noite dos trabalha- (NHTSA)/CENTRO NACIONAL DE PESQUISAS SOBRE OS
dores. Essa medida vêm sendo muito discutida após di- DISTÚRBIOS DO SONO DO INSTITUTO NACIONAL DO CO-
versas pesquisas demonstrarem que a luz intensa pode RAÇÃO, PULMÃO E SANGUE DOS INSTITUTOS NACIONAIS
DE SAÚDE (NCSDR). O ato de dirigir com sonolência e os aci-
afetar a ritmicidade biológica (Rosa et al., 1990). A luz dentes automobilísticos. Revista da Abramet. São Paulo: Abramet,
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SÃO P AULO EM PERSPECTIVA , 17(1) 2003

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SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 17(1): 47-57, 2003 SAÚDE DO TRABALHADOR NO ÂMBITO MUNICIPAL

SAÚDE DO TRABALHADOR NO
ÂMBITO MUNICIPAL

ZILDA PEREIRA DA SILVA


IRINEU FRANCISCO BARRETO JUNIOR
MARIA DO CARMO SANT’ANA

Resumo: O novo padrão mundial de produção e comércio tem produzido mudanças no mundo do trabalho, nos
determinantes da saúde-doença e na organização das práticas de saúde e de segurança no trabalho. No Brasil,
transformações importantes vêm ocorrendo com o processo de descentralização das ações e dos serviços de
saúde. A Pesquisa Municipal Unificada, da Fundação SEADE, identificou que, em 1999, 26% das prefeituras
paulistas realizavam ações de saúde do trabalhador, mais freqüentemente em municípios maiores e em Gestão
Plena do Sistema.
Palavras-chave: saúde do trabalhador; descentralização; informações municipais.

Abstract: The new worldwide standard of production and commerce has produced changes in the workplace
with regard to sickness/health and in the organization of occupational safety and health practices. In Brazil,
important transformations are occurring as a result of the decentralization of activity and health care services.
The Unified Municipal Study, by the SEADE Foundation, revealed that in 1999, 26% of municipal governments
in the State of São Paulo carried out health care-related activities aimed at workers, most frequently in larger
cities and through large coordinated efforts.
Key words: employee health; decentralization; municipal information.

O
padrão mundial de produção e comércio, carac- O Relatório da Organização Internacional do Traba-
terizado pelo processo de globalização da eco- lho – OIT, apresentado na XIV Reunião Regional Ameri-
nomia, de reestruturação produtiva e de recon- cana, realizada em Lima, em agosto de 1999, com o tema
versão profissional, tem introduzido mudanças radicais na Trabalho Decente e Proteção para Todos como Priori-
vida e nas relações entre países e pessoas, provocando dade das Américas, afirma que a globalização dos mer-
transformações socioeconômicas/culturais no mundo do cados de capital e a ausência de mecanismos de regulação
trabalho, nos determinantes da saúde-doença, no quadro financeira incrementaram a dependência de economias
da morbimortalidade relacionada ao trabalho e na organi- com relação à dívida externa de curto prazo e os emprés-
zação das práticas de saúde e de segurança no trabalho. timos de alto risco, o que pressiona países a adotarem
O processo saúde-doença dos trabalhadores – como e políticas de ajuste recessivo, afetando significativamente
porquê adoecem e morrem – e como são organizadas e o mercado de trabalho. Ainda que, durante os anos 90, as
atendidas suas necessidades de saúde podem ser conside- economias da América Latina tivessem crescido e redu-
rados uma construção social diferenciada no tempo, lugar zido a inflação, isto não significou melhora no campo do
e dependente da organização das sociedades (Dias, 2000). trabalho, na situação do emprego e do salário. Este pe-
Os agravos à saúde dos trabalhadores englobam, além dos ríodo caracteriza-se por moderada recuperação do cres-
acidentes de trabalho, as doenças profissionais – aquelas cimento econômico, pela expansão da força de trabalho,
que apresentam relação nítida com o trabalho, sendo ine- pelo aumento do desemprego e à insuficiente geração de
rentes aos indíviduos que desenvolvem alguma atividade postos de trabalho, combinados com a desaceleração do
produtiva, que é a causa inequívoca da doença –, e as ritmo de crescimento do PIB, a não-recuperação do salá-
doenças relacionadas ao trabalho – aquelas em que não rio mínimo em termos reais e a evolução do ingresso dos
existe pressuposto da inerência, sendo o trabalho assumi- trabalhadores no emprego informal. Nesse quadro eco-
do como co-fator na etiologia da doença (Wünch Filho, nômico, os trabalhadores ligados a indústrias de pequeno
1995). porte, os autônomos/temporários ou os do setor informal

47
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 17(1) 2002

tiveram menos garantia de emprego. O relatório aponta anos 80, privilegiando projetos de modernização tecno-
ainda outro fenômeno importante: o aumento da tercei- lógica e gerencial. Na década de 90, a indústria nacional
rização remete a tarefas insalubres, monótonas e perigo- apresentou queda no volume produzido e o seu nível mé-
sas, cuja pulverização das atividades em diversas unida- dio de produção industrial ficou praticamente igual ao dos
des dificulta as ações do setor saúde, o que constitui um anos 80. O acréscimo pontual na produtividade aconteceu
desafio à proposta de promoção de saúde (OIT, 1999). em virtude da automação e do aperfeiçoamento das técni-
A dinâmica social do trabalho está intrinsecamente re- cas de gerenciamento, predominantemente nos setores de
lacionada ao processo saúde-doença das sociedades huma- ponta da indústria, em grande parte vinculados ao capital
nas. No mundo contemporâneo, a automação e a renova- multinacional (Wünch Filho, 1995).
ção dos equipamentos – microeletrônica, informatização, A População Economicamente Ativa – PEA, nos anos
robotização, modernização das plantas industriais –, a 70 e 80, também sofreu profunda transformação: o setor
redefinição organizacional da empresa – novas técnicas de primário retraiu-se, a classe operária urbana triplicou e o
gestão –, o trabalho informal e o desemprego repercutem setor terciário tornou-se dominante. Em 1970, 44% da PEA
sobre os acidentes, as doenças do trabalho e os estilos de ocupada estava no setor primário, 18% no secundário e
vida da população e evidenciam novas relações entre a 38% no terciário, enquanto em 1990 essa distribuição
política econômica e a saúde (Wünch Filho, 1995). correspondia a 23%, 23% e 55%, respectivamente. Em
Essas transformações trazem à tona novas questões para 2001, confirma-se tendência decrescente, com a partici-
os que atuam na área de saúde. O perfil epidemiológico pação de 21% do setor primário da economia.
dos trabalhadores caracteriza-se pela mistura de padrões As transformações das relações de trabalho no campo,
heterogêneos de adoecimento e morte, em que os novos mais intensas no Sudeste e no Centro-Oeste do que no
problemas de saúde-doença superpõem-se aos antigos e a Nordeste, incrementaram a produtividade com menor uso
morbidade dita ocupacional mescla-se com a não- de mão-de-obra, quando as relações capitalistas de pro-
ocupacional, resultando num tipo de mosaico. É cada vez dução atingiram a atividade rural por meio da mecaniza-
mais difícil falar de um mundo do trabalho – que pertence ção e do uso dos agrotóxicos.
à esfera da fábrica ou da produção – e de um mundo fora O grupo de empregados com carteira assinada em ati-
do trabalho, bem como definir com clareza quem são os vidade agrícola, entre 1999 e 2001, sofreu redução de, em
trabalhadores (Dias, 2000). média, 5,5% ao ano, enquanto o de sem carteira de traba-
No Brasil, na segunda metade do século XX, a popula- lho assinada registrou uma média anual de queda de 1,7%.
ção perdeu suas características rurais e adquiriu um perfil O crescimento do número de ocupados em atividades não-
predominantemente urbano. Em 1950, pouco mais de 1/3 agrícolas, (média de 3,8% ao ano), ainda que importante,
dos brasileiros vivia em domicílios urbanos, passando para não foi suficiente para elevar o nível de ocupação total,
mais da metade, em 1970, e para mais de 3/4, em 1991. O havendo, nesses dois anos, crescente participação dos ocu-
Censo Demográfico revelou que, em 2000, 81% dos bra- pados sem registro em carteira (uma média de 6,5% ao ano).
sileiros residiam nas cidades. Na Região Sudeste, o grau A PEA feminina brasileira tem-se ampliado continua-
de urbanização chegou a 91% e, no Estado de São Paulo, mente: 31%, em 1980, 36%, em 1991, e 44%, em 2000.
a 93%. No Estado de São Paulo, a taxa de participação das mu-
A mudança de um perfil essencialmente rural da socie- lheres no mercado de trabalho cresceu de 47% para 51%,
dade brasileira para um predominantemente urbano tem entre 1994 e 1998. Em geral, esse contingente em condi-
origem na industrialização do país e no conseqüente de- ções mais precárias que o de homens, pois grande parcela
senvolvimento acelerado de pólos industriais, com a ins- está inserida em empregos domésticos, em tarefas de apoio
talação da indústria automobilística, a partir da segunda e de execução. Dados da Pesquisa de Emprego e Desem-
metade da década de 50 e no transcorrer dos anos 60. Na prego – PED, na Região Metropolitana de São Paulo,
década de 70, intensificaram-se a instalação da indústria mostram que, entre 2000 e 2001, houve redução de 6%
de bens de capital e os investimentos em infra-estrutura de no contingente de mulheres exercendo atividades de dire-
transporte, comunicação e energia e foram implantadas as ção e planejamento. A mão-de-obra feminina continua
indústrias de alta tecnologia, como a bélica, a aeronáutica, recebendo rendimento inferior ao dos homens, mesmo
a de informática e a nuclear. O ritmo do crescimento in- quando desempenha função equivalente. Em 1998, as mu-
dustrial e os investimentos deixaram de se expandir nos lheres ocupadas recebiam, em média, R$ 712, valor 28%

48
SAÚDE DO TRABALHADOR NO ÂMBITO MUNICIPAL

superior ao de 1994. Apesar do aumento, o rendimento esses riscos àqueles inerentes aos processos produtivos
médio feminino equivalia a 64% do masculino. As mu- (Waldvogel, 2002).
lheres mantinham, em 1998, taxa de desemprego maior Do exposto, pode-se pensar que uma proposta de pro-
(20%) que a dos homens (14%). Além disso, as trabalha- moção de saúde do trabalhador tem que se fundamentar
doras ainda encontram-se expostas aos velhos e, princi- na complexidade de uma ordem sistêmica. Os fatores
palmente, aos novos riscos ocupacionais, como as ativi- sistêmicos que envolvem os acidentes de trabalho com-
dades repetitivas e a dupla jornada/carga de trabalho, o preendem múltiplas variáveis, tais como: técnicas de pro-
que acarreta maiores riscos para sua saúde. dução e de organização social do trabalho; dificuldades
As repercussões sociais advindas dessas transformações de adaptação cultural, como, por exemplo, do migrante
traduziram-se, desde os anos 60, nas migrações internas, quanto à mudança brusca de atividade e ao entendimento
nas alterações no processo de produção com a incorpora- do novo espaço de trabalho, do percurso ou da moradia e
ção sistemática da tecnologia, na mudança das caracterís- das tecnologias desconhecidas; trânsito como gerador de
ticas do estilo de vida e nos perfis de saúde da população. acidentes; mudanças de ritmo na atividade desenvolvida
Na perspectiva da saúde, os trabalhadores informais e os e modificações na rotina – escala por turno/interrupções
desempregados constituem população à margem das es- para treinamento/fadiga (horas extras/longa distância en-
tatísticas de Saúde do Trabalhador. Não há registros dos tre trabalho e residência/excesso de ruído); alimentação
acidentes e doenças do trabalho que atingem esse segmen- inadequada; falta de opção de lazer e de atividades para
to, tornando obscura sua morbimortalidade ocupacional. ocupação do tempo livre; poluição ambiental; violência
A OIT, na Reunião de Lima, em 1999, discutiu e se urbana. Esse amplo conjunto de fatores deve levar a que
comprometeu com a necessidade de encontrar respostas se evite o senso comum de remeter ao trabalhador a culpa
contemporâneas ao marco teórico-prático da economia pelo acidente (Wünch Filho, 1995).
global e à demanda histórica, posta a nossas sociedades, A agenda da OIT (1999), para a primeira década do
que sejam capazes de gerar empregos de qualidade, que século XXI, pode ser sintetizada por quatro objetivos/es-
respeitem os direitos dos trabalhadores e desenvolvam for- tratégias: promoção e aplicação dos princípios e direitos
mas modernas e efetivas de proteção social, habitação, fundamentais no trabalho; promoção de políticas e pro-
alimentação, educação e ocupação adequada do tempo gramas destinados a gerar mais e melhores empregos;
livre, tudo isso sintetizado na noção de trabalho decente. ampliação da cobertura e efetividade de proteção social
A combinação das inovações tecnológicas com os no- para todos; e fortalecimento do tripartismo e do diálogo
vos métodos gerenciais gerou uma intensificação do tra- social.
balho, decorrente do aumento do ritmo, das responsabili- Para se entender e intervir, portanto, sobre a saúde do
dades e da complexidade das tarefas, que se traduziram trabalhador torna-se necessário combinar distintos
numa série de agravos à saúde: envelhecimento prematu- enfoques, como a reestruturação produtiva na globalização
ro, aumento do adoecimento e morte por doenças car- da economia, as transformações urbanas, as mudanças
diovasculares e outras doenças crônico-degenerativas, organizacionais no trabalho, os fatores de risco industriais
especialmente as osteomusculares (Dort) relacionadas ao e ambientais e os aspectos da saúde psicofísica do traba-
trabalho – conhecidas também como lesões por esforços lhador (Franco apud Dias, 2000). Nesse contexto, os ris-
repetitivos (LER) –, além de um conjunto de sintomas na cos e os desafios a serem enfrentados pelos trabalhadores
esfera psíquica (Dias, 2000). e suas representações – sindicatos, centrais e federações
Os acidentes de trabalho, por outro lado, não estão mais – e pela sociedade têm suscitado preocupação também en-
associados apenas às atividades restritas ao ambiente das tre produtores de estatísticas, pesquisadores, estudiosos e
empresas/do local do trabalho, assim como os acidentes implementadores de políticas públicas, destacando-se,
predominantes não correspondem mais àqueles relacio- porém, que os problemas de saúde do trabalhador dificil-
nados diretamente com os processos intrínsecos ao traba- mente poderão ser resolvidos por ações exclusivas do se-
lho. Os riscos mais gerais aos quais está submetida toda a tor saúde.
população, principalmente as diversas formas de violên- A grandiosidade numérica dos potencialmente envol-
cia crescentes nas áreas urbanas, atingem de forma vidos na questão da promoção de saúde do trabalhador
indiscriminada os trabalhadores que tiveram seu local de por si só justificaria investimentos em pesquisas e análi-
trabalho ampliado para o espaço público, acrescentando ses. Segundo o Censo de 2000, mais de 76 milhões de bra-

49
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 17(1) 2002

sileiros, a partir dos dez anos de idade, constituíam a PEA entes federativos com autonomia política, administrativa
(56% da população de dez anos e mais), que engloba as- e financeira e com competências constitucionais e
salariados com registro em carteira, autônomos, trabalha- infraconstitucionais bem estabelecidas, era natural que a
dores informais e desempregados procurando emprego. descentralização do sistema de saúde reservasse, para eles,
Dias (2000) argumenta que é preciso compreender que papel de protagonista. No entanto, o autor indica a com-
os trabalhadores vivem, adoecem e morrem de forma com- plexidade que a questão assume quando se observam os
partilhada com a população de um determinado tempo, altíssimos diferenciais de tamanho, população e desigual-
lugar e classe social, mas também de forma diferenciada, dades socioeconômicas entre os milhares de municípios
decorrente de sua inserção particular no processo produ- brasileiros. Esses diferenciais, evidentemente, vão se re-
tivo, especificidade que deve ser contemplada em suas fletir em distintos graus de competências administrativa e
necessidades de saúde. gerencial, bem como de capacidade instalada de serviços
A compreensão dessas especificidades deve estar de saúde e de respostas às demandas de atenção à saúde
subjacente na elaboração de políticas e programas de saú- da população.
de do trabalhador, desde o nível nacional até o local, ob- No Brasil, o movimento pela descentralização come-
servadas as novas bases de relação entre os entes federados, çou a ganhar corpo em meados da década de 70, princi-
em que à União compete estabelecer as normas gerais, que palmente quando a oposição ao governo assumiu a admi-
podem ser suplementadas por Estados e municípios, no que nistração de algumas prefeituras de médios e grandes
couber, e a estes compete a execução de ações de preven- municípios. Nos anos 80, foram implantadas duas estra-
ção, promoção e recuperação da saúde dos trabalhadores. tégias que previam a transferência de ações de saúde para
os municípios: o Programa de Ações Integradas de Saúde
A DESCENTRALIZAÇÃO DAS AÇÕES E DOS – AIS, em 1983, e o Sistema Unificado Descentralizado
SERVIÇOS DE SAÚDE DO TRABALHADOR de Saúde – Suds, em 1987. Componente do ideário da
Reforma Sanitária, a proposta de descentralização, com
O Brasil vive um processo de descentralização de ações direção clara para a municipalização, vitalizou-se na dé-
e serviços de saúde que já passou por vários estágios, desde cada de 80, sendo inscrita na Constituição Federal de 1988.
os anos 80. A descentralização, de modo geral, pode ser As atribuições e competências de âmbito local foram
definida como a transferência de poder do nível nacional dadas pela legislação infraconstitucional – as Leis Orgâ-
para instâncias subnacionais e de competências para pla- nicas da Saúde no 8.080 e 8.142/90 – e a aplicação dos
nejar, gerir, executar e tomar decisões. No âmbito das preceitos estabelecidos foi e está sendo normatizada pelo
políticas públicas, este processo implica reestruturação no Ministério da Saúde, por meio de diversas portarias, que
aparelho de Estado, que perpassa várias esferas de gover- dão a conformação da relação entre as três esferas de go-
no, envolvendo aspectos políticos, administrativos, téc- verno e, em particular, da gestão municipal.
nicos e financeiros. O processo de descentralização orienta-se pelas Nor-
A transferência de recursos e de competências para as mas Operacionais Básicas (NOBs), editadas pelo Minis-
diferentes instâncias do sistema de saúde causa um im- tério da Saúde. A norma atualmente em vigor, a NOB/96,
pacto positivo na gestão e nas diversas modalidades de estabelece duas condições para os municípios em substi-
atenção, permitindo a geração e o desenho de novos mo- tuição às três que antecederam a Gestão Plena da Aten-
delos de atenção, papéis e funções, modalidades de ção Básica e a Gestão Plena do Sistema (Ministério da
capacitação, sistema de remuneração e novas formas de Saúde, 1996). As atribuições e responsabilidades defini-
participação das instituições. A descentralização é condi- das levam em conta a realidade do poder público, nos di-
ção necessária para melhorar o acesso, a participação, a versos municípios, caracterizada por diferentes modelos
qualidade, a sustentação e a eqüidade na saúde (Hortale de organização, de diversificação de atividades, de dis-
et al. apud Dias, 2000). ponibilidade de recursos e de capacitação técnico-
A efetivação de transferências de ações e serviços para gerencial.
os municípios não está desonerada de dificuldades, mui- Os dados da Secretaria de Estado da Saúde indicam
tas dessas originárias das próprias características dos que 95% dos municípios de São Paulo, até outubro de
municípios brasileiros. Para Mendes (1998), dado o mo- 1999, haviam aderido aos novos modelos de gestão mu-
delo de federalismo brasileiro, no qual os municípios são nicipal de saúde, preconizados pela NOB/96, sendo que

50
SAÚDE DO TRABALHADOR NO ÂMBITO MUNICIPAL

71% optaram pela Gestão Plena da Atenção Básica e 24% Trabalho, impetra ações de reparação de dano, interpreta
pela Gestão Plena do Sistema. e elabora pareceres técnicos que respaldem a atenção à
A Constituição Federal de 1988 é referência para a saú- saúde dos trabalhadores.
de do trabalhador e a partir dos seus preceitos, segundo Dias O Sistema Único de Saúde – SUS, alvo deste estudo,
(2000), são elaborados os instrumentos legais e definidas mantém Programas ou Centros de Referência à Saúde do
as políticas de saúde e segurança no trabalho. As responsa- Trabalhador, nos serviços próprios ou conveniados da rede
bilidades pela atenção à saúde do trabalhador são comparti- pública.
lhadas de forma diferenciada por empregadores, trabalha- Reppulo Jr. (2002) e Dias (2000) relatam que, antes
dores (através de suas representações) e Estado (no seu papel mesmo de ser incluída na Constituição a atribuição ao SUS
de mediador e condensador das forças sociais). Na esfera de executar ações de saúde do trabalhador, diversos pro-
do Estado, atuam nessa questão os Ministérios do Traba- gramas municipais já haviam sido implantados, especial-
lho, da Previdência Social, da Saúde e do Meio Ambiente, a mente nos anos 80, com a criação de Programas e Centros
Justiça do Trabalho e a Promotoria Pública. Dias (2000) de Referência em Saúde do Trabalhador, com influência
elaborou, ainda, um apanhado das atribuições dos diferen- do Modelo Operário Italiano e dos trabalhos da Medicina
tes órgãos, descritos, de forma resumida, a seguir. Social Latino-Americana, referências teórico-conceituais
O Grupo Executivo Interinstitucional de Saúde do Tra- das ações de saúde do trabalhador nos serviços públicos.
balhador – Geisat, constituído por representantes dos O movimento da Reforma Sanitária desempenhou pa-
Ministérios envolvidos com a questão, procura articular e pel importante no resgate do poder de intervenção nos
racionalizar a atuação dos diferentes setores governamen- ambientes de trabalho pelo Ministério da Saúde, confor-
tais, evitar duplicação de ações e desperdício de recur- me apontam Vilela et al. (2001). Até 1988, as ações pú-
sos, compatibilizar e integrar as políticas e práticas de blicas em saúde do trabalhador eram centralizadas e se
intervenção desenvolvidas pelo Estado. reduziam a inspeções tradicionais efetuadas por agentes
A Constituição de 1988 atribuiu ao Ministério do Tra- do Ministério do Trabalho.
balho e Emprego a inspeção do trabalho em nível nacio- A Constituição estabelece que ao Sistema Único de
nal, fundamentada nos dispositivos da Consolidação das Saúde compete, além de outras atribuições, executar as
Leis do Trabalho – CLT, nas Convenções Internacionais ações de vigilância sanitária e epidemiológica, bem como
ratificadas pelo Brasil e nas cláusulas dos Contratos Co- as de saúde do trabalhador (art. 200, II). A Lei Orgânica
letivos de Trabalho. Conta com o apoio técnico da da Saúde regulamentou os preceitos constitucionais e de-
Fundacentro que, entre outras atividades, realiza estudos finiu a participação do município na execução, controle e
e pesquisas e desenvolve programas educacionais sobre avaliação das ações referentes às condições e aos ambien-
diferentes assuntos que envolvem o trabalhador e respec- tes de trabalho, bem como a execução dos serviços de
tivas condições do trabalho. saúde do trabalhador. Neste dispositivo legal, entende-se
À Previdência Social cabe, por meio do Instituto Na- por saúde do trabalhador o conjunto de atividades que se
cional do Seguro Social – INSS, a responsabilidade pelo destinam, por intermédio de ações de vigilância epi-
pagamento dos benefícios, enquanto perdure a incapaci- demiológica e vigilância sanitária, à promoção, à prote-
dade decorrente de acidente do trabalho. Entre outras atri- ção, à recuperação e à reabilitação da saúde dos trabalha-
buições do INSS, estão os procedimentos de reabilitação dores que se submetem a riscos e agravos advindos das
profissional, de preparo e capacitação para acidentados condições do trabalho, abrangendo:
ou incapacitados para a reinserção no mercado e a coleta, - assistência ao trabalhador vítima do acidente do traba-
a consolidação e a divulgação de dados sobre ocorrência lho ou portador de doença profissional e do trabalho;
de acidentes de trabalho. - participação, no âmbito da competência do SUS, em es-
A Justiça do Trabalho integra o Poder Judiciário e con- tudos, pesquisas, avaliação e controle dos riscos e agravos,
grega as Juntas de Conciliação e Julgamento, o Tribunal potenciais à saúde, existentes no processo do trabalho;
Regional do Trabalho e o Tribunal Superior do Trabalho. - participação, no âmbito da competência do SUS, da
O Ministério Público presta assistência jurídica às ví- normatização, fiscalização e controle das condições de pro-
timas de acidentes e doenças do trabalho e/ou a seus de- dução, extração, armanezamento, transporte, distribuição e
pendentes, fiscaliza e acompanha denúncias de descum- manuseio de substâncias, de produtos, de máquinas e de equi-
primentos das Normas de Segurança e Medicina do pamentos que apresentam riscos à saúde do trabalhador;

51
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 17(1) 2002

- avaliação do impacto que as tecnologias provocam à O Estado de São Paulo aprimorou a legislação perti-
saúde; nente à saúde do trabalhador com edição de duas leis, na
- informação ao trabalhador e à sua respectiva entidade segunda metade dos anos 90. A Lei no 9.505/97 disciplina
sindical e às empresas sobre os riscos de acidente do tra- as ações e os serviços de saúde do trabalhador no SUS,
balho, doença profissional e do trabalho e sobre os resul- constituindo-se em grande avanço nas definições legais
tados de fiscalizações, avaliações ambientais e exames de das ações de assistência ao trabalhador e de vigilância dos
saúde, de admissão, periódicos e de demissão, respeita- ambientes de trabalho (Repullo Jr., 2002). O Código Sa-
dos os preceitos da ética profissional; nitário de 1998 amplia as ações de vigilância à saúde so-
- participação na normatização, fiscalização e controle dos bre o meio ambiente, nele incluídas as atividades produti-
serviços de saúde do trabalhador nas instituições e em- vas, e aprofunda a intervenção sobre as relações de
presas públicas e privadas; trabalho, produtos e substâncias de interesse à saúde
(Gouveia, 2000).
- revisão periódica da listagem oficial de doenças origi-
As ações de atenção à saúde do trabalhador devem ser
nadas no processo de trabalho, tendo na sua elaboração a
organizadas para que seja prestada assistência multi-
colaboração das entidades sindicais;
profissional às vítimas de doenças ocupacionais, de doen-
- garantia ao sindicato dos trabalhadores de requerer ao ças relacionadas ao trabalho e de acidentes de trabalho,
órgão competente a interdição de máquina, de setor de ser- incluindo ações de diagnóstico, identificação de nexo cau-
viço ou de todo o ambiente de trabalho, quando houver sal, tratamento, recuperação e reabilitação, bem como a
exposição a risco iminente para a vida ou a saúde dos tra- vigilância de ambientes de trabalho e prevenção de ris-
balhadores. cos. As ações de vigilância têm como objetivo identificar
A instrumentalização dessas diretrizes consolidou-se situações de riscos de acidentes e agravos a saúde e pro-
pela Norma Operacional Básica de Saúde do Trabalhador mover melhorias nas condições de segurança e saúde no
– Nost/SUS, em 1998, que definiu as responsabilidades trabalho, através de visitas às empresas e notificação so-
dos municípios em cada uma das duas condições de ges- bre mudanças a serem realizadas. A assistência ao traba-
tão (Plena de Atenção Básica e Plena do Sistema) defini- lhador vítima de acidente ou doenças do trabalho pode
das pela NOB 01/96. Os pressupostos básicos da Nost/SUS ser feita na rede básica ou em serviços especializados.
podem ser sintetizados em: universalidade das ações, in- Repullo Jr. (2002) retrata duas correntes de organiza-
dependentemente de vínculos empregatícios formais no ção dessas ações em seu estudo sobre cinco municípios
mercado de trabalho; integralidade das ações, compreen- paulistas. Em uma delas, as ações são implantadas de for-
dendo assistência, recuperação de agravos e prevenção por ma descentralizada na rede básica de saúde, cabendo aos
meio de intervenções nos processos de trabalho; direito à médicos clínicos o atendimento aos trabalhadores. Esses
informação e controle social, com a incorporação dos tra- clínicos contam com uma referência em Medicina do Tra-
balhadores e seus representantes, em todas as etapas da balho num Centro de Especialidades para os atendimen-
vigilância à saúde; e regionalização e hierarquização, atra- tos tecnologicamente mais complexos. A outra corrente
vés da execução das ações de saúde do trabalhador em todos preconiza a criação de Centros de Referência em Saúde
os níveis da rede de serviços, organizados num sistema de do Trabalhador – CRST, que vêm sendo implantados no
referência e contra-referência, local e regional. Brasil, principalmente em São Paulo, desde o final dos
Vilela et al. (2001) destacam algumas atribuições que anos 80. Ainda segundo o autor, contraditoriamente, os
os municípios em processo de gestão plena devem assu- CRSTs têm-se configurado como a porta de entrada do
mir: ações de vigilância nos ambientes e processos de tra- sistema, não se constituindo em serviços de referência
balho; aplicação de procedimentos administrativos e in- secundária. Estes Centros, com equipes multiprofissionais
vestigação epidemiológica; emissão de laudos sobre especializadas, voltam-se única e exclusivamente para
incapacidade do trabalhador seqüelado; implantação de assistência, promoção de saúde do trabalhador e manejo
serviços especializados de referência com a capacidade previdenciário dos agravos.
para estabelecimento de nexo causal dos agravos e para Os princípios do SUS – planejamento a partir do mu-
tratamento, recuperação e reabilitação do trabalhador; e nicípio, responsabilidade partilhada entre as três esferas
instituição e manutenção de cadastro de empresas com a de governo, envolvimento e participação da comunidade
indicação dos fatores de risco. na definição das políticas públicas – têm como eixo e es-

52
SAÚDE DO TRABALHADOR NO ÂMBITO MUNICIPAL

tratégia transformações sociais que garantam a saúde in- de socioeconômica, cultural e urbana municipal, permi-
tegral do cidadão e não apenas a prevenção e o combate a tindo acesso a uma radiografia dos 645 municípios do
doenças. Acompanhar o contínuo processo de descen- Estado de São Paulo. Trata-se de uma das únicas pesqui-
tralização das ações e serviços de saúde é um estímulo à sas em que as prefeituras municipais são fontes primárias
realização de pesquisas como a Pesquisa Municipal de dados, cobrindo o universo dos municípios e um ex-
Unificada – PMU, da Fundação Seade, que contribui para tenso rol de aspectos da administração pública, com acom-
a construção de banco de dados municipais e para a siste- panhamento bianual.
matização do uso da informação enquanto instrumento de Dos aspectos abordados no tema Saúde – política e
gerenciamento e de direito de cidadania. organização administrativa, recursos humanos, programas
O processo da reestruturação produtiva em curso, com e ações de saúde –, selecionaram-se, para este estudo, as
o crescimento do desemprego e da precarização do traba- variáveis que possibilitam conhecer, em âmbito munici-
lho, aumenta as responsabilidades do SUS – única alter- pal, a atuação do SUS, no que a ele compete, sobre a saú-
nativa para cuidados com a saúde de expressivo contin- de do trabalhador e elaborar uma análise de suas ações,
gente de trabalhadores – e traz ao sistema de saúde o em 1995, 1997 e 1999.
desafio de compreender e lidar com a complexa situação A PMU permite identificar as ações das prefeituras no
em que as doenças profissionais entrelaçam-se às doen- que se refere a vistoria e fiscalização de ambientes de tra-
ças comuns agravadas pelo trabalho (Dias, 2000). balho, intervenção preventiva em ambientes com riscos
Apesar das críticas dirigidas à atenção diferenciada e de acidentes ou doenças profissionais, oferta de atendi-
especializada, considerada verticalizada e de alcance res- mento especializado em saúde do trabalhador, oferta de
trito enquanto estratégia de atuação em saúde pública, a serviços de reabilitação física aos acidentados de traba-
autora afirma, que a implementação dos Programas de lho e realização de campanhas e/ou ações educativas de
Saúde do Trabalhador e dos Centros de Referência tem prevenção aos riscos de acidentes e doenças do trabalho.
facilitado o desenvolvimento de ações que cumprem a A pesquisa, nas três aplicações referidas, identificou
prescrição legal de competência do SUS e que contribuem um conjunto de ações que, não necessariamente, foram
com a transformação das condições adoecedoras existen- feitas de forma programática, ou seja, como resultado da
tes no processo de trabalho. execução de um Progama de Saúde do Trabalhador. Diante
Os programas e ações em favor da saúde do trabalha- da heterogeneidade do conjunto dos 645 municípios
dor devem ser entendidos, então, como um dos componen- paulistas, a configuração dos sistemas municipais de saú-
tes da estratégia geral para o alcance da saúde para todos. de também deve ser marcada por uma diferenciação na
A nova percepção do conceito de promoção de saúde do capacidade e na disponibilidade política das prefeituras e
trabalhador transcende a perspectiva da prevenção dos aci- das comunidades em assumirem novas atribuições. Nesse
dentes de trabalho e das doenças profissionais e remete à texto procurou-se identificar aspectos que diferenciem
necessidade de se conquistar a integralidade, favorecendo essas políticas e atuação.
o desenvolvimento de diferentes estilos de vida em comu- A criação de 20 novos municípios no Estado de São Pau-
nidades saudáveis (Ministério da Saúde, 1999). lo, entre 1995 e 1997, e a falta de informações em algum
Este trabalho procura dar visibilidade às ações de saú- dos três anos analisados, devido à recusa de parcela das
de do trabalhador, atendo-se ao estudo do assunto sob a prefeituras em responder à pesquisa ou por inconsistências
ótica da política pública municipal, por meio de análise verificadas nas respostas, levaram à elaboração de um pai-
dos dados e informações da PMU, realizada pela Funda- nel fixo de 520 municípios, entre os 645 do Estado, o que
ção Seade, em todos os municípios paulistas, em 1995, permite a comparação entre os anos pesquisados e a análi-
1997 e 1999. se da evolução do fenômeno investigado.
Tendo em vista as diversidades locais – porte popu-
ANÁLISE DOS RESULTADOS DA PESQUISA lacional e dinâmica econômica, social e urbana –, os mu-
MUNICIPAL UNIFICADA nicípios foram classificados em três estratos populacionais:
até 50 mil habitantes; entre 50 e 200 mil; e acima de 200
A PMU é um dos projetos tradicionais da Fundação mil habitantes.1
SEADE, que investiga a capacidade organizacional, ad- Além da classificação por estrato populacional, os
ministrativa e financeira das prefeituras, além da realida- municípios foram analisados segundo sua adesão às con-

53
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 17(1) 2002

dições de gestão municipal da saúde: Gestão Plena da municípios que aderiram à gestão Plena da Atenção Básica
Atenção Básica e Gestão Plena do Sistema de Saúde, que (de 28,3%, em 1995, para 20,1%, em 1999), enquanto, em
estipulam diferentes graus de responsabilidade e atribui- sentido oposto, a oferta cresceu naqueles em gestão Plena
ções na área de saúde. do Sistema (de 35,2% para 42,1%, respectivamente).
Os resultados apontam que, em 1999, pouco mais de Essa informação não constitui exatamente uma surpre-
¼ dos municípios paulistas desenvolvia ações de saúde sa, pois esperava-se que os municípios, nesse segundo
do trabalhador. Essa proporção diminuiu no período ana- modelo de gestão, tivessem maior capacidade instalada e
lisado, independentemente do porte populacional, passan- oferecessem um rol mais amplo de ações e serviços em
do de 30,2%, em 1995, para 26,5%, em 1997, e 26,2% favor da saúde de suas populações. Além disso, essas ci-
em 1999. Ressalve-se que, no grupo dos municípios com dades possuem maior autonomia na gestão do sistema lo-
mais de 200 mil habitantes, houve uma retomada do cres- cal e recebem aportes de recursos mais significativos do
cimento entre 1997 e 1999, que pode ser atribuída às nor- Ministério da Saúde, inclusive para realizar pagamentos
mas implantadas no período – a NOB/96 e a Nost/98. pela prestação de serviços realizados por prestadores pri-
O levantamento revelou, também, que o tamanho da vados e filantrópicos.
população é uma variável que interfere diretamente na rea- A análise dos dados revela, também, que a ação de saúde
lização, ou não, de ações de saúde do trabalhador pelas do trabalhador mais comum nos municípios paulistas, em
prefeituras. Enquanto, em 1999, apenas 21,4% dos muni- 1995, foi a de vistoria e fiscalização de ambientes de tra-
cípios com até 50 mil habitantes, desenvolveram esse tipo balho (54,1%), enquanto a menos desenvolvida refere-se
de ações, no grupo daqueles com mais de 200 mil habitan- à oferta de serviços de atendimento especializado em saúde
tes esse percentual correspondeu a 63,6% (Tabela 1). do trabalhador (31,2%). Verificou-se a mesma situação
Uma hipótese para esse fenômeno é a de que as cida- em 1999, provavelmente porque a segunda ação requer a
des maiores, mais ricas no que se refere à arrecadação de existência de um serviço com instalações específicas e
impostos e à participação nas transferências constitucio- profissionais especializados para esse fim, o que exige re-
nais de recursos financeiros, também possuem socieda- cursos e estrutura dos municípios para implementá-la.
des mais complexas em termos de estrutura produtiva, am- Tanto nos municípios com até 50 mil habitantes quan-
biente favorável e potencialmente gerador de eventos que to naqueles entre 50 e 200 mil, a ação mais comum foi
exigem a existência e a manutenção de sistemas de prote- vistoria e fiscalização de ambientes de trabalho (64,4% e
ção à saúde de seus trabalhadores. São também cidades 59,4%, respectivamente), conforme indica a Tabela 4. Esse
com tradição em tratar da questão, uma vez que nelas foi tipo de ação permite a identificação de riscos potenciais à
implantada a maioria dos Centros de Referência de Saúde saúde do trabalhador – decorrentes de agentes físicos,
do Trabalhador, na década de 80. químicos ou biológicos, que podem levar a acidentes e
Se a abordagem, porém, privilegiar a realização dessas doenças – e a conseqüente notificação às empresas para
ações, de acordo com a condição de gestão do município, que procedam as modificações necessárias nos processos
verifica-se que houve redução na oferta desses serviços em e/ou nos ambientes de trabalho.

TABELA 1 TABELA 2
Municípios que Realizaram Ações de Saúde do Trabalhador, Municípios que Realizaram Ações de Saúde do Trabalhador,
segundo Estratos Populacionais segundo Condições de Gestão (1)
Estado de São Paulo – 1995-1999 Estado de São Paulo – 1995-1999
Em porcentagem Em porcentagem

Estratos Populacionais 1995 1997 1999 Condições de Gestão (1) 1995 1997 1999

Total 30,2 26,5 26,2 Total 30,2 26,5 26,2


Até 50.000 Habitantes 25,3 22,4 21,4 Gestão Plena de Atenção Básica 28,3 21,4 20,1
De 50.001 a 200.000 Habitantes 43,0 41,8 40,5 Gestão Plena do Sistema 35,2 40,0 42,1
Acima de 200.000 Habitantes 77,3 54,5 63,6
Fonte: Fundação Seade. Pesquisa Municipal Unificada – PMU.
Fonte: Fundação Seade. Pesquisa Municipal Unificada – PMU. (1) Estabelecida pela Norma Operacional do Ministério da Saúde NOB-SUS 1996.
Nota: Refere-se aos 520 municípios que responderam a PMU nos três períodos considerados. Nota: Refere-se aos 520 municípios que responderam a PMU nos três períodos considerados.

54
SAÚDE DO TRABALHADOR NO ÂMBITO MUNICIPAL

Também foram mencionadas com freqüência, nesses jam realizados na rede básica, sendo os casos mais com-
municípios, a oferta de serviços de reabilitação física aos plexos referenciados para outros municípios.
acidentados de trabalho (60% e 53,1%, respectivamente) Quanto às cidades com população superior a 200 mil ha-
e a intervenção preventiva em ambientes com riscos de bitantes, a ação mais citada refere-se a campanhas e/ou ações
acidentes e doenças profissionais (48,9% e 53,1%). educativas de prevenção aos riscos de acidentes de trabalho
É possível afirmar que o conjunto dos municípios com (92,9%). Curiosamente, essa ação não foi referida com a
até 200 mil habitantes organizou suas ações de saúde do mesma freqüência em cidades menores, talvez porque a es-
trabalhador de maneira semelhante, priorizando a preven- tratégia de promoção da saúde tradicionalmente seja mais
ção (vistoria em ambientes de trabalho e intervenção na- comum em grandes cidades, com sistemas mais complexos
queles que apresentam riscos de agravo à saúde do traba- e maiores riscos de agravos. As campanhas educativas são
lhador) e a reabilitação física de acidentados do trabalho. determinantes para a proteção do trabalhador e para a redu-
Menos freqüente foi a oferta de serviços de atendimento ção de acidentes, doenças, invalidez e mortes.
especializado em saúde do trabalhador (apenas 31,1% dos A totalidade das ações investigadas foi referenciada por,
municípios com menos de 50 mil habitantes e metade da- pelo menos, 78,6% dos municípios com mais de 200 mil
queles entre 50 e 200 mil habitantes). É provável que os habitantes, evidenciando que, na organização do sistema
atendimentos de questões específicas do trabalhador se- de saúde dos maiores municípios, pelas suas característi-
cas, foi possível estruturar de maneira mais adequada esse
TABELA 3 tipo de ações e serviços.
Municípios que Realizaram Ações de Saúde do Trabalhador, Numa análise final, o cruzamento entre a condição de
segundo Tipos de Ação
gestão e as ações desenvolvidas revelou que, independente-
Estado de São Paulo – 1995-1999
Em porcentagem mente do tipo de atividade que realizam, os municípios em
Tipos de Ação 1995 1997 1999
gestão Plena do Sistema oferecem com maior freqüência
ações de saúde do trabalhador do que aqueles em gestão Plena
Vistoria e Fiscalização de Ambientes de Trabalho 54,1 60,1 64,7
da Atenção Básica, especialmente quando se trata da oferta
Intervenção Preventiva em Ambientes de Trabalho de serviços especializados. Nota-se que, na organização dos
com Riscos de Acidentes ou Doenças Profissionais 35,7 47,8 52,9
sistemas locais, 55,7% das cidades do primeiro grupo pos-
Oferta de Serviços de Atendimento Especializado
em Saúde do Trabalhador 31,2 38,4 41,2
suíam serviço de atendimento especializado em saúde do tra-
balhador, fenômeno registrado apenas em 29,3% daqueles
Oferta de Serviços de Reabilitação Física aos
Acidentados do Trabalho 43,3 58,7 60,3 do segundo grupo. Pode-se supor, então, que a atenção à saúde
Campanha e/ou Ações Educativas de Prevenção
do trabalhador, nos municípios em gestão básica, ocorre sem
aos Riscos de Acidentes e Doenças do Trabalho 43,9 44,2 44,9 que, necessariamente, possuam um serviço especializado para
Fonte: Fundação Seade. Pesquisa Municipal Unificada – PMU. esse fim, sendo o atendimento realizado na rede de atenção
Nota: Percentuais calculados sobre os municípios que afirmaram realizar ações de saúde do básica ou, nos casos mais graves, referenciados para servi-
trabalhador em cada ano considerado: 157 municípios em 1995; 138 municípios em 1997; e
136 municípios em 1999. ços em outros municípios.

TABELA 4
Municípios que Realizaram Ações de Saúde do Trabalhador, por Estrato Populacional, segundo Tipos de Ação
Estado de São Paulo – 1999
Em porcentagem
Até 50.000 De 50.001 a 200.000 Acima de 200.000
Tipos de Ação
Habitantes Habitantes Habitantes

Vistoria e Fiscalização de Ambientes de Trabalho 64,4 59,4 78,6


Intervenção Preventiva em Ambientes de Trabalho com Riscos de Acidentes ou Doenças Profissionais 48,9 53,1 78,6
Oferta de Serviços de Atendimento Especializado em Saúde do Trabalhador 31,1 50,0 85,7
Oferta de Serviços de Reabilitação Física aos Acidentados do Trabalho 60,0 53,1 78,6
Campanha e/ou Ações Educativas de Prevenção aos Riscos de Acidentes e Doenças do Trabalho 41,1 34,4 92,9

Fonte: Fundação Seade. Pesquisa Municipal Unificada – PMU.


Nota: Percentuais calculados sobre os municípios que afirmaram realizar ações de saúde do trabalhador em cada estrato considerado: 90 municípios com até 50.000 habitantes; 32 municípios
entre 50.001 e 200.000 habitantes; e 14 municípios acima de 200.000 habitantes.

55
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 17(1) 2002

TABELA 5 Nesse cenário adquirem centralidade a implementação


Municípios que Realizaram Ações de Saúde do Trabalhador, da produção de estatísticas, os indicadores e análises de
por Condição de Gestão (1), segundo Tipos de Ação
informações sobre acidentes de trabalho, doenças profis-
Estado de São Paulo – 1999
Em porcentagem sionais e doenças relacionadas ao trabalho, a implantação
Plena da Plena do
e implementação de serviços que compreendam equipes
Tipos de Ação multiprofissionais para execução de ações de diagnóstico
Atenção Básica Sistema
e tratamento, as ações intersetoriais de promoção e prote-
Vistoria e Fiscalização de Ambientes de Trabalho 60,0 70,5
ção à saúde, de sensibilização e capacitação de recursos
Intervenção Preventiva em Ambientes de Trabalho humanos, o desenvolvimento de parcerias e ações conjun-
com Riscos de Acidentes ou Doenças Profissionais 44,0 63,9
tas entre entidades de trabalhadores e organizações go-
Oferta de Serviços de Atendimento Especializado vernamentais e não-governamentais que investigam o as-
em Saúde do Trabalhador 29,3 55,7
sunto (Universidades, Fundações, Centros de Estudos,
Oferta de Serviços de Reabilitação Física aos entre outras) e as realizações de eventos/campanhas
Acidentados do Trabalho 56,0 65,6
educativos (seminários, debates, conferências e congê-
Campanha e/ou Ações Educativas de Prevenção neres) para trabalhadores em geral, cipeiros, empregado-
aos Riscos de Acidentes e Doenças do Trabalho 42,7 47,5
res, sindicatos, centrais sindicais, gestores de políticas
Fonte: Fundação Seade. Pesquisa Municipal Unificada – PMU.
(1) Estabelecida pela Norma Operacional do Ministério da Saúde NOB-SUS 1996. públicas e interessados.
Nota: Percentuais calculados sobre os municípios que afirmaram realizar ações de saúde do
trabalhador em cada condição de gestão considerada: 75 municípios em Gestão Plena da
Embora se reconheça como legítima a necessidade, apon-
Atenção Básica e 61 municípios em Gestão Plena do Sistema. tada pelos estudiosos, de uma mudança de eixo nas ações
de saúde do trabalhador – que transcendam a simples assis-
tência ao dano do acidentado, à doença profissional e/ou
Tanto nos municípios em gestão Plena do Sistema como àquela relacionada ao trabalho para a busca da integração
naqueles em gestão Plena da Atenção Básica, as ações mais dos enfoques saúde, segurança dos trabalhadores e meio
comuns foram a vistoria e fiscalização de ambientes de ambiente –, o objetivo da PMU, no período investigado, foi
trabalho (70,5% e 60%, respectivamente) e a oferta de o de caracterizar o panorama geral da implantação da
serviços de reabilitação física aos acidentados de traba- descentralização, no caso das ações essenciais de atendimen-
lho (65,6% e 56%), que, em diversas cidades do Estado, to aos agravos decorrentes do mundo do trabalho (aciden-
especialmente nas pequenas e médias, consiste em servi- tes e doenças) e respectivas ações de vigilância (fiscaliza-
ço de fisioterapia realizado em ambulatórios de especia- ção, controle e intervenção) e de prevenção (campanhas e
lidades, unidades mistas ou mesmo em centros de saúde. ações educativas), previstas em lei. Isto se reveste de im-
portância diante do processo recente que tem gerado expe-
CONSIDERAÇÕES FINAIS riências diversas e multiformes, de acordo com as realida-
des locais e regionais. A complexidade da questão coloca
O SUS constitui um espaço público privilegiado que uma série de novas demandas de investigação, como o acom-
dispõe de atendimento universalizado (atinge o maior panhamento da implantação das novas diretrizes estabe-
número de trabalhadores possível, com ou sem carteira lecidas em particular pela Nost, a estruturação e a capacitação
assinada), recursos físicos, humanos, tecnologia e técni- de equipes e o financiamento dessas ações.
cas acumuladas e, portanto, é uma conquista social capaz
de construir uma prática diferenciada sim, porém, inova-
dora e transformadora, sustentada no novo perfil epide- NOTA
miológico da força de trabalho e no referencial da Pro-
moção da Saúde. 1. Exclui o Município de São Paulo que não respondeu à PMU 1995.
A saúde do trabalhador envolve um marco teórico-prá-
tico complexo que não pode ser visualizado por um único
viés. Seu conhecimento e compreensão exigem visão am- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
pla e profunda do contexto histórico ao qual a sociedade
DIAS, E.C. A organização da atenção à saúde do trabalhador. In:
do trabalho está inserida e dos nexos causais trabalho/saú- FERREIRA FILHO, M. (Org.). Saúde no trabalho. São Paulo:
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56
SAÚDE DO TRABALHADOR NO ÂMBITO MUNICIPAL

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57
SÃO
ÃO PAULO EM PERSPECTIVA
AULO EM ERSPECTIVA, 17(1): 58-68, 2003
17(1) 2003

POLÍTICA DE SAÚDE E EQÜIDADE

ANA LUIZA D’ÁVILA VIANA


MÁRCIA CRISTINA RODRIGUES FAUSTO
LUCIANA DIAS DE LIMA

Resumo: O artigo analisa a inclusão da questão da eqüidade na área da saúde, sobretudo nas políticas de saú-
de. Apresenta informações recentes quanto à alocação de recursos financeiros, oferta e utilização de serviços
em saúde no Brasil, em um universo particular de municípios, e conclui que ocorreram alguns avanços posi-
tivos do ponto de vista da eqüidade, desde a implantação do SUS, notadamente quando do processo de
descentralização da política de saúde.
Palavras-chave: política de saúde; eqüidade e oferta; utilização de serviços de saúde.

Abstract: This article analyses the issue of equity in the area of health, particularly with regard to health care
policy. It presents recent information on the allocation of financial resources and the supply and utilization of
health care services throughout a selected group of municipalities in Brazil, and concludes that progress has
been made in terms of equity since the establishment of SUS, particularly as reflected in the decentralization
of health care policy.
Key words: health care policy; equity and supply; equity and supply; utilization of heath care services.

A
s reformas da política de saúde são conduzidas, postas às críticas dirigidas ao sistema de saúde vigente
não só no Brasil, mas em boa parte do mundo, àquela época, cujo formato deixava à margem do sistema
para responder a duas questões centrais: como grande parte da população brasileira: os mais pobres, os
otimizar os escassos recursos destinados ao setor e como que se encontravam em condições de desvantagem social
organizar um sistema de saúde eficaz e com envergadura e, por isso, os que talvez mais precisassem de atenção à
suficiente para atender às necessidades de saúde da popu- saúde.
lação. Assinale-se que as investigações em saúde demonstram
Em fins dos anos 70 e início dos 80, diversos países, que os piores índices de saúde encontram-se entre os gru-
inclusive o Brasil, questionavam as saídas para o setor pos populacionais mais vulneráveis localizados na base
público decorrentes de severa crise econômica que atin- da pirâmide social. Essas disparidades podem ser veri-
gia as nações e que exigiam um redimensionamento do ficadas nas condições de vida e saúde entre diferentes gru-
papel do Estado. pos sociais e entre distintas áreas geográficas do mesmo
No Brasil, essas questões foram debatidas ao longo dos país. Tradicionalmente, a epidemiologia ocupa-se dessa
anos 80 e 90, e em relação à política de saúde, optou-se temática, e inúmeros estudos apontam para as desigual-
pela ampliação da participação democrática e da garantia dades de adoecer e morrer na sociedade, assinalando as
dos direitos de cidadania, mediante conformação de um diferenças em relação ao lugar, tempo, idade e sexo, bem
sistema de saúde com características universalizantes, de como entre grupos, etnias, gênero e classes sociais.
cunho igualitarista, sustentado pela idéia de justiça social.
A reforma implementada no sistema de saúde brasilei- DIMENSÕES DA DESIGUALDADE EM SAÚDE
ro no final dos anos 80 trouxe como questão de fundo não
só a garantia do direito à saúde, mas, em essência, a no- De acordo com Mackenbach e Kunst (1997), as desigual-
ção de eqüidade quanto à distribuição mais ampla dos dades em saúde definem-se pela prevalência ou incidência
recursos da saúde. Essas duas questões buscavam dar res- dos problemas de saúde entre os indivíduos do mais alto e

58
POLÍTICA DE SAÚDE E EQÜIDADE

mais baixo status socioeconômico. Destacam, os autores, que eqüidade em saúde, para a autora, remete à noção de que,
as desigualdades interligam-se ao status socioeconômico do de acordo com os ideais, todos os indivíduos de uma so-
grupo ao qual pertencem os indivíduos. ciedade devem ter justa oportunidade para desenvolver seu
As dimensões da desigualdade em saúde são atribuí- pleno potencial de saúde e, no aspecto prático, ninguém
das a diferentes determinantes que podem corresponder a deve estar em desvantagem para alcançá-lo. Conseqüen-
um conjunto de fatores interligados às condições de saú- temente, eqüidade em saúde refere-se à redução das dife-
de e adoecimento, que definem o padrão de morbi- renças consideradas desnecessárias, evitáveis, além de
mortalidade dos diferentes grupos sociais, e/ou as dife- serem consideradas injustas.
renças na distribuição, organização e utilização dos Partindo desse princípio, a questão central a ser trata-
recursos em saúde. da pelas políticas que almejam eqüidade em saúde, é a
A existência e a persistência das desigualdades no aces- redução ou a eliminação das diferenças que advém de fa-
so e uso de serviços de saúde, mais recentemente, são um tores considerados evitáveis e injustos, criando, desse
dos principais pontos de atenção dos policy makers, das modo, igual oportunidade em saúde e reduzindo as dife-
investigações acadêmicas e dos próprios administradores renças injustas tanto quanto possível.
dos serviços de saúde. Em que pese as diferenças conceituais e terminológicas,
O tema desigualdades em saúde passou a ser tratado o ponto central da contribuição de Whitehead é o enten-
para além das diferenças entre os grupos, incorporando dimento das desigualdades em saúde na perspectiva da
nas análises conceituais a dimensão da justiça social. Esse justiça social. Assinale-se que o conceito apresentado pela
enfoque, além de caracterizar os diferentes tipos de desi- autora implica uma discussão política e de juízo de valor,
gualdade, remete a análise para o campo político, com in- quando incorpora a idéia de justiça no processo de redu-
corporação de valores éticos e morais explícitos nas ba- ção das desigualdades evitáveis e desnecessárias. Isso sig-
ses contratuais de determinada sociedade. nifica dizer que existe mobilidade no conceito de eqüida-
Nesse sentido, as desigualdades em saúde são percebi- de, em que o entendimento que se tem sobre política
das e têm-se tornado objeto de atenção nos mais diferen- equânime depende da sociedade à qual se aplica o con-
tes modelos de sistemas de saúde, nos países mais desen- ceito e do momento ou tempo em que se está pensando a
volvidos e nos mais pobres e em regimes políticos e sociais questão. O que se considera injusto ou o que se pretende
variados. É bem verdade que o grau de desigualdade, seus fazer para reduzir as disparidades sociais pode ter dimen-
determinantes e efeitos diferem entre as sociedades e in- sões e valores diferentes para espaços sociais distintos em
ternamente nos próprios países. O que se quer enfatizar, diferentes momentos.
no entanto, é o caráter contemporâneo e universal desse A mesma autora distingue alguns critérios que classi-
debate e suas implicações na formulação e condução de ficam as desigualdades em saúde, diferenciando as injus-
políticas que podem ou não interferir nos diferenciais de tas, das que não expressam injustiças, porque não depen-
desigualdades resultantes de processos sociais, políticos dem de intervenção ou não apresentam relação causal com
e econômicos. as diferenças de classe. Entre os critérios mencionados pela
O tema eqüidade passa a receber maior atenção na dé- autora, são destacados os que ela considera mais consen-
cada de 80. Um dos marcos dessa discussão no campo da suais na literatura:
saúde é a estratégia formulada pela OMS – “Saúde Para a) o que não define as desigualdades como injustas:
Todos no Ano 2000”, que visa a promoção de ações de - variações biológicas naturais;
saúde baseadas na noção de necessidade, destinadas a atin- - comportamentos perigosos que são escolhas dos indi-
gir a todos, independente de raça, gênero, condições so- víduos;
ciais, entre outras diferenças que possam ser definidas
- vantagens temporárias de um grupo, como saúde, as quais
socioeconômico e culturalmente.1
podem ser incorporadas rapidamente por outros grupos;
Apesar de existir um problema terminológico na varie-
b) o que define as desigualdades como injustas:
dade conceitual de eqüidade e, em alguns casos, proble-
mas também com o significado da expressão quando uti- - comportamentos perigosos nos quais os indivíduos têm
lizado no sentido das desigualdades, percebe-se, de modo pouca escolha em relação ao modo de vida;
geral, que há consenso ou aceitação ampla na literatura - condições de vida definidas por fatores socioeco-
da definição formulada por Whitehead (1991), ou seja, nômicos;

59
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 17(1) 2003

- condições de trabalho – exposição a fatores de risco; Essas análises adquirem força no mundo contemporâ-
- inadequado acesso aos serviços de saúde ou outros ser- neo porque as fragmentações e as diversidades de proces-
viços públicos essenciais. sos sociais verificados no mundo globalizado restringem
o espaço das versões homogêneas de vida social. Dessa
Starfield (2001:53), mais recentemente, discute o con-
forma, a noção de igualdade só se completa se compartida
ceito indicado por Whitehead e propõe a seguinte defini-
à noção de eqüidade. Não basta um padrão universal se
ção, por ela considerada alternativa, para eqüidade em
ele não comportar o direito à diferença. Não se trata mais
saúde: “Eqüidade em saúde é a ausência de diferenças sis-
de um padrão homogêneo, mas de um padrão equânime.
temáticas em um ou mais aspectos do status de saúde nos
Essa é a essência do debate da eqüidade em saúde que
grupos ou subgrupos populacionais definidos socialmen-
é aplicado ao problema dos recursos limitados e a forma
te, demograficamente ou geograficamente. Eqüidade nos
mais equânime de distribuí-los. A idéia de que a ausência
serviços de saúde implica em que não existam diferenças
de saúde pode afetar as oportunidades dos indivíduos de
nos serviços onde as necessidades são iguais (eqüidade
fazer ou ser algo, evidencia a importância da reflexão so-
horizontal), ou que os serviços de saúde estejam onde es-
bre a idéia de justiça social para o caso da saúde e, nesse
tão presentes as maiores necessidades (eqüidade vertical).”
sentido, é fundamental considerar as diferenças para apli-
Em suma, para a autora, a eqüidade no cuidado à saú-
cação de políticas e programas mais efetivos, que dêem
de define-se enquanto igualdade de acesso para iguais
respostas a problemas específicos e, conseqüentemente,
necessidades, uso igual dos serviços para necessidades
atuem para redução das desigualdades injustas.
iguais e igual qualidade de atenção para todos.
Ao longo dos anos 90, a Organização Mundial da Saú-
Nessa mesma linha, a International Society for Equity
de, o Banco Mundial, o Banco Interamericano de Desen-
in Health (ISEqH), presidida por Barbara Starfield, tem
volvimento, entre outros organismos internacionais,
apresentado uma definição de eqüidade numa linha técni-
classificaram a eqüidade como eixo central do debate eco-
co-operacional, que textualmente exclui do conceito a
nômico e da reforma do Estado. Entretanto, o ques-
noção de desigualdades injustas e aborda as diferenças
tionamento que circunscreve os rearranjos da relação Es-
como sistemáticas e potencialmente remediáveis: “eqüi- tado/Sociedade está longe de ser um consenso. Diferentes
dade é a ausência de diferenças sistemáticas e potencial- perspectivas e interesses estão presentes na arena política
mente remediáveis em um ou mais aspectos de saúde nos e temas como papel do Estado, descentralização, gasto
grupos ou subgrupos populacionais definidos socialmen- público e distribuição dos recursos são apresentados em
te, economicamente, demograficamente ou geograficamen- diferentes proposições.
te” (Macinko; Starfield, 2001:1). Tradução dos autores. A eqüidade tem recebido diferentes definições e ênfa-
Os debates e as definições conceituais mais recentes ses nos estudos teóricos e empíricos concernentes ao aces-
sobre desigualdades e eqüidade em saúde são essencial- so e uso dos serviços de saúde. Os enfoques conceituais
mente sustentados pela teoria da justiça formulada por dois destinam-se a análise do tema de forma global no campo
importantes autores contemporâneos, Raws (2000) e Sen da saúde, no acesso e nas barreiras para o acesso aos ser-
(2001), cujas análises têm influenciado o debate sobre o viços de saúde (na atenção básica e demais níveis de aten-
tema, ainda que justiça e eqüidade sejam abordadas com ção), na qualidade dos serviços, nos fatores determinantes
base em perspectivas diferentes, pois a idéia de justiça car- das condições de vida e saúde e nos fatores de ordem po-
rega um sentido distributivo, que implica na igualdade de lítica que podem promover ou dificultar a eqüidade.
oportunidades, tendo em vista as diferentes necessidades Travassos (1997) considera importante distinguir eqüi-
dos cidadãos. dade em saúde de eqüidade no uso ou consumo de servi-
O ganho obtido com a inclusão do debate da justiça so- ços de saúde. Essa distinção, para a autora, é importante
cial na conformação de políticas mais equânimes é imen- uma vez que os determinantes das desigualdades no adoe-
surável, uma vez que pressupõe tratamento desigual para os cer e no morrer diferem dos das desigualdades no consu-
que estão em condições de desvantagem, abrindo espaço para mo de serviços de saúde.
o que se considera como um tipo de “discriminação positi- As desigualdades em saúde refletem, dominantemen-
va”, e, conseqüentemente, assumindo os dilemas políticos te, as desigualdades sociais, e, em função da relativa
inerentes ao enfrentamento das largas desigualdades efetividade das ações de saúde, a igualdade no uso de ser-
verificadas entre os diferentes grupos populacionais. viços é condição importante, porém não suficiente, para

60
POLÍTICA DE SAÚDE E EQÜIDADE

diminuir as desigualdades relativas a adoecer e morrer, tantes entre si. De forma geral, pode-se afirmar que as
existentes entre os grupos sociais. últimas normas publicadas nos anos 90 definem:
A implementação de políticas equânimes, ou seja, que - as diferentes atribuições gestoras do nível federal, esta-
reconhecem as diferenças (justas ou injustas) atinentes às dual e municipal sobre o planejamento e a programação
necessidades, implica, portanto, na definição de campos es- da assistência à saúde, pagamento, execução, controle,
pecíficos de sua aplicação. Pode-se perceber, pelo menos, avaliação e auditoria de ações e serviços prestados pelas
três importantes campos na saúde: distribuição de recursos; unidades públicas e privadas credenciadas ao SUS;
oportunidades de acesso e utilização dos serviços. - as responsabilidades e respectivas prerrogativas finan-
Embora se considere que a inclusão do princípio de ceiras (modalidades de transferência de recursos federais
eqüidade na formulação de políticas de saúde não garan- e de remuneração de serviços) associadas a diferentes
te, de imediato, a implementação de políticas que resul- condições de gestão3 de estados e municípios;
tem em melhores níveis de eqüidade (na prestação de ser-
- os requisitos específicos utilizados como base para ava-
viços), esse debate vem alcançando relevância no setor, liação da capacidade gestora das secretarias municipais e
promovendo importante redefinição nos rumos das polí- estaduais de saúde que pleiteiam a habilitação nas condi-
ticas de saúde. ções de gestão previstas, respectivamente, pelas Comis-
No primeiro momento, pode-se dizer que a inclusão da sões Intergestores Bipartite (CIB) e Comissão Intergestores
eqüidade ocorreu no plano da formulação das políticas e Tripartite (CIT).4
programas, na garantia do acesso universal aos serviços
As características do processo de descentralização da
de saúde. Posteriormente, em sua fase de execução, a eqüi-
política de saúde no Brasil – forte indução do nível cen-
dade passou a ser um dos princípios norteadores da polí-
tral por meio de normas e estímulos financeiros; adesão
tica, seja no aspecto do acesso e utilização do sistema,
baseada em critérios nacionais e condicionada à avalia-
seja na alocação dos recursos financeiros.
ção e decisão das instâncias de pactuação intergestores –
Com todas as limitações e as dificuldades verificadas
têm sido altamente questionadas. Entre as críticas apon-
no campo da saúde quanto à redução das desigualdades e
tadas destacam-se:
da identificação dos determinantes específicos desse se-
- as que ressaltam o caráter fortemente tutelado da
tor, é possível dizer que a eqüidade na alocação e no con-
descentralização pelo nível federal, que paulatinamente
sumo de serviços de saúde é uma dimensão própria das
aumenta a vinculação dos recursos transferidos a deter-
políticas, uma vez que se trata de responsabilidade espe-
minadas políticas ou programas e diminui a autonomia de
cífica do sistema de saúde.
gestores estaduais e municipais de saúde na formulação
Nota-se como esses conceitos podem ser operacio-
de políticas próprias mais adequadas a sua realidade;
nalizados para o caso da política de saúde no país, que
tem como elemento balizador o atual desenho da imple- - as que discutem o efeito fragmentador desse processo,
mentação do SUS. que ao privilegiar a descentralização para os municípios
sem considerar adequadamente o papel das secretarias
IMPACTOS QUANTO À EQÜIDADE NA estaduais de saúde e as dificuldades para a montagem de
ALOCAÇÃO DE RECURSOS FINANCEIROS, um sistema integral na maioria dos municípios brasilei-
OFERTA E UTILIZAÇÃO DE SERVIÇOS ros,5 pouco contribuiu para a integração das redes muni-
cipais e garantia da assistência à saúde em todos os níveis
Durante a década de 90, o Brasil vivenciou um proces- de complexidade do sistema;
so de transferência gradativa de competências e recursos - as que se referem à inconstitucionalidade da regulamen-
do nível federal para estados e, sobretudo, para os muni- tação feita mediante portarias ministeriais que, por diver-
cípios. A descentralização da política de saúde foi marcada, sas vezes, colidem com os princípios previstos nas Leis
nos últimos dez anos, pela edição de diversas Normas da Saúde para alocação dos recursos federais e extrapolam
Operacionais pelo Ministério da Saúde – portarias minis- o conteúdo normativo da alçada do poder executivo;
teriais – que culminaram por se tornar os principais ins- - as que enfatizam que o processo de transferência de
trumentos de regulação nacional desse processo.2 responsabilidades e recursos do nível federal para os de-
As normas da descentralização foram alteradas e su- mais níveis de governo não garante per se o fortalecimen-
cessivamente substituídas, apresentando diferenças impor- to do caráter democrático do processo decisório na for-

61
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 17(1) 2003

mulação de políticas, nem, necessariamente, possibilita a dade instalada e capacidade de produção de ações e ser-
solidez das capacidades administrativas e institucionais viços). Além disso, a gestão municipal plena dos recursos
dos governos locais, regionais e central. O fortalecimento federais para custeio da assistência à saúde está condicio-
institucional dos três níveis de governo dependem de al- nada pelos acertos e negociações definidos em nível esta-
terações mais amplas do Estado – reformas tributárias e dual pelas respectivas instâncias intergestoras (CIB).
do próprio sistema político-administrativo – que transcen- Feitas essas considerações, em síntese, os municípios
dem o espaço da política setorial. Portanto, a concretização em GPSM representam a condição de gestão mais avança-
do SUS não está relacionada apenas à descentralização, da no sistema prevista pelas regras da descentralização na
mas também a outros aspectos relevantes para a consoli- NOB 01/96. Representam apenas 9,5 do total de municí-
dação do sistema. pios brasileiros e são aqueles, portanto, com maiores res-
Sem desconsiderar a importância desse debate, a se- ponsabilidades gestoras e com prerrogativa de recebimen-
gunda parte deste artigo pretende discutir os efeitos con- to da totalidade dos recursos federais de custeio transferidos
cretos do processo de descentralização da política de saúde diretamente do Fundo Nacional de Saúde para os Fundos
no Brasil, particularmente, daqueles obtidos ao final da Municipais. Esses municípios têm autonomia administra-
década de 90 e mais diretamente relacionados à implanta- tiva e financeira dos recursos federais – para a programa-
ção da NOB 01/96, sobre a redução das iniqüidades regio- ção, controle, avaliação e pagamento de prestadores de
nais nos campos da distribuição de recursos financeiros, serviços públicos e privados localizados em seu território
nas oportunidades de acesso e na utilização de serviços. – que respondem, em média, no ano 2000, por cerca de
Parte-se do princípio de que, embora a descentralização 54% do total de gastos públicos em saúde realizados.
no Brasil esteja associada à estratégia de democratização O processo de adesão desses municípios à habilitação
e incorporação de novos atores sociais, bem como à pers- em GPSM ocorreu, principalmente, em 1998 (86% das
pectiva de construção de sistema, seus benefícios só po- habilitações) e, ao final de 2000, a maioria desses muni-
derão ser percebidos à medida que contribuírem para a cípios localizava-se na região Sudeste (51%), seguida da
reversão do alto grau de exclusão, heterogeneidade e in- região Nordeste (25%) e Norte do país (11%).
justiça social da sociedade brasileira. Em relação ao tamanho, sua população, majoritariamen-
Para tanto, serão utilizadas algumas informações pro- te, gira em torno de 10 mil a 100 mil hab. (70,2%), e os
duzidas pela pesquisa Avaliação da Gestão Plena do Sis- municípios podem ser considerados de pequeno e médio
tema Municipal,6 que compreende uma análise da gestão porte. Ressalta-se que os municípios com esse porte
descentralizada do SUS a partir de 1998, com ênfase nos populacional albergam, atualmente, cerca de 40% da po-
523 municípios habilitados na Gestão Plena do Sistema pulação brasileira.
Municipal (GPSM) na NOB 01/96 até o final de 2000.
Primeiramente, serão apresentadas algumas característi- Redução das Iniqüidades na
cas gerais dos municípios estudados. Em seguida, será Alocação dos Recursos Financeiros
analisada a distribuição de alguns indicadores de alocação
dos recursos federais, oferta e cobertura, conforme as di- No que se refere à alocação dos recursos financeiros
ferentes regiões e porte populacional no universo dos mu- federais para custeio da assistência à saúde, observa-se,
nicípios habilitados em GPSM. no período de 1998 a 2000, crescimento significativo do
montante de recursos destinados a esses municípios: de
Características Gerais dos Municípios R$ 50,50 para R$ 70,50 per capita (Gráfico 1).
Habilitados em GPSM Embora os recursos sejam menores e permaneçam abai-
xo da média nacional na região Norte do país – muito em
Os municípios habilitados em GPSM até dezembro de função dos critérios utilizados para definição do montan-
2000, embora formalmente iguais perante a NOB 01/96, te de recursos a serem transferidos, que privilegiam a ca-
do ponto de vista de suas responsabilidades e atribuições, pacidade de oferta e produção na média e alta complexi-
são bastante desiguais quanto a suas condições so- dade –, observa-se maior incremento de recursos no
cioeconômicas e demográficas, a suas capacidades fiscais, período nesta região. Vale a pena destacar que os recur-
a sua trajetória no SUS e a suas disponibilidades de re- sos transferidos para a região Nordeste superam os trans-
cursos de saúde (incluindo recursos financeiros, capaci- feridos para a região Sudeste.

62
POLÍTICA DE SAÚDE E EQÜIDADE

GRÁFICO 1
Despesas Federais Totais com Assistência à Saúde, segundo Região
Brasil – 1998-2000

1998 34.931,91 49.208,18 51.793,70 52.527,09 66.321,02 50.541,38


2000 61.331,01 73.463,56 68.882,57 73.210,21 82.740,34 70.536,18
Diferença 26.399,10 24.255,38 17.088,87 20.683,12 16.419,31 19.994,80

Fonte: Banco de dados da Pesquisa Avaliação da Gestão Plena do Sistema Municipal, 2002.
Nota: Municípios habilitados em GPSM até dez. de 2000.

GRÁFICO 2
Despesas Federais Totais com Assistência à Saúde, segundo Porte Populacional dos Municípios
Brasil – 1998-2000

1998 27.728,77 40.945,93 40.779,64 54.652,20 63.722,41 72.032,66 55.285,98 101.230,86


2000 48.722,37 61.786,48 59.368,71 73.666,28 87.683,56 91.925,20 71.258,39 131.265,24
Diferença 20.993,61 20.840,56 18.589,07 19.014,09 23.961,15 19.892,54 15.972,42 30.034,39

Fonte: Banco de dados da Pesquisa Avaliação da Gestão Plena do Sistema Municipal, 2002.
Nota: Municípios habilitados em GPSM até dez. de 2000.

63
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 17(1) 2003

GRÁFICO 3
Participação de Unidades Laboratoriais Públicas no Total de Unidades Ambulatoriais Cadastradas no SUS, segundo Região
Brasil – 1998-2000

1998 88,2 71,9 82,7 66,8 58,3 77,9


2000 88,7 76,4 84,0 69,2 60,5 80,0
Diferença 0,58 4,45 1,27 2,39 2,27 2,12

Fonte: Banco de dados da Pesquisa Avaliação da Gestão Plena do Sistema Municipal, 2002.
Nota: Municípios habilitados em GPSM na NOB 01/96 até dez. de 2000.

GRÁFICO 4
Número de Leitos, segundo Região
Brasil – 1998-2000

1998 2,05 3,78 3,38 5,54 3,41 3,43


2000 2,29 3,89 3,46 5,62 3,44 3,54
Diferença 0,24 0,11 0,08 0,08 0,03 0,11

Fonte: Banco de dados da Pesquisa Avaliação da Gestão Plena do Sistema Municipal, 2002.
Nota: Municípios habilitados em GPSM na NOB 01/96 até dez. de 2000.

64
POLÍTICA DE SAÚDE E EQÜIDADE

GRÁFICO 5
Número de Consultas Médicas Totais, segundo Região
Brasil – 1998-2000

1998 1,0 1,6 2,6 2,0 2,2 2,1


2000 1,2 1,7 2,6 1,7 2,1 2,1
Diferença 0,2 0,1 -0,1 -0,3 -0,2 0,0

Fonte: Banco de dados da Pesquisa Avaliação da Gestão Plena do Sistema Municipal, 2002.
Nota: Municípios habilitados em GPSM na NOB 01/96 até dez. de 2000.

GRÁFICO 6
Número de Exames Laboratoriais Totais, segundo Região
Brasil – 1998-2000

1998 71,1 52,2 43,2 49,3 57,4 49,9


2000 98,8 72,2 58,6 74,6 80,6 68,9
Diferença 27,8 20,0 15,4 25,3 23,2 19,0

Fonte: Banco de dados da Pesquisa Avaliação da Gestão Plena do Sistema Municipal, 2002.
Nota: Municípios habilitados em GPSM até dez. de 2000.

65
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 17(1) 2003

GRÁFICO 7
Número de Internações, segundo Região
Brasil – 1998-2000

1998 65,7 63,8 59,7 67,7 71,4 62,7


2000 58,0 58,2 56,7 66,6 66,4 58,5
Diferença -7,75 -5,62 -3,00 -1,07 -5,01 -4,24

Fonte: Banco de dados da Pesquisa Avaliação da Gestão Plena do Sistema Municipal, 2002.
Nota: Municípios habilitados em GPSM na NOB 01/96 até dez. de 2000.

Se se considerar, no entanto, a distribuição de recursos dades ambulatoriais públicas no total de unidades cadas-
para os municípios em GPSM segundo porte populacional, tradas no SUS nos municípios em GPSM (Gráfico 3). Essas
pode-se perceber que as capitais e os municípios com 100 unidades, no entanto, já representam 80% do total de uni-
mil a 500 mil hab. foram privilegiados na alocação de recur- dades cadastradas em 2000, e sua participação é maior
sos (Gráfico 2). É verdade que os pequenos municípios re- nas regiões Norte (88,7%) e Sudeste (84%) do país. A
cebem importante incremento de recursos entre 1998 e 2000, preponderância da oferta pública na área ambulatorial é
porém, são eles os mais dependentes dos recursos federais. observada em todas as regiões do país, com destaque para
Em 2000, as transferências para o SUS representam 36% do os pequenos municípios – 94,5% nos municípios com até
gasto público total em saúde no grupo de municípios com 10 mil hab. e 86,8% nos municípios com população entre
população menor que 10 mil hab. 10 mil e 20 mil hab.
Resta salientar que o volume de recursos transferidos A área hospitalar, por sua vez, apresenta padrão in-
é ainda irrisório se se considerar o alto grau de dependên- ferior ao preconizado pelo MS (4 leitos por mil hab.),
cia da fonte federal no gasto público total em saúde nes- se se considerar a média nacional (3,54 leitos por mil
ses municípios. Eles já alocam, em média, 15% de sua re- hab.) desses municípios (Gráfico 4). Esse padrão va-
ceita própria em saúde cumprindo com o dispositivo da ria, significativamente, entre as regiões, apresentando
Emenda Constitucional 29, publicada em 2000. Mesmo os valores mais baixos no Norte (2,29 leitos por mil
assim, a dependência permanece, e é menor nas regiões hab.) e mais elevados no Centro-Oeste (5,62 leitos por
Sudeste e Centro-Oeste do país. mil hab.).
O incremento verificado no período privilegiou a re-
Redução das Iniqüidades na Oferta gião Norte (região mais carente da oferta de leitos) e Nor-
deste (segunda região com maior oferta de leitos) e os
Pela oferta ou pela oportunidade de acesso, pode-se municípios com menos de 10 mil hab. Os municípios com
verificar um aumento insignificante no percentual de uni- população maior do que 500 mil hab. que não são capi-

66
POLÍTICA DE SAÚDE E EQÜIDADE

tais, permanecem com um padrão bem inferior à média No que se refere a cobertura hospitalar, verifica-se uma
nacional (1,57 leitos por mil hab.) e que apresentaram de- regressão no número de internações por hab./ano no perío-
créscimo de leitos no período. do (Gráfico 7). A média nacional nos municípios em GPSM
Destaca-se que a política nacional de investimentos (ba- (0,05 internações por hab./ano) permanece abaixo dos
sicamente recursos originários do Banco Mundial no proje- parâmetros recomendados pelo MS (0,08 a 0,09 inter-
to Reforsus) não acompanhou as regras e as tendências da nações por hab./ano) em todas as regiões. Embora com
política de descentralização, isto é, os critérios utilizados para padrão semelhante entre as regiões, as coberturas mais
alocação dos recursos de investimentos obedeceram a regras baixas encontram-se nas regiões Sudeste e Nordeste, en-
diferentes das previstas na NOB 01/96 para a descentralização quanto o maior decréscimo pode ser observado no Norte.
de competências gestoras. Esse descolamento representa um Em relação ao porte, destacam-se as maiores coberturas
limite para expansão da alocação dos recursos de custeio nas hospitalares nas capitais (0,07 internações por hab./ano)
regiões mais carentes. e nos municípios médios com 20 mil a 100 mil hab. (0,06
internações por hab./ano).
Redução nas Iniqüidades na Utilização de Serviços
CONCLUSÃO
Em relação à utilização de serviços, a análise da distri-
buição de consultas médicas totais (básicas, especializadas Cabe assinalar que os efeitos sobre eqüidade foram
e de urgência/emergência) por habitante/ano segundo regiões analisados para um universo particular de municípios bra-
(Gráfico 5) e porte populacional dos municípios em GPSM sileiros, por uma razão bem simples: só se pode comparar
aponta para a manutenção das diferenças regionais, redução municípios com o mesmo tipo de inserção na política de
do número de consultas nas capitais e manutenção de baixos saúde, isto é, com o mesmo status, quando se quer exami-
valores de cobertura entre 1998 e 2000, se se levar em con- nar a redução nos padrões anteriores de desigualdade no
sideração a média nacional (2,1 consultas por hab./ano). tocante à distribuição dos recursos e das oportunidades
Ressalta-se que as regiões Sudestes e Sul mantêm os maio- de acesso e utilização.
res coeficientes de cobertura (respectivamente, 2,6 e 2,1 con- Municípios com status diversos na política de saúde –
sultas por hab./ano), assim como os municípios com menos proporcionado pelas diferentes modalidades de habilita-
de 10 mil hab. (2,8 consultas por hab./ano). ções –, possivelmente apresentam diversidades provocadas
O padrão de cobertura é mantido graças ao significati- por essa mesma diferenciação inicial: isto é bastante cla-
vo incremento da cobertura de consultas básicas no período ro no tocante a distribuição e utilização dos recursos pe-
(de 0,28 para 1,4 consultas por hab./ano), já que se obser- las instâncias municipais.
va, de outra parte, uma diminuição das consultas es- Os dados referentes aos anos de 1998 e 2000 evidenciam
pecializadas (de 0,63 para 0,3 consultas por hab./ano). Essa que houve alguns avanços quanto à eqüidade, sobretudo em
reversão – incremento de consultas básicas e decréscimo relação à distribuição de recursos, o que é explicável: as re-
de consultas especializadas – pode ter ocorrido graças a duções das desigualdades no acesso e na utilização são pos-
mudanças no modelo de atenção à saúde com a implanta- teriores no tempo, isto é, dependem, em um primeiro mo-
ção do Programa de Saúde da Família (PSF) nesses muni- mento, da melhor distribuição de recursos, que permite mais
cípios. O número elevado de consultas básicas nos peque- à frente investimentos novos e faculta, portanto, a maior uti-
nos municípios e baixo nos municípios maiores, em que o lização dos equipamentos e serviços de saúde.
PSF permanece residual, favorece tal hipótese. Todavia, é notável como os indicadores nacionais,
Ainda no que diz respeito à cobertura de serviços mesmo para esse grupo seleto de municípios, são bastan-
ambulatoriais, destaca-se o expressivo aumento do número te inferiores aos padrões de oferta e uso recomendados
de exames por consulta que ultrapassa o parâmetro de 30% pelos organismos internacionais.
a 50% das consultas preconizado pelo MS (Gráfico 6). As reduções das iniqüidades quanto à alocação de re-
Esse aumento que é bastante expressivo no Norte e nos cursos financeiros, oferta e utilização de serviços ainda
municípios com mais de 500 mil hab. e capitais, pode tam- necessitam de políticas pontuais que privilegiem determi-
bém significar a ausência de rotinas e protocolos na orga- nados tipos de investimentos que melhor relacionem oferta
nização da assistência médica, bem como a de controle e às necessidades de saúde, diferentes condições de
avaliação dos serviços realizados. adoecimento e agravo e, ao mesmo tempo, melhorem o

67
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 17(1) 2003

acesso e a utilização. As políticas recentes minoraram as 5. Destaca-se que, embora 51% da população brasileira atualmente
resida em municípios com mais de 100 mil hab., a maior parte dos
graves distorções regionais na oferta, porém não contem- municípios são pequenos. Destes, 48% possuem população até 10 mil
plaram ainda questões mais complexas como o perfil hab. e 30% população entre 10 mil e 25 mil hab., segundo dados do
último censo realizado pela Fundação IBGE.
epidemiológico das populações, condições sociais, dife-
6. A pesquisa, financiada pelo Banco Mundial, no âmbito do projeto
rentes inserções no mundo do trabalho, gênero e raça. O Reforsus, foi realizada por um grupo de pesquisadores vinculados a dife-
processo de implementação do SUS, no país, deve ainda rentes instituições de ensino e pesquisa. Os dados da pesquisa estão dis-
percorrer um longo caminho para diminuição das iniqüi- poníveis em CD-ROM e foram recentemente publicados por Negri e Viana
(2003).
dades na saúde, e possibilitar, desse modo, a diminuição
das desigualdades sociais. Para isso, deve, cada vez mais,
diversificar políticas e ações segundo grupos específicos REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
de indivíduos.
MACINKO, J.A.; STARFIELD, B. Annotated bibliography on equity
in health. International Journal for Equity in Health, Baltimore,
NOTAS v.1, n.1, 2002. Disponível em:
<http://www.equityhealth/healthj.com/content/1/1/1>.
1. “ ... Para o ano 2000, as atuais diferenças nas condições de saúde MACKENBACH, J.P.; KUNST, A. E Measuring the magnitude of
entre países e entre grupos dentro de países, seriam reduzidas, em pelo socio-economic inequalities in health: an overview of available
menos 25%, melhorando tanto o nível de saúde das nações, quanto os measures illustrated with two examples from Europe. Social
grupos em desvantagem”. (Tradução dos autores). Targets for health Science and Medicine, Inglaterra, v.44, n.6, p.757-771, 1997.
for all. Copenhagen, WHO Regional Office for Europe, 1985. NEGRI, B.; VIANA, A.L.d’ (Orgs.). O SUS em dez anos de desafio.
2. Nos anos 90, foram publicadas quatro dessas normas: as Normas São Paulo: Sobravime/Cealag., 2003.
Operacionais Básicas (NOB) de 1991, 1992 (similar à anterior), 1993
RAWS, J. Uma teoria da justiça. Tradução de Almiro Pisetta e Lenita
e 1996. Mais recentemente, foi publicada a Norma Operacional da
M. R. Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
Assistência à Saúde (Noas) nas versões 2001 e 2002.
3. As diversas condições de gestão do SUS foram primeiramente SEN, A. Desigualdade reexaminada. Tradução de Ricardo Doninelli
estabelecidas pela NOB 01/1993 e referem-se a diferentes capacida- Mendes. São Paulo: Record, 2001.
des de gestão das secretarias municipais e estaduais de saúde, que en- STARFIELD, B. Improving equity in health: a research agenda.
volvem determinado conjunto de exigências e prerrogativas financei- International Journal of Health Services. Inglaterra: v.13, n.3, p.
ras. Em última instância, como as normas definem os mecanismos e 545-566, 2001.
os critérios de transferência dos recursos federais para custeio da as-
sistência, as condições de gestão estão relacionadas a diferentes graus TRAVASSOS, C. Eqüidade e o sistema único de saúde: uma contri-
de autonomia de gestão apenas desses recursos financeiros, utilizados buição para debate. Cadernos de Saúde Pública. Rio de Janeiro,
para remuneração das ações e dos serviços prestados no campo de ação v.13, n.2, p.325-330, abr./jun. 1997.
do SUS. WHITEHEAD, M. The concepts and principles of equity and health.
4. O modelo institucional proposto no SUS prevê a criação de instân- Copenhague: World Health Organization, 1991.
cias de negociação e decisão intergestores: as CIB, atuantes no nível
estadual desde 1993, de composição paritária, formadas por represen-
tantes das secretarias estaduais de saúde e das secretarias municipais
de saúde indicados pelo Conselho dos Secretários Municipais de Saú-
de no estado (Cosems); a CIT, atuante no nível nacional desde 1991, ANA LUIZA D’ÁVILA VIANA: Economista, Professora do Departamento de
também paritária, formada por representantes do Ministério da Saúde, Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP.
das secretarias estaduais de saúde indicados pelo Conselho Nacional
dos Secretários Estaduais de Saúde (Conass) e das secretarias munici- MÁRCIA CRISTINA RODRIGUES FAUSTO: Assistente social da Fiocruz.
pais de saúde indicados pelo Conselho Nacional dos Secretários Mu-
nicipais de Saúde (Conasem). LUCIANA DIAS DE LIMA: Assistente de pesquisa da Fiocruz.

68
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 17(1): 69-85, 2003 SERVIÇOS DE SAÚDE: O DILEMA DO SUS NA NOVA DÉCADA

SERVIÇOS DE SAÚDE
o dilema do SUS na nova década

PEDRO LUIZ BARROS SILVA

Resumo: A ausência de mecanismos eficazes de regulação e ordenamento da oferta, buscando viabilizar o


acesso e a melhor utilização dos serviços do SUS por parte dos usuários, nos níveis macro e microorganizacionais,
contribui de forma decisiva para a persistência de problemas relacionados à baixa eficácia do sistema de saú-
de brasileiro. Este artigo, nos âmbitos, avalia se as reformas introduzidas no setor saúde, no que se refere a
cobertura, financiamento, regionalização e gestão, têm contribuído para melhorar o acesso e ampliar a utiliza-
ção dos serviços de saúde essenciais.
Palavras-chave: reforma do Estado; políticas públicas; política social em saúde.

Abstract: The lack of effective mechanisms for regulating SUS services and ensuring their availability at the
macro and micro-organizational levels contributes decisively to the persistent ineffectiveness of the Brazilian
health care system. This article assesses the degree to which the reforms in the areas of coverage, financing,
regionalization and management have contributed to improving access and expanding the utilization of essential
health services.
Key words: State reform; public policies; social health policy.

A
reforma do setor saúde esteve muito em moda, - problemas generalizados nas condições de escolha dos
no plano internacional,1 na década de 90. A par- pacientes determinados pela característica comum dos
tir de distintos pontos de partida, consolidou-se provedores de serviço em se mostrarem pouco sensíveis
um conjunto de pressões sobre os governos nacionais para aos direitos dos pacientes usuários e consumidores de ser-
alterar o perfil das políticas públicas setoriais. Entre es- viços.
sas pressões, é possível destacar:
Na base desses fatos comuns aos países ocidentais, tanto
- aumento do nível real de gasto setorial, com forte cres-
na Europa Ocidental quanto nas Américas, evidenciam-
cimento do gasto público, exigindo formas mais eficazes
se três questões de ordem estrutural, presentes com dis-
de controle governamental;
tinta intensidade em cada situação nacional.
- convicção entre os gestores públicos e privados de que A primeira delas envolve as mudanças demográficas,
o tipo de gasto realizado não otimizava o uso dos recur- especialmente aquelas decorrentes do envelhecimento da
sos existentes e disponíveis para o setor; população e do declínio imediato ou futuro da população
- possibilidade de expansão do volume de gasto setorial economicamente ativa, o que determinaria um aumento
real muito limitada diante tanto das pressões e dificulda- da demanda por serviços de maior complexidade e custo
des decorrentes dos distintos ajustes nas economias na- e tenderia a tornar cada vez mais problemática a capaci-
cionais, quanto do volume já expressivo do gasto setorial dade de resposta dos serviços (Eurostat, 2000). Note-se
em relação ao PIB; que mesmo em países onde essa transição não impõe um
- aumento expressivo da complexidade das condições de perfil “envelhecido” da população de forma imediata, o
oferta e demanda dos serviços; simples fato de passar a existir uma população que tende
- problemas, mais ou menos agudos, nas condições de a ser predominantemente adulta pode e vem atuando na
eqüidade no acesso aos serviços por parte dos usuários, mesma direção. Isso ocorre porque também os cuidados
especialmente os de menor renda, dependendo da situa- médicos tendem a ser mais onerosos quando um grupo
ção nacional em exame; populacional adulto está submetido a condições de traba-

69
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 17(1) 2003

lho e obtenção de rendimentos cada vez mais depaupe- trativas do setor público. De outro lado, países com forte
radoras de suas condições físicas e mentais: transforma- tradição de organização estatal dos serviços – ênfase em
ções das condições de trabalho que tendem a se tornar mecanismos de planejamento, avaliação e controle cen-
qualitativamente piores dada a maior flexibilidade e ins- tralizados – passam a utilizar cada vez mais os instrumen-
tabilidade dos postos oferecidos; aumento de desempre- tos administrativos e gerenciais, que permitem a introdu-
go aberto, etc. Esse é, sem dúvida, o caso de vários países ção de formas administradas de competição no interior do
latino-americanos, com destaque para o Brasil. sistema de atenção à saúde, e mecanismos de regulação
A segunda decorre das dificuldades de equacionamento que diminuem as formas diretas de intervenção do setor
do financiamento e gasto públicos nos quadros de ajustes público na operação dos serviços.
financeiros macroeconômicos que vêm determinando o Com base na literatura disponível para um conjunto
corte e a redução da capacidade de intervenção estatal, significativo de países europeus e americanos, é possível
sem que se tenha delineado com clareza novas e consoli- identificar duas importantes lições para o caso brasileiro.
dadas formas, comprovadamente eficazes e efetivas, de Em primeiro lugar, não existe ainda uma tendência con-
parceria entre o setor público e o privado, entre os níveis solidada de financiamento e gestão dos sistemas de saúde
nacionais e subnacionais de governo (no caso de unida- que permita demonstrar a superioridade de modelos ba-
des federativas), e entre os níveis central, regional e local seados exclusivamente nas regras de mercado ou ao con-
de governo (no caso de Estados unitários). Essa questão trário, na intervenção estatal plena. Esse ponto, aparente-
torna-se mais grave nas situações nacionais localizadas mente óbvio, deixa de ser no final dos anos 90 uma questão
na periferia do sistema financeiro e econômico-produti- ideológica: a evidência empírica mostra que ainda se bus-
vo, submetidas a um passado inflacionário desastroso que, cam intensamente novos instrumentos de política que su-
a despeito de terem obtido condições de estabilidade da perem a dicotomia Estado x Mercado e consigam integrar
moeda, o fizeram através de estratégias macroeconômicas as capacidades públicas (estatais e não-estatais) e priva-
antagônicas à viabilização de etapas posteriores de desen- das de forma sinérgica, o que ainda não foi obtido com
volvimento econômico sustentado, dificultando as condi- pleno sucesso por nenhuma experiência nacional.
ções de ajuste do setor público e com custos sociais ele- Em segundo lugar, que o “coração das reformas” está
vados. ligado, no plano geral, a modificações, tanto no nível macro
A terceira questão decorre das significativas alterações quanto no nível micro, das formas de financiamento dos
nas tecnologias disponíveis na área de cuidados médicos sistemas e das suas formas de organização, gestão e
(processos, equipamentos e fármacos), alterando o perfil regulação, o que inclui modificações importantes em cer-
de provisão dos serviços (oferta) com impactos fortes na tos pressupostos do modelo assistencial adotado. A maior
criação de novas demandas e novas necessidades de fi- probabilidade de sucesso na empreitada está ligada tanto
nanciamento. Nesse sentido, as expectativas dos usuários à escolha das modificações em cada campo – financia-
crescem, convergindo para a exigência de novos padrões mento e gestão – quanto às possibilidades de combinar
de atendimento. De forma diferenciada para cada situa- sinergicamente seus resultados, criando bases políticas,
ção nacional, essas novas exigências parecem refletir um institucionais e societais de sustentabilidade das transfor-
mix envolvendo simultaneamente a oferta de novos servi- mações introduzidas.
ços, possibilidades de ampliação de acesso a serviços, até
então disponíveis para segmentos diferenciados economi- CARACTERÍSTICAS COMUNS DOS PROCESSOS
camente, e maiores níveis de informação e educação de DE REFORMA NOS PAÍSES EUROPEUS E
parcelas da população usuária que passam a exigir trata- NORTE-AMERICANOS
mentos mais complexos e sofisticados.
Todo esse contexto, aqui delineado de forma bastante A partir da segunda metade dos anos 80, combinaram-
genérica, aponta uma tendência convergente de orienta- se e foram estimuladas políticas diferenciadas de inter-
ção nas modificações das políticas públicas e privadas para venção procurando alterar condições de operação dos sis-
o setor. De um lado, países que centravam, de forma qua- temas nacionais, nos planos macro e microorganizacionais.
se exclusiva, a organização de serviços nas regras de mer- No que diz respeito ao macrofuncionamento dos siste-
cado passam a utilizar instrumentos de planejamento e de mas de saúde, foram adotadas predominantemente fórmu-
regulação, mais visíveis até então nas práticas adminis- las para obter a contenção de custos e para definir uma

70
SERVIÇOS DE SAÚDE: O DILEMA DO SUS NA NOVA DÉCADA

política de transferências do nível central de governo para no interior desse novo modelo contratual; reforço e
instâncias descentralizadas ou subnacionais, conforme melhoria das condições internas de gestão das unidades
cada caso, que favorecesse tal processo. Esse tipo de de- prestadoras de serviço em todos os níveis de atendimen-
cisão decorre do exame do funcionamento e desempenho to, buscando-se minimizar variações de desempenho e
das três formas básicas para as quais convergem os dis- introduzir uma nova cultura organizacional na qual se
tintos mecanismos de financiamento dos sistemas de aten- possa ampliar o poder de escolha dos pacientes, melhorar
ção à saúde: financiamento público baseado em impos- as condições de acesso, reduzir os tempos de espera nas
tos; financiamento público baseado em contribuições listas de cuidados eletivos, aumentar a qualidade da pres-
compulsórias da previdência social; finalmente, o finan- tação de serviços.
ciamento privado baseado em seguros específicos para a As modificações dos níveis macro e micro quando com-
atenção à saúde (Maxwell, 1988). Nesse sentido, a expe- binadas envolveram:
riência internacional tem demonstrado maiores deficiên- - intenso investimento e melhoria dos sistemas de infor-
cias no desempenho dos sistemas de financiamento de mação voltados à decisão gerencial, possibilitando um
bases voluntárias controlados por regras tipicamente de fluxo ágil e efetivo de dados acerca das principais transa-
mercado (incerteza e risco desse tipo de seguro; existên- ções realizadas pelo sistema e por suas unidades;
cia de “risco moral” afetando tanto o comportamento de - programas de capacitação em gestão para médicos, en-
usuários e provedores de serviço – sobreutilização asso- fermeiros e outros profissionais da equipe de saúde;
ciada ao uso impróprio de equipamentos e terapias; in-
- aumento dos graus de responsabilidade e autonomia
centivos à seleção adversa de pacientes; maiores dificul-
decisória dos gestores do sistema nos níveis regionais e
dades para obter coberturas universalizadas e acesso
periféricos, nas unidades prestadoras de todos os tipos e
equânime; altos custos administrativos). De outro lado,
no interior dessas mesmas unidades;
sistemas financiados por impostos ou por contribuições
compulsórias, embora relativamente bem-sucedidos no - terceirização de todas as atividades em que, compro-
processo de contenção de custos – através da utilização vadamente, o setor privado possua maior competência;
de orçamentos globais com base prospectiva para hospi- - contratação de gestores profissionais para atividades de
tais; controles centrais para a construção de instalações e gerenciamento dos sistemas ou de suas unidades hospita-
aquisição de equipamentos; limitações nas remunerações lares, ambulatoriais ou de atenção primária;
das equipes médicas e sua padronização; tabelas padroni-
- adoção de “pacotes” de incentivos, incluindo incenti-
zadas de remuneração de procedimentos; restrições no
vos salariais, visando a obtenção de resultados mais efi-
processo de formação de profissionais, etc. –, enfrenta-
cazes e efetivos, seja no plano macro seja no plano
ram problemas no campo da qualidade dos serviços, na
microorganizacional;
produtividade obtida e na excessiva burocratização e cen-
tralização de procedimentos e controles, acarretando cus- - utilização de mecanismos e incentivos orçamentários e
tos administrativos também bastante elevados. financeiros como meio de aumentar o desempenho dos
Esse processo de “aprendizado institucional” dos dife- sistemas e adequar a oferta dos serviços às necessidades
rentes sistemas determinou uma alteração estrutural de da população-alvo.
modelos privatizados e públicos (estes últimos também
conhecidos como modelos integrados de financiamento e ANTECEDENTES DA POLÍTICA DE
provisão de serviços) para modelos contratuais integra- ATENÇÃO À SAÚDE NO BRASIL
dos, a partir de bases de mercado (caso americano) ou
bases públicas (caso europeu de forma geral). Como já é conhecido, o Sistema Único de Saúde (SUS),
Com isso, alteram-se de forma ainda mais significati- estabelecido pela Constituição Federal de 1998, ao indu-
va as condições microorganizacionais de funcionamento zir o processo de descentralização da atenção sanitária,
dos sistemas de atenção em que se procurou combinar: buscou implantar um modelo assistencial que revertesse
iniciativas para aumento da eficiência e melhora da o perfil de intervenção governamental nesse setor. Ao fi-
resolutividade da rede de serviços, através da separação nal dos anos 80 a política de atenção à saúde era marcada
de provedores e financiadores como mecanismo de intro- pela ineficiência da gestão pública e pela baixa efetividade
dução de competição administrada (ou quase mercados) das ações no atendimento das necessidades da população.

71
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 17(1) 2003

A partir de 1988, foi consolidada e formalizada na Carta prestação de serviços de assistência médica e de sanea-
Constitucional uma tendência de reconhecimento da aten- mento básico nas regiões mais distantes e pobres do país;
ção à saúde como um direito social, processo que se ini- o segmento de hospitais universitários, vinculado ao Mi-
cia no princípio dos anos 80. A Constituição buscou, ex- nistério da Educação, que fazem, ainda hoje, parte das Uni-
plicitamente, assegurar o acesso universal e igualitário – versidades Federais existentes em cada Estado da Fede-
sem restrições e discriminações derivadas de posições ração Brasileira, mantendo, além de suas atividades de
diferenciadas na heterogênea e complexa estrutura social ensino e pesquisa, serviços de magnitude e complexidade
brasileira – às ações (políticas e programas) e serviços de diferenciados de atenção médica à população em regime
promoção, proteção e prevenção da saúde.2 universal, na maior parte em convênio com o Inamps; o
Tal definição constitucional, para que fosse viabilizada segmento das Forças Armadas e do funcionalismo públi-
de fato, envolvia a definição e implantação de uma estru- co (nos diferentes níveis de governo) que também man-
tura de atenção que abrangesse todos os brasileiros e ope- tém uma rede própria de hospitais e ambulatórios; o seg-
rasse dentro dos princípios de máxima eqüidade, alteran- mento estadual e municipal de atenção médico-hospitalar
do, conseqüentemente, as principais características do e de saúde pública, composto de unidades básicas de saúde
perfil de política de atenção à saúde, forjado durante a (centros e postos de saúde) e de unidades de emergência
situação autoritária que vigorou no país por três décadas nos Estados e municípios de maior porte e condição eco-
e prevaleceu no Brasil até meados dos anos 80.3 Dentre nômica; finalmente, um segmento privado autônomo vol-
essas características merecem destaque neste trabalho: tado às camadas da população com alto poder aquisitivo4
- a forte centralização na esfera federal de governo e, ou articulado a partir da necessidade das empresas de maior
dentro dela, no Instituto Nacional de Assistência Médica porte e complexidade (medicinas de grupo, cooperativas
da Previdência Social – Inamps, autarquia vinculada ao médicas, seguradoras do ramo saúde, serviços de auto-
Sistema Nacional de Previdência e Assistência Social – gestão médica das empresas), que cresce dinamicamente
Sinpas – que ao comandar o processo do gasto público no vácuo possibilitado pelas deficiências da política de
setorial viabilizou por décadas ações e serviços de assis- assistência médica previdenciária e de atenção médico-
tência médica de base hospitalar, bastante dissociados de sanitária proporcionada pelos Estados e municípios;
ações integradas de promoção, prevenção e proteção da
- a ausência de mecanismos de controle público e social,
saúde;
tanto no que diz respeito ao processo mais geral de defi-
- a fragmentação organizacional, o que impossibilitava a nição de formas de financiamento, prioridades alocativas
implementação de uma política setorial integrada ao pro- e distribuição geográfica dos serviços, quanto no que se
mover, principalmente, a dicotomia entre as ações no refere ao controle social da qualidade e do tipo de serviço
âmbito do Ministério da Saúde, das Secretarias Estaduais prestado aos usuários;
de Saúde e, finalmente, das Secretarias Municipais, de um
- a forte concentração do atendimento nas unidades hos-
lado; e do Inamps e dos prestadores de serviços de assis-
pitalares ou no atendimento ambulatorial de nível secun-
tência médica – ambulatorial ou hospitalar – privados ou
dário, o que é explicável pela, já citada, predominância
públicos não-governamentais (entidades filantrópicas)
da política de assistência médica previdenciária e de seus
contratados ou conveniados com essa autarquia, de outro.
recursos financeiros, infinitamente superiores em capaci-
Configurou-se, assim, uma estrutura de prestação de ser-
viços constituída de seis segmentos: o segmento previ- dade de atendimento e de gasto às estruturas de saúde
denciário, envolvendo estabelecimentos próprios do voltadas à promoção e prevenção da doença. Isso impli-
Inamps (postos de assistência médica e hospitais de mé- cou a estruturação de uma rede de atendimento atuando
dio e grande portes) e estabelecimentos privados; o seg- sem hierarquia, implantada sem que fossem considerados
mento médico sanitário vinculado ao Ministério da Saúde os critérios de regionalização, sistemas de referência e
que, para implementar diversos programas de abrangência mecanismos de integração, complementaridade e coorde-
nacional, mantinha uma rede própria de unidades ambu- nação do atendimento.
latoriais e hospitalares para combate ao câncer, atendi- Esse perfil de intervenção viabilizou uma política de
mento psiquiátrico, dermatologia sanitária, tuberculose, atenção à saúde com inegável tendência de expansão da
atenção materno-infantil, etc., além da rede da Fundação cobertura e do gasto – ainda que em níveis inferiores aos
Serviço Especial de Saúde Pública – Sesp encarregada da observados, naquele momento, em países da América

72
SERVIÇOS DE SAÚDE: O DILEMA DO SUS NA NOVA DÉCADA

Latina com graus semelhantes de desenvolvimento – apoia- do setor: o segmento público da saúde no Brasil gas-
da, como já foi apontado, em uma rede de prestação de tou pouco.
serviços desordenada e desarticulada, dada a inexistência Considerando-se esse gasto em relação ao PIB, apre-
de mecanismos de planejamento e gestão que viabilizassem sentado na Tabela 1, e comparando essas informações com
o seu funcionamento de forma regionalizada, hierarquizada os dados apresentados pelo relatório do Banco Mundial
e resolutiva. de 1993, dedicado ao setor saúde, nota-se que essa parti-
A estruturação de um sistema único de saúde procurou cipação é bastante inferior à participação média setorial
ampliar os níveis de responsabilidade da gestão local e nos países das economias capitalistas centrais (OCDE),
regional para solucionar, simultaneamente, questões re- que se situavam em torno de 5,6% do PIB médio.
ferentes à melhora da eficácia do gasto público e à amplia- Mas se for considerado o gasto total em saúde, estima-
ção do acesso aos serviços. Como aponta, corretamente, do por Médici (1999) para o ano de 1989, a situação se
Médici (1999), a implantação do SUS teve como princi- transforma um pouco. Em tal estimativa, o gasto total –
pal justificativa a necessidade de melhorar a oferta de ser- público nas três esferas de governo e privado autônomo
viços, os indicadores de saúde e as condições de acesso, (famílias seguradas mais gastos familiares diretos e gasto
contribuindo para elevar a qualidade de vida da popula- das empresas com seguros-saúde e assemelhados para seus
ção brasileira. Mais de dez anos após o início desse pro- empregados) – em relação ao PIB chega a 4,66%.
cesso e a despeito de avanços inequívocos tanto dos indi- Ou seja, bastante próximo dos 5,6% dos países do cen-
cadores de saúde quanto da eficiência do atendimento em tro capitalista, onde o gasto privado é muito menor, e sig-
diversos Estados e municípios brasileiros, verifica-se que nificativamente maior do que a média dos países da Amé-
o Brasil ainda apresenta padrões de morbidade e mortali- rica Latina, excetuando-se o Chile, dentre os países onde
dade precários. A realidade sanitária brasileira revela pa- a comparação possa fazer sentido para a argumentação aqui
drões que mesclam distintas etapas do processo de transi- desenvolvida. Os países da OCDE e a maioria dos países
ção epidemiológica, combinando a presença de doenças latino-americanos apresentam, entretanto, indicadores de
verificadas em sociedades pré-industriais, industriais e pós- saúde superiores aos brasileiros. Como apontam Barros,
industriais. Em parte, essa realidade é resultante da per- Piola e Vianna (1996:13), “tem sido fartamente documen-
manência de problemas de cobertura assistencial, finan- tada a situação paradoxal do Brasil de apresentar indica-
ciamento setorial, resolutividade sistêmica e eqüidade no dores econômicos em níveis incompatíveis com os dos
acesso e na utilização dos serviços. indicadores sociais, incluindo-se os de saúde”. Mesmo

ANOS 80: A SITUAÇÃO PRÉ-SUS


TABELA 1
A política de atenção à saúde no Brasil foi financiada Evolução dos Gastos com Saúde em Relação ao PIB
Brasil – 1980-90
basicamente com recursos do Fundo de Previdência e
Em porcentagem
Assistência Social (FPAS) até 1990. A análise da evolu-
Anos Total União Estados Municípios
ção dos gastos com atenção à saúde nas três esferas de
governo entre 1980 e 1990 mostra que a participação da 1980 2,34 1,75 0,42 0,17
União nunca é inferior a 71% (1986), tendo alcançado o 1981 2,36 1,74 0,44 0,18
patamar de 87% aproximadamente em 1988. 1982 2,37 1,75 0,41 0,20
Analisando-se a seguir a evolução do gasto federal por
1983 2,14 1,55 0,41 0,18
fonte de financiamento, verifica-se que a participação dos
1984 2,15 1,60 0,39 0,16
recursos previdenciários na manutenção da política de
1985 2,23 1,60 0,42 0,21
atenção à saúde através do FPAS foi, no mesmo período,
1986 2,27 1,56 0,47 0,24
sempre superior a 76% (1986), alcançando seu maior pa-
1987 2,81 2,33 0,25 0,23
tamar de participação no início da década de 80.
A despeito de crescerem 9,5% entre 1980 e 1990, os 1988 2,69 2,31 0,00 0,38

dispêndios per capita em atenção à saúde ainda se si- 1989 3,26 2,52 0,38 0,36
tuavam em um patamar baixo, configurando uma situa- 1990 3,19 2,32 0,49 0,38
ção que já virou “palavra de ordem” entre os militantes Fonte: Ipea (1992); Médici (1993).

73
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 17(1) 2003

levando-se em conta que na década de 80 ocorreu uma ção desse processo (Silva, 1992; Levcovitz, 1997; Médici,
melhora de vários indicadores, a velocidade dessa melhora 1999). Entretanto, não foram suficientes para alterar o
não foi suficiente para eliminar a desigualdade entre o dramático perfil de iniqüidades que a política de atenção
Brasil e outros países da América Latina. à saúde apresenta nesse período.
Isso coloca ao analista uma questão mais complexa: o Utilizando a informação disponível de abrangência
problema estratégico do SUS, tanto quanto elevar o pata- nacional, para a década de 80, acerca das taxas de utiliza-
mar do gasto, foi e continua sendo imprimir a esse gasto ção dos serviços de saúde por nível de renda mensal fa-
maior efetividade. Isso só se consegue com o planejamento miliar per capita, Médici (1999) aponta que as famílias
da oferta de serviços induzindo a direção das ações para com renda superior a dois salários mínimos utilizam os
as necessidades prioritárias da população, simultaneamente serviços de saúde numa proporção 60% maior do que as
ao ordenamento do acesso e da utilização dos serviços famílias com renda per capita até ¼ de salário mínimo
através de uma rede corretamente regionalizada, hierar- (Tabela 2). Indica ainda que as más condições de acesso
quizada e resolutiva. e a falta ou pouco apropriada percepção do processo de
Parte significativa da explicação da baixa efetividade saúde – enfermidade, decorrente das falhas nas ações de
do gasto em saúde diz respeito, portanto, à ênfase da po- promoção da saúde e prevenção da doença entre os estra-
lítica de atenção à saúde até o início dos anos 90. Como tos de mais baixa renda – são determinantes fundamen-
já foi apontado, essa ênfase recaiu sobre as ações curati- tais dessa situação.
vas, baseadas na atenção hospitalar com custos crescen- Mais significativo é o fato identificado, ao final dos anos
do de forma exponencial, no interior de uma rede de ser- 80, de que as famílias de renda mais baixa gastaram propor-
viços desarticulada e mal hierarquizada, sem mecanismos cionalmente mais com serviços de saúde do que as com ren-
resolutivos de ordenamento tanto da oferta quanto da de- da mais alta. Isso ocorria por duas razões fundamentais: os
manda de serviços, sem priorizar os serviços de promo- serviços disponíveis, ainda que formalmente gratuitos desde
ção da saúde e prevenção da doença (Médici, 1999; Bar- 1983, como apontado acima, não o eram para 16% das famí-
ros et al., 1996; Banco Mundial, 1993; Silva, 1984 ,1992, lias com renda per capita até ¼ de salário mínimo que de-
entre outros). clararam pagar pelo atendimento recebido,5 as famílias de
Mais do que isso, há fortes diferenciais de acesso por baixa renda têm um gasto com saúde proporcionalmente mais
níveis de renda da população, evidenciando que as famí- alto porque, a despeito de utilizar menos os serviços dadas
lias de menor renda são penalizadas tendo menor possibi- as piores condições de acesso, quando o fazem necessitam
lidade de utilizar a rede de serviços. Problemas de distân- de cuidados relacionados com ocorrências de maior gravi-
cia dos equipamentos de atenção à saúde; falta de recursos dade e risco, portanto mais caras.
para custear as despesas de transporte; exigências de pa-
TABELA 2
gamento de consultas e de medicamentos (o conhecido
Taxas de Utilização dos Serviços de Saúde, segundo Classes
pagamento “por fora”) – ainda que formalmente já vigo- de Renda Mensal Familiar per Capita
rasse, desde 1983, o princípio da gratuidade e da univer- Brasil – 1986
salidade; ausência de acesso a informações que permitis- Em porcentagem
sem às famílias mais pobres entender a necessidade de Classes de Renda
Distribuição da Taxa de Utilização dos
utilizar os equipamentos de saúde disponíveis a partir da Familiar per Capita
População Serviços de Saúde (1)
(em salários mínimos)
ocorrência de determinados sintomas de enfermidade;
foram as causas mais relevantes identificadas a partir de Total (2) 100,0 11,0
pesquisa nacional sobre a temática (PNAD, 1986 – suple- Até ¼ (3) 14,2 8,6
mento saúde). É bem verdade que, desde meados dos anos De ¼ a ½ 19,4 9,3
80, começam a se estruturar iniciativas que procuram
De ½ a 1 25,0 10,7
modificar esse perfil de intervenção. As tentativas de
De 1 a 2 21,5 11,6
mudança concretizadas através do Programa de Interio-
Mais de 2 15,9 13,8
rização das Ações de Saúde e Saneamento (Piass), das
Fonte: PNAD 1986. In: Médici (1999).
Ações Integradas de Saúde (AIS) e mais decisivamente (1) Definida como a relação entre a população que utilizou serviços de saúde e a população
através da implantação do Sistema Unificado e Descen- total em cada classe de renda considerada no mês da pesquisa (setembro de 1986).
(2) Exclui as famílias sem declaração de rendimentos.
tralizado de Saúde (Suds), refletem claramente a evolu- (3) Incluiu 1% de pessoas pertencentes a famílias sem rendimento.

74
SERVIÇOS DE SAÚDE: O DILEMA DO SUS NA NOVA DÉCADA

TABELA 3 larizada entre o atendimento básico e o pronto-socorro/


Taxas de Utilização dos Serviços de Saúde, por Nível de Renda Mensal hospital; aos mais ricos, maior oferta de serviços, mais
Familiar per Capita, segundo Motivos de Procura pelo Serviço
Brasil – 1986
diferenciada em complexidade tecnológica, com ênfase no
atendimento preventivo e ambulatorial”.
Motivos de Procura Até ¼ de Mais de 2 Esse estudo explicita, ainda, um outro aspecto extrema-
pelo Serviço de Saúde Salário Mínimo Salários Mínimos mente importante para a nossa argumentação: observou-se
que a composição do consumo de serviços de saúde entre os
Total 100,0 100,0
grupos de renda distinta está marcada pela utilização efetiva
Doença 85,6 64,5 do consultório particular ou privado na medida em que au-
Acidente ou Lesão 5,1 5,1 menta a renda. Como apontam os autores, é o consultório
Problema Odontológico 2,5 7,3 particular que marca a passagem do mercado de serviços de
Controle ou Prevenção 4,6 18,9 pobres para o dos ricos. Em outras palavras, os ricos têm
Outros Motivos (1) 2,1 4,1 acesso a cuidados de promoção, prevenção e cura de forma
Sem Declaração 0,1 0,1 mais hierarquizada e resolutiva, porque o consultório parti-
Fonte: PNAD 1986. In: Médici (1999). cular funciona adequadamente como porta de entrada do sis-
(1) Incluem obtenção de carteira de saúde, tratamento de reabilitação, psicanálise, etc. tema e unidade de referenciamento para cuidados mais com-
plexos, no setor público ou no setor privado, quando
A Tabela 3 apresenta os motivos que levam as famí- necessário. Esse mecanismo depende de disponibilidade de
lias, estratificadas por nível de renda, a procurar os servi- recursos financeiros ou emprego formal em organizações que
ços de atenção à saúde identificados pela PNAD de 1986. proporcionem alguma forma de cobertura em atenção à saú-
Nota-se também que as famílias de renda maior do que de para seus empregados. Aos pobres, excluídos dessa reali-
2 salários mínimos gastam mais em prevenção, demons- dade, resta o pronto-atendimento hospitalar público, com for-
trando uma percepção sanitária mais adequada e melho- tes restrições de acesso a partir daí, e a farmácia.6
res condições de acesso decorrentes de sua melhor condi- Note-se, entretanto, que quando se conseguiam rom-
ção socioeconômica. Esses fatores são decisivos para que per as barreiras de acesso aos ambulatórios e hospitais pú-
se observem, nesse período, diferenciais significativos de blicos, nesse momento majoritariamente ligados à Previ-
longevidade, decorrentes em última instância de hábitos dência Social ou Hospitais Universitários, o grau de
de vida que demonstram o exercício mais completo de satisfação dos usuários, especialmente os de menor ren-
condições de cidadania e que não são disponíveis para as da, aumentava significativamente. Pesquisa realizada pelo
famílias de renda mais baixa. Para essas se concretizou o Instituto Vox Populi em julho de 1987, entre usuários efe-
“pior dos mundos”: menor acesso aos serviços e à infor- tivos dos serviços do Inamps, mostrou que, à medida que
mação e educação sanitária, associado a piores condições se aprofundava a relação do usuário com o serviço, as
de vida. Isso se reflete com clareza no perfil de morbidade avaliações iam ficando consistentemente positivas. Segun-
e mortalidade que assola essa parcela da população – si- do essa pesquisa: “[...] para 46,6% de aprovação com o
multânea incidência de doenças infecto-contagiosas e de primeiro médico da triagem, passamos para 64,8% das
doenças crônico-degenerativas acompanhadas, no início consultas com especialistas e saltamos para uma aprova-
dos anos 90, das chamadas doenças da sociedade pós- ção de 75,3% nas internações. Quando chegamos às pes-
moderna como a Aids. soas que passaram por eles, que são as que percorreram o
Partindo de informações constantes da amostra da Pes- caminho inteiro de sua relação com os serviços de assis-
quisa Nacional de Saúde e Nutrição (PNSN) também rea- tência médica da previdência social, alcançamos os mais
lizada pela Fundação IBGE, em 1989, Travassos, Fernan- altos índices de aprovação do atendimento, além do pata-
des e Pérez (1989) chegam a conclusões semelhantes: mar dos três quartos” (Vox Populi, 1987).
“Esses resultados mostram grande seletividade social no Ainda que, em saúde, a percepção dos usuários não seja
consumo dos serviços de saúde, com os grupos sociais sempre um indicativo da resolutividade e eficácia do ser-
tendo acesso diferenciado aos vários subsistemas (ou como viço, o que chama a atenção e reforça a argumentação é
chamamos neste trabalho segmentos – PLBS) que opera- que, para o usuário, ter a possibilidade de utilizar o servi-
vam com padrões de qualidade e eficiência marcadamente ço ao longo de toda a rede de atendimento é um ganho
distintos: aos mais pobres, menor oferta de serviços, po- real. E nesse caso valorizando o serviço público.

75
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 17(1) 2003

DEZ ANOS DE IMPLEMENTAÇÃO DO SUS: indiscriminada de pessoas e de empresas dos serviços do


MECANISMOS DE ORDENAMENTO E SUS acontecem cotidianamente. Não é possível aferir sua
CONDIÇÕES DE ACESSO AO FINAL DOS ANOS 90 necessidade ou promover a compensação ao SUS, de co-
bertura ampla e irrestrita teoricamente, dos custos ocorri-
Mais de dez anos após o início do processo de imple- dos para o atendimento de pessoas que se utilizam e pa-
mentação de um sistema único de saúde no Brasil, nota-se gam preferencialmente os outros segmentos.
que a atenção à saúde continua sendo operacionalizada atra- Pesquisa do Ibope,8 realizada em 1998 por encomenda
vés de um sistema segmentado e desarticulado. do Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Saúde
A rede operada através do SUS, comandada pelo setor – Conass e da Fundação Nacional de Saúde – FNS do
público através de um conjunto de normas operacionais Ministério da Saúde, mostra que a cobertura real do SUS
em que se definem formas de financiamento e atribuições pode ser ainda menor do que os estimados 99 milhões de
e competências de cada nível de governo, utilizando-se brasileiros. Essa pesquisa mostra que:
de prestadores públicos e privados de serviço e destina- - 38% da população afirmou utilizar de forma exclusiva
dos a proporcionar, de forma gratuita e universal, cober- os serviços públicos ou com ele conveniados;
tura a toda a população brasileira. Estimativas indicam que - 20% declarou utilizar o SUS de forma freqüente (maioria
o SUS teoricamente estaria atendendo, atualmente, de das vezes), mas não exclusiva;
forma exclusiva, 114,6 milhões de pessoas.7
- 22% declarou utilizar serviços particulares na maioria
Um segmento de medicina supletiva ao SUS (SMS) tem
das vezes, utilizando tanto os serviços públicos (eventuais)
cobertura estimada de 45 milhões de pessoas, operando
como os do segmento supletivo;
através de planos de saúde contratados pelos indivíduos
ou por empresas, em organizações de medicina de grupo, - 15% da população declarou não ser usuária do SUS,
cooperativas médicas, seguradoras do ramo saúde e pla- seja por pertencer ao segmento que utiliza exclusivamen-
nos auto-administrados, nos quais se incluem os empre- te serviços particulares (via seguro-saúde de qualquer es-
gados das empresas estatais e privadas de grande porte. pécie ou via desembolso direto) ou por nunca utilizar ser-
Um segmento de prestadores de serviço que é remune- viço médico de qualquer espécie.
rado através do desembolso direto de seus usuários (SDU) Já existem indicações bastante significativas para mos-
e abrange, teoricamente, a população com mais alto po- trar que os segmentos populacionais de menor nível de
der aquisitivo. renda, menor escolaridade, situados em regiões que con-
A despeito dessa multiplicidade de formas de atendi- centram grupos de grande vulnerabilidade social, como,
mento, estima-se que uma parte ponderável da população, por exemplo, periferias de áreas metropolitanas, municí-
em torno de 10% das pessoas, esteja à margem até do aten- pios médios com atividade industrial decadente ou muni-
dimento prestado pelo SUS. Isso significa que cerca de cípios pequenos de vocação agrícola fora da dinâmica
16 milhões de pessoas estejam sem acesso a nenhum ser- competitiva dos mercados agroindustriais) não se utilizam
viço, podendo-se concluir que, de forma exclusiva, o SUS do SUS por falta de condições de acesso determinadas por
deve cobrir cerca de 99 milhões de brasileiros. motivos diversos (Médici, 2001).
Como é conhecido pelos estudiosos do setor, é difícil Verifica-se também que quanto mais aumentam a es-
apontar com exatidão a magnitude da clientela de cada colaridade e a renda, menor é o grau de utilização intensi-
um desses segmentos, pois não existem barreiras que coí- va do SUS, confirmando que o acesso para as camadas
bam a utilização dos serviços do SUS pelos indivíduos mais pobres é essencial e estratégico.
inseridos no SMS ou que podem ser classificados como Mas o mais interessante é a evidência de uma tendên-
do SDU, dadas a gratuidade e universalidade que regem a cia de utilização dos serviços do SUS por camadas com
operação deste último. Note-se que a situação inversa não alta escolaridade e maior poder aquisitivo: mais de 50%
é verdadeira pois a condição socioeconômica continua daqueles que têm escolaridade superior e mais de 60%
sendo uma barreira intransponível para aqueles que, es- das que recebem rendimentos superiores a 10 salários mí-
tando no SUS, queiram utilizar os serviços dos outros seg- nimos.
mentos. Mais do que isso, como para determinados pro- Isso pode indicar duas situações. Na primeira, em de-
cedimentos os prestadores de serviço realizam atendimento corrência de uma estrutura de atenção segmentada, não-
para o SUS e para o SMS, estratégias de utilização hierarquizada, com má-distribuição regional e pouco

76
SERVIÇOS DE SAÚDE: O DILEMA DO SUS NA NOVA DÉCADA

resolutiva, ocorreria que uma parte significativa das pes- Em qualquer dos casos, fica evidente que há um des-
soas com maior poder aquisitivo, maior escolaridade e, perdício de recursos, acompanhado por barreiras concre-
portanto, maiores chances de pertencer ao mercado for- tas de acesso, que permitem a utilização de estratégias
mal de trabalho em postos de qualidade, tenha acesso a oportunistas ou “desesperadas” por parte da população e
esquemas de seguro-saúde e simultaneamente se utilize decorrem do que se pode chamar uma segmentação per-
do sistema SUS. Isso caracterizaria uma ação oportunista missiva e incestuosa das redes de atendimento determi-
por parte dos usuários, legal é verdade, dadas as brechas nada pela falta de ordenamento, multiplicidade de cober-
permitidas pelo sistema que beneficiariam os segmentos turas, baixa resolutividade e falta de planejamento,
mais protegidos por sua melhor condição socioeconômica coordenação e regulação da atenção à saúde no Brasil.
e buscariam no SUS o cuidado de mais alto custo e maior Daí resultam várias distorções no campo do financia-
complexidade. Em decorrência, estariam consumindo parte mento, do gasto público e privado e, finalmente, na utili-
dos recursos que poderiam estar sendo mais bem utiliza- zação dos serviços, que serão examinadas nas seções se-
dos se o sistema fosse corretamente regulado e ordenado guintes deste trabalho.
do ponto de vista do acesso, para minimizar esse compor-
tamento oportunista verificado. FINANCIAMENTO E GASTO DO SUS
Os dados acerca da evolução da clientela e do fatu-
ramento do segmento de medicina supletiva no Brasil, nos A implantação do SUS enfrenta, nesse campo, obstá-
dez anos de existência do SUS, mostram uma dinâmica e culos complexos, o que vem determinando a polarização
um volume de recursos envolvidos impressionantes, que de posições no debate político institucional em torno da
podem ser vistos na Tabela 4. questão da suficiência ou insuficiência de recursos para
Na segunda situação, em decorrência da desestru- sustentar uma política eficaz de intervenção.
turação do mercado de trabalho e do desemprego, seg- A primeira observação importante a ser feita é que fo-
mentos de maior renda estariam utilizando mais o SUS ram significativamente modificadas as fontes de financia-
em decorrência da perda do poder aquisitivo e da pos- mento. A despeito das flutuações e da turbulência finan-
sibilidade que o acesso universal e gratuito dá a esses ceira que o setor atravessa, como mostra o Gráfico 1 que
segmentos de obter ou um rebaixamento de seus custos retrata 18 anos de evolução do gasto federal com saúde e
privados com atenção à saúde ou não mais realizá-los. a sua expressão per capita, nota-se a partir de 1993 uma
Note-se que a mesma pesquisa Ibope mostra que quan- tendência de crescimento contínuo.9
do perguntado sobre os três maiores problemas que o
entrevistado e sua família vinham enfrentando, 48%
indicou o desemprego, 37%, o nível salarial e 37%, a GRÁFICO 1
saúde (respostas múltiplas). Evolução do Gasto Federal com Saúde e do Gasto per Capita com Saúde
Brasil – 1980-98

TABELA 4
Clientela e Faturamento do Setor de Medicina Supletiva
Brasil – 1989-1998

Número de Usuários Faturamento Gastos per Capita


Anos
(em milhões) (em US$ bilhões) (em US$)

1989 31,1 2,4 77,70


1991 28,5 4,1 146,30
1993 34,4 6,4 187,80
1995 37,5 9,9 264,00
1996 39,2 12,3 313,57
1997 41,0 15,3 373,50
1998 45,0 16,0 357,77
Fonte: Mendes (1998). Fonte: Médici, 1999.

77
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 17(1) 2003

Em 1995, contabilizando-se o gasto realizado nas três serviços. As unidades mais pobres do Norte e do Nordes-
esferas de governo, chega-se a um gasto total de quase 25 te recebem menos recursos por habitante do que o Sul/
bilhões de dólares, um aumento significativo quando com- Sudeste, onde a base econômica garante maior capacida-
parado aos cerca de 14 bilhões de dólares alcançados em de de geração de recursos fiscais próprios.
1989. - As aplicações de Estados e municípios atingem cerca
Estudo detalhado realizado por Biasoto et al. (1998) de 15% de sua receita disponível, mas em termos per capita
sobre o gasto público em saúde no Brasil em 1995 chega existe uma profunda disparidade entre regiões pobres e
às seguintes conclusões: “Nos últimos anos, as discussões ricas. O gasto subnacional por habitante é de R$ 106 no
em torno das questões do gasto público em saúde no Bra- Sul/Sudeste contra apenas R$ 60 no Norte/Nordeste.
sil têm se concentrado no financiamento. O cenário de in-
- É indiscutível o avanço da municipalização no país.
certeza, quanto às fontes de recursos, que se repete a cada
Entretanto, ela vem ocorrendo de forma desigual, graças
ano, vem impedindo um exame mais detalhado da quali-
às disparidades de renda entre os municípios e também
dade das ações de governo, contribuindo para o empo-
ao esquema de transferências do SUS, que não apresenta
brecimento do debate. A análise, em caráter preliminar,
qualquer função de redistribuir recursos às unidades mais
das características do financiamento e do dispêndio go-
pobres. Cerca de 79% do gasto municipal em saúde e sa-
vernamental com a função, no Brasil, permite reunir as
neamento se concentra no Sul/Sudeste, onde reside 57%
seguintes conclusões:
da população.
- O patamar do gasto no Brasil já é bastante elevado, da
ordem de 3,5% do PIB. O gasto por habitante/ano, de - Em termos médios, os municípios das regiões mais de-
R$ 146 em 1995, já alcança o volume considerado pa- senvolvidas respondem por quase dois terços dos gastos
subnacionais em saúde e saneamento, contra apenas 40%
drão por especialistas do setor.
no Norte/Nordeste/Centro-Oeste. Destaca-se o avanço da
- Gasto de Estados e municípios já supera o da União. A municipalização nos Estados do Rio de Janeiro, São Pau-
aplicação de recursos próprios/não vinculados aos repasses lo, Paraná e Rio Grande do Sul.
do Ministério da Saúde, da ordem de R$ 10,4 bilhões anuais,
- Quanto ao gasto estadual, há grande variância até mes-
é uma demonstração inequívoca do comprometimento de pre-
mo entre Estados da mesma região. Os governos estaduais
feitos e governadores com as ações de saúde.
financiam a maior parte dos gastos nos Estados do Acre,
- As aplicações são tipicamente de custeio. As despesas de Roraima, Amapá, Tocantins, Piauí, Sergipe e Bahia.
“Pessoal”, adicionadas a “Outras Correntes” concentram
- A divisão das despesas por categoria econômica e pro-
cerca de 82% do orçamento nacional, ou R$ 21 bilhões. Os
grama de trabalho, pelos governos estaduais das várias uni-
gastos em investimento são, ao contrário, muito baixos. Do
dades da federação, tende a concentrar-se no custeio em geral
valor total investido em 1995, de R$ 446 milhões, cerca de
e na assistência médica, respectivamente. Entretanto, os
72% se concentra nos municípios, que vêm ampliando sua
dados apontaram algumas distorções nas aplicações admi-
responsabilidade com a gestão da função saúde.
nistrativas, especialmente nas unidades do Norte, Centro-
- Quanto aos programas de trabalho, destaca-se a rubrica Oeste e no Rio de Janeiro. Os investimentos apresentaram
“Assistência Médica e Sanitária”, na qual se registram os patamar bastante baixo, como era de se esperar, diante da
gastos na operação do sistema, com R$ 18,3 bilhões ou crise dos Estados e do avanço da municipalização”.
74% do total. Estados e municípios praticamente não par-
O Ipea, na sua avaliação dos “Gastos Sociais das três es-
ticipam das ações de prevenção, concentradas na União.
feras de governo, 1995” (Fernandes et al., 1998), também
- Do valor total transferido pelo SUS em 1995, destaca-se a chegou a resultados bastante similares ainda que com uma
participação dos prestadores privados conveniados, que já metodologia distinta de consolidação das informações.10
equivale ao somatório dos repasses às unidades próprias de
Estados e municípios. A rede privada predomina em quase DISTRIBUIÇÃO REGIONAL DO GASTO PÚBLICO
todo o país, salvo em alguns Estados da Região Norte, onde PER CAPITA COM ATENÇÃO À SAÚDE
a baixa renda e a densidade populacional ainda não garan-
tem retorno para a atividade privada. A falta de eqüidade na alocação do gasto público, já
- As transferências do SUS têm um caráter regressivo, citada, fica ainda mais evidente quando se compara o dis-
função dos critérios de repasse baseados na produção de pêndio setorial per capita em saúde de cada uma das três

78
SERVIÇOS DE SAÚDE: O DILEMA DO SUS NA NOVA DÉCADA

TABELA 5 riores, chega-se a 7% do PIB com atenção à saúde e a um


Gasto Público per Capita em Saúde, por Instância gasto per capita de US$ 321,5 aproximadamente. Conse-
de Governo, segundo Região
qüentemente, trata-se de um esforço de inversão bastante
Brasil – 1995
Em R$1,00 corrente significativo, ainda que mal direcionado, no que diz res-
Região União Estados Municípios Total
peito ao mix público/privado e gerenciado a partir de pro-
cessos de hierarquização, regionalização e ordenamento
Total 87,9 28,8 22,9 139,6 da oferta de serviços com muitas brechas e falhas, pro-
Norte 61,0 29,7 4,7 95,5 porcionando um esforço pouco efetivo. A correlação des-
Nordeste 56,2 17,5 12,3 85,9 se gasto com indicadores de resultado em saúde mostra
Sudeste 78,8 39,0 35,3 153,1 que nossa situação sanitária e assistencial não é compatí-
Sul 77,4 10,7 24,2 112,3
vel com o esforço realizado na alocação de recursos.
Centro-Oeste 80,8 52,6 4,8 138,1
DESIGUALDADES NO ACESSO AOS SERVIÇOS
Fonte: Fundação IBGE/DECNA. Elaboração: Ipea/Dipos. In: NEPP (1999).
Nota: A média nacional é mais alta que as médias regionais por conter recursos não
regionalizáveis.
As informações disponíveis permitem apontar alguns
progressos no campo do acesso, ainda que continuem sen-
do verificadas, no Brasil, fortes disparidades na utiliza-
instâncias de governo nas regiões brasileiras. Sabe-se que ção de serviços, tanto entre regiões quanto entre segmen-
o gasto público é muito desigual entre as diferentes re- tos sociais. Tomando-se um novo estudo de Travassos et
giões e Estados, mas não é tão evidente, e as desigualda- al. (1998) verifica-se que:11 houve uma diminuição nos
des se devem mais às diferenças nos aportes dos Estados diferenciais de utilização entre as Regiões Nordeste e
e municípios: o dispêndio público total per capita varia Sudeste e, na primeira, as melhorias relativas foram mais
entre R$ 153,10 no Sudeste e R$ 85,90 no Nordeste, ou acentuadas. Os dados da PNSN mostraram uma maior taxa
seja, uma diferença de R$ 67,20, enquanto a variação do de utilização de serviços de saúde para os habitantes da
aporte federal para estas regiões é de apenas R$ 21,60. Região Sudeste (19,49 por 100 habitantes) e menor para
Tal informação, ao demonstrar que a maior parte da desi- os habitantes da Região Nordeste (13,01 por 100 habitan-
gualdade é explicada pelas diferenças nos aportes de re- tes). A PPV, quase uma década depois, mostrou que as
cursos próprios de Estados e municípios (Tabela 5), acen- diferenças nas taxas de utilização entre Sudeste e Nordeste
tua ainda mais o papel estratégico que a União terá de deixam de ser estatisticamente significativas, passando de
assumir para introduzir mecanismos de incentivo ao cor- 15,29 por 100 habitantes no Sudeste para 14,06 por 100
reto ordenamento da oferta de serviços para melhorar as habitantes no Nordeste.
condições de acesso. As taxas de utilização recalculadas para os grupos com
Isso porque, por maior que seja o esforço redistributivo e sem morbidade, de forma separada, mostraram diferen-
isolado da União, será mantido um certo grau de desigual- ças significativas e desfavoráveis ao Nordeste. Em 1989,
dade na alocação de recursos públicos para a saúde, parte a taxa de utilização para a população com restrição de
em decorrência das diferentes capacidades de arrecada- atividades foi de 46,39 por 100 habitantes no Nordeste e
ção dos Estados e municípios das diferentes regiões bra- de 66,02 por 100 habitantes no Sudeste. Já em 1996/97
sileiras, e parte pela falta de incentivos para que as esfe- essas taxas passaram a ser de 59,57 por 100 habitantes e
ras subnacionais, autonomamente, alterem suas prioridades de 69,54 por 100 habitantes, respectivamente, para o Nor-
de inversão. deste e para o Sudeste. Comparando a razão entre as ta-
A necessidade desse papel de coordenação e de indução xas de utilização para a população com restrição, verifi-
do MS fica mais clara quando se tomam as estimativas do cou-se uma diminuição de 17,6% (1,42 em 1989 para 1,17
gasto total no setor. As estimativas disponíveis, incluin- em 1996/97), o que mostra uma diminuição na desigual-
do-se o gasto privado no segmento supletivo e no de de- dade de acesso aos serviços de saúde entre as duas regiões.
sembolso direto, indicam cifras expressivas. Utilizando- Dentro de cada região, analisando-se a taxa de utilização
se a estimativa apresentada por Médici (1999) a partir de da população com restrição, verifica-se que a melhoria foi
estudo de Mendes (1998) para o gasto privado, que con- proporcionalmente maior na Região Nordeste (aumento
tém informações relativamente compatíveis com as ante- de 28%), do que na Sudeste (aumento de 5,3%).

79
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 17(1) 2003

QUADRO 1
Principais Desafios, Problemas, Soluções e Estratégias de Implementação Utilizadas na Reforma de Saúde
Brasil, a partir de 1996

Medidas Medidas em
Desafio Problema Solução
Implementadas Implementação

Cobertura 10% da população brasileira Priorizar a atenção básica à saúde Plano de Assistência Básica Estudos específicos para
(os mais pobres). de acordo com o perfil (PAB); Farmácia Básica do SUS melhorar os critérios de
epidemiológico dos mais pobres. (PAF); Programa de Combate às focalização, distribuição dos
Os grupos mais ricos, que têm Carências Nutricionais (PCCN); recursos e definição de ações
planos de saúde, utilizam os Iniciar experiências de Programa Ampliado de prioritárias nestes programas.
serviços do SUS sem recuperar ressarcimento dos usuários do Imunizações (PAI) e Programa
custos. SUS e cobranças dos que têm de Atenção à Saúde da Mulher Iniciar a experiência de
recursos para pagar. (PAISM). Aprovação pelo recuperação de custos e
Conselho Nacional de Medicina estendê-la a outras atividades.
Supletiva (Consu) de resolução
para recuperar custos dos
serviços do SUS utilizados por
beneficiários de planos privados
de saúde.

Financiamento Instabilidade das fontes de Definir fontes exclusivas de Aprovação da CPMF como fonte Estudos que permitam definir
financiamento. recursos para o setor, bem como o exclusiva de recursos para o um novo modelo de financia-
comprometimento de maiores setor. mento do sistema. Estudos que
Ineficiência no uso dos recursos. parcelas dos orçamentos dos permitam definir os itens que
Estados e municípios. Priorizar a Aprovação do PAB. deverão compor o PAB, de
atenção básica de acordo com o acordo com as prioridades
perfil epidemiológico. dadas pela carga de enfermida-
de. Implantação do
“Cartão SUS”.

Eqüidade Assimetria de informação entre Incentivar o uso de estratégias que Implementação progressiva dos
usuários ricos e pobres. busquem ativamente a proteção programas de Agentes
dos usuários mais pobres. Comunitários de Saúde (PACS)
Deseconomias de aglomeração, Priorizar a oferta pública para os e Saúde da Família (PSF).
beneficiando os mais ricos. mais pobres nos bairros mais Ampliação da Oferta de Serviços
distantes. nas regiões mais carentes –
implantação do PACS e do PSF.

Seleção adversa, segundo o valor Incentivar melhor remuneração Implantação do PAB. Definição do valor dos
do procedimento, beneficiando a para os serviços de maior custo procedimentos incentivados
alta complexidade. efetivo. pelo PAB, no nível dos Estados
e municípios.
Sistemas regidos pela oferta Estabelecer sistemas de
beneficiam os que têm mais capacitação com subsídios de Recuperação dos custos
informação. demanda diferenciados por para o SUS dos usuários dos
capacidade de pagamento. planos privados de saúde.

Descentralização Transferências negociadas Usar transferências automáticas, Implantação do PAB, Transferências automáticas de
beneficiam os municípios com em bases per capita. PAF e PCCN. recursos para o PAF e o PCCN.
melhor capacidade de oferta de
serviços. Flexibilizar o uso de diferentes Implantação dos mecanismos de
Rigidez do modelo impede mecanismos de gestão e torná-los controle e avaliação da gestão
soluções mais adequadas no independentes dos recursos municipal do PAB.
nível local. transferidos.

(Continua)

80
SERVIÇOS DE SAÚDE: O DILEMA DO SUS NA NOVA DÉCADA

QUADRO 1
Principais Desafios, Problemas, Soluções e Estratégias de Implementação Utilizadas na Reforma de Saúde
Brasil, a partir de 1996

Medidas Medidas em
Desafio Problema Solução
Implementadas Implementação

Gestão Estabelecimentos de saúde Implementar um processo de Existem algumas experiências


prestam serviços de baixa acreditação e licenciamento dos estaduais que vêm sendo
qualidade. estabelecimentos de saúde. observadas pelo Ministério da
Saúde, como as do Rio Grande
Insuficiente capacidade técnica Implantação de processos de do Sul, São Paulo e Rio
dos Recursos Humanos. certificação e recertificação de Janeiro.
periódica de profissionais de
Fraudes propiciam forte nível superior.
desperdício dos recursos gastos
em assistência médica. Capacitação de profissionais de O PACS e o PCF têm programas O programa de formação do
nível médio nos hospitais e postos especiais de capacitação de auxiliar de enfermagem
Falta de autonomia de gestão das de saúde. Fim do Sistema de AIH profissionais de saúde nos (Profae) vai desenvolver
unidades de saúde. no âmbito federal. Estados e municípios. programas específicos.

Criação de mecanismos de O PAB inicia o processo.


controle e avaliação nos Estados
e municípios. Existem algumas experiências
de contratos de gestão e
Tornar independente a gestão dos organizações sociais em
estabelecimentos públicos de estabelecimentos públicos
saúde. de saúde.

Falta de regulamentação do setor. Estabelecimento de regras para a No início de 1998 foi aprovada a O Ministério da Saúde está
regulação dos planos privados de Lei de Regulamentação dos preparando, através do
saúde. Planos provados de saúde, Departamento de Medicina
criando o Conselho de Medicina Supletiva, a legislação
Regulação dos processos de Supletiva (Consu). complementar para a
gestão do SUS nos Estados e implementação das medidas
municípios. O PAB inicia o processo. de regulação dos planos
privados de saúde.
Fonte: Médici, 1999. (Conclusão)

A taxa de utilização das pessoas sem restrição de ativi- As oportunidades de acesso aos serviços para os indi-
dades também mostra diferenças desfavoráveis ao Nor- víduos mais pobres diminuem nas duas regiões. Utilizan-
deste, embora menos significativas. A análise dos dados do-se a renda como proxy das condições sociais, verifi-
da PNSN, ao final dos 80, mostra uma taxa de utilização cam-se as piores oportunidades de utilização de serviços
de 10,23 por 100 habitantes no Nordeste e de 14,55 por por parte de indivíduos pertencentes ao primeiro tercil de
100 habitantes no Sudeste. Já as informações da PPV, renda em relação aos indivíduos situados no terceiro tercil.
quase dez anos depois, indicam que as taxas baixaram para No Nordeste, em 1989, a oportunidade de acesso era 52%
9,04 por 100 habitantes no Nordeste e para 11,32 por 100 menor para o primeiro tercil. Oito anos mais tarde esse
habitantes no Sudeste. A razão de utilização entre Sudes- diferencial baixou para 37%. No Sudeste, as oportunida-
te e Nordeste, por sua vez, baixou de 1,42 para 1,25 no des do primeiro tercil na utilização de serviços de saúde
período 1989-1996/97. Isso implicou uma queda de qua- eram 40% e 35% menores do que dos indivíduos do ter-
se 12%, ainda que nas duas regiões as taxas de utilização ceiro tercil, respectivamente, em 1989 e 1996/97. Note-
para as pessoas sem restrição de atividades tenham dimi- se que no Nordeste, ainda assim, houve uma melhoria no
nuído em algum período. acesso da população de menor renda.

81
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 17(1) 2003

No que diz respeito à utilização de serviços, propria- cresce: 47,2% dos indivíduos no estrato de mais baixa
mente dita, o estudo mostra que: renda buscaram algum tipo de atendimento médico, per-
- há maior participação relativa da utilização de postos centual que se eleva para 68,9% entre os indivíduos do
e centros de saúde no Nordeste, em relação à maior par- último quintil de renda.
ticipação de clínicas e consultórios privados na Região A procura por atendimento derivada de outro motivo,12
Sudeste; exceto doença crônica, também é maior entre os indiví-
- há aumento expressivo de hospitais como locus de con- duos mais ricos: 13,5% dos indivíduos de maior renda
sumo de serviços de saúde nas duas regiões, particular- procuraram atendimento, enquanto entre os mais pobres
mente no Nordeste; o percentual encontrado foi de 7%. É relevante notar que
- as pessoas de maior renda utilizam mais consultórios entre os motivos da procura, a realização de check-up,
particulares e clínicas, enquanto as de menor renda, prin- portanto uma atividade típica de prevenção, corresponde
cipalmente postos e centros de saúde; a 28,5% entre os mais ricos e a apenas 13,9% entre os
mais pobres.
- em ambas as regiões, os indivíduos de renda mais alta
utilizam proporcionalmente mais serviços ambulatoriais,
MEDIDAS GOVERNAMENTAIS RECENTES:
enquanto os serviços hospitalares tendem a aumentar com
UMA VISÃO SINTÉTICA
a diminuição da renda.
Estudo de Campino et al. (1998), também analisado por As questões indicadas nos itens anteriores, que exami-
Piola em NEPP (1999), utilizando os dados da PPV, for- nam diferentes aspectos da realidade do atendimento à
nece outras informações importantes sobre a utilização e saúde no Brasil após uma década de implantação do SUS,
a demanda por serviços, segundo pessoas em diferentes mostram que é preciso avançar na implementação de alte-
estratos de renda. rações estruturais nas formas de organização, gestão,
Com relação à percepção do estado de saúde, cerca de regulação, controle e avaliação da oferta de serviços. Al-
81% da população avalia seu estado de saúde como exce- gumas medidas já estão sendo tomadas e vários desafios
lente, muito bom ou bom. A percepção positiva é mais sendo enfrentados, sem que entretanto possa se visualizar
forte quanto maior o nível de renda, pois no primeiro quintil uma agenda completa e consistente de intervenção do Po-
76,2% dos indivíduos possuem essa auto-avaliação, en- der Público. As medidas governamentais recentes foram
quanto no último ela atinge 87,5%. sintetizadas em Médici (1999) e são reproduzidas no qua-
Curiosamente, a existência de problemas crônicos de dro a seguir. Note-se que as medidas em estágios diferen-
saúde (15,4% no total da população) não apresenta gran- ciados de implementação e com resultados ainda pouco
de variação entre os estratos de renda: 12,30% no primei- avaliados, dado o caráter recente da maioria delas, apro-
ro e 15,4% no último quintil. ximam-se dos dois eixos principais de mudança já identi-
As diferenças começam a se tornar mais evidentes quan- ficados na análise da literatura internacional realizada na
do a pesquisa verifica a utilização de acompanhamento primeira seção deste trabalho. Em outras palavras, no plano
médico: enquanto 54,7% dos indivíduos mais pobres têm mais geral, a reforma brasileira busca focalizar as ques-
acompanhamento médico em decorrência de problema tões do financiamento no nível macro e da gestão tanto
crônico de saúde, no estrato mais alto 82,9% dos indiví- no nível macro quanto microorganizacional.
duos declaram ter acesso a esse tipo de serviço. Alguns problemas estruturais persistem. Dentre eles se
Nota-se, entretanto, que o local onde é realizado esse destacam:
acompanhamento é predominantemente a rede pública, - ausência de um sistema de planejamento e controle da
para todos os estratos de renda, com exceção do último. oferta de serviços eficaz e que proporcione informações
Os mais ricos também fazem exames periódicos com estratégicas de apoio à decisão alocativa no nível central,
maior freqüência: a realização de exames periódicos em regional e inter-regional;
decorrência do problema crônico de saúde é progressiva- - falta de mecanismos institucionais eficazes para a cria-
mente maior, conforme o estrato de renda: 60,9% dos in- ção e sustentação de bases consensuais mínimas para im-
divíduos do primeiro quintil e 82,5% do último. pulsionar um processo renovado de contratualização en-
A procura por atendimento médico nos últimos 30 dias tre provedores, financiadores e reguladores (inexistência
também é progressivamente maior à medida que a renda de relações de confiança);

82
SERVIÇOS DE SAÚDE: O DILEMA DO SUS NA NOVA DÉCADA

- forte tendência de veto à contratualização por parte dos de meados dos anos 80 vide Ham (1998). Esta introdução baseia-se
numa livre interpretação de várias idéias contidas nesse livro.
atores sociais que devem ser protagonistas das mudanças;
2. Artigo 196, constante do Capítulo da Saúde da Constituição Fede-
- dificuldades para o estabelecimento de um “pagador ral da República Federativa do Brasil.
único” e de formas de participação mais eqüitativas no 3. Sobre as características da política de atenção à saúde no Brasil, até
financiamento do sistema (universalidade versus gratui- os anos 80, vide entre outros Braga e Góes de Paula (1981), Oliveira e
Fleury (1985), Silva (1984) e Médici (1999).
dade);
4. Trata-se aqui das clínicas e hospitais privados, muitas vezes vol-
- problemas nas relações entre níveis de governo: tados, originalmente, ao atendimento de determinados grupos étni-
cos – judeus, sírio-libaneses, alemães, espanhóis, etc. –, mas que
indefinição do papel da esfera estadual; dificuldades nas constituem hoje a rede hospitalar privada mais complexa (os hos-
relações horizontais no nível municipal. pitais de cinco estrelas) atendendo outros clientes privados (pessoas
físicas ou jurídicas) e seguros médicos de mais alto padrão, dada a
sua excelência e mantendo na maioria das vezes um atendimento
gratuito, como parte da manutenção de sua condição jurídica de
DILEMAS E PERSPECTIVAS DO SUS entidades filantrópicas. Isso possibilita vantagens fiscais e tributá-
rias significativas, entre outras.
A despeito da complexidade dos problemas de ordena- 5. Médici (1999) analisando os dados da PNAD 1986, comenta que o
mento e acesso, tal como demonstrado anteriormente neste pagamento também se verificou nas famílias de maior renda, embora
por razões diametralmente opostas: neste caso as razões declaradas
artigo, é possível identificar elementos propulsores à foram a baixa qualidade dos serviços públicos e conseqüentemente uma
implementação de alterações para superar os obstáculos maior preferência pelos serviços oferecidos pelo segmento privado au-
tônomo.
identificados. Entre outros, cabe lembrar: o perfil do pro-
6. No caso da farmácia, os autores alertam que os dados indicam ser
cesso de descentralização, em curso, é favorável em grande esse um padrão comum a todas as classes de renda, indicando que a
parte de seus aspectos; existem recursos para investimen- automedicação ou a medicação realizada pelo balconista do estabele-
cimento era corrente e disseminada no Brasil. Para fins da argumenta-
to que, se utilizados como vetores de reorientação da oferta ção deste artigo, sugere-se que para os segmentos mais pobres essa era
via Reforsus, auxiliaram na obtenção de maior eficácia e continua sendo muitas vezes a única alternativa e por isso a alterna-
tiva preferencial, o que não é verdade para os segmentos de renda mais
da rede de serviços; formas de organização da adminis- alta.
tração pública brasileira, principalmente pós-Plano Dire- 7. Este número foi obtido subtraindo-se do total da população brasi-
tor da Reforma Administrativa e no âmbito de um novo leira as pessoas atendidas pelo setor de medicina supletiva.
governo com perfil desenvolvimentista, podem garantir a 8. A pesquisa foi de caráter nacional, realizada no período de 12 a 17
flexibilidade e autonomia necessárias para o funcionamen- de fevereiro de 1998, tendo como universo a população de idade igual
ou superior a 16 anos. Foram realizadas 2 mil entrevistas pessoais do-
to das redes prestadoras de serviço, permitindo maior con- miciliares, selecionadas a partir de amostra elaborada por cotas pro-
trole da oferta; formato dos mecanismos de financiamen- porcionais: sexo, idade, atividade e localização geográfica. Essa amostra
representa cerca de 106 milhões de habitantes adultos e 40 milhões de
to setorial pode tornar-se proativo, por exemplo, através domicílios.
da adoção de vinculações institucionais associadas ao 9. Não cabe, no âmbito deste trabalho, analisar as modificações no
estabelecimento de pisos básicos em todos os níveis de processo de financiamento setorial e que determinaram as flutuações
e a turbulência acima apontadas, especialmente quando a diversifica-
atendimento, auxiliando uma sistemática de contra- ção prevista em 1988 não foi suficiente para, dada a crise financeira
tualização que efetivamente seja aderente às necessida- da Previdência Social, evitar o desfinanciamento quase completo da
des e prioridades diferenciadas de atendimento, hierar- política, corrigida de forma provisória posteriormente. Esse fato de-
terminou uma forte deterioração das relações entre prestadores e
quizadas por ações de planejamento, avaliação e controle; financiadores e a alteração do perfil e da forma de funcionamento do
reestruturação, em curso, da Atenção Primária abre boas setor privado e do próprio setor público na área hospitalar. Maiores
detalhes em Médici (1999), Barros, Piola e Vianna (1996), entre ou-
possibilidades para o estabelecimento de uma porta de tros.
entrada mais resolutiva e eficaz; já existem várias inova- 10. Para uma discussão detalhada acerca das diferenças metodológicas
ções organizacionais e gerenciais em andamento e coe- entre esses dois estudos vide o trabalho de Sérgio Piola em NEPP
rentes com uma mecânica de contratualização que vise (1999).
aumentar os níveis de acesso, cobertura e ordenamento 11. Esse trabalho analisa as desigualdades geográficas e sociais na utili-
zação dos serviços de saúde no Brasil com base nos dados da Pesquisa
das ações e serviços. Nacional de Saúde e Nutrição (PNSN), realizada em 1989 e da Pesquisa
sobre Padrões de Vida (PPV), de 1996/97, ambas realizadas pela Funda-
ção Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). As duas pes-
quisas têm abrangência desigual: a PNSN incorporou as cinco regiões
NOTAS geográficas do país enquanto a PPV cobriu somente as Regiões Nordeste
e Sudeste. A comparação, a despeito das limitações decorrentes dessas
1. Para uma competente e sintética revisão das lições internacionais diferenças, é relevante para os propósitos deste trabalho. Nesse estudo, os
acerca dos experimentos nacionais de reforma setorial, em curso des- autores analisam as variações nas taxas de utilização dos serviços de saú-

83
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 17(1) 2003

de, padronizadas por idade e sexo, calculando-se as taxas gerais e para os LONDOÑO, J.L.; FRENK, J. Pluralismo estructurado: Hacia un mo-
grupos com e sem morbidade. Considerou-se grupo sem morbidade aque- delo innovador para la reforma de los sistemas de salud en Améri-
le em que não existe referência a qualquer restrição de atividades em de- ca Latina. Washington, D.C.: BID, 1997. (Serie de Documentos
corrência dessa particular situação. de Trabajo, 353).
12. Foram pesquisados os seguintes motivos, nessa categoria: aciden- MAXWELL, R.J. Financing health care: lessons from abroad. British
te ou lesão, problema odontológico, check-up, parto, obtenção de ates- Medical Journal, n.296, p.1.423-1.426, 1988.
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SÃO
ÃO PAULO EM PERSPECTIVA
AULO EM ERSPECTIVA, 17(1): 86-97, 2003
17(1) 2003

REDE DE SAÚDE DO TRABALHADOR


PARA O ESTADO DE SÃO PAULO

KOSHIRO OTANI

Resumo: O artigo reúne documentos do Ministério da Saúde e contribuições dos membros da Comissão Intra-
Setorial de Saúde do Trabalhador, criada para integrar e harmonizar o trabalho dos diversos setores da Secre-
taria de Estado da Saúde de São Paulo que lidam com a questão saúde e trabalho. Esta comissão elaborou o
Plano de Ações de Saúde do Trabalhador para o Estado de São Paulo (triênio 2002-2003-2004) que estabele-
ceu, como principal prioridade, a concepção de um modelo para a área de saúde do trabalhador sob a perspec-
tiva de rede de referências técnicas em assistência, vigilância e formação/capacitação.
Palavras-chave: saúde e trabalho; saúde e setor público; ações de saúde.

Abstract: This article considers various Ministry of Health documents and contributions by members of the
Intra-Sectorial Commission on Workers’ Health, created to integrate and harmonize the work of various sectors
of the São Paulo State Secretariat of Workers’ Health to address the issue of health and labor. This commission
developed the Action Plan for Workers’ Health for the State of São Paulo (for the years 2002-2003-2004),
which set as its top priority the creation of a model for workers’ health that envisioned a network of technical
references for treatment, prevention, and training.
Key words: health and labor; health and the public sector; health initiatives.

A
Atenção Primária à Saúde (APS) constitui-se veis e disponíveis. A APS deve ser consoante às condi-
na forma de organização de serviços de saúde ções socioeconômicas e culturais de cada Estado, de cada
que vem obtendo consenso mundial como a região e de cada centro urbano, e deve ter grau de com-
solução para os diferentes problemas de saúde de dife- plexidade compatível com o grau de desenvolvimento
rentes países. econômico e efetiva demanda social.
Na década de 80, a Organização Mundial da Saúde sob Nesse processo, a saúde do trabalhador no Sistema
o lema de “Saúde para Todos no Ano 2000” insistia na Único de Saúde (SUS) que, embora amparada por abun-
necessidade de uma organização de serviços primários em dante jurisprudência, continua ineficiente, diante da inca-
todos os países, e no Brasil várias propostas tomaram for- pacidade operacional dos setores que o compõem em ra-
ma desde o Prev-Saúde e mais recentemente a do Progra- zão de problemas de ordem estrutural e conjuntural na
ma de Saúde da Família (PSF). construção da área de saúde do trabalhador no SUS1 como:
Naqueles idos, o campo da APS permanecia indefini- - ausência de uma cultura institucional sanitária em face
do, com atribuições e limites imprecisos, estando claro dos problemas decorrentes da relação saúde e trabalho;
apenas que devia preocupar-se com os “principais proble- - a face intensamente ideologizada da área, que implica
mas de saúde da comunidade”, prestando serviços de “pro-
resistências de caráter político-partidário nos diversos
moção, prevenção, tratamento e reabilitação, necessários
níveis de gestão;
para resolver estes problemas” (Declaração de Alma-Ata,
aprovada pela 32a Assembléia Mundial de Saúde e 34a - a dificuldade implicada na visualização da inserção
Assembléia das Nações Unidas). institucional da área;
De lá pra cá, a definição do campo da APS no Brasil - caráter inovador da área confrontado à própria aborda-
passou por um período de reflexão importante em que se gem do setor saúde, em relação a estruturas cristalizadas
discutiu a ordem de prioridade dos diferentes problemas como Vigilância Epidemiológica, Vigilância Sanitária e
de saúde do país, bem como o volume de recursos possí- setores assistenciais;

86
REDE DE SAÚDE DO TRABALHADOR PARA O ESTADO DE SÃO PAULO

- a alta complexidade da abordagem, tanto no aspecto cimento predominantemente no setor terciário, o de pres-
normativo quanto operacional; tação de serviços. Observa-se, também, na Tabela 3 um
- a deficiência quantitativa e a baixa qualificação dos crescimento de trabalhadores não-contribuintes. Eles re-
quadros generalistas do SUS. presentam quase 40% da PEA.
A Tabela 4 exibe a ocupação das pessoas de 10 anos ou
mais de idade, segundo os ramos de atividades e condição
SITUAÇÃO ECONÔMICA-SOCIAL NO de contribuintes, e a Tabela 5 apresenta o baixo rendimento
ESTADO DE SÃO PAULO familiar ou mesmo sem rendimento, cuja assistência à saúde
depende exclusivamente do SUS.
A evolução da população economicamente ativa (PEA)
no Estado de São Paulo encontra-se nas Tabelas 1 e 2, O PAPEL DA SECRETARIA DE ESTADO
nas quais se constata, nas duas últimas décadas, um cres- DA SAÚDE
TABELA 1
População Economicamente Ativa, segundo Setores de Atividade Econômica A Coordenação dos Institutos de Pesquisa (CIP), con-
Estado de São Paulo – 1980-1999 siderando a necessidade de implementar as políticas e
ações de saúde do trabalhador no estado de São Paulo,
Setores de Atividade 1980 1989 1999 resolveu publicar a portaria que instituiu a Comissão Intra-
TOTAL 10.236.019 14.379.365 15.412.014 Setorial de Saúde do Trabalhador (São Paulo, 2001).
Primário A comissão tem a finalidade de propor medidas com
Agrícola 1.175.002 1.038.360 1.151.325 vista na articulação às políticas e coordenar as ações de
Secundário saúde do trabalhador na Secretaria de Estado da Saúde,
Indústria de Transformação 3.068.936 4.062.989 2.780.628 na área da Saúde do Trabalhador, com integração dos se-
Indústria da Construção 795.313 914.237 1.112.013 tores internos que atuam ou possam influenciar nessa área
Outras Atividades Industriais 134.193 143.370 131.438 em suas competências e atribuições, com o objetivo de
Terciário maior eficácia dessas políticas e ações.
Comércio 1.102.525 1.877.242 2.345.048 O Secretário de Estado da Saúde referendou a comis-
Prestação de Serviços 1.946.814 2.590.197 3.469.528 são (São Paulo, 2002), sem prejuízo das atribuições dos
Serviços Auxiliares de Atividade Econômica - 648.026 960.114 setores que a compõe, com as seguintes atribuições de:
Transporte e Comunicações 486.319 637.747 743.730 I – propor estratégias e táticas para implantar a Norma
Social 727.267 1.315.867 1.637.498 Operacional de Saúde do Trabalhador – Nost-SUS (Brasil,
Administração Pública 360.868 555.498 641.959 1998);2
Outras Atividades 438.782 595.832 438.733 II – implantar o plano de ações de saúde do trabalhador
Fonte: Fundação IBGE, PNAD – 1980, 1989, 1999. Anuário Estatístico – Brasil. para o Estado de São Paulo, triênio 2001/2003;

TABELA 2
População Economicamente Ativa (PEA) e Taxas de Crescimento
Relativas e Absolutas, segundo Setores de Atividade
Estado de São Paulo – 1980-1999

População Economicamente Ativa Taxas de Crescimento (%)

Setores 1980 1989 1999 1980 - 1989 1989 - 1999

N Absolutos
os
% N Absolutos
os
% N Absolutos
os
% Absoluta Relativa Absoluta Relativa

Total 9.636.019 100,00 15.479.373 100,00 15.412.014 100,00


Primário 1.175.002 12,19 1.038.368 6,70 1.151.325 7,47 -11,63 -43,89 10,88 11,49
Secundário 3.398.442 35,27 5.920.596 38,25 4.024.079 26,11 74,22 10,58 -30,34 -31,74
Terciário 5.062.575 52,54 8.520.409 55,05 10.236.610 66,42 68,30 3,08 20,14 20,65
Fonte: Fundação IBGE, PNAD – 1980, 1989, 1999.

87
SÃO P AULO EM PERSPECTIVA , 17(1) 2003

TABELA 3
Pessoas de 10 Anos ou Mais de Idade, Ocupadas na Semana de Referência, por Contribuição
para Instituto de Previdência no Trabalho Principal, segundo Grupos de Idades
Estado de São Paulo – 1999

Contribuição para Instituto de Previdência no Trabalho Principal

Grupos de Idade Total Contribuintes Não-Contribuintes


os os os
N Absolutos % N Absolutos % N Absolutos %

Total 15.412.014 100,00 9.436.856 61,23 5.975.158 38,87


10 a 14 Anos 154.173 100,00 9.267 6,01 144.906 93,98
15 a 19 Anos 1.297.295 100,00 547.522 42,23 749.773 57,77
20 a 24 Anos 2.146.341 100,00 1.392.370 64,87 753.971 35,13
25 a 29 Anos 1.980.321 100,00 1.344.337 67,88 635.984 32,12
30 a 39 Anos 4.129.249 100,00 2.780.617 67,34 1.348.632 32,66
40 a 49 Anos 3.255.742 100,00 2.091.594 64,25 1.164.148 35,75
50 a 59 Anos 1.665.404 100,00 972.926 58,42 692.478 41,58
60 Anos ou mais 778.437 100,00 295.698 37,98 482.739 62,02
Idade Ignorada 5.052 100,00 2.525 49,98 2.527 50,02
Fonte: Fundação IBGE, PNAD – 1999.

TABELA 4
Pessoas de 10 Anos ou Mais de Idade, Ocupadas na Semana de Referência, por Contribuição
para Instituto de Previdência, no Trabalho Principal, segundo Ramos de Atividade
Estado de São Paulo – 1999

Contribuição para Instituto de Previdência no Trabalho Principal

Setores de Atividade Total Contribuintes Não-Contribuintes


os os os
N Absolutos % N Absolutos % N Absolutos %

TOTAL 15.412.014 100,00 9.436.856 61,23 5.975.158 38,77


Primário
Agrícola 1.151.325 100,00 434.939 37,78 716.386 62,22
Secundário
Indústria de Transformação 2.780.628 100,00 2.205.284 79,30 575.344 20,69
Indústria da Construção 1.112.013 100,00 358.019 32,19 753.994 67,81
Outras Atividades Industriais 131.438 100,00 116.271 88,46 15.167 11,54
Terciário
Comércio 2.345.048 100,00 1.357.029 57,86 988.019 42,14
Prestação de Serviços 3.469.528 100,00 1.527.095 44,02 1.942.433 55,98
Serviços Auxiliares de Atividade Econômica 960.114 100,00 623.204 64,90 336.910 35,10
Transporte e Comunicações 743.730 100,00 514.620 69,19 229.110 30,81
Social 1.637.498 100,00 1.378.072 84,16 259.426 15,84
Administração Pública 641.959 100,00 568.658 88,58 73.301 11,42
Outras Atividades 438.733 100,00 353.665 80,61 85.068 19,39
Fonte: Fundação IBGE, PNAD – 1999.

III – colaborar na elaboração e atualização de normas técni- V – propor convênios com instituições para fins de apri-
cas relativas à área de saúde e trabalho bem como no estudo moramento de suas atividades;
e formulação de propostas relativas à saúde ambiental; VI – atuar de forma articulada e integrada com as demais
IV – coordenar programas, cursos e projetos de capacitação, unidades pertencentes ao SUS ou não;
treinamento, aperfeiçoamento e educação na área de saúde VII – promover e participar de investigações e pesquisas cien-
e trabalho, tanto para trabalhadores dos diferentes ramos de tíficas em seu campo de abrangência e criar mecanismos para
atividades como para técnicos da área; a divulgação de sua produção técnico-científica.

88
REDE DE SAÚDE DO TRABALHADOR PARA O ESTADO DE SÃO PAULO

TABELA 5
Famílias Residentes em Domicílios Particulares e Valor do Rendimento Médio Mensal,
segundo as Classes de Rendimento Mensal Familiar
Estado de São Paulo – 1999

Classes de Rendimento Famílias Residentes Valor do Rendimento Médio Mensal (em R$)
Mensal Familiar (1) Total Urbana Rural Total Urbana Rural

Total 10.697.950 10.015.260 682.690 1.231 1.262 788


Até 1 Salário Mínimo 425.436 386.664 38.772 124 123 126
Mais de 1 a 2 Salários Mínimos 826.451 716.041 110.410 221 222 213
Mais de 2 a 3 Salários Mínimos 1.306.564 1.179.292 127.272 343 344 339
Mais de 3 a 5 Salários Mínimos 1.973.756 1.816.151 157.605 538 538 535
Mais de 5 a 10 Salários Mínimos 2.827.836 2.698.880 128.956 961 962 936
Mais de 10 a 20 Salários Mínimos 1.677.898 1.610.475 67.423 1.891 1.892 1.875
Mais de 20 Salários Mínimos 1.021.678 1.001.451 20.227 5.051 5.027 6.266
Sem rendimento (2) 336.044 314.134 21.910 - - -
Sem declaração (3) 302.287 292.172 10.115 - - -
Fonte: Fundação IBGE, PNAD – 1999.
(1) Exclusive os rendimentos das pessoas cuja condição na família era pensionista, empregado doméstico e parente de empregado doméstico.
(2) Inclusive as famílias cujos componentes receberam somente em benefícios.
(3) Exclusive as famílias sem declaração do valor do rendimento.
Nota: Valor do salário mínimo em maio de 1999: R$ 136,00.

Os setores internos da SES-SP, participantes da coorde- Cosems. As DIRs deverão organizar-se para consolidar-
nação, são: Coordenação dos Institutos de Pesquisa (CIP); se como referência regional nos campos da informação e
Divisão de Vigilância em Saúde do Trabalhador do Cen- capacitação, propiciando a articulação e integração entre
tro de Vigilância Sanitária (DVST/CVS); Divisão de Doen- os municípios na construção de redes de referência e con-
ças Ocasionadas pelo Meio Ambiente do Centro de Vigi- tra-referência nas ações de assistência e vigilância
lância Epidemiológica (Doma/CVE); Instituto Adolfo Lutz epidemiológica e sanitária.
(IAL); Centro de Referência em Saúde do Trabalhador A coordenação promoverá a articulação necessária com
(Cerest); Coordenadoria de Planejamento em Saúde (CPS); outras entidades e órgãos públicos federais, estaduais e
Coordenadoria de Saúde do Interior (CSI); Coordenadoria municipais, instituições universitárias, com representações
de Saúde Regional da Grande São Paulo (CSRGSP); de trabalhadores, de empresários, e pode criar comissões
Coordenadoria de Recursos Humanos (CRH); Instituição ou grupos de trabalho, permanentes ou provisórios.
convidada: Conselhos dos Secretários Municipais de Saúde
(Cosems). PRESSUPOSTOS BÁSICOS

ATRIBUIÇÕES DA COMISSÃO A saúde do trabalhador no SUS configura-se como um


INTRA-SETORIAL ESTADUAL campo do saber que se preocupa com as relações entre o
trabalho e o processo saúde e doença, desde a atenção
No campo das ações técnicas, a Comissão Intra-setorial básica até o nível terciário.
Estadual atua como referência na formulação, informação, Considerando que a atuação da saúde do trabalhador
articulação, capacitação de recursos humanos, desenvol- no SUS perpassa em ações de vigilância, informação e
vimento de estudos e pesquisas e acompanhamento de assistência, a coordenação, para elaborar seu plano de
projetos e programas em saúde do trabalhador. ações, adotou os pressupostos básicos constantes na Nor-
Nas ações administrativas, supervisiona, controla e ma Operacional de Saúde do Trabalhador:
avalia qualidade de resultados e grau em que as políticas - universalidade e eqüidade de acesso a todos os níveis
alcançam seu propósito. de atenção à saúde;
A articulação política com os municípios será feita em - integralidade das ações individuais/curativas e coleti-
conjunto com as Direções Regionais de Saúde (DIR) e vas de vigilância em saúde;

89
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 17(1) 2003

- direito a informação; Em busca da consolidação da área de Saúde do Traba-


- participação e controle da sociedade; lhador no SUS/SP, um dos desafios que se apresenta é a
criação de um modelo regionalizado de ações que possi-
- regionalização e hierarquização;
bilite melhor compreensão das realidades locais.
- critério epidemiológico no estabelecimento de priori-
Considerando-se os dispositivos emanados pelo Minis-
dades.
tério da Saúde na Norma Operacional de Saúde do Traba-
O Plano de ações de saúde do trabalhador, a que se refere lhador (Nost/SUS) e na Norma de Assistência à Saúde
o item II da resolução da SES, estabeleceu as seguintes prio- (Noas), (Brasil, 2002b), as instâncias da SUS devem-se
ridades para o triênio 2002-2003-2004 (Quadro 1). adaptar às novas exigências para a construção de modelo
de saúde do trabalhador para o Estado de São Paulo.
REGIONALIZAÇÃO DAS AÇÕES O papel a ser exercido pela comissão intra-setorial em
DE SAÚDE DO TRABALHADOR nível central e as Direções Regionais (DIR), em nível re-
gional, é o de estabelecer as políticas e as diretrizes em
A complexidade do processo saúde-doença-trabalho saúde do trabalhador, disseminando-as aos diversos ní-
exige para o sucesso de uma medida sanitária uma veis de complexidade do SUS.
reorientação de valores socialmente definidos bem como As atribuições dessa instância central e regionais se-
uma infraestrutura sólida que a viabilize. Isso significa uma riam as de normalizações técnicas, as relações intra e inter-
política de saúde, um conjunto de medidas orientadas ideo- setoriais, o macroplanejamento, a capacitação de recur-
logicamente e que permeiem as instituições sociais públi- sos humanos e a consolidação de macroindicadores, bem
cas e privadas, o que coloca o bem-estar dos trabalhado- como o estabelecimento de mecanismos de avaliação, de
res como objetivo central. auditoria e de gestão político-estratégica, segundo o pre-
Nessa análise, uma rede estadual de saúde do trabalha- conizado pela Nost.
dor deve servir à hierarquização dos diferentes serviços a Já os municípios ou os consórcios municipais teriam
serem oferecidos à clientela, com garantia de acesso aos papéis e estrutura hierarquizada definida pela Nost/98,
recursos mais sofisticados, mas com racionalização de sua conforme o esquema, a seguir, preparado pela comissão
utilização de forma que se evite as distorções que se ob- intra-setorial de saúde do trabalhador da SES-SP, com
servam na ausência de uma rede quando esse acesso fica ações de atenção básica, secundária e terciária preconiza-
à sorte do trabalhador. dos pelo Ministério da Saúde.

QUADRO 1
Plano de Ações de Saúde do Trabalhador
Estado de São Paulo – 2002-2004

Prioridades Responsáveis

Conceber um modelo para a área de saúde do trabalhador sob a perspectiva de uma rede Comissão

Pactuar a implantação de um sistema de informação em saúde do trabalhador CVE/CVS/Cerest

Implantar a Nost nos municípios do Estado de São Paulo Cosems/CIP/CSI/CSRGSP/CCSS

Constituir a comissão interinstitucional em saúde do trabalhador no âmbito dos Conselhos Municipais de Saúde Cosems/CSI/CSRGSP

Implantar a Rede de Cuidados Integrais LER/DORT nos municípios no Estado de São Paulo Cerest/CSI/CSRGSP

Reduzir o número de acidentes do trabalho, acidente típico mais acidente de trajeto no mercado formal Comissão

Reduzir o número de casos de doenças ocupacionais no mercado formal Comissão

Reduzir a mortalidade por acidentes do trabalho em motoristas e na construção civil no Estado de São Paulo Comissão

Reduzir a exposição ao fator risco químico, com ênfase ao benzeno, mercúrio e agrotóxico IAL/CPS/CVS/CVE/Cerest

Banir o amianto Comissão

Fonte: SES.

90
REDE DE SAÚDE DO TRABALHADOR PARA O ESTADO DE SÃO PAULO

Gestão Plena da Atenção Básica – Garantir atendimento situações de risco, elaboração de relatórios, aplicação de
de acidente do trabalho e ao suspeito/portador de DP/DT: procedimentos administrativos, investigação epidemio-
- realizar ações de vigilância nos ambientes e processos lógica;
de trabalho; - instituir/manter cadastro atualização das empresas com
- notificar os agravos à saúde e dos riscos relacionados identificação dos fatores de risco que possam ser gerados
com o trabalho; para o contingente populacional, direta/indiretamente a
- sistematizar/analisar dados gerados no atendimento aos eles expostos;
agravos à saúde relacionados ao trabalho, de modo que se - manter unidade especializada de referência em ST.2
possa orientar intervenções de vigilância/organização dos
serviços; Normas de Assistência à Saúde/Norma Operacional
- alimentar sistemas de informação de órgãos/serviços de de Saúde do Trabalhador
vigilância e bases de dados de interesse nacional;
- manter unidade especializada de referência em ST. Gestão Avançada e Plena do Sistema Estadual – Res-
peitadas as responsabilidades/ prerrogativas dos Municí-
pios habilitados:
Gestão Plena do Sistema Municipal – Emitir laudos/re-
- controlar a qualidade das ações de ST desenvolvidas
latórios sobre agravos relacionados com o trabalho ou li-
pelos Municípios conforme mecanismos de avaliação de-
mitações deles resultantes:
finidos em conjunto com as SMSs;
- instituir/operacionalizar sistema de referência para aten-
dimento ao AT e ao suspeito/portador de DP/DT, dando - definir, com Municípios, mecanismos de referência/con-
suporte técnico para o estabelecimento da relação do nexo tra-referência e outras medidas necessárias para o pleno de-
com o trabalho, confirmação diagnóstica, tratamento, re- senvolvimento das ações de assistência e vigilância em ST;
cuperação e reabilitação da saúde; - capacitar recursos humanos para a realização das ações
- realizar ações de vigilância nos ambientes e processos de ST em seu âmbito de atuação;
de trabalho contemplando levantamento/análise de infor- - estabelecer rotina de sistematização/processamento/
mações, inspeção sanitária, identificação/avaliação das análise de dados sobre ST gerados nos Municípios e em

QUADRO 2
Ações de Saúde do Trabalhador

Responsabilidades Atividades

Atenção Básica

Controle dos Acidentes e Doenças Relacionadas ao Trabalho • Identificação das situações de risco no território (cadastro de empresas, ambientes de trabalho,

número de trabalhadores, números de crianças expostas ao trabalho infantil e tipos de agravos).

• Detecção de suspeitos dos agravos relacionados ao trabalho (acidente e doenças

relacionadas ao trabalho).

• Registro ou notificação dos casos de acidentes e doenças relacionadas ao trabalho.

• Encaminhamento para Assistência Especializada.

• Ações educativas junto aos trabalhadores e empresas.

Atenção Secundária e Terciária

Controle dos Acidentes e Doenças Relacionadas ao Trabalho • Confirmação diagnóstica e registro/notificação.

• Acompanhamento dos casos confirmados.

• Vigilância em Ambientes de Trabalho.

• Ações educativas junto aos trabalhadores e empresas.


Fonte: Comissão de Saúde do Trabalhador do Ministério da Saúde.
Nota: Esquema aprovado em Reunião no Conselho Nacional de Saúde, 2001.

91
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 17(1) 2003

seu próprio campo de atuação mais rotina de alimentação - os serviços de segurança e medicina do trabalho
regular das bases de dados estaduais e municipais; (SESMT) de empresas e de planos de saúde;
- elaborar perfil epidemiológico da ST no Estado para sub- - os serviços médicos hospitalares e privados;
sidiar programação/avaliação das ações de atenção à ST; - os serviços da Fundacentro;
- prestar cooperação técnica aos Municípios para o de- - as empresas particulares de assessorias e consultorias;
senvolvimento de ações de ST;
- rede do SUS.
- instituir/manter cadastro atualização das empresas com A concepção sistêmica de rede deve perseguir a idéia
identificação dos fatores de risco que possam ser gerados de articulação intra e inter-setorial nos diversos níveis do
para o contingente populacional, direta/indiretamente a SUS de forma que se estabeleça mecanismos de comuni-
eles expostos; cação entre os setores próprios, entidades e instituições
- manter unidade especializada de referência em ST.2 que atuam na questão saúde e trabalho, permitindo-lhes
melhor definição de papéis, melhor compreensão das rea-
Delineada as diretrizes para a regionalização e defini- lidades locais atuação conjunta na capacitação, na disse-
das as ações, a estratégia seguinte é criar uma grande malha minação de conhecimentos e informações.
com as seguintes características:
Estruturas da Secretaria de Estado da Saúde
CARACTERÍSTICAS DE UMA REDE DE
SAÚDE DO TRABALHADOR O organograma central dos serviços de saúde do traba-
lhador na Secretaria de Estado da Saúde (SES) reconhe-
A organização de uma rede primária de assistência à ce, formalmente, duas ordens de estruturas de serviços para
saúde do trabalhador surge como resposta à preocupação dar conta das vigilâncias sanitária e epidemiológica, além
de universalização do acesso aos serviços de saúde, de- de um setor do IAL que cuida das questões laboratoriais.
terminada jurídica e legalmente pela Constituição e pela Enquanto a atuação da vigilância sanitária privilegia a
Lei Orgânica da Saúde, e obedece a idéia de racionaliza- formação, a capacitação e a informação a epidemiológica
ção da utilização dos recursos tecnológicos, de vigilância tem se empenhado nas questões dos poluentes ambientais,
em saúde, de diagnóstico e de tratamento para alcançar a assistência aos adoecidos pelo trabalho, a articulação
este fim. inter-institucional e a formação profissional têm sido exe-
Consoante aos princípios e diretrizes do SUS, o obje- cutadas pelo Cerest, setor ainda não incluído na estrutura
tivo primordial dessa rede é perpassar as ações de saúde formal da SES.
do trabalhador desde a APS até o nível terciário. Suas No âmbito das direções regionais de saúde da SES evi-
características redefinem-se para cada região e para cada dencia-se inadequação dos serviços do Estado para atuar
comunidade, considerando os recursos disponíveis e os na prevenção e assistência dos acidentes e doenças do tra-
problemas que deve resolver. balho. A estrutura de serviços atual da Secretaria na área
da saúde e trabalho, composta pelas vigilâncias, não con-
Articulação Intra e Inter-setorial segue dar conta dessa demanda, tanto pelos parcos recur-
sos humanos, como pela sua vocação histórica. Associar
Um modelo de saúde do trabalhador sob a concepção a vigilância com a assistência, apoiada pelo movimento
de uma rede prevê sua integração no Sistema Nacional sindical, é o grande mote que se esboça na idealização da
de Saúde, em que a rede primária seja porta de entrada rede estadual de saúde do trabalhador, com práticas
única e de que ela seja capaz de articular inter-setorial- intervencionistas nas empresas sob nova fundamentação
mente. sanitária.
No Estado de São Paulo, existem várias ordens de es-
truturas de serviços que atuam nas questões saúde e tra- Participação da Classe Trabalhadora
balho:
- a fiscalização das normas regulamentadoras, praticada Diante da atual inadequação na relação serviços/deman-
pela Delegacia Regional de trabalho e emprego e Secre- da em saúde do trabalhador e considerando a perspectiva
taria de Estado de Relações de Trabalho e Emprego; de implantação de uma rede estadual de saúde do traba-

92
REDE DE SAÚDE DO TRABALHADOR PARA O ESTADO DE SÃO PAULO

lhador reconhece-se que para além dos planos técnicos a apenas para racionalizar esse acesso e nunca como forma
rede deve priorizar a participação das representações sin- de negação desse direito, criando as diferenças de um tra-
dicais, procurando divulgar o mais amplamente possível tamento de pobre e outro de rico.
a situação atual e os planos elaborados como alternativa
viável. Descentralização das Ações
É a própria classe trabalhadora o setor mais legitima-
mente interessado na superação desses problemas e sem A participação dos municípios deve objetivar a
dúvida a que pode levar a luta em sua defesa de forma permeabilização da instituição aos interesses da clientela
mais conseqüente. É pela participação e convivência que a fim de garantir conseqüência à proposta.
a instituição absorve valores que contribuirão em sua Para que essa rede não seja um simples aparelho de
redefinição. reprodução ideológica, é necessário que essa participa-
A participação da classe trabalhadora pode propiciar um ção encontre meios para expressar sua criatividade e re-
exercício reflexivo que crie em seu seio o dimensionamento cuperar seus valores.
real de seus problemas e um engajamento efetivo em sua A participação dos municípios deve ser um elemento
solução, delineando uma vontade coletiva que dê represen- ativo em todos os níveis, planejamento, administração,
tação política a essa demanda técnica, contribuindo dessa prestação de serviços e não se restringir ao papel de sim-
forma para a definição de uma política de saúde direcionada ples executor.
para a valorização do trabalhador. É estratégica a entrada da Saúde do Trabalhador na
A participação da classe trabalhadora deve ser enten- Saúde da Família/ Atenção Básica, estabelecendo-se pro-
dida como elemento capaz de catalisar uma mudança, por tocolos integrais para o conjunto de agravos, tendo-se
sua expressão política, e também como elemento capaz como perspectiva o trabalho em rede, sem hierarquia e a
de contribuir na definição do novo, diante da legitimida- tolerância às diferenças.
de de seus interesses. O modelo estrutural de atenção proposto à Saúde do
Em essência, uma rede em saúde do trabalhador por pre- Trabalhador respeita as áreas de abrangências das Dire-
tender a socialização dos recursos do SUS é impulsionada ções Regionais de Saúde (DIR), as microrregião ou mu-
a recuperar valores sociais e coletivos para a prática ade- nicípio para intervenção.
quada, o que busca mediante participação trabalhadora. Os critérios de elegibilidade serão os seguintes: o ter-
ritório, considerando as características demográficas, so-
Recursos Humanos e Materiais ciais, econômicas e políticas da população local; a exis-
tência de situações de risco e sua expressão sob a forma
Diante da diversidade de fatores que influenciam a saú- de agravos relacionados com o trabalho; os recursos
de, é hoje iniludível a necessidade do caráter multi- tecnológicos disponíveis no setor saúde e nos demais per-
disciplinar da equipe de saúde. A viabilização de uma rede tinentes à situação.
primária está diretamente relacionada ao preparo profis- As estratégias de operacionalização para implemen-
sional da equipe de saúde e nesse sentido será necessária tação dessa rede são: pactuação intra e extra-setorial, ade-
uma capacitação adequada de seus recursos humanos. quação da infra-estrutura da rede de serviços, capacitação
E, a rede ainda, se pretende eficaz, de grande poder dos profissionais da rede de serviços, equipamento, apoio
resolutivo, pressupõe a presença de profissionais versá- diagnóstico e insumos, comunicação e marketing social,
teis capazes de responder a variada gama de problemas mecanismos de financiamento.
que constituam o seu alvo.
A definição de alçada e de recursos, a participação dos Capacitação – A proposta de capacitação em Saúde do
técnicos das prefeituras municipais e a característica da Trabalhador será organizada para ser utilizada como um
equipe de saúde constituem os três vértices de uma pedra dos instrumentos para a qualificação dos profissionais de
angular, cujo brilho fica na dependência da luz que a ilu- nível superior que atuam com intuito da reestruturação dos
mine: a política de saúde. serviços de saúde.
A definição de recursos deve considerar a população- O pressuposto para a realização do curso baseia-se no
alvo em seu universo e garantir acesso aos recursos mais processo de mudança das práticas sanitárias voltadas para
sofisticados a toda população trabalhadora, servindo a rede a efetivação do Sistema Único de Saúde, coerente com o

93
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 17(1) 2003

processo de criação e desenvolvimento de Distritos Sani- PLANO DE EXPANSÃO DA REDE DE


tários, cuja estruturação tem hoje como estratégia o Pro- SAÚDE DO TRABALHADOR
grama de Saúde da Família, constituindo-se, portanto, em
clientela preferencial os profissionais que atuam nesse Com base na portaria do Ministério de Saúde que pre-
programa. vê a estruturação de uma Rede Nacional de Atenção Inte-
gral a Saúde do Trabalhador, a ser publicada, serão
Vigilância em Saúde – A visão de uma vigilância em saú- dimensionados os serviços para cada DIR, considerando
de, que envolve as questões ambientais, remete para um a necessidade de articular, no campo de ação do SUS, ações
debate vital para uma nova conformação estrutural da área. de prevenção, promoção e recuperação da saúde dos tra-
As estruturas da Secretaria em níveis central e regionais, balhadores urbanos e rurais, independentemente do vín-
de executoras, passariam a atuar na normalização de pro- culo empregatício e tipo de inserção no mercado de tra-
cedimentos operacionais, nas relações inter-setoriais, na balho e considerando o processo de regionalização como
capacitação de recursos humanos, na disseminação de estratégia de hierarquização de serviços de saúde e de
conhecimentos e de ações para os municípios em seus di- busca de maior eqüidade, conforme o disposto na Norma
versos níveis de complexidade e de forma de gestão, como Operacional de Assistência à Saúde.
os recentes consórcios entre os municípios. A atenção integral à saúde do trabalhador, com suas
Outro aspecto que deve ser abordado é a sistematiza- especificidades, deve ser objeto de todos os serviços de
ção, o processamento e a análise dos dados sobre saúde saúde, consoante com os princípios do SUS, da eqüidade,
do trabalhador. Já existem sistemas consolidados como o integralidade e universalidade e considerando a necessi-
Sivisa, e outros em andamento como projetos, que devem dade da criação de mecanismos para o fortalecimento da
ser implementados para a melhoria das informações (Fi- capacidade de gestão do SUS e a atualização dos critérios
gura 1). de habilitação de estados e municípios.
Hierarquização das Ações Preconizadas pelo Ministé-
FIGURA 1 rio da Saúde e Adaptadas para o Estado de São Paulo:
Proposta de Organização da Saúde do Trabalhador no SUS-SP - Ações na rede de atenção básica e no âmbito do Pro-
grama de Saúde da Família (PSF).
- Referências assistenciais nos serviços de média e alta
COMISSÃO INTRA-SETORIAL DE
complexidade do SUS.
SAÚDE DO TRABALHADOR
Formula, planeja, informa, articula, - Centros de Referência em Saúde do Trabalhador
capacita, desenvolve estudos e pesquisa,
(CRST).
elabora projetos estratégicos
As equipes da atenção básica e do Programa de Saúde
da Família serão capacitados para a execução de ações
em saúde do trabalhador.
DIREÇÕES REGIONAIS DE SAÚDE – DIR – PÓLOS No interior dos serviços existentes de alta e média com-
Formula, planeja, informa, articula, capacita, plexidade, no âmbito de cada Módulo Assistencial, deve-
desenvolve estudos e pesquisa
rão ser organizadas ações especializadas em saúde do tra-
balhador, cujas atribuições serão estabelecidas em ato
específico da comissão intra-setorial.
As direções regionais de saúde (DIR) terão CRST Re-
MUNICÍPIOS – PÓLOS gional, definidos por ordem crescente de complexidade e
Informa, articula, capacita, estudo e pesquisa distinção de atribuições descritas a seguir.
Os CRSTs Estaduais e Regionais deverão integrar-se
entre si e com as referências em saúde do trabalhador de-
senvolvidas na rede de média e alta complexidade,
compatibilizando um Sistema de Informação desenvolvi-
REDE DO SUS
do no âmbito da assistência terciária de média e alta com-
Informa, executa
plexidade, a execução de Projetos de Capacitação comuns,

94
REDE DE SAÚDE DO TRABALHADOR PARA O ESTADO DE SÃO PAULO

a elaboração de material institucional e comunicação per- - Desenvolver programas de educação em saúde sobre
manente, de modo que se constitua um sistema em rede questões da relação saúde-trabalho para a população em
nacional. geral.
O controle social da Rede Estadual de Saúde do Tra- - Promover o intercâmbio técnico-científico com institui-
balhador – mediante participação das organizações de tra- ções nacionais, internacionais e estrangeiras.
balhadores urbanos e rurais –, dar-se-á em todos os níveis
- Em conjunto com os gestores estaduais, coordenar o
– nacional, estadual, regional e municipal, obedecendo aos
processo de preparação, organização e operacionalização
princípios estabelecidos na legislação vigente.
do Programa Estadual de Qualificação Pessoal em Saúde
Serão implantados Centros de Referência Estadual,
do Trabalhador, estabelecido nessa portaria.
localizado na capital dos Estados e Centros de Referên-
cia Regionais, localizados nas regiões metropolitanas e - Em conjunto com os gestores estaduais, coordenar o
nas regiões com maior concentração de trabalhadores, com Programa de Acompanhamento e Avaliação da implanta-
as seguintes atribuições. ção da Renast.
- Em conjunto com os gestores estaduais, participar do
CRST Estadual processo de elaboração, implantação e operacionalização
do Plano Estadual de Atenção Integral à Saúde do Traba-
- Desenvolver estudos e pesquisas na área de saúde do lhador nos municípios, nas diversas regiões do Estado.
trabalhador e do meio ambiente, atuando em conjunto com - Prestar suporte técnico para os municípios executarem
outras unidades e instituições, públicas ou privadas, de a pactuação regional, a fim de garantir, em toda a área do
ensino e pesquisa ou que atuem em áreas afins à saúde e estado, o atendimento aos casos de doenças relacionadas
ao trabalho. ao trabalho.
- Promover programas de formação, especialização e - Participar, no âmbito de cada estado, do treinamento e
qualificação de recursos humanos na área de saúde do tra- capacitação de profissionais relacionados com o desen-
balhador. volvimento de ações no campo da saúde do trabalhador,
- Dar suporte técnico para o aperfeiçoamento de práticas em todos os níveis de atenção: Vigilância em Saúde, PSF,
assistenciais interdisciplinares em saúde do trabalhador, Unidades Básicas, Ambulatórios, Pronto-Socorros, Hos-
organizada na forma de projetos de intervenção. pitais Gerais e Especializados.
- Propor normas relativas a diagnóstico, tratamento e rea-
bilitação de pacientes portadores de agravos à saúde de- CRSTs Regionais
correntes do trabalho; promoção de eventos técnicos, ela-
boração de protocolos clínicos e manuais. - Suporte técnico especializado para a rede de serviços
- Atuar em articulação com os Centros de Vigilância Sa- do SUS efetuar o atendimento, de forma integral e
nitária e Epidemiológica e com unidades e órgãos afins, hierarquizada, aos casos suspeitos de Doenças Relacio-
nas atividades de normalização relativas à prevenção de nadas ao Trabalho, para estabelecer a relação causal en-
agravos à saúde decorrentes do trabalho e de vigilância tre o quadro clínico e o trabalho.
sanitária e epidemiológica em saúde do trabalhador. - Suporte técnico especializado para a rede de serviços
- Promover, em conjunto com os órgãos competentes dos do SUS efetuar o diagnóstico e o tratamento das Doenças
municípios, a definição de critérios de: avaliação para Relacionadas ao Trabalho, o que inclui a realização de
controle da qualidade das ações de saúde do trabalhador exames complementares, e que pode incluir vistorias sa-
desenvolvidas no âmbito municipal; referência e contra- nitárias aos locais de trabalho.
referência e outras medidas que assegurem o pleno de- - Suporte técnico especializado para a rede de serviços
senvolvimento das ações de assistência e vigilância em do SUS efetuar o registro, notificação e relatórios sobre
saúde do trabalhador e do meio ambiente; cooperação téc- os casos atendidos e o encaminhamento dessas informa-
nica para o desenvolvimento das ações e pesquisas em ções aos órgãos competentes visando ações de vigilância
saúde do trabalhador e do meio ambiente. e proteção à saúde.
- Produzir informações para subsidiar proposições de - Suporte técnico às ações de vigilância, de média e alta
políticas na área de saúde do trabalhador. complexidade, a ambientes de trabalho, de forma integra-

95
SÃO P AULO EM PERSPECTIVA , 17(1) 2003

da às equipes e serviços de vigilância municipal e/ou es- “No bojo da Reforma Sanitária Brasileira, a Saúde do
tadual. Trabalhador surgiu como uma nova forma de apreender e
- Retaguarda técnica aos serviços de vigilância epidemio- intervir na relação trabalho-saúde e introduziu na Saúde
lógica para o processamento e análise de indicadores de Pública, a atenção a uma parcela da população estimada
agravos à saúde relacionados com o trabalho, em sua área em mais de 108 milhões de pessoas inseridas na multi-
de abrangência. plicidade e diversidade dos ambientes e processos de tra-
- Ações de promoção à Saúde do Trabalhador, incluindo balho desenvolvidos no país.
ações integradas com outros setores e instituições, como Instrumentos legais e operacionais vêm conformando,
Ministério do Trabalho, Previdência Social, Ministério desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, o
Público, entre outros. arcabouço que fundamenta o campo da Saúde do Traba-
lhador, ressaltando-se a Lei no 8.080/90 (Lei Orgânica da
- Participar, no âmbito de seu território de abrangência,
Saúde), as Normas Operacionais Básicas 01/93 e 01/96, a
do treinamento e capacitação de profissionais relaciona-
Norma Operacional de Saúde do Trabalhador (Nost) e a
dos com o desenvolvimento de ações no campo da saúde
Instrução Normativa de Vigilância em Saúde do Traba-
do trabalhador, em todos os níveis de atenção: PSF, Uni-
lhador no SUS, editadas pelo Ministério da Saúde, e em
dades Básicas, Ambulatórios, Pronto-Socorros, Hospitais
São Paulo, a Constituição Estadual, as Leis no 9.505/97
Gerais e Especializados.
(que disciplina as ações e serviços de Saúde do Trabalha-
Os recursos humanos dispostos em cada equipe dos CRSTs dor no SUS) e no 10.083/98 (que aprova o Código Sanitá-
deverão ser dimensionados e pactuados na bipartite, com rio do Estado).
parâmetros mínimos de composição e capacitados para o Em 24 de março de 2000, realizou-se o I Encontro Es-
exercício das ações de saúde do trabalhador. tadual para Aplicação da Nost-SUS. Desde então, algu-
A proposta de um modelo sob a concepção de rede em mas ações vêm sendo desenvolvidas pelos responsáveis
saúde do trabalhador, se de um lado tem sido recebido pela implantação das ações de Saúde do Trabalhador no
com entusiasmo pelos que militam na área, invariavelmen- âmbito das esferas estadual e municipal do SUS, porém
te, de outro, há as reservas do ceticismo em relação às não logrando efetivar a operacionalização das ações e
instituições oficiais das quais as pessoas sempre têm um serviços que a relevância da área requer.
rosário de experiências negativas. Ao lado do ceticismo As Normas Operacionais da Assistência à Saúde
há também a visão paternalista da instituição a dificultar (NOAS-SUS 01/01 e 01/02), editadas pelo Ministério da
a organização da participação da classe trabalhadora, o Saúde, ampliam as responsabilidades dos municípios na
que muitas vezes deixa um ranço servil a essa participa- Atenção Básica e atualizam os critérios de habilitação dos
ção. Enquanto o ceticismo deriva da postura centralizadora Estados e municípios. No entanto, na medida em que apre-
e autoritária das instituições oficiais nos últimos anos, o sentam diretrizes para o prosseguimento do processo de
servilismo é reminiscência do período populista de apa- descentralização, baseadas na estratégia da regionalização,
relhamento político das instituições e que hoje anda sen- não contemplam as ações de Saúde do Trabalhador entre
do alimentado por setores que se intitulam reformadores. as responsabilidades assumidas pelos gestores estaduais
Ambos os desvios só poderão ser superados pela de- e municipais, como também não as incluem nos elencos
mocratização da instituição. Tem-se claro que esse mo- de procedimentos a serem acrescentados à Atenção Bási-
delo, ora proposto, embora fundamentado teoricamente, ca e ao componente mínimo da média complexidade
apóia-se muito mais em vontade de transformar. Por isso ambulatorial.
mesmo, espera-se que ele se constitua em mais uma con- Os gestores e gerentes das esferas estadual e munici-
tribuição a acelerar o início de uma nova era para a saúde pal do SUS, os profissionais do campo da Saúde do Tra-
do trabalhador no SUS-SP a que por ora apenas esboça balhador e os representantes dos demais segmentos da
seus contornos. sociedade presentes ao II Encontro Estadual para a Im-
Finalmente, julga-se pertinente a inclusão neste artigo plantação da NOST/NOAS, realizado no dia 22 de abril
da Carta de São Paulo pela efetiva implantação das ações de 2002 no Centro de Convenções Rebouças, em São Pau-
de saúde do trabalhador no SUS deliberada no II Encon- lo, preocupados com a insatisfatória cobertura e organi-
tro Estadual para Implantação da Nost/Noas, realizado em zação das ações e serviços de Saúde do Trabalhador no
22 de abril de 2002, em São Paulo: Estado e com o objetivo de criar condições para que a

96
REDE DE S AÚDE DO TRABALHADOR PARA O E STADO DE S ÃO PAULO

implantação do preconizado na NOST-SUS ocorra de interface com a área, subordinada ao Conselho Estadual
maneira efetiva, aprovam as seguintes propostas a serem de Saúde, com a finalidade de assessorá-lo na definição
encaminhadas aos órgãos de deliberação e execução do de políticas, no estabelecimento de prioridades e no acom-
SUS: panhamento e avaliação das ações. Os municípios deve-
- Inclusão das ações contidas na NOST-SUS entre as res- rão criar comissões equivalentes no seu âmbito”.
ponsabilidades dos Estados e municípios que assumirem as
formas de gestão indicadas na NOAS-SUS 01/01 e 01/02.
- Inclusão da comprovação de capacidade para o desen- NOTAS
volvimento das ações contidas na NOST-SUS como re-
quisito para a habilitação dos Estados e municípios nas Agradecimentos especiais pela colaboração dos membros da comissão
na preparação deste artigo: Aparecida Vieira de Melo; Clelia O S
formas de gestão indicadas na NOAS-SUS 01/01. Pedrosa; David Braga Jr.; Elba Pinheiro de Almeida Custódio; Elmir
S. Cardim Filho; João Aquino Filho; José Carlos do Carmo; José Ge-
- Aprovação pela Comissão Intergestores Tripartite dos raldo Conceição; Lúcia Toledo; Maria Luiza Rebouças Stucchi; Ma-
critérios que comporão o Índice de Valorização de Resul- ria Maeno; Marlene Castanho; Nivaldo D. Teixeira; Paula Pozzi; Pau-
lo Tiglea; Rodolpho Repullo Jr.; Telma de Cássia.
tados em Saúde do Trabalhador, referido na NOST-SUS,
1. Texto para debate – Luiz Carlos Fadel de Vasconcellos – assessor
a ser repassado fundo a fundo, aos Estados e municípios. da Coordenação de Saúde do Trabalhador (Cosat) do Ministério da
Neste caso, para os municípios, deverá ser utilizado como Saúde.
parâmetro a “Matriz do Modelo de Organização da Aten- 2. Esquema preparado pela Comissão intra-setorial de saúde do traba-
ção à Saúde do Trabalhador para o SUS Municipal”, con- lhador.

tida na Recomendação no 5, de 14 de setembro de 2001,


do Conselho Nacional de Saúde.
- Liberação de recursos do FAEC (Fundo de Ações Estraté- REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
gicas do Ministério da Saúde) para a implantação e imple-
mentação das redes estaduais de Saúde do Trabalhador. BRASIL. Portaria do MS n.3.908/98, Diário Oficial [da] República
Federativa do Brasil, Brasília, DF, 10 nov. 1998, n.215-E, Seção
- Implantação de um componente em Saúde do Trabalha- 1, p.17.
dor nos sistemas de informação em saúde de âmbito nacio- SÃO PAULO (Estado). Portaria CIP n.12. Diário Oficial do Estado,
nal, que permitam conhecer a realidade de saúde da po- 31 out. 2001.
pulação trabalhadora, intervir nos fatores determinantes SÃO PAULO (Estado). Resolução SS-51 de 19 de abril de 2002. Diá-
de agravos à saúde nos locais de trabalho, visando eliminá- rio Oficial do Estado, 20 abr. 2002.

los ou, na sua impossibilidade, atenuá-los e controlá-los; SÃO PAULO (Estado). NOAS-SUS fev. 2002, aprovada pela Portaria
GM-MS n.373, de 27 de fevereiro de 2002. Diário Oficial de Es-
avaliar o impacto das medidas adotadas para a elimina- tado, fev. 2002.
ção, atenuação e controle dos fatores determinantes de
agravos à saúde e subsidiar a tomada de decisões dos ór-
gãos competentes, nas três esferas de governo.
KOSHIRO OTANI: Médico do Trabalho, Coordenador da Comissão Intra-
- Instituição da Comissão Intersetorial de Saúde do Tra- setorial de Saúde do Trabalhador da Secretaria de Estado da Saúde
balhador, com a participação de entidades que tenham (otani@saude.sp.gov.br)

97
SÃO
ÃO PAULO EM PERSPECTIVA
AULO EM ERSPECTIVA, 17(1): 98-110, 2003
17(1) 2003

SERVIÇOS DE SAÚDE DO TRABALHADOR


a co-gestão em universidade pública

GILSON GEHRING-JÚNIOR
STUART ENES SOARES
HELENO RODRIGUES CORRÊA-FILHO

Resumo: Existe incompreensão no meio acadêmico e nos serviços de saúde pública sobre semelhanças e jus-
taposições dos serviços de saúde do trabalhador e dos serviços de saúde suplementares ao Sistema Único de
Saúde (SUS) quando contratados por trabalhadores. A co-gestão é apresentada neste artigo como proposta de
diferenciar, humanizar, qualificar e compatibilizar a gestão de ambos os serviços.
Palavras-chave: política de saúde; serviços de saúde ocupacional e setor privado; saúde dos trabalhadores.

Abstract: In both academia and the public health sector, misunderstanding exists with regard to the similarities
and juxtapositions of workers’ health care services and the health care services that supplement the SUS (Unified
Health System) when the latter is contracted for by workers. Co-management is presented in this article as an
attempt to improve, humanize, and enhance assess to services, while making them more compatible with one
another.
Key words: health care policy; occupation health services and the private sector; workers’ health.

A
tualmente, o setor de saúde sofre conseqüências da adoecer procuram o setor privado correm o risco de não
globalização devidas, sobretudo, à adoção da polí- serem atendidos, enquanto o setor público é obrigado a
tica neoliberal. Essa, à medida que é implantada, aceitar todos (Laurell, 1995; Faleiros, 1997).
pune o sistema público de saúde, forçando-o a adaptar-se a Conforme Oliveira e Vasconcelos (1992), as políticas
orçamentos cada vez mais restritos. Como revela Laurell de Saúde do Trabalhador estão submetidas ao movimento
(1995), os países latino-americanos passam por um proces- de forças sociais que influenciam na relação entre Estado
so de implantação da política social neoliberal que, entre ou- e Sociedade Civil. Dessa forma, há necessidade de adap-
tras estratégias, envolve o corte de gastos sociais públicos e tar o modelo de atenção à Saúde do Trabalhador para “que
a privatização. Decisões políticas como essas ocasionam as medidas capazes de enfrentar e reverter os perfis
impacto direto na saúde da população (Raphael et al., 2000). epidemiológicos de morbimortalidade dos trabalhadores
Em conseqüência ao desfinanciamento, ocorre deteriora- sejam compatíveis com as rápidas transformações sociais
ção e aumento do desprestígio das instituições públicas de e com as mudanças na correlação de forças na dinâmica
saúde, ajudando “a criar a demanda ao setor privado e a tor- da relação entre o Estado e a Sociedade Civil”.
nar o processo de privatização socialmente aceitável” Apesar das dificuldades, a busca de eficiência na atenção
(Laurell, 1995). O Brasil torna-se exemplo disso pois, “à à Saúde do Trabalhador não deve ser utópica, e do ponto de
medida que o SUS passou a ser desacreditado, ocorreu o vista da saúde pública e da administração dos fundos públi-
privilégio do atendimento na rede privada conveniada e a cos é dever prioritário. Profissionais do setor saúde devem
ampliação da procura, por parte da população, pelos convê- priorizar a produção de serviços que atendam às necessida-
nios de seguro médico privado” (Faria; Jatene, 1995). des reais dos trabalhadores (Dussault, 1995; Faria; Jatene,
Desse modo, é evidente a utilização do setor privado 1995). Para o planejamento das ações e políticas a serem
pelos que ostentam maior renda e do ramo público pelos adotadas, é preciso conhecer antes o padrão de utilização dos
menos favorecidos financeiramente. Quando esses que serviços pelos indivíduos em relação ao perfil de necessida-
possuem pouca capacidade de pagamento e alto risco de des dos diversos grupos sociais que os demandam. Sabe-se

98
SERVIÇOS DE SAÚDE DO TRABALHADOR: A CO-GESTÃO EM UNIVERSIDADE PÚBLICA

que é a necessidade que leva ao uso. No entanto, a necessi- modos de financiamento diversos: o subsistema de alta
dade é determinada por fatores que expressam dimensões tecnologia, o subsistema privado autônomo ou de assis-
biológicas e sociais dos indivíduos. tência médica supletiva e o subsistema público.
De acordo com Pinheiro e Travassos (1999), sexo, ida- No topo da pirâmide estaria o subsistema de alta
de, raça e condição social interferem na utilização. As tecnologia e alto custo. Embora haja entidades públicas e
mulheres, os indivíduos em extremos da cadeia etária (pela privadas e também o “mix público-privado” como
maior ocorrência de doenças e maior necessidade de pre- prestadores, o que se observa é que os grupos sociais mais
venção) e pessoas com boa condição social, estariam mais ricos conseguem acesso privilegiado a esse tipo de servi-
sujeitas a usar os serviços de saúde. Existiriam ainda “fa- ço. Isso caracteriza esse setor como clientelista e altamente
tores capacitantes associados à oferta”, são eles: a dispo- seletivo. Nesse subsistema, de 2% a 3% da população
nibilidade de recursos humanos e físicos, facilidade de certamente consumiriam mais de 30% dos recursos do SUS
acesso, a forma de financiamento e a forma de pagamento (Santos, 1990).
ao prestador. No meio da pirâmide estaria o subsistema privado. Esse
Na Unicamp, é interessante ressaltar que a sensação de subsistema que fornece a seus segurados uma assistência
dificuldade em utilizar os serviços pelos trabalhadores é médica supletiva, e responsável por ofertar principalmente
acentuada pelo convívio com centros de excelência no maior número de consultas médicas e fornecer atendimento
atendimento médico do SUS, como o HC e toda a área da hospitalar, ainda estaria em franca expansão. Entretanto,
saúde, sempre sobrecarregados. Aqui, cerca de doze mil o próprio contexto social brasileiro impõe limite para o
servidores realizam tarefas para manter em funcionamen- crescimento. Por ser um serviço voltado para a classe
to a produção de mão-de-obra, informação e serviços que média, trabalhadores do mercado formal, grandes e mé-
se constitui finalidade da Universidade Pública. Essas dias empresas e considerar-se que o mercado informal é
pessoas, direta e indiretamente, estão expostas a fatores significante no Brasil, acredita-se que esse setor, em al-
que podem causar perturbação à saúde, seja no ambiente gumas regiões, já possa estar estagnando-se e procurando
de trabalho, seja fora dele. mecanismos para manter-se.
Justifica-se portanto a necessidade de construção de um Na base da pirâmide estaria o subsistema público – re-
modelo assistencial eficiente e específico para essa popu- presentado, também, pelos serviços privados contratados e
lação. Um modelo alternativo que: seja capaz de interagir filantrópicos. Esse setor seria responsável por atender a ca-
com os servidores de forma benéfica para todas as cate- mada da população de menor poder aquisitivo, de mais bai-
gorias; seja capaz de atender aos anseios dos servidores e xa renda, com mão-de-obra de menor qualificação e o mer-
de seus empregadores; adote ações preventivas (abrangen- cado informal da economia. Além de fornecer atendimento
do medidas de segurança no ambiente de trabalho e vigi- predominantemente ambulatorial e assistência de alta com-
lância à saúde); envolva a participação ativa dos usuários plexidade, o setor público seria responsável ainda por aten-
no processo decisório; estimule a criação de vínculo en- der também aos casos de urgência e emergência. Enquadram-
tre profissional de saúde e usuário; possua sistema de re- se nessa situação os acidentes de trabalho, os acidentes de
ferência e contra-referência hierarquizado. Um modelo que trânsito, infartos, lesões decorrentes de tentativa de suicídio.
seja capaz de ajustar a real necessidade do trabalhador e Entretanto, a despeito da justeza dos princípios do SUS, a
de seus dependentes aos serviços prestados; no qual haja realidade assistencial expressa mais um desejo que uma rea-
equivalência entre o serviço utilizado (se utilizado) e o lidade (Cecílio, 1997).
valor pago por ele.
CO-GESTÃO
CONFIGURAÇÃO DO SISTEMA
DE ATENÇÃO À SAÚDE ATÉ 2002 Um modelo que pode ajustar-se às transformações so-
ciais, por envolver a participação de mais de um elemen-
Após os anos 80, o sistema de atenção à saúde no Bra- to, é o de co-gestão, no qual as decisões são democráticas.
sil adquiriu nova conformação. Esse sistema, conforme a A palavra co-gestão significa “gestão em comum; ad-
descrição de Giovanella e Fleury (1996), teria forma pi- ministração ou gerência em sociedade” (Ferreira, 1999).
ramidal e seria composto de três subsistemas com lógica Como também demonstra Silva (1991), o “prefixo co, que
de estruturação, clientelas, complexidade tecnológica e entra na formação da palavra co-gestão, designa exata-

99
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 17(1) 2003

mente que se trata de decisão que não se toma isolada- entanto, a falta de continuidade dessa política, quando não
mente, mas com a participação de outra vontade”. foram articuladas gestões de nível local com níveis supe-
Embora mostre a co-gestão no âmbito do estabeleci- riores – estado e federação, comprometeu o setor saúde
mento e da empresa, Silva (1991) diz que esse princípio nos anos seguintes. Em lugar da política de serviços pú-
está vinculado à participação e não envolve somente os blicos foi adotada a política de privatização por meio de
interesses do empregado e do empregador, mas transcen- supostas cooperativas autônomas de prestadores de ser-
de essa relação ganhando presença “em todas as comuni- viços, denominada “PAS” (Plano de Atendimento à Saú-
dades organizadas de prestígio e representatividade da de). Essa, além de retroceder a iniciativa anterior, retirou
sociedade”. mecanismos sociais de controle previstos no SUS e, se-
Muito além das definições e classificações que possam gundo Carvalho (2002), possibilitou comprovada corrup-
surgir aplicadas a diferentes áreas do conhecimento hu- ção e desperdício de recursos públicos.
mano, a palavra co-gestão assume neste artigo o sentido A implicação das premissas de universalidade, hie-
de qualificação de um modelo assistencial que procura rarquia e eqüidade do SUS brasileiro fez com que ser-
meios para instalar-se plenamente. Considerando os as- viços privados sejam contratados pelo Sistema Público
pectos e as possibilidades materiais e intelectuais que a de Saúde para atendimento complementar, ou seja,
Universidade Pública dispõe, a co-gestão representa a idéia credenciado pago e submetido à auditoria pelo poder
de se organizar os serviços de atenção à saúde no câmpus público. No entanto, os trabalhadores ainda contratam,
com a participação, no processo decisório e nas ações em adicionalmente, atendimento e cobertura para serviços
saúde, do leque ampliado de atores sociais envolvidos: de saúde externos ao SUS, sendo chamados então de
Universidade Pública, SUS, profissionais de saúde (pro- Serviços Suplementares.
vedores dos serviços), e os trabalhadores. Este modelo Esses serviços são regulados, no Brasil, pela Agência
alternativo, local, co-gerido, longe de ser perfeito, pode Nacional de Saúde Suplementar (ANS), embora subordi-
ser uma forma de reduzir, na prática, o hiato existente entre nada ao Ministério da Saúde, não faz pagamentos ou au-
a universidade, no conjunto de suas potencialidades, e a ditoria e atua apenas como agência reguladora. Faz-se
realidade das necessidades da comunidade universitária portanto necessário, que a contratação desses serviços
no tocante à saúde. pelos trabalhadores seja aproximada dos padrões de de-
Destaca-se que os profissionais de saúde no SUS já mocracia, governabilidade e transparência que servem de
dispõem de representação no modelo gestor, dividindo com modelo para os serviços de saúde do SUS. Para isso, a
os gestores cerca de 25% da representatividade dos con- estratégia escolhida é a da co-gestão.
selhos. No entanto, na assistência supletiva privada, os
profissionais que ministram atendimento não dispõem OBJETIVO E FONTES DE INFORMAÇÃO
dessa oportunidade e isso é ressaltado na co-gestão pri-
vada como novidade. O presente artigo visa discutir e adaptar um modelo de
Evidências de que a co-gestão na área da saúde funciona co-gestão para o provimento de serviços públicos e pri-
são encontradas na administração do Município de São vados suplementares de saúde em universidade estatal a
Paulo entre 1989 e 1992, que inovou ao delegar poder de seus próprios servidores de acordo com as normas legais.
decisão às Comissões de Gestão, transformando a demo- Decorre de inquérito realizado em 1998 por Corrêa-Filho
cracia participativa em democracia direta. Isso ocorreu et al. (2001) para avaliar a demanda e a utilização dos
graças à descentralização do poder que estava nas mãos serviços de saúde pelos servidores da Unicamp. Com o
do Estado e passou para as mãos das Comissões de Ges- objetivo de ajustar a oferta desses serviços às necessida-
tão. Essas eram compostas por representantes dos usuá- des dos usuários utilizou-se questionários semi-estru-
rios, representantes dos profissionais da saúde e represen- turados, auto-respondidos, que foram enviados aos 12.005
tantes da administração pública. Assim, usuários e trabalhadores ativos e aposentados com os comprovantes
profissionais da saúde passaram a ser co-responsáveis pela de pagamento. À época, foram devolvidos 3.615 questio-
gestão pública da saúde. Nos quatro anos do funcionamen- nários que compuseram o banco de dados da pesquisa.
to desse modelo, os recursos orçamentários destinados à Essas informações foram então disponibilizadas para tra-
saúde aumentaram de 10,6% para 15,4%, e 48% desses balho subseqüente pela equipe de investigadores do La-
recursos eram destinados à área social (Cohn, 1996). No boratório de Aplicação em Epidemiologia (Lape).

100
SERVIÇOS DE SAÚDE DO TRABALHADOR: A CO-GESTÃO EM UNIVERSIDADE PÚBLICA

Assim, foram agregados dados de literatura Medline e O Centro de Saúde da Comunidade (Cecom) é o servi-
Lilacs sobre: serviços de saúde, políticas de saúde, traba- ço responsável por prestar atendimento médico e odon-
lhadores e saúde pública, e formulou-se, em conseqüên- tológico gratuito a todo o câmpus. Possui estrutura cen-
cia, uma proposta de co-gestão dos serviços de saúde pú- tralizada, subordinada à reitoria da Universidade, não
blicos e privados para trabalhadores em Universidade permite a participação do trabalhador e detém-se ao cará-
estatal, detalhando atores sociais envolvidos, represen- ter curativo da assistência à saúde. Nele são atendidos os
tatividade e poder de decisão. servidores, os universitários, estagiários, professores vi-
sitantes, trabalhadores terceirizados e adolescentes esta-
ASSISTÊNCIA PÚBLICA À SAÚDE DO giários denominados “guardinhas”. Esse é prestador de
TRABALHADOR DA UNICAMP serviços de nível primário e de alguns do secundário e,
por não ser uma policlínica especializada, algumas vezes
Os principais prestadores de serviço à assistência mé- há necessidade de referenciar-se ao Hospital das Clínicas
dica do trabalhador da Unicamp são: os Centros de As- (HC) ou ao Centro de Assistência Integral à Saúde da
sistência Médica Ambulatorial (Ceama) vinculados ao Mulher (CAISM) nas especialidades não disponíveis no
Instituto de Assistência Médica ao Servidor Público Es- Cecom. Além de atenderem aos encaminhamentos, o HC
tadual (Iamspe); outras clínicas ou hospitais do Siste- e o CAISM da Unicamp atendem, em seus serviços de pron-
ma Único de Saúde (SUS); o Centro de Saúde da Co- to-atendimento, às emergências e urgências dos servidores.
munidade (Cecom), o Hospital de Clínicas (HC) e o Apesar de o caráter supostamente primário do Cecom,
Centro de Atenção Integral à Saúde da Mulher (CAISM) não existe referência estruturada para o nível secundário.
da Unicamp. Logo, é comum o próprio servidor demandar diretamente
Dos servidores públicos estaduais são descontados 2% a especialidade que julga adequada.
de seus rendimentos brutos que, destinados ao Instituto Como revelam Corrêa-Filho et al. (2001), o Cecom foi
de Assistência Médica ao Servidor Público Estadual o serviço mais procurado entre os trabalhadores que ne-
(Iamspe), tornam essa entidade responsável pela assistên- cessitaram de atendimento clínico geral nos 15 dias que
cia médica e hospitalar aos contribuintes e seus benefi- antecederam o inquérito (Gráfico 1).
ciários. Essa contribuição compulsória desses servidores De acordo com a Tabela 1, o último serviço mais pro-
“tem representado a fatia maior da receita do instituto, curado pelos trabalhadores para atendimentos de saúde
chegando a corresponder a mais de 80% de toda a recei- geral nos 15 dias que antecederam o inquérito foi o Cecom.
ta” (Lima; Carvalho, 1998). Entretanto, a inexistência de Já o HC da Unicamp foi o último serviço utilizado por
serviços credenciados próximos representa uma realida- 4,6% dos trabalhadores, enquanto a participação dos
de com a qual a maioria dos servidores da Unicamp não Ceamas foi inexpressiva.
pode contar. Na capital, o atendimento é feito no Hospi- Quando há necessidade de encaminhamentos para saúde
tal do Servidor Estadual (HSE) e no interior, nos Centros do trabalhador, são feitos sem distinção para as institui-
de Assistência Médica-Ambulatorial (Ceama) (Lima; Car- ções que atendem aos serviços gerais de saúde. Dessa for-
valho, 1998). Segundo Melhem (1998), diante da busca ma, além de enfrentarem a grande demanda do SUS, os
de reformulação do Iamspe, parlamentares estaduais re- trabalhadores correm o risco de não terem a assistência
conhecem a escassez de Ceamas no interior. específica para saúde do trabalhador.
Fora do câmpus universitário, os trabalhadores que Corrêa-Filho et al. (2001) demonstram que, no tocante
necessitam de atendimento no SUS buscam Centros de aos afastamentos do trabalho, dos 16% que referiram ter
Saúde (CSs) e serviços de Pronto-Atendimento para re- se afastado nos últimos 12 meses, 99,6% estavam vincu-
solução de seu problema de saúde, e são encaminhados lados diretamente a doenças. Ainda, 66,7% dos que tive-
para níveis superiores da hierarquia do SUS quando ne- ram acidente de trabalho com lesões não conhecem o tra-
cessário. Como o SUS é um sistema público, o servidor balho do representante da Comissão Interna de Prevenção
não paga as consultas que recebe, pois isso já é feito indi- de Acidentes (Cipa).
retamente quando paga impostos. Já o oposto é observa- Cerca de 7,8% dos servidores sofreram lesão em aci-
do nos serviços particulares, nos quais o servidor procura dentes no trabalho nos 12 meses anteriores ao inquérito e
uma clínica ou um hospital pertencente a esses serviços e 5,3% lembraram ter feito a comunicação de acidente de
paga pelo atendimento prestado a ele. trabalho (CAT).

101
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 17(1) 2003

TABELA 1 NOVA ESTRUTURA


Distribuição de Docentes e Funcionários da Unicamp, segundo o Último
Serviço de Saúde Procurado para Atendimento a Necessidades
Clínicas nos 15 Dias que Antecederam o Inquérito
Pela necessidade de incorporar o princípio de integra-
Campinas – 1998 lidade do SUS, o modelo proposto não deveria ancorar-
se somente nas ações de assistência clínica mas engloba-
Serviço de Saúde Procurado Números Absolutos % ria as ações de prevenção de doenças, de promoção da
saúde e de vigilância à saúde do trabalhador. Assim, deve-
Total 3.615 100,0
Não Necessitou Atendimento 1.998 55,3 se buscar a implantação de uma política integrada de pro-
Cecom 483 13,4 moção da saúde e vigilância em saúde do trabalhador, isto
HC-Unicamp 165 4,6 é, a articulação contínua de ações de prevenção e cura.
CAISM 7 0,2
Ceama 1 0,0 É necessário distinguir o Serviço de Assessoria Patro-
Outros Serviços 222 6,1 nal de Medicina do Trabalho – hoje denominado Serviço
Ignorado 739 20,4 de Segurança e Medicina do Trabalho (SESMT) do que
Fonte: Corrêa-Filho et al., 2001. se propõe neste artigo, ou seja, como um Serviço de Pre-
venção e Assistência para a Saúde dos Trabalhadores em
GRÁFICO 1 Co-Gestão.
Distribuição de Docentes e Funcionários da Unicamp, segundo Problemas O primeiro, assemelha-se ao já disposto em Portarias
de Saúde e Atendimento Clínico nos 15 Dias que Antecederam o Inquérito Ministeriais brasileiras. Na presente proposta este servi-
Campinas – 1998 ço manteria suas funções de assessoria patronal mas tor-
nar-se-ia impossibilitado de sujeitar ao exame clínico os
funcionários. Por obrigação ética decorrente da lógica da
relação médico-paciente, não pode haver um terceiro – o
empregador – dominando o contrato de serviço e confiança
existente entre um funcionário e um assessor patronal.
Como médico-assessor pode ler prontuários mas não exa-
minar pessoas.
O segundo serviço, proposto no presente estudo, por ser
co-gerido, teria características de multiprofissionalidade pre-
ventiva e assistencial. O mandato do contrato de trabalho
estaria governado pelo conselho gestor e teria reavaliação
periódica com duração maior que os mandatos dos gover-
nantes, no caso dos serviços públicos. A intenção seria im-
Fonte: Corrêa-Filho et al., 2001. pedir demissões e contratações eleitoreiras, conferindo esta-
bilidade relativa aos profissionais.
O estudo realizado por Gentil e Corrêa-Filho (2001) O trabalhador, em seu papel de cliente do serviço co-
apresenta os afastamentos sofridos pelos trabalhadores da gerido, pode aceitar ou não ser examinado pelos profissio-
Unicamp, confirmando “a necessidade de dedicar-se aten- nais de saúde do mesmo. Em caso de não aceitar obriga-
ção especial às condições de trabalho desses funcionários”. se a trazer atestados de serviços externos com relatórios
Os autores alertam para a necessidade de realização de de acompanhamento e tratamento caso necessário. Se não
um programa de vigilância em saúde do trabalhador. desejar nenhum serviço de saúde teria que abrir mão de
Constatou-se que o Cecom, no período 1998-2002, tor- seus direitos assinando uma desistência, cujo valor jurí-
nou-se uma estrutura centralizada, que não permitiu a parti- dico seria questionável.
cipação do usuário e deteve-se no caráter curativo da assis- No caso de um profissional de serviço de saúde do tra-
tência à saúde, não abrigando o Serviço de Segurança e balhador receber do cliente exigências ou imposições que
Medicina do Trabalho (SESMT). O SESMT, que esteve in- não possa aceitar, pode recusar-se a atendê-lo e enviar a
tegrado a essa estrutura, foi repassado para o Departamento outro colega, com a devida justificativa.
Geral de Recursos Humanos (DGRH) e tornou-se desvin- A nova estrutura (aqui denominada Centro) ofereceria
culado da estrutura prestadora de serviços. atendimentos de nível primário e secundário, ilustrados

102
SERVIÇOS DE SAÚDE DO TRABALHADOR: A CO-GESTÃO EM UNIVERSIDADE PÚBLICA

na Figura 1. Nesse Centro seriam atendidos servidores da MODELO PRIVADO SUPLEMENTAR PRESENTE
Unicamp, trabalhadores terceirizados, professores visitan- E A NOVA PROPOSTA
tes e estudantes da Unicamp. Nesse trabalho, os estudan-
tes são considerados trabalhadores por passarem boa par- Nos casos em que essas situações ocorrem, o trabalho
te de seu tempo estudando em órgão público, financiado de Corrêa-Filho et al. (2001) analisa a grande capacidade
pela população, com o objetivo de aprimorar conhecimen- de contratação de serviços de assistência médica suple-
tos e, ao exercerem a futura profissão, reverter o investi- mentar por parte dos servidores (Gráfico 2). Nesses casos
mento à sociedade. Portanto, os universitários fazem par- o trabalhador assegura assistência pelo pagamento de pla-
te da comunidade beneficiária. nos de saúde ou de seguros de saúde. Nos dois modelos o
A estrutura proposta contaria com uma porta de entra- trabalhador participa pelo pagamento de uma taxa mensal
da no nível primário, comum a servidores e estudantes, e utiliza os serviços inclusos no contrato. A diferença está
que seria responsável pelo atendimento básico e, em ca- no fato de que, quando utiliza um serviço particular, o
sos de necessidade de outra especialidade, direcionamento cliente do seguro-saúde necessita desembolsar o valor do
do cliente para o serviço de referência competente. No atendimento prestado, e é reembolsado pela seguradora
caso dos estudantes, o Centro ofereceria somente o aten- ao apresentar comprovante de utilização e pagamento. Já
dimento básico, e se houvesse necessidade de outra espe- no plano de saúde o cliente não precisa pagar pelos servi-
cialidade seria feito encaminhamento ao nível secundário ços constantes no contrato quando utiliza serviço particu-
do SUS, que se encarregaria de seguir as devidas referên- lar. Em ambos, é necessário que o serviço de prestação de
cias. Dessa forma, o Centro atenderia os estudantes ape- assistência médica seja credenciado como prestador de
nas no nível primário (Figura 1). serviços do plano ou do seguro. O Gráfico 3 revela que
Na questão de procedimentos e serviços de nível secun- quase 80% deles têm acesso a sistemas privados. Entre os
dário, há dúvida de quais deveriam ser disponibilizados pelo servidores da Unicamp, no que se refere à cobertura por
Centro, mas a necessidade de uma policlínica especializada planos de saúde, 64,2% possuem a Unimed como plano
(nível secundário) é indiscutível ao serviço. Ela deve ater-se de saúde; 13,6% possuem outro plano de saúde; 3,5%
principalmente à manutenção da saúde dos trabalhadores, que possuem seguro-saúde; 1,5% possuem seguro-saúde e
ao necessitar de atendimento de nível secundário, não dis- Unimed. O trabalho revelou ainda que apenas 16,9% uti-
ponível na policlínica, ou nível terciário deveria ser encami- lizam somente o SUS.
nhado ao SUS ou a serviços suplementares. Esses últimos Esses dados revelam quão diferenciada é essa popula-
responderiam pelo atendimento de complicações, dificulda- ção, já que de acordo com Pesquisa Nacional por Amos-
des de diagnóstico, doenças crônicas e degenerativas, neces- tra de Domicílios – PNAD/IBGE (Brasil, 1998) 75,5%
sidade de internação e terapêutica especializada. da população não é coberta por planos de saúde.

FIGURA 1 GRÁFICO 2
Esquema dos Níveis de Atendimento à Saúde do Trabalhador da Unicamp e Acesso dos Servidores a Serviços Suplementares de Saúde
dos Estudantes, Sugeridos para a Nova Estrutura Campinas – 1998
Campinas –1998

Fonte: Corrêa-Filho et al., 2001. Fonte: Corrêa-Filho et al., 2001.

103
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 17(1) 2003

GRÁFICO 3 GRÁFICO 4
Distribuição da Procura por Serviços de Saúde Especializados Distribuição de Internações, por Serviço de Saúde nos Últimos 12 Meses
pelos Servidores e seus Dependentes nos Últimos 15 Dias Campinas – 1998
de Acordo com o Atendimento
Campinas – 1998

Fonte: Corrêa-Filho et al., 2001. Fonte: Corrêa-Filho et al., 2001.

O Gráfico 3 confirma a maior procura dos trabalhado- vados suplementares, o presente trabalho recorre a diver-
res por atendimento de saúde especializado nos sistemas sos autores para fundamentar a proposta.
privados quando comparada aos serviços públicos. Reve- De acordo com Silva et al. (1997): “o papel do setor
la também que, exceto para o atendimento odontológico, privado no financiamento e produção dos serviços de saú-
os servidores possuem a Unimed como principal prove- de, bem como sua articulação com o setor público, consti-
dor de consultas médicas especializadas. Mesmo os ser- tuem-se hoje em uma etapa central do debate sobre as
vidores possuindo o Cecom, na Unicamp, como provedor alternativas mais eficazes e menos custosas para a orga-
de serviço odontológico gratuito, a maioria dos usuários nização setorial em diversos países do mundo”.
procura atendimento particular, provavelmente em razão A Suécia, como muitos outros países, está submeten-
da grande demanda e sobrecarga desse serviço. do-se a uma rápida mudança no sistema de atenção à saú-
Os Gráficos 3 e 4 exibem a procura por serviços de de. Dentro da estrutura de financiamento público, os con-
saúde especializados pelos servidores e seus dependentes selhos locais têm começado a experimentar novos modelos
e internações entre SUS e Unicamp – essa separação foi de serviços que incorporem alguns elementos de marketing
feita apenas para fins de análise: a categoria SUS repre- orientados ao sistema, tais como a competição pública e
senta utilização de serviços públicos fora da Unicamp, que privada e empreendimentos cooperativos.
também é do SUS. Como mostra o estudo comparativo de Hansay et al.
Quando se observa o percentual de internação de ser- (1993), em janeiro de 1988, um centro de cuidados de
vidores por serviço de saúde nos últimos 12 meses (Grá- saúde gerenciado pelo setor privado, entretanto publica-
fico 4) no trabalho de Corrêa-Filho et al. (2001), consta- mente financiado (study centre), foi estabelecido em uma
ta-se mais uma vez a importância dos provedores privados, área do subúrbio de Estocolmo. O contrato entre o em-
sobretudo a Unimed. preendedor privado e o conselho local de Estocolmo re-
O percentual de internação foi igual a 17,5% nos 12 queria que os cuidados de saúde fossem fornecidos a uma
meses que antecederam o inquérito, com nível de confiança população geograficamente definida e que o primeiro ado-
de 95% e sem diferenças significativas entre as diversas tasse os mesmos princípios dos serviços públicos de ou-
categorias profissionais e com relação ao grau de escola- tras áreas. O cuidado deveria ser baseado então nas prin-
ridade. cipais diretrizes do sistema primário de atenção à saúde
Na tentativa de elaborar um sistema de co-gestão al- sueco, mas o empreendedor deveria decidir como organi-
ternativo para os servidores que utilizam os sistemas pri- zar o trabalho. Isso incluía empregar pessoas, custos por

104
SERVIÇOS DE SAÚDE DO TRABALHADOR: A CO-GESTÃO EM UNIVERSIDADE PÚBLICA

aluguel, equipamentos. No entanto, a marca do modelo é tinham algum Plano de Saúde, quase 80% desses por in-
o afastamento do estado de sua obrigação de prover a as- termédio de alguma associação profissional, e, por causa
sistência. Como resultado básico, observou-se que a re- da inviabilidade – a curto e médio prazo – de incorporar
dução de gastos esteve associada à restrição de ações pre- uma despesa dessa magnitude no orçamento da Unesp,
ventivas e informativas aos pacientes. Ao tentar substituir julgou-se que a costura de um Plano de Saúde próprio era
o sistema público como provedor de cuidados primários, necessária; para tanto, passaria por amplo acordo entre as
implantando o sistema privado de cuidado gerenciado associações envolvidas, os servidores interessados, as
(mannaged care), inspirado no modelo americano, a Sué- entidades prestadoras de serviços e a própria Reitoria.
cia excluiu a possibilidade de controle social e vinculou Assim, em junho de 1998, foi realizada uma reunião
perversamente, mais uma vez, a saúde à perspectiva de entre a Pró-Reitoria de Administração (Prad), o Sintunesp,
lucro. Por fim, o modelo sueco teve como base a mera a Adunesp e os representantes das Associações de Servi-
substituição das obrigações dos serviços públicos por pri- dores, na qual, entre outras coisas, decidiu-se por consti-
vados – levando ao controle de custos sem garantias de tuir uma Comissão para estudar um Plano de Saúde viável
que os gastos implicariam qualidade e falhando porque para as características e as necessidades da comunidade.
não foi incluída alguma forma de controle social externo. Desse trabalho surgiu o Mais Unesp – Manutenção e As-
Existem atualmente, segundo Duarte (2001), quatro sistência Integral à Saúde dos Servidores da Unesp (Mais
modalidades assistenciais principais de medicina supleti- Unesp, 2002).
va: medicina de grupo, cooperativas médicas, os planos Considerando as semelhanças entre o trabalho realiza-
próprios das empresas e o seguro-saúde; cada uma com do na Unesp e o trabalho realizado na Unicamp por Corrêa-
formas de estruturação, gerenciamento, financiamento e Filho et al. (2001), acredita-se que esse seja um momento
clientelas próprias. Entretanto, nenhuma dessas modali- oportuno para início dos debates sobre um modelo
dades, tanto no sistema de pré como no pós-pagamento, campineiro de assistência à saúde suplementar para os tra-
envolve formas de representação e participação dos usuá- balhadores da Unicamp.
rios na gestão. Embora seja diferente do modelo de autogestão adota-
A mescla dessa iminente necessidade dos usuários da do na Unesp, quanto às formas de representação adminis-
assistência médica supletiva com iniciativa reformadora trativa, o sistema de co-gestão aqui proposto apresenta
do Estado, que cada vez está mais pronunciada, e os inte- como características em comum: não ter finalidade lucra-
resses dos profissionais de saúde pode criar uma solução tiva, ou seja, o que seria lucro é revertido em benefícios
viável para ser aplicada em nível local a uma população para os usuários; o plano de saúde ser gerado de acordo
adscrita à grande empresa pública. com as características e necessidades dos usuários; pre-
Um caso de implantação de assistência privada em am- tender agregar outros tratamentos; pretender alcançar o
biente universitário, no período 1998-2000, que pode ser nível de atenção integral à saúde; propor assistência aos
parcialmente analisado é o da Universidade Estadual dependentes dos servidores; pretender adotar custos finais
Paulista; “a Unesp, preocupada em instituir um programa bem inferiores aos planos de saúde equivalentes em ou-
de saúde voltado a sua comunidade, abrangendo seus ser- tras modalidades do mercado; possibilitar o desenvolvi-
vidores docentes e técnico-administrativos, seus dependen- mento de programas de prevenção à saúde e de incentivo
tes e o corpo discente, em 1989, instituiu uma Comissão à qualidade de vida (Mais Unesp, 2002).
para estudar a implantação do Plano de Assistência Médi- No modelo co-gerido, cada um dos quatro grupos en-
ca e Odontológica na Unesp” (Mais Unesp, 2002). Com volvidos elegeria periodicamente seus representantes, for-
base nisso, várias experiências foram realizadas e aprimo- mando uma comissão tetrapartite responsável pela gestão
radas, incluindo tentativas de contratação de uma empresa dos serviços de saúde no câmpus (Gráfico 5). Por permi-
especializada para prestação de serviços de assistência tir a participação ativa e constante de todos, esse modelo
médica, hospitalar, cirúrgica, ambulatorial e serviços au- facilitaria a disseminação das informações e promoveria
xiliares, complementares de diagnóstico e terapia, e a Uni- maior interesse, principalmente dos trabalhadores, nas
versidade arcaria com parte do custo escalonado de acor- discussões relativas à saúde.
do com os salários dos servidores (Mais Unesp, 2002). Acredita-se hoje que uma das limitações fundamentais
Com base em estudo realizado em 1995 na Unesp, ve- do sistema privado é justamente o fato de que o consumi-
rificou-se que aproximadamente 60% de seus servidores dor não conta com a informação e a autonomia de decisão

105
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 17(1) 2003

GRÁFICO 5 siderarmos que a saúde do trabalhador é um fator que o


Participação da Universidade, do SUS, dos Profissionais de Saúde capacita ao trabalho e que a Universidade Pública é o
e dos Trabalhadores na Gestão dos Serviços de Saúde
em Câmpus de Universidade Pública
empregador.
Campinas – 1998 O trabalho de Corrêa-Filho et al. (2001), no item prio-
ridades espontâneas, revelou que há um desejo evidente
da comunidade universitária de melhoria do sistema de
atenção à saúde no câmpus. A inexistência de um serviço
de saúde local que atenda de forma rápida às demandas
por atendimento de saúde mental, problemas cardiovas-
culares, nutrição e outros, dos servidores e principalmen-
te de seus dependentes, é uma das razões que os levam à
contratação de planos suplementares. Os Gráficos 3 e 4
mostraram que tanto os serviços do Iamspe quanto do SUS
são pouco utilizados pelos servidores.
Analisando o setor privado, julga-se, aqui, que a con-
tratação de planos de saúde pelos servidores não é a me-
Fonte: Corrêa – Filho et al., 2001.
lhor alternativa para eles, assim como não o é para a uni-
versidade pelos seguintes motivos: as modalidades atuais
necessárias para eleger o tipo de serviço que necessita, de assistência médica suplementar impedem mecanismos
assim como desconhece a prestação mais adequada para de controle social; não há uma atenção especial às neces-
resolver seus problemas com menor custo e melhor quali- sidades de toda essa população; e a maioria delas envolve
dade. Assim, o prestador controla e influi decisivamente a perspectiva de lucro. Dessa forma, a falta de veículos
na demanda de prestações com o propósito de aumentar que permitam a participação dos servidores na gestão des-
seu lucro e dessa forma maximizar sua ganância (Navarrete ses planos, a atenção à saúde de forma fragmentada e a
et al., 1992). não potencialização dos recursos concorrem negativamente
Diferentemente do serviço privado tradicional, o usuá- para configuração de eficientes sistemas de saúde.
rio do modelo aqui proposto deverá ser constantemente Sempre haverá situações e serviços que acabarão de-
informado acerca do funcionamento e da quantidade de sembocando na grande porta, quase sempre sobrecar-
recursos que dispõe (equipamentos, exames, especialis- regada, em que o SUS se constitui. O sistema de saúde
tas e outros). Além de compreender melhor as atividades privado aqui proposto, co-gerido, local, suplementar ao
desenvolvidas, a co-gestão permite aos usuários compar- SUS e alternativo às demais modalidades de assistência
tilhar a decisão de como e onde seus recursos financeiros médica, pretende, dentro de suas limitações estruturais,
serão alocados. minimizar essa porta de saída oferecendo serviços de acor-
Bahia (2001) acredita que “a divisão entre o sistema do com o perfil de necessidade dessa população. Não se
público e privado segue baseada na idéia de clientes deseja e não se pretende de forma alguma substituir a aten-
pagantes e não-pagantes”. Esse modelo pode possuir um ção terciária fornecida pelo SUS em níveis mais comple-
caráter de sistema privado por ser uma forma de assistên- xos. Pretende-se, apenas, que esse modelo represente uma
cia à saúde suplementar ao SUS, alternativa aos demais opção mais eficiente e mais resolutiva para os servidores,
sistemas de atenção médica supletiva, ser destinado a um podendo ressarcir ao SUS as despesas realizadas com seus
grupo específico e envolver a participação financeira de usuários e dependentes.
seus associados. Entretanto, como não haverá uma em- Implantar uma rede de serviços hierárquica que impe-
presa responsável pela produção dos serviços com o ob- ça, por exemplo, a consulta direta a médico especialista
jetivo de lucro, e por este modelo propor a incorporação sem antes passar por generalista; que possibilite a organi-
e participação de diversos setores da comunidade univer- zação de equipes de saúde responsáveis por determinado
sitária na gestão, essa modalidade de atenção assume mais grupo de servidores e seus dependentes; que promova pro-
um caráter de articulação dos interesses públicos com os gramas constantes de educação e promoção à saúde; que
interesses de seus servidores. E, neste caso, os interesses priorize a atenção preventiva em detrimento da curativa, é
não são exclusivamente privados, principalmente se con- fator que pode diferenciar esse modelo privado dos demais.

106
SERVIÇOS DE SAÚDE DO TRABALHADOR: A CO-GESTÃO EM UNIVERSIDADE PÚBLICA

MODELO GERAL DE CO-GESTÃO dependente da decisão sobre os descontos para assistên-


PARA A UNIVERSIDADE cia médica que o Estado faz hoje do pagamento dos fun-
cionários. A estipulação de valores é uma tarefa que
O modelo proposto para a nova estrutura é o de co- extrapola as possibilidades desse trabalho. Mesmo assim,
gestão tanto para o serviço público de saúde do trabalha- acredita-se que o deslocamento da contribuição dos ser-
dor, quanto para o serviço privado suplementar. Propõe- vidores da Unicamp, do Iamspe para um serviço de saúde
se a formação de comissões de co-gestão constituídas por próprio, já se constitui, de início, fonte provável de divi-
representantes do Poder Público, da Unicamp e dos tra- sas. Oliveira e Vasconcellos (1992) já afirmavam que a
balhadores. execução de uma política eficiente de Saúde do Traba-
O Poder Público é entendido como SUS e Previdência lhador deve, além de transpor a formação de quadros tec-
Social. De acordo com a Lei no 8.080 de 1990, a execu- nicamente competentes e o compromisso com a questão
ção de ações de saúde do trabalhador está no campo de ideológica que envolve a área, atrair a participação do
atuação do SUS, justificando a atuação desse órgão no poder público, dos empregadores e dos trabalhadores.
modelo (Brasil, 1990a). É evidente a presença de conflitos de interesses nesse
A primeira Norma Regulamentadora de saúde do tra- modelo pois, essencialmente, os trabalhadores desejam
balhador apresenta o empregador como responsável pelo atenção adequada à saúde, e a administração da Universi-
que acontece à saúde do trabalhador no âmbito do traba- dade e o Poder Público buscam constantemente o corte
lho, e justificada a participação da Unicamp como em- de gastos. Apesar desses conflitos, o modelo de co-ges-
pregadora (Brasil, 2002). tão (Figura 2), não deve defender interesses de um grupo,
Já a participação do servidor é embasada no que foi mas gerenciar com compromisso social.
estabelecido pela Norma Operacional de Saúde do Tra- Ao serem tomados como compromisso social, saúde e
balhador, afirmando: “o direito de participação dos tra- bem-estar social precisam ser buscados pela comissão de
balhadores e suas entidades representativas em todas as co-gestão por meio da instituição e desenvolvimento das
etapas do processo de atenção à saúde, desde o planeja- ações que a Norma Operacional de Saúde do Trabalhador
mento e estabelecimento de prioridades, o controle per- apresenta, englobando a prevenção de danos à saúde do
manente da aplicação dos recursos, a participação nas ati- trabalhador e o atendimento aos possíveis agravos que
vidades de vigilância em saúde, até a avaliação das ações possa apresentar (Brasil, 1998).
realizadas” (Brasil, 1998). Conforme Oliveira e Vasconcelos (1992), o compro-
Copiando a representação dos usuários nos conselhos misso de mudança na atual situação de assistência à saú-
de saúde, a representação dos trabalhadores no modelo de do trabalhador “deve conter o paradigma do direito à
de co-gestão será paritária em relação ao conjunto dos
FIGURA 2
demais segmentos, isto é, 50% de representantes de tra-
Conflitos de Interesses e o Objetivo Comum, Compromisso Social,
balhadores usuários e 50% dos demais representantes no Modelo de Co-gestão
(Brasil, 1990b).
Como há necessidade de disponibilização de recursos
tanto para a implantação como para manutenção do novo
modelo, o investimento deverá ser feito pelo Poder Pú-
blico e pela Universidade em virtude dos trabalhadores
serem contribuintes da União, já participando desse in-
vestimento para a constituição do SUS. A parcela de par-
ticipação financeira desses dois co-atores não é discutida
aqui, deixando à comissão de gestão a decisão de qual será
a parcela que cada um deva empenhar.
No caso da co-gestão privada dos serviços, a forma
provável de gestão poderia ser a de modelo cooperativo
de usuários de serviços de saúde, com finalidades não lu-
crativas, podendo ou não receber subsídios de manuten-
ção do poder público. A discussão sobre esse subsídio seria Fonte: Corrêa-Filho et al., 2001.

107
SÃO P AULO EM PERSPECTIVA , 17(1) 2003

vida”. Infelizmente, se esse argumento for utilizado como sociedade com o Estado e de construção de novas identi-
justificativa para a implantação desse modelo, é incerto dades de sujeitos sociais. A universidade pública pode
que o Poder Público e a Universidade reconheçam seus interagir com esse modelo propondo estudos periódicos
papéis. Então, é preciso recorrer a Riedel et al. (2001), sobre prevalência de doenças e afastamentos do trabalho
que revelam que o aumento da produtividade é resultado entre servidores do câmpus, realizados por alunos de ini-
da redução de faltas ao trabalho pela prevenção de doen- ciação científica, especialização ou mestrado, favorecen-
ças e a promoção da saúde, e com a melhoria do desem- do o estabelecimento de prioridades. O espaço público
penho, da criatividade e da motivação causada pela admi- precisa ser reconhecido como um ambiente de trabalho
nistração de doenças crônicas e agudas. Também apontam que requer intervenções típicas em saúde. A Unicamp, além
que a redução de gastos com saúde é proveniente de in- administrar esse espaço, é o patrão público de grande nú-
tervenções que proporcionem segurança e saúde ambiental, mero de funcionários que contribuem para geração de re-
e que possibilitem a incorporação de uma cultura saudá- cursos humanos para a sociedade. Articular-se com os
vel. Contudo, os maiores desafios do sucesso de um pro- servidores para a construção de um forte sistema de aten-
grama de prevenção de doenças ou promoção da saúde ção à saúde local torna-se, portanto, um dever.
são conseguir altas taxas de participação e manter a alte-
ração do comportamento com o passar do tempo. CONCLUSÃO
Por vezes, o corporativismo expresso por interesses
egoístas imediatos de categorias profissionais impediu o O modelo aqui discutido propõe estabelecer serviço de
desenvolvimento do trabalho em saúde. A ampliação do saúde público e outro privado para trabalhadores da grande
conceito de saúde com a formação de uma equipe empresa pública – a Universidade – com gestão paritária
multiprofissional, responsável por prover os serviços, rom- (50% trabalhadores; 50% universidade e poder público),
pe com o conceito de cooperativa fundado no exercício seguindo as diretrizes constitucionais e legais do SUS. No
corporativo das profissões. Em que pese o surgimento de serviço privado suplementar propõe-se que os 50% do
novos fatores sociais que impõem o reconhecimento da im- poder público e da universidade sejam também comparti-
portância de condições múltiplas para o estado de “bem- lhados com representantes dos profissionais de saúde que
estar social”, as corporações, entre elas a corporação mé- atendem ao serviço suplementar, ficando portanto cada
dica, têm tentado adaptar-se aos novos tempos e novas segmento com 16% dos votos (Universidade, SUS e pro-
políticas surgidas com a redemocratização do país e o SUS. fissionais de saúde).
Esse movimento é denominado de “neocorporativo” (Ri- A criação de um Serviço de Saúde do Trabalhador efi-
beiro, 1993). No entanto, a corporação médica não conse- ciente e de uma Cooperativa Suplementar Privada
guiu ultrapassar a barreira “intra-corporativa”, pois se des- ofertaria serviços multiprofissionais de saúde capazes de
conhecem referências a cooperativas multiprofissionais de ajustarem-se a novas realidades e sobreviver em momen-
serviços de saúde. tos críticos. A manutenção deste modelo de saúde do tra-
Nesse sentido, propõe-se, para os serviços suplemen- balhador requer condições favoráveis e um ambiente so-
tares privados, a formalização de uma cooperativa não de cial em contínua evolução.
médicos mas de usuários de serviços de saúde, na qual os A adoção do sistema de co-gestão representa avanço
profissionais de saúde seriam contratados – médicos, en- histórico na mudança de comportamento da Universidade
fermeiros, fisioterapeutas, nutricionistas, psicólogos, em relação a seus trabalhadores. A existência de meca-
terapeutas ocupacionais e outros – e teriam assento às de- nismos de controle social sobre a provisão de serviços é
cisões de gestão em proporção compartilhada com a do uma experiência bem-sucedida que já existe no SUS há
gestor público – o “patrão” estatal e SUS. No caso das anos. Adotar essa prática significa abandonar a posição
Universidades, o representante patronal estará na depen- relutante e omissa que a universidade pública vem man-
dência de designação pelas reitorias. O SUS já tem suas tendo.
definições de representação regional estatal definidas em O fato de propor-se este modelo não esgota a discus-
leis e portarias. Esses atores deveriam ter no máximo 50% são e pesquisa sobre decorrências sociais, assistenciais e
do poder de voto, restando aos usuários os outros 50%. políticas, já que a Saúde do Trabalhador, em espaços sub-
Para Cohn (1996), o poder local pode ser um espaço metidos à gerência pública, não tem experiências anterio-
privilegiado para constituição de uma nova relação da res no país.

108
SERVIÇOS DE SAÚDE DO TRABALHADOR: A CO-GESTÃO EM UNIVERSIDADE PÚBLICA

NOTAS DUARTE, C.M.R. Unimed: história e características da cooperativa


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Agradecemos à Dra. Joana D’Arc Vieira Neto, diretora do Serviço de tinuidades e mudanças; Argentina, Brasil, Chile, Espanha, Esta-
Segurança e Saúde do Trabalho, e ao grupo de pesquisa Epidemiologia dos Unidos, México e Quebec. São Paulo: Hucitec; Rio de Janei-
e Saúde do Trabalhador da Unicamp cujas sugestões feitas foram im- ro: Fiocruz, p.245-259, 1995.
portantes para a conclusão deste trabalho.
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110
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 17(1): 111-121, 2003 PREVIDÊNCIA SOCIAL BRASILEIRA: UM BALANÇO DA REFORMA

PREVIDÊNCIA SOCIAL BRASILEIRA


um balanço da reforma

ROSA MARIA MARQUES


MARIANA BATICH
ÁQUILAS MENDES

Resumo: Este texto faz uma análise exploratória do impacto da reforma na previdência social brasileira. Ape-
sar de recente, esperava-se retração na demanda de benefícios, especialmente a de aposentadoria. Contudo, a
evolução dos benefícios aponta para resultados não conclusivos, pois ainda se faz sentir a incerteza do período
anterior. O artigo resgata, ainda, o significado da seguridade social na Constituição de 1988 e explora o con-
texto internacional e da América Latina.
Palavras-chave: reforma previdenciária; financiamento da previdência social; seguridade social.

Abstract: This text carries out an exploratory analysis of the impact of reform on the Brazilian social welfare
system. Though attempts at reform are recent, an expectation was created for a decline in benefit demand,
especially with regard to retirement benefits. However, results are inconclusive, due to uncertainties inherited
from the past. This article goes on to examine the significance of social welfare in the 1988 Constitution and
to explore the international and Latin American contexts.
Key words: welfare reform; financing of social welfare system; social welfare system.

O
debate sobre a necessidade de alteração das go e à previdência em um capítulo específico – da
regras de acesso à previdência social brasilei- Seguridade Social.
ra, bem como sua forma de financiamento, teve O tratamento concedido ao campo da proteção social
início quase que simultaneamente à votação da Consti- na Constituição de 1988 foi resultado da defesa realizada
tuição de 1988. Na época, o próprio governo, que ha- pelos setores progressistas que demandavam, na época, a
via criado o Grupo de Trabalho para embasar a refle- construção de um sistema voltado a: ampliação da cober-
xão e as propostas a serem discutidas na Constituinte, tura para segmentos até então desprotegidos; eliminação
manifestava-se contrário à introdução do piso de um das diferenças entre trabalhadores rurais e urbanos refe-
salário mínimo para os benefícios. Seu argumento era rentes aos tipos e valores de benefícios concedidos;
que a ampliação dos direitos no campo da proteção implementação da gestão descentralizada nas políticas de
social e a concessão do piso de um salário mínimo a saúde e assistência; participação dos setores interessados
todos trabalhadores, inclusive aos rurais que até então no processo decisório e no controle da execução das polí-
não contribuíam, não tinham sido garantidas por um ticas; definição de mecanismos de financiamento mais
volume suficiente de recursos. Segundo sua avaliação, seguros e estáveis; e garantia de um volume suficiente de
em um prazo muito curto, a previdência estaria imersa recursos para a implementação das políticas contempla-
em problemática crise financeira. das pela proteção social, entre outros objetivos.
Apesar das resistências governamentais, os constituin- Na realidade, alguns avanços visando a universalização,
tes, influenciados pelo ambiente político-social da aber- da ampliação da cobertura e a diminuição das desigual-
tura e com um discurso de que era preciso resgatar a enor- dades antecederam a Constituição de 1988. No que diz
me dívida social brasileira herdada do regime militar, respeito à previdência, especificamente entre 1985 e 1987,
aprovaram uma Constituição que procura garantir os di- o valor dos pisos dos benefícios urbanos foi aumentado,
reitos básicos e universais de cidadania, estabelecendo o o prazo de carência, diminuído, e alguns tipos de benefí-
direito à saúde, à assistência social, ao seguro-desempre- cios foram estendidos para a clientela rural. Pode-se di-

111
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 17(1) 2003

zer, contudo, que o amparo social definido pela Consti- e do pagamento do abono PIS/Pasep, sendo 40% de sua
tuição significou a consolidação de um processo de dis- arrecadação destinada a empréstimos realizados pelo
cussão que vinha sendo realizado pela sociedade desde o BNDES às empresas.
final dos anos 70, no bojo da luta democrática.
O AMBIENTE INTERNACIONAL E DA
O AVANÇO DA CONSTITUIÇÃO DE 1988 AMÉRICA LATINA
E SEUS PRINCÍPIOS
O debate acerca da reforma da previdência social, nos
O conjunto de proposições, que garantiu a instituição anos 90, insere-se na discussão realizada internacional-
do campo da seguridade social na Constituição, substi- mente sobre o futuro da proteção social. Entre os cons-
tuía o caráter meritocrático – o qual, até então, havia sus- trangimentos que justificavam essa preocupação, desta-
tentado a proteção social, particularmente na área da pre- cava-se a manutenção de altas taxas de desemprego nos
vidência e na da saúde – pelo princípio da cidadania. Esse países capitalistas avançados, o que comprometia a arre-
princípio, cabe lembrar, foi o mesmo que orientou a cadação das receitas de contribuição de empregados e
universalização da proteção social dos países capitalistas empregadores e o aumento da despesa com o seguro-de-
desenvolvidos, após a Segunda Guerra Mundial e mesmo semprego e programas de renda mínima. Além disso,
durante os anos 70 e 80. Ainda que as economias desses muitos regimes de previdência começaram a apresentar
países começassem a apresentar problemas ao final da problemas na relação contribuintes/beneficiários, não só
década de 70, principalmente devido à retração do cres- como reflexo da nova situação do mercado de trabalho,
cimento econômico, à elevação das taxas de desemprego, como também pela tendência ao envelhecimento da po-
ao surgimento de déficits fiscais e ao aumento do nível de pulação que já se manifestava mesmo antes da crise sur-
preços, os sistemas de proteção social ampliaram seu cam- gir. Para complicar ainda mais a situação financeira dos
po de ação, incorporando novos segmentos em sua cober- sistemas de proteção social e, por decorrência, da previ-
tura. Os exemplos mais característicos dessa fase são: o dência, outra tendência observada desde os anos 60 con-
fato de passar a ser reconhecido como desempregado o tinuava a preocupar: o aumento crescente dos gastos com
trabalhador sem emprego que nunca trabalhou e o saúde.
surgimento de programas de renda mínima, animados pelo Num primeiro momento, para manter o equilíbrio fi-
princípio da cidadania e não entendidos como uma mera nanceiro, os países avançados criaram, durante os anos
ação assistencial. 80, vários procedimentos: a) aumento das contribuições
Para garantir os direitos do cidadão no campo da sociais; b) maior participação dos usuários nas despe-
seguridade social, os constituintes estabeleceram um es- sas com assistência médica; c) incentivo à comple-
quema de financiamento com recursos provenientes dos mentação da aposentadoria através de entidades
orçamentos das áreas federal, estadual e municipal, e de privadas; d) estreitamento da variação do valor da apo-
contribuições sociais, calculadas sobre o salário, o sentadoria, reajustando aquelas com valores mais bai-
faturamento e o lucro líquido (art. 195 da Constituição xos em detrimento daquelas de níveis mais elevados
Federal). (Marques e Médici, 1994). Ao mesmo tempo, tiveram
Saliente-se que os constituintes também defendiam que a preocupação de implementar políticas que garantis-
as fontes de financiamento da seguridade social não se- sem mínimos de renda e aumentaram a participação do
riam distintas de seu conceito. Em outras palavras, consi- Estado no financiamento da proteção social. A garan-
deravam, ao ser eleita a cidadania e não o mérito como a tia de mínimos fica evidente quando se acompanham
referência para o direito à proteção social, estabelecido as reformulações efetuadas no seguro-desemprego, prin-
que a sociedade deveria, a cada ano, discutir e definir de cipalmente na França. Nesse país, inicialmente foi in-
que forma seria realizada a partilha do conjunto de recei- troduzido um benefício de baixo valor para os desem-
tas previstas para a seguridade social. Isso significa dizer pregados de longa-duração – que tinham esgotado o
que os constituintes se colocaram contra o estabelecimento tempo de permanência no seguro-desemprego “nor-
de vinculação de receitas no interior da seguridade social. mal”– e para os desempregados que sequer chegaram a
A única exceção ficou por conta do PIS/Pasep, que pas- entrar no mercado de trabalho. Depois, foi criada a Ren-
sou a ter uso exclusivo do programa seguro-desemprego da Mínima de Inserção – RMI, programa que preten-

112
PREVIDÊNCIA SOCIAL BRASILEIRA: UM BALANÇO DA REFORMA

dia, mediante concessão de renda mínima, criar as con- O QUESTIONAMENTO DA CONSTITUIÇÃO E


dições do trabalhador voltar ao (ou ingressar no) mer- OS ARGUMENTOS DA REFORMA
cado de trabalho. A permanência do trabalhador no
programa, pensada inicialmente como temporária, de- A partir dos anos 90, a crescente crise fiscal-financei-
monstrou-se, contudo, permanente devido à continui- ra do Estado, o fraco desempenho da economia e o cres-
dade das altas taxas de desemprego. cimento da taxa de desemprego e do trabalho informal
Nos anos seguintes, apesar da adoção de novas medi- propiciaram o fortalecimento do discurso sobre a neces-
das, tais como o aumento da idade para a concessão da sidade de reformar a previdência social. Entre os vários
aposentadoria e tratamento igual para os gêneros em al- argumentos, um dos que se destacavam defendia que os
guns países, pode-se dizer que, nos anos 90, nos países direitos introduzidos pela Constituição de 1988 teriam
europeus de forte tradição sindical, a proteção social pú- provocado fortes desequilíbrios no sistema previdenciário.
blica, universal e sob regime de repartição continuou sen- Vários especialistas – ainda que não concordassem com
do o principal sistema de apoio existente.1 Cabe assinalar esse argumento – exigiam mudanças levando em conta a
que o benefício-base concedido por esses sistemas é social- persistência de tratamento desigual entre diferentes cate-
mente reconhecido como suficiente para responder às ne- gorias de trabalhadores ou os impactos provocados pelas
cessidades dos segurados e a diversidade de benefícios é alterações no perfil demográfico e na transformação da
bastante reduzida quando se tem presente a variação en- relação entre capital e trabalho, decorrente da adoção das
tre um e dez salários mínimos que havia no sistema brasi- novas tecnologias e formas de gestão no sistema produti-
leiro. Por outro lado, nesses países, os sistemas comple- vo brasileiro.
mentares de caráter facultativo sempre foram signi- Em meados dos anos 90, as mais de 20 propostas em
ficativos, tornando-se mais fortes nos últimos anos, prin- discussão sobre a reformulação da seguridade social e da
cipalmente em função da alta rentabilidade de suas apli- previdência já podiam ser reunidas em duas grandes ver-
cações no setor financeiro. tentes: as que consideravam a proteção social como tare-
Na América Latina, no entanto, onde a proteção social fa do Estado e as que a compreendiam como responsabi-
em geral sempre foi precária, não atingindo o conjunto da lidade individual do cidadão. Essa última, situada
população e, muitas vezes, não constituindo um sistema claramente no campo neoliberal, justificava que somente
unificado e sim formado de diversos regimes de base adotando um sistema privado e de capitalização as pes-
corporativa, a história da reforma foi diferente. Vários soas teriam estímulo para melhorar seu rendimento e, por
países, reféns da dívida externa e constrangidos pelo fra- conseqüência, aumentarem sua capacidade de poupança,
co crescimento econômico, seguiram os ditames e as me- criando as bases necessárias para a sustentação financei-
tas do Fundo Monetário Internacional, promovendo refor- ra do desenvolvimento do país. Coerentes com essa vi-
mas ao gosto neoliberal em seus sistemas de proteção são, defendiam que o financiamento deveria ser unicamente
social. Desnecessário dizer que essas reformas, defendi- sustentado pelo trabalhador/indivíduo. Dessa forma, se-
das em geral pelos representantes do Banco Mundial, do ria eliminado – no entender dessa perspectiva – o
FMI e agências internacionais, nunca foram colocadas em desestímulo à contratação no mercado de trabalho, pois
prática nos países avançados. Para se ter uma idéia, de- os encargos sociais seriam ou eliminados de todo ou sen-
pois que o Chile, em 1982, privatizou a previdência so- sivelmente diminuídos, o que permitiria aumentar a
cial, outros sete países do continente – Bolívia, El Salva- competitividade dos produtos brasileiros no mercado in-
dor, México, Peru, Colômbia, Argentina e Uruguai – ternacional, aumentando as exportações. Além disso, como
introduziram reformas no sentido da privatização e da reconhecem que o mercado não é totalmente perfeito, de
capitalização, ainda que seguindo modelos gerais diver- forma que alguns indivíduos são submetidos a situações
sos e com importantes diferenças na sua implantação. Esses de carência, admite a ação assistencial do Estado, finan-
países seguiram as recomendações do Banco Mundial, ciada através da receita de impostos.
expressas em especial no documento “Envelhecer sem Entre as propostas que defendiam a manutenção do
crise” (Dieese, 2001). Estado como responsável pela organização e gestão da
É nesse contexto – internacional e da América Latina proteção social, vale destacar as do deputado Eduardo
– que se insere a discussão da reforma da previdência so- Jorge, a da Comissão Especial para o Estudo do Sistema
cial brasileira. Previdenciário – cujo relator foi Antônio Brito (depois

113
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 17(1) 2003

Ministro da Previdência Social) – e a proposta de Reinhold e/ou à mudança da relação entre capital e trabalho em fun-
Stephanes. Essas e todas as outras propostas que preser- ção do uso de novas tecnologias e novas formas de gestão.
vavam o papel-chave do Estado na previdência social, No caso brasileiro, ainda, a baixa capacidade fiscalizatória
embora fossem unânimes em sugerir que o financiamento do Estado – em parte decorrente da crise fiscal e financei-
continuasse a ser realizado através de contribuições de em- ra dos anos 90 – favoreceu a ampliação do mercado in-
pregadores e empregados, defendiam a diversificação das formal de trabalho, com evidente perda de arrecadação
fontes. Isso porque tinham como objetivo compensar o de contribuições sociais.
fraco desempenho das contribuições sobre a folha de sa- Dentre os fatores “conjunturais”, eram destacados o
lários, e até mesmo reduzir a carga contributiva das em- baixo crescimento das contribuições previdenciárias e o
presas, visando estimular a contratação de trabalhadores aumento das despesas com benefícios, explicados pelo
no mercado formal. De maneira diferenciada, as propos- fraco desempenho da economia e pelo crescimento da
tas defendiam vários tetos para os benefícios concedidos demanda de caráter assistencial. Em relação aos aspectos
pelo setor público e algumas chegavam a propor a adesão “gerenciais”, o argumento geralmente atribuía à gestão
compulsória a um regime complementar. Era consenso, pública adjetivos como precária, burocratizada e inefi-
contudo, a extinção da aposentadoria por tempo de servi- ciente, o que resultava em altos custos operacionais e no
ço e da aposentadoria especial. elevado número de fraudes e de sonegação.
Ainda entre aqueles que defendiam a manutenção da
previdência pública, havia o debate sobre a pertinência A REFORMA NO GOVERNO FHC
ou não da criação de um sistema previdenciário único,
integrando os funcionários públicos federais – bem como Em março de 1995, o governo FHC apresentou ao Po-
os do Judiciário, Forças Armadas, entre outros – e os de- der Legislativo proposta de alterações do sistema pre-
mais trabalhadores. Essa proposta sofreu forte repúdio por videnciário brasileiro, abrangendo o setor privado e o
parte dos funcionários públicos, dos sindicatos e da Cen- público, compreendendo os funcionários públicos civis,
tral Única dos Trabalhadores. militares e a magistratura. Essa proposta baseava-se em
sua compreensão da situação e da evolução do comporta-
BASES DOS PRINCIPAIS ARGUMENTOS DA mento das contas públicas, da economia e da demografia,
REFORMA PREVIDENCIÁRIA e de seus efeitos sobre o sistema previdenciário do país.
Os fatores que constrangiam as contas da previdência so-
No início da discussão sobre a necessidade de refor- cial são resumidamente apresentados nos parágrafos se-
ma, ficou quase chavão dizer que seus problemas deriva- guintes.
vam de problemas de caráter estrutural, conjuntural e Na década de 90, as fontes tradicionais de suprimento
gerencial, e que havia uma estreita relação entre eles. dos gastos públicos – o aumento de impostos e o endivi-
Entre os problemas apontados como estruturais, desta- damento do Estado – não tinham como continuar a ser
cava-se a baixa relação contribuintes/segurados.2 De fato, utilizadas para propiciarem aumento de receitas. A con-
todos os regimes de repartição passam pela seguinte tra- juntura econômica interna em favor da estabilidade da
jetória: inicialmente apresentam uma relação positiva ex- moeda e as pressões externas, especialmente do FMI, para
tremamente alta, pois é crescente a entrada de contribuin- a contenção do déficit público constituíam um poderoso
tes no sistema e o pagamento de benefícios se restringe à freio à utilização desses meios.
aposentadoria por invalidez e à pensão por morte. Na Além dos problemas de ajuste do orçamento estatal, a
maturidade, no entanto, quando parcela significativa de sociedade brasileira passou a conviver com altas taxas de
seus contribuintes alcança a idade mínima para requerer desemprego, causadas pela deterioração econômica, ini-
aposentadoria ou cumpre a carência de contribuição, essa ciada na década de 80, e aprofundada com a abertura do
relação decresce de forma significativa. mercado brasileiro à importação de produtos estrangei-
A queda dessa relação é ainda mais acentuada quando ros, com a política de juros elevada e com a âncora cam-
concorrem dois outros fatores, tal como acontece no Bra- bial que acompanhou a entrada do real; e pela introdução
sil: o aumento crescente da expectativa de sobrevida das de inovações tecnológicas. O aumento do desemprego foi
pessoas que se aposentam e a redução do número de tra- acompanhado da diminuição do número de trabalhadores
balhadores ativos devido à crise econômica prolongada com carteira assinada e do aumento da quantidade dos que

114
PREVIDÊNCIA S OCIAL BRASILEIRA: UM BALANÇO DA REFORMA

se dirigiram para a informalidade. Como somente aqueles vidências para mudar os dispositivos constitucionais que
são obrigados a contribuir para a previdência, garantindo permitiriam as mudanças que considerava necessárias.
os recursos necessários para fazer frente às despesas com Assim, em março de 1995, apresentou ao Congresso Na-
os benefícios previdenciários, a diminuição de trabalha- cional a proposta de emenda constitucional conhecida
dores registrados no mercado de trabalho provocou que- como PEC 33. As discussões a respeito ficaram em pauta
da dos rendimentos do caixa da previdência pública ou até julho de 1996. Devido às repercussões negativas que
um desempenho bastante medíocre, não só incompatível suscitou em relação a alguns aspectos da proposta, sofreu
com a evolução das décadas anteriores, como insuficien- reformulações, sendo reapresentada em 1997. No dia 15
te para fazer frente às despesas. de dezembro de 1998, finalmente foi aprovada a Emenda
O equilíbrio das contas previdenciárias também pas- Constitucional no 20.
sou a ser prejudicado pelas transformações em curso da Uma das alterações do sistema previdenciário que exi-
estrutura demográfica do Brasil, argumento que já era uti- giam mudança na Constituição referia-se à imposição de
lizado na defesa da reforma da previdência social no pe- um limite de idade para obtenção da aposentadoria por
ríodo imediatamente anterior ao governo FHC. Uma das tempo de serviço, a fim de impedir a crescente participa-
transformações refere-se ao aumento da expectativa de ção de pessoas com idade inferior a 50 anos no sistema de
vida da população, reflexo do avanço técnico-científico benefícios, embora apresentassem todas as condições de
que atinge a todos os povos, independentemente do seu continuar sua vida ativa. Essa proposta, entre todas enca-
grau de desenvolvimento, permitindo o prolongamento, minhadas pelo governo, foi a que mais causou polêmica e
cada vez maior, do número de anos de vida da população divulgação pela mídia no período de discussão da refor-
adulta. A outra se refere à queda da taxa de crescimento ma, uma vez que sua alteração iria atingir tanto os traba-
da população devido à diminuição da taxa de fecundidade, lhadores do setor privado como do setor público.
causada pelas transformações econômicas e sociais do Em relação ao sistema previdenciário dos trabalhado-
mundo moderno e o avanço de métodos contraceptivos. res do setor privado, foco desse estudo,5 os dispositivos
Como dito anteriormente, o sistema previdenciário bra- da Constituição de 1988 levados à revisão e aprovados
sileiro está baseado na repartição simples, isto é, são os pela Emenda Constitucional no 20 foram: a eliminação do
atuais membros da população em idade ativa, através de teto de dez salários mínimos para o pagamento dos bene-
suas contribuições previdenciárias, que garantem os re- fícios das aposentadorias por tempo de serviço e das re-
cursos para pagamento dos benefícios, esperando que as gras de cálculo desse benefício (média aritmética dos úl-
gerações futuras, com suas contribuições, façam o mes- timos 36 meses); e a criação de condições para que o
mo. Diante do comportamento demográfico brasileiro sistema público de previdência siga regras que propor-
apontado acima e explorado mais adiante, alterou-se a taxa cionem o equilíbrio financeiro e atuarial.
de dependência da população aposentada em relação à Com a aprovação da EC no 20, a Constituição passa
população ativa, o que poderia colocar em risco o sistema a determinar que o segurado, para ter direito à aposen-
público de previdência. tadoria, contribua no mínimo durante 35 anos, se ho-
Algumas propostas governamentais, para serem apro- mem, ou 30, se mulher. No caso da aposentadoria por
vadas, deveriam ser antecedidas por mudanças nas dispo- idade, o homem necessita ter 65 anos e a mulher, 60.
sições da Constituição de 1988, enquanto outras não fe- Permaneceu a redução de 5 anos para os rurais de am-
riam princípios da Carta Magna. Por esse motivo, entre bos os sexos e para o professor que “comprove exclu-
1994 e 1996, foram extintos alguns tipos de benefícios sivamente tempo de efetivo exercício das funções de
destinados aos trabalhadores do setor privado, como o magistério na educação infantil e no ensino fundamen-
abono, o pecúlio, os auxílios natalidade e funeral,3 e limi- tal e médio” (art.201, parágrafos 7o, inciso l e II, e 8o ).
tada a concessão das aposentadorias especiais.4 Graças aos novos dispositivos constitucionais, a partir
Embora o Poder Executivo tivesse colocado em dis- de dezembro de 1998 o governo pôde então elaborar
cussão a reforma da previdência já no princípio dos anos leis ordinárias permitindo mudanças no sistema pre-
90 – mal tinham sido decretadas as Leis no 8.212 e no 8.213, videnciário e normas para a transição das antigas de-
que regulamentavam respectivamente o custeio e os be- terminações legais para as novas.
nefícios previdenciários, segundo as determinações da A Lei no 9.876/99, apresentada ao Congresso Nacional
Constituição de 1988 –, somente em 1995 tomou as pro- e que vai de fato regulamentar as disposições constitucio-

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SÃO P AULO EM PERSPECTIVA , 17(1) 2003

nais e provocar a reforma da previdência para os traba- previsto originalmente pelo executivo quando do envio da
lhadores do setor privado, apresentava medidas visando: PEC no 20 [...] a nova legislação previdenciária optou pelo
- à ampliação do período de cálculo do benefício; incentivo à permanência em atividade do trabalhador,
- à introdução de uma fórmula de cálculo deste benefício mediante uma modalidade de cálculo em que o benefício
que considera a idade de quem requisita a aposentadoria é diminuído caso ele seja jovem ou tenha pouco tempo de
e a expectativa de vida segundo cálculos do IBGE; contribuição, mas que aumenta à medida que a concessão
da aposentadoria é adiada” (Dieese, 2001:252).
- à eliminação gradativa da escala de salários-base dos
De acordo com Solange Paiva Vieira, mentora da fórmu-
contribuintes individuais; e
la de cálculo do fator previdenciário, assessora especial do
- à homogeneização do valor de contribuição das empre- MPAS, em entrevista à revista Conjuntura Econômica: “Fiz
sas ao tratar das diversas categorias de segurados obriga- então a conta de trás para frente, com variáveis como a ex-
tórios. Introduz, ainda, no campo gerencial, a diferencia- pectativa de vida, fluxo de caixa, tempo de contribuição e a
ção entre o contribuinte inadimplente e o sonegador; a taxa de juros implícita. Eu peguei tempo de contribuição por
redução dos juros de mora para 0,5% ao mês, mais capi- expectativa de sobrevida e multipliquei o tempo de contri-
talização anual, para a indenização do tempo de serviço buição pela alíquota contributiva.[...] A gente fez uma cap-
passado; e a generalização do pagamento direto, por par- tação virtual. [...] É uma capitalização [...] tem uma capitali-
te do INSS, de todo salário-maternidade, o que em parte zação com uma taxa de juros que varia entre 2,5% e 4,5%.
anteriormente era realizado pelo empregador, mediante Taxa real, dependendo da idade em que a pessoa se aposen-
reembolso. A proposta do governo foi aprovada pelo Con- ta. Está lá, é o que a pessoa contribui, corrigido por essa taxa
gresso Nacional em 26 de novembro de 1999. de juros ao ano” (FGV, 2001:58).
Uma das alterações mais significativas introduzidas pela Para o segurado que até 28 de novembro de 1999 te-
reforma foi a do valor do benefício de aposentadoria. No nha cumprido as condições para solicitar a concessão da
caso das aposentadorias por tempo de contribuição, no aposentadoria, será considerada somente a média aritmé-
lugar desse valor ser estabelecido pela média aritmética tica simples das maiores contribuições, correspondentes
dos últimos 36 (trinta e seis) meses de contribuição, pas- a, no mínimo, 80% de todo o período contributivo decor-
sou a considerar a média aritmética simples dos maiores rido desde a competência julho de 1994.
salários de contribuição correspondentes no mínimo a 80% Segundo o governo, essas alterações permitiriam que
de todo o período contributivo do segurado, corrigidos o caixa da previdência se equilibrasse por alguns anos,
monetariamente. Sobre esse cálculo é aplicado um fator embora não descartasse a adoção de novas modificações,
redutor que varia de acordo com a idade do segurado, ou caso fosse necessário.
seja, o quanto de vida ele terá depois de aposentado, se-
gundo estimativas da Fundação IBGE. Esse fator foi de- A SITUAÇÃO FINANCEIRA PÓS-REFORMA
nominado Fator Previdenciário.6
Apesar da nova lei determinar o cumprimento do tem- A Persistência do Déficit
po de contribuição (35 para homem e 30 anos para mu-
lher), quem estava inscrito na Previdência Social até 15/ Segundo o Ministério da Previdência e Assistência
12/1998 (véspera da publicação da Emenda Constitucio- Social – MPAS, a previdência social fechou o primeiro
nal no 20, de 1998) “também pode se aposentar aos 25 e ano pós-reforma com um déficit de R$ 10,07 bilhões, equi-
30 anos de contribuição, respectivamente, se do sexo fe- valente a 0,9% do Produto Interno Bruto – PIB.7 Esse re-
minino ou masculino, desde que tenha 48 ou 53 anos de sultado foi considerado bastante satisfatório, pois estava
idade. Nesse caso o valor do benefício será de 70% do sendo a primeira vez que o déficit, enquanto proporção
salário de benefício acrescido de 5% por cada grupo de do PIB, registrava queda em cinco anos. Contudo, em
12 contribuições adicionais, até o limite de 100%”(MPAS, 2001, o déficit novamente aumentou (R$ 12,8 bilhões),
1999:13). representando 1,08% do PIB.
Em relação ao fator, vale a pena destacar a seguinte Antes de serem analisados os fatores que contribuíram
interpretação: “Sem ter incorporado a proposta de limite para os resultados dos anos 2000 e 2001, bem como o
mínimo de idade para a aposentadoria dos já inscritos no impacto das mudanças promovidas no campo dos benefí-
sistema (60 anos para mulheres e 65 anos para os homens), cios e das contribuições pela reforma promovida pelo

116
PREVIDÊNCIA SOCIAL BRASILEIRA: UM BALANÇO DA REFORMA

governo Fernando Henrique Cardoso, merece um pouco O Comportamento da Despesa e o


mais de atenção o conceito de déficit utilizado pelo MPAS. Fator Previdenciário
Para isso é preciso lembrar que a previdência social é
parte integrante da seguridade social, rede de proteção O gasto com benefícios caiu no primeiro ano pós-re-
idealizada por aqueles que participaram da elaboração e forma (-1,04%) em relação ao ano anterior, voltando a
votação da Constituição cidadã, como a chamou Ulisses subir em 2001 (2,84%). A queda observada em 2000 ha-
Guimarães, quando da sua aprovação pelo Congresso via sido comemorada, pois era a segunda vez consecutiva
Nacional. Essa rede, através da Previdência Social, da Saú- que isso ocorria: em 1999, portanto antes da reforma ser
de, da Assistência Social e do Programa de Seguro-De- aprovada, a despesa com benefícios havia diminuído em
semprego, garante a concessão de benefícios em situação 1,63%, o que constitui forte indício de que o decréscimo
de aposentadoria, de desemprego, de perda de capacida-
de laboral ou doença e de necessidade de complementação
TABELA 1
de renda; e a realização de ações e serviços preventivos e
Receitas(1), Despesas e Saldo da Seguridade Social
curativos relacionados ao risco doença. Brasil – 2001
Para garantir os recursos necessários, os constituintes Em bilhões de reais
reservaram o uso exclusivo do resultado da arrecadação Especificações Valor (R$)
das contribuições incidentes sobre a folha de salários,
TOTAL DAS RECEITAS 137,52
faturamento, lucro, concursos e prognósticos, além de Receita Previdenciária Líquida (2) 62,491
preverem a participação do governo federal, dos Estados Outras Receitas do INSS (3) 0,618
e dos municípios. Vale lembrar, ainda, que a Constitui- Contribuição para Financiamento da Seguridade Social – Cofins 46,704
Contribuição Social sobre o Lucro Líquido 9,067
ção de 1988 não estabelecia vinculação no interior da
Concursos e Prognósticos 0,521
seguridade social, com exceção dos recursos do PIS-Pasep Receita Própria do Ministério da Saúde 0,962
que sempre foram destinados ao financiamento do Fundo Outras Contribuições Sociais (4) -
Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira – CPMF 17,157
de Amparo do Trabalhador – FAT, responsável pela con-
cessão do seguro-desemprego. Com o passar do tempo, veio TOTAL DAS DESPESAS 105,413
Benefícios 78,697
se somar a essas fontes de recursos a contribuição sobre
a) Previdenciários (5) 73,692
movimentação financeira e foi definida a participação das - Urbanos 59,383
três esferas de governo no financiamento da saúde. - Rurais (6) 14,309
Considerando esse conceito de proteção social, não seria b) Assistenciais 4,323
- Rendas Mensais Vitalícias – RMVs 1,636
apropriado calcular isoladamente as contas da previdência - Lei Orgânica de Assistência Social – Loas 2,687
social, tal como previsto na Lei de Responsabilidade Fiscal.8 c) Encargos Públicos da União – EPU (7) 0,682
Como será argumentado mais adiante, seu resultado negati- Saúde (8) 21,111
Assistência Social 1,875
vo é reflexo, antes de tudo, do desempenho da economia
Custeio e Pessoal do Ministério da Previdência e
brasileira que, se voltasse a crescer e a gerar emprego no Assistência Social – MPAS (9) 3,497
mercado formal de trabalho, superaria rapidamente sua situa- Ações do Fundo de Combate à Pobreza 0,233
ção de déficit. Essa argumentação não desconsidera, entre- SALDO (Receitas Menos Despesas) 32,107
tanto, que, em termos contábeis, seja apurado o resultado da Fonte: Ministério da Fazenda. Secretaria do Tesouro Nacional. Sistema Integrado de Admi-
nistração Financeira do Governo Federal – Siafi, 2000 e 2001(dados preliminares); Ministério
previdência social. O que se estranha é o fato de o governo da Previdência e Assistência Social – MPAS. Fluxo de Caixa do INSS; Associação Nacional
federal nunca se preocupar em contabilizar e divulgar para dos Auditores Fiscais da Previdência – Anfip.
(1) Conforme preceitua o artigo 195 da C.F.
toda a sociedade o resultado do conjunto da seguridade so- (2) Inclui: arrecadação bancária, o Simples e depósitos judiciais.
(3) Segundo o fluxo de caixa do INSS, incluem rendimentos financeiros e antecipações de
cial. Em 1999, por exemplo, ano em que a reforma foi apro- receitas e outros.
vada e a previdência registrava um déficit equivalente a 1% (4) Dado não disponível que incluiria: o Depósito Obrigatório de Veículos Auto-Motores – DPVAT;
a renda bruta de prêmios prescritos; e bens apreendidos.
do PIB, a seguridade social apresentava um superávit de (5) Difere do Fluxo de Caixa do INSS (que somou R$ 75,378 bilhões) devido à separação das
RMVs em item próprio.
R$ 16, 3 bilhões, correspondendo a 1,7% do PIB. Em 2001, (6) Dados sujeitos a alteração.
adotando-se o mesmo critério, o superávit da seguridade social (7) Encargos previdenciários da União devido à concessão de benefícios através de leis espe-
ciais, pagos pelo INSS com recursos da Seguridade, e repassados pelo Tesouro.
aumentou para R$ 32,1 bilhões, cerca de 2,6% do PIB. A (8) Inclui despesas de saneamento, de custeio e ações de saúde do Sistema Único de Saúde
– SUS do Ministério da Saúde.
Tabela 1 apresenta o resultado da seguridade social no ano (9) Pagamentos realizados a ativos, inativos e pensionistas do INSS, bem como despesas
de 2001. operacionais consignadas.

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SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 17(1) 2003

ocorrido no primeiro ano depois da reforma deve-se tam- O Desempenho das Contribuições
bém a outros fatores, que não aqueles diretamente relacio-
nados com as novas regras. Além da questão da despesa, a previdência social apre-
É sabido que a nova lei não tem nenhum impacto senta um grave problema no plano de sua arrecadação.
sobre aqueles que já recebem benefícios, o que no jar- Nos dois anos pós-reforma, isto é, em 2000 e 2001, a re-
gão da previdência social é chamado de estoque de be- ceita líquida, isto é, a arrecadação bancária das contribui-
nefícios. As novas regras são aplicadas integralmente ções de empregados e empregadores, acrescida da receita
àqueles que, depois de sua edição, ingressarem no mer- do Simples, dos depósitos judiciais, e deduzidas as resti-
cado de trabalho, e as de transição, para aqueles que já tuições de arrecadação e transferências a terceiros, foi
participavam do mercado formal de trabalho e, portan- 3,19% e 3,23% inferior ao nível de 1986, quando o PIB
to, contribuíam para a previdência sob as regras anterio- brasileiro era significativamente inferior ao atual, e as
res. Nesse sentido, no curto prazo, já seria esperado que alíquotas eram inferiores às atuais. Por outro lado, chama
o impacto da reforma sobre o volume do gasto fosse a atenção que o ritmo da queda da arrecadação está dimi-
pequeno, mas que atuasse diminuindo a taxa de ingres- nuindo: em relação ao ano anterior, em 1999 a retração
so de novos segurados no sistema, particularmente de foi de 6,67%; em 2000, de 2,26%; e, em 2001, de 0,05%,
aposentados. o que talvez indique que ela esteja se estabilizando.
Contudo, a evolução dos benefícios concedidos em pe- O desempenho da arrecadação da previdência social é
ríodo recente, que traduz a demanda efetivamente reali- largamente determinado pelo crescimento econômico do
zada de novos segurados, apresenta comportamento que país e pelo comportamento do mercado de trabalho. Por
não se pode, a princípio, dizer que está refletindo o im- isso, qualquer análise sobre a situação das contas
pacto das novas regras. O ingresso de novas aposentado- previdenciárias, do ponto de vista da receita, precisa se
rias – de todos os tipos – já vinha caindo desde antes mes- reportar às mudanças nas formas de ocupação, à evolu-
mo da reforma. Entre 1997 (846.168) e 2001 (560.212), ção do salário, entre outros aspectos. Da ótica da despe-
segundo dados do MPAS, o número de concessões decres- sa, a questão demográfica aparece como fator deter-
ceram 33,8%. Destaque-se que o número do último ano, minante. A parte seguinte deste artigo é dedicada à análise
foi o mais baixo da década excluindo-se o de 1991 do mercado de trabalho e do impacto da demografia na
(455.533), quando a demanda encontrava-se represada, es- previdência social.
perando a regulamentação dos novos direitos previden-
ciários aprovados pela Constituição de 1988. A Questão Demográfica e o Mercado de Trabalho
Fica difícil dizer se o desempenho observado em 2001
(redução de 16,5%) já é reflexo das novas regras ou mes- Desde a divulgação dos resultados do censo de 1991,
mo se expressa o crescimento vegetativo da demanda de quando pela primeira vez ficou evidente que a população
benefícios de aposentadoria da previdência social. Isso brasileira crescia mais lentamente e estava ficando mais
porque, desde 1986, os dados anuais relativos à aposen- velha, as autoridades e pesquisadores da área pre-
tadoria e aos demais benefícios programáveis refletem videnciária preocupam-se com os reflexos sobre a situa-
fortemente as mudanças de expectativas, sejam elas posi- ção financeira do sistema público. A partir desse censo,
tivas sejam negativas, de alteração das regras de acesso ficava evidente para todos que o Brasil havia completado
ao benefício. Dito de outra forma, trata-se de informações sua transição demográfica. Em 1991, a taxa de fe-
atípicas, em que a demanda foi contida ou antecipada, de- cundidade, que era de 4,3 em 1980, havia caído para 2,4.
pendendo do debate em curso na época. Além disso, a gre- Nove anos depois, quando novo censo é realizado, essa taxa
ve dos servidores do Instituto Nacional da Seguridade cai para 2,2 – extremamente perto da taxa de reposição da
Social – INSS, realizada no período de agosto a novem- população.
bro, certamente contribuiu para a redução da quantidade Essa nova realidade demográfica pode ser vista de vá-
de benefícios concedidos no ano de 2001. Novamente, um rias maneiras. De um lado, já não podemos dizer, tal como
fator conjuntural – agora de caráter político-sindical e na na década de 70, que “somos um país jovem”, quando 53%
própria instituição responsável por conceder os benefícios da população tinha menos de 20 anos de idade. Em 2000,
– prejudica sua interpretação, como integrante de uma série esse contingente já havia caído para 40,1% da população.
histórica. Nos mesmos anos, as pessoas com mais de 65 anos repre-

118
PREVIDÊNCIA SOCIAL BRASILEIRA: UM BALANÇO DA REFORMA

sentavam, respectivamente, 3,1% e 4,8%. Em termos de cia social. De acordo com o IBGE, o desemprego aberto
esperança de vida ao nascer, o brasileiro aumentou 8,52 chegou a atingir o pico de 8,06% em março de 2000.
anos de 1970 a 2000. Embora tenha recuado nos meses subseqüentes, encerrou
Para a previdência social, contudo, o aspecto mais im- o ano 2001 em 6,2%, quase dois pontos percentuais aci-
portante da nova realidade demográfica brasileira refere- ma da média de 1991. Já para o Dieese e para a Fundação
se à ampliação da sobrevida, a cada faixa de idade. As- Seade, o desemprego aberto na Região Metropolitana de
sim, uma mulher com 45 anos que se aposentasse – tal São Paulo foi de 11% em 2000, atingindo 11,3% em 2001.
como era permitido pelas regras anteriores – teria a pro- A taxa de desemprego aberto, neste último ano, foi de
babilidade de permanecer no sistema por 32,04 anos; se 17,6%.
homem, com a mesma idade, permaneceria por 27,18 anos. A estrutura do mercado de trabalho brasileiro sofreu
O tempo de permanência no sistema, em qualquer um dos diretamente com o avanço do desemprego. Entre janeiro
casos, seria um pouco menor do que o tempo de contri- de 1991 e dezembro de 2001, a participação do trabalha-
buição, na hipótese de eles terem se iniciado no mercado dor assalariado sem carteira assinada no total dos ocupa-
de trabalho aos 18 anos e terem contribuído para a previ- dos aumentou mais de seis pontos percentuais (passou de
dência durante toda sua vida ativa. Esse é um dos motivos 20,8% para 27,1%), segundo a Pesquisa Mensal de Em-
que embasou a proposta do governo em introduzir, no prego realizada pelo IBGE. No mesmo período, houve
cálculo do fator, a expectativa de sobrevida do segurado ampliação dos chamados conta-própria (de 20,1% passa-
na data da aposentadoria, de substituir a aposentadoria por ram para 23,1%) em três pontos percentuais, enquanto a
tempo de serviço pela de contribuição e de incluir, tam- participação da categoria empregador (de 4,4% passou
bém, o critério de idade como condição de acesso à apo- para 3,9%) diminuiu meio ponto percentual.
sentadoria daqueles que ingressarem no mercado de tra- Esses dados indicam que está diminuindo o tamanho re-
balho depois da aprovação da lei. lativo do mercado formal de trabalho, isto é, aquele regula-
Dessa forma, o Brasil iguala-se à maioria dos países mentado pelas leis trabalhistas e integrado à previdência so-
com relação aos critérios de acesso à aposentadoria. O que cial. Não é de estranhar, portanto, que a arrecadação de 2001,
muitas vezes não é lembrado é que o Brasil contempla referente às contribuições de empregados e empregadores,
múltiplas realidades em que é possível se encontrarem tra- esteja 3,2% abaixo da receita de 15 anos atrás.
balhadores que exercem atividade no mercado formal de
trabalho desde tenra idade e que serão penalizados por CONSIDERAÇÕES FINAIS
necessitar, não só do tempo de contribuição, mas de cum-
prir o critério de idade. A nova realidade demográfica do Brasil, evidenciada
Além disso, é preciso destacar que, embora a popula- no censo de 1991 e confirmada no de 2000, indicando a
ção brasileira não possa ser mais chamada de “jovem” tal velocidade com que o país está envelhecendo, foi um dos
como na década de 70, ainda não é “velha” como as da principais argumentos na defesa da reforma previdenciária
maioria dos países europeus. No Brasil, em 2000, 64,6% encaminhada pelo governo FHC. De maneira menos en-
de sua população tinha idade entre 15 e 64 anos, isto é, fática, mas por muitos considerado como um dos aspec-
tinha idade para trabalhar. Essa realidade seria extrema- tos que mais necessitavam de reforma, era defendida a
mente positiva para as contas previdenciárias, mesmo se extinção da diferença de critérios de acesso à aposenta-
rebaixássemos o limite superior da idade de trabalho para, doria entre os homens e as mulheres. Isso porque não só
por exemplo, 55 anos. Ainda assim estaríamos falando de as mulheres, ao longo de toda sua vida, apresentavam
58,7% da população. sobrevida maior do que a dos homens, como porque esse
O problema é que essa realidade só se reverte a favor diferencial tem crescido nas últimas décadas. É interes-
da previdência social se a economia estiver gerando em- sante mencionar que o prolongamento da vida mais acen-
prego formal, resultando em maior volume de contribui- tuado entre as mulheres também é um dos determinantes
ções para seu caixa. Não é essa, contudo, a nossa realida- da despesa com a pensão por morte, pois as mulheres cons-
de. Além da persistência de elevadas taxas de desemprego tituem, de longe, a maioria que recebe esse tipo de bene-
desde o início da década de 90, aumentou significativa- fício.
mente a participação dos assalariados sem carteira assi- Apesar da intensa campanha realizada pelo governo, a
nada e de outros ocupados sem vínculo com a previdên- proposta de utilizar o critério de idade como complemen-

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SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 17(1) 2003

tar ao tempo de contribuição (que já havia substituído o ao sistema previdenciário. No curto prazo, portanto, a crise
do tempo de serviço) recebeu forte resistência dos seto- estrutural da previdência social poderia estar sendo resolvi-
res mais organizados da população brasileira. Mesmo as- da se os trabalhadores em idade de trabalhar (maioria da
sim, pode-se dizer que o critério de idade acabou sendo população brasileira) estivessem em atividade, em empre-
incorporado na determinação da aposentadoria. No lugar gos que garantissem todos os direitos trabalhistas, inclusive
de uma idade fixa para todos os homens e outra para as de contribuir para a previdência social.
mulheres, adotou-se fórmula sofisticada que considera os
anos de sobrevida no momento em que o segurado se apo-
senta. Por essa sistemática, quanto mais jovem o traba- NOTAS
lhador se aposentar menor será o valor de seu benefício; 1. Para uma análise das reformas da previdência efetuadas nos países
quanto mais velho, maior o valor. Tendo em vista que o europeus, que não descaracterizaram os fundamentos da proteção
construída no pós-guerra, chamada por muitos de Welfare State, ver
processo de envelhecimento da população brasileira está Marques e Mendes (2001).
apenas em seu início, será cada vez mais difícil alguém se 2. De acordo com estudo do Ministério da Previdência Social, na “dé-
aposentar “precocemente”. cada de 50, oito contribuintes financiavam um aposentado. Em 1970,
essa relação era de 4,2 para um. Nos anos 1990, são 2,3 trabalhando
Segundo o governo, essa mudança de regra, bem como para um aposentado. No ano 2020, se as atuais regras forem mantidas,
várias outras medidas adotadas que antecederam ou acom- a proporção será de um para um” (Presidência da República,1997).
panharam a reforma, deverá diminuir o volume da despesa 3. Os auxílios natalidade e funeral transformaram-se em benefícios
com benefícios previdenciários. No caso específico da apo- assistenciais, isto é, são concedidos apenas às famílias com renda
mensal per capita inferior a um quarto do salário mínimo.
sentadoria, o governo esperava, no curto prazo, queda acen-
4. As aposentadorias especiais permitem entrar para a inatividade com
tuada do fluxo de novos beneficiários. À medida que o tem- tempo de serviço menor do que o exigido para os demais trabalhado-
po passasse e que o estoque de aposentados do período res. Era concedida para todos aqueles que trabalhavam em empresas
cujas atividades são nocivas à saúde, como também para certas cate-
anterior à Lei 9.876/99 fosse diminuindo, o gasto total com gorias de trabalhadores como jornalistas e aeronautas. A aposentado-
benefícios, isto é, das aposentadorias concedidas (novos ria especial foi mantida exclusivamente para os trabalhadores que
comprovadamente exercem atividade insalubre e/ou de risco.
ingressantes) e das em manutenção, também teria caído.
5. Para se ter uma idéia , em 1996 havia no país 16,6 milhões de apo-
Contudo, a análise realizada neste artigo do número de sentados e pensionistas da iniciativa privada, enquanto no setor públi-
aposentadorias concedidas pós-reforma não chegou a resul- co federal eram 873 mil inativos e pensionistas (Presidência da Repú-
blica, 1997).
tados conclusivos. Isso porque a demanda já vinha caindo
6. A fórmula de cálculo do valor da aposentadoria por tempo de con-
antes mesmo das regras serem alteradas. Além disso, não há tribuição é a seguinte: FPR=[(TC x a)/Es} x [ 1+ (Id + Tc x a) /100],
como se utilizar a série histórica para inferir o que seria o onde “TC“ é o tempo de contribuição; “a” é a alíquota de contribuição
crescimento vegetativo da demanda – antes da Lei – para se do segurado (incluindo a do empregado e do empregador); “Es” é a
expectativa de sobrevida do segurado na data da aposentadoria; e “Id”
estabelecer alguma comparação e se analisarem os resulta- é a idade do segurado na data da aposentadoria (Dieese, 2001:252).
dos. Desde 1987 pelo menos, a demanda por aposentadoria 7. O déficit dos vários sistemas previdenciários em relação ao PIB em
ou foi deliberadamente reprimida por seus interessados, ou 2000 era de 4,7%, assim distribuídos: 2,0% dos servidores públicos
federais; 1,5% dos regimes dos servidores públicos estaduais; 0,3%
antecipada. Uma e outra atitude, realizadas em massa pelos dos regimes dos servidores públicos dos municípios; e 0,9% dos tra-
trabalhadores, refletiam diferentes momentos de expectati- balhadores do sistema privado, ligados ao Regime Geral da Previdên-
cia Social (Brant, 2001).
va vivenciados pela sociedade brasileira quando da Consti-
8. Art. 68 da Lei Complementar no 101, de 4 de maio de 2000 (Lei de
tuição de 1988 e quando começaram as discussões sobre a Responsabilidade Fiscal), que instituiu o Fundo do Regime Geral de
necessidade de dificultar o acesso à aposentadoria e sobre a Previdência Social – FRGPS, regulamenta o artigo 250 da Constitui-
ção Federal. Esse fundo é formado por bens e direitos de qualquer na-
redução do tempo de permanência do trabalhador no siste- tureza, por aplicações financeiras e pela receita proveniente da folha
ma, depois de aposentado. de salários. As demais fontes da seguridade social, previstas no art.
195 da Constituição, não integram o fundo. Nos últimos anos, essas
Se do lado da despesa a análise foi dificultada pelos mo- fontes têm sido amplamente utilizadas para cobrir o déficit da previ-
tivos expostos acima, da ótica da receita o mesmo não ocor- dência (Marques; Mendes, 2001).
reu. Ficou bastante claro que o nível da arrecadação – infe-
rior ao de 1986 – deve-se ao fraco desempenho da economia
brasileira e, principalmente, à precarização do mercado de REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
trabalho, onde as taxas de desemprego elevadas tornaram-se
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