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POR QUE

DANÇO
AO SOL?
L e n a Yu n i s

POR QUE
DANÇO
AO SOL?
Um estudo sobre a dança no Islã
e na poesia de Jalal Uddin Rumi.

São Paulo • 2021


Versão revisada

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Sumário
Agradecimentos...................................................................................................................................6
Introdução..............................................................................................................................................9
Nota de tradutora.................................................................................................................................19
Historicidade .........................................................................................................................................26
A dança no islã –samá não é raqs...................................................................................................46
O Esplendor da Fé Bizantina.............................................................................................................65
Poemas dançantes de Rumi.............................................................................................................76
Desperta o dia! .............................................................................................................................77
Dançai ramagens, é primavera!...............................................................................................79
Sacode os cachos da cabeleira................................................................................................82
Por que danço ao Sol?................................................................................................................85
Senhor que aroma é esse?....................................................................................................88
Senhor .........................................................................................................................................91
que perfume!.................................................................................................................................91
Amado ..........................................................................................................................................93
estou inebriado!............................................................................................................................93
Ouve o cipreste.............................................................................................................................96
Vem, entra na alma......................................................................................................................98
Com os peregrinos giro.............................................................................................................100
Deixa de jogo amante................................................................................................................103
Jardim frutífero.............................................................................................................................105
Quebra essa harpa mestre!.......................................................................................................108
Dance ..............................................................................................................................................110
O emir disse....................................................................................................................................112
Iniciação do gnóstico no vislumbre do invisível...............................................................114
Morri mineral.................................................................................................................................121
De que se ocupa o teu coração?.............................................................................................124
Sobre a autora...............................................................................................................................127
Agradecimentos

E sse livro resume e atualiza parte da pesquisa apresentada na tese Samatradução: a dança
num exercício de tradução do gazal de Jalal Uddin Rumi, defendida em janeiro de 2018
no Programa de Pós-Graduação em Estudos Judaicos e Árabes, no Departamento de Letras
Orientais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Pau-
lo, Brasil, sob a orientação de Michel Sleiman, em doutorado com bolsa CAPES, e também
da pesquisa de pós-doc realizada no Programa de Pós-Graduação em Estudos da Tradução
da Universidade Federal do Ceará, sob supervisão de Walter Carlos Costa, com bolsa CNPq.
Algo se deve também a minha participação em 2017 no Congresso Internacional Sympo-
sia Iranica, em Cambridge, uma oportunidade única de conhecer especialistas renomados,
trocar ideias e me atualizar no campo dos Estudos Persas e de consultar fontes documentais
e bibliografia especializada nos acervos do Pembroke College /Cambridge e da Asian and
African Collection da British Library/Londres.
Agradeço a todos que o leram meu trabalho de doutorado por suas considerações, in-
dicações e correções, aos colaboradores da campanha que fiz para poder realizar a viagem
e aos colegas, amigos, familiares e professores que me ajudaram nessa trajetória, em espe-
cial: Alejandra McCulleton, Frank Lister (in memoriam), Antonio Milani, Igor Renato Machado
Lima, Adelina França, Maurício Stédile, Christina Schafer, Álvaro Faleiros, Safa Jubran, Simo-

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ne Homem de Mello, Gisele Guilhon Antunes Camargo, Michel Sleiman, Mamede Jarouche,
Cynthia Alario, Walter Carlos Costa, e meus conhecidos iranianos (que talvez não desejem
ser identificados) que revisaram parcialmente as traduções e aos quais devo imensa grati-
dão – e perdão, especialmente por não seguir algumas sugestões de tradução naquilo que
chamo de “transgressões”. Agradeço ainda aos editores da Attar, Urutau e Tabla, que cogita-
ram publicar alguns poemas e/ou capítulos da primeira versão, convites dos quais declinei
devido ao meu propósito anti-comercial com a difusão deste trabalho; e, por fim, ao grupo
da Cátedra Edward Saïd (especialmente Olgária Matos e Maria da Graças), por ter me aco-
lhido em 2020 e proporcionado a liberdade e o estímulo intelectual que me faltavam para
finalizar o material sob uma nova ótica; à Kamila Moreira, pelo auxílio na revisão, e ao Flávio
Valverde, pelo lindo projeto gráfico.
Dedico este livro aos meus mestres, ancestrais, irmãos, amigos e família cósmica (plan-
tas, animais, elementais, astros), especialmente ao professor Leonard Lewisohn (in memo-
riam), aos meus alunos da turma de Tradução de Poéticas Místicas (Poet/UFC), e aos meus
pais: Cristian (in memoriam) e Flávia.

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Introdução

C onta-se que no início dos tempos os homens falavam a linguagem dos anjos. Certo
dia, desejando atingir os céus, alguns resolveram erigir uma elevada construção.
Quando finalmente se mudaram para o sonhado edifício, houve discórdia e disputa en-
tre eles, por habitarem uns mais alto do que os outros. A hierarquia tomara o lugar da
reverência ao sagrado céu e à sagrada terra e as difamações fizeram da palavra coisa
profanada. Então o Raio fulminou a torre para os dispersarem e esquecerem-se da fala
original. Isso o Criador dos mundos fez para que os homens aprendessem, com a pla-
nura da terra, devoção; e, sob o imponente céu, o valor da horizontalidade. O caminho
para a conversa com Deus já não habitaria idiomas ou escrituras, ainda que cada povo
tivesse as suas. Afastados uns dos outros, um único e secreto recinto levaria ao encontro
real e o desafio não seria mais lidar com o alto-baixo da língua, mas com o fora-dentro
da alma. O único meio de se falar verdadeiramente, e de compreender, seria a partir do
próprio coração e sua linguagem sem verbo, que foi chamada um dia de a “linguagem
dos pássaros”.

Escrevi o trecho acima inspirada numa edição poética da Bíblia, de autoria dos monges
beneditinos de Maredsous (Bélgica), e na citação que Rumi faz à torre de Babel no gazal 621.

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Ambos os textos me fizeram repensar os significados usuais da temida carta número XVI do
tarô, a Torre, e do papel do tradutor em face do decreto divino. Deus determinou aos homens
que se desentendessem, mas por qual razão o tradutor seria um traidor, um apóstata, um
herege, se há na tradução um desejo fraterno, portanto perdoável, de reconciliação? Muitos
autores não religiosos se dedicaram a traduzir autores místicos. Há, na tradução poética,
mais do que a superação da diferença na língua e na cultura, e na tradução da mística mais
do que a identificação existencial com o autor, a possibilidade de reativar a magia das suas
palavras. Essa magia, reposta para o presente na alteridade do tempo e na travessia cultural,
guarda um desejo de superar a distância que separa interiormente os homens e de ressa-
cralizar céu e terra, de fazer do mundo um lugar uno. É esse desejo oculto da ressacralização
(diferente do religare) que impele a “percorrer o caminho”, como diriam os sufis, que leva
ao jardim íntimo da consciência e conduz ao mestre interior. Moulana (“nosso mestre”, em
persa) se tornou meu íntimo a partir do momento que me fez lembrar de “olhar para as seis
direções” e que, memorizando seu verso, passei a relembrá-lo constantemente. Em minha
exegese mística, compreendo seu conselho no sentido de retomar a Orientatio sagrada.1
Ao atinar com isso, passei a me sentir confortável para “ser eu mesma diante do autor”, pois
embora Rumi declarasse uma religião que me era estranha, ele não era contra o ato sagrado
primevo de comungar com a natureza, o qual antecede qualquer tipo de instituição religio-
sa criada para regular a proximidade com o Mistério; e, nisso, éramos afins.
Rumi fora praticante de um islã dourado em terra de sincretismos e imigrações e sua
poesia se tornou transhistórica – no sentido do termo usado por Jean-Pierre Vernant.2 Sua
visão espiritual se aproxima do que hoje chamaríamos de “humanista”, num sentido não ilu-
minista nem, muito menos, secularista; mas, talvez, ecumênico. Mesmo tendo sido educado
como muçulmano, o poeta teve por arcabouço cultural o zoroastrismo e a presença de Allah
se manifestava a ele ao modo como Ahura Mazda se manifestara um dia a Zoroastro. Ahura
Mazda, o Senhor Sábio, foi emblematizado pela imagem mitopoética do fogo – que é tam-
bém o “logos manifesto” dos gregos - pois ele é a pura sabedoria que emerge diretamente

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na consciência. O fogo é simultaneamente um atributo sensível seu, tal como suas demais
cratofanias que se vestem de água, de vegetal, de animal, de céu e de terra. Na poética de
Rumi, encontramos todos estes Yazdanat, emanações divinas do Senhor Sábio, cuja força
oponente e antítese é justamente a bifurcação da língua: o ambíguo, a dualidade, a divisão,
a dúvida, a falsidade, a discórdia, a inveja, a desconfiança que mina a fraternidade, portanto
uma fonte do mal que é também a base do fanatismo. Ariman (espírito destrutivo), um deva,
no sentido demoníaco, como é definido naquela narrativa mítica.
Pureza, verdade e retidão são os remédios indicados no Avesta para combater o mal,
ao lado da reverência aos imortais sagrados da natureza, que são divindades concretas e
tangíveis. É a partir dessa perspectiva de fundo, em que ainda é possível conciliar a sabe-
doria pagã com a monoteísta, que Rumi se tornou um dos maiores intérpretes da religião
islâmica de todos os tempos. No seu “Corão persa” ele foi um tradutor espiritual de povos
de variadas origens étnicas e linguísticas, sociais e religiosas. Grupos em diáspora, como
persas e turcos, ou aqueles levados pelas circunstâncias a acolher e integrar os imigrantes,
como gregos e armênios, que se encontraram no coração de um mundo em transição – do
bizantino para o islâmico – por ocasião de deslocamentos forçados. Mesmo os povos con-
siderados nativos da Anatólia eram então invadidos pelo sentimento do “estrangeirismo”
ao serem dominados por falantes de outra língua. Talvez alguém pense que a dimensão
linguistica, ou a sua supressão ao nível semântico, baste para uma tradução "espiritual";
contudo, se a terra se modifica com nova presença humana é a combinação língua/terra
que nos permite perceber, seja para época de Rumi, seja para a nossa, que mesma na lite-
ratura mística (e na sua tradução) há uma dimensão política.
Assim como Rumi, me identifico com exilados, povos em diáspora e refugiados, talvez
por eu descender de imigrantes sírios (outrora siríacos, que se exilariam na própria terra e
se tornariam tradutores “bizantinos” dos islâmicos) e de ciganos, que muito herdaram dos
mazdeístas a quem o livro de Maomé chama de “adoradores do fogo”. Seja como for, seden-
tários ou nômades, fazendeiros ou ambulantes, beduínos ou citadinos, todos se aquecem

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em volta do fogo e numa festa ao ar livre é em volta da fogueira que se dança. Desde a mais
remota era, o fogo protege, reúne, cozinha os alimentos e transmuta os elementos, é sem
dúvida sagrado em muitos sentidos, mas muitos dos que preferem rondar a fria cuba negra,
penso comigo, não entenderam uma coisa simples desta.
E, no entanto, é preciso reconhecer: livros e fogueiras são, ambos, árvores mortas. A uva,
o mártir do vinho. Assim como é o ato que dá sentido ao verbo (mesmo o verbo criador é
um ato e não um “verbo”), é pelo movimento que se circula em volta de um ponto central;
sem ele, centro e círculo não existem. Essa é uma verdade que se constata até na dimensão
galáctica: todos os astros giram em torno de alguma estrela atraídos pela força da sua massa
ígnea, mas se estivessem mais distantes não a circundariam e as estrelas, quando explodem
e se dissipam, convertem-se em pó sideral a ser tragado por buracos negros. Despede-se o
seu corpo da luz, que viaja até nós. A nossa estrela, que chamamos de "sol", é viva e, para
Rumi, o coração do universo externo e interno. Assim ensinavam os mazdeístas e mais tarde
os mazdaquistas3 acrescentariam que o sol brilha igualmente para e em todos.
A diáspora, morte da Babel, nasce da explosão e impulsiona a peregrinação em direção
à luz e ao outro (o radicalmente diferente de mim, ou nem tanto assim), exigindo devoção
à terra e humildade diante do céu. Daí que seguir o modelo de criação poética de árabes e
persas está ligado à ideia de horizonte: o horizonte que faz tocar experiência e imaginário,
poeta e audiência, palavra e gesto, um ser e outro, um povo e outro, um tempo e outro e,
no limite, o humano e o divino; em resumo, céu e terra. Para acessar tal horizonte, o tradutor
não parte da forma retórica ou da dimensão semântica, ou da discursiva, nem da replicação
do efeito rítmico ou da musicalidade, nem da exploração das imagens. Parte de seu próprio
exílio na língua e na terra. É preciso começar do começo (portanto do fim), orientando-se
pela condição primeira da recriação poética que é a da experiência simbólica horizontal que
a leitura do original produz no tradutor: ele bebe as palavras do autor e se embriaga; o texto
é mosto, a leitura é vinho, a tradução é a embriaguez que a tudo desfigura e faz da terra um
único borrão, da companhia um único corpo, do céu um único sopro.

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Logo, a tradução deve necessariamente englobar o trajeto específico dessa experiên­cia,
incluindo aquilo que não está marcado textualmente. Isso, creio, tem a ver com o propó-
sito compositivo (gharad) - pelo qual se estrutura o poema em função do propósito e da
ocasião ou situação em que se realiza, o que, em outras palavras, pode ser compreendido a
partir do lúdico, nos termos de Johan Huizinga.4 Para esse teórico e historiador da cultura,
poesia, dança e magia compartilham dos mesmos elementos “rítmicos”: golpe e contragol-
pe, inversões, contrastes, repetições. Trata-se de elementos intemporais que são manejados
não em relação a si mesmos, enquanto artifícios, mas enquanto moldes frescos nos quais se
imprimem as marcas, os vestígios, do jogo social. Contudo, enquanto o poema se realiza na
forma verbal, que pode ser fixada na memória ou num suporte perene (papel, pedra, argila)
por meio da escrita, a dança é linguagem não verbal que se realiza somente por meio do
suporte vivo e transitório do corpo. Daí que a dimensão “coreológica” de um poema seja o
traço mudo e mutável do movimento onde habita o não-dito, o vivido ou intuído, aquilo
que se abre à nova significação na “respiração” do verso, aquilo que manifesta o imanifesto
no campo intermediário da imaginação lúdica.
O lúdico também implica um comando interativo que produz efeitos reais (fisiológicos)
no corpo. Visto que a comunicação e a aprendizagem cinética se dão por sinergia e imita-
ção, podemos dizer que uma imagem coreopoética é um comando lúdico, um gesto a ser
mimetizado pelo ouvinte. Se o poema se refere por meio de imagens ou da anáfora verbal a
alguma modalidade coreográfica, o ouvinte irá (ou poderá, ou deveria) ao menos imaginar-
-se em primeira pessoa naquele movimento. Foi nesse sentido que interpretei a dança como
fator dançante e propósito poético de Rumi.
Existe, é claro, uma estrutura de fixação mnemônica para a dança que, todos sabem, é a
coreografia (coordenação de passos ritmados e formas gestuais). Porém, ela nada comunica
sem a simbolização corporal da experiência que a conecta ao momento existencial, histó-
rico. Por isso, executar a “coreografia” dos místicos conforme a simbologia preestabelecida
pela tradição sufi de nada serve para “reviver” as imagens poéticas, visto que o elemento

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coreográfico, neste caso, segue operando como elemento puramente sígnico. O que produz
o dançar é transformá-lo em vivência metafórica de outra coisa. Se no poema há um paralelo
entre dançar e “ouvir o profeta” – como há no Masnavi – sem dúvida vale a pena que o tradu-
tor vá até à mesquita mais próxima numa sexta-feira e abra os ouvidos; ou se fala da doçura,
que prove halewa sentindo gratidão, e assim por diante. Isso tudo é metaforização corpo-
ral. O corpo do tradutor, entretanto, vai além disso com todas as suas marcas existenciais e
históricas que constituem o campo dessa experiência gestática sem a qual ele tampouco
poderá se aproximar do estágio místico na assimilação do poema em tradução, que é o do
arrebatamento. Ser arrebatado é ser tomado por algo sem chance de evitá-lo, sem cisão.
Porém, o lúdico por si só não permite uma travessia completa ao jogo social de outros
tempos – senão pelo “espelho” e pelo oráculo. Pois, na reposição da estrutura “coreográfica”,
assim como da “rítmica”, no jogo entre passado e presente este último prepondera. Para
chegar à dança de Rumi era preciso ultrapassar uma brecha no horizonte que exige, como a
História exigiu um dia de Heródoto e de Tucídides e depois dos historiadores muçulmanos,
novamente o exílio.

Rumi não se tornou em oito séculos um dos autores mais lidos do mundo ou, ao menos,
o mais lido em língua inglesa no século XX,5 porque escritores hippies da era new age resol-
veram convertê-lo, num passe de mágica, num ícone ecumênico pop, como o fez Coleman
Barks. A vantagem de ir aos originais e prescindir das retraduções é poder ter uma visão
própria de como o autor lida poeticamente com a linguagem e não apenas com a língua.
Contudo, ainda assim, nenhum original está “dado” por si mesmo. A mística islâmica, como
toda organização religiosa, tem cadeias de mestres de quem se ouve os ensinamentos e se
aprende a decifrar o sentido dos textos dentro da tradição. Se queres saber o que Moulana
quis dizer em tal e tal verso, te orientam a perguntar ao sheikh da ordem sufi X. Ele provavel-
mente dirá o seguinte (fingindo que não pretende te converter): “naquela época, significava
isto; hoje significa aquilo; mas o Corão diz o seguinte (induzindo-te a chegar na mesma in-

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terpretação dele) aquilo outro”. Não deixa de ser uma exegese “historicista” – supor que tra-
duzir o passado (o contexto que dá sentido ao sentido) é como traduzir o vocábulo (signo)
pelo dicionário (classificação pré-estabelecida).
Retenho, do que ensinam os místicos dos primeiros tempos, que nenhum mestre está
acima do coração; portanto, nenhum conselho vale mais do que a intuição. Então, segui os
desígnios da minha própria tariqa,6 que não era outra senão a dos buscadores em arquivos
e fontes que perseguem vestígios do passado e acessam o invisível, e veem e ouvem através
de espíritos antigos, mas sabem que o diabo mora nos discursos mais coerentes. Na minha
busca pela via nada secreta dos historiadores desvelo o que creio ser necessário para chegar
não à língua, mas ao coração dos sufis de outrora: a variação histórica do conceito de dança
no contexto islâmico, o aspecto sincrético dos rituais místicos, os vestígios da mística cristã
e do zoroastrismo na tradição sufi, a obliteração historiográfica do século XIV e a censura
islâmica que se acentuaria a partir daí. Tudo isso balizou minha opção por salientar o fator
dançável na significância do poema para ressignificar historicamente o tema da dança no
poeta, limpá-lo das traduções mal-informadas ou desinformadas da crítica histórica. Salien-
tar o fator dançável não no ritmo – pois os metros árabes eram restritivos ao persa – mas nos
elementos coreográficos e imagens mitopoéticas aplicados pelo autor inclusive para aludir
ao debate a respeito da censura religiosa à dança.
O histórico não é dado, mas resultado de um trabalho de investigação, descoberta, des-
vendamento, desmistificação, reinterpretação do passado por um caminho percorrido, de
preferência, em perspectiva alternativa ao oficial ou tradicional. Nesse sentido, considerar
a dimensão política da alteridade como historicidade, como postulou Henri Meschonnic,7
é fundamental, pois a dialética da diáspora que leva ao outro se dá através do tempo e não
somente do espaço. Além disso, envolve aquilo que Wilhelm Dilthey chamou de ressigni-
ficação histórica:8 uma perspectiva interpretativa do passado. Por isso, na minha recriação
decidi explorar de forma consciente o eixo de significação entre passado e presente ao usar
vocábulos que alteram explicitamente a simbologia usual da mística sufi. A intenção não

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era ser “literal” (esse velho mito da tradução), mas expandir as possibilidades interpretativas
e exprimir as relações interculturais e históricas do sufismo com outras formas de crenças e
práticas religiosas – elos que apelidei, na tese, de “cliossemias”.
Assim, o leitor vai notar (e o sufi e o purista, talvez, se queixarem) que na travessia pela
fresta do tempo converti a alma de Rumi em anima, a serpente em ouroboros, o ídolo em
eidolon, a samá em chorus, o cálice em graal, o jardim em floresta e o êxtase em desvario,
espargindo sobre ele algo de erotismo e avidez, de palco e catequese, de ciranda e mito.
Todas essas transgressões eu tento sinalizar em itálico e negrito na tradução e foram feitas
propositalmente com imagens "universais" simbólicas que, assim sendo, não ficam restritas
às conotações particulares que lhes confiro. Tudo isso em homenagem a uma história uni-
versal da mística liberta do cercado islâmico e integrada aos horizontes cruzados do sufismo
com a alquimia, com os místérios pagãos e com a mística cristã que estão, de fato, na origem
histórica daquela tradição mística. Era o próprio Rumi quem, em sua transhistoricidade dias-
pórica pulsante, despertava em mim o ímpeto ancestral de irmanar todas as místicas: eu,
Jonas (Yunis), a trazê-lo para dentro do meu corpo-peixe e, junto com Hafiz e Gibran, fumar
um arguile, partir o pão e beber da mesma taça no sabá onírico.
Uma vez que a audição mística sufi, cunhada no debate islâmico pelo termo árabe samá
(audição), adquiriu historicamente o sentido de uma gnose experiencial que reúne a ativa-
ção de sentidos, faculdades e atos conjuntamente (ouvir, pensar, dançar), resolvi nomear
esse processo da tradução como um todo de samatradução:9 uma audição tradutória, con-
siderando-a, porém, ademais, historicamente cognitiva. Visto que a dança é registro simbó-
lico do experiencial e existencial, contingentes no devir histórico, a minha samatradução
inclui a gnose específica da ressignificação histórica da dança em Rumi, na contramão de
traduções orientalistas reverentes a uma historiografia nativa que ardilosamente endossa a
censura religiosa. Na minha fogueira e no meu vinho, liberto a pena do dançarino cósmico
de Konya, para quem a existência é aquilo que se dança dentro e fora. A arte de sintonizar
mundo e além; enfim, alta magia.

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Notas
1
Termo cunhado por Mircea Eliade para definir o princípio ordenador corporal, espacial e cósmico como elemento
basal da consciência religiosa e inerente ao desenvolvimento humano, verificável por vestígios desde o paleolítico,
em History of religious ideas. Tomo I, From the stone Age to Eleusinian Mysteries. Translation by Willard R. Trask.
Chicago: The University of Chicago Press, 1978, p. 3-28.
2
Ver “O sujeito trágico: historicidade e trans-historicidade”. In: VERNANT, J. P.; VIDAL-NAQUET, Pierre. Mito e Tragédia
na Grécia Antiga. Tradução de Bertha Halpem Gurovitz. v. II. São Paulo: Brasiliense, 1991.
3
Mazdaquismo foi um movimento de reforma religiosa iniciado por Mazdak, por volta do século IV, promulgando
o retorno às bases originais do zoroastrismo no mazdeísmo, pelo fim do privilégio da casta de sacerdotes e pela
promoção de uma igualdade social e religiosa, inclusive em termos de gênero.
4
HUIZINGA, Johan. Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura. Tradução de João Paulo Monteiro. São Paulo:
Perspectiva, 2019. Edição revista e atualizada.
5
LEWIS, Franklin Lewis. Rumi – Past and Present, East and West: The Life, Teachings, and Poetry of Jalâl al-Din Rumi.
London: Oneworld, 2008.
6
Termo denotativo da via ou ordem mística; em persa significa “medida” ou “sopro de ar” no sentido musical.
7
MESCHONNIC, Henri. Éthique et politique du traduire. Paris: Verdier, 2007.
8
El mundo histórico. México: Fondo de Cultura Económica, 1944.
9
Neologismo criado pela autora com o uso do termo samá (romanizado), que em árabe significa “audição” e também
é utilizado para nomear toda prática devocional sufi que inclua audição de música, poesia, dança e outras manifes-
tações do tipo.

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Nota de tradutora

J alal Uddin Rumi (1207-1273 d.C.) é um dos mais conhecidos poetas persas, famoso por
ter sido o fundador da Ordem Mevlevi na Konya (atual Turquia), um ícone mundial do
sufismo graças ao famoso giro dos dervixes rodopiantes. Nos países de cultura e língua per-
sa (Irã, Tadjiquistão e Norte do Afeganistão), ele é mais conhecido por Moulana, “o nosso
mestre”. Entre os seus escritos encontram-se cartas e palestras registradas pelos discípulos,
publicadas sob o título Fihi ma fihi (O livro do interior), além de duas grandes obras po-
éticas: o Divan-e Shams,1 poemário dedicado ao mestre Shams de Tabriz, contendo mais
de 5 mil poemas, e o épico teosófico Masnavi Ma’nawi (Dísticos espirituais)2 apelidado de
“Corão persa” por conter mais de 155 citações corânicas e comentários alusivos às obras de
diversos teólogos e místicos ao longo de seus 50 mil dísticos rimados. A duas obras poéticas
receberam, desde o século XVII, inúmeras e sucessivas traduções para o árabe, turco e urdu
e, a partir do século XVIII, para línguas ocidentais. Nenhuma tradução completa direta ao
português ainda. No Brasil, José Jorge de Carvalho publicou um punhado de seus poemas
místicos e Marco Lucchesi fez a tradução direta de alguns rubais e odes. A presente proposta
é, ao lado destas, apenas um estudo que apresenta uns poucos gazais e um ou outro trecho
de masnavi representativos do tema da dança no autor. Contarei a seguir a trajetória que me
levou a traduzi-los e a forma como os traduzi.

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Eu já havia visto os dervixes de Aleppo, do Ensemble al Kindi, desaparecerem por detrás
de suntuosas saias quando li, na pena de José Jorge de Carvalho, Rumi a dizer “vem, te direi
ao ouvido onde leva esta dança”3. Um tempo depois, cheguei às danças persas pesquisando
a origem dos povos ciganos, que haviam passado cerca de mil anos entre persas antes de
entrarem na Europa, no século XV, tendo assimilado deles muita coisa: a ciência astrológica
dos Magos, a religião ígnea de Ormuz e talvez até mesmo o hábito do nomadismo. Tive a
oportunidade de aprender algumas modalidades tradicionais de dança da Ásia Central e
fui atraída vertiginosamente para a colossal e fascinante história da civilização persa. Estu-
dei o renascimento literário persa do século X e, desejando ler os poemas no original, me
instrumentalizei na letra cursiva árabe para aprender o alfabeto persa. Após algumas aulas
com nativos, comecei a me aventurar entre poemas de mais de 1000 anos que ainda hoje
inspiram filmes, peças, dramaturgias coreográficas. Quis, por fim, entender por que danças
tão sutis e delicadas, por vezes até singelas, sofreram tão brutal censura pelas autoridades
islâmicas mesmo em pleno século XX.
O estreito de Hormuz fora dominado pelos portugueses entre os séculos XVI e XVII e
logo presumi algum intercâmbio linguístico que vocábulos como fulani, que significa exa-
tamente “fulano”, e qabl, “cabal” (talvez empréstimo árabe), delatam. Sinto alguma proximi-
dade linguística com o persa tanto no português como no espanhol e muita identificação
com aquela poesia dançante e movediça, cujo brilho de espuma marítima ofuscaria impor-
tantes autores, como Cecília Meireles, que à rosa primordial do astrônomo do Irã acenaria :
“Por mais que te celebre, não me escutas, embora em forma e nácar te assemelhes à concha
soante, à musical orelha que grava o mar nas íntimas volutas”5. O verso áureo desvenda o
segredo da imagem floral persa, em outros tempos corpo espiralado de vertigem orbital e
cósmica. Os versos de Omar Khayyam, a seu turno difundidos por Fitzgerald, também se-
riam diretamente vertidos para nossa língua por Jamil Almansur Haddad; já Hafiz, por sua
vez, chegaria a nós pela retradução de Aurélio Buarque de Holanda, sendo celebrado num
gazal de Manuel Bandeira que, apesar da distância geográfica, histórica e idiomática, trans-

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põe com primor os elementos do gazal persa, só para lamentar: “Hafiz Poeta de Chiraz, teu
verso, tuas mágoas e as minhas diz. Pois no mistério do mundo também me sinto infeliz”4.
Quando, algumas décadas depois, Marco Lucchesi verte um rubai de Rumi assim: “quando
eu voltar ao mar absoluto meus átomos irão resplandecer”,6 citando o título da obra da poe-
tisa brasileira ao modo alusivo dos persas, faz nossa poesia retornar à orla de Hormuz feito a
oferenda zoroastriana: pão lançado ao mar em lembrança dos ancestrais.
Cada poema persa é uma constelação de imagens literárias e citações alusivas a outras
obras; ao traduzi-lo nos conectamos a um universo inteiro. Logo se descobre que o verbo
sozinho não cria verso ou universo, que o poético não habita apenas o texto. Quando há
menção à dança, a referência primeira é sempre a do corpo, que já não está em outro lugar
senão em nós mesmos. Tampouco se chega à poesia persa à sombra do orientalista, pois o
limiar entre Oriente e Ocidente se desfaz na sua delicada trama de tapeçaria. Muitos autores
europeus – Goethe talvez o mais famoso deles – encontraram inspiração em traduções que
permitiram conhecerem clássicos como Attar, Saadi, Nezami, Hafiz, Rumi, e hoje também se
pode ler em inglês algo dos modernos Ahmad Shamlu, Jima Yushij, Forugh Farrukhzadeh,
Sohrab Sepere ou Simin Behbahani. Contudo, nada como a língua original para se desfrutar
inteiramente do jogo metafórico que, no caso persa, exige interação. Como numa brinca-
deira muito séria de criança, quando o poema diz “louco torna-te/poemário torna-te!”, o tra-
dutor não tem outra alternativa senão obedecer, tanto como ouvinte quanto como poeta.
Nesse jogo lúdico, convém conhecer as regras da trova persa: a segmentação semânti-
ca enxuta, a unidade da linha, a divisão proporcional de temas e tópicos; a adaptação dos
metros árabes à prosódia persa; o atanin, padrão musical por detrás da recitação que define
a sintaxe e o ritmo prosódico; o equilíbrio entre as partes; a rima anáfora verbal com potên-
cia de eixo metafórico; o laço entre significação e espacialidade na estrutura arquetípica da
forma. Nesse sentido, o rubai, que é composto de quatro hemistíquios, é forma alusiva ao
quadrado, que representa o plano mundano na simbologia persa medieval. O gazal persa,
enquanto condensação da qasida, é seccionado em duas seções principais, com um verso

21
de transição ao meio, e emoldurado por versos de abertura e saída. Parece uma divisão, no
máximo, espelhada; entretanto, em função da circularidade provocada pela rima anáfora e
da função antitética dos hemistíquios, pode ser concebido como estrutura “circular”, “cônica”
ou, ainda, em “lemniscata”, representando muitas vezes o universo, o jardim e até o próprio
corpo humano. O masnavi, disposto em dísticos rimados e utilizado para a longa narrativa,
a seu turno, foi definido como “edifício poético” por Ferdowsi. Nessa espécie de holograma
imaginário do poema é que se traça a “conversa” entre a realidade concreta e o espírito do
ouvinte. Por causa disso, tentei preservar a “casa do poema”,7 como diria Adonis, em especial
mantendo a rima, o sintagma prosódico, transições e cesuras.
Quanto à dimensão recitativa, tentei usar espaçamentos visuais para indicar pausas,
como fez Michel Sleiman ao traduzir o Corão.8 A solução emula a leitura da frase sem pon-
tuação, como ocorre no persa clássico, e induz à busca intuitiva do ritmo prosódico e da
cadência. Para manter a fluidez, eu também propus alterações nos tempos verbais, pois são
difíceis de verter do persa, especialmente o aoristo e outros para os quais não existe corres-
pondência no português, mas ignorei muitas vezes o metro, pois os persas consideram o
aspecto imaginário e a fluidez mais importantes do que a métrica. O padrão árabe de versifi-
cação se impusera para regular as expressões não árabes e eliminar elementos considerados
pagãos ou estranhos ao espírito islâmico; era um recurso considerado maçante pelos persas,
que ou simplificavam ou escansionavam em padrões nativos, assunto que é motivo de de-
bate entre os linguistas hoje.‌
No que se refere às transgressões/ressignificações simbólicas que, conforme indico na
introdução, fazem das samatraduções mais recriações do que traduções propriamente ditas,
procurei marcá-las em itálico e negrito para diferenciar das citações literárias e alusões co-
rânicas, grifadas somente em itálico para manter um traço da oralidade do texto: os trechos
religiosos apenas aludidos para soar familiares aos ouvintes, já que Rumi não era literal na
citação. Quanto às transliterações dos termos, nomes e títulos árabes, usei uma romanização
simplificadora para não enfastiar o leitor não especializado. O gazal 621, Por que danço ao

22
sol? 9, dá título ao presente livro. justamente por registrar muitas dessas transgressões que
refletem o “abraço” místico da tradutora com o autor.

***

Em determinado momento, afetada pelo luto do meu pai, outras perdas que se sucede-
ram e diversas formas de “morte” que experimentei, me vi impulsionada, não sei bem dizer
se por tristeza ou por inércia, a uma espécie de ascetismo que acabou por se tornar útil ao
estudo da mística e que consistiu em privar-me da própria música e da dança, o que durou
anos depois da defesa do mestrado. Creio que isso me purificou de estímulos já conhecidos
e me deixou mais sensível à escuta e mobilização interior e, principalmente, ajudou-me a
dançar mais para dentro e a vivenciar, em cada ato cotidiano, a velha harmonia das esferas
celestiais – apesar dos seus ciclos não serem tão cíclicos ou elípticos, mas ciclotímicos e
cheios de precessão, regressão, stellium explosivos, desconexão e errância.
Dito isso, e apesar de constatar que, como na vida, algo sempre permanece inacabado,
sinto simplesmente que é tempo de encerrar o ciclo de composição deste livro.

São Paulo, 23 de maio de 2021. L.Y.

23
Notas
1
RUMI, Jalal Uddin, 1207-1273. Kulliāt-i Shams yā Dīwān-i Kabīr. Edição de Badî‘ Al-Zamân Furûzanfar. Teheran: Amir
Kabîr, 1957.
2
RUMI, Jalal Uddin, 1207-1273. The Mathnavi of Jalaluddin Rumi. Tradução bilíngue persa/inglês de Reynold Alleyne
Nicholson (1868-1945). London: Luzac, 1940. (E. J. W. Gibb Memorial Series)
3
CARVALHO, José Jorge de. Divan de Shams de Tabriz – Poemas Místicos. São Paulo: Attar, 2013, contracapa.
4
BANDEIRA, Manuel. Meus poemas preferidos. Rio de Janeiro: Ediouro, 2005, p. 81.
5
MEIRELES, Cecília. Antologia Poética. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 66.
6
LUCCHESI, Marco; TEIXEIRA, Faustino (Org.). O canto da unidade: Em torno da poética de Rumi. Rio de Janeiro: Fissus,
2007, p. 19.
7
“La forma es una ‘casa’ visible para un ‘habitante’ invisible. La forma es un cuerpo para el significado. Entre la ‘forma’ y el
‘significado’ hay una forma ‘imagen’”. ADONIS. Sufismo y surrealismo. Tradução de José Miguel Puerta Vílchez. Madrid:
Ediciones del Oriente y del Mediterráneo, 2008, p. 265.
8
SLEIMAN, Michel. “Alcorão 1; 2:1, 143. Transcrição e tradução”. In: Tiraz – Revista de Estudos Árabes e das Culturas do
Oriente Médio. São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP, 2008, p. 85-117.
9
As traduções apresentadas originalmente na tese foram atualizadas e modificadas para esta edição.

24
Historicidade

“Ele gostaria de deter-se para despertar os mor-


tos e unir os fragmentos. Mas um vendaval so-
pra do paraíso e prende suas asas com tal força
que ele não pode mais fechá-las. A tempestade
o impele irresistivelmente de costas para o futu-
ro, enquanto as ruínas à sua frente se amontoam
até o céu. Esse temporal é o que chamamos de
progresso”1
Walter Benjamin – Teses sobre a História

T ento, nesse ensaio, expressar algumas reflexões sobre a questão da historicidade, segun-
do as minhas referências no campo da teoria da história e da tradução, para compreen-
der a natureza da poética mística como gênero distintivo em tradução, pensando a tradução
como processo histórico. Segundo Benjamin, a traduzibilidade é
tanto mais íntima quanto, para o próprio original, ela nada mais significa. É lícito chamá-la de natu-
ral ou, mais precisamente, de conexão de vida. Como as manifestações da vida estão intimamente

26
ligadas ao ser vivo, sem significarem nada para ele, assim a tradução procede do original. Na ver-
dade, ela não deriva tanto de sua vida quanto de sua “sobrevivência” [Überleben]. Pois a tradução
é posterior ao original e assinala, no caso de obras importantes, que jamais encontram à época de
sua criação seu tradutor de eleição, o estágio de sua pervivência [Fortleben]. A ideia da vida e da
pervivência [Fortleben] das obras de arte deve ser entendida em sentido inteiramente objetivo, não
metafórico. O fato de que não seja possível atribuir vida unicamente à corporeidade orgânica foi
intuído mesmo por épocas em que o pensamento era dos mais preconceituosos. Mas não por isso
se trata de estender o império da vida sob o débil cetro da alma, da maneira tentada por Fechner;
menos ainda, trata-se de poder definir a vida a partir de aspectos da animalidade, ainda menos pro-
pícios a servirem de medida, como a sensação [Empfindung], que apenas ocasionalmente é capaz
de caracterizá-la. É somente quando se reconhece vida a tudo aquilo que possui história e que não
constitui apenas um cenário para ela, que o conceito de vida encontra sua legitimação. Pois é a partir
da história (e não da natureza – muito menos de uma natureza tão imprecisa quanto a sensação ou a
alma) que pode ser determinado, em última instância, o domínio da vida. Daí deriva, para o filósofo,
a tarefa: compreender toda vida natural a partir da vida mais vasta que é a história.2

O meu desafio, em particular, começa por “ler” esse texto de Benjamin, considerando que
não leio no original e cotejo essa tradução com outras quatro. O conceito que me interessa
aqui é o de “pervivência”, aquilo que dotaria a obra de “vida” na sua existência histórica e
que, mais adiante, como sinaliza o autor, constitui “algo que se modifica necessariamente na
sua ‘sobrevivência’, nome que seria impróprio se não indicasse a metamorfose e renovação
de algo com vida”3. A tradução acima é de Susana Kampff Lages, uma especialista em Ben-
jamin que se dedica a compreender a tensão que há entre as noções de história e tradução
naquele autor. Seu texto espelhado com o original em alemão de nada me serve e penso,
com ironia, no meu texto espelhado com o original em persa, em que nada, aparentemente,
parece ligar um e outro, a não ser, de modo forçado e incompleto, a forma retórica. Consulto
a edição da FALE4 (eles têm traduzidos os clássicos da tradução assim, em múltiplas versões).
Fernando Camacho fala da “conexão vital” e define a “sobrevivência” como uma “fase em
que se prolonga e continua a vida” das obras traduzidas.5 João Barrento, outro importante

27
pesquisador de Benjamin, refere-se à pervivência como um “estádio da sua sobre-vida”. 6 A
tradução de Karlheinz Barck e outros é muito similar à de Lages que, na referida coletânea,
usa “estágio da continuação de sua vida”.7 Não me aterei de modo preciosista à variação sutil
de sentido entre essas escolhas vocabulares; ao contrário, é a proximidade semântica dessas
escolhas que me incomoda e confunde, pois vejo que estou diante de traduções informadas
umas pelas outras, há um consenso e um complô do sentido contra o qual me sinto impo-
tente. Não sei alemão e gostaria de usar, no lugar das expressões “fase que se prolonga a
vida”, “estádio de sobre-vida”, “pervivência”, “estágio de continuação da sua vida”, um outro
termo que suponho adequado teoricamente, porém certamente anacrônico, impreciso e
infiel lingusticamente ao texto de partida.
Chegarei a esse termo ao fim do presente ensaio, mas começo pela “consciência intuitiva
do histórico”. Muitos tradutores orientalistas se propuseram a “intuir” a história dos místicos
e é contra esse método tão sedutor e perigoso que construo a minha investigação histórica
da dança em Rumi. A mística, lembremos, é em si mesma uma forma peculiar de tradução;
talvez a mais elevada forma, pois o profeta é um tradutor da mensagem divina, decodifica
a linguagem dos mistérios em fórmulas simbólicas apreensíveis. O sacerdote e o mago, no
sentido inverso, condensam um desejo humano em estruturas verbais precisas, igualmente
simbólicas, como a oração ou o conjuro. O místico conhece a locução teopática, conversa
diretamente com a divindade suprema e primordial. A teoria de Benjamin foi considerada
mística por conceber a traduzibilidade como algo que presume uma dimensão que pode
não estar acessível aos humanos, mas permanece latente, intermediária e perene num plano
virtual da linguagem. A imagem dos “cacos” a serem reunidos pela tradução guarda um elo
com a noção hassídica da imanência: todos os seres e tudo que existe seria, na condição de
"barro", receptáculo da luz divina, e cada vaso que se esfacela ou caco que se dispersa carre-
ga consigo um feixe da luz contida em seu interior. A metáfora do templo e não da torre de
babel é que se desdobra nessa noção e permeia também a metáfora do vaso partido usado
por Benjamin para a tradução, cuja noção ecoa ainda a definição que Gershem Sholem apre-

28
senta sobre a linguagem na mística judaica, pela qual a palavra, tendo origem em Deus, é
infinita ou absoluta e “como tal, insignificativa, mas está prenhe de significado”.8
Michael Sells nomeou a linguagem do indizível como paradoxo apofático, no qual a ex-
periência abismal da vivência mística, que resulta em aporia e perplexidade, é sucedida pela
necessidade comunicá-la, levando à estratégia apofática para o indizível, ou catafática, para o
que pode ser indicado simbolicamente.9 Isso está ligado, de certo modo, a exegese messiânica
que “abre caminho para uma infinita interioridade onde sempre novas camadas de significado
são descobertas”. Segundo Sholem, a partir daí o profeta-místico-messias pode transformar as
escrituras em corpus simbólico e, nessa dinâmica, invalidar os significados tradicionais das es-
crituras, inclusive para redefinir a sua própria história. Nas Teses sobre a história de Benjamin, a
ideia de que no momento revolucionário o tempo pode ser estilhaçado em milhares de agoras
sugere uma des-historicização correspondente à essa des-escritura messiânica. É por meio da
abertura temporal que se vislumbraria o passado “cintilar" no momento de um perigo e penso
que neste sentido ele se refere simultaneamente ao perigo real e simbólico do esquecimento
– motivo que levara Heródoto a salvar os “grandes feitos” dos homens diante do calar das mu-
sas na morte do épico. Pois, na subversão histórica do tempo, espelhada à inversão profética,
outros vestígios e perspectivas seriam trazidos à tona e permitiriam “constelar” os milhares de
agoras em novas associações entre presente e passado. Porém, no solo comum entre mística
e história, o que ocorre de fato é que um terceiro elemento, a tradução, concorre para o ocul-
tamento de traços ou o deslocamento de elementos, o que obstrui, na realidade um estudo
mais objetivo do passado. Pois, na confusão entre interpretação histórica e exegese mística, a
tradução das escrituras sempre produziu a mistificação da tradição religiosa, tornando assim a
sua historicização incompleta ou até impossível.

Para Henri Meschonnic:


o pensamento sobre a língua é um pensamento sobre o signo, sobre o descontínuo, incapaz de
pensar o contínuo, que é duplo: o dos corpos-linguagem, e o da linguagem-poema-ética-política,

29
a interação e implicação recíproca destes quatro elementos, de forma que uma transformação em
qualquer um deles transforma os demais; e, por conseguinte, o do ponto de vista em que me situo,
que é o da observação do como, como um texto faz aquilo que ele faz, que é outra coisa que buscar
aquilo que ele diz, e que mostra que se nós olhamos só para o que diz esquecemos o como.11

O mecanismo poético, portanto, em sua condição inseparável da transformação das


relações interculturais, seria o melhor testemunho da “implicação recíproca entre a his-
toricidade e a especificidade das formas da língua como formas de vida”12. Há, para esse
autor, um paralelo entre “vida” e “linguagem”, da mesma forma que entre historicidade e
alteridade, por isso ele propõe uma “poética do traduzir” que seja crítica no sentido de que
“se situa como teoria conjunta da linguagem, da história, do sujeito e da sociedade, e recuse
as regionalizações tradicionais, mas também no sentido de que se funda como teoria da
historicidade radical da linguagem”13. Meschonnic, enquanto tradutor da Bíblia, observou
que a versão hebraica sofrera um processo de catolicização e de des-helenização na Septua-
ginta, além de descaracterização por parte da própria tradição judaica. A bíbila massorética,
fixada por volta do século X, que ainda guarda na sua escritura a sinalização de elementos
rítmicos e performáticos de tradição remota (que teria sido perdida posteriormente), teve es-
ses aspectos negligenciados pelos estudos rabínicos.14 Há, ademais, um processo ideológico,
que o autor explicita como teológico político, em cuja esteira se apagam, nas traduções,
diferenças semânticas importantes, inclusive aquela entre sagrado, divino e religioso.15 Isso
redunda em um prejuízo da historicidade do texto que deriva de uma compreensão herme-
nêutica voltada para a mensagem (o “conteúdo literal”) em detrimento da forma. Ainda as-
sim, Meschonnic nota que se trata de algo que reside além da dimensão retórica ou sígnica.
Portanto, a “forma” de traduzir diz respeito ao modo de traduzir em atenção ao modo como
opera a linguagem poética no original dentro de uma situação social concreta.
O que Meschonnic enfatiza é que a nossa compreensão da linguagem é que está preju-
dicada por uma tradição intelectual que cinde corpo e alma, saber e fazer, signo e significa-
do e assim por diante. Na realidade, devemos considerar o continuum entre história e vida

30
e corpo e linguagem, cujos vestígios se projetam ao campo rítmico da criação poética. Para-
fraseando Ezra Pound, ele chega à conclusão que o “o ritmo conduz à dança da linguagem”16
e não das palavras e, por isso, se dedicará a estabelecer uma compreensão do ritmo como
elemento organizador da historicidade do texto. Sua tese parece ampliar a noção de lúdico
de Johan Huizinga, que definira o ritmo como fator de transposição do jogo social, porém,
em diferentes direções. Meschonnic considera o ritmo uma estrutura dinâmica, diferente de
Huizinga, que estabelecera as estruturas lúdicas como “intemporais”17. Familiarizado com
fórmulas árabes e hebraicas da versificação poética, o teórico francês distingue entre o pla-
no da cadência (fixa, intemporal) e o do ritmo prosódico, vendo neste último o vestígio da
corporalidade. E a segunda diferença, como relação ao autor holandês, é que o francês con-
sidera a tradução como “escuta de uma história” intersubjetiva, não do jogo propriamente
dito;18 há uma preocupação teórica em situar e definir o sujeito por meio de uma teoria da
linguagem.
Para Meschonnic, o ritmo é reflexo histórico do estado da linguagem no texto que só pode
ser acessado de uma perspectiva tradutória que considere os elementos da oralidade e da
corporalidade na composição poética em termos de continuum entre vida, história e lingua-
gem. Por isso a sua a poética do traduzir tem por horizonte uma ética que seja uma “poética da
sociedade”. O que desafia a noção de historicidade em Meschonnic é que o ritmo – elemento
fixador da historicidade e não apenas organizador dos elementos tex­tuais e discursivos em si
– requer uma solução estética apropriada ao contexto de chegada, portanto uma poética em
que a rítmica do presente prepondera. Além disso, a alteridade entre o passado e o presente é
estabelecida, neste caso, na e através da tradução, porém não para a tradução. É um caminho
de reconstituição do passado intrínseco ao próprio texto no qual se recupera o ritmo como
vestígio histórico.
Se a alteridade histórica é determinada pelo próprio testemunho que leva do presente
ao passado, um caminho por dentro do texto faz sucumbir ao nebuloso “intuir histórico” de
Benjamin. Pois se o literal é um mito para o tradutor, a tábula rasa é o mito do historiador. Em

31
outras palavras, raramente se chega a um dado texto sem se estar informado por interpre-
tações históricas que são, por assim dizer, rotas ao passado exteriores ao texto. Na realida-
de, todos somos informados historicamente por historiografias de diferentes abordagens e
perspectivas que mobilizam ocultamente o “intuir” histórico. Meschonnic é profundamente
crítico em relação às representações históricas herdadas e isso faz parte daquilo que ele
concebe como historicidade/alteridade, ainda assim não há uma concepção muito clara da
história na base da sua teoria. O problema é que o tradutor de fontes remotas não pode se
eximir de uma pesquisa do passado e não poderá evitar os dilemas que são típicos da inves-
tigação histórica: relato versus registro documental; particular versus universal; local versus
global; memória versus registro oficial etc.19 Sem falar do problema historiográfico em si:
o fenômeno filtrado/organizado pelos artifícios e critérios normativos de uma escrita que
pende entre o literário e o científico conforme aquilo que se entenda por científico à época
de seu registro. E, por detrás de tudo isso, perspectiva, abordagem, interpretação, método.
Diante da problemática da historicidade na tradução, em face da necessidade de con-
siderá-la sob uma perspectiva histórica, me parece oportuno retomar algumas noções a
respeito da historicidade nas teorias históricas, a começar por Wilhelm Dilthey, porque seu
historicismo é, na realidade, uma hermenêutica bastante complexa do fenômeno histórico-
-cultural, nada linear, como era o historicismo progressista dos historiadores do século XIX,
sendo que nos atenta para o fato de que o passado está em permanente ressignificação his-
tórica.20 O pai do historicismo alemão concebeu a realidade histórica como algo concreto e
vivo, que se estende ao presente num todo englobante, no qual estamos inseridos. Apesar da
impossibilidade de abarcá-lo na sua totalidade e do caráter cíclico e permanente da atualiza-
ção histórica, seria possível captar algo per se do passado. Ele observa que nas mais diversas
sociedades e épocas se encontra a produção da poesia e da arte, mas “de que forma”, indaga,
“a identidade de nosso ser humano, que se manifesta em uniformidades, se enlaça com sua
variabilidade, com seu ser histórico?”21. Para Dilthey, a realidade passada só pode ser acessada
em suportes representativos da experiência dos sujeitos e a historicidade da vida psíquica,

32
observada na associação entre biografia, obra e época, é para ele a questão mais profunda das
ciências do espírito. O impulso da autognose aparece como elemento motivador do interes-
se histórico, como um retorno cíclico ao passado em busca dos nexos intersubjetivos ou de
elos criados por conexões causais (passado) em função de objetivos finais (futuro). A história
cultural, sendo indissociável da orgânica e da psíquica, não seria explicitada sem a operação
imaginária, visto que o existencial é insondável e não poderia ser expresso senão em lingua-
gem figurada.22
A noção da ressignificação histórica de Dilthey deu ensejo à ideia de horizonte históri-
co, estabelecida por Hans-Georg Gadamer, pela qual a compreensão do passado amplia e
é ampliada, dialeticamente, pelo horizonte da apreensão histórica.23 Isso talvez baste para
dirimir as indagações deixadas em aberto por Dilthey e que, em tempos como os atuais –
nos quais se discute se a História é ciência, ao invés de se repensar o que é ciência – ficam à
mercê de teorias oportunistas e levianas que fazem o historiográfico sucumbir ao literário,
como a de Hayden White.24 Embora o histórico só se dê a conhecer de fato pelo historiográ-
fico, o que requer, em maior ou menor grau, de quem escreve e de quem lê, uma boa dose
de imaginação. Aqui insiro Johan Huizinga, que considerou a ciência histórica como arte, ao
conceber que “no momento no qual se forma a primeira representação histórica, a primeira
imagem histórica, entra em jogo o elemento comum à pesquisa histórica e à arte”25. A escrita
historiográfica, segundo ele, deveria ser adequada à expressão da vida psíquica e artística da
sociedade em foco, se preciso for recorrendo-se aos artifícios poéticos que permitam aflorar
no leitor uma vivência psíquica ressonante àquela do passado retratado, visto que “a sensibi-
lidade estética é a que melhor prepara o campo para a faculdade da imaginação histórica”26.
Huizinga propõe poetizar o historiográfico e converter o efeito estético em procedimento
cognitivo da realidade passada. Meschonnic irá propor mais tarde algo inverso: recuperar a
historicidade pela poética textual, pelo ritmo prosódico visto como marca peculiar dos tem-
pos. As duas perspectivas são mais complementares do que excludentes entre si.

33
Huizinga também propõe uma alteridade entre passado e presente, os quais se espelham
e se sobrepõem. Os fenômenos do passado, em si inapreensíveis, são tomados como uma di-
mensão de ausência irreprodutível, mas que podem ser representados transformando “a reali-
dade imediata e já vivida naquela imagem teórica a que chamamos História”27. O contraponto
epocal serviu para construir, em sua obra magna O declínio da Idade Média28, uma narrativa
pendular pela qual uma Idade Média arcaica e infantil, porém fértil, contrastava com uma Mo-
dernidade vazia e estéril. O historiador da cultura se insere, com esta obra, no debate clássico
dos historiadores europeus sobre o Renascimento e, embora proponha a desconstrução deste
marco histórico, está longe do campo crítico que se destina a desconfigurá-lo como marco
tipicamente ocidental que é. O que interessa, porém, é a sua morfologia histórica de contraste
e espelhamento que permite aludir ao presente presumindo um jogo entre as duas épocas. A
sua filosofia da cultura aqui é aplicada pelo uso concomitante da intuição e da abstração para
captar o jogo social histórico e nele entrever questões atuais, lançando o leitor do presente
ao passado e do passado ao presente pela imersão estética. Aquilo que do passado se repete
ou faz sentido no presente em termos de ressonância, e vice-versa, daria a tônica do sentido
histórico. É por esse motivo que neste caso se considera o elemento lúdico em estruturas in-
temporais, pois somente sob um denominador universal é que se pode dispor os aspectos
de uma época como reiterativos no fluir histórico. Isso não significa, contudo, abandonar as
particularidades e o contraste ou sucumbir ao artifício literário; o que se propõe é uma poética
do historiar focada na alteridade estética sob uma historicidade cíclica.
Que distância há entre o passado e o presente? Onde começa um e outro? O passado
entra no presente ou é o presente que está dentro de um longo passado? Há uma forma cul-
tural de apreender o passado? Há mais de um tempo contido em ou interceptando um dado
ciclo histórico? A revolução é mudança temporal também? Qual a relação entre mudanças e
permanências no devir histórico? Como se periodiza um fenômeno histórico? Como propor
uma História geral (todos as épocas) global (todas as culturas), com a diferença existente
entre calendários e modos de representar o tempo? Essas são todas questões pertinentes ao

34
problema da historicidade, que é um vocábulo que oculta diferentes definições e relações
com os elementos da temporalidade e da alteridade.
Fernand Braudel, com o objetivo de distinguir a História das Ciências Sociais, consi-
derou que o objeto da primeira seria a articulação da vida social através do tempo, a qual
variaria em termos de duração, permanência e alteração, pois os fenômenos históricos
emergem em uma pluralidade de durações: evento (factual), contexto (conjuntural), lon-
ga duração (estrutural).29 Sua teoria foi essencial por estabelecer a temporalidade como
categoria epistemológica que permite dar objetividade à dinâmica histórica, sobre a qual
mais tarde se debruçaria Heinhart Koselleck para pensar o dilema da memória versus his-
tória ao modo geológico: temporalidades seriam como camadas sedimentares nas quais
emergiriam, feito erupções, reivindicações da memória e reformulações do passado que
produziriam deslocamentos nas representações históricas.30 Antes, porém, Koselleck
concebeu sua tese sobre a historicidade a partir da noção temporal teleológica de Santo
Agostinho, considerando que organizamos ou percebemos o histórico em termos de ex-
periências do passado e expectativas em relação ao futuro, percepção esta que seria ela
própria variável e sujeita à mutação histórica, visto que as perspectivas interpretativas
se modificam constantemente em face das próprias circunstâncias concretas do presen-
te que as contextualizam.31 O tempo cronológico é tomado como patamar “cósmico” do
tempo histórico – o autor usa, inclusive, a imagem da constelação para se referir a nexos
e processos históricos concatenados –, índice que permite considerar com objetividade
os dados históricos. Dentro deste referencial, o autor indica a necessidade de abordagem
contextualizada da “língua científica” da fonte (incluindo a historiográfica), e proporá uma
“semântica histórica”, especialmente para os conceitos políticos.
François Hartog parte desse mesmo paradigma para compreender diferentes “regi-
mes de historicidade”, culturais e epocais. Na contemporaneidade, observa uma dinâmica
implosiva dos tempos que denominou de “presentismo”. 32 Na obra de Heródoto, lida por
ele no original em grego, percebe, além da estrutura oracular da história, o problema da

35
alteridade cultural. Fronteiras, incluindo as divinas, que não são facilmente demarcáveis
no material escrito de que dispomos, ao qual podemos, eventualmente, contrapor o ar-
queológico. Em suas palavras, “se tratará de descubrir una retórica de la alteridad puesta
en práctica en el texto, delimitar algunas de sus representaciones y desmontar algunos
de sus métodos; en síntesis, reunir las reglas operatorias de la fabricación del otro”33. Mes-
chonnic pensou a alteridade autor-tradutor. Hartog faz o mesmo tipo de incisão depu-
rativa e restaurativa do texto historiográfico em tradução ao contextualizar a semântica
histórica de Heródoto relativa aos citas, historiando a consolidação da noção de "bárbaro"
com base no hábito nômade. Trata-se da consciência de ler o outro através de um terceiro
outro – a representação do “bárbaro” pelo historiador antigo sob o escrutínio do atual,
visando a desconstrução conceitual.
Ambos, Koselleck e Hartog, devem algo de suas considerações a Jean Pierre Vernant,34 cujas
definições de historicidade e transhistoricidade dariam conta mais precisamente daquilo que
nos interessa. Em um estudo sobre a Tragédia Grega, Jean Pierre Vernant parte de um proble-
ma colocado en pasant por Marx, que teria dito: “a dificuldade não está em compreender que
a arte grega e a epopeia estão ligadas a certas formas de desenvolvimento social. Eis a dificul-
dade: elas nos causam ainda um prazer artístico e, de certo modo, nos servem de norma, são
para nós um modelo inacessível”35. Vernant desenvolverá então sua reflexão sobre o processo
pelo qual “a consciência de um sujeito trágico abrange a produção de uma consciência trágica,
o advento de um homem trágico” e a “tomada da consciência do fictício no sentido próprio”
pela experiência compartilhada de representação (re-apresentação) teatral. Sob a narrativa
condensada do mito, o passado se torna novamente presente diante de uma audiência que se
percebe não mais como ouvinte (do aedo) mas como testemunha coletiva de um evento his-
tórico que diz respeito à sua comunidade. Essa organização mítica do passado, representada
no palco, é fantasmagoria, “o reflexo de uma ausência que se deixa ver como se estivesse pre-
sente”36; porém, o modo como os acontecimentos dolorosos e sofrimentos insuportáveis são
representados/re-apresentados em uma mimese corpórea e, neste sentido, concreta, implica

36
em efeitos reais na sensibilidade dos espectadores. Essa sensibilidade se converte em consci-
ência de si enquanto sujeito histórico:
Arrancadas da opacidade do particular e do acidental pela lógica de um roteiro que depura simplifi-
cando, condensando, sistematizando, os sofrimentos humanos, comumente deplorados, tornam-se,
no espelho da ficção trágica, objetos de uma compreensão. Em relação às personagens e aos acon-
tecimentos singulares, ligados ao quadro histórico e social que é o seu, adquirem um alcance e um
significado muito mais amplo.37

Trata-se, com efeito, de um tipo de experiência estética que combina mimese e metaxis
na performatização do aspecto trágico da experiência histórica mitificada. O fato de desa-
propriar o histórico das suas particularidades e apresentá-lo em narrativa mítica ao modo
teatral – portanto presencial, vivencial, corporal, sinérgico, o feito apresentado como em ato
– é que, paradoxalmente, permite amplificar a consciência histórica do sujeito. Historicida-
de e transhistoricidade são, em Vernant, instâncias de um único processo de realização do
devir histórico, neste caso, do particular ao universal. Não se menciona nem de passagem
questões de traduzibilidade para entender a transhistoricidade, que opera independente
do campo da língua (porém não da linguagem, do jogo lúdico ou da ressonância estética),
produzindo aquilo que Benjamin intuía como processo vital de continuidade do sentido de
uma obra através dos tempos. Aqui a tradução – ação humana que pode despertar os mor-
tos e unir os fragmentos abandonados pelo anjo da história em desespero – ocorre fora do
textual.

***

Em uma “tradução” não idiomática, nem conceitualmente rigorosa, para a überleben ou


fortleben de Benjamin eu gostaria de usar “transhistoricidade” para explicar, de acordo com
Vernant, a “permanência através dos séculos”38. E, seguindo Meschonnic, eu teria buscado
uma referência rítmico-coreográfica na poesia persa clássica, caso não se adotasse o ritmo

37
árabe por padrão. Pois o ritmo árabe só me levaria a uma corêutica de raiz árabe e eu ficaria
perdida, como alguém que buscasse um passo de dança latino no dáctilo, troque, anapes-
to e iâmbico, pés de referência grega. Mesmo que o repertório gestual de Rumi não fosse
persa (o que duvido muito), ele com certeza não era árabe. Além disso, a dança persa não
é preponderantemente rítmica e, como demonstro, é a sua dimensão mitopoética o que se
compartilha naquela poesia.
Ainda assim, me é válida a perspectiva de Meschonnic sobre o continuum corpo-palavra
e vida-história, com sua proposta de tradução-ética-política a partir de uma teoria radical da
linguagem, especialmente pertinente para a tradução crítica da poesia sufi, na qual até a ca-
ligrafia, considerada uma arte sagrada, tem ênfase simbólica na corporalidade das letras: o
alef, por exemplo, é representação do corpo humano na posição coroeográfica do cipreste,
simbolizando retidão moral; e, assim, cada letra tem seu sentido místico estabelecido pelo
movimento que simula. A noção simbolista da tábua divina islâmica – em que o destino se
resume no verso, o verso na palavra e a palavra na letra – dá lugar em Rumi à vida da tinta
que se manifesta em diferentes tonalidades ou estados anímicos conforme a experiência
corporal que é captada na palavra. Em última análise, não é o signo, mas o movimento
coreocaligráfico que comporta o vestígio da luz divina, sendo a escrita mera sombra da
sua passagem fixada feito pegada pelo borrão de nanquim sobre o branco do papel. Não
é demais considerar aqui que os próprios livros de poesia persa em si, enquanto artefatos
da Era do Livro islâmica,39 estavam repletos de arte figurativa elaborada alquimicamente
e contendo registros iconográficos da dança, tendo sido compreendidos em sua propria
materialidade como arquétipos de um universo intermediário, imaginal.
Porém, para a captação da historicidade (e não da misticidade), a metodologia semân-
tica de Koselleck é mais apropriada a minha intenção de historiar o conceito no nível dis-
cursivo e contrapor a fonte literária às tradições historiográficas islâmica e orientalista, para
desconstruir o campo da alteridade em tais historiografias, conforme faz Hartog com Heró-

38
doto. Mesmo sem ter usado tais autores, eu percorri caminhos similares, talvez por "intuição"
histórica – com efeito, Vernant e Koselleck haviam sido para mim leituras formativas.
Agora, em termos teóricos, começo a indagar: a historicidade/alteridade da poética do
traduzir de Meschonnic seria “espelhada” (passado-futuro), como a de Koselleck e Hartog?40
Seria dialética, global-situacional? Permite presumir, ao modo rítmico, o contratempo entre
duas épocas no sentido da morfologia de Huizinga? Como pensá-la com relação às tem-
poralidades? Essa noção de contraponto pode ser combinada com a fórmula hegeliana de
Vernant para a transhistoricidade?
Penso no que o próprio Hegel teria dito sobre Rumi:
Cuando, por ejemplo, en el preclaro Dschelaleddin Rumi se destaca especialmente la unidad del
alma con el Uno, y esa unidad como amor, es entonces esa unidad espiritual una elevación sobre lo
finito y común, una transfiguración de lo natural y espiritual con la que ciertamente se desprende y
abandona lo exterior y perecedero de lo natural inmediato, como también de lo espiritual empírico
y mundano.41

Para ele, o mestre persa teria sido o “expoente exemplar da alta cultura medieval médio-
-oriental”, e os sufis cultos da atualidade exaltam essa afirmação supondo que a teosofia de
Rumi poderia estar na base da dialética de Hegel. Eu não duvidaria dessa possibilidade, mas
em qual tradução Hegel teria lido Rumi? As primeiras traduções para ao alemão são de 1819,
de Friedrich Rückert (1788-1866), e Franklin Lewis nos informa que os poemas eram versões
apenas inspiradas, em conteúdo e forma, na poesia de Rumi.42 Podemos presumir que tenha
lido algo de Joseph Von Hammer-Purgstall (1774-1856), o primeiro a traduzir as obras persas
em língua europeia, como o Der Diwan de Hafiz, que inspirou Goethe em seu Divan Orien-
tal-Ocidental, mas é preciso lembrar que, naqueles tempos, a tradução era promovida sob a
limpeza “étnica” do texto em nome da universalidade iluminista. Em todo caso, o que intuo
aqui é Hegel falando de como ele próprio gostaria de ser visto sob o turbante do mestre sufi,
exceto pelo fato de defini-lo como expoente da “cultura medieval médio-oriental”. Por que

39
não dizer apenas da “alta cultura medieval (mundial)”? A terra natal de Hegel era quase ain-
da um pontilhado esparso de cidadelas medievais rodeado de ameaçadoras florestas, com
um número ínfimo de letrados comparado ao universo de Rumi, que habitou o coração de
uma rota comercial pipocada de urbes com majestosas edificações, escolas e universidades,
banhos públicos, desenvolvimento fabril e agricultura ao nível de uma civilização tão sofis-
ticada que já era analisada no seculo XIV, por Ibn Khaldun, com base na distinção urbano/
rural.43 Aquela região da Anatólia, em especial, era uma parte do mundo que havia sido con-
tinuamente revitalizada por romanos, depois, bizantinos; havia sido pretendida pelos persas
sassânidas e estava sendo, nos tempos do “preclaro Jalaluddin”, intensamente disputada por
francos, mongóis e turcos; não se tratava de modo algum de uma parte qualquer do Oriente
Médio. E, por fim, por que um mestre da dança abandonaria o espiritual empírico e munda-
no, quando a dança sufi trata justamente de fazer descender o poder espiritual para (como
em toda dança sacra) converter o mundano em sagrado?
Esses “detalhes” históricos, de fato, não se pescam no ritmo poético e realmente há per-
guntas sem respostas. “Medieval” e “oriental” soam como pares reflexos na forja do mito do
Renascimento, cujo contraponto é o mito da Era de Ouro islâmica – eis um problema de his-
toricidade e periodização que temos que lidar e que é, também, calendar. Afinal, em quais
regimes de historicidade operam as correntes da historiografia muçulmana? Como construir
uma abordagem de síntese crítica e, ao mesmo tempo, sob uma alteridade não assimétri-
ca? Como manter o sentido histórico dos marcos em datação islâmica (ano hégira) numa
cronologia compartilhada e minimamente secular, quando até o calendário da Era comum
remonta ao gregoriano?
Hipóteses alternativas certamente nos levam a outros modos de considerar historici-
dade e transhistoricidade, mesmo que isso implique nos afastarmos de um pensamento
dialético. Talvez a dinâmica histórica por vezes se veja na estrutura paradoxal da experiência
mística, a qual se exprime somente de forma apofática ou catafática, portanto não progres-
siva ou de síntese. Pois a literatura mística registra, muitas vezes, qualquer tipo de assombro

40
perante uma catástrofe que é humana, mas cuja violência é sentida de forma transcenden-
tal. Na época de Rumi, a busca mística empurra a alma para “fora do mundo” não pela tragé-
dia provocada pelo erro humano, e sim por uma alteridade radical e violenta na qual o outro
representa uma faceta terrível do desígnio divino. Enquanto o místico persa encontrou na
Dança um refúgio, nós buscamos na História um horizonte de ressignificação. Se o temporal
afasta o anjo, precisamos caminhar de volta pelos escombros e abrir as brechas das nuvens
para que o sol entre.

Notas

1
Retradução livre baseada na versão em inglês BENJAMIN, Walter. Theses on Philosophy of History, Illuminations.
Translation by Harry Zohn. New York: Schocken Books, 1969. p. 249. Cotejada com a versão em português em: BENJA-
MIN, Walter. “Sobre o conceito de história”. In: Obras escolhidas. Vol. 1. Magia e técnica, arte e política: Ensaios sobre
literatura e história da cultura. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet, prefácio de Jeanne Marie Gagnebin. 3. ed. São Paulo:
Brasiliense, 1987. p. 222-232. p. 207.
2
BRANCO, Lúcia Castello. A tarefa do tradutor, de Walter Benjamin: quatro traduções para o português. Belo Horizonte:
Fale/UFMG, 2008, p. 30.
3
BRANCO, op. cit., p 30.
4
Faculdade de Letras da UFMG.
5
BRANCO, op. cit., p. 27-28.
⁶ Op. cit. p. 84.
7
Op. cit., p. 68.
8
SCHOLEM, Gershem. A Cabala e seu Simbolismo. Tradução de Hans Borger e Jacob Guinsburg. São Paulo, Perspectiva,
1988, p. 21-22.
9
SELLS, Michael. “Introduction”. In: Mystical languages of unsaying. London: University of Chicago Press, 1994, p. 1-15.
10
LÖWY, Michael. Redenção e utopia. Judaísmo Libertário na Europa Central (um estudo da afinidade eletiva). Tradução
de Paulo Neves. Rio de Janeiro: Perspectiva, 2020, p. 26.
11
MESCHONNIC, Henri. Éthique et politique du traduire. Paris: Verdier, 2007, p. 120. (itálicos meus).
12
MESCHONNIC, Henri. Poética do traduzir, não tradutologia. Três traduções interlinguais por: Márcio Weber de Faria
(espanhol), Levi F. Araújo (inglês), Eduardo Domingues (português). Belo Horizonte: FALE/UFMG, 2009, p. 9.
13
Op. cit. p. 10.
14
O Codex Aleppo, o Pentateuco de Damasco e o Leningrad, datados sem muita precisão entre os séculos IX e X, contêm
comentários e anotações massoréticas do te’amin, modo acentual que, segundo Meschonnic, é também performático.
Os massoréticos começam a fixar o texto a partir do século VI.

41
15
MESCHONNIC, Henri. Éthique et politique du traduire. Paris: Verdier, 2007, p. 35-68.
16
MESCHONNIC, Henri. Éthique et politique du traduire. Paris: Verdier, 2007, p. 74.
17
HUIZINGA, Johan. Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. São Paulo: Perspectiva, 1971, p. 157.
18
MESCHONNIC, Henri. Critique du rythme: anthropologie historique du langage. Aude: Verdier, 1982, p. 97-98.
19
HARTOG, François. Evidência da História – o que os historiadores veem. Tradução de Guilherme João de Freitas Teixei-
ra. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.
20
DILTHEY, Wilhelm. El Mundo Histórico. Traducción de Eugenio Ímaz. México: Fondo de Cultura Económica, 1944.
21
DILTHEY, Wilhelm. Psicologia y Teoria del Conocimiento. Traducción de Eugenio Ímaz. México: Fondo de Cultura Econó-
mica, 1945, p. 7.
22
DILTHEY, Wilhelm. Introduccion a las Ciências del Espiritu. Traducción de Eugenio Ímaz. México: Fondo de Cultura
Económica, 1949.
23
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 5. ed. Petrópolis, RJ:
Vozes. 2003.
24
WHITE, Hayden. “Teoria literária e escrita da História”. In: Estudos Históricos, Rio de janeiro, v. 7, n. 13, 1991, p. 21-48.
25
HUIZINGA, Johan, 2005, p. 96 apud RIBEIRO, Naiara. “A morfologia histórica de Johan Huizinga e o caráter pragmático
do passado”. In: História da Historiografia, Ouro Preto, v. 3, n. 4, jun. 2010, p. 234-254.
26
HUIZINGA, Johan, 2005, p. 103 apud RIBEIRO, idem.
27
HUIZINGA, Johan 2005, p. 97 apud RIBEIRO, ibidem.
28
HUIZINGA, Johan. O declínio da Idade Média. Braga: Editora Ulisseia, 1996. Essa versão, em especial, traduzida pelo
próprio autor ao inglês, apresentada ao português na tradução de Augusto Abelaira, apresenta essas características.
Recentemente foi publicada uma edição em tradução coletiva sob o título O outono da Idade Média, com tradução de
Francis Petra Janssen.
29
BRAUDEL, Fernand. “História e ciências sociais. A longa duração”. In: Revista de História, São Paulo, v. XXX, Ano XVI, abr./
jun. 1965. Tradução de Ana Maria de Almeida Camargo. Artigo originalmente publicado in Annales E. S. C., n. 4, out./
dez. 1958.
30
KOSELLECK, Heinhart. Los estratos del tiempo. Estudios sobre la história. Introducción de Elias Palti. Barcelona/ Buenos
Aires/México: Ediciones Paidós/I.C.E. de la Universidad Autónoma de Barcelona, 2001.
31
KOSELLECK, Heinhart. Futuro-Passado. Contribuição à semântica dos tempos históricos. Tradução do original alemão
de Wilma Patrícia Maas e Carlos Almeida Pereira. Rio de Janeiro: Contraponto: PUC-Rio, 2006.
32
Ver HARTOG, François. Regimes de historicidade: presentismo e experiências do tempo. Belo Horizonte: Autêntica
Editora, 2013.
33
HARTOG, François. El espejo de Herodoto. Ensayos sobre la representación del outro. Traducción de Daniel Zadunaisky.
Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2002, p. 205.
34
Hartog foi aluno de Koselleck e este de Vernant.
35
MARX, Karl. “Introdução geral à crítica da economia política”. In: Oeuvres, tomo I, Paris: 1966, p. 235-266 apud VER-
NANT, Jean Pierre. “O sujeito trágico: historicidade e trans-historicidade”. In: VERNANT, J. P.; VIDAL-NAQUET, Pierre. Mito
e tragédia na Grécia antiga. São Paulo: Brasiliense, 1991, p. 85-96.
36
VERNANT, op. cit, p. 94.
37
VERNANT, idem, p. 95-96.

42
38
VERNANT, ibidem, p. 86.
39
O papel foi introduzido no mundo islâmico por prisioneiros chineses capturados na batalha de Talas. Os muçulmanos
implementaram o seu uso, fizeram melhorias e foram os primeiros a produzi-lo em escala fabril. As primeiras indús-
trias aparecem em Bagdá e em Samarcanda, no século VIII, com o uso pioneiro da energia hidrelétrica. No século X, a
manufatura do papel foi introduzida na Península Ibérica islâmica e continuou a ser desenvolvida na Espanha cristã,
a partir do XII. Ver MAHDAVI, Farid. “Review: Paper Before Print: The History and Impact of Paper in the Islamic World
by Jonathan M. Bloom”. Journal of Interdisciplinary History (MIT Press), v. 34, n. 1, p. 129-30, 2003. THOMPSON, Susan.
“Paper Manufacturing and Early Books”. Annals of the New York Academy of Sciences. v. 314, p. 167-176, 1978
40
Esboço uma discussão preliminar disso em YUNIS, Leandra. “Orientalismo e historicidade na tradução de obras sufis”.
In: Exilium – Revista de Estudos da Contemporaneidade, São Paulo, Cátedra Edward Saïd, Unifesp, v. 1, n. 2, p. 13-46,
2021.
41
HEGEL, George Wilhelm Friedrich. Enciclopedia de las ciencias filosóficas en compendio. [1819]. Traducción de Ramón
Valles Plana. Madrid: Alianza Editorial, 2005. p 598.
42
O Gaselen de Rückert foi publicado em Tubingen: Cota, 1921, e reimpresso em edição fac-símile como Mystiche Gha-
selen Nach Dshelaleddin Rumi der perser em Hamburg: Lerchenfeld, 1927. LEWIS, Franklin. Rumi – Past and Present,
East and West: The Life, Teachings, and Poetry of Jalâl al-Din Rumi. London: Oneworld, 2008. p. 566.
43
BISSIO, Beatriz. O mundo falava árabe. A civilização árabe-islâmica clássica através da obra de Ink Khaldun e Ibn Battu-
ta. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013. p. 129.

43
44
A dança no islã – Samá
não é raqs

A o longo dos séculos, a dança sufi passou a ser denominada de samá (“audição”), sendo
definida como uma atividade puramente meditativa. Na poesia de Rumi, ainda é clara a
distinção terminológica entre os dois conceitos, pois o poeta refere-se à dança sempre pelo
termo raqs (“dança”).1 A assimilação terminológica de raqs à samá viria depois, como resulta-
do de um longo processo de censura às artes performáticas no Islã, sendo introjetada pelos
próprios sufis e absorvida, por conseguinte, nas traduções e estudos orientalistas que abor-
daram as fontes de forma acrítica. Apresento, a seguir, o modo como isso se deu, com base
numa revisão da história da dança no islã que fiz,2 a partir tanto da pesquisa documental em
fontes históricas quanto do confronto historiográfico entre abordagem islâmica e crítica.
Desde o início da propagação islâmica é noticiado o confronto entre os seguidores da
nova religião e os artistas. A poesia foi inicialmente proibida por seu poder persuasivo e uso
mágico pagão; a música, por ser executada em ambientes de perdição, como as tavernas,
e por alterar estados de consciência ou desviar a atenção daquilo que é lícito; a dança, por
sua vez, foi tida como atividade imoral, lasciva e espúria. Conta-se que poetisas-dançarinas
questionaram a origem (provavelmente bizantina) da cantilena corânica e lançaram versos

46
irônicos que insinuavam não haver distinção entre o novo profeta e os habituais poetas-feiti-
ceiros que frequentavam a Caaba, então um centro de peregrinação pagã onde se apresen-
tavam “revelações” rimadas e odes a deuses e deusas. Assim que Maomé dominou Meca, tais
artistas seriam condenadas à morte e à extinção eterna, e houve ordens para a destruição de
instrumentos de corda e de sopro.3 Tudo indica que essa perseguição inicial tinha motivos
político-religiosos e que ao longo da expansão islâmica a observância à censura se afrouxou,
havendo enorme resistência a esse tipo de restrição. Nas festas de corte de diversos califas e
emires e nas casas dos nobres as fontes sempre indicam a presença de escravos, de ambos
os sexos, muitos de origem não árabe e de religião não muçulmana, liberados a executar
suas músicas e danças, e a violenta punição e perseguição dos primeiros tempos deu lugar
à uma interminável polêmica.
Quando, no século VIII, as fronteiras do império islâmico já abrangem os territórios persa
e bizantino, inicia-se um debate teologal que duraria séculos em face de uma jurisprudência
religiosa frágil e controversa pela qual não se identificava a menção direta à dança ou a mú-
sica no Corão. Uma vez que o sistema religioso islâmico é também base do jurídico, contudo,
ao contrário do episcopal, não obedece a uma organização hierárquica central, inúmeras
linhas de jurisprudência se formam e discutem a matéria. Dentre as linhas sunitas mais tra-
dicionais, hanbalita, malikita, hanafita e shafita, os autores mais envolvidos no debate foram
os hanbalitas e shafitas (sobretudo asharitas), além de ter havido uma influência indireta do
pensamento mutazilita e xiita de então entre os mais progressistas.
Os hanbalitas, mais literalistas, recorriam inicialmente a argumentos baseados em suras
que proibiam o assovio e palmas na oração dos pagãos ou relativos ao consumo do vinho,
este proibido por Abu Hanifa (700-767) com base nos versículos: “há no vinho e no jogo de
azar grande pecado e benefício, e seu pecado é maior que o benefício… Deus torna eviden-
te os sinais para refletirdes” (C. 2:219); “não vos aproximeis da oração enquanto ébrios” (C.
4:43); “o vinho, o jogo de azar e as pedras levantadas com nome dos ídolos e as varinhas da
sorte não são senão abominação: ações de Satã” (C. 5:90). Ibn Hanbal (780-855), o mentor

47
dessa corrente, foi o primeiro a propor a proibição ao associar os termos raqs e zafn ao jogo
(laᶜba) por sua ambiguidade, relacionando-os ao gestual soberbo e desafiante dos abissí-
nios, advertido no versículo 17:37: “E não andeis pela terra com jactância. Por certo, não a
fenderás nem alcançarás as montanhas em altura.” Deste ímpeto nascia o primeiro tratado
proibitivo, Interdição às diversões, de al-Dunya (823-894), que equiparava a música e a dan-
ça aos jogos, como o xadrez e o gamão, considerando-os, no melhor dos casos, passatem-
pos inúteis e, no pior, atos heréticos típicos dos ímpios que se travestiam (para encenar?) e
acreditavam nos astros.4
Os hanafitas, por sua vez, muitas vezes divergiam nas interpretações sobre o assunto
e sua forma de deliberar era mais ponderada: sublinhavam que o canto e a dança eram
tolerados e até incentivados nos muitos hádices que relatam a vida do profeta. Num de-
les, Maomé teria presenciado impassível ao jogo de lanças dos abissínios numa mesquita;
noutro, o próprio Ibn Hanbal deixava escapar o mais forte argumento em favor da dança,
dizendo que o salto era uma forma de genuína alegria e devoção a Deus. Sendo permitido
tal movimento, que é um tipo de passo e, por conseguinte, uma forma específica de dança,
então a dança em geral deveria ser permitida, retrucava o autor desconhecido do Bawariq
al-ilma‘ (Vislumbres alusivos).5 Tais argumentos reforçavam a pressão em favor da liberação
de instrumentos musicais e de modos poéticos e coreográficos que, em muitas ocasiões,
como peregrinações, viagens em caravana, casamentos, guerras, sepultamentos, nascimen-
tos, eram praticamente inevitáveis, como a própria peregrinação à Meca, envolta em música,
circum-ambulação e atos dramáticos.
Por influência da vertente mais racionalista dos mutazilitas, predominante a partir do
século IX com o califado abássida em Bagdá, diversos filósofos irão abordar a questão da
música e da dança de modo a prover material para o debate. Autores como Ishaq al-Mausili
(767-850), al-Masudi (m. 957) e Ibn Khurdadhbah (820-893) já haviam escrito sobre a dança
em obras “científicas” e classificatórias, e al-Farabi (872-950) – sob a influência dos Ikwan al
Safa (X), grupo de vertente platônico-pitagórica e provavelmente de orientação xiita – glos-

48
saria a raqs aos instrumentos musicais. No seu Grande Livro da Música, considerou a arte
coreográfica perfeita porque percussiva e ativa em contraposição a zafn, o gestual mimético
silencioso.6
Por essa mesma época, a questão da dança se tornou efetivamente polêmica, especial-
mente em decorrência das manifestações extáticas e locuções “teopáticas” dos sufis que,
sob estados de consciência alterados, se arriscavam a revelar em público suas visões dos
mistérios divinos. Ao contrário de evitar a conexão da dança e da música com a embriaguez,
argumento usado para a censura, eles justificavam seus comportamentos desmedidos jus-
tamente em virtude de menções ao vinho no Alcorão que associavam o estado ébrio à ele-
vação espiritual, como os versículos C. 47:15, que descrevem os rios de vinho no Paraíso, e C.
83: 23-28, no qual se lê que: “sobre coxins, olhando as maravilhas do Paraíso, reconhecerás
em suas faces a rutilância da delícia. Dar-se-lhes-á de beber licor puro, selado, seu selo é de
almíscar […] E sua mistura é de tasnim [bebida celestial], uma fonte de que os achegados a
Deus receberão”7.
Os raptos extáticos eram tidos como provas da reciprocidade de Deus em seu amor
apaixonado, o que apesar de metafórico (em tese, os místicos não consumiam álcool) era
algo absolutamente polêmico visto que o termo que definia “paixão”8 em árabe não se en-
contrava no Corão e sugeria, ainda por cima, a possibilidade da equiparação entre humano
e divino. Essa noção sufi do amor era definida com base no Antigo Testamento e nos Evan-
gelhos, que circulavam em traduções vertidas do siríaco para o árabe. Mestres sufis de linha
shafita, como Makki (m. 996) e Qushayri (986-1073), por exemplo, citavam trechos bíblicos
para argumentar que “Deus altíssimo revelou o seguinte a Jesus: ‘quando busco o coração
de um servo meu e não encontro nele amor a este mundo e ao próximo, eu o preencho com
amor a Mim’”, e também que Deus havia dito: “Eu dou o que te é devido por amor a ti, então
dê o que Me é devido por amor a Mim’”9. A dança, mais do que tudo, era expressão do êxta-
se pelo testemunho dessa correspondência feliz no íntimo do místico, ao atingir a pureza e
união com Deus. Estes autores recorriam também às palestras, registradas nas fontes como

49
samá (referindo-se às seções de audição dos mestres), de mestre como Junayd (830-910),
que afirmavam que a música tinha o poder de fazer as almas relembrarem em seu âmago do
pacto divino primordial e, sendo assim agitadas, desejariam retornar a Deus, arrependidas.
Conforme ensinara Makki, Deus havia criado os corações para os corpos, as almas para
os espíritos e o coração como um recanto íntimo para essas instâncias se encontrarem.
Porém, fascinados pelo mundo fenomênico e deslumbrados consigo, eles tornam-se vai-
dosos e cheios de orgulho, rompendo o pacto do pertencimento divino. Deus então os
colocou à prova, aprisionando o coração na alma, a alma no espírito e o espírito no corpo
mesclado ao intelecto. O retorno ao estado desalterado se iniciaria então pelo próprio cor-
po, que se põe a rezar enquanto a alma se dedica a amar, o espírito retorna à consciência e
o coração encontra paz na união com Deus. O corpo é, portanto, uma espécie de decanta-
dor e cadinho da alquimia do retorno que encontra na dança o caminho simbólico dessa
desinversão. Segundo os ortodoxos, tal caminho já seria exercido na audição corânica,
começando pela detecção do sentido literal e intelectivo do texto e convergindo dali pro-
gressivamente ao sentido esotérico da mensagem, “até chegar ao íntimo do íntimo” (sirr
as-sirr). A inovação religiosa dos místicos vinha da noção de que se podia fazer o mesmo
por meio da apreensão intuitiva de sinais e mensagens captados diretamente da arte e da
natureza, o que se atestava por uma tradição oral conhecida como hádice qudsi, segundo
a qual Deus dissera: “eu era um tesouro oculto, quis ser conhecido e criei o mundo”.
Avançada a discussão entre os séculos IX e X, após o impacto dos desdobramentos filo-
sóficos sobre o debate teologal, nota-se que nem todos os ortodoxos se opunham à dança
e nem todos os sufis adotavam ou aprovavam a arte como procedimento místico. Além de
shafitas, como Makki, Qushayri e Tirmidhi (760-869), encontramos teólogos e sábios sem
alinhamento, como Tustari (818-896) e Kalabadhi (m.995), e até xiitas, como Sarraj al-Tusi
(960-1000), que eram moderados e se posicionaram contra a proibição. No século XI, dentre
os opositores, atuou, na região entre Gazna e Lahore, um dos mais importantes mestres
sufis: Hujwiri (990-1077), um ortodoxo, para quem a audição mística poderia estar ancorada

50
somente na entonação e repetição dos nomes divinos (zikr), cuja sonoridade remeteriam
diretamente à essência divina. Para este mestre, os argumentos dos praticantes e defenso-
res do uso devocional das artes seriam retóricos. Segundo ele, a dança, por exemplo, seria
passível de ser teatralizada por farsantes e de se converter num recurso de indução artificial
adotado por fanáticos ou heréticos, além de inclinar a alma ao voluntarismo, ostentação e
vaidade. Ademais, tal prática também propiciaria a possessão demoníaca e, por essa razão,
Hujwiri foi um dos primeiros autores a dissociar completamente o rito sufi de qualquer vín-
culo com a dança, inclusive terminologicamente, diferenciando raqs de wajd, isto é, “dança”
de “êxtase”. 10
Em sentido diametralmente oposto e quase um século mais tarde, Ahmad Ghazali
(1061-1123), iria definir a raqs como reflexo cósmico do ato criador “que põe todas as
coisas em movimento, trazendo-as à existência e enriquecendo-as”11, na mesma linha
em que al-Kindi filosofara sobre o engendramento simultâneo de matéria, tempo e mo-
vimento no vir-à-ser do todo existente.12 Na mimetização da atitude divina, a dança se
fazia superior a qualquer outra forma devocional porque seu efeito criativo consistia em
trazer o poder espiritual, com efeito, para o corpo. Para cada elemento coreográfico, o
autor atribui uma simbologia sufi cuja realização corporal produziria a simbiose mística;
assim, por exemplo, o sopro da flauta seria referência à luz divina penetrando a essência
humana, o homem aprisionado na “gaiola” do corpo, ao se movimentar feito pássaro
faria a alma sentir a liberdade do espírito livre, tal como na unidade primeva, trazendo o
efeito desse voo “iluminativo” para o corpo. Nesse sentido, os atos de estender-se, saltar,
ou circum-ambular simbolizavam o giro em torno da existência e da divindade.
Essa atribuição simbólica do gesto ancorada na perspectiva sagrada islâmica pode ser
entendida como um ato de sincretização que serviu para resguardar diversas tradições
coreomusicais não árabes ou pré-islâmicas das proibições, visto que foram resgatadas e
protegidas da censura ao serem adaptadas para fins místicos nas confrarias sufis. Ainda
assim, encontros de audição que incluíssem danças de natureza meditativa ou extática só

51
passaram a ser aceitos e permitidos oficialmente a partir do século XII, com a vitória da tese
teologal do filosofo e teólogo asharita Alghazali (1058-1111), Revivificação das Ciências Re-
ligiosas, na qual defendia o uso de modos musicais e poéticos lícitos para definir a liberação
das artes celebrativas e os parâmetros adequados à etiqueta mística.13
Para Alghazali, a música e a dança não eram boas ou más em si mesmas, uma vez que o
efeito musical não poderia despertar no coração algo que já não estivesse ali adormecido.
A resposta ao estímulo musical seria algo natural, existente inclusive entre os próprios ani-
mais, que seriam capazes tanto de produzir quanto de admirar melodias e ritmos. A teoria
de Alghazali se inseria numa perspectiva zoroastriana (a da pureza do espírito animal) e
partia de uma noção pitagórica que explicava as ressonâncias estéticas como harmonias
cósmicas, e tinha por referência a tese, de fundo também órfico, dos Ikhwan al-Safa (Irmãos
da Pureza, século X), que haviam definido a dança como arte corporal capaz de harmonizar
espírito e matéria, considerando-se o corpo um arquétipo sensível do universo.14
Alghazali recuperava a perspectiva simbolista de Ahmad Ghazali para se referir a uma
inteligência coreográfica que consistia na antítese entre a aquiescência interna e a moção
externa, dinâmica que reproduziria o misterioso paradoxo pelo qual Deus mudaria tudo sem
mudar a si mesmo. Além disso, ele avançou em relação à teoria de Sarraj, que definira a dan-
ça como comportamento extático, argumentando que a base do efeito extático provinha
do estímulo rítmico combinada ao poético e incrementado pela dança. A dança envolveria
decerto algum tipo de preparo e esforço, como previra Qushayri, para quem o engajamento
na preparação corporal e a dedicação assídua deveriam estimular o recebimento das divi-
nas graças pelo devoto.15 Alghazali resgatava também (sem citar) a noção de Farabi, de que
o dançar seria ato duplamente ativo e passivo, e com isso se estabeleceu um impasse no
debate. Pela interpretação clássica, considerava-se o êxtase resultado apenas da audição
e não do movimento, mas Alghazali propunha que a prática devocional da dança não se
restringisse à atitude receptiva da "audição" (samá), que era baseada na recepção passiva da
palavra corânica.

52
Alghazali se referia à dança em geral pelo termo raqs e denominou a dança devocional
de raqs-has (dança especial, singular), definida no sentido de uma oração do corpo, como
em Makki, mas não apenas por equilibrar ou desinverter a cisão entre as camadas do ser –
corpo, alma, intelecto e espírito, coração – e sim por integrá-las por meio de uma força ou
energia espiritual divina veiculada pelo éter que mobilizaria o dançarino. Essa sua noção
também remete à ideia da unção e da sacralidade da dança presumida na etimologia da
raqs e em seu léxico, conforme adotado pelos povos de língua ou cultura semítica, ou a ela
aparentados, sobretudo judeus e cristãos gregos.16 Nas sociedades arcaicas, o poder sagra-
do da dança provinha do ancestral incorporado ritualmente ou do poder natural mimeti-
zado, processos que transformariam temporariamente o corpo em casa da divindade.17 No
Antigo Testamento, sob a grafia hebraica raqd (‫)דקר‬, o termo abarcava os atos de saltar, girar
e rodear ou circum-ambular lugares, objetos e animais em sacrifícios e honra a Deus, aos
mortos ou outras divindades.18 Além disso, considerava-se que tanto a dança celebrativa,
realizada espontaneamente, quanto a devocional, pelo esforço, tornavam o corpo receptivo
à unção e a benção, pois a alegria e a dedicação seriam retribuídas pelo amor recíproco de
Deus, conforme lemos em Eclesiastes 3:4, Jeremias 31:4, 12-13, Lamentações 5:15, Salmos
30:11-12, 149: 3-4, 150, Êxodo 15:21 e Samuel 6:14-17.
As Escrituras Sagradas abraâmicas traziam assim diversas facetas e acepções relaciona-
das ao sentido sagrado da dança, de modo que para os muçulmanos, sempre zelosos das
raízes verbais às quais vinculavam todo fenômeno a uma essência divinamente formulada,
não convinha muito trazer à baila essa etimologia semítica da raqs. O termo não estava no
Corão e, diferentemente do que ocorria com eshq para definir o amor apaixonado, a raqs
já fora criticada por Hujwiri justamente por sua vinculação ao texto bíblico, o qual o autor
acusava de antropomorfista em face da noção de imagem e semelhança. Em termos core-
ográficos, o que se presume é que a antropomorfia resultaria, nesse sentido, em uma peri-
gosa associação entre o gesto divino criador e o gesto mágico, tido como domínio de Íblis,
o diabo. Ciente da polêmica, Alghazali se limitou a enfatizar, de modo abstrato e filosófico,

53
o papel do corpo como microcosmo ressonante da beleza divina e a dança devocional no
sentido de seu processo catalisador.
O papel do corpo era crucial para estabelecer a liturgia mística e constituiu um dos
pontos nevrálgicos da discussão religiosa no Islã. Para os hanbalitas, a adoração a Deus
só se realizaria dignamente através da inclinação e da prostração e, segundo Ibn Jawzi
(1116-1201), qualquer outro gesto deveria ser considerado uma inovação religiosa a ser
banida.19 Contudo, o sincretismo ritual parece ter sido inevitável desde os primórdios da
difusão islâmica na Ásia Central, pela forte penetração de elementos mongóis e tártaros
e, nos territórios bizantinos, pela aderência dos elementos rituais judaicos e cristãos nas
práticas sufis.20 Dos cristãos orientais, é muito provável a absorção das práticas difundidas
pelos Padres do Deserto egípcio, o quietismo dos monges da Capadócia e a devoção pere-
grina dos santos loucos da retidão e do amor da Síria, grupos que preconizavam a queima
do “barro” do corpo através da transferência do desejo físico para o coração, “ponto de en-
contro entre o corpo e a alma, entre o subconsciente, a consciência e a supraconsciência,
entre o humano e o divino”21. Pois a alquimia ígnea se iniciava com os hábitos de ascetis-
mo, continência física e retidão moral que, segundo Orígenes (185-253), transformariam o
corpo em membro do corpo de Cristo, no sentido de um corpo-templo.
Em algumas das diversas igrejas independentes dos territórios bizantinos e em partes
da Europa foi dada a oportunidade aos não iniciados de provarem do corpo-templo na
chorostasia, prática que chegou a integrar os mistérios da Igreja antes da cisão entre o
papado romano e o patriarcado bizantino, em 1054, sendo definitivamente censurada por
Roma, no século XIV, por seu teor dionisíaco.22 A dança circular coletiva cristã representaria
basicamente o movimento dos anjos e da salvação da alma através da circunvolução cós-
mica, conforme descrita pela mística Matilda de Magdeburg, em meados do século XII.23
Pelo pressuposto teológica mais corrente entre os bizantinos de que “o lugar de Deus e
dos corpos divinos deve ser concebido como um espaço sagrado onde a energia de Deus
se torna manifesta”24, o próprio coro seria uma hierofania circular do mundo e a “queima”

54
do corpo na chorostasia, mais do que uma representação da coreografia celestial, resulta-
ria numa experiência epifânica.
Devemos lembrar que o Islã se expande, primeiro, na direção da tomada desses territó-
rios bizantinos e, em seguida, em direção à Pérsia, portanto cobriu a região de influência da
mística cristã, bem como aquilo de onde provém o que os ciganos chamam de “magística”
coreográfica, de origem mazdeísta. Essas noções sacras do ato coreográfico aparecem sin-
cretizadas na poética de Rumi, cabalmente influenciado pelos escritos de Alghazali e em
contato direto com cristãos e judeus na Anatólia, que podem tê-lo levado a experimentar,
ou ao menos testemunhar, uma roda judaica ou cristã. Desta última, é certo, se origina a
inspiração coro-extática do rito helveti, bem como a simbolização cósmica (de origem pagã,
dionisíaca!) dos deslocamentos espaciais no rito mevlevi. Não obstante, místicos e estudio-
sos do sufismo estão convencidos de que Rumi aprendeu a dança mística com Shams de
Tabriz, o mestre que o levaria a “ver epifanias e estações espirituais que nenhum homem
perfeito ainda havia atingido”25, a quem, ainda assim, é tributada uma fama sincrética. De
qualquer forma, antes que os passos mevlevis se tornassem, como o salat, teatralizados em
seu teor sagrado, Rumi só poderia arriscar passos improvisados a partir de uma tradição
persa, conhecida em sua própria terra natal. Esta é minha hipótese, que mais se aproxima a
de Franklin Lewis, para quem Rumi teria conhecido a dança mística em uma prática do Leste
iraniano, formatada para o rito sufi dois séculos antes da existência do poeta e da qual se
descreve o ondular das mãos, a circum-ambulação e a batida dos pés.26
É dito que parte do poemário lírico de Rumi foi composto durante transes em que o po-
eta dançava e recitava enquanto um discípulo anotava os versos; depois, o mestre corrigia
e fazia as adaptações métricas. Uma das explicações tradicionais dada para a causa desse
estado criativo intermitente seria a dor pelo desaparecimento do mestre Shams. Contudo,
vale considerar que, mesmo no registro hagiográfico, é descrito outro estopim dançante de
Rumi que se registra num quadro de imprevisto entusiasmo em plena cena cotidiana: ao
percorrer o bazar e ouvir as marteladas do ourives Salahuddin Zarkub, o poeta parece reco-

55
nhecer algum ritmo dançável e despertar a consciência para a rítmica universal a orquestrar
toda existência.27
Vale lembrar que, depois da defesa de Alghazali da dança devocional sufi essa prática ri-
valizaria com o salat ortodoxo, mas somente na condição de etapa final do samá, isto é, como
um estágio superior ao da audição, como frisou Leonard Lewisohn 28. Segundo esse estudioso,
o samá (audição) estaria ligado aos estados passageiros (hal), enquanto a raqs (dança) era uma
espécie de preâmbulo do êxtase (wajd), o ápice a ser atingido na via do amor. Contudo, os
gazais dançantes de Rumi são ricos em descrições coreográficas que desafiam a noção mera-
mente meditativa e culturalmente desenraizada do giro Mevlevi, prática que se denominaria
só muito mais tarde de samá (audição), ou “giro” sufi. Além disso, o poeta não se restringe a
indicar gestos, mas trata de aplicá-los alusivamente ao debate. É nesse sentido que usa a ex-
pressão “bater dos pés” e “marchar na arena”, desafiando o postulado do censor Ibn Hanbal, ou
que aplica a imagem do “requebrar do pandeiro”, pontuando a ruptura interna do eu, no Mas-
navi Ma’nawi. São imagens coreográficas que certamente não estavam cerceadas pela régua
geométrica que, séculos mais tarde, delinearia o rito Mevlevi.
Ademais, os gestos de elevar-se, ondular as mãos, bater palmas, girar em ambos os sen-
tidos, saltar, sacudir a cabeça e bater os pés, são elementos coreográficos bastante especí-
ficos, designados por Rumi tanto por meios denotativos, quanto por imagens mitopoéticas
conotativas. As imagens mitopoéticas da mariposa, do cipreste, da rosa, do jasmim, do sal-
gueiro etc, tiveram sua simbologia zoroastriana adaptada ao propósito sufi, mas pela sua
descrição e registro hoje sabemos que indubitavelmente remetem às tradições coreográfi-
cas da Ásia Central, das quais o attan afegão e o paquistanês, de viés mitraísta, fazem parte.29
Podemos supor que dessa tradição deriva o giro mevlevi e, para os mesmos fins hipotéticos,
que houve empréstimo de elementos rituais dos qawwalis do Herat e de outras modalida-
des praticada em Aleppo pelos Chihsti, assentados desde século XII no território sírio, hori-
zonte cultural do poeta nos tempos de sua formação escolar.

56
Por outro lado, a terminologia da raqs, de origem árabe e/ou semítica, é aplicada por
Rumi no sentido ontológico para referir-se ao movimento cósmico em si, à revivificação do
átomo, à unção ou conversão do corpo em templo e, ainda, à manifestação arquetípica do
movimento cósmico no ser humano. Nesse sentido, a imagem coreográfica mais universal e
reconhecível nas traduções europeias de sua poesia é a do giro, cujo elemento coreográfico
original é a espiral, derivada da moção dos galhos do cipreste em direção ao sol. Sua con-
trapartida cósmica, na dimensão mitopética, é a estrela Vênus, exaltada na cultura persa por
seus atributos de coreógrafa celestial, onde ela é Astarte (a mesma que a Ishtar babilônica):
a estrela da manhã e da tarde que dirige o movimento orbital aparentemente centrífugo
dos astros no céu. Tal movimento se ativaria inversamente no íntimo do místico em espiral
centrípeta, modo pelo qual “as estrelas nos regem externamente e, internamente, são regi-
das por nós”30, daí o giro ser dos elementos coreográficos de efeito mais potente enquanto
metaforização corporal do movimento cósmico. Contudo, o giro foi super evidenciado em
algumas traduções e, sobretudo, em retraduções, o que ofuscou as demais imagens core-
ográficas originalmente usadas por Rumi para aludir a dança e ao debate da audição, in-
cluindo a própria tradução de Astarte por Vênus, o que desloca a sua referência mítica. Isso
decorre da falta de crítica histórica e historiográfica, o que leva à uma conexão automática
da noção de giro em Rumi com o giro mevlevi moderno, ainda que este tenha criado pelos
discípulos e formatado diversas vezes nos séculos seguinte à sua morte.
Desde os tempos de Alghazali, a dança devocional e a secular estavam liberadas no islã
e as escolas e centros sufis institucionalizadas, embora muitos instrumentos de corda, como
o alaúde e a rabeca, seguissem proibidos, asim como vários modos melódicos estranhos aos
árabes, como é o caso de boa parte das escalas persas, que foram banidos por seus efeitos
desequilibrantes. Não sabemos ao certo, contudo, qual tradição musical movia os concertos
dançantes de Rumi, somente que eram realizados em diferentes ocasiões, como piqueni-
ques, nascimentos, casamentos e funerais, além de sessões regulares noturnas; tampouco
sabemos até que ponto se seguia naquela sociedade os parâmetros estéticos da normatiza-

57
ção islâmica, baseada nos ritmos e modos árabes. Tampouco podemos aferir da sua abran-
gência cultural ou intercultural, embora os relatos hagiográficos indiquem a participação de
gente de todo tipo, religião, categoria social e gênero. Isso porque as fontes do debate e a
historiografia muçulmana da Anatólia tendem a ocultar as sincretizações, o que não pode-
mos rastrear por meio de outras fontes complementares dado que, nas duas décadas que
sucedem a morte de Moulana, igrejas e sinagogas seriam completamente destruídas pelos
mongóis e a população ou sucumbia aos pesados tributos para manter a sua autonomia
religiosa, ou era forçada a converter-se ao islã.31
Rumi realizara livremente a sua “dança mística” em Konya, cidade descrita então
como uma “ilha de paz rodeada em meio à devastação mongol”; contudo, na passagem
do século XIII para o XIV crescem os boatos da colaboração sufi com os invasores,32 a
Síria é abruptamente assaltada e Ibn Taymiyya (1263-1328) levanta nova condenação
contra todos aqueles que exprimiam sua devoção com “palmas, canto, tamborim, so-
prar chamas, reunir-se com esse fim e adotar tais práticas como religião e meio de se
aproximar Dele”.33 Taymiyya, que foi considerado pela historiografia islâmica um sufi,
não hesitou em acusar de diabólico e pagão qualquer tipo de rito não convencional
que emprestasse técnicas meditativas e extáticas dos mongóis e tártaros e remontasse
à tradição dos “místicos ignorantes”, referindo-se especialmente aos místicos, filósofos e
músicos. Pouco tempo após a morte de Ibn Taymiyya, na segunda metade do século XIV,
Aflaki relata uma tentativa de interdição ao uso de instrumentos de corda e à prática da
dança em Konya.34 Na mesma época, não muito longe dali, São Symeão presenciava, es-
tarrecido, ao Serviço da Fornalha: crianças em roda cantando salmos em coro, balançan-
do as mãos e se deslocando em espiral para o ponto central exato da encenação, onde a
imagem de um anjo descia sobre a cabeça de uma delas, na primeira “queima” da forna-
lha.35 A encenação, que era parte regular da liturgia oficial da Catedral de Hagia Sofia de
Constantinopla, consistia numa versão infantil da ciranda sagrada que ainda movia, do
outro lado do front dos cruzados, monges beneditinos numa remota província italiana.36

58
Estamos nos movendo aqui entre permanências culturais, censura, modificações rituais
e destruição de registros que cobrem os três séculos seguintes à morte de Moulana, ao longo
dos quais o ritual mevlevi seria constantemente reformatado: na primeira metade do século
XV, por Pir Adil Tchelebi (1421-1460), e depois ao longo do século XVI.37 Enquanto na Europa
o ânimo inquisitorial converteria toda dança em signo da inversão demoníaca,38 entre os sé-
culos XVI e XVII um clima perturbadoramente similar dominou os ambientes otomano e sa-
fávida. É possível que os persas tenham estabelecido a associação entre bazm (celebração) e
samá (rito)39 em função da proibição à música pelo imperador safávida Tehmasp I, no século
XVI, mas com prerrogativas jurídicas de exceção conferidas às minorias sunitas nômades
e aos zoroastrianos, que ocupavam os territórios desérticos, livres da censura. No Império
Otomano, interdições são emitidas contra os Mevlevi de Konya e os Halveti de Istambul,
que são forçados a modificar suas coreografias, limpando-as de movimentos ondulatórios e
estabelecendo traçados retilíneos e vigorosos para distingui-la das danças femininas, reba-
tizando o ritual dançante de samá para diferenciá-lo da dança secular de entretenimento,
considerada inferior e vulgar.40
Em atitude abertamente hostil à mística, Kemal Pashazade (m. 1534) chegou a dizer que
a dança sufi e o rapto divino nasceram da “dança do samaritano”, em referência à ciranda em
torno do bezerro de ouro descrita no Antigo Testamento, em Êxodo. Nesse episódio, o povo
de Aarão, à espera de Moisés ao pé do monte Sinai, recolhe e funde ouro sem molde numa
peça similar a um bezerro, em torno da qual todos dançam. A referência à milenar dança
do samaritano era feita como quem reconhece nela a roda judaica praticada na sinagoga
vizinha. Em defesa do dawaran, ciranda sufi dos Helvetis, Zenbili Ali Cemali Efendi (m. 1525)
explicou que tais associações não seriam cabíveis, fosse ao nível terminológico ou religioso,
pois a roda helveti seria apenas uma representação da circum-ambulação dos peregrinos
à Meca, algo muito diferente da raqs que deveria (novamente!) ser discutida em termos de
“jogo”. 41 Entre os Mevlevis, o rito coreográfico já vinha sofrendo sucessivas alterações sig-
nificativas e, no século XVII, recebe acusação de inovação religiosa por Minkarizade Yahya

59
Efendi (m. 1668). Um teólogo da Ordem Mevlevi, Ismail Rusukhi Anqaravi, defende a prática
argumentando que o samá mevlevi se realizava com movimentos puramente meditativos
e devocionais, completamente diversos e isentos daquilo que definia a dança à época: he-
resia e diversão.42 Nessa espécie de assepsia religiosa amplamente hostil à espiritualidade
lúdica, a reformatação ritual sufi sob o abstrato riscado geométrico serviu para peneirar, na
limpidez simbólica do giro autocentrado, as incômodas e controversas influências coreorre-
ligiosas por trás dele.
Portanto, o que se observa nesse longo processo histórico é a deslegitimação do teor
sagrado da dança em si e a desqualificação do seu léxico através de uma estratégia discur-
siva ideológica e religiosa. Ninguém se atreveu a questionar o posicionamento do sheikh
no centro da “peregrinação” helveti ou da posição solar no sistema "cósmico" mevlevi, ou a
citar, em defesa de uma tese tão bravamente defendida por Alghazali anteriormente, que a
dança é exaltada até mesmo nos Salmos de Davi. Em suma, da ótica dos censores otomanos,
os “objetos” de adoração são menos perigosos em si (porque úteis?) do que o ato de dançar,
que envolve prazer e diversão e condições propícias para uma espiritualidade quase anár-
quica, que prescinde do sacerdócio. Ou seja, o mesmo risco que, no fundo, levou à extinção
a chorostasia cristã.
Uma vez que a dança foi destituída de seu teor sagrado e a mística do sincrético, os sufis
foram se tornando avessos a nomear sua prática coreográfica como tal, na mesma medida
em que se recusavam a reconhecer nos gestos rituais o caráter dançado, cindindo assim o
rito da sua própria origem cultural e histórica. Para piorar, as traduções modernas concebem
a dança em Rumi segundo a definição de samá, abstraída anacronicamente do tratado de
Anqaravi. Da nossa ótica cultural, pela qual dançar é expressão livre que pode ser meditativa
(como toda atividade, quando ancorada pela imaginação) e uma forma perfeitamente legí-
tima de manifestar a espiritualidade, é evidente que a assimilação histórica de raqs à samá
pela arabologia islâmica reitera, na historiografia e na tradução da poética sufi, a coerção
ainda vigente em países como Irã e Afeganistão. No caso do Irã, onde dançar foi há poucas

60
décadas proibido e hoje tem sido gradualmente liberado (com o termo raqs ainda proibido)
sob a forma de harikat wa mawzun (movimento ritmado), só se pode qualificar Rumi, um de
seus ícones literários, como dançarino por (acidental? Irracional?) licença poética. Ao final,
o que foi deshistoricizado vira metáfora e perde-se o sentido dançável de uma poesia cujos
passos talvez tenham se originado no attan mitraísta, outrora executado em celebrações
públicas, sem restrição de idade ou gênero e à céu aberto.

Notas

1
Do árabe: samāᶜ, “audição”, e raqṣ, “dança”. Os termos transliterados, conforme dito na introdução, serão apresentados
em romanização ou simplificados. O primeiro termo foi romanizado por Gisele Guilhon Camargo Antunes, ao qual
inserimos o acento agudo, que corresponde à ênfase ou marcação vocálica (watid) da última sílaba, na pronúncia do
termo em árabe, tornando-a oxítona na romanização.
2
YUNIS, Leandra. Samatradução: a dança num exercício de tradução do gazal de Jalal Uddin Rumi. 2017. Tese (Dou-
torado em Estudos Árabes) – Programa de Pós-Graduação em Estudos Judaicos e Árabes, Departamento de Letras
Orientais, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017.
3
FARMER, Henry George. A history of Arabian music to the XIIIth century. London: Luzac, 1929, p. 37.
4
IBN ABI AL-DUNYA, 823-894. “Dhamm al-Malahī”. In: ROBSON, James. Tracts on Listening to Music. London: Luzac/Royal
Asiatic Society, 1938, p. 14-62.
5
AHMAD GHAZALI, 1061-1123. “Bawāriq al-ilmāᶜ by Majd al-Din al-Tusi al-Ghazali”. In: Tracts on Listening to Music. Tra-
dução de James Robson. London: Luzac/Royal Asiatic Society, pp. 63-184, 1938.
6
HENNI CHEBRA, Djamile; POCHE, Christian. Les danses dans le monde arabe. Paris: L’Harmattan, 1996. p. 20.
7
Na Tradução do Sentido do Nobre Alcorão, o único disponível em português em tradução direta, o professor Helmi Nas-
ser explica em nota que a proibição foi gradual, ver nota 2, p. 59, por isso a contradição na mensagem revelada.
8
ᶜešq.
9
QUSHAYRI, 986-1073. Epistle on Sufism al-Risala al-qushayriyya fiᶜilm al-tasawwuf. Tradução de A. D. Knysh e M. Eissa-
que. UK: Garnet/Center for Muslim Contribution to Civilization, 2007, p. 332.
10
HUJWIRI, 990-1077. The Khashf al-Mahjūb –The Oldest Persian Treatise on Sufism. Tradução de Reynold Alleyne Nichol-
son. London: Luzac, 1911, p. 411 -416.
11
AHMAD GHAZALI, op. cit., p. 99.
12
ATTIE FILHO, Miguel; JUBRAN, Safa Alferd Chahla. AL-KINDI, séc. IX. A Filosofia Primeira. In: Tiraz – Revista de Estudos
Árabes e das Culturas do Oriente Médio. São Paulo: FFLCH/USP, 2006, p. 129-159.
13
ALGHAZALI, 1058-1111. “Emotional religion in Islam as affected by music and singing”. Translation by Duncan Black
McDonald. London. In: Journal of the Royal Asiatic Society of Great Britain and Ireland, v. 33, 1901, p. 195-252, p. 705-

61
748.
14
NASR, Sayed Hossein. An Introdution to Islamic Cosmological Doctrines, Conception of Nature and Methods used for
its Study by the Ikhwan al-Safa, al-Biruni and Ibn Sina. Cambridge/Massachussets: The Belknap Press, 1964.
15
QUSHAYRI, op. cit., p. 84.
16
OESTERLEY, W. O. E. The sacred dance. New York: Macmillan, 1923.
17
OESTERLEY, op. cit. cap. V e p. 141-146.
18
VAN DER LEEUWN, G. Sacred and Profane Beauty: The Holy in Art. New York: Holt/Dinehart/Winston, 1963, p. 68.
19
IBN JAWZI, 1116-1201. Talbees Iblees. Ibn al-Jawsee The Devil’s deception. Translation by Amin A. B. Philips. UK: Al
Hidaayah, 1985, p. 20.
20
ZARCONE, T.; BUEHLER, A.; IŞIN, E. Journal of History of Sufism, v. 4. Paris: Librarie d’Amerique et de l’Orient, 2004, p.
11-12.
21
BROWN, P. Corpo e sociedade. O homem, a mulher e a renúncia sexual no início do cristianismo. Tradução de Vera
Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990, p. 155- 201.
22
FISK, M. P. The art of the rhythmic choir. New York: Harper and Brothers, 1950.
23
METHTHILD OF MAGDEBURG, 1212-1282. The flowing Light of the God Head. F. Tobin. New Jersey: Paulist Press, 1998,
livro I, p. 44.
24
ISAR, Nicoletta. “Chorography (Chôra, Chôros, Chorós) – A performative paradigm of creation of sacred space in Byzan-
tium”. In: Hierotopy: Studies in the Making of Sacred Space, Moscow, v. 28, June-July, 2004, p. 59-90, p. 64.
25
LEWIS, F. Rumi – Past and Present, East and West: The Life, Teachings, and Poetry of Jalâl al-Din Rumi. London:
Oneworld, 2008, p. 311.
26
LEWIS, op. cit., p. 309.
27
IQBAL, op. cit., p. 28.
28
LEWISOHN, L. The Philosophy of Ecstasy: Rumi and the Sufi Tradition. Bloomington, Indiana: World Wisdom, 2014, p.
35-80.
29
SHAHBAZI, A. S. “Dance in Pre-Islamic Iran”. In: Encyclopedia of Iran. California: Mazda Publishers, v. VI, f. 6, p. 640-641,
1993.
30
Masnavi IV: 520.
31
BEIHAMMER, A. D. “Christian views of Islam in early Seljuq Anatolia: perceptions and reactions”. In: PEACOCK, Bruno de;
YILDIZ, Sara Nur (Ed.). Islam and Christianity in medieval Anatolia. UK: University of Saint Andrews/Ashgate, pp. 51-76,
2015. Em todo o mundo islâmico é cobrado um imposto para os monoteístas, em geral cristãos judeus ou, no caso
persa, zoroastrianos, seguirem professando a sua fé original.
32
DeWEESE, D. “‘Stuck on the Throat of Chingiz Khan’: Envisioning the Mongol Conquests – Some Sufi Accounts from
the 14th to 17th centuries”. In: PFEIFER, Judith; QINN, Sholeh A.; TUCKER, Ernest. (Ed.). History and Historiography of past
mongol Central Asia and the Middle East. Wiesbaden: GMBH&Co., 2006, p. 23-61.
33
IBN TAYMIYYA, 1263-1328. Musique et danse selon Ibn Taymiyya [Le libre du sama et de la danse (Kitab al-sama wa-al-
-raqṣ)]. Traduction par Jean Michot. Paris: Librarie Philosophique J. Vrin, 2002, p. 133.
34
AFLAKI, m. 1318. Les saints des derviches tourneurs. Récits traduit du persan. Traduction par Clemènt Houart. Paris:
Ernest Leroux, 1918, p. 323-234.
35
GERSTEL, S.; NELSON, R. Approaching the Holy Montain, Art and Liturgy at Saint Catherine’s Monastery in the Sinai.

62
Belgium: Brepols, 2010, p. 179-230.
36
BUCKHARDT, J. A cultura do renascimento na Itália: um ensaio. Tradução de S. Tallaroli. São Paulo: Companhia das
Letras, 2009, p. 427.
37
CAMARGO, G. G. A. Mukabele – ritual dervixe. Florianópolis: Insular, 2010, p. 46-67.
38
CLARK, S. Pensando com demônios: a ideia de bruxaria no princípio da Europa Moderna. Tradução de C. M. Paciornik.
São Paulo: Edusp, 1997, p. 135.
39
Ver entrevista de Morteza Varzi a Robin Friend em: http://thebestofhabibi.com/volume-18-no-2-september-2000/spiri-
tuality-in-iran/
40
ZARCONE, T.; BUEHLER, A.; IŞIN, E. op. cit., p. 58.
41
GURER, Dilaver. “Deux traits par des Şeyhül islam ottomans sur la danse”. In: ZARCONE, T.; BUEHLER, A.; IŞIN, E. op. cit., p.
47-60.
42
AMBROSIO, A. F. Écrire le corps dansant au XVIIe siècle: Ismāᶜīl Rusūkhī Anqaravī. Revue des mondes musulmans et de
la Méditerranée, p. 113-114, nov. 2006 [online]. Disponível em: http://remmm.revues.org/2978.

63
O Esplendor da Fé Bizantina

Toda seção do tipo “vida e obra” costuma dar conta de dados biográficos que “explicam”
a obra, o estilo, a “questão” central do poeta e assim por diante. Tentarei aqui outra coisa:
enfatizar os aspectos históricos que tangenciaram o existencial e foram transmutados por
Rumi em dança antes de virarem poesia, observando o contexto da Anatólia no século XIII
como um “espelho” histórico, cujos nexos permitam compreender um problema atual.
Rumi, nome pelo qual é conhecido o poeta, é o topônimo designativo de Rum (Roma),
região da qual fazia parte a Anatólia, dominada pelos seljúcidas no século XII e onde o poeta
passou a maior parte da sua vida, no XIII. O termo também significava “romano” e desig-
nava todos aqueles que viviam em terras bizantinas dominadas, especialmente os cristãos
orientais, os quais os muçulmanos distinguiam dos “francos”, “demônios de olhos azuis” ca-
pazes de praticar o canibalismo em plena Terra Santa.1 Seria, portanto, em meio aos pacíficos
cristãos do Oriente que Rumi iria entoar a emblemática estória da flauta que se queixa de
separações: “Já que não existo sem o corte, ao meu sopro, homens e mulheres se condó-
em” 2. Muitos destes homens e mulheres, assim como ele próprio, haviam sido violentamen-
te separados de suas raízes natais e, fugindo das hordas mongóis, haviam se deslocado para
aquela nova sociedade que se formava ao "sopro" dos acontecimentos.
Dos muitos e imprecisos dados biográficos sobre o poeta, a maioria contidos nas hagio-
grafias – fontes em si já duvidosas por serem erigidas em moldes retóricos pré-definidos com

65
a finalidade clara de retratar o poeta como um guia espiritual predestinado – se aceita que
Rumi veio ao mundo em 1207 em Vakhshi, um vilarejo pertencente à medieval Lavakand.3 A
região de Balkh, onde a família se instalara nos primeiros anos, era um polo cultural ligado
ao Herat, favorecida por sua localização na Rota da Seda, a meio caminho entre as antigas e
opulentas capitais Bukara e Samarcanda. Infelizmente, por esse mesmo motivo, no início do
século XIII a região ficou sob a mira de Gengis Khan, então Rumi e sua família emigram, em
errância, para diversos lugares do Oriente Médio.
A vida peregrina da família acabou por trazer tanto perdas quanto “presentes” especiais
a Rumi. Durante uma parada no caminho, ainda jovem ele teria recebido o Livro dos Misté-
rios diretamente das mãos de Attar, junto com a benção e o prognóstico de sucesso como
futuro mestre. Já na Anatólia, assentado com a família em Laranda, onde permaneceram por
cerca de sete anos, Jalal Uddin se casaria com Gohar Khatun e viveria duas mortes marcan-
tes: a da mãe Momene Khatun e do irmão mais velho Muhammad Alaoddin. Depois disso, o
pai decidiu partir para Konya com o que restou da família.
Konya era uma antiga cidade bizantina que chegara a ser bastião de defesa dos cruza-
dos, tomada no século XII pelos seljúcidas, que a tornariam capital do seu império. Os seljú-
cidas eram turcos islamizados de cultura persa, que se haviam dividido inicialmente em dois
grupos: um se manteve na Ásia Central ativando as rotas marítimas para a Pérsia e a China
através do Mar Negro, e o outro se expandiu em direção às terras ocidentais da Anatólia,
estabelecendo importantes tratados com venezianos e genoveses, as principais potências
políticas, mercantes e comerciais do Mediterrâneo na época. A noroeste, região da Anatolia,
se estabeleceria um terceiro ramo, os seljúcidas de Rum, de orientação cosmopolita e com
um precedente de estreitos laços políticos e familiares com famílias bizantinas, em especial
os da nobreza grega, geórgica e armênia. Os seljúcidas de Rum se espelhavam nos abássidas
e eram, por conseguinte, favoráveis ao desenvolvimento artístico e à liberdade de pensa-
mento e doutrina. Tudo isso favoreceu a formação de uma sociedade plural e aberta aos que

66
escapavam de perseguições políticas e religiosas e, como era o caso da maioria dos imigran-
tes que chegavam à capital, das invasões mongóis.
Foi justamente o sultão Keykobad I, destinado a proporcionar o maior período de ex-
pansão econômica, militar, urbanística e cultural da região, quem convidara pessoalmen-
te Bahauddin Walad, o pai de Rumi, para dirigir uma escola do tipo islâmico na capital. O
convite era apropriado para ambos, pois Bahauddin não era um mero refugiado, mas um
reputado professor de teologia em sua terra natal e o projeto urbanístico traçado para a
expansão de Konya previa a construção de escolas maiores e de estrutura mais complexa do
que as habituais madrassas, que por padrão eram instaladas nos corredores das mesquitas
ou em salões anexos que chegavam a acolher não mais do que vinte alunos. Em Konya, tais
instituições seriam especialmente delegadas aos cuidados dos sufis que, além da instrução
religiosa e educacional, também assumiriam a assistência social, o fornecimento de alimen-
tos aos necessitados e o alojamento aos viajantes.4
Bahauddin e a família se estabeleceram em Konya por volta de 1229, mas logo em se-
guida, dois anos depois, ele falece e Jalal Uddin, com apenas 24 anos, se encontrava ainda
despreparado para assumir o lugar do pai na direção da escola, de modo que o seu tutor
Muhaqiq Tirmidhi preferiu encaminhá-lo para a escola Halavia, em Aleppo, onde haveria de
ter uma boa formação em Teologia sob a orientação do preceptor Kama Uddin. A escola fora
patrocinada anteriormente pelos abássidas, seguia a corrente de jurisprudência hanafita,
de linha sunita, que era a mais difundida nos territórios persas e sob a qual se preconizava a
tolerância em relação às outras formas de pensamento e de crença, o uso de analogias para
interpretação da lei religiosa e o respeito às tradições locais. O nome “Halavia” deriva do ter-
mo árabe “halewa”, doce de gergelim com mel com o qual se quebrava o jejum do Ramadã,
tradição local que originou a “Festa dos doces”, organizada pelos alunos para arrecadar os
cerca de 3000 dinares destinados ao pagamento anual de seus professores. É possível que
dessa combinação venha a associação entre celebração, gratidão, sabedoria e doçura tão
presente nos poemas do autor.

67
Jalal Uddin retornaria para Konya 10 anos depois, aos 34 anos, tendo-se convertido em um
prestigiado professor de teologia. Leal à dinastia que o acolhera e em uma época em que a re-
gião da Anatólia já passava por uma grande instabilidade política, o jovem professor chegava a
reunir mais de cem ouvintes em aula e os seus discursos não disfarçavam um forte tom contra
os invasores mongóis. Em ondas de brutal violência, pilhagens, incêndios, destruição de casas
e edificações públicas, decapitação e extermínio em massa de mulheres, crianças e idosos, que
haviam assolado as principais capitais da região, como Balkh, Bukara, Nishapur, Samarcanda,
Herat, Marv, os invasores poupavam por vezes somente músicos e dançarinos/as para diverti-
rem as tropas. E Konya, situada no ilcanato, um território até então neutro, descrito como “ilha
de paz no mar de devastação”, estava em vias de se tornar mais um dos territórios disputados
pelos sucessores do canato mongol.
Rumi crescera fugindo das hordas mongóis e cansara de ouvir relatos sobre Gengis Khan,
que declarava ser “a calamidade enviada por Deus para punir os infiéis”. Como professor de
teologia, o persa criticava as incongruências da noção cristã de consubstanciação, repudiava
a hipocrisia de sheikhs e alfinetava os governantes; porém, nada se igualava a sua ojeriza em
relação à brutalidade e à violência dos invasores mongóis e, embora fosse comum naqueles
tempos que se temesse e admirasse ao mesmo tempo a fibra dos guerreiros rústicos das
estepes, Rumi observava que esse traço se afrouxava pelos hábitos imorais e vulgares ad-
quiridos ao se tornarem governantes sedentários. Podemos dizer com certa segurança que
a sua atuação como formador na construção de uma sociedade islâmica plural, ameaçada
constantemente pelos investidas dos herdeiros de Gengis Khan, constitui mais do que um
mero preâmbulo para a transformação de Rumi em um líder místico, ainda que pelas inter-
pretações tradicionais seja o seu encontro com o experiente Shams, o “Sol de Tabriz”, o que
motive a sua iniciação.
Shams era um dervixe errante de temperamento desafiador, provavelmente um qalan-
dar, ou seja, um turcomano místico sincrético, que estaria na casa dos 60 anos de idade
quando, por volta de 1244, conhece Rumi, com 37 anos. Poder-se-ia destacar como relevan-

68
te a diferença de formação entre eles: Rumi era hanafita enquanto Shams seguia a corrente
shafita,5 que se guiava pelo exemplo dos companheiros do profeta, desprezando a interpre-
tação particular do jurista. Entretanto, se essa divergência entre as duas correntes chegou
algum dia a ser significava, já não parecia mais fazer sentido naquele contexto, cuja rivali-
dade entre ambas era notória e só servia para favorecer a ação dos invasores, como ilustra o
episódio narrado pelo historiador Afzal Iqbal:
A decrepitude na qual a sociedade islâmica caíra pode ser imaginada pelo fato de que quando Gen-
gis Khan se aproximara da cidade de Rayy os mongóis encontram-na dividida em duas facções: uma
composta por shafitas, a outra por hanafitas. A primeira negociou secretamente a entrega da cidade
à noite, com a condição de que os mongóis massacrassem os membros da outra seita. A segunda, a
seu turno, fez uma proposta similar. Os mongóis, nunca relutantes em derramar sangue, aceitaram
alegremente às ofertas e, sendo recebidos dentro da cidade, massacraram a ambos, hanafitas e sha-
fitas.6

A suna, símbolo da unidade sociorreligiosa, se tornara no século XIII “um ideograma pla-
tônico aos olhos dos sufis e um mero sistema de leis para os teólogos e legisladores; para a
massa de fiéis, concha vazia sem nada vivo dentro”7 – o que deve ter evocado uma sensação
similar à que temos com a democracia em nossos dias. A comunidade real era certamente
uma utopia para pessoas instruídas e sensíveis como Jalaluddin que, entre o arco mongol,
a espada-cruz e a cimitarra beduína, buscou voltar-se “da pequena guerra [exterior] para a
guerra [interior]”8.
Dizem os hagiógrafos que entre Rumi e Shams houve, bem ao contrário desta rivalidade
religiosa, um “encontro entre dois oceanos” do qual emergiu um amor que, podemos supor
do próprio verso do autor, “não é matéria de Abu Hanifa, nem tradição de Shafi”.9 Os relatos,
embora contraditórios ou fantasiosos nas fontes, falam de retiros espirituais de ambos jun-
tos e isolados do grupo, o que teria atraído sobre Shams o ciúme a inveja dos discípulos de
Rumi. O mestre qaladar parece ter sido fortemente hostilizado e desapareceu em 1246, para
retornar em 1247 e desaparecer definitivamente em 1248, talvez assassinado. A sua ausência

69
teria então provocado a intensa dor que atiraria o jovem místico no experimento extático.
Após esse sumiço de Shams, Rumi passou a dançar de forma compulsiva, relata o seu filho
Sultan Walad, mas é provável que só tenha atinado com o poder harmonizador e curativo da
dança ao acaso, enquanto caminhava pelo bazar e reconheceu um ritmo cadenciando nas
marteladas do ourives Salahuddin Zarkub, que depois se tornaria seu grande amigo.
Uma era a dança da busca pelo amado; a outra, seria uma dança de restauração cós-
mica, portanto, de cura? Estariam ambas, de algum modo, ocultas, porém detectáveis, na
poética rumiana? Se assim for, podemos dizer que a morte de Zarkub em 1261 fecharia o
primeiro ciclo, em que o poeta encerra o Divan-e Shams,10 e abre o segundo, em que passa
à composição do épico teosófico Husam-i Nameh (Livro de Husam), dedicado ao discípulo
Husam Tchelebi. Poucos sabem, mas este é o nome original do Masnavi Ma’nawi,11 no qual
o poeta faz uso filosófico e teologal do léxico da dança. A cura, aqui, significa antes de tudo
tomar consciência da questão teologal da música e da dança à luz da mensagem islâmica
(conforme ele a interpretava e traduzia) e de quem era ele próprio, historicamente falando,
naquele debate: dançarino-mestre (antes de se tornar mestre da dança mística) em tempos
que se tornavam cada vez mais tensos e conturbados.
Embora Rumi tenha escrito cerca de 60 mil versos, alguns com a ajuda de discípulos, a
relação do poeta com a arte da poesia em si é considerada controversa. Alguns estudiosos
dizem que ele apreciava os autores árabes al-Mutanabbi, famoso poeta e guerreiro, e Abu
Nuwas, um dos maiores da geração clássica; outros afirmam que ele jugava essa poesia ve-
xaminosa. Para quem eventualmente desprezava as efemeridades do artifício da palavra,
ele dominou bem as modernidades da ornamentação, ainda que tenha menosprezado a
versificação, queixando-se da tarefa enfadonha de aplicar o ajuste métrico na revisão dos
poemas.12 Com efeito, a dimensão rítmica dos seus poemas é elementar, enquanto a imagé-
tica é gestáltica. É um erro especular sobre seu gosto ou inclinação literários, pois como todo
erudito ele sabia perfeitamente do poder do efeito poético em penetrar no espírito dos ou-
vintes. O que há para ressaltar é que os anos de maior atividade criativa do poeta, entre 1246

70
e 1260, coincidem com os da intensificação de sua devoção coreográfica e são justamente
aqueles de maior instabilidade social e política na Anatólia.
Alguns estudiosos destacam o peso político das organizações sufis na Anatólia seljúcida,
sendo a rivalidade entre lideranças místicas de diferentes correntes um fator interno de instabili-
dade na região.13 Desde que um conflito fora iniciado com o reino Corásmio, em 1233, a posição
de Keykobad se tornara frágil; ele teve que se empenhar arduamente em manter as fronteiras
do reino a salvo, em especial a da Geórgia, e acabou sendo envenenado aos 48 anos, em 1237.
Foi sucedido pelo filho, Key Kosrow II, quem, após usurpar o poder que deveria ser destinado ao
irmão, reinou até 1246 em um período conturbado: em 1239 enfrentaria uma forte e ampla re-
belião interna que se espalharia no coração da Anatólia, movida por turcos liderados pelo mestre
qaladar baba Ishak14. A rebelião só seria suprimida em 1243, provavelmente com o apoio de mer-
cenários francos, mas em seguida os seljúcidas perderiam a autonomia territorial de Rum para o
canato mongol. Após a morte de Key Kosrow II, o sultanato foi dividido entre seus sucessores em
três reinos vassalos do mongóis: as terras de Konya a Oeste, sob o governo de Key Kavus II, cujo
vizir era o antigo patrono urbanístico Sahip Ata Ali; Sivas e as terras a Leste, sob Rocknodin Qilij
Arslan IV e, por último, a Malatya, sob Kaykobad II. Internamente, a aliança entre os três foi man-
tida pelo vizir Karatay até a sua morte, em 1254, quando o triunvirato passou a ser intermediado
pelo ambicioso ministro Moaneddin Suleyman, promovido a parvaneh, uma espécie de embai-
xador mongol entre os seljúcidas. O parvaneh (“mariposa”, em persa) não era nada confiável e
logo promoveria a queda da dinastia com intrigas e manipulações.15
As bio e hagiografias sugerem que Rumi foi protegido de Moaneddin, apesar da forte
rivalidade do parvaneh com Karatay, que era amigo do poeta e, tanto quanto Sahip Ata Ali,
também seu patrono. Isso se deve ao apoio que o mestre místico recebia da princesa da
Geórgia, Gorje Khatum, sua patrocinadora e seguidora desde os tempos de esposa de Key
Khosrow II, tendo-se casado depois da morte deste com o ministro mongol. Por outro lado,
o poeta sempre estivera ligado aos cristãos e aos armênios e, além de contrário aos interes-
ses mongóis, era inimigo declarado de baba Ishak. Entre seus amigos, estão o mestre sufi

71
Akhiturk e o sheikh Qunawi (discípulo de Ibn Arabi), e é dito que ele transitava bem entre co-
merciantes, pequenos mercadores livres, artesãos, monges gregos e rabinos, todos aninha-
dos em torno do projeto de Keykobad I, cujo sonho era transformar a antiga urbe bizantina
numa cosmópolis islâmica.16 Todos os estudiosos consideram, em algum grau, que a poética
de Rumi carrega vestígios desta interação cultural, social e política da época, embora lhes
escape a relação direta entre dança e história: a primeira como mecanismo de simbolização
da segunda.
Neste sentido, é significativo que o fim do ciclo compositivo do Divan-e Shams e o início
da sistematização do Manasvi coincidam com um conjunto de acontecimentos ocorridos
em torno de 1257-61, que apontam para a derrocada definitiva da Anatólia.
Em 1257, Keykobad II é assassinado e o seu trono na Malatya passa a ser disputado pelos
herdeiros Roknoddin, rei de Sivas, que apoiava os mongóis contra os bizantinos, e Key Kavus
II, filho de uma grega, que buscou o apoio bizantino contra os mongóis. No ano seguinte,
em 1258, Hulagu assalta Bagdá e a tensão entre os dois príncipes seljúcidas aumenta. O
exército de Konya se alinha à Horda Dourada, liderada pelo imperador Baiju, e o de Sivas à
Horda Azul e aos mamelucos do Egito; ambos se embatem nas redondezas da capital. Em
julho de 1261, Key Kavus II busca o apoio do imperador bizantino Paleontólogos, mas este
se aliara aos mongóis para combater os francos em suas fronteiras e envia o sultão para o
exílio na Crimeia, onde ele morreria em 1278. Roknoddin se torna então o único governador
seljúcida; porém, não passaria de marionete nas mãos do ministro Moaneddin. Mesmo sob
a resistência interna do vizir Sahip Ata, o ministro segue em ambição desmedida: assassina
Roknoddin em 1265 e passa a governar como regente do caçula sucessor, Key Khusrow III,
deixando a Anatólia completamente à mercê dos mongóis.17
Para nós, cuja formação é tipicamente eurocêntrica, tais eventos, que ocorrem do ou-
tro lado da quarta Cruzada, são praticamente desconhecidos, pois uma cruzada historio-
gráfica também se interpôs entre as fontes cristãs e as muçulmanas. Na esteira dos aconte-
cimentos, os mongóis voltam a se unir sob a Horda Dourada e, nominalmente convertidos

72
ao islã, determinam a destruição de todas as construções religiosas não islâmicas com o
propósito de evitar que servissem de guarida aos cristãos francos. Igrejas e sinagogas são
substituídas por mesquitas ou salões sufis, grande parte do legado material bizantino é
destruído e a população é forçada à conversão religiosa.18 Isso se inicia apenas dois anos
após a morte de Rumi, de modo que a sua própria passagem se tornou um fenômeno
sincronizado ao cataclisma histórico e historiográfico da sociedade que o acolhera e cujo
futuro promissor e cosmopolita se via abortado diante dos seus olhos.
No sol epifânico da poesia rumiana, vislumbro o vórtice imaginário de um giro que
simboliza sucessivos ciclos: o raio imperioso do fado a desenraizar o poeta da sua terra
natal, a morte do mestre espiritual, o fim brutal de um projeto civilizacional explêndido no
qual se refugiara. Pois seus versos exprimem, além da intenção mística, algo de universal:
o trágico destino humano, a constatação de que o que nós vivemos, por mais estável e só-
lido que pareça, é em realidade fugaz, irreal. Somente fora da existência mundana parece
haver refúgio e esperança. Eis onde se instaura a plena historicidade da poética rumiana
ou, melhor dizendo, a sua transhistoricidade – re(a)presentação poética de um jogo místi-
co que convida a se exilar da própria História quando o mundo é demais para nós.19
A flauta humana se rompeu no outono de 1273. O mestre dançarino teve um funeral com
“gente de toda fé, fiéis a ele, em amor com povos de todas as nações”20 e um samá fúnebre de
sete noites.21 Faz oito séculos que, em sua memória, o giro dervixe se pratica (os mestres juram
que não é dança). Na luz que ilumina e reflete o passado na face translúcida do presente, vejo
uma miríade de existências que se refugiam nos versos de Jalal Uddin Rumi, o “Esplendor da Fé
bizantino”: polo espiritual, axis mundi de um mundo que ainda é.

Notas
1
MALOOF, Amin. The Crusades through Arab Eyes.Translated from the French by Jon Rothschild. London: Saqi Essen-
cials, 1988, p. 44- 53.

73
2
Masnavi I:1-2
3
A vila se situaria no atual território do Tadjiquistão.
4
WOLPER, Esther Sara. Cities and saints. Sufism and the transformation of urban space in medieval Anatólia. Pennsil-
vanya State University Press, 2003.
5
Fundada em Bagdá por Idris Shafi.
6
IQBAL, op. cit., p. 37.
7
IQBAL, op. cit., p. 3.
8
RUMI, Jalal Uddin (1273- 1307). Fihi ma Fihi – Discourses of Rumi. Translation by Arthur John Arberry. Iowa: Ompha-
lokepsis, 1961. p. 109.
9
Gazal 499.
10
Kulliat-i Shams ya Diwan-i Kabir. Edição de Badi Alzaman Foruzanfar. Teheran: Amir Kabir, 1957.
11
The Mathnavi of Jalaluddin Rumi. Versão bilíngue persa-inglês de Reynold Alleyne Nicholson. London: Luzac, 1940. (E.
J. W. Gibbs Memorial Series)
12
SCHIMMEL, Annemarie. The Triumphal Sun: A Study of the Works of Jalaluddin Rumi. USA: State University of New York
Press, 1993, p. 42.
13
Ver PEACOCK, A. C. S. Islam, Literature and Society in Mongol Anatolia. UK: Cambridge University Press, 2015.
14
Baba, que significa algo do tipo “papá” ou “vovô”, é um título honorífico conferido a um mestre ancião.
15
PEACOCK, A. C. S.; YILDIZ, Sara Nur. The Seljuks of Anatolia: Court and Society in Medieval Middle East. London: I. B.
Tauris, 2015.
16
PEACOCK, A. C. S. “Politics and Patronage in the works of Jalal al-Din Rumi and Sultan Walad”. In: The Seljuks of Anato-
lia: Court and Society in Medieval Middle East. London: I. B. Tauris, 2015. p. 206-226.
17
PEACOCK; YILDIZ, op. cit.
18
PEACOCK, Andrew Charles Spencer; De NICOLA, Bruno; YILDIZ, Sara. (Ed.). Islam and Christianity in Medieval Anatolia.
UK: University of Saint Andrews/ Ashgate, 2015.
19
Parafraseando de William Wordsworth, o título de seu poema: The world is too much with us.
20
Descrição de Sultan Walad em LEWIS, F. Rumi – Past and Present, East and West: The Life, Teachings, and Poetry of Jalâl
al-Din Rumi. London: Oneworld, 2008. p. 223.
21
IQBAL, op. cit., p. xxix.

74
...

...

...

Poemas dançantes de Rumi

Apresento a seguir os comentários sobre indicativos coreográficos, fatores composi-


tivos, transgressões e outras marcas tradutórias, seguidas de “samatraduções” espalhadas
com os originais ou em versões criativas desprendidas do original. Em geral, vem separados
na seguinte ordem: comentário, texto original e traduções.

76
Desperta o dia!

O rubai 515 deu origem à retradução de José Jorge Carvalho, citada na Nota da tra-
dutora. A rima anáfora construída ao modo do redif (refrão) usa o verbo raqs konan, “fazer
[uma] dança”, que atua nessa posição como symbolon, isto é, imagem-argumento, sendo o
elemento paralelístico, simultaneamente, fator de estímulo à ação no ouvinte.

77
‫ای روز بر آ كه ذ ّرهها رقْص کنند جانها ِز خوشی بی رس و پا رقص کنند‬ Desperta dia que os átomos dançam! Almas sem pé nem cabeça dançam
ِ ‫آنكس كِه ازو چ ْرخ و َهوا رقص کنند در‬
‫گوش تو گویَم كه كُجا رقص کنند‬ Por Ele as esferas e o céu dançam ao ouvido te direi aonde dançam
Dançai ramagens, é primavera!

O gazal 189 tem uma simbologia coreográfica que remete a uma espécie de ci- attan, tradição popular do Afeganistão e do Paquistão. Uso o epíteto Rei-Sol
randa, extática e devocional, que se desdobra nos atos de celebrar, agradecer, coroar, para aludir ao rei Luís IV da França, ícone da história da dança ocidental que
desprender-se, peregrinar, louvar, produzir, seguir, extinguir-se, banhar-se e ungir-se. prefigurou o balé clássico, cuja coreografia simulava a rotação dos astros
Há referências ao ‘messias’ (Jesus, para os muçulmanos), a José, mensageiro da prima- em torno de si. A analogia entre o monarca absoluto e o centro do universo
vera espiritual, e ao pavão enquanto metáfora da transmutação anímica estimulada na numa cosmologia heliocêntrica encontra paralelos nos ritos zoroastrianos,
audição musical. O pavão é o senhor das tonalidades sonoras e visuais (cores), sua pena no giro mevlevi e no dawaran sufi, tradição esta última que suponho conec-
representa o olho clarividente que tudo vê através do fogo; na tradição azeri1 tem uma tado à chorostasia.
representação coreográfica, pela junção dos dedos médio e polegar através dos quais O termo raqs ancora o verbo rima que, por predicação, articula todas
se observa o mundo. as imagens do poema e reitera, num nível teosófico, a ideia da unção e do
O tema primaveril alude ao ano novo persa, nowruz, a mais importante das festi- corpo-templo na lógica circular do chorus. Tentei enfatizar o traço sincrético
vidades públicas de origem zoroastriana, celebrada no equinócio de Primavera que, ao usar o sujeito indeterminado da linguagem religiosa por analogia aos
no Hemisfério Norte, coincide com a entrada do ano zodiacal no signo de Áries. A Salmos de David: “Louvai o Seu nome com danças, o tamborim e a harpa”,
dança, antigamente realizada em torno de fogueiras, tem traços remanescentes no “Louvai-O com instrumentos de cordas e sopro”.2
‫آمد بهار جان‌ها ای شاخ تر به رقص آ چون یوسف اندرآمد مرص و شکر به رقص آ‬ Dança ramagens é Primavera! Libertai os cativos José chega ao Egito3
‫ای شاه عشق پرور مانند شیر مادر ای شیرجوش دررو جان پدر به رقص آ‬ Dançai ao Pai que despeja o amor feito leite materno4
‫از پا و رس بریدی بی‌پا و رس به رقص آ‬ ‫چوگان زلف دیدی چون گوی دررسیدی‬ Dançai sem pé nem cabeça feito a bola que o taco acerta5
‫تیغی به دست خونی آمد مرا که چونی گفتم بیا که خیر است گفتا نه رش به رقص آ‬ Dançai é bom que mal há se a mão sangrar quando o espinho sai?6
‫ چه باشد ای خوش کمر به رقص آ‬,‫از عشق تاجداران در چرخ او چو باران آن جا قبا‬ Dançai a sorte de habitar a túnica o Amor coroa o céu com a chuva7
‫ای مست هست گشته بر تو فنا نبشته رقعه فنا رسیده بهر سفر به رقص آ‬ Dançai ébrios do todo viajar é teu destino está escrito e o fim chega8
‫در دست جام باده آمد بتم پیاده گر نیستی تو ماده زان شاه نر به رقص آ‬ Dançai feito o rei-sol e não mera palha um eidolon errante de graal em mãos9
‫پایان جنگ آمد آواز چنگ آمد یوسف ز چاه آمد ای بی‌هرن به رقص آ‬ Dançai mesmo ineptos José saiu do poço o canto rasga a lira a guerra finda10
‫تا چند وعده باشد وین رس به سجده باشد هجرم بربده باشد دنگ و اثر به رقص آ‬ Dançai em minha hégira até se entregar de todo à batida e à pegada11
‫کای بی‌خرب فنا شو ای باخرب به رقص آ‬ ‫کی باشد آن زمانی گوید مرا فالنی‬
Dançai cônscios antes de dizerem a mim: “ei fulano, na inconsciência dissipa-te!”
‫با مرغ جان رساید بی‌بال و پر به رقص آ‬ ‫طاووس ما درآید وان رنگ‌ها برآید‬
Dançai sem asas banhai-vos das cores contagiai-vos do pavão na relva12
‫گفته مسیح مریم کای کور و کر به رقص آ‬ ‫کور و کران عامل دید از مسیح مرهم‬
Dançai através do Ungido “que cura o cego e o surdo” diria o messias à Maria13
‫مخدوم شمس دین است تربیز رشک چین اس اندر بهار حسنش شاخ و شجر به رقص آ‬
Dançai e brotai a melhor fronde e cepa14 mestre Shams o Sol15 Tabriz inveja da China
Notas

1
Etnia persa predominante no Azerbaidjão.
2
Antigo Testamento, Salmos 149:3 e 150:4.
3
Conforme entrada no dicionário histórico de Francis Steingass, página 752, shkr tem muitas pronúncia e significados:
doçura (shekar), gratidão (shakr) e, no léxico da caça, escravidão; (shakar), por extensão, “aquele que é dócil”, o cativo.
4
Shir significa leão ou leite, seguido de jush (fervendo) ou jaush (do peito). Aqui, a sintaxe não pontuada leva a duas
formas de entender o verso: “ O rei do amor é abundante feito leite materno, ou “o leite/amor venha [nutrir] a dança”.
Se presume que o “rei do amor” seja Cristo, cujo amor nasce do Deus-Pai e que é aludido (como messias) no penúltimo
parágrafo.
5
“Você viu quando o bastão [do jogo de polo] atingiu a bola, de pé e cabeça cortados [isto é, sem depleção, feito a
bola], sem pé nem cabeça, à dança venha”.
6
“Que importa se o espinho faz a mão sangrar? Eu digo que está tudo bem, querendo dizer que não há mal em vir à
dança”.
7
“O rumor da chuva coroa o céu por causa do amor Dele, que a sortuda/feliz cintura que vestir aquela túnica venha
dançar”.
8
No verso original, diz literalmente: “estais completamente ébrio, a extinção (faná) está inscrita em ti, o sinal da extinção
chega conforme segues a viagem, à dança venha”, ou seja, a extinção (aniquilação do eu) está prevista na morte, desti-
no irrefutável da vida; a viagem é a vida e a dança um convite à consciência/embriagada “do todo”.
9
Em tradução literal: “A taça de vinho vem à mão, meu ídolo perambula, se tu não fores de matéria/faia/fêmea, que
[feito] o rei-macho venha dançar”. A expressão de gênero é típica da época e de uma concepção cosmológica que
estabelece o paralelo analógico entre as polaridades masculino/feminino, espírito/corpo, celeste/terrestre, por conse-
guinte, masculino-espiritual (dominante)/ feminino-material (dominado).
10
Literalmente: “o canto da lira soa, que até o inepto venha dançar”.
11
“até que se cumpra a promessa da cabeça prostrada (no templo), em minha hégira refém de pegada e tom (batida de
dança) a dança venha”.
12
“Ao entrar, nosso pavão espalha um banho de cores, contagia a ave da alma, que ele venha [mesmo] sem plumas nem
asas à dança”. "Sem plumas nem asas pode ser tanto aquele que se "queima" no fogo divino ou que, ao contrário, que
perdeu sua natureza celestial (o pecador, o desviado etc).
13
“O bom cego viu o mundo por meio do messias ungido (Cristo). O messias diria à Maria “ainda que cega e/ou surda à
dança venha”. Em função da alteração do anáfora para a epanáfora e da conjugação verbal escolhida, proponho essas
alterações gramaticais.
14
Literalmente: “a melhor copa e árvore”.
15
Lit.“ O mestre é Shams-Uddīn, Tabriz é inveja da china. Na primavera, que seu melhor ramo e [espécie de] árvore venha
dançar”.
Sacode os cachos da cabeleira

O gazal 196 traz um conjunto de imagens coreográficas caras ao sufismo e que funcionam no dawaran dos helveti de Istambul. A dinâmica de realização desta ciranda meditativa é a se-
também como metáforas filosóficas de interface metaliterária: os pássaros, guardiões do segredo guinte: após um tempo de execução da ciranda, se oscila em sentido horário e anti-horário até
do coração, em citação alusiva às almas no Jardim Velado da Verdade de Sana‘i,1 e à Linguagem que a roda é ocupada por um grupo que forma um círculo interno, dentro do qual dois homens
dos pássaros de Attar, cuja história conta de uma travessia das aves por sete vales em que apenas se encaram erguendo os braços alternadamente na diagonal, como se fossem se “abraçar” e
trinta conseguem encontrar ao fim o Simurg [trinta pássaros, literalmente].2 Os pássaros em re- sacodem os cabelos, chegando a saltar. O dueto representa o embate simbólico de dois pássa-
voada que atingem as alturas são metáforas tradicionais dos dançarinos em êxtase, enquanto os ros em oposição. A contradança, chamada de “samá dos grous” pelos xamãs bekhtachis da Ásia
rouxinóis empoleirados representam os músicos que, em ambiente ritual, são como guias e con- Central,4 é finalizada com a entrada do sheikh, que põe fim à dualidade com a sua presença
dutores do processo. As imagens estão dispostas em antítese espacial e cinética: poleiro/alturas unificadora no centro da roda.
abismo/elevação, morte/vida, outono/primavera, sendo a ascensão (ou inversão da decadência) O sacudir da cabeleira também ocorre numa versão curda do zikr5, praticada somente por
propiciada pela dança. homens (que usam barba e cabelos longos) e em uma dança feminina persa meditativa, cha-
O “jardim” recebe diversas acepções e foi traduzido por Arberry por “pomar”: “The orchard, mada samá, onde se gira a cabeça lançando os cabelos. O khalije, uma dança feminina do golfo
departed into its secret heart, is speaking to you; do you departed into in your own secret, that pérsico (que entrou para o repertório árabe) também tem esse elemento de lançar os cabelos de
life may come to your soul”3. De modo geral Rumi cita a obra de Sana‘i, Jardim velado da verdade, um lado para outro, em movimentação similar à praticada no zikr e em ritos de despossessão do
para indicar o encontro com Deus no jardim da alma. Optei por “horto”, em referência ao Horto norte da África.
das Oliveiras, onde Jesus muitas vezes conversava com Deus no seu íntimo, enfatizando assim A imagem das aves em revoada, do último verso, é uma transgressão imagética que reitera a
o traço inter-religioso entre paraíso islâmico e cenário bíblico. O paralelo simbólico entre fruto simbologia coreográfica sufi, conforme descrita por Ahmad Ghazali no século X, dos dançarinos
da mente e fruto da árvore também indica uma gestalt mística, em que o jardim é metáfora do como pássaros, isto é, signos concretos da alma em voo.
corpo dançante, os arbustos e a vegetação são os membros e as aves a dimensão anímica.
O “sacudir da cabeleira”, elemento coreográfico que é tema de abertura do poema, aparece
‫در جنبش اندرآور زلف عربفشان را در رقص اندرآور جان‌های صوفیان را‬ Sacode os cachos da cabeleira faz dançar as almas sufis
‫خورشید و ماه و اخرت رقصان بگرد چنرب ما در میان رقصیم رقصان کن آن میان را‬ Lua sol e astros dançam em rotação nós12345no eixo dançante6
‫لطف تو مطربانه از کمرتین ترانه در چرخ اندرآرد صوفی آسامن را‬ Tua sutileza musical mínimo de tons põe em órbita o sufi celestial
‫خندان کند جهان را خیزان کند خزان را‬ ‫باد بهار پویان آید ترانه گویان‬ A primavera sopra em canções faz o mundo sorrir e o outono despertar
‫بس مار یار گردد گل جفت خار گردد وقت نثار گردد مر شاه بوستان را‬ Só falta a cobra ser amiga o espinho par da rosa o tempo é presente o rei, jardim
‫هر دم ز باغ بویی آید چو پیک سویی یعنی که الصال زن امروز دوستان را‬ O aroma do campo espalha a mensagem: “a Paz convosco, amigos!”
‫در رس خود روان شو تا جان رسد روان را‬ ‫در رس خود روان شد بستان و با تو گوید‬ O Horto7 flui no teu íntimo fala contigo deixa-o fluir à plena alma
‫تا غنچه برگشاید با رسو رس سوسن الله بشارت آرد مر بید و ارغوان را‬
Até que o a rosa fale ao cipreste acima do lírio à tulipa ao salgueiro e à olaia
‫معراجیان نهاده در باغ نردبان را‬ ‫تا رس هر نهالی از قعر بر رس آید‬
Que cada arbusto emerja do abismo visionários escalem ao Paraíso
‫چون بر خزینه باشد ادرار پاسبان را‬ ‫مرغان و عندلیبان بر شاخه‌ها نشسته‬
Rouxinóis nos ramos aves em revoada8 à entrada do tesouro em guarda
‫این برگ چون زبان‌ها وین میوه‌ها چو دل‌ها دل‌ها چو رو مناید قیمت دهد زبان را‬
Línguas em folhas corações em frutos palavras dignas de corações a bertos9
Notas

1
HAKIM SANA‘I GAZNAVI, 1044-1150. The enclosed Garden of the Truth (Hadīqatu’ Al-Haqīqat). Translation James Este-
phenson. Calcutta: Baptist Mission Press, 1910.
2
1
ATTAR, 1145-1221. A linguagem dos pássaros. Tradução de Álvaro de Souza Machado e Sergio Rizek. São Paulo: Attar
2
editorial, 1991.
3
3
RUMI, Jala Uddin (Moulana) 1207- 1273. Mystical Poems of Rumi. Translation Arthur John Arberry. Chicago: University
4
of Chicago Press, 1968, p. 55.
4
5
DÉMIR, Fraçois Arnaud. “Entre chamanisme et soufisme”, In: ZARCONE, T.; BUEHLER, A.; IŞIN, E. Journal of History of
Sufism, v.4. Paris: Librarie D’Amerique et de l’Orient, pp. 143-157, 2004, p. 153.
5
Mantra islâmico com a vocalização das raízes silábicas da palavra Allah (“Deus” em árabe).
6
“Sol e lua e estrelas são dançarinos e convergem nas rotações. Nós dançamos no meio, aquele centro que dança”
7
Bustan significa “pomar” em persa. Usei “horto” para aproximar da noção cristã que indica o Horto das oliveiras como um lugar
simbólico e real ao mesmo tempo da emergência da epifania e consciência divina em Jesus.
8
Originalmente o verso diz: “aves e rouxinóis nos ramos feito os sentinelas à porta do tesouro, em guarda”.
9
No original, literalmente, “folhas quais línguas, frutos quais corações: os corações de valor são aqueles que se mostram escancara-
dos”, isto é, através da sinceridade as palavras exprimem exatamente o que ocupa o coração.
Por que danço ao Sol?

O gazal 621 aborda a dança como uma forma especial de zikr, mantra de re-
petição dos nome divinos (são 99 atribuitos, para os muçulmanos) que os sufis
usam para evocar a lembrança divina. O verso de abertura faz alusão ao versículo
C. 2:152: “Então lembrai-vos de Mim e Eu Me lembrarei de vós”. A dança seria mais
poderosa do que o recital, por seu poder epifânico. A palavra pertence ao universo
da Babel, quando a autêntica busca de Deus se realiza somente através do silêncio
interior. Trata-se de uma crítica indireta à especulação filosófica e ao emanacionis-
mo que considera a “palavra agente” atributiva de poder. Para Rumi, o verbo não
pode penetrar a matéria e somente a dança ativaria o poder divino ao nível do
átomo. Note-se que Deus, enquanto doador da vida, é representado pelo sol, lugar
hierofânico de Ahura Mazda.
Nesse poema em especial estabeleci espaçamentos entre os segmentos se-
mânticos na tentativa de indicar uma cadência próxima à do padrão prosódico ori-
ginal, além de usar a pausa visual como indicativo tanto de uma pausa recitativa
quanto de um fluxo “coreográfico” – isto é, do movimento como organizador dos
sintagmas semânticos. Neste caso, a pausa simboliza ainda o aspecto imanifesto
que, por detrás do verbo, produz a dinâmica dançante das imagens. No último ver-
so, a substituição de “nuvem” por “brisa” convém, no sentido de algo sem corpo
sólido que ao refletir a luz já produz o efeito desejado; tal como na dança o “ar”
em movimento torna os átomos magnetizados da energia espiritual, conforme a
acepção de Rumi.
‫تا ذره چو رقص آید از منش به یاد آید‬ ‫در تابش خورشیدش رقصم به چه می‌باید‬ ‫?‪Por que danço ao sol‬‬ ‫‪O átomo dança para ser lembrado1‬‬
‫هر ذره از آن لذت صد ذره همی‌زاید‬ ‫شد حامله هر ذره از تابش روی او‬ ‫‪O raio fecunda cada partícula que em volúpia‬‬ ‫‪se multiplica2‬‬
‫تا ذره شود خود را می‌کوبد و می‌ساید‬ ‫در هاون تن بنگر کز عشق سبک روحی‬
‫‪O amor eleva Na mó do corpo o “eu” vira pó massa batida3‬‬
‫زیرا که در این حرضت جز ذره منی‌شاید‬ ‫گر گوهر و مرجانی جز خرد مشو این جا‬
‫‪De coral ou pérola na divindade‬‬ ‫‪só entra refinada partícula4‬‬
‫کز دست گران جانی انگشت همی‌خاید‬ ‫در گوهر جان بنگر اندر صدف این تن‬
‫‪Corpo é concha da alma cativa‬‬ ‫‪dedos ávidos e cobiça5‬‬
‫چون ذره به اصلش شد خوانیش ولی ناید‬ ‫چون جان بپرد از تو این گوهر زندانی‬
‫‪Se o átomo salta de volta à origem‬‬ ‫‪tua oração nada recita6‬‬
‫عمری برود در خون موییش نیاالید‬ ‫ور سخت شود بندش در خون بزند نقبی‬
‫‪Refrão na veia nada permeia é fio de cabelo sem mácula7‬‬
‫تا جان نشود جادو جایی بنیاساید‬ ‫جز تا به چه بابل او را نبود منزل‬
‫‪Fora da Babel não tem morada‬‬ ‫‪verbo é magia que se dissipa8‬‬
‫هم ابر شود چون مه هم ماه درافزاید‬ ‫تربیز ز برج تو گر تابد شمس الدین‬
‫‪Torre de Tabriz fogo de Shams‬‬ ‫‪halo de lua prenhe brisa9‬‬
Notas

1
“Eu danço ao calor do seu sol, porque seria? Até os átomos dançam para serem lembrados”, alusão corânica ao versículo “então
lembrai-vos de Mim, Eu me lembrarei de vós” (corão C.2:152).
2
“Quando o sol sai fecunda todos os átomos, em tal volúpia que cada átomo produz outros”.
3
“Observa o moinho do corpo: exceto pelo amor, é fraco de espírito, precisa ser batido e amassado até o/a [chegar ao ponto de]
átomo/partícula”
4
“seja pérola ou coral, ainda que possua inteligência, lá dentro da santidade não entra de si senão a partícula. ‘Pérola” e ”coral” aqui
são imagens metafóricas da alma elevada, individual ou coletiva.
5
“Olha para a pérola da alma dentro da concha deste corpo, em que a vida da mão se esvai pelo dedo”, significa tanto a vida do
corpo, quando aquilo que, buscado pelos dedos, faz perder a alma; os termos “ávidos” e “cobiça”, nesse sentido servem para enfa-
tizar a oposição conflituosa entre as tendências material e espiritual numa mesma alma.
6
“Se a alma aprisionada nesse corpo saltasse, se o átomo voltasse à origem, teu recital já não os alcançaria”
7
“Mesmo atando firme o refrão no sangue, as veias o levariam. A vitalidade flui e o fio [de cabelo] não se mancha do sangue”
8
“Ele [ o refrão] não tem morada a não ser na Babel, enquanto não houver alma/vida ali; mesmo a magia dali desencostaria”.
9
“Se Shams expandisse o brilho da torre/do signo [zodiacal] (burj-e) de Tabriz, expandiria as nuvens, como o halo na lua crescente”.
Notas
Senhor
que aroma é esse?
O gazal 806 tem duas traduções. Em ambas, enfatiza-se a distinção termino-
lógica e semântica entre raqs e samá, indicada no quarto verso do original.
Nessa primeira samatradução, a disposição formal segue o original e a tra-
dução está focada na apreensão oral do poema. O tema de abertura é a homilia,
vertido por mim como catequese na segunda versão do mesmo poema (a se-
guir), em referência ao nosso histórico religioso da conversão indígena que os
mapuches da fronteira entre Chile e Argentina definem num ditado: “Cuando
vinieron, ellos tenían la Biblia y nosotros teníamos la Tierra. Y nos dijeron: ‘cierren
los ojos y recen’. Cuando abrimos los ojos, nosotros teníamos la Biblia y ellos
tenían la Tierra”. A substituição é marca autoral relativa à minha condição origi-
nária daquela região e incorpora a minha interpretação sobre o sentido histórico
do ensino religioso no contexto ameríndio.
No segundo verso, Rumi usa o termo árabe maqam, que significa “lugar” e
designa a escala musical oriental, que se organiza por microtons em ambiên-
cias sonoras. No vocabulário sufi, representa a estação da alma, isto é, a emoção
central experimentada no processo da ascese mística; por exemplo, o arrependi-
mento, que faz a alma voltar sua atenção para Deus. Neste sentido, é similar ao
“ponto” de candomblé na nossa cultura, um tipo de ritmo ou padrão musical que
propicia a condição energética ambiental e induz a um determinado estado de
espírito, em geral o transe, para a incorporação da entidade ou energia.
‫یا رب این بوی خوش از روضه جان میمی‌آید یا نسیمیست کز آن سوی جهان می‌آید‬
‫?‪Senhor que aroma é esse‬‬ ‫?‪Vem da homilia ou do além‬‬
‫یا رب این آب حیات از چه وطن می‌جوشد یا رب این نور صفات از چه مکان می‌آید‬
‫?‪De qual terra natal vem a água da vida‬‬ ‫?‪De qual ponto a luz dos atributos‬‬
‫عجب این غلغله از جوق ملک می‌خیزد عجب این قهقهه از حور جنان می‌آید‬
‫‪Incríveis clamores de anjos‬‬ ‫‪Incríveis gargalhadas de virgens‬‬
‫چه سامعست که جان رقص کنان می‌گردد چه صفیرست که دل بال زنان می‌آید‬
‫?‪Em qual samá dança a alma‬‬ ‫‪Em qual refúgio bate asas?1‬‬
‫چه عروسیست چه کابین که فلک چون تتقیست ماه با این طبق زر به نشان می‌آید‬
‫‪Para quem é o dote? E o céu que se descortina? A lua dourada insígnia‬‬
‫چه شکارست که این تیر قضا پرانست ور چنین نیست چرا بانگ کامن می‌آید‬
‫?‪Em qual destino acerta Tiro‬‬ ‫‪Se não por que ouço tanger o arco?2‬‬
‫مژده مژده همه عشاق بکوبید دو دست کانک از دست بشد دست زنان می‌آید‬
‫!‪Novas! Novas! Palmas! Palmas‬‬ ‫‪Amantes chegam de mãos dadas3‬‬
‫از حصار فلکی بانگ امان می‌خیزد وز سوی بحر چنین موج گامن می‌آید‬
‫‪Do passo celestial vem a Paz‬‬ ‫‪Do mar fábulas ondinas4‬‬
‫چشم اقبال به اقبال شام مخمورست این دلیلست که از عین عیان می‌آید‬
‫‪A fortuna se embriaga da visão‬‬ ‫‪Olhos nos olhos contemplação5‬‬
‫برهیدیت از این عامل قحطی که در او از برای دو سه نان زخم سنان می‌آید‬
‫‪Retira-te da fome do mundo‬‬ ‫‪Por dois três pães ponta de faca!6‬‬
‫خوشرت از جان چه بود جان برود باک مدار غم رفنت چه خوری چون به از آن می‌آید‬
‫?‪Quem é mais feliz que o espírito‬‬ ‫‪A vida esvai na fria partida7‬‬
‫هر کسی در عجبی و عجب من اینست کو نگنجد به میان چون به میان می‌آید‬
‫‪A todos assombra a mim fascina‬‬ ‫‪que chegue ao âmago e nada o retenha8‬‬
‫بس کنم گر چه که رمزست بیانش نکنم خود بیان را چه کنیم جان بیان می‌آید‬
‫‪Basta de insinuar com palavras‬‬ ‫‪é claro em si o espírito manifesto9‬‬
Notas

1
“Que audição (samá) é essa que faz a alma dançar rodopiando? Em qual refúgio o coração chega batendo asas?”
2
Tiro (do persa moderno Tyr) também é o nome de uma divindade zoroastriana representada por um arqueiro que se manifesta
em forma de chuva e trovão. No mito, aparece na forma de um cavalo branco para combater o demônio Apahocha, que assumiu
a forma de um cavalo negro. Seu nome designa o 4o. mês do calendário persa (entre junho e julho do calendário gregoriano)
no hemisfério Norte e marca o início do verão, quando se celebra uma festa dedicada à divindade responsável também pela
fertilidade da terra. Portanto, é uma metáfora sazonal relativa ao destino, algo como “quem é o sortudo a receber a flechada [do
verão]?”, i.e., da sorte divina.
3
“Novas! Novas! Todos os amantes batem palmas. Agora chegam juntos, de mãos dadas”
4
“No compasso celestial se eleva o chamado da paz, as ondas/métricas do mar vem trazendo a fantasia”. O termo bahr, significa
“onda” e também “metro” no sentido poético. O mar é metáfora da existência terrena em sua condição sublunar.
5
“Os olhos da Fortuna estão embriagados pela fortuna dos vossos. A exemplo do que avistam, contemplam”
6
“Move-te deste mundo de fome pois, dentro dele, por causa de dois ou três pães estão esfaqueando”
7
“Quem é mais feliz do que a alma? A vida [do corpo] gela de medo do corte. A partida desola. O que de pior viria pela frente?”
8
“Cada qual no espanto e eu surpreso com isso: quem não é entesourado (aprisionado) no meio (recipiente) como chega ao meio/
âmago?”.
9
"Já fiz o bastante, pois o sopro de zéfiro não irei explicar. De que servem esclarecimentos? A alma/vida/espírito manifesta-se por si
só”.
Senhor
que perfume!
Nesta segunda samatradução explora-se o artifício visual para exprimir aquilo
que se insinua e não se verbaliza, isto é, a manifestação do espírito. Na solução
ideográfica escolhida, a disposição verticalizada das palavras simularia a fluidez
da “água da vida”, ou seja, o verbo divino segundo os muçulmanos, enquanto a
centralização espacial do parágrafo permite a convergência de imagens ao centro
como núcleo, âmago do ser. A cruz que fecha o poema é referência ao sermão da
montanha em que Cristo fala do tesouro espiritual no coração do homem (Mt.
6:19–21) que, tal como o do poema, “não se entesoura” (neganjad) e é análogo ao
tesouro oculto da Criação divina islâmica.
No verso final o artigo “O” representa visualmente um círculo e é símbolo do
“Uno”, enquanto o sujeito “espírito” cruza verticalmente o verbo indicado pelo
termo “man-i-festa”, composto por man- (“homem” em inglês, “eu” em persa) e
“festa”, pela intersecção do alef (‫ )آ‬ao centro. Esse alef com til é a letra inicial dos
alfabetos árabe e persa e serve de símbolo a uma postura tradicional do giro
dervixe, isto é, o corpo ereto e os braços ligeiramente elevados com as mãos em
contralateralidade (uma para cima, outra para baixo), postura que se origina do
elemento coreográfico tradicional do cipreste. O ponto de intersecção sinaliza,
portanto, que o campo da matéria, ou seja, da multiplicidade manifesta, é atin-
gido pela unidade por meio da retidão interior do homem, em festa com Deus.
Em termos coreográficos, quer dizer que ambos, espírito e matéria, precisam
estar ativados em tensão dinâmica para que o imanifesto se torne manifesto.
Senhor, que perfume!
Vem da catequese ou do além?

Senhor,
onde nasce a água da vida?
E a luz dos atributos?

Maravilha
Clamores de anjos
gargalhadas de virgens

Onde rodopia a alma?


Em que samá dança?
Onde o coração bate asas?

Onde se refugia?
Quem casa?
Qual o dote?
Qual sorte o céu descortina?

lua
insígnia
ouro

É caçada? Seta lançada.


Altissonante o canto dos minaretes:

Novas! Novas!
Palmas! Palmas!
Mãos dadas, todos os amantes!

Compasso celestial da Paz Fábula de métricas ondinas


Sorte que embriaga a Fortuna
Olhos nos olhos
Visão
Contemplação

Retira-te da fome
Retira-te do mundo
Dois três pães,
Ponta-de-faca.

O corpo esfria, não temas a partida.


Liberta, não é mais feliz a alma?

Cada qual no seu assombro


E eu neste:
Não se retém
e como chega ao âmago?

Faço,
não explico o zéfiro:

E
S
P
man‫آ‬festa
R
I
T
O
Amado
estou inebriado!
No gazal 1077, o protagonista da cena é o cipreste que entra dançan-
do e anima o “jardim”. Em termos puramente cinéticos, a forma da árvore
simboliza o próprio eixo vertical do corpo na postura ereta. A imagem do
cipreste aparece ao longo de toda a poesia clássica persa, pois é um tropo
relativo ao talhe esbelto, à postura esguia e altiva e à retidão interna. Ex-
tremamente resistente ao fogo e ao apodrecimento, este vegetal arbóreo
sempre representou para os mazdeístas a imortalidade da alma, a elevação
espiritual e a conexão com a sabedoria ígnea e luminosa de Ahura Mazda.
Considerado uma entidade divina, chegou a ter um culto próprio chamado
sarvanismo (de sarv, “cipreste” em persa). Por isso, talvez, o cipreste tenha
se tornado o elemento coreográfico básico, inicial e iniciático, de todas as
tradições da Ásia Central. Vale lembrar também que a cena se desenrola em
um pátio interno que, seguindo um modelo arquitetônico islâmico ideal,
conteria preferencialmente uma fonte de água fresca, arbustos, arvoredos
florais e frutíferos, protegido dos olhares de estranhos. É o espaço da intimi-
dade familiar e afetiva. Por analogia, o espaço em redor da casa correspon-
deria ao corpo físico, enquanto o pátio ou “jardim” se relacionam à alma.
‫از کنار خویش یابم هر دمی من بوی یار چون نگیرم خویش را من هر شبی اندر کنار‬
‫!‪Amor estou inebriado‬‬ ‫‪Em teu perfume a mim mesmo abraço1‬‬
‫دوش باغ عشق بودم آن هوس بر رس دوید مهر او از دیده برزد تا روان شد جویبار‬
‫‪Ontem à noite eu era o jardim nas tuas margens rio de afluentes ao céu2‬‬
‫هر گل خندان که رویید از لب آن جوی مهر رسته بود از خار هستی جسته بود از ذوالفقار‬
‫‪A rosa sorria nas brotas crescia o cardo‬‬ ‫‪escapando à espada de Ali3‬‬
‫هر درخت و هر گیاهی در چمن رقصان شده لیک اندر چشم عامه بسته بود و برقرار‬
‫‪Como sempre‬‬ ‫‪ninguém percebe arbustos e ervas dançando no pátio 4‬‬
‫ناگهان اندر رسید از یک طرف آن رسو ما تا که بیخود گشت باغ و دست بر هم زد چنا ر‬
‫‪De repente chega o cipreste‬‬ ‫‪o jardim vira floresta os plátanos batem palmas5‬‬
‫رو چو آتش می‌چو آتش عشق آتش هر سه خوش جان ز آتش‌های درهم پرفغان این الفرار‬
‫‪face vinho & amor ardem‬‬ ‫‪no refúgio de Deus três vezes anima arde6‬‬
‫در جهان وحدت حق این عدد را گنج نیست وین عدد هست از رضورت در جهان پنج و چار‬
‫‪União verdadeira não se calcula‬‬ ‫‪pelos cincou ou quatro sentidos7‬‬
‫صد هزاران سیب شیرین بشمری در دست خویش گر یکی خواهی که گردد جمله را در هم فشار‬
‫?‪Centenas de maçãs trago em mãos queres uma‬‬ ‫‪Tome todas todas suas!8‬‬
‫صد هزاران دانه انگور از حجاب پوست شد چون مناند پوست ماند باده‌های شهریار‬
‫‪E cem mil uvas em peles rompentes‬‬ ‫‪para o vinho de Shahriar9‬‬
‫بی‌شامر حرف‌ها این نطق در دل بین که چیست ساده رنگی نیست شکلی آمده از اصل کار‬ ‫‪Que fazer com as letras no íntimo? E as cores, que não tem raiz? E as formas, que não têm afeto?10‬‬
‫شمس تربیزی نشسته شاهوار و پیش او شعر من صف‌ها زده چون بندگان اختیار‬ ‫‪Meu Sol minha majestade‬‬ ‫‪qual dentre os meus versos‬‬ ‫‪escolhes?11‬‬
1
“Me deleito no íntimo com o cheiro do amado. Por que não posso retê-lo dentro de mim? Toda uma noite o inspiro profundo”
2
“Ontem a noite eu estava no jardim do amor, ali os desejos corriam pela minha cabeça; apreciando seu talhe, [eles] subiam ao céu
num rio [de diversos afluentes]”
3
“Cada rosa que sorria nas margens daquele rio estava a salvo do espinho da existência e havia escapado da espada Zul Faqar”.
Trata-se da espada de Ali, o qual numa só tarde teria matado em batalha mais de 500 homens. Uso "cardo" em lugar de "espinho",
que é vegetação de região lamacenta e tem folhagem ou terminação cortante e espinhosa, para criar o paralelo com a espada.
4
“Cada arbusto e erva no pátio se converte em dançarino, mas aos olhos dos que passam eles estão parados, como de hábito”
5
“De repente, daquela direção chega o cipreste, enlouquece o jardim e os plátanos aplaudem”
6
“Face qual fogo, vinho qual fogo, amor de fogo, todas as três delícias. Almas em chamas à cada gemido no refúgio de Deus”. Uso
Anima pois carrega o sentido arquetípico de “alma” conforme a noção junguiana de base oriental e alquímica.
7
“União divina não se mede em números, que existem apenas para o mundo dos quatro ou cinco [sentidos]”.
8
“Centenas de milhares de maçãs doces apanhadas por mão fundas. Se queres uma, que tome todas num mesmo aperto”.
9
“ Cem mil tipos de uvas cujas peles inertes são véus. Por que não rompê-las como nos vinhedo de Shahriar”. "Shahriar" significa,
literalmente, o “Rei dos reis” e é o nome do príncipe da obra Hezar-e Afsaneh (Mil fábulas), do século X, que conteria o núcleo
central das 1001 noites.
10
“Inúmeras letras [desconexas] , o que dizem do coração? Borrada, a cor já não colore. Uma forma se molda na raiz”.
11
“Shams de Tabriz, sentado em sua realeza, diante de ti inclino minhas linhas poéticas. Qual dos refrões irás eleger”? Ou seja, a
moral do poema, desvendada no verso de saída: é impossível a parte fazer sentido sem o todo, e vice-versa
Vem, vem, que tu és a alma da alma da alma do samá. Vem que o cipreste te eleva aos jardins do samá.
Vem, pois como tu não há outro e nem haverá. Vem pois sem ti não se veem as visões coletivas do samá.
Vem que és a fonte solar detrás da sombra. Tuas mil Vênus se elevam no céu do samá.
Agradecem a ti em cem línguas, eloquentes Uma ou duas expressões entendo na língua do samá
Ouve o cipreste Fora ambas, há um mundo que é o da audição. Fora dos dois mundos está o universo da audição.
Se há céu acima do topo da sétima esfera, lá para cima fica a escada da conexão espiritual [samá].
Pisoteia/sapateia tudo que tiver sob os pés, exceto no Dele A vossa audição lá e vós na audição [samá]
Quando o amor me envolver com suas mãos, o que eu faço? Fico envolvido em seu âmago no meio do samá
Para o gazal 1295 apresentei duas samatraduções, o que me permitiu explorar separadamente os
Em volta do átomo o raio solar irradia plenamente. Tudo entra em dança sem lamentar o samá.
dois sentidos principais do termo samá: no primeiro, enfatizando o aspecto oral e, no segundo, o
Vem, sol de Tabriz, que a sura/signo do amor é quem traz o amor nos lábios, boca do samá.”
ritualístico. São duas transgressões fortes, com interpretações quase opostas, o que exemplifica um
pouco o processo místico em si da samatradução, considerando o que dissera Alghazali a respeito
da variação de estados e diferentes estágios de interpretação e projeção que ocorrem na audição, Nessa primeira samatradução que segue, privilegia-se o aspecto oral do poema e se enfatiza o sentido
incluindo um estado dual entre sentido objetivo (literal) e subjetivo (mensagem esotérica), antes de da audição. No original, o vocábulo “samá” ocupa o lugar final da frase, o qual na sintaxe persa é também
se atinar com o sentido esotérico profundo na vivência do poema. habitualmente destinado ao verbo, então propus a alteração do gênero gramatical do elemento da rima:
Em tradução “literal”, seria algo assim: de substantivo (audição) para verbo (ouvir), transferindo a anáfora para a epanáfora de modo a manter o
mesmo efeito paralelístico.
‫بیا بیا که تویی جان جان جان سامع بیا که رسو روانی به بوستان سامع‬ ‫‪Ouve o cipreste sobe aos jardins da alma‬‬ ‫‪Vem entra na alma da Alma‬‬

‫بیا که چون تو نبودست و هم نخواهد بود بیا که چون تو ندیدست دیدگان سامع‬ ‫‪Ouve tem conosco as visões‬‬ ‫‪não há ninguém como tu e nem haverá‬‬

‫بیا که چشمه خورشید زیر سایه تست هزار زهره تو داری بر آسامن سامع‬ ‫‪Ouve no céu tuas milhares de Vênus‬‬ ‫‪tua fonte solar à sombra‬‬
‫سامع شکر تو گوید به صد زبان فصیح یکی دو نکته بگویم من از زبان سامع‬ ‫‪Ouve a gratidão em mil línguas‬‬ ‫‪uma ou outra entende o coração‬‬
‫برون ز هر دو جهانی چو در سامع آیی برون ز هر دو جهانست این جهان سامع‬ ‫‪Ouve além de uma ou outra‬‬ ‫‪além dos dois planos da existência‬‬
‫اگر چه بام بلندست بام هفتم چرخ گذشته است از این بام نردبان سامع‬ ‫‪Ouve acima da sétima esfera‬‬ ‫‪sobe os degraus da audição mística‬‬
‫به زیر پای بکوبید هر چه غیر ویست سامع از آن شام و شام از آن سامع‬ ‫‪Ouve cá enquanto sois ouvidos lá‬‬ ‫‪e sapateia por tudo exceto no Dele‬‬
‫چو عشق دست درآرد به گردنم چه کنم کنار درکشمش همچنین میان سامع‬ ‫?‪Ouve por dentro Quanto a mim‬‬ ‫‪lá estou nas mãos do amor‬‬
‫کنار ذره چو پر شد ز پرتو خورشید همه به رقص درآیند بی‌فغان سامع‬ ‫‪Ouve sem lamentos o todo a dançar e os átomos‬‬ ‫‪a pleno raio‬‬
‫بیا که صورت عشقست شمس تربیزی که باز ماند ز عشق لبش دهان سامع‬ ‫‪Ouve boquiaberto o Sol de Tabriz‬‬ ‫‪com amor nos lábios‬‬
Vem, entra na alma

Nesta segunda samatradução para o gazal 1295, ousei um experimentalismo em que o termo Sendo assim, a “audição mística” tem o mesmo sentido de "celestial", que é desdobrado
“samá” também foi explorado em sua polissemia ritualística e mística. nos vocábulos “festim divino”, “recital místico”; já com “ópera” e “coro cósmico” sugerimos a
Segundo me informaram amigos iranianos, samá poderia ser lido como asman, “céu”. Além conexão da dança sufi com o chorus bizantino e o sirtô dos gregos dionisíacos. O termo
da inversão silábica ser um recurso daquela poética, é possível supor também que, no âmbito “vinha”, assinalado em itálico negrito, marca um desvio tradutório (uma má tradução de vin,
do hermetismo sufi, houve uso reminiscente do huzvarinsh, um sistema heterogramático na realidade w-in, isto é, “d’Ele”) que mantive como metáfora da divindade. No verso de saída
do persa antigo no qual se substituíam os vocábulos grafados por outros não gafados na dessa mesma tradução cito Gibran e Hafiz, poetas que de algum modo me levaram à leitura
vocalização do poema. Assim, por exemplo, sempre que se lê mulk se verbaliza shah, ambos de Rumi, e assino Jonas, versão grega do meu sobrenome árabe “Yunis”, já que na parábola
significam a mesma coisa: soberano. Ou, mesmo que o termo seja lido no modo como está bíblica Jonas entra no ventre do peixe simbolizando o espírito a penetrar no corpo, metáfora
grafado, a audiência o substitui mentalmente pelo presumido – o que ocorre, por exemplo, do mergulho no oceano da existência. Considerando que na forma retórica do ghazal persa
com a aplicação intencional de rimas imperfeitas na poesia satírica. Trabalhamos, nesse caso, a o verso de saída costuma ser assinado pelo poeta, é com essa metáfora em colchetes que
hipótese de uma estratégia de resistência aos empréstimos linguísticos (o primeiro, do árabe, assino a tradução, marcando a minha própria gestalt na samatradução.
substituído pelo segundo, do persa), pois só nativos falantes do persa que compartilham
plenamente os códigos da língua saberiam ler desse modo.
Vem entra na alma da alma
no espírito do festim divino
Vem ao jardim da alma
em teu cipreste vivo

Sem este jardim nada és


não há recital místico.
Tua fonte solar à sombra
em estrelas brilha.

Doce gratidão
em mil línguas se recita.
Que sejam uma ou duas
ditas na língua do samá,

por fora, são dois mundos


que tu ouves.
Mas há um outro,
fora da mundana ópera, divino

Sobe, vai além,


da sétima esfera astral,
degrau por degrau
da audição mística.

Sapateia em tudo,
fora da Vinha:
por lá ouvis
e sois ouvidos.

O amor esmaga
feito uva no rito.
O átomo revive em raio solar:
Dança, coro cósmico, mito.

Sol amado,
traz o Canto em teus lábios
[Jonas, o Peixe;
Gibran, o Pão;
Rumi o Vinho]
Para o Festim Divino.
Com os peregrinos giro

No gazal 1422, há também inúmeras imagens místicas, corânicas e literárias: Tayr, “ave” da retorta: a purificação da matéria corporal pelo fogo mágico do movimento. Com o termo
em árabe, nome de um personagem mítico que é dervixe errante. Khidr, que teria iniciado grego, explicito a influência alquímica no pensamento de Rumi. A imagem da serpente em
Moisés nos mistérios proféticos, pedindo que o siga sem questionar (C. 18:65). Simurg, o cima do tesouro tem uma ocorrência num escrito místico de tradição gnóstica siríaca: o Hino
pássaro mítico zoroastriano que habita o monte Qaf, convertido no sufismo em si-murg, da pérola (século X), poema anônimo que conta a história de um príncipe recém-nascido,
ou “trinta pássaros”, representando aqueles que, após atravessarem os 7 vales de provação, enviado ao Egito para resgatar uma pérola, signo da sua origem divina, guardada por uma
chegam à visão de si mesmos no espelho do palácio ao fim da jornada da alma, conforme serpente. O termo “parvaneh” significa mariposa e/ou borboleta, além de designar o cargo
descrito na fábula de Farid Uddin Attar (século XII), Mantiq ut-Tayr (A linguagem dos pássaros). do ministro mongol no canato persa; nesse caso, nos versos finais podemos supor uma
Layla e Majnun, os personagens da história de amor impossível mais conhecida da literatura crítica velada a Moanedin Suleyman, uma vez que Rumi usa o tropo da mariposa em volta
árabe pré-islâmica e que recebeu a versão persa homônima de Nizami Ganjavi no século XII. do fogo - que, em geral, designa a busca do místico em torno da chama divina - para aludir
No lugar de “cauda da serpente” inseri o termo Ouroboros, antigo símbolo da ao comportamento ambíguo do ministro em torno dos poderosos, ora em favor de um ou
eternidade, representado por uma serpente a engolir o próprio rabo, para reforçar o giro outro seljúcida, ora em favor dos mongóis.
como busca da vitória sobre si mesmo. Neste caso, há o paralelo entre o giro do corpo e o
‫طواف حاجیان دارم بگرد یار می گردم نه اخالق سگان دارم نه بر مردار می گردم‬ ‫‪Com os peregrinos giro‬‬ ‫‪sem latir feito cachorro nem rodear carcaça giro‬‬

‫مثال باغبانانم نهاده بیل بر گردن برای خوشه خرما به گرد خار می گردم‬ ‫‪Jardineiro em busca de tâmaras‬‬ ‫‪de pá nos ombros entre os espinhos giro‬‬

‫نه آن خرما که چون خوردی شود بلغم کند صفرا ولیکن پر برویاند که چون طیار می گردم‬ ‫‪As comestíveis fermentam dão bile‬‬ ‫‪as de Tayr dão asas em volutas giro‬‬

‫جهان مارست و زیر او یکی گنجی است بس پنهان رس گنجستم و بر وی چو دم مار می گردم‬ ‫‪Mundo é serpente no tesouro Dele‬‬ ‫‪tesouro meu em ouroboros giro‬‬

‫ندارم غصه دانه اگر چه گرد این خانه فرورفته به اندیشه چو بوتیامر می گردم‬ ‫‪Sou o triste pássaro1 que rodeia a casa‬‬ ‫‪não pelo alpiste por sabedoria giro‬‬

‫نخواهم خانه‌ای در ده نه گاو و گله فربه ولیکن مست ساالرم پی ساالر می گردم‬ ‫‪Não almejo casa na vila nem manada‬‬ ‫‪sou um guia ébrio pelo mestre giro‬‬

‫رفیق خرضم و هر دم قدوم خرض را جویان قدم برجا و رسگردان که چون پرگار می گردم‬ ‫‪Todos o seguem meu caro Khidr‬‬ ‫‪pés e cabeça em teu compasso giro‬‬

‫منی‌دانی که رنجورم که جالینوس می جویم منی‌بینی که مخمورم که بر خامر می گردم‬ ‫‪Não vês que sofro? busco Galeno‬‬ ‫‪Contra a ressaca embriagado giro‬‬

‫منی‌دانی که سیمرغم که گرد قاف می پرم منی‌دانی که بو بردم که بر گلزار می گردم‬ ‫?‪Não sabes que sou Simurg‬‬ ‫‪Ao monte Qaf vôo volteando o roseiral giro‬‬

‫مرا زین مردمان مشمر خیالی دان که می گردد خیال ار نیستم ای جان چه بر ارسار می گردم‬ ‫‪Não é meu passatempo nem fantasio como dizem pois em mistérios giro‬‬

‫چرا ساکن منی‌گردم بر این و آن همی‌گویم که عقلم برد و مستم کرد ناهموار می گردم‬ ‫?‪Que tal ficarmos quietos‬‬ ‫‪Senão cá e lá converso e disparatado giro‬‬
‫مرا گویی مرو شپشپ که حرمت را زیان دارد ز حرمت عار می دارم از آن بر عار می گردم‬ ‫‪Me dizes: “pare com esse tac-tac inconveniente” pois contra a conveniência giro‬‬
‫بهانه کرده‌ام نان را ولیکن مست خبازم نه بر دینار می گردم که بر دیدار می گردم‬ ‫‪Uso o pretexto do pão louco pelo padeiro‬‬ ‫‪não ligo para dinheiro pela visão giro‬‬
‫هر آن نقشی که پیش آید در او نقاش می بینم برای عشق لیلی دان که مجنون وار می گردم‬ ‫‪Vejo o pintor nos traços da pintura‬‬ ‫‪na paixão de Layla feito Majnun giro‬‬
‫در این ایوان رسبازان که رس هم در منی‌گنجد من رسگشته معذورم که بی‌دستار می گردم‬ ‫‪Encurralado no terraço aos soldados2 me desculpo: “esqueci o turbante” e giro‬‬
‫نیم پروانه آتش که پر و بال خود سوزم منم پروانه سلطان که بر انوار می گردم‬ ‫‪Inflamar as minhas asas na vela‬‬ ‫!‪eu não‬‬ ‫‪Sou borboleta do sultão só na luz giro‬‬
‫چه لب را می گزی پنهان که خامش باش و کمرت گوی نه فعل و مکر توست این هم که بر گفتار می گردم‬ ‫?”‪Por que insinuas “cuidado, silêncio‬‬ ‫‪Se é por ardil teu que em palavras giro?3‬‬
‫بیا ای شمس تربیزی شفق وار ار چه بگریزی شفق وار از پی شمست بر این اقطار می‌گردم‬ ‫‪Vem Sol de Tabriz de aurora fugaz e crepúsculo tamanho que onde irradiares eu giro4‬‬
Notas
1
“Giro feito a cauda da serpente”
2
“Abetouro”, um tipo de pássaro que canta um canto triste. É raro vê-lo, só aparece no amanhecer e fim da tarde.
3
No original “no terraço onde estão aqueles prestes a perder a cabeça”, ou “de elmos/capacetes”; soldados.
4
“Por que você morde o lábio como se quisesse dizer “cuidado, silêncio? Acaso não é por ardil teu que em torno de palavras giro?”
5
“Vem Shams de Tabriz, tua aurora é tal, porém fugidia, crepúsculo tal, cujo irradiar (expande infinito) me faz girar nessa via”.
Deixa de jogo amante

No gazal 2131 é onde melhor se verifica a constituição de um symbolon coreográfico a No décimo verso o termo persa astan, “coluna”, designa provavelmente o troco ao lado
estruturar a metáfora interativa da dança no poema. Produzido pelo verbo “tornar-se”, o pa- do qual Maomé conduzira suas primeiras pregações na mesquita caseira que ele próprio
ralelismo da rima anáfora induz à sobreposição predicativa dos versos como se girassem uns construíra em Medina. A imagem evoca a compaixão porque, reza a lenda (nos hádices),
sobre os outros, cuja imagem holográfica resulta na espiral. Enquanto elemento coreográ- ao ser substituído por uma espécie de púlpito (feito de tamareira), o tal tronco (dito ser de
fico, a espiral é realizada pela oposição contralateral de braços e mãos durante o giro para palmeira) começou a gemer e a chorar, de modo que o profeta, condoído, desce do novo
representar o movimento espiralado da expansão das galáxias, do crescimento das conchas púlpito para abraçá-lo e consolá-lo. Tornou-se o que se chama de minbar, uma espécie
e da inflorescência de plantas como a rosa. Nesse espiralismo, o verbo rima está no impe- de cadeira ou trono situado alguns degraus acima do plano do chão, de cima do qual
rativo, exortando o ouvinte a tornar-se imaginariamente cada uma das sucessivas imagens o chefe dos crentes (califa) se dirige à comunidade nas orações coletivas de 6a. feira. O
que lhe são conexas, o que confere ao poema um caráter inteiramente lúdico e interativo, ao fato de Rumi não ter usado o termo minbar, mas um vocábulo relativo à forma (coluna),
modo performativo de um conjuro. levou Nicholson a traduzi-lo como pilar da oração, escolha semântica que sigo, mas por
A imagem da borboleta no verso de abertura, que se aplica tanto à “mariposa”, que ro- uma razão diversa: pra aludir ao tronco enquanto elemento vegetal de conexão vertical,
deia o fogo à noite, quanto à “borboleta”, que voa livremente durante o dia em direção às pensando na retidão zoroastriana representada pelo elemento coreopoético do cipreste.
flores sob a luz do sol, também engloba a ideia geral da metamorfose que orienta o eixo De qualquer forma, o verso evoca a compaixão para com todas as formas de vida como
metafórico do poema. indicativo da perfeição moral e espiritual humana.
‫حیلت رها کن عاشقا دیوانه شو دیوانه شو واندر دل آتش درآ پروانه شو پروانه شو‬ Deixa de jogo amante louco torna-te Entra no fogo mariposa borboleta torna-te
louco torna-te borboleta torna-te
‫هم خویش را بیگانه کن هم خانه را ویرانه كن وآنگه بیا با عاشقان هم خانه شو هم خانه شو‬
Faz de ti estrangeiro da casa ruínas Dos amantes hóspede torna-te
hóspede torna-te
‫رو سینه را چون سینه‌ها هفت آب شو از كينه را وآنگه رشاب عشق را پیامنه شو پیامنه شو‬
Limpa teu peito em sete águas Do amor bebe o vinho cálice torna-te
cálice torna-te
‫باید که جمله جان شوی تا الیق جانان شویگر سوی مستان مريوي مستانه شو مستانه شو‬
Purifica-te sê digno dos puros Entre embriagados a embriaguez torna-te
a embriaguez torna-te
‫آن گوشوار شاهدان هم صحبت عارض شده آن گوش و عارض بایدت دردانه شو دردانه شو‬
Ouvem falar feito as contas no colar Mira a beleza da face madrepérola torna-te
madrepérola torna-te
‫چون جان تو شد در هوا زافسانه شیرین ما فانی شو چون عاشقان افسانه شو افسانه شو‬
Em doces fábulas vem dissipar-te Feito os amantes fábula torna-te
‫تو لیله القربی برو تا لیله القدری شوی چون قدرمر ارواح را کاشانه شو کاشانه شو‬ fábula torna-te
Tua noite de sepultura seja tua noite de poder Magnânimo morada torna-te
‫اندیشه‌ات جایی رود وآنگه تو را آن جا کشد ز اندیشه بگذر چون قضا پیشانه شو پیشانه شو‬ morada torna-te
Pensamento é rio de fortes correntezas Ultrapassa o pensar capitão torna-te
‫قفلی بود میل و هوا بنهاده بر دل‌های ما مفتاح شو مفتاح را دندانه شو دندانه شو‬ capitão torna-te
Vontade é cadeado em nossos corações Da sua chave o segredo torna-te
‫بنواخت نور مصطفی آن اسنت حنانه را کمرت ز چوبی نیستی حنانه شو حنانه شو‬ segredo torna-te
Sobre o pilar Mustafá derrama compaixão Menos que madeira não és compassivo torna-te
‫گوید سلیامن مر تو را بشنو لسان الطیر را دامی و مرغ از تو رمد رو النه شو رو النه شو‬ compassivo torna-te
Salomão disse: “aprende a Linguagem dos pássaros” De arapuca fogem ninho torna-te
‫گر چهره بنامید صنم پر شو از او چون آینه ور زلف بگشاید صنم رو شانه شو رو شانه شو‬ ninho torna-te
Se quem adoras te mostra a face espelho torna-te Libera-lhe os cachos pente torna-te
‫تا کی دوشاخه چون رخی تا کی چو بیذق کم تکی تا کی چو فرزین کژ روی فرزانه شو فرزانه شو‬ pente torna-te
Até quando bancar o raso peão a torre que bifurca a rainha que desvia? Do xadrez mestre torna-te
‫شکرانه دادی عشق را از تحفه‌ها و مال‌ها هل مال را خود را بده شکرانه شو شکرانه شو‬ mestre torna-te
Grato retribuis com prendas o amor Tira o elmo oferece a ti mesmo gratidão torna-te
‫یک مدتی ارکان بدی یک مدتی حیوان بدی یک مدتی چون جان شدی جانانه شو جانانه شو‬ gratidão torna-te
És um misto de elemental animal alma na Grande Alma par d’alma torna-te
‫ای ناطقه بر بام و در تا کی روی در خانه پر نطق زبان را ترک کن بی‌چانه شو بی‌چانه شو‬ par d’alma torna-te
Tua tagarelice enche a casa até o teto Até quando isso? Silente torna-te
Silente torna-te
Jardim frutífero

No gazal 2605, o “ar da dança” é a origem de todo movimento existente. No penúltimo verso,
a menção aos seis lados do dado também alude às "seis direções" do corpo, o que hoje em dia
comprendemos como a tridimensionalidade, seccionada em 3 eixos: sagital, vertical e horizontal, as
quais também constituem, segundo a tese da orientatio sagrada de Mircea Eliade, os vetores mais
arcaicos da organização sagrada espacial do humano com relação ao cosmos.
‫ای باغ همی‌دانی کز باد کی رقصانی آبسنت میوه ستی رسمست گلستانی‬ Do Jardim frutífero ao roseiral extasiante de onde vem o sopro dançante? 1
‫این روح چرا داری گر ز آنک تو این جسمی وین نقش چرا بندی گر ز آنک همه جانی‬ Como adentras o espírito no corpo? Como delineias o perfil da alma?2
‫جان پیشکشت چه بود خرما به سوی برصه وز گوهر چون گویم چون غیرت عامنی‬ Que significa oferecer a vida a ti? Enviar pérolas a Omã? Tâmaras para Basra?3
‫عقال ز قیاس خود زین رو تو زنخ می‌زن زان رو تو کجا دانی چون مست زنخدانی‬ A razão usa de analogia mas para o bêbado a covinha é o queixo4

‫دشوار بود با کر طنبور نوازیدن یا بر رس صفرایی رسم شکرافشانی‬ É difícil para o surdo tocar alaúde ou cobrir de doçura gente amarga

‫می وام کند ایامن صد دیده به دیدارش تا مست شود ایامن زان باده یزدانی‬ Tomo ao imã cem visões para vê-Lo até a embriaguês no cálice divino

‫در پای دل افتم من هر روز همی‌گویم راز تو شود پنهان گر راز تو نجهانی‬ Aos pés do coração digo todo dia: mantém teu segredo e o mistério oculta

‫کان مهره شش گوشه هم الیق آن نطع است کی گنجد در طاسی شش گوشه انسانی‬ Quanto vale um dado no couro estirado? Quanto cabe do humano em seis lados?5

‫شمس الحق تربیزی من باز چرا گردم هر لحظه به دست تو گر ز آنک نه سلطانی‬ Shams todo sábio se não és sultão por que giro sempre em tuas mãos?6
Notas
1
“Honorável Jardim, de onde sopra o vento que faz dançar? Impregna o fruto, extasia o roseiral”
2
Se não fosse por quem és, como entraria o espírito naquele corpo? E o que seria a silhueta da alma sem o seu traçado?
3
“O que é uma vida ofertada a ti? Tâmaras na direção de Basra. Acaso falarei em pérolas, quando me dirigir a Omã?” Omã e Basra
eram regiões exportadoras de pérolas e tâmaras, respectivamente.
4
“A razão considera [o lugar d] a covinha na face por analogia, e como sabes tu, quando bêbado, que não é o queixo?”
5
“Os seis lados iguais da madrepérola na toalha de couro são iguais. O que o humano guardo na calvície/lisura dos seus seis lados?
6
Shams [que é] a Verdade (o Verdadeiro), porque estou rolando de novo e a cada momento dessas mãos que são suas e não do
sultão?
Quebra essa
harpa mestre!

Este poema é um exemplo nítido da alusão poética à polêmica sobre a audição no islã, com
clara referência às proibições à música que afetaram tanto os rituais místicos quanto as tradições
folclóricas em geral, pois de início era habitual que se quebrassem os instrumentos. Isso indica
que o debate ainda estava vivo à época de Rumi e que, portanto, nem a liberação promovida por
Alghazali no século XII fora suficiente para a liberdade de expressão, pois já se prenunciava o retorno
da censura nos domínios islâmicos ao longo do século XIII, o que de fato ocorreu na Síria logo após
a morte de Moulana, no século XIV, na Anatólia. Inseri o termo “lira” no terceiro verso, como variação
de harpa, por ser o correspondente alusivo a "poético" na nossa tradição.
‫تو بشکن چنگ ما را یا معال هزاران چنگ دیگر هست این جا‬ Quebra essa harpa mestre! Aqui há milhares de outras

‫چو ما در چنگ عشق اندرفتادیم چه کم آید بر ما چنگ و رسنا‬ Quando caímos de amor de que servem harpas e zurnas?

‫رباب و چنگ عامل گر بسوزد بسی چنگی پنهانیست یارا‬ Queime rabecas e liras pois o amor o amor ouve cordas ocultas

‫ترنگ و تنتنش رفته به گردون اگر چه ناید آن در گوش صام‬ Tons e melodias circulam nas esferas mas nem todo ouvido escuta

‫چراغ و شمع عامل گر مبیرد چى غم چون سنگ و آهن هست برجا‬ Luz e vela se apagam que tristeza: resta ferro e pedra bruta

‫به روی بحر خاشاکست اغانی نیاید گوهری بر روی دریا‬ Canções rebentam no mar e não vem à praia pérola alguma

‫ولیکن لطف خاشاک از گوهر دان که عکس عکس برق اوست بر ما‬ Apenas o reflexo do reflexo que cintila e sobre nós fulgura

‫اغانی جمله فرعشق اصلیست برابر نیست فرع و اصل اصال‬ Nem mesmo o eco se assemelha à canção primordial e única

‫دهان بربند و بگشا روزن دل از آن ره باش با ارواح گویا‬ Fecha teus lábios e na fresta do coração com as almas confabula
Dance

Segue aqui trecho do Masnavi (III: 90-102), onde exploramos a alusão que
poeta faz, nos versos finais, à sura 21 al-Anbiya (os profetas) com referência
às zombarias direcionadas a Maomé nor primeiros tempos. Rumi usa a dança
no termo árabe (raqs) como metáfora metafísica para o seu comentário teo-
logal e enfatiza a recomendação (corânica) de relevar contendas e voltar-se
para o contato interior com Deus. No último verso do trecho, diz literalmente:
“Muhammad ergueu/abriu os ouvidos à palavra (extraiu seu mistério), que se
ouça do profeta a verdade tal como proferida”. Sabe-se historicamente que a
revelação recebida foi ditada pelo profeta ao seu assistente persa Salman –
um jovem sacerdote zoroastriano que se converteu ao cristianismo e, depois,
passou a acompanhar Maomé. O texto registrado por Salman teria sido a pri-
meira versão fixada da revelação, mas ela se perdeu. Existem variadas cadeias
recitativa e a abordagem crítica documental já detectou, além das diferenças
de edição xiita e o sunita, ao menos 2 outras variantes significativas do texto
que permaneceram circulando mesmo após a edição do texto sunita pelo ca-
lifa Utman, por volta de 650 e.C. Por isso enfatizo “do livro se ouviu” – o que o
crente ouve não é mais a recitação de Deus, mas a interpretação do profeta
e o seu registro conforme o texto fixado. A tradução desse trecho foi feita em
cotejamento com o texto da edição bilíngue de Reynold A. Nicholson.
‫گر بگويم وين بيان افزون شود‬ Uma miríade de profetas iluminados
‫رقص و جوالن بر رس ميدان كنند‬
Quem entra na arena marcha ao dançar
‫خود جگر چه بود كه كه ها خون شود‬ a cada geração são castigados
‫رقص اندر خون خود مردان كنند‬ e dança no próprio sangue a encorajar

‫تو نبينى خون شدن كورى و رد‬ Os relatos se sucedem


‫چون رهند از دست خود دستى زنند‬
Desentrelaçando de si as mãos
‫خون شود كوه ها و باز آن بفرسد‬ e de compaixão nos ferem ‫چون جهند از نقص خود رقىص كنند‬
dançarinos liberam-se da imperfeição

‫ليك از اشرت نبيند غري پشم‬ De dor até as montanhas se comprimem


‫مطربانشان از درون دف مى زنند‬
O pandeiro requebra dentro de si
‫طرفه كورى دور بني تيز چشم‬ não vemos o seu interior e nos oprimem ‫بحرها در شورشان كف مى زنند‬ palmeado em ondas rebenta ali

‫مو به مو بيند ز رصفه ى حرص انس‬ ‫تو نبينى ليك بهر گوششان‬
Um olho teu vê de longe o outro só de perto A rítmica pelos músicos ouvida
‫رقص ىب مقصود دارد همچو خرس‬ só a pelagem do camelo vê ao certo
‫برگها بر شاخها هم كف زنان‬ é palmear de folhas na batida

‫رقص آن جا كن كه خود را بشكنى‬ Perscruta pelo a pelo e avança


‫تو نبينى برگها را كف زدن‬
Só percebe a oculta percussão
‫پنبه را از ريش شهوت بر كنى‬ feito urso sem propósito dança
‫گوش دل بايد نه اين گوش بدن‬
quem tem a escuta do coração

‫رقص آن جا كن كه خود را بشكنى‬ Dance ali onde o teu eu se rompe


‫گوش رس بر بند از هزل و دروغ‬
Malícia e zombaria tape com a palma:
‫پنبه را از ريش شهوت بر كنى‬ tire o algodão que a ferida irrompe
‫تا ببينى شهر جان با فروغ‬
veja resplandecer a cidade da alma

‫رس كشد گوش محمد در سخن‬ Maomé recebeu a palavra o seu mistério extraiu
‫کش بگوید در نبی حق هو اذن‬ “Ele é um ouvido” do livro se ouviu
O emir disse

Neste outro trecho do Masnavi (V: 3583-3590) há várias


indicações coreográficas de que a dança praticada por Rumi poderia
ser derivada do attan afegão, dança tradicional de origem mitraísta
em que se gira em ambas as direções e há uso de palmas, batidas
de pés, ondular das mãos etc. A tradução desse trecho também foi
feita em cotejamento com o texto da edição bilíngue de Reynold A.
Nicholson.
‫گفت نه نه من حريف آن ميم‬ O emir disse: sou adepto de outro vinho
meu paladar é fino e não mesquinho
‫من به ذوق اين خوىش قانع نيم‬

‫من چنان خواهم كه همچون ياسمني‬ Prefiro um vinho que como o jasmim
‫كژ همى گردم چنان گاهى چنني‬ me faça girar pra cá e pra lá sem fim

‫وارهيده از همه خوف و اميد‬ Me deixe livre sem medo ou esperança


‫كژ همى گردم به هر سو همچو بيد‬ feito salgueiro que em toda direção se lança

‫همچو شاخ بيد گردان چپ و راست‬ à esquerda e à direita ramagem oscilante


‫كه ز بادش گونه گونه رقصهاست‬ ao sopro de toda sorte de danças dançante”

‫آن كه خو كردست با شادى مى‬ Quem se inclina ao vinho e suas delícias


‫اين خوىش را ىك پسندد خواجه هى‬ o melhor do seu licor não apreciaria?

‫انبيا ز آن زين خوىش بريون شدند‬ Não são farsantes os transmutados


‫كه رسشته در خوىش حق بدند‬ jarros em êxtase divino transbordados

‫ز انكه جانشان آن خوىش را ديده بود‬ Almas felizes no âmago do ser


‫اين خوشيها پيششان بازى منود‬ das vãs alegrias irão se desfazer

‫با بت زنده كىس چون گشت يار‬ Se o amado vive quem busca outro par?
‫مرده را چون در كشد اندر كنار‬ Quem prefere o inanimado abraçar?
Iniciação do gnóstico no
vislumbre do invisível
Nessa seção do Masnavi (II: 3240-3302) aborda-se o treinamento
dos sentidos que, invertidos e voltados para as faculdades interio-
res, se tornam infusos. O profeta dos demais sentidos é presumi-
velmente a audição. Contudo, vemos que há uma citação alusiva à
Hujwiri e aos mutazilitas, remetendo à discussão em voga na época
a respeito da relação entre sentidos e faculdades anímicas (cogniti-
vas). Para Hujwiri há cinco sentidos sensoriais e a audição é sobera-
na, porque guia o processo da revelação. Da perspectiva mutazilita,
ao contrário, o órgão especial seria o tato, do qual toda a percepção
derivaria. No gazal 1077, Rumi aplica a expressão idiomática “qua-
tro ou cinco” (referente aos sentidos sensórios) em contraposição
à condição unitiva que se dá pela infusão interior das percepções
e faculdades. Haveria, para Rumi, um sexto sentido ou um sentido
cinético (do movimento) que se ativaria na infusão e levaria ao êx-
tase? Observe-se que ele usa jān (vida) de forma distintiva de nafs
(ânimo) para designar a alma, embora esta última não seja aplicada
pejorativamente no sentido de impulso ou pulsão, como ocorre na
língua árabe. Em persa, ambos os termos designam a alma: o pri-
meiro no sentido da energia vital imanente, enquanto a nafs repre-
sentaria somente o sopro ou alento espiritual. Na forma, tentou-se
preservar a rima, por ser recurso mnemônico importante do dístico,
mas trata-se ainda de uma versão-esboço.
‫چون یىك حس در روش بگشاد بند‬ Um sentido que perde a finura
‫كاین حقیقت قابل تاویلهاست‬
da verdade, uma cabal interpretação
‫ما بقى حسها همه مبدل شوند‬ aos demais sentidos desfigura ‫وین توهم مایه ى تخییلهاست‬ é fonte de fantasias e especulação

‫چون یىك حس غیر محسوسات دید‬ ‫آن حقیقت را كه باشد از عیان‬ Verdades intuitivas no que abusam?
O mistério oculto e invisível
‫گشت غیبى بر همه حسها پدید‬ é liberado ao campo sensível ‫هیچ تاویىل نگنجد در میان‬ Nada Interpretar no meio não usa

‫چون ز جو جست از گله یك گوسفند‬ ‫چون كه هر حس بنده ى حس تو شد‬


Se uma única ovelha salta a ribeira Se cada sentido do teu senso é objeto
‫پس پیاپى جمله ز آن سو بر جهند‬ o rebanho inteiro cruza na esteira
‫مر فلك ها را نباشد از تو بد‬ das celestiais esferas não serás abjeto

‫گوسفندان حواست را بران‬ ‫چون كه دعویى رود در ملك پوست‬


Conduz as tuas ovelhas a pastar Na disputa pela casca, quem vence?
‫در چرا از أَ َخ َرج اْلَ ْمرعى چران‬ no pasto Dele que faz a erva brotar1
‫مغز آن ىك بود قرش آن اوست‬ Pois o miolo ao dono pertence

‫تا در آن جا سنبل و نرسین چرند‬ ‫چون تنازع در فتد در تنگ كاه‬


Até que pastem jacinto e selvagem rosa Se na querela à carga de palha vão
‫تا به گلزار حقایق ره برند‬ até que corram verdade e jardim das rosas ‫دانه آن كیست آن را كن نگاه‬ é so ver quem deles produz o grão

‫هر حست پیغمرب حسها شود‬ ‫پس فلك قرش است و نور روح مغز‬
O profeta dos sentidos conduz Luz do espírito é miolo a casca esfera celeste
‫تا یكایك سوى آن جنت رود‬ um a um aos ermos do Paraíso
‫این پدید است آن خفى زین رو ملغز‬ uma é visível a outro enigma veste

‫حسها با حس تو گویند راز‬ ‫جسم ظاهر روح مخفى آمده ست‬


e lá lhes contam a secreta verdade Corpo é manifesto o espírito encoberto
‫ىب زبان و ىب حقیقت ىب مجاز‬ sem metáfora ou literalidade ‫جسم همچون آستین جان همچو دست‬ o corpo tal manga espírito é mão, decerto
‫باز عقل از روح مخفى تر بود‬ O espírito oculta o intelecto
‫كه جنون بیند گهى حیران شود‬ Os possuídos perplexos desacertados
‫حس سوى روح زوتر ره برد‬ E o sensório segue-lhe de perto ‫ز انكه موقوف است تا او آن شود‬ demoram a retomar o estado desalterado

‫جنبىش بینى بداىن زنده است‬ ‫چون مناسبهاى افعال خرض‬


o movimento revela que há a vida Por mais coerente que fosse Khidr no agir3
‫این نداىن كه ز عقل آگنده است‬ e de intelecto está preenchida ‫عقل موىس بود در دیدش كدر‬ Moisés o via em turvo ir e vir

‫تا كه جنبشهاى موزون رس كند‬ A cabeça regula o movimento


‫نامناسب مى منود افعال او‬ Seus atos pareciam-lhe atabalhoados
‫جنبش مس را به دانش زر كند‬ faz do cobre ouro no conhecimento ‫پیش موىس چون نبودش حال او‬ pois não comprendia o seu estado

‫ز آن مناسب آمدن افعال دست‬ ‫عقل موىس چون شود در غیب بند‬ Se Moisés se atraca em insondável ciência
Pela habilidade em tuas mãos
‫فهم آید مر ترا كه عقل هست‬ percebes o intelecto em ação ‫عقل موىش خود ىك است اى ارجمند‬ que dirá um roedor ó Excelência?

‫روح وحى از عقل پنهان تر بود‬ ‫علم تقلیدى بود بهر فروخت‬ O saber se transmite conforme a capacidade
É o divino espírito detrás do intelecto
‫ز انكه او غیب است او ز ان رس بود‬ que no invisível tem espectro
‫چون بیابد مشرتى خوش بر فروخت‬ quanto mais puder obtê-lo maior felicidade

‫عقل احمد از كىس پنهان نشد‬ ‫مشرتى علم تحقیقى حق است‬ Do verdadeiro saber só Deus é detentor
O que Ahmad2 pensa não é secreto
‫روح وحیش مدرك هر جان نشد‬ mas sobre a divina inspiração é discreto
‫دایام بازار او با رونق است‬ Seu bazar é sempre um esplendor

‫روح وحیى را مناسبهاست نیز‬ ‫لب ببسته مست در بیع و رشى‬ Lábios se fecham inebriados ao negociar
Os atos proféticos são pertinentes
‫در نیابد عقل كان آمد عزیز‬ mas nos desatinam de tão potentes
‫مشرتى ىب حد كه ا ّلله اشرتى‬ a eternidade que Deus irá cobrar4
‫درس آدم را فرشته مشرتى‬ ‫گر نبودى حاجت عامل زمین‬
Somente aos anjos Adão inicia Não fosse necessária a terra ao mundo
‫محرم درسش نه دیو است و پرى‬ ‫نافریدى هیچ رب العاملین‬
aos demônios e líder nada ensina não a teria criado o Senhor dos mundos

‫آدم أنبئهم بأسام درس گو‬ Quando profere os Nomes5, adverte:


‫وین زمین مضطرب محتاج كوه‬
‫رشح كن ارسار حق را مو به مو‬ ‫گر نبودى نافریدى پر شكوه‬ E da terra tremente erigiu a montanha
“abordar os divinos mistérios pelo a pelo
não fosse necessária não seria tamanha

‫آن چنان كس را كه كوته بین بود‬ é para mentes de visão estreita ‫ور نبودى حاجت افالك هم‬
‫در تلون غرق و ىب متكین بود‬ irresolutas e à variedade afeitas” ‫هفت گردون نافریدى از عدم‬ Se os céus não tivessem valia
Nem suas órbitas Deus criaria

‫موش گفتم ز انكه در خاك است جاش‬ tal qual dizemos da toupeira
‫آفتاب و ماه و این استارگان‬
Sol e lua e estrelas que se avistam
‫خاك باشد موش را جاى معاش‬ de lugar cativo no solo e rasteira ‫جز به حاجت ىك پدید آمد عیان‬ não fossem necessárias estariam à vista?

‫راهها داند وىل در زیر خاك‬ que sabe só dos subterrâneos que fura
‫پس كمند هستها حاجت بود‬
O laço dos existentes é a necessidade
‫هر طرف او خاك را كرده ست چاك‬ e trechos da terra toda em rachadura ‫قدر حاجت مرد را آلت دهد‬ aprimoram-se os órgãos em conformidade

‫نفس موىش نیست اال لقمه رند‬ De alma a toupeira tem um tico de nada
‫پس بیفزا حاجت اى محتاج زود‬
E a necessidade é algo premente
‫قدر حاجت موش را عقىل دهند‬ e de intelecto vem só do necessário dotada ‫تا بجوشد در كرم دریاى جود‬
para que se emerja no mar munificente

‫ز انكه ىب حاجت خداوند عزیز‬ ‫این گدایان بر ره و هر مبتال‬


que Deus Onipotente sem necessitar Os mendigos da rua e cada desgraçado
‫مى نبخشد هیچ كس را هیچ چیز‬ nada deu a ninguém nem vai proporcionar ‫حاجت خود مى مناید خلق را‬ Deus expõe como necessitados
‫كورى و شىل و بیامرى و درد‬ ‫كاى رهاننده مرا از وصف زشت‬
sua imundície sujeira doença e aflição “Meus defeitos Deus perdoou
‫تا از این حاجت بجنبد رحم مرد‬ servem para estimular nossa compaixão ‫اى كننده دوزخى را تو بهشت‬ o Inferno em Paraíso transformou

]‫هیچ گوید نان دهید اى مردمان‬ Nenhum deles está a dizer “Me deem pão
‫در یىك پیهى نهى تو روشنى‬ Deu-me a luz o Todo-poderoso
‫كه مرا مال است و انبار است و خوان‬ que bens celeiros farta mesa tenho à mão” ‫استخواىن را دهى سمع اى غنى‬ atendendo a súplica de um osso”

‫چشم ننهاده ست حق در كور موش‬ ‫چه تعلق آن معاىن را به جسم‬


Olhos para a toupeira Deus não deu Que vínculo há entre o corpo e a significação?
‫ز انكه حاجت نیست چشمش بهر نوش‬ pois não precisa deles para um trago seu ‫چه تعلق فهم اشیا را به اسم‬ Entre os nomes e a apreensão?

‫مى تواند زیست ىب چشم و برص‬ ‫لفظ چون وكرست و معنى طایر است‬ O mundo é ninho o significado é pássaro
Dos olhos é capaz de prescindir
‫فارغ است از چشم او در خاك تر‬ e na terra pura e úmida subsistir ‫جسم جوى و روح آب سایر است‬ o corpo leito de rio o espírito água que passa

‫جز به دزدى او برون ناید ز خاك‬ ‫او روان است و تو گویى واقف است‬ Ela se move mas parece parada
Dali não sai a não ser para furtar
‫تا كند خالق از آن دزدیش پاك‬ até que o Criador a inocente de roubar ‫او دوان است و تو گویى عاكف است‬ mesmo correndo parece estagnada

‫بعد از آن پر یابد و مرغى شود‬ ‫گر نبینى سیر آب از خاكها‬ Se a água não passa pelos torrões
Então irá adquirir asas e ave se tornará
‫چون مالیك جانب گردون رود‬ em volutas correntes ao Soberano voará ‫چیست بر وى نو به نو خاشاكها‬ o quê carrega os gravetos aos montões?

‫هر زمان در گلشن شكر خدا‬ ‫هست خاشاك تو صورتهاى فكر‬


Cada instante no jardim da graça divina Os gravetos são pensamentos que sinalizam
‫او بر آرد همچو بلبل صد نوا‬ feito o rouxinol espalhará sua cantiga: ‫نو به نو در مى رسد اشكال بكر‬ uma a uma as virgens formas que divisam
‫روى آب جوى فكر اندر روش‬ O rio do pensar flui feito água
‫نیست ىب خاشاك محبوب و وحش‬ há sempre graveto de alegria ou mágoa

‫قرشها بر روى این آب روان‬ Cascas que correm na água tangível


‫از مثار باغ غیبى شد دوان‬ das frutíferas orlas do Jardim Invisível

‫قرشها را مغز اندر باغ جو‬ Busca pelo miolo naquele Jardim
‫ز انكه آب از باغ مى آید به جو‬ de onde afluem as águas ao rio enfim

‫گر نبینى رفنت آب حیات‬ Caso não vejas fluir a Água da Vida
‫بنگر اندر جوى و این سیر نبات‬ ao longo do vale fita a erva crescida

‫آب چون انبه تر آید در گذر‬ Se a corrente aumenta e acelera o fluxo


‫زو كند قرش صور زوتر گذر‬ as cascas declinam para fora no influxo

‫چون به غایت تیز شد این جو روان‬ Se chega ao ápice a fugaz correnteza


‫غم نپاید در ضمیر عارفان‬ no coração do místico não pesa tristeza

‫چون به غایت ممتىل بود و شتاب‬


Pois veloz e no auge da enchente
‫پس نگنجید اندر او اال كه آب‬ contém nada mais que água corrente
Notas
1
C. 87:4.
2
“O louvado”, um dos nomes de Maomé.
3
Khidr, profeta que inicia Moisés nos misteriosos caminhos da fé.
4
C. 9:111.
5
C. 2:33.
Morri mineral

Esse trecho do Masnavi (III: 3901-3905) recebeu uma famo-


sa versão de José Jorge de Carvalho, “A evolução da forma”1,
feita a partir de retraduções de outros idiomas europeus, e foi
também traduzido direto do persa ao português de Portugal
por Radfar Sépideh e Adalberto Alves2. A minha tradução, dire-
to do persa ao português brasileiro, está comentada no artigo
O orientalismo na tradução da poesia persa sufi3. O segundo
verso parece alusivo à passagem bíblica em Coríntios (15:44),
onde se diz: “semeado corpo animal, ressuscita corpo espiri-
tual”, embora a citação final se refira claramente ao versículo
corânico 28:88, onde lê-se “e tudo perecerá, exceto o seu ros-
to”. Nossa suposição é que Rumi estabelece um contraponto
entre a ideia islâmica da dissipação da alma e a noção bizanti-
na do corpo espiritual, considerando a hierarquia e evolução/
emanação dos seres (mineral, vegetal, animal, humano, ange-
lical) sob uma ótica zoroastriana.
Na atualidade circula entre os sufis a máxima de “se estar
no mundo, sem pertencer a ele”, talvez derivado do provérbio
original sufi que pregava que “quem nada possui não é possu-
ído”4, difundido na época de Kalabadhi (séc. X), o que lembra
a definição de Santo Agostinho de Hipona (séc. V) sobre a res-
surreição dos santos que “começarão a possuir o mundo, junto
aos seus corpos agora restaurados à sua firmeza primitiva, em
vez de serem possuídos pelo mundo”.5
‫ز جامدى مردم و نامى شدم‬ Morri mineral na flor renasci
‫و ز منا مردم به حيوان بر زدم‬ feneci feito erva animal ressurgi61

‫مردم از حيواىن و آدم شدم‬ Da fera abatida tornei-me filho de adão


‫پس چه ترسم ىك ز مردن كم شدم‬ O que temer da morte se é transmutação?72

‫حملهى ديگر مبريم از برش‬ Subitamente sobrehumano irei renascer


‫تا بر آرم از ماليك بال و پر‬ em mim as penas e asas irão crescer83

‫و ز ملك هم بايدم جسنت ز جو‬ Até que o pó dos anjos seja o meu posto94
‫يَش ٍء هالِ ٌك إِ َاَل وجهه‬
ْ َ ‫ك ُُّل‬ pois Tudo se esvai exceto o Seu rosto

‫بار ديگر از ملك قربان شوم‬ finalmente entre os celestiais irei rebrotar
‫آن چه اندر وهم نايد آن شوم‬ e lá dentro do inatingível me dissipar105
Notas
1
RUMI, Jalal Uddin 91203-1273]. Poemas místicos. Divan de Shams de Tabriz. Tradução José Jorge de Carvalho. São Paulo: Attar,
2013 [1996], pp. 115-117.
2
ALVES, Adalberto Alves. Vértice da Noite. Lisboa: Argusnauta, 2007, p. 66.
3
Ver artigo em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/traducao/article/view/2175-7968.2019v39nespp78/42141
4
De vera religione (final de 390) apud MECONI, David Vincent; STUMP, Eleonore. Agostinho, São Paulo: Idéias & Letras, 2020, p. 319.
5
KALABADHI, m. 995. The doctrine of the Sufīs. Translation of Arthur John Arberry. Cambridge: Cambridge University Press, 1935,
p. 5.

6
“Como mineral morri e crescente [vegetal] me tornei. E da erva morri, ao animal cheguei”
7
“Morri como animal e Adão me tornei. O quê devo temer se ao morrer menos não me tornarei? ”
8
“Repentinamente outra vez a morte me leva do humano, até que me cubram do anjo as asas e as penas”
9
“E conforme atinja os anjos, expandirei/saltarei da partícula, [pois] tudo se esvai/perecerá exceto o seu rosto” (citação alusiva a C:
28:88)
10
“Rebrotarei de novo do anjo sacrificado lá/naquele, onde quanto mais se entra menos se chega.”
De que se ocupa
o teu coração?

Este poema tem sido traduzido como um poema amoroso, na


chave do amor tirano. Ainda assim, acredito que “exale” os assuntos
da época. Talvez tenha sido composto em algum momento no con-
texto das batalhas que ocorreram entre 1258 e 1262 entre as Horda
Azul e Dourada perto do rio Atrek, nas redondezas de Konya. Nesse
sentido, parece conter um recado do poeta àqueles que se afasta-
ram da essência pacífica islâmica (indicada pela metáfora do vinho)
e se deixaram render aos vícios do poder mundano e da violência
(a paixão cegante, a pedra no lugar do coração). Sem a data precisa
do poema não temos como saber a qual imperador se refere, mas
seja como for, o sentido geral é de que o projeto político-religioso
seljúcida está em derrocada diante do terror sob o qual se desdobra
a dominação mongól na região.
‫ای گشته دلت چو سنگ خاره با خاره و سنگ چیست چاره‬ Teu coração cheio de pedras que faz com elas?1
‫با خاره چه چاره شیشه‌ها را جز آنک شوند پاره پاره‬ Translúcidos copos caco por caco estilhaças
‫زان می‌خندی چو صبح صادق تا پیش تو جان دهد ستاره‬ Debochas do despertar da alba e até da estrela da vida2
‫تا عشق کنار خویش بگشاد اندیشه گریخت بر کناره‬ O pensamento foge quando o amor abre guarda
‫چون صرب بدید آن هزیمت او نیز بجست یک سواره‬ Correr no seu encalço é ter a paciência dissipada3
‫شد صرب و خرد مباند سودا می‌گرید و می‌کند حراره‬ Sem paciência nem sabedoria paixão é febre que devasta
‫خلقی ز جدایی عصیرت بر راه فتاده چون عصاره‬ Alguns longe do Teu vinho caem feito dejetos na calçada
‫هر چند شده‌ست خون جگرشان چستند در این ره و چه کاره‬ Com o coração em tripas4 se estrepam precipitados
‫بیگانه شدیم بهر این کار با عقل و دل هزارکاره‬ Em apuros nos metem o coração e a razão naquela luta árdua
‫العشق حقیقه االماره و الشعر طباله االماره‬ O amor soberano da verdade A poesia senhora do tambor
‫احذر فامیرنا مغیر کل سحر لدیه غاره‬ Cuidado! O imperador a cada manhã saqueia os vilarejos
‫اترک هذا وصف فراقا تنشق لهوله العباره‬ no rio Atrek correm relatos de dor cada frase inspira o terror.
‫بگریخت امام ای مؤذن خاموش فرورو از مناره‬ O imã fugiu muezim! Desce em silêncio do minarete…
Notas
1
“O seu coração está cheio de pedras, e o que se faz com pedras?"
2
“Ris, da verdadeira/honesta alba, até da tua vida passageira, doada [pela] estrela” Ou seja, há uma atitude sarcástica em relação ao
destino. Jãn significa a um só tempo “alma” e “vida”.
3
“a paciência salta a galope atrás dele”.
4
Em persa, usa-se a expressão “que façam do fígado sangue”, que significa sofrer por amor.
Sobre a autora

Lena Yunis é historiadora do Oriente Médio e Ásia Central


(USP), especializada em Dança e‌Consciência Corporal (FMU),
mestre e doutora em Letras Orientais (USP), pós-doutora em Estu-
dos da Tradução (Poet/UFC), membro docente da Cátedra Edward
Saïd (Unifesp) e membro correspondente do British Institute of
Persian Studies.

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