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Convivência universitária e a Formação de Agentes Sociais de Mudança na

Universidade Federal da Bahia, Brasil.

Autores: Denise Vieira,


Luciana Diz,
Thércia Araujo,
Rithiane Almeida
Priscila Carneiro

Resumo
O objetivo deste artigo é analisar uma experiência de ensino-aprendizagem centrada na
técnica do grupo operativo, em um projeto de extensão universitária denominado Formação
de Agentes Sociais de Mudança (ASM), proposto para os estudantes da Universidade
Federal da Bahia, Brasil. A partir da caracterização do contexto social, econômico e
político, sob a égide das políticas neoliberais de estado, que atravessam progressivamente as
universidades públicas, analisamos a convivência universitária em sua reprodução do
padrão competitivo e produtivista e sua repercussão nas atividades acadêmicas, em especial
no ensino. Emerge a partir desse contexto, a necessidade de promover um espaço de
acolhimento, reflexão e de delineamento de estratégias de ação em relação às consequências
desestruturantes da subjetividade dos estudantes decorrentes das dimensões da cultura
universitária que dificultam criação de uma ambiência adequada ao aprendizado. Foi
utilizado como referencial central a Psicologia Social de Pichon-Rivière, e a técnica dos
grupos operativos.. Os resultados demonstram a efetividade da técnica do grupo operativo
no contexto do ensino universitário no sentido da criação de um ambiente de compromisso
e confiança através da explicitação de contradições, dos conflitos e histórias de vida, da
reflexão coletiva sobre os problemas enfrentados na universidade e delineamento de
projetos de mudança institucional

Palavras chave: Grupo operativo; protagonismo; pedagogia emancipadora

Vivemos uma realidade onde o aprofundamento das políticas neoliberais, os


desequilíbrios especulativos do capitalismo financeiro têm resultado no aumento
vertiginoso das desigualdades sociais, no acúmulo de tensões e problemas sociais não
resolvidos trazendo dificuldades imensas para as populações em todo o planeta.

Para além do plano político e econômico, o neoliberalismo se tornou um sistema


normativo, que atinge a nossa existência como um todo, produzindo certas maneiras de
viver, modos de subjetivação, ao instalar a concorrência em todos os níveis. Degrada a
ação coletiva gerando um egoísmo social nas ações que tem desembocado em
movimentos reacionários, fascistas e que gera,como conseqüência final, o
desenvolvimento de patologias psíquicas (DARDOT E LAVAL, 2016).

Segundo os autores essa nova razão do mundo rege as políticas públicas,


justificando as desigualdades cada vez mais profundas, comanda as relações
econômicas mundiais, transforma as sociedades, criando um novo sujeito que é
impulsionado a conceber a si mesmo como uma empresa, com uma subjetividade
contábil e financeira. Usa estratégias inéditas como é o fato do esvaziamento por dentro
do processo democrático, que se torna pseudo democrático sem extingui-lo. Trata-se da
mercantilização sorrateira e implacável de toda a sociedade, que tem como objetivo, nas
palavras de Margareth Thatcher mudar “ A alma e o coração”.

Slaughter & Leslie,1997; Slaughter & Rhoades,2004 (apud BIANCHETTI e


MACHADO,2011) cunharam o termo “ Capitalismo acadêmico” para denominar as
diversas práticas dentro das universidades públicas que reproduzem o ideário do
mercado e da empresa. Vieira (2016) demonstra esse processo ao construir indicadores
de precarização do trabalho docente, identificando como dimensão central o
produtivismo. Esse fenômeno é expresso na quantidade de artigos a serem publicados e
qualificados, número de citações, captação de recursos financeiros gerando a
intensificação do trabalho, prioridade para a pesquisa e baixo investimento na docência.
Essa lógica termina sendo reproduzida pelos estudantes na preocupação permanente
com o seu score de notas, matrícula em um número excessivo de disciplinas e
intensificação da carga de leitura. Além desses indicadores, e até como consequência
dos mesmos, uma competição predatória se instala entre os docentes pelos parcos
recursos destinados pelas agências de fomento para realização de projetos de pesquisa,
acesso à docência nos programas de pós-graduação, em síntese pela visibilidade
intelectual, padrão esse que se reproduz na sociabilidade estudantil quando precisam,
por exemplo, concorrer por bolsas de estudo.

A busca e o compartilhamento do saber passam a ser exercidos através da


competição cotidiana, muitas vezes destrutiva da sociabilidade entre docentes, entre
estudantes, entre docentes e estudantes entre técnicos, entre técnicos e estudantes e entre
técnicos e docentes podendo produzir uma ambiência das relações onde todos ameaçam
todos, o que aumenta a tensão em todos os espaços destinados à aprendizagem e à
produção do conhecimento.
Esses fatores associados ao advento das ações afirmativas, que preveem cotas
para estudantes negros e oriundos da escola pública, oportunizando o acesso das classes
populares para o interior da universidade pública, trazem uma nova complexidade a ser
compreendida. Uma das dificuldades enfrentadas é a resistência e o estranhamento por
parte de alguns professores e estudantes não cotistas aos estudantes cotistas, gerando
impacto significativo nas relações interpessoais, o que termina interferindo na
autoestima destes e, consequentemente nos seus processos de aprendizagem.

Os docentes, via de regra, consideram que os estudantes não estudam, não se


esforçam o suficiente; em alguns casos, não possuem os pré-requisitos necessários; os
estudantes consideram os docentes autoritários, inflexíveis, algumas vezes irônicos ou
sarcásticos na relação. Preocupados em produzir e visibilizar o seu conhecimento, os
docentes terminam por não priorizar a docência da graduação, o que é percebido pelos
estudantes que passam a demandar maior atenção ao processo de ensino. À reação dos
estudantes, quer seja de desinteresse ou de questionamento das práticas docentes, os
professores tendem a agir com autoritarismo e desqualificação dos argumentos discentes
(VIEIRA, 2016).

Para Leite et al. (2003, p. 62), os estudantes, em geral, percebem o professor


universitário como “um profissional competente em sua área, mas dá aula para ele
mesmo” e, que “não se dedica somente à sala de aula, falta e negligencia”, adotando
uma postura autoritária tanto no processo de ensino-aprendizagem quanto no processo
de avaliação.

Os conflitos se aprofundam e fazem emergir comportamentos que poderiam ser


classificados como injúria, falta de urbanidade, assédio moral e sexual. No limite temos
a judicialização das relações, a agressão física e a morte por suicídio ou homicídio
(VIEIRA, 2016) No cotidiano da universidade esse clima geral termina por ter um efeito
desestruturante em termos da subjetividade, tendo como consequência o sofrimento
psíquico e o adoecimento (VIEIRA, 2016).

Refletindo sobre este cenário foi concebido o curso de extensão denominado de


Formação de Agentes Sociais de Mudança (ASM) como estratégia proativa. O
curso de Formação em Agentes Sociais de Mudança foi desenvolvido na Universidade
Federal da Bahia para formar facilitadores grupais através da utilização da técnica dos
grupos operativos, a partir da Psicologia Social de Pichon-Rivière.
O programa, que já está na terceira edição, tem como objetivos: capacitar os
participantes a atuar como facilitadores de processos humanos, tendo em perspectiva a
transformação individual e coletiva, definida a partir da articulação das necessidades
individuais em comuns e complementares, da apropriação do Esquema Conceitual da
Psicologia Social de Pichon-Rivière e autores correlatos; da leitura e interpretação do
processo grupal; do aprendizado da metodologia dos grupos operativos e do
delineamento dos dispositivos de intervenção social. Esse objetivos são desdobrados
em proposições específicas:

 Analisar o conceito de grupo a partir de experiências concretas de aprendizagem


e trabalho, identificando os princípios articuladores: tarefa, vínculo e papeis;
 Desenvolver novas práticas de relacionamento e comunicação interpessoal
capazes de permitir ressignificar a forma de perceber o diferente, as
divergências, o novo, enfrentando o conflito como fonte de aprendizagem;
 Identificar estratégias que propiciem uma maior adequação da comunicação ao
desenvolvimento da tarefa grupal, facilitando a compreensão de fantasias,
preconceitos, processos transferenciais e suas implicações no relacionamento
humano;
 Promover o fortalecimento de uma ética solidária, cooperativa e que respeite os
limites e possibilidades do ser humano;
 Qualificar discussões no âmbito das relações de gênero e de raça, relações de
classe social e território, religiões e sexualidades na direção de concepções
sócio- históricas emancipadoras e cidadãs;
 Promover o desenvolvimento de habilidades sócio-emocionais através da
compreensão de seus mecanismos constitutivos e do processo de regulação
grupal;
 Possibilitar o aprendizado para lidar com conflitos através da compreensão e
aceitação das diferenças, utilizando os princípios da dialética e da mediação,
assumindo uma nova atitude psicológica;
 Desenvolver habilidades de identificar a dinâmica dos papeis grupais e sua
interferência na comunicação: papeis operativos que promovem a mudança e
papeis obstaculizadores da tarefa;
 Favorecer a construção e fortalecimento do papel de agente social de mudança,
que implica na facilitação de processo de transformação pessoal e grupal para o
desenvolvimento dos projetos de vida individuais e coletivos.
 Desenvolver um projeto de intervenção na realidade social que vise a aplicação
prática dos conceitos da Psicologia Social de Pichon-Rivière.

Esses objetivos indicam os temas do programa da Formação em Agentes Sociais


de Mudança: A história da psicologia social de Pichon-Riviére, o conceito de grupo; o
processo da comunicação nos grupos; relacionamento interpessoal; a construção dos
vínculos humanos; os papeis sociais que vivemos na vida; o papel da diversidade e dos
direitos humanos; a convivência comas emoções; o movimento dialético e o
enfrentamento das contradições;a mediação de conflitos; o papel do agente social de
mudança; o desenvolvimento de um projeto de transformação da universidade.

Nessa formação, a técnica dos grupos operativos é assumida como uma potente
estratégia pedagógica, que será objetivo de descrição e análise em uma das turmas do
curso, composta de trinta os estudantes de cursos diversos de Bacharelados
Interdisciplinares, uma modalidade nova de curso superior, que se caracteriza por
promover uma formação incial em humanidades, artes, saúde e tecnologia, durante três
anos, para em seguida o estudante poder optar por um curso tradicional de natureza
profissional tal como: engenharia, medicina, psicologia etc.

A técnica dos grupos operativos se caracterizou por uma sequência de atividades


em três momentos: o primeiro destinado à integração grupal onde era utilizada uma
técnica de dinâmica de grupo para aproximar as pessoas e criar um clima favorável em
termos de participação n as atividades subsequentes; o segundo momento destinava-se à
apresentação de um tema do programa(explicitado nos objetivos específicos) e o
terceiro consistia na constituição de um grupo de reflexão a respeito do tema
apresentado à luz das experiências dos integrantes. Como papeis instituídos existiam um
coordenador e 3 observadores. O coordenador era responsável por fomentar a
comunicação,esclarecendo mal entendidos, ajudar a identificar as ideologias
orientadoras das opiniões e dos comportamentos, mediar conflitos e auxiliar o grupo a
enfrentar contradições, facilitando a resolução dialética e o processo de mudança. Cabia
ao observador o registro cursivo das falas, que seriam objeto de interpretação após a
realização de cada encontro, a partir de um protocolo de avaliação da produção grupal,
baseado nos vetores propostos por Pichon-Rivière. Na primeira edição foram realizados
encontros mensais de 4 horas em número de 24, a qual teve a duração de 2 anos.Na
segunda edição foram realizados 20 encontros quinzenais com o objetivo de
intensificação do aprendizado. Para a terceira edição estão previstos encontros mensais
no total de 9 para atender a periodicidade do edital Sankofa, no qual o programa de
formação em agentes sociais de mudança foi aprovado. Em todas as edições a carga
horária dos encontros era de 4 horas, nos sábados das 9 às 13 horas.

Refletindo sobre a experiência do grupo operativo no curso Formação de Agentes


Sociais de Mudança

Os atores dos cursos tradicionais, profissionalizantes percebiam os


Bacharelados Interdisciplinares como um ensino vago, precário em termos de conteúdo,
sem um resultado profissional concreto e ofereciam muita resistência a esse novo
modelo, o que gerava preconceito e discriminação em relação aos estudantes
pertencentes a esses cursos. Nesse sentido, o programa funcionou como um importante
espaço de acolhimento e contenção dessas vivências e das dificuldades de aprendizagem
decorrentes, significando um âmbito de sustentação do psiquismo nos termos de
Quiroga (1998).

Nesta experiência formativa foi assumida a compreensão, no plano


epistemológico e pedagógico, de que o estudante é o agente principal da sua história
formativa e de vida, e que é também um sujeito que se faz na relação com o outro, na
intersubjetividade, em uma dialética permanente com o seu contexto institucional e
social. Que a transformação de si se dá, na medida em que, agimos sobre o nosso meio e
buscamos uma relação mutuamente modificante, em um processo denominado por
Pichon-Rivière (1988) de adaptação ativa à realidade ou de uma práxis inventiva nos
termos de Lucarelli (1995, apud CUNHA, 1998).

Tomamos como referência central as contribuições da teoria e técnica dos


grupos operativos, pelo fato de integrar dialeticamente as dimensões: objetividade e
subjetividade; individualidade, grupalidade e estrutura social, o que imprime uma
amplitude fundamental na compreensão da complexidade da interação humana,
principalmente, em tempos de crise. Trata-se de uma técnica com grande potencial
formativo, orientada para o processo de aprendizagem e de transformação de si e da
realidade social. Trabalha com o conceito de sujeito situado, de relação, produzido e
produtor em um processo permanente de enfrentamento de contradições, através do
movimento dialético entre mundo psíquico e a realidade social.

O âmbito grupal é considerado de fundamental importância para o processo de


mudança individual e coletivo, através de fatores que articulam seus integrantes: a tarefa
a realizar, os vínculos interpessoais a constituir e os papeis a desempenhar. Esses
articuladores operam no processo grupal a partir de variáveis constantes de tempo,
espaço e objetivo comum. As pessoas, individualmente, têm seus interesses e
necessidades, mas é na relação como o outro, com o grupo, que surge o espaço para
gratificação ou frustração dessas necessidades. É preciso encontrar o elo que as une na
realização da tarefa para que possam se constituir como grupo (VIEIRA, 2015).

O desenvolvimento dessa experiência teve como ponto de partida a construção


do vínculo entre os integrantes do grupo. Pichon-Rivière (1985) ao propor o conceito de
vínculo o concebe como uma estrutura dinâmica em contínuo movimento, que engloba
o sujeito e o objeto, compreendendo essa relação como de múltiplas direções em um
desenvolvimento psicossocial que torna compreensível a vida em grupo. Podendo
apresentar características consideradas normais e patológicas, numa gestalt em contínuo
processo de evolução. Implica em dois campos psicológicos o interno e o externo
integrados em um processo de espiral dialética (PICHON-RIVIÈRE, 1985). Nesse
processo, o desafio de integração das diferenças, em um movimento contínuo que inclui
o ver, sentir e explicar torna-se fundamental.

Na sua trajetória investigativa Pichon-Rivière (1988) propõe três dimensões


de análise: o indivíduo, o grupo, a instituição ou sociedade. O psicossocial que parte do
individuo para o exterior, o sócio dinâmico que investiga o grupo como estrutura e o
institucional que toma a instituição como objeto de investigação, configurando uma
psicologia das relações interpessoais. O sujeito emerge do atravessamento de todas
essas relações sociais que o determinam e que também são determinadas por ele, sem
que se configure uma relação mecânica, linear, mas sim guestáltica no sentido que as
tensões sociais e culturais terminam por produzir determinados padrões de conduta,
sendo o sujeito porta-voz dessas tensões grupais. Para o autor, a maturidade do vínculo
se dá pela diferenciação que não quer dizer indiferença, mas significa ter em perspectiva
a necessidade própria, mas, também, a do outro numa relação de cooperação e
crescimento.

Na perspectiva de investimento no vínculo o curso foi iniciado com dois


seminários vivenciais acumulativos, intensivos de 16 horas cada, o primeiro, “Caminho
da vida” baseado nas histórias de vida dos integrantes, tinha como objetivo promover a
integração grupal através de um maior conhecimento entre os integrantes e o segundo
“Projeto de vida” versava sobre o delineamento do projeto de vida individual e grupal.
No primeiro seminário era solicitado ao integrante que elaborasse um cartaz com os
principais momentos de aprendizagem na vida, para, em seguida, compartilhar na
plenária grupal, as dimensões do conteúdo que considerasse pertinente. Esse relato
permitia aos demais integrantes perceber que outras pessoas vivenciavam dificuldades
no seu desenvolvimento semelhantes, mais ou menos severas que as suas, o que levava
a identificação de dimensões comuns e complementares e ao desenvolvimento de um
vínculo solidário.Já o seminário de “Projeto de vida” possibilitava ao integrante rever o
seu passado,suas potencialidades, diagnosticar as necessidades presentes e planejar o
futuro formulando diretrizes e objetivos estratégicos no sentido de satisfazer as
necessidades identificadas o que implicava na superação da de necessidades. Embora
implicasse em um maior espaço de tempo de reflexão individual, havia também a
condição de compartilhamento grupal o que produziu o mesmo efeito de coesão grupal
do seminário “Caminho da vida”.

Esses seminários permitiram a criação de um vínculo significativo entre os


estudantes, o que facilitou o desenvolvimento do programa como um todo (8 horas por
encontro). Alguns elementos evidenciam a criação desse vínculo, como por exemplo, a
frequência aos encontros, avaliações positivas espontâneas do processo grupal
vivenciado, pertinência à tarefa do aprendizado em termos da leitura dos textos e
participação no grupo, dificuldade de finalização, e solicitação de prorrogação do tempo
da formação. Pichon-Rivière (1985) considera que a vivência acumulativa (intensiva)
do conhecimento produz resultados substanciais no plano da tarefa,que na perspectiva
do grupo operativo significa o objetivo a ser atingido tanto no plano concreto dos
resultados da aprendizagem, como também no plano subjetivo da elaboração dos medos
e ansiedades que obstaculizam a tarefa de aprender. Esse efeito se tornou visível durante
todo o processo do curso,, fomentando um clima de confiança entre os integrantes, o
pertencimento, a construção de vínculos interpessoais o que permitiu a exposição no
das dificuldades pessoais vivenciadas na universidade e na família.

Eu tive um trauma na infância, pois quase morri, a forma que minha mãe me
podava. Não que ela era ruim, mas ela tinha medo de me perder. Meu irmão
falou que eu era queixo duro para aprender. Na Pratinha eu superei o medo.
Quanto esse trauma é forte. Todos mergulharam e eu falei que ia ficar ali. O
instrutor falou porque não vai? Então vou deixar que a figura de mainha, com
os medos dela, para eu superar. Acho que aprender é isso, é você se permitir.

Os resultados demonstraram que foi possível para os estudantes, articulados em


torno do grupo operativo, a construção de um espaço de interação permeado pelo
sentimento de pertencimento, de confiança, que era expresso pela fluidez da
comunicação na exposição de conflitos, exposição de necessidades e até das histórias de
vida, pela pertinência das falas em relação à tarefa de aprendizado da Psicologia Social
de Pichon-Rivière, e pelo processo cooperativo e criativo da dinâmica grupal.
Os conflitos presentes nas relações na universidade, em especial aqueles entre os
cursos tradicionais e os cursos de Bacharelados Interdisciplinares, mobilizaram mais os
estudantes, do que os temas relacionados à dinâmica das relações internas, estratégia
importante para o desenvolvimento de uma nova atitude psicológica, necessária a
atuação protagonista. É provável que o fato de todos os integrantes pertencerem a
mesma instituição e ao mesmo curso, configurando uma constituição grupal homogênea
e a intensidade da vivência do preconceito e discriminação estejam relacionados à
ocorrência desse fenômeno. Segundo Velloso e Meirelles (2007), ao propor uma
epistemologia interdisciplinar, Pichon-Rivière afirmava que quanto maior a
heterogeneidade do grupo e mais homogêneo for o investimento na tarefa mais
produtivo será, ou seja, funcionará predominantemente de forma cooperativa e criativa
em direção à consecução do seu objetivo.
O grupo operativo trabalha orientado pelo programa e objetivos, mas também
pelos conteúdos que emergem da produção grupal. Para Pichon-Rivière (1988) o
emergente resulta da interpretação por parte do coordenador do que é trazido pela
comunicação no grupal, ou seja, pelo existente e que, confirma ou não o planejamento
feito possibilitando, em caso da não confirmação, uma mudança de rumo na condução
do grupo. Por exemplo, no debate do tema sobre a diversidade, mergiu a necessidade de
aprofundamento do racismo e então inserimos um encontro que não estava no programa
no sentido de permitir esse aprofundamento com a participação de pesquisadores na
área.
Uma vez elaborado coletivamente os conteúdos emergentes relacionados com a
realidade da convivência na universidade e à vida acadêmica, o grupo em questão
passou a se dedicar às relações internas e aí foi possível examinar as diferenças e os
conflitos existentes. Na edição seguinte do curso foi possível para o grupo equilibrar as
reflexões sobre os processos institucionais da universidade e a dinâmica grupal das
relações internas. Esse fato pode está relacionado com uma maior aceitação dos
Bacharelados Interdisciplinares pela comunidade universitária como também, pela
maior heterogeneidade dos integrantes do grupo. Os principais temas emergentes
estavam relacionados com o racismo, o autoritarismo docente, as questões de gênero, a
assistência estudantil, a importância da convivência solidária e de uma pedagogia da
autonomia nos termos de Freire (1996).
Houve uma identificação com Pichon, sua história e com a Psicologia Social por
ele construída, na qual se insere a Técnica do Grupo Operativo, como um exemplo de
protagonismo, de criatividade, aprendizagem emancipadora e transformação social,
como ilustra o testemunho abaixo:
Achei bem parecida a história de Pichon com a gente, uma aproximação. Ele é
muito próximo, provavelmente me apaixonarei por Pichon também. Estou
tentando mudar algumas coisas. Meu Deus o que está acontecendo? O
Interessante é que ele busca conhecer o comportamento do outro para entender
o dele. O comportamento do homem, as mudanças que ele consegue fazer no
outro.

O referencial teórico-vivencial da Psicologia Social e da Técnica do Grupo


Operativo provocou nos estudantes forte questionamento ao modelo de ensino
predominante na Universidade no qual o estudante é assumido como um depositário dos
conteúdos do ensino e não como um sujeito ativo do processo de aprendizagem, com
espaço e estímulo para o desenvolvimento das dimensões lógico-simbólica e sócio-
emocional, para a integração entre o pensar e sentir no agir. Como está expresso no
depoimento do estudante:

Eu ouvi um absurdo da professora de Psicologia Social, que a socialização não


é boa. Você tem que se fechar e os outros se adaptarem. Como uma professora
diz um absurdo desse? Pensei em trancar. Ou eu não sei nada ou ela sabe muito
da vida!

A avaliação realizada pelos participantes identificou o desenvolvimento de


vínculos entre os integrantes e em relação à tarefa, maior clareza e fluidez da
comunicação no enfrentamento das contradições e um padrão colaborativo de
relacionamento, o que facilitou a constituição de grupos para o delineamento de projetos
de intervenção no âmbito da universidade.

A característica da metodologia teórica-vivencial que promove uma reflexão


coletiva centrada nas necessidades relacionadas com a vida acadêmica em si, a
convivência universitária e vida familiar nas interfaces com a vida na Universidade, se
constituiu em uma condição favorável para um envolvimento integral do estudante
como aprendiz na condição de sujeito, protagonista da sua formação.
Soares, Silva e Beraldo (2014) ressaltam a importância do protagonismo crítico
e criativo estudantil, da auto-formação em um contexto de aprendizagem pautado pelo
processo de construção de sentido pelo estudante, o qual não pode se limitar a ser um
receptor de conteúdos pré-construídos pelo professor e acrescentam que “ os sentidos
subjetivos relacionam-se com uma aproximação particular com a realidade”
(GONZÁLES REY,2003,p.81 apud SOARES,SILVA e BERALDO,2014).

A metodologia teórico-vivencial inerente à técnica do grupo operativo


contribuindo para o desenvolvimento da capacidade não apenas de pensar, mas pensar
criticamente na medida em que se expõe e percebe a reação do outro sua comunicação;
de sentir e explicitar seus sentimentos estabelecendo laços de confiança e empatia; e de
projetar ações compatíveis com as necessidades individuais e grupais ressignificadas
coletivamente a partir de um novo olhar sobre si e sobre a realidade que o cerca .
Um indicador da importância desse processo de aprendizagem em grupo é que
os encontros mensais eram percebidos como “um intervalo muito longo”, como “falta”.
Ou aspecto está relacionado com o fato de que o programa foi inicialmente previsto para
um ano e meio, terminou sendo ampliado para dois anos e, após esse período, os
estudantes resistiram à sua finalização. Havia um sentimento de perda de um espaço
denominado por eles como “terapêutico”, como podemos verificar na fala abaixo.

Eu senti muita falta do encontro, pois quando você não tem uma terapia em si,
aqui é como se fosse uma terapia em si, aqui é como se fosse uma terapia
grupal. Eu li o livro. Será que vale a pena você ficar no seu tempo e deixar as
coisas passarem? Eu quando entrei no BI nunca mais tinha feito uma resenha,
tinha que correr com o tempo real e não o meu, e agora fiz do livro de Denise.
Eu achei longe demais, aqui é como se fosse um casulo. Faz uma falta!

Conclusões provisórias
A experiência evidenciou que o estudante universitário na atualidade, precisa de
um espaço de acolhimento de suas vivências que possibilite uma reflexão crítica e a
expressão de sentimentos, para que possa seguir fortalecido e atuante no seu contexto
educativo e social. A crise que vivemos tem atuado, principalmente, no
constrangimento da possibilidade de nos constituirmos como sujeitos, como produtores
da nossa própria forma de ser no mundo. A importância de processos formativos da
natureza deste, ora descrito, é que ele tem o potencial de ativar o protagonismo
individual do estudante universitário, mas, sobretudo de colocar em evidência a força do
grupo para o enfrentamento dos contextos e situações adversas, provocados pelo
modelo neoliberal que insiste em colocar nas costas do cidadão a responsabilidade pelo
seu fracasso como ser humano.
Dessa forma, torna-se fundamental que o docente universitário contribua para o
desenvolvimento da atitude protagonista dos estudantes, apostando em experiências
grupais e na articulação entre as dimensões do pensar, sentir e agir no sentido de que
eles sejam comandantes do seu destino e atores do processo social, contribuindo para a
melhoria das políticas institucionais, seja na observância da efetividade das mesmas,
seja na proposição de novas formas de conviver e promover o processo de ensino-
aprendizagem.
No horizonte da nossa utopia essa ética de ação social solidária inicia-se dentro
da Universidade, mas vai além dos seus campi. Ao estimular a mudança cultural
universitária, e sendo a Universidade, enquanto lócus do conhecimento, uma referência
para a sociedade, ele poderá alcançar as possibilidades do ser humano onde quer que ele
esteja, e onde quer que exista a necessidade.

Referências
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acadêmico: desafios para o trabalhador-pesquisador. São Paulo, RAE, v.51, n.3,
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FERNANDEZ VELLOSO, Marco Aurélio e MEIRELES, Marilúcia. Seguir a
aventura com Enrique José Pichon-Rivière: uma biografia. São Paulo: Casa do
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CUNHA, Carlos Henrique e LEMOS, Denise. Grupos: o poder da construção coletiva.
Rio de Janeiro: Qualitymark, 2011.
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