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DESCOLONIZAR
O MONUMENTO
VOL. 11 / N. 53 MAR/ABR/MAI 2022
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CURADORIA

NARRATIVAS
DO RESTAURO DE VÁRZEAS AO
ENCAPUZAMENTO DE ESTÁTUAS,
ARTISTAS PROJETAM NOVOS SENTIDOS A
MONUMENTOS, MANIFESTANDO VONTADE
COLETIVA DE FAZER OPOSIÇÃO A UMA
HISTÓRIA HEGEMÔNICA

Ibiritaquera - Proposta de Restauro da


Várzea na Região do Monumento às
PAU L A A L Z U G A R AY Bandeiras (2020), de pedro frança

VOL. 11 / N. 53 EM DISPUTA
MAR/ABR/MAI 2022
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POR DÉCADAS O MONUMENTO ÀS


BANDEIRAS FOI CONSIDERADO UMA
ALEGORIA DE SÃO PAULO. O VERMELHO GUARANI
YVYRUPÁ TROUXE A MEMÓRIA DO SANGUE
Monudentro (1987), de Regina Silveira
INDÍGENA DERRAMADO

2022 É UMA EFEMÉRIDE CAPCIOSA. NO CENTENÁRIO DA SE- arte e a cultura brasileira seriam comparáveis ao choque que no texto e projeto cocuratorial de Massimiliano Gioni em Un- Concebido, em 1920, por Victor Brecheret, um dos “heróis”
MANA DE ARTE MODERNA E BICENTENÁRIO DA INDEPEN- a derrubada da estátua de um czar russo causou nas vanguar- monumental, no New Museum, em 2007, por aqui, os atos so- da Semana de 22, para um concurso público de celebração do
DÊNCIA DO BRASIL, A PANDEMIA DE COVID-19 E A CRISE PO- das estéticas europeias no começo do século 20? Se o levante bre o Monumento às Bandeiras foram a faísca para o crítico centenário da Independência, o Monumento às Bandeiras só
LÍTICA PRECIPITAM GRAVES RETROCESSOS E O PAÍS REIN- iconoclasta da Revolução de Outubro de 1917 – reencenada e professor Tadeu Chiarelli começar a pesquisar os modos de foi edificado em 1953. Durante décadas, a estátua em homena-
CIDE NAS VIOLÊNCIAS DO COLONIALISMO. Vidas de pessoas por Eisenstein em October (1927) – resultou numa reação em recepção da obra de Brecheret por artistas atuantes em São gem aos bandeirantes que “desbravaram” o interior do estado
negras, indígenas, LGBTQIA+, mulheres, ambientalistas cadeia, repetindo-se em movimentos de igual potência, co- Paulo, como Jaime Lauriano, Sydney Amaral e Regina Silveira. de São Paulo em busca de ouro foi considerada uma alegoria
e imigrantes ameaçadas; tradições étnico-raciais em pro- nectados a outros recentes, como a Primavera Árabe e o mo- Um levantamento recente do Instituto Pólis indicou que pelo do espírito empreendedor paulista. Seu significado começou
cessos deliberados de apagamento. Contra o que Vladimir vimento Black Lives Matter, a ação coordenada pelos Guarani menos 14 das 380 estátuas em espaços públicos na cidade a ser discutido durante o regime militar, mas foi o vermelho
Safatle define como “rituais periódicos de destruição de Yvyrupá para protestar contra um projeto de lei que renega- de São Paulo são hoje disputadas. Entre elas, Duque de Ca- Guarani Yvyrupá que trouxe a memória do sangue indígena
corpos”, artistas e ativistas insurgem-se em atos e inter- va a demarcação de terras indígenas, sinaliza o início de uma xias, Padre Anchieta, Pedro Álvares Cabral – que durante a derramado nas conquistas e expedições do século 17 e elevou
venções sobre marcos históricos que perpetuam o imagi- guinada contranarrativa descolonial no contexto da arte e da 34ª Bienal de São Paulo foi enfrentada pelas entidades-cobras a estátua à condição de alegoria dos traumas coloniais que
nário colonizador no espaço urbano. sociedade brasileira. de Jaider Esbell, no lago do Ibirapuera – e o Monumento às ainda vigoram no país. Tinta vermelha que, defendeu Marcos
Em que medida os efeitos que a intervenção do grupo Gua- Enquanto o rolar da cabeça do czar atingiu em cheio a tradição Bandeiras, grande palco dos atos de contestação da história Tupã, coordenador da Comissão Guarani Yvyrupá, em Mani-
rani Yvyrupá com tinta vermelha sobre o Monumento às da escultura ocidental, escoando no ensaio crítico Caminhos da oficial do Brasil, que escancara a opressão do conquistador festo publicado após a intervenção, não foi usada como agres-
Bandeiras, em São Paulo, em outubro de 2013, teve sobre a Escultura Moderna (1977), de Rosalind Krauss, e se atualizando sobre os povos indígenas e africanos escravizados. são, mas como símbolo de transformação.

VOL. 11 / N. 53 MAR/ABR/MAI 2022 FOTOS (NESTA PÁG. DUPLA E NA ANTERIOR): CORTESIA DOS ARTISTAS
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Acima, intervenção com tinta vermelha sobre o Monumento às Bandeiras,


realizada pelo grupo Guarani Yvyrupá, em 2013. À esq., Hackeando a 33 a Bienal de
São Paulo (2018), da série Re-Antropofagias, de Denilson Baniwa

Niemeyer –, a obra simula a projeção da sombra distor-


cida do Monumento às Bandeiras. No fim dos anos 1980,
com a recém-reconquistada democracia, a artista desafiava
o cinetismo horizontal e o movimento “progressista” da
estátua de Brecheret, invertendo-o, impondo-lhe resistên-
cia. Com título poético de Paulo Leminski, Monudentro
literalmente produz uma dobra no fluxo da história, inver-
tendo a exterioridade ostensiva que orienta as representa-
ções heroicas da história oficial, em benefício de um olhar
autocrítico, contribuindo, com isso, para derreter delírios
autoritários e convicções coloniais.
Movimento parecido impulsiona o artista pedro frança, em
Ibiritaquera (2021), que propõe o restauro do terreno ori-
ginal da região do Ibirapuera, que foi várzea do Rio Pinhei-
ros. Além de inverter o fluxo geológico, seu projeto prevê
um giro de 180 graus da estátua, apontando a cabeça dos
cavalos e expedicionários de volta para o litoral – onde te-
riam iniciado a invasão –, desviando-os da meta do Norte
e da Floresta Amazônica. “Desmontar a infraestrutura de
asfalto, cabos, encanamento, postes, sistemas de drena-
gem etc., repondo parte dos buracos resultantes com terra
e refazendo a conexão com córregos e rios. Com o tempo, a
vegetação úmida da várzea deve retomar a região”, aponta
PASSADO IMEDIATO e o artivismo tomaram corpo nos discursos estéticos e de foram contrapostas naquele momento por uma nova matriz o artista em um dos quatro pontos da proposta. “O novo
Ensacamento (1979), do coletivo 3NÓS3, é um marco das ação direta de muitos coletivos”, diz o artista Mario Ramiro que nos influenciava, conceitual e performática”, comple- parque/pântano torna-se um espaço aberto, sem função
intervenções artísticas em monumentos. Embora o projeto à seLecT, enfatizando que as intenções que moveram o co- ta. “Nisso parece haver uma sintonia com o tema da revisão específica e acolhedor de possíveis associações entre pes-
de vendar e amordaçar 68 estátuas na capital paulista re- letivo foram de ordem estética. “Embora o Monumento às histórica em tela nos dias de hoje.” soas, entre espécies.”
meta aos atos derrubacionistas que fizeram cabeças rolar Bandeiras tenha uma dinâmica na sua horizontalidade, rara A matriz conceitual que influenciou o 3NÓS3 também está Esse autêntico parque interespécies idealizado por pedro
nas revoltas sociais de junho de 2020, o debate descolonial nos monumentos, predominantemente verticais, aquele na base da instalação site specific Monudentro (1987), de frança poderia ser frequentado por Denilson Baniwa e seu
não foi um disparador direto das ações do coletivo nos anos depuramento moderno das figuras não era tão diferente da Regina Silveira, que ataca a solidez da escultura – clássi- Pagé-Onça, que na performance Hackeando a 33ª Bienal de
finais da ditadura militar. “Essa leitura mais política que re- estética neoclássica de outros monumentos. É uma grande ca e moderna –, reduzindo-a a uma membrana fina, deli- São Paulo (2018), no corpo da série Re-Antropofagias, passa
laciona os sacos plásticos com a prática da tortura foi sen- obra, mas as matrizes estéticas, herdadas da tradição greco- cada, mole. Instalada em vinil adesivado sobre as paredes pelo Monumento às Bandeiras em ação de retomada territo-
do firmada a partir dos anos 2000, quando a arte política -romana-europeia que chegaram até nós pela colonização, de outro monumento moderno – o Pavilhão da Bienal, de rial e disputa de narrativa.

VOL. 11 / N. 53 MAR/ABR/MAI 2022 FOTOS: CORTESIA DO ARTISTA; COMISSÃO GUARANI YVYRUPÁ / REPRODUÇÃO
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Ensacamento (1979), de 3NÓS3; na pág. à


esq.,repercussão do evento na imprensa
e coluna Noite Ilustrada (1998), de Erika
Palomino

DEPOSIÇÃO DO PEDESTAL
Notável expoente da escultura em escala monumental, misturados”, rendendo o texto “Eu dancei sobre o Monu-
José Resende, em 1972, escreveu na revista Malasartes um mento às Bandeiras, em Pleno Ibirapuera”, na coluna Noite
texto sobre a deposição do pedestal pela arte moderna e Ilustrada, da jornalista Erika Palomino na Folha de S.Paulo.
contemporânea, usando como imagem referencial o Cor- Nova versão dessa festa interespécies deveria ser convoca-
covado sem o Cristo Redentor. Um diferencial determi- da contra a política armamentista do governo Bolsonaro.
nante do Monumento às Bandeiras, entre seus pares, é Entre a coluna festiva e pacifista de 1998, as notícias dos
justamente a ausência de pedestal. Sua singularidade em encapuzamentos anônimos nos cadernos policiais dos jor-
relação a outros monumentos históricos é sua proximida- nais de 1979 e as imagens da intervenção Guarani Yvyrupá
de com o chão. Seu fácil acesso é o que pode, em última que viralizaram na internet, em 2013, publicações e posta-
instância, promover o rebaixamento dos heróis à vida pro- gens ao longo do tempo e das mídias fazem desse símbolo
saica do cidadão, a afinidade entre os deuses olímpicos e modernista um espaço discursivo com significados perio-
os reles mortais. dicamente renovados.
A deposição do pedestal no projeto de Brecheret para a “A mídia foi parte essencial das intervenções, uma vez
expedição bandeirante tem uma dimensão paradoxal em que ela tornava esses eventos notícia e dava destaque para
relação a outro marco paulistano de sua autoria, o vertical as imagens-acontecimento”, diz Mario Ramiro sobre En-
e colossal Duque de Caxias, por muito tempo considerado sacamento. “Mas isso não foi suficiente para mobilizar
a maior estátua equestre do planeta. A dimensão simbólica uma discussão pública mais ampla. As intervenções foram
de um monumento ao rés do chão vem promover a diluição inicialmente divulgadas em reportagens que as tratavam
de limites entre arte e vida e facilitar cenas como a “dance- como acontecimentos na cidade e não como eventos artís-
ata”, ou parada clubber, que aconteceu num sábado de maio ticos. E mesmo como assunto dos cadernos de cultura as
de 1998 em São Paulo. A Parada da Paz pelo desarmamento ações performativas na cidade demoraram para ser inte-
da população reuniu no local 15 mil pessoas – entre drags, gradas aos discursos estéticos e políticos em pauta hoje.”
ravers, cyberpunks, freaks, tops, “todos os clãs, reunidos e

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FOTOS: ACERVO MARIO RAMIRO/ REPRODUÇÃO
Diferente dos modos de circulação da informação nos anos no Rio de Janeiro, tendo como alvo um monumento a Pedro
42 1980, restritos a veículos noticiosos convencionais e cen- Álvares Cabral, que pouco repercutiu. O 24J foi dia de inúme- 43

tralizados, a disputa de narrativas hoje tem um aliado fun- ras insurgências contra o governo federal. “Por que o fogo no
damental na estratégia midiática de difusão propiciada com Borba Gato ganhou as páginas analógicas e digitais na mídia
o advento da web 2.0; uma manifestação ou ato político se brasileira inteira, enquanto o Cabral incendiado circulou em
alastra como fogo em palheiro nas mídias sociais. Mas tudo poucos perfis de Instagram? Por que uma ação se tornou sím-
depende do entendimento comunicacional dos propositores bolo de levante social com a subsequente pressão massiva por
da ação. Pensando nisso, o artista Diego Castro, que trabalha parte da sociedade pela soltura do ativista Paulo Roberto da
com arquivos de imagens de grande circulação na imprensa, Silva Lima, o Galo, e a outra ninguém mais lembra que acon-
criou a instalação Gato Escaldado 24J (2021), exposta na co- teceu nem sabe dizer quem foram seus autores?”, indaga o
letiva Espumas Siderais, na Galeria Marli Matsumoto, em São artista para seLecT. “Colocar fogo na estátua foi apenas uma
Paulo, que decupa um frame de vídeo que circulou no Insta- das diversas estratégias de guerra midiática que o grupo
gram no dia do protesto reivindicado pelo grupo Revolução Revolução Periférica adotou. Além de pneus e fogo, foram
Periférica. A imagem do Borba Gato em chamas se transfor- até a Avenida Santo Amaro munidos de cinegrafistas e fo-
ma numa pintura encoberta por filtros em tons preto, cinza tógrafos. E no mesmo dia criaram uma conta no Instagram,
e vermelho. Manifestação muito semelhante à do incêndio tornando-se os principais emissores das notícias e motiva-
na estátua do bandeirante aconteceu no mesmo 24 de julho, ções do ataque”, completa.

Gato Escaldado 24J (2021), instalação de Diego Castro;


à dir., Glória Imortal aos Fundadores de São Paulo
(2022), modelagem em 3D do coletivo demonumenta

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ESTÁTUAS APAGAM
A MEMÓRIA DOS
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MEMÓRIA COLONIAL PARTILHADA
Achille Mbembe, teórico político camaronês, aponta que
POVOS ORIGINÁRIOS, Colombo, Mitre, Belgrano, Isabel a Católica, Valdívia, Quesa- 45

monumentos são a “expressão espetacular do poder de DAS POPULAÇÕES da, Aguirre, Zabala, Pedro Álvares Cabral, Marechal Deodoro,
destruição e escamoteação que, do princípio ao fim, moveu Duque de Caxias, Anhanguera, Borba Gato... Personagens
o projeto colonial”. Neles, raramente estão representados AFRODIASPÓRICAS que legitimam a ideologia colonial e militar na América
mulheres, negros e indígenas.
Principal alicerce do projeto e do imaginário colonial nas
E DAS MULHERES do Sul compõem a série Desmonumento (2020-2021), de
Evandro Prado. “Não posso concordar que as estátuas são
Américas, o invasor Cristóvão Colombo foi alvo frequente intocáveis ou que sua queda seria o seu simples apagamen-
dos protestos que explodiram em cidades latino-america- to”, aponta Prado em texto do livro lançado durante expo-
nas e estadunidenses catalisados pelo assassinato de Ge- sição no Centro Cultural São Paulo, em fevereiro de 2022.
orge Floyd, em maio de 2020. Membros do povo indíge- Sua forma de tocá-las, portanto, foi pintar aquarelas em
na Misak enlaçaram as cabeças das estátuas de Colombo pequeno formato – procedimento caseiro escolhido pelas
e Isabel a Católica e arrancaram o conquistador italiano condições impostas pela pandemia do Coronavírus –, com
de seu pedestal, na cidade colombiana de Barranquilla. Em representações dessas estátuas pichadas, tombadas e de-
São Paulo, o Revolução Periférica incendiou o Borba Gato. capitadas, mesmo que na realidade isso nem sempre tenha
Nos debates que se seguiram sobre a legitimidade da des- acontecido.
truição de estátuas e sobre as contradições e conflitos da
memória que elas promovem, artistas realizam projetos
que expressam uma vontade coletiva de fazer oposição a
uma narrativa hegemônica. Pensar que representatividade
têm hoje homens brancos, armados, eternizados em már-
more e granito e posicionados estrategicamente no tecido
urbano moveu Evandro Prado a começar a série de escul-
turas e instalações Minimentos (2016), seguida de Desmo-
numento (2020-2021).

Cristóbal Colón – Lima; na pág. ao


lado, Duque de Caxias – São Paulo,
aquarelas da série Desmonumento
(2020-2021), de Evandro Prado

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À esq., intervenção sobre a estátua de
Anhanguera, em São Paulo, de autoria do Grupo
de Ação, em 2020; abaixo, Refazendo Mitos (2019-
2020) e Invocar/Evocar (2020), de Helô Sanvoy

46 Invocar/Evocar (2020), composto de três proposições, 47

O INCÔMODO E O MONSTRUOSO pode ser considerado um desenvolvimento da ação no


Tensionar crítica e criativamente as políticas da memória é campo da produção histórica. Mais ou menos na lógica do
o intuito do projeto coletivo demonumenta, que reúne do- “quem conta um conto acrescenta um ponto”, a obra pro-
centes e alunos da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo move uma interessante torção dos elementos que confor-
da USP (FAU-USP). A primeira fase do projeto contempla mam a história do encontro de Anhanguera com os Goya-
patrimônios arquitetônicos e escultóricos “incômodos” re- zes, invertendo a ordem dos fatores e criando novos senti-
lacionados às comemorações da Independência do Brasil e dos: “Coloque uma dose de cachaça em um copo, coloque
à Semana de Arte Moderna de 1922. “É uma pena que nos fogo na cachaça e beba em um gole. Beba enquanto ainda
concentremos apenas no Monumento às Bandeiras e no Bor- estiver pegando fogo”, indica a terceira instrução.
ba Gato. Não nos faltam ‘monstrumentos’ a contestar”, diz a O Monumento a Anhanguera é outro alvo preferido dos
artista e docente Giselle Beiguelman à seLecT. “Pessoalmen- protestos descoloniais – e talvez seu posicionamento em
te, vejo o Glória Imortal aos Fundadores de São Paulo como frente ao Masp conte pontos aqui –, começando pela mar-
o mais terrível. É uma aula sobre as políticas públicas de cha de cerca de 1,2 mil indígenas e quilombolas, em 2013,
memória como políticas de apagamento.” Segundo ela, em que por ali passaram atando-o com um tecido pintado com
seu arranjo simbólico e plástico, a obra apaga da memória grafismos indígenas, antes de alcançar o Monumento às
as histórias dos povos originários, da população afrodiaspó- Bandeiras para tingi-lo de vermelho. A obra figura nas re-
rica, das mulheres e das vítimas da Inquisição. “Todos eles, centes listagens de monumentos que deveriam ser retira-
atores fundamentais da história do Brasil.” dos ou derrubados, informa o texto de Isabela Leite no site
demonumenta elabora modelagens em 3D e estudos sobre do projeto demonumenta: “O Projeto de Lei 404-2020 de
monumentos e “monstrumentos”. O termo é cunhado a par- Erica Malunguinho, por exemplo, define-o como um dos
tir das considerações de que a palavra latina monumentum ‘oito monumentos da cidade destinados a homenagear de-
acabou dando origem ao substantivo monstrum – ‘prodígio, fensores e pessoas comprometidas com o sistema escravis-
mau presságio, aberração’. “Monumentos e monstros são, ta’ e propõe sua retirada de via pública e armazenamento
portanto, parentes próximos. São monstrumentos que ocu- em museu”.
pam as cidades com dedos em riste, espadas, cavalos e ho- A contestação dos monstrumentos no contexto da arte
mens brancos fardados”, completa Beiguelman. contemporânea é fruto direto das pressões dos movimen-
Monstruosa é também a memória de Anhanguera evocada tos sociais. No ínterim entre esses âmbitos se insere o Gru-
por Helô Sanvoy em Refazendo Mitos (2019-2020). O pro- po de Ação, que se autodefine como “aliança suprapartidá-
jeto, composto de uma ação urbana e um conjunto de pro- ria e anticapitalista de pessoas movidas por uma força sem
posições (Invocar/Evocar), parte de uma das histórias da nome próprio, feita no acaso da necessidade”. O grupo faz,
origem do nome Anhanguera (do tupi “diabo velho”, ou “es- desde o início do governo Bolsonaro, ações públicas de re-
pírito maligno”). Segundo a narrativa popular, o nome foi sistência com textos, pinturas, projeções, atos, performan-
dado por indígenas Goyá ou Goyazes ao bandeirante Barto- ces e intervenções urbanas. Em outubro de 2020, eles dis-
lomeu Bueno da Silva (pai) em seu caminho à caça de ouro. puseram caveiras retiradas do lixo de uma escola de samba
Diante da negativa da sinalização do caminho para o metal na base dos principais monumentos a bandeirantes em São
precioso, o bandeirante teria ameaçado com fogo a região e Paulo. Mas é possível ler outras de suas intervenções na
simulado a queimada atiçando fogo a um copo de cachaça. chave da descolonização. Como o Antidesfile, promovi-
A ação de Sanvoy, realizada em fevereiro de 2020, consistiu do em 7 de setembro de 2020, que desmonumentalizou o
em reencenar o fogo-fátuo de Anhanguera atiçando uma grito da Independência com recursos plásticos e poéticos
chama temporária, com tecidos encharcados com material como a bandeira: “Dependência e Morte”, escrita com ti-
inflamável no Monumento a Anhanguera (1924), de Luigi pografia de tags do picho paulistano.
Brizzolara, localizado no Parque Trianon, na Avenida Pau- Um símbolo da ausência de políticas públicas efetivas sob
lista, em frente ao Masp. “Em contraponto ao fogo sobre a pandemia é a estátua do patrono do Exército brasilei-
museus e florestas, que apaga e promove o esquecimento ro, no Centro de São Paulo, cercada de pessoas sem-teto,
da história, a ação fala do fogo como elemento criador, o sem dignidade e com fome. Há muito o que se pensar e
fogo antropófago”, diz Sanvoy à seLecT. discutir sobre a representatividade dos monumentos.

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FOTOS: CORTESIA DOS ARTISTAS

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