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DESCOLONIZAR
O MONUMENTO
VOL. 11 / N. 53 MAR/ABR/MAI 2022
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CURADORIA
NARRATIVAS
DO RESTAURO DE VÁRZEAS AO
ENCAPUZAMENTO DE ESTÁTUAS,
ARTISTAS PROJETAM NOVOS SENTIDOS A
MONUMENTOS, MANIFESTANDO VONTADE
COLETIVA DE FAZER OPOSIÇÃO A UMA
HISTÓRIA HEGEMÔNICA
VOL. 11 / N. 53 EM DISPUTA
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2022 É UMA EFEMÉRIDE CAPCIOSA. NO CENTENÁRIO DA SE- arte e a cultura brasileira seriam comparáveis ao choque que no texto e projeto cocuratorial de Massimiliano Gioni em Un- Concebido, em 1920, por Victor Brecheret, um dos “heróis”
MANA DE ARTE MODERNA E BICENTENÁRIO DA INDEPEN- a derrubada da estátua de um czar russo causou nas vanguar- monumental, no New Museum, em 2007, por aqui, os atos so- da Semana de 22, para um concurso público de celebração do
DÊNCIA DO BRASIL, A PANDEMIA DE COVID-19 E A CRISE PO- das estéticas europeias no começo do século 20? Se o levante bre o Monumento às Bandeiras foram a faísca para o crítico centenário da Independência, o Monumento às Bandeiras só
LÍTICA PRECIPITAM GRAVES RETROCESSOS E O PAÍS REIN- iconoclasta da Revolução de Outubro de 1917 – reencenada e professor Tadeu Chiarelli começar a pesquisar os modos de foi edificado em 1953. Durante décadas, a estátua em homena-
CIDE NAS VIOLÊNCIAS DO COLONIALISMO. Vidas de pessoas por Eisenstein em October (1927) – resultou numa reação em recepção da obra de Brecheret por artistas atuantes em São gem aos bandeirantes que “desbravaram” o interior do estado
negras, indígenas, LGBTQIA+, mulheres, ambientalistas cadeia, repetindo-se em movimentos de igual potência, co- Paulo, como Jaime Lauriano, Sydney Amaral e Regina Silveira. de São Paulo em busca de ouro foi considerada uma alegoria
e imigrantes ameaçadas; tradições étnico-raciais em pro- nectados a outros recentes, como a Primavera Árabe e o mo- Um levantamento recente do Instituto Pólis indicou que pelo do espírito empreendedor paulista. Seu significado começou
cessos deliberados de apagamento. Contra o que Vladimir vimento Black Lives Matter, a ação coordenada pelos Guarani menos 14 das 380 estátuas em espaços públicos na cidade a ser discutido durante o regime militar, mas foi o vermelho
Safatle define como “rituais periódicos de destruição de Yvyrupá para protestar contra um projeto de lei que renega- de São Paulo são hoje disputadas. Entre elas, Duque de Ca- Guarani Yvyrupá que trouxe a memória do sangue indígena
corpos”, artistas e ativistas insurgem-se em atos e inter- va a demarcação de terras indígenas, sinaliza o início de uma xias, Padre Anchieta, Pedro Álvares Cabral – que durante a derramado nas conquistas e expedições do século 17 e elevou
venções sobre marcos históricos que perpetuam o imagi- guinada contranarrativa descolonial no contexto da arte e da 34ª Bienal de São Paulo foi enfrentada pelas entidades-cobras a estátua à condição de alegoria dos traumas coloniais que
nário colonizador no espaço urbano. sociedade brasileira. de Jaider Esbell, no lago do Ibirapuera – e o Monumento às ainda vigoram no país. Tinta vermelha que, defendeu Marcos
Em que medida os efeitos que a intervenção do grupo Gua- Enquanto o rolar da cabeça do czar atingiu em cheio a tradição Bandeiras, grande palco dos atos de contestação da história Tupã, coordenador da Comissão Guarani Yvyrupá, em Mani-
rani Yvyrupá com tinta vermelha sobre o Monumento às da escultura ocidental, escoando no ensaio crítico Caminhos da oficial do Brasil, que escancara a opressão do conquistador festo publicado após a intervenção, não foi usada como agres-
Bandeiras, em São Paulo, em outubro de 2013, teve sobre a Escultura Moderna (1977), de Rosalind Krauss, e se atualizando sobre os povos indígenas e africanos escravizados. são, mas como símbolo de transformação.
VOL. 11 / N. 53 MAR/ABR/MAI 2022 FOTOS (NESTA PÁG. DUPLA E NA ANTERIOR): CORTESIA DOS ARTISTAS
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VOL. 11 / N. 53 MAR/ABR/MAI 2022 FOTOS: CORTESIA DO ARTISTA; COMISSÃO GUARANI YVYRUPÁ / REPRODUÇÃO
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DEPOSIÇÃO DO PEDESTAL
Notável expoente da escultura em escala monumental, misturados”, rendendo o texto “Eu dancei sobre o Monu-
José Resende, em 1972, escreveu na revista Malasartes um mento às Bandeiras, em Pleno Ibirapuera”, na coluna Noite
texto sobre a deposição do pedestal pela arte moderna e Ilustrada, da jornalista Erika Palomino na Folha de S.Paulo.
contemporânea, usando como imagem referencial o Cor- Nova versão dessa festa interespécies deveria ser convoca-
covado sem o Cristo Redentor. Um diferencial determi- da contra a política armamentista do governo Bolsonaro.
nante do Monumento às Bandeiras, entre seus pares, é Entre a coluna festiva e pacifista de 1998, as notícias dos
justamente a ausência de pedestal. Sua singularidade em encapuzamentos anônimos nos cadernos policiais dos jor-
relação a outros monumentos históricos é sua proximida- nais de 1979 e as imagens da intervenção Guarani Yvyrupá
de com o chão. Seu fácil acesso é o que pode, em última que viralizaram na internet, em 2013, publicações e posta-
instância, promover o rebaixamento dos heróis à vida pro- gens ao longo do tempo e das mídias fazem desse símbolo
saica do cidadão, a afinidade entre os deuses olímpicos e modernista um espaço discursivo com significados perio-
os reles mortais. dicamente renovados.
A deposição do pedestal no projeto de Brecheret para a “A mídia foi parte essencial das intervenções, uma vez
expedição bandeirante tem uma dimensão paradoxal em que ela tornava esses eventos notícia e dava destaque para
relação a outro marco paulistano de sua autoria, o vertical as imagens-acontecimento”, diz Mario Ramiro sobre En-
e colossal Duque de Caxias, por muito tempo considerado sacamento. “Mas isso não foi suficiente para mobilizar
a maior estátua equestre do planeta. A dimensão simbólica uma discussão pública mais ampla. As intervenções foram
de um monumento ao rés do chão vem promover a diluição inicialmente divulgadas em reportagens que as tratavam
de limites entre arte e vida e facilitar cenas como a “dance- como acontecimentos na cidade e não como eventos artís-
ata”, ou parada clubber, que aconteceu num sábado de maio ticos. E mesmo como assunto dos cadernos de cultura as
de 1998 em São Paulo. A Parada da Paz pelo desarmamento ações performativas na cidade demoraram para ser inte-
da população reuniu no local 15 mil pessoas – entre drags, gradas aos discursos estéticos e políticos em pauta hoje.”
ravers, cyberpunks, freaks, tops, “todos os clãs, reunidos e
tralizados, a disputa de narrativas hoje tem um aliado fun- ras insurgências contra o governo federal. “Por que o fogo no
damental na estratégia midiática de difusão propiciada com Borba Gato ganhou as páginas analógicas e digitais na mídia
o advento da web 2.0; uma manifestação ou ato político se brasileira inteira, enquanto o Cabral incendiado circulou em
alastra como fogo em palheiro nas mídias sociais. Mas tudo poucos perfis de Instagram? Por que uma ação se tornou sím-
depende do entendimento comunicacional dos propositores bolo de levante social com a subsequente pressão massiva por
da ação. Pensando nisso, o artista Diego Castro, que trabalha parte da sociedade pela soltura do ativista Paulo Roberto da
com arquivos de imagens de grande circulação na imprensa, Silva Lima, o Galo, e a outra ninguém mais lembra que acon-
criou a instalação Gato Escaldado 24J (2021), exposta na co- teceu nem sabe dizer quem foram seus autores?”, indaga o
letiva Espumas Siderais, na Galeria Marli Matsumoto, em São artista para seLecT. “Colocar fogo na estátua foi apenas uma
Paulo, que decupa um frame de vídeo que circulou no Insta- das diversas estratégias de guerra midiática que o grupo
gram no dia do protesto reivindicado pelo grupo Revolução Revolução Periférica adotou. Além de pneus e fogo, foram
Periférica. A imagem do Borba Gato em chamas se transfor- até a Avenida Santo Amaro munidos de cinegrafistas e fo-
ma numa pintura encoberta por filtros em tons preto, cinza tógrafos. E no mesmo dia criaram uma conta no Instagram,
e vermelho. Manifestação muito semelhante à do incêndio tornando-se os principais emissores das notícias e motiva-
na estátua do bandeirante aconteceu no mesmo 24 de julho, ções do ataque”, completa.
monumentos são a “expressão espetacular do poder de DAS POPULAÇÕES da, Aguirre, Zabala, Pedro Álvares Cabral, Marechal Deodoro,
destruição e escamoteação que, do princípio ao fim, moveu Duque de Caxias, Anhanguera, Borba Gato... Personagens
o projeto colonial”. Neles, raramente estão representados AFRODIASPÓRICAS que legitimam a ideologia colonial e militar na América
mulheres, negros e indígenas.
Principal alicerce do projeto e do imaginário colonial nas
E DAS MULHERES do Sul compõem a série Desmonumento (2020-2021), de
Evandro Prado. “Não posso concordar que as estátuas são
Américas, o invasor Cristóvão Colombo foi alvo frequente intocáveis ou que sua queda seria o seu simples apagamen-
dos protestos que explodiram em cidades latino-america- to”, aponta Prado em texto do livro lançado durante expo-
nas e estadunidenses catalisados pelo assassinato de Ge- sição no Centro Cultural São Paulo, em fevereiro de 2022.
orge Floyd, em maio de 2020. Membros do povo indíge- Sua forma de tocá-las, portanto, foi pintar aquarelas em
na Misak enlaçaram as cabeças das estátuas de Colombo pequeno formato – procedimento caseiro escolhido pelas
e Isabel a Católica e arrancaram o conquistador italiano condições impostas pela pandemia do Coronavírus –, com
de seu pedestal, na cidade colombiana de Barranquilla. Em representações dessas estátuas pichadas, tombadas e de-
São Paulo, o Revolução Periférica incendiou o Borba Gato. capitadas, mesmo que na realidade isso nem sempre tenha
Nos debates que se seguiram sobre a legitimidade da des- acontecido.
truição de estátuas e sobre as contradições e conflitos da
memória que elas promovem, artistas realizam projetos
que expressam uma vontade coletiva de fazer oposição a
uma narrativa hegemônica. Pensar que representatividade
têm hoje homens brancos, armados, eternizados em már-
more e granito e posicionados estrategicamente no tecido
urbano moveu Evandro Prado a começar a série de escul-
turas e instalações Minimentos (2016), seguida de Desmo-
numento (2020-2021).