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O CANDOMBLÉ EM SÃO PAULO


E A SACRALIZAÇÃO
DO ESPAÇO URBANO
Vagner Gonçalves da Silva*

MIGRAÇÃO E FORMAÇÃO
DO CANDOMBLÉ
EM SÃO PAULO

E
ntre os fatores do cresci­
mento do número de ter­
reiros de candomblé, veri­
ficado a partir dos anos 60
em São Paulo, está a imi­
gração de populações nordestinas que nes­
se período é intensa. Os adeptos vieram de
regiões onde essa religião teve um desen­
volvimento maior, como o Nordeste e pos­
teriormente o Rio de Janeiro, em busca de
melhores condições de vida. Chegando
aqui principalmente para trabalhar, mui­
tos deram continuidade à sua história de
vida religiosa fazendo da reconstituição .
das “ familias-de-santo” e das “ nações”
religiosas uma importante estratégia de
sobrevivência sob as novas condições de
vida na metrópole.(l)

“ FAMÍLIAS -DE-SANTO”

Entre as principais “ nações” que se


expandiram em São Paulocom a vinda dos
imigrantes estão o angola, o efã e queto
(“ nações” predominantes nas cidades da
Bahia), o xangô de Pernambuco, o xambá
de Alagoas, o tambor de mina maranhense
e agora, inclusive, o batuque gaúcho, mar­
cando as migrações sociais e religiosas
também no sentido sul-sudeste. Da “ na­
ção” angola um dos nomes mais lembra­
dos pelo povo-de-santo que deu continui­
dade aqui à sua família religiosa é o de Pai
Joãozinho da Goméia (João Torres Filho),
baiano de origem, que por volta dos anos
50 se estabeleceu no Rio de Janeiro e
através de frequentes viagens a São Paulo
iniciou grande quantidade de filhos. São

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também desta “ nação” os descendentes
paulistas de Nanã de Aracaju (Erundina
Exemplo de “família-de-santo”
Nobre Santos, famosa mãe-de-santo desta
e migração religiosa:
cidade), como Mãe Manodê que se estabe­
leceu na Vila Brasilândia, em São Paulo, Maria da Paixão (BA)
sendo seu terreiro provavelmente o pri­ I
meiro a ser registrado como de candom­ Matilde de Jagun I (BA)
blé. nos anos 60. Da “ nação’’ efã, fundada Matilde de Jagun II (BA)
em Salvador por africanos (Maria da Pai­ I
xão e seu esposo Olufandeí) vieram seus Cristóvão de Ogum (BA, RJ )
descendentes de terceira geração para o ________________ I ___________
I ------------------- 1
Rio de Janeiro como Cristóvão de Ogum, Waldomiro de Xangô (BA, RJ, SP) Álvaro de Omolu (RJ, SP)
cujos filhos-de-santo Waldomirode Xangô I
I
e Álvaro de Omolu trouxeram este rito Diniz de Oxum (RJ, SP) - Ada de Obaluaiê (SP)
para São Paulo - José Mauro de Oxóssi (SP)
I - João Carlos de Ogum (SP)
Na trilha aberta pelo efã, a “ nação” Gilberto de Exu (SP)
queto (da qual fazem parte terreiros naci­
onalmente conhecidos como o Gantois e o
Opô Afonjá, ambos de Salvador) foi trazida, busca de melhores condições de vida) a (força sagrada). É nele que se encontram
entre outros, por Seu Nezinho de Ogum, migração geográfica significou a possibi­ os altares e objetos sagrados e estão plan­
proveniente de M uritiba, cidade do lidade de expansão de sua “ família-de- tados (enterrados, muitas vezes) os “ fun­
Recôncavo Baiano. Pai Nezinho, nos anos santo” que havia permanecido no Recife. damentos” dos orixás. É, portanto, atra­
60 e 70, vinha frequentemente a São Paulo Em 1984, José patrocinou a vinda de sua vés do modo como o espaço profano se
para iniciar pessoas na religião e passar mãe-de-santo, Das Dores (respeitada figu­ torna sagrado que se compreende a visão
seus conhecimentos aos já iniciados. Sua ra do culto pernambucano), e do seu terrei­ de mundo estabelecida pela religião.
filha carnal Juju de Oxum, uma das mais ro. A mudança deste (dos objetos rituais, Imaginando um gradiente que vai do
antigas iniciadas de São Paulo continua a assentamento dos orixás etc.), realizada menos ao mais sagrado os “ espaços me­
herança religiosa de Pai Nezinho em seu por avião, ilustra bem as transformações nos sagrados” do terreiro são os constitu­
terreiro localizado em Sapopemba, na Zona ocorridas no campo religioso afro-brasi- ídos pelos cômodos ou lugares cujo acesso
Leste. leiro de São Paulo que a partir dos anos 70 é permitido a todos, como o barracão:
Da “ nação” jêje, na sua variável já é considerado propício para sediar ter­ lugar onde se realizam as festas e os toques
maranhense, chamada tambor-de-mina, reiros antigos e famosos, garantindo, aqui, públicos.
veio o paraense Francelino de Xapanã. a continuidade destes, m uitas vezes A estes somam-se os “ espaços mais
Pioneiro desta “ nação” em São Paulo o ameaçada (por motivos financeiros e ou­ sagrados” , depositários das coisas do axé,
terreiro de Pai Francelino, fundado há tros) em suas terras de origem. cujo acesso é permitido somente aos inici­
mais de dez anos no município de Diadema, ados, como o roncó: quarto de feitura,
na Grande São Paulo, abriga o culto aos A SACRALIZAÇÃO DOS onde são realizados os rituais mais secre­
tos da religião (como as iniciações); o pejí:
voduns e “ encantados” , entidades muito ESPAÇOS URBANOS
populares no Pará e Maranhão. local onde ficam os assentamentos dos
O candomblé em São Paulo não se orixás cultuados, em forma de altar coleti­
Sendo o condomblé uma religião mági­
formou, contudo, apenas pelo transposi­ vo ou que, dependendo das dimensões do
ca, sacrificial e de culto a deuses que
ção das “ famílias-de-santo” e das “ na­ terreiro, poderá ser constituído por altares
representam as forças da natureza, seu
ções” de outros locais para cá, sem cho­ separados (para cada deus) no interior de
desenvolvimento na metrópole (espaço tipo
ques ou impedimentos. Para a mãe-de- pequenos cômodos; o quarto de Exu:
por excelência como o dos processos de
santo Zefinha de Oxum, por exemplo, que local de veneração a este deus que, sendo
racionalização, urbanização e industriali­
veio do Recife para São Paulo acompa­ considerado agente mensageiro e interme­
zação) realiza-se como resultado de nego­
nhando seu marido em 1951, a migração diário entre os homens e os orixás, deve ter
ciações entre a esfera religiosa e as outras
geográfica também significou migração seu altar separado dos demais; o quarto de
que se lhe opõem. Ao sacralizar o terreiro
religiosa do candomblé para a umbanda. Balé: onde se encontram assentados os
e a cidade, o candomblé sinaliza um espa­
Iniciada no xangô pernambucano (varia­ eguns da casa, espíritos dos mortos, e os
ço físico e social com seus simbolos religi­
ção regional do rito queto), Mãe Zefinha, altares externos: lo cais onde são
osos e sua forma peculiar de ver o mundo.
aqui, abriu seu terreiro (de umbanda) em “ plantados” os assentamentos de certas
1960, numa época em que esta religião era divindades que não podem ser cultuadas
OS ESPAÇOS DOS
melhor aceita que o candomblé. Contrari­ em recintos fechados como o Exu da casa
DEUSES NO TERREIRO cujo assentamento em geral deve ficar ao
amente, para seu irmão-de-santo José de
Oxalá, que no início dos anos 80 veio de lado do portão principal do terreiro para
No candomblé o terreiro é a sede do axé protegê-lo.
Recife para São Paulo (a princípio em

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Nos casos onde em poucos metros qua­ urbanizadas, mas afastadas do perímetro habitando-a com os deuses cujo culto traz
drados ocorrem os rituais e se alojam as urbano, com uma “ natureza mais intacta ’’, como dinâm ica religiosa peculiar a
representações materiais dos deuses, pres­ próprias ao culto aos orixás, como Cotia, sacralização dos elementos naturais, como
crições são reinterpretadas a partir do Taboão da Serra etc. montanhas, rios, mar, árvores e florestas.
sistema classificatório da religião e das Pois se orixá é também natureza, seu axé
necessidades de continuidade do culto. Se OS ESPAÇOS DOS encontra-se e renova-se na água, terra e
o terreiro não dispõe de barracão, uma sala DEUSES NA CIDADE folhas que lhe são consagradas. Muitos
de visitas de um típico sobrado urbano dos rituais da religião devem ser, portanto,
poderá dar lugar, com o arrastar dos mó­ Se a urbanidade “ invade” o espaço do realizados além dos muros dos terreiros,
veis, às danças e à incorporação dos orixás terreiro, o terreiro inserido na cidade abre- em pontos onde se acredita estar a fonte de
nos seus filhos. Se os Exus não podem ter se para ela, consagrando-a à sua imagem, energia mítica dos deuses.
sua própria casa, conviverão, então, com As manifestações nas praias das cida-
outras divindades num quarto coletivo, às
vezes separados por uma cortina. Se no
terreiro não há espaço para os assentamen­
tos dos deuses que são cultuados em altares
externos então estes serão recolhidos em
um quarto; e se, aí, nem todos os deuses
podem ficar no chão, de onde provém a
força vital que garante o dinamismo do
sistema cosmológico, serão então dispos­
tos em prateleiras seguindo, contudo, cer­
tas regras: os orixás mais “ quentes” , re­
lacionados com o fogo ou a terra (como
Ogum, Xangô e Obaluaiê), ocuparão as
posições, na prateleira, mas próximas ao
solo; já os orixás mais “ frios” relaciona­
dos com a água e o ar (como Oxum,
Iemanjá e Oxalá), ficarão nas posições
altas. Exu, guardião das fronteiras ficará
sempre próximo à porta do pejí e isto
acabará por reproduzir, mesmo num único
cômodo, todas as representações simbóli­
cas relevantes do sistema religioso do ter­
reiro.
Por outro lado, devido ao sucesso da
carreira sacerdotal dos pais-dc-santo ou às
boas condições financeiras anteriores, pro­
liferam em São Paulo terreiros instalados
em amplas dependências, construídas ou
adaptadas para satisfazer todas as necessi­
dades do culto, ou para atender também
uma certa “ sofisticação” e exigência de
conforto e de estilo próprios do mundo
moderno e absorvidos pelo grupo religio­
so.
Assim, em São Paulo, é comum que os
orixás sejam cultuados tanto em pequenos
apartamentos, em conjugados, cortiços,
fundos de garagem, velhos casarões itali­
anos no Bixiga, ao lado de restaurantes
chineses na Liberdade, ou ainda em majes­
tosas casas nos bairros nobres da cidade
como nos Jardins, Alto da Lapa etc. E há
também aqueles terreiros construídos para
o culto dos orixás em áreas menos

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des litorâneas brasileiras em louvor a mais antiga, a princípio recebeu muitos * Vagner G. da Silvaé antropólogo pela FFLCH
Iemanjá, rainha do mar, devido à sua dos seus adeptos. Num segundo momento, da USP, com pesquisa sobre o candomblé em
São Paulo, financiada pelo CNPq/FAPESP.
popularidade foram, no processo de ocu­ já melhor compreendido e aceito social­
p ação , s a c ra liz a ç ã o e mente, o candomblé se desenvolveu a par­
“ institucionalização” dos espaços natu­ tir da passagem de umbandistas para os NOTA
rais da cidade, as que mais visibilidade seus quadros, das novas levas de imigran­
trouxeramàs religiões aífo-brasileiras fora tes iniciados (ou que se iniciaram aqui) e 1- “ Famílias-de-santo” designa no can­
dos espaços dos terreiros. Cultuada em da progressiva conversão dos paulistas. domblé um grupo de adeptos que têm
torno do dia 8 de dezembro, em São Paulo, Inserido na metrópole, as práticas ritu­ relações de parentesco mítico estabelecido
tem sua festa realizada, desde os anos 60, ais do candomblé vêm se reproduzindo principalmente através da iniciação. Uma
na Praia Grande, consolidando-se cada através do diálogo com as condições do vez iniciada, a pessoa torna-se filha-de-
vez mais como expressão legítima da cul­ meio urbano, seja nos espaços físicos pro­ santo de seu iniciador, isto é, do seu de
tura religiosa popular sendo, inclusive, priamente ditos, da cidade, como praças, agora em diante pai ou mãe-de-santo e terá
atualmente patrocinada pelos órgãos de praias e encruzilhadas, nos ‘ ‘espaços’’ dos na comunidade religiosa irmãos, primos,
tu rism o m u n icip al e estad u al. meios de comunicação como rádio, televi- tios, avôs etc. “ no santo” . O termo “ na­
As oferendas para Oxum (deusa da são, jornais e revistas, e nos “ espaços” do ção’ ’, embora faça alusão aos grupos étni­
água doce) nos lagos, cachoeiras, represas circuito cultural urbano como teatros, cos dos escravos africanos trazidos para o
ou em áreas de mananciais denota, tam­ museus etc., onde formas de expressão Brasil como os bantos, nagôs etc., designa
bém, a apropriação simbólica do espaço artística (musical, iconográfica, dramáti­ muito mais uma forma (modalidade) de
urbano pela religião. E não é de se estra­ ca, coreográfica etc ), inspiradas na rito em torno da qual as “ famílias-de-
nhar que até em pequenos córregos que temática religiosa afro-brasileira, são santo’’ estabelecem sua identidade religi­
cortam a cidade ou mesmo em lagos como alaboradas e divulgadas como parte osa.
o do Ibirapuera possam os encontrar constitutiva e legítima da cultura brasilei­
oferendas a esta vaidosa deusa do amor. ra.
Outro importante deus a habitar os Assim, se o espaço da cidade passa a ser BIBLIOGRAFIA
espaços da cidade é Exu, deus da comuni­ pensado como parte integrante do cosmos
cação que recebe seus despachos nas ave­ do candomblé (uma extensão do domínio - BASTIDE, Roger -
nidas da cidade. Em geral a entrega dos do terreiro) é porque ele não se apresenta As Religiões Africanas no Brasil
São Paulo. Pioneira, 1971.
ebós de Exu realizam-se nas encruzilha­ aos olhos do fiel apenas como o lugar
das por volta da meia-noite, seja porque (profano) da convivência dos homens en­ - CONCONE, Maria Helena V. B. & NEGRÃO,
neste horário evidencia-se a transforma­ tre si, provenientes dos mais variados pon­ Lisias N. - "Umbanda: da Representação à
ção ou o limite entre o dia que finda e o tos, mas também dos deuses invocados Cooptaçâo. In: Umbanda e Política. Rio de Janei­
ro, Marco Zero, Cadernos do ISER (18): 43-80,
outro que se inicia ou porque as ruas da pelos homens nos momentos de sucesso ou 1985
cidade tornam-se menos movimentadas. aflição. Porque os orixás, como diz o povo-
Mas devem ser encruzilhadas em forma de de-santo, estão e atuam onde os homens - ELIADE, Mircea - O Sagrado e o Profano.
“ X ” (cruzamento de duas ruas), porque estão e atuam. E ao ser praticado por gente Ed. Livros do Brasil, Lisboa.
aquelas em forma de “ T ” (encontro per­ de todas as procedências, origem, cor, - GONÇALVES DA SILVA, Vagner -
pendicular de duas ruas) sãodePombagira, classe e status social, acomodando ritos e Candomblé na Cidade. Tradição e Renova­
qualidade feminina de Exu, muito solici­ construindo significados “ novos” , o can­ ção. São Paulo, FFLCH/USP, (mimeo), 1992.
tada para resolver problemas amorosos ou domblé mostra-se como religião dinâmica
- LIMA, Vivaldo da Costa -
sexuais. A champagne, cigarros e flores em diálogo com o mundo no qual se insere. A Familía-de-Santo dos Candomblés Jejê-
vermelhas são suas principais oferendas. E neste diálogo entre o candomblé e a Nagôs da Bahia. Salvador. UFBA.
cidade, a incorporação de termos de um
O TERREIRO E A CIDADE: NA universo pelo outro permite que os deuses - PRANDI, Reginaldo - Os Candomblés de São
Paulo. São Paulo, Hucitec/EDUSP, 1991.
ENCRUZILHADA DOS HOMENS E (e os seus ritos), se transformem para
DOS DEUSES habitar a cidade (como espaço físico e -PRANDI, Reginaldo&GONÇALVES DASILVA,
social) e que esta se faça cada vez mais Vagner - “Axé São Paulo". In: MOURA, Carlos E.
apropriada para recebê-los e protegê-los M. de (org.) Meu Sinal Está em Teu Corpo. São
A formação do candomblé em São
Paulo, EDICON/EDUSP, 1989.
Paulo é largamente tributária da imigra­ como parte integrante do seu amplo mer­
ção nordestina que a partir dos anos 60 cado de “ bens simbólicos” . Se os orixás
marcou a vinda das inúmeras ‘ ‘famílias- “ migram” acompanhando e marcando
de-santo” e “ nações” que compõem esta com seus símbolos o percurso dos seus
religião. filhos é porque a religião continua sendo
O candomblé aqui teve que se estabele­ uma forma importante de atuação no mun­
cer dialogando no interior de um campo do do qual se vem ou no qual se está.
religioso no qual a umbanda, majoritária e

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