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DADOS DE ODINRIGHT

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Rai­n er Ma­r ia Rilke

O t e s ­t a ­m e n ­t o

t r a ­d u ­ç ã o e n o ­t a s :
Te r ­c i o R e ­d o n ­d o

p r e ­f á ­c i o :
H e l ­m u t G a l ­l e
Rai­ner Ma­ria Rilke nas­ceu no dia 4 de de­zem­bro de 1875,
em Pra­ga, quan­do a Bo­êm ­ ia in­te­gra­va o im­pé­rio aus­tro-
hún­ga­ro. Edu­ca­do pe­la mãe den­tro de um ri­go­ro­so ca­to­li‐­
cis­mo, te­ve uma for­ma­ção cul­tu­ral es­sen­ci­al­men­te ger‐­
mâ­ni­ca. Após os es­tu­dos pre­pa­ra­tó­ri­os em Linz e Pra­ga,
in­gres­sou em 1896 na Uni­ver­si­da­de de Mu­ni­que, on­de
es­tu­dou his­tó­ria da ar­te. Pu­bli­cou aos 19 anos seu pri‐­
mei­ro li­vro, Vi­da e can­ções. En­tre 1895 e 1900 lan­ça­ria
três ou­tros tra­ba­lhos, con­si­de­ra­dos me­no­res. Foi en­tão
que co­nhe­ceu Lou Sa­lo­mé, ami­ga e dis­cí­pu­la de Ni­etzs‐­
che. De sua vi­a­gem à Rús­sia nas­ce­ria a pri­mei­ra gran­de
obra do au­tor, O li­vro das ho­ras, ao qual se se­gui­ram No‐­
vos po­em ­ as (1907-1908), Ele­gi­as de Du­í­no (1922) e So‐­
ne­tos a Or­feu (1922). Po­rém, seu li­vro mais fa­mo­so é
Car­tas a um jo­vem po­et­ a, es­cri­tas en­tre 1903 e 1908,
mos­tran­do a um ne­ófi­to, o ale­mão Franz Xa­ver Kap­pus,
os ca­mi­nhos do mun­do in­te­ri­or do es­cri­tor. En­tre 1902 e
1912 pas­seia e dá con­fe­rên­ci­as em vá­ri­os pa­í­ses eu­ro‐­
peus. De­pois da Pri­mei­ra Guer­ra Mun­di­al fi­xa-se na Su­í­ça
ale­mã. Qua­tro me­ses de­pois de pu­bli­car seus po­em ­ as
fran­ce­ses, fe­re-se aci­den­tal­men­te na mão. O fe­ri­men­to
agra­va a leu­ce­mia de que so­fria, le­van­do-o a fa­le­cer no
sa­na­tó­rio de Val­mont em 29 de de­zem­bro de 1926.
Ter­cio Re­don­do é dou­tor em Li­te­ra­tu­ra Ale­mã pe­la Uni­ver‐­
si­da­de de São Pau­lo. Tra­du­ziu, en­tre ou­tros, o dra­ma
Woy­zeck, de Ge­org Bü­ch­ner, e o ro­man­ce Nos pe­nhas­cos
de már­mo­re, de Ernst Jün­ger. Co­la­bo­ra com en­sai­os, re‐­
se­nhas e tra­du­ções pa­ra jor­nais e re­vis­tas.

Hel­mut Gal­le gra­duou-se e dou­to­rou-se em Li­te-ra­tu­ra Ale‐


mã Con­tem­po­râ­nea pe­la Uni­ver­si­da­de Li­vre de Ber­lim,
Ale­ma­nha. É pro­fes­sor do De­par­ta­men­to de Le­tras Mo‐­
der­nas da Uni­ver­si­da­de de São Pau­lo. Pu­bli­cou di­ver­sos
tra­ba­lhos, no Bra­sil e na Ale­ma­nha, so­bre li­te­ra­tu­ra ale‐­
mã da se­gun­da me­ta­de do sé­cu­lo xx, me­mó­ria co­le­ti­va e
au­to­bi­og
­ ra­fia, den­tre ou­tros te­mas.
Su­má­rio

Pu­lar su­má­rio [ »» ]

Pre­fá­cio
O tes­ta­men­to | Edi­ção fac-si­mi­lar e tra­du­ção em por­tu­‐
guês
No­tas
Crédi­tos
Pre­fá­cio

En­tre no­vem­bro de 1920 e maio de 1921, Rai­ner Ma­ria


Rilke hos­pe­dou-se no pe­que­no cas­te­lo de Berg am Ir­chel,
no nor­te da Su­í­ça, pa­ra con­ti­nu­ar — em vão — seu tra­ba‐­
lho em tor­no das Ele­gi­as de Du­í­no. O con­vi­te pa­ra vi­ver
nes­se lu­gar pri­vi­le­gi­a­do, de­sa­bi­ta­do du­ran­te o in­ver­no,
sur­giu pe­la me­di­a­ção da ami­ga Nanny Wun­derly-Volkart,
que, pou­co de­pois, con­se­guiu con­ven­cer ou­tros me­ce­nas
a alu­gar e, fi­nal­men­te, ad­qui­rir o cas­te­lo Mu­zot, em Si­er‐­
re, on­de o po­et­ a pô­de en­tão com­ple­tar o ci­clo das ele­gi‐­
as e es­cre­ver os So­ne­tos a Or­feu.

Es­se meio ano pas­sa­do em Berg não foi prós­pe­ro a


pon­to de Rilke lo­grar es­se ím­pe­to cri­a­ti­vo, em­bo­ra o po­e‐­
ta ti­ves­se jus­ta­men­te pro­cu­ra­do es­se sí­tio iso­la­do pa­ra
re­to­mar su­as ele­gi­as, que so­fre­ram uma lon­ga in­ter­rup‐­
ção em vir­tu­de da Pri­mei­ra Guer­ra Mun­di­al. Du­ran­te os
anos de 1912 e 1913, Rilke es­cre­veu os três pri­mei­ros
po­em ­ as; po­rém, a eclo­são da guer­ra cau­sou-lhe uma pro‐­
fun­da cri­se exis­ten­ci­al, afe­tan­do o pro­gres­so de sua obra.
Ape­nas em 1915 o po­et­ a con­se­guiu jun­tar mais uma ele‐­
gia ao ci­clo. Em 1920, na Su­í­ça, de­pois de pas­sa­das a
guer­ra e as tur­bu­lên­ci­as re­vo­lu­ci­on­ á­ri­as na Ale­ma­nha,
Rilke no­tou que a si­tu­aç ­ ão da épo­ca era pro­pí­cia pa­ra
uma no­va ten­ta­ti­va de re­to­mar a obra que se lhe afi­gu­ra‐­
va a mais sig­ni­fi­ca­ti­va e cu­ja in­con­clu­são o dei­xa­va bas‐­
tan­te apreen­si­vo. As­sim, o au­tor fi­ca­va mui­to gra­to pe­la
opor­tu­ni­da­de de ir a Berg e exi­lar-se de sua vi­da so­ci­al
em Zu­ri­que e da no­va re­la­ção amo­ro­sa com a pin­to­ra Ba‐­
la­di­ne Klos­sowska, pa­ra se de­di­car ex­clu­si­va­men­te à ta‐­
re­fa li­te­rá­ria.
A ar­tis­ta, ba­ti­za­da Eli­sa­be­th Do­ro­thee Spi­ro e ape­li­da‐­
da “Mer­li­ne” pe­lo po­et­ a — mãe de dois fi­lhos de seu ca‐­
sa­men­to com Eri­ch Klos­sowski, os quais, pos­te­ri­or­men­te,
se tor­na­ri­am co­nhe­ci­dos nos cam­pos da ar­te e da fi­lo­so‐­
fia —, con­sen­ti­ra nes­sa se­pa­ra­ção tem­po­rá­ria pa­ra que o
au­tor en­con­tras­se a sua al­me­ja­da se­re­ni­da­de cri­a­ti­va. O
ex­pe­ri­men­to fa­lhou por vá­ri­as ra­zões; uma de­las foi a do‐­
en­ça de Ba­la­di­ne em ja­nei­ro de 1921, que in­ter­rom­peu a
vo­lun­tá­ria so­li­dão do po­et­ a. Di­an­te des­se fa­to, ele não
en­con­trou a con­cen­tra­ção e o equi­lí­brio ne­ces­sá­ri­os pa­ra
avan­çar sen­si­vel­men­te no ci­clo das ele­gi­as.

Per­to do fim de sua es­ta­dia em Berg, Rilke lo­grou es‐­


cre­ver uma se­quên­cia de tex­tos que re­fle­tem as cir­cuns‐­
tân­ci­as ini­bi­do­ras de seu pro­ces­so cri­a­ti­vo, reu­nin­do 66
fo­lhas sob o tí­tu­lo O tes­ta­men­to. Tra­ta­va-se de um ma‐­
nus­cri­to di­li­gen­te­men­te pre­pa­ra­do, co­pi­a­do mais uma
vez à mão num li­vri­nho que Rilke en­tre­gou a seu edi­tor,
An­ton Kip­pen­berg, pe­din­do que a obra em ques­tão fos­se
guar­da­da de for­ma con­fi­den­ci­al. Uma ter­cei­ra ver­são foi
da­ti­lo­gra­fa­da por Kip­pen­berg.

Ape­sar do se­gre­do so­li­ci­ta­do pe­lo po­et­ a, a for­ma do


ma­nus­cri­to dá a im­pres­são de que ele fo­ra pre­pa­ra­do pa‐­
ra pu­bli­ca­ção. O ato de pas­sar a lim­po o que an­tes po­de
ter exis­ti­do na for­ma de di­ver­sas ano­ta­ções e ras­cu­nhos,
além da or­de­na­ção in­ten­ci­on­ al e me­ti­cu­lo­sa das pági­nas
e da es­tru­tu­ra in­ter­na (a “apre­sen­ta­ção” dos tex­tos por
um “edi­tor” em ter­cei­ra pes­soa, por exem­plo), pro­va que
se tra­ta de um do­cu­men­to pú­bli­co que Rilke le­ga­va — ca‐­
so o ci­clo de ele­gi­as per­ma­ne­ces­se um frag­men­to —; de
ma­nei­ra al­gu­ma, de um con­jun­to de­sor­de­na­do de pa­péis,
en­con­tra­do no es­pó­lio do au­tor.

O li­vro per­ma­ne­ceu in­cóg­ni­to até a sua pri­mei­ra edi‐­


ção, em 1974, por Ernst Zinn, edi­tor das Obras com­ple­tas
pe­la edi­to­ra In­sel (1955-66). Fi­ló­lo­go eru­di­to, Zinn acres‐­
cen­tou à trans­cri­ção fi­el da­que­le tex­to su­as no­tas ex­pli‐­
ca­ti­vas, uma ob­ser­va­ção críti­ca so­bre a ques­tão dos ma‐­
nus­cri­tos e um pos­fá­cio. Foi a pu­bli­ca­ção de Zinn que
ser­viu de ba­se pa­ra a pre­sen­te tra­du­ção e que for­ne­ceu
as in­for­ma­ções mais re­le­van­tes pa­ra as no­tas des­te li­vro
e seu pre­fá­cio, ade­mais das con­sul­tas ao Rilke Hand­bu­ch
(Ed. En­gel, 2004) e à bi­o­gra­fia de Ralph Freed­man (Li­fe
of a Po­et, 1996).

O tes­ta­men­to me­re­ce ser li­do com aten­ção por­que é


mui­to mais que um do­cu­men­to que guar­da a his­tó­ria do
ár­duo tra­ba­lho cri­a­ti­vo das Ele­gi­as de Du­í­no. Es­sa obra é
al­ta­men­te her­méti­ca e não se abre ao en­ten­di­men­to do
lei­tor no pri­mei­ro ins­tan­te. Daí a ne­ces­si­da­de de uma in‐­
tro­du­ção à sua lei­tu­ra.

A im­por­tân­cia do li­vro es­tá na in­ten­si­da­de com que o


po­et­ a re­fle­te so­bre a sua exis­tên­cia e, em par­ti­cu­lar, so‐­
bre as prin­ci­pais con­di­ções que per­mi­tem uma li­te­ra­tu­ra
de mai­or en­ver­ga­du­ra, no ní­vel de seus úl­ti­mos po­em ­ as.
A ten­são da es­pe­ra vi­ven­ci­a­da du­ran­te os seis me­ses em
Berg é trans­mi­ti­da nes­se con­jun­to de tex­tos, os quais
pro­cu­ra­ram de al­gum mo­do es­cla­re­cer o fra­cas­so da­que‐­
le pe­rí­od­ o. A se­ri­ed
­ a­de de seus ques­ti­on
­ a­men­tos com­pa‐­
ra-se, tal­vez, aos diá­ri­os de Franz Kafka, nas­ci­do em Pra‐­
ga, co­mo Rilke, e que vi­veu en­tre a ne­ces­si­da­de da so­li‐­
dão e o de­se­jo de uma mu­lher com­pla­cen­te, que o amas‐­
se sem in­ter­fe­rir em seu pro­ces­so cri­a­ti­vo. Rilke, mui­to
mais fe­liz com as mu­lhe­res do que Kafka, pa­de­ceu do
mes­mo mal: en­con­trar o equi­lí­brio ne­ces­sá­rio en­tre a vi‐­
da e a li­te­ra­tu­ra, obri­ga­ção que am­bos con­si­de­ra­vam es‐­
sen­ci­al e ine­vi­tá­vel. Nu­ma car­ta à con­des­sa Mir­ba­ch, em
mar­ço de 1921, Rilke es­cre­veu: “Ca­da um, fi­nal­men­te,
ex­pe­ri­men­ta um só con­fli­to em sua vi­da [...], o meu é re‐­
con­ci­li­ar o tra­ba­lho com a vi­da, em um sen­ti­do mais pu‐­
ro”[1]. A com­ple­xi­da­de des­se con­fli­to é re­ve­la­da pe­las
“análi­ses” que se en­con­tram n’O tes­ta­men­to: se o pro‐­
ble­ma fos­se sim­ples­men­te re­nun­ci­ar ao amor e se im­por
o tra­ba­lho, ele con­fi­gu­ra­ria uma ques­tão me­nor. Não se
tra­ta de ab­di­car dos sen­ti­men­tos e de ocu­par-se com a
“ta­re­fa” de es­cre­ver. Ao con­trá­rio, pa­ra per­ma­ne­cer no
ní­vel das pri­mei­ras ele­gi­as, Rilke de­ve­ria es­tar ab­so­lu­ta‐­
men­te aber­to e aten­to pa­ra o mun­do, en­tre­gue aos seus
sen­ti­dos e, ao mes­mo tem­po, en­con­trar-se com­ple­ta‐­
men­te con­cen­tra­do — du­ran­te o tem­po que fos­se ne­ces‐­
sá­rio.

Co­mo ele não po­de­ria se man­ter “se­re­no” di­an­te dos


pro­ble­mas de sua ama­da, a si­tu­a­ção se trans­for­mou em
um com­ple­to dou­ble-bind que tão-so­men­te evo­ca­va e re‐­
no­va­va os di­le­mas da in­fân­cia. O tes­ta­men­to des­men­te,
de ma­nei­ra drásti­ca, to­dos os cli­chês que a ima­gi­na­ção
do kits­ch po­pu­lar man­tém so­bre a pro­du­ção po­éti­ca, se‐­
jam eles do ti­po “o bei­jo da mu­sa” ou “a tor­re de mar‐­
fim”.

A so­li­dão, al­me­ja­da e en­ca­re­ci­da por Rilke, em Berg, e


in­vo­ca­da n’O tes­ta­men­to, é aque­la que Mau­ri­ce Blan­chot
con­si­de­ra es­sen­ci­al pa­ra a obra de ar­te. Mui­to além de
um iso­la­men­to com­pla­cen­te con­si­go mes­mo, ao se de­di‐­
car a uma ta­re­fa, es­sa so­li­dão im­pli­ca um con­sen­ti­men­to
do au­tor com a es­tra­nhe­za da­qui­lo que se­rá a obra. Vi­ver
se­gun­do as or­dens de al­go que ain­da não se ma­ni­fes­tou
e, tal­vez, nun­ca se ma­ni­fes­ta­rá, é o ris­co do ar­tis­ta. O
“sem no­me” era co­mo Rilke cha­ma­va es­se além-do-ho‐­
mem e da rea-li­da­de pro­fa­na. No en­tan­to, o au­tor se re‐­
cu­sa­va a iden­ti­fi­car es­se “sem no­me” com Deus, as­sim
co­mo os “an­jos” em­ble­máti­cos das Ele­gi­as de Du­í­no tam‐­
pou­co cor­res­pon­di­am aos men­sa­gei­ros de al­gu­ma co­nhe‐­
ci­da di­vin­da­de ve­ne­ra­da por co­mu­ni­da­des re­li­gi­os
­ as.
O uso se­cu­la­ri­za­do dos con­cei­tos da lin­gua­gem re­li­gi­o‐­
sa es­tá re­la­ci­on ­ a­do ao lu­gar que Rilke ocu­pa na his­tó­ria
li­te­rá­ria; no iní­cio do sé­cu­lo xx, sur­gi­ram três pro­je­tos
am­bi­ci­os ­ os de re­no­va­ção da po­es ­ ia ale­mã, em­preen­di­dos
por três fi­gu­ras ex­cep­ci­on ­ ais: Ste­fan Ge­or­ge, Hu­go von
Hof­manns­thal e Rai­ner Ma­ria Rilke. Seu ob­je­ti­vo foi re­cu‐­
pe­rar a po­si­ção cen­tral que os po­et­ as ocu­pa­vam na épo‐­
ca de Go­et­ he e Schil­ler: preen­cher o va­zio dei­xa­do pe­la
re­li­gi­ão e con­ce­ber, por meio da li­te­ra­tu­ra, a ori­en­ta­ção
de uma so­ci­ed ­ a­de in­tei­ra, ex­pres­sar em fic­ções pa­ra­dig‐­
máti­cas a ra­zão de ser do ho­mem. O pa­pel do ar­tis­ta co‐­
mo pro­ta­go­nis­ta da “ar­te-re­li­gi­ão” do sé­cu­lo xix já es­ta­va
em ple­no de­clí­nio no co­me­ço da mo­der­ni­da­de, quan­do
foi re­for­mu­la­do por Ge­or­ge, no idi­om ­ a do sa­cer­do­te, por
Hof­manns­thal, na for­ma aris­to­cráti­ca, e por Rilke, no mo‐­
do da pro­fe­cia. So­men­te es­te al­çou o pa­ta­mar de uma
con­ti­nu­a­da re­cep­ção in­ter­na­ci­on ­ al, o que po­de ser com‐­
pro­va­do por inú­me­ras tra­du­ções, mo­no­gra­fi­as e tam­bém
em pági­nas da in­ter­net. (A enor­me re­per­cus­são no âm­bi‐­
to da “fi­lo­so­fia po­pu­lar”, do eso­te­ris­mo e da au­to­a­ju­da,
con­tu­do, re­ve­la os pe­ri­gos que cor­re es­sa po­es ­ ia: ser
mal-com­preen­di­da e tri­vi­a­li­za­da.)

O tom ele­va­do e o rit­mo das ele­gi­as re­to­mam, de ma‐­


nei­ra li­vre, os me­tros da can­ção en­le­va­da, seus ver­sos
fa­lam do des­ti­no do ser hu­ma­no no cos­mos, dos ani­mais,
do amor, da mor­te. A am­pli­tu­de de sua vi­são co­lo­cou
Rilke na li­nha­gem de Pín­da­ro e Höl­der­lin, sen­do um
exem­plo tar­dio do po­et­ a va­tes, opon­do-se à com­preen‐­
são re­du­ci­on­ is­ta do “mun­do in­ter­pre­ta­do”. Mas, mes­mo
usan­do as fór­mu­las de uma lin­gua­gem re­li­gi­os ­ a, sua in‐­
ten­ção não era ro­man­ti­zar o mun­do, mas uti­li­zar-se das
fa­cul­da­des re­cep­ti­vas e ex­pres­si­vas de uma for­ma tão
ra­di­cal que o re­sul­ta­do ex­ce­des­se tam­bém as pos­si­bi­li­da‐­
des her­me­nêu­ti­cas mais co­muns.
Os tex­tos reu­ni­dos n’O tes­ta­men­to têm ca­rá­ter au­to­bi‐­
o­gráfi­co, vin­gan­do a in­ti­mi­da­de do po­et­ a. Is­so ex­pli­ca,
em par­te, a eli­mi­na­ção de to­das as re­fe­rên­ci­as cla­ras a
lu­ga­res, da­tas e pes­so­as — re­cons­tru­í­das nas no­tas de
edi­ções re­cen­tes. Rilke ti­nha to­dos os mo­ti­vos pa­ra ima‐­
gi­nar que no fu­tu­ro a sua bi­og ­ ra­fia ha­ve­ria de des­per­tar
um gran­de in­te­res­se e que os co­men­ta­ris­tas cer­ta­men­te
pes­qui­sa­ri­am to­dos os de­ta­lhes so­bre seu amor e sua ca‐­
tás­tro­fe ar­tísti­ca. Mes­mo as­sim, ele se ser­viu de pa­ráf­ra‐­
ses ge­rais, mui­tas ve­zes ale­góri­cas, pa­ra ofus­car es­se
pla­no de re­a­li­da­de bi­og
­ ráfi­ca — cor­ren­do o ris­co de res‐­
va­lar num es­ti­lo ar­ti­fi­ci­al e ma­nei­ris­ta, co­mo ob­ser­va
Zinn. Mas, não obs­tan­te, a sua pro­sa é bas­tan­te níti­da no
que diz res­pei­to aos es­ta­dos psíqui­cos, às re­la­ções hu‐­
ma­nas em ge­ral e ao pro­ces­so cri­a­ti­vo.

Rilke cri­ou uma cer­ta dis­tân­cia fic­ci­on ­ al nas pági­nas


in­tro­du­tó­ri­as. Ne­las, um edi­tor fic­tí­cio es­cre­ve em ter­cei‐­
ra pes­soa so­bre o au­tor d’O tes­ta­men­to. Cer­tas fór­mu­las
uti­li­za­das su­ge­rem ain­da que es­se “edi­tor” apre­sen­tou
su­as in­for­ma­ções — bas­tan­te con­fi­den­ci­ais so­bre o po­et­ a
— co­mo se fos­se um es­tran­gei­ro que pre­ci­sas­se de­du­zir,
de al­gu­ma for­ma, co­mo sur­gi­ram os pa­péis do ma­nus­cri‐­
to (“a pos­te­ri­or­ i, apa­ren­te­men­te”). A nar­ra­ti­va des­se
“edi­tor” per­mi­te con­tex­tu­a­li­zar um pou­co me­lhor os tex‐­
tos que se lhe se­guem, pois ele re­la­ta an­te­ce­den­tes, for‐­
ne­ce da­dos ex­ter­nos e acen­tua o di­le­ma que se­rá re­fle­ti‐­
do de­pois, a par­tir de vá­ri­as pers­pec­ti­vas. Di­fe­ren­te­men‐­
te da fun­ção do edi­tor fic­tí­cio no ro­man­ce (co­mo em Wer‐­
ther), que de­ve con­fe­rir um efei­to de au­ten­ti­ci­da­de à his‐­
tó­ria, o “edi­tor” pro­duz aqui o efei­to con­trá­rio: de­cres­ce
a au­ten­ti­ci­da­de das car­tas e ano­ta­ções de Rilke, o edi­tor
fic­ci­on
­ al des­lo­ca o con­jun­to pa­ra o am­bi­en­te “li­te­rá­rio”.

Per­ma­ne­cem, po­rém, o ca­rá­ter fun­da­men­tal­men­te au‐­


to­bi­og
­ ráfi­co do ma­te­ri­al e a ques­tão de se sa­ber por que
afi­nal a ex­pe­ri­ên­cia não se trans­for­mou em al­go com­ple‐
ta­men­te fic­ci­on
­ al, co­mo ocor­reu, por exem­plo, no “Con­to
de um po­et­ a en­ve­lhe­ci­do”. Ade­mais, o que tam­bém cha‐­
ma a aten­ção é o tí­tu­lo do con­jun­to: O tes­ta­men­to. Uma
das acep­ções pos­sí­veis pa­ra a pa­la­vra tes­ta­men­to re­la­ci‐­
o­na-a a um gê­ne­ro tex­tu­al da co­mu­ni­ca­ção prag­máti­ca,
co­mo des­cre­ve o Di­ci­on ­ á­rio Au­ré­lio: “Ato per­so­na­líssi­mo,
uni­la­te­ral, gra­tui­to, so­le­ne e re­vo­gá­vel, pe­lo qual al‐­
guém, com ob­ser­vân­cia da lei, dispõe de seu pa­tri­mô­nio,
to­tal ou par­ci­al­men­te, pa­ra de­pois de sua mor­te [...]”.

Evi­den­te­men­te, O tes­ta­men­to não con­tém dis­po­si­ções


des­se ti­po. To­da­via, foi en­tre­gue às mãos de An­ton Kip‐­
pen­berg co­mo se fos­se re­al­men­te um tes­ta­men­to ju­rídi‐­
co. Is­so sig­ni­fi­ca que o au­tor de­se­ja­va que seu li­vro exer‐­
ces­se a fun­ção de um tes­ta­men­to prag­máti­co, ou se­ja,
de pos­si­bi­li­tar que a von­ta­de da pes­soa ul­tra­pas­sas­se os
li­mi­tes im­pos­tos por sua mor­te físi­ca, obri­gan­do os so‐­
bre­vi­ven­tes a cer­tas ações, em fun­ção das dis­po­si­ções
tes­ta­men­tá­ri­as (co­mo, pos­te­ri­or­men­te, a dis­po­si­ção so‐­
bre os ver­sos em sua tum­ba). O tes­ta­men­to não quer
ape­nas ser li­do, apre­ci­a­do e in­ter­pre­ta­do co­mo um tex­to
li­te­rá­rio qual­quer, mas sim atu­ar na re­a­li­da­de. A von­ta­de
der­ra­dei­ra de Rilke era, na­que­le mo­men­to, a de que lhe
so­bre­vi­ves­se o de­se­jo sa­li­en­ta­do na epí­gra­fe de Mo­ré­as:
o de agar­rar seu des­ti­no. As pági­nas d’O tes­ta­men­to dão
tes­te­mu­nho do meio ano vi­vi­do em Berg, que de fa­to não
se per­deu, pois, ape­sar de não re­sul­tar em po­es ­ ia, con­fir‐­
mou a von­ta­de de Rilke em se man­ter fi­el ao des­ti­no de
po­et­ a e de sus­ten­tar a ten­são exis­ten­te en­tre vi­da e
obra, mes­mo du­ran­te o fra­cas­so.

O va­lor des­se tes­te­mu­nho e de sua con­fis­são es­ta­ria


au­sen­te se não hou­ves­se um do­cu­men­to re­al­men­te as­si‐­
na­do pe­lo po­et­ a. Po­de ser que, pa­ra nós, o au­tor Rilke se
con­ver­ta em uma fi­gu­ra subs­ti­tu­í­vel e que sua ex­pe­ri­ên‐­
cia nos pa­re­ça so­men­te a ma­ni­fes­ta­ção de um cer­to ha‐­
bi­tus li­te­rá­rio. Nes­sa cha­ve, O tes­ta­men­to se con­ver­te­ria
em “es­cri­tu­ra”, in­di­fe­ren­te à for­ma con­cre­ta pe­la qual o
au­tor o apre­sen­tou ao mun­do. Seu méri­to, con­tu­do, re­si‐­
di­ria ain­da nos ves­tí­gi­os da voz que o acom­pa­nha.

***

A tra­du­ção de Ter­cio Re­don­do (Men­ção hon­ro­sa da Ca‐­


pes de 2007 por sua te­se so­bre Woy­zeck, de Ge­org Bü­ch‐­
ner) con­se­guiu man­ter al­go do tom sé­rio, no­bre e so­fis­ti‐­
ca­do que ca­rac­te­ri­za o ale­mão de Rilke. Mes­mo que o lei‐­
tor bra­si­lei­ro con­si­de­re enig­máti­cas e es­tra­nhas vá­ri­as de
su­as for­mu­la­ções, é pos­sí­vel cons­ta­tar que a ver­são bra‐­
si­lei­ra fa­ci­li­ta a com­preen­são mais que a ale­mã. Ine­vi­ta‐­
vel­men­te, uma tra­du­ção per­de mui­to em re­la­ção ao ori‐­
gi­nal, par­ti­cu­lar­men­te quan­do se tra­ta de uma for­ma de
ex­pres­são tão idi­os­sin­cráti­ca, co­mo a que se apre­sen­ta
na pro­sa d’O tes­ta­men­to. Ter­cio Re­don­do, po­rém, sal­vou
gran­de par­te das su­ti­le­zas do tex­to, ser­vin­do-se de uma
lin­gua­gem inu­si­ta­da e ex­clu­si­va.

Hel­mut Gal­le
O tes­ta­men­to

Edi­ção fac-si­mi­lar e
­ u­ção em por­tu­guês
trad
Pa­ra se com­preen­der a sua si­tu­a­ção no fim da­que­le
in­ver­no,[2] de­ve-se re­tro­ce­der até o ve­rão de 1914. A ir‐­
rup­ção da guer­ra fu­nes­ta,[3] que des­fi­gu­rou o mun­do por
um tem­po que cor­res­pon­de ao de mui­tas vi­das hu­ma­nas,
im­pe­diu-o de re­tor­nar àque­la ci­da­de in­com­pa­rá­vel,[4] à
qual ele de­via a mai­or par­te de su­as pos­si­bi­li­da­des. Ini­ci‐­
ou-se um in­ter­mi­ná­vel tem­po de es­pe­ra num pa­ís ao
qual se via li­ga­do ape­nas pe­lo idi­om ­ a. E, vi­ven­do nos
mais di­ver­sos pa­í­ses, ele o pu­se­ra tão in­tei­ra­men­te a
ser­vi­ço de su­as ta­re­fas mais ínti­mas que, há al­gum tem‐­
po, po­dia con­si­de­rá-lo a ma­té­ria pu­ra e au­tô­no­ma de sua
for­ma de pen­sar.
O con­ta­to com aque­le ami­go cu­jos ta­len­tos ex­tra­or­di‐­
ná­ri­os o cre­den­ci­a­vam co­mo o médi­co de quem ele ago‐­
ra mui­to ne­ces­si­ta­va
tor­na­ra-se ca­da vez mais es­po­rádi­co, e es­sa li­ga­ção há
mui­to se rom­pe­ra no dia em que aque­le ho­mem, to­tal‐­
men­te de­di­ca­do à sua pro­fis­são, mor­reu exaus­to e de um
mo­do re­pen­ti­no.[5]
A úni­ca ten­ta­ti­va de re­to­mar o seu tra­ba­lho, in­ter­rom‐­
pi­do pe­la per­da de to­da a vi­da na­tu­ral, de­pa­rou um fi­nal
abrup­to na con­vo­ca­ção pa­ra ser­vir num re­gi­men­to da re‐­
ser­va, o que o obri­gou a se su­jei­tar a um pra­zo ad­ver­so e
ago­ra ver­da­dei­ra­men­te per­di­do na ca­pi­tal do pa­ís que o
ti­nha a seu ser­vi­ço.[6] Li­be­ra­do de­pois de mui­tos me­ses
des­sas obri­ga­ções oci­os ­ as, e ten­do re­tor­na­do ao do­mi­cí‐­
[7]
lio de sua es­pe­ra, fal­ta­vam-lhe cla­re­za e li­ber­da­de in­te‐­
ri­or­ es, in­dis­pen­sá­veis pa­ra que seu in­des­cri­tí­vel tra­ba­lho
pros­pe­ras­se. Ele não se dis­pu­nha a mis­tu­rar seu tra­ba­lho
com o ter­rí­vel de­sas­tre da­que­les
anos do­lo­ro­sos: as­sim, em di­ver­sas car­tas, ele ao me­nos
des­cul­pa­va a sua in­ca­pa­ci­da­de. Nes­sa cor­res­pon­dên­cia,
con­fes­sa­va sen­tir-se co­mo a cri­an­ça que, en­quan­to per‐­
sis­te a tor­tu­ra de uma dor de den­te, se re­cu­sa a to­car os
ob­je­tos que lhe são mais ca­ros.
Fi­nal­men­te, quan­do a guer­ra se trans­for­ma­ra na di­fu‐­
sa de­sor­dem dos es­pas­mos re­vo­lu­ci­on ­ á­ri­os e, tra­du­zin­do
[8]
Mal­lar­mé, ele se man­ti­nha de al­gum mo­do afas­ta­do da‐­
que­le ab­sur­do, foi-lhe pos­sí­vel, por meio de con­vi­tes pa­ra
con­fe­rên­ci­as,[9] dei­xar a ci­da­de sub­me­ti­da a tan­to so­fri‐­
men­to e aban­do­nar a sua qua­se pú­bli­ca re­si­dên­cia — tão
fre­quen­ta­da ela era por es­tra­nhos e co­nhe­ci­dos de oca­si‐­
ão — pa­ra, aten­den­do ao al­me­ja­do con­vi­te, se­guir a um
ou­tro pa­ís, que se re­ve­la­ra im­par­ci­al e ge­ne­ro­so na de‐­
sor­dem dos úl­ti­mos anos.[10] Su­ce­deu, con­tu­do, que es­ta
era jus­ta­men­te a pai­sa­gem que ele ou­tro­ra
atra­ves­sa­ra ao che­gar do sul, oca­si­ão em que man­ti­ve­ra
as cor­ti­nas da ja­ne­la do va­gão in­ten­ci­on ­ al­men­te cer­ra‐­
das: al­go em sua na­tu­re­za opu­nha-se vi­go­ro­sa­men­te à
pa­téti­ca e ao mes­mo tem­po sóbria com­po­si­ção mon­ta‐­
nho­sa por meio da qual es­sa pai­sa­gem se tor­na­ra fa­mo‐­
sa pa­ra as ge­ra­ções pas­sa­das. Es­te era o pa­ís que se lhe
ofe­re­cia, tan­to pe­lo aten­ci­os
­ o con­vi­te quan­to pe­la hos­pi‐­
ta­li­da­de num de seus la­gos.[11]
Mas tam­bém a sua no­va mo­ra­da, si­tu­a­da além das
fron­tei­ras an­te­ri­or­ es que ele mal su­por­ta­va, tor­nou-se,
ape­nas de mo­do mais bran­do, uma con­ti­nu­a­ção do tem‐­
po de es­pe­ra. Ele lo­grou de­cer­to al­gum alí­vio; tam­bém
aqui fal­ta­vam as con­di­ções de­ci­si­vas àque­la ínti­ma re­fle‐­
xão que de­via pre­ce­der as dis­po­si­ções ne­ces­sá­ri­as a seu
tra­ba­lho. O seu en­de­re­ço va­ri­a­va. No­vas re­la­ções com di‐­
ver­sas pes­so­as eram ine­vi­tá­veis; mas
elas se re­ve­la­ram em par­te mo­ti­vo de con­ten­ta­men­to. A
sua so­li­dão, de­ter­mi­na­da mas ain­da não con­so­li­da­da,
agia de mo­do con­trá­rio à sua pró­pria von­ta­de e atra­ía to‐­
do o ti­po de gen­te (tal­vez por cau­sa de uma per­sis­ten­te
sau­da­de que o des­men­tia). As­sim, ele es­ta­be­le­cia es­tra‐­
nhas re­la­ções em que se trans­for­ma­va na­tu­ral­men­te na‐­
que­le que dá e na­que­le que com­par­ti­lha, e is­to ocor­ria
de uma tal ma­nei­ra que ma­lo­gra­va, mês após mês, o
acú­mu­lo da­que­las re­ser­vas in­te­ri­or­ es que con­du­zem por
fim a uma ten­são do pró­prio ser.
En­tão, trans­cor­ri­dos mais de um ano e meio, ao ini­ci‐­
ar-se um no­vo in­ver­no, quan­do pa­re­cia que ele te­ria de
re­tor­nar àque­le pa­ís de­sa­for­tu­na­do que, co­mo o quar­to
de um do­en­te, es­ta­va re­ple­to da guer­ra e das exa­la­ções
de seu des­ti­no som­brio, acon­te­ceu al­go ab­so­lu­ta­men­te
ines­pe­ra­do: foi-lhe ofe­re­ci­da uma an­ti­ga e afas­ta­da pro‐­
­ a­de se­nho­ri­al;[12]
pri­ed
uma amá­vel e ta­ci­tur­na go­ver­nan­ta ali o aguar­da­va. Mal
ele se mu­da­ra (em 12 de no­vem­bro) e tu­do à sua vol­ta já
lhe pro­por­ci­on ­ a­va uma sa­tis­fa­ção e uma uti­li­da­de que
su­pe­ra­vam as su­as me­lho­res ex­pec­ta­ti­vas.
O am­plo ga­bi­ne­te de tra­ba­lho, de pa­re­des bai­xas e
for­ra­das de pai­néis bran­cos, com a sua ve­lha e gran­de
es­tu­fa azu­le­ja­da, além de uma la­rei­ra, pa­re­cia tê-lo re­al‐­
men­te aguar­da­do. De um dia pa­ra ou­tro fi­ze­ram-se os ar‐
ran­jos ne­ces­sá­ri­os sem que ele ti­ves­se o tra­ba­lho de de‐­
ta­lhar os seus hábi­tos. Di­an­te das ja­ne­las es­ten­dia-se o
par­que. Fai­as-bran­cas, que len­ta­men­te per­di­am a sua fo‐­
lha­gem, mar­ge­a­vam à es­quer­da e à di­rei­ta um ex­ten­so
gra­ma­do, e um la­go de li­mi­tes im­pre­ci­sos cu­ja fon­te pe‐­
re­ne tra­du­zia aos ou­vi­dos o que pa­ra os olhos era com‐­
ple­to si­lên­cio. O par­que pos­su­ía al­guns be­los plá­ta­nos e
uma
ala­me­da de ve­lhas cas­ta­nhei­ras co­pa­das que cor­ta­va em
di­a­go­nal o seu fun­do aber­to. Quan­do es­se bos­que se en‐­
tre­ga­va ao ou­to­no, a vis­ta se tor­na­va mais im­po­nen­te.
Sem re­fre­ar o de­se­jo dos olhos, pra­dos li­gei­ra­men­te in­cli‐­
na­dos an­te­ci­pa­vam as en­cos­tas de um cer­ro co­ber­to de
ma­ta. E, por mais que ele amas­se as pla­níci­es, es­sa li­mi‐­
ta­ção vi­nha a pro­pósi­to nes­te mo­men­to de­ci­si­vo pa­ra o
pen­sa­men­to, pois ela, em for­ma de pai­sa­gem, fa­vo­re­cia
a cons­ci­ên­cia de um in­téri­eur que ele, dia após dia, es­pe‐­
ra­va cres­cer em si mes­mo.
Tan­to quan­to po­dia se lem­brar, ja­mais se sen­ti­ra acei‐­
to de ma­nei­ra tão na­tu­ral e pro­te­to­ra; não se sen­ti­ra as‐­
sim nem mes­mo no tem­po pas­sa­do na­que­le ve­lho cas­te‐­
lo prin­ci­pes­co, o qual fo­ra tão sig­ni­fi­ca­ti­vo em sua vi­da.
[13]
Con­ser­va­va-o na me­mó­ria de mo­do qua­se pas­si­on ­ al
des­de que a ce­ga fú­ria da guer­ra der­ru­ba­ra até os ali­cer‐­
ces os seus gi­gan­tes­cos mu­ros, que um dia pa­re­ce­ram
eter­nos. Aque­le cas­te­lo de­bru­ça­do so­bre o mar
ha­via si­do es­pa­ço­so; a for­ça dos tem­pos e das fi­gu­ras
que ne­le atu­a­vam ofe­re­cia inú­me­ras ta­re­fas à al­ma. E es‐­
ta de­via se fa­mi­li­a­ri­zar com mui­ta coi­sa su­pe­ri­or an­tes
que pu­des­se per­ma­ne­cer ela mes­ma.
Aqui nes­ta pe­que­na e no­bre re­si­dên­cia, que a vis­ta
abar­ca­va sem es­for­ço, ha­via me­nos pas­sa­do com que se
re­con­ci­li­ar. Es­pa­ços e pas­sa­gens, que há mui­to não eram
ha­bi­ta­dos no sen­ti­do mais es­tri­to do ter­mo, lo­go apro­va‐­
vam aque­le que fos­se sen­sí­vel o bas­tan­te pa­ra com‐­
preen­dê-los. Ha­via pou­cos re­tra­tos ali, o que te­ria si­do o
su­fi­ci­en­te pa­ra im­por uma for­ma; pre­va­le­cia o vi­vo, e as
coi­sas, mo­des­tas a seu mo­do, não lhe exi­gi­am mais con‐­
si­de­ra­ção que a ofe­re­ci­da pe­la abun­dân­cia in­vo­lun­tá­ria
de sua na­tu­re­za pre­dis­pos­ta à gra­ti­dão.
Po­de­ria es­te, que fo­ra sal­vo nes­te re­fú­gio ines­pe­ra­do,
re­cu­pe­rar o seu ser es­fa­ce­la­do? Su­pu­nha-se que sim.
Per­ce­be­mos o quão pre­des­ti­na­do ele se en­con­tra­va
pa­ra is­so ao to­mar­mos co­nhe­ci­men­to de que, ime­di­a­ta‐­
men­te an­tes de se en­cer­rar nes­ses no­vos ar­re­do­res, ele
fo­ra agra­ci­a­do por uma in­sus­pei­ta­da pro­vi­dên­cia: vi­si­tar
ou­tra vez dois re­no­ma­dos lu­ga­res,[14] em di­fe­ren­tes pa­í‐­
ses, du­as lo­ca­li­da­des que per­ten­ci­am de mo­do inex­trin‐­
cá­vel à his­tó­ria de seu pas­sa­do. Uma de­las era aque­la ci‐­
da­de sin­gu­lar à qual ele de­via não ape­nas a to­ta­li­da­de
de sua edu­ca­ção es­pi­ri­tu­al, mas à qual ele atri­bu­ía, com
ra­zão, o fa­to de que os so­fri­men­tos e as ven­tu­ras de seu
ca­rá­ter lhe eram re­ve­la­dos de um mo­do mai­or e mais
per­cep­tí­vel do que sói acon­te­cer mes­mo a pes­so­as que
na sua ida­de são do­ta­das de uma for­te in­tui­ção.
E is­to, so­bre­tu­do: a gra­ça ine­xau­rí­vel (po­de­rí­a­mos ex‐­
cla­mar que is­to se de­ra de ma­nei­ra mi­la­gro­sa e no mo‐­
men­to mais opor­tu­no) do­ta­ra-o da­que­la imen­sa mo­bi­li­da‐­
de que faz um co­ra­ção se pre­ci­pi­tar, o qual,
sob o im­pac­to de um no­vo ena­mo­ra­men­to, de­ci­de-se por
amar...
Sim, tam­bém is­to.
Quan­do as por­tas se fe­cham por de­trás da­que­le que é
tão com­ple­ta­men­te fa­vo­re­ci­do e ta­len­to­so, ima­gi­na-se
que se po­de dei­xá-lo em se­gu­ran­ça nu­ma so­li­dão que se
pro­veu de mo­do tão mag­nífi­co.
As ano­ta­ções, po­rém, os es­bo­ços de car­tas nos quais
o fim da­que­le es­tra­nho in­ver­no é des­cri­to de for­ma frag‐­
men­ta­da as­si­na­lam um fra­cas­so, uma per­da cru­el e des‐­
con­cer­tan­te.
O es­cri­tor reu­niu (a pos­te­ri­or­ i, apa­ren­te­men­te) es­tas
fo­lhas sol­tas sob o tí­tu­lo “O tes­ta­men­to”, pro­va­vel­men­te
por­que, com es­tes ju­í­zos, em sua cu­ri­os ­ a fa­ta­li­da­de, se
ex­pres­sa uma von­ta­de que per­ma­ne­ce­rá co­mo a der­ra‐­
dei­ra, mes­mo que di­an­te de seu co­ra­ção se afi­gu­re ain­da
a ta­re­fa de mui­tos anos.
O tes­ta­men­to

“Mais j’ac­cu­se sur­tout ce­lui qui se


com­por­te
con­tre sa vo­lon­té”

Je­an Mo­ré­as
(Abril)
A pri­ma­ve­ra che­gou bem ce­do es­te ano, de mo­do que
a car­da­mi­na flo­res­ce nos cam­pos e os den­tes-de-le­ão já
de­sa­bro­cham, con­ver­ten­do-se em fi­oz ­ i­nhos de as­so­prar.
Es­sa es­ta­ção, con­tu­do, ja­mais me fa­vo­re­ceu a con­cen­tra‐­
ção; as su­as for­ças não con­du­zem ao re­co­lhi­men­to. Mes‐­
mo as­sim ele de­ve ser bus­ca­do, de­pois de tan­tos me­ses
per­di­dos, na fa­se der­ra­dei­ra des­te re­fú­gio pri­vi­le­gi­a­do.
No mo­men­to em que as re­la­ções com a ama­da se
acal­ma­ram a um tal pon­to que eu po­dia an­te­ver a mi­nha
aten­ção con­cen­tra­da uni­ca­men­te em mim mes­mo, sem
ter de par­ti­lhá-la com mais nin­guém, sur­giu mais adi­an‐­
te, na en­tra­da do par­que, uma pe­que­na edi­fi­ca­ção que
to­mei ini­ci­al­men­te por um ce­lei­ro, e à qual não pres­tei
mai­or aten­ção. Tra­ta­va-se, con­tu­do, de uma ser­ra­ria
elétri­ca, e ago­ra já faz dez di­as que se ou­vem uma vi­bra‐­
ção e um zum­bi­do in­can­sá­veis. Des­fez-se o meu sos­se­go.
Ve­jo que aqui­lo que eu
pla­ne­ja­ra não po­de­ria ser em­preen­di­do co­mo uma re­cu‐­
pe­ra­ção de úl­ti­ma ho­ra, co­mo a ta­re­fa es­co­lar que se
adia e ora pe­sa na cons­ci­ên­cia. O tem­po de pro­du­zir pas‐­
sou. Ago­ra, a ser­ra tem a pa­la­vra.
Mas, co­mo é exa­to o tri­bu­nal. É es­tra­nho: no­to co­mo
eu me aper­ce­bo de to­das as coi­sas des­te lu­gar por meio
do ou­vi­do, e por ele to­das elas me são ago­ra ti­ra­das. De
ma­dru­ga­da, quan­do acor­do, ou ao cair da tar­de (pois se
tra­ba­lha até tar­de na ser­ra­ria, e, por ve­zes, a rui­do­sa jor‐­
na­da ini­cia-se lo­go após as cin­co da ma­nhã) re­compõe-se
com su­a­vi­da­de in­des­cri­tí­vel aque­le am­plo e pu­ro es­pa­ço
de au­di­ção que há mui­to me foi con­ce­di­do ha­bi­tar. Ele
co­me­çou a ser “ilus­tra­do”, por as­sim di­zer, pe­la vo­zi­nha
dos pás­sa­ros; a fon­te, po­rém, cons­ti­tu­ía o seu cen­tro, e
eu me dei­to ago­ra em meio à noi­te e de­la me des­pe­ço.
Era is­to, sim, era is­to que ha­ve­ria de me or­de­nar em se‐­
gui­das
se­ma­nas de aten­ção equi­li­bra­da. Co­mo a per­ce­bi de ime‐­
di­a­to, co­mo a as­si­mi­lei já no pri­mei­ro dia: es­sa pe­re­ne
va­ri­a­ção de seu jor­ro. O me­nor so­pro de ven­to al­te­ra­va-
o, e quan­do ele su­bi­ta­men­te se aqui­et­ a­va, com­pon­do um
úni­co ja­to, ca­ía so­bre si e so­a­va em si mes­mo de um mo‐­
do in­tei­ra­men­te di­ver­so do ru­í­do que ele pro­du­zia no es‐­
pe­lho d’água. Fa­la, di­zia eu à fon­te, e a es­cu­ta­va. Fa­la,
eu di­zia, e to­do o meu ser se pu­nha a aus­cul­tá-la. Fa­la,
tu, pu­ro en­con­tro da le­ve­za com o pe­so, tu, le­vi­an­da­de
do far­do, tu, ár­vo­re de jo­gos, tu, me­tá­fo­ra en­tre as car­re‐­
ga­das ár­vo­res da fa­di­ga, que se afli­gem den­tro de seu
cór­tex.
E, com um ar­dil in­vo­lun­tá­rio e ino­cen­te do co­ra­ção,
pa­ra que na­da se tor­nas­se se­não na­qui­lo que eu que­ria
apren­der a ser — eu equi­pa­ra­va a fon­te à ama­da, que se
en­con­tra­va dis­tan­te, con­ti­da e ca­la­da.
Ah, ha­ví­a­mos acor­da­do que o si­lên­cio ha­ve­ria de pre‐­
va­le­cer en­tre nós: ha­ve­ria de ser a lei des­te in­ver­no, uma
lei du­ra e im­pla­cá­vel. Ago­ra, po­rém, prin­ci­pi­a­va a nos­sa
ter­nu­ra; não ape­nas a nos­sa: a ter­nu­ra do que fo­ra re­a­li‐­
za­do es­ta­ria em meu co­ra­ção. Tal­vez — a ne­ces­si­da­de
era enor­me — fôs­se­mos for­tes o su­fi­ci­en­te pa­ra nos ca‐­
lar­mos — não éra­mos nós que tra­zí­a­mos as no­tí­ci­as; a
bo­ca do des­ti­no se abria e as des­pe­ja­va so­bre nós, pois o
amor é o ver­da­dei­ro cli­ma do des­ti­no. Por mais que ele
abra o seu ca­mi­nho atra­vés do céu — a sua Via Lác­tea
fei­ta de mi­lhões de es­tre­las de san­gue —, o pa­ís que jaz
sob o seu man­to en­con­tra-se pre­nhe de fa­ta­li­da­des. Nem
mes­mo os deu­ses, nas me­ta­mor­fo­ses de sua pai­xão,
eram po­de­ro­sos o bas­tan­te pa­ra li­ber­tar a ter­re­na, as­sus‐­
ta­da e fu­gi­ti­va ama­da das ci­la­das des­te chão fe­cun­do.
É lou­cu­ra o que aqui es­cre­vo? Por que as car­tas dos
aman­tes ja­mais tra­tam des­te di­le­ma? Ah, são ou­tros os
seus cui­da­dos. Tem-se sem­pre a im­pres­são de que a mu‐­
lher que ama lan­ça o seu ama­do a uma al­tu­ra mais ele‐­
va­da do que aque­la que ele po­de­ria al­çar com as pró­pri‐­
as for­ças. Seu en­tu­si­as­mo por ele tor­na-o mais be­lo e ca‐­
paz. A ex­pec­ta­ti­va dos bra­ços aber­tos da ama­da ace­le­ra
a sua car­rei­ra. O seu de­sem­pe­nho tor­na-se cla­ro nos con‐­
tor­nos da fe­li­ci­da­de, de on­de ela, co­mo de cos­tu­me, se
der­ra­mou na tur­va­ção das sau­da­des. Mas, ago­ra, jun­to
ao co­ra­ção da ama­da, o tra­ba­lho tor­na-se do­ce e im­pe‐­
tuo­so pa­ra o ho­mem fa­ti­ga­do — e in­fi­ni­to o re­pou­so. So‐­
men­te ago­ra se dis­sol­ve a pre­ci­pi­ta­ção dos seus so­nhos
de me­ni­no — o me­do —; so­men­te ago­ra ele vê o fun­do
da noi­te.
E se al­go per­tur­ba a sua ale­gria, is­so de­cor­re de im­pe‐­
di­men­tos, di­fi­cul­da­des ou ame­a­ças a es­sa uni­ão; to­do o
pe­ri­go con­cen­tra-se nu­ma úni­ca in­qui­et­ a­ção: per­de­rem-
se um ao ou­tro; e já não res­ta qual­quer dúvi­da, se­não a
que re­si­de no ci­ú­me.
Mas, que é da­que­le que já sa­bia? Da­que­le em cu­jo co‐­
ra­ção já se apre­sen­ta­va a so­li­dão dos aman­tes? Ele co‐­
nhe­cia de an­te­mão a pu­ra fa­ce da ama­da. Ao fu­gir às se‐­
me­lhan­ças fa­mi­li­a­res que o en­vol­vi­am, as quais cons­ti­tu­í‐­
am, tra­ço por tra­ço, um di­rei­to so­bre ele, o sem­blan­te
de­la veio a se tor­nar o seu pró­prio fu­tu­ro; atra­vés dos
olhos de­la, con­tem­pla­va o aber­to. A sua pe­que­na mão
pou­sa­va cal­ma­men­te so­bre a de­la, a qual o con­du­zia e
ja­mais de­le se apos­sa­va. En­quan­to cres­cia, ia ele dis­tin‐­
guin­do mais e mais a sua al­ta fi­gu­ra — na­que­les tem­pos
ela por ve­zes apa­re­cia e o exa­mi­na­va co­mo se fos­se um
dar­do de ar­re­mes­so.
E, mais tar­de, ar­re­mes­sou-o.
Ah, com que po­de­ria a aman­te sur­preen­der aque­le
que, mais do que uma re­cor­da­ção, ti­nha a cla­ra cons­ci‐­
ên­cia dis­to: des­ta es­co­lha; a vo­lú­pia do bra­ço que se es‐­
ten­de, o ser ar­re­mes­sa­do — oh, e o tre­mor ao atin­gir o
al­vo.
E, con­tu­do, quem te­ria a tal pon­to ce­le­bra­do a aman‐­
te, de­se­ja­do a ama­da, co­mo es­te ser uti­li­za­do de um mo‐­
do di­vi­no, so­bre o qual já se to­ma­ra uma de­ci­são!
Era co­mo se ele, na tra­je­tó­ria que per­cor­re­ra com a
for­ça da so­li­dão, hou­ves­se re­co­nhe­ci­do a fi­gu­ra da ama‐­
da de um mo­do mais aca­ba­do que qual­quer ou­tro an­tes
de­le. E es­se co­nhe­ci­men­to, que era in­fi­ni­to, des­per­tou-
lhe a pri­va­ção in­fi­ni­ta.
Fu­gia-lhe en­quan­to a cha­ma­va. De al­gum mo­do, via-
se for­ça­do a se lhe sub­me­ter, a su­por­tá-la, a atu­rá-la.
Pois não ha­ve­ria uma fa­lha em seu ím­pe­to que ti­ves­se de
se cor­ri­gir por in­tei­ro, en­quan­to ele te­mes­se e evi­tas­se
aque­la que tu­do lhe co­bra­va? A fu­ga de seus sen­ti­men‐­
tos di­an­te de­la, no úl­ti­mo ins­tan­te — não fal­se­a­ria es­sa
fu­ga a sua sen­si­bi­li­da­de em si mes­ma? Não era es­se me‐­
do de ser ama­do, o qual se ori­gi­na­va dos so­fri­men­tos de
sua mais ten­ra in­fân­cia e nun­ca o aban­do­na­va, uma ad‐­
ver­tên­cia a que ele se de­via cur­var,
ou, an­tes, tra­ta­va-se do fa­to de que ela lhe cor­ri­gia o
mais an­ti­go de seus equí­vo­cos?
Ha­ve­ria aca­so a aman­te que não cons­ti­tu­ís­se em­pe­ci‐­
lho, que não o re­tar­das­se e não o des­vi­as­se pa­ra a mo­ra‐­
da do amor? Aque­la a pon­to de com­preen­der que ele fo­ra
ar­re­mes­sa­do mui­to adi­an­te de si mes­ma no mo­men­to
em que a pe­ne­tra­va? Ha­ve­ria a bem-aven­tu­ra­da que
con­sen­tis­se em sua gran­de jor­na­da de­pois de ser ar­re‐­
mes­sa­do, que não pen­sas­se em ex­tra­viá-lo e se­gu­rá-lo
na in­ti­mi­da­de, e que não se adi­an­tas­se pa­ra, a to­do ins‐­
tan­te, atra­ves­sar o seu ca­mi­nho? Aque­la, tal­vez já aban‐­
do­na­da, que acei­ta ago­ra o ris­co de vê-lo, sem­pre que
for ar­re­mes­sa­do – atra­ves­san­do-a – atin­gir o al­vo, a par‐­
tir das mãos de sua deu­sa?
Ah, se ela exis­tis­se, en­tão ele se­ria sal­vo, co­mo na
épo­ca em que, ain­da jo­vem, es­ti­ve­ra a sal­vo, ao che­gar à
Rús­sia.[15] As tri­bu­la­ções de sua in­fân­cia fi­ze­ram-lhe su‐­
por até o
fim de sua se­gun­da dé­ca­da de vi­da que ele vi­via in­tei­ra‐­
men­te só di­an­te de um mun­do ad­ver­so, man­ten­do-se co‐­
ti­di­a­na­men­te re­vol­ta­do con­tra a pre­po­tên­cia de to­dos. A
in­jus­ti­ça de tal ati­tu­de só po­de­ria ge­rar al­go de­for­ma­do e
do­en­tio, mes­mo no âm­bi­to das ver­da­dei­ras emo­ções. A
Rús­sia, não por uma len­ta per­su­a­são, mas nu­ma úni­ca
noi­te — li­te­ral­men­te: na pri­mei­ra noi­te mos­co­vi­ta — li­be‐­
rou-o su­a­ve­men­te do ter­rí­vel fei­ti­ço des­se cons­tran­gi‐­
men­to. Sem que se van­glo­ri­as­se dis­so, in­can­sá­vel, co­mo
se por meio de uma pu­ra es­ta­ção do co­ra­ção o pa­ís con‐­
ci­li­a­dor lhe for­ne­ces­se pro­vas ines­go­tá­veis do con­trá­rio.
Co­mo ele cria nis­so; co­mo o en­can­ta­va tor­nar-se fra­ter‐­
no. E se ele per­ma­ne­ceu um no­va­to no co­nhe­ci­men­to
des­sa con­so­nân­cia (tal­vez por­que ele não pu­des­se per‐­
ma­ne­cer em ter­ras rus­sas), não a es­que­ce ja­mais; ele a
co­nhe­ce, exer­ci­ta-a.
Ex­pe­ri­ên­ci­as do sen­ti­men­to, es­tra­nhas ex­pe­ri­ên­ci­as
do sen­ti­men­to, con­tu­do, as quais mui­to mais tar­de se
acu­mu­la­ram na­que­la de­ter­mi­na­da vi­vên­cia que — de
mo­do mui­to apro­xi­ma­do —– cir­cuns­cre­vo à ima­gem do
re­ve­nant, con­tes­tam-me o di­rei­to de me ab­sor­ver na
ama­da (mes­mo sen­do in­fi­ni­to o es­pa­ço que ela ofe­re­ce).
Por mais que eu te­nha de re­co­nhe­cer a lei nes­se do­mí‐­
nio, pa­re­ce-me que me en­con­tro ao mes­mo tem­po cons‐­
tran­gi­do e des­póti­co em seu meio. A mi­nha cons­ci­ên­cia
mais pro­fun­da me ator­men­ta, e o me­do que me dis­trai
não é aque­le me­do da cri­a­tu­ra di­an­te da do­ce ani­qui­la‐­
ção que pro­vém do cer­ne do amor; é o hor­ror de um
aban­do­no que sem­pre me agi­ta e me exor­ta, di­zen­do
que não com­pe­te a mim dis­por de mi­nhas in­cli­na­ções:
co­mo se o pa­tri­mô­nio de meus sen­ti­men­tos fos­se re­par­ti‐­
do e eu me tor­nas­se po­bre; co­mo se eu, ama­do e
aman­te, re­ti­ras­se um qui­nhão há mui­to exau­ri­do de he‐­
ran­ças des­co­nhe­ci­das e já des­ti­tu­í­das de sen­ti­men­tos.
Em al­gum lu­gar, na am­pli­dão do es­pa­ço de meus sen­ti‐­
men­tos, emer­ge uma in­qui­et­ a­ção, uma con­tra­ri­ed ­ a­de; la‐
men­tos que não com­preen­do so­pram em mi­nha di­re­ção;
le­van­tam-se ame­a­ças em meu ser: já não me sin­to con‐­
cor­de co­mi­go mes­mo.
Es­ta uni­da­de, po­rém, tão inex­pli­cá­vel quan­to ela pos‐­
sa ser, é o tri­bu­nal pe­ran­te o qual eu me apre­sen­to des‐­
de a mi­nha in­fân­cia. Sim, vi­vo no es­pa­ço em que os
meus ve­la­dos ju­í­zes exer­cem a sua ju­ris­di­ção, es­tou di‐­
an­te de seus olhos por trás do ca­puz — ja­mais dei­xei es‐­
te es­pa­ço.
A mi­nha vi­da é um ti­po par­ti­cu­lar de amor, e ele já se
con­su­mou. As­sim co­mo o amor de São Jor­ge é a mor­te
do dra­gão — uma ação con­tí­nua que preen­che os tem­pos
até o seu fim —, tam­bém os es­for­ços de meu co­ra­ção já
fo­ram re­a­li­za­dos e trans­for­ma­dos num acon­te­ci­men­to
de­fi­ni­ti­vo. Por ve­zes, sou tra­zi­do a seu cen­tro: uma ima‐­
gem
da con­su­ma­ção.
(O lu­gar da prin­ce­sa, po­rém, é ou­tro. Ela re­za pa­ra
que is­to acon­te­ça. Ela se ajo­el­ha.)
Não crei­as, ar­tis­ta, que se­ja o tra­ba­lho o que te põe à
pro­va. Não és o que pre­ten­des ser nem és a pes­soa por
quem es­te ou aque­le te to­ma, por es­tar mal in­for­ma­do,
en­quan­to ela não se tor­nar na­tu­re­za pa­ra ti, de mo­do
que não pos­sas fa­zer ou­tra coi­sa se­não con­ser­var-te ne‐­
la. Tra­ba­lhan­do as­sim, és a lan­ça ar­re­mes­sa­da com ma‐­
es­tria. Leis re­ce­bem-te das mãos da lan­ça­do­ra e pre­ci­pi‐­
tam-se con­ti­go no al­vo. O que se­ria mais se­gu­ro que o
teu voo?
Con­sis­ta a tua pro­va, po­rém, no fa­to de que nem sem‐­
pre és ar­re­mes­sa­do. No fa­to de que a ar­re­mes­sa­do­ra So‐­
li­dão há mui­to não te es­co­lhe; ol­vi­da-se de ti. Es­te é o
tem­po das ten­ta­ções, quan­do te sen­tes inu­ti­li­za­do, in­ca‐­
paz (co­mo se o man­ter-se pre­pa­ra­do não cons­ti­tu­ís­se
ocu­pa­ção bas­tan­te!). En­tão, quan­do es­tás dei­ta­do de
uma ma­nei­ra que não é tão pe­sa­da, as dis­tra­ções exer­ci‐­
tam-se em ti e pro­cu­ram des­co­brir al­gu­ma ou­tra coi­sa a
que te pos­sas de­di­car. Co­mo
se te tor­nas­ses a va­ra de um ce­go, uma den­tre as bar­ras
de uma gra­de ou o bas­tão do equi­li­bris­ta. Ou, ain­da, elas
se er­guem e plan­tam-te no so­lo do des­ti­no, de mo­do que
te acon­te­ça o mi­la­gre das es­ta­ções e fa­ças bro­tar pe­que‐­
nas fo­lhas ver­des de fe­li­ci­da­de...

En­tão, oh, fér­reo ser: dei­ta-te pe­sa­da­men­te.


Sê uma lan­ça. Sê uma lan­ça. Sê uma lan­ça!
Es­te jo­go de anu­ên­cia e ne­ga­ção, no qual há mui­to
que per­der e mui­to que ga­nhar, cons­ti­tui pa­ra a mai­or
par­te dos ho­mens o “pas­sa­tem­po” da vi­da e re­ce­be os
seus im­pul­sos.
Os ar­tis­tas in­te­gram o gru­po da­que­les que, com um
úni­co e ir­re­vo­gá­vel as­sen­ti­men­to, abri­ram mão de per‐­
das e ga­nhos: pois am­bos não exis­tem na lei, no pla­no
da pu­ra obe­di­ên­cia.
Es­te as­sen­ti­men­to li­vre e de­fi­ni­ti­vo do mun­do tras­la­da
o co­ra­ção a um ou­tro cam­po de vi­vên­ci­as. Os seus da­dos
não mais se cha­mam fe­li­ci­da­de e in­fe­li­ci­da­de, seus po­los
não sig­ni­fi­cam vi­da e mor­te. A sua me­di­da não é ten­são
en­tre an­tí­te­ses.
Quem ain­da pen­sa que a ar­te re­pre­sen­ta o be­lo? Que
es­te pos­sui um con­trá­rio (es­te pe­que­no “be­lo” ori­gi­na-se
do con­cei­to do gos­to)? Ela é a pai­xão da to­ta­li­da­de. Seu
re­sul­ta­do: in­di­fe­ren­ça e equi­lí­brio do que es­tá com­ple­to.
[Se não me opus à aman­te, foi por­que de to­dos os po‐­
de­res que al­guém po­de exer­cer so­bre ou­trem, so­men­te o
seu, in­co­er­cí­vel, pa­re­cia-me cor­re­to. Aban­do­na­do co­mo
es­tou, não era meu de­se­jo evi­tá-la; an­seio, po­rém, por
atra­ves­sá-la! Que ela se­ja uma ja­ne­la pa­ra o mun­do am‐­
pli­ad
­ o da exis­tên­cia... (não um es­pe­lho.)]
Es­ta súbi­ta (co­mo pos­so cha­má-la?) par­ci­a­li­da­de no
amor des­per­ta em mim te­me­rá­ri­as re­cor­da­ções que me
ex­ce­dem: co­mo se, de al­gum mo­do, eu já me hou­ves­se
sen­ti­do uma vez in­fi­ni­ta­men­te im­par­ci­al...
A as­ce­se não cons­ti­tui na­tu­ral­men­te uma sa­í­da; ela é
sen­su­a­li­da­de com si­nal in­ver­ti­do. Ela po­de vir em so­cor­ro
do san­to, co­mo uma cons­tru­ção au­xi­li­ar; no pon­to mé­dio
de su­as re­nún­ci­as ele per­ce­be aque­le Deus do an­ta­go­nis‐­
mo, o Deus do in­vi­sí­vel, que ain­da não cri­ou.
Aque­le, po­rém, que es­tá obri­ga­do pe­los sen­ti­dos a to‐­
mar por pu­ros os fe­nô­me­nos e por ver­da­dei­ra a for­ma na
Ter­ra, co­mo po­de­ria ini­ci­ar-se na re­nún­cia? E mes­mo que
ela se lhe mos­tras­se útil e pres­ti­mo­sa, ain­da as­sim, per‐­
ma­ne­ce­ria lo­gro, ar­dil, en­ga­no e, por fim, se vin­ga­ria em
al­gum pon­to dos con­tor­nos de sua obra co­mo du­re­za, se‐­
qui­dão, re­cal­ci­trân­cia, co­var­dia do fru­to.
Car­tas: co­mo fui ar­ras­ta­do de um la­do a ou­tro nes­te
in­ver­no; ca­da car­ta, um gol­pe, um as­sal­to que po­de­ria
pôr tu­do abai­xo, ou uma pe­ne­tra­ção ínti­ma que me­ta‐­
mor­fo­sea-va o san­gue —
e is­so, di­a­ri­a­men­te, num tem­po que de­via tor­nar-se o
de mi­nha mais per­fei­ta se­re­ni­da­de;
e de­pois que, pas­sa­dos vin­te anos, na cres­cen­te cla­re‐­
za de mi­nha von­ta­de, eu dis­pu­se­ra a mi­nha exis­tên­cia de
mo­do que não hou­ves­se nem pu­des­se ha­ver no­tí­ci­as que
lo­gras­sem atin­gir e al­te­rar es­sa von­ta­de em su­as de­ter‐­
mi­na­ções es­sen­ci­ais.
Em meu co­ra­ção per­ma­ne­ceu uma es­tra­nha ap­ti­dão
pa­ra o me­do que o tor­na ir­re­co­nhe­cí­vel pa­ra mim.
(Do es­bo­ço de uma car­ta)
To­das es­sas re­cu­sas, não te es­que­ças, ama­da, tra­tam
de teu po­der. Se eu fos­se li­vre, se meu co­ra­ção não per‐­
ma­ne­ces­se pre­so co­mo uma es­tre­la às re­la­ções do es­píri‐­
to ir­re­fu­tá­vel, ca­da pa­la­vra – a par­tir da qual aqui se de‐­
sen­ca­deia a re­vol­ta – se­ria re­jei­ção, la­men­to, tua gló­ria,
con­ver­são a ti, con­cor­dân­cia, pro­ce­la, de­clí­nio e res­sur‐­
rei­ção em ti.
Oxa­lá fos­se eu um ho­mem que cir­cu­las­se num am­bi‐­
en­te in­te­li­gí­vel, um co­mer­ci­an­te, um pro­fes­sor das coi­sas
tan­gí­veis, um ar­te­são...
Is­so é con­trá­rio ao se­gre­do de mi­nha vi­da.
En­quan­to a ama­da atrai a si to­do o acon­te­ci­men­to,
tor­no-me fal­so em mim; pois pa­re­ce que ago­ra se lhe
mo­ve na con­tí­nua cor­ren­te aqui­lo de que eu mes­mo não
pos­so dis­por. De um la­do is­so se de­ve à sua von­ta­de, de
ou­tro es­sa pos­se acon­te­ce por meio de sua me­ra exis­tên‐­
cia. Ela trans­for­mou a pai­sa­gem no âni­mo do aman­te e
ocu­pa ali um dos sí­ti­os mais pro­fun­dos: o va­le ao qual tu‐­
do flui.
A ser­ra tra­ba­lha des­de ma­nhã ce­do. Me­lan­cóli­ca, a mi‐­
nha vis­ta — so­bre­vi­ven­do, por as­sim di­zer — abran­ge
ain­da es­se en­tor­no apa­ren­te­men­te in­tac­to cu­ja de­mo­li‐­
ção ocor­re con­ti­nu­a­men­te no ou­vi­do. Con­ta-se de mo­ri‐­
bun­dos a quem o mun­do não se re­ti­ra si­mul­ta­ne­a­men­te
de to­dos os sen­ti­dos. O seu pa­la­dar já na­da sen­te, o seu
ta­to tor­na-se ob­tu­so, o ou­vi­do fa­lha. Mas, en­xer­gam ain‐­
da. São ca­pa­zes até mes­mo de, vez ou ou­tra, vi­rar len­ta‐­
men­te a ca­be­ça no tra­ves­sei­ro se por­ven­tu­ra re­ú­nem um
res­to de for­ças pa­ra de­po­si­tar o olhar num ou­tro re­cor­te
da ima­gem. É de­cer­to um alí­vio des­pe­dir-se fi­nal­men­te
por meio de ape­nas um sen­ti­do.
Sem a in­ter­fe­rên­cia da ser­ra­ria lá adi­an­te, eu te­ria
ade­ri­do até o fim à to­ta­li­da­de do lu­gar, sem, con­tu­do, ar‐­
ran­car-lhe aque­le be­ne­fí­cio pa­ra o que já era mui­to tar­de.
Eu
não me te­ria de­ci­di­do por as­su­mir es­sa len­ta com­preen‐­
são, co­mo o fa­ço ago­ra dia após dia, e com o im­pul­so da
des­pe­di­da eu te­ria to­ca­do fi­nal­men­te o de­ses­pe­ro do não
re­a­li­za­do, e ela se pre­ci­pi­ta­ria de uma vez nu­ma que­da
ter­rí­vel. Não sei o que te­ria acon­te­ci­do co­mi­go, mas re‐­
ceio que a ima­gem da ama­da se­ria so­ter­ra­da em mim
co­mo se o fos­se por obra de um des­mo­ro­na­men­to.
Tra­ta-se de um pro­gres­so meu, ape­sar de tu­do (per­ce‐­
ba-se com al­gu­ma con­des­cen­dên­cia que pro­cu­ro por um
pro­gres­so, en­quan­to es­tou fa­da­do ao pe­so da cons­ci­ên‐­
cia), tra­ta-se de um pro­gres­so que eu con­si­ga, so­bre a
ca­be­ça da ama­da e num tra­ba­lho do­lo­ro­so, cin­ze­lar o pe‐­
da­ço de ro­cha que na que­da te­ria des­tro­ça­do a sua pu­ra
exis­tên­cia? (Pa­ra on­de o ven­to car­re­ga o pó de sua pe‐­
dra? Quem o as­pi­ra? Ah, a cul­pa não se au­sen­ta do mun‐­
do.) Mas ela não há-de ser cul­pa­da quan­to a mim, a ama‐­
da.
E tam­bém is­so po­de ser con­si­de­ra­do even­tu­al­men­te
um pro­gres­so (co­mo se eu tão-so­men­te pu­des­se me
afas­tar do ce­ná­rio da per­da por meio de um “pas­so adi‐­
an­te”!), tam­bém is­so, que eu não mais cha­me es­te di­le‐­
ma de um di­le­ma que se ins­tau­ra en­tre o amor e o tra­ba‐­
lho. Ele se en­tre­a­bre em meu amor mes­mo, pois per­ce­bi
de uma vez por to­das que meu tra­ba­lho é amor. Que sim‐­
pli­fi­ca­ção! E ago­ra, de fa­to, es­te é, até on­de eu pos­sa
ver, o úni­co con­fli­to de mi­nha vi­da. O res­tan­te são ta­re‐­
fas.
Per­ce­bi-o pe­la pri­mei­ra vez na es­co­la mi­li­tar; mais tar‐­
de, en­ver­gan­do o ca­sa­co de in­fan­te.[16] E ago­ra de no­vo:
co­mo ca­da cri­a­tu­ra car­re­ga tão-so­men­te aque­le pe­so
que su­as for­ças po­dem su­por­tar, em­bo­ra ele ami­ú­de as
ex­ce­da.
Nós, po­rém, que nos en­con­tra­mos num ina­preen­sí­vel
pon­to mé­dio de uma va­ri­ed ­ a­de de am­bi­en­tes dis­tin­tos e
con­tra­di­tó­ri­os, che­ga­mos à si­tu­a­ção de re­pen­ti­na­men­te
ser­mos sub­me­ti­dos a um pe­so que de mo­do al­gum se
ajus­ta à nos­sa ca­pa­ci­da­de e ao seu exer­cí­cio: um pe­so
que nos é es­tra­nho.
(Quan­do se po­de­ria im­por ao cis­ne a pro­va que ca­be
ao le­ão? Co­mo um mor­ce­go po­de­ria en­ten­der uma par­te
que fos­se do des­ti­no de um pei­xe? Ou, ain­da, co­mo a co‐­
bra que faz a di­ges­tão vi­ria a com­preen­der o sus­to de um
ca­va­lo?)
Acre­di­to, por is­so, que des­de me­ni­no ja­mais pe­di a
Deus por ou­tra coi­sa que não fos­se o meu pe­so; pe­dia
que o meu pe­so me acon­te­ces­se,
não por uma fa­lha, co­mo acon­te­ce com o de um mar­ce‐­
nei­ro, co­chei­ro ou sol­da­do, pois de­se­jo me re­co­nhe­cer no
meu pe­so máxi­mo.
Ape­nas em vir­tu­de da con­fu­são rei­nan­te no que é ili‐­
mi­ta­da­men­te hu­ma­no e cu­ri­os ­ o de to­das as coi­sas, a
qual per­mi­tiu que tu­do pu­des­se acon­te­cer a ca­da um, foi
pos­sí­vel que a que­da se tor­nas­se in­fa­me. Quão ínti­ma
ela se tor­na quan­do é sur­preen­di­da no que lhe é mais
sin­gu­lar, no que pô­de ser re­a­li­za­do com pai­xão!
Na­da se­rá con­ser­va­do da­que­la “es­tra­nha” afli­ção que
me le­vou cer­ta ma­nhã, às qua­tro ho­ras, a me di­ri­gir à lo‐­
ca­li­da­de de G.[17] (era noi­te ain­da e uma chu­va fria ca­ía
na es­cu­ri­dão), pois era aqui jus­ta­men­te que eu co­me­ça­ra
a obra de meu co­nhe­ci­men­to. Nin­guém ja­mais to­ma­rá ci‐­
ên­cia da­qui­lo que eu, em tran­qui­la pres­ta­ção de con­tas,
con­fio a es­tas pági­nas. An­tes, po­rém, de quei­mar o pe‐­
que­no ca­der­no de no­tas en­ca­pa­do de cou­ro azul que eu
le­va­ra co­mi­go na­que­la vi­a­gem, que­ro des­cre­ver o seu
es­ta­do. Fo­ram es­cri­tas me­nos de três pági­nas, mas o que
as preen­che, jun­ta­men­te com dois en­de­re­ços, tor­na es‐­
sas mui­tas, mui­tas pági­nas va­zi­as tão si­nis­tras que eu as
lan­ço ao fo­go, co­mo ma­té­ria con­ta­mi­na­da e pes­ti­len­ta.
Trans­cre­vo aqui, sem a me­nor al­te­ra­ção, na se­quên­cia
em que se en­con­tram e an­tes de lhes dar ca­bo, as pa­la‐­
vras ab­sur­das em que se con­su­mia o meu es­píri­to, en­tão
ca­paz, quan­do,
su­bi­ta­men­te, um pe­so “es­tra­nho”, co­mo um áci­do cor­ro‐­
si­vo, se der­ra­mou so­bre ele.
(Do ca­der­no de ano­ta­ções des­tru­í­do:)
(Na mar­gem aci­ma a pa­la­vra:) pe­sa­de­lo —, (em se­gui‐­
da, nú­me­ros de­sor­de­na­dos, adi­ções de pe­que­nas par­tes
sem sen­ti­do, e en­tão:)[18]
“pra­ta ale­gria cru­ez ­ a re­don­de­za des­ti­no ama­do
in­fu­são areia por quê ja­mais aten­ção
es­prei­ta bai­xo in­ve­ja glu­tão pros­pe­ri­da­de ví­cio
ro­ed­ or ca­mi­nho ra­mo ab­sor­to cer­ca len­da sim­pli­ci­da‐­
de
ves­pa co­ra­ção ci­ne­ma (cri­an­ça) lu­to or­va­lha­da
ru­mor anel man­si­dão noi­te ber­ço
ali­men­tos vi­vos pás­sa­ro es­pi­ga des­ti­no não
pia ba­tis­mal ira tur­va­ção mul­ti­cor aplau­so
es­sên­cia mu­la água-for­te pa­ra lon­ge que­da
pen­te­a­do cer­cas tu­fão ah ber­ço maio
ja­nei­ro pra­ta né­voa ca­mi­nhos gri­to car­ta
men­sa­gei­ro Bus­ta No­ta au­to­mó­vel Tim­gad mar­gem
man­je­dou­ra be­bi­da no­va­to ace­no oh ei­xo
bri­lho ten­ti­lhão ti­mão tem­pes­ta­de pe­dra Ri­be
fo­guei­ras de são Jo­ão ser­vi­ço agos­to po­se Pos­sard
frei­ra bar­ra lan­ça la­va­gem jo­vi­al
de­brum cor­te exis­tên­cia exa­to far­do bai­xa­da (?)
pu­nho ba­ba gar­ra exer­cí­cio trem no­tur­no ze­lo
de­ser­to dar­do ver­ti­gem ir­rup­ção fú­ria per­cur­so
Leb­zelt er­va trê­mu­la vés­pe­ra ubíquo cem
cu­ra fer­men­to Wi­eb ­ urg per­du­lá­rio
rei es­pi­nho de­grau mal Un­gelt ca­lha
mí­su­la tri­na­do trai­ção ver­go­nha les­te Fehr
ca­se­í­na afli­ção co­roa bis­pa­do ba­ga
pa­di­ol­a ur­so di­a­frag­ma ci­gar­ra se­lo mal­da­de
(no­va pági­na)
Re­tor­no pes­soa que­ri­da mer­gu­lha­dor ca­be­ça de pás‐­
sa­ro
Suor de me­do gar­gan­ti­lha ge­a­da Wiku­na
Cin­ta cir­cu­lar car­re­ta Li­ebk­ne­cht Ag­ne­se
Terwin fio hós­pe­de car­re­tel ócu­los von­ta­de es­co­la
Thu­gut Ma­ria If­fland san­gue do co­ra­ção nó de ma­dei­ra
Zwei­bruck fim do tra­ba­lho Wend­landt des­cen­so
ras­tro ras­treio in­cli­na­ção Vi­er­zug lú­cio es­pec­ta­dor
Lar­de Fei­litzs­ch bei­ral des­ti­na­ção
ape­nas rá­fia ru­í­do las­tro co­ra­ção da noi­te tei­mo­sia
lim­po hós­pe­de pri­mor­di­al Bil­lung pron­to
Saumzwang Ni­ef­ eln Hi­eb ­ er en­co­ra­ja­men­to
ic­to no­men­cla­tu­ra Bei­nung juiz
régu­lo ca­da­fal­so for­ça de de­fe­sa car­da­ção bo­bi­na
gi­ra de­va­gar mas não che­ga ne­nhu­ma músi­ca
à ro­da Nau­mann

(e três en­de­re­ços.)
(Es­bo­ço de car­ta)
Não sa­be­rei vi­ver en­quan­to per­du­rar es­ta si­tu­a­ção —
pois dis­so sou in­ca­paz, quan­do sei que por mi­nha cul­pa
es­tás in­fe­liz, co­mo quan­do te fa­ço fe­liz do mo­do que es‐­
pe­ras de mim. Oxa­lá eu hou­ve­ra si­do ab­so­lu­ta­men­te
ines­cru­pu­lo­so na­que­le mo­men­to, se­guin­do a li­ber­da­de
de meu amor! Não há pi­or pri­são que o me­do de fe­rir al‐­
guém que se ama. Ele fal­seia to­do o im­pul­so do co­ra­ção;
sem ele eu não me ve­ria na con­tin­gên­cia de im­plo­rar por
es­tar só den­tro de nos­sa fe­li­ci­da­de, co­mo uma ex­ce­ção
es­pe­ci­al. A mi­nha so­li­tu­de, es­sa ins­tân­cia mui pe­cu­li­ar de
meu ser: ela apa­re­ce ago­ra co­mo uma fu­ga de nos­so
amor — e co­mo não ha­ve­ria de sê-lo sem­pre so­bre­car­re‐­
ga­da de an­te­mão por teu de­se­jo, de mo­do a que não se
pro­lon­gas­se? E en­tão: co­mo que­res pos­suir no­va­men­te a
for­ça de man­ter afas­ta­do
de meu re­co­lhi­men­to o que, par­tin­do do en­cla­ve de nos‐­
sa fe­li­ci­da­de, tem um efei­to mais que pro­lon­ga­do?
De­vo me con­si­de­rar in­fe­liz pa­ra sem­pre (ah, o que é
ain­da pi­or: cau­sar in­fe­li­ci­da­de ao mais fe­liz dos co­ra‐­
ções!) por não ser ca­paz de re­ce­ber tão fa­cil­men­te o
amor e ex­trair-lhe um au­men­to de mi­nhas ap­ti­dões?
Nun­ca ad­mi­rei aque­les que ca­re­cem de uma pai­xão pa­ra
que se lhes acen­da a cha­ma do es­píri­to. Por que de­ve­ria
eu con­tar com tal mo­ti­va­ção se o pró­prio tra­ba­lho é, ele
mes­mo, in­fi­ni­ta­men­te mui­to mais amor do que um in­di­ví‐­
duo po­de mo­bi­li­zar de uma só fei­ta? Ele é to­do amor.
E as­sim es­sa co­mo­ção em tor­no da ama­da pa­re­ceu-
me um ca­so par­ti­cu­lar de amor que na­da pou­pa ou fa­ci­li‐­
ta — an­tes, em sua in­so­lu­bi­li­da­de, exi­ge o de­sem­pe­nho
mais com­ple­to a fim de ser su­por­ta­do, re­co­nhe­ci­do e sa‐­
tis­fei­to em to­das as su­as exi­gên­ci­as.
Diz, diz — ex­pres­so com is­to, o que me pa­re­ce tão
es­tra­nho de su­por­tar, uma ex­ce­ção, tal­vez uma con­fu­são
de mi­nha na­tu­re­za? É ra­ro que se quei­xe de al­go as­sim.
Se­ja por­que a aten­ção da mai­or­ ia não ul­tra­pas­se a frui‐­
ção e o ci­ú­me, se­ja por­que al­go que res­ta pa­de­cer em
ca­sos iso­la­dos co­mo o meu se in­clua no âm­bi­to da­qui­lo
que se apre­sen­ta sem no­me, da­qui­lo que é inex­pri­mí­vel.
Não são nu­me­ro­sos aque­les cu­jo co­ra­ção ar­re­mes­sa­do
não se aca­ba em abra­ço; bus­cam-no ain­da — ve­ri­am qui‐­
çá co­mo a sua cur­va, do ou­tro la­do, to­ma uma no­tá­vel
ace­le­ra­ção, a da im­pa­ci­ên­cia, ain­da que es­sa fe­li­ci­da­de
já hou­ves­se si­do su­pe­ra­da. E, além dis­so, ela aco­de ao
ili­mi­ta­do e sig­ni­fi­ca — sa­bes o quê? — ca­mi­nho e sau­da‐
de da­que­les que não de­sis­tem de pros­se­guir — dos pe­re‐­
gri­nos rus­sos e dos nô­ma­des be­du­í­nos que, com seus ca‐­
ja­dos de oli­vei­ra, são tan­gi­dos e tan­gi­dos...
Ape­nas aque­le a quem é da­do mor­rer no abra­ço po­de
ha­bi­tá-lo. Ca­da um es­co­lhe a sua mo­ra­da con­for­me o
gos­to de sua mor­te (per­mi­ta-me ex­pres­sá-lo as­sim, de
mo­do sen­su­al e frí­vo­lo). O que im­pe­le, em seu va­gar er‐­
ran­te, aque­les ho­mens às es­te­pes, ao de­ser­to, é o sen­ti‐­
men­to de que não lhes agra­da mor­rer em sua ca­sa, que
não en­con­tram ali um lu­gar pa­ra si.
Uma ami­ga su­ec ­ a, que pas­sou um in­ver­no so­zi­nha à
bei­ra do de­ser­to, es­cre­veu-me: “... Pai­sa­gens de uma tal
mag­ni­tu­de que se po­de­ria en­con­trar es­pa­ço su­fi­ci­en­te
de­pois da mor­te. Ao me­nos por um tem­po —.”
[Ape­sar de tu­do, meu Deus, quão ri­co, quão cal­mo,
quão ple­no se­ria eu ago­ra se es­se amor me fos­se con­ce‐­
di­do, in­con­di­ci­on
­ al­men­te, sem que fos­se opri­mi­do por es‐­
pe­ran­ças, ex­pec­ta­ti­vas, exi­gên­ci­as des­se co­ra­ção, o qual
pa­re­ce in­ca­paz de to­mar pos­se de sua fe­li­ci­da­de jus­ta‐­
men­te pe­lo re­ceio ex­tre­ma­do di­an­te da per­da.
Pois não o te­mi na­que­la épo­ca, e ele não me cau­sou
qual­quer apreen­são, ao se pos­tar di­an­te de mim, di­an­te
de al­guém que es­ta­va de­sa­vi­sa­do. De igual mo­do ele ti‐­
nha de se fa­zer pre­sen­te, su­pe­ra­do tal­vez (e en­tão não
me­nos pre­sen­te, pois o que lhe ha­ve­ria de ser efê­me­ro,
afi­nal?), re­a­pre­sen­tan­do-se con­ti­nu­a­men­te, quem sa‐­
be...]
O prin­cí­pio de meu tra­ba­lho é uma sub­mis­são apai­xo‐­
na­da ao ob­je­to que me ocu­pa, ao qual, em ou­tras pa­la‐­
vras, per­ten­ce o meu amor.
O re­ver­so des­sa sub­mis­são acon­te­ce fi­nal­men­te, sur‐­
preen­den­do-me a mim mes­mo, no re­pen­ti­no ato cri­a­dor
que me en­vol­ve, no qual eu me ve­jo agin­do de for­ma tão
ino­cen­te quan­to su­pe­ra­do­ra, do mes­mo mo­do co­mo eu
fo­ra sub­ju­ga­do de mo­do pu­ro e ino­cen­te na­que­la fa­se
an­te­ri­or.
Tal­vez o ena­mo­ra­men­to se tor­ne pa­ra sem­pre uma
ter­rí­vel fa­ta­li­da­de no ca­so de um co­ra­ção que tra­ba­lha
em meio a es­sas re­la­ções. Ele se sub­me­te, de acor­do
com o seu cos­tu­me, tam­bém ao que ama, o qual ele não
tem de for­mar, mas, por meio de sua in­fin­dá­vel en­tre­ga,
atrair pa­ra cons­tan­te­men­te do­mi­ná-lo. E a re­vi­ra­vol­ta,
que nes­se ca­so se­ria sim­ples­men­te a trans­for­ma­ção do
amor na­que­le que ama — po­der-se-ia qua­se di­zer, con­tra
ele mes­mo — não po­de agir de mo­do to­tal­men­te
con­trá­rio à sua pró­pria su­pre­ma­cia...
As­sim, a vi­vên­cia amo­ro­sa sur­ge co­mo uma igual­men‐­
te atro­fi­a­da e in­ca­pa­ci­ta­da for­ma se­cun­dá­ria da ex­pe­ri‐­
ên­cia cri­a­do­ra, co­mo o seu avil­ta­men­to, per­ma­ne­cen­do
ir­re­a­li­za­da, in­do­ma­da e — com­pa­ra­da à or­de­na­ção su­pe‐­
ri­or des­se êxi­to — não per­mi­ti­da.
Ah, vi­vo ago­ra co­mo se vi­er­ a pa­ra fi­car umas pou­cas
se­ma­nas nes­te lu­gar co­nhe­ci­do por sua ser­ra­ria elétri­ca,
... sem nu­trir ex­pec­ta­ti­vas con­cre­tas em re­la­ção a es‐­
ta es­ta­dia, pa­ra as quais eu me ve­jo ab­so­lu­ta­men­te fa­ti‐­
ga­do...
Aque­la so­li­dão, há vin­te anos con­quis­ta­da, não se de‐­
ve tor­nar uma ex­ce­ção, “fé­ri­as” que eu, por meio de mui‐­
tas jus­ti­fi­ca­ções, te­ria de pe­dir a uma fe­li­ci­da­de vi­gi­lan­te.
Te­nho de vi­ver ili­mi­ta­da­men­te ne­la. Ela de­ve per­ma­ne­cer
a cons­ci­ên­cia fun­da­do­ra à qual pos­so sem­pre re­tor­nar,
não com a in­ten­ção de lhe ti­rar re­pen­ti­na­men­te al­gum
pro­vei­to ime­di­a­to, não com a ex­pec­ta­ti­va de que ela me
se­ja fe­cun­da; an­tes, de mo­do es­pon­tâ­neo, dis­cre­to, ino‐­
cen­te: co­mo o lu­gar a que per­ten­ço.
Que po­de­res hão de ha­ver acor­da­do um en­con­tro em
meu co­ra­ção?...
Re­ti­ram-se ca­so o en­con­trem ha­bi­ta­do.
Al­guém, ah, que po­de re­le­var o ser ama­do e o amor
nos re­ais acor­dos de seu co­ra­ção.
[Co­mo me can­sa em­preen­der es­ses con­tra­gol­pes pa­ra
me de­fen­der da pos­se do amor — on­de es­tá o co­ra­ção
que não me “pe­diu” uma fe­li­ci­da­de de­ter­mi­na­da e obs­ti‐­
na­da, se­não que me per­mi­tiu en­tre­gar-lhe is­so que bro­ta
ines­go­ta­vel­men­te de mim?]

Atra­ção e re­pul­sa: co­mo es­tou fa­ti­ga­do. On­de es­tá o


co­ra­ção que não me “pe­diu” uma fe­li­ci­da­de obs­ti­na­da,
se­não que me per­mi­tiu en­tre­gar-lhe is­so que bro­tou ines‐
go­ta­vel­men­te de mim?
Mas, quan­to a is­so não há acor­do. Ah, que as lu­tas
hou­ves­sem ces­sa­do! Que se pu­des­se ou­vir co­mo na úl­ti‐­
ma es­tro­fe[19] de Gi­rard de Rous­sil­lon[20]:

“Les guer­res sont fi­ni­es et les


œu­vres com­men­cent.”
Ou Rim­baud:
Sa­cu­dir a lin­gua­gem com o co­ra­ção im­pe­tuo­so, de
mo­do a que ela por um ins­tan­te se tor­ne di­vi­na­men­te
“inu­ti­li­zá­vel” — e en­tão se­guir adi­an­te, não olhar pa­ra
trás, tor­nar-se um co­mer­ci­an­te.
Eu o sou­be du­ran­te to­do es­te in­ver­no: te­nho de me
con­cen­trar na me­di­ta­ção de al­go. Ah, es­ta é a per­da
mais du­ra: ha­ver per­di­do al­go des­co­nhe­ci­do, in­de­ci­frá‐­
vel.
Es­tes di­as en­con­tram-se en­tre os mais di­fí­ceis... A
aver­são pe­lo não re­a­li­za­do cor­rói o meu cor­po co­mo a
fer­ru­gem; nem mes­mo o so­no traz al­gum alí­vio — na se‐­
mi-vi­gí­lia o san­gue pul­sa nas têm­po­ras co­mo pas­sos pe‐­
sa­dos que não se aco­mo­dam.
Se eu te pu­des­se cha­mar... mas com is­so rui­ria o meu
úl­ti­mo bas­ti­ão: es­te tri­bu­nal em que me re­co­nhe­ço. Tu
mes­ma es­cre­ves­te re­cen­te­men­te que eu não con­to en­tre
aque­les que se dei­xam con­so­lar pe­lo amor. E es­ta­vas
cer­ta. Pois, ao fim e ao ca­bo, o que me se­ria mais inútil
do que uma vi­da que se dei­xa con­so­lar.
Oh, na­da dis­so me sur­preen­deu, co­mo ocor­re aos lou‐­
cos em seu de­lí­rio. En­quan­to os meus ju­í­zes li­am a sen‐­
ten­ça, com uma len­ti­dão exas­pe­ran­te e sob as lu­zes de
mi­nha fe­li­ci­da­de, per­ma­ne­ci ao la­do de­les e avis­tei o in‐­
tei­ro ve­re­dic­to.
Cer­ta noi­te, con­tu­do, não pu­de mais to­le­rá-lo. O si­lên‐­
cio da ca­sa, o qual pro­te­gia e ain­da pro­via to­das as coi‐­
sas, e o meu ter­rí­vel aban­do­no em meio a ele de­sen­ca‐­
de­a­ram um ta­ma­nho con­fli­to no co­ra­ção, que pen­sei não
po­der con­ti­nu­ar a vi­ver. In­ca­paz de ler, sem nem mes­mo
ter con­di­ções de con­tem­plar o sem­pre re­con­for­tan­te fo­go
nas achas de abe­to,
to­mei uma pas­ta do re­po­si­tó­rio da es­tan­te de li­vros que
ja­mais abri­ra e me for­cei a exa­mi­nar su­as fo­lhas. Eram
re­pro­du­ções de pin­tu­ras do acer­vo das gran­des ga­le­ri­as
e elas me ex­ci­ta­ram com o seu co­lo­ri­do im­pre­ci­so e in‐­
con­gru­en­te. Não sei em quan­tos des­ses qua­dros fi­xei o
meu olhar; fo­ram in­con­tá­veis, e eu os fo­lhe­a­va ca­da vez
mais sô­fre­go: su­bi­ta­men­te tor­nei-me cons­ci­en­te da­qui­lo
so­bre que ha­via pen­sa­do o tem­po to­do: aon­de? Aon­de?
Aon­de, à li­ber­da­de? Aon­de, à se­re­ni­da­de da pró­pria
exis­tên­cia? Aon­de, à ino­cên­cia que se tor­nou in­dis­pen­sá‐­
vel?
Vol­tei a mim mes­mo; mais aten­to, apreen­si­vo mes­mo,
co­mo se uma cons­ci­ên­cia que cres­ce­ra in­te­ri­or­men­te sal‐­
tas­se pa­ra fo­ra, ab­sor­vi-me na fo­lha que ora es­ta­va aber‐­
ta. Era a as­sim cha­ma­da Ma­do­na de Luc­ca de Jan van
Eyck,
a do­ce ma­do­na que, cin­gi­da por um man­to ver­me­lho,
ofe­re­ce o for­mo­síssi­mo pei­to à cri­an­ça, que ma­ma ab­sor‐­
ta, com o cor­pi­nho em­per­ti­ga­do.
Aon­de? Aon­de?...
E, de súbi­to, de­se­jei tor­nar-me, com to­do o ar­dor de
que é ca­paz o meu co­ra­ção, não uma das du­as ma­çãs do
qua­dro, não uma da­que­las ma­çãs pin­ta­das so­bre o pa­ra‐­
pei­to pin­ta­do da ja­ne­la: is­so já me pa­re­cia al­go de­ma­si­a‐­
do pa­ra o meu des­ti­no... Não: tor­nar-me a su­a­ve, hu­mil‐­
de, mo­des­ta som­bra de uma da­que­las ma­çãs era o de­se‐­
jo em que o meu ser in­tei­ro se con­su­mia.
E, co­mo se fos­se pos­sí­vel re­a­li­zar tal de­se­jo ou co­mo
se bas­tas­se es­se de­se­jo pa­ra se ob­ter uma com­preen­são
ma­ra­vi­lho­sa­men­te se­gu­ra, lágri­mas de gra­ti­dão inun­da‐­
ram-me os olhos.
Por ve­zes, no de­ses­pe­ro que cons­tan­te­men­te me põe
à pro­va nes­tes di­as, sur­preen­de-me al­go co­mo o an­te­ci‐­
pa­do bri­lho de uma no­va ale­gria es­pi­ri­tu­al: co­mo se, na
re­a­li­da­de, tu­do se tor­nas­se mais sim­ples e um in­des­cri­tí‐­
vel des­ti­no se fi­zes­se apreen­der em va­lo­res apro­xi­ma‐­
dos. Pois não se­ria is­to no fim das con­tas? (se de­vo ex‐­
pres­sá-lo): que a cla­ri­da­de e a es­cu­ri­dão não po­dem ser
de­ter­mi­na­das em meu ínti­mo pe­la in­flu­ên­cia pre­do­mi‐­
nan­te de uma pes­soa, mas uni­ca­men­te por al­go que não
tem no­me. É es­ta, por as­sim di­zer, a me­di­da míni­ma de
mi­nha de­vo­ção: re­nun­ci­an­do, eu de­ve­ria re­tor­nar pa­ra
além da pri­mei­ra en­cru­zi­lha­da de mi­nha vi­da, à sua mais
an­ti­ga, se­re­na e li­vre re­so­lu­ção — pa­ra além de mim
mes­mo.
(Es­bo­ço de car­ta)

Cas­te­lo de B...,[21] sem da­ta:


Sem­pre.
A quem, ama­da, a quem, se­não a ti, de­vo con­fi­ar es­ta
di­fícil con­clu­são de meu co­ra­ção? Se ela te cau­sa cons‐­
tran­gi­men­tos, ima­gi­na quão gran­de é o cons­tran­gi­men­to
que me le­va a es­cre­ver o que se­gue.
Co­me­ti uma in­jus­ti­ça; uma trai­ção. Não fiz uso das cir‐­
cuns­tân­ci­as que me fo­ram ofe­re­ci­das de­pois de seis anos
de des­trui­ção e im­pe­di­men­to com B... pa­ra a ina­di­á­vel
ta­re­fa in­te­ri­or; o des­ti­no to­mou-ma de mi­nhas mãos. Sou
obri­ga­do a re­co­nhe­cê-lo.
Sa­bes, que­ri­da, quan­to aque­las cir­cuns­tân­ci­as, da me‐­
nos im­por­tan­te até a mais es­sen­ci­al, me agra­da­vam,
quão de­ci­di­do eu me en­tre­guei a elas. Pro­cu­ras­te fa­zer a
tua par­te, res­guar­dan­do-as pa­ra mim: de­bal­de.
No dia dois de de­zem­bro, lo­go de­pois da ven­tu­ro­sa
ten­ta­ti­va de es­bo­çar aque­le pre­fá­cio re­di­gi­do em fran­cês,
[22]
con­se­gui tra­çar as pri­mei­ras li­nhas da­que­le tra­ba­lho
no qual se de­via for­mar a mi­nha no­va con­cen­tra­ção in­te‐­
ri­or. No dia qua­tro, fui in­ter­rom­pi­do pe­la abor­re­ci­da cor‐­
res­pon­dên­cia de meu ani­ver­sá­rio,[23] no sex­to dia do mês
che­ga­vam as pri­mei­ras no­tí­ci­as pre­oc­ u­pan­tes de G.[24]
Tu sa­bes o res­tan­te des­se epi­só­dio. Sa­bes tu­do; não
há na­da pa­ra con­tar-te.
Vês? Tu­do fi­cou em meu pe­que­no ma­lo­gro de dois de
de­zem­bro: a obra, a vi­da que me preen­chia re­ti­rou-se
com ele.
Por ve­zes eram si­nais de au­gú­rio, de fe­li­ci­da­de, mas
en­tão so­bre­vi­nham afli­ções e de­ses­pe­ro. Os aba­los não
ti­nham fim; não po­di­as pre­ve­ni-los.
(De que ser­viu sa­ber que eu só po­dia es­tar fe­liz e co‐­
mo­vi­do em meu tra­ba­lho?!)
E mes­mo mais tar­de, mes­mo ago­ra, mes­mo nes­tas úl‐­
ti­mas se­ma­nas, não ace­di à cons­ci­ên­cia de mi­nha na­tu‐­
ral so­li­dão, o úni­co meio de me tor­nar se­nhor de mim
mes­mo. Meu co­ra­ção des­lo­cou-se do meio de seus cír­cu‐­
los em di­re­ção à pe­ri­fe­ria, pa­ra o lu­gar mais per­to de ti
— por mais que aí ele se­ja gran­de, sen­sí­vel, ju­bi­lo­so ou
ti­mo­ra­to, não se acha em sua cons­te­la­ção, não é o co­ra‐­
ção da mi­nha vi­da.
Em nos­sos mo­men­tos mais do­ces e tal­vez mais jus­tos,
ama­da, as­se­gu­ras­te-me que po­di­as abar­car to­dos os ti‐­
pos de amor pa­ra mim. Ah, con­tro­la-te, ...., re­su­me-te
àque­la que, te­nha o no­me que ti­ver, as­se­gu­ra a mi­nha
vi­da, for­ta­le­ce-me co­mo po­de. Não pos­so
es­ca­par de mim mes­mo. Pois se eu de­sis­tis­se de tu­do,
tu­do, e me ati­ras­se ce­ga­men­te a teus bra­ços, co­mo por
ve­zes de­se­jo, e aí me per­des­se, te­ri­as con­ti­go al­guém
que hou­ve­ra de­sis­ti­do de si mes­mo: não se­ria a mim que
te­ri­as, não a mim.
Não sou ca­paz de dis­si­mu­lar e me trans­for­mar. Exa­ta‐­
men­te co­mo na mi­nha in­fân­cia, di­an­te do vi­ol­en­to amor
de meu pai, ajo­el­ho-me no mun­do e pe­ço in­dul­gên­cia
àque­les que me amam. Sim, que me pou­pem! Que não
me con­su­mam pa­ra a sua pró­pria fe­li­ci­da­de, mas me as‐­
sis­tam a fim de que se de­sen­vol­va em mim aque­la fe­li­ci‐
da­de mais fun­da e so­li­tá­ria. Sem a gran­de de­mons­tra­ção
des­sa fe­li­ci­da­de, por fim, não me ha­ve­ri­am de ter ama‐­
do.
No­tas

1. apud En­gel 2004: 19 [ «« ]


2. O in­ver­no de 1920/1921. [ «« ]
3. A Pri­mei­ra Guer­ra Mun­di­al, ini­ci­ad
­ a em ju­lho de 1914. [ «« ]
4. Pa­ris: Rilke vi­via aí des­de 1902. A ir­rup­ção da guer­ra sur­preen­deu-o em
meio a uma vi­ag ­ em à Ale­ma­nha, de on­de não pô­de re­tor­nar até o fim do
con­fli­to. [ «« ]
5. Re­fe­rên­cia ao dr. Wi­lhelm Schenk Frei­herr von Stauf­fen­berg, médi­co par­ti‐­
cu­lar de Rilke. [ «« ]
6. Rilke foi mo­bi­li­za­do pe­lo exérci­to aus­trí­ac
­ o em fins de 1915, ten­do cum‐­
pri­do as su­as obri­ga­ções mi­li­ta­res no pri­mei­ro se­mes­tre de 1916. [ «« ]
7. Mu­ni­que. [ «« ]
8. Na épo­ca, Rilke ver­tia pa­ra o ale­mão dois po­em­ as de Mal­lar­mé: “Éven­tail
de Ma­de­moi­sel­le Mal­lar­mé” e “Tom­be­au”. [ «« ]
9. No ou­to­no de 1919, Rilke pro­fe­riu uma série de pa­les­tras em Zu­ri­que, a
con­vi­te de um cír­cu­lo de lei­to­res. [ «« ]
10. Rilke per­ma­ne­ceu a mai­or par­te dos anos 1914-1918 em Mu­ni­que. Além
da guer­ra, a Ale­ma­nha pas­sou no fim des­se pe­rí­od ­ o pe­la re­vo­lu­ção que cul‐­
mi­nou com a que­da da mo­nar­quia, em no­vem­bro de 1918. Em me­ad ­ os de
1919, ele par­tiu pa­ra a Su­í­ça, pa­ís que man­te­ve du­ran­te a guer­ra a sua se‐­
cu­lar po­si­ção de neu­tra­li­da­de di­an­te dos con­fli­tos ar­ma­dos. [ «« ]
11. A con­vi­te da du­que­sa Mary Do­br­zenski, Rilke se hos­pe­dou nu­ma pe­que‐­
na ca­sa nas pro­xi­mi­da­des do la­go de Ge­ne­bra. [ «« ]
12. Em no­vem­bro de 1920, Rilke ins­ta­lou-se no cas­te­lo de Berg am Ir­chel,
pro­pri­ed
­ a­de do ca­sal Lily e Ri­chard Zi­eg
­ ler, de Zu­ri­que. Sua es­ta­dia se pro‐­
lon­gou até maio do ano se­guin­te. Ali foi re­di­gi­do es­te “tes­ta­men­to”. [ «« ]
13. O cas­te­lo de Du­í­no, da prin­ce­sa Ma­rie von Thurn und Ta­xis, si­tu­ad ­o à
bei­ra-mar, na cos­ta adri­áti­ca do en­tão Im­pé­rio Aus­tro-Hún­ga­ro; re­si­dên­cia
do po­et­ a a par­tir de ou­tu­bro de 1911 até maio de 1912. O cas­te­lo foi bom‐­
bar­de­ad
­ o na Pri­mei­ra Guer­ra e re­cons­tru­í­do ain­da na dé­ca­da de 1920. [ «« ]
14. Pa­ris e Ve­ne­za. Nes­ta úl­ti­ma, Rilke hos­pe­dou-se, de 11 de ju­nho a 13 de
ju­lho de 1920, no pa­lá­cio de Val­ma­ra, pro­pri­ed ­ a­de da prin­ce­sa Ma­rie Táxis.
Em ou­tu­bro des­se ano, o po­et­ a pas­sou uma se­ma­na na ca­pi­tal fran­ce­sa. [
«« ]
15. Rilke vi­aj­ou mais de uma vez à Rús­sia, nos anos de 1899 e 1900. [ «« ]
16. En­tre 1886 e 1891, Rilke fre­quen­tou o Co­lé­gio Mi­li­tar de Sankt Pöl­ten,
nas pro­xi­mi­da­des de Vi­en­ a, e a Aca­de­mia Mi­li­tar de Mäh­ris­ch-Weißkir­chen.
Na Pri­mei­ra Guer­ra, ser­viu co­mo in­fan­te. [ «« ]
17. Em 6 de ja­nei­ro de 1921, Rilke vi­aj­ou pa­ra Ge­ne­bra pa­ra cui­dar de Ba­la‐­
di­ne Klos­sowska, que se en­con­tra­va en­fer­ma. [ «« ]
18. O con­jun­to de ver­sos que se­gue apre­sen­ta di­ver­sos ter­mos não tra­du­zi‐­
dos. Eles con­fi­gu­ram no mais das ve­zes to­pôni­mos e an­tro­pôni­mos. [ «« ]
19. Leis no ori­gi­nal. Rilke re­fe­re-se à es­tro­fe (lais­se) da can­ção de ges­ta, que
ele con­fun­de com Leis, uma mo­da­li­da­de de cân­ti­co re­li­gi­os ­ o me­di­ev
­ al que
ter­mi­na na for­ma li­túrgi­ca do Ky­rie Elei­son.[ «« ]
20. Can­ção fran­ce­sa de ges­ta, do sé­cu­lo xii. [ «« ]
21. Cas­te­lo de Berg am Ir­chel. [ «« ]
22. Rilke pre­fa­ci­ou Mit­sou: qua­ran­te ima­ges par Bal­tusz, li­vro com uma co­le‐­
ção de de­se­nhos in­fan­tis do fi­lho ca­çu­la de Ba­la­di­ne, Bal­tha­zar (Bal­thus)
Klos­sowski, pu­bli­ca­do em 1921. [ «« ]
23. Em 4 de de­zem­bro de 1920 Rilke com­ple­ta­va 45 anos. [ «« ]
24. Ge­ne­bra. [ «« ]
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Tí­tu­lo ori­gi­nal:
Das Tes­ta­ment

Edi­tor res­pon­sá­vel: Ale­xan­dre Bar­bo­sa de Sou­za


Edi­tor as­sis­ten­te: Ju­li­an
­ a de Arau­jo Ro­dri­gues
Ca­pa: Gi­se­le Bap­tis­ta de Oli­vei­ra
Re­vi­são: Clau­dia Abe­ling e Ma­ria Syl­via Cor­rêa
Edi­to­ra de li­vros di­gi­tais: Cindy Le­op ­ ol­do
Pro­du­ção do e-bo­ok: Ran­na Stu­dio

1ª edi­ção, Edi­to­ra Glo­bo, 2009


2ª edi­ção, 2013

Da­dos In­ter­na­ci­on
­ ais da Ca­ta­lo­ga­ção na Pu­bli­ca­ção (cip)
(Câ­ma­ra Bra­si­lei­ra do Li­vro, sp, Bra­sil)

Rilke, Rai­ner Ma­ria, 1875-1926.


O tes­ta­men­to / Rai­ner Ma­ria Rilke ; tra­du­ção Ter­cio Re­don­do ; pre­fá­cio
Hel­mut Gal­le. — São Pau­lo : Glo­bo, 2009.

Tí­tu­lo ori­gi­nal: Das Tes­ta­ment

ISBN 978-85-250-4682-6

1. Es­cri­to­res ale­mães - Sé­cu­lo 20 - Bi­og ­ ra­fia


2. Ma­nus­cri­tos ale­mães - Fac-sí­mi­le
3. Rilke, Rai­ner Ma­ria, 1875-1926 4. Rilke, Rai­ner Ma­ria, 1875-1926 - Ma­‐
nus­cri­tos - Fac-sí­mi­le I. Gal­le, Hel­mut. II. Tí­tu­lo.

09-00887 CDD-830.92

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1. Es­cri­to­res ale­mães : Bi­og­ ra­fia 830.92

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