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Rain er Mar ia Rilke
O t e s t a m e n t o
t r a d u ç ã o e n o t a s :
Te r c i o R e d o n d o
p r e f á c i o :
H e l m u t G a l l e
Rainer Maria Rilke nasceu no dia 4 de dezembro de 1875,
em Praga, quando a Boêm ia integrava o império austro-
húngaro. Educado pela mãe dentro de um rigoroso catoli‐
cismo, teve uma formação cultural essencialmente ger‐
mânica. Após os estudos preparatórios em Linz e Praga,
ingressou em 1896 na Universidade de Munique, onde
estudou história da arte. Publicou aos 19 anos seu pri‐
meiro livro, Vida e canções. Entre 1895 e 1900 lançaria
três outros trabalhos, considerados menores. Foi então
que conheceu Lou Salomé, amiga e discípula de Nietzs‐
che. De sua viagem à Rússia nasceria a primeira grande
obra do autor, O livro das horas, ao qual se seguiram No‐
vos poem as (1907-1908), Elegias de Duíno (1922) e So‐
netos a Orfeu (1922). Porém, seu livro mais famoso é
Cartas a um jovem poet a, escritas entre 1903 e 1908,
mostrando a um neófito, o alemão Franz Xaver Kappus,
os caminhos do mundo interior do escritor. Entre 1902 e
1912 passeia e dá conferências em vários países euro‐
peus. Depois da Primeira Guerra Mundial fixa-se na Suíça
alemã. Quatro meses depois de publicar seus poem as
franceses, fere-se acidentalmente na mão. O ferimento
agrava a leucemia de que sofria, levando-o a falecer no
sanatório de Valmont em 29 de dezembro de 1926.
Tercio Redondo é doutor em Literatura Alemã pela Univer‐
sidade de São Paulo. Traduziu, entre outros, o drama
Woyzeck, de Georg Büchner, e o romance Nos penhascos
de mármore, de Ernst Jünger. Colabora com ensaios, re‐
senhas e traduções para jornais e revistas.
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Prefácio
O testamento | Edição fac-similar e tradução em portu‐
guês
Notas
Créditos
Prefácio
***
Helmut Galle
O testamento
Edição fac-similar e
ução em português
trad
Para se compreender a sua situação no fim daquele
inverno,[2] deve-se retroceder até o verão de 1914. A ir‐
rupção da guerra funesta,[3] que desfigurou o mundo por
um tempo que corresponde ao de muitas vidas humanas,
impediu-o de retornar àquela cidade incomparável,[4] à
qual ele devia a maior parte de suas possibilidades. Inici‐
ou-se um interminável tempo de espera num país ao
qual se via ligado apenas pelo idiom a. E, vivendo nos
mais diversos países, ele o pusera tão inteiramente a
serviço de suas tarefas mais íntimas que, há algum tem‐
po, podia considerá-lo a matéria pura e autônoma de sua
forma de pensar.
O contato com aquele amigo cujos talentos extraordi‐
nários o credenciavam como o médico de quem ele ago‐
ra muito necessitava
tornara-se cada vez mais esporádico, e essa ligação há
muito se rompera no dia em que aquele homem, total‐
mente dedicado à sua profissão, morreu exausto e de um
modo repentino.[5]
A única tentativa de retomar o seu trabalho, interrom‐
pido pela perda de toda a vida natural, deparou um final
abrupto na convocação para servir num regimento da re‐
serva, o que o obrigou a se sujeitar a um prazo adverso e
agora verdadeiramente perdido na capital do país que o
tinha a seu serviço.[6] Liberado depois de muitos meses
dessas obrigações ocios as, e tendo retornado ao domicí‐
[7]
lio de sua espera, faltavam-lhe clareza e liberdade inte‐
rior es, indispensáveis para que seu indescritível trabalho
prosperasse. Ele não se dispunha a misturar seu trabalho
com o terrível desastre daqueles
anos dolorosos: assim, em diversas cartas, ele ao menos
desculpava a sua incapacidade. Nessa correspondência,
confessava sentir-se como a criança que, enquanto per‐
siste a tortura de uma dor de dente, se recusa a tocar os
objetos que lhe são mais caros.
Finalmente, quando a guerra se transformara na difu‐
sa desordem dos espasmos revolucion ários e, traduzindo
[8]
Mallarmé, ele se mantinha de algum modo afastado da‐
quele absurdo, foi-lhe possível, por meio de convites para
conferências,[9] deixar a cidade submetida a tanto sofri‐
mento e abandonar a sua quase pública residência — tão
frequentada ela era por estranhos e conhecidos de ocasi‐
ão — para, atendendo ao almejado convite, seguir a um
outro país, que se revelara imparcial e generoso na de‐
sordem dos últimos anos.[10] Sucedeu, contudo, que esta
era justamente a paisagem que ele outrora
atravessara ao chegar do sul, ocasião em que mantivera
as cortinas da janela do vagão intencion almente cerra‐
das: algo em sua natureza opunha-se vigorosamente à
patética e ao mesmo tempo sóbria composição monta‐
nhosa por meio da qual essa paisagem se tornara famo‐
sa para as gerações passadas. Este era o país que se lhe
oferecia, tanto pelo atencios
o convite quanto pela hospi‐
talidade num de seus lagos.[11]
Mas também a sua nova morada, situada além das
fronteiras anterior es que ele mal suportava, tornou-se,
apenas de modo mais brando, uma continuação do tem‐
po de espera. Ele logrou decerto algum alívio; também
aqui faltavam as condições decisivas àquela íntima refle‐
xão que devia preceder as disposições necessárias a seu
trabalho. O seu endereço variava. Novas relações com di‐
versas pessoas eram inevitáveis; mas
elas se revelaram em parte motivo de contentamento. A
sua solidão, determinada mas ainda não consolidada,
agia de modo contrário à sua própria vontade e atraía to‐
do o tipo de gente (talvez por causa de uma persistente
saudade que o desmentia). Assim, ele estabelecia estra‐
nhas relações em que se transformava naturalmente na‐
quele que dá e naquele que compartilha, e isto ocorria
de uma tal maneira que malograva, mês após mês, o
acúmulo daquelas reservas interior es que conduzem por
fim a uma tensão do próprio ser.
Então, transcorridos mais de um ano e meio, ao inici‐
ar-se um novo inverno, quando parecia que ele teria de
retornar àquele país desafortunado que, como o quarto
de um doente, estava repleto da guerra e das exalações
de seu destino sombrio, aconteceu algo absolutamente
inesperado: foi-lhe oferecida uma antiga e afastada pro‐
ade senhorial;[12]
pried
uma amável e taciturna governanta ali o aguardava. Mal
ele se mudara (em 12 de novembro) e tudo à sua volta já
lhe proporcion ava uma satisfação e uma utilidade que
superavam as suas melhores expectativas.
O amplo gabinete de trabalho, de paredes baixas e
forradas de painéis brancos, com a sua velha e grande
estufa azulejada, além de uma lareira, parecia tê-lo real‐
mente aguardado. De um dia para outro fizeram-se os ar‐
ranjos necessários sem que ele tivesse o trabalho de de‐
talhar os seus hábitos. Diante das janelas estendia-se o
parque. Faias-brancas, que lentamente perdiam a sua fo‐
lhagem, margeavam à esquerda e à direita um extenso
gramado, e um lago de limites imprecisos cuja fonte pe‐
rene traduzia aos ouvidos o que para os olhos era com‐
pleto silêncio. O parque possuía alguns belos plátanos e
uma
alameda de velhas castanheiras copadas que cortava em
diagonal o seu fundo aberto. Quando esse bosque se en‐
tregava ao outono, a vista se tornava mais imponente.
Sem refrear o desejo dos olhos, prados ligeiramente incli‐
nados antecipavam as encostas de um cerro coberto de
mata. E, por mais que ele amasse as planícies, essa limi‐
tação vinha a propósito neste momento decisivo para o
pensamento, pois ela, em forma de paisagem, favorecia
a consciência de um intérieur que ele, dia após dia, espe‐
rava crescer em si mesmo.
Tanto quanto podia se lembrar, jamais se sentira acei‐
to de maneira tão natural e protetora; não se sentira as‐
sim nem mesmo no tempo passado naquele velho caste‐
lo principesco, o qual fora tão significativo em sua vida.
[13]
Conservava-o na memória de modo quase passion al
desde que a cega fúria da guerra derrubara até os alicer‐
ces os seus gigantescos muros, que um dia pareceram
eternos. Aquele castelo debruçado sobre o mar
havia sido espaçoso; a força dos tempos e das figuras
que nele atuavam oferecia inúmeras tarefas à alma. E es‐
ta devia se familiarizar com muita coisa superior antes
que pudesse permanecer ela mesma.
Aqui nesta pequena e nobre residência, que a vista
abarcava sem esforço, havia menos passado com que se
reconciliar. Espaços e passagens, que há muito não eram
habitados no sentido mais estrito do termo, logo aprova‐
vam aquele que fosse sensível o bastante para com‐
preendê-los. Havia poucos retratos ali, o que teria sido o
suficiente para impor uma forma; prevalecia o vivo, e as
coisas, modestas a seu modo, não lhe exigiam mais con‐
sideração que a oferecida pela abundância involuntária
de sua natureza predisposta à gratidão.
Poderia este, que fora salvo neste refúgio inesperado,
recuperar o seu ser esfacelado? Supunha-se que sim.
Percebemos o quão predestinado ele se encontrava
para isso ao tomarmos conhecimento de que, imediata‐
mente antes de se encerrar nesses novos arredores, ele
fora agraciado por uma insuspeitada providência: visitar
outra vez dois renomados lugares,[14] em diferentes paí‐
ses, duas localidades que pertenciam de modo inextrin‐
cável à história de seu passado. Uma delas era aquela ci‐
dade singular à qual ele devia não apenas a totalidade
de sua educação espiritual, mas à qual ele atribuía, com
razão, o fato de que os sofrimentos e as venturas de seu
caráter lhe eram revelados de um modo maior e mais
perceptível do que sói acontecer mesmo a pessoas que
na sua idade são dotadas de uma forte intuição.
E isto, sobretudo: a graça inexaurível (poderíamos ex‐
clamar que isto se dera de maneira milagrosa e no mo‐
mento mais oportuno) dotara-o daquela imensa mobilida‐
de que faz um coração se precipitar, o qual,
sob o impacto de um novo enamoramento, decide-se por
amar...
Sim, também isto.
Quando as portas se fecham por detrás daquele que é
tão completamente favorecido e talentoso, imagina-se
que se pode deixá-lo em segurança numa solidão que se
proveu de modo tão magnífico.
As anotações, porém, os esboços de cartas nos quais
o fim daquele estranho inverno é descrito de forma frag‐
mentada assinalam um fracasso, uma perda cruel e des‐
concertante.
O escritor reuniu (a posterior i, aparentemente) estas
folhas soltas sob o título “O testamento”, provavelmente
porque, com estes juízos, em sua curios a fatalidade, se
expressa uma vontade que permanecerá como a derra‐
deira, mesmo que diante de seu coração se afigure ainda
a tarefa de muitos anos.
O testamento
Jean Moréas
(Abril)
A primavera chegou bem cedo este ano, de modo que
a cardamina floresce nos campos e os dentes-de-leão já
desabrocham, convertendo-se em fioz inhos de assoprar.
Essa estação, contudo, jamais me favoreceu a concentra‐
ção; as suas forças não conduzem ao recolhimento. Mes‐
mo assim ele deve ser buscado, depois de tantos meses
perdidos, na fase derradeira deste refúgio privilegiado.
No momento em que as relações com a amada se
acalmaram a um tal ponto que eu podia antever a minha
atenção concentrada unicamente em mim mesmo, sem
ter de partilhá-la com mais ninguém, surgiu mais adian‐
te, na entrada do parque, uma pequena edificação que
tomei inicialmente por um celeiro, e à qual não prestei
maior atenção. Tratava-se, contudo, de uma serraria
elétrica, e agora já faz dez dias que se ouvem uma vibra‐
ção e um zumbido incansáveis. Desfez-se o meu sossego.
Vejo que aquilo que eu
planejara não poderia ser empreendido como uma recu‐
peração de última hora, como a tarefa escolar que se
adia e ora pesa na consciência. O tempo de produzir pas‐
sou. Agora, a serra tem a palavra.
Mas, como é exato o tribunal. É estranho: noto como
eu me apercebo de todas as coisas deste lugar por meio
do ouvido, e por ele todas elas me são agora tiradas. De
madrugada, quando acordo, ou ao cair da tarde (pois se
trabalha até tarde na serraria, e, por vezes, a ruidosa jor‐
nada inicia-se logo após as cinco da manhã) recompõe-se
com suavidade indescritível aquele amplo e puro espaço
de audição que há muito me foi concedido habitar. Ele
começou a ser “ilustrado”, por assim dizer, pela vozinha
dos pássaros; a fonte, porém, constituía o seu centro, e
eu me deito agora em meio à noite e dela me despeço.
Era isto, sim, era isto que haveria de me ordenar em se‐
guidas
semanas de atenção equilibrada. Como a percebi de ime‐
diato, como a assimilei já no primeiro dia: essa perene
variação de seu jorro. O menor sopro de vento alterava-
o, e quando ele subitamente se aquiet ava, compondo um
único jato, caía sobre si e soava em si mesmo de um mo‐
do inteiramente diverso do ruído que ele produzia no es‐
pelho d’água. Fala, dizia eu à fonte, e a escutava. Fala,
eu dizia, e todo o meu ser se punha a auscultá-la. Fala,
tu, puro encontro da leveza com o peso, tu, leviandade
do fardo, tu, árvore de jogos, tu, metáfora entre as carre‐
gadas árvores da fadiga, que se afligem dentro de seu
córtex.
E, com um ardil involuntário e inocente do coração,
para que nada se tornasse senão naquilo que eu queria
aprender a ser — eu equiparava a fonte à amada, que se
encontrava distante, contida e calada.
Ah, havíamos acordado que o silêncio haveria de pre‐
valecer entre nós: haveria de ser a lei deste inverno, uma
lei dura e implacável. Agora, porém, principiava a nossa
ternura; não apenas a nossa: a ternura do que fora reali‐
zado estaria em meu coração. Talvez — a necessidade
era enorme — fôssemos fortes o suficiente para nos ca‐
larmos — não éramos nós que trazíamos as notícias; a
boca do destino se abria e as despejava sobre nós, pois o
amor é o verdadeiro clima do destino. Por mais que ele
abra o seu caminho através do céu — a sua Via Láctea
feita de milhões de estrelas de sangue —, o país que jaz
sob o seu manto encontra-se prenhe de fatalidades. Nem
mesmo os deuses, nas metamorfoses de sua paixão,
eram poderosos o bastante para libertar a terrena, assus‐
tada e fugitiva amada das ciladas deste chão fecundo.
É loucura o que aqui escrevo? Por que as cartas dos
amantes jamais tratam deste dilema? Ah, são outros os
seus cuidados. Tem-se sempre a impressão de que a mu‐
lher que ama lança o seu amado a uma altura mais ele‐
vada do que aquela que ele poderia alçar com as própri‐
as forças. Seu entusiasmo por ele torna-o mais belo e ca‐
paz. A expectativa dos braços abertos da amada acelera
a sua carreira. O seu desempenho torna-se claro nos con‐
tornos da felicidade, de onde ela, como de costume, se
derramou na turvação das saudades. Mas, agora, junto
ao coração da amada, o trabalho torna-se doce e impe‐
tuoso para o homem fatigado — e infinito o repouso. So‐
mente agora se dissolve a precipitação dos seus sonhos
de menino — o medo —; somente agora ele vê o fundo
da noite.
E se algo perturba a sua alegria, isso decorre de impe‐
dimentos, dificuldades ou ameaças a essa união; todo o
perigo concentra-se numa única inquiet ação: perderem-
se um ao outro; e já não resta qualquer dúvida, senão a
que reside no ciúme.
Mas, que é daquele que já sabia? Daquele em cujo co‐
ração já se apresentava a solidão dos amantes? Ele co‐
nhecia de antemão a pura face da amada. Ao fugir às se‐
melhanças familiares que o envolviam, as quais constituí‐
am, traço por traço, um direito sobre ele, o semblante
dela veio a se tornar o seu próprio futuro; através dos
olhos dela, contemplava o aberto. A sua pequena mão
pousava calmamente sobre a dela, a qual o conduzia e
jamais dele se apossava. Enquanto crescia, ia ele distin‐
guindo mais e mais a sua alta figura — naqueles tempos
ela por vezes aparecia e o examinava como se fosse um
dardo de arremesso.
E, mais tarde, arremessou-o.
Ah, com que poderia a amante surpreender aquele
que, mais do que uma recordação, tinha a clara consci‐
ência disto: desta escolha; a volúpia do braço que se es‐
tende, o ser arremessado — oh, e o tremor ao atingir o
alvo.
E, contudo, quem teria a tal ponto celebrado a aman‐
te, desejado a amada, como este ser utilizado de um mo‐
do divino, sobre o qual já se tomara uma decisão!
Era como se ele, na trajetória que percorrera com a
força da solidão, houvesse reconhecido a figura da ama‐
da de um modo mais acabado que qualquer outro antes
dele. E esse conhecimento, que era infinito, despertou-
lhe a privação infinita.
Fugia-lhe enquanto a chamava. De algum modo, via-
se forçado a se lhe submeter, a suportá-la, a aturá-la.
Pois não haveria uma falha em seu ímpeto que tivesse de
se corrigir por inteiro, enquanto ele temesse e evitasse
aquela que tudo lhe cobrava? A fuga de seus sentimen‐
tos diante dela, no último instante — não falsearia essa
fuga a sua sensibilidade em si mesma? Não era esse me‐
do de ser amado, o qual se originava dos sofrimentos de
sua mais tenra infância e nunca o abandonava, uma ad‐
vertência a que ele se devia curvar,
ou, antes, tratava-se do fato de que ela lhe corrigia o
mais antigo de seus equívocos?
Haveria acaso a amante que não constituísse empeci‐
lho, que não o retardasse e não o desviasse para a mora‐
da do amor? Aquela a ponto de compreender que ele fora
arremessado muito adiante de si mesma no momento
em que a penetrava? Haveria a bem-aventurada que
consentisse em sua grande jornada depois de ser arre‐
messado, que não pensasse em extraviá-lo e segurá-lo
na intimidade, e que não se adiantasse para, a todo ins‐
tante, atravessar o seu caminho? Aquela, talvez já aban‐
donada, que aceita agora o risco de vê-lo, sempre que
for arremessado – atravessando-a – atingir o alvo, a par‐
tir das mãos de sua deusa?
Ah, se ela existisse, então ele seria salvo, como na
época em que, ainda jovem, estivera a salvo, ao chegar à
Rússia.[15] As tribulações de sua infância fizeram-lhe su‐
por até o
fim de sua segunda década de vida que ele vivia inteira‐
mente só diante de um mundo adverso, mantendo-se co‐
tidianamente revoltado contra a prepotência de todos. A
injustiça de tal atitude só poderia gerar algo deformado e
doentio, mesmo no âmbito das verdadeiras emoções. A
Rússia, não por uma lenta persuasão, mas numa única
noite — literalmente: na primeira noite moscovita — libe‐
rou-o suavemente do terrível feitiço desse constrangi‐
mento. Sem que se vangloriasse disso, incansável, como
se por meio de uma pura estação do coração o país con‐
ciliador lhe fornecesse provas inesgotáveis do contrário.
Como ele cria nisso; como o encantava tornar-se frater‐
no. E se ele permaneceu um novato no conhecimento
dessa consonância (talvez porque ele não pudesse per‐
manecer em terras russas), não a esquece jamais; ele a
conhece, exercita-a.
Experiências do sentimento, estranhas experiências
do sentimento, contudo, as quais muito mais tarde se
acumularam naquela determinada vivência que — de
modo muito aproximado —– circunscrevo à imagem do
revenant, contestam-me o direito de me absorver na
amada (mesmo sendo infinito o espaço que ela oferece).
Por mais que eu tenha de reconhecer a lei nesse domí‐
nio, parece-me que me encontro ao mesmo tempo cons‐
trangido e despótico em seu meio. A minha consciência
mais profunda me atormenta, e o medo que me distrai
não é aquele medo da criatura diante da doce aniquila‐
ção que provém do cerne do amor; é o horror de um
abandono que sempre me agita e me exorta, dizendo
que não compete a mim dispor de minhas inclinações:
como se o patrimônio de meus sentimentos fosse reparti‐
do e eu me tornasse pobre; como se eu, amado e
amante, retirasse um quinhão há muito exaurido de he‐
ranças desconhecidas e já destituídas de sentimentos.
Em algum lugar, na amplidão do espaço de meus senti‐
mentos, emerge uma inquiet ação, uma contraried ade; la‐
mentos que não compreendo sopram em minha direção;
levantam-se ameaças em meu ser: já não me sinto con‐
corde comigo mesmo.
Esta unidade, porém, tão inexplicável quanto ela pos‐
sa ser, é o tribunal perante o qual eu me apresento des‐
de a minha infância. Sim, vivo no espaço em que os
meus velados juízes exercem a sua jurisdição, estou di‐
ante de seus olhos por trás do capuz — jamais deixei es‐
te espaço.
A minha vida é um tipo particular de amor, e ele já se
consumou. Assim como o amor de São Jorge é a morte
do dragão — uma ação contínua que preenche os tempos
até o seu fim —, também os esforços de meu coração já
foram realizados e transformados num acontecimento
definitivo. Por vezes, sou trazido a seu centro: uma ima‐
gem
da consumação.
(O lugar da princesa, porém, é outro. Ela reza para
que isto aconteça. Ela se ajoelha.)
Não creias, artista, que seja o trabalho o que te põe à
prova. Não és o que pretendes ser nem és a pessoa por
quem este ou aquele te toma, por estar mal informado,
enquanto ela não se tornar natureza para ti, de modo
que não possas fazer outra coisa senão conservar-te ne‐
la. Trabalhando assim, és a lança arremessada com ma‐
estria. Leis recebem-te das mãos da lançadora e precipi‐
tam-se contigo no alvo. O que seria mais seguro que o
teu voo?
Consista a tua prova, porém, no fato de que nem sem‐
pre és arremessado. No fato de que a arremessadora So‐
lidão há muito não te escolhe; olvida-se de ti. Este é o
tempo das tentações, quando te sentes inutilizado, inca‐
paz (como se o manter-se preparado não constituísse
ocupação bastante!). Então, quando estás deitado de
uma maneira que não é tão pesada, as distrações exerci‐
tam-se em ti e procuram descobrir alguma outra coisa a
que te possas dedicar. Como
se te tornasses a vara de um cego, uma dentre as barras
de uma grade ou o bastão do equilibrista. Ou, ainda, elas
se erguem e plantam-te no solo do destino, de modo que
te aconteça o milagre das estações e faças brotar peque‐
nas folhas verdes de felicidade...
(e três endereços.)
(Esboço de carta)
Não saberei viver enquanto perdurar esta situação —
pois disso sou incapaz, quando sei que por minha culpa
estás infeliz, como quando te faço feliz do modo que es‐
peras de mim. Oxalá eu houvera sido absolutamente
inescrupuloso naquele momento, seguindo a liberdade
de meu amor! Não há pior prisão que o medo de ferir al‐
guém que se ama. Ele falseia todo o impulso do coração;
sem ele eu não me veria na contingência de implorar por
estar só dentro de nossa felicidade, como uma exceção
especial. A minha solitude, essa instância mui peculiar de
meu ser: ela aparece agora como uma fuga de nosso
amor — e como não haveria de sê-lo sempre sobrecarre‐
gada de antemão por teu desejo, de modo a que não se
prolongasse? E então: como queres possuir novamente a
força de manter afastado
de meu recolhimento o que, partindo do enclave de nos‐
sa felicidade, tem um efeito mais que prolongado?
Devo me considerar infeliz para sempre (ah, o que é
ainda pior: causar infelicidade ao mais feliz dos cora‐
ções!) por não ser capaz de receber tão facilmente o
amor e extrair-lhe um aumento de minhas aptidões?
Nunca admirei aqueles que carecem de uma paixão para
que se lhes acenda a chama do espírito. Por que deveria
eu contar com tal motivação se o próprio trabalho é, ele
mesmo, infinitamente muito mais amor do que um indiví‐
duo pode mobilizar de uma só feita? Ele é todo amor.
E assim essa comoção em torno da amada pareceu-
me um caso particular de amor que nada poupa ou facili‐
ta — antes, em sua insolubilidade, exige o desempenho
mais completo a fim de ser suportado, reconhecido e sa‐
tisfeito em todas as suas exigências.
Diz, diz — expresso com isto, o que me parece tão
estranho de suportar, uma exceção, talvez uma confusão
de minha natureza? É raro que se queixe de algo assim.
Seja porque a atenção da maior ia não ultrapasse a frui‐
ção e o ciúme, seja porque algo que resta padecer em
casos isolados como o meu se inclua no âmbito daquilo
que se apresenta sem nome, daquilo que é inexprimível.
Não são numerosos aqueles cujo coração arremessado
não se acaba em abraço; buscam-no ainda — veriam qui‐
çá como a sua curva, do outro lado, toma uma notável
aceleração, a da impaciência, ainda que essa felicidade
já houvesse sido superada. E, além disso, ela acode ao
ilimitado e significa — sabes o quê? — caminho e sauda‐
de daqueles que não desistem de prosseguir — dos pere‐
grinos russos e dos nômades beduínos que, com seus ca‐
jados de oliveira, são tangidos e tangidos...
Apenas aquele a quem é dado morrer no abraço pode
habitá-lo. Cada um escolhe a sua morada conforme o
gosto de sua morte (permita-me expressá-lo assim, de
modo sensual e frívolo). O que impele, em seu vagar er‐
rante, aqueles homens às estepes, ao deserto, é o senti‐
mento de que não lhes agrada morrer em sua casa, que
não encontram ali um lugar para si.
Uma amiga suec a, que passou um inverno sozinha à
beira do deserto, escreveu-me: “... Paisagens de uma tal
magnitude que se poderia encontrar espaço suficiente
depois da morte. Ao menos por um tempo —.”
[Apesar de tudo, meu Deus, quão rico, quão calmo,
quão pleno seria eu agora se esse amor me fosse conce‐
dido, incondicion
almente, sem que fosse oprimido por es‐
peranças, expectativas, exigências desse coração, o qual
parece incapaz de tomar posse de sua felicidade justa‐
mente pelo receio extremado diante da perda.
Pois não o temi naquela época, e ele não me causou
qualquer apreensão, ao se postar diante de mim, diante
de alguém que estava desavisado. De igual modo ele ti‐
nha de se fazer presente, superado talvez (e então não
menos presente, pois o que lhe haveria de ser efêmero,
afinal?), reapresentando-se continuamente, quem sa‐
be...]
O princípio de meu trabalho é uma submissão apaixo‐
nada ao objeto que me ocupa, ao qual, em outras pala‐
vras, pertence o meu amor.
O reverso dessa submissão acontece finalmente, sur‐
preendendo-me a mim mesmo, no repentino ato criador
que me envolve, no qual eu me vejo agindo de forma tão
inocente quanto superadora, do mesmo modo como eu
fora subjugado de modo puro e inocente naquela fase
anterior.
Talvez o enamoramento se torne para sempre uma
terrível fatalidade no caso de um coração que trabalha
em meio a essas relações. Ele se submete, de acordo
com o seu costume, também ao que ama, o qual ele não
tem de formar, mas, por meio de sua infindável entrega,
atrair para constantemente dominá-lo. E a reviravolta,
que nesse caso seria simplesmente a transformação do
amor naquele que ama — poder-se-ia quase dizer, contra
ele mesmo — não pode agir de modo totalmente
contrário à sua própria supremacia...
Assim, a vivência amorosa surge como uma igualmen‐
te atrofiada e incapacitada forma secundária da experi‐
ência criadora, como o seu aviltamento, permanecendo
irrealizada, indomada e — comparada à ordenação supe‐
rior desse êxito — não permitida.
Ah, vivo agora como se vier a para ficar umas poucas
semanas neste lugar conhecido por sua serraria elétrica,
... sem nutrir expectativas concretas em relação a es‐
ta estadia, para as quais eu me vejo absolutamente fati‐
gado...
Aquela solidão, há vinte anos conquistada, não se de‐
ve tornar uma exceção, “férias” que eu, por meio de mui‐
tas justificações, teria de pedir a uma felicidade vigilante.
Tenho de viver ilimitadamente nela. Ela deve permanecer
a consciência fundadora à qual posso sempre retornar,
não com a intenção de lhe tirar repentinamente algum
proveito imediato, não com a expectativa de que ela me
seja fecunda; antes, de modo espontâneo, discreto, ino‐
cente: como o lugar a que pertenço.
Que poderes hão de haver acordado um encontro em
meu coração?...
Retiram-se caso o encontrem habitado.
Alguém, ah, que pode relevar o ser amado e o amor
nos reais acordos de seu coração.
[Como me cansa empreender esses contragolpes para
me defender da posse do amor — onde está o coração
que não me “pediu” uma felicidade determinada e obsti‐
nada, senão que me permitiu entregar-lhe isso que brota
inesgotavelmente de mim?]
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Título original:
Das Testament
Dados Internacion
ais da Catalogação na Publicação (cip)
(Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)
ISBN 978-85-250-4682-6
09-00887 CDD-830.92