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Os

Milton Ferreroni Júnior

Os

São Paulo, 2022


Revisão
Inês Midões de Matos

Capa
Elisa H.Storarri

Diagramação
Cecília Hulshof Minowa

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Ferreroni Júnior, Milton


Os sete pecados capitais vistos no espelho
/ Milton Ferreroni Júnior. São Paulo: Cultor de
Livros, 2022
ISBN: 978-85-5638-284-9
1. Vida cristã 2. Virtudes 3. Vícios – Pecados
Capitais I. Milton Ferreroni Júnior II. Título
CDD-241.3

Índice para catálogo sistemático:


1 Vida cristã : Vícios 241.3

Cultor de Livros - Editora


Av. Prof. Alfonso Bovero, 257 - Sumaré
CEP 01254-000 - São Paulo/SP
Tel. (11) 3873-5266
www.cultordelivros.com.br
Sumário

Introdução..............................................................................................7

Capítulo I - Os espelhos......................................................................9
O espelho das nossas reações...........................................................9
O espelho das nossas palavras......................................................12
O espelho das nossas ações............................................................12

Capítulo II - A soberba vista no espelho........................................ 15


Reações mentirosas.........................................................................15
O segundo espelho é o das palavras........................................... 18
As obras mentirosas........................................................................20
Exame de consciência.....................................................................22

Capítulo III - A avareza no espelho. ............................................... 23


A avareza nos espelhos..................................................................23
O que podemos tirar dessa parábola de Tolstói?.......................26
O que fazer para lutar contra a avareza?..................................27
Exame de consciência.....................................................................29

Capítulo IV - A luxúria....................................................................... 31
O espelho das reações.....................................................................34
O sexo no espelho das ações..........................................................35
Exame de consciência.....................................................................38
Capítulo V - A inveja refletida.......................................................... 39
O que é a inveja?.............................................................................40
A inveja nos três espelhos..............................................................41
No espelho das reações se reflete... a vida dos outros.............. 43
E no espelho das ações, o que se vê?.............................................44
Quais os remédios?........................................................................ 45
Exame de consciência.....................................................................46

Capítulo VI - A gula refletida........................................................... 49


Dar nome aos bois...........................................................................49
O pecado da gula é um pecado fácil e difícil de tratar.............50
E como a gula aparece nos espelhos?...........................................51
Obviamente não se trata de não comer..................................... 53
Exame de consciência.....................................................................54

Capítulo VII - A ira no espelho........................................................ 57


Reações pensadas ou impensadas.................................................58
E no espelho das palavras, o que vemos refletido?................... 60
Finalmente o espelho das ações....................................................61
Exame de consciência.....................................................................63

Capítulo VIII - Finalmente, a preguiça.......................................... 65


Como a preguiça aparece no espelho das reações?....................66
O espelho das palavras...................................................................67
E no espelho das ações?..................................................................68
Exame de consciência.....................................................................69
Introdução

Os capítulos que seguem correspondem a outras tantas medi-


tações de um ciclo sobre os pecados capitais. O objetivo des-
sas pregações era apresentar um esquema prático de exame de
consciência.
Não se trata de um estudo sistemático sobre esses peca-
dos. Com esse objetivo há obras excelentes, como por exemplo:
Um olhar que cura: terapia das doenças espirituais, do Pe. Paulo
Ricardo. Também estudos específicos, como os escritos do Pe.
Francisco Faus sobre a inveja e a preguiça.
Meu objetivo é simplesmente apresentar um exame de cons-
ciência sobre essas raízes que acabam compondo todos os pos-
síveis pecados e ofensas a Deus. Olhando nos três espelhos
— reações, palavras e ações — podemos identificar esses desvios
e, o que é mais importante, lutar eficazmente para minimizar os
efeitos nocivos nas nossas vidas.

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CAPÍTULO I

Os espelhos

Um dos instrumentos mais antigos da humanidade é o espelho.


Já foram descobertos espelhos de cobre utilizados pelo homem
primitivo no quinto milênio a.C.!
É bem verdade que ao longo dos séculos o espelho foi se aper-
feiçoando. Quando São Paulo, para se referir à fé, dizia que vemos
como num espelho (cf. 1Cor 13,12) estava dando a entender que
os da sua época não deviam ser lá muito bons...
Nestas páginas vamos tratar de três espelhos que nos servem
para enxergar não as nossas feições, mas o nosso interior. São
três espelhos que o próprio Jesus nos apresenta: nossas reações,
nossas palavras e as nossas ações.
E iremos utilizá-los percorrendo os chamados pecados capi-
tais, princípios que nos convém conhecer para prevenir os des-
vios. Mas antes de começar o exame desses sete pecados convém
olhar um pouco para esses três instrumentos.

O espelho das nossas reações

Certa vez houve uma disputa de Jesus com os fariseus pelo


fato de que os seus discípulos comiam sem lavar as mãos. Na

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Milton Ferreroni Júnior

verdade o que escandalizava aqueles seus adversários não era a


questão higiênica, mas a conotação moral que davam às ablu-
ções. Jesus saiu em defesa dos discípulos explicando: Não é o que
entra no homem que mancha o homem, mas o que sai do homem
é o que mancha. Porque do coração procedem os maus pensamen-
tos, homicídios, adultérios, prostituição, furtos, falsos testemunhos
e blasfêmias (Mt 15,19).
O que brota espontaneamente da fonte do coração? As rea-
ções, que assim revelam como é o nosso coração por dentro. Pelo
que vem à tona, pode-se conhecer o que está no fundo.
Todos os dias muitos fatos que atingem o nosso coração e
produzem uma reação. Olhando nesse primeiro espelho, ao ver
refletidas quais são as coisas importantes para nós, conhecemos
um pouco como é o nosso coração por dentro.
Por exemplo, ao ser atingido por um erro alheio a reação do
nosso coração é de ira ou de compreensão? Diante do sucesso,
como reage o nosso coração? O que prevalece: a soberba ou o
agradecimento a Deus? Reagimos com inveja? Há movimentos
de avareza na gestão das coisas que temos ou que queremos ter?
Aqui vemos exemplos claros de alguns dos pecados capitais.
Às vezes a reação pode ser forte, intensa: uma explosão. Outras
vezes é algo que vai por dentro, mas não por isso é menos impor-
tante: revela o fundo do coração.
Quem nunca experimentou uma sensação de levar dentro
uma víbora que morde! Como dizia um conhecido: “eu raramente
explodo, mas quantas vezes implodo...” É importante olhar no
espelho também essas reações que não se exteriorizam.
Certo dia, uma moça estava à espera do seu voo na sala de
embarque de um aeroporto. Como deveria esperar por muitas
horas, resolveu comprar um livro e um pacote de biscoitos.
Achou, depois, uma poltrona numa parte sossegada do
aeroporto e pôs-se a ler com a maior paz do mundo. Ao lado
dela sentou-se um homem de boa aparência e, muito prova-
velmente, estrangeiro.

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Capítulo I — Os espelhos

Quando sentiu fome, ela pegou o primeiro biscoito e, com


grande surpresa, reparou que o homem a seu lado fez o mesmo.
Ela se sentiu primeiro perplexa e depois indignada, mas não
disse nada, embora a cena se repetia cada vez que ela pegava o
seu biscoito. Pensou só para si: “Mas que de cara de pau, só por
ser estrangeiro pensa... Que vontade de lhe dar um soco bem
no olho para que nunca mais esquecesse!”
Acalmou-se, deixou passar o tempo e, por fim, quando res-
tava apenas um biscoito, ela pensou: “O que será que o abusado
vai fazer agora?”
Então o homem dividiu o biscoito ao meio, deixando a outra
metade para ela. Aquilo a deixou irada e bufando de raiva por
dentro. Pegou, então, o seu livro e as suas coisas e dirigiu-se ao
embarque porque também chegara a hora...
Minutos depois, quando já ocupara sua poltrona no avião,
abriu novamente a bolsa e levou tal susto que quase des-
maiou. Para maior surpresa, encontrou ainda intacto o seu
pacote de biscoitos. Sentiu-se muito envergonhada, perce-
bendo que cometera dois grandes erros: censurar conde-
nando uma outra pessoa por um erro que, na realidade, era
ela que estava cometendo; e, por outro lado, não soubera ter
a generosidade que aquela pessoa que ela condenava, sou-
bera ter.
O pior é que não havia mais tempo para pedir desculpas. O
homem dividiu os seus biscoitos sem sentir-se indignado, ao
passo que ela chegou a ficar transtornada. Quantas vezes em
nossas vidas comemos os biscoitos dos outros e não temos a
consciência de que quem está errado somos nós!
Podemos imaginar a vergonha daquela moça. Mas não basta
a vergonha, é preciso olhar com valentia para o espelho: por que
eu sou assim? Por que estou me tornando uma pessoa egoísta?
É só um pacote de biscoitos...

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Milton Ferreroni Júnior

O espelho das nossas palavras

O próprio Cristo indicou essa relação quando disse que a boca


fala da abundância do coração (Mt 12,34). Jesus gostaria que nós
pronunciássemos palavras que levantam, que animam, que con-
solam. Palavras verdadeiras, claras, oportunas. Semear amor e
alegria. Mas às vezes não é assim. No fundo do coração humano
combatem forças desencontradas, e essas forças se manifestam
pelas palavras.
Pelas palavras se vê o que domina o mundo interior! É quase
um mostruário dos pecados capitais, como depois iremos medi-
tando nos próximos capítulos.
A pessoa preguiçosa queixa-se: das provas, dos trabalhos,
da falta de tempo, de que “está se matando”. O irascível mostra
um coração agressivo, irônico, discute de forma desagradável.
Quem é invejoso fala mal dos colegas que se destacam, apon-
tando os defeitos, faz críticas para os diminuir. Quem se deixa
dominar pelo pecado capital da avareza sente-se prejudicado e
injustiçado por minúcias!
Em certo sentido, somos também o que falamos! No exame
de consciência, cada dia antes de deitar, não deveria nos esca-
par este aspecto. Fui leviano ao falar? Ao criticar? Algum dos
meus comentários foi movido por inveja?

O espelho das nossas ações

Novamente uma comparação de Jesus nos ajuda a exami-


nar-nos: É pelo fruto que se distingue a árvore (Mt 12,33). Quais
frutos você dá? O que seus colegas podem dizer de você? São
Josemaria Escrivá dizia que deveríamos ser “semeadores de paz
e de alegria”.1

1 Josemaria Escrivá. Sulco, n. 59.

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Capítulo I — Os espelhos

Não andamos à cata de elogios, mas como nos alegra ouvir


coisas do tipo: “Eu devo a você ter passado naquela matéria”,
“quando eu estava para baixo, só você me ajudou, você me abriu
os olhos”. Podemos nessa hora lembrar do primeiro ponto do
livro Caminho: “Que a tua vida não seja estéril...”2
Em resumo: nós somos nossas reações, nossas palavras e nos-
sas ações. E será a partir daí — destes três espelhos — que Deus
um dia irá nos julgar!

2 Josemaria Escrivá. Caminho, n. 1.

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CAPÍTULO II

A soberba vista no espelho

Sempre a enumeração começa com o pior dos pecados capi-


tais: a soberba. A criatura (cada um de nós) que quer se colocar
no lugar do Criador (Deus): mentira radical. E isso se reflete
nos três espelhos: reações mentirosas, palavras mentirosas, obras
mentirosas. A soberba é a mentira dos espelhos.

Reações mentirosas

Para exemplificar, talvez sirva um conto que li há muito


tempo. Eram dois personagens: Alfredo, um sujeito que se con-
siderava o máximo — soberbo — e Antônio, seu antigo colega de
infância. Ambos tinham perto de trinta anos e moravam numa
cidade de fronteira
Alfredo era bem-sucedido, bem casado, sempre foi o pri-
meiro em tudo o que fez, inclusive no concurso para trabalhar
na alfândega. Antônio era exatamente o contrário: sempre pas-
sou raspando, muitas vezes colando, vivia de “biscates” e agora,
havia uns meses, tinha arranjado um subemprego no país vizi-
nho. Todos os dias, logo cedo, cruzava a fronteira com a sua bici-
cleta. À tardinha, voltava.

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Milton Ferreroni Júnior

Alfredo se considerava o melhor: “Comigo ninguém pode,


ninguém me passa para trás”... E de fato: em poucos meses tinha
acabado com o contrabando na cidade. Até que um dia come-
çou a desconfiar: “Como o Antônio consegue sustentar a famí-
lia com o empreguinho que ele tem?”
No começo era só uma pulga atrás da orelha... Depois as sus-
peitas aumentaram. Confidenciou à mulher:
— O Antônio está me enganando...
E ouviu como resposta:
— Imagine, com você ninguém pode...
Tinha cada vez mais certeza, mas nunca conseguia pegar nada.
Todos os dias examinava pessoalmente a mochila do Antônio,
a roupa de trabalho, o jornal, a marmita... Nada! Antônio cor-
respondia com um sorriso.
A batalha entre o sorriso de Antônio (que encarava como
uma provocação) e a soberba, o orgulho ferido de Alfredo, durou
meses. Começou a perder o sono, a saúde, o bom humor, ema-
grecer... Os médicos não encontravam uma causa: “O senhor
não tem nada. Procure descansar”.
Até que um dia ele se rendeu: convidou Antônio para almoçar
na sua casa. Muito vinho para ajudar o outro a soltar a língua...
— Antônio, pelo amor de Deus, o que é que você está pas-
sando pela alfândega. Se eu não descobrir, eu vou morrer.
— Puxa, eu pensei que você soubesse. Até comentei com a
minha mulher: “Como o Alfredo é bom comigo! Todos os dias ele
me revista com o maior rigor para não levantar suspeitas, acho
que ele tem pena da nossa família”. Alfredo, eu contrabandeio
bicicletas! Cada dia eu cruzo a fronteira com uma bicicleta nova.
Alfredo olhava sem acreditar...
— Mas não se preocupe. Há uns dias fiquei tocado pela sua
bondade com a minha família e resolvi mudar de vida: confes-
sei e arrumei um bom emprego.
É fácil de perceber como as reações do Alfredo — soberbo,
convencido, cheio de si — são mentirosas. O soberbo sempre se

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Capítulo II — A soberba vista no espelho

acha o máximo. No fundo pensa que é Deus, ou pelo menos um


semideus. Está continuamente mentindo para si mesmo.
A soberba começa sempre pelo “comigo ninguém pode”, uma
tentativa de imitar a onipotência de Deus. Até que, de repente,
alguém começa fazer sombra a esse deus de mentira...
Pode ser alguém mais inteligente, que aparece para dividir o
primeiro lugar na sala. Ou com mais talento, que ameaça man-
dar o soberbo para o banco de reservas. Uma moça que se con-
siderava a musa da beleza, mas, de repente, aparece uma colega
que faz mais sucesso entre os rapazes... Ou aparece um rapaz
que não apenas resiste ao seu charme, mas que inclusive não
lhe dá importância — “Que sujeito mais metido”!
Tudo isso se parece ao medo de Alfredo de ser passado para
trás. Então surgem as reações mentirosas da pessoa soberba: a
tristeza porque não me deram atenção, porque não me convi-
daram, porque fizeram as coisas sem me perguntar. A pessoa
soberba é sempre muito susceptível.
Em seguida começa uma luta, mais ou menos declarada, para
provar que de fato “comigo ninguém pode”. Alfredo reagia mal
diante do sorriso do Antônio, pensava que era provocação.
Quantas vezes podemos ver provocação onde não existe!
“Aposto que ele me perguntou quanto eu tirei na prova para me
deixar por baixo”. Ou então: “Ele(a) vai ver só como eu também
consigo...” O soberbo começa a viver em função dos outros, dos
competidores que vê em toda parte. E se não consegue ficar por
cima, mais tristeza: saúde afetada, mau humor, isolamento de
tudo e de todos. Às vezes, aí aparece a insegurança, a timidez,
como o medo de dirigir na frente do pai ou do irmão mais velho,
o medo de ser criticado.
São Josemaria nos advertia: “Temos que pedir ao Senhor
que não nos deixe cair nesta tentação. A soberba é o pior e
o mais ridículo dos pecados. [...] A soberba é desagradável,
mesmo humanamente; quem se considera superior a todos
e a tudo, está continuamente contemplando-se a si próprio

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e desprezando os outros, e estes correspondem-lhe escarne-


cendo da sua fatuidade”.3

O segundo espelho é o das palavras...

A soberba se manifesta muito no modo de falar, como nos


ensina Cristo: A boca fala da abundância do coração (Mt 12,34).
De uma maneira prática isso se manifesta em duas frases lati-
nas: Non loquere nisi de se e non cogitare nisi de se, que significam
respectivamente só falar de si mesmo e só pensar em si mesmo.
Nesse espelho a imagem se reflete sempre muito nítida:
“Eu fui, eu falei, eu vi, eu...” Aparece também de maneira indi-
reta, pelo abuso de citar-se como exemplo: “Modéstia à parte
(às favas?), eu...” Ou ainda pelos maus hábitos de falar mal de
si mesmo para que os outros o contradigam e desculpar-se de
tudo: “É que eu não sabia, não me avisaram, eu pensei que...”,
ou seja, “cavar” elogios.
Como víamos no início, a pessoa soberba tem palavras men-
tirosas: parece que ouve os outros, mas na realidade só ouve
o eco do seu eu: “Eu, as minhas coisas, os meus problemas, os
meus projetos, as minhas realizações...” E quando chega a hora
de ouvir os demais, sempre tem pressa, está desatento.
Os seus pensamentos parecem-lhes importantíssimos. A sua
opinião é a verdade, os outros deverão concordar sempre: “Eu
já falei vinte vezes...”, “eu já disse...” A voz dos outros deverá ser
como uma ressonância da sua. E se não for, assim vem a discus-
são ou a desavença
Gustavo Corção, em Lições de abismo, sintetiza esse tipo de
personalidade quando diz que todas as coisas, todas as opiniões
“são como o espelho da sua própria importância, da sua própria

3 Josemaria Escrivá. Amigos de Deus. Ed. Quadrante. São Paulo, p. 100

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Capítulo II — A soberba vista no espelho

face, que para ele é a grande, a única realidade, em torno da qual


o mundo inteiro é uma imensa moldura”.4
Essa é a mentira de fundo da soberba: achar que o mundo
nada mais é do que a moldura do próprio retrato.
Talvez você esteja se perguntando: então soberba é sinônimo
de orgulho? Na verdade, o orgulho é uma das formas da soberba.
Soberba é a mentira, uma mentira radical. Esse foi o chamado
pecado original. No livro do Gênesis aparece a serpente, ten-
tando a mulher a comer do fruto proibido. Quando Eva resiste,
dizendo que se ela e Adão comessem, morreriam, a serpente
explica: Certamente não morrereis. Porque Deus sabe que no dia
em que comerdes desse fruto, vossos olhos se abrirão, e sereis como
Deus, conhecendo o bem e o mal (3,4-5).
Da soberba derivam o orgulho, a vaidade, a suscetibilidade
e, talvez possa surpreender, a timidez! Em todos esses casos a
pessoa se sente o máximo, o centro do mundo.
O orgulhoso — cheio de si —, não precisa de ninguém, é autos-
suficiente. Exemplo típico: o Alfredo da alfândega. O vaidoso é
diferente do orgulhoso porque precisa de público. Nunca me
esqueço uma explicação que ouvi há muitos anos sobre a dife-
rença entre o orgulhoso e o vaidoso. Se colocarmos os dois na
Lua, o orgulhoso vai olhar lá de cima com desprezo: “eu sou o
único que está na Lua”. O vaidoso vai ficar inquieto: “será que
lá na Terra todos sabem que eu estou na Lua?” Vai se sentir
inquieto enquanto não mandar uma selfie.
O suscetível se acha tão importante que tudo o magoa. Por
exemplo, fica ressentido se numa reunião de amigos se dá mais
atenção a outro, às vezes tem ciúmes...
E o tímido? No fundo, se acha muito importante, por isso tem
medo de errar. Exemplo: há pessoas que nunca aprendem um
idioma estrangeiro por causa disso.

4 Agir. Rio de Janeiro, 1962, p. 88 in “Egoísmo e Amor” (Rafael Llano Cifuen-


tes), nota 8.

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Milton Ferreroni Júnior

As obras mentirosas

O terceiro espelho, ao refletir as obras da pessoa soberba,


revela dois adjetivos duros: infecundo e triste.
O soberbo é sempre infecundo: Deus não lhe ajuda! De fato,
como nos ensina a Bíblia, Deus resiste aos soberbos, mas dá graça
aos humildes (cf. 1Pd 5, 5). E o soberbo sempre é infeliz e cos-
tuma fazer infelizes os que tem por perto.
Infecundo, porque Deus resiste a ele. Ou melhor, o soberbo
“puxa” no sentido contrário de Deus. O soberbo também é infe-
cundo porque os outros se afastam dele. Um dos sinais mais
comuns dessa infecundidade triste do soberbo é a solidão. Na
verdade, não é que os outros o abandonem, é ele que se isola no
seu pedestal.
Sem fazer juízo do genial Rui Barbosa, se conta um incidente
que se deu entre ele e a seleção brasileira de futebol no início
do século passado:
“Hoje em dia os políticos gostam de estar perto dos jogado-
res de futebol... Mas nem sempre foi assim. Em 1916 a seleção
brasileira foi à Argentina para disputar o 1º Campeonato Sul
Americano de Futebol, ou Copa América como depois viria a
ser conhecido. Iriam de navio, juntamente com Rui Barbosa. No
entanto, o ‘Águia de Haia’ se recusou a viajar com os jogadores
de futebol, o que obrigou o time a ir de trem, numa viagem que
durou cinco dias e quatro noites. No entanto, em cada parada
da longa e cansativa viagem os jogadores eram homenageados
por bandinhas que tocavam o Hino Nacional e recebiam rama-
lhetes de flores dos torcedores”.5
Mas, além de infecundo, o soberbo é infeliz. Assim sinteti-
zava São Josemaria: “A maioria dos conflitos em que se debate a
vida interior de muita gente é fabricada pela imaginação: é que
disseram..., é que podem pensar..., é que não me consideram...

5 Cf. Deuses da Bola, Eugenio Goussinsky e João Carlos Assumpção, p. 13

20
Capítulo II — A soberba vista no espelho

E essa pobre alma sofre, pela sua triste fatuidade, com suspei-
tas que não são reais. Nessa aventura infeliz, a sua amargura é
contínua, e procura produzir desassossego nos outros: Porque
não sabe ser humilde, porque não aprendeu a esquecer-se de si
própria para se dar generosamente ao serviço dos outros por
amor a Deus”.6
Dá pena ver como muita gente consegue ser infeliz à base de
ser soberbo! A soberba acaba sendo como uma doença da alma.
Aliás, a pior. Por isso, quando se enumera os pecados capitais, ela
vem em primeiro lugar. Difícil de curar; tão intrínseca ao homem
que a sabedoria popular diz que só desaparece vinte e quatro
horas depois da morte. E é a causa de muitas outras doenças.
Por isso, Jesus insistia: Aprendei de Mim que sou manso e
humilde de coração (Mt 11,29). No caso Dele não era convenci-
mento: se a soberba é a mentira, a humildade é a verdade.
Há um exemplo de quão perigosa é a soberba: São Pedro.
Esse apóstolo tinha muitas qualidades, mas tinha o defeito de
se achar melhor que os outros. E quase colocou tudo a perder:
negou conhecer Jesus diante de uma porteira! Mas soube apren-
der e retificar sua conduta.
O exemplo de São Pedro pode nos ajudar quando nós também
presumimos nossas forças e depois “quebramos a cara”. Consi-
derávamo-nos um legítimo sucessor do Ayrton Senna e batemos
no estacionamento do supermercado; achávamos que tínhamos
feito um trabalho magnífico e vem um 6,5; sempre censurávamos
os outros e, de repente, tropeçamos na mesma pedra.
Se a soberba é a mentira, a humildade é a verdade! Nessas
horas em que os nossos erros se manifestam é muito bom pen-
sar: essa é a verdade!
Peguemos na mão um espelho que reflita exatamente quem nós
somos. Digamos como São Pedro ao reencontrar Jesus, depois de
tê-lo negado: Senhor, sabes tudo, tu sabes que te amo (cf. Jo 21, 17).

6 Josemaria Escrivá. Amigos de Deus. Ed. Quadrante. São Paulo, p. 101

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Milton Ferreroni Júnior

Exame de consciência

1) Compreendo que a atitude de “comigo ninguém pode” é uma


tola tentativa de imitar a onipotência de Deus? Como costumo
reagir quando alguém me enfrenta ou se destaca mais do que eu?

2) Minhas conversas giram muito em torno de mim mesmo,


dos meus feitos, sucessos, problemas? Alguém já me fez uma
correção fraterna a esse respeito? Levei em consideração ou ima-
ginei que era exagero?

3) Sei ouvir os outros com atenção? Reajo de maneira irri-


tada – mesmo que seja só por dentro – quando sou contrariado?

4) Quais as minhas manifestações mais comuns de vaidade?


Luto por retificar cada vez que identifico esse tipo de reações:
preocupação em brilhar, ser elogiado, reconhecido, etc.?

5) Sou alguém que se magoa muito facilmente? Fico ressentido


quando me parece que se dá mais atenção aos outros do que a mim?

6) Tenho um excessivo medo de errar? Como me comporto


quando os meus defeitos ficam à mostra?

7) Evito criar distâncias em relação às pessoas? Será que os


demais me consideram uma pessoa cheia de manias?

8) Aprendei de mim que sou manso e humilde de coração (Mt


11, 29). Aprecio de verdade a virtude da humildade? Quero de
verdade deixar de lado tudo o que seja mentira na minha vida?

9) Repito muitas vezes o ato de contrição – dor de amor –


que São Pedro utilizou: Senhor, tu sabes tudo, tu sabes que te amo
(cf. Jo 21, 17)?

22
CAPÍTULO III

A avareza no espelho

Duas irmãs estavam conversando. A mais velha morava


na cidade, casada com um comerciante. A mais nova tinha se
casado com um camponês e vivia na aldeia. A irmã da cidade
tinha vindo visitar a do campo e estava se gabando da vida
que levava.
Assim começa um conto de Tolstói (1828-1910) intitulado: De
quanta terra precisa um homem. Esse relato breve — uma verda-
deira parábola — pode nos servir para examinarmos o pecado
capital da avareza.

A avareza nos espelhos

Na primeira cena do conto a avareza se reflete no espelho


das palavras sob a forma de exibição da mais velha e despeito
da mais nova.
De fato, enquanto tomavam chá começou a mais velha a
gabar a vida da cidade, dizendo que se vivia por lá com todo o
conforto, que toda a gente andava bem arranjada, que as filhas
tinham vestidos lindíssimos, que se bebiam e comiam coisas
magníficas e que se ia ao teatro, a passeios e a festas.

23
Milton Ferreroni Júnior

A mais nova se defendia afirmando que preferia uma vida


mais simples no campo, que afinal sempre teriam bastante que
comer. A irmã mais velha ironizou:
“— Bastante? Sim, bastante, se vocês se contentarem com a
vida dos porcos e das vitelas. Que sabem vocês de elegância e
de boas maneiras? Por mais que o teu marido trabalhe como um
escravo, vocês hão de morrer como têm vivido — num monte de
estrume; e os vossos filhos na mesma.”
Quanto mal pode fazer uma pessoa avarenta com suas pala-
vras: humilhar quem leva uma vida mais simples, criar nos outros
uma atitude de despeito.
As duas mulheres saem de cena e aparece o marido da cam-
ponesa, o verdadeiro protagonista do conto e que havia escu-
tado toda a conversa.
Chamava-se Pahóm (pronuncia-se Parrón). Neste momento
prestemos atenção ao espelho das reações, no qual se reflete
a insatisfação.
Pahóm, o dono da casa, estava deitado à lareira e escutava a
conversa das mulheres, pensando: “[...] se tivesse toda a terra
que quero, nem o Diabo seria capaz de meter-me medo.”
Foi nessa hora que, mesmo sem querer, fez um desafio ao
próprio Diabo, que estava escondido. O Diabo não aparece a
Pahóm, mas aceita o desafio.
Pahóm começa a ter muito sucesso: aumenta as suas posses,
passa a ter uma vida confortável. Mas nunca fica satisfeito. De
camponês miserável muda-se em dono de muitas terras e ani-
mais. Mas a cada lote de terra que Pahóm adquire, surge outro
maior e melhor...
Até que um camponês lhe fala daquela que parecia ser a opor-
tunidade da sua vida: uma negociação com a tribo dos Baquires
que está disposta a lhe vender o que quiser comprar.
— E o preço? — perguntou Pahóm.
— O nosso preço é sempre o mesmo: mil rublos por dia.
— Por dia? Que medida é essa? Quantos hectares?

24
Capítulo III — A avareza no espelho

— Não sabemos; vendemos terra a dia; fica a pertencer-te toda


a terra a que puderes dar volta, a pé, num dia; e são mil rublos por
dia. Pahóm ficou surpreendido.
— Mas num dia pode-se andar muito!... O chefe riu-se:
— Pois será toda tua! Com uma condição: se não voltares no
mesmo dia ao ponto donde partiste, perdes o dinheiro.
Aqui comparece o terceiro espelho, o das ações. No caso da
avareza o que se reflete no espelho das ações é a loucura de ter
cada vez mais!
Na véspera do dia da demarcação Pahóm quase não dormiu. É
verdade que tivera um sonho de advertência, mas não deu maior
importância. Até que finalmente chegou a manhã do grande dia.
O chefe (dos baquires) veio ter com Pahóm e, estendendo o
braço para a planície:
— Olha para isto — disse ele —, tudo o que vês é nosso; pode-
rás ficar com o que quiseres.
Os olhos de Pahóm rebrilharam: era tudo terra virgem, plana
como a palma da mão, negra como semente de papoila; e as dife-
rentes espécies de erva cresciam à altura do peito.
O chefe tirou o barrete de pele de raposa, colocou-o no chão
e disse:
— O sinal é este; partes daqui e voltas aqui; é tua toda a terra
a que deres volta.
Pahóm, acompanhado de um empregado iria demarcar como
que uma poligonal que deveria, até o pôr do sol, fechar no ponto
de partida. Começa então uma corrida louca contra o tempo:
Pahóm cometeu o erro de “abrir” demais — sempre via mais um
pedaço, um campo que valia a pena... — e agora era preciso vol-
tar e chegar a tempo.
— Santo Deus! Abarquei demais e perdi tudo; já não chego
antes de o Sol se pôr.
O medo cortava-lhe a respiração; Pahóm continuava a cor-
rer, mas a transpiração colava-lhe ao corpo as calças e a camisa;
tinha a boca seca e o peito arquejava como um fole de ferreiro; o

25
Milton Ferreroni Júnior

coração batia que nem um martelo e as pernas quase nem pare-


ciam dele; Pahóm sentia-se aterrorizado com a ideia de morrer
de fadiga.
Consegue chegar na meta e cai no chão.
— Grande homem, grande homem! — gritou o chefe. — A
terra que ele ganhou!
O criado de Pahóm veio a correr e tentou levantá-lo, mas viu
que o sangue lhe corria da boca.
Pahóm morrera!
[...]
O criado pegou na pá, fez uma cova em que coubesse Pahóm
e meteu-o dentro; sete palmos de terra: não precisava de mais.

O que podemos tirar dessa parábola de Tolstói?

A ideia de fundo é um ensinamento de Jesus: Que adianta


ao homem ganhar o mundo inteiro, mas perder a sua vida? (cf.
Mt 16,26). O problema é que a avareza nos faz esquecer dessa
ideia tão clara.
Voltemos aos três espelhos: ostentação (ou despeito) nas pala-
vras, insatisfação nas reações e a loucura nas ações.
No conto a ostentação vem da irmã da cidade, mas atinge a
irmã mais nova e sobretudo o cunhado.
Pode acontecer algo disso conosco: o despeito. Assim como
Pahóm, sentimos a necessidade de provar para nós mesmos que
podemos conseguir.
Imaginemos um diálogo com alguém que vai explicando os
motivos da sua conduta: “Eu quero estudar”. Ótimo! “Para ser
um excelente profissional”. Ótimo. “E assim ter um bom salá-
rio”. Ótimo. “E então eu poderei ser alguém na vida”. Errado!!!
É fácil de perceber como esse erro — trocar o ter pelo ser —
gera uma escravidão, uma dependência, uma insatisfação (aquela
que aparece no segundo espelho).

26
Capítulo III — A avareza no espelho

Pensemos em nós: estamos sempre insatisfeitos? Temos sem-


pre a sensação de que nos falta alguma coisa?
Todos nós temos potencialmente esse pecado instalado em
nós mesmos. Basta lembrar que um dos Doze Apóstolos (Judas)
vai se perder, tornar-se um traidor, precisamente pela avareza.
Judas, apesar de seguir Jesus havia três anos, vai acabar por
entregá-Lo aos seus inimigos, vendendo-O por 30 moedas de
prata! E o mais importante: Judas não era um traidor, foi se tor-
nando um traidor na medida que seu coração foi se endurecendo.
E o que foi endurecendo o coração de Judas? A avareza, o ape-
gamento imoderado às coisas materiais.
Na avareza, vemos mais claramente que em qualquer outro
defeito aquelas palavras de Jesus: onde estiver o teu tesouro, aí
estará o teu coração (Mt 6,21). Judas foi colocando o seu coração
nas riquezas, até que chegou um momento em que já não havia
lugar para Cristo.
Esse mesmo processo pode acontecer na vida de qualquer
um de nós. Aparece a preocupação desmedida com o ter mais,
ganhar mais, acumular mais. Até que de repente já não há lugar
para os outros, para a família, para Deus!

O que fazer para lutar contra a avareza?

Devemos cultivar a virtude do desprendimento. Mais do que


o ter ou não ter, o que importa é a nossa atitude desprendida, de
liberdade em relação aos bens materiais.
Numa homilia sobre essa virtude, São Josemaria nos dá a
entender que a “parábola” de Tolstói se verifica como alguma
frequência: “Quando alguém centra a sua felicidade exclusiva-
mente nas coisas daqui de baixo — tenho testemunhado verda-
deiras tragédias —, perverte o seu uso racional e destrói a ordem
sabiamente estabelecida pelo Criador. O coração fica triste e
insatisfeito; penetra por caminhos de um eterno descontenta-

27
Milton Ferreroni Júnior

mento e acaba escravizado já aqui na terra, convertendo-se em


vítima desses mesmos bens que talvez tenha conseguido à custa
de esforços e renúncias sem número”.7
Sem dúvidas o momento mais dramático do conto é quando
Pahóm percebe que pode morrer pela opção errada que fez. Ele
se desespera:
“Apesar do medo da morte, não podia parar. “Se depois de ter
corrido tudo isto, parasse agora, chamavam-me doido”. E corria
mais e mais e já estava mais próximo e já ouvia os Baquires a gri-
tar; os gritos mais lhe faziam pulsar o coração; reuniu as últimas
forças e deu mais uma carreira. [...] Pahóm lembrou-se do sonho.
“Tenho terra bastante, mas permitirá Deus que eu viva nela?
Perdi a vida, perdi a vida! Já não chego àquele lugar.”
Pahóm não tinha dado importância a um sonho na véspera
do desafio.
“[...] sonhou que estava deitado na tenda e que ouvia fora
uma espécie de cacarejo; pôs-se a pensar o que seria e resolveu
sair: viu então o chefe dos Baquires a rir-se como um doido,
de mãos na barriga; Pahóm aproximou-se e perguntou: “De
que se está a rir?” Mas viu que já não era o chefe: era o nego-
ciante que tinha ido a sua casa e lhe falara da terra. (Motivo
pelo qual tinha vindo). Ia Pahóm a perguntar-lhe: “Está aqui
há muito?” quando viu que já não era o negociante: era o
camponês que regressava do Volga (tinha lhe sugerido um
dos primeiros bons negócios que havia feito]; nem era o cam-
ponês, era o próprio Diabo, com cascos e cornos, sentado, a
cacarejar: diante dele estava um homem descalço, deitado no
chão, só com umas calças e uma camisa; e Pahóm sonhou que
olhava mais atentamente, para ver que homem era aquele ali
deitado e via que estava morto e que era ele próprio; acor-
dou cheio de horror.”

7 Josemaria Escrivá. Amigos de Deus. Ed. Quadrante. São Paulo, p. 118

28
Capítulo III — A avareza no espelho

Quando lemos o Evangelho percebemos que Judas também


teve avisos, mas não levou em consideração. O próprio Cristo o
advertiu a respeito da sua avareza.8
O conto tem como título uma pergunta — De quanta terra
precisa um homem? — e a resposta vem no final: “O criado pegou
na pá, fez uma cova em que coubesse Pahóm e meteu-o dentro;
sete palmos de terra: não precisava de mais.”
Convém notar que só falamos de avareza, não de ambição.
É que a ambição pode ser boa. Mais ainda, um cristão deve ser
ambicioso: ambicioso de ser, mais do que de ter; ambicioso de
felicidade, de amor; ambicioso de Deus, que é o único que pode
satisfazer o seu coração.

Exame de consciência

1) Tenho atitudes exibicionistas em relação ao que possuo?


Percebo quanto mal isso pode gerar ao meu redor?

2) Quando sinto a inquietação pelo ter, lembro-me das pala-


vras de Jesus no Evangelho: que adianta ao homem ganhar o
mundo inteiro, mas perder a sua vida (cf. Mt 16,26)?

3) Compro por impulso? Qual tipo de produto costuma ser a


minha tentação próxima: eletrônicos, roupas, artigos espor-
tivos, etc?

4) Vivo muito em função das modas? Deixo-me sugestio-


nar pela necessidade imperiosa de novos modelos ou upgrades?

5) Sinto-me habitualmente insatisfeito? Tenho a sensação


constante de que me falta alguma coisa?

8 Cf. Jo 12, 3-8; Mt 26, 7-13;

29
Milton Ferreroni Júnior

6) Perco tempo em busca de possíveis compras na Internet?


Reparo que no fundo estou caindo numa armadilha, pois a par-
tir dessas pesquisas online irei receber uma quantidade enorme
de ofertas e promoções?

7) Deixo-me enganar por falsas razões que justifiquem a preo-


cupação desmedida com o ter mais, ganhar mais, acumular mais?

8) Entendo que mais do que o ter ou não ter, o que importa


é a minha atitude de liberdade em relação aos bens materiais?

9) Adoto um estilo desprendido? Sei cuidar dos meus bens?


Esforço-me para que as coisas durem?

30
CAPÍTULO IV

A luxúria

Chegamos à luxúria, pecado relacionado com a falta de


castidade, a falta de domínio da sexualidade. E mais uma vez
vamos examinar o pecado nos três espelhos: reações, pala-
vras e ações.
Porém, desta vez vamos mudar a ordem e começar pelo espe-
lho das palavras. E sobretudo não iremos nos deter nas palavras
que denotam o pecado da luxúria, da impureza: vamos fugir
dessas palavras.... O motivo é o que São Josemaria explica no
livro Caminho:
“Nunca fales, nem sequer para te lamentares, de coisas ou
acontecimentos impuros. Olha que é matéria mais pegajosa que
o piche. Muda de conversa, e, se não é possível, continua falando
da necessidade e formosura da santa pureza, virtude de homens
que sabem o que vale a sua alma”9
Vamos fugir do tema: mais do que tratar da luxúria, nos dedi-
quemos a considerar a necessidade e formosura da santa pureza.
Qual é a palavra positiva que convém examinar no espe-
lho? Amor.

9 Josemaria Escrivá. Caminho, n. 131.

31
Milton Ferreroni Júnior

A necessidade e a formosura da pureza só se entendem quando


pensamos na sua finalidade: o amor. A pureza não é uma fina-
lidade em si mesma: a pureza é sempre para o amor! Por isso,
para entendermos a necessidade e a formosura da santa pureza
é preciso antes entender bem o que é o amor. Num primeiro
momento, não parecer tão difícil. O amor é uma unanimidade:
todo mundo é a favor. Parece algo tão positivo...
Mas será que todo mundo sabe o que é o amor?
Quando se utiliza demasiadamente uma palavra, ela acaba
por perder o seu verdadeiro significado. Fica gasta... Talvez isso
seja exatamente isso o que se dá no caso da palavra “amor”. Se
observarmos atentamente, veremos que pelo muito que se fala
de amor, acaba sendo difícil saber exatamente o que se está que-
rendo dizer.
Às vezes o que se chama de amor é simples vaidade: o rapaz
que traz a namorada “pendurada” do braço, como se fosse
mais um enfeite da sua personalidade. Para outros o amor é
uma forma de autoafirmação. Se a irmã mais nova arrumou
um namorado a mais velha não pode ficar para trás. Está che-
gando o dia dos namorados e seria muito ruim não ter nin-
guém, mais ou menos como se a fosse ficar sem TV em dia de
jogo da Copa...
Outras vezes, “amor” pode ser uma mera necessidade sexual
— precisa-se de um namorado (a), como de um carro ou de um
apartamento: para garantir um relativo bem-estar.
Em resumo: fala-se muito de amores, e mais concreta-
mente de uniões sentimentais. A vida de muita gente se reduz
a isso: aos romances das novelas, ao “caso” famoso de um
artista ou um esportista. Quanta gente precisa disso quase
como uma droga: “viajar” por um mundo encantado de gente
bonita, “glamourosa”...
Mas, ao mesmo tempo em que se fala muito de amores, fala-se
muito pouco, ou nada, de amor. Por quê? Porque não se reflete
(no espelho!) o que é o amor.

32
Capítulo IV — A luxúria

É necessário redescobrir, recuperar o sentido teórico e prá-


tico do amor. Essa questão é urgente, mas com uma urgência
diferente de outras questões que se colocam como urgentes para
o homem moderno.
Por exemplo, é urgente uma maior consciência ecológica;
urgente, mas não vital, no sentido que eu posso ser feliz apesar
de muitos problemas ambientais. É urgente uma melhor distri-
buição de renda; mas eu posso ser feliz mesmo que, ao morrer,
este problema ainda não tenha se resolvido. Com o amor é dife-
rente: o que todo homem precisa na vida é de amor; a vida não
é possível sem amor.
Li há muito tempo uma belíssima história, que depois vi citada
com algumas variações. Em síntese tratava-se de um homem
bastante idoso que foi ao pronto-socorro para fazer um cura-
tivo em sua mão ferida. Dizia-se muito apressado porque estava
atrasado para um compromisso.
Enquanto o tratava, o jovem médico quis saber o motivo
da sua pressa e ele disse que precisava ir a um asilo de velhos
tomar café da manhã com sua mulher que estava internada lá
há bastante tempo.
Sua mulher sofria de Alzheimer em estágio bastante avançado...
Enquanto terminava o curativo, o médico perguntou-lhe se
ela não ficaria assustada ao ver o curativo.
— Não — disse ele. Ela já não sabe quem eu sou. Há quase
cinco anos ela nem me reconhece...
Intrigado o médico lhe pergunta:
— Mas, se ela já nem sabe quem é o senhor, por que essa
necessidade de estar com ela todas as manhãs?
O velho sorriu, deu uma palmadinha na mão do médico e disse:
— É verdade... Ela não sabe quem eu sou, mas eu sei muito
bem quem ela é.
Como é bonito um amor como o desses velhinhos! Acho que
qualquer moça gostaria de casar-se com alguém que na velhice
agisse assim.

33
Milton Ferreroni Júnior

O espelho das reações

E, novamente, ao invés de pensarmos pelo lado negativo, o


que queremos ver refletido é a beleza. Em geral, os espelhos físi-
cos servem exatamente para isso...
E qual é a nossa reação diante da beleza? Encantamento.
Esse é o motivo pelo qual o ancião da história ia todo dia visitar
sua esposa já sem memória: estava encantado com a sua beleza!
Mas será que ela ainda era bonita, depois de tantos anos,
em estágio adiantado de Alzheimer? Com certeza! Para ele era
muito bonita!
Lembro-me de uma vez em que um homem casado me con-
tou o que dizia aos seus amigos: “Você quer que a sua mulher
fique cada dia mais bonita? Não olhe para as outras!”
O velhinho da história talvez nos dissesse: “As moças de
20 anos podem ser mais viçosas, mas bonita mesmo é a minha
mulher.” E é verdade! Ele ficou encantado pelo seu olhar, pelo
seu sorriso, pelo tom de voz, por tudo isso que é simultanea-
mente do corpo e da alma: que não envelhece, pelo contrário,
fica cada vez melhor.
Tinha por isso toda a razão quem dizia que o segredo é não
olhar para as outras...
O espelho serve para nos arrumarmos... Uma mulher deve se
arrumar? Com certeza! Deve estar sempre elegante, atraente, o
que não tem nada a ver com ser provocante.
Um homem nunca fica encantado por uma beleza provocante.
Pode ficar até “alucinado”, mas depois passa...
Um exemplo absurdo: imaginemos — se isso fosse possível
— que uma moça expusesse de maneira provocante... a orelha.
Quando ela passasse os rapazes olhariam, entortariam o pes-
coço. Ela perceberia e gostaria (alguém já disse que os homens
olham para as mulheres, e as mulheres olham para ver se estão
sendo olhadas...).
Ela pensaria: “devem estar dizendo — ‘que moça bonita!’”

34
Capítulo IV — A luxúria

Só que não é isso que diziam, mas sim: “Que orelha!”


E se alguém perguntasse: “Mas é bonita?” A resposta seria
mais ou menos: “Sei lá, nem reparei.”
Muitas vezes pode se repetir aquele diálogo do desenho ani-
mado Rei Leão. Depois da morte do pai, Simba, o leãozinho, foge
do reino — de herdeiro do trono ele passa a ser apenas um mora-
dor da selva, amigo do javali e do suricato.
Então, o espírito de Mufasa, seu pai, rei da floresta, lhe recorda:
— Você se esqueceu de quem você é. Olhe para dentro de si
mesmo, Simba. Você é mais do que o que você se tornou.
Que pena uma mulher virar uma orelha!
Alguma moça poderia contra-argumentar:
— Mas será que todos os rapazes são assim? Olham para as
mulheres sempre com malícia?
Não. Há muitos que são bons cristãos e que se lembram das
palavras de Jesus: Todo aquele que lançar um olhar de cobiça
para uma mulher, já adulterou com ela em seu coração (Mt 5, 28).
Se uma moça está provocante, exatamente porque eles são
normais, preferem nem olhar...
Mas, continuando: no espelho das palavras buscamos o amor;
no espelho das reações, a beleza.

O sexo no espelho das ações

Hoje em dia assistimos a uma idolatria do sexo. Os meios


de comunicação, a TV, as séries servem-no de bandeja. O sexo
deixa de ser algo santo, criado por Deus e vem transformado
numa mercadoria, absolutamente desvinculado do amor, segue
as “leis de mercado”: sexualidade desvalorizada, banalizada.
Como é atual o que dizia há mais de oitenta anos São Jose-
maria: “Pureza?, perguntam. E sorriem. — São os mesmos que
vão para o matrimônio com o corpo murcho e a alma desilu-
dida” (cf. Caminho, n. 120).

35
Milton Ferreroni Júnior

Por que o corpo murcho? Porque o sexo desconectado do


amor, como mera satisfação momentânea, acaba desiludindo.
Por que a alma desiludida? Porque talvez depois de muitas
— ou algumas experiências — essas pessoas começaram a des-
confiar de que possa existir amor.
Essa é a pior tragédia que pode ocorrer na vida de uma pes-
soa, sobretudo jovem: desconfiar de que possa existir amor!
A condição sine qua non para uma pessoa se apaixonar por
outra é o encantamento, a admiração: querer penetrar no seu
conhecimento, ver como a outra pessoa é por dentro, buscar o
seu conteúdo, descobrir o complemento da beleza exterior. É
uma “viagem psicológica”.
O sexo nunca foi visto de uma maneira negativa pelo cris-
tianismo, pelo contrário — no sexo, na entrega mútua entre um
homem e uma mulher que assumem um compromisso por toda
a vida há algo de sublime, de divino. Ao contrário, é quando o
sexo se banaliza que todo esse processo fica comprometido.
Para uma pessoa jovem, esclarecer bem o que é o amor é fun-
damental. Não vamos encontrar resposta numa revista “especia-
lizada”, nem com um(a) colega muito “experiente”.
Um cristão pode encontrar essas respostas numas palavras
de Jesus. Bem-aventurados os limpos de coração, porque verão a
Deus (Mt, 5, 8).
Ver a Deus! É por isso que os cristãos devem lutar por viver
a pureza! Ver a Deus diretamente! Ver a Deus no outro!
Pureza é diferente de puritanismo, da moral vitoriana...
Como daquela moça da Inglaterra no século XIX que tinha uma dor
no joelho e levou uma boneca para mostrar ao médico onde doía...
Pureza é diferente de reprimir-se. Há gente que pensa que
a pureza pode trazer alguns recalques, traumas, problemas psico-
lógicos. Bastaria ir à sala de espera de um consultório de psicolo-
gia e constatar quantos estão lá por viver a virtude da pureza...
Uma revista norte-americana trazia há muitos anos atrás
uma capa original. Como título: A nova mulher americana aos

36
Capítulo IV — A luxúria

21 anos; e na imagem: uma moça jogada numa lata de lixo. Com


certeza se encontrará muita gente que se sente assim depois de
muitas opções erradas.
Pureza é autodomínio, aprender a controlar os próprios
instintos. Aliás, isso é algo que fazemos com os outros instintos.
Todos aprendemos desde cedo a controlar a raiva, diferente-
mente do animal que morde quando fica irritado. Aprende-
mos a controlar a fome, diferentemente do animal que não
para até empanturrar-se.
Pois bem, é natural, que diante do instinto sexual — comum
a todas as pessoas normais —, também saibamos comportar-
-nos diferente dos animais!
Por isso, é um empobrecimento muito grande confundir amor
com o ato sexual. O sexo pode ser manifestação do amor, mas
não podemos dizer, por exemplo, que um cachorro possa amar.
Pelo contrário, “o grande privilégio do homem é poder
amar, transcendendo assim o efêmero e o transitório”10 —
o animal não transcende. Infelizmente há gente que tam-
bém não transcende: corre atrás do prazer como um animal,
por pura satisfação do seu instinto. O outro/outra não tem
importância nenhuma.
A pureza é uma virtude positiva: ver a Deus!
Algumas vezes custa? Sem dúvida: “nenhum ideal se
torna realidade sem sacrifício”.11 que significa esse preço, esse
custo? A luta em estar atentos ao que lemos, às séries que
assistimos, nas conversas, nas modas, nos ambientes que fre-
quentamos. Mas sempre uma luta positiva — o cristão não é
alguém que vive dizendo não à luxúria, mas é alguém que diz
sim ao amor!

10 Josemaria Escrivá. É Cristo que passa. Ed. Quadrante, São Paulo, p. 48


11 Cf. Josemaria Escrivá. Caminho, n. 175.

37
Milton Ferreroni Júnior

Exame de consciência

1) São Josemaria aconselhava: “nunca fales, nem sequer para


te lamentares, de coisas ou acontecimentos impuros”. Como
são as minhas conversas? Evito qualquer alusão a esses temas?

2) Ainda em relação às palavras, sou consciente da força da


palavra amor? Concretamente, sei diferenciar amor de egoísmo
a dois?

3) Bem-aventurados os limpos de coração, porque verão a Deus


(Mt 5,8). Entendo que o encantamento pela beleza depende da
pureza do olhar?

4) Minha luta pela santa pureza é positiva? Reparo que não se


trata de dizer “não” a certos comportamentos, mas “sim” ao amor?

5) Quando essa virtude custa, lembro-me que nenhum ideal


se torna realidade sem sacrifício?

6) Luto por guardar bem a vista? Entendo a diferença entre


ver e olhar?

7) Na guarda da imaginação tenho bem claro que uma coisa


é sentir e outra consentir? Levo a cabo um trabalho de purifi-
cação da memória?

8) Esforço-me por controlar os instintos? Contrario de vez


em quando o meu gosto, também em coisas lícitas, oferecendo
a Deus essa pequena mortificação?

9) Fujo da ociosidade? Perco tempo “navegando” pela Inter-


net sem objetivo claro?

38
CAPÍTULO V

A inveja refletida

É muito comum que as pessoas perguntem: “Padre, existe


mau olhado”? A resposta é imediata: “Não!”
Mas, o que seria esse tal “mau olhado”? É essa espécie de “ener-
gia negativa” que os invejosos usariam para fazerem os seus rivais
perderem o objeto da cobiça. Exemplos, evidentemente infunda-
dos: a moça que com o “mau olhado” faz o namorado da “rival”
cair e quebrar a perna; uma família próspera que de repente se
vê às voltas com dificuldades por causa dos vizinhos invejosos;
o bom aluno que inexplicavelmente vai mal numa prova, etc.
Não existe mau olhado por uma razão muito simples: Deus
respeita a nossa liberdade, é nosso Pai e não deixaria que outros
pudessem influir de uma maneira misteriosa no nosso futuro. O
sobrenatural pertence a Deus.
Em geral, a explicação das coisas é mais simples, não é sobre-
natural, mas natural. Se uma pessoa passar o tempo todo pen-
sando que alguma coisa de ruim vai acontecer, que colocaram
“mau olhado”, talvez acabe — distraído — caindo da escada e
quebrando a perna. Ou, de tão preocupado, não consiga estu-
dar e se dê mal numa prova. Ou ainda a moça que está tão preo-
cupada em não “perder” o namorado, acabe transmitindo certa
insegurança... E aí sim o namorado vai embora.

39
Milton Ferreroni Júnior

Mas será que o chamado “mau olhado” se reflete nos três


espelhos? Sim, na verdade, nada mais é do que o pecado capi-
tal da inveja.

O que é a inveja?

Para responder a essa pergunta, vamos voltar um pouco à


crendice infundada do “mau-olhado”. De onde vem isso de que
existe uma “maneira má” de olhar? Vem da observação: ainda
que não exista o “mau-olhado”, é verdade que o invejoso olha
mal. Na Bíblia há várias referências ao olho mau, significando
o olhar do invejoso (cf. Sir. 14,8.10; 18,18).
Uma dessas vezes é numa parábola proposta por Cristo: a
dos operários da vinha.
Um proprietário sai logo cedo para contratar operários para
trabalharem na sua vinha por um denário ao dia. São contrata-
dos ao longo da jornada: ao romper da manhã, à terceira hora,
hora sexta, hora nona e undécima hora, isto é, às nove, meio-
-dia, três e cinco da tarde. Quando vai acertar as contas, começa
pelos que haviam sido contratados às cinco da tarde: paga-lhes
um denário. Mas quando chegam os primeiros ficam surpresos:
também recebem um denário.
E ao recebê-lo, murmuravam contra o proprietário, dizendo:
Estes últimos trabalharam somente uma hora, e os igualastes a
nós, que suportamos a fadiga do dia inteiro e o forte calor. Mas
ele, respondendo, disse a um deles: Amigo, não te faço injustiça;
não ajustaste comigo um denário? Toma o que é teu, e vai-te;
eu quero dar a este último tanto como a ti. Não me é lícito fazer
o que quero do que é meu? Ou é mau o teu olho porque eu sou
bom? (Mt 20, 11-15).
Aqueles trabalhadores não estavam murmurando porque
achassem que mereciam mais, mas sim que os outros mere-
ciam menos. Se o proprietário lhes tivesse dado um denário e

40
Capítulo V — A inveja refletida

aos outros meio, estariam satisfeitos. Esse é o “olho mau”, que


no caso até pode parecer justo...
No entanto, o dono da vinha podia fazer o que quisesse, até
dar para quem nem tivesse trabalhado, já que o dinheiro era dele!
Você já reparou como quase instintivamente damos razão
aos “queixosos” da parábola? Será que a inveja é algo que não
tem nada a ver conosco?
Essa é uma possível definição de inveja: a tristeza pelo bem
alheio, muitas vezes acompanhada pelo desejo de ver o próximo
privado do bem em questão.
Todos nós estamos convencidos de que existe muita inveja
no ambiente: notas, posição social, beleza, inteligência, “sorte”,
namorado(a), família, resultado de um vestibular, etc. Mas ao
mesmo tempo é difícil encontrar alguém que se considere inve-
joso. Será que é assim mesmo?
Todos nós sentimos tentações de inveja, como sentimos ten-
tações de soberba, avareza, ira, gula, preguiça... Não é diferente
com a inveja. E uma das formas de vencer essas tentações (o mau
não está em ter tentações, mas cair nelas) é precisamente olhar
a nossa inveja no espelho.
É difícil reconhecer a inveja? Sem dúvida, e o motivo é simples:
é difícil encarar a inveja porque ela é o pecado dos derrotados.
É mais fácil dizer: “Eu sou muito vaidoso, afinal de contas
tenho do que me vangloriar...”; “Sou preguiçoso. Por isso, se tiro
boas notas é que sou inteligente... Se eu quisesse estudar seria
o primeiro sempre...”
Mas, dizer: “Sou invejoso” pega mal... “Sou menos que o
Fulano, de quem tenho inveja.”

A inveja nos três espelhos

No espelho das palavras vemos muitas vezes refletida a male-


dicência. Male dicere em latim, falar mal... Conclusão imediata:

41
Milton Ferreroni Júnior

quem vive falando mal dos outros é invejoso, mesmo que não
se reconheça como tal!
Li há muito tempo uma história dessa manifestação da inveja.
Certo político influente e intrigante veio um dia, durante a Guerra
Civil Americana, dizer a Lincoln que o general Grant — grande
militar que viria a ser o décimo oitavo presidente dos Estados
Unidos — era um beberrão.
— É uma vergonha — declarava o político. — Aquele homem
não devia ter o comando de um exército!
— Então, Grant embebeda-se? — indagou Lincoln.
— Sim, e posso prová-lo — declarou o outro.
Com os olhos revelando um brilhozinho divertido, Lincoln
retrucou:
— Não, não perca seu tempo trazendo-me provas. Descubra-
-me, antes, qual é a marca do uísque que Grant bebe, se me quer
fazer um favor. Mandarei um barril desse uísque a cada um dos
nossos generais.
Como se reflete a maledicência no espelho das palavras? Exa-
tamente como neste episódio.
Aquele político invejoso não era capaz de imitar o grande
general. Talvez não “quisesse”, isto é, não estivesse disposto ao
sacrifício que isso implicava. Ou então não conseguira atingir
as virtudes militares de Grant. Então, como não conseguia subir,
tentava abaixar o outro.
É o que lemos no livro Sulco, de São Josemaria: “Por não sabe-
res — ou não quereres — imitar a conduta nobre daquele homem,
a tua secreta inveja te leva a ridicularizá-lo”.12
Quantos exemplos de gente que é ridicularizada por inveja!
O bom aluno é chamado de bitolado, “nerd”... Por quem? Por
quem não tem força de vontade — ou cabeça — para estudar. A
moça que é chamada de “santinha”, inexperiente, imatura... Por
quem? Pelas “bem amadurecidas”, que às vezes estão a ponto de

12 Josemaria Escrivá. Sulco, n. 911.

42
Capítulo V — A inveja refletida

cair da árvore de podres. O jovem com ideais ouve: “Você está


perdendo o melhor da sua vida” Por quem? Por quem não quer
nada na vida.
Exatamente isso se vê na vida do próprio Cristo. Por exemplo,
os fariseus que o ouviam tentando surpreendê-Lo numa pala-
vra e que riam dos seus ensinamentos são os mesmos que mais
tarde vão entregá-Lo à morte por inveja.
Por isso, todo cuidado é pouco: “O despeito afiou a tua lín-
gua. Cala-te!”13
O livro do Eclesiástico (Cf. 37,12) diz concretamente para não
nos aconselharmos: com um injusto sobre a justiça, com uma
mulher sobre outra de quem ela tem ciúme, com um covarde a
respeito da guerra, com um negociante acerca do comércio, com
um preguiçoso sobre o trabalho e com um invejoso sobre o
reconhecimento.

No espelho das reações se reflete... a vida dos outros

É próprio da inveja viver em função dos outros. A sabe-


doria popular chama isso de “dor de cotovelo” — uma vida em
função dos outros. Uma possível explicação é que as pessoas
invejosas ficavam na janela, apoiadas no cotovelo, bisbilhotando
o sucesso dos outros.
Hoje em dia já não se perde tempo na janela... A moça que
fica preocupada se o pai da colega lhe deu um celular novo. Se
deu, que não seja melhor que o dela. Fica preocupada se o pai
da colega está prometendo uma viagem de 15 anos.
A inveja está por toda parte homens e mulheres, jovens e
menos jovens, como se conta numa historinha de um príncipe
de Siracusa.

13 Josemaria Escrivá. Caminho, n. 654.

43
Milton Ferreroni Júnior

Esse soberano tinha dois criados: um era avarento e o


outro, invejoso.
Um dia disse-lhes o príncipe: “Quero dar um presente para
vocês dois. O primeiro que pedir terá o que desejar; e ao outro
darei o mesmo presente, porém em dobro”.
Um, por avareza e o outro, por inveja, nenhum queria pedir
primeiro. Afinal, o príncipe, para acabar de uma vez, mandou
ao invejoso que pedisse. Este, depois de refletir algum tempo,
pediu que lhe arrancassem um olho, para que ao seu compa-
nheiro tivessem de arrancar os dois...
Não é um exagero! O próprio Cristo dá a entender que a
inveja pode cegar, quando se referia aos fariseus como cegos e
guias cegos.
Em Pádua, na Itália, o grande gênio Giotto (c. 1266-1337) pin-
tou um afresco na Cappela Scrovegni onde resume quase tudo
que vimos até agora.
A inveja (em latim, invidia) foi representada por Giotto como
uma velha, encurvada pelo peso da vida. Da boca dessa pessoa,
explicitamente amarga, sai uma serpente que, ao invés de atacar os
outros, investe contra a própria velha, cegando-a com seu veneno.
Com força, a personagem aperta contra si uma sacola, com algum
bem pessoal, que parece desconsiderado em vista do bem do outro.
A velha tem uma orelha desmesuradamente grande que,
atenta aos burburinhos, fica tão preocupada com os outros, que
nem percebe que está sobre uma fogueira. Isso é a inveja: uma
cobra que mora em nós e que envenena nossos olhos em rela-
ção aos outros e faz-nos esquecer da situação que estamos ou
podemos ficar.

E no espelho das ações, o que se vê?

No espelho das ações vemos refletidas claramente as anti-


patias gratuitas!

44
Capítulo V — A inveja refletida

“Não vou com a cara de Fulano”? Às vezes pode ser porque


é mais inteligente ou que tenha mais talento, mais sucesso no
círculo de amigos comuns. Que bom nos faria rever a lista —
tomara que seja pequena... — de pessoas com quem não simpa-
tizamos. Mas, sejamos sinceros: não será inveja?
É fácil perceber de tudo isso como o invejoso não pode ser
feliz. Vive agoniado, esperando o eclipse do seu rival. Às vezes
tem uma alegria, mas uma espécie de “alegria amarga”, quando
os outros se dão mal. Talvez por tudo isso é que a Bíblia diz que
a inveja é a cárie dos ossos (Pv 14,30).
Mas o que fazer para vencer a inveja quando aparece na
nossa vida?

Quais os remédios?

Um bom remédio para a inveja é cultivar a emulação, que


significa imitar, e inclusive superar com a graça de Deus, aquilo
que vemos de bom nos demais.
Alguém conhecido tem uma grande cultura? Ao invés de ridi-
cularizar — “Que cara mais bobo! Vive como um rato na biblio-
teca...!” —, tomemos como estímulo para começar a ler. Se se
trata de um esporte, busquemos treinar mais. Uma habilidade
— por exemplo, a música — deve suscitar o desejo de também
aprender, de conhecer.
Quantas vezes uma sala de estudos pode exercer essa
santa emulação...
Mas, cuidado: às vezes o que começa como uma emulação
pode terminar em inveja declarada.
Como distinguir? Costuma-se dizer que a emulação é honesta
no objeto, nobre na intenção e leal na ação.
Entre dois colegas pode surgir uma sadia competição, por
exemplo, nos estudos. Será que isso é bom?
O objeto é honesto?

45
Milton Ferreroni Júnior

Sem dúvida. Não seria honesto, por exemplo, dois colegas


que competissem para saber quem é o melhor batedor de car-
teira, ou o mais pervertido.
É nobre na intenção?
Sobre isso, há um exemplo de dois santos do século XIII que
estavam numa competição: São Boaventura e Santo Tomás de
Aquino. O Papa Urbano IV havia pedido aos dois religiosos que
compusessem os textos da Liturgia das Horas e da Missa da
recém instituída festa de Corpus Christi.
Conta-se que São Tomás começou a ler o seu trabalho e
São Boaventura se emocionou: “Santíssimo Padre, ao ouvir o
irmão Tomás parecia-me ouvir o Espírito Santo. Só Ele pode
haver inspirado pensamentos tão formosos. Eu cometeria um
sacrilégio se quisesse impor o meu trabalho sobre estas tão
sublimes maravilhas. Eis aqui o que resta da minha obra”. E
rasgou a sua.
Os textos de São Boaventura infelizmente se perderam, mas
afortunadamente os de São Tomás se conservaram: o Pange
lingua e o Tantum ergo que se cantam na bênção com o San-
tíssimo Sacramento.
É leal a ação?
Seria desleal, por exemplo, se um tentasse enganar o outro,
se um tentasse prejudicar o outro para que não se saísse bem,
se um torcesse para o outro se desse mal...
Por fim, além de cultivar a emulação — que é uma espécie de
correção da inveja que pode surgir —, convém-nos agradecer.
Onde começa o agradecimento a Deus por tudo o que temos,
termina a inveja pelo pouco que não temos.

Exame de consciência

1) Sou uma pessoa que se queixa muito? Comparo-me habi-


tualmente com os outros?

46
Capítulo V — A inveja refletida

2) Entristeço-me com o sucesso alheio? Sou valente para iden-


tificar esse tipo de atitude ou encontro desculpas para dizer que
“não é bem assim”?

3) Tenho o mau hábito da maledicência? Experimento um


gostinho ao falar da vida alheia?

4) Sou amargo nos comentários a respeito de pessoas com


quem não me simpatizo? Dou ouvido quando outros vêm me
falar mal dessas pessoas?

5) Cultivo antipatias? Desconfio que muitas vezes elas podem


se explicar única e exclusivamente pela inveja?

6) Tendo a ser muito competitivo? Estou sempre pensando


se estou “acima” ou “abaixo” de determinada pessoa?

7) Sou cuidadoso na difícil tarefa de separar inveja de emu-


lação? Aconselho-me a esse respeito, sabendo que ninguém é
bom juiz em causa própria?

8) Costuma-se dizer que a emulação é honesta no objeto,


nobre na intenção e leal na ação. Meus juízos passam por
esses três crivos?

9) Sou uma pessoa agradecida? Agradeço a Deus e às outras


pessoas ou sempre me sinto prejudicado?

47
CAPÍTULO VI

A gula refletida

Dar nome aos bois

Existe em todos nós a tendência de usar nomes bonitos e enga-


nosos para referir-nos aos defeitos, também aos pecados capi-
tais. A soberba vira autoestima, a avareza pode se confundir com
um estilo de vida, a luxúria pode ser chamada de charme, a pre-
guiça já não é preguiça — chamamos de cansaço, esgotamento.
E a gula? Ansiedade. “Eu estava esperando um telefonema e
na ansiedade comi uma caixa de bombons”... Desculpa tão esfar-
rapada como a de quem bebe “para esquecer”...
Por isso, vamos começar a dando nome aos bois: gula é gula.
São Paulo teve essa mesma preocupação nas suas epístolas:
chamar as coisas pelo nome. O ambiente em que viveram os pri-
meiros cristãos era — em certos aspectos — muito parecido com
o nosso. Quem lê a Carta de São Paulo aos Romanos, às vezes
tem a impressão de estar lendo um artigo de uma revista de hoje.
Uma das semelhanças é que havia um verdadeiro culto ao
prazer — hedonismo —, tanto que às vezes o Apóstolo Paulo
desce a alguns detalhes que assustam: nada de orgias, nada de
bebedeira; nada de desonestidades nem dissoluções; nada de con-
tendas, nada de ciúmes (Rm 13,13).

49
Milton Ferreroni Júnior

O povo romano era um povo festivo — era comum uma pessoa


frequentar mais de uma festa no mesmo dia. Caso não comesse
daquela fartura oferecida pelo anfitrião, seria uma ofensa; por-
tanto, ele ia à primeira festa, comia e bebia de tudo e ao chegar
na segunda festa o mesmo provocava o vômito, introduzindo
o dedo indicador na garganta, para que pudesse comer nesta
segunda festa tudo que lhe fosse oferecido.

O pecado da gula é um pecado fácil e difícil de tratar

Fácil, porque é o mais evidente, salta mais à vista. É muito mais


fácil identificar um guloso, do que um soberbo ou um avarento.
Difícil, precisamente porque, sendo tão evidente, às vezes
nos perdemos nas aparências
Se fôssemos tentar uma definição desse pecado, poderíamos
dizer: a gula é o abuso de um prazer legítimo que Deus quis asso-
ciar ao dever de alimentação.
Essa definição é fundamental, pois evidencia que a gula não
é engordar, ganhar peso... Uma pessoa pode ser magra e gulosa.
Se a pessoa que comeu a caixa de bombons passar duas horas
na esteira para “descontar” continua sendo gulosa. Da mesma
forma que alguém com uns quilinhos a mais pode ser ou não
ser guloso...
A gula é a desordem de transformar a comida num fim, ati-
tude que São Paulo descrevia dizendo daqueles que fazem do
ventre um deus (cf. Fl 3,19). Em outras palavras, a gula não é um
pecado só dos gordos: da mesma maneira que há gordos que não
são gulosos, há magros extremamente gulosos.
Talvez este seja o ponto mais importante desta nossa reflexão:
a gula não é uma questão de pesos e medidas. Afinal de contas,
se é um dos sete pecados capitais, significa que todos nós pre-
cisamos lutar. O que sim pode ser verdade é que algumas pes-
soas tenham mais dificuldade, outras têm mais controle. Aliás,

50
Capítulo VI — A gula refletida

desde que somos crianças precisamos lutar nesse ponto: comer


mais, comer de tudo, não comer fora de hora; doces, biscoitos,
chocolates, etc.
Às vezes há gente adulta que continua “dando trabalho” na
hora de comer.
Uns causam preocupação porque não comem: têm pavor de
engordar. Não me refiro aos casos doentios em que se recorre ao
velho expediente romano... Mas quantas vezes se dá a escravi-
dão das calorias — que é uma forma de gula —, uma importân-
cia desproporcional à comida.
No outro extremo, há gente que vive comendo — “Faço uma
refeição por dia, uma grande refeição, que dura o dia inteiro”. Ou
ainda pessoas muito exigentes, cheias de manias. Seja qual for a
“modalidade”, é evidente que nesses casos há uma falta de controle.
Esse é o ponto: controle...

E como a gula aparece nos espelhos?

No espelho das reações poderíamos ler uma palavrinha latina:


praepropere. Etimologicamente significa “antecipar”. A pessoa
gulosa está continuamente se antecipando, isto é, comendo antes/
fora de hora. Um santo — São João Clímaco — dizia que a gula é
“a hipocrisia do ventre”, isto é, comporta-se como se precisasse
mais. Talvez nesse espelho apareçam um inseparável pacotinho
de biscoito ou as visitas sem necessidades à geladeira...
No espelho das palavras, outra expressão latina (dois advér-
bios): laute et studiose14. O requinte costuma se manifestar numa
espécie de “liturgia”... Nesse sentido, São Josemaria Escrivá tem
um ponto interessante no livro Caminho: “À mesa, não fales de
comida; isso é uma grosseria, imprópria de ti. — Fala de coi-

14 “Suntuosa e acuradamente”.

51
Milton Ferreroni Júnior

sas nobres — da alma ou do entendimento —, e terás enaltecido


esse dever”15.
Pergunta importante: você fala muito de comida? “Você já
experimentou o crepe da...? É divino?” “E a nova hamburgue-
ria?” “Outro dia fui a uma pizzaria e quando chegou a ‘Marghe-
rita’ eu me emocionei”.
Mas, cuidado, há ainda outra forma de ser guloso por requinte —
ser muito exigente, muito “chato”; sempre se queixando de comida...
“Não como isto, não como aquilo.” “Bife só se for com pouca
gordura, na chapa.” “Por favor, não posso nem sentir o cheiro
de alho.” “Se vejo uma cebola no arroz... posso desmaiar.” “Ovo
nem pensar, tenho alergia...” “Mãe, eu já falei que não gosto de
alface crespa que me irrita a garganta...”
Acho que a todos nos conviria revisar as nossas manias.

E no espelho das ações? Outros dois advérbios: nimis e ardenter.


Nimis significa “muito”: “Habitualmente, comes mais do que
precisas. — E essa fartura, que muitas vezes te produz lassidão
e incomodidade física, torna-te incapaz de saborear os bens
sobrenaturais e entorpece o teu entendimento. Que boa virtude,
mesmo para a terra, é a temperança!”16. O nimis é algo que se
repara na mesa: a “pessoa esfomeada”, que avança na comida.
Ardenter expressa sofreguidão, comer o primeiro já pensando
no segundo... É o que pode acontecer com os brigadeiros — às
vezes a pressa é tanta que se come sem enrolar, direto na panela...
São Paulo já dizia que há gente que vive o princípio do comamos
e bebamos que amanhã morreremos (1Cor 15,32). O problema não
está em comer, mas no medo de perder a oportunidade.
Há um conto famoso do francês Alphonse Daudet (1840-1897)
chamado As três Missas do Galo. Alguns críticos dizem que Dau-
det é o Dickens da França, pela forma como apresenta os perso-

15 Josemaria Escrivá. Caminho, n. 680


16 Ibidem, n. 682.

52
Capítulo VI — A gula refletida

nagens, sobretudo os mais desfavorecidos pela vida. Nesse conto


ele apresenta um padre que está rezando três missas na noite
de Natal, mas já pensando na ceia que virá depois...17 Quantas
vezes não somos nós que fazemos isso?

Obviamente não se trata de não comer...

Jesus Cristo se alimentava. E, no entanto, apesar de fazer jejuns


rigorosos, foi acusado de ser um glutão! (cf. Mt 11,19). Por quê?
Porque Ele — querendo salvar a todos — tinha todo tipo de ami-
gos e aceitava o convite para comer na casa de todo tipo de pes-
soas, sem preconceitos, sem distinções. Pois bem, isso, somada
a muita inveja que alguns tinham dele, levou a propagar essa
mentira: glutão, amigo de publicanos18 e pecadores.
Mas há outra passagem do Evangelho especialmente inte-
ressante: Seguia-o uma grande multidão, porque via os mila-
gres que fazia em benefício dos enfermos. Jesus subiu a um
monte e ali se sentou com seus discípulos. [...] Jesus levantou
os olhos sobre aquela grande multidão que vinha ter com ele
e disse a Filipe: Onde compraremos pão para que todos estes
tenham o que comer? (Jo 6, 2-3.5)
Jesus não é um profeta distraído ou pouco prático. Sabe muito
bem que precisamos nos alimentar (afinal, saco vazio não para
em pé)... Por sinal, os cinco advérbios citados anteriormente são
de um santo “corpulento”: São Tomás de Aquino.19 Corpulento,
não gordo, menos ainda guloso...
Alimentar-se é fundamental, é preciso comer para viver;
mas não podemos viver para comer. Comer é meio, não fim. O

17 Em relação a esse conto breve, prefiro não dar spoiler, mas recomendo a
leitura. — [NA]
18 Cobradores de impostos.
19 STh II-II, 148, 4.

53
Milton Ferreroni Júnior

guloso (de todos os tipos: magro, gordo, requintado, enjoado)


não entende isso.
Alguém poderia dizer: “Então só se pode comer para alimen-
tar-se? E o prazer...?”
É evidente que não é a mesma coisa comer um refogado de chu-
chu e uma pizza. É bom que nós experimentemos prazer na comida.
Não sei se você se lembra da definição do início: gula é o
abuso de um prazer legítimo que Deus quis associar ao dever
de alimentação.
Acho que com essa breve exposição todos nós teremos identi-
ficado algum ponto para lutar... O problema não é gostar de doce
ou chocolate, nem achar que chuchu empata com água quente.
O importante é o controle, o domínio, a virtude da temperança.
No fundo, uma postura elegante.
É interessante que os tratados de teologia moral indicam como
uma das sequelas da gula o embotamento, a hebetudo mentis20...
E, pelo contrário, que liberdade a de apreciar com moderação
as coisas saborosas, saber às vezes prescindir de alguma delas e
não viver pensando ou falando só em comida!
Muitas vezes é daí que parte a força de vontade que nós
tanto ansiamos.

Exame de consciência

1) A gula é o abuso de um prazer legítimo que Deus quis


associar ao dever de alimentação. Procuro me alimentar de uma
maneira saudável?

2) Desculpo-me com frequência associando o pecado da gula


a eventuais preocupações, excesso de trabalho, ansiedades, etc?

20 “Embotamento da mente”.

54
Capítulo VI — A gula refletida

Estou convencido de que boa parte da luta se vence nessa bata-


lha por chamar cada coisa pelo seu nome?

3) Confundo a gula com uma questão de “pesos e medidas”?


Considero que como todo pecado, a gula é uma desordem – e
nesse caso em concreto, a de transformar a comida num fim?

4) Venço a tentação de comer fora de hora e entre as refei-


ções? Sou prático nessa luta ou engano-me com desculpas do
tipo “só dessa vez”?

5) Evito falar de comida, sobretudo à mesa? Sou uma pessoa


muito exigente, tenho muitas manias?

6) Sou profundamente sincero naquilo que posso ou não posso


comer? Ou pelo contrário, busco desculpas para comer o que
me faz mal e invento intolerâncias em relação ao que não gosto?

7) Cuido das quantidades ou habitualmente saio da mesa


empanturrado? Recordo-me daquele perigo ao que São Paulo
alertava: a atitude do comamos e bebamos que amanhã morre-
remos (1Cor 15,32)?

8) Consigo associar a gula com outros pecados, principal-


mente a preguiça e a luxúria? Sei apreciar com moderação as
coisas saborosas e ao mesmo tempo prescindir de alguma delas?

9) Encaro de maneira positiva a mortificação na alimentação?


Considero a possibilidade de que nesses pequenos sacrifícios –
voluntários – vá se forjando a força de vontade que tanto anseio?

55
CAPÍTULO VII

A ira no espelho

Arquimedes de Siracusa (287 — 212 a.C.) foi um dos grandes


gênios da Antiguidade: matemático, filósofo, físico, engenheiro,
inventor e astrônomo. Acho que todos nos lembramos da sua frase:
“Dai-me um ponto de apoio e erguerei o mundo!” De fato, com
uma alavanca se pode erguer qualquer peso. É também famosa
a história de quando ele saiu gritando diretamente da banheira:
“Heureca! Heureca!”, ao descobrir a lei física do empuxo.
Menos conhecida é a sua morte. De surpresa entraram os
romanos em Siracusa, quando de uma das guerras púnicas entre
(264 e 146 a.C.), em que se opunham Roma e Cartago). Arqui-
medes havia ajudado muito na defesa da cidade, criando armas
bélicas e orientando os militares. Entretanto, quando se deu a
invasão, estava ele tão abstraído a riscar na areia de uma praça
pública determinado problema de geometria, que nem perce-
beu o que se passava.
Um soldado avançou para ele e o sábio pediu-lhe, apenas,
que não apagasse os traços já desenhados. O soldado, furioso,
supondo estar sendo vítima de um gracejo humilhante, arrancou
a espada da bainha e atravessou com ela o famoso matemático.
Essa ação brutal do ignorante soldado pode nos colocar em
cheio na reflexão sobre a ira e o seu poder destrutivo.

57
Milton Ferreroni Júnior

Mas, como já fizemos com os outros pecados, vamos examinar-


-nos com os três espelhos: o das reações, o das palavras e o das ações.

Reações pensadas ou impensadas

O soldado interpretou o pedido de Arquimedes como um gra-


cejo e reagiu de maneira precipitada. No espelho das reações de
ira veremos refletidas muitas atitudes precipitadas, impensadas.
Falando em reações, poderíamos nos lembrar de um outro
físico, muitos séculos posterior a Arquimedes: Newton, com as
suas três leis. Além da lei da inércia e da equação fundamen-
tal (a força é massa vezes a aceleração) que todos estudamos
no ensino médio, está a terceira: a lei da ação e reação. A toda
ação corresponde uma reação de mesmo valor, mesma direção
e sentido contrário.
Nesse sentido, precisamos considerar algo que não foi neces-
sário até agora nos outros pecados capitais: a ira nem sempre
é um pecado!
Não existe uma soberba boa, nem uma avareza virtuosa. A
luxúria sempre é um pecado, assim como a inveja, e não dá para
“canonizar” a gula. Porém, existe sim uma ira boa!
Voltando à 3ª lei de Newton: a ira é a capacidade de reagir
diante das coisas erradas. Por exemplo, muitas vezes a injus-
tiça desperta a ira! E precisamente essa ira é a forma de com-
bater a injustiça.
O exemplo mais claro dessa ira santa, podemos ver em Jesus:
Estando próxima a páscoa dos judeus, Jesus subiu a Jerusalém. E
achou no templo os que vendiam bois, ovelhas e pombas, e tam-
bém os cambistas ali sentados (Jo 2,12-14).
O fato de que fosse a Páscoa judaica — festa importantíssima
— explica o porquê havia toda aquela confusão no Templo em
Jerusalém. Nas festas principais vinham ao Templo de Jerusa-
lém judeus de todas as partes do mundo.

58
Capítulo VII — A ira no espelho

O átrio externo do Templo tinha se transformado num está-


bulo. E por que esses animais? Para os sacrifícios que se ofe-
reciam no Templo. Mugidos, barulho de pombas, ovelhas e,
sobretudo, sujeira, muita sujeira. Os três tipos de animais em
questão — bois, ovelhas e pombas — costumam “sujar” bastante.
Resultado? Mau cheiro insuportável...
Além disso, os gritos dos cambistas: trocavam as moedas
estrangeiras por moedas palestinas, as únicas que se podia uti-
lizar no Templo. Daquele local, quase não se ouviam os hinos
litúrgicos. Aquilo mais parecia uma feira...
É verdade que, seis séculos antes de Jesus, o profeta Jeremias
já havia denunciado esse abuso: com dor referia-se ao Templo
como cova de ladrões (cf. Jr 7,11). Mas a voz de Jeremias era muito
distante... Os sacerdotes e os administradores do Templo não
queriam perder aquela fonte de renda.
Pois bem, Jesus ficou irado diante daquele abuso que tendo feito
um azorrague de cordas, lançou todos fora do templo, bem como as
ovelhas e os bois; e espalhou o dinheiro dos cambistas, e virou-lhes as
mesas; e disse aos que vendiam as pombas: Tirai daqui estas coisas;
não façais da casa de meu Pai casa de negócio (Jo 2, 15-16).
Surpreende-nos essa indignação divina. O mesmo Jesus que
não vai abrir a boca durante toda a sua Paixão, não fica impas-
sível diante do desrespeito com as coisas de Deus.
Vamos comparar — no espelho das reações — a atitude do
assassino de Arquimedes e de Jesus no Templo.
A reação do soldado romano é impensada, a de Cristo não!
São Tomás diz que “irar-se segundo a reta razão é louvável”.
É a forma de reagir contra a injustiça!
Por exemplo, presenciamos uma pessoa mais humilde ser
humilhada numa fila — ira. É preciso reagir, sem perder a cabeça,
segundo a reta razão. Mas é preciso reagir. Se não reagíssemos,
teríamos sangue de barata... Graças a Deus que nos irritamos!
Em geral, não vai ser o caso de pegar um azorrague... Seria
bem provável que nos descontrolássemos. Cristo, manso e

59
Milton Ferreroni Júnior

humilde de coração (cf. Mt 11,29), não perdeu a cabeça, não se


descontrolou. Não quis dar uma lição àqueles vendilhões — como
uma espécie de vingança —, mas simplesmente restabelecer a
ordem no Templo, na casa do Pai. Tanto que o Jesus que “que-
bra e arrebenta” no Templo é o mesmo que diz: Bem-aventura-
dos os mansos, porque eles herdarão a terra (Mt 5,5).
Ele não quer combater o pecador, mas o pecado! Aproveita
a energia gerada pelo mal para construir o bem. Já dá para per-
ceber que isso não é tão fácil... Como não é fácil — não se con-
seguiu até hoje — aproveitar a energia de um raio.

E no espelho das palavras, o que vemos refletido?

O mesmo que no espelho das reações: palavras bem pensa-


das, mesmo que duras ou palavras irrefletidas, que saem no calor
de uma discussão. Há dois pontos de Caminho em que São Jose-
maria nos ajuda a considerar as nossas palavras nesse espelho.
“Isso mesmo que disseste, dize-o noutro tom, sem ira, e
ganhará força o teu raciocínio, e sobretudo não ofenderás Deus”.21
Fica claro que quando o autor diz nesse ponto “sem ira” está se
referindo ao pecado capital, não à ação que em si pode ser justa.
Um familiar fez algo absurdo: esqueceu a porta aberta e rouba-
ram a casa, perdeu algo de valor, não deu um recado importante...
É bem provável que salte uma palavra impensada: “Você é
burro! Não presta para nada! Não vai ser ninguém na vida!”
Novamente, a diferença entre a ira virtuosa e o pecado capital
da ira é a racionalidade.
Por isso o ponto seguinte sugere:
“Não repreendas quando sentes a indignação pela falta come-
tida. Espera pelo dia seguinte, ou mais tempo ainda. — E depois,
tranquilo e com a intenção purificada, não deixes de repreender.

21 Josemaria Escrivá. Caminho, n. 9.

60
Capítulo VII — A ira no espelho

Conseguirás mais com uma palavra afetuosa do que com três


horas de briga. — Modera o teu gênio”.22
Cristo não se descontrolou ao expulsar aquela gente. Conosco
deve acontecer o mesmo: a primeira reação tem que ser a de domínio!
Não é fácil! Por isso mesmo que no nosso caso, como temos
dificuldade para controlar-nos — diferente do que se dava em
Cristo —, convém não utilizar a técnica do azorrague...
O pai deu uma bronca injusta na mãe. O que fazer?
Apelar com ele, dizer umas verdades? Não. “Espera pelo dia
seguinte, ou mais tempo ainda. — E depois, tranquilo e com a
intenção purificada, não deixes de repreender”:
— Pai, o senhor foi injusto com a mamãe. Ela nunca se atrasa,
por uma vez não precisava fazer todo aquele escarcéu.
Em geral o que faz toda a diferença nesse espelho é esperar...
Conte até dez! Rezando: “Jesus manso e humilde de coração
fazei nosso coração semelhante ao vosso!”
É preciso dar esse tempo — São Tomás dizia também que a ira,
entre os sete pecados capitais, é o que mais afeta a inteligência.

Finalmente o espelho das ações

Recapitulando, o que faz a diferença na ira sempre é pensar:


a reação impensada do soldado romano, palavras impensadas
que ferem: “Você é burro!”
No caso das ações, o que garante a retidão é pensar nos outros.
Contam na vida de Santa Teresinha que certo dia ela estava
colocando umas flores ao pé de uma estátua do Menino Jesus,
no claustro do convento. Chegou uma freira já bem idosa e lhe
disse com certa aspereza: “Não ponha flores aí! O perfume delas
me faz mal e eu começo a espirrar. Parece que só você não sabe
disso ainda!”

22 Ibidem, n. 10.

61
Milton Ferreroni Júnior

Teresinha recolheu as flores e pediu desculpas à irmã. Fez


tudo isso com o seu costumado sorriso, ainda que sentisse o não
poder colocar as flores junto à imagem.
Certo dia, uma parente veio visitá-la e ela lhe contou o que
tinha acontecido. A parente prometeu então, mandar-lhe flores
artificiais, sem perfume, nem pólen, o que de fato fez.
Quando chegaram as flores artificiais, Santa Teresinha quis
colocá-las junto à imagem e eis que aparece a freira alérgica.
Vamos agora ser sinceros para fazer um teste: o que faríamos?
Primeira possibilidade: deixar a implicante gastar todo o
verbo e depois, calmamente — para humilhar — mostrar que as
flores eram de papel: “A senhora também é alérgica a papel?”
Segunda possibilidade: Correr até a freira idosa dizendo:
“Olhe que maravilha, Irmã! Já se consegue fazer flores artificiais
de papel. Não é verdade que nem dá para notar?” Nesse segundo
caso, se evita a humilhação da outra.
Santa Teresinha escolheu a segunda.
Pensemos em alguns episódios parecidos: “Da próxima vez
que Fulano vier contando vantagem vou fazer uma pergunta que
ele vai ficar com a cara no chão...”. “Se ele vier me interromper
vou dizer na frente de todo mundo que...” “Se..., então eu vou...”
Aqui entramos num capítulo que nos dá um pouco de vergo-
nha: as nossas discussões imaginárias. “Se o meu pai disser que
eu não sei dirigir, então eu vou lembrar que uma vez há cinco
anos...” Chega o pai e não diz nada. “Se alguém disser que eu...”
Ninguém diz nada. “Aposto que se eu for pedir emprestado o
caderno daquela menina da frente ela vai fazer a maior encena-
ção, e só vai emprestar depois de dar cinquenta advertências...”
E não é que a menina empresta com um sorriso, sem dizer nada?
Começávamos a nossa reflexão lembrando-nos da Física, do
princípio da ação e reação. A ira é uma reação às coisas erradas,
injustas. Pode ser muito positiva, desde que seja bem utilizada.
Talvez seja esse o propósito que resuma tudo o que pensamos:
aprender a dominar os nossos impulsos de irritação.

62
Capítulo VII — A ira no espelho

São Paulo explicita esse propósito: Irai-vos, e não pequeis; não


se ponha o sol sobre a vossa ira (Ef 4, 26).
A sugestão do sol também pode nos ajudar...

Exame de consciência

1) Diferentemente do que se dá com os outros seis peca-


dos capitais, existe uma ira boa: irar-se segundo a reta razão
é louvável. Identifico essa possibilidade na minha vida?
Aconselho-me para não me deixar levar pelo temperamento
ou pela emoção?

2) Reajo com brusquidão ou de maneira impensada? Ou


lembro-me com frequência do exemplo de Jesus Cristo, manso
e humilde de coração (cf. Mt 11,29), mesmo quando precisa
ser enérgico?

3) São Josemaria nos sugere: “Isso mesmo que disseste, dize-o


noutro tom, sem ira, e ganhará força o teu raciocínio, e sobre-
tudo não ofenderás Deus”. Como é o meu tom nas conversas,
sobretudo quando os ânimos tendem a se inflamar?

4) A diferença entre a ira virtuosa e o pecado capital da ira é


a racionalidade. Quando estou muito envolvido numa situação
procuro deixar passa o tempo, para depois agir, falar, corrigir, etc?

5) Quero sempre ter razão? Gosto de mostrar para os outros


que eles estão errados e eu certo?

6) Sou indulgente com as minhas irritações? Desculpo-me


pensando que tenho um “gênio forte”, quando na verdade deve-
ria dizer um “gênio ruim”?

63
Milton Ferreroni Júnior

7) Tendo à polêmica? Dá-se às vezes no meu interior discus-


sões imaginárias que não se exteriorizam, mas me fazem per-
der o tempo e a paz?

8) Que esforços efetivos coloco para não me descontrolar?

9) Sou uma pessoa rancorosa? Lembro-me daquela ideia de


São Paulo – não se ponha o sol sobre a vossa ira (Ef 4,26) – ou pelo
contrário demoro para perdoar ou pedir perdão?

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CAPÍTULO VIII

Finalmente, a preguiça

Há uma frase de Heródoto (485-425 a.C.) que muitas vezes


vem citada: “o Egito é uma dádiva do Nilo”. O que o chamado
“pai da História” queria dizer com isso?
Que aquele país seria apenas mais um pedaço do Saara, se
não fosse pelo famoso rio. Ao transbordar, o Nilo fecundava as
margens. Quando isso não acontecia davam-se os “anos de vacas
magras”, como lemos na Bíblia. Nessas temporadas era preciso
tomar medidas.
No livro do Gênesis se conta que José, um dos filhos de Jacó,
assumiu o papel de administrador no Egito. Tomou providên-
cias, armazenou no tempo de abundância e o país pôde passar
pela crise.
Muitos séculos mais tarde Napoleão Bonaparte vai fazer
uma observação precisa: “Com um bom governo, o Nilo vence
o deserto; com um mau governo, o deserto vence o Nilo.”
De certa forma, isso se aplica a cada um de nós. “Com um
bom governo, o Nilo vence o deserto”. O que equivale para
nós: se não deixamos a preguiça predominar, vencemos na
vida. “Com um mau governo, o deserto vence o Nilo”, isto
é, se a preguiça prevalece — mesmo com bons recursos —
somos vencidos.

65
Milton Ferreroni Júnior

Como a preguiça aparece no espelho das reações?

Aparece simpaticamente disfarçada!


Por isso a nossa reação diante da preguiça é de simpatia indul-
gente. Não é o que costuma acontecer quando consideramos
os outros pecados capitais. A inveja sempre nos aparece como
uma coisa horrível, por isso pouco gente reconhece, a ira mui-
tas vezes nos humilha diante dos outros, porém, com a preguiça
é diferente — parece um pecado simpático.
Todos nos sentimos um pouco cúmplices...
Como aquele cartaz afixado numa empresa: “A partir de agora
o intervalo de 15 minutos será reduzido de meia hora para 20
minutos”. Tanto o chefe, como os empregados se sentiam pre-
guiçosos... E achavam graça disso. Nós também sorrimos diante
de um aviso assim.
Por que a preguiça nos parece inofensiva, e até simpática?
Porque — insisto — ela sempre aparece disfarçada.
Muitas vezes se fala dos disfarces da preguiça: o ativismo
— a correria frenética de quem nunca tem um minuto, mas na
verdade não quer dar um minuto; o cansaço — essa tendência
a valorizar as dificuldades; e até a ordem — a cômoda incapa-
cidade de sair dos próprios esquemas...
Porém, o grande disfarce da preguiça, que nos leva a reagir
com simpatia, é que ela nos aparece como inofensiva.
Mas não! A preguiça é a vilã de muitas vidas. É ela quem
mata, lentamente, por asfixia, os nossos melhores talentos, os
nossos melhores ideais, projetos de vida, etc.
Uma das parábolas mais conhecidas de Jesus nos ajuda a enten-
der o perigo da preguiça: [O Reino dos Céus] será também como
um homem que, tendo de viajar, reuniu seus servos e lhes confiou
seus bens. A um deu cinco talentos; a outro, dois; e a outro, um,
segundo a capacidade de cada um. Depois partiu (Mt 25, 14-15).
A reação preguiçosa vai ser a de adiar o início do trabalho.
Como diz a música: “Temos todo o tempo do mundo...”

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Capítulo VIII — Finalmente, a preguiça

A reação mais lógica seria a de começar logo a trabalhar, ter


iniciativa. Mas, como lemos na parábola, isso não aconteceu
com os três personagens.
O que recebeu cinco talentos negociou com eles; fê-los produ-
zir, e ganhou outros cinco. Do mesmo modo, o que recebeu dois,
ganhou outros dois. Mas, o que recebeu apenas um, foi cavar a terra
e escondeu o dinheiro de seu senhor (Mt 25, 16-18).
E, vida que segue. Com certeza o preguiçoso se lembraria
alguma vez de que precisava desenterrar o talento e começar
a trabalhar. Mas sempre apareceria alguma coisa mais urgente.
Essas coisas urgentes que podem nos fazer descuidar das coi-
sas importantes.
No espelho das reações preguiçosas aparece essa simpá-
tica passividade...

O espelho das palavras

Para examinarmos o espelho das palavras, vamos continuar


a ler a parábola: Muito tempo depois, o senhor daqueles servos vol-
tou e pediu-lhes contas. O que recebeu cinco talentos aproximou-se
e apresentou outros cinco: ‘Senhor’ — disse-lhe —, ‘confiaste-me
cinco talentos; eis aqui outros cinco que ganhei’. O que recebeu
dois talentos adiantou-se também e disse: ‘Senhor, confiaste-me
dois talentos; eis aqui os dois outros que lucrei’ (Mt 25, 19-20.22).
O senhor da parábola elogia os dois com as mesmas palavras
e lhe promete um prêmio: Vem regozijar-te com teu senhor (Mt
25, 21.23). Afinal os dois tinham rendido 100%.
E quais serão as palavras do preguiçoso? Ele se desculpa e
se vitimiza.
Veio, por fim, o que recebeu só um talento: ‘Senhor, disse-lhe,
sabia que és um homem duro, que colhes onde não semeaste e
recolhes onde não espalhaste. Por isso, tive medo e fui esconder teu
talento na terra. Eis aqui, toma o que te pertence’ (Mt 25, 24-25).

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Milton Ferreroni Júnior

E nós, será que nos desculpamos muito? Como seria bom que
percebêssemos que as desculpas são uma tolice: dizer não a Deus.
No espelho das reações: simpatia, achar que no fundo a pre-
guiça não é tão perigosa assim. No espelho das palavras: desculpas.

E no espelho das ações?

Vamos deixar o senhor da parábola — Deus — responder: Servo


mau e preguiçoso! Sabias que colho onde não semeei e que recolho
onde não espalhei. Devias, pois, levar meu dinheiro ao banco e, à
minha volta, eu receberia com os juros o que é meu (Mt 25, 26-27).
No espelho das ações se reflete a maldade! Com certeza nos
surpreendemos. Afinal, o preguiçoso não parece mau...
Para entendermos qual a maldade desse pecado capital, olhe-
mos para um recém-nascido. Poderíamos fazer muitas perguntas:
quem ele será? Quais serão suas realizações? Será inteligente?
Será tímido ou descontraído? Generoso ou mesquinho? Terá
vontade forte ou será fraco de caráter?
Tudo é possível. Suas possibilidades são infinitas. Ao mesmo
tempo, tudo são incógnitas, que só o tempo irá resolvendo.
A criança recém-nascida é a pura possibilidade — potência,
na expressão da filosofia aristotélica. Será ao longo da vida que
essas possibilidades irão se realizando, passando da potência ao
ato, do poder ser ao ser.
A vida e suas possibilidades demoram a amadurecer, mas
o fazem sempre, em maior ou menor grau, se houver tempo
pela frente.
Mas não basta o passar tempo: a maturidade é fruto das boas
escolhas. Caso contrário — quando se opta mal —, o que ocorre
são distorções, que se materializam na pessoa imatura: não sabe
decidir, tem muitos altos e baixos, não tem uma visão de con-
junto da vida, deixa-se levar pelo gosto, etc. O que houve nes-
ses casos? Tudo que era possível simplesmente não aconteceu.

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Capítulo VIII — Finalmente, a preguiça

Pensemos naquele rapaz ou naquela moça que tinham talento


(não no sentido da parábola, que na época de Jesus era uma
quantidade de prata), habilidades, qualidades. Reencontramo-
-los de repente num trabalho enfadonho, burocrático. Outro que
era idealista, passam os anos e vira um homem aburguesado.
Quem sonhava com um amor humano, nobre e limpo, às vezes
se contenta com uma vidinha cinza, sem graça. Gente que já não
sonha, só usas as redes sociais para fugir....
No começo, tinham um livro entre as mãos, com suas pági-
nas em branco. Passaram os anos e nada... Ou como diz um
ditado africano (ugandense): “O que é adiado se transforma em
pedra.” O que atrapalhou esse processo? A preguiça! Aí está a
sua maldade!
Preguiçoso não é quem se cansa, mas exatamente quem não
quer se cansar. No fundo de quem não quer se cansar falta amor.
Diligência vem do verbo latino diligo, diligere que significa amar!
A preguiça é o último dos pecados capitais, mas não o menos
nocivo. Se cada um dos outros seis nos afasta do caminho que
Deus amorosamente nos traçou, a preguiça afasta-nos de nós
mesmos. Representa a recusa de amar, a maldade de não sermos
o que Deus esperava que nós fôssemos.

Exame de consciência

1) Sou consciente que se a preguiça prevalecer na minha vida


– mesmo com bons recursos – serei vencido?

2) Identifico os muitos disfarces da preguiça? Considero sobre-


tudo que a preguiça nunca é simpática e inofensiva?

3) Venço a primeira tentação que é sempre a procrastinação?


Desmascaro a mentira de que “tenho todo o tempo do mundo”?

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Milton Ferreroni Júnior

4) Sou uma pessoa passiva? Percebo que essa falta de inicia-


tiva é uma forma de dizer não a Deus?

5) Assusto-me com as palavras do senhor da parábola dos


talentos: Servo mau e preguiçoso? (cf. Mt 25,26) Que talentos
tenho enterrados na minha vida?

6) Examino-me com frequência como estou conduzindo a


minha vida? Tenho metas concretas a longo, médio e curto prazo?

7) Sigo um horário? Ou deixo que a sucessão das coisas vá


ditando o ritmo da minha vida?

8) Preguiçoso não é quem se cansa, mas exatamente quem


não quer se cansar. Admito que a recusa em me cansar é, no
fundo, falta de amor?

9) Peço a Deus a graça de ser o que Ele espera que eu seja?

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