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DIREITO ADMINISTRATIVO II

ROTEIRO TEÓRICO-PRÁTICO

Isabel Celeste M. Fonseca

Braga | 2019
Isabel Celeste M. Fon
João Vilas Boas P
DIREITO ADMINISTRATIVO II

ROTEIRO TEÓRICO-PRÁTICO

2019

ISABEL CELESTE M. FONSECA


Professora da Escola de Direito da Universidade do Minho

Com a colaboração de JOÃO VILAS BOAS PINTO


Assistente da Escola de Direito da Universidade do Minho

Para acompanhamento das aulas ministradas ao 2.º ano do Curso de Licenciatura


em Direito da Escola de Direito da Universidade do Minho.
FICHA TÉCNICA

Título: Direito Administrativo II

Subtítulo: Roteiro Teórico-Prático

Autor: Isabel Celeste M. Fonseca

Colaboração: João Vilas Boas Pinto

Data: novembro de 2019

Edição e apoio: NEDip – Núcelo de Estudos de Direito Ius Pubblicum


Avenida 1.º de Maio, 44, 3.º, 4600-013 Amarante
geral@nedip.pt | nedip.estudos@gmail.com

ELSA UMINHO
Escola de Direito da Universidade do Minho
Campus de Gualtar, sala 10, 4710-057 Braga
geral@elsauminho.com

Arranjo gráfico: Ana Rita Silva

Impressão: Gráfica Diário do Minho


Rua de São Brás, n.º 1, Gualtar, 4710-073 Braga
www.diariodominho.pt

ISBN: 978-989-99646-4-8

Depósito legal: 464038/19

Tiragem: 250 exemplares


Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

NOTA PRÉVIA

Este texto procura ser um roteiro de estudo dos temas mais signifi-
cativos do segundo semestre do Programa da Unidade Curricular de Di-
reito Administrativo do Curso de Licenciatura em Direito da Escola de Di-
reito da Universidade do Minho, servindo de guia aos Estudantes, tanto
na seleção de fontes normativas, jurisprudenciais e dogmáticas como na
atualização das mesmas.
Não obstante o desígnio didático, este trabalho pode ser útil tam-
bém a todos os que se aventuram em domínios estruturais do direito ad-
ministrativo e sentem necessidade de atualizar os respetivos quadros jurí-
dicos, revisitar os temas e reaprender conceitos e ferramentas, tendo em
conta as alterações legislativas recentemente introduzidas no Código do
Procedimento Administrativo.

Braga, agosto de 2019

ISABEL CELESTE M. FONSECA

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Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

DIREITO AMINISTRATIVO II

PROGRAMA SUCINTO

PARTE I – A Administração e o Direito (pp. 11 e ss.)


Aula 1. As fontes do Direito Administrativo (pp. 11 e ss.)
Aula 2. Contornos da nova configuração do Direito Administrativo (pp.
30 e ss.)
Aula 3. A discricionariedade administrativa (pp. 40 e ss.)

PARTE II – A atividade administrativa – formas típicas de atuação (pp. 55 e ss.)


Aula 4. Considerações gerais sobre o procedimento administrativo (pp. 55
e ss.)
Aula 5. O regulamento administrativo (pp. 75 e ss.)
Aula 6. O ato administrativo (pp. 100 e ss.)
Aula 7. Os contratos públicos (em especial, o contrato administrativo) (pp.
130 e ss.)

PARTE III – As garantias administrativas (pp. 163 e ss.)


Aula 8. As garantias petitórias, procedimentais e impugnatórias dos ad-
ministrados (pp. 163 e ss.)

PARTE IV – A Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado (pp. 175 e ss.)


Aula 9. Enquadramento e Regime da Responsabilidade Civil Extracontra-
tual do Estado e Demais Entidades Públicas (pp. 175 e ss.)
Aula 10. O regime de responsabilidade civil extracontratual do Estado e a
(des)consideração do Direito Europeu: a metodologia de superação como
um work in progress (pp. 201 e ss.)

PARTE V – Direito Administrativo especial (pp. 219 e ss.)


Aula 11. Os bens do domínio público (pp. 219 e ss.)
Aula 12. O poder sancionatório da Administração Pública (pp. 235 e ss.)

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Programa sucinto e bibliografia

BIBLIOGRAFIA DE BASE

FREITAS DO AMARAL, Diogo, Curso de Direito Administrativo, Vol. II, 4.ª ed.,
Coimbra: Almedina, 2018
VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos, Lições de Direito administrativo, 5.ª ed., Coim-
bra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2017

BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR GERAL

AROSO DE ALMEIDA, Mário, Teoria Geral do Direito Administrativo, 5.ª ed., Coim-
bra: Almedina, 2018
CAETANO, Marcello, Manual de Direito Administrativo, Vol. II, 10.ª ed., Coimbra:
Almedina, 2017
CAUPERS, João/EIRÓ, Vera, Introdução ao Direito Administrativo, 12.ª ed., Lisboa:
Editora Âncora, 2016
COLAÇO ANTUNES, Luís Filipe, A Ciência Jurídica Administrativa. Noções funda-
mentais, 3.ª reimpressão, Coimbra: Almedina, 2016, com a colaboração de
Juliana Ferraz Coutinho
FERREIRA DE ALMEIDA, Francisco António, Direito Administrativo, Coimbra: Al-
medina, 2018
FONTES, José, Curso sobre o Código do Procedimento Administrativo, 2.ª ed., Coimbra:
Almedina, 2018
OLIVEIRA, Fernanda Paula/FIGUEIREDO DIAS, José Eduardo, Noções Fundamen-
tais de Direito Administrativo, 5.ª ed., Coimbra: Almedina, 2018
OTERO, Paulo, Manual de Direito administrativo, Vol. I, Coimbra: Almedina, 2014
_____, Direito do Procedimento administrativo, Vol. I, Coimbra: Almedina, 2016
REBELO DE SOUSA, Marcelo/SALGADO DE MATOS, André, Direito Administra-
tivo Geral – Atividade Administrativa, Tomo III, 2.ª ed., Lisboa: Dom Qui-
xote, 2009
SÉRVULO CORREIRA, José Manuel, Noções de Direito Administrativo I, Lisboa: Edi-
tora Danúbio, 1982
SOARES, Rogério, Direito Administrativo, 2 volumes, 1.ª ed., texto policopiado, 1984
SOUSA, António Francisco de, Administração Pública e Direito Administrativo. Novos
paradigmas, Porto: Vida Económica, 2016
VILHENA DE FREITAS, Lourenço, Direito do Procedimento Administrativo e Formas
de Atuação da Administração – Parte Geral, Lisboa: AAFDL Editora, 2016

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Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR ESPECÍFICA

AA.VV., O Novo Código do Procedimento Administrativo. Para o Professor Doutor An-


tónio Cândido de Oliveira, Coord. FONSECA, Isabel Celeste M., Braga:
NEDip/ELSA-UMINHO, 2015
COLAÇO ANTUNES, Luís Filipe, O Direito Administrativo sem Estado – Crise ou fim
de um paradigma?, Coimbra: Coimbra Editora, 2008
ESTORNINHO, Maria João, A Fuga para o Direito Privado – Contributo para o estudo
da atividade de direito privado da Administração Pública, Coimbra: Almedina,
1999
ESTORNINHO, Maria João, Curso de Direito dos Contratos Públicos. Por uma contra-
tação pública sustentável, reimpressão da 1.ª ed., Coimbra: Almedina, 2013
FOLQUE, André, Notas sobre a revisão do Ato Administrativo no Novo Código, reim-
pressão da 1.ª ed., Coimbra: Almedina, 2017
FOLQUE, André, Recurso administrativo especial e delegação de poderes, Coimbra: Al-
medina, 2019
FONSECA, Isabel Celeste M., Direito da Contratação Pública. Uma introdução em dez
aulas, Coimbra: Almedina, 2009
GONÇALVES, Pedro, Direito dos Contratos Públicos, Vol. I., 3.ª ed., Coimbra: Alme-
dina, 2018
LOUREIRO, João Gonçalves, O procedimento administrativo entre a eficiência e a garan-
tia dos particulares, Coimbra: Coimbra Editora, 1995
MONIZ, Ana Raquel, Estudos sobre os regulamentos administrativos, 2.ª ed., Coimbra:
Almedina, 2016
OTERO, Paulo, Legalidade e Administração Pública. O sentido da Vinculação Adminis-
trativa à Juridicidade, Coimbra: Almedina, 2003
PEREIRA DA SILVA, Vasco, Em Busca do Ato Administrativo Perdido, Coimbra: Al-
medina, 2016
QUADROS, Fausto de, A nova dimensão do Direito Administrativo, reimpressão da
1.ª ed., Coimbra: Almedina, 2001
REBELO DE SOUSA, Marcelo/SALGADO DE MATOS, André, Contratos Públicos.
Direito Administrativo Geral, Tomo III, Lisboa, Dom Quixote, 2009
REBELO DE SOUSA, Marcelo/SALGADO DE MATOS, André, Responsabilidade Ci-
vil Administrativa. Direito Administrativo Geral, Tomo III, Lisboa, Dom Qui-
xote, 2008
SÉRVULO CORREIRA, José Manuel, Legalidade e Autonomia Contratual nos Contra-
tos Administrativos, Coimbra: Almedina, 2013

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Programa sucinto e bibliografia

VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos, O Dever da Fundamentação Expressa de Atos


Administrativos, Coimbra: Almedina, 2018

BIBLIOGRAFIA ESTRANGEIRA DE BASE

CASSESSE, Sabino, Trattato di diritto amministrativo, 2.ª ed., Giuffrè, 2003


CHIEPPA, Roberto/GIOVAGNOLI, Roberto, Manuale di diritto amministrativo,
Giuffre Francis Lefebvre, 2018
CRAIG, Paul, Administrative Law, 6.ª ed., Londres: Sweet & Maxwell, 2008
GRAIG, PAUL, UK, EU and Global Administrative Law, Foundations and challenges,
Crambridge: Cambridge University Press, 2015
GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo/FERNANDÉZ, Tomás-Rámon, Curso de Dere-
cho Administrativo I, Pamplona: Civitas Ediciones, 2013
GONZÁLEZ PÉREZ, Jesús, Manual de Procedimiento Administrativo, Madrid, Civi-
tas, 2000
KOPP, F. O./RAMSAUER, U., VwVfG, Verwaltungsverfahrensgesetz, Kommentar, 14.
Auflage, C.H. Beck, 2013

LEGISLAÇÃO PRINCIPAL

CCP = Código dos Contratos Públicos


CPA = Código do Procedimento Administrativo
CRP = Constituição da República Portuguesa
LOA = Legislação sobre a Organização Administrativa Portuguesa
RRcivilEE = Regime sobre a responsabilidade civil extracontratual do Estado e de-
mais Entidades, Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro
LADA = Lei de acesso à informação administrativa

LEGISLAÇÃO COMENTADA

AA.VV., Comentários ao novo Código de Procedimento Administrativo, coord. AMADO


GOMES, Carla/NEVES, Fernanda/SERRÃO, Tiago, 2.ª reimpressão, Lis-
boa, AAFDL Editora, 2015
ALMEIDA PINTO, Eliana de/SILVA, Isabel/COSTA, Jorge, Código do Procedimento
Administrativo comentado, Lisboa, Quid Juris, 2018
CABRAL DE MONCADA, Luís, Código do Procedimento Administrativo Anotado, Lis-
boa, Quid Juris, 2019

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Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

I PARTE – A ADMINISTRAÇÃO E O DIREITO

AS FONTES DO DIREITO ADMINISTRATIVO

AULA N.º 1

Sumário: 0. Introdução; 1. Fontes de Direito Administrativo: que sentido?


(fontes em sentido formal ou imediato e fontes em sentido material ou mediato;
fontes específicas do Direito Administrativo); 2. A questão da hierarquização das
fontes (sentido da hierarquia e critérios de ordenação); 3. As principais fontes de
Direito Administrativo no ordenamento jurídico português: a Constituição; os
princípios gerais de Direito e os princípios gerais do Direito Administrativo (fun-
ção e principais princípios); o Direito Internacional Público e o Direito da União
Europeia; a Lei Formal; os Regulamentos.

BIBLIOGRAFIA DE BASE

FREITAS DO AMARAL, Diogo, Curso de Direito Administrativo, Vol. II, 4.ª


ed., Coimbra: Almedina, 2018, pp. 29 e ss.
VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos, Lições de Direito Administrativo, 5.ª ed.,
Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2017, especialmente, pp. 47 a 54

BIBLIOGRAFIA ESPECÍFICA

AROSO DE ALMEIDA, Mário, Teoria Geral do Direito Administrativo, 5.ª ed.,


Coimbra: Almedina, 2018, pp. 77 a 120
OTERO, Paulo, Legalidade e Administração Pública. O sentido da Vinculação Ad-
ministrativa à Juridicidade, Coimbra: Almedina, 2003, especialmente, pp. 147 e ss.
SÉRVULO CORREIRA, José Manuel, Noções de Direito Administrativo I, Lis-
boa: Editora Danúbio, 1982, especialmente, pp. 78 a 124 e 227 a 256
SOARES, Rogério, «Princípio da Legalidade e Administração Constitutiva»,
in Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, LVII, 1981, pp. 169 e ss.
VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos, «O Ordenamento Jurídico Adminis-
trativo Português», in Contencioso Administrativo, Braga: Livraria Cruz, 1986, pp. 33
e ss.

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Parte I – A Administração e o Direito

BIBLIOGRAFIA ESTRANGEIRA ESPECÍFICA

GONZÁLEZ PÉREZ, Jesús, «El método en Derecho Administrativo», in Re-


vista de Administración Pública, n.º 22, INAP, 1998, especialmente, pp. 56 a 62
GONZÁLEZ PÉREZ, Jesús, Manual de Procedimiento Administrativo, Madrid:
Civitas Ediciones, 2000, especialmente pp. 81 a 90
ROMANO-TASSONE, António, «Las fuentes del Derecho Administrativo»,
in Revista de Documentación Administrativa, n.º 248-249, INAP, 1997, pp. 143-172

OUTRA BIBLIOGRAFIA

OLIVEIRA, Fernanda Paula/FIGUEIREDO DIAS, J. Eduardo, Noções Funda-


mentais de Direito Administrativo, 5.ª ed., Coimbra: Almedina, 2018, especialmente,
pp. 123 a 137
SOUSA, António Francisco de, Administração Pública e Direito Administrativo:
novos paradigmas, Porto: Vida Económica, 2016, especialmente, pp. 93 a 145
VILHENA DE FREITAS, Lourenço, Direito do Procedimento Administrativo e
Formas de Atuação da Administração – Parte Geral, Lisboa: AAFDL Editora, 2016, es-
pecialmente, pp. 27 a 67

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Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

0. Introdução

Depois do estudo do surgimento do Direito Administrativo e depois


de conhecida a Organização Administrativa Portuguesa, cumpre agora es-
tudar a atividade administrativa e o exercício do poder administrativo.
Com toda a certeza, os regulamentos, os atos administrativos e os contra-
tos administrativos são formas de exercício do poder administrativo de
que já ouviram falar.
Mas, para bem enquadrar a atividade administrativa, que não se es-
gota, aliás, nos regulamentos, atos e contratos administrativos, importa ter
em particular atenção o princípio da legalidade que domina toda a ativi-
dade da Administração Pública.
Como sabemos, a Administração Pública (AP) existe para proceder
à realização do interesse público. O n.º 1 do artigo 266.º da CRP afirma que
esta «visa a prossecução do interesse público, no respeito pelos direitos e
interesses legalmente protegidos dos cidadãos».
E, como já tivemos oportunidade de estudar no início do I semestre,
por interesse público devemos entender as «necessidades sociais, de natu-
reza material ou espiritual, cuja satisfação se considera relevante para a co-
munidade em termos de dever ser assegurada, em maior ou menor grau,
através de meios públicos, normativos e práticos».
É certo que, na senda de ROGÉRIO SOARES e VIEIRA DE ANDRA-
DE, a noção de interesse público integra um duplo sentido que cumpre
distinguir:
a) O interesse público primário: que é «o interesse público por exce-
lência, o bem comum que constitui a raiz ou a alma de uma sociedade po-
lítica, englobando os fins primordiais que caracterizam o Estado»; é o «in-
teresse público por natureza, a salus publica, que se pode exprimir sinteti-
camente na composição de necessidades do grupo para a realização da Paz
social segundo uma ideia de Justiça».
b) O interesse público secundário: que corresponde àquelas neces-
sidades coletivas que as autoridades vão, em maior ou menor medida, sa-
tisfazer através de meios institucionais e materiais próprios, a fim de reali-
zarem aqueles que são os objetivos fundamentais da comunidade polí-

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Parte I – A Administração e o Direito

tica»; («surgem em relação ao interesse público primário, como interesses


instrumentais» e não se referem necessariamente ao conjunto da socieda-
de global, podendo dizer respeito apenas a partes dela, um município, por
exemplo)1.
Enfim, como se percebe, as autoridades administrativas não podem
prosseguir uma qualquer finalidade. Antes pelo contrário, elas podem
apenas prosseguir a finalidade determinada pela Constituição ou pela lei.
E esta será sempre uma finalidade de interesse público (mesmo no uso de
poderes discricionários).
De resto, a definição do interesse público a prosseguir cabe sempre
ao legislador e não à Administração Pública. A AP está, pois, sempre colo-
cada perante um interesse público heteronomamente definido, não po-
dendo recusar-se a prosseguir os fins que lhe forem impostos.
Como já tivemos oportunidade de estudar durante o primeiro se-
mestre, este princípio, que marca o Estado de Direito, tem a sua origem no
Estado liberal. Ele vem colocar a AP, até então dependente da vontade do
príncipe (do monarca soberano), sob a vontade (ou sob o império) da lei
ou do Direito. Que Direito?

1. Fontes de Direito Administrativo: que sentido?

Para que possamos compreender os moldes da atividade da AP, im-


porta, antes de mais, conhecer as fontes do Direito Administrativo. Mas,
afinal, o que são fontes de direito e, designadamente, fontes de direito
administrativo?
Etimologicamente, e em sentido formal ou imediato, configuram o
manancial de preceitos de onde surge o Direito (Administrativo), possuin-
do natureza constitutiva ou criadora, na medida em que transformam o
direito natural em direito positivo; criam normas jurídicas; regulam a vida
em sociedade; e conformam o ordenamento jurídico2.

1 A propósito de interesse público, vd. J. C. VIEIRA DE ANDRADE, «Interesse Pú-

blico», in DJAP, vol. V, pp. 275 e ss.


2 Cfr. J. GONZÁLEZ PÉREZ, «El método en Derecho Administrativo”, in Revista de

Administración Pública, n.º 22, 1998, pp. 56-57.

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Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

Em sentido material ou mediato, as fontes de Direito Administrativo


traduzem-se no “sistema de normas que regula a organização e disciplina a ativi-
dade da Administração Pública”3. É precisamente neste último sentido, de
fontes jurídicas que orientam, vinculam e influenciam a Administração Pú-
blica, que nos iremos debruçar subsequentemente.
E, se é certo que a teoria das fontes recorre tanto ao Direito Consti-
tucional como a princípios e normas comuns a todo o Direito, em rigor, o
Direito Administrativo, possuidor de singulares características, não se
compadece com a aplicação à sua organização e atividade de uma qual-
quer norma. Por outras palavras, a Administração Pública encontra-se su-
jeita a normas jurídicas gerais, que a vinculam na exata medida em que se
aplicam e vinculam os demais indivíduos ou cidadãos, mas encontra-se
igualmente sujeita a regras e normas especiais, incluindo as por si criadas,
que não se aplicam aos demais indivíduos.
Nesse sentido, poderemos distinguir entre as fontes para a Adminis-
tração e as fontes da Administração. Exemplo das primeiras são as normas
constitucionais ou a lei da Assembleia da República; exemplo das segun-
das, os regulamentos administrativos.
O elenco das fontes, e a sua maior ou menor dilatação, sempre de-
penderá da conceção política vigente num dado ordenamento jurídico e
num dado momento histórico.

2. A questão da hierarquia das fontes

Hierarquizar as fontes do direito administrativo significa, no essen-


cial, estabelecer uma ordem de aplicabilidade das normas jurídicas ao caso
concreto, o que necessariamente implicará avançar com um critério que
permita pôr termo a um conflito que tenha por base a contradição entre
duas ou mais normas jurídicas, entre duas ou mais fontes de Direito.

3 J.C. VIEIRA DE ANDRADE, «O Ordenamento Jurídico Administrativo Português»,

in Contencioso Administrativo, Braga, 1986, pp. 33 e ss.

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Parte I – A Administração e o Direito

Os critérios de hierarquização das fontes são, sobretudo, dois: (1)


critério da primazia do direito escrito e (2) critério da hierarquia do órgão
de onde provém.
Em ordem ao primeiro critério, as fontes escritas assumirão um lu-
gar principal, ao passo que as fontes não escritas um papel secundário ou
subsidiário. Assim, a lei formal, enquanto fonte escrita de Direito, prevale-
cerá, por exemplo, sobre os costumes, pelo que, no caso de se verificar uma
situação de costume contra legem, deve aquela prevalecer e este ser afas-
tado.
Quanto ao segundo critério, é o próprio grau de hierarquia do órgão
de onde provém a norma jurídica que determina a posição hierárquica des-
ta. Assim, uma norma constitucional assumirá um grau hierárquico mais
elevado em relação a uma normal legal ordinária. Sucedendo uma contra-
dição entre ambas, a norma constitucional prevalecerá em detrimento da
norma legal ordinária (por exemplo: a lei X é declarada inconstitucional
por violar o disposto no artigo Y da CRP). Mas, mesmo dentro da esfera
da Administração Pública, as normas não dispõem todas do mesmo valor
hierárquico, pelo que o maior ou menor valor formal de uma e outra nor-
ma dependerá da relação hierárquica existente entre os órgãos envolvidos.
Pense-se, por exemplo, na primazia de um Regulamento do Governo face
a um Regulamento de uma Direção Regional contraditório com aquele.
Não obstante a importância dos critérios explanados, importa, à luz
dos desafios da ciência jurídica e, em especial, da ciência jurídica adminis-
trativa, alertar para a necessidade da criação e efetivação de condições mí-
nimas que assegurem a fluidez e certeza jurídica desejáveis. Destarte, não
pode, pois, trabalhar-se o tema das fontes de Direito numa perspetiva iso-
lada e desarticulada, mas antes numa ótica de sistema, isto é, de reconheci-
mento da diversidade das fontes e da sua polifuncionalidade, assim como
da permeabilidade a novas fontes.

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Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

3. As principais fontes do Direito Administrativo no ordenamento


jurídico português

a) A Constituição da República Portuguesa de 1976. Esta assume-


-se como a primeira das fontes do Direito Administrativo, contendo os
princípios informadores do ordenamento jurídico, bem como as suas nor-
mas fundamentais (GONZÁLEZ PÉREZ). Para além de postular diversos
preceitos relativos à organização administrativa, nomeadamente, respei-
tantes ao Governo, às Regiões Autónomas e às Autarquias Locais, a Cons-
tituição dedica um título completo à Administração Pública (Título IX –
arts. 266.º a 272.º). E é precisamente este título que nos interessa convocar,
enquanto fonte da atividade administrativa, na medida em que, simulta-
neamente, impõe regras específicas que orientarão o agir administrativo e
salvaguarda os direitos e garantias dos administrados. Postula, no fundo,
as coordenadas essenciais da atividade (procedimental) administrativa.
Assim, o primeiro artigo (266.º) tem por epígrafe «princípios funda-
mentais»: o n.º 1 dispõe que a AP visa a prossecução do interesse público,
no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos,
e o n.º 2 consagra que os órgãos e agentes administrativos estão subordi-
nados à Constituição e à lei e devem atuar, no exercício das suas funções,
com respeito pelos princípios da igualdade, da proporcionalidade, da jus-
tiça, da imparcialidade e da boa-fé.
Depois, o art. 268.º versa sobre os direitos e garantias dos adminis-
trados: direito à informação procedimental; direito à informação extra pro-
cedimental, direito à notificação e fundamentação de atos lesivos, direito
de acesso aos tribunais para proteção contra a atuação ilegal da AP.

b) Os princípios gerais de direito (ou princípios fundamentais) e


os princípios gerais de direito administrativo. Ancorados na distinção le-
vada a cabo por AFONSO QUEIRÓ, os primeiros traduzem-se em precei-
tos ou máximas inerentes ao Estado de Direito e, por isso, princípios que o
jurista não só não pode ignorar como deve ter sempre presentes. Contam-
-se entre eles o respeito pelos direitos fundamentais da pessoa humana, a
proibição do arbítrio, a proibição do excesso, a proteção da boa-fé, a não

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Parte I – A Administração e o Direito

retroatividade das leis de incriminação e de punição, o princípio do direito


de defesa, entre outros. Os princípios gerais do Direito possuem uma fun-
ção de fundamentação, orientação, de integração e de interpretação do or-
denamento jurídico. Assim, uma norma procedimental que contradiga um
princípio geral de Direito não é uma norma legítima (ex. norma procedi-
mental que não permita o direito de defesa ou do contraditório). Da mesma
forma, como instrumento de integração, os princípios gerais assumem um
papel preponderante nos casos em que exista um vazio legal. Ainda, serão
os princípios gerais de Direito a permitir a interligação e movimentação
dos e entre os vários níveis que constituem o sistema de direito (ordena-
mento jurídico nacional, ordenamento jurídico europeu e ordenamento ju-
rídico internacional).
No que se refere aos princípios gerais de direito administrativo, já
não sendo princípios que resultam imediatamente da ideia de Direito co-
mo os anteriores, mas mediatamente, constituem concretizações dos princí-
pios jurídicos fundamentais num determinado momento, podendo ser alte-
rados, desde que não firam aqueles princípios fundamentais.
Vejamos com maior atenção os princípios gerais da atividade admi-
nistrativa, postulados no CPA:

1. Princípio da legalidade (art. 3.º do CPA)

Este princípio assume-se como peça essencial do Estado de Direito


(ROGÉRIO SOARES). Com a conceção liberal, em íntima conexão com o
princípio da separação de poderes, exprime-se o império da lei, decom-
posto essencialmente em dois principais subprincípios: princípio do pri-
mado da lei e princípio da reserva de lei.
Possuindo uma vertente negativa, o princípio do primado da lei
impunha a estrita submissão da Administração às normas legais. Extrava-
sando os seus limites, os atos administrativos padeceriam de invalidade
por ofensa à primazia hierárquica da lei. A lei assumia-se, neste sentido,
como limite da atuação administrativa. É, aqui, pertinente a interrogação
lançada por ROGÉRIO SOARES: «(…) até onde está a Administração obri-
gada a funcionar como execução da lei, até onde a sua atividade supõe ne-

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Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

cessariamente uma lei que forneça a medida e o conteúdo dos seus atos
concretos. (…) Até onde está a Administração autorizada a afirmar-se co-
mo um poder independente?»4.
Face à escassez de leis existentes, o que conduzia à parca subordina-
ção da Administração ao Direito e à necessidade de traçar as linhas fron-
teiriças entre a lei e a Administração, emerge um segundo subprincípio: a
reserva de lei.
Este princípio expressa-se em três vertentes (ROGÉRIO SOARES e
VIEIRA DE ANDRADE):
i. Orgânico-formal – revelando que a função legislativa, isto é, o
poder de fazer leis, compete em exclusivo ao Parlamento;
ii. Funcional – a função legislativa é uma função específica, cujos
limites são esboçados pela lei do Parlamento (lei como criação de direito);
iii. Material – a lei entende-se como as normas jurídicas que exclusi-
vamente se referiam à esfera da liberdade e da propriedade dos cidadãos.
Neste sentido, não existindo uma lei vinculativa da atuação da Ad-
ministração, a sua atuação configurava-se livre, entendendo-se o poder
discricionário como um poder originário da Administração, que não podia
ser objeto de controlo pelos tribunais.

O quadro concetual esboçado altera-se profunda e gradualmente


nos finais do século XIX e, sobretudo, na segunda metade do século XX,
em muito propulsionado pelas Guerras Mundiais e por todas as metamor-
foses sentidas na vida social e económica, assim como pelo alargamento
da esfera de atuação da Administração e das novas e diversificadas rela-
ções entre a Administração e o Direito.
O Direito deixa de se identificar estrita e exclusivamente com a lei,
passando a relevar-se juridicamente outras fontes, como a Constituição, os
princípios gerais e o Direito Internacional. O que com isto se quer dizer é
que, face ao novo paradigma, o Direito é também lei, mas não somente
lei. A lei deixa de se vislumbrar como limite da atuação administrativa
para passar a ser encarada como pressuposto e fundamento dela. Subs-

4 In «Princípio da Legalidade e Administração Constitutiva», cit., p. 172.

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Parte I – A Administração e o Direito

tituiu-se, assim, o princípio da legalidade por um princípio da juridici-


dade, isto é, de subordinação da Administração à Lei e ao Direito [«os ór-
gãos da Administração Pública devem atuar em obediência à lei e ao direito (…)»],
ou, na expressão de VIEIRA DE ANDRADE, a um bloco de juridicidade.
Vejamos, portanto, os novos contornos do princípio da legalidade,
ou melhor, os contornos do princípio da juridicidade, onde a legalidade
se insere. A juridicidade impõe, assim, uma releitura aos subprincípios tra-
dicionais.
i. Primado da lei – a lei continua a assumir uma dimensão negati-
va, na medida em que assume primazia normativa em relação aos atos da
Administração.
ii. Precedência da lei – acaba por temperar o princípio do primado
da lei stricto sensu, funcionando a lei como pressuposto e fundamento da
atividade administrativa. É, portanto, a lei que determina os interesses pú-
blicos específicos a satisfazer pela administração (fim), assim como, tal co-
mo já explanado aquando do estudo da organização administrativa, os ór-
gãos encarregues da prossecução desse fim (competência). Assim, a parte
final do art. 3.º, n.º 1, do CPA estabelece: «(…) dentro dos limites dos poderes
que lhes forem atribuídos e em conformidade com os respetivos fins».
iii. Reserva de lei – deixa de fazer sentido apelar à tripla dimensão
tradicional, em virtude de atualmente não só o Parlamento como também
o Governo ter competência legislativa (alargamento da reserva orgânica);
do mesmo modo, a lei não se limita apenas às questões da liberdade e pro-
priedade dos cidadãos (alargamento da reserva material); a reserva funcio-
nal foi igualmente alvo de um alargamento, visto que o Direito não se iden-
tifica atualmente apenas com a lei. Contudo, continua a vigorar no nosso
ordenamento jurídico um princípio de reserva, mas sobretudo na ótica de
reserva da função legislativa (VIEIRA DE ANDRADE), isto é, de repartição
dos poderes legislativos entre a Assembleia da República e o Governo, de-
finida pela Constituição (reserva relativa ou reserva absoluta – arts. 164.º e
165.º da CRP).

-20-
Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

Em suma, toda a atividade administrativa encontra-se atualmente


subordinada a todo o Direito. É precisamente em ordem a este princípio,
de vinculação da Administração (também) à lei e a todo o bloco jurídico,
incluindo aos princípios gerais de direito, que o legislador postulou os de-
mais princípios gerais da atividade administrativa: é a ideia de Direito que
submete a Administração aos princípios, princípios esses que não podem
ser entendidos isoladamente, mas em “bloco” ou sistema, só assim se as-
segurando a ideia de juridicidade, isto é, de conformidade ao Direito, a
todo o Direito.

2. Princípio da prossecução do interesse público e proteção dos direitos e in-


teresses dos cidadãos (art. 4.º do CPA)

Trata-se, no fundo, de um princípio-quadro (VIEIRA DE ANDRA-


DE), estabelecido pelo legislador constituinte no art. 266.º, n.º 1, da CRP. O
interesse público que vincula a atividade administrativa (interesse público
secundário) é aquele definido pela lei. Ora, neste mesmo sentido, pode-
mos afirmar que o princípio da prossecução do interesse público é um
princípio estático, visto que não antecede o princípio da legalidade, mas
antes dele decorre. Contudo, revela-se também um princípio com uma
componente dinâmica, na medida em que se assume como elemento de
aferição dos atos administrativos e de fundamento à aplicação de sanções
subjetivas ao agente administrativo que, no exercício das suas funções, não
age na prossecução do interesse público. Ainda, pode funcionar como li-
mite à pretensão reclamada pelos administrados.
A proteção dos direitos e interesses dos cidadãos é expressão das
tendências subjetivas do modelo administrativo europeu, impondo a mai-
oria dos princípios subsequentes.

3. Princípio da boa administração (art. 5.º do CPA)

A boa administração apresenta-se como um corolário da prossecu-


ção do interesse público, ou, por outras palavras, das coordenadas que a
Administração deve ter em conta para prosseguir do interesse público.

-21-
Parte I – A Administração e o Direito

Não basta, pois, administrar, é necessário que se administre da melhor


forma possível.
Desde logo, a eficiência administrativa implica, do ponto de vista
jurídico, «um juízo valorativo sobre as atuações jurídico-públicas quanto à
relação entre os efeitos destas e os objetos pré-definidos que as mesmas
visam alcançar (…)»5. Consagrado, nos artigos 267.º, n.º 5, da CRP e 5.º do
CPA, tal princípio aventa-se crucial ao processo decisório, pelo qual a Ad-
ministração se encontra condicionada à escolha de uma solução, em detri-
mento das demais, tendo sempre em vista a satisfação dos interesses pú-
blicos, por forma a evitar lesões para os bens jurídicos em questão. Em su-
ma, o princípio da eficiência deve funcionar mais como do que quantum, na
medida em não importa fazer muito, antes fazer bem.
Postula ainda o CPA que, para que haja lugar a boa administração,
a atividade administrativa deve também pautar-se pela economicidade e
celeridade. Deve, contudo, dizer-se que a redação deste princípio, tal como
se encontra no CPA, não é de todo clara e a mais feliz. Da nossa parte,
reconhecendo que a atuação administrativa não pode olvidar a vital neces-
sidade dos meios financeiros para a sua prossecução e desenvolvimento e
que a crise económica tenha empurrado a Administração a adotar uma
perspetiva de máxima rentabilização económica, diremos que o exercício
das funções públicas encontra-se sempre vinculado à satisfação do interes-
se público e, por isso mesmo, a atividade administrativa não pode ser es-
cravizada em ordem a ideias de pura economicidade. Com isto se quer di-
zer que a crise económica acabou também por reclamar uma atuação axio-
lógica e ponderada dos poderes públicos, preterindo uma visão pura e
imediata da maximização de resultados, antagónica à própria natureza e
aos valores da função administrativa.

5 Sobre o tema, FILIPA URBANO CALVÃO, «O Princípio da eficiência», in Revista da

Faculdade de Direito da Universidade do Porto, 2010, p. 330.

-22-
Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

4. Princípio da igualdade (art. 6.º do CPA)

No novo CPA, este princípio encontra-se autonomizado do princí-


pio da proporcionalidade. Traduz-se, no essencial, numa proibição de dis-
criminação, mas também numa obrigação de diferenciação, isto é, a Admi-
nistração deve assegurar um tratamento igual para situações substancial-
mente iguais, mas deve também tratar situações substancialmente diferen-
tes de modo diferente.
Assim, a Administração fica constituída no dever de corrigir ou re-
vogar os atos que potenciem desigualdades, sem que haja uma razão obje-
tiva para tal, assim como na necessidade de garantir uma equidade na re-
partição dos encargos que decorram da sua atuação ou, ainda, na obriga-
ção de compensar o sacrifício imposto a um administrado em detrimento
dos demais (exemplo: ato de expropriação por utilidade pública > reposi-
ção da igualdade mediante uma justa indemnização).
No que diz respeito à atividade discricionária, o princípio da igual-
dade incrementa a redução da margem de discricionariedade administra-
tiva, uma vez que permite uma maior ampliação do controlo jurisdicional.

5. Princípio da proporcionalidade (art. 7.º do CPA)

Revela-se numa tripla dimensão: adequação, necessidade e propor-


cionalidade em sentido estrito. A atuação administrativa deve, portanto,
ser apta a atingir os fins que se visa prosseguir (n.º 1) e levada a cabo pelos
meios necessários e indispensáveis, isto é, de entre as opções disponíveis,
que se opte por aquela menos onerosa (aquela que consubstancie o mínimo
de interferência possível na esfera dos direitos e interesses dos particulares
– n.º 2).
Quanto ao juízo de proporcionalidade stricto sensu, este deve ser o
mais objetivo e fundamentado possível, impondo um juízo de ponderação
entre os diversos benefícios e encargos presentes.
O princípio da proporcionalidade possui uma componente dinâmi-
ca, relacionada com a alteração das circunstâncias. Imagine-se um ato que
respeita todos os requisitos da proporcionalidade, mas que, supervenien-

-23-
Parte I – A Administração e o Direito

temente, por força das alterações das circunstâncias concretas, se revela


inadequado ou desajustado. Nestes casos, o princípio da proporcionalida-
de impõe uma revisão do ato administrativo.
O legislador apenas se refere aos atos que colidam com direitos sub-
jetivos ou interesses legalmente protegidos, no entanto, alguns autores
consideram que o princípio da proporcionalidade se aplica a quaisquer
atos concretos da Administração, contendam ou não com direitos subjeti-
vos (SÉRVULO CORREIA).
É precisamente em ordem ao bloco de juridicidade, ou sistema de
princípios, que se deve entender este princípio. Como tal, o juízo de pro-
porcionalidade deve incidir não apenas em relação a atos que contendam
com direitos subjetivos ou interesses legítimos, mas em relação a quaisquer
atos da administração, por força do próprio princípio da prossecução do
interesse público ou, ainda, do princípio da boa administração.

6. Princípio da justiça e razoabilidade (art. 8.º do CPA)

Aventa-se como uma das principais novidades introduzidas pela re-


visão de 2015 ao CPA.
Na verdade, trata-se de dois princípios: princípio da justiça e prin-
cípio da razoabilidade. No que concerne à justiça, trata-se sobretudo da
«ideia de direito», isto é, dos valores nucleares do ordenamento jurídico,
pelo que dificilmente se pode assumir como um princípio autónomo, na
medida em que o ordenamento jurídico se compõe, precisamente, por va-
lores, por princípios possuidores de conexão e interligações. No fundo, a
ideia de justiça é a da proibição do arbítrio.
No que diz respeito ao princípio da razoabilidade, constitui um limi-
te à atividade discricionária da Administração6. No fundo, este princípio
assume-se como dilator dos princípios da legalidade e da proporcionali-
dade.

Para maiores desenvolvimentos, vd. SUZANA TAVARES DA SILVA, «O princípio


6

da razoabilidade», in Comentários ao Novo Código do Procedimento Administrativo, Lisboa:


AAFDL, 2016, pp. 207 e ss.

-24-
Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

7. Princípio da imparcialidade (art. 9.º do CPA)

Este é um princípio fundamental nas relações jurídico-administrati-


vas. Postula uma conduta positiva e negativa da Administração, na medi-
da em que lhe impõe que considere com objetividade todos os interesses
em presença (públicos e privados) e se abstenha de praticar atos descon-
formes com esses mesmos interesses ou que não se assumam indispensá-
veis para o procedimento decisório. Dessa forma, impõe a reponderação
de interesses supervenientes em virtude de uma alteração das circunstân-
cias que se afigure relevante.
Decorre também do princípio da imparcialidade a própria imparcia-
lidade do agente ou decisor administrativo, evocando-se aqui a valoriza-
ção dos impedimentos absolutos ou relativos dos mesmos em certos pro-
cedimentos administrativos (vd. arts. 69.º a 76.º do CPA).

8. Princípio da boa-fé (art. 10.º do CPA)

A boa-fé é um corolário da proteção da confiança legítima e da se-


gurança jurídica. Vislumbra-se no quadro das relações entre a Administra-
ção e o particular, com maior expressão em matéria contratual, despole-
tando, entre outros, a proibição da retroatividade, a necessidade de clareza
das normas jurídicas e o respeito pela contraparte e o dever de lealdade.

Outros princípios:

1. Princípio da colaboração com os particulares (art. 11.º do CPA);


2. Princípio da participação (art. 12.º do CPA);
3. Princípio da decisão (art. 13.º do CPA);
4. Princípio da gratuitidade (art. 15.º do CPA);
5. Princípio da responsabilidade (art. 16.º do CPA);
6. Princípio da administração aberta (art. 17.º do CPA);
7. Princípio da proteção dos dados pessoais (art. 18.º do CPA);
8. Princípio da cooperação leal com a União Europeia (art. 19.º do
CPA).

-25-
Parte I – A Administração e o Direito

c) O Direito Internacional Público e o Direito da União Europeia.


As relações jurídico-administrativas extravasam, cada vez mais e em maior
intensidade, as fronteiras do ordenamento jurídico interno, pelo que, nesse
múltiplo quadro de relações entre a Administração Pública e as organiza-
ções internacionais, o Direito Internacional Público assume um importante
papel enquanto fonte de Direito Administrativo.
No nosso ordenamento jurídico, têm aplicação as convenções inter-
nacionais (entre elas, os tratados que instituem a União Europeia), por efei-
to da solução acolhida na CRP da receção plena do Direito Internacional.
Preceitua o art. 8.º, n.º 1, da CRP que «as normas e os princípios de
direito internacional geral ou comum fazem parte integrante do direito
português» e, como tal, não existe necessidade de transposição para a or-
dem jurídica interna; o n.º 2 postula que «as normas constantes de conven-
ções internacionais regularmente ratificadas ou aprovadas vigoram na or-
dem interna, após a sua publicação oficial e enquanto vincularem interna-
cionalmente o Estado português».
E, ainda, o n.º 3: «as normas emanadas dos órgãos competentes das
organizações internacionais de que Portugal seja parte vigoram direta-
mente na ordem interna, desde que tal se encontre estabelecido nos respe-
tivos tratados constitutivos».
Verifica-se, portanto, que os órgãos da Administração Pública Por-
tuguesa aplicam, na sua atividade, Direito Internacional Público, tal sig-
nificando que a Administração Pública tem de conhecer as regras deste.
Inexistindo uma disposição clara acerca da aplicabilidade direta das con-
venções do Direito Internacional Público, deve proceder-se a uma análise,
a partir das normas, do fim, da clareza e da determinação concreta do Tra-
tado, que permita concluir pela sua aplicação direta. No fundo, «deve-se
partir da sua aplicação direta, quando todo o tratado ou convenção apre-
sentar as qualidades que a lei interna deve ter, segundo o direito interno,
para autorizar e obrigar diretamente» 7.

7 ANTÓNIO FRANSCISCO DE SOUSA, Administração Pública e Direito Administra-

tivo: novos paradigmas, cit., p. 115.

-26-
Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

Face a eventuais contradições, sobretudo no que respeita a contra-


dições do Direito Interno com o Direito Internacional Público convencio-
nal, deve proceder-se a uma interpretação conforme ao Direito Internaci-
onal Público. É, aliás, o que resulta, por exemplo, do art. 16.º, n.º 2, da CRP:
«os preceitos constitucionais e legais relativos aos direitos fundamentais
devem ser interpretados e integrados de harmonia com a Declaração Uni-
versal dos Direitos do Homem».
Preceitua também o art. 8.º, n.º 4, da CRP que «as disposições dos
tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas ins-
tituições, no exercício das respetivas competências, são aplicadas na ordem
interna, nos termos definidos no direito da União, com respeito pelos prin-
cípios fundamentais do Estado de direito democrático». O direito da União
Europeia assume um elevado grau de relevância que, até certo ponto, se
pode considerar “sufocante” no Direito Administrativo português, sobre-
tudo no que concerne ao direito comunitário derivado. Este manifesta-se
não só através de regulamentos comunitários, que são de aplicação direta em
cada Estado-Membro, como através de diretivas (cada vez mais abundan-
tes em diversas matérias administrativas, como sejam o domínio ambiental
e o da contratação pública), que não tendo, por regra, efeito direto, obri-
gam o Estado-Membro a conformar dentro de certo prazo a sua legislação
com o conteúdo dessas diretivas (aplicação conforme).
Em suma, a Administração Pública Portuguesa – e, aliás, a dos de-
mais Estados-Membros – encontra-se subordinada aos princípios do Direi-
to da União Europeia. Assim, o princípio da interpretação conforme im-
põe, tanto à Administração como ao juiz, o dever de aplicar o Direito nacio-
nal em sentido compatível com as disposições europeias. Em caso de Di-
reito nacional incompatível com o Direito da União, por força desse prin-
cípio, e sobretudo do princípio do primado do Direito da União, deve
desaplicar-se o Direito nacional, impondo-se aos Estados-Membros a obri-
gação de respeitarem o Direito da União Europeia. Da mesma forma, o

-27-
Parte I – A Administração e o Direito

princípio da efetividade do Direito da União impõe que os Estados-Mem-


bros assegurem o efeito útil das disposições europeias 8.
Pelo breve percurso trilhado, se compreende que possamos hoje
afirmar uma cada vez mais permeabilidade do ordenamento jurídico na-
cional a fontes normativas externas, conduzindo à perda do monopólio le-
gislativo estatal, ao mesmo tempo que rasga caminho para um sistema plu-
ral e internacional (ou supranacional) de fontes do Direito Administrativo.

a. A Lei Formal
Muito embora, tal como anteriormente destacado, tenha perdido a
sua omnipotência, a lei formal não deixa de se configurar como uma das
mais importantes fontes de Direito Administrativo, encontrando na legiti-
mação democrática a base da sua essência e fundamentação.
Não obstante já termos tecido considerações sobre o princípio da le-
galidade, a Lei Formal, enquanto fonte de Direito Administrativo, corpo-
riza, portanto, um ato jurídico, isto é, uma manifestação de vontade ten-
dente à produção de um efeito jurídico. Desse modo, as normas possuem
valor de lei formal em virtude da sua capacidade de inovação e resistên-
cia face a outras normas derivadas, bem como pela subordinação ao juízo
constitucional (ROMANO-TASSONE).
E se, no passado, a lei do Parlamento era a única expressão do poder
normativo-legislativo, hoje é perfeitamente aceitável que outros atos nor-
mativos se encontrem igualmente dotados de força de lei. Aliás, no nosso
ordenamento jurídico, tal é claramente notório, pois possuem valor ou for-
ça de Lei Formal tanto as leis da Assembleia da República como os decre-
tos-lei do Governo e os decretos legislativos regionais9.

8 Para um maior aprofundamento sobre estes princípios, vd. ALESSANDRA SILVEI-

RA, Princípios de Direito da União Europeia, 2.ª ed., Quid Juris, 2011.
9 Para um desenvolvimento mais aprofundado, vd. JORGE MIRANDA, Atos Legisla-

tivos, Coimbra: Almedina, 2019.

-28-
Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

Em síntese, poder-se-á definir a Lei Formal, enquanto fonte de Di-


reito Administrativo, como as normas jurídicas, revestidas de generali-
dade e obrigatoriedade, emanadas pelos órgãos aos quais o ordenamento
jurídico atribui poder legislativo (no caso português, à Assembleia da Re-
pública, ao Governo e às Assembleias Legislativas das Regiões Autónomas
dos Açores e da Madeira).
Enquanto fonte de Direito, a Lei Formal desempenha face à Admi-
nistração Pública diversas funções, entre as quais a de legitimação, dire-
ção e limitação do seu agir (cfr. arts. 266.º, n.º 2, da CRP e 3.º, n.º 1, do CPA).

b. Os Regulamentos
Por um lado, são fontes de Direito, mas, ao mesmo tempo, são uma
das principais manifestações da atividade da AP (ainda que, uma vez publica-
dos, sujeitem a AP e é nesse aspeto que são fontes de Direito).
Dada a sua extrema importância, será objeto de uma análise autóno-
ma, na Parte II do presente Manual.

-29-
Parte I – A Administração e o Direito

PARTE I – A ADMINISTRAÇÃO E O DIREITO

CONTORNOS DA NOVA CONFIGURAÇÃO


DO DIREITO ADMINISTRATIVO

AULA N.º 2

Sumário: 1. A crise do Estado e a emergência do Direito Administrativo Eu-


ropeu e de novas formas de atuação administrativa; 2. O salto para outro nível – O
fenómeno da globalização do Direito: as manifestações do Direito Administrativo
global; 3. As relações entre o Direito Administrativo e o Direito Privado.

BIBLIOGRAFIA DE BASE

FREITAS DO AMARAL, Diogo, Curso de Direito Administrativo, Vol. II, 4.ª


ed., Coimbra: Almedina, 2018, pp. 29 e ss.
VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos, Lições de Direito Administrativo, 5.ª ed.,
Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2017, especialmente, pp. 83 a 90

BIBLIOGRAFIA ESPECÍFICA

CASSESSE, Sabino, «La Globalizzazione Amministrativa», in Revista de Di-


reito Administrativo, n.º 3 (janeiro-abril), Lisboa: AAFDL, 2019, pp. 65 a 69
COLAÇO ANTUNES, Luís Filipe, A Ciência Jurídica Administrativa – Noções
fundamentais, 3.ª reimpressão, Coimbra: Almedina, 2016, especialmente, pp. 25 a 5;
149 a 200 e 223 a 260
_____, O Direito Administrativo sem Estado – Crise ou fim de um paradigma?,
Coimbra: Coimbra Editora, 2008
ESTORNINHO, Maria João, A Fuga para o Direito Privado – Contributo para o
estudo da atividade de direito privado da Administração Pública, Coimbra: Almedina,
1999
GARDELLA, M. Mercè, «El Derecho Administrativo Global. Un Nuevo
Concepto Clave del Derecho Administrativo?» in Revista de Administración Pública,
n.º 199 (janeiro-abril), Madrid: INAP, 2016, pp. 11-50

-30-
Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

OLIVEIRA, Fernanda Paula/FIGUEIREDO DIAS, J. Eduardo, Noções Funda-


mentais de Direito Administrativo, 5.ª ed., Coimbra: Almedina, 2018, especialmente,
pp. 115 a 136
QUADROS, Fausto de, A nova dimensão do Direito Administrativo, Coimbra:
Almedina, 2011
TAVARES DA SILVA, Suzana, Um novo direito administrativo?, Imprensa da
Universidade de Coimbra, 2010

BIBLIOGRAFIA ESPECÍFICA COMPLEMENTAR

GONÇALVES, Pedro, Entidades privadas com poderes públicos, Coimbra: Al-


medina, 2005
MOSTACCI, Edmondo, La soft law nel sistema delle fonti: uno studio comparato,
CEDAM, 2008
OTERO, Paulo, «Coordenadas jurídicas da privatização da Administração
Pública», in Os Caminhos da privatização da Administração Pública, Studia Iuridica, n.º
60, Coimbra Editora, 2001, pp. 31 e ss.
_____, Manual de Direito Administrativo, Vol. I, Coimbra: Almedina, 2013, es-
pecialmente, pp. 409 a 538
SARMIENTO, Daniel, «La autoridade del Derecho y la natureza del soft
law», in Cuadernos de Derecho Público, n.º 28 (mayo-agosto), INAP, 2006, pp. 221 a
266
SOUSA, António Francisco de, Administração Pública e Direito Administrativo:
novos paradigmas, Vida Económica, Porto, 2016
TERRINHA, Luís Heleno, O Direito Administrativo na Sociedade. Função, pres-
tação e reflexão do sistema jurídico-administrativo, Porto: Universidade Católica Edi-
tora, 2017

-31-
Parte I – A Administração e o Direito

1. A crise do Estado e a emergência do Direito Administrativo Eu-


ropeu e de novas formas de atuação administrativa

O Direito Administrativo com que hoje nos deparamos não é certa-


mente aquele que se afirmava no século XIX, aquando da hegemonia dos
Estados soberanos. Mais do que as patologias ecómicas e financeiras, os fe-
nómenos associados à crise vieram colocar em causa a identidade dos Esta-
dos e, por consequência, acentuar a desconstrução do direito administra-
tivo. Utilizando a feliz expressão de COLAÇO ANTUNES, «o Estado já
não é a única ou mesmo a principal articulação ou referência do direito ad-
ministrativo (…)»10. Os efeitos da crise, acentuando o progressivo esvazia-
mento dos poderes do Estado, colocam em igual evidência a sintomática
patológica da atividade administrativa, cada vez menos homogénea. Um
dos seus principais sintomas é precisamente o recurso excessivo às formas
jurídico-privadas de organização e atuação, conduzindo a um novo mo-
do de ser da função administrativa. Referimo-nos, essencialmente, às um-
tações sofridas pela pessoa coletiva pública, elemento básico da Adminis-
tração Pública.
Se a figura do Estado, enquanto pessoa jurídica, constituiu histori-
camente a pedra basilar do direito administrativo, a verdade é que tal con-
ceção encontra-se hodiernamente obsoleta. «O Estado é o nome da penúl-
tima forma histórica assumida pelos ordenamentos jurídicos gerais», re-
força COLAÇO ANTUNES. Com efeito, se a ideia de Estado enquanto pes-
soa jurídica recai na lógica de imputação de formas de organização e de
posições jurídicas subjetivas ativa ou passiva, o diagnóstico do citado au-
tor é deveras acertivo, pois, em bom rigor, de pouca autonomia gozam já
os Estados, muito menos soberania, comprovando-o de forma bem clara a
sua submissão às políticas e diretrizes europeias, cuja supremacia é mais
uma vez posta em evidência pelos flagelos da crise económica e financeira.
Nessa medida, a União Europeia assume-se como o novo centro de
imputação. As bases para o surgimento do denominado Direito Adminis-
Trativo europeu, no contexto já referido, ganharam forma a partir dos Tra-

10 O Direito Administrativo sem Estado – Crise ou fim de um paradigma?, cit., p. 35.

-32-
Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

tados de Maastricht e Amesterdão, ao reconhecerem ao ordenamento co-


munitário a natureza de ordenamento jurídico. O Direito Administrativo
europeu expressa-se, essencialmente, em três segmentos, com o objetivo
comum de integração e unificação europeia: por um lado, os direitos ad-
ministrativos encontram-se, desde logo, sujeitos a uma adequação e adap-
tação ao Direito da União, sobretudo através das Diretivas; depois, não são
somente os Estados os destinatários da Administração comunitária, como
também agora os particulares; em terceiro, verifica-se, cada vez mais, o re-
curso por parte da União Europeia a contratos e regulamentos, formas tí-
picas da atividade administrativa nacional, bem como ao alargamento da
noção de Administração Pública através, sobretudo, da figura do orga-
nismo de Direito Público. Mas, em bom rigor, a europeização do Direito Ad-
Ministrativo implica uma relação de recíproca influência, isto porque, se é
certo que o Direito Administrativo (nacional) se encontra atualmente so-
bre forte influência do Direito Europeu, este não deixa igualmente de rece-
ber influência dos direitos administrativos nacionais.
Não é difícil encontrar elementos que confirmem o cenário diagnos-
ticado. A criação de autoridades de regulação é disso paradigmático re-
flexo. Pense-se, por exemplo, no setor energético que, sem sombra de dú-
vidas, é um dos setores que mais impacto tem sofrido nos últimos anos, a
rasto da alteração do paradigma do papel do Estado no âmbito económico,
e onde, naturalmente, as influências do Direito da União Europeia mais se
fazem sentir. Se, por um lado, se verifica a transferência para os privados
da titularidade de determinadas atividades públicas, por outro, acentua-
-se a necessidade de uma regulação que garanta a qualidade de prestação
e de acesso a essas mesmas atividades11.
Vejamos, agora, um outro aspeto, relativo às formas de atividade
administrativa, que evidencia igualmente a forte influência do direito ad-
ministrativo europeu sobre os direitos administrativos nacionais.

11Sobre este assunto, em geral, vide PEDRO COSTA GONÇALVES, Reflexões sobre o
Estado Regulador e o Estado Contratante, Coimbra Editora, 2013, e A Concessão de Serviços Públi-
cos, Almedina, 1999.

-33-
Parte I – A Administração e o Direito

Muito porquanto da já assinalada perda de omnipotência da lei e


das profundas alterações sentidas pela ciência jurídica administrativa, tem
emergido uma nova figura, designada por soft law que engloba, essencial-
mente, atos e instrumentos jurídicos sem caráter obrigatório, mas, que de
uma forma ou de outra, se poderão reconduzir ao sistema das fontes do
Direito (DANIEL SARMIENTO). Estamos a referir-nos, por exemplo, às
instruções ou aos planos informais da Administração, entre outros.
A sua propagação não deixa igualmente de se fazer sentir em larga
escala, em muito devida à receção e aplicação no ordenamento jurídico in-
terno dos instrumentos de soft law provenientes do Direito da União Euro-
peia. A soft law contrapõe-se à hard law, isto é, àquele direito com força vin-
culatória que se insere no sistema tradicional de fontes. Nem sempre é ní-
tida a distinção entre uma e outra, até porque os instrumentos de soft law
podem, muitas vezes, ser absorvidos e passar a integrar a hard law.
A soft law surge como alternativa para uma regulação mais eficaz
e flexível das relações entre os Estados e as organizações internacionais.
Se é verdade que pode agitar, de forma até destabilizadora, a teoria das
normas jurídicas, não menos verdade é a sua importância para a interpre-
tação e autovinculação Administrativa, auxiliando-a nos processos deci-
sórios e permitindo-lhe uma maior adaptabilidade e resposta à dispari-
dade de posições e situações jurídicas com que diariamente é confrontada.
Revela-se, em síntese, um novo instrumento para uma nova forma de gover-
nança. Não se configura, portanto, contrária à ideia de Direito, mas antes
como sua concretização, isto é, como fator de aglutinação, interpretação e
concretização dos princípios e funções da Administração, merecendo, por
conseguinte, dignidade no sistema normativo.
Ainda que vozes críticas, e mesmo céticas, se ergam contra esta fi-
gura, nomeadamente enquanto fonte jurídica, a verdade é que o legislador
não deixou de lhe atribuir importância jurídica. Considere-se, nesse sen-
tido, por exemplo, o art. 2.º, n.º 3, do CPA: «os princípios gerais da ativi-
dade administrativa e as disposições do presente Código que concretizam
preceitos constitucionais são aplicáveis a toda e qualquer atuação da Ad-
ministração Pública, ainda que meramente técnica ou de gestão privada»
(sublinhado nosso).

-34-
Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

2. O salto para outro nível – O fenómeno da globalização do Direi-


to: as manifestações do Direito Administrativo global

Que o Direito Administrativo galgou as fronteiras do Estado já de-


mos anteriormente nota, ao ponto de podermos destacar a conformação de
um Direito Administrativo Europeu. Contudo, o espaço jurídico não se
restringe apenas ao continente europeu, mas antes se expande a outros es-
paços, por forma a que é hoje possível constatar a existência de um espaço
jurídico global, campo fértil para o desenvolvimento do designado Direito
Administrativo global. Estamos, pois, num outro nível de integração, mais
elevado e complexo do que o direito administrativo europeu.
E, de facto, pode aqui estabelecer-se um paralelismo com o que an-
teriormente foi dito acerca do Direito Administrativo Europeu, com as de-
vidas adaptações: se se verifica uma globalização do Direito Administra-
tivo, fruto de uma crescente abertura dos Estados às instituições interna-
cionais, não menos verdade é também a administrativização das organi-
zações internacionais por aplicação dos princípios e instrumentos carac-
terísticos do Direito Administrativo dos Estados.
O Direito Administrativo global ganha substantiva expressão com a
difusão dos fenómenos regulatórios no espaço jurídico mundial, cada vez
mais setoriais. Com efeito, existem diversos setores que transcendem a ca-
pacidade regulatória nacional: o ambiente, o terrorismo, os mercados fi-
nanceiros, as migrações, entre outros. Estão em causa interesses jurídicos,
mas interesses jurídicos globais, compósitos da relação-jurídica global e
multilateral.
Destarte, o Direito Administrativo global assume-se como novo mo-
delo de governança: global governance. Enquanto sistema jurídico multila-
teral, demonstra-se capaz de compor, coordenar e orientar as relações ju-
rídicas no espaço global. Pense-se, por exemplo, no caso da Organização
Mundial do Comércio. Neste novo modelo de governança, a dialética deve
proceder-se, portanto, quer entre os Estados, quer entre os Estados e a So-
ciedade Civil, quer entre estes e as Organizações internacionais. Só assim
se poderá falar numa verdadeira relação global.

-35-
Parte I – A Administração e o Direito

Nos termos acabados de descrever, assiste-se a uma correlativa des-


tatalização: os Estados perdem o monopólio da produção normativa e os
destinatários das normas internacionais não são apenas os Estados como
também os seus cidadãos. Mas, mais do que isso, assiste-se a uma destata-
lização da própria Administração Pública, na medida em que esta atua no
espectro internacional com uma autonomia cada vez maior em relação ao
Estado (exemplo: cooperação entre as autoridades tributárias).
Por outro lado, não pode olvidar-se o fenómeno da administrativi-
zação do espaço jurídico global, isto é, se a globalização conforma o Di-
reito Administrativo, este também conforma a globalização. As Adminis-
trações Públicas são, sem dúvida, um dos núcleos centrais da globalização.
Tal como o Direito Administrativo transcendeu as fronteiras do Estado,
também as suas funções, valores e princípios principais o transcenderam.
Por conseguinte, no novo modelo de governança, as organizações interna-
cionais, incluindo certas organizações privadas, aplicam princípios de Di-
reito Administrativo, quer quanto à organização e estrutura quer quanto
aos procedimentos. Mesmo do ponto de vista jurisdicional, ante um con-
flito transnacional, são frequentemente invocados e aplicados princípios
de Direito Administrativo.
Curiosamente, o Direito Administrativo global não prescinde do
Estado: dele sai, mas a ele retorna (SABINO CASSESSE). No modelo de
governança cujos principais traços apontamos, são os Estados que legiti-
mam, influenciam e controlam a ordem jurídica global, o que não deixa de
suscitar diversas interrogações e múltiplas incertezas, como sejam a exis-
tência de um espaço global que prescinda ou reclame de uma base consti-
tucional o estabelecimento das fronteiras entre as matérias de política in-
terna e as matérias de política externa, bem como pela falta de unidade
conceptual e metodológica. Ainda, que espaço e importância ocuparão, na
ordem jurídica global, os fenómenos nacionalistas?

-36-
Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

3. As relações entre o Direito Administrativo e o Direito Privado

A incontornável dicotomia Direito Administrativo/Direito Privado,


ou, melhor dito, a imperfeita fronteira entre ambos, é igualmente um dos
principais traços cacterizadores da nova configuração do Direito Admi-
nistrativo. Deve aqui, antes de mais, distinguir-se entre privatização do
Direito Administrativo propriamente dita e a utilização do Direito Pri-
vado pela Administração.
Embora a Administração seja Pública, não deixa de socorrer-se do
Direito Privado para exercer uma parte substancial da sua atividade. Pen-
se-se, por exemplo, na administração dos bens do domínio privado ou ain-
da na celebração de contratos de Direito Privado.
São vários os motivos e vantagens que levam a Administração a
atuar sob formas de Direito Privado: a eficiência, a flexibilidade, a desburo-
cratização, entre outros. É neste sentido que podemos, pois, falar em uti-
lização do Direito Privado pela Administração. E trata-se, sobretudo, de
um Direito Administrativo Privado, na medida em que o foco principal
sempre incide sobre o Direito Administrativo, pelo que, ainda que a Admi-
nistração recorra a formas de Direito Privado, não deixa de estar sujeita às
limitações e regalias próprias do Direito Público, maxime do Direito Admi-
nistrativo (VIEIRA DE ANDRADE). É precisamente nesses termos que se
entende o art. 2.º, n.º 3, do CPA: «os princípios gerais da atividade admi-
nistrativa e as disposições do presente Código que concretizam preceitos
constitucionais são aplicáveis a toda e qualquer atuação da Administração
Pública, ainda que meramente técnica ou de gestão privada» (sublinhado
nosso). A Administração Pública pode celebrar negócios sob a forma de
Direito Privado, mas nunca deixa de estar adstrita aos princípios gerais do
Direito Administrativo, como sejam, na dianteira, à legalidade e à prosse-
cução do interesse público. Neste sentido, ensina MARIA JOÃO ESTOR-
NINHO: «parece-me hoje absolutamente indiscutível que a Administração
Pública existe sempre para prosseguir o interesse público e que a ideia (…)
não pode deixar de aplicar-se em relação a toda e qualquer atuação admi-

-37-
Parte I – A Administração e o Direito

nistrativa, seja ela levada a cabo através de meios jurídico-públicos ou atra-


vés das formas de organização ou de atuação de direito privado» 12.
Tal significa que a utilização do Direito Privado pela Administração
é, ainda assim, em ordem à necessidade ou conveniência para a prosse-
cução do interesse público. E, ainda, tal atividade não escapa às malhas da
justiça administrativa: por exemplo, pelo art. 4.º, n.º 1, alínea e), do ETAF,
a jurisdição administrativa é (também) competente para apreciar litígios
referentes a contratos de direito privado celebrados pela Administração.
Distinto é o fenómeno da privatização do Direito Administrativo
propriamente dito. VIEIRA DE ANDRADE distingue três principais tipos
de privatização administrativa:
i. Privatização material ou substancial – referente à atividade ad-
ministrativa, ocorre quando uma tarefa que era atribuída ao setor público passa
a ser atribuída substancialmente ao setor privado (exemplo: setor da energia
elétrica.)
ii. Privatização formal ou instrumental – referente à organização
ou gestão administrativa. As tarefas continuam a ser substancialmente públi-
cas, mas são geridas sobre a forma privada.
a. A privatização da organização implica a alteração da própria
forma do ente administrativo (passa a “entidade administrativa pri-
vada”, sob a forma de S.A.).
b. A privatização da gestão implica apenas uma empresarialização
da pessoa coletiva pública (E.P.E., como é o caso da CP, Comboios
de Portugal).
iii. Privatização funcional – as tarefas continuam a ser substancial-
mente públicas, mas a sua execução é objeto de uma concessão a entidades pri-
vadas (exemplo: concessão de exploração do domínio público).

Não pode, todavia, afirmar-se que o fenómeno da privatização não


conheça limites, limites esses derivados de uma reação própria do Direito
Administrativo, isto porque, se o Direito Público se encontra envolto no

12 A Fuga para o Direito Privado – Contributo para o estudo da atividade de direito privado

da Administração Pública, cit., pp. 172-173.

-38-
Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

fenómeno de privatização, não é menos verdade que o Direito Privado


está a publicizar-se, por força do alargamento dos fins do Estado e da sua
intervenção na vida económica e social, maxime por via da regulação. As-
sim também o entende VIEIRA DE ANDRADE: «nos momentos de pós-
privatização da atividade, o Estado assume um novo papel, o de regulador,
para, muitas vezes através de agências independentes, assegurar a concor-
rência no mercado e a garantia dos direitos dos utentes»13.
Tendo em consideração o que anteriormente se disse, deve compre-
ender-se o Direito Administrativo atual numa lógica dinâmica e operativa,
reclamando uma definição essencial e necessariamente funcional. Encon-
tramo-nos, pois, ante um processo evolutivo de regeneração do Direito
Administrativo.

13 Lições de Direito Administrativo, cit., p. 84.

-39-
Parte I – A Administração e o Direito

PARTE I – A ADMINISTRAÇÃO E O DIREITO

A DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA

AULA N.º 3

Sumário: 1. Atos vinculados e atos discricionários; 2. Fundamentos da dis-


cricionariedade; 3. Atribuição de discricionariedade; 3.1. Perspetiva geral e forma
tradicional de atribuição de discricionariedade; 3.2. Conceitos imprecisos ou inde-
terminados; 3.3. Outras formas de atribuição de discricionariedade; 3.4. Posição
tradicional da doutrina e jurisprudência. Sua critica; 3.5. Posições extremas tradi-
cionais; 3.6. Posições moderadas; 3.7. Posição adotada; 4. Natureza jurídica do po-
der discricionário; 5. Controlo judicial da discricionariedade; 6. Garantias dos par-
ticulares.

BIBLIOGRAFIA ESSENCIAL

FREITAS DO AMARAL, Diogo, Curso de Direito Administrativo, Vol. II, 4.ª


ed., Coimbra: Almedina, 2018, pp. 65 e ss.
VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos, Lições de Direito Administrativo, 5.ª ed.,
Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2017, especialmente, pp. 54 a 66

BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR

CASSAGNE, Juan Carlos, El principio de legalidad y el control judicial de la dis-


crecionalidad administrativa, 2.ª ed., Montevideo/Buenos Aires: Editorial B de f, 2016
OLIVEIRA, Fernanda Paula/DIAS, José Eduardo F., «A discricionariedade
administrativa», in Scientia Ivridica, n.º 280/282, 1999, pp. 371 a 386
PORTOCARRERO, Maria Francisca, «Discricionariedade e conceitos im-
precisos: ainda fará sentido a distinção?», in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º
10, Braga: CEJUR, 1998, pp. 26 e ss.
SÉRVULO CORREIA, José Manuel, Legalidade e Autonomia Contratual nos
Contratos Administrativo, Coimbra: Almedina, 2013
SOUSA, António Francisco de, Conceitos indeterminados no Direito Adminis-
trativo, Coimbra: Almedina, 1994

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Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

JURISPRUDÊNCIA

Acórdão do STA, de 27-02-2008, Proc. n.º 0269/02


Acórdão do STA, de 27-11-2013, Proc. n.º 01159/09
Acórdão do STA, de 03-03-2016, Proc. n.º 0768/15
Decisão Arbitral do CAAD, de 20-04-2017, Proc. n.º 663/2016.T
Acórdão do TCA-Norte, de 25-05-2018, Proc. n.º 00038/18.1BEVIS

1. Atos vinculados e atos discricionários

A lei, por vezes, fixa o conteúdo dos atos que a AP deve praticar, de
modo que não cabe aos agentes administrativos qualquer possibilidade
conformadora. A esta determinação do conteúdo dos atos designamos vin-
culação administrativa. E chamamos ato vinculado ao ato praticado ao
abrigo desse comando legal. O ato vinculado é, portanto, aquele que tem
o seu conteúdo fixado na lei, não cabendo ao agente qualquer possibili-
dade conformadora [exemplo: nos termos da lei, têm direito de ser contra-
tados como professores auxiliares, logo que obtenham o doutoramento, os
assistentes com, pelo menos, cinco anos de vínculo à Escola. Assim, o ato
que vier a ser praticado ao abrigo desta norma, terá carácter vinculado].
À vinculação opõe-se a discricionariedade, sendo esta uma situação
em que a lei deixa aos agentes administrativos (às autoridades administrativas,
à Administração) uma liberdade conformadora. O ato discricionário é aquele
que a AP emana utilizando poderes conferidos pelo legislador de fixar o
grau das modificações pretendidas, sendo certo que os agentes da Admi-
nistração têm assim uma possibilidade de conformação, uma vez que não
estão estritamente vinculados como na situação antes referida [exemplo:
nos termos da lei, «sempre que o exijam os superiores interesses da saúde
pública, o Ministro da Agricultura pode proibir, sujeitar a inspeção prévia
ou a um período de quarentena a importação de aves vivas provenientes
da Ásia». Ora, o ato que vier a ser praticado ao abrigo desta norma é um
ato discricionário. Outro exemplo: nos termos da lei, «Declarando-se uma
epidemia de gripe, os serviços do Ministério da Saúde tomarão as medidas

-41-
Parte I – A Administração e o Direito

mais convenientes». Assim, as decisões que vierem a ser tomadas ao abrigo


da norma, serão decisões discricionárias].
Ressalve-se, contudo que a discricionariedade não pode significar
uma escolha total do conteúdo, mas só aquela que seja consentida pela lei.
E a lei pode conceder liberdades de escolha maiores ou menores. Assim, a
vinculação e a discricionariedade são apenas dois conceitos limites da
realização do princípio da legalidade, pelo que há sempre uma vinculação
da AP no que respeita aos fins (interesses públicos a prosseguir) e à com-
petência (órgãos com o poder de atuar, isto é, de praticar os atos).

2. Fundamentos da discricionariedade administrativa

O fundamento do poder discricionário reside na lei. O poder discri-


cionário não deixa de ser uma concessão legislativa feita à Administração
de um poder próprio na decisão de casos concretos. Na verdade, este es-
pecial poder é-lhe concedido para que a AP encontre aquela que considere
ser a melhor solução para o caso concreto. Tal se compreende se tivermos
em conta, como devemos, que a lei é o pressuposto e o fundamento da ati-
vidade administrativa. E, portanto, a Administração só pode utilizar po-
der discricionário se e na medida em que a lei o conceder.
Mas nem sempre assim foi. Na época liberal, considerava-se que a
AP podia agir livremente fora das matérias que estavam reguladas pela lei
ou a esta estavam reservadas, como, aliás, já mencionámos. A AP possuía,
com efeito, um poder originário (inato) de agir, escolhendo as soluções que
entendesse mais convenientes sem submissão à lei. Isto modificou-se
quando a lei se tornou pressuposto e fundamento da atuação administra-
tiva. A partir de então (e isto tem que ver com a evolução do princípio da
legalidade, que estudámos), passou a entender-se que a discricionariedade
só existe quando a lei a concede.
A discricionariedade envolve alguma problemática que surge en-
volvida nos conceitos de Estado de Direito e de separação de poderes.
Aliás, a discricionariedade tem o seu espaço marcado por dois princípios
que vão em sentidos opostos. Assim, o princípio do Estado de Direito tem
a pretensão de controlar o mais possível (até ao limite) a ação da Admi-

-42-
Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

nistração para proteção dos direitos dos cidadãos e tende a ver na discri-
cionariedade um perigo nas mãos da Administração, pensando-se, aliás,
que a AP, no contexto do poder discricionário, tende a atuar de forma ar-
bitrária e injusta. É por isso que se advoga reduzir ao mínimo os espaços
discricionários do agir administrativo, exigindo quer uma maior determi-
nação legislativa do conteúdo dos atos, quer uma mais intensa fiscalização
judicial da AP. Nesta lógica, a discricionariedade tende a ser vista como
um «mal necessário».
Contudo, o entendimento da discricionariedade a partir do princí-
pio da separação dos poderes revela-se outro. Neste sentido, partindo da
Constituição, considera-se que a AP tem uma dignidade igual à do poder
legislativo e à do poder judicial, cabendo-lhe a prossecução do interesse
público (de acordo com a lei, é certo) como tarefa própria, autónoma e se-
parada, ainda que interdependente. A AP deve desempenhar devidamen-
te as tarefas que o Estado Social de Direito põe a seu cargo. E, por isso,
compreende-se bem que ela não deve (nem pode) exercer uma atividade
meramente executiva da lei. Antes pelo contrário, a lei deve conceder-lhe
espaço de conformação. Por outras palavras, o legislador deve confiar na
Administração, sem que isso signifique demissão do seu papel determina-
dor. E o papel do legislador é muitas vezes o de estabelecer de forma geral
e abstrata os fins a prosseguir pela AP e indicar os órgãos com competência
para tal, deixando espaço à Administração para resolver da forma mais
adequada os casos concretos e as tarefas que lhe são atribuídas. O juiz, por
sua vez, não deve pretender substituir-se à Administração, isto é, não deve
administrar. Deve, portanto, respeitar as decisões tomadas pela Adminis-
tração, controlando apenas as decisões tomadas de acordo com a lei. Fala-
mos, assim, de um controlo que se deseja atenuado, pois, de outro modo,
correr-se-ia o risco de o juiz se substituir à Administração.
Se é verdade que o fundamento do poder discricionário está na lei,
esta confere-o tendo em conta o respeito pelo princípio da separação dos
poderes e o papel que cabe à AP dentro dessa separação/equilíbrio de po-
deres. Ainda, como fundamento deste papel próprio da AP, deve ter-se em
atenção a legitimidade democrática (direta ou indireta) dos órgãos admi-

-43-
Parte I – A Administração e o Direito

nistrativos (Governo, autarquias locais) e a capacidade técnica de muitos


desses órgãos inseridos nas respetivas pessoas coletivas públicas.

3. A atribuição da discricionariedade

3.1. Perspetiva geral e forma tradicional de atribuição de discricionariedade

Dissemos que o poder discricionário era uma concessão do legisla-


dor. Daí, e principalmente do papel que cabe à AP desenvolver nos dias
de hoje, resulta que essa concessão se torna cada vez mais frequente e ne-
cessária. Trata-se, agora, de saber como procede o legislador para conceder
poder discricionário.
Uma forma tradicional, e já referida, é, partindo da constatação de
que as normas têm uma hipótese e uma estatuição, contendo a hipótese
uma “descrição típica de uma situação da vida” e a estatuição as medidas
que devem ser tomadas perante a verificação, em concreto, da situação
(se..., então...), colocando nas mãos da AP a adoção da estatuição. E o le-
gislador pode fazer isso, desde que não determine logo uma única estatui-
ção possível, dizendo o que se deve fazer perante aquela hipótese, mas di-
zendo antes que a AP pode (e não “deve”) fazer determinada coisa, ou in-
dicando-lhe várias alternativas.
Mas não se esgota aqui a atribuição do poder discricionário. Há uma
outra forma de o fazer, ainda que muito discutida, e que se traduz na uti-
lização de conceitos imprecisos ou indeterminados.

3.2. Conceitos imprecisos ou indeterminados

a. Os conceitos jurídicos são integrados por uma zona central ou


nuclear, onde não há dúvidas interpretativas e, por uma zona marginal ou
periférica, em que as certezas se diluem e as dúvidas emergem. Nos con-
ceitos imprecisos ou indeterminados, a zona marginal ou periférica é mui-
to ampla.

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Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

i. Exemplos de zona marginal pequena: serão reformados os que


atingirem a idade de 70 anos; subirão à categoria superior os licen-
ciados em Direito.
ii. Exemplos de zona marginal ampla: interesse público, bem co-
mum, necessidades do serviço, perigo, atentado ao equilíbrio ecoló-
gico, conveniência, adequado, oportuno, noite, primavera, usos do
comércio, liberdade de circulação dos veículos.
Nestes casos e tantos outros, a lei está a remeter o agente adminis-
trativo para um conceito elástico, obrigando-o a atuar e a precisar-
-lhe o conteúdo. Saber, por exemplo, se uma determinada medida
satisfaz as “necessidades do serviço” ou não constitui “perigo” pode
não ser fácil14.

b. Na estrutura das normas jurídicas os conceitos indeterminados


encontram-se:
i. Ora do lado da hipótese. Exemplo: «em caso de urgente necessi-
dade e sempre que o justifique o interesse público e nacional, podem
ser requisitados bens imóveis e direitos a eles inerentes» (art. 80.º,
n.º 1, do Cód. das Expropriações de 1999). Outro exemplo: «durante
a primavera, o Departamento Agrícola e Florestal do Ministério da
Agricultura fiscalizará o cumprimento das medidas de tratamento
fitossanitário dos pomares».
ii. Ora do lado da estatuição. Exemplo: «Em qualquer fase do pro-
cedimento pode o órgão competente para a decisão final (...) ordenar
as medidas provisórias que se mostrem necessárias» (art. 89.º, n.º 1,
do CPA). Outro exemplo: «verificando-se a morte por doença de
mais de 50% do total de aves de uma exploração aviaria, os serviços
do Ministério da Agricultura tomarão as medidas convenientes».
iii. E, ainda, de ambos os lados: Exemplo: «Sempre que o exijam
circunstâncias excecionais e urgentes de interesse público, o gover-
nador civil pode praticar todos os atos ou tomar todas as providên-

14 Ver ROGÉRIO SOARES, Direito Administrativo, cit., p. 57.

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Parte I – A Administração e o Direito

cias administrativas indispensáveis» (art. 8.º do DL n.º 252/92, de 19


de novembro).

c. Qual a relação que se estabelece entre os conceitos imprecisos e


a discricionariedade administrativa? Admite-se hoje que se atribua poder
discricionário através de conceitos imprecisos. Contudo, tem de se ter em
atenção que nem todos os conceitos indeterminados atribuem poder discricioná-
rio. Assim acontece com os conceitos classificatório.
i. Exclusão dos conceitos classificatórios: conceitos que não são ver-
dadeiramente conceitos indeterminados, uma vez que a imprecisão
que contêm resolve-se em sede de interpretação jurídica. Estes com-
preendem as seguintes modalidades:
- Conceitos imprecisos descritivo-empíricos: aqueles cujo conteú-
do é objetivamente determinável pelo recurso à experiência comum
ou a conhecimentos científicos ou técnico [exemplos: noite, prima-
vera, incapacidade de trabalho, substância tóxica, ameaça de ruína].
- Conceitos imprecisos de natureza jurídica: aqueles cujo conteúdo
pode ser preenchido, com um elevado grau de objetividade, por
qualquer jurista [exemplos: funcionário público ou legítimo possui-
dor].
- Conceitos imprecisos referidos a situações definíveis em consi-
deração de circunstâncias de tempo e de lugar (época do ano, hábi-
tos da terra) [exemplos: usos da terra, praxes administrativas].

Em todos estes casos, a indeterminação dissolve-se em sede de in-


terpretação. Não há qualquer poder discricionário que seja concedido à
Administração através do conceito, isto porque uma substância ou é tó-
xica ou não é; um prédio ameaça ruína ou não ameaça; uma pessoa é fun-
cionário ou não é; a Administração não tem aqui uma margem de aprecia-
ção. Estes conceitos podem ser preenchidos com um elevado grau de obje-
tividade e não são, por isso, fonte de discricionariedade.

-46-
Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

ii. Inclusão dos conceitos imprecisos tipo: atribuem poder discrici-


onário. Dizem respeito aos conceitos imprecisos que se referem a um
tipo difuso de situações da vida que não podem ser preenchidas em
sede de interpretação jurídica, remetendo a AP para juízos de valor
da sua própria responsabilidade.
Os conceitos indeterminados tipo apuram-se melhor quando são
utilizados para decidir questões que colocam um “espaço de deci-
são” ou uma “liberdade de apreciação administrativas”:
- Conceitos de valor no âmbito de juízos sobre disposições ou ap-
tidões pessoais ou de avaliações técnicas especializadas (exemplo:
“jurista de reconhecido mérito”, “filme de qualidade”, “boa aptidão
agrícola”);
- Situações com elementos determinantes de prognose (exemplo:
“justo receio de ser perseguido”, “perigo para o trânsito”);
- Conceitos que pela sua extrema vaguidão e/ou ligação a faculda-
des de ação concedidas pelo legislador, têm de ser entendidos co-
mo delegações no poder administrativo (“abastecimento adequado
dos mercados”, “ordem pública”, “conveniência de serviço”); fala-
mos a este propósito de conceitos subjetivos.

3.3. Outras formas de atribuição de discricionariedade

Muitas vezes, a lei não apresenta conceitos indeterminados ou alter-


nativas para decisão e, no entanto, confere poder discricionário. Por exem-
plo, quando a AP decide sobre a localização de um aterro sanitário, ela tem
de tomar uma decisão que é da sua responsabilidade, não existindo uma
lei que a vincule a uma determinada escolha ou que lhe conceda poderes
discricionários. O que existe é um dever de prosseguir o interesse público,
dentro da lei, devendo a AP escolher a localização mais adequada para o
aterro. O mesmo se diga quanto à decisão sobre a localização da constru-
ção de uma barragem ou do traçado de uma autoestrada ou sobre a forma
e local de tratamento de resíduos perigosos.

-47-
Parte I – A Administração e o Direito

Em síntese, a discricionariedade confere-se pela:


1. Utilização na estatuição da norma, quer da forma verbal “pode”
(em vez de “deve”), quer da inclusão de várias alternativas possíveis;
2. Utilização de conceitos indeterminados tipo ou em sentido es-
trito;
3. Detenção de poderes de avaliação ou decisão da AP, resultantes
da colocação pelo legislador nas mãos da Administração do poder (e da
responsabilidade) de tomar decisões para as quais apenas indicou o fim e
o órgão competente ou pouco mais. Nestes casos, o legislador não facilita
a vida à Administração através da indicação precisa de alternativas ou da
utilização concreta de conceitos indeterminados.

3.4. A posição tradicional da doutrina e da jurisprudência portuguesa e sua


crítica

Para a doutrina tradicional portuguesa (escola de Lisboa), seguida


nos tribunais, só existe discricionariedade em sentido próprio quando
ocorram indeterminações estruturais na estatuição (utilização pelo legisla-
dor de “pode” ou indicação de várias alternativas). A discricionariedade
consiste nesses casos em escolher uma das soluções possíveis, a mais não
sendo obrigada a Administração. Trata-se, portanto, de uma escolha de
conteúdo por parte do agente que poderia optar pela solução que enten-
desse mais oportuna e conveniente. E de uma escolha livre, isto é, desvin-
culada do Direito, para o qual seriam igualmente corretas várias soluções
dentro de uma série. Esta escolha, no entanto, estaria sempre delimitada
pelo fim em vista do qual a norma legal confere o poder discricionário. E
se a AP se desvia desse fim, ou seja, não o exerce de acordo com o fim (rea-
lização do interesse público) previsto pela lei, então, daqui decorre o vício
de “desvio do poder” que poderia ser invocado contenciosamente. Nesta
senda, a utilização de conceitos indeterminados, para a doutrina tradicio-
nal não significa atribuição de discricionariedade, apenas colocando um
problema de interpretação desses conceitos, devendo a AP procurar a úni-
ca solução correta do ponto de vista do legislador.

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Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

A doutrina e jurisprudência tradicionais admitem, no entanto, uma


discricionariedade imprópria, entendendo como tal aqueles casos em que
não há uma indeterminação estrutural da norma, mas de qualquer modo
uma situação que conduz aos mesmos resultados, verificando-se, assim,
casos de:
i. Discricionariedade técnica – as decisões da AP só podem ser to-
madas com base em estudos prévios de natureza técnica e segundo crité-
rios extraídos de normas técnicas.
ii. Justiça administrativa – a AP, no exercício da função adminis-
trativa tem de julgar (notação de funcionários, júris de concursos, classifi-
cação de exames, etc.)

Ao defender que os conceitos indeterminados colocam apenas um


problema de interpretação, a doutrina tradicional esquece-se de que, no
caso dos conceitos imprecisos tipo, a interpretação implica uma concreti-
zação criadora (constitutiva) que não é uma mera busca e encontro de uma
vontade pré-existente na norma que utiliza tais conceitos. Por outro lado,
ao defender que a discricionariedade está na estatuição, não tem em de-
vida conta que o legislador, na impossibilidade de prever todas as situa-
ções da vida às quais quer aplicar uma medida, utiliza conceitos indeter-
minados na hipótese. Acresce que não pode aceitar-se num Estado de Di-
reito a ideia de que a AP escolhe livremente a decisão que entende dentro
de uma série de soluções ou alternativas. A discricionariedade obriga a AP
a uma escolha e, dentro dessa, à escolha da melhor solução e não de uma
qualquer dentro das possíveis. A defesa de uma discricionariedade impró-
pria, ou seja, de situações que não configuram discricionariedade, mas co-
mo se assim fossem (implicitamente), dada a noção tradicional de discri-
cionariedade (identificada com uma escolha livre), entrega à AP um “che-
que em branco” de uma liberdade de escolha que não é aceitável. Não se
concorda, pois, com tal posição.

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Parte I – A Administração e o Direito

3.5. As posições extremas tradicionais

A conceção mais antiga (teoria da discricionariedade) entendia que,


sempre que o legislador utiliza conceitos indeterminados, atribui discri-
cionariedade. Se assim é, então o juiz está impossibilitado de controlar e
reconstruir o preenchimento valorativo realizado pela Administração (po-
sição de LAUN).
A posição do controlo total, registada na Alemanha pós-II Guerra
Mundial, opondo-se à primeira conceção, advogava que, sempre que o le-
gislador utiliza tais conceitos, não atribui qualquer discricionariedade à
Administração, bem pelo contrário, existindo simplesmente um problema
de interpretação da lei, pelo que o controle judicial pode ser total. Assim,
ficam os particulares mais protegidos.

3.6. Posições moderadas

Estas teorias tendem a distinguir certos momentos de interpretação


vinculada da norma e de liberdade/discricionariedade nos conceitos inde-
terminados que em sede de controlo judicial deve ser respeitada:
i. Teoria da folga ou da margem de apreciação de OTTO BACH-
OFF: refere que há uma margem indeterminada do conceito, a aplicação
da norma ao caso concreto, que não pode ser reconstruída pelo juiz. A ope-
ração de interpretação é vinculada, mas já não é a operação de subsunção:
operação que visa saber se determinada situação concreta se aplica no es-
quema geral pensado na lei.
ii. Teoria da defensabilidade (ULE), que parte da mesma constru-
ção exposta anteriormente: a subsunção realizada pela Administração de-
ve ser respeitada pelo tribunal se tiver uma marca de defensibilidade, isto
é, de aceitabilidade. E a subsunção, o preenchimento do conceito, será de-
fensável se puder ser aceite por um homem comum.
iii. Teoria da prerrogativa de apreciação, que considera que o tri-
bunal não pode refazer a interpretação feita pelo órgão administrativo
sempre que a referida interpretação da norma exigir uma apreciação espe-

-50-
Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

cial dos factos, designadamente quanto aos aspetos técnicos e ou valorati-


vos que envolvam um contacto direto com as situações da vida.

3.7. Posição adotada (Escola de Coimbra)

A discricionariedade nem sempre se manifesta numa escolha final,


nem sempre representa um espaço de opção entre conteúdos alternativos
num quadro de pressupostos legalmente determinados. A Administração
Pública, no atual Estado de Direito, viu as suas funções alargadas, surgin-
do um conjunto vasto e diferenciado de situações em que não é possível
ao legislador definir em abstrato com clareza as condições de verificação
do interesse público.
A lei é obrigada a refugiar-se em conceitos imprecisos, ou mesmo
vagos, ao programar a intervenção administrativa. Nestes casos, é frequen-
te não ser possível estabelecer uma separação nítida entre a hipótese e a
estatuição da norma legal, fazendo coincidir aquela com momentos vincu-
lados e esta com momentos discricionários.
A discricionariedade não se reporta, assim, apenas ao conteúdo da
decisão, mas igualmente aos pressupostos.
Dentro do que foi dito, defende-se um conceito unitário e amplo de
discricionariedade entendido como um espaço de decisão da responsabi-
lidade da Administração, conferida por lei e decorrente de uma indetermi-
nação desta, o que abrange:
a) As situações de indeterminação estrutural das normas;
b) As situações de indeterminação conceitual (utilização de concei-
tos imprecisos tipo);
c) Situações de prerrogativas de avaliação (a lei ordena que a Admi-
nistração efetue juízos sobre aptidões pessoais ou avaliações técnicas espe-
cializadas, decisões com elementos de prognose, ponderação de interesses
complexos e decisões com consequências políticas).

Em todos estes casos há discricionariedade. E isto significa que exis-


te uma repartição de competências ordenada pelo legislador entre a Ad-
ministração e o Juiz, entendida como distribuição de tarefas (de “funções

-51-
Parte I – A Administração e o Direito

organizacionais”) por dois poderes estaduais: a autoria dos atos e a ineren-


te responsabilidade pela prossecução do interesse público cabem à Admi-
nistração; a fiscalização da conformidade ou compatibilidade dessa atua-
ção administrativa com as normas legais e os princípios jurídicos compete
aos tribunais.
A atividade administrativa, no exercício de poderes discricionários,
é funcional e materialmente jurídica: visa a aplicação do direito ao caso
concreto, na procura da melhor solução orientada pelo fim da norma (in-
teresse público específico) e regulada por uma racionalidade jurídica.

4. Natureza jurídica do poder discricionário

Não é um poder originário da Administração (uma liberdade funda-


mental de atuar fora das matérias reservadas ou já ocupadas por lei). Não
é um resto deixado pelos tribunais em campos onde há dificuldades de
controlo dos atos administrativos. Não é um “mal necessário” que deva ser
reduzido ao mínimo. É uma concessão legislativa (determinada pela in-
terpretação da norma). É um poder jurídico conferido por lei, em que se exi-
ge à AP uma “tensão criadora do direito no caso concreto”.

5. Controlo judicial do poder discricionário

Ao praticar atos ao abrigo do poder discricionário, a AP está vincu-


lada ao fim definido pela norma e sujeita ao Direito. E assim é principal-
mente em relação aos princípios jurídicos fundamentais.
Existe pleno controlo dos momentos vinculados (competência, legi-
timação para agir, utilização dos poderes discricionários para fins diversos
dos pretendidos pela lei, caso este em que há desvio de poder). Para além
disso, o juiz deve agir e anular os atos praticados ao abrigo do poder dis-
cricionário quando detete:
i. Violação ostensiva ou intolerável dos princípios jurídicos que
devem nortear a ação administrativa;
ii. Prática de atos discricionários fundada em factos que se verifica
serem inexistentes ou falseados (“erro de facto”) ou fundada numa má

-52-
Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

avaliação ou qualificação de realidade (“erro manifesto de apreciação”,


pois aqueles factos não suportavam aquela decisão).

Os tribunais verificam, igualmente, a necessidade e a proporciona-


lidade das medidas adotadas. O exercício dos poderes discricionários é (e
deve ser) objeto de fiscalização por parte do juiz, mas não de reexame. An-
tes, o que é legítimo é realizar um controlo atenuado.

6. As garantias dos particulares perante os poderes discricionários


da Administração

A obrigatoriedade de fundamentação expressa deve dar notícia da


presença dos pressupostos de facto da ação que a norma legal enuncia em
abstrato na hipótese (justificação) e, estando em causa poderes discricioná-
rios, os interesses que no seu juízo foram determinantes para a definição
de um especial conteúdo do ato (motivação). A justificação tem que ver
com a realidade dos factos, a motivação com as razões que levaram àquela
decisão. Assim, através dos motivos, a Administração deve indicar quais
os interesses que levaram a Administração a agir e aqueles que foram de-
terminantes para a prática do ato.
A fundamentação permite mais facilmente ao tribunal detetar o des-
vio de poder, o erro de facto, o erro manifesto na apreciação do facto e a
violação manifesta dos princípios.

-53-
Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

PARTE II – A ATIVIDADE ADMINISTRATIVA


– FORMAS TÍPICAS DE ATUAÇÃO

CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE


O PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO

AULA N.º 4

Sumário: 1. Enquadramento – atividade técnica e atividade jurídica; 2. Ati-


vidade jurídica da Administração (considerações gerais); 2.1. O Código do Procedi-
mento Administrativo: 2.1.1. Objetivos do procedimento; 2.1.2. Importância das re-
gras do procedimento; 2.1.3. Âmbito de aplicação; 2.1.4. As fases do procedimento
(preparatória; constitutiva; integrativa da eficácia).

BIBLIOGRAFIA ESSENCIAL

FREITAS DO AMARAL, Diogo, Curso de Direito Administrativo, Vol. II, 4.ª


ed., Coimbra: Almedina, 2018, pp. 143 e ss.
VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos, Lições de Direito Administrativo, 5.ª ed.,
Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2017, especialmente, pp. 131 e ss.

BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR

AROSO DE ALMEIDA, Mário, Teoria Geral do Direito Administrativo, 5.ª ed.,


Coimbra: Almedina, 2018, pp. 121 a 170
COLAÇO ANTUNES, Luís Filipe, «O ato administrativo contratual», in Es-
tudos Comemorativos dos 20 anos da FDUP, Vol. II, Coordenação de MOTA, Helena
[et al.], Almedina, 2017, p. 95 e ss.
MACHETE, Pedro, Estado de Direito Democrático e Administração Paritária,
Coimbra: Almedina, 2007
OTERO, Paulo, Direito do Procedimento administrativo, Vol. I, Coimbra: Al-
medina, 2016
QUADROS, Fausto de, «As principais inovações do Projeto de Código de
Procedimento Administrativo», in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 100 (julho-
-agosto), Braga: CEJUR, 2013, pp. 129 e 22

-55-
Parte II – A atividade administrativa – Formas típicas de atuação

VILHENA DE FREITAS, Lourenço, Direito do Procedimento Administrativo e


Formas de Atuação da Administração – Parte Geral, Lisboa: AAFDL Editora, 2016, pp.
69 a 107 e 262 a 274

BIBLIOGRAFIA ESPECÍFICA

FONSECA, Isabel Celeste, «O procedimento administrativo no novo CPA:


dúvidas sobre a sua subalternização perante o acto e o processo», in Questões Atuais
de Direito Local, n.º 05, janeiro/março de 2015

BIBLIOGRAFIA ADICIONAL DE CONSULTA

AA.VV., Comentários ao novo Código de Procedimento Administrativo, coord.


AMADO GOMES, Carla/NEVES, Fernanda/SERRÃO, Tiago, 2.ª reimpressão, Lis-
boa: AAFDL Editora, 2015
AA.VV., O Novo Código do Procedimento Administrativo – Para o Professor Dou-
tor António Cândido de Oliveira, coord. FONSECA, Isabel Celeste M., Braga: ELSA
UMINHO/NEDIP, 2015

1. Enquadramento – atividade técnica e atividade jurídica

Depois de falarmos na aula anterior da vinculação e da discriciona-


riedade, vamos agora abordar a atividade administrativa, tendo em vista
o modo de atuar da Administração Pública.
Estudámos a Administração Pública enquanto organização subme-
tida ao Direito e, em particular, ao Direito Administrativo. Ora, esta orga-
nização existe para atuar, para exercer a atividade administrativa.
A atividade administrativa cobre um largo leque de tarefas nos mais
variados domínios. Esse leque abrange, nos nossos dias, uma atividade a
que se convencionou chamar atividade técnica, por oposição à atividade
jurídica.
Verificou-se, efetivamente, uma grande evolução desde o Estado Li-
beral ao Estado Social dos nossos dias; se naquele a atividade da Adminis-
tração se traduzia fundamentalmente numa atividade limitadora dos par-
ticulares, repercutida na aplicação de normas jurídicas que estes deveriam

-56-
Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

observar (a Administração preocupava-se essencialmente em evitar que


das atividades dos cidadãos resultassem malefícios, nomeadamente para
a segurança e ordem públicas), no quadro do Estado Social de Direito, a
Administração Pública passou a exercer uma extensíssima atividade que
pouco ou nada tem que ver com a aplicação de normas jurídicas no sentido
que acabámos de indicar.
A Administração Pública não só passou a prestar serviços de educa-
ção, de saúde, de transportes e tantos outros, como passou a construir es-
tradas, portos, barragens, estações de tratamentos de águas, aterros sani-
tários. E passou igualmente a fomentar o desenvolvimento económico, a
cultura e o desporto, através de subsídios e muitas outras formas.
No Estado Social, a Administração Pública, embora não tenha posto
de lado a atividade reguladora ou limitadora da vida dos cidadãos (pelo
contrário, cada vez mais ela submete os cidadãos a minuciosas regras em
praticamente todos os domínios da sua vida), revela-se sobretudo através
da atuação de prestação. E tal atividade é sobretudo técnica. Assim, ao lado
dessa atividade (jurídica), outra cresceu e assumiu uma importância deter-
minante para a compreensão do que é a Administração Pública prestadora.
Ora, enquanto a atividade de limitação é fundamentalmente uma
atividade jurídica, a atividade de prestação, ou de criação e manutenção
de equipamentos e infraestruturas, é uma atividade técnica. Com efeito,
construir pontes e estradas, fornecer eletricidade, remover lixos domésti-
cos ou industriais não apelam em primeira linha a uma atividade jurídica,
mas a uma atividade que implica o conhecimento e aplicação de regras da
arte respetiva; para construir uma ponte, por exemplo, o fundamental é
saber e aplicar os conhecimentos de engenharia civil e não regras jurídicas.
Pelo contrário, se um cidadão quer construir uma casa ou quer possuir
uma arma de defesa, o que pede da Administração é que lhe conceda licen-
ça, pois trata-se de atividades regulamentadas, e, assim, que a Administra-
ção, aplicando regras jurídicas, defira ou não o seu pedido.
Uma nota ainda para dizer que, nos nossos dias, por efeito da cres-
cente liberalização de atividades de interesse geral (atividades que ante-
riormente eram exercidas pela Administração Pública), houve necessidade
de regular essas atividades exercidas por grandes empresas, de modo a as-

-57-
Parte II – A atividade administrativa – Formas típicas de atuação

segurar a proteção de direitos e interesses dos cidadãos. Daí nasceu uma


importante atividade reguladora da Administração de natureza jurídica.
As empresas exercem essas atividades, mas devem respeitar as regras ju-
rídicas que a regulam e os particulares têm o direito de recorrer a tribunal,
por exemplo, se elas não forem cumpridas. Uma empresa privada, por
exemplo, fornece água aos cidadãos e estes têm o direito de exigir que ela
a forneça, de acordo com os regulamentos.
De qualquer modo, e porque toda a atividade da AP está subme-
tida ao Direito, este aplica-se quer à atividade jurídica quer à atividade
técnica por ela exercida. A diferença é que a presença de regras jurídicas
é muito mais intensa na atividade jurídica do que na técnica.

2. Atividade jurídica da Administração

É importante distinguir, na verdade, na atividade administrativa, o


importante setor que denominamos de atividade jurídica, no qual se expri-
me um especial poder da Administração. A Administração Pública não es-
tá na mesma situação de um qualquer particular, antes possuindo poderes
públicos que lhe permitem:
a) Sujeitar os cidadãos a determinados comportamentos, fazendo
regulamentos (assim, encontra-se regulamentada, a título de mero exem-
plo, a obrigação de usar capacete na condução de velocípedes ou em obras
de construção; de usar cinto de segurança na condução automóvel);
b) Fazer uma aplicação do Direito (leis e regulamentos administra-
tivos) a casos concretos, praticando atos administrativos (exemplos: atri-
buição de licenças de construção; aplicação de penas disciplinares; decisão
de atribuição de bolsas de estudo);
c) Fazer acordos com particulares sujeitos a um regime especial,
através de contratos administrativos (exemplo: contrato de empreitada ou
concessão de obras públicas, ou de fornecimento de bens ou de aquisição
de serviços).

-58-
Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

Ora, ao atuar, ao exercer os poderes que lhe foram conferidos pelo


ordenamento jurídico, a AP procede de certa forma, de acordo com certas
regras, não sendo livre de atuar como bem lhe apetece. Isto quer dizer ape-
nas que a Administração tem de obedecer a certas regras, já que há um mo-
do de proceder próprio da Administração, correntemente designado por
procedimento administrativo.
Num certo sentido, o procedimento administrativo é a fixação de
uma determinada forma de proceder. É nesta perspetiva que se fala de
procedimentalização da atividade administrativa. E esta abrange toda a
atividade administrativa, sendo certo que ela se torna muito mais eviden-
te na atividade jurídica do que na atividade técnica, como veremos.
Seguir determinadas regras é obrigação da Administração, mas isso
não significa que, para atuar, a Administração esteja sujeita, como disse-
mos, a regras processuais, ou seja, a regras semelhantes às que regulam a
atividade jurisdicional, e nem sequer a exigência da existência de um Có-
digo de Procedimento Administrativo. Existe mesmo um princípio da in-
formalidade da ação administrativa, significando que a Administração
não está sujeita ao formalismo próprio dos tribunais.
Quando o legislador quer submeter, e isso sucede muito frequente-
mente, a Administração Pública a procedimentos muito mais regulados,
publica leis com essa finalidade, falando-se então de procedimentos admi-
nistrativos formalizados, isto é, sujeitos à forma prescrita na lei. Mas, para
tomar muitas outras decisões, não existem esses procedimentos formaliza-
dos (regulados por normas) e, então, a Administração tem de seguir as li-
nhas gerais que resultam do CPA, atuando, no restante, informalmente.

2.1. O Código do Procedimento Administrativo (CPA)

A publicação do CPA em Portugal não foi uma tarefa simples e a


sua história remonta a 1980, data de uma primeira versão. Houve uma se-
gunda em 1982 e uma terceira em 1987, dando origem ao Código de Pro-
cedimento Administrativo, datado de 1991 (DL n.º 442/91, de 15 de novem-
bro) e revisto em 1996. Foi importante a decisão de aprovar este diploma,
já que um preceito constitucional contido na versão de 1976, atual art. 267.º,

-59-
Parte II – A atividade administrativa – Formas típicas de atuação

n.º 5, determina que o processamento da actividade administrativa será objecto


de lei especial.
Em 2015, o CPA voltou a ser revisto. E esta alteração, introduzida
pelo DL n.º 4/2015, de 7 de janeiro, constitui uma revisão significativa.
O procedimento administrativo está definido, no art. 1.º do CPA,
como a sucessão ordenada de atos e formalidades, tendentes à formação
e manifestação da vontade da Administração Pública e à sua execução.
É do maior interesse a leitura do preâmbulo do diploma, não só pela
já referida perspetiva histórica, como pela definição dos seus objetivos e
ainda pela informação sobre a sua sistematização.

2.1.1. Objetivos do procedimento administrativo

i. O procedimento administrativo como fator da racionalidade,


eficiência e organização da administração. Pretende-se que a Administra-
ção procure, sempre que um interesse público esteja em causa, obter uma
decisão exata, adequada e eficiente à sua relação harmónica com os outros
interesses envolvidos. Deseja-se, assim, assegurar uma atenta ponderação
dos factos e dos interesses envolvidos.
Não se vai ao ponto de tramitar minuciosamente todo o proceder da
Administração, mas apenas os passos essenciais, deixando à Administra-
ção uma larga margem de liberdade procedimental.
ii. O procedimento administrativo na vertente garantística. O pro-
cedimento garante aos particulares que a AP observou regras adequadas
para tomar a decisão que tomou e que não o fez de modo precipitado, sem
atender a todos os factos e interesses que estão em jogo. O particular fica a
saber como atuou a Administração e tem direito não só a saber como de-
corre o procedimento que lhe interessa como a participar nesse procedi-
mento. Fala-se a este propósito de direitos dos particulares a prestações jurídi-
cas procedimentais (direito à informação, direito à audiência, “direito” à fun-
damentação, etc.).
iii. O procedimento administrativo como instrumento de com-
pensação da proteção jurisdicional. O procedimento é um instrumento
importante da própria proteção jurisdicional dos interesses e posições ju-

-60-
Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

rídico-administrativas dos particulares, uma vez que, através dele, não só


podem assegurar melhor os seus direitos e interesses legítimos como asse-
gurar uma proteção que, em sede jurisdicional, muitas vezes não é possível
ou não é devidamente assegurada.
iv. O procedimento administrativo como espaço de contradição.
Ao abrir-se o procedimento administrativo à participação dos particulares,
através do direito à informação e à participação nas decisões, possibilita-
-se um confronto de opiniões (da AP e dos interessados), uma contradição
que pode contribuir para uma decisão ponderada (ponderação de todos os
interesses em jogo) e devidamente discutida e, também por isso, aberta.

Em suma, a ideia de «legitimação pelo procedimento» (de N. LUH-


MANN) corresponde às modernas exigências da filosofia política e das
ciências de Direito Público, pelo que o procedimento é assim legitimado
pelos valores do Estado de Direito.
De facto, no moderno Estado de Direito, a legitimação das decisões
públicas surge pelo procedimento, acrescendo à legitimidade democrá-
tica, decorrente do voto democrático, e à legitimidade material, decorrente
da legalidade e do mérito das decisões. Neste sentido, o procedimento não
vale apenas como realidade formal ou simples esquema organizativo de
tomada de decisões, mas antes como realidade material que, ao potenciar
a participação dos indivíduos e das instituições e ao fazer chegar através
de si o conhecimento sobre todos os interesses públicos e privados, permite
a tomada das decisões mais corretas e mais eficazes, em resultado da in-
tervenção dos respetivos destinatários. As decisões públicas não são, pois,
resultado de uma qualquer verdade revelada, nem brotam da cabeça de
um déspota iluminado, sendo, ao invés, o resultado de um procedimento
em que a manifestação da vontade estadual é construída mediante a in-
tervenção de múltiplos sujeitos.
Qualquer função estadual pressupõe, portanto, um mecanismo des-
tinado à regulação da tomada de decisões: o procedimento. E, quanto ao
domínio da atividade administrativa, o direito administrativo contempo-
râneo só pode conceber que «o procedimento administrativo formalizado

-61-
Parte II – A atividade administrativa – Formas típicas de atuação

seja o modo geral de desenvolvimento das atividades públicas» (GIAN-


NINI).

2.1.2. Importância das regras do procedimento

A importância das regras de procedimento administrativo eviden-


cia-se sobretudo se tivermos em conta a necessidade de que a Administra-
ção resolva os assuntos em tempo razoável, respeitando os prazos. Os ci-
dadãos têm direito a que os requerimentos que fazem à Administração se-
jam respondidos e, quando for o caso, decididos, dentro do prazo previsto
na lei ou, não existindo prazo especial, dentro de um prazo geral. Os cida-
dãos têm ainda o direito de ser ouvidos sobre as matérias que lhes interes-
sam, especialmente se a decisão lhes for desfavorável. Têm direito ainda a
que o procedimento decorra dentro de certas regras, que se esperam claras
e adequadas.
Destarte, é natural que, ao longo do Código, existam normas sobre
a marcha do procedimento, sobre notificações, sobre prazos e também nor-
mas conexas com o procedimento, como são as relativas aos órgãos cole-
giais.

2.1.3. Âmbito de aplicação do CPA

Preceitua o n.º 1 do art. 2.º do CPA que «as disposições deste Código
respeitantes aos princípios gerais, ao procedimento e à atividade adminis-
trativa são aplicáveis à conduta de quaisquer entidades, independente-
mente da sua natureza, adotada no exercício de poderes públicos ou regu-
lada de modo específico por disposições de direito administrativo».
Do ponto de vista subjetivo, o CPA adota, no n.º 4 do referido artigo,
um conceito restrito de Administração Pública, entendendo que, para efei-
tos do Código, integram a AP os órgãos do Estado e das regiões autónomas
que exercem funções administrativas a título principal; as autarquias locais
e suas associações e federações de direito público; as entidades adminis-
trativas independentes; e os institutos públicos e as associações públicas.
Uma vez que o artigo configura uma natureza tendencialmente taxativa

-62-
Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

(atente-se, desde logo, na ausência das expressões «nomeadamente» ou


«designadamente»), parece, pois, que o legislador não considerou do
ponto de vista subjetivo nem as entidades públicas empresariais nem as
pessoas coletivas de utilidade pública. Todavia, é o próprio n.º 1 que pos-
tula a aplicação das disposições do Código a «quaisquer entidades, inde-
pendentemente da sua natureza» cuja conduta seja adotada «no exercício
de poderes públicos». Ainda, o n.º 3 estipula que o CPA se aplica também
à atuação privada da AP. Por conseguinte, deve, pois, considerar-se que o
CPA se pode aplicar às entidades públicas empresariais, às sociedades
anónimas de capitais públicos, às pessoas coletivas de utilidade pública
administrativa ou às de mera utilidade pública, às IPSS e a outras que exer-
çam poderes públicos ou se rejam especificamente por regras de direito
administrativo.
O CPA tem aqui em vista, como resulta de uma consulta geral do
Código, fundamentalmente os regulamentos, os atos administrativos e os
contratos administrativos, ou seja, a atividade jurídica da AP, sendo certo
que à atividade meramente técnica ou de gestão privada são aplicáveis os
princípios gerais da atividade administrativa constantes do Código e as
normas que concretizam preceitos constitucionais (cfr. art. 2.º, n.º 3, do
CPA).

2.1.4. As fases do procedimento administrativo

De acordo com a perspetiva da Escola de Coimbra, o procedimento


tem três fases15:
1. fase preparatória, que inclui as subfases da iniciativa, da instru-
ção e da audiência dos interessados;
2. fase constitutiva;
3. fase integrativa da eficácia.

15 Para considerações, vd. bibliografia sugerida supra.

-63-
Parte II – A atividade administrativa – Formas típicas de atuação

Já na perspetiva da Escola de Lisboa, o procedimento administra-


tivo decisório de 1.º grau integra 6 fases:
1. fase inicial;
2. fase de instrução;
3. fase de audiência dos interessados;
4. fase de preparação da decisão;
5. fase da decisão (decisão expressa);
6. fase complementar – que inclui atos posteriores à tomada de de-
cisão, a saber:
a. registos /arquivamento;
b. sujeição a controlos internos ou aprovação tutelar;
c. visto do Tribunal de Contas;
d. publicação no DR ou noutros instrumentos;
e. notificação aos destinatários.

1. A FASE PREPARATÓRIA:

Integra apenas os atos jurídicos que estão diretamente conexionados


com o ato principal e que não produzem efeitos externos se não através
deles. Esta fase inclui os seguintes momentos:
a. iniciativa (art. 53.º): que pode ser desencadeada pelo interessado
ou por um órgão administrativo.
Mas, antes de nos centrarmos na iniciativa propriamente dita, ve-
jamos quem são os sujeitos da relação jurídica procedimental e, bem assim,
quem tem capacidade e legitimidade procedimental. Nos termos do art.
65.º do CPA, são sujeitos da relação jurídica procedimental: os sujeitos
públicos e as entidades que exercem poderes públicos de autoridade, de-
signadamente, os órgãos das entidades referidas no n.º 1 do art. 2.º, quando
sejam competentes para a tomada de decisões ou para a prática de atos
preparatórios; os particulares que possuam legitimidade procedimental;
pessoas singulares e coletivas de direito privado quando em causa esteja a
tutela de interesses difusos; os órgãos que exerçam funções administrati-
vas quando as pessoas coletivas nas quais eles se integram sejam titulares
de direitos ou interesses legalmente protegidos, poderes, deveres ou su-

-64-
Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

jeições que possam ser conformados pelas decisões que nesse âmbito fo-
rem ou possam ser tomadas, ou quando lhes caiba defender interesses di-
fusos que possam ser beneficiados ou afetados por tais decisões (cfr. art.
68.º, n.º 4, do CPA).
Repare-se que o legislador traça, em rigor, duas categorias distin-
tas: ao passo que trata os sujeitos públicos enquanto verdadeiros sujeitos
procedimentais, os restantes são por ele denominados «interessados no
procedimento» (cfr. art. 65.º, n.º 2, do CPA). Se se pugna por um procedi-
mento personificando uma verdadeira relação jurídica procedimental,
porquê tratar os particulares como meros interessados? Mais uma vez, a
epígrafe do artigo não corresponde, em plenitude, ao conteúdo do mes-
mo.
De acordo com o art. 67.º, n.º 1, do CPA, os particulares têm o direito
de intervir pessoalmente no procedimento administrativo ou de nele se fa-
zer representar ou assistir através de mandatário.
No que toca à legitimidade procedimental dos interessados, encon-
tra-se regulada no art. 68.º. Para que os particulares se encontrem legitima-
dos para intervir no procedimento administrativo, isto é, de nele se cons-
tituírem como interessados, devem ser titulares de direitos, interesses le-
galmente protegidos, deveres, encargos, ónus ou sujeições das decisões
que nele forem ou possam ser tomadas, bem como as associações, para de-
fender interesses coletivos ou para proceder à defesa coletiva de interesses
individuais dos seus associados (n.º 1). Destarte, o legislador conferiu legi-
timidade não apenas aos titulares de direitos ou interesses legalmente pro-
tegidos como também àqueles que possam ver os seus interesses jurídicos
afetados pelo procedimento.
De igual modo, têm legitimidade procedimental particulares, asso-
ciações e fundações e as autarquias locais para proteção de interesses difu-
sos e os cidadãos residentes numa dada circunscrição para assegurar a de-
fesa de bens do Estado, das regiões autónomas e das autarquias locais que
se localizem nessa respetiva circunscrição (n.os 2 e 3).
Passemos agora à iniciativa procedimental propriamente dita.
Sendo o procedimento desencadeado por um órgão administrativo,
é-o através de ato público de iniciativa, devendo distinguir-se os procedi-

-65-
Parte II – A atividade administrativa – Formas típicas de atuação

mentos oficiosos dos procedimentos públicos não oficiosos (desencadea-


dos por propostas, requisições). Sendo a iniciativa particular, é desenca-
deada mediante um requerimento – que, regra geral, é escrito, salvas as ex-
ceções admitidas pela lei –, devendo preencher certos requisitos (art. 102.º)
e ser apresentado em certos serviços (art. 103.º). Nesses termos, o requeri-
mento inicial dos interessados deve conter: a) a designação do órgão admi-
nistrativo a que se dirige; b) a identificação do requerente, pela indicação
do nome, domicílio, bem como, se possível, dos números de identificação
civil e identificação fiscal; c) a exposição dos factos em que se baseia o pe-
dido e, quando tal seja possível ao requerente, os respetivos fundamentos
de direito; d) a identificação do pedido, em termos claros e precisos; e) a
data de nascimento e a assinatura do requerente, ou de outrem a seu rogo,
se o mesmo não souber ou não puder assinar; f) a indicação do domicílio
escolhido para nele ser notificado; g) a indicação do número de telefax ou
telefone ou a identificação da sua caixa postal eletrónica.
Deve também notar-se que a atual redação do CPA permite que
num único requerimento sejam deduzidos vários pedidos, desde que entre
eles exista uma conexão (art. 102.º, n.º 2, do CPA) e, ainda, que possam ser
formuladas num único requerimento várias pretensões correspondentes a
uma pluralidade de pessoas, com a condição de que tenham conteúdo e
fundamento idênticos ou substancialmente similares (n.º 3). Cumpre tam-
bém sublinhar que o requerimento é objeto de registo, que menciona o res-
petivo número de ordem, a data, o objeto do requerimento, o número de
documentos juntos e o nome do requerente, tendo este direito a um recibo
comprovativo da entrega do requerimento (arts. 105.º e 106.º do CPA). O
requerimento inicial pode padecer de deficiências, pelo que, nesses casos,
o requerente é convidado a supri-las, nos termos do art. 108.º, n.º 1, do
CPA. Não obstante, os órgãos e agentes administrativos devem procurar
suprir oficiosamente as deficiências dos requerimentos, de forma a que as
deficiências que constituem simples irregularidades ou meras imperfei-
ções na formulação dos pedidos não impliquem prejuízos para os interes-
sados (n.º 2). Situação diversa é a do indeferimento liminar quando os re-
querimentos não se encontrem identificados ou o pedido seja ininteligível
(n.º 3). Se o requerimento for apresentado a órgão incompetente, é enviado

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Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

oficiosamente ao órgão titular da competência, sendo o particular notifi-


cado (aplicação do art. 41.º por força do 109.º, n.º 2, do CPA).
Ainda nesta fase, há lugar à notificação do início do procedimento
às pessoas cujos direitos ou interesses legalmente protegidos possam ser
lesados pelos atos a praticar (contrainteressados), desde que essas pessoas
possam ser nominalmente identificadas (art. 110.º, n.º 1, do CPA). As exce-
ções encontram-se previstas no n.º 2, prendendo-se sobretudo com a dis-
pensa legal ou a natureza secreta ou confidencial da matéria.

b. A instrução (arts. 115.º a 120.º do CPA). Esta subfase destina-se a


averiguar todos os factos cujo conhecimento seja conveniente para a deci-
são, assim como carrear para o processo todos os elementos probatórios
pertinentes para a tomada de decisão. Vinga o princípio do inquisitório
(arts. 115.º e 58.º do CPA), sem prejuízo de o ónus da prova caber ao inte-
ressado (art. 116.º, n.º 1, do CPA)16. Em regra, a direção da instrução cabe
ao órgão competente para a decisão. A instrução inclui:
i. Diligências probatórias: prestação de informações; junção e apre-
sentação de documentos e coisas; sujeição a inspeções; produção anteci-
pada de prova; realização de exames; realização de exames e vistorias e
avaliações por peritos;
ii. Diligências consultivas, que incluem a emissão de pareceres. Es-
tes incluem-se na modalidade de atos instrumentais, pertencentes à cate-
goria das avaliações, enquanto apreciação de carácter jurídico ou relativo
à conveniência administrativa ou técnica, emitida por um órgão consul-
tivo, a propósito de um ato em preparação ou de realização eventual. Os
pareceres podem ser facultativos ou obrigatórios; os pareceres obrigatórios
podem, por sua vez, ser vinculativos ou não vinculativos sendo que, na
falta de disposição legal, a regra é a de que os pareceres são obrigatórios
mas não são vinculativos; assim, devem ser solicitados, sob pena de se
produzir um vício no ato final por preterição de uma formalidade essencial
no procedimento, geradora de uma invalidade.

16 Vd. Acórdão do STA de 27/01/2010, 1.ª secção, processo n.º 978/0912.

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Parte II – A atividade administrativa – Formas típicas de atuação

b.1. Os acordos endoprocedimentais constituem uma das princi-


pais novidades do novo CPA, enquanto expressão de um novo modo de
ser das relações jurídico-administrativas. Assim, «o princípio da contratua-
lidade no procedimento como afirmação do novo modelo de administra-
ção (…), numa configuração que se pretende perfeita entre a autonomia
privada e o procedimento administrativo (…) é a imagem de uma adminis-
tração que depõe o ceptro e desce do pedestal para se encontrar com o ci-
dadão para melhor definir relações de natureza jurídico-administrativa»17.
A introdução destes acordos tem ainda a sua fundamentação enrai-
zada no princípio da adequação procedimental, postulado no art. 56.º do
CPA.
Conhecidos sobretudo do ordenamento jurídico italiano, os acordos
endoprocedimentais surgem no novo CPA no art. 57.º. São, essencialmen-
te, de dois tipos: acordos em relação aos termos do procedimento (n.º 1) e
acordos em relação à decisão final (n.º 3).
Quanto aos acordos endoprocedimentais relativos aos termos do
procedimento, traduzem-se num acordo quanto à forma procedimental,
isto é, não sendo relativos à decisão final, expressam uma convenção quan-
to à forma para chegar a essa decisão.
Este tipo de acordos apenas pode aplicar-se no âmbito da discricio-
nariedade procedimental, ou seja, só podem ter lugar nos procedimentos
para os quais a lei não defina as formas a seguir. Ainda, tem de ser reali-
zado sob a forma escrita, possuindo efeito vinculativo (art. 57.º, n.º 1 e n.º
2, do CPA). Exemplo de um acordo endoprocedimental relativo aos termos
do procedimento, fornecido pelo próprio legislador, é o acordo quanto à
organização de audiências orais para o exercício do contraditório entre os
interessados que pretendam uma certa decisão e aqueles que se lhe opo-
nham.
Perante um acordo endoprocedimental relativo à decisão final, nas
palavras de PAULO OTERO, «(…) a Administração limita o exercício do
seu poder discricionário de fixar o conteúdo de uma decisão final, não obs-
tante manter o exercício de um poder unilateral de decisão, em relação aos

17 COLAÇO ANTUNES, «O ato administrativo contratual», cit., p. 95.

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Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

contratos substitutivos, pelo contrário, a Administração abdica de exercer


o seu poder unilateral de decisão, substituindo-o por um instrumento con-
tratual, o que traduz o exercício de uma atividade administrativa consen-
sual»18. O interessado passa, assim, a influenciar a decisão final do proce-
dimento, comprometendo-se a Administração a atuar num determinado
sentido ou com um determinado conteúdo, sentido e conteúdo esses acor-
dados em prol de um resultado satisfatório para ambas as partes. Todavia,
como bem se depreende da explicação do autor supramencionado, a deci-
são final continua a ser unilateral, isto é, é à Administração quem cabe de-
cidir, embora essa decisão deva expressar o acordo previamente realizado.
A doutrina não é unânime em relação à natureza jurídica destes
acordos. Se, para uns, configuram verdadeiros contratos entre a Adminis-
tração e os particulares (como é caso, na doutrina mais recente, de JOANA
LOUREIRO), outros os qualificam como atos administrativos contratuais
ou consensuais (como, por exemplo, VASCO PEREIRA DA SILVA, COLA-
ÇO ANTUNES, PAULO OTERO e RODRIGO ESTEVES DE OLIVEIRA).
Se é certo que os acordos procedimentais possuem diversas vanta-
gens, como seja a flexibilização, agilidade e eficiência do procedimento e,
ainda, a diminuição da litigiosidade, não menos verdade é a necessidade
da ponderação de alguns riscos ou perigos, mormente representados pela
tensão que pode existir por força de uma eventual imposição unilateral da
vontade da Administração.
Deve, no entanto, ressalvar-se que o objeto do acordo endoprocedi-
mental tem de ser legal e materialmente admissível.

b.2. Conferência procedimental – encontra-se prevista nos arts. 77.º


a 81.º do CPA.
As conferências podem dizer respeito a um único procedimento ou
a vários procedimentos conexos, e dirigir-se à tomada de uma única deci-
são ou de várias decisões conjugadas (art. 77.º, n.º 2).

18 In «O poder de substituição em Direito Administrativo: enquadramento dogmáti-

co-constitucional», cit.

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Parte II – A atividade administrativa – Formas típicas de atuação

Pode ser deliberativa ou de coordenação. Diz-se deliberativa quan-


do destinada ao exercício conjunto das competências decisórias dos órgãos
participantes através de um único ato complexo, que substituiu a prática,
por cada um deles, de atos administrativos autónomos. Diz-se de coorde-
nação quando se destina ao exercício individualizado, mas simultâneo, das
competências dos órgãos participantes, através da prática, por cada um
deles, de atos administrativos autónomos.
Nos termos do art. 78.º do CPA, a instituição da conferência procedi-
mental exige uma previsão legal específica em lei ou regulamento, ou em
contrato interadministrativo a celebrar entre entidades públicas autóno-
mas.

b.3. Medidas provisórias – podem ser adotadas em qualquer fase do


procedimento pelo órgão competente para a decisão final, seja oficiosa-
mente seja a requerimento dos interessados, sempre que se mostrem ne-
cessárias ou quando haja justo receio que, sem essas medidas, se constitua
uma situação de facto consumado ou se produzam prejuízos de difícil re-
paração tanto para os interesses públicos como para os interesses privados,
e desde que, uma vez ponderados esses interesses, os danos que resulta-
riam da medida não se mostrem superiores aos que se pretendam evitar
com a respetiva adoção (art. 89.º, n.º 1, do CPA). Para que seja adotada, al-
terada ou revogada uma medida provisória, não é necessário a existência
de audiência prévia, mas deve haver lugar a fundamentação e deve a me-
dida fixar o prazo para a sua vigência (n.º 2 e n.º 3). O ato administrativo
que ordene medidas provisórias pode ser impugnado judicialmente (n.º 4).
Naturalmente, para que haja lugar à adoção de medidas provisórias,
tem de existir um procedimento em curso e uma relação de instrumentali-
dade com a decisão final.

c. A audiência dos interessados, consagrada no art. 121.º, revela-se


como trâmite destinado à efetivação da participação dos interessados na
formação da decisão administrativa. Decorre, desde logo, do art. 267.º, n.º
5, da CRP: administração participativa ou dialógica. A regra da audiência
obrigatória está prevista sempre que a decisão da AP seja em sentido

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Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

desfavorável aos interessados (arts. 121.º, n.º 1, e 124.º, n.º 1, a contrario do


CPA). Não obstante, existem situações em que não há lugar a audiência
prévia, isto é, casos em que a lei permita ao agente administrativo res-
ponsável pela direção do procedimento dispensá-la: quando a decisão é
urgente; quando seja razoavelmente de prever que a audiência prévia pos-
sa comprometer a execução ou a utilidade da decisão; quando o número
de interessados seja de tal forma elevado que a audiência seja impraticável,
devendo nesses casos existir uma audiência pública; quando os interessa-
dos já se tenham pronunciado no procedimento sobre questões que impor-
tam à decisão e sobre as provas produzidas; quando os elementos constan-
tes do procedimento conduzirem a uma decisão inteiramente favorável
aos interessados (art. 124.º, n.º 1, alíneas a) a f), do CPA). Fora destes casos,
a audiência prévia é sempre obrigatória.
A omissão legalmente devida da audiência prévia é geradora de
um vício que inquina o ato final do procedimento, ou seja, constitui um
vício formal, por preterição de uma formalidade essencial. A consequên-
cia pode ser a anulabilidade (defendida por autores como PEDRO MA-
CHETE e FREITAS DO AMARAL) ou a nulidade (defendida por autores
como VASCO PEREIRA DA SILVA, SÉRVULO CORREIA e LUÍS CA-
BRAL DE MONCADA). Esta última tese entende a audiência prévia como
direito fundamental, análogo a direitos, liberdades e garantias, devendo,
pois, aplicar-se o art. 161.º, n.º 2, alínea d), do CPA.
Importa ter presente, contudo, a importância que tem a audiência
prévia nos procedimentos administrativos sancionatórios, como seja o dis-
ciplinar e o contraordenacional, ex vi art. 32.º, n.º 10, da CRP. Aqui, por im-
posição constitucional, a audiência dos interessados corresponde à concre-
tização de um verdadeiro princípio fundamental de defesa, pelo que a sua
preterição é sancionada com a nulidade (nos termos do art. 161.º, n.º 1, alí-
nea d), do CPA).
A dispensa de audiência prévia deve, contudo, ser devidamente
fundamentada (art. 124.º, n.º 2, do CPA). A realização da audiência prévia
suspende a contagem dos prazos em todos os procedimentos administra-
tivos (art. 121.º, n.º 3, do CPA). A audiência pode ser escrita ou oral (art.
123.º do CPA).

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Parte II – A atividade administrativa – Formas típicas de atuação

2. FASE CONSTITUTIVA

É a fase em que se produz o ato principal do procedimento. Aliás,


o art. 93.º do CPA aponta que o procedimento se extingue pela tomada da
decisão final, que é normalmente uma decisão expressa, podendo ser ou-
tras as causas de extinção, nos termos dos arts. 94.º e 95.º do CPA, bem
como nos termos dos arts. 127.º e ss. Assim, a desistência e a renúncia (art.
131.º), a deserção (art. 132.º), a impossibilidade ou inutilidade superve-
niente (art. 95.º) e a falta de pagamento de taxas e despesas (art. 133.º) são
outras causas possíveis de extinção do procedimento administrativo.
O procedimento de iniciativa particular deve ser decidido, regra ge-
ral, no prazo de 90 dias (art. 128.º, n.º 1, do CPA).
A decisão deve ser devidamente fundamentada. Seguindo VIEIRA
DE ANDRADE, «o dever de fundamentação expressa obriga a que o órgão
administrativo indique as razões de facto e de direito que o determinaram
a praticar aquele ato, exteriorizando, nos seus traços decisivos, o procedi-
mento interno de formação da vontade decisória» 19.
Importa, no entanto, ressalvar que nem sempre o procedimento ad-
ministrativo termina com a emissão de um ato expresso, isto porque si-
tuações há em que o silêncio administrativo possui relevância jurídica, de-
vendo ser entendido como incumprimento do dever de decisão, conferin-
do ao interessado a possibilidade de utilizar os meios de tutela adminis-
trativa e jurisdicional adequados.
O silêncio administrativo pode, então, possuir eficácia jurídica ne-
gativa (regra), sendo esta aquela que consta do art. 129.º do CPA. Para tal,
devem verificar-se determinados pressupostos: (1) haja dever legal de de-
cisão (art. 13.º, n.º 1, do CPA); (2) o requerimento tenha sido dirigido a ór-
gão administrativo competente; (3) e tenha decorrido o prazo legal para a
tomada da decisão (em regra, 90 dias). Reunidos os pressupostos, verifica-
-se incumprimento do dever de decisão, pelo que o interessado tem a pos-
sibilidade de utilizar os meios de tutela administrativa e jurisdicional ade-

19 Vd. O Dever da Fundamentação Expressa de Atos Administrativos, Coimbra: Almedina,


2018.

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Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

quados, com vista a obter a pronúncia administrativa e a satisfação da pre-


tensão e a condenação da Administração à emissão do ato devido.
Mas, o silêncio administrativo pode igualmente possuir relevân-
cia jurídica (a título excecional). Tal ocorre nas situações em que o exercí-
cio de um direito pelo particular depende de autorização ou aprovação
administrativa (atos tácitos), nos termos do art. 130.º do CPA, devendo re-
conhecer-se o ato tácito.
Situação diversa é a do art. 13.º, n.º 2, do CPA. Não existe dever de
decisão quando, (1) há menos de dois anos, contados da data de apresen-
tação do requerimento, (2) o órgão competente tenha praticado um ato ad-
ministrativo sobre o mesmo pedido, (3) formulado pelo mesmo particular
com os mesmos fundamentos.

3. FASE INTEGRATIVA DA EFICÁCIA

Com o encerramento da fase constitutiva, o ato a que tende o proce-


dimento encontra-se perfeito. Sucede, porém, que, muitas vezes, apesar de
se ter preenchido o tipo legal, não se desencadeiam imediatamente os efei-
tos que a ordem jurídica lhe assinala. Nestes casos, o ato é potencialmente
produtor de consequências, mas elas estão comprimidas ou estão em esta-
do latente. Torna-se, pois, necessária uma terceira fase que integra os atos
que, não podendo acrescentar nada ao ato principal, vão, todavia, confe-
rir-lhe força que os liberte da compressão.
Assim, atos integrativos da eficácia são aqueles atos (normalmente
de matriz instrumental) que, não contribuindo para a definição do conteú-
do do ato principal, visam apenas remover os obstáculos à sua operativi-
dade efetiva.
Os atos integrativos da eficácia são de natureza vária. Passamos a
indicar alguns:
1. Atos de controlo preventivo, como por exemplo a aprovação e
vistos – têm por finalidade fiscalizar a legalidade (e, no caso das aprova-
ções, também a conveniência e a oportunidade) do ato administrativo res-
petivo, nada acrescentando ao seu conteúdo. Neste caso, assume particular
relevo o visto do Tribunal de Contas (controlo da legalidade orçamental

-73-
Parte II – A atividade administrativa – Formas típicas de atuação

do ato administrativo) que tem a particularidade de não ser um ato de res-


ponsabilidade da Administração, mas de um órgão que desempenha a
função jurisdicional.
2. Atos de adesão do interessado (exemplos: tomada de posse com
o juramento; necessidade de pagar uma taxa ou juntar um documento ou
o depósito de uma caução).

Depois de um ato ter sido praticado, ele deve ser comunicado ao in-
teressado. É certo que a regra no Direito Administrativo português é a de
que os atos administrativos não são recetícios e, assim sendo, a notificação
não é sempre exigível. Ela só é exigível quando a lei o determinar ou quan-
do a execução do ato suponha uma colaboração do destinatário, nomeada-
mente quando cria deveres (cfr. art. 114.º do CPA).
Nesses moldes, os atos administrativos, uma vez praticados, são co-
municados aos interessados através da publicação (no DR, no boletim in-
formativo da autarquia, nos lugares de estilo, conforme disposto na lei) ou
por notificação, tratando-se de dar conhecimento pessoal, oficial e formal
do ato aos seus destinatários, através de notificação pessoal, carta registada
ou outro meio previsto na lei.

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Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

PARTE II – A ATIVIDADE ADMINISTRATIVA


– FORMAS TÍPICAS DE ATUAÇÃO

O REGULAMENTO ADMINISTRATIVO

AULA N.º 5

Sumário: I. Regime substantivo do regulamento administrativo; 1. Noção


de regulamento e fundamentos do poder regulamentar; 2. Limites do poder regu-
lamentar; 3. Titularidade do poder regulamentar; 4. Classificação dos regulamen-
tos; 5. Espécies de regulamentos gerais externos; II. A disciplina procedimental dos
regulamentos administrativos: 1. Valorização do regulamento externo para efeitos
do CPA; 2. Procedimento do regulamento administrativo; 3. Revogação e caduci-
dade do regulamento; 4. Relações de hierarquia entre os regulamentos; 5. Invalida-
des do regulamento.

BIBLIOGRAFIA DE BASE

FREITAS DO AMARAL, Diogo, Curso de Direito Administrativo, Vol. II, 4.ª


ed., Coimbra: Almedina, 2018, pp. 149 ss.
VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos, Lições de Direito administrativo, 5.ª ed.,
Coimbra: Coimbra Jurídica, 2017, pp. 141 e ss.

BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR GERAL

AROSO DE ALMEIDA, Mário, Teoria Geral do Direito Administrativo, 5.ª ed.,


Coimbra: Almedina, 2018, pp. 173 a 216
OLIVEIRA, Fernanda Paula/FIGUEIREDO DIAS, José Eduardo, Noções
Fundamentais de Direito Administrativo, 5.ª ed., Coimbra: Almedina, 2018, pp. 161 a
178
VILHENA DE FREITAS, Lourenço, Direito do Procedimento Administrativo e
Formas de Atuação da Administração – Parte Geral, Lisboa: AAFDL Editora, 2016, pp.
357 a 397

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Parte II – A atividade administrativa – Formas típicas de atuação

BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR ESPECÍFICA

AROSO DE ALMEIDA, Mário, «Os Regulamentos no Ordenamento Jurí-


dico Português», in Estudos Comemorativos dos 10 Anos da Faculdade de Direito da
Universidade Nova de Lisboa, vol. I, Coimbra: Almedina, 2008
MONIZ, Ana Raquel, Estudos sobre os regulamentos administrativos, 2.ª ed.,
Coimbra: Almedina, 2016;
MORAIS, Carlos Blanco de, Novidades em Matéria da Disciplina dos Regula-
mentos no Código de Procedimento Administrativo, policopiado, 2018
SILVA, Jorge Pereira da, «Algumas Questões sobre o Poder Regulamentar
Regional», in Perspetivas Constitucionais (Nos 20 anos da Constituição de 1976), vol. I,
Coimbra: Coimbra Editora, 1996
SOARES, Rogério, «Teoria dos Regulamentos», in Revista de Direito e Estudos
Sociais, XXVII (1.ª série), pp. 1 e ss., e ano 1.º (2.ª série), pp. 5 e ss.
VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos, «Autonomia Regulamentar e Reserva
de Lei», in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Afonso Rodrigues Queiró, Univer-
sidade de Coimbra: Boletim da Faculdade de Direito, 1984

I. Regime substantivo do regulamento administrativo

1. Noção de regulamento e fundamentos do poder regulamentar

Tivemos já a oportunidade de mencionar que o regulamento admi-


nistrativo se assume, simultaneamente, como fonte de Direito e forma de
atuação administrativa, vinculando, por isso, não só os seus destinatários
como também a própria administração.
Os regulamentos administrativos podem definir-se, nos termos do
art. 135.º do CPA, enquanto normas jurídicas gerais e abstratas que, no
exercício de poderes jurídico-administrativos, visem produzir efeitos jurí-
dicos externos. Com efeito, consideram-se regulamentos administrativos
«quaisquer normas emanadas pelos órgãos ou autoridades competentes
no exercício da função administrativa, com valor infralegal e destinadas,
em regra à aplicação das leis ou de normas equiparadas (designadamente,
das disposições normativas diretamente aplicáveis da União Europeias)»
(VIEIRA DE ANDRADE).

-76-
Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

Vejamos, com maior detalhe, os elementos que o conceito encerra.


Em primeiro lugar, o regulamento administrativo é uma norma jurídica
(elemento material). Como tal, configura um critério de decisão e padrão
de comportamento, isto é, uma regra de direito, suscetível de desencadear
a aplicação de sanções administrativas ou disciplinar em caso da sua vio-
lação. Reveste-se de generalidade e abstração. A generalidade significa
que o regulamento se aplica a uma pluralidade indeterminada de destina-
tários, enquanto que a abstração quer significar que se aplica a um número
indefinido de situações, não se esgotando, por isso, com uma única aplica-
ção. Estas características permitem, desde logo, contrapor o regulamento
administrativo ao ato administrativo, que se aplica a situações individuais
e concretas (cfr. art. 148.º do CPA).
Em segundo lugar, os regulamentos administrativos são emanados
por órgãos de entidades administrativas (elemento orgânico) ou, para ser-
mos rigorosos, por entidades investidas de poderes administrativos.
Em terceiro lugar, os regulamentos administrativos são emanados
no exercício da função administrativa (elemento funcional). Recorde-se,
aqui, que o essencial da função administrativa está na afirmação da preva-
lência do interesse público concreto (vd. o nosso Direito Administrativo I).
Esta característica permite-nos, no imediato, distinguir os diferentes atos
praticados pelo Governo. Possuindo o poder legislativo a título principal,
o Governo emana decretos-lei; ao invés, ao abrigo da função administrati-
va, emana regulamentos administrativos.
Expostos os elementos configuradores da noção de regulamento ad-
ministrativo, resta-nos questionar, afinal, porque existe o poder regula-
mentar?
O poder regulamentar assume-se como um poder derivado, sendo
determinado por lei («poder normativo complementar do legislador» nas
palavras de GARCÍA DE ENTERRÍA e TOMÁS-RAMÓN FERNÁNDEZ).
Como referem MARCELO REBELO DE SOUSA e ANDRÉ SALGADO DE
MATOS, «os regulamentos têm necessariamente que ser habilitados por
lei. Contudo, o grau de densidade normativa da lei habilitante pode variar
entre a vinculação total do conteúdo regulamentar e, no extremo oposto, a
atribuição de uma quase total liberdade de conformação regulamentar,

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Parte II – A atividade administrativa – Formas típicas de atuação

limitando-se, neste último caso a identificar a competência, em sentido


subjetivo e em sentido objetivo, para a sua emissão (…)». Assim, como re-
sulta do art. 112.º, n.º 7, da CRP, os regulamentos devem indicar expressa-
mente as leis que visam regulamentar ou que definem a competência sub-
jetiva ou objetiva para a sua emissão.
O poder regulamentar encontra-se subordinado ao princípio da le-
galidade. Dessa forma, o regulamento não pode modificar ou interpretar
autenticamente a lei, mas apenas preencher o espaço normativo entre a lei
e atuação administrativa concreta. Daqui resulta o reconhecimento da pre-
valência da lei face ao regulamento, possuindo este um valor infralegal. É
precisamente neste sentido que o art. 112.º, n.º 5, da CRP proíbe regula-
mentos modificativos, suspensivos, derrogatórios ou revogatórios das leis:
nenhuma lei pode criar outras categorias de atos legislativos ou conferir a
atos de outra natureza o poder de, com eficácia externa, interpretar, inte-
grar, modificar, suspender ou revogar qualquer dos seus preceitos.
No que diz respeito ao poder regulamentar externo, o seu funda-
mento é a própria lei, seja constitucional ou ordinária, pelo que, na ausên-
cia de uma referência expressa sua, considera-se que a Administração não
goza de competência regulamentar: o poder regulamentar não se presume.
Por sua vez, o poder regulamentar interno colhe fundamento no po-
der de autorregulamentação e auto-organização da Administração, não ca-
recendo, por isso, de uma autorização especial. Nos ensinamentos de
AFONSO QUEIRÓ, o poder de elaborar regulamentos internos encontra-
-se implícito no «poder geral de soberania próprio da Administração».
FREITAS DO AMARAL, entende, no entanto, que o seu fundamento é o
poder de direção, próprio do superior hierárquico.

2. Limites do poder regulamentar

Em primeiro lugar, os regulamentos não podem ser contrários a pre-


ceitos normativos com valor superior. Assim, nos termos do art. 143.º do
CPA, são inválidos os regulamentos que sejam desconformes com a Cons-
tituição, a lei e os princípios gerais de direito administrativo ou que infrin-
jam normas de direito internacional ou de Direito da União Europeia. Ain-

-78-
Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

da, devem respeitar outros regulamentos de grau superior. Por exemplo,


os regulamentos das autarquias locais têm de respeitar os regulamentos
do Governo.
Em segundo lugar, os regulamentos não podem versar sobre maté-
rias reservadas constitucionalmente à lei (cfr. art. 112.º, n.os 6 e 7, da CRP).
Em terceiro lugar, vigora um princípio de proibição de efeitos retro-
ativos. Exige-se, assim, que os regulamentos respeitem a competência das
autoridades no tempo e os direitos adquiridos. É o que resulta do art. 141.º
do CPA: n.º 1 – não pode ser atribuída eficácia retroativa aos regulamentos
que imponham deveres, encargos, ónus, sujeições ou sanções, que causem
prejuízos ou restrinjam direitos ou interesses legalmente protegidos, ou
afetem as condições do seu exercício; n.º 2 – os efeitos dos regulamentos
não podem reportar-se a data anterior àquela a que se reporta a lei habili-
tante. Naturalmente que tal proibição não se aplica aos regulamentos que
contém um regime mais favorável para os seus destinatários.
Em quarto lugar, a competência regulamentar encontra-se fixada
subjetiva e objetivamente, ou seja, um órgão com competência regulamen-
tar não pode invadir a esfera de competências de outras autoridades com
poderes administrativos e não pode prosseguir senão o fim que determi-
nou a atribuição do poder regulamentar.
Em quinto lugar, o poder regulamentar, sobretudo aquele que im-
plica um amplo poder discricionário, encontra-se vinculado aos princípios
gerais de Direito Administrativo, postulados tanto na Constituição (art.
266.º) como no CPA (arts. 3.º e ss.), nomeadamente, os princípios da igual-
dade, proporcionalidade, imparcialidade, justiça e razoabilidade, boa-fé,
prossecução do interesse público, entre outros. Com CARLOS BLANCO
DE MORAIS, reafirma-se, portanto, que «(…) quanto menos determinados
forem os princípios invocados e menos específicos os fins que visam pros-
seguir, menos controlável será a respetiva realização e menos intenso será
o sindicato de validade incidente sobre os regulamentos com os quais os
mesmos se confrontem».

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Parte II – A atividade administrativa – Formas típicas de atuação

Em sexto lugar, os regulamentos encontram-se duplamente vincu-


lados a uma obrigatoriedade de emissão e a uma impossibilidade de sim-
ples revogação de regulamentos que sejam necessários à execução da lei
ou de Direito da União Europeia (arts. 137.º e 146.º do CPA). Desta forma,
os regulamentos revogatórios devem fazer menção expressa das normas
revogadas (art. 146.º, n.º 4, do CPA). Quanto aos regulamentos de execu-
ção, estes caducam com a revogação das leis que regulamentam, salvo na
medida em que sejam compatíveis com a lei nova e enquanto não houver
regulamentação desta. Trata-se, portanto, de garantias de certeza, clareza
e segurança jurídica (art. 145.º, n.º 2, do CPA).
Em sétimo lugar, o poder regulamentar é trespassado pela inderro-
gabilidade singular dos regulamentos. Esta regra significa que, a partir do
momento em que o regulamento entre em vigor, ele vincula tanto os par-
ticulares como os tribunais e a própria administração e, bem assim, a ad-
ministração não pode derrogar as disposições regulamentares por meio de
atos administrativos de caráter individual e concreto (art. 142.º, n.º 2, do
CPA). Os regulamentos vinculam todos, incluindo o próprio autor.
Alguma doutrina, como é o caso de VIEIRA DE ANDRADE, admite
ainda a recusa excecional de aplicação por órgãos administrativos de regu-
lamentos que considerem inconstitucionais, contrários ao Direito da União
Europeia ou ilegais, em casos de manifesta anti juridicidade e por certas
autoridades, como é o caso dos órgãos superiores da Administração esta-
dual ou da Administração autónoma e tenham, eles mesmos, competência
regulamentar.

3. Titularidade do poder regulamentar

i. Administração estadual direta

O Governo, órgão superior da Administração Pública, é o principal


titular do poder regulamentar. A sua titularidade resulta, desde lodo, dos
arts. 112.º, n.º 6, e 199.º, alínea c), da CRP. Os regulamentos do Governo
não se confundem com os seus decretos-lei, estes emitidos ao abrigo do

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Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

poder legislativo, enquanto aqueles ao abrigo da sua função administra-


tiva.
Os regulamentos do Governo podem assumir a forma de decreto re-
gulamentar, de resolução do Conselho de Ministros, de portaria (da auto-
ria um ou mais ministros, em nome do Governo), de despacho normativo
(regulamento editado por um ou mais ministros), ou de despacho simples
(forma de ato administrativo, mas natureza regulamentar).
Podem existir regulamentos da Administração Periférica, como é o
caso dos regulamentos das CCDR. Tais colhem fundamento constitucional
no art. 267.º, n.º 2.

ii. Administração estadual indireta, em especial, os institutos públicos

Os institutos públicos são entidades que, sujeitas a superintendência


e tutela do Governo, desempenham também tarefas estaduais. O seu poder
regulamentar decorre, desde logo, da sua lei criadora, bem como dos res-
petivos estatutos. É o que sucede frequentemente, por exemplo, no caso
das Universidades que se configuram como institutos públicos.
Neste sentido, a Lei-Quadro dos Institutos Públicos (Lei n.º 3/2004,
de 15 de janeiro, na versão que lhe é dada pelo DL n.º 96/2015, de 29 de
maio), postula no art. 21.º, alínea h), que é da competência do conselho di-
retivo do instituto público aprovar os projetos dos regulamentos previstos
nos estatutos e os que sejam necessários ao desempenho das atribuições
do instituto. A questão não é, contudo, incontroversa, uma vez que o refe-
rido preceito se refere à competência para aprovar «projetos dos regula-
mentos» e não a «regulamentos» propriamente ditos, o que nos leva a
questionar sobre o verdadeiro poder regulamentar dos institutos públicos.
Mesmo que seja de admitir que os institutos públicos emanem regulamen-
tos independentes, não pode deixar de se assinalar a sua submissão ao
princípio da legalidade e a sua subordinação aos regulamentos governa-
mentais.

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Parte II – A atividade administrativa – Formas típicas de atuação

iii. Administração autónoma territorial

As Regiões Autónomas são também titulares do poder regulamen-


tar, nos termos dos arts. 227.º, n.º 1, alínea d), e 232.º, n.º 1, da CRP, detendo
autonomia normativa regulamentar. Os seus regulamentos encontram-se
limitados quer quanto ao objeto, podendo apenas versar sobre matérias in-
cluídas nas atribuições da pessoa coletiva, quer quanto aos destinatários,
abarcando, em regra, apenas os membros da coletividade que constituem
o substrato pessoal da entidade pública (VITAL MOREIRA).
Os regulamentos das Regiões Autónomas art. (233.º, n.º 1, da CRP)
possuem a forma de decretos regulamentares regionais (quando emanado
pela Assembleia Legislativa, visando regulamentar uma lei geral da Repú-
blica), verificando-se mais uma vez um ato normativo sob a veste de ato
legislativo, mas de natureza regulamentar. Ao Governo regional compete
regulamentar os decretos legislativos regionais e aprovar regulamentos de
funcionamento da Administração regional.
A autonomia regulamentar das Autarquias Locais encontra-se
constitucionalmente prevista no art. 241.º da CRP (vd. ainda Lei n.º 75/2013,
de 12 de setembro). Os regulamentos das autarquias locais não têm forma
típica. Contudo, destacam-se as posturas, que são os regulamentos locais
de polícia.

iv. Administração Autónoma não territorial

O poder regulamentar das Universidades resulta, em primeira mão,


da sua autonomia estatutária, científica, pedagógica, administrativa e fi-
nanceira, postulada no art. 76.º, n.º 2, da CRP. Ademais, a autonomia regu-
lamentar das Universidades é reiterada pelo art. 5.º da Lei de Autonomia
das Universidades (Lei n.º 108/88, de 24 de setembro). O poder regulamen-
tar que lhes é conferido assume-se como um poder de autogoverno, auto-
-organização e autorregulação (poder regulamentar externo e interno).
Por sua vez, as Ordens e as Câmaras Profissionais têm por função
representar e defender os interesses profissionais dos seus membros e re-
gular a atividade profissional. Ora, o seu poder regulamentar traduz-se

-82-
Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

precisamente na emissão de regulamentos com vista a disciplinar a ativi-


dade profissional, tanto do ponto de vista da sua organização interna como
da perspetiva do exercício da atividade.
As ordens e câmaras profissionais não têm a sua autonomia regula-
mentar postulada nas disposições constitucionais, no entanto, vislumbra-
-se legítimo que o legislador, em ordem a ímpetos de descentralização, lhes
confira competência objetiva e subjetiva para a emanação de regulamentos
que visem disciplinar os seus interesses próprios, salvo se se tratar de ma-
téria restritiva de direitos, liberdades e garantias, situações que configu-
ram um limite absoluto ao seu poder regulamentar.

v. Entidades Privadas com funções administrativas

Tais entidades só podem emitir regulamentos no exercício das fun-


ções administrativas que lhe são concedidas, exigindo-se igualmente a
existência de uma habilitação legal prévia20.

vi. Entidades administrativas independentes (maxime, entidades regula-


doras) 21

Para além de poderes de fiscalização, de supervisão, poderes con-


sultivos e sancionatórios, as entidades reguladoras dispõem também de
verdadeiros poderes de regulamentação – poder regulamentar próprio.
Estes apenas devem ser admitidos sob a espécie de regulamentos de exe-
cução, embora muitas vezes se assumam como regulamentos complemen-
tares ou mesmo independentes (tendência de deslegalização, isto é, carên-
cia de parâmetros materiais fixados pela lei – VIEIRA DE ANDRADE).
Num contexto de Estado Regulador, torna-se imprescindível a exis-
tência de um poder regulamentar. Sendo as entidades reguladoras dota-

20 Sobre a delegação administrativa do poder regulamentar em entidades privadas,

vd. ANA RAQUEL MONIZ, Estudos sobre os regulamentos administrativos, 2.ª ed., Coimbra: Al-
medina, 2016.
21 Para uma visão aprofundada, vd. ISABEL BIRMANN, O Poder regulamentar das au-

toridades Reguladoras Independentes, FDUP: Tese de Mestrado, 2018.

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Parte II – A atividade administrativa – Formas típicas de atuação

das de especialização técnica e profissional e regulando determinados se-


tores da atividade económica e social, o poder regulamentar que lhes é
concedido revela-se, pois, um importante instrumento para o exercício da
função administrativa reguladora e para a eficiência e dinamização da or-
dem jurídica. Entende-se mais uma vez que o fundamento do poder regu-
lamentar é a lei22.
Questão importante é a de aferir se, em caso de contradição com um
regulamento governamental, deve o regulamento da Entidade Reguladora
prevalecer ou não. Alguns autores entendem que, nesses casos, deve apli-
car-se o critério da hierarquia, prevalecendo assim o regulamento gover-
namental sobre o regulamento da entidade reguladora (PAULO OTERO).
Ao invés, para outra franja da doutrina, por recurso ao critério da especia-
lidade, entende que os regulamentos das entidades reguladoras, enquanto
regulamentos especiais, não podem ser revogados ou anulados por regu-
lamentos do Governo, imperando a ideia de que a lei especial prevalece
sobre a lei geral (GOMES CANOTILHO).

4. Classificação dos regulamentos

i. Quanto ao critério da eficácia, os regulamentos podem ser exter-


nos ou internos. Consideram-se regulamentos externos aqueles que se
aplicam a quaisquer relações intersubjetivas, inclusive às relações interad-
ministrativas, isto é, tanto às relações entre a Administração e os particu-
lares como às que se estabelecem entre as diferentes entidades administra-
tivas.
Ao invés, os regulamentos internos limitam-se a disciplinar a orga-
nização ou funcionamento de uma pessoa coletiva ou de um órgão, na me-
dida em que não tenham carácter relacional nem envolvam dimensões pes-
soais, assim como aqueles que criam autovinculações internas na interpre-
tação e aplicação das leis, nomeadamente no exercício de poderes discri-

22 Em sentido contrário, ANA RAQUEL MONIZ, que o considera fruto de uma dele-

gação de poderes normativos.

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Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

cionários (VIEIRA DE ANDRADE). Por conseguinte, os regulamentos in-


ternos esgotam os seus efeitos na esfera da pessoa coletiva administrativa.
Para além de colherem, como já vimos, fundamentos diferentes,
possuem também regimes jurídicos distintos. Destarte, os regulamentos
internos não são suscetíveis de impugnação contenciosa, pois não afetam
a esfera dos particulares nem estão sujeitos ao princípio da inderrogabili-
dade singular, uma vez que este princípio (art. 142.º, n.º 2, do CPA) apenas
se aplica aos regulamentos externos (ex vi art. 135.º do CPA), o que significa
que na regulação interna se admitem decisões concretas divergentes, in-
cluindo o seu não cumprimento pelo órgão administrativo, embora se exija
a sua devida fundamentação.
Não obstante, os regulamentos internos possuem relevância jurídi-
ca, sobretudo quando em causa estejam diretrizes autovinculativas em re-
lação ao exercício do poder discricionário. Assim, os regulamentos inter-
nos podem sempre ser sujeitos a impugnação administrativa, designada-
mente por meio de recursos hierárquicos ou tutelares e, ainda, ser suscetí-
veis de invocação perante o tribunal em ações como as de impugnação de
atos ou de responsabilidade civil administrativa, quando em causa estejam
situações sintomáticas de ilegalidade dos atos administrativos – os atos ad-
ministrativos são ilegais se os regulamentos internos também o forem – ou
dos atos que, sem fundamentação, não apliquem as suas disposições, como
é o caso da violação do princípio da igualdade ou do mau uso do poder
discricionário.

ii. Quanto ao critério dos destinatários, podem ser regulamentos ge-


rais, especiais ou setoriais.
Os regulamentos setoriais são aqueles que regulam um setor da ati-
vidade económica ou social.
São regulamentos gerais aqueles que têm como destinatários todos
os particulares em geral, não existindo uma relação estatuária entre eles e
a Administração. Pela definição apresentada, depreende-se que consti-
tuem verdadeiros regulamentos externos, na medida em que, tendo por
destinatários a generalidade dos particulares, produzem efeitos jurídicos
para além da esfera jurídica da entidade que os emana.

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Parte II – A atividade administrativa – Formas típicas de atuação

São regulamentos especiais aqueles que se aplicam a uma categoria


de pessoas que integram uma relação especial de Direito Administrativo,
pressupondo uma relação de subordinação dos particulares a uma certa
entidade administrativa. A dúvida persiste em aferir se este tipo de regu-
lamentos constitui regulamento externo ou interno.
Estes regulamentos aplicam-se no seio de uma relação especial de
Direito Administrativo. Mas, afinal, o que é uma relação especial de Direito
Administrativo? Tais relações podem ser:
(1) orgânicas ou de funcionamento – nestas relações, o destinatário
da relação encontra-se numa relação de dependência da Administração,
uma vez que constitui um elemento do funcionamento desta (ex.: sujeito
ligado à entidade administrativa pelo vínculo de emprego público). Nestes
casos, os regulamentos especiais configuram regulamentos meramente
internos (o regulamento dirigido aos trabalhadores tem em vista discipli-
nar a organização e funcionamento do serviço).
(2) de serviço ou fundamental – nestas relações, o destinatário não
se relaciona com a administração enquanto elemento de um seu serviço,
mas antes como sujeito titular de direitos fundamentais, que a Adminis-
tração não pode pôr em causa. Nestas situações, os regulamentos especi-
ais são regulamentos externos.

iii. Quanto ao critério da operatividade, os regulamentos podem ser


mediatamente operativos ou imediatamente operativos.
Dizem-se mediata ou indiretamente operativos os regulamentos cu-
jos efeitos só se produzem na esfera dos seus destinatários por meio de
atos concretos – administrativos ou judiciais – de aplicação. Quanto ao cri-
tério da operatividade, estes constituem a regra.
Ao invés, dizem-se imediata ou diretamente operativos os regula-
mentos que produzem efeitos na esfera jurídica dos destinatários de forma
direta, isto é, sem a necessidade de um ato concreto de aplicação, bastando
que o destinatário preencha os requisitos fixados abstratamente na norma
(ex.: planos especiais de ordenamento do território).

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Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

iv. Quanto ao critério da exigibilidade por lei, os regulamentos po-


dem ser obrigatórios ou facultativos.
Os regulamentos são obrigatórios quando exigidos por lei e faculta-
tivos quando a sua emissão apenas depende de um juízo de ponderação
por parte da entidade administrativa. Os regulamentos obrigatórios não
podem, nos termos do art. 146.º, n.º 2, do CPA, ser objeto de revogação sem
que a matéria seja simultaneamente objeto de nova regulamentação.

5. Espécies de regulamentos gerais externos

Foi já anteriormente referido que os regulamentos administrativos


estão sujeitos ao princípio da legalidade, pelo que os regulamentos exter-
nos necessitam de uma lei habilitante prévia (art. 136.º, n.º 1, do CPA). O
que diferencia os diferentes regulamentos externos é o grau de dependên-
cia em relação à lei. É esse, pois, o critério que permite distinguir as várias
espécies de regulamentos gerais externos:

a. Regulamentos executivos ou de execução – são os regulamentos


que têm por função colmatar as deficiências e imprecisões involuntárias
do legislador. Como tal, visam organizar procedimentos, pormenorizar,
interpretar ou integrar lacunas de leis específicas. Não têm por objetivo
criar algo de novo em relação à lei que visam executar, mas apenas dar-lhe
uma boa execução, por forma a que a sua aplicação pelos diversos serviços
administrativos seja uniforme.
Aparentemente, o art. 112.º, n.os 5 e 6, da CRP exclui este tipo de re-
gulamentos externos. Contudo, a doutrina tem entendido que a norma
constitucional apenas pretende reagir contra abusos decorrentes da remis-
são pela prática legislativa para os despachos ministeriais que, com funda-
mento na interpretação e integração da lei, acabem por criar soluções ma-
nifestamente inovadoras face à lei. Ademais, é o próprio art. 199.º, alínea
c), da CRP que admite a existência de regulamentos de execução («regula-
mentos necessários à boa execução das leis»).

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Parte II – A atividade administrativa – Formas típicas de atuação

b. Regulamentos complementares – são os regulamentos que têm


por objetivo completar um dado regime legal, nomeadamente quando o
quadro legal se configura demasiado amplo. Podem ser de duas subespé-
cies:
(1) Complementares de desenvolvimento: através dos quais a Ad-
ministração estabelece as respetivas bases gerais, isto é, as diretrizes que
disciplinam uma determinada matéria. Neste caso, a Administração cria
novidades, mas controladas pela respetiva lei, que postula tanto o fim co-
mo o quadro normativo onde aquelas bases gerais assentam e hão de res-
peitar.
No quadro normativo português, estes regulamentos não colhem
grande sentido de existência, uma vez que o legislador prevê no art. 198.º,
n.º 1, alínea c), da CRP a existência de decretos-leis de desenvolvimento,
decorrente de uma competência legislativa própria e alargada do Governo,
que acabam por prosseguir a mesma função que seria prosseguida pelos
regulamentos complementares e desenvolvimento.
(2) Complementares integrativos: o quadro legal é utilizado para
regular situações especiais que não se encontrem expressamente previstas.
Também para estes casos, parece o art. 112.º, n.º 5, da CRP estabele-
cer a sua proibição. Devem, no entanto, ser admissíveis desde que a lei ex-
pressamente os autorize e se limitem a adaptar o quadro legal a situações
especiais, fora da zona de reserva de lei formal, ou ainda quando sejam
emanados ao abrigo de uma autonomia normativa legalmente reconhecida
(por exemplo, a autonomia regulamentar das administrações autónomas).

c. Regulamentos autorizados – a Administração atua com base nu-


ma habilitação legal expressa, fixando ela própria a disciplina normativa a
aplicar a certas situações. Estes regulamentos só serão admissíveis em si-
tuações particulares, como é o caso dos regulamentos que coordenam in-
teresses de diversos níveis (ex.: regulamentos dos planos urbanísticos).

d. Regulamentos de substituição ou delegados – nestes casos, o


poder legislativo autoriza a que Administração atue na vez do legislador,
modificando, suspendendo ou revogando normas que constem de diplo-

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Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

mas legais. Estes regulamentos são expressamente proibidos pelo legisla-


dor constituinte no art. 112.º, n.º 5, da CRP, sendo, todavia, admitidos pelo
ordenamento jurídico da União Europeia (ex vi art. 290.º do TFUE).

e. Regulamentos independentes – são aqueles regulamentos que


têm por objetivo dinamizar a ordem jurídica em geral. Embora não abdi-
quem de uma norma habilitante, não visam executar ou complementar
uma lei específica, antes configurando uma regulação primária de certas
situações da vida social (cfr. 136.º, n.º 3, do CPA).
Integram duas principais subespécies, distinguíveis em ordem à en-
tidade competente para a sua emissão:
(1) Regulamentos independentes autónomos – são as normas emi-
tidas pelos entes administrativos não estaduais, como sejam as autarquias
locais. São, portanto, um corolário da autoadministração, autogoverno e
autorresponsabilização desses entes administrativos, regulando os seus in-
teresses próprios.
(2) Regulamentos independentes do Governo – são as normas ema-
nadas no exercício da competência universal do Governo em matéria ad-
ministrativa.

Relativamente à compatibilidade desta espécie de regulamentos


com o princípio da precedência de lei, podem distinguir-se duas principais
teses. De um lado, GOMES CANOTILHO, VITAL MOREIRA e a jurispru-
dência constitucional entendem que não pode existir poder regulamentar
sem a existência de lei habilitante prévia. Entendem estes autores que o art.
112.º, n.º 7, da CRP deve ser interpretado em dois segmentos: a primeira
parte («indicar expressamente as leis que visam regulamentar») aplica-se
aos regulamentos executivos; a segunda parte («indicar as leis que definem
a competência objetiva e subjetiva para a sua emissão») aplica-se aos regu-
lamentos independentes. Assim, para esta doutrina, os regulamentos in-
dependentes devem possuir uma lei prévia que defina tanto a matéria a
tratar como o órgão com competência para regulamentar, podendo essa lei
prévia ser a própria Constituição, como sucede, para as Regiões Autó-

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Parte II – A atividade administrativa – Formas típicas de atuação

nomas e as Autarquias Locais (respetivamente, arts. 227.º, n.º 1, alínea d),


e 241.º da CRP).
Por outro, para autores como AFONSO QUEIRÓ e VIEIRA DE AN-
DRADE, a exigência constitucional de uma lei que fixa as competências
objetivas e subjetivas apenas é possível para o caso dos regulamentos au-
tónomos, não o sendo para os regulamentos do Governo, uma vez que este
possui atribuições genéricas, isto é, competência que abrange a satisfação
de qualquer necessidade coletiva, pelo que pouco sentido faz atualmente
exigir que uma norma especifique as atribuições do Estado. AFONSO
QUEIRÓ extrai do art. 199.º, alínea g), da CRP essa atribuição genérica ao
Governo, incluindo poderes regulamentares iniciais em determinadas ma-
térias – cláusula geral de atribuição de competência regulamentar do Go-
verno. Já VIEIRA DE ANDRADE entende que o seu fundamento deve ser
colhido da alínea c) do referido artigo, atribuindo ao Governo uma com-
petência universal em matéria regulamentar, sendo que os regulamentos
por ele emanados têm em vista dinamizar a ordem jurídica geral e não
executar leis específicas. Naturalmente que estes regulamentos apenas são
admitidos fora da zona de reserva de lei.
Desta perspetiva, a segunda parte do art. 112.º, n.º 6, da CRP consti-
tui, pois, uma exceção à segunda parte do art. 112.º, n.º 7, da CRP. Assu-
mem, por conseguinte, a forma solene de Decreto Regulamentar, sujeito à
assinatura do primeiro Ministro e à promulgação do Presidente da Repú-
blica.

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Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

II. A disciplina procedimental dos regulamentos administrativos

1. Valorização do regulamento externo para efeitos do CPA

Não obstante a consideração dos diferentes tipos classificatórios de


regulamentos, o CPA apenas disciplina os regulamentos externos, isto por-
que, para efeitos do Código, apenas são considerados regulamentos aque-
las normas administrativas gerais e abstratas que visem produzir efeitos ju-
rídicos externos (art. 135.º do CPA), o mesmo é dizer, as normas que produ-
zem eficácia intersubjetiva, estando assim excluídos os designados regula-
mentos internos.
Não se pode deixar de discordar da solução acolhida pelo legislador
por duas razões principais: primo, não faz atualmente sentido retirar juridi-
cidade aos regulamentos internos. Como tivemos já oportunidade de real-
çar, embora só produzam efeitos jurídicos no seio da própria Administra-
ção e, como tal, insuscetíveis de impugnação contenciosa, os regulamentos
internos não deixam de configurar-se no campo da juridicidade, criando
obrigações para os órgãos da Administração e impondo sanções no caso
do seu não cumprimento e sujeitos a impugnação administrativa. Secundo,
na presença de normas regulamentares mistas ou híbridas, isto é, que pos-
suam tanto eficácia externa como interna, apenas as disposições que pos-
suam eficácia externa configuram natureza regulamentar para efeitos do
CPA. Destarte, em rigor, como bem salienta CARLOS BLANCO DE MO-
RAIS, «o artigo 135.º do CPA reporta-se não ao regulamento como diploma
ou ato, mas às normas “a se” que materialmente integram o seu conteúdo».
Por conseguinte, os regulamentos internos não se encontram sujeitos às
regras do procedimento de formação regulamentar previstas no CPA, o
que redunda numa ampla discricionariedade da Administração para a sua
emissão, padecendo os particulares da falta de um conjunto de garantias
especiais em relação a eles.

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Parte II – A atividade administrativa – Formas típicas de atuação

2. Procedimento do regulamento administrativo

O regime para a emissão de regulamento encontra-se previsto nos


arts. 97.º e ss. do CPA, desenvolvendo-se em três principais fases procedi-
mentais.
O início do procedimento é desencadeado mediante iniciativa ofi-
ciosa ou petição dos interessados, sendo que a petição deve ser devida-
mente fundamentada, sob pena de a Administração não tomar conheci-
mento dela (art. 97.º, n.º 1, do CPA). O órgão com competência regulamen-
tar deve informar os interessados do destino das petições e dos fundamen-
tos da posição que tome em relação a elas (art. 97.º, n.º 2, do CPA).
O início do procedimento é tornado público, sendo publicitado na
Internet, no sítio institucional da entidade pública com atribuições norma-
tivo-regulamentares, indicando o órgão que decidiu desencadear o proce-
dimento, a data em que o procedimento se iniciou, o objeto e a forma como
se pode processar a constituição como interessados e a apresentação de
contributos para a elaboração do regulamento (art. 98.º, n.º 1, do CPA).
O art. 98.º, n.º 2, do CPA permite à Administração celebrar acordos
endoprocedimentais para o acompanhamento regular do procedimento,
quando as circunstâncias o justifiquem, com as fundações e associações re-
presentativas dos interesses envolvidos e com as autarquias locais em rela-
ção à proteção dos interesses inseridos nas suas respetivas circunscrições.
Os regulamentos são aprovados, em regra, com base num projeto de
regulamento (art. 99.º do CPA).
O legislador impôs que o projeto de regulamento tenha uma nota
justificativa fundamentada que deve conter uma ponderação dos custos e
benefícios das medidas projetadas, sendo que, dava a elevada complexi-
dade dos mesmos, é frequente que estes requisitos não sejam, na prática,
cumpridos, incorrendo os regulamentos em vício formal23.

23 Sobre este aspeto em específico, CARLOS BLANCO DE MORAIS, cit., p. 33: «Va-
leria a pena alterar, com urgência, a última parte do preceito, substituindo-o por uma regra
que disponha sobre a necessidade de, na nota justificativa, contar uma estimação dos encar-
gos administrativos que com o regulamento são reduzidos ou acrescidos, prevendo-se apenas
uma avaliação prévia do impacto da norma, que contenha uma ponderação dos seus even-
tuais custos e benefícios, sempre que a Administração o julgue necessário».

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Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

O princípio da participação procedimental encontra-se, no caso do


regulamento, vertido nos arts. 100.º e 101.º do CPA, respetivamente, refe-
rentes à audiência prévia e à consulta pública.
Estando em causa um regulamento cujas disposições afetem direta
e imediatamente direitos ou interesses legalmente protegidos dos cida-
dãos, deve o responsável pela direção do procedimento submeter o projeto
de regulamento a audiência dos interessados em prazo razoável, não infe-
rior a 30 dias (art. 100.º, n.º 1, do CPA). Consideram-se interessados aqueles
que se tenham constituído no procedimento como tal (arts. 65.º, n.º 2, 68.º
e 97.º, n.º 1, do CPA). Os regulamentos de operatividade imediata encon-
tram-se, assim, compreendidos na obrigatoriedade de audiência prévia,
contrariamente aos regulamentos de operatividade mediata ou indireta ou
cuja execução envolva discricionariedade administrativa.
A audiência dos interessados pode ser escrita ou oral, nos termos
dos arts. 122.º e 123.º do CPA. Havendo lugar a audiência prévia, esta sus-
pende a contagem dos prazos do procedimento administrativo, nos termos
do art. 100.º, n.º 5, do CPA.
Não obstante, em determinadas situações, previstas no art. 100.º, n.º
3, do CPA, o responsável pela direção do procedimento pode dispensar a
audiência prévia. A dispensa deve, contudo, ser fundamentada. Quanto à
dispensa devida a um elevado número de interessados que torne a audiên-
cia impraticável, aplicando-se os regulamentos a uma pluralidade indeter-
minada e indeterminável de destinatários, revela-se de extrema dificul-
dade precisar um número objetivo que se considere “de tal modo elevado”
que inviabilize a audiência prévia.
Por sua vez, a consulta pública (art. 101.º do CPA) tem lugar quando
a audiência dos interessados tenha sido dispensada, por o número de in-
teressados ter tornado incompatível a audiência dos interessados, dado o
seu elevado número, ou quando a natureza da matéria o justifique. Para
recolha de informações, o projeto de regulamento deve ser publicado na
2.ª série do DR ou na publicação oficial da entidade pública, na Internet, e
no sítio institucional da mesma e os interessados devem dirigir por escrito
as suas sugestões, no prazo de 30 dias, a contar da data de publicação (art.
101.º, n.º 2).

-93-
Parte II – A atividade administrativa – Formas típicas de atuação

Também aqui se aplica o princípio do inquisitório, havendo lugar a


diligências instrutórias e probatórias (art. 115.º do CPA).
Após a audiência dos interessados ou a consulta pública, o processo
é remetido ao órgão competente para que aprove o regulamento, por via
de decisão ou deliberação (fase constitutiva). Quando em causa esteja um
regulamento necessário à exequibilidade de ato legislativo que careça de
regulamentação, o prazo para emissão de regulamento é, no silêncio da lei,
de 90 dias (art. 137.º, n.º 1, do CPA). A omissão de regulamento legalmente
devido confere aos interessados diretamente prejudicados a possibilidade
de requerer a emissão do regulamento ao órgão com competência na ma-
téria (recurso administrativo para emissão de regulamento devido) ou lan-
çar mão dos meios jurisdicionais respetivos (art. 137.º, n.º 2, do CPA, com
remissão para o art. 77.º do CPTA).
Nos termos do art. 139.º do CPA, o regulamento só produz efeitos
mediante a sua publicação em Diário da República, podendo igualmente
ser publicado no sítio institucional da entidade em causa. Em articulação
com o art. 119.º, n.º 1, alínea h), e n.º 2, da CRP, os regulamentos do Gover-
no e os decretos regulamentares regionais têm de ser publicados (obriga-
toriamente) em Diário da República, sob pena de não produzirem eficácia
jurídica (não há alternatividade das formas de publicidade). As normas
regulamentares das autarquias, outros regulamentos das regiões autóno-
mas que não decretos regulamentares regionais e as normas regulamenta-
res emanadas pelos órgãos da restante Administração autónoma ou inde-
pendente podem ser publicados em Diário da República ou no seu sítio
institucional ou em publicação oficial (alternatividade das formas).
Os regulamentos entram em vigor na data neles estabelecidos ou no
quinto dia após a sua publicação (art. 140.º do CPA), aplicando-se esta re-
gra a todas as formas de publicação.
O art. 141.º CPA consagra, ainda, a regra da irretroatividade dos re-
gulamentos desfavoráveis, sendo, no entanto, admitidas algumas exce-
ções, respeitantes aos regulamentos de leis retroativas e aos regulamentos
necessários à execução de leis.
Nos termos do art. 142.º do CPA, os regulamentos podem ser inter-
pretados, modificados e suspensos pelos órgãos competentes para a sua

-94-
Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

emissão (n.º 1), mas não podem ser derrogados por atos administrativos
de caráter individual e concreto (n.º 2) – princípio da inderrogabilidade
singular.

3. Revogação e caducidade do regulamento

A caducidade do regulamento (art. 145.º do CPA) produz-se com a


verificação de termo final ou condição resolutiva (n.º 1) ou quando se opera
a revogação da lei que suporta o regulamento de execução, salvo se for
compatível com a nova lei e enquanto não houver nova regulamentação
(n.º 2).
No que diz respeito à revogação, preceitua o art. 146.º do CPA que
podem ser revogados pelos órgãos competentes para a sua emissão (n.º 1).
O n.º 2 consagra a proibição de revogação de regulamento necessário à
execução de leis em vigor ou de Direito da União Europeia sem que a ma-
téria seja simultaneamente objeto de nova regulamentação.
Nos termos do n.º 4, os regulamentos revogatórios devem fazer
menção expressa das normas revogadas.

4. Relações de hierarquia entre os regulamentos (externos)

Consagra o art. 138.º, n.º 3, do CPA uma relação de prevalência entre


os regulamentos do Governo (critério da hierarquia). No quadro dos re-
gulamentos governamentais, prevalecem nos termos da seguinte ordem24:
• Os decretos regulamentares;
• Resolução de Conselho de Ministros com conteúdo normativo;
• Portarias;
• Despachos;

Já o n.º 1 do referido preceito estabelece uma prevalência aplicativa


em razão do critério da competência e do critério da especialidade: 1. no

24 Relativamente aos critérios que presidiram ao seu estabelecimento, vd. a síntese em

CARLOS BLANCO DE MORAIS, cit., pp. 21 a 23.

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Parte II – A atividade administrativa – Formas típicas de atuação

domínio de atribuições concorrentes do Estado, das Regiões Autónomas e


das Autarquias, os regulamentos governamentais prevalecem sobre os re-
gionais e autárquicos e demais entidades com autonomia, salvo se estes
configurarem normas especiais, ou seja, tratando-se de atribuições concor-
rentes, se os regulamentos do ente territorial menor configurarem normas
especiais, prevalecem sobre os regulamentos governamentais. 2. A contra-
rio, tratando-se de uma competência exclusiva, o regime descrito já não se
aplica. Como bem ressalva VIEIRA DE ANDRADE25: « (…) se não for pos-
sível a aplicação cumulativa das normas nacionais e autárquicas, entende-
mos que devem valer as normas autárquicas enquanto normas especiais,
salvo se a preferência das normas governamentais se impuser, seja perante
a deficiência da regulamentação local, seja pela necessidade imperiosa de
assegurar uma realização uniforme do interesse nacional».
Nos termos do n.º 2, os regulamentos municipais prevalecem sobre
os regulamentos das freguesias, salvo se estes configurarem normas espe-
ciais.
Quanto aos regulamentos que provêm de órgãos numa relação de
hierarquia ou de superintendência, estando em causa matéria de atribui-
ção e competência comum, os regulamentos dos órgãos subalternos ou su-
perintendidos não podem contrariar os regulamentos dos órgãos superio-
res ou superintendentes (cfr. art. 143.º, n.º 2, alíneas a) e b)). Nesses mesmos
termos, os regulamentos dos delegados têm de respeitar os regulamentos
do delegante, a menos que na delegação esteja incluída a competência re-
gulamentar.
Quanto aos entes administrativos dotados de autonomia normativa,
como, por exemplo, os institutos públicos, dispõe o art. 143.º, n.º 2, alínea
c), que os regulamentos emanados dos seus órgãos não podem contrariar
os respetivos estatutos nas quais se funde a competência para a respetiva
emissão.

25 Lições de Direito Administrativo, cit., p. 155.

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Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

5. Invalidades do regulamento

Dispõe o art. 143.º, n.º 1, do CPA que os regulamentos são inválidos


se forem desconformes com a Constituição, a lei e os princípios gerais de
Direito Administrativo ou se infringirem normas de Direito Internacional
ou de Direito da União Europeia.
A conformidade dos regulamentos com a Constituição, a lei e os
princípios gerais decorre, desde logo, do art. 266.º, n.º 2, da CRP, pelo que
o preceito do CPA não se assume aqui como mais do que uma reiteração
da disposição constitucional. Quanto à conformidade com os princípios
gerais de Direito Administrativo, tem-se entendido que tal resulta da con-
ceção de subordinação da Administração ao bloco de legalidade ou, em
rigor, à juridicidade.
No que concerne à relação de (des)conformidade dos regulamentos
com o Direito Internacional e, sobretudo, com o Direito da União Europeia,
o legislador inovou ao adotar um elevado padrão de exigência, aplicando
aos regulamentos nacionais desconformes com o Direito da União Euro-
peia o regime da invalidade. Por outras palavras, um regulamento que
contrarie disposições normativas da União Europeia a que dê execução
não só se encontra alheado de eficácia pelo ente administrativo como passa
a poder ser declarado inválido, com efeitos ex tunc, pela Administração.
Este regime deve, todavia, aplicar-se apenas aos regulamentos que visam
dar execução direta às normas da União Europeia, pelo que, não estando
em causa um regulamento de execução das disposições da União Euro-
peia, em caso de contradição, valerá a aplicação dos princípios da aplicabi-
lidade direta e efeito direto, mas já não a cominação com o regime da in-
validade (cfr. art. 146.º, n.º 2, do CPA).
Para além desses casos, os regulamentos podem também ser inváli-
dos, caso desrespeitem os regulamentos emanados dos órgãos hierarquica-
mente superiores ou dotados de poderes de superintendência (art. 143.º,
n.º 2, alínea a)), desrespeitem os regulamentos emanados pelo delegante,
salvo se a delegação incluir a competência regulamentar (alínea b)) ou des-
respeitarem os estatutos emanados ao abrigo de autonomia normativa nas
quais se funde a competência para a respetiva emissão (alínea c)).

-97-
Parte II – A atividade administrativa – Formas típicas de atuação

A invalidade dos regulamentos administrativos pode ser invocada


oficiosamente (declaração) ou por qualquer interessado (impugnação). A
impugnação pode ser feita mediante reclamação ou recurso hierárquico
(art. 147.º, n.º 2, do CPA).
O regime da invalidade encontra-se previsto no art. 144.º do CPA.
Nos termos do n.º 1, a impugnação e a declaração de invalidade podem ser
declaradas a todo o tempo (regra). No entanto, existe uma exceção: os re-
gulamentos que padeçam de ilegalidade formal ou procedimental, mas da
qual não resulte a inconstitucionalidade, só podem ser impugnados ou de-
clarados inválidos no prazo de 6 meses, a contar da data da respetiva pu-
blicação (n.º 2 primeira parte). A exceção à exceção encontra-se patente na
segunda parte do referido artigo: casos de carência absoluta de forma ou
de preterição de consulta pública exigida por lei (situações em que não se
aplica o prazo de 6 meses, mas sim a regra de impugnação ou declaração
a todo o tempo).
E quais são os principais efeitos da declaração de invalidade dos re-
gulamentos?
(1) Eficácia retroativa – a declaração administrativa de invalidade
produz efeitos desde a data de emissão dos regulamentos (efeito ex tunc) –
art. 144.º, n.º 3, do CPA. Tal significa que a norma é eliminada, assim como
todos os atos administrativos que nela se fundaram. Nos termos do n.º 4,
a retroatividade da declaração de invalidade não afeta os casos julgados
nem os atos administrativos que se tenham tornado inimpugnáveis, a me-
nos que os atos inimpugnáveis sejam desfavoráveis para os destinatários
(disposição mais ampla do que a do art. 76.º, n.º 3, do CPTA).
(2) Efeito repristinatório – art. 144.º, n.º 3, do CPA. A declaração de
invalidade recupera automaticamente as normas que haviam sido revoga-
das pelo regulamento inválido. O órgão competente pode, no entanto,
afastar o efeito repristinatório no caso de as próprias normas repristinadas
serem ilegais ou terem deixado de vigorar por outro motivo que não a re-
vogação (por exemplo, a caducidade).
(3) Efeitos suspensivos sobre a eficácia jurídica da norma – nos ter-
mos dos arts. 189.º e 190.º ex vi art. 147.º, n.º 3, do CPA. Assim, as impug-
nações administrativas de regulamentos suspendem os efeitos da norma

-98-
Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

regulamentar se as impugnações forem necessárias; sendo impugnações


facultativas, se a lei lhe determinar efeito suspensivo ou o órgão compe-
tente para conhecer do recurso, oficiosamente ou a pedido do interessado,
considere que a sua execução imediata causa prejuízos irreparáveis ou de
difícil reparação ao destinatário e a suspensão não cause prejuízo de maior
gravidade para o interesse público.
(4) Efeitos sobre prazos contenciosos – a utilização de meios de im-
pugnação administrativa facultativos suspende o prazo de propositura de
ações nos tribunais administrativos, que só retoma o seu curso com a noti-
ficação da decisão proferida sobre a impugnação administrativa ou com o
decurso do respetivo prazo legal (art. 190.º, n.º 3, do CPA).

Não obstante, pode ainda haver lugar a ações administrativas de


impugnação de normas ou de declaração de ilegalidade por omissão.

-99-
Parte II – A atividade administrativa – Formas típicas de atuação

PARTE II – A ATIVIDADE ADMINISTRATIVA


– FORMAS TÍPICAS DE ATUAÇÃO

O ATO ADMINISTRATIVO

AULA N.º 6

Sumário: 1. O conceito de ato administrativo; 2. Classificação dos atos ad-


ministrativos; 3. Eficácia dos atos administrativos; 4. O regime da (in)validade dos
atos administrativos: correspondência estrutura do ato/requisitos de validade/ví-
cios/invalidade; 5. Revogação e anulação administrativas; 6. Procedimentos de exe-
cução coerciva dos atos administrativos.

BIBLIOGRAFIA DE BASE

FREITAS DO AMARAL, Diogo, Curso de Direito Administrativo, Vol. II, 4.ª


ed., Coimbra: Almedina, 2018, pp. 193, pp. 315 e ss.
SOARES, Rogério, «Ato Administrativo», in Polis – Enciclopédia Verbo da So-
ciedade e do Estado, vol. I, col. 103, Lisboa, 1983
VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos, Lições de Direito Administrativo, 5.ª ed.,
Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2017, especialmente, pp. 159 e ss.

BIBLIOGRA COMPLEMENTAR

ALMEIDA, Mário Aroso de, Teoria Geral do Direito Administrativo, 5.ª ed.,
Coimbra: Almedina, 2018, pp. 219 a 392
BOCANEGRA SIERRA, Raúl, La teoría del acto administrativo, Madrid: Iustel,
2005
COLAÇO ANTUNES, Luís Filipe, A Ciência Jurídica Administrativa, 3.ª ed.,
Coimbra: Almedina, 2016, pp. 329 a 480
COLAÇO ANTUNES, Luís Filipe, A Teoria do Ato e a Justiça Administrativa,
O Novo Contrato Natural, Coimbra: Almedina, 2015
OLIVEIRA, Fernanda Paula/FIGUEIREDO DIAS, José Eduardo, Noções
Fundamentais de Direito Administrativo, 5.ª ed., Coimbra: Almedina, 2018, pp. 179 a
281

-100-
Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

PEREIRA DA SILVA, Vasco, Em busca do Ato Administrativo Perdido, Coim-


bra: Almedina, 1996
REBELO DE SOUSA, Marcelo/SALGADO DE MATOS, André, Direito Ad-
ministrativo Geral – Atividade Administrativa, Tomo III, 2.ª ed., Lisboa: Dom Quixote,
2009

BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR ESPECÍFICA

ALMEIDA, Mário Aroso de, «Considerações em Torno do Ato Administra-


tivo Impugnável», in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Marcello Caetano,
Vol. II, Coimbra: Coimbra Editora, 2006, pp. 266 e ss.
FONSECA, Rui Guerra da, O fundamento da autotutela executiva da Adminis-
tração Pública, Coimbra, 2012
VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos, «Validade (do acto administrativo», in
Dicionário Jurídico da Administração Pública, Vol. VII, pp. 581 a 592

JURISPRUDÊNCIA RECENTE PARA CONSULTA


Acórdão TCA-Norte, de 09-10-2015, Proc. 00659/13.9BEAVR
Acórdão TCA-Sul, de 28-06-2018, Proc. 2416/12.0BELSB
Acórdão STA, de 05-07-2018, Proc. 01082/16
Acórdão STA, de 26-09-2018, Proc. 01506/17.8BALSB (contencioso tribu-
tário)
Acórdão TCA-Sul, de 08-11-2018, Proc. 331/14.2BECTB
Acórdão TCA-Sul, de 04-04-2019, Proc. 488/07.9BEALM-A

-101-
Parte II – A atividade administrativa – Formas típicas de atuação

1. O conceito de ato administrativo

A nível procedimental, o ato administrativo é ainda a principal for-


ma de atuação da Administração.
Tradicionalmente, destacavam-se duas principais conceções de ato
administrativo: uma conceção ampla ou substantiva, considerando o ato ad-
ministrativo o ato voluntário e unilateral, praticado por um órgão da Ad-
ministração, no exercício de poderes administrativos, produzindo efeitos
jurídicos sobre uma situação individual num caso concreto, (cfr. art. 25.º,
n.º 2, do DL 267/85); e uma conceção restrita, adjetiva ou processual, corres-
pondente ao ato administrativo definitivo e executório. Atualmente, na es-
teira de ROGÉRIO SOARES, VIEIRA DE ANDRADE E SÉRVULO COR-
REIRA, pugna-se por um conceito unitário e estrito de ato administrativo.
O atual Código de Procedimento Administrativo, nomeadamente o
seu art. 148.º, considera como atos administrativos as decisões que, no exercí-
cio de poderes jurídico-administrativos, visem produzir efeitos jurídicos externos
numa situação individual e concreta. A noção processual, vertida no art. 51.º
do CPTA, ainda que com maior amplitude, designadamente por incluir as
decisões que não ponham termo a um procedimento, não deixa, contudo,
de se reconduzir, no essencial, a essa caracterização básica 26.
Vejamos, pois, as características do ato administrativo. (1) O ato ad-
ministrativo é uma decisão. Estamos, portanto, perante a resolução de um
caso, a propósito de uma determinada situação jurídico-administrativa.
Para FREITAS DO AMARAL, a expressão legal não pode ser interpretada
no sentido de confundir-se com a produção de efeitos jurídicos numa si-
tuação individual e concreta, antes se apresentando como uma nova cate-
goria, configurando-se assim como estatuição ou resolução de um caso con-

26 É, todavia, possível identificar algumas distinções importantes entre os conceitos

substantivo e adjetivo. Seguimos, aqui, Fernanda Paula OLIVEIRA e JOSÉ EDUARDO FI-
GUEIREDO DIAS, Noções Fundamentais de Direito Administrativo, cit., p. 185. «(…) um ato ad-
ministrativo não eficaz, sendo um verdadeiro ato administrativo, nem sempre é imediata-
mente impugnável (54.º CPTA); o indeferimento expresso, sendo ato administrativo do ponto
de vista substancial, não é diretamente impugnável (a sua eliminação da ordem jurídica é fei-
ta pela via da condenação à prática do ato devido); as decisões materialmente administrativas
de outros poderes públicos ou entidades privadas são impugnáveis (51.º, n.º 1 CPTA), mas
não são substancialmente atos administrativos».

-102-
Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

creto, no âmbito de uma relação jurídico-administrativa. Apesar de a dis-


posição legal utilizar essa expressão, parece-nos mais rigoroso que, à se-
melhança da terminologia germânica, se preferisse a expressão regulação,
apontando para um conceito mais restrito, direcionado essencialmente pa-
ra as decisões (comandos) que constituem, modificam ou extinguem rela-
ções jurídicas, de forma unilateral.
A natureza decisória, ou melhor dito, a natureza regulatória do ato
administrativo, permite excluir do conceito de ato administrativo aqueles
atos que, embora jurídicos, desempenham apenas uma função auxiliar em
relação aos atos administrativos. Referimo-nos, na esteira de ROGÉRIO
SOARES, aos denominados atos instrumentais. O autor define os atos ins-
trumentais como aqueles atos jurídicos que, embora possuam autonomia
funcional, veem os seus efeitos manifestar-se através da influência que
exercem sobre um ato administrativo, isto é, desempenham uma função
secundária e auxiliadora em relação ao ato: ou ajudam a preparar o ato
(atos preparatórios) ou desencadeiam a sua eficácia ou permitem dar co-
nhecimento do ato aos seus destinatários (atos que permitem atribuir efi-
cácia) – em regra, produzem efeitos meramente internos, embora também
sejam suscetíveis de produzir efeitos externos. De todo modo, são destituí-
dos de estatuição (ou regulação ou de autoridade para definir o direito no
caso).
Também a atuação material ou técnica da Administração está excluí-
da do conceito de ato administrativo, assim como os pareceres não vincu-
lativos, as advertências, as meras informações ou, ainda, os atos prepara-
tórios, por não conterem nenhuma regulação da situação jurídico-adminis-
trativa. O conceito material de direito administrativo não deixa, pois, de
se circunscrever aos atos de conteúdo decisório (MÁRIO AROSO DE AL-
MEIDA).
Ademais, a decisão, ou a ausência dela, é justamente o que nos per-
mite distinguir um ato administrativo de uma omissão administrativa, isto
porque, com MARCELO REBELO DE SOUSA, entendemos que as omis-
sões «não são atos administrativos, ainda que a lei lhes associe o regime

-103-
Parte II – A atividade administrativa – Formas típicas de atuação

substantivo ou processual do ato administrativo»27. A omissão é, assim, a


ausência de uma decisão num prazo legalmente estabelecido ou, por ou-
tras palavras, a falta de regulação de uma situação jurídico-administrativa.
(2) O ato administrativo tem eficácia jurídica externa. Evoluiu-se da
mera eficácia jurídica para a eficácia jurídica externa, permitindo assim re-
cortar um conceito de ato administrativo mais preciso28. Há eficácia jurí-
dica externa quando se atinge a esfera jurídica de destinatários e terceiros.
Tal não deixa de ser de extrema importância, nomeadamente para efeitos
contenciosos, uma vez que a impugnabilidade do ato depende da sua ex-
ternalidade, isto é, da «suscetibilidade de produzir efeitos jurídicos que se
projetem para fora do procedimento onde o ato se insere» 29. A externali-
dade do ato não pode divorciar-se do seu caráter decisório. Neste sentido,
art. 53.º do CPTA, n.º 1: «não são impugnáveis os atos confirmativos (…)»,
e n.º 3: «os atos jurídicos de execução de atos administrativos só são im-
pugnáveis por vícios próprios, na medida em que tenham conteúdo deci-
sório de caráter inovador». Por sua vez, devem considerar-se atos admi-
nistrativos, porque produtores de eficácia jurídica externa e, como tal, sus-
cetíveis de impugnação direta e autónoma, os denominados atos procedi-
mentais destacáveis, cabendo também na noção os designados atos finais
parciais30. Rematando, como brilhantemente nos ensina ROGÉRIO SOA-
RES, é a decisão que tem capacidade para produzir uma transformação jurí-
dica externa31. Os atos que possuam mera eficácia interna, ou seja, que es-
gotem a sua eficácia no seio da Administração, não são assim considerados
atos administrativos. Estando em causa uma relação de serviço ou funda-

27 MARCELO REBELO DE SOUSA e ANDRÉ SALGADO DE MATOS, Direito Admi-

nistrativo Geral – Atividade Administrativa, cit., p. 75.


28 A este propósito, vide VASCO PEREIRA DA SILVA, Em busca do Ato Administrativo

Perdido, cit., p. 625.


29 MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, O Novo Regime do Processo nos Tribunais Adminis-

trativos, cit., pp. 135 e 136.


30 LUÍS FILIPE COLAÇO ANTUNES, A Teoria do Ato e a Justiça Administrativa – O

Novo Contrato Natural, cit., pp. 128 e 129.


31 No mesmo sentido, LUÍS FILIPE COLAÇO ANTUNES, A Ciência Jurídica Adminis-

trativa, cit., p. 425. O autor descreve o ato final do procedimento como o ato administrativo
por natureza que contém um «comando unilateral destinado a produzir imediatamente efei-
tos jurídicos externos».

-104-
Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

mental, os atos produzidos que possam produzir efeitos externos, por con-
tenderem com os direitos e interesses dos seus destinatários, assumem re-
levância para o ordenamento jurídico geral e, nessa medida, consideram-
-se atos administrativos, suscetíveis de impugnação contenciosa.
(3) O ato administrativo destina-se a uma situação individual e con-
creta. Esta característica, intimamente ligada com a anterior, permite-nos,
desde logo, distinguir um ato administrativo de um regulamento adminis-
trativo que, nos termos do art. 135.º do CPA, se configura como norma ju-
rídica geral e abstrata. Em bom rigor, como nos elucida COLAÇO ANTU-
NES32, sobretudo em confronto com o ato administrativo geral, «o caráter
individual do ato alude mais à natureza concreta da medida do que pró-
priamente aos seus destinatários (…)». Nesse sentido, MÁRIO AROSO DE
ALMEIDA conclui, confrontando ato administrativo/regulamento admi-
nistrativo, que «a abstração, a vocação imanente de execução permanente,
é o critério verdadeiramente distintivo do ato normativo, que determina
os traços essenciais do regulamento»33.
(4) O ato administrativo é praticado no exercício de poderes jurídico-
-administrativos. O Direito da União Europeia produziu alterações não só
ao nível das funções e da natureza das entidades público-administrativas
como também ao nível dos institutos jurídico-administrativos. Trata-se,
pois, de aferir se sujeitos privados, desprovidos de uma qualificação pú-
blica formal, podem praticar atos administrativos. Mais uma vez, a capa-
cidade jurídica, traduzida no exercício de um poder de autoridade regu-
lado pelo direito público, nomeadamente, pelo Direito Administrativo, as-
sume-se como critério determinante. Parece ser este o critério consagrado
pelo legislador no art. 51.º do CPTA: «(…) são impugnáveis todas as deci-
sões (…) incluindo as proferidas por autoridades não integradas na Admi-
nistração Pública e por entidades privadas que atuem no exercício de po-
deres jurídico-administrativos».
Face a esta característica, os atos praticados por entidades adminis-
trativas privadas ou por sujeitos privados investidos de poderes públicos

32 A Teoria do Ato e a Justiça Administrativa – O Novo Contrato Natural, cit., p. 134.


33 Teoria Geral do Direito Administrativo, cit., pp. 130 a 136.

-105-
Parte II – A atividade administrativa – Formas típicas de atuação

administrativos configuram atos administrativos. Ainda, permite excluir


do conceito de atos administrativos os atos emanados por órgãos não ad-
ministrativos, como sejam o Presidente da República ou a Assembleia da
República, embora as suas decisões materialmente administrativas sejam equi-
paradas a atos administrativos, mas apenas para efeitos do contencioso admi-
nistrativo. Ainda para efeitos do contencioso, por via do art. 268.º, n.º 4, da
CRP, os atos administrativos praticados pelo Governo sob a forma legisla-
tiva são suscetíveis de impugnação contenciosa.

2. Classificação dos atos administrativos

Quanto às espécies de atos administrativos, podemos proceder a


uma classificação, sendo certo que essa classificação varia em função dos
critérios escolhidos.

a. Atos que influem sobre um status – tocam num conjunto orde-


nado de direitos e de deveres:
i. atos que criam (ex.: nomeações; admissões; outorga da cidadania;
matrícula de um aluno, internamento num hospital);
ii. atos que modificam (ex.: suspensão de um funcionário; promoção
de um funcionário);
iii. atos que extinguem (ex.: revogação; demissão, expulsão de um
aluno).

b. Atos que provocam situações de desvantagem ou atos desfavo-


ráveis:
i. atos ablatórios – suprimem, comprimem ou retiram direitos ou fa-
culdades (ex.: a declaração de utilidade pública de um imóvel para
efeitos de expropriação; servidões administrativas; extinção de uma
licença);
ii. atos impositivos (imposições de obrigações de carácter positivo,
comandos; ou imposições de conteúdo negativo, como proibições).

-106-
Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

c. Atos que desencadeiam benefícios para terceiros ou atos que


provocam situações de vantagem:
i. Concessões (estamos no domínio próprio da atuação da AP). Estas
podem ser translativas ou constitutivas;
ii. Autorizações (em sentido amplo) – visam remover um limite im-
posto pela lei ao exercício de uma atividade que é própria da esfera
do destinatário da autorização. As autorizações podem traduzir-se
em: (1) dispensas; (2) autorizações constitutivas de direitos ou auto-
rizações-licença; (3) autorizações permissivas ou autorizações pro-
priamente ditas;
iii. Autorizações nas relações interorgânicas administrativas (auto-
rizações constitutivas de legitimação; e aprovações).

d. Atos administrativos de segundo grau – atos que operam sobre


atos administrativos precedentes:
i. Destruindo, cessando ou suspendendo a eficácia daqueles atos an-
teriores (ex.: anulação, revogação e suspensão administrativa);
ii. Modificando os atos anteriores (ex.: revogação parcial; prorroga-
ção);
iii. Consolidando atos administrativos anteriores inválidos (ex.: ra-
tificação; reforma; conversão).

3. Eficácia dos atos administrativos

A eficácia é definida por SÉRVULO CORREIA como a aptidão do


ato administrativo para produzir efeitos jurídicos próprios do seu conteú-
do e quaisquer outros que natural ou legalmente dele devam decorrer. Diz,
portanto, respeito a circunstâncias extrínsecas ao ato de que dependa a
operatividade dos efeitos visados pela decisão (VIEIRA DE ANDRADE).
Dispõe o art. 155.º, n.º 1, do CPA que o ato administrativo produz os
seus efeitos desde a data em que é praticado, salvo nos casos em que a lei
ou o próprio ato lhe atribuam eficácia retroativa, diferida ou condicionada.
O CPA regula, no art. 157.º, a eficácia diferida ou condicionada. Os
atos possuem eficácia diferida quando se encontrem sujeitos a um termo

-107-
Parte II – A atividade administrativa – Formas típicas de atuação

inicial, seja por força da lei seja por cláusula acessória aposta ao ato pelo
seu autor (termo suspensivo – art. 157.º, alínea b), in fine, do CPA). Trata-se,
pois, de atos que, embora já tenham passado a fase constitutiva, sendo, em
regra, perfeitamente válidos, carecem de um evento integrador de eficácia.
Os atos possuem eficácia condicionada quando o seu procedimento
inclui uma fase integrativa de eficácia ou quando a produção dos efeitos do ato
depender da verificação de uma condição, seja legal ou por cláusula acessória
aposta pelo autor do ato (art. 157.º, alíneas a), b), 1.ª parte, e c), do CPA).
Podemos, no entanto, estar perante atos inválidos, mas que produ-
zam igualmente efeitos jurídicos, isto é, possuam eficácia jurídica. É o caso
dos atos anuláveis que possuem eficácia provisória, mas caso se tornem
insuscetíveis de impugnação contenciosa, por decurso do respetivo prazo,
a eficácia converte-se em definitiva. Por sua vez, aos atos nulos podem ser
reconhecidos efeitos putativos, relevando-se juridicamente as situações de
facto por ele criadas, face ao decurso do tempo e com fundamento em prin-
cípios jurídicos fundamentais, como seja o princípio da proteção da con-
fiança legítima.
Os atos possuem eficácia instantânea quando os seus efeitos se pro-
duzem e se esgotam num determinado momento (ex.: ato de nomeação).
Apesar de poderem dar lugar a situações duradouras, a operatividade do
ato esgota-se no momento em que se torna eficaz.
Ao invés, os atos possuem eficácia duradoura no caso de a sua ope-
ratividade se prolongar no tempo, criando e suportando relações contí-
nuas entre a Administração e os particulares (ex.: concessão). Podem aqui
suscitar-se questões relativas à alteração das circunstâncias de facto du-
rante a vigência do ato, permitindo à Administração, sobretudo nos espa-
ços de discricionariedade ou de autonomia decisória, determinar a modi-
ficação, anulação ou revogação do ato. Os atos de eficácia duradoura po-
dem ver os seus efeitos sujeitos a suspensão ou cessação.
A suspensão reporta-se aos atos administrativos de eficácia dura-
doura que, estando a produzir normalmente os seus efeitos, em virtude de
um dado acontecimento, deixa temporariamente de os produzir. A sus-
pensão da eficácia termina ou com a renovação da eficácia ou com a extin-
ção do ato cujos efeitos se haviam suspendido.

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Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

A cessação pode ser motivada pelo desaparecimento do sujeito ou


do objeto do ato administrativo, pela revogação do ato administrativo ou
pela existência de cláusulas acessórias que apostam uma condição resolu-
tiva ou um termo final.
Da maior importância revela-se a eficácia retroativa, postulada no
art. 156.º do CPA. Os atos possuem eficácia retroativa (stricto sensu) quando
a lei ou o órgão decisor determinam que a produção dos efeitos do ato se
reporta a momento anterior à respetiva constituição, regulando situações
jurídicas já constituídas.
Em regra, os atos administrativos possuem eficácia ex nunc, isto é,
produzem efeitos a partir do momento em que são emitidos ou desde a da-
ta em que são praticados (art. 155.º, n.º 1, do CPA), podendo a sua eficácia
ser retroativa, diferida ou condicionada, nos casos em que a lei ou o pró-
prio autor lhes atribuam essa eficácia.
Excecionalmente, podem, pois, ser atribuídos efeitos retroativos aos
atos administrativos, nos termos do art. 156.º do CPA. Destarte, os atos ad-
ministrativos têm eficácia retroativa (1) se forem atos meramente inter-
pretativos (art. 156.º, n.º 1, alínea a), do CPA); (2) caso a retroatividade re-
sulte da lei (art. 156.º, n.º 1, alínea b), do CPA), como é o caso dos atos de
execução de sentenças anulatórias, desde que não renovadores do ato anu-
lado; (3) sejam favoráveis aos interessados e não lesem direitos ou interes-
ses legalmente protegidos de terceiros, desde que à data a que se pretende
fazer remontar a eficácia do ato já existissem os pressupostos justificativos
dos efeitos a produzir (art. 156.º, n.º 2, alínea a), do CPA); (4) se se tratar de
atos extintivos de segundo grau, praticados na sequência de uma reclama-
ção ou recurso hierárquico (art. 156.º, n.º 2, alínea b), do CPA).
Nos demais casos em que a lei permita ou imponha (art. 156.º, n.º 2,
alíneas c) e d), do CPA) a possibilidade de atribuir eficácia retroativa, tem
sempre de ser fundamentada e não pode pôr em causa direitos adquiridos
nem princípios jurídicos fundamentais, sendo que, caso contrário, podem
padecer de inconstitucionalidade.
A eficácia possui também limites especiais pelo que, tendencialmen-
te, correspondem aos limites da competência. Assim, por exemplo, um ato

-109-
Parte II – A atividade administrativa – Formas típicas de atuação

praticado pela Câmara Municipal de Braga só poderá produzir os seus


efeitos dentro da respetiva área territorial do Município.

4. O regime da (in)validade dos atos administrativos: correspon-


dência entre estrutura do ato/requisitos de validade/vícios/invalidade

A validade é a qualidade do ato administrativo que se constitui


em conformidade com as normas jurídicas fundamentais que, em função
do interesse público, regulam esta forma de atuação, sendo, por isso, apto
à produção estável dos seus efeitos jurídicos (FERNANDA PAULA OLI-
VEIRA/J.E. FIGUEIREDO DIAS). Não pode confundir-se validade com le-
gitimidade, isto porque, embora a legitimidade seja um pressuposto da va-
lidade, nem todos os atos ilegítimos são, por essa razão, inválidos nem ine-
ficazes. A legitimidade é, pois, em síntese, a aptidão para prosseguir o in-
teresse público de acordo com as normas e princípios jurídicos e as normas
de boa administração (VIEIRA DE ANDRADE).
Importa, de igual forma, que se distinga invalidade de inexistência.
Com efeito, a inexistência reporta-se a situações em que não existe ato: o
ato não se encontra procedimentalmente constituído. Hoje, a inexistência
é perfeitamente distinta da nulidade, uma vez que o CPA eliminou a cate-
goria das nulidades por natureza ou por “falta de elementos essenciais”.
As situações de inexistência têm de estar expressas e especificamente pre-
vistas na lei, podendo ser declaradas a todo o tempo e não produzindo
sequer efeitos putativos.
Se o ato administrativo estiver em desconformidade com aquelas
normas jurídicas, o ato padece de um vício. A invalidade é a consequên-
cia jurídica do vício, sendo variável consoante o vício em causa.
Existem dois tipos fundamentais de invalidade dos atos adminis-
trativos: nulidade e anulabilidade. A regra no ordenamento jurídico-ad-
ministrativo português quanto às invalidades é a da anulabilidade (ex vi
arts. 161.º, n.º 1, e 163.º do CPA). A nulidade encontra-se, assim, reservada
para os vícios mais graves (a que acresce, segundo VIEIRA DE ANDRADE,
uma ideia de evidência).

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Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

i. Regime da nulidade: a) Os atos nulos não produzem quaisquer


efeitos jurídicos, independentemente da declaração de nulidade (art. 162.º,
n.º 1, do CPA). Afirmar que os atos nulos não produzem quaisquer efeitos
jurídicos não pode ser entendido de forma estrita, isto porque, o que quer
sobretudo significar é que os atos nulos não são obrigatórios para os seus
destinatários, impondo-se, no entanto, às relações administrativas hierár-
quicas, a menos que digam respeito à prática de um crime (art. 271.º, n.º 3,
da CRP). b) A nulidade, em regra, é invocável ou reconhecida a todo o
tempo (art. 162.º, n.º 2, do CPA), não obstante existirem regimes especiais,
como é o caso do art. 68.º do RJUE, que prevê que, em certas circunstâncias,
a nulidade possa ser invocada no prazo de 10 anos. c) A nulidade pode ser
reconhecida por qualquer autoridade, mas apenas poderá ser declarada
pelos tribunais administrativos ou pelos órgãos administrativos compe-
tentes para a anulação (art. 162.º, n.º 2, do CPA). d) Atualmente, os atos nu-
los podem ser objeto de reforma ou conversão, mas não podem ser objeto
de ratificação (art. 164.º, n.º 2, do CPA). e) Embora os atos nulos não pro-
duzam efeitos jurídicos, podem produzir efeitos de facto. Nesse sentido, o
legislador atribui efeitos putativos a determinadas situações fácticas que
resultem de atos nulos, em ordem a princípios constitucionais, designada-
mente, do princípio da proteção da confiança e do princípio da proporcio-
nalidade (art. 162.º, n.º 3, do CPA).

ii. Regime da anulabilidade: a) Os atos anuláveis produzem efeitos


jurídicos, que podem ser destruídos com eficácia retroativa, se o ato vier a
ser anulado por decisão proferida pelos tribunais administrativos ou pela
própria Administração (art. 163.º, n.º 2, do CPA). b) Produzindo efeitos ju-
rídicos, os atos anuláveis impõem-se aos seus destinatários, podendo mes-
mo ser executados coercivamente. c) Os atos anuláveis podem ser impug-
nados perante a própria Administração ou perante o tribunal administra-
tivo competente, dentro dos prazos legalmente estabelecidos (art. 163.º, n.º
3, do CPA): nos tribunais administrativos, o prazo é de 3 meses para os
particulares e de 1 ano para o Ministério Público (cfr. art. 58.º do CPTA);
perante a Administração, nos prazos do art. 168.º do CPA. d) Não se pro-
duz o efeito anulatório, ou seja, não se opera um desvalor do vício, nos

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Parte II – A atividade administrativa – Formas típicas de atuação

casos previstos no n.º 5 do art. 163.º do CPA (situações de aproveitamento


do ato): quando o conteúdo do ato anulável não possa ser outro, por o ato
ser de conteúdo vinculado, ou a apreciação do caso concreto permita iden-
tificar apenas uma solução como legalmente possível; quando o fim visado
pela exigência procedimental ou formal preterida tenha sido alcançado por
outra via; quando se comprove, sem margem para dúvidas, que, mesmo
sem o vício, o ato teria sido praticado com o mesmo conteúdo. Os casos
descritos não são um poder do juiz ou uma faculdade da Administração,
nem mesmo uma validação legal do ato, mas antes uma inibição legal da
produção dos efeitos anulatórios, mantendo-se a ilegalidade e invalidade
(VIEIRA DE ANDRADE).

Em síntese, a nulidade caracteriza-se, nos termos do art. 162.º do


CPA, pelos seguintes traços essenciais:
• total improdutividade jurídica;
• não vinculatividade e inexecutoriedade;
• irrelevância do decurso do tempo;
• insanabilidade;
• desnecessidade de declaração jurisdicional ou administrativa;
• possibilidade geral de conhecimento;
• possibilidade de conhecimento oficioso;
• irrevogabilidade;
• possibilidade de juridificação dos efeitos putativos.

Do mesmo modo, a anulabilidade caracteriza-se, nos termos do


art. 163.º do CPA, pelos seguintes traços essenciais:
• produção de efeitos jurídicos;
• vinculatividade e executoriedade;
• consolidação por decurso do tempo;
• sanabilidade;
• necessidade de anulação jurisdicional ou anulação administrativa;
• carácter retroativo da anulação;
• carácter restrito da competência para o seu conhecimento;
• necessidade de alegação perante os tribunais;

-112-
Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

• Anulação administrativa oficiosa ou a pedido do particular.

Vejamos, destarte, as respetivas correspondências entre as ilegalida-


des (atendendo ao tipo de preterição de requisitos de validade indicadas
pela lei para cada um dos elementos estruturais do ato) e os consequentes
desvalores.

1. Elementos da estrutura do ato: elementos subjetivos


1.1. Sujeito ou autor do ato administrativo

A este propósito, constituem requisitos subjetivos de validade do


ato administrativo:
a. O poder administrativo;
b. As atribuições;
c. A competência;
d. A legitimação.

Correlativamente, constituem vícios orgânicos do ato administra-


tivo, sancionados com a respetiva invalidade:
a. A usurpação de poder: nulidade (art. 161.º, n.º 2, alínea a), do
CPA);
b. A incompetência absoluta ou a falta de atribuições: nulidade (art.
161.º, n.º 2, alínea b), do CPA);
c. A incompetência relativa (em razão da matéria, hierarquia ou ter-
ritório): anulabilidade (art. 163.º, n.º 1, do CPA);
d. A falta de legitimação: impedimento – anulabilidade (art. 76.º do
CPA); a falta de autorização – anulabilidade; a falta de quórum: nulidade
(art. 161.º, n.º 2, alínea h), do CPA); e a falta de investidura do titular: nuli-
dade.

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Parte II – A atividade administrativa – Formas típicas de atuação

2. Elementos da estrutura do ato: elementos formais


2.1. Forma (modo de exteriorização do ato administrativo)
2.2. E formalidades (trâmites legais relativos à formação do ato administra-
tivo)

A este propósito, constituiu requisito de forma do ato administra-


tivo:
a. A forma escrita: simples ou solene (art. 150.º do CPA).

Correlativamente, constitui vício de forma do ato administrativo,


sancionado com a respetiva invalidade:
a. Carência relativa de forma (ex.: falta ou insuficiência de funda-
mentação obrigatória) – anulabilidade;
b. A carência absoluta de forma legal – nulidade (art. 161.º, n.º 2, alí-
nea g), do CPA).

A este propósito, constituem vícios formais sancionados com a res-


petiva invalidade:
a. A preterição de formalidades – anulabilidade;
b. A violação de direitos fundamentais procedimentais, designada-
mente em atos sancionatórios (art. 161.º, n.º 2, alínea d), do CPA) nulidade;
c. Atos praticados com preterição total do procedimento legalmente
exigido, salvo em estado de necessidade (art. 161.º, n.º 2, alínea l), do CPA)
– nulidade;
d. Deliberação tomada tumultuosamente – nulidade (art. 161.º, n.º 2,
alínea h), do CPA);
e. Deliberação tomada com inobservância da maioria exigida por lei
– nulidade (art. 161.º, n.º 2, alínea h), do CPA).

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Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

3. Elementos da estrutura do ato: objeto mediato e imediato (ou conteúdo)


3.1. Objeto (realidade na qual os efeitos jurídicos do ato se projetam)
3.2. Conteúdo (transformação jurídica; disposições jurídicas propriamente
ditas)

A este propósito, constituiu requisito material do ato administra-


tivo:
a. A possibilidade e inteligibilidade;
b. A veracidade dos factos certificados (quanto aos atos administra-
tivos certificativos);

Correlativamente, constitui vício material do ato administrativo


(violação de lei), sancionados com a respetiva invalidade:
a. A impossibilidade e ininteligibilidade – nulidade (art. 161.º, n.º 2,
alínea c), do CPA);
b. A falsidade ou inexistência do facto certificado – nulidade (art.
161.º, n.º 2, alínea j), do CPA);
c. Falta de idoneidade ou de legitimação do objeto – em regra, anu-
labilidade.

A propósito do objeto imediato do ato, constituem vício material do


ato administrativo (violação de lei), sancionados com a respetiva invali-
dade:
a. Falta absoluta de base legal (prática de ato administrativo sem que
haja lei que o autorize) – nulidade (art. 161.º, n.º 2, alínea g), do CPA).
b. Atos que criem obrigações pecuniárias não previstas na lei – nuli-
dade (art. 161.º, n.º 2, alínea k), do CPA);
c. Ato praticado contra expressa proibição legal (conteúdo impossí-
vel) – nulidade (art. 161.º, n.º 2, alínea c), do CPA);
d. Ato cujo conteúdo constitua um crime – nulidade (art. 161.º, n.º 2,
alínea c), do CPA);
e. Ato que ofenda o conteúdo essencial de um direito fundamental
– nulidade (art. 161.º, n.º 2, alínea d), do CPA);

-115-
Parte II – A atividade administrativa – Formas típicas de atuação

f. Ato que ofenda caso julgado – nulidade (art. 161.º, n.º 2, alínea j),
do CPA);
g. Ato que tenha por objeto a renúncia à titularidade ou ao exercício
da competência – nulidade (art. 36.º, n.º 2, do CPA);
h. Atos praticados com erro e dolo – anulabilidade;
i. Atos praticados sob coação física ou moral – nulidade (art. 161.º,
n.º 2, alínea f), do CPA);
j. Atos cujo conteúdo não integre as menções obrigatórias (art. 151.º
do CPA): falta de indicação da autoridade que praticou o ato; falta de iden-
tificação do destinatário; falta de indicação do conteúdo ou do sentido da
decisão e respetivo objeto; falta de assinatura do ato administrativo; – ine-
xistência (ex vi art. 155.º, n.º 2, do CPA).

4. Elementos da estrutura do ato: finalidade


(FIM: prossecução do interesse público que a lei tinha em mente aquando a
atribuição do poder discricionário ao agente administrativo)

A este propósito, constituem vício material do ato administrativo


(desvio de poder), sancionados com a respetiva invalidade:
a. A prossecução de outros interesses públicos – anulabilidade;
b. A prossecução de interesses privados – nulidade (art. 161.º, n.º 2,
alínea e), do CPA).

5. Revogação e anulação administrativas

A revogação e anulação administrativas são atos de segundo grau,


cujo regime procedimental se encontra previsto nos arts. 165.º a 174.º do
CPA.
Primeiramente, distinguem-se pelo facto de a revogação ser o ato
administrativo que determina a cessação dos efeitos de outro ato, por ra-
zões de mérito, conveniência ou oportunidade (art. 165.º, n.º 1, do CPA),
ao passo que a anulação é o ato administrativo que determina a destruição
dos efeitos de outro ato, com fundamento em invalidade (art. 165.º, n.º 2,
do CPA). Assim, o fundamento da revogação é a inconveniência ou o de-

-116-
Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

mérito e o fundamento da anulação a invalidade de um ato administrativo


anterior.
Quanto aos efeitos, a revogação produz apenas efeitos para o futuro
(ex nunc), podendo, contudo, ser-lhe atribuída eficácia retroativa quando
seja favorável aos interessados ou quando estes concordem expressamente
com a retroatividade e não estejam em causa direitos ou interesses indis-
poníveis (art. 171.º, n.º 1, do CPA). A revogação de um ato revogatório só
produz efeitos repristinatórios se a lei ou o ato de revogação o determina-
rem expressamente (art. 171.º, n.º 2, do CPA). Ao invés, a anulação tem por
efeito a destruição dos efeitos do ato anterior, isto é, efeitos retroativos (ex
tunc), mas pode ser-lhe atribuída eficácia para o futuro quando o ato se te-
nha tornado inimpugnável por via jurisdicional (art. 171.º, n.º 3, do CPA).
A anulação produz efeitos repristinatórios, mas, quando tenha por objeto
a anulação de um ato revogatório, os efeitos repristinatórios do ato revo-
gado só não se produzem se a lei ou o ato de anulação o determinarem ex-
pressamente (art. 171.º, n.º 4, do CPA).
No que diz respeito à iniciativa e competência, isto é, à função, a
revogação implica uma competência idêntica à exercida na prática do pri-
meiro ato, podendo ser determinada por quem tenha poderes dispositivos
sobre a matéria (função administrativa dispositiva) – nos termos do art.
169.º, n.º 2, do CPA, são competentes para a revogação dos atos administra-
tivos os seus autores e respetivos superiores hierárquicos, desde que não
esteja em causa um ato da competência exclusiva do subalterno. A anula-
ção administrativa pode ser determinada por quem tenha poderes de con-
trolo ou fiscalização sobre a matéria (função de fiscalização) – nos termos
do art. 169.º, n.º 3, do CPA, os atos administrativos podem ser objeto de
anulação administrativa pelo órgão que os praticou e pelo respetivo supe-
rior hierárquico.
Ainda, enquanto vigorar a delegação ou subdelegação, os atos ad-
ministrativos praticados por delegação ou subdelegação de poderes po-
dem ser objeto de revogação ou anulação administrativa pelo órgão dele-
gante ou subdelegante, bem como pelo delegado ou subdelegado (art.
169.º, n.º 4, do CPA).

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Parte II – A atividade administrativa – Formas típicas de atuação

Quanto ao objeto, a revogação só pode incidir sobre atos de eficácia


duradoura enquanto eficazes, ou de eficácia instantânea, enquanto não se-
jam executados e se se tratar de atos discricionários. Só podem ser revoga-
dos atos constitutivos de direitos nas circunstâncias previstas no art. 167.º,
n.º 2, do CPA. A anulação pode ter por objeto quaisquer atos administrati-
vos, exceto aqueles referidos no art. 166.º do CPA.
Quanto aos prazos, a revogação pode ser exercida a todo o tempo,
salvo os casos previstos no art. 167.º do CPA, designadamente, o n.º 4. A
anulação tem um prazo regra de seis meses a contar da data do conheci-
mento pelo órgão competente da causa de invalidade ou, nos casos de in-
validade resultante de erro do agente, desde o momento da cessação do
erro, em qualquer dos casos, desde que não tenham decorrido cinco anos
a contar da respetiva emissão (art. 168.º, n.º 1, do CPA).
Tratando-se de atos constitutivos de direitos, o prazo para anulação
é de 1 ano (art. 168.º, n.º 2, do CPA), a contar da data da respetiva emissão.
Retenha-se que estes prazos são diferentes dos prazos da anulação judicial.
De qualquer modo, importa ainda dizer o CPA prevê um regime especial
para a anulação de atos constitutivos de direitos (prazo de cinco anos).

6. Procedimentos de execução coerciva dos atos

6.1. Considerações prévias

Este segmento versa sobre o regime dos procedimentos administra-


tivos de execução através de meios coercivos, previsto nos arts. 175.º e ss.
do novo Código de Procedimento Administrativo (= nCPA), com a altera-
ção introduzida pelo Decreto-Lei n.º 4/2015, de 7 de janeiro – desejamos
sublinhar que esta é uma reforma necessária e claramente do nosso tempo.
Aliás, de imediato, desejamos igualmente enfatizar que muitas das solu-
ções acolhidas neste novo código se compreendem bem se situarmos tem-
poralmente o nCPA num cenário típico do séc. XXI, onde se sente a conver-
gência de vários fenómenos, como sejam, a título de exemplo, a crescente
europeização do Direito Administrativo (entendida esta expressão tam-
bém no sentido de convergência ou aproximação dos sistemas jurídicos

-118-
Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

dos Estados da União Europeia)34, o surgimento intenso do direito admi-


nistrativo transnacional, a que acresce um cenário típico de uma sociedade
de risco ou sociedade-da-urgência35, em que vivemos, sendo certo que, por isso
mesmo, a cada momento do nCPA, vamos encontrando marcas desses fe-
nómenos36. O tema desta sessão e o modo como será tratado revelarão, por
certo, o quanto os sistemas de Administração executiva, de tipo francês ou
de ato administrativo, e o de Administração judiciária estão cada vez mais
próximos.
Procuramos evidenciar um momento do nCPA que não reconhece-
mos, de todo em todo, como sendo próprio do Direito Administrativo por-
tuguês e, por isso, interrogamo-nos quanto à pertinência de uma solução
que subverte e descaracteriza o sistema administrativo português, que tra-
duz subalternização do poder administrativo e do exercício da função ad-
ministrativa perante o poder e o exercício da função jurisdicional.
Em bom rigor, e com inspiração na fábula de LA FONTAINE, La Mon-
tagne qui accouche, a alteração introduzida pelo legislador nesta temática,
lembramo-nos «a montanha em trabalho de parto, que fazia tão grande
escarcéu. Todos, acudindo ao alarido, supunham que daria à luz uma ci-
dade maior que Paris. Ela deu à luz um rato». Na realidade, sem pretender
ironizar em excesso, pretende-se evidenciar o resultado ridículo da solução

34 Sobre este assunto, para uma visão de conjunto e para uma identificação do rol

bibliográfico relativo ao tema, vd. ISABEL CELESTE FONSECA, Processo temporalmente justo
e urgência, Coimbra, 2009.
35 Vejamos: i) de precarização de direitos e de reconhecimento de situações jurídicas;

ii) de reivindicação pelos cidadãos e operadores económicos nacionais e estrangeiros da sa-


tisfação urgente ou imediata de pretensões, através de procedimentos jurídico-públicos sim-
plificados e prioritários; iii) de aceleração de procedimentos jurídico-públicos acompanhada
da desformalização procedimental e de leveza garantística; iv) de preferência pelo provisório
imediato (mesmo que frágil e esfumado) em detrimento do definitivo, por ser demorado,
ainda que, provavelmente, materialmente mais justo. Sobre o assunto, vd. Processo temporal-
mente justo e urgência, cit.
36 A título meramente exemplificativo, identificamos os seguintes momentos: i) de

redução dos espaços de vinculação procedimental e ampliação da discricionariedade na fixa-


ção do iter procedimental pelo órgão que dirige o procedimento, por decisão unilateral ou
por contrato administrativo (nos termos dos arts. 56.º e 57.º); ii) a e-procedimentalização (aco-
lhida nos arts. 14.º, 61.º, 62.º e 63.º, bem como nos arts. 104.º, n.º 1, alíneas c) e d), e n.º 2, 105.º,
n.º 4, 106.º, n.º 3, e especialmente nos arts. 112.º e 113.º); iii) os novos fundamentos de revoga-
ção administrativa, introduzidos no art. 167.º, n.º 2, alínea c); e, por exemplo, o novo regime
relativo à omissão na emissão de pareceres (nos termos do art. 92.º, n.os 5 e 6).

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Parte II – A atividade administrativa – Formas típicas de atuação

acolhida no nCPA sobre o regime jurídico disciplinador do poder de exe-


cução coerciva da Administração: ao mesmo tempo que o legislador tem a
intenção de introduzir uma alteração tão significativa e grandiosa no
nCPA, alterando radicalmente a regra quanto ao exercício do poder de exe-
cução coerciva da Administração Pública, faz depender a entrada em vigor
dessa nova regra, ex vi do art. 8.º, n.º 2, do diploma preambular, da adoção
futura de um ato legislativo, mantendo em vigor o regime anterior do art.
149.º, n.º 2, do Código do Procedimento Administrativo de 1991 (=CPA).
Na verdade, quando falamos no tal facto grandioso e importante,
referimo-nos à disciplina comum prevista nos arts. 175.º e ss. do nCPA, que
versa sobre os procedimentos administrativos dirigidos à obtenção, atra-
vés de meios coercivos, da satisfação de obrigações pecuniárias, da entrega
de coisa, da prestação de factos ou ainda do respeito por ações ou omissões
em cumprimento de limitações impostas por atos administrativos. E, em
especial, referimo-nos à nova conceção de ato executório. Assim, por força
de tal novo regime, a Administração Pública Portuguesa só pratica um ato
executório quando em lei especial assim se determinar, tal como decorre
do princípio da legalidade da execução, previsto no art. 176.º, n.º 1. Mais,
só pratica um ato executório quando, nos termos do nCPA, o ato tiver por
finalidade a execução coerciva de obrigações pecuniárias, nos termos dos
arts. 176.º, n.º 2, e 179.º, ou a execução tiver subjacente uma situação de
urgente necessidade pública, devidamente fundamentada (nos termos do
art. 176.º, n.º 1, parte final). Afinal, fora destes casos, a Administração Pú-
blica portuguesa deverá (rectius, poderá, tendo em conta a letra da lei) ob-
ter a confirmação judicial do título, nos termos do art. 183.º do nCPA, e a
obtenção do mandado judicial para fazer cumprir a sua decisão.
Contudo, e como se apontou, o art. 8.º, n.º 2, do diploma preambular
vem estabelecer que o n.º 1 do art. 176.º do nCPA só se aplicará a partir da
entrada em vigor do diploma que vier definir os casos, as formas e os ter-
mos em que os atos administrativos podem ser impostos coercivamente
pela Administração Pública, devendo ser aprovado no prazo de 60 dias a
contar da data da entrada em vigor do decreto-lei que introduziu a altera-
ção ao CPA (e que o revogou na totalidade). Por conseguinte, o n.º 2 do art.
149.º do CPA revogado manter-se-á em vigor.

-120-
Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

Como se compreende, a incerteza é significativa: i) a começar, no


plano de iure condito, no tema do alcance da remissão do diploma pream-
bular para o n.º 2 do art. 149.º do CPA, uma vez que este dispõe exatamente
o contrário daquela outra norma. Dispõe, precisamente, que «o cumpri-
mento das obrigações e o respeito pelas limitações que derivam de um ato
administrativo podem ser impostos coercivamente pela Administração
sem recurso prévio aos tribunais, desde que a imposição seja feita pelas
formas e nos termos previstos no presente Código ou admitidos por lei».
Na verdade, interrogamo-nos quanto a saber se a remissão é feita apenas
para a 1.ª parte do artigo ou para todo ele.
Depois, e na perspetiva dogmática, a incerteza é significativa, dado
o entendimento da doutrina sobre o regime da execução administrativa e
especialmente sobre o princípio (privilégio) da execução prévia. Aliás,
neste plano, estamos longe de encontrar consensos, quer do ponto de vista
do diálogo intergeracional, quer do ponto de vista intrageracional, estendido
ao quadro de direito comparado37.
Assim, se, no plano da discussão doutrinal, está longe o consenso
quanto ao tema da validade geral do princípio da executoriedade (execu-
ção prévia) dos atos administrativos, enquanto regra da afirmação da força
jurídica dos atos administrativos suscetíveis de execução coativa (atos exe-
quíveis que imponham obrigações ou criem deveres para os particulares,
desde que eficazes) – discussão que foi intensa em torno da compreensão
do art. 149.º, n.º 2, e que, por isso, se mantém, mas que se estende agora,
por incerteza quanto ao alcance da remissão. Na verdade, impõe-se saber
se apenas está em vigor o princípio acolhido no art. 149.º, n.º 2, ou todo o
regime do CPA relativo à execução coerciva (arts. 151.º a 157.º, mormente,
arts. 155.º a 157.º).
Enfim, não obstante as incertezas já anunciadas, ainda nos interro-
gamos quanto à necessidade de, por razões sobrevalorizadas de ponto de
vista garantístico do executado, exigir que o legislador intervenha, por re-
gra, sempre de forma pontual e inequívoca, no sentido de permitir a exe-

37 Por todos, vd. CARLA AMADO GOMES, Contributo para o estudo das operações materiais

da Administração Pública e do seu controlo jurisdicional, Coimbra, 1999, pp. 91 e ss.

-121-
Parte II – A atividade administrativa – Formas típicas de atuação

cução coerciva de atos administrativos. Aliás, perguntamos se isso não sig-


nificaria desvalorizar a existência de um regime comum procedimental
para a execução coerciva de atos num código de procedimento adminis-
trativo, como acontece para a emissão de ato ou para a reapreciacão de
atos. É certo que o regime comum a acolher num código de procedimento
administrativo não afasta a possibilidade de o legislador em legislação es-
pecial impor especiais vinculações (e deveres) à Administração Pública,
que executa um seu ato que impõe obrigações ou estabelece limitações,
como seja em matéria de prestação de facto infungível. Desde que o re-
curso aos tribunais administrativos não seja negado, quer em termos da
utilização de processos principais, quer cautelares, as garantias de prote-
ção do executado não são menos pensadas se forem acolhidas num código
de procedimento administrativo, num regime (legal) comum.
Enfim, falta, pois, saber se o novo regime não traduzirá, afinal, o
crescimento do espaço de entrada do juiz administrativo no território ad-
ministrativo. Afinal, tal solução esvazia o poder administrativo de uma
prerrogativa própria e necessária da função administrativa, que, desde
1991, se sujeita a normas jurídicas comuns. Afinal, repetimos, tal solução
impedirá, por regra e em termos de princípio geral, que aquela que desejou
introduzir um efeito na ordem jurídica a possa fazer cumprir, sem ser com
fundamento especial em lei ou sem ter de passar antes pelo juiz.
Voltando ao texto de Horácio, «pariu a montanha e nasceu um rato
ridículo»: é assim que entendemos a solução acolhida no nCPA e, sobre-
tudo, a promessa de solução legal a acolher em 60 dias, a contar da entrada
em vigor do nCPA, ex vi art. 8.º, n.º 2, do diploma preambular. Assim, por
razão de tal imposição legal, o regime constante do art. 176.º do nCPA só
se aplicará a partir da entrada em vigor do diploma que definirá os casos,
as formas e os termos em que os atos administrativos podem ser impostos
coercivamente pela Administração.

-122-
Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

6.2. Dos procedimentos administrativos de execução através de meios coer-


civos

6.2.1. Das diversas leituras do princípio da execução prévia

Como apontámos na nota introdutória, o tema da execução coerciva


da Administração Pública, e especialmente o assunto do privilégio ou prer-
rogativa da execução prévia, sempre suscitou controvérsia na doutrina.
Não obstante ser um traço típico ou identitário da Administração Pública
de tipo francês ou de ato administrativo, o certo é que, mesmo entre nós, o
poder de autotutela executiva da Administração Pública tem suscitado
aceso debate, sendo certo que a querela não se resume ao plano termino-
lógico38.
Aliás, o CPA acolheu uma solução que «fica a meio caminho entre a
solução algo autoritária do art. 231.º da 1.ª versão do Projeto de Código do
Processo Administrativo Gracioso (1980) e a solução muito liberal do art.
202.º da 2.ª versão do Projeto de Código do Processo Administrativo Gra-
cioso (1982). A solução intermédia está sobretudo consagrada no n.º 2 deste
artigo, sendo certo que a expressão intercalada na revisão do CPA de 1996
teve como objetivo esclarecer que as formas de execução reguladas nos
arts. 155.º a 157.º do Código, juntamente com outras previstas em leis avul-
sas, são suscetíveis de utilização consoante os casos, para a execução de
quaisquer decisões administrativas»39. Ainda assim, o art. 149.º, n.º 2, nun-
ca suscitou uma interpretação uniforme 40.
Aliás, sobre o tema, é possível configurar a existência de diferentes
leituras. Numa perspetiva tradicional, correspondente à conceção tradicio-
nal do privilégio de execução prévia, considera-se que o ato administrativo

38 Sobre este assunto, vd. RUI GUERRA DA FONSECA, O fundamento da autotutela

executiva da Administração Pública, Coimbra, 2012.


39 Neste sentido, seguimos de perto D. FREITAS DO AMARAL [et al.], Código do Proce-

dimento Administrativo Anotado, Coimbra, 3.ª ed., 1999, pp. 264 e ss.
40 A título de exemplo, vd. J. C. VIEIRA DE ANDRADE, Lições de Direito Administra-

tivo, 3.ª ed., Coimbra, 2013, pp. 158 e ss.; D. FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Adminis-
trativo, Vol. II., 2.ª ed., Coimbra, 2011, pp. 477 e ss. Sobre o privilégio da execução prévia, vd.
R. MACHETE, «Privilégio da Execução prévia», in Dicionário Jurídico da Administração Pública,
Vol. VI, 1994, pp. 448 a 470.

-123-
Parte II – A atividade administrativa – Formas típicas de atuação

pode ser sempre objeto de execução coerciva por via administrativa, salvas
as exceções legais. São as posições perfilhadas por MARCELLO CAETA-
NO e MARQUES GUEDES41. Segundo a corrente ultramoderna ou mais
garantística, a execução coerciva por via administrativa só seria legítima
em matéria de polícia administrativa e para além desta, nas hipóteses em
que a lei expressamente a autorizasse, caso a caso42. Esta perspetiva corres-
ponde à visão de ROGÉRIO SOARES, SÉRVULO CORREIA, MARIA DA
GLÓRIA GARCIA, CARLA AMADO GOMES e VASCO PEREIRA DA
SILVA43.
A Comissão que trabalhou o Projeto de Código do Procedimento
Administrativo apresentado ao Governo em 1989 acolheu uma solução in-
termédia, tendo em conta que a primeira perspetiva iria ao encontro da
atribuição de poderes excessivos à Administração e a segunda iria no sen-
tido inverso. Assim, parece ter vingado a regra: a Administração pode
sempre executar coercivamente os seus atos por via administrativa, mas,
ao executar as suas decisões, só pode fazê-lo pelas formas e nos termos
previstos no Código ou admitidas por outras leis. Por outras palavras, vin-
gou assim o princípio de que a execução coerciva por via administrativa é
legítima em todos os casos em que exista ato executório, mesmo que não
esteja prevista em qualquer texto legal. E, por força desse mesmo enten-

41 A título de exemplo, vd. MARCELLO CAETANO, Manual de Direito Administrativo

I, 10.ª ed., Lisboa, 1973, pp. 15, 16 e 448 e ss.; MARQUES GUEDES, «Administração Pública»,
in Boletim da Direcção Geral das Contribuições e Impostos, novembro, 1959, n.º 11, pp. 1628 e 1629.
42 Não se pode deixar de evidenciar o pensamento de VIEIRA DE ANDRADE a pro-

pósito da conceção de executoriedade dos atos administrativos. O Autor considera que tal
conceção tradicional é insustentável de manter no quadro de uma administração democráti-
ca, em que os administrados são cidadãos titulares de direitos perante autoridades adminis-
trativas, sendo certo que, no seu entender, não se pode mais falar de uma verdadeira presun-
ção de legalidade dos atos administrativos, nem faz sentido reconhecer à Administração um
poder geral de uso da força, fora das situações excecionais ou de urgência. Refere, aliás, que
a execução coerciva só é legítima em situações de urgência devidamente fundamentada (por
estar em causa prejuízo para o interesse público inequivocamente demonstrado) ou em casos
expressa ou inequivocamente previsto da lei. Mais: afirma que o princípio geral está consa-
grado no n.º 1 do art. 149.º, mas limita-o severamente para as situações de execução coativa
de obrigações ou limitações (nos termos do n.º 2 do art. 149.º), quer por força das limitações
decorrentes do CPA quer por força das situações previstas em legislação especial. Vd. J. C.
VIEIRA DE ANDRADE, Lições de Direito Administrativo, op. cit., pp. 183 e 184.
43 Por todos, vd. CARLA AMADO GOMES, Contributo para o estudo das operações ma-

teriais da Administração Pública e do seu controlo jurisdicional, cit., pp. 91 e ss.

-124-
Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

dimento, ficando certo de que as formas e os termos da execução devem


estar previstas em lei, podendo o regime do CPA juntamente com outras
leis avulsas servir para a execução de quaisquer decisões administrativas.

6.2.2. Da leitura do art. 149.º, n.º 2

Sublinhando, impõe-se dizer que a solução intermédia, correspon-


dente à posição moderada, é a posição à qual aderimos. Estaremos, assim,
tão errados? Vamos procurar encontrar a razão de ser do privilégio da exe-
cução prévia. Ela assenta na teoria da decisão executória e surge naturalmente
ligada ao período clássico do Direito Administrativo ou à sua belle époque,
altura dos grandes arestos (desde 1873, com o célebre aresto Blanco): perío-
do posterior a 1872 (período da lei 24 de maio), a partir do qual se institui
o período de justice déléguée e se confere ao Conseil d’Etat o poder para con-
trolar jurisdicionalmente a Administração, controlando-a em nome do
povo.
É neste quadro que se afirmam importantes princípios de Direito
Administrativo: de responsabilidade do Estado (e a distinção entre esta e
a pessoal do funcionário), ampliam-se os meios de anulação, a teoria dos
atos administrativos ganha estrutura e ganha corpo a teoria da decisão exe-
cutória.
Se é verdade que a conceção oitocentista dos sistemas de Adminis-
tração executiva afirmava o privilégio da execução prévia dos atos admi-
nistrativos fundado numa presunção de legalidade – a Administração Pú-
blica tinha o poder geral de executar as suas decisões, pelos seus próprios
meios coercivos, se fosse caso disso, sem necessidade de recorrer ao tribu-
nal – ,mais verdade é que a conceção oitocentista do princípio do privilégio
da execução prévia surge ligada a dois dogmas, de entre os quais o da afir-
mação da ideia de «serviço público». É neste quadro que há o reforço da
administração de autoridade. Surge a noção de prerrogativas de Direito
Público ou de meios exorbitantes do direito comum: i) no interesse do ser-
viço público, a Administração deve impor obrigações aos particulares uni-
lateralmente e sem primeiro passar pelo juiz; ii) a Administração atua e o
administrado contestará depois: tal é o alcance deste privilégio da exe-

-125-
Parte II – A atividade administrativa – Formas típicas de atuação

cução prévia, que constitui o elemento mais importante da teoria da deci-


são executória.
Vejamos, com mais detalhe, a teoria da decisão executória 44. A Ad-
ministração Pública pode modificar unilateralmente a situação jurídica dos
administrados sem passar pelo juiz: não emite simples pretensões; antes
toma verdadeiras decisões. A decisão executória pode ser assim definida
como uma manifestação da vontade da Administração Pública com vista
a produzir efeitos jurídicos.
Como consequências da afirmação da decisão executória, aparecem
duas notáveis prerrogativas: a) não se considera que haja decisão executó-
ria quando o ato da Administração, ainda que unilateral, não modifique a
ordem jurídica, logo o Princípio da Execução Prévia pressupõe que a deci-
são modifique imediatamente a Ordem Jurídica: o particular pode certa-
mente contestar a sua validade perante o juiz, mas o recurso não tem efeito
suspensivo e, enquanto se espera a eventual anulação, a decisão é execu-
tada; b) o Princípio da Execução Prévia permite à Administração utilizar a
força se o particular não executa de bom grado, sendo certo que também
se associa este uso de força à urgência («quando a casa está a arder, não se
vai pedir ao juiz autorização para mandar lá os bombeiros», con. Romieu);
c) o Princípio da Execução Prévia pressupõe salvaguardar e satisfação do
interesse público, quando se antevê que a realização do mesmo, sendo di-
ferida, pode padecer de plena execução.
Assim, recuperando a ideia inicial, segundo esta conceção modera-
da, a Administração Pública pode sempre executar coercivamente os seus
atos executórios por via administrativa. Ao executá-los, deve fazê-lo nos
termos e pelas formas previstas no CPA ou admitidos em lei avulsa ou
extravagante. Assim, também se deve entender o art. 149.º, n.º 2: a execu-
ção coerciva por via administrativa é legítima em todos os casos em que
exista ato administrativo executório, mesmo que não esteja prevista em

44 Sobre o assunto, PROSPER WEIL (O Direito Administrativo, trad. Maria da Glória


Ferreira Pinto/A. J. Pinto Loureiro, Almedina, 1977) lembra também a afirmação do indiví-
duo, dos seus direitos e da separação de poderes, do qual resulta o Primado do indivíduo
face ao Estado e do Direito em relação ao Estado, bem como a afirmação dos direitos naturais
e imprescritíveis do homem e a afirmação da separação de poderes (ainda que com o respe-
tivo paradoxo).

-126-
Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

qualquer texto legal, mas as formas de execução e os termos em que é feita


terão de estar previstos na lei. Procura-se conciliar o interesse público, do
ponto de vista da prossecução eficiente e rápida do interesse público, com
a perspetiva garantística, pois, afinal, sempre haverá situações de execução
coerciva por parte da Administração que deverão estar salvaguardadas ex-
pressa e inequivocamente no texto da lei, tratando-se de execuções para
prestação de facto infungível (que impliquem impor sujeições pessoais, co-
mo seja a vacinação ou internamento) ou protegidas judicialmente, como
seja a entrega de coisa (obrigando a salvaguardar o direito de propriedade
do executado).

6.3. Da perspetiva atual

6.3.1. Do novo regime relativo aos procedimentos administrativos de exe-


cução através de meios coercivos

Como também apontámos na nota introdutória, o nCPA prevê, na


sua Parte IV (da atividade administrativa), em especial, no capítulo II, so-
bre o ato administrativo, secção V, o regime comum relativo aos procedi-
mentos administrativos dirigidos à obtenção, através de meios coercivos,
da satisfação de obrigações pecuniárias, entrega de coisa, da prestação de
factos ou ainda do respeito por ações ou omissões em cumprimento de li-
mitações impostas por atos administrativos, deixando de fora deste regime
a adoção de medidas de polícia de coação direta.
Enfim, parece-nos, agora, que o ato administrativo português deixa
definitivamente de ser executório, por natureza, pois fica claro no nCPA
que o ato administrativo só terá tal natureza em poucos casos: i) quando
em lei especial assim se determinar, tal como decorre do princípio da lega-
lidade da execução, previsto no art. 176.º, n.º 1; ii) ou quando, nos termos
do nCPA, o ato tiver por finalidade a execução coerciva de obrigações pe-
cuniárias, nos termos dos arts. 176.º, n.º 2, e 179.º; iii) ou quando a execução
tiver subjacente uma situação de urgente necessidade pública, devidamen-
te fundamentada (nos termos do art. 176.º, n.º 1, parte final).

-127-
Parte II – A atividade administrativa – Formas típicas de atuação

Enfim, como se percebe, a execução coerciva tem de ter uma habili-


tação específica, podendo ela decorrer da lei, do nCPA ou de decisão juris-
dicional, que o titular do órgão tem de adquirir (nos termos do art. 183.º).
Na verdade, nos termos desse preceito e tendo em conta o que se afirmou,
a Administração Pública deve solicitar a respetiva execução ao tribunal ad-
ministrativo competente, nos termos do disposto na lei processual admi-
nistrativa.
Pois bem, ainda a este propósito, surge uma dúvida. É certo que o
ato administrativo continua a ser título executivo, não sendo necessário
obter a confirmação em juízo dessa executividade. Contudo, perde o seu
carácter executório. Portanto, não restando dúvida quanto a saber que tipo
de ação processual deve a Administração Pública propor em juízo, que
será uma ação executiva e não uma declarativa, impõe-se, contudo, ainda
saber se há um dever de propositura da ação executiva ou uma simples
faculdade. Estamos especialmente a considerar o vocábulo acolhido no art.
183.º: “pode”.
Como se apontou, claro está que aqui se ressalvam as situações: i)
de execução de obrigações pecuniárias a favor da Administração, que deve
seguir o regulado para a execução fiscal, nos termos do art. 179.º ; ii) a ado-
ção de medidas de polícia, que segue regime próprio; iii) e as situações em
que a execução coerciva de obrigações impostas deva acontecer em casos
de urgente necessidade pública.

6.3.2. Das garantias

Por força do que se foi dizendo, entendemos que apenas se mantém


em vigor a parte 1.ª do n.º 2 do art. 149.º do CPA. E, por isso, todo o regime
comum sobre execução coerciva de atos, acolhido nos arts. 177.º e ss., se
considera em vigor. E assim é tanto mais que ele reforça as garantias dos
executados, a começar: i) pela exigência de ato exequendo eficaz; ii) a con-
tinuar pela aplicação obrigatória do princípio da proporcionalidade, nos
termos do art. 178.º, n.º 1, e pelas limitações decorrentes do regime de direi-
tos fundamentais, quando em causa esteja a coação física sobre indivíduos,
nos termos do art. 178.º, n.º 2; iii) a continuar ainda pela obrigatoriedade

-128-
Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

da existência de prévio ato expresso de início da execução, nos termos do


art. 177.º, salvo se existir estado de necessidade; iv) a continuar ainda pela
abertura ao controlo jurisdicional dos atos de execução. Assim, nos termos
do art. 182.º do nCPA, podem os executados recorrer e solicitar a suspen-
são administrativa e jurisdicional do ato exequendo, bem como podem re-
correr da decisão de proceder à execução administrativa, invocando e im-
putando-lhe vícios próprios, podendo igualmente impugnar e solicitar a
suspensão de outros atos próprios da execução, isto é, de atos praticados
no âmbito do procedimento de execução, sendo certo que, nos termos do
n.º 3 do art. 182.º, podem os executados lançar mão de outros mecanismos
de defesa dirigidos à execução de operações matérias de execução, por as
mesmas serem ilegais, nos termos das alíneas a), b) e c).
Neste ponto último do texto, não podemos deixar de reiterar a nossa
inquietação em relação à temática da execução coerciva das decisões admi-
nistrativas. E sublinhamos o seguinte: se a solução acolhida no nCPA, nos
arts. 175.º e ss., não nos causa desconforto, já a promessa de solução legal
a acolher em 60 dias a contar da entrada em vigor do nCPA, ex vi art. 8.º,
n.º 2, do diploma preambular, nos causa intranquilidade. Assim, por razão
de tal imposição legal, o regime constante do art. 176.º do nCPA só se apli-
cará a partir da entrada em vigor do diploma que definirá os casos, as for-
mas e os termos em que os atos administrativos podem ser impostos coer-
civamente pela Administração. Ora, daqui decorre que, até entrar em vigor
o nCPA, deve aplicar-se o art. 149.º, n.º 2; se a prometida nova legislação
não vier nunca a ver a luz do dia, ficará em vigor para sempre o art. 149.º,
n.º 2, do CPA revogado. Não é isto ridículo?

-129-
Parte II – A atividade administrativa – Formas típicas de atuação

PARTE II – A ATIVIDADE ADMINISTRATIVA


– FORMAS TÍPICAS DE ATUAÇÃO

OS CONTRATOS PÚBLICOS
(EM ESPECIAL, O CONTRATO ADMINISTRATIVO)

AULA N.º 7

Sumário45: 1. Enquadramento; 2. Conceito e tipos; 3. Procedimento de For-


mação dos contratos públicos; 4. Regime substantivo dos contratos públicos: novi-
dade ou consequência?

BIBLIOGRAFIA DE BASE

FREITAS DO AMARAL, Diogo, Curso de Direito Administrativo, Vol. II, 4.ª


ed., Coimbra: Almedina, 2018, pp. 443 e ss.
VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos – Lições de Direito Administrativo, 5.ª ed.,
Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2017, especialmente, pp. 249 e ss.

BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR RECENTE:

BOVIS, Christopher, Research Handbook on EU Public Procurement, Edward


Elgar, 2016
GONÇALVES, Pedro Costa, Direito dos Contratos Públicos, Vol. I, Coimbra:
Almedina, 2018
LICHÈRE, François/CARANTA, Roberto/TREUMER, Steen (eds.), Modern-
ising Public Procurement: the New Directive, DJOF Publishing, 2014
MARIQUE, Yseult/WAUTERS, Kris, EU Directive 2014/24 on Public Procure-
ment: a New Turn for Competition in Public Markets?, Larcier, 2016
OLYKKE, Grtith Skovgaard/SÁNCHEZ-GRAELLS, Alberto, Reformation or
Deformation of the EU Public Procurement Rules, Edward Elgar, 2016
RODRIGUES, Nuno Cunha, A Contratação Pública como Instrumento de Polí-
tica Económica, Coimbra: Almedina, 2013

45 Sobre o tema, vd. o nosso Direito da Contratação Pública. Estudos Reunidos, NEDIP/

/ELSA Uminho, Braga, 2019.

-130-
Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

SÁNCHEZ-GRAEELS, Alberto, Public Procurement and the EU Competition


Rules, Bloomsbury, 2015
SJAFJELL, Beate/WIESBROCK, Anja (eds.), Sustainable Public Procurement
under EU Law: new perspectives on the State a Stakeholder, Cambridge, 2015
TRYBUS, Martin/CARANTA, Roberto/EDELSTAM, Gunilla, EU Public
Contract Law: Public Procurement and Beyond, Bruylant, 2014.

1. Enquadramento

O exercício do poder administrativo, enquanto forma de a Adminis-


tração Pública satisfazer as necessidades coletivas colocadas por lei a seu
cargo, pode manifestar-se tanto na emissão de atos jurídicos unilaterais
como pode traduzir-se na realização de acordos bilaterais. Assim, no
primeiro sentido, que atende à perspetiva unilateral de exercício do poder
público, cumpre sublinhar que as entidades públicas podem emitir tanto
atos jurídicos como podem desenvolver atuações materiais (isto é, atua-
ções sem coloração jurídica, ainda que produtora de consequências jurí-
dicas) ou mesmo podem desencadear uma atuação informal). Aliás, nor-
malmente associamos a função administrativa à pratica de atos, tanto de
atos jurídicos, especialmente atos administrativos, como a associamos à
realização de operações lato senso materiais – incluindo as operações mate-
riais de exercício (por exemplo: construção de infraestruturas) e os atos de
execução material (por exemplo, notificação de atos, abate de animais ou
demolição de uma obra que ameaça ruína). De facto, estas operações não
produzem quaisquer alterações da ordem jurídica. E, finalmente, no
quadro da atuação unilateral da Administração, cumpre ainda reconhecer
que, a par da emissão de atos jurídicos individuais e da emissão de normas
gerais e abstratas, as entidades administrativas concretizam o seu poder
administrativo através da emissão de instruções, recomendações e adver-
tências, isto é, atuações administrativas informais de carácter unilateral,
não vinculativas, mas que conformam a atuação dos seus destinatários.
Voltando, contudo, à ideia desenvolvida inicialmente, cumpre dizer
que o exercício de poder por parte da Administração Pública pode acon-

-131-
Parte II – A atividade administrativa – Formas típicas de atuação

tecer tanto através de uma atuação unilateral, no contexto de uma Admi-


nistração autoritária, como através de uma atuação concertada e de colabo-
ração com os particulares. Neste contexto, cumpre salientar que, quando a
Administração exerce o seu poder de forma unilateral, fá-lo normalmente
sob a forma de atos ou regulamentos administrativos. Enquanto o ato ad-
ministrativo é a decisão tendente a produzir efeitos jurídicos numa situa-
ção individual e numa situação concreta, já que é o instrumento utilizado
pela Administração para solucionar casos específicos e problemas indivi-
duais, o regulamento administrativo constitui normas jurídicas ou regras
gerais e abstratas que têm como fundamento a lei e permitem aplicá-la às
situações da vida.
Há, contudo, necessidades coletivas que podem ser satisfeitas por
via de acordo com os particulares, isto é, tendo por base acordos bilaterais
ou acordos de vontade. Aliás, o contrato administrativo começou por ser
a forma típica de a Administração chamar os particulares a realizar tarefas
públicas e de pedir a sua colaboração na satisfação das necessidades cole-
tivas: as concessões de obras e de serviços, mormente de transporte e de
iluminação das cidades e os contratos de empreitada são exemplos clássi-
cos de contratos administrativos com essa natureza.

2. Conceito e tipos

O contrato administrativo é, portanto, uma forma de exercício de


poder administrativo. E se normalmente a Administração atua por via de
autoridade, através de uma decisão unilateral, praticando um ato adminis-
trativo (um ato jurídico, praticado pela Administração Pública e que tra-
duz uma decisão tendente a produzir efeitos jurídicos sobre uma situação
individual e concreta, ou estatuição autoritária relativa a um caso concreto,
destinada a produzir efeitos jurídicos externos, positivos ou negativos),
outras vezes prefere chegar a acordo com os particulares, uma vez que as
entidades administrativas podem lançar mão do contrato administrativo
sempre que entendam adequado (e a lei o não proíba), para prosseguir as
suas atribuições, sendo isso possível ex vi de uma disposição do CPA (n.º
3 do art. 200.º) e do CCP (art. 278.º).

-132-
Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

Tais preceitos consagram uma norma habilitadora geral de recurso


à figura do contrato administrativo. Enfim, nos dias que correm, esta figu-
ra surge a par do ato administrativo como forma típica de atuação admi-
nistrativa.
Através do contrato administrativo, a Administração, em vez de im-
por unilateralmente a sua vontade, celebra com o particular um contrato,
procurando chegar a um acordo de vontades com este, para criar, modi-
ficar ou extinguir uma relação jurídica administrativa. Porque a Adminis-
tração precisa de realizar obras públicas (construir uma escola, um hospital
ou estradas e pontes), prefere celebrar com o particular um acordo pelo
qual ele constrói a obra e a Administração paga o preço. Impor unilateral-
mente essa tarefa ao particular seria impensável. Porque a Administração
precisa que sejam fornecidos medicamentos aos hospitais e cadeiras e
mesas às escolas e às Universidades, o modo mais adequado de o fazer é a
celebração de contratos, contratos de empreitada, no primeiro caso, e de
fornecimento no segundo caso. A realização do interesse público pode exi-
gir, pois, a celebração de contratos administrativos. Aliás, a necessidade de
proceder à prossecução do interesse geral pode exigir também que a Ad-
ministração celebre não só contratos administrativos como também cele-
bre contratos civis (de arrendamento de um imóvel, por exemplo, ou de
compra e venda de bens), de trabalho e comerciais. Assim, mesmo que o
contrato administrativo seja ainda a forma típica de atuação contratual,
este não esgota o universo contratual da Administração, nem é, por isso,
sinónimo de todo o tipo de contrato celebrado pela Administração.
Antes da publicação do CCP, discutiu-se qual seria o papel do con-
trato administrativo no rol dos instrumentos de atuação administrativa.
Na realidade, devido ao crescente recurso às figuras de direito privado,
quer num perfil estrutural ou orgânico, quer na perspetiva da atuação ju-
rídica, à crescente publicização do contrato do direito privado e à influên-
cia, cada vez mais extensa e intensa, da ordem jurídica europeia no regime
nacional dos contratos, foi seriamente posta em causa a autonomia subs-
tantiva do contrato administrativo, existindo na doutrina duas correntes
opostas, uma que considerava que ele já havia perdido consistência ju-
rídica e outra que defendia que o contrato administrativo ainda desem-

-133-
Parte II – A atividade administrativa – Formas típicas de atuação

penhava um papel significativo no universo da atuação contratual da Ad-


ministração.
Na realidade, no contexto de um crescente fenómeno de transpo-
sição do direito comunitário para a ordem jurídica interna e, portanto, no
quadro de um novo regime de contratação pública – isto é, de um regime
(maxime, regime procedimental) que veio disciplinar os procedimentos de
formação de certos contratos em que um «organismo de direito público»
intervém como entidade adjudicante (independentemente de tal procedi-
mento desembocar na celebração de um contrato administrativo ou pri-
vado) –, questionou-se se ainda faria sentido distinguir o contrato adminis-
trativo dos demais contratos de natureza jurídico-privada que a Admi-
nistração também vinha celebrando, uma vez que esta, quando celebra este
tipo de contratos, também está sujeita a vinculações jurídico-públicas. Na
verdade, se, para algum setor da doutrina, o contrato administrativo nunca
perdera a plena autonomia substantiva, já para outro setor, a figura do con-
trato administrativo, logo após a publicação do ETAF, entrara definitiva e
irreversivelmente em agonia, tendo dado lugar ao «contrato público», uma
figura de que as entidades públicas lançam mão para prosseguir o inte-
resse público e que resulta fundamentalmente da aproximação dos regi-
mes da contratação jurídico-privada e jurídico-pública, tendo em conta a
europeização desses regimes de contratação pública.
Enfim, o contrato administrativo nasceu na França, no século XIX,
para cumprir uma sina marcada pela realização do interesse público, tendo
sido associado a um regime jurídico especial e à possibilidade de a Admi-
nistração modificar unilateralmente o conteúdo das prestações contratuais
para satisfazer novas exigências de interesse público. O contrato adminis-
trativo seria sinónimo do contrato celebrado pela Administração, contrato
que seria sujeito a um regime jurídico traçado pelo Direito Administrativo,
caracterizando-se, pois, pelo caráter especial, singular e exorbitante do
regime a que estaria sujeito.
Esta figura de matriz francesa entrou em Portugal no século XIX –
aliás, foi através dela, maxime, através dos contratos de concessão e de em-
preitada, que os poderes públicos nos fins do século XIX e princípios do
século XX fizeram funcionar os mais importantes serviços de transportes

-134-
Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

coletivos urbanos e interurbanos e de iluminação das cidades –, sendo cer-


to que começou por ser identificada em sentido taxativo pela legislação
processual e para efeitos de contencioso, tendo sido posteriormente am-
pliada na disciplina adjetiva interna e depois acolhida finalmente no direi-
to material, em 1991, com a adoção do CPA. Estando hoje consagrada como
uma modalidade ordinária de atuação administrativa, a par do ato admi-
nistrativo, a figura do contrato administrativo é aceite no CCP como sub-
categoria do contrato público, tendo este consagrado na sua parte III um
regime jurídico substantivo para o contrato público que revista a natureza
de contrato administrativo, ao mesmo tempo que estabelece a disciplina
aplicável à contratação pública.
Neste contexto, se durante algum tempo se procurou saber se esta
figura contratual existe no ordenamento jurídico português, qual o seu
regime jurídico, qual o papel que desempenha, a par de outros contratos
de natureza jurídico-privada e dos demais contratos públicos e que tipo de
tribunais e através de que meios processuais é possível resolver os con-
flitos que emergem desses contratos, mormente, dos diferendos que sejam
relativos à sua interpretação, validade e execução, hoje as respostas pare-
cem mais simples, visto que o CCP acolheu, para o bem ou para o mal, as
soluções que se esperavam de um diploma legal. Aliás, o CCP constitui
um marco histórico na evolução do Direito Administrativo nacional, espe-
cialmente no domínio da atividade contratual, tendo-se esforçado por esta-
belecer uma disciplina conforme com a ordem jurídica comunitária e as
orientações do TJ e, de igual modo, tendo-se esforçado por manter a tra-
dição dogmática portuguesa, acolhendo aquilo que pode ser tido como
quid specificum dos contratos administrativos, ao mesmo tempo que mo-
derniza a contratação pública.
Ora, o CCP, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 18/2008, de 29 de janeiro,
foi, ao longo dos anos, objeto de várias alterações, introduzidas pela Lei n.º
59/2008, de 11 de setembro, pelo Decreto-Lei n.º 223/2009, de 11 de
setembro, pelo Decreto-Lei n.º 278/2009, de 2 de outubro, pela Lei n.º
3/2010, de 27 de abril, pelo Decreto-Lei n.º 131/2010, de 14 de dezembro,
pela Lei n.º 64-B/2011, de 30 de dezembro, pelo Decreto-Lei n.º 149/2012,

-135-
Parte II – A atividade administrativa – Formas típicas de atuação

de 12 de julho, pelo Decreto-Lei n.º 214-G/2015, de 2 de outubro e, mais


recentemente, pelo Decreto-Lei n.º 111-B/2017, de 31 de agosto.
A nona e mais recente atualização do CCP centra-se num triplo
propósito, a saber:
Primo: procede ao alinhamento com as mais recentes diretivas
comunitárias – a cuja transposição procede, as Diretivas 2014/23/UE,
2014/24/UE e 2014/25/UE, todas do Parlamento Europeu e do Conselho, de
26 de fevereiro de 2014, e com as orientações do TJ, merecendo destaque:
i. o alargamento do regime dos contratos entre entidades do setor
público, abrangendo outras formas de cooperação entre entidades pú-
blicas;
ii. a criação de um novo procedimento para a aquisição de produtos
e serviços inovadores – a parceria para a inovação;
iii. a promoção da adjudicação de contratos sob a forma de lotes,
com vista a incentivar a participação das pequenas e médias empresas;
iv. a possibilidade de reservas de contratos para entidades que em-
preguem pessoas com deficiência ou desfavorecidas;
v. a alteração da regra de fixação do critério do preço anormalmente
baixo, eliminando a sua indexação ao preço base;
vi. a disponibilização de forma livre, completa e gratuita das peças
do procedimento, na plataforma eletrónica de contratação pública, a partir
da data de publicação do anúncio;
vii. um novo regime simplificado para serviços de saúde, serviços
sociais e outros serviços específicos de valor superior a €750 000;
viii. a previsão da emissão da fatura eletrónica em contratos públi-
cos; e
ix. a introdução da noção de trabalhos ou serviços complementares,
que substitui os «trabalhos a mais» e os «trabalhos de suprimento de erros
e omissões».

Secundo: consagra medidas de simplificação, desburocratização e


flexibilização, destacando-se (i) o encurtamento de prazos mínimos de
apresentação de propostas e candidaturas em procedimentos de valor in-
ferior aos limiares europeus, isto é, sem publicidade no Jornal Oficial da

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Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

União Europeia; (ii) a previsão de que o valor de 5% da caução passa a ser


um valor máximo, deixando de ser um valor fixo e a consagração de um
regime de liberação gradual da caução; (iii) a recuperação da possibilidade
de sanar a preterição de formalidades não essenciais pelas propostas apre-
sentadas, evitando exclusões desproporcionadas e prejudiciais para o in-
teresse público; (iv) a inclusão de pequenas empreitadas de obras públicas
no regime de ajuste direto simplificado (até €5 000) e o alargamento do
procedimento de concurso público urgente às empreitadas cujo valor es-
timado dos contratos a exceder não exceda €300 000; (v) a inclusão do re-
gime de alienação de bens móveis por entidades públicas; e (vi) o encur-
tamento dos prazos de ajuste direto e de consulta prévia.

Tertio: estabelece, por fim, novas medidas de transparência e de boa


gestão pública, tais como, entre outras, (i) a introdução da consulta pre-
liminar ao mercado; (ii) a consagração de um novo procedimento de con-
sulta prévia, com consulta a três fornecedores, limitando o recurso ao ajus-
te direto; (iii) a necessidade de fundamentação especial dos contratos de
valor superior a €5 000 000, com base numa avaliação custo-benefício; (iv)
a criação da figura do gestor do contrato, com a função de acompanhar
permanentemente a gestão do contrato; (v) a limitação do uso do procedi-
mento de ajuste direto com consulta a apenas a uma entidade e o restabele-
cimento da autonomia do procedimento de consulta prévia, com consulta
a três entidades; (vi) a instrução dos procedimentos de formação de con-
tratos públicos com a utilização de meios eletrónicos e o alargamento da
utilização de plataformas eletrónicas de contratação pública; (vii) e a pre-
visão de medidas de prevenção e eliminação de conflito de interesses na
condução de procedimentos de formação de contratos, por parte dos di-
versos intervenientes do contrato nos procedimentos, incluindo membros
do júri e peritos que lhe prestam apoio.
Pois bem, o âmbito objetivo do CCP integra a fase de formação dos
contratos, qualquer que seja a designação do contrato e a sua natureza
(administrativa ou privada), a celebrar pelas entidades adjudicantes e que
estão ou devem estar submetidos à concorrência do mercado, incluindo os
contratos previstos pelas diretivas comunitárias, e os contratos de socie-

-137-
Parte II – A atividade administrativa – Formas típicas de atuação

dade, deixando de fora a contratação in house, maxime a fase de formação


de contratos entre entidade adjudicante e entidade adjudicatária quando
entre elas existe uma relação especial de dependência ou controlo.
No que concerne ao âmbito subjetivo do CCP, cumpre dizer que, em
atinência à noção comunitária de «organismo de direito público», muito
desenvolvida pela jurisprudência do TJ e aprimorada no contexto da mais
recente reforma do direito europeu dos contratos públicos, as entidades
instrumentais da Administração Pública (estadual e autónoma) estão sujei-
tas ao regime relativo aos procedimentos pré-contratuais públicos, inde-
pendentemente da sua natureza pública ou privada, desde que preencham
certos pressupostos fixados, como seja a razão pela qual foram criados ( se
tiverem sido criados para satisfazer necessidades de interesse geral), a sua
natureza (sem caráter industrial ou comercial) e autonomia de decisão
(quer sejam financiados maioritariamente pelas entidades adjudicantes do
setor público administrativo tradicional ou sejam sujeitos ao seu controlo
de gestão ou tenham um órgão de administração, direção ou fiscalização,
cujos membros sejam em mais de metade designados por aquelas enti-
dades).
O CCP prevê diversos procedimentos clássicos pré-contratuais – o
ajuste direto, a consulta prévia, a negociação com publicação prévia de
anúncio, o concurso público, o concurso limitado por prévia qualificação –
e, ainda, o diálogo concorrencial e a novidade do procedimento pré-con-
tratual da parceria para a inovação (e outras ferramentas de contratação
específicas como os leilões eletrónicos, os acordos-quadro, as centrais de
compras e os sistemas de aquisição dinâmicos). E, quanto à questão da
escolha do procedimento pré-contratual, o CCP fixa dois tipos de critérios,
a saber: i) critérios objetivos ou quantitativos, afirmando a regra de que a
escolha do procedimento condiciona o valor do contrato a celebrar; e ii)
critérios materiais.
No atinente ao regime principialista conformador da contratação
pública, o legislador revela-lhe cuidado no n.º 1 do art. 1.º, esclarecendo
que, na formação e na execução dos contratos públicos, devem ser respei-
tados os princípios gerais decorrentes da Constituição, dos Tratados da
União Europeia e do CPA, em especial, os princípios da legalidade, da

-138-
Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

prossecução do interesse público, da imparcialidade, da proporcionali-


dade, da boa-fé, da tutela da confiança, da sustentabilidade e da respon-
sabilidade, bem como os princípios da concorrência, da publicidade e da
transparência, da igualdade de tratamento e da não-discriminação.
O CCP visa também assegurar que a metodologia de avaliação das
propostas deve constar do programa de procedimento, enumerando os
fatores e subfatores que densificam o critério de adjudicação, acompa-
nhados com as respetivas ponderações, devendo ou podendo os fatores
que densificam a melhor relação qualidade/preço, no seio do critério da
proposta economicamente mais vantajosa, acolher preocupações sociais
ou ambientais.
Enfim, o Código dos Contratos Públicos estabelece tanto a disciplina
aplicável à contratação pública como o regime substantivo dos contratos
públicos que revistam a natureza de contrato administrativo. E, assim, a
parte II é aplicável à formação dos contratos públicos, sendo certo que por
contrato público se entende todo aquele que, independentemente da sua
designação e natureza, seja celebrado pelas entidades adjudicantes refe-
ridas no CCP. E a parte III é aplicável aos contratos que revistam a natureza
de contrato administrativo, sendo certo que, sem prejuízo do tipo de con-
trato administrativo designado por determinação legal, se entende o acor-
do de vontades, independentemente da sua forma ou designação, cele-
brado entre contraentes públicos e cocontratantes, ou somente entre con-
traentes públicos, que se integre em qualquer uma das seguintes cate-
gorias:
• Contratos que, por força do presente Código, da lei ou da vontade
das partes, sejam qualificados como contratos administrativos ou sejam
submetidos a um regime substantivo de direito público;
• Contratos com objeto passível de ato administrativo e demais con-
tratos sobre o exercício de poderes públicos;
• Contratos que confiram ao cocontratante direitos especiais sobre
coisas públicas ou o exercício de funções dos órgãos do contraente público;
• Contratos que a lei submeta, ou que admita que sejam submetidos,
a um procedimento de formação regulado por normas de direito público e

-139-
Parte II – A atividade administrativa – Formas típicas de atuação

em que a prestação do cocontratante possa condicionar ou substituir, de


forma relevante, a realização das atribuições do contraente público.

O CCP acolhe, pois, a lógica do contrato administrativo como fonte


da relação jurídica administrativa, sendo certo que a administratividade
do contrato poderá ser visível tanto no objeto do mesmo, como nas suas
cláusulas e demais elementos integrantes do contrato, como ainda noutros
aspetos. Na realidade, como o CCP acolhe o princípio da autonomia con-
tratual das partes e o princípio da liberdade de utilização da figura do con-
trato administrativo (art. 278.°) – sendo que, para prosseguir as suas atri-
buições, os contraentes públicos podem celebrar contratos administra-
tivos, salvo se outra coisa resultar da lei ou da natureza das relações a esta-
belecer –, tal significa que os contraentes públicos podem celebrar contra-
tos tipificados no CCP ou previstos em legislação especial, podendo igual-
mente celebrar contratos atípicos. De entre os contratos administrativos
tipificados e cujo regime especial consta do CCP, enumera-se o seguinte
rol:
* Empreitada de obras públicas;
* Concessão de obras públicas;
* Concessão de serviços públicos;
* Aquisição e locação de bens móveis;
* Aquisição de serviços.

Refletindo o princípio da autonomia contratual das partes e preocu-


pando-se com a preservação do quid specificum dos contratos administra-
tivos, a parte III do CCP prevê o regime substantivo do contrato adminis-
trativo.
Assim, a parte III do CCP contém o regime substantivo dos contra-
tos administrativos, aplicando-se tal disciplina jurídica apenas aos contra-
tos públicos que revistam tal natureza de contrato administrativo (não se
aplicando, pois, a todos os contratos que ficam sujeitos às regras constantes
da parte II). E o quid specificum dos contratos administrativos, que o legisla-
dor procurou acolher nessa disciplina jurídica, é percetível nos seguintes
aspetos:

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Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

• Apelo recorrente aos imperativos de interesse público, designa-


damente na modificação e resolução contratuais;
• Manutenção de importantes poderes do contraente público du-
rante a fase de execução do contrato administrativo;
• Criação de figuras como a partilha de benefícios;
• Criação de regras especiais para situações de incumprimento do
contraente público;
• Introdução de normas que versem direta ou indiretamente sobre
a repartição de risco entre as partes.

3. Procedimentos para a formação de contratos

Vejamos o que se passa agora em relação à formação dos contratos


cujo objeto encerra prestações que estão e devam estar sujeitas à concorrên-
cia do mercado. O CCP vem incluir na parte II um regime comum de for-
mação de todos os contratos das entidades adjudicantes, independente-
mente da sua designação e natureza, sendo certo que, tratando-se da for-
mação de contratos cujo objeto abranja prestações que estão ou estejam
suscetíveis de estar submetidas à concorrência de mercado — como sejam
as empreitadas de obras públicas, as concessões de obras públicas e de ser-
viços públicos, a locação e aquisição de bens móveis, a aquisição de servi-
ços —, tal procedimento deve incluir um de entre vários tipos de procedi-
mentos previstos no art. 16.º do CCP. Por conseguinte, a formação destes
contratos públicos, cujo objeto integra ou deve incluir prestações que estão
ou devem estar sujeitas à lógica do mercado e concorrência (art. 16.º, n.º 1
e n.º 2), deve seguir um procedimento administrativo formalizado, incluin-
do nele um dos métodos de escolha do adjudicatário que se deseja que seja
tendencialmente aberto. No final do procedimento configura a adjudica-
ção, ou seja, a decisão ou ato administrativo pelo qual o órgão compe-
tente que deu origem ao procedimento aceita a proposta ou uma das pro-
postas apresentadas pelos concorrentes.
O CCP vem, pois, prever diversos procedimentos pré-contratuais —
o ajuste direto, o procedimento de negociação com publicação prévia de
anúncio, o concurso público, o concurso limitado por prévia qualificação e

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Parte II – A atividade administrativa – Formas típicas de atuação

o diálogo concorrencial e as parcerias para inovação —, sendo certo que


também acolhe instrumentos procedimentais especiais:
• Concurso de conceção (art. 219.º-A) (também com iter simplifi-
cado, nos termos do art. 219.º-H);
• Concurso de ideias (art. 219.º-J);
• Sistemas de aquisição dinâmicos (art. 237.º);
• Procedimentos simplificados para os domínios dos serviços so-
ciais e outros serviços específicos incluídos no anexo IX do Código (art.
250.º-A);
• Procedimentos reservados para determinados serviços incluídos
no anexo X do CCP) (art. 250.º);
• Acordos-quadro (art. 251.º); e
• Centrais de compras (260.º).
E sendo certo ainda que, em matéria de procedimentos de contrata-
ção pública, alberga os leilões eletrónicos, os acordos-quadro, as centrais
de compras e os sistemas de aquisição dinâmicos.

No que respeita aos procedimentos de escolha do cocontraente, a


filosofia subjacente ao CCP parece ser no sentido de prever ao máximo a
regulamentação dos procedimentos pré-contratuais públicos, tendo vindo
prever um conjunto homogéneo de normas (tidas como imperativas, que
prevalecem sobre os programas de procedimento) relativas a esses proce-
dimentos, reservando para os programas de procedimento aquilo que é
próprio de cada contrato em especial.
E este regime veio acolher os seguintes métodos de seleção dos co-
contratantes.
A. Ajuste direto: é o procedimento em que a entidade adjudicante
convida diretamente uma ou várias entidades à sua escolha a apresentar
proposta. Assim é nos termos do art. 112.º, n.º 2, do CCP. Atenção à moda-
lidade de ajuste direto simplificado: ele está previsto no art. 128.º do CCP
e aplica-se à aquisição ou locação de bens móveis e à aquisição de serviços
cujo preço contratual não seja superior a €5 000, aplicando-se igualmente
às empreitadas de obras públicas, quando o valor não ultrapassar €10 000.
Em todo o caso, o ajuste direito efetua-se diretamente sobre uma fatura ou

-142-
Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

um documento equivalente apresentado pela entidade convidada, dispen-


sando-se a tramitação eletrónica.

B. Consulta prévia (art. 112.º, n.º 1): o procedimento em que a enti-


dade adjudicante convida diretamente pelo menos três entidades à sua es-
colha a apresentar proposta, podendo com elas negociar aspetos da execu-
ção do contrato a celebrar.
C. Procedimento de negociação, com publicação prévia de anún-
cio (art. 193.º): procedimento em que a entidade adjudicante publica a exis-
tência do procedimento nos meios oficiais nacionais e eventualmente in-
ternacionais, podendo qualquer interessado apresentar a sua candidatura,
sendo que os candidatos que tenham a sua candidatura qualificada são
posteriormente convidados a apresentar proposta. As propostas são alvo
de negociação anteriormente à adjudicação.
D. Concurso público: procedimento em que a entidade adjudicante
publica a sua existência nos meios oficiais nacionais e eventualmente in-
ternacionais, podendo qualquer interessado apresentar a sua proposta.
Apraz lembrar a modalidade de concurso público urgente (art. 155.º): exis-
tindo urgência na celebração de contrato de locação ou de aquisição de
bens móveis ou de aquisição de bens de uso corrente ou de empreitada,
nos limites dos valores previstos nos arts. 155.º, alínea a), e 474.º e desde
que o critério de adjudicação corresponda ao preço ou custo, ex vi art. 155.º,
alínea b).
E. Concurso limitado, por prévia qualificação (art. 162.º): procedi-
mento em que a entidade adjudicante publica a sua existência nos meios
oficiais nacionais e eventualmente internacionais, podendo qualquer in-
teressado apresentar a sua candidatura, sendo que os candidatos que te-
nham a sua candidatura qualificada são posteriormente convidados a
apresentar a sua proposta.
F. Diálogo concorrencial: procedimento em que a entidade adjudi-
cante publica a sua existência nos meios oficiais nacionais e eventualmente
internacionais, podendo qualquer interessado apresentar a sua candida-
tura, sendo que os candidatos que tenham a sua candidatura qualificada
são posteriormente convidados a apresentar uma solução. Após diálogo

-143-
Parte II – A atividade administrativa – Formas típicas de atuação

sobre soluções apresentadas, e selecionadas as soluções suscetíveis de sa-


tisfazer as necessidades e as exigências da entidade adjudicante, os candi-
datos qualificados são convidados a apresentar a sua proposta.
Vejamos melhor a formação de contratos públicos, no que concerne
aos procedimentos modernos:
i. Diálogo concorrencial, introduzido em 2008, e parcerias para a
inovação, introduzidas em 2017. Diálogo concorrencial (art. 29.º): procedi-
mento a adotar quando existe extrema complexidade na definição de as-
petos relativos ao objeto do contrato e designadamente: i) quando as ne-
cessidades da entidade adjudicante não possam ser satisfeitas sem a adap-
tação de soluções facilmente disponíveis; ii) Não for objetivamente possí-
vel definir com precisão as especificações técnicas por referência a uma
norma, homologação técnica europeia, especificações técnicas comuns ou
referência técnica.
ii. As parcerias para a inovação (art. 30.º -A) e a tramitação nos arts.
218.º e 218 º-A: a entidade adjudicante pode adotar a parceria para a ino-
vação quando pretenda a realização de atividades de investigação e o de-
senvolvimento de bens, serviços ou obras inovadoras, independentemente
da sua natureza e das áreas de atividade, tendo em vista a sua aquisição
posterior.

E, quanto à questão da escolha do procedimento pré-contratual, sem


prejuízo de o CCP fixar nos arts. 17.º e ss. (incluindo, especialmente, os
arts. 18.º e 23.º) dois tipos de critérios, um que atende ao valor do contrato
e outro assente em fatores de ordem material, apraz saber que se impõe
um novo tópico de reflexão na escolha do procedimento certo: a compra
estratégica, compra avaliada ex ante, compra orientada do ponto de vista
ecológico e social e compra pública conjunta, a saber:
1. Critério objetivo ou quantitativo, que atende ao valor do con-
trato a celebrar, sendo certo que o valor do contrato a celebrar corresponde
ao valor máximo de benefício económico que pode ser obtido pelo adjudi-
catário com a execução de todas as prestações que constituem o seu objeto.
E, neste parâmetro quantitativo, vale a regra segundo a qual a escolha do
procedimento condiciona o valor do contrato a celebrar;

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Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

2. Critérios materiais, que permite a celebração de contratos através


de certos procedimentos, independentemente do valor do contrato a cele-
brar.
Assim, atendendo ao critério que versa sobre o valor do contrato,
cumpre dizer que a escolha do procedimento de ajuste direto, concurso
público ou concurso limitado com prévia qualificação condiciona o valor
do contrato a celebrar.
Assim, considerando a necessidade de realizar as políticas públicas
(nacionais e europeias) através da contratação, impõe-se ler os arts. 17.º e
18.º do CCP e os critérios quantitativo/critérios materiais numa lógica de:
i) qual garante a seriedade, a transparência, a isenção e a imparcialidade
da contratação pública; ii) qual potencia a efetiva igualdade de oportuni-
dades, não discriminando ninguém; iii) qual vai ao encontro da inovação;
iv) qual promove a contratação pública ambientalmente responsável; v)
qual potencia a inclusão social; vi) qual permite alcançar a maior eficiência
na relação qualidade/preço ou custo.

4. Regime substantivo dos contratos públicos: novidade ou conse-


quência?

4.0. Introdução

Importa agora falar sobre um assunto que é ao mesmo tempo extre-


mamente antigo, e, por isso, coisa dita do passado, e extremamente novo
(e, por isso mesmo, cativante): o regime substantivo dos contratos públicos
– que é, sem dúvida alguma, um dos aspetos mais inovadores do Direito
Europeu da Contratação Pública e agora da (singular e confusa) alteração
ao Código dos Contratos Públicos (nos termos da Proposta de 01.08.2016,
submetida a discussão pública).
Como se apontou, no plano do Direito Administrativo de matriz
francesa, este é um assunto velho e caro à jurisprudência dos tribunais ad-
ministrativos e à dogmática administrativista, que ditou a autonomia da
figura do contrato administrativo: precisamente a identificação de um re-
gime substantivo exclusivo para certos contratos da Administração Públi-

-145-
Parte II – A atividade administrativa – Formas típicas de atuação

ca, sentenciando que os que se submetem a este regime são administrati-


vos, os outros são coisa diferente.
Essa construção data do início do séc. XX e fica definitivamente li-
gada aos poderes exorbitantes do concedente e dono da obra pública, em
especial ao poder de modificação unilateral do contrato administrativo por
razões de interesse público. Na verdade, ainda que, a propósito do princí-
pio da adaptabilidade do contrato, o Conselho de Estado (CE) tivesse reco-
nhecido esse princípio já em 1902, no Aresto Gaz de Deville-lès-Rouen, de
10 de janeiro, só neste Aresto de 1910 se reconhece a obrigação de o con-
traente público restabelecer o respetivo reequilíbrio financeiro. Assim,
neste aresto fica claro o princípio da adaptabilidade do contrato adminis-
trativo através do reconhecimento ao concedente do direito de modifi-
cação por razões de interesse público ⎼ («le droit, non seulement d’approuver
les horaires des trains (…) mais encore de prescrire le additions et modifications
nécessaires pour assurer, dans l’intérêt du public, la marche normale du service»)
⎼ e a afirmação do direito do concessionário ao restabelecimento do equi-
líbrio financeiro: «il appartiendrait seulement à la Compagnie, si elle s’y croyait
fondée, de présenter une demande d’indemnité en réparation du préjudice qu’elle
établirait lui avoir été causé par une aggravation ainsi apportée aux charges de
l’exploitation». Deste modo, podemos concluir que os dois princípios foram
afirmados, pela primeira vez, de forma clara e em correlação vital: «le prin-
cipe de mutabilité du contrat administratif et le principe d’équation financière de
ce même contrat». Quanto ao direito ao reequilíbrio, o CE expressou-se nes-
tes termos: «le préjudice qui doit être réparé dans sa totalité comprend à la fois la
pertie subie “damnum emergens” et le manque à gagner “lucrum cessans”»46.
Pois bem: o regime substantivo dos contratos administrativos foi
sendo traçado sobretudo pelo legislador nacional e foi regendo aspetos

46 A título meramente exemplificativo, vd. Aresto do Conselho de Estado francês de

11 de março de 1910, Compagnie générale française des tramways, Rec. 216, Concl. Blum, a propó-
sito de um dos principais aspetos identitários do regime substantivo do contrato administra-
tivo, mais propriamente o que concerne ao regime dos pressupostos e dos limites do poder
de modificação unilateral do contraente público, no quadro de uma concessão de um serviço
de transporte. Sobre o tema, vd. Les grands arrêts de la jurisprudence administrative, coord. M.
LONG, P. WEIL, G. BRAIBANT, P. DELVOLVÉ, B. GENEVOIS, 14ème édition, Dalloz, Paris,
2003, pp. 135 e ss.

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Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

relativos ao exercício dos poderes de autoridade do contraente público, si-


tuações de modificação objetiva e subjetiva durante a execução do contrato
e o regime das invalidades ⎼ tendo sido preservado e, em alguns domínios,
fechado a sete chaves, como por exemplo no domínio das concessões, em
face da constante “intromissão europeia”.
Mas é um facto ⎼ e não há como negar ⎼ que o Direito Europeu, ao
procurar abarcar juridicamente cada vez mais domínios da contratação pú-
blica, foi chegando a alguns destes domínios. Na verdade, o regime con-
tido nas Diretivas Contratos Públicos/2014, em especial no Capítulo IV da
Diretiva 2014/24, refere-se à execução, modificação e rescisão dos contratos
públicos. Ora, como se percebe, entramos numa área que, até a esta altura,
só tinha uma configuração nacional de disciplina.
Pois bem, nesse sentido, a Proposta de alteração ao Código dos Con-
tratos Públicos (de 01.08.2016) vem prever uma disciplina de natureza
substantiva para os contratos a que se aplicam as Diretivas Contratos Pú-
blicos/2014, não obstante também manter especificidades de regime para
certos contratos administrativos (quer em termos gerais, quer em configu-
ração especial). Sem prejuízo, diremos que a versão de alteração ao CCP
entregue ao Governo pela Comissão de Revisão do Código (29.02.2016)
continha uma solução uniforme e clara para este tema, afastando as incon-
gruências que assim se vão mantendo, pelo menos do ponto de vista ter-
minológico, dando a entender que andamos confusos.
Nos termos da Proposta de alteração ao CCP de 01.08.2016, vejamos
em que termos o Título I (contratos administrativos em geral) da Parte III
do CCP (regime substantivo dos contratos administrativos) inclui e aplica
esse regime substantivo dos contratos administrativos aos contratos públi-
cos. O art. 280.º consagra o seguinte:
i) Que o Título I da Parte III do Código se aplica aos contratos que
se configurem como contratos administrativos, claro está, isto é que se tra-
duzem em relações contratuais jurídicas administrativas, sendo certo que,
na falta de lei especial, as disposições do Título I (contratos administrativos
em geral) se aplicam às relações contratuais jurídicas administrativas (nos
termos do n.º 1) e são aplicadas subsidiariamente aos contratos adminis-
trativos especialmente regulados no CCP ou na lei (sempre que os tipos de

-147-
Parte II – A atividade administrativa – Formas típicas de atuação

contratos em causa não afastem a respetiva aplicação, nos termos do


n.º 2).
ii) Que o regime relativo às invalidades, aos limites de modificação,
de cessão da posição contratual e de subcontratação previstos no CCP para
as relações contratuais jurídicas administrativas se aplicam aos contratos
sujeitos à Parte II do CCP e que não se configuram como relações contra-
tuais jurídicas administrativas, id est, que não têm a natureza de contratos
administrativos.
Ponto de ordem: revogando o n.º 3 do art. 280.º do CCP de 2008, a
Proposta vem assim introduzir um novíssimo regime substantivo dos con-
tratos públicos (que não sejam administrativos!), abrangendo este regime
duas grandes temáticas das vicissitudes dos contratos públicos: a das in-
validades do contrato e as da modificação (objetiva e subjetiva) do contrato
durante a sua execução.

4.0.1.
No que respeita às invalidades, vamos apenas enunciar o regime
substantivo de invalidades dos contratos públicos (e não já somente dos
contratos administrativos): nos termos do art. 283.º, e quanto à invalidade
derivada ou consequente, i) os contratos públicos são nulos se a nulidade
do ato procedimental em que tenha assentado a sua celebração tenha sido
judicialmente declarada ou ainda possa sê-lo (n.º 1); ii) os contratos públi-
cos são anuláveis se tiverem sido anulados ou se forem anuláveis os atos
procedimentais em que tenha assentado a sua celebração e se demonstre
que o vício determina a invalidade do contrato, designadamente por im-
plicar uma modificação subjetiva do contrato celebrado ou uma alteração
do seu conteúdo essencial (n.º 2). O efeito anulatório previsto no n.º 2 pode
ser afastado por decisão judicial ou arbitral, quando, ponderados os inte-
resses públicos e privados sem presença e a gravidade de ofensa geradora
do vício do ato procedimental em causa, a anulação do contrato se revele
desproporcionada ou contrária à boa fé ou quando demonstre inequivoca-
mente que o vício não implicaria uma modificação subjetiva do contrato
celebrado nem uma alteração do seu conteúdo essencial. Ainda a propósito
do regime relativo às invalidades, mantém-se o disposto no art. 283.º-A.

-148-
Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

No que concerne às invalidades próprias ou originárias: i) os con-


tratos públicos celebrados com ofensa de princípios ou normas injuntivas
são anuláveis (nos termos do n.º 1); ii) os contratos públicos são nulos
quando se verifique algum dos fundamentos previstos no CCP, no art.
161.º do CPA ou em lei especial, designadamente, quando careçam em ab-
soluto de forma legal; cujo objeto ou conteúdo seja impossível, ininteligível
ou constitua ou seja determinado pela prática de um crime; ofendam o
conteúdo essencial de um direito fundamental; sejam celebrados sob coa-
ção física ou coação moral; ofendam casos julgados; sejam celebrados com
alteração dos elementos essenciais das peças do procedimento que deves-
sem constar do respetivo clausulado; sejam celebrados com aposição de
cláusulas de modificação que violem o regime previsto no CCP sobre os
respetivos limites. São aplicáveis aos contratos públicos os regimes relati-
vos a falta e vícios da vontade previstos no Código Civil.
Quanto ao regime das invalidades, aos contratos públicos com ob-
jeto passível de ato administrativo e outros sobre o exercício de podres pú-
blicos é aplicável o regime de invalidade previsto para o ato; aos demais
aplica-se o regime de invalidades presente no CCP e previsto na legislação
administrativa, sendo certo que todos os contratos públicos podem ser sus-
cetíveis de redução e conversão, nos termos do Código Civil, independen-
temente do respetivo desvalor jurídico, sem prejuízo do n.º 4 do mesmo
artigo. Aproveitamos a oportunidade para confessar que lamentamos mais
uma vez que a Proposta em causa não tenha seguido a solução apresentada
pela Comissão de Revisão do CCP (de 29.02.2016).
No que respeita ao regime da modificação do contrato público, a
pergunta que se impõe fazer aqui é, pois, esta: quanto vem esta nova dis-
ciplina europeia bulir ao certo com o regime substantivo clássico, de matriz
francesa, do contrato administrativo, e quanto se impõe, em boa verdade,
ao legislador nacional reajustar, particularmente no que concerne aos fun-
damentos e limites da modificação objetiva do contrato público existente?
Na verdade, o tema das modificações introduzidas no contrato du-
rante a sua execução, aconteçam estas unilateralmente, por ato administra-
tivo, ou por acordo, sejam invocadas razões de interesse público ou outras,
designadamente a da alteração das circunstâncias em que as partes fun-

-149-
Parte II – A atividade administrativa – Formas típicas de atuação

daram a decisão de contratar, já não é mais um assunto que somente ao


direito nacional diga respeito.
E, por isso, cumpre conhecer os pressupostos e os limites da modi-
ficação objetiva do contrato público existente, apresentados nas Diretivas
Contratos Públicos/2014, e a seguir saber distinguir no quadro europeu
aquilo que é «alteração substancial» daquilo que não é, mormente por ser
pouco significativo o impacto que a alteração produz no contrato ou por
se apresentar dentro dos limiares “de minimis”, abaixo dos quais não se
considera que possa existir alteração substancial.
De resto, o que importa agora é perceber que para o tema das modi-
ficações e respetivos limites (da modificação) de um contrato público em
execução, abrangido pelas Diretivas Contratos Públicos/2014, existe uma
solução europeia com a qual o regime nacional tem de ser harmonizado,
ainda que o legislador possa aceitar que o quadro jurídico dos Estados
mantenha especificidades a aplicar aos demais contratos administrativos
que não sejam abrangidos por aquelas Diretivas Contratos Públicos/2014.
Aliás, o regime nacional pode continuar a prever as exorbitâncias do re-
gime substantivo de certos contratos com objeto passível de ato adminis-
trativo e demais contratos sobre o exercício de poderes púbicos, por exem-
plo. E assim é desde que tal não colida com o quadro europeu traçado para
esta temática.
Em suma: hoje é o direito substantivo europeu que determina as vi-
cissitudes relativas à execução dos contratos públicos, prevendo o regime
das modificações objetivas e subjetivas ⎼ e não ao contrário, como parece
resultar da proposta de alteração ao CCP de 01.08.2016 ⎼ distinguindo as
modificações possíveis das não legítimas, as alterações substanciais (que
são proibidas e obrigam à rescisão do contrato) das alterações não subs-
tanciais, tanto mais quanto ⎼ sublinhamos ⎼ o efeito direto do art. 72.º da
Diretiva 2014/24 parece não suscitar quaisquer dúvidas.
Mas isto que dissemos não nos obriga a concluir que existe uma opo-
sição de objetivos a alcançar através dos regimes aqui aquilatados. Antes
pelo contrário: o desiderato da normativa europeia, que tanto é a proteção
da concorrência, tão cara ao regime relativo à formação dos contratos pú-
blicos, incluindo os princípios da transparência e igualdade, como a da

-150-
Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

proteção do próprio interesse público (incluindo o do erário público e a


racionalização da despesa pública). Aliás, do ponto de vista dos valores e
interesses em confronto, ambos os sistemas normativos procuram conciliar
a estabilidade do contrato que foi sujeito à concorrência com a adaptabili-
dade do mesmo.
Assim, que fique clara a ideia seguinte: o propósito de conciliar os
princípios da concorrência, pacta sunt servanda e o da estabilidade contra-
tual com o da adaptabilidade do mesmo contrato administrativo em fun-
ção de modificações objetivas e subjetivas ocorridas durante a sua vigência
sempre esteve subjacente ao regime nacional, estando atualmente consa-
grado no Código dos Contratos Públicos (= CCP de 2008). Lembre-se que
o art. 302.º do CCP consagra, na alínea c), o tradicional poder de autoridade
de o contraente público alterar unilateralmente por ato administrativo as
cláusulas respeitantes ao conteúdo e o modo de execução das prestações
previstas, por razões de interesse público. Assim, para além de outras for-
mas de proceder à alteração objetiva do contrato (tal como o acordo de
partes), é possível como regra, a menos que a natureza do contrato ou a lei
não permitam, que o contraente público modifique o contrato, alterando o
conteúdo das prestações contratuais, de modo a reajustá-lo às novas exi-
gências de interesse público, ou seja, por razões de interesse público de-
correntes de novas necessidades ou de uma nova ponderação de circuns-
tâncias existentes. Aliás, o CCP permite a modificação objetiva do contrato
quando as circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contra-
tar tiverem sofrido uma alteração anormal e imprevisível, desde que a exi-
gência das obrigações por si assumidas afete gravemente os princípios de
boa fé e não esteja coberta pelos riscos próprios do contrato. E a proposta
de transposição das Diretivas Contratos Públicos/2014 que a Comissão en-
tregou mantinha esta solução no seu art. 189.º, n.º 1, alínea c), e acrescenta-
va a menção à existência de pressupostos e limites fixados nos arts. 195.º e
196.º.
Portanto: a ideia de, por razões de interesse público, se introduzir
alterações ao contrato em execução é pacífica, tanto do ponto de vista do
quadro clássico, como do novo europeu. Afinal, como se afirma nos consi-
derandos da Diretiva, as «autoridades adjudicantes podem ser confron-

-151-
Parte II – A atividade administrativa – Formas típicas de atuação

tadas com situações em que sejam necessárias obras, fornecimentos ou ser-


viços adicionais» (considerando 108), ou «podem ser confrontadas com cir-
cunstâncias externas que não poderiam ter previsto quando adjudicaram
o contrato, em especial quando a execução se prolonga durante muito
tempo» (considerando 109). E, além do mais, dentro dos limites impostos
pelas Diretivas, continuará a dever ser conferida à entidade adjudicante a
possibilidade de incluir nos próprios contratos cláusulas de revisão ou op-
ção, desde que as mesmas sejam redigidas de forma suficientemente clara
(considerando 111). Aliás, lembre-se ainda que neste considerando se afir-
ma que «as cláusulas podem prever adaptações ao contrato por serem ne-
cessárias devido a dificuldades técnicas surgidas durante a utilização ou
manutenção ou incluir tanto a manutenção normal coma as intervenções
extraordinárias para assegurar a continuidade de um serviço público».

4.1. Do direito substantivo europeu do contrato público: os novos valores a


proteger

Não se duvida de que o art. 72.º da Diretiva 2014/24 tem como prin-
cipal objetivo limitar a autonomia da vontade das partes e a respetiva in-
tenção de procederem à renegociação livre do contrato durante a execução
do mesmo, particularmente quando se vislumbre que isso traduza viola-
ção da concorrência, por desvirtuação da adjudicação. Invoque-se o consi-
derando 107 da Diretiva 2014/24: «tais alterações demonstram a intenção
das partes de renegociar termos ou condições essenciais desse contrato.
Isso verifica-se, em particular, nos casos em que as condições alteradas po-
deriam ter tido influência no resultado do procedimento, se tivessem sido
inicialmente contempladas».
Aliás: não obstante ser a primeira vez que o legislador europeu aco-
lhe uma solução para o momento relativo à execução dos contratos públi-
cos, este tema já há muito foi identificado no quadro europeu. Uma primei-
ra solução foi apresentada de forma clara no Ac. Pressetext, de 19.06.2008,
proc. C-454/06, depois, foi muito discutida no Livro Verde (sobre a Moder-
nização da Política de Contratos Públicos), tendo inclusive sido reconhe-
cido um conjunto de fragilidades à jurisprudência entretanto ditada pelo

-152-
Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

TJUE que deveria ser corrigido pelo legislador e, finalmente, as Propostas


de 2011 das Diretivas Contratos Públicos (particularmente a proposta de
diretiva de 20.12.2011 COM (2011/896 final), cujos considerandos iniciais
se impõe revisitar constantemente.
Lamentavelmente temos de reconhecer que o quadro legal europeu
ainda não está completo sobre o assunto. Dir-se-ia mesmo que, por se re-
conhecer que muito ficou por prever na Diretiva 2014/24, o considerando
107 faz referência ao trabalho necessário do TJUE para concluir o objetivo
desenhado de forma inacabada pelo legislador europeu: «é necessário es-
clarecer as condições em que as modificações de um contrato durante a sua
execução exigem um novo procedimento de contratação, tendo em conta
a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia» 47.

4.1.0.1.
A introdução de modificações aos contratos públicos abrangidos pe-
las Diretivas Europeias/2014, durante a sua execução, que sejam conside-
radas substanciais, traduzem renegociação do contrato inicial e, por isso,
tal alteração obriga o contraente público a pôr-lhe fim e a desencadear um
novo procedimento de adjudicação. Confronte-se a alínea a) do art. 73.º da
Diretiva 2014/24, que expressamente comina tal sanção. Assim, caso isso
aconteça, deve haver lugar à respetiva rescisão do contrato. Avança neste
sentido a Comissão de Revisão do CCP, ao propor no n.º 4 do art. 196.º (da
Proposta de Transposição das Diretivas Contratos Públicos 2014) que «as
modificações que não respeitem os limites estabelecidos no presente Có-

47 Aliás, a jurisprudência inicial sobre o tema data de 2000, tendo sido inaugurada
com o Acórdão de 05.10.2000, proc. C-337/98, Comissão versus França. Impõe-se ainda lembrar
o Acórdão de 29.04.2014, Comissão/CAS Succhi di Frutta SpA, proc. C-496/99; o Acórdão de
13.04.2010, proc. C-91/08, Wall AG; o Acórdão de 22.04.2010, Comissão/Espanha, proc. C-423/07;
e o Acórdão de 08.05.2014, Idrodinamica Apurgo Velox Srl, proc. n.º C-161/13. Contudo, é no
Acórdão de 19.06.2008, proc. C-454/06, Pressetext Nactrichtenagentur, que o TJUE foi mais mar-
cante, dando a conhecer que «as alterações das disposições de um contrato público em vigor,
caso apresentem características significativamente diferentes do inicial, obrigam a lançar um
novo procedimento de adjudicação do contrato em causa», sendo certo que, quanto ao con-
ceito de alteração substancial, o TJUE foi explicando que isso acontece designadamente quan-
do «se introduzem condições de suscetíveis de permitir a participação ou a qualificação de
outros proponentes», ou «de alargar consideravelmente o âmbito do contrato» ou de «alterar
o respetivo equilíbrio económico».

-153-
Parte II – A atividade administrativa – Formas típicas de atuação

digo determinam a adoção de um novo procedimento de formação de con-


trato, caso a entidade adjudicante mantenha a decisão de contratar».
Destarte, não se duvida de que o que marca a diferença entre o per-
mitido e o proibido a este propósito se prende com o conceito de «alteração
substancial». E também não se duvida de que, quanto a este tema, apraz
ter presente que as alterações são possíveis independentemente do seu va-
lor, se tiverem sido previstas em cláusulas de revisão e se, não alterando a
natureza global do contrato, tiverem sido contempladas de forma clara,
precisa e inequívoca nas peças do procedimento (art. 72.º, ponto 1, alínea
a), da Diretiva 2014/24).
Aliás, a primeira situação em que é legitimamente possível proceder
à alteração do contrato durante a sua vigência pressupõe a prévia anteci-
pação da previsão da alteração nas peças do procedimento (cadernos de
encargos), com objetividade e clareza. Destarte, nada se opõe à alteração
quando, independentemente do valor que represente em relação ao preço
inicial, a modificação é prevista nas peças do procedimento, em cláusulas
de revisão (incluindo cláusulas de revisão de preços) ou cláusulas de op-
ção, devendo as mesmas ser claras, precisas e inequívocas e devendo igual-
mente indicar os respetivos âmbito, natureza e as condições de aplicação.
Ainda assim, importa realçar bem que as cláusulas de revisão ou opção
não podem alterar nunca a natureza global do contrato.

4.1.0.2.
No que concerne às situações referentes a alterações substanciais do
contrato inicial, sempre se pensou que estas poderiam traduzir alterações
ao seu âmbito de aplicação, alterações relativas ao conteúdo dos direitos e
obrigações mútuos das partes ou alterações que, ao tocarem nas condições
essenciais do contrato, poderiam ter tido influência no resultado do proce-
dimento, caso tivessem sido inicialmente consideradas. Vejamos o que sig-
nifica alteração substancial para este efeito.
Para o legislador europeu, a modificação é considerada substancial
quando dê lugar a um contrato diferente do celebrado inicialmente e por
se verificar uma ou mais das seguintes condições:

-154-
Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

1. A modificação introduz condições que, se fizessem parte do pro-


cedimento de contratação inicial, teriam permitido maior concorrência e,
por isso mesmo, poderia ter permitido a escolha de um outro adjudica-
tário, a admissão de outros candidatos ou proponentes, ou a aceitação de
outra proposta, ou teriam permitido maior participação no procedimento;
2. A modificação altera o equilíbrio económico do contrato a favor
do cocontratante;
3. A modificação alarga consideravelmente o âmbito material do
contrato (ou seja, o seu objeto, o núcleo identitário das prestações essen-
ciais);
4. O cocontratante, a quem foi inicialmente adjudicado o contrato, é
substituído por um outro operador económico (numa situação diferente
da permitida na Diretiva 2014/24).
Não obstante o disposto no número anterior, e seguindo a lógica que
permite adaptar o contrato de longa duração às circunstâncias, acolhendo
flexibilidade, impõe-se dizer que, nos termos do Direito Europeu da Con-
tratação Pública, um contrato público existente pode ser modificado, sem
que haja lugar a novo procedimento de contratação, em qualquer uma das
três seguintes situações:
Situação 1: necessidade de obras, serviços ou fornecimentos com-
plementares: quando estes não tenham sido incluídos no contrato inicial e
a substituição do cocontratante não possa ser efetuada por razões econó-
micas ou técnicas e seja altamente inconveniente ou provoque custos adi-
cionais significativos para a entidade adjudicante;
Situação 2: circunstâncias imprevisíveis (até para uma entidade ad-
judicante diligente): (1.) quando a modificação não altera a natureza global
do contrato e (2.) se considera necessária devido a circunstâncias que no
âmbito do seu dever de diligência a entidade adjudicante não pudesse pre-
ver;
Situação 3: substituição do cocontratante, devida a situação de rees-
truturação interna deste, designadamente, quando o adjudicatário ao qual
a entidade adjudicante atribuiu inicialmente o contrato for substituído,
quando tal tenha sido previsto inicialmente nas peças do procedimento,
ou nos seguintes casos:

-155-
Parte II – A atividade administrativa – Formas típicas de atuação

i) quando haja transmissão universal ou parcial da posição do con-


tratante inicial, na sequência de reestruturação societária, incluindo, OPA,
aquisição, fusão ou falência, a favor de outro operador económico que sa-
tisfaça os critérios em matéria de seleção qualitativa inicialmente estabele-
cidos;
ii) ou quando o próprio cocontraente assume as obrigações do con-
tratante principal para com os seus subcontratantes.

Finalmente, importa sublinhar que, se a modificação é pouco rele-


vante do ponto de vista do impacto económico no contrato celebrado ini-
cialmente, é também possível a modificação. E assim é quando a natureza
global do contrato não é alterada e o valor da modificação não excede os
limiares europeus e quando o valor não excede 10% do valor de contratos
de fornecimento e de serviços ou 15% do valor dos contratos de obras.
Contudo, importa notar que, em caso de várias modificações sucessivas,
esse valor é avaliado com base no valor líquido acumulado das modifica-
ções introduzidas sucessivamente.
Apraz lembrar finalmente os requisitos (limites) à permissão da mo-
dificação: nas situações 1 e 2, ou seja, em caso de trabalhos, obras ou servi-
ços complementares ou necessários por não terem sido previstos, no pri-
meiro caso, e não terem sido previstos e por serem imprevisíveis, no se-
gundo caso, o preço não pode ser aumentado em mais de 50% do valor do
contrato inicial, sendo que, no caso de várias modificações sucessivas, esse
limite é considerado em relação ao valor de cada modificação e as altera-
ções devem ser publicadas no Jornal Oficial da União Europeia.

4.2. A solução prevista no CCP após a alteração introduzida recentemente

É um facto que a transposição do art. 72.º (e as propostas de trans-


posição que dele conhecemos no panorama de direito comparado) traduz,
aliás, um fenómeno de Europa a duas velocidades, sendo certo que, nos
ordenamentos jurídicos alemão e dinamarquês, por exemplo, o art. 72.º da
Diretiva 2014/24 é transposto na totalidade, acolhendo-se uma solução

-156-
Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

muito semelhante nos dois sistemas jurídicos48, e, sendo certo também que,
como se compreende, é nos sistemas jurídicos onde a regulação da execu-
ção dos contratos é mais pormenorizada que as dificuldades são patentes 49
⎼ o que se aceita, tendo em conta a figura do contrato administrativo e do
seu regime de matriz francesa, caracterizado pela exorbitância de poderes
do contraente público, mormente de modificação unilateral das prestações
contratuais.
Pois bem, aqui chegados, e depois de termos estudado a proposta
legislativa ao CCP, confirmamos as dificuldades de harmonização do re-
gime nacional com o europeu e registamos os receios que na altura já eram
visíveis, uma vez que naquela Proposta não havia a intenção de se fazer
desaparecer os traços identitários do regime substantivo do contrato ad-
ministrativo – e isto, pese embora o legislador dos Estados ainda estar au-
torizado a manter algum espaço de opção quanto aos quantitativos abaixo
dos quais não se pode considerar que haja impacto financeiro da alteração
introduzida.
Destarte, e em clara sintonia com o Direito Europeu (incluindo a ju-
risprudência do TJUE), teria sido suposto acolher um preceito que consi-
derasse legitimamente possível proceder à alteração do contrato durante a
sua vigência, nos termos das condições nele próprio previstas, fazendo
alusão à prévia antecipação da previsão da alteração nas peças do proce-
dimento (cadernos de encargos), com objetividade e clareza. Esta solução
foi integrada na versão trabalhada pela Comissão e acabou por ter apenas
uma pequena referência no n.º 1 do art. 31.º, 2.ª parte. Deste modo, o legis-
lador nacional teria permitido que a alteração acontecesse quando, inde-
pendentemente do valor que representasse em relação ao preço inicial,
fosse prevista no próprio contrato, tendo essas cláusulas (incluindo cláu-

48 Para uma visão de conjunto, vd. o nosso «Pressupostos e limites da modificação do

contrato público existente: um velho tema, novas dificuldades», in A transposição das Diretivas
Europeias de 2014 e o Código dos Contratos Públicos, Coordenação MARIA JOÃO ESTORNI-
NHO, ICJP, CIPD, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2016.
49 E veja-se o caso francês, art. 65.º : «Les conditions dans lesquelles un marché public peut

être modifié en cours d'exécution sont fixées par voie réglementaire. Ces modifications ne peuvent
changer la nature globale du marché public. Lorsque l'exécution du marché public ne peut être pour-
suivie sans une modification contraire aux dispositions prévues par la présente ordonnance, le marché
public peut être résilié par l'acheteur.».

-157-
Parte II – A atividade administrativa – Formas típicas de atuação

sulas de revisão de preços) ou cláusulas de opção sido incluídas nas peças


do procedimento, de forma clara, precisa e inequívoca. Assim, estando
previsto igualmente os respetivos âmbitos, natureza e as condições de apli-
cação dessas cláusulas, nada se deveria poder opor à modificação do con-
trato existente. Ainda assim, importa realçar que as cláusulas de revisão
ou opção não podem alterar nunca a natureza global do contrato.
Vejamos a solução acolhida na proposta de alteração ao CCP.

4.3. Finalmente, vejamos a solução acolhida na recente alteração ao CCP

Primeiro: no que respeita aos fundamentos, voltamos ao clássico po-


der de modificação unilateral do contrato, consagrado no atual art. 302.º,
alínea c): modificar unilateralmente as cláusulas respeitantes ao conteúdo
e ao modo de execução das prestações contratuais, por razões de interesse
público, com os limites previstos no presente Código. Assim, nos termos
do art. 311.º, n.º 2, pode o contraente público, por ato administrativo, intro-
duzir alterações objetivas ao contrato existente, com os fundamentos pre-
vistos no art. 312.º, alínea b), isto é, por razões de interesse público decor-
rentes de necessidades novas ou de uma nova ponderação das circuns-
tâncias existentes, dentro dos limites estabelecidos no art. 313.º, n.º 1, alí-
neas a), b) e c), d) e e): ou seja, não pode alterar substancialmente o objeto
do contrato, não pode configurar violação da concorrência e alteração hi-
potética de adjudicatário e candidatos e não pode ultrapassar 10% do preço
contratual inicial e desequilíbrio a favor do cocontratante. Já explicaremos
quais são esses limites, tendo em conta sobretudo que os limites e as con-
sequências previstas no art. 314.º do CCP devem ser entendidos à luz do
art. 72.º da Diretiva.
Vejamos, em segundo lugar, o outro fundamento legítimo para a en-
tidade pública introduzir alterações objetivas ao contrato durante a sua
execução: a alteração pode acontecer «quando as circunstâncias em que as
partes fundaram a decisão de contratar tiverem sofrido uma alteração

-158-
Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

anormal e imprevisível»50 (desde que a exigência das obrigações por si


assumidas afete gravemente os princípios da boa fé e não esteja coberta
pelos riscos próprios do contrato, podendo esta acontecer por acordo de
partes ou decisão judicial ou arbitral).
No que concerne aos limites desta modificação, afastando-se do art.
72.º, a Proposta inclui um conjunto de aspetos no art. 313.º, n.º 151:
i) a alteração não pode conduzir à alteração substancial do objeto do
contrato, sendo certo que, entre nós, sempre se entendeu que a modifica-
ção não pode conduzir à alteração das prestações principais abrangidas
pelo objeto do contrato, uma vez que este é intangível;
ii) nem pode configurar uma forma de impedir, restringir ou falsear
a concorrência, nos termos da alínea b);
iii) do mesmo modo, não é permitida a modificação quando sejam
introduzidas alterações que se fizessem parte do cadernos de encargos te-
riam ocasionado a alteração das propostas avaliadas ou a admissão de ou-
tras propostas, desde que, em qualquer casos, tal seja objetivamente de-
monstrável, nos termos da alínea c) do n.º 1 do art. 313.º da Proposta.

50 Atente-se na terminologia mantida pelo legislador nacional quando se refere aos


fundamentos para se proceder à alteração: «a alteração anormal e imprevisível». Na verdade,
ao permitir que a modificação objetiva do contrato aconteça «quando as circunstâncias em
que as partes fundaram a decisão de contratar tiverem sofrido uma alteação anormal e im-
previsível, desde que a exigência das obrigações por si assumidas afete gravemente os prin-
cípios de boa fé e não esteja coberta pelos riscos próprios do contrato» vem estabelecer um
parâmetro distinto de aferição do que seja «alteração substancial» ou alteração não substan-
cial.
51 Importa aqui lembrar a solução acolhida no art. 72.º da Diretiva, para compararmos

valores e as opções feita a nível nacional: se a modificação é pouco relevante do ponto de


vista do impacto económico no contrato celebrado inicialmente, ela considerada não substan-
cial (e, portanto, legítima). E assim é quando a natureza global do contrato não é alterada e o
valor da modificação não excede os limiares europeus e quando o valor não excede 10% do
valor de contratos de fornecimento e de serviços ou 15% do valor dos contratos de obras.
Contudo, importa notar que, em caso de várias modificações sucessivas, esse valor é avaliado
com base no valor líquido acumulado das modificações introduzidas sucessivamente. Apraz
lembrar finalmente os requisitos (limites) à permissão da modificação: nas situações relativas
a trabalhos, obras ou serviços complementares ou necessários por não terem sido previstos,
no primeiro caso, e não terem sido previstos e por serem imprevisíveis, no segundo caso, o
preço não pode ser aumentado em mais de 50% do valor do contrato inicial, sendo que no
caso de várias modificações sucessivas esse limite é considerado em relação ao valor de cada
modificação, sendo que as alterações devem ser publicadas no Jornal Oficial da União Euro-
peia.

-159-
Parte II – A atividade administrativa – Formas típicas de atuação

iv) Finalmente, um outro limite diz respeito ao impacto financeiro


provocado pela modificação: quando o fundamento da alteração é a «alte-
ração anormal e imprevisível» das circunstâncias o aumento total do preço
não pode ultrapassar 25% do preço contratual inicial.

Ora bem: temos um legislador nacional mais rigoroso do ponto de


vista dos valores, que manifesta cuidado com as derrapagens, sendo certo
que no que respeita ao regime de empreitadas importa atentar no art.
370.º, onde o legislador se refere aos trabalhos complementares, que são
aqueles cuja espécie ou quantidade não esteja prevista no contrato, ha-
vendo dois tipos de trabalhos complementares: os que resultam de cir-
cunstâncias não previstas e os que resultam de circunstâncias imprevisí-
veis.
Importa, no entanto, distinguir bem o regime dos trabalhos comple-
mentares necessários por estas razões (e todo o regime de responsabili-
dade a eles associados) do regime de trabalhos complementares que te-
nham por finalidade o suprimento de erros e omissões relativos aos proje-
tos de execução e respetivo regime de responsabilidade.
Coisa diferente é o que estamos aqui a tratar: o dono da obra é res-
ponsável pelo pagamento dos trabalhos complementares cuja execução or-
dene ao empreiteiro (art. 378.º, n.º 1, do CCP).
No primeiro caso, os trabalhos complementares são devidos por cir-
cunstâncias não previstas, nos termos do art. 370.º, n.º 2. Estes trabalhos
podem ser ordenados ao empreiteiro se, cumulativamente, i) os mesmos
não puderem ser técnica ou economicamente separáveis do objeto do con-
trato tendo em conta que essa separação seria inconveniente de forma gra-
ve e implicaria um aumento considerável de custos para o dono da obra;
e ii), nos termos da alínea b) do n.º 2 do art. 370.º, não ultrapassar os custos
em 10% do preço contratual; e iii) no contexto dos limiares comunitários,
o somatório do preço inicial e de trabalhos complementares deve limitar-
-se aos valores que determinaram a escolha dos procedimentos pré-con-
tratuais.
No caso dos trabalhos complementares por circunstâncias imprevis-
tas e imprevisíveis, ou que uma entidade adjudicante diligente não tivesse

-160-
Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

possibilidade de prever, o dono da obra pode ordenar trabalhos comple-


mentares imprevistos e imprevisíveis desde que não ultrapasse os 40% do
preço contratual inicial.
Finalmente, dizer que se os trabalhos complementares excedem os
limites referidos, o dono da obra deve extinguir o contrato e desencadear
novo procedimento adjudicatório.
Pois bem, para garantir a transparência, o CCP em vigor obriga à
publicação da modificação introduzida cujo valor acumulado ultrapasse
15% do valor contratual, enquanto condição de eficácia da mesma.
E, em teremos de consequências da modificação introduzida, existe
o dever de reposição do reequilíbrio financeiro (nos termos do art. 314.º),
quer quando o fundamento é a invocação de razões de interesse público
imputável a decisão do contraente público adotada no âmbito dos poderes
de conformação da relação contratual (nos termos do n.º 1, alínea b), do
art. 314.º), quer quando a modificação se deve a alteração anormal e impre-
visível das circunstâncias imputável a decisão do contraente público que
se repercuta de modo específico na situação contratual do cocontratante.
Os demais casos de alteração anormal e imprevisível (acordo ou de-
cisão judicial ou arbitral) conferem direito à modificação do contrato ou a
uma compensação financeira, segundo critérios de equidade. Contudo,
importa sublinhar o n.º 3 do art. 314.º: que se refere à alteração anormal e
imprevisível. Neste caso «o cocontratante só tem direito à reposição do
equilíbrio financeiro quando, tendo em conta a repartição do risco entre as
partes, o facto invocado como fundamento desse direito altere os pressu-
postos com base nos quais determinou o valor das prestações a que se obri-
gou, desde que o contraente público conhecesse ou não devesse ignorar
esses pressupostos».
Importa reforçar a ideia: as modificações que não respeitem os limi-
tes estabelecidos no presente Código determinam a adoção de um novo
procedimento de formação do contrato, caso a entidade adjudicante man-
tenha a decisão de contratar (nos termos dos arts. 313.º, n.º 4, e 370.º, n.º 5).

-161-
Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

PARTE III – AS GARANTIAS ADMINISTRATIVAS

AULA N.º 8

Sumário: 1. Enquadramento; 2. As garantias administrativas; 2.1. Garantias


petitórias; 2.2. Garantias procedimentais; 2.3. Garantias impugnatórias; A. Regime
comum; B. Regimes específicos (reclamação; recurso hierárquico; recursos admi-
nistrativos especiais).

BIBLIOGRAFIA DE BASE

FREITAS DO AMARAL, Diogo, Curso de Direito Administrativo, Vol. II, 4.ª


ed., Coimbra: Almedina, 2018, pp. 629 e ss.
VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos, Lições de Direito Administrativo, 5.ª ed.,
Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2017, especialmente, pp. 242 e ss.

BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR

OLIVEIRA, Fernanda Paula/FIGUEIREDO DIAS, José Eduardo, Noções


Fundamentais de Direito Administrativo, Coimbra: Almedina, 2018, pp. 331 a 344
CAUPERS, João/EIRÓ, Vera, Introdução ao Direito Administrativo, Lisboa:
Âncora Editora, 12.ª ed., 2016, pp. 374 e ss.

BIBLIOGRAFIA ESPECÍFICA

FONSECA, Isabel Celeste, «Repensar as impugnações administrativas entre


a efectividade do processo e a unidade da acção administrativa», in Cadernos de
Justiça Administrativa, n.º 82, 2010

-163-
Parte III – As garantias administrativas

1. Enquadramento

Preceitua o art. 266.º, n.º 1, da Constituição que a «Administração


Pública visa a prossecução do interesse público, no respeito pelos direitos
e interesses legalmente protegidos dos cidadãos», decorrendo, assim, a ne-
cessidade da criação de um conjunto de poderes que permitam aos admi-
nistrados reagir e defender-se perante uma atuação infratora da Adminis-
tração.
Num sentido amplo, podemos, pois, configurar as garantias dos
administrados como o conjunto de meios de defesa ou formas de proteção
do particular perante a Administração Pública [cfr. FREITAS DO AMA-
RAL]. As garantias administrativas são as que se efetivam através dos ór-
gãos da AP, sendo as garantias impugnatórias as que se revestem de maior
importância. Através destas, procura-se obter a revogação ou a modifica-
ção de um ato administrativo emitido, tendo como fundamento a ilegali-
dade ou o demérito de tal ato. As garantias contenciosas são as que se efe-
tivam aproveitando as estruturas dos tribunais.
O acesso à Justiça Administrativa (junto dos tribunais) deve consi-
derar-se a ultima ratio, isto porque, sempre que possível, deve lançar-se pri-
meiramente mão das garantias administrativas (junto da Administração).
Deve igualmente ter-se em atenção o princípio geral da tutela juris-
dicional efetiva, constitucionalmente consagrado nos arts. 20.º e 268.º, n.os
4 e 5.

2. As garantias administrativas

2.1. Garantias petitórias

a) O princípio da transparência deve ser entendido através dos de-


veres de fundamentação e de notificação.
i) O dever de fundamentação encontra-se plasmado no art. 268.º, n.º
3, da CRP («os atos administrativos estão sujeitos a notificação aos
interessados, na forma prevista na lei, e carecem de fundamentação
expressa e acessível quando afetem direitos ou interesses legalmen-

-164-
Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

te protegidos») e nos arts. 152.º e ss. do CPA. O dever de fundamen-


tação é, assim, um dever de justificação (perceção da relação direito-
-facto) e de motivação (perceção do motivo de determinada deci-
são). Se um ato não estiver devidamente fundamentado, encontra-
-se inquinado, sendo que a sanção para tal é a anulabilidade (art.
163.º, n.º 1, do CPA). Há, no entanto, alguns autores, como VIEIRA
DE ANDRADE, que defendem que, em determinados casos, a san-
ção deve ser a nulidade (por referência ao art. 161.º, n.º 2, alínea d),
do CPA).
ii) O dever de notificação encontra-se nos arts. 110.º a 114.º (e, ainda,
com remissão para os arts. 187.º e 188.º do CPA). Com a notificação,
começam a contar os prazos para as garantias impugnatórias e as
garantias contenciosas. Quanto à produção de efeitos, em princípio,
o ato produz efeitos desde que é praticado (art. 155.º, n.º 1, do CPA),
existindo, contudo, exceções: atos constitutivos de deveres ou encar-
gos (art. 160.º CPA – «(…) só são oponíveis aos destinatários a partir
da respetiva notificação»); nos casos do art. 60.º, n.º 1, do CPTA («o
ato administrativo não é oponível ao interessado quando a notifica-
ção ou publicação, quando exigível, não deem a conhecer o sentido
da decisão») e do art. 60.º, n.º 2, do CPTA (elemento em falta). Neste
último caso, havendo um elemento em falta (ex.: indicação do autor,
da data), é necessário fazer um requerimento para interromper o
prazo de impugnação. Não havendo resposta (o prazo para decidir são
10 dias úteis), é possível lançar mão de uma intimação (art. 60.º, n.º 3,
in fine), voltando a interromper o prazo.

b) Uma outra garantia é o direito à informação procedimental.


Consagrado no art. 268.º, n.º 1, da CRP («os cidadãos têm direito de ser in-
formados pela Administração, sempre que o requeiram, sobre o andamen-
to dos processos em que sejam diretamente interessados, bem como o de
conhecer as resoluções definitivas que sobre eles forem tomadas») e arts.
82.º a 85.º do CPA (NB: quando se usa este diploma, não se usa a lei do
acesso aos dados). Esta garantia desdobra-se em três direitos: direito à in-
formação, direito à consulta do procedimento e direito a pedir a emissão

-165-
Parte III – As garantias administrativas

de certidões (pode ser requerida pelo interessado). Havendo uma situação


de conflito no acesso aos dados, deve usar-se o princípio da proporciona-
lidade e o princípio da finalidade (a este propósito, vide acórdão do STA
de 29 de outubro de 1996). Passando o prazo ou não obtendo resposta, é
possível lançar-se mão de uma intimação (arts. 104.º a 108.º do CPTA e 36.º,
n.º 1, alínea d), do CPTA), podendo haver lugar a uma sentença de conde-
nação, sendo a Administração condenada a prestar a informação.

c) O direito à informação não procedimental constitui igualmente


uma garantia petitória, tendo como pedra de toque o princípio da adminis-
tração aberta, isto é, qualquer pessoa pode consultar os processos, bastando
para tal apresentar um requerimento simples. Não é assim necessário que
exista um interesse legítimo, verificando-se, no entanto, algumas limita-
ções (art. 6.º da Lei n.º 26/2016 de 22 de agosto – LADA). Se o acesso for re-
cusado, há logo a possibilidade de apresentar uma queixa junto da CADA,
interrompendo o prazo para posteriormente se recorrer à intimação – mas
não é pressuposto para tal –, bem como a possibilidade de uma intimação
judicial.

d) Como garantias petitórias, existe ainda o direito de queixa junto


do Provedor de Justiça (art. 52.º, n.º 1, da CRP) e o direito de queixa junto
de entidades administrativas independentes desprovidas de personali-
dade jurídica (art. 10.º, n.º 3, do CPTA). Estas entidades funcionam junto
da Assembleia da República ou dos Ministérios (ex.: CADA, CNE, CNPD).
Por fim, o direito de queixa junto das autoridades reguladores indepen-
dentes, disciplinadas pela Lei n.º 67/2013, de 28 de agosto. Estas autorida-
des têm poder de regulação (praticar atos administrativos), poder de san-
cionar, poder de resolução de litígios entre particulares (obs.: alguma dou-
trina entende que tal visa a satisfação do interesse público e, por isso, não
há violação ou usurpação da separação de poderes) e poder de execução
do ato administrativo.

-166-
Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

2.2. Garantias procedimentais

a) A procedimentalização da atividade administrativa constitui,


desde logo, uma garantia procedimental, assegurando a função democrá-
tica e a função de Estado de Direito da atividade administrativa. A ativi-
dade administrativa desdobra-se em atos administrativos (art. 148.º do
CPA), regulamentos administrativos (art. 135.º do CPA) e contratos admi-
nistrativos (art. 1.º do Código dos Contratos Públicos). O procedimento ad-
ministrativo vale como legitimação das decisões públicas.
b) O princípio da imparcialidade. As garantias de imparcialidade
podem ser garantias de impedimento ou garantias de suspeição ou de es-
cusa (arts. 69.º e 73.º do CPA), dando lugar a incidentes autónomos (arts.
9.º do CPA e 266.º, n.º 2, da CRP).

2.3. Garantias impugnatórias

São meios de impugnação de atos administrativos perante as auto-


ridades da própria Administração Pública. Os particulares são admitidos
por lei a impugnar o ato administrativo praticado, isto é, a atacá-lo com
determinados fundamentos. As garantias impugnatórias são a reclamação
e o recurso hierárquico a que acresce o tipo de recursos especiais (onde
se inclui o hierárquico em sentido impróprio e o recurso tutelar) (arts.
184.º e ss. do CPA).
As impugnações administrativas podem tomar a forma de reclama-
ção ou recurso. A reclamação é dirigida ao autor do ato ou da omissão do
ato (arts. 191.º e 192.º do CPA) e o recurso hierárquico é dirigido ao supe-
rior hierárquico do autor do ato ou da omissão ilegal. Por sua vez, o re-
curso pode ser hierárquico, quando é dirigido para o mais elevado supe-
rior hierárquico do autor do ato ou da omissão do ato (arts. 193.º a 198.º do
CPA) ou pode ser um recurso administrativo especial (art. 199.º do CPA).
Quanto a estes últimos, cumpre referir que, no novo CPA, deixaram de
existir (autonomamente) os recursos hierárquicos impróprios, passando a
constituir, juntamente com os recursos tutelar, uma nova categoria: os re-
cursos administrativos especiais.

-167-
Parte III – As garantias administrativas

A) Regime comum

i) Sobre a natureza das impugnações administrativas (art. 185.º do


CPA): as impugnações administrativas podem ser facultativas, quando a
possibilidade de acesso aos meios contenciosos de impugnação ou de con-
denação à prática do ato devido não dependa da sua prévia utilização, ou
necessárias, quando a possibilidade de acesso aos meios contenciosos de
impugnação ou de condenação à prática do ato devido dependa da prévia
utilização das garantias administrativas. Sendo facultativas, quando utili-
zadas, elas suspendem a contagem do prazo para utilização da via conten-
ciosa, não suspendendo os efeitos do ato impugnado; sendo necessárias,
há suspensão dos prazos e dos efeitos do ato de que se reclama ou de que
se recorre.
Regra geral, as reclamações e os recursos têm carácter facultativo,
salvo se a lei os denominar como necessários (art. 185.º, n.º 2, do CPA). É
necessário conjugar esta disposição com o critério interpretativo do art. 3.º
do DL n.º 4/2015 [n.º 1: «as impugnações administrativas existentes à data
da entrada em vigor do presente decreto-lei só são necessárias quando pre-
vistas em lei que utilize uma das seguintes expressões (…)». O prazo mí-
nimo para a utilização de impugnações administrativas necessárias é de 10
dias (n.º 2)].

ii) Quanto aos fundamentos das impugnações, são dois: a ilegali-


dade e a inconveniência ou inoportunidade (art. 185.º, n.º 3, do CPA), ten-
do como efeitos, respetivamente, a anulação (sujeita a prazo de 3 meses) e
a revogação (não sujeita a prazo)52, que são atos secundários que extin-
guem o ato sobre que incidem (arts. 165.º e ss. do CPA). A exceção é a do
art. 199.º, n.º 3, do CPA: o recurso tutelar só pode ter por fundamento a incon-
veniência ou inoportunidade nos casos em que a lei estabeleça uma tutela de mérito
(ex.: tutela sobre Administração indireta do estado).

52Todos os prazos do CPA (e do procedimento) são sempre prazos em dias úteis, a


menos que se diga o contrário (art. 87.º do CPA). Ao invés, os prazos processuais são prazos
contínuos.

-168-
Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

iii) Quanto ao objeto das impugnações. As impugnações podem ter


por objeto os atos administrativos ou as omissões ilegais (art. 184.º, n.º 1,
do CPA).
a) O ato administrativo é uma decisão que produz efeitos regulado-
res numa situação individual e concreta. Os seus efeitos são, assim,
para efeitos do CPA, externos (art. 148.º do CPA).
b) Para que haja uma omissão ilegal (arts. 13.º e 129.º do CPA), é
necessário que haja um dever de decidir e que estejam preenchidos
determinados requisitos: (1) exista um requerimento de um interes-
sado a fazer valer a sua pretensão, dentro do prazo, à entidade com
competência para decidir (sem prejuízo do art. 41.º do CPA), (2) que
implique da parte desta entidade o exercício de uma competên-
cia jurídico-administrativa; (3) que não tenha sido apresentado um
mesmo requerimento com os mesmos fundamentos, ao abrigo da
mesma legislação, no prazo de 2 anos; (4) e que tenha passado o
prazo para decidir sem que haja decisão (90 dias) – art. 128.º, n.º 1,
do CPA.
NB: Quando a lei não consagre deferimento tácito, a falta de decisão
é equiparada a incumprimento do dever de decidir.

iv) Quanto à legitimidade para impugnar, é conferida aos titulares


de direitos subjetivos ou interesses legalmente protegidos que se conside-
rem lesados pela prática ou omissão de um ato ou conferida aos cidadãos
e demais eleitores recenseados, no caso de estarem em causa interesses di-
fusos (património cultural, ambiente, entre outros) – arts. 186.º e 68.º, n.os
2, 3 e 4, do CPA.

v) Quantos aos prazos para impugnar, encontram-se nos arts. 187.º


e 188.º do CPA (quanto à reação perante a omissão ilegal: prazo de um ano;
quanto à impugnação do ato: o prazo depende do tipo de garantia utili-
zada).

vi) Os efeitos da impugnação podem ser: a anulação, a revogação


(arts. 163.º e 165.º do CPA), a nulidade (art. 161.º, n.º 1 – consagrado como

-169-
Parte III – As garantias administrativas

exceção, nos casos do n.º 2 ou quando a lei o diga expressamente), a sana-


ção (art. 164.º – ratificação quando se supre o vício; reforma quando se con-
serva a parte que é válida, desde que o ato seja divisível; ou conversão
quando se aproveitam as partes válidas e se pratica um novo ato válido,
uma vez que o ato não era divisível), a alteração ou a substituição (art.
173.º do CPA – ocorrem normalmente na sequência de uma anulação, re-
vogação ou declaração de nulidade) ou, no caso de omissão, a prática do
ato devido.

vii) Quanto aos efeitos sobre os prazos – art. 190.º do CPA: a recla-
mação de atos ou omissões sujeitas a recurso administrativo necessário
suspende o prazo da sua interposição (n.º 1); nos restantes casos, a recla-
mação não suspende o prazo de interposição dos recursos administrativos
(n.º 2).

viii) Das impugnações administrativas facultativas sobre a propo-


situra da ação judicial. A utilização dos meios impugnatórios administra-
tivos contra atos administrativos suspende o prazo de propositura de
ações nos TAF, só retomando o seu curso com a notificação da decisão pro-
ferida sobre a impugnação administrativa ou o decurso do respetivo prazo
legal (de 30 dias) – art. 190.º, n.º 3 + art. 59.º, n.os 4 e 5 CPTA. A disposição
não se refere às omissões. Ainda estamos, neste campo, em fase interpre-
tativa.

ix) Quanto aos efeitos sobre atos – art. 189.º do CPA: as impugna-
ções administrativas necessárias suspendem os respetivos efeitos (n.º 1); as
impugnações administrativas facultativas não têm, em regra, efeito sus-
pensivo, com exceção dos casos em que o autor do ato ou o órgão compe-
tente para conhecer do recurso considere que a sua execução imediata cau-
sa prejuízos irreparáveis ou de difícil reparação ao destinatário e a suspen-
são não cause prejuízos para o interesse público (n.os 2 e 3). A possibilidade
de ser decidida pela Administração a suspensão de eficácia do ato não pre-
judica o pedido de suspensão de eficácia perante os tribunais administra-
tivos (n.º 5).

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Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

B) Regime específico

1. Da reclamação

Como se disse, a reclamação é um meio de impugnação administra-


tiva dirigida ao próprio autor do ato ou da omissão, assumindo natureza
facultativa (“pode reclamar-se”).
i) De que atos é possível reclamar-se? Salvo disposição em contrá-
rio, é possível reclamar-se de quaisquer atos ou omissões, exceto daqueles
atos que decidam, eles mesmos, reclamações ou recursos, a não ser que a
reclamação tenha por fundamento a omissão de pronúncia (art. 191.º, n.os
1 e 2, do CPA).
ii) Fundamento da reclamação: ilegalidade e demérito (art. 185.º, n.º
3, do CPA).
iii) Prazo geral para impugnação: 15 dias (art. 191.º, n.º 3, do CPA),
a contar da notificação, da publicação ou do conhecimento do ato ou da
sua execução (art. 188.º do CPA); nos casos de uma omissão ilegal de atos
administrativos, a reclamação deve ser apresentada no prazo de um ano
(art. 187.º do CPA), a contar desde a data do incumprimento do dever de
decisão (art. 188.º, n.º 3, do CPA).
iv) Prazo para apreciação da reclamação pelo órgão competente: 30
dias (art. 192.º, n.º 2, do CPA).
v) Notificação dos contrainteressados: prazo de 15 dias, a contar da
apresentação da reclamação (art. 192.º, n.º 1, do CPA).

2. Do recurso hierárquico

O recurso hierárquico consiste no pedido de reapreciação do ato im-


pugnado, ou na reação contra a omissão ilegal de atos administrativos, que
é dirigido pelo particular ao superior hierárquico do autor do ato impug-
nado (subalterno).
i) O que pode ser objeto de recurso? Salvo disposição em contrário,
quaisquer atos praticados ou omissões imputáveis aos órgãos subalternos
(art. 193.º, n.º 1, do CPA).

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Parte III – As garantias administrativas

ii) A quem deve ser dirigido o recurso hierárquico? Ao mais eleva-


do superior hierárquico do autor do ato impugnado, a menos que haja uma
delegação de competências (art. 194.º, n.º 1, do CPA).
iii) Fundamento do recurso: ilegalidade e demérito (art. 185.º, n.º 3,
do CPA).
iv) Prazo para interposição do recurso: 30 dias quando se trate de
recurso hierárquico necessário (art. 193.º, n.º 2, do CPA); três meses, nos
casos do recurso hierárquico facultativo (art. 193.º, n.º 2, do CPA, in fine:
«no prazo de impugnação contenciosa do ato em causa» – remissão para o
art. 58.º do CPTA); no casos das omissões, o prazo de interposição é de 1
ano (art. 187.º do CPA).
v) Requerimento de interposição do recurso: é apresentado ao au-
tor do ato ou da omissão, exceto nos casos de delegação de competência;
no caso de ser dirigido a outra autoridade diversa, esta deve remetê-lo para
o autor do ato no prazo de três dias (art. 194.º, n.º 2, do CPA). O autor do
ato, recebido o requerimento, deve dar conhecimento da sua apresentação
ao órgão competente para a decisão e notificar os contrainteressados no
prazo de 15 dias (art. 195.º, n.º 1, do CPA).
vi) Prazo para pronúncia do autor do ato: 15 ou 30 dias, consoante
haja ou não contrainteressados, dando conhecimento ao órgão competente
para dele conhecer e notificando o recorrente da remessa do processo (art.
195.º, n.º 2, do CPA).
vii) Poderes do autor do ato: se existirem elementos que demons-
trem suficientemente a procedência do recurso e os contrainteressados não
deduzirem oposição, pode o autor do ato revogar, anular, modificar ou
substituir o ato impugnado, mas nunca em sentido menos favorável ao re-
corrente, dando conhecimento da sua decisão ao órgão competente para
conhecer do recurso (art. 195.º, n.os 3 e 4, do CPA). Nos casos de omissão
ilegal, o autor do ato pode praticar, na pendência do recurso, o ato ilegal-
mente omitido, dando também conhecimento ao órgão competente para
conhecer do recurso e notificando os contrainteressados que deduziram
oposição (art. 195.º, n.º 5, do CPA).
viii) Requerimento para prosseguimento contra o ato praticado na
pendência do recurso: o recorrente ou os contrainteressados, alegando no-

-172-
Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

vos fundamentos e juntando elementos probatórios pertinentes, podem re-


querer que o recurso prossiga contra o ato praticado na pendência do re-
curso (n.º 6), dentro do prazo previsto para a interposição do recurso hie-
rárquico contra o ato praticado (n.º 7).
ix) Rejeição do recurso: art. 196.º do CPA.
x) Decisão do superior hierárquico: confirmação ou anulação do ato
recorrido; não se tratando de um ato praticado ao abrigo de uma compe-
tência exclusiva do subalterno, pode igualmente revogar, modificar ou
substituir, mesmo que em sentido desfavorável ao recorrente (art. 197.º, n.º
1, do CPA).Tratando-se de omissão, pode, se não se tratar de uma compe-
tência exclusiva, praticar o ato ilegalmente omitido; ou, então, ordenar a
sua prática (art. 197.º, n.º 4, do CPA).
a) O órgão competente para conhecer do recurso não fica obrigado
à proposta de pronúncia do autor do ato ou da omissão, isto é, à sua
proposta de decisão (art. 197.º, n.º 2). Se optar pela proposta, deve
fundamentar a sua decisão (fundamentação própria).
b) Pode igualmente anular, no todo ou em parte, o procedimento
administrativo, ordenando nova instrução ou diligências comple-
mentares (art. 197.º, n.º 3, do CPA).
c) Embora a lei apenas se refira expressamente aos recursos hierár-
quicos necessários, tanto nesses como nos facultativos, o superior
hierárquico deve apreciar todas as questões suscitadas pelo recor-
rente (art. 198.º, n.º 3, do CPA).

xi) Prazo para a decisão: prazo-regra: 30 dias, a contar da data da


remessa do processo ao órgão competente para dele conhecer. (art. 198.º,
n.º 1, do CPA). Pode o prazo ser elevado para 90 dias, caso haja lugar à rea-
lização de diligências complementares ou a realização de nova instrução
(n.º 2).
xii) Do indeferimento do recurso hierárquico necessário ou a falta
de decisão nos prazos estabelecidos: conferem ao interessado a possibili-
dade de recorrer aos meios contenciosos. (art. 198.º, n.º 4, do CPA).

-173-
Parte III – As garantias administrativas

3. Recursos administrativos especiais53

Constituem recursos administrativos especiais (art. 199.º do CPA):


a. O recurso hierárquico impróprio (n.º 1, alínea a) – recurso para
órgão da mesma pessoa coletiva que exerça poderes de supervisão);
b. O recurso interposto para órgão colegial (alínea b) – relativo a
atos ou omissões de qualquer dos seus membros, comissões ou secções);
c. O recurso tutelar (alínea c) – recurso para o órgão de outra pessoa
coletiva que exerça poderes de tutela ou superintendência) sobre aquele);
d. O recurso para o delegante ou subdelegante de atos praticados
pelo delegado ou subdelegado, apenas nos casos em que exista «expressa dis-
posição legal» (art. 199.º, n.º 2, do CPA).

Aplicam-se a estes recursos as disposições do recurso hierárquico


(art. 199.º, n.º 5). Ressalve-se, contudo, que, no que ao recurso tutelar diz
respeito, este apenas pode ter por fundamento a inconveniência ou inopor-
tunidade do ato ou da omissão, quando a lei estabelecer uma tutela de mé-
rito (n.º 3), devendo igualmente ser respeitadas a natureza do recurso e a
autonomia da entidade tutelada.
De igual forma, para que haja lugar ao recurso tutelar, é necessário:
i. Que a lei preveja uma relação de tutela;
ii. Que a lei preveja expressamente a possibilidade de recurso tu-
telar.

Havendo lugar a recurso tutelar, apenas nos casos em que a lei con-
ferir ao órgão tutelar poderes de tutela substitutiva, e no âmbito desses
poderes, é que este poderá modificar ou substituir o ato recorrido ou omi-
tido (n.º 4).

53 Para um estudo mais aprofundado, vd. ANDRÉ FOLQUE, Recurso Administrativo

Especial e Delegação de Poderes, Coimbra: Almedina, 2019.

-174-
Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

PARTE IV – A RESPONSABILIDADE CIVIL


EXTRACONTRATUAL DO ESTADO

AULA N.º 9

Sumário: 1. Enquadramento histórico-constitucional e normativo: visão sin-


crónica e diacrónica; 2. O art. 22.º da Constituição da República Portuguesa: sentido
e alcance; 3. O Regime Jurídico da Responsabilidade Civil Extracontratual da Ad-
ministração Pública (considerações gerais; âmbito de aplicação; modalidades de
responsabilidade: responsabilidade por factos ilícitos e responsabilidade pelo risco
– pressupostos e causas de exclusão); 4. Responsabilidade civil pela função jurisdi-
cional; 5. Responsabilidade civil pela função político-legislativa; 6. Indemnização
pelo sacrifício.

BIBLIOGRAFIA DE BASE

FREITAS DO AMARAL, Diogo, Curso de Direito Administrativo, Vol. II, 4.ª


ed., Coimbra: Almedina, 2018, pp. 595 e ss.
REBELO DE SOUSA, Marcelo/SALGADO DE MATOS, André, Direito Ad-
ministrativo Geral, Tomo III (Responsabilidade civil administrativa), Lisboa: Dom
Quixote, 2008.

BIBLIOGRAFIA ESPECÍFICA

FERNANDES CADILHA, Carlos Alberto, Regime da Responsabilidade Civil


Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas Anotado, Coimbra Editora, 2008
MEDEIROS, Rui (org.), Comentário ao Regime da Responsabilidade Civil Extra-
contratual do Estado e Demais Entidades Públicas, Lisboa: Universidade Católica Edi-
tora, 2013

BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR ESPECÍFICA


(indicada em nota de rodapé)

-175-
Parte IV – A Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado

JURISPRUDÊNCIA PARA CONSULTA

Acórdão STA, de 17-12-2008, Proc. n.º 348/08;


Acórdão TCA- Sul, de 06-12-2012, Proc. n.º 07144/11;
Acórdão TCA-Norte, de 04-03-2016, Proc. n.º 01379/14.2BEBRG;
Acórdão TCA-Norte, de 21-10-2016, Proc. n.º 02595/12.7BEPRT;
Acórdão STA, de 20-06-2018, Proc. n.º 01471/17;
Acórdão STA, de 05-07-2018, Proc. n.º 0482/17;
Acórdão STA, de 12-07-2018, Proc. 0428/18.

1. Enquadramento histórico-constitucional e normativo: visão sin-


crónica e diacrónica

Profundamente inspirado nas raízes do Antigo Regime, assistimos


durante grande parte do século XIX à vigência de um princípio da irres-
ponsabilidade do Estado. Os atos de poder público, enquanto corolários
da soberania, excluíam a responsabilidade do Estado, quer estivéssemos
nos domínios legislativo ou executivo quer mesmo no campo da adminis-
tração da justiça. Tal conceção é vertida na fórmula de LAFERRIÈRE: «a
responsabilidade é nula quando a função do Estado confina com a sobera-
nia»54. No entanto, apesar desse princípio geral, é possível, com a afirma-
ção do Estado Liberal, vislumbrar-se algumas aberturas ao instituto da res-
ponsabilidade do Estado, como, por exemplo, a possibilidade de o Estado
ser responsabilizado, em matéria de obras públicas, pelos danos causados
na esfera dos particulares, resultantes da atuação dos seus órgãos ou agen-
tes, ou, ainda, a possibilidade de os funcionários das autarquias locais, es-
tas tidas como entidades desprovidas de soberania, serem responsabiliza-
dos pelos danos provocados no âmbito da sua atividade administrativa.
A mudança de paradigma só se verificou efetivamente nos finais do
século XIX, com a crescente intervenção do Estado na vida social, de modo
a que é possível afirmar com propriedade que o princípio da responsabi-

54 EDOUARD LAFERRIÈRE, Traité de la jurisdiction administrative et des recours conten-

tieux, Vol. II, 1989, p. 174.

-176-
Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

lidade civil do Estado é uma conquista do século XX, nomeadamente do


Estado Social. A este propósito, impõe-se a referência ao Acórdão Blanco
de 1873, em que, pela primeira vez, um tribunal de conflitos vem atribuir
competência a um tribunal administrativo para dirimir litígios em matéria
de responsabilidade civil extracontratual da Administração. O caso repor-
ta-se a França, estando em causa o atropelamento de uma criança de cinco
anos por um vagão de uma empresa pública de tabaco. Os pais da criança
recorreram para o Tribunal de Bordéus, pedindo uma indemnização. O
Tribunal, por seu turno, declara-se incompetente, uma vez que em causa
estava uma autoridade administrativa, não havendo lei aplicável para o
caso, visto que o Código Civil apenas regulava as relações entre particula-
res. Não estando em causa um ato administrativo, o Conselho de Estado
Francês declara-se igualmente incompetente. Perante este conflito de juris-
dições, o Tribunal de Conflitos vem reconhecer a competência dos Tribu-
nais Administrativos, afirmando de igual forma a necessidade de criação
de normas jurídicas que protejam e responsabilizem a Administração.
Deste modo, a densidade do princípio da legalidade como funda-
mento e fim, a criação do conceito de personalidade jurídica coletiva e a
passagem do Estado Liberal para o Estado Social são alguns dos principais
aspetos que contribuíram para o surgimento da responsabilidade civil ex-
tracontratual administrativa.
O modelo francês de responsabilidade civil extracontratual por atos
de gestão pública distingue a responsabilidade com culpa (subjetiva) da
responsabilidade sem culpa (objetiva), procurando um equilíbrio entre o
direito do particular e a atividade administrativa, adstrita à prossecução
do interesse público.
Na Alemanha, a Constituição de Weimar de 1919 vem consagrar, no
seu art. 121.º, a responsabilidade principal do Estado em caso de violação
de um dever de um funcionário público para com um terceiro. Somente
em 1981 é aprovada a lei federal geral da responsabilidade civil adminis-
trativa que, no entanto, veio a ser declarada inconstitucional. O art. 34.º da
Lei Fundamental germânica consagra um princípio da responsabilidade
do Estado quando o funcionário atue ao serviço deste, sendo o Código Ci-
vil a postular esses mesmos requisitos da responsabilidade civil.

-177-
Parte IV – A Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado

Em Espanha, a disciplina jurídica sobre a matéria surge apenas em


1954, com a Lei de Expropriações, sucedendo-lhe, em 1957, a Lei de Regime
Jurídico da Administração do Estado e, em 1992, a Lei do Regime Jurídico
das Administrações Públicas e do Procedimento Administrativo Comum.
À semelhança do ordenamento jurídico germânico, a matéria da responsa-
bilidade civil extracontratual é enquadrada no âmbito do instituto da ex-
propriação e das limitações a direitos fundamentais.
Em Portugal, as Constituições Monárquicas apenas consagravam a
responsabilidade dos funcionários ou agentes do Estado, de modo a que
não é possível falar-se em «responsabilidade da Administração ou do Es-
tado, enquanto tal, por danos causados no exercício das funções que lhes
são confiadas»55, ao passo que as Constituições posteriores de 1911 e 1933
não firmavam especificamente a responsabilidade dos funcionários públi-
cos pelos danos praticados no exercício das suas funções.
O Código de Seabra de 1867 postulava um princípio geral de irres-
ponsabilidade do Estado e dos seus funcionários, admitindo exceção ape-
nas nos casos da prática de ilícito, podendo haver lugar a responsabilidade
pessoal, realidade alterada pela revisão do Código de 1930, que veio intro-
duzir o conceito de solidariedade na obrigação de indemnizar 56. O Código
Administrativo de 1936 e o Código Administrativo de 1940 vieram consa-
grar a responsabilidade civil das autarquias locais por atos ilegais pratica-
dos pelos seus órgãos e agentes, a título pessoal.
O Código Civil de 1966, contrariando as expectativas, relegou os
atos de gestão pública, apenas prevendo a responsabilidade do Estado e
de outras pessoas coletivas públicas pelos danos causados a terceiros no
exercício de atividades de gestão privada.

55 MANUEL AFONSO VAZ e CATARINA SANTOS BOTELHO, «Disposições intro-

dutórias da Lei 67/2007, de 31 de dezembro», in Comentário ao Regime da Responsabilidade Civil


Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas, Lisboa: Universidade Católica Editora,
2013, p. 30.
56 Sobre o conceito de responsabilidade solidária, vide ADRIANO VAZ SERRA, «Res-

ponsabilidade Civil do Estado e dos seus órgãos ou agentes», in Boletim do Ministério da Jus-
tiça, n.º 85, Lisboa, 1959, p. 446. O autor explicita que, para que haja responsabilidade solidá-
ria, é necessário que o funcionário exceda ou incumpra as disposições da lei, respondendo o
Estado unicamente se o funcionário proceder dentro das suas atribuições ou funções e por
causa delas.

-178-
Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

É nesta senda que surge, em 1967, o Decreto-Lei n.º 48051, versando


sobre o regime geral da responsabilidade civil extracontratual do Estado e
demais pessoas coletivas públicas por atos de gestão pública. Este regime
abarcava apenas a responsabilidade civil pelo exercício da função admi-
nistrativa, deixando à margem as funções jurisdicional e político-legisla-
tiva. Tal se justificava porque, como elucida RUI MEDEIROS, «o problema
da responsabilidade civil dos poderes públicos era tradicionalmente pers-
petivado como uma questão de natureza administrativa, pelo que, em con-
sequência também apenas dizia respeito à atividade administrativa» 57.
A Constituição de 1976 marca o início de uma nova era de tal forma
que, com MANUEL AFONSO VAZ e CATARINA BOTELHO, é possível
afirmar que a lei fundamental «confirmou a rutura de forma definitiva e
sistémica com esse modelo de não responsabilização dos poderes públicos
ou de insuficiente responsabilização»58. O princípio da responsabilidade,
enquanto corolário do princípio do Estado de Direito, abarca, para além
da função administrativa, as funções político-legislativa e jurisdicional.
A exequibilidade do imperativo constitucional apenas foi conse-
guida pela Lei n.º 67/2007, de 31 de dezembro, que veio pôr termo às insu-
ficiências do DL n.º 48051, isto porque, «o princípio constitucional funda-
mental da responsabilidade civil do Estado e demais entidades públicas
contido no artigo 22.º da Constituição da República Portuguesa não se coa-
dunava com a legislação infraconstitucional anterior e então vigente. A
aprovação de uma nova lei em matéria de responsabilidade civil extracon-
tratual do Estado e demais entidades públicas impunha-se como uma ne-
cessidade imperiosa para a concretização daquele princípio fundamental
e, assim, para a concretização do Estado de Direito Democrático» 59.
Em traços gerais, o novo regime jurídico regula, com alterações sig-
nificativas, o regime substantivo da responsabilidade civil da Adminis-

57 RUI MEDEIROS, Responsabilidade Civil dos Poderes Públicos – Ensinar e Investigar,

Universidade Católica Editora, 2005, p. 50.


58 MANUEL AFONSO VAZ e CATARINA SANTOS BOTELHO, «Disposições intro-

dutórias da Lei 67/2007, de 31 de dezembro», cit., p. 30.


59 MARIA JOSÉ MESQUITA RANGEL, O Regime da Responsabilidade Civil Extracontra-

tual do Estado e Demais Entidades Públicas e o Direito da União Europeia, Almedina, 2009, pp. 9 e
10.

-179-
Parte IV – A Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado

tração e regula, de forma inovadora, a responsabilidade civil por facto das


funções político-legislativa e jurisdicional. Para além disso, transforma o
direito de regresso, quando este exista, num poder de exercício vinculado
e prevê um regime de indemnização pelo sacrifício não circunscrito à fun-
ção administrativa.
Apesar de a Lei n.º 67/2007 dizer apenas respeito à responsabilidade
civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas por atos de
gestão pública (art. 1.º), uma vez que os atos de gestão privada são regula-
dos pelo direito civil, tanto os atos de gestão pública como os atos de gestão
privada são da exclusiva jurisdição dos tribunais administrativos. O atual
ETAF revogou a exclusão expressa dos atos de gestão privada da jurisdi-
ção administrativa. Assistimos, portanto, a uma dualidade de regimes, a
par de uma unidade de jurisdição.

2. O art. 22.º da Constituição da República Portuguesa: sentido e


alcance

Preceitua ao art. 22.º da CRP que «O Estado e as demais entidades


públicas são civilmente responsáveis, em forma solidária com os titulares
dos seus órgãos, funcionários ou agentes, por ações ou omissões praticadas
no exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que resulte
violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem».
A natureza jurídica deste artigo é controversa, distinguindo-se duas
principais teses, uma subjetivista e outra objetivista. Para a tese subjeti-
vista, a responsabilidade civil das entidades públicas, prevista no art. 22.º,
é um direito fundamental de natureza análoga aos direitos, liberdades e
garantias60, de modo que atribui aos particulares «um direito fundamental
de estrutura subjetiva, com suficiente determinabilidade constitucional,
garantidor de reparação dos danos causados aos seus direitos, liberdades

60 Neste sentido, J.J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da Re-

pública Portuguesa anotada, Vol. I, 4.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2007, p. 425, e RUI ME-
DEIROS, Ensaio Sobre a Responsabilidade Civil do Estado por Atos Legislativos, Coimbra: Alme-
dina, 1992, p. 121.

-180-
Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

e garantias pelos poderes públicos»61. Ao invés, para a tese objetivista, o


preceito constitucional é uma garantia institucional, não atribuindo direi-
tos subjetivos62.
Profundamente inspirado na doutrina objetivista, o Tribunal Cons-
titucional veio, no seu Acórdão n.º 236/04 de 13 de abril de 2004, qualificar
o art. 22.º da Constituição como garantia institucional, entendendo que «A
norma do artigo 22.º da CRP – dirigindo-se ao legislador, com vista a ga-
rantir o instituto, e implicando limites à sua conformação pela lei ordiná-
ria – parece, assim, justificar a qualificação de norma de garantia institucio-
nal (…)».
Socorrendo-nos dos ensinamentos de MELO ALEXANDRINO, as
garantias institucionais configuram-se como «realidades jurídicas não sub-
jetivadas onde obtêm proteção, através de uma norma constitucional, de-
terminadas figuras típicas de um setor da realidade económica ou social» 63.
Não parece que esta seja a natureza a atribuir ao art. 22.º da Constituição
e, ainda que se encontre fora do catálogo dos direitos fundamentais, a sua
intencionalidade, estrutura e função fazem inclinar, desde logo, para a tese
subjetivista. Ademais, acolher a tese objetivista levaria a colocar em causa
a aplicabilidade direta da norma. O art. 22.º não depende da lei para poder
ser invocado pelo lesado nem constitui uma norma programática. Admi-
tindo que de garantia se possa tratar, porque «constitui uma garantia de
liberdade e de limitação do poder e postula uma atitude geral de respeito
por parte das entidades públicas»64, então poderá tratar-se de uma garantia
de direito, nunca de uma mera garantia institucional.
Preterida a tese objetivista, é tempo agora de analisar o alcance do
art. 22.º da Constituição, o mesmo é dizer, o seu âmbito normativo. Ora, o

61 MANUEL AFONSO VAZ e CATARINA SANTOS BOTELHO, «Disposições intro-

dutórias da Lei 67/2007, de 31 de dezembro», cit., p. 40.


62 Neste sentido, MARIA LÚCIA AMARAL, Responsabilidade do Estado e dever de in-

demnizar do legislador, Coimbra: Coimbra Editora, 1998, pp. 439 a 444, e JOSÉ CARLOS VIEIRA
DE ANDRADE, Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, 5.ª ed., Coimbra:
Almedina, 2012, p. 136.
63 JOSÉ MELO ALEXANDRINO, Direitos Fundamentais – Introdução Geral, Principia,

2007, p. 36.
64 RUI MEDEIROS, Ensaio Sobre a Responsabilidade Civil do Estado por Atos Legislativos,

cit., p. 121.

-181-
Parte IV – A Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado

preceito constitucional refere-se às «ações ou omissões praticadas no exer-


cício das suas funções e por causa desse exercício». Repare-se que o legis-
lador constitucional não se referiu a “função”, mas sim “funções”. Recorre-
-se, desde logo, ao argumento morfológico para admitir que a norma cons-
titucional não se circunscreve apenas à função administrativa, como suce-
dia no período antecedente à Constituição de 1976. Como resulta do en-
quadramento anteriormente feito, «a inovação e o salto qualitativo aconte-
ceu com a CRP de 1976 e por ela passa um princípio geral do dever de
indemnizar por parte do Estado, qualquer que seja a sua veste, e por parte
das demais entidades públicas»65. Ora, articulando o art. 22.º com outros
artigos constitucionais, como, por exemplo, o art. 27.º, n.º 5, referente à in-
demnização por privação da liberdade contra disposto constitucional ou
legal, ou o art. 29.º, n.º 6, referente à indemnização por condenação injusta,
é possível concluir que uma das vestes do Estado é precisamente a função
jurisdicional, tanto mais que por «titulares dos seus órgãos» deve, desde
logo, entender-se os magistrados judiciais, titulares de órgãos de sobera-
nia, os tribunais. A mesma lógica pode ser utilizada para nos referirmos à
função legislativa. A interpretação do art. 22.º, em conjugação com o art.
117.º, n.º 1, referente à responsabilidade dos titulares de cargos políticos, e
com o art. 157.º, n.º 1, respeitante à irresponsabilidade dos deputados pelos
seus votos e opiniões, «gerou à sua volta um largo consenso quanto ao fac-
to de ter consagrado um princípio de responsabilidade do Estado legisla-
dor, pondo fim à tradicional imunidade deste» 66. Importa, no entanto, sa-
lientar que, ao invés das demais funções do Estado, a função legislativa é
uma função primária e, como tal, os pressupostos da responsabilidade civil
do legislador e a extensão da obrigação de indemnizar serão sempre deter-
minados ao nível constitucional. Em bom rigor, remeter de forma impera-
tiva a fixação dos pressupostos e extensão da responsabilidade da função
político-legislativa para o legislador ordinário «geraria uma situação para-
doxal, em que o ente responsável poderia legitimamente estabelecer, de

65 GUILHERME FONSECA e MIGUEL BETTENCOURT DA CÂMARA, A Responsa-

bilidade Civil dos Poderes Públicos, 1.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2013, p. 17.
66 JORGE PEREIRA DA SILVA, Dever de Legislar e Proteção Jurisdicional contra Omissões

Legislativas, Lisboa: Universidade Católica Editora, 2003, p. 293.

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Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

forma genérica ou caso a caso, a medida da sua própria obrigação, ficando


inclusive autorizado, se assim o desejasse, a isentar-se por completo dessa
mesma obrigação»67.

3. O Regime Jurídico da Responsabilidade Civil Extracontratual


da Administração Pública

3.1. Considerações gerais e âmbitos de aplicação da Lei n.º 67/2007

O Regime Jurídico da Responsabilidade Civil Extracontratual do Es-


tado e Demais Entidades Públicas é regulado pela Lei n.º 67/2007, de 31 de
dezembro. Impõe-se, desde já, um apontamento à denominação utilizada
pelo legislador. É certo que, tal como defendido por MARCELO REBELO
DE SOUSA e ANDRÉ SALGADO DE MATOS, a denominação “civil” tem
como propósito distinguir este tipo de responsabilidade da responsabili-
dade criminal, política ou disciplinar68, todavia, se o regime se assume “ci-
vil” do ponto de vista do particular que é lesado e indemnizado, o mesmo
não se pode dizer da perspetiva de quem provocou o dano 69. Ainda que a
denominação não desvirtue a substância do regime, do que verdadeira-
mente se trata é de um Regime Jurídico Público da Responsabilidade por
danos decorrentes do exercício das funções administrativa, jurisdicional e
político-legislativa70.

67 Neste sentido, JORGE PEREIRA DA SILVA, «Responsabilidade Civil por danos

decorrentes do exercício da função político-legislativa», in Comentário ao Regime da Responsa-


bilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas, Lisboa: Universidade Cató-
lica Editora, 2013, p. 380.
68 MARCELO REBELO DE SOUSA e ANDRÉ SALGADO DE MATOS, Direito Admi-

nistrativo Geral, Tomo III, 2.ª ed., Lisboa, 2009, p. 477.


69 Neste sentido, JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, «Panorama Geral do Direito

da Responsabilidade “Civil”», in La Responsabilidad Patrimonial de los Poderes Públicos, Madrid,


1999, p. 40.
70 Por todos e para mais desenvolvimentos, vide ALEXANDRA LEITÃO, Duas ques-

tões a propósito da responsabilidade extracontratual por (f)actos ilícitos e culposos praticados no exer-
cício da função administrativa: da responsabilidade civil à responsabilidade pública. Ilicitude e presun-
ção de culpa, pp. 2 e 3, disponível online em http://www.icjp.pt/sites/default/files/media/artigo-
responsabilidade2.pdf.

-183-
Parte IV – A Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado

No que diz respeito aos âmbitos de aplicação, estes encontram-se


vertidos no art. 1.º da Lei n.º 67/2007. Do ponto de vista objetivo, já tivemos
oportunidade de anteriormente aclarar que o regime se aplica à responsa-
bilidade civil extracontratual decorrente das funções administrativa, juris-
dicional e politico-legislativa. «O que está em causa é a ideia fundamental
de que nada do que acontece em nome do Estado e no suposto interesse
da coletividade, mediante as ações ou omissões das suas instituições, pode
ser imune ao dever de reparar os danos provocados aos particulares» 71.
Ademais, embora o legislador não faça referência expressa aos atos de ges-
tão pública, da interpretação do art. 1.º, n.º 2, da Lei n.º 67/2007 se extrai
que, muito embora se mantenha a dualidade de regimes, o regime jurídico
em apreço apenas se aplica às «ações e omissões adotadas no exercício de
prerrogativas de poder público ou reguladas por disposições ou princípios
de direito administrativo», o mesmo é dizer, aos atos de gestão pública 72.
No que concerne ao âmbito subjetivo, embora o legislador se tenha
referido ao «Estado e demais pessoas coletivas públicas», a Lei n.º 67/2007
alargou o âmbito de aplicação subjetiva a pessoas coletivas de direito pri-
vado que atuem no exercício de prerrogativas de poderes públicos ou se
rejam por normas e princípios de direito administrativo (art. 1.º, n.º 5). Por
Estado e demais pessoas coletivas públicas entende-se o Estado, no âmbito
das atividades administrativa, jurisdicional e legislativa, assim como as Regiões
Autónomas no âmbito das atividades legislativa e administrativa e ainda, no âm-
bito da atividade administrativa, as entidades administrativas independentes, os
institutos públicos, as entidades públicas empresariais ou empresas locais, as au-
tarquias locais (municípios e freguesias), os consórcios administrativos e as ordens

71 JOÃO CAUPERS, Notas sobre a nova lei da responsabilidade civil do Estado, p. 6, dispo-

nível online em www.fd.unl.pt/docentes_docs/ma/jc_ma_5351.doc.


72 Neste sentido, CARLA AMADO GOMES e MIGUEL ASSIS RAIMUNDO, «Topi-

camente – e a quatro mãos… – sobre o novo regime da responsabilidade civil extracontratual


do estado e demais entidades públicas», in Revista de Direito Público e Regulação, n.º 5, março,
ed. Centro de Estudos de Direito Público e Regulação (Cedipre), FDUC, 2010, p. 5. Como nos
explicitam os autores, a Lei n.º 67/2007 vem uniformizar o regime de responsabilidade por
atos de gestão pública, sem prejudicar regimes especiais (como, por exemplo, o regime jurí-
dico da responsabilidade por danos ambientais, continuando a sediar no CC [art. 501.º] as
normas aplicáveis aos casos de responsabilidade por atos de gestão privada).

-184-
Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

profissionais73. A lei versa igualmente sobre a responsabilidade dos titulares


do órgãos, funcionários e agentes públicos, trabalhadores, titulares dos ór-
gãos sociais e representantes legais ou auxiliares.
O art. 3.º da Lei n.º 67/2007 dá preferência à reparação in natura, pro-
cedendo-se à indemnização em dinheiro nas situações de impossibilidade
ou excessiva onerosidade da reconstituição natural. Incluem-se na repara-
ção os danos patrimoniais e não patrimoniais, os danos já produzidos e os
danos futuros. Subsiste em matéria de direito à indemnização e de direito
de regresso a remissão para o art. 498.º do Código Civil, sendo o prazo
prescricional de três anos (art. 5.º). Nos termos do art. 2.º, são danos espe-
ciais aqueles que atingem um grupo determinado de pessoas e danos anor-
mais aqueles que, excedendo os custos inerentes à vida em sociedade, se-
jam suficientemente graves para justificar a tutela do direito.

3.2. Responsabilidade civil por danos decorrentes da função administrativa

3.2.1. Responsabilidade por factos ilícitos

A responsabilidade civil administrativa é, na formulação de MAR-


CELO REBELO DE SOUSA e ANDRÉ SALGADO DE MATOS, «o conjun-
to de circunstâncias da qual emerge, para a administração e para os seus
titulares de órgãos, funcionários ou agentes, a obrigação de indemnização
dos prejuízos causados a outrem no exercício da atividade administra-
tiva»74. Trata-se de responsabilidade subjetiva ou culposa e encontra-se re-
gulada nos arts. 7.º a 10.º da Lei n.º 67/2007, sendo neles definidos o âmbito
e os pressupostos desta responsabilidade, assim como os critérios da sua
repartição.
A responsabilização pela função administrativa assenta funda-
mentalmente nos pressupostos da ilicitude e da culpa.

73 FILIPA CALVÃO, «Âmbito de Aplicação da Lei 67/2007», in Comentário ao Regime


da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas, Lisboa: Universi-
dade Católica Editora, 2013, p. 65.
74 MARCELO REBELO DE SOUSA e ANDRÉ SALGADO DE MATOS, Responsabili-

dade Civil Administrativa, Direito Administrativo Geral, Tomo III, Dom Quixote, 1.ª ed., 2010,
p. 11.

-185-
Parte IV – A Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado

A ilicitude, consagrada no art. 9.º, abrange tanto a ilicitude objetiva


(ações ou omissões violadoras de disposições ou princípios constitucio-
nais, legais ou regulamentares ou que infrinjam regras de ordem técnica
ou deveres objetivos de cuidado) como a ilicitude subjetiva (ofensa de di-
reitos ou interesses legalmente protegidos)75. Na senda de MARCELLO
CAETANO, dir-se-á que a ilicitude objetiva, por sua vez, abarca tanto a
ilegalidade administrativa como toda a atuação material desconforme ao
direito76. Quanto à ilicitude subjetiva, esta diz respeito tanto à violação de
normas substantivas como normas procedimentais. Uma outra modali-
dade de ilicitude é a que se encontra no n.º 2 do art. 9.º, referente ao funcio-
namento anormal do serviço. Segundo MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, «o
traço distintivo do regime da responsabilidade por funcionamento anor-
mal do serviço reside, assim, no facto de assentar num juízo de censura
que não se reporta à conduta de um agente determinado da Administra-
ção, mas diretamente ao próprio funcionamento dos serviços» 77. Assim,
enquanto o n.º 1 do art. 9.º se refere a uma ilicitude da conduta, o n.º 2
aponta para uma ilicitude do resultado.
Quanto às causas de exclusão da ilicitude, apontam-se o cumpri-
mento de deveres, o estado de necessidade, o consentimento do lesado e a
legítima defesa.
Quanto à culpa, seguimos o pensamento de FREITAS DO AMA-
RAL, definindo-a como a «violação ilícita dos direitos ou interesses de ou-
trem ligada a uma certa pessoa, de maneira que possa afirmar-se, não só
que foi obra sua, mas também que ela podia e devia, nas circunstâncias, ter
agido diversamente. A culpa implica, assim, uma ideia de censura ou re-

75 CARLOS ALBERTO FERNANDES CADILHA, O novo regime de responsabilidade ci-

vil do Estado e demais entidades públicas pelo exercício da função administrativa, p. 7, disponível
online em https://www.csm.org.pt/ficheiros/eventos/encontroscsm/06eacsm/6encontrocsm_
carloscadilha2.pdf.
76 MARCELLO CAETANO, Manual de Direito Administrativo, 9.ª ed., Coimbra: Alme-

dina, II vol., p. 1225.


77 MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, in Comentário ao Regime da Responsabilidade Civil

Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas, Lisboa: Universidade Católica Editora,


2013, p. 250.

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Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

provação da conduta do agente» 78. Segundo a própria disposição do art.


10.º, n.º 1, a culpa é apreciada pela diligência e aptidão que seja razoável
exigir, em função das circunstâncias de cada caso, de um titular de órgão,
funcionário ou agente zeloso e cumpridor. Parece, pois, que o legislador
abandonou o critério do “bom pai de família”, passando a perfilhar o cri-
tério, tomando de empréstimo a expressão de COLAÇO ANTUNES, do
«funcionário médio-ideal e exemplar». Para além disso, o novo regime ju-
rídico introduziu no art. 10.º um aspeto inovador, através de presunção de
culpa leve para a prática de atos jurídico ilícitos (n.º 2) e para o incumpri-
mento de deveres de vigilância (n.º 3). A presunção legal de culpa implica,
por conseguinte, a inversão do ónus da prova, fazendo pender sobre a Ad-
ministração o encargo de demonstrar que agiu sem culpa.
A culpa reveste duas modalidades: culpa leve e culpa grave. Há
culpa grave quando o autor da conduta ilícita tenha atuado com dolo ou
diligência e zelo manifestamente inferiores àqueles a que se encontrava
obrigado em razão do cargo (art. 8.º, n.º 1). Por seu turno, o legislador não
avança com o conceito de culpa leve, havendo por isso necessidade de a
delimitar. Socorrendo-nos da definição de culpa supra apresentada e da
própria interpretação do art. 7.º, n.º 1, parece-nos que a culpa leve corres-
ponde também a uma conduta ilícita do autor, que atuou com diligência e
zelo inferiores aos que se encontrava obrigado em razão do cargo, resi-
dindo a diferença tão-só na ausência do advérbio “manifestamente”. En-
quanto a culpa grave tem de refletir uma diligência e zelo manifestamente
inferiores, a culpa leve não reclama tal característica 79.
A responsabilidade do Estado e demais entidades públicas pode ser
exclusiva ou solidária. É exclusiva quando o autor da conduta ilícita tenha
atuado, no exercício da função administrativa e por causa desta, com culpa
leve (art. 7.º, n.º 1) ou quando os dados sejam imputáveis ao funcionamento
anormal do serviço, mas não resultem de um comportamento concreta-
mente determinado ou não seja possível apurar a respetiva autoria (art. 7.º,

78 DIOGO FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, Vol. II, 2.ª ed.,

Coimbra: Almedina, 2011, p. 722.


79 Neste sentido, JOÃO CAUPERS, Notas sobre a nova lei da responsabilidade civil do

Estado, cit., p. 9.

-187-
Parte IV – A Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado

n.º 3). Contrariamente, quando o autor da conduta ilícita tenha atuado com
dolo ou culpa grave, no exercício das suas funções e por causa desse exer-
cício, o Estado e as demais pessoas coletivas públicas são solidariamente
responsáveis com os respetivos titulares de órgãos, funcionários e agentes
(art. 8.º, n.º 2)80.
Como último apontamento neste âmbito, o Estado e as demais pes-
soas coletivas públicas gozam de direito de regresso relativo às quantias
que deveriam ter sido pagas pelos titulares dos órgãos, agentes ou funcio-
nários, sendo esse direito de regresso obrigatório e, como tal, um poder
vinculado (arts. 6.º, n.º 1, e 8.º, n.º 3)81.

3.2.2. Responsabilidade pelo risco

Consagra o art. 11.º, n.º 1, do Regime da Responsabilidade Civil Ex-


tracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas que «O Estado e as
demais pessoas coletivas de direito público respondem pelos danos decor-
rentes de atividades, coisas ou serviços administrativos especialmente pe-
rigosos»82. Estamos perante uma responsabilidade historicamente desig-

80 Alguma doutrina criticava a formulação do art. 7.º, n.º 1, por, também para os casos

de culpa leve, por força do art. 22.º da Constituição, não consagrar a solução da responsabili-
dade solidária do ente público com o trabalhador responsável, no plano das relações externas.
Neste sentido, CARLA AMADO GOMES, A responsabilidade civil extracontratual da administra-
ção por facto ilícito, Reflexões avulsas sobre o novo regime da Lei 67/2007, de 31 de Dezembro, texto
policopiado, p. 86, disponível online em http://julgar.pt/wp-content/uploads/2016/05/07-
Carla-Amado-Gomes-Responsabilidade-civil-adm-facto-ilicito.pdf.
Com outra visão, DIOGO FREITAS DO AMARAL, «Problemas Gerais – Conferência
sobre “A Responsabilidade civil extracontratual do Estado”», in Responsabilidade Civil Extra-
contratual do Estado – trabalhos preparatórios da reforma, 2002, pp. 44 e ss. Para o autor, a ideia
de responsabilidade exclusiva do Estado em caso de culpa leve e de responsabilidade solidá-
ria propriamente dita para os casos de dolo ou culpa grave resulta não do art. 22.º da Consti-
tuição de República Portuguesa, mas antes do art. 271.º da CRP.
81 Parece ter-se aqui seguido a linha de pensamento de FAUSTO DE QUADROS. Nos

trabalhos preparatórios da Reforma, o autor defendeu a conversão do direito de regresso em


dever de regresso, sempre que o agente tenha agido com dolo ou culpa grave. Só não deveria
haver lugar ao dever de regresso da administração nos casos de ausência de culpa ou culpa
leve da parte dos funcionários, agentes ou titulares dos órgãos administrativos.
82 A este propósito, CARLOS ALBERTO FERNANDES CADILHA, Regime da Respon-

sabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas Anotado, Coimbra: Coimbra
Editora, 2008, pp. 174 e 175. O autor refere algumas inovações relativamente ao art. 8.º do DL

-188-
Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

nada por objetiva, tratando-se, no essencial, de «um instrumento de repar-


tição de encargos, que associa o prejuízo causado pela conduta aos benefí-
cios decorrentes desta»83. Ainda que se entenda que o art. 22.º da Consti-
tuição não abranja a responsabilidade objetiva (pelo risco e por atos líci-
tos), considera-se, no entanto, que este tipo de responsabilidade resulta do
princípio geral de responsabilidade do Estado em sentido amplo, anco-
rado no princípio da igualdade emanado do art. 13.º da Constituição84.
Este tipo de responsabilidade apresenta algumas particularidades,
desde logo, porque, tal como postulado na segunda parte do art. 11.º da
Lei n.º 67/2007, a responsabilidade pelo risco pode ser reduzida ou excluí-
da se houver culpa do lesado ou de um terceiro. Ademais, a responsabili-
dade pelo risco não pode ser imputada aos titulares de órgãos ou agentes
de pessoas coletivas públicas, mas apenas às próprias pessoas coletivas
públicas. Tal singularidade justifica-se porque o risco «é criado em benefí-
cio exclusivo do interesse público prosseguido [pelas pessoas coletivas públi-
cas] e não dos interesses particulares [dos seus titulares de órgãos ou agen-
tes]»85.
Quanto aos pressupostos da responsabilidade, facto, dano e nexo de
causalidade, deve primeiramente firmar-se que não pode ser colhido como
facto que despoleta a responsabilidade um qualquer facto, antes um facto
resultante de uma atividade, de uma coisa ou do funcionamento de um
serviço administrativo especialmente perigoso, sendo que essa especial pe-
rigosidade deve ser aferida casuisticamente, tendo em conta tanto as cir-
cunstâncias em que se produziu o facto como o funcionamento em concre-

48051, em especial, o facto de deixar de estabelecer qualquer limitação indemnizatória por


referência à existência de prejuízos especiais e anormais e, embora mantendo a possibilidade
de redução ou exclusão da indemnização com base em concorrência de culpa de terceiro,
passar a prever para esse caso a responsabilidade solidária do ente público, ainda que com
direito de regresso. Para além disso, o legislador substitui o advérbio “excecionalmente” por
“especialmente” para se referir à perigosidade da atividade, coisa ou serviço que fundamenta
a indemnização.
83 JOÃO CAUPERS, Notas sobre a nova lei da responsabilidade civil do Estado, cit., p. 10.

84 J.J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa

anotada, cit., p. 338.


85 MARCELO REBELO DE SOUSA e ANDRÉ SALGADO DE MATOS, Responsabili-

dade Civil Administrativa, cit., p. 38.

-189-
Parte IV – A Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado

to dos próprios serviços ou da atividade. Seguimos com o apontamento de


que o regime jurídico, ao contrário do que ocorre no direito privado, não
fixou um limite quantitativo à ressarcibilidade dos danos. Os danos pro-
duzidos têm de ser decorrentes das atividades, coisas ou serviços adminis-
trativos especialmente perigosos e, como tal, não pode de igual modo ser
considerado um qualquer dano. Consagra-se, assim, a teoria da causalida-
de adequada, sendo «necessário que o facto tenha sido, em concreto, condi-
ção sine qua non do dano, mas além disso constitua uma condição normal-
mente idónea para produzir o resultado danoso, tomando em considera-
ção as circunstâncias do caso concreto» 86.
Por último, o regime jurídico consagra três causas de exclusão ou
redução da responsabilidade administrativa pelo risco, consagradas no
art. 11.º, n.º 1, in fine, e no n.º 2 do mesmo artigo, cumuláveis entre si. Uma
primeira hipótese configura-se em casos de força maior, em que o dano é
produzido por uma circunstância inevitável, como, por exemplo, uma ca-
tástrofe natural, ou ainda, como entende a doutrina, em casos fortuitos,
isto é, circunstâncias imprevisíveis ou inevitáveis 87.
A segunda hipótese passa pela concorrência de culpa do lesado,
sendo esta aferida nos mesmos termos da responsabilidade por factos ilí-
citos. Estamos perante não uma concorrência de culpas, mas uma concor-
rência entre culpa e risco88. A última hipótese é a da responsabilidade de
terceiro, estando dependente da aplicação dos pressupostos da responsa-
bilidade civil. O terceiro pode ser uma pessoa coletiva administrativa ou
um particular. Havendo coexistência entre a responsabilidade pelo risco e
a responsabilidade de terceiro, a lei consagra que o Estado e as demais pes-
soas coletivas de direito público «respondem solidariamente com o tercei-
ro, sem prejuízo do direito de regresso». Ora, não sendo o terceiro em cau-
sa nem titular nem agente da pessoa coletiva responsável pelo risco, «no
exercício das suas funções e por causa dela», parece-nos incompreensível

86 CARLOS ALBERTO FERNANDES CADILHA, Regime da Responsabilidade Civil Ex-


tracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas Anotado, cit., p. 179.
87 MARCELO REBELO DE SOUSA e ANDRÉ SALGADO DE MATOS, Responsabili-

dade Civil Administrativa, cit., p. 40.


88 Neste sentido, CARLOS ALBERTO FERNANDES CADILHA, Regime da Responsa-

bilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas Anotado, cit., p. 180.

-190-
Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

que a lei estabeleça este regime, claramente em prejuízo da administração


e do erário público89.

4. Responsabilidade civil por danos decorrentes da função juris-


dicional

A responsabilidade civil por danos decorrentes da função jurisdicio-


nal encontra fundamento constitucional no art. 22.º da CRP. Sendo uma
das principais inovações da Lei n.º 67/2007, o legislador preocupou-se, por
um lado, com a salvaguarda da credibilidade da função jurisdicional e, por
outro lado, com a preservação do caso julgado.
O art. 12.º da Lei n.º 67/2007 estabelece um regime geral, aplicando
à responsabilidade por danos ilicitamente causados pela administração
da justiça o regime da responsabilidade por factos ilícitos cometidos no
exercício da função administrativa. Trata-se, no essencial, dos casos de
violação do direito a uma decisão judicial em prazo razoável que, diga-se
de passagem, é bastante característico do funcionamento do nosso apare-
lho judiciário. A expressão administração da justiça deve ser entendida em
sentido amplo, englobando quer os atos materialmente administrativos
dos serviços da justiça quer os atos jurisdicionais propriamente ditos 90.

89 Crítica apontada por MARCELO REBELO DE SOUSA e ANDRÉ SALGADO DE

MATOS, Responsabilidade Civil Administrativa, cit., p. 41.


90 CARLOS ALBERTO FERNANDES CADILHA, Regime da Responsabilidade Civil Ex-

tracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas Anotado, cit., p. 196.


Em oposição ao sentido amplo da expressão, vide GUILHERME FONSECA e MI-
GUEL BETTENCOURT DA CÂMARA, A Responsabilidade Civil dos Poderes Públicos, cit., p. 49.
Estes autores consideram que do art. 12.º da Lei 67/2007 se pode extrair uma cláusula geral
de remissão no domínio da responsabilidade por factos ilícitos e a que se pode apontar a
crítica de demasiada amplitude, cabendo no ilícito um sem número de situações, ligadas à
Administração da Justiça, com intervenientes vários; juízes, magistrados do Ministério Pú-
blico e funcionários da justiça. Da nossa parte, não nos parece razoável que a administração
da justiça não dissesse respeito tanto aos atos jurisdicionais em sentido próprio como aos atos
materialmente administrativos dos serviços da justiça, isto é, que dissesse respeito a quais-
quer operadores judiciários, quando não integrem a reserva de juiz. Para além disso, feita tal
remissão, implica que se tenha em conta os pressupostos materiais da responsabilidade civil
e as disposições da repartição da responsabilidade, não deixando, no entanto, de se ressalvar
os regimes especiais.

-191-
Parte IV – A Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado

Quanto ao erro judiciário, preceitua o art. 13.º que «sem prejuízo do


regime especial aplicável aos casos de sentença penal condenatória injusta
e de privação injustificada da liberdade91, o Estado é civilmente responsá-
vel pelos danos decorrentes de decisões jurisdicionais manifestamente in-
constitucionais ou ilegais ou injustificadas por erro grosseiro na apreciação
dos respeitos pressupostos de facto». Um primeiro apontamento prende-
-se com o facto de, em homenagem ao princípio constitucional da irrespon-
sabilidade dos juízes pelas decisões tomadas no exercício da função juris-
dicional, somente o Estado poder ser responsabilizado por uma má deci-
são judicial causadora de danos para os envolvidos no processo. Seguida-
mente, importa referir que «o domínio do erro judiciário abrange, pois,
quer a atividade de interpretação e aplicação do direito quer a atividade
de aquisição e valoração dos fundamentos fácticos da decisão» 92. O mesmo
é dizer que o erro judiciário pode ser um erro de direito ou um erro de
facto.
O erro de direito, enquanto fundamento de responsabilidade civil,
trata-se de uma decisão proferida contra lei expressa, tratando-se de um
comportamento jurídico suscetível de gerar um dever de indemnizar 93. O
pressuposto material da responsabilidade civil pelo exercício da função ju-
risdicional, baseada em erro judiciário, é o caráter ilegal ou inconstitucio-
nal da interpretação ou da aplicação do direito que foi feita pela decisão
judicial. Verifica-se o caráter ilícito da decisão quando a solução jurídica

91 No caso de condenação penal injusta, o reconhecimento do respetivo direito a in-

demnização, previsto no art. 29.º, n.º 6, da CRP, implica a instauração de um processo prévio
de revisão da sentença condenatória, nos termos do CPP, no que se refere aos fundamentos e
requisitos de admissibilidade.
92 LUÍS FÁBRICA, «Responsabilidade por erro judiciário», in Comentário ao Regime da

Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas, Lisboa: Universi-


dade Católica Editora, 2013, p. 340. Neste mesmo sentido, GUILHERME FONSECA e MI-
GUEL BETTENCOURT DA CÂMARA, A Responsabilidade Civil dos Poderes Públicos, cit., p. 45.
Os autores aclaram que se consagra a responsabilidade jurisdicional «quando haja erro gros-
seiro na apreciação dos pressupostos de facto da sentença ou erro qualificado na apreciação
do direito, que consiste no erro evidente ou manifesto, o que é inovatório».
93 CARLOS ALBERTO FERNANDES CADILHA, Regime da Responsabilidade Civil Ex-

tracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas Anotado, cit., p. 210. O autor aponta como
erros de direitos o erro de qualificação jurídica, o erro de subsunção jurídica, o erro de esta-
tuição ou, ainda, a aplicação de uma norma que devesse ser tida como inconstitucional.

-192-
Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

que ela representa é desconforme ao direito. No entanto, a responsabili-


dade por erro de direito não se esgota naquilo que acabámos de referir,
isto porque, para haver lugar à responsabilidade, é necessário que a deci-
são jurisdicional seja manifestamente ilegal ou inconstitucional. A fórmula
legislativa da ilegalidade ou inconstitucionalidade manifesta apela à evi-
dência do erro de direito, em virtude de a solução adotada extravasar, sem
margem para dúvida, os limites marcados pelas diversas técnicas de inter-
pretação e aplicação do direito94.
O erro na apreciação dos pressupostos de facto, isto é, o erro de
facto, só despoleta responsabilidade civil do Estado caso seja grosseiro.
Efetivamente, o legislador não concretizou o que se entende por erro gros-
seiro nem tão-pouco elencou hipóteses que configurassem uma tal situa-
ção. Socorrendo-nos dos ensinamentos da doutrina, parece-nos que confi-
guram erro grosseiro as decisões que, em face das circunstâncias do caso
concreto, configuram uma desconformidade clara e inaceitável entre a rea-
lidade fática e a apreciação feita pelo juiz, à luz dos padrões da prudência,
diligência e razoabilidade, o mesmo é dizer, de um juiz médio-ideal95.
Uma breve anotação suscitada pelo n.º 2 do art. 13.º, referente à exi-
gência de prévia revogação da decisão danosa. A substância desta dispo-
sição é a de que a demonstração do requisito da ilicitude é feita não pela
ação de responsabilidade civil, mas no próprio processo judicial em que
foi cometido o erro e através dos meios impugnatórios admissíveis 96.
O art. 14.º da Lei n.º 67/2007 estabelece a responsabilidade dos ma-
gistrados. Em ordem ao princípio constitucional da irresponsabilidade dos
juízes pelas suas decisões judiciais, os magistrados judiciais e os magistra-
dos do Ministério Público não podem ser diretamente responsabilizados
pelos danos decorrentes dos atos que pratiquem no exercício das respeti-
vas funções, nem mesmo quando tenham agido com dolo ou culpa grave.
Nesta última hipótese, o Estado goza de direito de regresso contra eles,
sendo que esse direito de regresso, contrariamente ao que sucede com os

94 LUÍS FÁBRICA, «Responsabilidade por erro judiciário», cit., p. 354.


95 Ibidem, p. 355.
96 CARLOS ALBERTO FERNANDES CADILHA, Regime da Responsabilidade Civil Ex-

tracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas Anotado, cit., p. 217.

-193-
Parte IV – A Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado

restantes funcionários públicos, tem o seu exercício condicionado pela


vontade do órgão competente para o exercício do poder disciplinar ou por
iniciativa do Ministro da Justiça (cfr. art. 14.º Lei n.º 67/2007).
Sobre o novo regime da responsabilidade civil pela função jurisdi-
cional, importa também dar nota de algumas vozes avessas, de que o pen-
samento de MANUEL CARDOSO DA COSTA é claro exemplo: «Os recur-
sos servem para corrigir decisões, e as decisões erradas corrigem-se, não
se indemnizam. (…) O instrumento primacial para reagir contra o erro ju-
diciário é o recurso, não a responsabilidade civil do Estado»97. Rebatendo,
com LUÍS FÁBRICA, «o juiz do processo indemnizatório não vai rever a
sentença para a confirmar ou revogar, mas apreciá-la sob uma perspetiva
específica – a sua relevância como fonte de um dever de indemnizar – e
com um objetivo específico – reconhecer o correspondente direito indem-
nizatório»98.
Para concluir este ponto, ainda que a Lei n.º 67/2007 tenha sido ino-
vadora no âmbito da função jurisdicional, não podemos deixar de concor-
dar com LUÍS GUILHERME CATARINO quando diz que o instituto da
responsabilidade civil do Estado pela função jurisdicional é «o último re-
duto do princípio da irresponsabilidade da Administração», muito por
conta da «confusão entre a interdependência do Tribunal e a irresponsabi-
lidade do Estado»99.

97 J. MANUEL CARDOSO DA COSTA, «Sobre o novo regime de responsabilidade do


Estado por atos da função judicial», in RLJ, Ano 138.º, n.º 3954, 2009, p. 163.
98 LUÍS FÁBRICA, «Responsabilidade por erro judiciário», cit., p. 357.

99 LUÍS GUILHERME CATARINO, «Responsabilidade Civil Extracontratual do Es-

tado por Facto Jurisdicional», in Separata do II Suplemento do Dicionário Jurídico da Administra-


ção Pública, Coimbra: Coimbra Editora, 2001, p. 482.

-194-
Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

5. Responsabilidade civil por danos decorrentes da função polí-


tico-legislativa

A responsabilidade civil do Estado por danos decorrentes da função


político-legislativa é uma das inovações da Lei n.º 67/2007 e, ao mesmo
tempo, uma das mais problemáticas, não estivéssemos a falar, como bem
sintetiza ROGÉRIO SOARES, não de um poder, mas do poder100.
Para MARIA DA GLÓRIA GARCIA, o art. 22.º da Constituição fun-
ciona por si só para legitimar a responsabilidade civil extracontratual do
Estado no exercício da função político-legislativa101. Já para MARIA LÚ-
CIA AMARAL, principal voz divergente nesta matéria, a responsabilidade
civil do Estado no exercício da função político-legislativa por atos lícitos
mais não seria do que uma forma de fiscalização da constitucionalidade,
rejeitando a criação de uma ação autónoma de responsabilização do Esta-
do por prejuízos causados por factos ilícitos do legislador 102. Ao invés, ex-
põe RUI MEDEIROS, «se o legislador constitucional tivesse pretendido
restringir a obrigação de indemnizar aos danos causados pela atividade
administrativa, deveria ter optado por afirmar o princípio da responsabi-
lidade do Estado no Título IX da Parte III da Constituição, respeitante à
Administração Pública»103. Continua o autor, «A obrigação de indemnizar
por ilícito legislativo é, precisamente, um dos outros efeitos da inconstitu-
cionalidade: não se trata já de impedir que a norma inconstitucional pro-
duza os efeitos jurídicos que lhe corresponderiam, mas de eliminar todos
os danos que resultaram da vigência da lei na ordem jurídica» 104.

100 ROGÉRIO SOARES, Sentido e Limites da Função legislativa no Estado Contemporâneo,

A Feitura das Leis, Vol. II, 1986, p. 434.


101 MARIA DA GLÓRIA DIAS GARCIA, A Responsabilidade Civil do Estado e Demais

Pessoas Coletivas Públicas, cit., p. 62.


102 Sobre a argumentação da autora e para maiores desenvolvimentos, vide MARIA

LÚCIA AMARAL, Responsabilidade do Estado e dever de indemnizar do legislador, Coimbra, 1998,


e ainda «Responsabilidade do Estado-legislador: Reflexões em torno de uma reforma», in
THEMIS – Revista da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, Ano II, n.º 4, 2001.
103 RUI MEDEIROS, Ensaio Sobre a Responsabilidade Civil do Estado por Atos Legislativos,

cit., p. 86.
104 Ibidem, p. 131.

-195-
Parte IV – A Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado

Contornada a controvérsia inicial, prosseguimos para a análise do


regime da responsabilidade civil por danos decorrentes do exercício da
função político-legislativa, isto é, do art. 15.º da Lei n.º 67/2007.
Preceitua o n.º 1 do art. 15.º que «O Estado e as regiões autónomas
são civilmente responsáveis pelos danos anormais causados aos direitos
ou interesses legalmente protegidos dos cidadãos por atos que, no exercí-
cio da função político-legislativa, pratiquem, em desconformidade com a
Constituição, o direito internacional, o direito comunitário ou ato legisla-
tivo de valor reforçado»105. Em primeiro lugar, só há responsabilidade por
danos anormais que, segundo o art. 2.º da Lei n.º 67/2007, são aqueles da-
nos que ultrapassam os custos normais da vida em sociedade106. Nesta
sede, são civilmente responsabilizados o Estado, que tem a Assembleia da
República e o Governo por órgãos legislativos, e as Regiões Autónomas,
cujos órgãos legislativos são os respetivos Parlamentos Regionais 107. Trata-
-se, portanto, de uma responsabilidade por ação108. A ilicitude configura-
-se, pois, como um comportamento antijurídico, podendo, de igual modo,
resultar da omissão de providências legislativas necessárias para tornar
exequíveis normas constitucionais (n.º 3), sendo que, neste caso, depende
da prévia verificação de inconstitucionalidade pelo Tribunal Constitucio-
nal (n.º 5).
Sobre o n.º 2 do artigo em análise, seguimos a tão clara exposição de
CARLOS CADILHA: «não sendo exigível, como pressuposto processual
da ação de indemnização, a prévia declaração de inconstitucionalidade ou
de ilegalidade da norma, por parte do Tribunal Constitucional, a decisão
que venha a ser adotada pelo juiz do processo quanto à existência ou não
existência de ilícito legislativo, é suscetível de recurso de constitucionali-
dade ou de recurso de ilegalidade, consoante os casos, permitindo-se que

105 Sobre a violação do direito comunitário, destacam-se os contributos dos Acórdãos

Francovich (processos apensos C-6/90 e C-9/90) e Brasserie du Pêcheur/ Factortame (processos


apensos C-46/93 e C-48/93), disponíveis online em http://eur-lex.europa.eu.
106 Não deixa de ser curioso que, apesar de se inserir no Capítulo I – disposições ge-

rais, esta definição apenas se aplique à responsabilidade pela função político-legislativa (art.
15.º, n.os 1 e 3) e à indemnização pelo sacrifício (art. 16.º).
107 Cfr. arts. 161.º, 164.º, 165.º, 182.º, 198.º, n.º 1, alíneas a) e b), e 225.º a 234.º da CRP.

108 Ressalve-se que a invalidade ou ineficácia da lei não tem necessariamente de ser

consequência da própria violação dos direitos ou interesses protegidos dos particulares.

-196-
Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

o tribunal competente para proferir a decisão definitiva em questões jurí-


dico-constitucionais se pronuncie, confirmando ou revogando o juízo que
tenha sido formulado na ordem jurisdicional administrativa» 109.
Nos termos do n.º 4, a existência e a extensão da responsabilidade
são determinadas tendo em conta as circunstâncias do caso concreto, o
grau de clareza e precisão da norma violada, o tipo de inconstitucionalida-
de e a adoção ou omissão de diligências suscetíveis de evitar a situação de
ilicitude. Deste modo, afastam-se assim, em bom rigor e larga medida, os
princípios gerais referentes à ilicitude e à culpa, consagrados nos arts. 9.º e
10.º.
Quanto ao n.º 5, «do que se trata agora, portanto, é de procurar con-
dicionar qualquer sentença favorável dos tribunais comuns a uma decisão
do órgão máximo de fiscalização da constitucionalidade (…)»110. Ora, fazer
depender a responsabilidade por omissão da declaração de inconstitucio-
nalidade por omissão é a mesma coisa que fazer depender a responsabili-
dade por ação da declaração de inconstitucionalidade da norma prejudi-
cial com força obrigatória geral e, seguindo este raciocínio, compreende-se
aqueles que reclamam a inconstitucionalidade deste n.º 5 do art. 15.º da Lei
n.º 67/2007111.
O n.º 6 reflete um dos principais problemas da responsabilidade
pelo exercício da função legislativa, que se prende com o número poten-
cialmente elevado de lesados. Nestes casos, as regras gerais da obrigação
de indemnizar do art. 3.º poriam em causa a sustentabilidade financeira do
Estado. Atento a essa realidade, o legislador veio admitir a fixação equita-
tiva da indemnização em montante inferior ao que corresponderia à repa-
ração integral dos danos causados, desde que exista um número conside-
rável de lesados, esteja em causa uma razão de interesse público de exce-
cional relevo e se justifique a limitação no âmbito da obrigação de indem-

109 CARLOS ALBERTO FERNANDES CADILHA, Regime da Responsabilidade Civil Ex-

tracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas Anotado, cit., p. 275.


110 JORGE PEREIRA DA SILVA, Responsabilidade Civil por danos decorrentes do exercício

da função político-legislativa, cit., p. 416.


111 Defendendo esta posição, ibidem, p. 417, e RUI MEDEIROS, «Anotação ao artigo

283.º», in JORGE MIRANDA e RUI MEDEIROS, Constituição Portuguesa Anotada, III, 2007, pp.
868 e 869.

-197-
Parte IV – A Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado

nizar. Não deixam estes pressupostos, no nosso entender, de constituir


conceitos indeterminados.

6. Indemnização pelo sacrifício

A indemnização pelo sacrifício, regulada no preceito derradeiro da


Lei n.º 67/2007, corresponde àquilo que a doutrina designava por respon-
sabilidade civil extracontratual do Estado no exercício da função político-
-legislativa por factos lícitos, pressupondo «o sacrifício de direitos patri-
moniais realizados por lei»112, devendo-se o seu tratamento autónomo pelo
legislador «ao facto de se ter pretendido estabelecer, como requisito da in-
demnização, a existência de quaisquer razões de interesse público, inde-
pendentemente de a ação causadora do dano se inserir na função adminis-
trativa ou em qualquer das restantes funções do Estado» 113. Caso paradig-
mático entre a necessária prossecução do interesse público e o inevitável
sacrifício de bens particulares é o da expropriação por utilidade pública.
No âmbito do domínio público, quadra-se, por exemplo, com a extinção
antecipada da concessão de utilização privativa.
No que se refere ao fundamento constitucional, a doutrina tem sido
convergente em afastar o art. 22.º da Constituição114, fundamentando este
instituto, à semelhança do que acontece em França e como aliás tem vindo
a ser seguido pela jurisprudência, no princípio da igualdade dos cidadãos
perante os encargos públicos, isto porque, como defendido por ALVES
CORREIA, «se um direito tem de ser sacrificado ao interesse público, tor-
na-se necessário que esse sacrifício não fique iniquamente repartido pela

112 RUI MEDEIROS, Ensaio Sobre a Responsabilidade Civil do Estado por Atos Legislativos,

Almedina, 1992, p. 274


113 CARLOS ALBERTO FERNANDES CADILHA, Novo regime de responsabilidade civil

do Estado e demais entidades públicas pelo exercício da função administrativa, cit., p. 11.
114 Neste sentido e por todos, J.J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Consti-

tuição da República Portuguesa anotada, cit., p. 431. Os autores entendem que o art. 22.º não in-
clui a responsabilidade por facto lícito, não querendo tal significar que a Constituição a deixe
de tutelar, visto prever outros institutos compensatórios que densificam o direito geral à re-
paração dos danos, como, por exemplo, o art. 83.º, referente à nacionalização e apropriações
públicas.

-198-
Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

coletividade»115. Parece-nos que esta lógica de justiça distributiva é, sem


dúvida, o fundamento para a indemnização pelo sacrifício.
Consagra o art. 16.º da Lei n.º 67/2007 que o Estado e demais pessoas
coletivas públicas constituem-se na obrigação de indemnizar os particula-
res, quando imponham a estes, por razões de interesse público, encargos
ou lhes causem danos. Ressalve-se que os danos indemnizáveis têm de ser
especiais e anormais116. Já no que diz respeito ao cálculo da indemnização,
a segunda parte do artigo postula que se deve atender ao grau de afetação
do conteúdo substancial do direito ou interesse violado ou sacrificado. A
propósito do conteúdo da indemnização pelo sacrifício, é possível destrin-
çar opiniões divergentes na doutrina. ALVES CORREIA entende que
desde que se tratem de especiais e anormais, devem ser abrangidos na in-
demnização pelo sacrifício outros danos que não aqueles exclusivamente
relacionados com o grau de afetação do conteúdo substancial do direito ou
interesse violado ou sacrificado, incluindo, assim, os lucros cessantes, os
danos futuros previsíveis e os danos não patrimoniais ou morais 117. Em
outro sentido, VIEIRA DE ANDRADE entende a indemnização pelo sacri-
fício como uma mera compensação equitativa, isto é, uma indemnização
limitada que não visa a reparação integral dos danos 118. Uma outra visão,
que da nossa parte pensamos que fará mais sentido, é a de CARLA

115 FERNANDO ALVES CORREIA, Manual de Direito do Urbanismo, Vol. I, 4.ª ed.,
Coimbra: Almedina, 2008, pp. 730-731.
116 Por oposição aos danos comuns ou normais, isto é, respetivamente, àqueles danos

que recaiam genericamente sobre todos os cidadãos ou categorias amplas e abstratas de pes-
soas e àqueles danos que se possam considerar habituais e aceitáveis dentro do mínimo de
risco que é próprio da vida em sociedade. Seguidos a classificação avançada em DIOGO
FREITAS DO AMARAL, Curso de Direito Administrativo, cit., p. 747. Assim sendo, o facto vo-
luntário que despoleta a indemnização pelo sacrifício tanto pode ser um ato administrativo
como um ato material, mas não um regulamento por não cumprir a característica da especia-
lidade do dano.
117 Neste sentido, vide FERNANDO ALVES CORREIA, «A Indemnização pelo sacrifí-

cio: contributo para o esclarecimento do seu sentido e alcance», in Revista de Legislação e Juris-
prudência, Ano 140.º, n.º 3966, 2011, pp. 154 e 155.
118 JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, «A responsabilidade indemnizatória por

poderes públicos em 3D: Estado de Direito, Estado Fiscal, Estado Social», in Revista de Legis-
lação e Jurisprudência, Ano 140.º (2011), n.º 3969, pp. 354 a 356.

-199-
Parte IV – A Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado

AMADO GOMES119. Para a autora, o particular não deve aproveitar-se de


uma expropriação em nome do interesse coletivo para obter uma vanta-
gem patrimonial superior àquela que tinha no momento em que se operou
a expropriação. Quer a autora com isto dizer que a «compensação será do
dano emergente mas não forçosamente de todo o dano emergente». Pen-
samos, neste segmento, que o legislador não pretendeu que fossem aplica-
dos os critérios do art. 494.º do Código Civil, antes recorrendo a um critério
que reflita o sentido e o alcance do instituto da indemnização pelo sacrifí-
cio, através de uma análise do caso concreto. Para além disso, se assim não
fosse, não vislumbramos possibilidades de o Estado suportar financeira-
mente todas as indemnizações a que se encontra obrigado.
Direito ou interesse violado diz respeito aos danos que são ilícitos,
mas que, em virtude de uma causa de justificação, se tornam lícitos, en-
quanto direito ou interesse sacrificado reporta para a compensação de um
sacrifício. Por sua vez, em ordem ao mesmo princípio que fundamenta este
instituto, o dano deve ser integralmente reparado, não sendo admitida a
diminuição do montante indemnizatório.
Sobre a questão da indemnizabilidade do sacrifício de direitos pa-
trimoniais privados diremos ainda, a título breve de apontamento final,
que os princípios do Estado de direito, da igualdade e da proporcionali-
dade impõe um dever de indemnizar não apenas as supressões do direito
de propriedade como também determinadas restrições aos usos e faculda-
des nele incluídas. É aliás este o entendimento do Tribunal Constitucional.
Vide o seu Acórdão n.º 341/86: «mesmo naqueles casos em que a Adminis-
tração impõe aos particulares certos vínculos que, sem subtraírem o bem
objeto do vínculo, lhe diminuem, contudo, a utilitas rei, se deverá configu-
rar o direito a uma indemnização, ao menos quando verificados certos
pressupostos».

119CARLA AMADO GOMES, «A compensação administrativa pelo sacrifício: refle-


xões breves e notas de jurisprudência», in Revista do Ministério Público, n.º 129 (janeiro-março),
Lisboa, 2012, pp. 9-47.

-200-
Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

PARTE IV – A RESPONSABILIDADE CIVIL


EXTRACONTRATUAL DO ESTADO

A (DES)CONSIDERAÇÃO DO DIREITO EUROPEU:


A METODOLOGIA DE SUPERAÇÃO COMO UM WORK IN PROGRESS

AULA N.º 10

Sumário: 1. O Direito português e a (des)consideração do Direito da União


Europeia: a jurisprudência do TJUE; 2. O direito português e a (des)consideração
do direito emergente do Conselho da Europa: a jurisprudência do TEDH.

BIBLIOGRAFIA DE BASE

FONSECA, Isabel Celeste M., Processo Temporalmente Justo e Urgência, Coim-


bra: Coimbra Editora, 2009
RANGEL MESQUITA, Maria José, «Irresponsabilidade do Estado-juiz por
incumprimento do Direito da União Europeia: um acórdão sem futuro», in Cader-
nos de Justiça Administrativa, n.º 79, Braga: CEJUR, 2010, pp. 29 e ss.
_____, O Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais
Entidades Públicas e o Direito da União Europeia, Coimbra: Almedina, 2009

-201-
Parte IV – A Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado

1. O Direito português e a (des)consideração do Direito da União


Europeia: a jurisprudência do TJUE

O RRcivilEEE não teve em conta (ou teve pouco em conta) o pro-


blema da responsabilidade do Estado por danos decorrentes do incumpri-
mento do Direito da União Europeia.
De facto, devê-lo-ia ter tido em conta no art. 9.º, n.º 2, a propósito da
responsabilidade pelo exercício da função administrativa, e no art. 13.º, no
quadro do regime da responsabilidade por facto imputável ao Estado-juiz,
devendo mencionar o erro judiciário por erro na interpretação ou aplicação
do Direito da União Europeia, sendo certo que, ao estabelecer o pressupos-
to da prévia revogação da decisão danosa pela jurisdição competente, o
regime da responsabilidade do Estado-juiz por erro na interpretação e apli-
cação do Direito da União Europeia não vai ao encontro da jurisprudência
do TJ120.
Teve-o em conta apenas na disciplina da responsabilidade por facto
imputável ao Estado-legislador, nos termos do art. 15.º, e na responsabili-
dade pelo exercício da função administrativa por atos ilegais praticados
pelas entidades adjudicantes no domínio de quatro contratos públicos (nos
termos do art. 7.º, n.º 2, fruto da primeira alteração ao RRcivilEEE) 121.

120 Sobre o tema, vd. MARIA JOSÉ RANGEL MESQUITA, «Irresponsabilidade do Es-

tado-juiz por incumprimento do Direito da União Europeia: um acórdão sem futuro», in CJA,
n.º 79, 2010, pp. 29 e ss., e «O novo regime da responsabilidade do Estado por danos decor-
rentes do exercício da função jurisdicional», in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Martim
de Albuquerque, II, Lisboa, 2010, pp. 415 e ss.; CARLA AMADO GOMES, «ABC da (ir)respon-
sabilidade dos juízes no quadro da lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro», in SI, tomo LIX, 2010,
n.º 322, pp. 261 e ss.; ALESSANDRA SILVEIRA, «A Responsabilidade do Estado-juiz por vio-
lação do Direito da União Europeia à luz da Jurisprudência do Tribunal de Justiça», in Scientia
Iuridica, Braga, n.º 315, abril/junho 2008, pp. 427 e ss.; «Da (ir)responsabilidade do Estado-juiz
por violação do Direito da União Europeia – Anotação ao Acórdão do STJ de 3 de Dezembro
de 2009», in Scientia Iuridica, Braga, n.º 320, outubro/dezembro 2009, pp. 773 e ss.
121 A este propósito, vd. MARIA JOSÉ RANGEL DE MESQUITA, «Irresponsabilidade

do Estado-juiz por incumprimento do Direito da União Europeia: um acórdão sem futuro»,


cit.; SOPHIE PERES FERNANDEZ, «O Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do
Estado – perspetivas nacional e europeia» (o texto teve por base uma intervenção na Funda-
ção Engenheiro António de Almeida, Porto, 29 de outubro de 2010) e teve por título: «O juiz
nacional da responsabilidade do legislador: uma leitura do art. 15.º da Lei n.º 67/2007 à luz
do Direito da União Europeia».

-202-
Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

Enfim, como não equacionou nem teve em conta o acervo comuni-


tário em matéria de responsabilidade do Estado por incumprimento do Di-
reito da União Europeia, em especial os requisitos ou pressupostos dessa
responsabilidade sucessivamente traçados pelo TJ, cumpre agora chamar
essa jurisprudência no momento da interpretação e aplicação da lei. E as-
sim é, sobretudo quando do ponto de vista substantivo, o RRcivilEEE es-
tabelece condições mais restritivas, não se compadecendo com os requisi-
tos de responsabilidade ditados pela jurisprudência, podendo «tornar im-
possível ou excessivamente difícil a efetivação do direito à reparação do
dano» – o que não pode acontecer do ponto de vista do TJ. Por exemplo, a
propósito da responsabilidade por facto imputável ao Estado-legislador, o
regime não acolhe a noção de «violação suficientemente caracterizada»
para as situações de responsabilidade pelo exercício da função legislativa
para os casos em que detenha uma margem de apreciação, nem faz apelo
a qualquer indicação do TJ para apreciar «a violação grave e manifesta»,
sendo certo que o mesmo problema se coloca em relação ao dano que nos
termos do Direito Europeu não tem de ser anormal, parecendo a opção do
legislador ser excessiva.
Neste sentido, melhor andou o legislador no art. 7.º, n.º 2, que remete
em bloco a apreciação dos pressupostos de responsabilidade do Estado-
-Administração para o Direito comunitário.
Em suma: o legislador foi, pois, «mau aluno na disciplina de Direi-
to da União Europeia». Ignorou o princípio europeu da responsabilidade
do Estado por incumprimento do Direito da União Europeia; esqueceu que
o carácter comunitário do princípio condiciona o regime jurídico nacional
da responsabilidade civil extracontratual do Estado, tanto do ponto de
vista substantivo como do ponto de vista processual: não teve em conta
que não só o RRcivilEEE não pode contrariar o disposto pela ordem jurí-
dica comunitária, como impõe o princípio do primado, como os Estados-
-Membros não podem, designadamente, por via processual, tornar impos-
sível ou excessivamente difícil a efetivação desse direito.
Teria sido importante equacionar os princípios da equivalência e
da efetividade mínima, que densificam aquele outro: é «no âmbito do
direito nacional da responsabilidade que incumbe ao Estado reparar as

-203-
Parte IV – A Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado

consequências do prejuízo causado»; «é à ordem jurídica interna de cada


Estado-Membro que cabe designar os órgãos jurisdicionais competentes e
regular as modalidades processuais das ações judiciais destinadas a asse-
gurar a proteção plena dos direitos que os particulares retiram do direito
comunitário», sendo certo que as condições fixadas pela legislação nacio-
nal não pode acolher soluções que tornem praticamente impossível ou ex-
cessivamente difícil a obtenção da reparação122.
Não se lembrou, como afirma MARIA JOSÉ RANGEL DE MESQUI-
TA, que este princípio comunitário da responsabilidade do Estado por in-
cumprimento condiciona o Direito nacional da responsabilidade em parte
e a contrario, isto é, é aceitável à luz do Direito comunitário que a legislação
nacional possa prever certos pressupostos, de matriz substantiva ou pro-
cessual, desde que respeite certos limites, designadamente o princípio da
equivalência e o da efetividade mínima, pelo que, como se afirma no acór-
dão TRAGHETTI, «estes critérios não podem, em nenhum caso, impor exi-
gências mais restritivas do que a decorrente da violação manifesta do di-
reito aplicável»123.
Que papel tem o juiz?
Para passar a ser «bom aluno na disciplina de Direito da União Eu-
ropeia»124 (como já tem demonstrado ser o Tribunal da Relação do Porto e
o Tribunal da Relação de Guimarães), o juiz nacional tem, pois, dentro do
espartilho da lei (já tantas vezes criticado), chamar e aplicar o princípio
europeu da responsabilidade do Estado por incumprimento do Direito
da União Europeia: princípio fundamental da ordem jurídica europeia que
assegura a tutela dos particulares e responsabilização do Estado por facto
imputável à função jurisdicional, administrativa e político-legislativa. E
tem de conhecer e estar a par da jurisprudência do TJUE que sobre ele

122 Sobre o tema, vd. MARIA JOSÉ RANGEL DE MESQUITA, «Responsabilidade do

Estado por incumprimento do Direito da União Europeia: um princípio com futuro», in CJA,
n.º 60, 2006, pp. 52 e ss.
123 Seguimos MARIA JOSÉ RANGEL DE MESQUITA, «Responsabilidade do Estado

por incumprimento do Direito da União Europeia: um princípio com futuro», cit., p. 64.
124 Expressão de MARIA JOSÉ RANGEL DE MESQUITA, «Irresponsabilidade do Es-

tado-juiz por incumprimento do Direito da União Europeia: um acórdão sem futuro»», cit.,
p. 39.

-204-
Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

versa. Aliás, o princípio e os respetivos requisitos são da lavra do TJUE e


nascem com a jurisprudência FRANCOVIHC (acórdão de 19.11.1991),
sendo objeto de desenvolvimento em acórdãos posteriores.
E, como se sabe, segundo a jurisprudência do TJUE, existirá um
direito à reparação dos danos resultantes do incumprimento estadual
quando:
i) A regra de Direito comunitário violada tenha por objeto conferir
direitos aos particulares;
ii) A violação seja suficientemente caracterizada;
iii) Exista um nexo de causalidade direto entre a violação (mani-
festa) e o prejuízo sofrido pelos particulares.

No que respeita ao pressuposto da «violação suficientemente carac-


terizada», há abundante jurisprudência do TJUE que pode auxiliar o juiz
nacional a precisar o que deve entender-se por violação manifesta e grave.
Eis, pois, o tal apertado diálogo entre jurisdições como work in progress.
Destarte, é importante ter bem presente a jurisprudência (KÖBLER/
/2003): as três condições estipuladas pelo TJUE acima referidas são «neces-
sárias e suficientes para instituir em favor dos particulares um direito a
obter reparação sem, no entanto, impedir que a responsabilidade do Esta-
do possa ser efetivada em condições menos restritivas com base no direito
nacional».
Ainda, a jurisprudência HAIM/2000: «a obrigação de reparar os pre-
juízos causados aos particulares não pode ficar subordinada a uma condi-
ção extraída do conceito de culpa que vai além da violação suficientemente
caracterizada» (acórdão HAIM, de 04.07.2000, proc n.º C-424/97).
Importa, pois, conhecer a jurisprudência do TJUE para conhecer os
elementos indicativos para a caracterização de uma violação do Direito da
UE como sendo grave e manifesta. E tal exercício impõe-se, sublinhe-se,
em relação à responsabilidade decorrente de violação do Direito da
União Europeia, quer esta seja imputável ao Estado-juiz, ao Estado legis-
lador ou ao Estado-Administração, isto é, independentemente do órgão

-205-
Parte IV – A Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado

do Estado-Membro cuja ação ou omissão tenha dado origem ao incum-


primento125.
Não obstante a cartilha legal prevista para cada um dos regimes de
responsabilidade dos órgãos do Estado, há que ter em conta o acervo co-
munitário, bem como a jurisprudência do TJUE que se coloca em moldes
idênticos em relação ao incumprimento imputável ao Estado-Administra-
ção, ao Estado-legislador e ao Estado-juiz, imputando o incumprimento ao
Estado de forma objetiva e independentemente do exercício da função que
esteja em causa, não variando, portanto, os pressupostos da responsabili-
dade de raiz comunitária.
Particular destaque merece a consideração da culpa, pois, ainda
que não sendo o legislador nacional impedido de fixar condições ou pres-
supostos de responsabilidade, como já afirmámos, estes não podem ir além
dos fixados pelo Direito da UE, pelo que o dever do Estado de reparar os
prejuízos causados aos particulares não pode ficar subordinado a uma con-
dição extraída do conceito de culpa, que vai além da violação suficiente-
mente caracterizada, sendo assim defensável que a culpa se presume a par-
tir da ilicitude inerente à violação suficientemente caracterizada, não de-
vendo constituir um requisito autónomo ou complementar concebido em
termos tais que dificulte ou impeça a efetivação do direito à indemnização
para além daquilo que o Direito comunitário dispõe.
É ainda necessário sublinhar que a consideração do Direito Europeu
e a consideração da posição da jurisprudência do TJUE tem acentuado o
carácter objetivo e a função exclusivamente reparadora da responsabili-
dade pelo exercício da função administrativa. Como se sabe, o legislador
distingue nos arts. 7.º e 8.º a responsabilidade exclusiva do Estado e demais
pessoas coletivas públicas da responsabilidade solidária (em caso de dolo
ou culpa grave), sendo certo que a primeira tem carácter objetivo e tem

125 De facto, se o caso FRANCOVICH respeitou à responsabilidade de um Estado pelo

incumprimento decorrente de uma omissão do Estado-legislador, a verdade é que há juris-


prudência do TJUE que versa sobre a responsabilidade dos Estados por incumprimento im-
putável às demais funções. Por exemplo, enquanto as demais têm já orientação jurispruden-
cial consolidada, a problemática da responsabilidade imputável ao exercício da função juris-
dicional é mais recente, sendo já apreciada em diversos acórdãos, tais como o KÖBLER/2003,
a partir de 2003.

-206-
Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

função exclusivamente reparadora. E a segunda tem carácter subjetivo e


função simultaneamente punitiva do lesante e garantística dos lesados.
O facto de o legislador ter incluído o n.º 2 no art. 7.º para proceder à
correta transposição da Diretiva Recursos (depois de já ter sido condenado
duas vezes) significa isso mesmo (opção pelo primeiro dos regimes e res-
petivas finalidades)126. Assim, nos casos de reparação dos operadores eco-
nómicos nos domínios da formação de (certos) contratos públicos, houve
necessidade de afastar o regime anterior, já que o Estado Português fora
condenado duas vezes por o seu regime nacional de responsabilidade civil
contrariar a Diretiva Recursos127, exigindo a verificação (e prova pelo le-
sado) do pressuposto da culpa.
De resto, a Comissão acentuou que o anterior regime da responsa-
bilidade civil não era de modo algum eficaz, pois:
i) Subordinava a atribuição de uma indemnização à produção de
prova, por parte dos lesados, de que os atos ilegais das entidades adminis-
trativas eram cometidos com culpa ou dolo;
ii) Exigia a prova daquele pressuposto e esta é tida como extrema-
mente difícil ou mesmo impossível, uma vez que, em geral não se pode
apurar de quem foi a culpa, de modo que, na maioria dos casos, a pessoa
lesada não conseguirá obter a indemnização a que tem direito;
iii) A dificuldade em fazer a prova conduz a que, na prática, as ações
intentadas pelas pessoas lesadas com vista a obterem uma indemnização
sejam lentas e provavelmente ineficazes128.

126 A propósito do direito comunitário, vd. PEDRO MACHETE, «A responsabilidade

da Administração por facto ilícito e as novas regras de repartição do ónus da prova», in CJA,
n.º 69, 2008, pp. 30 e ss.
127 A Diretiva Recursos (n.º 89/665/CE, entretanto alterada pela 2007/66/CE do Parla-

mento Europeu e do Conselho, de 11.12.2007) vem impor ─ no art. 2.º, n.º 1, alínea c) ─ a
obrigação de os Estados-Membros garantirem, no âmbito dos procedimentos de adjudicação
de contratos públicos, as medidas destinadas a tornar eficazes os recursos interpostos de de-
cisões das entidades adjudicantes, incluindo a previsão de poderes que permitam conceder
indemnizações às pessoas lesadas nesses procedimentos adjudicatórios.
128 Assim, o TJUE, por Acórdão de 14.10.2004 (proc. n.º C-275/03) condenou Portugal

por infração ao direito comunitário precisamente por o Decreto-Lei n.º 48 051, de 21 de no-
vembro de 1967, prever a culpa como pressuposto autónomo de responsabilidade civil da
administração por facto ilícito. Com efeito, de acordo com o entendimento dos juízes do Lu-
xemburgo, ainda que a legislação portuguesa consagrasse a possibilidade de os lesados

-207-
Parte IV – A Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado

Esta é, pois, a razão pela qual nasceu o n.º 2 do art. 7.º do atual
RRcivilEEE. De facto, tendo em conta estes acontecimentos, foi aprovada
a primeira alteração ao RRcivilEEE, tendo-se procurado alinhar o regime
português, no âmbito dos contratos públicos inseridos no escopo das Di-
retivas Recursos, com o entendimento da Comissão Europeia nesta maté-
ria, adotando-se uma redação idêntica à consagrada na alínea c) do n.º 1
do art. 2.º daquela Diretiva.
Neste sentido, preceitua o art. 7.º, n.º 2, do RRcivilEEE que é conce-
dida indemnização às pessoas lesadas por violação de norma ocorrida no
âmbito de procedimento de formação dos contratos referidos no art. 100.º
do CPTA, de acordo com os requisitos de responsabilidade civil extracon-
tratual definidos pelo Direito comunitário. Trata-se, pois, de uma respon-
sabilização sem culpa.

2. O Direito português e a (des)consideração do direito emergente


do Conselho da Europa: a jurisprudência do TEDH 129

É um facto que RRcivilEEE não acolhe a jurisprudência do TEDH no


que respeita à responsabilidade do Estado-juiz pelos danos decorrentes do
mau funcionamento do serviço de justiça, especialmente pela violação do
direito à emissão de sentença em prazo razoável (art. 12.º). E assim é por-
que, quanto à respetiva disciplina, o legislador manda aplicar-lhe o regime

obterem indemnizações no caso de violação do direito comunitário em matéria de contratos


públicos (ou das normas nacionais que o transpõe), a verdade é que, segundo o TJUE, não se
podia, todavia, considerar que a mesma disciplina constituía um sistema de proteção jurisdi-
cional adequado, pois, na verdade, exigia a prova da existência de culpa ou dolo por parte de
agentes de administração. Assim, concluía o TJUE, os concorrentes lesados por uma decisão
ilegal da entidade adjudicante corriam o risco de ser privados do direito de exigir o paga-
mento de uma indemnização em virtude do dano que lhes fora causado com essa decisão
ilegal ou, pelo menos, de a obter tardiamente, por não conseguir fazer a prova da existência
de dolo ou culpa. Aliás, porque o Estado português mantinha em vigor o diploma, a Comis-
são, iniciou, em 2006, um processo por incumprimento do mencionado acórdão, tendo sido
decidido contra Portugal, por acórdão do TJ de 10.01.2008 (proc. n.º C-70/06), já que o Estado
português não tinha revogado o anterior diploma e a Proposta de Lei n.º 56/X, entretanto
enviada à Comissão, não procedia a uma correta transposição da Diretiva Recursos.
129 Sobre o tema, vd. o nosso, «A responsabilidade do Estado pela violação do prazo

razoável: quo vadis?», in RMP, n.º 115, 2008, pp. 5 e ss.

-208-
Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

da responsabilidade civil por facto imputável à função administrativa – o


que é, no mínimo, insuficiente.
O que pode fazer-se para ultrapassar as ausências de adequado tra-
tamento?
A solução, que é, aliás, inevitável, passa pela metodologia dialo-
gante que se deverá estabelecer entre juiz nacional e juiz europeu.
Destarte, a solução que já vem sendo dada a certas situações não
previstas na lei tem resultado precisamente da tomada em consideração
da jurisprudência do Tribunal de Estrasburgo 130, especialmente daquela
que versa sobre os pressupostos de responsabilização, mormente do pres-
suposto da culpa, ou da sua dispensa, daquela que versa sobre a identifi-
cação do dano moral como dano in re ipsa indemnizável131 e daquela que
incide sobre a questão do cálculo do quantum debeatur.
Assim, em especial, a propósito da responsabilidade civil por danos
decorrentes do exercício da função jurisdicional, e no que respeita aos da-
nos ilicitamente causados pela administração da justiça, designadamente
por violação do direito a decisão judicial em prazo razoável, sobretudo
para demonstrar quão necessário é seguir a metodologia dialogante entre
a jurisdição nacional e a jurisdição europeia, especialmente se pensarmos
na futura adesão da União à CEDH, é incontestável também que o juiz
europeu vai fixando novos graus de exigência, que os juízes nacionais têm
de ter em conta, em cada momento, mesmo quando pensam que são sufi-
cientes os passos já dados132.

130 Vd., a este propósito, o aresto do STA de 09.10.2008, proc. n.º 319/08.
131 Foi determinante, neste caso, ter em conta os acórdãos proferidos pelo TEDH no
caso Riccardi Pizzati c. Itália, de 29.03.2006, processo n.º 62361/00, e Apicella c. Itália, de
29.03.2006, processo n.º 64890/01.
132 Em França, como se apontou, foram dados alguns passos. Com efeito, o Conseil

d’Etat, em 28.06.2002, através do processo Garde des Sceaux c. Magiera, atribuiu a um sexage-
nário uma indemnização de 30 000 Francos, por julgar o Estado «responsável pelo funciona-
mento defeituoso do serviço público da justiça». E, pela primeira vez, o juiz administrativo,
aplicando o conjunto de critérios/parâmetros europeus de avaliação da razoabilidade da du-
ração do processo, considerou ter ocorrido a violação do direito à justiça em prazo razoável,
uma vez que o processo administrativo em causa, não obstante não apresentar especial com-
plexidade, havia demorado mais de sete anos a definir-se, tendo causado danos morais (an-
gústias, depressão e ansiedade) ao particular de avançada idade. Sobre este assunto, vd. o

-209-
Parte IV – A Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado

O legislador italiano procedeu a uma «verdadeira clonagem» 133 do


regime jurídico europeu de proteção do direito ao prazo razoável: a Lei
Pinto. Tal mecanismo foi inicialmente considerado como remédio efetivo,
à luz do art. 13.º da CEDH134. Por isso, mal se adivinhava que uma diferente
apreciação viria a caminho, volvidos sete anos sobre a sua entrada em vi-
gor, pois, o Tribunal de Estrasburgo, ao avaliar da eficácia desta figura re-
paradora, em nove processos que lhe foram subsidiariamente submetidos,
constatou que haveria falta de adequação da reparação atribuída às víti-
mas pelo juiz italiano – e o mecanismo revelou-se pouco efetivo, devido à
sua aplicação desconforme com a orientação europeia. Dispõe a Lei Pinto
o seguinte: «quem sofreu um dano patrimonial ou não patrimonial decor-
rente da violação da Convenção para a proteção dos direitos do homem e
das liberdades fundamentais, na perspetiva da violação do prazo razoável
previsto no art. 6.º, parágrafo 1, da Convenção, tem direito a uma repara-
ção equitativa».
Quanto aos pressupostos de atribuição às vítimas de uma reparação,
o diploma fixa três, a saber:
a) A duração não razoável do processo (ou «irragionevole durata del
processo»);
b) O dano;
c) E a existência de um nexo de causalidade entre o primeiro e o se-
gundo requisitos, sendo certo que a apreciação das condições de atribuição
da equitativa reparação deverá ser feita nos ternos das orientações consti-
tucionais e convencionais, pelo que, segundo a doutrina, esse exame deve
inspirar-se na metodologia de medição da duração razoável do processo,
que é da lavra da jurisprudência da Corte de Estrasburgo – chamando os
quatro critérios de medição da razoabilidade da duração do processo.

acórdão do Conseil d’État, de 28.06.2002, Garde des Sceaux c. Magiera, publ. DA-EJC, 2002, pp.
27 e ss.
133 PAULO OTERO, Legalidade e Administração Pública. O sentido da vinculação adminis-

trativa à juridicidade, Coimbra, 2003, pp. 484 e 485.


134 Neste sentido, F. PETROLATI, I tempi del processo e l’equa riparazione..., cit., p. 9.

-210-
Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

Pois bem, tudo parecia estar suficientemente acautelado pelo legis-


lador nacional. Só faltava, contudo, que o juiz italiano aplicasse a norma
de acordo com a jurisprudência do TEDH, especialmente que fixasse quan-
tias razoáveis de indemnização135.
Aliás, como já se indicou nas considerações iniciais, a Lei Pinto foi
examinada pelos juízes de Estrasburgo, em nove processos, e em todos eles
se concluiu, por unanimidade, que existira violação do art. 6.º, § 1, da
CEDH136.
De um modo geral, os requerentes vieram alegar que não obtiveram
uma reparação adequada (ou suficiente) dos respetivos prejuízos, não obs-
tante as autoridades italianas terem reconhecido a violação dos respetivos
direitos à emissão de sentença em prazo razoável.
O TEDH afirmou inclusive que deriva do princípio da subsidiarie-
dade o dever de o juiz nacional aplicar e interpretar, dentro do possível, o
direito interno conforme a Convenção e considerou inadmissível que os
particulares tenham de aguardar muito tempo para obter a reparação dos
danos, sendo certo que, em alguns casos, a obrigação de lançarem mão de
um novo processo para obterem efetivamente a quantia devida não se
mostra adequado, porquanto pode dissuadi-los dessa empreitada (Apicella
c. Itália, de 29.03.2006).
E quanto ao valor das indemnizações fixado pela jurisdição italiana,
a Cour sublinhou que o montante de tais reparações é largamente inferior

135 E a primeira decisão que reconheceu essa falha data de 27.03.2003, no processo

Scordino c. Itália. Neste processo, o particular veio alegar ter recebido uma quantia irrisória a
título de reparação por danos morais: € 600/por ano de excessiva demora, quando o TEDH,
em casos semelhantes, fixava um valor variável entre € 5 000 e € 7 000, por cada ano de atraso.
E o Tribunal de Estrasburgo, não obstante ter reconhecido alguma margem de apreciação ao
foro interno, afirmou claramente que o «juiz nacional deve conformar a sua jurisprudência
com a da Corte (europeia) também no que respeita à quantificação do dano e à fixação da
reparação».
136 Esses nove processos que foram apreciados pelo TEDH e onde se conclui por una-

nimidade que tinha existido violação do prazo razoável e do art. 6, § 1, CEDH são: Scordino c.
Itália; Riccardi Pizzati c. Itália, processo n.º 62361/00; Musci c. Itália, processo n.º 64699/01; Giu-
seppe Mostacciuolo c. Itália; Cocchiarella c. Itália; Apicella c. Itália, processo n.º 64890/01; Ernestina
Zullo c. Itália, processo n.º 64897/01, e Giuseppina et Orestina Procaccini c. Itália, processo n.º
65075/01.

-211-
Parte IV – A Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado

àquele que é fixado normalmente, em casos deste tipo, pelo TEDH137. As-
sim, não obstante no que respeita ao dano moral não ser possível quantifi-
car exatamente o valor da indemnização, já que se deve tratar de uma ava-
liação por equidade, e não obstante o juiz nacional ter uma certa autono-
mia que deve ser preservada, ainda assim, o Tribunal de Estrasburgo jul-
gou que as quantias eram insuficientes e por isso aceitou considerar que as
vítimas ainda não estavam razoavelmente ressarcidas pelo dano decor-
rente da violação do respetivo direito à emissão de sentença em prazo ra-
zoável138.
E, nesta sequência, houve alteração na jurisprudência italiana. E é
exatamente no contexto do dano e do cálculo da reparação que surge essa
novidade: assim, quanto ao dano, importa dizer que este pressuposto pas-
sou a incluir tanto o dano patrimonial como o moral, sendo certo que se
passou a entender que ao requerente deveria caber a prova em juízo do
primeiro tipo de dano, provando também que o dano emergente e o lucro

137 Além disso, o TEDH aproveitou para expressar o seu descontentamento pelo facto

de em Itália continuar a existir demora excessiva dos processos, sendo certo que a Lei Pinto
não foi capaz de impedir que os requerentes fossem ainda considerados como vítimas do
mau funcionamento dos serviços de justiça italianos — constituindo um facto agravante. En-
fim, em todos estes nove processos, o TEDH considerou ter existido demora excessiva do
processo e violação do art. 6, § 1, da CEDH. Sobre este tema, vd. A. VERDIN, «Droit à un
procès équitable», in L’Europe des Libertés, n.º 20, Université Robert Schuman.
138 Sobre este assunto, é interessante verificar uma tabela elaborada por MAURIZIO

DE STEFANO, onde se compara o valor das quantias fixadas pelas entidades jurisdicionais
italianas para compensar o dano moral decorrente da violação do prazo razoável e o valor
das quantias indemnizatórias do prejuízo não patrimonial fixado pelo TEDH. Assim, por
exemplo, no caso Riccardi Pizzati c. Itália, que obteve sentença emitida pelo TEDH em
10.11.2004, o valor atribuído no foro doméstico, de acordo com a Lei Pinto, correspondeu a
€ 5 000 e no foro europeu foi fixado um suplemento de € 20 000, sendo certo que, no total, o
requerente, cujo processo demorou nos tribunais italianos 26 anos, foi indemnizado no valor
de € 25 200, por danos não patrimoniais. E, aplicando a mesma lógica, no caso Apicella c. Itália,
o dano não patrimonial foi indemnizado pelos tribunais italianos com a quantia € 2 500, apli-
cando a Lei Pinto, e o TEDH fixou um suplemento no montante de € 7 300, sendo certo que,
no total, o particular, cujo processo demorou 12 anos, foi indemnizado pelos danos morais,
no valor de € 9 800. E por aí diante: no caso Giuseppe Mostacciuolo: € 2 000 nos Tribunais italia-
nos => suplemento europeu € 10 900 => total € 11 900 por danos morais, decorrentes de 15
anos de demora; Ernestina Zullo: € 1 200 nos tribunais italianos => suplemento europeu
€ 5 164 => total de € 6 364 por danos morais decorrentes de 9 anos que demorou o processo;
Concchiarella: € 1 000, nos tribunais italianos => suplemento europeu € 4 600 => total € 5 600
por danos morais decorrentes de 8 anos de demora processual.

-212-
Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

cessante a ressarcir é consequência imediata e direta da duração excessiva


do processo.
Já quanto ao dano não patrimonial, a jurisprudência sofreu uma no-
tável evolução, fazendo um pontual chamamento da jurisprudência do
TEDH, tendo passado a afirmar que o dano não patrimonial não necessita
de alguma sustentação probatória, não existindo o ónus de o requerente o
provar, e, existindo, pelo contrário, o dever de o juiz o conhecer e o consi-
derar, sempre que não existam circunstâncias particulares, que façam ex-
cluir a sua existência139.
A propósito da quantificação do dano, aquela jurisdição também ex-
plicou que os critérios seguidos pelo Tribunal de Estrasburgo na avaliação
do dano não patrimonial «se impõem» ao juiz nacional italiano, devendo
ser seguido o mesmo esquema ou grelha de valoração tendo em conta os
casos da espécie.
Voltando à realidade portuguesa 140. É um facto que, mesmo sem a
adoção do RRcivilEE, a jurisprudência nacional estaria pronta para asse-
gurar com suficiente dose de certeza jurídica a proteção do direito à deci-
são judicial em prazo razoável e é certo que, mesmo sem o novo RRcivilEE,
havia uma solução de reparação «efetivável»141 – tanto mais que o novo re-
gime não foi além de acolher a jurisprudência dos tribunais administrati-
vos. É certo que se podia duvidar da justiça e da correção de aspetos dessa
solução – como, por exemplo, no que respeita ao pressuposto de ilicitude,
designadamente aos critérios de determinação da razoabilidade da dura-

139 Como refere F. PETROLATI, a Sezione Unite da Corte di Cassazione reconheceu que

o dano moral integra a consequência normal que, à luz do id quod plerumque accidit, resulta da
violação da duração razoável do processo e, como tal, a sua existência deve presumir-se, na
falta de situações concretas que levem a excluí-lo. Ora, se houve um dia em que a Corte di
Cassazione considerou que o dano moral não poderia considerar-se como «dano-evento», ne-
cessariamente ínsito no dano decorrente da violação do direito a emissão de sentença em
prazo razoável (id est: dano in re ipsa) e se exigia a prova de que a duração excessiva do pro-
cesso havia causado um «dano psíquico seguramente sofrido em consequência da demora»,
essa corrente foi substituída por uma que pressupõe a aplicação de Lei Pinto em conformi-
dade com a jurisprudência europeia e o princípio da subsidiariedade.
140 Sobre o tema, vd. ISABEL FONSECA, Processo temporalmente justo e urgência, Coim-

bra, 2009.
141 Neste sentido, LUÍS GUILHERME CATARINO, «Responsabilidade Civil Extra-

contratual do Estado por Facto Jurisdicional», cit., pp. 282 e 283.

-213-
Parte IV – A Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado

ção do processo, ao pressuposto da culpa (sendo pensado sobretudo em


função da responsabilidade por atos e omissões ilícitas decorrentes do
exercício da função administrativa) e o cálculo de indemnização do dano.
Lamentavelmente, como o legislador não foi mais longe do que pro-
ceder à receção da solução criada pela jurisprudência, hoje subsistem as
mesmas incertezas.
Vejamos. O atual regime (RRcivilEE) vem prever a responsabilidade
por danos decorrentes de atos jurisdicionais e manda aplicar à reparação
dos danos causados pela administração da justiça (incluindo a violação do
prazo razoável) o regime da responsabilidade civil por factos ilícitos come-
tidos no exercício da função administrativa.
Parece assim ter-se mantido a lógica do projeto (na versão de 6 de
maio de 2003)142, de que existe uma similitude entre aquelas situações e as
que resultam da atividade do Estado-administrador, devendo aplicar-se o
mesmo regime de responsabilização (art. 12.º, parte final)143. Ora, em nosso
entender, este é um grande equívoco. Assim, o Estado deve indemnizar os
danos ilicitamente causados pela administração da justiça, incluindo, por-
tanto, o dano decorrente da violação do direito a uma decisão jurisdicional
em prazo razoável (art. 12.º), desde que preenchidos os pressupostos pre-
vistos nos arts. 7.º e ss.: facto danoso, ilicitude, culpa, dano e nexo de cau-
salidade entre facto e dano. E, por conseguinte, ex vi art. 12.º, parte final, o
RRcivilEE prevê a responsabilidade exclusiva do Estado-juiz para as situa-
ções em que o dano resulta de ações ou omissões ilícitas cometidas indivi-
dualmente com culpa leve ou decorra de «um funcionamento anormal do
serviço», sendo que nesta situação se englobam os casos em que o dano
não é devido a comportamento concreto de alguém e os casos de impossi-
bilidade de prova de autoria pessoal da ação ou omissão, de acordo com o
art. 7.º, n.º 1 e n.º 3. E, para lá deste quadro da responsabilidade exclusiva

142 Sobre esta temática, vd. intervenções durante o V Seminário de Justiça Adminis-

trativa, publicadas nos CJA, n.º 40, 2003, especialmente a intervenção de RUI MEDEIROS,
«Apreciação geral dos projectos…», cit., p. 14.
143 Neste sentido, quanto à analogia entre as duas situações, vd. DIOGO FREITAS DO

AMARAL, «Intervenção», cit., p. 51. Quanto ao novo regime de responsabilidade por danos
decorrentes da atividade administrativa, vd. MARCELO REBELO DE SOUSA e ANDRÉ SAL-
GADO DE MATOS, Responsabilidade civil administrativa, Direito administrativo geral, cit.

-214-
Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

e direta do Estado, de acordo com o RRcivilEE, existe responsabilidade so-


lidária do Estado com os sujeitos incluídos nos serviços da administração
da justiça nas situações em que o dano resulte de ações ou omissões ilícitas
cometidas com dolo ou culpa grave por parte destes, sendo certo que se
deve considerar que há culpa grave quando existe diligência e zelo mani-
festamente inferiores àqueles a que se encontravam obrigados em razão do
cargo (art. 8.º, n.º 1). De acordo com o RRcivilEE, sempre que o Estado sa-
tisfaça qualquer indemnização goza de direito de regresso, competindo
aos titulares de poderes de direção, de supervisão, de superintendência ou
de tutela adotar as providências necessárias à efetivação daquele direito 144.
Nos termos do art. 9.º, consideram-se ilícitas as ações ou omissões dos titu-
lares dos órgãos, funcionários e agentes (e magistrados) que integram os
serviços de administração de justiça que violem disposições ou princípios
constitucionais, legais ou regulamentares ou infrinjam regras de ordem
técnica ou deveres objetivos de cuidado e de que resulte a ofensa de direi-
tos ou interesses legalmente protegidos, sendo certo que haverá igualmen-
te ilicitude sempre que do funcionamento anormal do serviço resulte ofen-
sa de direitos ou interesses legalmente protegidos.
Pois bem, chegados aqui, e sendo claro que à luz do RRcivilEE ha-
verá ilicitude sempre que existir violação de disposições ou princípios
constitucionais, legais ou regulamentares e ofensa de direitos e interesses
legalmente protegidos decorrente do funcionamento anormal do serviço,
cumpre refletir sobre este pressuposto de responsabilização do Estado-
-juiz, quer este surja obrigado a título próprio ou solidário, e sobre o dano
e cálculo de indemnização, procurando interpretar os conceitos legais à luz
da jurisprudência constitucional e europeia. Desde logo, há uma imensa
dificuldade na concretização do pressuposto de ilicitude145.

144 Sobre este assunto, vd. especialmente JOÃO CAUPERS, «Responsabilidade pelo

exercício da função jurisdicional», in CJA, n.º 40, 2003, p. 47 e p. 49.


145 Como se deixou assinalado nas considerações introdutórias, tanto na perspetiva

do direito internacional, art. 6, § 1, da CEDH, como na das normas de natureza interna, so-
bretudo nos termos do art. 20.º, n.º 4, da CRP, o direito a decisão judicial em prazo razoável é
parte integrante do direito de acesso aos tribunais e à tutela jurisdicional efetiva. E é para tais
normativos que em última instância se deverá remeter a aferição da ilicitude. É certo que, a
propósito do direito a decisão judicial em prazo razoável, o TC ainda não precisou parâme-
tros de valoração do conceito que o legislador empregou para concretizar uma das dimensões

-215-
Parte IV – A Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado

do direito fundamental de acesso aos tribunais, não obstante não deixar de concluir que tal
direito deve servir de parâmetro de racionalidade no cumprimento da imposição legiferante
de criação de um sistema de proteção jurisdicional eficaz – uma vez que o legislador ordinário
está proibido de consagrar no processo atos e formalidades inúteis, principalmente tratando-
-se de processos que o legislador constituinte destaca como devendo ser obrigatoriamente
simplificados e prioritários – e deve servir como princípio orientador da atuação de qualquer
funcionário, agente ou juiz zeloso e cumpridor, principalmente quando este tem poderes sig-
nificativos no processo. Assim, um primeiro parâmetro de aferição da ilicitude deve buscar-
-se no acórdão n.º 248/02 (processo n.º 89/2002) do TC, já que este afirmou que «o princípio
da obtenção de uma decisão judicial em prazo razoável (…) aponta para que, quando os cida-
dãos recorram aos tribunais para defenderem os seus direitos ou interesses legalmente pro-
tegidos, venham a obter, da parte destes, uma decisão sem dilações indevidas», sendo certo
que haverá ilicitude se existirem dilações processuais, pois um parâmetro de medição aponta
para a consideração «dos prazos que se encontrarem estabelecidos para formação e proferi-
mento da decisão nas cabidas leis processuais». Afinal, trazendo à colação um acórdão mais
antigo (n.º 223/95, processo n.º 721/93), para o TC, o conceito de direito ao prazo razoável é
sinónimo de direito a «obter do órgão jurisdicional competente uma decisão dentro dos pra-
zos legais pré-estabelecidos». A ser assim, não se vê como certos juízes possam continuar a
sustentar que o não respeito pelos magistrados dos prazos estabelecidos na lei processual não
traduz por si só ilicitude. É certo que a valoração em concreto do pressuposto de ilicitude
pressupõe sempre o apelo ao conceito de razoabilidade da demora na administração da jus-
tiça, quer pela vinculação decorrente das normas constitucionais (mormente ex vi arts. 20.º,
n.º 1, n.º 4 e n.º 5, e 268.º, n.º 4 e n.º 5), quer das normas constantes da Convenção e da juris-
prudência do TEDH. E, é certo que, de um modo ou de outro, é necessário proceder à valo-
ração, em concreto, do conceito indeterminado de que o legislador se serve para garantir e
densificar esta dimensão do direito fundamental de acesso ao tribunal. Enfim, ainda que se
deva ter presente o respeito pelo jus dicere (autonomia e independência) dos juízes, não deixa
de ser questionável que a «vaga e tabeliónica invocação de acumulação de serviço», e a con-
sequente prática de atos fora do prazo legal, possa justificar no foro nacional a recorrente
invocação de funcionamento anormal do serviço, e a consequente responsabilidade direta e
exclusiva do Estado (e de todos nós, os contribuintes), ou a ausência por si só de ilicitude ou
violação do direito dos particulares – o que seria ainda pior. Bem como não pode aceitar-se a
afirmação jurisprudencial de que «os preceitos legais que fixam o prazo para os magistrados
praticarem, no processo, os respetivos atos, sejam eles pareceres, despachos ou sentenças,
[são] normas disciplinadoras da atividade processual (…)» e «consequentemente a sua não
observância pelos magistrados não constitui facto ilícito», tanto mais quanto, à luz das preo-
cupações de ordem político-legislativa da sociedade tardo-moderna, do legislador experi-
mental – que não deixa de ser aceite pelo Tribunal Constitucional (vd. acórdão do TC n.º
69/2008) – se criam processos especiais, nos quais as fases e os prazos são tipicamente previs-
tos e se dá atenção à duração do processo em função de certos valores, incluindo o tipo de
situação jurídica que é carente de tutela. Na verdade, não compreendemos como pode consi-
derar-se que, especialmente em relação a tais processos, o desrespeito pelos prazos proces-
suais não se traduza imediatamente em ilicitude. De resto, imperioso se torna que quanto à
valoração do grupo de conceitos referentes à violação do direito à emissão de sentença em
prazo razoável (ou ilicitude) se considere, por um lado, a complexidade/simplicidade da
causa – id est, que se aplique o primeiro critério do método seguido pelos órgãos de Estras-
burgo para avaliar da duração razoável do processo – e que se examine o assunto sobre que

-216-
Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

E, quanto ao dano indemnizável, ele inclui naturalmente o dano mo-


ral, sendo certo que quanto ao critério de determinação do quantum da re-
paração se deve ter em conta o critério dos casos semelhantes ou da mesma es-
pécie (caso Scordino c. Itália). A este propósito, só pode seguir-se a jurispru-
dência europeia, que impõe a consideração da sua jurisprudência. E, cla-
ramente, a propósito da necessidade de interpretação e aplicação confor-
me, no caso Musci c. Itália (processo n.º 64699/01), o Tribunal de Estrasbur-
go afirmou, em termos gerais, que a duração (em anos) de um processo se
apura no seu conjunto e não isoladamente por cada ano de atraso. Con-
tudo, por cada ano de demora, deve existir uma reparação que, quanto ao
dano moral, pode variar entre €1 000 a €1 500, independentemente da sorte
da ação perante o juiz nacional. Este cálculo constitui apenas, na verdade,
uma base de partida da valoração, podendo aumentar para €2 000, tendo
em conta a importância da matéria que é objeto da lide (como acontece a
propósito de questões de trabalho, questões sobre as pessoas, o seu esta-
tuto, saúde ou vida), ou diminuir, conforme exista pouca importância dos
interesses em jogo ou o comportamento do requerente justifique a demora.
Enfim, para calcular a quantia da indemnização a fixar, o juiz nacio-
nal tem de ter em conta as bitolas europeias e, sobretudo, tem de conhecer
«os casos semelhantes» e a medida do quantum debeatur estabelecida para
cada «espécie de casos» para ressarcimento do dano moral, exigindo-se ao
juiz nacional a valoração convincente de congruência do caso concreto ao
caso da espécie. Em suma, para fixar quantitativamente o valor da indem-
nização, tem-se entendido que, porque não há uma regra de liquidação
propriamente dita, cumpre à jurisprudência nacional desenvolver uma ta-
refa dialogante com a jurisdição de Estrasburgo quanto à identificação e

o processo versa e se avalie da urgência que as partes podem ter na prolação da sentença –
usando o quarto critério do método seguido pela jurisprudência da Convenção: «l’enjeu du
litige». E, claro, lembrando a jurisprudência do TEDH, cumpre ter sempre presente que o
Tribunal de Estrasburgo já afirmou que a duração razoável corresponde em princípio à du-
ração média de um processo, sendo certo que – em princípio, sublinhe-se – a duração média
em 1.ª instância deve corresponder a 3 anos, ou dois anos e sete meses, se atendermos a causas
em matéria laboral ou relativas a pessoas. E a duração média de todo o processo – em princí-
pio, sublinhe-se de novo – deve corresponder a um período que vai de 4 a 6 anos, salvo casos
especiais em que a demora de 2 anos pode significar duração excessiva, tendo em conta par-
ticulares direitos ou interesses próprios do caso.

-217-
Parte IV – A Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado

classificação dos tais precedentes e quanto aos imprescindíveis elementos


de medida da quantificação da indemnização do dano.
Neste contexto, cumpre concluir no sentido de que, pese embora
não consagrar respostas expressas, o novo RRcivilEE pode apresentar uma
solução efetiva de reparação para as vítimas do funcionamento do serviço
de justiça. E assim será desde que esse RRcivilEE seja interpretado e apli-
cado em conformidade com a jurisprudência europeia, sobretudo no que
concerne ao pressuposto da ilicitude e do dano.
E, assim, uma resposta implícita no RRcivilEE vai no sentido de con-
siderar que um dos pressupostos da obrigação da indemnização corres-
ponde ao dano patrimonial e não patrimonial, sendo este dano ínsito ao
dano indemnizável, presumindo-se a sua existência nos termos do id quod
plerumque accidit, sendo certo que, em princípio, por cada ano de atraso, o
lesado deve obter uma indemnização que deve ser calculada de acordo
com o critério dos casos semelhantes ou da mesma espécie, sendo certo que em
termos de base de partida deve ter-se em conta um valor que pode variar
entre € 1 000 e € 1 500, por cada ano de atraso, podendo ser elevada para
€ 2 000. E uma resposta acolhida no RRcivilEE também vai no sentido de
que o lesado deve recorrer subsidiariamente ao TEDH, sempre que a quan-
tia indemnizatória fixada pelo juiz nacional seja claramente inferior àquela
que lhe deveria ser atribuída, segundo a bitola europeia.

-218-
Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

PARTE V – DIREITO ADMINISTRATIVO ESPECIAL

OS BENS DO DOMÍNIO PÚBLICO

AULA N.º 11

Sumário146: 1. Distinção entre domínio público e domínio privado; 2. O do-


mínio público da Administração Pública (titularidade; aquisição e extinção da do-
minialidade; os bens do domínio público; princípios; formas de utilização pelos
particulares).

BIBLIOGRAFIA DE BASE

FONSECA, Isabel Celeste/VILAS BOAS PINTO, João, Introdução ao Direito


do Domínio Público, Braga: AEDUM/NEDIP, 2019
MONIZ, Ana Raquel, O Domínio Público – o Critério e o Regime Jurídico da
Dominialidade, Coimbra: Almedina, 2005
AZEVEDO, Bernardo, «O Domínio Privado da Administração», in OTERO,
Paulo/GONÇALVES, Pedro (coord.), Tratado de Direito Administrativo Especial, Vol.
III, Coimbra: Almedina, 2010

BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR

MIRANDA, João [et al.], Comentário ao Regime Jurídico do Património Imobiliá-


rio Público, Coimbra: Almedina, 2017

Este tema é objeto de estudo em ISABEL CELESTE FONSECA e JOÃO VILAS


146

BOAS PINTO, Introdução ao Direito do Domínio Público, Braga: AEDUM/NEDIP, 2019, aí se en-
contrando em maior grau de desenvolvimento.

-219-
Parte V – Direito Administrativo especial

1. Distinção entre domínio público e domínio privado

A distinção entre domínio público e domínio privado assume-se de


extrema importância, visto que os bens que integram o primeiro estão su-
jeitos a um regime jurídico mais exigente de direito público. Enquanto o
domínio público se define positivamente, o domínio privado define-se ne-
gativamente, isto é, formam o domínio privado os bens que, pertencendo
à Administração Pública, não integram o domínio público. O domínio pri-
vado trata-se, assim, de um conceito legal e doutrinal, de natureza resi-
dual, delimitado por contraposição ao domínio público 147.
A destrinça entre as duas figuras passa pela função desempenhada
por cada uma. Ora, se ao domínio público se atribui uma função pública,
da qual consequentemente resulta uma maior proteção, a função desem-
penhada pelo domínio privado, e o seu maior ou menor nível de proteção,
é variável consoante estejamos perante domínio privado disponível ou in-
disponível.
Sofrendo fortes influências do direito italiano, os bens patrimoniais
indisponíveis são identificados como aqueles que, além de taxativamente
previstos enquanto tal, se destinam a um serviço público e, por isso, sujei-
tos a um regime jurídico de carácter privado, mas com traços de direito
público. No nosso ordenamento jurídico, a distinção entre domínio pri-
vado disponível e domínio privado indisponível encontra-se, desde logo,
presente no Decreto-Lei n.º 477/80, de 15 de outubro, designadamente no
art. 7.º, n.º 2 e n.º 3. Com efeito, parece que o legislador seguiu o critério da
utilidade pública advogado por MARCELLO CAETANO, segundo o qual
o domínio privado indisponível identificar-se-á com aqueles bens que as-
sumem importância na prossecução de fins administrativos, ao passo que
o domínio privado disponível identificar-se-á com os bens patrimoniais
que tenham em vista, sobretudo, a produção de rendimentos ou que vie-
ram à posse da Administração por mera ocasionalidade.

147 Neste sentido e para um estudo mais aprofundado do domínio privado, CARMEN

CHINCHILLA MARÍN, Bienes patrimoniales del Estado, Madrid, Marcial Pons, 2001, p. 91.

-220-
Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

Não podemos deixar de apontar uma observação quanto ao facto de


a solução avançada pelo legislador no Decreto-Lei n.º 477/80 aproximar o
domínio público do domínio privado indisponível, face ao critério da uti-
lidade pública, provocando uma certa confusão. Ora, se ambos prosse-
guem a utilidade pública, a diferença reside tão-só na necessidade em sub-
meter os bens do domínio privado indisponível a um regime menos exi-
gente, embora com notas de direito público, isto porque o que aqui está em
causa é precisamente que «este regime jurídico [de direito público] aplica-
-se a todos os bens públicos, independentemente da sua caracterização co-
mo dominiais ou patrimoniais, só que os primeiros, todavia, desfrutam de
um “plus” de exorbitâncias sobre esse regime básico de proteção exorbi-
tante comum a todos os bens públicos» 148. Destarte, é errónea a ideia de
que o domínio privado contém os bens integralmente sujeitos ao direito
privado.
Questão diversa, mas de suma importância, é a de aferir se a distin-
ção entre domínio público e domínio privado deve ou não subsistir. Desde
logo, o Decreto Lei n.º 280/2007, de 7 de agosto, que procede à reforma do
regime jurídico do património imobiliário público, não avança com ne-
nhum conceito de domínio público ou de domínio privado, nem tão-pouco
distingue os princípios gerais aplicáveis a um e outro, encontrando-se am-
bos sujeitos aos mesmos princípios gerais. Ora, se assim o é, e porque a
matriz fundamental do RJPIP é de direito público, maxime de direito admi-
nistrativo, infere-se que a disciplina aplicável ao domínio privado da Ad-
ministração Pública é hoje fundamentalmente de direito público 149, ten-
dendo-se a rejeitar a subsistência da distinção. Não obstante a aproxima-
ção de regimes, entendemos que, em bom rigor, a distinção deve ser con-
servada, embora não em termos absolutos. Sedimentamos tal posição no
argumento proposto por ANA RAQUEL MONIZ, que nos parece fazer
todo o sentido: «(…) tem de haver uma diferença de regimes para a relação
jurídica cujo objeto é o mar territorial e para a relação jurídica que tem por

148 PARADA VÁZQUEZ, Derecho Administrativo. Urbanismo y Bienes Públicos, Vol. III,

Marcial Pons, 2000, p. 15.


149 JOÃO MIRANDA [et al.], Comentário ao Regime Jurídico do Património Imobiliário Pú-

blico, cit., p. 26.

-221-
Parte V – Direito Administrativo especial

objeto um qualquer prédio que veio à Administração, por exemplo, a título


de herdeiro legítimo»150. Assim também o entendem os constitucionalistas
JORGE MIRANDA E RUI MEDEIROS: «(…) sem embargo da presença de
direito público numa e noutra categoria de bens da Administração, a razão
dessa presença é diferente num caso e noutro: no domínio público, ela
emerge, essencialmente, da função a que os bens estão destinados; no do-
mínio privado, resulta, sobretudo, da qualidade jurídico-pública dos res-
petivos titulares». Um outro elemento que reforça a subsistência da distin-
ção é o de a Administração apenas poder praticar atos de autotutela para
defender bens do domínio público.

2. O domínio público da Administração Pública

2.1. Domínio público estadual, regional e autárquico

a) Constituem bens do domínio público estadual os bens elencados


no n.º 1 do art. 84.º da CRP, assim como aqueles que constam do art. 4.º do
Decreto-Lei n.º 477/80, elenco complementado ou reiterado em legislação
avulsa. Mas tal leitura deve encerrar maior precisão, isto porque, sendo
certo que compete à lei determinar o sujeito titular dos bens do domínio
público, não deve, no entanto, olvidar-se a conexão natural que determi-
nados bens têm com o Estado, pois, face aos princípios de identidade, so-
berania e defesa nacional, tais bens não podem pertencer a outro ente pú-
blico que não o próprio Estado. Por essas mesmas razões, o Estado é titular
do domínio público marítimo, do domínio público aéreo e do domínio pú-
blico militar. Estando, pois, no âmbito do domínio público necessário do Es-
tado, tal significa que não podem ser transferidos para os órgãos regionais
poderes primários característicos dos órgãos titulares do domínio público
estadual, podendo, no entanto, ser transferidos poderes secundários, como
sejam os poderes de atribuição de direitos de uso privativo.

150 ANA RAQUEL MONIZ, Domínio Público – O Critério e o Regime Jurídico da Dominia-

lidade, cit., p. 287.

-222-
Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

b) Sobre o domínio público regional, importa atentar, tendo em


conta o que anteriormente se disse, nas disposições dos respetivos Estatu-
tos Político-Administrativos, visto, como já constatado, a Constituição não
fornecer quaisquer elementos que, por si só, nos permitam identificar cer-
tos bens dominiais como pertencentes às Regiões Autónomas. O Estatuto
da Região Autónoma dos Açores, na redação que lhe é dada pela Lei n.º
2/2009, de 12 de janeiro, dispõe no seu art. 22.º, n.º.1: «Os bens situados no
arquipélago historicamente englobados no domínio público do Estado ou
dos extintos distritos autónomos integram o domínio público da Região»;
no n.º 2, procede a uma delimitação positiva, elencando o conjunto de bens
que integram o domínio público regional 151; já o n.º 3 exclui da sua titula-
ridade «(…) os bens afetos ao domínio público militar, ao domínio público
marítimo, ao domínio público aéreo e, salvo quando classificados como
património cultural, os bens dominiais afetos a serviços públicos não re-
gionalizados». Quanto ao Estatuto da Região Autónoma da Madeira, na
redação pela Lei n.º 13/91, de 5 de junho, dispõe no seu art. 144.º, n.º 1: «Os
bens do domínio público situados no arquipélago, pertencentes ao Estado,
bem como ao antigo distrito autónomo, integram o domínio público da
Região»; e, no n.º 2, «Excetuam-se do domínio público regional os bens afe-
tos à defesa nacional e a serviços públicos não regionalizados não classifi-
cados como património cultural».

151 «Pertencem, nomeadamente, ao domínio público regional: a) Os lagos, lagoas, ri-

beiras e outros cursos de água, com os respetivos leitos e margens e, bem assim, os que por
lei forem reconhecidos como aproveitáveis para produção de energia elétrica ou para irriga-
ção; b) As valas e os canais de irrigação abertos pela Região e as barragens de utilidade pú-
blica; c) Os jazigos minerais; d) Os recursos hidrominerais, incluindo as nascentes de águas
minerais naturais e as águas mineroindustriais; e) As cavidades naturais subterrâneas exis-
tentes no subsolo, com exceção das rochas, terras comuns e outros materiais habitualmente
usados na construção; f) Os recursos geotérmicos; g) As estradas regionais, vias rápidas e
autoestradas com os seus acessórios e obras de arte; h) As redes de distribuição pública de
energia; i) Os portos artificiais, as docas e os ancoradouros; j) Os aeroportos e aeródromos de
interesse público; l) Os palácios, monumentos, museus, bibliotecas, arquivos e teatros; m) Os
direitos públicos sobre imóveis privados classificados ou de uso e fruição sobre quaisquer
bens privados; n) As servidões administrativas e as restrições de utilidade pública ao direito
de propriedade».

-223-
Parte V – Direito Administrativo especial

c) No que diz respeito ao domínio público autárquico ou local, im-


porta neste momento apenas uma breve nota, em virtude do seu posterior
tratamento autónomo [Tema VII]. Contrariamente ao que sucede, por
exemplo, no ordenamento jurídico espanhol, onde existe um Reglamento de
Bienes de las Entidades Locales, em Portugal, não obstante a consagração
constitucional do domínio público autárquico, como corolário da autono-
mia administrativa local152, inexiste qualquer diploma legislativo que con-
cretize quais os bens dominiais pertencentes às autarquias.

d) Por outro lado, a doutrina questionava-se se outras entidades pú-


blicas, nomeadamente as de caráter institucional, poderiam considerar-se
titulares do domínio público. Se efetivamente o preceito constitucional não
representa uma exclusão porque o quer significar é que as pessoas coleti-
vas públicas territoriais são ou têm de se assumir como titulares de bens
do domínio público, mas tal não invalida que outras pessoas coletivas pú-
blicas possam também assumir essa titularidade (cfr. JORGE MIRANDA e
RUI MEDEIROS), o preceituado no art. 15.º do RJPIP vem esclarecer essa
questão que a disposição constitucional tinha deixado em aberto. Desse
modo, o legislador tomou partido em relação à contenda e estabeleceu que
apenas as pessoas coletivas públicas territoriais, isto é, o Estado, as regiões
autónomas e as autarquias locais, podem ser titulares de bens do domínio
público. Não obstante, tal não impede que a administração ou gestão dos
bens do domínio público possa ser atribuída a outras entidades públicas e,
inclusivamente, a entidades privadas, porque em nada contende com a ti-
tularidade que se mantém na pessoa coletiva territorial.

152 Art. 238.º, n.º 1, da CRP.

-224-
Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

2.2. O art. 84.º da CRP: domínio público ex constitutione e domínio pú-


blico ex lege; domínio público formal e domínio público por natureza

A Constituição de 1976, pela revisão de 1989, inclui uma disposição


relativa ao domínio público, no seu art. 84.º, que se divide em dois núme-
ros. A par do n.º 1, que enumera, nas diversas alíneas153, os bens pertencen-
tes ao domínio público, a alínea f) do mesmo, em conjugação com o n.º 2,
consagra uma cláusula aberta em matéria de bens dominiais. Tal significa
que, não obstante a vinculação do legislador ao elenco constitucional, nada
o impede que, por lei, possa qualificar outros bens como dominiais, am-
pliando, dessa forma, o rol constitucionalmente definido. No fundo, to-
mando de empréstimo as palavras de ANA RAQUEL MONIZ, o domínio
público assume-se como «um dado pré-constitucional, cujo regime carece
de uma concretização do legislador ordinário». Daqui decorre a existência
de um domínio público ex constitutione e de domínio público ex lege154.
Em consonância com o art. 165.º, n.º 1, alínea v), da CRP, a definição
e o regime dos bens do domínio público são matéria da reserva relativa de
competência legislativa da Assembleia da República, devendo, por isso, as
referidas intervenções normativas revestir a forma de Lei da Assembleia
da República ou decreto-lei autorizado155.
Sobre os parâmetros a ser observados pelo legislador na classifica-
ção de outros bens como dominiais, a Constituição nada diz, no entanto,
«é evidente que não pode deixar de haver limites para este efeito, sendo
necessária uma justificação relevante para a “dominialização” de outros
bens além dos constitucionalmente enunciados, baseada num interesse

153 Estas alíneas constituem, pois, «um mínimo integrante do domínio público», utili-

zando a expressão de JORGE PAÇÃO, «A afetação enquanto critério da dominialidade pú-


blica», in JOÃO MIRANDA (coord.), Estudos de Direito Administrativo dos Bens, AAFDL Edi-
tora, 2015, p. 266.
154 Terminologia avançada por J.J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Cons-

tituição da República Portuguesa Anotada, 4.ª ed. revista, Vol. I, Coimbra Editora, 2007, p. 1001.
155 Para maiores desenvolvimentos relativos à reserva de lei em matéria de domínio

público, vide como exemplo paradigmático o Acórdão do TC n.º 131/2003, de 11 de março.

-225-
Parte V – Direito Administrativo especial

constitucionalmente protegido (…) e observado o princípio da proporcio-


nalidade»156.
De importância similar na orientação do legislador para a classifica-
ção de certos bens como dominiais é a distinção doutrinária entre domínio
público formal, ou também bens de destinação pública, e domínio público por
natureza, ou bens reservados; na primeira aceção, a natureza dominial do
bem pressupõe a existência de uma lei, constitucional ou ordinária, atribu-
tiva de tal classificação; a segunda designa os bens que, pela sua própria
natureza, em dada comunidade e momento histórico, se encontram voca-
cionados a satisfazer necessidades coletivas essenciais, reclamando conse-
quentemente a submissão a um regime jurídico específico, isto é, de domi-
nialidade pública, sem a necessidade de uma previsão legal ou constitucio-
nal para tal157.

2.3. Formas de aquisição e extinção da dominialidade

I. Aquisição. Quando MARCELLO CAETANO explicava a noção


de coisa pública, referia expressamente que «deve notar-se preliminar-
mente que a classificação de uma coisa como pública depende da lei. Só
são públicas as coisas assim qualificadas por lei»158. Ora, tal significa que a
previsão legal é, afinal de contas, requisito necessário à integração de um
bem no domínio público, podendo afirmar-se, nesse seguimento, que não

156 J.J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa

Anotada, 4.ª ed. revista, cit., p. 1004. Também SÉRVULO CORREIA, apud JORGE MIRANDA
e RUI MEDEIROS, Constituição da República Portuguesa Anotada, cit., p. 82, esclarece que, não
obstante a existência de uma cláusula aberta, o legislador ordinário não dispõe de uma liber-
dade irrestrita, isto porque, embora a autonomia privada não valha igualmente de forma ili-
mitada, a verdade é que a consagração constitucional de um princípio que tutela a autonomia
privada (cfr. arts. 26.º, 61.º e 62.º da CRP) limita a liberdade do legislador na ingerência na
esfera da autonomia privada.
157 Cfr. JOÃO MIRANDA [et al.], Comentário ao Regime Jurídico do Património Imobiliário

Público, cit., p. 84, e J.J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República
Portuguesa Anotada, 4.ª ed. revista, cit., p. 1002. Não se confunda esta classificação com a que
distingue o domínio público natural do domínio público artificial. Entende-se o domínio pú-
blico natural as coisas que resultam de fenómenos naturais, ao passo que o domínio público
artificial decorre de uma intervenção humana.
158 MARCELLO CAETANO, Manual de Direito Administrativo, cit., p. 880.

-226-
Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

há bem dominial sem lei159. Em suma, a afetação não pode ser exercida
isoladamente, não se assumindo como critério exclusivo da dominialidade
pública. A previsão legal, enquanto elemento normativo, e a afetação, en-
quanto elemento teleológico, afirmam-se como critérios cumulativos na
determinação da dominialidade160, acabando a afetação por preencher a
previsão normativa que determina a potencialidade de certo bem ou tipo
de bens a integrar o domínio público.
Cumpre, no entanto, esclarecer que firmar a obrigatoriedade da pre-
visão legal não significa sustentar a sua suficiência, uma vez que a lei é sem-
pre necessária ou obrigatória na determinação da dominialidade, mas nem
sempre se assume suficiente para tal. Impõe-se, portanto, distinguir con-
soante estejamos perante bens reservados e bens de destinação pública. Quan-
tos aos primeiros, pelas suas características intrínsecas, a sua dominiali-
dade é determinada pelo legislador, não carecendo de uma posterior atua-
ção administrativa. Já os segundos encontram-se dependentes da efetiva
destinação do bem à prossecução do fim que justificou a previsão legal.
Por conseguinte, se para os bens reservados a previsão legal se assume
obrigatória e suficiente, para os bens de destinação pública, tal previsão
assume-se apenas obrigatória, carecendo de ato posterior de destinação,
figurando a afetação, nesses termos, como condição necessária.

II. Extinção. A desafetação (em sentido amplo) produz o efeito in-


verso da afetação, isto é, a retirada do bem do domínio público, não ope-
rando, contudo, uma modificação da titularidade, que se mantém pública,

159 JORGE PAÇÃO, «O mito da alternatividade dos critérios de dominialidade pú-

blica – Ac. do STA de 26/06/2014, Proc. 1174/2», in Cadernos de Justiça Administrativa, n.º 122
(março-abril), CEJUR, 2017, p. 77, di-lo claramente: «(…) a existência de base legal é um pres-
suposto de verificação obrigatória para que um bem possa ser tido como pertencente ao do-
mínio público».
160 Não é, aliás, uma resposta/solução inédita, visto que a Constituição de 1933 já a

havia consagrado no seu art. 49.º, n.º 8. Referente à atual CRP, ANA RAQUEL MONIZ, Do-
mínio Público – O Critério e o Regime Jurídico da Dominialidade, cit., p. 128: «ao determinar que
pertencem ao domínio público outros bens como tal classificados por lei, a Constituição pre-
tende ressaltar a imprescindibilidade de uma base (pelo menos) legal para que uma coisa seja
submetida ao regime do domínio público» (sublinhado nosso).

-227-
Parte V – Direito Administrativo especial

passando simplesmente o bem a estar sujeito ao regime do domínio pri-


vado (cfr. art. 17.º do RJPIP, in fine)161.
Com base na lição de MARCELLO CAETANO, «a dominialidade
cessa por virtude do desaparecimento das coisas, ou em consequência do
desaparecimento da utilidade pública que as coisas prestavam ou de surgir
um fim de interesse geral que seja mais convenientemente preenchido
noutro regime»162. Dela se extraem diversas formas de cessação da domi-
nialidade. Recordando o que anteriormente se disse acerca da distinção
entre bens reservados e bens de destinação pública, importa assinalar si-
tuações dissemelhantes163: 1) visto que os bens reservados são bens domi-
niais por determinação do legislador, estes só poderão ser alvo de cessação
de dominialidade no caso de uma desclassificação legal (também denomi-
nada desafetação legal), isto é, tal como num dado momento o legislador os
qualificou como bens dominiais, também num momento posterior pode
desqualificá-los como tal, de modo que a perda do estatuto dominial pro-
cederia, diríamos, de uma desconsideração do âmbito dominial, mas
nunca de um ato de desafetação stricto sensu; os bens reservados poderão
também perder a dominialidade nas situações de degradação ou deterioração
dos mesmos, ou seja, nas situações de perda das características que justifi-
cam a sua assunção ao regime dominial; 2) quanto aos bens de destinação
pública, uma vez que carecem de um posterior ato de destinação, estes já
poderão perder o estatuto da dominialidade por via de um ato de desafeta-
ção propriamente dito; naturalmente, a dominialidade destes bens pode
também cessar em virtude da sua degradação ou deterioração ou por via da
desclassificação legal, uma vez dissipadas as utilidades que o bem se encon-
trava a prosseguir e que justificavam a previsão normativa da sua domi-
nialidade. Em suma, a desafetação em sentido restrito (ato de desafetação)
apenas se aplica aos bens de destinação pública.

161 Assim também o Ac. do STA de 08.09.2011, proc. n.º 0277/11: «(…) a lei não impede
a alteração do regime de dominialidade das coisas públicas, alteração que se fará através da
desafetação do bem integrado no domínio público e da sua integração no domínio privado».
162 MARCELLO CAETANO, Manual de Direito Administrativo, cit., p. 956.

163 Seguimos aqui a exposição de JOÃO MIRANDA [et al.], Comentário ao Regime Jurí-

dico do Património Imobiliário Público, cit, pp. 108 e 109.

-228-
Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

MARCELLO CAETANO frisava que «o simples desinteresse ou


abandono administrativo de uma coisa dominial que haja conservado a
utilidade pública não vale por desafetação tática»164. Daqui se podem ex-
trair dois planos: se da inércia da Administração não resultar a perda de
utilidade pública do bem, este continua a integrar o domínio público; mas
se da inércia da Administração resultar a perda da utilidade pública do
bem, então será de admitir que o bem deixou de estar sujeito ao estatuto
da dominialidade, visto que o fundamento para tal desapareceu. Neste úl-
timo caso, parece poder quadrar-se a aquisição do bem pelo particular de-
vido a posse por tempos imemoriais165, isto porque, se o particular se com-
porta como verdadeiro proprietário e Administração nada faz para o im-
pedir, então é possível imputar à Administração a perda de utilidade pú-
blica do bem e, nesses termos, a presunção de desdominialização do bem,
a sua integração no domínio privado e a posterior aquisição do bem pelo
particular166.
A contrario, na circunstância de a utilidade pública do bem se perder
por causa não imputável à Administração, mas sim a um particular, difi-
cilmente se conceberá a respetiva perda do estatuto de dominialidade. Re-
pare-se que nos referimos aqui à perda da utilidade do bem e não à perda/
/desaparecimento do bem.

2.4. Os bens do domínio público

a) Dispõe a alínea a) do n.º 1 do art. 84.º da CRP que pertencem ao


domínio público «as águas territoriais com os seus leitos e os fundos mari-
nhos contíguos, bem como os lagos, lagoas e cursos de águas navegáveis

164 Ibidem, p. 959.


165 Na esteira da doutrina francesa, italiana e alemã, «o tempo imemorial é capaz de
legitimar uma usurpação inicial do domínio público, com o argumento material de que a
existência de uma situação “durante um tempo sem que ninguém o tenha impugnado” cons-
titui um sério motivo para acreditar que a seu devido tempo foi criada de modo conforme ao
direito». [Apud EDUARDO GARCÍA DE ENTERRÍA, Sobre la imprescritibilidad del domínio pú-
blico, cit., p. 33].
166 Posição sustentada por ANA RAQUEL MONIZ, Domínio Público – O Critério e o

Regime Jurídico da Dominialidade, cit., pp. 434 e 435.

-229-
Parte V – Direito Administrativo especial

ou flutuáveis, com os respetivos leitos»167. A importância do domínio pú-


blico hídrico em Portugal assume especial relevância, configurando-se co-
mo «a parte mais significativa do designado domínio público natural», ten-
do sido objeto de especial atenção por parte do legislador «(…) por razões
ligadas à necessidade de prevenir a poluição, garantir o livre acesso às
águas, evitar um “urbanismo anárquico”, [e] promover a exploração dos
recursos naturais (…)»168.
b) Reconhece a alínea b) do n.º 1 do art. 84.º da CRP que pertencem
ao domínio público «as camadas aéreas superiores ao território acima dos
limites reconhecidos ao proprietário ou superficiário». Considera-o, de
igual forma, a alínea f) do art. 4.º do DL n.º 477/80: «as camadas aéreas
superiores aos terrenos e às águas do domínio público, bem como as situa-
das sobre qualquer imóvel do domínio privado para além dos limites fixa-
dos na lei em benefício do proprietário do solo». Como já referido em mo-
mento oportuno, o domínio público aéreo é da titularidade do Estado.
c) Dispõe a alínea c) do n.º 1 do art. 84.º da CRP que pertencem ao
domínio público «os jazigos minerais, as nascentes de águas mineromedi-
cinais, as cavidades naturais subterrâneas existentes no subsolo, com exce-
ção das rochas, terras comuns e outros materiais habitualmente usados na
construção»169. Assim, integram o domínio público geológico as substân-
cias minerais sólidas, líquidas ou gasosas que sejam encontradas quer à su-
perfície quer no subsolo, bem como as furnas e as grutas naturais 170.
d) Nos termos das alíneas d) e e) do n.º 1 do art. 84.º da CRP, perten-
cem ao domínio público «as estradas» e «as linhas férreas nacionais» e, nos
termos do art. 4.º do DL n.º 477/80, alíneas e), h) e l), integram, respetiva-
mente, o domínio público estadual «os portos artificiais e docas, os aero-
portos e aeródromos de interesse público», «as linhas férreas de interesse

167 A contrario, o Código Civil determina, nos arts. 1385.º, 1386.º e 1387.º, as águas que

se consideram particulares
168 ANA RAQUEL MONIZ, Domínio Público – O Critério e o Regime Jurídico da Dominia-

lidade, cit., p. 169. Sobre a história e evolução do domínio público hídrico em Portugal, vide
MÁRIO TAVARELA LOBO, Manual de Direito de Águas, Vol. I, 2.ª ed., Coimbra: Coimbra Edi-
tora, 1999.
169 No mesmo sentido, art. 4.º, alínea g), do DL n.º 477/80, de 15 de outubro.

170 Cfr. J.J. GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Por-

tuguesa Anotada, cit., p. 1003.

-230-
Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

público, as autoestradas e as estradas nacionais com os seus acessórios e


obras de arte, etc.» e «as linhas telegráficas e telefónicas, os cabos subma-
rinos e as obras, canalizações e redes de distribuição pública de energia
elétrica».
e) Postulam as alíneas i) e j) do art. 4.º do DL n.º 477/80 que perten-
cem ao domínio público do Estado «as obras e instalações militares, bem
como as zonas territoriais reservadas para a defesa militar», assim como
«os navios da armada, aeronaves militares e os carros de combate, bem
como outro equipamento militar de natureza e durabilidade equivalen-
tes».
f) Plasma a alínea m) do art. 4.º do DL n.º 477/80 que pertencem ao
domínio público do Estado «os palácios, monumentos, museus, bibliote-
cas, arquivos e teatros nacionais, bem como os palácios escolhidos pelo
Chefe de Estado para a Secretaria da Presidência e para a sua residência e
das pessoas da sua família».

2.5. Princípios do domínio público

a) O princípio da inalienabilidade, pedra angular do regime domi-


nial, significa que sobre um bem do domínio público não possam realizar-
-se quaisquer atos translativos nem constitutivos de direitos a favor de ter-
ceiros171. Embora não seja um princípio que se possa extrair explicitamente
da Constituição, é amplamente consensual que este deriva da garantia ins-
titucional do domínio público. Dispõe o art. 18.º do RJPIP que «os imóveis
do domínio público estão fora do comércio jurídico não podendo ser objeto
de direitos privados ou de transmissão por instrumentos de direito priva-
do». No fundo, tem o intuito de «assegurar que permanecem na esfera da
Administração Pública e que poderão apenas ser alienados ou onerados
com base em instrumentos de Direito Administrativo» 172.

171 MARÍA DE LOS ÁNGELES SCAGLIUSI, El Domino Público Funcionalizado: la co-

rriente de valorización, cit., p. 60.


172 JOÃO MIRANDA [et al.], Comentário ao Regime Jurídico do Património Imobiliário Pú-

blico, cit., p. 115 [cit. p. 507].

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Parte V – Direito Administrativo especial

b) A regra da imprescritibilidade traduz-se no facto de os bens do


domínio público não poderem ser objeto de prescrição aquisitiva nem per-
derem a sua natureza por decurso do tempo173. Tal é vertido no art. 19.º do
RJPIP: «os imóveis do domínio público não são suscetíveis de aquisição
por usucapião». A razão de ser desta regra é bastante simples, indo ao en-
contro do princípio precedente. Ora, se com a inalienabilidade o que se
pretende é que a titularidade dos bens do domínio público não seja desvir-
tuada por uma vontade da Administração, a imprescritibilidade encerra
em si a ideia de que tal titularidade não possa também ser posta em causa,
mas desta vez por vontade de alguém que não o seu titular.
c) A impenhorabilidade impede que os bens do domínio público
sejam executados judicial ou administrativamente: «os imóveis do domí-
nio público são absolutamente impenhoráveis» (art. 20.º RJPIP). Tendo a
penhora um efeito translativo, o bem dominial passaria para a esfera jurí-
dico do credor do ente público executado. Desta feita, a impenhorabilidade
adensa a ideia de que o interesse público nunca é suplantado pelo interesse
do credor da administração.

2.6. Formas de utilização do domínio público pelos particulares

O legislador subdividiu a utilização em uso comum e uso privativo,


subdivisão essa assente em duas ideias-chaves: a primeira diz respeito ao
título jurídico habilitante e a segunda à generalidade ou singularidade de
pessoas admitidas à sua utilização. Em ordem a essas ideias, FREITAS DO
AMARAL define o uso comum enquanto «modo de utilização do domínio
que, sendo conforme ao destino principal da coisa pública sobre que se
exerce, é declarado lícito pela lei para todos ou para uma categoria generi-
camente delimitada de particulares»174. Ao invés, entende o uso privativo
como «o modo de utilização do domínio que é consentido a uma ou a

173 MARÍA DE LOS ÁNGELES SCAGLIUSI, El Domino Público Funcionalizado: la co-

rriente de valorización, cit., p. 61.


174 DIOGO FREITAS DO AMARAL, A Utilização do domínio público pelos particulares,

Lisboa: Coimbra Editora, 1965, p. 46.

-232-
Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

algumas pessoas determinadas, com base num título jurídico indivi-


dual»175/ 176. O legislador acolhe ainda a distinção do uso comum em ordi-
nário e extraordinário (arts. 25.º e 26.º do RJPIP, respetivamente).
O uso comum ordinário reveste-se de generalidade, liberdade e
igualdade. Por generalidade deve entender-se «a qualidade de ser ou po-
der ser praticado por todos os cidadãos ou por uma massa suficientemente
ampla de pessoas»177. O princípio da igualdade traduz-se no facto de o
acesso e o uso das coisas do domínio público serem feitos sem discrimina-
ção entre os seus utilizadores; contudo, implica também que «o direito à
utilização de uma parcela dominial que não comporte a presença simultâ-
nea de vários indivíduos pertence ao primeiro que a ocupar» 178. Por seu
turno, o princípio da liberdade «constitui diretriz fundamental do regime
do uso comum (…). Daí a importante corrente de opinião que qualifica este
uso comum como exercício do direito de liberdade» 179. O facto de todos
poderem fruir os bens do domínio público não invalida a fixação de con-
dicionalismos à sua utilização, seja por via legal ou regulamentar. O uso
comum é, ainda, em princípio, gratuito.
Quanto à autonomização do uso comum extraordinário. A doutrina
clássica, na qual se insere MARCELLO CAETANO, entende que o direito
que se exerce é o mesmo quer estejamos a falar de uso comum ordinário
quer de uso comum extraordinário, residindo a diferença tão-só no facto
de para este último ser necessária uma autorização, autorização essa que
não confere ao particular um direito novo ou diferente, mas visa apenas

175 Ibidem, p. 165.


176 Não obstante nos referimos a um uso privativo atribuído aos particulares, em ri-
gor, tal também pode ser atribuído a entidades públicas, nomeadamente a entidades públicas
organizadas sob formas jurídico-privadas e a entidades públicas ou empresas com participa-
ção pública maioritária (convoque-se, por exemplo, o art. 28.º, n.º 3, do DL 276/2003). Nestes
casos, a concessão justifica-se porquanto da prossecução de um fim de interesse público por
parte daquelas entidades, diverso do fim de interesse público principal, isto é, do fim de in-
teresse público que justificou que um certo bem se sujeitasse ao regime da dominialidade.
Assim, ANA RAQUEL MONIZ, Direito do Domínio Público, cit., p. 164.
177 DIOGO FREITAS DO AMARAL, A Utilização do domínio público pelos particulares,

cit., p. 76.
178 Ibidem, p. 79.

179 Ibidem, pp. 82-83.

-233-
Parte V – Direito Administrativo especial

eliminar um obstáculo que limitava o exercício desse direito 180. Para FREI-
TAS DO AMARAL, não existe um único tipo de uso extraordinário, mas
diversos tipos autónomos que, grosso modo, identificar-se-ão com as exce-
ções aos princípios da generalidade, da liberdade, da gratuitidade, isto é,
«cada uma dessas exceções deve constituir, portanto, uma espécie ou mo-
dalidade de uso comum extraordinário»181.
Importa de igual modo ressalvar que a utilização limitada ou condi-
cionada do domínio público resulta da sua própria natureza, na medida
em que tais limites personificam uma forma de preservar a utilidade pú-
blica da coisa pública182.

180 Ibidem, p. 106.


181 Ibidem, pp.108-109.
182 Cfr. JOÃO MIRANDA [et al.], Comentário ao Regime Jurídico do Património Imobiliário

Público, cit., p. 157.

-234-
Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

PARTE V – DIREITO ADMINISTRATIVO ESPECIAL

O PODER SANCIONATÓRIO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

AULA N.º 12

Sumário: 0. Nota introdutória; 1. O universo do poder sancionatório das


entidades administrativas; 2. Garantias do sancionado no domínio contraordena-
cional: certezas quanto às suas fragilidades; 3. Notas finais.

BIBLIOGRAFIA DE BASE

COSTA ANDRADE, Manuel da, «Contributo para o conceito de contra-or-


denação (A experiência alemã)», in Revista de Direito e Economia, Anos VI/VIII,
1980/1981, pp. 81-123
FREITAS DO AMARAL, Diogo, «O Poder Sancionatório da Administração
Pública», in Estudos Comemorativos dos 10 Anos da Faculdade de Direito da Universi-
dade Nova de Lisboa, volume I, Coimbra: Almedina, 2008, pp. 215 a 234

BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR

AA.VV., Direito Sancionatório das Autoridades Reguladoras, PALMA, Fernan-


da/SILVA DIAS, Augusto/MENDES, Paulo de Sousa (coord.), Coimbra: Coimbra
Editora, 2009
ALARCÓN SOTOMAYOR, Lucía, El Procedimiento Administrativo Sanciona-
dor y los Derechos Fundamentales, Madrid: Civitas, 2007
HUERGO LORA, Alejandro, Las Sanciones Administrativas, Madrid: Iustel,
2007
NIETO, Alejandro, Derecho Administrativo Sancionador, 5.ª ed., Madrid: Tec-
nos, 2012

-235-
Parte V – Direito Administrativo especial

0. Nota introdutória

O tema do poder sancionatório da Administração Pública tem sido


um parente pobre dos administrativistas e tem estado pouco presente na
dogmática administrativa, escasseando por isso o seu tratamento em ma-
nuais e em obras da especialidade. Do ponto de vista da ciência do Direito
Administrativo, não existe uma teoria geral do poder sancionatório admi-
nistrativo, nem uma teoria geral da infração e da sanção administrativas.
E muito menos existe um procedimento sancionatório comum.
Para sermos rigorosos, até surpreende que assim seja: surpreende
que exista uma desatenção da ciência administrativa substantivista183 em re-
lação ao próprio problema do fundamento do poder sancionatório, numa
altura em que ele se vem manifestando de forma crescente. Afinal, interes-
sante é saber, primo, qual a razão de ser desse poder e se existe um poder
sancionatório geral da Administração Pública. Aliás, pertinente é apurar
se «o programa constitucional» permite ou não conceber a existência de
um poder sancionatório geral da Administração Pública, não reconduzível
ao ilícito administrativo contraordenacional e disciplinar.
Depois, o problema da indefinição do universo do poder sanciona-
tório também não mereceria a quietude dos estudiosos das questões admi-
nistrativas. Afinal, é urgente, secundo, distinguir os atos sancionatórios dos
atos desfavoráveis; os atos sancionatórios praticados em consequência de
uma contraordenação versus outros atos sancionatórios não contraordena-
cionais e não disciplinares.
De resto, urge classificar e distinguir esses atos, sobretudo do ponto
de vista da proteção dos sancionados. Aliás, tertio, ainda numa perspetiva
substantivista, a necessidade de pensar o acervo de garantias a que o san-

183 MARCELLO CAETANO (Princípios Fundamentais do Direito Administrativo, 1.ª

Reimpressão portuguesa, Coimbra: Almedina, 1996, p. 307), a propósito do «processo admi-


nistrativo gracioso», faz referência ao processo sancionador, aludindo às figuras do «processo
disciplinar» e do «processo de transgressão». A este propósito, cumpre ver MARGARIDA
ERMELINDA LIMA DE MORAIS DE FARIA, O sistema de sanções e os princípios do direito ad-
ministrativo sancionador, Tese de Mestrado, Universidade de Aveiro, 2007, p. 51. A autora es-
tudou o tema e julgou «benéfico o reconhecimento legislativo, através de um código integra-
dor e harmonizador de um Direito Sancionador Administrativo, que reduzisse a actual com-
plexidade do tema».

-236-
Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

cionado tem direito pressupõe refletir sobre as garantias fundamentais (ex


vi art. 32.º, n.º 10, da CRP) do sancionado, mormente a de audiência prévia
e plena defesa. Se pensarmos no Regime Geral das Contraordenações
(RGCO), logo se impõe saber se estas garantias fundamentais do sanciona-
do estarão suficientemente densificadas nele. Aqui, importante é, imedia-
tamente, trabalhar o regime principiológico garantístico do sancionado e
perceber o que significam, neste contexto, os princípios da legalidade, tipi-
cidade, nemo tenetur se ipsum accusare, presunção de inocência, in dubio pro
reo, ne bis in idem e o princípio que proíbe a reformatio in pejus. E, no que
respeita aos direitos a prestações procedimentais, igualmente se impõe sa-
ber se o direito à informação do sancionado é nele possível de concreti-
zação.
Ainda assim, a maior incerteza diz respeito às garantias impugna-
tórias do sancionado, a começar pelas que se efetivam no seio da própria
Administração Pública e a terminar naquelas que se realizam junto de ins-
tâncias imparciais e independentes, mormente dos tribunais.

1. O universo do poder sancionatório da Administração Pública

1.1. Natureza e fundamentos do poder sancionatório

Impõe-se, neste sentido, uma aproximação à noção de poder san-


cionatório: i) trata-se de um poder conferido por lei a certas entidades pú-
blicas de aplicar sanções não penais a outros sujeitos de direito (indiví-
duos ou pessoas coletivas); ii) é um poder público de autoridade: o que
pressupõe uma relação de supremacia-subordinação; iii) é conferido por
lei a uma entidade pública (ou equiparada) de aplicar sanções não penais:
através de um ato administrativo (punitivo ou impositivo), devendo ser
precedido de um procedimento sancionatório adequado.
Não há dúvida de que este tema tem uma enorme relevância na
atualidade. As entidades públicas, e, em especial, as entidades reguladoras
independentes, têm um poder sancionatório crescente e severo, sobretudo
o de natureza contraordenacional, em diversos domínios, cada vez mais
alargados, aliás, por atuação dos sujeitos e operadores económicos que

-237-
Parte V – Direito Administrativo especial

contrariem o direito administrativo económico, ambiental, das telecomu-


nicações, energético, sendo certo que as sanções normalmente previstas
são gravosas. As coimas têm molduras com mínimos e máximos de valores
elevados. E as sanções acessórias são diversificadas e podem impor restri-
ções severas. Acresce a isto o facto de ser possível fazer acompanhar estas
decisões de medidas cautelares e de outras medidas de publicidade e de
comunicação a certos organismos públicos (por exemplo, no caso de apli-
cação de sanções a industriais da construção civil, deve comunicar-se ao
Instituto da Construção e do Imobiliário, I.P. a situação de transgressão).
E a centralidade do direito sancionador também tem que ver com a
dignidade crescente do bem jurídico a proteger. Hoje, o direito adminis-
trativo sancionador visa punir as ofensas a bens jurídicos tão valiosos co-
mo sejam o meio ambiente, a segurança rodoviária, a higiene e segurança
no trabalho, o bom funcionamento dos mercados, a tutela dos consumido-
res e a sustentabilidade financeira do Estado. A Administração Pública
sancionadora tem, pois, razões para existir.

1.2. Universo do poder sancionatório: delimitação das respetivas fronteiras

Do que se trata aqui é de perceber onde começa e onde acaba o uni-


verso do poder sancionatório da Administração Pública e de saber distin-
guir um ato sancionatório de um ato desfavorável. Assim, por exemplo 184,
vejamos estas situações: o professor expulsa o aluno da sala, a funcionária
afasta o leitor barulhento da biblioteca, o agente da PSP reboca a viatura
estacionada em local proibido, os serviços municipalizados capturam ani-
mais vadios. Eis as nossas dúvidas: acabámos de dar exemplos de atuações
sancionatórias das entidades públicas? Vejamos outras situações: o conce-
dente sequestra a concessão ao concessionário, com todas as consequências
que daí decorrem185, o dono da obra aplica uma multa a um empreiteiro e

184 Alguns dos exemplos são apresentados por DIOGO FREITAS DO AMARAL («O

Poder Sancionatório da Administração Pública», cit., p. 218) como atos sancionatórios sem
que sejam precedidos de procedimento.
185 O STA, por Acórdãos de 30.092004 e de 03.11.2004, classifica como infração admi-

nistrativa a constituição em mora do concessionário de sala de jogo de bingo por dívidas ao

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Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

rescinde, em seguida, unilateralmente o contrato; a entidade pública pro-


cede à revogação da licença de funcionamento de um bar, por não cumpri-
mento por parte do seu beneficiário da cláusula acessória de modo que lhe
vinha aposta; a entidade pública expulsa um estrangeiro do território na-
cional, a Administração fiscal aplica uma coima a contribuinte que entrega
a declaração de IRS fora de prazo. Continuámos a falar de poder sanciona-
tório das entidades públicas? Mais exemplos, mais dúvidas: vigilante de
museu impede turista seminu de entrar em museu; revisor de ALFA aplica
multa a passageiro sem bilhete. De que estamos a falar, na realidade?
Enfim, impõe-se, em primeiro lugar, procurar estabelecer uma dife-
rença entre o domínio do poder sancionatório administrativo e o domínio
do poder sancionatório criminal e, aqui, apraz convocar critérios de distin-
ção. Mas quais? Eis mais um problema: i) o do bem jurídico? Talvez este
critério já não seja suficiente para o fazer, pois o direito administrativo san-
cionatório também sanciona e pune a lesão de valores caros à comunidade;
ii) o da ressonância ética? Este levar-nos-ia a concluir erradamente que um
sistema é neutro por oposição ao outro; iii) critérios de natureza formal e
quantitativa para distinguir as sanções penais das administrativas? Talvez
seja o mais adequado. Pensemos no tipo de sanção: num caso é a coima,
no outro, as penas. Pensemos na entidade ou órgão competente para apli-
car as sanções: as penas são exclusivamente aplicadas pelos tribunais. E
atente-se agora na classificação político-legislativa: de facto, basta ver a no-
ção de contraordenação, presente nos arts. 1.º e 2.º do RGCO, para perce-
ber: contraordenação é todo o facto ilícito e censurável descrito e declarado
passível de coima por lei anterior ao momento da sua prática. No caso ale-
mão, o legislador optou por definir como facto antijurídico e culposo que
integra o tipo de uma lei para a qual está estabelecida uma sanção pecuniá-
ria (Geldbusse).
Cumpre, agora, distinguir as decisões sancionatórias versus outras
decisões de intervenção administrativa com carácter desfavorável para o
visado. Vejamos as medidas de polícia, as medidas de segurança, as me-

Estado relativas a contribuições ou impostos, punida com multa ou, quando a gravidade da
infração o justifique, com rescisão do contrato de concessão.

-239-
Parte V – Direito Administrativo especial

didas de restauração da legalidade, a revogação de atos favoráveis e a prá-


tica de atos desfavoráveis ou impositivos, sobretudo quando estes, maxime,
as medidas de restauração da legalidade, são emitidos antes ou ao mesmo
tempo que decorre o processo de contraordenação ou a par da decisão que
aplica a coima, confundindo-se com a medida acessória daquela.
Pois bem, a jurisprudência nem sempre distingue uniformemente as
figuras e nem sempre com base nos mesmos critérios: uma corrente não
hesita em qualificar como ato administrativo certas medidas de restaura-
ção da legalidade que são tomadas antes do processo contraordenacional,
independentemente de este vir a ser desencadeado ou até desembocar na
aplicação de sanção. Por exemplo, foi neste sentido que decidiu o Tribunal
de Conflitos, pelo Acórdão de 04.11.2008, proc. n.º 021/2007: tinha subja-
cente a decisão camarária pela qual se impunha a realização de obras de
conservação num prédio, por o mesmo se encontrar em mau estado de con-
servação. O tribunal entendeu que se tratava de uma providência limita-
tiva da propriedade, aplicada com o fim de evitar danos sociais, em face
da mera existência objetiva do risco de produção desses danos, indepen-
dentemente da possibilidade de imputação de qualquer facto ou atuação
ilícita àquele a quem é dirigida a providência administrativa, pelo que não
traduziria a aplicação de contraordenação. Antes consubstanciava-se num
verdadeiro ato administrativo, segundo o conceito vertido no art. 120.º do
CPA, devendo o seu controle estar entregue aos tribunais administrativos.
E de igual modo também não hesita em classificar como ato administrativo
aquele que é emitido no decurso do processo de contraordenação, às vezes
a par da decisão sancionatória contraordenacional, classificando-o como
verdadeiro ato administrativo, de natureza não sancionatória, contencio-
samente recorrível para os tribunais administrativos. Por exemplo, o Su-
premo Tribunal Administrativo (por Acórdão de 03.06.03, proc. n.º 865/03)
considerou que a decisão da entidade administrativa local, que aplica ao
munícipe uma coima e lhe ordena que proceda à reposição do terreno à
situação anterior à obra efetuada, demolindo as construções e repondo os
materiais retirados do desaterro, com modelação e compactação do terreno
e reposição do coberto vegetal autóctone, encerra duas ordens de estatui-
ções de natureza diferente: uma trata-se de uma coima com natureza san-

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Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

cionatória, a outra, a ordem de reposição do terreno ao estado anterior à


efetivação da obra, é um ato administrativo restaurador da legalidade ad-
ministrativa, não se tratando, pois, de nenhuma medida acessória de con-
traordenação. Sendo uma medida meramente administrativa aplicada por
ato administrativo impositivo, o lesado pode recorrer aos tribunais admi-
nistrativos e lançar mão dos mecanismos previstos no CPTA, podendo so-
correr-se em especial da ação administrativa e das providências cautelares
conservatórias.
Mas a questão não é nada simples e está longe de ser resolvida de
modo uniforme pelos tribunais, pois há decisões emitidas antes ou no de-
curso do processo de contraordenação que podem revestir a natureza de
medida cautelar e nem sempre assim são entendidas, como, por exemplo,
a de apreensão de bens (que serviram ou estavam destinados a servir para
a prática de uma contraordenação), de encerramento de estabelecimento e
de interdição de atividade profissional, ou, designadamente, a de suspen-
são imediata de exercício de atividades de estabelecimento, no âmbito de
um processo contraordenacional. Ora, vejamos, os tribunais comuns têm
entendido que tais decisões têm natureza cautelar (podendo tratar-se de
uma medida antecipatória da sanção aplicável e não um ato administrativo
provisório) e delas cabe recurso para os tribunais comuns, respeitando-se
o princípio da unidade do sistema. Pensemos no Acórdão da Relação do
Porto de 20.02.2008, proc. n.º 7172213: em causa estava uma decisão da
ASAE pela qual se procedeu à suspensão imediata do exercício da ativi-
dade de estabelecimento, no âmbito de um processo contraordenacional.
Desta decisão houve recurso para os tribunais comuns, por força do art.
55.º do RGCO, sendo certo que o mesmo não teve efeito suspensivo.
São, de facto, muitas as incertezas em torno do poder sancionatório
da Administração Pública. Por exemplo: como distinguir as medidas san-
cionatórias das não sancionatórias, mas igualmente lesivas? As medidas
de polícia são ou não sanções? Entende-se que não são sanções adminis-
trativas, pois elas procuram prevenir comportamentos ilícitos e não sancio-
ná-los. Elas têm por finalidade a defesa da ordem pública em sentido am-
plo. Neste contexto, SÉRVULO CORREIA define a atividade de polícia co-
mo «a actividade da Administração Pública que consiste na emissão de

-241-
Parte V – Direito Administrativo especial

regulamentos e na prática de actos administrativos e materiais que contro-


lam condutas perigosas dos particulares, com o fim de evitar que estas ve-
nham ou continuem a lesar bens sociais cuja defesa preventiva através de
actos de autoridade seja consentida pela Ordem Jurídica»186. Assim, en-
quanto as medidas administrativas sancionatórias têm uma função puni-
tiva, repressiva e constituem uma reação à violação consumada de um pre-
ceito legal, as medidas de polícia são essencialmente preventivas, prevale-
cendo o elemento finalístico da distinção: «elas visam a prevenção ou afas-
tamento de perigos gerados por comportamentos individuais para interes-
ses públicos legalmente reconhecidos»187.
E as medidas de segurança? Pois bem, a medida de segurança está
necessariamente conectada ao ilícito típico criminal, pressupondo a prática
de um crime. A entidade competente para aplicar a medida de segurança
são os tribunais, sendo certo que a mesma só pode ser aplicada post delic-
tum ou ante delictum, tendo esta uma finalidade preventiva.
No que respeita às medidas de restauração de legalidade, o que di-
zer? Dizer que estas não devem confundir-se com as sanções, pois, enquan-
to estas se traduzem num mal aplicado ao infrator, aquelas, embora pos-
sam ir de par com a aplicação de sanções, são outra coisa. São a mera res-
tauração da legalidade infringida. Pode bem acontecer, na verdade, que
um mesmo facto, por exemplo, a construção de um edifico sem licença, dê
origem a um procedimento sancionatório e a uma medida de restauração
da legalidade (demolição) sem que esta constitua uma sanção, embora pos-
sa ter consequências mais gravosas. E bem pode suceder, nesse caso, que
a sanção não seja aplicada, por se concluir que o dono da obra não teve cul-
pa (disseram-lhe na câmara municipal que aquele tipo de obras não neces-
sitava de licença) ou porque, por exemplo, faleceu. Mas, mesmo que não
seja aplicada a sanção, a medida de restauração da legalidade mantém-se
e o prédio deverá ser demolido (se as obras não forem legalizáveis). A res-
tauração da legalidade não tem, pois, em conta a culpa, nem indaga quem
é dono do prédio. Apenas considera o dever de repor a legalidade. Assim

186 JOSÉ MANUEL RIBEIRO SÉRVULO CORREIA, «Polícia», in Dicionário Jurídico da


Administração Pública, Vol. VI, Lisboa, 1994, pp. 393 a 408.
187 Ibidem.

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Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

sucede com a ordem de demolição de obras de construção não legalizáveis,


pois o que se pretende é restaurar a legalidade e a medida aplica-se contra
o proprietário atual do prédio, ainda que não tenha sido ele quem proce-
deu à construção, devendo notar-se que não lhe pode ser imposta a coima
respetiva.
Já no que tange à revogação de certos atos favoráveis, por incumpri-
mento da condição ou modo por parte dos destinatários 188, cumpre dizer
que há quem entenda, por exemplo, que a revogação da licença de funcio-
namento de um bar, por ultrapassar os limites de ruído que lhe foram im-
postos na licença atribuída, não é uma sanção administrativa, no sentido
que aqui lhe damos de um mal infligido por uma infração, mas apenas o
cumprimento da obrigação que pesava sobre o dono do bar.
Enfim, que critério seguir nesta distinção? Como distinguir as san-
ções administrativas das decisões de encerramento de um estabelecimento
que funcione sem a necessária licença administrativa, a ordem de demoli-
ção de obras de construção não legalizáveis ou de reposição do terreno no
estado em que se encontrava? A sanção castiga um comportamento ilegal
do sujeito a quem é imposta, enquanto as outras medidas tendem a satis-
fazer interesses públicos, independentemente de implicarem ou não um
prejuízo para o destinatário. A sanção administrativa tem por base um ilí-
cito administrativo (uma conduta ilícita) e tem uma finalidade aflitiva ou
punitiva, fazendo incidir sobre o sujeito a quem é imposta uma consequên-
cia desvantajosa, seja ela a privação de um direito, seja o pagamento de
uma quantia. A sanção é aplicada a quem deixe de cumprir, sem justifica-
ção, um dever administrativo certo e determinado normativamente im-
posto189.

188 Notar bem a classificação que DIOGO FREITAS DO AMARAL faz deste tipo de

atos («O Poder Sancionatório da Administração Pública», cit., pp. 218 e ss.).
189 Sobre estes problemas, vd. ANTÓNIO CÂNDIDO DE OLIVEIRA, O poder sancio-

natório da Administração Pública, aula de 11 de abril de 2011, pol. da Escola de Direito da Uni-
versidade do Minho, ano letivo 2010/2011.

-243-
Parte V – Direito Administrativo especial

1.3. Universo do poder sancionatório: categorias e respetivas fronteiras

Importa, desde logo, perceber que o universo sancionatório inclui as


sanções disciplinares, as sanções corporativas (disciplinares e outras), as
sanções contraordenacionais (coimas e outras penas acessórias) e outras
sanções administrativas inominadas190.
Comecemos pelas sanções disciplinares para lhe traçarmos o respe-
tivo âmbito. Aqui se inclui as penas disciplinares aplicadas a trabalhadores
que exercem funções públicas (nos termos da Lei Geral do Trabalho em
Funções Públicas – LGTFP). De resto, a aplicação de penas aos funcioná-
rios constitui a mais segura e incontestada manifestação do poder sancio-
natório da AP. Neste quadro, é forçoso o reconhecimento de traços essen-
ciais, como sejam a necessidade de procedimento administrativo prévio
(processo disciplinar), a garantia do fundamental direito de defesa do ar-
guido, o princípio da tipicidade legal das penas e a impugnabilidade ad-
ministrativa e judicial do ato sancionatório.

190 Sobre este assunto, DIOGO FREITAS DO AMARAL («O Poder Sancionatório da

Administração Pública», cit., p. 225) considera que o poder sancionatório encerra três grandes
áreas: a do ilícito disciplinar administrativo, a do ilícito de mera ordenação social (ou contra-
ordenacional) e a do controlo administrativo da ilicitude de certas atividades públicas e pri-
vadas, que implicam uma colaboração especial do particular com a Administração Pública.
Sobre este tema, vd. VITAL MOREIRA, Apontamentos Curso de Estudos Avançados em Gestão
Pública, INA.; Direito Administrativo, 2.ª turma, 2003. Por seu lado, MARGARIDA E. L. M
DE FARIA (O sistema de sanções e os princípios do direito administrativo sancionador, cit., p. 32),
na senda de E. GARCÍA DE ENTERRÍA, distingue a sanção administrativa geral da sanção
administrativa especial, elegendo como critério de diferenciação o tipo de relação jurídica
estabelecida entre a Administração sancionadora e o administrado sancionado. Assim, no
primeiro caso, fala a autora de uma sanção que se impõe no âmbito de uma relação geral de
poder, que é aquela que se estabelece entre a Administração e todos os cidadãos, indepen-
dentemente da sua vontade, na medida em que todos estão sujeitos à sua autoridade ius pu-
niendi, visando com a sua efetivação a proteção do interesse público a que a Administração
está adstrita no exercício da sua atividade. A sanção administrativa especial incide sobre
aquelas pessoas que voluntariamente (ou por força da lei ou de uma decisão judicial) estabe-
lecem uma ligação específica com a Administração, uma relação especial de poder, manten-
do-se o contacto e sob o controlo da entidade administrativa a que se vinculam, afetando com
os seus ilícitos interesses públicos mais específicos, enquanto mais orientados à tutela da or-
dem administrativa interna, ao seu funcionamento interno.

-244-
Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

Notar ainda a existência de poder disciplinar acolhido em estatutos


especiais. Aqui, como exemplo, cumpre convocar o poder disciplinar sobre
os militares e sobre os agentes da PSP e GNR, que é mais apertado do que
o dos funcionários civis, e o poder disciplinar sobre os magistrados.
Notar também a existência de poder disciplinar sobre os utentes dos
serviços que funcionem na base de direito público, permitindo a configu-
ração de relações especiais de poder. Importa salientar o poder disciplinar
sobre os reclusos de um estabelecimento prisional, que é um poder in-
tenso191, o poder disciplinar sobre doentes internados em serviços hospita-
lares e respetivos visitantes192, o poder disciplinar sobre alunos que fre-
quentam escolas em regime de internato, como, por exemplo, os que inte-
gram o Colégio Militar ou Instituto dos Pupilos do Exército, o poder disci-
plinar sobre os alunos das escolas públicas ou o poder disciplinar sobre
utentes de bibliotecas, arquivos públicos, museus e outros estabelecimen-
tos públicos193. Neste caso, trata-se de manter uma certa disciplina que as-
segure o funcionamento do serviço.
Não podemos ignorar as penas disciplinares aplicadas a profissio-
nais integrados em ordens ou câmaras profissionais, uma vez que há uma
disciplina interna a que estão sujeitos os membros das associações públi-
cas, designadamente ordens profissionais, podendo estas corresponder à
admoestação, suspensão de exercício e interdição definitivo de atividade
ou profissão194.
A par das sanções disciplinares, há que distinguir as sanções que
constituem ilícito contraordenacional de outras sanções sem natureza con-
traordenacional. Ora, lembrando, o ilícito contraordenacional pressupõe a
aplicação de coima (e medida acessória) e tem subjacente a prática de atos
ilícitos pelos particulares a que já se deu o nome de transgressões adminis-

191 Ver diploma legal: Decreto-Lei n.º 265/79, de 1 de agosto, designadamente, arts.
128.º e ss.
192 Vd. diploma legal e, por exemplo, Regulamento de visitas do Hospital de S. Mar-

cos, em Braga.
193 Desafio: cfr. Regulamento Geral de uma Biblioteca (consultar por exemplo o sui

generis regulamento da Biblioteca Geral da Universidade do Minho), Lei Quadro do Museus


Portugueses (Lei n.º 47/2004, de 19 de agosto) e Regulamento Interno de um Museu.
194 Desafio: cfr. Estatuto da Ordem dos Advogados e o Regime Jurídico das Associa-

ções de Regantes.

-245-
Parte V – Direito Administrativo especial

trativas195. O poder sancionatório contraordenacional das entidades admi-


nistrativas está disciplinado pelo RGCO, o Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de
outubro, com alterações posteriores, e pretende ser a lei-quadro integra-
dora dos princípios substantivos e procedimentais do direito contraorde-
nacional português, à semelhança da Lei Italiana n.º 689/91 ou da OWIG
alemã.
São numerosos os casos que constituem ilícitos de mera ordenação
social e são sancionados com uma coima. Aliás, o domínio das contraorde-
nações abrange distintas áreas do Direito: da economia, do ambiente, do
urbanismo. E há muitas contraordenações cuja sanção é da competência
das Entidades Reguladoras Independentes que atuam no domínio da con-
corrência, no mercado de valores mobiliários, na comunicação social,
etc.196.
Assim, são exemplos de contraordenações no nosso sistema jurídico
as infrações ao Código da Estrada; as infrações ao Código do Trabalho; as
infrações tributárias (Lei n.º 15/2001, de 6 de junho, Regime Geral das In-
frações Tributárias – RGIT); a violação de posturas e regulamentos de na-
tureza genérica das autarquias locais (Lei das Finanças Locais, a que se de-
ve aplicar o RGIT); as infrações às disposições legais relativas à aviação ci-
vil (Decreto-Lei n.º 10/2004, de 9 de janeiro); as contraordenações ambien-
tais (Lei n.º 50/2006, de 29 de agosto); as infrações no domínio dos regimes
da Segurança Social (Regime das Contraordenações da Segurança Social).
Quanto à sua origem, como bem se sabe, umas provêm da descrimi-
nalização e têm na sua origem uma infração penal, resultando da transfor-
mação de anteriores contravenções em contraordenações (ou, por outras
palavras, resulta da transformação das contravenções tidas como bagatelas
em ilícito administrativo) e outras são criadas ex novo.

195 O Código Administrativo de 1936-40 previa a aplicação máxima da pena de prisão

até um mês à violação de regulamento e posturas municipais.


196 Desafio: ver, por exemplo, Estatuto da CMVM (art. 9.º, alínea p)); Estatutos da

Autoridade da Concorrência (art. 7.º, n.º 2); Estatutos da Entidade Reguladora para a Comu-
nicação Social (arts. 67.º e ss.).

-246-
Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

Aspetos fundamentais que caracterizam o regime procedimental


das contraordenações são a notícia, a averiguação e a prova dos factos ilí-
citos, a defesa do arguido e a emissão de sanção (coima ou outra medida
acessória, prevista no art. 21.º do RGCO, como, por exemplo, o encerra-
mento de estabelecimento, a suspensão do exercício de atividade ou pro-
fissão). Em qualquer caso, há um procedimento administrativo que é con-
duzido por uma entidade administrativa e culmina na prática de um ato
administrativo. O ato sancionatório é impugnável nos tribunais judiciais e
não nos tribunais administrativos, como acontece com os demais atos san-
cionatórios das entidades administrativas (vd. arts. 87.º e ss. da Lei de Or-
ganização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (LOFTJ)) 197. Estará esta
solução bem, sobretudo quando sabemos que o direito contraordenacional
é direito administrativo198? Voltaremos a este assunto.
Finalmente, a par do poder disciplinar e contraordenacional, existe
ainda um poder sancionatório inominado. É pertinente, contudo, questio-
nar o que acabámos de dizer. Aliás, pode perguntar-se se o legislador pode
prever outras medidas sancionatórias administrativas, a par daquelas ou-
tras já mencionadas. Enfim, estamos a falar das sanções administrativas
inominadas: aquelas que se traduzem em sanções rescisórias de atos admi-
nistrativos favoráveis e se desenvolvem, tanto no âmbito de relações de
supremacia especial da Administração (empreitadas, concessões e outros
contratos administrativos), como no âmbito de atos administrativos, como

197 Como se sabe, há uma longa tradição, que vem já desde a Revolução Liberal, no
sentido de que os tribunais judiciais são mais credíveis para a defesa das liberdades e valores
mais caros ao cidadão, como sejam a liberdade individual e a propriedade privada.
198 Como afirma DIOGO FREITAS DO AMARAL («O Poder Sancionatório da Admi-

nistração Pública», cit., p. 223), «não se estranhe, entretanto, que incluamos o chamado “di-
reito de mera ordenação social” como parte do Direito Administrativo: é a solução que há
anos temos defendido no nosso ensino». Vd., do mesmo autor, Manual de Introdução ao Direito,
I, Coimbra, Almedina, 2004, pp. 277 a 281. Sobre este assunto, escrevem HANS J. WOLFF/
/OTTOBACHOF/ROLF STOBER (Direito administrativo, Vol. I, tradução de António F. de
Sousa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2006, p. 255): «O direito administrativo destina-se a
ser respeitado por aqueles que por ele são atingidos. Por isso, o direito das contra-ordenações,
ao ocupar-se das circunstâncias de facto e da punição do ilícito administrativo, é parte essen-
cial do direito administrativo. (…) A relação com o direito administrativo resulta sobretudo
da competência das autoridades administrativas e da posição das circunstâncias de facto que,
por via de regra, se encontram no capítulo final das leis respectivas. A literatura dos manuais
ignora geralmente este aspecto».

-247-
Parte V – Direito Administrativo especial

as autorizações e as licenças, que se desenvolvem na esfera das relações


gerais entre a Administração e os particulares, na medida em que não re-
sultam de qualquer vínculo hierárquico estabelecido, nem da celebração
de nenhum contrato entre ambos (VITAL MOREIRA). Estas constituirão
aquelas medidas que, por força de lei, não se consubstanciam fatalmente
na aplicação de uma coima, cuja aplicação é da competência da Adminis-
tração Pública e que estão previstas em normas cujo fim ou objetivo é,
ainda que não exclusivamente, castigar ou punir o particular pela violação
de determinados deveres administrativos.
Este tipo de sanções administrativas é constitucionalmente possí-
vel? A partir do art. 165.º, alíneas c) e d), poderia parecer que não. Contudo,
lembremo-nos da medida de restrição do uso de cheque (art. 10.º, n.º 1, do
Decreto-Lei n.º 14/84, de 11 de janeiro)199: o Tribunal Constitucional come-
çou por considerar que o «programa constitucional relativo ao direito san-
cionatório está definido nas alíneas c) e d) do art. 165.º, só admitindo ao
lado do direito penal, o direito disciplinar e o direito contraordenacional».
No caso em questão, o TC considerou existir apenas uma inconstituciona-
lidade orgânica (e não material), pois cumpriria à Assembleia da República
ou ao Governo (devidamente autorizado pela Assembleia) legislar sobre a
medida restritiva do uso de cheque. Pois bem, o decreto-lei referido criou,
ao fim e ao cabo, uma sanção diferente das previstas naquele artigo, dando
o seu aval à existência de um ilícito administrativo atípico, não recon-

199 «A medida de restrição ao uso de cheque a que o presente capítulo se refere é uma

providência de natureza administrativa que envolve a proibição às pessoas a quem for apli-
cada de movimentar por meio de cheques as contas de depósito de que sejam titulares em
quaisquer instituições de crédito. A competência para a aplicar é do Banco de Portugal». E o
Tribunal Constitucional chegou a sustentar que o «programa constitucional relativo ao di-
reito público sancionatório» estava definido nas alíneas c) e d) do actual art. 165.º da CRP só
admitindo, ao lado do direito penal e do direito disciplinar, o direito contraordenacional e
submetendo-o a reserva relativa de competência legislativa por parte da Assembleia da
República. O Decreto-Lei em questão seria, assim, duplamente inconstitucional: criava ilícitos
administrativos diferentes do ilícito disciplinar e do ilícito contraordenacional contrariando
a Constituição e, por outro lado, violava a reserva relativa de competência legislativa da AR,
pois era um decreto-lei sem autorização legislativa. O Tribunal Constitucional, porém, aca-
bou por considerar apenas que havia uma inconstitucionalidade orgânica e não material. Ou
seja, só por lei da AR ou Decreto-Lei por esta autorizado poderia ser regulada a medida
restritiva de uso do cheque.

-248-
Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

duzível a ilícito disciplinar, nem ao contraordenacional. Pois bem, o TC


aceitou, assim, que possa existir outro tipo de ilícito administrativo para
além do contraordenacional e que as entidades públicas possam aplicar
outro tipo de sanções para além das do tipo disciplinar e contraordena-
cional200.
Por conseguinte, à luz do nosso ordenamento jurídico, parece poder
defender-se que é «constitucionalmente aceitável a existência de sanções
administrativas». Coisa diferente é saber se o art. 199.º, alínea g), da CRP
pode sustentar a entrega de um poder geral de sanção à AP, maxime, ao
Governo? Pois bem, pode pensar-se assim, tanto mais que cabe ao Governo
praticar todos os atos e tomar todas as providências necessárias à promo-
ção do desenvolvimento económico-social e à satisfação de necessidades
coletivas. E há, na realidade, quem assim entenda 201.
Esta subcategoria do universo do poder sancionatório das entidades
administrativas incluirá, segundo FREITAS DO AMARAL, as seguintes
modalidades202: sanções administrativas aplicadas pelo poder central ao
poder local, pelo não cumprimento de certos requisitos legais ou condições
e encargos constantes do próprio ato ou contrato que constitui o benefício;
a revogação de subsídios; a revogação de comparticipações; a revogação
de isenções fiscais, sendo certo que também são sanções administrativas
inominadas as sanções administrativas aplicadas a entidades particulares
de utilidade pública, como seja a revogação ou suspensão do estatuto de
utilidade pública, a revogação ou a suspensão de benefícios fiscais, bem
como os atos de rescisão contratual a título sancionatório e a revogação

200 Diz-se, a este propósito, no Acórdão do Tribunal Constitucional de 03.07.1991: «O


que o Governo fez foi criar um ilícito administrativo atípico, pois que não sendo ilícito disci-
plinar também se não reconduz ao conceito de contra-ordenação, uma vez que a medida de
restrição ao uso dos cheques não é uma coima. (…) Ainda que haja de ter-se por constitucio-
nalmente admissível a criação de ilícitos administrativos para além do ilícito disciplinar e do
ilícito contraordenacional, só a Assembleia da República ou o Governo por ela autorizado
hão-de poder criar tal tipo de ilícito e definir-lhe o respectivo regime, sob pena de se defrau-
dar o sentido da reserva parlamentar. Daí a inconstitucionalidade das normas em questão».
201 Neste sentido, vd. ANTÓNIO CÂNDIDO DE OLIVEIRA, O poder sancionatório da

Administração Pública, cit., e MARGARIDA ERMELINDA LIMA DE MORAIS DE FARIA, O


sistema das sanções e os princípios do direito administrativo sancionador, cit., p. 62.
202 Vd. DIOGO FREITAS DO AMARAL, «O Poder Sancionatório da Administração

Pública», cit., p. 225.

-249-
Parte V – Direito Administrativo especial

sancionatória203, id est a revogação de atos favoráveis aos seus destinatários


e que dependem da aceitação deles, por não cumprimento de modo, sendo
certo que falamos neste caso da revogação de autorizações, de licenças, de
concessões. Vejamos um exemplo: revogação pela câmara municipal de li-
cença de ocupação da via pública, destinada à instalação do café, numa
esplanada, por incumprimento de obrigações decorrentes do alvará refe-
rentes às formas de acomodamento do público.
Mais complicado é saber se estas sanções estão sujeitas ao princípio
da reserva de lei. O art. 165.º classifica como reserva relativa da Assembleia
da República «a definição dos crimes, penas e medidas de segurança e res-
petivos pressupostos, bem como o processo criminal» (alínea c)) e o «regi-
me geral de punição das infrações disciplinares, bem como dos atos ilícitos
de mera ordenação social e do respetivo processo» (alínea d)). Ora, há
quem entenda que, na Constituição, as infrações e penas não criminais não
estão sujeitas ao princípio da reserva de lei parlamentar, sendo certo que o
art. 165.º, alínea d), só reserva para lei parlamentar (ou decreto-lei autori-
zado) o regime geral das contraordenações e das sanções disciplinares, o
que há de implicar, entre outras coisas, o elenco das sanções e respetivos
limites, bem como o processo de aplicação das sanções. Isto quer dizer que
a competência para a definição concreta dos ilícitos administrativos pode
caber ao Governo e às Regiões Autónomas (naturalmente por via legisla-
tiva), mas pode também ser diferida por lei (da Assembleia da República)
para regulamento autónomo, local ou corporativo204. Há quem aponte para
o critério que atenda à exigência de emissão de uma lei, por existir uma
conexão da infração ou sanção com um direito fundamental, tanto mais
que o art. 165.º, n.º 1, alínea b), da CRP assim o exige.

203 A este propósito, DIOGO FREITAS DO AMARAL («O Poder Sancionatório da Ad-

ministração Pública», cit., p. 225.) refere o seguinte: «a revogação sancionatória tem a parti-
cularidade singular de corresponder ao único caso em que um acto administrativo válido e
constitutivo de direitos pode ser revogado pela Administração sem o consentimento do seu
destinatário, ou até contra a vontade dele, e sem que ele tenha direito a qualquer indemniza-
ção», sendo certo que o autor dá carácter genérico à revogação sancionatória.
204 Neste sentido, VITAL MOREIRA, Apontamentos Curso de Estudos Avançados em Ges-

tão Pública, cit., p. 214.

-250-
Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

2. Garantias do sancionado no domínio contraordenacional: algu-


mas fragilidades

Para além dos problemas, a que já fizemos alusão, decorrentes da


dificuldade em distinguir o universo do poder sancionatório daquele que
acolhe atos desfavoráveis sem esse carácter, e de tudo o que em matéria de
proteção com isso está relacionado, há que considerar a diferença quanto
à repartição de competências jurisdicionais, conforme se esteja no domínio
do ilícito de mera ordenação social ou no do demais ilícito administrativo
não contraordenacional.
De facto, não cabe ao juiz administrativo apreciar as decisões con-
denatórias e as demais decisões emitidas no decurso do processo de con-
traordenação. Todos sabemos que razões históricas e pragmáticas afasta-
ram o contencioso contraordenacional do juiz administrativo 205. No pre-
âmbulo do Decreto-Lei n.º 232/79, o legislador reconhecia «de boamente
que a pureza dos princípios levaria a privilegiar a competência dos tribu-
nais administrativos (ponto 5), sendo certo que só por razões pragmáticas
se optou pela atribuição da competência aos tribunais judiciais», sendo
esta «pelo menos uma solução imediata e eventualmente provisória»206. A
dogmática é unânime a considerar que juridicamente haveria razões para
convocar o juiz administrativo para estas questões, mas FREITAS DO

205 De facto, o primeiro diploma sobra a matéria (o Decreto-Lei n.º 232/79, de 24 de ju-

lho) reconhecia que as instâncias judiciais naturalmente competentes deveriam ser as judi-
ciais administrativas. Contudo, também veio estabelecer que só por razões pragmáticas, pon-
deradas as vantagens e desvantagens de qualquer das soluções, se optou pelos tribunais co-
muns, sendo certo que a opção teria um carácter provisório.
206 De facto, diz-se aí o seguinte: após algumas hesitações, optou-se por atribuir aos

tribunais comuns a competência para conhecer do recurso de impugnação judicial. Reconhe-


ce-se de boamente que a pureza dos princípios levaria a privilegiar a competência dos tribu-
nais administrativos. Ponderadas, contudo, as vantagens e as desvantagens que qualquer das
soluções comporta, considerou-se mais oportuna a solução referida, pelo menos, como solu-
ção imediata e eventualmente provisória. E isso por ser a solução normal em direito compa-
rado. E, ainda, por se revelar mais adequada a uma fase de viragem tão significativa como a
que a introdução do direito de ordenação social representa. Além do mais, afiguram-se mais
facilmente vencíveis naturais resistências ou reservas da comunidade dos utentes do novo
meio de impugnação judicial.

-251-
Parte V – Direito Administrativo especial

AMARAL e M. AROSO DE ALMEIDA falam de uma «indesejabilidade


prática».
De resto, não obstante a leitura dominante do art. 212.º, n.º 3, da
CRP, que aceita a existência de uma reserva relativa de competência dos
tribunais administrativos para os litígios emergentes da relação jurídico-
-administrativa, importaria reequacionar a vinda da temática para a respe-
tiva sede própria. É certo que sempre se poderá obstar a essa ideia, afir-
mando que ainda não há um quadro conjetural propício a esse encaixe,
por, no contexto atual, ainda não existirem em primeira instância juízos
especializados em razão da matéria.
Ora, como afirmam GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, a
aceitação do desvio pode ter por base a existência de um «obstáculo in-
transponível, de ordem logística, ligado à insuficiência de tribunais admi-
nistrativos e pela necessidade de salvaguardar a tutela jurisdicional efec-
tiva, que poderia ficar comprometida pelo entupimento e irregular funcio-
namento daqueles, se o legislador ordinário atribuísse, de imediato, aos
tribunais administrativos o julgamento de todos os litígios de natureza ad-
ministrativa».
Outros autores, como SIMAS SANTOS e JORGE LOPES DE SOUSA,
consideram mesmo que a atribuição de tal competência aos tribunais judi-
ciais viola preceitos constitucionais (designadamente, os arts. 110.º, n.º 2,
211.º, n.º 1, e 212.º, n.º 3, da CRP)207. E assim é sobretudo porque há dife-

207 De resto, MANUEL SIMAS SANTOS/JORGE LOPES DE SOUSA (Contra-ordena-

ções, Anotação ao Regime Geral, 6.ª ed., Áreas Editora, 2011, pp. 479 a 481) consideram que, nos
termos daqueles preceitos, cabe ao legislador constituinte definir a formação, a composição,
a competência e o funcionamento dos órgãos de soberania, sendo certo que o legislador cons-
tituinte estabelece que os tribunais judiciais, não obstante serem os tribunais comuns em ma-
téria cível e penal, exercem jurisdição em áreas não atribuídas a outras ordens jurisdicionais.
Ora, nos termos do art. 212.º, n.º 3, o legislador constituinte estabelece que os tribunais admi-
nistrativos são competentes para dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas admi-
nistrativas, sendo certo que, nestes casos, falamos de um verdadeiro processo administrativo,
de competência de autoridades administrativas, com o qual se prosseguem fins de interesse
público incluídos nos objetivos das entidades que exercem a função administrativa e que ter-
minam com a emissão de uma ato administrativo. Isto é, o que resulta da leitura do preâm-
bulo do diploma que introduziu o ilícito de mera ordenação em Portugal. Além disso, o di-
reito de mera ordenação social visa assegurar a realização de interesses públicos cuja prosse-
cução se integra no âmbito funcional da AP. Ora, como atividade administrativa que é,

-252-
Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

rença quanto ao rol de ferramentas de defesa judicial de que dispõe o san-


cionado, o que nos leva a questionar, designadamente, a possibilidade de
os sancionados lançarem mão das providências cautelares que considerem
adequadas a salvaguardar os seus interesses. No contexto das sanções su-
jeitas ao ilícito contraordenacional, é possível impugnar a decisão conde-
natória (arts. 58.º, 59.º e 61.º do RGCO) junto dos tribunais judiciais (crimi-
nais, ou outros, conforme se dispõe na LOFTJ)208. Mais precisamente, nos
termos do art. 59.º, a decisão administrativa que aplica a coima é suscetível
de impugnação judicial. O recurso judicial da decisão (ou recurso de im-
pugnação que, como diz A. CÂNDIDO OLIVEIRA, é «coisa estranha») de
aplicação de coima (que deve conter alegações e conclusões) é feito por
escrito e apresentado à autoridade administrativa que aplica a coima, no
prazo de 20 dias (a contar nos termos do art. 60.º, sendo dias úteis), após o
seu conhecimento. A impugnação da decisão é apresentada na entidade
administrativa que aplica a coima (e não ao tribunal a que é dirigido), a
fim de aquela poder reapreciar a decisão, à luz das críticas que o arguido
lhe fizer e com vista a poder ainda revogá-la (art. 62.º, n.º 2, do RGCO),
sendo certo que, aberta a via judicial, já não está em causa a apreciação da
validade da decisão administrativa sancionatória, mas a dedução de uma
acusação (nos termos do art. 62.º): este estabelece que, recebido o recurso,
deve a entidade administrativa enviar os autos ao Ministério Público, que
os remeterá ao juiz, valendo este ato de envio como acusação, sendo certo
que o MP se depara com uma decisão administrativa sem dela conhecer
mais nada, não sendo acompanhada do processo administrativo, havendo
necessidade de fazer a prova em julgamento. O recurso tem efeito suspen-
sivo, nos termos do art. 408.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal
(CPP), subsidiariamente aplicável ex vi art. 58.º, n.º 2, do RGCO, uma vez

justifica-se, no entender destes autores, que, congruentemente, o controle judicial da mesma


fosse atribuído aos tribunais administrativos.
208 Assim, nos termos da LOFTJ (arts. 87.º, 89.º e 90.º), a impugnação de decisões ad-

ministrativas proferidas em procedimentos de contraordenação em matéria laboral e de se-


gurança social deve ser dirigida aos tribunais de trabalho, as contraordenações de comércio
são julgadas pelos tribunais de comércio, as marítimas pelos tribunais marítimos e as infra-
ções tributárias pertencem aos tribunais administrativos e fiscais. As demais impugnações
são da competência dos tribunais criminais, dos de pequena instância criminal ou, na falta
destes, dos tribunais de competência especializada criminal.

-253-
Parte V – Direito Administrativo especial

que este dispõe que a decisão apenas se torna definitiva e exequível se não
for judicialmente impugnada nos termos do art. 59.º do RGCO.
Chegados aqui, questionamo-nos se o efeito suspensivo do recurso
acionado contra a decisão que aplica a coima também abrange o recurso
da decisão pela qual se aplicam as medidas acessórias. De facto, o efeito
suspensivo não deverá acontecer apenas em relação à decisão que aplica a
coima, pois as sanções acessórias podem tratar-se de medidas de enorme
ingerência nos direitos fundamentais dos sancionados, de que pode resul-
tar um enorme sacrifício, tal como a limitação temporária da capacidade
civil do exercício de direitos, a proibição do exercício de profissão, a proi-
bição do exercício de atividades económicas, o encerramento de estabele-
cimentos ou perda de bens209.
Uma outra dúvida tem que ver com a impugnação das decisões in-
termédias do procedimento sancionatório. Vejamos melhor: é possível ao
arguido, ou às pessoas contra as quais se dirijam, impugnar as decisões
com eficácia externa, tomadas no decurso do processo de contraordenação
(arts. 55.º e 61.º do RGCO)? Neste caso, falamos, pois, de decisões, despa-
chos e demais medidas tomadas pelas autoridades administrativas no de-
curso do processo que são suscetíveis de impugnação judicial. Por isso, a
contrario, consideramos que não são suscetíveis de impugnação as medidas
que, não colidindo com os direitos e interesses das pessoas, se destinem a
preparar a decisão final de arquivamento ou a aplicação da coima. O re-
curso aos tribunais judiciais deverá seguir a forma do recurso previsto no
art. 59.º, uma vez que não tem previsão própria. Contudo, a questão é saber
se tal recurso de decisões com eficácia externa tomadas no decurso do

209 O art. 21.º estabelece que a «lei pode, simultaneamente com a coima, determinar

as seguintes sanções acessórias, em função da gravidade da infração e da culpa do agente:


Perda de objetos pertencentes ao agente; Interdição do exercício de profissões ou atividades cujo
exercício dependa de título público ou de autorização ou homologação de autoridade pú-
blica; Privação do direito a subsídio ou benefício outorgado por entidades ou serviços públicos;
Privação do direito de participar em feiras ou mercados; Privação do direito de participar em arrema-
tações ou concursos públicos que tenham por objeto a empreitada ou a concessão de obras pú-
blicas, o fornecimento de bens e serviços, a concessão de serviços públicos e a atribuição de
licenças ou alvarás; Encerramento de estabelecimento cujo funcionamento esteja sujeito a autori-
zação ou licença de autoridade administrativa; Suspensão de autorizações, licenças e alva-
rás».

-254-
Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

processo contraordenacional tem ou não efeito suspensivo. Não tendo, que


é o que nos parece, a pergunta que de imediato se impõe é a de saber se
será possível lançar mão de providências cautelares perante as mesmas. E,
enfim, não sendo possível solicitar a suspensão da eficácia desses atos, tal
como seria se os tribunais administrativos fossem competentes (por força
do art. 268.º, n.º 4, da CRP e dos arts. 2.º, 112.º e 128.º do CPTA), pergunta-
mos como pode afinal o arguido atuar em sua defesa.
E, já agora, quando tais medidas revistam a natureza de medida cau-
telar, designadamente de apreensão de objetos que serviram ou estavam
destinados a servir para a prática de uma contraordenação, como pode o
arguido reavê-los? Podem ser declarados perdidos? Por regra, só são res-
tituídos depois de a coima assumir a natureza de definitiva.
E, perante a medida de suspensão imediata de exercício de ativida-
des ou de estabelecimento, no âmbito de um processo contraordenacional,
como pode o sancionado defender-se? Como sabemos, os tribunais co-
muns têm entendido que tais decisões têm natureza cautelar e delas cabe
recurso para os tribunais comuns. Veja-se o Acórdão da Relação do Porto
de 20.02.2008, proc. n.º 7172213, que teve subjacente a decisão da ASAE,
pela qual se procedeu à suspensão imediata do exercício da atividade de
estabelecimento, no âmbito de um processo contraordenacional. Pois bem,
nestes casos, tem-se admitido o recurso. E como pode o arguido defender-
-se perante a admoestação? Bem se percebe que, quando a reduzida gravi-
dade da infração e da culpa do agente o justifique, pode a entidade admi-
nistrativa limitar-se a proferir a (pena) de admoestação por escrito, não
podendo o facto ser apreciado como contraordenação. Contudo, a per-
gunta que aqui se deixa é se o sancionado pode recorrer dela.
Enfim, uma última pergunta: é ou não tempo de o legislador portu-
guês criar um procedimento administrativo sancionatório comum a inte-
grar o CPA e de repensar a repartição de competências entre os tribunais
comuns e os tribunais administrativos?

-255-
Parte V – Direito Administrativo especial

3. Algumas notas finais

Dito isto, demonstrada a necessidade do tratamento a partir do di-


reito administrativo, deve tratar-se o problema do universo do poder san-
cionatório, distinguindo atos sancionatórios versus atos desfavoráveis; atos
sancionatórios por contraordenação versus outros atos sancionatórios.
A necessidade de pensar o acervo de garantias a que o sancionado
tem direito é igualmente premente. Importa considerar as garantias fun-
damentais (ex vi art. 32.º, n.º 10, da CRP) de audiência prévia e plena defesa
e perceber se alguns dos princípios de inspiração penalista que foram
sendo acolhidos entre nós, desde 1979, no regime contraordenacional – por
se entender que os arguidos ficariam por eles mais salvaguardados – não
são agora contrariados por soluções que se inserem, cada vez mais, em re-
gimes especiais contraordenacionais e em diplomas que disciplinam a apli-
cação de sanções pelas entidades administrativas independentes (mor-
mente pela Autoridade da Concorrência e pela ERSE). Neste sentido, im-
põe-se refletir se estas normas que aparecem em número crescente em le-
gislação especial não afastam designadamente o direito à não autoinculpa-
ção (nemo tenetur se ipsum accusare) e os princípios da presunção de inocên-
cia, in dubio pro reo, ne bis in idem e o princípio que proíbe a reformatio in
pejus, anulando as garantias fundamentais de defesa e outros direitos fun-
damentais do sancionado.
No que respeita precisamente às garantias procedimentais, merece
destaque o direito à informação do sancionado, cujo acesso não deve ser
totalmente proibido com fundamento no segredo de justiça.
Finalmente, importa refletir sobre as garantias impugnatórias, so-
bretudo em relação àquelas que se efetivam junto de instâncias imparciais
e independentes. Ora, especialmente desde a reforma constitucional de
1997 e da reforma da lei processual administrativa de 2002/2003, os tribu-
nais administrativos estão apetrechados com um instrumentarium garantís-
tico relativamente adequado àquilo que nos é imposto do ponto de vista
constitucional e europeu, pelo que a solução provisória de 1979 já não se

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Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

justifica e menos se justifica a desconfiança perante o juiz administrativo210.


Aliás, diz-nos a experiência que o juiz dos tribunais judiciais conhece me-
nos o direito substantivo subjacente ao ilícito e respeita menos os espaços
próprios de valoração administrativa, não se acanhando de, mesmo cor-
rendo o risco de se perder na tecnicidade e complexidade crescente do di-
reito administrativo, substituir a Administração na valoração de prova, na
apreciação dos factos, na aplicação do direito e, especialmente, na determi-
nação da sanção. Talvez por isso mesmo se compreende que uma pequena
parte do assunto tenha chegado aos tribunais administrativos recente-
mente ao novo ETAF (dada a alteração ao ETAF operada pelo Decreto-Lei
n.º 214-G/2015, de 2 de outubro). Aqui, destaca-se a alínea l) do n.º 1 do art.
4.º do ETAF, que refere que compete aos tribunais da jurisdição adminis-
trativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objeto questões re-
lativas a impugnações judiciais de decisões da Administração Pública que
apliquem coimas no âmbito do ilícito de mera ordenação social por viola-
ção de normas de direito administrativo em matéria de urbanismo.
O tema do poder sancionatório da Administração Pública continua
a ser em Portugal um parente pobre dos administrativistas, tanto do ponto
de vista substantivo como processual211. E sobre ele pouco se tem escrito,

210 Lamenta-se, pois, que a opção do legislador vá em sentido contrário ao raciocínio


exposto no texto. Referimo-nos à recente alteração à LOFTJ e aditamento à Lei n.º 3/99, de 13
de janeiro, introduzida pela Lei n.º 46/2011, de 24 de junho, pela qual se criam os tribunais de
competência especializada da concorrência, regulação e supervisão. Nos termos do art. 89.ºB
da Lei n.º 3/99, compete aos tribunais da concorrência, regulação e supervisão conhecer das
questões relativas a recurso, revisão e execução das decisões, despachos e demais medidas
em processo de contraordenação legalmente suscetíveis de impugnação da Autoridade da
Concorrência (AdC), da Autoridade Nacional de Comunicações (ICP-ANACOM), do Banco
de Portugal (BP), da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM), da Entidade Re-
guladora para a Comunicação Social (ERC), do Instituto de Seguros de Portugal (ISP) e das
demais entidades administrativas independentes com funções de regulação e supervisão.
211 Como já deixámos exposto em texto publicado, poucas são as exceções a esta regra.

Para uma visão sobre o assunto e para consulta da sucinta bibliografia, vd. o nosso «Incertezas
em torno do poder sancionatório da Administração Pública: certezas em torno das fragili-
dades das garantias do sancionado», in Anuário de Direito Público, Escola de Direito da Uni-
versidade do Minho, 2012.

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Parte V – Direito Administrativo especial

escasseando o respetivo tratamento em manuais, em obras da especiali-


dade ou em artigos212.
Mas, por mais irónico que nos pareça, a verdade é que o Direito das
Ordnungswidigkeiten, vigente na República Federal da Alemanha desde
1949, foi, desde as suas origens, assunto caro aos administrativistas ale-
mães, designadamente a GOLDSCHMIDT e EBERHARD SCHMIDT.
Foi, aliás, a dogmática administrativista alemã ⎼ precisamente a ad-
ministrativista ⎼ que teve o cuidado de explicar e justificar o nascimento e
a evolução da figura. Particularmente deve-se a GOLDSCHMIDT e
EBERHARD SCHMIDT o estudo do «Direito Penal Administrativo» e do
«Direito de Mera Ordenação Social»213.
Pois bem, se já no início do séc. XX se «afirmava que o Direito Penal
Administrativo era “puro instituto da Administração” que deveria ser jul-
gado pelos tribunais administrativos», é razão para nos interrogarmos so-
bre o que tem acontecido (de errado) entre nós, uma vez que este assunto
parece irremediavelmente arrebatado pelos penalistas.
Nunca é de mais sublinhar que AFONSO QUEIRÓ já fazia referên-
cia ao Verwaltungsstrafrecht nas suas Lições de Direito Administrativo, fazen-
do entrar neste domínio «muitas violações dos deveres gerais respeitantes
à ordem pública e à polícia nas suas várias manifestações, dos deveres ge-
rais em matéria financeira, e de certos deveres especiais decorrentes de re-
lações especiais de supremacia (relação de serviços, deveres militares, de-
veres dos concessionários de serviços públicos, deveres dos membros dos

212 MARCELLO CAETANO (Princípios Fundamentais do Direito Administrativo, cit., p.

307), a propósito do «processo administrativo gracioso», faz referência ao processo sanciona-


dor, aludindo às figuras do «processo disciplinar» e do «processo de transgressão». Sobre o
assunto, vd. especialmente MARGARIDA E. L. M. DE FARIA, O sistema de sanções e os princí-
pios do direito administrativo sancionador, cit., p. 51. A autora estudou o tema e julgou «benéfico
o reconhecimento legislativo, através de um código integrador e harmonizador de um Direito
Sancionador Administrativo, que reduzisse a atual complexidade do tema». No mesmo sen-
tido, vd. EUGÉNIA M. DE MOURA, Ilícito administrativo autárquico, Tese de Mestrado, Escola
de Direito da Universidade do Minho, 2010.
213 Sobre o assunto, vd. MANUEL DA COSTA ANDRADE, «Contributo para o concei-

to de contra-ordenação...», cit., pp. 81 a 123.

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Direito Administrativo II – Roteiro Teórico-Prático

órgãos colegiais, deveres dos membros de associações e corporações pú-


blicas»214.
Aliás, perante «a questão colocada pela doutrina quanto a saber se
este direito penal administrativo é direito penal ou direito administrativo»,
AFONSO QUEIRÓ escrevia, em 1959: «a opinião mais seguida é a de que
se trata de direito administrativo, não de direito penal» 215, citando a obra
mais célebre sobre o direito penal administrativo, que é a de GOLDSCH-
MIDT, justamente intitulada Das Verwaltungsstrafrecht, com edição em Ber-
lim, de 1902. E, segue, partilhando: «E, com efeito, esta é a melhor opinião.
Confia-se a aplicação das sanções administrativas à Administração, justa-
mente para lhe permitir, não propriamente arbitrar um conflito de preten-
sões, para fazer justiça, super partes, mas para promover a satisfação de
uma necessidade pública específica, variável conforme a categoria das nor-
mas inobservadas. A aplicação de sanções, por parte da Administração,
não é um processo de fazer justiça, é um processo de assegurar a realiza-
ção perturbada ou prejudicada pela conduta de um particular ou de um
agente administrativo»216.
Volvidos tantos anos, eis que continuamos, no entanto, sem certe-
zas, pois, afinal, mesmo que se afirme a medo que a natureza jurídica é a
administrativa, os conflitos relativos ao ilícito administrativo não são re-
solvidos pelo juiz administrativo.
Aliás, a opção do legislador de 2015, vertida na alteração introdu-
zida à alínea l) do n.º 1 do art. 4.º do novo ETAF, reflete tanto a ausência
de consensos entre os administrativistas e penalistas nesta temática como
a incerteza e a falta de investimento dogmático no estudo do tema pela
doutrina administrativa.

214 AFONSO RODRIGUES QUEIRÓ, Lições de Direito Administrativo, Vol. I e II, Coim-
bra, 1959, pp. 78 e ss.
215 É certo que AFONSO RODRIGUES QUEIRÓ (Lições de Direito Administrativo, cit.,

p. 82) também cita doutrina que defende posição distinta e que considera que «o direito penal
administrativo é autêntico direito penal».
216 AFONSO RODRIGUES QUEIRÓ, Lições de Direito Administrativo, cit., p. 83.

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Parte V – Direito Administrativo especial

O pragmatismo das razões invocadas para uma solução tão redu-


tora, como é esta, é simplesmente o pequeno resultado de uma natural op-
ção do Coração que é filtrado por razões da Razão ⎼ uma razão que conti-
nua a impedir, pois, o juiz administrativo de decidir uma parte de leão do
contencioso administrativo, que é o que emerge da aplicação de sanções
administrativas de natureza contraordenacional.
Uma coisa é certa, sendo aliás uma conclusão tão atual quanto a
afirmação feita em 1979 que destaca o desconhecimento generalizado do
assunto: «haverá milhões de portugueses que continuarão a nascer, a viver
e a morrer sem saberem o que é uma contraordenação e uma coima» 217.

217 Expresso, Rubrica «A Figura da Semana», 28 de julho de 1979, p. 3, apud MANUEL

DA COSTA ANDRADE, «Contributo para o conceito de contra-ordenação...», cit., p. 81.

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